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Os ca��adores
Os devassos
Os predadores
79 Park Avenue
Os insaci��veis
O garanh��o
Cidade do pecado
Tradu����o de
ELIANE FRAGA
CIP-Brasil. Cataloga����o-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Robbins, Harold, 1912-1997
R 5 4 5 n No calor da paix��o / Harold Robbins; tradu����o
Eliane Fraga. - Rio de Janeiro: Record, 2006.
Tradu����o de: Heat of passion
ISBN 8 5 - 0 1 - 0 7 0 2 0 - 3
1. Romance americano. I. Fraga, Eliane, 1947-
II. T��tulo.
C D D - 813
0 6 - 1 9 0 7 C D U - 8 2 1 . 1 1 1 ( 7 3 ) - 3
T��tulo original norte-americano:
HEAT OF PASSION
Copyright �� 2003 by Jann Robbins
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodu����o, no todo ou em
parte, atrav��s de quaisquer meios.
Foto de capa: CORBIS/STOCK PHOTOS
Direitos exclusivos de publica����o em l��ngua portuguesa para o Brasil
adquiridos pela
EDITORA RECORD LTD A.
Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 -Tel.: 2585-2000
que se reserva a propriedade liter��ria desta tradu����o
Impresso no Brasil
ISBN 85-01-07020-3
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052
EDITORA AFILIADA
Rio de Janeiro, RJ - 20922-970
Quando morreu, em 1997, Harold Robbins deixou um legado
de diversos esbo��os e livros em andamento. Seus herdeiros
e o editor trabalharam com um escritor criteriosamente
selecionado para organizar e completar suas id��ias.
Assim, inspirados no brilhantismo na arte de
escrever que lhe era peculiar, criaram este romance
estritamente fiel ao estilo de Robbins.
��� Olha! ��� repetiu ele, a voz rouca, segurando a lanterna
sobre o ba�� aberto. N��s olhamos e, por um instante,
n��o conseguimos distinguir nada devido ao brilho intenso
que nos cegava. Quando nossos olhos se acostumaram
�� luz, vimos que o ba�� estava cheio de diamantes brutos,
sendo que a maioria deles era de um tamanho consider��vel.
Inclinei-me e peguei alguns. Sim, n��o havia erro, eles
produziam a inconfund��vel sensa����o escorregadia.
��� Somos os homens mais ricos do mundo! ��� exclamei.
��� Hi! Hi! Hi! ��� exclamou a velha Gagool atr��s de n��s,
enquanto se movimentava rapidamente como um morcego
vampiro. ��� S��o as pedras brilhantes que voc��s, homens
brancos, tanto amam. H�� tantas quanto desejarem;
peguem-nas, sintam-nas com os dedos, alimentem-se
delas, Hi! Hi! embriaguem-se delas...
As minas do rei Salom��o
P a r t e 1
O C O R A �� �� O
D O M U N D O
1
WIN L I B E R T E , BEVERLY H I L L S , 1997
O telefone ao lado da cama soou, e Jonny se mexeu ao meu lado,
sua perna desnuda estendida sobre a minha coxa, seu joelho quente
contra a minha virilha. Eu tinha o Cora����o do Mundo em uma
das m��os e nenhuma pressa em atender. Sabia quem estava ligan-
do. Era a recep����o informando que eu tinha visita.
Segurei o diamante do tamanho de uma noz entre o polegar e
os outros dedos para que recebesse a luz da manh�� que entrava
pela janela. Peda��os de estrelas, �� o que os diamantes s��o, a subs-
t��ncia mais dura da terra, com o fogo de um bilh��o de anos preso
em seu interior. E nenhum diamante sobre a terra tinha mais fogo
do que aquele que eu segurava ��� um diamante de sangue de 41
quilates. N��o o "sangue" dos conflitos pelos diamantes que pro-
vocavam as guerras civis na ��frica, mas um raro diamante ver-
melho-fogo. Era uma pedra com hist��ria. Assassinato, lux��ria,
cobi��a���os piores pecados mortais���faziam parte de seu pedigree.
N��o havia no mundo nenhum outro diamante como este.
Dizem que a vaidade e a cobi��a s��o os alicerces da ind��stria
de diamantes. E que a ra��a humana poderia contar com ela para
um suprimento intermin��vel de ambos. A pedra que eu tinha nas
m��os era capaz de desencadear ambos os v��cios em n��veis absurdos.
11
Minha visitante queria o diamante. Era algu��m que fazia par-
te da hist��ria. N��o a parte em que os reis que a possu��ram perde-
ram seus tronos, mas ela contribuir�� com guerra, assassinato e
lux��ria para a hist��ria sanguin��ria do diamante.
O telefone tocou novamente, e Jonny pressionou o joelho mais
forte contra a minha virilha, provocando uma onda de desejo.
��� Atenda ��� pediu ela.
��� E a sua m��e.
��� Foda com ela.
J�� fiz isso.
��� Diga que pode subir ��� avisei ao telefonista.
Jonny virou de lado na cama. Em Portugal, seu nome era Juana,
mas, na Sacred Heart Academy de Beverly Hills, ela era conheci-
da como Jonny. Aos 18 anos, seu corpo era rijo, esguio, bronzeado
pelo sol de Lisboa. Ela tinha seios pequenos e firmes, dois mel��es
doces com os mamilos rosados que sempre pareciam excitados.
Jovem, bela, selvagem. Lembrava-me o filhote de leoa que vi cer-
ta vez na ��frica, grande o bastante para dilacerar com os dentes e
as garras, mas carente de um colo para aninhar-se durante a noite.
Ia me levantar quando Jonny agarrou meu p��nis e me puxou
de volta para a cama.
��� Me fode antes que ela chegue. Quero que sinta o cheiro
da minha boceta em voc��.
Afastei-a.
��� Jonny, voc�� �� demais para mim, eu preciso de uma mulher
adulta que n��o acabe com a cabe��a do meu pau.
Eu sentia pena da garotada da idade de Jonny, a anos-luz de
dist��ncia de seus pais e de qualquer um acima dos 30 anos. As
pessoas mais velhas sentem saudades dos bons tempos, mas n��o
existem bons tempos a serem lembrados para quem cresceu numa
cultura de sexo e drogas. Sobre o que conversam quando encon-
tram velhos amigos? Sobre os tempos em que se drogavam juntos?
Sobre trepadas? Sobre a primeira festa rave a que compareceram?
Para a gera����o de Jonny, criada em uma ��poca em que o sexo arti-
ficial de S.O.S. Malibu era confundido com sensualidade, o beijo
12
de boa-noite muitas vezes come��ava com o cara desabotoando a
braguilha. Uma gera����o que n��o acreditou em Papai Noel e cujos
sonhos eram todos digitais.
Ela me procurou na noite passada, infeliz por ser jovem. Aco-
modei-a no sof�� para dormir. No meio da noite, entrou sorrateira-
mente no meu quarto e na minha cama, querendo um colo para
aninhar-se. Depois, enfiou-se debaixo das cobertas e ficou entre
as minhas pernas, aconchegando meu p��nis, enfiando-o na boca
enquanto ele ainda estava adormecido, acordando-o e excitan-
do-o ao sug��-lo.
Vesti um robe e dirigi-me �� sala de estar da su��te. Abri um pouco
a porta que d�� para o corredor. J�� afastara as cortinas e estava li-
gando para o servi��o de quarto a fim de pedir um caf��, quando
Simone escancarou a porta.
Por um momento, ela ficou parada no v��o da porta, enquanto
nos fit��vamos. N��o mudara nos tr��s anos em que n��o nos encon-
tramos. Eu tamb��m n��o. Ela ainda fazia meu cora����o disparar.
Diferente do corpo magro e rijo de Jonny, o de Simone era
farto, deliciosamente acolchoado de forma que um homem pudesse
ter o que pegar. Ela me excitava muito mais do que a filha. O corpo
de Simone era como um vinho fino a ser saboreado e apreciado
por muitas horas. Ela provocava em mim pensamentos libidinosos
que Jonny nunca conseguira. Quando o corpo de Jonny grampeou
meu pau com sua boceta, foi como ser apertado por um tornique-
te. Jonny era excitante, mas trepar com sua m��e era perturbador e
memor��vel ��� para quem sobrevivesse ��s car��cias preliminares.
Enquanto Juana era uma gatinha que cresceu demais, sua m��e,
sem d��vida, era uma leoa experiente, capaz de ca��ar e matar sozi-
nha. Alguns anos mais velha que eu, Simone estava com 30 e tan-
tos anos, a fase da vida em que a mulher �� mais sensual e desej��vel,
quando ela substitui o brilho t��nue da juventude por uma exube-
rante sensualidade.
Seu sangue era quente o suficiente para abastecer os carros da
F��rmula Indy. Simone era perigosa, mas n��o de uma forma en-
louquecida. Seus crimes eram sempre frios e premeditados. Quando
13
queria alguma coisa, ela conseguia. E, se voc�� tivesse seu objeto
de desejo nas m��os, era bom contar os dedos para certificar-se que
ela n��o os tinha levado tamb��m.
��� Voc�� parece muito bem ��� disse ela ao entrar e fechar a
porta atr��s de si. ��� Rico, bem-sucedido, nem um pouco parecido
com o menino que um dia eu seduzi.
��� A vida tem sido boa. Tenho dinheiro, sa��de, inveja ��� tudo,
menos uma boa mulher. As boas que conseguem me tolerar s��o raras.
��� Deve estar procurando no lugar errado. As revistas de fo-
focas o definem como um playboy hollywoodiano.
Eu ri.
��� Acho que �� preciso ser um astro de cinema, ou, pelo me-
nos, comprar um est��dio para o r��tulo pegar.
��� Esqueceu de se despedir ��� disse ela, passando por mim
em dire����o ��s portas abertas que davam para a varanda.
��� Estava muito ocupado fugindo da m��fia portuguesa.
Simone saiu para a varanda. Minha su��te no hotel Bel Air dava
para um jardim tropical exuberante com samambaias verde-escu-
ras e bunganv��lias p��rpuras ��vidas de sol, que cresciam bem no
clima des��rtico do sul da Calif��rnia. O sol irradiava uma luz atra-
v��s do vestido branco, delineando seu corpo.
��� O branco �� uma cor perigosa para voc�� usar.
��� Se prefere, posso tirar o vestido.
Simone me conhecia. Este �� o problema de ser homem ���
as mulheres sabem que pensamos mais com o pau do que com
o c��rebro.
��� A ��ltima vez que tentamos isso, voc�� tirou tudo, menos
uma arma.
Ela se aproximou o suficiente para eu sentir seu corpo excitar-
se, perceber o cheiro de sexo no seu perfume. As mulheres n��o
usam perfume para ficarem cheirosas, mas para estimular a ener-
gia sexual masculina. Um tal de Odisseu n��o ficou prisioneiro de
uma mulher devido ao seu perfume maravilhoso? N��o foi o pri-
meiro, nem ser�� o ��ltimo a ficar desconcertado com o cheiro de
uma mulher.
14
Eu sabia que essa significava problema���j�� tentara me matar
uma vez ���, mas devia ser algo semelhante �� fascina����o de algu-
mas pessoas quando brincam com cobras mort��feras ��� o perigo a
tornava mais excitante.
��� Senti sua falta, Win ��� disse ela.
��� Sabe onde tenho estado. Voc�� �� que continuou em Lisboa.
��� Voc�� n��o compreende a lealdade ��� disse ela. ��� Foi filho
��nico, depois ficou ��rf��o. Nunca teve algu��m a quem dedicar esse
tipo de sentimento. Jo��o me tirou das ruas, me livrou de vender
meu corpo em troca de alimento e de drogas, quando eu ainda era
mais jovem que Jonny.
��� Ele tem idade para ser seu av��. E voc�� trepou com todos
que o cercam, desde o advogado e o motorista, at�� os amigos dele.
��� Tenho minhas necessidades de mulher, mas sempre fui uma
boa esposa. Quando Jo��o morrer, vou chorar no seu t��mulo. E ele
sabe disso.
��� Isso a torna uma bondosa Madre Teresa. Parab��ns. E ago-
ra, o que quer?
��� Est�� com ele? Gostaria de v��-lo, entender a causa de todo
esse alvoro��o.
Hesitei. Esperava por isso desde quando recebi o telefonema.
N��o temia que ela o agarrasse e fugisse. Simone n��o era idiota,
nem amadora ��� seria mais prov��vel ela sacar do suti�� uma arma
e dar um tiro no meio dos meus olhos. Minha preocupa����o era
outra ��� a verdade era que eu tinha dificuldade em partilhar a
pedra. Talvez, ela tivesse um v��rus de cobi��a capaz de infectar quem
a tocasse. O que quer que fosse, o diamante de fogo afetava todos
dessa forma. Como a pedra de um bruxo, sua m��gica tamb��m lan-
��ava feiti��os.
Pergunte ��s pessoas que mataram por ela. Ou morreram por
causa dela.
Tirei o Cora����o do Mundo do bolso do robe e entreguei-o a
Simone.
��� Meu Deus, �� um peda��o de fogo! ��� Exclamou ao segur��-
lo contra a luz.
15
��� Fogo dos deuses, lan��ado de uma estrela. �� quase t��o an-
tiga quanto a pr��pria terra. Levou um bilh��o de anos para ser feita
e mais um bilh��o para ser encontrada.
��� Eu nunca tinha visto um diamante vermelho como o rubi ���
comentou Simone.
��� Eles s��o raros. H�� um em exposi����o no Smithsonian, mas
�� menor e n��o brilha tanto quanto o Cora����o. N��o existe outro
diamante como este.
��� Ouvi dizer que aquele bilion��rio do ramo da inform��tica
que comprou uma ilha no Hava�� ofereceu uma fortuna por ele.
Pretende vend��-lo?
Simone disfar��ava os sentimentos com uma express��o de ino-
c��ncia, como se n��s dois n��o soub��ssemos que foi a Los Angeles
por causa da pedra. Se ela estava na cidade, Jo��o tamb��m estava.
E n��o desistiria enquanto n��o tivesse o diamante de fogo ��� ou
um de n��s estivesse morto.
��� N��o sei ��� respondi.
Mas eu sabia. Eu n��o podia vend��-lo, assim como n��o podia
cortar fora um bra��o ou perna e colocar no mercado. Para mim,
n��o era como dinheiro; dinheiro era para ser gasto, algo que eu j��
vivera sem e poderia viver novamente. Os diamantes s��o como o
sexo: voc�� nunca esquece e nunca deixa de lamentar quando se
desfaz. E possuir este diamante era como ser dono da Mona Lisa.
Nada se comparava a isso.
��� Jo��o o considerava um filho, voc�� o fez sofrer muito.
��� Sinto muito, devem ter sido os tiros dos capangas dele que
me transformaram num ingrato.
��� Voc�� n��o compreende, nunca compreendeu. Jo��o tenta-
va proteg��-lo. E ainda quer fazer alguma coisa por voc��.
��� Mas ele pode fazer. Pode morrer logo. Isso ajudaria a n��s
dois, n��o ��?
Peguei o diamante da m��o de Simone. Ela se aproximou, abriu
meu robe e envolveu meu p��nis com os dedos frios. Meu sangue
pulsava forte. Seus l��bios tocaram os meus. O sangue explodiu, e
eu senti o s��men jorrar. Queria afast��-la, mas fui fraco.
16
��� Senti sua falta ��� murmurou.
��� Ol��, m��e. ��� Jonny estava parada no v��o da porta, nua.
Os olhos de Simone voltaram-se para mim.
Dei de ombros.
��� Ela apareceu aqui, depois da escola, a caminho de casa,
atr��s de biscoitos e leite.
SIMONE E JONNY SE FORAM, brigando, discutindo sobre momen-
tos, lugares e coisas que n��o significavam nada para mim. E sem o
diamante. Mas o jogo apenas come��ara ��� mais uma vez. Simone
voltaria. Ela sabia como agradar um homem, acariciar-lhe o falo
como se fosse seu melhor amigo. At�� conseguir o que queria. De-
pois, arrancava-o fora com uma mordida.
O caf�� chegou. Fiquei na varanda e bebi o l��quido fumegante,
relembrando o passado. Nova York. Lisboa. Africa.
Agora sentia como se esses tempos e lugares fossem t��o estra-
nhos para mim quanto as "vidas passadas" de que falam os budis-
tas, e, de fato, havia algo de surreal nas minhas mem��rias.
Cristo, se essa hist��ria de vidas passadas �� verdade, devo ter
sido um assassino cruel em alguma outra vida para merecer o que
me coube nesta.
Uma mulher de uniforme de t��nis passou perto e me deu uma
olhada. Mas eu n��o estava em clima para mulheres de branco.
A VIDA �� UMA MERDA E DEPOIS VOC�� MORRE, disse, certa vez,
algum fil��sofo de bar... Eu nunca pensara na vida como uma ba-
talha, nem sequer quando as pedrinhas estavam em baixa e a mi-
nha sorte estava em queda. Mas aprendera algo a respeito de mim
mesmo, algo que soaria estranho para aqueles que conviveram
comigo. Eu passara a maior parte da vida correndo com medo. Por
isto, sempre procurei a perfei����o em tudo o que fiz. Comigo, sem-
pre foi tudo ou nada. Win n��o era apenas o meu nome; eu adota-
ra seu sentido ��� vencer ��� como uma forma de vida.
E vivera sempre como se n��o houvesse amanh��.
Talvez n��o houvesse mesmo.
17
2
W I N L I B E R T E , LONG ISLAND, 1971
Quando eu era menino, percebi que havia algo esquisito a respei-
to do assassinato de JFK. As pessoas sempre sabiam exatamente
onde estavam quando ouviram a not��cia da morte de Kennedy.
Meu pai contou-me que estava inclinado sobre um diamante no
seu escrit��rio em Manhattan, na esquina da rua 47 Oeste com a
Quinta Avenida, examinando-o com uma lupa de joalheiro, quan-
do um de seus s��cios adentrou a sala e contou-lhe que Kennedy
tinha levado um tiro. Tio Bernie dizia que estava sentado no vaso
lendo as boas not��cias da p��gina do turfe ��� Last Chance tinha
chegado em terceiro lugar em Belmont ��� quando a secret��ria
escancarou a porta e disse aos gritos que o presidente tinha morrido.
A minha experi��ncia era a mais f��cil de guardar. No dia 22 de
novembro de 1963, eu estava nascendo dentro de um t��xi na
Broadway. Minha m��e entrara nele em frente ao apartamento da
fam��lia no Lower East Side para avisar a meu pai que estava na
hora de lev��-la para o hospital. Calculei mal e cheguei na hora
errada, com o tax��metro rodando, uma caracter��stica que manti-
ve por toda a vida.
A morte de Kennedy acompanhou-me durante toda a inf��n-
cia. Parecia que nenhum outro presidente seria capaz de igualar-
21
se a ele, infundir a confian��a que ele criara nas pessoas. Durante
os governos de Johnson e Nixon, devo ter ouvido uma centena de
vezes meu pai dizer: "Se Kennedy estivesse vivo..."
Nunca me interessei por pol��tica, portanto n��o sei se Kennedy
foi um grande presidente ou uma grande esperan��a para o povo.
Mas, assim como os sonhos de muitos americanos morreram com
ele, eu tinha dificuldade de abandonar os meus.
Aos 8 anos, meu pai levou-me da sala de estar que estava re-
pleta ��� a essa altura, nos mud��ramos para Long Island ��� a seu
pequeno escrit��rio de trabalho. Ele era um diamant��rio. �� assim
que as pessoas do ramo chamavam um negociante de diamantes,
aqueles poucos mercadores internacionais que compram e ven-
dem diamantes na meia-d��zia de grandes negocia����es de diaman-
tes do mundo.
A maior parte dos diamantes que meu pai negociava eram
brutos ��� pedras n��o lapidadas, vindas direto das minas, ainda
misturadas com terra. Era um trabalho dif��cil, dos mais dif��ceis do
mundo. Uma atividade que, de certa forma, o deixava tenso, pois
o julgamento err��neo a respeito de uma pedra importante pode-
ria levar at�� ao suic��dio.
Meu pai administrava bem o neg��cio, com vigor e tranq��ili-
dade. N��o era do tipo que fica ansioso ou irritado durante as ne-
gocia����es ��� era mais frio do que a maioria dos negociantes que j��
vi em a����o. Avaliando um neg��cio, quase que dava para ver seu
c��rebro em funcionamento. Ele me contou que seu pai o ensinou
a observar os olhos dos clientes: quando eles viam alguma coisa
que realmente os encantava, suas pupilas dilatavam-se levemen-
te. Isto mais ou menos define meu pai, um homem de uma inteli-
g��ncia sutil que podia tomar uma grande decis��o com base em uma
altera����o quase impercept��vel dos olhos.
Enquanto eu seguia meu pai pela sala, as conversas ao nosso
redor eram amortecidas, diferentes das risadas e conversas calo-
rosas de quando meus pais recebiam em casa. Minha m��e era por-
tuguesa. Meu pai, Victoir, dizia-se um cigano porque morava nos
Estados Unidos depois de ter nascido em Vars��via, crescido em
22
Marselha e casado em Lisboa. O nome Liberte foi adotado por meu
av�� na Fran��a, ap��s abandonar os guetos de Vars��via, para subs-
tituir seu nome judeu-polon��s de 30 cent��metros de comprimen-
to. Foi o meu pr��prio pai que abandonou o acento sobre o "e"
quando veio para a Am��rica. Assimila����o, era como chamavam o
fen��meno. Mas ainda pronunciava o nome "Li-ber-t��".
Minha m��e era linda, de cabelos ruivos e sedosos, olhos casta-
nhos muito doces e pele cor de p��rola. Herdei seus olhos e um
leve tom avermelhado em meu cabelo castanho. Recordo-me dela
como sendo uma pessoa quieta e delicada. Jamais levantava a voz,
mas comandava a casa com m��o de ferro. Meu pai nunca discor-
dou de suas decis��es, pelo menos na minha presen��a, e eu nunca
o ouvi levantar a voz para ela.
As crian��as n��o entendem de fato o amor que seus pais sen-
tem um pelo outro. S�� quando me tornei adulto e amei uma mu-
lher pude entender o quanto minha m��e significava para meu pai.
Naquela ��poca, eu realmente s�� entendia o quanto ela significava
para mim.
Meu pai sempre tratava minha m��e com gentileza e respeito,
como se ela fosse mais do que uma mera esposa para ele. Talvez
esse jeito um pouco diferente se devesse ao fato de ele ser razoa-
velmente mais velho que ela. De certa maneira, ele a tratava como
se fosse uma flor que desabrocha por um curto espa��o de tempo.
Minha m��e tinha um problema no cora����o que s�� foram desco-
brir quando ela engravidou de mim, e o m��dico avisou-lhe para
nunca arriscar uma outra gravidez. Mas ela sempre fora fr��gil. No
seu jeito calmo e observador, acredito que meu pai sabia, intuiti-
vamente, que algum dia a perderia.
No escrit��rio, meu pai abriu um antigo cofre cuja porta trazia
escritos os dizeres ACME SAFE COMPANY. Tirou uma caixa de charu-
tos, abriu-a e pegou uma folha de papel branco dobrada sete vezes
de forma a servir de saco para uma pedra preciosa. Acendeu o
abajur de sua mesa e fez-me sentar no seu colo enquanto desdo-
brava o papel que revelaria um diamante de dois quilates. Ele cin-
tilava e reluzia, 58 facetas que transformavam a luz "branca" em 23
um brilho resplandecente. Os diamantes tinham o poder de reu-
nir, direcionar e emanar cores brilhantes. Um diamante puro bem
lapidado �� t��o cheio de vida com sua luz e cor que mais parece
uma chama de fogo reluzente. Creio que esta �� a raz��o de serem
denominados a "chama do amor". E, pensando bem, talvez eles
os denominem assim porque muitos homens imaginam que ter��o
alguma recompensa ao presentearem uma mulher com uma des-
sas pedras.
��� Conheci sua m��e em Lisboa, em 1957���contou meu pai. ���
Ela estava sentada num caf�� de beira de rua no Rossio, a pra��a
principal, que fica no cora����o da cidade. Eu n��o voltara �� cidade
desde o fim da guerra. Durante a guerra, era um lugar animado.
Portugal era neutro, e havia milhares como eu, homens e mulhe-
res que tinham fugido dos nazistas e ido para lugares como Lisboa,
Istambul e T��nger, na esperan��a de conseguir passaportes falsos
para entrar na Am��rica.
��� Algum dia, mostrarei a voc�� um filme antigo chamado
Casablanca. Ter�� uma id��ia de como era Lisboa durante a guerra,
da sensa����o de desespero de se estar sem dinheiro ou sem docu-
mentos de viagem na Europa naquela ��poca. A qualquer momen-
to, n��s esper��vamos que Salazar, o homem forte do pa��s, se aliasse
aos nazistas e nos entregasse aos soldados de Himmler.
��� Finalmente, consegui sair do pa��s, entrar na Inglaterra com
documentos falsos e, ent��o, vir para os Estados Unidos. Depois
disso, s�� voltei a Lisboa uma vez, para o enterro de um velho ami-
go, um homem que me ajudou durante a guerra quando eu estava
sem dinheiro e com fome. Um joalheiro que me deu pedras em
confian��a para que eu pudesse fazer meus primeiros neg��cios em
Lisboa, quando era um refugiado cujo bolso s�� tinha furos. ��ra-
mos chamados de vendedores ambulantes, vendedores de pedras
preciosas, sem escrit��rios ou lojas e que carregavam a mercadoria
nos bolsos, prontos para fazer neg��cio em um bar, um caf�� ou uma
esquina,
��� Depois do funeral, estava passeando pela cidade, visitan-
do locais que eram lembran��as do meu passado, quando a avistei.
24
Ele manuseava sua lupa de joalheiro enquanto falava. Sempre
a tinha consigo, n��o importava aonde f��ssemos. Era como um
m��dico com sua maleta ��� ele nunca sabia quando algu��m pedi-
ria uma opini��o sobre uma pedra preciosa. Os diamant��rios faziam
neg��cios em bar mitzvahs, casamentos, funerais, e quando o barco estava afundando.
��� Sua m��e tinha ido a um recital. Era estudante de m��sica,
violinista, e acabara de fazer uma apresenta����o com outros estu-
dantes. ��� Ele me ofereceu a lupa e uma pin��a. ��� Olhe para este
diamante e me diga o que v��.
Peguei o diamante entre as hastes da pin��a e usei a lupa para
examin��-lo contra um papel branco. J�� fizera isso antes. Alguns
meninos cresciam com uma luva de beisebol, eu tinha uma lupa
de joalheiro.
��� N��o tem defeito ��� reconheci.
��� Sim, nenhum defeito, nenhuma mancha, nada que possa
diminuir a beleza. �� como olhar dentro de uma estrela. Foi o que
eu vi quando olhei para a sua m��e pela primeira vez. Eu caminha-
va pela rua, quando Elena levantou o rosto, rindo de alguma coisa
que um amigo dissera. Olhei nos olhos dela e enxerguei seu cora-
����o. Naquele momento, soube que estava diante da mulher que
eu amaria pelo resto da minha vida.
��� Win, n��s, judeus, presenteamos nossas esposas com um
diamante puro quando nos casamos para que o casamento seja
perfeito. Mas o meu foi perfeito porque a mulher com quem me
casei era uma gema sem igual. Seus olhos lacrimejaram. Ele bai-
xou o olhar.
Deixei meu pai inclinado sobre a mesa, o olhar fixo no dia-
mante, recordando-se daquela noite em Lisboa quando viu mi-
nha m��e pela primeira vez. Sem fazer nenhum barulho, abri a porta
e voltei para a sala. Permaneci pr��ximo �� parede, sem querer ser
abra��ado ou consolado pelos familiares. Um padre conversava com
os parentes portugueses de minha m��e, e um rabino com os ami-
gos de meu pai. Vi dois de seus companheiros de trabalho exami-
nando um diamante em um canto da sala. N��o era considerado
25
indelicado, da mesma forma que falar de beisebol tamb��m n��o
seria. Para n��s, tratava-se apenas de um neg��cio, um modo de vida.
Entrei na sala de visitas onde minha m��e estava deitada.
Quando ela chegou do hospital, meu pai providenciou a transfe-
r��ncia de sua cama para essa sala. Ela preferia a vista da rua �� do
quarto deles, nos fundos da casa. Minha m��e recusara-se a per-
manecer no hospital quando seu cora����o come��ou a falhar.
Aproximei-me da cama.
Ela estava branca, p��lida como jamais a vira, t��o branca que o
cabelo ruivo parecia estar em fogo. Peguei sua m��o e fitei o dia-
mante que ela tinha no dedo, o anel que meu pai lhe dera quando
se casaram.
Chorei ao tocar sua m��o gelada.
26
3
MANHATTAN, 1 9 7 4
��� Qual �� o seu peso, Win? ��� perguntou-me tio Bernie.
Bernie era primo em segundo grau de meu pai, mas, por ser
muito mais velho que eu, chamava-o de tio. Um bom homem, meio
espalhafatoso, um pouco barrigudo. Explicava que a barriga se
devia �� gravidade, ao fato de passar o dia inteiro sentado. Nada a
ver com a comida.
N��s est��vamos na firma de meu pai, na rua 47 Oeste, o Distri-
to do Diamante de Nova York. A House of Liberte e outros mi-
lhares de negociantes possu��am escrit��rios no quarteir��o da rua
47, que ia da Quinta Avenida �� avenida das Am��ricas. Era assim
que a ind��stria do diamante funcionava, todos vizinhos, fazendo
neg��cios no corredor, na rua, a caminho do metr�� ou engolindo
um sandu��che.
Nenhum empreendimento no mundo igualava-se a esse, que
se baseava na confian��a absoluta. O capital de um comerciante
em tal tipo de neg��cio era a sua palavra. Pedras que valiam uma
pequena fortuna eram passadas de uma m��o para outra por nego-
ciantes que pouco se conheciam e a ��nica coisa que o vendedor
recebia era uma promessa por escrito, assinada, de que a d��vida
seria paga. Mas tamb��m havia um mundo de incertezas, em que o
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vendedor n��o garantia a qualidade da mercadoria ��� voc�� com-
prava assumindo risco, fosse entre comerciantes ou no varejo. Era
poss��vel comprar um diamante na Rua 47 Oeste por metade do
pre��o das lojas de prest��gio da Quinta Avenida ��� Tiffany's,
Bvlgari's, Harry Wintston's, Carrier. Sim, mas voc�� recebia pelo
que havia pago ��� tinha que contar os dedos depois de fazer um
neg��cio no Distrito do Diamante. Muitos dos comerciantes ele-
vavam a classifica����o da pedra em um ou dois pontos ou apresen-
tavam "certificados de gemas" cuja credibilidade era compar��vel a das licen��as de pregadores vendidas nos anos 1960 para fugir
dos impostos.
Tamb��m era a atividade menos pretensiosa do planeta. Os ne-
gociantes vestiam-se de maneira informal, e os escrit��rios eram
muito simples. As vezes, eu me perguntava se n��o havia um con-
curso para ver quem conseguia parecer o mais pobre. Talvez fosse
para escapar de serem roubados ou assassinados. Homens de ter-
nos pretos e chap��us de feltro ou solid��us caminhavam de pr��dio
em pr��dio, trazendo nas m��os pastas pretas geralmente vazias,
contendo apenas seu almo��o. Nos bolsos do palet��, por��m, eles
tinham pedras no valor de um milh��o de d��lares.
Os pr��dios eram t��o despretensiosos quanto as pessoas. O es-
crit��rio de meu pai n��o era luxuoso; ao contr��rio, suas salas ti-
nham um aspecto t��o despojado e simples que poderiam se passar
por um pequeno escrit��rio de contador, exceto pela porta de en-
trada de a��o e o cofre de quase dois metros de altura. Fora uma
venda ocasional a um cliente muito importante dono de alguma
loja, a maior parte dos neg��cios era no atacado: traziam diamantes
de toda parte do mundo e os vendiam para outros intermedi��rios
que, por sua vez, repassavam para outros, at�� finalmente che-
garem ��s m��os de uma mulher em Palm Beach ou Palm Springs.
A trajet��ria seguida pelo neg��cio de diamantes no mundo
funcionava da seguinte maneira: as pedras brutas eram retiradas
das minas em lugares como ��frica e Brasil e vendidas e lapidadas
em gemas na Antu��rpia, Tel-Aviv, Bombaim e, em menor escala, em
Nova York. Os diamantes geralmente passavam por v��rias m��os
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antes de transporem o balc��o de uma loja e chegarem ao dedo de
uma mulher.
Era um neg��cio ��rduo. Bernie dizia que, para ser bem-sucedi-
do, era preciso ter muita l��bia.
Ap��s a morte de minha m��e, viemos morar na cidade. Eu cos-
tumava passar no escrit��rio depois da escola e, quase sempre, re-
cebia de meu pai ou de Bernie uma aula sobre o neg��cio de
diamantes. Meu pai dizia que n��o queria que eu fosse criado den-
tro de um aqu��rio porque algum dia teria que nadar com tuba-
r��es. Assim, ele me fez freq��entar uma escola p��blica multirracial
e multicultural, o tipo de lugar onde ningu��m deixava os colegas
saberem que seu pai trabalhava com diamantes, pois fatalmente
eles imaginariam um meio de extorquir algum dinheiro de voc��.
��� N��o sei, uns 50 quilos, talvez um pouco mais.
��� Errado! Voc�� pesa 225 mil quilates. Lembre-se, meu ami-
go: quilos, n��o; quilates.
��� As pessoas me achariam esquisito se eu dissesse meu peso
em diamantes.
��� Conversa fiada. N��o seria o primeiro, sabe disso. Havia um
pr��ncipe indiano que, todos os anos, no dia do seu anivers��rio,
recebia seu peso em diamantes... ou seria em ouro?
Deixei Bernie matutando se era em ouro ou diamantes, per-
guntando-me se o pr��ncipe participava de algum banquete antes
de ser pesado, e entrei na sala de meu pai. Ap��s a morte de minha
m��e, seu cabelo tornara-se prematuramente grisalho, e o rosto
assumira uma apar��ncia magra, fl��cida, em raz��o da perda de peso,
fazendo-o parecer mais velho que seus 54 anos de idade. Ele se
casara com minha m��e quase aos 40. Dizia que esperara tanto tem-
po para se casar porque procurava uma gema perfeita. Ele a en-
contrara e a perdera. Agora, parecia estar debilitado e envelhecido.
Dois anos ap��s a morte de minha m��e, meu pai casou-se de
novo. N��o por amor, mas por senso de responsabilidade. Tinha
um filho para criar, estava muito ocupado com a empresa e sentia
que eu precisava de uma m��e. Minha madrasta, Rebecca, tam-
b��m tinha um filho, Leo, cinco anos mais velho que eu, totalmente
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diferente de mim. Eu aparecia no Distrito do Diamante quando
meu pai exigia, mas preferia as garotas e o surfe. J�� Leo s�� pensava
em dinheiro e diamantes. Alguns garotos queriam ser bombeiros
ou m��dicos quando crescessem, mas Leo queria ser sight holder.*
Uma das peculiaridades da ind��stria de diamantes era que "o Sin-
dicato", o cartel africano de diamantes De Beers, ditava quase todas as regras no mundo inteiro, controlando a oferta e a demanda para
manter os pre��os altos. E s�� vendia diamantes para uns poucos
selecionados. Menos de duzentas pessoas no mundo tinham o pri-
vil��gio de receber um convite para comprar diamantes do cartel.
Os sights* aconteciam em Londres. N��o podiam acontecer nos
Estados Unidos porque o Departamento de Justi��a considerava a
De Beers um monop��lio. Fora os poucos escolhidos, o resto dos
comerciantes de diamantes negociava as sobras.
Meu pai desembrulhou uma pedra bruta e colocou-a sobre sua
mesa.
��� Diga-me qual �� a sua opini��o.
Para a maioria dos pais, a grande preocupa����o �� que seus filhos
aprendam a ler e escrever e adquiram os conhecimentos b��sicos na
escola. Quanto a mim, tamb��m precisava aprender sobre os quatro
quesitos ��� pureza, cor, lapida����o e quilate m��trico (peso) ���, ao
avaliar uma pedra lapidada. Essas caracter��sticas tamb��m se aplica-
vam na hora de analisar a pedra antes de ser lapidada. E negociar
com pedras brutas era a especialidade de meu pai. Ele comprava as
pedras brutas, providenciava a lapida����o e, depois, vendia para
mercadores de diamantes que as negociavam no varejo.
A melhor maneira de examinar um diamante era sob uma boa
luz e contra um fundo branco. Se fosse um diamante lapidado, era
necess��rio estar solto de seu engaste porque o metal dificultava a
avalia����o.
*Um sight de diamantes �� uma cerim��nia reservada de exposi����o e venda de gemas para comerciantes seletos que acontece periodicamente em Londres,
controlada pela De Beers. O sight holder �� o expositor, um dos raros membros do grupo que promove essas cerim��nias. (N. da T.)
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Comecei pela pureza para determinar o grau de "limpeza" da
pedra, examinando-a a olho nu para verificar se havia algo errado
na superf��cie ou no interior. "Sem impurezas" �� uma express��o
m��gica no ramo, e era onde a gradua����o come��ava. A partir da��
tinha inicio uma escala decrescente de impurezas, desde aquelas
que, de t��o grandes, dispensavam o uso de lupas de joalheiro com
poder de aumentar em dez vezes os objetos, at�� as impercept��veis
aos olhos dos leigos.
A pedra continha impurezas de superf��cie e inclus��es vis��veis
a olho nu. Quando a examinei sob a lupa, surgiram outras tantas.
O tipo de lapida����o n��o alteraria nada diante de tantos defeitos.
Em seguida, verifiquei a cor, deixando a luz passar atrav��s dela
para o papel branco. Alguns negociantes tiram do bolso um car-
t��o de visita branco, dobram-no e colocam o diamante na dobra
para verificar sua cor.
Com a maioria das pedras preciosas ��� rubis, safiras, esmeral-
das ���, quanto maior a intensidade de cor, melhor. Com os dia-
mantes, �� justo o oposto. Os diamantes mais raros e valiosos s��o
incolores, o que significa que brilham mais porque n��o h�� nada
bloqueando a passagem da luz. A escala come��a na aus��ncia de
cor e, dali, decresce para v��rias tonalidades de amarelo devido ao
conte��do de nitrog��nio e, finalmente, para os diamantes indus-
triais. A medida que o amarelo aumenta, cai o valor da pedra.
Uma pedra completamente incolor, uma "D" (sem cor) de 1
quilate m��trico, poderia valer quatro ou cinco vezes mais que uma
"M" (amarelo claro) ��� mas os diamantes eram t��o caros que
mesmo um "M" medido em quilates m��tricos ainda poderia cus-
tar milhares de d��lares!
A pedra que eu examinava estava na base da escala de cores,
um amarelo escuro e turvo.
��� Fale-me mais sobre as cores ��� pediu meu pai.
��� H�� uma coisa engra��ada a respeito das cores ��� um pouco
de amarelo reduz o valor da pedra, mas muito amarelo o eleva.
Se a pedra fosse, de fato, saturada de cor, o valor subia bastante.
Amarelos-can��rio, verdes, azuis e rosas genu��nos eram chamados
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"diamantes fantasia", disse eu. Eles eram raros e valiosos. Os diamantes grandes especiais podiam ser vendidos na Christie's e na Sotheby's
por milh��es de d��lares, como as pinturas dos grandes mestres.
��� E quanto aos diamantes vermelhos, eles s��o valiosos? ���
perguntou meu pai.
��� Eu nunca vi um diamante vermelho.
��� A maior parte das pessoas tamb��m n��o. Dizem, ali��s, que
n��o existe nenhum diamante vermelho escuro de fato, s�� aver-
melhado e rosa-escuro. Mas uma vez eu tive um vermelho-rubi, o
diamante vermelho de tonalidade mais profunda e intensa jamais
encontrado; era como segurar um peda��o de fogo, como segurar
uma estrela nas m��os. Isso faz muito tempo, foi antes de voc�� nas-
cer, antes mesmo de eu conhecer a sua m��e.
��� O que aconteceu a ele?
��� Foi furtado em Lisboa. Jamais o esquecerei. Como sua m��e,
ele era incompar��vel. Afinal, qual �� a sua avalia����o do diamante
que est�� examinando?
��� Lixo ��� conclu��. ��� A cor �� ruim, e as impurezas s��o t��o
evidentes que posso v��-las sem a lupa.
��� N��o, n��o �� lixo. Todo diamante tem valor. Este apenas n��o
�� t��o caro quanto alguns outros. Mesmo os diamantes que n��o t��m
a qualidade de uma gema s��o valiosos para fins industriais. N��o
comece a achar que todos os diamantes devem apresentar clari-
dade D e n��o ter impurezas. Vendemos qualidades diferentes para
gostos e bolsos diferentes. Dizem os joalheiros que o homem deve
gastar o sal��rio de dois meses em um anel de noivado. Pode imagi-
nar como seriam ��nfimos os diamantes se todos fossem Ds perfeitos?
��� Mas seriam bons investimentos. Voc�� me disse que a maior
parte dos diamantes vendidos neste pa��s t��m muito amarelo para
aumentar o valor.
��� �� verdade, mas os americanos apreciam as gemas grandes,
mesmo que sejam piores na qualidade, enquanto que os japoneses
preferem as de alta qualidade, ainda que tenham dimens��es me-
nores. Talvez por isso tenhamos uma taxa de div��rcio t��o alta. Fale-
me mais sobre a pedra. Qual �� o tamanho dela?
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Coloquei-a na balan��a. Os diamantes s��o vendidos pelo peso,
n��o pelas dimens��es f��sicas. E outra peculiaridade dos diamantes
era eles terem seu pr��prio sistema de peso. A palavra "carat" (quilate) vem de "carob" (alfarroba), cuja farinha pode servir como subs-tituta do chocolate. Na ��ndia e no Mediterr��neo, os diamantes eram
pesados colocando-se sementes de alfarroba em um lado da balan-
��a e diamantes no outro. N��o sei o porqu�� das sementes de alfarroba.
Talvez elas tenham um peso mais uniforme. Nos tempos modernos,
contudo, n��o se mostrou um m��todo muito pr��tico, e a ind��stria
do diamante acabou padronizando o "quilate m��trico" como equi-
valendo a 200 miligramas. Bernie conseguia calcular meu peso em
quilates facilmente porque 1 quilo representa 2 mil quilates.
Nesse neg��cio, os quilates ainda eram divididos em "pontos",
sendo que 100 pontos equivaliam a 1 quilate. Um diamante de 50
pontos tinha meio quilate, um de 75 pontos tinha 3/4 de quilate,
e assim por diante.
��� Cento e doze pontos, um pouco mais que 1 quilate ���
disse eu.
��� Bom, mas esse �� o peso da pedra n��o lapidada. Precisamos
saber qual ser�� seu peso quando for cortada. Que tipo de lapida����o
voc�� faria nela?
Aquela era uma pergunta complexa. O que um garoto de 11
anos sabe sobre a lapida����o de diamantes?
Levei a pedra para uma mesa que ficava em um canto da sala
e comecei a examin��-la sob a luz forte. Eu conhecia a rotina: exa-
minar a pedra com a lupa, procurar as impurezas, as linhas de
clivagem, descobrir exatamente o ��ngulo certo para o corte. Para
quem via um diamante lapidado, era dif��cil imaginar que eles eram
esculpidos de pedras malformadas como a que eu tinha nas m��os.
O mais importante quanto �� lapida����o era a capacidade de
visualizar qual seria a apar��ncia do produto acabado. Meu pai me
ensinou que as pessoas que decidem onde cortar, serrar e polir os
diamantes, para eles chegarem ao formato que conhecemos, pre-
cisam visualizar a gema dentro da pedra, a fim de que possam de-
finir o trabalho a ser feito.
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��� Imagine que voc�� �� um raio de luz ��� dizia ele quando
colocava em minha m��o uma pedra que ia ser cortada. Tudo se
resumia naquilo, na maneira como a luz viajava. Quem fosse ca-
paz de visualizar exatamente como a luz reagiria ao diamante, sa-
beria como cort��-lo para real��ar seu brilho.
A primeira coisa que voc�� precisava saber era que todo aque-
le brilho, a luminosidade que chamamos de fogo do diamante,
aqueles raios de luz, n��o vinham de uma luz refletida em sua su-
perf��cie, mas da luz que penetrava nele e que era processada den-
tro dele. O corte era t��o importante quanto as duas primeiras
caracter��sticas ��� cor e transpar��ncia. Os tr��s juntos contribu��am
para criar uma gema deslumbrante.
O diamante se divide em tr��s partes. A parte ampla do meio,
onde ele �� preso ao anel, chama-se cintura. A ��rea acima dela �� a
coroa, e a ��rea abaixo da cintura �� o pavilh��o. Imagine um raio de
luz entrando no diamante atrav��s das facetas da coroa e sendo
processado nas facetas do pavilh��o, a luz dividindo-se em dife-
rentes cores como se estivesse passando por um prisma. O brilho
intenso que surge �� a luz refratada no pavilh��o.
N��o se podia simplesmente cortar fora uns peda��os at�� che-
gar ao formato conhecido do diamante. Apesar de a maioria das
pedras serem cortadas para terem 58 facetas, sendo 33 na coroa e
25 no pavilh��o, cada pedra era ��nica, e dar forma a uma gema a
partir da pedra bruta exigia um exame minucioso. E nem sempre
ela ficava da maneira que o lapidador planejara. Duas pedras com
a mesma gradua����o quanto a peso, pureza e cor podem ter um
brilho significativamente diferente devido �� maneira como a gema
foi tirada da pedra. O procedimento correto era come��ar com uma
pedra de cerca de 3 quilates e lapid��-la, at�� ela se transformar em
um diamante de 1 quilate. �� poss��vel produzir um diamante de 1
quilate a partir de uma pedra menor, digamos, do tamanho de 2 qui-
lates, mas talvez n��o se possa conseguir a mesma intensidade de
brilho da pedra menor, apesar de ela ter a mesma especifica����o.
Era comum a forma e o tamanho da pedra tamb��m serem deter-
minados pelo trabalho feito observando os defeitos da pedra.
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Eu n��o ganharia a vida cortando pedras mas, se fosse seguir os
passos de meu pai e me tornar um negociante de diamantes, cada
vez que eu examinasse uma pedra bruta para decidir se queria
compr��-la, teria de considerar o mais importante "C" de todos ���
o custo. Eu precisaria avaliar a gema com muita precis��o na forma
bruta para determinar quanto pagaria pagar por ela ��� e quanto a
pessoa que a comprasse deveria pagar.
O meu treinamento foi assim, come��ar sempre por enxergar a
gema oculta dentro da pedra, imaginando um raio de luz e acom-
panhando-o ao entrar e ser processado, visualizando como as
facetas refratariam e dispersariam a luz para avaliar como deveria
ser o corte.
Depois de determinar onde seria o corte, a pedra era marcada
com tinta para mostrar onde a clivagem, a serra e o polimento
seriam feitos. Utilizando-se um pequeno macete, a pedra precisa-
va ser cortada precisamente na sua clivagem para partir adequa-
damente. Ao menor desvio, a pedra seria danificada, podendo at��
mesmo quebrar-se. Esse era o paradoxo dos diamantes ��� eles eram
duros, por��m f��ceis de quebrar. Eram a subst��ncia mais dura exis-
tente sobre a terra ��� todos n��s sab��amos que s�� era poss��vel cor-
tar um diamante com outro diamante. Podemos colocar um
diamante sobre uma bigorna e bater nele com um martelo-de-for-
ja, levando o diamante sem ter quebrado a penetrar na bigorna de
ferro ��� mas, da mesma maneira, ele �� suscet��vel de estilha��ar-se
quando golpeado ao longo de qualquer uma das suas linhas de
clivagem.
"A lapida����o dos diamantes teve origem na ��ndia", contara-
me tio Bernie em uma de suas aulas. "Eles sabiam que os diaman-
tes eram t��o duros que, quando golpeados sobre uma bigorna,
cravavam-se nela, mas eles tamb��m descobriram que era poss��vel
estilha����-los. Se voc�� batesse no diamante muitas vezes, por ten-
tativa e erro acabaria por atingi-lo ao longo do gr��o, e ele se que-
braria. Eles embrulhavam as pedras em folhas de chumbo e as
quebravam golpeando-as com for��a. Depois, pegavam os peda��os
afiados das pedras quebradas e as fixavam no gume das espadas
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quando as l��minas estavam quentes a ponto de quase derreterem.
Com isso, criavam espadas que podiam cortar o a��o."
Levei a pedra para a outra sala e analisei-a por uma hora, exa-
minando-a a olho nu e sob a lupa. Quando conclu�� como achava
que ela devia ser cortada, marquei as linhas com tinta. Depois,
expliquei ao meu pai.
��� Eu faria um corte oval de 40 pontos. Isto significaria uma
perda de quase 2/3 da pedra, sendo que um pouco poderia ser re-
cuperado como areia. ��� Areia queria dizer diamantes pequenos,
geralmente abaixo de 10 pontos. Qualquer coisa abaixo de 100
pontos, ou 1 quilate, era considerado pequeno. ��� Ele tem um gletz-
Uma min��scula rachadura. Eu a removeria e, com isso, perderia
mais ou menos 1/4 da pedra. Se for deixada na pedra, �� prov��vel
que a leve a rachar durante a serragem e o polimento necess��rios
para criar as facetas.
A retirada da rachadura seria feita pela clivagem. Era um pro-
cedimento que utilizava um macete e uma l��mina para separar uma
parte do diamante, o processo que a maioria das pessoas identifi-
cava como sendo a lapida����o do diamante. A clivagem �� a manei-
ra como a lapida����o �� feita nos filmes, mas, na vida real, na maior
parte das vezes, a forma era alcan��ada atrav��s de horas entediantes
de serragem e polimento. A clivagem era arriscada porque a pe-
dra podia estilha��ar-se.
Passei o resto daquele dia, parando apenas para jantar, mais to-
das as minhas horas livres entre a escola e a hora de dormir da se-
mana seguinte, examinando o diamante e preparando-o para o corte.
Conversava sobre ele com meu pai, Bernie e Emile, um lapidador
que trabalhava para meu pai. Prendi-o sobre uma ferramenta cha-
mada dop e usei outro diamante para fazer uma ranhura. Como um
diamante s�� podia ser cortado por outro, usei um diamante pontu-
do para fazer a ranhura de que eu precisava para fixar a faca de
clivagem. Eu j�� lapidara v��rios diamantes industriais como pr��tica
para o grande dia em que fosse lapidar algo mais valioso.
Quando chegou a hora de fazer a clivagem de fato, meu pai
estava presente. Comecei o corte com um macete em uma das m��os
36
e a faca de clivagem na outra, o diamante devidamente apoiado e
j�� com a ranhura. Antes de dar o golpe, virei-me para meu pai.
��� E se estilha��ar? ��� perguntei.
��� Voc�� nunca conhecer�� o fracasso se n��o tentar. E s�� co-
nhecer�� o sucesso depois de experimentar o fracasso.
��� Ent��o n��o importa se eu o estilha��ar?
��� Claro que importa. Esse diamante vale um ano de mesa-
da. Se voc�� o estilha��ar, ter�� que vir aqui todos os dias, depois das
aulas, durante um ano, para merecer a sua mesada.
��� N��o �� justo.
��� A vida �� assim. Voc�� vai aprender com a idade que a ��ni-
ca justi��a que se consegue neste mundo �� quando voc�� luta por
alguma coisa.
��� Por que eu preciso aprender a lapidar um diamante? ���
Eu sabia a resposta, mas quando voc�� �� crian��a fica testando os
pais em busca da resposta que deseja. ��� N��o pretendo lapidar
diamantes quando crescer.
��� Precisa conhecer o neg��cio. Cada detalhe dele. Do con-
tr��rio, as pessoas se aproveitar��o de voc�� ou poder��o desapont��-
lo por serem incompetentes.
Meu pai me treinou para conhecer cada detalhe. Como na
ocasi��o em que venci uma corrida de bicicleta. Antes de me dar
autoriza����o para participar da corrida, ele me fez desmontar a bi-
cicleta e remont��-la, at�� eu conseguir faz��-lo de olhos vendados.
"E assim que eles treinam os soldados", contou-me. "Dia e noite, eles n��o largam os rifles, portanto, precisam saber mont��-los e
desmont��-los no escuro."
Eu larguei o macete e esfreguei as m��os. Elas estavam suadas.
��� Pode imaginar como um lapidador de diamantes se sentia
antigamente, quando cortava uma pedra que valia o resgate de um
rei? Era comum eles estudarem o diamante por um ano ou mais e,
no dia, terem um m��dico ao lado para o caso de a pedra estilha��ar.
��� O m��dico ia consertar a pedra quebrada?
��� N��o. Ele estava ali para tratar do lapidador do diamante
estilha��ado.
37
Meu pai contou-me a hist��ria do famoso mestre lapid��rio de
Amsterd��, Joseph Asscher, que, em 1907, lapidou o Diamante
Cullinan, o maior do mundo, para Eduardo VII. Tinha 3.106 qui-
lates, pesava mais de 500g e era quase do tamanho do punho de
um homem. A realeza queria que fosse cortado em pedras menores,
algumas seriam incrustadas na coroa e no cetro. Na hora marcada
para o feito, Asscher estava acompanhado de um m��dico e uma
enfermeira. Logo que levantou a m��o com o macete e golpeou a
pedra, ele caiu desmaiado, sem ver a pedra clivar suavemente.
A parte da hist��ria de que eu mais gostava era como o dia-
mante fora enviado para a Inglaterra. O Cullinan foi encontrado
na ��frica do Sul e decidiram envi��-lo para Londres. Seria lapida-
do para o rei. Os donos da mina, ent��o, arquitetaram um plano
mirabolante: enviar o diamante dentro de uma caixa de ferro, sob
uma ostensiva prote����o, quando, na verdade, seguiria pelo correio.
Os negociantes de diamantes ainda repetiam o mesmo tipo de tru-
que para transportar suas pedras para os diferentes cantos do
mundo.
Eu deitei o macete sobre a pedra novamente, levantei-o, mi-
rei e golpeei.
O diamante estilha��ou-se. Fiquei olhando para os peda��os com
um aperto no cora����o. Quando me virei para o meu pai, seu sem-
blante estava imperturb��vel.
��� Quero outro ��� disse eu ���, quero outro diamante para
lapidar.
Seus l��bios amea��aram um sorriso.
��� Est�� bem, mas vai ficar sem dinheiro se o quebrar.
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4
LONG ISLAND SOUND, 1991
Determinadas mulheres adoram a velocidade. E esta paix��o des-
perta mais tes��o do que a car��cia de um homem. A mulher do
banqueiro de investimentos era uma delas. Sentada em frente a
mim no cockpit do barco a vela, ela molhava a calcinha a cada
rajada do vento e respingo do mar. Na verdade, um barco a vela
n��o se movimenta muito r��pido. De modo geral, move-se lenta-
mente. Mas, com um bom vento pela proa, voc�� precisa segurar-
se para n��o ser jogado ao mar. N��o �� muito diferente da sensa����o
de se lan��ar em dire����o �� terra, em alta velocidade, nas acroba-
cias de um avi��o.
��� Estou t��o excitada! ��� gritou ela para mim.
Sim, dava para ver. Quanto mais eu inclinava o barco, mais
ela abria as pernas. A calcinha cor-de-rosa e uma linha de p��los
pubianos apareciam no gancho do short curtinho. Sua boca esta-
va aberta, convidativa. Ela queria alguma coisa, eu s�� n��o sabia,
ao certo, por onde come��ar.
Um gemido horr��vel subiu pela escada vindo da cabine abai-
xo. Depois, surgiram os sons de arfadas e golfadas do marido dela
vomitando.
Dizem que, no mar, h�� dois tipos de pessoas ��� aquelas que j��
enjoaram e aquelas que ainda ir��o enjoar. Mas seu marido, Barney,
39
criou um terceiro tipo ��� aquele que passa mal antes mesmo de se
afastar do cais. Quando ele j�� estava vesgo de vomitar as tripas,
acomodei-o na cabine preso a um beliche com amarras pr��prias
para mar agitado. Da ��ltima vez que olhei, ele tinha ca��do do be-
liche e rolava em cima do v��mito.
��� Acelere ��� gritou ela ���, eles est��o nos alcan��ando.
"Eles" era um veleiro cutter de 15 metros de comprimento, com o qual apost��vamos uma corrida ��� o Hedge Fund ��� que deveria
ter dado um banho no meu, de apenas 12 metros. Quando vento
e corrente est��o favor��veis, a velocidade de um barco a vela ��
determinada pelo seu comprimento. Mas isso seria o mesmo que
dizer que o bom desempenho de um taco de golfe depender�� so-
mente do seu fabricante. Dois velejadores com habilidades dife-
rentes ter��o desempenhos diferentes, da mesma forma que dois
jogadores de golfe usando o mesmo taco n��o ter��o necessariamente
o mesmo resultado. O timoneiro do Hedge Fund, Nolan Richards,
n��o tinha colh��es, nem instinto de corredor para me vencer. Meia
hora atr��s, ele seguia o procedimento padr��o, mantendo o seu curso
de navega����o e esperando melhorar o vento inst��vel e irregular.
Essa �� a conven����o, procurar navegar com o vento dispon��vel, pois
sair do curso em busca de um vento melhor �� arriscar-se a perder
tempo e dist��ncia. Mas os bons velejadores tamb��m sabem que
todo vento tem personalidade pr��pria. Assim como as mulheres,
alguns agem de acordo com o esperado, outros surpreendem. Na
minha cartilha, n��o se vence regata velejando conforme o ma-
nual ��� �� preciso adaptar-se ��s condi����es. Minha experi��ncia no
Sound mostrou-me que um vento leste se transforma em sudoes-
te quando os gr��ficos das correntes dizem que a mar�� vai subir.
Por isso, mudei de rumo para pegar aquele vento. O Hedge Fund,
finalmente, conseguira pegar um pouco dele tamb��m, mas j�� era
tarde demais para me alcan��arem.
��� O que vou ganhar se vencer? ��� gritei de volta para ela.
Ela fez um aceno de cabe��a e passou a l��ngua nos l��bios. Seu
rosto estava quente e corado, e a boca vermelha e inchada como
uma boceta excitada.
40
Entendi o recado. E dei mais vela. Enquanto usava a catraca,
os gemidos e resmungos de Barney subiam pela escada da cabine.
Tive pena do pobre coitado. Qualquer pessoa que nunca mareou
n��o faz id��ia de como �� horr��vel. N��o que me importasse muito
com o camarada. O passeio de barco era puramente profissional.
Katarina, minha namorada, pedira que levasse o casal no meu
barco a vela e lhes proporcionasse um divertimento agrad��vel.
Katarina tamb��m deveria estar presente, mas a sess��o de fotos para
a Vogue atrasou um pouco, e ela n��o conseguiu chegar a tempo.
Katarina �� uma top model cujo sonho �� ser estrela em Holly-
wood. Barney �� o vice-presidente de um banco de investimentos
que financia filmes. Uma combina����o dos c��us, aos olhos de
Katarina. Na minha opini��o, o balofo do Barnie era um imbecil
ma��ante que me lembrava muito meu irm��o adotivo, Leo. Quan-
do meu pai e a esposa morreram em um acidente, h�� 15 anos, eu
herdei uma empresa de diamantes. Como n��o tinha a menor von-
tade de administr��-la, deixei-a nas m��os de Leo e do tio Bernie.
Eles brincavam comigo, dizendo que eu agia como se fosse o dono
do Citibank porque aquele era o nome que aparecia nos cheques
que chegavam todos os meses para sustentar meus luxos, como os
melhores carros, um barco a vela e um apartamento no edif��cio
Dakota, no Upper West Side.
Quando perdi meu pai, poucos anos ap��s a morte da minha
m��e, um fatalismo sombrio tomou conta de mim. Percebi que
nunca se sabe quando a morte vai chegar e que, portanto, o me-
lhor seria aproveitar tudo de bom que a vida pudesse nos propor-
cionar. Assim passei a n��o me importar com nada al��m de me
divertir. Ali��s, me esbaldar, porque divertir-me simplesmente era
pouco.
��s vezes, depois de uma noite de loucuras, eu acordava bem
cedo e imaginava o que meu pai teria pensado do meu estilo de
vida. Ele e minha m��e n��o viveram o suficiente para aproveitar as
alegrias da vida. Mas logo eu deixava a culpa de lado���n��o queria
agonizar no meu leito de morte sobre uma lista de coisas que gos-
taria de ter feito e n��o fiz.
41
A mulher do banqueiro de investimentos fez um sinal com o
polegar para a escada da escotilha aberta e riu. Eles tinham um
casamento dos c��us. Ele era rico e enfadonho; ela tinha gostos caros
e estava entediada. Ela era uma loura carnuda, madura e suculen-
ta, com uma boceta quente; ele provavelmente teria um ataque
card��aco se chegasse a trepar de verdade com ela. "Ela cuida da
sa��de dele", teorizara Katarina, "trepando com outros homens para n��o cans��-lo."
Mais vela fez o barco adernar. Enquanto a proa estourava as
ondas, os respingos voltavam para n��s, e a loura endiabrada ria
em espasmos e cambaleava por causa de uma dose de ecstasy. Na
parte alta do cockpit do navegador, ela afastava as pernas para se firmar quando o barco se inclinava mais. Ent��o, segurou a corda
salva-vidas com uma das m��os, enquanto a outra escorregou pelo
gancho da calcinha e acariciou o clit��ris, como se fosse o c��mbio
do meu Bugatti.
Depois, largou a corda e caiu sobre mim. Eu estava sentado
atr��s da grande roda do leme, e ela aterrissou com os joelhos no
ch��o do cockpit e os seios no meu colo. Em seguida, afastou o corpo para abrir o z��per do meu short, enfiou a m��o l�� dentro e encontrou o meu p��nis. Liberou-o do enclausuramento, e ele, vermelho
e pulsante, pulou em cima dela.
Ela o enfiou na boca quente e ��mida, como em um grande
trago. Eu me posicionei melhor para enfi��-lo em sua garganta.
��� Ah, Deus, estou morrendo!
O marido, verde como uma ervilha, conseguira subir a escada
e olhava para n��s, tonto e vesgo. Seus olhos lacrimejavam, e ele
arfava, quando suas v��sceras entraram em erup����o e o v��mito ex-
plodiu, jorrando de sua boca.
42
5
Katarina nos aguardava no cais e carregou a mochila, enquanto
eu ajudava a loura carnuda a acomodar o marido no banco trasei-
ro do carro. Katarina insistiu em paparicar o camarada, at�� a mu-
lher dele afastar-se com o carro. Depois, lan��ou-me um olhar
lascivo.
��� O que voc�� fez, afinal? Trepou com a mulher dele e ten-
tou mat��-lo? ��� perguntou.
Algumas mulheres conseguem enxergar o homem no seu ��ma-
go. No caso de Katarina, a explica����o devia estar nos seus cabelos
ruivos. Bruce Springsteen estava certo sobre as mulheres ruivas ���
elas conseguem ver tudo de errado que voc�� faz. Tio Bernie diz que me sinto atra��do pelas ruivas porque perdi minha linda m��e, ruiva, muito cedo. Prefiro pensar como Toulouse-Lautrec. Ele sentia
nas ruivas ��� mais do que nas louras e morenas ��� um cheiro pe-
culiar que despertava seus desejos mais selvagens. N��o �� por-
que um homem tem as pernas curtas que ele deve ser atrofiado no
corpo inteiro. ��� Lautrec tinha um pau t��o grande que as prosti-
tutas com quem trepava o chamavam de "Chaleira".
Esse pouquinho foi tudo o que consegui aprender na aula de
hist��ria da arte, antes de ser obrigado a abandonar a faculdade.
E aprendi aquilo trepando com a professora, uma jovem cor de
canela, que estava dando aulas como visitante da Sorbonne.
��� Sua bundinha gostosa n��o estava l��, enquanto eu entreti-
nha os seus convidados ��� disse eu a Katarina.
43
��� A sess��o de fotos demorou muito. Ah, tenho ��timas not��-
cias. Vou a Hollywood fazer um teste de cinema. N��o �� o m��ximo?
��� Incr��vel! ��� Dei-lhe um abra��o que levantou seus p��s do
ch��o, al��m de um grande beijo.
��� Sua boca est�� com gosto de pau ��� disse ela ���, o seu pau.
Um resqu��cio daquela puta loura?
Lambi meus l��bios. O gosto era do batom de cereja da loura.
Katarina estava me testando, jogando verde para eu admitir a
culpa.
��� Imposs��vel, voc�� est�� jogando verde. Comi uma bala de
cereja.
��� Sim, e eu sei em que embalagem a encontrou.
��� Vamos, pode voltar de carona comigo.
��� Eu vim no meu...
��� Providenciarei para que seja colocado em um caminh��o e
levado de volta para a cidade.
As poucas centenas de d��lares para que o carro fosse transporta-
do n��o significavam nada para mim. O importante, na minha cabe-
��a, era que o dinheiro me possibilitaria uns momentos a mais de prazer.
Eu n��o trabalhara um dia da minha vida e me orgulhava disso. Os
cheques provenientes da heran��a que recebera entravam todo m��s
com a pontualidade de um rel��gio, vindos da House of Liberte. Bernie
n��o era nenhum g��nio para ganhar dinheiro, apesar de ser bom e dis-
ciplinado, mas tinha Leo para respald��-lo. Leo trabalhava arduamen-
te, era um batalhador e tudo o que eu nunca quis ser.
Katarina n��o parou de falar do seu teste de cinema, enquanto
nos encaminh��vamos para o meu carro. N��o a culpo. Seu rosto j��
saiu na capa de todas as principais revistas do pa��s, sem falar dos
p��steres em que aparece nua, em certas revistas vendidas em
encarte fechado. Tinha vindo de Praga para a Am��rica para fugir
da pobreza do leste europeu da maneira mais f��cil para uma mu-
lher bonita. Trabalhava duro, levava sua carreira a s��rio e fazia o
que fosse preciso para ter sucesso. Ela desprezava minha ��tica de
trabalho. Mas eu n��o me importava, j�� que tamb��m n��o me sen-
tia t��o fascinado assim.
44
��� N��o sei se tenho talento. Outras modelos j�� tentaram, mas
n��o fotografavam bem na tela. A c��mera de filmagem tem vida, ��
diferente de fotografar poses. Ela �� um animal que pode engolir a
pessoa se n��o gostar dela.
��� Vai conseguir, voc�� tem talento.
��� Voc�� tamb��m devia ir para Hollywood e entrar para o ci-
nema ��� disse ela. ��� N��o �� bonito mas tem olhos sedutores, como
aquele ator nas embalagens de espaguete.
Demorei um tempo para entender que o camarada no pacote
de espaguete era Paul Newman. Eu devia me sentir um homem de
sorte por ser comparado a Newman em qualquer aspecto, apesar
de j�� terem dito que poderia ter sido duble de um ator mais antigo
ainda, de quem ningu��m hoje em dia ouve falar, John Garfield.
Exceto pela cicatriz que eu tinha no meio do queixo, adquirida
quando bati de frente em uma ��rvore com a minha primeira mo-
tocicleta.
Se ela fosse para Hollywood, ficar��amos a quase 5 mil quil��-
metros de dist��ncia. Para mim, contudo, Katarina era mais uma
namorada que trepava bem do que uma alma g��mea. Al��m disso,
eu teria uma desculpa para escapulir para a Costa Oeste com mais
freq����ncia e me divertir por l��. Talvez comprasse uma casa na praia
de Malibu.
Meu Bugatti tinha 553 cavalos. Fazia de 0 a 100 km/h em 3,7
segundos. Katarina ficou grudada ao assento. Quando seu corpo
se adaptou �� velocidade do carro, ela se aproximou e acariciou
minha virilha.
��� Vamos trepar quando chegarmos na sua casa ��� disse ela. ���
Minha menstrua����o vai chegar, e eu estou cheia de tes��o.
O que eu disse sobre velocidade?
Quando alcan��amos o Long Island Expressway, telefonei para
casa para ouvir as mensagens na secret��ria eletr��nica.
��� Como ��? ��� disse eu, depois de ouvir a ��nica mensagem.
��� Qual �� o problema?
��� Era a Grande Bertha, secret��ria de Bernie. Pela voz, pare-
cia hist��rica. Pediu que eu retornasse a liga����o imediatamente.
45
Telefonei para Bertha, e ela logo me contou.
��� Ele est�� morto, suicidou-se.
No come��o, n��o consegui nem acreditar naquilo, muito me-
nos entender. Bernie morto? Suic��dio?
��� Ela disse por qu��? ��� perguntou Katarina, depois que eu
desliguei.
��� N��o, estava totalmente hist��rica.
Tentei telefonar para Leo, meu irm��o adotivo, para ver se ele
sabia de alguma coisa, mas n��o estava em casa. Fiquei triste por
Bernie. Era um cara legal. Por mais que n��o tiv��ssemos um relacio-
namento muito afetuoso, era como um tio que eu via nas reuni��es
de fam��lia. Ap��s a morte de meu pai, Bernie assumiu uma postura
afetada de orgulho e vaidade como chefe da companhia de dia-
mantes fundada por meu pai. Sua postura n��o me importava, pelo
menos enquanto o dinheiro entrasse, mas, com o passar do tem-
po, nos afastamos, e o ��nico v��nculo que permaneceu foi o finan-
ceiro: os cheques mensais e as grandes retiradas ocasionais para
uma compra maior.
��� Bernie tinha problemas com mulheres? ��� perguntou
Katarina.
��� N��o, ele era divorciado. Tinha uma namorada que mora em
Staten Island, mas nada s��rio. J�� estavam juntos h�� muito tempo.
��� C��ncer?
��� N��o que eu saiba, ele vivia se gabando de ter uma sa��de
de ferro.
��� Ah, merda.
��� Ah, merda, o qu��?
��� Voc�� n��o disse que era Bernie quem controlava o seu di-
nheiro?
��� Isso n��o ser�� problema, outra pessoa o far��, provavelmen-
te Leo. Ele n��o gosta de mim, mas Bernie recebia uma gorda soma
para cuidar da grana, e Leo n��o recusaria um d��lar sequer, mesmo
que viesse embrulhado no pau de um crocodilo.
��� N��o �� isso que me preocupa. Amor, dinheiro e o grande "c"
��� Como ��?
46
��� Amor, dinheiro e c��ncer s��o as ��nicas raz��es que levam
um homem a se matar. E se ele tinha problemas de dinheiro e
administrava o seu... Win, voc�� pode ter problemas tamb��m.
Problemas de dinheiro? O que eu sabia a respeito disso? O
��nico problema que tinha em rela����o a dinheiro era descobrir um
instrumento para abrir o envelope mensal, cujo remetente era o
Citibank.
��� Minha nossa, Win, voc�� est�� com uma apar��ncia horr��vel.
Eu tentava conter as l��grimas.
��� Dane-se, j�� passei por muitas mortes durante a minha vida.
N��o vou prantear a de Bernie. N��o vou chorar por mais ningu��m.
DEIXEI KATARINA em casa e liguei para Bertha. Ela me deu o nome
e o n��mero do telefone do policial que estava investigando a morte
de Bernie, um certo detetive Leonardo. Ainda n��o tinha chegado
em casa quando lhe telefonei. Feitas as apresenta����es, depois de
dizer quem eu era e o quanto conhecia Bernie, perguntei como
tinha sido.
��� Pulou da janela do apartamento ��� explicou. ��� Cinco
andares.
��� Pela janela... N��o existe varanda no apartamento de
Bernie.
��� Nem mesmo uma sali��ncia onde se possa ficar em p��. Ele
simplesmente rastejou para fora da janela e se deixou cair. De ca-
be��a.
Meu Deus. De cabe��a. Que velocidade uma pessoa pode alcan-
��ar em uma queda de cinco andares? Cento e cinq��enta km/h?
Trezentos?
��� Tem certeza que foi suic��dio? N��o pode ter sido um aci-
dente?
��� Seu tio-primo, seja o que for, n��o era um homem peque-
no. E as janelas n��o s��o grandes. Elas abrem para cima ao inv��s de
deslizarem para os lados. Ele precisaria rastejar pela janela e se
deixar cair. N��o poderia, por exemplo, tentar alcan��ar alguma coisa
do lado de fora, escorregar e de repente cair pela janela.
47
O detetive tinha raz��o. Bernie tinha quadris gordos e enor-
mes. E as janelas do apartamento eram antigas e pequenas. Dia-
bos, eu achava que ele nunca as abria. N��o era o tipo de cara que
gosta de ar puro.
O detetive repetiu as perguntas que Katarina fizera a respeito
da sa��de, das finan��as e da vida sentimental de Bernie. Quando
terminou, houve um momento de sil��ncio, e eu fiquei pensando.
��� N��o consigo entender ��� comentei.
��� Eu sei. Todos n��s temos dificuldade de compreender os
suic��dios. Mas as pessoas que fazem isso se sentem acuadas, n��o
conseguem ver uma sa��da para a situa����o que est��o vivendo. Elas
s�� v��em o problema que t��m diante de si. Se para n��s o suic��dio ��
algo tr��gico e violento, para elas �� a solu����o.
��� N��o, n��o �� isso que eu n��o compreendo. Bernie n��o era o
tipo de pessoa que rastejaria para fora da janela.
��� Voc�� nunca sabe at�� ter passado pela situa����o.
��� N��o me refiro ao seu estado de esp��rito mas ao m��todo que
utilizou. Bernie poderia pular dentro de uma banheira cheia com
um aquecedor el��trico nas m��os, ou, mais prov��vel ainda, pode-
ria engolir umas p��lulas. No momento em que ele abrisse aquela
janela e visse a rua l�� embaixo, desistiria, provavelmente vomita-
ria as tripas. ��� Fiz uma pausa e deixei um pensamento penetrar
na minha cabe��a, antes de dizer: ��� Voc�� entende, Bernie tinha
medo de altura.
QUANDO CHEGUEI EM CASA, havia mais uma mensagem na se-
cret��ria eletr��nica. Era o meu advogado pedindo que eu fosse ao
seu escrit��rio no dia seguinte. A mensagem dizia que ele tinha m��s
not��cias. Achei que se referia �� morte de Bernie.
48
6
��� Voc�� est�� arruinado.
Olhei para o advogado como se ele tivesse acabado de sair das
p��ginas de uma hist��ria de horror de John Farris, e com uma faca
ensang��entada na m��o. Est��vamos no seu escrit��rio no 1 4 9 andar
do Edif��cio Flatiron, um pr��dio em formato de fatia de queijo, na
Quinta Avenida.
��� Arruinado? Eu sou milion��rio.
��� Voc�� era milion��rio. ��� O advogado estalou os l��bios. Ele
me lembrou o homem que cuidou do enterro do meu pai. Um s��-
dico que procura parecer solid��rio com a dor alheia, mas, na ver-
dade, sente prazer quando algu��m sofre um baque.
��� Como pode ser?
��� Voc�� passou toda a administra����o de sua heran��a para
Bernard. Ele investiu mal.
��� Passei uma ova. Meu pai o nomeou meu curador.
��� Quando voc�� atingiu a maioridade, aos 21 anos, passou a
ter o direito de desfazer isso, assumindo o controle total. Preferiu
deixar tudo nas m��os de Bernard.
O advogado estava certo. Eu n��o quis administrar o dinheiro.
Isso me obrigaria a me afastar um pouco da vida social agitada em
que me encontrava na ��poca. Al��m do mais, Bernie era de total
confian��a. Era da fam��lia.
��� Como poderei conseguir...
49
��� De volta? ��� Ele franziu os l��bios e sacudiu a cabe��a. Dava
para perceber que estava apreciando muito aquela cena. ���
Bernard n��o deixou bens, pelo que sei. Al��m de tudo o que voc��
tinha, ele vendeu ou entregou tudo o que ele tinha. N��o d�� para tirar leite de pedra, nem dinheiro de um prostituta.
Aposto que ele pr��prio inventou essa.
��� Quanto poderei conseguir se vender a empresa?
��� Que empresa?
��� A House of Liberte. Como sabe, h�� muitos anos ela paga a
esta firma grande parte do seu sal��rio.
��� Win, n��o est�� me ouvindo. Eu disse que voc�� est�� arrui-
nado. A House of Liberte foi vendida no ano passado.
��� Que diabo... O que quer dizer com isso? Como ela poderia
ser vendida?
��� Seu irm��o Leo a comprou.
��� Primeiro, Leo �� meu irm��o adotivo. Segundo, ele n��o tem
nenhum direito. Herdou uma empresa de diamantes do pai dele.
��� Ele tem todo o direito. Ali��s, eu mesmo cuidei da transa-
����o. Quando a situa����o financeira ficou ruim, Leo assumiu os ati-
vos da empresa e deu em troca o dinheiro vivo de que Bernard
precisava. Agora, a firma se chama House of Schwartz.
��� Isso �� de uma insansatez absurda. Est�� me dizendo que
Bernie gastou toda a minha heran��a e que Leo ficou com ela?
Merda, conhecendo Leo como conhe��o, ele deve ter ajudado a
fazer Bernie degringolar. Afinal, o que exatamente me restou?
��� Voc�� quer dizer al��m dos trocados do bolso?
Ele viu meu rosto enrubescer e quase se enfiou embaixo da
mesa, sem d��vida, lembrando-se da ��ltima vez que me represen-
tou. Eu tinha quebrado uma garrafa de champanhe no rosto do
seguran��a de uma discoteca. O juiz ficou t��o impressionado por
eu ter usado uma garrafa de Perrier Jouet de mil d��lares ��� e ter
pago por ela ��� que arquivou o caso.
O advogado pigarreou e remexeu os pap��is que se encontra-
vam sobre a sua mesa.
50
��� Pelo que estou vendo, voc�� tem o Bugatti e a mina. Seu
apartamento, o barco, o avi��o, o Corvette, a Harley e todo o seu di-
nheiro, exceto o que tem na sua conta corrente, est��o alienados e
passar��o para os credores.
��� Que mina?
��� A de Angola.
��� Onde, diabos, fica Angola?
��� Da ��ltima vez que eu soube, na costa oeste da ��frica. Era
uma col��nia portuguesa rica em diamantes e petr��leo. Em comu-
nistas tamb��m. Creio que Fidel Castro chegou a ter tropas cuba-
nas por l��.
��� Eu nunca soube de uma mina.
��� O que sabe a respeito de como Bernie administrava a com-
panhia?
Era uma boa pergunta, e ambos sab��amos a resposta, mas eu
n��o estava com humor para ficar ouvindo serm��o.
��� Que tipo de mina ��? Vale alguma coisa?
��� N��o sei ao certo. Quando a situa����o come��ou a ficar pre-
ta para Bernard, essa mina de diamantes foi a primeira coisa que
ele tentou vender ou negociar. N��o conseguiu um centavo por ela.
Angola �� uma zona de guerra, e ningu��m quer se arriscar. Segun-
do os notici��rios, �� um caos constante, cen��rio de guerra e revo-
lu����o. Segundo as informa����es que tenho do administrador da
mina, ela corre o risco de ser fechada dentro de alguns meses se
n��o entrar dinheiro para mant��-la em funcionamento.
��� Eu achava que uma mina de diamantes deveria gerar di-
nheiro, ao inv��s de consumi-lo.
��� Pelo que sei, os diamantes que est��o sendo extra��dos n��o
s��o da melhor qualidade.
��� Como essa mina de merda veio parar nas nossas m��os?
��� Bernard comprou-a por 5 milh��es de d��lares. Usou o seu
dinheiro.
��� Cinco milh��es de d��lares! Tio Bernie usou a minha heran��a
para comprar uma mina de diamantes em uma zona de guerra?
Ele estava louco?
51
O advogado sacudiu a cabe��a e estalou os l��bios de novo. Tive
��mpeto de ir para cima dele e torcer-lhe o pesco��o.
��� Win, lidei com muita gente do ramo de diamantes du-
rante a maior parte da minha vida profissional. Uma linha mui-
to t��nue separa os grandes sucessos dos grandes fracassos em
qualquer neg��cio, mas posso dizer que isso �� especialmente ver-
dadeiro no ramo das gemas. Quando um comerciante compra
uma grande pedra e manda lapidar, ele nunca sabe se vai acabar
com uma gema valiosa ou com um punhado de poeira e de esti-
lha��os. Bernard jogou com a sorte em uma mina. Ele pagou cer-
ca de 10 centavos por d��lar. Se tivesse sido feliz, voc�� estaria
absurdamente rico.
��� Bernie jogou com o meu dinheiro, n��o com o dele; e per-
deu. Suponho que tenha acabado com o dele h�� muito tempo.
Ent��o, diga-me, posso vender essa mina?
��� Se conseguir achar um comprador. Ningu��m no seu ju��zo
normal pagaria uma quantia substancial por uma mina em Ango-
la, a n��o ser que tivesse a coragem de administr��-la de fato. E que
soubesse administrar uma mina de diamantes. Imagino que seja
preciso colocar a m��o na massa ��� se n��o cortarem suas m��os fora
em um lugar como Angola.
��� O que afinal motivou Bernie a comprar essa droga?
��� Eles acharam que era uma jogada de mestre para superar
as dificuldades em rela����o ao controle exercido pela De Beers na
ind��stria dos diamantes. A House of Liberte nunca fez parte do
grupo seleto de negociantes de diamantes que controla a maior
parte do mercado mundial, subordinado �� De Beers. Seu pai ti-
nha uma boa fonte de diamantes com um velho amigo em Lisboa,
e Bernie herdou o contato. Essa fonte aparentemente secou, e eles
tiveram a id��ia de adquirir sua pr��pria fonte de pedras compran-
do uma mina. Creio que se imaginaram como Cecil Rhodes, o
fundador do imp��rio De Beers.
��� Uma mina de diamantes na Africa. ��� Sacudi a cabe��a. ���
Que eu soubesse, Bernie nunca se afastara da ��rea dos tr��s esta-
dos. Viajar para as montanhas de Catskill, no fim de semana, para
52
pescar e jantar no clube era o m��ximo dos seus sonhos de viagem.
A mina poderia estar em Marte que seria a mesma coisa.
��� Devo acrescentar que a mina veio com uma an��lise geol��-
gica extremamente positiva. N��o sei se ela nunca atingiu seu poten-
cial, ou se os tumultos da guerra dificultaram seu desenvolvimento.
Qualquer que tenha sido a raz��o, no in��cio, eles investiram na mina,
e, mesmo quando as coisas come��aram a sair do controle, Bernard
passou a usar o seu trust para evitar perder a mina em que apostara.
Ser o propriet��rio de uma mina de diamantes era a cara de
Bernie. Deve ter sido uma quest��o de ego, de poder dan��ar a val-
sa no Diamond Club e ostentar diamantes extra��dos de sua pr��-
pria mina. Com seu ego grande e sua cabe��a oca, ele sentia um
enorme prazer quando se fazia passar por algu��m importante diante
de pessoas que n��o o valorizavam.
��� Voc�� se refere sempre a "eles". Quem estava nisso com o
Bernie?
��� Seu ir... ��� quero dizer, seu irm��o adotivo, Leo, que, no
come��o, era s��cio da mina mas, n��o faz muito tempo, vendeu sua
parte a Bernie.
��� Leo estava no neg��cio, saiu fora antes que tudo degringo-
lasse e terminou por ser o propriet��rio da minha empresa. �� isso
que voc�� est�� dizendo?
Ele se mostrou sem gra��a.
��� Leo fez um neg��cio n��o muito amig��vel com Bernard...
��� E imagino que voc�� tenha servido de intermedi��rio nesse
neg��cio.
��� Win, eu acho que...
��� Leo �� t��o canalha que alugaria a boceta da m��e para um ex��r-
cito de babu��nos se fosse para ganhar 10 centavos. Vamos ao que in-
teressa. O que eu tenho �� uma mina de diamantes em zona de guerra
que sangra dinheiro em vez de cagar diamantes, o Bugatti���que deve
valer uns 100 mil d��lares, por alto ��� e mais uns trocados. �� isso?
��� Falando de homem para homem, Win, sinto dizer que sim.
E �� melhor voc�� se livrar do Bugatti, porque um dia os credores,
ir��o atr��s dele.
53
Levantei-me para ir embora.
��� Bernard n��o tinha nenhum parente al��m de voc��. Que tipo
de funeral pretende fazer?
��� Ainda existem sepulturas para indigentes?
Eu j�� estava na porta, quando ele acrescentou:
��� Win, obviamente voc�� n��o sabia disso, mas Bernard dei-
xou uma d��vida substancial com o nosso escrit��rio. Meu s��cio
majorit��rio sempre me cobra isso. Assegurei-lhe que voc�� era um
homem honrado e que garantiria o pagamento dessas d��vidas.
Ri por todo o caminho, at�� o elevador. Existia alguma justi��a
neste mundo, afinal.
54
7
Encontrei Leo no caf�� do Diamond Club, que fica no pr��dio da
rua 47 Oeste com a Quinta Avenida. Ele passava o dia entrando
e saindo dos escrit��rios de vendedores de diamantes, conversan-
do com eles e, ao mesmo tempo, ao telefone celular. O ��nico
momento em que se sentava era para comer, o telefone em uma
das m��os, o garfo na outra. Quando n��o estava comendo, mijan-
do ou dormindo, estava fazendo neg��cios.
Leo parecia uma pilha de pneus, sendo que os menores fica-
vam no topo e na base���pequeno e volumoso, com a cabe��a gran-
de e redonda em forma de bola de basquete, os l��bios grossos, e a
personalidade de um inseto dentro de uma lata de lixo. Barney, o
vomitador, o poss��vel patrocinador de Katarina como estrela de
cinema, podia ser considerado um homem charmoso comparado
a ele. A antipatia de Leo por mim vinha de longa data. Quando
eu tinha 15 anos, ele levou uma garota para conhecer sua m��e,
minha madrasta. Convidei a garota, uma ruiva cheinha, para ver mi-
nha nova motocicleta na garagem. Eu estava montado na moto, e
ela em mim, quando ele entrou.
Pensando bem, fiz a ele um grande favor. As gordinhas s��o
��timas trepadas, mas os Leos e os Barneys deste mundo, que n��o
t��m tempo nem tes��o para preocupar-se com as necessidades fe-
mininas, deveriam ter mulheres que fossem mais voltadas para
cuidar das unhas do que dos maridos. Dessa forma, elas n��o se
aborreceriam e nem ficariam perambulando por a��.
55
Apesar da minha boa a����o, o ��dio de Leo por mim cresceu.
Eu nunca soube exatamente qual foi a origem desse sentimento.
S�� posso acreditar que sua antipatia esteja ligada ao fato de eu
gostar de me divertir. Leo detesta divers��o. Ele adora trabalho. E
dinheiro. N��o consegue entender por que nem todo mundo �� como
ele. Eu n��o tenho problema com isso, cada um na sua, o tesouro
de um �� o lixo do outro e toda essa baboseira. Leo, contudo, vai
mais adiante. Ele se ressente de qualquer pessoa que seja feliz e,
ao mesmo tempo, decidiu que nada t��o insignificante como viver
a vida o desviar�� da sua meta de ganhar o dinheiro, que jamais
tem tempo para gastar.
Quando me sentei �� sua mesa, um comerciante com quem ele
tem feito umas pequenas transa����es levantou-se para sair. A as-
sistente de Leo, Karen, estava l��. Leo mal olhou para mim e digitou
uns n��meros no seu telefone. Eu n��o era suficientemente impor-
tante para ele me cumprimentar. Arranquei o fone do seu ouvido.
��� O que est�� fazendo?
��� Eu vou meter no seu cu.
��� O qu... qu��?
Fiz um sinal de cabe��a para Karen.
��� Saia daqui. Esta merda �� assunto de fam��lia.
Ela saiu r��pido.
Leo ficou vermelho.
��� N��o tem o direito...
��� Voc�� me ferrou, irm��o de merda, agora eu vou enrabar
voc��. Sabe o que isso quer dizer, n��o ��? �� g��ria de pris��o. O cara
que fica abaixo na hierarquia �� enrabado. Voc�� nem vai precisar
entrar no chuveiro para ser comido.
��� Voc�� enlouqueceu.
��� N��o, fiquei arruinado. Voc�� sabe, sem grana. Voc�� ferrou
o Bernie, enganou o imbecil, induziu-o a comprar uma mina de
merda e o limpou. N��o acho que voc�� se importasse com o Bernie,
era a mim que voc�� queria ferrar. Os meus gordos cheques e o meu
estilo de vida incomodavam voc�� demais, n��o ��, Leo? Voc�� sim-
plesmente n��o suporta ver ningu��m feliz. E tamb��m vai ter que
56
pagar pelo que fez a Bernie. Eu n��o o adorava, mas ele merecia
coisa melhor que um mergulho de cabe��a de uma janela.
��� V�� se foder. Voc�� estava muito ocupado enfiando o seu
pau em qualquer coisa que tivesse pernas, em vez de dar alguma
aten����o �� empresa. O que eu recebi de Bernie foi honestamente,
e n��o h�� nada que voc�� possa fazer a respeito.
��� Cometeu um grande erro, meu chapa. Se fosse um estra-
nho a me limpar, eu daria de ombros e diria que era o que eu me-
recia por n��o ter ligado para a firma, mas voc�� �� da fam��lia.
��� N��o sou da sua merda de fam��lia. O seu pai...
��� O que �� que tem o meu pai? ��� Comecei a perder o con-
trole.
��� N��s n��o somos parentes de sangue ��� gaguejou ele.
��� Tem raz��o, voc�� n��o �� da fam��lia de verdade, mas ou��a
bem. ��� Debrucei-me um pouco mais sobre a mesa para me aproxi-
mar dele e disse: ��� Estarei esperando por voc��. Sei como atingi-lo
e o farei. N��o vai ser hoje, talvez n��o seja amanh��, mas vou ficar ��
espreita, seu merda, e, quando menos esperar, vou pegar voc��.
Ao sair, recitei para Leo uma reza judaica para os mortos. De
agora em diante, eu s�� pensaria nele usando o verbo no passado.
57
8
��� Onde, diabos, fica Angola? ��� perguntou Katar��na.
��� Ora, ora! Que ignor��ncia, Katar��na. Angola �� um pa��s na
costa oeste da Africa. Todo mundo sabe disso ��� respondi, leve-
mente b��bado. Eu a buscara depois de uma sess��o de fotos e a le-
vara ao Verdi's, na rua 75. Estava no quinto ou sexto martini com
vodca ��� ou talvez no d��cimo, j�� perdera a conta.
Ela acariciou a minha coxa.
��� Estou feliz que a morte de Bernie n��o tenha sido provocada
por problemas de dinheiro. Deus, n��o consegui dormir pensando
que voc�� podia estar arruinado.
N��o tive a dignidade ��� ou coragem ��� para contar a ela que
tudo o que eu possu��a agora era um Bugatti e uma mina que engo-
lia mais dinheiro do que vomitava. Dei a entender que Bernie era
um g��nio das finan��as e que dera fim �� vida ao descobrir que esta-
va na fase terminal de um grande "c". Ela caiu como um patinho.
Afinal, sua cabe��a estava voltada para Hollywood.
��� Sentirei saudades. ��� Katarina me deu um beijo molhado
e fodeu a minha boca com a l��ngua.
��� N��o se preocupe, eu freq��entarei as duas costas ��� a do
Atl��ntico e a do Pac��fico.
��� Vai comprar aquela casa em Malibu, afinal?���perguntou ela.
��� Ah, sim, e uma cadeia de cinemas que s�� vai exibir os seus
filmes.
58
Ela riu e me beijou mais.
��� Sabe o que me atrai em voc��? ��� perguntou ela. ��� Voc�� ��
o ��nico cara rico que eu conhe��o que �� ao mesmo tempo diverti-
do e espont��neo. Quero dizer, s��o tantos os homens ricos dispon��-
veis nesta cidade que ningu��m mais se importa. E todos querem
ser vistos com modelos, mas s��o uns idiotas. S�� sabem falar da grana
que ganharam ou dos pontos que fizeram no golfe. Mas voc�� ��
diferente. Sabe como tratar uma mulher.
Ela levou a m��o ao meu p��nis cansado e o apertou, fazendo-o
crescer alucinadamente. Algu��m me disse que o homem s�� tem
sangue para o p��nis ou para o c��rebro, como o menino que n��o
pode mascar chicletes e caminhar ao mesmo tempo. Esse era o meu
problema, eu nunca tive sangue suficiente para lidar, simultanea-
mente, com uma mulher e com uma simples equa����o matem��tica ���
como, por exemplo, saber quanto dinheiro eu teria para gastar.
��� Meu agente de Hollywood ficou animado quando contei
que o meu namorado tinha um apartamento no Dakota. Ele quis
saber se era o mesmo pr��dio em que filmaram O Beb�� de Rosemary.
Eu disse a ele que Lauren Bacall e Yoko Ono eram suas vizinhas.
��� Diga-lhe para aparecer por l��, e eu o apresentarei ao fan-
tasma de John Lennon.
Sim, eu sou um bom partido, um dos melhores desta cidade.
O Dakota, na esquina da rua 72 com a Central Park West, era o
endere��o mais elegante da cidade. O Trump's Tower era um lixo
comparado ao Dakota. N��o contei a Katarina que, ao chegar em
casa do escrit��rio do advogado, eu encontrara uma ordem de
despejo pregada na porta de entrada. Os funcion��rios do edif��cio
afastaram-se de mim, assustados, como se eu tivesse um sino de
leproso nas m��os. Pior que o ostracismo era a express��o de perda
naqueles semblantes ��� eu era o morador mais generoso do pr��-
dio, na ��poca do Natal.
��� Hollywood �� uma cidade dif��cil, mais do que Nova York ���
disse ela ���, porque voc�� precisa impressionar. As pessoas aqui s��o
verdadeiras, ningu��m se importa com o tipo de carro que voc�� dirige
ou onde voc�� mora. Ali��s, poucos t��m carro, e vivemos todos como
59
formigas aglomeradas no mesmo buraco. Mas, na Costa Oeste, tudo
�� para ostentar ��� as pessoas dirigem carros mais caros do que sua
condi����o financeira, moram em apartamentos com belas vistas, em
que n��o t��m condi����o de morar, e usam roupas de grifes famosas.
Joguei as chaves do meu Bugatti no colo dela.
��� O que est�� fazendo?
��� Com isso, conseguir�� um apartamento na praia, roupas
fant��sticas, um convers��vel vermelho-cereja, tudo o que precisa
para impressionar em L.A.. Os documentos est��o no porta-luvas,
e eu assinarei a transfer��ncia do t��tulo de propriedade. Amanh��
voc�� levar�� o Bugatti �� loja de carros importados onde o comprei,
e eles lhe dar��o um cheque de 100 mil d��lares.
��� Deus, eu estava t��o preocupada em passar uma boa im-
press��o naquela cidade. O que vai fazer, comprar outro?
��� Claro, avise aos vendedores da loja que aparecerei por l��.
��� Minha nossa, Win, voc�� �� t��o bom para mim. Como po-
derei retribuir um dia?
��� Me foda at�� n��o poder mais, quando chegarmos �� minha
casa. Um presente de despedida.
��� Por que esperar?
Katarina deslizou para debaixo da mesa. Afastei as pernas, e
ela se posicionou entre os meus joelhos. Sua cabe��a bateu na par-
te de baixo da mesa, ela soltou um "ai" e depois riu. Varri a sala rapidamente com os olhos. O Verdi's tinha aquele ambiente de
penumbra muito ��til, planejado para dificultar que os clientes
enxergassem a conta e, tamb��m, para proteger uns e outros de
serem reconhecidos se estivessem acompanhados de algu��m que
n��o fosse a mulher ou o marido; mas n��o era um breu. Katarina
estava usando um vestido vermelho cintilante que brilhava no
escuro, mas eu achei que, se algu��m quisesse v��-la debaixo da mesa,
precisaria se inclinar ��� e ent��o resolvi relaxar e aproveitar.
As m��os de Katarina tatearam o meu z��per, e eu sentei um
pouco mais ereto para ajud��-la. Logo que o z��per abriu, ela intro-
duziu a m��o buscando a abertura da cueca; quando a encontrou,
meu p��nis pulou para fora.
60
��� Hmmm ��� sussurrou ela debaixo da mesa ���, achei um
diamante bruto.
Ela o acariciou como se ele fosse uma estola de marta. Sua l��n-
gua parecia uma cobra chicoteando de leve a cabe��a do meu p��-
nis. Katarina tinha l��ngua de gato, n��o era macia como a de todo
mundo; em vez de deslizar para cima e para baixo como se ela es-
tivesse lambendo um sorvete, aderia �� minha pele e a puxava. A
cada lambida, um golpe de prazer tomava conta de mim.
��� Ol��, Win ��� disse uma voz feminina.
Quase me borrei nas cal��as. A Sra. Greenberg, m��e de um ex-
colega de escola, aproximou-se da minha mesa. Ela tinha um h��-
bito irritante de falar cantando como se fosse um p��ssaro. Outras
duas pessoas a acompanhavam.
��� Ol�� ��� gaguejei, enquanto a l��ngua de gato dava uma gran-
de lambida.
��� Quero apresent��-lo a alguns amigos. Estes s��o o reveren-
do Paul Davis e sua esposa, a reverenda Mary Davis. Est��o na ci-
dade angariando fundos para a escola na qual trabalham como
mission��rios, na Indon��sia.
Emiti um som gutural em resposta. O casal de mission��rios
parecia a santarrona Katherine Hepburn e seu irm��o mission��rio
no filme Uma aventura na Africa.
A l��ngua de gato deu mais uma grande lambida que come��ou
na cabe��a do meu p��nis e moveu-se lentamente em torno da sali��n-
cia que a contorna. Quase voei da cadeira quando ela parou de
lamber e sua boca quente engoliu o meu membro.
��� Estou planejando um evento para levantar fundos para a
escola ��� disse a Sra. Greenberg ��� e apreciaremos muito a sua
presen��a.
Eu preferia sentar numa banheira quente e cortar os pulsos a
passar mais de tr��s minutos na mesma sala que aquela mulher.
��� Ocupado���consegui murmurar, com um sorriso fraco nos
l��bios. Katarina mordiscava o meu pau com os dentes, enquanto
o bombeava com a boca. Eu n��o conseguia falar. Fiquei ali senta-
do com um sorriso congelado no rosto. Estava a ponto de explo-
61
dir; do contr��rio, teria uma combust��o espont��nea, e s�� restariam
peda��os de mim respingados nas paredes.
��� Precisa arranjar tempo ��� disse a Sra. Greenberg. ��� �� uma
causa t��o digna, essas crian��as necessitadas...
Um gemido escapuliu da minha boca enquanto Katarina chu-
pava e lambia.
��� Voc�� est�� bem, Win? Parece febril.
Sacudi a cabe��a, incapaz de falar. A boca de Katarina estava
quente e molhada e se moldava em volta do meu p��nis como uma
luva cheia de creme para a noite. De repente, o tampo da mesa
come��ou a vibrar com as batidas da cabe��a de Katarina. As tr��s
pessoas olharam fixo para a mesa como se ela necessitasse de um
exorcismo.
Uma colher escorregou da borda e aterrissou aos p��s do Reve-
rendo Davis.
��� Opa ��� disse ele, inclinando-se para pegar a colher. Ficou
paralisado ao olhar para debaixo da mesa. Seus olhos arregalaram-
se, e seu queixo caiu.
Eu juraria sobre uma pilha de B��blias que consegui ver o refle-
xo do vestido vermelho cintilante de Katarina nos olhos dele.
62
9
Acordei no meu apartamento do Dakota no raiar do dia, com
Katarina levantando da cama.
��� Tenho uma sess��o de fotos, hoje cedo ��� informou ela,
sentando-se na cama e me beijando.
Escancarei sua blusa desabotoada e beijei-lhe os mamilos que
pareciam dois morangos.
��� Pare, vai me atrasar ��� disse ela me afastando. ��� Falou
s��rio quanto ao carro?
��� J�� assinei a transfer��ncia do t��tulo de propriedade para
voc��. Pode levar, �� seu.
Sa�� da cama nu e me encaminhei para o banheiro.
Em instantes, Katarina apareceu na porta.
��� Tem gente na sua sala, uma mulher de cabelo muito ruivo
que diz ser Scarlett 0'Hara.
��� V�� para a sua sess��o de fotografia, posso cuidar disso.
Eu sabia quem era a mulher de cabelo de fogo e nome famoso.
Scarlett 0'Hara era propriet��ria de uma galeria e a minha mar-
chand. Minha cultura art��stica era semelhante �� de Henry Ford, e eu deixava todas as decis��es relativas �� decora����o das minhas
paredes por conta de Scarlett.
Que raios ela estava fazendo no meu apartamento e como ti-
nha conseguido entrar eram um mist��rio.
Quando entrei na sala, vindo do banheiro, ela estava de cos-
tas para mim. Orientava dois funcion��rios na retirada de um
Picasso da parede.
63
��� O que diabos est�� acontecendo aqui?
Scarlett virou-se, assustada, e ficou me olhando com uma ex-
press��o idiotizada. Eu n��o me preocupara em vestir uma roupa. O
cabelo vermelho que Katarina mencionara era a marca registrada
da mulher. Bem artificial.
��� Win... eu... eu... estava retomando os objetos de arte. O
seu cheque foi devolvido por falta de fundos. Ouvi dizer que voc��
est��, hum...
��� Arruinado. Como entrou aqui?
��� Comigo. ��� A voz era de um oficial de justi��a uniformiza-
do. Ele estava do outro lado da sala quando entrei, e eu n��o o ti-
nha visto. ��� Tenho uma ordem judicial de retomada de posse. ���
Ele me olhou fixo. ��� Voc�� est�� nu.
��� E voc�� �� um g��nio de merda. Agora, fora da minha casa.
DEPOIS QUE O GRUPO DE RETOMADA DE POSSE SAIU, deitei na cama
e fiquei olhando para o teto. N��o ligava nem um pouco para qua-
dros. Do contr��rio, eu mesmo os teria escolhido em vez de deixar
essa tarefa para Scarlett. S�� comprara porque, supostamente, deve-
mos ter quadros enfeitando as paredes. Com o carro, eu tinha um
v��nculo maior porque o escolhera. Presente��-lo a Katarina n��o foi
um ato impensado, reflexo de um porre ��� ele estava ligado �� mi-
nha porra-louquice e lembrava que fora um imbecil deixando Bernie
assumir a responsabilidade total do dinheiro. A verdade era que eu
nunca dera a m��nima para o dinheiro. Ele apenas me permitia ter o
que queria. Era como uma puta inconstante que nunca me deu a
m��nima tamb��m, j�� que escapuliu na primeira chance que teve.
O que voc�� vai ser quando crescer? A pergunta n��o sa��a da mi-
nha cabe��a.
Lembrava-me dela; era uma pergunta sobre a qual tivemos que
escrever em sala de aula, na oitava s��rie. Meu pai morrera poucos
meses antes. Escrevi no papel uma frase curta, joguei na mesa da
professora e sa�� da sala: "Isso nunca acontecer��."
Eu tinha conseguido o que ambicionara. Eu n��o tinha a me-
nor id��ia do que iria fazer. N��o tinha estudo, profiss��o, nem al-
64
gum talento espec��fico. N��o poderia sequer ser um acompanhan-
te de alguma velha rica, porque n��o tinha os requisitos b��sicos para
tal ��� beleza e subservi��ncia.
Descobri outra coisa impressionante a meu respeito. Eu n��o
tinha amigos de verdade. Nenhum amigo da faculdade, nenhum
contato de trabalho. Nunca me ocorrera, at�� hoje, que eu era um
solit��rio. Muitas mulheres entraram e sa��ram da minha vida, mas
nada que me prendesse. Eu tinha Katarina, mas ela vivia em um
mundo diferente. O que eu tinha era um punhado de conhecidos
com quem apostava corrida no clube de iatismo, o mec��nico que
cuidava do meu avi��o, o vendedor que me provia de carros velo-
zes, gar��ons de bares e ma��tres. Mas nenhum amigo de verdade.
Nenhum amigo do peito. Ningu��m para me dar apoio em um
momento dif��cil da vida. E, neste momento, eu estava vivendo uma
avalanche de problemas. Bernie tinha feito retiradas de dinheiro
em todos os meus cart��es de cr��dito, chegando a algumas cente-
nas de milhares de d��lares.
O que voc�� vai ser quando crescer?
Eu me perguntava como seria se eu fosse a uma revendedora
de autom��veis, pegasse um carro e batesse no muro de prote����o de
alguma auto-estrada em alta velocidade. Sentiria alguma dor quan-
do o carro encolhesse como um acorde��o, at�� o tamanho de uma
caixa de sapatos? Seria essa a ��nica sa��da para algu��m que conse-
guira arrasar com a sua vida sem muito esfor��o? O que mais eu
poderia fazer? Ser frentista em um posto de gasolina?
Fodam-se voc�� e a sua porra-louquice. Eu roubaria bancos antes
de entregar a alma a Deus s�� por estar duro. E, antes disso, mata-
ria aquele filho-da-puta do Leo.
S�� havia realmente uma sa��da para mim. E, quanto mais eu
pensava nela, mais eu gostava. Nunca acreditei que viveria mui-
to. Meu plano s�� apressaria o processo.
O telefone tocou. Meu primeiro pensamento foi: Katarina bateu
com o carro. Raios, n��o me lembro se ela dirige bem. Ela poderia arrasar um quarteir��o se pisasse fundo no acelerador.
��� Al��.
65
��� Win?
Uma voz de homem. Sotaque estrangeiro. N��o parecia ser do
Leste Europeu como o de Katarina, era um som mais caloroso,
talvez franc��s, espanhol, ou portugu��s.
��� Win Liberte?
��� Quem est�� falando? ��� Agora eu estava ficando irritado.
Um cobrador, j��?
��� Aqui �� Jo��o. Sabe quem eu sou?
Pensei por um instante.
��� Claro, quando eu tinha 13 anos voc�� me deu a minha pri-
meira moto para praticar motocross, uma Honda top de linha.
Ela chegara ap��s a morte de meu pai. Jo��o Carmona era co-
merciante de diamantes em Lisboa. Era s��cio de meu pai, um
homem que ele conhecera em Portugal, durante a Segunda Guer-
ra Mundial. Lembro-me de Bernie mencion��-lo tamb��m, o que
significa que mantivera o relacionamento.
Ele deu uma gargalhada.
��� Achei que enviar flores para o funeral n��o faria sentido para
uma crian��a, mas uma motocicleta poderia ocupar a sua cabe��a.
��� S�� a dirigi uma vez. Bati de frente em uma ��rvore. Mas
nunca me esqueci dela ��� comentei, enquanto passava os dedos
na cicatriz do queixo. ��� Algum dia lhe agradeci?
��� Poder�� faz��-lo agora. Passe por aqui e venha me ver no
caminho para Angola.
Fiquei paralisado com o fone no ouvido. Eu tomara a decis��o
de ir para a ��frica h�� uns trinta segundos.
��� Voc�� deve ser um bruxo ��� disse eu.
��� Talvez seja.
��� Ou sabe mais sobre mim do que deveria.
Ele gargalhou outra vez. N��o era um som de prazer, mas uma
resposta de algu��m cujo senso de humor pairava na linha do
macabro.
��� Eu fui a principal fonte de diamantes durante a maior par-
te da vida de seu pai, e a de Bernie tamb��m, at�� Leo come��ar a
dar as cartas e obrigar Bernie a obedec��-lo em tudo. Leo conven-
66
ceu Bernie a fazer o neg��cio da mina e, quando come��ou a dar
errado, tirou o corpo fora e deixou-o com a bomba na m��o, como
dizem voc��s, americanos.
Sim, eu j�� conclu��ra isso. Mas o que eu n��o sabia era de que
lado Jo��o estava. Ele n��o era um velho amigo da fam��lia que esta-
va telefonando para me ajudar. Fora a malfadada motocicleta,
nunca mais me procurara desde a morte de meu pai, h�� quase vinte
anos. Lembro que meu pai se referia a Jo��o como um ladr��o e fa-
lava de crime organizado, uma vers��o portuguesa da m��fia. Mas
tenho certeza de que grande parte era exagero, pois ele continuou
a fazer neg��cios com Jo��o. Chamar os outros comerciantes de la-
dr��es era uma pr��tica comum no ramo de diamantes. Fazia parte
daquele neg��cio competitivo, reservado e lucrativo.
Eu tinha a impress��o de que meu pai e Jo��o eram compadres,
at�� certo ponto ��� o ponto em que nenhum dos dois virava as
costas para o outro. Meu velho n��o era um anjo, isto era certo,
ningu��m que lida com diamantes ��. Mas referir-se a Jo��o com
cautela era sinal de que o homem era perigoso, al��m de avarento.
��� Ent��o sabe que estou arruinado e que s�� tenho como es-
colha Angola ou quebrar de vez. J�� esteve l��?
��� Muitas vezes. Fa��a uma parada em Lisboa no caminho, e eu
lhe darei algumas dicas sobre como sobreviver naquela terra. Com
a minha ajuda, talvez possa viver tempo suficiente para fazer a sua
pr��pria fortuna. A melhor op����o de v��o para Angola �� com escala
em Lisboa. Poucas empresas a��reas voam para l�� diretamente. Por
ter sido col��nia portuguesa e a l��ngua oficial ser o portugu��s, ainda
existe um v��nculo forte com Portugal. Tenho contatos que lhe ser��o
de excepcional ajuda quando chegar naquele pa��s africano.
Jo��o avisou que providenciaria algu��m para me esperar no
aeroporto, se eu fornecesse os dados do v��o. Desligamos depois
de ele me dar um n��mero de telefone para quando j�� tivesse feito
a reserva. Minha mente estava confusa com tantas perguntas e
perspectivas. Jo��o sabia demais para um homem a milhares de
quil��metros e duas d��cadas de dist��ncia. E tinha o meu n��mero
de telefone que n��o constava da lista.
67
Jo��o. Leo. Bernie. Uma mina de diamantes em Angola. "Mui-
tas vezes", respondera Jo��o quanto a ter visitado Angola.
Eu come��ava a ter uma pista de como Bernie entrara no ramo
da minera����o.
Jo��o sabia qual era a minha situa����o financeira. Por que ra-
z��o, ent��o, me incentivava a ir para Angola? O que eu tinha que
ele queria? Certamente, n��o era a mina que sangrava dinheiro em
uma zona de guerra.
Perguntei-me o que o meu pai me contaria sobre Jo��o, caso
estivesse vivo.
68
P a r t e 3
L I S B O A
10
VICTOIR L I B E R T E , LISBOA, 1946
Victoir estava sozinho, sentado numa mesa de varanda, em um
caf�� em frente ao cassino de Estoril. Tomou um gole do garoto, caf�� expresso com leite, e ignorou uma bandeja de doces que o gar��om
colocara na mesa na esperan��a de que fossem consumidos e, con-
seq��entemente, cobrados. Fingia ler um jornal mas, na verdade,
estava interessado no homem que estava em uma mesa do outro
lado do caf��.
O homem batia os dedos insistentemente na lateral da x��cara
de caf�� �� sua frente. Seu terno de linho branco amarrotado estava
pu��do nos punhos, e o chap��u panam�� apresentava um anel de
suor em torno da copa. O tom da pele era de um cinza p��lido,
parecido com uma barriga de peixe. Os tra��os do rosto eram desa-
grad��veis. O pequeno nariz achatado, o queixo delicado e os olhos
castanho-claros estavam desfigurados por uma erup����o do lado
direito do pesco��o que o levava a largar a x��cara de caf��, a toda
hora, para se co��ar.
Para Victoir, o homem cheirava a nazista. N��o daqueles que
marchavam e aterrorizavam a Europa matando milh��es com sua
blitzkrieg, ou guerra-rel��mpago, e seus campos de concentra����o,
mas do tipo amedrontado, arrasado, que rastejava para obter
71
cobertura depois de ter sido derrotado pelos Aliados. A guerra ter-
minara h�� menos de um ano, mas os ratos come��aram a abando-
nar o barco nazista mesmo antes disso, quando a situa����o j�� n��o
era boa. Eles ainda procuravam transmitir uma impress��o de su-
perioridade, como se o seu l��der lun��tico e maluco tivesse conse-
guido alguma coisa al��m da morte de inocentes e de um suic��dio
covarde para evitar o n�� da forca.
Lisboa, que fora um ref��gio neutro durante a guerra, agora
recebia metade da realeza europ��ia destronada, al��m dos ex-na-
zistas que para ali se dirigiam com a inten����o de usar o porto como
ponto de partida para a Argentina e outros pa��ses sul-americanos,
onde a alucina����o nazista n��o fora esmagada pelo calcanhar de
Eisenhower.
Victoir suspirou e procurou concentrar-se no jornal que j�� lera
mais cedo. Pouco depois, Jo��o Carmona juntou-se a ele na mesa.
Victoir pediu mais um expresso para si e vinho verde para Jo��o.
Ainda era cedo, mas Jo��o tinha o h��bito campon��s de mergu-
lhar o p��o no vinho verde no caf��-da-manh��. Jo��o era baixo, magro
e musculoso, pele cor de azeitona, olhos de a��o, nariz largo e ca-
belo muito preto e bem aparado. N��o era portugu��s puro, era um
mulato de Cabo Verde, as ilhas pr��ximas �� costa oeste da ��frica.
Pequeno por��m perigoso, �� como Victoir o considerava. Violento
e r��pido, Jo��o nunca deixava de trazer consigo duas facas ��� uma
sob o palet��, a outra na bota. Sempre elegante, gostava de vestir
camisa de colarinho alto, gravata de seda pintada �� m��o e terno
cinza de uma l�� lustrosa tran��ada em linhas diagonais. Fumava
charutos Havana pretos e muito finos, de cheiro asqueroso.
Victoir via Jo��o como um galo de briga, e a si mesmo como
um c��o vigilante. Apesar de Victoir ser muitos cent��metros mais
alto e 15 quilos mais pesado, n��o era nem t��o forte nem t��o r��pi-
do quanto Jo��o. A boa vida de Lisboa j�� aumentara sua cintura.
Era inteligente e tinha jeito para os neg��cios, cauteloso mas pron-
to para assumir riscos depois de analisar a situa����o. Diferente de
Jo��o, que confiava nos seus instintos de jogador. E no golpe r��pi-
do de uma faca quando as palavras fracassavam.
72
Jo��o tamb��m tinha jeito para neg��cios, mas era um tipo de
intelig��ncia diferente ��� aquela que se aprende nas ruas, o instin-
to de sobreviv��ncia dos ladr��es e dos ciganos. Tamb��m estava
pronto para assumir riscos, mas nem sempre os examinava a fun-
do. E pronto para escapar se fosse encurralado.
Victoir precisava de um homem como ele no seu neg��cio de
j��ias. Alguns anos mais jovem que Victoir, que tinha 26 anos, Jo��o
era tarimbado pelos padr��es da rua. Criado no quarteir��o da
Alfama por uma m��e cantora de fado e prostituta, Jo��o cresceu
assaltando pessoas nas alamedas menos movimentadas e rouban-
do bolsas na pra��a do Rossio. Entrou no neg��cio de j��ias aos 12
anos, �� maneira antiga, roubando rel��gios, an��is e dinheiro de
b��bados.
Victoir entrou por tradi����o. Ap��s a Primeira Guerra Mundial,
sua fam��lia migrou para a Fran��a vinda de uma ��rea polonesa na
Ucr��nia, fugindo da tomada do poder pelos comunistas e da vio-
l��ncia na regi��o. Tinha 5 anos quando a m��e morreu, e passou a
inf��ncia e a adolesc��ncia trabalhando na joalheria do pai. Alis-
tou-se no ex��rcito franc��s em 1939, omitindo a origem e a educa-
����o judaicas, e ficou na ��rea de Vichy. Seu pai, que ficara em Paris,
matou-se para n��o ser levado prisioneiro. Em 1942, depois que os
Aliados desembarcaram no norte da ��frica e os alem��es ocupa-
ram o territ��rio de Vichy e come��aram a capturar judeus para os
campos de concentra����o, Victoir fugiu num barco de pesca por-
tugu��s que o deixou em Faro, na costa sul de Portugal.
Documentos falsos asseguraram sua ida para Lisboa, onde so-
breviveu com seu conhecimento sobre j��ias, sendo que, por pou-
co, n��o come��ou roubando como Jo��o. N��o se preocupava em
perguntar sobre a origem das pe��as. Uma das suas primeiras com-
pras de mercadoria question��vel aconteceu quando ele estava
sentado no caf�� de sempre, ao longo da avenida da Liberdade, e
um vendedor de rua o abordou. O vendedor era Jo��o.
Victoir, com seu instinto para gemas, e Jo��o, com sua viv��ncia
de rua, naturalmente se uniram para formar uma dupla e tanto.
Em pouco tempo, estavam trabalhando juntos quase em hor��rio
73
integral. Manter mercadoria roubada n��o condizia com Victoir,
que logo direcionou as energias da dupla para a compra e revenda
de bens leg��timos. Ou, pelo menos, gemas que tivessem alguma
apar��ncia de legitimidade. De vez em quando, havia d��vida sobre
a propriedade anterior das j��ias, mas os diamantes e outras gemas
preciosas eram uma forma internacional de dinheiro para as hordas
de refugiados que escapavam para Lisboa���inclusive aqueles que
tinham raz��es para ainda estarem fugindo, mesmo terminada a
guerra.
Victoir ensinou Jo��o a avaliar gemas, e o portugu��s passou a
faz��-lo. Victoir trabalhava com j��ias porque era a ��nica profiss��o que conhecia. Jo��o verdadeiramente amava as gemas por elas
mesmas, em especial os diamantes, a ponto de us��-los em um gran-
de anel e no alfinete de gravata. Sem d��vida, era um homem
mulherengo, mas Victoir suspeitava que a maior paix��o de Jo��o
eram os diamantes.
��� O que acha daquele nosso amigo su����o ali? ��� perguntou
Jo��o.
Victoir lan��ou um olhar desconfiado para o nazista.
��� Su����o, ali, s�� o rel��gio e o passaporte. E ambos devem ser
roubados. O que ele est�� vendendo?
��� Um diamante enorme, �� tudo o que sei. Segundo ele, tem
mais de 40 quilates.
��� Quarenta quilates... ��� Seria do tamanho de uma noz ���
disse Victoir. ��� Se n��o apresentasse muitas impurezas, valeria uma
pequena fortuna. Parece que ele tem mais imagina����o do que eu
esperaria de um nazista.
��� Pedro acreditou nele ��� informou Jo��o. ��� Ainda n��o viu
mas, pela descri����o, pensa que �� algo realmente especial.
Pedro era um joalheiro com quem eles faziam transa����es. Um
senhor em uma cadeira de rodas que arranjava neg��cios para
Victoir em troca de uma parte dos lucros. N��o era nenhum bobo
e tinha um bom instinto para gemas, o que fez Victoir refletir. E
dar mais uma olhada no nazista.
��� Quanto ele quer pela j��ia? ��� perguntou.
74
A pergunta era quase irrelevante. Eles nem sabiam ainda que
tipo de pedra era, mas seria um ponto de partida para Victoir ver
se estaria interessado.
��� Ele quer d��lares americanos���informou Jo��o. ��� Cem mil.
��� V�� para o inferno! Ele precisaria ter j��ias da coroa para
receber essa quantia.
Jo��o deu de ombros.
��� Neste mundo, talvez ele tenha. H�� v��rios reis exilados aqui
em Lisboa, e uma quantidade muito maior de gr��o-duques. Aposto
que o nosso gar��om era um conde russo, antes do fim da guerra. Ago-
ra que j�� viu o homem, a pergunta ��: quer fazer neg��cio com ele? ��s
vezes, voc�� fica meio inquieto quando lida com os alem��es.
��� Mas voc��, n��o. Voc�� tem a moral de um c��o pastor mata-
dor de ovelhas, Jo��o.
Ele riu. Seus dentes eram perfeitos e t��o brancos que reluziam.
��� Nos ��ltimos seis anos, vivemos em um mundo onde mi-
lh��es de pessoas mataram outras tantas por motivos que ningu��m
explica; onde um cabo austr��aco n��o muito brilhante foi capaz de
conquistar a maior parte da Europa e matar �� vontade, antes de co-
meter suic��dio. Diga-me, amigo, qual �� a moralidade dessas coisas que aconteceram neste mundo?
��� Convide-o a juntar-se a n��s ��� disse Victoir.
��� Segundo Pedro, ele n��o conversa em p��blico. Se voc�� bater
o jornal no lado da sua perna quando sair do caf��, ele nos seguir��.
Iremos a algum lugar onde possamos conversar sossegados.
��� O camarada fala portugu��s? Meu alem��o �� terr��vel.
��� Ele fala um pouco de franc��s.
Victoir bateu na perna ao sair, e o homem seguiu-os at�� o es-
tacionamento onde estava parado o carro de Jo��o, um Hispano
Souza 1934 convers��vel, preto, fabricado em Barcelona, na Es-
panha, e que era seu orgulho e alegria. Segundo ele, atra��a as
mulheres mais do que o seu p��nis de 30 cent��metros. Victoir acre-
ditava na parte que se referia ao autom��vel. Ele nunca aprendera
a dirigir e considerava os t��xis mais convenientes do que a responsabilidade de ter um carro.
75
Eles esperaram o homem de pele branca aproximar-se no es-
tacionamento.
��� Vamos a algum local onde possamos ter uma conversa
particular ��� disse Victoir em franc��s.
��� N��o tenho nada aqui, nem dinheiro, nem passaporte. N��o
vai adiantar nada voc��s me assaltarem.
��� Meu nome �� Victoir, e o dele �� Jo��o.
��� O meu �� Varte.
N��o era um nome alem��o, e logo Victoir imaginou que talvez
ele n��o fosse alem��o. Mas isso n��o significava que n��o era um
nazista. Fez um sinal para o homem entrar no banco dianteiro, e
ele se sentaria no traseiro, mas Varte sacudiu a cabe��a e entrou
atr��s. Victoir riu consigo mesmo e sentou na frente. Homem es-
perto. Era f��cil aproximar-se e estrangular um homem sentado na
frente. N��o podia culp��-lo por ser paran��ico. A ra��a superior agora
era objeto de zombaria.
��� N��o estou com o diamante.
��� Naturalmente ��� disse Victoir. ��� Mas vamos precisar v��-
lo antes de fazer neg��cio.
��� Primeiro, vamos conversar. Voc�� me assegura que tem o
dinheiro necess��rio. E que n��o �� um ladr��o.
��� Woher sind Sie? ��� disse Victoir em alem��o, perguntando-
lhe de onde era.
��� Nein sprechen Deutsh ��� respondeu Varte.
Victoir acreditou no homem. O alem��o dele era pior que o
seu. O sotaque parecia balc��nico.
��� Romeno? ��� perguntou Victoir, atirando no escuro.
O homem fitou-o surpreso.
��� N��o ��� respondeu em franc��s. ��� Sou finland��s.
Finland��s, uma ova, pensou Victoir. Era romeno, sim senhor.
Provavelmente, tinha sido da Guarda de Ferro, a vers��o romena
da SS dos nazistas. O rei Carol da Rom��nia, o rei exilado, n��o
morava muito distante do cassino. Certamente, n��o tinha liga����o
com a gema ou com esse baixo esp��cime de vida que declarava
possu��-la. Se fosse do rei, ele a venderia em Londres, Paris ou
76
Antu��rpia, e obteria o pre��o real, em vez de fazer com que ela
passasse de m��o em m��o entre ladr��es.
Jo��o dirigiu para a praia e ao longo da costa at�� a Boca do In-
ferno, em Cascais. Eles deixaram o carro no estacionamento e
caminharam pelos penhascos altos que davam vista para o mar. A
grande cavidade e as grutas escavadas pelas ondas sempre fasci-
naram Victoir.
Varte, alerta �� trilha estreita do penhasco, olhou para Victoir
e Jo��o como se estivesse esperando que eles o empurrassem.
��� Gosto muito deste lugar ��� disse Jo��o, sorrindo para o
homem nervoso. ��� �� lindo e dram��tico, n��o? Como uma mulher
que faz amor com voc�� em um momento, e grita, arrancando seus
olhos fora no outro. ��� O franc��s de Jo��o era pior que o de Varte,
misturado com um pouco de portugu��s.
��� Tenho uma gema ��� contou Varte ��� muito especial, ��nica,
um diamante de, pelo menos, 40 quilates em peso, talvez at�� mais.
��� H�� diamantes de 40 quilates que n��o valem uma x��cara
de caf�� ��� disse Jo��o.
��� Esse vale mais que uma planta����o de caf��.
��� O que o torna t��o valioso?
��� E um diamante vermelho.
��� Raro, �� certo���disse Victoir. ��� Mesmo assim, um diamante
vermelho com muitas inclus��es n��o paga a x��cara de caf�� de Jo��o.
��� Esse �� um diamante rubi puro.
��� Tolice ��� disse Victoir. ��� Ou voc�� est�� mentindo, ou n��o
sabe do que est�� falando. N��o existe um diamante assim. Se exis-
tisse, seria conhecido por todos. ��� E estaria nas j��ias da coroa de
algum rei.
��� Conhecido de quem? Dos europeus? H�� centenas de anos
atr��s, ele estava no Trono de Pav��o da P��rsia. No s��culo passado,
em um cetro que pertencia ao quediva do Egito. De l��, foi parar
nos tesouros do sult��o da Turquia. Quando o sult��o perdeu o tro-
no em 1922, o cetro foi comprado pelo rei da Rom��nia. O proble-
ma com os europeus �� que eles se esquecem que o mundo n��o se
resume neles.
77
��� A gema ainda est�� engastada no cetro?
��� N��o.
��� Voc�� tem outras gemas?
��� J�� tive.
Em outras palavras, ele as usou para comprar documentos fal-
sos e uma passagem para Lisboa. Victoir concluiu o resto da hist��-
ria. O rei romeno foi exilado e vendeu tudo r��pido e a pre��os baixos
para fazer dinheiro antes de ir embora. Ou ent��o, o cetro foi rou-
bado por ladr��es, provavelmente os pr��prios guardas de seu pal��-
cio. De um jeito ou de outro, a pedra passou de m��o em m��o at��
chegar ao homenzinho nervoso de terno de linho branco e cha-
p��u panam��. Victoir estava curioso sobre o que acontecera �� gema
quando saiu das m��os do rei romeno, mas n��o quis assustar o ho-
mem indagando sobre a posse da pedra.
Preferiu aceitar a hist��ria contada por ele, de que possu��a um
diamante vermelho. Mesmo que tivesse inclus��es, seria extrema-
mente valioso. E se n��o tivesse ��� n��o, isso era imposs��vel. Um dia-
mante vermelho puro �� t��o raro que valeria o resgate de um rei.
��� Como podemos combinar de ver a gema? ��� perguntou
Victoir.
Varte moveu os olhos de um para o outro.
��� Quando eu vir o dinheiro.
��� Quanto est�� pedindo?
��� Duzentos mil d��lares americanos.
O rosto de Victoir manteve-se inexpressivo, mas Jo��o soltou
um assobio.
��� Ningu��m em Lisboa tem essa quantia. E, se algu��m tives-
se, n��o pagaria tanto por um diamante roubado. �� o que ele ��,
certo?
��� Podem me deixar no cassino. Existem outros que poder��o
pagar o que estou pedindo.
De volta ao estacionamento do cassino, j�� haviam chegado a
um acordo em 50 mil d��lares. Era muito dinheiro. Mas Victoir
estava ansioso. Se o diamante, de fato, correspondesse �� descri-
����o feita pelo homem, valeria muito mais. Ele n��o tinha condi-
78
����es de pagar tamanha quantia sozinho, mas Pedro e outros tan-
tos contribuiriam. Jo��o tamb��m, se bem que ele costumava insis-
tir em um abatimento por conseguir o neg��cio.
Quando sa��ram do carro, Victoir disse:
��� Precisamos de uns dias para juntar o dinheiro, mas, antes,
devemos nos encontrar para que eu possa examinar o diamante.
Varte apontou para Jo��o.
��� Voc�� fica aqui. Venha ��� disse, chamando Victoir. Ele atra-
vessou o estacionamento e se encaminhou para um Peugeot. Ha-
via um homem sentado no banco do motorista. Victoir logo o
reconheceu ��� era Heinrich, um bandido alem��o de cabelo cur-
to, rosto quadrado sem formas definidas e um nariz achatado.
Lembrava um porco do mato. Ouvira dizer que, durante a guerra,
era agente de uma das unidades da SS. Sem dinheiro nenhum para
sair de Lisboa, acabou permanecendo na cidade, onde atuava como
seguran��a e boy para os emigrantes. Era insens��vel e est��pido, o
que o tornava um homem perigoso. Hoje, estava particularmente
perigoso ��� tinha uma Luger alem�� ao seu lado no banco.
Victoir entrou no banco traseiro com Varte.
��� Ent��o, est�� no carro.
��� S�� quando eu estou nele. ��� Varte riu e tirou o chap��u. ���
Ningu��m examina os chap��us, nem mesmo nas fronteiras. ��� Ele
retirou uma pequena bolsa de couro da banda interna, abriu-a e
sacudiu para que a pedra ca��sse na sua m��o.
Victoir sufocou um grito ao ver a pedra, mas n��o conseguiu
disfar��ar seu espanto. Ficou sem respira����o.
��� Achou que eu estava mentindo, n��o foi?
Mesmo na luz fraca do carro, o diamante, de lapida����o euro-
p��ia antiga, cintilava um vermelho intenso. Era extraordinaria-
mente belo. E Varte estava certo quanto ao peso. Victoir estimou
que tivesse cerca de 40, talvez 1 ou 2 quilates mais.
��� Vale muitas vezes o que estou pedindo ��� disse Varte.
��� N��o sei, ele precisa ser avaliado. Est�� muito escuro aqui
no carro para eu poder examin��-lo. ��� Mesmo que tivesse inclu-
s��es, o diamante seria imensamente valioso. Sem elas ��� n��o, isso
79
era impens��vel. A pedra era absolutamente ��nica. Varte n��o men-
tira, era um verdadeiro vermelho-rubi. Victoir duvidava que Varte
realmente soubesse o que tinha. O homem sabia que era valioso,
mas, ou n��o compreendia seu verdadeiro valor... ou, talvez, esti-
vesse desesperado. Neste caso, a quantia que estava pedindo lhe
proporcionaria uma vida boa na Am��rica do Sul.
��� Ela tem nome? ��� perguntou Victoir. Como acontece com
os ventos muito fortes, alguns diamantes especiais eram batizados
com nomes ��� o Diamante da Esperan��a azul-��ndigo, o Koh-I-Nur
"Montanha de Luz", o Estrela da ��frica de 530 quilates, o Grande Mogul azul de lapida����o rosa, o fant��stico Darya-I-Nur, o grande
Tiffany amarelo-can��rio. Um nome elevava o valor do diamante
��s alturas.
��� Chama-se Cora����o do Mundo ��� disse Varte. ��� �� o seu
nome mu��ulmano. Voc�� poder�� cham��-lo do que quiser.
Cora����o do Mundo. Sim, combina com ele.
��� Antes de ver este ��� disse Varte ���, eu n��o sabia que exis-
tiam diamantes vermelhos. Achava que todos eram claros.
��� Os diamantes v��m em muitas cores ��� amarelos, cor-de-
rosa, verdes, azuis. Victoir n��o acrescentou que nunca tinha ou-
vido falar em um vermelho-rubi de verdade, se bem que havia tons
mais claros e mais escuros. E um rubi n��o se compararia ao dia-
mante de fogo que Varte estava vendendo, pois os rubis n��o t��m
o fogo que brilha do diamante. Ele retirou a lupa do bolso do pa-
let�� e aproximou-a da pedra. ��� Eu realmente n��o consigo julg��-
lo nesta luz.
Varte indicou uma lanterna.
��� Use aquilo. ��� Antes de entregar-lhe a pedra, o romeno
fez um sinal para seu c��o de guarda, Heinrich. ��� Observe o ami-
go dele do outro lado do estacionamento, n��o tive boas informa-
����es sobre aquele portugu��s.
��� Se ele vier na nossa dire����o, eu o mato.
��� E se este aqui encostar na porta do carro enquanto estiver
com o diamante nas m��os, mate-o tamb��m.
��� Jawol ��� respondeu Heinrich com um sorriso.
80
Victoir n��o duvidou do alem��o. Blefar seria complexo demais
para a cabe��a de Heinrich.
��� Segure a luz para mim ��� pediu a Varte. Com a pedra
magnificada contra uma folha de papel branca, Victoir n��o con-
seguiu enxergar nenhuma inclus��o vis��vel, mas foi evasivo porque
as condi����es eram muito prec��rias.
��� A luz n��o �� suficientemente boa para um exame profissio-
nal. Eu preciso...
��� J�� examinou tudo o que podia. Mesmo que tivesse peque-
nas inclus��es, a pedra valeria uma fortuna. D��-me aqui. ��� Ele a
tirou de Victoir. ��� Agora, saia.
Com Victoir fora do carro, Varte trancou a porta, antes de
abaixar a janela.
��� Voc�� disse que precisaria de dois dias para conseguir os
d��lares americanos. A troca ser�� no sagu��o do cassino, exatamente
��s 8h na quarta-feira. Se eu vir voc�� ou o seu amigo antes disso,
Heinrich dar�� cabo de voc��s.
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1 1
Debru��ado sobre o cap�� do carro, Jo��o fumava um de seus charu-
tos Havana, enquanto Victoir percorria com dificuldade o cami-
nho pelo estacionamento. Riu quando Victoir alcan��ou o carro.
��� Amigo, voc�� parece um homem que acabou de perder a
mulher da sua vida.
��� Voc�� precisava ver, Jo��o. �� extraordin��rio. Varte n��o es-
tava mentindo, tinha de pertencer a reis.
��� Mais uma raz��o para nos certificarmos de que o porco n��o
fuja com ele. ��� Jo��o fez um gesto como se estivesse cortando a
garganta.
Victoir n��o costumava ser muito exigente quanto �� fonte das
gemas que comprava e vendia. Seis anos de guerra tinham virado
a Europa de cabe��a para baixo, matado milh��es de pessoas e esva-
ziado os bolsos de outros milh��es. Mas estipulou um limite: n��o
permitir que qualquer pessoa que ele suspeitasse de ser nazista ti-
vesse algum proveito nas negocia����es. Quando Victoir conclu��a
um neg��cio com esse tipo de gente, Jo��o seguia o vendedor e ali-
viava o homem do pre��o da compra. Depois, dividia o dinheiro
com Victoir. Para Victoir, aquilo era uma guerra particular. Mas
roubo era uma coisa, assassinato era outra. Ele gostava de ajudar
os refugiados comprando suas j��ias. Tamb��m se sentia muito bem
quando impedia que os nazistas lucrassem vendendo objetos rou-
bados. Mas assassinato n��o era da sua ��ndole. Jo��o sempre dizia
82
que se limitava a roubar os soldados alem��es, mas Victoir nunca
teve muita certeza disso. Nem o pressionou a respeito.
Victoir sacudiu a cabe��a.
��� N��o d�� para, simplesmente, se aproximar dele e pegar o
diamante. Existe aquele alem��o, Heinrich, que o protege. E esco-
lheu o sagu��o do cassino para a transa����o. N��o h�� como conse-
guirmos o diamante e ficarmos com o dinheiro. E eu n��o quero
inibir o neg��cio por causa disso. A pedra vale muito mais do que
ele est�� pedindo.
��� Ent��o, ela �� realmente ��nica ��� disse Jo��o com ar sonha-
dor, mais para si mesmo do que para Victoir.
��� Diferente de tudo o que j�� vi. ��� As m��os de Victoir sua-
vam, e ele as secou no palet��. ��� De tudo o que jamais imaginei.
Uma pedra digna de coroa real. Ela tem nome e at�� mesmo uma
hist��ria, como o Grande Mogul, s�� que mais emocionante. Tr��s
monarcas que a possu��ram perderam seus tronos. Varte parece
querer livrar-se dela n��o s�� pelo dinheiro, mas por ser supersti-
cioso. Ele me contou que a morte persegue quem a possui ��� e
disse isso com convic����o.
Jo��o riu e deu de ombros.
��� Talvez o seu amigo tenha o dom da profecia ��� sobre o
destino dele pr��prio.
��� Jo��o, eu quero a pedra. Daria qualquer coisa por ela. Tudo
por ela. N��o h�� nada igual sobre a face da terra. Quando eu for para
a Am��rica, ser�� um cart��o de visita nas pra��as mais importantes do
com��rcio de diamantes. N��o quero que nada atrapalhe o neg��cio.
NAQUELA NOITE, VICTOIR FICOU DEITADO na cama pensando no
diamante. Estava cheio de ansiedade. Jamais tivera inclina����o para
matar algu��m, mas quando segurou o Cora����o do Mundo nas m��os,
aquilo gerou nele um calor de paix��o, um desejo t��o intenso que
seria capaz de torn��-lo subitamente violento. E se tivesse uma arma
naquele momento? Teria atirado na nuca do alem��o e no rosto de
Varte para pegar o diamante? Seria essa uma sensa����o igual ao calor
da paix��o que leva os amantes furiosos a matar?
83
Ele sabia que os diamantes podem excitar as pessoas tanto quan-
to o sexo, mas isso �� verdadeiro em rela����o a v��rias coisas ��� corri-
das de cavalo e dinheiro, para citar duas. Mas o Cora����o do Mundo
fez o seu pr��prio medidor de paix��o subir ��s alturas. "�� mais que
uma pedra", ele dissera a Jo��o antes de se separarem, "assim como a Mona Lisa �� mais que uma pintura, e o Davi de Michelangelo �� mais que uma est��tua de m��rmore." O Cora����o do Mundo era ��nico e
belo, propriedade leg��tima de reis e rainhas. E n��o era a primeira
vez que uma gema fabulosa permanecia escondida na c��mara de
um rei, at�� os ladr��es conseguirem usurp��-la.
O romeno talvez n��o esteja errado sobre a origem do diamante,
pensou Victoir. Algumas das mais preciosas gemas do mundo origi-
nalmente adornaram o Trono do Pav��o. O trono de valor inestim��-
vel fora constru��do para o imperador mongol Shah Jahan, governante
da ��ndia, que construiu o Taj Mahal. Em 1739, foi seq��estrado jun-
tamente com outros objetos por um conquistador persa que captu-
rou Delhi. Mais tarde, ele o perdeu guerreando com os curdos que
o despeda��aram para vender as partes. Suspeitava-se que o Koh-I-
Nur, Montanha de Luz, adquirido pela rainha Vit��ria, tinha vindo
desse trono, da mesma forma que o Darya-I-Nur, Mar de Luz, um
rosa-claro puro, e sua companheira, a Nur ol-Eyn, Luz do Olho, duas
gemas que enfeitavam as j��ias da coroa do Ir��.
Tamb��m era poss��vel que o diamante de fogo j�� tivesse sido o
olho de algum ��dolo. Acreditava-se que o Diamante da Esperan-
��a, o azul-��ndigo de 45 quilates, tinha sido roubado de um ��dolo
hindu. Ele j�� fora uma pedra maior com o nome de Azul Franc��s,
roubado do ��dolo, e deixara um rastro de assassinatos e trai����es
no seu caminho para a Fran��a, onde terminou na coroa de Lu��s
XVI ��� que perdeu a cabe��a, o trono e o diamante, mais ou me-
nos ao mesmo tempo.
A mesma hist��ria fatal acompanhava o Diamante Orlov, a
pedra de 193 quilates em forma de ovo dos Romanoffs, antes de
eles serem assassinados pelos comunistas. Ambas as gemas tinham
hist��rias de assassinatos e tramas, e, de acordo com a natureza
humana, isso as tornava muito mais desejadas e valiosas. Um nome
84
e uma hist��ria, ainda que desafortunada, elevavam o valor da pe-
dra. A Lua de Baroda, um amarelo-can��rio de 25 quilates em for-
ma de p��ra que j�� pertencera aos soberanos Gaekwar de Baroda,
na ��ndia, fora considerada portadora de m�� sorte para os donos
que a usaram na travessia das ��guas. Quanto aquela reputa����o de
desgra��a teria acrescentado ao seu valor? E as hist��rias sanguino-
lentas do Grande Mogul, o Diamante da Esperan��a Azul Franc��s,
e do Orlov, quanto teriam elevado o seu valor original?
Uma coisa era certa, ele precisava conhecer mais sobre o dia-
mante e sua hist��ria. Efetuada a compra, o levaria em seguran��a
para a Am��rica e para um cofre de banco. Depois, faria uma via-
gem aos lugares por onde a pedra teria passado, como Istambul,
Cairo e Teer��.
Na sua cabe��a, n��o era uma gema roubada de um ��dolo na
��ndia, mas um peda��o de uma estrela que ca��ra na terra. Os
meteoritos traziam diamantes para a terra. De fato, na maioria
dos meteoritos foi encontrada uma concentra����o muito maior de
diamantes do que nas minas. Os diamantes eram frios ao toque,
por��m aparentavam ser quentes porque extra��am o calor da m��o.
Victoir poderia jurar que o Cora����o do Mundo geraria o seu pr��-
prio calor. Como uma estrela.
��� Um peda��o de estrela ��� disse alto. E estremeceu pensan-
do nela.
85
12
Heinrich, o alem��o, estava sentado no bar quando Victoir entrou no
sagu��o do cassino para comprar o diamante. Jo��o tamb��m estava l��,
no lado oposto, conversando com duas mulheres que, pela roupa e a
maquiagem que usavam, estavam ali a trabalho. Victoir sabia que Jo��o
tinha envolvimento com v��rios neg��cios escusos. Descobrir que
intermediava um grupo de garotas de programa n��o o surpreenderia.
Ao entrar, Victoir parou para que seus olhos se acomodassem
�� luz suave. N��o viu Varte. Heinrich captou seu olhar e indicou
com um aceno o fundo da sala. Sentado em uma mesa no canto
escuro, o rosto cinzento iluminado pela luz p��lida da entrada da
casa de banho, estava Varte.
��� Ol�� ��� disse Victoir, tomando um assento �� mesa.
��� Trouxe o dinheiro? ��� perguntou Varte.
��� Trouxe o diamante? ��� replicou Victoir.
��� Primeiro o dinheiro. Quero ver.
Victoir tirou um pequeno saco do palet�� e entregou a ele. Varte
colocou o saco no colo para que, ao abri-lo, as outras pessoas n��o
vissem o conte��do. E retirou um punhado de notas de 100 d��lares.
��� Os nazistas falsificaram essas notas aos milh��es, utilizan-
do gravadores profissionais e funcion��rios da Casa da Moeda ���
disse Varte. ��� Como vou saber que s��o verdadeiras?
��� O problema com as notas falsificadas dos nazistas �� a ob-
sess��o dos alem��es pela perfei����o ��� eles fizeram com que pare-
cessem mais verdadeiras do que as originais.
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Victoir tinha certeza de que muitas das notas no saco faziam
parte dos milh��es falsificados impressos pelos alem��es. Estava cer-
to tamb��m de que Varte n��o seria capaz de perceber a diferen��a,
ou que estaria t��o desesperado a ponto de aceitar as notas falsas,
sabendo que, de qualquer forma, somente um especialista poderia
identific��-las.
��� S��o falsas ��� disse Varte.
Victoir sacudiu a cabe��a e estendeu a m��o para pegar o saco.
O homem estava blefando. Ele precisaria de uma boa luz e uma
lente de aumento para perceber a diferen��a.
��� N��o, s��o todas verdadeiras. N��o vamos regatear. Voc�� fica
com o seu diamante, e eu fico...
��� Preciso examin��-las contra a luz.
��� Pegue algumas e examine-as, mas o resto fica comigo.
O romeno tirou algumas notas, devolveu o saco e encaminhou-
se apressado para o corredor que dava para o toalete.
Victoir recostou-se na cadeira, virou e revirou a cabe��a sobre
os ombros para aliviar a tens��o. Esse tipo de negocia����o era dif��-
cil. N��o era o mesmo que conversar com um casal sobre um anel
de noivado. A troca de dinheiro por mercadoria envolvia um cer-
to grau de medo, desconfian��a e perigo.
Ele olhou para o bar. Heinrich ainda estava l��, debru��ado so-
bre uma cerveja, os cotovelos apoiados no balc��o, os olhos na
bebida. Talvez esteja lendo a espuma da cerveja, pensou Victoir, procurando saber o que o futuro guarda para um ex-nazista que tem m��s-
culos entre as orelhas. Victoir perguntou-se por que Heinrich n��o insistira em ficar colado ao patr��o enquanto a transa����o acontecia. Havia uma boa hip��tese ��� a de que o pequeno romeno tam-
b��m n��o confiasse no alem��o. N��o com uma pilha de notas de
d��lares.
Victoir cruzou olhares com Jo��o e sacudiu a cabe��a, indican-
do que a troca ainda n��o tinha ocorrido. Pedira-lhe que ficasse no
bar, pronto para dar cobertura caso fosse preciso. O romeno pare-
cia ter uma suspeita e um medo razo��veis de Jo��o, portanto era
melhor ele ficar a uma certa dist��ncia.
87
V��rios minutos se passaram, e Victoir come��ou a se preocu-
par. Por que o homenzinho demorava tanto? Fumou um cigarro,
depois olhou para o rel��gio, nervoso, j�� que n��o vira a hora que o
romeno entrara no toalete. Ocorreu-lhe que poderia haver uma
sa��da pelo banheiro ��� e que o homem poderia ter fugido com as
cinco ou seis notas de cem d��lares que levara.
N��o era um enredo prov��vel neste caso em que o homem ti-
nha um diamante incrivelmente raro e valioso, mas fatos mais
estranhos j�� aconteceram desde que os nazistas viraram o mundo
do avesso.
Victoir levantou-se e sinalizou com os ombros para Jo��o. E
olhou para o bar. Heinrich se fora. Que diabos! Ele correu para o pequeno corredor, escancarou a porta do banho dos homens e parou
na entrada.
Varte estava ca��do no ch��o, de costas, os olhos sem vida vol-
tados para o teto e uma express��o de choque no rosto. O sangue
do corte na garganta formara uma po��a vermelho vivo em volta
da cabe��a e dos ombros.
Ele estava sem o chap��u.
A janela estava aberta.
88
1 3
Victoir caminhava pelo embarcadouro de Lisboa quando ouviu
uma sirene de nevoeiro vinda de um navio no rio Tejo. Mais cedo,
a n��voa do ver��o espalhara-se ao longo da ba��a e seguira em dire-
����o ao mar. A chegada da noite transformou a bruma em um manto
escuro que satisfazia o objetivo de Victoir: n��o ser visto.
Tr��s dias haviam se passado desde que ele se deparara com o
romeno ca��do no ch��o do banheiro. A pol��cia o interrogara, mas,
como o morto n��o era portugu��s e tinha passaporte falso, um su-
borno razo��vel foi suficiente para calar qualquer pergunta que os
policiais pretendessem fazer.
O corpo de Heinrich apareceu no dia seguinte, flutuando na
grande piscina formada pelos penhascos escarpados na costa da
Boca do Inferno. Ele teria permanecido no fundo; uma corrente
presa a uma pesada roda de a��o de caminh��o fora amarrada a um
dos seus tornozelos, mas um tubar��o acidentalmente comera-lhe
o p��, e a corrente se soltara.
N��o foi dif��cil adivinhar a seq����ncia dos eventos. Jo��o subor-
nara Heinrich, planejara o assassinato do romeno e o roubo do
diamante, e agora estava eliminando as testemunhas.
Victoir tinha certeza de que estava na lista. Escapar das bestas
nazistas na Fran��a ocupada desenvolvera nele um instinto de so-
breviv��ncia bastante agu��ado.
Pensou na loucura totalmente homicida que tomara conta da
Europa nos ��ltimos seis anos. E em tudo o que perdera. Ele sobrevi-
89
vera na Europa �� era nazista que estava sendo chamada de Holocausto,
se bem que a express��o cigana para o genoc��dio ��� a Devasta����o ���
fosse mais precisa. Nada o surpreendia. Victoir n��o acreditava na
bondade inerente �� esp��cie humana. Nem na amizade.
Ele tinha certeza de que os assassinatos e o roubo tinham sido
obra de Jo��o. N��o sentia raiva pelo que ele tinha feito. Desconfia-
va que, se questionasse, o portugu��s se limitaria a sorrir, encolher
os ombros e sugerir que eles aproveitassem um copo de vinho e
uma boa mulher, em vez de responder.
Mas certas perguntas n��o se faziam a outro homem. Pelo me-
nos, quando envolviam trai����o, assassinato e roubo. Um homem
como Jo��o era capaz de oferecer-lhe um copo de vinho e, ao mes-
mo tempo, cortar-lhe a garganta.
Seu ��nico pesar era a perda do diamante. Victoir teria dado
qualquer coisa por ele. Exceto a vida. Aquele pobre bastardo do
Varte n��o imaginava como estava certo ao dizer que a gema car-
regava uma maldi����o. Victoir s�� esperava que algum dia a maldi-
����o atingisse Jo��o. Mas n��o acreditava nessa possibilidade ���
homens como Jo��o fazem seu pr��prio destino. S�� isso explica que
pessoas que v��m de baixo se arrisquem tanto.
Lisboa deixara de ser um ref��gio para ele.
Encontrou o cais que procurava e caminhou at�� um barco de
pesca que o aguardava. Na Fran��a, escapara dos nazistas em um
barco de pesca. Sairia de Lisboa da mesma maneira e viajaria para
a Inglaterra. Praticara seu ingl��s durante um ano. Seus documen-
tos diziam que era americano. Ser americano �� uma boa pedida,
pensou. Queria ir para os Estados Unidos, onde tinha parentes que
poderiam ajud��-lo a se estabelecer no ramo de diamantes.
Al��m disso, era o ��nico pa��s do mundo onde ter um sotaque
diferente n��o significava ser um estrangeiro.
90
14
W I N L I B E R T E , NOVA YORK, 1991
Fui sozinho para o JFK, em um t��xi que me deixou no terminal de onde a TAP decolava. Nenhum volunt��rio apareceu para o meu
bota-fora, e eu n��o chamara ningu��m. A ��nica maneira de se co-
me��ar uma vida nova �� deixar a antiga para tr��s.
��� Alice n��o mora mais aqui ��� comentei com Tony, o por-
teiro em servi��o, ao passar. Ele me respondeu com um olhar sur-
preso. Eu tamb��m n��o me lembrava quem era Alice.
��� Sentirei sua falta, Sr. Liberte.
Entreguei-lhe um envelope com algum dinheiro. Tony sem-
pre foi um bom rapaz, mais de uma vez amparou-me at�� o aparta-
mento quando eu estava b��bado demais para chegar l�� sozinho.
Tive uma sensa����o estranha no t��xi e me recostei no banco,
tentando descobrir o que estava errado. Para um homem que n��o
trabalhou nem um dia da sua vida e s�� sabia torrar dinheiro, era
surpreendente que o fato de que estar quebrado n��o me apavo-
rasse. Eu me sentia entorpecido, mas n��o amedrontado. Talvez
fosse idiota demais para sentir medo.
O que me preocupava era outra coisa, e comecei a repassar a
lista. N��o era a perda do barco ou dos carros ��� eles poderiam ser
substitu��dos. Eu nunca fui muito apegado aos meus bens. Comprei
91
brinquedos, usei-os bastante e comprei mais, sempre para o meu
uso, nunca para juntar. Para mim, era f��cil desistir das coisas.
Talvez, por ter perdido meus pais ainda crian��a. Nada era para
sempre.
Era assim que me sentia em rela����o ao apartamento no edif��-
cio Dakota. Eu tive um lugar para morar antes daquele e voltaria
a ter outro com toda a certeza. O fato de ser um endere��o de status
n��o significava muito para mim. Eu comprara porque tinha dinhei-
ro para torrar e porque surgiu a oportunidade, quando um astro
do rock em decad��ncia precisou do dinheiro, com urg��ncia, para
sanar as finan��as, depois de muitas doses de hero��na.
Enquanto o motorista do t��xi corria veloz pelas ruas de Ma-
nhattan desafiando os pedestres imprudentes, amea��ando imprimir
marcas de pneus nas costas deles e marcas de dentes no p��ra-cho-
que, descobri o que me perturbava. N��o era deixar alguma coisa
para tr��s que me importava. N��o eram o meu tal��o de cheques, os
meus carros velozes, o meu barco vitorioso. Nem mesmo a minha
namorada premiada. Despachei Katarina para L.A. com uma pas-
sagem de avi��o de primeira classe e uma gorda conta banc��ria, fru-
to da venda do Bugatti. Eu gostava de Katarina, mas n��o tinha
saudades. A n��o ser quando estava com tes��o, um bom sinal de que
era sexo e n��o amor o que eu sentia. N��o que ela n��o fosse especial
para mim. Todos os meus outros amigos se afastaram quando sou-
beram que eu estava quebrado. Katarina soube por outras pessoas e
correu para me dar apoio. Apenas eu lhe assegurei que tudo n��o
passava de uma sonega����o de imposto feita pelo meu contador. Era
uma boa maneira de explicar. Qualquer coisa mais complexa do que
fazer as contas do tal��o de cheques, se �� que chegava a esse ponto,
era demais para sua compreens��o. Mas ela vinha de uma regi��o do
mundo onde governos corruptos tinham burocracias corruptas, e
desviar impostos era um modo de viver.
Procurei pensar em algu��m ou algo que me importasse, que
realmente significasse alguma coisa para mim, e s�� me veio um
branco. Eu n��o tinha fam��lia. Bernie estava morto, e n��s nem se-
quer ��ramos muito chegados. Minha madrasta s�� me convidava
92
em feriados, e eu sempre encontrava uma boa desculpa para n��o
aceitar. Meu irm��o adotivo era um merda. Meus "amigos" na rea-
lidade eram meros conhecidos. Eu n��o tinha irm��os de sangue,
n��o fazia parte de nenhuma fraternidade de estudantes.
N��o pensara em nada disso at�� o carrossel parar de repente, e
eu cair de cabe��a. Bernie n��o me fizera um favor ��� que o bastar-
do ego��sta queime no fogo eterno do inferno. Entretanto, seu es-
trago me proporcionou mais do que um alerta quanto ao meu
dinheiro. Tudo estava um pouco confuso porque eu ainda estava
tonto da aterrissagem for��ada, por��m dava para ver que o que eu
chamava de vida n��o passava de uma s��rie de eventos isolados ���
a foda desta semana, a festa daquela ��� em vez de uma represen-
ta����o completa com todos os atos. Como o t��tulo de um livro que
eu deveria ter lido na faculdade mas nunca cheguei sequer ao fim
do sum��rio, minha vida n��o passava de muito barulho e entusias-
mo, e n��o significava nada.
��� Nenhum amigo, nada.
O motorista perguntou o que eu disse. Pelo menos, acho que
foi isso que eu ouvi. No tempo do meu pai, os motoristas tinham
sotaques do Brooklyn, dif��ceis de entender. Agora, seus sotaques
dif��ceis de entender vinham acompanhados de panos enrolados
nas cabe��as e de vistos permanentes. J��queis de camelos, negros
do deserto, caras de turbante, esses eram os nomes rid��culos pelos
quais as pessoas do meu c��rculo de amizade ��� ou que tinham sido
do meu c��rculo de amizade ��� os chamavam. Mas essas mesmas
pessoas que zombavam dos motoristas n��o conseguiam trabalhar
em um ano o que eles trabalhavam em uma semana. Como seria
ter que dirigir um t��xi e morar em um buraco para ganhar dinhei-
ro suficiente para mandar para a fam��lia no Terceiro Mundo, uma
fam��lia que, sem aquilo, poderia morrer de fome? O que se passa
na sua cabe��a, no seu ��ntimo, quando voc�� v�� entrar, �� noite, no
seu t��xi um camarada que parece ter fugido de uma loja de bebi-
das, doido de crack, com um rev��lver em uma das m��os e usando
uma m��scara de esqui ��� e manda voc�� lev��-lo a um lugar escuro
e ermo onde ningu��m ouve tiros e gritos? Que tipo de merda essas
93
pessoas tiram de prostitutas e seus clientes, de drogados e de gen-
te que vomita e mija...
Estremeci e afastei a id��ia de algum dia dirigir um t��xi. Quan-
do eu chegasse a esse n��vel de pobreza, seguiria o caminho do
Midnight Cowboy e faria sexo oral nos banheiros do Central Park,
antes de passar pelo sufoco em que viviam os pobres coitados
taxistas na cidade de Nova York.
Quando sa�� do t��xi, atirei para o motorista uma nota de 100
d��lares, mais que o dobro da corrida, e mandei guardar o troco.
Meus dias de grande gastador tinham chegado ao fim, mas, para
mim, era importante n��o me sentir duro.
94
15
Passava pela ��rea de seguran��a do aeroporto quando observei uma
mulher, mais ou menos da minha idade, talvez um pouco mais
velha, passar pelo detector de metal na minha frente. Gostei do
que vi enquanto ela estava de costas, e mais ainda quando se vi-
rou e pude admir��-la de frente. Era ruiva, uma das minhas muitas
fraquezas.
Um livro ca��ra da sua bolsa aberta ao passar pelo scanner de
seguran��a. Peguei-o e chamei a mo��a que j�� se afastava.
��� Deixou cair isto. ��� Olhei para o t��tulo. A socioeconomia
da fome no Terceiro Mundo.
��� Acho que vi o filme ��� comentei com um sorriso, ao en-
tregar o livro.
A mulher me dirigiu um olhar que esfriaria um cachorro rai-
voso.
��� Gostou da parte em que as crian��as s��o canibalizadas como
alimento?
Ah, merda. Ela era esse tipo. Idealista. Pronta para salvar o
mundo.
Ela se juntou a um grupo de tr��s homens e mais uma mu-
lher que se encaminhava para o sal��o de espera. N��o fosse pelo
fora, eu provavelmente n��o teria pensado mais nela. Era atraen-
te, mas fria demais. N��o sou homem de me arrastar aos p��s das
mulheres que me humilham, mas a ca��a sempre fica mais inte-
95
ressante quando h�� obst��culos a transpor. Al��m disso, havia o
cabelo ruivo.
Fui logo atr��s do grupo para o port��o de check in. Quando
chegou a minha vez com a jovem portuguesa que se encontrava
atr��s do balc��o, indiquei a ruiva do outro lado da sala.
��� Quero que aquela mo��a seja transferida para a primeira
classe, com assento ao lado do meu. N��o me importa quanto isso
vai custar. ��� Eu ainda tinha meu cart��o American Express. N��o
poderia ter sa��do de casa sem ele.
��� �� sua esposa?
��� Ainda n��o.
��� Qual �� o nome dela?
��� Isso voc�� vai ter de me dizer.
A mulher me avaliou com o olhar.
��� Seu portugu��s �� muito bom, Sr. Liberte.
��� Minha m��e era portuguesa.
��� N��s temos regras quanto a esse tipo de coisa.
��� Os americanos t��m regras quanto a esse tipo de coisa. Os
portugueses t��m muita alma para deixarem o tecnicismo atrapa-
lhar um romance.
��� Por que n��o a convida pessoalmente?
��� J�� tentei puxar conversa usando o meu charme e talento,
mas n��o surtiu efeito. Ela �� uma mulher muito s��ria, com a mente
voltada para os problemas sociais que assolam o mundo.
��� E o senhor?
��� Sou um completo degenerado, com a mente em uma ��ni-
ca coisa.
A mulher suspirou.
��� Sim, o senhor, certamente, tem sangue portugu��s nas
veias. ��� Ela deu uma olhada na dire����o da ruiva e examinou o
computador. ��� Dra. Marni Jones. Faz parte do grupo da ONU.
��� Como posso conseguir que ela se sente ao meu lado?
��� Quais s��o as suas inten����es com a Dra. Jones?
��� Fazer amor com ela quando chegarmos a Lisboa.
Ela inclinou a cabe��a.
96
��� Bem, isso, com certeza, n��o �� algo a que a companhia de
avia����o possa se opor. Desde que o senhor espere at�� o desembar-
que. O assento ao seu lado est�� vago. Boa sorte!
FINGI QUE N��O VI a Dra. Jones quando ela apareceu, hesitante, no
corredor do avi��o, os olhos no seu cart��o de embarque. Parecendo
distra��do, levantei-me para que pudesse assumir o assento da jane-
la. N��o queria demonstrar muito interesse no in��cio. Achei melhor
deixar a princesa de gelo dar o primeiro passo. O avi��o levantou
v��o, fomos servidos de bebidas, e s�� depois ela se dirigiu a mim.
��� Eu nunca tinha viajado de primeira classe. Obrigada.
Dei de ombros.
��� N��o se pode confiar um segredo a ningu��m hoje em dia.
Ela contou por que eu queria sentar ao seu lado?
��� Disse que planejava me seduzir.
��� E?
��� Eu aceitei o upgrade. Mas s�� pela comida melhor e a pol-
trona mais confort��vel, Sr. Liberte.
��� Se me conhecesse melhor...
��� Mas eu o conhe��o. A mo��a do balc��o me deu isto.
Ela tirou da sua pasta de trabalho uma revista People cuja capa
anunciava uma mat��ria intitulada "Os Cinq��enta Solteiros Mais
Cobi��ados". Em seguida abriu na p��gina do artigo: "Win Liberte
adora autom��veis velozes e mulheres devassas. Rico e mimado,
dirige um carro que atinge trezentos quil��metros por hora em ruas
p��blicas, namora a supermodelo Katarina Benes e nunca traba-
lhou na vida."
��� Nossa ��� disse eu ���, parece um cara muito legal.
��� Senhor Liberte ��� posso cham��-lo de Win?
��� Senhor est�� bem.
��� Senhor, voc�� �� irrelevante.
��� Nossa, j�� fui chamado de muitas coisas, mas que diabo ��
irrelevante? Soa como uma doen��a social.
��� Em um mundo em crise, com guerras, revolu����es, fome,
injusti��a e revoltas sociais assolando continentes inteiros, tem id��ia
97
da categoria em que se enquadra quando transa com uma puta e
dirige a 300 km/h na auto-estrada?
Tive a n��tida impress��o de que ela ia me dizer, por isso cortei
suas palavras.
��� Sabe o que eu penso a respeito dos africanos e asi��ticos
famintos? ��� perguntei e me aproximei mais. ��� Resolvemos o
problema da fome no mundo alimentando metade deles com a
outra metade.
��� Eu estava errada. Voc�� n��o �� irrelevante. �� um patife
ego��sta, avarento e depravado.
N��o demorou muito para eu descobrir que ela estava indo para
Angola em uma miss��o da ONU, com escala para uma confer��n-
cia com agentes portugueses de assist��ncia humanit��ria.
��� Angola sofre a maldi����o do Terceiro Mundo de ter recur-
sos naturais, s��ndrome do petr��leo e do diamante. Em quase to-
dos os pa��ses ao sul do Saara, a descoberta de petr��leo ou de
diamantes trouxe para os seus povos morte e mis��ria, ao inv��s de
paz e prosperidade. Em Angola, em Serra Leoa, no Congo, a mes-
ma hist��ria se repete. Os l��deres rebeldes apossam-se dos territ��rios
onde h�� po��os de petr��leo ou minas de diamantes e usam o pro-
duto para comprar as armas que os mant��m no poder. E n��o se
limitam a matar centenas ou milhares, mas assassinam, mutilam e
estupram dezenas de milhares. Milh��es j�� sofreram ou morreram.
��� Conte-me mais sobre Angola ��� pedi.
��� Por qu��?
��� N��o sei, talvez eu compre o pa��s algum dia.
��� Como eu disse, �� uma zona de guerra. At�� 1975, era col��-
nia portuguesa. Libertou-se ap��s anos de luta, mas a independ��n-
cia s�� resultou em uma troca dos grupos que lutavam. Desde ent��o,
h�� uma guerra civil acontecendo entre um grupo chamado MPLA
e outro chamado Unita. O MPLA controlava o governo e era apoia-
do pelos russos com milhares de tropas cubanas; o Unita era
apoiado pela CIA.
��� Os caras do bem e os do mal.
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��� Os caras do mal e os piores do que eles. O presidente Reagan
chamou de her��i Savimbi, o l��der dos rebeldes da Unita. Para o povo
de Angola, trata-se de um man��aco homicida, um psicopata ou algo
pior. Rouba crian��as, as acolhe quando est��o nas ruas morrendo de
fome, as vicia em drogas, fornece rifles e as transforma em matado-
res. Os rebeldes e o governo supostamente fizeram um acordo de
paz, os cubanos voltaram para casa, mas ningu��m leva a paz a s��-
rio ��� a guerra �� muito lucrativa. Savimbi tomou conta da ��rea do
diamante, o governo dos campos de petr��leo, e eles est��o lutando
velada e abertamente, e todos est��o lucrando com isso, exceto as
milh��es de pessoas que morrem de fome.
��� O que voc�� tem a ver com tudo isso? ��� perguntei.
��� Minha fun����o �� monitorar quanto da ajuda da ONU, de
fato, chega ��s pessoas que devem receb��-la. Esta �� a minha pri-
meira viagem a Angola, mas fui informada de que, se metade da
ajuda estiver sendo distribu��da adequadamente, j�� �� motivo para
comemorar.
Fez uma pausa e me dirigiu de novo aquele olhar frio.
��� Li que a sua fam��lia est�� no neg��cio de diamantes. Com-
preende por que eles s��o chamados de diamantes de sangue, n��o
��, Sr. Liberte? Porque est��o impregnados do sangue de inocentes.
Fiz que sim com a cabe��a e murmurei alguma coisa evasiva a
respeito do neg��cio de diamantes da minha fam��lia.
��� Lembro-me de que a House of Liberte est�� na lista de pro-
priet��rios de minas de diamantes de Angola ��� disse ela. ��� J��
esteve em Angola para ver os horrores que a ind��stria do diaman-
te provocou por l��?
A�� estava a explica����o. Claro, meu nome estava na lista de
merda. Ela sabia o porco que eu era, antes mesmo de me conhe-
cer. Parecia que ia enterrar no meu cora����o o garfo da empresa
a��rea com que comia a salada. N��o ousei contar-lhe que meu ob-
jetivo de vida, no momento, era ver se havia algum meio de sugar
sangue suficiente da minha mina de diamantes para eu recuperar
o estilo de vida que sempre tive at�� a minha ru��na.
99
��� Marni, quando voc�� era um beb��, a sua m��e a levou nas
costas durante as manifesta����es de Berkeley da d��cada de 1960?
��� �� assim que v�� a preocupa����o com o sofrimento mundial?
Como uma volta aos anos 1960? De todas que eu j�� conheci, voc��
�� a pessoa mais mal-informada sobre este mundo que extrapola
seus prazeres ego��stas.
��� Vou mudar, prometo.
��� Sr. Liberte, sabe o que eu gosto em voc��?
��� Nada, absolutamente nada. Mas agora que j�� tiramos isso
do caminho, quer jantar comigo em Lisboa?
��� Prefiro comer com uma v��bora.
��� Isso �� um sim?
100
16
LISBOA
Ao sair da alf��ndega na dire����o do sagu��o principal, fiz uma ��lti-
ma tentativa com Marni.
��� Tem certeza que n��o quer jantar comigo? ��� perguntei.
��� Para ser sincera, eu �� que deveria convid��-lo para jantar
pela agress��o verbal que suportou por milhares de quil��metros. Mas
vou estar terrivelmente ocupada com diversos compromissos da
ONU aqui em Lisboa ��� reuni��es todos os dias, jantares todas as
noites ��� portanto acredito que n��o poderei retribuir.
��� �� uma pena, ficarei muito solit��rio na cidade, sem conhe-
cer ningu��m.
��� Ah, n��o acho que v�� se sentir sozinho. ��� Ela fez um si-
nal por cima do meu ombro indicando uma mulher que segura-
va um len��o com o nome Win escrito em batom. A mulher riu e
acenou o len��o quando me viu olhando para ela.
��� Boa ca��ada ��� disse Marni, afastando-se.
��� Sou a esposa de Jo��o ��� apresentou-se Simone. Desculpe
pelo len��o, mas, fora o sexo e a idade, eu n��o sabia a quem procurar.
Simone falava ingl��s com um sotaque intrigante. Depois das
apresenta����es, resolvi usar o portugu��s j�� que precisava praticar a
l��ngua.
101
O carro de Simone era um Rolls Royce convers��vel modelo Silver
Cloud, estilo vintage, na cor p��rola. Um pouco austero e conservador demais para o meu gosto, no entanto, combinava bem com ela.
Irradiava uma sensualidade incontest��vel. O cabelo preto, os
olhos verdes e a pele clara ��� quase t��o perolada quanto o carro ���
acentuavam os diamantes que usava. Eram grandes ��� nas ore-
lhas, em volta do pesco��o, nos pulsos e dedos. Todos tinham en-
gastes especiais, e ela n��o usava nenhuma outra pedra al��m dos
diamantes. Isso era incomum. A maioria das mulheres mistura as
j��ias, acrescenta alguns rubis ou safiras para um colorido, se bem
que eu percebera muito amarelo e verde em uma gargantilha, e
at�� mesmo um raro diamante rosa-claro. As cores eram bonitas,
mas eu sabia que n��o eram os diamantes de melhor gradua����o. A
gargantilha valeria uma fortuna se os diamantes coloridos fossem
fantasias puras, n��o o tipo de coisa que se usa para buscar algu��m
no aeroporto. Mesmo que contivessem s��rias impurezas, as gemas
valiam um bocado.
Sem parecer ostenta����o, as j��ias ca��am-lhe bem, como um colar
de diamantes em volta do pesco��o de um sedoso gato selvagem.
Calculei por alto a diferen��a de idade entre ela e Jo��o, que
devia regular com meu pai, e conclu�� que ele estaria no final da
casa dos 60 ou come��o dos 70. Mais ou menos o dobro da idade
de Simone, que imaginei estar em torno dos 35.
Uma mulher jovem e fogosa, um homem velho e rico, n��o
parecia ser uma combina����o feita nos c��us, mas eu ainda n��o vira
Jo��o. Talvez ele fosse um homem muito conservado.
Percebi alguma coisa estranha em Simone. Ela parecia ser um
pouco mordaz. N��o que tivesse a apar��ncia dura que algumas
mulheres adquirem quando foram mal-tratadas e precisaram lu-
tar para sobreviver. Eu percebia um pouco disso em Katarina, uma
atitude do tipo "n��o me pisoteie". O comportamento de Simone era mais tranq��ilo, mais sutil, por��m infinitamente mais amea��ador. Enquanto Katarina podia sentir-se tentada a arrancar meus
olhos fora, Simone parecia ser capaz de chutar meus colh��es e
colocar uma faca na minha garganta, se eu a contrariasse.
102
Vi o primeiro sinal disso quando sa�� do terminal. Ela estaciona-
ra o Rolls em frente ao terminal ��� a arrog��ncia dos ricos. Um guar-
da de tr��nsito cheio de moral a aguardava ��� poder repreender um
motorista que estacionou ilegalmente devia ser o ponto alto da se-
mana dele. Mal come��ou a falar, e ela o agrediu verbalmente em
resposta. Eu n��o conhecia muitas g��rias de rua portuguesas, mas
captei a id��ia de que n��o era o tipo de palavreado que os guardas de
Lisboa costumavam ouvir de mulheres que dirigiam Rolls Royces.
��� Miser��vel ��� disse ao se afastar do meio-fio. ��� Gentinha
insignificante com regrinhas idem. Me lembre de n��o tentar apli-
car alguma das minhas regras em voc��. ��� Ela riu. ��� Sinto muito,
mas n��o gosto de policiais. ��� Riu novamente. ��� N��o costumo
agredi-los desse jeito. Esse a�� deve ter me lembrado algum com
quem me deparei quando garota.
Eu me perguntei que tipo de vida ela levava para ter conflitos
com policiais. E se a sua vida atual ainda propiciava esse tipo de
confronto.
��� Deve estar me achando horr��vel.
��� N��o, na verdade preciso melhorar meu vocabul��rio em
portugu��s e acabei de aprender algumas palavras novas. S�� n��o
estou bem certo quanto ao tipo de pessoa com quem devo us��-las.
Ela riu novamente. Simone ria com facilidade, livremente, sem
reserva, assim como passava rapidamente para a raiva sem limites.
Logo me senti seduzido por ela. J�� ouvi dizer que �� natural nos ho-
mens a atra����o por mulheres como Marni, das Na����es Unidas, que
instigam o homem a ca��ar, sem d��vida algum tipo de instinto pri-
mitivo aprendido pr��ximo ��s cavernas. Pode ser, mas existe um outro
tipo de mulher que monopoliza nossa aten����o, produzindo, o mes-
mo tipo de atra����o que uma mariposa sente ao bater as asas na bei-
ra de um vulc��o. As mulheres como Kathleen Turner em Corpos
Ardentes, Lana Turner em O Destino Bate �� sua Porta, Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue, e, mais atr��s, como Lorelei e as Se-reias, as femmes fatales, t��m um magnetismo animal que leva um homem �� ru��na. Alguns homens maus tamb��m possuem o magnetismo fatal e conseguem atrair para si mulheres de boa ��ndole.
103
Eu disse a mim mesmo para manter o z��per das cal��as fecha-
do. Pelo que ouvira de meu pai e de Bernie a respeito de Jo��o, ele
era valent��o ��� n��o apenas no sentido profissional, mas de uma
forma letal.
Na minha mente, eu o imaginava como um padrinho da m��fia
portuguesa. Para n��o mencionar que os portugueses eram machistas
que n��o viam mal nenhum em trepar com quem quisessem, mas se
outro homem se envolvesse com sua mulher arriscava-se a morrer.
Um marido americano estaria mais inclinado a dar um soco do que
uma facada ou um tiro em um homem que passasse dos limites. Ser
feito em pedacinhos em Lisboa e sofrer por toda a eternidade em
um t��mulo miser��vel n��o estava nos meus planos.
��� Estou surpresa por seu pai nunca t��-lo trazido a Portugal ���
comentou ela. ���Jo��o e ele tinham neg��cios juntos muito antes
de voc�� nascer.
��� Deve ter sido falta de oportunidade, nossa vida n��o foi um
mar de rosas. Minha m��e morreu quando eu tinha 8 anos, meu
pai, poucos anos mais tarde. Depois que eu nasci, ele n��o voltou a
Portugal. Minha m��e n��o tinha boa sa��de, e, pelo que sei, ele e
Jo��o trabalharam juntos durante tanto tempo que isso n��o seria
necess��rio.
��� Posso marcar um encontro seu com ela ��� disse Simone.
��� Com quem?
��� A ruiva que voc�� estava paquerando quando saiu do avi��o.
��� Tem um servi��o de encontros?
��� N��o, mas eu reparei que ela usa um crach�� da ONU. Ela e
seus companheiros est��o aqui para uma reuni��o com a Sociedade
Portuguesa de Aux��lio a Angola.
��� Conhece algu��m dessa sociedade?
��� Intimamente. Sou a presidente.
Descobrir que Simone presidia uma organiza����o voltada para
a caridade n��o foi menos surpreendente do que se ela tivesse dito
que era uma astronauta. N��o que seja contradit��rio um animal
sensual ser presidente de uma sociedade de aux��lio �� ��frica. Mas
Simone n��o parecia ser o tipo caridoso. Nem mesmo um pilar da
104
alta sociedade. Minha desconfian��a imediata foi uma liga����o en-
tre o aux��lio a Angola e os diamantes angolanos, pelo menos, por
parte do marido dela.
Ela riu da express��o no meu rosto.
��� Jo��o tem um interesse especial em Angola.
��� J�� esteve l��?
Ela torceu o nariz.
��� Uma vez. Quase morri. N��o conseguia comer ou beber e
deixei o pa��s logo que pude. Por mais informa����o que se tenha sobre
um lugar, nada se compara a conhec��-lo pessoalmente. ��� Ela
chamou a aten����o para a paisagem por onde est��vamos passando. ���
Saindo do aeroporto, s�� encontramos pr��dios de concreto e auto-
estradas, mas o centro de Lisboa �� uma linda cidade antiga. Sintra,
onde moramos, fica a menos de 30 minutos do centro, mas �� um mun-
do diferente. A cidade e seus arredores s��o considerados um dos
mais belos cen��rios na Europa. As Na����es Unidas a proclamaram
um monumento do Patrim��nio da Humanidade.
��� Voc��s t��m filhos?
��� Conhecer�� Juana mais tarde, minha filha de 15 anos. Se e
quando ela resolver aparecer em casa. ��� Simone riu mais uma vez.
��� Por que �� engra��ado?
��� Vai precisar ter cuidado.
��� Eu pare��o algu��m que se aproveitaria de uma crian��a?
��� A minha preocupa����o n��o era que voc�� se aproveitasse dela.
105
17
Muito mulher. Foi o que pensei da esposa de Jo��o, enquanto nos
distanci��vamos do aeroporto. Definitivamente, �� o que ela era.
A viagem do Aeroporto de Lisboa at�� a entrada de Sintra foi
toda pela auto-estrada e demorou cerca de 20 minutos. A poucos
quil��metros da auto-estrada, come��ava a regi��o paisag��stica que,
segundo Simone, justificou o t��tulo de Patrim��nio da Humanida-
de. Era montanhosa, e n��s a atravessamos por uma estrada estrei-
ta e cheia de curvas, passando por pequenos vilarejos com ruas de
paralelep��pedos e por um castelo, o Pal��cio Pena, que do topo de um
morro parecia estar olhando para baixo. Passamos por Sintra pro-
priamente dita e continuamos a subida por uma estrada ainda
mais estreita, quase que para um s�� carro. Passamos por outro cas-
telo e, mais acima, por um elegante hotel.
��� Pal��cio dos Sete Ases ��� disse Simone. ��� Foi moradia da
nobreza, agora �� um hotel. Estamos chegando �� casa de Jo��o, que
tamb��m �� muito agrad��vel. No s��culo XVIII, era a casa de campo
de um marqu��s.
A casa de Jo��o. Uma maneira estranha de uma esposa referir-
se ao lugar onde vive com o marido. O relacionamento deles co-
me��ava a delinear-se como o casamento de conveni��ncia que eu
imaginei logo que a vi. Um homem idoso e rico, uma jovem espo-
sa-trof��u para confort��-lo �� noite. A boa vida.
Passamos por uma cerca viva de 3 metros de altura, entramos
pelo port��o aberto e descemos por um comprido caminho de auto-
106
m��veis ladeado por ciprestes reais italianos. A casa de pedra cin-
zenta, no final do caminho, equilibrava-se em um penhasco mu-
rado. O oceano Atl��ntico ficava mais adiante e, atr��s de mim, no
topo de uma montanha, via-se o Pal��cio Pena.
Aquilo n��o cheirava a dinheiro ��� fedia a dinheiro.
Jo��o nos aguardava na ��rea da piscina elevada de onde, ao
nadar, se avistava o oceano atrav��s de uma parede de vidro.
Eu estava certo quando imaginei que ele fosse a vers��o portu-
guesa de Jack La Lanne. Jo��o tinha a pele cor de bronze, cabelo
branco sedoso e sobrancelhas brancas muito grossas. Elegante na
forma casual de se vestir, ele tinha uma complei����o delgada, e a
pele de seu rosto, quase sem rugas, era firme. A camisa de mangas
curtas expunha m��sculos rijos e volumosos. Obviamente, era al-
gu��m que cuidava da sa��de. Ele era um perfeito esp��cime de um
homem nos seus anos dourados. Exceto pela cadeira de rodas. Eu
n��o esperava por isso.
��� Recebi um tiro nas costas alguns anos atr��s, jogando car-
tas ��� disse ele ���, como Wild Bill Hickcok, o caub��i de voc��s.
��� Tinha ases e oitos? ��� perguntei, referindo-me �� m��o de
Hickcok quando foi assassinado e que por isso passou a ser consi-
derada de m�� sorte.
��� S�� um par de ases nas m��os e outro na manga. ��� Ele riu. ���
Leo fodeu voc��.
Nada como ir direto ao assunto.
O bar port��til levado para o p��tio tinha uma d��zia de garrafas
de vinho. Tomei um copo de vinho tinto enquanto ouvia e analisa-
va o velho amigo de meu pai.
Nada em Jo��o era coerente. Ele era casado com uma mulher
que tinha metade da sua idade. Com uma constitui����o f��sica mus-
culosa, apesar da idade avan��ada, Jo��o era ref��m de uma cadeira
de rodas. A casa em que vivia era uma verdadeira antig��idade,
um lugar fabuloso que j�� recepcionara reis e rainhas. A piscina ao
nosso lado, contudo, era ultramoderna, de fundo preto e decora-
da em mosaico dourado. Est��tuas de m��rmore de deuses gregos e
107
romanos enfeitavam o entorno da piscina. Grandes colunas im-
periais isolavam esse p��tio da vista do oceano.
A id��ia era fazer o p��tio parecer antigo e luxuoso. No meu
entender, era novo-rico, uma ostenta����o de mau gosto. Talvez, o
arquiteto de Jo��o tivesse participado de filmes sobre o Imp��rio
Romano. Assim, restaram algumas sobras de objetos.
Grandes sardinhas, mariscos cozidos chamados percebes e ape-
ritivos de queijo tinham sido arrumados por uma senhora que
deduzi ser a empregada. As sardinhas foram servidas ao estilo por-
tugu��s ��� eu mesmo tinha de estrip��-las. Pelo ambiente da casa,
eu esperaria caviar com champanhe. At�� o vinho foi uma surpre-
sa. Era um tinto de mesa bom e barato.
Quando chegamos, Simone beijou Jo��o. Agora, estava senta-
da em sil��ncio, enquanto ele falava, a boa esposa.
��� Fui eu quem sugeriu a Bernie que considerasse a id��ia de
entrar no neg��cio de minas de diamante.
A voz de Jo��o era baixa e suave, como um bom vinho enve-
lhecido. Era o tipo de voz que parecia massagear a gente, que nos
deixava �� vontade, pouco antes de a faca deslizar entre as nossas
costelas. Se n��o me lembrasse da desconfian��a de meu pai em
rela����o a Jo��o, provavelmente teria me enganado. Quando soube
que havia um relacionamento entre Portugal e Angola, n��o foi
dif��cil inclu��-lo na hist��ria. Marni me dissera durante o v��o que,
quando os colonizadores portugueses deixaram o pa��s em 1975,
alguns deles levaram garrafas de vinho repletas de diamantes.
Imaginei a cena: Jo��o no aeroporto de Lisboa aguardando os avi��es
chegarem, trazendo consigo dinheiro vivo e uma balan��a para pesar
os diamantes.
��� Eu n��o tinha id��ia de que Bernie acabaria enterrando toda
a sua heran��a na mina. Esperava que ele diversificasse o risco, mas
o que ele fez foi incluir Leo, o que foi um desastre. Quando Bernie
precisou de dinheiro em caixa, Leo o pressionou a vender tudo
que era dele ��� e seu.
��� Leo sabia como agir com Bernie. Levantava o ego dele ���
disse eu.
108
��� N��o �� assim que se manipula um homem? Os homens s��o
controlados pelo dinheiro ou por uma mulher. E a maioria n��o
consegue deixar de aproveitar ��� disse ele, dirigindo a Simone um
olhar significativo.
Ele estava certo quanto a Bernie ��� seu est��mulo era o dinhei-
ro. Mas n��o por ostenta����o. Diabos, ele era capaz de continuar
no apartamento alugado, mesmo que ganhasse na loteria. N��o, para
ele, aquilo era um meio de conseguir respeito e admira����o dos
outros. Raios, Bernie usava ternos de poli��ster e sapatos de couro
sint��tico desde os seus dias de jovem inexperiente. Se ele tivesse
gasto o meu dinheiro em roupas, carros e mulheres, eu at�� enten-
deria, mas n��o em um esquema maluco de mina.
��� Tenho a impress��o de que a mina deve ter sido uma arapuca
que atraiu Bernie. Leo descobriu e pulou fora. Ele �� esse tipo de pes-
soa ���um chato ���, mas sabe ganhar dinheiro. E guardar o que ganha.
Fiz o poss��vel para n��o demonstrar minha suspeita de que Jo��o
fosse o autor da arma����o.
Jo��o sacudiu a cabe��a.
��� Me explica melhor o que quis dizer quanto �� mina ter sido
uma arapuca.
��� Para dizer a verdade, eu mesmo n��o tenho muita no����o
disso, pelo menos em termos de uma mina de diamantes. Quando
eu era crian��a, vi um filme antigo em que os bandidos usavam uma
arma para atirar ouro para dentro de uma mina, a fim de dar a
entender que ela tinha dep��sitos de ouro. N��o consigo imaginar o
mesmo sendo feito com diamantes. N��o que isso fosse atrair Bernie,
de qualquer forma. Estou certo de que ele nunca viu a mina.
��� N��o daria para criar uma falsa impress��o plantando fisica-
mente diamantes na mina. Isso seria feito atrav��s de relat��rios
geol��gicos fraudulentos. E, voc�� tem raz��o, Bernie nunca viu a
mina. Ele a comprou por recomenda����o minha.
��� Legal. Ent��o eu posso agradecer por ter armado tudo para
Bernie me ferrar. �� isso que est�� me dizendo?
��� Pode culpar Bernie e Leo ��� disse Jo��o. ��� Eu n��o sabia
que a sua heran��a estava entrando no neg��cio.
109
��� Parece que a mina foi um p��ssimo investimento, por mais
que voc�� suavize essa verdade. Eu ainda sou dono da mina e,
pelo que soube, ela est�� perdendo dinheiro. Por que voc�� recomen-
dou a Bernie entrar em um neg��cio que estava comendo dinheiro?
��� N��s nunca esperamos que a mina fosse fazer dinheiro;
Bernie sabia disso quando entrou.
��� Como ��? Bernie estava investindo o meu dinheiro em uma
mina que n��o tinha probabilidade de dar lucro?
��� A id��ia era abrir uma porta para outras oportunidades.
��� Que oportunidades?
��� Suponho que voc�� saiba como a ind��stria de diamantes
mundial funciona. A maioria dos diamantes que saem da ��frica ��
controlada pela De Beers e seu sistema de sight holders. �� um clu-be privado e, para aqueles que n��o s��o membros, como n��s, s��
resta conseguir as pedras onde for poss��vel. Tive bons contatos na
��frica ao longo dos anos, especialmente em Angola, devido �� ori-
gem portuguesa do pa��s. No entanto, �� medida que as pessoas
envelheceram, morreram ou se aposentaram, e os regimes muda-
ram, a maioria das minhas fontes angolanas de suprimento secou.
Enquanto isso acontecia, contudo, um outro fen��meno tamb��m
ocorria. H�� uma preocupa����o mundial quanto aos diamantes de
conflitos...
��� Diamantes de sangue. Aqueles que sustentam os conflitos
e guerras civis no continente. ��� Marni teria se sentido orgulhosa
de mim.
��� Diamantes de sangue, diamantes de guerra, de conflitos. ���
Como quer que voc�� os batize, o neg��cio se resume na troca de
diamantes por armas. Est��o envidando esfor��os no sentido de in-
terromper o com��rcio. ��� Jo��o sacudiu a cabe��a. ��� Tamanha
ingenuidade. Como se as fac����es da guerrilha n��o fossem encon-
trar outros meios de financiar sua luta, m��todos muito mais cru��is
do que pegar uma parte da produ����o de diamantes para comprar
armas. A tentativa de interromper esse com��rcio estimulou um
boicote ��s pedras oriundas dos pa��ses onde a luta est�� sendo fi-
nanciada por elas. ��� Jo��o fez uma pausa e bebeu um gole do vi-
110
nho. ��� Como voc�� sabe, os diamantes n��o possuem impress��o
digital. Ningu��m pode identificar se um diamante veio de uma
mina em Angola, no Congo ou na Sib��ria.
��� Ouvi dizer que est��o procurando desenvolver meios de
identificar.
��� �� verdade, �� verdade, mas nunca ser�� muito preciso. Em
algumas regi��es da ��frica, a mesma erup����o vulc��nica de um bi-
lh��o de anos criou diamantes que se espalham por mais de um pa��s.
Esses diamantes ser��o identificados como tendo a mesma origem.
De qualquer maneira, o crescente boicote aos diamantes dos con-
flitos criou uma excelente oportunidade para n��s.
Percebi o "n��s" mas n��o demonstrei.
��� Os diamantes angolanos est��o na lista de boicotes? ��� Era
uma pergunta importante. Eu n��o sabia se a minha mina, que ��
um sorvedouro de dinheiro, poderia algum dia tornar-se lucrati-
va. Entretanto, chegaria a uma conclus��o ��bvia se, al��m de tudo
o mais, n��o fosse poss��vel vender os diamantes extra��dos dela.
��� N��o. Angola est�� passando por um per��odo de transi����o.
Savimbi e o governo vivem uma paz tempor��ria. Tecnicamente,
isso faz com que Angola deixe de ser uma zona de guerra.
��� Tecnicamente?
��� A paz n��o vai durar. Imagino que dure um ano, talvez dois.
Savimbi n��o �� um homem normal, �� completamente lun��tico; e o
governo tamb��m n��o �� uma representa����o leg��tima do povo. N��o
demorar�� muito para que a lua-de-mel se transforme em um di-
v��rcio violento. Eles lutam h�� d��cadas, exterminando uns aos
outros. Uma folha de papel com um acordo de paz impresso n��o
pode absorver todo o sangue que foi derramado.
��� Como Bernie e a minha mina de diamantes se encaixam
nessa bizarra confus��o de guerra civil e furor internacional pelos
diamantes de sangue?
��� Existe um processo de certifica����o de diamantes. Para
evitar o boicote, o diamante precisa ser acompanhado de um cer-
tificado garantindo que ele foi extra��do de uma mina que n��o es-
teja na lista das na����es em guerra.
111
Juntei todas as informa����es.
��� Os diamantes n��o t��m impress��o digital. Voc�� extrai os
diamantes em Serra Leoa ou algum outro lugar da lista proibida,
consegue um certificado de uma mina em Angola e pode vend��-
los no mercado aberto. Por serem maculados pela proibi����o, ��
poss��vel comprar diamantes de sangue por um pre��o bem inferior
aos outros.
��� Muito bem. ���Jo��o bateu palmas. ��� Voc�� tem a intui����o
de seu pai. Sim, compra-se os diamantes muito mais em conta.
N��o apenas por serem diamantes de conflitos. Mais importante
ainda do que o pedigree dos diamantes �� como eles s��o pagos. ��
um sistema de permuta, n��o �� pagar e levar.
��� Eles s��o trocados pelo qu��?
��� Os l��deres rebeldes costumam preferir armas a dinheiro.
Quando os mercadores lhes oferecem armas e muni����o em vez de
dinheiro, eles est��o preenchendo uma necessidade. As transa����es
n��o s��o muito diferentes dos contrabandistas que rebocavam car-
regamentos de rifles para os ��ndios durante os conflitos no Velho
Oeste, como se v�� nos filmes americanos. S�� que esses suprimen-
tos de guerra chegam em jatos de transporte, e as armas costu-
mam incluir tanques de guerra e m��sseis de longo alcance.
��� Onde os mercadores de diamantes conseguem esse tipo de
armas?
��� Assim como existe um boicote �� compra dos diamantes
de sangue dos rebeldes africanos, tamb��m h�� uma proibi����o con-
tra a venda de armas a eles. As armas s��o, digamos, itens de mer-
cado negro, muitas delas compradas de maneira il��cita na Uni��o
Sovi��tica, que passa por s��rios problemas econ��micos.
"Naturalmente, h�� uma tremenda eleva����o nos pre��os, sem
mencionar a despesa extra de transport��-las de um pa��s para ou-
tro. O que se paga de suborno �� impressionante. Um rifle cujo pre��o
seria 300 d��lares, em uma venda permitida pelo governo do lugar
em que foi fabricado, custa muito mais do que isso quando �� en-
tregue em um campo de avia����o com pista de terra, no meio de
uma floresta, em plena guerra.
112
Tomei um gole de vinho e pensei naquilo. Era um esquema
inteligente. N��o podia ser mais sujo. E provavelmente t��o lucrati-
vo quanto o tr��fico de drogas.
��� Voc�� paga muito menos pelos diamantes do que no mer-
cado aberto, e o pagamento �� feito em armas que s��o superfa-
turadas. Depois, voc�� sai dali e vende os diamantes pelo pre��o
normal de mercado. Ganha dos dois lados, extorquindo o com-
prador e o vendedor.
��� Exatamente! Agora voc�� entende por que a mina n��o pre-
cisava dar lucro?
��� Sim, e posso compreender por que Bernie n��o deixou pas-
sar essa oportunidade. Ele teria a sua pr��pria mina. N��o importava
se a produ����o de diamantes era irrelevante. A compensa����o real
seria fornecer certificados para os diamantes de sangue. Bernie passa-
ria a freq��entar o Distrito do Diamante com os bolsos cheios de
pedras, dizendo ��s pessoas que vieram da mina dele, e conseguiria
diamantes de sangue por um pre��o irris��rio, e voc�� ganharia como
intermedi��rio entre o dono da mina e os chefes dos rebeldes.
Jo��o voltou a bater palmas, e Simone soltou uma das suas ri-
sadas.
��� Era o que voc��s americanos chamariam um cen��rio de
lucro certo, n��o ��? ��� perguntou ele.
��� Sim, mas se era uma id��ia t��o brilhante, por que n��o me
conta o que deu t��o errado, a ponto de toda a minha heran��a
desaparecer, e fazer o pobre Bernie se jogar de cabe��a do alto de
uma janela?
Jo��o sacudiu a cabe��a. Sua express��o de l��stima n��o era fingida.
��� N��s poder��amos ter ganho baldes de diamantes no neg��-
cio, mas fomos derrotados por um pedacinho de chumbo que n��o
valia quase nada.
��� Como �� que ��?
��� O l��der rebelde com quem fizemos neg��cio levou um tiro
de 9 mil��metros no olho esquerdo, antes de concluirmos a transa-
����o. Pelo que sei, ela ricocheteou dentro do seu c��rebro oco por
alguns segundos, antes de ele morrer.
113
��� Ent��o, por que algu��m ia querer acabar com o esquema?
��� Essas quest��es normalmente envolvem tr��s grupos de in-
teresse ��� o mercador de diamantes, o mercador de armas e o l��-
der rebelde. Para maximizar os lucros, n��s ��� Bernie, Leo e eu ���
decidimos fornecer as armas utilizadas na transa����o. Isso signifi-
cou gastar muito dinheiro...
��� Especialmente depois que Bernie j�� aplicara milh��es em
uma mina.
��� �� verdade, e as armas e o transporte custavam outros tan-
tos milh��es. Tudo foi bem, at�� que uma patrulha do ex��rcito do
governo apareceu no nosso aeroporto no momento da troca. Hou-
ve um tiroteio, e uma bala infeliz atingiu o nosso comandante re-
belde. ��� Jo��o sacudiu a cabe��a novamente. ��� A patrulha do
governo foi afastada, mas, t��o logo o l��der caiu, os subordinados
come��aram a lutar entre si pelos diamantes e armas. Eles estacio-
naram um jipe na frente do avi��o para evitar que decolasse, en-
quanto discutiam. A briga transformou-se em luta, e o avi��o e sua
carga foram perdidos. N��s terminamos n��o recebendo nada nesse
neg��cio.
��� Isso era complicado demais para Bernie! ��� exclamei, sa-
cudindo a cabe��a em descren��a. ��� Ele n��o era m�� pessoa, nem
um imbecil. Era um bom mercador de diamantes, quando a tran-
sa����o era realizada em condi����es normais. Mas essa hist��ria de
diamantes de sangue n��o era o tipo de neg��cio que ele conhecia.
Tudo foi para o brejo, e ele se viu sem sa��da.
��� Eu lamento de verdade por voc�� ��� disse Jo��o. ��� N��o
tinha id��ia de que ele estava arriscando tanto. A perda maior foi
minha, mas eu tinha outras receitas que me mantinham. N��o per-
cebi que Bernie contava basicamente com a sua heran��a para jogar.
Eu n��o estava acreditando na encena����o de solidariedade de
Jo��o. Ele n��o era pessoa de chorar pelo sangue derramado dos
outros. Mas n��o havia vantagem em confront��-lo, at�� conhecer
todas as cartas que ele tinha nas m��os.
Toda a minha l��gica e racioc��nio foram por ��gua abaixo quan-
do meus olhos encontraram os dele. Sim, ele estava muito s��rio,
114
por��m havia um qu�� de divertimento no seu olhar. Ele estava brin-
cando comigo. Aquilo me irritou.
��� Ent��o voc�� meteu o Bernie nisso at�� o pesco��o e fodeu a
cabe��a dele at�� ele perder todo o dinheiro dele e mais o meu? ���
perguntei a Jo��o. ��� Tudo se resume nisso?
��� Bernie sabia exatamente no que estava se metendo ��� afir-
mou Jo��o. ��� Eu tamb��m sofri uma grande perda. Bernie pagou
pela mina, mas eu fiquei com a parte do le��o na compra das ar-
mas. Quando o neg��cio deu errado, perdi minha reserva, que es-
timo mais do que a pr��pria vida. Lamento que o filho do meu velho
amigo tenha sido inadvertidamente prejudicado pela situa����o. ���
Ele estendeu as m��os sobre a mesa do p��tio. ��� No entanto, os
estragos ainda podem ser desfeitos.
��� Eu ainda tenho a mina, e voc�� ainda tem um contato para
a troca de diamantes por armas. Ent��o o convite para vir a Lisboa
era isso?
Jo��o deu uma gargalhada. N��o foi a risada jocosa da mulher
dele, mas o som que um ca��ador produz quando um pensamento
engra��ado lhe ocorre, e ele est�� pronto para atirar em um veado,
no meio dos olhos.
��� Como eu disse, voc�� herdou de seu pai o dom da intui����o.
Ele sempre sabia o que eu estava pensando, antes mesmo de eu
pensar. Mas, sim, como voc�� colocou, era isso. Voc�� tem uma mina
que n��o vale nada no momento, mas que n��s podemos levar a ter
um uso valioso. �� um disfarce para a emiss��o de certificados. Eu
tenho um contato com um outro comandante que tem quilos de
diamantes e est�� precisando de armas. E tenho um mercador de ar-
mas a postos para fornecer os itens para a permuta.
��� Eu n��o tenho o dinheiro para financiar uma transa����o ���
disse eu.
��� Nem eu, pelo menos n��o desse valor. Al��m do desastre do
qual Bernie participou, tive outros reveses causados pela situa����o
de Angola. Desta vez, o mercador de armas far�� parte do neg��cio.
��� O que quer de mim? E o que ganho com isso?
115
��� Como propriet��rio da mina, pode assinar certificados para
os diamantes que conseguirmos. Eles devem ser assinados em
Angola e certificados em Angola. Bernie voaria para l�� quando
consegu��ssemos os diamantes.
��� �� tudo o que devo fazer, assinar uma folha de papel?
��� Basicamente, sim.
��� Eu n��o sou Bernie. Quero deixar bem claro. N��o vou aca-
bar com a minha pr��pria vida se me der mal no neg��cio.
Jo��o dirigiu-me um sorriso de ave de rapina, sem nenhum
humor.
��� Seu pai n��o era homem de agir com a for��a. �� uma das
coisas que eu admirava nele. Ele fazia tudo com o c��rebro. Espero
que o filho tenha herdado esse bom senso.
��� Vamos deixar que meu pai descanse em paz. Conte-me
exatamente em que consiste a transa����o e qual �� a minha partici-
pa����o.
Jo��o encheu nossos copos com mais vinho tinto enquanto fa-
lava.
��� Como voc�� deve imaginar, no mundo h�� mais de um ne-
gociante querendo fornecer armas em troca de diamantes. Como
�� um neg��cio competitivo ��� ele deu mais um sorriso de ave de
rapina ���, um neg��cio competitivo e sujo, a discri����o �� essencial.
N��o �� preciso dizer que o militar que deseja as armas est�� em
Angola.
��� Isso n��o faz nenhum sentido. Os diamantes angolanos
podem receber certificados. Por que todo o segredo?
��� Digamos que se trata de uma situa����o de delicadas pro-
por����es transnacionais. A pessoa que vai receber as armas em
Angola quer sigilo. Como disse, h�� um acordo de paz tempor��rio
entre os rebeldes e o governo. Nem todo mundo est�� feliz com a
situa����o. A qualidade dos diamantes que ser��o usados como pa-
gamento n��o os vincula a qualquer mina em Angola ��� ou em
qualquer outro lugar, por sinal.
Aquilo disse muito e ao mesmo tempo nada. Esclareceu que
quem estaria trocando os diamantes por armas seria Savimbi ou
116
algu��m misterioso. Independente de quem fosse, essa pessoa que-
ria esconder a transa����o do l��der rebelde e do governo.
Jo��o continuou.
��� Logo que chegar em Angola, o comprador das armas en-
trar�� em contato com voc��. Ser��o feitos arranjos para a troca de
diamantes por armas. Voc�� ser�� informado sobre o que foi combi-
nado quando eles tiverem finalizado.
��� �� muito perigoso fazer isso em Angola?
��� N��o mais do que acenar com uma bandeira de Israel em
Bagd�� ou em Teer�� durante o Ramad��.
��� Tenho uma id��ia melhor. Eu vendo a mina para voc��. Voc��
vai para Angola, faz os arranjos e me manda um cheque pela mi-
nha parte.
Ele suspirou e olhou para a esposa.
��� Por que ser�� que, agora que estou velho e cansado, con-
finado a esta cadeira, jogam tanta merda na porta da minha casa? ���
Ele pigarreou. ��� Infelizmente, meu rapaz, sou persona non grata
naquele pa��s da ��frica. Mas, se n��o quiser se envolver, �� um direi-
to seu. N��o vai ser dif��cil encontrar um dono de mina batalhando
em Angola disposto a participar pelos 5 milh��es de d��lares que
voc�� ganharia.
Tomei um gole do vinho e n��o disse uma palavra. Ele tinha
chegado ao meu pre��o. N��o sei por que valor as almas se rendiam
ao diabo, mas 5 milh��es me tornariam rico e irrelevante outra vez.
N��o precisei dizer nada. Jo��o tinha passado, pelo menos, a
��ltima metade de s��culo negociando acordos com outros merca-
dores de diamantes, uma ra��a cuja reputa����o de avarenta s�� era
superada pelos mercadores de tapetes persas.
��� Vamos brindar �� nossa nova sociedade ��� disse Jo��o.
Simone riu.
��� Voc�� ri nos enterros, tamb��m? ��� perguntei.
��� S�� nos das outras pessoas.
Pedi a Jo��o que explicasse por que ele n��o podia voltar a Angola.
��� Na ��ltima vez que estive l��, joguei p��quer com um l��der re-
belde. Levei um tiro pelas costas de algu��m que queria o lugar dele.
117
E, se a minha condi����o f��sica n��o me impedisse de viajar para aquele
pa��s, minha posi����o social o faria. Depois de um certo tempo no ne-
g��cio de diamantes, tendemos a fazer inimigos. O inimigo que se faz
na ��frica equatorial �� do tipo que ca��a voc�� com foguete anti tanque.
"Mas ��� ele estendeu as m��os sobre a mesa ��� se voc�� tem
medo de ir, n��o o culpo. Posso arranjar para que assine a venda da
mina para outra pessoa, talvez o pr��prio administrador. E voc��
ainda receber�� uma percentagem, talvez 10 mil d��lares por m��s.
Dez mil por m��s era uma quantia irris��ria, sequer pagaria a
minha conta de champanhe.
��� Cinco milh��es em uma transa����o, �� o que voc�� est�� di-
zendo?
��� Cerca de 2 milh��es nesta transa����o. O resto ser�� ganho
ao longo de seis ou oito meses com outras transa����es. Uma vez
conclu��da esta, teremos uma clientela fixa �� nossa porta. Pode-
mos nos considerar... s��cios?
��� Quem �� o terceiro membro do time, o tal revendedor de
armas?
��� Um homem que �� conhecido como o Bey.
��� O nome parece turco. Ele �� argelino?
��� �� de uma das rep��blicas sovi��ticas mu��ulmanas, creio que
o Turquist��o, mas agora vive em Istambul. Foi um coronel do cor-
po militar intendente sovi��tico. Deixou a Uni��o Sovi��tica a um
passo do pelot��o de fuzilamento, �� o que ouvi dizer. Ao que pare-
ce, ele entrou no mercado negro de armas ainda como membro
do corpo militar. J�� ouviu a express��o "rei do canh��o"?
��� N��o.
��� �� uma maneira antiga de descrever o mercador da morte,
um homem que vende armas para as partes combatentes. E que ��
conhecido por abastecer os conflitos para estimular neg��cios, ou
mesmo engendrar o in��cio das hostilidades. Acredito que o fabri-
cante alem��o de material b��lico, Krupp, foi o primeiro instigador
de guerra para quem se usou esta express��o.
"Bey �� um rei do canh��o moderno. N��o fabrica armas, claro. Com-
pra armas roubadas. Sem d��vida, ele mesmo inicia muitos dos rou-
118
bos. E, como aqueles da sua laia, n��o importa para quem as vende.
Ouvi dizer que fornece armas para os dois lados no conflito entre cris-
t��os e mu��ulmanos que transformou em rumas grande parte de Bei-
rute. Vende os ingredientes para bombas suicidas para o Hezbollah e
tecnologia roubada de m��ssil teleguiado para os israelenses.
��� Um grande cara para se conhecer. Se voc�� quiser iniciar
uma guerra.
��� Sim, ou se quiser trocar armas por diamantes. Bey tem as
armas, voc�� os certificados, eu tenho a pessoa que pagar�� com
diamantes. Como dizem voc��s, americanos, todas as bases est��o
cobertas.
Tive a sensa����o de que havia mais bases roubadas no esque-
ma do que Jo��o deu a entender. E eu n��o estava comprando total-
mente suas confiss��es contritas sobre "o pobre Bernie" e os meus milh��es perdidos. Contudo, neste momento, Jo��o tinha o ��nico
esquema na cidade que me oferecia 5 milh��es de d��lares.
Saudei-o com o vinho e sorri para ele e Simone.
��� Engra��ado, este ser�� o meu primeiro trabalho de verdade.
Parece que vai ser uma verdadeira devasta����o...
Simone riu, mas Jo��o n��o soube o que pensar da observa����o.
Ouvimos vozes de jovens, e v��rias adolescentes apareceram
no p��tio. Elas usavam biqu��nis de fio-dental sobre a pele nua. N��o
foi dif��cil concluir qual era a filha deles, Juana. Era sensual como
Simone. Mais jovem e mais magra, tinha aquele ar subnutrido de
Katarina e de muitas outras modelos de revistas de moda.
��� Jonny, venha c��, quero que conhe��a algu��m ��� disse Si-
mone.
A garota aproximou-se lentamente, cheia de vol��pia e arro-
g��ncia nos seus 15 anos. Sem d��vida, tamb��m tinha a boca suja
de uma garota moderna da sua idade.
��� Esse �� Win Liberte ��� disse Jo��o. ��� J�� me ouviu falar nele.
Seu pai era um velho amigo.
Ela me examinou de cima a baixo. Indelicada.
��� Voc�� �� mais bonito nas revistas ��� disse ela, em ingl��s. ���
Mas acho que eles retocam as fotos.
119
Respondi �� altura.
��� Estou surpreso de voc�� ler revistas ��� retruquei. ��� Mas,
claro, elas t��m figuras grandes e poucas palavras.
��� Fo...
A risada de Simone interrompeu-a.
��� Voc�� mereceu, com esse seu g��nio detest��vel. Agora, vol-
te para os seus amigos.
Jonny murmurou algo sobre um caralho e dirigiu-me um olhar
que me fez entender que ela ainda n��o havia terminado comigo.
Tive de admitir, contudo, que uma explos��o de desejo tomou
conta de mim quando ela se afastou, e meus olhos se demoraram
na sua bunda macia como pele de beb��.
��� Tenho uma id��ia melhor ��� disse a Jo��o quando a filha dele
j�� n��o podia ouvir. ��� Vamos enviar ela para negociar com a guer-
ra em Angola.
Jo��o resmungou.
��� Jonny roubaria os diamantes e os venderia em troca de um
vestido novo.
��� Ela deveria ser mais bem-educada, mas meu marido a mima
demais.
��� A m��e, na idade dela, era bem mais indisciplinada e louca���
refutou Jo��o.
Observa����o interessante. Com a diferen��a de idade deles, me
pergunto onde ele encontrou a esposa. No p��tio de alguma escola?
120
18
Simone conduziu-me a um quarto luxuosamente decorado, com
vista para o mar. Eu n��o estaria melhor se tivesse me hospedado
no Palace Hotel que ficava pr��ximo, na mesma rua.
��� H�� um minibar para se tiver sede e uma campainha na mesa
ao lado da poltrona para chamar os empregados. Eles o suprir��o
com o que precisar. Queremos que se sinta em casa.
Os empregados n��o podiam suprir-me com uma hora de tre-
pada com a patroa deles, mas, polidamente, n��o toquei no assunto.
Simone parou na porta.
��� Quer que eu arranje um jantar com ela?
��� Com a sua filha? Acho que �� um pouco jovem...
��� Com a mulher do aeroporto.
��� Eu agradeceria se me conseguisse o telefone dela.
��� Que tal se eu der um jeito de ela pensar que vai encontrar
um importante colaborador para a causa do sofrimento mundial?
Dei uma risada.
��� Ela j�� pensa assim, mas entendi o que voc�� quis dizer. N��o
acredita que ela aceite sair comigo se eu telefonar.
��� E voc��, o que acha?
��� �� f��cil dizer n��o ao telefone.
��� Sim, e eu a vi no aeroporto. Parece uma pessoa dedicada,
que luta pela verdade e pela justi��a. De modo algum faz o tipo que
perde tempo com um homem que s�� pensa em mulheres e carros.
121
��� Voc�� �� esperta, Simone. Arranje esse encontro para mim.
��� Ela n��o �� como n��s, n��o ��? ��� comentou Simone ao sair,
dirigindo-me um olhar significativo.
Fiquei na janela pensando naquelas palavras. Talvez eu n��o
lutasse pelos povos sofridos do mundo e n��o servisse peru a b��ba-
dos no Bowery no dia de A����o de Gra��as, mas n��o me considera-
va... ��� e, de repente, me dei conta. Que diabo, eu acabara de
conversar sobre uma transa����o pela qual receberia uma boa grana ���
5 milh��es de d��lares, para ser exato ��� fornecendo armas que
matariam pessoas. O neg��cio era baseado em assassinato, imorali-
dade e ilegalidade. Tudo por um lucro indecente.
Eu n��o era melhor que Jo��o. E, provavelmente, tinha menos
desculpas do que ele para estar envolvido com bandidos em ativi-
dades perversas. Segundo meu pai, Jo��o precisou lutar muito para
sair das ruas, superando dificuldades relativas �� pobreza e aos pre-
conceitos contra sua heran��a mulata. Simone tamb��m n��o pare-
cia ter nascido em ber��o de ouro. J�� no meu caso, as ��nicas
desculpas para querer fazer o mal eram a minha pr��pria estupidez
e pregui��a que me levaram a negligenciar as finan��as.
Um outro aspecto na observa����o de Simone me calou fundo,
e eu precisava meditar sobre o assunto.
Eu iria mesmo fazer um acordo com o diabo? Participar de ile-
galidades e imoralidades em troca de 5 milh��es de d��lares? Reali-
zar atos que sustentariam uma guerra?
Amigo, eu disse a mim mesmo, a luta n��o �� sua, n��o �� sua obriga����o salvar o mundo.
A pobreza e a mis��ria da ��frica e da ��sia n��o foram criadas
por mim. Eu sabia que o imperialismo ocidental podia ser respon-
sabilizado por um pouco de tudo isso, mas, na maior parte, o Ter-
ceiro Mundo tinha feito sua pr��pria cama. Minha tarefa era fazer
dinheiro. Se as pessoas usavam o vil metal para ferir-se uns aos
outros, n��o era culpa minha. Al��m do mais, se n��o fosse eu a fazer
aquilo, outra pessoa assumiria o meu lugar.
Minha consci��ncia tranq��ilizou-se, e comecei a desfazei as
malas. Ouvi algu��m �� porta e me virei. Simone sa��ra sem fech��-la.
122
Era Jonny com uma de suas amigas de fio-dental.
Jonny beijou a amiga na boca, abaixou o reduzido suti�� do
biqu��ni da garota e massageou-lhe os seios, sorrindo para mim.
��� Quer trepar?
Sorri e me aproximei.
��� �� melhor crescerem um pouco mais.
Bati a porta. N��o era nenhum tolo. Ou talvez fosse.
Precisava de um banho frio.
123
19
L I S B O A . . . VINTE ANOS ATR��S
Jo��o entrou na sala fria e escura do clube. Era sua sala predileta
na casa, pois lembrava-lhe a eleg��ncia da sala de jantar que um
dia vira em um velho e suntuoso navio ��� o qual depois fora trans-
formado em sucata e enviado para o Jap��o para transformar-se em
abridores de lata e carros. Assim como as outras depend��ncias do
clube, as paredes e o piso eram de madeira dura, mogno e teca. O
teto era enfeitado com discretos toques dourados, e as paredes com
tiras de bronze polido. Enfeitavam a sala palmeiras, samambaias
imensas e objetos de arte dos antigos imp��rios coloniais portugue-
ses na Africa, ��ndia e China.
Ele nunca entrava no clube Pal��cio do Mar sem relembrar sua
escalada na vida. Transformara-se em um solteir��o requintado tido
por banqueiros e armadores como um bom partido para suas fi-
lhas. Contudo, nem toda a sociedade respeit��vel de Lisboa enca-
rava-o assim. Quando sua inscri����o para associar-se ao clube foi
examinada, muitos objetaram. A origem social era nebulosa; os
neg��cios financeiros, muitas vezes, question��veis. E havia rumo-
res a seu respeito, alguns dos quais o vinculavam ao crime organi-
zado que controlava o v��cio, o jogo e as drogas, do Porto a Faro.
Por fim, n��o foi o seu car��ter ��� ou a falta dele ��� que decidiu
a quest��o. Um bom suborno proporcionou-lhe o ostentoso apa-
124
drinhamento de um dos s��cios: o ministro das finan��as do pa��s. O
homem que mais vociferava sobre a origem suspeita de Jo��o mu-
dou de opini��o quando recebeu fotos da filha fazendo sexo com
um dos integrantes do time de futebol da faculdade que ela fre-
q��entava ��� algu��m do time feminino.
Na verdade, a inten����o de Jo��o n��o era socializar com os
membros do clube. Um aceno de cabe��a e um sorriso ao entrar,
uma sauda����o com seu copo de u��sque ou charuto quando algu��m
simp��tico passava por ele eram, mais ou menos, os limites da sua
intimidade com a sociedade lisboeta.
Depois que se tornou s��cio do clube, Jo��o recebeu de outros
membros v��rios convites para festas e reuni��es sociais. Sabia que,
na verdade, o anfitri��o desejava exibi-lo no evento e gabar-se de
ser amigo de algu��m que, para eles, era um padrinho do crime em
Portugal. Jo��o declinava de todos os convites. E sempre evitava
rela����es comerciais com outros s��cios, quer em termos do seu pr��-
prio neg��cio de diamantes, quer investindo nos esquemas deles.
Quando um s��cio o convidava a participar de um investimento,
sua atitude era educada e evasiva. O mesmo acontecia com o
neg��cio de pedras. Quando eles o interrogavam sobre diamantes,
Jo��o os encaminhava a um mercador que trabalhava secretamente
para ele.
A raz��o pela qual Jo��o quis ser membro do clube n��o tinha
nada a ver com escalada social. Ele n��o ligava para essas pessoas.
Sua opini��o sobre elas era bastante desfavor��vel. Quase todos
haviam herdado a posi����o social e financeira que ocupavam. Por-
tugal era um pa��s velho, com classes sociais definidas e estanques.
Havia pouca mobilidade vertical. As pessoas mantinham-se na
mesma classe social em que tinham nascido.
Diante dos outros, cuja posi����o social baseava-se nas pr��prias
fam��lias, Jo��o tinha mais que a arrog��ncia de um homem que se
fizera sozinho ��� ele tinha a vaidade desmedida de um homem
que roubara e matara.
Mas ser membro do clube foi importante para ele. Trouxe a
satisfa����o pessoal de ter alcan��ado um objetivo a que se determi-
125
nara ainda crian��a. Como menino de rua, aos 12 anos de idade,
trabalhava engraxando sapatos pr��ximo �� entrada do clube. Via
os homens chegarem com motoristas, saltarem dos carros nos seus
ternos caros bem-talhados e pisarem na cal��ada com sapatos fei-
tos �� m��o. Mesmo crian��a, Jo��o apreciava roupas bonitas ��� ad-
mirava o bem-vestir nos homens e nas mulheres.
Sua curiosidade em ver o interior do clube, o santu��rio exclu-
sivo de poucos privilegiados, levou-o a entrar um dia, quando o
porteiro se afastou para levar a mala de um dos s��cios. Ele esticou
o pesco��o e sentiu o aroma do verniz usado nas paredes de mog-
no. Escondido, entrou pelo vest��bulo, desceu o corredor e esprei-
tou um sal��o onde homens sentados em torno de mesas fumavam
charutos finos e bebiam u��sque envelhecido.
O porteiro expulsou-o. E, quando se viu na rua, Jo��o jurou
para si mesmo que um dia entraria no clube e o porteiro o reve-
renciaria. No final, ele subornou e intimidou um dos s��cios para
satisfazer seu intento. A medida que foi envelhecendo, no entan-
to, o t��tulo passou a significar cada vez menos para ele.
Francamente, o lugar o entediava demais. Agora vinha pou-
co, quase sempre para ficar na sala de jantar e no sal��o, e satisfa-
zer a exig��ncia feita a cada s��cio de passar um m��nimo de tempo
no clube.
A Sra. T��vora o aguardava em uma das mesas.
��� Senhora ��� cumprimentou-a, beijando-lhe a m��o antes de
sentar.
��� Jo��o, voc�� �� t��o galante. Ficaria surpreso se soubesse como
s��o poucos os homens que sabem como tratar uma mulher no
mundo de hoje.
��� Eu n��o ficaria. Mas, talvez, a senhora, se surpreendesse em
saber como s��o poucas as mulheres neste mundo que sabem com-
portar-se como uma dama.
��� Assim como voc��, n��o estou surpresa, e sim consternada.
Conversaram um pouco como dois velhos amigos, a graciosa
senhora, rica e de origem nobre, e o bem-sucedido homem de
neg��cios. Evidentemente, ambas as impress��es eram err��neas. A
126
Sra. T��vora era a maior cafetina de Lisboa ��� e explorava mulhe-
res e homens. Fosse uma garota de pele clara para um ��rabe do
petr��leo, ou um jovem adolescente de tra��os fr��geis para um ho-
mem que preferia entrar pela porta dos fundos, a senhora conse-
guia. Mas tinha o seu pre��o.
Quando Jo��o pediu que ela o encontrasse no clube, ocorreu-
lhe que algum s��cio j�� pudesse ter usado seus servi��os e, portanto,
fosse reconhec��-la. Essa id��ia divertiu-o por dois motivos: eles
poderiam supor que as atividades escandalosas da senhora faziam
parte da sua organiza����o. E teriam receio que ela os reconhecesse.
Antes do almo��o, tomaram um copo de vinho e conversaram
sobre assuntos gerais, j�� que tinham poucos interesses em comum.
Jo��o conhecera a senhora inicialmente como sua cliente de dia-
mantes. Com o passar dos anos, de vez em quando, usava seus
servi��os de cafetina para conseguir mulheres para si.
Se algu��m olhasse para Jo��o, n��o entenderia por que raz��o ele
pagaria a uma madame���nome elegante para uma cafetina ���para
fornecer-lhe mulheres. Em boa forma f��sica, a meia-idade transfor-
mara-o em um homem atraente, o rosto jovem contrastando com o
cabelo prematuramente branco, nem um pouco grisalho ou com
mechas. Grosso e volumoso, o cabelo era parte do segredo de sua
apar��ncia jovial e ativa. Na juventude, a pele escura e o nariz leve-
mente achatado eram marcas da origem mulata e um estigma social.
Mas a idade e o dinheiro foram generosos com ele. Enquanto ou-
tros homens ganham flacidez e afinam nos ombros e bra��os, seus
genes coroaram a constitui����o musculosa, pequena por��m forte, com
aquela bela massa de cabelo. E o dinheiro permitia-lhe ser bem tra-
tado e bem vestido. Os refinamentos, contudo, eram todos aparen-
tes ���Jo��o ainda trazia consigo duas facas.
O problema era conseguir mulheres que satisfizessem sua ne-
cessidade espec��fica. Cada um dos clientes da Sra. T��vora tinha
as pr��prias exig��ncias. No caso de Jo��o, as mulheres comuns o
entediavam. Ele n��o tinha tempo para as delicadezas dos roman-
ces e das trepadas, assim como n��o tinha tempo para as quest��es
rotineiras do trabalho. Usava seu instinto nos neg��cios que ofere-
127
ciam lucros raramente disponibilizados para as empresas legais ���
e apreciava o perigo e a ansiedade do mundo sombrio em que os
neg��cios, ��s vezes, eram feitos �� custa de sangue. Da mesma for-
ma, sentia-se atra��do por mulheres diferentes, aquelas que gosta-
vam de brincar com o perigo.
Nenhuma delas, contudo, durava muito tempo. Algumas o
deixavam quando ele se descontrolava e as surrava. Outras eram
pegas roubando. A maioria das mulheres simplesmente o entediava
depois da primeira conquista.
��� Tenho uma garota muito especial ��� disse a senhora, de-
pois de feitas as cortesias iniciais.
��� Se de algum modo for parecida com voc��, deve ser extra-
ordin��ria.
Ela sorriu, obviamente lisonjeada, apesar de saber que, na sua
idade, era um elogio vazio.
��� A mo��a chegou a mim proveniente de um reformatorio
no norte do pa��s. Tenho uma pessoa nesse lugar que sabe do meu
interesse em ajudar mo��as problem��ticas.
Jo��o precisou tomar um gole do vinho para reprimir a risada.
A tal pessoa, sem d��vida, era uma carcereira que procurava a se-
nhora quando algu��m que correspondia ��s exig��ncias da cafetina
era presa.
��� O que a torna especial? H�� muitas mulheres bonitas em
Lisboa, mais do que o tempo de que disponho para lhes dedicar.
��� Ela �� atraente, se bem que eu n��o a definiria como bonita.
E o corpo, mesmo na flor da juventude, �� de formas avantajadas.
Tem raz��o, um homem com a sua apar��ncia e posi����o certamente
pode escolher suas mulheres. Mas quer saber o que a torna espe-
cial? J�� assistiu a um concurso de beleza? Quando vejo todas aque-
las belas mulheres enfileiradas, lembro-me de quando freq��entava
exposi����es de cavalos, e os criadores enfileiravam os puros-san-
gues. Enquanto percorre a fila com o olhar, ��s vezes a caracter��sti-
ca especial de um cavalo faz com que se fixe nele. Alguma coisa, a
express��o, o porte, o jeito de pisar com a pata faz com que voc��
tenha a certeza de estar diante de um campe��o. �� dessa forma que
128
vejo essa jovem ��� se ela participasse de um concurso de beleza,
talvez n��o ganhasse o pr��mio, mas chamaria a sua aten����o com
toda a certeza.
��� Qual �� essa qualidade especial? ��� perguntou Jo��o.
��� N��o sei apontar exatamente, sou apenas uma pobre mu-
lher que procura aproximar pessoas solit��rias. Mas se tivesse que
qualificar, diria que ela tem fibra. Talvez at�� fogo. Mas isso �� algo que s�� voc�� poder�� decidir.
A senhora deu a Jo��o uma chave de hotel oculta em um guar-
danapo.
��� Coloquei-a em um quarto do Hotel Alfama que j�� usamos
anteriormente. �� um lugar pequeno e discreto com o qual j�� tra-
balhei muitas vezes. Ela o aguarda.
129
20
Jo��o saltou do t��xi em frente ao hotel. Geralmente, dirigia o pr��-
prio carro mas, sempre que ia ao clube, gostava de chegar na sua
limusine Mercedes. A desculpa era a dificuldade de estacionar. Na
verdade, o motivo era o seu prazer em chegar de carro com moto-
rista, como um dia se determinara a fazer.
Ele dispensou o motorista e pegou um t��xi para a regi��o da
Alfama���n��o era recomend��vel ostentar riqueza nesse tipo de lugar.
A Alfama, com seu antigo bairro mouro, era a parte velha da cida-
de, um emaranhado de ruas estreitas, becos e pequenas pra��as que
ficavam na encosta de um morro encimado pelo castelo de S��o Jor-
ge. Jo��o crescera naquele bairro. Sua m��e trabalhava nas tavernas
como cantora de fado e levava uma vida t��o melanc��lica quanto as
can����es que interpretava. Foi em um desses becos que cometeu seu
primeiro crime, aos 11 anos de idade, quebrando uma garrafa e per-
furando um homem que arrastara sua m��e para ali a fim de recupe-
rar um dinheiro que alegava que ela lhe furtara.
Jo��o passou pela recep����o do hotel e encaminhou-se para o
elevador. O solit��rio recepcionista cumprimentou-o com um ace-
no. Ele saiu no terceiro andar e parou �� porta do quarto. Era um
homem cauteloso. Virou a chave na fechadura e escancarou a porta
para certificar-se de que n��o havia ningu��m escondido ali atr��s.
A garota estava na cama e lia uma revista. Deixou-a de lado e
levantou-se ao v��-lo entrar. Ele inspecionou o banheiro, e s�� en-
t��o olhou para ela.
130
A Sra. T��vora estava certa ��� era uma mo��a bonita, com
potencial para ser uma mulher atraente, mas jovem demais para
competir em sensualidade com mulheres mais velhas e mais bem
providas. Era aquele "qu��" mencionado pela senhora que a torna-
va especial. Desafio, foi a primeira impress��o de Jo��o. Uma jovem
mulher machucada pela vida, segundo a senhora, e que mais de
uma vez fora estuprada quando vivia nas ruas. Mas, como o luta-
dor de box ou o atleta campe��o, batalhara e se reerguera.
Jo��o examinou-a de cima a baixo. Ela levantou o vestido, deu
uma volta, abaixou as calcinhas e ergueu a bunda para ele.
��� Quer examinar isso?
��� J�� vi bundas melhores ��� retrucou ele.
Ela girou, puxou para baixo o decote el��stico da blusa e exp��s
um dos seios.
��� Quer chupar? Pode tirar a dentadura e mordiscar.
Ele deu-lhe um tapa. O golpe pegou-a totalmente de surpre-
sa. Depois, deu uma bofetada que atingiu sua cabe��a acima da
orelha, na altura do couro cabeludo para que a contus��o n��o apa-
recesse. A mulher voou de encontro �� parede, batendo de lado.
Ela voltou para cima dele pronta para bater, mas Jo��o segu-
rou-a e jogou-a de costas contra a parede, pressionando sua gar-
ganta com o antebra��o.
Com a m��o que estava livre, ele levantou uma faca. Mostrou
�� mulher a l��mina, virando-a para que a luz batesse no metal e
refletisse nos olhos dela.
��� Meu nome �� Jo��o. Sou o pior canalha que voc�� j�� conhe-
ceu. Vai ser minha mulher. Quando a quiser, estalarei os dedos, e
voc�� vir��. Se eu quiser foder voc��, vai se curvar. Entendeu?
Ela cuspiu no rosto dele.
Ele pressionou o cotovelo mais forte contra a garganta e sen-
tiu sua cartilagem fr��gil ceder sob a press��o. O rosto da mulher
ficou vermelho, e ela come��ou a arfar com falta de ar.
��� Gosto de mulheres de fibra. Mas precisa entender que a
minha paci��ncia tem limites. ��� Ele aliviou um pouco a press��o
na garganta dela e tocou o mamilo do seio exposto com a ponta
afiada da faca. E viu que ela teve medo.
131
Depois, a beijou. Ela aceitou seus l��bios sem corresponder.
A faca moveu-se lentamente na dire����o do seio dela. Jo��o
pressionou e fez um talho de uns 2 cent��metros. O sangue escor-
reu pela pele alva.
��� �� a minha marca. De agora em diante, voc�� �� minha mu-
lher. A n��o ser que eu queira ced��-la a outra pessoa.
Ele se afastou e guardou a faca. Em seguida, sentou-se na bei-
ra da cama para tirar os sapatos.
��� Agora, vou foder voc��.
Jo��o viu o que ia acontecer, mas ela era jovem e r��pida demais
para ele. A borda afiada de um cinzeiro pegou-o no lado do pes-
co��o e fez um corte.
��� Essa �� a minha marca ��� disse Simone.
132
2 1
LISBOA, 1991
Simone acertou a data do jantar com Marni para a noite seguinte.
O restaurante onde eu deveria encontr��-la era perto do Rossio, a
pra��a principal no centro de Lisboa. Recusei o oferecimento do
carro com motorista, e os meus anfitri��es me cederam um Mer-
cedes. Estacionei o carro em uma garagem no subsolo, pr��ximo ��
extremidade oeste da pra��a, e encaminhei-me para o restaurante
que ficava no lado oposto. Possivelmente, teria conseguido esta-
cionar mais perto, mas eu queria atravessar a pra��a a p�� ��� ela
trazia um pouco da minha hist��ria familiar. Foi nela que meus pais
se conheceram e se apaixonaram, �� primeira vista.
Sorri pensando no encontro deles, quando ele a viu em um
caf�� de cal��ada, e os olhos dela encontraram os dele. Ter�� aconte-
cido o que Hollywood chama de "encontro perfeito"? Quando os
olhares se encontraram, ser�� que o tempo parou, todo o movimento
da rua paralisou, a m��sica e as vozes, aos poucos, desapareceram?
Ao passar pela enorme fonte iluminada no meio da pra��a,
decidi que foi exatamente isso o que aconteceu com os meu pais.
Aquela primeira vez em que se viram foi um momento m��gico.
Quando entrei no restaurante, Marni aguardava na recep����o.
Estava de costas para mim, admirando o quadro de um rei de al-
gum tempo muito distante. Aproximei-me em sil��ncio.
133
��� Ol��, fala ingl��s? ��� perguntei em portugu��s.
Ela me fitou boquiaberta. Em seguida, fechou a boca, e as ma����s
de seu rosto adotaram uma cor vermelha. Ela percebeu que fora
enganada e ficou sem saber se deveria entrar no jogo ou dar nos
calcanhares e ir embora.
��� Non. Parlez-vous fran��ais? ��� perguntou ela.
��� Oui, eu falo franc��s. Ali��s, tenho parentes franceses, mas
fiquemos com o ingl��s, �� muito mais f��cil.
��� Marquei um encontro com um empres��rio muito impor-
tante de Lisboa que poder�� ajudar o programa de assist��ncia co-
munit��ria. Estou muito irritada com...
��� Mas n��o haver�� nenhum encontro; forcei Simone a mar-
car este jantar. Contei que tinha me apaixonado perdidamente por
voc�� no avi��o e que cortaria os pulsos se n��o conseguisse v��-la de
novo. Ela salvou a minha vida.
��� Se eu puder escolher, prefiro que voc�� corte os pulsos a ter
que jantar na sua companhia.
Agarrei seus dois bra��os e puxei-a para junto de mim.
��� Podemos ser civilizados e adultos, ou devo embara����-la
neste restaurante acusando-a, em voz alta, de me fazer propostas
obscenas? O que prefere?
��� Voc�� �� incorrig��vel. O que entende por sermos "civiliza-
dos e adultos"?
��� N��s jantarmos, fazermos amor, tomarmos caf��-da-manh��,
fazermos amor. E por a�� vai.
��� Voc�� s�� tem uma coisa na cabe��a.
��� N��o �� verdade. ��s vezes, penso em outras coisas emocio-
nantes, al��m de fazer amor com uma linda mulher.
Ela riu.
��� Est�� bem, o elogio pelo menos dar�� a voc�� um jantar. Des-
de os meus 2 anos de idade ningu��m diz que sou bonita. Mas ser��
por minha conta. Assim voc�� n��o se sentir�� com direito �� sobre-
mesa por ter pago um jantar caro para uma garota.
��� Neg��cio fechado.
J�� est��vamos sentados, quando ela falou:
134
��� Me explica uma coisa. Por que se deu ao trabalho de me
perseguir? N��o sou bonita, nem sensual. Sou uma professora-
administradora muito chata e prestes a iniciar um trabalho de cam-
po por uma causa humanit��ria. Voc�� pode ter mulheres atraentes
que chamar��o a aten����o se entrarem em um restaurante ao seu
lado. E ent��o, Win, o que ��, ser�� que o meu fora no avi��o foi o
primeiro da sua vida inteira? Ficou traumatizado pelo fato de uma
mulher n��o pular para a sua cama no instante em que o conhece?
Ou voc�� �� um masoquista?
Pensei seriamente na pergunta.
��� Sabe no que eu acredito? ��� perguntei.
��� Me conte.
��� Em nada. Eu realmente n��o acredito em nada. Fui criado
em duas religi��es, e o que aprendi nas duas de mais significativo
foi a vaga amea��a de que, se eu n��o for bom, Deus me punir��. N��o
consigo ter nenhum entusiasmo por causas sociais. ��� Balancei a
cabe��a. ���N��o dou a m��nima para pol��tica, religi��o, princ��pios hu-
manit��rios, educa����o sexual, indicadores econ��micos, aborto, ter-
remotos, desastres de avi��o, ou qualquer outra coisa que n��o me
afete pessoalmente. Talvez seja isso que me intrigue a seu respeito
��� al��m do meu desejo masoquista de querer ser pisado pelo salto
do seu sapato. Tenho curiosidade sobre pessoas como voc��, que
acreditam tanto em uma causa que devotam a vida a ela.
��� Acredita no amor?
��� Amei meus pais, e ambos se foram. Nunca mais amei nin-
gu��m. Se a sua pr��xima pergunta �� se tenho medo de amar, guar-
de-a para voc��. Eu n��o sei, vou ter que lidar com o amor quando
ele surgir.
��� E os seus brinquedos?
��� Eles v��m e v��o com muita facilidade. Agora que j�� ouviu
a minha confiss��o, conte-me sobre voc��. Por que decidiu ser uma
intelectual em vez de m��dica, advogada, ou uma chefe ��ndia?
��� Porque est�� sendo t��o condescendente comigo? Primeiro,
sou bonita, depois sou inteligente.
135
��� Claro, �� o passo n��mero um no livro que li sobre como
seduzir intelectuais.
��� �� isso que sou? Uma intelectual? N��o creio que o r��tulo
se adeque a mim, ele parece mais ligado �� matem��tica e �� qu��mica
do que ��s ci��ncias sociais.
��� Para mim, qualquer um com mais de quatro anos de facul-
dade �� um intelectual. Acho que quem l�� mais que a p��gina dos
esportes �� um intelectual. N��o, eu realmente quero saber. O que a
levou a se entusiasmar tanto, a ponto de resolver partir para a
Africa para salvar o Continente Negro? Como acabou se espe-
cializando em Angola?
��� N��o me especializei em Angola, as minhas especializa����es
s��o em economia do Terceiro Mundo e sociologia africana. Meu
interesse na ��frica deve ter vindo dos filmes de Tarz�� a que assisti
quando era menina.
��� Os filmes de Tarz�� s��o para meninos.
��� Uma atitude antiquada e machista. Enfim, quando eu es-
tava em Berkeley, recebi uma bolsa da Fullbright para estudar um
ano na Universidade de Coimbra, aqui em Portugal. Minha liga-
����o com Angola come��ou porque eu morava com uma angolana.
Ela queria ajuda no ingl��s e, em troca, me ensinou seu dialeto
bantu. Continuei a estudar o idioma porque achei que seria ��til
no dia em que eu fosse para a ��frica.
��� Voc�� disse no avi��o que esta �� a sua primeira viagem a
Angola.
��� Sim. Minha educa����o sobre o Terceiro Mundo foi basicamente
te��rica, em sala de aula e trabalhando na ONU, em Nova York. Mi-
nha especialidade �� a teoria da economia, o desenvolvimento de pro-
gramas que sustentam as miss��es de ajuda. Vou para campo adquirir
um pouco de experi��ncia pr��tica, ver pessoalmente a cadeia de ali-
mentos e medicamentos. Segundo dizem, haver�� ocasi��es em que
estarei envolvida com crocodilos, cobras e p��ntanos.
Estremeci.
��� Pensamento fascinante. Tem tend��ncias suicidas h�� mui-
to tempo?
136
��� O povo nativo �� obrigado a conviver com essas condi����es
diariamente.
��� O povo nativo ri das mordidas de insetos que transformam
o c��rebro dos visitantes estrangeiros em mingau. Por que est�� fa-
zendo isso?
��� Pelo dinheiro, claro. Ficarei rica entregando sacos de ar-
roz a pessoas famintas. E estou ansiosa para ver de perto as atroci-
dades que foram cometidas para manter a sua mina de diamantes
funcionando.
��� Como voc�� pode n��o saber absolutamente nada a meu
respeito e, ainda assim, j�� ter me julgado e condenado como um
canalha rico, que n��o vale nada, n��o pensa, e vive �� custa da pi-
lhagem das economias do Terceiro Mundo?
Deus, ela consegue me pegar direitinho. Se Marni soubesse o
que eu estava planejando com Jo��o, poria em pr��tica a tenta����o
que tivera no avi��o de enfiar um garfo no meu peito.
��� Devo ter lido em algum lugar. Mas, voltando �� sua pergunta
original sobre o que me estimula, talvez isto possa chocar voc��, mas
eu queria uma carreira que me transmitisse a sensa����o de realiza����o.
Saber que passarei os meus dias tornando mais f��cil a vida de pessoas
que n��o s�� foram esquecidas pelo mundo moderno, mas que foram
jogadas aos guerrilheiros, me transmite a mesma emo����o que voc��
sente quando p��e mais 1 milh��o de d��lares na sua conta banc��ria.
��� Marni, est�� enganada quanto a mim. Eu nunca senti ne-
nhuma emo����o colocando dinheiro no banco. Sou um perdul��rio
��� gasto, desperdi��o, jogo fora muito dinheiro. Mere��o algum cr��-
dito pelo fato de nunca ter ganho 1 d��lar sequer �� custa do meu
trabalho. Voc�� me v�� como um capitalista que estorque os oprimi-
dos. ��� Levantei a m��o �� moda dos escoteiros. ���Juro que nunca
trabalhei em nada por tanto tempo, nem com tanta dedica����o que
pudesse ferrar algu��m.
Ela sacudiu a cabe��a.
��� Por que ser�� que eu tenho a impress��o de que voc�� est��
dizendo a verdade ��� e se orgulha disso? J�� lhe ocorreu que est��
jogando a vida fora? Como pode se vangloriar de n��o ter feito nada?
137
��� Espero ser recompensado no c��u.
Marni engasgou-se com o vinho.
��� Me conte de onde voc�� vem ��� pedi. ��� Quero saber a
hist��ria da sua vida.
��� Nasci em San Jose, na pen��nsula de S��o Francisco. Meu
pai trabalhava para uma empresa de inform��tica. Ainda trabalha.
�� o vice-presidente respons��vel pela ��rea de pesquisa.
Elevei a m��o para interromp��-la.
��� N��o precisa contar mais nada sobre a sua fam��lia. Tenho
uma bola de cristal. Seu pai �� um nerd de computador, sua m��e uma radical feminista de Berkeley que a levava nas costas nas manifesta-
����es antiguerra, antipolui����o, anti-o-que-quer-que-fosse. O casa-
mento entre o nerd do computador e a radical n��o deu certo. Eles
se divorciaram. Voc�� cresceu em uma comunidade onde as pessoas
ficavam sentadas o dia inteiro puxando fumo e trepando.
Ela sacudiu a cabe��a.
��� Voc�� �� incr��vel. Ou tem o sangue de Sherlock Holmes nas
veias, ou mandou um detetive pesquisar o meu passado. Mas n��o
falou da parte em que minha m��e se juntou ao grupo radical dos
Weathermen e roubava bancos, comigo nas costas, para financiar
as id��ias revolucion��rias do grupo. E a vez em que ela...
��� Em outras palavras, estou completamente errado sobre
tudo.
��� Sr. Liberte, eu n��o resumiria melhor.
��� Acho que somos absolutamente compat��veis. ��� Dei de
ombros. ��� Os opostos se atraem. Voc�� �� uma mulher idealista,
cheia de diplomas, que tem pela frente uma miss��o de salvar o
mundo. Eu sou um irrespons��vel que nunca fa��o a coisa certa e
preciso me corrigir para n��o ter nada para fazer al��m de esbanjar
mais dinheiro. ���Aproximei-me mais, at�� que os meus l��bios quase
tocaram os dela. Marni exalava uma sensualidade suave. Quando
vi Katarina pela primeira vez, me deu vontade de trepar. Marni
era uma mulher com quem eu queria fazer amor.
��� Win...
��� Vamos...
138
��� N��o. E n��o �� por n��o querer. ��� Ela me afastou um pouco
e arrumou meu colarinho. ��� Eu quero muito.
��� Tem que dar satisfa����es a algu��m?
��� Tenho ��� a mim mesma. N��o sou uma pessoa forte. H��
um trabalho a fazer, montanhas a escalar, rios a nadar. N��o posso
me deixar envolver por um homem. Se isso acontecesse, n��o con-
seguiria desempenhar bem as minhas fun����es.
Eu estava falando de fazer amor, n��o de envolvimento.
Ela leu a minha mente.
��� N��o sou como voc�� ��� continuou. ��� N��o sei explicar por
que, mas eu simplesmente n��o posso me envolver com voc��. O
jantar estava bom, a companhia, maravilhosa.
Ela beijou meu rosto e levantou-se.
Eu tamb��m levantei e tomei-a nos bra��os.
��� N��o se v��. Quero ficar com voc��.
��� N��o d��. ��� Disse, sacudindo a cabe��a ��� Marni se foi.
Observei-a desaparecer pela porta, depois deixei dinheiro na
mesa suficiente para mais uma pessoa. Marni esquecera de pagar.
��� Obrigado ��� agradeci ao gar��om sorridente, ao sair.
Para mim, Marni era um quebra-cabe��a envolto em um enig-
ma. Eu costumava definir as pessoas com facilidade, especialmen-
te as mulheres da minha idade. Mas toda vez que a encaixava em
uma categoria, Marni sa��a daquela e entrava noutra. Sim, ela era uma
intelectual com consci��ncia social, mas tamb��m era uma mulher
exuberante, quente e sensual que fazia o meu n��vel de testosterona
ir ��s alturas.
Estava t��o desconcertado com os meus sentimentos por Marni
quanto ela aparentemente estava comigo. Que diabo ��� eu tam-
b��m tinha que vencer rios e montanhas.
��� E escalar muros de castelos, e matar drag��es ��� murmurei
�� noite. N��o tive tempo suficiente para desvendar o mist��rio de
Marni Jones.
Eu me encaminhava para a garagem do subsolo do outro lado
da pra��a, quando vi Jonny. Ela estava com um grupo, pr��xima ao
grande chafariz no meio do Rossio. E n��o estava feliz.
139
22
Havia oito ou dez pessoas ali, a maioria jovens como Jonny, em
idade de freq��entar a faculdade ��� e tr��s homens mais velhos que
aparentavam ter mais de 25 anos. A garotada era parecida com
Jonny ��� mimada, rica, sem objetivo de vida. Os tr��s rapazes mais
velhos pareciam mais s��rios, especialmente o que discutia com ela.
N��o era da minha conta, e continuei meu caminho, mas parei
quando vi um dos fort��es aproximar-se de Jonny, enquanto ela
discutia com o companheiro dele. Tive a sensa����o de que o rapaz
estava se colocando em posi����o de agarr��-la. Merda. Levar uma
surra de um vagabundo de rua em Lisboa n��o estava nos meus
planos, mas eu n��o podia ver a menina ser machucada.
Quando me aproximei, ouvi o nome daquele com quem ela
estava reclamando ��� Santos ��� e o porqu�� da discuss��o. Jonny
reclamava da qualidade do ecstasy que ele lhe vendera. Maravi-
lha. Agora eu podia ser surrado por uma boa raz��o ��� manter uma
garota de 15 anos nas drogas.
Santos desviou o olhar de Jonny quando me aproximei. A
maioria das pessoas acredita que vivemos em uma sociedade ci-
vilizada, mas, em um certo n��vel, nas ruas, a for��a bruta conta mais
do que a for��a da mente. Santos era um obus de artilharia ��� n��o
era alto, mas forte, afinando de baixo para cima ��� pernas gran-
des como cepo de ��rvore, torso e pesco��o grandes e cabe��a pe-
quena. Eu n��o era f��cil de derrotar, mas tamb��m n��o era um
valent��o.
140
��� Oi, Jonny, precisa de carona para casa?
A express��o no rosto dela indicava que n��o sabia se devia me
mandar sumir dali.
��� Se manda, seu puto.
��� Vamos pegar... ��� Enquanto eu falava com Jonny e pega-
va seu bra��o, girei o corpo e dei um cruzado de direita no rosto de
Santos, jogando nele o ombro e todo o peso do corpo. Exatamen-
te como eu aprendera. O soco foi perfeito, atingiu-lhe o queixo
em cheio. Senti a concuss��o do golpe subir pelo bra��o.
Santos desequilibrou-se um pouco e deu um passo para tr��s.
Aquilo era suficiente para ele cair de bunda no ch��o. Eu ain-
da sentia a aguilhoada no bra��o ��� como se tivesse esmurrado uma
parede de tijolos.
Os olhos de Santos vidraram por um instante. Quando voltaram
ao normal, focalizaram em mim. N��o parecia humano, e sim o olhar
frio e ferino de um pit buli para o pesco��o exposto de outro c��o.
Pelo visto, chegara a minha hora.
De repente, Jonny estava no meio de n��s dois e o socava sem
parar.
��� Seu canalha nojento, Jo��o vai arrancar seus colh��es e dar
de comer aos cachorros.
Santos tomou os socos e ouviu as palavras, sem mudar a ex-
press��o.
Jonny segurou-me pelo bra��o.
��� Vamos sair daqui, para longe desses merdas imundos.
Caminhamos em dire����o �� garagem subterr��nea.
��� Obrigada ��� disse ela. ��� Mas eu n��o precisava da sua aju-
da. Ele n��o encostaria em mim, sabe que Jo��o �� meu pai. ��� Ela
me fitou com um ar de falsa sinceridade. ��� Agora, voc�� precisa me
pagar o que perdi com aqueles comprimidos vagabundos.
��� Esque��a, n��o estou nessa de comprar drogas.
Ela me segurou pelo bra��o.
��� Ent��o qual �� a sua? Sexo? Podemos ir a um hotel, ou tre-
par quando chegarmos em casa.
141
��� N��o acha que seus pais poder��o ficar um pouco aborreci-
dos se nos encontrarem nos divertindo na sala de estar?
Ela deu de ombros.
��� Tudo o que sei sobre sexo aprendi observando a minha m��e.
Olhei para tr��s. Santos e seus dois companheiros nos seguiam.
��� N��o se preocupe ��� disse ela. ��� Eles t��m medo de Jo��o.
Meu pai �� velho mas tem amigos importantes.
��� Talvez n��o a machuquem, mas isso n��o quer dizer que n��o
possam acabar comigo.
O Mercedes estava tr��s andares abaixo. Entramos e tranquei
as portas. Quando liguei o motor, Jonny estava me agarrando. Ela
enfiou a l��ngua na minha boca, pegou a minha m��o e a colocou
entre as suas pernas.
��� Podemos fazer aqui ��� sugeriu, mordiscando a minha
orelha.
Eu a afastei e sa�� com o carro.
��� Vamos embora agora. Se f��ssemos espancados aqui at�� a
morte, n��o haveria testemunhas para contar nada a Jo��o.
Subi as rampas com o Mercedes. Quando cheguei na ��ltima,
que dava para a rua, uma surpresa me aguardava. No topo da ram-
pa, um pequeno Fiat bloqueava a passagem, de frente para o nos-
so carro.
Santos saiu do Fiat pelo lado do passageiro. Em uma das m��os,
tinha uma barra de ferro de 1 metro. Estava transtornado e exala-
va muita raiva.
Jonny olhou para mim.
��� Merda.
��� �� como eu disse, sem testemunhas.
Pisei no acelerador e girei o volante, fazendo o carro dar um
cavalo-de-pau, e os pneus cantarem t��o alto naquele subsolo que
mais parecia uma concha ac��stica. Em vez de correr de volta,
descendo as rampas para ser apanhado mais embaixo, engatei a r��
e me virei para olhar para a rampa que o Fiat estava bloqueando.
��� O que est�� fazendo?
��� Vou limpar a pista. Coloque o cinto de seguran��a.
142
Pisei no acelerador, e o Mercedes disparou em r��, queimando
borracha.
At��nito, Santos observou o carro subir a rampa. Ele colou na
parede e largou a barra de ferro. O motorista do Fiat olhava para
mim aparvalhado. Eu podia ver sua confus��o e p��nico enquanto
ele, confuso, tentava engatar a marcha a r��.
Quando a traseira do Mercedes bateu na frente do Fiat, ele j��
estava engrenado e voou para fora da rampa. O Mercedes bateu
mais uma vez, levando o Fiat a rodopiar como louco, quando n��s
irrompemos pela sa��da e chegamos �� pra��a. Engatei a primeira e
fui embora.
Jonny me olhava boquiaberta.
��� Corrida de Demoli����o. Participei de uma quando era ga-
roto. A frente dos carros �� fr��gil porque �� l�� que fica o motor, mas
a traseira pode ser usada como bate-estacas.
��� Voc�� �� louco.
��� Fico assim quando algu��m tenta me matar.
Jonny aproximou-se querendo aconchego.
��� Gosto de voc��. Sei pagar favores. ��� Ela voltou para o ingl��s.
��� Sou um convidado na sua casa. Trepar com voc�� n��o seria
muito educado.
Ela riu.
��� Voc�� acha que n��s somos uma fam��lia normal? Jo��o tirou Si-
mone das ruas ��� ou talvez de um puteiro. Ele nem �� meu pai ���
Simone engravidou do motorista, que acabou na Boca do Inferno
com sapatos de cimento. Ou quem sabe foi do jardineiro, ou do
cara com quem tem aulas de t��nis. Ela j�� trepou com todos eles.
Eu n��o disse nada. E tamb��m n��o acreditei em nada. Jonny n��o
seria a primeira garota a odiar a m��e. Raios, os jovens ��s vezes matam
os pr��prios pais. E vice-versa. Mas eu sabia que Jo��o estava armando
alguma coisa. Meu pai n��o confiava nele. E eu suspeitava que Bernie
fora cr��dulo demais. Eu queria dela informa����o, n��o sexo.
��� Quer que eu conte o que Jo��o est�� armando, n��o ��?
Examinei-a pelo canto do olho.
��� Costuma ler mentes? Tem sangue cigano?
143
��� Voc�� �� sincero demais. Dava para ver o conflito no seu
rosto, se devia pedir �� garota para trair o pai ou...
��� Voc�� disse que ele n��o �� seu pai.
��� N��o sei quem ele ��, e n��o sei o que est�� armando, mas seja
o que for, quem estiver envolvido sair�� prejudicado. Talvez, at��
morra. O pai de um dos meus amigos tem um problema ��� ele vive
olhando para garotas jovens, mais novas que eu. Dizem que �� uma
doen��a. Meus amigos chamam de vista curta, miopia, por causa
do tamanho das garotas. Jo��o tem o mesmo tipo de doen��a.
��� Ele �� um ped��filo?
��� N��o, imbecil, ele tem olhos para o dinheiro. At�� mesmo
Simone diz que ele �� doente.
��� Muitas pessoas gostam de dinheiro.
��� O bastante para matar?
��� J�� chegou a v��-lo matar algu��m de fato? Ele vai matar o
Santos?
��� Quando eu contar a Jo��o sobre Santos, ele j�� estar�� longe.
O merda sair�� de Lisboa, talvez se esconda na Espanha, ou at�� na
Alemanha, por algum tempo. Depois, ter�� que pagar sua viagem
de volta para Lisboa e dar a Jo��o muito dinheiro para que ele se
disponha a perdo��-lo. Se o Santos tivesse me machucado, pagaria
com a vida.
��� Como sabe de tudo isso?
��� Onde acha que eu moro? Nos intervalos entre um inter-
nato e outro, ou��o as conversas de Jo��o ao telefone. Tamb��m quan-
do ele recebe gente de trabalho em casa, ou��o seus coment��rios
sobre as pessoas que d��o para tr��s nos neg��cios. Refere-se a elas
como se j�� estivessem mortas.
��� Quais s��o os planos dele para mim?
��� N��o sei, isso eu n��o ouvi. Mas acho que tem alguma coisa
a ver com diamantes africanos e o diamante de fogo.
��� Diamante de fogo?
��� Simone diz que �� a paix��o de Jo��o. N��o cheguei a v��-lo,
mas ou��o dizer que �� um diamante sem pre��o que foi dele a vida
inteira. No ano passado, por causa de um problema s��rio na ��fri-
144
ca, foi obrigado a entregar o diamante ao Bey. Voc�� tem uma liga-
����o com esse diamante de fogo, n��o sei qual ao certo.
��� Quem �� esse tal de Bey?
��� Algu��m com quem Jo��o negocia. Simone n��o gosta dele.
Mora em Istambul. As vezes, Jo��o a manda para l�� para tratar de
algum neg��cio. Ou, talvez, para trepar com ele.
��� Voc�� tem uma boca muito suja para uma garota de 15 anos.
Ser�� que nunca chama seus pais de m��e e de pai?
��� Eles n��o s��o meus pais. Fui encontrada em uma cesta que
descia um rio. Minha m��e era uma princesa que engravidou antes
de se casar.
��� Agora eu entendo voc��. ��� Ela me dirigiu um olhar inter-
rogativo. ��� �� um caso mal resolvido.
Jonny apoiou a cabe��a no meu ombro e ficou em sil��ncio du-
rante o resto do caminho. No geral, ela era uma garota moderna
que odiava os pais e problem��tica, devido �� hipocrisia que a rodea-
va. Algumas pessoas partem para a vida inseguros e nunca per-
dem a indecis��o. Jonny era assim, uma hora era forte e animada.
Em seguida, sa��a atr��s de drogas, bebida, ou de sexo para ficar fe-
liz. Dava para imaginar que seria assim pelo resto da sua vida. ��
dif��cil entrar no ritmo se voc�� n��o o faz desde o in��cio.
145
23
Estacionei o Mercedes na entrada da garagem. Ao descermos,
fomos olhar o estrago na traseira do carro.
��� Amanh�� contarei aos seus pais sobre a batida. Vou deix��-
la fora disso.
Jonny enroscou os bra��os em volta do meu pesco��o e beijou
minha boca. Foi um beijo bom, daqueles que estimulam os instin-
tos primitivos de um homem. Seu corpo estava colado ao meu.
��� Boa noite.
Era Simone. Tentei interromper o beijo e afastar os bra��os de
Jonny, mas ela me segurou apertado. Deliberadamente.
��� Espionando?���perguntou Jonny, finalmente me soltando.
��� Claro que n��o, querida, s�� estava preocupada.
��� Como pode ver, Win me trouxe para casa, s�� e salva.
��� N��o era voc�� que me preocupava, meu bem. Win est�� em
um pa��s estranho, n��o conhece os perigos de uma cidade como
Lisboa.
��� Se estava t��o aflita assim, talvez fosse melhor ele ficar em
um hotel.
Jonny entrou em casa.
��� Sinto dizer que o seu carro est�� amassado.
Contei a Simone que encontrei Jonny na rua por acaso, que
n��s descemos juntos para o estacionamento e vimos que algu��m
batera no carro e fugira, deixando a traseira do ve��culo em mau
146
estado. N��o sei se ela acreditou. Calculei que, se Jonny quisesse
contar aos pais sobre Santos, o faria.
��� Podemos falar sobre isso amanh�� de manh��.
Eram palavras de boa noite, mas Simone n��o estava se despe-
dindo.
��� Sinto muito se Jonny causou algum aborrecimento. O
mundo de hoje �� dif��cil para a garotada. Eu cresci sem ter nada,
nem mesmo amor, mas aquilo me fez dar valor a tudo o que con-
segui e batalhar muito por isso. Jonny recebe tudo de m��o-beijada
e n��o valoriza coisa alguma.
��� �� uma boa garota ��� disse eu. O que mais eu podia dizer?
Que a arrancara de uma briga de rua com o fornecedor de drogas,
e ela tentara trepar comigo no caminho para casa? Al��m do mais,
eu come��ava a acreditar que Jonny n��o era uma garota t��o m��
assim.
Dava para sentir a excita����o de Simone. A mulher tinha uma
sensualidade natural que exalava sexo. Percebi como a roupa aderia
ao corpo exuberante, o jeito de andar, os l��bios carnudos, e os seios
que sobravam no decote do vestido curto. Poucas mulheres me
despertavam assim em t��o pouco tempo. Eu podia me excitar com
qualquer mulher sensual que aparecesse na minha frente, mas
Simone tinha algo mais, quase um qu�� de perigo.
��� Ela �� uma sacana. Contou que o pai dela era o motorista?
Ou que foi adotada?
��� Na verdade, conversamos sobre os Estados Unidos. Ela
gosta de l��.
��� Voc�� �� um mentiroso. N��s a mandamos para uma escola
muito cara para meninas em Connecticut. Ela odiou cada minu-
to. O ��nico lugar que a encanta nos Estados Unidos �� Los Angeles,
porque �� uma cidade de malucos. Mas tudo bem, voc�� merece um
elogio por encobrir as transgress��es de Jonny. Infelizmente, ela
conversar�� sobre isso no caf��-da-manh�� ��� se levantar antes do
meio-dia.
��� Bem, est�� ficando tarde.
��� O que achou da proposta de Jo��o?
147
��� Ainda estou pensando.
��� Tudo deve ser muito estranho para voc��.
��� O qu��? Minas africanas, diamantes de sangue, ex��rcitos
rebeldes assassinos? N��o, eu esbarro nesse tipo de coisa a toda hora
onde moro.
��� Ouvi dizer que voc�� adora a sensa����o de perigo dos carros
e barcos velozes. Suponho que, se tiver de morrer fazendo alguma
coisa emocionante, tanto faz ser em um carro de corrida, ou le-
vando um tiro na Africa.
Sorri.
��� Faz diferen��a para mim. Se eu puder optar, prefiro morrer
na cama. E escolher a mulher que terei nos bra��os.
148
24
A noite estava quente. Abri toda a janela, despi-me e tomei um
banho de chuveiro. Apaguei a luz, deitei nu na cama e me deleitei
com a brisa suave da noite no meu corpo.
Uma hora se passara, quando ouvi uma batida na porta. Eu
sabia que Simone viria. Era uma mulher que gostava de homem.
O que eu n��o sabia era se ela viria a mando de Jo��o, ou por conta
pr��pria. N��o podia negar que estava cheio de tes��o por ela.
Simone deixou cair o robe de seda na beira da cama e subiu
em cima de mim. Seus seios eram fortes e cheios, seus mamilos,
duros como pedra. Inclinei-me e chupei cada um dos mamilos su-
culentos. Eles cheiravam a banho de rosas. Ela prendeu meu p��-
nis entre as pernas. Ele cresceu de excita����o, j�� duro, for��ando
seu p��bis, pronto para penetrar.
��� Estava esperando por Jonny? ��� sussurrou ela.
��� Eu estava esperando por uma mulher.
Ela foi descendo pelo meu corpo, brincando com os meus
mamilos, causando arrepios na minha coluna. A l��ngua desceu pelo
meu p��nis rijo, passando em volta dos test��culos, e deslizou nova-
mente pelo p��nis, subindo, movendo-se em torno dele como se
estivesse lambendo um sorvete.
Eu a virei e fodi sua boca com minha l��ngua, e fui descendo
at�� seu monte de p��los. Ela j�� estava molhada. Alcancei seu clit��ris
e massageei com a l��ngua. Senti seu corpo come��ar a tremer, pronto
para o orgasmo. Ela arfou e soltou um gemido. Agarrei seus qua-
149
dris e entrei nela, bombeando sem parar at�� que explodi, seus dedos
enfiados na minha pele, arranhando as minhas costas.
Est��vamos os dois deitados na cama, exaustos, quando senti
uma sombra sobre n��s.
��� �� bem a sua cara, n��o ��, m��e? ��� disse Jonny. ��� Eles v��m
para casa comigo, e voc�� �� que come.
DEIXEI A CASA bem cedo, antes do amanhecer. Chamei um t��xi
para me pegar no port��o. N��o sa�� como um ladr��o no meio da noite,
mas rastejando como uma minhoca. N��o sei o que me levou de
repente a ter uma crise de consci��ncia. Quando trepei com aquela
loura quente, a esposa do banqueiro de investimentos, n��o pensei
duas vezes. Por��m eu n��o estava hospedado em sua casa, nem me
relacionei com ele intimamente.
Enquanto meditava sobre isso no caminho para Lisboa, en-
tendi o que de fato me incomodou. N��o foi nada relacionado ��
moral. O que havia entre Jo��o e Simone n��o era amor verdadeiro.
Talvez ele mesmo a tivesse enviado para fazer sexo comigo, para
me amaciar para o esquema dos diamantes de sangue. N��o seria o
primeiro homem a usar o corpo da esposa como ponto de negocia-
����o. Eu n��o chegara a me comprometer com rela����o �� proposta,
mas tamb��m n��o me negara a participar.
Para ser sincero, Simone mexeu comigo mais do que eu quis
admitir. Estava atra��do por Marni, ela era tudo o que eu n��o era, e
tinha mais colh��es do que um gorila de 200 quilos para ir para uma
zona de guerra alimentar as pessoas. Mas eu desejava Simone. A
mulher fazia o meu sangue ferver. Como aquelas femmes fatales
descritas por James Cain, ela me tirava do s��rio. Fiquei a imaginar
Simone me convencendo a segurar um travesseiro no rosto do
marido, enquanto ela o obrigava a assinar seu ��ltimo testamento.
Reservei um lugar em um v��o para Angola e chamei o t��xi. Eu
s�� partiria ��s 10 horas, portanto tinha algum tempo livre. Pedi ao
motorista que me deixasse em uma marina de pescadores. Meu pai
tinha passado sua ��ltima noite em Lisboa, depois da guerra, cami-
nhando pelo embarcadouro. Eu queria reconstituir seus passos.
150
P a r t e 4
A F R I C A
25
LUANDA, ANGOLA
Senti um bafo quente e ��mido fedendo a petr��leo e peixe velho
ao sair do avi��o para a escada port��til que me levaria �� pista de
decolagem em Luanda. Comecei a derreter ali mesmo.
��� Bem-vindo �� ��frica Equatorial ��� disse um sorridente
comiss��rio de bordo. ��� Espero que tenha tomado todas as vacinas.
Sim, eu me vacinara contra c��lera, febre amarela, tifo, hepa-
tite, tuberculose, p��lio e outras doen��as das quais nunca ouvira
falar. S�� sentia falta de uma vacina contra o t��dio. N��o que a mi-
nha primeira impress��o de Luanda fosse de um t��dio calmo. O
terminal estava repleto de barulho e de gente abusada. Uma mes-
cla de l��nguas diferentes, entremeadas por portugu��s, criava um
zunido parecido com a est��tica alta do r��dio de um carro que atra-
vessa o deserto. Pessoas usando t��nicas exuberantes esbarravam
com africanos e europeus, vestindo roupas Canali e Armani e car-
regando valises Gucci.
A maioria das pessoas era mesti��a luso-africana. Jo��o me con-
tara que os mesti��os controlavam as cidades e o governo do pa��s,
enquanto os africanos puros estavam radicados nas vilas e no cam-
po. Mais importante do que a quest��o da ra��a, a geodemografia
era a qu��mica que estimulava a guerra civil em que o pa��s se engajara
153
durante a maior parte dos ��ltimos 15 anos. A popula����o rural sen-
tia-se lesada nos seus direitos civis pol��ticos e econ��micos pela
poderosa popula����o mesti��a. Savimbi, o l��der dos rebeldes, tinha
apoio principalmente no campo, que mantinha sob seu controle,
inclusive na regi��o das minas de diamantes.
Al��m dos civis, distinguia-se no terminal um contingente de
soldados com armas autom��ticas, aparentemente letais. Em gru-
pos de dois ou de tr��s, eles riam, conversavam, fumavam, uma
gente que n��o parecia ser de brincadeira, bem diferente do tipo
de policial que se v�� fazendo seguran��a nos Estados Unidos, o
aposentado que trabalha para ganhar um extra. A vis��o no termi-
nal era de uma zona de guerra.
Essa primeira impress��o permaneceu ao longo do tempo que
permaneci no pa��s, pois vi a mesma atmosfera de guerra nos diver-
sos lugares por onde andei.
Quando cheguei �� ��rea da recep����o, esperava por mim um
homenzarr��o de pele escura, peito grande, bra��os grossos, com um
charuto preto que cheirava a merda de cachorro tostada.
��� Liberte? ��� perguntou ele.
N��o era dif��cil me reconhecer ��� eu era o ��nico passageiro
que usava um bon�� de beisebol dos Yankees de Nova York.
��� Meu nome �� Cross, sou o chefe da seguran��a da sua mina.
Eduardo n��o p��de vir.
Seu ingl��s era perfeito. Ele usava um conjunto caqui e botas
de couro e lona do tipo usado pelo ex��rcito no Vietn��. Se tivesse
nas m��os uma Uzi, daria a impress��o de ser mais perigoso do que
os soldados que decoravam o lugar.
O tal Eduardo Marques que faltou era o administrador da mina.
��� Ele morreu? ��� perguntei, dando a entender que essa se-
ria a ��nica raz��o para o administrador da mina n��o estar no aero-
porto para receber o novo propriet��rio.
Cross deu de ombros.
��� Neste pa��s, estar morto pode ser uma melhoria das condi-
����es de vida.
Sua linguagem corporal indicava irrita����o. Assim como o pa��s,
Cross pareceu-me uma zona de guerra. Alguns homens, quando
154
conhecem voc��, ficam curiosos quanto ao seu sal��rio; outros se
perguntam se voc�� �� um cara valente. Logo que o vi, percebi seus
sentimentos pelo jeito de se portar ��� ele tanto poderia acabar
comigo como me cumprimentar.
Na Dinamarca, quando os empregados n��o se importam com
voc��, significa que as coisas n��o andam nada bem. Tr��s minutos
em Angola, e eu estava pronto para entrar no primeiro avi��o que
decolasse. A ��nica coisa que impediu que eu me dirigisse para o
balc��o das passagens foi a minha rec��m-descoberta pobreza, a
ambi����o inata, e a possibilidade assustadora de ter que trabalhar
para viver. Nada me esperava nos Estados Unidos, a n��o ser um
emprego de fritar hamb��rguer no McDonald's: e eu n��o estava
qualificado para isso.
Controlando o humor azedo, ignorei o imbecil e dirigi-me ��
esteira de bagagem. Eu n��o sabia se ele estava irritado porque o
administrador da mina escapara e o obrigara a vir me buscar, ou se
estava simplesmente de mau humor. Peguei as malas e o segui. Ele
n��o se ofereceu para ajudar. Acompanhei-o atrav��s do terminal
com uma mala em cada m��o e uma valise pendurada no ombro.
Acho que tive sorte por ele n��o ter uma mala, ou eu tamb��m es-
taria carregando a sua.
Um Mercedes surrado que parecia ter perdido algumas guer-
ras do Terceiro Mundo nos aguardava do lado de fora. Os amassa-
dos e os buracos de balas tinham enferrujado. Neste clima quente
e ��mido, at�� as pessoas deviam enferrujar.
Na porta do motorista, uma marca desbotada indicava que,
um dia, aquele tinha sido um t��xi em Lisboa. O motorista fumava
e conversava com o guarda uniformizado cuja vestimenta era di-
ferente da do pessoal do ex��rcito que estava no interior do termi-
nal e patrulhava a ��rea externa. O guarda usava um uniforme de
camuflagem sem ins��gnia militar, trazia no ombro um AK-47 e um
cigarro na boca. Deduzi que era um atirador particular.
O motorista abriu a mala do carro para mim e se afastou um
pouco para que eu pudesse guardar a bagagem. Tudo bem, pensei,
quando chegarmos ao hotel, darei a gorjeta a mim mesmo.
155
O motorista e o guarda entraram na frente, e eu sentei atr��s
com Cross.
��� Vamos direto para o hotel ��� disse Cross, quando o carro
saiu. ��� Caso n��o tenha percebido as tropas armadas do governo
no aeroporto, ou o nosso atirador particular, Luanda n��o �� propria-
mente hospitaleira.
As pessoas nas ruas n��o pareciam ter humor melhor que meus
companheiros. As ruas estavam cheias de gente com dinheiro,
misturada com gente desesperan��ada, pessoas emaciadas ao lado
de esp��cimes bem alimentados carregando guarda-chuvas e pas-
tas. Barracos imundos feitos de barro com telhados de amianto
estendiam-se ao longo da estrada. Crian��as desnutridas, em pele
e osso, de olhos esbugalhados, acocoradas no ch��o em frente aos
barracos, nos olhavam quando passamos.
��� Um musseque ��� disse Cross. ��� Favela. O pa��s tem uma po-
pula����o de cerca de dez milh��es de pessoas, sendo que tr��s ou quatro
milh��es foram desalojadas pela guerra civil. Elas se amontoam em
favelas miser��veis porque n��o t��m outro lugar para onde ir. Muitas
acabam em Luanda. Dois milh��es de pessoas moram em uma cidade
que foi constru��da para abrigar quarenta ou cinq��enta mil. �� muita
merda e muita urina nas sarjetas e no suprimento de ��gua. Enquanto
estiver aqui, n��o beba nem coma nada que n��o tenha desinfec����o
garantida. Muito cuidado para n��o ingerir a ��gua do banho que es-
corre pela boca ou da escova de dentes, pois isso poder�� deix��-lo muito
doente ��� se n��o morrer. �� uma cidade supostamente moderna, mas
n��o se iluda com os arranha-c��us. Um pouco de vidro e de croma-
do n��o fazem daqui um lugar civilizado e saud��vel.
��� Quando precisar aliviar o tes��o, telefone para um n��mero
em Amsterd��, e eles enviar��o uma prostituta para passar uns dias
com voc��. Custa uns 2 mil d��lares, mas, em um pa��s tomado pela
Aids, qualquer sexo que n��o seja masturba����o �� suic��dio. ��� Ele
riu. Parecia ter prazer em me informar o inferno em que eu estava
me metendo. ��� Muitas vezes, at�� mesmo pessoas saud��veis mor-
rem com um tiro dado por uma crian��a de 12 anos com um dedo
nervoso no gatilho.
156
Eu me perguntei se ele estava deliberadamente pintando um
quadro bem negro do lugar para me fazer desistir e voltar para o
aeroporto. N��o que ele precisasse fazer muito esfor��o para isso.
Luanda era uma experi��ncia angustiante. Se os insetos e a imun-
d��cie n��o pegassem voc��, uma bala poderia ��� Marni me contara
que um contingente consider��vel do ex��rcito rebelde era forma-
do por crian��as de 12 anos a quem os l��deres viciavam em drogas
para poderem control��-los e transform��-los em bons matadores.
No momento, eu me sentia mais deprimido pelo sofrimento que
estava presenciando do que propriamente amea��ado.
N��o vi muita heran��a portuguesa na cidade. Talvez, tenha ido
para os ares e queimado na guerra do per��odo da coloniza����o,
anterior �� independ��ncia e �� guerra civil que come��ou em 1975.
A ��nica caracter��stica portuguesa que identifiquei foram os no-
mes das ruas e das lojas. RUA AM��LCAR CABRAL, dizia uma placa
com buracos de bala enferrujados.
O pavimento das ruas tinha marcas de rodas de ve��culos. Os
��nibus, velhos e bastante usados, estavam apinhados de gente:
muitos no interior, outros pendurados na parte traseira, e outros
tantos sentados no cap��. Reparei que algumas bicicletas n��o ti-
nham pneu e andavam apenas com o aro.
Um muro pichado de branco continha os dizeres SOCIALISMO
OU MORTE! Uma heran��a dos dias violentos do comunismo, an-
tes da queda do Imp��rio do Mal. Mas algu��m apagara uma parte,
deixando apenas para se ler SO MORTE!
S�� morte.
Nada era sutil no Terceiro Mundo. Ele tomava conta de voc�� de
uma forma direta, entrando no seu rosto e sob a sua pele. As piadas
que eu fizera para Marni no avi��o j�� n��o pareciam t��o engra��adas.
Sua li����o sobre os horrores da guerra que o petr��leo e os diamantes
trouxeram para Angola estava sendo assimilada rapidamente.
��� O que achou da nossa pequena capital, mano?
��� Tem gente demais ��� respondi. ��� E fede.
Cross dirigiu-me um olhar que n��o escondia seu desprezo pelo
rica��o americano que ele fora pegar no aeroporto.
157
��� Ver�� que Angola �� uma educa����o, meu chapa. �� um pit
stop no caminho para o inferno. Talvez at�� seja a linha de chegada.
��� Seu ingl��s �� bom. Estudou nos Estados Unidos?
Cross explodiu em uma gargalhada.
��� Se voc�� considerar a cidade de Michigan, em Indiana,
como fazendo parte do pa��s. Fiz faculdade na Indiana State e jo-
guei futebol. Teria seguido a carreira como profissional, n��o fosse
um problema que tive no joelho.
��� Voc�� �� americano.
��� N��o brinca, Jos��. ��� Ele jogou o charuto pela janela e de-
pois cuspiu.
Foi muito imbecil da minha parte. "Cross" estava longe de ser
um nome portugu��s ou africano. O calor devia estar me impedin-
do de pensar direito. Ou, talvez, eu simplesmente n��o estivesse
tolerando a atitude dele.
Aproximei-me e o encarei bem nos olhos.
��� Meu nome �� Win Liberte, n��o �� Jos��, nem Mano, e eu n��o
sou seu chapa. Agora, o fato de voc�� estar sendo t��o insolente
comigo ��� seu empregador ��� significa que n��o d�� a m��nima para
o seu emprego. O que para mim est�� ��timo, porque eu tamb��m
n��o dou a m��nima para voc��. Mas enquanto n��s estivermos jun-
tos, vamos ter um pouco de respeito m��tuo. Ou ent��o v�� se foder
e salte no pr��ximo quarteir��o.
Cross acendeu outro charuto devagar, enquanto me avaliava
pelo canto do olho e inundava o carro da fuma��a nojenta.
��� Devo dizer que voc�� tem sangue nas veias. Vai precisar
disso. Se quer o meu conselho, mande o motorista retornar e lev��-
lo de volta para o aeroporto. Voc�� pode ser o fod��o no baile de
debutantes e nas festas do clube do seu bairro, mas est�� se meten-
do em algo que enfiaria o temor a Deus em um submarino de m��s-
seis nucleares da For��a Delta sovi��tica.
"Angola �� o tipo de zona de guerra que os rep��rteres de TV
cobrem sentados em Nova York ou Atlanta, enquanto aqueles
americanos que passam a vida sentados em frente �� televis��o
mudam de canal, �� procura de not��cias sobre o mais recente di-
158
v��rcio de alguma celebridade, porque os horrores que acontecem
nesta parte da ��frica s��o irreais demais para eles assistirem. Merda,
a maioria dos rep��rteres tem medo de vir at�� aqui para cobrir os
acontecimentos. N��o �� apenas uma guerra, mas uma forma de vida,
supervisionada por todos os dem��nios do inferno.
"Se vai ficar em Angola, �� melhor se acostumar a ver crian��as
morrendo de fome nos bra��os das m��es, prostitutas com Aids fa-
zendo sexo nas esquinas, homens que n��o podem colocar o dedo
no nariz porque lhes deceparam os dois bra��os, ou que rastejam no
ch��o porque perderam as pernas em alguma mina terrestre. Um
dos muitos recordes deste pa��s de merda �� ser o campe��o em
perdas de vidas e membros por causa de minas terrestres, mais do
que qualquer outro lugar do mundo.
Cross mais uma vez dirigiu-me um olhar cr��tico e continuou.
��� Darei a voc�� o benef��cio da d��vida. Talvez tenha fantasia-
do que seria uma grande aventura vir para a Africa ver a sua pr��-
pria mina de diamantes. E, tal como Stewart Granger, se vestiria
para um safari e atiraria em um elefante ou dois, e os nativos o
chamariam de buana. Est�� bem, agora que j�� fez seu exame da
realidade, compre uma passagem de volta para onde as pessoas n��o
cagam���e morrem���nas sarjetas, e as crian��as n��o crescem com
fuzis AK-47 nas m��os.
Olhei pela janela.
��� N��o gosto de Angola. E acho que voc�� �� um idiota brig��o.
Para n��o dizer que os seus malditos charutos fedem. ��� Sorri para
ele. ��� Mas estarei aqui pelo tempo que precisar, meu chapa. O
que tem a dizer a respeito?
Ele bateu a cinza do charuto no ch��o e me fitou com ar cauteloso.
��� Meu nome n��o �� Chapa.
FIZ O MEU REGISTRO no Hotel Presidente Meridien na avenida
Quatro de Fevereiro. Eu n��o sabia o motivo de a rua ter esse nome,
ou por que outras ruas tamb��m eram nomeadas com datas, mas
n��o foi dif��cil adivinhar. Eram as datas das vit��rias na guerra ou
na revolu����o. E os vitoriosos nomeavam as ruas e erigiam est��tuas.
159
Depois de um bom banho de chuveiro, fui para a varanda to-
mar uma cerveja gelada, enquanto observava a rua cheia, baru-
lhenta e suja l�� embaixo. Pessoas, carros, bicicletas e carro��as
passavam empurrando-se uns aos outros como os carros que ba-
tem em p��ra-choques nos parques de divers��es. O reflexo do sol
se pondo transformou a ba��a no dourado negro de uma mancha
de petr��leo.
At�� agora, eu nunca tinha valorizado o conforto que a vida
sempre me proporcionou. Jamais me preocupei com dinheiro ���
nunca sequer pensei nele, porque nunca me faltou. Assim como a
comida, os len����is limpos e a ��gua pura. Eu podia viajar de costa
a costa nos Estados Unidos e nunca cogitar se o lugar onde ia be-
ber ��gua era confi��vel. Tenho certeza de que at�� a umidade de
Angola devia causar algum dano �� sa��de.
Quando o sol se p��s, sa�� do quarto para encontrar Cross no
sagu��o do hotel. Fiquei surpreso por ele n��o ter me largado na fren-
te do hotel e seguido para onde quer que fosse seu destino.
Eu ainda n��o chegara a uma conclus��o sobre Cross. Sua ati-
tude n��o me incomodava. Provavelmente, a ��nica forma de so-
breviver neste buraco era tornar-se insens��vel e mal-humorado.
Mas eu precisava de aliados, e Cross tinha uma caracter��stica que
eu apreciava ��� ele era direto. O que voc�� via era o que recebia.
Qualquer um pensaria que nada menos que um desmoronamento
da mina poderia ter impedido Eduardo, o administrador, de rece-
ber o propriet��rio no aeroporto. Sua aus��ncia mostrou-me que eu
tamb��m n��o estava no topo da lista dele. Ser�� que era t��o dif��cil
assim conseguir gente dedicada? Pergunta est��pida. Devia ser
imposs��vel.
E isso me levou a questionar o que Cross estava fazendo em
Angola. E por que Eduardo se mantinha em uma zona de guerra,
administrando uma mina que dava preju��zo. Tinha de haver meios
mais f��ceis e mais seguros de ganhar dinheiro. Com certeza abso-
luta, eles n��o estavam em uma miss��o humanit��ria para o proprie-
t��rio da mina, nem pertenciam ��s fac����es rebeldes que dilaceravam
o pa��s. S�� podia ser uma coisa ��� eles estavam ganhando dinheiro.
160
E tinha de ser muito para valer a pena permanecer ali, arriscan-
do-se a ser morto, seq��estrado, ou a contrair uma doen��a.
E aquilo gerou mais uma pergunta. Se eles estavam fazendo
dinheiro �� custa da minha mina, por que eu n��o estava?
No sagu��o, sentei-me na mesa em que Cross se instalara e pedi
uma cerveja, sem copo. Viajando por Iucat�� e pela Am��rica Cen-
tral, aprendi que n��o se devia pedir nada que n��o viesse de uma
garrafa lacrada. Se a bebida precisasse ser colocada em um copo
ou usar gelo, mesmo em um hotel decente, o risco de um ataque
da vingan��a de Montezuma era alto.
��� O que h�� para se fazer nesta cidade? ��� perguntei.
��� Nada �� seguro, a n��o ser uns poucos hot��is e restaurantes.
Mas se quiser tentar o destino e se divertir, h�� boates, discotecas
com m��sica americana e brasileira, e as kizombas, casas noturnas no estilo africano. Elas t��m m��sica local e pratos como carne de
carneiro e um bolinho grudento de inhame amassado. Mas n��o
conv��m chegar perto de nenhum deles. Mesmo que esteja seguro
l�� dentro, poder�� ser assassinado a 1 metro da porta de entrada. E
pode ter certeza que qualquer boceta em que voc�� enfie o seu pau
estar�� infectada com Aids. As pessoas falam sobre Aids como se
fosse um resfriado qualquer, de t��o usual. Se tiver que satisfazer
algum desejo incontrol��vel, �� s�� andar pela musseque a qualquer
hora do dia ou da noite.
��� Se este lugar �� t��o ruim, por que est�� aqui?
��� N��o �� pelo cen��rio, certamente. Vim pela mesma raz��o que
outros americanos e europeus ��� o dinheiro. Quando me formei
em engenharia, fui contratado por uma empresa de petr��leo que
atua em Cabinda, encravada ao norte, subindo a costa. A ��rea
pertence a Angola, apesar de estar cercada pelo Congo. N��o con-
segui me acostumar ao tipo de restri����o e controle que envolve o
trabalho em um campo petrol��fero. Fui contagiado pela febre dos
diamantes e larguei o petr��leo para explor��-los.
��� Por que resolveu trabalhar com seguran��a de minas?
��� Eu estava duro. Trabalhar nas minas de diamantes meno-
res �� t��o imprevis��vel quanto comprar bilhetes de loteria. Mas o
161
fasc��nio �� o mesmo, voc�� acha que, com um pouco de dinheiro e
de suor, vai tirar a sorte grande. Ainda tenho algumas concess��es
de minera����o paralelamente �� atua����o na sua mina, mas precisa-
va de um emprego para garantir a cerveja e o feij��o.
��� Voc�� deve ter tido muita sorte para largar o emprego de
meu chefe de seguran��a. ��� N��s dois sab��amos que ele n��o tinha
largado. Ainda. At�� agora, n��o passava de conversa.
��� N��o consegui merda nenhuma. Vou largar o emprego para
n��o ser morto paparicando o propriet��rio ausente que resolveu tirar
a bela bunda de Manhattan para visitar um dos seus dom��nios
feudais.
Procurei atr��s de mim e pela sala.
��� Onde est�� esse propriet��rio idiota de quem voc�� fala t��o
mal? Vamos pegar o homem e mat��-lo.
��� Pe��o desculpas. Sua bunda n��o �� bonita. Mas voc�� n��o
sabe nada sobre extra����o de diamantes em Angola. Do contr��rio,
n��o estaria aqui. Vamos come��ar do in��cio. Este pa��s est�� em guer-
ra h�� mais de trinta anos, primeiro contra o dom��nio colonial por-
tugu��s, depois foram os rebeldes apoiados pelos Estados Unidos
contra os comunistas financiados por Moscou e Havana. A CIA e
milhares de tropas cubanas voltaram para casa, e atualmente est��
em vigor um acordo de paz, mas s�� em teoria. O pacto pol��tico
n��o passa de uma folha de papel que ningu��m respeita, e os l��de-
res de ambos os lados n��o fazem nada exceto fingir apoio. Porque
a luta n��o �� pela liberdade pol��tica, mas pelo controle dos campos
petrol��feros e da ind��stria do diamante.
"Quando voc�� era crian��a, deve ter estudado na escola sobre
as corridas do ouro para a Calif��rnia e o Alasca, em que os minei-
ros ficavam afundados at�� os joelhos procurando o ouro com uma
panela em uma das m��os enquanto, na outra, traziam uma arma
de seis tiros para afastar os espertos que queriam tomar a conces-
s��o e os ��ndios. Bem, mano Win, aqui �� a mesma coisa, s�� que os
caras que querem tomar as concess��es na ��frica t��m helic��pteros
militares, metralhadoras, tanques e m��sseis.
��� Os rebeldes se apossaram das minas?
162
��� N��o do funcionamento em si, mas s�� porque n��o sabem
administrar minas de diamantes. Digamos que eles s��o os donos
das minas e as alugam para pessoas como voc��. E aparecem todo
m��s para recolher uma percentagem da produ����o como pagamento
do aluguel. Se desconfiarem que voc�� est�� escondendo alguma
coisa, eles o matam.
"�� mais ou menos como a m��fia, por��m os mafiosos s�� matam
quando �� necess��rio para o neg��cio. Aqui, se as tropas rebeldes
ou do governo n��o gostarem da cor da sua camisa, j�� �� motivo
para matarem voc��. Mas s�� se n��o for um bom pagador. H�� pouco
tempo, seq��estraram um grupo de europeus nas minas e os leva-
ram muitos quil��metros adentro na mata. N��o foi para um piqueni-
que. Os europeus tinham sido um pouco lentos nos pagamentos.
"Mas os rebeldes n��o s��o burros, eles n��o matam as galinhas
dos ovos de ouro, a n��o ser ocasionalmente, quando precisam dar
um exemplo. Eles acabam com um homem em uma vila, e milha-
res de outras vilas logo entram nos eixos.
��� Soa como assassinato organizado e legalizado. E caos.
��� Assassinato, massacre, genoc��dio, eles cobrem todas as
bases. E �� organizado, sim. O cara que aparece para recolher o seu
aluguel informa mais algu��m, e assim por diante, at�� chegar ao
pr��prio Jonas Savimbi, o chef��o da organiza����o rebelde chamada
Unita. J�� ouviu falar nele?
��� N��o ��� menti. Marni o descrevera como um man��aco
homicida, mas ela mencionara tantas siglas como a Unita que eu
j�� n��o me lembrava quem era quem.
Cross jogou as m��os para cima num gesto de frustra����o e pas-
sou os olhos pelo sagu��o, como se quisesse encontrar uma sa��da.
��� Voc�� com certeza fez seu dever de casa, n��o foi, mano?
Bem, vou lhe contar sobre o cara que pode vir a ser respons��vel
pela sua morte. O presidente Reagan chamou-o de guerreiro da
liberdade, caracterizou-o como um Lincoln de Angola.
��� Encorajador.
��� S�� se voc�� n��o soubesse que Reagan estava senil e que o
pa��s era governado pelo astr��logo da mulher dele. Mas a atitude
163
pol��tica americana quanto a Savimbi �� um exemplo cl��ssico dos po-
l��ticos americanos e da sua completa burrice. Se o diabo dissesse
que era anticomunista, nossos l��deres pol��ticos fariam um pacto
com ele ��� coisa que j�� fizeram na maior parte do Terceiro Mundo.
"As pessoas em Angola referem-se a Savimbi como um assas-
sino psicopata, mas n��o na frente dele. Ele �� um homem que pes-
soalmente espancou at�� a morte a esposa e os filhos de um cara
que resolveu enfrent��-lo. Chegou ao c��mulo de explodir um hos-
pital da Cruz Vermelha que fazia membros artificiais para as pes-
soas cujos bra��os e pernas tinham sido decepados por ele e outros
como ele. Ou arrancados por minas terrestres.
��� Como pode um neg��cio funcionar nesse clima?
��� Tanto Savimbi quanto seu inimigo, o governo de Angola,
precisam de dinheiro para financiar essa guerra. Esse dinheiro vem
do petr��leo e dos diamantes. Enquanto voc�� for lucrativo para a
guerra, ser�� tolerado. Se um escal��o inferior matar a galinha que
p��e os ovos de diamantes, tamb��m morrer��. E se voc�� for pego
passando a perna nesses caras, eles o matar��o, mas antes seus bra-
��os e pernas ser��o amputados, para que voc�� pense nos seus peca-
dos enquanto sangra at�� a morte.
��� Jesus Cristo!
��� N��o, Jesus nunca veio aqui. E isso tudo, pressupondo que
os seus pr��prios mineiros n��o matem voc�� por t��-los pego rouban-
do. Mesmo quem sobrevive �� minera����o de diamantes ainda pode
ser mordido por insetos do tamanho de p��ssaros, ou pisar em uma
cobra que poder�� engoli-lo inteiro. A taxa de mortalidade para ad-
ministradores e chefes de seguran��a de minas pequenas �� suficiente
para causar azia no mais pessimista dos agentes de seguro. N��o que
exista alguma coisa do g��nero em Angola. A melhor cobertura de
seguro s��o os guarda-costas e os coletes �� prova de balas.
��� Voc�� conseguiu sobreviver. O que o faz pensar que serei
morto?
��� Voc�� �� um garoto rico, mimado, que n��o trabalhou sequer
um dia da sua vida. Nunca fez nada mais dif��cil que segurar forte
o volante de um carro veloz ou o par de seios de uma garota. N��o
164
tem nem um pouquinho de esperteza de rua. Vai olhar para o lado
errado e se irritar com algum garoto de 12 anos, drogado, com o
dedo no gatilho de uma AK-47 enferrujada. E eu n��o quero estar
por perto quando as suas tripas se espalharem pelo ch��o, porque
serei o pr��ximo.
Comecei a rir.
Cross tentou manter a express��o azeda, mas come��ou a rir
tamb��m.
��� Este lugar �� rid��culo ��� disse eu. ��� Se eu prometer n��o
ser morto, quer ficar por algum tempo?
��� Fico, se voc�� me der uma boa raz��o para ter vindo parar
neste buraco.
��� Estou quebrado. A mina �� tudo o que possuo.
Aquilo o fez parar. E deixou-o confuso. A express��o no seu
rosto indicava d��vida sobre a veracidade das minhas palavras.
��� Est�� brincando?
��� N��o estou brincando, Jos��. O cara que administrava o meu
dinheiro afundou tudo na mina Dama Azul, um investimento que
n��o rende um centavo e que ningu��m quer comprar. N��o gosto
de estar quebrado, portanto isso n��o vai durar muito tempo.
Ele sacudiu a cabe��a.
��� Voc�� acha que pode chegar e espremer alguns milh��es de
Angola? Homem, como os negros dizem nos filmes de brancos,
voc�� �� um sonhador. Seria mais seguro voltar para casa e assaltar
bancos. Ou achar alguma garota com mais dinheiro que c��rebro
que proporcione o estilo de vida a que est�� acostumado em troca
de mant��-la bem servida.
��� N��o me subestime. Fui o melhor em tudo o que j�� me meti.
Dinheiro e diamantes est��o no meu sangue. Eu apenas n��o dedi-
quei minha aten����o a eles por algum tempo. Enquanto voc�� joga-
va beisebol, meu pai me fazia avaliar diamantes. Voc�� disse que
veio para c�� para fazer seu p��-de-meia. Quero o que �� meu e o
que posso conseguir, mas n��o sou mesquinho com quem me aju-
da. Fique comigo, mostre-me como funcionam as coisas, e n��o se
arrepender��.
165
�� uma daquelas situa����es do tipo "confie em mim"?
�� uma coisa garantida.
Bem, s�� tem uma coisa que eu quero que voc�� lembre.
O qu��?
Meu nome tamb��m n��o �� Jos��.
166
26
Na manh�� seguinte, decolamos para a regi��o das minas em um
Cessna fretado de quatro lugares.
��� Estamos avan��ando para a regi��o do rio Cuango, a leste
de Luanda, na extremidade nordeste do pa��s. A maioria dos avi��es
com destino �� regi��o dos diamantes pousa em Saurimo, mas �� muito
distante do local onde fica a mina. Depois que aterrissarmos em
uma planta����o de batatas, seguiremos para o norte de carro o res-
to do caminho at�� a mina, em dire����o ao Zaire. Toda a ��rea das
minas de diamantes �� proibida para estrangeiros, a n��o ser que
estejam a trabalho.
��� O avi��o �� o ��nico meio de transporte para l��?
��� �� o mais seguro e o mais r��pido. Um avi��o pequeno como
este nos deixar�� a duas horas da mina.
��� Fale-me sobre Eduardo.
Cross deu de ombros.
��� �� um administrador de minas profissional, mesti��o nasci-
do em Angola. O pai era um portugu��s que tinha planta����o de
caf�� na ��poca da coloniza����o, at�� que a planta����o pegou fogo, na
guerra colonial, e ele mudou para o ramo da minera����o. A m��e
era ovimbundo, um grupo ��tnico importante no pa��s. Eduardo
passou a maior parte da vida lidando com minas. �� esperto o sufi-
ciente para n��o enganar o representante de Savimbi que vem re-
colher o aluguel. Do contr��rio, j�� estaria morto h�� muito tempo.
167
��� Quem era o dono da mina antes de mim?
��� Alguma empresa com sede em Lisboa.
��� J�� ouviu falar em Jo��o Carmona?
��� J��. ��� Cross foi seco.
��� O que sabe dele?
��� Carmona �� um ladr��o, o que n��o �� necessariamente ruim
em Angola, j�� que todos somos ladr��es de certa forma. Ouvi dizer
que �� uma esp��cie de padrinho da m��fia portuguesa. Ele n��o tem
uma boa reputa����o na regi��o por ter sido desonesto com os donos
de minas. Em todo o pa��s �� persona non grata porque cometeu o
erro de passar a perna no governo e nos rebeldes. J�� lhe contei
sobre Savimbi. Ele n��o �� o tipo de pessoa que aceita uma trapa��a.
Carmona levou um tiro na coluna a mando dele. Eu soube que a
id��ia era incapacit��-lo, em vez de mat��-lo, para que passasse o resto
da vida pensando sobre o que acontece com quem engana Savimbi.
��� Carmona j�� teve direito de propriedade da Dama Azul?
��� N��o sei. Estou na mina h�� menos de um ano, e, durante
todo esse tempo, voc�� era o dono. Ele poderia ter algum v��nculo
atrav��s da empresa portuguesa que era a propriet��ria anterior. Se
isso for verdade, deve ter ficado ansioso para se livrar dela antes
de Savimbi descobrir e tirar a mina das m��os dele. Eduardo sabe-
ria, est�� na mina h�� muito mais tempo e tem conhecimento das
sujeiras da empresa. Resta saber se contaria a voc��.
��� Por que n��o contaria? ��� perguntei espantado.
��� Eduardo vive em Angola. Isso significa que o mais importan-
te para ele �� sobreviver. Voc�� �� como um barco que passa durante a
noite. Amanh�� j�� poder�� ter ido embora. Ou estar morto. Ele quer
continuar a ter o direito de escolha. Seja como for, voc�� est�� aqui por
pouco tempo. Ele n��o vai se prejudicar por sua causa, amigo.
��� Por que ele n��o foi ao meu encontro em Luanda?
��� N��o sei, talvez ele seja como eu, n��o liga a m��nima e pre-
tende deixar o emprego. A sua mina n��o �� das mais lucrativas.
Para mim, foi interessante buscar voc�� no lugar dele porque pre-
cisava tomar algumas provid��ncias em Luanda referentes aos meus
neg��cios.
168
��� Ele recebe um sal��rio decente. Voc�� tamb��m n��o ganha mal.
��� Exagero seu. Esses sal��rios s��o bons para os EUA, mas
nenhum de n��s trabalharia em Angola por essa quantia. N��s dois
operamos concess��es por fora. N��s as compramos, vendemos e
negociamos. E sustentamos garimpeiros por uma parte dos lucros.
Jo��o havia dito que as pessoas que trabalhavam para mim tam-
b��m roubariam um tanto para aumentar o sal��rio. Mas eu n��o
conhecia Cross o suficiente para tocar no assunto. Tecnicamente,
Eduardo n��o era seu chefe. E, pelo seu tom de voz, percebi que
n��o havia animosidade entre os dois. Jo��o contou que muitos pro-
priet��rios de minas mantinham uma dist��ncia administrativa en-
tre o chefe das opera����es e o chefe da seguran��a para equilibrar o
poder. Se os dois se unem para roubar, podem saquear toda uma
mina. Obviamente, com um propriet��rio ausente, como era o caso
da Dama Azul, n��o havia ningu��m por perto para mant��-los afas-
tados um do outro.
Durante o v��o em dire����o �� regi��o dos diamantes, pudemos
observar que a partir da costa o terreno se elevava em cadeias de
montanhas e planaltos verdes.
Ap��s duas horas de v��o, aterrissamos em uma pista de terra
pr��xima a uma pequena cidade. O ar estava quente e quase t��o
��mido quanto em Luanda. Segui o exemplo de Cross e enfiei um
len��o na parte de tr��s do colarinho da camisa para absorver o suor.
Eu trocara a elegante roupa esporte por uma camisa caqui e uma
cal��a comprida simples comprada em Luanda. Mangas compridas
e repelente de mosquito eram a ordem do dia. Comprei botas de
amarrar quase at�� os joelhos.
��� Est�� na esperan��a de s�� encontrar cobras pequenas? ���
perguntara Cross ao ver as minhas botas.
Um motorista africano com um Land Rover, que parecia ter
perdido contra Rommel no norte da ��frica na ��poca do Hitler,
aproximou-se do avi��o quando ele parou de taxiar. Uma placa de
madeira na lateral do carro anunciava MINA DAMA AZUL em
letras pretas desbotadas. N��o foi dif��cil imaginar como a mina
169
recebeu aquele nome. O lugar para se encontrar diamantes �� cheio
de dep��sitos de terra "azul".
��� Esse �� o Gomes ��� apresentou Cross, indicando o moto-
rista sorridente e bastante suado. ��� Ele nos leva para os lugares,
busca suprimentos. Pense nele como um motorista de dilig��ncia
que transporta cargas, atravessando a regi��o apache.
A coronha de uma pistola sobressa��a de dentro da camisa de
Gomes. E havia um rifle fixado acima do p��ra-brisa dianteiro dentro
do Rover.
Quando nos afastamos da pista de pouso, na periferia de uma
cidadezinha empoeirada, paramos em frente a um tambor de pe-
tr��leo de 200 litros que fora colocado no meio da estrada. Tr��s
homens uniformizados descansavam �� sombra, fumando e jogan-
do dados. Um deles aproximou-se do carro em passos lentos para
receber o dinheiro.
��� Ped��gio ��� informou Gomes, ao entregar-lhe algumas
notas.
Passamos por uma casa de paredes de cimento e barras de fer-
ro nas janelas e na varanda da frente. Um homem gordo sentado
em uma cadeira de balan��o na varanda enjaulada acenou e gritou
um cumprimento para Cross.
��� Aquele �� Ortego, o maior intermedi��rio de diamantes da
regi��o. Ele compra material das pessoas do rio e dos ladr��es. A
cada m��s, passam mais diamantes pelas suas patas gordas do que
n��s produzimos em um ano. Parece um ing��nuo de trato f��cil, mas,
ano passado, matou dois homens que pensavam assim.
Quando sa��mos do vilarejo de uma s�� rua, paramos diante de
outro tambor de 200 litros.
��� Quisera eu ter a concess��o do ped��gio ��� comentei.
DEPOIS DE UMA HORA andando por estrada de teira em uma gar-
ganta de rio tortuosa, come��amos a ver homens e mulheres traba-
lhando no rio.
��� H�� dois tipos de coleta de diamantes nesta regi��o ��� in-
formou Cross. ��� Na mina, escavamos t��neis dentro do solo, na
170
tentativa de encontrar e seguir um kimberlito, um tubo de dia-
mantes, o que eles chamariam de um veio na minera����o de ouro
ou prata. Mas o que voc�� v�� aqui no rio �� a maneira mais simples
de se encontrar diamantes. Garimpo aluvial. Os diamantes foram
criados nas profundezas do solo, sob enorme press��o. A a����o vul-
c��nica trouxe-os para a superf��cie. Eros��o, terremotos, vento,
chuva e, principalmente, a a����o do rio descobriram os tubos de
diamantes e empurraram as pedras brutas muitos quil��metros rio
abaixo.
"Essas pessoas s��o trabalhadores aut��nomos, sem nenhum v��n-
culo empregat��cio, garimpeiros. Eles entram no rio e retiram a lama de cascalho e areia, na esperan��a de encontrarem pedras brutas.
Os m��todos que utilizam s��o mais ou menos os mesmos que eram
usados nas antigas Corridas do Ouro, h�� 150 anos ��� uma picareta,
uma vasilha e um homem; neste caso, homens, mulheres e crian-
��as. Alguns garimpeiros t��m a sorte de ter anjos como eu que d��o
de lambuja alguns d��lares por m��s para a comida, em troca de uma
porcentagem. Mas geralmente a porcentagem �� zero. Outros, mais
bem equipados, utilizam sluice boxes* ou aspiradores para sugar uma quantidade maior do fundo do rio. A maioria, contudo, trabalha
apenas com as m��os e um balde.
Eu sabia mais sobre a hist��ria da extra����o de diamantes do que
sobre o processo em si. Outro conhecimento adquirido de meu
pai. At�� meados do s��culo XIX, somente a realeza e as pessoas
muito abastadas possu��am diamantes porque seu fornecimento, na
maioria proveniente do Brasil e da ��ndia, era acanhado. Em 1867,
um menino b��er de 15 anos, lavrador, caminhava pela margem
de um rio e pegou uma pedra reluzente que depois foi identificada
como sendo um diamante de 21 quilates. Aquilo, contudo, foi
considerado um golpe de sorte e provocou pouca sensa����o. Dois
anos depois, outro menino descobriu um diamante, desta vez uma
*Sluice box: termo ingl��s, tamb��m usado em portugu��s, espec��fico para minera-
����o. Significa "vaso comprido e inclinado, com ranhuras no fundo, por onde a ��gua escorre para separar a pedra do cascalho ou areia". (N. da T.) 171
pedra de 85,5 quilates, o Estrela da ��frica do Sul ��� e a corrida
come��ou. Homens do mar abandonaram seus navios nos portos
africanos, garimpeiros de ouro abandonaram suas concess��es, fa-
zendeiros deixaram de lado os arados, dezenas de milhares deles.
E foram garimpar em concess��es de 10 m2, "do tamanho de dez
caix��es", como chamavam.
Por fim, a ind��stria da explora����o de diamantes tamb��m pas-
sou a ser subterr��nea, na procura dos tubos de kimberlito men-
cionadas por Cross. Todos os diamantes, exceto os que foram
trazidos para a terra nos meteoritos, vieram das profundezas da
terra, criados quando o carbono sofreu uma press��o e uma tempe-
ratura tremendas, h�� bilh��es de anos. Erup����es violentas impul-
sionaram os diamantes para a superf��cie em "tubos" de material
vulc��nico, no formato de cenoura de cor azul-acinzentada. O
material que levou os diamantes a subir para a superf��cie recebeu
o nome de kimberlito, por causa do "grande buraco" em Kimberley, na ��frica do Sul, uma das primeiras minas de diamantes.
Os tubos de kimberlito que chegaram �� superf��cie ou pr��ximo
dela sofreram a eros��o do tempo e dos terremotos, ao longo de
bilh��es de anos. E os diamantes que neles se encontravam foram
levados por centenas, ou mesmo milhares de quil��metros, nos lei-
tos dos rios, e desembocaram no mar.
Uma fam��lia africana, um homem, uma mulher e duas crian-
��as pequenas que estavam no rio aproximaram-se quando o Land
Rover apareceu. O homem n��o tinha o bra��o direito.
��� Um mutilado ��� disse eu, usando a palavra que ouvira para
descrever pessoas amputadas. ��� Acidente de carro?
��� Fac����o ��� disse Cross. ��� H�� alguns anos, uns garimpei-
ros de rios atrasaram-se no pagamento a um rebelde. Sem se preo-
cupar em identificar quais deles n��o tinham pago, os homens de
Savimbi simplesmente tiraram uns doze da ��gua e cortaram-lhes
os bra��os. S�� um bra��o de cada homem, para que ainda pudessem
trabalhar. Se n��o morressem do ferimento.
Cross saiu do carro, cumprimentou a fam��lia e conversou como
um velho amigo. Depois, tirou um punhado de balas do bolso e
172
deu ��s crian��as. Com o ouvido rec��m-acostumado ao jeito de fa-
lar das pessoas de Luanda, pareceu-me que eles falavam um misto
de portugu��s e algum dialeto africano. O portugu��s era a l��ngua
oficial do pa��s, mas n��o era muito falado fora das cidades e vilas.
Depois de se cumprimentarem, o homem entregou a Cross
v��rias pedras. Cross segurou-as contra a luz e usou uma lupa para
examin��-las. Trocaram mais algumas palavras, Cross deu-lhe um
dinheiro e voltou para o ve��culo.
��� �� um dos meus s��cios. Pago um adiantamento para algu-
mas pessoas do rio, geralmente o suficiente para alimenta����o e
suprimentos, em troca de uma porcentagem. Outras vezes, com-
pro concess��es e consigo pessoas para trabalhar nelas, tamb��m por
uma porcentagem. ��� Ele me deu os diamantes para segurar. ���
Alguma id��ia de quanto valem?
Era um teste. Peguei a lupa de meu pai e fiz uma avalia����o
r��pida.
��� Cont��m impurezas, mas podem ser trabalhados. Em Nova
York, valeriam 1.000, 1.500. N��o tenho id��ia do valor deles aqui.
��� Menos de 10 centavos por d��lar comparando ao valor que
ter��o no atacado em Nova York ou Antu��rpia, provavelmente 100
d��lares com Ortego, o camarada dos diamantes. E isso �� o resulta-
do de uns dois meses de trabalho daquela fam��lia, que por sinal foi
bom, e eles s�� recebem metade, depois de descontadas as despe-
sas. Mas alguns d��lares significam muito dinheiro para quem n��o
tem nada. Estes, eu venderei para Ortego e pagarei aos rebeldes
um imposto sobre eles.
Cross fitou-me com desprezo.
��� Consigo faturar uns 1.000 d��lares a mais por semana com
os meus neg��cios paralelos, o que n��o chega nem perto do que
um cara rico como voc�� gasta em gorjetas, mas mant��m meus p��s
no neg��cio.
��� Esperando pela sorte grande.
��� Exatamente. E os deuses gostam de ludibriar. Eles fazem
voc�� achar um n��mero suficiente de pedras de tamanho razo��vel
para estimular o seu apetite, mant��-lo suando e praguejando, mas
173
n��o o bastante para ficar rico. E, de vez em quando, a sorte bate ��
sua porta. Poucos meses atr��s, uma mulher que trabalhava em uma
concess��o descobriu uma pedra de 80 quilates, com impurezas, mas
ainda assim valendo centenas de milhares de d��lares, mesmo para
o homem gordo. N��o sei quanto ela e o marido receberam ��� se ��
que chegaram a receber alguma coisa. Alguns dizem que est��o em
Luanda vivendo como nababos. Outros, que seus corpos est��o
enterrados atr��s da casa do gordo. Ou em algum dos t��mulos co-
letivos que os rebeldes escavam.
��� O que voc�� acha?
��� Acho que vou ter muita sorte, encontrar uma pedra e des-
cobrir que �� um diamante azul puro de 1.000 quilates. E que o
venderei para um daqueles nerds de computador bilion��rios do Vale do Sil��cio e comprarei uma ilha em algum lugar do Pac��fico Sul
com palmeiras, lindas mulheres nativas, e minha pr��pria cerveja-
ria. Exatamente como nos filmes.
174
27
A mina ficava no topo de um morro. Olhando do sop��, parecia
uma pris��o. Essa impress��o n��o estava distante da realidade. Ha-
via uma cerca externa de 3 metros de altura feita em tela de ara-
me, depois um muro de 2,5 metros encimado por mais 1,2 metro
de arame farpado. Entre as duas cercas, havia um guarda andan-
do com um dobermann. Chegamos direto na guarita.
��� C��us! Estou me sentindo como se fosse cumprir pena em
Alcatraz.
��� H�� tr��s coisas que voc�� deve saber sobre minera����o de
diamantes ��� disse Cross. Seguran��a, seguran��a e seguran��a. Se
houver chance de algu��m descobrir um meio de colocar as m��os
nos diamantes, pode estar certo de que o far��. Os funcion��rios
engolem, enfiam no rabo, fazem voar em pombos-correio, jogam
fora para as esposas procurarem no dep��sito de lixo, introduzem
nos pneus de um caminh��o de suprimento, ou enfiam no tanque
de gasolina para os c��mplices recolherem depois. E essas s��o ape-
nas algumas das artimanhas usadas.
"Os oper��rios se apresentam para uma tarefa de tr��s meses e,
durante esse per��odo, nunca deixam a ��rea da mina. Como os dia-
mantes s��o pequenos e podem ser engolidos aos montes, para n��o
mencionar que podem ser enfiados em outros orif��cios do corpo,
quando o per��odo termina, antes de irem embora para descansar
e se recuperar, os funcion��rios passam por um exame de raio-X.
Assim como qualquer outra pessoa ou coisa que entre em contato
175
com os mineiros, exceto Eduardo e eu. Trabalhe aqui durante al-
gum tempo e voc�� come��ar�� a brilhar no escuro. E estamos longe
de ter um sistema 100% seguro. Eles fazem acordos com o t��cni-
co de raio X para alterar os resultados dos exames e at�� mesmo
para adulterar as m��quinas.
Eduardo n��o estava no escrit��rio quando chegamos. A con-
tadora, Carlotta Santos, uma mulher volumosa da cintura para
cima, usando um vestido que mal cobria seu corpo bem provido,
ficou surpresa ao nos ver. Cross mencionou que Carlotta tamb��m
era de origem luso-africana.
Pela apar��ncia da mulher, logo percebi que era mais do que
uma simples auxiliar para Eduardo. Cross me contara que a espo-
sa e os filhos de Eduardo estavam morando em Luanda. Foi s�� olhar
para a contadora, e tive certeza que ela mantinha a cama dele
quente aqui na mina. Admito que tenho um olho cl��nico para
perceber esse tipo de coisa.
Para uma contadora modesta, ela usava umas pedras muito
boas. A do colar era uma bom diamante de dois quilates. A olho
nu, parecia corresponder a mais do que dois anos do pagamento
dela, mesmo considerando os sal��rios inflacionados da regi��o dos
diamantes.
N��o foi dif��cil imaginar que Eduardo estava sustentando sua
garota com os meus diamantes.
��� Eduardo est�� l�� embaixo, examinando a pe��a de um equi-
pamento que quebrou ��� informou ela. ��� Avisarei que voc��s es-
t��o aqui.
��� N��o �� necess��rio, eu mesmo vou procur��-lo ��� disse Cross.
Ela fitou Cross com uma express��o de desprezo.
��� S�� esper��vamos voc�� amanh��. N��o disse que traria o Sr.
Liberte t��o cedo.
��� Sinto muito.
Ele manteve o rosto impass��vel ao falar ��� o que me deu a
impress��o de que Cross me trouxera mais cedo, deliberadamente,
para surpreender Eduardo e a mulher. Eu n��o sabia se ele queria
pegar o administrador da mina ou alguma outra pessoa roubando,
176
ou se apenas tinha feito aquilo para manter todo mundo alerta.
Havia uma terceira possibilidade ��� que Eduardo e ele estivessem
juntos em alguma jogada, e Cross s�� quisesse mostrar sua for��a.
Cross saiu para procurar o homem, e eu fiquei no escrit��rio do
administrador. Em cima da mesa dele, havia um pacote com dez
pedras. Aproveitei para examin��-las, enquanto esperava. As pe-
dras davam a leve sensa����o "escorregadia" dos diamantes que s��o tirados da terra. Eram todas de alta qualidade e poderiam ser lapidadas e transformadas em gemas de, pelo menos, 1 quilate ou mais.
Diamantes de 10 ou 15 quilates n��o passavam de uma gota
d'��gua no oceano, considerando o que precisava ser extra��do de
uma mina para torn��-la lucrativa. Para cada quilate, muitas tone-
ladas de terra tinham que ser removidas. Mas, supostamente, os
diamantes n��o deveriam parar na mesa do administrador. Seu ��l-
timo destino, antes de serem transportados da mina em total se-
guran��a, seria um cofre na sala de sele����o.
Reparei tamb��m a uniformidade das pedras. Os diamantes que
podem vir a ter 1 quilate depois de lapidados n��o s��o uma amos-
tra t��pica do que se retira de uma mina. Ao contr��rio, eles repre-
sentam apenas uma pequen��ssima fra����o dos diamantes que s��o
extra��dos. A Dama Azul produzia mais pedras de n��vel industrial
do que com qualidade de gema. Esse pacote, obviamente, fora
escolhido a dedo. Tudo levava a crer que eu estava sendo passado
para tr��s.
Cross voltou com Eduardo, em poucos minutos.
O administrador da mina entrou apressado, parecia aturdido.
Com cerca de 50 anos, era magro como um cani��o, tinha pele cor
de cobre e dentes amarelos e acavalados. Enquanto Cross me dava
a impress��o de ser um cara direto e franco, o administrador logo
pareceu-me um indiv��duo espertalh��o e falso.
Ap��s as apresenta����es em portugu��s, continuei na mesma l��n-
gua e apontei para os diamantes na mesa dele.
��� Boas pedras.
��� N��o s��o da mina ��� apressou-se em explicar Eduardo. ���
S��o diamantes aluviais. Tenho concess��es no rio, como Cross.
177
��� ��, mas as suas concess��es pagam muito melhor que as
minhas ��� retrucou Cross.
��� Tenho tido sorte.
��� Quisera eu que a mina tivesse tanta sorte ��� disse eu. ���
Ela produz algumas pedras brutas de certa qualidade, mas na maio-
ria pequenas, com menos de 1 quilate, sendo que muitas s��o do
tamanho de gr��os de areia, e um n��mero imenso de pedras de ta-
manho industrial. Se pud��ssemos produzir com consist��ncia pe-
dras como essas, a mina daria lucro.
��� N��s produzimos o que a terra fornece ��� disse Eduardo.
Forcei um sorriso e retruquei:
��� Se a M��e Terra n��o ficar mais generosa, farei melhor ne-
g��cio pegando um balde e indo para o rio, em vez de despejar di-
nheiro na mina.
��� Imagino, senhor, que, depois de conhecer Luanda e agora
a regi��o das minas, logo concluir�� que estaria melhor em Nova
York.
��� Por que n��o damos uma olhada na mina? ��� perguntei.
��� Agora? Talvez amanh��, depois que estiver descansado e
refeito da viagem...
��� Viajei milhares de quil��metros para conhecer este elefan-
te branco. Prefiro ver tudo agora mesmo.
Cross pediu licen��a para sair e tratar de algumas quest��es do
seu setor.
Segui Eduardo e atravessamos o port��o de seguran��a que se-
parava o pr��dio da administra����o das escava����es.
��� Quanto tempo pretende ficar? ��� perguntou Eduardo.
��� O tempo que for preciso ���respondi. ��� S e vou ser proprie-
t��rio de uma mina de diamantes, quero saber como ela funciona.
Eduardo me dirigiu um olhar que n��o deixava d��vidas de que,
para ele, eu devia estar mentalmente perturbado.
��� Sou do tipo curioso ��� continuei. ��� Quando estou no
controle de uma m��quina, quero saber tudo a respeito de seu
funcionamento. N��o conhe��o nada sobre explora����o de diaman-
tes ��� s�� sei que est�� me custando muito dinheiro.
178
��� A explora����o de diamantes n��o mudou muito no ��ltimo
s��culo ��� contou ele. ���Ainda �� preciso escavar e processar a terra
para se encontrar diamantes. Isso significa que temos que escavar
toneladas de terra para cada pequeno quilate de diamante. H��
cerca de cem anos, Rhodes e outros come��aram a escavar a super-
f��cie da terra e os leitos dos rios atr��s das pedras. Logo come��aram
a escavar po��os e retirar milh��es de toneladas de terra para
examin��-la e encontrar n��o mais que pequenos gr��os de diamante.
"Hoje em dia, a coisa ainda �� feita, mais ou menos, nos mes-
mos moldes que no s��culo passado. As grandes minas pertencen-
tes �� De Beers e outros possuem equipamentos mais modernos,
especialmente no est��gio de processamento, mas a maioria das
minas funciona como a Dama Azul. Os m��todos s��o comprova-
dos, corretos e b��sicos. A minera����o de diamantes n��o �� t��o peri-
gosa, nem t��o suja, quanto a de carv��o. Mas ainda assim devemos
ter todos os cuidados. ��� Dito isso, ele me deu um capacete.
Ouvi Eduardo como se n��o conhecesse nada, mas eu j�� sabia
como os diamantes eram explorados pelas aulas de meu pai. O meu
conhecimento, no entanto, era puramente te��rico. Ver a coisa de
perto seria muito esclarecedor.
��� Se invest��ssemos em equipamentos melhores, aumentaria
a produ����o? ��� perguntei.
��� Poderia aumentar a quantidade de terra processada, e,
portanto, a "produ����o", como voc�� chama. Mas seria uma sim-
ples manobra: investir mais dinheiro no neg��cio para tentar recu-
perar o preju��zo. Uma mina de diamantes pode se transformar em
um saco sem fundo.
Entramos no elevador. Eduardo continuou falando enquanto
desc��amos.
��� O objetivo da minera����o de diamantes �� descobrir os tu-
bos de kimberlito, os veios de terra azul onde os diamantes se
encontram. Os diamantes s��o formados sob uma press��o ex-
traordin��ria a cerca de 150 quil��metros abaixo da superf��cie da
terra e s��o projetados para cima pelas erup����es vulc��nicas. H��
milh��es de anos, quando os vulc��es projetaram a terra azul, uma
179
parte alcan��ou a superf��cie, mas a maioria continuou enterrada,
ou foi enterrada com o passar do tempo.
Ele acenou mostrando o ch��o que est��vamos pisando na des-
cida.
��� O terreno que envolve um tubo chama-se fil��o ou veio. O
fil��o, aqui, tem cerca de 30 metros de espessura, portanto, no in��-
cio, precisamos escavar, pelo menos, 30 metros para chegarmos a
algum diamante.
"Depois do fil��o, antes da terra azul, h�� uma ��rea denominada
terra amarela. Ela ela �� uma mistura de terra cinza-azulada e de ter-
ra comum, um solo que n��o cont��m diamantes, que surgiu da mis-
tura de outros solos com o azul, provocando sua dilui����o, h�� muito
tempo. �� poss��vel encontrar diamantes na terra amarela, mas as
retiradas melhores s��o na pr��pria terra azul, a que �� lucrativa.
"E esse, senhor, �� o problema com a sua mina de diamantes.
N��s s�� alcan��amos terra amarela. N��o h�� terra azul aqui ��� ou
ent��o ela fugiu de n��s. Experimentamos fazer t��neis no fil��o em
todas as dire����es, por��m nunca tivemos verba suficiente para es-
cavar a quantidade necess��ria.
��� E se eu injetasse mais dinheiro? ��� Eu estava blefando.
Nem eu tinha o dinheiro, nem aquele era o tipo de empreendi-
mento que os bancos estariam interessados em financiar. S�� que-
ria test��-lo.
��� Como eu disse sobre novo equipamento, seria um investi-
mento para tentar reduzir o preju��zo ��� opinou Eduardo. ��� A
Dama Azul �� uma puta com um buraco est��ril. Ela quer o dinhei-
ro, mas em troca d�� muito pouco do seu charme. N��s escavamos
apenas o suficiente para continuarmos pagando o aluguel e as
despesas gerais. Voc�� encontrar�� investimentos melhores e mais
seguros para o seu dinheiro nos Estados Unidos. E um lugar mais
tranq��ilo para passar a vida.
O elevador rangeu ao parar. Ao sairmos dele, entramos em um
po��o iluminado com luz fraca cujas paredes eram cobertas de cal.
��� Pintamos as paredes e o teto para reduzir a necessidade de
luz el��trica.
180
Eduardo conduziu-me atrav��s de caminhos para um t��nel onde
j�� n��o havia paredes brancas. Ele indicou os mineiros e uma pilha
de escombros de pedras que estavam no fim do t��nel.
��� Esta ��rea foi dinamitada esta manh��. Primeiro, n��s furamos
buracos na parede a ser dinamitada e os enchemos com explosivos.
Depois da explos��o, os escombros de pedra e terra s��o colocados
em carrinhos de m��o. Vamos acompanhar esses carrinhos.
Os carrinhos de m��o eram levados pelo t��nel. No caminho,
passavam por portas especiais que ficavam fechadas para o caso
de haver alguma inunda����o. A pedra e a terra eram jogadas em
pequenas carretas que se locomoviam sobre trilhos. O ambiente
era escaldante, e o trabalho, exaustivo.
��� Agora seguiremos as carretas nos trilhos at�� o triturador.
Enquanto caminh��vamos, Eduardo contou uma piada antiga
sobre minera����o.
��� Um dia, um mineiro saiu da mina empurrando um carri-
nho de m��o. Os guardas ficaram muito desconfiados e revistaram
o homem de cima a baixo. E n��o descobriram nada. No dia se-
guinte, no fim do trabalho, o mineiro saiu novamente com um
carrinho de m��o vazio. Mais uma vez um exame completo, e nada
foi encontrado. Isso aconteceu dia ap��s dia, at�� o administrador
da mina e o chefe da seguran��a se envolveram nas buscas, mas
n��o encontraram um ��nico diamante com o homem. Sabe por que,
senhor?
Eu sabia, pois ouvira a hist��ria de tio Bernie quando menino,
mas fingi ignorar.
��� Porque ele n��o estava roubando diamantes ��� Eduardo
soltou uma gargalhada e deu um tapa na pr��pria perna. ��� Estava
roubando carrinhos de m��o!
A carga das carretas foi jogada em esteiras transportadoras que
levavam o min��rio para um triturador. Depois que o min��rio era
mo��do e reduzido a terra e cascalho, era levado para a superf��cie
em baldes.
��� Voc�� vai perguntar se n��o h�� perigo de os diamantes se-
rem mo��dos neste aparelho.
181
Eu n��o perguntaria, mas ainda estava bancando o imbecil, e
acenei como se fosse o ignorante por quem Eduardo me tomava.
��� Sim, at�� os diamantes, a subst��ncia mais dura que existe
na terra, podem ser estilha��ados, dependendo do golpe. Existe
sempre a possibilidade de danificar pedras grandes, mas essas pe-
dras s��o extremamente raras. Al��m do mais, ao longo de todo o
processo, os pr��prios mineiros ficam atentos para qualquer coisa
que reflita luz. Eles ganham b��nus quando encontram pedras an-
tes de passarem pelo moedor.
Pegamos o elevador para voltar �� superf��cie. L��, seguimos o
min��rio para os tanques de ��gua.
��� O min��rio que vem dos trituradores �� jogado nesses tanques
e agitado. Os cascalhos maiores e os diamantes afundam, enquanto
que o resto �� levado pela ��gua. As pedras grandes s��o separadas, e o
min��rio residual, o cascalho e os diamantes voltam para uma esteira
transportadora, sendo levados para as mesas de graxa.
As "mesas de graxa" eram plataformas de alum��nio que vibra-
vam, revestidas com uma camada de graxa de cerca de 1,3 cent��-
metro. O min��rio lavado pela ��gua ca��a nessas mesas.
Eduardo continuou a explica����o.
��� A caracter��stica especial de um diamante �� que ele fica
preso na graxa, enquanto que as outras pedras e o cascalho s��o
levados pela ��gua.
Eduardo fechou o fluxo da ��gua por um momento e raspou
um pouco da graxa com uma esp��tula. Com uma caneta, remexeu
a graxa e exibiu v��rias pedras pequenas.
��� Aqui, voc�� v�� os diamantes realmente em estado bruto.
Eduardo falava comigo como se eu fosse um aluno de col��gio
fazendo uma visita educativa na mina. Ele limpou a esp��tula em
uma cesta de metal que parecia uma peneira de cozinha, s�� que
com furos muito mais finos.
��� A graxa �� raspada e colocada nessas peneiras de furos ex-
tremamente finos, e as peneiras s��o introduzidas na ��gua fervente
para remover a graxa. Depois, as pedras s��o selecionadas e classi-
ficadas.
182
Na sala de classifica����o, os t��cnicos analisavam as pedras sob
luz forte, usando lentes de aumento, e as selecionavam. Enquan-
to Eduardo explicava o procedimento, ouvi e reagi educadamente.
Quando sa��mos da sala onde as pedras eram selecionadas,
Eduardo falou:
��� Voc��s americanos sempre gostam de se concentrar nos
resultados, ent��o vamos ao que interessa. A explora����o de dia-
mantes ��, acima de tudo, um simples problema matem��tico. Quan-
do voc�� encontra terra lucrativa, o importante �� saber quantas
toneladas de terra precisam ser retiradas para cada quilate de dia-
mante encontrado. Quanto menos terra for removida e mais dia-
mantes de alta qualidade forem garimpados, maior ser�� o lucro.
"Nossos lucros s��o afetados tanto pelo fato de operarmos em
uma zona de guerra, onde precisamos pagar subornos e tudo custa
mais caro, quanto pelo fato elementar de que n��o chegamos a um
tubo azul. Aparentemente, n��o h�� um tubo azul em nenhum lu-
gar perto desta mina. �� preciso remover muito mais terra amarela
por quilate de diamante do que nas minas que operam o rico solo
azul. Obviamente, quanto mais terra precisa ser escavada, remo-
vida e processada, maior o custo por quilate. Precisamos proces-
sar quase duas vezes mais terra por quilate do que a maioria das
outras minas. �� por isso que esta mina praticamente n��o pode dar
lucro, apesar de toda a minha dedica����o e esfor��o.
Ouvi e n��o disse nada. Eu ainda estava assimilando tudo o que
tinha ouvido e visto desde a minha chegada, h�� poucas horas.
Ele tocou em outro assunto enquanto nos encaminh��vamos
para o pr��dio da administra����o.
��� Fui procurado por um grupo que est�� interessado em com-
prar a mina. Devo receber os detalhes finais muito brevemente,
talvez at�� amanh��. Ouvi dizer que a oferta tem tempo limitado;
voc�� precisar�� decidir logo. J�� avisei para aguardarem, pois espe-
rava a sua chegada.
��� Por que est��o interessados em comprar uma mina que n��o
d�� lucro?
183
��� Eles acreditam que podem reduzir os gastos com m��o-de-
obra. E talvez, consigam, se utilizarem trabalho escravo, ou at��
mesmo os prisioneiros da Unita.
Acrescentei um novo dado ��s informa����es que estava assimi-
lando. Eduardo era t��o sincero e verdadeiro quanto uma prostitu-
ta de Luanda. E menos honesto. Que ele estava me passando para
tr��s roubando diamantes, era ��bvio. Eduardo era um ladr��o. Mi-
nha d��vida era se Cross estava nisso ou n��o. E se eu conseguiria
sair de Angola vivo quando confrontasse os dois.
Eu tamb��m estava refletindo sobre a oferta de compra da mina.
Obviamente, algu��m achava que a mina podia ser operada com
lucro. Ent��o, por que isso n��o estava acontecendo? Eu me sentia
curioso para ver os detalhes da oferta, mas n��o estava muito oti-
mista. Eduardo n��o era do tipo que me informaria sobre alguma
coisa boa.
Antes de nos separarmos, fiz uma pergunta que estava marte-
lando na minha cabe��a.
��� J�� ouviu falar em um grande diamante vermelho, um ver-
melho-rubi de verdade?
Ele sacudiu a cabe��a.
��� Se existe um diamante assim, eu nunca vi. J�� ouvi falar de
uma pedra sem impurezas que pertenceu a um rei, mas n��o sei se
existe de fato ou se n��o passa de uma lenda.
��� E Jo��o Carmona?
Aquilo o pegou de surpresa.
��� Carmona? Um verdadeiro ladr��o, acredite. Desconfio que
estava por tr��s da empresa portuguesa que era dona da mina. Ele
�� muito malvisto em Angola. Cometeu o erro de passar Savimbi
para tr��s. ��� Eduardo riu. ��� Um erro muito grande. Savimbi n��o
�� simplesmente um psicopata �� um psicopata que adora matar. Uma
combina����o muito perigosa para se ter como inimigo.
184
28
Cheguei ao quarto que me foi destinado, no pr��dio que servia de
alojamento para o pessoal da administra����o, e procurei juntar as
informa����es.
Uma coisa era certa, Eduardo estava me roubando. Mas isso
foi muito f��cil descobrir ��� ele mentira sobre a origem das pedras
brutas que vi na sua mesa. As pedras tinham uma sensa����o escor-
regadia. Os diamantes que saem do solo t��m uma pel��cula oleosa.
Suponho que seja por isso que eles grudam na mesa de graxa. J��
no caso dos diamantes aluviais, a pel��cula oleosa �� eliminada pela
a����o da ��gua e de outros elementos a que ficam expostos ��� outro
ensinamento de meu pai durante aquelas sess��es depois da escola.
As pedras entregues a Cross pelo garimpeiro do rio, que ele
me pedira para examinar no Land Rover, n��o tinham essa sensa-
����o escorregadia. As de Eduardo tinham. Estas vinham da minha
mina e tinham sido desviadas antes de passar pela sala de sele����o.
Geralmente, quando as pedras chegam aos t��cnicos classificado-
res, a pel��cula escorregadia j�� saiu com a a����o da ��gua fervente, o
que significa que iam parar no bolso de Eduardo dentro da mina.
E a mais prov��vel fonte dos roubos era a mesa de graxa.
Estaria Cross envolvido nisso com Eduardo? Eles tinham per-
sonalidades diferentes ��� um era direto, o outro, ardiloso ���, mas
ambos trabalhavam para um propriet��rio ausente, a milhares de
quil��metros de dist��ncia. Tamb��m seria mais dif��cil para Eduardo
185
roubar sem envolver o chefe da seguran��a. E Cross tinha sido cla-
ro sobre o fato que estava em Angola por uma ��nica raz��o ��� vol-
tar para casa com o bolso cheio. Obviamente, essa tamb��m era a
��nica raz��o para eu estar no pa��s.
N A MANH�� SEGUINTE observei da janela at�� ver Eduardo atra-
vessar o port��o da mina. Ent��o deixei meus aposentos e cheguei,
bem cedinho, na sala da contadora.
��� Quero ver os livros, Carlotta.
Ela me olhou como se eu tivesse acabado de sair de um disco
voador.
��� Os livros? Por qu��?
��� Porque sou o dono disto aqui.
Pude ver pela sua express��o zangada que ela n��o estava acos-
tumada a ser questionada, o que s�� refor��ou a minha tese quanto
a seu relacionamento com Eduardo. As pessoas tendem a ser mais
cautelosas com a namorada do chefe do que com um ajudante dele.
Ela era sensual, selvagem no corpo e na sexualidade, quente de-
mais para um homem conseguir trabalhar ao seu lado sem que a
testosterona lhe subisse �� cabe��a. E Eduardo n��o me parecia ser
um homem que fosse imune a uma libidinagem. Mas a maior pista
era o tratamento formal que usavam entre si, "Sr. Marques isto..."
e "Srta. Santos aquilo...".
Chamar um ao outro de "senhor" e "senhorita" n��o era o tratamento a ser usado por duas pessoas que trabalhavam juntas em
um escrit��rio o dia inteiro, todos os dias, a n��o ser que tivessem
alguma coisa a esconder e precisassem manter as apar��ncias.
Sentado em frente aos livros da contabilidade, me dei conta
que nem sabia como decifr��-los. Fui afastado da faculdade sem
nunca ter cursado qualquer disciplina da ��rea de administra����o,
muito menos contabilidade.
Fixei os olhos nos livros e perguntei-me o que, diabo, eu devia
fazer. Era prov��vel que conseguisse apreender os pontos princi-
pais, mesmo que um pouco da terminologia me confundisse. Con-
tudo, percebi que eles s�� me informariam sobre a situa����o atual
186
da mina. Para poder avaliar os n��meros, eu precisava de uma re-
fer��ncia, a fim de compar��-los com os livros dos anos anteriores
ou de outras minas com produ����o semelhante.
Pesquisei o melhor que pude. Havia resumos mensais e anuais,
e dali n��o foi dif��cil obter um quadro geral da empresa. Pelo me-
nos no papel, a mina apenas se mantinha: dava um pequeno lucro
em um m��s, preju��zo no outro.
Os livros confirmavam a explica����o de Eduardo de que a mina
n��o fazia dinheiro devido �� falta de sorte para encontrar diaman-
tes. N��s moviment��vamos muitas toneladas de terra por quilate.
Em poucas palavras, era isso.
Eu estaria conformado se n��o tivesse a certeza de que ele es-
tava me enganando.
Da mesma maneira, eu n��o sabia se Eduardo estava roubando
o suficiente para tornar a mina significativamente menos lucrati-
va. Era quase um fato estabelecido que Eduardo e Cross roubariam
um pouco como b��nus por trabalharem em uma zona de guerra. E
que eu deveria fazer vista grossa para isso. E tamb��m era de se
esperar que Eduardo roubasse um pouco, sem Cross tomar conhe-
cimento. No entanto, se estava retirando da mina diamantes em
quantidade suficiente para afetar sua lucratividade, Cross teria que
estar metido nisso com ele.
O roubo de diamantes n��o era a ��nica coisa que eu estava
procurando. Ainda me preocupava a maneira como Eduardo me
informara que havia uma oferta de compra. A identidade dos com-
pradores era vaga. E a hist��ria de eles precisarem de uma decis��o
imediata... N��o era assim que se processava a venda de uma mina,
mesmo em uma zona de guerra. Para n��o mencionar que ningu��m
faria uma oferta por uma mina, se n��o a tivesse examinado no lo-
cal, minuciosamente. E, mais uma vez, ao assinar a escritura.
Ocorreu-me que Eduardo poderia estar participando da ven-
da, um s��cio oculto. Talvez at�� mantivesse a produ����o baixa
deliberadamente, para fazer cair o pre��o de venda da mina.
Enquanto examinava os livros, comecei a procurar incongru��n-
cias, alguma coisa que me informasse que a retirada de diamantes
187
era maior que a quantidade contabilizada. Examinei o volume de
terra escavada e processada comparado ao n��mero de quilates m��s
a m��s, mas encontrei uma consist��ncia razo��vel. Examinei a quan-
tidade e a qualidade das pedras segundo o relat��rio da sala de sele-
����o e comparei-as ao que era vendido aos compradores de atacado,
mas novamente n��o havia nenhuma incoer��ncia flagrante.
Decidi examinar os livros de anos anteriores para ver se havia
um padr��o.
��� Me d�� os resumos da contabilidade dos ��ltimos dez anos ���
pedi �� contadora.
��� N��o h�� nenhum.
��� Por que n��o?
��� Senhor, a mina s�� est�� funcionando h�� dois anos!
Ora, por que n��o pensei nisso antes? Fale o m��nimo poss��vel,
Win, repeti para mim mesmo, voltando a enfiar a cabe��a nas contas.
Passei a manh�� inteira reexaminando os livros, em busca de
alguma inconsist��ncia que se destacasse. Nada me chamou a aten-
����o. Na certa, eu estava deixando passar alguma coisa.
Finalmente, conclu�� que Eduardo n��o estava falsificando os
livros. O que me levou a essa conclus��o n��o foi o meu pouco co-
nhecimento de contabilidade, mas a rea����o da contadora ao meu
pedido de ver os livros. Ela estava surpresa, at�� mesmo irritada,
mas n��o temerosa. E Eduardo apareceu ali uma vez para dizer al��,
enquanto eu examinava os livros e tamb��m n��o estava nervoso.
Ele tinha que estar roubando os diamantes, antes de entra-
rem na contabilidade. E Cross tinha uma participa����o nisso.
Quando terminei, Eduardo me chamou no seu escrit��rio.
��� Ficou satisfeito com a an��lise da contabilidade?
��� Sim, tudo parece estar em ordem.
��� Bom, bom. Agora que confirmou que as condi����es finan-
ceiras da mina s��o muito prec��rias, devo encoraj��-lo a aceitar a
oferta de venda. Ela me foi passada por telefone esta manh��. Infe-
lizmente, tamb��m devo inform��-lo dos meus planos de deixar sua
firma. Minha mulher e os filhos est��o ansiosos para que eu volte
para a nossa casa em Luanda.
188
��� Sinto ouvir que est�� nos deixando. Isso, claro, ter�� algum
efeito na minha considera����o sobre a oferta. O que exatamente
eles est��o oferecendo?
��� Basicamente, �� um pagamento a voc�� de 500 mil d��lares
americanos em dinheiro. Naturalmente, metade do produto de
qualquer venda vai para a Unita.
��� Quem est�� fazendo a oferta?
��� Uma empresa da Africa do Sul. Pelo que sei, foi constitu��-
da recentemente uma sociedade de v��rios empres��rios ricos com
experi��ncia em explora����o de diamantes. Como a oferta �� em di-
nheiro vivo, eles n��o acham necess��rio fornecer mais informa����es
sobre o grupo.
��� Francamente, Eduardo, os 250 mil d��lares que eu recebe-
ria l��quidos, depois de entregar metade para os rebeldes, n��o pa-
gariam a minha bebida. E isso n��o significa que o governo em
Luanda n��o v�� tomar o restante, antes de eu entrar em um avi��o.
O que est�� ganhando com a transa����o?
��� Nada, claro. Voc�� �� o dono da mina, e eu irei embora de
qualquer jeito. A quantia que est�� no papel �� apenas a oferta p��-
blica deles. Poderia ser feito um acordo no qual depositariam, no
seu nome, meio milh��o de d��lares em uma conta de banco na
Su����a. No papel, a Unita veria que voc�� s�� est�� recebendo meta-
de dessa quantia, portanto a sua d��vida com eles seria apenas de
125 mil. Eu n��o deveria dizer isto, mas desconfio que voc�� pode
induzir os novos propriet��rios a pagar a taxa do pessoal de Savimbi
e deixar o meio milh��o inteiro para voc��, l��quido.
Fingi pensar sobre aquilo, enquanto tentava calcular quantos
n��veis de fraude eu estava enfrentando. Para um homem que n��o
estava ganhando nada com a transa����o, Eduardo n��o s�� sabia
muita coisa sobre ela, mas tinha poder para negoci��-la ��� inclusi-
ve autoriza����o para aumentar o pre��o.
Meu detector de mentiras soava como uma sirene de ataque
a��reo. O camarada estava ansioso demais para me afastar dali com
dinheiro no bolso, mesmo que fosse uma quantia insignificante
comparada ao que eu estava acostumado. E nem sequer pediu uma
189
porcentagem por estar negociando a transa����o. Estava fazendo aqui-lo pela bondade do seu cora����o.
N��o gostei daquilo.
Eduardo tinha um v��nculo com a oferta, algo que estava acon-
tecendo por debaixo da mesa. A amea��a de deixar o emprego ti-
nha por objetivo pressionar-me a vender. Eu n��o precisava de
nenhuma press��o, mas teria que receber muito mais do que algu-
mas centenas de d��lares. Por uma mina na qual eu j�� investira mais
de 5 milh��es.
��� Vou pensar a respeito.
��� Os compradores precisam...
��� Raios, eu preciso de um tempo, Eduardo, acabei de che-
gar aqui. N��o estou descartando a oferta, s�� quero pensar um pouco
sobre ela. Talvez, conversar com meu advogado e meu contador.
Diga aos compradores que estou pensando na oferta. A mina n��o
vai fugir daqui.
190
29
Decidi conhecer a mina por conta pr��pria ��� sem Eduardo do meu
lado para me mostrar s�� o que lhe interessava que eu visse. Que-
ria estudar cada detalhe da opera����o. Era poss��vel que, em breve,
eu fosse administrar sozinho a mina. N��o era algo para se apren-
der em algumas horas, mas tamb��m n��o era preciso ser um g��nio
para supervisionar uma mina de diamantes, principalmente por-
que eu s�� assumiria esse papel enquanto n��o encontrasse outro
administrador ou recebesse uma oferta de compra razo��vel.
O mais complicado em uma mina de diamantes era evitar fa-
zer alguma asneira, como inund��-la, causando um desmoronamen-
to; ou, como acontece com mais freq����ncia, ser surpreendido sem
as pe��as sobressalentes para uma m��quina. Um outro problema
s��rio �� n��o contar com um mec��nico para uma m��quina essencial
que, porventura, venha a sofrer uma avaria e pare de funcionar,
interrompendo todo o trabalho da mina, como seria o caso do ele-
vador, das esteiras transportadoras e do triturador.
Diferentemente de uma mina de carv��o, o risco de explos��o
era pequeno na Dama Azul, e tamb��m n��o havia os quil��metros
de t��neis que geralmente se v�� em outros tipos de minas. Estudos
geol��gicos e sondagens forneciam indica����es sobre onde poderiam
ser encontrados diamantes e fontes de ��gua subterr��nea que repre-
sentassem algum perigo e determinavam a dire����o em que os t��neis
deveriam ser escavados. Se eu conseguisse manter a maquinaria
191
em atividade, os oper��rios nas suas respectivas fun����es e uma re-
ceita regular com a venda da produ����o, a mina poderia sobreviver
livre de preocupa����es, principalmente financeiras, at�� a sorte gran-
de chegar. Pelo menos, essa era a minha esperan��a.
Eu precisava ter uma no����o b��sica sobre toda a opera����o, al��m
de conhecer os nomes, rostos e fun����es das pessoas-chave, para
ter condi����es de manter a mina operando, at�� encontrar um subs-
tituto, se Eduardo fosse embora. A maior parte do tempo, o ca-
marada que lubrificava as engrenagens das esteiras transportadoras
e do elevador, ou que sabia mant��-los em atividade com uma cha-
ve inglesa e um chute, era mais importante para o funcionamento
di��rio do que o administrador da mina, que passava 99% do tem-
po no seu escrit��rio, ao telefone ou remexendo pap��is. Ou tre-
pando com a contadora.
Entrei no elevador para descer para o andar das opera����es e
me aproximei do contramestre em servi��o.
��� Vamos dar uma volta, quero aprender como isso funciona.
O portugu��s dele era limitado, mas deu para entender o que
eu queria. Com um pouco de portugu��s, algumas express��es lo-
cais que eu aprendera e muita gesticula����o, conseguimos nos co-
municar enquanto eu lhe perguntava a respeito de tudo o que via.
Antes do triturador, vi uma pequena pedra bruta e esfreguei-
a entre os dedos, sentindo a pel��cula escorregadia que faria com
que ela se prendesse �� graxa mais adiante, na linha de produ����o.
Quatro horas mais tarde, eu j�� tinha uma id��ia geral de como
lidar com os explosivos, regular o triturador, fechar as portas de
seguran��a contra inunda����o, assentar uma pista de trilhos, subs-
tituir um cabo de elevador e uma centena de outros procedimen-
tos essenciais, quando cheguei �� mesa de graxa. No caminho,
mostrei a um mec��nico como diagnosticar um problema com o
motor de um pequeno trator rebocador de vag��es. De motor a
gasolina ou diesel, eu entendia mais que qualquer um na mina. A
��nica coisa que eu conhecia melhor que um motor era como fun-
ciona o corpo de uma mulher.
192
Enquanto observava o oper��rio da mesa de graxa colocar a
mistura nas peneiras de sele����o, ele cuidadosamente retirou uma
pedra de cerca de dois quilates e me ofereceu. Sorri e agradeci.
Depois, treinei remover o lixo e espalhar a graxa na mesa para
certificar-me de que sabia exatamente como aquilo era feito.
O oper��rio sabia menos portugu��s que o contramestre, mas,
com os dois juntos, consegui esclarecer a quest��o da freq����ncia com
que o oper��rio da mesa de graxa separava pedras para Eduardo
como acabara de fazer para mim.
��� Ele diz que separa algumas pedras por semana, talvez, n��o
mais ��� informou o contramestre. O contramestre n��o era idiota.
Mas era honesto. A express��o em seu rosto permaneceu impass��-
vel quando ele confirmou a minha suspeita de que era na mesa de
graxa que Eduardo roubava os diamantes. Avisei ao contramestre
que acrescentaria um b��nus no pagamento desta semana para cada
um dos dois ��� se a nossa conversa ficasse s�� entre n��s.
Fiz alguns c��lculos r��pidos com base nas pedras que vira no
escrit��rio de Eduardo, no que acabara de ouvir do oper��rio da mesa
de graxa e no pre��o pago pelo homem gordo comprador de dia-
mantes. Cheguei �� conclus��o que Eduardo colocava no bolso uns
2 mil d��lares, por semana, em diamantes. N��o era uma quantia
insignificante, nem em Angola. No entanto, considerando que
metade da produ����o notificada terminava no bolso do governo
ou dos l��deres rebeldes, se o dinheiro tivesse voltado para a pro-
du����o da mina, n��o significaria tanto assim.
N��o havia como o roubo de Eduardo na mesa de graxa estar
influenciando tanto assim na situa����o financeira da mina.
Perguntei-me se a oferta dos sul-africanos n��o seria um sim-
ples esquema de lavagem de diamantes de sangue, semelhante ao
que Jo��o tinha em mente ��� diamantes de sangue em troca de
armas. Essa era uma boa possibilidade. A minha mina dava pre-
ju��zo e poderia ser comprada por um pre��o baixo.
Mas, enquanto me dirigia para a sala de sele����o a fim de exa-
minar a a����o de pesagem e classifica����o das pedras, um pensamento
come��ou a me importunar.
193
A mina vale cada d��lar que Bemie pagou por ela.
Bernie tinha seus defeitos, mas n��o era um tolo, apesar de ter
agido como tal algumas vezes. Ei, Bemie, aplique tudo o que voc��
tem em uma mina de diamantes de sangue em uma zona de guerra do
outro lado do mundo! Aplique a heran��a do garoto tamb��m!
Em Nova York, abalado pelo fato de estar quebrado, acreditei
naquela hist��ria. Contudo, depois de conversar com Jo��o em Lis-
boa, de ver a mina e pensar melhor sobre Bernie, aquilo n��o fez
nenhum sentido.
Falei em voz alta para ouvir como soava:
��� Bernie n��o era um imbecil.
Bernie sabia que meu pai n��o confiava em Jo��o. N��o teria se
aliado a ele. Pelo menos, n��o em um empreendimento absurdo.
Sim, receber grandes lucros em diamantes de sangue e ser proprie-
t��rio de uma mina de diamantes era o tipo de coisa que o seduzia.
Mas Bemie n��o era um idiota. Raios, administrou a firma por mais de dez anos, depois que meu pai morreu. Ele n��o era a pessoa
mais din��mica e perspicaz do mundo, mas conseguiu mant��-la em
funcionamento ��� sem lev��-la �� fal��ncia, at�� surgir esse esquema
perverso de Angola.
Eu tinha que levar em conta ainda que Bernie era conserva-
dor demais para arriscar tudo em um esquema de lavagem de dia-
mantes com Jo��o. A ��nica hip��tese vi��vel para ter resolvido arriscar
tanto, seria por acreditar que o esquema era garantido. Eu podia
imaginar como tudo aconteceu. Ele teria sido atra��do para um
neg��cio de diamantes de sangue com Jo��o. Era lucro r��pido, um bom
retorno do investimento, e trazia um elemento de conspira����o
criminal que Bernie teria apreciado.
Bernie n��o era meu pai, n��o era t��o esperto para fazer neg��-
cios, nem tinha o charme dele para se promover. Ele tinha um cal-
canhar de Aquiles ��� seu ego. Por outro lado, tamb��m tinha olho
cl��nico para o neg��cio de diamantes. O que lhe faltava em termos
de intelig��ncia inata, ele compensava com o que aprendera por
osmose ��� o neg��cio de diamantes estava no seu sangue, j�� que
passara a vida inteira nisso. At�� surgir o neg��cio da mina, n��o s��
194
preservara minha heran��a, mas conseguira faz��-la crescer a cada
ano, apesar dos meus gastos excessivos. Tive tanta raiva dele quan-
do descobri que estava quebrado que nem sequer reconheci seu
m��rito.
O neg��cio de diamantes de sangue de Jo��o teria sido ousado
demais para Bernie apostar tudo nele. Pensando bem, eu n��o con-
seguia imagin��-lo arriscando absolutamente tudo o que tinha dis-
pon��vel, sem ter um plano que o amparasse. Com toda certeza,
acreditou que havia alguma alternativa que o garantiria e para a
qual ele poderia se voltar. Mas isso falhou.
O que diabos havia naquela mina que era do conhecimento
de Bernie, de Eduardo e do grupo sul-africano que eu n��o sabia ���
e tinha certeza que Jo��o tamb��m n��o?
E o que teria acontecido para transformar a transa����o em ta-
manho desgosto, a ponto de levar Bernie a acabar com a vida
daquela maneira? Ou teria ele recebido ajuda para pular da janela?
Outro flash intuitivo passou pela minha mente.
Bernie soube de alguma coisa sobre a mina que o fez arriscar
muito dinheiro nela. Tinha que ser isso. Ele era esperto demais
para aceitar participar de um neg��cio com tantas perdas financei-
ras, sem que houvesse um plano alternativo.
Fiquei remoendo um outro pensamento. Eu tinha curiosidade
de saber onde Simone estava durante as negocia����es. Bernie n��o
era tolo com quest��es de dinheiro, mas como agiria ele quando se
tratava de mulheres?
Se havia algu��m no mundo capaz de convencer um cara como
Bernie a n��o ir atr��s do que ele mais sonhava, esse algu��m era
Simone.
Simone. Bernie. Diamantes de sangue. A Dama Azul.
Fiquei com dor de cabe��a.
Fui para o meu quarto e me afoguei em uma garrafa de vinho
verde.
195
30
Na manh�� seguinte, enquanto eu decidia o que fazer a respeito da
mina, que estava no vermelho, recebi a visita do Diabo.
Ainda em processo de aprendizagem, entrei na mina com o
pessoal do turno do dia. Poucos mineiros falavam um portugu��s
razo��vel, mas juntei-me ao mesmo contramestre da v��spera, com
quem conseguira me comunicar bem. Na noite anterior, eu evita-
ra, deliberadamente, encontrar Cross e Eduardo. Jantei no meu
quarto, sozinho, e mais bebi do que comi.
��� J�� trabalhou em outras minas? ��� perguntei ao contramestre.
Ele deu de ombros.
��� Em algumas.
��� Percebeu alguma coisa diferente nesta aqui?
��� Umas t��m equipamentos melhores, outras piores, umas
atingem a terra azul, outras a amarela, e algumas n��o passam da
terra marrom e n��o alcan��am nenhum diamante. Esta mina �� mais
ou menos semelhante �� maioria, nem rica, nem pobre.
��� Temos que chegar a um tubo de kimberlito para a mina
ficar rica, correto?
��� Com certeza. Se atingirmos terra azul, todo mundo ficar��
feliz.
Ele quis dizer tanto o propriet��rio quanto os mineiros, pois eles
recebem uma bonifica����o quando a retirada ultrapassa certos li-
mites.
196
��� A mina alguma vez atingiu terra azul? ��� Era um tiro no
escuro.
Ele sacudiu a cabe��a.
��� Nada da azul, s�� a amarela. Mas h�� diamantes na terra
amarela. O problema �� que n��o s��o t��o numerosos. Algum dia,
alcan��aremos a terra azul, n��o ��, senhor? �� por isso que o nome
dela �� Dama Azul. Uma dama n��o �� uma puta.
��� Espero que ela fa��a jus ao nome que tem.
Pedi ao contramestre que me mostrasse tudo novamente, e,
depois, mais uma vez. Pela minha experi��ncia com motores de
carros e barcos, eu sabia que, quando os deuses querem, o que falha
e compromete a corrida n��o �� uma pe��a grande do motor que se
danifique, mas sim a mangueira de borracha de 2,5 cent��metros
ou uma junta de veda����o da espessura de uma folha de papel.
��� Tamb��m quero ver todas as pe��as sobressalentes ��� avisei
ao respons��vel pelo estoque de pe��as e equipamentos. O estoque
do material de reposi����o era pobre, n��o s�� em raz��o da situa����o
financeira da mina, mas tamb��m devido ��s dificuldades envolvi-
das na importa����o de equipamento. Cerca de metade dos carre-
gamentos desaparecia entre a fuselagem do avi��o e o dep��sito
aduaneiro.
��� Muitas vezes n��s compramos novamente dos ladr��es as
pe��as que nos s��o enviadas ��� contou-me o respons��vel pelo in-
vent��rio das pe��as. ��� Al��m disso, h�� os impostos. O governo re-
colhe um imposto, os rebeldes, outro. E, se o equipamento precisa
ser trazido por terra num caminh��o, passa por muitos ped��gios ao
longo do caminho.
Permutar pe��as e acess��rios com outras minas tamb��m fazia
parte do esquema. N��o era um processo organizado. Logo desco-
bri que, apesar da minha arrog��ncia, eu tinha muito a aprender.
Sim, eu sabia mais do que Eduardo sobre o conserto dos motores
utilizados para operar os equipamentos da mina. Mas era comple-
tamente ignorante quando se tratava de obter uma correia sobres-
salente para um gerador, j�� que n��o se podia telefonar para a loja
mais pr��xima e pedir que a entregassem.
197
No almoxarifado onde os equipamentos e pe��as de reposi����o
eram armazenados, a maioria das prateleiras estava vazia. O
almoxarife informou que Eduardo estava reduzindo o estoque de
equipamentos e pe��as de reposi����o aos poucos, com a explica����o
de que a mina n��o tinha condi����o financeira para manter esse
material armazenado. Aquilo fez o meu sangue ferver, porque per-
cebi que fazia parte do plano de Eduardo deixar a mina no verme-
lho. Apesar de o equipamento custar muito mais aqui do que na
Europa ou nos Estados Unidos, na sua maioria ainda representa-
va uma despesa pequena, se comparada ao custo total do funcio-
namento da mina. Uma polia de elevador de 50 d��lares quebrada
poderia paralisar a mina inteira, at�� ser substitu��da. A mina n��o
estaria operando, mas a maior parte das despesas gerais continua-
ria se acumulando porque os oper��rios permaneciam na mina.
O almoxarife tinha um primo que fazia a maior parte dos pe-
quenos mandados e das negocia����es, quando ele precisava de
pe��as. Esse primo atuava em toda a regi��o das minas.
��� Quero uma lista de tudo o que precisamos ��� pedi ao
almoxarife. ��� E de todas as pe��as que costumam dar problema.
Pela sua experi��ncia, voc�� sabe o que estamos sempre compran-
do. Coloque o seu primo para trabalhar e fa��a uma lista agora, antes
de precisarmos do material.
Tive uma id��ia.
��� O seu primo aceitaria receber pedras, em vez de dinheiro,
como pagamento?
O almoxarife foi evasivo para n��o se comprometer, mas per-
cebi que tinha acertado em cheio. A mina pagava �� Unita uma
parte do produto da venda de pedras brutas. Se eu pagasse o equi-
pamento com pedras que n��o entrassem no montante da Unita,
poderia ganhar um grande desconto. E o primo ficaria feliz por-
que receberia um valor maior em diamantes do que em dinheiro
vivo. Estava curioso para saber quantas outras despesas da mina
poderiam ser pagas com diamantes. Talvez, eu conversasse com
Cross sobre pagar o seu sal��rio em pedras brutas. Depois de resol-
ver o que faria com Eduardo e descartar a possibilidade de os dois
estarem juntos no esquema dele.
198
Eu estava observando o processo de dinamita����o, quando um
dos mineiros se aproximou e me entregou uma mensagem. Cross
queria me ver.
Ele me esperava no elevador.
��� Entre, o diabo o espera l�� em cima.
��� Este pa��s �� quente demais para o diabo.
��� �� verdade, mas esse cara �� conhecido como O Diabo ��� e
n��o �� pela apar��ncia, e, sim, porque ele meteria medo no pr��prio
Satan��s. O coronel Jomba �� o supervisor regional de Savimbi e o da
Unita que verifica se estamos cumprindo com as nossas obriga����es.
��� O que ele quer?
��� O que essa gente sempre quer? Est�� na hora de pagar o
aluguel. Eduardo deixar�� que ele examine os livros e lhe entrega-
r�� a percentagem da produ����o da mina, mas o coronel Jomba fez
um pedido especial de falar com voc��. Em particular.
��� Por qu��?
��� N��o fa��o a menor id��ia.
��� Voc�� �� um chefe de seguran��a de merda.
Cross segurou meu bra��o antes de sairmos do elevador e pu-
xou-me para um canto, de modo a n��o ser ouvido por um grupo
de mineiros que esperava para descer.
��� Cuidado com o que diz a esse Jomba, voc�� nunca conheceu
ningu��m como ele. �� uma besta selvagem que nem parece huma-
no, igualzinho a Savimbi. Poder��amos compar��-lo a um atacante de
135 quilos dos Chicago Bears com o apetite de Jeffrey Dahmer. Se
voc�� o fita com jeito de quem o est�� ludibriando, ele manda dece-
parem seus bra��os. Se o trapaceia em 50 centavos, ele ordena que
as amputa����es sejam feitas bem devagar. Dessa maneira, voc�� po-
der�� pensar no que fez enquanto sangra at�� a morte. Milh��es de
pessoas morreram nessa guerra maluca, e homens como Jomba
mataram, pessoalmente, centenas, talvez milhares delas.
Eu tinha uma id��ia do que o coronel queria falar comigo. Mas
n��o era algo que pudesse revelar a Cross. Jo��o me avisara que eu
seria procurado sobre o esquema de troca de diamantes por ar-
mas. Imaginei que fosse isso. Meus joelhos ficaram bambos. Em
199
que, diabos, eu me metera? Lidar com armas e diamantes de san-
gue em Angola tinha uma conota����o totalmente diferente de Lis-
boa. Se eu n��o tivesse muito cuidado, meu pr��prio sangue estaria
manchando os diamantes.
Havia uma fileira de jipes equipados com metralhadoras e
m��sseis antitanque estacionados em frente ao port��o da mina. Trin-
ta a quarenta soldados mal-encarados estavam pr��ximo aos ve��-
culos. Havia um ��dio t��o percept��vel naquele grupo, que mais
pareciam ser os saqueadores que eram do que tropas do governo.
Cross me segurou pelo bra��o de novo.
��� Estar�� sozinho, mano, eu n��o fui convidado. N��o irrite O
Diabo porque, se o fizer, n��o poderei ajud��-lo. Fique de boca fecha-
da, de carteira aberta, e procure demonstrar medo. Se cagar nas
cal��as, impressionar�� melhor do que com uma conversa de dur��o.
��� Demonstrar medo vai ser f��cil.
��� Uma ��ltima coisa. Se for convidado para um churrasco, ��
bem poss��vel que voc�� seja o prato principal. Uma ocasi��o, o ho-
mem queimou um garimpeiro em um poste porque ele escondera
alguma coisa. Provavelmente, o camarada o trapaceara em 50
centavos.
Meu Deus! Enquanto me aproximava do homem, percebi que
Cross n��o tinha exagerado ��� o coronel poderia matar o apetite
de Hannibal Lecter, o canibal. Ele era um touro, de cintura larga,
bra��os longos e pernas curtas da grossura de um tronco de ��rvore.
A cabe��a era grande e n��o tinha um fio de cabelo. Tinha pesco��o
de touro. Juntando tudo isso, o resultado �� um camarada que po-
deria arrancar-me os bra��os e pernas e ainda espancar-me com eles.
Quando cheguei mais perto, o quadro piorou. Ele tinha chifres
de diabo tatuados em cada um dos lados da cabe��a. E uma tatuagem
em volta do pesco��o que simulava um cord��o de arame farpado. N��o me escaparam as cicatrizes de faca dos dois lados do rosto.
As tatuagens n��o pareciam ter a inten����o de amedrontar nin-
gu��m. O homem j�� metia medo por natureza. Sem d��vida, ele
acrescentara os chifres e o cord��o de arame farpado apenas pelo
aspecto decorativo.
200
Mas aquilo realmente amedrontava.
O coronel trazia debaixo do bra��o um porrete de oficial do
ex��rcito. Suas botas brilhavam como espelho. Medalhas em abun-
d��ncia enfeitavam o peito. Havia uma semi-autom��tica de 9 mm
em um coldre, presa ao seu quadril direito, e outra sob o bra��o
esquerdo. Nele, as armas pareciam brinquedos de crian��a ��� ele
deve ter crescido com elas, desde quando era um beb��.
Enfim, a sensa����o era de que ele tinha escrito na testa "filho-
da-puta perigoso".
Eu n��o podia imaginar nenhum dono de mina se atrasando
com o aluguel. Deixar de fazer um pagamento era o mesmo que
ver a morte de perto.
O que se diz a um camarada com tatuagens de chifres de dia-
bo e arame farpado?
��� Ol��. Meu nome �� Win Liberte ��� apresentei-me em por-
tugu��s.
��� Sou o coronel Jomba ��� disse ele.
��� Prazer em conhec��-lo. ��� Ia estender a m��o para cumpri-
ment��-lo, mas deixei-a ca��da do lado do corpo. Eu n��o sabia se ele
a soltaria depois.
Os dentes eram afiados como os de um tubar��o. Perguntei-me
se os mandara afiar propositalmente. Talvez fosse uma demons-
tra����o de estilo, como o arame farpado e os chifres de diabo. Ou,
quem sabe, os dentes tenham ficado assim, de tanto mastigarem
os ossos das v��timas.
No jipe ao seu lado, uma caveira humana enfeitava o cap��.
Outra demonstra����o de seu estilo.
Ele segurava o porrete que estava preso �� perna, enquanto
caminh��vamos e convers��vamos. Seu portugu��s era excelente,
refinado, melhor que o meu dialeto de cozinha.
��� O Sr. Carmona lhe contou sobre o plano, quando esteve
em Lisboa?
Eu estava certo. Este era o contato do esquema dos diaman-
tes de sangue.
201
��� N��o, exatamente. Mencionou que pretendia organizar um
esquema envolvendo certificados para diamantes oriundos de
��reas... de conflito. ��� N��o comentei que ainda n��o havia decidi-
do quanto �� minha participa����o no esquema. O coronel n��o era
homem de ser desapontado com uma recusa, ou mesmo com uma
certa hesita����o.
��� A press��o �� grande. Se esperarmos demais, explodir�� uma
guerra civil. Quando isso acontecer, os diamantes de Angola se-
r��o considerados diamantes de conflito e estar��o sujeitos a boico-
te. E o seu certificado n��o servir�� de nada.
��� Entendo ��� respondi, mas na verdade n��o entendi nada.
O que esse coronel pretendia? Ele era subordinado a Savimbi. E
Jo��o era persona non grata para Savimbi e a Unita. A palavra "golpe" me veio �� mente. Desconfiei que o coronel planejava trocar
diamantes por armas e us��-las para conquistar o poder. O fato de
aquilo, talvez, se tratar de uma trapa��a n��o era encorajador. Se a
opera����o falhasse, tanto o governo em Luanda quanto os rebeldes
da Unita de Savimbi se voltariam contra mim.
O coronel Jomba continuou.
��� Bey tamb��m n��o pode vir a Angola, pelo menos, publicamen-
te. Ele era s��cio de Carmona na trapa��a contra Savimbi. Portanto,
voc�� precisar�� adotar um papel mais ativo no esquema, assumir as
responsabilidades que Carmona e o Bey n��o poder��o desempenhar.
��� N��o quero...
Ele parou e me encarou, batendo com o porrete contra a perna.
��� N��s nos entendemos, n��o ��?
��� Claro ��� sorri. Eu entendi perfeitamente. Minha cabe��a
enfeitaria o cap�� do jipe dele se eu n��o correspondesse aos seus
prop��sitos. Em Sintra, Jo��o omitira algumas coisas ao explicar o
esquema ��� principalmente o fato de que meu rabo estaria na li-
nha de fogo. Cross me contara que Savimbi, pessoalmente, mata-
ra a esposa e filhos de um oponente. N��o dava para imaginar o
que faria com um americano que fosse pego conspirando contra
ele. Diziam que esse tal de Jomba tinha queimado algu��m no pos-
te. Vivo. Depois de ter-lhe cortado os bra��os fora.
202
Quando imaginei o meu poss��vel destino, express��es como "ser
esfolado vivo" me vieram �� mente.
��� Voltarei para combinarmos os detalhes.
O coronel virou a cabe��a e olhou para a guarita, de onde Cross
nos observava.
��� Contou ao seu homem da seguran��a que trabalharemos
juntos? ��� Sua pergunta foi serena, um convite a um deslize da
minha parte, caso estivesse mentindo.
��� Nem uma palavra. Ele pensa que estamos falando sobre a
nossa contribui����o mensal.
��� Muito bom ��� disse ele. ��� Se eu duvidasse da sua pala-
vra, mataria voc�� agora.
��� Eu gostaria de ter alguma id��ia de como ser�� realizado o
plano. Sei que se trata uma troca de diamantes por armas, mas
n��o fa��o id��ia da minha participa����o...
��� O melhor para voc�� �� exatamente n��o saber nada. Com-
preende o que quero dizer? ��� Ele me fitou pelo tanto do olho,
como se estivesse me avaliando. ��� Voc��s americanos desprezam
a capacidade mental das pessoas do Terceiro Mundo. O Dr.
Savimbi tem um doutorado de uma universidade su����a. Eu estu-
dei economia em Londres. Sei contar sem precisar usar os dedos.
Mas lido com trai����o de uma forma dura e antiquada. Voc�� me
entende?
Parei de caminhar e o encarei.
��� Entendo que voc�� est�� fazendo muitas amea��as a algu��m
com quem pretende fazer neg��cio. E que estou disposto a fazer a
minha parte, mas h�� outras pessoas envolvidas, e pode ser que nem
todas cumpram os seus pap��is. Eu tamb��m sei que n��o quero le-
var a pior quando tudo for por ��gua abaixo porque algu��m em
Lisboa, ou esse tal de Bey, n��o cumprir o combinado.
Jomba sorriu e balan��ou a cabe��a na cad��ncia do porrete com
o qual batia na perna.
��� Ent��o, n��s nos entendemos. Voc�� faz a sua parte, e n��o
importa o que aconte��a, estar�� livre. E ser�� bem recompensado
203
pelos seus esfor��os. ��� Ele acenou indicando a mina Dama Azul. ���
Muito mais do que jamais ter�� escavando aquele buraco est��ril.
N��s nos separamos, e uma coisa ficou muito clara para mim:
as chances de eu viver o tempo suficiente para ficar rico em An-
gola tinham acabado de ir para o espa��o. J�� n��o era mais uma
quest��o de, por azar, eu ser alvo de uma AK-47 enferrujada na m��o
de um garoto. Agora, eu tinha inimigos nos altos escal��es. Ho-
mens que distribu��am puni����es t��o b��rbaras que despertariam
medo em Torquemada, a fera da Inquisi����o Espanhola.
Se um simples garimpeiro de rio era queimado vivo por rou-
bar o equivalente a alguns d��lares em diamantes, o que fariam a
um dono de mina americano que tivesse arruinado todo um es-
quema de diamantes de sangue? Ou que estivesse dando sopa por
perto, quando tudo por acaso desse errado?
Eu n��o conhecia Savimbi, mas, se Jomba era parecido com o
l��der da Unita, eu estava no meio de dois dem��nios selvagens.
N��o acredito que um corretor de seguros considerasse boas as
minhas chances de sobreviver at�� a velhice ��� ou mesmo at�� o
meu pr��ximo anivers��rio.
De uma coisa eu tinha certeza: Jo��o nunca andara na linha na
vida dele. Era o tipo de pessoa capaz de me passar para tr��s em qual-
quer neg��cio, se fosse para aumentar seu lucro. Se Bey era s��cio de
Jo��o, muito provavelmente teria o mesmo estilo. Por mais que Jomba
me garantisse que eu sairia ileso, se fizesse a minha parte, eu n��o que-
ria estar por perto quando qualquer outra pessoa o passasse para tr��s.
Enquanto voltava para a guarita onde Cross me aguardava,
esforcei-me para transparecer tranq��ilidade. Muitas perguntas fica-
ram sem respostas, mas o coronel deixara uma coisa bem clara ���
para mim, n��o havia chance. Uma vez que eu assinasse as certi-
fica����es falsas e fizesse tudo que o coronel Jomba esperava de mim
para que as armas chegassem ��s suas m��os, deixaria de ser um aliado
necess��rio e me tornaria uma testemunha de esquemas escusos.
Al��m do mais, ele com certeza n��o acharia gra��a em me ver sair
do pa��s com uma bolada de dinheiro. Que ficaria melhor no bolso
dele.
204
Como diria Cross, eu tinha tr��s cen��rios poss��veis nessa con-
fus��o: morrer, morrer e morrer.
Cross n��o estava metido nisso, e eu n��o pretendia envolv��-lo
e coloc��-lo em perigo. N��o que ele fosse idiota, cavando uma se-
pultura para si mesmo em Angola.
Quando cheguei, ele me olhou confuso.
��� ��, mano, h�� muita coisa que n��o se sabe sobre voc��. E n��o
me venha com essa hist��ria de que estavam conversando sobre o
aluguel ��� voc��s tinham uma intimidade semelhante �� dos ladr��es.
Se aquele canalha quisesse conversar sobre dinheiro, faria isso na
frente de Eduardo; ele n��o �� t��o sutil assim.
��� Quer realmente saber o que conversamos?
��� Nem a porrada. Se aquele maluco voltar para matar todo
mundo na mina porque seu plano deu errado, prefiro ir para o
inferno como um simples espectador.
205
3 1
Depois do jantar, bati �� porta de Cross. Ele n��o pareceu feliz em
me ver. Estava fazendo as malas.
��� Vai a algum lugar? ��� perguntei.
��� Vou dar o fora, como avisei. Essa de voc�� ficar na maior
intimidade com o diabo, hoje, foi a gota d'��gua. Se veio me pedir
para continuar no emprego, est�� perdendo seu tempo. Vou embo-
ra e pronto. Amanh�� de manh��, monto meu cavalo e cavalgo em
dire����o ao p��r-do-sol.
��� Qual �� o verdadeiro motivo para voc�� me deixar comple-
tamente sem apoio? �� s�� a baboseira usual sobre sua inf��ncia po-
bre e a minha vida de milion��rio?
��� N��o gosto das suas amizades. J�� me irritava ter que res-
ponder aos Jombas deste mundo, mas, pelo menos, era s�� neg��-
cio. Se n��o fosse o mensageiro de Savimbi, seriam os ladr��es do
outro lado dessa pol��tica imunda. Mas agora, pelos seus gestos e os
daquele gorila uniformizado de merda, percebi que voc��s est��o
planejando alguma coisa.
Aproximei-me da mesa de canto onde Cross tinha v��rias gar-
rafas de bebida e me servi um u��sque. Sua pistola semi-autom��tica
de 9 mm estava no coldre, em um cinto pendurado no p�� da cama.
Conveniente. Ele podia alcan����-la no meio da noite, sem tirar a
cabe��a do travesseiro.
��� O que acha que estou planejando? ��� perguntei ao sen-
tar-me na cama, agitando o u��sque dentro do copo.
206
��� N��o sei e n��o quero saber. Mas, conhecendo os defeitos
do ser humano, posso adivinhar. O coronel Jomba tem alguma coisa
guardada na manga. Como ele v�� o mundo com a vis��o de um pit
bull, na certa �� um plano que envolve assassinato e roubo. O que me apavora �� o segredo. Esses caras n��o s��o sutis na hora de recolher o aluguel. Isso me faz supor que ele planeja passar Savimbi
para tr��s. E que voc�� est�� envolvido nisso.
"Se voc�� acha que o coronel �� um maldito filho-da-puta, s��
posso dizer que, comparado a Savimbi, ele �� um gatinho de esti-
ma����o. Se Savimbi pegar voc�� ou algum dos seus ajudantes trapa-
ceando, enfiar�� um ferro quente no seu rabo e o obrigar�� a beber
soda c��ustica para esfriar. Em Angola, �� s�� voc�� estar por perto
que, quando umas duas centenas de atiradores da Unita come��a-
rem a sondar todo mundo da vizinhan��a, eles provar��o sua culpa
por associa����o.
��� Cross...
��� N��o! N��o me conte o que est�� planejando, eu n��o quero
saber. Vi que voc�� estava escondendo alguma merda quando fa-
lou em Carmona. Ele tentou enganar Savimbi uma vez, e, pelo
que vejo, mandou voc�� aqui para finalizar o neg��cio.
Tive a sensa����o de que ele estava certo. O coronel n��o queria
que a guerra terminasse, ela era lucrativa demais. A paz significa-
ria ter que arranjar um emprego de verdade. E devia haver muitos
outros como ele na fac����o rebelde, atuando por debaixo do acor-
do de paz que Savimbi assinara. Isso facilitava as coisas para que
Jo��o e seu amigo Bey levassem a termo a transa����o de troca de
armas por diamantes. Cross n��o era um imbecil. Se eu perguntas-
se, ele responderia que se tratava de um neg��cio com os diaman-
tes de sangue. Mas preferi mant��-lo longe da verdade, at�� decidir
o que fazer. Al��m do mais, eu estava no quarto dele por uma outra
raz��o, e n��o para pedir que ficasse na mina.
Estendi a m��o e tirei a 9 mm do coldre.
��� Ei, n��o brinque com isso.
Quando Cross veio na minha dire����o, apontei para as tripas
dele e disse:
207
��� Eu avisei que sou o melhor em tudo o que fa��o. Isso inclui
atirar.
��� Que diabo voc�� est�� fazendo, homem? Aponte essa arma
para outro lado, ou a enfiarei no seu rabo.
��� Pegue as suas pedras.
��� O qu��?
��� As suas pedras brutas. Quero dar uma olhada.
��� O que lhe interessa... ah, entendi, acha que estou rou-
bando voc��, n��o ��?
��� Sei que Eduardo est��. Quanto a voc��, ainda estou em
d��vida.
��� Seu idiota. ��� Cross tirou da estante um livro, O jardim
secreto, e o abriu. O livro era oco e escondia uma pochete que ele pegou e jogou sobre a cama.
��� Todas elas vieram do rio. Voc�� n��o conseguir�� identificar.
Os diamantes n��o v��m com impress��o digital, mano. N��o d�� para
saber se eles vieram da mina, do rio, ou da lua.
Senti as pedras esfregando-as nas m��os. Os tamanhos eram
diferentes. Algumas dariam 1 quilate ou mais, mas a maioria das
"pequenas" tinha menos do que isso. Algumas chegavam a ser de
tamanho industrial. Mesmo a olho nu, dava para ver que poucas
seriam puras. E nenhuma delas dava a sensa����o de ser escorregadia.
��� Tem raz��o, elas n��o s��o oleosas, s��o lisas ��� disse Cross ���,
como as pedras do rio. Mas isso n��o significa que n��o poderiam
ter vindo da mina. Depois que as pedras passam pelo ponto de
fervura para lavar a sujeira das mesas de graxa, n��o d�� para identifi-
car se vieram do rio ou da mina. A n��o ser que aquele seu pai te-
nha lhe ensinado alguma coisa que n��o se encontra nos livros de
geologia.
��� Ele ensinou. Nenhuma destas veio da mina.
Coloquei a pistola no coldre e levantei-me.
��� Voc�� n��o est�� me roubando. Era o que eu supunha, mas
precisava me certificar. As pedras de Eduardo produziam a sensa-
����o caracter��stica dos diamantes de mina. Ele mentiu quando afir-
mou que conseguira todas elas em concess��es do rio.
208
Devolvi as pedras a Cross. Deveria ter previsto o que aconte-
ceu, quando ele estendeu a m��o esquerda para peg��-las: afundou
o punho direito uns 7 cent��metros no meu est��mago e me deixou
sem ar. Ca�� na cama e me curvei em posi����o fetal.
��� N��o vomite na minha cama ��� avisou ���, ou o obrigarei a
mudar os len����is. ��� Depois, encheu de u��sque um copo quase at��
a boca. ��� Quer outra dose?
Sentei-me, segurando o est��mago que do��a demais.
��� Quero um gastroenterologista.
��� Ei, n��o me venha com reclama����o. Eu o atingi no est��ma-
go para n��o arrancar fora seus lindos dentes. Tem id��ia de como ��
dif��cil encontrar um dentista em Angola? Um que n��o tenha Aids?
��� Obrigado, amig��o.
��� Achei que tinha o direito de desconfiar.
��� N��o quero que v�� embora.
��� V�� �� merda. Por qu��?
��� Porque preciso de voc��. Mas demitirei Eduardo.
��� Quem vai administrar a mina quando ele se for? Tem id��ia
do quanto �� dif��cil encontrar um administrador de mina competente?
��� Eu a administrarei.
��� Merda, o calor atingiu os seus miolos, ou ent��o voc�� foi
mordido por algum inseto que transmite dem��ncia. Eduardo pode
ser imbecil e ladr��o, defeitos que n��o justificam uma demiss��o em
Angola, mas ele tamb��m tem diploma de uma escola de minera-
����o e vinte anos de experi��ncia.
��� Eu n��o disse que administraria a mina para sempre. Ser�� s��
at�� conseguir um substituto. Sei que n��o �� f��cil, mas tamb��m n��o ��
imposs��vel. A extra����o de diamantes n��o �� uma atividade t��o com-
plexa. Metade do trabalho se resume em manter a maquinaria fun-
cionando. E eu entendo de m��quinas melhor que Eduardo.
��� N��o vai dar certo.
��� Tem que dar, n��o posso manter Eduardo aqui.
��� Fa��a ele parar de roubar. Aumente o sal��rio dele.
��� N��o �� s�� o roubo. Tenho uma sensa����o estranha em rela-
����o a esta mina e Eduardo. Conhece aquele velho ditado sobre
209
alguma coisa cheirando mal no reino da Dinamarca? Algo fede
nisto aqui. Tem a ver com a mina e a morte do Bernie e vai al��m
das suas suspeitas quanto a Jo��o Carmona e o coronel Jomba. E
n��o saberei o que ��, enquanto n��o me livrar de Eduardo e exami-
nar a fundo o funcionamento da mina.
Cross acendeu um charuto e sugou a fuma��a.
��� Homem, n��o discordo de voc��. Eu sabia que Eduardo es-
tava roubando, mas que diabos, aquilo era s�� um b��nus por traba-
lhar neste fim de mundo. Nunca acreditei que ele desviasse tanto,
a ponto de afetar a produtividade.
��� Tamb��m n��o acredito. Ele rouba 1 ou 2 mil d��lares por
semana, n��o �� o suficiente para fazer diferen��a a longo prazo.
��� Ent��o o que acha que ele est�� aprontando?
Encolhi os ombros e sacudi a cabe��a.
��� N��o sei. Mas sinto a trapa��a nos meus ossos.
��� O que dizem os seus ossos?
Contei sobre a tentativa de Eduardo de convencer-me a ven-
der a mina. E n��o querer nenhuma porcentagem por intermediar
o neg��cio.
��� Ele n��o pediu dinheiro? Raios, mano, voc�� tem raz��o.
Aquele filho-da-puta n��o deixaria passar uma moeda de 10 cen-
tavos presa entre os dentes de um crocodilo. Desconfio que sei o
que ele est�� fazendo.
��� Segurar a produ����o para reduzir o pre��o da mina?
��� Adivinhou.
��� �� uma possibilidade. No in��cio, achei que tinham intro-
duzido na mina uma terra rica em diamantes para criar uma falsa
impress��o de valor e levar Bernie a investir tudo nela e perder. Ao
constatar que isso n��o tinha acontecido, minha aposta seguinte
foi um roubo em grande escala. O que tamb��m n��o est�� aconte-
cendo, talvez porque Eduardo precisaria envolver voc�� e metade
dos supervisores na trama.
"Ent��o, imaginei que, talvez, ele mantivesse a produ����o baixa
deliberadamente para reduzir a produtividade da mina. Mas con-
versei com alguns contramestres que j�� trabalharam em outras
210
minas sobre a quantidade de terra que �� retirada. Eduardo est�� na
m��dia no volume de terra retirada, considerando as horas de tra-
balho de cada oper��rio. E n��o atingimos terra azul, isto �� certo.
D�� para perceber que ainda estamos na amarela, s�� de ver o que
sai da esteira transportadora.
��� Mesmo assim, voc�� ainda acha que Eduardo tem alguma
carta na manga?
��� Ele poderia ter pedido 10% do pre��o da venda, o que
corresponderia a 50 mil d��lares no bolso, mesmo que recebesse
uma grana dos compradores. Se eu n��o desconfiasse que ele est��
armando alguma coisa, teria concordado.
Cross soltou a fuma��a formando an��is.
��� Concordo. Porra, por esse dinheiro, voc�� quase poderia
comprar a minha lealdade.
��� J�� avisei: se eu ganhar, voc�� ganha.
��� Ah, confiar em voc��? Um camarada que jamais trabalhou e
nunca precisou suar para ganhar um centavo na vida? Vai come��ar
a administrar a mina amanh�� e nos transformar em milion��rios?
��� Cross, h�� uma coisa que voc�� precisa aprender na vida, as
pessoas s��o constantes. Os perdedores nunca vencem de verda-
de. E os vencedores t��m sucesso em qualquer coisa que se envol-
vem. Administrar uma mina de diamantes n��o �� mais complicado
do que vencer uma regata de barco a vela.
��� Voc�� �� cheio de merda.
��� �� verdade, mas voltemos �� hist��ria da const��ncia. Sou um
vencedor em tudo.
��� Acho que est�� me dizendo que eu sempre serei um perdedor.
��� N��o...
��� Esque��a, eu s�� estava repetindo a minha conversa fiada
de sempre sobre a minha inf��ncia pobre e o seu ber��o de ouro.
��� Afinal, vai me dar uma m��o com o trabalho sujo?
��� Por onde pretende come��ar?
��� Voc�� me deu uma id��ia ao descrever como Savimbi lida
com empregados insubordinados. Podemos enfiar uma barra de
ferro quente no rabo de Eduardo e obrig��-lo a beber soda c��ustica.
211
��� Brindarei a isso. ��� Cross engoliu a ��ltima metade do u��s-
que de uma vez s��. Depois, limpou a boca na manga da camisa e
fitou-me curioso. ��� Est�� bem, seu espertalh��o, conte como soube
que os meus diamantes n��o vieram da mina. Depois que o ��leo sai
com a fervura, eles s��o iguais aos de rio. Qual foi o segredo que o seu
velho ensinou?
��� As pedras de Eduardo eram selecionadas, todas acima de
1 quilate e puras. As suas eram misturadas, algumas boas, outras
ruins, nenhuma realmente sensacional, o tipo de pedra que os
garimpeiros retiram com a p�� e o balde.
Sa�� da cama.
��� O que o meu pai me ensinou foi que as pessoas s��o cons-
tantes. Um ladr��o �� um ladr��o a vida inteira, mesmo que s�� aja
assim uma vez. E um homem honesto n��o rouba. Se voc�� tivesse
um diamante puro de mais de um quilate, eu saberia que o conse-
guira na mina. E teria atirado no lado esquerdo da sua cabe��a.
212
32
Cross usou as chaves da seguran��a para abrir a porta dos aposen-
tos de Eduardo. A sala de estar estava escura. A ��nica luz vinha
de uma fresta na porta do quarto. Entramos furtivamente e nos
aproximamos para ouvir. Os sons eram inconfund��veis ��� murm��-
rios e gemidos t��picos da trepada dos animais de duas pernas.
Bem menos educado que eu, Cross abriu a porta com um chu-
te. Eduardo estava esparramado na cama de bra��os e pernas
abertos, com Carlotta por cima, em uma posi����o de domina����o
feminina. Ambos estavam nus. Carlotta deu um grito. Eduardo
empurrou-a e enfiou a m��o debaixo do travesseiro.
Cross apontou a arma para o rosto de Eduardo.
��� M��os para fora, devagar.
Peguei a arma debaixo do travesseiro, sob os protestos de Eduar-
do e de sua f��mea.
��� Voc�� sabia que os seres humanos s��o os ��nicos animais que
trepam um de frente para o outro? ��� perguntou Cross. Li isso em
algum livro.
��� Isso ��...
��� Pegue as suas roupas e saia daqui ��� avisei a Carlotta.
Eduardo vestiu as cal��as com dificuldade.
��� Isso �� ultrajante, vai pagar caro por essa intromiss��o. Te-
nho amigos poderosos. Estar�� morto quando amanhecer.
Engra��ado. Nos Estados Unidos ou na Europa, as pessoas
amea��am chamar a pol��cia. Em Angola, a amea��a �� de assassinato.
213
��� Vou explicar em termos simples, Eduardo ��� disse eu. ���
Voc�� est�� me roubando absurdamente na mina, tirando a nata da
produ����o da mesa de graxa.
��� V�� se foder.
��� N��o, companheiro, �� a sua vez de se foder. ��� Virei-me
para Cross. ��� Vigie-o enquanto examino o lugar.
Havia um cofre preto de um metro de altura em um dos can-
tos do quarto.
��� Precisamos persuadi-lo a nos dar a combina����o ��� disse eu.
��� Esque��a o cofre ��� disse Cross. ��� �� o que mais roubam
em Angola, ningu��m �� idiota de guardar neles alguma coisa de
valor. Com esse cara, procure um compartimento secreto no ch��o,
na parede ou no teto.
Ele tinha raz��o. Descobri o esconderijo embaixo da pia da
quitinete. Removi as t��buas do fundo do arm��rio da pia e encon-
trei uma caixa de charutos que continha uns pap��is e uma quan-
tidade enorme de diamantes embrulhados em uma pochete de
material imperme��vel.
Pela express��o no rosto de Eduardo, percebi que descobrira
seu tesouro.
Quando desembrulhei os diamantes, Cross soltou um assobio
de surpresa.
��� Esse filho-da-puta n��o papava pouco, n��o ��?
��� V�� se foder ��� disse Eduardo.
Cross atingiu-o na boca com um soco.
��� Voc�� estava roubando debaixo dos meus olhos, compadre.
E nem sequer me ofereceu uma parte.
��� Essas pedras s��o de qualidade superior ��� comentei ���,
cada uma delas d�� pelo menos 1 quilate, todas s��o puras ou quase.
Valem pelo menos cinq��enta mil, equiparam-se aos 10 centavos
por d��lar que voc�� recebe aqui.
Eduardo come��ou a fazer outra amea��a. Sentei-me ao seu lado,
sacudi a cabe��a, e falei com muita calma:
��� N��o vai dar certo, companheiro. O coronel Jomba n��o fi-
car�� nada feliz com isso.
214
O rosto de Eduardo ficou verde-acinzentado, e seus olhos es-
bugalharam.
��� Voc��s sabem muito bem que Jomba n��o tem nada a ver
com isso.
��� N��o posso esconder isso dele. ��� Enquanto eu falava, co-
mecei a examinar os pap��is na pochete. ��� Quando esteve aqui,
Jomba me chamou num canto para falar de voc��. Soube por um
dos contramestres que andava tratando a mesa de graxa como se
fosse sua. N��o gostou nada de saber que estava roubando a mina
sem dar o quinh��o dele, e o pr��prio Savimbi mandou que desse
um jeito na situa����o.
��� Jomba �� um louco. Os diamantes que se fodam, pode ficar
com eles. Vou para Luanda morar com a minha fam��lia.
��� �� muito gentil de sua parte permitir que eu fique com o
que roubou de mim. Ei, o que �� isto? ��� Tirei da caixa um extrato
de dep��sitos de uma conta banc��ria na Su����a. ��� Mais de 300 mil
d��lares.
Cross sacudiu a cabe��a.
��� Porra, esse cara �� demais.
��� H�� quanto tempo ele administra a mina? ��� perguntei.
��� Dois anos ��� respondeu o pr��prio Eduardo ���, mas meta-
de do dinheiro veio da ��ltima mina que administrei.
��� Est�� bem, ent��o 50 mil da caixa, mais metade de 300 mil
d��lares no banco, voc�� me roubou uns 200 mil. O que significa
que lesou Jomba e Savimbi em 100 mil. Para n��o mencionar que
ainda deve a eles pelos roubos na outra mina.
Eduardo estava apavorado.
��� Jomba matar�� a todos n��s se descobrir.
��� Na verdade, ele me ofereceu uma recompensa, metade do
que eu recuperasse. ��� Olhei para Cross. ��� O que acha que Jomba
far�� com ele?
Cross riu.
��� N��o precisa amea����-lo. Ele sabe. N��o ��, Eduardo? O que
acha? Decepar seus bra��os e pernas, aos poucos, em fatias de uns
2 cent��metros de cada vez, e jogar para os cachorros? Cortar a sua 215
l��ngua no meio por mentir? E quando voc�� n��o passar de um tronco
sangrento, ir�� pendur��-lo no meio da cidade para que as moscas...
Eduardo tombou para frente, e eu o segurei, antes que ca��sse
no ch��o desmaiado. N��s o colocamos na cadeira e o sacudimos,
at�� ele acordar.
��� Eu lhe direi o que vai fazer, Eduardo. Amanh��, quando os
bancos abrirem na Su����a, far�� uma transfer��ncia por telefone de
tudo o que est�� na sua conta para a minha conta. Depois, vou lhe
dar uma certa vantagem, antes de o coronel Jomba saber.
Amarramos Eduardo e sa��mos do quarto. Cross montaria guar-
da para garantir que Carlotta n��o o ajudaria a escapar.
J�� a uma certa dist��ncia do quarto, Cross perguntou:
��� Planeja realmente contar a Jomba? Ele pegar�� uma boa
parte se o fizer.
��� E se eu n��o contar, serei eu a pegar a parte. Quais s��o as
chances de Jomba ter algu��m na sua folha de pagamento traba-
lhando na mina, ou de ter um informante por puro medo?
��� Com certeza, algu��m na mina relata a ele tudo o que acon-
tece.
��� Cross. ��� Paramos e nos olhamos. ��� Voc�� receber�� 10%
do que sobrar depois de tirada a parte de Jomba. O resto ser��
reaplicado na mina.
��� Obrigado. Ah, acho que voc�� tem raz��o quanto a Eduar-
do. Os diamantes que ele tirou da mina n��o eram suficientes para
fazer uma grande diferen��a no lucro. Isso significa que ele est��
aprontando alguma outra coisa.
Mostrei-lhe a pochete com os pap��is.
��� Examinarei isto tudo esta noite. Talvez, ajude a esclarecer
alguma coisa.
216
33
Eduardo e sua amante foram embora, depois que eu supervisionei a
transfer��ncia do dinheiro da conta dele na Su����a para o meu banco
em Nova York. Senti como se alguma coisa podre estivesse sendo
varrida da mina. Com a amea��a de Jomba ir atr��s deles, imaginei
que demorariam muito tempo para mostrar as caras de novo.
Meu primeiro ato oficial foi promover o contramestre que me
dera as aulas sobre extra����o de diamantes. Ele passou a ser res-
pons��vel por todo o funcionamento diurno da mina, devendo re-
portar-se diretamente a mim.
Tomei um caf�� com Cross na varanda do pr��dio destinado ��
nossa moradia.
��� Encontrei nos pap��is de Eduardo a conta de um ge��logo,
algu��m de Cape Town ��� contei. ��� N��o h�� um relat��rio, s�� a
conta.
��� N��o seria incomum uma mina angolana usar um ge��logo
sul-africano. Foi para a mina ou para algum outro lugar?
��� Para a mina.
Cross deu de ombros.
��� N��o deve ser nada importante. De vez em quando, a mina
�� examinada por um ge��logo para orientar sobre a dire����o dos
t��neis.
��� Eu sei, j�� vi isso nos arquivos. Mas essa conta tem dois
aspectos at��picos. Primeiro, n��o �� da mesma firma que sempre fez
217
os exames. O mais importante �� que se trata da Dama Azul, mas
Eduardo pagou do pr��prio bolso.
Cross suspirou.
��� Eduardo era t��o ordin��rio que n��o pagaria nem o enterro
da pr��pria m��e com o dinheiro dele.
��� E tem outra coisa, a conta estava escondida junto com as
pedras. Devia ser muito importante para ele. E precisava ser
mantida em segredo.
��� Por que n��o telefona para o ge��logo e pede que envie uma
c��pia do relat��rio?
Sacudi a cabe��a.
��� N��o acho uma boa id��ia. Segundo Eduardo, quem est��
interessado em comprar a mina �� um grupo de empres��rios sul-
africanos. Ele podia estar mentindo, mas tamb��m podia estar
mancomunado com esse ge��logo e o tal grupo. Quero averiguar o
ge��logo primeiro, contratar um investigador, ver se �� legalizado,
qual �� sua reputa����o, talvez at�� ir a Cape Town fazer uma visita de
surpresa. �� mais dif��cil dizer n��o, ou mentir, quando se est�� diante
da pessoa.
��� Tenho um amigo que �� chefe de seguran��a de uma mina
na ��frica do Sul. O mundo da minera����o �� pequeno. Talvez ele
saiba alguma coisa sobre o homem.
��� Veja o que pode descobrir. Enquanto isso, procure Jomba.
Eduardo e Carlotta j�� devem estar em Luanda, se foram de avi��o
fretado. Precisamos mostrar a ele os pap��is de Eduardo e acertar
as contas. N��o quero que pense que somos lentos nos pagamentos.
��� Ih, mano, acho que voc�� tem um problema.
O contramestre do turno corria na nossa dire����o. Cross e eu
levantamos e fomos encontr��-lo ao p�� da escada. Estava t��o ner-
voso que falou em um dialeto africano.
��� Portugu��s, fale em portugu��s ��� pedi.
��� Ele est�� dizendo que h�� um problema na mina ��� traduziu
Cross.
��� Fale devagar. Qual �� o problema?
��� A ��gua est�� entrando nos t��neis.
218
��� Vinda de onde?
Era uma pergunta idiota, pois a ��gua dos rios subterr��neos era
um problema constante na mina.
Novamente, ele come��ou a falar t��o r��pido, em uma mistura
de portugu��s e dialeto angolano, que n��o consegui entender nada.
��� Aquele canalha ��� disse Cross.
��� Quem?
��� Eduardo foi �� mina antes de sair e mandou o turno da noite
abrir todas as comportas. Ele est�� inundando a mina.
��� O qu��? O que devemos fazer?
��� N��s? H�� algu��m no seu bolso? O administrador da mina ��
voc��. Comece a administrar.
219
P a r t e 5
M A R N I
34
De prancheta em punho, Marni observava os trabalhadores angolanos
descarregarem um caminh��o de mantimentos no dep��sito da ONU,
na pequena cidade de Nove de Outubro. Antigamente, chamava-se
28 de Julho, em honra ao dia da liberta����o dos portugueses, durante
a guerra da independ��ncia. Por��m, j�� fazia muitos anos que a Unita a
renomeara com a data em que eles a tinham "libertado".
Um trabalhador deixou um saco de arroz cair do ombro. O
saco rasgou ao bater no p��ra-choque do caminh��o, e o conte��do
espalhou-se pelo ch��o. Uma multid��o de mulheres e crian��as que
observava o descarregamento correu enlouquecida para pegar
punhados de arroz.
��� Droga! ��� Marni jogou a prancheta no ch��o. ��� �� o ter-
ceiro saco que voc��s arrebentam. Vi muito bem e sei que foi de
prop��sito. Seu filho-da-puta!
Ela se afastou enfurecida na dire����o de um garraf��o de ��gua
mineral montado sobre um suporte, na sombra de uma ��rvore.
Secou o suor do rosto com um len��o. Depois, mergulhou-o na ��gua
fria para refrescar o pesco��o.
Michele La Fonte, outra agente humanit��ria, recolheu do ch��o
a prancheta e foi juntar-se a Marni. Ria um bocado quando a devol-
veu �� companheira.
��� Vejo que est�� seguindo o manual de treinamento de como
lidar com os trabalhadores nativos ��� disse a supervisora e professora
de Marni, num ingl��s carregado de um forte sotaque franc��s.
223
��� O manual n��o inclui ter acesso de raiva? ��s vezes, �� a ��nica
l��ngua que eles compreendem. ��� Marni fez um sinal de cabe��a,
indicando o caminh��o que estava sendo descarregado. ��� Eles
deixam os sacos ca��rem de prop��sito, bem em cima de uma borda
pontuda no p��ra-choque, para que arrebentem. Aquela comida
viajou meio mundo para alimentar esse povo, e eles pr��prios sa-
botam. Os que recolhem est��o mancomunados com os que dei-
xam cair.
��� Me corrija se estiver errada, eles pediram mais dinheiro
para descarregar, demoraram para come��ar, est��o agindo com
muita lentid��o....
��� Tudo isso. E, ainda por cima, detestam receber ordens de
uma mulher.
��� Para eles, �� um desprest��gio.
��� Come��ou assim: eles pediram mais dinheiro s�� porque sou
mulher e, quando neguei, resolveram sabotar. Eu gostaria muito
que os manuais sobre ajuda ao Terceiro Mundo que li, antes de vir
para c��, fossem mais realistas. Falta nos prevenir quanto ��s mos-
cas que deixam feridas horr��veis nos tornozelos, �� comida que re-
vira o est��mago e o transforma em um vulc��o at�� voc�� vomitar,
aos mosquitos que t��m mais sede do que o vampiro Lestat. Nem
sequer mencionam a diferen��a no conceito de tempo. Aqui, n��o
existe essa no����o, pelo menos como eu entendo. Eles v��m e v��o
quando querem, trabalham quando querem e s�� aparecem, com
certeza, na hora do pagamento.
��� Fa��a como eu ��� avise �� sua equipe que o custo de cada
saco danificado ser�� deduzido do pagamento deles.
��� Boa id��ia!
Em uma mescla de portugu��s, umbundu e a linguagem inter-
nacional de sinais, Marni conseguiu informar que deduziria os sacos
rasgados do pagamento dos trabalhadores. Eles reclamaram mui-
to, mas retornaram ao trabalho manuseando os sacos com mais
cuidado, depois que ela amea��ou despedir toda a equipe.
��� Bom trabalho! ��� disse Michele quando Marni voltou para
a sombra.
224
��� Ainda estou aprendendo. Eu queria dominar a l��ngua como
voc�� para lidar com essa gente. E ter a sua coragem.
��� Vai conseguir, �� apenas uma quest��o de pr��tica. E de so-
breviv��ncia. ��� Michele ficou s��ria. ��� Fomos informados que dois
dos nossos trabalhadores e mais dez dos angolanos foram mortos
em uma emboscada a um carregamento de v��veres no sul do pa��s.
��� Que horror!
��� Ainda n��o recebemos os nomes das v��timas. Estou rezan-
do para que nenhum dos meus amigos tenha morrido.
��� Deus, �� uma forma horr��vel de se morrer. Ser assassinado
justamente quando voc�� veio para c�� prestar ajuda. J�� sabem quem
foi o respons��vel?
��� Ainda n��o fomos informados. Em geral, nunca se sabe com
certeza. Ah, o governo, ou a Unita de Savimbi, enviar�� patrulhas,
haver�� alguma luta, e depois eles anunciar��o que uma tropa de
renegados do governo ou dos rebeldes, ou de algum outro grupo
qualquer, foi responsabilizada e punida, mas nunca saberemos quem
est�� dizendo a verdade. A situa����o ficar�� calma durante certo tem-
po; depois, dentro de um ou dois meses, haver�� um outro ataque,
os alimentos e caminh��es ser��o raptados, e mais alguns dos nos-
sos ser��o mortos.
��� Voc�� tem uma no����o maravilhosa de fatalismo, Michele.
Do tipo que me d�� vontade de fazer as malas e voltar para casa.
��� �� um paradoxo, n��o ��? A ONU, a Cruz Vermelha, os mis-
sion��rios, todos n��s viemos para c�� prestar ajuda a esse povo t��o
maltratado pela guerra. E os mantimentos e os rem��dios s��o rap-
tados para serem vendidos no mercado negro pelas pr��prias pes-
soas que viemos ajudar.
��� Al��m disso, ainda temos que enfrentar pestes e doen��as hor-
r��veis, condi����es de vida insuport��veis ��� raios, vou fazer as malas!
As duas mulheres ca��ram na gargalhada.
��� �� desanimador ��� disse Mami. ��� Preciso de um banho,
uma limonada gelada, um jantar com um homem que n��o cheire
t��o mal quanto eu, talvez alguns momentos de amor com ele num
len��ol branco...
225
��� Posso emprestar o meu vibrador!
��� Prefiro o seu marido, na pr��xima vez que estiver na cidade.
��� Ele nunca vem. �� por isso que tenho um vibrador.
O marido de Michele era um piloto de helic��ptero que trans-
portava agentes humanit��rios e suprimentos para ��reas isoladas.
Marni enxugou o suor da nuca com um len��o.
��� Era muito diferente na universidade em que estudei na
Calif��rnia. Conhecer a mis��ria pelos livros e document��rios, ou
conversar com pessoas que j�� atuaram em trabalho de campo, nada
disso prepara voc�� para a realidade.
Michele acenou a cabe��a, concordando.
��� Voc�� nunca sabe o quanto a situa����o �� terr��vel at�� ver de
perto uma crian��a com Aids ser devorada por moscas, ou ter que
ensinar a algu��m com os bra��os decepados como se limpar depois
de ir ao banheiro. Mas, Marni, voc�� tem sido muito dura com voc��
mesma. Com poucos meses em Angola, j�� tem a reputa����o de
conseguir concluir suas tarefas e n��o querer ir embora, mesmo
diante de trabalhadores pregui��osos ou de oficiais corruptos.
��� O que me impressiona �� que n��s todos continuamos a tra-
balhar diante das amea��as e do caos. Voc�� acabou de me contar
que alguns dos nossos companheiros foram assassinados a poucas
centenas de quil��metros daqui. No entanto, mesmo se sofrermos
pela perda de algum amigo, continuaremos a atuar e concluire-
mos o nosso trabalho.
��� Oui, �� o que faremos.
��� E voc�� e o seu marido est��o nisso h�� muitos anos.
��� Morreremos na sela, como dizem os caub��is. Espero que
ainda demore muito. Meu ��nico desejo �� que, quando a hora che-
gar, meu marido e eu possamos ir ao mesmo tempo. E muito r��pido.
��� Meu Deus, n��o fale desse jeito. ��� Marni estremeceu.
��� A vida �� assim. Qualquer coisa pode acontecer, quando
voc�� trabalha em uma zona de guerra.
- �� s vezes parece in��til. Distribuir alimentos, vacinar o povo,
nisso os resultados s��o imediatos. Eu me pergunto se adianta fazer
o que fazemos, se �� poss��vel contribuir para melhorar este mar de
mis��ria.
226
��� Ce n ' est pas la mer �� boire.
��� �� imposs��vel beber toda a ��gua do mar ��� disse Marni, tra-
duzindo a express��o predileta de Michele. ��� Est�� bem, n��o ��
imposs��vel, mas pode ser que nos afoguemos na mis��ria humana.
��� Voc�� �� t��o sens��vel, t��o idealista, talvez at�� demais ��� dis-
se Michele segurando-lhe o bra��o carinhosamente. Veio para c��
salvar o povo de Angola e descobriu que muitos n��o merecem por-
que s��o parte do problema. E os outros s��o t��o oprimidos, t��o arra-
sados que n��o conseguem receber ajuda e, muitas vezes, tornam-se
parte do problema porque mordem a m��o que os alimenta.
��� Estou mais insens��vel ��� continuou Michele ���, meus
ideais parecem estar bem distantes. Vivo nisto h�� mais de vinte
anos, no Congo, em Serra Leoa, Ruanda, B��snia e nos acampa-
mentos palestinos. Sei que n��o posso salvar o mundo, nem tento,
apenas ajudo o maior n��mero de pessoas que posso e espero que
isso fa��a uma diferen��a a longo prazo. Al��m do mais, ganha-se bem.
Marni riu tanto que come��ou a tossir.
��� O sal��rio �� uma vergonha ��� suspirou ���, e as condi����es
de trabalho s��o terr��veis, mas, para mim, voc�� �� um pouco madre
Theresa, um pouco Joana d 'Arc, e um pouquinho Simon Legree.
��� Simon Legree?
��� �� o personagem de um livro. Um supervisor de planta����es,
literalmente um feitor de escravos. Agora, me ensine mais uns
palavr��es em umbundu que fa��am os trabalhadores calarem a boca
e executarem o trabalho.
Naquele momento, uma das agentes humanit��rias, uma mu-
lher da idade de Marni, acenou para elas, ao passar por perto a
caminho da estrada.
��� Vejo que Rita est�� usando o uniforme do dia ��� comentou
Marni.
Michele dirigiu um olhar desaprovador para a minissaia da
mulher.
��� Em todas as miss��es, h�� sempre uma Rita que usa short
curtinhos e top sem suti�� para ir ao mercado, confirmando para os 227
homens do Terceiro Mundo, todos uns porcos, que as mulheres
ocidentais s��o todas putas.
��� Ela me descreveu com riqueza de detalhes as partes ��nti-
mas do comandante militar angolano com quem est�� transando.
Apelidou de cobra preta. J�� vi o comandante em seu jipe com umas
prostitutas do lugar. Eu diria que Rita est�� se arriscando.
��� Nos pa��ses onde trabalhei, dos B��lc��s ao Extremo Orien-
te, sempre me perguntei se �� mesmo uma quest��o puramente de
sexo, quando uma mulher europ��ia como Rita vai para a cama com
os homens nativos. Desconfio que, na sua terra, os homens nunca
a trataram com respeito ��� provavelmente, porque devia ser mui-
to f��cil. As Ritas deste mundo buscam satisfazer suas car��ncias na
cama. Mas n��o conseguir��o, n��o importa quem seja o homem. E,
aqui, ela est�� arriscando a pr��pria vida.
Marni sacudiu a cabe��a.
��� �� muito triste, mas ela aprender�� que h�� duas coisas para
as quais n��o h�� vacina: burrice e Aids.
DEPOIS QUE O CAMINH��O foi descarregado, Marni entrou na bar-
raca comprida, onde os suprimentos de alimento e rem��dio eram
armazenados antes de serem distribu��dos. Com a ajuda de Ve-
n��ncio, seu auxiliar angolano, come��ou a contar os sacos. Con-
trolar os suprimentos era metade do seu trabalho, a parte mais f��cil.
Fazer com que a maior quantidade poss��vel chegasse ��s m��os das
pessoas a quem se destinavam era a parte dif��cil. Durante a noite,
os alimentos e medicamentos desapareciam misteriosamente do
dep��sito, e os caminh��es chegavam com menos suprimento do que
tinham sa��do. Pior ainda do que o roubo comum era o roubo desca-
rado dos oficiais corruptos do governo, dos comandantes rebel-
des, dos negociantes no mercado negro e das gangues de raptores.
Os pa��ses s��o como as pessoas, pensou Marni. Eles desenvol-
vem personalidades e dist��rbios emocionais exatamente como as
pessoas. Podem ficar esquizofr��nicos como a Alemanha sob o do-
m��nio nazista, ou paran��icos como a R��ssia sob o regime de Stalin.
Marni via Angola como uma crian��a surrada, chicoteada e faminta,
228
estuprada e torturada, a ponto de n��o saber mais o que era uma
exist��ncia normal. Traumatizado, o pa��s inteiro agia como psic��tico,
muitas vezes, machucando a si mesmo e ��queles que estendiam a
m��o para ajudar.
Era preciso expor esta mis��ria ��s empresas e ��s pessoas que
alimentam essa guerra louca com seus d��lares, em troca do petr��-
leo e dos diamantes. A fome, a doen��a, as mortes e as mutila����es
oriundas das bombas, dos bombardeios e das minas terrestres, dos
saques, roubos, estupros, sequestros, assassinatos���seria uma cena
do pr��prio inferno, pensou.
��� Menina ��� chamou-a Ven��ncio, usando a palavra usada
para senhorita ���, acabei de contar 86 sacos de trigo, e voc�� es-
creveu arroz.
��� Sinto muito, minha cabe��a est�� longe.
��� A sua cabe��a est�� t��o cheia de responsabilidades que n��o
sobra espa��o para os pensamentos. ��� Ele tirou a prancheta da
m��o dela. ��� D�� um passeio, v�� jantar fora em um restaurante ou
ver um bom filme.
Ambos riram da piada.
��� Est�� bem, estou precisando de um pouco de ar. Finalize a
contagem. Quando me informar quanto foi roubado do aeroporto
de Luanda at�� aqui, minta para que eu tenha uma impress��o me-
lhor do mundo.
Marni saiu da tenda e caminhou em dire����o ao pequeno abri-
go da ONU, pela estrada de terra que acompanhava o rio. Algu-
mas mulheres ofereciam comida aos caminhoneiros e motoristas
de ��nibus que passavam na estrada ��� laranjas, espigas de milho,
bolinhos de inhame muito gordurosos ��� e bebidas contaminadas.
Marni sabia que havia mulheres que ofereciam prazeres carnais e
que, para elas, a Aids n��o era apenas uma doen��a mortal, mas uma
realidade da vida. Assim como a pobreza, o crime, e a guerra
avassaladora.
Ainda assim, muitas delas sorriam com facilidade e tinham
prazer nas coisas simples. Era comum ela presenciar atos de gene-
rosidade e bondade. Nefasta mesmo era a arrog��ncia dos homens
229
que carregavam armas autom��ticas e agiam mais como bandidos
do que soldados.
Marni parou sob a sombra de um eucalipto e ficou a observar
os garimpeiros que trabalhavam no rio em busca de diamantes.
Surgiu uma discuss��o entre eles, quando um homem usou um
peda��o de madeira para afastar os outros do que considerava ser
uma concess��o sua. Havia mais gritaria e ��gua para todos os lados
do que, propriamente, pancadaria.
Ela se afastou da briga e observou um menino que ajudava o
pai a procurar diamantes em uma parte mais funda do rio. O ho-
mem mais velho mergulhava com um balde nas m��os e um tubo
de pl��stico na boca. O menino bombeava um fole ligado ao tubo,
jogando ar para dentro. Pelo menos, essa era a id��ia ��� o homem
vinha �� tona com freq����ncia para respirar, e ela se perguntou se o
tubo de ar improvisado funcionava t��o bem assim.
Mas que a gra��a de Deus nos proteja, pensou. Marni aprendera a express��o com seu av�� materno, Jack Norton, um homem que
conhecera j�� adulta, que a repetia sempre que via algu��m menos
afortunado do que ele pr��prio.
��� Uma circunst��ncia fortuita, pura sorte ��� disse Marni para
si mesma em voz alta, ao pensar que, s�� por ter nascido em outro
mundo, n��o era uma daquelas mulheres que garimpavam no rio,
naquela ��gua turva, com um beb�� amarrado ��s costas. Ou que fi-
cavam deitadas em barracos de beira de estrada, ganhando o sus-
tento dos filhos em troca de favores sexuais a motoristas de
caminh��o ��� enquanto alguma doen��a as consumia, lenta e dolo-
rosamente, at�� morrer. Agradeceu a Deus por n��o ser uma delas.
Depois se afastou do rio, recostou-se em uma ��rvore e ficou a
observar a fileira de barracos ao longo da estrada de terra. Mais
adiante, um homem aos gritos descarregava a raiva na mulher que
vendia laranjas. Provavelmente, sua esposa, pensou. Marni sabia
o suficiente da l��ngua para perceber que a briga era sobre dinhei-
ro, devia ser por causa da quantia que a mulher recebera da ven-
da das frutas. Seu conhecimento de um dialeto angolano n��o foi
t��o ��til quanto ela gostaria. Os dialetos eram muito diferentes de
uma vila para outra.
230
Enquanto observava o movimento dos l��bios do homem que
brigava, lembrou-se de seu pr��prio pai. E de sua m��e.
Marni nasceu em San Jose, a capital do Silicon Valley, na
Calif��rnia, a uma hora de carro de S��o Francisco. Seu pai era en-
genheiro aerospacial, mas mudou de ��rea, para engenheiro de
computa����o, quando a ind��stria da defesa estagnou, e a da com-
puta����o explodiu.
Seu pai chamava-se Brian. Sua m��e, Rebecca. Sempre fora
chamada de Becky, mas, depois do casamento, seu pai fez quest��o
que ela s�� fosse chamada pelo nome correto.
Casaram-se em Salt Lake City, a capital dos m��rmons.
231
35
SALT LAKE CITY, 1961
Jack Norton, o pai da noiva, aguardava do lado de fora do Templo
M��rmon, no centro de Salt Lake City. O templo era o maior e
mais prestigiado daquela seita religiosa em todo o mundo. Jack era
membro desde o nascimento, e seus pais eram filhos dos m��rmons
pioneiros de Utah. Apesar de sua linhagem, n��o lhe fora permiti-
do entrar no templo para participar ou observar o casamento. Sua
filha Becky, a noiva, estava com a m��e a uma certa dist��ncia dele,
aguardando nervosa o sinal para entrar. Problemas conjugais en-
tre ele e a esposa os mantinham afastados.
A filha saiu de perto da m��e, aproximou-se de Jack e beijou
seu rosto.
��� Sinto tanto, papai, eu queria muito que voc�� entrasse no
templo para a cerim��nia.
��� Eu tamb��m, porque queria estar ao lado da minha filhi-
nha no dia mais importante da sua vida.
��� Se pelo menos voc�� tivesse...
��� Isso j�� ficou resolvido, Becky, sou o que sou. Procuro ser
uma boa pessoa. Se isso n��o �� suficiente para a minha fam��lia e a
minha Igreja... ��� Ele encolheu os ombros. ��� O que posso fazer?
Ela cobriu a boca do pai com os dedos.
232
��� Prometeu n��o me chamar de Becky.
��� Ah, esqueci, agora �� Rebecca.
��� Brian diz que os apelidos s��o para as crian��as, e que agora
eu sou uma mulher.
Jack limitou-se a sorrir, mas em algumas coisas tinha suas pr��-
prias convic����es, principalmente no que se referia ��s determina-
����es do seu futuro genro. Tinha mais que o dobro da idade de Brian
e abominava a id��ia de ter que se levantar para cumprimentar o
rapaz. Brian tinha esse tipo de personalidade, tratava as pessoas ��
sua volta como se fosse o chefe dos escoteiros, e os outros fossem
lobinhos. Jack aceitava muito contrariado pelo bem da filha.
Brian tinha uma mentalidade obstinada. Assim como a arma-
dilha prende a pata de um animal e n��o solta mais, ele se prendia
a id��ias das quais n��o se deixava demover, n��o importa o que os
outros dissessem, ou o quanto pudesse estar errado. Ele era desse
feitio sobre quase tudo e tinha uma vis��o de mundo muito retr��gra-
da. Brian via um mundo desleixado que precisava ser corrigido ���
da maneira que ele ditava. Era extremamente arrumado e organi-
zado. Rec��m-formado em engenharia, levava a pr��pria vida como
se fosse orientado pelas marca����es de uma r��gua de c��lculo, e pre-
tendia fazer o mesmo com a filha de Jack.
Quando Becky se afastou do pai para cumprimentar uns ami-
gos que chegavam para a cerim��nia, sua m��e veio falar com ele.
Estava irritada e n��o escondeu os sentimentos.
��� Voc�� percebe o constrangimento que est�� causando? N��o
me importa que me envergonhe, mas vai humilhar a sua filha n��o
podendo estar com ela no templo no dia mais importante da sua
vida.
��� �� muito estranho eu n��o poder estar com a minha pr��pria
filha na minha igreja ��� disse Jack. ��� N��o bebo em excesso, n��o
fumo, n��o matei nem roubei ningu��m, n��o me lembro de ter feito
nada da lista de pecados que me tornaria uma pessoa m��.
��� Sabe o que fez, n��o vou discutir com voc�� aqui. E bebe, sim.
��� Bebo um pouco de vinho, �� verdade. Acredito que, se era
bom para Jesus, tamb��m �� bom para mim.
233
��� Ah, sim, eu sei, s�� porque eles oferecem p��o e ��gua na igre-
ja, voc�� disse a Rebecca que Jesus transformou ��gua em vinho, e
que o ��nico milagre do mormonismo foi que eles conseguiram
transformar o vinho novamente em ��gua.
��� Enquanto perde tempo me acusando de cometer tantos
pecados, por acaso j�� refletiu sobre o homem que voc�� empurrou
para casar com a sua filha?
��� Brian �� um jovem respeitado e j�� �� um engenheiro bem-
sucedido.
��� Eles n��o combinam em nada. O que falta a Becky em
autoconfian��a, Brian compensa, em dobro, em arrog��ncia. Ele
tornar�� a vida dela um inferno, e ela aceitar�� tudo sem se impor.
��� N��o vou ouvir voc�� criticar um bom rapaz. Devia se preo-
cupar com os seus atos, e n��o com os de Brian.
Ela se afastou e se juntou �� filha e aos amigos. A cerim��nia ia
come��ar.
Jack esperou do lado de fora, caminhando pela rua para pas-
sar o tempo. Sim, ele sabia o que tinha feito, mas n��o era isso que
o preocupava, e sim o futuro da sua filha. Brian Jones era um ho-
mem todo certinho. N��o havia espa��o na sua cabe��a para nada
al��m da sua vis��o muito limitada e r��gida do mundo.
Enquanto caminhava em volta do templo, Jack pensou na Igre-
ja onde ele, sua esposa e seus filhos tinham crescido.
O movimento religioso m��rmon surgiu no oeste do estado de
Nova York, h�� cerca de 150 anos. Durante um per��odo de intenso
florescimento religioso nos Estados Unidos, o filho de um fazen-
deiro de 22 anos declarou que um anjo chamado Moroni deu a
ele "t��buas douradas", contendo revela����es religiosas. As t��buas permaneceram enterradas durante mil e quatrocentos anos. Segundo o jovem, Joseph Smith, atrav��s de revela����es ele traduziu a
escrita das t��buas no que veio a chamar-se O livro de M��rmon.
Segundo Smith, as t��buas foram devolvidas ao anjo.
O livro de M��rmon, aceito como sendo a sagrada escritura em
acr��scimo �� B��blia, relata que uma tribo "perdida" de hebreus, li-derada pelo profeta Levi, migrou de Jerusal��m para a Am��rica,
234
cerca de seiscentos anos antes do nascimento de Cristo, mais de
dois mil anos antes de Colombo topar com o continente, a cami-
nho da ��ndia. Os m��rmons consideravam que o continente ame-
ricano era a verdadeira terra da antiga B��blia. Assim, segundo a
tradi����o, o Jardim do Edem localiza-se em algum lugar pr��ximo ��
atual cidade de Independence, no estado do Missouri.
Ainda segundo a tradi����o m��rmon, no antigo continente
americano, os hebreus multiplicaram-se e dividiram-se em dois
grupos: os nephites, virtuosos e trabalhadores, e os lamanites, pe-
cadores e b��rbaros. Os nephites prosperaram durante algum tem-
po, construiram grandes cidades, e chegaram a aprender com o
pr��prio Jesus, mas foram aniquilados nas guerras comos lamanites.
Mais de duzentos mil nephites foram mortos na ��ltima grande
batalha entre as duas fac����es.
Consta que os lamanites, que esqueceram suas cren��as e trans-
formaram-se em pag��os, eram os ancestrais dos ��ndios americanos.
Combinando elementos do misticismo judaico e crist��o, o
movimento m��rmon cresceu, sendo que, de tempos em tempos,
Smith anunciava novas revela����es.
Um dos pontos-chave do mormonismo antigo era a pr��tica da
poligamia. Diziam que o pr��prio Smith desposou cinq��enta mu-
lheres. Por ter sido criticado pelo jornal de uma cidade que funda-
ra, Smith destruiu as rotativas do jornal e, por isso, foi preso. A
hostilidade contra o movimento cresceu, e Smith e seu irm��o fo-
ram retirados da pris��o por uma multid��o e assassinados.
Mais de uma vez ocorreu a Jack que, para alguns homens, o
que mais atra��a no mormonismo daquela ��poca era a possibilidade
de terem mais de uma esposa, al��m de algumas mulheres aceita-
rem ser escravas dom��sticas.
Um de seus seguidores, Brigham Young, liderou uma migra-
����o para Great Salt Lake, em Utah. Os m��rmons prosperaram no
deserto, e Utah transformou-se no ��nico estado dominado por uma
seita religiosa espec��fica.
O estrondo de uma caminhonete de acampamento toda
amassada e soltando fuma��a interrompeu os pensamentos de
235
Jack. A traseira estava cheia de adesivos. Um deles chamou sua
aten����o: UMA ESCRIVANINHA ARRUMADA �� SINAL DE UMA MEN-
TE CONFUSA.
No que se referia ao seu novo genro, ele considerou as pala-
vras prof��ticas.
236
36
No interior do templo, Rebecca seguiu nervosa, com sua m��e e
seus amigos, para uma sala onde o casamento seria celebrado.
Assim como seus pais e o homem com quem estava se casando,
ela nascera e crescera segundo as leis da Igreja. Apesar de n��o se
dedicar muito aos assuntos religiosos como Brian e sua m��e, obe-
decia aos preceitos com um enorme desejo de agradar. Para ela,
era importante conduzir a vida de modo a receber aprova����o de
sua m��e e de seu futuro marido. Era insegura, muitas vezes evasi-
va, e tinha uma tend��ncia a ficar nervosa �� toa. Esta era uma das
raz��es da sua atra����o por Brian. Ele tinha o controle total de tudo
que o rodeava. Desde o momento em que se conheceram, Brian
lhe dizia o que fazer e como agir. Al��m de insistir que ela fosse
chamada pelo nome verdadeiro, convenceu-a de mudar o pentea-
do e as roupas para um estilo mais conservador que a fizesse pare-
cer mais reservada e madura.
Muito do fervor religioso de Rebecca tamb��m estava funda-
mentado na sua necessidade de receber aprova����o. No fundo, ela
se interessava muito pouco por religi��o. Mas a Igreja era importante
para as pessoas de seu conv��vio. Por esse motivo seus ensinamentos
tamb��m eram importantes para ela.
Na sua Igreja, as mulheres eram educadas para serem boas
esposas e m��es. Carreiras fora do lar n��o eram estimuladas, mas o
trabalho ��rduo em termos de proporcionar um ambiente saud��vel
para a fam��lia era muito incentivado. Ter muitos filhos para ampliar
237
a comunidade m��rmon era um dever incutido nas meninas, al��m
das obriga����es para com a Igreja.
Rebecca conhecia a hist��ria da Igreja, talvez pudesse repeti-la
de cor, mas aquilo n��o a influenciava mais do que seus conheci-
mentos da Revolu����o Americana ou de outros epis��dios impor-
tantes da hist��ria. Seu pai e Brian eram, de fato, as pessoas que
conheciam profundamente a hist��ria da Igreja, apesar de terem
id��ias e conceitos opostos.
Rebecca estivera no templo no dia anterior para um outro ri-
tual que os jovens educados como m��rmons e os novos converti-
dos recebiam. Tratava-se de uma esp��cie de inicia����o denominada
"a doa����o" na qual a pessoa �� lavada, untada com ��leo sagrado e vestida com roupas do templo, e, em seguida, assistia a uma representa����o da hist��ria da cria����o, aprendia senhas secretas, for-
mas especiais de cumprimento e recebia um nome secreto.
Joseph Smith tinha sido ma��om, e muitos dos rituais da doa-
����o eram semelhantes ��queles praticados pelos ma��ons. As nor-
mas do vestir eram simples: camisa e cal��as compridas brancas para
os homens, vestidos longos brancos para as mulheres, e chinelos
brancos para ambos.
A cerim��nia da doa����o em que Rebecca se tomou membro ati-
vo da Igreja durou duas horas. A de Brian acontecera h�� mais tem-
po, antes de ele partir para a Alemanha em uma "miss��o" de dois anos, a fim de difundir sua religi��o junto ao povo daquele pa��s. Brian,
como homem, foi informado do nome secreto que Rebecca rece-
beu durante a cerim��nia da doa����o. Rebecca jamais saberia o dele.
REBECCA E BRIAN ENTRARAM na sala de "selagem" do templo.
Salas especiais eram usadas para celebrar os casamentos nos ritos
da Igreja e para selar a uni��o eterna dos filhos com seus pais.
A cerim��nia da doa����o, do casamento e outras eram realiza-
das pelos membros do sexo masculino que tinham alcan��ado uma
determinada posi����o na Igreja. Como a Igreja n��o contava com
um clero profissional, esses homens desempenhavam a fun����o. Aos
12 anos, todos os meninos merecedores, ou "de valor", tornavam-
238
se di��conos do sacerd��cio aar��nico. Aos 14, tornavam-se profes-
sores, e sacerdotes aos 16. Da�� em diante, muitos deles subiam na
hierarquia e alcan��avam posi����es especiais, como a de bispos. As
mulheres n��o podiam ser cl��rigas, e a Igreja n��o admitia afro-
americanos como membros.
Rebecca lembrou-se do pai, obrigado a esperar do lado de fora.
Gostaria que estivesse ali com ela. A Igreja lhe negara a permiss��o
para entrar no templo.
N��o era permitida a entrada no templo de pessoas estranhas ��
seita, assim como aos membros cuja reputa����o estava comprome-
tida. Para ter o direito de entrar e se casar nele, Rebecca, Brian e
os outros presentes tiveram que apresentar cart��es de recomen-
da����o fornecidos pelos bispos das igrejas que freq��entavam. Esses
cart��es eram emitidos a cada ano, ap��s uma entrevista na qual o
membro era anunciado como sendo atuante e cumpridor do pa-
gamento do d��zimo exigido.
O pai de Rebecca foi impedido de assistir ao casamento da fi-
lha por n��o estar participando regularmente das fun����es da igreja
local. Quando sua esposa e filhos o questionavam sobre o destino
de sua alma, respondia: "Tenho f�� em Deus, mas n��o acredito que
o meu passaporte para o c��u precise ser selado por mortais".
Em momentos de maior benevol��ncia, a m��e de Rebecca expli-
cava que seu marido estava passando por uma crise de meia-ida-
de. Quando estava menos generosa, dizia que ele estava possu��do
pelo dem��nio.
239
37
SAN J O S E , CALIF��RNIA, 1968
��� Esse hall est�� completamente fora de esquadro. Fico tonto s��
de olhar.
Marni, com sete anos de idade, estava sentada em um canto
da sala de estar, enquanto seu pai, Brian Jones, reclamava com o
empreiteiro respons��vel pela constru����o da casa onde moravam.
Ela ouvia e ao mesmo tempo comia um pudim de chocolate em
um pote de pl��stico.
O tom de voz que seu pai usava com aquele senhor de idade
era o mesmo que empregava quando se dirigia a ela ou �� esposa.
Sem levantar a voz, havia uma certa arrog��ncia que transmitia ao
ouvinte sua irrita����o ��� e superioridade.
O empreiteiro, um senhor de rosto vermelho curtido do sol,
sacudiu a cabe��a. Procurou conter a raiva e explicou:
��� Sr. Jones, h�� uma varia����o de 2,5 cent��metros em dois
metros de parede. Isso est�� dentro da faixa de toler��ncia na cons-
tru����o habitual...
��� N��o na minha casa. Esta n��o �� uma casa de carrega����o,
mas uma obra feita por encomenda especialmente para um clien-
te. ��� Ele falava como se estivesse ensinando a uma crian��a. ���
Se eu usasse esse tipo de imprecis��o negligente no meu trabalho,
seria expulso da profiss��o.
240
Enquanto o pai de Marni falava, um auxiliar do empreiteiro,
um jovem de barba e cabelo comprido, batia a cabe��a de um mar-
telo na palma da m��o. O jovem olhava para o pai dela sem disfar-
��ar a raiva que sentia.
Ou seu pai n��o percebeu, ou n��o se importou por estar des-
tratando o empreiteiro e seu auxiliar. Virou as costas e cruzou a
sala em dire����o ao local onde estava a m��e de Marni, Rebecca.
Marni ouviu o jovem de barba dizer ao empreiteiro:
��� Aquele cara est�� merecendo uma surra. ��� Ele sorriu para
ela e piscou o olho, depois come��ou a ajudar o chefe a p��r abai-
xo a parede pr��-fabricada e a estrutura que tinham sido conde-
nadas por um desvio de 2,5 cent��metros, em uma extens��o de
dois metros.
O irm��o de Marni de quatro anos, Brian Jr., dormia no sof�� ao
lado da m��e, que esperava o terceiro filho. Sua m��e tinha uma
constitui����o f��sica fr��gil, e as tens��es do casamento, da fam��lia e
da atual gravidez evidenciavam-se em seu rosto. Para ela, a gravi-
dez era sempre dif��cil, sendo que, a cada uma, os problemas au-
mentavam. Brian, por sua vez, n��o se mostrava compreensivo com
os infort��nios da mulher.
��� Preciso ir trabalhar todos os dias, querendo ou n��o. Voc��
tem as suas obriga����es como qualquer outra esposa. O seu proble-
ma �� pensar tanto como uma derrotada, que acaba se tornando
uma.
Marni terminou de comer o pudim de chocolate, deixou o pote
de lado e abra��ou sua boneca. A colher que estava no pote vazio
caiu, e o chocolate sujou o carpete bege.
O pai conversava com a esposa sobre planos para o p��tio quan-
do viu a colher no carpete.
��� Rebecca! Sua filha manchou o carpete novo.
Rebecca levantou-se rapidamente do sof�� e cruzou a sala, com
as palavras do marido martelando na cabe��a.
��� Precisa aprender a p��r ordem nesta casa e educar seus fi-
lhos para agirem direito e n��o como bichinhos mimados!
241
Marni quis pedir que ele a deixasse em paz, mas teve muito
medo. Quando a m��e se aproximou para limpar a sujeira, parecia
t��o subjugada que Marni come��ou a chorar.
DOIS ANOS DEPOIS, a av�� de Marni veio de Utah para ficar com a
fam��lia e ajudar Rebecca, gr��vida do quarto filho. Marni j�� estava
com nove anos de idade, Brian Jr. com seis, e a irm�� menor, Sarah,
ia completar dois anos. A ��ltima gravidez surpreendeu todos, pois
Rebecca ainda n��o se recuperara das dificuldades anteriores. Pre-
cisava descansar, mas as responsabilidades n��o lhe permitiam esse
tipo de coisa.
��� Tudo isso s�� existe na sua mente ��� comentou a m��e de
Rebecca.
Ainda amamentando Sarah, Rebecca concordou com um ace-
no de cabe��a e n��o disse nada. Brian repetia com freq����ncia a
mesma frase. A express��o em seu rosto denunciava a tens��o e o
sofrimento que a vida lhe impunha.
Marni e Brian Jr. brincavam no ch��o com um quebra-cabe��a
que a av�� lhes trouxera, enquanto as duas mulheres conversavam.
��� Eu sei, m��e, eu sei. ��� N��o adiantaria dizer �� m��e que n��o
fazia diferen��a, se a doen��a estava na sua cabe��a ou no ded��o do
p�� ��� estava deprimida e se sentia emocional e fisicamente arra-
sada com a rotina di��ria que as outras mulheres enfrentavam muito
bem. Uma vizinha sugeriu que fosse a um psiquiatra, mas o mari-
do enfureceu-se quando Rebecca lhe exp��s a id��ia. Imediatamente,
pediu �� sogra que passasse um tempo com eles e ajudasse a filha a
colocar as id��ias no lugar.
��� Voc�� n��o precisa de um psiquiatra ��� disse sua m��e. ��� S��
tem que se convencer da import��ncia das suas obriga����es para com
seu marido e seus filhos e agir de acordo. Sua fam��lia �� saud��vel, voc��
n��o tem nenhuma desculpa para deixar a casa nesta bagun��a. E olha
a sua apar��ncia, n��o lava o cabelo h�� dias. Como espera que o seu
marido a respeite e a trate bem se voc�� mesma n��o se respeita?
��s vezes, Rebecca achava que seria melhor sua m��e ter se
casado com Brian no seu lugar. Ela, sim, era a esposa m��rmon
242
perfeita que Brian gostaria de ter: zelosa, tolerante, organizada,
respeitava a autoridade do marido e da Igreja. O modo de viver
dos m��rmons era saud��vel: uma vida familiar intensa, com mui-
tos filhos, criados para serem fortes e sadios.
A ��nica coisa errada na fam��lia de Rebecca era a sua pr��pria
incapacidade de desempenhar o papel que esperavam dela, que
n��o era diferente do que as outras mulheres m��rmons faziam.
Rebecca tinha consci��ncia de seu fracasso e se odiava por isso.
No entanto, quanto mais procurava viver segundo as expectati-
vas do marido, mais se via fracassar. Atrasava-se no trabalho do-
m��stico e mal conseguia participar das fun����es da Igreja. Ela n��o
tinha vontade de fazer nada.
Rebecca n��o desejara outro filho. Pior, sabia que o crescimen-
to da fam��lia n��o terminaria nessa gravidez. Brian tencionava ter
seis filhos ��� um n��mero que, segundo ele, o satisfaria porque as-
sim teriam cumprido com sua obriga����o para com a Igreja.
��� N��o entendo voc��, Rebecca ��� disse a m��e. ��� Todas as
suas irm��s s��o felizes, e as fam��lias delas est��o muito bem. Seu
marido �� o mais bem-sucedido de todos os meus genros, mas voc��
se largou e fica sentada pela casa com pena de si mesma. Cada vez
mais me lembra seu pai.
H�� muito, o pai de Rebecca deixara de fazer parte da vida da
fam��lia. Brian considerava as atitudes negligentes do sogro quan-
to �� Igreja e �� vida de modo geral uma m�� influ��ncia para Rebecca
e proibiu-a de comunicar-se com ele.
��� N��o �� para menos que o seu marido reclama de voc��. Olha
como as suas irm��s mais velhas cuidam de suas fam��lias, e os filhos
sempre participam das atividades que elas organizam na igreja.
��� Mas eu freq��ento a igreja, m��e.
��� Voc�� aparece na igreja, mas seu marido diz que vai como
se fosse um zumbi. N��o participa, n��o organiza nenhum evento,
e, quando �� indicada para supervisionar algum servi��o, n��o de-
monstra entusiasmo, a ponto de as outras pessoas perderem a pa-
ci��ncia.
��� Tem raz��o, tem raz��o ��� disse Rebecca.
243
Ao ouvir a av�� humilhar sua m��e, Marni desviou a aten����o
do quebra-cabe��a. Rebecca tinha o rosto sem express��o e os olhos
vazios. Toda a tens��o parecia ter flu��do para as m��os que torciam
uma fralda de beb��.
Ao observar aquilo, Marni lembrou-se de seu av�� paterno tor-
cendo o pesco��o de uma galinha para fazer uma sopa, no ver��o
anterior, quando fora passar as f��rias na casa dos av��s em Utah.
244
38
SAN J O S E , 1 9 7 1
��� Voc�� n��o faz nada certo!
Do sof�� da sala, Marni observava o pai gritando com a m��e na
cozinha. Seus joelhos come��aram a tremer. Sempre que seu pai
agia assim, sentia vontade de chorar, mas ele lhe dissera que uma
crian��a de dez anos n��o chora. Deitado na mesa ao lado da m��e,
o beb��, que desconhecia as regras, chorava mais a cada eleva����o
da voz do pai. Brian Jr. e Sarah assistiam a um desenho animado
na televis��o, sentados no ch��o da sala.
��� Voc�� passa cada minuto do dia nesta casa e mesmo assim
n��o consegue fazer nada direito. N��o consegue fazer compras,
cozinhar, cuidar das crian��as, nem colabora para facilitar a minha
vida.
A m��e estava sem nenhuma express��o no rosto. Com as fei-
����es inertes e os olhos escuros vazios, preparava uma massa en-
quanto o marido a repreendia. Amassava e sovava, repetidamente,
a ponto de as articula����es dos dedos embranquecerem. O beb��
n��o parava de chorar.
��� Olha essas crian��as todas desarrumadas, nem cuidar delas
voc�� consegue. Est��o imundas, s�� comem porcaria, e voc�� parece
preferir que a televis��o as eduque. Se eu soubesse, nunca teria me
casado com uma mulher t��o indolente e desleixada. Estou pros-
245
perando na minha carreira, mas, em vez de me ajudar, eu �� que
preciso ficar rebocando voc��. Nem a sua m��e e as suas irm��s a
entendem. Minha m��e diz que eu devia usar o cinto em voc��; se
age como uma crian��a precisa ser disciplinada como tal. Se n��o
tomar jeito logo e come��ar a agir como uma mulher adulta, ma-
dura e respons��vel, eu a devolverei para a sua m��e para ser treina-
da como esposa e m��e.
Brian saiu da casa batendo a porta atr��s de si.
��� Leite ��� pediu Sarah.
Marni levantou-se e foi para a cozinha pegar o leite para a
irm��zinha de tr��s anos. J�� com dez anos, ela cuidava de Brian Jr. e
de Sarah porque a m��e se preocupava cada vez menos com eles.
Marni tamb��m sabia que ela n��o dava aten����o ao novo beb��.
Quando o beb�� chorava, precisava avis��-la de que estava na hora
de amamentar.
Rebecca, sempre ap��tica, costumava passar muitas horas
olhando para a televis��o com a express��o vazia. Com uma freq����n-
cia cada vez maior, Marni a ouvia falar sozinha e murmurar frases
a respeito de ser uma p��ssima m��e e esposa. Com o passar do tem-
po, as palavras foram se tornando cada vez mais inintelig��veis. As
vezes, sua m��e parecia falar como se fosse outra pessoa, algu��m
que lhe dizia para fazer coisas que n��o queria.
Marni pegou o leite na geladeira e encheu um copo para Sarah.
Em seguida, guardou o restante e encaminhou-se para a sala.
A m��e ainda estava sentada �� mesa. Ela deixara a massa de
lado e fazia alguma coisa com o beb��. Marni percebeu o movimento
pelo canto do olho e virou-se para ver.
As m��os dela envolviam a garganta do beb��. Ela torcia o pes-
co��o dele. Em seguida largou-o, e ele caiu no ch��o. Ficou ali es-
tendido, sem vida. Depois, Marni viu a m��e fit��-la com olhos que
j�� n��o eram mais vazios e inexpressivos, mas exaltados, tensos. Sua
m��e levantou-se e tentou alcan����-la. Marni gritou, soltou o copo
que tinha nas m��os e correu.
246
P a r t e 6
A F R I C A
39
Gomes, o motorista respons��vel por fazer todos os transportes da
mina, levou-me a Lurema para resgatar um gerador que se extra-
viara de um carregamento vindo de Luanda. Recomprar o gera-
dor da pol��cia, que, com toda certeza, devia ser quem o roubara,
sa��a muito mais barato do que encomendar um novo e esperar
semanas at�� ele chegar. Al��m do mais, era muito prov��vel que fosse
desviado de novo.
As vezes, incr��dulo, eu perguntava a Cross como o pa��s con-
seguia funcionar com tamanha desorganiza����o. A resposta era
sempre a mesma: ele n��o conseguia.
A Dama Azul estava operando satisfatoriamente sob a minha
dire����o, se bem que eu tinha a impress��o de que, a cada dia, Deus
acrescentava um novo obst��culo para me obrigar a superar mais
dificuldades. Eu estava aprendendo o jeito de lidar com as pes-
soas. Nos Estados Unidos, tudo funcionava de acordo com o rel��-
gio: uma hora significava uma hora ou, no m��ximo, alguns minutos
a menos ou a mais. Na ��frica Equatorial, o tempo assumia um sig-
nificado inteiramente diferente. As pessoas, o com��rcio e os trans-
portes n��o eram regidos por um conceito ��nico de tempo como
acontecia no mundo ocidental. Um compromisso marcado para
uma hora da tarde podia ter as mais diversas interpreta����es. In-
clusive, ele n��o precisava acontecer no mesmo dia para o qual fora
previamente agendado.
249
No geral, eu me sentia feliz com o que estava fazendo. Meus
amigos em Nova York ��� ou ex-amigos ��� teriam apostado que eu
fugiria da mina, ou fracassaria, por n��o ser uma atividade diverti-
da. N��o era divertida mas era um desafio, e, como dizia Cross,
garantia a minha sobreviv��ncia. E nada como uma inunda����o ou
desmoronamento na mina para estimular a minha adrenalina. No
entanto, as noites eram enfadonhas e solit��rias. E de muito tes��o.
N��o havia a menor possibilidade de eu chegar perto de uma mu-
lher em um pa��s onde a Aids era uma epidemia. Um v��rus t��o
avassalador, que Cross brincava que era preciso ter cuidado at��
mesmo para praticar o pecado de Onan.
O jipe desviava-se de uns buracos na estrada, pr��ximo a um
acampamento da ONU, quando vi uma mulher encostada em uma
��rvore junto ao rio e quase n��o acreditei.
��� Pare ��� ordenei a Gomes.
Ela se virou quando ouviu meus passos.
��� Ah, meu Deus, n��o posso acreditar, o playboy do mundo
ocidental em Angola. ��� Marni bateu palmas. ��� E usando uni-
forme de trabalho. Ou ser�� que essa roupa caqui toda suja �� uma
nova moda de roupa esporte?
Mostrei as palmas das m��os.
��� Tamb��m criei calos.
��� De tanto jogar golfe?
��� Em Angola? Onde os bancos de areia que servem de obs-
t��culo s��o na verdade areia movedi��a? E voc�� pode ser comido
por um le��o, se entrar no mato para procurar a bola?
Eu a abracei.
��� �� bom ver voc��. Nem d�� para dizer quanto... quanto...
��� Quanto o qu��? ��� perguntou ela.
��� Quanto tes��o eu estou sentindo.
Aquilo a fez rir.
��� O que est�� fazendo aqui? ��� perguntei.
��� Distribuindo alimentos e rem��dios. Pelo menos, a parte que
n��o �� roubada para ser negociada no mercado negro. ��s vezes, eu
esque��o para quem estou trabalhando ��� se �� para o servi��o de as-
sist��ncia humanit��ria ou para os ladr��es locais. E voc��, o que faz aqui?
250
��� Vou �� pol��cia comprar um equipamento que ela me roubou.
N��s dois ca��mos na gargalhada.
Uma fileira de jipes passou por n��s, e ouvimos uma buzina. O
coronel Jomba sorriu e acenou, com um porrete na m��o, do seu
jipe enfeitado com uma caveira no cap��.
Marni estremeceu.
��� Esse homem �� um monstro. Somos obrigados a dar um
dinheiro a ele, por baixo do pano, para que os nossos caminh��es
de mantimentos n��o sejam roubados. E ainda pagamos para rea-
ver o material quando isso acontece. Voc�� o conhece?
��� Vagamente. ��� O coronel parecia estar muito feliz. Tinha
de estar ��� ele ficou com metade do p��-de-meia de Eduardo. E,
com toda certeza, considerou aquilo um b��nus extra que n��o pre-
cisava ser informado aos seus chefes na Unita.
��� Uma das nossas agentes est�� saindo com ele.
Dei de ombros e n��o demonstrei nenhuma rea����o. Conside-
rando o cord��o de arame farpado e os chifres, eu nem conseguia
imaginar que tipo de tatuagem ele teria no lugar onde o sol n��o
chega.
Marni segurou meu queixo e virou meu rosto de um lado para
outro me analisando.
��� Voc�� mudou.
��� Como assim? S�� faz poucos meses.
��� Parece mais velho, mais s��bio, mais s��rio e introspectivo.
Sinto que perdeu um pouco da sua irrever��ncia.
��� Deve ser a ��gua. Ou alguma coisa dentro dela. Se os mi-
cr��bios n��o nos atacam, os crocodilos se encarregam disso. Voc��
tamb��m mudou. Era muito s��ria, com aquele jeito de professora
m��ope que quase nunca sai do seu mundinho particular. Agora, as
marcas de suor substitu��ram a poeira dos livros. Parece uma vete-
rana do mundo real.
��� Veterana de uma guerra, voc�� quer dizer, uma guerra que
eu perdi. ��� Marni mostrou as cal��as largas do uniforme de cam-
panha e as botas empoeiradas. A blusa branca estava manchada
de alguma coisa escura. ��� �� chocolate de um bombom que dei a
251
uma crian��a. Devia ser a primeira vez na vida que ela provou um
doce. E em poucos meses morrer�� de Aids. ��� Marni afastou o
cabelo do rosto. ��� Estou horr��vel. Preciso de um banho e... ���
Ela come��ou a rir, mas acabou chorando.
Eu a trouxe para os meus bra��os. Ela tentou se afastar, mas eu
a apertei firme.
��� Meu Deus, n��o deve ser f��cil a sua vida aqui. Como con-
segue manter a sanidade no meio de toda essa mis��ria humana.
��� Tenho cara de quem manteve a sanidade? ��� perguntou
ela solu��ando.
��� Voc�� tem cara de uma mulher que est�� carregando o mun-
do nas costas. J�� lhe ocorreu que a maioria dos mortais n��o conse-
guiria fazer o que voc�� faz? Se eu soubesse que uma crian��a tinha
Aids, com toda certeza a largaria e sairia correndo alucinado.
Sentamos em um tronco, e segurei sua m��o.
��� As vezes, sinto que alguma coisa dentro de mim me d��
for��as. Hoje, soubemos que alguns agentes humanit��rios foram
assassinados no sul. Pode ser que haja amigos nossos entre eles.
��� Sinto muito. Voc�� mesma deve correr perigo todos os dias.
��� Eu poderia suportar ser assassinada, desde que fosse r��pi-
do. Mas lidar com pobreza, fome, doen��as, mutila����o, al��m dos
perigos e... e... eu n��o sou uma pessoa forte.
��� N��o ��, uma ova! Eu n��o conseguiria passar cinco minutos
fazendo o que voc�� faz. Todos os dias ao sair da mina, coloco an-
tolhos mentais para manter a minha sanidade. E n��o saio de l��
sem um guarda-costas armado. Eu me refugio no meu buraco se-
guro, enquanto voc�� fica nas linhas de frente.
��� N��o, eu sou uma pessoa fraca. Achava que conseguiria su-
portar qualquer coisa, mas essa mis��ria est�� me derrubando. Tudo o
que fazemos �� desfeito. Tentamos ajudar as pessoas, e, quando o l��der
deles n��o os passa para tr��s, eles pr��prios se prejudicam porque n��o
sabem fazer diferente. Mas h�� alguns agentes humanit��rios que tra-
balham nisso h�� muitos anos. Eles n��o ficam chorando pelos cantos.
��� Ent��o �� porque a experi��ncia j�� endureceu seus cora����es.
Imagino que devem ter chorado um bocado, antes de ficarem ca-
252
lejados. Este pa��s muda qualquer um que entre em contato com
ele. Ei, olhe para mim, sou um homem mudado, nem fa��o mais
piadas sobre guerra e fome.
Ela se levantou e me ofereceu a m��o para cumprimentar.
��� Chega de autopiedade. Preciso voltar ao trabalho, meus
mantimentos j�� devem estar saindo pela porta dos fundos mais
r��pido que entraram pela da frente. �� meu dever garantir que
cheguem ��s bocas certas.
Tomei a m��o dela e a puxei para mim.
��� N��o vou me despedir assim e ir embora.
��� Win...
��� N��o, isto n��o �� Lisboa, n��o d�� para voc�� sair do restau-
rante e entrar num t��xi. Somos os dois ��nicos americanos nas
redondezas. Eu gosto de voc��, voc�� gosta de mim, e n��s dois pre-
cisamos de um pouco de carinho. Al��m do mais, j�� entrou em uma
mina de diamantes?
��� Eu n��o disse a voc�� que explorar diamantes...
��� Sim, sim, j�� sei, as minas de diamantes s��o do mal. Vou
dar a voc�� a oportunidade de contar isso aos mineiros que se ma-
tam de trabalhar para sustentar a fam��lia e toda a vizinhan��a. Voc��
tamb��m pode contar isso a esses pobres infelizes que passam o dia
inteiro dentro dos rios, tentando tirar uma quantidade suficiente
de diamantes para conseguir sobreviver. Caso n��o tenha aprendi-
do isso sobre Angola, os diamantes n��o s��o do mal, as pessoas ��
que s��o.
Ela olhou fundo nos meus olhos.
��� N��o sei. Quais s��o as suas inten����es, Sr. Liberte?
��� Recuperar o tempo perdido.
253
40
Cross soltou uns palavr��es que eu n��o ouvia desde a ��poca de
col��gio.
��� Tenho ��dio de voc��. Enquanto voc�� afoga o ganso, eu crio
calos nos dedos de tanto tocar punheta.
��� �� porque eu levo a vida como deve ser ��� comida saud��-
vel, muito sono, e evito me destruir com a bebida.
��� Voc�� �� cheio de merda.
��� ��, mas o meu cheirinho �� doce.
Joguei mais um pouco de col��nia no pesco��o e no rosto. Esta-
va no quarto de Cross me arrumando. Cedera o meu para Marni,
a fim de que pudesse tomar um banho quando volt��ssemos do
passeio �� mina. Tr��s dias haviam se passado desde quando me
deparara com ela no rio. Marni insistira em concluir um invent��-
rio antes de vir. Finalmente, fui peg��-la e a trouxe para a mina.
Nesses tr��s dias, tive tempo para mandar um avi��o a Luanda
comprar champanhe e uma comida decente e para providenciar
que o meu quarto fosse pintado e limpo. Sim, eu estava gastando,
mas, que diabos, era a primeira mulher dispon��vel que eu via em
um raio de 1.600 quil��metros. Ainda por cima, justo uma de quem
eu gostava de verdade.
��� E tem mais, est�� me mandando para Luanda porque tem
medo que ela me veja e o expulse da cama.
��� Tamb��m tenho medo que a mina seja inundada, se voc��
n��o comprar aquela bomba d'��gua em Luanda. Ali��s, n��o saia de
254
perto do compartimento de carga quando ela for retirada do avi��o,
e n��o a perca de vista at�� ser instalada na mina.
Cross levantou as m��os para cima e apelou aos c��us.
��� Ouviu essa, meu Deus? Esse bund��o que n��o entendia de
nada at�� eu ensinar, agora vem me dizer como devo conduzir um
esquema de seguran��a.
BATI NA porta do meu quarto. Quando Marni abriu, entreguei-
lhe um capacete.
��� Para que �� isso?
��� S��o os regulamentos das minas. Voc�� vai descer muito.
��� Na mina?
��� N��o quer ver como ela funciona? A a����o de verdade acon-
tece no buraco.
��� Sim, mas... vai me fazer um raio-X quando sairmos?
��� Vamos ver. As vezes, substituimos por uma revista.
Atravessamos o port��o da seguran��a e nos dirigimos ao eleva-
dor da mina. Marni olhava para tudo maravilhada. E sorria para
todo mundo.
��� L�� embaixo �� perigoso? ��� perguntou.
��� Comparado ao que voc�� passa, �� moleza. �� preciso tomar
cuidado com as minhocas dos diamantes gigantes. Elas fazem bu-
racos no ch��o dos t��neis e comem quem cai neles.
NA MINA, MARNI FEZ PERGUNTAS INTELIGENTES, curiosa para sa-
ber como tudo operava. No in��cio, assumi ares protetores, orgu-
lhoso de lhe estar ensinando alguma coisa. Ela assistiu a uma
explos��o para produzir min��rio. Seguimos os escombros at�� o an-
dar em que ele seria processado e os diamantes seriam retirados.
��� Esses homens trabalham tanto ��� comentou ela. ��� �� uma
pena que o produto de todo esse esfor��o acabe beneficiando o
governo e os rebeldes.
J�� est��vamos novamente no andar superior, quando mostrei
um diamante na esteira que sa��a do triturador.
��� N��o acha incr��vel que um diamante bruto pare��a t��o
comum?
255
��� Estou impressionada. Eu pensava que eles vinham do solo
j�� com a forma do diamante, sabe, como aqueles da vitrine da
Tiffany's.
��� Est�� brincando.
��� Claro.
Pensei na sua frase enquanto acompanh��vamos a esteira subir
em dire����o �� mesa de graxa.
��� Fui presun��oso e arrogante, l�� embaixo.
��� Eu sei, mas n��o faz mal. Acho ��timo que, finalmente, es-
teja fazendo alguma coisa de ��til na vida ��� at�� me lembrar que
est�� saqueando um pa��s do Terceiro Mundo dos seus recursos
preciosos.
��� Recursos preciosos? J�� tentou comer um diamante? N��o
culpe o mundo ocidental ou os seus empres��rios por todos os ma-
les das na����es subdesenvolvidas. Os males e a opress��o estavam
aqui h�� milhares de anos, muito antes de n��s chegarmos.
Marni come��ou a me dar aulas de economia do Terceiro Mun-
do, um tema sobre o qual eu era particularmente desinformado.
��� Devia guardar a sua palestra para o coronel Jomba ��� su-
geri, interrompendo-a. ��� Soube que ele se formou em economia
em Londres ��� e avan��ada, ao g��nero Terceiro Mundo, em que se
conta os corpos em vez de fazer lan��amentos no livro de contabi-
lidade. N��o �� esse tipo de economia que se v�� na maioria dos pa��-
ses do Terceiro Mundo?
��� Justo quando eu acho que �� seguro gostar de voc��...
Parei e beijei sua boca. Ela n��o op��s nenhuma resist��ncia.
��� Tem raz��o, ainda sou um porco, mas pelo menos agora sou
um porco que trabalha duro. ��� Mostrei meus calos de novo.
Quando chegamos �� mesa de graxa, pedi a Marni que pegasse
um punhado da graxa.
��� Tem certeza que n��o vem junto uma minhoca do dia-
mante?
��� Precisa questionar tudo o que eu pe��o?
��� Voc�� �� confi��vel?
Deixei passar aquela.
256
Raspei a graxa da sua m��o, passei para a minha e apalpei-a
com o dedo.
��� O que �� isto? ��� tirei uma pedra bruta, maior que uma
ervilha. ��� Vamos levar �� sala de sele����o e ver o que temos.
Esperamos um pouco, enquanto um t��cnico avaliador limpa-
va a pedra e a examinava com cuidado.
��� �� uma D ��� disse o t��cnico.
Eu tamb��m a examinei minuciosamente com a minha lupa e
depois deixei que Marni fizesse o mesmo.
��� Incr��vel. Eu n��o sabia que os diamantes tinham tanto fogo
no seu interior.
��� Voc�� tem bom gosto ��� disse eu. ��� Este n��o cont��m in-
clus��es, �� da mais perfeita pureza. Vai receber a gradua����o D.
��� S�� D? N��o vai ser A?
Eu ri.
��� D �� a mais elevada gradua����o para um diamante. Este ��
um diamante perfeito, sem cor, com um leve toque de azul. Quando
for lapidado ter�� mais de um quilate e ser�� vendido por um pre��o
muito elevado. Na Quinta Avenida, custaria o mesmo que um
carro econ��mico. �� uma pedra excepcionalmente boa. ��� Entre-
guei a pedra a Marni. ��� �� sua, um presente da minhoca do dia-
mante.
��� Ah, meu Deus, n��o posso aceitar.
��� Claro que pode. �� a sorte da tirada. Voc�� poderia ter tira-
do um punhado de lama.
Aquilo n��o era propriamente verdade. Eu tinha armado tudo.
Selecionei a melhor pedra que fora extra��da da mina em pouco
mais de uma semana. Substitu�� a de classifica����o industrial que
Marni retirara da graxa por essa.
��� E agora, tem uma vis��o diferente da explora����o de diaman-
tes? ��� perguntei, quando nos aproxim��vamos do port��o de segu-
ran��a.
��� Sim, �� um trabalho ��rduo, e tenho certeza que os minei-
ros merecem o dobro de cada centavo que recebem. Mas os donos
257
das minas ainda s��o parceiros dos bandidos do petr��leo na des-
trui����o de Angola.
��� L�� vem voc�� de novo se atrapalhando com sua educa����o
exagerada. Voc�� culpa o petr��leo e os diamantes pela atual situa-
����o do mundo subdesenvolvido e pelas guerras nos continentes.
N��o v�� que n��o �� s�� a ambi����o que leva as pessoas a se matarem
umas ��s outras? Elas tamb��m se matam por princ��pios e ideais. O
IRA n��o mata pelos diamantes, a ��ndia e o Paquist��o n��o est��o se
digladiando por causa dos diamantes, os israelenses e...
��� Aonde voc�� quer chegar?
��� No que sempre repito para voc��. Que o mal est�� nas pes-
soas. N��o nos diamantes, nem no petr��leo. N��o �� culpa dos Esta-
dos Unidos que os povos do Terceiro Mundo sejam governados
por ditadores. Existe alguma democracia no Terceiro Mundo? Pode
citar uma? Isso �� nossa culpa? N��s n��o fizemos esse mundo.
Ela come��ou a rir.
��� Qual �� a gra��a?
��� J�� percebeu que estamos discutindo economia e pol��tica
em uma mina de diamantes na ��frica Equatorial? Quando voc��
era crian��a, tinha alguma id��ia de que faria isso um dia?
��� Eu nunca pensei que viveria tanto.
��� O qu��? Por que diz isso?
Dei de ombros.
��� Minha m��e morreu jovem, meu pai alguns anos depois dela.
Acreditei que, como eles, n��o chegaria �� velhice.
��� Que estranho, minha m��e tamb��m morreu jovem.
Alguma coisa na voz dela indicava que agora n��o era o mo-
mento de fazer perguntas a respeito.
Paramos na m��quina de raio-X.
��� Vai me submeter a um raio-X?
��� Vou.
��� Achei que estava brincando.
��� Pode escolher ��� um raio-X ou uma minuciosa revista
��ntima.
258
��� Quem faz a busca?
��� �� uma prerrogativa do dono da mina ��� sorri.
��� Farei o raio-X.
��� Sinto muito, acabei de me lembrar que a m��quina est��
quebrada.
259
41
No dia seguinte de manh��, est��vamos deitados na cama, e o cor-
po de Marni confortavelmente encaixado no meu. Eu tinha uma
sensa����o agrad��vel de aconchego e me sentia muito �� vontade.
N��o havia criado um sistema de classifica����o para as mulhe-
res da minha vida, mas fazer amor com Marni foi diferente de to-
das as outras. N��o pelo n��vel de desejo, nem pelo n��mero de vezes
que fiquei de pau duro e que gozamos. Era uma outra coisa. Dei-
tado naquele estado indefinido entre o sono e a vig��lia, gostoso e
acolhedor, procurei entender exatamente o que era.
At�� que compreendi. Era paz. Eu me sentia em paz, como se
estar com Marni saciasse uma necessidade at��vica, algo que eu
jamais senti com qualquer outra mulher.
Ela se mexeu ao meu lado e apertou o meu p��nis.
��� Como vai a minha minhoca do diamante?
Eu estava ficando de pau duro.
��� Se preparando para atacar voc��, de novo.
TOMAMOS O CAF��-DA-MANH�� no p��tio.
��� Foi a primeira vez que tive uma boa noite de sono desde
que cheguei em Angola ��� disse ela.
��� Este lugar est�� mexendo muito com voc��.
��� Eu sei. Segundo minha amiga, Michele, se voc�� abre o
cora����o para os horrores da guerra, logo eles comem a sua alma.
260
O que mais me incomoda �� ver beb��s morrerem de doen��a e de
fome, enquanto aquele coronel Jomba, nojento, sai por a��, reco-
lhendo dinheiro das pessoas, supostamente para proteg��-las, e leva
uma vida de nababo �� custa delas.
Eu n��o queria que Marni se estendesse no assunto Jomba. Se
ela descobrisse que eu estava participando com ele de uma tran-
sa����o de diamantes de sangue, cortaria fora a minha minhoca do
diamante, em vez de chup��-la.
Estava aliviado por n��o continuarmos no tema, quando o te-
lefone tocou. Era Cross ligando de Luanda.
��� Espero estar interrompendo alguma coisa ��� disse ele.
��� N��o exatamente, est��vamos discutindo a sociodemografia das
bases econ��micas centradas nas demandas do Terceiro Mundo e...
Cross fez um som obsceno, e afastei o fone do ouvido. Depois,
passei-o para Marni.
��� D�� um al�� ao Cross.
N��o sei o que ele disse, mas, quando ela me devolveu o fone,
estava ruborizada e com um riso sem-gra��a.
��� Ou��a, buana ��� disse Cross ���, consegui uma informa����o
interessante sobre aquela conta do ge��logo que voc�� encontrou
nos pap��is de Eduardo. Al��m de o terreno fazer limite com a Dama
Azul, voc�� �� o propriet��rio. �� um dos lotes que pertencem �� mina,
mas fica na dire����o oposta �� da maioria dos t��neis que abrimos.
��� Voc�� tinha mencionado que tem um conhecido na ��frica
do Sul. Pode investigar o ge��logo, descobrir qual a reputa����o dele?
��� Sou unha e carne com o chefe da seguran��a da mina da
De Beers. Quando vou a Cape Town de f��rias, costumamos sair
juntos para passear e nos divertir. Telefonei para ele, mas est�� de
f��rias. Continuarei tentando.
Quando desliguei, Marni perguntou:
��� Problemas?
��� N��o tenho certeza. O administrador da mina fez muita
coisa errada aqui. Ele n��o se contentou em enfiar a m��o no pote,
queria levar o pote todo.
Cutuquei o p�� dela debaixo da mesa.
��� O que Cross disse a voc��?
261
��� Desculpe, ele me fez jurar segredo. Mas me contou que h��
peixes maiores para se fritar.
��� Quando for ao mercado de peixes, lembre-se que n��o �� o
tamanho do peixe que conta, �� o sabor.
Est��vamos de novo na cama na maior "pescaria", quando Cross
ligou de novo.
��� Meu amigo sabe quem �� o ge��logo. �� um engenheiro de
minera����o que tem fama de ter costumes estranhos. Ele desen-
volveu um sistema e diz que consegue encontrar terra azul melhor
que qualquer outro. H�� quem diga que o homem �� um charlat��o,
enquanto outros o consideram um g��nio. Todos concordam numa
coisa: ele �� exc��ntrico. Est�� processando na justi��a algumas das
maiores empresas de minera����o e n��o permite que eles utilizem
seu equipamento.
��� Fa��a mais uma coisa ��� pedi. ��� Consiga o hor��rio dos v��os
para Cape Town.
Desliguei o telefone.
��� Alguma coisa est�� para acontecer ��� comentei com
Marni. ��� Estou com uma sensa����o igual �� que sentia nas corri-
das de carro, quando estava prestes a disparar e assumir a lideran��a.
��� Voc�� vai a Cape Town?
��� N��s vamos.
��� N��o posso ir junto...
��� Pode, sim, voc�� me disse que estava para tirar umas f��rias.
Ela come��ou a sair da cama, mas puxei-a de volta.
��� Voc�� n��o compreende, tenho um trabalho, uma respon-
sabilidade...
��� N��o �� verdade que est�� brigando com todo mundo �� sua
volta? E que, volta e meia, fica andando a esmo de t��o abalada?
Precisa se afastar por alguns dias. Fazer compras, dan��ar, comer
em restaurante franc��s, fazer amor em uma praia gostosa...
��� Est�� bem, me convenceu.
��� N��o, acho que precisa de mais convencimento. Venha para
baixo das cobertas. Tenho uma coisa para voc��.
262
42
CAPE TOWN, �� F R I C A DO SUL
��� Cape Town �� uma das mais belas cidades do mundo ��� infor-
mou Marni, quando o avi��o come��ou a descida para a capital do
pa��s que fica no extremo sul do continente africano. Ela tinha um
guia tur��stico no colo. ��� A ��gua do mar �� gelada porque vem da
Ant��rtica, mas as praias s��o quentes e t��m lindas paisagens.
Ouvi em sil��ncio e olhei pela janela para apreciar as monta-
nhas absolutamente planas no topo, os penhascos escarpados, e
as praias. Durante a viagem de tr��s mil quil��metros, minha mente
estava voltada para outras coisas. Eu havia pedido ao amigo sul-
africano de Cross para elaborar rapidamente um dossi�� sobre o
engenheiro que pretendia ver. J�� lia o material pela terceira vez.
Marni viu o nome do engenheiro no relat��rio.
��� Christiaan Kruger. �� esse o ge��logo que vai encontrar?
Parece um nome afrikaner.
��� Como assim?
��� S��o pessoas de ascend��ncia holandesa. Eles lutaram con-
tra os ingleses, na Guerra Boer, h�� cerca de cem anos. E, no final,
os ingleses ficaram com toda a ��frica do Sul. Os boers, agora cha-
mados de afrikaners, ainda s��o o grupo pol��tico branco mais po-
deroso no pa��s. S��o considerados agressivos, andam armados, s��o
muito religiosos e n��o gostam dos negros e dos outros brancos. Eles
263
t��m sua pr��pria l��ngua, o afrikaans, e sua cultura. Toda a popula-
����o branca da ��frica do Sul, representada pelos afrikaners, ingle-
ses e outros, soma menos de cinq��enta por cento do total do pa��s.
Beijei Marni.
��� Como pode ser t��o esperta?
��� Li o guia tur��stico. O hotel que voc�� escolheu para ficar-
mos, o Nellie ��� cujo nome oficial �� Mount Nelson Hotel ���, ��
um dos melhores do mundo. Tem bom gosto.
Modestamente, encolhi os ombros. Na verdade, a sugest��o do
hotel fora de Cross.
��� Quero fazer um passeio de Tuc-Tuc e ir �� praia ��� disse
Marni.
��� Que diabo �� um Tuc-Tuc?
��� Um t��xi de tr��s rodas que �� montado sobre a estrutura de
uma motocicleta. O nome vem do som que o motor faz: tuc, tuc, tuc...
Voltei para os meus pap��is.
Kruger parecia ser um t��pico afrikaner, cabe��a-dura e rebelde.
Logo no in��cio da carreira, trabalhou como engenheiro e ge��logo
de minera����o para a De Beers. Depois, saiu da grande empresa e
foi trabalhar como aut��nomo na ��rea de Kimberly. Ele patenteou
in��meras inven����es relativas �� minera����o de ouro e diamantes e,
com freq����ncia, processava quem usasse seu trabalho sem autori-
za����o. Durante a ��ltima d��cada, vem enfrentando um lit��gio com
uma empresa que, segundo ele, usa seu m��todo patenteado de
encontrar terra azul.
De acordo com o relat��rio, Kruger chegou a ser preso por ter
agredido fisicamente o advogado de seus advers��rios e, em outra
ocasi��o, por ter se apoderado dos equipamentos da companhia,
invadindo o terreno onde atuavam ��� de arma em punho.
Por imposi����o da condicional devido �� acusa����o de porte de
arma, ele deixou a regi��o de minera����o e foi morar em Cape Town.
No final do relat��rio, havia uma nota escrita �� m��o: Cara idea-
lista ��� princ��pios mais importantes que dinheiro.
Enquanto o avi��o descia, fechei os olhos e pensei naquela
observa����o. Desde o momento em que Cross retornara com o nome
264
de Kruger, eu s�� pensava em qual seria a melhor forma de abord��-
lo. Primeiro, resolvi n��o telefonar para informar sobre a minha
vinda porque seria muito f��cil ele dizer um n��o, ou deixar a cida-
de ��s pressas. Tamb��m n��o marcaria um encontro; apareceria ��
sua porta, sem nenhum aviso. Se bem que saber da sua atra����o
pelas armas n��o me deixava t��o tranq��ilo assim.
Mas a anota����o escrita �� m��o, no fim do relat��rio, me deu uma
id��ia.
265
43
N��s nos registramos no Nellie e subimos para a su��te. Marni esta-
va maravilhada com a eleg��ncia e o charme e o luxo do ambiente
antigo do hotel.
��� E da ��poca em que o Expresso Oriente ia da Europa �� Asia,
e homens como Cecil Rhodes e Barney Barnato brigavam pelo
monop��lio dos diamantes.
��� Excelente! ��� exclamei, puxando-a para perto de mim. ���
Vamos jantar na cama.
��� N��o, n��o, n��o vou perder a minha chance de comer em
um restaurante de verdade, sem precisar me preocupar com a ��gua,
as moscas comendo meu tornozelo, ou uma bala perdida.
Jantamos no melhor restaurante franc��s de Cape Town. E
deixamos para comer a sobremesa na cama.
Na manh�� seguinte, pegamos um t��xi para o centro da cida-
de, onde visitar��amos um comerciante de pedras preciosas indica-
do por Cross. Deixei Marni esperando do lado de fora por alguns
minutos e entrei para vender algumas pedras brutas. Quando
retornei, joguei um ma��o de notas na bolsa dela.
��� O que �� isso?
��� Para voc�� comprar calcinhas sensuais, perfumes caros ���
ora, compre um casaco de pele de tigre, o que quiser.
Marni devolveu-me o dinheiro.
��� N��o h�� tigres na ��frica, s�� le��es, e s��o perigosos.
266
��� Voc�� tamb��m ��. N��o vou aceitar o dinheiro de volta. Se a
incomoda tanto, d�� aos pobres. Encontro voc�� no hotel daqui a
umas duas horas.
��� �� muito dinheiro.
��� N��o se preocupe; n��o �� meu, eu roubei.
KRUGER MORAVA NO QUE OS sul-africanos chamavam de um bairro
coloured, de cor. Segundo o motorista do t��xi, "de cor" era a designa����o oficial das pessoas com uma mistura de sangue europeu e
africano.
��� �� a metade da popula����o de Cape Town ��� observou ele.
Quando paramos em frente a uma casa pequena e modesta,
com uma cerca de tela aramada e um p��tio coberto de mato, per-
guntei ao motorista:
��� Como voc�� classificaria este bairro? Pobre, classe m��dia, o
qu��?
Ele pensou por um momento e cuspiu pela janela antes de
decidir.
��� Nem pobre, nem classe m��dia. Talvez melhor que pobre,
mas n��o t��o bom quanto classe m��dia.
Era mais ou menos o que eu imaginava. O que acrescentava
um aspecto interessante ��s informa����es de que dispunha: por que
um engenheiro ge��logo bem-sucedido, com um monte de inven-
����es em seu nome, estaria morando em uma casa t��o abandona-
da, em um bairro t��o humilde? Achei que sabia a resposta. Ou
ent��o era prov��vel que ele me expulsasse de l��.
��� Fique aqui ��� avisei ao motorista. ��� Se ouvir tiros, cha-
me a pol��cia.
��� Se ouvir tiros, eu a chamarei da minha casa.
O port��o n��o tinha trancas, mas examinei o p��tio antes de
entrar. As cercas de tela costumam indicar que h�� um cachorro
grande no cen��rio. Aproximei-me da casa sem ser atacado por Cujo
e bati na porta algumas vezes, at�� que uma mulher negra na casa
dos 40 anos, talvez um pouco mais, abriu a porta. Era atraente e
267
tinha uma apar��ncia muito boa para ser uma empregada. Deduzi
que devia ser a esposa de Kruger.
��� Ya?
��� Boa tarde. Estou aqui para falar com o Sr. Kruger.
Ela franziu a testa e me examinou de cima a baixo.
��� O Sr. Kruger n��o recebe ningu��m sem hora marcada ���
disse em um sotaque afrikaner.
��� Sei que �� uma grosseria de minha parte aparecer assim, mas
n��o tenho o n��mero do telefone. Trago uma informa����o para ele
sobre seu sistema de explora����o de terra azul.
Minha resposta confundiu-a. Era a minha inten����o. Se eu ti-
vesse dito que estava ali a mando de Ed McMahon, com um mi-
lh��o de d��lares, em nome de uma empresa de apostas de corridas
de cavalos, ela teria batido a porta na minha cara. Mas eu usara as
palavras m��gicas.
��� Espere.
A mulher fechou a porta. Um instante depois, ela foi aberta
por um homem de meia-idade. Kruger tinha estatura baixa, pele
avermelhada, e ostentava uma carranca permanente.
��� Quem �� voc��? O que deseja? Estou ocupado. ��� Ele pro-
nunciou o qu�� com um sotaque.
��� Posso ajud��-lo na briga relativa �� sua t��cnica de terra azul.
��� Como?
Mostrei-lhe uma pedra bruta de cinco quilates. N��o era t��o
valiosa quanto a que dera a Marni na mina, mas valia muitos mil
rands sul-africanos.
��� Quero cinco minutos do seu tempo porque estou certo
que podemos nos ajudar mutuamente. Irei embora se estiver er-
rado, ou voc�� poder�� me expulsar. De um jeito ou de outro, a
pedra �� sua.
��� Como poder�� me ajudar?
��� Cinco minutos ��� repeti.
Ele hesitou. E, com isso, um enorme c��o Rottweiler, ou de al-
guma outra ra��a com apar��ncia de matador que meteria medo at��
em Cujo, enfiou o focinho entre a perna de Kruger e o portal.
268
��� Cinco minutos ��� concordou Kruger. ��� Depois, Hannah
vai para cima de voc��.
Tive esperan��a que Hannah fosse a mulher dele.
Segui-o para uma sala entulhada de equipamentos, livros e p��.
O c��o veio atr��s de mim.
Kruger sentou-se em um banco ao lado de uma mesa abarro-
tada de pap��is e de livros. Continuei de p��. O cachorro tamb��m.
��� Sou propriet��rio de uma mina em Angola, a Dama Azul.
Voc�� fez um relat��rio sobre um terreno que faz limite com a mina
e que tamb��m me pertence. A pessoa que o solicitou era meu
administrador, Eduardo Marques. Quero ver o relat��rio.
��� Se o relat��rio pertence a voc��, deveria t��-lo.
��� Mas n��o tenho. Acho que Marques estava me enganan-
do. Encomendou o relat��rio sem eu saber, depois tentou comprar
a minha propriedade por um pre��o baixo.
��� Se o relat��rio foi pago pelo Sr. Marques, ent��o pertence a
ele. Pegue com ele. ��� Kruger levantou-se. ��� Isto n��o tem ne-
nhuma rela����o com o lit��gio que estou enfrentando por causa da
minha inven����o.
��� Tem, sim, em dois n��veis. Primeiro, como voc��, estou sen-
do passado para tr��s por algu��m em quem confiava. Trabalhei duro
para ter o que tenho ��� quase engasguei com a mentira ���, e
Marques est�� tentando roubar de mim. Preciso de dinheiro para
continuar na luta. Caso me ajude, poderei incluir voc�� nos lucros,
se a mina tiver condi����es de fazer dinheiro. Est�� brigando com
ladr��es, h�� muitos anos. Desconhe��o a sua situa����o e os seus
motivos pessoais, mas talvez precise de dinheiro para levar a ter-
mo esse lit��gio.
Eu conhecia, sim, o motivo de Kruger ��� ele projetou um sis-
tema que deveria t��-lo deixado rico, e, em vez disso, morava em
uma casa humilde de um bairro pobre. Esperei, enquanto ele re-
fletia sobre as minhas palavras. Era evidente que sua primeira in-
ten����o foi me expulsar, ou mandar Hannah me atacar, mas eu tinha
esperan��a de ter apertado o bot��o certo. Kruger era um idealista
fan��tico pela t��cnica que inventara. Segundo o relat��rio, recebera
269
uma oferta de muito dinheiro para resolver suas a����es mas recu-
sara ��� diferente de mim, Kruger n��o pretendia vender a alma ao
diabo. Ele queria verdade e justi��a. Em vez de oferecer dinheiro,
eu estava lhe apresentando um meio de levar sua luta adiante.
��� N��o entendo o seu pedido. Voc�� diz que deseja ver o rela-
t��rio. O que o relat��rio diz n��o vai mudar. Oferecer-me dinheiro
n��o mudar�� o resultado.
��� Tem raz��o. O relat��rio pode dizer que o terreno n��o tem
nada. Mas, no presente, �� assim que a mina opera ��� e mesmo as-
sim, existe uma tentativa de me afastarem da empresa e assumirem
seu comando. A minha intui����o diz que ali tem alguma coisa mais.
��� O meu trabalho para os clientes �� confidencial. N��o foi
voc�� quem nem pagou, portanto n��o �� meu cliente.
Tirei uns documentos do bolso.
��� Esta �� uma c��pia de registros p��blicos que mostram que o
lote pertence �� Dama Azul e que eu sou o propriet��rio. Como voc��,
estou enfrentando um ladr��o que n��o tem nenhum direito �� mi-
nha propriedade.
Kruger colocou os ��culos e examinou os pap��is.
��� Sabe o qu��? ��� perguntei. ��� Tudo isso pode ser resolvido
com uma r��pida lida no seu relat��rio. Estou supondo que ele indi-
ca uma probabilidade positiva para a exist��ncia de diamantes. Se
n��o for este o caso, estamos os dois perdendo tempo.
��� N��o posso lhe mostrar o relat��rio.
��� ��timo, foda-se, se prefere ajudar os ladr��es, v�� em frente. ���
Virei as costas para ir embora.
��� N��o posso mostrar porque n��o o tenho mais. Ele levou.
��� Ele quem?
��� O administrador da sua mina. Ele esteve aqui ontem.
270
44
Marni arrastou as sacolas para o elevador. Um homem simp��tico
e sorridente segurou a porta para ela e perguntou qual era seu andar.
��� O ��ltimo ��� respondeu ela.
��� O mesmo que o meu ��� comentou ele.
Ele parecia ser o tipo nervoso, sorridente, mas um pouco agi-
tado. Marni calculou que, em Angola, seria considerado um mes-
ti��o ��� de descend��ncia metade africana, metade europ��ia. Na
��frica do Sul, segundo uma lei cuja inten����o era discriminar, ele
era uma pessoa "de cor".
��� Parece que voc�� comprou tudo das lojas ��� comentou o
homem.
Ela riu.
��� N��o exatamente, mas de fato diminu�� o estoque de algu-
mas. J�� faz algum tempo que estou morando no interior, longe de
tudo, e acho que enlouqueci quando vi as prateleiras e as araras
cheias de roupas.
��� �� americana.
��� Sim. E voc�� tem um sotaque que se assemelha um pouco
ao que ou��o em Angola.
��� Sou angolano.
��� Verdade? Que coincid��ncia. Vim de l�� ontem.
��� A trabalho?
��� Meu amigo �� propriet��rio de uma mina e veio a neg��cios.
271
Eu estou de f��rias do meu trabalho no programa mundial de ali-
mentos.
Quando o elevador chegou no andar da cobertura, ele segu-
rou a porta para ela sair.
��� �� uma organiza����o que merece respeito. Cheguei a ver sua
equipe atuando muitas vezes.
O homem segurou uma das sacolas que estava caindo da m��o
dela.
��� Aqui, deixe que eu levo essa.
��� Ah, obrigada.
Ele a seguiu pelo corredor, carregando a sacola.
Marni parou na porta da su��te, depositou as sacolas no ch��o e
pegou o cart��o-chave na bolsa.
��� Obrigada, agora j�� posso cuidar disso sozinha ��� agrade-
ceu, com a inten����o de que fosse um adeus, e abriu a porta para
colocar algumas das sacolas no interior do quarto. Ele lhe entre-
gou as sacolas restantes, mas continuou. Depois que ela as depo-
sitou no ch��o e se virou, o homem entrou e fechou a porta atr��s
de si.
Ele sacou uma arma do bolso do palet��.
272
45
Olhei Kruger bem nos olhos como se ele tivesse acabado de dizer
que eu estava com o grande C.
��� Eduardo Marques esteve aqui?
��� Bem a�� onde o senhor est��, Sr. Liberte.
��� Voc�� entregou a ele o meu relat��rio?
��� Entreguei o relat��rio dele. Foi ele quem pagou pelo trabalho.
��� Filho-da-puta.
Hannah rosnou. N��o devia gostar de linguagem chula.
��� Est�� bem, ent��o me d�� uma c��pia tamb��m.
��� Ele me pagou um adicional para que eu lhe entregasse o
original e n��o guardasse nenhuma c��pia. Contou que haveria um
lit��gio relativo ao terreno e que seria melhor para mim n��o ter
nenhuma c��pia. Como perdi em lit��gios a maior parte do que acu-
mulei nos ��ltimos trinta anos, a id��ia de n��o precisar sentar no
tribunal como testemunha me atraiu muito.
��� N��o existe nenhum lit��gio. Marques n��o passava de admi-
nistrador da mina, n��o tem direito a nada. Algu��m com muito
dinheiro est�� por tr��s dele e quer manter o relat��rio em segredo
para abaixar o pre��o da mina. Nunca guarda c��pias?
��� N��o. Fiz centenas de relat��rios ao longo dos anos, na ver-
dade, milhares. Se guardasse as c��pias, precisaria de uma sala s��
para arquiv��-las.
��� E suponho que tamb��m n��o guarde os resultados na cabe-
��a. N��o sabe o que descobriu?
273
��� Claro que n��o, foi uma an��lise longa e complexa.
��� Est�� bem, sinto muito por...
��� Mas posso lhe dar a minha opini��o por alto.
Aquilo me deteve.
��� E qual �� a sua opini��o?
��� Nada conclusiva. Mas encontrei alguns indicadores de que
poderia existir terra azul.
��� O que encontrou?
Ele sacudiu a cabe��a.
��� N��o posso dizer muita coisa. N��o tenho conclus��es. Eu
n��o tinha o material necess��rio para proceder a uma an��lise com-
pleta. Suponho que, como propriet��rio de uma mina, voc�� conhece
o procedimento para se procurar terra azul.
��� De certa forma, eu herdei a mina.
��� Tenho a minha pr��pria t��cnica e equipamento para anali-
sar os materiais, mas todos os ge��logos usam as mesmas mat��rias
brutas para fazer a pesquisa. Examinei amostras de terra tiradas
da superf��cie e de uma perfura����o a uma profundidade de trinta
metros. Eu procurava "indicadores", pistas de que houvesse terra azul naquela ��rea.
��� Para entender o que �� um indicador, �� preciso saber como
os diamantes se formam na terra. Todos os diamantes que pode-
r��o ser encontrados no solo foram formados h�� bilh��es de anos, a
uma profundidade muito grande. Mas ��� ele levantou uma das
m��os ��� ao mesmo tempo em que os diamantes estavam se for-
mando e sendo empurrados para a superf��cie em tubos de kim-
berlito, outros minerais tamb��m estavam se formando, e eles
subiram junto com os diamantes. Os tubos de kimberlito n��o s��o
t��o grandes em tamanho e, geralmente, est��o enterrados, o que
dificulta sua descoberta.
Kruger pegou um pote de vidro que continha v��rias pedras.
��� Procurar esses pequenos dep��sitos em uma vastid��o de
terra seria como procurar uma agulha no palheiro, como diz o pro-
v��rbio ��� a n��o ser que tiv��ssemos pistas. As pistas s��o os outros
objetos minerais que foram criados e espalhados no mesmo pro-
274
cesso pelo qual os diamantes foram criados e projetados para a
superf��cie.
��� Chamamos essas mat��rias de "indicadores" porque elas
podem indicar a exist��ncia de diamantes na mesma ��rea. Como
alguns desses indicadores se espalham muito mais amplamente que
os diamantes, eles s��o mais f��ceis de se encontrar.
Kruger tirou algumas pedras do pote.
��� Estes diops��dios de cromo verde s��o alguns dos indicado-
res... e, veja, h�� granadas de muitas cores: rosa, violeta, verde,
amarelo, laranja. Essas pedras preciosas s��o relacionadas aos dia-
mantes, pois todos foram criadas nas mesmas convuls��es da terra.
Mas elas n��o s��o nem t��o raras, nem t��o duras quanto os diaman-
tes, e nem t��m o mesmo brilho. Na minha opini��o, o indicador
que nos fornece as melhores pistas da exist��ncia de um tubo de
kimberlito de terra azul em uma determinada ��rea �� uma pedra
chamada de G-dez, uma classe de granada denominada "piro-
po". ��� Ele remexeu o pote e tirou uma pedra vermelho-escuro. ���
Este �� um piropo. O nome deriva-se de uma antiga palavra grega
que significa "olho de fogo".
��� Encontrou piropos quando examinou a minha proprieda-
de? ��� perguntei.
��� N��o cheguei a examinar a sua propriedade. O tratado de
paz ainda n��o estava sendo respeitado entre os rebeldes e o gover-
no, e eu n��o arriscaria a minha vida. O Sr. Marques conseguiu as
amostras e as enviou para que eu examinasse. N��o posso dizer
exatamente qual foi o resultado dos exames sem ver o relat��rio,
mas lembro-me muito bem que era promissor e inconclusivo.
��� O que era promissor?
��� Havia a presen��a de indicadores. O relat��rio n��o chegou
a concluir nada, porque eu disse a Marques que precisaria de mais
mat��rias brutas, que seria necess��rio perfurar mais para conseguir
amostras mais representativas. Isso foi h�� mais de um ano. Ele dis-
se que estava aguardando a chegada de um novo s��cio e que vol-
taria a me procurar. Nunca mais soube dele, at�� ontem. Como voc��,
ele apareceu sem avisar.
275
O "novo s��cio" devia ser Bernie. Convencido por Jo��o a com-
prar a mina de diamantes, de algum modo Bernie deve ter desco-
berto a pesquisa que Eduardo estava conduzindo. N��o era o tipo
de coisa que Eduardo pudesse manter em segredo absoluto ��� a
perfura����o exigia equipamento de grandes propor����es.
Eu tinha uma id��ia de como Bernie poderia ter descoberto que
Eduardo estava perfurando para tirar amostras representativas. Em
Angola, n��o se pode fazer nada sem uma licen��a ��� sendo que,
al��m da taxa da licen��a, se paga um suborno. Bernie teria feito
um levantamento da situa����o da mina em Luanda, antes de
compr��-la. O levantamento deve ter trazido �� tona o pedido de
licen��a para utiliza����o do equipamento de perfura����o. De posse
desses dados, ele deve ter confrontado Eduardo, mesmo por tele-
fone, sendo ent��o informado da exist��ncia de indicadores. Com
toda certeza, Bernie viajou para Angola e encontrou com Eduardo.
��� Voc�� compreende ��� disse Kruger ���, seria preciso fazer
mais perfura����es, mais testes, para chegar a uma conclus��o defi-
nitiva. Se for encontrado um tubo de kimberlito, talvez voc�� pos-
sa escavar o t��nel at�� ele a partir da sua atual mina, mas tamb��m
pode ser necess��rio come��ar do nada e abrir uma mina inteira-
mente nova. Vai precisar de um engenheiro especializado e acon-
selhamento geol��gico durante todo o processo.
��� Pode ir a Angola conduzir a pesquisa?
��� Eu n��o iria para aquele buraco nem por todo o ch�� da
China.
��� N��o estou no neg��cio de ch��s, Sr. Kruger, mas desconfio
que os diamantes s��o muito mais valiosos, se compararmos o peso
de um e de outro. N��o queria entrar em uma zona de guerra. Agora
existe paz, ou, pelo menos, um hiato na guerra. �� um per��odo bas-
tante favor��vel
��� Para qual de n��s?
��� Para ambos. Eduardo Marques n��o �� tolo. Ele passou a vida
inteira administrando minas. Os diamantes est��o no seu sangue,
ele sente o cheiro. Voc�� confirmou a possibilidade de existirem
diamantes, �� s�� uma quest��o de identificar o local. Como enge-
276
nheiro de minera����o e ge��logo, pode encontrar o tubo e desco-
brir o melhor meio de chegarmos a ele.
Peguei o pote de min��rios da m��o de Kruger e espalhei-os na
mesa. Eu queria sua aten����o plena. Hannah rosnou quando me
inclinei na dire����o de seu dono.
��� Cale a boca ��� disse eu a Hannah. ��� Ou��a, Christiaan,
voc�� est�� derrotado e praticamente quebrado de tanto brigar com
aqueles canalhas que roubaram o seu processo. Eles t��m a mina
de ouro, e voc�� o cetro. Voc�� vai para Angola como aqueles aven-
tureiros que procuravam petr��leo no Texas, e n��s descobriremos
um tubo de diamantes de calar a boca de muita gente. Voc�� volta
para c�� e acaba com aqueles ladr��es ��� e n��s dois viveremos feli-
zes para sempre. O que diz?
Hannah rangeu os dentes quando elevei a voz.
��� Cale a boca ��� ordenou Kruger.
277
46
Voltei para o hotel feliz da vida. Kruger estava do meu lado. Den-
tro de um m��s, ele viajaria para Angola. Enquanto isso, eu preci-
saria comprar os equipamentos da lista que ele preparara. Parei na
recep����o para mandar a lista para Cross por fax.
Subi no elevador e percorri o corredor quase pulando de ale-
gria. Tudo corria como um mar de rosas. Eu ria feliz da vida quan-
do abri a porta da su��te e entrei.
Meu riso murchou ao ver Eduardo de arma na m��o.
��� Feche a porta ��� ordenou. ��� N��o quero perturbar os ou-
tros h��spedes se precisar atirar em voc��.
Fechei a porta.
Marni estava em uma cadeira pr��xima a uma janela.
��� Voc�� est�� bem? ��� perguntei.
Ela fez que sim com a cabe��a.
��� Convers��vamos sobre algumas coisas. Ele estava explican-
do por que n��o gosta de voc��.
��� Voc�� arruinou a minha vida ��� disse Eduardo. ��� Mas
agora vai consertar tudo. ��� Apontou com a arma para uns pap��is
sobre a mesa. ��� Antes, assinar�� os documentos de venda da mina
para mim. Ver�� que o pre��o da mina caiu. Agora vale um rand.
Parecia que a vida n��o tinha tratado Eduardo bem, desde a ��l-
tima vez que nos vimos. O terno e a camisa estavam sujos, e os olhos,
vermelhos de sono ou muita bebida. Pior, suas m��os tremiam ��� um
mau sinal quando se tem uma arma apontada para mim.
278
��� �� o mesmo que 25 centavos no meu pa��s. Eu seria louco se
vendesse a mina por esse pre��o.
��� N��o, n��o, estar�� apagando os erros do seu passado. Eu
estaria morto agora se n��o tivesse sa��do do pa��s antes de ser pego
pelo seu amigo, o coronel Jomba. Sei bem o que voc��s dois est��o
armando. E que me quer fora do caminho para n��o atrapalhar seus
planos. E n��o pense que ignoro o que voc�� est�� conspirando com
aquela puta e o marido dela.
��� E se eu n��o aceitar vender a mina por alguns centavos?
��� Isso me agradaria muito mesmo. Primeiro eu atiraria no peito
do seu p��, onde est��o todos os ossos. Depois, atiraria no joelho...
��� Entendi. Onde devo assinar?
��� N��o �� t��o f��cil assim, senhor. Poderia assinar o papel e
depois, logo que eu saisse, chamar a pol��cia e dizer que foi for��ado
a assinar.
Aquela id��ia me ocorrera.
��� Lembra de quando colocou uma arma na minha cabe��a e
me obrigou a telefonar para o banco e transferir todo o dinheiro
que eu tinha no mundo para a sua conta? Est�� lembrado, senhor?
De me obrigar a lhe dar todo o dinheiro que economizei durante
a vida inteira?
��� Eu me recordo de ter recuperado o dinheiro que voc�� me
roubou.
��� Exatamente! �� isso mesmo. E, agora, eu recuperarei o que o senhor roubou de mim!
Ele se aproximou e cutucou o meu bra��o com o rev��lver. Seus
olhos estavam esbugalhados. E seus movimentos eram nervosos,
t��picos de quem est�� drogado.
De repente, ouvimos o barulho do vidro se quebrando ��� um
barulho assustador.
Eduardo e eu ficamos paralisados. Marni lan��ara uma cadeira
em uma janela imensa e a estilha��ara. A cadeira sumira de vista,
na sua descida de doze andares.
Fui o primeiro a me recuperar. Segurei a m��o de Eduardo e a
arma disparou uma bala que penetrou no ch��o. Marni gritou pela
279
janela ��� "Fogo!" ��� e come��amos a lutar. O camarada era resistente e mais forte do que eu esperava. Tentei desarm��-lo, e deu-se
novo disparo. Golpeei seu rosto com a minha testa, amassando-
lhe o nariz, e torci seu corpo at�� lev��-lo ao ch��o, quando imobili-
zei seu est��mago com o meu joelho. Ca��do de costas, com o nariz
jorrando sangue e sem conseguir respirar, o canalha enfiou a unha
do polegar no meu olho. Recuei e senti sua m��o armada desvenci-
lhar-se de mim.
Marni pegou um abajur e o atingiu na cabe��a. Aquilo pegou-
o de surpresa, ele cambaleou por um instante, e ela desferiu um
novo golpe. Desta vez, ele perdeu os sentidos. Tirei a arma de sua
m��o. Respirando forte, pedi a Marni:
��� Me arranje alguma coisa, uma gravata, vou amarr��-lo. E
chame a pol��cia.
��� N��o creio que seja preciso.
Ela estava certa ��� o estrondo provocado pelo impacto da ja-
nela estilha��ada deve ter chegado at�� os navios em alto-mar.
NAQUELA NOITE, jantamos no quarto ��� depois de uma mudan��a
de apartamento.
A pol��cia levara Eduardo. Passamos toda a manh�� seguinte
depondo e assinando pap��is, inclusive nos compromentendo a
voltar a Cape Town, caso o sistema judicial precisasse de n��s.
Quando Eduardo saiu do estupor em que Marni o colocara,
ele me xingou e me jogou pragas usando v��rias palavras luso-ango-
lanas e frases muito usadas em paredes de banheiros. Quando cha-
mou Marni de puta, dei-lhe um soco no est��mago.
��� Ele est�� todo amarrado ��� disse Marni.
��� ��. Fica mais f��cil chut��-lo.
Eu n��o sabia se ela iria rir ou chorar. Na verdade fez um pouco
de cada.
��� Qual �� a gra��a? ��� perguntei.
��� Eu estava t��o feliz em Cape Town achando que era um
lugar seguro.
280
Naquela noite, durante o jantar, ela estava silenciosa e me-
lanc��lica.
��� Ainda pensa em Eduardo? ��� perguntei.
��� N��o, eu pensava sobre a morte. Voc�� me contou que per-
deu a sua m��e cedo. Eu tamb��m. Minha m��e se suicidou depois
de estrangular meu irm��o, ainda beb��, e de tentar me matar.
Fiquei chocado.
��� Meu Deus! ��� Eu n��o sabia o que dizer.
Marni deu de ombros.
��� Ela estava louca, mentalmente doente, talvez em conse-
q����ncia da maneira como meu pai a tratava. Ele era muito exi-
gente e a criticava muito, e ela era submissa e extremamente
insegura. Por mais estranho que possa parecer, ela n��o matou por
maldade. Acho que n��o suportava mais a situa����o e quis matar os
filhos para n��o sofrerem como ela.
��� Marni, sinto muito...
��� N��o h�� nada a lamentar. �� uma realidade com a qual pre-
ciso lidar, principalmente evitando contato com meu pai.
��� Talvez voc�� tenha medo de se envolver com um homem.
��� �� isso que n��s temos, um envolvimento? ��� perguntou ela.
��� N��o sei o que temos, ��s vezes, nem sei quem eu sou. A
morte dos meus pais me deixou muito fatalista quanto �� vida. Pas-
sei a preench��-la me distraindo, tirando dela o m��ximo de diver-
s��o e alegria poss��vel, antes de o anjo da morte bater �� minha porta.
Agora, n��o sei. Trabalhando s��rio todos os dias e vendo o resulta-
do, me pergunto se n��o quero algo mais do que viver o momento.
Naquela noite, fiquei deitado com sua cabe��a no meu ombro,
sentindo a respira����o suave e quente no meu pesco��o. Nenhum
dos dois estava em clima para sexo selvagem e apaixonado. Fica-
mos nos acariciando, anconchegados um no outro.
Tentei imaginar como deve ser terr��vel ver a pr��pria m��e ma-
tar seu irm��o e, depois, tentar matar voc��. Segundo Marni, o nome
da doen��a era a S��ndrome de Med��ia, a deusa na pe��a de Eur��pides
sobre a mitologia grega. Depois de ser trocada por outra mulher,
Med��ia matou os filhos por vingan��a para punir o marido, Jas��o,
l��der dos argonautas que procurava o velocino de ouro.
281
Tentei analisar meus sentimentos por Marni. Seria desejo?
Afinidade? Agora que eu conseguira o que queria, tirar o atraso,
como diria Cross, estaria pronto para partir para outra?
N��o tive nenhuma revela����o, mas uma coisa me surpreendeu.
Eu queria estar com ela, n��o apenas naquele momento; queria
proteg��-la e saber que se orgulhava de mim. Eu nunca me sentira
assim antes.
282
47
Pegamos o avi��o para Luanda, dois dias depois.
O fato de quase termos sido assassinados minguou o entusias-
mo de Marni em rela����o aos seus planos de descansar e passear.
No in��cio, acreditei que ela estava mais abalada com o acidente
do que queria admitir, e que suas emo����es haviam aflorado depois
da revela����o de seu segredo de fam��lia; j�� est��vamos no avi��o,
quando descobri o que a incomodava de fato.
��� Win, o que Eduardo quis dizer quando mencionou que
voc�� estava envolvido com o coronel Jomba?
��� Entreguei a Jomba uma parte do dinheiro que recuperei
de Eduardo. �� uma esp��cie de tributo. Se n��o o fizesse, ele me
penduraria em um gancho de carne de a��ougue e me exibiria no
cap�� do seu jipe como enfeite. ��� Aquela era a verdade. Pelo menos
em parte. A outra parte era que Eduardo descobrira o esquema
com Jomba. Mas Marni teria me jogado daqueles 38 mil p��s de
altura, se eu revelasse meu envolvimento em uma troca de dia-
mantes por armas.
��� Tive a impress��o de que ele se referia a alguma outra coisa
em que n��o estava envolvido.
��� Pago �� Unita a quantia usual referente �� taxa de prote����o
como todos os propriet��rios de minas. Jomba �� o encarregado do
recolhimento desse dinheiro. ��� Isso tamb��m era verdade. At��
aqui, consegui escapar de suas perguntas com afirma����es incon-
test��veis.
283
��� Eduardo tamb��m falou alguma coisa a respeito de uma
mulher com quem voc�� estaria envolvido, e usou a palavra "puta"
para descrev��-la ��� e a mim.
Beijei a m��o dela.
��� Eu n��o fa��o perguntas sobre o seu passado.
��� N��o estou questionando o seu passado. Eduardo falou
como se alguma coisa estivesse para acontecer. Sei que voc�� ficou
hospedado na casa de Jo��o Carmona em Lisboa. A mulher dele,
Simone, tem muita influ��ncia em uma organiza����o de assist��ncia
humanit��ria portuguesa e angolana porque o marido doou muito
dinheiro. Mas todos sabem que Carmona est�� ligado ao neg��cio
de diamantes de sangue. ��� Ela segurou o meu bra��o e me enca-
rou com um olhar muito sincero. ��� Voc�� n��o se envolveria em
algo assim, n��o ��? Conhece os sofrimentos e os horrores que os
diamantes de sangue trouxeram para a Africa.
Beijei o rosto e depois os l��bios de Marni.
��� Minha querida, as drogas levaram Eduardo a ter alucina-
����es. ��� Outra brilhante manobra para driblar a verdade. Eu de-
veria ter sido advogado.
Ela sacudiu a cabe��a.
��� Estamos chegando a Luanda. Agora me diga a verdade,
no momento em que sair do avi��o, vai esquecer que me conhece.
Eu voltarei para a selva, e voc�� para Nova York, onde as mulheres
n��o cheiram a repelente de mosquito.
��� Nunca. ��� Beijei seu nariz. ��� Nunca senti por ningu��m o
que sinto por voc��. ��� Isso era verdade.
Sa��mos do avi��o e nos dirigimos juntos para o terminal. Uma
surpresa me aguardava. Uma mulher com um len��o na m��o com
o nome WIN LIBERTE escrito a batom.
Era Simone.
Ah, merda. Achei que falei para dentro, mas Marni ouviu.
��� Posso explicar ��� disse eu.
A express��o em seu rosto indicava que eu n��o tinha como faz��-la
��� Ol��, me desculpe pela brincadeira. ��� Simone cumprimen-
tou a mim e a Marni. ��� Sinto muito ter aparecido sem avisar.
284
Tentei falar com voc��, mas me informaram que estava viajando.
Surgiram alguns problemas quanto ao nosso neg��cio com o coro-
nel Jomba que exigem aten����o imediata.
��� Estarei com voc�� em um instante.
Acompanhei Marni at�� um t��xi. Fiz sinal para um dos guarda-
costas de aluguel e dei a ele um dinheiro para escoltar Marni, ar-
mado, at�� a cidade.
��� Voc�� dormiu com ela, n��o foi.
N��o era uma pergunta.
��� E est�� metido em um esquema sujo.
N��o havia nada que eu pudesse dizer.
Marni foi embora zangada e magoada. Enquanto eu observa-
va o t��xi se distanciar, Simone se aproximou.
��� Eu disse alguma coisa que n��o devia?
��� Voc�� �� uma sacana.
Ela beijou minha boca.
��� Claro que sou. Pelo menos sou boa nisso. �� a ��nica forma
de uma mulher lidar com os homens que se acham donos do
mundo.
��� O que veio fazer aqui montada na sua vassoura? Arruinar
a minha vida?
Ela riu.
��� Ah, n��o, por favor, n��o me diga que o irresist��vel Win Li-
berte est�� apaixonado ��� e por uma c��-d��-efe idealista. Se ao
menos tivesse me abandonado por uma estrela de cinema.
��� N��o posso abandonar algu��m que nunca tive.
Entramos juntos em um t��xi.
��� Ser�� que vou atrapalhar se me hospedar no mesmo hotel
que voc��s? ��� perguntou ela.
��� Marni ter�� uma reuni��o com colegas de trabalho e, logo
depois, pegar�� o avi��o para a regi��o dos diamantes.
��� Que bom. N��o pretendia estragar a sua noite.
��� N��o vai estragar. Eu a levarei para o seu hotel e a deixarei
l��. Tamb��m tenho um v��o marcado esta tarde para o interior.
285
Simone colocou a m��o na parte superior da minha coxa.
��� Est�� com raiva de mim. Sinto muito, mesmo.
��� Vamos ao que interessa. Por que veio?
��� Est�� bem. ��� Ela falou baixo, para que o motorista e o
guarda n��o pudessem ouvir. ��� A data marcada para a troca foi
adiantada. As condi����es pol��ticas do pa��s est��o se agravando.
Savimbi e o governo est��o se desentendendo, e o acordo de paz
pode cair por terra a qualquer momento.
��� Que diferen��a isso faz? Essa gente continuar�� precisando
de balas para se matar uns aos outros.
��� Se come��ar uma guerra, os diamantes angolanos ser��o
considerados diamantes de conflito, e a certifica����o n��o valer��
nada.
��� O que Jomba pretende afinal?
Ela deu de ombros.
��� Guerra, um golpe, uma revolu����o, quem sabe? Essas pes-
soas t��m in��meras formas de se aniquilarem. Nosso neg��cio �� com
Jomba, mais ningu��m. N��o podemos negociar com Savimbi sem
alienar Jomba, que pretende assumir o comando da Unita. Mui-
tos l��deres da Unita pensam como Jomba ��� est��o cansados da li-
deran��a de Savimbi. Se o processo de paz for implementado de
fato, os rebeldes ser��o obrigados a se desarmar. E perder��o o di-
nheiro que recebem dos diamantes.
��� Ent��o n��s armaremos Jomba para que possa matar Savimbi
e transformar o pa��s em um mar de sangue. �� esse o plano?
Simone acariciou o meu bra��o.
��� Qual �� o problema, Win? Sua namoradinha da ONU o
convenceu de que �� terr��vel negociar diamantes por armas? J�� n��o
est�� aqui h�� tempo suficiente para entender como este lugar fun-
ciona? Se n��o fornecermos tanques e armas para essas pessoas se
destru��rem, elas usar��o lan��as.
��� Conheceu o Bernie?
��� O qu��?
��� Bernie ��� o homem que eu chamava de tio, o que investiu
o meu dinheiro na mina ��� voc�� o conheceu?
286
��� N��o, acho que n��o, n��o me lembro.
Simone era boa atriz, mas pude perceber que mentia. Minha
pergunta deixou-a nervosa.
��� O que h�� de t��o importante nesse neg��cio para voc�� e Jo��o
se disporem a arriscar mais dinheiro em um esquema de diamantes
de sangue que pode dar errado? Pelo estilo de vida que voc��s levam,
n��o parecem ter que se preocupar com a comida que vai para a mesa.
��� �� o diamante de fogo.
��� O diamante de fogo? ��� Eu sabia do que ela falava. Meu
pai contara a respeito de um diamante cor de rubi que lhe fora
roubado, mas fingi ignorar. N��o era dif��cil para mim, nesse jogo de
quebra-cabe��a repleto de enigmas e envolto em mist��rios.
��� O Cora����o do Mundo, um diamante vermelho como o
rubi, muito raro, talvez o diamante mais valioso que existe fora de
um museu. Jo��o lhe contou que ele perdeu dinheiro naquele ne-
g��cio que arrasou com as finan��as do seu tio, mas n��o revelou que
Bey ficou com o seu diamante de fogo em troca da d��vida. Nesse
neg��cio com Jomba, acontecer�� uma troca. Bey fornecer�� armas
a Jomba em troca de diamantes e nos devolver�� o diamante de
fogo. Mas ele n��o �� confi��vel. ��� O Cora����o do Mundo vale mais
do que todo o neg��cio dos diamantes. Jo��o teme que Bey n��o queira
devolv��-lo, ou que Jomba descubra e o tome para si.
��� O que impede que Jomba e Bey se unam e fa��am um acor-
do? E sem Jo��o saber?
��� Eles n��o se conhecem. Jomba n��o sabe quem fornece as
armas, e Bey n��o sabe quem as envia. Jo��o s�� revelar�� hora e local
no ��ltimo momento.
��� E a honra dos ladr��es? ��� Cada vez mais, eu sentia que leva-
ria a culpa sozinho e de m��os vazias. ��� Talvez voc�� possa me tirar
uma d��vida. ��� Contei nos dedos. ��� Jomba receber�� armas, Bey os
diamantes de sangue, Jo��o a gema mais valiosa do mundo, e eu...
Ela apertou a minha coxa. Eu n��o gostava e n��o confiava na-
quela mulher, mas seu toque levava meu n��vel de testosterona ��s
alturas. Como os homens s��o tolos.
287
��� Tenho uma informa����o que poder�� surpreend��-lo. Aque-
le homem que administrava a sua mina ��� qual era o nome dele?
��� Marques, Eduardo Marques.
��� Sim, ele. Ele procurou Jo��o, recentemente. Queria ajuda
para comprar a mina.
Consegui manter o rosto impass��vel, mas foi dif��cil. Logo con-
clu�� que eles estavam de conluio com Eduardo. Jo��o tentaria ma-
nipular todos os envolvidos para se beneficiar no final.
��� Win, voc�� est�� sentado em uma mina de ouro, como voc��s
americanos diriam. Marques tem um relat��rio geol��gico que re-
vela a exist��ncia de um tubo de kimberlito na propriedade. ���
Simone hesitou. Deus, como era boa atriz. Mas eu n��o era um bom
ator. ��� Pela express��o no seu rosto, sabe do que estou falando.
��� Sei que Marques tem alguma carta na manga. Tentou com-
prar a mina, antes de ser demitido por roubo. Segundo ele, existe
um grupo sul-africano por tr��s disso. H�� pouco tempo, ele fez ou-
tra oferta: queria trocar chumbo por diamantes.
��� Chumbo por diamantes?
��� Ele estava armado. Por que voc�� e Jo��o n��o me contaram
que Marques era um ladr��o quando estive em Lisboa?
��� N��s n��o sab��amos, faz poucos dias que procurou Jo��o. Ele
recusou, claro. Era amigo de seu pai e, agora, �� seu s��cio no co-
m��rcio de diamantes. N��o faria uma deslealdade dessas com voc��.
Estava ficando cada vez mais dif��cil disfar��ar a minha raiva.
N��o s�� porque meu pai considerava Jo��o um ladr��o de primeira,
mas porque ele lhe havia roubado o diamante de fogo. N��o duvi-
do nada que estivesse no neg��cio s�� para me tirar a mina. Imagi-
nei que ouviria do advogado sul-africano que Jo��o era um dos
s��cios de Eduardo.
Paramos em frente ao hotel.
��� J�� terminou comigo? ��� perguntei.
��� N��o exatamente. Como a programa����o foi antecipada,
voc�� precisar�� estar em Istambul para os acertos finais dentro de
tr��s dias.
288
��� Me desculpe, devo estar com um problema de audi����o. Voc��
n��o disse que eu estaria em Istambul daqui a tr��s dias, n��o ��?
��� Bey quer conhec��-lo. Ele n��o gosta de negociar com quem
n��o conhece. Quer saber que tipo de pessoa voc�� ��. E Jo��o e ele
precisam fazer os acertos finais para a entrega das armas e a venda
dos diamantes.
Istambul. Tentei visualizar onde ficava o lugar. Portugal fica
junto ao Atl��ntico, em uma extremidade do Mediterr��neo; Istam-
bul, na Turquia, acho que fica no outro extremo. Na verdade, n��o
assisti a todas as aulas de geografia.
Novamente ela colocou a m��o na minha coxa e a apertou.
��� Sinto muito, Win, mas �� necess��rio. Tenho medo de uma
vingan��a por parte de Bey ou do coronel Jomba, se algu��m atra-
palhar esse neg��cio.
Simone n��o acrescentou Jo��o na equa����o, mas ele, provavel-
mente, seria o primeiro a me ca��ar quando eu fugisse desses c��es
do inferno.
Simone debru��ou-se sobre mim e me beijou. Seus l��bios eram
quentes e ��midos.
��� O que posso fazer para compensar tudo isso?
Comecei a rir. Continuei rindo quando ela saiu do t��xi e ba-
teu a porta. Simone ia se afastando, mas virou-se e falou comigo
pela janela aberta.
��� Jo��o mandar�� um telegrama para voc�� com as instru����es
sobre Istambul. ��� Ela hesitou. ��� N��o me queira mal.
Sacana.
289
48
O telefone tocava quando Simone entrou no quarto.
��� Al��.
��� Sou eu ��� disse Jo��o. ��� Contou ao seu amigo para onde
ele vai?
Jo��o falava em c��digo porque n��o considerava seguro um te-
lefone de quarto de hotel em Angola.
��� Obrigada por perguntar se estou bem.
Jo��o caiu na gargalhada.
��� Como vai, meu amor? Contei que estou com saudades?
Que estou contando as horas?
��� Voc�� �� um hip��crita. Como est�� Jonny?
��� Provavelmente, trepando com todos os rapazes de Lisboa.
Ela se comporta como um gato de rua. Igualzinha �� m��e.
��� N��o se d�� ao trabalho de assumir a culpa pela educa����o
da sua filha. E, sim, nosso amigo foi informado.
��� Como reagiu?
��� Como voc�� reagiria?
��� Eu n��o aceitaria.
Ela pensou por um momento.
��� N��o tenho certeza se ele vai aceitar.
��� Mas vai �� reuni��o?
��� Com certeza. A esta altura, n��o tem escolha. A quest��o ��:
como voc�� poder�� control��-lo quando ele tiver escolha?
290
��� �� simples, meu amor. N��o deixaremos que ele tenha op-
����es. ���A voz de Jo��o assumiu um tom frio. ��� Acho que, dentro em
breve, chegar�� o momento em que toda essa agita����o da vida moder-
na atingir�� nosso amigo Win. Ao ponto de n��o valer mais a pena viver.
Nenhum dos dois falou por um instante, depois Jo��o perguntou:
��� Falou com nosso amigo, o coronel?
��� Nos encontramos... rapidamente.
��� E . . .
��� Ele insiste que a nova data deve ser obedecida.
��� Obedeceremos, sim, se �� isso que precisamos fazer para eu
recuperar o meu tesouro.
Jo��o n��o escondia que o diamante de fogo era mais importan-
te para ele do que Jonny ou Simone.
Ele continuou.
��� Ouvi algo interessante sobre as tatuagens do coronel. Al��m
daquelas tatuagens exc��ntricas, algu��m da embaixada angolana
me contou que o coronel tem fama de ter tatuado o p��nis para
parecer um le��o com juba quando cresce. ��� Jo��o fez uma pausa. ���
J�� provou carne de le��o a�� em Luanda?
��� �� isso que quer que eu fa��a?
��� Meu amor, sabe que nunca digo o que deve fazer. Por falar
nisso, cuidado. Nosso homem est�� pedindo uma percentagem maior.
Algu��m bateu na porta do quarto de Simone.
��� H�� algu��m �� porta. Telefonarei amanh�� de manh��, antes
de sair para o aeroporto.
Ao abrir a porta, uma camareira entregou-lhe um envelope.
Dentro, havia uma chave de quarto.
Simone despiu-se, tomou um banho de banheira, depois de
chuveiro, e aplicou ��leo em todo o corpo. Sentada nua em frente
ao espelho, deu os toques finais na maquiagem. Lubrificou a vagi-
na com um espermicida e vestiu calcinha e suti�� de renda branca.
A cor contrastava com sua pele cor de cobre.
Antes de se vestir, parou na frente de um espelho de corpo
inteiro. Suspirou. Os homens a descreveriam como sensual, mas,
como a maioria das mulheres, Simone era sua pior cr��tica.
291
Escolheu um bonito vestido sem al��a, de algod��o vermelho,
adequado para a noite, sem ser sofisticado.
Terminada a prepara����o, saiu do quarto e subiu dois andares
de elevador. Em vez de usar a chave que recebera, bateu na porta.
Cross abriu. Sem sorrir, afastou-se para ela entrar.
��� Ser�� que Win n��o vai sentir sua falta? ��� perguntou ela.
Ele sacudiu a cabe��a.
��� Deixei um recado, avisando que tinha sa��do para resolver
uns problemas de uma concess��o rio acima. Fa��o isso sempre.
Simone sentou na poltrona.
��� O que quer beber? ��� Ele apontou para uma bandeja cheia
de garrafas.
��� Nada. Conte-me o que Win falou sobre Eduardo.
��� J�� contei a Jo��o por telefone. Win telefonou de Cape Town
e disse que Eduardo veio atr��s dele com uma arma e um papel para
assinar.
��� Assinar a venda da mina.
��� Exatamente. Eduardo est�� na pris��o. Como �� estrangeiro,
dever�� continuar preso durante algum tempo, pois poderia fugir
se o soltassem em troca de uma fian��a.
��� Ele s�� disse isso?
Cross sentou-se no bra��o da poltrona e sorriu para ela, enquan-
to agitava o u��sque com gelo.
��� Qual �� o problema? Tem medo de que Eduardo conte a
Win sobre a participa����o de voc��s no roubo da mina?
Simone sorriu para ele, mas tinha um olhar frio e calculista.
��� N��o deixe a sua imagina����o tomar conta de voc��, Cross.
Jo��o e eu n��o podemos nos envolver com a propriedade de uma
mina em Angola, pelo menos, enquanto Savimbi estiver vivo.
��� Poderiam, se usassem alguma empresa sul-africana me-
d��ocre, de fachada.
��� Como eu disse, n��o deixe a sua imagina����o tomar conta
de voc��.
��� Ela j�� tomou. ��� Cross inclinou-se e beijou a boca de Si-
mone. Desceu os l��bios pelo seu pesco��o e respirou a ess��ncia flo-
ral entre os seios.
292
��� Hmmm... Voc�� tem o cheiro que uma mulher deve ter.
Ela retribuiu o beijo com avidez. Cross deixou o bra��o escor-
regar da poltrona para as almofadas. Depois, tirou seu vestido,
debru��ou-se sobre ela e beijou a calcinha branca.
��� Quer uma bocetinha portuguesa?
Ele levantou o rosto.
��� O que voc�� acha? J�� estou cheio de tes��o. Antes de comer
a sua boceta, tem uma coisa que precisamos conversar... enquan-
to ainda tenho controle dos meus sentidos.
Ele voltou a sentar no bra��o da poltrona.
��� Jo��o disse que voc�� queria uma percentagem maior.
��� N��o, essa n��o �� a maneira correta de colocar a quest��o.
"Queria" soa como se eu estivesse pedindo. N��o estou pedindo,
benzinho. Esse neg��cio est�� ficando mais cabeludo. Quando en-
trei nele, n��o sabia que Jomba trairia Savimbi. Isso �� mais ou me-
nos uma maneira lenta de se matar ��� �� o mesmo que usar um
fac��o para cortar a pessoa em peda��os, come��ando pelos p��s, de-
pois subindo...
��� Savimbi �� humano, ele n��o �� t��o perverso quanto a repu-
ta����o que tem.
Cross resmungou.
��� Meu bem, obviamente voc�� n��o passou muito tempo em
Angola. Savimbi �� um louco acompanhado por um ex��rcito onde
metade �� drogada e a outra metade �� maluca. Que chances acha
que Jomba teria de derrub��-lo?
��� Isso n��o �� da sua conta. N��s entregamos as armas, recebe-
mos os diamantes e deixamos os c��es brigando pelos ossos.
��� Voc�� deixa, �� o que quer dizer. Ningu��m perceber�� que voc��
n��o �� daqui. Mas se Savimbi suspeitar de uma tram��ia, logo co-
me��ar�� a procurar os que est��o fugindo. E, se eu tentar fugir, ele
ir�� atr��s de mim e eu pagarei o pato.
��� Onde pretende chegar? Quanto quer?
��� Nosso acordo era eu ajudar voc��s no neg��cio com Jomba
e receber em troca um quarto de um milh��o.
293
��� E garantir que o seu amigo, Sr. Liberte, n��o desista do es-
quema. Nem tente nos passar a perna.
��� E espionar Win. Quero meio milh��o.
��� Est�� certo. Direi a Jo��o que agora ser�� meio milh��o.
Simone levantou-se e tirou o copo da m��o dele. Sentado no
bra��o da poltrona, ele afastou as pernas, e ela se aninhou ali.
��� Acabou o assunto de neg��cio? ��� perguntou Simone.
��� E se eu pedisse um milh��o?
��� Do que est�� falando?
��� S�� estou me perguntando por que concordou t��o r��pido,
sem discuss��o, nada.
��� Muita coisa ainda vai acontecer. O que voc��s americanos
dizem? Cavalo dado n��o se olha os dentes?
��� Quando algu��m �� muito f��cil, fico desconfiado. H�� pro-
messas e promessas, e elas nem sempre s��o cumpridas. Fico me
perguntando se, na verdade, voc�� e aquele seu marido pretendem
me pagar. Se tudo der errado, poderei acabar preso aqui em An-
gola. Mas voc�� estar�� em Lisboa.
Simone desabotoou a camisa de Cross e sugou seu mamilo.
��� Quero que me foda.
Ela ouviu a porta do quarto abrir e virou a cabe��a. Era uma
pessoa jovem, muito branca, de cabelo louro bem curto, vestida
em roupas largas.
��� Quem ��? ��� perguntou Simone.
��� Algu��m que importei de Amsterd��. N��o se pode confiar
nas bocetas de Luanda.
Simone fitou a pessoa confusa.
��� �� homem ��� ou mulher?
Cross riu.
��� A gra��a est�� a��. Descobriremos juntos.
294
49
ISTAMBUL
Aluguei um barco superveloz que me levou ao B��sforo, entrou no
mar de M��rmara e desceu o Dardanelos at�� a cidade de Canakkale,
no lado asi��tico da Turquia. Peguei o carro que reservara, dei uma
passada no hotel e parti na viagem que duraria uma hora, em dire-
����o ��s ru��nas. L�� chegando, sa�� do carro e caminhei at�� o fim de
uma muralha antiga que fora constru��da ao longo de um penhasco.
Olhei para baixo e avistei a Europa, do outro lado do Dardanelos.
Aqui, na muralha da cidade de Tr��ia, Odisseu, Heitor, Aquiles
e Paris haviam lutado pela vol��vel e bela Helena.
Istambul foi uma das grandes metr��poles do Oriente e do
Ocidente, uma cidade fascinante, misteriosa e vibrante nas en-
cruzilhadas da hist��ria. Uma cidade de tramas e conspira����es po-
l��ticas, de culturas conflitantes e de imp��rios ambiciosos. Mas eu
tinha sido arrastado para estas ru��nas, do outro lado dos estreitos.
Um lugar sem atrativos, de pedras cinzentas, destru��do pelas guerras
e pelo tempo.
Aqui, homens tinham morrido em batalhas violentas, e uma
mulher decidira seguir seu cora����o, mesmo que sua decis��o acar-
retasse mortes, destrui����o e quedas de imp��rios. Poucos lugares
na terra foram cen��rio de mortes t��o valentes e de tantos feitos
em nome do amor.
295
Pensei em Odisseu deixando Tr��ia, finda a guerra, amaldi��oado
por um deus irado, obrigado a embarcar em uma jornada arrisca-
da por ��guas perigosas. Era assim que eu tamb��m me sentia quan-
to �� minha aventura de Nova York para, Lisboa, e da Africa para
Istambul. Amaldi��oado pelos deuses. E Jo��o era o ciclope de um
olho s��. Eu herdara de meu pai suas maquina����es, como que por
um defeito gen��tico. E estava certo de que Bernie morrera da
mesma doen��a.
Antes de partir para Istambul, telefonei para Marni. Pedi que
viesse comigo. Era um pedido absurdo. Como explicar que viria
ao encontro dos conspiradores de um esquema de diamantes de
sangue? Ela respondeu com um n��o e desligou.
Penso que telefonei porque sabia que Marni declinaria o con-
vite. Era minha forma covarde de fingir que poderia recuar do
neg��cio. Sim, recuar. Por��m, pelo bem da minha alma imortal, eu
n��o podia alegar que era por estar preocupado com o destino que
Jomba daria ��s armas. Minha opini��o sobre Angola era igual �� de
Simone ��� se eles n��o tivessem esse motivo para se matarem, des-
cobririam um novo. E cinco milh��es de d��lares aliviavam muito a
minha culpa. Que diabo, eu poderia at�� mesmo fazer uma doa����o
para um fundo de ajuda humanit��ria a Angola.
N��o se tratava de um ataque s��bito de consci��ncia moral, mas
da possibilidade de a Dama Azul ser uma mina de ouro ��� no sen-
tido metaf��rico. Se Kruger descobrisse mais indicadores no teste
de perfura����o que planej��vamos realizar, os cinco milh��es de d��-
lares que eu receberia ��� e, provavelmente, n��o viveria para apro-
veitar ��� representariam uma ninharia. Se o dinheiro viesse da
minha pr��pria mina, de uma forma leg��tima, eu estaria salvo, como
a proverbial galinha dos ovos de ouro.
A vida era complicada demais. Al��m de precisar defender-me
de Jo��o, o ciclope, e do coronel angolano com seu cord��o de ara-
me farpado no pesco��o e o cr��nio humano de adorno de cap��, eu
chegara �� conclus��o de que Marni nunca faria parte da minha vida.
Enfim, eu era um merda. E ela sabia disso.
296
Olhando para o outro lado do estreito que dividia a ��sia da
Europa e pensando em Marni, n��o consegui lembrar o que acon-
teceu com Helena no fim da Guerra de Tr��ia. Mas lembrei, sim,
que Paris foi assassinado.
��� DAQUI SE TEM UMA BOA VISTA do Sultanhamet ��� disse Bey.
Est��vamos os dois em uma varanda da casa dele. Diante de
n��s, descortinavam-se os estreitos de Chifre Dourado e do B��sforo,
al��m da parte antiga, murada, de Istambul.
Bey era um homem de baixa estatura, no m��ximo 1,70 metro
de altura, e magro, por volta de sessenta quilos. Calvo, sem ne-
nhum sinal de barba ou sobrancelhas, o rosto sem rugas, n��o con-
segui estimar sua idade. Na minha visita a Jo��o e Simone em Lisboa,
antes de partir para Angola, Simone contara que Bey era um ex-
KGB, mas Jo��o zombou daquilo.
��� Todos usam isso como uma forma de amea��a sutil ��� dis-
sera ele.
Eu n��o estava t��o certo disso. N��o havia muita sutileza nas
amea��as de Bey. Uma limusine fora me pegar no hotel. O moto-
rista e o guarda-costas pareciam ter crescido no meio de armas e
halteres. Vi muitos outros como eles espalhados pelo terreno, sendo
que dois traziam enormes mastins em guias curtas. Pareceu-me que
Bey era um homem cuidadoso. E que tinha inimigos.
Simone e Jo��o bebiam com amigos de Bey em uma outra par-
te da casa.
Tive a impress��o de que o anfitri��o era russo, em vez de turco,
pela pele mais clara e tamb��m por um coment��rio seu de ter nas-
cido na Ge��rgia. A conversa, durante o jantar, versara sobre a que-
da da Uni��o Sovi��tica e o status independente de suas antigas
rep��blicas. Ao perceber minha ignor��ncia, Simone explicou que
Ge��rgia era um pequeno pa��s no mar Negro, entre a Turquia e a
R��ssia. Ningu��m se ofereceu para explicar como ele passou a ser
chamado "Bey", e eu n��o perguntei. Afinal, eu nem sabia o que
era um "Bey". Al��m do mais, creio que Jo��o j�� havia mencionado
297
que ele era de algum outro lugar. Cheguei �� conclus��o de que a
origem de Bey mudava de acordo com a mar��.
��� O que me encanta na vista desta varanda ��� disse Bey ��� ��
que ela mostra muito da hist��ria mundial. Voc�� tem o grande domo
de Santa Sofia, a segunda igreja do Cristianismo, antes de os filhos
do islamismo tomarem a cidade e massacrarem os ��ltimos defenso-
res na igreja. O pal��cio Topkapi, trono dos sult��os otomanos, est��
ali, �� sua esquerda. Os pr��ncipes reais eram mantidos distantes do
pal��cio porque v��rias esposas do sult��o tentaram assassin��-lo e to-
mar o trono para seus pr��prios filhos. A mesquita Azul, �� direita, ��
uma das grandes edifica����es religiosas do islamismo.
Ouvi tudo aquilo com aten����o, enquanto bebericava um
martini com vodca. Eu n��o sabia por que raz��o Bey me convidara
a ir �� varanda para me proporcionar um tour particular, e nem por que exigira a minha presen��a em Istambul.
��� Percebo que estou aborrecendo voc�� ��� disse ele. ��� An-
tes da sua chegada, pedi que Jo��o lhe explicasse que eu fazia ques-
t��o de conhecer pessoalmente as pessoas nas quais estou investindo
muito dinheiro. Foi por isso que pedi que viesse.
��� Eu n��o sabia que estava investindo alguma coisa em mim.
Meu ��nico papel nessa transa����o �� certificar os diamantes que nos
forem entregues. ��� Fui avisado para n��o mencionar o nome de
Jomba com Bey. Jo��o o mantinha no escuro para assegurar-se que
n��o seria descartado do neg��cio.
��� Tive a impress��o que voc�� teria um papel maior.
Desconfiei de uma tram��ia.
��� Como assim?
��� Voc�� receberia os diamantes do comprador de armas e os
entregaria ao meu representante. Sabe como esse tipo de combi-
na����o se d��, n��o ��?
��� N��o sei, n��o.
��� A troca acontecer�� em est��gios. Tr��s dias antes da entre-
ga, voc�� examinar�� a mercadoria do comprador e garantir�� que
elas correspondem �� descri����o em termos do total de quilates,
qualidade e quantidades. Depois, me avisar��, e eu marcarei a hora
298
exata em que a troca ser�� efetuada. Uma hora antes de os meus
avi��es estarem prontos para aterrissar, voc�� confirmar�� se os dia-
mantes no campo de pouso s��o os mesmos. Poucos minutos antes
da troca, meu avi��o de reconhecimento examinar�� a ��rea para
verificar se n��o foi armada nenhuma cilada. Quando a troca, de
fato, ocorrer, os diamantes ser��o entregues a voc��, que passar�� a
minha parte ��s m��os do meu representante. O que vai fazer com a
parte de Jo��o �� problema seu e dos seus amigos.
��� Jo��o n��o �� meu amigo, isto �� estritamente neg��cio.
��� Minhas desculpas. Fui levado a acreditar que o seu rela-
cionamento com ele e Simone era quase de natureza familiar.
��� Confio em Jo��o tanto quanto voc��. ��� Deixei que ele dige-
risse aquilo por um instante. ��� E voc�� o conhece melhor que eu.
Bey deu uma gargalhada, o som ��spero gutural da chocalhada
da morte.
��� Voc�� �� franco, Win. Gosto disso.
��� Ent��o contarei mais. A minha parte no acordo �� certificar
os diamantes. Para mim, isso significa que fico sentado em um lugar
bom, seguro e protegido, e assino meu nome. Ningu��m disse que
eu ficaria na linha de fogo, na clareira de uma selva, enquanto os
seus homens e o comprador decidem se pretendem levar o neg��-
cio a termo ou desistir dele.
��� Creio que, inadvertidamente, voc�� criou um problema para
si mesmo ao eliminar a pessoa que supervisionaria a troca.
Logo, compreendi.
��� Eduardo faria a troca para voc��s.
��� Sim, ele era perfeito para a tarefa. Assim como voc��, �� um
especialista em diamantes, estava pr��ximo ao local da troca... e
dispon��vel. Pelo menos at�� voc�� lev��-lo a ser preso em Cape Town.
Outras coisas estavam se encaixando.
��� Contratei um advogado na ��frica do Sul para descobrir
quem eram os s��cios de Eduardo que planejavam apossar-se da
minha mina. Ele mencionou uma empresa su����a e depois se depa-
rou com um obst��culo.
299
I
"Os su����os s��o muito pr��ticos quando se trata de neg��cios.
Contanto que voc�� roube e mate longe de suas fronteiras, eles n��o
questionam a origem do dinheiro. Mas sua suspeita �� correta. Era
eu quem estava por tr��s de Eduardo na tentativa de compra da mina.
��� E de me matar.
Ele deu outra gargalhada, outra chocalhada da morte.
��� De modo algum, se bem que, se isso tivesse ocorrido, eu
n��o teria perdido o sono. Sou muito pr��tico, tamb��m, especial-
mente com pessoas que n��o conhe��o. Ou com gente como Jo��o,
que conhe��o bem demais. Eu n��o sabia que Eduardo tentaria le-
var voc�� a assinar a venda da mina sob a mira de uma arma. Foi
um gesto tolo. Quando voc�� despediu Eduardo, para mim, n��o
havia mais neg��cio. Talvez ele tenha se desesperado ao saber dis-
so. Eu lhe adiantara um dinheiro, entende...
��� Entendo. ��� Em outras palavras, Eduardo n��o poderia
saldar a d��vida agora que eu limpara sua conta banc��ria. E os ho-
mens de Bey ficariam atr��s dele.
��� Devo a Jo��o uma desculpa ��� disse. ��� Achei que ele es-
tava por tr��s de Eduardo.
��� N��o deve nada a Jo��o. Eduardo escolheu quem apostou
mais alto. Abordou ambos, mas Jo��o n��o teve condi����es de garantir
o dinheiro necess��rio para pagar a mina e prosseguir na explora����o
de mais diamantes. Jo��o procurou-me como um intermedi��rio, e
eu o descartei.
��� Tecemos teias muito emaranhadas. Esse neg��cio tem mais
facetas que um diamante.
��� N��o �� preciso dizer que agora eu n��o tenho interesse em
comprar a sua mina. Voc�� j�� tem conhecimento do potencial dela,
desejo boa sorte na sua explora����o. Pode ficar rico ou descobrir
que enterrou seu dinheiro em uma furada.
��� Agrade��o a considera����o de me deixar ter a posse da mi-
nha propriedade, mas ainda n��o tenho nenhuma inten����o de ser
a pe��a-chave.
��� Ah, mas precisa ser. Voc�� parece estar esquecendo de uma
coisa.
300
��� O qu��?
��� Sua parte na transa����o vem dos diamantes que o coronel
Jomba entregar��. Prefere deixar que ela venha para as minhas m��os
ou para as de Jo��o? ��� Deus! Que sinuca.
Eu tinha uma pergunta a fazer. Quando nos encaminhamos
para entrar, encarei-o bem nos olhos.
��� Quem matou meu tio?
Seus olhos n��o demonstraram nada. Parecia que eu tinha per-
guntado as horas.
��� N��o sei ��� respondeu.
Claro que ele sabia. Uma coisa eu aprendera ��� Bey sabia de
tudo. Inclusive, o fato de Jomba ser o comprador das armas. Mi-
nha intui����o dizia que eu estava certo. Jo��o matara Bernie. Eu n��o
sabia como, nem exatamente por que motivo, al��m do fato de ter
liga����o com diamantes, mas senti que havia a m��o de Jo��o.
AP��S O JANTAR NOS REUNIMOS no centro da biblioteca. De p��-
direito alto e teto abobadado, a sala parecia um museu. Simone
aproximou-se, enquanto eu admirava uma m��mia toda envolta
em panos.
��� Bey �� conhecido por colecionar e vender antiguidades.
Tenho certeza de que h�� inspetores alfandeg��rios de Gis�� a Angkor
Vat que gostariam de dar uma olhada nesta sala e no cofre do Bey.
Bey reuniu-nos em torno de uma pequena mesa coberta com
uma toalha branca, localizada no meio da sala. Enquanto falava,
fortes luzes estrobosc��picas acenderam sobre nossas cabe��as.
��� Como sabem, meus amigos, sou um ��vido colecionador de
tesouros raros. Mostrarei a voc��s o que considero, hoje o creme de
la creme da minha cole����o.
Ele retirou a toalha. Simone sufocou um grito de surpresa dian-
te do espet��culo.
Tratava-se de uma grande tigela de cristal, cheia de diaman-
tes. Sobre eles, bem ao centro, havia uma gema solit��ria, mais ou
menos, do tamanho de uma noz.
O Cora����o do Mundo.
301
Iluminado por luzes que vinham de cima e de baixo da mesa,
o arranjo salpicava a sala com uma luz cintilante, e o Cora����o do
Mundo convulsionava com fogo vulc��nico.
Eu n��o reagi como Simone, mas tamb��m estava perplexo. Como
meu pai, os diamantes estavam no meu sangue. E, tamb��m como
ele, eu nunca vira uma gema como essa. Os diamantes eram envol-
tos em lenda e mist��rio. De uma dureza que cortava a��o, ainda as-
sim deslumbrantes e sensuais em uma mulher, sempre tive a sensa����o
de n��o serem deste mundo. Olhando para este, achei que o nome
era inapropriado ��� ele n��o era o cora����o do mundo, mas o cora-
����o resplandecente de uma estrela. Para um diamant��rio, ter aque-
la gema significaria mais que ser dono da Mona Lisa.
A minha frente, o salpico reluzente brincava nas fei����es de
Jo��o. Era como olhar no rosto do diabo e ver iluminados os mais
mortais dos pecados ��� avareza, assassinato, cobi��a. N��o era hu-
mano, era aterrorizador. Jo��o fitava o diamante de fogo como um
homem possu��do. Agora, eu entendia por que Simone dizia que a
gema era o seu amor. Quando se tratava daquela pedra, Jo��o era
um amante demon��aco possessivo, do tipo que segue a esposa at��
a cama do amante e depois pica os dois at�� a morte, mostrando-
lhes o gume cruel do machado, antes de golpe��-los.
Em seguida, desenrolou-se uma cena dram��tica. Jo��o desviou
o olhar do Cora����o do Mundo para Bey. Os dois homens se enca-
raram, duas feras, frente a frente, em uma selva, cada um esca-
vando com as garras o territ��rio que reivindicava. Agora, outra
emo����o aparecia no rosto de Jo��o ��� ��dio. Um ��dio violento, san-
guin��rio, perverso.
Alguma for��a diab��lica tamb��m tomou conta de mim. Pensei
em como Jo��o roubara a gema de meu pai. Em como ele assassina-
ra Bernie. E agora queria roubar a minha mina ��� se n��o usasse
Jomba para me matar.
��� Soube que est�� pretendendo me colocar como intermedi��-
rio na troca. ��� Dirigi-me a Jo��o. ��� Aceito, mas o meu pre��o
subiu. ��� Virei-me para Bey. ��� Desejo o Cora����o do Mundo. Foi
roubado de meu pai e eu o quero de volta.
302
Jo��o encarou-me como se eu lhe tivesse decepado os test��cu-
los. Bey como se eu tivesse arrancado seus olhos. Simone limitou-
se a observar pasma ��� pelo menos desta vez, n��o soltou aquela
gargalhada t��pica.
��� Este �� o meu pre��o. Se n��o gostarem, v��o se foder.
Afastei-me. Eu n��o sabia se conseguiria chegar at�� a limusine
que me aguardava na porta da casa. Havia uma chance de Bey me
pendurar em um gancho de a��ougue e deixar seus sic��rios prati-
carem tiro ao alvo. Jo��o estava furioso demais para levantar da
cadeira de rodas e agarrar a minha garganta. Mas eu n��o me im-
portei. Sentia-me cansado de ser feito de idiota e sofrer amea��as.
Depois de ter enfurecido os homens mais perigosos do plane-
ta, agora s�� me restava voltar para Angola e lidar com comandan-
tes sanguin��rios, enquanto tentava ficar rico.
Lembrei uma ocasi��o em que conheci um camarada em um bar
de Nova York que me falou de um tipo estranho de investimento.
O homem procurava pessoas que tinham pouco tempo de vida e se
oferecia para comprar suas ap��lices de seguro com um desconto. Se
o moribundo tinha uma ap��lice de cem mil d��lares, ele a comprava
por cinq��enta. Era um neg��cio sem riscos���o comprador ganhava
uma bolada quando a pessoa morria, e o moribundo recebia uma
boa soma em dinheiro para aproveitar bem seus ��ltimos dias de vida.
Os neg��cios s�� deixavam de ser atraentes quando o moribundo por
acaso tinha uma recupera����o milagrosa.
Se eu telefonasse para o tal investidor e descrevesse meus pro-
blemas atuais, ele ficaria louco por uma chance de investir na
minha morte iminente.
303
50
ANGOLA
Marni olhava as pessoas na fila de distribui����o. A n��usea que
sentira mais cedo voltava. Logo depois de acordar, havia vomi-
tado. E sentia-se a ponto de repetir a dose, apesar de s�� ter no
est��mago um ch�� calmante. Estou com algum problema, pensou.
N��o sabia se o problema a deixaria de cama por alguns dias ou a
mataria. A terceira possibilidade seria alguma doen��a cr��nica
como a mal��ria.
Sua tarefa esta manh�� era observar trabalhadores contratados
para orientar as pessoas que vinham recolher cestas b��sicas. A id��ia
era uma cesta por pessoa, por��m, do jeito que se sentia, n��o se
importaria se eles escancarassem o galp��o de dep��sito e entregas-
sem os alimentos para uma multid��o.
��� H�� cem maneiras de trapacear ��� disse Marni ao seu as-
sistente Ven��ncio ��� e essa gente conhece todas. ��� Era uma afir-
ma����o injusta, e ela sabia disso. A maioria das pessoas na fila eram
honestas, como em todo lugar do mundo. Contudo, suas condi-
����es de vida desesperadoras levariam at�� o mais honrado dos in-
div��duos a tentar se apossar de tudo o que conseguisse.
Finalmente, Marni desistiu de ficar ali, como se fosse um fan-
tasma, e entregou sua prancheta a Ven��ncio.
304
��� Assuma a responsabilidade e procure evitar que roubem a
loja. Verei se o Dr. Machado pode me receitar alguma coisa que
me tire deste estado deplor��vel.
Marni dirigiu-se �� pequena enfermaria, um dos poucos postos
m��dicos espalhados pela regi��o onde Machado, um mulato de
Luanda, e sua equipe prestavam atendimento. Machado tamb��m
oferecia assist��ncia m��dica aos agentes humanit��rios.
Recolhidos sangue e urina para exame, Marni aguardou os
resultados deitada em uma maca. A sorte est�� lan��ada, pensou.
Era assim que os agentes humanit��rios se referiam ��s doen��as que
os acometiam. Todos ficavam doentes, em geral, mais de uma vez,
mas o seu medo era ter contra��do alguma doen��a incur��vel.
A mulher que tirou sua temperatura percebeu o diamante
bruto que Marni usava ao pesco��o.
��� Muito bonito ��� comentou. ��� E puro?
��� Sim ��� respondeu Marni.
Sabia o que a mulher pensava ��� era imprudente usar algo t��o
valioso. Usava-o para sentir-se mais perto de Win. Acariciou a
pedra e pensou nele. Estava triste e solit��ria. N��o havia d��vida de
que se apaixonara. N��o era dif��cil uma mulher apaixonar-se por
Win. Mas Marni se julgava tra��da, assim como o povo de Angola
que viera ajudar. Para ela, os diamantes de sangue eram mais que
uma simples quest��o pol��tico-econ��mica abstrata. J�� vira o com��r-
cio corrupto fazer muito "sangue" jorrar, deixar muitas crian��as ��rf��s perambulando pelas ruas e mutilar muita gente.
Podia desculpar Win por sua ignor��ncia, enquanto estava em
Nova York ou em Lisboa, mas j�� passara tempo suficiente em
Angola para conhecer as conseq����ncias terr��veis do fornecimen-
to de armas em troca de diamantes. Era uma grande chacina.
Dr. Machado entrou. Seu semblante era s��rio.
Ela resmungou.
��� Pode dar as m��s not��cias, conte-me a verdade, estou com
alguma doen��a incur��vel, algum v��rus que vai me devorar.
��� S�� ser�� incur��vel se voc�� quiser. Inventaram o preservati-
vo para esse tipo de coisa.
305
��� Ah, meu Deus, peguei Aids?
��� Usando a express��o antiga, parece que voc�� pegou filho.
Marni ficou boquiaberta.
��� Estou gr��vida?
Ele sacudiu a cabe��a e estalou a l��ngua.
��� Por favor, n��o me diga que �� mais uma concep����o imaculada.
Ou que pegou em uma tampa de vaso sanit��rio.
Marni reclinou-se e encostou a cabe��a no travesseiro.
��� Meu Deus, estou gr��vida.
��� Uma ocasi��o para alegria... ou para um aborto.
��� Um aborto? N��o sei, n��o pensei nisso.
��� Quando decidir, lembre-se que dever�� sair de Angola o
mais breve poss��vel, se quiser ter o beb��. O ambiente aqui j�� n��o
�� saud��vel para as mulheres locais que engravidam. Elas, pelo
menos, j�� desenvolveram resist��ncia a algumas doen��as que po-
dem nos vitimar em cada gole de bebida, cada garfada de comida,
ou na pele exposta.
N��o foi necess��rio nenhum processo elaborado para Marni se
decidir. Ela teria o beb��. Amava Win Liberte, com todo seu cora-
����o e sua alma, apesar de n��o querer admiti-lo. A crian��a que tra-
zia dentro de si era parte dele.
Ela tamb��m tomou outra decis��o. N��o contaria a Win sobre o
beb��. N��o por ego��smo. Um homem t��o pouco confi��vel e menti-
roso n��o seria capaz de amar uma crian��a sinceramente. Marni
tinha certeza de que seu pr��prio pai n��o a amara. N��o permitiria
que seu filho fosse maltratado como ela fora pelo pai.
306
5 1
Procurei entrar em contato com Marni logo que voltei de Istam-
bul e fui informado de que ela retornara para os Estados Unidos
Fiquei chocado. L�� no fundo, eu acreditava que n��s ainda nos
reconciliar��amos. Talvez tenha superestimado a profundidade de
seu sentimento por mim ��� e subestimado o meu por ela.
Fazia uma semana que eu voltara de Istambul, quando fui a
Luanda receber Kruger que chegaria em um v��o de Cape Town.
N��o entramos na cidade. Pedi que o hotel providenciasse um ex-
celente almo��o no aeroporto, e o avi��o fretado levou-nos para a
regi��o dos diamantes. Assim, evitei que ele visse Luanda e deci-
disse voltar no primeiro avi��o para a ��frica do Sul.
Era perigoso para Kruger perambular sozinho pela ��rea dos
diamantes. Avisei a Cross para n��o larg��-lo. Da maneira que a
regi��o de minera����o funcionava, se algu��m descobrisse que Kruger
tinha um sistema para encontrar terra azul, eles o seq��estrariam e
o obrigariam a analisar seus terrenos, acorrentado.
Quando chegou um carregamento de equipamentos para
Kruger, sa�� com Gomes para entreg��-lo. Kruger se ocupou da mon-
tagem, e chamei Cross para outro lado.
��� O que acha dele?
��� Por enquanto, nada. A ��nica coisa que o homem faz ��
andar por a��, falar sozinho e dizer aos homens onde colocar o equi-
pamento. N��o me surpreenderia se ele aparecesse com uma varinha
307
de cond��o das bruxas da ��gua. Pelo aspecto daquele aparelho de
perfura����o que montou, pode ser que encontremos petr��leo.
��� Eu n��o me importaria. Cross, precisamos conversar.
Contei tudo a ele a respeito do neg��cio com Jo��o, Bey e Jomba,
come��ando pela morte de Bernie, at�� o momento em que exigi o
diamante de fogo e fui embora. Cross ouviu impass��vel. Eu n��o
tinha id��ia de como ele reagiria. Precisava dele, pois quando se
tratava de negociar, trair e jogar sujo em Angola, ele sabia mais do
que eu tivera tempo para aprender.
��� Bem, o que pensa de tudo isso? ��� perguntei.
��� Interessante. Se eu fosse um padre, mandaria voc�� rezar
cem Ave-Marias e come��aria a pensar sobre as minhas palavras
para o seu vel��rio. Se eu fosse m��dico...
��� Entendo. Em suma, voc�� ter�� que tomar uma decis��o. Ou
ficar comigo na tentativa de sobreviver �� situa����o com Jomba, ou
fazer as suas malas. Se continuar pelo tempo que for preciso, rece-
ber�� uma parte dos lucros.
��� "Uma parte dos lucros" tem uma conota����o diferente na
Africa Equatorial, se comparada a outros lugares do mundo. Aqui,
eles extorquem de verdade e voc�� sofre na carne, literalmente.
Eu n��o ficaria por um milh��o de d��lares.
��� Que tal dois milh��es?
Aquilo o fez pensar.
��� Puta merda.
��� A minha oferta �� esta. Se ficar para me ajudar a sair intei-
ro dessa enrascada, quando alcan��armos terra azul, ser�� um ho-
mem rico.
Cross soltou uma gargalhada que veio do fundo da garganta.
��� Eu sabia que existia algum entrave por tr��s disso tudo ��� e
s��o v��rios. Voc�� precisa viver e continuar inteiro. E ainda temos
aquela leve possibilidade de atingir terra lucrativa.
Olhei para Kruger que gritava para os trabalhadores que o aju-
davam.
��� Kruger tem algo t��o bom que as pessoas querem roubar. E
esta mina tem algo que desperta cobi��a. Para mim, isso soa como
uma combina����o com ��timas chances de sucesso.
308
��� O suficiente para apostar a sua vida?
��� �� o que estou fazendo. Mas voc�� j�� se arriscou demais. N��o
o culparei, se quiser tirar o corpo fora.
��� O tombo �� feio quando se cai sem p��ra-quedas. Se eu vol-
tar para os Estados Unidos, irei para L.A. onde minha irm�� est��
morando. N��o sa�� do neg��cio do petr��leo muito bem, portanto,
ser�� dif��cil conseguir um emprego decente. Sem dinheiro, eu n��o
passaria de mais um cara perambulando pelas ruas, imaginando
onde conseguir minha pr��xima dose.
��� Mano, voc�� me disse que o diabo atingiu o pre��o da sua alma
quando Jo��o lhe ofereceu cinco milh��es em um neg��cio de diaman-
tes de sangue. A minha alma tem muito mais marcas e arranh��es que
a sua. ��� Cross me deu um tapa nas costas. ��� Eu topo.
Ele segurou meu bra��o e me deteve, quando come��amos a
caminhar para onde Kruger se encontrava.
��� Cheguei �� conclus��o de que voc�� pode ser mais esperto
do que parece. H�� uma quantidade absurda de gente envolvida
nesse jogo, de Cape Town a Istambul. Voc�� n��o enganou aqueles
vigaristas vendendo mais que cem por cento da mina, n��o ��?
��� Ter�� que confiar em mim.
��� Porra nenhuma. Se acha que Jo��o e Jomba s��o perversos,
ainda n��o viu nada: se vier a botar a m��o no meu dinheiro, arran-
carei o seu cora����o e darei para o meu cachorro comer.
��� O que eu mais gosto em voc��, Cross, �� que sempre sei de
que lado est��: do lado vencedor.
��� Voc�� tinha um plano? ��� perguntou ele. ��� Ou pretendia
simplesmente contar com a orienta����o divina?
��� Na sua opini��o, quais s��o as chances de Jomba derrubar
Savimbi com um golpe?
��� Conhe��o Jomba e nunca vi Savimbi. Segundo quem o
conhece, Savimbi jantaria Jomba com facilidade. Ele �� um her��i
nacional, pelo menos, entre a fac����o rebelde, que atua na maior
parte do interior. Jomba �� um pit buli com c��rebro e est�� sob controle com as amea��as que Savimbi lhe faz toda vez que resolve
manter o coronel na linha.
309
��� No mundo inteiro, os coron��is aplicam golpes e s��o bem-
sucedidos.
��� Sim, mas, geralmente, eles se apossam de um governo
civil. Savimbi pode n��o divulgar sua maldade com tatuagens e
enfeites no carro. �� esperto demais para posar de man��aco san-
guin��rio. No entanto, pelo que j�� ouvi, representa um grande
perigo para o pa��s e mant��m uma imagem de estadista. Por isso
o presidente Reagan e a CIA investiram tanto nele. Eles o viam
como um patriota idealista. Aqui em Angola, por��m, sabia-se
que n��o era bem assim.
��� Ent��o Savimbi �� o nosso homem.
��� Nosso homem para qu��?
��� Para lidar com Jomba.
��� Merda, a febre do diamante derreteu esse seu c��rebro?
Quando Savimbi tiver que escolher entre voc�� e Jomba, ficar�� do
lado do coronel dele por v��rias raz��es, sendo que uma delas �� voc��
ser um estrangeiro sem um ex��rcito.
��� Quando Savimbi descobrir que Jomba est�� armando con-
tra ele, Jomba se tornar�� passado.
��� Talvez, mas voc�� pode estar cometendo o erro de pensar
como um ocidental. Imagine a seguinte cena: Savimbi descobre
que Jomba est�� armando contra ele. Jomba, contudo, possui seu
pr��prio ex��rcito. Ent��o os dois se sentam em volta da fogueira e
chegam a um acordo sobre como lidar com seu inimigo m��tuo, o
governo de Luanda, enquanto assam voc�� nas chamas.
��� Ent��o teremos que enfeitar o pav��o para Savimbi, dar a
ele uma boa raz��o para n��o se aliar a Jomba.
��� Qual �� a boa raz��o?
��� Ele receber as armas que seriam destinadas a Jomba.
��� Como conseguiria isso?
��� N��s vamos chutar antes que a bola toque o ch��o.
��� Mano, voc�� s�� chuta assim quando tem um jogador com
capacidade para isso. Se ele errar, voc�� est�� ferrado.
��� Est�� bem, ainda n��o tenho um plano. Preciso saber mais
sobre Savimbi.
310
��� Isso eu posso conseguir. Tenho um amigo em Luanda que
costumava ser um contato da CIA com Savimbi, na ��poca em que
o governo de Luanda era comunista e Washington pensava que
Savimbi era um George Washington africano.
��� Ele ainda est�� na CIA?
��� N��o, foi afastado por invalidez e estabeleceu-se em Luan-
da com a namorada angolana.
��� Levou um tiro?
��� Pegou Aids.
Kruger aproximou-se.
��� Voc�� escavou na dire����o errada.
��� N��o compreendo ��� disse eu.
��� Precisamos mudar a dire����o dos t��neis da sua mina.
��� Descobriu um tubo?
��� Descobri os mesmos indicadores que examinei antes, mas
agora sei a dire����o em que est��o espalhados. ��� Ele apontou para
fora da minha propriedade. ��� O tubo pode estar na sua proprie-
dade ou no terreno ao lado. Descobriremos depois que fizermos o
t��nel.
��� Reze para Deus ��� avisei a Cross. ��� Prometa a Ele qual-
quer coisa, mas pe��a que nos permita ganhar a loteria.
311
52
Kruger teve que voltar �� ��frica do Sul para buscar o equipamento
de que necessitava. Como eu fazia quest��o de sempre mant��-lo
sob vigil��ncia, minha ou de Cross, sua viagem repentina veio a
calhar. Cross contatou seu amigo da CIA em Luanda e marcou
um encontro nosso com ele, para depois do v��o de Kruger.
Seguimos para a capital no mesmo v��o. Antes de sairmos do
terminal, certifiquei-me de que Kruger estava seguro no avi��o para
Cape Town.
��� Tem medo que algu��m o seq��estre no aeroporto? ��� per-
guntou Cross.
��� Estamos em Angola.
��� Tem raz��o.
O encontro com Kirk, o ex-agente da CIA, seria no seu apar-
tamento.
��� L�� a chance de sermos vistos �� menor que em um bar ou
restaurante ��� explicou Cross.
No caminho, falamos sobre Kirk.
��� Como o conheceu? ��� perguntei.
��� Eu estava no sagu��o do Presidente Meridien em Luanda,
usando uma camisa de Indiana, quando ele se aproximou. Con-
tou que estudara na Indiana State, como eu, e descobrimos que
hav��amos morado no mesmo dormit��rio, com um semestre de di-
feren��a.
312
��� Kirk �� negro?
��� O que acha, mano? A CIA mandaria um branqueio com
cara de negro para passar por angolano?
��� Que boca suja, qualquer dia vou enfiar o p�� nela. Voc��
mencionou que o Kirk era ��ntimo de Savimbi da ��poca em que a
CIA conduziu uma opera����o secreta no pa��s. Acha que ainda s��o
amigos?
��� Ele fornecia a Savimbi as armas e o dinheiro de que preci-
sava para lutar contra o governo. N��o �� o tipo de coisa que Savimbi
esqueceria. Principalmente se Kirk tem uma pessoa que deseja
conversar sobre armas e dinheiro.
��� Por que ele permaneceu em Angola?
��� Por que n��o? Sua fam��lia americana acredita que est��
morto. Aqui, pode ter uma vida relativamente normal, enquanto
a doen��a est�� sob controle. Sua mulher angolana �� portadora do
v��rus, assim como milh��es de outras pessoas. Em Angola ele n��o
enfrenta os mesmos preconceitos que nos Estados Unidos.
Cross e eu combinamos dizer que quer��amos conversar com
Savimbi sobre "diamantes e armas". Achei melhor n��o ser muito
��bvio. Na verdade, eu queria contar a Kirk toda a hist��ria e ouvir
sua opini��o sobre o que fazer quanto a Jomba, mas Cross riu ��s
gargalhadas.
��� Voc�� �� muito ing��nuo. Se contar que est�� traindo Jomba,
Kirk o informar�� para proteger a esposa e a si mesmo. �� uma ques-
t��o de sobreviv��ncia.
��� Voc�� confia em algu��m? ��� perguntei.
��� Sim, confio em Washington, Lincoln, Jackson ou qualquer
pessoa que tenha o rosto impresso em uma nota de cem d��lares;
quanto maior o valor da nota, mais eu confio.
O pr��dio de Kirk, com vista para o porto, estava passando por
uma reforma. Logo reparei na seguran��a. O porteiro que anun-
ciou nossa chegada estava por tr��s de um balc��o com vidro �� pro-
va de bala. Na certa, ele escondia um ou dois AK-47s sob o balc��o.
Pegamos o elevador at�� o quinto andar e nos dirigimos para o
apartamento. Kirk abriu a porta. Fiquei surpreso. Eu esperava uma
313
duplicata de Cross, um daqueles homens de peito grande e om-
bros largos das usinas de a��o em Indiana. Kirk era baixo e magro.
N��o sei se encolheu com a doen��a ou se era mesmo um homem
muito baixo. Usava ��culos de lentes grossas e tinha o cabelo grisa-
lho. Parecia mais um intelectual do que um tipo James Bond.
O que me surpreendeu foram suas amputa����es. Seus dois bra-
��os terminavam no meio do antebra��o, sendo que o direito tinha
uma pr��tese.
Sua esposa, Maria, era uma mulher atraente na casa dos trin-
ta. Uma linda menina de cerca de dez anos esticou a cabe��a para
dentro da sala, e Maria desapareceu atr��s dela, quando nos senta-
mos para falar de neg��cios.
��� Cross comentou que voc�� quer se encontrar com Savimbi
para conversar sobre neg��cios. E tamb��m que est�� em Angola h��
relativamente pouco tempo. O que sabe sobre Savimbi?
��� Ou��o dizer que �� duro e perverso.
��� Ele �� muito mais do que isso. �� um l��der pol��tico carism��tico
amado por alguns milh��es de pessoas neste pa��s. Era respeitado na
Casa Branca como chefe de estado, quando s�� contava com um
ex��rcito de composi����o heterog��nea e desorganizada. Savimbi
possui diplomas universit��rios de Portugal, da Su����a e da China e
fala uma meia d��zia de idiomas. E tamb��m queimou v��rias pes-
soas vivas.
��� Excelente curr��culo para um l��der���comentei. ��� Ele deve
ser louco.
��� E �� mesmo. Para entender Savimbi, �� preciso saber por que
este pa��s atravessa quase duas d��cadas de guerra civil, depois de
uma guerra pela independ��ncia contra os portugueses. A luta pela
independ��ncia teve in��cio por volta de 1961 e continuou durante
14 anos, at�� a hegemonia colonial portuguesa cair, em 1975. As
regras coloniais portuguesas foram abandonadas, mas aconteceu
aqui o mesmo que no M��xico e na Am��rica do Sul, quando os
espanh��is foram expulsos. Os mesti��os, que viviam na grande
maioria nas cidades, herdaram o governo e a economia. Os mora-
dores das aldeias e vilas foram explorados economicamente, sem
314
direito de exercer poder pol��tico. Isso gerou ressentimento e um
v��cuo pol��tico.
��� Savimbi preencheu esse v��cuo e se tornou o defensor dos
milh��es de alde��es existentes. Com o recuo de Cuba, o governo
atacou Savimbi. Ele se retirou para as matas na sua Longa Mar-
cha semelhante �� de Mao. L�� se reorganizou, reestruturou o ex��r-
cito e continuou na luta armada contra o regime de Luanda. Por
ser filho de um agente ferrovi��rio, Savimbi conhecia muito bem o
funcionamento das estradas de ferro de Angola. Usou esse conhe-
cimento para atacar as ferrovias e interromper o fluxo de tropas e
suprimentos militares. E, gra��as ao apoio do bloco comunista ao
regime de Luanda, tornou-se o queridinho de Washington.
��� Em pouco tempo, o governo de Luanda tinha avi��es de
ca��a sovi��ticos MIG, e seus pilotos cubanos tinham a miss��o de ata-
car as tropas de Savimbi, equipada com m��sseis antia��reos. Al��m
da ajuda estrangeira, o governo financiava a guerra com seus cam-
pos de petr��leo. Savimbi, por sua vez, tomou conta da regi��o de
minera����o.
��� Ele se diz crist��o devoto, mas se tem alguma concep����o
religiosa, deve ser sat��nica. Desconfio que, no fundo, Savimbi ��
um pouco marxista, mas, quando Washington come��ou a financi��-
lo, ele se voltou para o capitalismo. Gosta de contar uma piada
sobre o que a religi��o causou em Angola. Segundo ele, quando os
mission��rios chegaram a Angola, h�� muitos s��culos, eles tinham
B��blias, e os angolanos tinham terras. Agora, os angolanos t��m B��-
blias, e os mission��rios t��m terras.
��� Pelo que ouvi ��� disse eu ���, o acordo de paz entre Savimbi
e o governo n��o deve durar.
��� J�� est�� por um fio. �� apenas uma quest��o de recome��arem os
tiros. O governo nunca dar�� a Savimbi um poder substancial. Lem-
bre-se, esse �� um homem que queimou vivos seus advers��rios e, ele
pr��prio, assassinou esposas e filhos dos homens que se opuseram ��
ele. O que acha que faria se conquistasse algum poder em Luanda?
��� Mataria os outros e tomaria o governo para si ��� respon-
deu Cross.
315
��� Exatamente, e um bocado da matan��a seria pelas suas pr��-
prias m��os. Pense nisso, o l��der pol��tico de milh��es de pessoas, com
sangue nas m��os. T��o louco quanto Hitler que matou milh��es, mas
nunca com as pr��prias m��os. Os ��nicos governantes assassinos que
me v��m �� mente, de imediato, s��o Genghis Khan, Stalin e Saddam.
��� Se a rela����o entre Savimbi e o governo vai degenerar, este
pode ser um momento oportuno para abord��-lo com, digamos, um
neg��cio de marketing. Voc�� o conhece bem?
��� Eu era o homem da CIA que lidava com Savimbi, na d��-
cada de 1980. Viajava com ele e abaixava a minha cabe��a, quan-
do as balas voavam e as bombas ca��am ��� Kirk riu. ��� Percebi sua
express��o quando abri a porta e voc�� viu meus bra��os.
Confirmei com um aceno de cabe��a.
��� Cross n��o me avisou.
Cross deu de ombros.
��� Raios, eu nunca notei que voc�� n��o tinha bra��os.
Kirk cuspiu, em um jato, o ch�� que tinha na boca e explodiu
em uma gargalhada. Quando terminou, limpou a boca.
��� Me desculpem. Agora vamos ao que interessa. N��o sei o
que pretende com Savimbi, e mesmo que voc�� queira me contar,
n��o quero saber. Posso apresent��-los e marcar um encontro. N��o
sei se far�� neg��cio com voc�� ou se o matar��. Quero cinq��enta mil
d��lares americanos adiantados. E mais cinq��enta, se voc�� sair vivo
desse encontro.
Combinamos que o pagamento seria feito em diamantes, no
lugar de d��lares, e fomos embora. Quando j�� est��vamos no t��xi,
perguntei a Cross:
��� O que aconteceu com os bra��os de Kirk?
Cross deu uma gargalhada.
��� N��o adivinhou?
��� Savimbi?
��� Isso mesmo. Ele pegou Kirk e um de seus homens com a
boca na botija. Estavam desviando armas fornecidas pela CIA e
revendendo. Savimbi, em pessoa, decepou as m��os de Kirk.
��� Caramba. Mas ele era da CIA.
316
��� �� verdade, mas lembre-se do que Kirk tentou informar, o
homem �� um psic��tico. Voc�� n��o queima pessoas vivas, a n��o ser
que tenha um s��rio dist��rbio de personalidade, daqueles que n��o
se encontra em qualquer livro sobre anormalidades psicol��gicas.
��� O que aconteceu com o outro cara?
��� Ele n��o era da CIA. Kirk contou que Savimbi mandou que
o enfiassem num espeto ��� vivo. E, enquanto o homem agoniza-
va, ainda estuprou a esposa na frente dele.
Cross cutucou-me com o cotovelo.
��� Veja por este prisma, mano: voc�� tem tantos inimigos que,
provavelmente, Savimbi faria um favor a todos se o matasse.
317
53
O encontro foi marcado para a semana seguinte, em uma ��rea rural
na regi��o de Moxico, no sudeste do pa��s. O quartel-general de
Savimbi era em um lugar que se chamava Jamba ��� sem nenhuma
rela����o com o coronel Jomba. Segundo Kirk, nem sempre ele fi-
cava l��.
��� Vamos aterrissar em uma pista de pouso no meio da flo-
resta ��� avisou Cross, repetindo as instru����es de Kirk. ��� O pilo-
to s�� saber�� o local exato quando j�� estivermos sobrevoando a
regi��o. De l��, seremos levados para o lugar da reuni��o.
Est��vamos nos aprontando para sermos conduzidos por Go-
mes ao campo de pouso, onde pegar��amos o avi��o providenciado
por Kirk, quando Cross veio com as m��s not��cias.
��� Jomba est�� aqui para v��-lo.
��� Ah, merda.
��� Merda porra nenhuma. Se Jomba ouviu falar do seu neg��-
cio com Savimbi, podemos dar adeus �� vida.
Jomba me aguardava ao lado do jipe. Dei uma olhadela no
enfeite do cap��. N��o consegui distinguir se ainda era o mesmo
cr��nio.
Enquanto caminh��vamos, ele batia com o porrete da perna.
��� Recebi um telefonema de Jo��o Carmona. Ele me contou
que voc�� criou um problema em rela����o �� troca.
��� Jo��o �� um mentiroso, n��o h�� problema algum.
318
��� Por que ele diria isso, se n��o fosse verdade?
��� J�� falei, Jo��o �� um mentiroso. N��o h�� nenhum problema
com a transa����o, o que h�� �� um desentendimento entre n��s sobre
um diamante. Ele roubou um diamante valioso, e eu o recupera-
rei na transa����o. �� s�� isso.
Jomba parou e me encarou com aquele sorriso horripilante.
As tatuagens de chifres brilhavam.
��� Seus problemas com Carmona n��o devem interferir no que
foi combinado. Ficarei muito triste se isso acontecer. Voc�� com-
preende?
��� Compreendo que temos uma combina����o de neg��cios. Se
Jo��o atrapalhar o esquema, v�� atr��s dele.
Jomba bateu no meu peito com seu porrete.
��� Se Jo��o atrapalhar o esquema...
Afastei o porrete.
��� Meu desempenho n��o �� bom quando sou amea��ado. Es-
tamos juntos em um neg��cio e precisamos um do outro. Vir at��
aqui para me amedrontar n��o ajuda ningu��m.
Juro que aqueles chifres ficaram vermelhos. Achei que o ca-
nalha acabaria comigo, ali mesmo. Mas eu estava jogando; dei a
entender que levar a cabo o esquema das armas era mais impor-
tante para ele do que esmagar um inseto como eu.
Jomba olhou para a mina, depois para mim.
��� Veja bem, senhor. N��o me importa o que venha a fazer a
Carmona, pode mat��-lo se quiser. Mas se fizer qualquer coisa que
possa prejudicar a entrega das armas, destruirei a sua mina e o le-
varei l�� para baixo, para um t��nel escuro; e o farei sofrer tanto
que at�� a sua alma vai chorar. Entendeu bem, senhor?
��� Entendi.
Quando terminei com Jomba, Cross esperava por mim na en-
trada da mina. Ele bateu a cinza do charuto e examinou a extremi-
dade que queimava. Depois, olhou para mim e sacudiu a cabe��a.
��� O que deu em voc��, ainda n��o aprendeu que n��o se deve
irritar o Diabo? Dava para ver daqui que Jomba estava a ponto de
arranjar um enfeite novo para o cap��.
319
��� Ele s�� n��o espremeu a minha cabe��a, at�� meus olhos pu-
larem, porque precisa de mim para receber as armas. Por que ma-
tar um homem por uma simples satisfa����o pessoal, quando pode
conseguir um monte de armas e matar milhares?
��� Jomba n��o precisa me matar ��� disse Cross. ��� Toda vez
que ele aparece, perco alguns anos de vida. Dentro em breve,
morrerei de velhice.
SOBREVOAMOS OITOCENTOS quil��metros na ��frica Equatorial,
quase sempre sobre o grande planalto que ocupa a maior parte do
leste e do sul do pa��s, quando se afasta da costa. Kirk n��o nos acom-
panhou.
��� Ele disse que n��o pode arriscar perder as pernas tamb��m���
explicou Cross.
Aterrissamos em uma pista de terra onde um Hummer e um
jipe nos aguardavam. A ��rea parecia uma savana, n��o t��o densa e
exuberante quanto as florestas mais pr��ximas do equador, mas,
ainda assim, ��mida e muito arborizada.
��� Vistam isso ��� disse o piloto ao nos entregar m��scaras de
tecido semelhantes ��s do Halloween.
��� Por que devemos usar m��scaras? ��� perguntei.
��� S��o ordens. N��o as retirem enquanto n��o receberem ins-
tru����es nesse sentido. N��o falem com os soldados, nem com nin-
gu��m, enquanto n��o encontrarem Savimbi. Se algu��m se dirigir a
voc��s, respondam com monoss��labos.
Enquanto caminh��vamos na dire����o dos ve��culos, conclu�� o
porqu�� das m��scaras.
��� Kirk quer garantir que n��o seremos identificados ��� disse
eu. ��� Jomba pode ter espi��es aqui. A visita de dois americanos
levantaria suspeita.
Os soldados que nos aguardavam tamb��m devem ter recebi-
do ordens para se manterem calados, pois, al��m do boa-tarde, n��o
trocamos nenhuma palavra. O motorista e o nosso guarda-costas
no Hummer conversavam em um dialeto bantu, enquanto Cross
e eu apreci��vamos a paisagem. Imaginei que a viagem ao quartel-
320
general de Savimbi seria curta, mas n��o. Viajamos mais de uma
hora em uma estreita estrada de terra e, depois, entramos por um
gramado muito pouco marcado por rodas de ve��culos.
��� Kirk contou que Savimbi n��o fica em nenhum lugar por
muito tempo. Receia que o governo queira resolver suas diverg��n-
cias pol��ticas com bombas, no caso de descobrir sua localiza����o.
J�� anoitecia quando o Hummer entrou em uma pequena al-
deia. Atrav��s da densa folhagem que circundava a aldeia, pude
ver ve��culos militares e acampamentos de soldados dispersos.
Quando o Hummer se aproximou da casa do chefe, n��s sa��-
mos. Enfeitando a parede do alojamento, havia um p��ster em ta-
manho original de Savimbi usando uma boina com ins��gnias de
general e uniforme militar. Na foto, ele levantava o punho fecha-
do para o mundo, e o povo aplaudia.
Fomos recebidos por um oficial com o uniforme da Unita.
��� Sigam-me ��� disse ele em portugu��s.
Entramos na casa, e a porta se fechou atr��s de n��s.
��� Podem retirar a m��scara.
A sala era iluminada por uma luz improvisada vinda do teto, e
pod��amos ouvir o ru��do de um gerador atr��s da casa. Havia uma
mesa posta para duas pessoas.
��� Por favor ��� o oficial, um major, indicou-nos as duas ca-
deiras. ��� Nosso chefe estar�� aqui em breve. Enquanto isso, os
senhores podem saborear a refei����o. Vinho ou cerveja?
Tomar vinho n��o seria apropriado. Ambos pedimos cerveja,
que estava gelada.
��� Aquele gerador tamb��m deve estar ligado a uma geladeira���
comentei com Cross.
Quando terminamos de comer, o mesmo oficial reapareceu e
nos ofereceu charutos e conhaque. Momentos depois, Jonas
Savimbi entrou, acompanhado do major. Era um homem de esta-
tura forte, beirando os sessenta anos, com o cabelo em corte esco-
vinha. Diferente do p��ster, n��o usava barba, a n��o ser por um
c��rculo que contornava a boca e o queixo.
321
Eu esperava v��-lo em uniforme militar, mas ele usava um traje
esporte com a camisa aberta no colarinho.
Minha primeira impress��o foi de um homem cheio de ener-
gia. Seus olhos, o jeito de andar, o aperto de m��os, tudo passava
muito dinamismo. Longe de transmitir uma energia nervosa,
Savimbi aparentava ser um homem cauteloso. Era carism��tico.
Diferente dos pol��ticos americanos que abrem seus caminhos na
pol��tica por meio de promessas e acordos, esse homem tocara os
cora����es de milh��es de pessoas com a sua ret��rica ��� e entrara na
selva de arma em punho para lutar por... suas cren��as? Ou pura e
simplesmente pelo poder?
Quando nos cumprimentamos, olhei nos seus olhos escuros e
sorri, lembrando que esse homem tamb��m queimara pessoas vivas.
Savimbi foi direto ao assunto, com um portugu��s melhor que
o meu.
��� Por que marcou esta reuni��o?
Pigarreei, antes de falar.
��� Estou em uma situa����o dif��cil. Possuo uma mina de dia-
mantes na ��rea do coronel Jomba.
��� Sou o superior do coronel.
��� Sim, �� por isso que estamos aqui. ��� Respirei fundo e dei-
xei o ar sair dos pulm��es. ��� Alguma coisa est�� para acontecer,
n��o estou bem a par das ramifica����es. Jomba planejou um acordo
com um negociante de diamantes em Lisboa, chamado Jo��o
Carmona, e um negociante de armas em Istambul que se intitula
"Bey". Diamantes de algum outro lugar, que suspeito seja Serra
Leoa, ser��o trazidos para c��. Minha fun����o �� certificar os diaman-
tes como angolanos para que n��o tenham a marca de diamantes
de sangue.
Fiz uma pausa e olhei para Cross. Ele agitava o conhaque no
copo e encolheu os ombros.
��� Continue, diga o que interessa ��� falou ele.
��� Creio que Jomba est�� planejando um golpe.
Savimbi trocou olhares com o major. N��o revelou nenhuma
emo����o.
322
��� Por que acredita que Jomba planeja um golpe contra mim?
��� Foi isso que conclu��mos. Fui informado pela esposa de Jo��o
que Jomba pretende se apossar da Unita quando tiver as armas
nas m��os.
Savimbi acenou com a cabe��a.
��� E o que Jomba disse a voc��?
��� Nada. Ele se limita a olhar para mim como se estivesse
medindo o meu tamanho para o caix��o.
Savimbi deu uma gargalhada.
��� Duvido. Jomba n��o costuma deixar peda��os grandes o
suficiente para serem enterrados. ��� Ele se recostou na cadeira e
cruzou as m��os no peito. ��� E, senhor, me diga, por favor, por que
veio a mim com essa informa����o, em vez de, simplesmente, seguir
o combinado.
��� N��o me dou com Jo��o Carmona. Existe uma certa hostili-
dade entre n��s, desde os tempos em que meu pai morava em Lis-
boa e fazia neg��cios com ele. Ele roubou uma gema de meu pai,
uma heran��a de fam��lia ��� menti ���, e eu a quero de volta. Faz
parte do acordo entre Jo��o e Bey.
"Serei direto. Resumindo, eu me dou bem com Bey. Ele en-
tregar�� as armas, e eu cuidarei da parte que se refere aos diaman-
tes. N��o temos nenhum problema. Mas temo que Carmona acabe
comigo pela parte que me cabe do acordo.
Savimbi sorriu. O rosto n��o revelou nada, mas acho que vi
um sinal de prazer em seus olhos.
��� Sua avalia����o do senhor Carmona ��, sem d��vida, correta.
J�� tive a oportunidade de lhe aplicar um corretivo. Eu o deixei
vivo, por��m, preso a uma cadeira de rodas, o que convinha aos
meus objetivos.
��� Desconfio que o mundo seria melhor sem ele ��� disse eu.
��� Qual �� a situa����o da sua mina? ��� perguntou ele. ��� Pelo
que sei, est�� perdendo dinheiro.
Hesitei. N��o queria revelar que est��vamos fazendo sondagens
em busca de um tubo de kimberlito. Meus instintos, por��m, me
orientaram a n��o mentir para o homem.
323
��� A mina est�� comendo dinheiro. Mas estou seguindo um
relat��rio geol��gico positivo, segundo o qual h�� indicadores de dia-
mantes na propriedade. Se encontrarmos um tubo, os pagamen-
tos �� Unita ser��o elevados.
��� O que pretende ganhar com essa transa����o que, segundo
voc��, est�� sendo planejada entre Jomba e os outros? A parte de
Carmona?
��� Nada, nem mesmo a parte que me foi prometida. N �� o
quero ter nada com Carmona. Eu nunca verei a minha parte mes-
mo, pois Carmona ter�� alguma carta escondida na manga para
impedir que eu a receba. Estou convencido que ele estava envol-
vido, tanto na morte do meu tio em Nova York, como na minha
ru��na financeira. N��o quero ter qualquer relacionamento com ele.
Quero apenas a gema que roubou de meu pai, al��m de ser deixa-
do em paz para poder levar a minha mina a dar lucro. ��� N �� o
expliquei que o Cora����o do Mundo era de imenso valor. Seria o
mesmo que acenar para um le��o com um peda��o de carne crua.
Savimbi levantou-se.
��� Meu conselho �� que voc�� retorne para a sua mina e aja
como se nada houvesse.
��� E quanto a Jomba e o neg��cio com os diamantes de sangue?
��� Voc�� conseguiu se livrar de gente muito perigosa: Carmona,
Bey, Jomba. Sugiro que n��o deixe nenhum deles saber que falou
comigo. E que desempenhe o papel com o qual concordou.
��� Mas o que...
Savimbi virou-se e foi embora.
O major indicou dois beliches.
��� Voc��s passar��o a noite aqui e ser��o levados para o avi��o
amanh�� de manh��.
Quando saiu, Cross e eu nos olhamos.
��� Que diabos ��� disse eu. ��� N��o sei o que acabou de acon-
tecer, mas existe um aspecto positivo nisso tudo.
��� Qual?
��� Ainda estamos respirando.
324
54
Gomes, meu motorista, estava �� nossa espera quando descemos
do avi��o na regi��o dos diamantes. E havia mais algu��m.
��� Puta-merda, ela est�� aqui ��� disse Cross.
"Ela" era Simone. Vestindo jaqueta safari, camisa branca e
botas, parecia ter sa��do de um filme. Um filme porn��.
��� �� uma desagrad��vel surpresa ��� disse eu, com toda fran-
queza.
��� Eu estava por perto e resolvi aparecer. ��� Ela beijou meu
rosto. Seu perfume era agrad��vel.
Simone cumprimentou Cross.
��� Ainda sou o dono da minha mina?���perguntei a Gomes. ���
Ou essa mulher a vendeu enquanto eu estava fora?
Ele sorriu e sacudiu a cabe��a.
��� A senhora chegou ontem. Ficou nos seus aposentos.
Fant��stico. Eles deduziram que Simone era a minha garota.
Se eu tivesse algum segredo, a esta altura ela os conheceria. Nem
uma formiga podia se aproximar da mina sem ser revistada, mas
quando se trata de uma bela mulher, eles entregam a chave do
lugar.
Viajei no banco traseiro do Rover com Simone.
��� Todas as combina����es para a troca j�� foram feitas ��� disse
ela em ingl��s para que Gomes n��o compreendesse.
��� Para quando? ��� perguntei.
325
��� Amanh��.
Cross olhou para mim. Amanh�� seria cedo demais para Savimbi
colocar tropas em campo ou tomar qualquer outra provid��ncia que
estivesse planejando para cuidar de Jomba. Eu teria que telefonar
para Kirk no instante em que chegasse �� mina e torcer para ele
conseguir fazer contato com Savimbi. Do meu ponto de vista,
parecia que as coisas pioravam a cada momento. Agora, minha
vida estava indo por ��gua abaixo rapidamente.
��� Como far��o para trazer a carga?
��� Jomba preparou uma pista para a aterrissagem. Antes de
pousarem o avi��o, me entregar�� as pedras. N��s as examinaremos
ali mesmo e informaremos a Bey que tudo est�� de acordo por tele-
fone via sat��lite. Voc�� certificar�� as pedras. Bey chegar�� com o
carregamento, e n��s lhe entregaremos a parte dele nas pedras,
acompanhadas dos seus certificados.
��� E voc�� e o resto das pedras? Voc�� ir�� embora com ele? ���
perguntei.
��� N��o confiamos nele. Tenho um avi��o fretado no campo. ���
Ela acariciou o meu bra��o. ��� N��o se preocupe, poder�� pegar a
sua parte antes que eu me v��.
��� E se as coisas n��o sa��rem bem entre Bey e Jomba? Supo-
nha que Jomba queira ficar com os diamantes e as armas.
��� Bey n��o �� um idiota. Vir�� acompanhado de seus homens.
E ter�� tudo pronto para explodir os avi��es. Isso no caso de Jomba
tentar alguma coisa.
Recostei-me no banco e fechei os olhos para relaxar. A vida
era cheia de surpresas. Simone surgira na sua vassoura. O hor��rio
planejado para a troca fora para o espa��o. E eu descobri que n��o
podia confiar no meu substituto.
Cross n��o fez nenhum coment��rio obsceno, tampouco se preo-
cupou em perguntar quem era a mulher que me aguardava no
campo de pouso.
Ele conhecia Simone.
Por essa eu n��o esperava.
326
55
Logo que chegamos �� mina, o vigia do port��o correu em dire����o
ao Rover.
��� A mina inundou!
��� Merda! Onde est�� o Kruger?
��� Na mina com o contramestre tentando fazer as bombas
funcionarem.
��� Leve a senhora para os meus aposentos. ��� Dirigi-me para
o po��o, e as palavras dele me seguiram.
��� O coronel Jomba esteve aqui mais cedo. Ficou furioso
quando descobriu que o senhor n��o estava na mina.
��� Tem raz��o ��� disse eu a Cross ���, n��o d�� para se afastar
muito tempo da mina na atual situa����o.
Enquanto o elevador descia para o po��o, o operador informou
que ele s�� estava descendo at�� a metade do caminho.
��� O que devemos fazer? Pular a outra metade?
��� N��o, senhor, pode descer pela escada.
��� N��o se preocupe ��� disse Cross ���, se quebrar alguns os-
sos, Jomba precisar�� de menos tempo para reduzir voc�� a p��. Ah,
mano, n��o h�� nada que eu possa fazer para ajudar. Vou conferir o
meu pessoal.
Eu sabia que ele estava mentindo. O prov��vel era que fosse
atr��s da sua garota Simone para tirar uma casquinha e descobrir
um meio de entregar-me a Jomba.
327
Meu humor n��o era dos melhores quando o elevador desceu.
Estava dif��cil para mim n��o perder de vista os jogadores no jogo
que Jo��o come��ara. Eu s�� tinha certeza de uma coisa: que todos
estavam do outro lado.
A ��rea de recep����o no fundo do po��o estava molhada, mas
n��o inundara.
��� A ��gua est�� entrando ��� contou-me um contramestre ���,
mas as comportas s��o seguras, conseguem deter a maior parte.
Encontrei Kruger com ��gua at�� os joelhos. Batia com uma
chave inglesa em uma bomba de ��gua, ao mesmo tempo em que a
xingava. Parecia irritado e frustrado o bastante para usar a chave
em mim.
��� Onde diabo voc�� comprou esta bomba? At�� mesmo Cecil
Rhodes a teria jogado fora nos idos de 1890.
��� Veio junto com a mina. O que aconteceu?
��� O seu pessoal dinamitou o terreno e atingiu um rio sub-
terr��neo. Tiveram sorte de n��o morrer. E voc�� teve sorte por eles
n��o terem destru��do a mina inteira. Quando voc�� disse que n��o
sabia nada sobre minera����o, n��o estava brincando. J�� lhe ocorreu
que n��o pode simplesmente soltar seus funcion��rios embaixo da
terra?
Ele tinha mais a acrescentar, mas estava atrapalhado com a
bomba e falava com ela. Deixei-o e voltei para cima.
Cross me aguardava.
��� Jomba esteve aqui, Simone falou com ele.
��� Bom. Quando �� que vou doar sangue?
��� Amanh��. Pessoas como o seu amigo Bey e Jomba gostam de
pegar todo mundo desprevenido. N��o creio que isso tenha alguma
liga����o com a nossa visita a Savimbi. Se este fosse o caso, Jomba
teria esperado por n��s, e a esta altura estar��amos chorando no infer-
no. Eles s�� querem pegar todos de surpresa. Mas sabe, voc�� tem um
excelente comportamento. Sem brincadeira, a maioria dos homens
estaria se borrando. Alguma coisa cabeluda deve acontecer.
��� Estou chorando por dentro ��� disse eu. ��� Quero que voc��
leve Kruger para Luanda, at�� essa confus��o terminar. Podemos
328
arranjar uma desculpa, dizer que precisamos verificar alguma coi-
sa no minist��rio de minas.
��� Est�� mandando eu me abrigar na trincheira justo quando
o jogo est�� para come��ar? Sem chance, Jos��.
��� �� assim que vai ser. Estou mais preocupado com Kruger
do que com esse neg��cio.
��� E eu estou preocupado com o nosso acordo. Duas pilas,
lembra?
��� Pela express��o no seu rosto, n��o acredita que eu me lem-
bre. N��o costumo passar a perna em ningu��m. Eu disse dois mi-
lh��es. Esteja voc�� em Luanda ou no local da troca, o nosso acordo
�� o mesmo.
Fui embora. Afast��-lo do raio de a����o, quando a troca ocor-
resse, n��o passava de uma desculpa. Eu n��o queria ter que me
preocupar com mais um atr��s de mim. Quando eu lhe disse que os
dois milh��es ainda estavam na mesa para ele, n��o menti. A n��o
ser que descobrisse que ele mentira para mim.
Bati na porta dos meus aposentos e esperei que Simone abrisse.
Ela vestira cal��as compridas e uma blusa que n��o expunha nada ���
e tamb��m n��o escondia nada.
��� Voc�� �� uma puta ��� disse eu.
Ela me olhou intrigada.
��� Isso n��o �� jeito de falar com uma mulher casada. Se esti-
v��ssemos em Lisboa, Jo��o cortaria a sua garganta por me chamar
assim. Quero que se desculpe.
��� Tem raz��o, n��o �� maneira de se tratar uma mulher. Ent��o,
est�� bem, voc�� �� uma sacana. E o seu marido j�� faturou mais em
milhagem alugando a sua boceta do que uma empresa de carros
de aluguel. Deu uma chupada em Jomba quando esteve com ele?
Dirigi-me ao minibar e coloquei no copo uma boa dose do
conhaque envelhecido de Eduardo. Ela me seguiu, mas se mante-
ve a certa dist��ncia.
��� Voc�� est�� de mau humor.
��� Quem, diabos, voc��s acham que est��o passando para tr��s?
Voc�� me acha com cara de quem acabou de cair de um vag��o de
329
alfaces? ��� Aproximei-me da bolsa dela e retirei seu telefone m��-
vel. Depois arranquei da parede o fio do telefone da mina.
��� O que est�� fazendo?
��� De agora em diante, serei a sua sombra. ��� Cheguei mais
perto dela, irritado demais para deixar que sua sensualidade femi-
nina me enganasse. Agora, vai sentar e me contar exatamente o
que Jomba, Bey e aquele lixo do seu marido est��o tramando. ���
Levantei o telefone. ��� Faz de conta que sou o seu secret��rio. Se
receber algum telefonema, eu o monitorarei para voc��.
Os olhos de Simone eram verdes, em vez de pretos, mas me
lembraram a descri����o que Shakespeare fez da Dark Lady, a femme
fatale que o deixava enlouquecido. O poeta de Avon parecia
inexoravelmente atra��do pela Dark Lady ��� a ponto de ter medo
dela.
��� O que pretende fazer se eu n��o cooperar? Se eu disser ao
coronel Jomba que voc�� n��o est�� cooperando?
Boa pergunta. Mas eu tinha uma resposta.
��� Direi a ele que n��o precisamos de voc�� nem de Jo��o, e que,
quando ele estiver de posse das armas, poder�� ficar com a sua par-
te dos diamantes.
Ela come��ou a rir hist��rica.
��� O que est�� acontecendo com voc��?
Demorou um instante para recuperar o ar. E come��ou a rir
novamente.
��� Eu j�� avisei a ele ��� disse ela arfando ��� que podia ficar
com a sua parte.
330
56
De manh��, mandei um Cross vociferante levar Kruger ao campo
de pouso em uma caminhonete.
��� Sinto que estou sendo alijado ��� disse Cross. ��� Eu pode-
ria ao menos ficar por perto para identificar as partes do seu corpo
depois que o coronel acabasse com voc��.
Puxei Gomes, meu motorista, para longe.
��� A Sra. Carmona e eu temos que ir a um encontro. Leva-
remos o Rover ��� avisei.
��� Sim, Senhor.
��� Voc�� pode escolher. Ou nos leva, ou fica na mina.
��� Como escolher? Sou seu motorista, senhor.
��� Pode haver confus��o por l��. Haver�� uma entrega de mer-
cadoria para o coronel Jomba. Se as coisas n��o derem certo...
N��o precisei dar grandes explica����es. Gomes conhecia o co-
ronel Jomba e como funcionava a guerra em Angola, bem melhor
do que eu.
��� Sem problema, senhor.
��� Est�� bem. Se eu sobreviver a tudo isso, voc�� receber�� uma
bonifica����o de um ano de sal��rio.
Seu rosto ganhou um sorriso.
Simone saiu do meu apartamento em uma roupa safari total-
mente diferente da anterior, inclusive nas botas.
��� Parece que voc�� vai para uma s��rie de fotografias de mo-
da ��� disse eu.
331
��� Vamos torcer para que n��o haja uma s��rie de tiros ��� res-
pondeu ela.
Eu dormira no quarto que era de Carlotta antes de ser despe-
dida. Devo confessar que fiquei tentado a entrar no meu e parti-
lhar a cama com Simone. Tudo levava a crer que talvez fosse a
minha ��ltima chance de comer...
Ela levantou as m��os para o alto, longe do corpo.
��� N��o vai me revistar?
��� N��o, confio em voc��. ��� Ri daquilo at�� chegarmos ao
Rover.
Quando nos acomodamos no banco traseiro, Simone perguntou:
��� Pretendia me contar sobre a sua conversa com Bey?
��� Ele se limitou a informar hora e local ��� menti. Al��m da
combina����o para a troca, eu lhe avisara que, antes de assinar qual-
quer certificado, queria o diamante de fogo na minha m��o.
Quando j�� est��vamos na metade do caminho para o campo
onde a troca aconteceria, o telefone m��vel tocou. Era Bey.
��� Jomba mudou o lugar do pouso. Tenho o novo local. ���
Era uma faixa de rua a 16 quil��metros dali, na dire����o oposta.
Informei a Gomes o novo local.
��� �� melhor para os avi��es aterrissarem ��� comentou ele.
��� Essa gente n��o se arrisca, n��o ��? ��� comentei com Simone.
��� Principalmente quando est��o apostando a vida. Se Savimbi
ou o governo souberem da troca, haver�� derramamento de san-
gue. E um bocado ser�� nosso.
FOMOS PARADOS tr��s vezes em barreiras instaladas por homens
de Jomba. N��o t��nhamos nenhum documento, mas a cada vez o
soldado encarregado me examinava e comparava a minha figura
ao que estava escrito em uma folha de papel.
Quando nos aproximamos do trecho escolhido como ponto
de encontro, a ��rea estava tumultuada com tropas rebeldes e ar-
mas. N��o havia somente os jipes com metralhadoras ��� vi tan-
ques e lan��adores de foguetes ocultos por tr��s dos arbustos. Parecia
que Jomba estava pronto para uma batalha de arrasar. Ocorreu-
332
me, pela primeira vez, que as armas que Jomba receberia pode-
riam causar uma guerra que envolveria um pa��s inteiro.
Um helic��ptero preto com foguetes na base da fuselagem so-
brevoava o lugar.
��� Bey ��� disse eu. Ele me avisara que examinaria pessoal-
mente o terreno, antes de deixar seus avi��es aterrissarem. E eu
sabia que ele n��o se referia apenas �� disposi����o do terreno.
Quando chegamos �� ��rea de pouso, vi Jomba falando ao tele-
fone em um posto de comando. Nos dirigimos para l�� mas um ofi-
cial nos deteve.
��� Siga-me, senhor. Tudo est�� preparado. Ele nos levou a uma
tenda cujos quatro lados estavam enrolados de modo que somen-
te a parte superior sombreava o interior. No centro da tenda ha-
via uma mesa coberta com uma toalha branca, uma cadeira, uma
balan��a de diamantes e um uma lumin��ria alimentada a bateria,
bem como baldes de um gal��o, todos tampados.
O oficial colocou um dos baldes sobre a mesa e removeu a
tampa. Mantive a express��o impass��vel e agi como se visse baldes
cheios de diamantes todos os dias. Todas eram pedras brutas, claro,
nem cultivadas nem polidas, mas o conte��do de cada balde valia
mais do que o sal��rio de uma vida inteira da maioria das pessoas.
O oficial apontou para uma pilha de documentos de certifi-
ca����o de diamantes.
��� Comece, por favor.
��� De quanto tempo disponho?
��� Uma hora.
Sentei-me e comecei a trabalhar. N��o importava como eles
seriam lapidados, vinte milh��es de d��lares em diamantes era mui-
to. Eu levaria dias para proceder a um exame r��pido de todos eles.
E tinha apenas uma hora.
Inclinei o balde e balancei para que um punhado de pedras
ca��sse sobre a mesa. Determinar o tamanho era f��cil ��� apenas
um olhar e eu podia ver que todos tinham pelo menos dois quila-
tes. As pedras que examinei com a lupa quase n��o continham
impurezas, e a cor da maioria delas tendia para o branco. Havia
333
algumas coloridas, principalmente amarelas, e mesmo essas eram
boas. S�� deu para examinar amostras aleat��rias, mas fiz quest��o
de examinar pedras de cada parte do recipiente. T��o logo termi-
nei de avaliar e pesar um dos baldes, passei para o seguinte.
Quando a hora terminou, o telefone m��vel tocou.
��� Estou aqui em cima ��� disse Bey.
Sa�� da tenda e acenei para o helic��ptero que pairava no ar.
��� S�� deu para examinar amostras aleat��rias, mas aparente-
mente toda a mercadoria tem a qualidade das amostras ��� gritei
ao telefone.
��� Bom. N��o perca a mercadoria de vista. N��o quero voltar
para casa e descobrir que tenho baldes de pedras. Meus avi��es
aterrissar��o a qualquer momento. Depois de Jomba inspecionar
as armas, receberei metade dos diamantes e os certificados cor-
respondentes. Voc�� e Jo��o receber��o a outra metade.
��� Receber�� seus certificados quando eu receber o diamante
de fogo.
��� Claro. N��o se preocupe, Sr. Liberte, n��o tenho nenhum
interesse em engan��-lo ��� ou mat��-lo.
Quando desliguei, vi que Simone me fitava.
��� Voc�� �� um tolo. Jo��o nunca o deixaria escapar com o dia-
mante vermelho.
��� Jo��o est�� muito longe daqui.
Os avi��es chegaram, tr��s jatos largos que pousaram, um de cada
vez, na faixa estreita e comprida de terra. A medida que cada um
deles pousava, caminh��es de ex��rcito sa��am de tr��s dos arbustos e
enfileiravam-se ao lado das portas de carga do avi��o. Para mim, o
coronel Jomba era pouco mais que um g��ngster dissimulado de
uniforme; no entanto, observando a opera����o, pude ver que ele
era no m��nimo um l��der militar eficiente. Tudo parecia acontecer
com a precis��o de um rel��gio.
Enquanto os avi��es eram descarregados, o helic��ptero de Bey
desceu a umas centenas de metros da tenda. O oficial que me
supervisionava recebeu um telefonema para prosseguir com o
plano.
334
��� O coronel autorizou a libera����o do pagamento.
Metade dos baldes foi colocada em um caminh��o. Fiz um si-
nal para Gomes. Ele se aproximou com o Land Rover e n��s o car-
regamos com o restante. Fomos de carro at�� o helic��ptero de Bey,
vigiado por quatro de seus homens cuja apar��ncia era t��o sangui-
n��ria quanto Jomba. Eu era o ��nico ali sem ex��rcito.
Quando nos aproximamos, Bey desceu do grande helic��pte-
ro. Ele sorriu e cumprimentou Simone com um aceno de cabe��a.
��� Senhora.
Ela respondeu com um sorriso contido.
Mais uma mesa com uma lumin��ria iluminada a bateria foi
armada. Observamos outro homem sair do helic��ptero, sentar-se
em frente �� mesa e come��ar a examinar as pedras.
��� Confio em voc�� ��� disse Bey ���, mas precisamos nos cer-
tificar de que os baldes n��o foram trocados pelas suas costas.
Ele confiava em mim mais ou menos tanto quanto eu nele.
Quando o homem terminou de examinar os diamantes, fez um
sinal positivo para Bey. Este, em seguida, estendeu a m��o conten-
do uma pequena pochete na minha dire����o. Peguei-a e apalpei seu
conte��do. Era o diamante de fogo. N��o abri a pochete. Os ho-
mens de Jomba estavam muito pr��ximos, e eu n��o queria que vis-
sem o que eu acabara de receber. Entreguei a Bey os certificados.
��� Adeus ��� disse ele, acenando ao subir no helic��ptero. ���
Boa sorte!
Era exatamente o que eu sentia.
��� Vamos embora daqui ��� ordenei a Gomes.
Simone e eu sentamos no banco traseiro, e Gomes saiu com o
Rover. Jomba estava ocupado recebendo suas armas. Eu queria sumir
da sua vista e da sua mente, antes que ele pensasse em outras coisas.
E, se os homens de Savimbi chegassem, haveria um combate direto.
A mudan��a do local de pouso poderia representar a minha
morte, pensei. Quando fui informado por Bey sobre essa mudan-
��a, n��o tive chance de telefonar para Kirk. Simone e Gomes esta-
vam grudados em mim. Qualquer um dos dois teria informado
Jomba que eu estava fazendo jogo duplo.
335
Em Angola, meus dias estavam contados. Se eu continuasse
ali, Savimbi cuidaria de mim. Ao descobrir que o local da troca
era outro, deduziria que eu o enganara ao fornecer uma orienta-
����o errada.
Depois de poucos quil��metros de viagem, vi uma caminhone-
te familiar estacionada na beira da estrada. Era o caminh��o da mina
que Cross usara para levar Kruger ao campo de pouso. Cross esta-
va ao lado do ve��culo. Certamente, deixou Kruger e retornou. E
algu��m lhe informou que o local de aterrissagem mudara. Logo
conclu�� ��� foi Bey. Por isso, foi t��o f��cil entregar-me o diamante,
em vez de entregar a Jo��o. Ningu��m tinha inten����o de deixar-me
ficar com ele.
Gomes diminuiu a velocidade com a inten����o de parar.
��� Continue andando ��� gritei.
��� Pare ��� disse Simone.
��� Sim, senhora.
Sim, senhora?
Senti alguma coisa espetar-me do lado. Era uma pistola preta,
pequena, o tipo de autom��tica que meu pai chamava de "arma de
bolsa de mulher".
��� Avisei que deveria me revistar.
��� Gomes, eu dobro o que ela ofereceu a voc��.
Ele sacudiu a cabe��a ao aproximar o ve��culo do local onde
Cross se encontrava.
��� Sinto muito, senhor, mas o que vou receber, s�� uma mu-
lher pode dar.
Cross abriu a minha porta.
��� Saia ��� ordenou ele.
Sa��. Gomes saiu pelo lado do motorista, e Simone veio apres-
sada atr��s de mim. Quando ela saiu, Cross segurou sua m��o arma-
da e torceu-a para tr��s. Em seguida, pegou a arma e empurrou-a
para longe. Guardou a arma e sacou uma maior.
��� O que est�� fazendo? ��� perguntou Simone.
��� Deitem-se no ch��o ��� disse ele aos dois ���, de rosto para
baixo.
336
Quando ambos estavam no ch��o, ele me perguntou:
��� Onde est��o os diamantes?
Com um aceno, indiquei a traseira do Rover.
Ele abriu a mala e destampou um dos baldes.
��� Puta-que-pariu.
Era uma vis��o impressionante, baldes de diamantes.
Cross sorriu para mim.
��� Quanto valem esses baldes?
��� Uns oito a dez milh��es.
��� S��cios? ��� perguntou ele.
��� Eu disse dois milh��es. ��, mais ou menos, metade da mi-
nha parte. Se pegar a parte de Jo��o, n��o viver�� o suficiente para
aproveit��-la.
��� Eu poderia me arriscar.
��� N��o h�� nenhum lugar no mundo onde voc�� pudesse se
esconder ��� disse Simone do ch��o.
Ele a ignorou.
��� Voc�� manda, mano. Ficamos com o que �� nosso? Ou com
o deles tamb��m?
Ao ouvir o "nosso", senti algum al��vio. Ele estava do meu lado.
��� Vamos ser ricos, sem gan��ncia.
��� Falou. Pode levantar, sua puta.
Simone levantou-se, gritando para Cross com um linguajar t��o
chulo que surpreenderia at�� mesmo sua filha Jonny.
De repente, t��nhamos companhia. Eram jipes que se aproxi-
mavam. A primeira pessoa que vi foi Jomba em seu jipe com o
enfeite de cr��nio. Em seguida, vi quem estava ao seu lado e quase
sujei as cal��as.
Era o major que cuidara de n��s na casa de Savimbi.
Cross viu e olhou para mim.
��� Acho que estamos fodidos.
Jomba e o major sa��ram do jipe e se aproximaram de n��s.
Ambos sorriam.
��� Saiu apressado, Sr. Liberte. Mas trouxe consigo os meus
diamantes. Est��vamos a caminho da sua mina para recuper��-los,
337
mas o senhor nos livrou desse inc��modo. Pegue os baldes ��� or-
denou a um de seus homens.
Simone deu um passo �� frente.
��� Esses diamantes pertencem ao meu marido. Se tocar ne-
les, Savimbi receber�� um telefonema avisando sobre o seu golpe
contra ele.
Os dois ca��ram na gargalhada. De tanto rir, Jomba se inclina-
va, e seu porrete batia no ch��o.
Cross e eu trocamos olhares. Entendemos tudo. Simone n��o
entendeu. Segurei o bra��o dela e a afastei de Jomba. Sua boca suja
nos mataria a todos.
��� Cale a boca ��� ordenei.
Simone n��o era burra. Calou-se.
Depois de transferirem todos os baldes para seus jipes, Jomba
chamou Gomes. Meu motorista transpirava tanto que, quando se
aproximou, eu podia ver as gotas de suor em sua testa. Jomba en-
volveu os ombros de Gomes com o bra��o e levou-o para a beira da
estrada. Atirou na cabe��a dele, e o corpo caiu para tr��s, fora da es-
trada. Guardou a arma e sacudiu a cabe��a.
��� Era o meu olheiro na mina, agora precisarei substitu��-lo.
N��o me trairia por dinheiro, mas, como todos os homens, era fra-
co quando se tratava de uma mulher.
Jomba bateu com o porrete no meu peito. Desta vez, n��o ten-
tei afast��-lo. Eu esperava morrer.
��� Quer que a mulher morra? ��� perguntou.
��� N��o. ��� Minha voz tremeu. ��� N��o quero.
��� Est�� bem. Ela �� sua. ��� Ele riu, botou uma das m��os entre
as pernas e balan��ou. ��� Savimbi disse que voc�� pode ficar com a
sua mina. Mas eu fico com os diamantes.
Jomba e o major ca��ram na gargalhada e voltaram para o jipe.
Meus joelhos tremiam. Tomei o assento do motorista no Rover.
Cross ia sentar ao meu lado mas mudou de id��ia.
��� V�� voc�� na frente ��� disse ele a Simone. ��� N��o esqueci
que tem uma arma.
338
��� Aquele idiota do Jomba ��� comentou ela. ���Jo��o avisar��
a Savimbi sobre o golpe que est�� armando contra ele. N��o ter��
chance de aproveitar o que roubou de n��s.
��� Voc�� ainda n��o entendeu ��� disse eu. ��� As armas eram
para Savimbi. Jomba n��o est�� trabalhando contra ele, mas para ele.
��� Do que est�� falando?
��� O acordo de paz entre Savimbi e o governo est�� por um
triz. Savimbi precisa de armas, possui diamantes para compr��-las,
mas n��o pode fazer isso abertamente. Ele armou um esquema e
usou Jomba como testa-de-ferro. E utilizou os diamantes angola-
nos que vem colecionando das minas h�� muitos anos. N��o havia
necessidade de certificar os diamantes, j�� que todos eram de An-
gola. Foi um artif��cio para o caso de o governo descobrir. Se isso
acontecesse, Savimbi diria que Jomba estava armando um golpe
contra ele.
Seguimos diretamente para o campo de pouso onde o avi��o
fretado por Simone a esperava. Ningu��m falou durante toda a via-
gem. Quando l�� chegamos, ela saiu sem dizer uma palavra. Cross
e eu j�� est��vamos a meio caminho da mina, quando ele soltou um
grande suspiro.
��� Merda, eu fui rico por um minuto. Um monte de diaman-
tes, todos meus. Eu j�� me via na minha pr��pria ilha na Riviera,
com belas mulheres, tudo a que tinha direito bem na minha m��o.
Agora a ��nica coisa que me resta �� co��ar o saco.
��� Ainda tem uma parte na mina.
Aquilo foi suficiente para ele cair na gargalhada.
��� ��, e toda a ��gua lamacenta que eu consiga beber.
339
57
Kruger voltou no dia seguinte, esbravejando comigo por ter per-
dido tempo em uma viagem a Luanda.
��� Estou cheio deste pa��s infernal e da sua mina. Quando
conseguir sec��-la, irei embora.
Quase n��o vi Cross, nos primeiros dias ap��s nosso retorno.
Nenhum dos dois queria falar sobre a perda da nossa sorte gran-
de. Consegui saber dele o suficiente para entender que eu fora o
grande apostador, do contr��rio teria ficado do lado de Simone.
��� Antes da sua vinda para Angola, aceitei participar do ne-
g��cio dos diamantes de sangue ��� explicou. E tinha raz��o. Ele
concordara em me lesar antes de me conhecer. Tenho certeza de
que lesar um estranho n��o �� uma ofensa t��o grave quanto lesar
um amigo.
Cross n��o sabia que eu tinha o Cora����o do Mundo. Guardei
aquele segredo comigo. Quando ficava sozinho no quarto, pegava
a gema e a examinava como um menino olha furtivamente uma
revista de mulher nua. Jomba tamb��m n��o sabia nada a respeito
do diamante, caso contr��rio eu estaria fazendo companhia a Go-
mes na beira da estrada.
Eu sentia o poder da gema quando a manuseava e ela emana-
va fogo. Olhar para ela com a lupa era como olhar para o centro
de um vulc��o. Nenhum dos meus bens ��� carros, barcos, dinhei-
ro, mulheres ��� me emocionava como o diamante de fogo.
340
Pensando bem, achei que seria capaz de matar quem tentasse
roub��-lo de mim.
FINALMENTE, tr��s dias depois da nossa volta Cross e eu nos encon-
tramos para jantar. Tamb��m convidei Kruger, mas ele me mandou uma
mensagem, do fundo da mina, dizendo que eu podia enfiar o jantar
no mesmo buraco que ele planejava enfiar a minha mina inteira.
O jantar foi t��o animado quanto um vel��rio batista. Cross
estava de mau humor e bebeu demais. Eu tamb��m n��o me dei ao
trabalho de ser a alegria da festa.
��� Vou para casa ��� disse Cross. ��� Assim que Kruger for
embora, farei o mesmo.
��� Voc�� tamb��m cansou de Angola.
��� Eu achava a vida dif��cil em Michigan City, mas vou dizer
uma coisa, mano, meus antigos amigos que vivem se reciclando
na pris��o mais parecem meninos de coro de igreja comparados aos
canalhas que governam e arrasam este pa��s.
A porta abriu, de repente, e Kruger entrou apressado. Resmun-
guei. Ele parecia ter sa��do de um buraco lamacento, o que era
verdade. Eu nunca o vira sorrir.
Ele se aproximou da mesa, trazendo em uma das m��os um
peda��o de mineral sujo de lama. Por um momento, pensei que sua
inten����o era me atingir.
��� Isto veio do raio do t��nel que inundou.
��� Foi isso que causou a inunda����o?
��� Voc�� �� o pior administrador de mina que eu j�� conheci.
N��o sabe distinguir a sua bunda daquele buraco ali no ch��o.
Suspirei. Eu trouxera o pobre homem para uma zona de guer-
ra e o mantivera trinta metros abaixo da superf��cie durante sema-
nas. Tudo em uma tentativa absurda e infrut��fera. N��o o culparia
se ele me atacasse com aquilo.
��� Sabe o qu��? ��� perguntei. ��� Eduardo tinha raz��o, injetar
mais dinheiro neste lugar �� investir sem perspectiva de retorno, e
eu j�� estou sem nenhum. Acho melhor desistirmos e irmos todos
embora.
341
��� Desistir, porra nenhuma. N��o agora que atingi um tubo.
Cross e eu congelamos. Olhei para o naco de terra azul-
acinzentada que Kruger tinha nas m��os.
��� Voc��s dois s��o t��o imbecis que nem sabem reconhecer terra
azul quando est��o diante dela. O senhor �� um homem muito rico,
Sr. Liberte. ��� Seu rosto abriu-se em um amplo sorriso. ��� Ali��s,
somos todos ricos.
342
P a r t e 7
A N T U �� R P I A
E
P A R I S
58
A Dama Azul fez de mim um homem rico, mas n��o aumentou a
minha expectativa de vida, quando o fr��gil acordo de paz em vi-
gor ��� que Cross chamava de paz sangrenta ���, selado entre o go-
verno e os guerrilheiros de Savimbi, foi se dissipando aos poucos.
Levamos um ano para chegar ao tubo de kimberlito de terra
azul. Mas, quando conseguimos, jorrou dinheiro.
��� �� bom sairmos logo deste pa��s infernal, sen��o vamos morrer
sem aproveitar nossas vidas de ricos ��� desabafou Cross, depois
de acontecer �� nossa porta uma troca de tiros entre comandantes
guerrilheiros que brigavam pelo mesmo "aluguel".
O ��nico consolo que eu tinha em Angola era saber que l�� se-
ria mais dif��cil Jo��o me matar. Eu fizera tudo, exceto urinar no seu
t��mulo, e o faria se sobrevivesse a ele. Uma coisa eu sabia do san-
gue herdado da minha m��e: os portugueses n��o perdoam, nem
esquecem. E adoram uma rivalidade duradoura entre fam��lias, que
foi o que me levou a brigar pelo diamante de sangue.
Eu sabia que Jo��o voltaria a me procurar. S�� torcia para ver a
faca, antes que ele avan��asse para enfi��-la nas minhas costas.
��� Vamos viajar ��� avisei Cross. ��� Providencie um avi��o.
��� Para onde?
��� Antu��rpia.
��� Onde diabo fica isso?
��� Fran��a, Holanda, B��lgica, raios, eu n��o sei, em um desses
pa��ses, nunca fui bom em geografia. S�� sei que os melhores dia-
345
mantes do mundo passam por l��. Bernie e meu pai faziam neg��-
cios com um mercador de diamantes na Bolsa de Antu��rpia. Te-
lefonei para ele, um dia desses, e pedi que me conseguisse um
comprador para a mina. Ele tem uma oferta.
��� Quem neste mundo compraria uma mina de diamantes
localizada em uma zona de guerra?
��� Bernie comprou.
CROSS FRETOU um jato executivo de uma companhia francesa.
Quando entrei, descobri que era um daqueles cheios de sofistica-
����es. Havia champanhe, caviar, um chef de cozinha, su��tes e qua-
tro mulheres lindas.
��� Quatro? ��� perguntei a Cross.
��� Duas para mim, duas para voc��. ��� Ele sorriu e jogou fu-
ma��a no meu rosto. ��� Voc�� n��o negaria a um homem faminto
dois peda��os de carne, n��o ��? Mano, faz tanto tempo que n��o tre-
po ou sou chupado que o meu pau �� capaz de matar uma mulher,
por isso preciso de uma reserva.
Quem era eu para estragar o prazer de um homem faminto?
346
59
Mostrei o diamante de fogo a Cross, durante o v��o.
��� Seu espertinho filho-da-puta ��� disse ele. ��� Por que n��o
me contou?
��� Estou contando agora.
No aeroporto de Antu��rpia, fomos recebidos por um comit��.
Asher van Franck, meu contato de diamantes na bolsa, entrou no
avi��o com um inspetor alfandeg��rio. Seu ingl��s tinha um sotaque
acentuado. Ele tomara provid��ncias para n��s passarmos reserva-
damente pela alf��ndega devido ao valor do diamante de fogo.
��� Arranjei o carro blindado com guarda-costas armados, at��
mesmo a equipe da CNN com as c��meras de tev�� que voc�� pediu.
Foi mais dif��cil conseguir os rep��rteres com as c��meras do que os
homens armados.
Franck era um homem alto e magro de, pelo menos, dois metros
de altura. Passava dos sessenta anos, e imaginei que, na juventu-
de, poderia ter jogado basquete, quando ainda havia jogadores
brancos ��� se �� que algu��m jogava basquete na B��lgica. Por sinal,
era l�� que ficava Antu��rpia, conforme descobri com os tripulan-
tes do v��o. Tamb��m aprendi que era o segundo porto da Europa
em tamanho, apesar de ficar em um rio, a oitenta quil��metros do
mar do Norte.
A barba, os cachos nas t��mporas e o solid��u de Franck o iden-
tificavam como judeu ortodoxo, uma condi����o cultural que n��o
347
me surpreendeu pois, historicamente, a maior parte do com��rcio
de diamantes em Antu��rpia era controlado por eles.
Apresentei-o a Cross e notei que Franck olhou de vi��s para o
quarteto feminino pronto para desembarcar.
��� N��o se preocupe, providenciarei que elas s�� desembarquem
quando as c��meras do notici��rio j�� estiverem longe ��� tranq��ili-
zei-o.
��� Para que todo esse tumulto? ��� perguntou Cross. ��� N��o
seria melhor n��s chegarmos sem ningu��m saber?
��� A publicidade nunca fez mal aos diamantes. O meu mere-
ce estar na coroa de um rei. Farei tudo a que tenho direito. Vamos
dizer aos rep��rteres que um rei fez uma oferta.
��� Que rei? ��� perguntou Franck.
��� �� confidencial. T��o confidencial que ainda n��o decidi qual.
Cross me olhou de um jeito que pude perceber que estava
aborrecido por eu n��o ter contado os meus planos. Mas tamb��m
deixou claro que j�� estava cansado de diamantes e s�� queria v��-
los nos dedos de uma mulher ��� envolvendo o seu p��nis. Ele sa-
cudiu o polegar na minha dire����o.
��� Quando eu conheci esse cara, ele n��o entendia nada de
diamantes. Agora, olha s��, �� o rei das negocia����es.
Pobre Franck. Parecia um pouco aflito. N��o creio que as mui-
tas d��cadas de trabalho com Bernie e meu pai o tenham prepara-
do para o entourage que eu trazia.
Eu ainda n��o decidira o que faria quando crescesse. Se a ven-
da da Dama Azul se efetivasse, eu sairia com mais de quarenta
milh��es de d��lares no bolso. E um dos mais valiosos diamantes do
mundo ��� que n��o estava �� venda. O diamante de fogo era um
elo com meu pai.
Eu j�� n��o era mais a mesma pessoa. Angola me transformou.
N��o sabia o que me acontecera naquela terra devastada. Talvez a
obriga����o de trabalhar para sobreviver mudasse uma pessoa. De
fato, o que mais me estimulava n��o era o retorno em dinheiro e,
sim, o trabalho de manter a mina funcionando a pleno vapor. E
agora que me acostumara ��quilo, n��o sabia ao certo se estava pron-
348
to para abandonar tudo e voltar a ser aquele homem inconseq��ente
e irrespons��vel que Marni me considerava. N��o que ela estivesse
errada, ou que eu quisesse mudar por essa raz��o. O problema ��
que eu gostava da sensa����o de realiza����o. Dava sentido �� minha
vida. Meus pais se orgulhariam da forma como administrei a mina
e fiz dela um sucesso. Aquilo significava mais para mim do que o
dinheiro ou a opini��o de qualquer pessoa.
��� O diamante est�� nesta pasta ��� informei ao chefe da segu-
ran��a em franc��s quando ele entrou no avi��o. Franck traduziu a
minha frase para alguma coisa que soava um pouco como franc��s,
mas o seguran��a me entendeu. ��� Quero as suas armas autom��ti-
cas de prontid��o quando o levar pela escada e o colocar no carro
blindado.
��� Aqui em Antu��rpia, o seu diamante est�� a salvo, n��s n��o
temos problemas de seguran��a ��� disse ele.
��� N��o me importam os problemas de seguran��a. Quero que
o transporte seja bem teatral para sair no notici��rio da noite e nos jornais de amanh��. N��o �� preciso apontar as suas armas para os
rep��rteres, apenas d�� a entender que est�� pronto para mandar
chumbo.
Na limusine a caminho do hotel, Franck contou-me sobre suas
provid��ncias na Bolsa de Antu��rpia. A Bolsa era onde se nego-
ciavam os diamantes.
��� Na Bolsa s�� se fala no seu diamante de fogo. Limitei os
convites para a recep����o em que o diamante ficar�� exposto. As
ressoas est��o brigando por convites como se fosse um casamento
real. Isso elevar�� seu pre��o.
��� N��o pretendo vend��-lo.
Frank fitou-me espantado.
��� �� mesmo? Ent��o por que toda essa publicidade e esse es-
pet��culo? Ouvi dizer que voc�� recebeu uma oferta daquele mag-
nata do computador americano que dizem ser o homem mais rico
do mundo.
��� Pois ��, se n��o est�� �� venda, para que todo o sensacionalis-
mo? ��� perguntou Cross.
349
��� Estou pensando em entrar para o neg��cio de diamantes.
O Cora����o do Mundo seria a pe��a central do neg��cio. ��� Eu ain-
da n��o contara a Cross sobre meus planos.
��� Mas voc�� sempre esteve no neg��cio de diamantes ��� disse
Franck. ��� Nasceu nele.
��� Est�� no meu sangue, mas n��o na minha mente. Estou pen-
sando em reativar a House of Liberte, quem sabe a amplie para o
varejo.
Franck olhou para mim como se eu tivesse declarado minha
inten����o de inaugurar uma fazenda de cobras.
��� Varejo? Esse �� um mundo completamente diferente de tudo
o que seu pai e eu sempre fizemos. A Cartier, Tiffany, Winston,
Bvlgari, todas elas est��o anos ��� s��culos ��� �� frente de seus com-
petidores. J�� se voc�� quiser se tornar um holder...
��� N��o pretendo ser um sight holder, n��o me agradam as res-
tri����es. ��� N��o expliquei, mas aquilo era muito parecido com um
neg��cio qualquer. Os diamantes podem ser excitantes, mas nego-
ciar, fazer tudo visando exclusivamente o lucro, n��o era para mim.
Eu queria construir alguma coisa, como fizera com a mina. Viver
como Leo, passar o dia com o telefone grudado na orelha com-
prando e vendendo me atra��a menos do que administrar a tal fa-
zenda de cobras.
��� Voc�� pode n��o gostar das restri����es de ser um sight holder
da De Beers, mas seria um bom caminho para entrar no com��rcio
de diamantes em grande estilo. Como propriet��rio de uma mina de
diamantes e possuidor de um dos maiores diamantes do mundo,
poderia facilmente ser convidado a juntar-se ao grupo.
Eu conhecia a rotina dos sight holders. Eles eram as ��nicas pes-
soas com permiss��o de assistir os dez sights ��� vendas ��� de dia-
mantes promovidos pela De Beers. Uma grande percentagem dos
diamantes do mundo inteiro passava por essas dez vendas que a
De Beers promovia anualmente em Londres. Dali, a maioria deles
vinha para Antu��rpia para ser lapidada, se bem que Israel e Nova
York tamb��m lapidavam um bocado. A ��ndia lapidava mais dia-
mantes do que qualquer outro pa��s, chegando a oitenta, noventa
350
por cento, mas a maior parte de sua produ����o consistia em pedras
pequenas e areia.
Havia um n��mero limitado de sight holders, cerca de cento e
quarenta ou cento e cinq��enta. Com milhares de mercadores de
diamantes no mundo inteiro, ser um dos poucos privilegiados que
compravam da De Beers era sinal de prest��gio e, sem d��vida, lu-
crativo. Leo daria o test��culo esquerdo para ser um sight holder, mas aquilo n��o era para mim. Parecia mon��tono e enfadonho demais.
E havia as regras que precisavam ser seguidas. A disciplina era r��-
gida como no ex��rcito ��� e eu n��o era dado a fazer contin��ncia.
Al��m do mais, eu tinha a mesma atitude n��o-conformista de meu
pai quanto �� De Beers e sua restri����o da liberdade no mundo do
mercado de diamantes. Eu queria criar meu pr��prio imp��rio e n��o
estar subordinado a ningu��m.
��� N��o serei um sight holder e nem comprarei exclusivamen-
te do pessoal da De Beers. O que eu quero �� competir com eles.
��� Meu Deus ��� Cross assobiou ���, voc�� est�� completamen-
te louco.
Franck ficou cor de sangue.
��� Voc�� est�� falando de uma empresa que possui ou controla
a maior parte dos diamantes do mundo. Competir com eles, como
voc�� colocou, seria o equivalente a uma bicicleta apostar corrida
com uma Ferrari.
��� Para voc��, eles s��o os reis do peda��o, mas eu os vejo como
tolos e vulner��veis. Eles nem sequer podem atuar nos Estados
Unidos por serem um monop��lio.
��� Ainda assim, controlam a maior parte do com��rcio de dia-
mantes no pa��s. Mesmo sem vender nenhum diamante, a maioria
das pedras que entram e s��o vendidas nos Estados Unidos �� pro-
veniente do estoque controlado pela De Beers.
��� Como planeja fazer isso? ��� perguntou Cross.
��� Ainda n��o tenho certeza, mas, se pretendo assumir uma
boa parte do neg��cio de diamantes, sei que n��o devo ir atr��s dos
pequenos, nem seguir a mesma linha e receber ordens da De Beers.
A De Beers �� a dona do neg��cio ��� e de muitos bilh��es. Quero
um quinh��o disso.
351
��� Como a De Beers consegue controlar a ind��stria de dia-
mantes no mundo inteiro? ��� perguntou Cross a Franck. ��� Ou-
tros grupos tamb��m exploram diamantes.
��� Resumindo, eles controlam o pre��o universal atrav��s do
controle da produ����o e da distribui����o.
��� Eles n��o controlam a mina de Win. N��s vendemos os dia-
mantes sem pedir permiss��o �� De Beers.
��� �� verdade ��� disse Franck ���, voc��s podem comprar e
vender diamantes em todo lugar do mundo sem a permiss��o da
De Beers, mas o fazem literalmente nos termos deles.
��� Como assim? ��� perguntou Cross.
��� O diamante �� uma mercadoria, especialmente quando
vendida no atacado. Como o milho, o trigo ou o petr��leo, os ataca-
distas pagam o mesmo pre��o pela mesma quantidade e qualidade
de diamantes. Eles s��o extra��dos, graduados e apre��ados igualmente
em todos os lugares do mundo, exceto quando algu��m aparece com
um diamante ��nico, o que acontece talvez a cada cem anos. O
diamante n��o �� como as roupas que as mulheres usam; seu pre��o
n��o se baseia em quem o vende ou na beleza do encaixe, mas no
seu tamanho e qualidade.
��� No atacado, como n��o se pode distinguir um do outro, um
diamante com um tamanho e pureza espec��ficos �� vendido pelo
mesmo pre��o que milh��es de outros da mesma qualidade. Os dia-
mantes oriundos da ��frica s��o vendidos pelo mesmo pre��o que
aqueles extra��dos na R��ssia, no Canad�� ou na lua. Por serem mer-
cadorias, como o toucinho de porco e o algod��o, seus pre��os est��o
sujeitos ��s oscila����es da oferta e da procura. Quando acontece de
haver uma abund��ncia, o valor de todos os diamantes de mesmo
tamanho e qualidade cai. Quando a oferta cai, todos aumentam
de valor. Voc�� n��o pode evitar os caprichos do mercado porque os
seus diamantes s��o melhores do que os de outro.
��� E �� assim que a De Beers controla o mercado ��� disse eu. ���
Eles podem manipular a oferta e a procura. ��� Meu coment��rio
foi dirigido a Cross.
352
��� Exatamente ��� disse Franck. ��� Vamos supor que a House
of Libert�� quisesse competir com eles. A De Beers tem muitos
recursos, �� uma companhia multibilion��ria. Ela poder�� reduzir a
oferta de diamantes no mercado aumentando o pre��o por quilate,
e a House of Liberte precisar�� pagar mais pelos seus diamantes.
��� E uma vez que eu pague esse pre��o alto ��� disse eu ���, ela
poder�� encher o mercado de pedras, causando uma queda verti-
ginosa no pre��o por quilate e me deixando com a batata quente
nas m��os.
Cross sacudiu a cabe��a.
��� Eles t��m tanto controle assim?
��� T��m, sim ��� respondeu Franck. ��� N��o que o usem dessa
forma. Estamos falando de uma situa����o hipot��tica. Digamos que
a House of Liberte os desafie para controlar uma parte do merca-
do de varejo mundial. Manipular a oferta e a procura seria uma
arma poderosa no arsenal da De Beers durante a disputa.
Cross cutucou-me.
��� Talvez seja melhor voc�� monopolizar o mercado de tou-
cinhos de porco, mano. Pelo menos, poder�� com��-los se n��o con-
seguir vender.
Dei de ombros.
��� Quem sabe? Talvez eu v�� para a R��ssia. Eles t��m minas de
diamantes que n��o s��o controladas pela De Beers.
Franck sacudiu a cabe��a.
��� Meu amigo, se voc�� achou que morar em Angola era peri-
goso, na R��ssia �� muito mais. Angola �� um pa��s novo, seu povo ��
simples, n��o sabe lidar com os recursos naturais e as responsabili-
dades governamentais que foram obrigados a assumir da noite para
o dia. A R��ssia �� um pa��s velho que, ao longo dos s��culos, foi trans-
formando cobi��a e morte em arte.
353
60
No dia seguinte, Franck e eu caminhamos pela Hoveniersstraat,
no centro de Antu��rpia. Assim como a bolsa de Nova York, a de
Antu��rpia n��o tinha nada de excepcional. Ficava entre tr��s ou
quatro ruas estreitas, sem nenhum glamour ou brilho, nada que
pudesse distinguir a ��rea das demais no centro da cidade.
��� �� dif��cil imaginar que a maior parte dos diamantes do
mundo inteiro, talvez nove entre dez, tenha passado por Antu��r-
pia ��� comentou ele.
��� Sim, mas a lapida����o de diamantes tem mais de quinhen-
tos anos, vem de antes do descobrimento ��� e da pilhagem ��� da
Am��rica. Nova York, Hong Kong, Taiwan, Tail��ndia, o Ramat Gan,
a leste de Tel Aviv, a vasta produ����o de Mumbai e Surat, na ��n-
dia, todos t��m uma fatia do mercado, mas Antu��rpia continua
sendo o maior centro de comercializa����o de diamantes.
Est��vamos a caminho de uma reuni��o com o corretor que ti-
nha um comprador para a Dama Azul. Achei que o corretor seria
um judeu ortodoxo como Franck, j�� que eles controlavam a in-
d��stria em Antu��rpia. Mas eu estava errado.
��� Vai conhecer o pr��ncipe dos sinjorens ��� disse Franck. ���
Sinjoren �� uma express��o que vem do tempo em que Antu��rpia
fazia parte do vasto imp��rio espanhol. A aristocracia da cidade
passou a se chamar sinjorens, palavra derivada da espanhola
se��ores. Os homens das antigas fam��lias abastadas da cidade ainda hoje s��o chamados de sinjorens. Maurice Verhaeven tem o san-354
gue mais antigo e a carteira mais polpuda. Surpreendentemente,
a maior parte de sua riqueza foi constru��da por ele mesmo, que
herdou pouco al��m da linhagem e do nariz nobre.
��� Voc�� disse que n��o poderia usar um judeu para intermediar
a venda da mina. Devo concluir que o comprador �� ��rabe.
��� Sim, sim, voc�� deduziu certo. ��� Ele me olhou de esgue-
lha. ��� Uma observa����o astuta. Espalhei a not��cia, na bolsa, que
voc�� estava interessado em vender, mas que n��o apareceu nenhum
interessado devido �� situa����o de Angola. Tamb��m dei um jeito de
Verhaeven saber, pois ele tem contatos na Europa Oriental, R��ssia
e Oriente M��dio. N��o sei quem �� o comprador, mas desconfio que
seja russo ou ��rabe. S��o os ��nicos com dinheiro suficiente para
comprar uma mina de diamantes. Verhaeven j�� intermediou mui-
tas transa����es de diamantes entre ��rabes e judeus, portanto n��o
me surpreenderei se for um ��rabe.
A reuni��o aconteceu em um escrit��rio no Beus voor Dia-
manthandel, o clube do diamante, conhecido como "o cassino".
Entramos no pr��dio e, antes de continuarmos, Franck me pu-
xou de lado.
��� Tenho um conselho para voc�� a respeito de Verhaeven:
seja cauteloso. Recordo-me de uma express��o usada no seu pa��s
quando se lida com um negociante esperto, algo como ser preciso
contar os dedos depois do aperto de m��os. Isso �� verdadeiro com
rela����o a Verhaeven. Mas em Antu��rpia voc�� deve contar as m��os.
Ele riu e explicou enquanto and��vamos.
��� Antu��rpia tem um gigante legend��rio chamado Antigon.
H�� muito tempo, Antigon guardava nosso rio Scheldt e por isso
exigia dos barcos que subiam ou desciam o rio o pagamento de
uma taxa. Se o capit��o n��o pagasse a taxa, Antigon decepava uma
de suas m��os. Foi assim que a cidade passou a ser chamada "Antu��r-
pia". Significa algo como tirar ou jogar uma m��o.
Ocorreu-me que o gigante Antigon se daria melhor se tivesse
feito as malas e ido para Angola ou Serra Leoa. Savimbi e sua gen-
te poderiam dar a ele umas aulas sobre coleta de taxas.
355
VERHAEVEN tinha, de fato, um nariz nobre. Do alto do seu nariz
olhava para o resto do mundo com ar de superioridade. E desem-
penhava o papel de pr��ncipe dos Sinjorens com um talento natu-
ral. Estava usando um terno de seda cinza, camisa azul-clara com
colarinho branco, gravata amarela e sapato marrom-escuro de bico
levantado e muito confort��vel. Parecia ter sa��do de um set de filmagem da d��cada de 1940. Seu aperto de m��o era caloroso, os
olhos penetrantes, o franc��s perfeito.
Gostei dele, de imediato. Mas foi f��cil entender o porqu�� do
conselho de Franck. Havia duas maneiras de vender neste mun-
do: a venda tranq��ila e a venda complicada. Verhaeven era, sem
d��vida, da escola da venda tranq��ila. Logo o identifiquei porque
meu pr��prio pai era da mesma escola.
��� Tenho um comprador ��� disse ele. ��� A um pre��o que,
segundo Franck, o senhor aceitaria.
��� Avisei a Franck que eu n��o fazia quest��o de grandes lu-
cros. Preciso de dinheiro para outra coisa. Quais s��o os termos? ���
perguntei.
��� Dinheiro vivo.
Sorri.
��� Com esses termos eu nunca discuto. Quem �� o comprador?
Ele tossiu discretamente no len��o.
��� Naturalmente, os termos incluem a sua comiss��o e a de
Franck ��� disse eu.
��� Obrigado. O comprador �� ��rabe, saudita. J�� ouviu falar da
fam��lia bin Laden?
Sacudi a cabe��a.
��� N��o.
��� �� uma fam��lia muito importante na Ar��bia Saudita, o que
significa que tem v��nculos com a fam��lia real. Pelo que sei, esse
homem, hoje financeiramente bem-sucedido, era um mercador de
camelos ignorante que construiu uma rua dif��cil para um rei e trans-
tormou-se no maior construtor do mundo do petr��leo. Um de seus
muitos filhos, Osama, �� o comprador. Ele sabe muito bem o que
est�� fazendo, todos conhecem a situa����o em Angola, especialmente
356
ele que passou algum tempo no Afeganist��o lutando contra os
russos.
Eu n��o sabia por que um ��rabe rico se interessaria por uma
mina de diamantes em uma zona de guerra, mas isso n��o importava.
��� Em quanto tempo poderemos fechar a venda?
��� Bem r��pido. As provid��ncias para a transfer��ncia do di-
nheiro da compra j�� est��o em andamento. Assim como toda a
documenta����o legal. Pode haver um problema. Se o governo an-
golano precisar aprovar a venda...
Sacudi a cabe��a.
��� Isso n��o �� problema, tudo em Angola tem um pre��o e pode
ser conseguido rapidamente se o pagamento sofrer um pequeno
acr��scimo. Pensei nisso antes de sair de Luanda. A autoriza����o para
vender a mina est�� no hotel. Eu a enviarei ao senhor. S�� falta
preencher o nome do comprador.
��� Estou certo de que uma empresa dever�� assumir a com-
pra ��� disse Verhaeven. ��� Procurarei saber para passar a infor-
ma����o ao senhor.
Repassamos os detalhes, sendo o mais importante a transfe-
r��ncia do dinheiro. Tudo corria admiravelmente bem, consideran-
do que eu estava vendendo um problema em uma zona de guerra.
Verhaeven bebeu seu vinho e secou a boca delicadamente com
o guardanapo.
��� Quanto ao seu diamante cor de rubi...
��� N��o est�� �� venda.
��� Eu poderia conseguir um pre��o excelente.
��� Decidi ficar com ele. Eu o verei na recep����o.
NO CAMINHO de volta para o hotel, disse ao Franck:
��� Eu soube que Antu��rpia �� famosa por um pintor, um ca-
marada chamado Rubens.
Ele sorriu.
��� Sim, existiu um "camarada" flamengo, Rubens, que pintava.
��� Compre um quadro dele para mim.
Ele parou e me olhou fixo.
357
��� Assim, sem mais nem menos, comprar um quadro para
voc��? Tem em mente algum em especial? Alguma fase espec��fica
do pintor...
��� Apenas me compre um quadro em que apare��a o nome
dele.
��� Entendo. Alguma coisa em que o nome de Rubens apare-
��a ��� murmurou ele. ��� Sabe quanto custaria ter alguma coisa em
que apare��a este nome?
��� O pre��o n��o me importa. �� neg��cio. Voltarei para os Estados
Unidos com um diamante de primeira. Uma pintura de primeira fica-
ria bem ao lado dele. Os americanos s��o esnobes, principalmente no
que se refere �� coisa velha europ��ia.
Nos despedimos no hotel, e Franck ainda murmurava consigo
mesmo.
358
61
A entrada para carros, junto ao sal��o do hotel onde acontecia a
recep����o para o diamante de fogo, mais parecia o festival de Cannes
ou a festa do Oscar. As limusines encostavam, e delas sa��am mu-
lheres luxuosamente vestidas, algumas com mais j��ias do que rou-
pa. J�� se havia formado uma multid��o no local, e as c��meras
trabalhavam loucamente.
No interior, Franck parecia ter usado um pouco do ecstasy que
Amsterd��, cidade vizinha, era famosa por produzir.
��� �� o acontecimento social do ano ��� disse, esfregando as
m��os. ��� Ali��s, do s��culo.
Ele me apresentou a um artista flamengo, um amigo de sua
filha que organizara a recep����o e a temperara com personalidades
do cinema europeu.
��� Hugo trabalhou em filmes holandeses e alem��es como di-
retor de arte ��� informou Franck. ��� Ele tamb��m �� designer de
interiores. Faz um trabalho sensacional. Voc�� disse que queria um
ar hollywoodiano, e Hugo �� o mais pr��ximo disto que podemos
conseguir em Antu��rpia.
Franck mal controlou o riso quando nos apresentou.
��� O Sr. Liberte me pediu hoje que lhe comprasse um Rubens.
Como se fosse comprar um novo modelo de carro.
Fiquei com Hugo em frente �� pe��a que ele desenhara para
expor o diamante de fogo. Era c��ncava e cheia de cristais trans-
parentes que brilhavam como se fossem "gelos de diamantes".
359
��� S�� vi o diamante na foto que voc�� mandou para Asher.
Ent��o, criei uma pe��a de centro que pudesse expor bem suas qua-
lidades.
��� Gostei do design.
��� Quando o diamante vermelho for colocado, ele sobressai-
r�� de uma forma surpreendente. Embaixo ��� ele apontou para o
fundo da pe��a ���, oculto na coluna, h�� um poderoso raio de luz
que acenderemos. Com isso, a luz dos cristais e do diamante ser��
enviada para a bola refletora acima que, por sua vez, espalhar��
luminosidade pela sala.
O Cora����o do Mundo era pequeno, mais ou menos do tama-
nho de uma noz. Parecia dif��cil apreciar algo t��o mi��do, mesmo
sendo um diamante. Gostei do design de Hugo que espalhava seu
brilho vermelho por toda a sala, causando um forte impacto nas
pessoas ali reunidas.
��� Cuidado ��� sussurrou Hugo ���, as duas mulheres que es-
t��o vindo nesta dire����o s��o aspirantes a atrizes. Leram nos tabl��ides
que voc�� namorou Katarina Benes.
Cross aproximou-se e dirigiu-lhes um sorriso libidinoso.
��� Ser propriet��rio de um diamante �� uma garantia para des-
pertar a sexualidade. Mesmo na mais fria das mulheres.
Ouvi meu nome e me virei. Uma surpresa.
Leo, meu detest��vel, desprez��vel, sacana e perverso meio-ir-
m��o sorria para mim. Ele me deu um grande abra��o.
��� Win, n��o sabe como a fam��lia est�� emocionada com o seu
sucesso ��� disse, ao dar uns tapinhas no meu ombro.
��� Digo a todos na bourse de Nova York que o sucesso do meu
irm��o �� meu sucesso. Lembra de como papai chamava de bourse?
Mas ele era franc��s, n��o ��?
Meu irm��o? Esse desgra��ado estava me chamando de seu ir-
m��o em p��blico?
Pap��? Esse sem-vergonha estava chamando o meu pai de "papai"?
A fam��lia est�� orgulhosa de mim? Tive vontade de perguntar
se era a mesma fam��lia que esquecera o meu nome ao descobrir
que eu estava arruinado.
360
Era a primeira vez que eu via ou ouvia o canalha desde quan-
do deixei Nova York com destino a Lisboa e Angola.
��� O que faz por aqui, Leo?
��� Vim visitar o meu dinheiro na Su����a ��� disse ele piscando
para mim. Reconheci a piscadela. Era a mesma que ele e Bernie
usavam quando mencionavam contas banc��rias secretas. Leo fa-
zia algumas viagens �� Su����a, a cada ano, levando dinheiro vivo
para guardar em seguran��a e fugir dos impostos. Os negociantes
de diamantes e de narc��ticos tinham uma afinidade: transa����es
em dinheiro vivo.
��� Na verdade, transferi a conta para Luxemburgo, pois o
lucro �� melhor. E voc�� sabe, a IRS, a Receita Federal, est�� sempre
bisbilhotando os su����os, principalmente com os esc��ndalos do ouro
dos nazistas. Eu s�� soube que voc�� estava em Antu��rpia esta tar-
de, quando falei com a secret��ria de Franck.
Depois de apresent��-lo a Cross, perguntei:
��� Veio a Antu��rpia fazer alguma compra?
��� O transporte de sempre. Sabe qual. ��� Ele sorriu.
Ah, sim, o velho plano de transportar no salto oco do sapato.
Lembrei-me que era assim que Leo passava pela alf��ndega com
suas compras, ele as enfiava em uma cavidade nos saltos do sapa-
to. O camarada burlava a alf��ndega e o IRS com muita efici��ncia.
��� Trouxemos da mina uma carga de pedras brutas, sem ja��a ���
contei-lhe. ��� S��o todas De sem nenhuma inclus��o, de tr��s quila-
tes ou mais.
��� Ent��o precisamos conversar...
��� Sem conversa e sem barganha. ��� Passei o bra��o em volta
dos seus ombros e apertei. ��� Cara, voc�� �� da fam��lia. Quero que
fique com todas as pedras que couberem nos seus sapatos. Pedirei
a Franck que d�� a voc�� por metade do pre��o de mercado.
Leo quase desfaleceu nos meus bra��os. Levei mais cinco mi-
nutos para desgrud��-lo de mim.
Quando se afastou, Cross me olhou esquisito.
��� O que aconteceu? N��o �� esse o meio-irm��o que voc�� sem-
pre odiou?
361
��� Chegou a hora de foder com ele.
��� Homem, pode foder comigo assim, quando quiser. Voc��
vendeu barato demais, esse cara vai fazer muito dinheiro com es-
ses diamantes.
��� Ele vai precisar de dinheiro ��� disse eu implac��vel.
Com a chegada do carro blindado, o burburinho da sala ces-
sou. Um representante da empresa do carro blindado entrou com
a pasta. Tive que conter o riso ao ver os guardas armados como se
estivessem sendo atacados.
Dirigi-me a uma sala cont��gua com a pasta na m��o, e o repre-
sentante me acompanhou. Chegando l��, pedi que me deixasse
sozinho. Quando ele se foi, abri a pasta e peguei a pochete.
Estava vazia.
Peguei outra pochete em um bolso secreto do meu palet�� e
retirei o Cora����o do Mundo. Nem Cross soube da minha estrat��gia.
Imaginei que, se a aten����o de todos se voltasse para os guar-
das e o carro blindado, ningu��m desconfiaria que eles traziam uma
pasta vazia, enquanto, na verdade, o diamante estava comigo. N��o
fui eu quem inventou esta t��tica. No mundo inteiro, transporta-
vam-se diamantes em pacotes que jamais despertariam curiosidade.
HUGO ERA UM G��NIO. Quando o Cora����o do Mundo foi coloca-
do na pe��a que criara e ele acendeu o raio de luz, parecia o centro
de um vulc��o.
Justamente quando eu ouvia as exclama����es dos presentes, o
gar��om me entregou um telefone celular.
��� Sinto muito, senhor, mas a pessoa disse que era urgente.
��� Como vai, Win? Senti sua falta.
Era uma cobra no para��so.
��� Voc�� s�� sentiu falta de uma bala no meu cora����o, Simone.
Espero que tenha me ligado para dizer que Jo��o morreu e foi para
o inferno.
��� Somos a sua fam��lia, Win. Jo��o e seu pai eram como ir-
m��os, voc�� n��o deveria falar assim ��� disse Simone.
��� Voc�� �� uma puta assassina, traidora e ladra. O que quer?
362
��� Sabe o que quero. Est�� expondo o diamante de fogo de
Jo��o e n��o fomos convidados. Teremos que assistir �� recep����o pela
CNN.
��� N��o vamos fingir, Simone. Jo��o roubou o diamante de meu
pai. Mesmo se eu pudesse esquecer o passado e dar alguns d��lares
a Jo��o para aliviar a dor da perda, depois que voc�� me sacaneou
em Angola, n��o pretendo fazer nada por voc��s.
��� Voc�� n��o compreende, Win. N��o �� pelo dinheiro. Jo��o
gosta mais desse diamante do que qualquer outra coisa, inclusive
eu. Agora estou falando de sangue. Do seu sangue.
363
62
J F K , NOVA YORK
Leo voou de primeira classe. N��o tinha id��ia de quanto Win de-
sembolsara pelo upgrade do bilhete que sempre usava, o mais ba-
rato que existia, mas lhe diria que n��o repetisse isso. Afinal, era
um desperd��cio; preferia receber a quantia correspondente em
dinheiro. Ouvira falar que um dos maiores negociantes na bolsa
de diamantes de Nova York sempre voava na classe econ��mica e
doava a institui����es de caridade a diferen��a entre o pre��o do seu
bilhete e o da primeira classe.
Leo n��o entendia esse tipo de mentalidade.
Mas, j�� que estava na primeira classe, aproveitou o champa-
nhe e devorou os hors-d'oeuvres. A comida foi servida em pratos
de lou��a, em vez de vir embrulhada em pl��stico como na classe
econ��mica, e os talheres eram de prata.
Muito chique, pensou.
Leo guardou uma faca, um garfo e uma colher na sua valise,
al��m de uma garrafa de vinho e uma de champanhe. Ali, ele tra-
zia os extratos da sua conta na Su����a e da conta nova em Lu-
xemburgo. Nos ��ltimos cinco anos, conseguira economizar mais
de cinco milh��es de impostos com suas idas �� Europa para fazer
neg��cios. Ele vendia a mercadoria em Nova York, e os comprado-
res passavam o dinheiro de suas contas no exterior para a dele.
364
Tanto ele quanto os compradores burlavam a lei, e todos ficavam
felizes. E, como o IRS n��o sabia, isso n��o trazia problemas.
Os saltos de seus sapatos estavam repletos dos diamantes que
Win lhe vendera pela metade do pre��o de mercado, literalmente
dera de presente. Leo sempre viu Win como um homem desprez��-
vel e arrogante, mas como para ele o valor das pessoas era medido
pelo dinheiro, Win agora era sua fam��lia.
Ele enfiou mais uma garrafa de champanhe na valise.
A vida era boa.
Ao chegar, Leo entregou sua declara����o alfandeg��ria no con-
trole de passaporte.
��� Nada a declarar hoje, senhor?
��� N��o, estou voltando de um casamento em Paris.
Era assim que Leo sempre viajava, sa��a com destino a Paris e
de l�� retornava, em vez de Antu��rpia ou Su����a. Quando o pessoal da
alf��ndega via a capital do diamante ou o nome da capital mundial
do dinheiro nas declara����es, eles revistavam a pessoa inteira, in-
clusive todas as cavidades do corpo. Mas ningu��m ia a Paris a
neg��cio.
Estava atravessando a ��rea da alf��ndega em dire����o ao p��tio
aberto, quando foi parado por dois homens.
��� Agente Wilson, da Alf��ndega ��� disse um deles mostran-
do um distintivo. ��� Esse �� o Agente Bernstein da IRS.
��� Mas... o que desejam?
��� Come��aremos pela sua valise. E os seus sapatos. ��� Wil-
son abriu um amplo sorriso. ��� Depois disso, a coisa vai ficar inte-
ressante se for preciso apresentar a proced��ncia.
Leo engoliu em seco.
��� Como... Como voc��s...
��� Um passarinho nos contou.
365
63
P A R I S
No aeroporto de Orly, em Paris, armei o mesmo show que em
Antu��rpia. Um carro blindado veio pegar a pasta vazia enquanto
as c��meras filmavam. E eu levei o diamante no bolso do palet��.
A fama do Cora����o do Mundo nos acompanhou desde Antu��r-
pia, e a nossa chegada atraiu muito mais rep��rteres. Um rela����es-
p��blicas contratado por Franck nos encontrou dentro do avi��o
trazendo o resumo do notici��rio e uma fita de v��deo que mostrava
o diamante na espetacular montagem da recep����o.
Cross e eu nos despedimos no aeroporto. Ele tomou um t��xi
para o Charles de Gaulle e, de l��, pegaria um v��o de volta para os
Estados Unidos.
��� N��o vou para Indiana, n��o h�� nada para fazer l��. Minha
irm�� est�� morando em L. A. e diz que nunca �� frio demais e quase
n��o chove. Vou acampar na praia com uma cerveja e uma garota.
Ali��s, v��rias garotas.
Desejei-lhe boa sorte e pedi que mantivesse contato.
O motorista de uma limusine esperava por mim quando sa�� da
alf��ndega.
��� Bonjour, monsieur ��� disse o motorista.
��� Minha prima deveria estar aqui ��� disse eu.
366
��� Lamento, monsieur, houve uma confus��o, e o meu super-
visor n��o me avisou para peg��-la no caminho.
Havia algo estranho no palet�� do motorista ��� estava aperta-
do demais nos bra��os musculosos, nos ombros largos e na barriga.
Ele parecia ser do sul da Europa, com os olhos pretos e a pele es-
cura, e falava um franc��s sofr��vel com sotaque carregado. N��o
consegui identificar sua origem, devia ser de algum lugar da Euro-
pa, mas tive sorte de entender seu franc��s ��� a maior parte das
vezes que vim a Paris, os motoristas de t��xi eram do sudeste da
��sia e, quando eu tentava me comunicar, sempre perdia alguma
coisa na tradu����o.
Entrei na cabine de passageiros. Um balde com champanhe
esperava por mim. Peguei um jornal em uma pilha que havia na
cabine e passei os olhos rapidamente para ver se encontrava algu-
ma not��cia sobre o diamante. O meu franc��s era bastante bom,
muito melhor que o do motorista. Durante a juventude, eu costu-
mava passar f��rias com meus parentes parisienses, gente que eu
chamava de "primos", embora o v��nculo familiar fosse indefinido.
A fam��lia atuava no ramo de j��ias, e eu pedi que me apresen-
tassem uma lista de convidados para a recep����o de gala que pla-
nejava oferecer. N��o via Yvonne, a prima que me receberia no
aeroporto, h�� muitos anos. Lembrava-me dela como uma mo��a
s��ria que trabalhava duro no neg��cio da fam��lia no bairro de St.
Cloud. Recentemente, quando o pai se aposentou Yvonne assu-
mira a dire����o da firma.
Peguei a garrafa de champanhe e comecei a retirar o lacre,
quando, de repente, a limusine parou junto ao meio-fio onde ha-
via um homem de p��. A porta se abriu e o homem entrou.
��� Que diabos...
Ele tinha uma arma e n��o estava de bom-humor.
��� Cale essa boca.
Falou em portugu��s. Logo reconheci a origem do sotaque que
havia por tr��s do franc��s do motorista.
��� Jo��o mandou lembran��as.
��� O diamante n��o est�� comigo.
367
Eu estava morrendo de medo. A m��o do homem que segura-
va a arma tremia muito, mas n��o era medo. Seus olhos anuviados
e os m��sculos faciais tensos indicavam que devia ter fumado mui-
to crack.
Ele golpeou meu rosto com a arma.
��� Preste aten����o, amigo, e, talvez, possa sair vivo. Vamos a
algum lugar onde haja um telefone. Voc�� vai dar as ordens neces-
s��rias para que o diamante chegue ��s nossas m��os. Se cometer
algum engano no telefonema, cortarei fora o seu nariz. Se a pes-
soa para quem voc�� ligar cometer um erro, cortarei fora um peda-
��o seu por cada hora de atraso, come��ando pelos seus colh��es.
Entendeu?
Sim, eu entendi. Meu brilhante plano de usar o carro blinda-
do para desviar a aten����o acabou me deixando vulner��vel. Eu
estaria dentro dele com o diamante no bolso? Talvez, esses merdas
descobrissem que o diamante estava comigo, ou eu mesmo lhes
desse quando amea��assem cortar o meu nariz, mas depois disso,
com toda a certeza, eles me matariam.
��� Pare de pensar.
Eu n��o pensava, estava cheio de adrenalina no sangue de tanto
p��nico. O canalha levantou a arma e bateu com ela no meu joe-
lho. Gemi e inclinei o corpo para a frente de tanta dor. Ao voltar
�� posi����o normal, trouxe comigo a garrafa de champanhe e lancei
na sua dire����o. Ela o atingiu no rosto, bem no nariz, e o sangue
espirrou em mim e no interior do carro.
A cabe��a do homem ricocheteou, e o pouco brilho nos seus
olhos sumiu de vez.
O motorista pisou no freio e girou o corpo com uma arma na
m��o, quando me virei para ele. Abaixei a cabe��a. Consegui alcan-
��ar a porta com a m��o e puxei a ma��aneta; depois golpeei a porta
com a cabe��a e o ombro e sa�� voando. Aterrissei de barriga e coto-
velo no asfalto, e, quando meu corpo quicou no ch��o, rolei sem
conseguir comandar bra��os e pernas.
Quando parei de rolar, continuei deitado, tonto, a cabe��a gi-
rando, os ouvidos zunindo. Levantei o corpo e fiquei de joelhos
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N��o sentia nenhuma dor; meu corpo estava entorpecido pelo
choque. O som de pneus freando me encheu de adrenalina ��� Vou
ser atropelado.
Havia muitos carros na auto-estrada, mas eu estava em um
viaduto, no acostamento da estrada ��� nenhum carro vinha na
minha dire����o. De repente, um motor mudou a rota����o e quei-
mou borracha atr��s de mim. Virei-me para ver. Era a limusine ���
o filho-da-puta estava voltando para me pegar. Levantei e dei um
mergulho para cima do muro, desafiando uma queda de uns dez
metros pela a auto-estrada abaixo. Sem ter para onde ir, segurei-
me com as duas m��os quando a limusine deu r�� raspando o lado
do muro. Quando ela se aproximou de mim, um rosto ensang��en-
tado com o nariz achatado apareceu na janela.
O homem tentava abrir a porta, mas o carro estava muito perto
do muro. Gritando para mim, ele levantou a arma e come��ou a
atirar. Eu abaixei a cabe��a, ainda me segurando ao muro quando
a janela explodiu. Minha cabe��a ainda girava, e os meus ouvidos
estavam tomados por uma sirene indistinta.
Quando voltei a olhar, o atirador afastou o vidro quebrado e
colocou a arma para fora apontada para mim. De repente a limusine
se afastou da parede, e o atirador desapareceu de vista. Ela se meteu
no meio do tr��nsito e depois deu uma guinada violenta para evi-
tar uma colis��o. Estava a cerca de 15 metros de mim quando ba-
teu novamente no muro com o p��ra-lama dianteiro do lado do
passageiro e depois deu um salto e caiu na auto-estrada.
Demorei alguns segundos para entender que o que eu ouvira
era de fato uma sirene. O motorista da limusine tamb��m deve ter
ouvido.
Mas n��o era um carro de pol��cia. Era uma ambul��ncia que
passava por mim em alta velocidade. Vi o param��dico no banco
dianteiro me olhar espantado.
Eu continuava agarrado ao muro.
369
64
��� Muito, muito esperto���disse minha prima francesa, Yvonne. ���
�� exatamente assim que devemos agir em caso de seq��estro, agir
imediatamente. ��� Ela falava mais r��pido que uma bala voando, e
o fato de eu ter conseguido acompanh��-la foi um teste para o meu
franc��s.
��� Fiz um curso anti-seq��estro ��� contou ela. ��� Fui obriga-
da a fazer quando viajei ao Jap��o com diamantes costurados na
bainha do casaco. Era a ��nica maneira de conseguir que a compa-
nhia me fizesse um seguro contra seq��estro para a viagem. Du-
rante o treinamento, eles ensinaram que a melhor hora, e talvez a
��nica chance de fugir, �� nos primeiros minutos do seq��estro, quan-
do os seq��estradores acabaram de pegar voc��. Ainda est��o em um
ambiente desconhecido que n��o podem controlar, preocupados
em ver se h�� algum policial por perto ou se h�� testemunhas. Uma
vez que chegam ao esconderijo, estamos perdidos. L�� �� o territ��-
rio deles, um ambiente seguro e controlado, sem testemunhas.
��� N��o creio que eu mere��a cr��dito por ter sido mais esperto
que eles. Foi pura sorte ter uma garrafa de champanhe �� m��o quan-
do entrei em p��nico e reagi ao golpe no joelho. N��o fosse pelo
champanhe, um Taitinger Blanc de Blanc, mil, novencentos...
Ela caiu na gargalhada. Yvonne era a prima que deveria estar
na limusine que foi me buscar. Felizmente para n��s dois, os ladr��es
a deixaram fora de tudo. O autom��vel foi encontrado abandona-
do perto de uma rampa de sa��da da auto-estrada. O verdadeiro
370
motorista estava amarrado e amorda��ado, mas, fora isso, s��o e
salvo, na mala da limusine.
Terminei com a pol��cia no final da tarde. Contei tudo o que
observei ou ouvi durante a tentativa de seq��estro ��� exceto a
men����o ao nome de Jo��o. Nada lhe aconteceria se eu desse seu
nome, pois, evidentemente, ele n��o sa��ra da cadeira de rodas para
dirigir o crime e teria algum ��libi perfeito. Eu quis evitar as per-
guntas sobre as minhas liga����es com Jo��o, dos diamantes de san-
gue ao diamante de fogo.
Contei que comprei o Cora����o do Mundo de um misterioso
errante que me abordou uma noite quando eu voltava para a mina
Dama Azul ��� uma hist��ria que n��o tinha nenhuma verdade, mas
ningu��m podia afirmar que era mentira. E ningu��m iria a Angola
para descobrir.
Yvonne pegou-me na delegacia de pol��cia e, depois, me levou
para comer e beber. Eu precisava de uns tragos.
��� Pelo menos, houve uma conseq����ncia positiva ��� comen-
tei. ��� A publicidade gerada pela tentativa de roubo n��o far�� mal
�� pedra.
��� Voc�� encenou tudo com esse objetivo?
Esfreguei meu joelho dolorido.
��� Se tivesse feito isso, n��o teria deixado o meu joelho ser
golpeado. Conte-me sobre Rona. J�� li que ela �� heterossexual, l��s-
bica, ninfoman��aca, hermafrodita, bi, que fez uma opera����o de
mudan��a de sexo e o nome dela era Ron.
Est��vamos a caminho de um desfile de moda. Rona, sem sobre-
nome, era uma das melhores designers de moda no mundo inteiro.
��� �� prov��vel que as hist��rias sobre seu sexo e suas op����es
sexuais sejam verdadeiras ��� todas elas. Rona diz que suas prefe-
r��ncias sexuais e seus desejos mudam com as fases da lua. Ou �� o
signo astrol��gico que muda mensalmente? Seja o que for, Rona
come��ou com uma pl��stica de nariz e a ��ltima foi dos olhos.
��� Nariz e olhos?
��� Perfume pede um nariz, foi como ela come��ou. Trabalha-
va para Nicholas Romanov, o perfumista que se dizia descendente
371
dos tsares. Quando Romanov morreu, a esposa dele assumiu o
neg��cio e quis expulsar Rona, que terminou saindo. Foi um tre-
mendo erro porque era Rona quem tinha nariz para escolher os
perfumes. Criou, ent��o, sua pr��pria linha, e foi um sucesso. J�� fa-
mosa com seus perfumes resolveu entrar no ramo da moda e pro-
vou que levava jeito. Est�� nisso h�� muito pouco tempo, mas no
mundo da moda s�� se fala nas roupas dela. Voc�� j�� deve ter visto
alguns dos seus modelos que mal cobrem o corpo em algumas das
atrizes, seminuas, na entrega do Oscar do ano passado.
��� Eu estava enterrado na mina quando aconteceu o Oscar.
��� Dei uma olhada na caixa de gemas no banco traseiro. Yvonne
levava j��ias para o desfile de modas. "Alugue uma gema" era como chamava seu acordo com Rona. Ela alugava as j��ias para as modelos usarem no desfile e, em troca, recebia publicidade gratuita
para seu neg��cio.
��� Essas j��ias valem alguma coisa? ��� perguntei.
��� Nada ��� respondeu. ��� Eu n��o arriscaria pe��as de valor
nessas modelos. Poderiam escapar pela porta lateral, depois do
desfile, e pegar o pr��ximo avi��o para Barbados, ou qualquer que
seja o lugar onde elas costumam descansar entre um trabalho e
outro. N��o, tudo �� bonito e vistoso, mas a maioria �� c��pia dos
nossos melhores designs.
��� Cinq��enta centavos de perfume podem ser vendidos por
cinq��enta d��lares.
��� O qu��?
��� Eu estava pensando na conversa que tive com alguns co-
legas sobre entrar no neg��cio de diamantes. Quero criar uma nova
abordagem para esse velho neg��cio. Um perfume que custa cen-
tavos pode ser vendido por centavos ou por muitos d��lares, de-
pendendo da embalagem e da publicidade, mas o problema com
os diamantes �� que eles s��o uma mercadoria como toucinhos de
porco.
Yvonne chiou.
��� Toucinhos de porco?
��� Os toucinhos s��o todos iguais.
372
��� N��o para os porcos.
��� Para quem come bacon, eles s��o. Enfim, o exemplo que me
deram sobre os diamantes foi para mostrar que eles n��o s��o um
acess��rio de moda, pelo menos no n��vel do atacado, porque s��o
todos iguais. Mas perfume e roupa s��o diferentes. Um perfume de
cinq��enta centavos pode ser vendido por...
��� Quinhentos.
��� E uma pe��a de algod��o que custa um d��lar pode se trans-
formar em um vestido de cinq��enta ou cinco mil, dependendo se
a inten����o �� que ele seja usado para fazer compras no supermer-
cado ou para comparecer �� entrega do Oscar.
��� Entendo. Os diamantes est��o sujeitos ��s leis da oferta e da
procura, e a moda, n��o ��� disse Yvonne. ��� A moda cria a sua
pr��pria procura, mas um diamante �� um diamante, e pronto.
Exceto, claro, quando se trata de um flamejante vermelho-rubi
que ningu��m jamais viu.
"Voc�� est�� mal-acostumado. Com o Cora����o do Mundo, pode
sentir de perto o tipo de alta de pre��o que se v�� no mundo da moda.
A pedra vale cem ou mil vezes seu valor original em quilates por-
que �� ��nica. Mas um diamante como esse que excede em muito
seu valor em quilates por ser ��nico aparece uma vez em s��culos.
Voc�� quer descobrir um meio de levar outros diamantes a vale-
rem mais que seu pre��o real, e isso n��o acontecer��. J�� se tenta fazer
isso h�� muito tempo.
Cutuquei-a com o meu cotovelo.
��� Existe uma velha express��o sobre nunca se dizer nunca.
��� Win, quando voc�� aparecer com uma nova maneira de
vender diamantes, me conte. Tamb��m vou querer aproveitar.
373
65
Aos meus olhos, era imposs��vel precisar a idade e a prefer��ncia
sexual de Rona. Se a visse sem aquelas roupas, talvez eu pudesse
ter uma id��ia melhor de quem e o que ela era. Fomos para os ca-
marins, e Yvonne nos apresentou.
��� Ent��o voc�� �� o homem do diamante de fogo que luta com
ladr��es ��� disse Rona. ��� Vi pela televis��o. Precisa traz��-lo para a
minha festa, depois do desfile. Foi uma tolice lutar com os ladr��es.
Era melhor deixar que eles levassem a pedra e, depois, receber o
seguro. Traga o diamante esta noite, e eu o roubarei de voc��.
Rona falava duas vezes mais r��pido que Yvonne, e seu franc��s
n��o era t��o bom. Logo se afastou apressada sem esperar resposta.
Ela era metade furac��o, metade tirana. Ia de uma modelo para
outra nos camarins do desfile de moda, ajustando isso e aquilo,
esbravejando ordens, discutindo com as garotas, brigando com suas
assistentes. Ela funcionava com uma adrenalina de alta octanagem,
o tipo que poderia abastecer um Concorde.
A not��cia de que eu era o propriet��rio de uma mina de dia-
mantes e da mais valiosa pedra se espalhou. Mulheres que n��o me
dirigiriam um sorriso sequer na rua me olhavam como se eu fosse
um diretor de cinema �� procura de uma estrela para o papel prin-
cipal de um filme ��� e dispostas a usar o sof�� para isso.
Yvonne achou engra��ado.
��� Para n��s mulheres, a riqueza e o poder de um homem s��o
t��o atraentes que chega a ser sensual. No in��cio, era o homem das
374
cavernas que tinha o maior bast��o, agora �� o homem que tem a
maior conta banc��ria. Pelo menos existe uma raz��o pr��tica por tr��s
da atra����o. Os homens s��o muito mais b��sicos e fr��volos ��� d��-
lhes tetas e uma bunda, e eles n��o se importar��o com o que h�� no
banco ou no c��rebro.
Observar as modelos em v��rios estados de desnudamento ca��-
tico lembrou-me dos tempos em que eu assistia Katarina quando
ela desfilava. A mod��stia n��o fazia parte da profiss��o. O que sur-
preendia era ver que muitas das mulheres eram mais bonitas com
as roupas do que sem elas. O corpo alto e magro com seios modes-
tos convinha aos designers que apresentavam suas roupas, mas
eram magros demais para o meu gosto. De vez em quando, apare-
cia uma Katarina cujo corpo era exuberante e cheio de curvas,
perfeito com ou sem roupa. A top model do desfile, uma italiana com quem Katarina trabalhara e que, segundo ela, era uma mulher temperamental, fazia jus �� reputa����o. Como Katarina, ela n��o
usava qualquer coisa e tinha o direito de recusar se achasse que a
roupa n��o a favorecia.
��� N��o foi esta a roupa que concordei em usar ��� disse ela a
Rona. ��� Voc�� mudou na ��ltima hora.
��� Ir�� us��-la, ou ent��o nunca mais participar�� de um desfile.
Aquilo provocou uma explos��o de impreca����es em italiano,
franc��s e ingl��s. As mulheres estavam frente a frente, vermelhas e
iradas. Era o grand finale do desfile. Rona tentou ajustar o vestido, e a mulher empurrou suas m��os.
��� Estou parecendo uma vaca! N��o usarei isto!
��� Voc�� �� uma vaca! Foi contratada para tr��s entradas. Ou
usa a roupa, ou pode entrar na passarela nua e mugindo!
��� Est�� bem, foda-se voc��, sua filha-da-puta. Vou desfilar nua.
Ela come��ou a arrancar a roupa do corpo, at�� ficar completa-
mente nua.
��� A�� est��! Estou pronta para entrar na passarela!
Rona fitou-a com o rosto vermelho e os punhos levantados.
Imediatamente eu intervim, tirando do bolso a pochete que
continha o diamante de fogo.
375
��� Tenho o complemento perfeito para voc�� finalizar o seu
desfile ��� disse eu a Rona. ��� Ela poder�� usar isto.
Mostrei o diamante. Eu o colocara em um encaixe simples com
uma fina corrente de ouro que facilitava seu manuseio ��� e difi-
cultava sua perda.
Ambas pasmaram diante da gema.
��� Ah, meu Deus! ��� exclamou a modelo. ��� �� o diamante
de fogo!
Rona sacudiu a cabe��a.
��� N��o diz nada sobre os meus modelos.
��� Diz, sim. Ele lan��a a sua nova linha de diamantes da moda.
Coloquei o diamante no pesco��o da modelo.
��� �� o diamante mais valioso do mundo ��� disse eu. ��� Voc��
est�� usando cem milh��es de d��lares. Se tentar fugir pela porta,
meus guardas atirar��o nas suas costas. ��� Eu inventei o pre��o, mas
se aproximava da verdade.
��� Ah, meu Deus. ��� Ela segurou o diamante para conseguir
v��-lo e depois olhou para mim.
��� Adoro diamantes ��� murmurou.
Seu vocabul��rio era limitado, mas seus mamilos estavam aten-
tos e fizeram contin��ncia para mim. Fiquei duro instantaneamen-
te. Como disse Yvonne, o que interessa ao homem n��o �� o que h��
entre as orelhas.
376
66
��� Toucinhos de porco?
Rona retorceu o rosto em uma careta.
Est��vamos a s��s no seu apartamento na lie St. Louis com vis-
ta para o Sena e a Rive Ga��che. O Cora����o do Mundo causara
um alvoro��o no desfile de moda. N��o s�� pelo impacto da pedra
como pelo fato de ser a ��nica coisa que a modelo usava. Rona subiu
ao palco, logo atr��s da modelo, e anunciou sua nova linha de dia-
mantes de marca. Foi s�� o que disse, o que foi inteligente, j�� que
ainda n��o sab��amos o que era exatamente um "diamante de marca".
��� Toucinhos de porco ��� repetiu ela.
Eu ri. Acabara de repetir para ela a hist��ria "os diamantes s��o
uma mercadoria" que ouvia toda vez que mencionava a id��ia de
iniciar uma linha de moda.
��� Mas eles n��o t��m que ser toucinho de porco ��� disse eu. ���
Percebi isso quando a assisti pegar peda��os de pano e, com alguns
cortes aqui e ali, mudar toda a apar��ncia de um vestido.
��� Nossos modelos s��o ��nicos ��� disse ela. ��� Cada um �� di-
ferente do outro. Isso �� poss��vel fazer?
��� Dentro de determinados limites. A lapida����o mais conhe-
cida e freq��ente do diamante �� o "brilhante", com 58 facetas. Esse n��mero de facetas �� o que melhor maximiza a luz que produz o
brilho de fogo do diamante. Mas outras lapida����es podem ser usa-
das. O diamante Tiffany tem noventa facetas. Resumindo, h��
dezenas de maneiras de se lapidar uma pedra. A regra 58 �� a mais
377
comum porque produz um bom resultado. ��s vezes, o pr��prio dia-
mante determina como deve ser lapidado.
Eu podia ver sua mente funcionando, ela n��o me interrom-
peu, e eu continuei.
��� N��o quero deix��-la com a impress��o de que todos os dia-
mantes do mesmo tamanho e pureza s��o vendidos pelo mesmo
pre��o, depois de serem lapidados e chegarem ��s lojas. Uma joa-
lheria de renome vender�� uma mesma mercadoria a um pre��o mais
elevado que um varejista. J�� no atacado ��� entre os negociantes ���
os pre��os s��o razoavelmente padronizados com base no tamanho
e na qualidade. Uma pedra com a mesma cor e pureza e a mesma
lapida����o pode ser vendida mais caro que outra por ter mais fogo ���
pode ser que a pedra originalmente fosse maior, e o lapidario te-
nha reduzido seu tamanho, aos poucos, para conseguir um resulta-
do melhor. Depende da margem de seguran��a ou liberdade que se
tem para cort��-lo e de quanto voc�� quer desbastar, reduzindo o
tamanho em quilates. A maioria das pessoas est�� mais interessada
no tamanho do produto acabado do que no brilho porque este ��
t��o sutil que a diferen��a s�� �� percebida quando se procede a um
exame cuidadoso.
��� Mas voc�� pode criar uma lapida����o Rona, ��nica, que nin-
gu��m mais use?
��� Sim.
��� Ent��o precisamos de uma lapida����o ��nica ��� disse ela. ���
Moda �� isso. As mulheres n��o compram os meus vestidos no Bon
March�� ou na Macy's, mas em lojas onde s�� se vendem pe��as ex-
clusivas de cada modelo.
��� Conseguirei o melhor lapidador do mundo e criaremos um
design que seja ��nico e tenha um alto padr��o de brilho. Talvez seja preciso aumentar substancialmente o n��mero de facetas, acima
de noventa, para conseguirmos o brilho adequado. O pre��o ser��
mais alto e s�� poder�� ser feito em pedras maiores.
Ela menosprezou o custo extra.
��� O pre��o da mercadoria n��o significa nada quando se trata
de moda. Voc�� disse que as pessoas pagariam mais para comprar o
378
mesmo diamante em uma loja sofisticada como a Bvlgary's e a
Tiffany's do que em um circuito de lojas.
��� �� verdade, as pessoas est��o dispostas a pagar mais pelo
privil��gio de comprar onde o glamour faz parte da compra. Mas a
diferen��a de pre��o n��o �� absurda se a pedra e o brilho s��o exata-
mente iguais. As lojas sofisticadas vendem mercadorias melhores.
Como eu disse, duas pedras com a mesma pureza e lapida����o n��o
possuem necessariamente o mesmo brilho.
Os compradores s��o uns tolos quando se trata de moda ��� disse
Rona. ��� Toda mulher pensa que est�� adquirindo uma pe��a ex-
clusiva quando compra os meus vestidos. Dos meus modelos mais
caros posso mandar um ��nico exemplar para cada loja, mas h��
milhares de lojas de Paris a S��o Francisco e a T��quio. Quando uma
atriz aparece usando o vestido em uma foto de revista ou em uma
entrega de pr��mios, eu encho as lojas daquele modelo. As mulhe-
res gostam de imitar uma outra que �� considerada bem vestida e
sensual.
��� Talvez possamos deixar o comprador escolher o design ���
sugeri.
��� Como?
��� Isso realmente o tornaria exclusivo.
��� Como faria isso no caso dos diamantes?
��� As pessoas est��o acostumadas a entrar em uma loja e es-
colher um diamante que j�� foi lapidado e engastado. Mas e se ofe-
recermos algo realmente singular? Os clientes poderiam entrar na
loja, escolher uma pedra ainda bruta com tamanho e pureza de
acordo com suas possibilidades e ent��o escolher a forma e a
lapida����o de sua prefer��ncia.
��� Isso pode ser feito?
��� Com pedras caras, sim. E usar um programa de computa-
dor para desenhar a lapida����o n��o s�� impressiona as pessoas, mas
apresentaria resultados imediatos. Lidar��amos apenas com pedras
brutas de um formato espec��fico e cujo brilho pudesse ser salien-
tado com uma variedade limitada de lapida����es. Ter��amos uma
s��rie de modelos no computador, a fim de mostrar aos compradores
379
o resultado final de diferentes lapida����es. Eles escolheriam entre uma lapida����o Rona, o brilhante padr��o de 58 facetas, ou uma
lapida����o totalmente diferente que fosse uma pe��a ��nica.
��� Deixarei a lapida����o para voc��. Precisamos conversar so-
bre tr��s coisas mais importantes. Primeiro, por que eu deveria me
envolver nisso?
��� Pela exclusividade. V��rias pessoas j�� criaram roupas e per-
fumes com seus nomes. Ningu��m jamais fez isso com diamantes.
Como diz o melhor slogan de publicidade da hist��ria, "os diamantes s��o eternos". Eles s��o a subst��ncia mais dura que existe, mais dura do que o a��o. Quando a sua linha de perfumes tiver evapora-do e as roupas que voc�� criou virarem trapos, os diamantes com o
seu nome continuar��o existindo. Daqui a mil anos, um diamante
Rona brilhar�� tanto quanto ele brilharia hoje.
Os olhos dela se iluminaram diante da id��ia de seu nome ser
reconhecido pela eternidade. S�� n��o contei que, a longo prazo,
pretendia tirar muito mais vantagem com seu nome do que ela
podia imaginar. �� claro que ter��amos lojas em Nova York, Lon-
dres, Paris e Beverly Hills para atender aos ricos. Mas, algum dia,
eu queria fazer mais dinheiro ainda vendendo uma linha Rona para
pessoas que compram seus an��is de noivado em lugares como a
Wal-Mart. Agora n��o era o momento adequado para levantar essa
id��ia. Rona tinha uma imagem muito boa para isso porque ela
pr��pria era extremamente esnobe. Para conseguir que aceitasse a
produ����o em massa, eu teria que esperar o dia em que precisasse
do dinheiro.
��� Est�� bem, a segunda pergunta ��: quanto receberei pelo uso
do meu nome?
��� Achei que voc�� nos deixaria usar o seu nome em prol da
arte, uma esp��cie de presente para o mundo ��� disse sorrindo,
depois levantei as m��os para interromper o fluxo de insultos. ���
S�� estava brincando, mas trata-se de uma perspectiva de lucro
certo. Basicamente, permitiria o uso do seu nome e deixaria todo
o trabalho para mim. Examinaremos outros acordos semelhantes
e faremos o nosso em termos mais do que justos.
380
��� O acordo n��o ser�� apenas pelo dinheiro, mas o meu nome
�� o meu capital. Insisto em controlar a forma como ser�� usado ���
e garantir que n��o seja afrontado ou envolvido em nada que possa
manch��-lo.
��� Isso �� justo. Qual �� a terceira coisa?
��� Deixe-me ver aquele diamante vermelho.
Est��vamos sentados a uma dist��ncia razo��vel, mas agora ela
se aproximou e sentou quase no meu colo.
��� Est�� no cofre...
��� Ele est�� no seu bolso. Voc�� gosta demais dele para deixar
longe da sua vista.
Mulher esperta. Entreguei a ela o Cora����o do Mundo.
Ela o virou de um lado para outro buscando a luz.
��� Incr��vel. Realmente, parece que h�� fogo brilhando dentro
dele.
Ela colocou uma das m��os no meu colo e acariciou o meu p��nis,
e, com a outra, fez o mesmo no diamante.
��� Selaremos o acordo com uma trepada ��� disse ela. ���
Marte est�� em Capric��rnio, Merc��rio est�� em ascens��o. Nesta fase
do m��s, sou heterossexual e tenho muito tes��o.
381
P a r t e 8
H O L L Y W O O D
67
H O U S E OF L I B E R T �� , BEVERLY HILLS, 1998
Eu estava parado na esquina da Rodeo com a Little Santa Monica
e olhava na dire����o da Wilshire. Era urna avenida comum, como
tantas outras. A maioria dos pr��dios era de um e dois andares,
desprovidos das fachadas imponentes e elegantes dos bairros mais
sofisticados de Nova York, Londres e Paris. Mas os poucos metros
da Rodeo eram mais esnobes do que toda a costa leste dos Estados
Unidos, e talvez um bocado de Londres e Paris, ainda de quebra.
Isso porque era mais f��cil encontrar um clima esnobe na Cos-
ta Oeste do que em qualquer outro lugar do mundo. No Oeste, a
��nica coisa que contava era o dinheiro. E n��o precisava ser "di-
nheiro de fam��lia". Com exce����o dos migrantes que vieram do
Norte ap��s a Guerra Civil e trouxeram seu pr��prio dinheiro, n��o
havia "dinheiro antigo" na Calif��rnia, pelo menos n��o no sentido europeu. A vers��o californiana de dinheiro antigo vinha da minera����o, do petr��leo e da constru����o, mas nenhum tinha tradi-
����o. O dinheiro novo era oriundo das ind��strias da defesa e do
entretenimento e do Vale do Sil��cio, e era visto com desprezo pe-
las fam��lias tradicionais da Europa e da Costa Leste. Isto porque
quem o possu��a trabalhava muito para consegui-lo.
A Rodeo Drive era esnobe por ela se dedicar, quase que ex-
clusivamente, �� "ind��stria". Os 15 ou 16 milh��es de pessoas na
385
bacia de Los Angeles trabalhavam em muitas ind��strias diferen-
tes, mas, sempre que se dizia "a ind��stria", era uma refer��ncia �� ind��stria da divers��o. Uma pessoa que tivesse dez mil lojas de sapatos espalhadas pelo pa��s poderia vir para c�� e comprar uma casa
de vinte milh��es de d��lares em Beverly Hills; ainda assim, teria
muito menos glamour do que uma atriz qualquer que participasse,
esporadicamente, de um programa na tev�� a cabo e morasse num
pr��dio sem elevador em West Hollywood.
N��o que a mans��o de vinte milh��es de d��lares do homem dos
sapatos fosse t��o espetacular assim, especialmente se voc�� acom-
panhasse a obra, passo a passo. Pode apostar que s�� na compra do
terreno foram gastos uns 95 por cento. Os outros cinco por cento
foram usados para erguer uma mans��o de compensado. Assim eram
todas essas mans��es de Beverly Hills, a estrutura do bom e velho
pinus e as paredes de compensado. Por cima do compensado, vi-
nha uma fachada que escondia a constru����o barata.
Podia-se apelar para esse tipo de constru����o barata no clima
quente e seco do sul da Calif��rnia. Al��m disso, as plantas cres-
ciam muito bem aqui porque a ��gua roubada de comunidades a
centenas de quil��metros dali transformou a regi��o des��rtica em
um o��sis. Um dia, assisti �� montagem do jardim de uma mans��o
de madeira compensada em Beverly Hills. Quando a casa ficou
pronta e a entrada de concreto da garagem secou, vieram os ca-
minh��es cheios de ��rvores, arbustos e flores. As ��rvores e arbus-
tos crescidos foram enfiados no solo, as flores, plantadas, e rolos
de grama, desfeitos. Literalmente, em poucas horas, a terra nua
em volta da casa transformou-se em uma pequena floresta exube-
rante. O que mais gostei de observar foi a grama sendo desenrola-
da. Lembrou-me o filme As loucuras de Dick e Jane, da d��cada de
1970, estrelado por Jane Fonda e George Siegal. Siegal, que fazia o papel de Dick, era um executivo aeroespacial que foi despedido
justo quando Jane comprou uma casa nova muito cara. Quando
os problemas financeiros aumentaram, al��m de perderam os m��-
veis caros e os carros luxuosos, o paisagista voltou para levar todas
as plantas, inclusive a grama, enrolando-a de novo.
386
Sim, a cidade era uma fraude, vulgar, pl��stica, uma imita����o
barata de qualidade, um lugar com alma de polietileno.
E eu mal podia esperar para mergulhar nela de cabe��a.
N��o sei o que tanto me atra��a em L.A. N��o era uma cidade
real, com uma rua principal ��� na verdade, n��o passava de uma
imensa alameda arborizada. Se tivesse que apontar uma rua prin-
cipal, talvez fosse a Wilshire Boulevard que, com seus 32 quil��-
metros de extens��o, passava por tr��s cidades.
Quanto �� ind��stria, eu tinha o mesmo sentimento que todo
mundo. Vim para tentar fazer amizade com as estrelas. Talvez, at��
ir para cama com uma ou duas ��� na esperan��a de que n��o fosse
um her��i de filme de a����o cheio de ester��ides.
Incr��vel foi como eu me adaptei ao estilo de L.A. Comandava
minha empresa de diamantes como se fosse um est��dio de cinema
quando se tratava de promo����o ��� ningu��m fazia mais proezas,
nem conseguia mais publicidade gratuita do que eu. E, enquanto
o pessoal antigo da ind��stria de diamantes levou mais de cem anos
para ter o nome reconhecido, eu conquistei o meu espa��o em cin-
co anos, depois de deixar Angola. Agora mesmo, eu ia ao encon-
tro da minha equipe na Rodeo Drive, onde a House of Liberte
estava em fase de acabamento. Sim, eu mantive o acento no "e".
Era mais glamouroso. Diamante n��o era isso?
Abri lojas em Nova York, Londres, Paris e Roma. Deixei
Beverly Hills para o fim porque sabia que era mais dif��cil. Aqui, as
pessoas eram mais acostumadas com a publicidade do que em
qualquer outro lugar do mundo. Isso significava que eu teria que
investir pesado para chamar aten����o.
O diamante Rona ainda era nosso ponto de sustenta����o, mas Rona
logo perdeu o interesse nos diamantes. Concluiu que era um traba-
lho ma��ante e que n��o se pode criar um look diferente com a mesma facilidade com que se levanta uma bainha ou se faz uma prega aqui
ou ali. Algu��m com uma lente de aumento, instrumentos de lapida����o
e m��quinas leva muitas horas para fazer alguma diferen��a.
Basicamente, eu alugava seu nome, o que para mim era bom.
Aos poucos, comecei a afastar o nome de Rona dos meus clientes
387
sofisticados e economiz��-lo para as pessoas que n��o podiam pagar
cem mil d��lares em um anel de noivado. Meu plano era um dia
tornar o nome Rona famoso em todo o pa��s e vender an��is de
noivado em lojas voltadas para a fatia do mercado abaixo de cin-
co mil d��lares. Assim, preservaria a clientela abastada para as
minhas lojas exclusivas.
Cheguei a usar nas lojas um truque que aprendi com os ban-
cos de Beverly Hills, a que chamavam de "banco pessoal". Os
bancos menores no centro de Beverly Hills ��� seis ou oito quar-
teir��es ��� tinham cub��culos para os caixas. Em vez de os clientes
se dirigirem a um balc��o amplo, eles eram encaminhados para um
caixa espec��fico que passavam a conhecer pelo nome. Fiz o mes-
mo nas minhas lojas, transformei os meus vendedores em "ge-
m��logos" que eram designados aos clientes ricos e os "orientavam"
sobre tudo relativo ��s suas j��ias. Isso acrescentou mais uma faceta
na m��stica e na vaidade que envolviam o com��rcio de diamantes.
A mulher contratada para ser a gerente estava do outro lado
da rua com a minha RP particular admirando a loja, quando me
aproximei.
��� Est�� quase terminada, Win ��� disse a gerente, Cameron
Reed. ��� Estou t��o emocionada!
Ela era uma loura mignon, cerca de 1,5 metro de altura, sem
contar os saltos finos de oito cent��metros. Eu n��o sabia que as
mulheres ainda usavam esse tipo de coisa, n��o se via com freq����n-
cia, mas tive de admitir que o salto alto produzia um efeito no corpo
da mulher que me excitava. Mas n��o a contratara com base em
sexo. Eu a roubara da Bvlgari's de Londres, onde seu sotaque es-
tava sendo desperdi��ado. Um sotaque brit��nico significava muito
na pretensiosa Beverly Hills, especialmente quando por tr��s dele
havia uma loura boa de peito e de bunda.
��� Estamos falando da vitrine ��� explicou Pat Weinstein.
Pat, 15 cent��metros mais alta e vinte quilos mais gorda que
Cameron, era a minha RR Costumava trabalhar para uma firma
que cuidava de estrelas, mas eu a roubei de l�� junto com a sua
listagem de telefones e endere��os dos mais famosos de Hollywood.
388
Se estivesse no neg��cio de sapatos, investiria meu dinheiro em
publicidade ��� fazer o marketing de diamantes para os ricos e fa-
mosos exigia uma PR capaz de engolir sapos.
��� A vitrine �� uma arte ��� disse Cameron. ��� Na Bvlgari...
��� Ent��o, vamos conseguir um artista ��� disse eu.
��� Mas n��s temos vitrinistas.
��� N��o quero uma vitrine de joalheria tradicional. Quero algo
que cause sensa����o, algo que Pat possa usar para nos conseguir
ampla cobertura pela imprensa e muito alvoro��o sobre a loja.
��� N��o sei se compreendo o que voc�� quer dizer quando diz
um "artista". Os vitrinistas s��o artistas no seu m��tier ��� disse Cameron.
��� Eu quero dizer um artista de verdade, algu��m famoso, um
Andy Warhol. Se contrat��ssemos Warhol para fazer a vitrine, n��o
seria sensacional?
��� Seria um verdadeiro milagre ��� disse Pat. ��� Ele j�� morreu.
��� Ent��o arranje outro ��� ou desenterre-o. Lembro de meu
pai me dizer, h�� muito tempo, que uma joalheria em Nova York
contratou um pintor famoso para decorar a vitrine. Causou um
enorme rebuli��o. Descubra quem s��o os pintores mais famosos do
pa��s. Que diabo, h�� dezenas de galerias de arte em um raio de cem
metros, capazes de fornecer a informa����o em cinco minutos.
Cameron franziu a testa.
��� Conseguir que um artista importante fa��a uma vitrine se-
ria muito caro, talvez algo em torno de seis d��gitos.
Tive que rir.
��� Acho ��timo que voc�� se preocupe com o or��amento da
loja, mas isto sair�� da verba de promo����es especiais, n��o do seu
or��amento. Suponham que n��s paguemos a um artista uns cem
ou duzentos mil para fazer a vitrine, pint��-la e decor��-la, o que
for. Quanto isso valeria em termos de publicidade?
��� Milh��es ��� respondeu Pat. ��� �� um investimento fant��s-
tico. Se puder fazer uma vitrine por cem mil d��lares que vire no-
t��cia, a mesma cobertura em termos de comerciais ou an��ncios
custaria milh��es. O mais importante �� que as pessoas assistam ao
notici��rio.
389
��� Exatamente. Ent��o vamos conseguir um artista de reno-
me. E quando estiver pronto, voc�� pode enfileirar algumas figu-
rantes de cinema que estejam sem trabalho no momento para ficar
por perto olhando pasmas para a vitrine, como carpideiras em um
vel��rio. Isso atrair�� muita gente. Que diabos, coloque algum ator
que j�� foi famoso infiltrado na multid��o, algu��m que cobre barato
mas que seja reconhecido. Logo precisaremos de policiais para
controlar a multid��o.
��� As esta����es de TV locais adoram esse tipo de coisa ���
observou Pat.
��� Nada de esta����es locais, quero que a inaugura����o seja vis-
ta em ��mbito nacional. Consiga um artista irreverente ��� discre-
tamente sensual mas de gostos modernos. E uma daquelas garotas
do seriado S.O.S. Malibu de seios grandes. N��s a colocaremos na vitrine como pe��a de decora����o, talvez sem nada al��m de p�� de
diamante cobrindo o corpo.
Pat riu.
��� As louras burras faturam na tev�� mais dinheiro l��quido no
ano do que a sua loja ganhar�� bruto. Lembre-se, Win, o sexo sur-
giu antes dos diamantes.
��� Sim, mas os diamantes continuam quentes quando o sexo
esfria. Ei, poder��amos transformar essa id��ia em um slogan para promover a loja. Providencie isso ��� pedi a Pat. ��� Descubra um
meio de us��-lo e me mande um memorando a esse respeito.
Liberei Cameron para discutir com o pessoal da obra sobre a
coloca����o de um vidro temperado em uma janela e levei Pat pela
Camden.
��� Venha comigo, tenho uma reuni��o na Dream Artists.
A ag��ncia de talentos, localizada depois da Wilshire, perto da
Santa M��nica Boulevard, era a melhor da cidade.
��� Pretende se tornar um astro de cinema?
��� Levando em considera����o a sua informa����o sobre o sal��-
rio do elenco do S.O.S. Malibu, talvez eu fa��a um teste para um papel. Pelo que vejo nos an��ncios de jornal nesta cidade, se algumas partes do meu corpo n��o servirem, h�� m��dicos que podem
390
consert��-las por um pre��o nada barato, desde aumento de p��nis a
aumento de seios, e nem sempre para pessoas que nasceram com
o equipamento original. Mas falando de louras que ganham milh��es,
conte-me o que aquela sacana est�� aprontando com o meu colar.
Shelly Lane era uma estrela importante mas, como as mulhe-
res beirando os 40 anos em uma cidade que nunca perdoa a idade
em uma mulher, conseguia cada vez menos pap��is. Quando foi
apresentadora na entrega do Oscar, usou um colar de diamantes
da minha loja de Nova York. Na festa, t��nhamos mais de um mi-
lh��o de d��lares em gemas com Lane e outras mulheres, e recebe-
mos milh��es em publicidade gratuita.
As j��ias eram emprestadas. E, diferentemente do m��todo da
minha prima Yvonne em Paris, onde aprendi o truque, as minhas
gemas eram sempre verdadeiras. As c��pias n��o geravam publici-
dade, era preciso ser a pedra de verdade.
��� Shelly recusou-se a devolver o colar. O gerente de Nova
York falou com ela. Ela disse que considerava o colar um paga-
mento por promover a sua loja.
Ca�� na risada.
��� Se ela n��o devolver o colar, eu a estrangularei com ele.
Quanto isso valeria em publicidade gratuita?
��� Muito. E ainda conseguiria casa e comida at�� eles o fritarem.
Ou envenenarem com g��s, n��o sei o que est�� na moda nas pris��es.
Telefonei para Shelly, mas ela n��o retorna as minhas liga����es.
��� Passarei na casa dela e pegarei o colar. ��� Eu n��o conhe-
cia Lane, mas ela tinha fama de ser dif��cil e mal-educada.
��� Ela tem uns c��es enormes que devoram intrusos. E um
seguran��a que come quem sobrevive aos cachorros.
��� Mande a pol��cia prend��-la.
��� Voc�� ser�� processado. Por mais que seja loucura ela que-
rer ter direito ao colar, ainda assim �� uma reivindica����o. �� melhor
esquecer os cem mil.
��� N��o posso permitir que ela leve vantagem. O problema n��o
�� o dinheiro, �� o precedente. Se ela ficar com a j��ia, toda estrela
que usar um colar nosso resolver�� fazer o mesmo. Quando isso
391
acontecer, serei obrigado a terminar com o sistema de empr��sti-
mo. �� um projeto promocional excelente. Preciso recuperar aquele
colar para mant��-lo funcionando.
��� N��o sei o que dizer. ��� Ela parou em frente �� garagem onde
seu carro estava estacionado. ��� Haver�� um jantar beneficente
esta noite, uma dessas coisas para c��ncer, diabetes, ou algo assim,
a que as estrelas comparecem para mostrar que est��o levantando
dinheiro para uma boa causa, quando s�� est��o l�� para serem vistas.
Sei que Shelly ir�� e pode ser que use o colar, seu novo brin-
quedinho. Ouvi dizer que dorme com ele. E com quem mais esti-
ver por perto.
��� Me inclua na lista de convidados.
KATARINA ERA A RAZ��O da minha reuni��o na ag��ncia de talen-
tos. Viera h�� sete anos para Hollywood, financiada pelo meu
Bugatti. Fez alguns filmes, uns bons, outros ruins, mas quase sem-
pre em pap��is secund��rios, pois n��o tem aquela presen��a marcante
na tela que torna o filme um neg��cio lucrativo.
Ela tinha feito um contrato para um filme, desta vez um papel
principal, uma mulher em um campo de concentra����o durante o
Holocausto. Algum homem com uma rede de lojas de autom��vel
no Meio-Oeste era o anjo protetor, em troca de receber o trata-
mento VIP na cama em Hollywood por algumas semanas. O fi-
nanciamento n��o vingou porque ele foi pego com lavagem de
dinheiro de drogas.
Eu estava saindo de novo com Katarina, mas s�� como amigo.
Evitei transar porque n��o queria fazer nenhuma promessa na cama
de que depois me arrependesse ��� como financiar um filme. Ela
n��o me pressionou com a cama nem com o financiamento, por
isso tive vontade de ajud��-la. Katarina n��o era nem um pouco
gananciosa. Quando se tratava de dinheiro, em geral, era ela quem
dava em vez de receber.
Quando falou do filme que ia fazer e da m�� sorte de ter perdi-
do o financiamento, fiquei interessado. N��o disse nada, mas tam-
b��m estava querendo um filme. No entanto, eu tinha em mente
um plano diferente.
392
N��o que eu n��o quisesse ajudar Katarina. Gostava dela, era
uma das pessoas especiais para mim. Mas Katarina vivia em um
mundo, e eu, em outro. Ela havia sido contaminada pelo v��rus do
cinema. Quando se pega esse v��rus, n��o existe mais nenhum lugar
no mundo para voc��.
Apesar de ter me ambientado na cidade, Hollywood era uma
esp��cie de parada obrigat��ria. Dentro de alguns meses, quando a
nova loja estivesse indo bem, eu planejava seguir para o Oriente,
do outro lado do Pac��fico, para examinar Cingapura, T��quio e
outros pontos na ��sia. Tamb��m queria visitar Bangkok que se
tornava um centro de lapida����o de diamantes importante.
Nesse meio tempo, eu faria o que pudesse para ajudar Katarina.
Por acaso, o que eu tinha em mente ajudaria a ambos.
393
68
Katarina me esperava na sala de seu agente. Ela me deu um beijo.
��� Obrigada por ter vindo, Win.
Seu agente, Harry Kidd, era um tampinha abusado, do tipo
nervosinho agitado que falava muito r��pido. Era um desses caras
que irritam os outros de tanto falar, a ponto de quererem lhes dar
um soco na cabe��a e um chute na bunda. Imaginei que gente como
ele se movimenta t��o r��pido que �� dif��cil de ser acertada.
Ele deu a volta na mesa, se aproximou, bombeou a minha m��o
com energia e perguntou o que eu queria beber.
Recusei a bebida.
��� Vamos come��ar a reuni��o logo. O pessoal da produ����o est��
aqui?
��� �� melhor combinarmos a estrat��gia antes de...
��� Vamos falar, sem rodeios, com essa gente.
��� Leu o roteiro? �� fant��stico, n��o? Far�� A Escolha de Sophia
parecer um melodrama de hist��ria em quadrinhos. Katarina po-
der�� ganhar um Oscar. O filme faria...
��� D�� para acabar com essa conversa fiada e come��ar a reu-
ni��o?
Harry piscou os olhos incr��dulo, ningu��m falava com um agen-
te de talentos assim, pelo menos um agente da Dream Artists. A
n��o ser que fosse algu��m com um tal��o de cheques.
��� Ningu��m fala assim comigo ��� disse ele.
394
��� Sinto muito. ��� Segurei seu bra��o. ��� Passei muito tempo
vivendo em Angola onde, para ser ouvido, tive que matar uns e
outros, portanto, vai me desculpar pelos modos pouco civilizados.
Se pudermos iniciar logo a reuni��o, ficarei bem mais calmo.
��� Claro. ��� Ele deu uma olhada para Katarina enquanto o
acompanh��vamos.
Sentamos na sala de reuni��o onde nos aguardavam dois re-
presentantes da produ����o, um homem e uma mulher. Eu j�� fora
informado que era a mulher quem decidia.
J�� sentados, Harry come��ou:
��� O roteiro...
��� Est�� p��ssimo ��� disse eu. ��� N��o consegui entender. Se
um homem simples como eu n��o consegue entender, ningu��m mais
conseguir��. N��o financiarei um filme para ser exibido em cinemas
de arte e receber cr��ticas entusiasmadas, sem conseguir um retor-
no de dez centavos por d��lar.
��� Win, mas... o que... ��� disse Katarina.
��� Eu disse a voc�� que daria algum dinheiro para um filme,
mas essa hist��ria de Holocausto n��o �� um filme, �� uma obra de
arte. Quero um filme de roubo.
��� Um filme de roubo? ��� perguntou a mulher da empresa
de produ����o. ��� �� dif��cil de vender hoje em dia. Quem escreveu o
roteiro?
��� N��o existe roteiro ��� ainda. Voc��s poder��o cuidar disso.
E n��o ser�� um lan��amento teatral de cinq��enta milh��es de d��la-
res que s�� vai receber o retorno do dinheiro na ��sia, se tiver a����o
suficiente. Quero um filme de a����o despretensioso, t��pico de tele-
vis��o, de duas horas.
��� N��o compreendo ��� disse o nanico Harry. ��� Estamos aqui
para falar de um filme sobre o Holocausto que estar�� na seleta lis-
ta dos filmes indicados para o Oscar, n��o de um drama criminal
de tev��.
��� Voc��s est��o aqui para viabilizar um filme. Tenho um patro-
cinador para um filme de tev��. A ind��stria internacional de dia-
mantes quer evitar toda a publicidade negativa sobre os diamantes
395
de sangue. Eles temem que os diamantes recebam o mesmo trata-
mento por parte dos grupos de direitos humanos que o pessoal dos
direitos dos animais deu ��s peles. Lembram-se como as pessoas que
usavam casacos de pele se arriscavam a levar uma lata de tinta
vermelha quando apareciam nos restaurantes e teatros? A ind��s-
tria do diamante teme que, em vez de serem vistos como o melhor
amigo da mulher, os diamantes sejam associados ��s atrocidades e
�� fome da ��frica.
��� A ind��stria do diamante est�� disposta a patrocinar um fil-
me sobre roubo? ��� perguntou a mulher da produ����o.
��� Ter�� um final feliz. E ressaltar�� o lado humano e humani-
t��rio dos profissionais do ramo das pedras. Eu os convenci a pa-
trocinar um filme de entretenimento. Um filme de roubo mostra ��s pessoas o quanto seus diamantes s��o valiosos. ��� Aquele conceito
era uma grande lorota que eu usara, com ��xito, durante uma reu-
ni��o em Antu��rpia para vender a id��ia de um filme de tev�� para
uma associa����o internacional de diamantes.
"Darei a voc��s uma lista de informa����es sobre diamantes que
o roteiro precisa incluir. O t��tulo do filme �� O Roubo na Libert��.
Minha nova loja de Beverly Hills ser�� usada como cen��rio
principal.
��� Ah, entendo ��� disse o agente tampinha. ��� Em um fil-
me de duas horas para televis��o, cerca de uma hora e meia ser��
de propaganda para os anunciantes que investiram milh��es de
d��lares. A sua firma n��o ser�� a patrocinadora, mas a estrela prin-
cipal. Raios, o senhor sabe quanto custaria uma hora e meia de
comerciais de televis��o no hor��rio nobre ��� que, assim, recebe-
r�� de gra��a?
Sim, eu sabia. Mas disse:
��� Katarina �� a estrela. N��o me importa que o seu papel seja
de ladra, de uma cliente que �� pega roubando, de gerente da loja,
o que voc��s quiserem, mas ela ter�� o papel principal. Tenho certe-
za que ter�� um desempenho digno de um Emmy. E, claro, a minha
loja aparecer�� durante todo o filme.
396
��� Meu Deus! ��� disse a mulher da produ����o. ��� N��o consi-
go sequer imaginar quanto custaria em publicidade paga todo esse
tempo no hor��rio nobre da televis��o. E mesmo que uma compa-
nhia tivesse esse dinheiro, metade dos telespectadores levanta para
ir ao banheiro ou �� cozinha durante os comerciais. Eles n��o far��o
isso se o comercial fizer parte do filme. �� um neg��cio e tanto para
a sua loja.
Concordei modestamente.
��� �� um t��tulo bastante atraente, n��o acham? O Roubo na
Libert��.
��� �� horr��vel ��� disse a mulher da produ����o. Em seguida,
espalhou os dedos sobre a mesa e continuou: ��� Mas isso n��o sig-
nifica que n��o possamos inventar alguma coisa. Que tal O Roubo
do Diamante da Libert��.
��� O Grande Roubo do Diamante Libert�� ��� disse o agente tam-
pinha.
��� O Homem que Atirou em Libert��...
Katarina e eu os deixamos jogando t��tulos sobre a mesa.
No corredor, ela disse:
��� Preciso voltar l�� e me certificar de que n��o acabarei no
ch��o da sala de lapida����o.
��� Desapontada? ��� perguntei.
��� N��o, na verdade achei ��timo. Eles nunca me deixariam
fazer o papel principal no filme do Holocausto. Nesta cidade, existe
uma diferen��a entre aquilo que as pessoas dizem que v��o fazer e o
que, de fato, acabam fazendo. Mentir e inventar faz parte do ne-
g��cio. Eles fingiriam concordar at�� a hora de filmar, e a��, de re-
pente, fariam uma mudan��a no roteiro que j�� estava planejada
desde o in��cio. Eu receberia um papel pequeno, e uma atriz que
fosse um sucesso de bilheteria faria o papel principal. Eu sabia dis-
so e teria ficado satisfeita se me dessem simplesmente um papel
importante. Mas essa id��ia de filme para a televis��o �� fant��stica.
Abre caminho para mim na televis��o onde o mercado para pap��is
femininos �� bem melhor.
397
��� Eles n��o deixar��o voc�� no ch��o da sala de lapida����o
darei disso.
��� Matou mesmo gente em Angola?
Dei um beijo no seu rosto.
��� N��o estou autorizado pela CIA a falar sobre isso.
398
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Eu descia a Wilshire, quando um carro buzinou ao passar por mim,
e me encolhi assustado. Era apenas a barulheira normal do tr��nsi-
to de L.A.��� buzinas, xingamentos e reclama����es. Mas eu estava
cauteloso devido a um incidente ocorrido dois dias antes, quando
um carro buzinou, e uma mulher colocou a cabe��a para fora da
janela sorrindo para mim.
Era Jonny, a filha de Simone.
Muito tempo se passara desde a ��ltima vez que eu tive not��-
cias dos meus amigos de Lisboa, quase cinco anos desde o dia em
que quase fui morto em Paris, e tr��s desde quando Jonny passou a
noite comigo em um quarto do hotel Bel Air e Simone apareceu
na manh�� seguinte. Mas eu sabia que o meu duelo com Jo��o pelo
Cora����o do Mundo n��o findara, apenas estava vivendo a chama-
da calmaria antes da tempestade.
Jo��o se escondera durante algum tempo, ap��s o fiasco de Pa-
ris. Seus capangas portugueses deixaram impress��es digitais na
limusine que permitiram �� S��ret�� e �� Interpol rastre��-los. Em se-
guida, o com��rcio de diamantes de sangue esquentou quando as
guerras em Angola e Serra Leoa se intensificaram. Contudo, hou-
ve protestos sobre a venda de diamantes de sangue, e uma "fonte
an��nima" (a mesma que entregou meu primo Leo �� pol��cia fede-
ral) garantiu que todos os grupos humanit��rios e policiais da ter-
ra, interessados no roubo e na venda de diamantes de sangue,
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tivessem o nome de Jo��o nas suas listas. Aquilo o manteve ocupa-
do quando foi afastado das trocas de diamantes. Os diamantes eram
um neg��cio milion��rio no mundo inteiro, mas ainda uma ind��s-
tria pequena em que todos se conheciam.
Eu mantive sempre a dianteira em rela����o a Jo��o, pulando de
pa��s em pa��s e inaugurando lojas, mas quando Jonny e Simone
apareceram, ao mesmo tempo, tr��s anos atr��s, percebi que eu pre-
cisava fazer alguma coisa. E eu sabia o qu��.
Examinando os arquivos da House of Liberte, descobri que em
todos os neg��cios de Bernie com Jo��o, em todas as d��vidas com os
portugueses, o dinheiro foi enviado para contas no exterior. Em
outras palavras, Jo��o tinha a mesma filosofia que Leo a respeito
do pagamento de impostos. Telefonei para Asher van Franck em
Antu��rpia a fim de descobrir quais eram os outros neg��cios em que
Jo��o se envolvera. N��o se podia dar um passo no neg��cio de dia-
mantes na Europa sem que Franck soubesse.
Passei a informa����o ��s autoridades portuguesas. A fonte per-
maneceria confidencial, mas eu n��o tinha d��vidas de que Jo��o
saberia quem o entregara.
Entre os mercadores de diamantes, ouvi rumores de que Jo��o
teve s��rios problemas de sa��de, mas eu achava mais prov��vel que
essa fosse uma manobra para enganar os fiscais de impostos quan-
do aparecessem na sua casa.
Agora Jonny estava de volta em L.A., justo quando eu tam-
b��m estava. Provavelmente, era uma coincid��ncia. Ela gostava da
cidade, e, a esta altura, j�� devia estar beirando os vinte anos, com
idade para fazer o que quisesse. Talvez estivesse estudando aqui.
Apesar da l��gica, eu ainda estava com uma sensa����o estranha
ao caminhar pela rua. Mas tirei a id��ia da cabe��a. Tinha algo mais
urgente a fazer do que me preocupar com a possibilidade de ser
morto por Jo��o. Eu precisava enfrentar uma estrela de cinema que
tinha garras grandes.
Caminhando pela rua, telefonei para Cross.
��� Ainda est�� interessado em trabalhar com seguran��a? ���
perguntei quando ele atendeu.
400
��� N��o em L. A. Aqui eles atiram melhor que em Angola. E
por menos motivos.
��� Pegue a estrelinha sua amiga. Vou a um jantar de caridade
e preciso de prote����o.
��� Que tipo de jantar de caridade �� esse que voc�� precisa de
prote����o? Alguma coisa planejada por uma gangue perigosa?
��� Pior, vou desafiar Shelly Lane. Ela me roubou um colar, e
eu preciso arranc��-lo de volta ��� literalmente.
��� Pode dizer adeus ao mundo se pretende se meter com essa
mulher. Ouvi dizer que ela tem cora����o de pedra e uma boceta
que �� uma porta girat��ria. Megan viajou com ela para uma filma-
gem externa. Os funcion��rios do hotel diziam que, quando Lane
chamava o servi��o de quarto, realmente queria ser servida. Ela gosta de uma boa foda, mas se voc�� fode com ela, �� melhor come��ar a
contar seus colh��es.
��� Venha com Megan. Diga que vou indic��-la para um papel
de um filme para tev�� que j�� est�� cotado para o Emmy.
��� Porra, mano, olha s�� para voc��, nem bem chegou na cida-
de e j�� fala como um desses caras que ficam no Spago's e no L��
Dome inventando que s��o famosos.
Quase respondi que, pelo menos, eu n��o estava fazendo "filei-
ras" de coca��na ��� que era o que eu podia dizer a Cross. Combina-
mos que eu o apanharia em uma limusine mais tarde e desligamos.
Cross me preocupava. Ele ficou do meu lado em Angola, eu
tinha uma d��vida com ele. Quando a mina come��ou a dar lucro,
paguei o que havia prometido. E ainda estava disposto a ajud��-lo
se precisasse de mim.
Cross saiu da mina com dois milh��es limpos, sendo que guar-
dou no exterior a maior parte para n��o pagar os impostos. Toda
vez que eu vinha a L.A. o visitava. E a cada vez ele ficava mais
gordo, at�� parecer um comediante gorducho de televis��o. E seu
nariz sempre escorria por causa do estrago provocado pela coca��-
na. Cross se drogava o tempo todo. Seu apartamento cheirava a
um antro de toxic��manos.
A namorada dele, Megan, era gente boa e tamb��m se preocu-
pava com ele. Mas estava muito ocupada tentando fazer sucesso
401
como atriz para dar-lhe o apoio de que necessitava. N��o que ele
fosse aceitar se ela oferecesse. Cross era um teimoso rebelde. N��o
admitia que algu��m o criticasse ou se metesse nas suas coisas. Uma
ocasi��o, comentei que ele estava cheirando e fumando todo o di-
nheiro que recebera em Angola, e ouvi uma s��rie de desaforos.
Pedi a Cross e Megan para virem ao jantar comigo. N��o acre-
ditava que haveria de fato algum problema com Shelly Lane. O
que eu pretendia era apenas embara����-la para que me devolvesse
o colar. Seu seguran��a n��o poderia entrar. E a reputa����o de
briguenta n��o me preocupava.
O que uma mulher de cinq��enta quilos poderia fazer contra
um garanh��o de oitenta, como eu?
Eu deveria ter me lembrado daquela antiga express��o a res-
peito de o inferno n��o ter ningu��m com a f��ria de uma mulher
desprezada. Aplicava-se aos diamantes t��o bem quanto ao amor.
402
70
Sa��mos da limusine em frente ao sal��o de recep����es na Avenue of
the Stars, em Century City. C��meras de tev��, paparazzi, turistas e
f��s amontoavam-se para ver quem chegava. Ouvi a multid��o logo
me identificar como uma pessoa sem nenhuma import��ncia, Cross
talvez fosse um produtor de discos de rap, e alguns reconheceram
Megan como a atriz de alguns poucos filmes e de um epis��dio de
Friends.
Entramos acompanhando os outros convidados. A sala de re-
cep����o, constru��da em volta de uma fonte com golfinhos sorriden-
tes que cuspiam ��gua, estava repleta de pessoas elegantes usando
roupas de costureiros famosos, fingindo apreciar o champanhe
barato nos copos de pl��stico. A sala do jantar ficava �� direita da
escada, no andar de cima, mas eu esperava ver logo Shelly Lane e
sair dali sem precisar sentar e ouvir duas horas de discursos ma-
��antes.
Separei-me de Cross e de Megan quando ela viu um produtor
com quem queria estreitar rela����es. A escada que dava para a sala
do jantar era um bom local para se ter uma vista ampla das pes-
soas na sala, e comecei a me movimentar naquela dire����o atrav��s
da multid��o.
Eu acabara de chegar �� fonte, quando vi uma mulher no topo
da escada, e um choque de surpresa me atingiu.
Marni.
403
Quase gritei o nome dela.
Estava com v��rias outras pessoas, saindo da minha vista em
dire����o �� sala de jantar. Logo desapareceu, e foi quando li a gran-
de faixa pendurada sobre a escada: EVENTO DO PROGRAMA MUN-
DIAL DE ALIMENTOS.
Eu nem me preocupara em saber qual era a finalidade deste
jantar beneficente.
Comecei a for��ar a minha passagem atrav��s da multid��o. Es-
barrei em uma mulher que se virou, pronta para jogar sua bebida
em cima de mim.
��� Cuidado onde... ��� Ela parou e sorriu. Era Shelly Lane. ���
Bem, se vai me empurrar, amigo, vou dizer quais s��o as minhas
zonas er��genas.
��� Shelly Lane, quem diria.
��� A ��nica ��� disse ela.
Shelly usava o colar de diamante, que estava estupendo nela.
Tamb��m j�� bebera um bocado. Seu sorriso era levemente lascivo,
seu olhar, meio torto. Todos sabiam que Shelly era uma alco��la-
tra, portanto deve ter come��ado a beber muito antes do jantar.
��� Agora que sabe o meu nome, diga o seu. ��� Ela se incli-
nou para mim e bafejou u��sque no meu rosto. N��o era champanhe
que tinha em seu copo. ��� Diga que n��o �� um ator atr��s de um
papel, e, sim, um daqueles nerds bilion��rios "ponto com" que n��o entendem de nada al��m de computador e que financiam um filme em troca de uma chupada.
��� No momento, estou no ramo da reintegra����o de posse.
��� Reintegra����o de posse? Est�� querendo dizer de carros e
geladeiras?
��� Estou querendo dizer de diamantes. Sou Win Liberte, e
esse colar que voc�� est�� usando �� meu.
Ela segurou o colar.
��� Voc�� �� o cara que me deu o colar?
��� Sou o cara de quem voc�� roubou o colar. Poder�� me devol-
ver, ou eu terei que embara����-la tomando-o de volta.
404
��� Me embara��ar? ��� Ela se sacudiu de rir. ��� Com o qu��,
seu trouxa idiota, voc�� n��o sabe o que �� embara��o. ��� E se debru-
��ou mais perto com aquele h��lito horr��vel. ��� Que tal isto como
embara��o?
Shelly jogou sua bebida no meu rosto.
��� Sua filha-da-puta!
Ela bateu com o copo no meu rosto e armou o punho para me
atacar. Agarrei a sua esquerda quando vinha na minha dire����o,
girei seu corpo, levantei-a pela bunda e joguei-a dentro da fonte.
Quando ela saiu dos meus bra��os voando, a c��mera oculta de
um paparazzi piscou.
Todo mundo ficou paralisado quando Shelly Lane mergulhou
espalhando ��gua para todos os lados.
Cross veio correndo para mim e segurou o meu bra��o.
��� Vamos sair daqui.
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71
��� N��o posso acreditar que era ela, depois de tantos anos.
��� Tem certeza que era mesmo? ��� perguntou Cross.
��� Era Marni, sim. E tamb��m era a organiza����o para a qual
trabalha, o programa mundial de alimentos.
Est��vamos na limusine indo para o centro da cidade, o que
n��o significa a mesma coisa que estar se dirigindo para o centro
de Nova York ou de S��o Francisco, ou da maioria das grandes ci-
dades cosmopolitas. Diferentemente de outras ��reas metropolita-
nas, esta n��o tinha alma. Quase n��o havia nada no centro de L.A.,
exceto os arranha-c��us de escrit��rios de advocacia e de contabili-
dade, pr��dios do governo, alguns hot��is para conven����es e abri-
gos para os pobres. A ��nica raz��o para se ir ao centro era para
comparecer ao Tribunal de Justi��a ou a uma reuni��o no escrit��rio
do advogado. E n��o era agrad��vel, nem mesmo durante o dia.
Os sem-teto se achavam no direito de acampar na ��rea verde,
ao lado dos pr��dios p��blicos, detendo-se no caminho da distribui-
����o do sop��o para urinar nas cal��adas e mendigar. Al��m dos sem-
teto, a cidade era ocupada por muitos pobres que trabalhavam
arduamente, na sua maioria latinos sem dinheiro e sem green card,
mas que se sacrificavam desempenhando tarefas que ningu��m mais
aceitaria. Eles se alimentavam de feij��o e de tortillas, muitas vezes dormiam seis no ch��o de um quarto, pois assim conseguiam enviar todo m��s alguns d��lares para a fam��lia.
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��amos ao restaurante mais badalado de L.A., no momento,
instalado em um armaz��m na antiga ��rea industrial da cidade, em
cuja vizinhan��a voc�� jamais desejaria que seu carro engui��asse.
Os restaurantes aqui eram como bandas de m��sica���eles surgiam,
ganhavam fama se fossem localizados em uma ��rea da moda onde
as pessoas queriam ser vistas... e depois um outro inaugurava, e
aquele ca��a no esquecimento. Os altos e baixos no ramo dos res-
taurantes n��o eram causados pelo troca-troca dos grandes chefs
de um restaurante para outro, mas pelo movimento das pessoas
"da ind��stria". Ningu��m ligava a m��nima de pagar um pre��o
exorbitante por uma comida med��ocre. Se um astro freq��entava o
restaurante, eles queriam fazer o mesmo. Quando o astro mudava
para outro restaurante, a multid��o ia atr��s.
Para mim, a sugest��o de Cross de irmos a esse lugar tinha o
encanto adicional de ser um bairro onde n��o correr��amos o risco
de deparar com o seguran��a de Shelly Lane. Cross me assegurara
que ela enviaria o homem em uma miss��o de matar ou aleijar.
Sa��mos do jantar sem tirar Lane do lago e sem resgatar o colar.
Cross e muitas outras pessoas ligadas na moda achavam bom
freq��entar um restaurante no pior bairro da cidade, uma ��rea onde
voc�� pisava em sangue, coc�� de cachorro e coisas piores na cal��a-
da. Tudo para entrar em um armaz��m reformado, com paredes e
ch��o de cimento, encanamento e respiradouros expostos.
Para mim, era uma idiotice. Os restaurantes de L.A. n��o me
impressionavam, ponto. Eles sempre tinham alguma coisa de
parven��, de novo-rico. Em Nova York, os gar��ons exibiam uma
postura, muitas vezes, loquaz e brigona. Em L.A., eles n��o insul-
tavam voc�� nem discutiam. Em vez disso, agiam como se na ver-
dade n��o fossem gar��ons, mas algu��m muito importante que estava
lhe dando o privil��gio de ser servido por ele, mas s�� at�� ser cha-
mado para desempenhar um papel de um filme.
N��o discuti com Cross quanto �� escolha do restaurante. Eu
lhe devia mais uma, ele me levara do jantar antes que o seguran��a
de Lane me encontrasse e acabasse comigo.
��� Marni viu voc��? ��� perguntou ele.
407
��� N��o, mas a esta altura j�� sabe quem deu o banho na ilus-
tre colaboradora.
Logo que entrei na limusine, telefonei para Pat, a minha RE
Dei instru����es para procurar o RP de Lane, a fim de que ambos
inventassem uma hist��ria sobre o motivo de eu ter jogado a estre-
la na fonte. Eu n��o queria um esc��ndalo em torno do colar. A
publicidade era uma coisa boa para os neg��cios, mas um esc��nda-
lo afastaria futuros clientes e abriria o caminho para outras joa-
lherias. Sua rea����o imediata foi sugerir uma briga de amantes. Eu
disse a ela:
��� N��o me importa que voc�� diga que est��vamos brigando
por marcas de batom, mas deixe o colar fora disso.
Quando desliguei o telefone, Cross perguntou:
��� Por que nunca a procurou nas vezes em que veio a L.A.?
��� Eu n��o sabia que ela estava aqui. Na minha cabe��a, ela
estaria em alguma selva, distribuindo comida para gente faminta.
Al��m do mais, deixou muito claro que n��o queria me ver de novo.
��� Porra, eu j�� tentei isso, e voc�� n��o deixou de me procurar.
Por que n��o desce do pedestal e procura a mulher? Pelo tom de
covardia da sua voz quando menciona o nome dela, vejo que est��
sofrendo por essa garota.
Ele estava certo. Liguei de novo para Pat.
��� No jantar, havia uma mulher, Marni Jones. Ela pode ter se
casado e ter outro nome, mas n��o h�� muitas Marnis neste mundo.
Descubra seu endere��o, onde trabalha, se est�� casada.
��� Isso pode ser dif��cil. Se essa mulher n��o for uma pessoa
muito importante, talvez voc�� tenha que contratar um detetive
particular.
��� Fa��a o que tiver que fazer, quero a informa����o para ontem.
��� Claro. E quanto ao banho no jantar, a hist��ria que est��
sendo passada para a imprensa �� que voc�� e Shelly Lane estavam
juntos, ela o expulsou da cama, e voc�� teve um ataque de ci��mes.
Shelly est�� tentando conseguir uma ordem judicial porque voc��
n��o aceita um n��o como resposta e fica parado na frente da casa
dela, noite, ap��s noite com o seu carro.
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��� Meu Deus, por que ela n��o acrescentou que eu era HIV
positivo?
��� N��o d�� essa sugest��o ��� e reze para ela n��o ter essa id��ia.
Por falar nisso, quer uma pulseira para combinar com o colar. Diz
que voc�� lhe deve isso pela publicidade. Pode apostar que aquela
foto estar�� na primeira p��gina do tabl��ide para o qual aquele
paparazzi trabalha.
��� Diga a Shelly que se algum dia quiser abandonar o ramo
do cinema, conhe��o pessoas da m��fia que a contratariam como
negociadora. Vou providenciar a entrega da pulseira.
��� Ah, e mais uma coisa. Ela gostou do seu jeito de maltrat��-
la. Quer v��-lo de novo. ��� A voz t��mida de Pat era pura ironia.
��� N��o creio que Shelly Lane goste de ser maltratada, n��o
importa o que ela diga. Que chance voc�� acha que eu teria de ser
picado em peda��os e virar comida de cachorro se, de fato, apare-
cesse na casa dela?
��� Antes, ela treparia com voc�� at�� cansar. Shelly n��o �� do
tipo que dispensa um homem.
Nos despedimos, e me virei para Cross.
��� Ando ocupado demais para mulheres iguais a Marni que
demandam tempo e carinho. �� a ��nica desculpa que tenho. Mas
quando a vi, parecia que algu��m tinha chutado os meus colh��es.
O que pensa disso?
��� Est�� ferrado, homem, isso �� amor, n��o �� sexo. Sexo �� quan-
do parece que algu��m est�� lambendo os seus colh��es.
Uma outra coisa me incomodava. Quando fui apanhar Cross
na casa dele, ele saiu do apartamento depois de Megan, e tive tem-
po para conversar um pouco com ela. Contou que estava preocu-
pada com Cross, que ele cheirava o tempo todo.
��� Est�� come��ando a vender as coisas dele ��� informou.
Prometi que ajudaria como pudesse. Quando um viciado co-
me��a a vender seus objetos pessoais, n��o tem mais solu����o. Eu
queria fazer alguma coisa, mas convenc��-lo a aceitar ajuda era o
mesmo que enfiar a m��o na jaula do tigre para acarici��-lo.
409
��� Voc�� est�� se destruindo, parado em casa sem fazer nada ���
disse eu quando cheg��vamos ao restaurante. ��� Torrar seus inves-
timentos n��o �� a maneira certa de um homem de verdade viver.
Por que n��o volta a trabalhar comigo? Poder�� come��ar como che-
fe da seguran��a na loja de Beverly Hills. Gosta disso, e eu o torna-
rei o meu diretor de seguran��a nacional.
��� Tenho mesmo cara de quem est�� precisando de emprego,
seu babaca?
Suspirei.
��� N��o, na verdade voc�� tem cara de quem est�� precisando
de tratamento de eletrochoque e de uma lobotomia frontal. E,
talvez, de um implante de p��nis.
410
72
Uma semana depois, eu estava no meu carro em frente a uma cre-
che em Brentwood e relia o relat��rio do detetive que me levara ali.
Marni n��o estava casada, pelo menos, atualmente. O investi-
gador n��o conseguiu saber se ela foi casada em algum momento,
no exterior. Mas tinha uma filha de cinco anos. Todas as manh��s
ela deixava a filha na creche e a pegava �� tarde. A agenda aperta-
da que m��es e pais sozinhos precisam enfrentar.
Onde morava, a marca e o modelo de seu carro, o n��mero do
telefone n��o listado, o n��mero da previd��ncia social, o levanta-
mento da ficha banc��ria, seu curr��culo profissional, tudo consta-
va do pacote. Esse tipo de informa����o era f��cil de ser obtida.
Qualquer bom detetive mantinha um informante no servi��o de
prote����o ao cr��dito que lhe conseguia relat��rios financeiros por
um determinado pre��o. Hoje em dia, claro, a informa����o podia
ser fornecida por um hacker.
Ele tamb��m n��o descobriu se havia algum homem na vida de
Marni, ou se ela vivia com algu��m. O pr��dio de apartamentos onde
morava era cercado de seguran��a, e ele n��o conseguiu entrar e
conversar com vizinhos, mas n��o viu tamb��m nenhum homem com
ela quando entrava e sa��a.
Uma coisa era certa ��� se Marni tinha uma filha de cinco anos,
n��o esperou muito para se envolver com outro homem depois que
me deu o fora. Meu ego me dizia que ela se ligara a outra pessoa
para me esquecer.
411
Eu n��o sabia como seria recebido. O que poderia dizer a uma
ex que n��o via h�� mais de seis anos e que pensava que eu mentira
e a tra��ra?
Acrescentando a isso o grande banho no jantar de caridade,
era prov��vel que ela me considerasse um louco. Pior, devia pensar
que eu morava em Los Angeles, sem entender por que nunca a
procurara. Talvez tenha lido alguma coisa a meu respeito nos jor-
nais, antes mesmo do fiasco com Shelly Lane.
Marni n��o se saiu mal desde quando me dispensou. Professo-
ra catedr��tica na Ucla, j�� publicara uma s��rie de trabalhos sobre
os problemas socioecon��micos do Terceiro Mundo. Os t��tulos por
si s�� j�� intimidavam. Ela recebeu um pr��mio da ONU por sua atua-
����o e participou de um almo��o na Casa Branca. Eu tamb��m j��
recebi um convite para um almo��o na Casa Branca, mas veio com
uma condi����o ��� uma doa����o para a campanha. Recusei-me a
gastar meio milh��o em um prato de salada de frango.
Fiquei feliz com o progresso de Marni. Ela fez algo de impor-
tante no mundo. Eu me limitei a fazer dinheiro. Ao ler sobre as
realiza����es de Marni, pela primeira vez, questionei as minhas pr��-
prias realiza����es. Eu podia imagin��-la perguntando "E o que voc��
fez pelo mundo ultimamente, Win Liberte?" Bem, eu trepei com
algumas mulheres e cheguei a jogar uma estrela de cinema dentro
de uma fonte.
Enquanto esperava, tentei entender meus sentimentos e fiquei
surpreso em constatar que Marni provocara em mim emo����es t��o
fortes. Foi como se a emo����o estivesse guardada dentro de uma
garrafa, e, de repente, a rolha tivesse pulado. Tive v��rias amantes
desde que nos separamos em Angola, mas nenhuma durou mais
que alguns meses. Em parte porque eu n��o parava quieto cons-
truindo o meu neg��cio. Mas agora eu sabia que tamb��m tinha sido
porque ainda gostava de Marni.
Por que eu estava sentado na frente da escola esperando por
ela? O que pretendia ganhar com isso? N��o estava pronto para o
casamento, nem mesmo para um relacionamento, se for esta a
412
quest��o. Ent��o, por que n��o ligava o carro e ia embora antes que
fosse tarde demais?
Analisar os meus sentimentos n��o me ajudou em nada. Con-
tinuei sentado no carro, meditando sobre a situa����o, sem saber se
deveria ficar ou ir embora. O detetive particular informara que
Marni pegava a filha ��s sextas-feiras; nos outros dias da semana,
era sua empregada, Josie, quem o fazia.
Fiquei tenso ao ver aproximar-se um carro que correspondia ��
descri����o do relat��rio. Era ela. Estacionou em frente �� escola e
entrou.
Sa�� do carro e atravessei a rua sem pensar duas vezes.
Em instantes, ela saiu da escola, conversando e rindo com sua
filhinha. Fiquei no seu caminho e quase que ela esbarra em mim.
Quando me viu, olhei bem o seu rosto, procurando desvendar seus
sentimentos. A ��nica emo����o que vi foi de surpresa.
��� Win!
��� Em carne e osso.
��� Eu... eu... o que est�� fazendo aqui?
��� Passei aqui para conhecer a sua filha. ��� Estendi a m��o
para a menina. ��� Oi, meu nome �� Win Liberte. Muito prazer em
conhec��-la.
A crian��a olhou para a m��e, que acenou em sinal de aprova����o.
��� Tudo bem, diga ao mo��o qual �� o seu nome.
��� Elena Jones ��� disse ela t��mida ao me cumprimentar.
��� �� um lindo nome. Elena era o nome da minha m��e.
��� O nome da minha �� Marni.
��� Sim, eu sei. ��� Estendi a m��o para cumprimentar Marni.
Quando senti sua m��o, eu n��o queria mais soltar.
��� Faz muito tempo.
��� Alguns diriam que n��o foi o suficiente. J�� agradeci a voc��
pela briga de amantes que colocou o programa de alimentos na
primeira p��gina dos jornais?
��� Posso explicar. E quero fazer uma doa����o para compensar
o transtorno.
413
��� N��o �� preciso nenhuma explica����o, apareceu em todos os
jornais, li sobre os seus esfor��os pat��ticos para conseguir que Shelly
Lane o aceitasse de volta. Ouvi dizer que vai ser preso por perse-
gui-la. Se n��o me engano, segundo os tabl��ides, voc�� perdeu o
controle depois de ter sido chutado da cama dela.
��� Os jornais gostam de explorar as coisas...
��� Mas aceitaremos a doa����o, se bem que devo dizer que a
publicidade foi excelente para o programa. Voc�� perdeu a melhor
parte. Ela tirou o vestido molhado quando saiu da fonte e jogou-
o no ch��o. Ele ser�� leiloado no nosso pr��ximo jantar beneficente.
Voc�� deveria participar. Podemos oferec��-lo como pr��mio de con-
sola����o.
Fiquei de joelhos.
��� O que est�� fazendo?
��� Esperando que voc�� me chute.
Duas m��es que sa��am da escola ca��ram na risada.
��� Se ele est�� propondo casamento e voc�� n��o quer, eu acei-
to ��� disse uma delas.
��� Voc�� n��o o quereria. Shelly Lane expulsou-o da cama dela.
Uma gargalhada estridente.
��� Ah, Deus, �� ele o tal?
Ah, Deus, uma ova. Levantei-me, peguei a m��o de Elena e sa��
dali com ela diante da zombaria das mulheres. Que humilha����o.
��� Aonde vai com a minha filha?
��� Elena e eu vamos sair para jantar. Voc�� poder�� nos fazer
companhia, ou ir para casa e chorar.
��� Como sabe que n��o h�� algu��m me esperando em casa?
��� Um detetive particular me contou. Ele disse que voc�� ��
uma solteirona solit��ria que assina revistas de mulheres carentes
e compra vibradores ��s d��zias.
N��o olhei para tr��s. Se ela me dissesse que tem um marido ou
algu��m importante, seria como uma punhalada bem no meio das
omoplatas.
414
73
Levei Marni e Elena ao Gladstone's For Fish, um restaurante na Pacific
Coast Highway, pr��ximo �� curva da Sunset para o mar. N��o era um
dos meus preferidos ��� muito movimentado e barulhento ��� mas ti-
nha a melhor localiza����o da cidade por ficar bem na praia. Elena podia
correr na areia enquanto Marni e eu convers��vamos e caminh��vamos.
Enquanto aguard��vamos uma mesa, tomei uma garrafa de
Corona, sem lim��o e sem copo, e Marni lambeu o sal na marguerita.
A menina ficou jogando areia no mar.
��� Grande garota ��� disse eu. ��� �� bonita como a m��e.
��� Me d�� um tempo, Win, guarde seus elogios. Voc�� detesta
crian��a e tratou a m��e dela como lixo.
��� N��o detesto crian��as, apenas n��o sei nada sobre elas. Eu
mesmo n��o tive inf��ncia, s�� me lembro de ir a enterros quando as
pessoas morriam. E n��o a tratei como lixo. Voc�� me abandonou
sem dar chance de me explicar.
��� Explicar o canalha que voc�� ��? Que forneceu as armas que
os criminosos sanguin��rios usaram contra gente inocente s�� para
ganhar mais uns poucos milh��es, quando j�� tinha uma fortuna?
Afrouxei o n�� da gravata.
��� Tome.
��� Para qu��?
��� Para me enforcar. Quer me linchar, �� juiz, jurada e promo-
tora, sabe tudo e n��o precisa de explica����es. Voc�� foi embora, saiu
do pa��s e nunca ouviu o meu lado.
415
��� Est�� bem. Explique.
Aquilo me deixou mudo. O que eu poderia contar? Que aju-
dei Jomba a conseguir um carregamento de armas... para Savimbi?
Que as armas foram usadas para manter uma guerra civil em an-
damento em Angola que, at�� hoje, continua a pleno vapor, sem
sinal de uma tr��gua? Que fiz fortuna em Angola, escavando da
terra os diamantes preciosos do pa��s e n��o dei nada ao povo em
troca?
��� N��o sei por que n��o dou um tiro na minha cabe��a ��� dis-
se eu.
��� Seria um bom come��o.
��� Marni...
��� Win, n��o foi f��cil eu vir embora. Nunca tinha sentido por
ningu��m o que senti por voc��. Agora n��o quero mais tocar na fe-
rida.
��� Voc�� deve ter sofrido muito mesmo, n��o demorou muito
para se ligar a algu��m e ter Elena.
Ela estava a ponto de jogar a marguerita no meu rosto.
Levantei as m��os.
��� A ��ltima mulher que me jogou uma bebida no rosto to-
mou um banho. Por favor, vamos s�� conversar. Sei que voc�� me
acha um insens��vel, mas s�� est�� metade certa. Tenho sentimen-
tos, sim. Menti para voc�� em Angola e lamento por isso, mas tem
que ser mais compreensiva. Eu estava debaixo de muita press��o.
Me d�� cinco minutos para eu contar o que aconteceu em Angola.
Se ainda assim voc�� achar que sou um canalha, poder�� ir embora,
e n��o a procurarei mais.
Contei a minha hist��ria, da primeira vez que soube da insen-
satez de Bernie de ficar perto de uma pista de pouso com uma
guerra em andamento. Contei toda a verdade... s�� deixei de lado
alguns detalhes que n��o queria que ela ouvisse. A sanguin��ria ini-
mizade entre a minha fam��lia e a de Jo��o e o fato de eu ter trepado
com a mulher e a filha dele foram alguns dos temas que censurei.
Quando contei que atingimos terra azul na mina, acrescentei: "E
fa��o doa����es em dinheiro a um hospital na regi��o."
416
Registrei na cabe��a que precisava pedir �� minha secret��ria que
verificasse com o advogado como fazer doa����es m��dicas em An-
gola. Eu n��o mentira. Apenas usara o verbo no presente, o que
significava que estava no processo de faz��-lo, n��o que era algo j��
feito.
S�� fiz uma pergunta: se ela estava atualmente envolvida com
algu��m.
��� Muitos homens ��� respondeu ela. Como Shelly Lane, uso
e abuso deles e os expulso da cama quando me canso. Tenho tan-
to tempo dispon��vel, trabalhando e cuidando da minha filha sozi-
nha, que vou a bares todas as noites para pegar homens.
��� Quer que eu me abaixe para levar mais uns chutes? Ou
prefere que abra as pernas para que possa faz��-lo onde d��i mais?
Ela come��ou a rir. Era um bom sinal, pensei.
Durante o jantar, elogiei Marni pelos modos de Elena.
��� �� uma pequena adulta ��� disse eu.
��� �� este o problema do filho ��nico. Eles passam a maior par-
te do tempo conversando com adultos, em vez de brigar com os
irm��os e as crian��as da sua idade.
��� O pai ajudou a cri��-la? ��� Eu estava dando espa��o para
ela me contar sobre o homem com quem se envolvera, logo de-
pois de sumir da minha vida. At�� agora, Marni n��o dissera nada
sobre a sua vida, apenas, com ar de brincadeira, me deixara saber
que n��o havia ningu��m atualmente. Apesar de n��o v��-la h�� qua-
se seis anos, tive um sentimento de posse e ci��me por outro ho-
mem ser o pai de sua filha.
Conversamos calmamente, cuidando para que Elena ouvisse
pouco da conversa enquanto se ocupava dos crayons.
Marni deu um gole na marguerita e dirigiu-me um sorriso ir��-
nico.
��� Digamos que ele �� t��o canalha quanto voc��. N��o fez nada
al��m de dar o esperma e ter um pouco de prazer.
��� Os homens s��o terr��veis ��� disse eu. ��� A maioria trepa e
vai embora. Mas os homens na minha fam��lia s��o diferentes. Te-
mos filhos e morremos cedo.
417
��� N��o fale assim.
Peguei a m��o dela.
��� Estou com muita sorte no meu neg��cio de diamantes. Eu
n��o sabia o quanto isso estava no meu sangue, o quanto eu assi-
milara os ensinamentos de meu pai. Mas, realmente, n��o sei o que
farei quando crescer. Quero ser um astronauta. Ou talvez ir para
Angola distribuir pacotes de alimentos...
Olhei para ela curioso.
��� Do que est�� rindo?
418
74
Entrei no escrit��rio que montamos na Canon, pr��ximo �� loja, e j��
fui dando ordens para a recepcionista logo na entrada. Ela apon-
tou para uma mulher que estava em p�� ao lado das janelas.
��� Tem uma visita.
Simone virou-se e sorriu para mim. Fazia tr��s anos que ela
aparecera no meu quarto do Hotel Bel Air.
��� Sente-se ��� disse eu ao faz��-la entrar. ��� H�� sempre uma
cobra no para��so, n��o ��?
��� �� isso o que pensa de mim? Que sou um r��ptil repulsivo?
��� Penso em voc�� como uma mulher bela e perigosa e prefiro
quando um oceano nos separa.
��� Se me der uma coisa pouco maior que a glande do carva-
lho, sairei da sua vida para sempre. Como sabe, era de Jo��o antes
mesmo de voc�� nascer.
��� Ele a roubou de meu pai.
��� Jo��o tem uma vers��o um pouco diferente da sua a respeito
de como o diamante de fogo veio parar nas m��os dele.
��� �� um mentiroso. E tamb��m foi o respons��vel pela morte de
Bernie. N��o sei como aconteceu, se ele mandou uns capangas de
Lisboa para jogarem Bernie pela janela, se mandou voc�� para usar
um de seus artif��cios e atra��-lo para fora da janela, ou se, simples-
mente, o arrasou financeira e emocionalmente, a ponto de ele se
jogar. Seja qual for a verdadeira hist��ria, Jo��o foi o respons��vel pela
morte de meu tio. Volte e diga a ele que Bernie est�� dando o troco.
419
��� As coisas mudaram. N��o somos t��o ricos quanto antes. Jo��o
est�� sofrendo h�� muitos anos e teve muitos problemas financei-
ros: as pessoas se recusam a fazer neg��cio com ele, e, al��m disso,
teve que pagar milh��es para n��o ser processado em Portugal. Jo��o
acusa voc�� por seus problemas.
��� Culpe o fantasma de Bernie. �� ele que sussurra no meu
ouvido.
��� Ou��a, Win, Jo��o est�� doente.
��� Fico sensibilizado.
��� Ele est�� morrendo.
��� Est�� me fazendo chorar.
��� Ele n��o tem mais nada a perder. Vai mat��-lo.
��� Deixe-o tentar.
��� Ele o far��. A ��nica chance de voc�� se salvar �� dar a ele o
diamante. Quer segur��-lo nas m��os, mais uma vez, antes de morrer.
��� Pode avisar que eu o porei nas suas m��os frias e mortas ���
e que sua alma ser�� embarcada para queimar no inferno. Ora,
vamos acabar com este papo furado. Jo��o nunca mais por�� os olhos
no diamante. O meu testamento determina que ele seja entregue
ao Smithsonian. ��� Menti. Ocorreu-me que nunca fiz um testa-
mento. Talvez eu precise de um agora.
Simone levantou-se.
��� Lamento que tenha que ser assim.
��� N��o, n��o lamenta. Voc�� s�� lamenta eu n��o cair duro e
morto. Se tivesse sentimentos humanos, lamentaria por Bernie.
��� J�� tenho problemas suficientes chorando pelos vivos, n��o
sobra tempo para os mortos. ��� Ela fez uma pausa. ��� Sabe que
Jonny est�� na cidade.
��� N��o, eu n��o sabia ��� menti. Eu a vira, mas n��o chegamos
a nos falar.
��� Estou surpresa por ela n��o t��-lo procurado. Acho que veio
para L.A. em parte por saber que estava aqui. Ela gosta de voc��.
��� Tamb��m gosto dela. �� uma grande garota. Agora, se j��
terminou...
Fiz uma cafajestada quando ela abriu a porta para sair.
420
��� �� uma pena que voc�� nunca tenha tido tempo para a sua
filha. Ela �� uma grande garota que n��o teve oportunidade na vida
porque o pai �� um ladr��o e a m��e, uma puta.
Fiquei tenso. Parecia que Simone ia pular por cima da mesa e
arrancar a minha garganta. Seu rosto ficou de v��rios tons de ver-
melho, at�� que ela se segurou e saiu com uma postura delibera-
damente calma.
Logo que se foi, chamei a minha secret��ria.
��� Telefone para uma ag��ncia de detetives. Quero um segu-
ran��a 24 horas por dia, sete dias na semana. Algu��m com arma. E
com experi��ncia de us��-la. N��o quero um homem que v�� se enco-
lher de medo.
Ela me fitou como que idiotizada.
��� Quer que eu pe��a um assassino?
��� Quero que pe��a um ex-policial, ou um soldado ex-combaten-
te. Para prote����o em tempo integral, eles dever��o designar mais de
um homem. ��� Quando se encaminhava para a porta, gritei mais
uma ordem. ��� E chame o advogado. Preciso fazer um testamento.
Pensei por um momento e telefonei para Cross.
��� Est�� no mercado para ganhar um dinheiro? Muito?
��� Quem devo matar?
��� Jo��o Carmona.
Deu-se um sil��ncio, depois ouvi o grunhido de Cross.
��� Seu amigo est�� aqui, ou mandou um grupo da pesada de
Lisboa?
��� N��o estou bem certo, talvez tudo isso. Simone est�� aqui.
Ela me fez uma visita e disse que Jo��o me ajudar�� a morrer cedo e
depois vai mijar no meu t��mulo. N��o se trata mais de dinheiro,
nem mesmo do diamante, mas de uma velha contenda familiar. A
��nica forma de sairmos disto �� um de n��s morrer.
��� O que pretende fazer? Avisar �� pol��cia?
��� Acredita que eles possam me ajudar?
Cross soltou uma gargalhada explosiva.
��� �� o que penso. Quero lutar fogo com fogo, dar a Jo��o um
pouco de seu pr��prio rem��dio. Esta cidade tem gangues de rua que
421
meteriam medo em um gorila. Estava pensando se voc�� n��o teria
uns contatos.
��� Por qu��? Porque sou negro? Seu branqueia idiota, voc�� acha
que todos os negros est��o envolvidos em viol��ncia de rua?
��� Voc�� s�� �� negro externamente, Cross, por dentro tem cor
de merda de cachorro. Estou perguntando porque voc�� me con-
tou que Megan tem um primo que �� um dos grandes nas gangues.
��� Ah, sim, as gangues latinas, aqueles machos podem matar
voc�� por n��o gostarem da cor dos seus olhos. A minha gente s��
mata por armas e dinheiro. O que quer, um encontro?
��� Isso seria um come��o.
��� O que ganho com isso? Uma parte da House of Liberte?
��� Acha que vale isso tudo?
��� Quanto vale a sua vida?
��� Comecemos com dinheiro vivo. Depois veremos aonde
podemos chegar. Darei 25 mil para voc�� marcar uma reuni��o e
segurar a minha m��o.
Quando desliguei, pensei em Cross. Eu n��o podia confiar nele
al��m da quantia que podia pag��-lo. Ele me protegera e apoiara em
Angola, mas basicamente porque o meu pre��o fora o melhor. Eu
n��o o tornaria rico de novo. N��o pude deixar de me perguntar
qual seria sua atitude ao descobrir isso.
422
75
Simone abaixou a janela da limusine e acendeu um cigarro. Sol-
tou a fuma��a para fora quando a limusine se distanciou da cal��a-
da no aeroporto de Los Angeles. Os pulm��es de Jo��o tinham se
tornado sens��veis �� fuma��a.
Simone odiava ficar longe dele por tanto tempo, pois sempre
era um choque ver como parecia envelhecer durante suas curtas
aus��ncias. Na verdade, ele n��o envelhecia mais quando eles esta-
vam separados ��� era pura impress��o. Ela pensava em Jo��o como
um homem forte e vibrante, mesmo na cadeira de roda, mas, quan-
do o via ap��s uma semana, enxergava melhor a situa����o. Ele esta-
va velho e murcho. Como eu estarei um dia, pensou, e estremeceu perante a id��ia de ficar t��o velha que seu corpo come��asse a se
autodestruir.
��� O que est�� acontecendo com Juana? ��� perguntou ele.
��� S�� a vi rapidamente. Disse que s�� mant��m contato conosco
para garantir que a sua mesada chegue na hora certa. Est�� se di-
vertindo mais que estudando. Contratei um professor particular,
mas ela o suborna com drogas e sexo para fazer seus trabalhos da
escola.
��� Ela tem visto aquele canalha?
Simone deu de ombros.
��� N��o creio. Quando perguntei, gabou-se de estar trepando
com ele. Isso me faz crer que n��o est�� dizendo a verdade.
423
��� Se n��o est�� agora, j�� esteve. A minha filha abrir as pernas
para o inimigo �� apenas um dos muitos abusos que j�� sofri por parte
daquele canalha.
Os olhos de Simone encontraram os dele.
��� Ele mandou dizer a voc�� que est�� dando o troco pelo as-
sassinato do tio.
��� Eu devia ter matado o pai dele h�� quarenta anos. Desper-
dicei a chance e, agora, estou pagando por um instante de hesita-
����o na juventude.
A limusine parou do outro lado da rua de uma creche em
Brentwood.
N��o demorou muito, Simone e Jo��o observaram Elena correr
ao encontro de Marni.
��� Claro que �� filha dele, as fei����es s��o iguais ��s do canalha.
��� Sim ��� disse Simone. ��� Sim, �� filha dele.
Jo��o acariciou a perna dela.
��� Bom, bom, voc�� trabalhou bem. Como descobriu?
��� Pelo amigo dele. Descobri que a mulher tinha uma filha e
verifiquei os dados de nascimento. Win �� o pai na certid��o de
nascimento.
��� E voc�� acha que ele n��o sabe?
��� Tenho certeza de que n��o. Falei com Cross.
��� Ele ainda est�� �� venda?
��� Mais do que nunca.
Jo��o deu uma risada. N��o foi um som agrad��vel.
��� Aquele canalha se acha dur��o, mas �� uma manteiga der-
retida. Usarei a filha para torcer seus colh��es.
��� Jo��o, n��o gosto disso, ela �� uma crian��a...
Ele bateu nela com tanta for��a que a jogou contra a porta.
��� Sua puta! Estou nesta confus��o por sua causa. Tor��a para
eu n��o mandar para ele as suas orelhas tamb��m.
424
76
Peguei Cross e seguimos para leste na Interstate 10, em dire����o a
Palm Springs. Cross arranjara um encontro com um membro de
uma gangue de rua violenta de l��, o primo de Megan. Est��vamos
no meu Bugatti EB110GT, de dois bancos com portas que se abrem
para cima e 553 cavalos que ia de zero a cem em menos de quatro
segundos.
��� Por que Palm Springs? ��� perguntei.
��� �� l�� que o homem mora.
��� Ele dirige o neg��cio de l��?
��� Ele dirige o neg��cio em todos os lugares, mas n��o vende
drogas nas esquinas. Roberto �� colombiano, de uma fam��lia anti-
ga, bom pedigree, sem dinheiro. Entrou no neg��cio de drogas por-
que gosta dos mesmos brinquedos que voc�� ��� carros caros e
mulheres. Mas �� apenas representante de um fabricante, n��o atua
na venda.
��� Ele vende drogas ��s gangues?
��� N��o, ele vende a carga do caminh��o aos distribuidores.
Quando a droga chega para a gangue de rua, j�� passou por v��rias
m��os.
��� Tanta coca deve dar uns mil anos na penitenci��ria fede-
ral, se ele for pego.
��� Esses camaradas nunca s��o pegos ��� disse Cross ��� por-
que nunca sujam suas m��os. Quando voc�� l�� sobre uma grande
425
batida policial, mesmo essas que fazem apreens��o de quinhentos
quilos, aquelas pessoas que s��o presas nunca tiveram nenhuma
transa����o com caras como Roberto. Da forma como funcionam
as batidas atr��s de droga, a pol��cia pega a arraia-mi��da e tenta
arrancar deles os nomes dos chefes da quadrilha. E nunca chegam
a Roberto porque ele est�� t��o acima na rede que ningu��m que seja
preso poder�� dizer nada a seu respeito. A coca��na vem pela fron-
teira por carreta, avi��o e navio. Uma vez aqui, Roberto �� respon-
s��vel por armazen��-la e distribu��-la, mas n��o chega a ver o material,
a n��o ser o que �� para seu consumo pessoal. Pense nele como um
CEO, encarregado das opera����es americanas para uma companhia
estrangeira multibilion��ria. ��� Cross sacudiu a cabe��a. ��� Talvez,
eu tenha estado no neg��cio errado a minha vida inteira.
��� E talvez a expectativa de vida para pessoas como Roberto
n��o seja t��o boa assim.
��� A sua tamb��m n��o parece ser das melhores.
Paramos subitamente de conversar, cada um perdido nos seus
pr��prios pensamentos. Antes disso, eu j�� havia sugerido a Cross
voltar a trabalhar para mim, e ele recusou alegando que vivia muito
bem com o lucro de seus investimentos.
Cross mudou desde Angola. Agora, est�� mais ligado em futili-
dades, roupas caras, o diamante de cinco quilates da sua garota, o
Rolex de ouro.
Ouvindo Cross falar, pela primeira vez, eu me senti mal. Per-
cebi que lhe faltava confian��a, n��o em termos de for��a f��sica ou
coragem, mas da sua auto-estima. Ele conseguiu realizar aquilo a
que se determinou e, depois, arruinou tudo. Pelo que Megan me
contou, deduzi que ele investiu mal na Bolsa e em im��veis. Ago-
ra, ao inv��s de superar isso e pedir um empr��stimo para construir
outra fortuna, escondia-se atr��s de uma fachada de bem-sucedido.
A CASA FICAVA NO TOPO dos morros do deserto, ao longo da
Highway 111 no caminho para Palm Desert, a leste da enorme
mans��o de Bob Hope que parecia um cogumelo. Em estilo espa-
nhol, cercado por um muro alto caiado de branco, o lugar me pa-
426
receu um forte quando nos aproximamos pela rua estreita de m��o
��nica.
Quando alcan��amos o topo, paramos em um port��o alto de
ferro que tinha um interfone pr��ximo. Antes que pud��ssemos
avisar a nossa chegada, o port��o abriu.
��� C��meras de vigil��ncia ��� disse Cross. ��� Eles devem estar
nos acompanhando desde que sa��mos da auto-estrada.
Paramos o carro no p��tio onde um velhinho simp��tico, que
usava um chap��u de palha para proteger o rosto do sol do deserto,
veio nos receber.
��� Est�� bem, pode deixar a�� ��� disse ele.
Cross tinha raz��o quanto �� paix��o de Roberto por belos car-
ros: estacionados no p��tio, havia um Corvette e um grande Ford
Expedition. Ao passarmos pela ca��amba do utilit��rio, vi um equi-
pamento de mergulho.
��� Bom equipamento ��� comentei com Cross. ��� Eu mergu-
lhava. Esse equipamento �� o que os Seals, os melhores mergulha-
dores da Marinha, usavam.
��� Os ex-Seals tamb��m ��� disse uma voz atr��s de mim. O ho-
mem estendeu a m��o. ��� Bem-vindo a mi casa, sou Roberto Nunez.
��� Durante quanto tempo esteve nos Seals? ��� perguntei.
��� Um ano. Meu pai me obrigou a me inscrever. Disse que eu
era um b��bado mulherengo que n��o valia nada e precisava de uma
li����o na vida. Os Seals eram a experi��ncia mais dura que ele conhe-
cia. Sobrevivi ao treinamento mas n��o �� disciplina. J�� n��o fa��o
aterrissagens clandestinas nas praias. Continuo praticando na mi-
nha casa em Malibu, e, para mergulhar de verdade, vou a Cozumel
ou ao Great Barrier Reef.
Ele falava enquanto n��s o segu��amos para dentro da casa. Atr��s
de n��s, vinha um homem com bra��os de halterofilista que Nunez
n��o se preocupou em nos apresentar. N��o precisava. Era obvia-
mente um seguran��a. Trazia nas costas uma Baretta de 9 mm semi-
autom��tica enfiada no cinto.
Nunez tinha cerca de 30 anos, era esguio, por��m musculoso.
Ele nos conduziu a uma sala de estar clara���paredes e sof��s brancos,
427
carpete cor de areia, e apresentou-me �� sua esposa, Maribel, uma
beldade de olhos escuros. Uma vers��o menor da ador��vel Maribel,
de cinco ou seis anos de idade, entrou correndo na sala e apresen-
tou-se como Elena.
��� Elena era o nome da minha m��e ��� disse eu ��� e �� o nome
da filha da minha namorada. ��� Em um impulso, tirei um saqui-
nho de veludo preto do bolso. ��� Isto �� para Elena ��� disse eu a
Maribel. Abri a m��o e lhe mostrei uma pequena pedra bruta cor-
de-rosa.
��� Est�� bem ��� riu ela ���, o que �� isso?
Peguei a minha lupa.
��� Se me der uma luz e uma folha de papel branco, mostrarei
a voc��.
��� Bonita ��� disse Maribel ao examin��-la com a lente de au-
mento. ��� �� alguma pedra preciosa?
��� �� um diamante rosa. Ainda bruto ��� expliquei.
��� Um diamante bruto. ��� Ela riu de novo. ��� Como Roberto,
mas ele n��o �� rosa.
Gostei dela. Se Roberto n��o fizesse o tipo de quem me mata-
ria se eu me aproximasse da mulher dele, eu teria ficado com te-
s��o. Diabos, eu j�� estava mesmo assim.
��� Os diamantes coloridos s��o mais raros e mais valiosos do
que a maioria dos diamantes. ��� Eu ia dar a pedra a Marni para
Elena, mas decidi, num impulso, que poderia cair no agrado de
Roberto se presenteasse sua filha com ela.
��� Mas �� t��o menor que esta.
Ela me mostrou uma pedra que devia pesar mais de cinco qui-
lates. Eu n��o gostava de diamantes grandes como an��is para mu-
lheres. Um olhar r��pido me fez saber que o meu cor-de-rosa, muito
menor, de um quilate, valia muitas vezes mais que a pedra dela.
Mas eu precisava ser cauteloso, n��o havia d��vida de que tinha sido
um presente de Roberto.
��� �� um tipo diferente de diamante ��� expliquei ���, muito
bonito, �� um diamante branco. Muito melhor para um anel de
noivado que este rosa.
428
��� Diga a verdade ��� pediu Roberto. ��� Comparativamente,
qual �� o valor de ambos?
��� Deixe-me examinar melhor.
Maribel tirou o anel, e eu o examinei com a lupa. N��o �� pos-
s��vel ter uma no����o real examinando um diamante fixado em um
engaste, mas pude ver que a gema tinha inclus��es. Imaginei
Roberto entrando em uma joalheria e deixando muitos d��lares.
Al��m de pagar um valor de venda a varejo, deve ter desembolsa-
do duas a tr��s vezes mais o valor real do anel. Eu estava numa si-
nuca. N��o podia sair dela sem mentir, e tinha certeza de que havia
um detector de mentiras escondido. Sem alternativa, joguei com
a sorte com uma vers��o da verdade.
��� O diamante �� bem branco, com um pouco de azul. N��o ��
puro, mas tudo bem, as inclus��es s��o poucas.
��� Quero saber em d��lares e centavos ��� disse Roberto.
��� O seu, na loja, menos de dez mil. O meu rosa, tr��s ou qua-
tro vezes mais.
Nunez virou-se para o camarada que era a sua sombra.
��� V�� a L.A. e mate o joalheiro que me vendeu aquele dia-
mante.
Ele riu da minha express��o.
��� S�� estava brincando.
Escrevi o nome da gerente da minha loja no meu cart��o de
visita e o entreguei a Maribel.
��� Ligue para Cameron antes de ir. Ela providenciar�� um
encontro para voc�� escolher o tipo de lapida����o e o engaste para
a pedra. Sugiro um colar, de prefer��ncia um que Elena n��o v��
perder na caixa de areia. Escolhendo uma lapida����o personaliza-
da, Elena ter�� um diamante que ser�� ��nico, como nenhum outro
no mundo. Exatamente como ela.
Maribel agradeceu e saiu da sala. Pude ver que estava encan-
tada com o meu presente. Eu tamb��m estava ��� mas a minha vida
estava em jogo. Al��m do mais, eu n��o pagara o pre��o de varejo.
��� Bebe o qu��? ��� perguntou Roberto.
��� Corona, sem gelo nem lim��o ��� pedi.
429
Cross pediu o mesmo. Sentamos no sof�� para conversar.
Roberto pousou as botas de caub��i de pele de cobra na mesa de
centro.
��� Diga o que quer de mim que vale um diamante desse teor.
��� O diamante n��o tem nenhum valor para mim se eu n��o
viver para apreci��-lo. ��� Forneci-lhe uma vers��o resumida da si-
tua����o com Jo��o, basicamente me atendo �� verdade. ��� Tenho
certeza de que ele est�� na cidade e quer me matar.
��� Incr��vel! ��� disse Roberto. ��� Lisboa, Africa, e agora L.A.;
e eu que acreditava levar uma vida de aventuras.
��� Foram mais pesadelos do que aventuras ��� assegurei-lhe.
��� E ent��o o que quer de mim? Quer que esse homem seja
morto? Veio �� pessoa errada. Eu n��o mato ningu��m. ��� Roberto
sorriu. ��� Exceto quando se trata de assunto familiar ou pessoal.
��� N��o quero que ele seja morto. Pelo que sei, voc�� lida com
muitos tipos de pessoas. Quero um nome, algu��m que eu possa
contatar e que possa faz��-lo saber que tenho amigos que est��o
aborrecidos pelo fato de ele estar planejando me matar.
��� Conte �� pol��cia.
��� Voc�� est�� brincando.
��� Contrate seguran��as.
��� Contratei. Mas quero fazer chegar a ele uma mensagem.
Do tipo que ele entenda.
Roberto encolheu os ombros.
��� Descobrirei se h�� algu��m que possa meter medo nos cojones
desse camarada. ��� Ele tomou um bom gole da cerveja, enquanto
me fitava por cima do copo. ��� Eu estava pensando que diamante
pode ser um bom investimento. Eles se mant��m valorizados?
��� Eles aumentam de valor com o tempo. Como o petr��leo,
h�� for��as de mercado que controlam a oferta e a procura para
manter os pre��os est��veis.
��� Talvez voc�� e eu dev��ssemos conversar. Tenho algum di-
nheiro em caixa que precisa ser investido. Pode ser um bom cami-
nho investir em diamantes.
430
��� "Dinheiro em caixa" traduzia-se em dinheiro sujo que pre-
cisava ser lavado. Eu n��o tinha nenhuma inten����o de me envolver
em lavagem de dinheiro ��� esse tipo de dinheiro vinha estampa-
do com listras de pris��o. Mas limitei-me a acenar e ouvir.
Deixamos a conversa s��ria de lado e falamos sobre carros e as
nossas experi��ncias de mergulho. Depois de alguns Coronas e bas-
tante conversa fiada, Roberto nos levou ao meu Bugatti e o exa-
minou. Como os homens que comparam o tamanho do p��nis, eu
disse a ele que o meu carro podia ganhar do dele. N��o se falou
mais nada a respeito da situa����o com Jo��o. Entrei no carro, e Cross
disse:
��� Espera um instante. ��� Ele saiu e foi para o lugar onde
Roberto estava. Eles conversaram longe dos meus ouvidos, e pude
ver Cross escrever alguma coisa.
��� Anotei o telefone dele ��� explicou Cross. ��� Tenho algu-
mas pedras que sobraram de Angola. Talvez, ele queira compr��-las.
Claro, e eu, talvez, comece a vender elefantes cor-de-rosa. Eu
sabia que Cross n��o tinha mais nenhuma pedra de Angola. Quando
voltou para os Estados Unidos, referia-se a elas como a sua "reser-
va", mas, desde o primeiro dia, ele me vendera todas, uma a uma,
sendo que a ��ltima eu comprei h�� cerca de dois anos. Mas Cross
conhecia alguma coisa a respeito do neg��cio de diamantes e po-
dia ter alguns contatos al��m de mim. Desconfiei que estivesse
muito desesperado e pretendendo se envolver com o tipo de di-
nheiro que pode levar �� pris��o.
��� O que achou da nossa reuni��o com Roberto? ��� pergun-
tou ele.
��� N��o sei, preciso pensar a respeito. ��� Eu n��o sabia o que
pensar. Apenas deixara um diamante muito valioso com ele. E
esperava que fizesse alguma coisa por mim. Pareceu-me um ho-
mem honrado ��� t��o honrado quanto qualquer traficante inter-
nacional de drogas podia ser.
De repente, Cross interrompeu os meus pensamentos.
��� Ei, mano, se eu precisar de um adiantamento em diaman-
tes, posso contar com voc��?
431
��� Claro. Mas lembre-se, amigo, que a Pol��cia Federal preci-
sa ser informada sobre as grandes transa����es em dinheiro vivo...
portanto, certifique-se que vai usar cheque quando for pagar. ���
Eu n��o pretendia me envolver em lavagem de dinheiro.
��� Sabe de uma coisa, seu babaca, levarei meu neg��cio para
outro lugar.
432
77
Era quinta-feira. A empregada de Marni, Josie, pegou Elena na
escola. Josie tinha cinq��enta anos. Nascida no M��xico, entrou nos
Estados Unidos ilegalmente pela fronteira, h�� mais de trinta anos.
Veio trazida por "coiotes" com outras vinte pessoas, no interior da ca��amba fechada de um caminh��o, morrendo de medo e quase
sufocando de falta de ar, o que a levou a s�� dormir de luz acesa.
Sua irm�� mais velha, que veio antes dela, conseguiu-lhe um
emprego para trabalhar por um sal��rio de fome em uma loja de
roupas esportivas que falsificava marcas famosas. A dona da loja
percebeu o jeito gentil e carinhoso de Josie e come��ou a desvi��-la
do trabalho na loja para cuidar de seus filhos. Ela recebeu o green
card e depois a cidadania, atrav��s de uma anistia para imigrantes ilegais. Josie nunca teve filhos e sentia prazer em cuidar dos filhos
de outras pessoas. Como a maioria dos seus conterr��neos, era tra-
balhadora, honesta e leal.
Josie foi trabalhar para Marni quando uma amiga sua, que
cuidou de Elena no seu primeiro ano de vida, precisou voltar para
o M��xico a fim de ajudar a m��e.
Ao entrar no pr��dio com Elena, Josie sorriu e cumprimentou
Tony, o porteiro, que estava saindo.
��� Abri a porta do apartamento para o pessoal da TV a cabo ���
informou Tony.
��� Obrigada ��� disse Josie. Ela n��o sabia por que os t��cnicos
da TV a cabo precisavam ter acesso ao apartamento. Marni n��o a
433
prevenira a respeito, mas ela n��o era uma entendida de aparelhos
eletr��nicos. Esperava que a televis��o estivesse funcionando ���
estava na hora de Oprah, seu programa favorito. O ingl��s de Josie ainda n��o era muito bom. Mesmo ap��s duas d��cadas no pa��s, faltava-lhe a habilidade para repetir o que os outros diziam. Oprah,
contudo, era f��cil de entender, pois as habilidades de comunica-
����o da apresentadora transcendiam a linguagem falada.
Quando entrou, dois homens, usando uniformes que os iden-
tificavam como empregados da firma de TV a cabo, aguardavam
na sala de estar. Eles n��o estavam trabalhando no aparelho de te-
levis��o; ao contr��rio, tomavam cerveja sentados no sof��.
Josie fez uma carranca.
��� O que est��o fazendo aqui? O que h�� de errado com a tele-
vis��o?
��� Nada ��� respondeu um deles, que pegou algo sobre a mesa
de centro.
Josie demorou um pouco para compreender que ele estava
apontando uma arma para ela.
434
78
Estava examinando as contas da minha loja de Paris quando ouvi
uma agita����o na sala ao lado e a minha porta foi escancarada.
Marni entrou com o rosto desfigurado e em estado de choque. Dei
um pulo da cadeira quando disse:
��� Eles est��o com ela.
Pronunciou as palavras devagar, agoniada. Seu rosto estava
p��lido e tenso. Minha secret��ria entrou atr��s dela.
��� Sinto muito, Win, ela...
��� Saia.
Marni estava no meio da sala. Dei a volta na mesa e me apro-
ximei dela.
��� O que est�� querendo dizer? ��� perguntei, mas, por alguma
raz��o, eu sabia a resposta, apenas n��o queria enfrent��-la.
��� Eles est��o com ela.
��� Do que voc�� est�� falando?
��� Eles est��o com a nossa filha, eles pegaram Elena.
��� Eu... o qu��?
��� Seu idiota, eles a levaram, querem o diamante. Me d�� essa
maldita pedra!
Marni voou para cima de mim, enlouquecida, e socou meu
rosto e meu peito. Segurei seus pulsos e a prendi, puxando-a para Minha secret��ria entrou correndo.
435
��� Chamei o seguran��a.
��� Saia daqui!
Ela solu��ava contra o meu peito. Meu cora����o estava acelera-
do. Falei com calma e firmeza.
��� Conte o que aconteceu. ��� Marni solu��ava, e eu a sacudi
pelos ombros. ��� Conte exatamente o que aconteceu.
��� Cheguei em casa, Josie estava amarrada e amorda��ada.
Disse que dois homens levaram Elena. Queriam o diamante de
fogo. Devem telefonar para voc��. Se n��o der a eles o diamante,
certamente a devolver��o em peda��os dentro de um saco de lixo.
O celular tocou. Por um instante eu gelei, depois atendi.
��� Ou��a bem e n��o diga uma palavra ��� disse Jo��o. ��� Se eu
ouvir alguma coisa na sua voz que n��o me agrade, cortarei uma
orelha ��� para come��ar. E continuarei cortando.
Permaneci em sil��ncio.
��� O que ��? ��� perguntou Marni. ��� O qu��?
Ela tentou pegar o fone, e eu afastei sua m��o.
��� Darei a voc�� instru����es precisas ��� disse Jo��o. ��� na Pacific
Coast Highway, h�� uma estrada de terra que desce para a praia a
18,4 quil��metros do ��ltimo posto de gasolina. Esta noite, exata-
mente �� meia-noite. Leve o diamante. Se quiser prote����o, traga o
seu amigo da Africa. Mais ningu��m. Se avisar �� pol��cia, sabe o que
farei.
Ele desligou.
��� Conte logo!
��� Est�� combinado. Farei a troca. Trarei Elena de volta.
��� Seu filho-da-puta.
��� Pare com isso. Eu n��o sabia que eles iriam atr��s dela. ���
Mas quando falei aquilo, eu sabia que, no fundo, Jo��o descobriria
um meio de me machucar. J�� me ocorrera que ele poderia tentar
fazer algum dano a Marni, mas eliminei a id��ia porque imaginei
que ele n��o arriscaria. Mas eu o subestimei.
Marni recusou uma bebida, e eu engoli tr��s goles de Jack
Daniels. Minhas m��os tremiam. Elena era minha filha. Eu ouvira
as palavras, mas o choque foi demais para que surtissem algum
436
efeito. Deveria ter imaginado. Andava muito ocupado e fui um
idiota.
��� Temos que ligar para a pol��cia ��� disse ela.
Sacudi a cabe��a.
��� N��o, voc�� n��o conhece Jo��o, ele est�� morrendo e me odeia.
N��o se importaria se eu aparecesse acompanhado da pol��cia, ma-
taria Elena na minha frente.
��� Ah, meu Deus!
Ela come��ou a tremer, e eu a abracei e deixei que chorasse
com a cabe��a enterrada no meu ombro.
Eram 4 horas da tarde. O encontro estava marcado para meia-
noite. Precisava dar um telefonema, talvez dois. Um para Roberto
Nunez. Pela sua experi��ncia em lidar com a viol��ncia, ele saberia
qual a melhor forma para eu tratar Jo��o. Precisava planejar o que
fazer. Jo��o podia ficar com o diamante, mas eu sabia muito bem
que ele n��o ia se satisfazer s�� com a pedra. O que pretendia, na
verdade, era me matar. Talvez matar Elena tamb��m porque ela seria
uma testemunha.
O que tamb��m me preocupou foi Jo��o dizer que a ��nica pes-
soa que eu podia levar comigo era Cross. Aquilo me deixava em
uma sinuca. Se eu levasse Cross, ele poderia me trair. E se estava
mancomunado com Jo��o, poderia estar esperando quando eu che-
gasse l��.
Marni, de repente, olhou para mim e falou:
��� Eu os vi em Angola.
��� O que quer dizer?
��� Gente como Jo��o ��� homens capazes de matar ou mutilar
crian��as. Ele n��o est�� blefando.
Eu sabia disso, mas n��o disse nada. Eu n��o sabia o que dizer.
437
79
Jo��o escolheu para fazer a troca um lugar isolado na Pacific Coast
Highway, ao norte de Malibu. Dali, ele teria condi����es de ver al-
gum carro se aproximar, de qualquer dire����o que viesse. Pensei na
sua escolha e logo entendi. Aquele trecho deserto lhe daria uma
vantagem, ele controlaria o tr��nsito de ambas as dire����es ��� mas
tamb��m podia ser uma arapuca, pois limitava as possibilidades de
fuga no caso de alguma coisa dar errado. Jo��o seria um tolo de criar
uma arapuca para si ��� e ele n��o era nenhum idiota.
��� Um barco ��� falei para Cross, na auto-estrada escura,
quando nos encaminh��vamos para o encontro.
��� Barco?
��� Estou pensando alto. O lugar que Jo��o escolheu n��o faz
sentido.
��� �� deserto, n��o ��?
��� Sim, mas, se ele precisar, s�� h�� um meio de escapar���pela
��gua. Veja bem, Lisboa �� voltada para o mar, assim como todo o
pa��s. Portugal foi uma grande pot��ncia naval, assim eles conquis-
taram o Brasil e todas as col��nias no mundo inteiro. Metade do
sangue portugu��s �� composto de ��gua salgada. Jo��o escolheu esse
lugar porque pode ir de carro ��� mas como Bernie costumava di-
zer, aposto um sonho por um d��lar que seu plano �� fugir pelo mar.
Para isso, �� s�� ter um barco �� sua espera a cem metros da praia e
um barquinho salva-vidas para transport��-lo at�� l��.
438
Vivi uma agonia. N��o sabia se deveria levar Cross, se ele era
amigo ou inimigo. Afinal, decidi por lev��-lo. O fato de Jo��o ter
dito expressamente que ele poderia ir comigo levou a minha para-
n��ia ��s alturas. Por que disse aquilo? Para encorajar-me a lev��-lo?
Ou para que eu suspeitasse de Cross e fosse sozinho?
Eu estava desarmado e n��o via como uma arma me ajudaria,
j�� que Jo��o n��o estava sozinho. Cross levava uma pistola semi-
autom��tica de 9 mm. N��o opinei quanto a ele vir armado, mas
n��o acreditava que aquilo pudesse servir de alguma coisa. Como
eu disse, Jo��o n��o era um tolo.
N��o consegui manter Marni afastada das negocia����es. Ten-
tei, mas ela n��o aceitou. Que diabos, em Angola ela mostrou ter
mais coragem do que eu tive em toda a minha vida de barcos e
carros velozes. Finalmente, concordei que ela esperasse em Malibu.
Se eu n��o telefonasse, at�� dez minutos depois da meia-noite, in-
formando que estava com Elena, ela ligaria para o 911 e chamaria
a pol��cia. Imaginei que dez minutos seria tempo suficiente para
Jo��o cumprir o acordo ��� ou acabar comigo.
Eu estava com medo, por mim, pela minha filha. Minha filha.
As palavras ainda soavam estranhas. Tentei visualizar Elena, ver-
me em seus tra��os, mas s�� via Marni porque n��o conseguia imagi-
nar como eu era. Nunca planejei ter filhos. Muito ocupado, eu
diria, mas talvez fosse medo. Vivenciei muitas perdas ainda jovem,
e n��o queria expor uma crian��a a isso.
��� Pelo amor de Deus, diminua a velocidade.
Sem perceber, eu estava a uma velocidade absurda naquela
auto-estrada estreita. Pisei no freio. Jo��o marcara para meia-noi-
te, e eu n��o poderia chegar um minuto antes disso.
Ao nos aproximarmos do local do encontro, um filme come-
��ou a passar na minha mente, e as minhas lembran��as antigas
surgiram com muita for��a. Vi minha m��e no leito de morte; meu
pai a me observar enquanto eu marcava onde cortar um diaman-
te; eu comendo um hamb��rguer, depois da aula, na mesa do Clube
do Diamante com tio Bernie, que palpitava, se gabava com os ami-
gos e comemorava os grandes neg��cios do dia; Marni e eu fazendo
439
amor em Cape Town. Talvez, ver a vida inteira passar na frente
dos olhos n��o seja privil��gio de quem est�� se afogando ��� ou, tal-
vez, eu estivesse me afogando e n��o sabia.
A auto-estrada estava vazia, sem carros, nem luzes. Eu nunca
teria visto a sa��da, mas, ao nos aproximamos do local, um homem
na curva da estrada sinalizou com uma lanterna para que eu en-
trasse na rua de terra. Quando diminu�� a velocidade para fazer a
curva, o homem desapareceu entre pedras e arbustos.
Est��vamos no m��ximo a trinta metros da ��gua. Era noite de
lua cheia, havia alguma coisa na ��gua, um barco com as luzes de
navega����o apagadas. A rota de fuga de Jo��o. Eu deveria ter avisa-
do a Marni para notificar a guarda costeira. Era tarde demais para
telefonar, os homens de Jo��o me veriam.
Filho-da-puta.
Parei o carro a tr��s metros da auto-estrada e desliguei o motor.
��� Por que est�� estacionando aqui? ��� perguntou Cross.
��� Ningu��m me disse onde estacionar. �� um lugar t��o bom
quanto qualquer outro. ��� Parei ali para ser visto caso algum car-
ro de patrulha da pol��cia passasse na auto-estrada.
��� Vaidade e cobi��a ��� disse eu ao abrir a porta.
��� O qu��?
��� Define bem esta situa����o. Uma combina����o fatal. ��� Sen-
ti o Cora����o do Mundo no bolso do peito. ��� Que neg��cio de
merda. Eu devia ter entrado para o neg��cio de sapatos.
Sutilmente, joguei a chave debaixo do carro ao sair. Minha
inten����o era dificultar a vida de Jo��o, caso n��o fosse eu a dirigi-lo.
Caminhamos em dire����o �� praia, e o ��nico som que se ouvia
al��m das ondas batendo na praia eram os nossos passos na pedra e
na areia. Uma noite agrad��vel, de mar calmo e pouco vento ���
perfeita para um passeio de barco sob a lua. Eu quase ri diante desse
pensamento.
Contornamos um morrote de seixos grandes e logo avistamos
a limusine de Jo��o. Ao nos aproximarmos em passos lentos, ne-
nhum dos dois com pressa, o homem que sinalizara com a lanter-
na surgiu por tr��s de n��s. Agora, ele tinha uma arma na m��o.
440
��� Continue andando ��� disse em portugu��s. Era uma c��pia
dos capangas que me seq��estraram em Paris. Talvez, fosse um deles.
Jo��o estava na cadeira de rodas com uma manta sobre o colo.
Ao lado, havia um andador de alum��nio com p��s grandes. Vi um
barco salva-vidas de borracha, de tamanho razo��vel, encostado
na praia. Sem d��vida, a inten����o de Jo��o era pegar o andador e
escapar no barco. Um de seus capangas me olhava impass��vel do
banco do motorista, com a janela abaixada. O vidro escuro da ja-
nela do banco traseiro tamb��m estava aberto, e Simone me obser-
vava. Parei a tr��s metros de Jo��o, e ela saiu do carro.
��� Onde est�� Elena? ��� perguntei a Simone.
��� Fora de perigo. Jonny ficou com ela e a levaria para Marni.
J�� deve estar l��.
��� Jonny est�� participando desta putaria?
��� Ela n��o sabe de nada, pensa que est�� fazendo um favor a
voc�� e a Marni.
��� Seu canalha de merda ��� disse Jo��o.
��� Um amador, comparado a um filho-da-p��ta como voc��.
Nunca usei uma crian��a para resolver as minhas disputas.
��� Eu teria cortado a putinha em peda��os e entregado a voc��
dentro de um saco de papel, se a minha mulher n��o a roubasse de
mim.
��� Ele enlouqueceu ��� disse Simone. ��� Um lado de seu ros-
to tinha uma grande contus��o. ��� N��o se machuca crian��as.
��� Passe o Cora����o para c�� ��� ordenou Jo��o.
Joguei a pochete para ele. Ele a sacudiu, e o diamante caiu na
palma de sua m��o.
��� Sim, sim, meu beb�� voltou ��� disse, envolvendo a pedra
com os dedos. Depois, levantou os olhos e acenou para o homem
que estava atr��s de n��s. ��� Mate-o.
Uma arma explodiu na minha orelha, e o sangue espalhou-se pelo
rosto. Fiquei atordoado e cambaleante. Cross caiu no ch��o. Olhei para
ele boquiaberto. Tinham aberto um buraco na sua cabe��a.
Olhei para Jo��o, ainda perplexo, e ele sorriu.
441
��� Um troco por Angola. Deixei voc�� para o final; no seu caso,
vai ser lento e doloroso, uma fatia de cada vez.
Ouviu-se uma explos��o vinda do mar. O barco em que Jo��o
contava fugir foi pelos ares. Agora, era a vez de Jo��o ficar at��nito.
��� Mate-o! ��� gritou ele.
Quando o atirador que aniquilara Cross se virou para obede-
cer, foi atingido por uma rajada de tiros vinda da beira da praia e
ricocheteou com o impacto. Jo��o tirou uma arma de baixo da
manta e apontou-a para mim. Inesperadamente, Simone aproxi-
mou-se por tr��s dele e cortou-lhe a garganta com uma faca.
Eu estava atordoado, quando Simone voltou correndo para a
limusine. O carro partiu acelerado e quase me atropelou.
Roberto Nunez, em sua roupa de Seal da Marinha com uma
arma autom��tica na m��o, surgiu da praia. Ele me cumprimentou
com o rifle.
��� At�� que n��o foi mal, hein, amigo? Como nos filmes.
Mais cedo, quando telefonei para Roberto e contei que Jo��o
seq��estrara Elena, ele avisou que viria pessoalmente, em vez de
me dar o nome de um contato. Ouvi um barulho de carros vindo
da rua.
��� Meus compadres ��� disse Roberto. ��� N��s lhe daremos
uma carona.
O celular tocou. Era Marni.
��� Josie telefonou. Elena est�� com ela. Voc�� est�� bem?
��� Pergunte quando eu parar de tremer.
442
80
Viajar com Marni e Elena obrigou-me a mudar o meu estilo. De-
pois do casamento, tomamos um avi��o para Nova York, e precisei
disfar��ar os olhares para a comiss��ria boazuda.
Passar pela recep����o de passageiros no JFK foi como um d��j��-
vu de quando Marni e eu desembarcamos em Lisboa, muitos anos
atr��s.
L�� estava ela, acenando o len��o com meu nome escrito em
batom vermelho.
��� N��o acredito ��� disse Marni. ��� As pol��cias de dois conti-
nentes deveriam estar atr��s dela.
Marni n��o sabia, mas, nos meus depoimentos, eu dissera ��
pol��cia que n��o poderia afirmar quem era a mulher que cortara a
garganta de Jo��o.
��� N��o v�� longe demais ��� disse Marni, ao pegar a m��o de
Elena que eu segurava.
��� Obrigada ��� disse a Simone, quando Marni e Elena sa��-
ram de perto.
��� Se �� algum consolo, n��o fiz aquilo por voc��. Jo��o estava
louco, tenho certeza de que acabaria me matando, e, talvez, a Jonny
tamb��m. ��� Ela deu de ombros. ��� Sinceramente, eu o amei, mas,
quando o c��o fica raivoso, �� preciso acabar com ele.
Meu Deus, espero nunca parecer raivoso na frente dela.
Simone entregou-me uma pochete.
443
��� Voltei para lhe dar isto.
Apertei a pochete e senti o Cora����o do Mundo.
��� Por qu��?
��� Meu cora����o mudou. Entrarei para um convento e me
tornarei freira.
Ela riu diante da express��o em meu rosto.
��� Est�� brincando comigo. ���N��o acreditei em nada daquilo.
��� Claro. Tentei vender essa coisa, mas ningu��m se disp��s a
dar um pre��o pr��ximo do valor real. A melhor oferta que recebi
foi de cinco milh��es, e eu imaginei que essa quantia voc�� tamb��m
poderia me dar por t��-la devolvido. N��o cobrarei por salvar a sua
vida.
Sacudi a cabe��a.
��� Voc�� ainda �� uma sacana de primeira classe. ��� Mas o meu
cora����o pulava, e as palmas da m��o suavam de segurar o diaman-
te. Vaidade e cobi��a ��� e eu tinha uma dose de primeira na m��o.
��� E voc�� �� um canalha. N��o fosse a sua linda mulher estar
olhando, me levaria escondido ao quartinho mais pr��ximo para
me foder. Voc�� nunca ir�� para o c��u, Win. Nenhum de n��s dois.
Nem sei se o diabo nos aceitaria.
Quando me reuni a Marni, lembrei-lhe que Simone salvara a
vida de Elena.
��� Sim, ela salvou Elena, mas antes a jogou de um penhasco.
Ela devolveu o diamante de fogo?
��� Devolveu.
��� Por qu��?
��� Passou a ser religiosa. Vai entrar para um convento.
��� Lorota. ��� E estendeu a m��o. ��� Me d�� o diamante.
��� Dar o qu��?
��� Me d�� o diamante. Ele pertence a um museu que pague o
que vale. Voc�� j�� percebeu quanto se pode fazer em Angola com
esse dinheiro? Podemos construir um hospital, ou uma escola, ou...
Peguei Elena no colo e comecei a andar. Marni precisou apres-
sar os passos para nos acompanhar. Quando ela pediu o diamante,
senti como se algu��m tivesse apertado o meu cora����o.
444
��� N��o quer fazer o bem neste mundo? ��� perguntou.
��� Quero, sim, para n��s tr��s.
��� Aquele diamante pode aplacar tanta mis��ria...
��� Que diamante?
��� Voc�� �� um ego��sta.
��� E voc�� vai entrar para um convento.
Sim, a vida n��o �� f��cil, mas vale a pena ser vivida quando voc��
tem algu��m a quem ama e que corresponde ao seu amor. Eu sabia
exatamente o que faria com o Cora����o do Mundo. Iria para a minha
mulher. Ela era uma gema pura e s�� podia usar a j��ia mais valiosa
que havia sobre a terra.
445
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Date: sáb, 17 de ago de 2019 às 09:42
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Harold Robbins nasceu em 21 de maio de 1916 nos Estados Unidos da América do Norte e faleceu em 14 de outubro de 1997.
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