Digitalização e Formatação:
Luis Antonio Vergara Rojas - LAVRo
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O FANTASMA DA MEIA-NOITE
UMA REVELAÇÃO VERDADEIRAMENTE FANTASMOGÓRICA
Ao alugar um confortável apartamento num tranquilo
bairro de Nova York, o casal Yamada não poderia imaginar que
estranhos acontecimentos iriam por em risco a vida de se
casal de filhos: a curiosa Mitsue, de onze anos e o esperto
Kenji, de quatorze.
Recém-chegados de Tóquio, Kenji e Mitsue partilham com
os pais uma nova experiência a cada instante. Paisagem,
costumes, escola, amigos... Surpresas e encantamento! Até que
um fato absolutamente inesperado vem atormentar essa
pacata família.
Inacreditável! Mas um fantasma, pontualmente à meia-
noite de toda sexta-feira, entra no quarto de Mitsue para pedir
ajuda e ainda revelar-lhe um terrível assassinato...
Em O Fantasma de Meia-Noite, do mundialmente
consagrado Sidney Sheldon, os jovens japoneses passeiam por
novos lugares enquanto descobrem novas emoções. Depois de
Corrida Pela Herança e A Perseguição, que alçaram a lista dos
mais vendidos do país, chega a vez de O Fantasma da Meia-
Noite, uma história de aventura e suspense, onde não faltam
solidariedade, medo, coragem e muita determinação.
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Capítulo Um
Era inacreditável. Parecia um pesadelo, só que real.
Estavam prestes a ser assassinados. O homem os ameaçava
com uma faca enorme na mão e disse:
— Fechem os olhos.
Já podia ver a faca começando a cortar seus corpos
desamparados e não havia nada que pudessem fazer.
Absolutamente nada.
Tudo começara seis meses antes, quando o pai chegara do
trabalho.
— Tenho uma noticia sensacional para vocês — anunciou
Takesh Yamada. — Vamos para a América.
Sensacional? Era incrível!
Kenji, de quatorze anos, e Mitsue, de onze, fitaram o pai
na maior incredulidade. América! Era no outro lado do mundo.
Já haviam lido sobre a América nos livros escolares. Era um
pais enorme e também, para eles, muito misterioso.
— O que aconteceu? — indagou a mãe, Keiko. - Por que
vamos para lá?
Um vasto sorriso iluminou o rosto de Takesh Yamada.
— Esta manhã, Masaaki Takahashi me chamou à sua sala e
disse que o gerente de nossa fábrica em Nova York vai se
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aposentar. Querem que eu ocupe seu lugar. — Todos sabiam
que Masaaki Takahashi era o presidente da Corporação
Watanabe. — Assumirei o comando da fábrica.
A esposa e os dois de Takesh Yamada reagiram à notícia
com sentimentos contraditórios. Orgulhavam-se por ele ser
incumbido de uma missão tão importante... mas Nova York?
— Estaremos seguros lá, papai? — indagou Kenji, um
pouco nervoso.
Afinal, todos sabiam que Nova York era uma cidade cheia
de gângsteres, assaltantes e arruaceiros. O pai riu.
— Claro que sim. Os jornais exageram tudo.
A esposa, Keiko, preocupava-se com um problema
diferente.
— Mas isso significa que teremos de deixar nossa casa
aqui e começar tudo de novo.
— Será apenas por um ano — assegurou o marido. —
Voltaremos depois que estiver tudo em ordem na fábrica.
— Mas terei de deixar todas as minhas amigas e entrar
numa nova escola — protestou Kenji.
— Farão novos amigos — garantiu o pai.
Kenji sabia que era verdade. Era um garoto simpático e
inteligente, fazia amigos com facilidade. Mas havia outras
coisas a considerar. Era o capitão do time de beisebol da
escola. Não queria renunciar a essa posição.
— O que o time fará sem mim? — indagou ele.
— Tenho certeza que vai sobreviver até sua volta.
— Mas...
— Não há nenhum mas — interrompeu o pai, com firmeza.
— Será uma aventura emocionante para todos nós.
A família Yamada não tinha a menor ideia de como seria
emocionante. Se soubessem das coisas terríveis que estavam
prestes a lhes acontecer, nunca teriam saído de Tóquio.
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Nas duas semanas subsequentes, parecia que havia mil e
uma coisas a serem feitas ao mesmo tempo.
— Teremos de deixar alguns de nossos pertences num
depósito até voltarmos — disse Keiko. — Precisaremos decidir
o que levaremos para a América.
— Quero levar minha bicicleta — declarou Kenji.
— Não pode. É grande demais.
— Posso levar minha coleção de bonecas? — perguntou
Mitsue.
— Não posso deixar de levar minha luva de beisebol e as
fitas de música — avisou Kenji.
— E eu quero levar meus bichos de pelúcia e a casa de
bonecas — acrescentou Mitsue.
— Por favor, crianças! Não se esqueçam de que viajaremos
de avião e não podemos levar muita coisa.
— O que faremos com Neko? — indagou Mitsue. — Não
podemos deixá-los sozinha aqui.
Neko era a gata da família. Era enorme, preta, preguiçosa,
e todos a adoravam.
— Creio que não será possível levá-la — disse o pai.
— Por favor! — suplicaram as crianças. Ela morrerá sem a
gente.
— Acho que não haveria problema — declarou Keiko ao
marido. — As pessoas também devem ter animais de
estimação na América.
— Está bem — concordou Takesh Yamada. — Neko pode ir
conosco. Tomarei as providências necessárias para que viaje
em nosso avião.
Ninguém da família Yamada andara de avião antes. As
crianças aguardavam a oportunidade com ansiedade. Keiko
sentia-se um pouco nervosa.
— Os aviões são tão grandes quanto casas — comentou
ela. — Como podem se sustentar no ar?
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Kenji explicou à mãe, com alguma presunção:
— É o que chamam de aerodinâmica, mamãe. Os motores a
jato empurram o avião para a frente e as asas são curvas para
que possam voar.
Keiko torceu o nariz.
— Se Deus quisesse que voássemos, filho, teria nos dado
asas.
Finalmente chegou o dia da partida. As crianças
despediram-se dos amigos e professores. Keiko também se
despediu dos amigos e vizinhos e até dos comerciantes com
quem costumava fazer compras. Todos se mostravam
excitados por eles.
— Não imagina como a invejo — disse uma vizinha a
Keiko. - Sempre sonhei em conhecer a América.
— Contarei como é quando voltarmos - prometeu Keiko.
— Sente-se nervosa com a perspectiva de voar?
— Claro que não.
— Eu me sentiria — comentou a vizinha. — Aqueles aviões
são grandes demais. Como conseguem ficar no ar?
— É muito simples - explicou Keiko, presunçosa. - É o que
chamam de aerodinâmica. Os motores a jato empurram o
avião para a frente e as asas são curvas para que possam
levantar voo.
Takesh Yamada não admitira para a família, mas também
se sentia nervoso com a ideia de voar. A família foi levada ao
aeroporto numa limusine da empresa. O aeroporto estava
bastante movimentado. Parecia que todas as pessoas do
mundo iam voar para algum lugar. Kenji olhou para a placa
que dizia "Partidas e Chegadas" e disse:
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— Olhem ali!
Os nomes na placa pareciam ter saído dos livros de
história: Índia, Alasca, Marrocos, Paris, Nigéria, Polônia,
Moscou...
— Pensem só nisso! — exclamou ele. — Há pessoas
viajando para todos esses lugares todos os dias!
— E sabe qual é o mais fascinante de todos os lugares? —
indagou o pai.
— Não, papai.
— A cidade em que vamos morar, Nova York.
O voo era pela Japan Airlines, e o avião seria um 747.
— É tão grande quanto um campo de futebol — comentou
Kenji.
Viram Neko ser posta numa caixa especial e levada para o
compartimento de bagagens.
Havia mais de trezentos passageiros no voo. A voz da
aeromoça saiu pelo sistema de alto-falantes:
— Apertem os cintos de segurança, por favor.
Kenji já prendera seu cinto. ficara com medo de haver um
solavanco no momento em que o avião decolasse, derrubando-
o da poltrona. Não sabia que o pai pensara a mesma coisa.
— Apertem bem os cintos de segurança — recomendou
Takesh Yamada.
Mitsue estava à beira do pânico.
— Claro, papai.
Ouviram o súbito rugido dos jatos, enquanto o avião
disparava pela pista. Keiko agarrou os braços da poltrona.
— Vamos decolar.
Ela fechou os olhos, apavorada, achando que haveria um
desastre. Esperou e esperou, mas nada aconteceu. Só abriu os
olhos depois de muito tempo e não pode acreditar no que viu.
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Já se encontravam no ar e ninguém sentira qualquer coisa.
Olharam pela janela, enquanto o avião continuava a subir e
Tóquio se tornava cada vez menor. Ouviram o som do trem de
aterrisagem sendo recolhido. Estavam voando!
— Ora, não tem nada demais! — exclamou Keiko. — É
apenas como andar de carro, só que mais alto.
Keiko ainda não podia acreditar na facilidade da
decolagem. Viajavam agora a centenas de quilômetros
horários, mas dava a impressão de que se encontravam
parados. A Terra lá embaixo parecia se deslocar muito
devagar.
— Esperem só até eu contar às minhas amigas sobre isso!
— disse Mitsue. — Todas ficarão com inveja!
Kenji não podia explicar, nem para si mesmo, mas
subitamente parecia-lhe que se tornara um homem. Quantos
amigos meus já voaram num avião?, pensou ele. Nenhum.
Mitsue tem razão. Todos ficarão com a maior inveja.
O almoço começou a ser servido pouco depois da
decolagem. Podiam escolher entre comida japonesa e
americana. Takesh e Keiko preferiram o cardápio japonês, mas
as crianças pediram hambúrgueres, batatas fritas e Coca-Cola.
— Essa comida faz mal — desdenhou o pai.
Kenji sorriu.
— Se vamos viver na América, é melhor nos
acostumarmos logo à maneira como eles comem.
— Isso nada tem a ver com a vida na América — interveio
Keiko. — é o que você e Mitsue sempre pedem no McDonald's
em Tóquio quando os deixo almoçarem fora.
Depois do almoço, Kenji perguntou:
— Mitsue e eu podemos dar uma volta?
— Podem, sim, mas não incomodem os outros passageiros
— respondeu Takesh.
— Não vamos incomodar ninguém, papai.
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Kenji e Mitsue circularam pelos corredores, explorando o
avião. Ao chegarem à cabine, o piloto abriu a porta.
— Quem são vocês? — indagou ele.
— Sou Kenji Yamada e esta é minha irmã, Mitsue.
— Sejam bem-vindos a bordo. Quer dizer que estão indo
para Nova York. Já conhecem a cidade?
— Não senhor, — respondeu Kenji. — Vamos morar lá por
um ano. Meu pai vai dirigir uma grande fábrica de
equipamentos eletrônicos em Nova York.
— Eletrônicos, hein? Vocês dois não gostariam de visitar a
cabine? Temos vários equipamentos eletrônicos aqui.
Kenji não podia acreditar em tanta sorte.
— Claro que gostaríamos, senhor! Podemos?
— Creio que se pode dar um jeito. — O piloto abriu a
porta. — Entrem.
Kenji e Mitsue entraram na cabine. Não dava para
acreditar no que viam. Ao lado do assento do piloto sentava o
co-piloto e por trás o engenheiro de voo. O mais espantoso,
porém, eram os painéis de instrumentos que ocupavam toda a
pequena cabine.
— Deve haver um milhão de instrumentos aqui! —
exclamou Kenji.
— Quase. — O piloto sorriu. — Todo a bordo é
computadorizado. Este avião quase que pode voar sozinho.
— Mas não contem isso a ninguém — disse o co-piloto —,
ou seremos despedidos.
Eles deixaram as crianças ficar ali por dez minutos, na
maior fascinação. Ao final, Mitsue, sugeriu:
— É melhor voltarmos para nossos pais, ou eles
começarão a ficar preocupados. Obrigada.
— O prazer foi nosso — assegurou o piloto. — Tentaremos
fazer com que tenham uma viagem tranquila.
As crianças voltaram apressadas para juntos dos pais.
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— Não vão adivinhar o que nos aconteceu — disse Kenji.
— O piloto nos deixou entrar na cabine.
O pai ficou impressionado.
— É mesmo.
— É, sim, papai. Quando eu crescer, talvez me torne um
piloto.
— Enquanto isso — interveio Keiko —, temos muitas horas
de voo pela frente e acho que seria uma boa ideia se vocês
dormissem um pouco.
— Estou excitado demais para dormir — garantiu Kenji.
— E eu também — acrescentou Mitsue.
Meia hora depois, os dois haviam mergulhado num sono
profundo.
Foram despertados pela voz que saía através do sistema
de alto-falantes:
— Apertem os cintos, por favor, e apaguem os cigarros.
estamos nos aproximando do Aeroporto Kennedy.
As crianças ficaram alerta no mesmo instante. Olharam
pelas janelas para divisar a paisagem de Nova York lá
embaixo. Parecia uma floresta de enormes edifícios.
— Lembra Tóquio — comentou Kenji. — Só que os
edifícios são mais altos.
Ouviram o trem de aterrisagem ser arriado, com um
estrépito, e Keiko indagou, aflita:
— Vamos cair?
— Claro que não, mamãe — respondeu Kenji. — Apenas
baixaram as rodas.
Poucos minutos mais tarde estavam no solo. O pouso foi
tão suave que Keiko mal podia acreditar.
— De que eu tinha medo? — murmurou ela. — Voar é uma
coisa tranquila.
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Uma rampa enorme foi encostada na porta do avião e os
passageiros desembarcaram. O Aeroporto Kennedy era enorme
e também se encontrava, como o de Tóquio, apinhado de
passageiros.
Foram recebidos no aeroporto por Hiroshi Tamura, um
executivo da Corporação Watanabe. Cumprimentaram-se com
mesuras polidas e Tamura disse:
— Espero que tenham feito uma boa viagem.
— Foi maravilhosa — respondeu Keiko.
— Já pegaram toda a bagagem?
— Ainda não — informou Mitsue. — Falta Neko, a nossa gata.
— Trouxeram sua gata?
Tamura parecia surpreso.
— Claro. Ela integra a família.
Mitsue foi pegar a caixa especial em que a gata viajara e
Neko ronronou de alegria.
— Providenciei um hotel para vocês ficarem, até
conseguirem um apartamento. A fábrica fica na zona oeste da
cidade, num distrito industrial. Imagino que está ansioso por
conhecê-la.
— É verdade — confirmou Takesh Yamada.
Uma limusine conduziu-os ao hotel, onde assinaram os
registros e foram para uma confortável suíte, com três
quartos, Mitsue instalou-se no que parecia mais feminino.
Kenji foi para outro, e o Sr. e Sra. Yamada ocuparam o quarto
maior. O Sr. Tamura disse a Takesh Yamada:
— Todos aguardávamos por sua chegada. O gerente que
vai se aposentar é muito bom, mas está ficando velho.
Precisamos de alguém novo, que traga mais energia para as
funções.
— Farei o melhor possível — murmurou o Sr. Yamada,
modesto.
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Tinha certeza de que realizaria um trabalho excepcional.
O Sr. Tamura acrescentou:
— Virei busca-lo para irmos à fábrica pela manhã. Se
sentirem forme, há um ótimo restaurante aqui no hotel.
Mas todos estavam excitados demais para comer, ansiosos
por explorar a cidade. Assim que o Sr. Tamura se retirou,
Kenji indagou:
— Podemos sair para dar uma volta?
— Iremos todos — respondeu o pai.
— Quero conhecer a Broadway — informou Keiko.
— E eu quero ver o Rockefeller Center — disse Mitsue.
— E eu quero ir ao Radio City Music Hall — arrematou
Kenji.
— Conheceremos todos esses lugares — assegurou Takesh
Yamada. - Passaremos um ano aqui. Não precisamos ver tudo
em uma única noite.
Depois de desfazer as malas, a família desceu para o
saguão e saiu para a rua.
— Não é muito diferente de Tóquio — observou Kenji. —
Só que aqui todo mundo fala inglês.
Foram andando pela rua, olhando para todas as coisas.
— Acho que vou gostar da América — disse Mitsue. —
Tenho certeza de que será uma estada emocionante.
Ela não tinha a menor ideia do quanto seria emocionante,
ou de que ela e o irmão se envolveriam num assassinato.
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Capítulo Dois
Pela manhã, Hiroshi Tamura veio buscar Takesh Yamada.
— Podemos ir para a fábrica agora — disse ele.
— Estou pronto.
Takesh Yamada queria começar a trabalhar logo. O
presidente da empresa lhe dera uma grande responsabilidade,
e estava determinado a realizar um bom trabalho. Se assim
acontecesse, receberia outra promoção quando retornasse ao
Japão. Ele virou-se para a esposa.
— Enquanto estou na fábrica, por que não procura um
apartamento para nos mudarmos?
O hotel era agradável, mas um tanto apertado. E seria
desconfortável residirem num hotel durante um ano.
Precisavam encontrar um bom apartamento.
— Não sei onde procurar — confessou Keiko.
— Infelizmente, Nova York é uma cidade superpopulosa —
explicou Tamura. — É difícil encontrar um bom apartamento e
os poucos disponíveis são muito caros. Mas tenho uma
sugestão. Dê uma olhada nos classificados dos jornais.
— Classificados?
— Isso mesmo. Anunciam os apartamentos para vender ou
alugar. Pode começar por aí.
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— Obrigada. Parece uma boa ideia.
Pode ser muito difícil encontrar apartamentos para
alugar, pensou Keiko, mas descobrirei um lindo apartamento e
farei com que meu marido e meus filhos se orgulhem de mim.
Depois que os dois homens foram embora, ela virou-se para
Kenji e Mitsue:
— Gostariam de sair comigo para procurar um
apartamento?
As crianças mostraram-se animadas, não tanto com a
perspectiva de procurar um apartamento, mas pela
oportunidade de conhecer mais um pouco da espantosa cidade
onde viveriam.
— Eu gostaria muito — respondeu Kenji.
— E eu também — acrescentou Mitsue.
— Muito bem, então vamos. E amanhã procurarei uma
escola para vocês.
O que constituía outra aventura. Como seriam as escolas
americanas em comparação com as japonesas em que haviam
estudado? No Japão, as crianças empenham-se ao máximo na
escola, pois eram os melhores alunos que mais tarde
obtinham importantes empregos nas grandes empresas. O
mesmo acontecia nas escolas americanas? As crianças aqui
estudavam com o mesmo afinco? Os dois sentiam-se nervosos
com a ideia de ingressar numa escola americana.
Já era quase meio-dia quando Keiko e as crianças ficaram
prontas para sair.
— Estou com fome — disse Kenji. — Podemos comer
alguma coisa?
— Claro — respondeu Keiko. — Vamos almoçar primeiro e
depois procuraremos um lindo apartamento.
Deixaram o hotel, foram andando pela Terceira Avenida.
Havia um tráfego intenso, e as ruas barulhentas encontravam-
se apinhadas de pedestres, seguindo apressados em todas as
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direções. Á exceção dos rostos das pessoas, não era muito
diferente de Tóquio.
— Será que todas as grandes cidades de mundo são
parecidas — indagou Kenji.
— Não sei — respondeu Mitsue. — Não conheço outras
cidades.
Passaram por uma loja de aparelhos eletrônicos e pararam
para olhar a vitrine.
— Ei, solhem só! — exclamou Kenji. — Eles têm Sonys e
Toshibas, e até Nikons!
Havia muitos outros produtos japoneses na vitrine. Ao
atravessarem a rua, quase foram atropelados por um carro.
era um Toyota. Por trás, havia Nissans e Hondas.
— Eles também têm carros japoneses — comentou Mitsue.
Passaram por um bar de sushi.
— Ora, é como se estivéssemos em Tóquio!
Ao se aproximarem de um restaurante da cadeia Kentucky
Fried Chicken, Mitsue disse:
— Kentucky Fried Chicken. Eles também têm isso aqui.
Keiko riu.
— Nem podia ser de outra forma. Foi aqui que começou.
Ao lado, havia um McDonald's.
— Os americanos têm até um McDonald's — ressaltou
Kenji.
Decidiram entrar e almoçar hambúrgueres. A casa estava
lotada, mas a comida tinha um sabor exatamente igual ao do
McDonald's de Tóquio. De uma estranha maneira, isso deixou
as crianças com saudade. Não havia lugar no mundo como
Tóquio. Era lá que estavam seus amigos e professores. E todas
as coisas que amavam.
É muito estranho que comer num McDonald's em Nova
York me faça sentir saudade de Tóquio, pensou Kenji.
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Depois do almoço, Keiko comprou um exemplar do New
York Times. Procurou a seção de classificados. Como Tamura
informara, havia muitos anúncios de apartamentos para
alugar.
— São tantos que nem sei por onde começar — disse
Keiko. — Há apartamentos no East Side e no West Side.
— Por que não começamos pelo Est Side? — sugeriu Kenji.
— Muito bem, vamos para lá.
Como a família Yamada só passaria um ano nos Estados
Unidos, haviam decidido não levar os móveis, e por isso
precisavam de um apartamento mobiliado. Os anunciados no
jornal pareciam maravilhosos.
— Vejam só este — disse Keiko. — "Lindo apartamento
mobiliado, três quartos, sala espaçosa, cozinha, mil dólares
por mês." Parece perfeito para nós.
Keiko sentiu-se muito satisfeita por ter encontrado um
excelente apartamento tão depressa.
Pegaram um taxi e deram o endereço ao motorista. Ao
chegarem ao prédio, ficaram consternados. O lugar era
horrível, o prédio velho e decrépito.
— Tenho certeza de que o interior é muito melhor —
declarou Keiko, na maior animação.
Estava enganada. A sala espaçosa e os três quartos não
passavam de cubículos mínimos, e os móveis eram velhos e
feios.
— Este apartamento não serve — decidiu ela, e as crianças
concordaram.
— Vamos ver os anúncios de novo — propôs Kenji.
Estudaram os classificados e Keiko finalmente anunciou:
— Este aqui parece muito bom. Vamos até lá.
Mas quando lá chegaram, descobriram que era um
desastre. O apartamento era ainda pior do que o primeiro.
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— é um lugar horrível — murmurou Keiko.
— Também acho.
Tornaram a procurar nos classificados.
— Este aqui parece muito bom.
Viram mais meia dúzia de apartamentos, e Keiko começou
a compreender que tudo o que parecia atraente no anúncio na
realidade não era tão maravilhoso assim.
— Seu pai não se sentiria feliz em nenhum desses
apartamentos — comentou ela para as crianças. — Temos de
continuar a procurar.
Foram para o East Side e a mesma coisa aconteceu.
Nenhum dos apartamentos parecia adequado, e um ou outro
que satisfazia à família tinha um aluguel muito alto. Passaram
a tarde inteira procurando, e às cinco horas ainda não haviam
encontrado um lugar para morar.
— Takesh vai ficar muito desapontado. — Keiko suspirou.
— Não sei mais o que fazer.
Só restava um apartamento para ver, mas Keiko tinha
certeza de que nem adiantava ir até lá. Afinal, o anúncio dizia:
"Lindo apartamento mobiliado, três quartos, cozinha grande,
copa, sala de jantar, e terraço, com vista espetacular. Aluguel,
seiscentos dólares."
— Porque não vamos vê-lo? — perguntou Mitsue.
— Porque o anúncio não é verdadeiro. Vimos
apartamentos de mil dólares por mês que só tinha dois
quartos, sem sala de jantar e sem terraço. Este deve ser
horrível.
— Por que não tentamos? — Insistiu Kenji. — É a nossa
última chance.
— Muito bem, vamos até lá — concordou a mãe.
O prédio ficava em Riverside Drive, um lugar aprazível e
tranquilo.
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— Tudo por aqui deve ser muito caro — comentou Kenji.
Chegaram ao prédio indicado no anúncio. Era o mais
bonito de todos os que haviam visto até agora.
— Tenho certeza de que não encontraremos um
apartamento de seiscentos dólares aqui — disse Keiko. — Mas
já que viemos, vamos dar uma olhada.
Entraram no prédio. O saguão era agradável, recém-
pintado, com flores naturais numa mesa. Um homem
simpático saiu por uma porta com letreiro "Zelador" e disse:
— Em que posso ajuda-los? Sou o zelador.
Keiko mostrou o anúncio no jornal.
— Diz aqui que há um apartamento para alugar.
O zelador acenou com a cabeça.
— Há, sim.
— Podemos vê-lo?
— Claro. Acompanhem-me, por favor.
O homem levou-os para o elevador e subiram até o último
andar.
— Aqui estamos — disse ele. — Permitam que me
apresente. Sou John Feeney.
— Somos a família Yamada — disse Keiko. — Sou a Sra.
Yamada, este é meu filho, Kenji, e minha filha, Mitsue.
— Prazer em conhecê-los.
Feeney conduziu-os por um corredor até uma porta no
final. Tirou uma chave do bolso e abriu-a.
— Aqui estamos.
Keiko e as crianças entraram no apartamento e olharam ao
redor, espantadas.
— O apartamento é maravilhoso!
— Por favor, fiquem a vontade — declarou Feeney. —
Podem examinar tudo.
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A família Yamada circulou por todo o apartamento, numa
incredulidade crescente. Havia três quartos, amplos e
arejados, uma cozinha grande, uma atraente sala de jantar,
copa, e — como o anúncio prometia — um terraço que dava
para um parque. Era além de suas melhores expectativas. Mas
Keiko sabia que tinha de haver alguma armadilha. Custaria
muito mais do que podiam pagar. Ela virou-se para Feeney e
perguntou:
— Quanto custa?
— Como diz no anúncio, seiscentos dólares por mês.
Keiko não podia acreditar.
— Não dá para entender. Vimos outros apartamentos
muito mais caros e vem inferiores a este. Por que é tão
barato?
Feeney hesitou, como se procurasse pelas palavras certas:
— O proprietário passará um ano ausente e fixou esse
preço.
Keiko sentiu que ele não contara tudo. Havia mais alguma
coisa que estava omitindo.
— Gostaria de alugá-lo, Sra. Yamada?
Ela sabia que seria uma tola se relutasse. Aquele devia ser
o melhor negócio imobiliário em toda Nova York.
— Claro. Ficaremos com ele.
As crianças soltaram gritos de satisfação. Depois de todos
os apartamentos pequenos e escuros que haviam visto durante
o dia, não esperam encontrar um lugar tão bom quanto aquele.
— Tomou uma sábia decisão — disse o Sr. Feeney. — O
apartamento é seu.
Como meu marido vai se orgulhar de mim por ter
arrumado um negócio tão bom!, pensou Keiko.
— Trarei meu marido aqui esta noite e ele assinará o
contrato.
— Não tem problema.
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— Podemos dar mais uma olhada? — pediu Keiko.
— Claro. E não precisam se apressar.
Na segunda vez, o apartamento lhes pareceu ainda
melhor. Keiko escolheu o quarto principal para ocupar com o
marido. As crianças examinaram os outros quartos e Mitsue
optou pelo que tinha linda cama, com um dossel de renda por
cima.
— É bastante grande, e todas as minhas bonecas e bichos
de pelúcia caberão aqui — disse ela.
Kenji também gostou de seu quarto.
— Tem uma vista do parque. — Ele olhou pela janela. —
estão jogando beisebol lá embaixo. Talvez eu possa entrar
num dos times.
Voltaram para a entrada do apartamento, onde o Sr.
Feeney os esperava.
— Estaremos aqui às nove horas da noite — prometeu
Keiko.
— Espero que se sintam felizes no apartamento —
murmurou o Sr. Feeney.
Havia algo estranho no tom de sua voz. Se Keiko soubesse
o que ele pensava naquele momento, teria fugido dali com os
filhos.
Ao final da tarde, quando voltou da fábrica, Takesh
Yamada tinha muitas novidades para contar.
— A fábrica é maravilhosa e farei com que se torne ainda
melhor. Apresente minhas ideias sobre expansão e todos
ficaram entusiasmados. Creio que poderemos aumentar nosso
faturamento em cinquenta por cento.
— Mas isso é sensacional! — Keiko sentiu o maior orgulho
do marido. — As crianças e eu também temos novidades para
você. Encontrei um lindo apartamento. Tenho certeza de que
você vai adorar.
— Quanto custa? — perguntou o Sr. Yamada.
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— Seiscentos dólares por mês.
Takesh Yamada conhecia o suficiente de Nova York para
saber que não havia lindos apartamentos de seiscentos
dólares por mês disponíveis. Mas limitou-se a dizer:
— Darei uma olhada. Podemos ir até lá logo depois do
jantar.
— Não podemos ir agora? — Insistiu Keiko. — Receio que
alguém o tire de nós, pois é uma oportunidade excepcional.
— Está bem — concordou Takesh. — Vamos agora.
Seguiram de táxi. O Sr. Yamada ficou impressionado com
a aparência do prédio, e mais inda com o belo saguão. Não
esperava grande coisa. Teve uma agradável surpresa quando o
Sr. Feeney abriu a porta e deixou-os entrar no apartamento. O
Sr. Yamada reagiu com o mesmo entusiasmo da esposa e dos
filhos. Não podia acreditar que aquele excelente apartamento
custasse apenas seiscentos dólares por mês.
— Ficaremos com ele — declarou Takesh, feliz, virando-se
em seguida para a esposa. — Fez um excelente trabalho.
Keiko corou.
— Obrigada, Takesh.
Feeney já preparara o contrato e só demorou alguns
minutos para que Takesh o examinasse e assinasse. Feeney
entregou-lhe uma cópia do contrato.
— Aqui está. O apartamento é seu por um ano.
Naquela mesma noite, a família Yamada arrumou as malas
e mudou-se do hotel para o apartamento. Levaram Neko em
sua caixa especial. Mitsue abriu a caixa e tirou-a:
— Este é o seu novo lar, Neko. Gosta?
Para surpresa de todos, Neko recuou para um canto,
sibilando, o pelo todo eriçado.
— O que há com essa gata? — perguntou o Sr. Yamada.
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— Não sei — respondeu Mitsue, perplexa. — Ela nunca se
comportou dessa maneira antes.
A família estava excitada demais para dormir logo, mas
por volta das onze horas da noite todos se encontravam num
sono profundo. Takesh e Keiko dormiam em sua cama de
casal. Takesh sonhava com a fábrica e Keiko com o novo
apartamento, Kenji dormia em seu quarto e Mitsue em sua
linda cama com um dossel de renda. Reinava silêncio no
apartamento.
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À badalada da meia-noite, um sonoro grito ressoou pelo
apartamento. Takesh Yamada sentou na cama e disse a Keiko:
— As crianças! Aconteceu alguma coisa com as crianças!
O primeiro pensamento de Mitsue foi o de que ocorrera
alguma coisa com os pais. Kenji, ao ser despertado pelo grito,
pensou que o problema era com Mitsue. Todos correram para
a sala e se entreolharam, aturdidos.
— Vocês estão bem? — perguntou o pai às crianças.
— Estou, sim — respondeu Kenji.
— E eu também — acrescentou Mitsue.
O pai ficou ainda mais perplexo.
— então quem gritou?
Todos sacudiram a cabeça. Nenhum deles gritara.
Foi nesse instante que ouviram um sibilar intenso e todos
se viraram para olhar. Neko se encolhia num canto, os olhos
cheios de terror.
#
Capítulo Três
Na manhã seguinte, ao desjejum, conversaram sobre o
grito misterioso que haviam ouvido durante a noite.
— É provável que tenha vindo de outro apartamento —
sugeriu Takesh Yamada.
No entanto a explicação não lhe parecia razoável porque
as paredes do apartamento davam a impressão de ser bem
grossas, e o grito soara muito perto.
— Talvez alguém tenha ligado a televisão alto demais —
sugeriu Kenji.
— Deve ter sido isso — concordou Keiko.
Fora uma estranha experiência, mas sem dúvida não podia
ser um motivo de preocupação.
— Se acontecer de novo, falarei com o Sr. Feeney. —
Takesh Yamada virou-se para Kenji e Mitsue. — Quando as
crianças entrarão na escola?
— O Sr. Feeney me disse que há uma escola a dois
quarteirões de daqui — informou Keiko. — E garantiu que é
uma ótima escola. Levarei as crianças até lá esta manhã.
— Boa ideia. Não quero que as crianças se atrasem nos
estudos.
#
— Vamos estudar bastante, papai — prometeu Kenji.
Takesh levantou-se.
— Bom, está na hora de sair para o trabalho. Há muito o
que fazer.
Assim que o pai se retirou, Keiko disse aos filhos:
— Vamos conhecer a nova escola?
— Claro, mamãe.
Os dois tentaram disfarçar o nervosismo. Haviam
estudado um pouco de inglês na escola em Tóquio, mas havia
muita coisa na língua que ignoravam.
— Não queremos parecer ignorantes — explicou Kenji.
— Não se preocupem. — A mãe riu. — São muito
inteligentes e aprenderão depressa.
E foram para a escola.
Era diferente do que esperavam, um prédio grande,
bonito, limpo, com um enorme pátio.
— Aposto que jogam bola aqui — comentou Kenji.
— Não vai à escola para jogar bola — repreendeu a mãe. —
Você e Mitsue estão aqui para aprender.
Entraram no gabinete da diretora, a Sra. Marcus, muito
simpática.
— Em que posso ajudá-los?
— Sou a Sra. Yamada e estes são meus filhos, Kenji e
Mitsue. Acabamos de chegar do Japão. Passaremos um ano em
Nova York e queremos por as crianças na escola. E me
disseram que está é excelente.
A Sra. Marcus sorriu.
— Espero que assim seja. — Ela olhou para as crianças. —
Falam inglês muito bem?
Foi Kenji quem respondeu:
— Estudamos um pouco no Japão, mas nosso vocabulário
e bastante limitado.
#
A Sra. Marcus balançou a cabeça.
— Tenho certeza de que nenhum dos dois terá maiores
problemas. Como não são fluentes em inglês, terão de
começar por uma série abaixo da que cursavam no Japão, mas
estou certa de que vão se recuperar num instante.
— Estudaremos muito — prometeu Kenji.
Ele queria falar inglês tão bem quanto os colegas. A Sra.
Marcus virou-se para Keiko:
— Pode deixar as crianças comigo e providenciarei para
que sejam matriculadas nas séries apropriadas.
— Obrigada.
Depois de fornecer à Sra. Marcus todas as informações
necessárias sobre as crianças, Keiko se retirou e Kenji e
Mitsue ficaram a sós com a diretora. A Sra. Marcus disse,
gentilmente:
— Sei que se sentem nervosos por começar a estudar
numa nova escola, em outro pais, mas posso garantir que vão
superar o nervosismo bem depressa. Temos uma ótima escola,
os alunos são muito bons. Assim que o inglês de vocês
melhorar, passará para uma série mais adiantada. — Ela olhou
para Kenji: — Espere um pouco aqui, enquanto levo Mitsue à
sua sala. Voltarei para buscá-lo.
— Está bem.
A Sra. Marcus virou-se para Mitsue:
— Venha comigo.
— Pois não, madame.
Enquanto andavam pelo corredor, a Sra. Marcus explicou:
— Na América, temos uma sala principal para cada turma.
Sempre terá a primeira aula ali, todas as manhãs. Depois, em
algumas matérias, terá aulas em salas diferentes.
— Quer dizer que terei muitos professores? — perguntou
Mitsue.
#
— Quatro ou cinco, mas se tiver alguma dificuldade, será
a professora principal que irá ajuda-la.
Entraram numa sala cheia de crianças. Para surpresa de
Mitsue, ninguém usava uniforme. Os meninos usavam jeans, e
as meninas vestiam saia e suéter, ou calça comprida e blusa.
No Japão, pensou Mitsue, todos os estudantes usam
uniformes.
Uma professora de cabelos grisalhos, rosto simpático,
estava de pé diante do quadro-negro. Parou de falar quando a
Sra. Marcus e Mitsue apareceram.
— Peço desculpas por interromper a aula — disse a Sra.
Marcus —, mas queria apresentar sua nova aluna. Esta é
Mitsue Yamada. Mitsue, esta é s Sra. Kellogg.
— Seja bem-vinda, Mitsue — disse a Sra. Kellogg. — Há
quanto tempo está nos Estados Unidos?
— Dois dias — respondeu Mitsue, tímida.
— Neste caso, tudo ainda deve lhe parecer muito
estranho.
Mitsue pensou nos aparelhos de televisão japoneses,
carros japoneses e McDonald's, mas tudo o que disse foi:
— É, sim madame.
— Muito em breve estará se sentindo à vontade. — A
professora indicou uma carteira vazia. — Aquele será seu
lugar daqui por diante.
Os colegas de Mitsue observavam-na com a maior
curiosidade. Mas pareciam cordiais, e Mitsue sentiu de
repente que tudo correria bem.
Ao voltar à sua sala, a Sra. Marcus disse a Kenji:
— Já resolvi o problema de Mitsue, e agora vamos cuidar
de você.
Ela levou Kenji à sua sala principal. Kenji também se
surpreendeu ao contatar que os alunos não usavam uniformes.
#
Especulou se tudo ali seria diferente. O Sr. Leff era o
professor principal da turma de Kenji. Depois que foram
apresentados, o Sr. Leff disse:
— Não se sinta frustrado se não compreender tudo a
principio, e não tenha medo de fazer perguntas.
Kenji fez sua primeira pergunta:
— O que significa frustrado?
O Sr. Leff sorriu.
— Frustrado é quando você se sente infeliz porque quer
que as coisas aconteçam mais depressa.
— Neste caso, estou frustrado. Gostaria de falar um inglês
perfeito agora.
O Sr. Leff riu.
— É uma boa atitude.
— O que é atitude?
— Atitude é a maneira como você se sente em relação às
coisas. Posso perceber que vai fazer muitas perguntas, Kenji.
O que é um excelente presságio.
— O que é presságio?
— Presságio é um sinal do que vai acontecer no futuro.
— Já entendi.
Na aula de Mitsue, estavam aprendendo os dias da semana
em inglês.
— Muito bem. Sunday (domingo) é o dia de descanso. O
que vem depois de Sunday?
— Monday (segunda-feira).
— E depois de Monday?
— Tuesday (terça-feira).
— E o dia seguinte?
— Wednesday (quarta-feira).
— E depois disso?
#
— Thursday (quinta-feira).
— Ótimo. Qual é o dia depois de Thursday?
— Friday (sexta-feira).
— E depois?
— Saturday (sábado).
Uma pausa, e a turma gritou em coro:
— Sunday!
— Portanto, são esses os dias da semana em inglês:
Sunday, Monday, Tuesday, Wednesday, Thurday, Friday e
Saturday.
Ao meio-dia a crianças reuniram-se no refeitório da escola
para almoçar. Mitsue anunciou para o irmão, orgulhosa:
— Já aprendi os dias da semana em inglês.
— Isso não é nada — gabou-se Kenji. — Eu aprendi os
meses do ano.
Mitsue ficou impressionada.
— É mesmo?
— Verdade. January (janeiro), February (fevereiro), March
(março)... — Kenji hesitou, sem ter muita certeza, mas logo se
lembrou. — April (abril), May (maio), June (junho), July
(julho)...
Ele hesitou de novo. O que vinha depois de julho?
— August (agosto), September (setembro), October
(outubro), November (novembro, December (dezembro). Está
vendo? — arrematou Kenji, triunfante. — São os doze meses
do ano em inglês!
— Você é muito inteligente — murmurou a irmã.
— O inglês é fácil — gabou-se Kenki. — Qualquer um pode
falar.
Uma coisa que surpreendeu os dois foi a maneira estranha
dos americanos comerem. Notaram isso no refeitório da
#
escola. Ninguém comia com pauzinhos. Em vez disso, usavam
utensílios de aparência estranha.
Mitsue sentiu-se embaraçada em perguntar o que eram,
mas Kenji virou-se para um colega sentado ao lado e levantou
um garfo.
— Como chamam isto?
— É um garfo, Kenji. — O colega suspendeu uma faca. —
Isto é uma faca. Você usa para cortar a carne. — Ele
suspendeu uma colher. E isto é uma colher. Usa-se para a sopa
ou sorvete.
— Obrigado.
Que estranhos hábitos tinham aqueles americanos! Kenji e
Mitsue não queriam parecer diferentes; por isso, observaram a
maneira como as outras crianças comiam e logo foram
capazes de imitá-las.
Naquela tarde, Mitsue aprendeu os nomes de diferentes
cores. A Sra. Kellogg mostrou à turma listras de papel
coloridas.
— Isto é blue (azul)... red (vermelho)... White (branco)...
black (preto)... purple (púrpura)…
Foi fácil. Ao final do dia, Mitsue já aprendera os nomes de
todas as cores em inglês.
Ao correr os olhos por sua turma, Kenji ficou surpreso
com uma coisa. Em sua escola no Japão, todas as crianças
eram japonesas. Naquela escola, porém havia crianças de
muitas nacionalidades diferentes. Havia um menino negro
sentado atrás dele e uma mexicana ao lado. Havia porto-
riquenhos, cubanos e chineses. Quando as aulas terminaram,
Kenki foi falar com o Sr. Leff.
— Com licença — disse Kenji —, mas de que país é o
menino negro na turma?
— Ele é daqui, Kenji. É americano.
#
— Ahn... E a menina mexicana sentada ao meu lado, o que
ela é?
— Também é americana. Todas as crianças na turma são
americanadas. As pessoas vêm para cá de muitos países,
Kenji, em busca de liberdade. Procuravam um lugar em que
pudessem viver como quisessem e professar a religião que
desejassem. A América é uma fusão de muitas raças e
religiões, e todos são bem-vindos aqui. Todos são americanos.
Foi uma lição interessante para Kenji. Ao chegar em casa,
conversou a respeito com a mãe.
— A América parece ser muitos países reunidos num só —
comentou ele. — Não há apenas uns poucos estrangeiros aqui,
mas todos parecem ser estrangeiros.
— É muito interessante — disse Keiko.
— Meu professor disse que a América é uma fusão de
muitas raças e religiões. Quando vi todos aqueles produtos
japoneses aqui, pensei que seria como viver em Tóquio. Mas é
muito diferente.
— Gostou do se professor?
— O Sr. Leff? Ele me deixa fazer perguntas.
Keiko riu. Conhecia o filho.
— Provavelmente vai levá-lo à loucura com suas
perguntas.
Kenji acenou com a cabeça.
— Vou tentar. Essa é a única maneira de aprender.
Mitsue tinha um problema para discutir com a mãe.
— Mãe, quer me comprar um jeans? E posso usar batom
para ir à escola?
A Sra. Yamada ficou horrorizada.
— O quê?
— Todas as garotas da escola usam jeans. — Mitsue logo
se corrigiu: — Isto é, algumas. Também usam batom, e...
#
A Sra. Yamada foi firme:
— Não importa o que as outras crianças estejam fazendo.
Você vai se vestir direito e não usará batom.
— Ora, mãe, estamos na América...
— E Você é Mitsue Yamada, fará o que eu mandar. — A
Sra. Yamada viu o desapontamento de Mitsue e acrescentou: —
Quando ficar um pouco mais velha, poderá usar batom.
Mitsue teve de se contentar com isso.
Takesh Yamada era um homem muito feliz. O progresso
na fábrica de aparelhos eletrônicos era ainda mia rápido do
que ele previra. O Sr. Yamada começara como aprendiz ainda
quando menino e se tornara muito competente no que fazia.
Dava-se bem com as pessoas, logo fora promovido a chefe de
seção e poucos anos mais tarde passara a executivo da
empresa. Possuía uma extrema habilidade para resolver
problemas e fora por isso que o enviaram para assumir o
comando da fábrica na América.
Quando ele chegara à fábrica, na primeira manhã, o Sr.
Tamura perguntara:
— Planeja fazer muitas mudanças aqui?
— Terei de examinar a situação primeiro — respondera o
Sr. Yamada.
— Algumas pessoas têm medo de ser despedidas.
— Não vim aqui para despedir ninguém. Há muitas
maneiras de melhorar a produção. Vou avaliar os problemas
com todo o cuidado e depois decidirei o que deve ser feito.
De um modo geral, Takesh Yamada ficara satisfeito com a
maneira como a fábrica era dirigida. Mas logo percebera
coisas que podiam ser melhoradas, e pouco a pouco fora
efetuando mudanças. Alguns operários eram lerdos ou
negligentes, e esses ele despedira. Mas outros, que
demonstravam grande eficiência em suas funções, foram
promovidos ou receberam aumentos. Todos na fábrica ficaram
bastante impressionados com o Sr. Yamada.
#
Em casa, ele confessou a Keiko:
— Pensei que seria difícil viver na América, mas é muito
fácil. Devo dizer que tudo parece um sonho feliz.
Takesh Yamada não podia imaginar, ao dizer isso, que o
sonho estava prestes a se transformar num pesadelo.
Aconteceu na sexta-feira seguinte, à meia-noite. A família
fora jantar num restaurante japonês. Era bom saborear a
comida familiar que tanto apreciavam. Sushi, camarão no
tempura e sukiyaki. Conversaram em japonês com o dono do
restaurante e foi um jantar muito descontraído.
Em casa, era mais fácil para todos falarem em japonês, em
vez de inglês, mas o pai insistira:
— A única maneira apropriada de aprender inglês é falá-
lo. Portanto, devemos conversar em inglês.
Terminado o jantar japonês, a família Yamada deu um
passeio pela Quinta Avenida, contemplando as vitrines de
todas as lojas de departamentos. Passaram pela Saks da
Quinta Avenida, A Bergdrt Goodman, a Tiffany's, e várias
outras lojas fascinantes.
— As lojas de departamentos em Tóquio são maiores —
comentou Keiko.
Ela estava com a razão. No Japão, as lojas de
departamentos eram imensas. Em algumas, era possível
comprar um barco ou um carro, fazer um seguro de vida ou
providenciar um funeral, pois prestavam todos os tipos de
serviços. As lojas de departamentos em Nova York eram mais
restritas.
Quando as crianças começaram a se mostrar cansadas, o
Sr. Yamada fez sinal para um táxi e voltaram ao apartamento.
O dia fora comprido e extenuante, e logo a família
adormeceu. Reinava pleno silêncio no apartamento.
À meia-noite, Mitsue foi despertada por um gemido baixo.
Abriu os olhos pensando que estivera sonhando. Mas tornou a
#
ouvir o gemido. Sentou na cama, o coração disparado. Havia
alguém em seu quarto!
— Quem está aí? — gritou Mitsue.
Não houve resposta.
— Quem está aí?
E foi então que ela viu. A figura de uma moça, vestida de
branco, aproximando-se da cama. Havia sangue na roupa.
— Ajude-me! — balbuciou a estranha. — Ajude-me!
Depois ela despereceu em pleno ar.
#
Capítulo Quatro
Mitsue não conseguiu voltar a dormir. Passou o resto da
noite encolhida na cama, apavorada. Nunca vira um fantasma
antes. Mas seria mesmo um fantasma ou apenas um sonho?
Não, pensou ela. Foi real demais para ter sido um sonho.
As palavras do fantasma ainda ressoavam em seus
ouvidos. "Ajude-me! Ajude-me!" O que isso significava?
Concentrando toda a sua coragem, Mitsue levantou-se,
empurrou uma cadeira contra a porta e voltou correndo para a
cama. Isso vai impedir a entrada do fantasma, pensou ela.
Ao desjejum na manhã seguinte, Takesh Yamada
perguntou às crianças como haviam dormido.
— Não acordei uma única vez durante a noite — gabou-se
Kenki. — Aquela cama é ótima.
Mitsue manteve um estranho silêncio e o pai achou que
ela estava muito pálida.
— Não dormiu bem, Mitsue?
— Eu... eu... — ela não sabia direito o que dizer. Provavel-
mente ririam dela, mas tinha de contar a verdade. — Havia
uma garota no meu quarto.
O pai sorriu.
— Eu já sabia.
#
— Não estou me referindo a mim mesma — protestou
Mitsue. — Vi um fantasma.
O pai franziu o rosto.
— Não diga bobagem. Fantasmas não existem.
Kenji interveio:
— Claro que não. Isso não passa de uma superstição
antiga. O que você pensa que viu?
— Fui despertada por um gemido e a princípio pensei que
estava sonhando. Ouvi de novo, sentei na cama, abri os olhos
e lá estava... uma garota parada junto da porta, só que eu
podia ver através dela. Vestia-se toda de branco e havia
sangue na frente da roupa.
— Teve um pesadelo — disse o pai.
— Pareceu muito real.
— Ela disse alguma coisa? — indagou Keiko.
— Disse, sim — respondeu Mitsue. — Disse: "Ajude-me"
Ajuda-me!"
Takesh Yamada começou a ficar impaciente.
— Já chega dessa conversa tola. Não quero ouvir mais
nenhuma palavra a respeito. Não existem fantasmas.
— Nunca existiram — concordou Keiko.
Mas mesmo enquanto falava ela se lembrou de ter
especulado por que aquele lindo apartamento fora alugado tão
barato.
E sentiu um calafrio.
Kenji e Mitsue tinham várias matérias na escola.
Estudavam inglês e história, matemática e geografia. A matéria
predileta de Kenji era inglês. Estava determinado a aprender o
máximo que pudesse, o mais depressa possível, para não se
sentir embaraçado ao conversar com os colegas. O professor
de inglês disse:
— Hoje vamos estudar o que chamamos em inglês de
nouns. Alguém sabe o que é noun?
#
Kenji levantou a mão, orgulhoso.
— Eu sei. Noun é uma mulher que vive num convento.
O professor tentou não sorrir.
— Isso é uma freira, Kenji, que é nun em inglês. Noun
significa substantivo, uma palavra que descreve um objeto. —
Ele levantou uma régua. — Régua é um substantivo. — Ele
tocou na mesa. — Mesa é um substantivo. Todos os objetos
são substantivos.
O professor tornou a se virar para Kenji.
— Pode me dar mais alguns substantivos?
Kenji levantou-se, pensou por um instante.
— Uma bola de beisebol.
— Correto.
Subiyaki.
— Correto.
— Gato.
— Excelente. Pode sentar. — O professor corre os olhos
pelo resto da turma. — Vocês pegaram a noção?
Todos acenaram com a cabeça. Ele chamou outro aluno.
— Muito bem, diga-nos mais alguns substantivos.
Ao terminarem com os substantivos, o professor disse:
— Agora, vamos falar sobre os verbos. Alguém sabe o que
é um verbo?
Ninguém se manifestou. O professor olhou para Kenji, que
sacudiu a cabeça.
— Muito bem. Um verbo é uma palavra que indica ação.
Por exemplo, correr é um verbo. Andar é um verbo. Mexer é
um verbo. — ele apontou para um dos alunos. — Quer nos dar
alguns exemplos de outros verbos?
O aluno levantou-se.
— Lutar.
#
— Muito bem.
— Comer.
— Ótimo.
— Escrever.
— Correto. Pode sentar. — O professor virou-se para a
turma — Assim, qualquer palavra que indique uma atividade é
um verbo. Portanto, sabemos agora que substantivos são
palavras que descrevem objetos e verbos são palavras que
fazem os objetos ter uma atividade. — Ele olhou para Kenji. —
Pode juntar um substantivo e um verbo numa frase?
Kenji levantou-se.
— Sim, senhor. A bola voou pelo ar.
— Muito bom, Kenji. Há um terceiro tipo de palavra muito
importante, uma palavra que qualifica as coisas. Por exemplo,
podemos dizer, eu vi um poente. Mas isso não nos diz que
tipo de poente era. Um poente bonito? Um poente escuro? Não
sabemos. Podemos dizer, eu vi um homem. Mas isso não nos
diz qualquer coisa sobre o homem, não é mesmo? Era um
homem alto, um homem baixo, um velho, um jovem? Portanto,
essa frase precisa de ajuda e a palavra que a ajuda é um
adjetivo. Um adjetivo é usado para caracterizar um objeto.
Alto é um adjetivo, assim como baixo, velho e jovem. Todas
essas palavras qualificam o homem. Entendido?
Kenji entendeu muito bem e levantou a mão:
— Quer nos dar um exemplo, Kenji?
Kenki levantou-se.
— Sim, senhor. A bola branca voou pelo ar frio.
— Muito bem, Kenji. Você gosta de jogar bola, não é
mesmo, Kenji?
— Sim senhor. Adoro beisebol.
— Agora, já conhecemos os adjetivos. Amanhã vamos
estudar os gêneros.
#
Ao meio-dia, quando Kenji e Mitsue se encontraram no
refeitório da escola para almoçar, tinham muito o que
conversar.
— Meus colegas são ótimos — disse Mitsue. — Fui
convidada a jantar na casa de Frances. Será que papai vai
deixar?
— Acho que sim.
— É o que espero. Como você está indo na escola?
— Muito bem — respondeu Kenji. — Falamos muito sobre
beisebol.
Era manhã de sábado, e Takesh Yamada não precisava ir à
fábrica.
— Temos o dia inteiro para fazer o que quisermos — disse
Takesh.
— Podemos andar na barca de Manhattan? — perguntou
Keiko.
— Quero ver a Estátua da Liberdade — acrescentou
Mitsue.
— Podemos ir ao Rockefeller Center? — pediu Kenji.
Takesh Yamada sorriu.
— Podemos fazer todas essas coisas. Hoje visitaremos a
Estátua da Liberdade e depois o Rockefeller Center. E como
amanhã é domingo, faremos um passeio na barca de
Manhattan.
— Levarei minha câmera — disse Kenji.
Tinha uma Nikon novinha, da qual muito se orgulhava.
Demoraram só alguns minutos para se aprontar. Mitsue pegou
sua gata e disse:
— Desculpe Neko, mas não podemos leva-la. Fique aqui e
vigie o apartamento para nós.
Neko ronronou. Desceram no elevador e se encontraram
com John Feeney no saguão. Ele sorriu.
— Vão passear, conhecer a cidade?
#
— Isso mesmo — respondeu o Sr. Yamada.
— Divirtam-se.
— Obrigado.
Na rua, Keiko comentou:
— Gosto do Sr. Feeney. Temos sorte de contar com um
zelador tão simpático.
A primeira parada foi na ilha de Bedloe, onde a Estátua da
Liberdade projetava-se para o céu, orgulhosa. Há haviam visto
fotos da enorme estátua antes, mas nada poderia prepará-los
para o seu esplendor. A Dama da Liberdade era muito alta e a
mão erguida segurava uma tocha flamejante.
— É a tocha da liberdade — disse Takesh Yamada.
— Quero tirar uma foto — pediu Kenji.
Ele mandou que a família posasse na frente da estátua e
começou a tirar fotos.
— Agora vou tirar de você — disse Mitsue.
Kenji foi para junto da mãe e do pai, enquanto a irmã
tirava uma foto dos três. Kenji notou uma fila de pessoas
entrando na estátua e perguntou:
— Podemos entrar?
— Claro.
Entraram na estátua e experimentaram uma estranha
sensação. Os degraus de concreto eram íngremes, e a subida
muito longa. Ao chegar lá em cima, estavam sem fôlego. Mas
valeu a pena. Toda a ilha de Manhattan parecia se entender
diante deles.
— Posso ver dois rios daqui! — exclamou Kenji.
— Há mesmo dois rios — confirmou ao pai. — Aquele é o
East River, e o outro, a oeste, e o Hudson.
— Aposto que navios partem daqui para todos os lugares
do mundo — sugeriu Mitsue.
— É verdade — disse o Sr. Yamada.
#
Kenji recordou os nomes dos lugares que vira no
aeroporto. Índia, Alasca, Moscou.
— Algum dia quero conhecer todos os lugares do mundo.
— Provavelmente poderá fazê-lo quando ficar mais velho
— disse o Sr. Yamada. — É bom obter agora toda a instrução
que puder, a fim de estar preparado para o mundo.
— Mas o mundo algum dia estará preparado para Kenji? —
zombou Mitsue.
— Por que não pergunta a seu fantasma? — disse Kenji,
ríspido.
— Já chega, crianças — interveio Keiko. — Nada de brigas.
— Acho que posso ver nosso apartamento daqui — disse
Mitsue.
O Sr. Yamada riu.
— Se pode, filha, é porque tem olhos muito bons.
Passaram uma hora ali admirando a imensa cidade.
Takesh Yamada finalmente disse:
— Temos muitos outros lugares para conhecer. Devemos
ir embora.
A descida foi muito mais fácil. Pegaram uma pequena
barca para voltar à ilha de Manhattan. O Sr. Yamada comprou
uma guia turístico e folheou-o.
— Greenwich Village não fica muito longe daqui —
comentou ele.
— O que é Greenwich Village? — perguntou Mitsue.
É um bairro onde artistas moram e trabalham. Há muitos
pintores ali e poetas também.
— Vamos dar uma olhada — propôs Keiko.
Pegaram um táxi para Greenwich Village e caminharam
pelas ruas ao chegaram. Era um lugar encantador, com lojas
pitorescas, inúmeras galerias de arte. Pararam num café para
almoçar. O Sr. Yamada tornou a consultar o guia turístico.
#
— Wall Street não fica muito longe daqui.
— O que é Wall Street? — indagou Mitsue.
Foi Kenji quem respondeu:
— Wall Street é o lugar onde fica o mercado de ações da
América. Todos os grandes negócios na América sâo feitos ali.
— Não todos os grandes negócios — corrigiu o pai. — Mas
grande parte.
— Podemos ir até lá? — pediu Kenji.
— Claro.
Wall Street foi um desapontamento. Parecia com qualquer
outra rua com enormes prédios de escritórios e bancos.
— Não há muito para se ver, não é mesmo? — murmurou
— Kenji.
— Se vier aqui num dia de semana, quando a Bolsa de
Valores estiver aberta, acho que terá muito para ver. — O Sr.
Yamada olhou para o relógio. — Se quisermos ir ao Rockefeller
Center, é melhor partir logo.
Pegaram um táxi para o Rockefeller Center. Era uma área
imensa, com restaurantes e lojas espetaculares. Desta vez, as
crianças não se desapontaram. Para seu espanto, viram um
rinque de patinação no gelo, cheio de gente patinando.
— Podemos patinar? — indagou Kenji, ansioso.
O pai franziu o rosto.
— Não sei...
— Por favor — insistiu Kenji.
— Deixe eles patinarem—disse a mãe. — Podemos tomar
um chá no terraço aqui e observá-los.
— Está bem. — O Sr. Yamada virou-se para Kenji e Mitsue:
— Podem ir.
#
As crianças alugaram patins e poucos minutos depois
também patinavam pelo gelo, divertindo-se muito. Kenji
patínaba muito bem, mas Mitsue era um pouco desajeitada.
O Sr. e Sra. Yamada sentaram no terraço, observando-os,
com o maior orgulho. Takesh Yamada comentou:
— São crianças maravilhosas.
Depois que as crianças cansaram de patinar, a família
circulou pelo Rockefeller Center, olhando as várias lojas.
Entraram num saguão onde uma placa dizia: "Estúdios da NBC
Broadcasting".
— É aqui que fazem os programas de televisão — disse
Kenji. — Podemos entrar num dos estúdios para assistir?
— Verei se é permitido.
Takesh Yamada aproximou-se de um guarda
uniformizado, por trás de uma mesa.
— Com licença, senhor. Permitem a entrada de visitas nos
estúdios da televisão?
O guarda acenou com a cabeça.
Claro. E um dos nossos programas de perguntas vai
começar dentro de poucos minutos. Não gostariam de entrar?
Takesh Yamada olhou para a esposa e os filhos e sorriu.
— Gostaríamos muito.
O guarda entregou um tíquete a cada um, e dez minutos
depois os quatro estavam sentados num auditório grande,
para duzentas pessoas, com um palco na frente, cheio de
câmeras e microfones. O auditório encontrava-se lotado. Um
homem apareceu no palco e disse:
— Boa tarde, senhoras e senhores. Sejam bem-vindos a
Você Sabe a Resposta? Vamos entrar no ar dentro de poucos
minutos. Qualquer um de vocês pode participar do programa.
— Ouviram isso? — murmurou Kenji, excitado. — O que
temos de fazer para participar do programa?
#
Como se lesse seus pensamentos, o apresentador
acrescentou:
— Vou jogar bolas de pingue-pongue para a platéia, e
quem pegar uma pode trazê-la até aqui. Cada participante terá
uma chance de ganhar cem dólares.
— Não seria emocionante se eu aparecesse na televisão?
— indagou Kenji.
Keiko balançou a cabeça.
— Você é um sonhador.
— Vamos começar! — gritou o apresentador.
Ele começou a jogar bolas de pingue-pongue para a
platéia. As pessoas levantaram-se, faziam de tudo para pegá-
las. As bolas foram arremessadas para lados diversos do
auditório, mas nenhuma na direção da família Yamada.
— Aqui vai a última bola! — avisou o apresentador. E ele a
lançou direto para Kenji, que a apanhou e se pôs a gritar:
— Peguei! Peguei!
O apresentador pediu:
— Todos aqueles que têm uma bola de pingue-pongue
podem fazer o favor de subir ao palco?
Kenji virou-se para o pai.
— Posso ir?
— Claro, filho. E boa sorte.
— Vou ganhar cem dólares — prometeu Kenji. Ele seguiu
apressado para O palco, junto com os outros participantes. Era
uma estranha sensação saber que estava aparecendo na
televisão. Nada assim jamais lhe acontecera antes. Talvez
fiquem tão impressionados com minhas respostas que me
promoverão a astro da televisão, pensou Kenji.
— Aqui estão as regras para os participantes — disse o
apresentador. — Fare uma pergunta a cada um e a pessoa terá
sessenta segundos para responder. Se a resposta for correta,
ganhará cem dobres. Estão prontos?
#
— Estamos — responderam todos.
O apresentador virou-se para uma mulher.
Vamos tocar uma canção. Você tem de dizer o nome.
Os acordes de White Christmas ressoaram pelo auditório.
— White Christmas — disse ela.
— Absolutamente certo!
A platéia aplaudiu. O apresentador entregou-lhe o
dinheiro.
Eu sabia a resposta, pensou Kenji. Por que ele não me fez
essa pergunta?
O concorrente seguinte era um homem idoso, a quem o
itador perguntou:
— Qual foi o último Estado americano a ingressar na
União?
Alasca, pensou Kenji.
E um momento depois o homem respondeu:
— Alasca.
— Absolutamente certo! Aqui estão seus cem dólares.
Vai ser muito fácil, pensou Kenji. Era a sua vez.
De onde você é? — indagou o apresentador. De Tóquio -
respondeu Kenji. - Meu pai, minha mãe e irmã estão na
plateia.
O apresentador sorriu.
Isso é ótimo. Está pronto para a pergunta?
— Sim, senhor.
O coração de Kenji batia forte. Tinha certeza de que ia
ganhar cem dólares.
— Pode dar os nomes dos três navios com que Colombo
partiu para a América?
#
Colombo, pensou Kenji. Foi o homem que disse que o
mundo era redondo, em vez de plano, e descobriu a América.
Sei a resposta. Ele virou-se para o apresentador.
— Niña.
— Certo!
— Pinta.
— Certo!
E, subitamente, a mente de Kenji ficou em branco. Qual
era mesmo o nome do terceiro navio?
— Seu tempo está se esgotando — disse o apresentador. —
receio...
Foi nesse instante que Kenji ouviu a irmã dizer, da
plateia, num sussurro alto:
— O Mayflowerl
— O Mayflower — declarou Kenji.
— Lamento, filho. Era o Santa Maria.
E Kenji sentiu um aperto no coração. Perdera cem dólares,
e tudo por causa da irmã!
Mais tarde, quando saíram para a rua, Mitsue se
desculpou.
— Sinto muito — disse ela. — Acho que fiquei excitada
demais.
Takesh Yamada riu.
— Não se sinta tão infeliz, Kenji. Quando voltar para casa,
poderá contar a seus amigos que apareceu na televisão
americana.
A caminho do apartamento, Keiko anunciou:
— Quero fazer algumas compras. Na América, parece que
todos os alimentos são congelados. Gostaria de comprar carne
e legumes frescos todos os dias. Vocês podem ir na frente,
crianças, eu e seu pai chegaremos logo depois.
#
— Está bem — respondeu Kenji.
Os pais deixaram as crianças na frente do prédio. Kenji e
Mitsue entraram no saguão. John Feeney estava ali.
— Boa Noite — disse ele, muito amáveL — Tiveram um dia
agradável?
— Foi maravilhoso — disse — disse Kenji. — Apareci num
programa de televisão.
— Lamento não ter assistido — comentou Feeney.
— Não perdeu grande coisa. — Kenji suspirou. — Eu perdi.
#
Feeney sorriu.
— Espero que tenha mais sorte na próxima vez.
Kenji gostava de John Feeney. Era um homem simpático e
cordial. Parecia estar sempre sorrindo. Enquanto subiam no
elevador, Mitsue repetiu:
— Sinto muito, Kenji.
— Não foi culpa sua, irmãzinha. Eu deveria me lembrar
dos nomes dos três navios.
O elevador parou, eles saltaram, foram andando pelo
corredor, na direção da porta do apartamento. Kenji pegou a
chave, abriu a porta. As duas crianças entraram e pararam no
mesmo instante, espantadas. O apartamento dava a impressão
de ter sido atingido por um ciclone. As gavetas estavam
abertas, mesas viradas, as roupas do quarto espalhadas pela
sala. Kenji balbuciou:
— Ladrões!
Mas Mitsue balançou a cabeça.
— Não murmurou ela. — Nosso fantasma voltou.
#
Capítulo Cinco
Corendo os olhos pelo apartamento em desordem, Mitsue
disse:
— Parece que não falta nada. Não pode ter sido um ladrão.
— Também não pode ter sido um fantasma — protestou
Kenji, desdenhoso.
Mitsue virou-se para o irmão.
— Como assim?
— O que estou querendo dizer, minha cara irmã, é que
fantasmas não existem.
— Kenji, já disse que vi um fantasma.
— Você pensou ter visto. Ouviu o que papai disse. Teve
um pesadelo.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não. Foi bastante real. Ela falou comigo.
— Acredite em mim, Mitsue. Está sendo tola.
Ela fitou-o em silêncio por um momento.
— Muito bem, provarei a você que estou certa.
— E como pretende fazer isso?
#
— Ela apareceu em meu quarto à meia-noite. Por que não
vai meu quarto esta noite? Poderá vê-la pessoalmente,
— Não, Mitsue. De que adianta...?
— Não quer ir? Provarei a você, de uma vez por todas.
Talvez então pare de rir de mim.
Kenji suspirou.
— Está bem, irmãzinha. Mas será uma perda de tempo,
Enquanto isso, é melhor começarmos a arrumar o
apartamento, antes que papai e mamãe voltem.
Ainda estavam arrumando quando os pais entraram. Keiko
olhou aturdida para o caos e perguntou;
— O que vocês dois andaram fazendo?
— Nada, mãe. Nós...
— Como puderam fazer tamanha bagunça? O lugar de
suas roupas é no quarto, não na sala.
Kenji e Mitsue trocaram um olhar. Sabiam que os pais não
acreditariam na história de fantasma.
— Foi Neko — murmurou Mitsue.
Naquela noite, Mitsue estava muito excitada. Provaria ao
irmão que vira uma coisa real, que não passara de um mero
sonho. Quando terminaram de jantar, Mitsue sussurrou para
Kenji:
— Lembre-se de sua promessa- Tem de ir ao meu quarto
para conhecer o fantasma.
— Mitsue, por que você não esquece essa história, e...
— Você prometeu.
Kenji suspirou.
— Está bem. Pode me esperar.
— À Meia-noite.
— Combinado
#
Kenji foi para o seu quarto, a fim de fazer os deveres de
casa. Eram muito mais fáceis na América. No Japão, a escola
parecia ocupar a maior parte de seu tempo, mas aqui, nos
Estados Unidos, sobrava tempo para outras coisas. Como ver
fantasmas, pensou Kenji.
Às dez horas, o pai disse:
— Muito bem, crianças, vão para a cama. Tratem de
dormir.
Mas Mitsue não conseguiu dormir. Estava muito excitada
com a perspectiva de o fantasma de novo, e Kenji — embora
não admitisse nem para si mesmo — achava que seria
maravilhoso se houvesse de fato um fantasma. Seria uma
história e tanto para contar aos colegas.
Quando faltavam quinze minutos para a meia-noite, com
os pais em seu quarto, Kenji atravessou a sala e bateu à porta
de Mitsue.
— Entre — sussurrou Mitsue. — O fantasma vai aparecer à
meia-noite.
Kenji sentou na beira da cama da irmã.
— Como disse que o fantasma parecia? — perguntou ela.
— Era uma moça, em torno dos dezessete ou dezoito
anos, e usava um lindo vestido branco.
— E disse que havia sangue no vestido.
— Isso mesmo.
— Não faz sentido. Por que teria sangue no vestido?
— Não sei. Podemos perguntar a ela.
— Se aparecer.
— Ela vai aparecer — garantiu Mitsue, confiante.
— Como sabe?
— Porque ela me pediu para ajudá-la. Portanto, vai voltar.
#
Faltavam cinco minutos para a meia-noite. Kenji sentiu
que também se tornava muito excitado. E se o fantasma
aparecesse mesmo? Estava assustado, mas nunca o admitiria.
— Tem de abrir a porta para ela entrar? — perguntou
Kenji.
— Não. Ela passa direto pela porta.
Kenji riu.
— Mitsue, espera mesmo que eu acredite nisso?
— Vai ver só.
Era meia-noite. Os dois permaneciam sentados, muito
tensos, esperando que a aparição passasse pela porta. Nada
aconteceu. E logo passavam cinco minutos da meia-noite,
depois quinze minutos, e meia hora.
— Ela não virá — murmurou Mitsue, incapaz de ocultar
seu desapontamento.
— Era o que eu esperava — disse Kenji. — Por um
momento, quase que me fez acreditar.
— Kenji, eu juro...
— Sei que você pensa realmente que viu alguma coisa.
Mas pode ter certeza de que foi apenas um sonho. Agora, se
não se importa, eu gostaria de ir dormir.
E Kenji foi para seu quarto.
Na segunda-feira, na escola, Mitsue continuou a pensar na
moça. Será que o pai e o irmão estavam certos? Era mesmo
verdade que não existiam fantasmas? Ela nem mesmo sabia
direito o que era um fantasma. No intervalo, ela foi falar com
a Sra. Marcus.
O que é um fantasma, Sra. Marcus?
A Sra. Marcus ficou surpresa com a pergunta.
— Um fantasma, pelo que se diz, é o espírito de uma
pessoa morta, que se mantém irrequieta, porque ainda tem um
#
trabalho a fazer neste mundo. Quando o trabalho for
concluído, irá para outro mundo.
— Entendo...
Mas Mitsue não entendia. Que trabalho por fazer a moça
poderia ter deixado neste mundo?
— Por que me perguntou sobre fantasmas?
Mitsue sentia-se embaraçada demais para contar a
experiência por que passara.
— Eu apenas queria saber
E também gostaria de saber se o fantasma virá me visitar
esta noite. Quero que Kenji a veja.
Kenji esquecera quase por completo o fantasma de
Mitsue. Ocupava-se com coisas mais importantes. Na hora do
almoço, houve uma partida de beisebol no pátio. Ele ficou
observando os meninos escolherem os times. Tinha a maior
vontade de entrar no jogo, mas não queria parecer
intrometido e se convidar. Ao final, o capitão de um dos times
olhou para ele.
— Você joga beisebol?
— Um pouco — respondeu Kenji, modesto.
Ele não disse que era o capitão do seu time em Tóquio.
— Muito bem, vamos lhe dar uma chance. Será
experimentado no meu time.
— Obrigado! — exclamou Kenji, feliz.
O time de Kenji começou rebatendo. O primeiro rebatedor
foi eliminado. O segundo também. Era a vez de Kenji.
— Vamos ver do que você é capaz! — gritou o capitão.
— Tentarei o melhor que puder.
Kenji foi para a posição do rebatedor. Observou o
arremessador lançar uma bola rápida. Kenji aprendera um
segredo sobre o beisebol. Era um jogo que se jogava na mente.
#
Ao ver a bola se aproximando, visualizou que vinha bem
devagar, para rebatê-la. No momento que a bola o alcançou,
Kenji acertou-a com o bastão. A bola saiu voando pelo ar,
atravessando o campo.
Os outros jogadores olharam para ele, espantados.
— Corra! — gritou o capitão.
E Kenji correu para a primeira base. Seu time ganhou o
jogo.
Depois que o time saiu de campo, o capitão aproximou-se
de Kenji e perguntou:
— Você sabe arremessar tão bem quanto rebate?
— Farei o melhor que puder — respondeu Kenji.
Muito bem, você será nosso arremessador no próximo
turno.
Kenji eliminou os três primeiros rebatedores. Nem é
preciso dizer que seus companheiros ficaram impressionados.
Terminado o jogo, o capitão tornou a procurá-lo.
Meu nome é Clarence. Gostaria de jogar no meu time
todos os dias?
— Gostaria muito.
— Então pode contar com isso.
Os dois meninos trocaram um aperto de mãos.
Quando Kenji e Mitsue voltaram para casa, depois das
aulas, John Feeney, o zelador, estava no saguão. Virou-se
quando as crianças entraram no prédio.
— Boa tarde, Kenji. Boa tarde, Mitsue. — Ele se preocupara
em gravar seus nomes. — Como passaram o dia de hoje?
— Muito bem, obrigado, senhor — respondeu Kenji.
— Estão se dando bem na escola?
Foi Mitsue quem respondeu:
— Claro. Gostamos muito da nossa escola.
#
— Não gostariam de comer alguns biscoitos e tomar um
leite em meu apartamento?
Kenji sorriu.
— Seria ótimo, senhor.
— Venham. — John Feeney caminhou até o apartamento e
as crianças o seguiram. Ele era um dos homens mais afáveis
que eles já haviam conhecido. Pôs os biscoitos e o leite na
mesa de jantar.
— Sirvam-se à vontade.
Os biscoitos estavam frescos e deliciosos, o leite era
gelado.
— Estão gostando de viver nos Estados Unidos? —
perguntou John Feeney.
Kenji respondeu, a boca cheia de biscoito:
— Muito, senhor. Todos aqui são simpáticos.
— Tentamos ser. — Feeney sorriu. — Nosso país ainda é
bastante jovem. Seu país tem uma civilização muito mais
antiga do que a nossa.
Já esteve no Japão, Sr. Feeney? - indagou Mitsue.
— Não. É um dos poucos lugares que ainda não conheço.
Mas um dia desses espero poder visitá-lo.
— Se for até lá, visite-nos, por favor — disse Mitsue. —
Voltaremos para casa dentro de um ano.
Claro que os procurarei — prometeu John Feeney.— Estão
gostando do apartamento?
— Muito, senhor. É lindo. E nos sentimos felizes morando
nele.
— Não tiveram nenhum problema?
Kenji ficou perplexo.
— Problema?
— Sabe, barulhos, ou coisas assim...
— Não senhor.
#
Kenji se perguntou o que ele estaria pensando. Por um
momento, pensou em mencionar o fantasma que Mitsue
alegava ter visto, mas logo concluiu que seria uma tolice. John
Feeney riria de sua irmã.
— Está tudo bem — acrescentou Kenji.
— Ótimo. Fico contento em saber disso.
Como Kenji, Mitsue fazia amizades com facilidade. À
medida que os dias foram passando, ela começou a ser
convidada para jantar na casa das colegas.
— Posso, mãe? — pedia Mitsue.
— Claro, filha.
Os pais sentiam-se satisfeitos por constatar que Mitsue
era tão popular.
— E deve convidar suas amigas para jantar aqui —
acrescentou Keiko. — Gostaríamos de conhecê-las.
Mas Mitsue não tinha a menor intenção de convidar as
amigas para vir ao apartamento. Receava que o fantasma
pudesse aparecer. E quando a mãe reiterava a sugestão, ela se
limitava a dizer:
— Há bastante tempo para isso.
Na sexta-feira, ao voltarem da escola, Mitsue disse a
Kenji:
— Eu gostaria que você me fizesse um favor.
Claro. Precisa de ajuda nos deveres de casa?
— Não é isso. Quero que vá de novo ao meu quarto hoje, à
meia-noite.
Kenji parou, fitou-a nos olhos.
— Já fiz isso, Mitsue. E provamos que não existe nenhum
fantasma.
#
— Não, não provamos nada — insistiu Mitsue, obstinada.
— Lembre-se de que ela me procurou numa sexta-feira. Pois
hoje é sexta de novo. Acho que ela pode voltar esta noite.
— Por que ela só viria na sexta-feira?
— Não sei, Kenji. Só sei que sinto que ela vai aparecer. Vai
esperá-la no meu quarto?
Kenji suspirou.
— Está bem. Mas será a última vez.
Mitsue sorriu.
— Obrigada.
Kenji sabia que toda aquela história era absurda, mas
amava mais a irmã. Faria aquilo só para agradar-lhe, e depois
esqueceriam tudo.
Depois do jantar, as crianças escreveram cartas para os
amigos em Tóquio.
"A Escola é bem fácil", escreveu Kenji. "Entrei na equipe
de beisebol. Há jogadores muito bons aqui. Temos passeado
bastante por Nova York, que é uma cidade interessante. Mas
tenho saudade de Tóquio..."
Mitsue escreveu para as amigas: "Eles não usam
uniformes na escola. As meninas andam de jeans e passam
batom nos lábios. Mamãe disse que também poderei usar
batom quando ficar um pouco mais velha. Mas não sei se
algum dia ela me deixará andar de jeans."
na escola. As meninas andam de Mamãe disse que também
pouco mais velha. Mas não de jeans''
Às dez horas, Keiko disse:
— Muito bem, crianças, hora de ir para a cama. Farei um
bom café da manhã para vocês amanhã.
As duas crianças deram um beijo de boa-noite na mãe e
no pai. Mitsue foi para seu quarto e Kenji para o dele.
Kenji sentia-se cansado. Fora um dia longo e
movimentado, mas estava feliz. Vinha se saindo muito bem
#
nas aulas, e agora integrava o time de beisebol. Havia muitas
coisas para deixarem-no feliz. Ajeitou-se para dormir, mas
lembrou de repente a promessa que fizera à irmã.
— Oh, não! — resmungou Kenji. — Agora terei de ficar
acordado por causa daquela garota boba!
Ele queria muito dormir, mas sabia que tinha de cumprir a
promessa. Pegou um livro, começou a ler, e, antes que
percebesse, faltavam só alguns minutos para a meia-noite.
Sentia os olhos pesados, mas deu um jeito de permanecer
acordado. Reinava o silêncio no apartamento. Kenji abriu a
porta do quarto, deu uma espiada na sala. Os pais já tinham
ido se deitar. Kenji foi na ponta dos pés até o quarto de
Mitsue. Bateu de leve à porta.
— Mitsue, você está acordada?
Ouviu a resposta sussurrada:
— Estou, sim, Kenji. Entre.
Ele abriu a porta e entrou. O quarto estava apinhado com
as bonecas e bichos de pelúcia de Mitsue.
— Ela deve aparecer a qualquer momento — murmurou
Mitsue.
Kenji balançou a cabeça.
— Minha cara irmã, não vai aparecer ninguém. Fantasmas
não existem.
— Espere só para ver.
Ele sentou na beira da cama.
Joguei beisebol hoje, Mitsue. O capitão do time me disse
que fui o melhor...
— Psiu!
Kenji fitou-a, surpreso.
Como?
Fique calado. Ela está chegando.
#
— Ninguém está vindo — protestou Kenji, impaciente. —
Seja como for, o capitão disse que se eu quisesse...
Foi nesse instante que Kenji ouviu um gemido baixo.
Olhou para Mitsue.
— Foi você que fez esse barulho?
— Não.
Kenji virou-se para a porta. Parecia haver uma coisa
branca passando pela porta. Era como uma nuvem branca,
turbilhonando, sem qualquer forma definida, aproximando-se
da cama. O quarto se tornou subitamente frio.
— E ela! — sussurrou Mitsue.
A nuvem branca assumiu de repente a forma da moça que
Mitsue vira antes. Usava o mesmo vestido branco, com
manchas de sangue.
— Por favor, ajudem-me! — murmurou a moça. — Ajudem-
me!
Kenji a fitava com os olhos arregalados. Tentou falar, mas
as palavras não saíram.
— Então diga como podemos ajudá-la — murmurou
Mitsue.
Nesse momento o vulto desapareceu através da porta
fechada.
— Você a viu? — perguntou Mitsue.
Kenji não tinha condições de falar, O coração batia
descompassado, havia uma secura na garganta. Acabei de ver
um fantasma, pensou ele. Um fantasma de verdade, ao vivo...
isto é, um fantasma de verdade morto. Isto é... Sentia-se tão
confuso que não sabia o que pensar.
— Você a viu? — insistiu Mitsue.
— Vi, sim, — A voz de Kenji era rouca, — Irmã... este
apartamento ê mal-assombrado.
#
Capítulo Seis
— Irmã — repetiu Kenji — este apartamento é mal-
assombrado.
— Eu não disse?
— Quem é ela?
— Não sei. Perguntei à minha professora o que é um
fantasma e ela respondeu que é um espírito que ainda tem um
trabalho a realizar neste mundo.
Que tipo de trabalho ela teria a fazer por aqui?, especulou
Kenji. Não faz sentido.
Mas Kenji e Mitsue logo saberiam a resposta.
Quando as crianças desciam no elevador na manhã
seguinte, um homem entrou, no oitavo andar. Era baixo e
corpulento, tinha um queixo quadrado, olhos frios. Fitou as
crianças e disse:
— Foram vocês que se mudaram para o apartamento 13ª,
não é?
— Isso mesmo, senhor — respondeu Kenji.
— Moro no oitavo andar. Meu nome é Jerry Davis.
Havia alguma coisa no homem que não agradou às
crianças.
— Finalmente conseguiram se livrar daquele apartamento
— comentou Jerry Davis.
Kenji ficou surpreso,
#
— Como assim?
— Conseguiram alugá-lo. Uma moça foi assassinada ali há
seis meses, e desde então não era possível alugá-lo.
Kenji e Mitsue trocaram um olhar.
— Como... como ela foi assassinada? — perguntou Mitsue.
— Foi um assaltante — informou Jerry Davis. — A polícia
concluiu que ela chegou em casa para surpreender o
assaltante, que a apunhalou até a morte para que não o
denunciasse.
— Pegaram o assassino? — indagou Kenji.
— Não. Ele conseguiu escapar.
Então é por isso que ela se tornou um espírito irrequieto,
pensou Kenji, excitado. Seu assassino não foi preso.
Quando o elevador chegou ao térreo, Jerry Davis disse:
— Tenham um bom-dia, crianças.
Ele se afastou. Kenji e Mitsue estavam bastante excitados
com o que tinham acabado de ouvir.
—Assassinada — murmurou Kenji
É por isso que havia sangue na frente do vestido — disse
Mitsue.
Foi nesse momento que John Feenay saiu de seu
apartamento.
—Bom dia, Kenji. Bom dia, Mitsue.
—Bom dia, Sr. Feeney. Quem era o homem que desceu no
elevador com a gente?
— Está se referindo a Jerry Davis?
— Esse mesmo,
— É um detetive particular.
— Ele nos falou sobre a moça que foi assassinada em
nosso apartamento — disse Mitsue.
John Feeney franziu o rosto.
#
— Susan Boardman, Ele não deveria ter feito isso. Não há
motivos para assustá-los. Tudo já acabou.
Mas as crianças sabiam que não acabara. Não enquanto o
fantasma da moça estivesse assombrando o apartamento.
Mitsue disse:
— Ontem à noite...
Kenji pisou no pé da irmã, lançou4he um olhar de
advertência. Mitsue compreendeu no mesmo instante e mudou
o que ia dizer:
— Ontem à noite foi maravilhoso, não é? O tempo estava
ótimo.
— Tem razão — disse Feeney. — O outono é maravilhoso.
— Por que não quis que eu contasse a ele sobre o
fantasma?
— Acho que não devemos contar a ninguém por enquanto,
Mitsue. A moça está tentando nos dizer alguma coisa. Vamos
descobrir o que é.
Eles voltaram à escola na segunda-feira e cada um foi para
sua sala. Era difícil para os dois se concentrarem. Não
paravam de pensar no fantasma. Só que a moça era mais do
que um fantasma agora. Tornara-se alguém que vivera no
apartamento e fora assassinada ali. Kenji sentia calafrios pela
espinha ao pensar a respeito.
O professor de Kenji anunciou:
— Vamos avançá-lo uma série. Kenji. Saiu-se muito bem
aqui e está preparado para entrar numa turma mais adiantada.
Em circunstâncias normais, Kenji ficaria na maior
animação. Agora, porém, sua mente se ocupava com outras
coisas.
— Obrigado, Sr. Leff.
#
— Continuarei a ser seu professor principal, mas terá
aulas com outros professores também.
A primeira aula de Kenji pela manhã foi de inglês. O
professor designou-lhe um lugar e depois disse à turma:
— Hoje, vamos estudar os antônimos. Alguém sabe o que
é um antônimo.
Kenji decidiu arriscar um palpite:
— Tem alguma coisa ver com ants, que significa formigas
em inglês?
O professor sorriu.
— Não, Kenji. Antónimos são palavras que têm um
significado oposto. Por exemplo, triste e feliz são antónimos.
Alto e baixo, bom e mau. Cada uma significa o oposto da
outra. Estão entendendo?
— Sim, senhor,
— Muito bem, turma. Quero que escrevam vinte
antónimos para mim.
Kenji pôs-se a trabalhar, junto com os colegas. A primeira
coisa que escreveu foi "vida — morte". Não podia tirar o
problema da cabeça.
O resto do dia passou devagar. Na hora do recreio, Kenji
jogou beisebol com os colegas, mas sem o menor ânimo.
Quando foi rebater, errou várias bolas e seus arremessos
também foram ruins.
— Está se sentindo mal — perguntou Clarence. — Não
consegue jogar bem hoje.
— Não dormi direito ontem à noite — admitiu Kenji.
E não sei se conseguirei dormir esta noite.
Ao final das aulas, Kenji esperou Mitsue e voltaram juntos
para casa.
— Eu gostaria de saber quem a matou — disse Kenji.
#
— Ouviu o que o Sr. Davis talou. Foi um assaltante.
— Como um assaltante poderia entrar no prédio, subir até
#
lá em cima, arrombar um apartamento e ter alguma
esperança de sair sem que ninguém o visse?
— O que está querendo insinuar, Kenji?
— Que talvez ela tenha sido morta por alguém que mora
no prédio.
Mitsue parou, aturdida.
— Alguém que ainda esteja morando lá?
— Isso mesmo. É possível.
Mitsue empalideceu,
— Não acredito.
— Pode fazer sentido — insistiu Kenji, obstinado. — Se foi
alguém que morava no prédio, não precisaria se esgueirar
para entrar ou sair, não teria de explicar sua presença.
As crianças já haviam visto a maioria dos moradores,
entrando e saindo do prédio, e todos pareciam absolutamente
normais. Ninguém parecia ser um assassino.
— Tem alguma ideia de quem poderia ser? — indagou
Mitsue.
— Não. — Mas Kenji pensava num nome: Jerry Davis. —
Vamos perguntar quando ela aparecer esta noite.
— Não creio que ela venha esta noite — disse Mitsue. —
Ela só aparece nas sextas-feiras, lembra?
— O que é muito estranho. Por que só nas sextas?
Subitamente, ele teve certeza de que sabia a resposta.
Ao chegarem ao prédio, Kenji foi bater à porta de John
Feeney.
#
— Desculpe incomodá-lo, Sr. Feeney, mas eu gostaria de
fazer uma pergunta.
— Claro, Kenji. Pode entrar. Você também, Mitsue. Em que
posso ajudá-los? Querem biscoitos e leite?
— Não, obrigado, senhor.
— Qual é a pergunta?
— Aquela moça que foi assassinada lá em ciam... lembra
em que dia isso aconteceu?
— Lembro, sim, Kenji. Foi numa sexta-feira.
Na escola, no dia seguinte, Kenji descobriu que seu novo
curso de inglês se tornava cada vez mais interessante.
— Hoje — disse o professor —, vamos estudar
homônimos. Alguém sabe o que é um homônimo?
Desta vez Kenji se manteve de boca fechada.
— Muito bem — disse o professor. — Homônimos são
palavras que se pronunciam da mesma maneira, mas escritas
de maneira diferente, com significados diferentes. Vamos
pegar uma palavra em inglês, praise.
Ele escreveu p-r-a-i-s-e no quadro negro.
— Praise significa louvar, elogiar. Quando você praise
alguém, significa que está elogiando a pessoa. Pode dizer, por
exemplo, você está muito bonita hoje, ou você é muito
inteligente. Isso é praise.
Ele escreveu outra palavra no quadro negro, p-r-a-y-s.
— Pronuncia-se exatamente da mesma maneira, mas tem
um significado diferente. Quando alguém prays, significa que
está rezando, falando com Deus, agradecendo ou pedindo
alguma coisa. Portanto, as palavras são homônimas. Soam da
mesma maneira, mas são escritas de modos diferentes, e
possuem significados diferentes. Há outros casos assim na
língua inglesa. Vejamos, por exemplo, a palavra stare, s-t-a-r-
e. Significa olhar para alguém por um longo tempo.
#
Ele escreveu embaixo s-t-a-i-r.
— Stair. Pronuncia-se exatamente da mesma forma, mas
stair em inglês significa escada. Percebem agora como um
homônimo funciona? Kenji, pode dizer outros homônimos?
— Kenji levantou-se, ficou em silêncio por um momento,
pensando.
— Pois não, senhor. Sun, s-u-n, que significa sol, e son, s-
o-n, que significa filho.
— Muito bem. Dê-nos outro exemplo.
— Pale, p-a-l-e, que significa pálido, e pail, p-a-i-l, que
significa balde.
— Excelente, Kenji!
Todos os outros estudantes levantaram a mão, ansiosos
por oferecer mais exemplos.
— Sole, s-o-l-e, que significa sola, e soul, s-o-u-l, que
significa alma,
— Raise, r-a-i-s-e, que significa aumento, e raze, r-a-z-e,
que significa arrasar.
— Red, r-e-d, que significa vermelho, e read, r-e-a-d, que
significa ler.
Foi muito divertido.
Kenji e Mitsue sentaram juntos para almoçar, no
refeitório. Ainda se sentiam bastante excitados pelo que
acontecera na noite de sexta feira.
— Não seria sensacional se pudéssemos descobrir quem
foi o assassino de Susan Boardman? — disse Kenji.
— Claro que seria — concordou Mitsue. — Assim ela
ficaria livre.
Kenji especulou se deveria fazer algum comentário sobre
Jerry Davis para a irmã. Havia alguma coisa no homem que
não lhe agradava. Tinha o pressentimento de que Jerry Davis
era o assassino.
#
— Acredita realmente que o assassino é alguém que ainda
mora no prédio? — perguntou Mitsue.
— É possível
Mas Kenji não disse em voz alta o que estava pensando: E
acho que descemos com ele no elevador esta manhã.
A professora de Mitsue disse:
— Vamos estudar hoje um pouco da história dos Estados
Unidos.
Ela correu os olhos pela turma. Havia crianças de meia
dúzia de países diferentes.
— Tenho certeza de que todos sabem alguma coisa sobre
a história de seus respectivos países, mas é importante para
os que vivem aqui conhecerem também a história americana.
Quantos de vocês já ouviram falar de George Washington?
Quase todos levantaram a mão.
— Ótimo. George Washington é conhecido como o pai do
nosso país. Alguém pode me dizer por quê?
Uma das alunas sugeriu;
— Porque ele teve uma porção de filhos?
A professora riu.
— Não. George Washington foi um dos lideres da
revolução contra a Inglaterra. A América era uma colônia da
Inglaterra, e o rei George tentou nos obrigar a pagar impostos
muito altos. George Washington e alguns outros disseram que
ele não podia fazer isso com a gente, e foi assim que começou
a Guerra da Revolução. Os Estados Unidos venceram,
libertaram-se da Inglaterra e se tornaram um país muito
poderoso. Quantos de vocês já ouviram falar de Abraham
Lincoln?
Mais uma vez, quase todos levantaram a mão.
— Excelente! Abraham Lincoln foi um dos nossos maiores
presidentes. Havia escravidão na América naquele tempo.
#
Milhares de pretos eram sequestrados da África, levados para
os Estados Unidos e vendidos como escravos. Eram obrigados
a trabalhar por pouco ou nenhum dinheiro. Os escravos
trabalhavam nas plantações no sul do pais e as pessoas na
parte norte achavam que isso era errado. Abraham Lincoln
concordava com elas. E decidiu abolir a escravidão. Como não
podia deixar de ser, os sulistas ficaram furiosos. Gostavam de
ter todos aqueles escravos trabalhando para eles. Quando
Abraham Lincoln anunciou sua decisão, começou a grande
Guerra Civil, com os americanos do norte lutando contra os do
sul.
— O norte venceu — comentou um aluno.
— Isso mesmo, o norte venceu. Levou muito tempo para
reparar os danos causados, mas os escravos tornaram-se
livres. Os Estados Unidos passaram a ser de fato um país livre.
Tivemos alguns presidentes extraordinários e outros que não
foram tão bons. Mas uma das coisas maravilhosas é o fato de
sermos um dos poucos países do mundo que realizam eleições
livres.
— O que são eleições livres? — perguntou Mitsue.
— Significa que as pessoas são livres para escolher seu
presidente. Alguém sabe por quanto tempo um presidente
permanece no cargo?
— Sete anos?
— Não. Em alguns países, o presidente é eleito por sete
anos. Mas nos Estados Unidos são quatro anos. Muitos países
são dirigidos por ditadores. O povo não pode se manifestar
sobre o que acontece em seu país. É obrigado a fazer o que o
ditador manda. Aqui, se o presidente faz alguma coisa muito
errada, pode sofrer um impeachment.
A professora percebeu os olhares inquisitivos da turma e
explicou:
— Isso significa que é submetido a julgamento e afastado
do cargo se for considerado culpado. Portanto, neste país, é o
povo quem realmente manda. A cada quatro anos, vota nas
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pessoas que deseja no comando de seus governos municipal,
estadual e federal. É um dos melhores sistemas de governo do
mundo.
A campainha tocou encerrando a aula.
Mitsue levantou-se, saiu para se encontrar com Kenji.
Queria conversar sobre o fantasma.
Na turma de Kenji, estavam estudando as estações do ano.
— Há quatro estações — falou o professor. — Pode me
dizer quais são?
Ele olhou para Kenji, que parecia não estar escutando.
Virou-se então para outro aluno.
— Claro, senhor: Inverno, primavera, verão e outono.
— Correto.
— E cada estação dura três meses.
— Sabe por que faz mais frio no inverno?
— Porque a Terra se afasta mais do sol.
— Muito bem. — O professor olhou para outro aluno, —
De onde recebemos o calor?
O aluno sorriu.
— Essa é fácil. Do sol.
— É mesmo? Quando você está num avião, aproximando-
se do sol, fica mais quente ou mais frio?
— Mais frio.
— Mas se está se aproximando do sol, por que não fica
mais quente?
O aluno franziu o rosto, desconcertado.
— Eu... não sei.
— A resposta é que não recebemos o calor do sol. O sol
nos proporciona energia radiante. Essa energia só se
transforma em calor depois que toca num objeto... uma
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nuvem, uma calçada, um prédio. — O professor virou-se para
Kenji — Pode nos dizer o que são as manchas solares?
Não houve resposta.
— Kenji?
Kenji estava com os pensamentos longe quando ouviu seu
nome. Olhou para o professor.
— Pois não, senhor?
— Fiz uma pergunta. Em que estava pensando?
— Nada, senhor.
Ele não podia contar que sonhava com a noite de sexta-
feira, quando poderia perguntar ao fantasma da moça quem a
assassinara.
Capítulo Sete
Mitsue gostava muito da escola. No início, receara a
dificuldade de fazer novas amizades. Mas descobrira que os
americanos eram simpáticos e acessíveis. Era convidada a
visitar as casas de colegas, mas hesitava em chamar alguém ao
apartamento em que morava. Embora o fantasma
aparentemente costumasse surgir apenas nas noites de sexta-
feira, era possível que resolvesse aparecer em outra ocasião,
no meio de uma festa. Quem podia saber o que se passava na
mente de fantasma? Mitsue concluíra que era melhor não
correr riscos.
Kenji também gostava da escola. Como era inteligente,
progrediu depressa. Uma manhã, na aula de inglês, estudavam
sinónimos.
Alguém sabe o que é um sinónimo? — perguntou o
professor.
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— É uma coisa ruim que alguém faz? — sugeriu um aluno.
O professor riu.
— Não. Sei que disse isso porque pensou em sin, a palavra
da língua inglesa para pecado. Sinônimos são palavras
diferentes que significam a mesma coisa. Ele olhou para Kenji.
— Pode nos dar um exemplo, Kenji?
Kenji ficou de pé
— Diferentes palavras que significa a mesma coisa?
— Isso mesmo.
Kenji pensou por um momento.
— Enorme... imenso.
— Ótimo. Dê-nos outro exemplo.
— Bonito... belo... lindo.
— Excelente. Pode dar mais um exemplo?
Kenji acenou com a cabeça.
— Triste... infeliz.
— Muito bem. Todos já sabem agora o que significa
sinônimo.
Kenji e Mitsue estavam indo tão bem em suas aulas
porque as escolas no Japão eram muito mais difíceis. Já
haviam aprendido o que seus colegas só agora começavam a
estudar. O que tornava os estudos bem fáceis para eles.
Na fábrica, Takesh Yamada também fazia grandes
progressos, ideias sobre reorganização eram excelentes e já
começavam a produzir resultados. Os lucros estavam
aumentando.
— É tudo uma questão de eficiência — dizia ele aos
subordinados. — É importante reduzir todos os desperdícios e
custos desnecessários sem deixar que isso afete a qualidade
do produto.
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Todos estavam bastante impressionados com o Sr.
Yamada.
— Seus filhos estão gostando de viver aqui? — perguntou-
lhe um dos executivos.
— Estão, sim e muito.
Mas mesmo enquanto dizia isso, Takesh Yamada se
perguntou se seria mesmo verdade. Os filhos iam bem na
escola, pareciam gostar dos professores, assim como do
apartamento onde moravam, mas nos últimos dias o
comportamento deles de tornara um pouco estranho, e o pai
não sabia o que estava acontecendo. Em diversas ocasiões, via
Kenji e Mitsue conversando aos sussurros num canto. Mas
quando indagava sobre o que falavam eles davam alguma
resposta vaga. Tinha a impressão de que os filhos lhe
escondiam alguma coisa. Decidiu conversar com Keiko a
respeito, e ela disse:
— Também notei. As crianças andam muito nervosas.
Tentei descobrir qual era o problema, mas se mostraram
evasivas. — Keiko deu de ombros. — Mas, como vão muito
bem na escola, não creio que seja algo muito importante. Deve
ser alguma fase infantil por que estão passando.
E isso foi o final da conversa.
Uma das coisas mais difíceis das crianças se acostumarem
foi o fato de a escola ser mista. Em Tóquio, Mitsue cursava
uma escola só para garotas e Kenji uma escola só para
meninos. Agora, de repente, descobriam-se na mesma turma
com o sexo oposto.
Kenji sentia-se nervoso com as garotas. Era um jovem
atraente, e as garotas de sua turma não tiravam os olhos dele,
o que o deixava ainda mais nervoso. A única garota com quem
se sentia à vontade era a irmã. Era fácil para Kenji conversar
com os meninos da turma, mas se tornava inibido quando
qualquer das garotas lhe falava. Não sabia o que dizer. O que
se pode dizer às garotas?, especulava Kenji. Elas não se
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interessavam pelas coisas importantes, como beisebol, futebol
americano ou lutas. Só pensavam em bonecas, bichos de
pelúcia e roupas. Era uma situação difícil para ele.
Mitsue não tinha qualquer problema com os meninos.
Gostava da companhia deles. Era uma experiência nova para
ela. O irmão às vezes brigava com ela, censurava-a, zombava,
mas os meninos de sua turma eram todos muito simpáticos.
Havia ocasiões em que até carregavam seus livros, e se estava
com alguma dificuldade numa das aulas procuravam ajuda-la
a resolver o problema. Os meninos são maravilhosos, concluiu
Mitsue.
Em casa, uma noite, Kenji pediu ao pai:
— Poderíamos conversar a sós, senhor?
— Claro, Kenji. Vamos para a sala.
Mitsue e Keiko ficaram na cozinha, lavando a louça.
— Qual é o problema, filho?
— É sobre as garotas — explicou Kenji.
O Sr. Yamada pensou: Meu filho está virando um homem.
— O que há com as garotas?
— É muito difícil para mim. Há uma garota na minha
turma que vive me seguindo. Acho que ela gosta muito de
mim.
— Não vejo nada de errado nisso,
— Ela me deixa nervoso. Não gosto de garotas. — Uma
pausa, e Kenji se apressou em acrescentar: — À exceção de
Mitsue, é claro.
O Sr. Yamada fez um esforço para não sorrir.
— Entendo. Vai fazer quinze anos, não é mesmo, filho?
— É, sim, senhor.
— Quando eu tinha sua idade, também não me interessava
por garotas. Mas a situação mudou quando me tornei alguns
anos mais velho. Conheci sua mãe e nos casamos.
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— Nunca vou casar — afirmou Kenji.
O Sr. Yamada disse, muito solene:
— Filho, vamos deixar para ter esta conversa daqui a dois
ou três anos.
Kenji balançou a cabeça em concordância.
— Está certo. O que devo fazer com a garota que anda me
perseguindo?
— Não deixe que ela o pegue.
Numa tarde de terça-feira, para surpresa de Keiko, a Sra.
Kellogg apareceu no apartamento.
— Espero não estar incomodando, Sra. Yamada, mas
precisamos conversar.
— Claro.
Keiko ficou alarmada. Por que a professora viera a seu
apartamento? Acontecera alguma coisa com Mitsue?
— Está tudo bem? — perguntou ela.
A professora sorriu.
— Não precisa se preocupar. É um assunto pessoal
— Aceita um chá?
— Seria ótimo. Obrigada.
As duas sentaram na cozinha e Keiko serviu chá com bolo.
Keiko esperou polidamente que a Sra. Kellogg começasse a
falar.
— É um pouco embaraçoso, Sra. Yamada, e talvez não seja
da minha conta, mas gosto muito de Mitsue, e por isso achei
que deveria alertá-la sobre uma coisa.
Keiko sentiu se nervosa de novo.
— Qual é o problema?
As colegas de Mitsue gostam muito dela e sempre a
convidam para visitá-las em suas casas.
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— Sei disso. Mitsue me disse que gosta muito de visitar as
amigas.
— E justamente esse o problema, Sra. Yamada. Várias
amigas de sua filha já vieram me perguntar por que Mitsue
nunca as convida para vir aqui.
— Ahn...
— Acham isso muito estranho.
— Eu compreendo.
— Não quero parecer intrometida, mas há alguma razão
para que Mitsue não convide as amigas para virem aqui?
— Claro que não. Elas seriam muito bem-vindas.
A Sra. Kellogg sorriu, aliviada.
— Fico satisfeita em ouvir isso. — Ela hesitou por um
momento. — Posso fazer uma sugestão?
— Por favor.
— Já ouviu falar de uma festa de pijama?
Keiko sacudiu a cabeça.
— Não.
— É um costume americano. As garotas da idade de Mitsue
se reúnem na casa de uma delas, levam seus pijamas e depois
do jantar passam a noite juntas no quarto. Conversam, riem,
fazer todas as coisas que as garotas dessa idade fazem e se
divertem muito.
— Onde elas dormem? — perguntou Keiko.
— Essa é a parte mais engraçada. Dormem em qualquer
lugar. Em mantas estendidas no chão, em sofás. Não tem
importância. A diversão é passarem a noite inteira juntas.
Keiko pensou por um momento.
— A senhora sugere que Mitsue ofereça uma festa de
pijama aqui?
— Seria maravilhoso, Sra. Yamada. AS amigas de Mitsue
adorariam. E seria uma noite na véspera de um dia sem aulas.
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Keiko sorriu.
— Assim será feito. Como neste sábado as crianças não
terão aula, faremos uma festa de pijama aqui na sexta-feira.
A Sra. Kellogg levantou-se.
— Não tenho palavras para descrever como as amigas de
Mitsue ficarão satisfeitas, Sra. Yamada.
— Falarei com Mitsue assim que ela chegar em casa.
Obrigada por ter vindo.
Keiko acompanhou a Sra. Kellogg até a porta.
Assim que Mitsue chegou, a mãe disse:
— Tenho uma surpresa para você. Vai oferecer uma festa
de pijama aqui.
— Uma festa de pijama?
— Isso mesmo. A Sra. Kellogg veio me visitar. Achou que
seria uma boa ideia se você convidasse algumas de suas
colegas para passar a noite.
Mitsue hesitou, sem saber o que dizer.
— Onde elas dormiriam, mãe?
— Providenciarei tudo. Disse à Sra. Kellogg que você daria
uma festa de pijama aqui na sexta-feira.
Mitsue ficou paralisada.
— Na sexta feira? Mas não é possível!
— Por que não?
— Eu... apenas acho que não seria uma boa ideia. E tenho
de conversar com Kenji sobre isso.
Keiko ficou surpresa.
— Kenji? O que ele teria a ver com uma festa de pijama?
Mitsue não ousava explicar. Como poderia? A mãe e o pai
pensariam que era louca.
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— Nós... combinamos ir ao cinema na noite de sexta-feira
— balbuciou Mitsue.
Mas a mãe já se decidira.
— Podem ir ao cinema outro dia. Na noite de sexta-feira
você terá uma festa de pijama aqui. E amanhã convidará suas
amigas.
Não havia como recusar.
— Está bem, mamãe — murmurou Mitsue, desolada.
Assim que o irmão chegou, Mitsue apressou-se em lhe
contar a novidade. Kenji ficou horrorizado.
— O quê? Mas não pode ter uma festa de pijama aqui na
sexta-feira! e se o fantasma aparecer?
— Sei disso. Mas mamãe insistiu.
— É terrível! — Subitamente, Kenji se animou. — Talvez
papai não goste da ideia de uma festa de pijama aqui. Se ele
não concordar, a festa será cancelada e ficaremos a salvo.
Ao jantar, naquela noite, a Sra. Yamada falou ao marido
sobre a visita da Sra. Kellogg e a proposta de uma festa de
pijama. Kenji e Mitsue ficaram olhando para o pai, na maior
ansiedade, torcendo para que ele rejeitasse a perspectiva de
ter media dúzia de crianças passando a noite no apartamento.
Em vez disso, Takesh Yamada declarou:
— É uma ideia maravilhosa. — Ele virou-se para Mitsue. —
Eu gostaria de conhecer algumas de suas amigas da escola.
Mitsue e Kenji trocaram um olhar. Não havia escapatória.
— Está bem, papai — murmurou Mitsue. — Tenho certeza
de que minhas amigas também gostariam de conhecê-lo.
Mas como elas se sentiriam com a perspectiva de
conhecer um fantasma?
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Parecia que Kenji e Mitsue se encontravam com Jerry
Davis cada vez que pegavam o elevador. Ele vivia entrando ou
saindo do prédio.
— É bem provável que ele esteja ocupado a assaltar
apartamentos e matar pessoas — comentou Kenji para a irmã.
— Não pode ter certeza de que é ele o assassino, Kenki.
— Posso sentir nos ossos. Foi ele mesmo. Basta a gente
olhar sua cara para saber.
Mitsue convidou seis colegas para sua festa de pijama.
Todas aceitaram com a maior satisfação. Receavam que Mitsue
não gostasse delas. Com o convite, porém, sabiam que não era
o caso.
— A que horas devemos ir, Mitsue?
Ela sentiu vontade de sugerir Por que não aparecem por
volta de uma hora de madrugada, depois que o fantasma for
embora?, mas respondeu:
— Às sete horas. Mamãe vai preparar um jantar especial.
— Comida japonesa!
— Isso mesmo.
— Não sei se gosto da comida japonesa. É tudo peixe cru,
não é.
— Claro que não. — Mitsue riu. — Isso é sushi. Mas temos
outros pratos maravilhosos. Teriyaki e sukiyaki, camarão ao
molho tempura, legumes...
— O que é tempura?
— Vai saber o que é lá em casa — prometeu Mitsue.
Todas as garotas aguardavam ansiosas pela festa. Na
sexta-feira, Kenji e Mitsue tiveram uma conversa sussurrada.
— Onde as garotas vão dormir? — perguntou Kenji.
— Mamãe arrumou para que duas durmam em mantas no
meu quarto, outras duas em mantas na sala, e as duas últimas
nos dois sofás.
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Kenji manteve-se em silêncio por um longo momento.
— O fantasma só apareceu em seu quarto. Não podemos
tirar as duas meninas de lá?
Mitsue sacudiu a cabeça.
— Acho que não. Afinal, não há lugar para elas em
qualquer outra parte.
Kenji suspirou.
— Talvez algumas fiquem doentes e não apareçam.
Mas às sete horas em ponto as garotas chegaram... as seis.
Keiko empenhara-se em preparar um banquete requintado
para as garotas, com todos os pratos prediletos de Kenji e
Mitsue. A maioria das garotas nunca experimentara a comida
japonesa antes, e todas adoraram o jantar. Ao terminar, Keiko
disse:
O Sr. Yamada e eu vamos deitar. Kenji irá para seu quarto.
Mitsue, mostre às suas amigas onde elas vão dormir.
— Pois não, mamãe.
Mitsue desejava ardentemente poder desaparecer em
pleno ar. Não queria permanecer ali e enfrentar o que
aconteceria à meia-noite. Todas ficariam apavoradas. Mas
talvez o fantasma não apareça esta noite, pensou ela.
Só que não acreditava nessa possibilidade.
A primeira parte da noite transcorreu muito bem. As
garotas divertiram-se. Haviam levado suas Barbies e se
ocuparam em vesti-las com roupas diferentes. Quando se
cansaram disso, jogaram cartas, viram televisão. Todas
estavam achando a festa maravilhosa, à exceção de Mitsue,
que se tornava cada vez mais nervosa. Ainda tinha a
esperança de que as amigas se cansassem e quisessem dormir
cedo, mas todas pareciam transbordar de energia.
#
Finalmente, às onze horas, Mitsue não conseguiu mais
suportar e anunciou:
— Estou com sono. Teremos de levantar cedo amanhã. Por
que não vamos deitar agora?
Relutantes, as garotas concordaram. Mitsue comunicou a
cada uma onde iria dormir. Foram ao banheiro, vestiram o
pijama, lavaram o rosto e estavam prontas para deitar. Mitsue
desejou boa-noite a todas.
— Boa noite, Mitsue.
As quatro garotas que dormiriam na sala acomodaram-se
nos sofás e no chão. As duas outras garotas olharam para
Mitsue.
— Onde nós vamos dormir?
— No meu quarto.
Elas entraram no quarto. Havia mantas e travesseiros
arrumados no chão, com extremo cuidado.
— Vão dormir aqui comigo. — Uma pausa, e Mitsue
acrescentou esperançosa: — Não se sentiriam mais
confortáveis dormindo na sala?
— Oh, não. Aqui está ótimo. Obrigada.
Mitsue suspirou. Podia imaginar o fantasma aparecendo à
meia-noite e assustando as garotas. Fugiriam correndo do
apartamento, aos berros. Todos na escola pensariam que ela
era um monstro e nenhum dos colegas jamais lhe falaria de
novo. Minha vida será arruinada, pensou Mitsue. Ela deitou
em sua cama, apagou a luz. Reinava o silêncio no
apartamento. Eram onze horas e quinze minutos. Ficarei
acordada até o fantasma aparecer, pensou Mitsue. Talvez eu
possa persuadir a moça a ir embora. Ela manteve os olhos bem
abertos, enquanto os minutos passavam, mas logo se sentiu
sonolenta. Fora um dia comprido, o excitamento e o medo do
que poderia acontecer haviam-na deixado esgotada. Seus
olhos fecharam. E ela pegou no sono.
#
Não tinha ideia de quanto tempo dormira, mas despertou
com uma das amigas se comprimindo contra ela, na cama. Ela
não gostou de dormir no chão, pensou Mitsue. Ora, não me
importo que durma comigo. A amiga estava de costas para ela.
Mitsue sussurrou:
— Está tudo bem. Pode dormir aqui.
Foi nesse momento que a figura na cama virou-se para
fitá-la.
— Ajude-me! — sussurrou o fantasma.
Capítulo Oito
— Ajude-me! — repetiu o fantasma.
Mitsue ficou rígida, sentindo a figura gelada do fantasma
se comprimindo contra seu corpo. Acabou recuperando a voz
para balbuciar:
— Quero ajudá-la. Diga-me o que posso fazer.
— Deixe-me partir.
Mitsue não entendeu.
— Deixá-la partir? Como posso deixá-la partir?
— Ajude-me a punir o homem que me matou.
Mitsue acenou com a cabeça.
— Tentarei ajudar. Quem foi?
Em seu excitamento, ela esquecera de sussurrar. Uma das
garotas no quarto sentou no chão.
— Com quem você está conversando, Mitsue?
E o fantasma desapareceu.
#
Mitsue não conseguiu dormir de novo, como era de se
esperar. O que vou fazer?, pensou. Ela quer que eu pegue seu
assassino? Terei de conversar com Kenji sobre isso.
Pela manhã, com todas as garotas no apartamento, foi
impossível falar com Kenji sobre o que acontecera. Depois que
as amigas foram embora, Mitsue chamou o irmão para uma
conversa.
— O fantasma apareceu? indagou Kenji, ansioso. —
Tornou a ver a moça?
— Não apenas a vi, como também ela deitou na cama
comigo. — Mitsue estremeceu. — Foi a coisa mais estranha do
mundo.
— O que ela disse?
— Quer que a ajudemos a se libertar. Quer que a deixemos
partir.
Kenji fitou a irmã nos olhos.
— E como podemos fazer isso?
— Encontrando o homem que a matou. Lembra o que
minha professora disse? Que um fantasma é um espírito que
ainda tem um trabalho a fazer neste mundo? Esse é o trabalho
dela, Kenji. Cuidar para que seu assassino seja punido.
— Está querendo dizer que ela não poderá ir embora até
pegarmos o homem que a matou?
— Isso mesmo.
Kenji pensou por um momento.
— Neste caso, é claro que temos de pegá-lo, não é mesmo?
— Mas como faremos isso, Kenji? Sequer sabemos quem é.
— Tenho certeza que é Jerry David. Não se preocupe.
Encontraremos um meio de pegá-lo.
— Você é maravilhoso!
Mitsue adorava o irmão.
— Ora, não é nada.
#
No fundo do seu coração, no entanto, Kenji sentia-se
apavorado.
Kenki decidiu conversar com John Feeney. Bateu à porta
de seu apartamento e perguntou, assim que Feeney abriu-a:
— Está muito ocupado, Sr. Feeney?
— Claro que não, filho — respondeu Feeney, cordial. —
Entre. É sempre bom ter companhia.
— Obrigado, senhor.
— Aceita um sanduíche ou alguma outra coisa?
— Não, obrigado. Só queria lhe fazer algumas perguntas.
— Pode fazer. Aposto que é sobre Susan Boardman, não é?
Kenji se mostrou surpreso.
— Como soube?
— Acho que todos os meninos da sua idade se interessam
por assassinatos. — Ele sacudiu a cabeça. — Pobre moça. Era
muito meiga.
— Como... como ela morreu?
— Foi apunhalada. Uma caixa com joias valiosas
desapareceu. Tenho a impressão que ela surpreendeu o
ladrão.
— O assassino foi preso?
Feeney sacudiu a cabeça.
— Não.
— Sr. Feeney, há quanto tempo Jerry Davis mora aqui?
— Jerry Davis? Deixe-me pensar... Ele se mudou uma
semana antes de Susan Boardman ser assassinada.
O coração de Kenji disparou.
— Disse que ele é detetive particular.
— É verdade.
— Detetives particulares envolvem-se em crimes, não é
mesmo?
#
— Detetives particulares investigam crimes, não os
cometem.
Mas alguns cometem, pensou Kenji, excitado. Já lera
história policiais. Os detetives precisavam pensar como
criminosos. O que significava que também eram capazes de
agir como criminosos.
— Por que está perguntando sobre Jerry Davis?
Kenji deu de ombros.
— Nenhum motivo especial. ele apenas parece mio
misterioso.
John Feeney riu.
— De certa forma, acho que você tem razão. ele sempre
entra e sai a qualquer momento do dia ou da noite. Acho que
se pode mesmo classificá-lo de misterioso.
Não vou mais tomar seu tempo, Sr. Feeney. Sei que deve
estar ocupado. Até amanhã.
— Boa noite, Kenji.
Kenji conversava de novo com John Feeney. Falavam
sobre Jerry Davis.
— Acho que ele matou Susan Boardman — disse Kenji.
John Feeney ficou chocado.
— É uma acusação muito grave, Kenji. Teria de prová-lo.
— Disse que as joias nunca foram encontradas.
— É verdade.
— Então ainda podem estar no apartamento de Jerry
Davis. Se as encontrássemos ali, seria a prova de que
precisamos para demonstrar que foi ele o assassino.
O telefone tocou. John Feeney atendeu.
— Alô? Ah, Sra. Walton... certo. Já vou subir.
Ele desligou e acrescentou para Kenji:
#
— Tenho de subir para consertar um vazamento. Fique
aqui e termine seu leite. Não se esqueça de fechar a porta ao
sair.
— Obrigado.
Feeney levantou-se, pegou algumas ferramentas e deixou
o apartamento. Kenji olhou para a parede em que havia chaves
extras penduradas. Cada chave tinha uma etiqueta com o
nome de um morador. Kenji ficou olhando por um momento,
depois se adiantou. Uma das etiquetas dizia "Jerry Davis".
Vocês têm de me libertar.
O coração de Kenji disparou.
— Está certo — disse ele, em voz alta —, vou pegar seu
assassino.
Ele tirou a chave do gancho. A etiqueta tinha a indicação
de 810. Kenji encaminhou-se para o elevador. Saltou no oitavo
andar e olhou para um lado e outro. Não havia ninguém no
corredor. Ele começou a andar. 808... 890... 810. Parou diante
da porta. Podia ouvir as batidas do coração. Vou entrar sem
permissão no apartamento de outra pessoa, disse a si mesmo.
Parecia irreal. Era o momento de ir embora, de esquecer tudo
aquilo, antes de se meter numa terrível encrenca. Não posso
esquecer, pensou Kenji. Tenho de fazer isso por Susan
Boardman. Ele bateu à porta e esperou. Não houve resposta.
Tornou a bater e chamou:
— Sr. Davis!
Silêncio. Kenji enfiou a chave na fechadura, fitou-a. A
porta se abriu. Ele ficou parado ali por mais um momento,
escutando, depois entrou no apartamento.
— Sr. Davis?
O apartamento estava vazio. Kenki fechou a porta, olhou
ao redor. A sala era grande, mobiliada com luxo.
— De onde foi que tirou todo o dinheiro para mobiliar seu
apartamento desse jeito? — indagou Kenji, em voz alta.
Sua voz ressou pelo apartamento.
#
— Sei como conseguiu. Roubando.
Ele se encaminhou para o quarto.
Ainda não é tarde demais para recuar, disse a si mesmo.
Posso sair agora e esquecer tudo. Mas Kenji sabia, no fundo do
coração, que não podia fazer isso. Prometera ajudar e estava
decidido. Entrou no quarto. Havia uma cama grande, duas
cômodas, uma mesa e um abajur.
As joias devem estar em algum lugar por aqui, pensou
Kenji. Foi até uma das cômodas e começou a abrir as gavetas.
A primeira
continha camisas e cuecas, e por baixo de uma pilha de
roupas havia um enorme revólver.
Oh, Deus!, pensou Kenji. Aposto que ele usa esta arma
para matar pessoas. Apressado, Kenji fechou a gaveta e tratou
de revistar as outras. Nada além de roupas. Teve a impressão
de ouvir um barulho e ficou imóvel. Silêncio. O silêncio
começava a deixá-lo nervoso. esperava que Jerry Davis o
surpreende-se a qualquer instante. Estremeceu. Vasculhou
apressado as gavetas da outra cômoda. Também nada, só
roupas.
Kenji parou no meio do quarto, olhou ao redor, tentado se
colar na mente de Jerry Davis. Onde ele esconderia as joias?
Como se atraído por alguma força misteriosa, Kenji se
descobriu andando para a porta do armário. Abriu-a. Havia
meia dúzia de ternos pendurados ali. Já ia fechar a porta
quando avistou uma caixa de joias na prateleira por cima dos
ternos. É isso!, pensou Kenji, excitado. Com as mãos trêmulas,
ele pegou a caixa. Começou a abri-la, e de tanta ansiedade
quase a deixou cair. Pensou ter ouvido um barulho e sentiu os
cabelos se arrepiarem. Havia alguém mais no apartamento? ele
#
ficou imóvel, esperando. Silêncio. Kenji levantou a tampa da
caixa de joias, e olhou.
Lá dentro havia várias joias — pulseiras, brincos, anéis de
diamantes. Descobrira o assassino de Susan Boardman! Pediria
ao pai para levar as joias roubadas à polícia. Seria toda a
prova de que precisavam. Jerry Davis iria para a prisão.
Kenji encaminhou-se para a porta do quarto. Ao chegar à
sala, ouviu a porta da frente se abri. Jerry Davis entrou. Era
tarde demais para se esconder. Jerry Davis olhou para Kenji e
a caixa em suas mãos.
— Você! gritou ele.
Seu rosto assumiu uma expressão sombria. Ele enfiou a
mão no bolso, tirou uma faca comprida, de aparência
mortífera.
— Não deveria se meter no que não é da sua conta. Agora,
você vai morrer. — Ele avançou para Kenji, a faca levantada. —
Morra!
Kenji sentou na cama abruptamente, os olhos arregalados,
encharcado de suor. Estivera sonhando. O coração batia
descompassado. Que pesadelo terrível!, pensou Kenji.
Mas convenceu-o de uma coisa: Jerry Davis assassinara
Susan Boardman.
Os dias da semana pareciam se arrastar. Havia apenas
sete dias numa semana? A impressão era de que havia cem
dias, e cada dia tinha cem horar. Kenji mal podia esperar que
a sexta-feira chegasse, a fim de poder interrogar o fantasma e
descobrir o nome do assassino.
O que farei então?, pensou Kenji. Minha câmera! Tirarei
uma foto do fantasma e mostrarei a meu pai. Assim, ele terá
de acreditar em mim. E saberá o que fazer. Iremos juntos à
policia, e contaremos tudo.
A segunda-feira passou... depois a terça... quarta... quinta.
E, finalmente, a sexta feira.
#
— Aqui está o plano — disse Kenji a Mitsue. — Vamos nos
deitar cedo e irei para o seu quarto pouco antes da meia-noite.
Quando o fantasma aparecer...
— Perguntaremos à moça o nome do assassino.
— Já sabemos o nome — protestou Kenji, impaciente. — É
Jerry Davis. Levarei minha câmera e tirarei uma foto do
fantasma.
— Para quê?
— Para mostrar a papai? Não percebe? é do que
precisamos para provar que o fantasma existe mesmo. Assim,
papai nos ajudará.
— Uma ideia brilhante, Kenji!
Naquela noite aconteceu algo inesperado. o pai trouxe
convidados para o jantar. Três homens que trabalhavam com
ele na fábrica, acompanhados pelas esposas. As crianças
ficaram horrorizadas. Kenji levou Mitsue para seu quarto.
— O que vamos fazer agora? — indagou ele. — Já
imaginou se o fantasma aparecer na frente deles? Culparão
papai, que provavelmente será despedido. E nós seremos os
responsáveis por isso.
— Talvez possamos persuadi-los a sair mais cedo —
sugeriu Mitsue.
Isso de uma ideia a Kenji.
— Boa ideia, irmãzinha. Aqui está o que vamos fazer...
O jantar foi delicioso e Keiko recebeu muitos elogios dos
convidados.
— Você tem sorte, Takesh. É casado com uma excelente
cozinheira.
— Sei disso — respondeu Takesh, orgulhoso. — E tenho de
tomar muito cuidado para não engordar.
Terminado o jantar, foram todos para a sala de estar. Um
dos convidados comentou:
#
— Tiveram sorte de encontrar um apartamento tão bom
em Nova York.
Muito azar, pensou Kenji.
Às onze horas, os convidados não davam o menor sinal de
que pretendiam ir embora logo. AS mulheres conversavam
felizes sobre suas famílias e os homens falavam da fábrica.
Kenji olhou para Mitsue e acenou com a cabeça. Era o sinal
para iniciarem a execução do plano.
Os dois começaram a bocejar de forma exagerada. Não
demorou muito para que os convidados também estivessem
bocejando. Kenji e Mitsue continuaram a bocejar até que todos
faziam a mesma coisa, inclusive Takesh e Keiko. Um dos
convidados disse:
— Acho que estou mais cansado do que imaginava. Creio
que devemos partir.
Eram onze e meia. Levaram bastante tempo se despedindo
e Kenji e Mitsue recearam que ainda estivessem no
apartamento à meia-noite. Mas todos os convidados retiraram-
se quando ainda faltavam quinze minutos.
— Foi uma noite agradável — disse Takesh para a esposa.
— Todos apreciaram muito sua comida.
— Obrigada — murmurou Keiko, modesta.
Ela sempre se sentia feliz quando o marido se mostrava
orgulhoso de suas habilidades. Takesh virou-se para Kenji e
Mitsue.
— Vocês devem estar exaustos. Passaram a noite inteira
bocejando.
— Estamos mesmo, pai — respondeu Kenji. — Vamos
deitar agora.
Ele deu um beijo de boa-noite no pai e na mãe. Mitsue
também beijou os pais. Cada um foi para seu quarto. Takesh
observou-os com uma expressão pensativa.
— Keiko, não acha que as crianças têm se comportado de
uma maneira estranha?
#
— Não. Creio que estão muito bem.
Takesh não tinha a mesma certeza.
— Eu bem que gostaria de saber qual é o problema. Vamos
deitar.
Quando faltavam cinco minutos para a meia-noite, Kenji
saiu de sua cama, sem fazer barulho, entreabriu a porta do
quarto para se certificar de que os pais já se haviam
recolhido, depois atravessou a sala na ponta dos pés até o
quarto da irmã. Levava sua câmera. Bateu de leve à porta.
— Entre — sussurrou Mitsue.
Ele abriu a porta, entrou no quarto de Mitsue, que
acrescentou:
— Ela deve aparecer a qualquer momento. O que pretende
fazer quando ela chegar?
— Vamos perguntar o nome de seu assassino e tirarei uma
foto dela, para mostrar a papai. Se procurássemos a policia
com uma historia de fantasmas, todos ririam de nós. Mas
papai fará com que nos deem atenção. Papai...
Foi nesse instante que eles ouviram. Começou como um
gemido baixo. Kenji e Mitsue olharam para a porta fechada e
avistaram, flutuando através da madeira, a moça com o
vestido branco manchado de sangue. Kenji sentiu os cabelos
arrepiarem.
— Ajudem-me! — disse a moça.
Kenji tentou falar, mas estava com a garganta ressequida.
Quando finalmente conseguiu recuperar a voz, saiu
estridente, como de uma garota:
— Eu... nós vamos ajudá-la.
— Quero ser livre.
A moça se aproximava da cama. Kenji e Mitsue puderam
sentir que o quarto se tornava frio e úmido.
#
Kenji ergue a câmera e focalizou a aparição. Tirou quatro
fotos consecutivas. Agora, tenho uma prova, pensou ele.
— Diga-nos o nome do assaltante que a matou.
—Ele mora neste prédio.
Os cabelos de Mitsue ficaram arrepiados agora.
— Eu estava certo! — exclamou Kenji. — Seu nome é...
E foi então que eles ouviram a voz do pai:
— O que está acontecendo aí? O que vocês dois andam
fazendo?
O fantasma desapareceu em pleno ar.
Kenji e Mitsue trocaram um olhar, desolados. A porta foi
aberta. O pai entrou no quarto.
— O que faz aqui, Kenji? Deveria estar dormindo.
— Tem razão, papai. Estávamos apenas conversando.
— Já passa de meia-noite. Volte para sua cama.
— Pois não, senhor.
O pai saiu. Kenji se lamentou:
— Estávamos tão perto... Mais um segundo e ela nos daria
o nome de Jerry Davis.
— Teremos que esperar até a próxima sexta feira.
Kenji pensou por um momento.
— Não. Já sabemos quem é o assassino. Amanhã mandarei
revelar as fotos e depois conversaremos com papai.
Mitsue ficou emocionada.
— Oh, Kenji, estou tão excitada!
— Voltaremos a falar sobre isso pela manhã. Até lá, é
melhor dormirmos.
Ele voltou para seu quarto. Mas nem Kenji nem Mitsue
conseguiram dormir naquela noite. Amanhã seria um grande
dia.
#
Capítulo Nove
— Na manhã seguinte, Mitsue perguntou a Kenji:
— Quando vai levar o filme para ser revelado?
— Logo depois do café.
Havia vinte e quatro fotos no rolo. Ele tirara vinte antes, e
as últimas quatro eram do fantasma.
— Vão revelá-lo imediatamente e esta noite teremos a
prova de que precisamos para mostrar a papai.
As crianças sentiam-se tão excitadas que mal tocaram na
comida.
— Não estão se sentido bem? — perguntou a mãe.
— Eu me sinto ótimo — respondeu Kenji.
— E eu também — acrescentou Mitsue.
O pai as estudava. Não resta menor dúvida de que há
alguma coisa errada, pensou Takesh. Eles nunca se
comportaram dessa maneira no Japão. Deve ser algo no ar
americano. Ele decidiu que teria uma conversa com os filhos.
A impressão era de que tinham algum segredo. Ora, talvez
seja um comportamento normal para crianças dessa idade.
#
Depois do café da manhã, as crianças pediram licença
para sair. Kenji, pôs o rolo do filme no bolso e desceu com
Mitsue. No saguão, depararam com Jerry Davis.
— Não é um pouco cedo para saírem, senhores?
Kenji fitou-o nos olhos.
— É, sim, senhor.
Você ficaria surpreso se soubesse o que tenho bolso. Vai
mandá-lo para a prisão.
— Tomem cuidado ao andarem pelas ruas — advertiu
Jerry Davis. — Nova York pode ser uma cidade muito perigosa.
Seria um aviso? Kenji sentiu um calafrio. Recordou o
sonho, como lhe parecera real, Jerry Davis avançando em sua
direção com uma faca. Não deveria se meter no que não é da
sua conta.
Talvez eu não devesse mesmo, pensou Kenji. Mas agora é
tarde demais. Vamos ajudar Susan Boardman.
Jerry Davis foi para o elevador e Kenji e Mitsue seguiram
para o laboratório fotográfico.
A loja era pequena, a seis quarteirões do prédio. Os dois
se encaminharam para o funcionário por trás do balcão.
— Bom dia. Em que posso ajuda-los?
Kenji tirou o rolo de filme do bolso.
— Gostaríamos que este filme fosse revelado.
— Está certo.
O homem pegou o filme e entregou um recibo a Kenji.
— Eu gostaria que ficasse pronto esta noite.
— Lamento, mas não é possível. Não fazemos revelações
para o mesmo dia.
Kenji ficou desapontado.
— Para amanhã então.
#
O homem sacudiu a cabeça.
— Amanhã é domingo. Não pode ficar pronto antes da
tarde se segunda-feira.
Kenji e Mitsue trocaram um olhar.
— Está certo — disse Kenji.
Teriam de se conformar com a espera. Na volta para casa,
Mitsue comentou:
— Não tem importância, Kenji. Contaremos tudo a papai
na segunda-feira.
Kenji detestava a perspectiva de esperar tanto tempo. A
armadilha fechava-se sobre Jerry Davis e agora que tinha sua
prova, Kenji sentia-se mais impaciente do que nunca. Queria
pôr o assassino atrás das grades. Forma uma ameaça quando
Jerry Davis dissera "Nova York pode ser uma cidade muito
perigosa"? Era, sim, com toda a certeza, concluiu Kenji.
No domingo, Takesh Yamada alugou um carro e levou a
família num passeio a Connecticut. Ficava a poucas horas de
Manhattan, mas parecia um mundo diferente. Havia pequenas
aldeias exóticas, lojas de antiguidades e tranquilas estradas
rurais. Mas as arvores era o espetáculo mais emocionante. As
folhas estavam mudando de cor e as árvores pareciam em
chamas. Havia folhas vermelhas, marrons e douradas e
pareciam povoar o céu de arco-iris. Nem mesmo no Japão as
crianças haviam visto algo tão deslumbrante.
— Chamam a Connecticut de dormitório de Nova York —
comentou Takesh Yamada.
Kenji olhou para o pai.
— Por quê?
— Como é muito difícil encontrar um lugar para se morar
na cidade de Nova York, muitas pessoas que trabalham lá
residem em Connecticut. Viajam para o trabalho de trem ou de
carro.
#
Kenji balançou a cabeça.
— Ahn...
Almoçaram numa pequena estalagem rural e voltaram
cedo para Manhattan.
— O que gostariam de fazer agora? — perguntou Takesh
Yamada.
Mitsue respondeu primeiro:
— Podemos ira ao Central Park? Há um jardim zoológico
lá.
— E barcos a remo — acrescentou Kenji.
— Podemos visitar o zoológico?
— Podemos passear de barco?
O pai riu.
— Calma, crianças. — Ele virou-se para a esposa: — O que
você gostaria de fazer?
Keiko sorriu.
— Porque não vamos ao Central Park?
O Central Park era uma joia verde no coração de
Manhattan. Não havia casas ali, apenas arvores, gramados e
um lago onde se podia passear em barcos de aluguel. Havia
também um jardim zoológico.
— Se esta terra pudesse ser vendida — comentou Takesh
Yamada para a família —, valeria muitos bilhões de dólares.
Mas o estado a mantém como um parque para as pessoas se
divertirem.
— Podemos ir ao zoológico? — indagou Mitsue.
— Podemos passear de barco? — insistiu Kenji.
Como era domingo, havia muita gente no parque
aproveitando o ar fresco. Passaram por um guarda
uniformizado, que sorriu para a família.
#
— Boa tarde, pessoal.
Takesh Yamada acenou com a cabeça.
— Boa tarde. — Ele fez um gesto no ar. — O Central Park
não é como eu esperava.
— E o que esperava? — perguntou o guarda.
— Imaginava que era muito perigoso. No Japão, lemos
sobre pessoas sendo assaltadas e baleadas aqui. Mas agora
vejo que é tudo pacifico aqui.
O guarda riu.
— É pacifico porque o sol está brilhando. Não o
aconselharia a passear por aqui durante a noite. O Central
Park pode ser muito perigoso.
— Ah, então as histórias são verdadeiras.
— Infelizmente. Mas há crimes em todas as grandes
cidades do mundo, não é mesmo?
Takesh Yamada não podia deixar de concordar.
— Tem ração. O que é muito triste.
Foram até o zoológico.
— Acho que o zoológico de Tóquio é melhor — disse
Kenji. — Nossos elefantes são maiores.
— Mesmo assim — ressaltou Keiko —, é um excelente
zoológico.
Depois do zoológico, foram até o lago. Havia uma dúzia
de barcos na água, ocupados por casais românticos,
conversando e rindo.
— Podemos passear de barco, papai? — perguntou Kenji.
Takesh Yamada franziu o rosto.
— Não sei... Parecem muito pequenos.
— Olhe ali... alguns barcos dão para quatro pessoas.
— é verdade, mas...
#
— Por favor, papai! — insistiu Kenji. — Pode deixar que eu
cuidarei dos remos.
— Está bem.
Foram até a cabine em que estava o encarregado dos
barcos.
— Eu gostaria de alugar um barco — disse Takesh Yamada.
— Pois não, senhor. Quanto tempo pretende demorar?
O Sr. Yamada virou-se para o filho.
— Você vai remar?
— Vou, pai.
Takesh Yamada tornou a se virar para o home.
— Cerca de quinze minutos.
— Pai!
— Estou brincando, filho. Voltaremos em uma hora.
O homem ajudou-os a embarcar, e partiram pelo lago, com
Kenji remando, como prometera. Ele remava depressa e com
força, desviando-se dos barcos próximos.
— Não é divertido? — disse Kenji.
Takesh e Keiko tiveram de admitir que era bastante
agradável. Fazia um dia lindo e o sol faiscava na água.
— É muito relaxante — comentou o pai.
Podia ser relaxante para o Sr. Yamada, mas Kenji já
começava a se cansar. Não era fácil remar um barco com
quatro pessoas. Ele passou a remar cada vez mais devagar.
— Gostaria que eu remasse um pouco? — sugeriu Mitsue.
— Claro que não. — Kenji não deixaria que a família
percebesse como seus braços estavam cansados. — Posso
remar assim durante o dia inteiro.
— Neste caso, ficaremos aqui até o escurecer — zombou o
Sr. Yamada.
#
Kenji torceu para que ele estivesse brincando. Remava
mais e mais lentamente. O Sr. Yamada ficou com pena do
filho.
— Talvez devêssemos voltar agora — propôs ele.
Kenji sentiu o maior alivio.
— Se é isso o que quer, papai...
Ele remou de volta para o atracadouro e todos
desembarcaram.
— Gostaram do passeio? — perguntou o encarregado.
— Foi maravilhoso — respondeu Kenji, mal conseguindo
mexer os braços.
Naquela noite, Kenji sentia-se tão exausto que mergulhou
num sono profundo e não teve sonhos.
Na manha de segunda-feira, bem cedo, as crianças
partiram para a escola.
— Podemos ir buscar as fotos agora? — perguntou Mitsue.
— Não — respondeu Kenji. — Só ficarão prontas à tarde.
Vamos direto para a escola.
O professor de inglês de Kenji disse:
— Hoje vamos aprender o que significa gênero. Alguém
sabe?
O professor olhou para Kenji, que era o aluno mais
brilhante. Mas Kenji sacudiu a cabeça. O professor correu os
olhos pelo resto da turma. Não havia nenhuma mão erguida.
— Muito bem — disse ele —, gênero é sexo.
Kenji descobriu-se subitamente a corar. Podia sentir que a
garota que sempre o perseguia por toda parte o observava.
— Em inglês — continuou o professor —, temos três
gêneros, masculino, feminino e neutro.
Kenji sentiu um alivio profundo. Não iam falar sobre sexo.
#
— Claro que todos sabemos que o masculino se aplica aos
machos — disse o professor. — Os homens são do gênero
masculino. As mulheres, do feminino.
— Não entendo o que é neutro — disse Kenji.
— O neutro se aplica a uma coisa que não tem sexo. — O
professor tocou na mesa com a mão. — Esta mesa, em inglês, é
do gênero neutro. s cadeiras também. Ou a casa. Compreende
agora?
— Ahn... sim, senhor — respondeu Kenji.
— Se falamos que um homem vai para um quarto em sua
casa, devemos usar, em inglês, o pronome his, significando
seu. No caso de uma mulher, o mesmo seu quarto se diz her.
His e her devem ser sempre usados com o gênero
correspondente.
— E qual é o termo certo para o neutro? — indagou Kenji.
— Para um objeto, usamos o it. Por exemplo, ao dizermos
que o chão é duro, usamos o it. Se queremos dizer que um
livro é bom em inglês, falamos It is a good book. Todos
entenderam?
Os alunos acenaram com a cabeça.
Foi difícil para Kenji se concentrar nas aulas naquele dia.
Pensava nas fotos do fantasma, que em breve mostraria ao
pai. Mal podia esperar que as aulas acabassem. Quando
finalmente terminaram, ele se encontrou com Mitsue no
corredor e saíram apressados. As equipes de beisebol se
preparavam para uma partida. Quando Kenji se encaminhava
para a rua, Clarence gritou:
— Ei Kenji, estamos prontos para começar!
— Sinto muito, mas não poderei jogar hoje — respondeu
Kenji. — Tenho uma coisa muito importante fazer.
Clarence ficou desapontado.
— está certo. Então espero você amanhã.
#
— Combinado.
Kenji e Mitsue seguiram apressados pra a loja. O mesmo
funcionário encontrava-se por trás do balcão e sorriu ao ver
as crianças.
— Vieram bem a tempo — disse ele. — O filme de vocês
acaba de chegar.
Ele entregou um envelope a Kenji, que o abriu, na maior
ansiedade. Os irmãos começaram a olhar as fotos, devagar,
uma a uma. A primeira fora tirada diante da estátua da
Liberdade, a segunda interior. Havia fotos do passeio na
barca... lojas da Quinta Avenida... Rockefeller Center. Eram
vinte fotos de passeios da família e todas perfeitas. Kenji
pegou a vigésima primeira, uma foto do fantasma. O papel
estava em branco. Ele passou para a foto seguinte. Também
em branco. E as outras duas. Em branco. Não havia uma única
foto do fantasma. Kenji e Mitsue trocaram um olhar aturdido.
— Deve ter acontecido alguma coisa com a sua câmera —
disse Mitsue.
— Não — garantiu Kenji. — Não há nada de errado com a
câmera...
— Está querendo dizer...
— Isso mesmo. Não é possível fotografar fantasmas.
A caminho do apartamento, Kenji e Mitsue sentiam-se
muito infelizes.
— O que faremos agora? — perguntou Mitsue.
— Não sei. Sem o filme, não adianta conversar com papai.
Ele apenas se zangaria.
— Podemos ir à polícia — sugeriu Mitsue.
Kenji sacudiu a cabeça.
— Só nós dois? Ririam da gente. — Subitamente, seu rosto
se animou. — Já sei o que podemos fazer.
#
— O quê?
— Conversaremos com John Feeney. Ele pode nos dar
algum conselho.
— é uma excelente ideia.
Mitsue gostava de John Feeney. A simples perspectiva de
conversar com ele fez com que as duas crianças se sentissem
melhor.
Ao chegarem ao prédio, Kenji foi bater à porta do zelador.
John Feeney abriu-a.
— Olá, Kenji. Olá Mitsue.
— Desculpe incomodá-lo — disse Kenji —, mas
poderíamos conversar por um momento?
— Claro. Entrem. — Ele sempre tinha um sorriso simpático
para as crianças. — Gostariam de leite com biscoitos?
— Não, obrigado.
— Como quiserem. Mas sentem. Vocês dois parecem muito
sérios. Algum problema na escola?
— Não —respondeu Mitsue. — Nosso problema é aqui.
— John Feeney franziu o rosto.
— Não estou entendendo. Há alguma coisa errada com o
apartamento.
— De certa forma, senhor — disse Kenji. Seria muito
difícil explicar e ele resolveu falar logo de uma vez: — Mitsue
e eu temos visto um fantasma.
John Feeney se mostrou surpreso.
— Um fantasma?
— Isso mesmo — confirmou Mitsue. — No apartamento.
Nós já a vimos várias vezes.
— É uma mulher?
— É, sim.
John Feeney balançou a cabeça.
#
— Deve ser Susan Boardman, a moça que foi assassinada
no apartamento por assaltantes.
— Ela disse que não foi morta por assaltantes.
John Feeney olhou para Kenji com a maior surpresa.
— O quê?
— Ela disse que foi alguém que morava no prédio.
John Feeney levantou-se.
— Não posso acreditar. Conheço todos os moradores.
Nenhum deles pode ser um assassino. — Ele se pôs a andar de
um lado para o outro. — Isso é terrível. O fantasma disse que
foi?
— Vai nos dar o nome na sexta feira.
— Ahn...
Kenji acrescentou:
— Viemos procurá-lo, Sr. Feeney, porque precisamos de
um conselho. Não sabemos o que fazer. Devemos procurar a
polícia?
— É uma boa ideia. — John Feeney pensou por um
momento. — Mas antes precisarão de alguma prova. Caso
contrário, a polícia jamais acreditaria. Disseram que ela vai
revelar o nome do assassino na sexta-feira?
— Isso mesmo, senhor.
— Pois então escutem meu conselho. Acho que devem
esperar até sexta-feira. Assim que souberem o nome, irei com
vocês a polícia e deixaremos que cuidem do resto.
— É muita gentileza sua, senhor — disse Kenji. —
Obrigado.
Ele e a irmã sentiam-se bem melhor agora. A polícia podia
rir dos dois, mas não procederia da mesma forma com John
Feeney. Assim que soubessem o nome do assassino, iriam
obrigá-lo a confessar. Kenji e Mitsue estavam aliviados.
#
Depois que as crianças se retiraram, John Feeney
permaneceu sentado em seu apartamento, imóvel, por um
longo tempo, pensando no que acabara de ouvir. São crianças
ótimas, pensou ele. É uma pena que tenha de matá-las, da
mesma maneira como matei Susan Boardman.
#
Capítulo Dez
Ao jantar, naquela noite, Kenji e Mitsue estavam excitados
demais para comer.
— O que há com vocês? — perguntou Keiko. — Não
comeram nada.
— Não tenho fome — declarou Kenji.
— Nem eu — acrescentou Mitsue.
— Andaram comendo bobagens depois da escola? —
indagou a mãe.
Isso não acontecera, mas era mais fácil dizer que sim do
que tentar explicar que não tinham apetite por causa do
fantasma.
— Foi isso — respondeu Kenji.
— Pois devem parar com isso. Não é bom para vocês.
— Obedeçam à sua mãe — interveio Takesh Yamada.
— Sim, senhor.
— Vai tudo bem na escola? — indagou o pai.
— Não temos nenhum problema, senhor.
— As crianças têm se saído muito bem — confirmou Keiko
orgulhosa. — Conversei com os professores. Os dois serão
adiantados em mais uma série.
— Isso me deixa muito satisfeito — disse Takesh Yamada.
#
Ficará ainda mais satisfeito quando souber o que Mitsue e
eu andamos fazendo, pensou Kenji.
As duas crianças tiveram uma noite irrequieta. Mitsue
permaneceu acordada, esperando que Susan Boardman a
visitasse de novo. A meia-noite passou sem que ela aparecesse
e Mitsue pegou no sono.
Pela manhã, quando desciam, o elevador parou no oitavo
andar e Jerry Davis entrou. Kenji ficou gelado. Lembrou do
sonho em que Jerry Davis tentava matá-lo. Comprimiu-se
contra a parede do elevador, tentando se manter o mais
distante possível. Jerry Davis olhou para ele, espantando.
— Bom dia.
— Bom... bom dia — balbuciou Kenji.
Jerry Davis se perguntou qual seria o problema. Mitsue
também parecia apavorada. Pareciam ter medo dele. As
crianças comportavam-se de uma maneira muito estranha.
— Está tudo bem com vocês?
— Sim... sim, senhor — disse Kenji.
Mas nada ficará bem para você depois que contarmos
tudo à polícia. Irá para a cadeia.
O elevador chegou ao térreo. John Feeney estava em seu
apartamento, olhando pela janela, quando Kenji e Mitsue
deixaram o prédio. Vou liquidá-los esta noite, pensou ele.
Na calçada, Kenji disse a Mitsue:
— Devemos tomar cuidado para não deixar o Sr. Davis
perceber que sabemos que é ele o assassino. Ele pode tentar
nos matar se descobrir.
— Não se preocupe — respondeu Mitsue. — John Feeney
nos protegerá.
Na turma de Mitsue, estavam aprendendo os nomes de
frutas e legumes. A professora passara pela mercearia e levara
uma porção de coisas para a sala. Mostrou uma laranja.
#
— Em inglês, o nome desta fruta é Orange. — Ela
suspendeu uma fruta amarela comprida. — Alguém sabe o que
é sito?
Uma aluna gritou:
— Uma banana!
— Certo, Tem o mesmo nome em inglês que em outras
línguas.
Ela pegou uma maça vermelha e arredondada.
— É isto?
— Apple.
Ela mostrou uma dúzia de frutas diferentes. Havia
tangerinas, nectarinas e ameixas. Depois que as crianças
gravaram os nomes de todas as frutas, ela passou para os
legumes e as verduras. Suspendeu uma cenoura.
— Alguém pode me dizer o que é isto?
— Carrot.
— E isto?
— Uma alface. (Lettuce, em inglês.)
Todas as crianças participaram das respostas, à exceção
de Mitsue. Ela não foi capaz de prestar atenção. Estava muito
ocupada a pensar no fantasma.
Kenji também tinha dificuldade para se concentrar na
aula. Pensava no fantasma. Na sexta-feira ela nos dirá que foi
Jerry Davis. John Feeney irá conosco à delegacia, e os policiais
obrigarão Jerry Davis a confessar. Seremos heróis, pensou
Kenji. Mitsue e eu vamos aparecer nos jornais e na televisão.
Só que desta vez, não será num tolo programa de perguntas.
Serei o astro principal. Os repórteres me farão uma porção de
perguntas. "Não ficou com medo, Kenji?", E eu vou sorrir e
responder: "Não, nem um pouco."
#
Em seu apartamento, John Feeney pensava no que ia
fazer. Tenho de matar os dois, concluiu ele. Não tenho opção.
Não posso deixar que procurem a polícia.
Ele recordou aquele dia terrível, seis meses antes, quando
matara Susan Boardman. Não tinha a intenção de matá-la. Foi
um acidente. Mas a policia nunca acreditaria. Nem em um
milhão de anos. Escapara impune ao assassinato e tudo
correria bem se não fosse pelo fantasma. Aquele maldito
fantasma! Se ao menos Kenji e Mitsue não tivessem visto... Ela
vai dizer meu nome na sexta-feira. É uma pena para as
crianças. Não posso deixar que vivam até sexta-feira. Não
quero correr nenhum risco. Terei de liquidá-las hoje, mas de
maneira que ninguém desconfie de mim.
E, subitamente, ele compreendeu o que devia fazer.
Quando Mitsue e Kenji deixaram a escola, naquela tarde,
Clarence aproximou-se e disse:
— Perdemos o jogo ontem.
— Sinto muito — murmurou Kenji.
— Você via jogar hoje?
Os pensamento de Kenji não se voltavam para o beisebol.
— Não posso.
Clarence ficou desapontado.
— Está bem. Talvez amanhã.
— Talvez amanhã.
John Feeney fizera seus planos. Sabia como matar as
crianças sem que ninguém desconfiasse dele. esperava no
saguão quando Kenji e Mitsue chegaram da escola.
— Boa tarde, Sr. Feeney.
— Olá, crianças. Tenho uma coisa sensacional para lhes
mostrar no porão. Não vai demorar mais que um minuto.
— Está bem — disse Kenji.
#
Encaminharam-se para a porta que levava ao porão. Nesse
instante, a Sra. Morgan, que morava no quinto andar, saiu do
elevador.
— Ah, Sr. Feeney, fico contente por encontrá-lo aqui. Há
um vazamento no meu banheiro. Poderia consertá-lo agora?
Feeney olhou para ela, depois para as crianças. Não sabia
o que fazer.
— É melhor se apressar — Insistiu a Sra. Morgan —, ou
todo o apartamento acabará inundado.
— Está bem. — Ele virou-se para as crianças: Eu lhes
mostrarei em outra ocasião.
— Certo, Sr. Feeney.
As crianças subiram para o apartamento. Feeney
observou-as, pensando: Amanhã liquidarei os dois.
O dia seguinte era quarta-feira. John Feeney esperava
impaciente pelas crianças durante o dia inteiro. Desta vez não
haveria interrupções. Desceria com Kenji e Mitsue para o
porão e executaria seu plano.
Vigiava pela janela de seu apartamento e assim que
avistou Kenji e Mitsue se aproximando do prédio tratou de
sair apressado para o saguão. As crianças entraram no prédio,
acompanhadas por dois colegas de Kenji.
— Olá, Sr. Feeney. O que queria nos mostrar?
Feeney olhou para os dois amigos de Kenji.
— Vejo que tem companhia. Pode esperar. Mostrarei
amanhã.
Ele observou as crianças subirem no elevador e pensou:
Mais um dia não fará diferença.
Keiko sentia a maior satisfação com o fato de as crianças
trazerem os amigos para o apartamento. Proporcionava-lhe o
sentimento de que estavam sendo aceitos na América. No
Japão, Kenji e Mitsue tinham muitos amigos, crianças com as
#
quais haviam crescido. Mas Keiko sabia como era difícil fazer
amigos num novo país.
Quando Mitsue e Kenji entraram com os colegas, Keiko foi
logo dizendo.
— Vou providenciar alguma coisa para vocês comerem. —
Ela sabia que crianças sempre estavam com fome. — Preferem
comida americana ou japonesa?
— Japonesa — responderam as crianças, pois seria um
sabor diferente.
Ao terminarem de comer, um dos meninos comentou com
Kenji.
— Clarence anda muito chateado por você não ter jogado
nos últimos dias.
— Sei disso — murmurou Kenji, evasivo. — Tenho andado
muito ocupado.
— Mas queremos que nosso time vença. Quando poderá
jogar?
— Dentro de poucos dias — prometeu Kenji. — Assim que
eu terminar uma coisa que preciso fazer.
A mãe ouviu a conversa e ficou surpresa porque sabia o
quanto o beisebol era importante para o filho. O que poderia
ser tão importante para levá-lo a abri mão de beisebol?,
pensou ela. Era surpreendente.
John Feeney observou os amigos de Kenji deixarem o
prédio. Haviam-no impedido de executar seu plano. Mas
acabarei com eles amanhã.
Ele esperava no saguão quando as crianças voltaram da
escola, na quinta-feira. Vinham sozinhas e não havia mais
ninguém no saguão. Era o momento perfeito.
— Podemos descer para o porão agora — disse John
Feeney.
#
— Não será possível, Sr. Feeney — respondeu Kenji. —
Minha mãe está nos esperando. Vamos sair para fazer
compras. Deixaremos para amanhã.
John Feeney ficou tão furioso que teve vontade de agredir
Kenji, mas se controlou. Forçou um sorriso.
— Tudo bem. Eu lhes mostrarei amanhã.
O dia seguinte era sexta-feira. Será o último dia das
crianças.
Na manhã de sexta-feira, a caminho da escola, Kenji disse
a Mitsue:
— Compreende que esta noite Susan vai nos revelar o
nome de seu assassino? E vamos procurar a policia com o Sr.
Feeney.
— Sei disso — respondeu Mitsue. — Não acha
emocionante? Está com medo, Kenji?
— Não, claro que não. — Ele olhou para a irmã. — Você
nunca apareceu na televisão.
— Como?
Era uma coisa estranha para se dizer naquele momento.
Pois vai aparecer, pensou Kenji, feliz. Vai aparecer.
Quando chegaram ao prédio, naquela tarde, encontraram
John Feeney à espera.
— Boa tarde, Sr. Feeney.
— Boa tarde, crianças.
Feeney olhou ao redor. Não havia mais ninguém no
saguão. Era o momento de agir.
— Gostariam de descer ao porão para ver minha surpresa?
— Claro — respondeu Kenji.
— Pois então vamos logo.
#
Ele foi até a porta que dava acesso ao porão. Tirou uma
chave do bolso e destrancou-a.
— Nunca estivemos no porão antes — comentou Kenji.
— É um lugar fascinante, com as caldeiras, todo o sistema
de aquecimento, além de armários em que guardamos uma
porção de coisas. — Feeney acendeu a luz. — Vamos embora.
As crianças começaram a descer os degraus. Não
perceberam que Feenay fechara a porta do porão. Não queria
ser interrompido. Lá embaixo, as crianças passaram, olharam
ao redor.
— É bem grande, não é? — disse Kenji.
— É, sim.
O porão era todo de concreto. Ninguém ouviria os gritos.
— O que queria nos mostrar? — perguntou Kenji.
— Está ali.
John Feeney levou as crianças para um dos reservados
com grades de ferro onde eram guardadas as malas e outros
pertences dos moradores. Tirou outra chave do bolso e abriu a
porta.
— Aqui dentro.
Kenji e Mitsue entraram. Feeney disse a Kenji:
— Vou mostrar um pequeno truque de mágica. — Ele
pegou um pedaço de corda que deixara ali. — Ponha as mãos
nas costas. Vou amarrá-las com esta corda e verá como se
livrará com facilidade.
Kenji achou que era brincadeira tola mas não queria
ofender o amigo. Estendeu as mãos para trás e sentiu a corda
apertar seus pulsos.
— Está muito apertado — disse ele.
John Feeney sorriu.
— Vai parecer apertado só por pouco tempo e depois
mostrarei como se livrar da corda.
#
Ele virou-se para Mitsue.
— Também tenho uma corda para você.
Mitsue não gostou da brincadeira.
— Não quero brincar. Eu...
— Ora, vamos... garanto que vai gostar.
— Participe — exortou Kenji.
— Está bem.
Mitsue deixou que John Feeney lhe amarrasse as mãos nas
costas.
— A corda está me machucando — protestou ela. — Ficou
muito apertada.
Kenji tentava se livras da corda.
— Como fazermos para nos soltarmos? — indagou ele.
O sorrido de John Feenay desapareceu.
— Não vão se soltar. — Ele empurrou Kenji para o chão e
depois Mitsue. Ficarão aqui mesmo.
Kenji fitou, incrédulo.
— Mas o que está fazendo?
— Ensinando uma pequena lição para não serem tão
bisbilhoteiros.
Mitsue gritou.
— Pode gritar à vontade. Ninguém vai ouvir, ninguém vai
descer para ajudá-los.
E a verdade atingiu Kenji como um raio.
— Você é o assassino!
— Cale-se!
— Confiamos em você...
— Mandei se calar!
Ele deu um tapa em Kenji com toda força.
— Não bata no meu irmão! — berrou Mitsue.
#
Tudo o que acontecia parecia um pesadelo só que era real.
— Não vai conseguir escapar — disse Kenji. — Meus pais
virão nos procurar.
Mas John Feeney planejara tudo com o maior cuidado.
— Claro que vão procura-los, mas não virão aqui, pois
direi, quando me perguntarem, que vocês não voltaram para
casa depois das aulas. Desapareceram em algum lugar do
caminho.
— Mas quando não voltarmos...
— Todos pensarão que foram sequestrados.
Mitsue começou a chorar.
— Por favor, deixe-nos ir embora...
Mas John Feeney não tinha a menor intenção de soltá-los.
Naquele noite, quando tudo se tornasse quieto, voltaria para
buscar as crianças. Seus corpos seriam encontrados no East
River.
— Prometo que não contaremos a ninguém se nos soltar!
— soluçou Mitsue.
John Feeney sorriu, um sorriso frio e cruel.
— Sei disso. Nunca poderão contar a ninguém.
#
Capítulo Onze
Quando Kenji e Mitsue não apareceram em casa às cinco
horas, a mãe não se preocupou. Devem ter ido visitar amigos,
pensou Keiko. Mas quando deram as seis horas, sem que as
crianças chegassem, ela começou a ficar preocupada. Takesh
veio da fábrica e logo perguntando:
— Onde estão as crianças.
— Não sei — respondeu Keiko.
Takesh franziu o rosto.
— Se sabiam que iam demorar tanto, deveriam ter
telefonado para você.
— Sai para fazer algumas compras — informou Keiko. —
Talvez tenham voltado enquanto eu estava fora e tornaram a
sair.
Takesh acenou com a cabeça.
— Deve ter sido isso. Vou falar com John Feeney. Ele deve
ter visto as crianças.
Takesh desceu no elevador até o térreo. Atravessou o
saguão, bateu à porta do zelador. John Feeney abriu-a.
— Boa noite, Sr. Yamada.
— Boa noite. Viu Kenji e Mitsue?
— Eu os vi esta manhã, quando saíram para a escola.
— Queria saber depois disso. Viu quando voltaram para
casa?
John Feeney sacudiu a cabeça.
— Não. Passei o tempo todo no saguão e os veria se
tivessem voltado.
Takesh Yamada começou a se sentir alarmado.
— Está querendo dizer que eles não voltaram da escola?
#
— Isso mesmo.
Takesh Yamada pensou por um momento.
— Kenji provavelmente ainda está na escola, jogando
beisebol. Vou buscá-lo.
Ele tornou a subir para tranquilizar a esposa.
— Não há com que se preocupar, Keiko. Tenho certeza que
Kenji ficou jogando beisebol depois das aulas e esquece a
hora. Vou buscá-lo.
— Irei com você.
— Não. Fique esperando aqui, para o caso de as crianças
voltarem antes.
Takesh Yamada seguiu a pé até a escola. Tinha certeza
que encontraria Kenji ali. Ele terá que ser punido, pensou o Sr.
Yamada. Precisa aprender a não ser tão irresponsável. Não
pode deixar a mãe preocupada desse jeito. Takesh Yamada não
admitiria nem para si mesmo que também estava preocupado.
Ao chegar à escola, o Sr. Yamada viu que havia de fato
vários meninos jogando beisebol. Correu os olhos pelo campo
mas não avistou Kenji. Aproximou-se de um dos jogadores.
Com licença — disse ele. — Estou procurando por Kenji
Yamada.
— Não vimos Kenji por aqui — respondeu o menino.
— Obrigado. Neste caso, ele ainda deve estar numa das
salas de aula.
O Sr. Yamada entrou no prédio da escola. As aulas já
haviam terminado e o prédio se encontrava quase deserto.
Uma professora aproximou-se.
— Com licença — disse o Sr. Yamada. — Estou procurando
por meu filho e minha filha. São alunos aqui.
— Não devem estar mais aqui — explicou a professora. —
As salas de aula já foram fechadas. Todos os alunos saíram.
O Sr. Yamada ficou aturdido.
#
— Eles não estão aqui.
—Não. O prédio está vazio. Sou a última pessoa a sair.
O Sr. Yamada sentiu um calafrio. Onde estariam as
crianças?
Ele virou-se, deixou o prédio e foi andando devagar, de
volta para casa, pensando no problema. As crianças haviam
saído da escola mas não tinham chegado em casa. Kenji e
Mitsue teriam avisado à mãe se planejassem ficar fora até
tarde. Nunca tinham feito aquilo antes. A preocupação do Sr.
Yamada era cada vez maior.
Ao chegar ao prédio onde morava ele foi bater de novo na
porta de John Feeney, que a abriu no mesmo instante.
— Encontrou seus filhos?
— Não, Sr. Feeney. Não estavam na escola. Tem certeza de
que os teria visto se eles tivessem voltado?
John Feeney acenou com a cabeça.
— Certeza absoluta. Não poderiam entrar sem que eu os
visse.
— Ahn...
— Talvez tenham ido visitar um amigo — sugeriu John
Feeney.
O Sr. Yamada sacudiu a cabeça.
— Não. Teriam avisado à mãe. Não sei o que fazer.
— Ora, não precisa se preocupar. Sabe como são as
crianças.
— Meus filhos são diferentes — garantiu o Sr. Yamada,
com toda dignidade.
— Tenho certeza que eles acabarão aparecendo.
— É bem provável. Vou subir e esperar.
Deram sete horas, depois oito horas. Takesh e Keiko não
podiam suportar por mais tempo.
#
— Aconteceu alguma coisa com as crianças — declarou
Keiko. — Posso sentir lá no fundo. Devemos procurar a
polícia.
O Sr. Yamada concordou.
— As crianças nunca ficariam fora de casa até tão tarde
sem nos avisar. Iremos juntos à polícia.
Quinze minutos depois, O Sr. e a Sra. Yamada estavam
sentados na sala do Tenente Brown, na delegacia.
— Em que posso ajudá-los? — perguntou o Tenente Brown.
— Nossos filhos desapareceram — explicou Keiko. —
Devem procurá-los para nós.
O Tenente Brown pegou uma caneta.
— Seus nomes?
— Minha filha se chama Mitsue Yamada. Meu filho se
chama Kenji.
— Como se soletra?
— K-e-n-j-i.
— Quantos anos eles têm?
— Mitsue tem onze anos, e Kenji quatorze.
— Há quanto tempo estão desaparecidos?
— Cerca de três horas — respondeu o Sr. Yamada.
O Tenente Brown ergueu a cabeça para fitá-los, largou a
caneta.
— Lamento, mas não posso ajudá-los.
— Como assim?
O Tenente Brown suspirou.
— Uma ausência de três horas não significa que estão
desaparecidos. Podem ter ido visitar amigos ou foram a um
cinema, ou resolveram fazer uma dúzia de outras coisas que
#
as crianças costumam fazer. Estejam certo de que voltarão em
breve.
O Sr. Yamada protestou, com toda sua dignidade:
— Não conhece nossos filhos. Sempre chegam em casa na
hora marcada. Estou lhe dizendo que alguma coisa aconteceu
com eles.
O Tenente Brown sacudiu a cabeça.
— Continuo a achar que estão se preocupando sem
motivo.
— Estamos nos preocupando por nossos filhos — insistiu
Keiko, à beira das lágrimas.
— Você é a polícia — disse o Sr. Yamada. — Queremos que
encontre nossos filhos.
— Não há nada que eu possa fazer — explicou o Tenente
Brown. — Não se pode fazer um registro de pessoas
desaparecida antes de vinte e quatro horas.
— Não entendi — disse Keiko. — O que isso significa?
— Significa que uma pessoa deve estar ausente há um dia
inteiro antes de ser considerada desaparecida. Se não fosse
assim, teríamos que procurar cada marido que resolve parar
num bar a caminho de casa. Gostaria de ajudá-los mas não
posso. Devem esperar vinte e quatro horas, depois voltem
para fazer o registro.
Keiko estava frenética.
— Mas tenho o pressentimento de que as crianças correm
um perigo terrível!
O Sr. Yamada acrescentou:
— Saíram da escola mas não chegaram em casa.
Procurando tranquilizá-los, o Tenente Brown disse:
— Não se aflijam. Aposto que encontrarão seus filhos em
casa quando voltarem. Podem fazer o favor de me telefonarem
para avisar? Vou me sentir melhor sabendo que está tudo
bem. Também tenho filho.
#
O Sr. e a Sra. Yamada levantaram-se. Não havia mais nada
que pudessem dizer ao tenente.
— Está certo, tenente. Obrigado.
A caminho de casa, o Sr. Yamada disse:
— Talvez ele esteja certo. Talvez encontremos Kenji e
Mitsue à nossa espera em casa.
Mas Keiko sabia, no fundo do coração, que isso não
aconteceria. Tinha uma terrível premonição de que algo
pavoroso acontecera com as crianças.
No porão do prédio, Kenji e Mitsue tentavam
freneticamente se livrarem das cordas. Era inútil. Tinham as
mãos amarradas nas costas e se encontravam trancados num
compartimento com grades de ferro, no porão; e ninguém
ouviria seus gritos.
— Por que ele está fazendo isso conosco? — perguntou
Mitsue.
Kenji não respondeu. Sabia o motivo. John Feeney
assassinara Susan Boardman e receava que o fantasma
revelasse seu nome. E como nós somos as únicas testemunhas,
pensou Kenji, ele tem de nos matar também. Mas Kenji não
disse isso à irmã. Não queria assustá-la mais do que ela já
estava. De algum modo, vou tirar nós dois desta situação,
pensou ele. E tornou a lutar contra a corda mas só conseguiu
fazer com que cortasse seus pulsos ainda mais.
— Será que é uma brincadeira com a gente? — sugeriu
Mitsue. — Talvez ele queira apenas nos assustar e depois nos
soltará.
— É possível — concordou Kenji.
Mas ele sabia que não era isso. A mesmo que eu dê um
jeito de nos livrar, pensou Kenji, vamos morrer.
#
Em seu apartamento, John Feeney fazia planos para se
livrar das crianças. Esperarei até que todos no prédio estejam
dormindo, e depois descerei para o porão. Ele foi pegar numa
gaveta a faca comprida e afiada com que matara Susan
Boardman. Usarei isto nas crianças. Levarei os corpos na mala
do meu carro e os jogarei no East River. Ninguém jamais
saberá o que aconteceu.
John Feeney não tivera a intenção de matar Susan
Boardman. Tudo acontecera por causa das joias. Num
aniversario de casamento, o Sr. Boardman dera à esposa um
lindo colar e brincos de diamantes. Uma noite, ao sair para
uma festa, ela mostrara as joias a John Feeney.
— Não são lindas? — dissera a Sra. Boardman.
— São adoráveis.
Mas John Feeney estava pensando: Devem valer no mínimo
cem mil dólares. Se eu pudesse me apossar de joias assim,
poderia vendê-las e teria o suficiente para me sustentar pelo
resto da vida. Poderia ir para as ilhas dos Mares do Sul e viver
como um rei.
John Feeney não conseguira tirar a ideia da cabeça. Não
era justo que os Boardmans fossem tão ricos enquanto ele era
pobre, trabalhando por um mísero salário. Não seria difícil
roubar aquelas joias, pensara ele. Eu poderia fazê-lo quando
eles estivessem fora. Feeney conhecia muito bem o
apartamento dos Boardmans. Já estivera lá muitas vezes para
consertas coisas. Sabia que a Sra. Boardman guardava as joias
numa caixa que deixava na cômoda. O que começara como um
pensamento vago acabara se tornando uma obsessão. John
Feeney decidira que roubaria aquelas joias de qualquer
maneira e planejaria para que ninguém desconfiasse dele.
Toda noite de sexta-feira, o Sr. e a Sra. Boardman levavam
a filha, Susan, para jantar fora e depois iam no cinema. O
apartamento ficava vazio. Naquela sexta-feira, Feeney
#
esperava até os Boardmans saírem. Sabia que a Sra. Boardman
não iria ao cinema com as joias.
Pegara uma faca afiada para arrombar a caixa de joias.
Dera uma espiada no saguão, para se certificar de que estava
vazio, e subira no elevador para o 13° andar. Não havia
ninguém ali. Tinha uma chave do apartamento e poderia
entrar com a maior facilidade, mas queria dar a impressão de
que fora um assalto, para que ninguém desconfiasse dele. Por
isso, usara a faca para arrombar a fechadura da porta. Entrara
no apartamento. Sabia exatamente onde encontrar as joias.
Levaria apenas alguns minutos e voltaria a seu apartamento
com uma fortuna nas mãos. Atravessara a sala até o quarto. La
estava a caixa de joias, no lugar de sempre. Ele a pegara. Era
mais pesada do que imaginara. Arrombara-a com a faca. Lá
dentro, havia não apenas o colar e os brincos de diamantes,
mas também pulseiras e anéis. Estou rico, pensara John
Feeney.
Com a caixa de joias na mão, ele se virara para ir
embora... e deparara com Susan Boardman. Ela usava um
vestido branco, e Feeney ficara chocado.
— O que está fazendo aqui? — indagara ele. — Deveria ter
ido ao cinema com seus pais.
— Não me sentia bem e por isso resolvi voltar para casa.
Mas o que você faz aqui?
Ele pensara depressa.
— Vim consertar um dos canos.
Susan olhara para a caixa de joias da mãe nas mãos de
Feeney.
— São as jias da minha mãe! Você as está roubando!
— Não é bem assim...
— Socorro! — gritara Susan.
John Feeney perdera a cabeça. Avançara para Susan,
tencionando tapar-lhe a boca, fazer com que se calasse.
— Vou contar a meu pai!
#
Feeney sabia que seria preso. Precisava silenciá-la. E sem
compreender o que fazia cravara a faca em Susan e vira o
sangue aparecer na frente do vestido.
Oh, Deus!, pensara ele. O que fiz?
Ele a observara cair no chão, a vida se esvair.
Não devo entrar em pânico, pensara Feeney. Não há a
menor possibilidade de me ligarem ao crime. A polícia pensará
que um ladrão arrombou o apartamento, pegou as joias, foi
surpreendido pela moça e a matou.
Tudo saíra exatamente como John Feeney planejara. Por
causa da porta arrombada, a polícia concluíra que fora um
assaltante, surpreendido em flagrante por Susan Boardman.
Feeney escondera as joias em seu apartamento e ninguém
jamais suspeitara dele. Permanecera no emprego porque sabia
que a policia ficaria desconfiada se o largasse logo em
seguida. Os Boardmans se mudaram, encarregando Feeney de
alugar o apartamento. Dois casais haviam morado ali, por
breves períodos mas não demoraram a ir embora, queixando-
se da presença de fantasmas. Que gente mais estúpida!,
pensara Feeney. Fantasmas não existem.
John Feeney olhou para o relógio. Faltavam quinze
minutos para a meia-noite. Todos no prédio já deviam estar
dormindo. Era hora de se livrar das crianças. Pôs no bolso a
faca comprida e afiada e se encaminhou para o porão.
Lá embaixo, Mitsue e Kenji estavam apavorados.
— Ele vai nos matar — balbuciou Mitsue. — Tenho certeza.
Kenji sabia que a irmã tinha razão. Debateu-se mais uma
vez contra a corda que lhe prendia as mãos mas não
conseguiu afrouxá-la. Ouviu a porta do portão ser aberta e
olhou para cima. John Feeney descia a escada. O coração de
#
Kenji disparou. John Feeney chegou lá embaixo, avançou para
as crianças.
Detesto fazer isso, pensou Feeney, mas é a vida deles ou a
minha. Depois que tudo acabar, nada me impedirá de ir para
uma ilha nos Mares do Sul e viver como um rei. Ele abriu a
porta do compartimento onde trancara as crianças.
— O que vai fazer conosco? — perguntou Kenji.
— Tenho de matar vocês dois.
Era inacreditável. Parecia um terrível pesadelo, mas era
real. Estavam prestes a ser assassinados. Feeney parou diante
deles com uma enorme faca na mão e disse.
— Fechem os olhos.
Podiam ver a faca cortando seus corpos desamparados e
não havia nada que pudessem fazer. Absolutamente nada.
Nesse momento todos ouviram um gemido alto. Parecia
vir do alto da escada. Feeney virou-se para olhar. Uma
aparição de vestido branco, com uma mancha vermelha na
frente, flutuava pelo ar, em sua direção. John Feeney ficou
paralisado. Era Susan Boardman.
— Não! — gritou ele. — Você está morta!
Ele se apressou em fechar a porta de barras de ferro do
compartimento, a fim de mantê-la de fora.
— Vá embora! — berrou Feeney. — Vá embora!
A aparição passou pelas barras, e Feeney descobriu-se
envolto por uma nuvem branca que o sufocava. Não conseguia
respirar.
— Pare com isso! — berrou ele.
A última coisa de que John Feeney teve consciência foi
dos olhos mortos de Susan Boardman fixos nos seus. Sentiu o
cérebro explodir.
E depois não houve mais nada.
#
Poucos momentos antes, Jerry Davis chegara de uma festa
à meia-noite em ponto. Ao se encaminhar para o elevador,
avistou uma coisa incrível. Uma aparição branca turbilhonava
pelo ar, na direção da porta de acesso ao porão.
É o fantasma de Susan Boardman, pensou ele, incrédulo.
Observou o fantasma passar pela porta fechada. Jerry Davis
correu até lá, abriu a porta. Acendeu a luz.
Não havia sinal do fantasma. Ele desceu a escada
apressado e parou de repente, aturdido. O corpo de John
Feeney estava caído dentro de um dos compartimento
fechados. Perto dele se encontravam Kenji e Mitsue, com as
mãos amarradas nas costas. Jerry Davis abriu a porta do
compartimento, pegou uma faca no chão e cortou as cordas
que prendiam as crianças. Mitsue chorava, e Kenji fazia um
bravo esforço para não chorar. Jerry Davis virou-se para
examinar John Feeney.
— Ele está morto — anunciou Jerry Davis. — Gostaria de
saber o que o matou.
— Foi Susan Boardman — respondeu Kenji.
#
Capítulo Doze
Kenji e Mitsue nunca haviam testemunhado tanto
excitamento. O apartamento parecia fervilhar de policiais e
repórteres. Havia mais de uma dúzia de pessoas ali, fazendo
perguntas, escrevendo anotações, enquanto fotógrafos batiam
fotos dos dois.
Tudo começou quando Jerry Davis os libertou no porão.
— Vocês estão bem? — perguntou ele.
— Estamos agora — disse Kenji, olhando em seguida para
o corpo de John Feeney. — Ele ia nos matar.
— Por que ele queria matá-los?
— Porque sabíamos que ele assassinou Susan Boardman.
— Santo Deus! — Jerry Davis não podia acreditar.
Lembrou de repente a maneira estranha com que as crianças
vinham se comportando em sua presença. — Aposto que
prensavam que era eu o assassino.
— Sinto muito, mas foi mesmo o que pensamos.
— Vamos sair daqui — disse Jerry Davis. — Seus pais
devem estar na maior preocupação.
Quando as crianças entraram no apartamento, Keiko
soltou um grito de alegria. Correu para abraçá-las.
— Onde vocês estavam? — perguntou ela.
— O que aconteceu? — disse o pai. — Já estivemos até na
policia.
— John Feeney tentou nos matar — informou Kenji.
Takesh Yamada balançou a cabeça.
#
— Não deve inventar histórias assim, filho. Se você e
Mitsue foram a um cinema ou saíram com amigos devem nos
contara verdade. Não vamos castigá-los desta vez.
— As crianças estão dizendo a verdade — declarou Jerry
Davis. — John Feeney tentou mesmo matá-las.
O Sr. e a Sra. Yamada o fitaram, espantados.
— Mas por que ele faria isso?
— É uma história comprida — disse Jerry Davis. — Mas
antes de contá-la precisamos chamar a policia. Posso usar seu
telefone?
— Claro.
Todos observaram-no ir até o telefone e discar 911, o
número de emergência.
— Boa noite. Quero comunicar...
Ele hesitou. Já ia dizer um assassinato mas depois pensou:
Se um fantasma mata alguém, isso é assassinato? A voz no
outro lado da linha o pressionou:
— O que deseja comunicar?
— Uma morte — respondeu Jerry Davis, chegando à
conclusão de que era melhor deixar a polícia decidir se fora
um assassinato.
— A pessoa morreu de causas naturais?
Se assim fosse, o caso seria cuidado por outro
departamento. Jerry Davis tornou a hesitar.
— Não... acho que não.
— Está certo. Mandaremos alguém investigar. Qual é o
endereço?
Jerry Davis forneceu o endereço e o número do
apartamento dos Yamadas, desligando em seguida.
— A polícia deve chegar em poucos minutos.
O Sr. Yamada indagou:
— Quem morreu?
#
— John Feeney.
— Não estou entendendo nada — disse o Sr. Yamada. —
Mas não importa. Só me interessa saber que meus filhos estão
sãos e salvos.
Dois detetives chegaram dez minutos depois.
— Sou o detetive Lewis e este é o detetive Cagney. Alguém
comunicou uma morte.
— Isso mesmo — respondeu Jerry Davis. — O corpo do
homem está no porão.
— Tem alguma ideia da causa da morte? — perguntou o
detetive Lewis.
— Um fantasma o matou — disse Kenji.
Todos se viraram para ele. O detetive Cagney protestou:
— Escute, garoto, estamos muito ocupados para
brincadeiras.
— É verdade — interveio Jerry Davis. — Ele foi morto por
um fantasma.
Os dois detetives trocaram um olhar e Cagney murmurou:
— Acho eu viemos nos meter num hospício.
O médico legista concluiu o exame do cadáver de John
Feeney e levantou os olhos.
— O que foi? — perguntou o detetive Cagney. — Infarto
fulminante?
O médico legista balançou a cabeça.
— Este homem morreu de susto. Seu coração parou por
causa de algum choque terrível.
— Foi o fantasma — garantiu Kenji.
O detetive Lewis virou-se para as duas crianças e Jerry
Davis.
#
— Deixem-me ver se entendi direito. Vocês três juram que
avistaram um fantasma descer até aqui e sufocá-lo.
— Isso mesmo — disse Mitsue.
— Eu estava no saguão quando o fantasma passou pela
porta do porão — explicou Jerry Davis. — Chegue bem a
tempo de ver o que aconteceu.
O detetive Lewis coçou a cabeça.
— É a coisa mais estranha que já ouvi. O que escrevo em
meu relatório? Que ele foi morto por um fantasma? Ririam de
mim na delegacia. Tenho de registrar que foi um infarto.
— Se fizer isso, estará cometendo um grande erro —
insistiu Jerry Davis. — Uma moça foi assassinada neste prédio
há seis meses. Seu nome era Susan Boardman. A porta do
apartamento fora arrombada e a polícia achou que ele fora
morta por um assaltante. — Ele virou-se para Kenji: — Conte o
resto.
— Quando nos mudamos para o apartamento e minha irmã
disse que tinha visto um fantasma, eu desatei a rir porque não
acreditava em fantasmas — relatou Kenji. — Mas depois
também vi o fantasma. Era de uma moça e ela nos contou que
não podia partir até que alguém pegasse seu assassino.
Tentamos fotografá-la mas não saiu nada no filme. Pedimos
ajuda a John Feeney e o informamos de que o fantasma nos
revelaria o nome do assassino esta noite. Não sabíamos que
Feeney era o assassino. Ele nos atraiu ao porão, amarrou
nossas mãos e nos trancou. Ia voltar mais tarde para nos
matar para que não pudéssemos denunciá-lo.
Os dois detetives escutavam atentamente, muito
interessados na história. Kenji acrescentou:
— Tínhamos perguntado pelas joias e ele nos disse que
nunca haviam sido recuperadas. Aposto que vão encontrá-las
em seu apartamento.
#
— É a história mais estranha que já ouvi, mas temos de
verificar. — O detetive Cagney virou-se para o companheiro.
— Vamos revistar o apartamento.
Levaram quase uma hora para encontrar a caixa de joias.
Fora escondida sob uma tábua solta no assoalho, coberta por
um tapete.
— Eu sabia que a encontrariam! — exclamou Kenji,
triunfante.
— Eu nunca poderia acreditar — murmurou o detetive
Lewis. — Um fantasma!
Depois disso, as coisas tornaram-se ainda mais
emocionantes. Mais detetives chegaram, assim como
repórteres de jornais e equipes de televisão. As crianças
foram entrevistadas várias vezes. Finalmente, o pai resolveu
por um ponto final, declarando:
— São duas horas da madrugada. As crianças devem ir
para a cama.
— Tem razão — concordou o detetive Lewis, virando-se
em seguida para Kenji e Mitsue: — Vocês nos ajudaram a
desvendar um assassinato. Estamos profundamente gratos. Só
lamento que suas vidas tenham corrido perigo.
De volta ao apartamento, Mitsue perguntou a Kenji.
— Nossas vidas correram perigo, não é?
— Claro — respondeu o irmão. — John Feeney ia nos
matar. E fomos salvos por Susan Boardman.
— Eu gostaria de poder agradecer a ela.
Kenji sacudiu a cabeça.
— Ela se foi, Mitsue. Nós a libertamos. Nunca mais
tornaremos a vê-la.
— Acha que ela sabe o quanto lhe somos gratos?
Kenji acenou com a cabeça.
#
— Tenho certeza que sim.
— Já chega de conversa — interveio o pai, gentilmente. —
Tratem de dormir agora.
Dormir? Mas que piada! Nenhum dos dois dormiu naquela
noite. Passaram o tempo todo recordando o terrível perigo por
que haviam passado.
Agora que a policia esclarecera o mistério da morte de
Susan Boardman, a família Yamada pensava que todo o
excitamento terminara. Na verdade, porém, apenas começava.
Duas crianças e um fantasma solucionando um crime
misterioso era uma história irresistível para a imprensa.
Quando as crianças levantaram-se para o café da manhã
seguinte, havia meia dúzia de repórteres esperando para
entrevistá-las.
— Vocês viram mesmo esse fantasma?
— Claro — respondeu Kenji.
— E o fantasma da moça falou com vocês?
— Isso mesmo — confirmou Mitsue.
— E ela disse que ia revelar o nome do seu assassino?
— Disse — garantiu Kenji.
E as perguntas continuaram.
Câmeras de televisão focalizaram as crianças.
— O departamento de polícia agradeceu-lhes a ajuda no
esclarecimento do assassinato. Como se sente em relação a
isso?
Que pergunta mais idiota, pensou Kenji. Ele olhou para a
câmera e declarou:
— Minha irmã e eu nos sentimos muito felizes por
podermos ajudar.
— Tiveram medo?
— Tivemos — respondeu Mitsue.
#
— Não. — Kenji olhou para a irmã. — Isto é, fiquei um
pouco assustado em alguns momentos.
— Já chega — interrompeu o Sr. Yamada. — Não quero que
as crianças cheguem atrasadas na escola.
Na escola, Kenji e Mitsue foram tratados como heróis. A
história saíra na primeira página de todos os jornais,
contando como as crianças haviam sido corajosas e espertas.
Quando Kenji entrou em sua sala, o professor e os colegas
aplaudiram. Ele corou.
— Todos nos sentimos contentos por você estar bem —
disse o professor. — Escapou por um triz.
Kenji recordou a faca sinistra na mão do Sr. Feeney e
estremeceu. Era verdade, haviam escapado por um triz. Estava
satisfeito por tudo haver terminado. Agora que o fantasma
fora embora, podia se concentrar nos estudos e no beisebol.
Clarence ficaria contente por tê-lo de volta no time.
Em sua sala, Mitsue recebeu o mesmo tratamento. Os
colegas haviam lido a noticia nos jornais, visto Kenji e Mitsue
na televisão. Mitsue também estava contente por toda
confusão haver terminado. Queria voltar a levar uma vida
normal.
Na fábrica, Takesh Yamada era o centro das atenções.
Todos o procuraram para falar sobre o que acontecera.
— Havia mesmo um fantasma?
Ele confirmou com um aceno de cabeça.
— Tudo indica que sim.
— Seus filhos são heróis.
— Meus filhos sempre foram heróis — declarou Takesh
Yamada, orgulhoso.
#
As perguntas eram intermináveis, e o Sr. Yamada foi se
refugiar em sua sala, onde podia ficar sozinho. Toda essa
atenção e publicidade acabarão em mais um ou dois dias,
pensou ele. Poderemos então voltar a ter uma vida normal.
Mas ele estava enganado.
A história espantosa de Kenji, Mitsue e o fantasma
continuou a crescer. As crianças e um desenho do fantasma
apareceram na capa da revista Time. Começaram a produzir
um especial de televisão baseado nos acontecimentos. Um
estúdio de Hollywood procurou o Sr. Yamada, querendo
comprar os direitos para um filme. Repórteres de revistas não
paravam de telefonar, solicitando entrevistas.
E a publicidade era cada vez maior. As crianças foram
convidadas a participar de programas de entrevistas na
televisão e até de um programa sobre fantasmas.
— Já chega — decidiu Takesh Yamada. — Isto tem de
parar.
A verdade é que o Sr. Yamada sentia-se bastante abalado
com a ideia de um fantasma vivendo no apartamento. Deixava-
o nervoso.
Uma noite, ao jantar, Takesh Yamada anunciou para a
família:
— Vamos nos mudar.
Todos se mostraram surpresos.
— Como?
— Isso mesmo que vocês ouviram. Para ser franco, a ideia
de morar num apartamento com um fantasma me deixa
nervoso.
— Mas ela já foi embora, papai — disse Mitsue. — Não há
mais fantasmas aqui.
— Ela pode voltar — insistiu o Sr. Yamada, obstinado. —
Há uma semana que não consigo dormir direito. — Ele fez uma
#
pausa, estremecendo. — Não posso mais continuar aqui. — Ele
virou-se para Keiko: — Vamos nos mudar. Quero que procure
outro apartamento para nós amanhã.
Keiko acenou com a cabeça. Queria o marido feliz.
— Está bem, Takesh.
Nada que as crianças dissessem poderia dissuadir o pai.
No dia seguinte, enquanto as crianças estavam na escola,
Keiko saiu de novo a procura de um apartamento, com a seção
de classificados do New York Times. Percorreu toda
Manhattan, na zona oeste e na zona leste, na zona norte e na
zona sul. Não encontrou nenhum apartamento que pudesse se
comparar com aquele onde moravam. Mas Keiko sabia que o
marido tomara sua decisão. Por isso, continuou a procurar.
Ao final de cinco dias, ela acabou encontrando um
apartamento apropriado. Não tão bom quanto o outro, era
mais caro, mas pelo menos viveriam ali com algum conforto.
Quando Takesh Yamada voltou da fábrica naquela noite,
Keiko lhe disse:
— Encontrei um apartamento.
— Ótimo. — O Sr. Yamada sentia-se bastante aliviado. —
Quando poderemos nos mudar?
— Amanhã.
— Excelente.
A família Yamada mudou-se no dia seguinte.
Ao entrarem no novo apartamento, Mitsue comentou:
— Não é tão ruim assim. Pode não ter uma vista do parque
mas isso não é importante.
O Sr. Yamada disse a Keiko:
— Fez um bom trabalho. Agora, finalmente, podemos
dormir em paz.
#
Foram jantar fora naquela noite.
— Farei o jantar amanhã — prometeu Keiko. — Mas
primeiro terei de fazer algumas compras.
— Não se preocupe com isso — disse o Sr. Yamada. — Se
quiser, podemos jantar fora de novo amanhã.
A mudança para o novo apartamento o deixara na maior
satisfação. Depois do jantar, a família voltou para o novo
apartamento.
— Todos dormiremos bem esta noite — garantiu o Sr.
Yamada.
Ele e Keiko se retiraram para seus quarto e as crianças
também foram se deitar.
Kenji não adormeceu no mesmo instante. Pensou nos
programas de televisão em que estivera, nas reportagens nos
jornais, como fora tratado como um herói pelos colegas na
escola.
Mitsue também tinha dificuldade para pegar no sono.
Pensava no seu medo quando John Feeney avançara com a faca
na mão, querendo matá-la. Mas sua amiga fantasma os salvara.
Esperava que Susan Boardman se sentisse feliz, onde quer que
estivesse. Só depois de um longo tempo é que Mitsue
adormeceu.
Em seu quarto, Takesh Yamada não teve a menor
dificuldade para pegar no sono. Toda a sua vida fora
perturbada pelos estranhos acontecimentos no outro
apartamento. Fora demais. Mas agora tudo seria tranquilo. Os
problemas haviam acabado.
A meia-noite, Takesh Yamada foi despertado por um
estranho ruído. Era um gemido baixo, que parecia ressoar por
todo o quarto. Seu primeiro pensamento foi o de que Keiko se
sentia mal. O Sr. Yamada sentou na cama.
Um velho de cabelos grisalhos flutuou no ar, por cima da
cama.
#
— Ajude-me! — gemeu o velho. — Ajude-me.
#Os Doze Mandamentos
Sidney Sheldon
Tradução
Pinheiro de Lemos
CÍRCULO DO LIVRO
CIRCULO DO LIVRO LIDA.
Caixa postal 7413
01065-970 São Paulo, Brasil
Edição integral
Copyright © 1993, 1994 Sheldon Literary Trust
Título original: The Twelve Commandments
Tradução: Pinheiro de Lemos
Licença editorial para o Círculo do Livro
por cortesia da Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S.A.
mediante acordo com Sheldon Literary Trust
Venda permitida apenas aos sócios do Circulo
Composição: Circulo do Livro
Impressão e acabamento: Gráfica Círculo
ISBN 85-332-0903-7
4 6 8 10 9 7 5
97 98 96
Capítulo I
Vamos falar sobre milagres. A Bíblia está cheia de milagres, e alguns
foram maravilhosos. As histórias passaram de geração em geração, por
dois mil anos. Se são verdadeiras ou não, você mesmo decide. Mas não
pode deixar de admitir que são emocionantes.
Já ouviu falar de Adão e Eva, é claro. Segundo a Bíblia, foi por aí
que tudo começou. Deus criou o céu e a terra. Criou as montanhas, as
árvores e os animais. Mas
sentiu que faltava alguma coisa.
-- Sei o que está faltando -- disse Deus. -- Vou fazer um homem.
Pegou um punhado de terra, moldou na forma de um homem e lhe deu o
sopro da vida.
-- Sou Deus -- disse Ele. -- E você é Adão.
Adão olhou ao redor, surpreso.
-- Onde estou?
-- No Jardim do Éden.
-- É muito bonito -- murmurou Adão.
-- Divirta-se.
Deus criara um homem, mas ainda sentia que faltava alguma coisa.
"Claro", pensou. Uma mulher. Enquanto Adão dormia, Deus tirou uma de
suas costelas e moldou-a na
forma de uma mulher. Chamou-a Eva.
Adão ficou na maior satisfação ao ver Eva.
-- Quero que os dois se divirtam -- declarou Deus. -- Mas há uma coisa
que não devem fazer: comer qualquer uma destas maçãs.
Ele apontou para algumas maçãs de aparência apetitosa, penduradas na
árvore, e acrescentou:
-- Esse é o fruto do conhecimento, e estão proibidos de saboreá-lo.
-- Eu compreendo -- disse Adão.
-- Não vamos prová-lo -- prometeu Eva.
Mas havia uma serpente no Jardim do Éden, uma serpente insidiosa,
enviada pelo Diabo.
-- Vocês não sabem o que estão perdendo -- disse-lhes a serpente. --
Essas maçãs são a coisa mais deliciosa do mundo.
-- Mas prometemos que não as comeríamos -- responderam Adão e Eva.
-- Não precisam comer todas -- insistiu a serpente. -- Experimentem só
uma.
-- Acho que não faz mal -- murmurou Eva.
E, assim, eles saborearam o fruto do conhecimento.
Deus ficou furioso.
-- Vocês violaram a promessa que me fizeram! -- bradou. -- Cometeram um
pecado!
E Deus expulsou-os do Jardim do Éden, para vaguearem pelo mundo.
Pelo menos, é isso o que a Bíblia nos conta.
Vamos pegar a história de Noé e a Arca. Um dia Deus chegou à conclusão
de que havia pecadores demais no mundo.
"Cometi um erro ao criar o homem", pensou Deus. "Talvez devesse
começar tudo de novo."
O problema é que Deus não podia matar todas as pessoas do mundo,
porque, então, de onde viriam novas pessoas? Por isso, Ele resolveu
procurar um homem honesto e
Sua família e deixá-los povoar a terra de novo.
Procurou com o maior cuidado. Encontraram mentirosos e ladrões,
assassinos e patifes. Já começava a desanimar.
Até que um dia deparou com Noé. Era um homem simples, muito honesto,
com esposa, filhos e noras.
"Perfeito", concluiu Deus. Ele falou com Noé.
-- Noé, vou inundar a terra e acabar com todas as pessoas.
-- Por que está me contando isso, Deus? -- indagou Noé.
-- Porque decidi salvar você e sua família.
Como não podia deixar de ser, Noé ficou muito satisfeito e perguntou:
-- Mas como vou fazer para não morrer afogado?
Deus deu as instruções.
-- Aqui está o que quero que você faça: construa uma arca, um barco
enorme, e quando falo enorme, Noé, é enorme mes¬mo. Quero que reúna
todas as diferentes espécies
de animais, dois de cada, um macho e uma fêmea, e ponha na arca, junto
com sua família. Pode fazer isso?
-- Tentarei -- respondeu Noé.
Ele não apenas tentou, mas conseguiu. Recolheu zebras e elefantes,
tigres e leões, macacos e cavalos... era um verdadeiro zoológico.
Todos foram levados para a arca, e depois Noé reuniu a família e a fez
embarcar também. Noé ficou pronto para o que desse e viesse.
O que aconteceu foi que começou a chover. E quando a Bíblia diz
"chuva", é chuva para valer.
Choveu quarenta dias e quarenta noites, sem um instante sequer de
interrupção. Cidades foram destruídas, países desapareceram, até que
nada restou sobre a terra,
a não ser a Arca de Noé, que flutuava sobre as águas, com a família e
todos os animais, sãos e salvos.
Ao final de quarenta dias, depois que Deus afogou todos os outros, Ele
deixou a arca parar no pico do monte Ararat.
A água baixou, e Noé e a família estavam livres para repovoar a terra.
Querem milagre maior?
Outro milagre da Bíblia é a abertura do mar Vermelho. Os hebreus eram
mantidos em escravidão no Egito, e é claro que detestavam isso. Não
tinham liberdade para ir
aonde quises¬sem. Não podiam votar. Não eram pagos pelo trabalho. Eram
escravos.
Até que veio o dia em que um dos homens procurou Moisés, que era um
grande líder, e disse:
-- Você tem de nos ajudar a fazer alguma coisa. Estamos cansados de ser
escravos.
Moisés não sabia o que fazer, porque o rei dispunha de um exército
grande e bem-armado, e qualquer um que tentasse combatê-lo seria
derrotado.
-- Deixe-me pensar a esse respeito -- disse Moisés.
Ele decidiu conversar com Deus.
-- Deus, nosso povo é muito infeliz. Não aguentamos mais ser tratados
como animais. Queremos ser livres. Mas qualquer um que levante a voz
contra o rei é morto no
mesmo instante. Pode nos ajudar?
Deus ouviu o pedido de Moisés e disse:
-- Você vai conduzir seu povo para fora do Egito, Moises. Irão para uma
terra em que serão livres.
Como não podia deixar de ser, Moisés ficou na maior alegria. Voltou
para seu povo e anunciou:
-- Tudo vai acabar bem. Falei com Deus. Vou tirar vocês deste lugar.
Na manhã seguinte, todos os hebreus se reuniram em segredo num lugar
indicado por Moisés, que disse:
-- Sigam-me todos, sem fazer barulho.
A longa marcha começou. Foram andando para a fronteira do Egito,
esperando deixar o país sem que ninguém perce¬besse. Mas,
infelizmente, quando se aproximavam do
mar Ver¬melho, um amigo do rei avistou-os e correu para contar ao
soberano.
-- Os hebreus estão fugindo! -- gritou ele. -- Seguem para o mar
Vermelho, liderados por Moisés!
O rei ficou furioso. Convocou um dos generais.
-- Acabo de receber a informação de que Moisés está levando os hebreus
para fora do país. Quero que sejam detidos. -- Pensou por um momento. --
Não apenas quero que
sejam detidos, mas também que sejam mortos. Está me entendendo?
-- Claro, majestade.
Uma hora depois, o exército do rei já se aprontara para marchar atrás
dos hebreus. Os soldados estavam a cavalo, e galoparam para o mar
Vermelho, em cujas proximidades
os hebreus haviam sido vistos pela última vez.
A essa altura, os hebreus já haviam alcançado o mar Vermelho.
Esperavam efetuar a travessia em navios, mas descobriram,
consternados, que não havia uma única embarcação
à vista. Tudo o que podiam ver era aquela vasta massa de água. Um dos
homens virou-se para Moisés.
-- Nunca conseguiremos atravessar -- disse ele. -- Todos nos afogaríamos
na tentativa.
Moisés estava desolado, pois pensara que Deus providenciaria as
embarcações.
-- Talvez possamos construir barcos -- sugeriu Moisés.
Foi nesse instante que um homem se aproximou, correndo.
-- Moisés, os soldados do rei estão vindo para cá! Chegarão a qualquer
momento!
E Moisés compreendeu que estavam perdidos. Deus o aban¬donara. Ele
levantou os olhos para o céu e indagou:
-- Como pôde fazer isso com seu povo, Deus? Prometeu que eu os tiraria
do Egito sãos e salvos.
Subitamente, a voz de Deus trovejou:
-- Tenha fé em mim. Diga a seu povo que comece a Ca mi para o mar.
Moisés ficou espantado. Como as pessoas poderiam andar pelo mar
adentro sem se afogarem? Mas sabia que tinha de obedecer a Deus.
Virou-se para seu povo e declarou:
-- Falei com Deus. Vamos caminhar pelo mar. Todos se sentiram
apavorados, mas já podiam ouvir o ba¬rulho dos soldados se
aproximando, e concluíram que era me¬lhor
morrerem afogados do que assassinados pelos egípcios.
-- Sigam-me -- disse Moisés.
Ele se encaminhou para o mar, e, ao dar o primeiro passo para dentro
da água, um milagre aconteceu.
Enquanto observavam, atordoados, as águas do mar Vermelho se abriram,
deixando no meio uma faixa de terra seca. Todos aplaudiram e se
puseram a caminhar pelo mar,
apressado, para escapar aos soldados.
Ao chegarem do outro lado, olharam para trás. Os soldados haviam
acabado de alcançar o mar. Viram os hebreus escalando a distância.
-- Atrás deles! -- ordenou o general.
E Moisés viu os soldados do rei entrarem a cavalo no mar.
Quando estavam no meio da travessia, as águas tornaram a se fechar, e
todos se afogaram.
Deus cumprira a promessa. Os hebreus estavam salvos.
Há um outro milagre que a Bíblia nos conta. Havia em Israel um homem
chamado Sansão, tão forte que, em certa ocasião, matou mil soldados
usando como arma apenas
uma queixada de burro.
Os tiranos que dominavam Israel queriam capturar Sansão, mas não
conseguiam. Cada vez que mandavam soldados para prendê-lo, ele os
matava.
Sansão tinha uma namorada chamada Dalila.
-- Queremos capturar Sansão -- disseram eles a Dalila. -- Pode nos
ajudar? Descubra o segredo de sua força.
Na noite seguinte, Dalila perguntou a Sansão o que o tomava tão forte.
-- São meus cabelos -- respondeu ele. -- Se alguém cortasse meus cabelos,
eu ficaria tão fraco quanto qualquer outro ho¬mem.
Naquela mesma noite, enquanto Sansão dormia, Dalila cor¬tou seus
cabelos. Pela manhã, quando acordou, Sansão estava fraco e
desamparado.
Os tiranos o acorrentaram, e fizeram dele um escravo. Escarneciam de
Sansão, porque agora ele não era mais forte do que os outros.
Para terem certeza de que não poderia mais lhes fazer qualquer mal,
furaram seus olhos e o prenderam com correntes às colunas de pedra do
templo.
Mas o tempo passou, e eles cometeram o pior dos erros. Não perceberam
que os cabelos de Sansão estavam crescendo de novo.
Uma noite, quando havia uma grande festa no templo, San¬são, ainda
acorrentado às colunas de pedra que sustentavam o telhado, puxou as
correntes com toda a força
até elas caírem, e o prédio inteiro desmoronou. Todas as pessoas lá
dentro morreram. Inclusive, infelizmente, Sansão.
Falando em milagres, o que acham de Jonas e a baleia?
Deus mandou Jonas a uma cidade chamada Nínive, mas Jonas resolveu que
não queria ir. Disse a um amigo:
-- Prefiro fazer outras coisas.
-- Deus não vai se zangar? -- perguntou o amigo.
-- Não. Deus é tão ocupado que nem vai perceber que não fui!
-- Está correndo um grande risco.
-- Não diga bobagem -- declarou Jonas.
Ele embarcou num navio e seguiu para uma cidade diferente.
Só que Jonas cometera um erro. Deus percebeu o que ele fazia e ficou
muito zangado. Criou uma terrível tempestade; o navio era sacudido de
um lado para outro, como
uma rolha, no vasto oceano.
-- Vamos afundar -- disse o capitão. -- E tudo por sua causa. Você não
fez o que Deus mandou.
Jonas sabia que o capitão tinha razão. Todos os homens a bordo iam se
afogar.
-- Está bem -- decidiu Jonas. -- Saltarei no mar. Depois que eu deixar o
navio, Deus vai parar a tempestade, e todos se salvarão.
Jonas sabia que morreria, mas merecia, porque desobedecer a Deus.
O capitão e o marujo observaram Jonas pular para o mar agitado. Tinham
certeza de que ele morreria afogado.
Mas Deus fez outro milagre. No momento em que Jonas caiu no mar, uma
enorme baleia o engoliu. E, dentro da barriga da baleia, Jonas rezou
para que Deus o perdoasse.
Rezou três dias e três noites, e ao final desse tempo Deus decidiu
salvá-lo.
A baleia abriu a boca e cuspiu Jonas para a praia.
Há dois mil anos, era costume jogar pessoas aos leões. Se um homem ou
uma mulher cometesse um crime, ou se fizesse qualquer coisa que
desagradasse ao rei, o soberano
ordenava:
-- Joguem aos leões!
Havia uma imensa arena, que era uma espécie de estádio, em cujas
arquibancadas as pessoas se sentavam para ver os leões atacarem os
pobres coitados que seriam mortos.
Existia nessa época um rapaz muito bom, chamado Daniel, de quem todos
gostavam. Mas os homens do rei tinham inveja de Daniel, porque ele era
um de seus prediletos.
Por isso, mentiram ao rei, afirmando que Daniel dissera coisas
horríveis a seu respeito.
O rei ficou furioso e gritou:
-- Joguem-no aos leões!
Todos os invejosos sentiram a maior satisfação, porque finalmente
conseguiriam se livrar de Daniel.
Levaram-no para uma cova cheia de leões famintos e o deixaram ali para
ser devorado vivo. Houve uma grande comemoração.
-- Agora não temos mais que nos preocupar com Daniel.
-- Seremos nós os prediletos do rei.
-- Pela manhã, vamos ver o que restou dele.
Na manhã seguinte, foram todos à cova dos leões e esperam. Não puderam
acreditar em seus olhos. Daniel estava senado no meio dos leões, que
lhe lambiam o rosto
como se fossem cachorrinhos. Deus domara as feras, salvando a vida de
Daniel.
Os homens deixaram Daniel sair da cova dos leões e juraram que nunca
mais tentariam lhe fazer qualquer mal.
Falando em milagres... Sabem por que todos nós falamos línguas
diferentes? Pois houve uma ocasião neste mundo em que todas as pessoas
falavam a mesma língua. Habitantes
de diferentes países podiam se comunicar uns com os outros. E se
orgulhavam de serem capazes de fazer isso.
Um dia, um morador da cidade de Babel teve uma ideia.
-- Se todos trabalhássemos juntos, poderíamos construir uma torre tão
alta que alcançaria o céu.
-- É uma grande ideia! -- exclamou outro homem. -- vai fazer isso!
Reuniram tijolos, argamassa e todas as outras coisas de que
precisavam, e começaram a construir a torre. Seria a maior coisa do
mundo, a mais maravilhosa. Levou
anos em construção, e a cada ano se tornava mais e mais alta.
Alguns homens que trabalhavam na torre envelheceram e morreram, e os
filhos tomaram seu lugar, pois nada podia deter a sua construção.
E ela continuou a subir. Muitos anos depois de iniciada, a torre
finalmente alcançou o céu, como fora planejado.
Quando a viu se projeta-se no céu, Deus ficou furioso.
"Só fizeram isso porque todos falavam a mesma língua, e assim puderam
trabalhar juntos", concluiu Deus. "Mas vou acabar com isso."
Houve um raio, e de repente todas as pessoas falavam línguas
diferentes. Algumas falavam japonês, outras inglês, e também espanhol,
sueco e polonês. Não podiam
mais se entender.
O homem que comandava a construção da torre dava as instruções, mas
ninguém compreendia. Todos ficaram tão confusos que afinal tiveram de
interromper a construção.
Exatamente o que Deus queria. As pessoas abandonaram a torre e se
mudaram para outras partes do mundo.
E foi assim que as línguas nasceram.
Vocês já ouviram falar dos Dez Mandamentos? A história conta que
Moisés desceu da montanha com duas tábuas de pedra dadas por Deus, e
nelas estavam escritos os Dez
Mandamentos. Um mandamento é uma regra que deve ser obedecida.
Vou lhes revelar um segredo. Essa história da Bíblia não é toda
verdadeira. As pessoas em geral o ignoram, mas o fato é que havia doze
mandamentos. O que aconteceu
foi que Moi¬sés carregava três tábuas de pedra. Mas tropeçou e deixou
cair uma, que se espatifou; por isso, só restaram dez manda¬mentos.
Ele ficou embaraçado demais
para contar aos outros.
Aqui estão os Doze Mandamentos:
1. Não terás outros deuses diante de mim.
2. Não farás imagens para cultuar.
3. Não usarás o nome do Senhor teu Deus em vão.
4. Respeitarás o dia sagrado.
5. Honrarás pai e mãe.
6. Não matarás.
7. Não cometerás adultério.
8. Não roubarás.
9. Não darás falso testemunho contra o teu próximo.
10. Não cobiçarás a casa do próximo.
11. Nunca dirás uma inverdade.
12. Não farás mal a teu semelhante.
Moisés disse a seu povo que quem violasse aqueles mandamentos seria
punido.
Esse é o lado de Moisés. Mas vou contar algumas histórias sobre
pessoas que violaram os mandamentos de Deus. O que aconteceu com elas?
Tornaram-se ricas, famosas
e felizes.
Capítulo II
A primeira história é sobre um homem que violou dois mandamentos ao
mesmo tempo. O primeiro: "Não terás outros deuses diante de mim"; e
também o terceiro: "Não usarás
o nome do Senhor teu Deus em vão".
E o que torna esta história ainda mais interessante é o fato de que
esse homem era um padre.
Seu nome era George...
Desde menino, George queria ingressar na Igreja Católica. Era muito
religioso. Jamais, em tempo algum, pensaria em violar qualquer dos
Doze Mandamentos. Ia à igreja
todos os domingos e rezava todos os dias.
Quando George cresceu um pouco, declarou ao pai:
-- Gostaria de me tornar padre.
Enquanto os outros meninos faziam todos os tipos de travessuras,
quebravam janelas, mentiam, ignoravam os mandamento, George tomava o
maior cuidado para nunca
fazer qualquer coisa errada. Nunca lhe ocorreria violar qualquer dos
mandamentos.
Quando completou dezoito anos, em vez de ir para a universidade, como
os amigos, foi para o seminário, onde estudou para se tornar padre.
Todos os rapazes estavam ali para se tornarem padres, e todos eram
bons, gentis e nobres, porque é assim que os padres devem ser. Mas
George era um chato. Nenhum
dos outros seminaristas o suportava, e até os professores o
detestavam. Por quê? Porque George era exagerado.
Se os outros eram bondosos, George tinha de ser ainda mais bondoso.
Se os outros eram puros, George tinha de ser ainda mais puro.
Se os outros eram virtuosos, George tinha de ser ainda mais virtuoso.
Ninguém aguentava ficar perto dele. Se alguém cometia o menor deslize,
George no mesmo instante se adiantava e dizia:
-- Você não deveria ter feito isso. Deus não vai gostar.
Ninguém conseguia fazer nada certo.
Numa escola para padres, é de se esperar que todos sejam virtuosos,
mas George era virtuoso demais. Sua simples presença deixava todo
mundo nervoso. Tinham medo
de cometer um erro na sua frente.
Ao concluir o seminário, George foi ordenado padre. Era o momento mais
feliz de sua vida. Foi visitar o pai e a mãe. O pai fumava um charuto.
-- Não deveria fumar -- disse George. -- O charuto é a erva daninha do
Diabo.
A mãe assistia à televisão.
-- É domingo -- disse George. -- Em vez de assistir à televisão, deveria
estar na igreja, rezando.
O irmão caçula comentou:
-- Por Deus, como detesto ter de me arrumar todo aos domingos!
George ficou horrorizado.
-- Você disse a palavra "Deus"! Nunca, mas nunca mesmo, deve usar o
nome do Senhor em vão. Será punido no inferno por isso.
-- Não acredito no inferno -- respondeu o irmão.
-- É um pecador. Rezarei por você.
George virou-se para os pais.
-- Todos são pecadores aqui. Rezarei por vocês.
A família estava ansiosa para que George fosse logo embora.
A primeira paróquia de George foi em uma cidadezinha em Vermont. Havia
apenas uma igreja ali. O padre fora em¬bora, e todos aguardavam
ansiosos um novo padre. George
foi o indicado.
Fizeram uma recepção calorosa para George, mas depois de uma semana já
queriam se livrar dele.
Parte do ritual da religião católica é a confissão. As pessoas entram
no confessionário e falam com o padre, que fica oculto do outro lado
da cabine. Confessam seus
pecados.
O padre anterior era um homem de grande bondade. Quan¬do um paroquiano
confessava os pecados, ele murmurava:
-- Reze cinquenta ave-marias e será perdoado, meu filho.
George? De jeito nenhum. Sua primeira confissão foi a de uma moça, que
entrou no confessionário e disse:
-- Padre, eu pequei.
-- O que você fez? -- perguntou George.
-- Meu namorado me levou a uma festa, bebemos uísque e deixei que ele
me tocasse.
Do seu lado do confessionário, George gritou:
-- VOCÊ O QUÊ?
A moça ficou tão aturdida que não conseguiu dizer mais nada.
-- Como pôde fazer isso? -- bradou George. -- Não sabe que uísque é a
bebida do demônio? E deixou que um homem a tocasse? Um homem com quem
não é casada? É uma pe¬cadora!
Saia do meu confessionário!
A pobre moça se retirou, atarantada, e correu para casa, chorando, ao
encontro da mãe.
Em seguida, um homem idoso entrou no confessionário.
-- Padre, eu pequei.
-- Mas que vergonha! -- exclamou George. -- O que você fez?
O velho não estava acostumado a ouvir um padre falar assim. Afinal,
todos os padres deveriam ser simpáticos e compreensivos.
-- Estou desempregado -- explicou o velho. -- Não me resta nenhum
dinheiro, e tenho um neto para sustentar. Como não havia comida em
casa, outro dia fui ao mercado
e roubei um pão, para dar de comer a meu neto.
-- VOCÊ ROUBOU UM PÃO? LADRÃO!
-- Mas meu neto...
-- Não quero ouvir nenhuma desculpa. Violou o oitavo mandamento: "Não
roubarás". Deveria ir para a cadeia.
O velho não podia acreditar em seus ouvidos. Que espécie de padre era
aquele?
Uma paroquiana entrou a seguir no confessionário.
-- Padre, eu pequei.
George se mostrou furioso.
-- Mas o que há com as pessoas daqui? Será que todas pecaram? Por que
não podem ser como eu?
Ele se forçou a recuperar a calma.
-- Fale-me sobre seu pecado. Espero que não seja nada grave.
-- Não, padre, não é grave. Eu disse uma pequena mentira. Sou casada, e
outro dia um antigo namorado me telefonou. Não queria falar com ele, e
desliguei. Quando meu
marido perguntou quem era, respondi que fora engano. Como pode ver,
foi um pecado bem pequeno, mas...
-- Não há pecados pequenos! -- protestou George. -- É uma mentirosa, e
Deus não perdoa quem mente!
A mulher ficou chocada.
-- Só fiz isso para manter a paz na família, padre.
-- Deus não quer saber por que fez isso, só sabe que você mentiu.
Agora que tinha a própria igreja, George era pior que nos tempos do
seminário. Era tão puro e virtuoso que ninguém podia suportá-lo.
No primeiro sermão que fez na igreja, correu os olhos pela congregação
e disse:
-- Sou o novo padre. Meu nome é George. Sou puro e virtuoso. Olhando
para vocês, vejo uma igreja repleta de pescadores. Mas mudarei isso.
Farei com que todos sejam
bons e puros, e vivam à luz do Senhor.
Passou os trinta minutos seguintes criticando a congregação.
Ao final da semana, a cidade queria se livrar de George de qualquer
maneira. O prefeito telefonou para o bispo, que era o encarregado de
indicar os padres para as
diversas paróquias.
-- Precisa tirar esse homem daqui. Ele é um maníaco.
-- O que ele fez?
-- Fez com que todos nos sentíssemos criminosos. Não há quem não minta
um pouco, trapaceie um pouco, flerte com outras mulheres, tome um
trago de vez em quando. Mas
quan¬do entramos no confessionário e contamos essas coisas a Geor¬ge,
ele faz com que a gente tenha vontade de cometer suicídio. Tem de
tirá-lo daqui. Não tenho
palavras para lhe descrever como estamos deprimidos.
O bispo pediu a George que fosse visitá-lo. George sentiu-se
emocionado com a honra. O bispo disse:
-- Sente-se, George. Como está indo nas suas novas funções de padre?
-- Muito bem -- respondeu George. -- Não imaginava quantas almas havia
para salvar, mas salvarei todas.
-- Não acha que talvez esteja sendo um pouco exigente demais com os
membros de sua congregação? -- indagou o bispo.
-- Exigente demais? Estou realizando a obra do Senhor. E me tornarei
ainda mais rigoroso. Vou pressioná-los até que não reste mais nenhum
pecado naquela cidade.
O bispo fitou George em silêncio, e compreendeu por que todos o
detestavam.
-- Acho que talvez seja melhor eu designá-lo para uma igreja numa
cidade menor.
George se mostrou surpreso.
-- Por quê?
O bispo respondeu com muito tato:
-- Há mais pecado nas cidades menores, e mais necessidade de ajuda.
O rosto de George se iluminou.
-- Ah, ótimo! Quando começo?
-- Imediatamente. -- O bispo pensou por um momento.
-- Há uma pequena cidade no Maine. A congregação só tem cem pessoas,
mas precisa de um padre. Vou mandá-lo para lá.
-- Obrigado. Farei tudo o que puder para salvá-las.
Ao final de uma semana, o bispo recebeu um telefonema do prefeito da
cidadezinha do Maine.
-- O padre que nos mandou é um louco. Tem de tirá-lo daqui.
-- O que ele fez agora? -- perguntou o bispo.
-- Nós nos confessamos durante a semana, e, no domingo, ele conta a
todo mundo na igreja o que falamos no confessionário. Tire-o daqui!
O bispo chamou George de novo.
-- Você gosta de seu trabalho, George?
-- Adoro. Não tinha ideia de que havia tantos pecadores no mundo, e não
descansarei enquanto não salvar todos.
O bispo compreendeu que era um caso perdido.
-- George, acho que tenho como aproveitá-lo melhor do que numa pequena
cidade do Maine. Temos uma igreja em certa aldeia da África.
George franziu o cenho.
-- África?
-- Há muitos pecadores lá -- explicou o bispo.
A expressão de George se tornou radiante.
-- Ah!
-- Vou mandá-lo, junto com meia dúzia de outros padres, para ajudar os
africanos. Cada um terá uma igreja numa aldeia diferente.
George levantou-se, orgulhoso.
-- Estou pronto para partir.
-- Ótimo. O avião vai decolar daqui a dois dias. Pode ir para casa até
lá.
-- Estou ansioso para ir para a África -- declarou George. -- Só há uma
coisa que me entristece.
-- E o que é?
-- As pessoas da minha paróquia vão sentir muito a mi¬nha falta.
George foi para casa, a fim de se aprontar para a viagem. O pai
assistia a um filme pornográfico na televisão.
George parou um instante, incrédulo; depois pegou um martelo e quebrou
o aparelho.
-- Mas o que pensa que está fazendo? -- berrou o pai.
-- Salvando sua alma do demônio -- respondeu George.
-- Viu o que aquele homem fazia com a mulher?
-- Claro que vi. Por que acha que estava assistindo? Afinal, que tipo
de homem você é?
-- Sou mais que um homem -- respondeu George. -- Sou padre.
-- Pois terá de pagar pelo conserto da televisão, padre. Quando partirá
para a África?
-- Amanhã -- informou George, na maior felicidade.
O pai parecia ainda mais feliz.
-- Ainda bem.
George se encontrou com os outros seis padres no aeroporto. Todos se
sentiam animados com o novo posto.
-- Muitos daqueles pobres coitados não têm o suficiente para comer.
-- Alguns estão doentes e não há médicos para atendê-los.
-- Alguns vivem sob ditaduras e não são livres.
George declarou:
-- Se eles não violassem os Doze Mandamentos, nada disso aconteceria.
São todos pecadores.
Os outros padres o fitaram, espantados.
Quando embarcaram no avião, George descobriu-se sozinho.
Sobrevoavam as montanhas de Kilimandjaro sob intensa tempestade.
Faltavam duas horas para alcançarem seu destino. Houve um súbito
clarão; o avião foi atingido por
um raio e começou a girar pelo céu, descontrolado.
-- O que está acontecendo? -- perguntou um dos padres.
O avião começou a mergulhar para o solo.
-- Vamos cair! -- exclamou outro padre.
George interveio:
-- Será possível que vocês, todos padres, não têm fé? Claro que Deus
não deixará o avião cair.
Dois minutos depois, o avião caiu no solo.
Por sorte, bateu em algumas árvores antes de parar por completo. Os
passageiros ficaram bastante abalados, mas ninguém morreu. Haviam
caído numa área remota da
selva africana, povoada por canibais.
Os canibais nunca tinham visto um avião. Observaram intimidados a
gigantesca ave descer do céu.
Seu único contato com um homem branco fora através de um explorador,
que haviam devorado, muitos anos antes. Ele lhes ensinara umas poucas
palavras de inglês antes
de servir como refeição.
-- Deus chegou -- disse o chefe dos canibais.
Observaram os sete homens saírem do avião. Sabiam que só um deles
podia ser Deus. Os outros eram seus servos.
Quando avistaram os nativos, os padres sentiram a maior alegria.
George disse:
-- Caímos aqui para salvar suas almas. Foi por isso que Deus nos
poupou. Se pudessem nos dar uma cama para dormir esta noite, e pela
manhã nos levassem para fora
daqui, ficaremos muito agradecidos.
Os nativos o fitaram aturdidos. O chefe fez um sinal.
-- Venham.
Os padres seguiram os nativos para uma pequena aldeia, com cabanas de
junco.
-- Estamos com fome -- disse George.
-- Nós também -- anunciou o chefe.
Ele se virou para seus homens e ordenou:
-- Amarrem-nos.
Espantados, os padres se descobriram com as mãos e os pés atados.
Havia um enorme caldeirão preto montado num tripé por cima de uma
fogueira, com água fervendo.
O chefe apalpou os braços e as pernas dos brancos.
-- Ah, um bom jantar! -- exclamou ele.
-- Mas do que está falando? -- indagou George. -- Exijo que nos soltem
imediatamente!
O chefe cuspiu na cara de George.
-- Cale a boca. -- Ele correu os olhos pelos padres. -- Um de vocês é
Deus, que desceu do céu e vai nos liderar e proteger. Os outros serão
o nosso jantar.
-- Protesto! -- gritou George. -- Somos cidadãos áfrica e...
-- Cale-se!
O chefe tornou a cuspir no rosto de George, e depois vi¬rou-se para o
primeiro padre.
-- Você é o Deus que veio nos salvar?
-- Claro que não -- respondeu o padre. -- Sou apenas um ser humano que...
-- Podem cozinhá-lo.
Os outros observaram, horrorizados, o primeiro padre ser jogado no
enorme caldeirão com água fervente. Seus gritos eram horríveis.
-- Vocês não podem escapar impunes a isso! -- berrou George. -- Nós...
-- Cale-se.
O chefe cuspiu mais uma vez no rosto de George. Virou-se para o padre
seguinte.
-- Você é Deus?
-- Não.
-- Cozinhem-no.
E o chefe continuou pela fila, perguntando a cada padre, e todos
relutavam em violar o primeiro e o terceiro manda¬mentos: "Não terás
outros deuses diante de mim";
e "Não usa¬rás o nome do Senhor teu Deus em vão".
À medida que cada padre admitia que não era Deus, os canibais o
jogavam no caldeirão com água quente.
O último homem a quem o chefe se dirigiu foi George.
-- Você é Deus?
George estivera escutando os gritos agonizantes dos outros padres. Não
queria violar o primeiro e o terceiro mandamen¬tos, mas também não
queria ser o jantar daqueles
selvagens.
-- Sou, sim -- respondeu George. -- Sou Deus.
E todos os nativos se prostraram diante dele. Cortaram as cordas que o
prendiam e vestiram-no com um lindo traje tribal. O chefe disse:
-- Viverá aqui conosco para sempre e nos protegerá. George ganhou três
belas mulheres para dormirem com ele, e traziam-lhe caça da selva e
frutos das árvores. E pelo
resto da vida ele viveu feliz, tratado como um rei.
E essa é a história do homem que violou não apenas um, mas dois
mandamentos.
Capítulo III
Segundo mandamento:
"Não farás imagens para cultuar".
Esse mandamento significa que não se deve esculpir uma estátua que
venha a ser adorada como Deus. Muito simples, não é? Sabemos que deve
ser um mandamento muito
importante, porque Deus, segundo Moisés, determinou que era o segundo.
Mas vou contar a história de um homem que violou esse mandamento. Ele
foi punido? Sofreu? Foi para o inferno? Nada disso. Por ter violado o
mandamento, tornou-se
rico.
Eis o que aconteceu...
Esta é a história de um pobre entalhador italiano. Seu nome era Tony,
e ele vivia numa pequena aldeia da Itália. Era um rapaz bonito, e
todas as moças queriam se
casar com ele, mas Tony era apaixonado pela filha do prefeito.
Havia um problema. O prefeito era rico, e Tony era pobre. E o prefeito
não tinha a menor intenção de deixar a filha se casar com um
entalhador pobre, que não tinha
o menor futuro.
Tony era muito bom no seu trabalho. Pegava blocos de madeira e
esculpia animais, crianças, uma porção de coisas. Só que era tão
generoso que dava tudo o que fazia,
e era por isso que não tinha dinheiro.
Anna, a filha do prefeito, era loucamente apaixonada por Tony.
-- Quero casar com você -- disse-lhe Tony.
-- Também quero casar com você, querido, mas papai diz que devo casar
com um homem rico.
-- Nunca serei rico. Não me importo com dinheiro.
-- Papai só se importa com pessoas que se importam com dinheiro.
-- Talvez pudéssemos fugir e nos casar longe daqui -- su-geriu Tony.
-- Não é possível, pois isso deixaria papai muito magoado. Além do
mais, ele quer que eu case com o banqueiro, que é muito rico.
-- Você o ama?
-- Claro que não. Sabe que só amo você.
-- E eu amo você. O que vamos fazer?
-- Não pode pensar em alguma maneira de enriquecer?
-- Não quero ser rico, Anna.
Ela ficou furiosa.
-- Se é assim, então casarei com o banqueiro!
Anna percebeu a mágoa no rosto de Tony, e tratou de abraçá-lo.
-- Não falei sério, querido. Se não puder ter você, jamais casarei com
outro, não importa o que papai diga.
Essa conversa não ocorreu uma vez apenas. Acontecia quase todos os
dias. Os dois apaixonados estavam desesperados para se casar, mas era
impossível sem a aprovação
do pai de Anna. E a menos que Tony tivesse uma grande fortuna, ele não
daria seu consentimento.
Certa manhã, o banqueiro da cidade foi procurar o pai de Anna. Era
gordo, velho e feio, mas era rico.
O pai de Anna recebeu-o com a maior satisfação. Gostava de gente rica.
-- Como tem passado? -- perguntou o pai de Arma.
-- Muito bem, obrigado. E você?
-- Sou um homem feliz. Tenho a prosperidade que desejo, uma boa mulher
e uma linda filha.
-- Era sobre isso que eu queria lhe falar -- disse o banqueiro. -- Sobre
sua linda filha. Eu a observo desde menina. Trans¬formou-se numa bela
mulher.
O pai de Arma balançou a cabeça.
-- É verdade. Eu me orgulho de minha filha.
-- Vim até aqui para pedi-la em casamento.
O pai de Anna ficou surpreso. Sabia que a filha não gostava do
banqueiro. O homem era velho, gordo e mesquinho, mas o que importava
era o fato de ser rico. O pai
de Anna sabia que ela pensava estar apaixonada pelo jovem entalhador,
mas ele era pobre demais para casar com ela.
-- Eu me sinto lisonjeado, e tenho certeza de que Anna vai ficar muito
feliz por casar com você -- declarou ele.
O banqueiro sorriu.
-- É uma boa notícia.
-- Anna espera que seja generoso com ela.
-- Claro que serei. Ela terá uma casa enorme, automóvel e criadas para
atendê-la.
Foi a vez do pai de Anna sorrir.
-- Parece ótimo. Falarei com Anna e acertarei tudo. Os dois homens
trocaram um aperto de mão.
Naquela tarde, quando Anna chegou em casa, o pai lhe disse:
-- Sente-se, criança. Tenho boas notícias para você.
Anna franziu o cenho. O que era uma boa notícia para o pai era sempre
uma má notícia para ela.
-- O que é, pai?
-- Conversei com o banqueiro da cidade, e ele quer casar com você.
Anna levantou-se de um pulo.
-- Prefiro morrer! Jamais casarei com ele! Só casarei com Tony!
O pai declarou:
-- Fará o que eu mandar, e vai casar com o banqueiro.
Anna foi procurar Tony, em lágrimas.
-- Qual é o problema? -- perguntou Tony.
-- Papai acaba de me dizer que tenho de casar com o banqueiros. Ficamos
noivos hoje.
Tony sentiu-se desolado. Sabia que Anna não podia desobedecer ao pai,
porque naquele tempo, naquela pequena aldeia da Itália, os casamentos
eram acertados pelos
pais. As moças não podiam escolher os rapazes com quem preferiam
casar.
Tony compreendeu que estava prestes a perder a única mu¬lher a quem
podia amar.
-- Quando vai ser o casamento? -- indagou.
-- Daqui a três meses. Papai queria que fosse mais cedo, mas insisti em
três meses, na esperança de que até lá você pudesse fazer alguma coisa
que o levasse a mudar
de ideia.
-- O que eu poderia fazer? -- indagou Tony. -- Sou apenas um pobre
entalhador.
Ele abraçou Anna e acrescentou:
-- Vou deixar a aldeia.
-- Por quê?
-- Não suportaria continuar vivendo aqui e vê-la casada com outro
homem. Irei para algum lugar distante e tentarei esquecê-la.
Mas, no fundo de seu coração, Tony sabia que nunca conseguiria
esquecê-la.
Na manhã seguinte, Tony fez as malas e partiu para Nova York. Como
tinha bem pouco dinheiro, viajou num cargueiro, um navio velho e sujo
que levou três semanas para
chegar a Nova York.
Enfrentaram uma tempestade, com o mar encapelado, e todos os outros a
bordo enjoaram, mas Tony só pensava em Anna. Não conseguia tirá-la da
cabeça. E sentia-se
muito triste só de pensar que ela ia casar com o banqueiro velho e
gordo.
"E no entanto", pensou Tony, "o que eu poderia oferecer a ela? Anna
está acostumada a boas coisas. Não tenho dinheiro para lhe comprar
nada. Não posso lhe dar uma
casa. Ela tem o direito de casar com o banqueiro."
Ao desembarcar em Nova York, Tony se surpreendeu ao descobrir como a
cidade era grande. Nunca estivera antes numa cidade assim. Havia
incontáveis carros e ônibus
nas ruas, milhões de pessoas passando apressadas, e, pela primeira
vez, percebeu que tinha um problema.
Não falava uma só palavra de inglês. Saiu andando pelas ruas; não
tinha para onde ir, ninguém com quem falar.
Tinha um pouco de dinheiro no bolso, e sentia fome. Avistou um
restaurante e entrou. Sentou a uma mesa. Uma garçonete se aproximou e
perguntou:
-- O que vai querer?
Tony fitou-a, aturdido. Não tinha a menor ideia do que a moça dizia.
Ela perguntou de novo:
-- O que deseja comer?
Tony ficou embaraçado. Levantou-se e saiu do restaurante quase
correndo.
Andou por mais algumas ruas. Encontrou outro restaurante e entrou. O
garçom se aproximou.
-- Boa tarde. Temos ótimos pratos especiais hoje. Fígado acebolado,
carne assada e o picadinho do dia. O picadinho é nossa especialidade.
Posso recomendá-lo.
Tony não entendeu uma só palavra. Levantou-se e saiu apressado do
restaurante.
A fome era ainda maior agora. "O que vou fazer?", perguntou-se. "Ainda
me resta algum dinheiro, mas acabarei mor¬rendo de fome."
E de repente Tony foi salvo. Passou por uma lanchonete, um lugar em
que se pede a comida no balcão.
Tony teve uma ideia. Entrou atrás de um homem e o acompanhou até o
balcão, onde ele pediu:
-- Torta de maçã e café.
Tony escutou com toda a atenção e observou a garçonete pôr uma fatia
de torta de maçã, de aparência apetitosa, e uma xícara de café quente
na bandeja do homem, que
se afastou em seguida.
A garçonete virou-se para Tony, que sorriu e disse:
-- Torta de maçã e café.
A garçonete serviu para Tony uma fatia de torta de maçã e um café.
Tony foi sentar a uma mesa, comeu a torta, tomou o café. Que delícia!
Tornou a procurar a garçonete.
-- Torta de maçã e café.
A garçonete serviu outra fatia e mais café.
Ele comeu tudo, e sentiu-se muito bem.
Naquela noite, Tony encontrou um lugar para dormir. Ficava num bairro
pobre da cidade, mas ele queria economizar o dinheiro até arrumar um
emprego.
Despertou faminto na manhã seguinte. Lembrou o que fizera no dia
anterior e voltou apressado à mesma lanchonete. Foi até o balcão.
-- Torta de maçã e café.
A mulher por trás do balcão providenciou o pedido.
Tony comeu tudo.
Enquanto circulava por Nova York, à procura de um emprego, Tony ia à
mesma lanchonete todos os dias. Mas acabou se can¬sando de comer
sempre a mesma coisa, e teve
outra ideia.
Quando entrou na lanchonete outra vez, seguiu uma mulher e parou atrás
dela. Ela pediu à garçonete:
-- Um sanduíche de presunto.
Tony observou a mulher receber um sanduíche que parecia saboroso.
Quando chegou a sua vez, disse, em seu sotaque carregado:
-- Sanduíche de pre-sun-to.
A garçonete acenou com a cabeça.
-- Pão francês ou de fôrma?
Tony não fazia a menor ideia do que ela havia dito, e repetiu:
-- Sanduíche de presunto.
-- Pão francês ou de fôrma?
Tony engoliu em seco.
-- Sanduíche de presunto.
A garçonete se irritou.
-- PÃO FRANCÊS OU DE FÔRMA?
Tony deu de ombros e balbuciou, desolado:
-- Torta de maçã e café.
No dia seguinte, Tony arrumou um emprego com um fabricante de
brinquedos italiano. Pelo menos encontrara alguém que falava sua
língua. O salário era pequeno, mas
Tony não se importava. Só queria se sustentar e guardar dinheiro
sufi¬ciente para mandar um presente de casamento para Anna.
Esculpia brinquedos de madeira durante o dia inteiro, e as crianças os
adoravam. Iam à loja para vê-lo trabalhar. Como era muito generoso,
tentava dar os brinquedos
às crianças, mas o patrão não deixava, e dizia:
-- Não seja tolo. Podemos ganhar muito dinheiro com esses brinquedos.
Não se interessa por dinheiro?
Tony teve de contar a verdade.
-- Não. E porque não me importo com dinheiro perdi a única mulher que
amei.
Ele podia imaginá-la casada com o banqueiro feio e gordo. Teriam uma
porção de filhos gordos, e Anna envelheceria an¬tes do tempo.
"Anna precisa de amor", pensou Tony. "E eu sou o único que pode lhe
dar amor.
Mas ele sabia, é claro, que se tratava de um caso perdido. O pai de
Anna insistia em seu casamento com um homem rico.
Durante os dois meses seguintes, a notícia da existência de Tony
espalhou-se por Nova York. Seu trabalho era tão bom que ele começou a
ficar famoso.
-- Vou promovê-lo a sócio -- disse o fabricante de brinquedos.
Tony sacudiu a cabeça.
-- Não quero ser sócio. Só quero continuar a fazer brinquedos.
Ele fazia macacos, cavalos, elefantes, zebras e girafas de madeira tão
parecidos com os verdadeiros que os fregueses quase podiam ouvi-los
andar e emitir sons. As
crianças os adoravam.
Todas as manhãs, Tony riscava mais um dia no calendário. Aproximava-se
cada vez mais o casamento de Anna com o banqueiro. Um dia, finalmente,
só restavam três semanas.
Ele passou a sonhar com Anna, e uma coisa muito estranha aconteceu.
Pareciam se encontrar nos sonhos.
-- Tony, querido -- dizia Anna, -- não quero casar com o banqueiro. Você
tem de fazer alguma coisa antes que seja tarde demais.
-- Mas o que eu posso fazer?
-- Não sei. Ganhe muito dinheiro, para que papai me deixe casar com
você.
E, nos sonhos de Tony, eles saíam andando pela beira do rio, de mãos
dadas, e faziam um piquenique. Era maravilhoso estar com Anna de novo.
Mas Tony sabia que os
sonhos acabariam em três semanas. Ela casaria com outro homem.
E foi então que ocorreu uma espécie de milagre. Duas semana antes do
casamento de Anna, Tony teve outro sonho. Sonhou que se encontrava
diante de Deus. Foi tão
nítido que depois ele pôde se lembrar de todos os detalhes. Estivera
pensando no que mandaria para Anna como presente de casamento. Sabia
agora.
-- É isso mesmo! -- exclamou Tony. -- Farei uma estátua de Deus e
mandarei para ela!
Tony nem imaginava que estava violando o segundo mandamento. Mas,
mesmo que soubesse, é bem provável que levasse o plano adiante, pois
seu amor por Anna era grande
demais.
Começou a trabalhar na estátua, num ritmo febril, dia e noite, a fim
de que ficasse pronta a tempo.
Dia a dia, a estátua foi ganhando forma, tornando-se mais e mais
bonita. Era uma das mais lindas estátuas que já se fizera no mundo,
porque Tony a esculpia com seu
amor por Anna. Assim, a estátua estava impregnada de amor.
Quando ficou pronta, Tony contemplou-a e compreendeu que era uma obra-
prima.
-- Vou mandá-la de navio para Anna esta tarde -- disse a si mesmo.
Sentia-se exausto, porque trabalhara com o maior afinco, e avisou ao
patrão:
-- Vou para casa dormir um pouco.
Cinco minutos depois, um homem que ouvira falar de sua obra entrou na
loja.
-- Tem um homem chamado Tony trabalhando aqui? -- perguntou ele.
-- Tem, sim.
-- Posso falar com ele?
-- Ele saiu.
-- Voltarei mais tarde e...
Por acaso, o homem olhou para a oficina, e parou de falar, aturdido.
Contemplava a estátua de Deus. Foi até lá e examinou-a com a maior
atenção.
-- É incrível! -- exclamou o homem. -- Esta é a estátua mais linda que já
vi!
Virou-se para o fabricante de brinquedos.
-- Sou diretor do Metropolitan Museum. Gostaria de comprar aquela
estátua.
O italiano sacudiu a cabeça.
-- Acho que não está à venda. É um presente para alguém.
-- Tenho de comprá-la de qualquer maneira. Seria uma aquisição perfeita
para o museu. Estou disposto a pagar um milhão de dólares.
O fabricante de brinquedos ficou atônito.
-- Um milhão de dólares?
-- Isso mesmo.
Ele pensou. Não tinha o direito de vender a estátua de Tony, mas sabia
da história de Anna. Se Tony tivesse um milhão de dólares, poderia
casar com a mulher que
amava.
-- Negócio fechado -- decidiu.
-- Sensacional!
Os dois selaram o acordo com um aperto de mão. Mandarei um cheque para
cá esta tarde, e virei buscar a estátua.
O fabricante de brinquedos pensou no que acabara de fazer. Era um
grande risco, mas sabia que fizera a coisa certa. Cui¬daria para que
Tony casasse com a mulher
que amava.
Naquela tarde, quando o diretor do museu voltou, trazia um cheque de
um milhão de dólares. Vinha acompanhado por dois homens para ajudá-lo
a pôr a estátua num caminhão.
-- Tony deve estar muito orgulhoso desta obra -- comentou o diretor do
museu. -- Vai torná-lo famoso.
Ao final da tarde, quando Tony voltou à loja, a primeira coisa que
notou foi o desaparecimento da estátua. Entrou em pânico.
-- O que aconteceu com a estátua? -- indagou. -- Onde está?
-- Eu a vendi -- respondeu o patrão.
-- Você o quê? Não podia fazer isso! Era um presente de casamento para
Anna!
O fabricante de brinquedos sacudiu a cabeça.
-- Você tem um presente de casamento melhor para Anna.
-- Tenho? E o que seria?
-- Você! -- Ele entregou a Tony uma passagem de avião para a Itália. --
Este é o meu presente para você. Voltará para casa esta noite e casará
com Anna.
-- Está louco -- protestou Tony. -- Não sou rico, como o pai dela exige.
-- Agora, é.
Ele entregou a Tony o cheque de um milhão de dólares, acrescentando:
-- Virou um milionário.
Tony olhou para o cheque, incrédulo.
-- Mas isto é maravilhoso! -- Ele abraçou o patrão. -- Obrigado. Nunca
esquecerei o que fez por mim.
Ele e Anna se casariam, teriam muitos filhos e todos seriam lindos.
Naquela noite, Tony embarcou num avião para Roma, aonde chegou na
manhã seguinte; de lá, pegou um trem para a pequena aldeia em que
nascera. Foi direto para a casa
de Anna.
-- O que está fazendo aqui? -- perguntou o pai de Anna. -- Pensei que
tivesse ido embora.
-- Mas voltei.
-- E voltou numa péssima ocasião, Tony. Hoje é o dia do casamento de
minha filha.
-- Sei disso -- respondeu Tony. -- E ela vai casar comigo.
O pai de Anna riu.
-- Você enlouqueceu. Sabe que eu nunca a deixaria casar com um pobre.
-- Não sou mais pobre -- anunciou Tony. -- Tornei-me rico... mais rico do
que o banqueiro.
Ele mostrou o cheque ao pai de Anna, cujos olhos se esbugalharam de
espanto.
-- Você agora é milionário. É verdade o que dizem sobre a América.
Todos os que vão para lá viram milionários.
-- Nem todos -- disse Tony. -- Quero ver sua filha.
-- Claro. -- O pai se mostrava de repente muito polido.
-- Vou pedir que ela desça imediatamente.
Ao deparar com Tony, Anna correu para seus braços. Usava um lindo
vestido de noiva branco.
-- Querido! Papai me contou o que aconteceu. Estou muito orgulhosa de
você.
-- Vamos nos casar -- declarou Tony. -- E será hoje. Os dois foram para a
igreja, e o padre local os casou, di¬zendo:
-- Deus os abençoou, e terão uma união feliz.
E o padre não podia imaginar que a união só ocorria porque o noivo
violara o segundo mandamento.
Tony e Anna viveram felizes para sempre.
Capítulo IV
Quarto mandamento:
"Respeitarás o dia sagrado".
O que isso significa? Significa que no domingo você deve descansar,
pensar em Deus e não fazer nenhum negócio.
Esta é a história de Ralph, um homem que violou o quarto mandamento e
se tornou muito rico.
Ralph era o homem mais azarado do mundo. Tudo sempre dava errado para
ele. Era um homem de bem, trabalhador, honesto e leal. Fora
perdidamente apaixonado por uma
mu¬lher, que fugira para casar com seu melhor amigo. O que
sig¬nificava que perdera a amada e o melhor amigo no mesmo dia. Uma
semana depois, um carro atropelara
seu cachorro. Poucos dias mais tarde, seu gato também morria.
Ele arrumou emprego numa fábrica e a fábrica faliu.
Foi trabalhar numa loja de roupas e a loja foi destruída por um
incêndio.
Entendem agora o que eu quis dizer ao falar que ele era azarado? Nada
parecia dar certo para Ralph.
Era como se Deus estivesse empenhado em punir Ralph.
Como não tinha dinheiro, Ralph vivia com a mãe e o pai, que eram muito
religiosos. Acreditavam em Deus, e também que qualquer pessoa seria
punida se violasse um
dos Doze Mandamentos. Como o filho era muito azarado, concluíram que
ele devia estar violando um dos mandamentos de Deus.
Um dia, o pai chamou Ralph para uma conversa em sua biblioteca.
-- Ralph, você deve estar fazendo alguma coisa errada. Em toda a minha
vida, jamais conheci alguém tão desafortunado. Está violando algum dos
mandamentos?
-- Não, senhor.
-- Tem certeza? Vamos pegar o primeiro: "Não terás outros deuses diante
de mim". Está violando esse mandamento?
-- Não, senhor.
-- E o que me diz do segundo mandamento: "Não farás imagens para
cultuar"?
-- Não sei esculpir -- respondeu Ralph.
-- Muito bem, vamos falar sobre o terceiro mandamento: "Não usarás o
nome do Senhor teu Deus em vão". Nunca usa o nome do Senhor em vão?
-- Não, senhor.
-- E o quarto mandamento? Respeita o dia sagrado?
-- Claro que sim. Todos os domingos eu vou a igreja, nunca jogo, não
assisto a nenhum filme, não faço outra coisa que não pensar em Deus.
O pai balançou a cabeça.
-- E o quinto mandamento? Honra seu pai e sua mãe?
-- Com toda a certeza -- garantiu Ralph. -- Honro vocês dois, e muito.
-- Passemos ao sexto mandamento: "Não matarás". Você não matou ninguém,
não é mesmo?
Ralph ficou indignado.
-- Nunca sequer sonharia em matar alguém, papai.
-- Sei que diz a verdade, mas deve estar fazendo alguma coisa errada,
ou não seria tão desafortunado. O que me diz do sétimo mandamento:
"Não cometerás adultério"?
Sei que não violou este mandamento, porque não é casado.
Ralph pensou na namorada e em como a perdera.
-- Não, não fiz isso -- murmurou, desolado.
-- E o oitavo? -- insistiu o pai. -- "Não roubarás."
-- Sou muito honesto -- respondeu Ralph. -- Nunca roubei coisa alguma em
toda a minha vida.
-- Acredito em você. Então por que é tão desafortunado?
-- Não sei explicar.
-- Há o nono mandamento: "Não darás falso testemunho contra o teu
próximo". Alguma vez mentiu sobre alguém?
-- Nunca -- jurou Ralph. -- Só digo a verdade.
O pai sentia-se cada vez mais perplexo.
-- E o que me diz do décimo mandamento: `Não cobiçarás a casa do
próximo"?
Ralph mostrou-se surpreso.
-- Papai, a casa do nosso vizinho está em ruínas. Eu não viveria ali de
jeito nenhum.
-- Acredito em você. E o que me diz do décimo primeiro mandamento:
"Nunca dirás uma inverdade"?
-- Já disse que não minto, papai.
-- Muito bem, filho, vamos ao décimo segundo mandamento:
"Não farás mal a teu semelhante". Nunca brigou com ninguém?
-- Ora, papai, eu não faria mal a uma mosca. Nem sei brigar. Ao fim da
conversa, o pai de Ralph estava ainda mais des¬concertado. Estava
convencido de que o filho
não violara nenhum dos mandamentos de Deus.
E pensou: "Talvez Ralph tenha sido azarado no passado, mas daqui por
diante, porque obedece a todos os mandamen¬tos, ele passará a ter
sorte".
Mas estava enganado.
No dia seguinte, quando Ralph almoçava num restaurante, a garçonete
derramou café quente em sua mão, que ficou queimada. Ralph foi levado
ao pronto-socorro.
No hospital, seguiu por um corredor que acabara de ser encerado,
escorregou, levou um tombo e quebrou a perna.
Puseram-no numa maca e levaram-no para a sala de radiografia. Ali, o
interno esbarrou na maca, Ralph caiu e quebrou o braço.
Passou duas semanas no hospital; ao voltar para casa tinha o braço e a
perna engessados, e a mão enfaixada.
O pai de Ralph ficou desesperado. Foi procurar um padre.
-- Por que meu filho é tão azarado? -- perguntou.
Relatou todos os infortúnios por que Ralph passara, e o padre sacudiu
a cabeça.
-- Só posso pensar que ele está violando um dos mandamento de Deus.
-- Não, isso não é verdade -- assegurou o pai. -- Ele obedece a todos.
-- Então não sei qual é a resposta.
O problema era que ninguém sabia a resposta. Estava escrito na Bíblia
que se você obedecesse aos Doze Mandamentos teria uma vida feliz e
tranquila. Mas ali estava
um homem que obedecia aos Doze Mandamentos e levava uma vida infeliz.
No domingo, embora estivesse engessado e de muleta, os pais de Ralph
insistiram para que se levantasse e os acompanhasse à igreja.
-- Não queremos que Deus fique zangado com você -- disse a mãe.
-- Zangado comigo? -- gritou Ralph. -- Eu sou o seu saco de pancadas!
-- Calma, calma. Não fale assim, filho. Levante-se e vamos à igreja.
Ralph sentia-se muito mal, com uma dor intensa, mas lem¬brou-se do
mandamento que o exortava a honrar pai e mãe; por isso, vestiu-se e
foi para a igreja. Ao sentar-se,
a dor foi tanta que ele mal pôde ouvir o que o padre falava.
"Vou continuar a obedecer a todos os mandamentos até que passe essa
maré de azar", pensou Ralph.
Dois meses depois, a perna e o braço de Ralph estavam curados, a
atadura foi removida da mão queimada, e ele podia voltar ao trabalho
numa loja de vídeo. Ao entrar,
anunciou:
-- Voltei!
O dono da loja disse:
-- Passou tempo demais ausente, e contratei outro para seu lugar. Está
despedido.
Mas o dia de Ralph ainda não terminara. Ao chegar em casa, descobriu
que o pequeno jardim que plantara com as próprias mãos e que tanto
amava fora destruído por
algum animal.
Naquela noite, enquanto Ralph jantava num restaurante, roubaram seu
carro. Ele só descobriu três dias depois, porque o peixe que comera
ali o intoxicara, fazendo
com que fosse conduzido de ambulância para o mesmo hospital, a fim de
se submeter a uma lavagem estomacal.
Os pais foram visitá-lo.
-- O que vai acontecer com você em seguida? -- indagou a mãe, chorosa.
-- Nada mais pode me acontecer -- garantiu Ralph. -- Daqui em diante,
tudo vai melhorar.
Ele deixou o hospital dois dias depois, e foi atropelado por um ônibus
ao atravessar a rua.
-- Tem de ser isso! -- exclamou o pai. -- Você está fazendo alguma coisa
que desagrada a Deus.
Repassaram os Doze Mandamentos e não descobriram nada de errado no
comportamento de Ralph.
-- Você deve redobrar seus esforços -- disse o pai.
Mas Ralph já não aguentava mais.
-- Não. Já me esforcei o suficiente. Daqui por diante, não me importo
com o que Deus faça comigo.
O pai ficou chocado.
-- Não diga isso! -- Ele olhou para o céu. -- Um raio vai atingi-lo!
-- E praticamente a única coisa que Deus ainda não fez comigo.
Ralph passou a semana inteira em casa, recusando-se a sair para
procurar emprego.
-- De que adianta? -- disse ele. -- Sabem como sou azarado. Não
encontrarei emprego, e é bem provável que ainda acabe atropelado por
um caminhão.
O pai não sabia o que dizer. No fundo, sabia que o filho tinha razão.
Na manhã de domingo, a mãe de Ralph foi chamá-lo.
-- Levante-se, querido. Está na hora de ir à igreja.
-- Não quero ir à igreja.
-- Como assim, não quer ir à igreja? Sempre vamos à igreja aos
domingos.
-- E de que isso me adiantou? -- indagou Ralph. -- Ficarei em casa.
-- Não pode ficar em casa -- insistiu o pai. -- O quarto mandamento
diz...
-- Sei o que diz o quarto mandamento. Respeitarás o dia sagrado. Pois
não me importo. Passarei o dia inteiro na cama.
Nada do que eles dissessem o demoveu dessa intenção. Eles partiram
para a igreja, desolados.
-- Vai se arrepender -- advertiu o pai. -- Coisas terríveis podem
acontecer quando alguém viola um dos mandamentos.
-- Pois que aconteça -- respondeu Ralph. -- Não tenho medo.
Ele observou a mãe e o pai saírem. "Deveria ter ido com eles", pensou,
com uma pontada de culpa. A verdade é que se sentia nervoso por violar
o quarto mandamento.
Sempre fora à igreja aos domingos até então.
Finalmente, chegou à conclusão de que estava irrequieto demais para
permanecer na cama. "Talvez seja melhor sair para dar uma volta",
pensou. "Vamos ver que ossos
vou que¬brar hoje."
Vestiu-se e saiu. Era uma linda manhã de primavera, com ar fresco e
agradável. Ele começou a descer pela rua, olhando ao redor,
apreensivo, esperando para ver que
punição sofreria, agora que estava violando o quarto mandamento.
Tropeçou em alguma coisa e pensou: "É agora que vai começar". Mas
quando olhou para a calçada, verificou que tropeçara numa carteira que
alguém deixara cair. Curioso,
pe¬gou-a e descobriu que continha muitas notas de cem dólares. Não
havia qualquer documento na carteira, nenhuma indica¬ção do dono.
Ralph era honesto, e a teria
devolvido ao dono se soubesse quem era.
Contou o dinheiro. Havia cinco mil dólares. Mal podia acre¬ditar em
sua sorte. Era a primeira coisa boa que lhe acontecia em muito tempo.
Guardou a carteira no bolso e continuou a descer pela rua. Havia na
esquina uma banca de jornal que vendia bilhetes de loteria
instantânea: comprava-se um bilhete,
raspava-se um pedaço e descobria-se na hora se estava premiado. O
jornaleiro olhou para Ralph e disse:
-- Recebi bilhetes novos hoje. Não quer comprar um?
Ralph hesitou. Jamais apostava, porque sempre perdia. Agora, no
entanto, com a carteira cheia de dinheiro, resolveu arriscar.
-- Ficarei com dez.
Ele pagou os dez bilhetes, e o jornaleiro observou-o raspar o
primeiro.
-- Tem um bilhete premiado -- disse o homem. -- Cem dólares.
Ralph raspou o seguinte.
-- Outro premiado. Duzentos dólares.
Todos os bilhetes eram premiados. Nenhum dos dois podia acreditar em
tanta sorte.
-- É o homem mais sortudo que já conheci -- declarou o jornaleiro.
Os bolsos de Ralph se encontravam agora estufados de dinheiro.
"Este é o dia mais afortunado de minha vida", pensou ele. "Se eu
estivesse na igreja, nada disso teria me acontecido."
Passou pelo escritório de uma empresa aérea. Num súbito impulso,
decidiu entrar.
-- Eu gostaria de comprar uma passagem de ida e volta para Las Vegas,
por favor.
Pagou a passagem de volta adiantado; se perdesse todo o dinheiro em
Las Vegas, a volta estaria garantida.
O voo levou duas horas.
Ralph nunca estivera antes em Las Vegas. Ao entrar no terminal do
aeroporto, ficou surpreso ao deparar com centenas de máquinas caça-
níqueis. Trocou uma nota por
moedas, en-fiou-as numa máquina, e o dinheiro começou a jorrar.
Pegou um táxi para um hotel. O cassino se achava repleto de pessoas
apostando em jogos de cartas, dados e caça-níqueis.
Ralph ocupou um lugar vago numa mesa de dados.
-- Com licença -- disse ele ao responsável pela mesa. -- Posso jogar?
-- Claro. Tem dinheiro?
Ralph tirou o dinheiro do bolso. O rosto do homem se iluminou.
-- Venha para cá, senhor. Um novo lançador está prestes a jogar. Quanto
quer apostar?
Ralph nunca jogara dados em toda a vida. Não tinha a menor ideia do
que significava um "novo lançador".
-- Aposto mil dólares -- disse ele.
O homem lhe deu as fichas, e ele pôs mil dólares na mesa.
O lançador fez sete pontos. Na frente de Ralph havia agora uma pilha
de fichas no valor de dois mil dólares.
-- Quer dizer que ganhei mil dólares? -- perguntou Ralph.
-- Isso mesmo. Vai manter a parada?
Ralph nem imaginava o que era "manter a parada", mas disse:
-- Claro.
Os dados foram arremessados outra vez, e o resultado foi onze.
Havia agora quatro mil dólares na frente de Ralph.
-- Vai continuar?
-- Gostei desse jogo de dados -- comentou Ralph. -- Vou, sim.
Na meia hora seguinte, Ralph ganhou mais de cem mil dólares. Nada dava
errado. Fazia as apostas mais estapafúr¬dias, e sempre dava certo. Um
dos gerentes do cassino
se aproximou e sugeriu:
-- Há uma sala reservada, lá nos fundos, em que as apostas são mais
altas. Talvez goste.
O gerente não se importava se Ralph ia gostar ou não; o que ele queria
mesmo era levá-lo para um jogo de apos¬tas mais altas a fim de que o
cassino pudesse recuperar
o dinheiro.
-- Parece uma boa ideia -- disse Ralph.
Ele seguiu o gerente para uma sala nos fundos, onde uma dúzia de
homens de aparência próspera jogavam pôquer.
Ralph, que não era jogador, nunca jogara pôquer. Sentou à mesa.
-- A parada no escuro é de cinco mil dólares -- informou o carteador.
-- O que é uma parada no escuro?
Os outros jogadores riram. Pensavam que Ralph estava brin¬cando.
-- É o dinheiro que você tem de apostar antes de cada mão.
-- Ah, entendi.
Ralph pôs cinco mil dólares na mesa.
O jogo começou. Ralph teve ainda mais sucesso do que na mesa de dados.
Não importava o que fizesse, não perdia. Um dos jogadores baixou as
cartas.
-- Tenho um par de ases.
Ele estendeu as mãos para o bolo.
-- Espere um instante -- disse Ralph. -- Tenho uma trinca de damas.
Na mão seguinte, um dos jogadores anunciou:
-- Tenho full hand.
Ralph se apressou em dizer:
-- E eu tenho um royal flush.
Ele foi ganhando todas as mãos, e nada dava errado. Se um jogador
tinha a mão fraca, Ralph tinha a mão forte. Se outro tinha a mão
forte, Ralph tinha cartas ainda
mais fortes.
Quando deixou a mesa, duas horas mais tarde, tinha duzentos mil
dólares em espécie. Circulou pelo cassino, perguntando-se o que lhe
aconteceria em seguida.
Foi para o restaurante do hotel, e uma garçonete aproximou-se de sua
mesa.
-- O que deseja?
Ralph levantou os olhos e deparou com a mulher mais linda que já vira
em toda a vida. Era jovem e loura, tão deslumbrante que seu coração
quase parou. Usava um uniforme
justo, que revelava um corpo sensacional.
-- Eu... ahn... -- balbuciou ele. Deu uma olhada no cardápio.
-- Acho que vou querer o picadinho.
A garçonete olhou ao redor, para se certificar de que ninguém podia
ouvir, e sussurrou:
-- Não peça o picadinho, que é de ontem. O talharim está fresco.
-- Obrigado -- murmurou Ralph -- Pode me trazer o talharim. Ele ficou
observando a moça se afastar; não conseguiu des¬viar os olhos dela.
Ela tinha razão. O talharim
estava delicioso.
Quando Ralph tirou o dinheiro do bolso para pagar a conta, a garçonete
viu que era muito e disse:
-- Não deve andar com tanto dinheiro no bolso, pois alguém pode roubá-
lo. Peça ao caixa para lhe dar um cheque nesse valor, e assim seu
dinheiro ficará seguro.
-- É muita gentileza sua, senhora...
-- Senhorita. Meu nome é Sally Morgan.
-- Também sou solteiro.
Ela sorriu.
-- Então alguém está perdendo uma oportunidade maravilhosa. Aposto que
você daria um excelente marido.
-- E eu aposto que você daria uma esposa excelente. A que horas sai do
trabalho?
-- Às seis.
-- Posso esperá-la?
Ela tornou a sorrir.
-- Eu gostaria muito.
Ralph esperou que a moça saísse do trabalho. Levou-a para jantar,
conversaram muito, e era como se sempre tivessem se conhecido. Foi
amor à primeira vista. Sally
era a moça mais meiga e espetacular que Ralph já encontrara.
-- Só nos conhecemos há poucas horas -- disse Ralph e isso pode parecer
uma loucura, mas quero casar com você.
Sally balançou a cabeça.
-- Isso parece uma loucura ainda maior, mas a resposta é sim.
Compreendi que o amava desde o instante em que o vi.
Ralph abraçou-a e murmurou:
-- Vamos procurar um padre.
Em Las Vegas, há capelas que celebram casamentos vinte e quatro horas
por dia. Ralph e Sally se casaram.
-- Vamos para casa -- disse Ralph. -- Quero que conheça meus pais.
Os pais de Ralph estavam frenéticos. Ao voltarem da igreja,
descobriram que o filho havia desaparecido. Já era quase meia-noite
quando ele voltou, acompanhado por
uma linda jovem.
-- Quero apresentá-los à minha mulher -- disse Ralph.
Os pais não podiam acreditar.
-- Sua esposa? Como pode ter casado? Não tem um centavo, e nós não
vamos sustentá-los.
-- Nem precisam -- garantiu Ralph.
Ele mostrou o cheque de duzentos mil dólares e acrescentou:
-- Estão vendo isto? Vou abrir meu próprio negócio, e tenho certeza que
será bem-sucedido.
E Ralph abriu seu negócio e foi bem-sucedido. Sally provou ser uma
companheira maravilhosa. Daquele momento em diante, a vida de Ralph
foi perfeita. Absoluta¬mente
perfeita.
E tudo aconteceu porque ele violou o quarto mandamento.
Capítulo V
Quinto mandamento:
"Honrarás pai e mãe".
Edward era órfão. Em Filadélfia, ainda um bebê recém-nas¬cido, a mãe o
largara numa lata de lixo e o deixara ali para morrer. Por sorte, um
guarda ouviu o bebê chorando
e o levou para um hospital, onde conseguiram salvar-lhe a vida.
Ninguém sabia quem era a mãe ou o pai. A única pista era o nome
escrito numa fita adesiva presa à manta que ele usava: "Edward Bixby".
A polícia bem que tentou localizar
os pais, para prendê-los por tentativa de homicídio, mas não teve
sorte.
Edward foi mandado para um orfanato, onde cresceu. Era uma vida
difícil. Nunca havia comida suficiente, e as outras crianças o
maltratavam.
Um padre visitava o orfanato de vez em quando, e conversava com os
meninos. Ensinou-lhes os Doze Mandamentos. Quando chegou ao quinto
mandamento, Edward ficou con¬fuso.
Como podia honrar pai e mãe se não tinha a menor ideia de quem eram?
Às vésperas de completar dezessete anos, a diretora do orfanato
chamou-o a seu gabinete.
-- Edward, amanhã você faz dezessete anos.
-- Eu sei, senhora.
-- O orfanato tem um regulamento: jovens com mais de dezessete anos não
podem continuar aqui. Teremos de man¬dá-lo sair para o mundo.
A maioria das crianças ficaria apavorada com a perspectiva de ser
lançada num mundo sobre o qual nada sabia. Mas não Edward. Ao
contrário, ele sentiu-se bastante
animado. E o motivo de seu excitamento era a possibilidade de realizar
o sonho de toda a vida: descobrir sua mãe e seu pai.
-- Tem sido um bom menino, Edward. Nós nos orgulhamos de você, e
sentiremos saudade.
-- Também sentirei -- mentiu Edward.
Estava ansioso por sair do orfanato.
No dia seguinte, Edward despediu-se dos outros meninos e partiu à
procura dos pais. Sabia que não seria fácil encon¬trá-los.
Foi visitar o padre.
-- Quero honrar pai e mãe -- disse ele, -- mas não posso fazê-lo se não
souber quem são e onde estão. Pode me ajudar?
O padre pensou por um momento, depois sacudiu a cabeça.
-- Vai ser muito difícil, Edward. Ninguém jamais os viu.
-- Mas alguém deve tê-los visto quando me levaram para o orfanato, não
é mesmo? -- insistiu Edward.
O padre decidiu que Edward já tinha idade suficiente para conhecer a
verdade.
-- Eles não o levaram para o orfanato. Deixaram-no numa lata de lixo.
Foi um guarda que o encontrou e o trouxe para cá.
Edward estava aturdido.
-- Uma lata de lixo? Jogaram-me numa lata de lixo e me deixaram ali
para morrer?
-- Isso mesmo.
Edward ficou chocado.
-- Tenho certeza de que assim fizeram porque não tinham condições de
sustentá-lo. Provavelmente, eram muito pobres.
Seus pais eram pobres. Pelo menos isso. Edward sabia agora.
-- Fui informado de que meu nome estava escrito numa fita adesiva presa
na manta: "Edward Bixby".
-- É verdade. A polícia tentou encontrar seus pais, mas não conseguiu.
-- Eu os descobrirei -- declarou Edward. -- Nem que seja a última coisa
que faça, haverei de encontrá-los.
A busca de Edward começou. Sua primeira providência foi procurar na
lista telefônica, para saber se havia ali algum Bixby. Encontrou meia
dúzia. O primeiro era um
médico.
"Aposto que é meu pai", pensou Edward. "Devia ser muito pobre naquele
tempo, e não tinha condições de me sustentar. Mas agora ficará
contente em me ver.
Edward foi ao consultório do médico.
-- Eu gostaria de falar com o Dr. Bixby.
-- Tem hora marcada?
-- Não, mas ele vai querer me ver. Diga que seu filho está aqui.
A enfermeira se mostrou surpresa.
-- Filho?
-- Isso mesmo.
-- Um momento, por favor.
A enfermeira entrou na sala do médico.
Um instante depois, ele apareceu. Era muito alto, bonito... e negro.
-- Queria falar comigo?
Edward engoliu em seco.
-- Ahn... não, senhor... eu... acho que não. Adeus.
E Edward saiu apressado do consultório.
O Bixby seguinte da lista telefônica morava nos arredores da cidade.
Era uma linda casa, e Edward percebeu que seu coração batia mais
depressa. Os donos de uma casa
assim tinham de ser ricos, com toda a certeza.
"Devem ser meus pais", pensou ele. "Eram pobres quando nasci, mas
agora têm dinheiro, e é bem provável que estejam à minha procura."
Edward tocou a campainha. Uma criada uniformizada abriu a porta.
-- O que deseja?
-- Vim ver minha mãe.
A criada ficou aturdida.
-- Sua mãe?
-- Isso mesmo. Sra. Bixby. Sou Edward Bixby.
-- Tem certeza que veio ao endereço certo?
-- Absoluta.
Edward sabia, no fundo do coração, que aquele era o lugar certo.
-- Espere um pouco, por favor. Vou chamar a Sra. Bixby. Ele ficou
parado na porta, no maior excitamento. Finalmente ia se encontrar cara
a cara com a mãe.
Um momento depois, uma moça apareceu. Devia ter vinte e cinco anos de
idade.
-- Queria falar comigo? -- indagou ela.
-- Não, senhora. Vim falar com a Sra. Bixby.
-- Sou a Sra. Bixby.
Foi a vez de Edward se espantar.
-- Não pode ser. Afinal... é muito jovem para ser minha mãe.
-- Espero que sim. Quer dizer que não sabe quem é sua mãe?
-- Não, não sei, mas vou descobrir.
Visitou os outros Bixby da lista telefônica, mas não teve sorte. Ou
eram muito jovens, ou muito velhos, ou da cor errada.
Edward pensou em desistir? Absolutamente não. Sentia-se mais
determinado do que nunca a encontrar a mãe e o pai, a fim de poder
honrá-los.
Começou a viajar pelo país, parando em diversas cidades. Em cada uma,
procurava pelos Bixby na lista telefônica.
Havia Bixby em Chicago, Detroit, Filadélfia e Nova York, mas era
sempre a mesma história -- todos eram os Bixby errados.
Foi na Flórida que Edward sentiu que teria sorte. Havia um Edward
Bixby na lista telefônica. Seu coração bateu forte. Era bem provável
que tivesse recebido o mesmo
nome do pai.
Foi ao endereço indicado. Era uma casa enorme, no meio de um vasto
jardim. Edward tocou a campainha. A porta foi aberta por um mordomo.
-- O que deseja?
-- Eu gostaria de falar com o Sr. Bixby.
-- Entre, por favor.
Edward entrou no imenso vestíbulo.
Um momento depois, apareceu um homem de cabelos grisalhos, aparência
distinta.
-- Em que posso ajudá-lo?
-- Estou procurando minha mãe e meu pai -- explicou Edward.
O homem estudou-o por algum tempo.
-- Vamos para a biblioteca.
Sentaram-se, e Edward contou sua história ao Sr. Bixby. Quando
terminou, o homem disse:
-- Tive um filho chamado Edward, mas ele morreu num desastre de avião.
Vivo sozinho desde então. -- Ele se inclinou para a frente. -- Gostei de
você, e não me resta
mais ninguém da família. Gostaria de tomar o lugar do meu filho?
Edward parou para refletir. Viver naquela linda casa e ter muito
dinheiro. Mas não era isso que queria. Seu desejo era encontrar a mãe
e o pai.
-- Obrigado, é muita bondade sua, mas tenho de continuar em minha
busca.
O Sr. Bixby balançou a cabeça.
-- Eu compreendo. Boa sorte.
Em Washington, D.C., Edward encontrou um general Bixby na lista
telefônica. Foi procurá-lo em seu escritório. Uma se¬cretária indagou:
-- O que deseja?
-- Quero falar com meu pai.
A secretária não se surpreendeu.
-- Um momento, por favor.
Ela falou pelo interfone:
-- Seu filho está aqui, general.
A voz do general trovejou em resposta:
-- Mande-o entrar.
Edward entrou na outra sala. Um homem de bigode, com cabelos
grisalhos, estava sentado atrás da mesa.
-- Qual é seu nome? -- perguntou o general.
-- Edward Bixby.
-- Seja bem-vindo, filho.
"Finalmente encontrei meu pai", pensou Edward. Seu coração disparou.
-- Obrigado, pai.
-- Sente-se.
Edward sentou na cadeira colocada diante da mesa.
-- Bom, finalmente nos conhecemos.
-- É verdade, senhor.
-- Fale-me sobre sua mãe.
-- Minha mãe? Eu... ahn... não sei coisa alguma sobre ela.
-- Era a francesa? Ou a italiana?
-- Não estou entendendo.
-- Quando estive no exterior, durante a guerra, passei por vários
países, e fiz amor com muitas mulheres. Devo ter filhos na França,
Alemanha, Itália, Bélgica, Romênia
e Hungria. É muito fácil descobrir quem foi sua mãe. Qual dessas
línguas você fala?
Edward fitava-o com perplexidade.
-- Nenhuma delas.
-- Como? Não foi criado em nenhum desses países?
-- Não.
-- Então você não é meu filho, mas apenas um impostor -- declarou o
general. -- Saia daqui!
Edward estava desconsolado, mas continuou determinado a encontrar os
pais, pois só assim poderia honrá-los.
Uma noite, para esquecer a tristeza, Edward foi ao cinema.
O nome de um ator apareceu na tela: "Alan Bixby". Edward experimentou
uma intensa animação. O ator era quase exatamente igual a ele. Tinha o
mesmo queixo, o mesmo
nariz, a mesma boca.
"É meu pai", pensou Edward, excitado. "Depois de tanto tempo, descobri
meu pai."
Na manhã seguinte, Edward partiu para Hollywood. Descobriu para que
estúdio Alan Bixby trabalhava e foi procurá-lo.
O guarda do portão não queria deixá-lo entrar.
-- O Sr. Bixby não recebe ninguém.
-- A mim ele vai receber -- garantiu Edward. -- É meu pai.
O guarda mudou de atitude no mesmo instante.
-- Isso é diferente. Vou avisá-lo que você está aqui.
Poucos momentos depois, Edward foi conduzido ao camarim de Alan Bixby.
O ator estava se maquiando, vestido com um chambre púrpura de cetim.
-- Meu caro rapaz, em que posso ajudá-lo?
Fora da tela, sua voz era um tanto alta e estridente.
-- Acho que sou seu filho.
Alan Bixby estudou-o por um instante e disse:
-- Isso é maravilhoso. Também tenho certeza de que é mesmo.
Edward ficou emocionado.
-- Procurei-o por toda parte, papai.
-- Foi muita gentileza sua. E agora me descobriu.
-- Sim, senhor.
Alan Bixby olhou para o relógio.
-- Tenho de voltar para o estúdio em poucos minutos, mas quero que
fique à vontade aqui. Assim que eu terminar as filmagens desta tarde,
vai para casa comigo. Está
bem assim?
-- Sim, claro -- respondeu Edward.
-- Vamos nos divertir muito juntos -- prometeu Alan Bixby.
A porta foi aberta, e um rapaz entrou. Usava sombra nos olhos. Beijou
Alan Bixby nos lábios.
-- Olá, querido.
-- Está atrasado -- repreendeu-o Alan Bixby. -- É um garoto muito levado.
Edward olhava espantado para os dois. Subitamente, percebeu que Alan
Bixby nunca gerara um filho. O ator se virou para Edward.
-- Tenho de sair agora, mas fique me esperando aqui. Voltaria assim que
puder.
Quando Alan Bixby retornou ao camarim, Edward já tinha ido embora há
muito tempo.
Pela primeira vez, Edward Bixby começou a pensar que sua missão estava
fadada ao fracasso. Viajara por todo o país e não conseguira encontrar
o pai e a mãe. Até
que, de repente, o destino interveio para ajudá-lo.
Estava num restaurante, jantando, quando prestou atenção no que as
pessoas diziam na mesa ao lado. Virou-se para olhar. Havia meia dúzia
de homens sentados ali.
Tinham uma apa¬rência belicosa e falavam em voz alta. Um deles disse:
-- Os tiras me prenderam, mas não foram capazes de provar coisa alguma
contra mim. Bixby tinha razão, foi um trabalho perfeito.
No momento em que ouviu o nome Bixby, Edward inclinou-se para a frente
a fim de ouvir melhor.
-- Devemos ter conseguido meio milhão de dólares com o trabalho. Aquele
banco nunca soube o que o atingiu.
Edward continuou a prestar atenção, mas não ouviu mais qualquer
referência a Bixby.
Quando os homens acabaram de jantar e se preparavam para sair, Edward
se aproximou da mesa.
-- Com licença -- disse ele ao homem que mais falara. -- Pode me dar um
minuto?
O homem era grandalhão e parecia perigoso.
-- Não.
Ele começou a se afastar.
-- Espere um pouco! -- suplicou Edward, desesperado. -- Mencionou o nome
Bixby.
O homem parou e fitou-o.
-- E daí?
-- Meu nome é Bixby.
-- E daí?
-- Estou procurando meu pai. Pensei que o homem que mencionou poderia
ser meu pai.
-- Bixby Dois canos, seu pai? Você deve estar louco.
-- Sei que é improvável, mas acontece que meu pai e minha mãe me
deixaram num orfanato há dezoito anos.
Edward não queria admitir de jeito nenhum que fora abandonado numa
lata de lixo. O grandalhão estudou-o mais ativamente.
-- Há dezoito anos?
Ele se virou para os outros.
-- Não foi a dezoito anos que Bixby Dois canos e Molly tiveram um
garoto?
-- É isso mesmo -- confirmou um dos homens. -- E o largaram em algum
lugar.
O grandalhão tornou a fitar Edward, com uma expressão diferente.
-- Como sabe que seu nome é Bixby? -- perguntou ele.
-- Porque me encontraram com uma manta em que havia esse nome escrito
numa fita adesiva.
-- Santo Deus! -- exclamou o grandalhão. -- Acho que temos aqui o garoto
Dois canos!
-- Meus pais ainda estão vivos? -- indagou Edward na maior ansiedade.
-- Estão sim. Pensando bem, você tem o nariz de seu pai e os olhos de
sua mãe.
Edward mal podia acreditar em sua sorte. Finalmente encontrara os
pais, e agora queria honrá-los.
-- Pode me levar até eles?
O homem hesitou.
-- Não sei... Talvez seja melhor eu lhe mostrar primeiro o retrato
deles.
Edward acenou com a cabeça.
-- Seria ótimo.
O grandalhão virou-se para os companheiros.
-- Vou me encontrar com vocês mais tarde. Não se esqueçam de apagar o
guarda antes de entrarem.
Edward não fazia a menor ideia do que isso significava.
O grandalhão tornou a se virar para ele.
-- Venha comigo.
Para surpresa de Edward, o homem levou-o a uma agência do correio.
-- Meu pai trabalha no correio?
O grandalhão soltou uma risada.
-- Não.
Foram até uma parede em que havia retratos de criminosos procurados. O
homem apontou para o cartaz de um homem e uma mulher em que se lia:
"Edward Dois canos Bixby e Molly Bixby, procurados por homicídio em
sete estados; procurados por assalto a agências do correio em dez
estados. Recompensa de 250
mil dólares."
Edward ficou olhando aturdido para o cartaz, enquanto o homem dizia:
-- Esses são seus pais. Ainda quer encontrá-los?
Edward engoliu em seco, muito nervoso.
-- Claro que quero.
-- Pois então vamos. Eu o levarei ao esconderijo deles.
O esconderijo era uma cabana nas montanhas.
Quando o grandalhão e Edward chegaram, a porta foi aberta pelo homem
cujo retrato o rapaz vira na agência do correio. Ele tinha um revólver
na mão.
-- Quem é esse garoto? -- perguntou ao grandalhão.
-- Acho que é seu filho.
Dois canos olhou para Edward.
-- Qual é o seu nome?
-- Edward.
-- Quantos anos você tem?
-- Dezoito, senhor.
-- Há muito tempo, li que a polícia o encontrou e o levou para um
orfanato. Isso é verdade?
-- É, sim, senhor. Saí do orfanato no início do ano passado.
-- Não dá para acreditar.
Dois canos deu um tapa nas costas de Edward.
-- Seja bem-vindo, filho. Vamos entrar.
Molly veio da outra sala. Era gorda e feia, tinha os cabelos sujos e
desgrenhados. E estava embriagada.
-- Quem é esse aí? -- indagou ela.
-- É nosso filho -- respondeu o pai de Edward.
O reencontro não foi exatamente o que Edward sempre pre¬vira, mas pelo
menos encontrara os pais, e sabia que não im¬portava como eles eram;
só o haviam abandonado
porque não tinham outro jeito. Deviam estar fugindo da polícia,
corriam perigo e não queriam que nada de mal acontecesse com o filho.
Ao renunciar a ele, haviam
feito um grande sacrifício. Portanto, Edward estava disposto a amá-los
e honrá-los, como determinava a Bíblia.
-- Sei como deve ter sido difícil para vocês me abandonarem -- disse
ele. -- Imagino que foi um grande sacrifício terem de me deixar e...
-- Sacrifício? -- A mãe soltou uma risada. -- Está brincando? Você não
passou de um acidente. Para começar, nunca o desejei. Depois que
nasceu, larguei-o na primeira
lata de lixo que en¬contrei. Por que está voltando para nos incomodar
agora?
-- Provavelmente, ele quer dinheiro -- sugeriu Dois canos.
-- Não quero, não -- declarou Edward. -- Procurei-os porque queria saber
quem eram meus pais.
-- Pois agora já sabe -- disse a mãe. -- Pode ir embora. E não nos
chateie mais!
Dois canos virou-se para o grandalhão.
-- Leve-o daqui.
Todo o mundo de Edward desmoronou. Tentara seguir o quinto mandamento
e finalmente encontrara os pais. E o que ganhou com isso? Nada.
Isto é, não exatamente nada, pois depois que deixou a cabana, foi até
a agência do correio e informou onde Dois canos e Molly podiam ser
encontrados. Recebeu a
recompensa de 250 mil dólares e foi morar na França, onde levou uma
vida maravilhosa.
Capítulo VI
Sexto mandamento:
"Não matarás".
Roger Jones era um homem religioso. Mais que isso, era muito
religioso. Ia à igreja todos os domingos, e obedecia aos Doze
Mandamentos. Nunca sequer sonharia em
violar qual¬quer um deles -- muito menos o sexto: "Não matarás".
Isto é, Roger nunca teria sonhado em matar ninguém... até que casou. A
esposa, Louise, era uma ótima pessoa. Amava Roger, e ele a ela. O
problema do casamento não
era Louise, mas sua mãe.
Ela se chamava Sarah, e era o ser humano mais insuportável que Roger
já conhecera. Sarah não queria que a filha casasse com Roger. Preferia
que Louise casasse com
alguém impor¬tante, e Roger não era importante. No dia do casamento,
ela disse à filha:
-- Decidi morar com você e Roger. Quero ter certeza de que ele vai
tratá-la direito.
Roger não ficou nada feliz ao saber da notícia.
-- Nossa casa é bem pequena. Onde vamos alojá-la?
-- Ela ficará no quarto de hóspedes -- propôs Louise.
Sarah mudou-se naquela tarde. Deu uma olhada no quarto de hóspedes e
declarou:
-- É muito pequeno para mim. Ficarei no quarto principal.
-- Mas onde nós vamos dormir? -- perguntou Roger.
-- No quarto de hóspedes -- respondeu Sarah.
Isso foi apenas o começo.
A sogra criticava tudo o que Roger fazia. Ao desjejum, ela comentou:
-- Não deve comer ovos com bacon. Faz mal à saúde.
-- Mas gosto de ovos com bacon.
-- Daqui por diante -- declarou Sarah, -- você comerá apenas alimentos
saudáveis.
Roger nunca mais teve permissão para comer ovos com bacon.
Sarah não gostava da maneira como o genro se vestia.
-- Parece um palerma -- disse ela. -- Daqui por diante, irá ao escritório
de terno escuro, camisa de colarinho e gravata.
-- É um escritório bastante informal -- protestou Roger. -- Ninguém usa
gravata.
-- Mas você vai usar.
E Roger passou a ir trabalhar de terno e gravata.
Uma noite, quando Roger tomava um scotch com soda, Sarah anunciou:
-- Não haverá mais bebidas alcoólicas nesta casa. Jogou fora todas as
garrafas. Mas isso não era o pior. Sarah não perdia nenhuma
oportunidade de dizer à filha que
sua escolha havia sido a pior possível.
-- Poderia ter casado com alguém mais bonito, mais rico e mais
importante.
-- Acontece que eu amo Roger.
-- Não sabe o que é o amor, menina. Preciso encontrar alguém melhor
para você.
-- Mas do que está falando, mamãe? Sou casada com Roger.
-- Sempre pode obter o divórcio.
-- Não quero o divórcio.
-- Vai querer. Espere só para ver.
No instante mesmo em que Roger chegava em casa, de volta do trabalho,
a sogra começava a importuná-lo.
-- Por que não ganha mais dinheiro?
-- Tenho um bom salário. Louise e eu levamos uma vida confortável.
-- Mas eu não. Gostaria de morar numa casa maior. Talvez você devesse
mudar de emprego.
-- Não quero mudar de emprego. Gosto do lugar em que trabalho.
-- Só porque não conhece nada melhor.
Sarah nunca deixava que os dois ficassem a sós. Sempre estava
presente, falando sem parar, jamais lhes dava um momento de sossego.
Louise sentia-se tão infeliz com a situação quanto Roger.
-- Talvez pudéssemos persuadi-la a sair daqui -- sugeriu Roger.
-- Eu não poderia fazer isso, querido. Ela é minha mãe.
-- Deixe-me tentar -- pediu Roger.
Foi falar com Sarah.
-- Não gostaria de morar sozinha num bom apartamento? -- disse Roger. --
Terei o maior prazer em pagar o aluguel.
Sarah sacudiu a cabeça.
-- De jeito nenhum. Quero continuar aqui, onde posso ficar de olho em
minha filha. Ela precisa de mim.
-- Louise já é adulta, não precisa mais da mãe.
-- Só eu posso julgar isso.
No momento em que Roger concluiu que as coisas não podiam ficar
piores, tudo piorou.
Roger convidou o chefe para jantar. Orgulhava-se de seus dotes
culinários, e resolveu preparar o jantar. Fez uma sopa de legumes
deliciosa, um bolo de carne com
purê de batata e uma torta de maçã. Ficou muito satisfeito com o
jantar.
O chefe chegou na hora marcada. Olhou ao redor e comentou:
-- É uma linda casa, Roger.
-- Pequena demais -- interveio Sarah.
-- Eu gostaria de tomar um drinque -- sugeriu o chefe.
-- Lamento, mas não temos bebidas alcoólicas em casa --informou Roger.
O chefe se mostrou surpreso.
-- Não?
-- O jantar está pronto -- anunciou Roger. -- Por que não sentamos logo à
mesa?
Louise serviu a comida que Roger preparara. A sopa foi o primeiro
prato. O chefe provou-a.
-- Está deliciosa.
-- Salgada demais -- reclamou Sarah. -- Roger põe sal demais em tudo.
O prato seguinte foi o bolo de carne com purê de batata.
-- É o melhor bolo de carne que já comi -- comentou o chefe.
-- Então não sabe nada sobre comida -- disse-lhe Sarah. -- Tem um gosto
horrível.
-- O purê está ótimo.
-- Muito encaroçado.
O jantar inteiro foi assim. Sarah reclamou de tudo.
Eu seria capaz de matá-la, pensou Roger. E sentiu-se chocado com tal
pensamento. Matar ia contra o sexto mandamento. E no entanto...
Todas as tardes, Sarah saía para fazer compras. Adquiria vestidos,
bolsas, echarpes e sapatos. Gastava muito dinheiro. Roger não teria se
importado, se não fosse
um detalhe: ela punha tudo na sua conta. Suas economias definhavam
depressa. Foi falar com a sogra.
-- Tem gastado muito dinheiro ultimamente e...
-- Está se queixando? Minha filha casou com um pão-duro? Não posso
desfrutar de uns poucos prazeres nesta vida?
-- Claro que pode. Não tive a intenção...
-- Nesse caso, nunca mais torne a me falar sobre dinheiro. Eu sempre
aconselhei minha filha a não casar com você, um sovina.
Roger conversou com a esposa.
-- Não vai sobrar nenhum dinheiro em nossa poupança. Sua mãe está
gastando tudo.
-- Querido, mamãe é velha. Vamos deixar que ela se distraia um pouco.
-- Velha? -- gritou Roger. -- Ela viverá mais do que nós. Nada pode matá-
la. Se a mandassem para a jaula de um leão, o leão acabaria morrendo.
Ela falaria até o leão
se suicidar.
-- Roger, está sendo grosseiro. Não se esqueça que ela é minha mãe.
E não havia mais nada que Roger pudesse dizer.
Roger sentia um profundo amor pela esposa, e contava com um casamento
feliz. Só que a presença da sogra transformava o casamento num
inferno.
A última gota veio numa noite de sábado, quando Sarah declarou:
-- Convidei uma pessoa para jantar conosco.
Roger tentou se mostrar simpático.
-- Isso é ótimo. Nós a conhecemos?
-- É um homem.
O convidado chegou às sete horas. Era alto, bonito e muito rico.
-- Esta é minha filha Louise -- disse Sarah.
Ela esqueceu de apresentar Roger, que estendeu a mão.
-- Sou Roger.
-- Olá, Roger. Sou Ken.
Ele olhou para Louise.
-- Você é mesmo tão bonita quanto sua mãe me descreveu.
-- Ken é solteiro -- informou Sarah.
E, no mesmo instante, Roger compreendeu tudo. Sarah con¬vidara aquele
homem para apresentá-lo a Louise!
Louise e Ken conversaram durante todo o jantar.
-- Tenho uma grande companhia de navegação. Ganho um milhão de dólares
por ano. O único problema é que não tenho uma mulher com quem
partilhar tudo isso. -- Ken olhou
para Roger. -- Você é um homem de sorte.
-- É verdade, sou mesmo -- respondeu Roger.
"E tenciono continuar assim", pensou.
-- Ken adora ópera. E sei que você também gosta, Louise, ao passo que
Roger detesta. -- Sarah olhou para Roger. -- Ken tem ingressos para a
ópera na noite de quarta-feira.
Não seria ótimo se ele levasse Louise?
O que Roger podia dizer?
-- Claro.
Ele estava rangendo os dentes.
-- Então está combinado -- declarou Sarah. -- Vocês dois vão sair e se
divertir um pouco.
Roger sentiu vontade de matá-la. "Matar. Essa palavra de novo." Só que
agora não era apenas uma palavra. Nunca odiara tanto uma pessoa em
toda a sua vida. Sarah
estava destruindo seu casamento. Depois que Ken foi embora, Roger
disse:
-- Estive pensando, Sarah. Seria muito melhor se você se mudasse para
um apartamento só seu.
Sarah fitou-o nos olhos.
-- De jeito nenhum. Seja como for, eu não me surpreenderia se Louise se
divorciasse de você para casar com Ken. Nesse caso, eu iria morar com
eles.
Foi nessa noite que Roger decidiu comprar o veneno.
Na manhã seguinte, Roger entrou numa drugstore.
-- Estou tendo problemas com minhas plantas. Tem arsênico?
-- Tenho, sim. Mas terá de assinar um recibo.
-- Está bem.
Roger tomara uma decisão. A sogra tinha de morrer, mesmo que ele fosse
para a cadeira elétrica por isso. Era a pessoa mais perversa que já
conhecera.
Ele guardou o arsênico no bolso. Naquela noite, enquanto Louise e
Sarah estavam na sala de jantar, Roger foi até a cozinha para buscar o
café. Despejou o arsênico
na xícara da sogra e mexeu. Voltou à sala de jantar.
-- Aqui está seu café.
Roger pôs a xícara com o veneno na frente da sogra.
-- Demorou muito -- reclamou a sogra.
Ela tomou um gole e acrescentou:
-- O café está com um gosto amargo.
-- É uma marca diferente -- explicou Roger.
-- Pois vamos voltar a usar a antiga.
Ele observou Sarah tomar outro gole de café, e mais outro.
"Podem me mandar para a prisão", pensou Roger. "Podem me executar. Não
me importo. Valerá a pena me livrar desse monstro."
Sarah terminou de tomar o café e murmurou:
-- Vou me deitar. Não me sinto bem.
Roger observou-a ir para o quarto. Era a última vez que ouviria suas
reclamações, suas críticas.
Pela primeira vez em muito tempo, Roger e Louise ficaram a sós.
-- Eu a amo muito, querida -- disse Roger. -- Não importa o que aconteça,
lembre-se que eu a amo.
-- Nada vai acontecer -- respondeu Louise, sorrindo.
"Ela não sabe de nada", pensou Roger. "Pela manhã, quando acordar, vai
descobrir que a mãe morreu".
Roger não dormiu naquela noite. Imaginou a cena pela minha. Louise
encontraria a mãe na cama, morta, e viria gritando à sua procura. A
polícia seria chamada. Haveria
uma autópsia. Descobririam o veneno, e saberiam que ele o comprara.
"Você envenenou sua sogra?"
"Envenenei".
E ele receberia a punição como um homem.
Na manhã seguinte, Roger observou Louise sair da cama e começar a se
vestir.
"A qualquer momento agora", pensou ele, "Louise vai entrar no quarto
da mãe e descobrir o que aconteceu. Ainda devo agir como se não
houvesse nada de errado."
Roger também se vestiu, foi para a sala de jantar. Deparou com Sarah
sentada à mesa.
-- Está atrasado -- disse ela. -- Não gosto que me deixem esperando.
Roger não podia acreditar em seus olhos. Vira-a tomar o veneno.
-- Tive uma noite horrível -- comentou Sarah. -- E ainda estou com uma
terrível dor de cabeça.
"Ela é uma bruxa", pensou Roger. "Tenho de encontrar outra maneira."
Roger era muito habilidoso com coisas elétricas. Naquela noite,
enquanto Sarah saía para dar uma volta, foi a seu quarto e removeu o
isolamento dos fios do abajur
na mesinha de cabeceira. Assim, quando o ligasse, Sarah seria
ele¬trocutada.
Ele tornou a passar a noite inteira acordado, esperando para ouvir os
gritos de Sarah no instante em que a corrente elétrica passasse por
seu corpo.
Ouviu Sarah entrar no quarto e fechar a porta.
Sentou na cama. Não houve qualquer ruído. "A esta altura, ela já deve
ter morrido", pensou ele.
Pela manhã, vestiu-se e foi para a sala de jantar. Sarah já estava
sentada à mesa.
-- Esta casa está começando a cair aos pedaços -- comentou ela. -- O
isolamento dos fios do meu abajur se desfez, e eu tive de consertá-lo.
Roger ficou atônito, incapaz de falar.
-- Não gosto dessa gravata -- acrescentou Sarah, ríspida. -- Trate de
trocá-la.
"Não suporto mais", pensou Roger.
Na noite seguinte, durante a madrugada, Roger saiu da cama sem fazer
barulho e foi ao quarto grande em que Sarah dormia. Levava um
travesseiro. Inclinou-se sobre
a cama e comprimiu o travesseiro contra o rosto de Sarah até que ela
parou de respirar.
"Cometi um assassinato", pensou Roger. "Violei o sexto mandamento:
"Não matarás". Serei punido por isso, mas valerá a pena.
Voltou para o quarto e mergulhou num sono profundo pela primeira vez
em semanas.
Ao acordar, na manhã seguinte, Roger sentia-se exultante, sabendo que
acontecera algo da maior importância. E depois recordou o que era.
Matara a sogra. Vestiu-se
com um sorriso de felicidade e foi para a sala de jantar.
Encontrou Sarah sentada à mesa.
Fitou-a com os olhos arregalados, incrédulo.
-- Tive um sonho horrível -- queixou-se Sarah. -- Sonhei que alguém
tentava me sufocar.
"Não adianta", pensou Roger. "Ninguém pode matá-la. Ela é
indestrutível. Estou condenado a viver com essa mulher para sempre."
Foi para o escritório na maior depressão.
-- Você está bem? -- perguntou o chefe. -- Parece muito infeliz
ultimamente, Roger. Alguma coisa o incomoda?
O que Roger podia dizer? Não queria se queixar de seu problema, e não
havia nada que pudesse fazer a esse respeito.
-- Não -- respondeu ele. -- Está tudo bem.
Roger compreendeu de repente por que se sentia particularmente
deprimido naquele dia. Era quarta-feira, e à noite Louise sairia com
um bonito e jovem milionário
à procura de uma esposa.
"É bem provável que ela o prefira a mim", pensou Roger. "Sarah tem
razão. Não sou importante, não sou bonito. Talvez Louise tenha
cometido um erro ao se casar comigo."
Ele sabia o que iria acontecer. Naquela noite, ao voltar para casa,
Louise o chamaria para uma conversa, e já podia imaginá-la:
-- Roger, tenho uma coisa para lhe contar.
-- Não precisa me contar, Louise. Já sei o que é.
-- Eu me apaixonei por Ken.
-- Não posso culpá-la. Ele é melhor do que eu.
-- Gosto de você, Roger, mas mamãe tinha razão. Eu devia ter casado com
alguém melhor. Vou embora esta noite. Ken e eu viajaremos para Paris
em nossa lua de mel.
-- Sua mãe vai acompanhá-los?
-- Não. Ela quer ficar aqui com você.
Naquela noite, Louise pôs o vestido mais bonito.
-- Não se importa que eu vá à ópera, não é mesmo, Roger?
-- Não -- mentiu. -- Sei como gosta de ópera. Divirta-se.
-- Obrigada, querido.
Ela o beijou.
"É provavelmente a última vez que me beija", pensou Roger.
A campainha da porta tocou. Era Ken. Ele vestia um traje a rigor, e
estava muito bonito. Apertou a mão de Roger.
-- Obrigado por me deixar levar sua esposa emprestada.
-- Não há de quê -- murmurou Roger.
"Muito em breve ela será sua esposa".
Ele ficou observando os dois saírem, com o coração partido.
-- Trate de lavar a louça -- disse Sarah. -- Vou me deitar.
Roger lavou e enxugou a louça, limpou a cozinha, foi para a cama.
Claro que não conseguiu dormir. Ficou esperando que Louise voltasse,
para anunciar que seu casamento
acabara.
Por volta das onze horas, ela ainda não havia chegado.
Deu meia-noite, e nada.
Roger levantou-se, pôs-se a andar de um lado para outro. Finalmente, à
uma da madrugada Louise chegou em casa.
-- Tenho uma notícia para você -- declarou ela.
E Roger sabia o que aconteceria em seguida. "Não vou chorar", pensou.
"Não deixarei que ela saiba que me partiu o coração."
-- Pode falar.
Louise abraçou-o.
-- Acabo de ter a noite mais chata da minha vida. Ken não parou de
falar um instante sequer. E depois da ópera me levou a uma festa
horrível. -- Ela riu. -- Nunca mais
quero vê-lo, querido. Você é o único homem com quem desejo ficar.
Roger mal podia acreditar no que ouvia.
-- Mas isso é maravilhoso!
Sarah saiu do quarto.
-- Vocês dois querem calar a boca? Não estão me deixando dormir.
Pela manhã, Roger entrou no carro na maior felicidade. Saía de marcha
à ré para a rua quando, pelo espelho retrovisor, avistou a sogra no
caminho do carro. Ela se
abaixara para pegar o jornal.
Até hoje, Roger nunca teve certeza se o pé escorregou e por acaso
pisou no acelerador, em vez do freio, ou se foi in¬tencional.
O que é certo é que ele atropelou a sogra, que foi declarada morta no
local.
A Igreja acredita que pecar em pensamento é a mesma coisa que consumar
o pecado. Assim, Roger já havia pecado ao ten¬tar envenenar a sogra,
sufocá-la e eletrocutá-la.
De qualquer forma, Roger violou o sexto mandamento: "Não matarás".
A polícia foi bastante compreensiva, e o detetive disse a Roger:
-- Não resta a menor dúvida de que foi um acidente.
E foi assim que Roger e Louise puderam finalmente viver a sós,
desfrutando o milhão de dólares que Sarah deixara.
Capítulo VII
Sétimo mandamento:
"Não cometerás adultério".
Joe Smith era um marginal. Não um desses da pesada, mas
um pequeno marginal. Desde os dez anos de idade estava
envolvido com a Máfia. Quando pequeno, era mensageiro dos
mafiosos, e à medida que foi crescendo passou a ser incumbido
de missões mais sérias. Tornou-se cobrador -- o homem que quebrava a
cabeça das pessoas que não conseguiam pagar suas dívidas dentro do
prazo estipulado. Joe gostava
do tra¬balho. E gostava de pertencer à Máfia.
Aos dezessete anos, engravidou uma moça e foi obrigado a casar. A
verdade é que ele não gostava muito da moça. Ela não era bonita, tinha
espírito mesquinho, gostava
de mandar nele. Mas Joe sentia-se preso. Apesar de ser um gângster,
Joe Smith era muito religioso. Nunca sonharia em cometer adul¬tério --
dormir com a mulher de
outro.
O capo -- o chefe da Máfia -- chamava-se Fred "Furador de Gelo"
Bulgatti. Ganhou esse apelido porque gostava de matar suas vítimas
enfiando-lhes um furador de gelo
na ca¬beça, de orelha a orelha. A morte era rápida e dolorosa. Era um
homem enorme, com mais de um metro e noventa de altura; parecia um
gorila. Dizia-se que podia
esquartejar um homem com as mãos. Todos tinham pavor dele.
Fred Bulgatti tinha mulher e três filhos, além de uma aman¬te, Ângela.
Sem ser nenhum anjo, era muito bonita. Possuía um corpo sensual e um
rosto de artista de cinema.
Fred gostava do jovem Joe Smith, e lhe disse:
-- Um dia desses, Joe, vou torná-lo um "homem feito".
Um "homem feito" era alguém que matava uma pessoa. Depois disso,
passava a pertencer à Máfia para sempre.
A grande ambição de Joe era se tornar um homem feito. Todos os seus
melhores amigos eram "feitos", e a maioria já havia matado várias
pessoas. Joe queria participar
desse grupo.
Sua oportunidade surgiu num dia de verão, quando Fred o chamou ao
restaurante italiano em que jantava.
-- Joe -- disse ele, -- esta é a sua grande chance. Gostaria de se tornar
um homem feito?
Joe se mostrou bastante animado com a perspectiva.
-- Estou pronto.
-- Ótimo. Um espertinho ligou para Ângela e convidou-a para sair. Quero
que você corte os dedos que discaram o número dela. E depois quero que
corte as orelhas que
a ouviram dizer "não" pelo telefone. E depois quero que dê um tiro na
boca que a convidou para sair. Pode cuidar disso?
Joe sentiu-se muito orgulhoso.
-- Claro que posso, chefe.
Fred entregou a Joe um revólver e uma faca.
-- Tome aqui. Traga-me os dedos e as orelhas. Ninguém, mas ninguém
mesmo, deve ousar tentar conquistar minha Ângela.
Timothy Brown -- ou, como se tornou conhecido mais tarde, o pobre
Timothy Brown -- era corretor de seguros. Ligara para Ângela na
tentativa de vender um seguro. Ângela,
que não era a mulher mais inteligente do mundo, entendera errado,
pensando que ele estava querendo sair com ela. E contara a Fred. E
fora então que Fred chamara
Joe.
Timothy Brown estava em seu apartamento quando bateram à porta. Foi
abri-la e deparou com Joe Smith:
-- Sr. Brown?
-- Isso mesmo. O que deseja?
-- Vim aqui para fazer uma coisa. Falou ontem com uma mulher chamada
Ângela?
-- Falei, sim. Deveríamos nos encontrar. Ela virá?
-- Ângela me mandou no seu lugar -- disse Joe.
Vou poupá-los dos detalhes do que aconteceu em seguida, para evitar
que estas páginas fiquem manchadas de sangue. Direi apenas que duas
horas depois Joe entregou
a Fred os dedos e as orelhas do pobre Timothy.
Fred ainda jantava quando Joe apareceu com os troféus. Fred examinou-
os e comentou:
-- Bom trabalho, garoto. Acertou um tiro na boca?
-- Claro, chefe.
-- Muito bem, agora é um homem feito. Daqui por diante, passa a ser um
de nós.
Joe nunca se sentira mais feliz em toda a sua vida.
Daquele momento em diante, Joe tornou-se um mafioso completo. Junto
com outros, assaltava bancos e postos de gasolina, cuidava de cassinos
e de redes de prostituição
-- em suma, divertia-se um bocado.
Só matava pessoas quando era necessário. Matar não o per¬turbava. Por
alguma razão, e nunca seria capaz de explicar por quê, o único
mandamento que não queria violar
era o sétimo: "Não cometerás adultério".
Os outros gângsteres faziam isso o tempo todo, mas Joe se orgulhava de
nunca ter ido para a cama com a mulher de outro homem, nem ter
enganado a própria mulher.
Costumava se gabar desse fato, e foi aí que cometeu um grave erro. Um
dia, Ângela entrou na sala no momento em que Joe dizia:
-- Enquanto estiver casado, nunca irei para a cama com outra mulher. O
Senhor diz: "Não cometerás adultério", e acho que quem faz isso vai
direto para o inferno.
Ângela ouviu com o maior interesse, porque estava convencida de que
não havia um único homem no mundo que não desejasse ir para a cama com
ela. E Ângela era tão
bonita que é bem provável que tivesse razão.
-- Aposto que você cometeria adultério se encontrasse a mulher certa --
disse ela a Joe.
Ele ficou chocado.
-- Nunca!
Era tudo o que Ângela precisava ouvir. Aquilo tornou-se um desafio
para ela. "Nenhum homem é capaz de resistir a mim", pensou ela, "muito
menos Joe."
Ângela decidiu provar que estava certa. Um dia, disse a Fred:
-- Querido, acho que alguém vem me seguindo. Não me sinto segura.
-- Quem? -- berrou Fred. -- Vou esquartejá-lo!
-- Não sei -- respondeu Ângela. -- Apenas tenho a sensação de que alguém
me espreita. Eu me sentiria muito mais segura se você ficasse ao meu
lado durante todo o tempo.
-- Sabe que não posso fazer isso. Tenho um negócio a dirigir.
Ângela simulou pensar por um momento.
-- Não poderia escolher um dos seus homens para me proteger? Eu me
sentiria muito mais segura.
-- Claro. Quem você quer?
Ângela fingiu pensar outra vez.
-- Ora, pode ser qualquer um. Joe Smith serviria.
-- Está bem. Joe é um bom homem. Direi a ele para ficar de olho em
você.
-- Obrigada, querido. É só por uma ou duas semanas. Depois disso, tenho
certeza de que a pessoa que vem me seguindo vai sumir.
Na manhã seguinte, Fred chamou Joe ao escritório.
-- Ângela está com um pequeno problema -- explicou Fred. -- Ela acha que
alguém a tem seguido. Quero que a acompanhe e proteja.
-- Certo, Fred. Qualquer coisa que mandar.
-- Obrigado. Se descobrir quem é o cara, quero que o agarre e retalhe
em pedacinhos. Quero seus braços, as pernas e a cabeça. Entendido?
-- Claro, chefe. Será um prazer.
-- Ninguém, absolutamente ninguém, toca na minha Ângela.
Joe foi procurar Ângela naquela tarde. Encontrou-a no lindo
apartamento que Fred lhe dera. Ela usava apenas um negligé
transparente. Joe ficou atordoado ao constatar
como ela era linda.
-- Entre, querido -- disse Ângela. -- Já soube que você será meu guarda-
costas.
-- Isso mesmo. Tem alguma ideia de quem a vem seguindo?
-- Não. Mas agora que você está aqui, não tenho mais medo.
-- Ela chegou mais perto. -- Gostaria de tomar um drinque?
Joe engoliu em seco. Podia sentir o perfume de Ângela, e isso o
deixava tonto.
-- Não... não, obrigado. Fui avisado de que sairia para fazer compras
esta tarde.
-- É verdade.
Ele não conseguia desviar os olhos do corpo de Ângela.
-- Ahn... é melhor você se vestir.
Ela passou a mão pelo braço de Joe, murmurando:
-- Se é isso o que você quer...
Joe lembrou-se do que Fred dissera: "Quero que o agarre e retalhe em
pedacinhos".
-- É melhor sairmos.
-- Está bem. Só vou demorar alguns minutos.
Joe observou Ângela entrar no quarto. Minutos mais tarde, ela o
chamou:
-- Pode vir até aqui, por favor?
Joe entrou apressado no quarto. Encontrou Ângela de pé, meio despida.
-- O zíper enguiçou. Pode me ajudar?
Joe se adiantou. Ela tinha as costas completamente nuas. Era a coisa
mais excitante que ele já vira. Sentiu-se tentado a dar-lhe um beijo,
mas concluiu que não queria
que seus lábios fossem cortados por Fred. Puxou o zíper.
-- Obrigada.
Ângela começou a trabalhar Joe. E quando Ângela trabalhava um homem,
não havia ninguém melhor. Primeiro, houve pequenas insinuações de que
se sentia solitária.
Depois, comentou que Fred Bulgatti a tratava muito mal, e que achava
Joe muito atraente.
Pedia a Joe para ir buscá-la no apartamento, deixava a porta
destrancada, e, quando ele entrava, chamava-o para o quarto, onde o
aguardava nua. Joe voltava correndo
para a sala. A situação era tentadora demais. E muito perigosa.
Joe tinha dois problemas. Primeiro, temia que Deus o fulminasse se
violasse o sétimo mandamento. E, segundo, sabia, com certeza absoluta,
que Fred o retalharia em
pedacinhos se algum dia tocasse em Ângela.
Por outro lado, Ângela recorria a todos os truques para atrair Joe à
sua cama. A questão era uma só: Quem venceria?
A resposta, é claro, era muito simples: Ângela.
Fred "Furador de Gelo" Bulgatti foi jantar com Ângela.
-- Como está se dando com Joe? -- perguntou ele.
Ângela deu de ombros.
-- Ele é um cara legal. Mas não é muito inteligente e nada tem de
atraente.
-- Talvez eu deva providenciar outro para protegê-la -- sugeriu Fred.
-- Não há necessidade -- respondeu Ângela. -- Joe tem feito um bom
trabalho.
-- Ainda acha que alguém a segue?
-- Tenho certeza de que sim. Ainda não vimos ninguém, mas posso sentir.
De qualquer forma, sinto-me muito mais segura com Joe por perto.
-- Tudo bem. Ele ficará com você por mais três dias, e depois será
substituído. Tenho de mandá-lo fazer um serviço em Chicago.
"Três dias", pensou Ângela. "Terei de trabalhar depressa." Na manhã
seguinte, Ângela ligou para a casa de Joe. A mulher atendeu.
-- Joe está?
-- Quem deseja falar?
-- Aqui é Ângela.
-- Ah, é você! Tem se encontrado muito com meu marido ultimamente.
No fundo, a mulher de Joe não se importava. Já se cansara do marido, e
daria qualquer coisa para se livrar dele.
-- Espere um momento que vou chamá-lo.
Joe veio atender.
-- Alô?
Ângela balbuciou, simulando uma voz fraca:
-- Não estou me sentindo bem, Joe. Pode vir para cá o mais depressa
possível? Acho que preciso de um médico.
-- Claro. Quer que eu chame logo um?
-- Não precisa. Venha para cá primeiro.
-- Está bem -- disse Joe. -- Chegarei aí num instante.
Ele desligou e virou-se para a esposa.
-- Ela parece estar muito mal.
Cinco minutos depois, Joe seguia para o apartamento de Ângela.
Encontrou a porta destrancada, como sempre. Refletiu que era muito
estranho que uma mulher que temia
vir sendo seguida deixasse a porta destrancada durante todo o tempo.
Ouviu a voz de Ângela no quarto.
-- Estou aqui, Joe.
Entrou no quarto. Ela estava deitada na cama.
-- Venha até aqui.
A voz soava bem fraca. Joe ficou preocupado. Ela parecia mesmo muito
mal.
-- Sinto muito calor -- murmurou Ângela. -- Pode sentir minha testa para
ver se tenho febre?
Joe foi até a beira da cama e pôs a mão na testa de Ângela. Estava
mesmo quente.
-- Acho que tem febre.
-- Era o que eu temia -- sussurrou Ângela. -- Detesto ficar sozinha
quando estou doente. E Fred me deixa sozinha o tem¬po todo. Não se
importa comigo.
-- Claro que se importa.
Joe poderia lhe contar quanto Fred se importava; e como cuidava de que
qualquer homem que ousasse sequer pensar em Ângela fosse assassinado
da forma mais dolorosa
possível.
Ângela pegou a mão de Joe e puxou-o para o lado da cama.
-- Você não é como Fred... é um homem sensível, bonito, maravilhoso.
Ela começou a puxar a mão de Joe para o seio. Joe tentou se
desvencilhar.
-- Você me odeia, Joe? Não percebeu que estou loucamente apaixonada por
você?
Ele murmurou, muito nervoso:
-- Não pode estar apaixonada por mim, Ângela, pois pertence a Fred.
-- Não pertenço a ninguém... mas quero pertencer a você.
-- É impossível. Se alguma vez fizermos qualquer coisa, Fred matará os
dois. Tenho certeza de que não me deixará vivo. Ele adora retalhar as
pessoas.
Joe fez menção de se levantar.
-- Tenho de sair daqui.
Ela o conteve.
-- Quer mesmo sair?
Ângela empurrou o lençol para baixo, revelando que não usava nada.
Absolutamente nada
Joe contemplou o corpo nu, e o quarto começou a girar. Ela o
acariciava agora, puxando-o com insistência.
-- Querido, sou louca por você. Quero ser toda sua.
Joe, para seu azar, não era feito de aço. Sua resistência desa¬pareceu
por completo. Tirou as roupas o mais depressa que podia.
"Que se dane!", pensou ele. "Fred nunca saberá a verdade." E quanto a
violar o sétimo mandamento, Deus provavel¬mente estaria ocupado com
outros pecadores.
Em cinco segundos, Joe estava na cama com Ângela, e ela o enlaçava.
Ele pensou: "Esta será a coisa mais maravilhosa que já me aconteceu".
E foi nesse momento que a voz de Fred "Furador de Gelo" Bulgatti
trovejou:
-- Ah, peguei vocês!
Joe virou a cabeça e deparou com Fred parado ao pé da cama, fitando-o
com a maior raiva.
Dizem que quando uma pessoa está se afogando, toda a sua vida surge
num relance diante dos olhos. Joe não estava se afogando, mas sua vida
começou a se desenrolar
diante de seus olhos. Especulava o que Fred cortaria primeiro. E tinha
certeza absoluta de que sabia.
Fred continuou parado ali, com o rosto vermelho de fúria, e gritou:
-- Vistam-se! Os dois!
Ângela estava apavorada. Sabia do que Fred era capaz, mas seu terror
não era nada em comparação ao de Joe. Ele teve de fazer um grande
esforço para sair da cama
e se vestir. Fred os observava, e murmurou:
-- Minha garota e meu melhor amigo...
Joe decidiu que, já que ia mesmo morrer, podia pelo menos morrer como
um homem.
-- Não culpe Ângela -- disse ele. -- A culpa foi toda minha. Eu a
obriguei a...
-- Cale-se! -- berrou Fred. -- Não fale nada enquanto eu não mandar!
Ele se virou para Ângela.
-- Sua vagabunda! Depois de tudo o que fiz por você!
Assim que ambos se vestiram, Fred acrescentou, ameaçador:
-- Meu carro está lá fora. Vamos dar um passeio.
Joe sabia que era o fim. Deus faria com que ele fosse morto por ter
violado o sétimo mandamento. Nada poderia salvá-lo agora. Ângela ainda
tentou uma saída:
-- Fred, querido, não é o que parece. Nós apenas...
-- Vi muito bem o que vocês faziam -- interrompeu-a Fred.
-- Mas...
-- Cale essa boca. E vamos embora.
Ele os conduziu para o carro, uma limusine preta. Um mafioso sentava-
se ao volante. Fred empurrou Joe e Ângela para o banco traseiro e
ordenou ao motorista:
-- Pode partir.
Joe tremia de medo. Sabia que eram os seus últimos momentos neste
mundo. Seria retalhado em pedacinhos e serviria de comida para os
peixes. Conseguiu recuperar
a voz e balbuciou:
-- Para onde está me levando?
-- Já mandei ficar de boca fechada! -- berrou Fred.
O resto da viagem transcorreu em silêncio. Joe teve a impressão de que
andaram por horas, e ficou surpreso ao per¬ceber que se aproximavam de
Las Vegas. Seria morto
em Las Vegas?
O carro parou na frente de uma capela nupcial. Joe se sentia cada vez
mais confuso.
-- Saiam do carro -- ordenou Fred.
Ângela e Joe saltaram.
-- Muito bem, agora vou explicar a situação. -- Fred fitou Joe nos
olhos. -- Eu deveria matá-lo. Era meu amigo, e eu confiava em você. Mas
como tenho o coração mole,
vou dei¬xá-lo viver.
Joe não podia acreditar no que ouvia. Fred olhou para Ângela.
-- Também confiava em você, e me foi infiel. Mas vou per-doá-los. E
sabem por que vou perdoá-los? Porque, no fundo do coração, acredito
que nenhum dos dois podia
evitar o que aconteceu. Acho que se apaixonaram, e a coisa se tornou
inevitável.
Ângela fitou Fred com a mais profunda incredulidade.
-- E também, porque tenho o coração mole -- acrescentou Fred, -- pouparei
sua vida.
Ele tornou a olhar para Joe.
-- Mas vocês terão de casar.
-- Não posso casar com Ângela -- murmurou Joe. -- Já sou casado.
-- Não se preocupe com isso. Neste momento ela está num tribunal,
pedindo o divórcio.
Joe se encontrava em tamanho estado de pânico que nem se deteve a
perguntar como tudo fora providenciado tão depressa, como a esposa
podia pedir o divórcio no exato
mo¬mento em que ele casava com Ângela.
Se Joe tivesse ouvido uma conversa que ocorrera no dia anterior,
poderia compreender tudo.
Fred conversava no escritório como um dos seus homens.
-- Tenho de me livrar de Ângela -- declarou ele. -- Ela está me levando à
loucura. Não para de pedir mais e mais. Tem todas as joias e peles do
mundo, mas nunca é suficiente.
-- Mas como pode se livrar dela sem magoar seus sentimentos?
Fred tinha a solução.
-- Usarei Joe. Acho que Ângela vem tentando levá-lo para a cama.
-- Mas será que ele vai cair?
-- Ficou louco? Claro que vai. Não há um único homem no mundo que
Ângela não possa conquistar. Ficarei de olho no apartamento, e assim
que ele ceder, vou pegá-los
em fla¬grante. Obrigarei Joe a casar com ela, farei sua esposa se
di¬vorciar, e tudo acabará bem. Além do mais, tenho uma nova garota
que é uma beleza.
E foi assim que Joe Smith descobriu-se casado com a linda Ângela e
divorciado da esposa que detestava.
"E tudo isso aconteceu porque violei o sétimo mandamento:
`Não cometerás adultério'", refletiu Joe.
Capítulo VIII
Oitavo mandamento:
"Não roubarás".
Seu nome era Tom. Tom Warner. Trabalhava num banco, e seu salário era
de cento e cinquenta dólares por semana. Se Tom fosse solteiro e
vivesse sozinho, talvez pudesse
se aguentar com esse salário, mas era casado e tinha três filhos. Como
alimentar uma mulher e três crianças, mandá-las para a escola, comprar
sapatos e roupas com
esse salário? Era impossível.
Quando era mais jovem, Tom só pensava em se tornar um grande sucesso,
talvez um dia ser dono de um banco. Depois que conheceu a esposa,
Mary, só pensava em construir
uma linda casa para ela. Quando os meninos nasceram, só pensava em
levá-los num cruzeiro pelo mundo, a bordo de um enorme iate.
Agora, aos quarenta e cinco anos, Tom só pensava em dinheiro. Estava
com todas as contas atrasadas e tinha a impressão de que recebia uma
conta nova a cada dia.
Por mais que tentassem economizar, Tom e Mary viviam sempre sem
dinheiro.
A ironia era que todos os dias Tom manipulava milhões de dólares no
banco. Só que esse dinheiro não lhe pertencia.
Uma manhã, ao desjejum, Mary avisou:
-- As crianças precisam de sapatos novos outra vez, querido.
-- Compramos sapatos há apenas dois meses.
-- Sei disso. Mas eles gastam os sapatos muito depressa.
E a conta do açougue ainda não foi paga. Tentei comprar um pouco de
carne a crédito, mas o açougueiro disse que não pode mais nos vender
fiado.
-- Quanto lhe devemos? -- perguntou Tom.
-- Duzentos dólares.
Para Tom, era a mesma coisa que dever dois mil dólares.
-- Não temos nenhum dinheiro para lhe dar.
Mary detestava levantar o problema, mas não podia deixar de fazê-lo.
-- Querido, o padeiro também cobrou o que devemos.
-- De novo?
Não eram apenas o açougueiro e o padeiro, mas também o corretor de
seguros, o mecânico, o eletricista que fizera al¬guns consertos no
apartamento, o dentista das
crianças, o téc¬nico de televisão e, acima de tudo, o senhorio. Tom
pagava trezentos dólares de aluguel pelo pequeno apartamento em que
moravam, o que lhe trazia
sérias dificuldades mês após mês. Ao se mudarem, Tom tinha certeza de
que em breve receberia um aumento e uma promoção no banco. Mary
su¬geriu:
-- Por que não pede um aumento ao Sr. Gable?
Gable era o dono do banco em que Tom trabalhava.
-- Há anos ele vem lhe prometendo um aumento -- acrescentou ela.
-- Sei disso, e detesto pedir de novo.
A verdade é que Tom tinha medo de Marvin Gable, um homem autoritário
que gostava de ser mesquinho com os empregado. Era muito rico, mas não
passava pela sua cabeça
partilhar essa riqueza. Pagava os menores salários da cidade e se
gabava disso.
-- Você merece um aumento -- insistiu Mary. -- Fale com ele, e seja
firme. Defenda seus direitos.
Mary era mais forte do que o marido. Tom era muito tímido, e faria
qualquer coisa para não melindrar os outros. Mary amava-o muito, mas
gostaria que ele fosse mais
forte.
-- Prometa que vai pedir o aumento, Tom.
-- Está bem.
-- Quando?
-- Esta manhã.
Tom entrou na sala de Gable para pedir um aumento.
-- Sr. Gable, trabalho no seu banco há dez anos, e durante todo esse
tempo só tive um aumento. Trabalho com afinco e acho que tenho direito
a ganhar mais.
Gable era enorme e gordo; vivia pela comida e pelas mulheres. Não
tinha qualquer sentimento por seus empregados.
-- Quanto estou lhe pagando agora?
-- Cento e cinquenta dólares por semana.
Gable simulou surpresa.
-- Tudo isso? Deveria se sentir feliz por receber esse salário.
-- Tenho esposa e três filhos, senhor. Vivo em dificuldades, mal
consigo pagar minhas contas.
-- Deve estar jogando fora a maior parte do seu salário em cinema e
festas.
Tom não ia ao cinema há mais de um ano, e não conseguia se lembrar da
última festa a que fora.
-- Não, senhor, não é isso -- respondeu ele, bastante nervoso. -- Sou
muito cuidadoso com o meu dinheiro. Acontece apenas que meu salário
não é suficiente.
-- Mas terá de ser por enquanto. Passamos por momentos de crise, Tom. O
dinheiro anda escasso. Mas você é um bom funcionário, e no próximo ano
conversaremos sobre
seu aumento.
-- Desculpe, Sr. Gable, mas disse isso no ano passado e no anterior.
-- Quer dizer que vem me importunando por um aumento todos os anos? É
melhor parar com isso. Se não gosta do emprego, arrumarei outro para o
seu lugar.
Tom entrou em pânico. A perspectiva de perder o emprego era
insuportável. Se isso acontecesse, ele, Mary e as crianças passariam
fome, com toda a certeza.
-- Adoro meu emprego, senhor. Juro que é verdade. Podemos esquecer o
aumento por enquanto. Talvez mais tarde queira conversar de novo a
esse respeito.
-- Pode ser -- disse Gable. -- E agora volte ao trabalho.
E Tom voltou ao trabalho.
Foi uma manhã movimentada no banco. Entre os clientes, havia grandes
empresas, ricos investidores e até mesmo pequenos países. O banco
emprestava milhões de dólares
todos os dias. Grande parte desse dinheiro passava pelas mãos de Tom.
Ele se pôs a pensar sobre as pessoas que eram ricas. Não tinham de se
preocupar com o pagamento do dentista ou do açougueiro. Não tinham de
se preocupar quando precisavam
mandar o carro para a oficina. Não tinham de se preocupar em manter um
teto sobre a cabeça. Só se preocupavam com o que fariam nas próximas
férias, que tipo de casaco
de pele comprariam para a mulher, para que escola particular mandariam
os filhos.
Naquela noite, quando Tom chegou em casa, Mary perguntou:
-- Conseguiu o aumento, querido?
Ele já ia responder que não, mas percebeu a expressão ansiosa da
esposa e compreendeu que não podia desapontá-la.
-- Consegui -- mentiu Tom. -- O Sr. Gable me deu um aumento.
Ela o abraçou.
-- Oh, querido, isso é maravilhoso!
Tom ficou angustiado. "Por que menti para ela?", perguntou-se. Mas
sabia o motivo. Não suportaria dizer a Mary que era um fracasso, fraco
demais para exigir o salário
a que fazia jus.
-- Vamos comemorar -- propôs Mary. -- Levaremos as crianças a um
restaurante esta noite. Há muito tempo que não vamos a um restaurante.
Tom entrou em pânico. Onde arrumaria o dinheiro para levar a família a
um restaurante?
-- Boa ideia -- balbuciou.
Ele apalpou os bolsos.
-- Estou sem cigarros. Vou até a esquina comprar um maço.
-- Enquanto isso, aprontarei as crianças.
O desespero de Tom era cada vez maior. Saiu de casa, só que não foi
comprar cigarros; em vez disso, dirigiu-se a uma loja de penhores,
onde sempre se podia tomar
algum dinheiro emprestado. O penhorista levantou os olhos quan¬do Tom
entrou.
-- Em que posso ajudá-lo?
Tom tirou o relógio do pulso.
-- Gostaria de empenhar isto.
O penhorista examinou o relógio.
-- Posso lhe dar dez dólares.
-- Dez dólares? O relógio vale cem!
O homem deu de ombros.
-- O máximo que posso oferecer é quinze dólares.
Tom sabia que estava sendo ludibriado, mas precisava do dinheiro.
-- Está bem.
O homem pegou o relógio e entregou três notas de cinco dólares a Tom.
-- Se não vier resgatar o relógio dentro de uma semana, tenho o direito
de vendê-lo.
Tom ficou horrorizado. Precisava do relógio. Uma semana. Onde obteria
quinze dólares extras em uma semana?
-- Não pode prorrogar para um mês?
-- De jeito nenhum. Venderei o relógio daqui a uma semana.
"Como fui me meter nesta enrascada?", pensou.
A mentira que dissera a Mary o afundava cada vez mais em problemas.
Naquela noite, Tom, Mary e os meninos foram a um res-taurante chinês.
Ele optara por um restaurante chinês porque era mais barato. A conta
foi de quinze dólares
exatos.
Agora, Tom não tinha mais o relógio nem o dinheiro. Na volta para
casa, Mary comentou:
-- As crianças e eu adoramos, Tom. Por falar nisso, de quanto foi o
aumento que o Sr. Gable lhe deu?
Era tarde demais agora para contar a verdade.
-- Mais cinquenta dólares por semana -- respondeu Tom. "Já que tenho de
mentir", pensou, "que seja logo uma men¬tira grande." Mary abraçou-o.
-- Mas que maravilha, querido! Agora está ganhando duzentos dólares por
semana.
-- Isso mesmo.
"Só em meus sonhos é que ganho duzentos dólares por semana. Nem em cem
anos o Sr. Gable me pagaria duzentos dólares por semana.
-- Agora podemos pagar todas as nossas contas! -- exclamou Mary, feliz.
"Já sei o que farei", refletiu Tom. "Vou me matar. Mary pode
aproveitar o dinheiro do seguro para pagar as contas."
Foi a única solução que lhe ocorreu.
-- Que horas são? -- indagou Mary.
Tom já ia consultar o relógio, mas se lembrou de que não o tinha mais
e murmurou:
-- Deixei o relógio em casa.
Tom passou a noite inteira acordado, tentando encontrar uma saída para
o problema. Se largasse o emprego, teria de começar tudo de novo, em
outro banco, desde o
primeiro degrau. Permanecendo onde estava, podia arrumar um emprego
noturno para ganhar mais. Só que assim nunca teria tempo para ver Mary
e as crianças. Passaria
dia e noite trabalhando. Amava-os demais, e não suportava a ideia de
se privar da companhia da família.
Só restava uma solução: o suicídio.
Ele tinha um seguro de vida no valor de dez mil dólares. Seria o
suficiente para Mary pagar todas as contas atrasadas e mandar as
crianças para a escola. Poderia
sair com os me¬ninos para jantar fora, ir ao cinema.
"É a solução", concluiu Tom. "Terei de cometer suicídio."
Mas lembrou-se de repente de que a apólice de seguro seria cancelada
se cometesse suicídio. A morte tinha de ser acidental. Se tivesse
morte natural, a seguradora
pagaria os dez mil dó¬lares. Se morresse num acidente, porém, havia
uma cláusula de indenização em dobro, vinte mil dólares.
"Terei de fazer com que pareça um acidente", pensou Tom. "Não poderão
provar que foi suicídio. Posso sair com o carro da estrada, no alto de
uma montanha. É isso
mesmo. Vou me jogar com o carro num precipício."
Ele olhou para Mary, que dormia profundamente, e refletiu:
"Ela vai sentir saudade de mim, e os meninos também. Mas poderá
encontrar outro homem e se casar de novo".
Tom sentia tanta pena de si mesmo que começou a chorar baixinho para
não acordar a mulher.
Pela manhã, sentia-se muito melhor. Sabia o que tinha de fazer para
salvar a família, e tencionava executar o plano o mais depressa
possível. Amava-os tanto que
não hesitaria em sacrificar a própria vida por eles. Ao de jejum, Mary
comen¬tou:
-- Você parece muito animado esta manhã, querido. É por causa do
aumento?
-- É, sim. Há muito tempo que não me sentia tão bem.
E era verdade. A perspectiva da morte não mais o assustava, uma vez
que ela tornaria a família feliz.
Agora que tomara a decisão de se matar, Tom começou a pôr as coisas em
ordem. Certificou-se de que a apólice de seguro continuava em vigor.
Relacionou com todo o
cuidado as contas atrasadas, em ordem de importância. O aluguel vinha
em primeiro, depois o açougueiro e o resto. Deixaria um bilhete com
instruções para Mary.
"Não, não posso fazer isso", refletiu. "Saberiam, assim, que planejei
minha morte."
Correu os olhos pelo banco e pensou: "Este é o meu último dia aqui.
Nunca mais tornarei a ver nenhuma dessas pessoas".
-- Vai sair para almoçar?
Era Gregory, um dos colegas do banco.
-- Claro -- respondeu Tom.
Seria seu último almoço.
Foram a um restaurante perto do banco.
Gregory trabalhava no departamento de fusões, e era um dos diretores
do banco. Detestava o Sr. Gable tanto quanto Tom.
-- Já soube da nova operação que Gable arrumou para o banco? -- indagou
Gregory.
Tom sacudiu a cabeça.
-- Não.
-- Ele levantou um empréstimo secreto para a Companhia de Café
Venezuelana. Quando a notícia for divulgada, as ações da companhia vão
subir mil por cento. -- Gregory
baixou a voz. -- Se quiser ganhar dinheiro, compre algumas ações
ago¬ra. O negócio deve ser anunciado na segunda-feira.
"Comprar algumas ações com o quê?, pensou Tom, amargurado. Não lhe
restava sequer um relógio de pulso para empenhar.
-- Obrigado -- murmurou Tom. -- Não esquecerei.
Terminaram o almoço, e Gregory disse:
-- Bom, é hora de voltar ao trabalho.
"É hora de me aprontar para morrer", pensou Tom.
Já planejara tudo. O dia seguinte era sábado; ele diria a Mary que
tinha um trabalho a realizar. A pequena cidade em que moravam era
cercada por montanhas. Sairia
de carro e se jogaria do alto de uma montanha. A morte seria
con¬siderada acidental.
Tom voltou ao banco para o que seria sua última tarde ali. Avistou
Gregory do outro lado da sala sussurrando ao tele¬fone, e compreendeu
que o colega comprava ações
que teriam alta de mil por cento. Sorte de Gregory!
Uma secretária veio até a mesa de Tom e entregou-lhe um papel.
-- Acabamos de receber este pedido de transferência do Banco da Suécia.
Pode creditar na conta?
-- Pode deixar.
Tom olhou para o pedido de transferência. Era de um milhão de dólares.
Ele contemplou o documento em silêncio por um longo tempo. Era sexta-
feira, e assim o depósito
só seria creditado na segunda. O que significava que haveria uma
es¬pera de três dias inteiros...
O procedimento correto seria efetuar um crédito imediato na conta do
Banco da Suécia. "Mas que se dane o procedimento correto", pensou Tom.
Subitamente, viu uma luz no fim do túnel. Depositaria o cheque na
própria conta e faria um cheque de um milhão de dólares contra o
depósito. Nada seria descoberto
até se¬gunda-feira. "Nessa altura, já terei recebido o dinheiro da
alta nas ações e poderei repor tudo", calculou Tom. "Tomar o dinheiro
emprestado até segunda-feira
não é o mesmo que roubar. Assim que as ações subirem, recuperarei
tudo, acertarei as contas e sairei da operação rico. Não precisarei me
matar."
Tom pensou e repensou por um longo tempo, tentando decidir o que
fazer. Acabou tomando uma decisão. Ligou para um corretor.
-- Quero comprar ações da Companhia de Café Venezuelana no valor de um
milhão de dólares.
Ao desligar, descobriu que suas mãos tremiam. "Acabei de roubar um
milhão de dólares", pensou. "Se descobrirem, passarei o resto da vida
na cadeia."
Na manhã seguinte, Mary perguntou:
-- Não disse que tinha de ir às montanhas hoje?
-- Adiei o serviço.
Tom sentiu-se tentado a contar como se tornariam ricos, mas não disse
nada. Na segunda-feira, quando fosse divulgada a notícia sobre a
companhia. as ações subiriam,
ele autorizaria o corretor a vendê-las, reporia o milhão de dólares no
banco, largaria o emprego e levaria Mary e os filhos numa viagem de
férias à Europa. "Poderei
até comprar um iate", pensou Tom.
Nem é preciso dizer que Tom praticamente não dormiu naquele fim de
semana. As horas pareciam se arrastar.
E veio a manhã de segunda-feira. Ainda bem cedo, Tom telefonou para o
corretor.
-- O que aconteceu com a Companhia de Café Venezuelana?
-- O que poderia ter acontecido? -- indagou o corretor.
-- Quanto a cotação subiu?
-- Não subiu nada. Ao contrário, caiu um ponto.
Tom sentiu um aperto no coração.
-- Como?
-- Isso mesmo. Estava esperando uma alta?
-- Não -- balbuciou Tom. -- Isto é, sim... ora, não importa.
Ele desligou. Nunca se sentira tão deprimido em toda a vida. Haveria
uma diferença de um milhão de dólares em suas contas.
"O que vou fazer?", especulou Tom.
Ao final do dia, todas as contas eram conferidas, e os saldos
verificados. Estava acuado, e não tinha como escapar.
Às dez horas, tornou a ligar para o corretor.
-- Alguma notícia sobre as ações?
-- Sim.
O coração de Tom disparou.
-- O que aconteceu?
-- Caíram mais um ponto. Tom bateu o telefone. "Muito bem, vou entrar
na sala do Sr. Gable e contar o que fiz", decidiu Tom. "Podem me
prender. Podem me deixar mofando
na ca¬deia. Será uma desgraça para Mary e os meninos. Não! Não posso
fazer isso! Esperarei até que descubram."
Não teria de esperar muito tempo. Já era meio-dia. Às três horas da
tarde, começariam a conferir as contas, e sua fraude seria descoberta.
Tom foi até a mesa de
Gregory.
-- Acabei de me lembrar de uma coisa -- disse ele, tentando parecer
casual. -- Há alguma novidade sobre aquela história do café venezuelano
que você me contou?
-- Parece que a operação pode ser cancelada -- respondeu Gregory.
Tom teve vontade de se matar ali mesmo.
-- Vai sair para almoçar? -- perguntou Gregory.
Tom sacudiu a cabeça. Estava transtornado demais para comer. Aquele
seria o seu último dia de liberdade.
Decidiu que não esperaria que descobrissem o desvio. Iria se comportar
como um homem de verdade e contaria tudo ao Sr. Gable. Olhou para o
outro lado da sala e avistou-o
sen¬tado em seu gabinete. Respirou fundo e foi até lá.
O Sr. Gable examinava alguns documentos.
"É agora", pensou Tom. "O fim de meu casamento, o fim de minha vida.
Provavelmente, serei condenado a vinte anos de prisão."
-- Sr. Gable...
-- Não vê que estou ocupado?
-- Mas eu....
-- Volte mais tarde.
-- Mas eu...
-- Mais tarde!
Tom ainda permaneceu parado ali por mais um instante, depois virou-se
e saiu. Voltou à sua mesa, sentou e ficou pensando em sua estupidez.
Tudo começara com uma
tola mentira sobre um aumento; depois, o relógio de pulso penhorado; e
em seguida a ideia de suicídio.
"Consegui transformar minha vida na maior confusão", refletiu.
Olhou para o outro lado da sala e viu que o Sr. Gable se preparava
para sair. Encaminhou-se apressado em sua direção a fim de fazer a
confissão.
-- Sr. Gable, eu...
-- Vou sair para almoçar agora.
-- Mas...
E Gable se afastou.
"Nem sequer me deixam confessar", pensou Tom. "Talvez eu devesse ir
direto à polícia e contar tudo. Não. O Sr. Gable deve ser o primeiro a
saber."
Finalmente, às duas horas da tarde, quando Gable retornou ao banco e
entrou em sua sala, Tom levantou-se, determinado a não permitir que
nada o detivesse desta vez.
Já preparara um discurso
"Sr. Gable, desviei um milhão de dólares do seu banco. Sei que agi
errado, mas fiz isso por minha família. Estou disposto a confessar
tudo à polícia e ir para a
prisão."
E desta vez não deixaria de jeito nenhum que o Sr. Gable o
interrompesse.
Tom levantou-se e deu um passo na direção da sala de Gable. Foi nesse
momento que o telefone em sua mesa tocou. Ele já definira a confissão
em sua mente, e não queria
ser interrompido. Continuou a avançar para a sala de Gable. O telefone
continuou a tocar. Tom hesitou. Decidiu atender. Seria o último
telefonema que atenderia.
Voltou para a mesa e pegou o fone.
-- Alô? -- disse ele, impaciente.
-- Tom?
-- Sou eu mesmo.
Era o corretor, e sua voz estava excitada.
-- Por Deus, Tom, você tirou a sorte grande!
-- Como assim?
-- As ações da companhia de café. Uma loucura.
Tom sentiu o sangue afluindo para o rosto.
-- É mesmo?
-- Subiram dez pontos, e continuam subindo. O que quer que eu faça?
-- Venda -- respondeu Tom. -- Venda tudo.
-- Está certo, mas elas ainda vão...
-- Não importa! Venda agora!
Tom gritava ao telefone. Ao desligar, arriou em sua cadeira, em
choque. Ganhara dez milhões de dólares! Continuou senado ali,
atordoado. Dez milhões de dólares!
Tudo que tinha de fazer agora era repor o milhão de dólares que tomara
emprestado, e ainda lhe restariam nove milhões. Gable se aproximava de
sua mesa.
-- Tom, você vai ter de trabalhar esta noite outra vez. Tenho alguns
contratos que quero que você...
Tom se levantou.
-- Gable, pode engolir todos os seus contratos.
E Tom saiu do banco, deixando Gable a observá-lo, boquia¬berto.
Repôs o milhão de dólares que tirara do banco e recebeu os outros nove
milhões do corretor. Mudou-se com Mary e os filhos para uma linda
casa, comprou um carro novo
e lindas roupas para ela, e levou-a, junto com os meninos, numa viagem
de três meses pela Europa.
E tudo porque violou o oitavo mandamento.
Capítulo IX
Nono mandamento:
"Não darás falso testemunho contra o teu próximo".
Donald nunca estivera apaixonado. Continuava solteiro. Trabalhava numa
loja de departamentos, vendendo sapatos, e levava uma vida tranquila.
Morava num pequeno aparta¬mento,
em Chicago.
Não se sentia feliz nem infeliz. Sua vida não era emocionante, mas ele
não se importava com isso. Todos os dias, ao voltar do trabalho,
servia-se de um drinque,
lia um livro ou assistia à televisão.
De repente, a vida de Donald mudou. Uma noite, ao voltar para casa,
encontrou carregadores levando móveis para o apartamento ao lado. Há
vários meses que o apartamento
se achava vazio, e Donald especulou quem seriam os seus novos
vizi¬nhos. Não demorou a descobrir.
Ao sair para o trabalho, na manhã seguinte, teve o primeiro vislumbre
dos novos vizinhos. A mulher era atraente, pequena, de cabelos escuros
e feições delicadas.
O marido era enorme, de aparência vulgar. Naquele momento, Donald
pensou no casal como a bela e a fera.
Donald acenou com a cabeça.
A mulher sorriu, amável, mas o homem limitou-se a amarrar a cara.
Ele os viu entrarem no novo apartamento. Especulou que tipo de
vizinhos seriam. Logo descobriria.
De madrugada, Donald foi despertado por gritos no apartamento ao lado.
As paredes eram tão finas que ele pôde ouvir tudo que o casal dizia. O
homem berrava com
a mulher:
-- Não me diga o que fazer! Se eu quiser passar a noite inteira fora,
ninguém vai me impedir! Nenhuma mulher vai mandar na minha vida!
-- Não estou querendo mandar na sua vida -- protestou a mulher. -- Mas
tem saído com outras mulheres e...
-- Isso não é da sua conta! E se me azucrinar outra vez, vai sair
machucada!
Para seu horror, Donald ouviu o som de uma bofetada. E, depois, ouviu-
a chorando.
-- Por favor, não me bata! -- suplicou ela.
-- Então cale essa boca!
A gritaria cessou, mas Donald não conseguiu voltar a dormir. Passou a
noite inteira acordado, preocupado com a linda mulher do apartamento
ao lado, que tinha um
marido brutal.
Na manhã seguinte, ao sair de casa, Donald deparou com a mulher. Ela
ia para o trabalho. Tinha um olho roxo, uma enorme equimose no rosto.
-- Bom dia -- disse Donald.
A mulher se mostrou embaraçada.
-- Bom dia.
Donald sentiu-se tentado a dizer que ouvira tudo o que acontecera
durante a noite, mas não queria constrangê-la ainda mais. Pensou que
deveria comunicar o caso à
polícia, mas aquilo não lhe dizia respeito. E torceu para que nunca
mais tornasse a acontecer.
Sua esperança foi em vão.
Naquela noite, quando se preparava para deitar, Donald ouviu vozes no
apartamento ao lado, através das paredes finas.
-- Aposto que você está me passando para trás com um dos médicos do
hospital! -- bradou o homem.
-- Não é verdade -- respondeu a mulher. -- Só porque você é infiel, isso
não significa que eu também seja.
-- Não comece com isso de novo, mulher, ou vou lhe dar uma surra de
cinto!
Donald teve de fazer um grande esforço para se controlar. "Como uma
mulher assim pôde casar com esse homem?", especulou.
Tornou a prestar atenção às vozes.
-- Você está bêbado -- disse a mulher. -- Pare de beber, por favor.
-- Quem é você para me dizer o que devo fazer?
Donald ouviu o som de pratos sendo jogados contra a parede.
-- Não faça isso, por favor -- suplicou a mulher. -- São os nossos
melhores pratos.
-- Tudo aqui me pertence, e farei o que bem quiser!
Donald ouviu o som de um tapa.
-- Está me machucando!
-- Ótimo. E se não parar de me chatear, vou bater para valer. Entendeu?
Donald ouviu os soluços da mulher. Ficou tão furioso que teve vontade
de matar o vizinho. Sabia que não era da sua conta, mas não suportava
ver uma mulher tão adorável
ser tão maltratada.
Na manhã seguinte, ao sair, Donald deparou com a vizinha. Ela dava a
impressão de não ter dormido a noite inteira.
-- Bom dia -- disse Donald.
-- Bom dia.
"Ela tem o sorriso mais meigo do mundo", pensou Donald.
-- Escute -- disse ele, -- sei que não é da minha conta, mas está tudo
bem com você?
Ela olhou ao redor, bastante nervosa.
-- Está, sim.
Era óbvio que sentia um medo tremendo.
-- Se houver alguma coisa que eu possa fazer...
A mulher pôs a mão em seu braço.
-- Por favor, não faça nada. Se meu marido simplesmente desconfiasse
que falei com você eu poderia me considerar morta.
-- Por que o deixa tratá-la dessa maneira? -- indagou Donald.
-- Ele não era assim quando casamos. Mudou muito, e não sei o que
fazer.
-- Pode deixá-lo.
Ela sacudiu a cabeça.
-- Ele me encontraria. Sabe onde trabalho. Iria atrás de mim e me
mataria.
Donald não sabia o que dizer.
-- Lembre-se que estou aqui do lado, se precisar de mim.
A mulher sorriu.
-- Obrigada.
Fitaram-se nos olhos e compreenderam nesse instante que sentiam uma
forte atração mútua. Era a primeira tez que Donald experimentava uma
emoção verdadeira por uma
mulher.
"Aqui está uma mulher com a qual casaria", pensou.
-- Tenho de ir agora -- murmurou ela. -- Adeus.
-- Adeus.
Donald ficou parado, perguntando-se o que poderia fazer para ajudá-la.
Sabia a resposta: nada.
À medida que o tempo passava, a situação ia se agravando. As paredes
eram tão finas que Donald podia ouvir cada pa¬lavra pronunciada no
apartamento ao lado. O marido
chegava em casa bêbado e furioso, a esposa tentava acalmá-lo. Donald
ouvia o som de tapas e a súplica da mulher:
-- Não me bata, por favor.
E ouvia o homem agredindo-a de novo.
"Eu gostaria de poder fazer alguma coisa", pensou Donald.
Numa manhã de sábado, ao deixar o apartamento, Donald tornou a
encontrar a vizinha.
-- Bom dia -- disse ele. -- Trabalha aos sábados?
-- Não. Resolvi sair para comer alguma coisa. Meu marido está dormindo.
-- Importa-se que eu a acompanhe?
Ela hesitou. Donald sabia o que a mulher pensava, e se apressou em
acrescentar:
-- Não se preocupe. Seu marido nunca saberá. Além do mais, não há
qualquer mal em tomarmos o café da manhã juntos.
Ela sorriu.
-- Está bem.
Foram para uma pequena lanchonete, a dois quarteirões do prédio.
-- Estou contente por você ter se mudado para o apartamento ao lado --
comentou Donald.
A mulher sorriu.
-- É um bom apartamento.
Ela entendera o que Donald estava querendo dizer. Ele estava contente
porque haviam se conhecido.
-- Em que você trabalha? -- perguntou Donald.
-- Sou enfermeira. Trabalho num hospital.
-- Como virou enfermeira?
Ela tornou a sorrir.
-- Desde pequena eu queria cuidar das pessoas. Meu pai foi muito doente
durante a maior parte da vida, e, depois que mamãe morreu, passei a
cuidar dele. Minha irmã
também não tinha uma saúde muito boa e vivia sob meus cuidados. -- Uma
pausa, e a mulher acrescentou, tímida: -- É o que gosto de fazer.
Donald pensou: "Eu adoraria ter alguém como você para cuidar de mim".
-- Há quanto tempo é casada?
Ela franziu o cenho.
-- Dois anos.
-- Como conheceu seu marido?
-- Ele foi meu paciente no hospital. Meteu-se numa briga, e alguém
quebrou suas costelas. Cuidei dele, e, assim que se recuperou, ele me
pediu em casamento. Sei o
que está pensando, mas meu marido não era assim quando casamos. Era um
homem gentil, terno, generoso. Eu me culpo por sua mudança.
-- Isso é um absurdo -- protestou Donald. -- Não pode ser culpada pelo
que ele faz. Só é responsável por si mesma.
-- Eu bem que gostaria de acreditar nisso. Ele faz com que eu me sinta
culpada.
-- Não permita! -- exortou Donald, veemente.
A garçonete se aproximou da mesa, e eles pediram o desjejum. Donald
percebeu que a mulher tinha dificuldade para comer, pois estava com a
boca inchada. Nunca sentira
tanta pena de alguém em toda a vida.
-- De onde você é? -- perguntou Donald.
-- Chicago.
-- Eu também. Da zona leste.
-- Foi onde eu nasci.
-- O que gostava de fazer em Chicago?
-- Gostava de ir à ópera e ao teatro.
-- Eu também.
Era espantoso quanto tinham em comum. Conversaram so¬bre Chicago, as
escolas em que haviam estudado, e o tempo parecia voar.
Donald nunca apreciara tanto a companhia de uma pessoa em toda a vida.
"Quero passar o resto da minha vida com essa mulher", pensou ele.
Mas sabia que era impossível, pelo menos enquanto ela continuasse
casada com aquele homem brutal.
Se Donald pensara antes que estava apaixonado pela mulher, já tinha
certeza disso ao terminarem o desjejum. Ela era a pessoa mais meiga e
simpática que já conhecera.
Donald examinou a equimose do rosto dela e murmurou:
-- Não pode continuar assim. Se ficar com seu marido, ele acabará por
matá-la.
Os olhos dela se encheram de lágrimas.
-- Não sei o que fazer.
-- Deixe-o.
Ela sacudiu a cabeça.
-- Não posso. Casei com ele e tenho de permanecer ao seu lado.
-- É apaixonada por ele?
A mulher fitou Donald nos olhos antes de responder:
-- Não sou mais.
Ele sentiu que seu coração disparava. Pôs a mão sobre a dela.
-- Não sabe como me sinto contente por tê-la conhecido -- murmurou
Donald.
-- Eu também.
E ela tornou a exibir o sorriso maravilhoso.
Donald acompanhou-a na volta.
Assim que ela entrou no apartamento, Donald ouviu os gritos do marido.
-- Onde esteve? Com quem você saiu?
-- Com ninguém. Fui apenas comer alguma coisa.
-- Está mentindo!
Donald ouviu o som de um golpe, um corpo caindo no chão e os soluços
da mulher.
-- Por favor, deixe-me em paz.
Houve o som de outro golpe, e ela gritou.
"Não dá mais para suportar", pensou Donald.
Teria de ir lá e tentar conter o homem. Só que o marido tinha quase o
dobro do seu tamanho. Não havia a menor possibilidade de Donald
conseguir vencê-lo numa briga.
As discussões foram se tornando cada vez piores. O homem chegava em
casa no meio da noite completamente bêbado.
Donald podia ouvi-lo acordar a mulher e começar a gritar com ela.
E depois ouvia o som de tapas, o choro da mulher, as sálicas para que
ele parasse de espancá-la.
-- Estive com uma mulher de verdade esta noite -- gaba¬va-se o marido. --
Uma mulher com fogo nas veias.
-- Por que não volta para ela?
E Donald ouvia o som de tapas e socos mais uma vez.
De vez em quando, encontrava a mulher no corredor, e em cada ocasião
ela tinha um olho roxo, ou o lábio inchado, e andava como se sentisse
uma dor intensa.
-- Você está bem? -- perguntava Donald.
E ela sempre respondia:
-- Estou, sim.
Ele nunca a ouvia se queixar. A coisa que mais queria no mundo era
protegê-la. Mas como? Não tinha resposta para isso.
Donald não conseguia parar de pensar na linda vizinha. No trabalho,
enquanto vendia sapatos, sua mente voltava para a bela e a fera.
"Tenho de tirá-la de lá antes que ele a mate", pensava Donald. "Se ao
menos o marido tomasse a iniciativa de abandoná-la!"
Mas Donald sabia que não havia a menor possibilidade de que isso
viesse a acontecer.
Na manhã seguinte, porém, tudo mudou.
Tornaram a se encontrar no corredor. Ela tinha o lábio inchado e
cortado.
-- Bom dia -- disse Donald.
-- Bom dia.
A mulher mal conseguia falar. Donald não podia mais suportar.
-- Preciso conversar com você.
Ela sacudiu a cabeça.
-- Estou atrasada para o trabalho.
-- É importante. Por favor, dê-me cinco minutos.
Ela fitou-o nos olhos.
-- Está bem.
Donald levou-a para a mesma lanchonete em que haviam tomado o café da
manhã.
-- Não pode continuar assim -- disse ele. -- Seu marido vai acabar por
matá-la. Sabe disso, não é?
A mulher balançou a cabeça, com os olhos marejados de lágrimas.
-- Não sei o que fazer -- balbuciou ela, chorando.
-- Vou lhe dizer o que tem de fazer. Deve sair daquele apartamento,
deixar seu marido.
Ela sacudiu a cabeça.
-- Para onde eu iria?
-- Arrumarei um apartamento para você, um lugar em que ele jamais
conseguirá encontrá-la. Pode largar o emprego no hospital. Tenho
dinheiro suficiente para sustentá-la.
-- E por que faria isso por mim?
-- Porque a amo.
A mulher pôs a mão sobre a dele.
-- Também amo você, Donald.
Ele nunca se sentira mais feliz em toda a vida.
-- Então está combinado. Basta me dar um ou dois dias para encontrar um
apartamento. Vai se divorciar de seu ma¬rido e se casar comigo.
Os olhos da mulher faiscaram.
-- Quer mesmo casar comigo?
-- Mais do que qualquer outra coisa no mundo. O que você diz?
Ela sorriu.
-- Claro que quero casar com você.
Donald foi despertado às duas horas da madrugada pelo barulho no
apartamento ao lado. O homem gritava com a mulher. Começaram a brigar.
E desta vez era pior do que
o habitual. Donald ouviu a mulher dizer:
-- Não aguento mais. Vou deixá-lo e casar com outro.
O coração de Donald transbordou de alegria.
-- Vai fazer o quê? -- berrou o homem.
Donald ouviu o som de um tapa, e a mulher berrou:
-- Pare com isso! Vou embora daqui!
-- Não vai a lugar nenhum!
A mulher tornou a gritar.
Depois, horrorizado, Donald ouviu o som de um objeto pesado batendo em
carne e o som de um corpo caindo no chão. O silêncio voltou a reinar.
Donald empalideceu. "Ele a matou!"
Encostando o ouvido na parede, Donald tentou escutar o que se passava
no outro apartamento. Ouviu o barulho de um corpo sendo arrastado pelo
chão. Ouviu um tapete
sendo puxado, e, na imaginação, pôde ver o corpo da mulher sendo
envolto pelo tapete. Ouviu a porta do outro apartamento ser aberta.
Donald foi até sua porta, prestou atenção. Ouviu o som de alguém
descendo pela escada sem fazer barulho.
"Ele está saindo com o corpo para escondê-lo em algum lugar!"
Donald passou a noite inteira andando de um lado para outro,
perguntando-se o que deveria fazer.
Pela manhã, na hora em que a mulher costumava sair para o trabalho,
Donald abriu a porta. Não havia qualquer sinal dela.
Ele permaneceu em seu apartamento até o meio-dia, não conseguiu mais
suportar e telefonou para o hospital em que a mulher trabalhava. Pediu
para falar com ela, e
uma enfer¬meira informou:
-- Ela não veio trabalhar hoje.
"Nem poderia", pensou Donald. "Está morta".
Mas ele não permitiria que a fera escapasse impune.
Encostou o ouvido na parede e pôde ouvir o homem se movimentando no
outro apartamento. "Ele tenta se esconder. Provavelmente espera a
melhor oportunidade para fugir.
Só que isso não vai acontecer", pensou Donald. "Assassinou a mulher e
terá de pagar por isso."
Mas corno Donald faria com que ele pagasse? Não tinha nenhuma prova do
que ocorrera. O homem poderia simplesmente dizer que a mulher se
ausentara numa viagem, e
a polícia não teria como provar o contrário.
Donald não fazia a menor ideia do lugar em que o homem escondera o
corpo. "Se a polícia revistar o apartamento", pen¬sou Donald, "com
toda a certeza encontrará provas
do crime. Mas como posso persuadi-los a efetuar uma revista?"
E foi então que teve uma ideia.
Donald foi à delegacia e disse:
-- Quero comunicar um assassinato.
O sargento postado atrás do balcão levantou os olhos.
-- Quem foi assassinado?
-- Minha vizinha.
-- E como sabe que houve um assassinato?
Foi nesse momento que Donald violou o nono mandamento.
-- Vi tudo. Moro ao lado do homem que assassinou a mulher. Ouvi-os
brigando e ela gritou: "Não me mate!" E depois foi assassinada.
-- Como sabe?
-- Ao abrir a porta do meu apartamento, vi quando ele tirava o corpo do
prédio.
O policial se tornara agora muito interessado.
-- Onde está o homem agora?
-- Continua no apartamento.
-- Mandarei dois detetives até lá com você.
-- Obrigado.
Donald dera um falso testemunho, e se orgulhava disso. Vingaria a
mulher por quem se apaixonara.
Os dois detetives foram com Donald para o prédio.
-- Este é meu apartamento -- indicou Donald. -- O assassinato ocorreu
naquele outro.
-- E diz que o homem se encontra ali agora?
-- Isso mesmo.
-- E diz que o viu saindo do prédio com o corpo?
-- Vi, sim.
-- Muito bem, vamos até lá.
Os dois detetives sacaram seus revólveres.
-- Fique para trás. Deixe-nos cuidar disso.
Um dos detetives bateu na porta. Esperaram. Ninguém aten¬deu. Ele
tornou a bater, mais alto. Também não houve resposta. O detetive
encostou o ouvido na porta.
-- Há alguém se movendo La dentro. Ele está mesmo aqui.
O segundo detetive disse:
-- Vamos arrombar a porta.
Os policiais arrombaram a porta a pontapés, e os três entraram no
apartamento.
A mulher estava agachada num canto, com uma expressão de terror. Não
havia o menor sinal do marido.
Horrorizado, Donald compreendeu subitamente o que acon¬tecera. Fora a
mulher que matara o marido! O que ouvira, durante a madrugada, fora
ela, arrastando o corpo
do marido para fora do prédio. E ele a entregara à polícia! A mulher
olhou para Donald e sussurrou:
-- Eu o matei. Tinha de matá-lo.
-- Está presa, dona -- disse um dos detetives. -- É melhor nos
acompanhar.
Donald continuou parado onde estava, em choque, enquan¬to os policiais
levavam a única mulher que já amara.
Capítulo X
Décimo mandamento:
"Não cobiçarás a casa do próximo".
Esta é a história de um homem chamado Howard, que passou dois anos
cobiçando a casa do vizinho.
Howard era detetive. Isto é, fora detetive.
Ao deixar a polícia, alugara uma casa e se mudara com a mulher e a
filha pequena para uma parte horrível da cidade. A casa era pequena e
mal conservada, e a residência
ao lado se encontrava em situação ainda pior.
-- Por que está fazendo isso? -- protestou a mulher. -- Não precisamos
viver assim.
-- Quero morar aqui -- insistiu Howard. -- E um dia quero comprar a casa
do vizinho.
A mulher de Howard olhou pela janela para a casa ao lado, quase em
ruínas.
-- Você quer ser dono daquilo? Por quê? É a pior casa que já vi!
-- Gosto dela -- murmurou Howard, obstinado.
Havia uma placa de "Vende-se" na frente da casa, com o nome e o
endereço da corretora imobiliária.
Howard foi procurar a corretora.
-- Estou interessado em comprar a casa ao lado daquela que alugamos --
anunciou ele. -- Quanto custa?
-- Trinta mil dólares. Devo ser honesta com você. Não vale isso. Não
vale sequer dez mil dólares. Mas o dono insiste que não podemos vendê-
la por menos de trinta
mil dólares. -- A corretora sacudiu a cabeça. -- A casa se encontra à
venda há cinco anos, e ninguém se interessou até agora. Para ser
franca, é uma das piores casas
que já vi. Nem sei por que estamos cuidando de sua venda.
-- Posso falar com o proprietário?
-- Não. -- A corretora baixou a voz. -- Ele está cumprindo pena de dez
anos na penitenciária.
Howard já sabia disso, porque fora ele quem prendera o homem por
assalto a um banco e o mandara para a penitenciária.
-- Vamos supor que eu dê uma entrada de alguns milhares de dólares e
depois...
-- Sinto muito, mas o proprietário exige o pagamento integral à vista.
Age como se não quisesse vender a casa.
-- Pois eu vou comprá-la -- declarou Howard. -- De um jeito ou de outro,
arrumarei o dinheiro.
Howard conseguiu um emprego de guarda num armazém portuário e outro
como vigia noturno num prédio de escritó¬rios.
-- Por que está fazendo isso? -- protestou a mulher. -- Não precisa de
dois empregos. Sua filha e eu quase não o vemos mais.
-- Será por pouco tempo -- garantiu Howard. -- Quero ganhar bastante
dinheiro para comprar a casa ao lado.
A mulher não podia acreditar.
-- Ainda pensa em comprar aquela casa? É uma ratoeira. Não, retiro o
que disse, nem os ratos entrariam ali.
-- Você vai gostar -- prometeu Howard. -- Espere só para ver.
No dia do pagamento, quando Howard recebeu os salários dos dois
empregos, sua mulher disse:
-- Ficarei com a metade. Preciso comprar roupas para mim e para nossa
filha.
-- Não há nenhum dinheiro -- respondeu Howard.
-- Como assim?
-- Depositarei todos os meus salários numa caderneta de poupança.
Ela ficou perplexa.
-- Para quê?
-- Quero economizar para comprar a casa ao lado.
A mulher já pensara antes que Howard enlouquecera. Agora, teve
certeza.
-- Vai guardar tudo o que receber só para comprar aquela casa horrível?
-- Exatamente.
Ao chegar do trabalho durante o dia, às seis horas da tarde, Howard
tinha uma hora de folga antes de seguir para o em¬prego noturno. A
mulher o esperava.
-- Vamos sair para jantar -- propôs ela. -- Há muito tempo que não ponho
os pés fora desta casa.
-- Eu trouxe o jantar -- anunciou Howard.
Ele abriu um saco e tirou três pizzas.
-- É isso o nosso jantar?
-- É, sim -- confirmou Howard. Temos de poupar ao máximo.
-- E para que estamos poupando?
A mulher já sabia a resposta antes mesmo de fazer a pergunta.
-- Para comprar a casa ao lado.
A situação foi se tornando cada vez pior. Não apenas Howard não
comprava roupas para a mulher e a filha e não as levava a
restaurantes, mas também arrumou um terceiro
emprego. Tra¬balhava agora vinte e quatro horas por dia, e quase não
dormia.
A mulher se preocupava cada vez mais. Seu irmão conhecia um bom
psiquiatra, e ela tentou persuadir Howard a procurá-lo.
-- Não preciso de psiquiatra -- afirmou Howard. -- Sou perfeitamente são.
-- Passa vinte e quatro horas por dia trabalhando, em três empregos,
para comprar a pior casa que já vi, e ainda se considera são? Tem de
procurar o psiquiatra!
Para fazê-la calar a boca, Howard acabou concordando.
O psiquiatra era alto, de aparência distinta, excelente repetição.
Interessara-se pelo caso de Howard porque nunca ou¬vira falar de nada
parecido.
-- Deite-se, Howard.
Howard obedeceu.
-- Sua mulher me disse que tem três empregos.
-- É verdade.
-- Gosta de trabalhar, Howard?
-- Não.
-- Se só tivesse dois empregos, poderia viver com relativo conforto?
-- Poderia.
-- Se só tivesse um emprego, poderia viver com relativo conforto?
-- Acho que sim -- admitiu Howard.
O psiquiatra estudou o paciente em silêncio por um momento.
-- Então, não precisa de três empregos, detesta trabalhar, e ainda
assim tem três empregos.
-- Isso mesmo.
-- Trabalha para ganhar um dinheiro extra, Howard?
-- É o motivo.
-- E o que planeja fazer com esse dinheiro extra?
Howard sentou no divã.
-- Comprar uma casa -- respondeu ele, no maior entusiasmo. -- Fica ao
lado da nossa, que é alugada. E é a casa mais linda que já vi.
O psiquiatra estava aturdido.
-- Sua mulher me disse que é a casa mais feia que ela já viu.
-- Ora, ela não entende dessas coisas. Posso lhe garantir que a casa é
uma beleza.
-- Poderia me trazer uma foto da casa, Howard?
-- Tenho uma aqui. Sempre a levo comigo.
O psiquiatra achou aquilo muito interessante.
-- Posso vê-la?
-- Claro.
Howard tirou uma foto pequena do bolso de trás da calça e mostrou-a ao
psiquiatra, orgulhoso.
O psiquiatra examinou-a por um longo tempo. Era a casa de pior
aparência que já vira. Uma casa de madeira. Parecia suja, corroída
pelo tempo, e parte do telhado
dava a impressão de estar prestes a desabar.
-- É apaixonado por essa casa, Howard?
-- De certa forma, acho que sim. Quero-a mais do que já quis qualquer
outra coisa no mundo.
-- Sempre foi apaixonado por casas, Howard?
-- Claro que não. O que acha que sou? Algum tipo de maluco? Essa é a
única casa que já amei.
-- E quer comprá-la?
-- Pode ter certeza de que farei isso. E, quando me mudar para aquela
casa, serei o homem mais feliz do mundo.
-- Sua mulher detesta aquela casa, Howard.
-- Ela aprenderá a amá-la. Acredite, ela passará a amá-la, e muito.
Uma situação que não podia piorar se tornou ainda pior. Cada momento
de vigília de Howard era devotado a pensar na casa, planejar a compra,
pensar em meios de apressá-la.
Se o dia tivesse mais de vinte e quatro horas, ele arrumaria um quarto
emprego.
Como Howard não gastava quase nada consigo mesmo ou com a família, o
dinheiro da caderneta de poupança foi crescendo rapidamente. Ele já
dispunha agora de dez mil
dólares. Foi procurar a corretora.
-- Tenho dez mil dólares. Darei isso como entrada da casa e...
Ela sacudiu a cabeça.
-- Não é possível. Falei com o proprietário. Ele se recusa a aceitar
menos de trinta mil dólares, e quer tudo à vista. Expliquei que não
valia isso, que nunca a venderá
por esse preço, mas ele disse que não se importa. Infelizmente, não há
nada que eu possa fazer para facilitar.
Howard levantou-se.
-- Eu voltarei.
A corretora observou-o sair e pensou: "É um homem muito estranho. O
que há de tão especial naquela casa que o leva a se empenhar tanto
para comprá-la?"
A mulher de Howard especulava a mesma coisa.
-- Querido, por que está fazendo isso? Não posso me lembrar da última
vez que comprei um vestido novo, e estou cansada de comer pizza três
vezes por dia, o que também
acontece com sua filha. Vivemos como animais. Nunca saímos. Nunca
fazemos coisa alguma.
-- Quer parar de reclamar? -- gritou Howard. -- Prometo que será feliz
quando nos mudarmos para a nossa nova casa.
-- Como pode chamar aquilo de casa? Não passa de uma pilha de madeira
apodrecida! Eu não deixaria nem mesmo meu cachorro viver ali!
-- Não tem nenhum cachorro.
-- Claro que não. Não teríamos condições de alimentá-lo. Nem nós
comemos direito, porque todo o dinheiro vai para aquela estúpida
caderneta de poupança.
-- Até mais tarde -- disse Howard. -- Tenho de sair agora para o
trabalho.
A situação se prolongou por mais seis meses. As roupas de Howard
ficaram esfarrapadas. Havia um buraco na calça e outro na camisa.
-- Não pode ir trabalhar desse jeito -- disse a mulher. -- Tem de comprar
camisas e calças novas.
-- Não temos dinheiro para isso -- protestou Howard.
-- Como não temos dinheiro? Você está ganhando quase mil dólares por
semana.
-- É verdade, mas temos de economizar cada centavo para comprar aquela
casa.
-- Estou cansada de ouvir falar daquela casa! -- berrou a mulher. --
Jurei que nunca faria isso, Howard, mas vou me divorciar de você.
Howard ficou chocado.
-- Não pode se divorciar. Eu a amo.
-- E quando tem tempo para me amar? Tem um emprego das oito da manhã às
seis da tarde, depois o emprego noturno, das seis da tarde à meia-
noite, e mais outro da meia-noite
às sete da manhã. Não tem tempo sequer para respirar, muito menos para
me amar. Não posso mais viver assim.
-- Será apenas por mais algum tempo -- suplicou Howard. -- Já temos quase
o dinheiro necessário para comprar a casa.
-- E depois disso o que teremos? Moraremos na pior casa que já vi!
-- Confie em mim.
-- Confiar em você? Já não sou nem capaz de reconhecê-lo.
Ela saiu correndo da sala.
Howard queria ficar para confortá-la, mas estava na hora de voltar ao
trabalho.
Os três empregos começaram a cobrar seu tributo. Howard andava como um
sonâmbulo. Nunca dormia mais que uma ou duas horas por noite, e seu
corpo ansiava por alimentos
saudáveis. Afinal, só comia pizzas e sanduíches. Uma comida nociva.
Howard tornava-se mais cansado a cada dia, mas continua¬va a exigir o
máximo de si mesmo. A caderneta de poupança aumentou para vinte mil
dólares... vinte e dois
mil... vinte e cinco mil...
Voltou a procurar a corretora.
Ela mal o reconheceu. Howard emagrecera quase dez quilos, estava
esquelético. Usava uma barba agora, porque não queria perder tempo a
se barbear. A voz era tão fraca
que quase não dava para ouvi-lo.
-- Você está bem? -- perguntou a corretora.
-- Estou, sim. -- A voz era um sussurro rouco. -- Tenho vinte e oito mil
dólares. Acha que...
Ela o fitou com compaixão.
-- Eu bem que gostaria de ajudá-lo. Mas não posso vender a casa por
menos de trinta.
Howard balançou a cabeça. Levou um tempo enorme para se levantar.
-- Está bem -- sussurrou ele. -- Eu voltarei.
A corretora observou-o retirar-se, meio trôpego, e pensou:
"Ele não vai conseguir".
"Só faltam dois mil dólares", pensou Howard. "Mais umas poucas semanas
e terei o dinheiro necessário para comprar a casa.
A mulher de Howard mandou-o de volta ao psiquiatra.
Ele também não reconheceu Howard, que parecia à beira da morte. Estava
magro demais, com uma barba comprida.
-- É um prazer vê-lo de novo, Howard -- disse o psiquiatra. -- Sente-se
bem?
-- Muito bem.
Ele sentia dor nos olhos, no estômago, na cabeça. Mal conseguia
divisar o psiquiatra, de tanta dor.
-- Fico contente em ouvir isso, Howard. Sua mulher me disse que parou
de comprar comida para a família.
-- Não é verdade. Ela pode comer todas as pizzas que quiser.
-- Não se pode viver de pizza, Howard.
-- Mas eu vivo.
-- Continua determinado a comprar aquela casa?
-- Claro que sim. Quero aquela casa mais do que qualquer outra coisa no
mundo.
-- Sabe qual é o décimo mandamento, Howard? "Não cobiçarás a casa do
próximo."
-- Não me importo com o décimo mandamento. Quero aquela casa de
qualquer maneira.
-- Acha que será feliz quando a conseguir?
Howard sorriu.
-- Serei muito feliz.
O psiquiatra estudou-o. Havia buracos nos seus sapatos, as roupas
estavam rasgadas. Parecia um desabrigado, um mendigos. Era óbvio que
se encontrava mentalmente
doente.
-- Howard, sua mulher e eu conversamos, e achamos que seria uma boa
ideia se você passasse alguns dias no hospital. Na minha opinião, não
está nada bem.
Howard levantou-se; quando falou, o psiquiatra quase não pôde ouvi-lo:
-- Mande-me a conta, doutor. Pagarei depois que comprar a casa.
Finalmente, chegou o dia em que Howard -- cambaleando, mal conseguindo
andar -- entrou de novo na sala da corretora. Parecia ainda mais magro
do que na última vez
em que ela o vira. Tinha a barba mais comprida, as roupas mais rotas.
Se não soubesse quem ele era, não o deixaria entrar em sua sala.
-- Consegui -- balbuciou Howard. -- Tenho todo o dinheiro.
Ele pôs um cheque visado no valor de trinta mil dólares em cima da
mesa.
A corretora fitou-o, incrédula. Ali estava um homem com trinta mil
dólares, vestido como um mendigo, e cheirando como quem não tomava
banho há seis meses. Howard
estava tão fraco que tinha dificuldade para permanecer de pé.
-- Sente-se -- disse a corretora. -- Pobre coitado. Este é todo o
dinheiro que tem no mundo?
Howard acenou com a cabeça.
-- E vai gastar tudo na compra daquela casa?
Howard tornou a balançar a cabeça.
-- Muito bem, se é isso o que quer, a casa e sua. -- Ela estendeu uma
nota de venda. -- Basta assinar aqui.
Howard pegou a caneta, mas estava tão fraco que não foi capaz de
segurá-la.
A corretora ficou alarmada, receando que ele morresse antes de fechar
o negócio. Ajudou-o a segurar a caneta e observou-o assinar.
-- Pronto -- disse ela. -- A casa é sua.
"E que Deus o ajude", pensou a corretora.
-- Obrigado.
Howard guardou os documentos nos bolsos rasgados, e ela o viu sair
cambaleando, enquanto pensava: "Pobre coitado. Enlouqueceu por
completo. Acaba de jogar fora
trinta mil dólares".
Naquela noite, ao chegar em casa, Howard anunciou à mulher:
-- Compramos a casa do vizinho, meu bem.
-- Oh, não!
-- É verdade, e prometo que vai adorá-la.
A voz de Howard era tão engrolada que a mulher tinha dificuldade para
entendê-lo.
-- Por favor, Howard, deixe-me levá-lo ao médico.
-- Não preciso de médico. Estou bem.
-- Vai pelo menos descansar um pouco?
-- Claro que vou descansar. Acabo de largar o emprego.
-- Como? Que emprego?
-- Todos os três.
Ela ficou aturdida. Num momento Howard insistia em trabalhar em três
empregos, e logo em seguida largava todos ao mesmo tempo. Ela casara
com um louco.
-- Howard, você tem de procurar um médico.
-- Estou ocupado demais para procurar um médico. Vamos nos mudar para a
nossa nova casa esta noite.
-- Esta noite? São quase dez horas. Por que não deixamos para amanhã?
-- Tem de ser esta noite -- insistiu Howard.
Ele estava tão fraco que precisava se apoiar numa cadeira para não
cair. A mulher decidiu atendê-lo.
-- Está certo, querido, vamos nos mudar esta noite.
Nenhum dos dois jamais estivera antes no interior da casa ao lado. Se
o exterior era péssimo, o interior era ainda pior. Toda a casa se
encontrava prestes a desmoronar,
os cômodos tinham um cheiro de podre. A mulher de Howard desatou a
chorar.
-- Não podemos morar aqui! -- protestou ela.
-- Será por bem pouco tempo -- assegurou Howard.
Ela não podia acreditar no que ouvia.
-- Comprou esta casa só para morarmos aqui por bem pouco tempo?
-- Isso mesmo.
-- Escute, Howard...
Mas ele arriara no chão, num sono profundo.
Dormiu direto por vinte e quatro horas, e a mulher não teve coragem de
acordá-lo. Quando finalmente despertou, Howard olhou ao redor e
indagou:
-- Onde estamos?
-- Na casa que você tanto queria -- respondeu a mulher, amargurada. --
Agora que estamos aqui, o que vai fazer com uma casa assim?
-- Aproveitá-la.
Howard passou os dois dias seguintes descansando.
No terceiro dia, foi a uma loja de ferragens, comprou uma picareta e
uma pá.
-- O que pretende fazer com isso? -- perguntou a mulher.
-- Vou consertar o porão -- explicou Roger.
Ele desceu, e durante o dia inteiro a mulher pôde ouvir os ruídos que
fazia no porão.
Ao final de três dias, ela ouviu Howard gritar lá embaixo, e desceu
correndo, com receio de que ele tivesse se machucado.
-- O que aconteceu, Howard?
Ele estava parado na beira de um enorme buraco que abrira no porão.
A mulher foi para o seu lado. No buraco, havia uma enorme caixa de
metal.
Howard pegou a caixa. Abriu-a. Lá dentro, havia pilhas de notas de cem
dólares.
-- Oh, Deus! -- balbuciou a mulher. -- O que é isso?
Howard virou-se para ela, sorrindo.
-- Tem um milhão de dólares aqui. Bugsy Burton assaltou o First
National Bank, eu o prendi e mandei para a penitenciária, por dez
anos. O dinheiro nunca foi encontrado,
mas Bugsy morava aqui, e concluí que ele só podia tê-lo escondido em
algum lugar da casa.
-- Não posso acreditar...
-- Vamos sair amanhã, e comprarei para você e nossa filha as roupas
mais lindas da cidade. Depois, vamos ter o melhor jantar do mundo. E
partiremos numa viagem ao
redor do mundo. -- Howard sorriu. -- Quer saber de uma coisa? Quem disse
"Não cobiçarás a casa do próximo" era um idiota.
Capítulo XI
Décimo primeiro mandamento:
"Nunca dirás uma inverdade".
Ele se chamava David, e era provavelmente o ser humano mais honesto do
mundo. Ainda menino, o pai lhe contara a história de George Washington
e a cerejeira.
-- George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos --
disse-lhe o pai. -- Quando tinha oito anos, seu pai foi até o pomar e
descobriu que sua cerejeira
predileta fora cortada. Perguntou aos criados se tinham sido eles.
"Não", responderam todos. Ele perguntou à mulher: "Foi você que cortou
a cerejeira?" Ela respondeu
que não. O pai chamou o pequeno George. "Foi você que cortou a
cerejeira, George?" E o menino respondeu: "Fui eu, sim, pai. Não posso
dizer uma mentira".
Essa história deixara David tão impressionado que ele decidira que
nunca, mas nunca mesmo, diria uma inverdade.
Ao ingressar na escola, David descobriu que todas as outras crianças
colavam nas provas. Num momento de fraqueza, ele colou também,
copiando a resposta de um colega.
Tirou um A, que era a nota mais alta. Mas procurou o professor e
disse:
-- Senhor, não posso mentir. Colei na prova.
O professor deu zero a David e obrigou-o a permanecer na escola depois
das aulas, como castigo.
Ao se formar, David e alguns amigos foram pedir emprego numa fábrica.
O gerente perguntou:
-- Vocês têm alguma experiência?
-- Claro -- respondeu um dos amigos de David.
-- Muita experiência -- acrescentou outro.
David sabia que os dois mentiam. O gerente virou-se para ele.
-- E você, tem alguma experiência?
-- Não -- respondeu David.
Os amigos foram contratados e David não.
Ao se tornar mais velho, David foi trabalhar numa companhia de
seguros. Uma noite, levou para casa alguns clipes e folhas de papel.
No dia seguinte, porém, procurou
o chefe.
-- Senhor, não posso mentir. Roubei alguns clipes e folhas de papel.
O chefe descontou de seu salário.
Os outros empregados sempre levavam coisas para casa, mas nunca
comunicavam. Acharam que David era um tolo.
-- Por que não leva as coisas e fica de boca fechada, David? --
indagaram.
David sacudiu a cabeça.
-- Não posso fazer isso. Quero ser como George Washington. Nunca direi
uma inverdade.
Os outros não podiam entender.
David tinha uma namorada, Kathy, por quem era muito apaixonado.
-- Quero casar com você -- anunciou David.
Ela o abraçou.
-- Também quero casar com você, querido.
David sentia-se muito feliz. Tinha um bom emprego e uma namorada a
quem amava. Sempre compensa dizer a verdade, pensava ele.
Kathy tinha uma amiga chamada Betty. Muito bonita e sen¬sual, Betty
gostava bastante de David, que não se interessava por ela. David
estava apaixonado por Kathy.
Uma noite, quando Kathy se achava ocupada, Betty telefonou para David
e disse:
-- Minha televisão quebrou, David. Você poderia vir até aqui e
consertá-la?
David era muito bom nessas coisas.
-- Claro, Betty. Terei o maior prazer.
Ele foi ao apartamento de Betty.
A única coisa errada com o aparelho de televisão era o fato de estar
desligado da tomada.
-- Tudo que precisa fazer é ligá-lo na tomada, Betty.
David fez a ligação, e a televisão funcionou com perfeição.
-- Você é tão inteligente, David... Não posso imaginar como isso
aconteceu.
Ela se adiantou, e abraçou David.
-- Quero lhe agradecer, David.
Betty beijou-o nos lábios. Ele retribuiu o beijo, mas depois percebeu
o que fazia e tratou de se desvencilhar.
-- Não podemos fazer isso, Betty. Vou casar com Kathy.
-- Sei disso -- sussurrou Betty, tornando a beijá-lo.
-- É melhor eu ir embora -- disse David.
Se ele fosse um homem comum, teria se calado sobre o incidente. Mas,
sendo tão honesto quanto era, decidiu que tinha de contar a verdade a
Kathy. No dia seguinte,
ao almoçarem, David disse:
-- Tenho uma coisa para lhe contar, Kathy.
-- O que é, querido?
-- Ontem à noite fui ao apartamento de Betty e nos beijamos.
Kathy ficou aturdida.
-- Vocês o quê?
-- Eu não tinha a intenção de beijá-la. Aconteceu de repente. Pode
compreender, não é?
-- Claro que posso.
Kathy jogou a água de seu copo na cara de David.
-- Kathy...
Ela saiu do restaurante sem lhe dar atenção.
David tentou falar com ela no dia seguinte, e no outro, uma semana
depois, um mês. Kathy não o atendia, e nunca respondia às ligações.
Foi a recompensa de David por ser honesto.
Mas isso o desencorajou? Nem um pouco.
Os amigos viviam dizendo que David era um tolo por ser sempre tão
honesto, que de vez em quando uma pessoa tinha de dizer uma mentira.
Mas David não acreditava nisso,
e insistia:
-- Nunca, em quaisquer circunstâncias, mentirei para quem quer que seja
sobre qualquer coisa.
E ele tencionava mesmo manter essa promessa.
David passou por uma joalheria certa noite, e um momento depois ouviu
o barulho de vidro quebrado. Olhou ao redor para ver o que acontecera.
Um homem veio correndo
pela calçada. Passou por David e continuou a correr. David deu uma boa
olhada em seu rosto. O homem parecia apavorado. Minutos mais tarde, um
carro da polícia, com
a sirene ligada, parou com uma freada brusca na frente de David. A
joalheria ali perto tinha a vitrine quebrada. Alguém roubara todas as
joias em exposição. Um guarda
saltou do carro e perguntou a David:
-- Viu o que aconteceu?
-- Não -- respondeu David. -- Apenas ouvi o barulho da vitrine sendo
quebrada. E logo em seguida um homem passou correndo por mim.
-- Deu uma olhada no homem?
-- Dei.
O guarda se animou.
-- Seria capaz de identificá-lo?
-- Claro -- declarou David. -- Dei uma boa olhada em seu rosto.
O guarda anotou o nome, endereço e telefone de David.
-- Se prendermos o assaltante, vamos chamá-lo. Precisaremos de você
para a identificação.
-- Terei o maior prazer em ajudar.
Uma semana passou e nada aconteceu. Depois, numa minha de segunda-
feira, David recebeu um telefonema.
-- Acho que prendemos o homem que assaltou a joalheria. Gostaríamos que
viesse identificá-lo.
-- Pode contar comigo.
Quando David entrou na delegacia, um detetive lhe disse:
-- Ainda bem que você deu uma boa olhada no homem, porque é a nossa
única testemunha. Tem certeza de que poderá reconhecê-lo?
-- Absoluta. Tenho excelente memória.
-- Venha comigo.
O detetive conduziu-o a uma sala onde havia um homem sentado.
-- É o homem que você viu fugindo da joalheria?
David acenou com a cabeça.
-- É, sim.
-- Não tem a menor dúvida?
-- Nenhuma.
-- Obrigado.
O detetive virou-se para um dos guardas.
-- Podem levá-lo.
O homem olhava fixamente para David, que sentiu pena dele. Era o
responsável por mandá-lo para a prisão. Mas David não podia dizer uma
inverdade.
Uma semana depois, David recebeu um estranho telefonema. A voz ao
telefone disse:
-- Aqui é o homem que você identificou como o assaltante. David ficou
surpreso.
-- É mesmo? E o que você quer?
-- Saí sob fiança, e meu julgamento começa na próxima semana. Quero
conversar com você.
A perplexidade de David aumentou.
-- Sobre o que quer conversar?
-- Você cometeu um erro terrível.
-- Que tipo de erro?
-- Onde podemos nos encontrar?
O homem indicou um restaurante, e acrescentou:
-- Pode se encontrar comigo ali amanhã, à uma hora da tarde?
David não tinha certeza se era uma boa ideia; mas se cometera um erro,
queria corrigi-lo.
-- Muito bem, estarei lá.
No dia seguinte, à uma hora da tarde, David entrou no restaurante. Um
momento depois, o homem que ele identifi¬cara como o assaltante
apareceu e veio sentar à sua
frente.
-- Meu nome é Henry -- disse ele.
-- E eu sou David.
-- Sei quem você é, o homem que está tentando arruinar minha vida.
-- Só porque falei a verdade a seu respeito...
O homem inclinou-se para a frente.
-- É justamente esse o problema. Não era verdade o que você disse.
Mentiu. Disse à polícia que assaltei a joalheria.
-- Isso mesmo.
-- Mas não fui eu.
-- Eu o vi fugindo -- insistiu David.
-- Sei que saí correndo, mas não assaltei a joalheria.
David sentia-se confuso.
-- Então por que fugiu?
-- Quase prefiro ir para a prisão a permitir que a verdade apareça. -- O
homem hesitou, mas logo continuou: -- Sou casado, David. Você também é
casado?
David pensou em Kathy, como quase haviam se casado.
-- Não.
-- Minha mulher é muito ciumenta. Sua maior amiga se chama Elsie. Pois
Elsie e eu sentimos uma atração mútua; uma coisa leva a outra, e não
demorou muito para que
tivéssemos um caso. Sabe como isso pode acontecer, não é?
David pensou na noite com Betty e balançou a cabeça.
-- Sei, sim.
-- Se minha mulher soubesse que tenho um caso com Elsie, mataria os
dois. Na noite em que você me viu, eu estava saindo do apartamento de
Elsie. Ouvi alguém quebrar
a vitrine da joalheria e compreendi que a polícia logo viria. Não
queria que me interrogassem, porque logo meu nome sairia no jornal, e
minha mulher descobriria
tudo. Resolvi fugir do local, e foi então que você me viu.
David estava atordoado.
-- Isso é verdade?
-- Juro por Deus. Pode telefonar para Elsie e perguntar a ela. Depois
que você me identificou, a polícia me bateu até arrancar uma
confissão. Obrigaram-me a assinar
uma declaração de que assaltei a joalheria. Mas é tudo mentira. Sou
inocente. Nunca roubei nada em toda a minha vida.
"E eu quase mandei esse homem para a prisão", pensou David.
-- Lamento profundamente -- murmurou David. -- Não podia imaginar.
-- Se testemunhar contra mim, vão me meter na penitenciária por dez
anos. Toda a minha vida será destruída. Não posso deixar que a polícia
saiba o que eu realmente
fazia naquela noite, porque minha mulher descobriria e se divorciaria.
-- O que posso fazer? -- indagou David.
-- Pode dizer à polícia que não tem certeza se sou mesmo o homem que
você viu.
-- Mas isso seria uma mentira!
-- Tudo agora depende de você -- declarou Henry. -- Pode dizer a verdade
e mandar um inocente para a prisão, ou pode dizer uma mentira branda e
salvar um homem, sua
reputação e seu casamento. Cabe à sua consciência decidir.
Ele se levantou e saiu do restaurante.
Dois dias antes do julgamento, um detetive estava enxergando Henry.
-- Você roubou joias no valor de cem mil dólares. Por que não banca o
esperto e nos diz o que fez com as joias? Seremos indulgentes.
Pediremos ao juiz que lhe dê
uma sentença mais leve.
-- Não posso dizer o que me pede, porque não roubei as joias.
-- Ora, deixe disso. Não brinque conosco. Escondeu tudo em algum lugar.
Se não falar, pode pegar dez anos. Se nos disser onde estão as joias,
a sentença será de apenas
uns dois anos. E então?
Henry insistiu, desesperado:
-- Não posso contar nada, porque não roubei as joias.
O detetive sacudiu a cabeça.
-- Muito bem, prefere ser estúpido, não é? Será pior para você. Diremos
ao juiz para metê-lo na prisão e jogar a chave fora.
O julgamento começou numa manhã de quarta-feira. David compareceu ao
tribunal, como testemunha de acusação. Na verdade, era a única
testemunha.
O juiz entrou na sala, ocupou seu lugar, e um oficial de justiça
anunciou:
-- O tribunal está em sessão.
Todos ficaram em silêncio.
O promotor foi o primeiro a falar, descrevendo o local do crime, como
a vitrine da joalheria fora quebrada, de onde alguém roubara joias no
valor de cem mil dólares
e fugira.
O advogado de Henry ressaltou que não havia nenhuma prova concreta de
que seu cliente cometera o crime.
-- Temos uma testemunha que viu o réu sair correndo do local do crime --
declarou o promotor. -- Vou chamá-la agora.
E o nome de David foi chamado.
Ele foi sentar na cadeira das testemunhas.
-- Poderia dizer seu nome a este tribunal? -- pediu o produtor. David
deu seu nome.
-- E o que você faz, David?
-- No momento, estou desempregado.
A verdade era que David fora despedido uma semana antes. Descobrira
que seu supervisor andava roubando di¬nheiro da companhia e comunicara
ao presidente, que o despedira.
-- O que fazia na noite do assalto? -- continuou o produtor.
-- Tinha ido me candidatar a um emprego noturno anunciado no jornal.
-- Conseguiu o emprego?
-- Não, senhor.
O emprego era numa padaria: ele dissera ao dono que o lugar estava
imundo. O dono o expulsara da padaria.
-- Estava perto da joalheria quando ouviu alguém quebrar a vitrine?
-- Estava, sim, senhor.
-- Poderia apontar esse homem para o júri, por favor?
David virou-se para Henry.
"Se testemunhar contra mim, vão me meter na penitenciária por dez
anos."
-- Eu... eu...
David balbuciava.
-- Pode falar mais alto, por favor?
-- Eu...
"Toda a minha vida será destruída."
-- Não podemos ouvi-lo, David. Pode fazer o favor de apoiar o homem que
viu sair correndo da joalheria?
Pela primeira vez na vida, David disse uma inverdade.
-- Não o vejo aqui.
O promotor ficou aturdido.
-- Não o vê aqui?
-- Não -- confirmou David com firmeza.
O promotor estava quase gritando agora.
-- Como pode declarar que não o vê aqui? Já o identificou. Disse à
polícia que aquele era o homem.
Ele apontou para Henry.
-- Posso ter me enganado.
O promotor não acreditava em seus ouvidos. Todo o seu caso se baseava
no depoimento de David.
-- Está dizendo a este tribunal que uma semana atrás podia identificar
positivamente o réu como o homem que viu fugindo da joalheria, mas
hoje não é capaz de reconhecê-lo?
-- Isso mesmo -- murmurou David.
"Pode dizer a verdade e mandar um inocente para a prisão, ou pode
dizer uma mentira branda e salvar um homem, sua reputação e seu
casamento."
-- Não o reconheço -- acrescentou David.
O advogado de defesa levantou-se.
-- Meritíssimo, eu protesto. O promotor está pressionando a testemunha.
Se a testemunha não pode identificar o réu, o promotor não deve
insistir.
-- Protesto deferido.
O juiz virou-se para o promotor.
-- A testemunha já disse que não pode identificar o réu. Agora,
continue sua apresentação.
A verdade era que o promotor não tinha mais nada a apresentar. Sem o
depoimento de David, não podia sequer situar Henry perto do local do
crime. O promotor lançou
um olhar furioso a David.
-- Não tenho mais perguntas.
O advogado de defesa tornou a se levantar.
-- Meritíssimo, nunca vi uma tentativa tão descarada de tentar mandar
um homem para a prisão sob falsas acusações. O estado não tem nenhuma
prova, e ainda assim tenta
per¬seguir meu cliente. Para dizer a verdade, espanta-me que te¬nham
trazido este caso a julgamento. Meritíssimo, peço o arquivamento do
processo.
O juiz bateu com o martelo.
-- Defiro a petição. O réu será solto a partir deste momento. Senhoras
e senhores do júri, agradeço por seu tempo. O caso está encerrado.
Henry continuou sentado, radiante. Olhou para David, agradecido.
"Menti pela primeira vez na minha vida", pensou David. Mas salvei um
homem, sua reputação e seu casamento. Valeu a pena. Até mesmo George
Washington teria me perdoado."
David estava em seu apartamento, lendo os anúncios classificados de
emprego. Precisava desesperadamente de um emprego, não tinha dinheiro
nem para o aluguel.
Alguém bateu à porta.
-- Entre! -- gritou David.
A porta foi aberta. Era Henry.
David se surpreendeu ao vê-lo.
-- Olá. Resolvi passar por aqui para agradecer.
-- Fiz o que era certo -- disse David. -- Não podia mandar um inocente
para a prisão.
Henry apertou a mão de David.
-- Fez a coisa certa. E quero que saiba que me sinto muito grato.
-- Era o mínimo que eu podia fazer. Afinal, pensando em você, seu
casamento, Elsie... não podia deixar que fosse para a prisão.
-- Fico agradecido.
Henry enfiou a mão no bolso e tirou duas pulseiras de diamantes.
-- Aqui está sua parte, David. Estas pulseiras valem cerca de vinte mil
dólares.
David olhou para as joias, aturdido.
-- Espere um pouco, Henry. Está querendo dizer que roubou...
Mas Henry já tinha saído.
David ficou olhando para as pulseiras. "Tenho que entregá-las à
polícia", pensou. "É isso o que George Washington faria."
Depois, ele pensou: "Ora, que se dane George Washington!"
Capítulo XII
Décimo segundo mandamento:
"Não farás mal a teu semelhante".
Robert era um gigante. Mesmo quando menino, já era enor¬me para sua
idade.
O pai de Robert era policial. Embora muito alto, ao ver o filho recém-
nascido, foi logo declarando:
-- O menino vai ser mais alto do que eu.
E tinha razão.
Aos dez anos, Robert era de longe o maior de sua turma. Ele era muito
religioso, e obedecia ao décimo segundo mandamento: "Não farás mal a
teu semelhante".
Os meninos menores gostavam de provocar brigas com Roberto, porque
sabiam que ele não reagiria. Descobriram que podiam fazer qualquer
coisa com ele. Socavam-no,
chutavam-no, zombavam de Robert.
Mas tudo o que ele fazia era sorrir e indagar:
-- Por que fizeram isso comigo?
-- Porque você é covarde! -- gritavam os meninos em resposta.
Todos se divertiam atormentando Robert.
Quando ele voltava para casa com o olho roxo, o pai lhe dizia:
-- Como pôde permitir que alguém fizesse isso com você? É o maior da
turma, capaz de dar uma surra em todos os outros. Por que não briga?
-- Porque sou o maior da turma -- respondia Robert. -- Não seria justo
com os outros. Poderia machucá-los.
O pai se envergonhava de Robert. Em sua mente, o filho era um covarde.
E ele detestava covardes. Resolveu conversar com a mulher.
-- Não sei qual é o problema do nosso filho. Ele é grande e forte, mas
apesar disso apanha de todos os outros membros da escola. Não criei
meu filho para ser um covarde.
A mãe de Robert defendeu-o.
-- Não creio que seja covarde. Acho que apenas não quer machucar
ninguém.
-- Pois eu vou dar um jeito nele -- declarou o pai.
No dia seguinte, quando Robert chegou da escola, o pai lhe disse:
-- Por que não assistimos à televisão juntos, filho?
Sentaram, e o pai de Robert pôs uma fita de vídeo. Era Rocky, o
lutador, e Robert observou horrorizado o campeão se pôr a bater nos
outros e também a apanhar. Tratou
de se levantar.
-- Não posso assistir a esse filme, pai.
-- Claro que pode! -- berrou o pai. -- Sente-se!
O filme seguinte era ainda pior, uma história policial sobre pessoas
que agrediam e assaltavam nas ruas.
-- Isso é horrível! -- murmurou Robert.
-- É o mundo real, e você tem de aprender a ser parte dele -- disse o
pai. -- Não pode fugir da violência.
Ele pôs um filme de guerra e obrigou Robert a continuar sentado ali
até o fim.
Se esperava convencê-lo de que a violência era justificada, o tiro
saiu pela culatra. Robert se tornou mais determinado do que nunca a
jamais se envolver em qualquer
tipo de vio¬lência. "Nunca, mas nunca mesmo!"
-- Talvez as coisas mudem quando ele ingressar na escola secundária --
comentou o pai.
As coisas mudaram de fato quando Robert ingressou na escola
secundária. Só que para pior.
Robert apaixonou-se por uma garota chamada Amy. O problema era que
todos os outros rapazes da escola também estavam apaixonados por Amy.
Ela era uma animadora de torcida, jovem, bonita e inteligente.
Robert a acompanhava até em casa depois das aulas, mas os outros
rapazes sempre se dispunham a atacá-lo.
Enquanto Robert e Amy caminhavam pela calçada, os colegas pulavam na
frente deles e os detinham.
-- Podem fazer o favor de sair da nossa frente? -- pedia Robert, muito
polido.
-- Não! -- gritavam os meninos em coro.
E um deles empurrava Robert, enquanto os outros o agrediam.
E Amy ficava parada ali, impotente, vendo Robert levar uma surra. Um
dia, ela ficou tão furiosa que perguntou:
-- Por que não reage?
-- Não posso -- explicou Robert. -- Sou muito maior do que eles. Poderia
machucá-los, talvez até matar um deles.
Amy não acreditou.
-- Você é um covarde.
E devolveu o anel que Robert lhe dera.
-- Não posso casar com um covarde.
Robert ficou desolado. Amava Amy, mas sabia que era errado brigar.
"Eu nunca poderia violar o décimo segundo mandamento", pensou ele.
O treinador de futebol americano da escola de Robert ficou muito
animado quando o viu pela primeira vez. O rapaz tinha 1,93 metro de
altura e pesava noventa quilos.
Era muito ágil, um atleta natural.
-- Você será o capitão do nosso time de futebol.
Robert sentiu a maior satisfação.
-- Seria maravilhoso, senhor.
O time de futebol americano era muito importante para a escola. Todos
se orgulhavam dele. O treinador tinha certeza de que a temporada seria
espetacular, tendo Robert
como ca¬pitão.
Na primeira vez em que o time enfrentou a equipe de outra escola,
Robert avançou pelo campo carregando a bola. Um defensor adversário se
aproximou; em vez de empurrá-lo,
Ro¬bert deixou que ele o derrubasse. No intervalo, o treinador
perguntou a Robert:
-- Por que deixou que ele o derrubasse? Por que não o empurrou?
-- Tive receio de machucá-lo -- respondeu Robert.
O treinador não podia acreditar.
-- Você o quê? O que pensa que é o futebol americano? Uma festinha de
meninas?
O treinador decidiu passar Robert para defensor. O único problema era
que Robert se recusava a derrubar qualquer adversário.
-- O que há com você? -- indagou o treinador. -- Perdemos o jogo por sua
causa. Estava numa posição perfeita para derrubar o atacante.
-- Sei disso, mas se o derrubasse, poderia machucá-lo.
-- Está fora do time! -- gritou o treinador.
O pai de Robert ficou furioso ao saber o que acontecera.
-- Qual é o seu problema? -- berrou ele. -- Quando estava na escola, fui
um dos astros do time de futebol americano. Esperava que você seguisse
meu exemplo. Não gosta
do jogo?
-- Gosto muito, mas...
-- Já sei, não quer machucar ninguém.
Todos os colegas passaram a detestar Robert, porque acham que ele os
decepcionara. Se não fosse por Robert, pode¬riam ter conquistado o
campeonato escolar.
Certa manhã, quando Robert foi abrir seu armário na escola, descobriu
que alguém colara na porta um papel amarelo, com uma palavra:
"Covarde!"
Vários rapazes observavam quando ele abriu o armário, e um deles
perguntou:
-- O que vai fazer?
-- Nada -- respondeu Robert.
Ele não deixaria que ninguém o levasse a uma briga. Sempre se lembrava
do décimo segundo mandamento: "Não farás mal a teu semelhante".
Quando concluiu o curso colegial, o pai lhe disse:
-- Conversei com o chefe de polícia a seu respeito. Vão aceitá-lo no
departamento.
Ele sorria para o filho.
-- Pai... não quero entrar para a polícia.
O sorriso desapareceu.
-- Como?
-- Não quero entrar para a polícia.
O pai de Robert ficou furioso.
-- Qual é o problema? Acha que não é bom o bastante para você?
-- Claro que é, pai, mas eu nunca poderia ser um policial.
-- Por que não?
O pai de Robert já sabia a resposta antes mesmo que o filho a
enunciasse.
-- Porque posso ser obrigado a machucar pessoas.
O pai de Robert não aguentou mais.
-- Tenho vergonha de você. É um covarde desde que era menino. Via
quando os outros garotos o surravam e você nun¬ca tentava sequer se
defender. O treinador de futebol
ameri¬cano de sua escola me contou que você se recusava a derrubar os
adversários. É um covarde, filho. E um mentiroso ainda por cima. Vive
dizendo que não quer
machucar os outros, mas a verdade é que tem medo de se machucar.
-- Acredite em mim, pai, não é isso...
-- Quero que saia desta casa. Está me entendendo? Tenho vergonha de
você!
Robert sentiu-se desolado. Dizia a verdade, mas ninguém acreditava.
"Nunca ouviram falar do décimo segundo mandamento?", especulou. "Não
farás mal a teu semelhante."
Ele saiu de casa na manhã seguinte.
Antes de ir embora, teve uma conversa com a mãe.
-- Lamento a sua saída, filho, mas seu pai se mostra intransigente.
Ela o abraçou e acrescentou:
-- Não creio que você seja um covarde.
-- Obrigado, mamãe.
Robert se mudou para um pequeno apartamento e começou a procurar
emprego. Foi trabalhar num supermercado. O sa¬lário não era grande,
mas pelo menos ali ele tinha
certeza de que não poderia fazer mal a ninguém.
Uma moça muito bonita, chamada Jenny, também trabalhava no
supermercado.
Robert e Jenny começaram a sair juntos, e um dia ele a pediu em
casamento.
Ela aceitou e se casaram.
Jenny achava que o marido era o homem mais maravilhoso do mundo. Era
bonito, inteligente e gentil. Um casamento mui¬to feliz.
Tiveram um filho. E foi nesse momento que os problemas começaram.
O menino, Louis, voltou um dia da escola com um olho roxo e o nariz
sangrando. Jenny ficou horrorizada
-- Quem fez isso com você? -- perguntou ela.
-- Um dos garotos da escola.
O garoto que batera em Louis era muito mais velho que ele.
Quando Robert chegou em casa, Jenny contou o que acontecera.
-- Quero que você converse com o pai do outro menino -- pediu ela.
Robert foi falar com o outro pai.
Era um homem pequeno, muito menor do que Robert.
-- Desculpe incomodá-lo -- disse Robert, muito polido, -- mas parece que
nossos filhos tiveram uma briga.
-- É mesmo? E daí? Todos os garotos brigam.
-- Sei disso, mas não foi uma briga justa. Seu filho é mais velho do
que Louis. Acho que ele não deveria puxar briga com meu filho.
-- E quem disse que foi ele que puxou a briga? Louis é que começou
tudo.
-- Não acredito.
-- Está me chamando de mentiroso? -- berrou o homem.
E deu um soco na cara de Robert.
Robert não revidou.
-- Gostaria que não tivesse feito isso -- murmurou ele.
O homem tornou a esmurrá-lo.
-- Não há necessidade de fazer isso -- insistiu Robert.
O homem desferiu um terceiro soco.
Ao chegar em casa, Robert tinha os dois olhos roxos e o nariz
sangrando. Jenny ficou horrorizada.
-- O que aconteceu?
-- Tive uma pequena discussão com o pai do outro garoto.
-- Espero que não o tenha machucado demais.
-- Não, não o machuquei -- garantiu Robert.
Ao saber de toda a história, o horror de Jenny se tornou ainda maior.
-- Está querendo dizer que deixou que ele o agredisse, sem fazer nada?
-- Isso mesmo -- respondeu Robert. -- Não estava zangado com ele.
-- Não estava zangado? Que espécie de homem você é? Deixa que o filho
dele dê uma surra em Louis e ainda por cima suporta seus socos sem
revidar!
Robert tentou explicar.
-- O décimo segundo mandamento...
-- Não estou interessada no décimo segundo mandamento!
E Jenny saiu da sala, furiosa.
Na escola, todos os meninos zombaram de Louis, porque seu pai era
covarde. O garoto que batera nele no dia anterior disse:
-- Meu pai deu uma surra no seu. E seu pai nem mesmo quis brigar.
-- Meu pai é muito corajoso -- declarou Louis.
Naquela noite, quando Robert chegou em casa, Louis perguntou:
-- Papai, você não tem medo de brigar, não é?
-- Claro que não. Apenas acho que é errado.
Louis observou os dois olhos roxos e o nariz machucado de Robert.
"Meu pai é um covarde", concluiu ele.
Robert ficou transtornado. "Estou fazendo alguma coisa errada?",
perguntou-se ele. "Durante toda a vida me meti em problemas por
obedecer a um dos mandamentos de
Deus." No domingo seguinte, foi se confessar.
-- Eu pequei, padre.
-- Pecou como, meu filho?
-- Obedeci ao décimo segundo mandamento.
Houve um prolongado silêncio antes que o padre dissesse:
-- Não estou entendendo. Você pecou porque obedeceu ao décimo segundo
mandamento?
-- Acho que sim, padre. Estou muito confuso. A Bíblia diz que não devo
brigar, e todo mundo me detesta porque não brigo. Devo estar fazendo
alguma coisa errada. Na
escola, to¬dos os meninos me detestavam, perdi minha namorada, meu pai
me expulsou de casa. E agora minha mulher e meu filho acham que sou
covarde. Não sei mais
o que fazer.
-- Nunca fará nada errado por obedecer aos mandamentos de Deus. Se
violar o décimo segundo mandamento, coisas terríveis lhe acontecerão.
Jenny sentia-se tão perturbada com a covardia do marido que decidiu se
divorciar.
"Eu o amo", pensou, "mas não posso continuar a viver com um homem que
não briga nem por seu filho. Tenho de dizer a ele que quero o
divórcio."
Louis estava em casa, e ela não queria ter a conversa na presença do
filho; por isso disse a Robert:
-- Vamos jantar fora. Precisamos conversar.
-- Está bem.
Robert fez uma reserva num bom restaurante, e sentaram para jantar.
Jenny estava agoniada. Sabia que ia magoar Robert, mas não tinha
opção.
-- Robert, tenho de lhe dizer uma coisa.
Havia quatro homens sentados à mesa ao lado, embriagados, falando
muito alto.
Um deles era enorme, ainda maior do que Robert, que o achou familiar.
Ele não tirava os olhos de Jenny.
-- Ei! -- gritou o homem de repente. -- Sabia que você é uma boneca?
Jenny tentou ignorá-lo.
-- Robert, sei que vai ser difícil, mas...
O grandalhão insistiu:
-- O que está fazendo com esse cara? Devia ficar com um homem como eu.
Robert se aborreceu. Virou-se para o homem e disse:
-- Estamos tentando ter um jantar sossegado. Por que não nos deixa em
paz?
O grandalhão se levantou.
-- Olhem só quem está me dizendo para deixá-lo em paz! Eu poderia
parti-lo ao meio!
-- Por favor, não vamos fazer uma cena -- pediu Robert. -- Sente-se e...
-- Quem é você para me mandar sentar?
Ele se aproximou da mesa e pôs as mãos nos ombros de Jenny.
-- Você é mesmo linda, meu bem.
Robert interveio:
-- Pode fazer o favor de tirar as mãos de cima de minha mulher?
-- Sua mulher? Uma beleza dessas casada com um tipo como você?
O homem tornou a olhar para Jenny.
-- Ei, boneca, que tal se juntar a nós? Vamos para uma boate, e mais
tarde nos divertiremos um pouco.
Jenny estava muito embaraçada. Olhou para o marido.
-- Robert, por favor, faça com que ele me deixe em paz.
Muito polido, Robert murmurou:
-- Senhor, pode fazer a gentileza de se retirar?
O grandalhão soltou uma risada.
-- Ouviram isso? -- Ele arremedou a voz de Robert. -- Senhor, pode fazer
a gentileza de se retirar? O que você é? Um gay, por acaso?
O homem obrigou Jenny a se levantar.
-- Vamos sair daqui e nos divertir um pouco, meu bem.
-- Com licença, mas eu agradeceria se não fizesse isso -- disse Robert.
E começou a se levantar. O grandalhão se inclinou e empurrou Robert de
volta à cadeira.
-- Fique aqui. Sua mulher e eu temos um assunto a resolver.
Ele começou a arrastar Jenny para a outra mesa.
-- Robert!
Robert não podia mais aguentar. Toda a frustração que acu¬mulara ao
longo dos anos atingiu o ponto de erupção.
"Que se dane o décimo segundo mandamento!", pensou ele.
-- Largue-a! -- ordenou, tornando a se levantar.
-- Quem vai me obrigar?
-- Eu!
Pela primeira vez na vida, Robert meteu-se numa briga. Acertou um soco
na cara do grandalhão, que largou Jenny e o atacou. Puseram-se a
trocar golpes violentos.
Todas as pessoas no restaurante observavam, aturdidas, a briga.
O gerente ainda tentou interrompê-la, mas era impossível. Os dois
gigantes se empenhavam num combate total, e nada podia detê-los.
A briga durou quase dez minutos, e terminou quando Roberto acertou um
uppercut que derrubou o grandalhão, deixan¬do-o inconsciente.
Um dos homens que estavam sentados na outra mesa olhou para Robert com
o maior respeito e comentou:
-- Sabe quem você acaba de nocautear? O campeão mundial dos pesos-
pesados!
Na manhã seguinte, os jornais estamparam em manchete o que Robert
fizera:
"Campeão mundial dos pesos-pesados nocauteado!"
-- Querido, eu me orgulho de você -- murmurou Jenriy, abraçando o
marido.
Esquecera por completo que ia lhe pedir o divórcio.
No dia seguinte, Robert recebeu um telefonema do agente do campeão.
-- O campeão diz que você só o derrubou porque ele tinha tomado alguns
drinques. Quer marcar uma luta com você, no Madison Square Garden, a
fim de provar ao mundo
que ninguém é capaz de denotá-lo. Aceita?
-- Por que não?
Robert já violara o décimo segundo mandamento. Não tinha mais nada a
perder agora.
E assim, três meses depois, Robert entrou no ringue com o campeão
mundial de boxe.
Jenny estava ali, assim como a mãe e o pai de Robert, Louis e até Amy.
Nenhum deles saiu desapontado.
Robert nocauteou o campeão no terceiro round e tornou-se o novo
campeão mundial dos pesos-pesados.
Nos cinco anos seguintes, Robert derrotou todos os desafiantes e
ganhou mais de vinte milhões de dólares.
Tudo isso porque violou o décimo segundo mandamento.
O Autor e sua Obra
Em abril de 1985, Sidney Sheldon desembarcou no Brasil para o
lançamento de Se houver amanhã, e participou de uma noite de
autógrafos em São Paulo e outra no Rio
de Janeiro, cenário dos capítulos finais desse romance e que serve de
refúgio à personagem central do livro, um escroque audacioso e
simpático. Cercado por uma intensa
campanha publicitária, Sheldon verificou seu enorme prestígio diante
do público brasileiro.
Milionário e famoso, Sidney Sheldon jamais abandonou sua rotina de
trabalho, ditando cerca de cinquenta laudas por dia à sua secretária.
Apesar desse ritmo intenso,
Sheldon leva cerca de três anos para escrever um romance, desde a
pesquisa da história e das personagens até a entrega dos originais
para o editor.
Filho de Otto Sheldon, um vendedor, e Natalie Sheldon, Sidney nasceu
em Chicago, Illinois, no dia 11 de fevereiro de 1917. Terminou o curso
secundário em 1935 e
logo depois ingressou na Universidade de Northwestern, em Evanston, no
Illinois. Para sobreviver aos duros anos da Depressão, teve de
abandonar os estudos para trabalhar
como vendedor de sapatos, locutor de rádio e empregado de hotel. Por
essa época compunha músicas, e uma delas, My silent self, era uma das
mais solicitadas nos salões
do Bismarck Hotel, na sua cidade, onde trabalhava como contínuo.
Sonhando ser um compositor famoso, seguiu para Nova York em 1936, mas
seis meses de frustração foram suficientes para que decidisse
abandonar a música e resolvesse
tentar a sorte em Hollywood, como leitor e adaptador de obras
literárias para o cinema. Aos dezessete anos, adaptou o romance Ratos
e homens, de John Steinbeck,
e foi contratado pela Universal, iniciando assim uma longa e bem-
sucedida ligação com o mundo do cinema. Ao todo, trabalhou em trinta
filmes como roteirista, diretor
e produtor.
Mas, apesar do sucesso, Sheldon quis tentar conquistar o público de
teatro, supostamente mais exigente. No final dos anos 50, estava na
Broadway, onde encenou oito
peças, conhecendo tanto o sucesso com Rodhead -- que ganhou o prêmio
Tonny de melhor musical e permaneceu dois anos em cartaz -- quanto o
fracasso de Roman candle,
que não passou de cinco dias em cena. Da Broadway, foi para o ainda
novo universo da televisão, e pelo menos três, dos mais de duzentos
roteiros que criou, estão
na memória de milhões de telespectadores e na programação de muitos
canais de tevê até hoje: The Patty Duke show (uma comédia acerca de
uma típica família de classe
média americana), Jeannie é um gênio e Casal 20.
Assim como já havia utilizado a experiência do teatro para fazer
televisão, o inquieto Sheldon soube aproveitar seu conhecimento dos
meios de comunicação de massa
para criar enredos literários que conquistassem um amplo público. Em
1970, aos cinquenta e três anos de idade, publicava seu primeiro
romance, A outra face, que
dosava admiravelmente os ingredientes que compõem os best sellers.
Casado desde 1951 com a hectares Jorge Curt Wright, o romancista vive
até hoje numa mansão em Bel Air, Califórnia.
Do autor, o Círculo já publicou O outro lado da meia-noite, Um
estranho no espelho, A ira dos anjos, O reverso da medalha, A outra
face, A herdeira, Se houver amanhã,
Lembranças da meia-noite, Um capricho dos deuses, As areias do tempo,
O juízo final e Escrito nas estrelas. Suas obras para o público jovem,
entre as quais Corrida
pela herança e A perseguição já saíram pelo Círculo, têm seguido o
mesmo caminho de sucesso das demais, conquistando milhões de leitores
no mundo inteiro.
Conheça um pouco mais sobre o autor Sidney Sheldon:
Sidney Sheldon nasceu em 11 de fevereiro de 1917 em Chicago,
no estado de Illinois, EUA. Como seu pai era um vendedor que viajava
com frequência, Sidney
morou em várias cidades. Segundo ele, isso o transformou em uma pessoa
tímida e um pouco solitária. Aos 12 anos, escreveu sua primeira peça,
que ele também produziu,
dirigiu e estrelou. Frequentou a Northwestern University, em Chicago,
aonde participava ativamente de debates. Depois de terminar a
faculdade, aos 22 anos, Sidney
Sheldon se mudou para Hollywood com a esperança de entrar no show
business. Ele escreveu alguns roteiros e enviou para diversos
estúdios, e só não obteve resposta
de um deles.Começou a trabalhar até que chegou aos estúdios 20th
Century-Fox, onde impressionou a todos com seu talento e logo
conseguiu um emprego de roteirista.
Escreveu diversos filmes de sucesso, até chegar a TV onde produziu
"The Patty Duke Show" em 1963. Essa série fez muito sucesso e duraram
três anos. A partir daí, Sidney
adquiriu experiência para a sua grande obra televisiva: "Jeannie É Um
Gênio". Depois, ele ainda criou duas outras séries: "Nancy", nos anos
70, e "Hart to Hart",
nos anos 80. Sidney Sheldon conta que enquanto trabalhava na TV, ele
não tinha a menor vontade de escrever um livro. Ele nem se achava
capaz de fazer isso. Mas,
em 1969, algumas ideias começaram a surgir em sua mente, e ele acabou
escrevendo seu primeiro livro, "The Naked Face". Hoje ele diz que
adora escrever livros pois
não há colaboradores, e ele pode fazer tudo exatamente do jeito que
quer. "Ninguém sabe de onde vem a inspiração," ele fala. "Eu acho que
a criatividade é um dom.
Nós devemos trabalhar muito para desenvolvê-lo." Pelos seus trabalhos
como escritor, ele recebeu um Oscar (por "The Bachelor and The Bobby-
Soxer"), um prêmio Tony
(de teatro) e uma indicação para o Emmy pelo seu trabalho em
"Jeannie". Oito de seus livros se transformaram em minisséries de
sucesso nos EUA. Hoje, Sidney e sua
terceira esposa, Alexandra Kostoff, vivem entre a Califórnia e um
apartamento em Londres. Seu primeiro casamento, com Jane Harding
Kaufman em 1945, terminou em divórcio
dois anos depois. Ele tem uma filha, Mary, do seu segundo casamento,
com a atriz Jorge Curtright, que morreu em 1985. Sua atitude em
relação à vida é simples: "As
pessoas geralmente são negativas e sem coragem. Lembre-se disso: Nada
pode impedi-lo quando você estabelece um objetivo. Ninguém pode
impedi-lo, a não ser você mesmo.
Eu acredito nisso." Sidney Sheldon já vendeu mais de 275 milhões de
livros em todo o mundo. É o único escritor que recebeu três dos mais
cobiçados prêmios da indústria
cultural americana: o Oscar (cinema), o Tony (teatro) e o Edgar
(literatura de suspense). É atualmente o autor mais traduzido em todo
o planeta.
Procure conhecer outros de seus livros:
* 1969 A Outra Face
* 1974 O Outro Lado da Meia-Noite
* 1976 Um Estranho no Espelho
* 1977 A Herdeira
* 1980 A Ira dos Anjos
* 1982 O Reverso da Medalha
* 1986 Se Houver Amanhã
* 1987 Um Capricho dos Deuses
* 1988 As Areias do Tempo
* 1990 Lembranças da Meia-Noite
* 1991 Juízo Final
* 1992 Escrito nas Estrelas
* 1994 Nada Dura para Sempre
* 1994 A Perseguição
* 1994 Corrida pela Herança
* 1995 O Ditador
* 1995 Manhã, Tarde e Noite
* 1995 Os Doze Mandamentos
* 1995 O Fantasma da Meia-Noite
* 1997 O Plano Perfeito
* 1998 Conte-me Seus Sonhos
* 2000 O Céu Está Caindo
* 2001 O Estrangulador
* 2004 Quem Tem Medo do Escuro??
* 2006 O Outro Lado de Mim
* 2009 A Senhora do Jogo
[*Nota feita pela revisora. Feita com a intenção do leitor conhecer
mais sobre o autor. Não existe essa nota no livro original. A
formatação do livro é personalizada.]
Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para
proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua
leitura àqueles que não podem comprá-la
ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma,
a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer
contraprestação é totalmente condenável
em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da
distribuição, portanto distribua este livro livremente.
Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o
original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação
de novas obras.
Se gostou do trabalho e quer encontrar outros títulos nos visite em
http://groups.google.com/group/expresso_literario/, o Expresso
Literário é nosso grupo de compartilhamento
de e-books.
Será um prazer recebê-los.
QUEM TEM MEDO
DO ESCURO
SIDNEY SHELDON
Sumário
PRÓLOGO 5
Berlim, Alemanha. 5
Paris, França. 7
Denver, Colorado 9
Manhattan, Nova Iorque 11
CAPÍTULO 1 14
CAPÍTULO 2 29
CAPÍTULO 3 36
CAPÍTULO 4 39
CAPÍTULO 5 48
CAPÍTULO 6 55
CAPÍTULO 7 62
CAPÍTULO 8 65
CAPÍTULO 9 75
CAPÍTULO 10 85
CAPÍTULO 11 94
CAPÍTULO 12 106
CAPÍTULO 13 114
CAPÍTULO 14 120
CAPÍTULO 15 130
CAPÍTULO 16 140
CAPÍTULO 17 153
CAPÍTULO 18 163
CAPÍTULO 19 168
CAPÍTULO 20 182
CAPÍTULO 21 190
CAPÍTULO 22 201
CAPÍTULO 23 211
CAPÍTULO 24 219
CAPÍTULO 25 228
CAPÍTULO 26 240
CAPÍTULO 27 251
CAPÍTULO 28 256
CAPÍTULO 29 267
CAPÍTULO 30 278
CAPÍTULO 31 285
CAPÍTULO 32 293
CAPÍTULO 33 308
CAPÍTULO 34 324
CAPÍTULO 35 334
CAPÍTULO 36 346
CAPÍTULO 37 350
CAPÍTULO 38 354
CAPÍTULO 39 365
CAPÍTULO 40 377
CAPÍTULO 41 382
CAPÍTULO 43 398
CAPÍTULO 44 403
CAPÍTULO 45 413
CAPÍTULO 46 417
POSFACIO 423
PRÓLOGO
Berlim, Alemanha.
Sonja Verbrugge não fazia idéia de que esse seria o último dia da sua vida. Tentava abrir caminho através do mar de turistas de Verão que inundava as calçadas de
Unter der Linde. Não entre em pânico, disse para si mesma. Você precisa ficar calma.
A urgente mensagem de Franz no seu computador fora aterradora. Foge, Sonja! Vai para o Artemísia Hotel. Ali estarás em segurança. Espera até seres contatada...
A mensagem acabara abruptamente. Porque é que Franz não a terminara? O que se estaria a passar? Na noite anterior ouvira o marido dizer a alguém ao telefone que
Prima tinha que ser impedido, custasse o que custasse. Quem era Prima?
Frau Verbrugge aproximava-se da rua Brandenburgische, onde ficava o Artemísia, um hotel que só recebia mulheres. Vou ficar aqui à espera de Franz e ele vai-me explicar
o que se está a passar. No momento em que Sonja Verbrugge chegou à esquina seguinte, a luz do semáforo passara a vermelho e, quando ela parou no passeio, alguém
no meio da multidão deu-lhe um encontrão e ela cambaleou para o meio da estrada. Verdammt Touristen! Uma limusine que estivera parada em segunda fila, arrancou de
repente na sua direção tocando-lhe de raspão o suficiente para a lançar ao chão. As pessoas começaram ajuntar-se em seu redor.
- Ela está bem? - Ist ihr etwas passiert? - Peut-elle marcher?
Nesse instante, uma ambulância que passava parou. Dois maqueiros correram para ela.
- Nós tomamos conta da ocorrência.
Sonja Verbrugge deu por si a ser erguida para dentro de uma ambulância. A porta fechou-se e, no instante seguinte, o veículo afastou-se velozmente.
Estava amarrada a uma maca e tentou sentar-se.
- Eu estou bem - protestou. - Não foi nada. Eu...
Um dos maqueiros debruçava-se sobre ela.
- Está tudo bem frau Verbrugge. Descontraia-se. Olhou sobressaltada para cima, de repente assustada.
- Mas como é que sabe o meu...
Sentiu a dor aguda de uma agulha hipodérmica a enterrar-se no seu braço e, no momento seguinte, cedeu, entrando na escuridão que a aguardava.
Paris, França.
Mark Harris estava sozinho no andar panorâmico da Torre Eiffel, indiferente à chuva intensa que rodopiava em seu redor. De vez em quando o brilho de um relâmpago
pulverizava as gotas de chuva transformando-as em deslumbrantes cascatas de diamantes.
Na margem oposta do rio Sena, via-se o Palácio de Chaillot e os Jardins do Trocadero tão seus conhecidos, mas ele nem sequer se apercebia da sua presença. Estava
concentrado nas espantosas notícias prestes a serem comunicadas ao mundo.
O vento começara a fustigar a chuva, transformando-a num verdadeiro turbilhão. Mark Harris protegeu o pulso com a manga e olhou para o relógio. Estavam atrasados.
E porque tinham insistido em encontrar-se ali, à meia-noite? No momento em que se punha a questão, ouviu a porta do elevador da torre a abrir-se. Dois homens moviam-se
na sua direcção, lutando contra a terrível força do vento molhado.
Assim que Mark os reconheceu, ficou aliviado.
- Estão atrasados.
- Desculpa, Mark, mas foi por causa deste tempo terrível.
- Bom, o que interessa é que já aqui estão. Quanto à reunião em Washington, está tudo tratado, não está?
- É sobre isso que precisamos falar. A verdade é que esta manhã tivemos uma longa discussão sobre a melhor maneira de tratarmos isto e decidimos...
Enquanto falavam, o segundo homem passara para trás de Mark e duas coisas ocorreram quase ao mesmo tempo. Um instrumento pesado e cortante abateu-se sobre o crânio
de Mark e, no segundo imediato, este sentiu-se erguido e lançado por cima do parapeito, sob a chuva fria, o corpo a mergulhar na direção do inexorável passeio, trinta
e oito andares mais abaixo.
Denver, Colorado
Gary Reynolds crescera na acidentada Kelowna, no Canadá, perto de Vancouver, e fora aí que aprendera a pilotar, estando habituado a voar sobre terreno montanhoso
e traiçoeiro. Pilotava um Cessna Citation II e mantinha um olhar atento sobre os picos cobertos de neve que o rodeavam.
O avião deveria ter uma tripulação de dois pilotos, mas nesse dia não havia nenhum co-piloto. Não nesta viagem, pensou, carrancudo.
Pedira um plano de vôo falso para o aeroporto de Kennedy. Ninguém se ia lembrar de procurar por ele em Denver. Passaria a noite em casa da irmã e de manhã estaria
a caminho do leste, para se encontrar com os outros. Todos os preparativos para eliminar Prima estavam a postos e... Uma voz no rádio interrompeu-lhe o pensamento.
- Citation Um Um Um Lima Foxtrot, aqui torre de controle do Aeroporto Internacional de Denver, chama. Contacte, por favor.
Gary Reynolds premiu o botão do rádio.
- Aqui Citation Um Um Um Lima Foxtrot. Peço autorização para aterrar.
- Um Lima Foxtrot, indique a sua posição.
- Um Lima Foxtrot. Estou a quinze milhas a nordeste do aeroporto de Denver. Altitude: quinze mil pés.
Viu o Pike's Peak lá em cima do seu lado direito. O céu estava azul brilhante, o tempo limpo. Um bom sinal.
Houve um curto silêncio. A voz da torre surgiu de novo:
- Um Lima Foxtrot, autorizado a aterrar na pista dois-seis. Repito, dois-seis.
- Um Lima Foxtrot, compreendido.
Sem pré-aviso, Gary Reynolds sentiu o avião dar um salto inesperado. Espantado, olhou pela janela da cabina. Um forte vento surgir e em poucos segundos o Cessna
foi apanhado numa violenta turbulência que sacudiu o aparelho de um lado para o outro. Puxou comando para tentar ganhar altitude. Não serviu de nada. Fora apanhado
num terrível turbilhão. O aparelho estava completamente descontrolado. Premiu violentamente o botão do rádio.
- Aqui Um Lima Foxtrot. Tenho uma emergência.
- Um Lima Foxtrot, de que tipo é a sua emergência?
Gary Reynolds gritava para o microfone:
- Fui apanhado por turbulência de baixa altitude! Estou no meio de um maldito furacão!
- Um Lima Foxtrot, está apenas a quatro minutos e meio do aeroporto de Denver e não temos qualquer sinal de turbulência nos nossas telas.
- Quero lá saber dos vossas telas! Estou-vos a dizer... - O tom agudo da sua voz de repente aumentou: - Mayday may...
Na torre de controle viram chocados o ponto luminoso a desaparecer da tela do radar.
Manhattan, Nova Iorque
Ao amanhecer, numa zona sob a ponte de Manhattan, no rio East, não muito longe do píer dezessete, meia dúzia de polícias uniformizados e detetives à paisana reuniam-se
em volta de um corpo completamente vestido que jazia na margem. O corpo fora ali atirado de forma descuidada, por isso a cabeça balouçava estranhamente para a frente
e para trás na água, seguindo os movimentos da maré.
O homem à frente das operações, o detetive Earl Greenburg, da Seção de Homicídios da Esquadra de Manhattan Sul, terminara com os procedimentos oficiais devidos.
Ninguém estava autorizado a aproximar-se do corpo até este ter sido fotografado, e ele tirara vários apontamentos sobre a cena envolvente, enquanto os polícias procuravam
provas que por ali pudessem existir. As mãos da vítima tinham sido embrulhadas em sacos plásticos limpos.
Carl Ward, o médico legista, deu por terminado o seu exame, ergueu-se e sacudiu o pó das calças. Olhou para os dois detetives encarreguados do caso. O detetive Earl
Greenburg era um profissional, um homem de aspecto capaz, com uma folha de serviços impressionante. O detetive Robert Praegitzer tinha o cabelo cinzento e grisalho
e refletia a postura de quem já vira tudo aquilo antes.
Ward virou-se para Greenburg:
- É todo teu, Earl.
- O que é que temos? - A causa óbvia é a garganta cortada, direitinho até à carótida. Tem as duas rótulas esmigalhadas e parece-me que algumas costelas partidas.
Alguém tratou dele, e bem.
- E quanto à hora da morte?
Ward olhou para a água que batia contra a cabeça da vítima:
- Difícil de estabelecer. Imagino que o tenham lançado para aqui algures depois da meia-noite. Dou-vos um relatório completo assim que o conseguirmos levar para
o necrotério.
Greenburg virou a sua atenção para o corpo. Casaco cinzento, calças azuis-escuras, gravata azul-clara, um relógio caro no pulso esquerdo. Greenburg ajoelhou-se e
começou a percorrer os bolsos do casaco da vítima. Os seus dedos encontram um bilhete. Puxou-o para fora, segurando-o pela borda.
- Está em italiano. - Olhou em redor: - Gianelli!
Um dos polícias uniformizados correu apressado na sua direcção.
- Sim, senhor?
Greenburg deu-lhe a nota para as mãos.
- Consegues ler isto? Gianelli leu alto, devagar:
- Última oportunidade. Encontra-te comigo no píer dezessete com o resto da droga, senão vais nadar com os peixinhos. - E devolveu-a.
Robert Praegitzer parecia espantado.
- Um golpe da Máfia? E porque é que o deixaram aqui, assim às claras?
- Boa pergunta.
Greenburg continuou a vasculhar os outros bolsos do casaco. Tirou uma carteira para fora e abriu-a. Estava pesada com dinheiro. - Pelo visto não andavam atrás do
dinheiro dele. Tirou um cartão da carteira. - O nome da vítima é Richard Stevens.
Praegitzer franziu o sobrolho.
- Richard Stevens... Não veio há pouco tempo qualquer coisa sobre ele nos jornais?
- Sobre a mulher dele. Diane Stevens. Está em tribunal a depor no julgamento por assassínio do Tony Altieri - respondeu Greenburg.
- É isso. Ela está a testemunhar contra o capo di capos - concordou Praegitzer.
E ambos viraram-se para olhar o corpo de Richard Stevens.
CAPÍTULO 1
Na baixa de Manhattan, na sala de audiências número trinta e sete do edifício do Supremo Tribunal Criminal, no número 180 da Centre Street, o julgamento de Anthony
(Tony) Altieri decorria. A grande e venerável sala estava completamente apinhada com jornalistas e espectadores.
À mesa da defesa sentava-se Anthony Altieri numa cadeira de rodas, acabrunhado, de aspecto pálido, um gordo batráquio dobrado sobre si mesmo. Só os olhos estavam
vivos, e, de cada vez que olhava para Diane Stevens sentada no banco das testemunhas, esta sentia perfeitamente o pulsar do seu ódio.
A seu lado sentava-se Jake Rubenstein, o advogado de defesa. Rubenstein era famoso por duas coisas, a sua clientela famosa, principalmente constituída por criminosos,
e o fato de que quase todos os seus clientes acabavam por ser absolvidos.
Rubenstein era um homem baixo, elegante, com uma rápida e vívida imaginação. Nunca se apresentava de modo igual nas suas intervenções em tribunal. A sua especialidade
era o dramatismo e era extremamente competente. Era brilhante a aferir os opositores, com um instinto quase animal para descobrir os seus pontos fracos. Por vezes
Rubenstein imaginava que era um leão, que ia cercando a insuspeita presa, pronto a saltar-lhe em cima... ou uma ardilosa aranha, a tecer uma teia que acabaria por
envolvê-la, deixando-a à sua mercê... Por vezes era um paciente pescador, calmamente lançando a linha à água e movendo-a vagarosamente para cima e para baixo até
que a gulosa vítima desse por ela e a abocanhasse.
O advogado estudava cuidadosamente a testemunha no banco. Diane Stevens andava pelos trinta e poucos anos. Uma áurea de elegância envolvia-a. Tinha traços aristocráticos.
Cabelo louro suave e ondulante. Olhos verdes. Uma excelente figura. A típica beleza americana. Vestia um elegante e bem cortado casaco preto.
Jake Rubenstein sabia que no dia anterior ela causara Uma impressão favorável sobre o júri. Tinha que ter muito cuidado com a forma como lidaria com ela. Pescador,
decidiu.
Rubenstein aproximou-se vagarosamente do banco das testemunhas e, quando falou, a sua voz era suave:
- Senhora Stevens, ontem testemunhou que, na data em questão, no dia catorze de Outubro, guiava em direcção a sul pela Henry Hudson Parkway quando teve um pneu furado
e saiu da auto-estrada, na saída da One Hundred com a Fifty-eighth Street, para desvio de emergência no parque Fort Washington Park?
- Exatamente.
A voz dela era suave e educada.
- Porque parou exatamente nesse local?
- Por causa do pneu furado, sabia que tinha de sair da estrada principal e vi o telhado de uma cabana através das árvores. Pensei que houvesse aí alguém que me pudesse
ajudar. Não tinha pneu sobressalente.
- É membro de algum clube automóvel?
- Sou.
- E tem um telefone no seu carro?
- Tenho.
- Então porque é que não ligou para o clube automóvel?
- Porque pensei que iria demorar muito tempo.
- E claro. E a cabana estava logo ali - disse Rubenstein com ar compreensivo.
- Exatamente.
- Então aproximou-se para pedir ajuda?
- Sim.
- Ainda havia luz cá fora? - Havia. Foi antes das cinco da tarde.
- E por isso conseguia ver perfeitamente?
- Podia.
- E o que foi que viu, senhora Stevens?
- Vi Anthony Altieri...
- Ah! Já o tinha encontrado antes?
- Não.
- Então o que foi que lhe deu a certeza que se tratava dele?
- Eu já tinha visto a foto dele nos jornais e...
- Já tinha visto fotos que se pareciam com o réu?
- Bom, elas...
- E o que foi que viu nessa cabana?
Diane Stevens respirou, estremecendo. Falou devagar, a relembrar a cena na sua mente.
- Havia quatro homens na sala. Um deles estava sentado numa cadeira, amarrado. O senhor Altieri parecia
interrogá-lo enquanto os outros dois homens estavam junto dele. -A sua voz estremeceu.
- O senhor Altieri puxou de uma arma, berrou qualquer coisa e... disparou sobre o homem, na cabeça.
Jake Rubenstein olhou pelo canto do olho para o júri. Todos estavam absortos no testemunho dela.
- E depois o que fez, senhora Stevens?
- Corri de volta para o meu carro e liguei o 911 do meu telemóvel.
- E a seguir?
- Guiei dali para fora.
- Com um pneu furado?
- Sim. Estava chegado o momento de agitar um pouco as águas.
- Porque foi que não esperou pela chegada da polícia?
Diane olhou na direção da mesa da defesa. Altieri olhava para ela com clara malevolência. Ela desviou o olhar.
- Não podia ficar ali, porque... porque temia que os homens saíssem da cabana e me vissem.
- Isso é compreensível. - A voz de Rubenstein endureceu. - O que não se compreende é que, quando a polícia respondeu à sua chamada para o 911, tenham entrado na
cabana e não só não estava lá ninguém, senhora Stevens, como não conseguiram encontrar qualquer sinal de que lá
tivesse estado alguém, quanto mais que alguém tivesse sido assassinado.
- Não é culpa minha. Eu...
- A senhora é uma artista, não é?
Diane ficou espantada com a pergunta:
- Sim, eu...
- E é bem sucedida?
- Acho que sim, mas o que é que isso...?
Estava chegada a altura de abanar o anzol.
- Um pouco de publicidade extra não faz mal a ninguém, pois não? Todo o país a vê no noticiário da noite na televisão e nas primeiras páginas dos...
Diane olhou para ele com ar furioso: - Eu não fiz isto para ter publicidade. Eu jamais seria capaz de mandar um homem inocente para a...
- A palavra chave é "inocente", senhora Stevens. E eu vou provar, para lá de qualquer dúvida razoável, que o senhor Altieri é inocente. Muito obrigado. Terminei.
Diane Stevens ignorou o duplo sentido. Quando desceu pa regressar ao seu lugar, espumava. Murmurou qualquer coisa ao advogado de acusação.
- Posso ir-me embora?
- Sim. Vou mandar alguém para a acompanhar.
- Não é preciso. Muito obrigada.
Dirigiu-se para a porta e caminhou em direção ao parque de estacionamento, as palavras do advogado de defesa ainda a ecoarem aos seus ouvidos, A senhora é uma artista,
não é... Um pouco de publicidade extra não faz mal a ninguém, pois não ? Era degradante. Mas, no todo, estava satisfeita com a forma como o seu testemunho decorrera.
Dissera ao júri exatamente o que vira e eles não tinham qualquer razão para duvidarem dela. Anthony Altieri ia ser condenado e mandado para a prisão pelo resto da
vida, mas, apesar disso, Diane não conseguia evitar pensar nos venenosos olhares que ele lhe deitara, e sentiu um arrepio.
Deu ao empregado do parque o bilhete e ele partiu para lhe ir buscar o carro.
Dois minutos mais tarde, Diane guiava em direção a norte, a caminho de casa.
Havia um semáforo na esquina. Quando Diane travava para parar, um jovem muito bem vestido que estava parado na esquina aproximou-se do carro.
- Desculpe, estou perdido. Podia...
Diane baixou o vidro.
- Importa-se de me dizer como se vai para o túnel Holland? o jovem tinha sotaque italiano.
- E muito simples. Dirija-se à primeira...
O homem ergueu o braço e tinha uma arma com silenciador na mão:
- Minha senhora. Saia já do carro. Rápido Diane empalideceu.
- Tenha calma. Está bem...
Quando começava a abrir a porta do carro, o homem afastou-se para trás um pouco e Diane carregou com toda a força com o pé no acelerador e o carro afastou-se a grande
velocidade. Ouviu o vidro traseiro a ser estilhaçado quando foi atingido por uma bala, e em seguida o som de outra bala a embater contra as traseiras. O coração
batia-lhe descompassado e tinha dificuldade em respirar.
Diane Stevens ouvira falar em sequestros de automóveis, mas eram histórias que se contavam, algo que só acontecia aos outros. E o homem tentara matá-la. Os assaltantes
de carros costumavam fazer isso? Diane esticou a mão para o telemóvel e marcou o 911. Passaram-se quase dois minutos até alguém do outro lado atender.
- Nove um um. Qual é a emergência?
Enquanto Diane explicava o que se tinha passado, foi-se apercebendo da inutilidade da situação. Naquela altura o homem já devia ter desaparecido.
- Vou mandar um polícia para o local. Pode dar-me o seu nome, morada e um número de telefone?
Diane deu as informações. Inútil, pensou. Deitou uma olhadela ao vidro partido e estremeceu. Ansiava por poder falar com Richard no trabalho e contar-lhe o que se
passara, mas sabia que ele estava ocupado com um projeto muito importante. Se lhe telefonasse e lhe contasse o que se passara, ele ia ficar preocupado e correria
para junto dela, e ela não queria que ele falhasse o prazo. Contar-lhe-ia o que se passara quando ele voltasse para casa.
E, de repente, um terrível pensamento ocorreu-lhe. Estaria o homem ali à espera dela, ou tudo não passara de uma coincidência? Recordou a conversa que tivera com
Richard, quando o julgamento começara:
- Acho que não deves testemunhar, Diane. Pode ser muito perigoso.
- Querido, não te preocupes. O Altieri vai ser condenado. Eles vão prendê-lo para sempre.
- Mas ele tem amigos e...
- Richard, se eu não fizer isto, não vou ser capaz de me encarar.
O que acabara de se passar tinha de ser uma coincidência, decidiu Diane. Altieri não seria, com certeza,
suficientemente doido para me fazer qualquer coisa, principalmente nesse momento, enquanto o julgamento estava a decorrer.
Diane saiu da auto-estrada e guiou para oeste até chegar ao edifício onde tinha o seu apartamento, na East Seventy-fifth Street. Antes de entrar na garagem subterrânea
olhou cuidadosamente uma vez mais pelo retrovisor. Tudo parecia normal. O apartamento era um dúplex térreo bastante arejado, com uma espaçosa sala de estar, janelas
que iam do chão até ao teto e uma grande lareira em mármore. Tinha sofás forrados com tecidos floridos, cadeirões de braços, uma estante embutida e uma enorme tela
de televisão. Nas paredes havia coloridos quadros. Um Childe Hassam, um Jules Pascin, um Thomas Birch, um George Hitchcock e, numa zona grande, um grupo de quadros
pintados por ela própria.
No andar seguinte, havia um quarto de casal e uma casa de banho, um segundo quarto de visitas e um ensolarado ateliê onde Diane costumava pintar. Vários dos seus
quadros estavam pendurados pelas paredes. Num cavalete no meio da divisão estava um retrato meio acabado.
A primeira coisa que fez assim que chegou a casa, foi entrar apressadamente no ateliê. Retirou o retrato inacabado do cavalete e substituiu-o por uma tela virgem.
Começou a desenhar o rosto do homem que a tentara matar, mas as mãos tremiam-lhe de tal forma que teve de parar.
Enquanto guiavam em direção ao apartamento de Diane vens, o detetive Earl Greenburg queixou-se:
- Esta é a parte do meu trabalho que eu mais detesto.
- E melhor sermos nós a dizer-lhes do que ficarem a saber pelos noticiários da noite - respondeu Robert Praegitzer, e olhou para Greenburg. - Dizes tu?
Earl Greenburg anuiu com um ar infeliz. Deu por si a recordar a história do detetive que saíra para informar a senhora Adams, mulher de um patrulha, que o marido
fora morto.
- Ela é muito sensível prevenira-o o chefe. Vais ter que lhe dar a notícia com muito cuidado.
- Não se preocupe. Eu sé lidar com isso.
- O detetive batera à porta da casa dos Adams e, quando a mulher fora abrir, o detetive perguntara:
- É aqui que mora a viúva Adams ?
Diane sobressaltou-se ao ouvir o som da campainha da porta. Não estava à espera de ninguém. Dirigiu-se ao intercomunicador:
- Quem é?
- Detetive Earl Greenburg. Gostaria de falar consigo, senhora Stevens.
É sobre o sequestro do carro, pensou. A polícia fora rápida. Premiu o botão e Greenburg entrou no átrio e caminhou até à porta dela.
- Boa tarde.
- Senhora Stevens?
- Sim. Muito obrigada por terem vindo tão depressa. Já comecei a desenhar o rosto do homem, mas... - respirou fundo. - Ele era moreno, com olhos castanhos-claros
muito profundos e tinha um pequeno sinal no queixo. A arma tinha um silenciador e...
Greenburg olhava para ela, confuso.
- Desculpe, mas não estou a perceber...
- O assaltante de carros. Eu chamei o 911 e... Viu a expressão no rosto do polícia. - Isto não tem nada a ver com assaltos a carros, pois não?
- Não, minha senhora, não tem... - e Greenburg fez uma pequena pausa. - Posso entrar?
- Faça favor. Greenburg entrou.
Diane olhava para ele de sobrolho franzido:
- O que é que se passa? Aconteceu alguma coisa? As palavras pareciam não querer sair.
- Sim, lamento muito. Receio... receio que seja portador de muito más notícias. É sobre o seu marido.
- O que foi que aconteceu? - A voz dela tremia.
- Ele sofreu um acidente.
Diane de repente sentiu-se gelada.
- Que tipo de acidente?
Greenburg suspirou profundamente:
- Foi morto ontem à noite, senhora Stevens. Encontrámos o corpo dele esta manhã debaixo de uma ponte, no rio East.
Diane ficou a olhar para ele durante um longo momento e, em seguida, começou a abanar a cabeça.
- Está enganado na pessoa, Tenente. O meu marido está a trabalhar no seu laboratório.
Ia ser muito mais difícil do que aquilo que antecipara.
- Senhora Stevens, o seu marido veio para casa ontem à noite?
- Não, mas Richard trabalha frequentemente à noite. Ele é cientista. .. - Ela estava a ficar cada vez mais agitada.
- Senhora Stevens, tinha conhecimento de que o seu marido estivesse envolvido com a Máfia?
Diane empalideceu. - Com a Máfia? Está louco?
- Encontrámos...
Diane começara a hiperventilar.
- Deixe-me ver a sua identificação.
- Com certeza. - E o detetive Greenburg puxou do seu cartão de identificação e mostrou-lho.
Diane deitou-lhe uma olhadela, devolveu-lho e em seguida esbofeteou-o com força na cara.
- Esta cidade paga-lhe para andar por aí a assustar os cidadãos honestos? O meu marido não está morto! Ele está a trabalhar! - Diane gritava.
Greenburg olhou para o fundo dos olhos dela e viu neles choque e negação.
- Senhora Stevens, quer que mande vir alguém para olhar pela senhora...?
- O senhor é que precisa de alguém que olhe por si. Agora, ponha-se daqui para fora.
- Senhora Stevens... - Já!
Greenburg tirou um cartão de visita e colocou-o em cima de uma mesa:
- No caso de vir a querer falar comigo, tem aqui o meu número de telefone.
Enquanto se dirigia para a porta, Greenburg pensava: Não há dúvida de que tratei muito bem deste caso, sim senhor. Mais valia que tivesse chegado e perguntado se
era a viúva Stevens!
Quando o detetive saiu, Diane trancou a porta da frente e respirou fundo, a tremer. Mas que idiota! Vir ao apartamento errado e tentar assustar-me! Devia era participar
dele. Olhou para o relógio. Richard devia estar a chegar. Estava na altura de ir começar a fazer o jantar. Ia fazer uma paelha, o prato preferido dele. Dirigiu-se
à cozinha e começou a prepará-lo.
Devido ao secretismo do trabalho de Richard, Diane nunca o perturbava no laboratório e, se o marido não lhe telefonava, ela sabia que isso significava que ele ia
chegar tarde. As oito em ponto a paelha estava pronta. Provou-a e sorriu, satisfeita. Estava feita exatamente como Richard gostava. As dez da noite, ele ainda não
tinha chegado e Diane colocou a paelha no frigorífico e colou uma mensagem na porta que dizia: "Querido, o jantar está no frigorífico. Vem e acorda-me". Richard
devia, com certeza, estar com fome, quando chegasse a casa.
De repente, Diane sentiu-se exausta. Despiu-se, enfiou uma camisa de noite, escovou os dentes e meteu-se na cama. Poucos minutos depois dormia profundamente.
Às três da manhã acordou a gritar.
CAPÍTULO 2
Já nascia o dia e Diane ainda não tinha conseguido parar de tremer. O frio que sentia vinha-lhe de dentro, dos ossos. Richard estava morto. Nunca mais o ia voltar
a ver, nunca mais ouviria a sua voz, nunca mais o sentiria a abraçá-la. E tudo por minha culpa. Eu nunca devia ter entrado naquela sala de audiências. Oh, Richard,
perdoa-me... Por favor, perdoa-me... Não sei se conseguirei viver sem ti. Tu eras a minha vida, a minha razão de viver, e agora nada me resta.
Queria enrolar-se como um novelo pequenino. Queria desaparecer. Queria morrer.
Ali ficou, deitada, sozinha, a pensar no passado, em como Richard lhe transformara a vida...
Diane West crescera em Sands Point, Nova Iorque, numa zona de calma riqueza. O pai era cirurgião e a mãe uma artista, e Diane começara a desenhar aos três anos.
Frequentara o colégio interno de St. Paul e, quando era caloira na universidade, tivera um breve relacionamento com o seu carismático professor de matemática. Ele
dizia-lhe que queria casar com ela, porque ela era a única mulher no mundo para ele. Quando Diane soube que ele tinha mulher e três filhos, concluiu que ou a matemática
ou a memória dele tinha algum defeito e pediu a transferência para a Universidade de Wellesley.
Estava obcecada com a arte e passava todos os momentos livres a pintar. Quando se formou, tinha começado a vender os seus quadros e conquistara uma reputação como
uma prometedora artista.
Nesse outono, uma conhecida galeria da Quinta Avenida deu a Diane a possibilidade de fazer uma exposição, e foi um enorme sucesso. Paul Deacon, o proprietário da
galeria, era um afro-americano rico e erudito que ajudava Diane a alimentar a sua carreira.
Na noite da abertura, o salão estava apinhado. Deacon apressou-se na direção de Diane, com um sorriso no rosto.
- Parabéns! Já vendemos a maior parte dos quadros! Vou fazer uma nova exposição daqui a alguns meses, assim que estiveres pronta.
Diane estava encantada.
- Mas, Paul, isso é maravilhoso.
- Tu mereces. Deu-lhe uma palmadinha no ombro e partiu.
Diane assinava um autógrafo, quando um homem surgiu por detrás dela e disse:
- Gosto das suas curvas.
Diane ficou rígida. Furiosa, virou-se bruscamente e abriu aboca para fazer um comentário brusco, quando ele continuou:
- Têm a delicadeza de um Rossetti ou de um Manet.
Ele apreciava um dos seus quadros na parede.
Diane conseguiu parar, mesmo a tempo.
- Oh!
Olhou para ele mais de perto. Parecia andar pelos trinta e poucos anos. Tinha cerca de um metro e oitenta e dois de altura, uma constituição atlética, cabelo louro
e olhos azuis brilhantes. Vestia um macio fato castanho, camisa branca e gravata castanha.
- Eu... Muito obrigada.
- Quando é que começou a pintar?
- Quando ainda era criança. A minha mãe era pintora.
Ele sorriu.
- A minha mãe era cozinheira, mas eu não sei cozinhar. Eu sei qual é o seu nome. O meu é Richard Stevens.
Nesse momento, Paul Deacon aproximou-se com três embrulhos.
- Aqui tem os seus quadros, senhor Stevens. Goze-os bem. Deu-os a Richard Stevens e afastou-se.
Diane olhou para ele, espantada.
- O senhor comprou três dos meus quadros?
- E tenho mais dois no meu apartamento.
- Eu... Sinto-me muito lisonjeada.
- Aprecio o talento.
- Obrigada.
- Bom, provavelmente está muito ocupada, por isso é melhor eu ir andando... - disse ele hesitante.
- Não. Está tudo bem - ouviu-se Diane a dizer.
Ele sorriu.
- Ótimo. - E hesitou. - Srta. West, podia fazer-me um grande favor? Diane olhou para a mão esquerda dele. Não tinha aliança.
- Sim, diga?
- Acontece que tenho dois bilhetes para a estreia de uma reposição de Blithe Spirit, de Noêl Coward, amanhã à noite, e não tenho ninguém com quem ir. Se estiver
livre...
Diane estudou-o por momentos. Parecia simpático e era muito atraente, mas a verdade é que era um verdadeiro desconhecido. Demasiado perigoso. Mesmo muito perigoso.
Mas o que se ouviu a dizer foi:
- Tenho muito gosto em ir.
Afinal a noite seguinte acabou por ser encantadora. Richard Stevens era uma companhia divertida e houve uma imediata empatia. Partilhavam o mesmo interesse por arte
e por música e muito mais. Sentia-se atraída por ele, mas não tinha a certeza se ele sentia o mesmo em relação a ela.
No final da noite, Richard perguntou: - Amanhã à noite, está livre?
A sua resposta foi um decidido "Sim".
Na noite seguinte jantaram num restaurante calmo, no Soho.
- Richard, fale-me de si.
- Não há muito para contar. Nasci em Chicago. O meu pai era arquiteto e construiu edifícios por todo o mundo, e eu e a minha mãe costumávamos acompanhá-lo nas viagens.
Frequentei uma boa dúzia de escolas internacionais e aprendi a falar uma série de línguas, como autodefesa.
- O que é faz? Em que é que trabalha?
- Trabalho no GIK, o Grupo Internacional Kingsley. E um grande grupo de massa cinzenta.
- Parece excitante.
- É fascinante. Fazemos pesquisa de tecnologia de ponta. Se tivéssemos um lema, seria qualquer coisa do genero: "Se não temos a resposta agora, aguarde até amanhã".
Depois do jantar, Richard levou Diane a casa. A porta, pegou-lhe na mão e disse:
- Gostei muito desta noite. Obrigado. E desapareceu. Diane ficou parada, a vê-lo partir. Que bom que ele é um cavalheiro, e não um garanhão. Fico mesmo feliz. Raios!
Estiveram juntos todas as noites que se seguiram e, cada vez que Diane via Richard, sentia o mesmo calor dentro de si. Numa noite de sexta-feira, Richard perguntou:
- Eu treino uma pequena equipe de Infantis aos sábados. Queres vir comigo e ficar a ver?
Diane acenou com a cabeça. - Adoraria, Sr. treinador. Na manhã seguinte, Diane ficou a ver Richard a trabalhar com ansiosos jovens futebolistas. Ele era brando,
atencioso e paciente, gritando de alegria quando Tim Holm, com dez anos, apanhou a bola no ar, e era óbvio que todos o adoravam.
Estou a ficar apaixonada. Estou a ficar apaixonada, pensou Diane.
Alguns dias mais tarde, Diane teve um almoço descontraído com algumas amigas e, quando saíram do restaurante, passaram à porta do gabinete de uma vidente.
Num impulso, Diane exclamou:
- Vamos ler as nossas sinas.
- Eu não posso, Diane. Tenho de voltar para o trabalho.
- Eu também.
- Eu tenho de ir buscar o Johnny.
- Porque não vais tu e depois dizes-nos o que ela te disse?
- Está bem. Eu vou.
Cinco minutos mais tarde, Diane deu por si sozinha, sentada com uma velha de rosto macilento, a boca cheia de dentes de ouro e um xaile sujo na cabeça.
Isto é um disparate, pensou. Porque é que estou a fazer isto ? Mas sabia perfeitamente a razão. Queria saber se ela e Richard tinham algum futuro juntos. É só para
me divertir, disse para si própria.
Diane ficou a olhar enquanto a velha pegava num baralho de cartas de Tarot e as baralhava, sem nunca olhar para cima.
- Eu queria saber se...
- Shiu! - E a mulher virou uma carta. Era a figura do Bobo, vestido de forma colorida e com um saco. A mulher estudou a carta por momentos.
- Há muitos segredos que tem de aprender. -Virou outra carta.
- Esta é a Lua. Tem desejos sobre os quais, não está segura.
Diane hesitou e acenou afirmativamente com a cabeça.
- E têm a ver com um homem?
- Sim.
A velha virou a carta seguinte.
- Esta é a carta dos Amantes.
Diane sorriu.
- É um bom sinal?
- Veremos. As próximas três cartas é que o dirão. - E virou outra carta. - O Enforcado. - Franziu o sobrolho, hesitou e virou a carta seguinte. - O Diabo - murmurou.
- Isso é mau? - perguntou Diane em tom ligeiro.
A vidente não respondeu.
Diane olhava, enquanto a velha virava outra carta. Abanou a beça. A voz dela era estranhamente vazia:
- A carta da Morte.
Diane pôs-se de pé.
- Eu não acredito em nada disto - disse, zangada.
A velha olhou para cima e, quando falou, a sua voz era completamente vazia:
- Não importa aquilo em que acredita. A morte anda à sua volta.
CAPÍTULO 3
Berlim, Alemanha.
O Polizeikommandant Otto Schiffer, dois policias uniformizados e o superintendente do edifício de apartamentos, HerrKarl Goetz olhavam para o corpo nu e encarquilhado
que jazia no fundo da banheira a transbordar. Uma nódoa negra pouco nítida circundava-lhe o pescoço.
O Polizeikommandant colocou um dedo sob a torneira que pingava:
- Fria.
Cheirou a garrafa de licor vazia que estava junto da banheira e virou-se para o superintendente do prédio:
- Como se chama ela?
- Sonja Verbrugge. O marido é Franz Verbrugge. É uma espécie de cientista.
- Ela vivia neste apartamento com o marido?
- Há seis anos. Eram uns inquilinos maravilhosos. Pagavam a renda sempre a tempo. Nunca houve nenhum problema. Toda a gente gostava... - Percebeu o que ia a dizer
e calou-se.
- A Frau Verbrugge trabalhava?
- Sim, no café Cyberlin, onde as pessoas usam os computadores para...
- O que foi que o levou a descobrir o corpo?
- Foi por causa da torneira de água fria da banheira. Tentei arranjá-la várias vezes, mas nunca desligava completamente.
- E então?
- Então, esta manhã o morador do apartamento por baixo queixou-se que tinha água a cair-lhe do teto. Vim cá acima, bati à porta e, como não obtive resposta, abri-a
com a minha chave mestra. Entrei na casa de banho e dei com... -A voz embargou-se-lhe.
Um detective entrou na casa de banho.
- Não há quaisquer garrafas de bebidas destiladas nos armários, só de vinho.
O Kommandant anuiu.
- Certo - e apontou para a garrafa junto da banheira. - Procurem impressões digitais nessa.
- Sim, senhor.
O Kommandant virou-se para Karl Goetz:
- Sabe onde se encontra Herr-Verbrugge?
- Não. Costumo vê-lo de manhã, quando ele sai para o trabalho, mas... - E fez um gesto de ignorância.
- Não o viu esta manhã?
- Não.
- Faz idéia se Herr Verbrugge tencionava fazer alguma viagem?!
- Não, senhor. Não faço idéia.
O Kommandant virou-se para o detetive:
- Fala com os outros moradores. Tenta saber se nos últimos tempos Frau Verbrugge andava deprimida, se ela e o marido costumavam ter discussões e se ela bebia. Tenta
conseguir o máximo de informações. - E olhou para Karl Goetz. - Vamos verificar também o marido. Se pensar que há alguma coisa que possa ajudar...
Karl Goetz disse timidamente:
- Não faço idéia se isto pode ajudar ou não, mas um dos moradores contou-me que ontem à noite havia uma ambulância parada em frente do prédio e perguntou se alguém
estava doente. Quando eu lá cheguei para ver o que se estava a passar, a ambulância já tinha desaparecido. Tem algum interesse?
O Kommandant respondeu:
- Vamos investigar.
- E... e quanto ao... corpo? -perguntou Karl Goetz nervoso, - O médico legista já vem a caminho. Esvaziem a banheira e tapem-na com uma toalha.
CAPÍTULO 4
- Receio que tenha muito más notícias... Morto ontem à noite... Encontramos o corpo debaixo de uma ponte...
Para Diane Stevens o tempo parara. Vagueava sem destino pelo amplo apartamento cheio de recordações e pensava: O conforto dele desapareceu... O calor dele desapareceu...
Sem Richard tudo isto não passa de um monte de tijolos. Nunca mais terá vida.
Diane afundou-se num sofá e fechou os olhos. Querido Richard, no dia em que nos casamos, perguntaste-me o que queria eu de presente. Eu respondi-te que não queria
nada. Mas agora quero. Volta para mim. Não interessa que eu não te possa ver. Aperta-me nos teus braços. Saberei onde estás. Preciso de te sentir uma vez mais. Quero
sentir-te a acariciar-me o seio... Quero imaginar que consigo ouvir a tua voz a dizer que fiz a melhor paelha do mundo... Quero ouvir a tua voz a pedir-me para parar
de te roubar a roupa da cama... Quero ouvir-te dizer que me amas. Tentou parar o inesperado caudal de lágrimas, mas sem sucesso.
Desde o momento em que percebeu que Richard morrera, Diane passou os dias que se seguiram trancada no apartamento escurecido, recusando-se a atender o telefone ou
a porta. Era como um animal ferido, escondido. Queria estar a sós com a sua dor. Richard, houve tantas vezes em que te quis dizer "amo-te", para que me pudesses
responder "eu também te amo!" Mas não queria parecer carente. Fui uma idiota. Agora estou carente.
Por fim, como o telefone e a campainha não paravam de tocar, Diane decidiu abrir a porta.
Na sua frente estava Carolyn Ter, uma das suas amigas mais íntimas. Ela olhou para Diane e disse:
- Estás com um aspecto terrível! - Depois a sua voz tornou-se mais terna. - Toda a gente tem tentado entrar em contato contigo, minha querida. Temos estado muito
preocupados.
- Desculpa, Carolyn, mas não estou capaz de...
Carolyn tomou Diane nos braços.
- Eu sei. Mas há um monte de amigos que te querem ver.
Diane abanou a cabeça:
- Não. É imposs...
- Diane, a vida de Richard acabou, mas a tua não. Não te feches para as pessoas que gostam de ti. Vou começar a fazer uns telefonemas.
Os amigos de Diane e de Richard começaram a telefonar e a aparecer no apartamento e Diane deu por si a ouvir a interminável litania das habituais palavras de sentimentos:
- Pensa assim, Diane. Richard está em paz... - Foi Deus que o chamou, querida...
- Eu sei que Richard está no céu, cuidando de ti...
- Ele está num lugar melhor... - Ele está junto dos anjos... Diane só queria gritar.
A corrente de visitas parecia nunca mais ter fim. Paul Deacon, o proprietário da galeria de arte que expunha os trabalhos de Diane, apareceu no apartamento. Pôs
os braços em redor de Diane e disse:
- Tenho tentado falar contigo, mas...
- Eu sei.
- Lamento tanto o que aconteceu a Richard. Ele era um homem raro. Mas, Diane, tu não te podes fechar assim às pessoas. Todos esperam ter a possibilidade de ver mais
dos teus belos trabalhos.
- Não sou capaz. Já não é importante, Paul. Nada é importante; cheguei ao fim.
Nada a conseguia convencer.
No dia seguinte, quando a campainha da porta tocou, Diane encaminhou-se relutante para ela. Olhou através do óculo e pareceu-lhe ver uma pequena multidão do outro
lado. Intrigada, Diane abriu a porta. Havia uma dúzia de rapazinhos no átrio.
Um deles tinha na mão um pequeno ramo de flores.
- Bom dia, senhora Stevens. - E entregou as flores a Diane.
- Muito obrigada.
De repente, lembrou-se de quem eram os meninos. Eram os membros da pequena equipa de Infantis que Richard treinava.
Diane recebera inúmeros ramos de flores, de cartões de pêsames e de e-mails, mas este era o mais tocante de todos...
- Entrem - pediu. Os rapazinhos entraram atabalhoadamente na sala.
- Só queríamos dizer-lhe que sentimos muito.
- O seu marido era um tipo sensacional.
- Era mesmo legal.
- E era um excelente treinador.
Foi a gota de água, Diane não conseguiu reter as lágrimas por mais tempo.
- Muito obrigada. Ele também achava que vocês eram ótimos. Tinha muito orgulho em vocês. - Respirou fundo. - Querem beber alguma coisa?
Tim Holm, o miúdo de dez anos que apanhara a bola pelo ar, respondeu:
- Não, muito obrigado, senhora Stevens. Só lhe queríamos dizer que nós também vamos sentir muito a falta dele. Todos contribuímos para as flores. Custaram doze dólares.
- Só queríamos mesmo dizer que lamentamos muito.
Diane olhou para eles e disse calmamente:
- Muito obrigada. Eu sei como Richard iria ficar satisfeito por vocês terem vindo.
Ficou a olhar enquanto eles murmuravam as despedidas e partiam.
Observando-os à saída, recordou a primeira vez que vira Richard treinar os miúdos. Falava-lhes como se tivessem a mesma idade dele, numa linguagem que eles percebiam,
e eles gostavam dele por isso. Foi nesse dia que me comecei a apaixonar.
Lá fora, Diane ouviu o som de um trovão e as primeiras gotas de chuva começaram a escorrer pelas janelas, como se fossem as lágrimas de Deus. Chuva. Fora num fim
de semana grande...
- Gostas de piqueniques? - perguntara Richard. - Adoro.
Ele sorrira.
- Eu sabia. Vou planejar um piquenique. Amanhã ao meio-dia passo para te apanhar.
Estava um maravilhoso dia de sol. Richard preparara um piquenique no meio de Central Park. Havia pratas e atoalhados, e quando Diane viu o que estava dentro do cesto
de piquenique desatou a rir. Rosbife... fiambre... queijos... dois enormes patês... e uma grande variedade de bebidas e meia dúzia de sobremesas.
- Há aqui comida que chega para um regimento! Quem é que vem mais? - Um pensamento inesperado ocorreu-lhe. Um padre! Corou.
Richard observava-a.
-Estás bem?
- Se eu estou bem? Nunca estive tão feliz.
- Claro que estou, Richard.
Ele assentiu:
- Óptimo. Não vamos esperar pelo regimento. Podemos comer.
Enquanto comiam, havia tanta coisa para dizer, e cada palavra parecia aproximá-los ainda mais. Uma grande tensão sexual com cava a crescer entre eles e ambos sentiam-na.
E a meio daquela tarde perfeita, de repente começou a chover. Em poucos minutos ficaram completamente encharcados. Richard disse, pesaroso:
- Lamento muito. Já devia saber... O jornal dizia que não ia haver chuva. Receio que nos tenha estragado o piquenique e...
Diane aproximou-se suavemente dele e disse com toda a suavidade:
- E estragou?
E estava nos braços dele, e os seus lábios comprimiam-se com os dele, e conseguia sentir o coração dele a bater ecoando no seu. Quando, por fim, se afastou, disse:
- Temos que despir estas roupas encharcadas.
Ele riu-se.
- Tens razão. Não queremos apanhar uma...
- Em tua casa ou na minha? - perguntou Diane.
Richard, de repente, ficou estático.
- Diane, tens a certeza? Eu pergunto porque... isto não é coisa de uma noite.
- Eu sei - respondeu ela calmamente.
Meia hora mais tarde estavam no apartamento de Diane, despindo-se, os braços à volta um do outro, e as mãos explorando o corpo um do outro, de forma torturante,
e por fim já não aguentaram e caíram na cama.
Richard foi suave, e terno, e apaixonado, e frenético, e era magia pura, e a língua dele encontrou a dela e moveu-se vagarosamente, e era como vagas quentes a baterem
suavemente numa praia de veludo, e em seguida ele estava dentro dela, preenchendo-a.
Passaram o resto da tarde e uma boa parte da noite a conversar e a fazer amor, e abriram os seus corações um ao outro, e não havia palavras para descrever a sua
emoção.
De manhã, enquanto Diane fazia o pequeno almoço, Richard perguntou:
- Queres casar comigo, Diane?
E ela virou-se para ele devagarinho e respondeu suavemente:
- Oh, sim!
O casamento teve lugar um mês depois. A cerimónia foi acolhedora e maravilhosa, com amigos e familiares a darem os parabéns aos recém casados. Diane olhou para o
rosto radiante de Richard, lembrou-se das premonições da velha vidente e sorriu.
Tinham planeado passar a lua-de-mel em França, para onde partiriam na semana seguinte, mas Richard telefonara-lhe do trabalho:
- Surgiu um novo projecto e não me posso afastar. Importas-te que adiemos para daqui a uns meses? Desculpa, querida.
- É claro que não, querido - respondera.
- Queres vir almoçar hoje comigo?
- Adorava.
- Tu gostas de comida francesa. Eu conheço um excelente restaurante francês. Apanho-te dentro de meia hora.
Trinta minutos mais tarde, Richard estava lá fora à espera de Diane.
- Olá, querida. Tenho de ir ter com um dos nossos clientes ao aeroporto. Ele vai para a Europa. Despedimo-nos dele e depois vamos almoçar.
Abraçou-o.
- Tudo bem.
Quando chegaram ao aeroporto Kennedy, Richard disse: - Ele tem um avião particular. Vamo-nos encontrar com ele lá em baixo.
Um guarda permitiu que passassem para uma zona de acesso restrito, onde um Challenger estava estacionado. Richard olhou em volta.
- Ele não está aqui. Esperamos no avião.
- Muito bem.
Subiram as escadas e entraram no luxuoso aparelho. Os motores estavam em funcionamento.
O comissário de bordo surgiu, vindo do cockpit:
- Bons dias.
- Bons dias - respondeu Richard.
Diane sorriu:
- Bons dias.
Olharam enquanto o comissário fechava a porta do avião. Diane olhou para Richard:
- Achas que o teu cliente está muito atrasado?
- Ele não demora nada.
O rugir dos motores soava cada vez mais forte. O avião come a taxiar.
Diane olhou pela janela e ficou pálida.
- Richard, nós estamos a andar.
Richard olhou para ela com ar espantado:
- Tens a certeza?
- Olha pela janela. - Estava ficar em pânico. - Diz... diz ao piloto...
- O que queres que eu lhe diga?
- Para parar!
- Não posso. Eleja levantou voo.
Houve um momento de silêncio e Diane olhou para Richard, olhos abertos de espanto.
- Onde é que nós vamos?
- Oh! Eu não te disse? Vamos a Paris. Tu disseste que gostas de comida francesa.
Ela arquejou. Em seguida a sua expressão alterou-se.
- Richard, eu não posso ir assim para Paris! Não tenho roupa comigo. Não tenho maquilhagem. Não tenho...
- Ouvi dizer que eles lá têm lojas - respondeu ele.
Diane olhou para ele por um segundo e em seguida lançou os braços ao pescoço.
- Oh, seu doido. Amo-te.
Ele sorriu.
- Tu querias uma lua de mel. Aqui a tens.
CAPÍTULO 5
Em Orly, aguardava-os uma limusina para os levar ao Hotel Piaza Athénée.
Quando chegaram, o director do hotel disse:
- A vossa suite está pronta, senhor e senhora Stevens.
- Muito obrigado.
Ficaram instalados na suite 310. O director abriu a porta e Diane e Richard entraram. Diane parou, chocada. Pendurados nas paredes, viam-se meia dúzia de quadros
seus. Virou-se para olhar para Richard.
- Eu... Como é que...?
- Não faço ideia. Pelos vistos por aqui também têm bom gosto - respondeu ele com ar inocente.
Diane beijou-o longa e apaixonadamente.
Paris foi o paraíso. A primeira paragem que fizeram foi na Givenchy, para comprarem roupas para os dois, e em seguida na Louis Vuitton, para comprarem malas para
as roupas novas.
Passearam calmamente ao longo dos Campos Elísios em direcção à Place de la Concorde e viram o lendário Arco do Triunfo, o Palais Bourbon e La Madeleine. Caminharam
pela Place Vendôme e passaram um dia no museu do Louvre. Percorreram o jardim de esculturas do museu Rodin e fizeram jantares românticos no Auberge des Trois Bonheurs
e no Au Petit Chez Soi e no D'Chez Eux.
A única coisa que deixava Diane intrigada eram os telefonemas que Richard recebia a horas muito esquisitas.
- Quem era? - perguntou uma vez às 3 da manhã, quando Richard acabou um telefonema.
- Era uma chamada normal de trabalho. A meio da noite? - Diane! Diane!
Despertou bruscamente do seu devaneio. Carolyn Ter estava ao seu lado.
- Estás bem?
Carolyn abraçou Diane.
- Precisas de tempo. Ainda só se passaram uns dias - hesitou.
- Já trataste dos preparativos para o funeral?
Funeral! A palavra mais triste na língua inglesa. Carregava o som da morte, um eco de desespero.
- Eu... Eu ainda não... fui capaz de...
- Deixa que eu ajudo-te. Eu escolho o caixão e...
- Não! -A palavra soou muito mais ríspida do que pretendera.
Carolyn olhou para ela, intrigada.
Quando Diane voltou a falar, a voz tremia-lhe.
- Não percebes? Esta é... esta é a última coisa que posso fazer por Richard. Quero que o seu enterro seja especial. Ele gostaria de ter lá todos os seus amigos,
para se despedirem.
As lágrimas escorriam-lhe pela cara abaixo.
- Diane...
- Tenho de ser eu a escolher o caixão de Richard para ter a certeza de que ele... de que ele dorme confortável.
Não havia mais nada que Carolyn pudesse dizer.
Naquela tarde, o detective Earl Greenburg estava no seu gabinete quando chegou a chamada.
- Diane Stevens ao telefone para falar consigo.
Oh, não! Greenburg lembrava-se da bofetada que recebera na última vez que a vira. E o que seria agora? Se calhar tinha alguma queixa. - Atendeu o telefone.
- Detective Greenburg.
- Fala Diane Stevens. Estou a telefonar por duas razões. A primeira é para me desculpar. Portei-me muito mal consigo, lamento muito.
Ele ficou sem saber o que dizer.
- Senhora Stevens, não precisa de pedir desculpa. Compreendo perfeitamente a sua situação. Aguardou. Fez-se um silêncio.
- Disse que estava a telefonar por duas razões.
- Sim. O meu marido... -A voz apagou-se-lhe. - O corpo do meu marido está retido algures pela polícia. Como é que eu o recupero? Estou a tratar do seu enterro na
Agência Funerária Dalton.
O desespero na voz dela fê-lo crispar-se.
Senhora Stevens, infelizmente ainda faltam alguns procedimentos. Primeiro que tudo o gabinete do médico legista tem de fazer um relatório da autópsia, e em seguida
há que notificar os vários... - Pensou por momentos e depois tomou uma decisão. - Olhe, a senhora já tem muito com que se preocupar. Eu trato de tudo. As coisas
estarão despachadas dentro de dois dias.
- Muito obrigada. Eu... Muito obrigada. Muito, muito obrigada.
A voz faltou-lhe e a ligação terminou.
Earl Greenburg continuou sentado por um bom bocado a pensar em Diane Stevens e na angústia que a consumia. Em seguida começou a tratar de pôr um ponto final na burocracia.
A Funerária Dalton situava-se a leste da Madison Avenue. Era um imponente edifício de dois andares com uma fachada semelhante à das mansões sulistas. Lá dentro,
a decoração era de bom gosto e sóbria, com luzes suaves e cortinas leves.
Diane dirigiu-se à recepcionista:
- Tenho hora marcada com o senhor Jones. O meu nome é Diane Stevens.
- Muito obrigada.
A recepcionista falou ao telefone e pouco depois o gerente, um homem grisalho, de rosto agradável, apareceu para receber Diane.
- Eu sou Ron Jones. Falámos ao telefone. Compreendo a terrível situação por que está a passar, senhora Stevens, e a nossa função e aliviar-lhe o peso. Diga simplesmente
o que pretende e nós trataremos de que os seus desejos sejam satisfeitos.
- Eu... Eu nem sei muito bem o que pedir - respondeu Diane, Pouco segura.
Jones assentiu.
- Permita que lhe explique. Os nossos serviços incluem um caixão, um serviço fúnebre para os seus amigos, um lugar no cemitério e o enterro - hesitou. - Por aquilo
que li nos jornais sobre a morte do seu marido, senhora Stevens, o mais natural é que pretenda um caixão fechado para o serviço fúnebre, de maneira que...
- Não!
Jones olhou para ela espantado:
- Mas...-
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- Eu quero-o aberto. Quero que Richard possa ver todos os amigos, antes de... - a voz embargou-se-lhe.
Jones estudava-a com ar de quem a compreendia:
- Estou a perceber. Então, se me permite que faça uma sugestão, nós temos cá um maquilhador que trabalha muito bem nos casos... - e avançou com o maior tacto - ...em
que é necessário. Está de acordo?
Richard ia detestar isso, mas...
- Sim.
- Há só mais uma coisa. Precisamos das roupas em que enterrar o seu marido.
Diane olhou para ele chocada.
- As...? - Diane imaginou as frias mãos de um estranho a o corpo nu de Richard e estremeceu.
- Senhora Stevens?
Tenho de ser eu a vestir Richard. Mas não vou ser capaz de o ver deve estar. Quero recordá-lo...
- Senhora Stevens?
Diane engoliu em seco.
- Não pensei nas... - a voz saía-lhe entrecortada. - Desculpe - e não foi capaz de continuar.
Ele ficou a olhar enquanto ela saía atabalhoadamente e chamava um táxi.
- Tu gostas de comida francesa... Eu conheço um excelente restaurante francês...
O casaco azul marinho... o casaco de camurça... Diane colocou os braços do fato azul em redor do seu corpo e abraçou-o. Nunca vou ser capaz de deixar partir nenhum
deles. Cada um era uma recordação preciosa.
- Não sou capaz. - E, soluçando, apanhou um fato ao acaso e saiu a correr.
Na tarde do dia seguinte havia uma mensagem no gravador de chamadas de Diane: "Senhora Stevens, fala o detective Greenburg. Quero que saiba que já está tudo tratado.
Falei com a Funerária Dalton. Já pode avançar com os preparativos que queira fazer... - fez uma pequena pausa. - Desejo-lhe boa sorte... Adeus.
Diane ligou para Ron Jones da funerária.
- Já sei que o corpo do meu marido está aí.
- Sim, senhora Stevens. Já estão a tratar da parte da maquilhagem e recebemos as roupas que nos mandou. Muito obrigado.
- Pensei que... Acha que se pode fazer o enterro sexta-feira que vem?
- Sexta-feira está óptimo. Nessa altura já teremos tratado de todos os pormenores. Sugiro as onze horas da manhã. Daqui a três dias eu e Richard ficaremos afastados
para sempre. Ou até que eu me junte a ele.
Assim que Diane chegou ao apartamento, encaminhou-se para o armário de Richard. Havia duas filas de cabides com fatos. Cada um deles carregava preciosas recordações.
Ali estava o fato castanho que Richard usara na noite em que o conhecera na galeria.
- Gosto das suas curvas. Têm a delicadeza de um Rossetti ou de um Manet.
Seria capaz de deixar partir esse fato? Nem pensar. Os dedos tocaram o seguinte. Era o leve casaco desportivo cinzento que Richard usara no piquenique, quando tinham
sido apanhados pela chuva.
- Em tua casa ou na minha?
- Isto não é uma coisa de uma rude.
- Eu sei.
Como podia não o guardar? O fato de riscas era o seguinte.
Na quinta-feira de manhã, Diane estava atarefada a preparar os detalhes finais do funeral, a verificar a longa lista de convidados e os que iriam carregar o caixão,
quando recebeu um telefonema.
- Senhora Stevens?
- Sim.
- Fala Ron Jones. Era só para lhe dizer que recebemos os documentos que nos enviou e que a mudança de planos foi levada a cabo, tal como nos pediu.
- Documentos...? - perguntou Diane intrigada - Sim. O mensageiro trouxe-os ontem, com a sua carta.
- Mas eu não mandei nada...
- Na realidade, eu próprio fiquei um pouco espantado, mas, claro, a decisão era sua. Acabámos de cremar o corpo do seu marido há cerca de uma hora. 40 41
CAPÍTULO 6
Paris
Kelly Harris era uma beldade que surgira de forma meteórica no mundo da moda. Andava pelos vinte e poucos anos, uma afro-americana com pele da cor do mel fundido
e um rosto que era o sonho de qualquer fotógrafo. Tinha olhos aveludados e inteligentes, lábios cheios e sensuais, umas belas e longas pernas e uma silhueta cheia
de promessas eróticas. O cabelo escuro estava cortado curto de forma irregular, com algumas madeixas espalhadas pela testa. No início do ano, os leitores das revistas
Elle e Mademoiselle tinham votado em Kelly como a Modelo Mais Bonita do Mundo.
Enquanto acabava de se vestir, Kelly olhou em redor do seu apartamento no último andar do prédio, experimentando, como sempre, uma sensação de espanto. O apartamento
era espectacular. Estava situado na restrita rua de S. Louis en lie, no Quarto Arrondissement de Paris. O apartamento tinha uma porta dupla de entrada que abria
para um elegante átrio, tectos altos e paredes apaineladas em tom amarelo-claro, e a sala estava mobilada com uma ecléctica mistura de móveis franceses e Regência.
Do terraço, do outro lado do Sena, via-se Notre Dame.
Kelly aguardava ansiosamente a chegada do próximo fim de semana. O marido ia levá-la numa das suas saídas surpresas.
Quero que te vistas bem, minha querida. Vais adorar o sítio aonde vamos.
Kelly sorriu. Mark era o homem mais maravilhoso do mundo. Olhou para o relógio de pulso e suspirou.
O melhor é despachar-me, pensou. A mostra começa daqui a meia hora. Instantes depois saiu do apartamento, dirigindo-se pelo átrio na direcção do elevador. Entretanto,
a porta de um dos apartamentos vizinhos abriu-se e a senhora Josette Lapointe surgiu no outro corre(42)dor.
Uma pequena bola de gente, tinha sempre uma palavra simpática para Kelly.
- Boas tardes, senhora Harris.
Kelly sorriu.
.- Boa tarde, senhora Lapointe.
- Hoje está maravilhosa, como sempre, aliás.
- Muito obrigada. - E Kelly premiu o botão de chamada do ele vador.
A alguma distância delas, um homem encorpado com um fato-macaco aparafusava algo numa parede. Olhou para as duas mulheres e em seguida desviou o olhar.
- E como vai a vida de modelo? - perguntou a senhora La pointe.
- Muito bem, muito obrigada.
- Tenho que ir brevemente vê-la numa dessas suas passagens de modelos.
- Terei muito gosto em tratar disso, quando quiser.
O elevador chegou e Kelly e a senhora La pointe entraram. O homem de fato-macaco sacou de um rádio transmissor, falou rapidamente e apressou-se a sair dali. Quando
as portas do elevador se começavam a fechar, Kelly ouviu o telefone a tocar no seu apartamento. Hesitou. Estava com pressa, mas podia ser Mark a ligar.
- Vá andando - disse à senhora La pointe. Kelly saiu do elevador, procurou as chaves, encontrou-as e entrou a correr no apartamento, levantou o telefone que tocava
e atendeu-o.
- Mark?
Uma voz desconhecida perguntou:
- Nanette?
Kelly sentiu-se desapontada.
- Não conhecemos ninguém com esse nome.
- Desculpe, então. Foi engano.
Um engano. Kelly desligou. Nesse preciso momento ouviu um estrondo enorme que sacudiu todo o prédio. Em seguida, uma confusão de vozes e gritos. Horrorizada, correu
para a entrada para ver o que se passara. O som vinha lá de baixo. Kelly correu pelas escadas abaixo e, quando chegou ao átrio, ouviu vozes altas e excitadas que
vinham da cave.
Apreensiva, desceu as escadas que davam para a cave e estacou horrorizada ao ver a cabina do elevador esmagada e o corpo horri- 43 velmente destroçado da senhora
La pointe. Kelly sentiu que ia desmaiar. Pobre senhora. Ainda há um minuto estava viva e agora... E eu podia ter ido com ela. Se não fosse aquele telefonema... Uma
multidão juntara-se em redor do elevador e ouvia-se ao longe o som das sirenes.
Eu devia ficar aqui, pensou Kelly com sentimentos de culpa, mas não posso. Tenho de me ir embora. Olhou para o corpo e murmurou - Lamento muito, senhora La pointe.
Quando Kelly chegou ao salão de moda e atravessou a porta palco, Pierre, o nervoso coordenador de moda já a esperava. Saltou sobre ela:
- Kelly! Kelly! Estás atrasada! A mostra já começou e...
- Peço muita desculpa, Pierre. E que houve um acidente horrível.
Ele olhou para ela horrorizado:
- Estás ferida?
- Não. - Kelly fechou por momentos os olhos. A ideia de trabalhar depois do que acabara de ver era repugnante, mas não tinha alternativa. Era a estrela do espectáculo.
- Despacha-te!-pediu Pierre. - Vitel
Kelly partiu em direcção ao camarim.
A mais prestigiada passagem de modelos decorria no número 3 da Rue Cambon, o salão original da casa Chanel. Os paparazzi seni vanuse nas filas da frente. Todos os
lugares estavam ocupados e fundo do salão estava apinhado de gente em pé, ansiosa por poder ver as primeiras mostras das criações para a estação que chegava. O salão
fora decorado para o acontecimento com flores e tecidos bordados, mas ninguém lhes prestava a mínima atenção. As verdadeiras atracções iam surgir sobre a longa passarela,
um rio de múltiplas cores em movimento, de beleza e de estilo. Como pano de fundo havia sempre música a tocar, a sua lenta batida a sincopar os momentos sobre o
palco.
À medida que as maravilhosas jovens deslizavam para a frente para trás, eram acompanhadas por uma voz num altifalante que comentava os modelos apresentados.
Uma morena asiática iniciou a decida da passarela... "um casaco de cetim com pespontes altos, calças em georgette e uma blusa branca...
Uma loura esguia ondulou pela passarela "...vestindo uma camisola de gola alta de caxemira com calças largas brancas..."
Uma ruiva com ar decidido "...usa um casaco de cabedal preto e calças pretas em shantung, com uma camisa tricotada branca..."
Um modelo francês, "...um casaco rosa em angora com três botões, uma camisola de gola alta de torcidos e calças pretas justas..."
Um modelo sueco "...um casaco à marinheiro em cetim azul, com calças e uma encantadora blusa..."
E em seguida chegou o momento que todos aguardavam. O modelo sueco desapareceu e a passarela ficou vazia. A voz no altifalante anunciou:
- E agora que chegou a estação balnear, vamos apresentar a nossa nova linha de fatos de banho.
Houve um crescendo de antecipação e em seguida Kelly Harris surgiu no seu momento mais alto. Vestia um biquini branco, uma parte superior que mal conseguia cobrir
os jovens e firmes seios e uma parte inferior que se moldava perfeitamente ao corpo. Enquanto ondulava sensualmente ao longo da passarela, o efeito era encantador.
Ouviu- se uma onda de aplauso. Kelly sorriu levemente em sinal de apreciação, deu a volta à passarela e desapareceu.
Nos bastidores, dois homens aguardavam-na.
- Senhora Harris, será que nos podia dar um momento...
- Lamento - desculpou-se Kelly. - Tenho que me mudar rapidamente. - E começou a afastar-se.
- Espere! Senhora Harris! Somos da polícia Judiciária. Eu sou o inspector Dune e este é o inspector Steunou. Precisamos de falar consigo.
Kelly estacou.
- Da polícia? Falar sobre o quê?
- A senhora é a senhora Harris, não é?
- Sim - de repente sentiu-se apreensiva.
- Então, lamento ter que a informar que... o seu marido morreu ontem à noite.
A boca de Kelly ficou seca.
- O meu marido...? Como...?
- Aparentemente, suicidou-se.
Os ouvidos de Kelly zumbiam. Mal conseguia perceber o que o inspector lhe estava a dizer "...Torre Eiffel... meia-noite... mensagem... lamentável... nossas condolências."
As palavras não eram reais. Havia momentos de som que nada significavam. -
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- Minha senhora... Este fim de semana, quero que te vistas bem, minha querida. Vais ado o sítio onde vamos.
- Tem de... haver um engano - disse Kelly. - O Mark jamais..
- Lamento muito. - O inspector chefe observava Kelly atentamente. - A senhora está bem?
- Sim. - Só que a minha vida acabou.
Pierre correu apressadamente para Kelly com um belíssimo! biquini às riscas.
- Chérie, tens que te mudar rapidamente. Não há tempo a perder - e enfiou-lhe o biquini nos braços. - Vitel Vitel Kelly vagarosamente deixou-o cair ao chão.
- Pierre?
Ele olhava para ela espantado. • - Sim?
- Veste-o tu. :
Uma limusina levou Kelly de regresso ao apartamento. O director do salão insistira que alguém fosse com ela, mas Kelly recusara. Queria estar sozinha. Agora, enquanto
passava pela entrada, viu o porteiro, Philippe Cendre e um homem em fato-macaco rodeado por um grupo de moradores.
Uma das moradoras dizia:
- Pobre senhora La pointe. Mas que acidente horrível.
O homem do fato-macaco segurava duas pontas esfarrapadas de um cabo grosso.
- Não foi nenhum acidente, minha senhora. Alguém cortou os cabos de travagem do elevador.
CAPÍTULO 7
Às quatro da manhã, Kelly estava sentada numa cadeira a olhar pela janela, atordoada, a ouvir uma confusão de vozes. Polícia Judiciária... precisamos de falar...
Torre Eiffel... mensagem de suicídio... Mark morreu... Mark morreu... Mark morreu... As palavras pulsavam pesadamente, martelando-lhe a cabeça.
Na sua mente, o corpo de Mark caía, caía, caía... Estendeu os braços para o apanhar antes mesmo de ele se esmagar contra o passeio. Morreste por minha culpa? Foi
alguma coisa que eu fiz? Ou que não fiz? Alguma coisa que eu disse? Ou que não disse? Eu estava a dormir quando te foste embora, meu querido, e nem sequer tive a
possibilidade de te dizer adeus, de te beijar e de te dizer o quanto te amo. Preciso de ti. Não consigo viver sem ti, pensou Kelly. Ajuda-me Mark, Ajuda-me... como
sempre me ajudaste... E deixou-se cair para trás na cadeira, recordando como tudo fora antes dele, naqueles terríveis primeiros anos...
Kelly nascera em Filadélfia, filha ilegítima de Ethel Hackworth, uma criada negra que trabalhava para uma das famílias brancas mais importantes da cidade. O patrão
era juiz. Ethel tinha dezassete anos e era belíssima, e Pete, o elegante e louro filho mais velho da família Turner, com vinte e dois anos, sentira-se atraído por
ela. Seduziu-a e, no mês seguinte, Ethel soube que estava grávida.
Quando contou a Pete, ele respondeu:
- Mas... mas isso é maravilhoso - e correu para o escritório do pai para lhe dar as más notícias.
Na manhã seguinte, o juiz Turner chamou Ethel ao seu escritório e disse:
- Não admito ter uma puta a trabalhar em minha casa. Estás despedida.
Sem dinheiro nem estudos ou qualificações, Ethel começara a trabalhar como empregada de limpeza numa fabrica, trabalhando longas 46 47 horas para poder sustentar
a filha recém nascida. Ao fim de cinco anos poupara dinheiro suficiente para comprar uma velha casa de madeira que transformou em pensão para homens. Transformou
as divisões em sala de estar, casa de jantar, quatro pequenos quartos e uma pequena divisão de apoio onde Kelly dormia.
Desde então, uma série de homens tinha entrado e saído.
- Estes são teus tios - dissera-lhe Ethel. - Não os incomodes.
Kelly estava feliz por ter uma família tão grande, até que um dia chegou à idade de perceber que eles eram todos desconhecidos.
Quando tinha oito anos, estava uma noite a dormir no seu quarto pequeno e escuro quando foi acordada por uma voz gutural que lhe dizia baixinho:
- Chiu! Não faças barulho!
Kelly sentiu a camisa de noite a ser erguida e quando ia protestar um dos "tios" já estava em cima dela e com a mão tapava-lhe a boca. Kelly sentiu-o a forçar-lhe
as pernas. Tentou lutar, mas ele mantinha-a presa. Sentiu o membro dele a rasgar-lhe o corpo por dentro e foi invadida por uma dor horrível. Ele não tinha piedade,
forçando-se a entrar nela, enterrando-se fundo, cada vez mais fundo e mais fundo, esfregando-lhe a pele até arder. Kelly sentia o calor do seu sangue a escorrer
de dentro dela. Gritava silenciosamente, com medo de desmaiar. Estava prisioneira da assustadora escuridão do seu próprio quarto.
Por fim, depois daquilo que lhe pareceu uma eternidade, sentiu-o estremecer e sair de dentro dela.
- Vou deixar-te. Mas, se alguma vez contares alguma coisa sobre isto à tua mãe, eu volto e mato-a - disse ele baixinho e desapareceu.
A semana seguinte foi quase insuportável. Sofria o tempo todo, mas cuidou do seu corpo lacerado o melhor que conseguiu até que, por fim, a dor desapareceu. Queria
contar à mãe o que se passara, mas não se atrevia. Se alguma vez contares alguma coisa sobre isto à tua mãe eu volto e mato-a.
O incidente durara unicamente uns poucos minutos, mas esses minutos tinham alterado a vida de Kelly. Deixara de ser a menina que sonhara em ter um marido e filhos
para se tornar uma pessoa que se sentia manchada e desgraçada. Decidiu que nunca mais permitiria que um homem lhe tocasse. Algo mudara dentro de Kelly.
Dessa noite em diante, Kelly passou a ter medo do escuro.
CAPÍTULO 8
Quando Kelly fez dez anos, Ethel pô-la a trabalhar na pensão. Kelly levantava-se todas as manhãs às cinco para limpar as sanitas, esfregar o chão da cozinha e ajudar
a preparar o pequeno almoço dos hóspedes.
Depois da escola, lavava a roupa, lavava o chão, limpava o pó e ajudava no jantar. A sua vida começou a ser uma horrorosa e frustrante rotina.
Ansiava por ajudar a mãe, na expectativa de um elogio. Nunca o ouviu. A mãe estava demasiado preocupada com os hóspedes para prestar atenção à filha.
Quando Kelly era muito nova, um hóspede simpático lera-lhe Alice no País das Maravilhas e Kelly ficou fascinada pela forma como Alice conseguiu fugir por uma toca
mágica de coelho. É disso que eu preciso, pensou Kelly. Uma forma de escapar. Não posso passar o resto dos meus dias a limpar sanitas, a lavar chãos e a limpar a
porcaria de desconhecidos.
E um dia Kelly encontrou a sua mágica toca de coelho. Era a sua imaginação, pela qual conseguia ir onde muito bem lhe apetecia. E imaginou toda uma outra vida para
si...
Ela tinha um pai, e o pai e a mãe eram da mesma cor. Nunca se zangavam nem nunca gritavam com ela. Viviam todos numa casa maravilhosa. O pai e a mãe amavam-na. O
pai e a mãe amavam-na.
O pai e a mãe amavam-na..
Quando Kelly fez catorze anos, a mãe casou-se com um dos hóspedes, um empregado de bar chamado Dan Berke, um homem carrancudo de meia idade que era um pessimista
quanto a tudo. Fosse o que fosse que Kelly fizesse, nunca nada lhe agradava.
- O jantar está uma porcaria...
- A cor desse vestido não te fica bem...
- A persiana do quarto continua partida..48 49
- Não acabaste de limpar as casas de banho...
O padrasto de Kelly tinha um problema de alcoolismo. A parede que separava o seu quarto do quarto da mãe e do padrasto era muito fina e, noite após noite, Kelly
ouvia o som de pancadas e de gritos. De manhã, Ethel aparecia com pesada maquilhagem mas que não era suficiente para ocultar os golpes e as nódoas negras.
Kelly andava infeliz. Nós devíamos era sair daqui para fora, pensava. Eu e a minha mãe amamo-nos.
Uma noite, quando Kelly estava meio a dormir, ouviu vozes a falarem alto no quarto ao lado:
- Porque foi que não te viste livre da catraia antes de ela nascer?
- Eu tentei, Dan. Mas não resultou.
Kelly sentiu-se como se tivesse sido golpeada no ventre. A mãe nunca a quisera. Ninguém a queria.
Kelly encontrou outra forma de escapar ao horror interminável que era a sua vida. O mundo dos livros. Tornou-se uma leitora insaciável e passava a maior parte do
seu tempo livre na biblioteca pública.
No final da semana nunca havia dinheiro para Kelly, por isso arranjou um trabalho como babysitter, invejando as felizes famílias que nunca teria.
Aos dezassete anos, Kelly transformou-se na beleza que a mãe fora. Os rapazes na escola começaram a convidá-la para sair. Sentia-se repugnada. Recusou-os a todos.
Aos sábados, quando não havia escola e as tarefas de Kelly já estavam todas feitas, corria para a biblioteca pública e passava a tarde a ler.
A senhora Lisa Marie Houston, a bibliotecária, era uma mulher inteligente e compreensiva, com um feitio amistoso e roupas tão despretensiosas quanto a sua personalidade.
Ao ver Kelly tantas vezes na biblioteca, ficou curiosa.
Um dia comentou:
- E muito agradável ver uma jovem a gostar tanto de ler. Passas muito tempo aqui.
Foi o início de uma grande amizade. A medida que as semanas passavam, Kelly foi confiando os seus receios e as suas aspirações à bibliotecária.
- Kelly, o que gostarias de fazer com a tua vida?
.- Gostava de ser professora.
- Acho que serias uma excelente professora. E a profissão mais gratificante do mundo.
Kelly começou a falar, mas parou. Lembrou-se de uma conversa que tivera com a mãe e o padrasto ao pequeno almoço, uma semana antes. Kelly dissera:
-Preciso de ir para uma universidade. Quero ser professora.
-Professora ? - rira Berke. - Mas que ideia mais parva. Os professores ganham uma miséria. Estás-me a ouvir? Uma miséria. Ganhas mais a lavar chãos. De qualquer
das maneiras, a tua velhota e eu não temos dinheiro para te mandar para a universidade.
- Mas ofereceram-me uma bolsa e...
- E então? Vais passar anos a perder o teu tempo. Esquece. Com o teu aspecto, o melhor é venderes o corpinho.
Kelly saíra da mesa.
Agora dizia à senhora Houston:
- Só há um problema. Eles não me deixam ir para a universidade - a voz embargou-se-lhe. - Vou passar o resto da minha vida a fazer o que faço!
- É claro que não. - A voz da senhora Houston era firme. - Quantos anos tens?
- Daqui a três meses faço dezoito anos.
- Não tarda nada terás idade suficiente para tomares as tuas próprias decisões. És uma jovem muito bonita, Kelly. Sabias?
- Não. Não sabia. - Como lhe posso eu explicar que me sinto como se fosse uma anormal? Não me sinto de modo nenhum bonita. - Senhora Houston, eu odeio a minha vida.
Não quero ser como a... Quero sair desta terra. Quero fazer algo de diferente e nunca vou poder... - Esforçava-se por controlar as emoções. - Eu nunca vou ter a
possibilidade de fazer seja o que for, de vir a ser alguém.
- Kelly...
- Nunca devia ter lido todos estes livros. -A voz dela era amarga.
- Porquê?
- Porque me encheram a cabeça de mentiras. Todas aquelas maravilhosas pessoas, e aqueles sítios espectaculares, e a magia... - Kelly abanou a cabeça. - Não há magia.
A senhora Houston observou-a por momentos. Era óbvio que a auto-estima de Kelly fora extremamente danificada.
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- Kelly, existe magia, mas tu é que tens que ser o mágico, que tens que fazer com que a magia apareça.
- Sim? - O tom da voz de Kelly era cínico. - E como é que eu faço isso?
- Primeiro que tudo, tens que saber de facto quais são os teus sonhos. Sonhas em ter uma vida excitante, cheia de pessoas interessantes e de lugares maravilhosos.
Da próxima vez que cá voltares, eu vou; mostrar como podes tornar reais os teus sonhos.
Mentirosa.
Na semana depois de Kelly ter terminado o liceu, regressou à biblioteca. A senhora Houston disse-lhe:
- Kelly, lembras-te do que eu te disse sobre criares a tua própria magia?
- Sim - respondeu, céptica, Kelly.
A senhora Houston procurou atrás da secretária e tirou para for um punhado de revistas, a Cosmogirl, a Seventeen, a Glamour, Mademoiselle, a Essence, a Allure...
e deu-as a Kelly.
Kelly ficou a olhar para elas.
- E o que é que eu faço com isto?
- Alguma vez pensaste em vir a ser modelo?
- Não.
- Vê estas revistas. Depois diz-me se te deram algumas ideias sobre como trazeres a magia para a tua vida.
Ela tem boas intenções, pensou Kelly, mas não compreende.
- Muito obrigada, senhora Houston. Assim farei.
Para a semana vou começar à procura de um emprego.
Kelly levou as revistas para a pensão e enfiou-as num canto esqueceu-as. Passou a tarde a cumprir as suas tarefas.
Quando, nessa noite, se preparava para se meter na cama, exausta, lembrou-se das revistas que a senhora Houston lhe dera. Pegou numas por pura curiosidade e começou
a folheá-las. Era todo um outro mundo. Os modelos maravilhosamente vestidos, com homens elegantes a seu lado, em Londres e Paris e em locais exóticos por o todo
o mundo. De repente, Kelly sentiu uma enorme vontade a crescer dentro de si. Rapidamente vestiu um robe e atravessou o átrio na direcção da casa de banho.
Estudou-se no espelho. Bom, talvez fosse atraente. Era o que todos lhe diziam. Mas, mesmo que seja verdade, pensou Kelly, eu não tenho qualquer experiência. Pensou
na sua vida futura em Filadélfia e olhou-se mais uma vez no espelho. Todos têm que começar por algum lado. Tu tens de ser o mágico, faz a tua própria magia.
Na manhã seguinte bem cedo, Kelly apareceu na biblioteca para falar com a senhora Houston.
Esta ficou espantada ao vê-la ali tão cedo.
- Bom dia, Kelly. Tiveste oportunidade de dar uma olhadela às revistas?
- Tive. - Kelly respirou fundo. - Gostava de tentar ser modelo.
O problema é que não faço a mínima ideia por onde começar.
A senhora Houston sorriu.
- Mas eu faço. Andei a consultar a lista telefónica de Nova Iorque.
Não disseste que gostarias de sair desta cidade? -A senhora Houston pegou numa folha de papel dactilografada que tirou de dentro da bolsa e deu-a a Kelly. - Aqui
tens uma lista das dozes principais agências de modelos em Manhattan, com as moradas e os números de telefone. - E apertou a mão de Kelly. - Começa pela do topo.
Kelly estava atordoada.
- Eu... Eu não sei como lhe agradecer...
- Eu digo-te como. Faz com que eu veja a tua fotografia nestas revistas.
Nessa noite ao jantar, Kelly disse:
- Decidi que quero ser modelo. - O padrasto grunhiu:
- Mas que ideia mais estúpida é essa? Que diabo se passa contigo?
Todas as modelos são putas.
A mãe suspirou:
- Kelly, não cometas os mesmos erros que eu. Também eu tive sonhos que a nada levaram. Eles vão dar cabo de ti. Tu és negra e pobre. Nunca irás a lado nenhum.
Foi nesse instante que Kelly tomou a sua decisão.
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Às cinco da manhã do dia seguinte, Kelly fez a mala e dirigiu-se à estação dos autocarros. Na bolsa tinha duzentos dólares que ganhara como babysitter.
A viagem de autocarro demorou duas horas e Kelly passou o tempo a imaginar o seu futuro. Ia tornar-se modelo profissional. Kelly Hackworth não lhe parecia nome profissional.
Já sei o que vou fazer. Vou usar apenas o meu primeiro nome. E repetiu-o na cabeça uma vez e outra. E agora a nossa top model, Kelly.
Instalou-se num hotel barato e, às nove horas, Kelly estava a entrar pela porta principal da agência de modelos que se encontrava em primeiro lugar da lista que
a senhora Houston lhe dera. Kelly não estava maquilhada e vestia um vestido todo amarrotado, porque não tinha ferro de engomar.
Não havia ninguém na recepção no átrio. Abordou um homem que estava sentado num escritório, atarefado a escrever à secretária.
- Desculpe - disse Kelly.
O homem grunhiu qualquer coisa sem sequer olhar para cima.
- Não sei se precisam de modelos - disse Kelly, hesitante.
- Não - resmungou o homem. - Não andamos à procura, não.
Kelly suspirou:
- Bom, de qualquer das formas, muito obrigada - e virou-se para partir.
O homem olhou de relance para cima e a sua expressão alterou-se.
- Volte cá. - Pusera-se de pé. - Meu Deus. De onde é que você saiu?
Kelly olhava intrigada para ele.
- De Filadélfia.
- O que eu quero dizer é... Bom, não interessa. Já alguma vez trabalhou como modelo?
- Não.
- Não importa. Aqui aprende a trabalhar.
A garganta de Kelly ficou seca.
- Isso quer dizer que eu... Que eu vou ser modelo?
Ele sorriu um enorme sorriso.
- Claro. Temos uma série de clientes que vão ficar doidos quando a virem.
Nem podia acreditar. Aquela era uma das mais importantes agências de modelos e eles...
- Chamo-me Bill Lerner. Dirijo esta agência. Como se chama?
Aquele era o momento que Kelly imaginara. Era a primeira vez que ia usar o seu novo nome, um nome de carácter profissional, com uma só palavra.
Lerner olhava especado para ela.
- Não sabe como é que se chama?
Kelly recompôs-se e endireitou-se e disse com toda a confiança:
- É claro que sei. Kelly Hackworth.
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CAPÍTULO 9
O som do avião a voar baixo trouxe um sorriso aos lábios de Lois Reynolds. Gary. Estava atrasado. Lois oferecera-se para ir aeroporto buscá-lo, mas ele respondera:
- Mana, não te incomodes. Eu apanho um táxi.
- Mas, Gary, tenho o maior prazer...
- É melhor que fiques em casa e que esperes por mim.
- Como queiras, mano.
O irmão sempre fora a pessoa mais importante na vida de Lois. Os anos em que crescera no Kelowa tinham sido um pesadelo. Desde que era menina, Lois sempre sentira
que o mundo estava contra si, as revistas das personalidades, os modelos, as estrelas femininas de cinema, e tudo porque era ligeiramente gordinha. Mas onde é que
estava escrito que as roliças não podiam ser tão giras como as doentias e escanzeladas? Lois Reynolds estudava constantemente a sua imagem ao espelho. Tinha cabelo
louro comprido, olhos azuis, delicados, traços pálidos e aquilo que Lois considerava como um corpo bastante bem feito. Os homens podem andar por aí com as suas barrigas
de cerveja - ninguém lhes diz nada. Mas, assim que uma mulher engorda uns quilitos, torna-se logo objecto de comentários. Mas quem era o parvalhão que tinha o direito
de dizer que a figura feminina devia ter as medidas 90-60-90?
Desde que Lois se lembrava, as suas companheiras de escola tinham o hábito de a troçar nas suas costas - "rabo gordo", "pote de banha", "texugo"... Estas palavras
magoavam-na profundamente.! Mas Gary sempre lá estivera para a defender.
Quando Lois se formara na universidade de Toronto, já estava farta de ser aborrecida. Se o Senhor Maravilha procura uma mulher real, aqui estou eu.
E um dia, inesperadamente, o Senhor Maravilha surgira. Chamava-se Henry Lawson. Conheceram-se no convívio da igreja e Lois sentiu-se imediatamente atraída por ele.
Era alto, magro e louro, tinha um rosto que parecia estar sempre pronto a sorrir e um feitio que lhe fazia justiça. O pai dele era o reverendo da igreja. Lois começou
a passar a maior parte do seu tempo livre no convívio com Henry e, enquanto falavam, ficou a saber que ele era dono de uma creche bem sucedida e um amante da natureza.
- Se estiver livre amanhã à noite - disse ele - gostava de a levar a jantar. - Não houve qualquer hesitação da parte de Lois:
- Sim, muito obrigada!
Henry Lawson levou-a ao conhecido Sassafraz, um dos melhores restaurantes de Toronto. A ementa era tentadora, mas Lois pediu um jantar leve porque não queria que
Henry pensasse que era uma comilona.
Henry notou que ela se limitava a comer uma salada e comentou:
- Mas isso não chega para a alimentar.
- Estou a tentar perder peso - mentiu.
- Lois, eu não quero que perca peso. Gosto de si tal como é. - Disse ele pousando a mão sobre a dela.
Ela sentiu um frémito. Aquele era o primeiro homem que lhe dizia tal coisa.
- Vou encomendar um bife, batatas e uma salada César - in formou Henry.
Era tão maravilhoso, encontrar finalmente um homem que compreendia o seu apetite e que o aprovava.
As semanas seguintes foram passadas num frenesim de encontros. Ao fim de três semanas, Henry disse:
- Lois, eu amo-te. Quero que cases comigo.
Palavras que pensara nunca vir a ouvir. Ela lançou os braços em volta dele e respondeu:
- Também eu te amo, Henry. Quero ser tua mulher.
O casamento teve lugar na igreja do pai de Henry, cinco dias depois. Estavam presentes Gary e alguns amigos, e foi uma cerimónia maravilhosa, oficiada pelo pai de
Henry. Lois nunca se sentira tão feliz.
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Onde vão passar a lua-de-mel?-perguntou o reverendo Lawson.
- No lago Louise - respondeu Henry. - É muito romântico.
-Perfeito para uma lua-de-mel.
Henry abraçou Lois.
- Espero que, para o resto das nossas vidas, todos os dias sejam uma lua de mel.
Lois estava extática.
Imediatamente a seguir ao casamento, partiram para o lago Louise. Era um espectacular oásis no Banff National Park, no coração das Rochosas canadianas.
Chegaram ao fim da tarde, com o sol a brilhar sobre o lago.
Henry tomou Lois nos braços:
- Estás com fome?
Ela olhou-o nos olhos e sorriu:
- Não.
- Eu também não. Porque não nos despimos?
- Oh, sim, meu querido.
Dois minutos mais tarde estavam na cama e Henry fazia amor com ela, deliciosamente. Era maravilhoso. Um êxtase.
- Oh, querido. Amo-te tanto.
- Também eu te amo, Lois - disse Henry. Ergueu-se. -Agora temos de combater o pecado carnal.
- Temos que fazer o quê? - E Lois olhou para ele, confusa.
- Põe-te de joelhos.
Ela riu.
- Querido, não estás cansado?
- Põe-te de joelhos. - Ela sorriu.
- Está bem.
Pôs-se de joelhos e observou, intrigada, enquanto Henry tirava um enorme cinto das calças. O marido avançou na sua direcção e, antes de ela poder perceber o que
se estava a passar, ele fez estalar o cinto contra as suas nádegas nuas.
Lois gritou e fez menção de se endireitar.
- O que raio...?
Ele mandou-a ajoelhar.
- Eu já te disse, querida. Temos de combater o pecado - e uma vez mais ergueu o cinto e bateu-lhe com ele.
- Pára! Pára com isso!
-Está quieta. - A voz dele estava cheia de fervor.
Lois debateu-se para se erguer, mas Henry mantinha-a em baixo com um forte braço e bateu-lhe com o cinto mais uma vez, e outra. Lois sentia-se como se o rabo estivesse
a ser esfolado. - Henry! Meu Deus! Pára com isso! Por fim, ele endireitou-se e respirou fundo, a tremer:
- Agora já está tudo bem.
Lois sentia uma enorme dificuldade em se mexer. Sentia os vergões a arder. Dorida, lá se conseguiu pôr de pé. Estava incapaz de falar. Limitava-se a olhar para o
marido, horrorizada.
- O sexo é um pecado. Temos que combater a tentação.
Ela abanou a cabeça, sempre sem conseguir falar, sem conseguir acreditar no que acabara de acontecer.
- Pensa em Adão e Eva, o início da queda da humanidade - continuou ele a dizer.
Lois começou a chorar, enormes soluços sacudindo-lhe o corpo. -Já está tudo bem. - Ele tomou Lois nos braços. - Está tudo bem. Eu amo-te.
E Lois respondeu, insegura:
- Eu também te amo, mas...
- Não te preocupes. Nós conseguimos.
O que significa que foi a última vez que isto aconteceu, pensou Lois. Provavelmente, tem alguma coisa a ver com o facto de ele ser filho de um pastor. Graças a Deus
que já acabou No restaurante, Lois mal se conseguia sentar. A dor era terrível, mas estava demasiado envergonhada para pedir uma almofada.
- Eu encomendo - disse Henry. E pediu uma salada para ele e uma refeição enorme para ela. - Tu tens de manter as forças, minha querida.
Durante o jantar, Lois pensou no que acontecera. Henry era o homem mais maravilhoso que alguma vez conhecera. Fora apanhada desprevenida por aquilo - e o que fora
realmente aquilo, um fetiche? De qualquer das maneiras, já acabara. Podia ansiar por passar o resto da sua vida a tomar conta daquele homem e a apreciar que tomassem
conta dela.
Quando terminaram as entradas, Henry encomendou uma sobremesa extra para Lois e disse:
- Eu gosto de mulheres fortes.
Ela sorriu.
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- Ainda bem que te agrado.
Quando o jantar terminou Henry perguntou:
- Que tal regressarmos ao quarto?
- Acho óptimo.
Já no quarto, despiram-se e Henry tomou Lois nos braços e a dor pareceu desaparecer. O seu amor era suave e carinhoso e nunca fora tão agradável.
- Foi maravilhoso - disse Lois abraçando o marido.
- Sim - concordou ele. -Agora temos de expiar o pecado Ajoelha-te.
A meio da noite, quando Henry dormia, Lois fez a mala sem fazer barulho e fugiu. Apanhou um avião para Vancouver e telefonou a Gary. Durante o almoço, contou-lhe
o que se passara.
- Vou pedir o divórcio - disse Lois - mas tenho de sair da cidade.
Gary pensou por alguns momentos.
- Um amigo meu tem uma companhia de seguros, mana. É em Denver, e isso fica a quinze mil milhas daqui.
- É perfeito.
- Vou falar com ele - respondeu Gary.
Duas semanas mais tarde, Lois trabalhava numa companhia de seguros numa posição de direcção.
Gary mantivera-se em contacto constante com Lois. Ela comprara uma casinha encantadora com vista das Montanhas Rochosas ao fundo, e de tempos a tempos o irmão fazia-lhe
uma visita. Passavam maravilhosos fins de semana juntos, a esquiar ou a pescar ou simplesmente sentados no sofá a conversarem. Sinto tanto orgulho em ti, mana, dizia-lhe
ele, e também Lois se sentia muito orgulhosa do que ele conseguira. Ele obtivera o seu grau de PH.D. em Ciência e trabalhava para uma organização internacional,
e voar passara a ser apenas um passatempo.
Enquanto Lois pensava em Gary, ouviu bater à porta. Olhou pela janela para ver quem era e reconheceu-o. Tom Huebner. Um homem alto, um piloto com uma personalidade
um pouco brusca, amigo de Gary.
Lois abriu a porta e Huebner entrou.
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_ Olá, Tom.
- Lois.
- Gary ainda não chegou. Acho que ouvi o avião dele há um bocado. Deve estar a chegar. Queres esperar ou...?
Ele olhava-a fixamente.
- Não tens estado a ver as notícias?
Lois abanou a cabeça.
Não. O que se passa? Só espero que não estejamos a caminho de outra guerra e...
- Lois, receio muito que seja portador de más notícias. De muito más notícias. - A voz dele estava tensa. - É sobre Gary. Ela ficou rígida.
- O que se passa com ele?
- Morreu num acidente de aviação quando vinha para cá para te ver. - E viu a luz desaparecer dos olhos dela. - Lamento muito.
Sei bem como vocês gostavam um do outro.
Lois tentou falar, mas estava a hiperventilar:
- Como... como... como...?
Tom Huebner pegou na mão dela e suavemente conduziu-a a um sofá.
Lois sentou-se e respirou fundo várias vezes.
- O que foi... O que foi que aconteceu?
- O avião de Gary embateu contra uma montanha a poucas milhas de Denver.
Lois sentiu-se desfalecer.
- Tom, eu gostaria de ficar sozinha.
Ele olhou para ela, preocupado.
- Tens a certeza, Lois? Eu posso ficar e...
- Muito obrigada, mas, por favor, deixa-me sozinha.
Tom Huebner levantou-se com ar hesitante e em seguida anuiu:
- Tens o meu telefone. Liga-me, se precisares de mim.
Lois não o ouviu sair. Ali ficou sentada, em estado de choque, como se alguém lhe dissesse que ela tinha morrido. A sua mente disparou para os seus tempos de infância.
Gary sempre fora o seu Protector, lutando com os rapazes que a aborreciam e, à medida que cresciam, acompanhando-a a jogos de basquetebol, ao cinema e às festas.
A última vez que o vira fora na semana anterior, e reviu a cena como se fosse um filme a desenrolar-se, através dos olhos cheios de lágrimas.
Os dois estavam sentados à mesa da casa de jantar.
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Gary, não comeste nada.
- Mana, está óptimo. Só que não tenho fome.
Ela analisou-o por momentos.
- Há alguma coisa sobre a qual queiras falar?
- Tu percebes sempre, não percebes?
- Tem a ver com trabalho?
- Tem - e ele afastou o prato da frente. - Acho que a minha vida corre perigo.
Lois olhou para ele, alarmada.
- Mana, só meia dúzia de pessoas no mundo sabem o que se está a passar. Eu volto para cá de avião na segunda-feira para passar a noite. Na terça de manhã tenho de
ir a Washington.
Lois estava intrigada. - Porquê Washington?
- Para falar sobre Prima.
E Gary explicara-lhe tudo.
Agora Gary estava morto. Acho que a minha vida corre perigo. O irmão não morrera num acidente. Ele fora assassinado.
Lois olhou para o relógio. Agora já era muito tarde para fazer fosse o que fosse, mas de manhã ia fazer o telefonema que vingaria a morte do irmão. Ia terminar o
que Gary planeara fazer. De repente, Lois sentiu-se exausta. Era um enorme esforço, levantar-se do sofá. Não jantara, mas só a ideia de comer deixava-a enjoada.
Encaminhou-se para o quarto e caiu sobre a cama, demasiado cansada para se despir. Ali ficou, atordoada, até que por fim acabou por adormecer.
Sonhou que ela e Gary estavam num comboio a alta velocidade e que todos os passageiros na carruagem fumavam. Começava a ficar calor e o fumo fazia-a tossir. A sua
tosse despertou-a e abriu os olhos. Olhou, horrorizada, em redor. O quarto estava a arder, o fogo escorria pelas cortinas e o quarto estava cheio de fumo. Lois cambaleou
para fora da cama, a sufocar. Tentando não respirar, cambaleou na direcção da porta. Todo o quarto estava envolto em chamas e fumo espesso. Deu meia dúzia de passos,
sentiu as pernas ceder e caiu ao chão.
A última coisa de que Lois se lembrava era das chamas a lambe rem o caminho na sua direcção.
CAPÍTULO 10
Para Kelly, tudo acontecia a uma velocidade estonteante. Rapidamente aprendeu os aspectos mais importantes do trabalho como modelo, a agência proporcionara-lhe cursos
de projecção de imagem, de postura e de pose. Muito desse trabalho tinha a ver com a atitude, e para Kelly isso significava representar, pois não se sentia bela
nem desejável.
A expressão "sucesso de um dia para o outro" podia ter sido inventada para Kelly. Ela projectava não só uma imagem provocante e excitante, como um toque de inacessibilidade
que era um verdadeiro desafio para os homens. Em dois anos, Kelly subira a um terço do topo da escala dos modelos. Apresentava produtos de uma dúzia de países. Muito
do seu tempo era passado em Paris, onde estavam os clientes mais importantes da agência.
Uma vez, depois de uma extravaganza de moda em Nova Iorque, antes de regressar a Paris, Kelly decidiu visitar a mãe, que lhe pareceu mais velha e mais desgastada.
Tenho que a tirar daqui, pensou. Vou comprar-lhe um belo apartamento e vou tirá-la daqui. A mãe pareceu satisfeita por a ver.
- Fico satisfeita por te estares a dar tão bem, Kelly. Muito obrigada pelos teus cheques mensais.
- De nada. Mãe, queria falar consigo sobre um assunto. Já tenho tudo planeado. Quero que saia...
- Vejam só quem nos veio fazer uma visita! Sua Alteza! - O Padrasto acabara de entrar. - O que estás aqui a fazer? Não devias estar a apresentar os teus fatinhos
da moda?
Vou ter de fazer isto outro dia, concluiu Kelly.
Havia mais uma coisa que queria fazer. Dirigiu-se à biblioteca pública onde passara tantas horas maravilhosas e, assim que cruzou a entrada transportando consigo
uma meia dúzia de revistas, a sua mente começou a dançar, cheia de recordações.
A senhora Houston não estava sentada na sua secretária. Kelly 62 63 olhou em redor e viu-a de pé numa das alas laterais, com excelente aspecto, num vestido muito
bem cortado, atarefada a encher uma estante com livros.
Assim que a senhora Houston ouviu a porta a ser aberta, disse: -Já aí vou - e virou- se. - Kelly! - Fora quase um grito. - Oh Kelly!
Correram uma para a outra e abraçaram-se. A senhora Houston afastou-se e olhou para ela:
- Eu não acredito que sejas tu. O que fazes cá pela cidade?
- Vim ver a minha mãe, mas também a queria ver a si.
- Estou tão orgulhosa de ti. Não fazes ideia.
- Senhora Houston, lembra-se de quando eu lhe perguntei como lhe podia agradecer? Respondeu-me dizendo que queria ver a minha fotografia numa revista de moda. Pronto,
aqui tem. - E Kelly colocou a pilha de revistas nos braços da senhora Houston. Havia exemplares da Elle, da Cosmopolitan, da Mademoisell e da Vogue. Estava na capa
de todas elas.
- São maravilhosas. - A senhora Houston parecia feliz. Deu a volta, passou para trás da secretária e tirou de lá exemplares das mesmas revistas.
Demorou alguns segundos até Kelly ser capaz de falar.
- O que poderei alguma vez fazer para lhe agradecer? A senhora mudou a minha vida.
- Não, Kelly. Tu é que mudaste a tua vida. Eu limitei-me a um pequeno empurrão. E, Kelly...
.-Sim?
- Graças a ti, transformei-me numa fã da moda.
Como Kelly prezava muito a sua privacidade, a fama por vezes perturbava-a. A barragem insistente dos fotógrafos incomodava-a e ela tinha o que se podia considerar
uma fobia de ser abordada por pessoas desconhecidas. Kelly gostava de estar sozinha.
Um dia, almoçava no restaurante Le dnq, no hotel Jorge V, quando um homem mal vestido que passava parou e ficou a olhar para ela. Tinha o aspecto pálido e pouco
saudável de alguém que passava a maior parte do tempo debaixo de tecto. Tinha com ele um exemplar da revista Elle aberta numa página cheia de fotografias de Kelly.
- Desculpe - disse o desconhecido.
Kelly olhou para cima, com ar aborrecido: 64 - Sim?
- Eu vi a sua... Li aquele artigo a seu respeito onde diz que nasceu em Filadélfia. - A voz dele estava cheia de entusiasmo. - Eu também nasci lá e, quando vi as
suas fotografias, senti que a conhecia e...
Kelly respondeu friamente:
- Não conhece. E não gosto de ser incomodada por desconhe cidos.
- Oh! Peço desculpa - e engoliu em seco. - Não era minha intenção... Eu não sou desconhecido. Quero dizer... O meu nome é Mark Harris e trabalho para a Kingsley
Internacional. Quando a vi aqui, pensei... pensei que talvez não gostasse de almoçar sozinha e que eu podia...
Kelly olhou para ele com ar feroz.
- Pois enganou-se. Agora, faça o favor de sair daqui.
Ele gaguejava:
- Eu... eu não tinha intenção de incomodar. E que... - E viu o olhar na cara dela. -Já vou.
Kelly ficou a vê-lo sair pela porta, levando consigo a revista. Boa viagem.
Kelly marcara uma semana de apresentações para várias revistas de moda. Um dia depois de ter encontrado Mark Harris, estava no camarim dos modelos a vestir-se quando
três dúzias de rosas chegaram para si. O cartão dizia: Por favor, perdoe-me por a ter incomodado.
Kelly rasgou o cartão.
- Mande as flores para o hospital pediátrico.
Na manhã seguinte, a encarregada do guarda-roupa entrou no camarim de novo com um embrulho.
- Um homem deixou isto para ti, Kelly.
Era uma orquídea. O cartão dizia Espero estar perdoado. Mark Harris. Kelly rasgou o cartão.
- Fique com a flor.
Depois disso, os presentes do Mark começaram a chegar quase diariamente, um pequeno cesto com frutos, um anel de disposição, um Pai Natal em brinquedo. Kelly deitou
sempre tudo para o caixote de lixo. O presente que chegou depois era diferente: uma adorável 65 cachorrinha caniche com uma fita encarnada atada ao pescoço e um
cartão: Esta é a Angel. Espero que goste tanto dela como eu. Mark Harris.
Kelly ligou para as informações e pediu o número de telefone do Kingsley Internacional Group. Quando a telefonista atendeu, Kelly perguntou:
- Têm um Mark Harris a trabalhar aí?
- Oui, mademoiselle. - Posso falar com ele?
- Um momento. - Um minuto depois, Kelly ouviu a conhecida voz:
- Estou?
- Senhor Harris?
- Sim.
- Fala Kelly. Decidi aceitar o seu convite para almoçar.
Do outro lado fez-se um minuto de silêncio, e em seguida:
- Sim? Mas... Mas isso é maravilhoso.
Kelly distinguia perfeitamente o som da excitação na voz dele.
- No Laurent, hoje à uma.
- Isso é excelente. Muito obrigado. Eu...
- Eu marco a mesa. Adeus.
Mark Harris estava no Laurent de pé, a aguardar, junto de mesa, quando Kelly entrou trazendo com ela a cadelinha.
O rosto dele alegrou-se:
-Você... Você veio. Eu não tinha a certeza... e trouxe Angel consigo.
- Sim - e Kelly plantou a cadela nos braços de Mark. - pode fazer-lhe companhia ao almoço - disse com voz gelada e virou-se para partir.
- Não estou a perceber. Pensei... - arquejou Mark.
- Bom, então eu explico-lhe pela última vez - respondeu em voz muito dura. - Quero que pare de me aborrecer. Não consegue compreender?
O rosto dele ficou vermelho.
- Sim. Sim, claro. Peço desculpa. Eu não queria... não queria... Só pensei que... Não sei o que fazer... Gostaria de poder explicar. Importa-se de se sentar por
um momento?
Kelly ia começar a dizer que não, mas optou por se sentar com o aborrecido.
- Sim?
Mark Harris respirou fundo:
- Lamento muito. Não era minha intenção aborrecê-la. Mandei todos aqueles presentes como forma de pedir desculpa por me ter intrometido. Tudo o que pretendia era
uma hipótese de... Quando vi a sua fotografia, senti que a conheci toda a vida. E quando a vi em carne e osso e você era ainda mais... - ele gaguejava, atrapalhado.
- Eu... Tinha a obrigação de saber que uma pessoa como você jamais estaria interessada em alguém como eu... Eu... agi como um colegial estúpido. Estou tão envergonhado.
É que... Eu não sei como lhe explicar como me senti e... - a voz dele arrastou-se. Havia uma nele nítida vulnerabilidade.
- Eu sou um verdadeiro desastre... a explicar os meus sentimentos. Estive toda a minha vida sozinho.
Nunca ninguém... Quando eu tinha seis anos, os meus pais divorciaram-se e houve uma batalha pela minha custódia. Nenhum deles me queria.
Kelly observava-o em silêncio. As palavras dele pareciam ecoar na sua cabeça, trazendo-lhe lembranças há muito enterradas.
- Porque é que não te viste livre da catraia antes de ela nascer?
- Eu tentei. Mas não resultou.
Ele continuava:
- Cresci em meia dúzia de casas de acolhimento, onde nunca ninguém se interessava...
- Estes são teus tios. Não os incomodes.
- Parecia que nunca era capaz de fazer nada certo...
- O jantar está uma porcaria... - A cor deste vestido não te fica bem...
- Não acabaste de limpar as casas de banho...
- Queriam que eu saísse da escola para trabalhar numa garagem, mas eu... eu queria ser cientista. Diziam que eu era demasiado burro...
Kelly estava cada vez mais interessada no que ele dizia.
- Eu queria ser modelo.
- Todas as modelos são putas...
- Sonhava em ir para a universidade, mas eles insistiam que para o tipo de trabalho que eu ia fazer não precisava de estudar.
- Mas para que diabo queres tu ir para a universidade?
- Com o teu aspecto, o melhor é venderes o corpinho...
- Quando consegui uma bolsa para o MIT, os meus pais adoptivos que o mais natural era eu chumbar e que devia era ir trabalhar para a garagem...
- 67 Universidade? Vais desperdiçar quatro anos da tua vida...
Ouvir aquele desconhecido era quase como assistir a uma projecção da sua própria vida. Kelly ali estava sentada, profundamente comovida, sentindo as mesmas dolorosas
emoções que o desconhecido sentado na sua frente.
- Quando terminei o MIT, fui trabalhar para uma sucursal do Kingsley Internacional Group, em Paris. Mas senti-me muito sozinho - e fez uma longa pausa. - li, há
muito tempo, em qualquer lado, que a coisa mais importante do mundo é encontrar alguém a quem amar, que nos ame... E eu acreditei.
Kelly permanecia sentada, muito calada. Mark Harris disse, atrapalhado
- Mas eu nunca encontrei essa pessoa e estava pronto a desistir, E quando a vi naquele dia... - Ele não foi capaz de continuar.
Ergueu-se para partir, com Angel nos braços.
- Estou tão envergonhado com tudo isto. Juro que nunca mais a incomodo. Adeus.
Kelly ficou a olhar enquanto ele começava a andar.
- Onde é que vai com a minha cadela?
- Desculpe? - E Mark Harris virou-se, confuso..
- A Angel é minha. Você deu-ma, lembra-se?
Mark estava parado, sem saber o que pensar.
- Sim, mas disse-me que...
- Vou fazer um acordo consigo, Mark Harris. Eu fico o Angel, mas você pode ter o direito de a visitar.
Ele demorou um pouco a perceber e, em seguida, o seu sorriso iluminou toda a sala.
- Quer dizer que eu... eu posso?
- Porque não tratamos desse assunto ao jantar hoje à noite? - respondeu ela.
E Kelly não fazia a mínima ideia de que acabara de se transformar num alvo para o assassínio. 68
CAPÍTULO 11
Paris, França. No quartel-general da polícia em Reuilly, na Rue Hénard, décimo segundo Arrondissement de Paris, decorria um interrogatório. O superintendente da
torre Eiffel estava a ser interrogado pelos detectives André Belmondo e Pierre Marais.
INVESTIGAÇÃO DO SUICÍDIO NA TORRE EIFFEL ' Segunda-feira 6 de Maio, 10 horas da manhã;
Sujeito: Rene Pascal BELMONDO: - Senhor Pascal, temos razões para crer que Mark Harris, o homem que supostamente saltou do andar panorâmico da torre Eiffel, foi
assassinado.
PASCAL: -Assassinado? Mas... Disseram-me que foi um acidente e...
MARAIS: - Ele não podia ter caído acidentalmente passando por cima daquele parapeito. É demasiado alto.
BELMONDO: - E concluímos que a vítima não tinha tendência para o suicídio. Na realidade, tinha feito uns planos bem elaborados com a mulher para o fim de semana.
A mulher é Kelly, a modelo.
PASCAL: - Lamento muito, senhores, mas não percebo em que é que... Porque foi que me chamaram aqui?
MARAIS: - Para nos ajudar a esclarecer uns pontos. Nessa noite, a que horas fechou o restaurante?
PASCAL: - As dez. Por causa da tempestade, o Jules Veme estava vazio, por isso optei por...
MARAIS: - E a que horas fecharam os elevadores?
PASCAL: - Normalmente funcionam até à meia-noite, mas, noite em questão, visto não haver visitantes nem comensais, fechei-os também às dez.
BELMONDO: - Incluindo o elevador que dá para o andar panorâmico?
PASCAL: - Sim. Fechei-os todos.
MARAIS: - É, por acaso, possível alguém chegar ao andar panorâmico sem ser usando os elevadores?
PASCAL: - Não. Na noite em questão estava tudo fechado. Não percebo o que é que tudo isto tem a ver com o caso. Se...
BELMONDO: - Eu já lhe explico. O senhor Harris foi empurrado do andar panorâmico. Sabemos que foi dessa plataforma porque, quando examinámos o parapeito, verificámos
que estava arranhado e o cimento embebido nas solas dos sapatos dele correspondia perfeitamente ao cimento do parapeito. Se o piso estava encerrado e se os elevadores
não estavam a funcionar, como foi que ele chegou lá acima à meia-noite?
PASCAL: - Não faço ideia. Sem o elevador seria... seria impossível.
MARAIS: - Mas um elevador foi usado para levar o senhor Harris até ao andar panorâmico e para transportar o seu assassino, ou nos, e trazê-los de volta para baixo.
BELMONDO: - Há alguma hipótese de um estranho ter posto elevadores em funcionamento?
PASCAL: - Não. Os operadores nunca os abandonam quando estão em funcionamento e à noite os elevadores são fechados com uma chave especial.
MARAIS: - E quantas chaves dessas existem?
PASCAL: - Três. Eu tenho uma e as outras duas são guardadas aqui.
BELMONDO. - Tem a certeza de que o último elevador foi fechou às dez horas?
PASCAL: - Sim.
MARAIS: - Quem é que estava encarregue dele?
PASCAL: - Toth. Gérard Toth.
MARAIS: - Gostaria de falar com ele.
PASCAL: - Também eu.
MARAIS: - Como disse?
PASCAL: - Toth não aparece no trabalho desde ontem à noite. Telefonei para o apartamento dele. Não obtive resposta. Consegui apanhar o senhorio. Toth mudou-se.
MARAIS: - E foi-se embora sem deixar a nova mocada?
PASCAL: - Exactamente. Desvaneceu-se no ar.
- "Desvaneceu-se no ar?" Estamos a falar do grande Houdini ou de um triste operador de elevador?
Quem assim falava era o secretário geral Claude Renaud, chefe do quartel-general da Interpol. Renaud era um homem baixo, dinâmico, com perto de cinquenta anos, que
subira à custa do seu trabalho na hierarquia da polícia ao longo de vinte anos.
Renaud presidia a uma reunião na principal sala de conferências no edifício de sete andares da Interpol, a organização policial internacional que coordena toda a
informação que é posteriormente distribuída para 126 forças policiais em 78 países. O edifício situava-se em St. Cloud, seis milhas a oeste de Paris, e o quartel-general
era dirigido por antigos detectives da Súreté Nationale e da Préfecture de Paris.
Havia doze homens sentados à comprida mesa de conferências. Há uma hora que faziam perguntas ao detective Belmondo.
O secretário geral disse em voz alta:
- Está a dizer que nem o senhor nem o detective Maurais conseguiram obter qualquer informação sobre como um homem foi assassinado numa zona onde, em primeiro lugar,
lhe era impossível estar, e de onde era impossível que os seus assassinos escapassem?
Está correcto?
- Eu e Maurais falámos com toda a gente que...
- Não interessa. Pode sair.
- Sim, senhor.
O secretário geral virou-se para o grupo:
- Durante as vossas investigações alguma vez algum de vocês deparou com o nome Prima?
Eles ficaram pensativos por segundos e abanaram a cabeça.
- Não. Quem é Prima?
- Não sabemos. Era o nome que estava escrito numa nota que se encontrava no bolso do casaco de um homem que apareceu morto em Nova Iorque. Pensamos que existe uma
ligação - e suspirou. - Meus senhores, temos uma charada, envolta num mistério, dentro toda; e um enigma. Nos quinze anos que estive nesta função, investigámos assassinos
em série, gangs internacionais, mutilações, parricídio e espécie imaginável de crimes. - Fez uma pausa. - Mas, du- 70 71 rante todos estes anos, jamais deparei com
uma situação como essa. Vou mandar uma informação para o gabinete de Nova Iorque.
Frank Bigley, chefe dos detectives de Manhattan, lia o dossiê que o secretário geral Renaud enviara quando Earl Greenburg e Robert Praegitzer entraram no seu gabinete.
- Chefe, chamou-nos?
- Sim. Sentem-se.
E ambos se sentaram. O chefe Bigley levantou o papel:
- Isto é uma informação que a Interpol mandou esta manhã. - E começou a ler; - "Há seis anos, um cientista japonês de nome Akira Isso, suicidou-se, enforcando-se
no seu quarto de hotel em Tóquio. O senhor Isso estava de perfeita saúde, acabara de ser promovido e consta que andava muito bem disposto."
- No Japão? Mas o que é que isso tem a ver com...
- Deixem-me continuar. "Há três anos, Madeleine Smith, uma cientista suíça de trinta e três anos, abriu o botão do gás no seu apartamento em Zurique e suicidou-se.
Estava grávida e prestes a casar com o pai do bebé. Os amigos disseram que nunca a tinham visto tão feliz." - E olhou para os dois detectives. - "Nos últimos três
dias: uma berlinense de nome Sonja Verbrugge afogou-se em casa na banheira. Nessa mesma noite, Mark Harris, um americano, mergulhou da plataforma de observação da
torre Eiffel. No dia seguinte, um canadiano, de nome Gary Reynolds, esmagou o seu Cessna contra uma montanha perto de Denver."
Greenburg e Praegitzer ouviam, cada vez mais intrigados.
- E ontem, vocês os dois encontraram o corpo de Richard Stevens na margem do rio East.
Earl Greenburg olhava para ele, perplexo.
- Mas o que é que esses casos têm a ver connosco?
O chefe Bigley respondeu com a maior calma:
- São todos o mesmo caso.
Greenburg olhava para ele.
- O quê? Deixe lá ver se percebi bem. Um japonês há seis anos, uma suíça há três e, nos últimos dias, uma alemã, um canadiano e dois americanos - e ficou calado
por momentos. - Qual é a ligação entre estes casos?
O chefe Bigley deu a Greenburg a informação da Interpol. A medida que ele a lia, os seus olhos iam-se abrindo de pasmo. Olhou para cima e comentou devagar:
-A Interpol pensa que um think tank*, o Kingsley Internacional Group, está por detrás destes assassínios? Mas isso é completamente absurdo.
- Chefe, nós estamos a falar do maior think tank do mundo - comentou Praegitzer.
- Todas essas pessoas foram assassinadas, e cada uma delas estava ligada ao KIG. A companhia que pertence e que é dirigida por Tanner Kingsley. Ele é o presidente
e o director executivo do Kingsley Internacional Group, presidente da Comissão Presidencial para a Ciência, director do Instituto Nacional para o Planeamento Avançado
e faz parte da Comissão para a Política de Defesa do Pentágono.
Acho que vocês os dois deviam ter uma conversa com o senhor Kingsley.
Earl Greenburg engoliu em seco.
- Certo.
- E,Earl...
- Sim?
- Trata disto com calma e não levantes problemas.
Cinco minutos mais tarde, Earl Greenburg falava com a secretária de Tanner Kingsley. Quando terminou, virou-se para Praegitzer:
- Reunião marcada para terça-feira às dez da manhã. Neste momento, parece que o senhor Kingsley está a participar numa reunião do congresso, em Washington.
Na audição perante a Comissão Especial do Senado para o Ambiente em Washington DC, um júri composto por seis membros do Senado e três dúzias de espectadores e repórteres
ouvia com toda a atenção o testemunho de Tanner Kingsley.
Tanner Kingsley andava pelos quarenta anos, era alto e bem parecido, com olhos de tom azul aço que brilhavam de inteligência. Tinha um nariz romano, um queixo forte
e um perfil digno de aparecer cunhado numa moeda.
A presidente da comissão, a senadora sénior Pauline Mary van Luven, era uma figura majestosa, com uma autoconfiança quase agressiva. Ela olhou para Tanner e disse
secamente: * Nota de rodapé: Instituição especializada na custódia de intelectuais, que geralmente oferece os seus - e é financiado por um governo, fazendo estudos,
prognósticos, etc. (N.da T.)
72 73 - Pode começar, senhor Kingsley.
Tanner anuiu.
- Muito obrigado, senadora - respondeu, virando-se para Ulf - outros membros da comissão, e, quando começou a falar, a sua voz parecia carregada de paixão. - Enquanto
alguns políticos no governo continuam com evasivas no que toca às consequências do aquecimento global e do efeito de estufa, o buraco na camada de ozono cresce rapidamente.
Por isso, metade do mundo sofre secas e a outra metade inundações. No mar de Ross, um icebergue do tamanho da Jamaica desfez-se devido ao aquecimento global. O buraco
no ozono sobre o Pólo Sul atingiu o tamanho recorde de vinte e seis milhões de quilómetros quadrados. - Fez uma pausa para permitir que as palavras fossem percebidas
e repetiu suavemente: - Vinte e seis milhões de quilómetros quadrados.
"Estamos a testemunhar um número recorde de furacões, de ciclones, de tufões e de tempestades, que assolam partes da Europa. Devido às alterações radicais das condições
meteorológicas, milhões de pessoas, em países por todo o mundo, sofrem de fome e encontram-se à beira da extinção. Mas estas são apenas palavras: "fome" e "extinção".
Parem de pensar nelas como simples palavras. Pensem no seu significado, homens, mulheres e crianças esfomeados e sem casa e perto da morte.
"No último verão, mais de vinte mil pessoas morreram como consequência de uma vaga de calor que assolou a Europa. - A voz dele subia de volume. - E o que foi que
fizemos? O nosso governo recusou ratificar o acordo de Kyoto na conferência sobre o ambiente global. A mensagem é que nos estamos completamente nas tintas para o
que acontece no resto do mundo. Vamos continuar a fazer aquilo que nos dá jeito. E somos tão obtusos, tão pretensiosos, que não somos capazes de ver o que estamos
a fazer... A senadora van Luven interrompeu-o:
- Senhor Kingsley, isto não é um debate. Peço-lhe que use um tom mais moderado.
Tanner respirou fundo e concordou. Numa voz menos apaixonada, prosseguiu:
- Como todos sabemos, o efeito de estufa deve-se à queima de combustíveis fossilizados e a outros factores com isso relacionados que dependem de nós, e, no entanto,
essas emissões atingiram o ponto mais alto em meio milhão de anos. Estão a poluir o ar que os nossos filhos e os nossos netos respiram. Esta poluição pode ser parada.
74 Porque não é parada? Porque isso iria custar muito dinheiro às empresas. - A sua voz subiu mais uma vez de tom. - Dinheiro! Quanto custa um pouco de ar fresco,
comparado com a vida de um ser humano? Quatro litros e meio de gás? Nove litros? - A voz dele estava cada vez mais empolgada. - Tanto quanto sabemos, esta Terra
é o único planeta que podemos habitar, e, no entanto, estamos a envenenar a terra e os oceanos e o ar que respiramos a toda a velocidade. Se não pararmos...
A senadora van Luven interrompeu-o mais uma vez:
- Senhor Kingsley...
- Peço desculpa, senadora. Estou zangado. Não sou capaz de assistir à destruição do nosso universo sem protestar.
Kingsley falou ainda por mais trinta minutos. Quando terminou, a senadora van Luven disse:
- Senhor Kingsley, gostaria de falar consigo no meu gabinete.
Esta reunião está adiada.
O gabinete da senadora van Luven fora inicialmente mobilado no típico género burocrático, uma secretária, uma mesa, seis cadeiras e várias filas de ficheiros, mas
a senadora acrescentara o seu toque feminino com tecidos coloridos, quadros e fotografias.
Quando Tanner entrou, havia mais duas pessoas no gabinete, além da senadora van Luven.
- Estas são as minhas assistentes, Corinne Murphy e Karolee Trost.
Corinne Murphy, uma atraente jovem ruiva, e Karolee Trost, uma loura baixinha, ambas na casa dos vinte anos, sentavam-se perto da senadora. Era óbvio que estavam
fascinadas com Tanner.
- Sente-se, senhor Kingsley - disse a senadora van Luven.
Tanner sentou-se. A senadora estudou-o por momentos.
- Francamente, não o percebo.
- Oh! Não me diga! Isso espanta-me, senadora. Pensei que estava a ser bem claro. Penso que...
- Eu sei o que pensa. Mas a sua companhia, o Kingsley Internacional Group, tem contratos para muitos projectos com o nosso go verno, e no entanto desafia o governo
quanto às questões ambientais. Acha que pode ser mau para o negócio?
- Aqui não se trata de negócios, senadora van Luven. Trata-se da Humanidade. Estamos a assistir ao início de uma desastrosa 75 desestabilização global. Eu estou
a tentar fazer com que o Senado atribua fundos para o corrigir - respondeu friamente Tanner. - Alguns desses fundos poderão ir parar à sua companhia, não é verdade?
- comentou cepticamente a senadora.
- Não estou minimamente interessado em saber quem recebe o dinheiro. Quero é que se tomem medidas antes que seja demasiado tarde.
Corinne Murphy interrompeu, acalorada:
- Mas isso é admirável. O senhor é uma pessoa muito pouco vulgar.
- Menina Murphy, se com isso pretende dizer que a maioria das pessoas parece acreditar que o dinheiro é mais importante do que a moral, então lamento ter de lhe
dizer que provavelmente tem razão - comentou Tanner, virando-se para ela.
- Pois eu acho que aquilo que o senhor quer fazer é maravilhoso - expressou Karolee Trost.
A senadora van Luven lançou a cada uma das suas assistentes um olhar de desaprovação, e em seguida virou-se para Tanner:
- Não lhe posso prometer nada, mas vou falar com os meus colegas e saber qual o ponto de vista deles sobre as questões ambientais. Eu depois entro em contacto consigo.
- Muito obrigado, senadora. Fico muito grato. - E, hesitante - talvez, quando um dia for a Manhattan, eu a possa levar a ver o KIG e mostrar-lhe como trabalhamos.
Penso que iria achar interessante.
A senadora van Luven acenou com ar indiferente.
- Depois entro em contacto consigo.
A reunião terminara.
CAPÍTULO 12
Assim que as pessoas tiveram conhecimento da morte de Mark, Kelly Harris começou a ser inundada com telefonemas, ramos de flores e e-mails. A primeira chamada veio
de Sam Meadows, um colega de trabalho e amigo íntimo de Mark.
Kelly! Meu Deus! Não acredito! Eu... Eu nem sei o que dizer.
Sinto-me terrível. Cada vez que me viro estou sempre à espera de ver o Mark. Kelly... Há alguma coisa que possa fazer por ti?
- Não, Sam. Muito obrigada.
- Vamo-nos manter em contacto, sim? Eu quero ajudar naquilo que for possível...
Depois deste telefonema, houve dúzias de outros, vindo dos amigos de Mark e dos modelos com quem ela trabalhava.
Bill Lerner, o chefe da agência de modelos, telefonou. Apresentou os sentimentos e em seguida disse:
- Kelly, eu sei que este não é o momento certo, mas penso que voltar ao trabalho pode vir a ser muito bom para ti. O nosso telefone não tem parado de tocar. Quando
é que achas que vais estar outra vez disponível?
- Quando Mark voltar para mim - e desligou o telefone.
E agora tocava de novo. Por fim, Kelly decidiu-se a atender.
- Sim?
- Senhora Harris?
Continuava a ser a senhora Harris? Já não havia nenhum senhor Harris, mas ela seria para sempre a mulher de Mark. Respondeu com firmeza:
- Sim, daqui fala a senhora Mark Harris.
- Estou a ligar do gabinete do senhor Tanner Kingsley.
O homem para quem Mark trabalha... trabalhava.
- Sim?
- O senhor Kingsley gostaria que viesse a Manhattan falar com ele. Gostaria de ter uma reunião nos escritórios da-empresa. Está disponível?
76 77
Kelly estava disponível. Dissera à agência que lhe cancelasse todas as marcações. Mas estava espantada. Porque é que Tanner Kingsley quer falar comigo?
- Sim!
- Seria conveniente para si sair de Paris na sexta-feira?
Nunca mais nada seria conveniente para ela.
- Sexta-feira. Tudo bem.
- Muito bem. Há um bilhete da United Airlines à sua espera no aeroporto Charles de Gaulle. - E deu-lhe o número do voo. - Em Nova Iorque estará um carro à sua espera.
- Demasiado tarde. Eu já o fiz.
Quando está a pensar sair?
Na sexta-feira.
Muito bem. Vou tratar de tudo. Já lhe disse que a minha filha entrou para a Sorbonne?
Não. Mas isso é maravilhoso. Deve estar muito orgulhoso.
Pois estou. Começa daqui a duas semanas. Estamos todos muito excitados. É um sonho que se tornou realidade.
Mark falara-lhe várias vezes sobre Tanner Kingsley. Mark conhecera-o e considerava que ele era um génio e um homem maravilhoso com quem trabalhar. Talvez ele queira
partilhar comigo alguma recordação de Mark. O pensamento alegrou-a.
Angel apareceu a correr e saltou-lhe para o colo. Kelly abraçou-a.
E agora, o que é que eu vou fazer contigo enquanto estiver fora? A mamã levava-te, mas é só por alguns dias.
De repente, Kelly lembrou-se de quem lhe iria tomar conta do cão.
Desceu as escadas até ao gabinete do porteiro. Havia trabalhadores a instalar o novo elevador e Kelly estremecia de cada vez que passava por eles.
O superintendente do prédio, Philippe Cendre, era um homem alto e atraente, com uma personalidade acolhedora, e a mulher e a filha sempre tinham sido extremamente
prestáveis. Ao saberem de Mark, tinham ficado arrasados. O funeral fora no cemitério Père-La-chaise e Kelly convidara a família Cendre a assistir.
Aproximou-se da porta do apartamento de Philippe e bateu. Assim que ele abriu a porta, Kelly disse:
- Tenho um favor para lhe pedir.
- Entre. Tudo o que precisar, senhora Harris.
- Tenho que ir a Nova Iorque por três ou quatro dias. Será que se importavam de tomar conta da Angel enquanto eu estiver fora?
- Importar? Eu e a Ana Maria vamos adorar.
- Muito obrigada. Fico muito grata.
- E garanto-lhe que tudo faremos para a mimar.
Kelly sorriu.
Sexta-feira de manhã, Kelly levou Angel lá abaixo, ao apartamento de Philippe Cendre.
Deu ao porteiro uma série de sacos de papel.
- Estes têm a comida preferida da Angel e aqui estão alguns brinquedos para ela brincar...
Philippe afastou-se para o lado e atrás dele Kelly viu uma pilha de brinquedos para cão no meio do chão. Desatou a rir.
- Angel, estás em excelentes mãos. - E deu à cadelinha um último abraço. -Adeus, Angel. E muito obrigada, Philippe.
Na manhã em que Kelly ia partir, Nicole Paradis, a recepcionista do elegante edifício de apartamentos, estava de pé à porta para se despedir. Uma exuberante mulher
de cabelo grisalho, era tão baixinha que, quando se sentava atrás da secretária, só se via o cocuruto da cabeça. Sorriu para Kelly e disse:
- Madame, vamos sentir a sua falta. Por favor, volte depressa.
Kelly tomou-lhe as mãos.
- Muito obrigada. Eu volto em breve, Nicole. - E, minutos mais tarde, estava a caminho do aeroporto.
O aeroporto Charles de Gaulle estava inacreditavelmente apinhado de gente, como era costume, aliás. Era um labirinto imenso de balcões, lojas, restaurantes, escadas
e gigantescas escadas rolantes que subiam e desciam, quais monstros pré-históricos.
Quando Kelly chegou, o director do aeroporto acompanhou-a até uma sala de embarque privada.
Quarenta e cinco minutos mais tarde o seu voo foi anunciado. Enquanto Kelly se encaminhava para a porta de embarque, uma mulher que estava parada ali perto observava-a
78 79
através da porta. Assim que Kelly desapareceu de vista, a mulher pegou num telemóvel e fez uma chamada.
Kelly estava sentada no seu lugar no avião, só pensando em Mark e alheada do facto de que a maior parte dos homens e das mulheres dentro da cabina a olhavam embasbacados.
Mas o que é que Mark estaria afazer na plataforma de observação da torre Eiffel à meia-noite? Com quem é que ele se iria encontrar? E porquê? E, o pior de tudo,
porque é que Mark se suicidou? Nós éramos tão felizes. Amávamo-nos tanto. Não acredito que ele se tenha suicidado. Não o Mark... Não o Mark... Não o Mark. E fechou
os olhos e deixou os pensamentos fluírem.
Era o primeiro encontro. Vestira para essa noite uma saia preta formal e uma blusa de gola alta branca, para que ele não ficasse com a ideia de que ela o estava,
de alguma maneira, a tentar. Aquela ia ser uma noite normal e simpática. Kelly percebeu que estava nervosa. Devido à coisa horrível que lhe acontecera em criança,
Kelly nunca tivera contacto com nenhum homem a não ser por questões de trabalho ou nos acontecimentos de caridade obrigatórios.
Isto não é propriamente um encontro amoroso, ia Kelly dizendo para si própria. Nós vamos ser só amigos. Ele pode passear comigo pela cidade sem haver qualquer implicação
romântica. Enquanto assim pensava, a campainha da porta tocou.
Kelly respirou fundo e foi abrir. Ali estava Mark, de pé, a sorrir, com uma caixa e um saco de papel na mão. Vestia um fato cinzento que lhe assentava mal, uma camisa
verde, uma gravata de um tom vermelho-vivo e sapatos castanhos. Kelly quase riu alto. O facto de que Mark não tinha qualquer noção de estilo era, de uma certa forma,
engraçado. Conhecera demasiados homens cujos egos só se preocupavam com a própria elegância.
- Entre - convidou Kelly.
- Espero não estar atrasado.
- Não, não. De forma nenhuma. - Estava vinte e cinco minutos adiantado.
- É para si - disse Mark, dando-lhe a caixa.
Era uma caixa com cerca de dois quilos de chocolates. Ao longo dos anos, Kelly vira serem-lhe oferecidos diamantes, peles e penthouses, 80 jamais alguém lhe dera
chocolates.
Exactamente aquilo que todas as modelos precisam, pensou, divertida.
Muito obrigada. - E Kelly sorriu.
E isto são guloseimas para a Angel - acrescentou Mark estendendo-lhe o outro saco.
Como se tivesse ouvido a sua deixa, Angel entrou na sala aos saltos e correu para Mark, a cauda a abanar.
Mark pegou nela e fez-lhe festas.
- Ela lembra-se de mim.
- Tenho mesmo que lhe agradecer ter-ma dado - disse Kelly.
Ela é uma companhia maravilhosa. Nunca tinha tido nenhum cão antes.
Mark olhou para Kelly e os seus olhos diziam tudo.
A noite correu extraordinariamente bem. Mark era uma companhia excelente e Kelly estava comovida, pois era óbvio que ele estava encantado por estar na sua companhia.
Inteligente, era fácil conversar com ele e o tempo passou bastante mais depressa do que Kelly pensara.
No fim da noite, Mark disse:
- Gostava muito de repetir uma noite como esta.
- Sim. Eu também.
- Kelly, o que é que lhe dá mais prazer fazer?
- Gosto muito de futebol. Também gosta?
Um vazio passou pela expressão dele.
- Oh... sim... claro... Gosto muito.
Como ele mente mal, pensou Kelly. Assaltou-a uma repentina vontade de lhe pregar uma partida.
-Vai haver um jogo para o campeonato no sábado à noite. Quer vir?
- Claro. Boa ideia! - respondeu Mark sem grande vontade enquanto engolia em seco.
Quando a noite chegou ao fim e estavam de volta ao prédio de Kelly, esta deu por si a ficar muito tensa. Aquele era o momento em que costumava ouvir:
E que tal um beijo de boas noites?
E se eu entrasse e bebêssemos mais um copo antes da noite terminar?
81
Não vai querer passar a noite sozinha, pois não?
Quando chegaram à porta de Kelly, Mark olhou para ela e disse:
- Sabe qual foi a primeira coisa que reparei em si, Kelly?
Kelly susteve a respiração. Aqui vem...
O seu rabo é magnífico...
Adoro os seus seios...
Adorava sentir as suas pernas em redor do meu pescoço...
- Não - respondeu gélida. - O que foi?
- A dor nos seus olhos.
E antes de ela ter tempo para lhe responder, Mark disse:
- Boa noite.
E Kelly ficou a vê-lo partir.
CAPÍTULO 13
Quando Mark voltou no sábado à noite, trazia outra caixa de doces e um grande saco de papel.
- Estes doces são para si. Os outros são para a Angel.
Kelly pegou nos sacos.
- Muito obrigada, e a Angel também agradece.
Ficou a ver Mark a fazer festas à Angel e perguntou inocentemente:
- Então, ansioso por ir ver o jogo?
Mark acenou com a cabeça e disse entusiasmado:
- Oh, sim!
Kelly sorriu.
- Excelente. Eu também.
Sabia que ele nunca antes pusera os pés num jogo de futebol.
O estádio do Paris Saint-Germain estava cheio à cunha, com sessenta mil ansiosos fãs que aguardavam que o jogo para o campeonato entre o Lyon e o Marselha começasse.
Enquanto Kelly e Mark eram encaminhados até aos seus lugares, exactamente por cima do meio campo, Kelly comentou:
- Estou impressionada. Estes lugares são muito difíceis de arranjar.
- Quando se gosta de futebol tanto como eu, nada é impossível - respondeu Mark a sorrir.
Kelly mordeu o lábio para evitar rir às gargalhadas. Mal podia esperar que o jogo começasse.
Às catorze horas em ponto, ambas as equipas entraram em campo, mantendo-se perfiladas enquanto a orquestra tocava a Marselhesa, o hino nacional de França. Enquanto
os jogadores do Lyon e do Marselha, alinhados, se viravam para os camarotes para serem apresentados, um jogador do Lyon deu um passo em frente, vestindo o logotipo
da equipa com as cores azul e branco.
Kelly decidiu ceder e explicar a Mark o que se estava a passar:
- Aquele é o guarda-redes - explicou Kelly, inclinando-se para Mark. - Ele...
- Eu sei. Chama-se Grégory Coupet. É o melhor guarda-redes da liga. Ganhou o campeonato contra o Bordéus, em Abril do ano passado. Ganhou a Taça UEFA e a liga dos
Campeões no ano anterior.
Tem trinta anos, mede um metro e oitenta e pesa noventa quilos.
Kelly olhava para Mark, espantadíssima. O locutor continuava a anunciar:
- Avançado, Sidney Gouvon...
- Número catorze - comentava, entusiasmado, Mark. - Ele é incrível. Na semana passada, contra o Auxerre, marcou um golo no último minuto do jogo.
Kelly ouvia-o, maravilhada, enquanto Mark, de forma conhecedora, ia tecendo comentários sobre os outros jogadores. O jogo começou e a multidão enlouqueceu.
- Olhe. Ele começou com um pontapé de bicicleta - exclamou Mark.
Foi um jogo frenético, excitante, e os guarda-redes de ambas as equipas trabalhavam bastante para conseguir evitar que os adversários marcassem. Kelly estava com
problemas em se concentrar. Não parava de olhar para Mark, maravilhada com os seus conhecimentos. Como pude enganar-me desta maneira?
No meio de uma jogada Mark exclamou:
- Gouvon vai tentar o chapéu! E conseguiu!
E alguns minutos mais tarde:
- Olhe! Carrière vai levar um cartão por tocar na bola com as mãos.
E estava certo. Lyon ganhou e Mark estava eufórico.
- Mas que grande equipa!
Quando saíam do estádio, Kelly perguntou:
- Mark, há quanto tempo é que se interessa por futebol?
- Há três dias. Andei a pesquisar no meu computador. Como estava tão interessada, achei melhor aprender - respondeu a olhar para Kelly com ar envergonhado.
Kelly estava extremamente comovida. Era inacreditável que ele tivesse passado tanto tempo e tivesse feito um esforço tão grande só porque ela gostava de futebol.
Tinham marcado um encontro para o dia seguinte, depois de Kelly terminar um trabalho que tinha nesse dia.
Posso ir buscá-la ao seu camarim e...
Não! - Ela não queria que ele encontrasse as outras modelos.
Mark olhava intrigado para ela.
- Quero dizer... Há uma regra que não permite que os homens entrem nos camarins.
- Oh! Eu não quero que se apaixone...
"Minha senhoras e meus senhores, por favor apertem os cintos de segurança, endireitem as costas das cadeiras e fechem e tranquem as mesas. Estamo-nos a aproximar
do aeroporto de Kennedy e aterraremos dentro de minutos."
Kelly foi bruscamente chamada ao presente. Estava em Nova Iorque para se encontrar com Tanner Kingsley, o homem para quem Mark trabalhara.
Alguém informara os media. Quando o avião aterrou, estavam todos à espera de Kelly, que foi imediatamente cercada por jornalistas com câmaras de televisão e microfones.
- Kelly, importa-se de olhar para este lado?
- Pode dizer-nos o que pensa que aconteceu ao seu marido?
- Vai haver uma investigação policial?
- Você e o seu marido estavam a pensar divorciar-se?
- Agora vai regressar aos Estados Unidos?
- Como se sentiu quando soube o que aconteceu?
A pergunta mais insensível de todas.
Kelly viu ao fundo um homem com um rosto agradável, de aspecto atento. Ele sorriu e acenou-lhe e ela fez-lhe sinal para que ele se aproximasse.
Ben Roberts era um dos mais populares e conceituados entrevistadores da televisão estatal. Já antes entrevistara Kelly e tinham ficado amigos. Ela ficou a olhar
enquanto ele abria caminho através da multidão de jornalistas. Todos o conheciam.
- Ei, Ben! A Kelly vai aparecer no teu programa?
- Achas que ela vai falar do que aconteceu?
- Posso ter uma foto com os dois?
Nesta altura já Ben chegara junto dela. O maço de jornalistas empurrava-os. Ben exclamou alto:
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-Vamos deixá-la um pouco em paz, senhores e senhoras. Poderão falar com ela mais tarde.
Relutantemente, afastaram-se um pouco. Ben pegou-lhe na mão e disse:
- Não tenho palavras para expressar como lamento. Gostava muito de Mark.
- Era mútuo, Ben.
Enquanto se afastavam na direcção da zona de recolha de bagagens, ele perguntou:
- A nível particular, o que é que fazes em Nova Iorque?
- Estou aqui para ver Tanner Kingsley.
Ben acenou com a cabeça.
- Um homem poderoso. Tenho a certeza de que tomará bem conta de ti.
Tinham chegado ao balcão das bagagens.
- Kelly, se houver alguma coisa que eu possa fazer por ti, podes sempre apanhar-me na estação de televisão. - E olhou em volta. - Vêm-te buscar? Se não, eu...
Nesse momento, um motorista uniformizado aproximou-se de Kelly:
- Senhora Harris? O meu nome é Colin. O carro está lá fora. O senhor Kingsley reservou-lhe uma suite no Hotel Metropolitan. Se me der os talões, eu trato da sua
bagagem.
Kelly virou-se para Ben:
- Telefonas-me?
- Claro que sim.
CAPÍTULO 14
Tanner Kingsley lia a notícia de manchete do jornal da tarde: "Saraivada abate-se sobre o Irão." O resto da notícia continuava chamando-lhe "Um acontecimento anormal."
A ideia de uma saraivada a ter lugar em pleno verão num clima quente era bizarra. Tanner chamou a secretária. Assim que ela entrou, disse-lhe:
- Kathy, corte este artigo e envie-o à senadora van Luven, com uma nota "Últimas sobre o aquecimento global. Cumprimentos, etc..."
- Com certeza, senhor Kingsley.
Tanner Kingsley olhou para o relógio. Os dois detectives deviam chegar ao KIG dentro de meia hora. Olhou em redor do seu extravagante escritório. Fora ele que criara
tudo aquilo. O KIG. Pensou no poder por detrás daquelas simples iniciais e como as pessoas ficariam espantadas se conhecessem a história do seu humilde começo, uns
meros sete anos atrás. As lembranças do passado invadiram-no...
Lembrava-se do dia em que concebera o novo logotipo do KIG. Luxuoso, para uma empresa que nada vale, fora o comentário de alguém e Tanner transformara sozinho a
empresa que nada valia numa potência mundial. Sempre que se lembrava dos primeiros tempos, sentia-se como alguém que acaba de fazer um milagre.
Dez minutos depois, Kelly estava a caminho do hotel. Enquanto se esgueiravam por entre o tráfego, Colin disse:
- A secretária do senhor Kingsley vai telefonar-lhe para marcar uma reunião. O carro estará à sua disposição para o que pretender.
- Muito obrigada.
O que estou eu afazer aqui? - interrogou-se Kelly. Estava prestes a conhecer a resposta.
Tanner Kingsley nascera cinco anos depois do seu irmão, Andrew, e isso moldara para sempre o seu rumo na vida. Depois do divórcio dos pais, a mãe voltara a casar
e mudara-se. O pai era cientista e os rapazes tinham seguido as suas pisadas e crescido para se transformarem em verdadeiros prodígios da ciência. O pai morrera
de um ataque cardíaco aos quarenta anos.
O facto de Tanner ter menos cinco anos do que o irmão fora sempre uma frustração constante. Quando Tanner ganhou o primeiro Prémio da sua classe de ciência disseram-
lhe: "Andrew foi o número um da sua classe há cinco anos. Deve ser coisa de família."
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Quando ganhou um concurso de retórica, o professor comentou "Parabéns Tanner. És o segundo Kingsley a obter este prémio."
Quando se juntou à equipa de ténis: "Espero que sejas tão bom como o teu irmão Andrew."
Quando se formou: "O teu discurso de fim de curso foi inspirador. Lembrou-me muito o de Andrew."
Cresceu na sombra do irmão e era vexatório saber que era sempre considerado o segundo melhor, simplesmente porque Andrew fora o primeiro a lá chegar.
Havia muitas parecenças entre os dois irmãos, eram ambos bem parecidos, inteligentes e talentosos, mas, à medida que iam envelhecendo, foram surgindo diferenças
importantes. Enquanto Andrew era altruísta e propositadamente apagado, Tanner era extrovertido, gregário e ambicioso. Andrew era tímido com as mulheres, enquanto
que a aparência de Tanner e o seu encanto as atraía como um íman.
Mas a principal diferença entre os dois irmãos residia nos seus objectivos na vida. Enquanto Andrew se preocupava fundamentalmente em organizar actos de caridade
e prestar auxílio aos outros, a ambição de Tanner era tornar-se rico e poderoso.
Andrew formara-se summa cum laude e aceitara imediatamente uma oferta para trabalhar com um think tank. Aí percebera a significativa contribuição que uma organização
como aquela poderia ter e, cinco anos mais tarde, decidira formar o seu próprio think tank, numa escala mais modesta.
Quando falou com Tanner sobre a sua ideia, este ficou excitado.
- Mas isso é uma ideia brilhante! Os think tanks recebem contratos do governo que valem milhões de dólares, isso já para não falarmos das empresas que contratam...
Andrew interrompeu-o:
- Tanner, não é nada disso que eu pretendo. O que quero é ajudar as pessoas.
Tanner ficou a olhar para ele.
- Ajudar as pessoas?
- Exactamente. Há dúzias de países do Terceiro Mundo que não têm acesso aos modernos métodos de agricultura e de indústria. Há um ditado que diz que se deres um
peixe a um homem, ele terá 88 uma refeição, mas, se o ensinares a pescar, ele pode comer para o resto da sua vida.
Isso é mais velho do que a arca de Noé, pensou Tanner.
Andrew, esses países não têm capacidade económica para nos pagar...
- Não interessa. Vamos mandar peritos para os países do Terceiro Mundo e ensinar-lhes as técnicas que mudarão para sempre as suas vidas. E quero que sejas meu sócio.
A empresa chamar-se-á Kingsley Group. O que é que achas?
Tanner ficou por momentos pensativo e depois concordou:
Realmente, não é uma má ideia. Podemos começar por esse tipo de países de que falaste e depois partir em busca do dinheiro, dos contratos governamentais...
Tanner, concentremo-nos simplesmente em fazer do mundo um lugar melhor.
Tanner sorriu. Teria de haver cedências. Começariam da forma que Andrew pretendia e em seguida, gradualmente, construiriam a empresa levando-a ao seu verdadeiro
potencial. .
- E então?
Tanner estendeu a mão.
- Ao futuro, sócio.
Seis meses mais tarde, os dois irmãos estavam parados à chuva do lado de fora de um pequeno edifício em tijolo com uma discreta placa que dizia KINGSLEY GROUP.
- Que tal te parece? - perguntou Andrew, orgulhoso.
- Maravilhoso. - Tanner conseguiu disfarçar a ironia na voz.
- Este nome vai trazer felicidade a muitas pessoas por todo o mundo, Tanner. Já comecei a contratar alguns peritos para irem para os países do terceiro Mundo.
Tanner ia começar a reclamar, mas susteve-se. Não devia apressar o irmão. Ele era muito teimoso. Mas o momento chegaria. Tanner olhou para placa uma vez mais e pensou:
Um dia esta placa dirá KIG, Kingsley Internacional Group.
John Higholt, um amigo de faculdade de Andrew, investira cem mil dólares para ajudar a dar início ao think tank, e Andrew angariara o restante.
Contrataram meia dúzia de pessoas e enviaram-nas para Moma, Somália e o Sudão, para ensinarem aos nativos como melhorar as suas vidas. Mas não entrava dinheiro nenhum.
Nada disto fazia sentido para Tanner.
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-Andrew, se quisermos, conseguimos contratos de algumas das mais importantes empresas e...
- Mas não é nada disso que nós fazemos, Tanner. - Mas que raio é que nós fazemos?, interrogava-se Tanner.
- A Chrysler anda à procura de...
E Andrew sorrira e respondera:
-Não é essa a nossa função.
Tanner precisou de toda a sua força de vontade para se controlar.
Cada um tinha o seu laboratório. Ambos andavam imersos nos seus próprios projectos. Frequentemente, Andrew trabalhava pela noite dentro.
Uma manhã, quando Tanner chegou às instalações, Andrew ainda lá estava. Viu Tanner a entrar e deu um salto.
- Estou muito entusiasmado com esta experiência de nanotecnologia. Estou a desenvolver um método de...
A mente de Tanner vogou para algo mais importante, a pequena e interessante ruiva que conhecera na noite anterior. Encontrara-se com ela no bar, tinham bebido uns
copos, levara-a para o apartamento e fizera-a passar um tempo fabuloso. Quando ela tinha entre as mãos o seu...
- ...e acho que isto vai, de facto, ser muito importante. Que é que achas, Tanner?
Apanhado desprevenido Tanner respondeu:
- Oh! Claro que sim, Andrew. Excelente.
Andrew sorriu:
- Eu sabia que ias perceber o potencial.
Tanner estava mais interessado na sua experiência secreta. Se a minha resultar, pensou, serei dono do mundo.
Uma noite, pouco depois de se ter formado, Tanner estava numa recepção quando uma agradável voz feminina atrás dele disse:
-Já ouvi falar muito de si, senhor Kingsley.
Tanner virara-se, ansioso, e em seguida tentara ocultar o seu desapontamento. Quem assim falara era uma jovem sem nada de relevante. A única coisa que fazia com
que não fosse completamente vulgar era um par de intensos olhos castanhos e um engraçado, embora um pouco cínico, sorriso. A beleza física da mulher era para Tanner,
condição sine qua non, e era óbvio que esta não respondia a essa condição.
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- Nada de mal, espero - respondeu, enquanto ia pensando numa desculpa para se livrar dela.
O meu nome é Pauline Cooper. Os meus amigos chamam-me Paula. Você saiu com a minha irmã Ginny, quando estava na faculdade. Ela era louca por si.
Ginny, Ginny... Baixinha? Alta? Morena? Loura? Tanner continuava a sorrir, tentando lembrar-se. Tinham sido tantas...
- Ginny queria casar consigo...
Isto não ajudava em nada. O mesmo acontecera com tantas outras.
-A sua irmã era muito simpática. Mas nós é que... Ela olhou-o sarcasticamente:
- Não se esforce. Você nem sequer se lembra dela.
Tanner ficou embaraçado.
- Bem, é que...
- Não tem importância. Fui ao casamento dela há poucos dias...
Tanner ficou aliviado.
- Ah! Excelente. Então Ginny casou.
- Pois foi. - E fez uma pequena pausa. - Mas eu não. Gostaria de jantar comigo amanhã à noite?
Tanner olhou melhor para ela. Embora não correspondesse ao seu padrão de beleza normal, parecia ter um corpo agradável e ser suficientemente interessante. E seria,
certamente, fácil de levar para a cama. Tanner avaliava as namoradas como se fossem um jogo de basebol. Ele fazia um lançamento. E era tudo. Se ela não apanhasse
a bola, estava fora.
Ela observava-o.
- Eu pago.
Tanner riu-se.
- Eu posso pagar, se você não for a maios glutona do mundo.
- Venha e veja por si.
- Muito bem - respondeu ele suavemente depois de olhar para o fundo dos olhos dela.
Na noite seguinte, jantaram num restaurante da moda, na parte alta da cidade. Paula levava uma blusa branca com um decote pronunciado, uma saia preta e sapatos de
salto alto. Tanner, que a observava a entrar no restaurante, pensou que ela lhe parecia bastante mais bonita do que a ideia com que ficara dela. Na verdade, tinha
ar de princesa de um desses países exóticos.
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Tanner levantou-se.
- Boa noite.
Ela apertou-lhe a mão e respondeu:
- Boa noite. - Havia nela um ar de segurança que era quase real.
Quando se sentaram, ela disse:
- Vamos começar tudo de novo, está bem? Eu não tenho nenhuma irmã.
- Mas disse-me que... - Tanner olhava para ela, confuso.
- Só queria testar a sua reacção, Tanner. Ouvi muitas coisas sobre si através da algumas das minhas amigas e fiquei curiosa - comentou a sorrir.
Estaria a falar de sexo? Com quem é que ela teria falado? Podiam ser tantas...
- Não tire conclusões precipitadas. Não estou a falar das suas qualidades como garanhão. Estou a falar da sua cabeça.
Era como se ela fosse capaz de lhe ler o pensamento.
- Então você... está interessada em cabeças?
- Entre outras coisas - respondeu ela, convidativa.
Isto vai ser canja. Tanner esticou a mão por cima da mesa e tomou a mão dela.
- Você é o máximo - e acariciou-lhe o braço. - É uma pessoa especial. Vamos ter uma noite muito interessante.
-Já está com tesão, querido? - disse ela a sorrir..
Tanner ficou desconcertado com a rudeza dela. Pelos vistos era impaciente.
- Sempre, Princesa - concordou Tanner.
- Ela sorriu.
- Óptimo. Então saque lá do seu livrinho negro e vamos tentar encontrar alguém que esteja disponível para hoje à noite.
Tanner ficou petrificado. Estava habituado a divertir-se com as mulheres, mas nunca antes ninguém troçara dele. Ficou a olhar para ela.
- O que está a dizer?
- Que vamos ter que melhorar as suas deixas, querido. Faz alguma ideia do pirosas que são?
Tanner começou a ficar vermelho.
- E o que é que a leva a pensar que são deixas?
Ela olhou directo para ele:
- Isso que me disse foi provavelmente inventado por Matosalém - 92 Quando falar comigo, quero que me diga coisas que nunca antes se disse a nenhuma outra mulher.
Tanner olhou para ela, tentando ocultar a fúria que o invadia. Mas com quem é que ela julga que está a falar, com algum miúdo da escola? Ela era demasiado insolente
para o seu próprio bem. Lançamento falhado. A cabra estava fora de jogo.
CAPÍTULO 15
O quartel general do Kingsley Internacional Group estava implantado em Manhattan, a dois quarteirões do rio East. As instalações ocupavam cinco acres de terra e
eram formadas por quatro grande edifícios de cimento e duas pequenas casas para o pessoal, tudo vedado e electronicamente protegido.
As dez em ponto da manhã, os detectives Earl Greenburg e Robert Praegitzer entraram no átrio do edifício principal. Era espaçoso e moderno, mobilado com alguns sofás
e mesas e meia dúzia de cadeiras.
O detective Greenburg deu uma vista de olhos a uma pilha de revistas sobre uma mesa, Virtual Reality, Nuclear and Radiological Terrorism, Robotics World...
Tirou um exemplar da GeneticEngineering News e virou-se para Praegitzer:
- Não te fartas de ver estas revistas no consultório do teu dentista?
- Exactamente. - E Praegitzer riu.
Os dois detectives aproximaram-se da recepcionista e identificaram-se.
- Temos uma reunião com o senhor Tanner Kingsley.
- Ele está à vossa espera. Vou chamar alguém para os acompanhar. - E deu a cada um cartão de identificação do KIG. - Por favor, devolvam-nos à saída.
- Com certeza.
A recepcionista premiu um botão e, momentos depois, surgiu uma jovem atraente.
- Estes senhores têm uma reunião marcada com o senhor Tanner Kingsley.
- Muito bem. O meu nome é Retra Tyler e sou assistente do Senhor Kingsley. Acompanhem-me, por favor.
Os dois detectives caminharam por um longo corredor cercado com gabinetes de portas fechadas de cada lado. Ao fundo ficava o gabinete de Tanner.
Na sala de espera, Kathy Ordonez, a brilhante jovem assistente de Tanner sentava-se atrás de uma secretária.
Bons dias, senhores. Queiram entrar.
Levantou-se e abriu a porta que dava para o gabinete particular de Tanner. Assim que os detectives entraram, estacaram a olhar em volta com respeito.
O enorme gabinete parecia apinhado de misteriosos equipamentos electrónicos e as paredes à prova de som estavam cobertas de finíssimos ecrãs de televisão que mostravam
cenas, em directo, de várias cidades em todo o mundo. Algumas eram de atarefadas salas de conferência, de escritórios, de laboratórios, enquanto outras mostravam
suites de hotel, onde tinham lugar algumas reuniões. Cada ecrã possuía o seu próprio sistema de som e, embora o volume de som mal fosse audível, era fantástico ouvir
excertos de frases faladas ao mesmo tempo numa dúzia de línguas diferentes.
Uma legenda na parte inferior de cada ecrã identificava as cidades: Milão, Joanesburgo, Zurique, Madrid, Atenas...
Ao fundo da parede via-se uma estante de oito prateleiras repleta de volumes encadernados a couro.
Tanner Kingsley estava sentado atrás de uma secretária em mogno onde havia uma consola com meia dúzia de botões de diferentes cores. Estava elegantemente vestido
num fato cinzento de excelente corte, com uma camisa azul clara e uma gravata de escocês azul.
Ergueu-se assim que os dois detectives entraram.
- Bons dias, meus senhores.
- Bom dia. Nós... - começou a dizer Earl Greenburg.
- Sim, eu sei quem vocês são. Os detectives Earl Greenburg e Robert Praegitzer. - Cumprimentaram-se. - Por favor, queiram sentar-se.
Os detectives obedeceram.
Praegitzer olhava fixamente para as imagens vindas de todo o mundo que mudavam constantemente na profusão de ecrãs de televisão. Abanou a cabeça em admiração:
- A tecnologia de hoje em dia! Isto é...
Tanner ergueu a mão.
- Não estamos aqui a ver a tecnologia de hoje em dia, detective.
Esta tecnologia não estará no mercado senão daqui a dois ou três anos. Com ela, podemos assistir a teleconferências numa dúzia de Países, tudo ao mesmo tempo. A
informação que entra vinda dos nossos escritórios em todo o mundo é imediatamente analisada e registada por estes computadores.
94 95
- Senhor Kingsley, desculpe uma pergunta tão simples. Mas o que é, de facto, um think tank? - perguntou Praegitzer.
- Em poucas linhas? Bom, resolvemos problemas. Encontramos soluções para problemas que possam vir a surgir. Alguns centram-se simplesmente numa área, militar, económica
ou política. Nós tratamos de segurança nacional, comunicações, microbiologia, assuntos relacionados com o ambiente. O KIG funciona como um analista e crítico independente
das consequências globais a longo prazo para vários governos.
- Que interessante.
- Oitenta e cinco por cento do nosso pessoal possui graus académicos avançados e mais de sessenta e cinco por cento são doutorados.
- Isso é impressionante.
- O meu irmão Andrew fundou o Kingsley Internacional Group para ajudar os países do Terceiro Mundo, por isso estamos todos profundamente embrenhados em projectos
piloto.
Ouviu-se o som repentino de um trovão e um raio de luz brilhou num dos ecrãs de televisão. Todos se viraram para olhar.
- Não li qualquer coisa sobre uma experiência climatérica que estavam a fazer? - perguntou o detective Greenburg.
Tanner fez uma careta.
- Sim. É conhecida por aí como a loucura de Kingsley. É um dos maiores falhanços que o KIG alguma vez teve. Foi um dos projectos que eu mais quis que funcionasse.
Em vez disso, vamos ter que o cancelar.
- E possível controlar o clima? - quis saber Praegitzer.
Tanner abanou a cabeça.
- Só de forma limitada. Houve já imensas pessoas que o tentaram. Já em 1900, Nikola Tesla fez experiências com as condições meteorológicas. Descobriu que a ionização
da atmosfera pode ser alterada através de ondas de rádio. Em 1958, o nosso departamento de defesa experimentou lançar agulhas de cobre na ionosfera. Dez anos mais
tarde houve o Projecto Popeye, em que o governo tentou prolongar a estação das monções no Laos, para aumentar a quantidade de lama na Trilha de Ho Chi Minh. Usaram
um agente nuclear de iodedo de prata e vários geradores lançaram-no para as nuvens, para se transformar em sementes de chuva.
- E funcionou?
- Funcionou. Mas numa base confinada. Existem várias condições para fazer com que nunca sejamos capazes de controlar o clima.
96 Um dos problemas é que o El Nino gera altas temperaturas no oceano Pacífico que perturbam o sistema ecológico do mundo, enquanto La Nina gera temperaturas frias
no Pacífico; os dois combinados anulam completamente qualquer tentativa realista de planeamento de controle. O hemisfério sul é composto oitenta por cento por oceanos,
enquanto o hemisfério norte só tem sessenta por cento, dando origem a outro desequilíbrio. Além disso, a corrente quente determina a rota das tempestades e não há
forma de o controlar. Greenburg acenou e em seguida perguntou, hesitante:
- Sabe porque estamos aqui, senhor Kingsley?
Tanner estudou Greenburg por momentos.
- Penso que seja uma pergunta de retórica. De outra forma, teria que a considerar ofensiva. O KIG é um think tank. Quatro dos meus funcionários morreram ou desapareceram
misteriosamente num espaço de vinte e quatro horas. Nós próprios já iniciámos as nossas investigações. Temos escritórios nas principais cidades espalhadas pelo mundo,
com mil e oitocentos empregados, e é óbvio que me é difícil manter-me em contacto com todos eles. Mas aquilo que consegui saber até agora foi que dois dos que foram
assassinados estavam aparentemente envolvidos em actividades ilegais.
Custou-lhes a vida, mas asseguro-vos que não irá custar a reputação do Kingsley Internacional Group. Espero que a nossa gente consiga resolver este assunto com toda
a celeridade.
- Senhor Kingsley. Não é só isso. Tivemos conhecimento de que, há seis anos, um cientista japonês chamado Akira Iso se suicidou em Tóquio. Há três anos, uma cientista
suíça de nome Madeleine Smith suicidou-se em... - acrescentou Greenburg.
Tanner interrompeu-o.
- Zurique. Nenhum deles se suicidou. Foram assassinados.
Os dois detectives olharam para ele surpresos.
- Como é que sabe disso? - perguntou Praegitzer.
A voz de Tanner endureceu.
- Eles foram mortos por minha culpa.
- Quando diz...
- Akira Iso era um cientista brilhante. Trabalhava para um conglomerado electrónico chamado Tokyo First Industrial Group. Encontrei Iso numa convenção industrial
internacional em Tóquio, damo-nos bem. Pensei que o KIG lhe podia proporcionar uma atmosfera do que a empresa onde estava. Fiz-lhe uma proposta para vir aqui e ele
aceitou. Na realidade, até ficou muito excitado
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com a perspectiva. - Tanner lutava para manter a voz controlada - Concordámos em manter o assunto confidencial, até ele se encontrar legalmente capaz de poder abandonar
a empresa. Mas é óbvio que deve ter falado do assunto a alguém, porque veio uma reportagem a esse respeito num jornal, e... - Tanner parou mais uma vez, por um longo
momento, e, em seguida continuou. - Um dia depois de a reportagem ter aparecido, Iso foi encontrado morto num quarto de hotel.
- Senhor Kingsley, é possível existirem outras razões para explicar a sua morte? - quis saber Robert Praegitzer.
Tanner abanou a cabeça.
- Não. Não acredito sequer que ele se tenha suicidado. Contratei investigadores que mandei para lá e alguns dos meus empregados no Japão tentaram saber o que se
passara. Não foram capazes de encontrar nada que provasse que tinha sido crime e pensei que podia estar enganado e que talvez existisse alguma tragédia na vida de
Iso que eu desconhecia.
- Então porque é que tem tanta certeza de que ele foi morto? - perguntou Greenburg.
- Como você próprio já disse, uma cientista chamada Madeleine Smith supostamente suicidou-se em Zurique, há três anos. O que você não sabe é que Madeleine Smith
também pretendia abandonar as pessoas para quem trabalhava e vir para a nossa empresa.
Greenburg franziu o sobrolho.
- O que o leva a pensar que existe uma ligação entre estas duas mortes?
O rosto de Tanner era uma esfinge.
- Porque a empresa para a qual ela trabalhava é uma filial do mesmo Tokyo First Industrial Group.
Fez-se um silêncio de espanto.
- Há aqui algo que eu não estou a compreender - interrompeu Praegitzer. - Porque haviam de assassinar um empregado só porque ela se queria vir embora? Se...
- Madeleine Smith não era uma empregada qualquer. Nem tão pouco Iso. Eram físicos brilhantes, que estavam prestes a resolver problemas que fariam com que qualquer
empresa ganhasse uma fortuna, maior do que alguma vez se possa imaginar. Era por isso que não estavam interessados em perder nenhum deles.
- A polícia suíça investigou a morte de Smith?
- Claro. E nós também. Mas, mais uma vez, não fomos capazes de provar absolutamente nada. Na realidade, continuamos a trabalhar em todas as mortes que tiveram lugar
e tenho esperanças de que sejamos capazes de solucionar algumas delas. O KIG tem grandes relações por todo o mundo. Se alguma vez eu tiver alguma informação que
possa ser útil, terei todo o prazer em partilhá-la convosco. Espero o mesmo do vosso lado. Greenburg respondeu:
- Claro.
Um telefone folheado a ouro sobre a secretária de Tanner tocou.
Desculpem. - Encaminhou-se para secretária e atendeu o telefone. - Está lá... sim... A investigação está a correr bem. Na verdade, tenho neste momento no meu gabinete
dois detectives e eles concordaram em cooperar connosco... - E olhou para Praegitzer e Greenburg. - Certo. Eu digo-te qualquer coisa assim que tivermos notícias.
- E pousou o telefone.
- Senhor Kingsley, estão a trabalhar em alguma coisa que seja secreta? - perguntou Greenburg.
- Está a querer dizer alguma coisa suficientemente importante para justificar o assassínio de meia dúzia de pessoas? Detective Greenburg, existem mais de cem think
tanks em todo o mundo, alguns deles a trabalhar exactamente nos mesmos problemas que nós.
Nós aqui não construímos bombas atómicas. A resposta à sua pergunta é não.
A porta abriu-se e Andrew Kingsley entrou no gabinete, transportando um monte de papéis. Andrew Kingsley era pouco parecido com o irmão. Os seus traços pareciam
desfocados. Tinha cabelo grisalho que começava a desaparecer, um rosto enrugado e caminhava com uma postura algo inclinada. Enquanto Tanner irradiava vitalidade
e inteligência, Andrew Kingsley parecia ser pouco esperto e apático. Falava de forma hesitante e parecia ter dificuldade em juntar as frases.
- Aqui estão aqueles... sabes... aqueles papéis que pediste, Tanner. Peço desculpa por não os ter terminado... mais cedo.
- Não há qualquer problema, Andrew. - E Tanner virou-se para os dois detectives. - Este é o meu irmão, Andrew. Os detectives Greenburg e Praegitzer.
Andrew olhou inseguro para eles e piscou os olhos. Andrew, queres falar-lhes do teu Prémio Nobel? Andrew olhou para Tanner e respondeu evasivamente: Sim... pois...o
Prémio Nobel... o Prémio Nobel.
98 99 Ficaram a olhar enquanto ele se virava e saía do gabinete; arrastando os pés. Aí Tanner suspirou.
- Como disse, Andrew foi o fundador desta empresa, um homem perfeitamente brilhante. Há sete anos atrás recebeu o Prémio Nobel por uma das suas descobertas. Infelizmente,
meteu-se numa experiência que correu mal e... Tudo mudou nele. - O seu tom de voz era amargo.
- Deve ter sido um homem extraordinário.
- Nem faz ideia.
Earl Greenburg ergueu-se e estendeu a mão:
- Bom, não lhe tomamos mais tempo, senhor Kingsley. Estaremos em contacto.
- Meus senhores - a voz de Tanner era gelada -, que estes crimes se resolvam... E depressa.
CAPÍTULO 16
Durante toda a manhã, os jornais foram apresentando sempre a mesma história. Uma seca na Alemanha provocara pelo menos cem mortes e dizimara milhões de dólares de
colheitas.
Tanner ligou para Kathy e pediu:
- Manda este artigo à senadora van Luven, com uma nota a dizer: "Mais notícias sobre o aquecimento global. Cumprimentos..."
Tanner não conseguia parar de pensar na mulher a quem chamara Princesa. E quanto mais pensava na insolência dela e na forma como o ridicularizara, mais furioso ficava.
Vamos ter que melhorar as nossas deixas, querido. Faz alguma ideia de perigosas que são?... Já está com tesão, querido?... Então saque lá do seu livrinho negro e
vamos tentar encontrar alguém que esteja disponível para hoje à noite.
Era como se precisasse de a exorcizar de dentro de si. Decidiu que a voltaria a ver uma vez mais, para lhe dar a paga que merecia e em seguida poder esquecê-la.
Tanner esperou três dias e depois telefonou:
- Princesa?
- Quem fala? "- Estava prestes a desligar o telefone. Mas quantos homens já lhe teriam chamado Princesa? Conseguiu manter a voz calma: Fala Tanner Kingsley.
Ah! Sim. E como está? - O tom da voz dela era completamente indiferente.
Cometi um erro, pensou Tanner. Nunca lhe devia ter telefonado.
- Pensei que podíamos jantar outra vez um dia destes, mas provavelmente está muito ocupada, por isso talvez seja melhor...
- Que tal esta noite?
Tanner foi mais uma vez apanhado desprevenido. Estava ansioso dar uma lição àquela cabra.
100 101
Quatro horas depois, Tanner estava sentado à mesa em frente a Paula Cooper num pequeno restaurante francês a leste da Lexington Avenue. Ficou espantado pelo prazer
que sentiu em voltar a vê-la. Esquecera quão vigorosa e viva que ela era.
- Senti a sua falta, Princesa - disse ele.
Ela sorriu.
- Oh, eu também senti a sua. Você é o máximo. É uma pessoa especial.
Eram as suas próprias palavras a serem-lhe devolvidas, troçando dele. Maldita.
Parecia que a noite ia ser uma repetição do seu último encontro. Nas noites românticas de Tanner fora sempre ele quem controlara a conversa. Com a Princesa tinha
a estranha sensação de que ela estava sempre um passo à sua frente. Tinha sempre resposta pronta para tudo o que ele dizia. Era espirituosa e rápida e não aceitava
parvoíces.
As mulheres com quem costumava sair eram sempre belas e disponíveis, mas, pela primeira vez na vida, Tanner sentia que talvez tivesse andado a perder alguma coisa.
As outras eram todas demasiado fáceis. Eram agradáveis, mas demasiado agradáveis. Não havia ali qualquer desafio. Mas Paula...
- Fale-me de si - pediu Tanner.
Ela encolheu os ombros:
No dia seguinte, Tanner voltou a ligar.
- Princesa?
- Estava à espera que me telefonasse, Tanner. - A voz calorosa.
Tanner sentiu um pequeno frémito de prazer.
102
- O meu pai era rico e poderoso e eu cresci como uma menina mimada, no meio de criadas e mordomos, empregados a servir-nos na piscina, Radcliffe e uma escola de
aperfeiçoamento para raparigas.
Enfim, o habitual. Depois o meu pai perdeu tudo e morreu. Tenho trabalhado como assistente de um político.
- E gosta do que faz?
- Não. Ele é um chato. - Os olhos deles encontraram-se. - Ando à procura de alguém mais interessante.
- Estava? ...
- Onde é que me vai levar a jantar hoje a noite?
Ele riu.
- Onde lhe apetecer.
Apetecia-me ir ao Maxim's em Paris, mas qualquer coisa onde possa estar consigo serve.
Apanhara-o mais uma vez desprevenido, mas, por qualquer razão, as palavras dela tinham-no deixado feliz.
Jantaram no La Cote Basque na Fifty-fifth Street e durante o jantar Tanner não parou de olhar para ela e de se interrogar porque se sentia tão atraído por ela. Não
era a beleza, era a sua cabeça e a sua personalidade que eram estonteantes. Todo o seu ser brilhava de inteligência e autoconfiança. Era a mulher mais independente
que alguma vez conhecera.
As conversas cobriam inúmeros temas e Tanner verificou que ela era espantosamente culta.
- O que é que quer fazer com a sua vida, Princesa?
Ela estudou Tanner por instantes antes de lhe responder:
- Quero poder... O poder de fazer as coisas acontecerem.
Tanner sorriu:
- Então somos muito parecidos.
- A quantas mulheres disse a mesma coisa, Tanner?
Ele deu por si a ficar zangado.
- Importa-se de parar com isso? Quando eu lhe digo que é diferente de todas as outras mulheres que alguma vez...
- Alguma vez o quê?
Tanner respondeu, exasperado:
- Você deixa-me frustrado.
- Pobre querido. Se está frustrado, porque não vai tomar um duche...?
A raiva surgiu de novo. Já ouvira o suficiente. Levantou-se.
- Não interessa. Não vale a pena...
- Vamos em minha casa.
Tanner nem podia acreditar no que acabara de ouvir. Em sua casa?
- Sim. Tenho um pequeno pied-à-terre em Park Avenue - respondeu ela. - Quer levar-me a casa?
Não comeram a sobremesa.
103
O pequeno pied-à-terre era um sumptuoso apartamento maravilhosamente decorado. Tanner olhou em volta, maravilhado com o luxo e a elegância. O apartamento combinava
com ela, uma colecção de quadros variados, uma mesa de refeitório, um enorme candeeiro de tecto, um canapé italiano e um conjunto de seis cadeiras Chipp dau e um
sofá. Foi tudo o que Tanner conseguiu ver antes de ela lhe dizer:
- Venha ver o meu quarto.
O quarto era todo branco, com móveis brancos e um enorme espelho no tecto sobre a cama.
Tanner olhou à sua volta e comentou:
- Estou impressionado. Este é o mais...
- Chiu! - Paula começava a despi-lo. - Podemos conversai depois.
Assim que ela o despiu, começou devagarinho a tirar as próprias roupas. Tinha um corpo que era a perfeição erótica. Os seus braços estavam em volta de Tanner, o
corpo contra o dele, e ela encostou os lábios ao ouvido dele e murmurou:
-Já chega de preliminares.
Deitaram-se e ela estava pronta para o receber e, quando ele a penetrou, ela apertou as coxas e as ancas e depois relaxou-as e, repetindo esta operação, foi fazendo
com que Tanner ficasse cada vez mais excitado. Ela mudava sempre levemente o corpo de posição para que ele recebesse sempre sensações diferentes. Deu-lhe sensações
voluptuosas como ele jamais sentira, estimulando-o a um ponto de êxtase total.
Mais tarde, bastante mais tarde, conversaram pela noite dentro.
Depois dessa, ficaram juntos todas as noites. A Princesa não cessava de o surpreender com o seu humor e o seu encanto e, gradualmente, aos olhos dele transformou-se
numa mulher maravilhosa.
Uma manhã, Andrew disse a Tanner:
- Nunca antes te vi sorrir tanto. Temos mulher?
Tanner anuiu.
- Sim. .
- E é sério? Vais casar com ela?
- Tenho pensado nisso.
Andrew ficou a olhar para Tanner por momentos.
- Talvez não fosse má ideia dizeres-lhe.
104
Tanner apertou o braço ao irmão Talvez o faça.
Na noite seguinte, Tanner e a Princesa estavam sozinhos no apartamento dela. Tanner começou a falar:
- Princesa, um dia pediste-me que te dissesse algo que nunca antes tenha dito a outra mulher.
- Sim, querido?
Então aqui vai. Quero que cases comigo.
Houve um momento de hesitação, ela sorriu e voou para os braços dele.
- Oh, Tanner!
Ele olhou-a nos olhos.
- Isso é um sim?
Querido, eu gostava muito de me casar contigo, mas receio que tenhamos um problema.
- Que tipo de problema?
- Já te falei disso. Quero fazer alguma coisa de importante. Quero ter poder suficiente para fazer com que as coisas aconteçam, para poder mudar as coisas. E a base
de tudo isso é o dinheiro. Como podemos ter futuro juntos se tu não tens futuro?
Tanner pegou-lhe na mão.
- Isso não é problema. Eu sou dono de metade de um negócio muito importante, Princesa. Um dia vou ter dinheiro que chegue para te dar tudo o que quiseres.
Ela abanou a cabeça.
- Não, o teu irmão Andrew, ele é que te diz o que tens de fazer.
Sei tudo sobre vocês os dois. Ele nunca vai permitir que a empresa cresça e eu preciso mais do que aquilo que me podes dar agora.
- Estás enganada. - E Tanner reflectiu por momentos.
- Quero que conheças o meu irmão.
Os três almoçaram no dia seguinte. Paula foi encantadora, e era óbvio que Andrew gostou imediatamente dela. Nos últimos tempos, Andrew preocupara-se com o tipo de
mulheres com que o irmão andava. Aquela era diferente. Tinha personalidade e era inteligente e engraçada. Andrew olhou para o irmão e o seu aceno significava
"boa
escolha".
- Sei que o KIG tem tido imenso sucesso, Andrew, a ajudar tantas pessoas por esse mundo fora. Tanner contou-me tudo - comentou Paula.
105
- Fico satisfeito por o podermos fazer. E vamos fazer muito mais
- Quer dizer que a empresa tem intenções de se expandir?
- Não exactamente. O que quero dizer é que vamos mandar muita gente para mais países onde possamos ser úteis.
- Nessa altura, começaremos a receber propostas de contratos de ... - interrompeu Tanner rapidamente.
Andrew sorriu.
- Tanner é tão impaciente! Não há qualquer pressa. Vamos fazer primeiro aquilo que devemos fazer, Tanner. Ajudar os outros.
Tanner olhou para a Princesa do outro lado. A expressão dela não se comprometia.
No dia seguinte, Tanner telefonou-lhe:
- Olá, Princesa. A que horas queres que eu te vá buscar?
Houve um momento de silêncio:
- Querido, lamento muito. Mas não posso manter o nosso encontro de hoje à noite.
Tanner foi apanhado de surpresa.
- Passa-se alguma coisa?
- Não. Um amigo meu está na cidade e eu tenho de o ver.
Um amigo? Tanner sentiu uma ponta de ciúme.
- Compreendo. Então e que tal amanhã à noite? Podíamos...
- Não. Amanhã também não posso. Que tal segunda-feira?
Ela ia passar o fim de semana com o outro fulano. Tanner desligou, preocupado e frustrado.
Na segunda-feira à noite, a Princesa desculpou-se.
- Desculpa aquilo do fim de semana, querido. É que era um velho amigo meu que veio até cá para me ver.
No espírito de Tanner surgiu a imagem do maravilhoso apartamento onde ela vivia. Não havia hipótese de ela o poder pagar com o dinheiro que ganhava.
- Quem é ele?
- Lamento, mas não te posso dizer o nome. É que... bom, ele é muito conhecido e não gosta de publicidade.
- E estás apaixonada por ele?
Ela pegou na mão de Tanner e disse suavemente:
- Tanner, eu estou apaixonada por ti. E só por ti.
- E ele, está apaixonado por ti?
- Sim, está - disse ela hesitando.
106
Tanner pensou: Tenho que encontrar uma maneira de lhe dar tudo o que ela quer. Não me posso dar ao luxo de a perder.
Na manhã seguinte, às 8 e 45, Andrew Kingsley foi despertado pelo som do seu telefone a tocar.
- Tenho uma chamada da Suécia. Um momento, por favor.
Instantes depois ouviu-se uma voz com um toque de sotaque sueco a dizer:
- Parabéns, senhor Kingsley. O Comité do Nobel escolheu-o para receber o Prémio Nobel da Física deste ano, pelo seu inovador trabalho em nanotecnologia...
O Prémio Nobel! Assim que a conversa terminou, Andrew vestiu-se apressadamente e dirigiu-se de imediato ao seu gabinete. No minuto em que Tanner chegou, Andrew correu
para o irmão para lhe dar as novidades. Tanner abraçou-o.
- O Nobel! Mas isso é maravilhoso, Andrew! Maravilhoso! - E era. Porque agora todos os problemas de Tanner estavam em vias de ser resolvidos.
Cinco minutos mais tarde, Tanner falava com a Princesa.
- Percebes o que isto significa, minha querida? Agora que o KIG tem o Prémio Nobel, podemos conseguir todos os negócios que quisermos. Estou a falar em termos de
grandes contratos com o governo e com as grandes empresas. Vou poder dar-te o mundo.
- Mas isso é fabuloso, querido.
- E casas comigo?
- Tanner, eu quero casar contigo mais do que qualquer outra coisa no mundo.
Quando Tanner desligou estava eufórico. Correu para o gabinete do irmão.
- Andrew, vou-me casar.
Andrew levantou os olhos e disse calorosamente:
Quando Tanner chegou ao seu escritório na manhã seguinte, ........ E tinha uma flor na lapela.
107 - Que excelentes notícias. E quando é o casamento?
- Vai ser marcado para muito em breve. E todo o pessoal da em presa vai ser convidado.
- Para que é isso? Andrew sorriu. -Estou a preparar-me para o teu casamento. Sinto-me muito feliz por ti.
- Muito obrigado, Andrew.
As notícias espalharam-se rapidamente. Como o casamento ainda não tinha sido oficialmente anunciado, ninguém fez qualquer comentário a Tanner, mas havia olhares
e sorrisos.
. Tanner entrou no gabinete do irmão.
- Andrew, com esta coisa do Nobel, todos virão ter connosco. E com o dinheiro do prémio...
Andrew interrompeu-o:
- Com o dinheiro do prémio vamos poder mandar mais gente para a Eritreia e para o Uganda.
- Mas vais usar este prémio para desenvolver a empresa, não vais? - perguntou Tanner bem devagar.
Andrew abanou a cabeça: ;
- Vamo-nos limitar a fazer aquilo que nos propusemos, Tanner.
Este olhou longamente para o irmão:
-A empresa é tua, tu é que sabes, Andrew.
Tanner telefonou-lhe assim que decidiu o que fazer.
- Princesa, vou ter que ir a Washington em trabalho. Pode ser que não tenhas notícias minhas durante dois ou três dias.
- Mas nada de louras, nem morenas, nem ruivas - respondeu ela para o arreliar.
- Não há hipótese. És a única mulher no mundo por quem estou apaixonado.
- E eu por ti.
Depois de ganhar o Prémio Nobel pelo trabalho que desenvolveu nesse domínio.
.- Todos nós sabemos disso.
- Ele está tão excitado que está disposto a fazer tudo pro bono.
- Ficamos muito lisonjeados, senhor Kingsley. Não temos assim tantos laureados com o Prémio Nobel a oferecerem os seus serviços.
- E olhou para cima para se certificar de que a porta estava fechada.
- Isto é top secret. Se resultar, vai ser um dos mais importantes componentes do nosso armamento. A nanotecnologia molecular pode dar-nos o controle do mundo físico,
ao nível dos átomos individuais.
Até hoje, todos os esforços para tornar os chips ainda mais pequenos do que o seu tamanho actual têm sido bloqueados devido à interferência electrónica chamada "cross
talk", quando os electrons ficam fora de controle. Se esta experiência for bem sucedida, vai dar-nos novas e importantes armas de autodefesa e de ataque.
- Não existe qualquer perigo nesta experiência, pois não? Não quero que aconteça nada ao meu irmão - perguntou Tanner.
- Não precisa de se preocupar. Nós mandamos todo o equipamento de que vão precisar, incluindo os fatos de segurança, e dois dos nossos cientistas para trabalharem
com o seu irmão.
- Então temos luz verde?
- Têm.
No regresso a Nova Iorque, Tanner ia pensando: Agora só me falta convencer Andrew.
Na manhã seguinte, Tanner Kingsley estava no Pentágono em reunião com o chefe do pessoal, o general Alan Barton.
- Considero a sua proposta muito interessante - comentou o general. - Andávamos sem saber quem devíamos usar para fazer o teste.
- O vosso teste tem a ver com nanotecnologia e o meu irmão.
108 109
CAPÍTULO 17
Andrew estava no seu gabinete a olhar para um folheto colorido que o Comité do Prémio Nobel lhe tinha mandado, juntamente com uma mensagem: Aguardamos a sua chegada.
Viam-se fotografias da enorme sala de concertos em Estocolmo, com a audiência a aplaudir um laureado com o Nobel enquanto este caminhava pelo palco para receber
o prémio das mãos do rei Carl XVI Gustav da Suécia. E em breve lá estarei eu também, pensou.
A porta abriu-se e Tanner entrou.
- Temos que conversar.
Andrew pôs o folheto de lado:
- Está bem. O que é, Tanner? - Este respirou fundo.
- Acabei de comprometer o KIG para dar assistência ao exército uma experiência que estão a fazer.
- Tu fizeste o quê?
- O teste tem a ver com criogénicos. Eles precisam da tua ajuda.
Andrew abanou a cabeça.
- Nem pensar. Não me quero envolver nisso, Tanner. Não é o tipo de coisas que nós fazemos aqui.
- Isto agora não se trata de dinheiro, Andrew. Tem a ver com a defesa dos Estados Unidos da América. É muito importante para o exército. Estarás a trabalhar para
o bem do teu país e sem ganhar dinheiro. Eles precisam de ti.
Tanner passou uma hora a tentar convencer Andrew. Por fim ele cedeu.
- Está bem. Mas, Tanner, esta é a última vez que nos metemos em coisas deste tipo. Combinado?
- Combinado. Não tenho palavras para te dizer como estou orgulhoso de ti. - E Tanner sorriu.
110
Telefonou à Princesa e deixou uma mensagem no gravador de chamadas: Querida, estou de volta. Vamos ter uma experiência muito importante. Telefono-te assim que estiver
concluída. Amo-te.
Os dois técnicos do exército chegaram para relatar a Andrew o progresso que tinham feito até à altura. Andrew estivera relutante, de início, mas, à medida que eles
iam discutindo o projecto, foi ficando cada vez mais entusiasmado. Se os problemas fossem resolvidos, isso ia constituir um avanço espectacular.
Uma hora mais tarde, Andrew observava enquanto um caminhão da tropa atravessava os portões do KIG, escoltado por outro dois que transportavam soldados armados. Saiu
para receber o coronel da unidade operacional.
- Aqui está tudo, senhor Kingsley. O que fazemos agora?
- Só têm de descarregar, que nós encarregamo-nos de tudo - respondeu Andrew.
- Sim, senhor. - E o coronel virou-se para dois soldados que se encontravam junto do caminhão. - Descarreguem-no. E tenham cuidado. Mas mesmo muito cuidado.
Os homens entraram no caminhão e, com o maior dos cuidados, retiraram uma pequena mala em metal.
Em poucos minutos, ela era transportada por dois assistentes, sob a orientação de Andrew, para um laboratório.
- Ponham-na em cima daquela mesa - pediu. - Com muito cuidado. - E ficou a ver enquanto eles a pousavam. - Muito bem.
- Bastava um de nós para a transportar. É muito leve.
-Vocês nem iam acreditar como é pesada - comentou Andrew. Os dois assistentes olharam para ele, intrigados.
- Desculpe?
Andrew abanou a cabeça:
- Nada. Não interessa.
Dois químicos, Perry Stanford e Harvey Walker, tinham sido escolhidos para trabalhar com Andrew no projecto.
Ambos já tinham vestido os fatos de alta protecção que eram requeridos para levar a cabo a experiência.
- Vou-me vestir - disse Andrew. -Já volto.
Caminhou ao longo do corredor até uma porta fechada e abriu-a. Lá dentro havia várias filas de cabides cheios de fatos de protecção
111
contra químicos, semelhantes aos fatos espaciais, assim como máscaras, óculos de protecção, sapatos especiais e pesadas luvas.
Andrew entrou no compartimento e vestiu o seu fato, e Tanner estava lá para lhe desejar boa sorte. Quando regressaram ao laboratório, Stanford e Walker já estavam
à espera. Os três homens selaram meticulosamente a sala, de forma a ficar estanque, e, em seguida, trancaram cuidadosamente a porta. Todos sentiam a excitação no
ar.
- Tudo a postos?
- Pronto - respondeu Stanford.
- Pronto - respondeu Walker.
- Máscaras.
E colocaram as máscaras de protecção.
- Assim sendo, podemos começar - disse Andrew. E levantou cuidadosamente a tampa da caixa de metal. Lá dentro estavam seis pequenos tubos de ensaio cuidadosamente
aninhados nas suas almofadas de protecção.
- Tenham cuidado - avisou. - Estes pequenos génios encontram-se a duzentos e vinte e dois graus abaixo de zero. - A sua voz soava abafada devido à máscara.
Stanford e Walker observaram enquanto Andrew erguia com delicadeza o primeiro tubo de ensaio e o abriu. Ouviu-se um silvo e de dentro do tubo saiu uma onda de vapor
que se transformou numa nuvem gelada que pareceu saturar a sala.
- Muito bem - disse Andrew. - Agora, a primeira coisa que temos de fazer... A primeira coisa... - Os olhos dele estavam muito abertos. Começou a sufocar, o rosto
a ficar branco, cor de gesso. Tentou falar, mas as palavras não lhe saíam.
Stanford e Walker olhavam horrorizados enquanto o corpo dele caía ao chão. Walker tapou rapidamente o tubo e fechou a caixa. Stanford correu para a parede e premiu
um botão, activando uma enorme ventoinha que afastou o gélido gás para fora do laboratório - Assim que o ar ficou de novo limpo, os dois cientistas abriram a porta
e transportaram apressadamente o corpo de Andrew lá para fora. Tanner, que passava no corredor, viu o que se estava a passar e o pânico tomou conta do seu rosto.
Correu para os dois homens e olhou o irmão.
- Que diabo se passa?
112
Foi Stanford quem lhe respondeu:
Houve um acidente e...
- Um acidente? Que tipo de acidente? - Tanner gritava como um louco. - O que foi que vocês fizeram ao meu irmão? - As pessoas começavam a aproximar-se e a rodeá-
los. - Liguem já para o 911.
- Deixem. Não temos tempo para isso. Levamo-lo para o hospital num dos nossos carros.
Vinte minutos depois, Andrew estava deitado numa maca, numa sala de urgências do hospital de St. Vincent em Manhattan. Sobre a cara tinha uma máscara de oxigénio
e uma agulha de endovenoso espetada no braço. Dois médicos debruçavam-se sobre ele.
Tanner andava freneticamente de um lado para o outro.
- Vocês têm que tratar dele - gritava. - E já!
- Senhor Kingsley, tenho de lhe pedir que abandone a sala - retorquiu um dos médicos.
- Nem pensar - gritou ele. - Eu fico aqui com o meu irmão.
- Dirigiu-se à maca onde Andrew jazia inconsciente e pegou-lhe na mão e apertou-a. - Vá, mano. Acorda. Nós precisamos de ti.
Não houve resposta.
Os olhos de Tanner encheram-se de lágrimas.
- Tu vais ficar bom. Não te preocupes. Vamos mandar vir os melhores médicos do mundo. E tu vais ficar bom. - Virou-se para os médicos. - Quero um quarto particular
e enfermagem vinte e quatro horas, e quero que ponham uma cama no quarto. Eu fico com ele.
- Senhor Kingsley, gostaríamos de poder terminar o exame.
- Estarei à espera no átrio - respondeu Tanner, provocador.
Andrew foi levado para baixo para fazer uma série de ressonâncias magnéticas, e radiografias, e análises completas ao sangue. Um exame mais completo, um PET, foi
efectuado. Em seguida, ele foi levado para um quarto, onde três médicos lhe começaram a prestar assistência.
Tanner estava no átrio sentado numa cadeira, à espera. Quando, finalmente, um dos médicos surgiu à porta do quarto de Andrew, Pôs-se de pé num salto.
- Ele vai ficar bom, não vai?
113
O médico hesitou.
- Vamos transferi-lo imediatamente para o Walter Reed Army Medical Center, em Washington, para um diagnóstico mais apurado, mas, honestamente, senhor Kingsley, não
temos grandes esperanças.
- Que diabo está para aí a dizer? - gritava Tanner. - É claro que ele vai ficar bom. Só esteve uns minutos dentro do laboratório.
O médico ia começar a repreendê-lo quando, ao olhar para cima, viu que os olhos de Tanner estavam cheios de lágrimas.
Tanner acompanhou o irmão inconsciente no avião ambulância até Washington. Tentou tranquilizá-lo durante todo o voo:
- Os médicos dizem que vais ficar bom... Vão-te dar uma coisa para ficares bom...Só precisas de descansar um pouco... - E Tanner pôs os braços em redor do irmão.
- Tens que ficar bom a tempo de ires à Suécia receber o teu Prémio Nobel.
Durante os três dias seguintes, Tanner dormiu num colchão no quarto de Andrew e ficou ao lado dele todo o tempo que os médicos lhe permitiram. Tanner estava na sala
de espera de Walter Reed quando um dos médicos de serviço se aproximou.
- Como está ele? - perguntou Tanner. - Ele vai... - E viu a expressão no rosto do médico. - O que se passa?
- Receio ter más notícias. O seu irmão tem muita sorte em estar vivo. Aquele gás, fosse ele qual fosse, era extremamente tóxico.
- Nós podemos mandar vir médicos de...
- Não vai servir de nada. Receio que as toxinas já tenham afectado as células do cérebro do seu irmão.
Tanner estremeceu.
- Mas... não existe cura para... o que ele tem?
O médico respondeu duramente:
- Senhor Kingsley, o exército nem sequer tem um nome para lhe chamar e o senhor quer saber se existe cura? Não. Lamento muito. Receio que ele nunca mais venha a
ser o mesmo.
Tanner ali ficou, as mãos cerradas, o rosto lívido.
- O seu irmão está acordado, neste momento. Pode ir vê-lo, mas unicamente durante alguns minutos.
Quando Tanner entrou no quarto de hospital de Andrew, ele tinha os olhos abertos. Ficou a olhar fixamente para o visitante, uma expressão vazia no rosto.
O telefone tocou e Tanner atendeu. Era o general Barton. - Lamento muito o que se passou com o seu...
- Seu filho da mãe! Você garantiu-me que o meu irmão não corria qualquer perigo.
Não faço ideia do que se passou, mas garanto-lhe que...
Tanner desligou o telefone com toda a força. Ouviu a voz do irmão e virou-se.
- Onde... Onde estou eu? - balbuciou Andrew. . . -Estás no Walter Reed Hospital, em Washington.
- Porquê? Quem está doente?
- Tu, Andrew.
- O que foi que aconteceu?
- Alguma coisa correu mal com a experiência.
- Não me lembro...
- Não faz mal. Não te preocupes. Vamos cuidar de ti. Eu garanto-te.
Tanner ficou a ver os olhos de Andrew a fecharem-se. Deitou uma última olhadela ao irmão deitado naquela cama e saiu do quarto.
A Princesa mandou flores para o hospital. Tanner planeara telefonar-lhe, mas a secretária dele dissera-lhe:
- Oh, ela telefonou. Disse que precisava de sair da cidade. Telefona-lhe assim que voltar.
Uma semana mais tarde, Andrew e Tanner estavam de regresso a Nova Iorque. A notícia do que acontecera a Andrew correra célere pelo KIG. Sem ele a dirigir, continuaria
o KIG a sua existência? Assim que as notícias sobre o acidente se tornassem do conhecimento do público, com certeza que iriam prejudicar a imagem do KIG.
Isso não tem qualquer importância, pensou Tanner. Eu vou fazer desta empresa o maior think tank do mundo. Agora vou poder dar à Princesa muito mais do que aquilo
que ela alguma vez sonhou. Dentro de poucos anos... A secretária de Tanner ligou.
- Está aqui um motorista de limusina que lhe quer falar.
- Mande-o entrar - ordenou o intrigado Tanner.
Um motorista uniformizado entrou, empunhando um envelope.
- Senhor Tanner Kingsley?
- Exactamente.
- Pediram-me que lhe entregasse pessoalmente este envelope.
114 115
Deu-lhe o envelope e saiu.
Tanner olhou para o envelope e sorriu. Reconheceu a escrita de Princesa. Ela imaginara qualquer coisa para o surpreender. Ansioso abriu-o. A mensagem dizia:
- Não vai resultar, meu querido. Neste momento, preciso de muito mais do que aquilo que tu me podes dar, por isso vou casar com outra pessoa, que está em condições
de o fazer. Amo-te e sempre te amarei. Sei que vais ter dificuldade em acreditar no que te digo, mas a verdade é que o que faço é para o bem de ambos.
O rosto de Tanner ficou pálido. Ficou a olhar para a mensagem durante muito tempo e em seguida deixou-a cair nervosamente dentro do cesto dos papéis.
O seu triunfo chegara um dia atrasado.
CAPÍTULO 18
No dia seguinte, Tanner estava calmamente sentado no seu gabinete quando a secretária lhe ligou.
- Está aqui uma comissão para falar com o senhor.
- Uma comissão?
- Exactamente.
- Eles que entrem.
Supervisores de vários departamentos do KIG entraram no gabinete de Tanner.
- Senhor Kingsley, gostaríamos de lhe dar uma palavrinha.
- Façam o favor de se sentarem.
Todos se sentaram.
- Qual é o problema?
Um dos encarregados começou:
- Bom... É que nós estamos um pouco preocupados. Depois do que aconteceu ao seu irmão... O KIG vai continuar a funcionar?
Tanner abanou a cabeça.
- Não faço ideia. Neste momento, ainda estou em estado de choque. Não consigo aceitar o que aconteceu a Andrew. - E ficou por momentos pensativo. - Mas eu digo-vos
o que vou fazer. Não posso predizer as nossas hipóteses, mas, pelo meu lado, vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que permaneçamos a funcionar. Esta
é uma promessa que eu próprio faço. Manter-vos-ei ao corrente.
Ouviram-se murmúrios de aprovação e Tanner ficou a ver os homens sair.
No dia em que Andrew saiu do hospital, Tanner colocou-o numa das casas do pessoal que havia nas instalações, onde facilmente podiam cuidar dele, e deu-lhe um gabinete
mesmo ao lado do seu. Os empregados ficaram atónitos ao ver o que acontecera a Andrew.
116 117
Passara de um cientista brilhante e atento para um zombie. A maior parte do dia passava-o sentado numa cadeira, a olhar pela janela, meio a dormir, mas parecia feliz
por estar de volta ao KIG, embora tivesse apenas uma vaga ideia do que fazia ali. Todos os empregados estavam comovidos com a forma como Tanner tratava bem do irmão
e pela solicitude e cuidado que demonstrava para com ele. A atmosfera no KIG mudou quase de um dia para o outro. Quando fora Andrew a dirigi-la, tudo era informal.
Agora, de repente, transformara-se numa empresa formal e era gerida como um verdadeiro negócio, em lugar da anterior filantropia. Tanner começou a enviar agentes
para fora da empresa com a finalidade de angariarem clientes. Os negócios começaram a florescer a uma velocidade extraordinária.
A notícia da mensagem de adeus de Princesa espalhou-se rapidamente pela empresa. Os empregados que se tinham preparado para um casamento interrogavam-se como Tanner
ia encaixar este rude golpe. Houve inúmeras especulações entre o pessoal sobre o que ele faria depois desta rejeição.
Dois dias depois de Tanner ter recebido a carta, apareceu uma notícia nos jornais a anunciar que a que fora noiva de Tanner se casara com Edmond Barclay, um milionário
e grande senhor dos media. As únicas alterações no comportamento de Tanner foi um aumento na rabugice e uma ética de trabalho que era ainda mais forte do que anteriormente.
Todas as manhãs passava duas horas sozinho, a trabalhar num projecto que estava envolto em total secretismo.
Uma noite, Tanner foi convidado para falar na MENSA, a sociedade de pessoas de QI elevado. Como muito dos empregados do KIG eram seus membros, ele acabara por aceitar.
Quando chegou, na manhã seguinte, ao quartel-general, estava acompanhado por uma das mais belas mulheres que os seus empregados alguma vez tinham visto. Tinha aspecto
latino, olhos escuros, uma tez cor de azeitona e uma figura sensacional.
Tanner apresentou-a ao pessoal.
- Esta é Sebastiana Cortez. Discursou ontem na MENSA. fez uma apresentação brilhante.
De repente, toda a atitude de Tanner parecia mais ligeira. Levou-a para o seu escritório e não voltaram a aparecer durante uma hora. Quando saíram, almoçaram na
sala de jantar particular de Tanner.
Uma das funcionárias fez uma busca sobre Sebastiana na internet. Era uma antiga Miss Argentina e vivia em Cincinati, onde estava casada com um proeminente homem
de negócios.
Quando regressaram ao escritório dele depois do almoço, a voz de Tanner ouvia-se na recepção através do intercomunicador, que ele deixara ligado.
- Não te preocupes, querida. Acabamos por descobrir uma maneira de resolver as coisas.
As secretárias juntaram-se em redor do intercomunicador, ouvindo interessadamente a conversa. - Temos de ter muito cuidado. O meu marido é um homem muito ciumento.
- Não vai haver problema. Tratarei de tudo para que nos continuemos a manter em contacto.
Não era preciso ser-se um génio para perceber o que estava a acontecer. As secretárias estavam com dificuldade em evitar o riso.
- Tenho muita pena que tenhas de regressar já a casa.
- Também eu. Quem me dera poder ficar, mas não é possível.
Quando Tanner e Sebastiana saíram do escritório, eram a imagem do decoro. Os empregados deliciaram-se com a ideia de que Tanner não imaginava que eles sabiam o que
se passava.
No dia seguinte à partida dela, Tanner mandou vir um telefone banhado a ouro, para ser instalado no seu escritório com um misturador digital. A sua secretária e
as assistentes tinham ordens expressas para nunca o atenderem.
Daí em diante, Tanner falava no telefone dourado praticamente todos os dias e no fim de cada mês partia para um prolongado fim-de-semana de onde regressava com aspecto
refrescado. Nunca disse aos empregados onde ia, mas eles adivinhavam.
Dois dos assistentes de Tanner estavam a conversar e um deles disse ao outro:
- A palavra rendez-vous diz-te alguma coisa?
A vida amorosa de Tanner recomeçara novamente e a mudança nele era bem visível. Todos andavam satisfeitos. 118 119 Diane engoliu em seco. - Pois foi.
CAPÍTULO 19
As palavras martelavam continuamente na cabeça de Diane Stevens. Fala Ronjones. Era só para lhe dizer que recebemos os documentos que nos enviou e que a mudança
de planos já foi levada a cabo, tal como nos pediu... Acabámos de cremar o corpo do seu marido há cerca de uma hora.
Como é que uma funerária conseguira cometer um erro daqueles? No meio da sua dor, seria possível que lhes tivesse telefonado e pedido que cremassem Richard? Jamais.
E, além disso, não tinha qualquer secretária. Nada daquilo fazia sentido. Alguém na funerária percebera mal, confundira o nome de Richard com o nome de outra pessoa.
Tinham entregue a urna com as cinzas dele. E Diane especara a olhar para ela. Richard estava mesmo ali dentro?... E o seu riso, também lá estava?... E os braços
que a tinham apertado... E os lábios quentes que comprimira contra os seus... A mente que fora tão brilhante e tão divertida.. A voz que lhe dizia alto "Amo-te"...
Todos os seus sonhos e as suas paixões e mais mil e uma coisas, ali dentro daquela pequena urna?
Os seus pensamentos foram interrompidos pelo toque do telefone.
- Senhora Stevens?
- Sim...
- Fala do gabinete do senhor Tanner Kingsley. O senhor Kingsley gostaria de saber se seria possível marcar uma hora para poder encontrar-se aqui nas nossas instalações.
Isto passara-se há dois dias e agora Diane atravessava a entrada do KIG e aproximava- se da secretária na recepção.
- Em que posso ser útil? - perguntou a recepcionista.
- O meu nome é Diane Stevens e tenho uma reunião marcada com o senhor Tanner Kingsley.
- Oh! Senhora Stevens! Todos nós lamentamos muito o que aconteceu ao seu marido. Mas que coisa horrível. Horrível.
120 L Tanner dizia a Retra Tyler:
- Vou ter agora duas reuniões. Quero que as graves e as exami nes. - E ficou a olhar enquanto o seu assistente saía.
O intercomunicador soou:
- Senhor Kingsley, está aqui a senhora Stevens para falar consigo.
Tanner premiu um dos botões no painel electrónico sobre a sua secretária e Diane Stevens surgiu num dos ecrãs de televisão na parede. Trazia o cabelo louro amarrado
num carrapito e vestia uma saia de riscas azuis escuras e brancas e uma blusa branca. Tinha um aspecto pálido.
- Mande-a entrar, por favor.
Olhou enquanto Diane cruzava a porta e ergueu-se para a cumprimentar.
- Obrigado por ter vindo, senhora Stevens.
- Bom dia - cumprimentou Diane.
- Queira sentar-se, por favor.
Diane sentou-se numa cadeira em frente dele, do outro lado da secretária.
- Escusado será dizer que ficámos todos imensamente choca dos com o brutal assassínio do seu marido. Posso garantir-lhe que tudo faremos para que a pessoa responsável
seja presente à Justiça o mais brevemente possível.
Cinzas...
- Se não se importa, gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
- Sim?
- O seu marido falava muitas vezes consigo sobre o seu trabalho?
Diane abanou a cabeça.
- Não, nem por isso. Era uma parte separada da nossa vida de casal, porque era muito técnica.
Na sala de vigilância ao fundo do corredor, Retra Tyler ligou um aparelho identificador de voz, um analisador da tensão na voz e um vídeo gravador e começou a gravar
a cena que decorria no gabinete fle Tanner.
- Imagino que lhe seja muito difícil falar nisto - prosseguiu lanner-. mas o que sabe, de facto, sobre a ligação que o seu marido •'"ha com drogas?
121 Diane olhava fixamente para ele, demasiado estupefacta para conseguir responder. Por fim, reuniu forças:
- Desculpe? Mas que pergunta é essa? Richard jamais teve alguma coisa a ver com drogas.
- Senhora Stevens, a polícia encontrou uma mensagem amea çadora da Máfia dentro do bolso do casaco dele e...
A ideia de que Richard pudesse estar envolvido com drogas era simplesmente impensável. Teria ele uma vida secreta sobre a qual ela nada sabia? Não, não, não.
O coração dela começou a bater fortemente e sentiu o sangue a subir-lhe ao rosto. Eles mataram-no para me castigarem a mim?
- Senhor Kingsley, Richard não...
O tom na voz de Tanner era compreensivo, mas ao mesmo tempo determinado.
- Lamento muito obrigá-la a passar por isto, mas estou decidido a saber a razão do que aconteceu ao seu marido.
Saber a razão, pensou, infeliz, Diane. Sou eu quem tu buscas. Richard morreu porque eu testemunhei contra AUieri. E começou a hiperventilar. Tanner Kingsley observava-a
e em seguida disse:
- Não lhe vou tomar muito do seu tempo. Vejo como ficou perturbada. Falaremos depois. Pode ser que se lembre de alguma coisa.
Se achar que há algo que possa ser útil, ficaria muito satisfeito se entrasse em contacto comigo. - E Tanner abriu uma gaveta e tirou um cartão de visita personalizado.
- Este é o meu número privado de telemóvel. Encontra-me nele a qualquer hora do dia ou da noite.
Diane guardou o cartão. Só tinha o nome de Tanner e um número de telefone.
Diane ergueu-se, as pernas a tremer.
- Peço desculpa por tê-la feito passar por isto. Entretanto, se houver alguma coisa que eu possa fazer por si, seja o que for, estou à sua disposição.
Diane mal conseguia falar:
- Muito obrigada. Agradeço-lhe muito. - E virou-se e saiu do gabinete meio atordoada.
Assim que Diane chegou à recepção, ouviu a mulher que estava atrás da secretária dizer para alguém:
- Se eu fosse supersticiosa, acreditava que alguém lançou uma praga sobre o KIG. E agora o seu marido, senhora Harris. Ficámos todos tão chocados quando tivemos
conhecimento da coisa horrível que lhe aconteceu. Morrer assim é horrível.
122 As palavras soaram-lhe sinistramente conhecidas. O que teria acontecido ao marido dela? Diane virou-se para ver a quem é que a recepcionista se dirigia. Era
uma jovem afro-americana de cortar a respiração, que vestia umas calças pretas com uma camisola de seda de gola alta. No dedo tinha um anel com uma enorme esmeralda
e um anel de casamento de diamantes. Diane, de repente, teve a sensação de que era muito importante que falasse com ela.
No momento em que Diane se começou a aproximar, surgiu a secretária de Tanner.
- O senhor Kingsley vai já recebê-la.
E Diane ficou a ver Kelly Harris desaparecer entrando nò gabinete de Tanner Kingsley.
Tanner ergueu-se para cumprimentar Kelly.
- Muito obrigada por ter vindo, senhora Harris. O seu voo foi agra dável?
- Foi, sim, obrigada.
- Quer tomar alguma coisa? Café ou...?
Kelly abanou a cabeça.
- Imagino como estes momentos devem ser difíceis para si, se nhora Harris, mas preciso de lhe fazer algumas perguntas.
Na sala de vigilância, Retra Tyler observava Kelly no ecrã de televisão e no registo.
- A senhora e o seu marido tinham uma relação estreita? - per guntou Tanner. ,i ,( - Muito. t - Diria que ele era honesto consigo?
Kelly olhou para ele espantada.
- Não tínhamos segredos. Mark era o ser humano mais honesto e mais aberto que alguma vez conheci. Ele... - E Kelly sentiu difi culdade em continuar.
- Ele falava muitas vezes consigo sobre o seu trabalho?
- Não. O que ele fazia era muito... muito complicado. Normal mente não falávamos nele.
- A senhora e o seu marido tinham muitos amigos russos?
Kelly olhou espantada para ele.
- Senhor Kingsley, não percebo onde qiiep chegar com estas perguntas... _-"
123 A cabeça de Kelly fervilhava quando ele abandonou o edifício. Mas quem era Olga ? E porque é que Mark andava metido com russos ? Porque é que ele...
- Desculpe, senhora Harris.
Kelly virou-se:
- Sim?
Uma mulher loura e atraente estava parada do lado de fora do edifício.
- O meu nome é Diane Stevens e gostaria de falar consigo. Do outro lado da rua há um café -"
124 que estava à espera - O seu marido alguma vez lhe disse um grande negócio e que ia ganhar muito dinheiro?
Kelly começava a ficar incomodada. ^ - Não, e, se assim fosse, o Mark ter-me-ia dito.
- Ele alguma vez lhe falou de Olga?
Kelly, de repente, começou a imaginar onde a conversa ia chegar.
- Senhor Kingsley, onde está exactamente a querer chegar?
-A polícia de Paris encontrou um recado num dos bolsos do seu marido. Mencionava uma recompensa por uma informação que fora dada e vinha assinada "Com amor, Olga".
,.¦ Kelly ficou sentada, sem se mexer.
- Eu... Eu não sei o que... - .....
- Mas disse-me que falavam de tudo.
- Sim, mas...
- Por aquilo que nos foi dado saber, aparentemente o seu marido andava envolvido com esta mulher e...
- Não! - E Kelly levantou-se. - Esse não é o Mark de quem está vamos a falar. Já lhe disse, não havia quaisquer segredos entre nós.
- Tirando aquele que estará por detrás da causa da morte dele.
De repente, Kelly sentiu que estava prestes a desmaiar.
- Peço desculpa... senhor Kingsley, mas não me estou a sentir bem.
Ele tornou-se imediatamente solícito.
- Compreendo perfeitamente. Gostava de poder ajudar. - E Tanner deu-lhe o seu cartão pessoal. - Pode entrar em contacto comigo por este número a qualquer hora, senhora
Harris.
saiu e nos...
Kelly acenou com a cabeça, incapaz de falar, e, atordoada, do gabinete.
L Lamento, mas eu agora não posso falar. - E Kelly começou a andar.
É sobre o seu marido.
Kelly parou abruptamente e virou-se:
Sobre Mark? O que é que se passa?
Podemos falar num local com mais privacidade?
No escritório de Tanner, ouviu-se a voz da secretária vinda do inter-comunicador:
- Está aqui o senhor Higholt.
- Mande entrar.
Um minuto depois, Tanner cumprimentava-o.
- Boa tarde, John.
- Boa? Tem sido uma merda de uma tarde, Tanner. Parece que todos nesta empresa estão a ser assassinados. Mas que raio é que se passa?
- E isso mesmo que eu pretendo descobrir. Não acredito que a morte repentina de três dos meus empregados seja pura coincidên cia. Anda alguém lá fora interessado
em prejudicar a reputação desta empresa, mas vamos descobrir quem é e conseguir parar com isto.
A polícia concordou em cooperar connosco e eu tenho gente a ten tar seguir os movimentos dos três que foram
mortos. Gostaria que visse as duas entrevistas que acabei de gravar. São com as viúvas de Richard Stevens e Mark Harris. Está pronto?
- Avance.
- Esta é Diane Stevens. -Tanner premiu um botão e a sua en trevista com Diane Stevens surgiu no ecrã. No canto direito deste havia um gráfico que ia traçando linhas
para cima e para baixo à medida que ela falava.
-O que sabe, de facto, sobre a ligação que o seu marido tinha com drogas ?
- Desculpe? Mas que pergunta ê essa? Richard jamais teve alguma coisa a ver com drogas.
As imagens gráficas permaneciam constantes. Tanner premiu o botão que avançava a fita rapidamente para a frente.
- E esta é a senhora Mark Harris, cujo marido foi empurrado °u caiu do cimo da torre Eiffel.
E uma imagem de Kelly surgiu no ecrã. y Ele alguma vez lhe falou de Olga? ¦_¦-**'¦ ' ' 125 - Senhor Kingsley, onde está exactamente a querer chegar?
-A polícia de Paris encontrou um recado num dos bobos do seu marido Mencionava uma recompensa por uma informação que fora dada e vinha assinada "Com amor, Olga".
- Eu... eu não sei o que... ¦¦.¦;¦' - Mas disse-me que falavam de tudo. .
- Sim, mas...
-Por aquilo que nos foi dado saber, aparentemente o seu marido andava envolvido com esta mulher e...
- Não! Esse não é o Mark de quem estávamos a falar. Já lhe disse, não havia quaisquer segredos entre nós.
As linhas no gráfico do analisador de tensão na voz permaneciam regulares. A imagem de Kelly desapareceu.
- O que eram aquelas linhas no ecrã? - perguntou John Higholt.
- Aquilo é um analisador de tensão, um CVSA. Regista os micro-tremores na voz humana. Se o sujeito estiver a mentir, as on dulações das frequências de áudio aumentam.
É este o estado em que a tecnologia se encontra. Já não são precisos fios, como nos po lígrafos. Estou convencido de que as duas mulheres disseram a ver dade. Têm
de ser protegidas.
John Higholt franziu o sobrolho: • - O que quer dizer? Protegidas do quê?
- Penso que elas correm perigo. Que, inconscientemente, têm muito mais informação do que aquilo que pensam. Eram ambas muito próximas dos maridos. Estou convencido
de que, em algum momento, algo de revelador
pode ter sido dito que lhes escapou na altura, mas que se encontra guardado nos bancos das suas memórias.
O mais natural é que, quando começarem a pensar no assunto, se lembrem do que foi. E, nesse momento, as vidas delas correm perigo, pois quem quer seja que lhes matou
os maridos pode planear matá-las também. E eu tenho todas as intenções de fazer com que nada de mal lhes aconteça.
- Quer que elas sejam seguidas?
- Isso era antigamente, John. Hoje em dia usamos equipamento electrónico. O apartamento da Stevens já foi posto sob vigilância, com câmaras, telefones, microfones,
tudo. Estamos a empregar toda a tecnologia que temos à nossa disposição para as guardar. No mo* mento em que alguém as tentar atacar, ficaremos imediatamente a saber.
John Higholt ficou, por momentos, pensativo. i 126 - E quanto a Kelly Hárris?
- Essa está num hotel. Infelizmente, não nos foi possível entrar na suite dela e preparar as coisas. Mas tenho homens no átrio e, se houver qualquer sinal de perigo,
eles encarreganuse do assunto. - Tanner hesitou. - Quero que o KIG ofereça uma recompensa de cinco milhões de dólares para quem der informações que conduzam à prisão
de...
- Ei, Tanner, espere aí - objectou John Higholt. - Não é pre ciso nada disso. Resolvemos isto e...
- Muito bem. Se não for o KIG a fazê-lo, faço-o eu pessoalmente.
0 meu nome está identificado com o desta empresa. - E a voz dele endureceu. - Eu quero apanhar seja quem for que está por detrás disto.
127 128
CAPÍTULO 20
No café em frente às instalações do KIG, Diane Stevens e Kelly Harris sentavam-se a uma mesa de canto. Kelly aguardava que Diane falasse.
Esta não sabia como começar. Qual foi a coisa horrível que aconteceu ao seu marido, senhora Harris? O meu também foi assassinado, como Richard.
- Então? Disse que me queria falar sobre o meu marido. Conhecia bem Mark? - disse Kelly impacientemente.
- Eu não o conhecia, mas...
Kelly ficou furiosa.
- Mas você disse que...
- Eu disse que queria falar consigo sobre ele.
Kelly levantou-se.
- Minha senhora, eu não tenho tempo para isto. - E começou a dirigir-se para a porta.
-Espere! Acho que temos as duas o mesmo problema e podemo-nos ajudar mutuamente. ..
Kelly parou.
- Do que é que está a falar?
- Por favor, sente-se.
Relutante, Kelly regressou ao seu lugar.
- Diga lá.
- Queria perguntar-lhe se...
Um criado aproximou-se delas com a carta.
- O que desejam?
Sair daqui para fora, pensou Kelly.
- Para mim, nada.
- Dois cafés - respondeu Diane.
Kelly olhou para ela e respondeu em tom de desafio:
- Eu prefiro chá.
- Sim, minha senhora. - E o criado foi-se embora.
- Acho que eu e a senhora... - começou Diane a dizer.
Uma miúda aproximou-se da mesa e dirigiu-se a Kelly:
.- Pode dar-me o seu autógrafo? Kelly olhou para ela.
- Sabes quem eu sou?
- Eu não, mas a minha mãe disse que era importante.
- Não sou, não - respondeu Kelly.
- Oh! - E ficou a ver a miúda a ir-se embora.
Diane olhava para ela, intrigada.
- Eu devia saber quem você é?
- Não. - E Kelly continuou de forma contundente: - E não gosto de bisbilhoteiros a meterem o nariz na minha vida. Vamos lá a saber o que é que se passa, senhora
Stevens.
- Chame-me Diane, por favor. Ouvi dizer que o seu marido sofreu um acidente horrível e...
- Sim. Foi morto. - Ele alguma vez lhe falou de Olga?
- O meu marido também foi morto. E ambos trabalhavam para o KIG.
- E depois? - exclamou Kelly, impaciente. - Assim como milhares de outras pessoas. E se dois deles apanharem uma constipação, vai achar que se trata de uma epidemia?
Diane debruçou-se sobre a mesa:
- Olhe, isto é importante. Primeiro que tudo...
- Lamento muito, mas não me apetece estar a ouvir isto - respondeu Kelly, e pegou na carteira.
- Não lhe apetece estar a ouvir isto - respondeu, furiosa, Diane - mas pode muito bem...
A voz de Diane de repente ouviu-se em todo o café.
- Havia quatro homens na sala...
Sobressaltadas, Diane e Kelly viraram-se para a origem do som. A voz dela vinha de um aparelho de televisão sobre o balcão. Estava no Tribunal, sentada no banco
das testemunhas.
-Um deles estava amarrado e sentado numa cadeira. O senhor Altieri parecia interrogá-lo enquanto os outros dois homens estavam junto dele. O senhor Altieri puxou
de uma arma, berrou qualquer coisa e... disparou sobre o homem na cabeça.
O apresentador apareceu no ecrã.
- Acabámos de ouvir o testemunho de Diane Stevens, no julgamento por assassínio do chefe da Máfia, Anthony Altieri. O júri acabou de entregar um veredicto de não
culpado.
Diane ficou sentada, atordoada. "Não culpado ?"
- O homicídio que teve lugar há quase dois anos levou a que Anthony
129
Altieri fosse acusado da morte de um dos seus empregados. Apesar do testemunho de Diane Stevens, o júri acreditou em outros testemunhos que a contradisseram.
Kelly olhava espantada para o ecrã. Uma nova testemunha surgiu a depor no banco.
Jake Rubinstein, o advogado de Altieri perguntava:
- Dr. Russel, o senhor tem consultório montado em Nova Iorque?
- Não. Eu exerço unicamente em Boston.
- No dia em questão, tratou o senhor Altieri de algo relacionado com problemas de coração ?
- Exactamente. Cerca das nove da manhã. E mantive-o em observação durante o resto do dia.
-Portanto, ele não podia ter estado em Nova Iorque, a catorze de Outubro?
- De forma nenhuma.
Outra testemunha apareceu no ecrã.
- Importa-se de nos dizer qual a sua ocupação?
- Sou gerente do Hotel Boston Park.
- Estava de serviço no dia catorze de Outubro?
- Sim, estava.
- E nesse dia passou-se alguma coisa de especial?
- Sim. Recebi um telefonema urgente da suíte do último andar, pedindo para mandar um médico com a maior urgência.
- E o que se passou a seguir?
- Liguei para o doutor Joseph Russell e pedi-lhe que viesse imediatamente. Assim que ele chegou, subimos para a suíte para ver o que se passava com o hóspede, o
senhor Altieri.
- E o que foi que viu quando lá chegou?
- O senhor Altieri estava caído no chão. Cheguei a pensar que ele morreria ali no hotel.
Diane empalideceu.
- Eles estão a mentir - disse com voz rouca. - Os dois.
Anthony Altieri estava a ser entrevistado. Tinha um aspecto frágil e doente.
- Tem alguns planos para o futuro imediato, senhor Altieri?
- Agora que foi feita justiça, vou levar as coisas com calma. - Altieri sorriu debilmente. - Talvez cobrar umas dívidas antigas.
Kelly não sabia o que dizer. Virou-se para Diane.
- Você testemunhou contra ele?
- Testemunhei. Eu vi-o matar...
130
As mãos a tremer de Kelly entornaram um pouco do chá por cima de um saleiro.
- Eu vou-me pôr a andar daqui para fora.
- Porque é que ficou assim tão nervosa de repente?
- Porque é que fiquei nervosa? Você tentou mandar o chefe da Máfia para a cadeia e ele agora está livre e diz que vai cobrar algumas dívidas antigas, e você ainda
me pergunta porque é que eu estou assim nervosa? Eu, no seu lugar, estaria bem nervosa. - Kelly levantou-se e lançou umas moedas sobre a mesa. - Eu pago. É melhor
que poupe o seu dinheiro para poder fazer uma viagem, senhora Stevens.
- Espere! Não falámos sequer dos nossos maridos, nem...
- Esqueça. - Kelly dirigiu-se para a porta e Diane, relutante, acabou por a acompanhar.
- Acho que está a exagerar - disse Diane.
- Acha?
No momento em que chegaram à porta, Kelly disse:
- Não consigo perceber como é que foi tão estúpida a ponto de...
Um senhor de idade que acabava de entrar escorregou e começou a cair. Por instantes, Kelly viu-se em Paris e era Mark quem caía, e dobrou-se para o ajudar, e no
mesmo instante Diane atirou-se também para a frente para o ajudar. Nesse preciso instante, do outro lado da rua, ouviu-se o som de dois disparos e as balas esmagaram-se
na parede onde as mulheres tinham acabado de estar. A explosão trouxe Kelly de imediato de volta à realidade. Estava em Manhattan e acabara de tomar chá com uma
mulher maluca.
- Meu Deus! - exclamou Diane. - Nós...
-Agora não é altura para começar a rezar. Vamos mas é pirar-nos daqui para fora!
E Kelly puxou Diane até à curva onde Colin estava, junto da limusina. Ele abriu a porta e Kelly e Diane entraram de rompante para o banco traseiro.
- O que foi aquele barulho? - perguntou ele.
As duas mulheres estavam sentadas, atordoadas, incapazes de falar. Por fim, Kelly respondeu:
- Eeer... Deve ter sido um tubo de escape - e virou-se para Diane, que se tentava recompor. - Espero não estar a exagerar - comentou, sarcástica. - Eu deixo-a em
casa. Onde mora?
Diane respirou fundo e deu a Colin a morada do apartamento.
131
As duas mulheres viajaram em gélido silêncio, abaladas por tudo o que acabara de se passar.
Assim que o carro parou em frente do prédio, Diane virou-se para Kelly:
- Importa-se de entrar? Ainda estou um pouco abalada e tenho a sensação de que ainda se vão passar mais coisas.
Kelly respondeu secamente:
- Também eu... Mas a mim não me vai acontecer mais nada.
Adeus, senhora Stevens.
Diane olhou por momentos para Kelly e ia começar a dizer qualquer coisa, mas desistiu, abanou a cabeça e saiu do carro.
Kelly ficou a olhar enquanto Diane passava pelo átrio do prédio e entrava no seu apartamento no primeiro andar, e depois deu um suspiro de alívio.
Colin perguntou:
- E agora para onde, senhora Harris? , - De volta ao hotel, Colin, e...
Ouviu-se um grito que vinha do apartamento. Kelly hesitou um instante e em seguida abriu a porta do carro e correu para dentro do prédio. Diane deixara a porta do
apartamento escancarada e estava no meio da sala a tremer. , - O que foi que aconteceu?
- Alguém... alguém entrou aqui. A pasta de Richard que estava sobre a mesa desapareceu. Estava cheia de papéis. E no seu lugar deixaram a aliança de casamento dele.
Kelly olhou em redor, nervosa.
- O melhor é chamar a polícia.
- Concordo.
E Diane lembrou-se do cartão que o detective Greenburg deixara em cima da mesa. Dirigiu-se à mesa, pegou no cartão e um minuto depois falava ao telefone:
- Queria falar com o detective Greenburg, por favor.
Momentos depois ouviu-se:
- Greenburg.
- Detective Greenburg, fala Diane Stevens. Aconteceu uma coisa cá em casa. Será que podia vir cá e... Muito obrigada.
Diane respirou fundo e virou-se para Kelly:
- Ele vem já. Se não se importar de esperar até ele...
- Claro que me importo. Este problema é seu. E eu não quero ter nada a ver com isto. E, já agora, pode dizer-lhe que houve alguém que a tentou matar. Eu, quanto
a mim, vou partir para Paris. Adeus, senhora Stevens.
E Diane ficou a ver Kelly sair e entrar na limusina.
- Para onde? - perguntou Colin.
- Para o hotel, por favor. Onde estaria a salvo.
132 133
CAPÍTULO 21
Quando Kelly regressou ao seu quarto de hotel constatou que continuava perturbada com o que se passara. A sensação de ter estado tão perto de ser morta era terrível.
A última coisa que eu agora preciso é de uma loura maluca a fazer com que me matem.
Deixou-se cair num sofá enquanto se tentava acalmar e fechou os olhos. Tentou meditar e concentrar-se num mantra, mas sem sucesso. Estava demasiado perturbada. Havia
uma sensação de vazio, de solidão, enraizada dentro dela. Mark, sinto tanto a tua falta. As pessoas dizem que com o tempo passa, que me vou sentir melhor. Mas não
é verdade, meu querido. Cada novo dia é pior do que o anterior.
O som de um carrinho com comida a ser empurrado pelo corredor fez com que Kelly se apercebesse de que não tinha comido nada durante todo o dia. Não sentia fome,
mas sabia que tinha que manter as forças.
Telefonou para o serviço de quartos:
- Quero uma salada de camarão e chá quente, por favor.
- Com certeza. Estará aí dentro de vinte cinco a trinta minutos, senhora Harris.
- Óptimo.
E Kelly desligou. Deixou-se ficar sentada a rever mentalmente o seu encontro com Tanner Kingsley e sentiu-se como se tivesse sido acabada de lançar num tremendo
pesadelo. O que diabo se passava? Porque é que o Mark nunca lhe falara de Olga? Seria uma relação de negócios ? Um romance? Mark, meu querido, quero que tu saibas
que se tiveste um romance com alguém, eu te perdoo, porque eu amo-te e amar-te-ei sempre.Tu ensinaste-me o que era o amor. Eu era uma pessoa fria e tu foste capaz
de me aquecer. Devolveste-me o meu orgulho, e fizeste com que eu me sentisse uma mulher.
Pensou em Diane. Aquela bisbilhoteira acabou por pôr a minha vido em risco. Ali está alguém a evitar. O que não vai ser difícil. Amanhã já estará em Paris, com a
Angel. Os seus pensamentos foram interrompidos pelo som de alguém bater à porta: "Serviço de quartos".
- Um momento, por favor. - Kelly levantou-se e dirigiu-se para a porta, quando de repente estacou, perplexa. Acabara há uns minutos de encomendar. Tão rápido!
- Só um momento - pediu.
- Com certeza.
Kelly pegou no telefone e ligou para o serviço de quartos.
- O meu pedido ainda não chegou.
- Estamos a terminá-lo, senhora Harris. Estará aí daqui a quinze ou vinte minutos.
Kelly desligou, com o coração a bater descompassado. Ligou para a telefonista.
- Tenho... tenho um homem a tentar entrar no meu quarto.
- Vou já mandar o segurança, senhora Harris.
Dois minutos depois ouviu de novo a baterem à porta. Kelly dirigiu-se receosa para a porta.
- Quem é?
- Segurança.
Kelly olhou para o relógio. Demasiado rápido.
- Já abro. - E correu para o telefone e ligou de novo para a telefonista.
- Eu liguei agora mesmo a pedir segurança e...
- Ele vai já a caminho, senhora Harris. Deve chegar aí dentro de um minuto ou dois.
- E como é que ele se chama? - A voz dela estava tensa de medo.
- Thomas.
Kelly ouvia murmúrios do lado de fora da porta. Comprimiu o ouvido contra a porta até que o som das vozes desapareceu. Ali ficou, aterrorizada.
Um minuto mais tarde bateram à porta.
- Quem é?
- Segurança.
- Bill? - perguntou Kelly, e susteve a respiração.
- Não, senhora Harris. O meu nome é Thomas.
Kelly abriu imediatamente a porta e deixou-o entrar.
Ele olhou por momentos para ela e perguntou:
- O que foi que aconteceu?
- Uns... uns homens tentaram entrar aqui no meu quarto.
- Conseguiu vê-los?
134 135
- Não. Só os ouvi. Importa-se de ir comigo para eu apanhar táxi?
- Com certeza, senhora Harris.
Kelly tentava obrigar-se a ficar calma. Demasiado estava a acontecer e demasiado depressa.
Thomas permaneceu junto dela enquanto entraram no elevador. Quando chegaram ao átrio do hotel, Kelly olhou em volta, mas não conseguiu ver nada de suspeito. Caminharam
até lá fora e, quando chegaram junto da paragem dos táxis, Kelly disse:
- Muito obrigada. Agradeço-lhe muito.
Kelly entrou para um táxi e, quanto olhou pelo retrovisor, viu dois homens a correr e a entrarem apresados para uma limusina que estava parada ali perto.
- Para onde? - perguntou o motorista.
A limusina colocou-se mesmo atrás do táxi. Em frentes deles, um polícia dirigia o trânsito.
- Siga sempre em frente - pediu Kelly.
- Certo.
Quando se aproximaram da luz verde, Kelly disse ao homem, ansiosa:
- Quero que abrande e que espere que a luz mude para amarelo, e em seguida vire rapidamente para a esquerda.
O motorista olhou para ela pelo espelho:
- O quê?
- Não passe com a luz verde. Espere que mude para amarelo.
- Ela via a expressão do homem reflectida no espelho. Kelly obrigou-se a sorrir:
- Estou a tentar ganhar uma aposta.
- Oh! - Mais um passageiro doido.
Assim que a luz mudou de verde para amarelo, Kelly pediu:
- Agora!
O táxi fez uma viragem brusca para a esquerda no momento preciso em que a luz passava a vermelho. Atrás deles, o polícia parava o trânsito seguinte. Os homens na
limusina viraram-se um para o outro, em frustração.
Assim que o táxi percorreu um quarteirão, Kelly exclamou:
- Oh! Esqueci-me de uma coisa. Tenho de sair aqui.
O motorista encostou ao passeio e Kelly saiu, dando-lhe algum dinheiro.
- Aqui tem.
136
Ele ficou a olhar enquanto ela entrava apressadamente num ofício de consultórios médicos. Só espero que vá ver um psiquiatra.
Na esquina, no momento em que a luz passou a verde, a limusina virou para a esquerda. O táxi levava dois quarteirões de vantagem e eles apressaram-se a apanhá-lo.
Cinco minutos mais tarde, Kelly chamava outro táxi.
No apartamento de Diane Stevens, o detective Greenburg perguntava:
- Senhora Stevens, conseguiu ver a pessoa que disparou contra si?
Diane abanou a cabeça:
- Não, tudo se passou tão depressa...
- Seja lá quem foi, não estava a brincar. Os homens da balística tiraram as balas da parede e eram calibre quarenta e cinco, capazes de furar uma armadura. A senhora
teve muita sorte... - Hesitou.
- Pensamos que a pessoa que o fez deve ter ido a mando de Anthony Altieri.
Diane engoliu em seco. Vou levar as coisas com calma... Cobrar umas dívidas antigas.
- Nós estamos a verificar essa hipótese.
Diane acenou com a cabeça. Greenburg estudou-a por momentos:
- Quanto à pasta que desapareceu, faz alguma ideia do que lá estava dentro?
- Não sei bem. Richard levava-a com ele para o laboratório todas as manhãs e trazia-a sempre para casa à noite. Uma vez vi os papéis e eram coisas muito técnicas.
Greenburg pegou na aliança que estava sobre a mesa.
- E a senhora diz que o seu marido nunca tirava a aliança?
- Sim. Exactamente.
- Nos dias anteriores à morte dele, o seu marido agiu de alguma forma diferente, como se estivesse sob grande pressão ou preocupado com alguma coisa? Lembra-se de
alguma coisa que ele tenha dito ou feito na última noite que o viu?
Era manhã bem cedo, estavam deitados, nus, e Richard acariciava-lhe as coxas com suavidade e disse:
- Hoje à noite vou ter que trabalhar até tarde, mas guarda uma ou duas horas para mim, para quando eu chegar, meu amor.
Ela tocara-lhe onde ele gostava de ser tocado e respondera:
137
-.Faz o favor de dizer aos seus amiguinhos da Máfia que me deixem ....e lutava para tentar não entrar em histeria.
- Fanfarrão.
- Senhora Stevens?
Diane foi bruscamente chamada à realidade.
-Não. Nada fora do normal.
- Vou arranjar-lhe protecção - disse Greenburg.
A campainha da porta da frente tocou.
- Está à espera de alguém?
- Não.
Greenburg acenou com a cabeça.
- Eu abro.
Caminhou até à porta e abriu-a. Kelly Harris entrou de rompante e empurrou-o para o lado. Dirigiu-se a Diane:
- Temos que falar.
Esta olhou para ela espantada.
- Pensei que ia a caminho de Paris?
- Resolvi fazer um desvio.
Greenburg juntou-se-lhes.
- Este é o detective Earl Greenburg. Kelly Harris.
Kelly virou-se para Greenburg:
- Alguém tentou forçar a entrada no meu quarto no hotel, detective.
- E chamou a segurança?
- Chamei. Já se tinham ido embora. Um segurança acompanhou-me até cá abaixo.
- Faz alguma ideia de quem eles eram?
- Não.
- Quando diz que alguém tentou forçar a entrada no seu quarto, quer com isso dizer que tentaram forçar a porta?
- Não. Eles limitaram-se a ficar do lado de fora. Fingiram que eram do serviço de quartos.
- E a senhora tinha pedido alguma coisa?
- Tinha.
Diane interrompeu:
- Então é natural que estivesse a imaginar coisas, devido ao que se passou hoje, esta manhã...
Kelly virou-se irritada para ela:
- Capaz.
- Ouça lá. Eu disse-lhe que não queria ter nada a ver com isto nem consigo. Vou fazer as malas e partir para Paris hoje à tarde. Falou. E ficaram os dois a olhar
enquanto ela saía.
- O que foi isto? - perguntou Greenburg.
- O marido dela foi... foi morto. Trabalhava para a mesma empresa que Richard, o Kingsley Internacional Group.
Quando Kelly regressou ao seu hotel, dirigiu-se imediatamente à recepção:
- Eu vou-me embora - informou. - Pode fazer-me uma reserva no próximo avião para Paris?
- Com certeza, senhora Harris. Tem preferência por alguma companhia?
- Só quero que me tirem daqui.
Kelly atravessou o átrio, entrou num dos elevadores e premiu o botão para o quarto andar. No momento em que as portas se fechavam, dois homens forçaram-nas a abrir
e entraram. Kelly estudou-os durante uns segundos, depois saiu rapidamente para o átrio. Aguardou até que as portas se fechassem e dirigiu-se às escadas e começou
a subir. Não vale a pena correr riscos, pensou.
Assim que chegou ao quarto andar, um homem enorme barrava-lhe a passagem.
- Com licença - pediu Kelly e começou a tentar passar por ele.
- Chiu! - Ele apontava-lhe uma arma com um silenciador.
Kelly empalideceu.
- O que é que...
- Calada. Penso que tem o número correcto de buracos, minha senhora. A não ser que pretenda ter mais outro, esteja quieta. Muito quieta. Você e eu vamos descer as
escadas.
O homem sorria, mas quando Kelly olhou mais de perto verificou que uma facada que ele recebera no lábio superior lhe repuxara a boca, obrigando-a a sorrir constantemente.
Tinha o olhar mais gelado que Kelly alguma vez vira.
- Vamos embora.
Não! Eu não estou disposta a morrer por causa daquela cabra!
- Ei! Espere aí um segundo. Você está enganado...
E sentiu a arma a esmagar-se contra as costelas com tal força que sentiu vontade de gritar.
- Eu disse-lhe para estar calada! Vamos a pé para baixo.
- Por favor - pediu baixinho. - Eu não sou... - Ele segurava-lhe o braço, magoando-a, a arma oculta na mão atrás das costas.
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A dor que sentiu quando ele lhe espetou a arma contra a coluna era terrível. Ele apertava-lhe o braço com tanta força que sentia o sangue a pulsar. Começaram a descer
as escadas. Chegaram ao átrio. Estava cheio de gente e, quando Kelly pensou na possibilidade de gritar para pedir ajuda, o homem disse:
- Nem sequer pense nisso.
E chegaram lá fora. Havia uma carrinha à espera na curva. Dois carros mais acima, um polícia passava uma multa de estacionamento. O captor de Kelly conduziu-a para
a porta traseira da carrinha.
- Entra - ordenou.
Kelly olhou de soslaio para o polícia mais à frente.
- Está bem - berrou Kelly em voz alta e zangada. - Eu faço-o, mas antes quero dizer-lhe uma coisa. Aquilo que quer que eu faça vai-lhe custar mais cem dólares. Acho
que é nojento.
O polícia virara-se para ver o que se estava a passar. O homenzarrão olhava firmemente para ela.
- Mas que raio está...
- Se não me pagar, então esqueça, seu sacana.
Kelly começou a caminhar rapidamente na direcção do polícia. O homem olhava para ela. Os seus lábios sorriam, mas o seu olhar era letal.
Kelly apontou para ele:
- Aquele pervertido está a incomodar-me.
Olhou para trás, para ver o polícia que se dirigia ao matulão. Entrou para um táxi que estava parado.
Assim que o matulão começou a entrar na carrinha, o polícia chamou-o:
- Espere um momento, senhor! Segundo a lei deste estado, é proibido angariar os serviços de uma prostituta.
- Mas eu não...
- Mostre-me os seus papéis. Como se chama?
- Harry Flint
E Flint ficou a ver o táxi de Kelly a partir apressadamente dali para fora. Aquela puta! Eu mato-a! Devagarinho!
CAPÍTULO 22
Kelly saiu do táxi à porta do prédio de Diane, atravessou como um furacão a porta da rua e premiu o botão da campainha. A porta de casa foi aberta pelo detective
Greenburg.
- Posso...?
Kelly viu Diane na sala e passou rapidamente por ele.
-Mas afinal o que se passa?-perguntou Diane. -Você disse que...
- Você é que me vai dizer o que se passa. Eu disse-lhe para dizer aos seus amigos da Máfia para me deixarem em paz. Só que tentaram apanhar-me outra vez. Porque
é que os seus amiguinhos estão tão interessados em me matar?
- Eu... Eu não faço a mínima ideia. Eles não... Se calhar viram-nos juntas e pensaram que somos amigas e...
- Pois a verdade é que não o somos, senhora Stevens. Tire-me disto.
- Mas, do que é que está a falar? Como é que eu posso...?
- Da mesma maneira que me meteu. Quero que diga ao seu amiguinho Altieri que acabámos de nos conhecer e que você nunca me tinha visto antes. Não estou disposta a
deixar que alguém me mate por causa de uma estupidez sua.
- Eu não posso... - respondeu Diane.
- Ai pode, pode. Você vai falar com o Altieri e vai fazê-lo agora.
Não saio daqui enquanto não o fizer.
- O que me está a pedir é impossível - respondeu Diane. - Lamento muito que tenha acabado por ser envolvida em tudo isto, mas... - Ficou por instantes pensativa
e em seguida virou-se para o detective Greenburg:
- Acha que se eu falar com Altieri ele é capaz de nos deixar às duas em paz?
- Ora aí está uma pergunta interessante - respondeu ele. - E possível. Principalmente se pensar que nós estamos de olho nele.
Quer falar pessoalmente com ele?
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- Não. Eu... - gaguejou Diane.
- O que ela quer dizer é sim - Kelly interrompeu.
A casa de Anthony Altieri era um edifício clássico em pedra, do tipo colonial, em Hunterdon County, New Jersey. A enorme casa surgia no fundo de uma rua sem saída
e estava rodeada por cinquenta acres de terra, cercados por uma enorme vedação em ferro. Nos terrenos em volta da casa havia enormes árvores, lagos e um jardim colorido.
Numa guarita junto ao portão de frente estava sentado um guarda. Assim que o carro com Greenburg, Kelly e Diane se aproximou, o guarda saiu da guarita e abeirou-se
deles.
Reconheceu Greenburg.
- Boas tardes, tenente.
- Como estás, César? Queremos falar com o senhor Altieri.
- Traz um mandado de captura?
- Não é esse tipo de visita. Esta é uma visita social.
O guarda olhou para as duas mulheres.
- Queiram aguardar aqui. - Entrou na guarita e uns minutos mais tarde saiu e abriu o portão. - Façam o favor de entrar.
- Muito obrigado. - E Greenburg guiou até à frente da casa.
Assim que os três saíram do carro, apareceu um segundo guarda.
- Sigam-me.
E conduziu-os lá para dentro. A enorme sala de estar era uma ecléctica combinação de antiguidades e mobílias modernas e francesas. Apesar de o dia estar quente,
na enorme lareira de pedra ardia um fogo. O trio seguiu o guarda através da sala até um quarto de dormir escurecido. Anthony Altieri estava deitado na cama, ligado
a um ventilador. O seu aspecto era pálido e exangue e parecia ter envelhecido consideravelmente desde que aparecera em tribunal. A seu lado estava um padre e uma
enfermeira.
Altieri olhou para Diane, Kelly e Greenburg e em seguida voltou o olhar de novo para Diane. Quando falou, a sua voz era rouca e áspera:
- Que diabo quer daqui?
- Senhor Altieri - disse Diane - quero que nos deixe, a mim e à senhora Harris, em paz. Chame os seus homens. Já não chega que tenha mandado matar o meu marido...
Altieri interrompeu-a:
- Mas do que é que está para aí a falar? Eu nunca ouvi falar
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sequer no seu marido. Li sobre aquela treta da mensagem que encontraram no bolso dele. - E troçou: - Vais nadar com os peixinhos.
Há para aí alguém que viu demasiados episódios d' Os Sopranos. Eu não ando atrás de si. Quero lá saber se está viva ou morta. Eu não ando atrás de absolutamente
ninguém... - E estremeceu de dor. - Estou demasiado ocupado a fazer as pazes com Deus. Eu... - e engasgou-se.
O padre virou-se para Diane:
- Penso que é melhor que saia.
- O que se passa? - perguntou o detective Greenburg.
- Cancro - respondeu o padre.
Diane olhou para o homem deitado na cama. Quero lá saber se está viva ou morta... Eu não ando atrás de absolutamente ninguém... Estou demasiado ocupado a fazer as
pazes com Deus. Ele estava a falar verdade.
De repente, Diane sentiu-se invadida por um pânico terrível e cego.
Na viagem de regresso de casa de Altieri, Greenburg parecia preocupado:
- Tenho de reconhecer que me pareceu que ele falava verdade.
- Também eu. O homem está a morrer - concordou relutantemente Kelly -Alguma de vocês tem ideia da razão por que alguém vos quer matar?
- Não - respondeu Diane. - Se não é Altieri... - e abanou a cabeça - não faço a mínima ideia.
- Nem eu - disse Kelly e engoliu em seco.
O detective Greenburg escoltou Diane e Kelly até ao apartamento da primeira.
- Vou ter de trabalhar nisto agora - disse -, mas vocês aqui estão em segurança. Dentro de quinze minutos vão ter um carro da polícia em frente do apartamento para
as próximas vinte e quatro horas, e depois logo veremos o que podemos fazer. Se precisarem de mim, telefonem.
E foi-se embora. Diane e Kelly ficaram a olhar uma para a outra. Fez-se um silêncio embaraçoso. _
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- Quer tomar um chá? - perguntou Diane.
- Café - respondeu Kelly, perversa.
Diane olhou para ela com irritação e por fim respondeu, suspirando:
- Como queira - e partiu para a cozinha. Kelly vagueou pela sala a ver os quadros.
No momento em que Diane saiu da cozinha, Kelly observava um dos quadros de Diane.
- Stevens - disse, virando-se para ela. - Foi você quem pintou isto?
- Sim - respondeu Diane.
- Bonito - comentou Kelly num tom de voz depreciativo.
Os lábios de Diane apertaram-se:
- Percebe muito de arte?
- Nem por isso, senhora Stevens.
- E de quem é que gosta? A Grandma Moses, imagino!
- É interessante.
- E que outros artistas primitivos lhe tocam o coração? Kelly virou-se para Diane:
- Para ser honesta, prefiro a representação curvilínea, não representativa. É claro que há excepções. Por exemplo, em A Vénus de Robin de Ticiano, o lançamento diagonal
da forma dela é simplesmente de cortar a respiração e...
Da cozinha veio o som do café a passar pelo filtro.
- O café está pronto - disse Diane secamente.
Sentaram-se em frente uma da outra na sala de estar, taciturnas, deixando esfriar o café. Foi Diane quem quebrou o silêncio:
- Ocorre-lhe alguma razão para alguém nos querer matar?
- Não. - E também Kelly ficou calada por alguns momentos.
- A única ligação que existe entre nós é o facto de que ambos os nossos maridos trabalhavam para o KIG. Talvez estivessem envolvidos num projecto qualquer que era
top-secret. E quem quer que seja que nos quer matar, pensa que eles falaram connosco.
Diane empalideceu.
- Sim...
Olharam uma para a outra consternadas.
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No seu gabinete, Tanner observava num dos ecrãs na parede a cena que se desenrolava no apartamento de Diane. Com ele estava o seu chefe de segurança.
- Não... A única ligação que existe entre nós é o facto de que ambos os nossos maridos trabalhavam para o KIG. Talvez estivessem envolvidos num projecto qualquer
que era top-secret. E quem quer que seja que nos quer matar, pensa que eles falaram connosco.
- Sim...
O apartamento dos Stevens fora trabalhado com tudo o que havia de topo de gama em matéria de televisão e som. Tal como Tanner dissera ao amigo, a casa estava repleta
de tecnologia de ponta. Havia sistemas de vídeo ocultos em todas as divisões, com uma câmara web do tamanho de um botão oculta no meio dos livros, fios de fibra
óptica passados pelas portas e uma câmara sem fios. No sótão, fora instalado um servidor de vídeo do tamanho de um computador portátil, para servir seis câmaras;
ligado a ele, havia um modem sem fios que permitia que o equipamento funcionasse por tecnologia celular.
Quando Tanner se inclinou para a frente para observar com atenção o ecrã, Diane dizia:
- Temos que descobrir em que é que os nossos maridos estavam a trabalhar.
- Concordo. Mas vamos precisar de ajuda. E como o vamos fazer?
- Podemos telefonar ao Tanner Kingsley. Ele é a única pessoa que nos pode ajudar e ele também anda a tentar saber quem está pode detrás de tudo isto.
- Então vamos ligar-lhe.
- Pode dormir cá - disse Diane. - Aqui estará em segurança.
Há um carro da polícia parado lá fora. - E dirigiu-se à janela e puxou a cortina para trás. Não se via carro nenhum.
Ficou parada por momentos a olhar e sentiu um arrepio.
- Mas que estranho - comentou. - Devia estar ali um carro patrulha. Vamos telefonar.
Diane tirou o cartão do detective Greenburg de dentro da carteira, dirigiu-se ao telefone e marcou um número.
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- Queria falar com o detective Greenburg, por favor.
Ficou a ouvir por instantes.
- Tem a certeza? Sim... Estou a perceber. Posso então falar com o detective Praegitzer? - Fez-se outro silêncio. - Sim, muito obrigada. - Diane pousou devagarinho
o telefone.
Kelly olhava para ela.
- O que se passa?
- Os detectives Greenburg e Praegitzer foram transferidos para outra esquadra.
Kelly engoliu em seco.
- Mas que estranha coincidência, não acha?
- Lembrei-me agora de uma coisa - disse Diane.
- O quê?
- O detective Greenburg perguntou-me se nos últimos tempos Richard fizera alguma coisa fora da rotina habitual. Houve uma coisa que me esqueci de mencionar. Sei
que ele ia a Washington falar com alguém. Eu às vezes ia com ele, mas desta vez ele insistiu que era melhor que eu ficasse em casa.
Kelly olhava para ela com uma expressão de espanto no rosto.
- Mas isso é muito estranho. Mark também me disse que iria a Washington e que tinha de ir sozinho.
- Temos de descobrir porquê.
Kelly caminhou até à janela e puxou as cortinas para trás.
- Continua a não haver carro nenhum. - E virou-se para Diane.
- Acho melhor sairmos rapidamente daqui para fora.
- Concordo - respondeu a outra. - Conheço um pequeno hotel meio escondido, em Chinatown, chamado The Mandarin.
Nunca ocorrerá a ninguém procurar aí por nós. Depois telefonamos do quarto ao senhor Kingsley.
Tanner virou-se para o seu chefe da segurança, Harry Flint, o do sorriso perpétuo, e ordenou: . . - Mata-as.
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CAPÍTULO 23
Harry Flint é perfeitamente capaz de tomar conta delas, pensou Tanner com satisfação. Nunca lhe falhara.
Tanner achava engraçada a forma como Flint entrara na sua vida. Há alguns anos, o irmão Andrew, menino bonito dos corações feridos de todo o mundo, criara uma casa
de transição para presos acabados de sair da cadeia, com a finalidade de os ajudar na reinserção na vida normal. Em seguida encontrava-lhes trabalho.
Tanner tinha um plano muito mais útil para os ex-criminosos, pois acreditava que ex-criminosos era coisa que não existia. Através dos seus contactos, conseguia obter
informações privadas sobre o passado dos presos recém libertos, e se tinham as qualificações de que Tanner precisava, saíam da casa de transição e começavam a trabalhar
directamente com Tanner, executando aquilo a que ele chamava "delicadas tarefas de nível particular".
Conseguira que um ex-condenado chamado Vince Carballo começasse a trabalhar para o KIG. Era um homem forte com uma barba hirsuta e olhos azuis penetrantes como adagas.
Tinha um longo cadastro. Fora julgado por assassínio. As provas contra ele eram tremendas, mas um membro do júri teimara em absolvê-lo e no final acabara por haver
um empate nos jurados. Poucas pessoas sabiam que a pequena filha do membro do júri desaparecera e que fora deixada uma nota onde se lia: Se não falar acerca disto,
o destino da sua filha será determinado pelo veredicto do júri.
Tanner ouvira também falar num ex-presidiário de nome Harry Flint. Investigara minuciosamente o seu passado e concluíra que era Perfeito para os seus objectivos.
Harry Flint nascera em Detroit, numa família de classe média. O Pai era um amargo vendedor falhado, que passava o tempo sentado em casa a queixar-se. Era um mandão
sádico e à menor infracção do
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filho deliciava-se em bater-lhe com uma régua, um cinto, ou o que quer que encontrasse à mão, como se pretendesse punir o filho pela sua incapacidade.
A mãe do miúdo trabalhava como manicura num barbeiro. Enquanto o pai era um tirano, a mãe era-lhe completamente devotada e mimava-o, e, à medida que o jovem Harry
crescia, foi ficando emocionalmente dividido entre estes dois opostos.
Os médicos tinham dito à sua mãe que era demasiado velha para ter filhos, por isso ela considerara a sua gravidez como um milagre. Depois do nascimento dele, acariciava-o
amorosamente e abraçava-o, fazendo-lhe festas e beijando-o até Harry se sentir sufocado com tanto amor. A medida que crescia, começou a detestar que lhe tocassem.
Quando Harry Flint chegou aos catorze anos encurralou um rato na cave e deu-lhe pontapés. Enquanto olhava para o rato a morrer dolorosamente, Harry Flint teve uma
epifania. De repente percebeu que tinha o tremendo poder de tirar a vida, de matar. Fê- lo sentir-se Deus. Era omnipotente, todo poderoso. Precisava de voltar a
sentir a mesma coisa, por isso começou a caçar furtivamente pequenos animais pelas vizinhanças, e estes tornaram-se suas presas. Não havia nada de pessoal nem de
maldoso naquilo que Flint fazia. Limitava-se a usar o talento que Deus lhe dera.
Os furiosos vizinhos cujos animais de estimação estavam a ser torturados e mortos queixaram-se às autoridades e foi montada uma armadilha para o apanharem. A polícia
colocou um Scottish Terrier no jardim relvado de uma casa, preso por uma trela para evitar que fugisse, e montou vigilância. Uma noite, enquanto a polícia vigiava,
Harry Flint aproximou-se do animal. Abriu-lhe a boca e começou a enfiar-lhe um pau de fogo de artifício a arder pela boca do bicho. A polícia saltou-lhe em cima.
Quando o revistaram, encontram-lhe no bolso uma pedra coberta de sangue e uma navalha com uma lâmina de quinze centímetros.
Foi mandado para o Challenger Memorial Youth Center por doze meses.
Uma semana depois da sua chegada, atacou um dos rapazes, deixando-o bastante mutilado. Os psiquiatras que o examinaram diagnosticaram-lhe uma esquizofrenia paranóide.
- Ele é psicótico - disse o médico, avisando os guardas que o
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tinham a seu cargo. - Tenham cuidado. Mantenham-no afastado dos outros.
Quando Harry Flint terminou a sua pena, tinha quinze anos e saiu em liberdade condicional. Voltou para a escola. A maior parte dos seus companheiros consideraram-
no um herói. Muitos deles já andavam metidos em vários tipos de pequenos crimes, roubos de carteiras, roubo por esticão e roubos em lojas, e depressa ele se tornou
chefe do grupo.
Uma noite, numa rixa num beco, uma faca cortou um dos cantos da boca de Harry, deixando-o para sempre com um sorriso constante.
À medida que os rapazes iam crescendo, foram-se virando para o furto de viaturas, assaltos e roubos. Um dos roubos que efectuaram tornou-se violento e um lojista
acabou por ser morto. Harry Flint foi condenado por assalto à mão armada e por cumplicidade em assassinato e condenado a dez anos de cadeia. Foi o prisioneiro mais
perverso que o superintendente da cadeia alguma vez viu.
Havia algo nos olhos de Harry Flint que fazia com que os outros presos não se metessem com ele. Ele aterrorizava-os constantemente, mas nunca ninguém se atreveu
a denunciá-lo.
Um dia, quando um guarda passava junto da sua cela ficou a olhar lá para dentro sem poder acreditar. O companheiro de cela de Flint estava caído no meio de uma poça
de sangue. Fora sovado até à morte.
O guarda olhou para Flint e havia um sorriso de satisfação no seu rosto.
- Muito bem, seu cabrão. Desta é que tu não vais conseguir escapar. Podemos começar a aquecer a cadeira para ti.
Flint devolveu-lhe o olhar e, devagarinho, levantou o braço esquerdo. Enterrado na carne tinha uma faca de talho.
- Legítima defesa - respondeu friamente Flint.
O preso na cela em frente jamais contou fosse a quem fosse que vira Flint sovar selvaticamente o seu companheiro de cela até à morte e que em seguida sacara de uma
faca de talho de dentro do colchão e a enterrara no braço.
A característica que Tanner mais admirava em Flint é que ele gostava muito do seu trabalho.
Lembrava-se da primeira vez que Flint lhe provara como podia ser útil. Fora durante uma viagem de urgência a Tóquio...
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- Diga ao piloto que ponha o Challenger a trabalhar. Vamos ao Japão. E só nós os dois.
As notícias chegavam em má altura, mas tinham de ser tratadas imediatamente e eram demasiado delicadas para se poderem confiar a outra pessoa. Tanner conseguira
que Akira Iso aceitasse encontrar-se com ele em Tóquio e que reservasse um quarto no Hotel Okura.
Enquanto o avião cruzava o oceano Pacífico, Tanner ia planeando a sua estratégia. Quando o avião aterrou ele arranjara uma solução em que não poderia perder.
A viagem de carro desde o aeroporto Narita demorou uma hora, e Tanner espantava-se com o facto de Tóquio nunca mudar. Em tempos de sucesso e em tempos de carência,
a cidade parecia vestir sempre o mesmo rosto impassível.
Akira Iso aguardava-o no restaurante Fumiki Mashimo. Iso andava pelos cinquenta anos, era magro, de cabelo grisalho e olhos escuros e brilhantes. Levantou-se para
saudar Tanner.
- É para mim uma honra conhecê-lo, senhor Kingsley. Francamente, confesso que fiquei surpreso com o seu telefonema. Não faço ideia do que o levou a fazer toda esta
viagem para se encontrar comigo.
Tanner sorriu.
- Sou portador de boas notícias que achei que eram demasiado importantes para serem faladas ao telefone. Penso que vou poder fazer de si um homem muito feliz, e
também muito rico.
Akira Iso olhava para ele, curioso:
- Sim?
Um criado de casaco branco aproximou-se da mesa.
-Antes de começarmos a falar de negócios, que tal se pedíssemos?
- Como queira, senhor Kingsley. Conhece os pratos japoneses ou prefere que eu escolha por si?
- Muito obrigado. Eu posso pedir. Gosta de sushi?
- Sim.
Tanner virou-se para o criado.
- Eu quero hamachi-temaki, kaibashira e amartbi. Akira Iso sorriu.
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Parece-me bem - e olhou para o criado.-Eu quero a mesma coisa.
Enquanto comiam, Tanner disse:
O senhor trabalha para uma excelente empresa, o Tokyo First Industrial Group.
- Muito obrigado.
- Há quanto tempo?
- Há dez anos.
- Isso já é muito tempo - e olhou para Akira Iso de frente. - Na realidade, acho que está chegada a altura de mudar.
-E porque havia eu de querer fazer uma coisa dessas, senhor Kingsley?
- Porque eu vou fazer-lhe uma oferta que não pode recusar. Não faço ideia de quanto dinheiro você ganha, mas estou disposto a pagar-lhe o dobro para sair e vir trabalhar
connosco no KIG.
- Senhor Kingsley, isso não é possível.
- E porque não? Se é por causa de contrato, eu consigo tratar...
Akira Iso pousou os pauzinhos.
- Senhor Kingsley, no Japão, quando trabalhamos para uma empresa, é como uma família. E, quando já não podemos trabalhar mais, eles tomam conta de nós.
- Mas o dinheiro que eu lhe estou a oferecer...
- Não. Aisha seishin.
- Como?
- Significa que colocamos a lealdade acima do dinheiro. -Akira Iso olhou para ele com ar curioso. - Porque foi que me escolheu a mim?
- Porque ouvi muitos elogios à sua pessoa.
- Lamento que tenha feito uma viagem tão longa para nada, senhor Kingsley. Eu jamais deixarei o Tokyo First Industrial Group.
- Bom, tinha que tentar.
- Não fica ressentido?
Tanner encostou-se para trás e riu:
- Mas é claro que não. Bem gostaria que todos os meus em pregados me fossem assim leais. - De repente lembrou-se de uma coisa. - A propósito, trouxe um presente
para si e para a sua família. Um meu associado vai levar-lho mais tarde ao seu hotel. Daqui a uma hora. Ele chama-se Harry Flint.
Uma empregada do turno da noite encontrou o corpo de Akira Iso pendurado num gancho, dentro de um armário. O veredicto oficial foi suicídio.
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CAPÍTULO 24
O Mandarin Hotel, uma construção de dois pisos no meio de Chinatown, a três quarteirões da Mott Street, já vira melhores dias.
Quando Kelly e Diane saíram do táxi, Diane reparou num enorme letreiro do outro lado da rua com a fotografia de Kelly num lindíssimo vestido de noite, a segurar
um frasco de perfume. Diane olhou-o, espantada.
- Mas aquela é você!
- Está enganada - respondeu Kelly. - Aquilo é o que eu faço, senhora Stevens. Não é quem em sou. - E virou-se e entrou no átrio do hotel, seguida por uma exasperada
Diane.
Atrás do balcão da pequena recepção estava sentado um empregado chinês a ler um exemplar do China Post.
- Queremos um quarto por uma noite - pediu Diane.
O recepcionista olhou para as duas mulheres elegantemente vestidas e quase se ouviu a dizer alto "Como? Aqui?", mas dominou-se e respondeu:
- Com certeza. - E olhou com mais atenção para as roupas de marca delas. - São cem dólares por noite.
- Cem...? - começou a dizer chocada Kelly, mas Diane interrompeu-a.
- Muito bem.
- Adiantados.
Diane abriu a carteira, tirou uma série de notas para fora e deu-as ao recepcionista. Este entregou-lhe uma chave.
- Quarto número dez, ao fundo do corredor, do lado esquerdo.
Têm bagagem?
- Vai chegar mais tarde - respondeu Diane.
- Se precisarem de alguma coisa é só chamarem por Ling.
- Líng? - perguntou Kelly.
- Sim, é a vossa criada de quartos.
- Ah, claro!- retorquiu, céptica, Kelly. As duas mulheres começaram a andar pelo corredor mal iluminado.
Você pagou muito caro - disse Kelly.
Quanto vale para si um tecto seguro sobre a sua cabeça?
- Não estou lá muito convencida que este hotel tenha sido uma boa escolha - comentou Kelly.
Vai ter que servir até encontrarmos algo melhor. Mas não se preocupe. O senhor Kingsley vai cuidar de nós.
Quando chegaram ao número dez, Diane abriu a porta e entraram. O pequeno quarto cheirava e aparentava estar desocupado há muito tempo. Tinha duas camas grandes com
colchas amarrotadas e duas velhas cadeiras junto de uma secretária estragada.
Kelly olhou em volta.
- Pode ser pequeno, mas é horroroso. Aposto que nunca foi limpo. - Pegou numa almofada e ficou a ver o pó a subir no ar. - Gostava de saber quando foi a última vez
que a Ling passou por aqui.
- É só por hoje - assegurou-lhe Diane. - Vou então ligar ao senhor Kingsley.
Kelly ficou a olhar enquanto Diane se dirigia ao telefone e marcava o número do cartão que Tanner Kingsley lhe dera. A chamada foi imediatamente atendida.
- Fala Tanner Kingsley.
Diane suspirou de alívio.
- Senhor Kingsley, fala Diane Stevens. Peço desculpa por o estar a incomodar, mas eu e a senhora Harris precisamos da sua ajuda. Há alguém que nos quer matar e nós
não fazemos a mínima ideia do que se está a passar. Estamos as duas escondidas.
- Ainda bem que ligou, senhora Stevens. Podem ficar descansadas. Acabamos de descobrir o que está por detrás de tudo isto. Não vão ter mais problemas. Posso garantir-lhe
que, de agora em diante, a senhora e a senhora Harris estarão em perfeita segurança.
Diane fechou os olhos por instantes. Graças a Deus.
- Pode dizer-me quem...?
- Explico-lhe tudo quando nos encontrarmos. Agora fiquem onde estão. Vou mandar alguém para vos apanhar, dentro de trinta minutos.
- Isso é... - E a chamada foi desligada. Diane pousou o telefone e virou-se para Kelly a sorrir:
- Boas notícias! Os nossos problemas estão resolvidos.
- O que foi que ele disse?
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- Disse que sabe quem está por detrás de tudo isto e que de agora em diante estamos em segurança.
Kelly suspirou.
- Excelente. Agora posso voltar para Paris e recomeçar a minha vida.
- Disse que ia mandar alguém para nos vir buscar dentro de meia hora.
Kelly olhou em redor do sujo quarto.
- Vou ter dificuldade em abandonar tudo isto.
- Vai ser estranho - comentou Diane tristemente virando-se para ela.
- O quê?
-Voltar para uma vida sem Richard. Não consigo imaginar como é que vou ser capaz de...
- Então não o faça - interrompeu bruscamente Kelly. - Minha senhora, não vamos entrar por esse caminho, senão eu não me vou aguentar. Não quero pensar nisso. Mark
era toda a minha razão de viver, a minha única razão...
Diane olhou para o rosto inexpressivo de Kelly e pensou: Ela é como uma bela obra de arte sem vida - bela efria.
Kelly sentou-se numa das camas de costas para Diane. Fechou os olhos bloqueando a dor que sentia no peito e lentamente... lentamente... lentamente...
Caminhava ao longo da margem esquerda com Mark, conversando sobre tudo e sobre nada, e Kelly pensou que nunca se sentira tão bem e tão à vontade com alguém na sua
vida.
Dissera a Mark:
- Amanhã à noite vai haver uma inauguração de uma galeria, se estiveres interessado...
- Oh! Lamento, Kelly. Mas amanhã à noite tenho que fazer.
- Tens outro encontro? - perguntara com uma ponta de ciúme enquanto tentava manter o tom de voz ligeiro.
- Não, não. Vou sozinho. É um banquete. - E viu a cara de Kelly. - É... é um jantar de cientistas. Tu ias-te aborrecer.
- Achas que sim?
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- Tenho a certeza. Dizem-se muitas palavras que provavelmente nunca ouviste falar e...
- Acho que já ouvi falar sobre tudo - respondera, picada. - Porque não me experimentas?
- Sabes, não acho que seja boa ideia.
- Diz. Já sou crescidinha.
Ele suspirou.
- Está bem: anatripsologia... malacostracologia... aneroidógrafo...
- Oh! - exclamou Kelly. - Esse tipo de palavras.
- Eu sabia que isto não te ia interessar.
- Pois estás enganado. Isso interessa-me. - Porque te interessa a ti.
O banquete teve lugar no Hotel Prince de Galles e foi um acontecimento importante. Estavam cerca de três centenas de pessoas no salão de baile, entre elas os mais
importantes dignitários de França. Um dos convidados na mesa da frente onde Kelly e Mark se sentavam era um homem muito atraente, com uma personalidade calorosa
e muito agradável.
- O meu nome é Sam Meadows - disse a Kelly. - E já ouvi falar muito de si.
- E eu de si - respondeu ela. - Mark diz que o senhor é o seu mentor e o seu melhor amigo.
Sam Meadows sorriu.
- Sinto-me muito honrado por ser amigo dele. Mark é uma pessoa muito especial. Trabalhámos juntos durante muito tempo.
Ele é a pessoa mais dedicada...
Mark ouvia, embaraçado.
- Alguém quer vinho? - perguntou, interrompendo.
O mestre de cerimónias apareceu no palco e os discursos começaram. Mark tinha toda a razão quando dissera que a noite não ia ter qualquer interesse para Kelly. Estavam
a ser concedidos prémios científicos e técnicos e, no que lhe dizia respeito, os oradores podiam estar a falar chinês. Mas observava o entusiasmo espelhado no rosto
do Mark e sentia-se feliz por estar ali.
Quando os pratos do jantar foram retirados, o presidente da Academia Francesa das Ciências subiu ao palco. Começou por elogiar as realizações que a França conseguira
obter no ano anterior e foi só quando ele ergueu uma estatueta dourada e chamou pelo nome de Mark Harris que Kelly percebeu que ele era a estrela da noite.
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O chinês olhou para cima quando Flint entrou no átrio do Mandarin Hotel.
- Em que posso ser útil? - Vira o sorriso de Flint e devolvia-o.
- A minha mulher e uma amiga acabaram de se instalar aqui. A minha mulher é loura e a amiga é uma miúda negra muito gira. Em que quarto estão?
Modestamente, não lhe contara nada. Era por isso que ele não queria que eu viesse. Kelly ficou a ver Mark a subir ao palco e a audiência a aplaudir calorosamente.
- Ele não me tinha falado sobre nada disto - disse Kelly a Sam Meadows.
Este sorriu.
- Típico de Mark. - E estudou Kelly por instantes. - Sabe que ele está perfeitamente apaixonado por si. Quer casar consigo. - Fez uma pausa e disse com ar sério.
- Espero que ele não se magoe.
Ao ouvir estas palavras, Kelly sentiu a culpa invadi-la. Mas eu não posso casar com Mark. Ele é um bom amigo, mas eu não estou apaixonada por ele. O que foi que
eu fiz? Não o quero magoar. O melhor é parar de o ver. Eu nunca serei capaz de dar a um homem aquilo que ele espera receber de uma mulher. Como é que eu vou conseguir...
- Ouviu alguma coisa do que eu disse? - O tom zangado na voz de Diane acordou Kelly do seu sonho. O belo salão de baile desapareceu e estava de novo num sujo quarto
de hotel com uma mulher que só desejava nunca ter encontrado.
- O quê?
- Tanner Kingsley disse que dentro de meia hora vinha alguém para nos buscar - dizia Diane, ansiosa.
- Você disse-me isso. E depois?
- E que ele nem sequer me perguntou onde é que nós estávamos.
- Provavelmente pensa que estamos no seu apartamento.
- Não. Eu disse-lhe que andávamos as duas escondidas.
Fez-se uns segundos de silêncio e os lábios de Kelly formaram um silencioso "Oh".
Ambas se viraram para olhar para o relógio em cima da mesa de cabeceira.
- No quarto número dez, mas infelizmente não o posso deixar entrar. Vai ter que telefo...
Flint ergueu uma pistola Rugerde calibre 45 equipada com silenciador e meteu uma bala na testa do recepcionista.
Empurrou o corpo para trás do balcão e começou a caminhar pelo corredor, a arma a seu lado. Assim que chegou ao quarto número dez, recuou, deu dois passos, meteu
os ombros à porta e entrou no quarto.
Estava vazio, mas através da porta fechada da casa de banho ouvia o som de água de um chuveiro a correr. Dirigiu-se à porta da casa de banho e escancarou-a. A torneira
do chuveiro estava toda aberta e as cortinas corridas ondulavam suavemente. Flint disparou vários tiros para as cortinas, aguardou uns momentos e em seguida abriu-as.
Não estava lá ninguém.
Numa restaurante do outro lado da rua, Diane e Kelly tinham visto a carrinha SUV de Flint a chegar e depois ele a entrar no hotel.
- Meu Deus - exclamou Kelly. - Aquele foi o homem que me tentou raptar.
Aguardaram. Quando Flint surgiu um pouco depois, os seus lábios continuavam a sorrir, mas o seu rosto era uma máscara de fúria. Kelly virou-se para Diane.
- Lá vai o Godzila. E agora, que falso movimento vamos fazer a seguir?
- Temos de sair daqui.
- E vamos para onde? Eles vão estar a vigiar os aeroportos, as estações de comboio, as estações dos autocarros...
Diane ficou pensativa.
- Eu conheço um lugar onde eles não nos vão poder tocar.
- Deixe-me imaginar. A nave espacial que a trouxe cá para a Terra.
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CAPÍTULO 25
O letreiro de néon em frente do edifício dizia WILTON HOTEL PARA MULHERES.
No átrio, Kelly e Diane faziam o seu registo sob nomes falsos. A mulher atrás do balcão deu uma chave a Kelly:
- Suite número quatro dois quatro. Têm bagagem?
- Não, nós...
- Perdeu-se - interrompeu Diane. - Chega cá amanhã de manhã. Entretanto, os nossos maridos vêm buscar-nos daqui a pouco.
Importa-se de lhes indicar o nosso quarto e...
A empregada abanou a cabeça.
- Lamento muito, mas não são permitidos homens lá em cima.
- Ah! - E Diane lançou a Kelly um sorriso de satisfação.
- Se quiserem encontrar-se com eles cá em baixo...
- Não tem importância. Eles terão que se aguentar sem nós.
A suite 424 estava muito bem decorada, com uma sala com um sofa, cadeiras, mesas e um armário, e o quarto tinha duas camas duplas de aspecto bem confortável.
Diane olhou em redor.
- Isto é agradável, não é?
- O que é que nós andamos a fazer? A tentar entrar para o livro de recordes do Guiness? - respondeu Kelly asperamente. - Um hotel diferente a cada meia hora?
- Tem um plano melhor?
- Isto não é nenhum plano - troçou Kelly. - Isto é mais um jogo do gato e do rato, e nós é que somos o rato.
- Se pensarmos muito no assunto, a verdade é que os homens do maior think tank do mundo andam atrás de nós para ver se nos matam - comentou Diane.
- Então talvez seja melhor não pensar no assunto.
- Isso é mais fácil de dizer do que de fazer. Há suficientes cabeças e ovo no KIG para fazer uma omeleta maior do que o estado do Kansas.
- Bom, então só nos resta sermos mais espertas do que eles.
- Pois, mas vamos precisar de uma arma qualquer - comentou Diane de sobrolho franzido. - Sabe usar uma arma?
- Eu não.
Maldição. Eu também não.
Não interessa. De qualquer das maneiras não temos nenhuma.
- E karaté?
Também não, mas fiz parte da equipa de debate na faculdade respondeu secamente Diane. - Talvez os consiga convencer a desistirem de nos matar.
- Pois.
Diane foi até à janela e olhou lá para fora, para o trânsito na Thirty-fourth Street. De repente, os olhos abriram-se-lhe de espanto e arquejou:
- Oh!
Kelly correu para junto dela.
- O que foi? O que é que viu?
Diane sentia a garganta seca.
- Um... um homem que passou. Era exactamente igual a Richard. Por instantes... pensei... - E afastou-se da janela.
Kelly comentou, desdenhosa:
- Por acaso não quer que eu mande chamar os caça-fantasmas, pois não?
Diane ia começar a responder-lhe, mas depois pensou: Para quê? Em breve estarei fora daqui.
Kelly olhou para Diane e pensou: Por que raio é que não te calas e vais pintar para outro lado?
Flint falava no seu telemóvel com um furioso Tanner.
- Lamento muito, senhor Kingsley, mas elas não estavam no quarto do Mandarin. Desapareceram. Deviam saber que eu ia aparecer.
Tanner estava apopléctico.
- Essas duas cabras querem jogar joguinhos comigo? Comigo?
- Eu já te telefono. -
E desligou furiosamente o telefone.
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Andrew estava deitado no sofá do seu gabinete e divagava relembrando o enorme espectáculo na sala de concertos em Estocolmo. A audiência rejubilava, entusiástica,
gritando "Andrew! An drew!" O salão ecoava com o som do seu nome.
Ouvia a audiência a aplaudir enquanto ele se dirigia ao palco para receber o prémio das mãos do rei Carl XVI Gustav da Suécia. No momento em que estendia a mão para
receber o Prémio Nobel alguém começara a insultá-lo:
- Andrew, meu filho da mãe, anda cá.
O salão de Estocolmo desapareceu e Andrew estava de volta ao seu gabinete. Tanner chamava por ele.
Ele precisa de mim, pensou, feliz, Andrew. Ergueu-se devagarinho e dirigiu-se ao gabinete do irmão.
- Cá estou eu - disse Andrew.
- Estou a ver - rosnou Tanner. - Senta-te.
Andrew sentou-se.
- Tenho uma série de coisas para te ensinar, irmão mais velho.
Dividir para conquistar. - Havia um toque de arrogância na sua voz. - Tenho Diane Stevens a pensar que a Máfia lhe matou o marido. E Kelly Harris preocupada com
uma Olga que não existe, percebeste?
Andrew respondeu vagamente:
- Sim, Tanner.
Tanner deu umas palmadinhas nas costas do irmão.
- Tu és, realmente, o perfeito eco para mim. Há uma série de coisas que quero discutir, mas não posso falar delas com mais ninguém. Mas também não te posso dizer
nada, pois és demasiado estúpido para as perceberes - e olhou para os olhos vazios de Andrew.
- Quem não vê, não ouve, não fala. - De repente, Tanner passava a ser todo homem de negócios. - Tenho um problema que preciso resolver. Desapareceram duas mulheres.
Sabem que andamos atrás delas para as matar e estão a tentar manter-se escondidas. Onde achas que elas se vão esconder, Andrew?
Andrew olhou por momentos para o irmão e em seguida respondeu:
- Eu... eu não faço ideia.
- Há duas maneiras de as procurar. Primeiro, empregamos o método cartesiano, a lógica, construindo a nossa solução um passo de cada vez. Vamos raciocinar.
Andrew olhava para ele e disse com ar vazio:
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-Como quiseres...
Tanner começou a andar de um lado para o outro.
- Não vão voltar para o apartamento da Stevens, porque é muito perigoso. Nós temo-lo sob observação. Sabemos que Kelly Harris não tem amigos chegados aqui nos Estados
Unidos, porque vive há muitos anos em Paris e não ia confiar em ninguém aqui. - Olhou para o irmão. - Estás a seguir o meu raciocínio?
- Sim... Tanner - respondeu Andrew a pestanejar.
- Bom, vamos a saber. Diane Stevens, será ela capaz de se aproximar dos amigos em busca de ajuda? Não me parece. Podia pô-los em perigo. Outra possibilidade seria
irem à polícia com a história delas, mas sabem que ninguém ia ligar. Portanto, qual será o próximo passo? - Tanner fechou por momentos os olhos e em seguida continuou.
- Obviamente que pensaram nos aeroportos e nas estações de autocarros, mas com certeza que lhes ocorreu que os temos sob vigilância. Por isso, onde é que nós estamos?
- Eu... eu... é o que tu quiseres, Tanner.
- Isso deixa-nos com um hotel, Andrew. Elas precisam de um hotel para se esconderem. Mas que tipo de hotel? Temos aqui duas mulheres aterrorizadas em fuga, pois
sabem que correm perigo de vida. Percebes? Seja qual for a escolha, vão sempre pensar que podemos ter ligações e que estarão expostas. Não se vão sentir confiantes.
Lembras-te de Sonja Verbrugge, em Berlim? Nós conseguimos enganá-la com aquela história da mensagem no computador. Foi para o Artemisia Hotel porque, como era um
hotel unicamente para mulheres, achou que ia estar em segurança. Bom. Eu acho que as senhoras Stevens e Harris sentirão exactamente o mesmo. Portanto, onde ficamos?
Virou-se mais uma vez para olhar para o irmão. Os olhos de Andrew estavam fechados. Dormia. Furioso, Tanner dirigiu-se a ele e bateu-lhe com toda a força na cara.
Andrew acordou, sobressaltado.
- O que...
- Presta atenção quando estou a falar contigo, seu cretino.
- Desculpa... desculpa Tanner. Eu só estava...
Tanner virou-se para o computador.
- Ora bem. Vamos lá a ver quais são os hotéis para mulheres que existem em Manhattan.
Tanner fez uma rápida pesquisa na Internet e imprimiu os resultados. Leu alto os nomes:
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- O El Carmelo Residence na West Fourtheenth Street... o Centro Maria Residence na West Fifty-fourth Street, o Parkside Evangeline na Gramercy South e o Wilton Hotel
Para Mulheres. - Olhou para cima e sorriu. - É aqui que a lógica cartesiana nos conduz Andrew. Agora vamos a ver onde nos leva a tecnologia.
E Tanner dirigiu-se à paisagem pintada na parede, procurou por trás dela e premiu um botão oculto. Uma parte da parede deslizou revelando um ecrã com um mapa informatizado
de Manhattan.
- Andrew, lembras-te do que isto é? Tu costumavas operar este equipamento. A verdade é que eras bom nisto e eu sentia enormes ciúmes de ti. É um GPS. Com isto, podemos
localizar seja quem for pelo mundo. Lembras-te?
Andrew acenou, lutando para se manter acordado.
- Quando as senhoras saíram do meu gabinete dei a cada uma delas um cartão meu. Ambos têm gravado um chip do tamanho de um grão de areia. O sinal por eles emitido
é captado por um satélite e o GPS é activado e dá-nos a exacta localização. - Virou-se para o irmão. - Estás a perceber?
- Sim... sim... Tanner. -Andrew engoliu em seco.
Tanner virou-se outra vez para o ecrã e premiu um segundo botão. Pequenas luzes surgiram a brilhar no mapa e começaram a descer. Avançaram mais devagar numa pequena
zona e em seguida fluíram de novo para cima. Um traço iluminado a luz vermelha ondulou através de uma rua, deslocando-se tão devagar que os nomes das lojas eram
visíveis.
Tanner apontou.
- Esta aqui é a West Fourteenth Street. - A luz vermelha continuou a deslocar-se. -Aqui temos o restaurante Tequila... Uma farmácia... O Saint Vincent Hospital...
A Banana Republic... A igreja de Nossa Senhora de Guadalupe... E a luz parou.
Uma nota de vitória notou-se na voz de Tanner.
- E aqui está o Wilton Hotel Para Mulheres. Isto acaba de confirmar a minha lógica. Eu tinha razão, estás a ver?
Andrew passou a língua pelos lábios.
- Pois. Tu tinhas razão...
- Agora, já te podes ir embora - disse Tanner olhando Andrew, e, pegando no telefone, marcou um número.
- Senhor Flint, elas estão no Wilton Hotel Para Mulheres, Thirty-fourth Street. - E desligou.
Olhou para cima e viu o irmão de pé junto da porta.
- O que é? - perguntou Tanner, impaciente.
- Eu vou... sabes... à Suécia, para receber o prémio Nobel que eles acabaram de me dar?
- Não, Andrew. Isso foi há sete anos.
- Oh! -Andrew virou-se e partiu, arrastando os pés, para o seu escritório.
Tanner pensou na viagem urgente que tivera de fazer à Suécia três anos atrás...
Estava embrenhado num problema de logística complicado quando a voz da sua secretária chegou até ele vinda do intercomunicador:
- Tenho Zurique em linha para si, senhor Kingsley.
- Estou demasiado ocupado agora para... Ora, deixe lá que eu falo com eles.
Pegou no telefone e, impaciente, disse:
- Sim? - Enquanto ouvia, o seu rosto foi ficando sombrio. - Sim... Estou a ver... Tem a certeza?... Não, não interessa.
Eu próprio trato disto. - E premiu o botão do intercomunicador:
- Menina Ordonez, avise o piloto para preparar o Challenger.
Vamos ter que ir a Zurique. Seremos dois passageiros.
Madeleine Smith estava sentada num privado do La Rotonde, um dos melhores restaurantes de Zurique. Andava pelos trinta anos, um belo rosto oval, cabelo apanhado
e uma pele maravilhosa. Era visível a sua gravidez.
Tanner dirigiu-se à mesa e Madeleine Smith levantou-se.
Tanner Kingsley tomou-lhe a mão.
- Por favor, sente-se. - E instalou-se na frente dela.
- Tenho muito prazer em conhecê-lo. - Ela tinha um leve sotaque suíço. - Inicialmente, quando recebi o telefonema, pensei que se tratava de uma brincadeira.
- Porquê?
- Bom, o senhor é um homem muito importante e, quando me disseram que vinha a Zurique unicamente para falar comigo, não consegui perceber...
Tanner sorriu.
Eu explico-lhe porque é que estou aqui. Porque ouvi falar de si como uma cientista brilhante, Madeleine. Posso Chamar-lhe assim?
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- Por favor, senhor Kingsley.
- No KIG apreciamos o talento. Você é o tipo de pessoa que devia estar a trabalhar para nós, Madeleine. Há quanto tempo trabalha para o Tokyo First Industrial Group?
- Há sete anos.
- Bom. Sete é o seu número de sorte, porque eu estou aqui para lhe oferecer um emprego no KIG, pagando-lhe o dobro do que recebe agora, e tendo a seu cargo o seu
próprio departamento e...
- Oh, senhor Kingsley! - O sorriso dela era rasgado.
- Madeleine, está interessada?
- Mas é claro! Estou muito interessada. É claro que não posso começar imediatamente...
A expressão de Tanner alterou-se:
- O que quer dizer com isso?
- Bom, é que vou ter um bebé e casar...
Tanner sorriu.
- Mas isso não é problema. Nós tratamos de tudo.
Madeleine Smith acrescentou:
- Mas existe uma outra razão pela qual eu não posso sair imediatamente. Estou a trabalhar num projecto no nosso laboratório e estamos quase a chegar... estamos quase
a terminá-lo.
- Madeleine, eu não sei que projecto é, nem me interessa. Mas a verdade é que a oferta que lhe faço tem de ser aceite imediatamente. Para lhe ser franco, estava
à espera que viesse no meu avião com o seu noivo - sorriu -, ou, melhor dizendo, o seu futuro marido, de volta para a América comigo.
- Eu posso ir assim que o projecto terminar. Seis meses, talvez um ano.
Tanner ficou silencioso por momentos.
- Tem a certeza de que não há maneira de vir comigo agora?
- Tenho. Eu chefio este projecto. Não seria leal da minha parte sair neste momento. - E entusiasmou-se. - No próximo ano..?
Tanner sorriu:
- Com certeza.
- Lamento tanto que tenha feito esta viagem em vão.
Tanner respondeu calorosamente:
- Não foi nada em vão. Tive a oportunidade de a conhecer.
- É muito simpático da sua parte - ela corou.
- A propósito, trouxe-lhe um presente. Um meu associado vai-lho levar ao seu apartamento por volta da seis da tarde. Ele chama-se Harry Flint.
Na manhã seguinte, o corpo de Madeleine Smith foi encontrado no chão da cozinha de sua casa. O fogão fora ligado e o apartamento estava cheio de gás.
Os pensamentos de Tanner voltaram ao presente. Flint nunca falhara. Dentro de bem pouco tempo, Diane Stevens e Kelly Harris estariam tratadas e, com elas fora do
caminho, o projecto podia prosseguir.
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Lá em cima, na suite, Kelly ligou o rádio numa estação popular e o quarto encheu-se, de repente, com o som alto de música rap.
- Como é que consegue ouvir uma coisa dessas? - perguntou Diane, irritada.
- Não gosta de música rap?
- Isso não é música. Isso é barulho.
- Quer dizer que não gosta de Eminem? Nem de LLCool? R- Kelly? Ludacris?
- É isso que gosta ouvir?
- Não - respondeu Kelly abruptamente. - Gosto da Sinfonia
166.
CAPÍTULO 26
Harry Flint entrou e dirigiu-se ao balcão da recepção do Wilton Hotel.
- Olá.
- Olá. - O recepcionista viu o sorriso no rosto dele. - Posso ajudar?
- Sim. A minha mulher e uma amiga, uma afro-americana, instalaram-se há pouco aqui. Eu gostava de poder ir lá acima e fazer-lhes uma surpresa.
- Lamento muito, senhor - respondeu o empregado -, mas este hotel é unicamente para mulheres. Os homens não são autorizados lá em cima. Se quiser telefonar...
Flint olhou em redor. Infelizmente, o átrio estava cheio de gente.
- Não faz mal. Tenho a certeza de que elas vão já descer.
Flint saiu para a rua e fez uma chamada do seu telemóvel.
- Senhor Kingsley, elas estão lá em cima no quarto e eu não posso subir.
Tanner ficou por instantes calado, a pensar.
- Senhor Flint, a lógica diz-me que elas vão optar por se separar. Vou mandar Carballo para aí para te ajudar.
.Fantástica de Berlioz, dos estudos de Chopin e da Almira de Handel. Acima de tudo gosto de...
Kelly viu Diane dirigir-se ao rádio e desligá-lo.
O que vamos fazer quando gastarmos os hotéis todos, senhora Stevens? Conhece, por acaso, alguém que nos possa ajudar?
Diane abanou a cabeça.
A maior parte dos amigos de Richard trabalhavam no KIG e os nossos outros amigos... Não os posso envolver nisto. - Olhou para Kelly. - E você?
Kelly encolheu os ombros.
- Eu e Mark vivemos em Paris nos últimos três anos. Não conheço ninguém aqui a não ser as pessoas da agência de modelos, e tenho a sensação de que não servirão de
muito.
- Mark chegou a dizer o que ia fazer a Washington?
- Não.
- Nem Richard. Tenho a sensação de que está aí a razão por que foram assassinados.
- Excelente. Já temos a chave. Agora só nos falta a porta.
- Vamos acabar por encontrá-la. - Diane ficou pensativa por instantes e em seguida o seu rosto iluminou-se. - Espere! Eu conheço alguém que é capaz de nos ajudar
- e dirigiu-se ao telefone.
- Para quem está a ligar?
- Para a secretária de Richard. De certeza que ela sabe o que se está a passar.
Uma voz do outro lado do telefone respondeu:
- KIG.
- Queria falar com Betty Barker, por favor.
No seu gabinete, Tanner observava a luz azul do identificador de voz a piscar. Premiu um interruptor e ouviu a telefonista dizer:
- A menina Barker neste momento não está na sua secretária.
- Sabe dizer-me como consigo falar com ela?
- Lamento. Mas se me der o seu nome e o seu número de telefone, eu digo-lhe...
- Deixe estar. - Diane desligou.
A luz azul apagou-se.
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Eram horas de jantar, mas estavam com medo de largar a segurança que o quarto lhes proporcionava. Encomendaram alguma coisa pelo serviço de quartos.
A conversa era irregular. Diane tentava fazer conversa com Kelly, mas não resultava.
- Então, tem vivido em Paris.
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Diane virou-se para Kelly:
- Tenho a sensação de que Betty Barker pode ser a tal porta de que andamos à procura. Tenho de arranjar maneira de entrar em contacto com ela. - Franziu o sobrolho.
- Tudo isto é tão estranho - O quê?
- Uma vidente um dia previu tudo isto. Disse-me que via a morte à minha volta e que...
- Não me diga! - exclamou Kelly. - E não falou nisso ao FBI nem à CIA?
Diane ficou a olhar para ela por momentos.
- Não interessa. - Kelly cada vez a irritava mais. - Vamos jantar.
- Primeiro tenho de fazer uma chamada - disse Kelly, e levantou o telefone e marcou o número da telefonista. - Quero fazer uma chamada para Paris. - Deu o número
à operadora e aguardou. Ao fim de uns minutos, o rosto de Kelly iluminou-se.
- Olá, Philippe. Como está? Aqui está tudo bem... - E virou-se para olhar para Diane. - Sim. Devo voltar para casa daqui a um ou dois dias. Como está a Angel? Oh,
ainda bem. E ela tem saudades minhas? Podia pô-la ao telefone? - A voz de Kelly mudou para o tom que os adultos normalmente usam quando falam com uma criança. -
Angel, como estás minha querida? E a tua mamã. Philippe diz que tens muitas saudades minhas. Eu também tenho saudades tuas. Em breve estarei de volta e vou-te pegar
ao colo e dar-te muitos mimos, meu doce.
Diane virara-se e olhava-a, espantada.
- Adeus, minha querida. Tudo bem, Philippe. Muito obrigada.
Vemo-nos em breve. Até ao meu regresso.
Kelly notou a expressão de espanto no rosto de Diane.
- Estava a falar com o meu cão.
- Pois. E o que foi que ele disse?
- Ela. É uma cadela.
- Tinha de ser.
- Sim.
- Mark era francês?
- Não.
- Já estavam casados há muito tempo
- Não.
- Como foi que vocês se conheceram?
Não tens nada a ver com isso.
-Não me lembro. Conheci tantos homens. Diane estudou Kelly.
- Porque é que não põe de lado essa parede que construiu à sua volta?
- Nunca ninguém lhe explicou que as paredes servem para manter as pessoas do lado de fora? - respondeu Kelly rispidamente.
- As vezes servem para fechar as pessoas lá dentro e...
- Olhe, senhora Stevens. Meta-se na sua vida. Eu estava muito bem até você ter aparecido na minha frente. Vamos parar por aqui.
- Muito bem. - Ora aqui está a pessoa mais fria que alguma vez conheci.
Quando terminaram o silencioso jantar, Kelly anunciou:
- Vou tomar um duche.
Diane não respondeu.
Na casa de banho, Kelly despiu-se, entrou no duche e abriu a torneira. O calor da água contra a sua pele sabia-lhe maravilhosamente. Fechou os olhos e a sua mente
começou a vaguear...
Ouvia as palavras de Sam Meadows. Sabe que ele está perfeitamente apaixonado por si. Quer casar consigo. Espero que ele não se magoe. Kelly sabia que Sam Meadows
tinha razão. Kelly gostava de estar com Mark. Ele era divertido, atencioso, cuidadoso e um bom amigo. Esse era o lado bom. Ele é um bom amigo. Isto não é justo para
ele. Tenho que deixar de o ver.
Mark ligara na manhã a seguir ao banquete.
- Olá, Kelly. O que queres fazer hoje à noite?
A voz dele estava cheia de antecipação.
- Queres ir jantar e depois ao teatro? Ou então, há uma série de lojas que estão abertas à noite e há também...
- Desculpa, Mark, mas hoje à noite estou ocupada.
Do outro lado fez-se um curto silêncio.
- Oh! Pensei que eu e tu tínhamos...
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-Pois não temos. - E Kelly ali ficou a odiar-se por aquilo que lhe estava a fazer. A culpa é toda minha, por ter deixado chegar as coisas até este ponto.
- Então está bem, telefono-te amanhã.
E ligou no dia seguinte.
- Kelly, se te ofendi de alguma forma...
E Kelly teve de reunir todas as suas forças para ser capaz de lhe dizer:
- Desculpa, Mark. É que eu... eu apaixonei-me por outra pessoa - e ficou à espera. O longo silêncio que se seguiu era insuportável.
- Oh! -A voz dele tremia. - Compreendo. Eu... eu devia ter...
Parabéns... Espero sinceramente que sejas feliz, Kelly. Por favor, diz adeus por mim à Angel.
E Mark desligara. Kelly ficou parada, a segurar no telefone sem vida, sentindo-se extremamente infeliz. Não tarda nada ele esquece-me, pensou, e encontrará alguém
que lhe poderá dar a felicidade que merece.
Kelly trabalhava todos os dias, sorrindo sobre as passarelas e ouvindo o aplauso das multidões, mas por dentro estava vazia. A vida não era a mesma sem o seu amigo.
Sentia constantemente vontade de lhe telefonar, mas ia resistindo. Não posso. Não o posso magoar mais. Passaram-se várias semanas e Kelly nunca mais soube nada dele.
Finalmente saiu da minha vida. O mais natural é que já tenha encontrado alguém. Fico feliz por ele. E tentava ser verdadeira.
Numa tarde de sábado, Kelly estava numa mostra de moda numa elegante sala apinhada com a elite de Paris. Caminhou sobre a passarela e, como de costume, assim que
apareceu, foi aclamada por todos. Kelly seguia atrás de um modelo que vestia um vestido de passeio e levava um par de luvas. Uma das luvas escorregou-lhe das mãos
e caiu sobre a passarela. Quando Kelly a viu já era demasiado tarde. Tropeçou nela e caiu ao chão, de cara para a frente. Ouviu-se um arquejo vindo da multidão.
E Kelly no chão, humilhada. Recompôs-se, tentou não chorar, respirou fundo, levantou-se e fugiu da passarela.
Quando chegou ao camarim, a chefe do guarda-roupa dizia:
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Tenho o vestido de noite pronto para si. É melhor...
Kelly soluçava.
- Não... Eu não vou ser capaz de voltar ali à frente de todas aquelas pessoas. Todos se vão rir de mim. - Começava a ficar histérica. - Estou acabada. Nunca mais
vou voltar às passarelas. Nunca mais!
- Mas é claro que vais.
Kelly deu um salto. Ali estava Mark, no umbral da porta!
- Mark! O que estás... aqui a fazer?
- Bom, tenho andado muito por aqui, nestes últimos tempos.
- Tu... tu viste o que se passou agora lá fora?
- Foi maravilhoso - respondeu ele a sorrir. - Ainda bem que aconteceu.
- O quê? - Kelly olhava espantada para ele.
Mark aproximou-se e tirou um lenço para lhe secar as lágrimas.
- Kelly, antes de entrares naquela passarela, as pessoas pensavam que não passavas de um sonho belo mas intocável, uma fantasia fora do alcance de qualquer um. Quando
tropeçaste e caíste, isso mostrou-lhes que és humana, e eles adoraram-te por isso. Agora, vais voltar para lá e fazer todos felizes.
Olhou para os olhos cheios de compaixão de Mark e foi nesse momento que percebeu que estava apaixonada por ele.
A chefe do guarda-roupa repunha o vestido de noite no cabide.
- Dê-me cá isso - pediu Kelly. Olhou para Mark e sorriu através das lágrimas.
Cinco minutos mais tarde, Kelly caminhava confiante sobre a passarela, e ouviu-se uma onda de palmas, e todos aplaudiam de pé. Kelly olhava para eles, completamente
dominada pela emoção. Era a coisa mais maravilhosa do mundo, ter Mark de volta à sua vida. Lembrava-se dos medos que tivera no início...
Kelly estivera tensa, à espera que Mark se atirasse a ela, mas ele fora sempre um verdadeiro cavalheiro. A sua timidez fazia com que ela se sentisse confiante. Era
ela quem iniciava a maior parte das conversas e, fosse qual fosse o tema, Mark mostrava-se sempre culto e uma pessoa divertida.
Uma noite, Kelly disse:
- Mark, amanhã é a abertura de uma grande orquestra sinfónica.
Gostas de música clássica?
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- Cresci com ela - respondeu ele.
- Excelente. Então vamos.
O concerto foi brilhante e a assistência entusiástica. Quando chegaram ao apartamento de Kelly, Mark disse:
- Eu... eu menti-te.
Eu devia imaginar, pensou Kelly. Ele é como os outros todos. Acabou e preparou-se para a resposta que ele lhe ia dar.
- Mentiste?
- Sim. Sabes, é que na realidade não gosto de música clássica.
Kelly mordeu o lábio para evitar desatar a rir às gargalhadas.
No dia seguinte, Kelly disse:
- Quero agradecer-te pela Angel. Ela é uma excelente companhia. - Assim como tu, pensou Kelly.
Mark tinha os maiores e mais brilhantes olhos azuis que alguma vez vira, e um atraente e cativante sorriso. Ela apreciava imenso a companhia dele e...
A água estava começar a ficar fria. Kelly desligou o chuveiro, secou-se com uma toalha, vestiu o robe dado pelo hotel e passou para o quarto.
- É toda sua.
- Obrigada.
Diane levantou-se e entrou na casa de banho. Parecia que tinha sido varrida por um vendaval. O chão estava encharcado e havia toalhas espalhadas por todo o lado.
Zangada, Diane voltou ao quarto.
-A casa de banho está um nojo. Está habituada a que os outros venham atrás de si para limpar o que sujou?
- Sim, senhora Stevens - respondeu Kelly a sorrir. - Na realidade, eu cresci rodeada de criadas para tomarem conta de mim.
- Pois olhe que eu não sou uma delas.
Tu não tinhas capacidade.
-Acho que seria melhor se nós... - respondeu Diane respirando fundo.
- Aqui não há nenhum "nós", senhora Stevens. Há você e eu. Ficaram a olhar uma para a outra, um longo momento. Em seguida, Diane, sem dizer mais nada, virou-se e
voltou para a casa de
172
banho. Quinze minutos mais tarde, quando saiu, já Kelly estava deitada. Diane estendeu a mão para o interruptor para apagar a luz do tecto.
Não toque nisso! - Era um grito.
O quê? - perguntou Diane, espantada.
- Deixe as luzes acesas.
- Tem medo do escuro? - perguntou, desdenhosa, Diane.
- Sim. Eu... Eu tenho medo do escuro.
- Porquê? Os seus pais contavam-lhe histórias do papão antes de ir para a cama? - troçou Diane.
Fez-se um longo silêncio e em seguida veio a resposta:
- Sim. É isso mesmo.
Diane deitou-se na cama, deixou-se ficar quieta um minuto e em seguida fechou os olhos.
Richard, meu querido. Nunca acreditei que se pudesse morrer de dor.
Mas agora sei que é possível. Preciso tanto de ti. Preciso de ti para me guiares.
Preciso do teu calor e do teu carinho. Eu sei que tu estás aqui, algures, eu sei.
Eu sinto-te. Tu és a dádiva que Deus me deu, mas, infelizmente, não foi por muito tempo. Boa noite, meu querido anjo da guarda. Por favor, nunca me abandones. Por
favor..
Na sua cama, Kelly ouvia Diane a soluçar baixinho. Apertou és lábios com força. Cala- te. Cala-te. E as lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces.
173
CAPÍTULO 27
Na manhã seguinte, quando Diane acordou, Kelly estava sentada numa cadeira virada para a parede.
- Bom dia - disse Diane. - Conseguiu dormir alguma coisa?
Não obteve qualquer resposta.
- Temos de pensar no que vamos fazer a seguir. Não podemos ficar aqui para sempre.
Nada de resposta. Exasperada, disse alto:
- Kelly, está-me a ouvir?
Esta girou na cadeira:
- Importa-se? Estou a meio de um mantra.
- Oh! Desculpe. Não fazia...
- Esqueça - e Kelly pôs-se de pé. -Já alguma vez lhe disseram que ressona?
Diane sentiu um pequeno choque. Recordou a voz de Richard a dizer-lhe, na primeira noite que dormiram juntos: Querida, sabias que ressonas? Bom, melhor dizendo.
Não é bem ressonar. O teu nariz entoa deliciosas melodias através da noite, quais músicas celestiais. E tomara-a nos braços e...
- Pois ressona - continuou Kelly. Dirigiu-se à televisão e ligou-a.
- Vamos ver o que se passa no mundo. - Começou a fazer zapping através dos vários canais e de repente parou. Um noticiário estava no ar e o apresentador era Ben
Roberts.
- É Ben! - exclamou Kelly.
- E quem é Ben? - perguntou Diane com ar indiferente.
- Ben Roberts. É ele que faz os noticiários e as entrevistas. E o único entrevistador de quem realmente gosto. Ele e Mark eram grandes amigos. Um dia... - De repente
parou.
Ben Roberts dizia:
-... notícia de última hora, Anthony Altieri, o alegado chefe da Máfia recentemente absolvido no julgamentopor assassínio, morreu esta manhã de cancro. E foi.
174
Kelly virou-se para Diane:
- Ouviu aquilo? Altieri morreu.
Diane não sentia nada. Eram notícias de um outro mundo, de uma outra época. Olhou para Kelly e respondeu:
- Acho que será melhor que nos separemos. As duas juntas somos demasiado fáceis de detectar.
- Pois - disse Kelly secamente. - Somos da mesma altura.
- O que eu queria dizer é que...
- Eu sei o que queria dizer. Mas eu podia pintar a minha cara de branco e...
Diane olhava para ela sem perceber.
- O quê?
- Estava a brincar. Separarmo-nos é boa ideia. É quase como se fosse um plano, não é?
- Kelly...
- Foi, sem dúvida, interessante conhecê-la, senhora Stevens.
- Vamos mas é sair daqui para fora - respondeu Diane.
O átrio estava apinhado de gente, com um enorme grupo de mulheres a chegarem e outras que partiam. Kelly e Diane aguardaram na fila.
Lá fora a olhar para o átrio, Harry Flint viu as e escondeu-se. Pegou no telemóvel.
- Chegaram neste momento ao átrio.
- Óptimo. Carballo já aí está?
- Já.
- Façam exactamente como eu vos disse. Cubram a entrada do hotel em ambas as esquinas para que elas fiquem encurraladas de todos os lados. Quero que desapareçam
sem deixar rasto.
Kelly e Diane tinham finalmente chegado ao balcão da recepção.
O recepcionista sorriu-lhes:
- Espero que tenham tido uma boa estadia.
- Foi muito agradável, sim-respondeu Diane. Continuamos.
Quando se dirigiam para a saída, Kelly perguntou:
- Sabe para onde vai, senhora Stevens? 175
- Não. Só quero ver-me livre de Manhattan. E você?
- Eu só me quero ver livre de si.
- Eu vou voltar para Paris.
As duas puseram o pé na rua e, com atenção, olharam em volta. Havia o trânsito normal de peões e tudo parecia normal.
- Adeus, senhora Stevens - disse Kelly com uma ponta de alívio na voz.
- Adeus, Kelly.
Kelly virou à esquerda e começou a caminhar em direcção à esquina. Diane ficou parada por instantes a olhar para ela e em seguida virou para a direita e começou
a andar em sentido contrário. Ainda mal tinham dado doze passos quando Harry Flint e Vince Carballo apareceram em pontas opostas do quarteirão. A expressão no rosto
de Carballo era perigosa. Os lábios de Flint estavam virados num meio sorriso.
Os dois homens começaram a aproximar-se das mulheres, esgueirando-se por entre os peões. Diane e Kelly viraram-se uma para a outra em pânico. Tinham caído numa armadilha.
Caminharam apressadamente de volta à porta do hotel, mas esta encontrava-se de tal forma apinhada de gente que não tinham possibilidade de entrar. Não tinham para
onde ir. Os dois homens aproximavam-se.
Kelly virou-se para Diane e ficou a olhar espantada, pois esta acenara alegremente primeiro a Flint e depois a Carballo.
- Ficou maluca? - perguntou baixinho.
Diane, sempre a sorrir, tirou o telemóvel para fora a e começou a falar rapidamente.
- Neste momento, estamos mesmo em frente do hotel... Oh! Excelente. Já estão na esquina? - E sorriu e acenou vitoriosamente para Kelly e disse em voz alta. - Eles
vão chegar dentro de um minuto.
Olhou para Flint e para Carballo e falou para o telefone:
- Não, são só dois. - E ficou a ouvir. Em seguida riu:
- Certo... Já aí estão? Óptimo.
Enquanto Kelly e os dois homens olhavam para ela, Diane desceu do passeio para a rua, a observar os carros que passavam. Começou a fazer sinais a um carro que se
aproximava à distância e ia acenando cada vez mais agitada. Flint e Carballo tinham parado, intrigados com o que viam.
Diane apontou para os dois homens:
176
- Ali! - gritou para o trânsito que passawa, continuando a acenar furiosamente.
- Ali!
Flint e Carballo olharam um para o outro e tomaram uma decisão. Viraram-se na direcção de onde tinham vindo e desapareceram no meio da multidão.
Kelly olhava fixamente para Diane, o coração aos saltos dentro do peito.
- Eles foram-se embora - disse. - Com quem... com quem falava?
Diane respirou fundo para se recompor.
- Com ninguém. Estou sem bateria.
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CAPÍTULO 28
Kelly olhava fixamente para Diane, sem palavras.
- Mas você foi espantosa. Quem me dera ter pensado nisso.
- Vai pensar - respondeu secamente Diane.
- E agora, o que é que vai fazer?
- Vou sair de Manhattan.
- Mas como? - perguntou Kelly. - Eles vão vigiar todas as estações de comboios, os aeroportos, as camionetas e as empresas de aluguer de automóveis...
- Podemos ir até Brooklyn - alvitrou Diane depois de pensar um pouco. - Aí, não nos vão procurar.
- Óptimo. Então, vá andando - respondeu Kelly.
- Como?
- Eu não vou consigo.
Por segundos, pareceu que Diane ia dizer qualquer coisa, mas em seguida mudou de ideias.
- Tem a certeza?
- Tenho sim, senhora Stevens.
- Muito bem - respondeu Diane. - Então adeus.
- Adeus.
Kelly ficou a ver enquanto Diane fazia sinal a um táxi e entrava nele. Kelly ali estava, hesitante, a tentar decidir-se. Estava sozinha, numa rua desconhecida, sem
nenhum lugar para onde ir, nem ninguém à sua espera.
- Espere! - gritou.
O táxi parou e Kelly correu para ele.
Diane abriu a porta e Kelly entrou e sentou-se.
- O que a fez mudar de ideias?
- De repente lembrei-me que nunca fui a Brooklyn.
Diane olhou para Kelly e abanou a cabeça.
O motorista perguntou:
- Para onde?
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- Leve-nos até Brooklyn, por favor - pediu Diane.
O táxi começou a andar.
- Algum lugar em especial?
- Vá andando.
Kelly olhava para Diane, incrédula.
- Não sabe para onde vamos?
- Não se preocupe. Quando lá chegarmos, eu saberei.
Mas porque é que eu voltei?, interrogava-se Kelly.
Durante a viagem, as duas sentaram-se silenciosamente lado a lado. Ao fim de vinte minutos estavam a atravessar a ponte de Brooklyn.
- Andamos à procura de um hotel - disse Diane ao motorista.
- Não sei qual...
- Minha senhora, quer um hotel simpático? Eu conheço um. Chama-se Adams. Tenho a certeza de que vão gostar.
O Adams Hotel era um edifício de cinco andares com um avançado na frente e um porteiro à entrada.
Quando o táxi chegou à curva, o motorista perguntou:
- Que tal lhes parece?
- Parece-nos bem - respondeu Diane.
Kelly não fez comentários.
Saíram do táxi e o porteiro saudou-as.
- Bom dia, minhas senhoras. Vão-se hospedar?
- Sim - respondeu Diane.
- E têm bagagem?
- A companhia de aviação perdeu as nossas bagagens - respondeu Diane sem hesitar. - Conhece algum lugar aqui perto onde possamos comprar umas roupas?
- Ali ao fundo do quarteirão há uma loja de roupa de senhora bastante boa. Talvez prefiram registar-se primeiro e nós depois mandamos as vossas coisas para cima.
- Óptimo. Acha que têm quarto?
- Nesta época do ano, não há problema.
O recepcionista deu-lhes as fichas para preencherem. Enquanto Kelly assinava a sua, disse alto "Emily Brontê".
Diane olhou rapidamente para o recepcionista para ver se ele reagia.
Nada. E Diane escreveu "Mary Cassat".
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O empregado recebeu as duas fichas e perguntou:
- Com vão pagar? Com cartão de crédito?
- Sim. Nós...
- Não - interrompeu Diane rapidamente. - Kelly ficou a olhar para ela e com relutância concordou.
- Têm bagagem?
- Vai chegar. Nós já voltamos.
- Suite número 515.
O empregado ficou a olhar para elas, enquanto saíam a porta. Duas belezas. E sozinhas. Que desperdício.
A loja For Madame era um manancial. Havia roupas de senhora de todos os tipos e uma secção de couros com carteiras e malas.
- Parece que acertámos em cheio - comentou Kelly depois de olhar em volta.
Uma vendedora aproximou-se delas.
- Posso ajudar?
- Estamos só a ver - respondeu Diane.
A vendedora olhava enquanto cada uma delas tirava um carrinho de compras e partia pela loja.
- Olha! - exclamou Kelly. - Meias! - E agarrou numa meia dúzia de pares. Diane seguiu-lhe o exemplo.
- Collants...
- Sutiãs.
- Cuecas.
Depressa os seus carrinhos começaram a transbordar de lingerie. A vendedora trouxe solicitamente outros dois carrinhos.
- Eu ajudo.
- Muito obrigada.
Diane e Kelly começaram a encher os novos carros.
Kelly examinava um expositor com calças. Escolheu quatro pares e virou-se para Diane:
- Nunca se sabe quando teremos oportunidade de voltar a fazer compras.
Diane escolheu algumas calças e um vestido de verão de riscas.
- Não vai poder usar isso - disse Kelly. - As riscas vão fazer com que pareça gorda.
Diane ia a repor o vestido no expositor, depois olhou para Kelly e deu o vestido à vendedora:
- Vou levar este.
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A empregada olhava espantada enquanto Diane e Kelly vasculhavam tudo, expositor por expositor. Quando deram a sua busca por terminada, o que tinham escolhido encheu
quatro malas.
Kelly olhou para elas e sorriu.
- Acho que nos vai chegar por uns tempos.
Quando chegaram junto da caixa para pagar, a vendedora perguntou:
- Vão pagar em dinheiro ou com cartão de crédito?
- Cartão...
- Dinheiro - interrompeu Diane.
Kelly e Diane abriram as bolsas e dividiram a conta. Ambas tiveram o mesmo pensamento. Estamos a ficar sem dinheiro.
- Nós estamos instaladas no Hotel Adams. Será que podiam...? - perguntou Kelly à caixa:
- Entregar as vossas coisas? Mas com certeza. Os vossos nomes, por favor?
Kelly hesitou uns segundos:
- Charlotte Brontè Diane olhou para ela e corrigiu rapidamente:
- Emily. Emily Brontê.
- É isso - lembrou-se Kelly.
A caixa olhava para elas com um ar espantado. Em seguida virou-se para Diane:
- E o seu?
- Eu... bem, eu... - Diane pensava a toda a velocidade. Qual fora o nome que dera? Georgia O'keeffe... Frida Kahlo... Joan Mitchell?
- O nome dela é Mary Cassatt - interveio Kelly.
- Com certeza - respondeu a empregada engolindo em seco.
Ao lado da Flor Madame havia uma drugstore.
- Hoje é o nosso dia de sorte - comentou Diane sorrindo.
Entraram apressadamente e deram início a uma segunda voragem de compras.
- Rímel. .
- Blush.
- Escovas de dentes.
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Pasta de dentes.
- Tampões e pensos diários.
- Batons.
- Ganchos para o cabelo.
Pó.
Quando Diane e Kelly regressaram ao hotel, as quatro malas já tinham sido entregues no quarto. Kelly ficou a olhar para elas.
- Gostava de saber quais são as suas e quais são as minhas.
- Isso não interessa - comentou Diane. - Vamos ficar aqui pelo menos uma semana, ou talvez mais, por isso o melhor é pendurarmos as coisas.
- Também acho que sim.
E começaram a pendurar os vestidos e as calças, a arrumar a lingerie nas gavetas e os artigos de toilette na casa de banho.
Assim que as malas ficaram vazias e tudo estava nos seus lugares, Diane descalçou os sapatos, despiu o vestido e, satisfeita, deixou-se cair sobre uma das camas.
- Isto soube-me muito bem - e suspirou de satisfação. - Não sei quais são as suas intenções, mas, quanto a mim, vou jantar na cama. Em seguida vou tomar um longo
banho. Daqui já não saio.
Uma simpática criada fardada bateu à porta e entrou na suite, com um braçado de toalhas limpas. Dois minutos depois, saiu da casa de banho.
- Se precisarem de alguma coisa, por favor toquem para me chamar. Tenham uma boa noite.
Diane lia um folheto do hotel que estava na mesa de cabeceira.
- Sabe em que ano foi construído este hotel?
- Vista-se - disse Kelly. - Vamo-nos embora.
- Foi construído em...
- Vista-se. Nós vamo-nos pirar daqui para fora.
- Está a brincar comigo? - perguntou Diane a olhar para ela.
- Não. Vai acontecer uma coisa horrível. -A voz dela transbordava de pânico.
Diane sentou-se, alarmada.
- Mas o que é que vai acontecer?
- Não faço ideia, mas ou nos vamos embora daqui depressa ou morremos ambas.
O medo dela era contagioso, mas não fazia qualquer sentido.
182
Kelly, não está a ser razoável. Se...
Diane, peço-lhe.
Quando Diane mais tarde relembrou a situação, não percebeu se tinha cedido devido à tensão que havia na voz de Kelly se fora por ela lhe ter chamado pela primeira
vez Diane.
- Tudo bem - respondeu Diane levantando-se. - Arrumamos as nossas roupas e...
- Não! Deixe tudo para trás.
Diane olhava para Kelly sem querer acreditar.
- Deixar tudo? Mas acabámos de comprar.
- Depressa! Já!
- Está bem.
Só espero que ela saiba o que está a fazer, pensava Diane enquanto, relutante, se voltava a vestir.
- Mais depressa! - Era como um grito estrangulado.
Diane vestiu-se rapidamente.
- Embora! - Pegaram nas carteiras e correram pelo corredor.
Eu devo estar doida para estar a fazer isto, pensava Diane, aborrecida. Quando chegaram ao átrio do hotel, Diane deu por si a correr para conseguir acompanhar Kelly.
- Importa-se de me dizer onde raio é que nós vamos?
Na rua, Kelly olhou para ambos os lados.
- Há um parque ali do outro lado, em frente do hotel. Eu... eu preciso de me sentar.
- Mas, o que é que estamos nós a fazer? - perguntou Diane.
Nesse instante, ouviu-se uma enorme explosão vinda de dentro do hotel e, de onde estavam sentadas, Diane e Kelly viram as janelas do quarto onde tinham estado instaladas
a saltar e detritos a voarem pelos ares.
Muda de espanto, Diane olhava o que estava a acontecer.
- Aquilo... aquilo foi uma bomba - o terror instalara-se-lhe na voz. - No nosso quarto. Como é... como é que sabia? - perguntou, virando-se para Kelly - A criada.
- O que é que ela tinha? - perguntou, intrigada, Diane.
- As criadas de hotel não usam sapatos de trezentos dólares do Manolo Blahnik - respondeu Kelly num murmúrio.
Diane sentia dificuldade em respirar.
- Como é que eles nos descobriram?
183
- Não faço ideia - respondeu Kelly. - Mas não se esqueça com que tipo de pessoas estamos a lidar.
E ali ficaram sentadas, as duas, aterrorizadas.
- Tanner Kingsley deu-lhe alguma coisa quando esteve no gabinete dele? - perguntou Diane.
- Não. E a si? - respondeu Kelly abanando a cabeça.
- Também não.
Lembraram-se ambas ao mesmo tempo. - O cartão!
Abriram as bolsas e tiraram para fora os cartões que Tanner Kingsley lhes dera.
Diane tentou rasgar o seu ao meio, mas ele nem sequer dobrava.
- Tem uma espécie de chip lá dentro - disse, furiosa.
Kelly também tentou dobrar o seu.
- O meu também tem. É assim que os filhos da mãe nos têm conseguido localizar.
Diane pegou no cartão de Kelly e disse, zangada:
- Pois agora acabou-se.
Kelly ficou a olhar enquanto Diane caminhava até à rua e lançava os cartões para o meio da faixa de rodagem. Em poucos minutos já tinham passado por cima deles uma
boa dúzia de carros e camiões. A distância, o som das sirenes que se aproximavam enchia o ar.
Kelly levantou-se:
- O melhor é desaparecermos daqui, Diane. Agora já não vão poder mais localizar-nos. Vamos estar em segurança. Eu vou regressar a Paris, e você, o que vai fazer?
- Tentar descobrir porque é que tudo isto está a acontecer.
- Tenha cuidado.
- Você também.
Diane hesitou uns segundos:
- Kelly, muito obrigada. Salvou-me a vida.
- Há uma coisa com que não me sinto bem. Eu menti-lhe - disse Kelly atrapalhada.
- Mentiu?
- Lembrasse do que eu lhe disse sobre o seu quadro?
- Lembro.
- Eu gostei dele, gostei mesmo muito. Pinta muito bem.
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- Obrigada - e Diane sorriu. - Receio que também é a tenha sido muito brusca consigo.
- Diane?
- Sim?
- Eu não cresci rodeada de criados.
Diane riu e as duas abraçaram-se.
- Fico satisfeita por nos termos conhecido - disse Diane calorosamente.
- Eu também.
Ali ficaram a olhar uma para a outra, com dificuldade em dizer adeus.
- Tenho uma ideia - disse Diane. - Se precisar de mim, aqui tem o meu número de telemóvel. - Escreveu-o num pedaço de papel.
- E este é o meu - respondeu Kelly e deu-o a Diane.
- Então... Uma vez mais adeus.
- Pois. Eu... Bom, adeus Kelly - respondeu Diane, hesitante.
Diane ficou a ver Kelly afastar-se. A esquina, ela virou-se e acenou com a mão. Diane retribuiu o aceno. Assim que Kelly desapareceu, Diane olhou para o buraco enegrecido
que deveria ter sido o seu túmulo e sentiu um arrepio.
CAPÍTULO 29
Kathy Ordonez entrou no gabinete de Tanner Kingsley com os jornais da manhã na mão e disse:
-Aconteceu mais uma vez - e deu-lhe os jornais. Todos traziam enormes cabeçalhos.
"Nevoeiro perturba as mais importantes cidades alemãs" "Todos os aeroportos alemães fechados devido ao nevoeiro" "Número de mortos aumenta devido ao nevoeiro na
Alemanha"
- Quer que mande tudo isto à senadora van Luven? - pergun tou Kathy.
- Sim. E rapidamente - respondeu Tanner a sorrir.
Kathy saiu apressadamente do gabinete.
Tanner olhou para o relógio de pulso e sorriu. A estas horas a bomba já deve ter explodido. Finalmente estou livre daquelas duas cabras. A voz da sua secretária
soou no intercomunicador:
- Senhor Kingsley, a senadora van Luven está ao telefone, para falar consigo. Quer atender?
- Sim. - Tanner atendeu o telefone. - Daqui Tanner Kingsley.
- Como está, senhor Kingsley? Fala a senadora van Luven.
- Muito boa tarde, senadora.
- Eu e as minhas assistentes estamos perto das vossas instalações e gostaria de saber se seria conveniente para si aparecermos para uma pequena visita?
- Com certeza - respondeu Tanner com entusiasmo. - Terei muito gosto em lhe mostrar a nossa empresa.
- Muito bem. Estaremos aí dentro em breve.
Tanner premiu o botão do intercomunicador:
- Estou à espera de umas visitas, daqui a minutos. Por favor, não me passe mais chamadas.
Pensou no obituário que lera há poucas semanas nos jornais. O marido da senadora van Luven morrera de um ataque cardíaco. Vou
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apresentar os meus sentimentos.
Quinze minutos mais tarde, a senadora van Luven e as suas duas atraentes assistentes chegaram. Tanner ergueu-se para as cumprimentar.
- Sinto-me encantado por ter decidido aparecer.
-Já conhece Corinne Murphy e Karolee Trost-respondeu a senadora. Tanner sorriu:
- Sim. Tenho muito gosto em voltar a vê-las - e virou-se para a senadora. - Soube da morte do seu marido. Lamento muito.
Ela agradeceu.
- Muito obrigada. Há já uns tempos que ele estava doente e por fim, há umas semanas... - respondeu, forçando um sorriso. -A propósito, as informações que me tem
enviado sobre o aquecimento global têm sido muito interessantes.
- Muito obrigado.
- Quer ter a amabilidade de nos mostrar então o que fazem aqui?
- Mas é claro. E que tipo de visita têm em mente? Temos visitas de cinco dias, de quatro e de hora e meia.
- A de cinco dias não seria má... - comentou Corinne Murphy a sorrir. , A senadora van Luven interrompeu-a:
- Contentamo-nos com a de meia hora.
- Com todo o gosto.
- Quantas pessoas trabalham no KIG? - perguntou a senadora.
- Perto de duas mil. O KIG tem escritórios em cerca de uma dúzia das mais importantes cidades do mundo.
Corinne Murphy e Karolee Trost estavam impressionadas.
- Nestas instalações, temos quinhentos empregados. Os membros da equipa e todos os que se encontram ligados à pesquisa encontram-se em instalações a parte. Cada
cientista que aqui empregamos tem um QI mínimo de cento e sessenta.
- São génios! - arquejou Corinne Murphy.
A senadora olhou para ela com um olhar de desaprovação.
- Queiram seguir-me, por favor - pediu Tanner.
A senadora, Murphy e Trost seguiram Tanner através de uma porta lateral que conduzia aos edifícios contíguos e chegaram a uma sala cheia de equipamento de aspecto
esotérica.
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A senadora dirigiu-se a uma daquelas estranhas máquinas e guntou:
- Para que serve isto?
- Esta máquina é um espectógrafo de som, senadora. Converte o som da voz em escrita impressa. Tem capacidade para reconhec milhares de vozes.
- E como é que funciona?-perguntou Trost, franzindo o sobrolho - Pense assim, quando um amigo lhe telefona, você reconhece-lhe imediatamente a voz porque o padrão
de som da voz dele está registado no circuito do seu cérebro. Nós programámos esta máquina da mesma forma. Um filtro electrónico permite apenas a entrada no registro
de uma certa gama de frequências, por isso recebemos simplesmente os traços distintivos da voz dessa pessoa.
O resto da visita transformou-se numa sequência fascinante de gigantescas máquinas, diminutos microscópios electrónicos e salas de laboratório cheias de quadros
negros repletos de misteriosos símbolos, laboratórios onde uma dúzia de cientistas trabalhavam em grupo e gabinetes onde um único cientista se encontrava embrenhado
a tentar resolver um arcano problema qualquer.
Passaram por um edifício em tijolo vermelho com um conjunto duplo de fechaduras na porta.
- E aqui, o que se passa? - perguntou a senadora van Luven.
- Uma pesquisa governamental secreta. Desculpem-me, mas não é permitido o acesso.
A visita demorou duas horas. Quando terminou, Tanner acompanhou-as de volta ao seu gabinete.
- Espero que tenham gostado - disse.
- Sim. Foi interessante - respondeu a senadora.
- Muito interessante. - Corinne Murphy sorria. Os seus olhos só viam Tanner.
- Eu adorei! - exclamou Karolee Trust.
Tanner virou-se para a senadora:
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- A propósito, já teve oportunidade de conversar com os seus colegas acerca do problema ambiental de que falámos?
- Sim - respondeu a senadora, num tom de voz em que não se comprometia.
- Pode dizer-me se pensa que existem hipóteses, senadora?
- Senhor Tanner, aqui não se trata de um jogo de pensar. Será formado assim que for tomada uma decisão.
Muito obrigado - retorquiu Tanner, tentando sorrir. - Muito obrigado por terem vindo até cá.
E ficou a vê-las sair. .Assim que a porta se fechou nas costas delas, a voz de Kathy Ordonez soou no intercomunicador:
- Senhor Kingsley, Saida Hernandez tem estado a tentar entrar em contacto consigo. Disse que era urgente, mas o senhor pediu-me que não lhe passasse chamadas.
- Ligue para ela - pediu Tanner.
Saida Hernandez era a mulher que ele mandara ao Adams Hotel para colocar a bomba.
- Linha um.
Tanner atendeu o telefone, à espera de ouvir boas notícias.
- Então Saida? Correu tudo de acordo com o plano?
- Lamento muito, senhor Kingsley, mas não! - Sentiu o medo na voz dela. - Elas conseguiram escapar.
- Elas o quê? - O corpo de Tanner ficou rígido.
- Pois foi, senhor. Saíram do hotel antes da bomba explodir.
Um dos porteiros viu-as sair.
Tanner desligou, batendo com toda a força o telefone, e carregou no botão que ligava à sua secretária.
- Diga a Flint e a Carballo para virem cá.
Um minuto mais tarde, Harry Flint e Vince Carballo entravam no gabinete de Tanner. Este olhou-os. Estava furioso.
- As cabras conseguiram mais uma vez escapar. Esta é a última vez que permito que isto aconteça. Estão a perceber? Eu vou dizer onde elas estão e vocês vão tratar-lhes
da saúde. Alguma pergunta?
- Não, senhor - responderam Flint e Carballo olhando um para o outro.
Tanner premiu um botão e imediatamente apareceu o mapa electrónico da cidade.
- Enquanto elas tiverem os meus cartões, conseguimos sempre saber onde estão.
E ficaram a ver no ecrã da televisão as luzes a acenderem-se no mapa. Tanner premiu outro botão. As luzes não se mexeram. Cerrou os dentes.
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- Desfizeram-se dos cartões. - E o rosto dele foi ficando vez mais vermelho. Virou-se para Flint e Carballo. - Eu quero-as hoje!
Flint olhou para Tanner e perguntou:
- Mas como, se nós nem sabemos onde é que elas estão! Com é que quer...?
- Acham mesmo que ia permitir que uma mulher fosse mais esperta do que eu? - interrompeu. - Enquanto elas tiverem os telemóveis, não vão a lado nenhum sem nós sabermos.
- O senhor conseguiu arranjar os telemóveis delas? - perguntou Flint espantado.
Tanner nem se dignou responder. Examinava o mapa.
- Nesta altura já devem estar separadas. - Premiu outro botão.
- Vamos tentar primeiro Diane Stevens. - Marcou um número.
As luzes no mapa começaram a mexer e, devagarinho, foram-se centrando nas ruas de Manhattan, mostrando hotéis, lojas e centros comerciais. Por fim, pararam numa
loja em cujo letreiro se lia "O Shopping para Todos".
- Diane Stevens está num centro comercial. - Premiu outro botão. - Vamos ver onde está Kelly Harris.
E repetiu o procedimento. As luzes recomeçaram a mover-se, desta vez centrando-se numa outra parte da cidade.
Os homens olhavam enquanto a zona iluminada se ia reduzindo e mostrava uma rua com uma loja de roupas, um restaurante, uma farmácia e uma paragem de autocarros.
As luzes pesquisaram a área e, de repente, pararam em frente de um edifício grande e aberto.
- Kelly Harris está numa estação de camionetas. - A voz dele era sinistra. - Temos que as apanhar e depressa.
- Mas como? - perguntou Carballo. - Cada uma está no seu lado da cidade. Quando lá chegarmos, já terão partido.
- Venham comigo - pediu Tanner virando-se.
E dirigiu-se a uma sala ao lado, com Flint e Carballo mesmo atrás dele. A sala onde entraram era uma imensidão de monitores, de computadores e de teclados electrónicos,
com diferentes teclas de cores codificadas. Numa prateleira estava instalada uma pequena máquina com dúzias de CDs e de DVDs. Tanner procurou e inseriu na máquina
um que tinha escrito por fora Diane Stevens. E foi explicando aos homens:
- Isto que aqui temos é um sintetizador de voz. As vozes das senhoras Stevens e Harris foram previamente digitalizadas. Os padrões
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da fala delas foram registados e analisados. Ao premir um botão, cada palavra que eu disser será calibrada de forma a duplicar vozes delas. - Tanner pegou num telemóvel
e marcou uns números. Ouviu-se um cauteloso:
Estou? - ouviu-se a voz de Kelly Harris.
Kelly? Que bom que a apanho. - Era Tanner quem falava, mas era a voz de Diane Stevens que eles ouviam.
- Diane! Apanhou-me mesmo a tempo. Estou prestes a sair da qui para fora.
Flint e Carballo ouviam, maravilhados.
- Kelly, para onde vai?
-Vou para Chicago. Vou apanhar um avião para casa, de O'Hare.
- Kelly, não pode ir embora.
Houve um silêncio e em seguida:
- Porquê?
- Porque eu finalmente descobri o que se estava a passar. Já sei quem matou os nossos maridos e porquê.
- Oh, meu Deus! Mas como foi... Tem a certeza?
- Absoluta. Tenho todas as provas de que possamos precisar.
- Diane, isso é maravilhoso.
- Tenho as provas comigo. Estou no Delmont Hotel, na penthouse A. Daqui vou ao FBI. E queria que viesse comigo, mas se tem mesmo que voltar para casa, compreendo.
- Não! De forma nenhuma. Eu quero terminar aquilo que Mark estava a tentar fazer.
Flint e Carballo ouviam cada palavra, fascinados. Ao fundo, ouvia-se o anúncio do autocarro para Chicago.
- Eu vou consigo, Diane. Disse que era o Delmont Hotel?
- Sim. Fica na Eighty-sixth Street. Penthouse A.
- Vou a caminho. Encontramo-nos daqui a pouco.
A ligação foi cortada. Tanner virou-se para Flint e Carballo.
- Metade do problema está resolvido. Agora vamos tratar da outra parte.
E Flint e Carballo observavam enquanto Tanner inseria um CD com o nome de Kelly Harris no sintetizador. Tanner moveu um interruptor no telefone e marcou uns números.
A voz de Diane surgiu quase imediatamente.
- Estou?
Tanner falou no telefone, mas era a voz de Kelly que se ouvia.
- Diane...
- Kelly! Está tudo bem?
- Está tudo muito bem. Tenho excitantes notícias. Descobri quem matou os nossos maridos e porquê.
- O quê? Mas quem... Quem...?
- Não podemos falar disto ao telefone, Diane. Estou instalada no Delmont Hotel, na Eighty-sixth Street. Penthouse A. Pode vir cá ter comigo?
- Mas é claro. Vou já.
- Excelente, Diane. Fico à espera.
E Tanner desligou e virou-se para Flint:
- Tu é que vais estar à espera! - Deu uma chave a Flint. - Esta é a chave da penthouse A. É uma suite da empresa. Vai imediatamente para lá e espera por elas. Quero
que as mates assim que entrarem a porta. Eu depois trato dos corpos.
Carballo e Tanner viram Flint sair apressadamente pela porta.
- E eu, o que quer que eu faça, senhor Tanner? - perguntou Carballo.
- Tu encarregas-te de Saida Hernandez.
Dentro da suite, à espera, Flint estava determinado a não deixar que, daquela vez, alguma coisa corresse mal. Ouvira falar sobre o que Tanner fazia aos que lhe atrapalhavam
a vida. Comigo não, pensou. Pegou na arma, verificou o carregador e aplicou o silenciador. Agora só lhe restava esperar.
Num táxi, a seis quarteirões do hotel, Kelly pensava excitadamente no que Diane lhe dissera. Descobri finalmente o que se estava a passar. Já sei quem matou os nossos
maridos e porquê. Tenho todas as provas de que possamos precisar. Mark, finalmente vou fazer com que paguem por aquilo que te fizeram. Diane estava febril de impaciência.
O pesadelo chegava ao fim. Kelly descobrira de alguma forma quem estava por detrás de toda aquela trama para as matar e tinha provas. Richard, vou fazer com que
te sintas orgulhoso de mim. Sinto-te perto e...
Os seus pensamentos foram interrompidos pelo motorista do táxi.
- Chegámos, minha senhora. Delmont Hotel.
CAPÍTULO 30
Enquanto Diane atravessava o átrio do Delmont Hotel em direcção aos elevadores, o seu coração começou a bater aceleradamente. Estava ansiosa por ouvir o que Kelly
tinha para lhe contar.
A porta de um dos elevadores abriu-se e várias pessoas saíram.
- Sobe?
- Sim. - Diane entrou. - Para a penthouse, por favor.
Pensava velozmente. Mas em que projecto estavam os nossos maridos envolvidos que era tão secreto que acabaram por serem mortos? E como foi que Kelly o conseguiu
descobrir?
O elevador encheu. A porta foi fechada e começou a subir. Diane vira Kelly ainda há umas horas atrás, mas, para seu espanto, percebeu que estava com saudades dela.
Ao fim de uma meia dúzia de paragens, o rapaz do elevador abriu a porta e disse:
- Penthouses.
Na sala de estar da penthouse A, Flint aguardava junto da porta, tentando ouvir os sons que vinham do corredor. O problema é que a porta era bastante grossa e Flint
sabia porquê. Não era para evitar que o som de fora se ouvisse no interior. Era para evitar que o som do interior se ouvisse lá fora.
Era naquela penthouse que tinham lugar as reuniões de administração, mas Flint costumava brincar e dizer que ali nunca ninguém se aborrecera. Três vezes por ano,
Tanner convidava alguns directores do KIG de uma dúzia de países. Quando os assuntos agendados terminavam, era trazido um enxame de lindíssimas jovens para divertir
os convidados. Flint várias vezes ficara de guarda nessas orgias e agora, ali de pé, relembrava o mar de corpos nus, de gemidos e de libertinagem que se desenrolava,
pelas camas e sofás, e imediatamente sentiu uma erecção. Sorriu. Em breve as senhoras resolveriam a situação.
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Quando Diane ia a sair do elevador, perguntou ao rapaz:
- Para que lado fica a penthouse A?
- No lado esquerdo do elevador, mas não está lá ninguém - Como? - Diane virou-se.
- Essa penthouse só é usada para reuniões de administração e a próxima é apenas em setembro.
- Eu não vou a nenhuma reunião de administração. - Diane sorriu. - Vou ter com uma amiga que está à minha espera.
O rapaz, que a ficou a ver enquanto ela virava à esquerda e se dirigia para a penthouse A, encolheu os ombros, fechou a porta do elevador e começou a descida.
A medida que Diane se aproximava da porta da penthouse, acelerou o passo, tal era a excitação que sentia a crescer dentro de si.
Lá dentro, Flint aguardava que batessem à porta. Qual delas será a primeira a chegar? A loura ou a negra? Quero lá saber, não sou racista!
Pareceu-lhe ouvir o som de alguém a aproximar-se e segurou na arma com firmeza.
Kelly lutava para combater a impaciência. Chegar ao Delmont Hotel fora complicado, o trânsito... os sinais vermelhos... as obras nas ruas. Estava atrasada. Correu
pelo átrio do hotel e entrou no elevador.
- Para a penthouse, por favor.
No quinquagésimo andar, enquanto Diane se aproximava da penthouse A, a porta da suíte vizinha abriu-se e um empregado apareceu, recuando para o corredor, enquanto
puxava um enorme carrinho cheio de bagagens, bloqueando-lhe a passagem.
- Eu já tiro isto da frente - disse, em jeito de desculpa.
Voltou a entrar na suite e apareceu com mais duas malas. Diane tentou passar, mas não havia espaço. O empregado disse:
- Pronto, já está. Queira desculpar o incómodo - e afastou o carrinho para que Diane pudesse passar.
Ela caminhou até à penthouse A e erguia a mão para bater à porta quando se ouviu uma voz a chamar, vinda do fundo do corredor:
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- Diane!
Virou-se. Kelly acabava de sair do elevador.
- Kelly!
Diane voltou para trás ao seu encontro.
Dentro da penthouse, Flint tentava ouvir o que se passava. Estaria ali alguém? Podia abrir a porta para espreitar, mas, se o fizesse, podia pôr o plano em risco.
Mata-as assim que entrarem pela porta.
No corredor, Kelly e Diane abraçavam-se, encantadas por se reencontrarem.
- Desculpe estar atrasada, mas o trânsito estava uma desgraça.
Apanhou-me no momento em que ia apanhar o autocarro para Chicago - dizia Kelly.
Diane olhava intrigada para ela.
- Eu? Eu apanhei-a?
- Sim. Estava a entrar para o autocarro quando me ligou. Fez-se um momento de silêncio.
- Mas, Kelly... Eu não lhe liguei. Foi você quem me ligou. Para me dizer que tinha as provas de que precisamos... - E viu o olhar de horror a aparecer no rosto de
Kelly.
- Eu não...
Viraram-se as duas a olhar para a penthouse A. Diane respirou fundo.
- Vamos...
- Isso.
Desceram a correr um lanço de escadas, entraram no elevador e saíram do hotel, tudo em menos de três minutos.
Dentro da penthouse, Flint olhava para o relógio. Mas porque é que as cabras estão a demorar tanto tempo ?
- Diane e Kelly sentaram-se no metropolitano numa carruagem apinhada de gente.
- Não sei como eles fizeram isto - começou Diane. - Mas era a sua voz.
- E eu ouvi a sua. Eles não vão descansar enquanto não nos matarem. São como polvos com milhares de tentaculos sangrentos que querem colocar em redor dos nossos
pescoços.
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- Para nos matarem, precisam primeiro de nos encontrar ripostou Diane.
- Como é que nos encontraram desta vez? Já nos desfizemos dos cartões do Kingsley e não temos mais nad com que possam... Olharam uma para a outra e em seguida para
os telemóveis - Mas como foi que eles conseguiram os nossos números? interrogou-se Kelly.
- Lembre-se de com quem estamos a lidar. De qualquer das maneiras, este é, talvez, o lugar mais seguro em toda Nova Iorque. Podemos ficar no metropolitano até que...
- Diane olhou para o outro lado da coxia e ficou pálida.
- Vamos sair na próxima paragem - pediu com urgência na voz. - Na próxima.
- O quê? Mas você disse...
E Kelly seguiu o olhar de Diane. Na placa de anúncios que corria por cima das janelas estava uma fotografia de uma sorridente Kelly que anunciava um lindíssimo relógio
de senhora. - Oh, meu Deus!
Levantaram-se e dirigiram-se apressadamente para a porta, à espera da próxima paragem. Dois marines sentados junto à porta olhavam de boca aberta para elas.
Kelly sorriu-lhes, tirou o telemóvel a Diane, pegou no seu e deu um a cada um dos militares. - Nós depois ligamo-vos.
E desapareceram.
Na penthouse, o telefone tocou. Flint atendeu-o.
- Já passou uma hora. O que se passa senhor Flint? - perguntou Tanner.
- Elas não apareceram...
- O quê?
- Tenho estado aqui à espera.
-Volta já para o escritório.-Tanner desligou o telefone com força.
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No início começara como um assunto de trabalho sem importância de que Tanner tinha de tratar. Agora passara a ser um assunto pessoal. Tanner pegou no seu telemóvel
e marcou o número do telemóvel de Diane.
Um dos marines a quem Kelly dera os telefones atendeu: - Finalmente, querida! Então, o que fazemos hoje à noite?
As cabras desfizeram-se dos telefones.
Era uma pensão de aspecto rasca, numa rua lateral do West Side. Quando o táxi ia a passar em frente, Diane e Kelly repararam no anúncio que dizia "TEMOS QUARTOS"
e Diane pediu ao motorista:
- Pare aqui, por favor.
As duas saíram e bateram à porta da frente do prédio. A dona da pensão, que lhes abriu a porta, era uma simpática mulher de meia idade chamada Alexandra Upshaw.
- Posso arranjar-vos um excelente quarto a quarenta dólares por noite, com pequeno almoço.
- Isso é óptimo - respondeu Diane, mas viu a expressão no rosto de Kelly. - O que se passa?
- Nada! - Kelly fechou por instantes os olhos. Não, aquela não se parecia nada com a pensão em que fora criada, a limpar retretes, a ter de cozinhar para gente desconhecida
e a ouvir os sons do padrasto bêbado a bater na mãe. Conseguiu esboçar um sorriso. - Serve perfeitamente.
Na manhã seguinte, Tanner estava reunido com Flint e Carballo.
- Elas deitaram fora os meus cartões e despacharam também os telemóveis - disse.
- Então, quer dizer que as perdemos - comentou Flint.
- Nada disso, senhor Flint - respondeu Tanner. - Só por cima do meu cadáver. Nós não vamos atrás delas. Elas é que virão ter connosco.
Os dois homens olharam um para o outro e em seguida de volta para Tanner.
- Como assim?
- Diane Stevens e Kelly Harris vão estar aqui, no KIG, na próxima segunda-feira, às onze e um quarto da manhã.
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CAPÍTULO 31
Kelly e Diane acordaram ao mesmo tempo. Kelly sentou-se na cama e olhou para Diane:
- Bom dia. Dormiu bem?
- Tive uns sonhos esquisitos.
- Também eu. - Diane hesitou. - Kelly, quando ontem saiu do elevador exactamente no momento em que eu ia bater à porta da suite, acha que foi pura coincidência?
- E claro que sim. E muita sorte tivemos nós - Kelly olhava para Diane. - O que quer dizer com isso?
- Até aqui temos tido muita sorte - respondeu ela com muito cuidado. - Mesmo muita sorte. É como se... Como se alguém, ou alguma coisa, nos estivesse a ajudar ou
a guiar.
Os olhos de Kelly estavam presos nela.
- Quer dizer... Do tipo anjo da guarda?
- Isso. - Kelly respondeu, cheia de paciência.
- Diane, sei que acredita nessas coisas, mas eu não. E eu sei que não tenho nenhum anjo da guarda sobre o meu ombro.
- Você tem, o problema é que não o vê - respondeu Diane.
- Como queira - retorquiu Kelly rolando os olhos.
- Vamos tomar o pequeno almoço - sugeriu Diane. - Aqui estamos em segurança. Acho que não corremos perigo.
Kelly grunhiu.
- Se acha que já não corremos perigo, então é porque não conhece os pequenos almoços das pensões. Vestimo-nos, sim, mas depois vamos comer fora. Parece-me que vi
um café ali na esquina.
- Está bem. Preciso de fazer uma chamada. - Diane dirigiu-se ao telefone e pediu um número.
Uma telefonista apareceu na linha:
- KIG.
- Queria falar com Betty Barker.
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É só um momento, por favor.
Tanner vira a luz azul a brilhar e ouvia na linha de conferência.
-A menina Barker neste momento não se encontra no gabinete dela- Quer deixar mensagem?
Oh! Não, muito obrigada.
Tanner franziu o sobrolho. Demasiado rápido para conseguir localizar.
Diane virou-se para Kelly:
- Betty Barker continua a trabalhar no KIG, por isso só precisa mos de encontrar uma maneira de chegarmos até ela.
- Talvez o número de casa venha na lista.
- É possível, mas também pode estar sob escuta - lembrou Diane. Pegou na lista telefónica junto do telefone e começou a procurar a letra que pretendia. - Está aqui.
Diane marcou o número, ficou a ouvir e em seguida desligou devagarinho.
Kelly aproximou-se.
- O que foi?
Diane demorou um bocado até conseguir responder:
- O telefone dela foi desligado.
Kelly respirou fundo.
- Acho que vou tomar um duche.
Quando Kelly acabou o duche e ia a sair da casa de banho reparou que deixara as toalhas sujas espalhadas pelo meio do chão. Ia continuar a andar, mas hesitou, apanhou-as
e colocou-as direitas na prateleira. Entrou no quarto.
- É toda sua.
Diane respondeu com ar distraído:
- Obrigada.
A primeira coisa que Diane reparou assim que entrou na casa de banho foi que todas as toalhas que tinham sido usadas estavam colocadas direitinhas na prateleira.
Sorriu.
Entrou no duche e deixou que a água quente a descontraísse. Lembrou-se de quando tomava duche com o Richard e como era bom os seus corpos a tocarem-se... Nunca mais.
Mas as recordações estariam lá para sempre. Para sempre..
19
E havia as flores.
- Elas são lindas, meu querido. O que é que estamos a comemorar? - O Dia de São Swithin.
E mais flores.
- O Dia em que Washington atravessou o Delaware.
- O Dia Nacional do Periquito.
- O Dia dos Amantes do Aipo.
Quando o cartão com as flores tinha escrito "Dia dos Lagartos Saltadores", Diane rira e dissera:
- Amor, os lagartos não saltam".
E Richard levara as mãos à cabeça e respondera alarmado:
- Maldição! Enganaram-me!
E ele adorava escrever-lhe poemas de amor. Quando Diane se vestia, encontrava um poema num sapato, ou no meio dos sutiãs, ou no bolso do casaco...
E depois houvera aquela vez em que ele chegara a casa depois do trabalho e ela estava parada do lado de dentro da porta, completamente nua, tirando um par de sapatos
de salto alto, e lhe perguntara:
- Querido, gostas destes meus sapatos?
E as roupas dele tinham caído no chão e o jantar fora atrasado. Eles...
A voz de Kelly chamava-a:
- Vamos tomar o pequeno almoço ou vamos jantar?
Dirigiram-se ao café. O dia estava fresco e limpo e o céu era de um azul translúcido.
- Céus azuis - comentou Diane. - Um bom presságio.
Kelly mordeu o lábio para evitar rir. De uma certa maneira, as superstições de Diane eram engraçadas.
A poucos metros do café, Diane e Kelly passaram por uma pequena loja. Olharam uma para a outra, fizeram um enorme sorriso e entraram.
Uma vendedora aproximou-se:
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- Posso ajudar?
- Sim - respondeu Kelly entusiasmada.
- Temos de ter calma - avisou Diane. - Lembre-se do que aconteceu da outra vez.
- Pois. Nada de exageros.
As duas vaguearam pela loja, escolhendo um número bastante reduzido de artigos. Deixaram as roupas velhas que tinham vestidas nos provadores.
- Não vão levar estas roupas? - perguntou a vendedora.
- Não. Pode dá-las para a caridade - respondeu Diane a sorrir.
À esquina havia uma loja de conveniência.
- Olha - disse Kelly. - Telemóveis descartáveis.
Kelly e Diane entraram e compraram dois, cada um deles com mil minutos incluídos.
- Vamos trocar os números outra vez - disse Kelly.
- Okay. - Diane sorriu.
Demorou-lhes apenas uns segundos. Quando estavam para sair e Diane pagava na caixa, olharam para as carteiras.
- Estou quase a ficar sem dinheiro.
- Eu também - corroborou Kelly.
- Talvez tenhamos que começar a usar os cartões de crédito - opinou Diane.
- Não enquanto não encontrarmos o buraco mágico do coelho.
- O quê?
- Esqueça.
Quando já estavam sentadas à mesa do café, a empregada aproximou-se e perguntou:
- O que querem tomar, minhas senhoras?
Kelly virou-se para Diane:
- Escolha primeiro.
- Eu quero um sumo de laranja, ovo com bacon, torradas e café.
A empregada dirigiu-se a Kelly:
- E a senhora?
- Meia toranja.
- Só isso? - comentou Diane.
- Exactamente.
A empregada partiu.
- Você não pode viver só com meia toranja.
- É o hábito. Há uma série de anos que faço uma dieta rigorosa.
Alguns modelos chegam mesmo a comer os ?Kkeaexpdxa? enganar a fome.
201
- A sério?
- A sério. Mas agora já não interessa. Nunca mais vou trabalhar como modelo.
Diane olhou para ela por momentos.
- Porquê?
- Porque agora já não é mais importante. Mark ensinou-me o que é verdadeiramente importante e... - Calou-se, tentando evitar as lágrimas. - Gostaria que o tivesse
conhecido.
- Eu também. Mas você agora vai ter de recomeçar a sua vida.
- E a Diane? - perguntou Kelly. - Vai recomeçar a pintar?
Fez-se um longo silêncio.
- Eu tentei... Não.
Quando Kelly e Diane terminaram o pequeno almoço e se dirigiam para a porta, a primeira reparou que os jornais da manhã estavam a ser colocados nos escaparates.
Diane continuou a andar, mas Kelly pediu:
- Espere um segundo. -Voltou atrás e tirou um dos jornais. - Olhe!
Apontou para um artigo no topo da primeira página.
O Kingsley Internacional Group vai celebrar um serviço religioso em honra de todos os seus empregados cujas recentes mortes têm sido causa de especulação universal.
O tributo terá lugar nas instalações do KIG, em Manhattan, na próxima segunda feira, pelas 11.25 da manhã.
- Eu não quero ser chata, mas como é que espera sair de lá com vida?
- Vou pensar numa forma. - Olhou para Kelly e sorriu. - Confie em mim.
Kelly abanou a cabeça.
- Não há nada que me deixe mais nervosa do que quando alguém me diz "Confie em mim". - O seu rosto de repente iluminou-se. - Tenho uma ideia. Já sei como sair disto.
- Qual é a sua ideia?
- Vai ser uma surpresa.
Diane olhou para ela, preocupada.
- Tem a certeza de que nos consegue safar?
- Confie em mim. - Quando voltaram para a pensão, Kelly fez um telefonema.
Nessa noite, ambas dormiram mal. Kelly estava deitada na cama, preocupada. Se o meu plano falhar, morremos as duas. No momento em que adormeceu, pareceu-lhe ver
a cara de Tanner Kingsley a olhar para ela. E ele ria.
Diane rezava, os olhos bem fechados. Meu amor, é bem possível que esta seja a última vez que falo contigo. Não sei muito bem se deva dizer adeus se olá. Amanhã,
eu e Kelly vamos ao KIG, ao serviço em tua memória. Não me parece que as hipóteses de escaparmos com vida sejam muito boas, mas tenho que ir, para te tentar ajudar.
Só te queria dizer, uma vez mais, antes que seja, talvez, demasiado tarde, que te amo. Boa noite, meu querido.
- Porque é que acha - É amanhã. - Kelly olhou para Diane.- que eles estão a fazer isto?
- Acho que nos estão a preparar uma armadilha.
- Também eu - concordou Kelly. - Kingsley pensará que nós somos tão estúpidas que vamos cair... - Olhou para a expressão de Diane e disse espantada:
- Nós vamos, é? - Diane acenou que sim.
- É impossível!
- Temos que ir. Tenho a certeza de que Betty Barker vai lá estar.
E eu tenho que falar com ela.
202 203
CAPÍTULO 32
O serviço tinha lugar no Parque KIG, uma zona que fora especialmente arranjada nas traseiras do complexo do Kingsley Internacional Group para servir de lugar de
recreio para os empregados. Cerca de uma centena de pessoas estavam reunidas no parque, ao qual se acedia apenas por dois caminhos com portões, um para entrada e
outro para saída.
No centro, fora erguido um estrado onde se sentavam meia dúzia de executivos do KIG. Numa ponta da fila estava sentada a secretária de Richard Stevens, Betty Barker.
Era uma mulher atraente de aspecto aristocrático, nos trinta anos. Tanner falava ao microfone:
- ...e esta empresa foi construída com a dedicação e a lealdade dos seus empregados. Estamos gratos a todos eles e saudamo-los. Sempre gostei de considerar a nossa
empresa como uma família, em que todos trabalham para um objectivo comum.
Enquanto falava, ia observando as pessoas ali reunidas. - No KIG, temos resolvido problemas e executado ideias que tornam o mundo um lugar melhor e não existe maior
satisfação do que...
Ao fundo do parque, viu Diane e Kelly, que tinham acabado de entrar. Tanner deitou uma olhadela ao relógio. Eram onze e quarenta. No seu rosto apareceu um sorriso
de satisfação. Continuou a falar:
- ... saber que o sucesso desta empresa a todos vós se deve.
Diane olhou para a plataforma e, excitada, deu uma cotovelada a Kelly:
- Está ali Betty Barker. Tenho que falar com ela.
- Tenha cuidado.
Diane olhou em volta e disse, pouco à vontade:
- Isto é demasiado fácil. Tenho a sensação de que fomos... - Virou-se para olhar para trás e arquejou. Num dos portões via-se
204
Harry Flint com dois dos seus homens. Olhou para o outro portão. Estava bloqueado por Carballo com mais dois homens.
- Olhe! - Diane sentiu a garganta a ficar seca.
Kelly virou-se para ver seis homens a bloquearem as saídas.
- Há mais alguma maneira de sair daqui?
- Acho que não.
Tanner dizia:
- ... infelizmente, desgraças recentes têm atingido vários membros da nossa família. E quando uma tragédia se abate sobre alguém da família, isso afecta-nos a todos.
Por isso, o KIG oferece uma recompensa de cinco milhões de dólares a quem possa provar quem se encontra por detrás de tudo isto.
- Cinco milhões de dólares que saem de um dos teus bolsos para entrarem no outro - disse Kelly baixinho.
Tanner olhava por cima da multidão para Diane e para Kelly e os seus olhos estavam gelados.
- Temos hoje entre nós dois membros enlutados, as esposas de Mark Harris e Richard Stevens. Vou-lhes pedir que façam o favor de vir até aqui ao pódio.
- Nós não podemos permitir que ele nos faça ir até ali - disse Kelly horrorizada. - Temos de nos manter no meio desta gente. E agora, o que é que fazemos?
Diane olhou para Kelly, espantada.
- O que é que quer dizer com isso? A Kelly é que ficou encarregada de nos tirar daqui, lembra-se? Ponha o seu plano a funcionar, - Não resultou - respondeu Kelly
engolindo em seco.
- Então passe para o plano B - pediu nervosamente Diane.
- Diane...
- Sim?
- Não há um plano B. - Os olhos de Diane abriram-se.
- Quer dizer que... que nos trouxe até aqui sem ter maneira de nos fazer sair? , - Eu pensei...
A voz de Tanner soava no altifalante.
- As senhoras Stevens e Harris importam-se de vir até aqui, por favor?
Kelly virou-se para Diane.
- Eu... eu peço muita desculpa.
- A culpa é toda minha. Nunca devíamos ter yindo.
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As pessoas na multidão começavam a virar-se para olhar para elas. Estavam encurraladas.
- Senhoras Stevens e Harris...- Kelly murmurou: - O que é que vamos fazer?
Diane respondeu:
- Não temos alternativa. Temos de ir. - Respirou fundo.
- Vamos.
Relutantes, as duas mulheres começaram a caminhar devagar em direcção ao pódio.
Diane olhava para cima para Betty Baker, cujos olhos estavam pregados nela, um ar de pânico espelhado no rosto.
Diane e Kelly aproximaram-se, os corações a bater desordenados. Diane pensava: Meu querido Richard, eu tentei. Seja o que for que acontecer, quero que saibas...
Ouviu-se o som de alguma agitação vinda da zona traseira do parque. As pessoas esticavam o pescoço para verem melhor.
Ben Roberts fazia a sua entrada, acompanhado por uma enorme equipa de operadores de câmara e de assistentes.
As duas voltaram-se para olhar. Kelly agarrou o braço de Diane, exultante:
- O plano A chegou! Ben está aqui!
E Diane olhou para cima e disse baixinho:
- Obrigada, Richard.
- O quê? - perguntou Kelly, mas de repente percebeu o que Diane queria dizer. E comentou cinicamente: - Está bem. Vamos.
Ben está à nossa espera.
Tanner observava o que se estava a passar, o rosto tenso. E disse alto:
- Desculpe, lamento muito, senhor Roberts, mas esta é uma cerimónia privada. Vejo- me obrigado a pedir-lhe a si e à sua equipa que saiam.
Roberts respondeu-lhe:
- Bom dia, senhor Kingsley. O meu programa está a fazer um segmento sobre as senhoras Harris e Stevens no estúdio, mas, já que estamos aqui, pensei que gostaria
de mostrássemos o seu serviço de homenagem.
206
Tanner abanou a cabeça.
- Não. Não posso permitir que permaneçam.
- Tanto pior. Então, sendo assim, vejo-me obrigado a levar as senhoras Harris e Stevens comigo de volta ao estúdio, neste momento.
- Não pode - disse Tanner rispidamente.
- Desculpe, eu não posso o quê? - disse Ben, olhando para cima.
- Eu... o que eu quero dizer é que... Não interessa. - Tanner tremia de fúria.
As duas mulheres aproximaram-se de Ben. Este disse baixinho:
- Desculpem o atraso. Mas é que chegou uma notícia sobre um assassinato e...
- Quase vos chegou outra notícia sobre mais dois - retorquiu Kelly. - Vamos mas é sair daqui para fora.
Tanner olhava frustrado enquanto Kelly, Diane, Ben Roberts e toda a sua equipa afastavam os homens de Tanner e saíam do parque.
Harry Flint olhou para Tanner em busca de instruções. Enquanto este abanava a cabeça devagar numa negativa, ia pensando: Não pensem que isto fica assim, suas cabras.
Diane e Kelly entraram no carro de Ben. Os outros membros da equipa seguiam atrás em duas carrinhas. Roberts olhou para Kelly. -Já me podes explicar o que se estava
a passar ali?
- Quem me dera, Ben. Mas ainda não te posso dizer nada. Assim que souber realmente o que se passa, prometo que te explico tudo.
- Kelly, tu sabes que eu sou um repórter. Preciso de saber...
- Tu hoje vieste como amigo.
Roberts suspirou.
- Está bem. Onde queres que vos deixe?
- Importas-te de nos deixar na esquina da Forty-second Street com a Times Square? - perguntou Diane.
- Com certeza.
Vinte minutos mais tarde, Kelly e Diane apeavam-se. Kelly beijou Ben Roberts na face.
- Muito obrigada, Ben. Não me esquecerei do que fizeste. De pois falamos.
207 - Tem cuidado.
Enquanto se afastavam, viraram-se para dizer adeus.
- Sinto-me nua - disse Kelly.
- Porquê?
- Diane, nós não temos uma arma, nada. Quem me dera que tivéssemos uma arma.
- Mas temos os nossos cérebros.
- Eu gostava de ter uma arma. Porque é que viemos para aqui? O que vamos fazer agora?
- Vamos parar de fugir. De agora em diante, passamos à ofensiva.
- E o que significa isso? - perguntou Kelly, curiosa.
- Significa que estou farta de ser o alvo a atingir. Agora somos nós que vamos atrás deles, Kelly.
Kelly estacou e olhou para Diane.
- Nós vamos atrás do KIG?
- Exactamente.
- Deve ter andado a ler demasiados livros policiais. E como é que acha que nós as duas vamos ser capazes de deitar abaixo o maior think tank do mundo?
- Vamos começar por arranjar os nomes de todos os funcionários deles que morreram nas últimas semanas.
- O que a leva a pensar que morreu mais gente além de Mark e Richard?
- Porque os jornais diziam todos os funcionários, o que significa que foram mais do que dois.
-Oh! E quem é que nos vai dar esses nomes? -Já lhe digo - respondeu Diane.
O Easy Access Ciber Café era uma sala enorme com mais de uma dúzia de filas de computadores, quase todos eles ocupados. Fazia parte de uma cadeia que começava a
aparecer por todo o mundo.
Quando entraram, Diane dirigiu-se à máquina que vendia cartões para comprar uma hora de acesso à Internet. Quando voltou para junto de Kelly, esta perguntou-lhe:
208
- Por onde começamos?
- Vamos perguntar ao computador.
Encontraram um cubículo vazio e sentaram-se. Kelly observou enquanto Diane se ligava.
E agora o que acontece?
Primeiro fazemos uma pesquisa no Gool para descobrirmos os nomes das outras vítimas que trabalhavam para o KIG.
Diane surfou a net entrando no site www.google.com e teclou os critérios de pesquisa: "necrologia" e "KIG".
No ecrã apareceu uma longa lista de sites possíveis. Diane procurou especificamente os de jornais que estavam disponíveis online e encontrou vários. Clicou nesses
links que a levaram a uma série de registros de óbitos e outros artigos. Um dos artigos levou-a até ao KIG de Berlim, e ela entrou no web site.
- Isto é interessante... Franz Verbrugge.
- Quem é esse?
- A questão é: onde é que ele está! Parece que desapareceu. Trabalhava para o KIG de Berlim e a mulher, Sonja, morreu em condições misteriosas.
Diane clicou noutro link. Hesitou e olhou para Kelly.
- Em França... Mark Harris.
Kelly respirou fundo e disse que sim com a cabeça.
- Continue.
Diane teclou mais umas palavras.
- Denver, Gary Reynolds, e em Manhattan - a voz fraquejou -, Richard.
Levantou-se.
- E é tudo.
- E agora? - perguntou Kelly.
- Agora tentamos descobrir qual a ligação que existe entre tudo isto. Vamos embora.
A meio do quarteirão, Kelly e Diane passaram por uma loja que vendia computadores.
- E só um minuto - pediu Kelly.
Diane seguiu-a enquanto ela entrava na loja e abordava o gerente.
- Desculpe. O meu nome é Kelly Harris. Sou assistente do senhor Tanner Kingsley. Precisamos de três dúzias dos melhores e mais caros computadores que tiver, para
esta tarde. Acha que é possível?
O gerente entusiasmou-se.
- Claro que sim. Com certeza, senhora Harris. Para o senhor
209
Kingsley, tudo o que quiser. É claro que não temos o material todo aqui, mas temos nos nossos armazéns. Eu próprio me encarrego do caso. Vai ser pago em dinheiro
ou para facturar?
- Será pago em dinheiro, no acto de entrega - respondeu Kelly enquanto o gerente se apressava a tratar do caso, Diane comentou- - Gostaria de ter pensado isso.
E Kelly fez um enorme sorriso.
- Vai pensar.
- Pensei que gostaria de ver estes, senhor Kingsley. - Kathy Ordonez deu-lhe uma série de jornais. Os cabeçalhos eram elucidativos:
"AUSTRÁLIA SOB INESPERADO TORNADO"
O primeiro tornado que alguma vez atingiu a Austrália já destruiu meia dúzia de aldeias. O número de mortos é por enquanto desconhecido. Os meteorologistas dizem-se
desconcertados com estes novos padrões do clima. Culpa atribuída à camada de ozono.
- Envie tudo à senadora van Luven acompanhados de uma nota:
"Cara senadora van Luven, penso que o tempo urge. Melhores cumprimentos, Tanner Kingsley."
- Com certeza, senhor.
Tanner olhou para o computador quando ouviu o som que o avisava de que tinha recebido um alerta da divisão de segurança do Departamento de Informação e Tecnologia.
Conseguira instalar "spiders", software de alta. tecnologia que constantemente pesquisava a internet em busca de informações. Inicialmente, colocara-as para ser
alertado quando alguém entrava em busca de informações delicadas sobre as mortes de Richard Stevens e de Mark Harris, e agora olhava interessado para o computador
que lhe enviava os alertas.
Premiu um intercomunicador e chamou:
- Andrew, anda cá.
Andrew estava no seu gabinete a pensar no acidente que sofrera
210
e a lembrar-se. Estava no vestiário onde fora buscar o fato espacial que o exército tinha mandado. Começara a tirar um do cabide, mas Tanner estava lá e fora ele
quem lhe dera um fato e uma máscara de gás. Veste este. Vai-te dar sorte!Tanner era... - Andrew, anda cá!
Andrew ouviu a ordem, levantou-se e dirigiu-se devagar ao gabinete de Tanner.
- Senta-te.
- Sim, Tanner. - E sentou-se.
- As cabras acabaram de entrar do nosso site de Berlim. Sabes o que isso significa?
- Sim... eu... Não.
A secretária de Tanner fez-se ouvir pelo intercomunicador:, - Senhor Kingsley, os computadores chegaram.
- Quais computadores?
- Aqueles que encomendou.
Intrigado, Tanner levantou-se e dirigiu-se à recepção. Três dúzias de computadores empilhavam-se em cima de carrinhos. O gerente da loja e três homens em fato macaco
estavam junto deles.
O rosto do gerente iluminou-se quando viu Tanner a aproximar-se.
- Trouxe tudo aquilo que pediu, senhor Kingsley. Tudo topo de gama. E teremos todo o gosto em lhe arranjar aquilo que...
Tanner olhava fixamente para a pilha de computadores.
- Quem foi que encomendou tudo isto?
- A sua assistente, Kelly Harris. Disse que o senhor precisava deles com urgência, por isso...
- Leve-os de volta - respondeu baixinho Tanner. - Ela não vai precisar deles, no sítio para onde vai.
E virou-se e regressou ao gabinete.
- Andrew, tens alguma ideia da razão por que elas acederam ao nosso site? Bom, então eu vou-te explicar. Estão a fazer uma busca sobre as vítimas e vão procurar
saber quais as razões que se encon tram por detrás das suas mortes. - E Tanner sentou-se. - Para o fazerem, teriam de ir à Europa. Só que não vão conseguir lá chegar...
- Pois não... - respondeu Andrew, sonolento.
- E como é que nós as vamos impedir, Andrew?
Andrew acenou com a cabeça:
- Impedir...
211 212
Tanner olhou para o irmão e disse, desdenhoso: - Como gostava de ter alguém com um cérebro para poder falar. Os olhos de Andrew observavam tudo enquanto Tanner se
dirigia a um computador e se sentava na frente do teclado.
- Vamos começar por limpar todos os bens delas. Temos os números da Segurança Social. - Batia as teclas enquanto falava Diane Stevens... - ia dizendo enquanto usava
o software clandestino que o KIG instalara quando tinham sido contratados para fazer com que os sistemas do Experian fossem compatíveis com o Y2K. Este software
clandestino permitia a Tanner ter acesso a coisas que nem os principais directores do Experian conseguiam ter.
- Olha. O Experian tem toda a informação bancária dela, um fundo de pensões do IRA, a linha de crédito no banco. Estás a ver?
- Sim, Tanner - respondeu Andrew engolindo em seco. - Sim.
Tanner voltou a olhar para o computador.
- Vamos dar os cartões de crédito dela como roubados... Agora vamos fazer a mesma coisa com os de Kelly Harris... O nosso próximo passo é entrar no site do banco
de Diane.
Acedeu ao site e em seguida clicou num link que dizia "Gerir as suas Contas".
Em seguida, Tanner digitou o número de conta de Diane Stevens e os quatro últimos números da Segurança Social e o acesso foi-lhe concedido imediatamente. Uma vez
lá dentro, transferiu todos os saldos para a linha de crédito e depois voltou à base de crédito do Experian e cancelou-lhe a linha de crédito sob "Em Cobrança".
- Andrew...
- Sim, Tanner.
- Percebeste o que eu fiz? Transferi todo o dinheiro de Diane Stevens para o campo das dívidas a serem cobradas pelo departamento de cobranças. -A voz dele soava
satisfeita. - Agora vou fazer a mesma coisa com Kelly Harris.
Quando terminou, levantou-se e chegou junto de Andrew.
- Está feito. Agora não têm dinheiro nem crédito. Não têm maneira de sair do país. Conseguimos encurralá-las. O que pensas tu do teu irmão mais novo? Andrew abanou
a cabeça:
- Ontem à noite na televisão, vi um filme sobre... Furioso, Tanner cerrou a mão e esmurrou o irmão na cara, de tal maneira que ele caiu da cadeira e esta bateu contra
uma parede, fazendo enorme estardalhaço.
- Seu grande filho da mãe! Presta atenção ao que eu digo quando estou a falar contigo!
A porta abriu-se de repente e Kathy Ordonez, a secretária de Tanner, entrou, ansiosa:
- Está tudo bem, senhor Kingsley?
- Sim, está tudo bem. Foi o pobre Andrew que caiu.
- Oh, meu Deus!
Os dois ergueram Andrew e puseram-no de pé.
- Eu caí?
- Sim, Andrew. Tu caíste, mas agora está tudo bem - respondeu Tanner, todo suavidade.
Kathy Ordonez sussurrou:
- Senhor Kingsley, não acha que o seu irmão estaria melhor num lar?
- É claro que estaria - respondeu. - Mas isso seria um enorme desgosto para ele. Esta é a sua casa e eu posso muito bem tomar conta dele aqui.
Kathy Ordonez olhou com admiração para Tanner.
- O senhor é um homem maravilhoso, senhor Kingsley.
Ele encolheu os ombros.
- Todos temos de fazer o que melhor que podemos.
Dez minutos mais tarde a secretária de Tanner estava de volta.
- Boas notícias, senhor Tanner. Chegou agora mesmo este fax do gabinete da senadora van Luven.
- Mostre cá. - Tanner arrancou-lho da mão.
Caro senhor Kingsley, Serve a presente para o informar de que a Comissão Especial do Senado para o Ambiente decidiu atribuir fundos para aumentar imediatamente a
investigação sobre o aquecimento global e as formas de o combater. Melhores cumprimentos, senadora van Luven.
213
CAPÍTULO 33
- Tem passaporte? - perguntou Diane.
- Ando sempre com ele quando estou no estrangeiro - e acrescentou: - E este, de facto, tem sido ultimamente um país estrangeiro para mim.
Diane anuiu.
- O meu está num cofre no banco. Vou buscá-lo. E além disso também precisamos de dinheiro.
Quando entraram no banco, Diane desceu para a zona dos cofres e abriu o seu. Tirou o passaporte, meteu-o na carteira e subiu as escadas direita a uma das caixas.
- Pretendo fechar a minha conta.
- Com certeza. O seu nome, por favor?
- Diane Stevens.
O caixa acenou com a cabeça. , - É só um segundo, por favor.
Dirigiu-se a um ficheiro, abriu uma gaveta e começou a procurar nos cartões. Puxou um, olhou por momentos para ele e em seguida voltou para junto de Diane.
- A sua conta já foi fechada, senhora Stevens.
Diane sacudiu a cabeça.
- Não. Deve haver algum engano. Eu tenho... :
O caixa colocou o cartão na frente dela. Dizia: "Conta fechada. Razão: falecimento."
Diane ficou a olhar para o cartão sem querer acreditar e em seguida olhou para o caixa:
214
- Estou com cara de quem faleceu?
- É claro que não. Lamento muito. Se pretender falar com o gerente, eu...
- Não! - Diane de repente percebeu o que acontecera e sentiu um arrepio. - Não, obrigada.
Correu para a entrada, onde Kelly esperava por ela. -Já tem o passaporte e o dinheiro?
- O passaporte sim, o dinheiro é que não. Os filhos da mãe fecharam a minha conta.
- Mas como é que eles...?
- É muito simples, eles são o KIG e nós não. - Diane ficou pensativa. - Oh, meu Deus!
- O que foi agora?
- Tenho de fazer já uma chamada.
Diane apressou-se em direcção a uma cabina, marcou um número e tirou para fora o cartão de crédito. Uns segundos mais tarde falava com um funcionário:
- A conta está em nome de Diane Stevens. E uma conta...
- Lamento muito, senhora Stevens. Os nossos registros mostram que o seu cartão foi dado como roubado. Se quer apresentar uma reclamação, nós podemos mandar-lhe outro
cartão dentro de um ou dois dias e...
- Não faz mal - respondeu.
Desligou o telefone e voltou para junto de Kelly.
- Eles cancelaram todos os meus cartões de crédito.
Kelly respirou fundo.
- É melhor eu fazer um ou dois telefonemas.
E Kelly esteve ao telefone durante quase meia hora. Quando voltou para junto de Diane, fumegava de raiva.
- O polvo atacou de novo. Mas eu ainda tenho uma conta em Paris, por isso...
- Kelly, não temos tempo para isso. Temos de sair daqui agora.
Quanto dinheiro tem ainda consigo?
- O suficiente para voltarmos para Brooklyn. E você?
- Para chegar a New Jersey.
- Então estamos tramadas. Sabe porque é que eles estão a fazer isto, não sabe? Para nos impedir de chegar à Europa e descobrir a verdade.
- Parece que conseguiram.
Kelly ficou pensativa.
- Não, não conseguiram. Nós vamos na mesma.
- Como? Na minha nave espacial? - perguntou, céptica, Diane.
- Não. Na minha.
215 216
Joseph Beny, o gerente da joalharia da Quinta Avenida, viu Kellv e Diane aproximarem-se e deu-lhes o seu melhor sorriso profissional - Posso ser útil?
- Sim - respondeu Kelly. - Pretendo vender o meu anel. O sorriso desapareceu.
- Lamento muito, mas nós não compramos jóias.
- Oh! Mas que pena.
Joseph Berry começou a virar-se. Kelly abriu a mão. Nela tinha um enorme anel de esmeralda.
- Esta é uma esmeralda de sete quilates rodeada por diamantes de três quilates, montados em platina.
Joseph Berry olhou para o anel, impressionado. Pegou numa lupa de joalheiro e colocou-a no olho.
- É, de facto, lindíssimo, mas nós temos uma firme regra de não...
- Pretendo vinte mil dólares por ele.
- A senhora disse vinte mil dólares?
- Exactamente. Em dinheiro.
Diane olhava para Kelly.
- Kelly...
Berry analisou de novo o anel e acenou:
- Eu... eu penso que podemos resolver este assunto. É só um momento. - E desapareceu no seu escritório das traseiras.
- Você enlouqueceu? - perguntou Diane. - Está a ser roubada.
- Estou? Se ficarmos aqui vamos acabar por ser mortas. Diga-me, por favor, quanto valem as nossas vidas.
Diane ficou sem resposta. Joseph Berry regressou do escritório com um sorriso.
- Vou imediatamente mandar alguém ao banco do outro lado da rua para arranjar o dinheiro.
Diane virou-se para Kelly:
- Ficaria mais feliz se não fizesse isto. - Kelly encolheu os ombros.
- Não passa de uma jóia... - respondeu, e fechou os olhos.
Não passa de uma jóia...
Era o seu dia de anos. O telefone tocou.
- Bom dia, minha querida.
Era Mark.
- Bom dia.
Ficou a aguardar que ele dissesse "Parabéns".
Em vez disso, ele disse:
- Hoje não trabalhas, pois não? Gostas de fazer caminhadas?
Não era nada daquilo que Kelly estava à espera de ouvir. Sentiu um pequeno tremor de desapontamento. Na semana anterior tinham falado sobre os anos dela. Pelos vistos,
Mark esquecera-se.
- Sim.
- Que tal irmos agora, de manhã?
- Está bem.
- Vou ter contigo daqui a meia hora.
- Estarei pronta.
- Onde vamos? - perguntou Kelly quando entraram no carro.
Estavam ambos vestidos para andar a pé.
- Há uns caminhos muito engraçados perto de Fontainebleau.
- Oh! Vais lá muitas vezes?
- Costumava ir até lá, quando queria fugir.
- Fugir do quê? - perguntou Kelly, olhando-o com ar intrigado.
Ele hesitou.
- Da solidão. Ali sentia-me menos só.
Olhou para ela e sorriu.
- Nunca mais lá voltei desde que te conheci.
Fontainebleau era um magnífico palácio real rodeado por florestas silvestres a sudeste de Paris.
Quando o maravilhoso e imponente palácio se começou a ver à distância, Mark comentou:
- Muitos reis chamados Luís viveram aqui, e o primeiro foi Luís IV.
- Sim? - Kelly olhava para ele e pensava: Será que nessa época já havia cartões de aniversário? Gostava que ele me tivesse dado um. Estou a agir como uma idiota.
Chegaram aos jardins do palácio. Mark entrou num dos parques de estacionamento.
Quando saíram do carro e se dirigiam para os bosques, Mark perguntou:
- Achas que aguentas um quilómetro e meio?
217
- Faço muito mais do que isso por dia nas passarelas - deu ela a rir.
- Óptimo, então vamos - e Mark pegou-lhe na mão.
- Aí vou eu.
Passaram uma série de imponentes edifícios e entraram no bosque. Estavam completamente sozinhos, cercados pela verdura de campos antigos e velhas árvores carregadas
de história. Era um maravilhoso dia de verão. O vento estava quente e suave e acima deles havia um céu azul sem nuvens.
- Não é maravilhoso? - perguntou Mark.
- É lindo, Mark.
- Estou feliz por não trabalhares hoje.
Kelly lembrou-se de uma coisa:
- E tu, não devias estar a trabalhar?
- Tirei o dia.
- Oh! - Continuaram a caminhar, embrenhando-se cada vez mais na misteriosa floresta.
Ao fim de quinze minutos, Kelly perguntou:
- Aonde vamos?
- Há lá em cima um lugar de que gosto muito. Estamos quase a chegar.
Uns minutos mais tarde, entraram numa clareira com um enorme carvalho no meio.
- Ora cá estamos - disse Mark.
- É tão calmo.
Pareceu-lhe ver algo gravado na árvore. Kelly avançou para ver melhor. Dizia: "PARABÉNS, KELLY". Ficou a olhar para Mark, sem fala.
- Oh, Mark, meu querido. Muito obrigada.
Afinal ele não se esquecera.
- Acho que há mais qualquer coisa nessa árvore.
- Na árvore? - Kelly aproximou-se. A altura dos olhos havia um buraco. Meteu a mão lá dentro, sentiu um pequeno embrulho e tirou-o para fora. Era um presente.
- Mas o que...?
- Abre.
Kelly abriu-o e os seus olhos aumentaram de espanto. Dentro da caixa estava um anel com uma esmeralda de sete quilates, rodeada por três quilates de diamantes, tudo
encastoado em platina. Kelly
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olhava, sem conseguir acreditar. Virou-se e lançou os braços ao pescoço dele.
- Mas isto é muito generoso.
- Eu dava-te a Lua, se ma pedisses. Kelly, eu estou apaixonado por ti.
Ela apertou-o contra o peito, perdida numa alegria que nunca antes conhecera. E em seguida disse uma coisa que não pensara nunca, nunca vir a dizer:
- Também estou apaixonada por ti, meu amor.
Ele estava radiante.
- Então vamos casar já. Nós...
- Não! - Era como uma chicotada.
Mark olhava para ela, espantado.
- Porquê?
- Não podemos.
- Kelly, não acreditas que eu te amo?
- Acredito.
- E tu amas-me?
- Amo.
- Mas não queres casar comigo?
- Eu quero. Mas... não posso.
- Não estou a perceber. O que se passa?
Ele estudava-a, confuso. E Kelly sabia que no momento em que contasse a Mark a traumática experiência por que passara ele nunca mais a quereria voltar a ver.
- Eu... eu nunca poderei ser uma verdadeira mulher para ti.
- O que queres dizer com isso?
Esta era a coisa mais difícil que Kelly alguma vez tivera que dizer.
- Mark, nós nunca poderíamos ter relações sexuais. Quando eu tinha oito anos, fui violada. - Ela olhava para as impávidas árvores, enquanto contava a sua sórdida
história ao primeiro homem que alguma vez amara. - Eu não estou interessada em sexo. Só a ideia me deixa enojada. Assusta-me. Eu... eu sou meia mulher. Eu não sou
normal.
Kelly respirava com dificuldade, tentando não chorar.
Sentiu as mãos de Mark nas suas.
- Lamento tanto, Kelly. Deve ter sido devastador.
Kelly ficou silenciosa.
- O sexo é muito importante num casamento - disse ele.
Kelly anuiu, mordendo o lábio. Sabia o que ele ia dizer a seguir.
219 220
- É claro. Por isso percebo perfeitamente porque não vais querer...
- Mas não é a essência do casamento. O casamento é passar a nossa vida com alguém que se ama, ter alguém com quem falar alguém com quem partilhar os bons e os maus
momentos.
Ela ouvia, sem saber que dizer, com medo de acreditar no que estava a ouvir.
- No fim, o sexo desaparece, Kelly, mas não o verdadeiro amor. Eu amo-te pelo teu coração e pela tua alma. Quero passar o resto da minha vida contigo. Posso perfeitamente
viver sem sexo.
Kelly tentou manter a voz calma.
- Não, Mark. Eu não posso permitir.
- Porquê?
- Porque um dia ias arrepender-te. Acabarias por te apaixonar por outra pessoa que te pudesse dar... aquilo que eu não posso e deixar-me-ias... E isso ia destruir-me.
Mark estendeu os braços e abraçou-a, apertando-a contra o peito. - Sabes porque é que eu jamais seria capaz de te deixar? Porque tu és a minha melhor parte. Nós
vamo-nos casar. Kelly olhou para Mark nos olhos.
- Mark, tens consciência daquilo em que te vais meter?
- Acho que devias dizer isso de outra maneira - disse ele sorrindo.
Kelly riu e abraçou-o.
- Oh, meu amor, tens a certeza que...?
- Claro que tenho a certeza - disse ele, feliz. - E tu, que dizes?
Ela sentia as lágrimas escorrerem-lhe pela cara.
-Eu digo... sim!
Mark enfiou o anel de esmeraldas no dedo dela. Ficaram abraçados por muito tempo.
- Quero que venhas amanhã de manhã comigo ao salão e que conheças algumas das modelos com quem trabalho.
- Pensei que isso era proibido.
-As regras agora mudaram.
Mark riu.
- Vou falar com um juiz meu amigo para nos casar no domingo que vem.
Na manhã seguinte, quando Kelly e Mark chegaram ao salão, Kelly apontou para o céu.
- Parece que vai chover. Toda a gente fala do tempo, mas ninguém faz nada a seu respeito.
Mark virou-se para ela e olhou-a de forma estranha. Kelly viu a expressão no rosto dele.
- Oh, desculpa. Isto que eu disse é um cliché, não é?
Mark não respondeu. Quando Kelly entrou, havia uma meia dúzia de modelos nos vestiários.
- Tenho um anúncio a fazer. Vou casar no domingo e vocês estão todas convidadas.
A sala ficou imediatamente cheia de conversa animada.
- É com o famoso jovem que não nos apresentavas?
- É alguém que nós conhecemos?
- Como é que ele é?
- É como um Cary Grant, versão mais nova - respondeu Kelly orgulhosamente.
- Uau! E nós podemos conhecê-lo?
- Claro. Ele está aqui. - Kelly abriu a porta. - Entra, querido.
Mark entrou no salão e o silêncio instalou-se. Uma das modelos olhou para Mark e perguntou por entre dentes:
- Isto é uma brincadeira?
- Deve ser.
Mark Harris tinha menos uns trinta centímetros do que Kelly, era um homem de aspecto normal, sem nada de especial, com uma escassa cabeleira que começava a ficar
grisalha.
Quando o choque inicial passou, as modelos avançaram para cumprimentar os noivos.
- Mas que notícia maravilhosa.
- Estamos encantadas e felizes por ti.
- Tenho certeza de que serão muito felizes.
Quando os cumprimentos terminaram, Kelly e Mark saíram. Enquanto avançavam pelo corredor, Mark perguntou:
- Achas que elas gostaram de mim?
- Claro que gostaram - respondeu Kelly a sorrir. - Como é que alguém pode não gostar de ti... - Oh!-Parou de repente.
- O que foi?
227
- Eu estou na capa de uma revista de moda que acabou de sair. Quero que a vejas. Já volto.
Kelly dirigiu-se aos vestiários. Quando deitava a mão à porta, ouvi as vozes lá dentro:
- Kelly vai mesmo casar com aquele?
Kelly parou e ficou a ouvir.
- Deve ter enlouquecido.
- Eu já a vi rejeitar alguns dos homens mais giros do mundo e dos mais ricos. O que é que ela vê neste?
Uma das modelos que tinha estado calada falou:
- E muito simples - disse.
- O quê?
- Não se riam - e hesitou.
- Diz lá.
- Vocês nunca ouviram a frase: "Ver com os olhos do amor"?
Ninguém riu.
O casamento teve lugar no Ministério da Justiça em Paris e todas as modelos foram damas de honor. Lá fora, na rua, juntara-se uma grande multidão de gente que ouvira
falar do casamento da modelo Kelly. Os paparazzi estavam lá todos.
Sam Meadows foi o padrinho de Mark.
- Onde vão passar a lua de mel? - perguntou.
Mark e Kelly olharam um para o outro. Nem sequer tinham pensado nisso.
Mark pensou num nome ao acaso:
- Eeer... Saint Moritz...
- Saint Moritz - corroborou Kelly pouco à vontade.
Nenhum deles estivera antes em Saint Moritz e a vista era de cortar a respiração, uma vista sem fim sobre as majestosas montanhas e os luxuriantes vales.
O Badrutt Palace Hotel fora construído numa encosta. Mark telefonara antes para fazer a reserva e o gerente dava-lhes agora as boas-vindas.
- Boas tardes, senhora e senhor Harris. Tenho a suíte de lua-de-mel preparada.
Mark interrompeu:
222
Desculpe, seria possível... hum... mandar colocar duas camas duplas no quarto?
Duas camas? - perguntou o gerente sem se perturbar.
- Eer... isso mesmo.
- Mas com certeza.
- Muito obrigado. - Mark virou-se para Kelly: - Aqui à volta há imensas coisas para ver - e tirou uma lista do bolso. - O Museu Engadine, a pedra Druida, a fonte
de São Maurício, a torre inclinada...
Quando Mark e Kelly ficaram a sós na suite, Mark perguntou:
- Querida, eu não quero que fiques numa situação desconfor tável. Só estamos a fazer isto para evitar que as pessoas façam comentários. Vamos passar o resto da nossa
vida juntos. E aquilo que vamos partilhar é muito mais importante do que qualquer coisa física. Eu só quero estar contigo e quero-te a meu lado.
Kelly lançou os braços ao pescoço dele e abraçou-o.
- Eu... eu nem sei o que dizer.
- Não digas nada - respondeu ele a sorrir.
Jantaram no rés-do-chão e em seguida regressaram à suite. No quarto tinham sido colocadas duas camas de casal.
- Atiramos uma moeda ao ar?
- Não, podes ficar com a que quiseres - e Kelly sorriu.
Quando Kelly saiu da casa de banho, quinze minutos mais tarde, já Mark estava na cama.
Kelly aproximou-se e sentou-se na borda da cama.
- Mark , tens a certeza de que isto vai resultar contigo?
- Nunca na minha vida estive tão seguro de uma coisa como desta.
Boa noite, minha bela querida.
- Boa noite.
Kelly deitou-se na cama a pensar, a reviver a noite que mudara toda a sua vida. Chiu! Não faças barulho! Mas, se alguma vez contares alguma coisa sobre isto à tua
mãe, eu volto e mato-a. O que aquele monstro lhe fizera destruíra a sua vida. Matara algo dentro dela e fizera com que passasse a ter medo do escuro... medo dos
homens... medo de amar. Ela dera àquele homem poder sobre ela. Eu não o vou permitir. Nunca mais. Todas as emoções que reprimira durante aqueles anos que se seguiram,
toda a paixão que sentira crescer explodiram
223 224
dentro de si. Kelly olhou para Mark e, de repente, sentiu uma desesperada necessidade de o ter. Atirou a roupa da cama para trás caminhou até à cama dele.
- Chega para lá - pediu baixinho.
Mark sentou-se, espantado.
- Mas tu... tu disseste que não me querias na tua cama e por isso eu...
Kelly olhou para ele e disse com suavidade:
- Mas eu não disse que não podia estar na tua cama. - Ficou a ver a cara dele enquanto despia a camisa de noite e se esgueirava para junto dele. - Faz amor comigo
- pediu baixinho.
- Oh, Kelly! Sim!
Ele começou devagarinho e com toda a suavidade. Devagar demais. Suave demais. As torrentes abriram-se e Kelly sentiu nascer dentro de si uma enorme necessidade de
o ter. Amou-o de forma violenta, e jamais sentira algo tão maravilhoso na vida.
Quando descansavam nos braços um do outro, Kelly disse:
- Aquela lista que me mostraste, sabes...?
- Sim.
- Podes deitá-la fora - disse suavemente.
Mark riu.
- Mas que parva que eu tenho sido - comentou Kelly. E apertou Mark nos seus braços e falaram e fizeram amor e voltaram a falar e a fazer amor até que ficaram exaustos.
- Vou apagar a luz - disse ele.
Ela ficou tensa e cerrou os olhos com força. Ia a dizer "Não", mas calou-se.
Quando ele voltou, depois de apagar a luz, Kelly abriu os olhos. Já não tinha mais medo do escuro. Ela...
- Kelly? Kelly?
Foi bruscamente chamada à realidade. Olhou em volta e estava de novo na joalharia da Quinta Avenida, em Nova Iorque, e Joseph Berry tinha um gordo envelope na mão
para ela.
-Aqui tem. Vinte mil dólares em notas de cem, tal como pediu.
Kelly demorou um pouco a cair na realidade.
- Muito obrigada.
Kelly abriu o envelope, tirou dez mil dólares e deu-os a Diane. Esta olhou-a, espantada.
- O que significa isto?
É a sua metade.
- A minha metade de quê? Mas eu não...
- Paga-me depois - disse Kelly, encolhendo os ombros. - Se ainda cá estivermos. Se não, também já não vou precisar deles. Bom, agora vamos ver se conseguimos sair
daqui para fora.
225
CAPÍTULO 34
Na Lexington Avenue, Diane chamou um táxi.
- Para onde vamos?
- Para o aeroporto La Guardiã.
Kelly olhou para Diane, espantada.
- Não sabe que eles vão estar a vigiar todos os aeroportos?
- Espero bem que sim.
- Mas o que é que... - gemeu Kelly. - Tem um plano, não tem?
- Tenho - respondeu Diane, dando-lhe uma palmadinha no braço para a acalmar.
Em La Guardiã, Kelly seguiu Diane até ao balcão da Alitália. O agente atrás do balcão cumprimentou:
- Bom dia. Posso ajudar?
- Sim. - Diane sorriu. - Queremos dois bilhetes em turística para Los Angeles.
- Quando pretendem partir?
- No primeiro voo disponível. Os nossos nomes são Diane Stevens e Kelly Harris.
Kelly encolheu-se.
O funcionário consultou um horário.
- O próximo avião começa o embarque às duas e um quarto.
- Excelente. - Diane olhou para Kelly.
- Excelente - confirmou Kelly com um sorriso amarelo.
- Como vão pagar, dinheiro ou cartão de crédito?
- Dinheiro. - Diane pagou.
Kelly perguntou:
- Porque não pomos um anúncio sobre as nossas cabeças para avisar Kingsley de que estamos aqui?
- A Kelly preocupa-se demasiado - foi a resposta de Diane.
226
Quando passavam o balcão da American Airlines, Diane parou e dirigiu-se ao funcionário:
- Queríamos dois bilhetes em turística para Miami, no próximo voo que tenha lugares.
- Com certeza. - Ele consultou o horário. - Esse voo embarca daqui a três horas.
- Muito bem. Os nossos nomes são Diane Stevens e Kelly Harris.
Kelly fechou os olhos por momentos.
- Vão pagar a dinheiro ou por cartão de crédito?
- A dinheiro.
Diane pagou e ele deu-lhe os bilhetes. Quando se afastavam, Kelly comentou:
- É assim que nós vamos enganar os génios? Isto não engana nem um miúdo de dez anos.
Diane começou a caminhar em direcção à porta de saída do aeroporto.
- Onde é que vai? - perguntou Kelly, correndo atrás dela.
- Vamos...
- Não interessa. Acho que nem sequer quero saber.
Em frente ao aeroporto havia uma fila de táxis parados. Quando as duas saíram do terminal, um dos táxis saiu da fila e dirigiu-se à porta da frente. Kelly e Diane
entraram no carro.
- Para onde?
- Aeroporto de Kennedy.
- Eu não faço ideia se eles ficarão baralhados, mas eu já estou - comentou Kelly. - Continuo a pensar que me sentiria mais confortável se tivéssemos uma arma para
protecção.
- Não faço ideia onde podemos arranjar uma Howitzer.
O táxi começou a andar. Diane inclinou-se para examinar o cartão de identificação do condutor, "Mário Silva".
- Senhor Silva, acha que nos consegue levar ao Kennedy sem sermos seguidas?
O sorriso rasgado do homem era visível no retrovisor.
- Estão em boas mãos.
Acelerou e fez uma repentina inversão de marcha. Na esquina seguinte virou e, assim que estava a meio da rua, saiu para uma ruela.
As mulheres olharam pela janela traseira. Não havia qualquer carro atrás delas.
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O sorriso de Mário Silva cresceu.
- Assim está bem?
- Muito bem - respondeu Kelly.
Nos trinta minutos que se seguiram, Mário Silva continuou a fazer inesperadas inversões de marcha e a entrar em pequenas ruelas para se certificar de que ninguém
os seguia. Por fim, o táxi chegou à porta principal do aeroporto de Kennedy.
- Ora cá estamos - anunciou com ar triunfante.
Diane tirou algumas notas da carteira.
- Tem aqui um bónus para si.
O motorista recebeu o dinheiro e sorriu:
- Muito obrigado, minha senhoras.
Ficou sentado no táxi a ver as suas passageiras a entrarem no terminal de Kennedy. Quando desapareceram de vista, pegou no telemóvel.
- Tanner Kingsley, por favor.
No balcão da Delta Airlines, o funcionário olhou para o quadro:
- Sim, temos dois bilhetes para o voo que pretendem. Sai às cinco e cinquenta. Tem uma hora de paragem em Madrid e o avião chega a Barcelona às nove e vinte da manhã.
- Serve perfeitamente - disse Diane.
- Dinheiro ou cartão de crédito?
- Dinheiro.
Diane deu o dinheiro ao empregado e virou-se para Kelly:
- Vamos esperar na sala de embarque.
Trinta minutos mais tarde, Harry Flint estava a falar com Tanner no telemóvel.
- Já tenho a informação que pediu. Vão apanhar um voo da Delta para Madrid. O avião sai de Kennedy às cinco e cinquenta e cinco desta tarde e tem uma paragem de
uma hora em Madrid. Chegam a Barcelona às nove e vinte da manhã.
- Muito bem. Senhor Flint, leve o avião da empresa para Barcelona e esteja lá à espera delas quando chegarem. Estou a contar consigo para que lhes faça uma calorosa
recepção.
Quando Tanner desligou, Andrew entrou. Tinha uma flor na lapela.
228
- Aqui tens os horários para...
- Que diabo é isso?
Andrew ficou com ar confuso.
- Tu pediste-me para eu te trazer...
- Não estou a falar disso. Estou a falar dessa estúpida flor que trazes aí.
O rosto de Andrew iluminou-se.
- Estou a usar isto para o teu casamento. Eu vou ser o teu padrinho.
Kingsley franziu o sobrolho.
- Mas de que raio estás tu a falar? - E de repente percebeu. - Mas isso foi há sete anos, seu cretino. E não houve casamento nenhum. Pira-te mas é daqui para fora!
Andrew ficou ali parado, sem saber o que fazer, tentando perceber o que se passava.
- Sai!
Kingsley ficou a olhar enquanto o irmão saía do gabinete. Tenho que o pôr em algum lado, pensou. Está na altura. A descolagem do voo para Barcelona foi suave e sem
percalços. Kelly olhava pela janela e via Nova Iorque lá em baixo, a desaparecer.
- Acha que nos conseguimos ver livres deles?
Diane abanou a cabeça.
- Não. Mais cedo ou mais tarde vão arranjar maneira de nos descobrir. Mas pelo menos estamos do outro lado. - Tirou da carteira a folha de computador e estudou-a.
- Sonja Verbrugge morreu em Berlim e o marido desapareceu... Gary Reynolds, em Denver...
- Hesitou - Mark e Richard.
Kelly olhou para a folha impressa:
- Então nós vamos a Paris, Berlim, Denver e depois voltamos para Nova Iorque.
- Isso mesmo. Atravessamos a fronteira para França em San Sebastian.
Kelly estava ansiosa por voltar a Paris. Queria falar com Sam Meadows. Tinha a sensação de que seria útil. E a Angel estava à sua espera.
229
-Já esteve em Espanha?
- Mark levou-me lá uma vez. Foi a coisa mais... - E de repente Kelly calou-se, ficando calada durante um bom bocado. - Sabe qual é o problema que vou ter de enfrentar
para o resto da minha vida Diane? É que não existe em todo o mundo ninguém como o Mark. Sabe como é, quando somos crianças e lemos sobre as pessoas que se apaixonam
e de repente o mundo passa a ser maravilhoso? Era esse tipo de casamento que eu tinha com Mark. - Olhou para Diane. - Provavelmente passava-se o mesmo consigo e
Richard.
- Sim - respondeu ela muito devagar. - Fale-me de Mark pediu.
Kelly sorriu:
- Havia nele algo maravilhosamente infantil. Sempre achei que ele tinha o espírito de uma criança e o cérebro de um génio. - Deu uma pequena risada.
- O quê?
- A forma como ele se vestia. No nosso primeiro encontro levava um fato cinzento muito mal cortado, sapatos castanhos, camisa verde e uma gravata de um tom encarnado
vivo. Depois de nos casarmos, passei a fazer com que ele se vestisse como deve ser. - E calou-se. Quando voltou a falar tinha a voz embargada: - Sabe uma coisa?
Neste momento daria tudo para poder ver Mark uma vez mais com o seu fato cinzento, os sapatos castanhos, a camisa verde e a gravata encarnada. - Os olhos dela estavam
húmidos. - Mark gostava imenso de me surpreender com pequenos presentes. Mas o maior de todos os presentes foi o ter-me ensinado a amar. - Enxugou os olhos com um
lenço. - E Richard, como era? Diane sorriu.
- Era um romântico. Quando à noite íamos para a cama ele dizia: "Carrega no meu botão secreto", e eu ria e respondia: "Ainda bem que ninguém está a gravar esta conversa."
- Olhou para Kelly e explicou: - O botão secreto dele era a tecla de "Não incomodar" do telefone. Richard dizia que estávamos num castelo, sozinhos, e que a tecla
do telefone era o fosso que rodeava o castelo e que nos mantinha protegidos do resto do mundo. - Diane lembrou-se de qualquer coisa e riu. - Ele era um cientista
brilhante e adorava reparar coisas em casa. Arranjava as torneiras que pingavam ou os curto-circuitos, e eu depois tinha que chamar os homens para arranjarem o que
ele tinha arranjado, mas nunca lhe contei isso. Continuaram a falar quase até à meia-noite.
230
Diane apercebeu-se de que era a primeira vez que falavam dos maridos. Era como se uma barreira invisível entre elas tivesse caído.
Kelly bocejou.
- Acho que devíamos dormir. Tenho a sensação de que o dia de amanhã vai ser muito excitante.
Não fazia ideia do excitante que viria a ser.
Harry Flint furava por entre a multidão no aeroporto de El Prat, em Barcelona, e dirigiu- se à enorme janela que dava para a pista. Virou a cabeça para olhar o quadro
que anunciava as partidas e as chegadas. O avião vindo de Nova Iorque estava a horas, e devia aterrar dali a trinta minutos. Tudo estava a correr de acordo com os
planos. Flint sentou-se e esperou.
Trinta minutos mais tarde, os passageiros do voo de Nova Iorque começaram a desembarcar. Todos pareciam excitados, um grupo típico de turistas, vendedores, algumas
crianças, casais em lua-de-mel. Flint teve o cuidado de se manter fora do campo de visão da porta de desembarque enquanto observava a corrente de passageiros que
entrava no terminal e que, de seguida, parou. Franziu o sobrolho. Não havia sinais de Diane nem de Kelly. Flint aguardou mais cinco minutos e em seguida dirigiu-se
à porta de embarque. - Senhor, não pode passar por aí.
- FAA! - ladrou. - Temos informação da segurança nacional de, que um embrulho foi escondido na casa de banho deste avião.
Recebi ordens para o inspeccionar imediatamente.
Flint já estava na placa. Quando chegou ao avião, a tripulação começava a sair.
Uma assistente de bordo perguntou:
- Posso ajudar?
- FAA, inspecção - respondeu. E dirigiu-se às escadas do avião. Não se avistavam quaisquer passageiros.
A assistente perguntou:
- Há algum problema?
- Sim. Uma possível bomba. (FAA: Federal Aviation Administration. - N. do E.)
231
Ela ficou a olhar enquanto Flint percorria a cabina e abria as portas das casa de banho. Estavam todas vazias.
As mulheres tinham desaparecido.
- Senhor Kingsley, elas não estavam no avião. A voz de Tanner Kingsley parecia perigosamente suave:
- Senhor Flint, não as viu embarcar?
- Vi, sim.
- E continuavam a bordo quando o avião descolou?
- Estavam, sim.
- Então parece-me que, se raciocinarmos, chegamos à conclusão de que ou saltaram no meio do Atlântico sem pára-quedas, ou então desembarcaram em Madrid. Concorda
com o meu raciocínio?
- Claro que sim, senhor Kingsley. Mas...
- Muito obrigado. Portanto, isso significa que pretendem seguir de Madrid para França, via San Sebastian. - Fez uma pausa. - Têm quatro possibilidades, ou apanham
um outro voo para Barcelona, ou vão de comboio, de autocarro ou de carro. - Tanner ficou pensativo. - Provavelmente vão achar que autocarros, aviões e comboios são
demasiado limitativos. A lógica diz-me que vão de carro até à fronteira de San Sebastian e que entram por aí em França.
- Se...
- Não me interrompa, senhor Flint. Devem levar cinco horas de Madrid a San Sebastian. O que quero que faça é o seguinte: apanhe um avião para Madrid. Verifique todas
as empresas de aluguer de automóveis. Descubra que tipo de carro alugaram, cor, marca, tudo.
- Sim, senhor.
- Em seguida, quero que voe de volta para Barcelona e que alugue um carro. Um carro grande. E fique à espera delas na auto-estrada de San Sebastian. Não quero que
consigam chegar à fronteira. E, senhor Flint...
- Diga, senhor?
- Não se esqueça: faça com que pareça um acidente.
232
CAPÍTULO 35
Diane e Kelly estavam em Barajas, o aeroporto de Madrid. Podiam escolher entre alugar um carro na Hertz, na Europe Car, na Avis, ou noutra empresa qualquer, mas
optaram pela Aksa, uma agência de aluguer de automóveis menos conhecida.
- Qual é a maneira mais rápida para chegar a San Sebastian? - perguntou Diane.
- E muito simples, senora. Apanhe a N-l até à fronteira em Hondarribia e em seguida vá directa a San Sebastian. São cerca de quatro a cinco horas de viagem.
- Gradas. E Kelly e Diane meteram-se a caminho. Quando, uma hora mais tarde, o jacto privado do KIG aterrou em Madrid, Harry Flint percorreu apressadamente as empresas
de aluguer de automóveis.
- Fiquei de me encontrar com a minha irmã e uma amiga dela - a amiga é uma afro-americana lindíssima. Só que desencontrámo-nos.
Chegaram num voo da Delta, nove dois um, vindo de Nova Iorque.
Alugaram um carro aqui?
- Não, senor.
- Não, senor.
- Não, senor.
Finalmente, no balcão da Alesa, Flint teve sorte.
- Oh, sim, senor. Lembro-me muito bem delas. Elas...
- Lembra-se qual foi o carro que alugaram?
- Sim. Foi um Peugeot.
- De que cor?
- Vermelho. Era o único...
- Lembra-se da matrícula?
- Claro. E só um segundo.
233
Flint ficou a olhar enquanto o empregado abria um livro de registo e verificava.
Deu o número a Flint.
- Espero que as encontre.
- Encontro, sim.
Dez minutos mais tarde, Flint voava de volta a Barcelona. Ia alugar um carro, prestar atenção aos Peugeots vermelhos, segui-las até um local onde não houvesse trânsito,
empurrá-las para fora da estrada e assegurar-se de que tinham morrido.
Diane e Kelly estavam apenas a trinta minutos de San Sebastian, conduzindo num confortável silêncio. A auto-estrada não tinha grande movimento e conseguiam andar
bem. A paisagem era maravilhosa. Campos maduros para as colheitas, pomares que enchiam o ar com os aromas das romãzeiras, dos damasqueiros e das laranjeiras, e,
longe da estrada, antigas casas com as paredes cobertas por trepadeiras de jasmim. Poucos minutos depois de terem passado a cidade medieval de Burgos, o cenário
começou a transformar-se e surgiram as faldas dos Pirenéus.
- Estamos quase a chegar - comentou Diane.
Olhou em frente, franziu o sobrolho e começou a travar. A seiscentos metros à sua frente, ardia um carro e uma pequena multidão juntara-se em volta dele. A estrada
estava bloqueada por homens fardados.
Diane ficou intrigada.
- O que se passa?
- Nós estamos no País Basco - respondeu Kelly. - Eles estão em guerra. Há cinquenta anos que os bascos se revoltam contra o governo espanhol.
Um homem num uniforme verde com debruns vermelhos e dourados e um cinto preto, sapatos pretos e um boné preto colocou-se no meio da estrada em frente do carro e
ergueu a mão para as mandar parar. Fez sinal para encostarem na beira da estrada.
Kelly disse por entre dentes:
- É a ETA. Não podemos parar, ou ficamos aqui sabe-se lá quanto tempo.
234
O polícia aproximou-se do carro e disse-lhes:
- Eu sou o capitão Iradi. Queiram sair da viatura.
Diane olhou para ele e sorriu.
- Gostava muito de poder ser útil nesta vossa guerra, mas temos a nossa própria para tratar. - E carregou no acelerador, passou pelo carro a arder e seguiu velozmente
em frente, com o carro aos zigue zagues por entre a multidão que gritava.
Kelly fechara os olhos. - Ainda cá estamos? - Está tudo bem.
Quando Kelly voltou a abrir os olhos, olhou pelo retrovisor e ficou gelada. Um Citroen Berlingo estava atrás delas, e conseguiu ver o homem que guiava.
- É o Godzilla! - arquejou. - Está no carro atrás de nós.
- O quê? Mas como foi que eles nos descobriram tão depressa?
- Diane carregou no acelerador até ao fundo. O Citroen estava a aproximar-se. Diane olhou para o conta quilómetros. Marcava 175 km por hora.
Nervosa, Kelly disse:
- Aposto que em Indianapolis ninguém a agarra.
Um quilómetro e meio mais à frente, Diane viu o controle de fronteiras entre Espanha e França.
- Dê-me um murro - pediu Diane.
Kelly riu:
- Eu estava só a brincar...
- Dê-me um murro. - A voz dela estava cheia de urgência.
O Citroen estava cada vez mais perto.
- O que é...?
-Já!
Relutante, Kelly deu-lhe uma bofetada.
- Não. Dê-me um murro com toda a força.
Já só havia dois carros entre elas e o Citroen.
- Depressa - gritou Diane.
Aflita, Kelly deu-lhe um murro na cara.
- Com mais força.
Kelly tentou mais uma vez. Desta feita, o seu anel de casamento fez um golpe no rosto de Diane e o sangue começou a escorrer. Kelly olhava, horrorizada, para Diane.
- Diane, desculpe, desculpe. Eu não queria...
Tinham chegado ao posto de controle. Diane travou e parou.
O guarda da fronteira aproximou-se.
235
- Boas tardes, minhas senhoras.
- Boas tarde. - Diane virou a cabeça para que o guarda visse o sangue que lhe escorria pela cara.
Ele olhou outra vez para ela, horrorizado.
- Minha senhora, o que foi que lhe aconteceu?
Diane mordeu o lábio.
- É o meu ex-marido. Ele gosta de me bater. Eu consegui uma ordem do tribunal que o proíbe de se aproximar de mim, mas é impossível. Passa a vida a perseguir-me.
Está ali atrás. Eu sei que não vale de nada pedir a vossa ajuda. Ninguém o consegue deter.
Quando o guarda se virou para ver a fila de carros que se aproximavam, o rosto dele estava sério.
- Qual é o carro dele?
- É o Citroen preto, dois carros atrás. Acho que tem intenções de me matar.
- Ah, tem? Então vamos ver! - rugiu. - As senhoras sigam.
Não vão ter que se preocupar mais com ele.
Diane olhou para cima e disse:
- Oh, muito obrigada. Muito obrigada.
Uns segundos mais tarde, tinham atravessado a fronteira e guiavam em França.
- Diane?
- Sim?
Kelly pousou a mão no ombro dela.
- Peço desculpa pelo... - E apontou para a cara dela.
Diane sorriu.
- Conseguiu que nos víssemos livres do Godzilla, não conseguiu? - Olhou para Kelly. - Mas, está a chorar?
- Não, não estou. - Kelly fungou. - E a porcaria do rímel.
Aquilo que você fez foi... A Diane não é só uma cara bonita, pois não? - perguntou Kelly enquanto tentava limpar com um Kkenexz a ferida de Diane.
Esta viu-se no espelho retrovisor e fez uma careta.
- Bem, agora já não sou.
Quando Harry Flint chegou à fronteira o agente estava à espera dele.
- Saia do carro, por favor.
- Não tenho tempo para isso - respondeu Flint. - Estou cheio de pressa. Tenho que...
236
- Saia do carro.
Flint olhou para ele.
- Mas porquê? Qual é o problema?
- Temos informação de que um carro com esta matrícula anda a fazer contrabando de drogas. Vamos ter de revistar o carro.
Flint ficou a olhar para ele.
- Está doido? Já lhe disse, estou com pressa. Nunca houve drogas de contrabando... - Parou e sorriu. -Já percebi. - Meteu a mão no bolso e deu ao guarda uma nota
de cem dólares. - Ora tome, tome lá isto e esqueça. O guarda chamou alto:
-José!
Um capitão fardado aproximou-se. O guarda deu-lhe a nota de cem dólares.
- Tentativa de suborno.
- Não. Você não me pode prender agora. Eu estou a meio de...
- E resistência à autoridade. - Virou-se para o outro guarda.
- Pede reforços.
Flint respirou fundo e olhou para a auto-estrada na frente dele. O Peugeot desaparecera.
Virou-se para capitão.
- Preciso de fazer um telefonema.
À medida que Diane e Kelly avançavam a toda a velocidade em território francês, o planalto central da meseta de Castela começou a dar lugar às faldas dos Pirenéus
e à Serra de Urbasa. Pamplona estava mesmo na frente delas.
- Disse-me que tinha um amigo em Paris? - perguntou Diane.
- Sim. Sam Meadows. Trabalhava com Mark. Tenho a sensação de que ele nos pode ajudar. - Kelly meteu a mão na carteira, tirou para fora o seu novo telemóvel e marcou
um número em Paris.
Uma telefonista atendeu:
- KIG.
- Posso falar com Sam Meadows, por favor? Um minuto mais tarde, Kelly ouviu a voz dele.
- Estou.
- Sam? Fala a Kelly. Estou a caminho de Paris.
- Meu Deus! Tenho andado muito preocupado contigo. Estás bem?
237
- Sim. Acho que sim. - Kelly hesitou.
- Isto é um pesadelo - dizia Sam Meadows. -Ainda não consigo acreditar.
Nem eu, pensou Kelly.
- Sam, tenho que te contar uma coisa. Penso que Mark foi assassinado.
A resposta dele deixou-a arrepiada.
- Também eu.
Kelly estava com dificuldade em responder.
- Tenho que descobrir o que se passou. Podes ajudar-me?
- Não me parece que seja coisa que possamos falar ao telefone, Kelly. - Ele estava a tentar que a voz lhe soasse normal.
- Eu... compreendo.
- Porque não falamos disso logo à noite? Podíamos jantar em minha casa.
- Tudo bem.
- Às sete?
- Lá estarei - respondeu Kelly e desligou. - Hoje vou conseguir obter algumas respostas.
- Enquanto estiver a fazer isso, eu vou a Berlim tentar falar com as pessoas que trabalhavam com Franz Verbrugge.
De repente, Kelly ficou silenciosa. Diane olhou para ela.
- O que foi?
- Nada. É que... nós juntas fazemos uma excelente equipa. Não gosto da ideia de nos separarmos. Porque não vamos ambas a Paris e...?
Diane sorriu.
- Nós não nos vamos separar, Kelly. Quando tiver terminado de falar com Sam Meadows, telefone-me. Podemo-nos encontrar em Berlim. Nessa altura imagino já ter as
informações que são precisas.
Temos os nossos telemóveis. Podemos permanecer em contacto.
Estou ansiosa por ficar a saber o que vai descobrir hoje à noite.
Chegaram a Paris. - Diane olhou pelo retrovisor.
- Nada de Citroen. Finalmente despistámo-los. Onde quer que a leve agora?
Kelly olhou pela janela. Estavam a chegar à Place de la Concorde.
- Diane, porque é que não vai entregar o carro e parte para Berlim? Eu posso apanhar um táxi.
238
- Tem a certeza, companheira?
- Tenho sim, companheira.
- Tenha cuidado.
- Você também.
Dois minutos depois, Kelly estava dentro de um táxi a caminho do seu apartamento, ansiosa por regressar a casa. Dentro de pouco tempo ia encontrar-se com Sam Meadows
no apartamento dele para um jantar.
Quando o táxi parou em frente do seu prédio, Kelly, sentiu uma enorme sensação de alívio. Estava em casa. O porteiro abriu-lhe a porta.
Kelly olhou para cima e começou a dizer - Estou de volta, Martin.. - e parou. O porteiro era um perfeito desconhecido.
- Boas tardes, minha senhora.
- Boas tardes. Onde está Martin?
- Martin já cá não trabalha. Despediu-se.
Kelly ficou sem saber o que dizer.
- Oh! Que pena.
- Por favor, minha senhora. Permita que me apresente. O meu nome é Jerôme Maio.
Kelly assentiu.
Entrou no átrio. Um outro desconhecido, alto e magro, estava de pé atrás da secretária, junto de Nicole Paradis.
O desconhecido sorriu.
- Boas tardes, senhora Harris. Temos estado à sua espera. O meu nome é Alphonse Girouard e sou o porteiro do prédio.
Kelly olhou em redor, intrigada.
- Onde está Philippe Cendre?
- Ah! Philippe e a família mudaram-se algures para Espanha. - respondeu, encolhendo os ombros. - Razões de trabalho, imagino.
Kelly estava ficar cada vez mais alarmada.
- E a filha?
- Foi com eles.
Já lhe disse que a minha filha entrou para a Sorbonne? É um sonho que se tornou realidade.
Kelly tentou manter a voz calma.
- E quando partiram?
239
- Há apenas uns dias, mas, por favor, não se preocupe, senhora, nós trataremos muito bem de si. O seu apartamento está à sua espera.
Nicole Paradis, que estava sentada atrás da secretária, ergueu os olhos.
- Bem vinda a casa. - Mas os seus olhos diziam outra coisa.
- Onde está Angel?
- A sua cadelinha? Philippe levou-a com ele.
Kelly lutava contra uma onda de pânico. Começava a sentir dificuldade em respirar.
- Vamos, minha senhora? Temos uma pequena surpresa para si, no apartamento.
Aposto que tens. O cérebro de Kelly trabalhava velozmente.
- Muito bem, mas é só um segundo - pediu. - Esqueci-me de ir buscar uma coisa.
E antes que Girouard pudesse dizer fosse o que fosse, Kelly já estava na rua, apressando-se pela rua abaixo.
Jerôme Maio e Alphonse Girouard ficaram parados no passeio a olhar para ela. Apanhados desprevenidos, era demasiado tarde para a impedirem. Viram-na entrar num táxi.
Meu Deus! O que foi que eles fizeram com Philippe e a família? E Angel ?, interrogava- se Kelly.
- Para onde, menina?
- Vá andando!
Hoje à noite vou descobrir o que está por trás de tudo isto, pensava Kelly. Entretanto, tenho de fazer tempo durante quatro horas.
No seu apartamento Sam Meadows terminava um telefonema:
- Sim, compreendo perfeitamente como é importante. Eu trato de tudo... Estou à espera que ela chegue dentro de minutos para jantar... Sim... Já tenho alguém para
me ver livre do corpo depois...
Muito obrigado. É muita generosidade sua, senhor Kingsley.
Assim que Sam Meadows desligou, olhou para o relógio. A sua convidada devia estar a chegar a qualquer altura. 240
CAPÍTULO 36
Quando Diane chegou a Berlim, ao aeroporto Tempelhof, havia uma espera de cerca de quinze minutos para os táxis. Por fim chegou a sua vez.
O motorista sorriu.
- Wohin?
- Fala inglês?
- E claro, fràulein.
- Para o Kempiski Hotel, por favor.
Vinte minutos mais tarde, Diane registava-se no hotel.
- Queria alugar um carro com motorista.
- Com certeza, menina. - E o recepcionista olhou para baixo.
- Tem bagagem?
-Já vem.
Assim que o carro chegou, o motorista perguntou:
- Que pretende visitar, menina?
Precisava de tempo para pensar.
- Vá andando durante um bocado, por favor.
- Muito bem. Há muitas coisas para ver em Berlim.
Berlim deixou Diane espantada. Sabia que, durante a Segunda Guerra Mundial, tinha sido bombardeada até quase ser varrida do mapa, mas aquilo que agora via era uma
cidade activa, cheia de modernos edifícios e com um vivo ar de sucesso.
Os nomes da ruas pareciam-lhe estranhos: Windscheidstrasse, Regenburgerstrasse, Lútzowfer...
241
Enquanto iam andando, o motorista ia explicando a história dos parques e das construções, mas Diane não ouvia nada. Tinha que falar com as pessoas com que frau Verbrugge
trabalhava e descobrir o que sabiam. Segundo a Internet, a mulher de Franz Verbrugge fora assassinada e ele desaparecera.
Diane inclinou-se para a frente e perguntou ao motorista:
- Conhece algum cyber café?
- Com certeza, menina.
- Importa-se de me levar lá?
- É muito bom. É muito popular. Pode conseguir aí todas as informações que pretende.
Espero bem que sim, pensou Diane.
O Cyberlin Café não era tão grande como o de Manhattan, mas parecia igualmente movimentado.
Assim que Diane entrou pela porta, uma mulher saiu de trás do balcão.
- Temos um computador disponível dentro de minutos.
- Queria falar com o gerente - pediu Diane.
- Sou eu.
- Oh!
- Porque quer falar comigo?
- Eu gostaria de falar sobre Sonja Verbrugge.
A mulher abanou a cabeça.
- A frau Verbrugge não está cá.
- Eu sei - respondeu Diane. - Ela morreu. Estou a tentar descobrir como morreu.
A mulher olhava fixamente para Diane.
- Foi um acidente. Quando a polícia confiscou o computador dela, descobriu... - Uma expressão dissimulada surgiu-lhe no rosto. - Se não se importar de entrar para
aqui, menina, eu já chamo alguém para a ajudar. Já venho.
Assim que Diane a viu dirigir-se apressadamente para as traseiras sentiu-se invadida por uma estranha inquietação. Logo que ela desapareceu, Diane saiu rapidamente
da loja e entrou no carro. Ali não havia ninguém que a pudesse ajudar. Tenho de falar com a secretária do Franz Verbrugge.
Numa cabina telefónica, obteve o número do KIG e ligou. - KIG Berlim.
- Posso falar com a secretária de Franz Verbrugge? - pediu Diane.
- Quem fala?
- Fala Susan Stratford.
- Só um segundo, por favor.
No gabinete de Tanner, a luz azul começou a piscar. Tanner sorriu para o irmão.
- Diane Stevens está a fazer um telefonema. Vamos ver se a podemos ajudar. - E passou a chamada para o sistema alta voz.
A voz da telefonista do KIG dizia:
- A secretária dele não está. Quer falar com a assistente?
- Se faz favor.
- Só um momento.
Uma voz feminina apareceu em linha:
- Fala Heidi Fronk. Em que posso ser útil?
O coração de Diane começou a bater mais depressa.
- O meu nome é Susan Stratford. Sou jornalista do Wall Street Journal. Estamos a fazer uma reportagem sobre as recentes tragédias que aconteceram a alguns dos empregados
do KIG. Será que me podia conceder uma entrevista?
- Não sei se...
- Só para obter informações de carácter geral.
Tanner ouvia com atenção.
- E se fôssemos almoçar? Está livre hoje?
- Lamento, mas não.
- E jantar?
Ela hesitou.
- Sim, suponho que isso seja possível.
- Onde quer encontrar-se comigo?
- Há um bom restaurante chamado Rockendorf. Podíamo-nos encontrar aí.
- Muito obrigada.
- Às oito e meia?
- Oito e meia.
E Diane desligou a sorrir. Tanner virou-se para Andrew:
- Decidi que vou fazer aquilo que já devia ter feito há muito tempo.
Vou ligar a Greg Holliday e pedir-lhe que trate disto para mim. Esse nunca me falhou. - E olhou para Andrew. - Tem um ego enorme.
Custa couro e cabelo, mas... - sorriu - vale bem a pena.
242 243
CAPÍTULO 37
Quando Kelly se aproximava da porta do apartamento do número H da rue Du BoW Tibourg, hesitou. Agora que a busca estava ao fim. Tocou à campainha. No momento em
que a porta foi viu Sam Meadows, todos os seus temores sumiram e sentiu prazer e alivio ao ver o homem que fora tão próximo de Mark - a num caloroso abraço de Ele
pegou-lhe na mão: - Entra.
Era um encantador apartamento de dois quartos num edifício que pertencera a um membro da nobreza francesa. A sala era espaçosa e luxuosa, com mobília francesa muito
bem escolhida e, numa pequena alcova, um bar em marfim. Na parede havia desenhos de Manet e Allf to esculpido" de Martisse. Não sei te dizer o quanto lamento a morte
de Mark - disse Sam, sem jeito.
- Eu sei - respondeu Kelly, fazendo-lhe uma festa no braço - E inacreditável.
- Ando a tentar perceber o que aconteceu - disse Kelly - É por isso que estou aqui. Espero que me possas ajudar. E sentou-se num dos sofás, ansiosa por ouvir e,
ao mesmo tempo apreensiva. O rosto de Sam ficou sombrio parecia conhecer toda a hístória- Mark estava a trabalhar num projecto secreto. Aparentemente, colaborava
com dois outros funcionários do KIG. Dizem que ele se suicidou - Nao acredito nisso - retorquiu Kelly veementemente
244
Kelly olhava para ele sem perceber.
- Não estou a perceber...
- Como é que Mark alguma vez podia deixar uma pessoa tão encantadora como tu? Como é que alguém o poderia fazer? - Ele aproximava-se. - O que aconteceu foi uma enorme
tragédia, Kelly.
Mas a vida continua, não é? - E pousou a mão dele sobre a dela. - Todos nós precisamos de alguém, não é? Ele partiu, mas eu estou aqui. E o teu tipo de mulher precisa
de um homem.
- O meu tipo de...?
- Mark contou-me como és apaixonada. Ele dizia que tu adoravas fazê-lo.
Kelly virou-se para ele, espantada. Mark nunca diria aquilo. Jamais comentaria com alguém como ela era. Sam colocou um braço em redor dos ombros dela.
- Sim. Mark dizia que tu precisavas mesmo disso. Costumava falar-me de como eras quente na cama.
De repente, Kelly entrou em pânico.
- E sabes, Kelly, se isso te pode ajudar em alguma coisa, Mark não sofreu - disse ele.
E ela olhou para os olhos dele e percebeu.
- Daqui a instantes, vamos jantar - continuou. - Porque não aproveitamos para abrir o apetite na cama?
Kelly, de repente, sentiu-se desfalecer. Conseguiu sorrir.
- Parece-me uma boa ideia.
Pensava furiosamente. Ele era demasiado grande para ela o conseguir vencer, e não tinha nada com que lutar. Ele começou a acariciá-la.
- Querida, sabias que tens um rabo maravilhoso? Eu gosto disso.
Kelly sorriu.
- Achas? - E cheirou o ar. - Estou cheia de fome. Há qual quer coisa que cheira muito bem.
- O nosso jantar.
Antes que ele a conseguisse impedir, ela levantou-se e dirigiu-se à cozinha. Quando passou pela mesa de jantar teve um choque. A mesa estava posta só para um.
Kelly virou-se. Na sala, Sam dirigira-se à porta e fechara-a à chave. Viu-o guardá-la na gaveta do armário.
Olhou em redor da cozinha à procura de uma arma. Não tinha forma de saber em qual das gavetas estavam as facas. Sobre o balcão estava uma caixa com massa cabelo
de anjo. .No fogão, havia um ta-
245
cho com água a ferver e junto a ele outro pequeno tacho onde fervia um molho encarnado.
Sam entrou na cozinha e pôs os braços em redor de Kelly. Ela fingiu não lhe ligar. Olhou para o molho que estava a ferver.
- Aquilo está com um aspecto magnífico.
Ele acariciava o corpo dela.
- E verdade. O que é que gostas de fazer na cama, querida?
Kelly pensava rapidamente. Respondeu baixinho:
- Tudo. Havia uma coisa escaldante que eu costumava fazer que deixava Mark louco.
O rosto de Sam iluminou-se.
- E o que era?
- Costumava pegar num pano molhado e quente e... - Pegou um pano que estava sobre o lava louças. - Eu já te mostro. Baixa as calças.
Sam Meadows estava encantado.
- Claro.
Baixou as calças e deixou-as cair ao chão. Tinha umas boxers vestidas.
- Agora as boxers.
Ele baixou-as, e o seu órgão estava ingurgitado. Kelly disse num tom admirativo:
- Mmm... - Pegou no pano macio com a mão esquerda e moveu-o na direcção dele. Com a mão direita pegou no tacho cheio de água a ferver e despejou o conteúdo sobre
os órgãos genitais dele.
Kelly continuava a ouvir os gritos dele enquanto tirava a chave de dentro da gaveta do armário, abria a porta e fugia.
246
CAPÍTULO 38
O Rockendorf's é um dos mais famosos restaurantes na Alemanha, com a sua decoração art nouveau há muito a servir como símbolo da prosperidade de Berlim.
Quando Diane entrou, foi recebida pelo maitre d'.
- Posso ajudar?
- Tenho uma reserva em nome de Stevens. Venho encontrar-me com a menina Fronk.
- Por aqui, por favor.
O maitre d 'sentou-a a um canto. Diane olhou em redor com atenção. No restaurante havia mais umas quarenta pessoas, na sua maior parte homens de negócios. Na mesa
à sua frente estava sentado um homem atraente muito bem vestido, que jantava sozinho.
Diane ali ficou sentada, a pensar na conversa que tivera com Heidi Fronk. Quanto saberia ela?
O criado deu-lhe a carta.
- Bitu.
- Muito obrigada.
Diane deu-lhe uma vista de olhos. Leberkãs, Haxen, Labskaus... Não fazia ideia do que eram aqueles pratos. Heidi Fronk ia ajudá-la. Diane olhou para o relógio. Heidi
estava vinte minutos atrasada.
- Deseja encomendar alguma coisa, fràuleiri?
- Não. Espero pela minha convidada. Muito obrigada.
Os minutos passavam. Diane começava a interrogar-se se alguma coisa teria corrido mal.
Quinze minutos mais tarde, o criado aproximou-se de novo da sua mesa.
- Posso trazer-lhe alguma coisa?
- Não, muito obrigada. A minha convidada deve estar a chegar a qualquer momento.
Às nove horas, Heidi Fronk continuava sem aparecer. Com uma sensação de frustração Diane compreendeu que a outra não viria.
247
Quando olhou para cima, Diane apercebeu-se de dois homens que estavam sentados numa mesa perto da entrada. Estavam mal vestidos e tinham mau aspecto e a palavra
que lhe ocorreu imediatamente foi "rufiões". Observou quando o criado se aproximou e eles o mandaram embora com rudeza. Não estavam interessados na comida. Viraram-se
para olhar de frente para Diane e, com uma sensação de espanto, ela compreendeu que acabara de cair numa armadilha. Heidi Fronk tramara-a. Diane sentiu o sangue
a subir- lhe à cabeça. Olhou em volta à procura de uma forma de poder escapar. Não havia nenhuma. Podia continuar ali sentada, mas chegaria uma altura em que teria
que sair, e nessa altura eles caçavam-na. Pensou em usar o telemóvel, mas não havia ninguém que a pudesse ajudar.
Diane pensava, desesperada.
Eu tenho de sair daqui, mas como?
Enquanto olhava em redor da sala, o seu olhar caiu sobre o atraente homem que se sentava sozinho na mesa em frente â sua. Estava a beber o café.
Diane sorriu e disse:
- Boa noite.
Ele olhou para cima com ar espantado e respondeu de forma simpática:
- Boa noite.
Diane sorriu-lhe, calorosa e convidativa.
- Vejo que estamos ambos sozinhos.
- É verdade.
- Gostaria de se juntar a mim?
Ele hesitou um segundo e sorriu.
- Com todo o gosto.
- Não tem graça nenhuma comer sem companhia, pois não? - comentou Diane de forma leve.
- Tem toda a razão. Não tem graça nenhuma.
Ela estendeu a mão.
- Chamo-me Diane Stevens. -,.
- Greg Holliday.
248
Kelly Harris ficara aterrorizada com a sua experiência com Sam Meadows. Depois da sua fuga, passara a noite a caminhar pelas ruas de Montmartre, olhando constantemente
por cima do ombro, com medo de estar a ser seguida.
Eu não posso deixar Paris sem saber o que se está a passar, pensava.
Rompia a manhã quando parou num pequeno quiosque e tomou um café. A resposta ao seu problema surgiu-lhe inesperadamente. A secretária de Mark, lembrou-se.
Às nove da manhã, Kelly telefonou de uma cabina telefónica. Marcou o número tão seu conhecido e uma voz feminina de uma telefonista com um forte sotaque francês
respondeu:
- Kingsley Internacional Group.
- Queria falar com Yvonne Renais.
- Um momento, por favor.
Segundos depois, ouviu a voz de Yvonne.
- Fala Yvonne Renais. Em que posso ser útil?
- Yvonne? Fala Kelly Harris.
Do outro lado ouviu-se uma exclamação de espanto.
- Oh! Senhora Harris...
No gabinete de Tanner Kingsley, uma luz azul acendeu-se.
Tanner levantou o telefone. Em Nova Iorque eram três da manhã, mas decidira que não ia sair do escritório até que aquele aborrecido problema estivesse resolvido.
Agora, enquanto Tanner escutava no telefone, ouvia a conversa que tinha lugar em Paris.
- Lamento muito o que aconteceu ao senhor Harris. Foi horrível.
- Muito obrigada, Yvonne. Preciso de falar consigo. Podemo-nos encontrar para almoçar? Está livre?
- Sim.
.- Num lugar público qualquer.
- Conhece o Le Ciel de Paris? É na Tour Montparnasse.
- Está bem.
No seu gabinete, Tanner tomou nota mentalmente.
- Ao meio dia?
- Certo. Encontramo-nos lá.
Os lábios de Tanner abriram-se num fino sorriso. Aproveita bem o teu último almoço. Destrancou uma gaveta, puxou-a e tirou para fora um telefone dourado.
Quando a voz do outro lado atendeu, Tanner disse:
- Boas notícias. Acabou. Tenho as duas.
Ouviu durante algum tempo e depois assentiu com a cabeça.
- Eu sei. Demorou um pouco mais do que prevíamos, mas agora estamos prontos para avançar... Eu sinto a mesma coisa... Adeus.
249
A Tour de Montparnasse é uma torre com cerca de duzentos e dez metros de altura, toda em aço e vidro. O edifício fervilhava de actividade. Os escritórios estavam
todos ocupados. O bar e o restaurante situavam-se no quinquagésimo sexto andar.
Kelly foi a primeira a chegar. Yvonne chegou quinze minutos mais tarde, desculpando- se.
Kelly só a encontrara algumas vezes, mas lembrava-se bem dela. Yvonne era uma senhora pequenina de rosto doce. Muitas vezes Mark elogiara a sua eficiência.
- Muito obrigada por ter vindo - disse Kelly.
- Eu faria o que fosse preciso. O senhor Harris era um homem maravilhoso. Todos no escritório o adoravam. Nenhum de nós conseguiu acreditar no que... no que aconteceu.
- E exactamente por isso que eu queria falar consigo, Yvonne.
Você esteve com o meu marido quanto tempo, cinco anos?
- Exactamente.
- Portanto, conheceu-o bem.
- Oh, sim!
- Apercebeu-se de alguma coisa nos últimos meses que lhe parecesse estranha? Quero dizer, uma alteração naquilo que ele dizia e fazia?
Yvonne evitou os olhos dela.
- Não tenho a certeza... Quero dizer...
Kelly encorajou-a.
- Seja o que for que diga não lhe vai fazer mal. E pode ser que me consiga ajudar a compreender o que se passou. - Kelly preparou-se para fazer a pergunta seguinte:
- Ele alguma vez lhe falou em Olga?
Yvonne olhou para ela intrigada.
- Olga? Não.
- Não faz ideia de quem seja?
- Nenhuma.
Kelly sentiu-se aliviada. Inclinou-se para a frente.
- Yvonne, há alguma coisa que me queira contar?
- Bom...
O criado aproximou-se da mesa.
- Bonjour mesdames. Bienvenues au Ciel de Paris. Je m'appelk Jacques
250
Brion. Notre chef de cuisine a prepare quelques spécialités pour le déjeuner d'aujourd'hui. Avez-vous fait votre choix?
- Oui monsieur. Nous avons choisi le Châteubriand pour deux.
Assim que o criado partiu, Kelly olhou para Yvonne.
- Estava a dizer...?
- Bom, nos últimos dias antes de... antes da sua morte, o senhor Harris parecia andar nervoso. Pediu-me para lhe arranjar um bilhete de avião para Washington, D.C.
- Eu sei disso. Mas pensei que fosse uma viagem de rotina.
- Não era. Penso mesmo que era qualquer coisa muito pouco habitual, algo muito urgente.
- Tem alguma ideia do que se tratava?
- Não. De repente, tudo começou a ser muito secreto. E a única coisa que sei.
Kelly interrogou Yvonne durante toda a hora seguinte, mas não havia mais nada que ela pudesse adiantar. Quando terminaram o almoço, Kelly pediu: -Yvonne, eu gostaria
que este nosso encontro ficasse só entre nós.
- Não se preocupe, senhora Harris. Não comento com ninguém - e Yvonne levantou-se. - Tenho de regressar ao trabalho. - Os lábios dela tremiam. - Mas nunca mais será
a mesma coisa.
- Muito obrigada, Yvonne.
Com quem iria Mark encontrar-se em Washington? E havia ainda aqueles estranhos telefonemas da Alemanha, Denver e Nova Iorque.
Kelly apanhou o elevador até à entrada. Vou telefonar a Diane e ver o que ela descobriu. Talvez...
Assim que chegou à entrada do edifício, viu-os. Dois enormes homens, um de cada lado da porta da rua. Olharam para ela e sorriram um para o outro. Tanto quanto sabia,
não havia mais nenhuma saída ali perto. Será que Yvonne me traiu?
Os homens começaram a avançar na sua direcção, empurrando as pessoas que entravam e saíam do edifício.
Kelly olhou desesperada em seu redor e encostou-se com força. (Em francês no original: "Bom dia, minhas senhoras. Bem vindas ao Le Ciel de Paris. O meu nome é Jacques
Brion. O nosso chefe de cozinha preparou umas deliciosas especialidades para o almoço de hoje. Já escolheram? "Sim. Escolhemos o Chãteau- briand para dois." (N.
da T.)
251
contra a parede. O braço bateu contra qualquer coisa dura. Olhou para ver o que era e, quando os dois homens se aproximaram, Kelly pegou no pequeno martelo que estava
ligado ao alarme de incêndios, partiu o vidro e o alarme disparou, ecoando por todo o edifício. Kelly começou a gritar: - Fogo! Fogo!
O pânico foi imediato. As pessoas começaram a sair apressadamente dos escritórios, das lojas, dos restaurantes, direitas à saída. Em poucos segundos, o átrio estava
apinhado, toda a gente a esforçar-se por sair dali. Os dois homens tentavam encontrar Kelly no meio da multidão. Quando, finalmente, conseguiram chegar ao local
onde a tinham visto pela última vez, ela desaparecera.
O restaurante Rackendorfs começava a ficar cheio de gente.
- Eu estava à espera de uma amiga - explicou Diane a Greg Holliday, o atraente homem que convidara para a sua mesa. - Parece que ela não pôde vir.
- Aborrecido. Está em Berlim de visita?
- Sim.
- Berlim é uma cidade maravilhosa. Eu sou um homem muito bem casado, senão oferecia-me para a acompanhar. Mas há excelentes tours que posso recomendar.
- Isso seria muito simpático - respondeu Diane, distraída.
Olhou para a entrada. Os dois homens dirigiam-se para a porta.
Iam ficar à espera dela lá fora. Chegara a hora de tomar uma atitude.
- Na realidade - disse Diane - eu estou aqui com um grupo - olhou para o relógio. - Neste momento estão à minha espera.
Se não se importasse de me acompanhar até um táxi...
- De maneira nenhuma.
Momentos mais tarde dirigiam-se para a saída. Diane sentiu um enorme alívio. Se estivesse sozinha, os dois homens podiam tentar atacá-la, mas não lhe parecia que
se iam atrever com um homem a seu lado. Isso chamaria muito as atenções.
Quando Diane e Greg chegaram lá fora, os dois homens tinham desaparecido. Em frente da porta do restaurante estava parado um táxi e, atrás dele, um Mercedes. Diane
disse:
- Gostei muito de o conhecer, senhor Holliday. Espero... 252
Ele olhou para ela, segurou-lhe o braço e apertou-lho tanto que ela sentiu uma dor terrível.
Olhou sobressaltada para ele.
- Mas que...?
- Porque não entramos no carro? - disse ele suavemente. E ia puxando Diane na direcção do Mercedes. O seu aperto foi aumentando.
- Mas eu não...
Assim que chegaram junto do carro, Diane viu os homens do restaurante lá dentro sentados, nos lugares da frente. Horrorizada, percebeu o que acontecera e ficou em
pânico.
- Por favor - pediu. - Não. Eu... - E sentiu-se empurrada para dentro do carro.
Greg Holliday entrou para o lado dela e fechou a porta.
- Schnell!
Quando o carro se embrenhava no meio do trânsito, Diane começou a ficar histérica.
- Por favor...
Greg Holliday virou-se para ela e sorriu de forma tranquilizadora.
- Pode ficar calma. Não lhe vou fazer mal. Garanto-lhe que amanhã já vai estar a caminho de casa.
E enfiou a mão dentro da bolsa traseira que estava presa ao banco do condutor e tirou para fora uma agulha hipodérmica.
- Vou dar-lhe uma injecção. Não faz mal nenhum. Vai pô-la a dormir durante uma ou duas horas.
E pegou no pulso de Diane.
- Scheisse! - berrou o condutor. De repente, um peão surgira na frente do Mercedes e o condutor teve de travar a fundo para não o atropelar. Apanhado desprevenido,
Holliday bateu com a cabeça contra a parte metálica do apoio para a cabeça.
Tentou endireitar-se, atordoado. E gritou ao condutor:
- Mas que raio...?
Nesse momento, num gesto instintivo Diane agarrou a mão de Holliday que segurava a seringa, virou-lhe o pulso e enterrou-lhe a agulha na carne.
Holliday virou-se para ela, horrorizado:
- Não! - gritou.
Com um horror crescente, Diane viu o corpo dele entrar em espasmos, em seguida endurecer e ter um colapso.
Morrera em segundos. Os dois homens no banco da frente viraram-se para ver o que se passava. Diane já estava fora da porta e, segundos mais tarde, sentava-se num
táxi para seguir na direcção oposta.
253
CAPÍTULO 39
O som do seu telemóvel a tocar fê-la estremecer. Pegou nele com Cuidado e atendeu-o:
- Estou?
- Olá, Diane! Onde está?
- Estou em Munique. E você?
- Estou no ferry que atravessa o canal da Mancha a caminho de Londres.
- Como correu o encontro com Sam Meadows?
Kelly ainda era capaz de ouvir os gritos dele.
- Eu conto-lhe quando nos encontrarmos. Conseguiu algumas informações?
- Nada de especial. Temos de decidir o que vamos fazer a seguir. Estamos a esgotar as possibilidades. O avião de Gary Reynolds caiu perto de Denver. Penso que devíamos
ir até lá. Talvez seja a nossa última hipótese.
- Está bem.
- O obituário dele dizia que tinha uma irmã em Denver. Pode ser que ela saiba alguma coisa. Porque não nos encontramos em Denver, no Brown Palace Hotel? Eu parto
do aeroporto de Schoenfeld, em Berlim, daqui a três horas.
- Eu apanho um avião em Heathrow.
- Óptimo. O quarto vai ficar reservado em nome de Harriet Beecher Stowe. Kelly?
- Sim?
- E só... sabe...
- Eu sei. Você também.
Tanner estava sozinho no seu gabinete a falar no telefone dourado.
254
- ...e conseguiram escapar. Sam Meadows não está nada feliz e Greg Holliday morreu. - Ficou calado por momentos. - Segundo a lógica, o lugar que lhes resta é Denver.
Na verdade, é provavelmente a sua última opção... Parece que vou ter que ser eu a tratar disto. Elas conseguiram ganhar o meu respeito, por isso é natural que seja
eu a tratar do caso delas como deve ser. - Ficou a ouvir e riu. - É claro. Adeus.
Andrew estava sentado no seu gabinete, a divagar e a criar visões nubladas. Estava deitado numa cama de hospital e Tanner dizia: Tu espantas-me, Andrew. Devias ter
morrido. Agora os médicos dizem-me que vais ter alta dentro de poucos dias. Vou dar- te um gabinete no KIG. Quero que vejas como te vou salvar a pele. Só que tu
não aprendias, pois não, meu imbecil? Bom, vou transformar a tua operação de tuta e meia numa mina de ouro e tu bem podes ficar sentado a ver como o vou fazer. A
propósito, a primeira coisa que fiz foi cancelar a porcaria daqueles projectos de boa vontade que iniciaste, Andrew... Andrew... Andrew...
A voz era cada vez mais forte.
- Andrew! Estás surdo?
Tanner chamava por ele. Andrew levantou-se e dirigiu-se ao gabinete do irmão.
Este olhou para cima.
- Espero não estar a interferir com o teu trabalho - disse, sarcasticamente.
- Não, eu só estava a..
Tanner estudou o irmão por instantes.
- Tu não serves mesmo para nada, pois não, Andrew? Não semeias nem colhes. É bom para mim ter alguém com quem falar, mas não sei por mais quanto tempo te quero manter
por aqui.
Kelly chegou a Denver antes de Diane e instalou-se no venerável Brown Palace Hotel.
- Esta tarde vai chegar uma amiga minha.
- Pretendem dois quartos? ;
-Não, um duplo.
Assim que o avião de Diane aterrou no aeroporto internacional de Denver, ela apanhou um táxi que a levou ao hotel. Deu o nome ao recepcionista.
- Sim, senhora Stevens. A senhora Stowe está à sua espera. Está no quarto 638.
255
Foi um alívio ouvir aquilo.
Kelly esperava por ela. As duas trocaram um caloroso abraço - Tive saudades suas.
- E eu suas. Que tal a sua viagem? - perguntou Kelly.
- Nada de especial. Graças a Deus.
Diane olhou para ela e perguntou:
- O que foi que se passou em Paris?
- Tanner Kingsley - explicou ela. - E o que se passou em Berlim?
- Tanner Kingsley - respondeu numa voz sem timbre.
Kelly dirigiu-se a uma mesa, pegou numa lista telefónica e trouxe-a para junto de Diane.
-A irmã de Gary Reynolds, Lois, continua na lista telefónica. Vive na Marion Street.
- Óptimo. - Diane olhou para o relógio. - Hoje já é muito tarde para fazermos alguma coisa. Vamos lá logo de manhãzinha.
Jantaram no quarto e conversaram até à meia-noite, depois preparam-se para se deitar.
- Boa noite - disse Diane, e estendeu a mão para o interruptor.
O quarto ficou mergulhado em escuridão.
- Não! - gritou Kelly. - Por favor, acenda a luz.
Diane acendeu-a imediatamente.
-Desculpe, Kelly. Esqueci-me completamente.
- Até Mark aparecer, eu tinha medo do escuro. Depois de ele ter sido morto... - Kelly começou a hiperventilar, a tentar combater o pânico. Respirou fundo. - Como
gostava de ser capaz de superar isto.
- Não se preocupe. Vai ser capaz, quando se sentir de novo segura.
Na manhã seguinte, quando Diane e Kelly saíram do hotel, havia uma fila de táxis em frente da entrada. Entraram num e Kelly deu o número da casa de Lois Reynolds,
na Marion Street.
Quinze minutos depois, o motorista encostava ao passeio.
- Ora cá estamos.
Kelly e Diane olhavam pela janela de boca aberta. O que viam eram as ruínas queimadas de uma casa que ardera até às fundações. Não ficara nada a não ser cinzas,
pedaços de madeira queimada e fundações em cimento completamente desfeitas.
256
- Os sacanas mataram-na - exclamou Kelly. Olhou para Diane, desesperada. - Chegámos ao fim do caminho.
Diane pensava.
- Ainda há uma possibilidade.
Ray Fowler, o amargo gerente do aeroporto de Denver, troçou de Diane e de Kelly:
-Vamos lá a ver se percebi bem. Vocês as duas estão a investigar a queda de um avião, sem qualquer autoridade para o fazerem e querem que eu lhes arranje a possibilidade
de falarem com o controlador aéreo que estava de serviço, para que ele vos dê informações confidenciais? Percebi bem?
Diane e Kelly olharam uma para a outra.
- Sabe, nós tínhamos esperança de... - respondeu Kelly.
- De quê?
- De que nos pudesse ajudar.
- E porque havia eu de o fazer?
- Senhor Fowler, nós só queremos ter a certeza de que aquilo que aconteceu a Gary Reynolds foi unicamente um acidente.
Ray Fowler estudava as duas mulheres.
- Que interessante - disse.
E ali ficou sentado, espantado, e por fim disse:
- Há uns tempos que isto não me sai da cabeça. Talvez devam, de facto, falar com Howard Miller. Era ele o controlador que estava de serviço no dia do acidente. Têm
aqui a morada. Eu entretanto telefono-lhe e digo-lhe que vocês vão aparecer.
- Muito obrigada. É muito amável da sua parte - disse Diane.
Ray Fowler grunhiu:
- Eu só faço isto porque o relatório da FAA sobre o acidente é um perfeito disparate. Encontrámos os destroços do avião, mas, coincidência das coincidências, a caixa
negra tinha desaparecido. Desaparecido, pura e simplesmente.
Howard Miller vivia numa pequena casa a cerca de dez quilómetros do aeroporto. Era um homem baixinho, cheio de energia, nos quarenta anos. Abriu a porta da frente
a Diane e Kelly.
- Entrem. Ray Fowler telefonou-me e disse que vinham aí. Em que as posso ajudar?
257
- Gostaríamos de falar consigo, senhor Miller.
- Sentem-se. - E sentaram-se no sofá. - Querem um café?
- Não, muito obrigada.
- Nós estamos aqui para falar consigo sobre o acidente de aviação de Gary Reynolds...
- Sim, terá sido um acidente ou...?
Howard Miller encolheu os ombros.
- Honestamente, não sei. Nunca esperei que uma coisa daquela viesse a acontecer, em todos os anos que trabalho ali. Tudo estava a decorrer segundo o regulamento.
Gary Reynolds chamou via rádio a pedir autorização para aterrar e nós concedemo-la. Quando voltou a falar, ele estava apenas a duas milhas de nós e reportava a existência
de um furacão! Um furacão! Os nossos monitores não re gistavam nada. Não havia qualquer vento naquela altura. Para lhe dizer a verdade, pensei que ele ou tinha bebido
ou estava drogado. De pois disso, só sei que ele foi embater contra um dos lados da montanha.
- Pelo que percebi, a caixa negra não apareceu, não é verdade? - perguntou Kelly.
- Pois. Isso é outra coisa - confirmou Howard Miller, pensativo. - Encontrámos tudo o resto. Mas o que foi que aconteceu à caixa negra? Os desgraçados dos FAA apareceram
aí e diziam que tínhamos os registros todos errados. Não acreditaram em nós quando lhes contámos o que se passara. Sabe quando se tem a sensação de que há qualquer
coisa que não está bem?
- Sim.
- Eu acho que há qualquer coisa errada, mas não sei dizer exactamente o quê. Lamento não poder ajudar mais.
Diane e Kelly levantaram-se, frustradas.
- De qualquer das maneiras, muito obrigada, senhor Miller.
Agradecemos o tempo que nos dispensou.
- De nada.
Quando Miller acompanhava as duas mulheres até à porta, disse:
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- Espero que a irmã dele fique boa.
- O quê? - perguntou Kelly, estacando.
- A irmã dele. Está no hospital. Coitada. A casa dela ardeu até ao chão, a meio da noite. Não sabem se ela vai conseguir sobreviver.
- O que aconteceu? - perguntou Diane, sentindo-se gelar.
- Os bombeiros pensam que foi provocado por um curto-circuito. Lois conseguiu arrastar-se até à porta de rua, para o jardim, mas quando os bombeiros chegaram estava
em muito mau estado.
Diane conseguiu manter a voz calma.
- E em que hospital está ela?
- Está no Hospital da Universidade do Colorado. No centro de queimados. Ala Três Norte.
A enfermeira na recepção na Três Norte disse:
- Lamento muito, mas a menina Reynolds não pode receber visitas.
- Pode dizer-nos em que quarto está? - pediu Kelly.
- Não. Lamento muito, mas não posso.
- É que isto é uma emergência - disse Diane. - Nós temos que a ver e...
- Ninguém a vê sem autorização escrita. O tom da voz ela punha um ponto final à conversa.
Diane e Kelly olharam uma para a outra.
- Muito bem. Então muito obrigada.
As duas mulheres afastaram-se.
- O que vamos fazer agora? - perguntou Kelly. - Esta é a nossa última hipótese.
- Tenho um plano.
Um mensageiro fardado transportando um enorme embrulho atado com fitas abordou a recepção.
- Tenho aqui um embrulho para Lois Reynolds.
- Eu assino - disse a enfermeira.
O rapaz abanou a cabeça.
- Lamento muito. As minhas instruções são para o entregar pessoalmente .É muito valioso. A enfermeira hesitou.
- Então terei que o acompanhar.
- Tudo bem.
E ele seguiu a enfermeira até ao fim do corredor. Quando chegaram ao quarto 391, a enfermeira começou a abrir a porta e o mensageiro deu-lhe o embrulho.
- Pode entregar-lho - disse.
Num andar imediatamente abaixo, o mensageiro dirigiu-se ao banco onde Diane e Kelly se sentavam à espera. 259
- É o quarto 391 - disse.
- Muito obrigada - respondeu Diane, grata. E deu-lhe algum dinheiro para a mão.
As duas mulheres subiram as escadas para o terceiro andar, entraram no corredor e esperaram até que a enfermeira fosse ao telefone. Estava de costas para elas. Então
apressaram-se pelo corredor e entraram no quarto 391.
Lois Reynolds estava deitada na cama com uma cadeia de tubos e de fios ligados ao seu corpo. O seu corpo estava coberto de ligaduras. Tinha os olhos fechados, quando
Kelly e Diane se aproximaram da cama.
Diane falou baixinho:
- Menina Reynolds. O meu nome é Diane Stevens e esta é a Kelly Harris. Os nossos maridos trabalhavam para o KIG.
Os olhos de Lois Reynolds abriram-se devagarinho e ela tentou focá-los. Quando falou, a sua voz era a sombra de um sussurro.
- O quê?
- Os nossos maridos trabalhavam para o KIG - disse Kelly. - Ambos foram mortos. Pensámos que, devido ao que aconteceu ao seu irmão, nos pudesse ajudar em alguma
coisa.
Lois Reynolds tentou abanar a cabeça.
- Eu não posso ajudar... Gary está morto.
Os seus olhos encheram-se de lágrimas.
Diane inclinou-se sobre ela.
- O seu irmão disse-lhe alguma coisa antes do acidente?
- Gary era uma pessoa maravilhosa. - A voz dela era lenta e dolorosa. - Ele morreu num acidente de avião.
- Ele disse-lhe alguma coisa que nos possa ajudar a descobrir o que se passou? - insistiu Diane pacientemente.
Lois Reynolds fechou os olhos.
- Menina Reynolds, por favor, não adormeça já. Por favor. Isto é muito importante. O seu irmão disse-lhe alguma coisa que nos possa ajudar?
Lois Reynolds abriu de novo os olhos e olhou para Diane, intrigada.
- Mas quem são vocês?
- Nós estamos convencidas de que o seu irmão foi assassinado - respondeu Diane.
- Eu sei... - murmurou Lois.
As duas sentiram um arrepio gelado.
- Porquê? - perguntou Kelly.
260
- Prima... - Não era mais do que um murmúrio.
Kelly aproximou-se mais.
- Prima?
- Gary contou-me... falou sobre isso... uns dias antes de ser morto. A máquina deles pode controlar... controlar o tempo. Pobre Gary.
Ele... ele nunca conseguiu chegar a Washington.
- Washington? - perguntou Diane.
- Sim.. Eles iam todos... iam todos ter com um senador qual quer e falar... falar sobre Prima... Gary disse que Prima era muito mau...
- Lembra-se do nome do senador? - perguntou Kelly.
- Não.
- Pense, por favor, pense.
Lois Reynolds murmurava qualquer coisa.
- Senador não sei o quê...
- Qual senador? - insistiu Kelly. .
- Levin... Luven... van Luven. Eles iam falar com ela. Iam encontrar-se com...
Aporta abriu-se de repente e um médico com um casaco branco e um estetoscópio pendurado ao pescoço entrou pelo quarto. Olhou para Diane e Kelly e disse, furioso:
- Ninguém vos disse que não são permitidas visitas?
Kelly respondeu:
- Desculpe. Tínhamos que falar...
- Saiam, por favor.
As duas mulheres olharam para Lois Reynolds.
- Adeus. As suas melhoras.
O homem ficou a vê-las sair do quarto. Quando a porta se fechou, dirigiu-se à cama, ficou de pé junto de Lois Reynolds e pegou numa almofada.
261
CAPÍTULO 40
Kelly e Diane conseguiram encontrar o caminho até ao átrio do hospital.
- Era por isso que Richard e Mark iam a Washington. Para falar com a senadora van Luven - disse Diane.
- E nós, como é que falamos com ela?
- E simples - respondeu Diane, puxando do telémóvel.
Kelly ergueu a mão para a impedir.
- Não. É melhor usarmos uma cabina. Conseguiram o número de telefone do Senado através das informações e Diane fez a ligação.
- Gabinete da senadora van Luven.
- Gostaria de falar com a senadora, por favor.
- Pode dizer-me o seu nome?
- É um assunto pessoal - respondeu Diane.
- O seu nome, por favor?
- Não posso... Diga-lhe só que é muito importante.
- Lamento, mas não o posso fazer.
E a ligação foi cortada. Diane virou-se para Kelly.
- Nós não podemos usar os nossos nomes. E Diane ligou outra vez o mesmo número.
- Gabinete da senadora van Luven.
- Por favor, ouça-me. Isto não é uma brincadeira. Eu preciso de falar com a senadora van Luven e não lhe posso dar o meu nome.
- Então receio não poder permitir que fale com a senadora.
E a chamada foi mais uma vez cortada.
Diane ligou outra vez.
- Gabinete da senadora van Luven.
- Por favor, não desligue. Eu sei que se limita a fazer o seu trabalho, mas este é um caso de vida ou de morte. Eu estou a ligar de uma cabina. Vou dar-lhe o número.
Por favor, peça à senadora que me ligue. - Deu à secretária o número e ouviu-a desligar o telefone.
262
Kelly perguntou:
- E agora, o que fazemos?
- Agora ficamos à espera.
Esperaram duas horas e por fim Diane disse:
- Não vai funcionar. Vamos...
O telefone tocou. Diane respirou fundo e correu para o atender.
- Está lá?
Uma aborrecida voz feminina disse:
- Daqui fala senadora van Luven. Quem fala?
Diane inclinou o telefone para Kelly de forma que as duas conseguissem ouvir o que a senadora dizia. Diane estava tão perturbada que mal conseguia falar.
- Senadora, o meu nome é Diane Stevens. Estou com Kelly Harris.
Sabe quem nós somos?
- Não. Lamento, mas não...
- Os nossos maridos foram assassinados quando se preparavam para se encontrar consigo.
Do outro lado, ela arquejou.
- Oh, meu Deus! Richard Stevens e Mark Harris.
- Exactamente.
- Os vossos maridos tinham marcado um encontro comigo, mas a minha secretária recebeu um telefonema a dizer que tinham alterado os planos deles. E depois... morreram.
- O telefonema que recebeu não foi feito por eles, senadora - disse Diane. - Eles foram assassinados por quem os queria impedir de chegar até si.
- O quê? - parecia chocada. - Mas porque é que alguém...?
- Foram mortos para que não falassem consigo. Eu e Kelly gostaríamos de ir a Washington falar consigo sobre o que os nossos maridos lhe queriam dizer.
Houve uma pequena hesitação.
- Eu encontro-me convosco, mas não no meu gabinete. É demasiado público. Se o que me está a dizer é verdade, pode ser muito perigoso. Tenho uma casa em Southampton,
em Long Island. Posso encontrar-me convosco aí. De onde me estão a telefonar?
- De Denver.
- Só um segundo.
Três minutos mais tarde, a senadora voltou de novo à linha.
- O próximo voo que sai de Denver para Nova Iorque é da United,
263
directo a La Guardiã. Sai à meia noite e vinte e cinco e chega a Nova Iorque às seis e nove da manhã. Se o voo estiver cheio, há outro...
- Nós iremos nesse voo.
Kelly olhava para Diane, espantada.
- Diane, e se não conseguirmos...
Diane ergueu a mão para a acalmar.
- Nós apanhamos esse voo.
- Quando chegarem ao aeroporto, uma limusina cinzenta estará à vossa espera. Dirijam-se imediatamente ao carro. O condutor é asiático. Chama-se Kunio, K-U-N-I-O.
Ele as levarás até à minha casa.
Estarei à vossa espera.
- Muito obrigada, senadora.
Diane desligou o telefone e respirou fundo. Virou-se para Kelly.
- Está tudo tratado.
- Como é que sabe que conseguimos apanhar esse voo? - per guntou Kelly.
- Tenho um plano.
- Está a brincar comigo!
- Não, não estou.
- Vai fazer um novo penteado agora? Kelly, nós estamos a caminho do aeroporto para apanhar um avião, e não temos tempo para...
- Diane, nunca se sabe o que vai acontecer. E, no caso de vir a morrer, quero estar bonita.
Diane ficou sentada, sem saber o que dizer, a ver Kelly entrar no salão de beleza.
Vinte minutos depois, Kelly saiu. Usava uma peruca preta, um luxuriante cabelo apanhado bem alto sobre a cabeça. - Estou pronta - disse Kelly. - Passemos ao ataque.
O porteiro no hotel arranjou-lhes um carro de aluguer e, quarenta e cinco minutos depois, Diane e Kelly estavam a caminho do aeroporto. Kelly ia dizendo:
- Não sei se estou excitada ou se estou com medo.
- Não creio que daqui para a frente tenhamos mais nada com que nos preocupar.
- Parece que havia um monte de pessoas que queriam falar com a senadora, mas nenhuma delas conseguiu. Foram todos mortos.
- Então nós vamos ser as primeiras a conseguir fazê-lo.
- Gostaria que tivéssemos... - disse Kelly.
- Eu sei, uma arma. Já disse isso. Mas temos a nossa inteligência.
- Está bem. Mas mesmo assim gostava de ter uma arma.
Kelly olhou lá para fora.
- Encoste aí.
Diane encostou ao passeio.
- O que foi?
- Há uma coisa que eu quero fazer.
Pararam em frente de um salão de beleza. Kelly abriu aporta do carro.
- Onde é que vai? - perguntou Diane.
- Vou fazer um novo penteado.
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CAPÍTULO 41
- Lamento muito.
- O que aconteceu? - perguntou Diane.
- Pelos vistos, o coração não aguentou.
Howard Miller olhou para o avião.
- Estão prontos para partir. Consegui-vos lugares junto à porta.
- Mais uma vez, muito obrigada.
- Vem um Lexus branco atrás de nós - disse Kelly.
- Eu sei. E tem uma meia dúzia de homens lá dentro.
- Consegue despistá-los?
- Não preciso.
- O quê?- exclamou Kelly, olhando para ela.
- Olhe.
Aproximavam-se de um portão do aeroporto com um letreiro que dizia "SÓ ENTREGAS". O guarda atrás do portão abriu-o para deixar entrar o carro.
Os homens no Lexus olhavam enquanto Kelly e Diane saíram e se dirigiam a um carro oficial do aeroporto, que estava parado na placa. Quando o Lexus chegou junto do
portão, o guarda disse:
- Esta entrada é privada.
- Mas deixou entrar o outro carro.
- Esta entrada é privada.
E fechou o portão.
O carro do aeroporto atravessou a placa e parou ao lado de um jumbo. Quando Diane e Kelly saíram, Howard Miller estava à espera delas.
- Conseguiram cá chegar.
- Claro - respondeu Diane. - Muito obrigada por ter tratado de tudo.
- Foi um prazer. - O rosto dele ficou sério. - Espero que saia alguma coisa de bom de tudo isto.
- Agradeça por nós a Lois Reynolds e diga-lhe...
A expressão do rosto de Howard Miller alterou-se.
- Lois Reynolds morreu ontem à noite.
As duas mulheres ficaram chocadas. Kelly precisou de um bom bocado para conseguir responder:
Miller ficou a ver Kelly e Diane subirem as escadas. Momentos mais tarde, a assistente de bordo fechou a porta e o avião começou a taxiar. Kelly virou-se para Diane
e sorriu.
- Conseguimos. Conseguimos ser mais espertas do que todos aqueles cérebros. O que vai fazer depois de falarmos com a senadora van Luven?
- Confesso que ainda não pensei nisso. E a Kelly, vai voltar para Paris?
- Depende. Acha que vai ficar em Nova Iorque?
- Vou.
- Então talvez fique em Nova Iorque por mais uns tempos - respondeu Kelly.
- Ou podemos ir as duas até Paris.
Estavam sentadas a sorrir uma para a outra.
- Estava agora mesmo a pensar como Richard e Mark estariam orgulhosos se soubessem que conseguimos terminar o trabalho que eles começaram - comentou Diane.
- Pode ter a certeza.
Diane olhou pela janela para o céu e disse baixinho:
- Obrigada, Richard.
Kelly olhou para ela e abanou a cabeça, mas não fez qualquer comentário.
Richard, eu sei que me podes ouvir, meu querido. Nós vamos terminar aquilo que tu começaste. Vamos vingar-te a ti e aos teus amigos. Isso não te vai trazer de volta,
mas ajuda um bocadinho. Sabes do que é que eu mais sinto falta, meu amor? De tudo.
Quando a avião aterrou no aeroporto de La Guardiã, três horas e meia mais tarde, Diane e Kelly foram os primeiros passageiros a desembarcar. Diane recordou as palavras
da senadora: Quando chegarem ao aeroporto, uma limusina cinzenta estará à vossa espera.
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O carro aguardava perto da entrada do terminal. Junto dele estava um japonês de alguma idade, fardado. Pôs-se praticamente em sentido quando Kelly e Diane apareceram.
- Senhoras Stevens e Harris?
- Exactamente.
- Eu sou Kunio. -Abriu a porta do carro e elas entraram. Momentos mais tarde, estavam a caminho de Southampton.
- A viagem demora perto de duas horas e meia - disse o motorista. - A paisagem é lindíssima.
A última coisa em que estavam interessadas era na paisagem. Estavam ambas ocupadas a pensar na forma mais rápida de explicarem à senadora o que se passara.
Kelly perguntou:
- Acha que a senadora vai correr perigo, depois de lhe contarmos o que sabemos?
-Tenho a certeza de que ela tem protecção. Saberá como lidar com isto.
- Espero bem que sim.
Ao fim de quase duas horas, a limusina entrou por fim nos terrenos de uma casa em pedra com um telhado de lousa e esguias chaminés, ao estilo da Inglaterra do século
dezoito. Tinha dois grandes jardins muito bem cuidados e havia uma casa separada para os criados e a garagem.
Assim que o carro parou à porta da frente, Kunio disse:
- Ficarei cá fora à espera, se precisarem de mim.
- Muito obrigada.
A porta foi aberta por um mordomo.
- Boa noite. Entrem, por favor. A senadora está à vossa espera.
As duas mulheres entraram. A sala era elegante e de aspecto prático, mobilada com uma grande variedade de antiguidades e com sofás e cadeiras de aspecto confortável.
Na parede, sobre uma enorme lareira com uma prateleira barroca, ardiam velas em dois castiçais de vidro espelhado.
O mordomo disse:
- Por aqui, por favor.
Kelly e Diane seguiram o mordomo e entraram numa grande sala de estar.
A senadora van Luven aguardava-as. Vestia um fato leve de seda azul com uma blusa e tinha o cabelo solto. Era muito mais feminina do que Diane esperara.
- Eu sou Pauline van Luven.
- Diane Stevens.
- Kelly Harris.
- Estou satisfeita por vos ver. Demorou demasiado tempo.
Kelly olhou para a senadora van Luven, intrigada.
- Desculpe?
Ouviu-se a voz de Tanner Kingsley atrás delas.
- O que ela quer dizer é que tiveram muita sorte, mas que finalmente a vossa sorte acabou.
Diane e Kelly viraram-se. Tanner Kingsley e Harry Flint tinham acabado de entrar na sala.
- Agora, senhor Flint - disse Tanner.
Harry Flint ergueu uma pistola. Sem dizer uma só palavra, fez pontaria às duas mulheres e disparou duas vezes. Pauline van Luven e Tanner Kingsley ficaram a olhar
enquanto os corpos de Diane e Kelly cambaleavam para trás e caíam no chão.
Tanner dirigiu-se à senadora van Luven e abraçou-a.
- Finalmente terminou, Princesa.
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Flint perguntou:
- Que quer que eu faça com os corpos?
Tanner não hesitou.
- Amarra-lhes uns pesos aos tornozelos, leva-os de avião para cerca de duzentas milhas da costa e deixa-os cair ao Atlântico.
- Não há qualquer problema. - Flint saiu da sala.
Tanner virou-se para a senadora van Luven:
- Terminou, Princesa. Podemos finalmente partir.
Ela aproximou-se dele e beijou-o.
- Senti tanto a tua falta, meu amor.
- Também tive saudades tuas.
- Aqueles encontros de uma vez por mês eram frustrantes, por que eu sabia que acabavas por ter de ir embora.
Tanner apertou-a contra si.
- De agora em diante, estaremos sempre juntos. Vamos aguardar uns respeitáveis três ou quatro meses como homenagem ao teu querido falecido marido e em seguida casamo-nos.
Ela sorriu e disse:
- Mudemos isso para um mês.
Ele concordou.
- Acho bem.
- Pedi ontem a demissão do Senado. Foram muito compreensivos com a minha dor pela perda do meu marido.
- Excelente. Agora podemos estar juntos sem qualquer problema. Quero que vejas uma coisa que tenho no KIG e que não te pude mostrar antes.
Tanner e Pauline chegaram ao edifício de tijolo vermelho. Tanner dirigiu-se à sólida porta de aço que tinha a meio uma pequena ca-
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vidade. Ele usava um pesado anel de camafeu com o rosto de um guerreiro grego esculpido.
Pauline observou enquanto ele premia o anel contra a cavidade e a porta se começava a abrir. A sala era vastíssima, repleta de enormes computadores e ecrãs de televisão.
Numa parede mais afastada viam-se geradores e aparelhos electrónicos, todos ligados entre eles e com um painel de controle ao meio.
Tanner explicou:
- Aqui é o ground zero. O que tu e eu temos aqui é algo que vai mudar a vida das pessoas para sempre. Esta sala é o comando central de um sistema de satélites que
possui capacidade para controlar o clima em qualquer lugar do mundo. Podemos provocar tempestades onde quisermos. Criar secas, evitando que chova. Nevoeiros nos
aeroportos. Furacões e ciclones capazes de parar toda a economia mundial. - Sorriu. -Já demonstrei um pouco do nosso poder. Há muitos países a trabalhar para conseguirem
controlar o clima, mas nunca nenhum conseguiu até agora resolver o problema.
Premiu um botão e um enorme ecrã de televisão iluminou-se.
- O que aqui vês é uma aproximação daquilo que o exército gostaria de ter. - Virou-se para ela e sorriu. - A única coisa que impediu que Prima me desse o controle
total e perfeito foi o efeito de estufa, e disso tu trataste lindamente. - Suspirou. - Sabes quem criou este projecto? Andrew. Ele era, de facto, um génio.
Pauline olhava para o impressionante equipamento.
- Não percebo como é que isto consegue controlar o clima.
- Bom, a versão simplista é a de que o ar quente sobe na direcção do ar frio e, se encontrar humidade...
- Querido, não sejas condescendente.
- Desculpa, mas a versão final é bastante mais complicada - respondeu ele.
- Sou toda ouvidos.
- E um pouco técnico, por isso presta atenção. Os lasers de microondas criados com a nanotecnologia que o meu irmão produziu, quando disparados para a atmosfera
da Terra, geram oxigénio livre que se mistura com o hidrogénio, produzindo ozonio e água. O oxigénio livre na atmosfera junta-se em pares, por isso é que é chamado
O2, e o meu irmão descobriu que, disparando o laser do espaço para a atmosfera, obrigava o oxigénio a ligar-se com dois átomos de hidrogénio em ozonio, O3, e água,
H2O.
- Continuo a não perceber como é que isso pode...
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- O clima é accionado pela água. Andrew descobriu, em testes mais aprofundados, que uma dada quantidade de água que surgia como subproduto destas experiências fazia
com que os ventos se alterassem. Mais lasers, mais vento. Controlando a água e o vento, podemos controlar o clima.
Ficou pensativo por momentos.
- Quando descobri que Akiro Iso, em Tóquio, e mais tarde Madeleine Smith, em Zurique, se estavam a aproximar da solução do problema, ofereci-lhes emprego aqui, para
que os pudesse controlar.
Mas eles recusaram. E eu não me podia dar ao luxo de permitir que terminassem aquilo em que estavam a trabalhar. - Encolheu os ombros. - Contei-te que tinha quatro
dos meus melhores meteorologistas a trabalhar neste projecto comigo, não contei?
- Contaste.
- Pois. Eles também eram muito bons. Franz Verbrugge, em Berlim, Mark Harris em Paris, Gary Reynolds em Vancouver e Richard Stevens em Nova Iorque. Cada um deles
estava encarregue de tentar resolver um determinado problema do controle do tempo, e pensei que, dado estarem a trabalhar em países diferentes, nunca seriam capazes
de juntar todas as peças do puzzlee concluir qual era o objectivo final de todo este projecto. Mas, de alguma forma, a verdade é que chegaram lá. Vieram ter comigo
a Viena, para me perguntarem quais eram os meus planos para o Prima. Disse-lhes que o ia dar ao nosso governo. Nunca imaginei que levassem o assunto mais adiante,
mas, para ter a certeza, montei-lhes uma armadilha. Quando estavam sentados na recepção, fiz um telefonema para o teu gabinete no Senado, de forma que eles me ouvissem
a negar que alguma vez ouvira falar de Prima. Na manhã seguinte, começaram a ligar-te para marcarem encontros. Foi nessa altura que percebi que tinha de os afastar.
- E sorriu. - Vou-te mostrar o que temos aqui.
Apareceu num ecrã de computador um mapa do mundo marcado com pontos e com símbolos. A medida que Tanner falava, ia movimentando um interruptor, e o foco do mapa
foi-se alterando até se centrar sobre Portugal.
Tanner ia dizendo:
- Os vales agrícolas de Portugal são abastecidos pelos rios que correm para o Atlântico vindos de Espanha. Imagina o que aconteceria a Portugal se chovesse continuamente
até que os vales agrícolas ficassem completamente inundados.
Tanner premiu um botão e, num ecrã enorme, surgiu a imagem de um compacto palácio cor de rosa, com guardas fardados, e os lindíssimos jardins a brilhar sob a luz
do sol.
- Este é o palácio presidencial.
A imagem mudou para uma sala de jantar dentro do edifício, onde uma família tomava o pequeno almoço.
- Este é o presidente de Portugal, a mulher e dois filhos. Quando falarem será em português, mas tu ouvirás em inglês. Tenho dúzias de nanocâmaras e de microfones
espalhados pelo palácio. O presidente desconhece, mas o seu chefe de segurança trabalha para mim.
Um assessor dizia ao presidente:
- Hoje de manhã, às onze horas, tem uma reunião na Embaixada e um discurso numa central sindical. À uma da tarde, almoço no museu. Esta noite temos um jantar de
estado.
O telefone tocou sobre a mesa do pequeno almoço. O presidente atendeu-o.
- Estou?
A voz de Tanner era imediatamente traduzida do inglês para o português, à medida que falava:
- Senhor presidente?
O presidente pareceu espantado.
- Quem fala? - perguntou e a voz dele foi imediatamente traduzida do português para inglês.
- Um amigo.
- Mas quem... Como obteve o meu número privado?
- Isso não interessa. Quero que ouça com atenção. Gosto muito do seu país e não gostaria de o ver destruído. Se não quer que terríveis tempestades o façam desaparecer
do mapa, tem que me mandar dois mil milhões de dólares em ouro. Se não está interessado agora, eu volto a telefonar daqui a três dias.
No ecrã, viram o presidente bater com o telefone. Virou-se para a mulher e disse:
- Um palerma qualquer que conseguiu o meu número privado.
Deve ter saído de um manicómio.
Tanner virou-se para Pauline.
- Isto foi filmado há três dias. Agora vou-te mostrar a conversa que tivemos ontem.
A imagem do enorme palácio e dos seus belos jardins surgiu de novo, mas desta vez chovia torrencialmente e o céu estava cheio de trovoadas e iluminado por relâmpagos.
Tanner premiu um botão e a imagem no ecrã passou a ser a do
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gabinete do presidente. Estava sentado a uma mesa de conferências com meia dúzia de assistentes, todos a falarem ao mesmo tempo. O rosto dele estava sombrio. O telefone
em cima da mesa tocou.
- Agora. - Tanner sorriu.
O presidente atendeu o telefone, apreensivo.
- Estou?
- Bons dias, senhor presidente. Como...?
- Você está a destruir o meu país! Já destruiu as nossas colheitas. Os rios estão alagados. As aldeias estão a ficar... - Parou e respirou fundo. - Quanto tempo
vai isto durar? -A voz dele tinha uma ponta de histeria.
- Até eu receber os dois mil milhões de dólares!
Ficaram a ver o presidente cerrar os dentes e fechar por momentos os olhos.
- E depois pára com estas tempestades?
- Com certeza. .
- Como é que quer receber este dinheiro?
Tanner desligou o televisor.
-Vês como é fácil, Princesa? Já temos o dinheiro. Agora deixa que te mostre o que mais Prima é capaz de fazer. Estes são os nossos primeiros testes.
Premiu outro botão e a imagem de um furioso furacão apareceu no ecrã.
- Isto está a ter lugar no Japão - explicou. - Em tempo real.
E, nesta estação, para eles o tempo é sempre calmo.
Premiu outro botão e apareceram imagens de uma violenta tempestade a abater-se sobre um pomar de citrinos.
- Isto é em directo da Florida. A temperatura no exterior está, neste momento, perto de zero graus, e estamos em Junho! As colheitas vão ficar completamente destruídas.
Accionou outro botão e, no ecrã gigante, viu-se a imagem de um tornado a arrasar edifícios.
- Isto é o que se está a passar no Brasil. Como vês - continuou Tanner - Prima pode fazer qualquer coisa.
Pauline aproximou-se mais dele e disse suavemente:
- Tal como o seu papá.
Tanner desligou o televisor. Pegou em três DVDs e mostrou-lhos.
- Aqui estão três conversas muito interessantes que tive com o Peru, o México e a Itália. Sabes como é entregue o ouro? Nós mandamos camiões aos bancos deles e eles
enchem-nos. E depois estamos
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numa situação de pescadinha de rabo na boca. Se fizerem qualquer tentativa para descobrir para onde vai o ouro, eu garanto-lhes uma tempestade que começa e nunca
mais acaba. Pauline olhava para ele, preocupada.
- Tanner, há alguma hipótese de eles alguma vez conseguirem identificar as nossas chamadas?
Tanner riu.
- Espero que sim. Se alguém o tentar fazer, chegarão primeiro a uma igreja, depois são reenviados para uma escola. A terceira vez vão criar tempestades que desejarão
nunca ter assistido. E o quarto terminará na Sala Oval da Casa Branca.
Pauline riu.
A porta abriu-se e Andrew entrou.
- Ah! Cá está o meu querido irmão.
Andrew olhava fixamente para Pauline com uma expressão intrigada no rosto.
- Eu não a conheço? - Olhou para ela durante quase um minuto enquanto se concentrava, e em seguida o seu rosto iluminou-se. - Mas é claro. Você... você e Tanner
estavam... vocês iam-se casar. Eu era o padrinho. Você é... você é a Princesa.
- Muito bem, Andrew - elogiou Pauline.
- Mas você... você foi-se embora! Não amava Tanner.
Este interveio.
- Eu explico-te umas coisas. Ela foi-se embora exactamente por que me amava. - E pegou na mão dela. - Telefonou-me no dia a seguir ao casamento. Casara-se com um
homem muito rico e muito influente para, através da influência dele, conseguir arranjar clientes importantes para o KIG. Foi assim que pudemos crescer a esta velocidade.
- Tanner abraçou-a. - Arranjámos uma forma de nos encontrarmos uma vez por mês e ela depois começou a interessar-se pela política e tornou-se senadora - explicou,
orgulhoso, Tanner.
Andrew franziu o sobrolho.
- Então e... e Sebastiana?
- Quem? Sebastiana Cortêz? Essa foi para despistar - respondeu Tanner a rir. - Fiz as coisas de forma que todos aqui no KIG tivessem conhecimento da existência dela.
Eu e a Princesa não nos podíamos dar ao luxo de levantarmos qualquer suspeita.
- Oh! Estou a perceber - respondeu Andrew com ar vago.
- Andrew, chega aqui.
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Tanner conduziu-o até ao centro de controle. Ficaram em frente de Prima.
- Lembras-te disto? - perguntou. - Tu ajudaste a desenvolvê-lo.
Agora está pronto.
Os olhos de Andrew abriram-se de espanto.
- Prima...
Tanner apontou para um botão e disse:
- Controle do tempo.
Apontou para outro:
- Local.
Olhou para o irmão.
- Estás a ver como o tornámos tão simples?
- Eu lembro-me... - disse Andrew quase sem fôlego.
Tanner virou-se para Pauline:
- Isto é unicamente o princípio, Princesa-e tomou-a nos braços - Estou a contactar mais trinta países. Tens o que querias. Poder e dinheiro.
- Um computador como este pode valer milhões... - respondeu, feliz, Pauline.
- Dois computadores como este - interrompeu Tanner. - Tenho uma surpresa para ti. Já alguma vez ouviste falar na ilha de Tamoa, no Pacífico Sul?
- Não.
- Bom. Acabámos de comprá-la. Tem noventa e cinco mil metros quadrados e é inacreditavelmente bela. Faz parte das ilhas da Polinésia francesa e tem uma pista de
aviação e um porto para barcos.
Tem tudo, incluindo - e fez uma pausa para dar maior dramatismo às suas palavras - o Prima II!
- Queres dizer que existe um segundo...? - perguntou Pauline.
- Exactamente! - respondeu Tanner. - Está no interior da Terra, onde jamais alguém o conseguirá detectar. E agora que aquelas duas cabras bisbilhoteiras se encontram
finalmente fora do nosso caminho, o mundo é todo nosso.
CAPÍTULO 43
Kelly foi a primeira a abrir os olhos. Estava deitada de costas, despida, no nu chão de cimento de uma cave, as mãos algemadas com correntes de vinte e quatro centímetros,
presas à parede, logo acima do chão. Numa parede mais afastada via-se uma pequena janela com grades, e a entrada fazia-se através de uma porta de aspecto robusto.
Kelly virou-se para Diane, que estava a seu lado, também ela nua e algemada. As roupas delas estavam atiradas para um canto.
- Onde estamos nós? - perguntou Diane meia grogue.
- No Inferno, companheira.
Kelly experimentou as algemas. Estavam fechadas e bem apertadas em redor dos seus pulsos. Conseguiu levantar o braço dez ou quinze centímetros, mas mais nada.
- Caímos direitinhas na armadilha - disse, amargamente.
- Sabe o que mais odeio em tudo isto?
Kelly olhou em redor do quarto nu e respondeu:
- Não faço a mínima ideia.
- É que eles ganharam. Sabemos porque mataram os nossos maridos e porque nos vão agora matar a nós, mas não temos qualquer hipótese de passar a informação lá para
fora, para que o mundo saiba. Eles vão-se safar. Kingsley tinha razão. A nossa sorte chegou, fi nalmente, ao fim.
- Não, não chegou.
A porta abriu-se e Harry Flint entrou no quarto. O seu sorriso cresceu. Fechou a porta atrás de si e meteu a chave no bolso.
- As balas que disparei eram de Xilocaína. Devia ter-vos matado, mas depois pensei que antes disso nos podíamos divertir um pouco.
Aproximou-se.
As duas mulheres trocaram um olhar aterrorizado. Ficaram a ver enquanto ele, sorridente, despia a camisa e as calças.
- Olhem só o que eu tenho aqui para vos dar
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Deixou cair as cuecas. O seu membro estava teso e túrgido. Olhou para elas e avançou na direcção de Diane.
- Porque não começo por ti, minha querida, e depois...?
Kelly interrompeu-o:
- Espera aí, bonitão. Que tal começares por mim? Estou cheia de tesão.
Diane olhava, estupefacta, para ela.
- Kelly...
Flint virou-se para Kelly e desfez-se em sorrisos.
- Mas é claro, querida. Tu vais adorar.
- Oh, sim! - gemeu Kelly. - Sinto tanto a falta disso.
Diane fechou os olhos. Não tinha forças para ver aquilo.
Kelly afastou as pernas e, quando Flint começou a entrar nela, ela ergueu o braço uns centímetros e meteu a mão no seu elaborado penteado. Quando a retirou trazia
um travessão com uma lâmina de aço com quinze centímetros de comprimento. Num movimento destro, espetou a lâmina na parte de trás do pescoço de Flint, enterrando-a
até ao fundo.
Flint tentou berrar, mas a única coisa que se ouviu foi um gorgolejar rouco. O sangue escorria-lhe pelo pescoço. Diane abriu os olhos, atordoada.
Kelly olhou para ela.
- Já pode... Agora já pode relaxar. - E afastou o corpo inerte de cima de si. - Ele está morto.
O coração de Diane batia tão depressa que parecia que lhe ia saltar do peito. Estava pálida de morte.
Kelly olhava para ela, alarmada.
- Sente-se bem?
- Eu estava com medo que ele - E a boca ficou-lhe seca. Olhou para o corpo de Harry Flint e estremeceu. - Porque é que não me contou? - Apontou para o travessão
espetado no pescoço do outro.
- Porque se não servisse para nada... Bom, eu não queria que pensasse que eu a estava a deixar mal. Vamos sair daqui.
- Como?
- Já lhe mostro. - Kelly esticou uma das suas longas pernas para onde Flint deixara cair as calças. Os seus dedos dos pés esticaram-se para as alcançar. Faltavam
uns seis centímetros. Mudou de posição. Ainda faltavam três centímetros. Finalmente, foi bem sucedida. Sorriu. - Voilà! Os seus dedos do pé apanharam as calças e,
devagarinho, foi puxando por elas até ficarem suficientemente perto para lhes poder chegar com as mãos. Vasculhou os bolsos das calças à procura da chave. Encontrou-a.
Uns segundos depois, tinha as mãos soltas. Correu para junto de Diane.
- Meu Deus, você é um milagre - exclamou esta.
- Agradeça ao meu novo penteado. Vamos sair daqui.
As duas mulheres apanharam as roupas do meio do chão e vestiram-se rapidamente. Kelly retirou a chave da porta do bolso de Flint.
Dirigiram-se para a porta e pararam para escutar. Silêncio. Kelly abriu a porta. Estavam num longo corredor vazio.
- Deve haver algures uma saída - disse Diane.
- Pois deve - concordou Kelly. -Vá por aí que eu vou...
- Não. Por favor. Vamos ficar juntas, Kelly.
Kelly apertou suavemente o braço a Diane e anuiu.
- Com certeza, companheira.
Minutos mais tarde, as duas mulheres deram por si numa garagem. Lá dentro havia um Jaguar e um Toyota.
- Escolha - disse Kelly.
- O Jaguar dá muito nas vistas. Vamos levar o Toyota.
- Só espero que a chave esteja...
E estava. Diane sentou-se ao volante.
- Faz alguma ideia para onde vamos? - perguntou Kelly.
- Para Manhattan. Mas ainda não tenho nenhum plano.
- Ora aí estão boas notícias - respondeu Kelly suspirando.
- Precisamos de encontrar um lugar para dormir. Quando Kingsley descobrir que conseguimos fugir, vai ficar doido. Não estaremos seguras em lado nenhum.
Kelly pensava.
- Estaremos, sim.
- O que quer dizer com isso? - perguntou Diane a olhar para ela.
- Eu tenho um plano - respondeu Kelly, orgulhosa.
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CAPÍTULO 44
Enquanto guiava em direcção a White Plains, a quarenta quilómetros de Manhattan, Diane comentou:
- Parece ser uma cidade simpática. O que estamos aqui a fazer?
- Tenho aqui uma amiga. Ela toma conta de nós.
- Fale-me dela.
Kelly começou a dizer devagarinho:
- A minha mãe casou-se com um bêbado que gostava de lhe bater. Quando tive, finalmente, possibilidade financeira de tomar conta dela, consegui convencê-la a deixá-lo.
Uma modelo que eu conhecia e que fugira a um namorado que a maltratava falou-me neste local. E uma pensão gerida por um anjo que se chama Grace Seidel. Trouxe a
minha mãe para aqui até lhe conseguir arranjar um apartamento. Vinha todos os dias visitá-la a Grace Seidel. A minha mãe adorou cá estar e fez amizade com outras
pensionistas.
Finalmente arranjei-lhe um apartamento e vim buscá-la. - Calou-se.
- E que aconteceu? - perguntou Diane.
- Ela voltou para o marido.
Tinham chegado à pensão.
- Cá estamos.
Grace Seidel era uma mulher que estava por volta dos cinquenta anos, dinâmica, uma maternal bola de energia. Quando abriu a porta e viu Kelly, o seu rosto iluminou-se.
- Kelly! - Abraçou-a. - Que bom ver-te.
- Esta é a minha amiga Diane - apresentou Kelly.
Trocaram cumprimentos.
- O quarto já está à vossa espera - disse Grace. - Aliás, era o quarto da tua mãe. Mandei pôr mais uma cama.
Quando Grace Seidel as acompanhava até ao quarto, passaram por uma sala de estar de aspecto muito confortável onde uma dúzia de mulheres jogavam às cartas ou se
dedicavam a outras actividades.
- Quanto tempo vão ficar? - perguntou Grace.
- Ainda não sabemos - responderam, depois de olharem uma para a outra.
- Não há qualquer problema - respondeu Grace a sorrir. - O quarto é vosso enquanto precisarem dele.
O quarto era muito agradável, bem tratado e limpo.
Quando Grace Seidel as deixou, Kelly disse a Diane:
- Aqui estamos seguras. E a propósito, acho que entrámos para o Livro dos Recordes do Guiness. Sabe quantas vezes eles nos tentaram matar?
- Sim, sei. - Diane estava de pé junto da janela. E Kelly ouviu-a dizer: - Obrigada, Richard.
Kelly ia dizer qualquer coisa, mas depois pensou: Não vale a pena.
Andrew, dormitando sentado à sua secretária, sonhava que estava a dormir numa cama de hospital. As vozes no seu quarto tinham-no acordado.
-... E, felizmente, descobri isto quando estávamos a descontaminar o fato de protecção de Andrew. Pensei que lho devia mostrar imediatamente.
- Os tipos do exército tinham-me garantido que era perfeitamente seguro.
Um homem dava a Tanner uma das máscaras de gás do equipamento do exército.
- Encontrei um pequeno buraco. Parece que alguém lhe fez um corte. Foi o suficiente para provocar o estado em que o seu irmão se encontra.
Tanner olhou para a máscara e berrou:
- Quem quer que seja o responsável por isto vai ser punido. - Olhou para o homem e disse: - Vou já tratar do assunto. Muito obrigado por me ter avisado.
Deitado na cama, Andrew, meio grogue, viu o homem sair. Tanner ficou a olhar por instantes para a máscara e em seguida dirigiu-se a um canto do quarto onde estava
um carro de hospital cheio de lençóis sujos.
Abriu caminho até ao fundo do carro e enterrou a máscara no meio dos lençóis.
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Andrew tentou perguntar ao irmão o que se estava a passar, mas estava demasiado cansado. Adormeceu.
Tanner, Andrew e Pauline tinham regressado ao gabinete de Tanner, e ele pediu à secretária que lhe trouxesse os jornais da manhã. Começou a dar uma vista de olhos
pelas primeiras páginas.
- Olhem para esta: "Cientistas não compreendem as tempestades fora de tempo que se abatem sobre Guatemala, Peru, México e Itália..."
Olhou, exultante, para Pauline.
- E isto é simplesmente o começo. Vão ter muito mais com que se espantar.
Vince Carballo entrou apressadamente na sala.
- Senhor Kingsley...
- Estou ocupado. O que foi?
- Flint morreu.
Tanner ficou de boca aberta.
- O quê? O que é que está a dizer? O que foi que aconteceu?
- A Stevens e a Harris mataram-no!
- Isso é impossível!
- Ele está morto. Elas escaparam e levaram o carro da senadora.
Participámos o roubo à polícia, que o encontraram em White Plains.
A voz de Tanner era sombria.
- Eu quero que faça o seguinte: arranje uma dúzia de homens e vá até White Plains. Passem a pente fino todos os hotéis, pensões e mesmo as pensões mais rascas. Qualquer
lugar onde elas se possam esconder. Dou uma recompensa de quinhentos mil dólares a quem mas entregar. E despachem-se!
- Sim, senhor.
Vince Carballo saiu apressadamente.
- Não quero falar sobre isso.
- Desculpe. Sabe qual é a maior frustração? E que estivemos tão perto. Agora que sabemos o que aconteceu, não temos ninguém a quem contar. Era a nossa palavra contra
a do KIG. Metiam-nos logo num asilo.
- Tem razão - concordou Kelly. - Não temos ninguém a quem recorrer.
Houve um momento de silêncio e em seguida Diane disse devagarinho:
- Temos, sim.
Os homens de Vince Carballo estavam espalhados pela cidade a verificar todos os hotéis e pensões. Um dos homens mostrou fotos de Diane e de Kelly ao empregado do
Esplanade Hotel.
- Por acaso viu alguma destas mulheres? Há uma recompensa de meio milhão de dólares por elas.
O empregado abanou a cabeça.
- Quem me dera saber onde elas estão.
No Renaissance Westchester Hotel outro homem mostrava as fotos de Diane e Kelly.
- Meio milhão de dólares? Não me importava de ficar com eles.
No Crowne Plaza o empregado dizia:
- Se eu as vir, pode ter a certeza que o aviso, cavalheiro. Vince Carballo bateu à porta da pensão de Grace Seidel.
- Bom dia.
- Bom dia. O meu nome é Vince Carballo. - Mostrou uma foto das duas mulheres. -Viu alguma destas mulheres? Há uma recompensa de meio milhão de dólares por elas.
O rosto de Grace Seidel iluminou-se.
- Kelly!
No seu quarto na pensão de Grace Seidel, Diane perguntou:
- Lamento muito o que se passou consigo quando foi a Paris.
Eles mataram o porteiro?
- Não sei, não faço ideia. A família pura e simplesmente desapareceu.
- E o seu cão?
Kelly respondeu, tensa.
No gabinete de Tanner, Kathy Ordonez estava cheia de trabalho. Os faxes chegavam depressa de mais e a sua caixa de e-mails estava atulhada. Pegou numa pilha de papéis
e entrou no gabinete de Tanner. Este estava sentado num sofá a conversar com Pauline van Luven.
Tanner ergueu o olhar quando ela entrou.
- O que é?
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Ela sorriu.
- Boas notícias. Vão ter um jantar muito bem sucedido. Tanner franziu o sobrolho.
- Desculpe? O que quer dizer com isso?
Ela mostrou-lhe os papéis.
- São todos de confirmações. Toda a gente vem.
Tanner levantou-se.
- Vem onde? Deixe-me ver isso. - Tanner leu o primeiro e-mail em voz alta. - "Temos muito gosto em aceitar o convite para o jantar nas instalações do KIG, na próxima
sexta feira, para a apresentação de Prima, a vossa máquina de controle climático." Do editor da revista Time.
Tanner empalideceu. Leu o seguinte.
"Muito obrigado pelo convite para ver Prima, o seu computador que controla o clima, nas instalações do KIG. Temos muito gosto em estar presentes." Estava assinado
pelo editor da Newsweek.
Folheou todos os papéis.
- CBS, NBC, CNN, Wall Street Journal, Chicago Tribune, e, de Londres, o The Times, todos ansiosos por poderem assistir à apresentação de Prima.
Pauline permanecia sentada, incapaz de dizer fosse o que fosse. Tanner estava tão furioso que nem conseguia falar.
- Mas que diabo se está a passar? - E de repente parou. - Aquelas cabras!
No Irma's Internet Café, Diane atarefava-se num computador. Olhou para cima para Kelly.
- Falta alguém?
- Elle, Cosmopolitan, Vanity Fair, Mademoiselle, Readers Digest...- respondeu Kelly.
Diane riu.
- Acho que já chega. Só espero que o Kingsley tenha um bom caterer. Vai ter muita gente na sua festa.
Vince Carballo olhava para Grace Seidel, excitado.
- Conhece Kelly?
- Sim, conheço - respondeu ela. - E um dos modelos mais famosos do mundo.
O rosto de Vince Carballo iluminou-se.
- E onde é que ela está?
Grace olhou para ele, espantada.
- Isso eu já não sei. Nunca a conheci pessoalmente:
O rosto dele ficou vermelho.
- Mas disse que a conhecia!
- O que eu queria dizer é que toda a gente a conhece. Ela é muito famosa. Não é linda?
- Não faz ideia de onde possa estar?
Grace respondeu, pensativa:
- Bem, talvez até tenha alguma ideia.
- Onde?
- Eu hoje de manhã vi uma mulher que se parecia muito com ela a entrar para um autocarro. Ia com outra pessoa...
- Que autocarro era?
- Era o autocarro para Vermont.
- Muito obrigado.
E Vince Carballo partiu apressadamente.
Tanner atirou com a pilha de faxes e e-mails ao chão e virou-se para Pauline.
- Percebeste o que aquelas cabras fizeram? Não podemos permitir que ninguém ponha os olhos no Prima.
Ficou pensativo durante algum tempo.
- Acho que o Prima vai ter um acidente na véspera da festa e acabará por ir pelos ares.
Pauline olhou para ele por instantes e sorriu.
- Prima II!
Tanner acenou com a cabeça.
- Exactamente. Podemos viajar pelo mundo e, quando estivermos prontos, vamos para Tamoa e começamos a funcionar com o Prima II.
A voz de Kathy Ordonez ouviu-se no intercomunicador. Parecia frenética.
- Senhor Kingsley, os telefones estão doidos. Tenho o New York Times, o Washington Post e Larry King, todos em espera para falarem consigo.
- Diga-lhes que estou numa reunião - e virou-se para Pauline.
- Temos de sair daqui para fora. - Deu uma palmadinha nas costas de Andrew. - Anda, vem connosco.
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- Sim, Tanner.
Os três saíram e dirigiram-se ao edifício de tijolo vermelho.
- Tenho uma coisa muito importante para tu fazeres, Andrew.
- O que quiseres - respondeu este.
Tanner liderou o caminho até ao edifício vermelho e aproximou-se de Prima. Virou-se para Andrew.
- O que quero que faças é o seguinte. Eu e a Princesa temos de nos ir embora agora, mas às seis da tarde quero que desligues este computador. É muito simples - e
apontou. - Estás a ver o botão grande vermelho?
Andrew respondeu que sim.
- Sim, estou a ver.
- A única coisa que tens de fazer é premi-lo três vezes, às seis da tarde. Três vezes. Consegues lembrar-te disso?
- Sim, Tanner. Às seis em ponto. Três vezes - respondeu Andrew.
- Muito bem. Encontramo-nos mais tarde.
Tanner e Pauline começaram a afastar-se.
Andrew ficou a olhar para eles.
- Não me vão levar convosco?
- Não. Tu ficas aqui. Mas não te esqueças, seis da tarde e três vezes.
- Eu não me esqueço.
Quando saíam cá para fora, Pauline perguntou:
- E se ele se esquecer?
Tanner riu.
- Não faz qualquer diferença. Está marcado para explodir automaticamente às seis da tarde. Só queria ter a certeza de que ele está lá dentro quando isso acontecer.
CAPÍTULO 45
Estava o dia perfeito para voar. O 757 do KIG voava a alta velocidade no céu azul sobre o oceano Pacífico. Pauline e Tanner estavam aninhados no sofá da cabina principal.
- Querido - disse Pauline -, sabes que é uma pena que as pessoas nunca venham a saber como és brilhante?
- Se alguma vez o descobrissem, teria um monte de problemas.
Ela olhou para ele e respondeu:
- Não havia problema. Comprávamos um país e autoproclamávamo-nos seus governantes. Aí não nos podiam tocar.
Tanner riu.
Pauline acariciou-lhe a mão.
- Sabes que eu te quis desde o primeiro instante em que te vi?
- Não. Tanto quanto me lembro, foste muito impertinente.
- E resultou, não resultou? Tinhas que me ver outra vez para me dar uma lição.
Seguiu-se um longo e erótico beijo.
Lá longe, brilhou a luz de um relâmpago.
- Vais adorar Tamoa - disse Tanner. - Passamos lá uma semana ou duas e em seguida viajaremos pelo mundo. Vamos compensar todos os anos que não nos era possível estar
juntos.
Ela olhou para cima e sorriu, com ar malicioso.
- Podes ter a certeza que sim.
- E depois, uma vez por mês, voltamos a Tamoa para pormos o Prima II a funcionar. Escolhemos juntos os nossos alvos.
- Podíamos criar uma tempestade em Inglaterra, mas o problema é que eles não iam dar pela diferença - sugeriu Pauline.
Tanner riu.
- Temos o mundo todo por onde escolher.
Um comissário de bordo aproximou-se e perguntou.
- Desejam alguma coisa?
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- Não - respondeu Tanner. - Nós já temos tudo. E sabia que era verdade.
Ao longe, viram a luz de mais raios a riscar o céu.
- Só espero que não apanhemos uma tempestade - disse Pauline. - Detesto voar com mau tempo.
Tanner procurou acalmá-la:
- Não te preocupes, querida. Não há uma nuvem no céu. - Lembrou-se de uma coisa e sorriu. - Não temos que nos preocupar com o tempo. Afinal, somos nós que o controlamos.
- Olhou para o relógio. - O Prima explodiu há uma hora e...
Repentinas gotas de chuva começaram a bater contra o avião. Tanner abraçou Pauline com mais força.
- Está tudo bem. É só um pouco de chuva.
Assim que Tanner acabou de pronunciar estas palavras, o céu começou a escurecer e a tremer com o som de sonoros trovões. O enorme avião abanava de um lado para o
outro. Tanner olhava pela janela, intrigado com o que estava a acontecer. A chuva deu lugar a uma forte saraivada.
Tanner olhou lá para fora.
- Olha para ... - E de repente percebeu. - Prima. - Era um grito de exaltação, um brilho de glória nos olhos. -Nós podemos...
Nesse preciso momento, um furacão atingiu o avião, sacudindo-o selvaticamente de um lado para o outro. Pauline gritava.
A trabalhar no edifício de tijolo vermelho, Andrew sentia-se grato por haver ainda uma coisa que podia fazer para tornar o mundo um lugar melhor. Com o maior dos
cuidados, guiou um tornado de Força 6 que criara - para cima, mais para cima...
Tanner olhava pela janela do avião selvaticamente sacudido quando ouviu, sobre os estrondos da trovoada, o som semelhante ao de um comboio do tornado que se aproximava,
viajando a uma velocidade de novecentos e sessenta quilómetros por hora. O rosto dele estava congestionado e tremia com a excitação, enquanto via o tornado a girar
em direcção ao avião. Estava em êxtase.
- Olha! Nunca houve um tornado que conseguisse subir até tão alto. Nunca! Fui eu que o criei! É um milagre! Só Deus e eu somos...
No edifício de tijolo vermelho, Andrew moveu um interruptor e ficou a observar o ecrã enquanto o avião explodia em mil pedaços e os destroços e os corpos eram lançados
nos céus.
Em seguida, Andrew Kingsley premiu três vezes o botão vermelho.
No edifício de tijolo vermelho do KIG, Andrew operava Prima, os seus dedos voando sobre as teclas, lembrando-se. Com o seu alvo no ecrã, via a imagem do avião do
irmão a ser sacudido por um furacão com ventos de quatrocentos e oitenta quilómetros por hora. Premiu outro botão.
Numa dúzia de gabinetes do serviço Nacional de Meteorologia de Anchorage no Alasca, a Miami na Florida, os meteorologistas olhavam, estarrecidos, para os seus computadores,
sem serem capazes de acreditar. O que se estava a passar parecia impossível, mas a verdade é que ali estava, na frente deles.
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CAPÍTULO 46
Kelly e Diane acabavam de se vestir quando Grace Seidel lhes bateu à porta do quarto.
- Quando estiverem prontas, o pequeno almoço está servido.
-Já vamos - respondeu Kelly.
- Espero que o nosso truque tenha resultado - disse Diane. - Vamos ver se Grace tem os jornais da manhã.
Saíram do quarto. No lado direito ficava a zona de lazer. Estavam aí reunidas algumas pessoas em redor do aparelho de televisão. No momento em que elas iam a passar,
em direcção à sala de jantar, o apresentador de televisão dizia:
"Segundo as últimas informações, não houve qualquer sobrevivente. Tanner Kingsley e a antiga senadora Pauline van Luven encontravam-se no avião, assim como um piloto,
um co-piloto e um comissário."
As duas mulheres estacaram. Olharam uma para a outra, viraram-se e dirigiram-se para junto do televisor. No ecrã passavam imagens do KIG.
"O Kingsley Internacional Group é o maior think tank do mundo, com escritórios em trinta países. O gabinete de meteorologia reportou uma inesperada tempestade eléctrica
no oceano Pacífico, exactamente na zona onde voava o avião particular de Tanner Kingsley. Pauline van Luven chefiou a Comissão Especial do Senado para o Ambiente..."
Diane e Kelly ouviam, fascinadas.
"... E em mais uma peça do puzzle, existe um mistério que a Polícia está a tentar resolver. A imprensa fora convidada para um jantar de apresentação de Prima, um
novo computador controlador do clima que o KIG criara e desenvolvera, mas ontem, inesperadamente, deu-se uma explosão no KIG e o Prima ficou completamente destruído.
No meio dos destroços, os bombeiros encontraram o corpo de Andrew Kingsley e pensa-se que seja ele a única vítima."
- Tanner Kingsley está morto - disse Diane.
- Diga isso outra vez. Devagarinho.
- Tanner Kingsley está morto.
Kelly deu um profundo suspiro de alívio. Olhou para Diane e sorriu.
- Depois disto, a vida vai ser muito aborrecida, de certeza.
- Espero bem que sim - replicou Diane. - Que acha da ideia de dormir hoje à noite nas Waldorf-Astoria Towers?
Kelly fez um enorme sorriso.
- Não me importo nada.
Quando se despediram de Grace Seidel, esta abraçou Kelly e disse:
- Aparece sempre que quiseres.
Na suite presidencial das Waldorf Towers, um criado punha uma mesa para o jantar. Virou-se para Diane:
- Disse-me que queria a mesa posta para quatro pessoas?
- Exactamente.
Kelly olhou para ela e não disse nada.
Diane sabia o que ela estava a pensar. Quando se sentaram à mesa, Diane explicou:
- Kelly, eu acho que não fizemos isto sozinhas. Estou convencida de que tivemos uma grande ajuda. - Ergueu a taça de champanhe e dirigiu-se à cadeira vazia a seu
lado: - Muito obrigada, Richard, meu amor. Amo-te.
Quando levava a taça aos lábios para beber, Kelly interrompeu-a.
- Espere um segundo.
Diane virou-se para ela.
Kelly pegou na sua taça de champanhe e olhou para a cadeira vazia a seu lado.
- Mark, eu amo-te muito. Muito obrigada.
E beberam depois de brindarem.
Kelly sorriu.
- Soube-me bem. E agora, o que temos a seguir?
- Vou ao FBI em Washington contar tudo que sei.
Kelly corrigiu-a:
-Vamos a Washington e vamos contar-lhes tudo o que nós sabemos. Diane concordou.
- Isso mesmo. - Ficou pensativa. - Sinto que fizemos um bom trabalho. Os nossos maridos teriam muito orgulho em nós.
- E verdade - apoiou Kelly. - Conseguimos solucionar isto. E estava tudo contra nós. Sabe o que devíamos fazer agora?
- O quê?
- Abrir a nossa agência de detectives.
Diane riu.
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- Só pode estar a brincar.
Kelly olhou para ela e deu-lhe um grande sorriso.
- Acha que sim?
Depois do jantar, ficaram a ver televisão e todos os canais transmitiam a história da morte de Tanner Kingsley. Enquanto Kelly via o que se passava, comentou:
- Não sei se sabe, mas, quando se corta a cabeça a uma cobra, o resto do seu corpo morre.
- O que quer dizer com isso?
- Vamos verificar. - Dirigiu-se ao telefone. - Queria fazer um telefonema para Paris.
Cinco minutos depois, ouvia a voz de Nicole Paradis.
- Kelly! Kelly! Kelly! Estou tão contente por ter ligado.
O coração de Kelly caiu-lhe aos pés. Sabia o que ia ouvir a seguir. Eles tinham matado Angel.
- Não sabia como contactá-la.
- Ouviu as notícias?
- Todo o mundo ouviu as notícias. Jerôme Maio e Alphonse Girouard fizeram as malas e partiram à pressa.
- E Philippe e a família?
- Esses voltam amanhã.
- Isso é maravilhoso. - Kelly estava com medo de fazer a pergunta seguinte. - E a Angel...?
- Eu tenho a Angel no meu apartamento. Eles tencionavam usá-la como isco, para o caso de não estar disposta a cooperar.
Kelly, de repente, sentiu um enorme alívio.
- Mas isso é estupendo!
- Que quer que faça com ela?
- Meta-ma no próximo avião da Air France para Nova Iorque.
Depois diga-me quando é que ela chega, para eu a ir buscar ao aeroporto. Pode ligar-me aqui para as Waldorf Towers.
- Vou tratar de tudo.
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- Muito obrigada. - Kelly desligou.
Diane estivera a ouvir a conversa.
- A Angel está bem?
- Está.
- Oh! Que bom!
- É, não é? Estou encantada. A propósito, que vai fazer com a sua parte do dinheiro?
Diane ficou a olhar para ela.
- Como?
- O KIG ofereceu uma recompensa. Acho que é nossa.
- Mas... Kingsley morreu...
- Eu sei, mas o KIG não.
E riram.
- Quais são os seus planos para depois de Washington? Vai voltar a pintar? - perguntou Kelly.
Diane ficou pensativa por momentos.
- Não.
Kelly observava-a.
- Não mesmo?
- Bom, há um quadro que quero fazer. É uma cena de um piquenique em Central Park. - A voz embargou-se-lhe. - Dois amantes a fazerem um piquenique debaixo de chuva.
Depois... Depois logo se verá. E a Kelly? O que vai fazer? Vai voltar às passarelas?
- Não, não me parece...
Diane olhava para ela.
- Bom... Talvez. Porque quando estou lá em cima posso sempre imaginar que Mark me está a ver e a mandar-me beijos. Sim, acho que ele gostaria que eu voltasse para
o mundo da moda.
Diane sorriu.
- Óptimo.
Viram televisão durante mais uma hora e em seguida Diane disse:
- Parece-me que são horas de ir para a cama.
Quinze minutos mais tarde já se tinham despido e cada uma estava metida na sua cama de casal, a reviver as suas recentes aventuras. Kelly bocejou.
- Diane, estou cheia de sono. Apague as luzes.
293
POSFACIO
O antigo adágio de que todos falam sobre o tempo mas ninguém faz nada já não é verdadeiro. Existem, hoje em dia, duas super potências que têm a possibilidade de
controlar o clima pelo mundo: os Estados Unidos e a Rússia. Os outros países trabalham febrilmente para os acompanhar.
A procura do controle dos elementos, que teve início com Nikola Tesla nos finais de 1800, envolvendo a transmissão de energia eléctrica pelo espaço, tornou-se uma
realidade.
As consequências são imensas. O tempo pode ser usado como uma bênção ou como uma arma apocalíptica.
Todos os elementos necessários se encontram no seu lugar.
Em 1969, o U.S. Patent Office concedeu uma patente para "um método de aumentar a probabilidade de precipitação pela introdução artificial de vapor de água do mar
na atmosfera."
Em 1971, foi concedida uma patente ao Westinghouse Electrical Corporation para um sistema de irradiação de algumas zonas da superfície da terra.
Em 1971, foi concedida uma patente ao National Science Foundation para um método de alteração do tempo.
No princípio dos anos 1970, a Comissão do Congresso para os Oceanos e Ambiente Interno dos Estados Unidos efectuou várias audições sobre a nossa pesquisa militar
no domínio da alteração do tempo e do clima e concluiu que o ministério da defesa tinha planos para criar ondas gigantescas através do uso coordenado de armas nucleares.
O perigo de um devastador confronto entre os Estados Unidos e a Rússia tornou-se de tal forma grande que, em 1977, um tratado das Nações Unidas que se opunha à modificação
climatérica por razões hostis foi assinado pelos Estados Unidos e pela Rússia.
Este tratado não significou o fim das experiências climatéricas. Em 1978, os Estados Unidos lançaram uma experiência que criou
295
uma queda de chuva sobre seis condados no norte do estado do Wisconsin. A tempestade gerou ventos de duzentos e oitenta quilómetros por hora e provocou cinquenta
milhões de dólares de prejuízos.
Entretanto, a Rússia tem continuado a trabalhar nos seus projectos internos.
Em 1992, o Wall Street Journal relatou que uma empresa russa, Elat Intelligence Technologies, vendia equipamento para controle climatérico, usando o slogan "Tempo
à sua Medida", concebido para necessidades específicas.
À medida que as experiências em ambos os países prosseguem, os padrões climatéricos começaram a sofrer alterações. Logo em 1980 se registaram alterações.
"Uma frente de altas pressões tem-se mantido nos dois últimos meses a cerca de mil e duzentos quilómetros da costa da Califórnia, bloqueando a normal entrada de
ar húmido proveniente do oceano Pacífico." Time magazine, Janeiro de 1981.
"... a estagnada época de altas pressões funcionou como uma barreira, impedindo o fluir normal de estações do oeste para o leste." revista New York Times, de 29
de Julho de 1993.
Todas as catástrofes climatéricas descritas no corpo deste romance ocorreram realmente.
O tempo é a arma mais poderosa que conhecemos. Quem controlar o tempo pode perturbar as economias mundiais com perpétuas tempestades ou tornados; destruir colheitas
com uma seca; provocar tremores de terra, furacões e tsunamis; fechar aeroportos e provocar a devastação nos campos de batalha inimigos.
Eu dormiria melhor se um líder mundial dissesse:
- Todos falam do clima, mas ninguém faz nada por ele.
E que isso fosse verdade.
Sidney Sheldon - Os 12 Mandamentos
Sidney Sheldon - quem tem medo do escuro
Abraços fraternos!
Bezerra
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'TUDO QUE É BOM E ENGRANDECE O HOMEM DEVE SER DIVULGADO!
PENSE NISSO! ASSIM CONSTRUIREMOS UM MUNDO MELHOR."
JOSÉ IDEAL
' A MAIOR CARIDADE QUE SE PODE FAZER É A DIVULGAÇÃO DA DOUTRINA ESPÍRITA" EMMANUEL
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