rincipios
Norma Goldstein
Doutora em Letras
Professora pesquisadora do Programa de P��s-Gradua����o em
Filologia e L��ngua Portuguesa da Universidade de S��o Paulo
Versos, sons, ritmos
Edi����o revista e atualizada
N o r m a S. Goldstein
Diretor editorial adjunto Fernando Paix��o
Coordenadora editorial Gabriela Dias
Editora assistente
Baby Siqueira Abr��o
Prepara����o
Agnaldo Holanda e Beatriz Chaves
Revis��o
Ivany Picasso Batista (coord.),
Berenice Baeder e M��rcia N��boa Leme
Estagi��rias
Aline Rezende Mota
Bianca Santana
ARTE
Edi����o
Antonio Paulos
Assistente
Claudemir Camargo
Capa e projeto gr��fico
H o m e m de Melo & Tr��ia Design
Editora����o eletr��nica
Moacir K. Matsusaki
Pesquisa iconogr��fica
S��lvio Kligin (coord.), Caio Mazzilli
CIP-BRASIL. C A T A L O G A �� �� O - N A - F O N T E
S I N D I C A T O N A C I O N A L DOS E D I T O R E S DE L I V R O S , RJ.
G577v
14.ed.
Goldstein, N o r m a Seltzer, 1941-
Versos, sons, ritmos / N o r m a Seltzer Goldstein. - 14.ed. rev. e
atualizada. - S��o Paulo : ��tica, 2008
112p. - (Princ��pios ; 6)
Inclui bibliografia comentada
ISBN 978-85-08-10163-4
1. Po��tica. 2. Versifica����o. I. T��tulo. II. S��rie.
06-0665. C D D 808.1
C D U 82-1
ISBN 978 85 08 10163-4
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2 0 0 8
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Todos os direitos reservados pela Editora ��tica, 2008
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Sum��rio
1. Leitura do poema 5
Um discurso espec��fico 6
Texto e contexto 7
Unidade do poema 11
N��o h�� receitas 11
2. O ritmo do poema 13
No compasso da vida 13
O compasso dos versos 14
Palavra-chave e jogo de sons 16
O ritmo como cria����o do poeta 17
3 . Ritmos 2 0
Cada ��poca tem seu ritmo 20
Simetria 2 0
Assimetria 2 3
4. Sistemas de metrifica����o 26
A marca����o latina 26
Contando as s��labas m��tricas 27
5. Versos regulares 45
Versos brancos 4 5
Versos polim��tricos 4 7
Versos livres 4 9
6. Estrofes 52
D��sticos, tercetos... 5 2
Refr��o 5 3
4
Oitava 5 5
Quadrinha 5 6
7 . Rimas 5 7
Parentesco sonoro 5 7
Rima interna e rima externa 57
Rima consoante e rima toante 58
Rimas cruzadas, emparelhadas, interpoladas, misturadas
Rimas agudas, graves ou esdr��xulas 61
Rima rica e r i m a pobre 6 2
Resumo 6 3
8. Poema e poesia 64
Poema em prosa e prosa po��tica 64
Poesia visual 6 7
Poesia concreta 7 1
9. Figuras de efeito sonoro 74
Alitera����o 7 4
Asson��ncia 7 5
Repeti����o d e palavras 7 7
Onomatop��ia 7 9
10. Poemas de forma fixa 80
Formas e g��neros tradicionais 8 0
Soneto 8 2
Di��logo entre g��neros 8 3
11. N��veis d o poema 8 7
A s partes d o todo 8 7
N��vel lexical 8 8
N��vel sint��tico 9 1
Encadeamento o u enjambement 9 2
N��vel sem��ntico 9 3
Figuras d e similaridade 9 4
Figuras d e contiguidade 9 5
Figuras d e oposi����o 9 6
Parentescos po��ticos 9 7
12. Estabelecendo rela����es 9 9
Um exemplo de an��lise e interpreta����o 99
13. Vocabul��rio cr��tico 1 0 6
14. Bibliografia comentada 1 0 9
1 Leitura do poema
Digo que a poesia
�� um modo de ser
crian��a - cria
para onde quer.
As frases t��m pernas:
Os poemas convidam
ao som e ��s imagens
das palavras amigas.
(Fernando Paix��o. "Fantasia de autor".
In: Dia brinquedo. S��o Paulo: ��tica, 2004.)
Como dizem os versos da ep��grafe, ler poesia �� um "modo
de ser": ser crian��a, ser criativo, ser aberto ��s sugest��es do poema
e ��s associa����es entre os elementos que o comp��em. Um dos ver-
sos indica: "poemas t��m pernas", ou seja, s��o como organismos
vivos e prop��em eles pr��prios a chave para sua compreens��o. Sua
leitura envolve apelos sensoriais (Os poemas convidam/ao som e
��s imagens) e associa����es entre "palavras amigas".
Os te��ricos concordam com o poeta. Jolibert (1994) con-
sidera o poema um texto em forma de rede que "exige uma lei-
tura plural, tabular, em vez de uma leitura linear, simplesmente
informativa" (p. 202). Em outras palavras: todos os termos do
poema se entrela��am. Sendo assim, al��m da leitura cont��nua,
como a dos textos em prosa, tamb��m �� preciso fazer outras,
acompanhando a rede de sentidos sugeridos pelas "palavras
amigas" ��� que estabelecem elos umas com as outras, pelo
modo como o poema se organiza.
Um poema de M��rio Quintana cont��m sugest��o id��ntica:
O encontro
Subitamente
Na esquina do poema, duas rimas
6
Olham-se, at��nitas, comovidas,
Como duas irm��s desconhecidas.1
Segundo Quintana, as "rimas" caminham at�� a "esquina
do poema" e descobrem um parentesco surpreendente: s��o
"irm��s", pela semelhan��a sonora; s��o "desconhecidas", porque,
antes desta "esquina", n��o costumavam estar juntas.
M��rio Quintana indica o melhor caminho para a leitura e a
compreens��o do poema: a busca dos "encontros" de palavras no
interior do texto, a pesquisa das "irm��s desconhecidas" que,
tendo os respectivos sentidos associados, d��o pistas para a inter-
preta����o do texto.
Um discurso espec��fico
Nos textos comuns, n��o-liter��rios, o redator escolhe as pala-
vras pela sua significa����o. Na elabora����o do texto liter��rio, ocorre
a preocupa����o com outra opera����o, t��o importante quanto a pri-
meira: a combina����o. Desse modo, sele����o e combina����o de pala-
vras articulam-se, criando no texto algumas pistas para o leitor.
O discurso liter��rio �� espec��fico; sua linguagem �� elabora-
da, de modo que o aspecto formal tamb��m aponte as significa-
����es do texto. No poema, isso se d�� de maneira particularmente
acentuada. Sele����o e combina����o de palavras s��o pautadas n��o
apenas pelo crit��rio da significa����o, mas tamb��m por outros
crit��rios, como o r��tmico, o sint��tico, o sonoro, o decorrente de
paralelismos e jogos formais.
Como resultado, o texto liter��rio, particularmente o
poema, adquire certo grau de tens��o, sugerindo mais de um sen-
tido. Da�� a plurissignifica����o do poema, motivo pelo qual ele
pode (e deve) ser objeto de repetidas leituras.
1 Q U I N T A N A , Mario. Bau de ossos. Rio de Janeiro: Globo, 1986. p. 36.
7
Esses aspectos decorrem da predomin��ncia da "fun����o
po��tica da linguagem" nos textos liter��rios, segundo Jakobson
(1969). Quando nos comunicamos, entram em jogo seis ele-
mentos: o emissor, o destinat��rio ou receptor, o contexto, o
canal, o c��digo e a mensagem. Conforme o elemento da comu-
nica����o que se deseja enfatizar, h�� predom��nio de uma fun����o
da linguagem. Se prevalecer o emissor, tem-se a fun����o emoti-
va; se for o destinat��rio ou receptor, valoriza-se a fun����o conativa
ou apelativa; se o priorizado for o contexto ou referente, trata-se
de fun����o referencial; caso o mais importante seja o canal de
comunica����o, ser�� a vez da fun����o f��tica; caso avulte o c��digo
empregado, tem-se a fun����o metaling����stica; quando a ��nfase
for na pr��pria mensagem, predomina a fun����o po��tica.
Em toda comunica����o, est��o presentes os seis elementos e
as seis fun����es; o que ocorre �� a predomin��ncia de uma delas.
Na poesia rom��ntica do s��culo XIX, por exemplo, os poetas, ao
compor versos, manifestavam sua subjetividade; por isso, na
sua produ����o, ao lado da fun����o po��tica da linguagem ��� a pre-
dominante ��� manifesta-se tamb��m a fun����o emotiva, marcada
por pronomes e verbos na primeira pessoa. Na poesia simbolis-
ta e modernista, certos poetas manifestavam preocupa����o com o
fazer po��tico e art��stico. Em suas cria����es, al��m da fun����o po��-
tica, fica evidente a import��ncia da fun����o metaling����stica, em
poemas tratando da pr��pria poesia.
A melhor maneira de perceber a complexa estrutura po��ti-
ca �� insistir em releituras do texto a ser lido e interpretado.
Texto e contexto
Todos os textos, falados ou escritos, s��o empregados em
uma situa����o de comunica����o entre dois ou mais interlocutores.
As condi����es de produ����o t��m de ser consideradas para o texto
ser bem compreendido. Caso essas condi����es mudem, pode se
alterar tamb��m o sentido de um texto.
8
Quando se somam o texto e suas condi����es de produ����o,
fala-se em discurso, resultante das condi����es de produ����o e da
intera����o entre (pelo menos dois) interlocutores. Se houver
mudan��as nessas condi����es, o discurso sofrer�� altera����es, o
sentido passar�� a ser outro.
Observe como isso ocorre com um quarteto de "Paisagem
com figuras", de Jo��o Cabral de Melo Neto. Leia os versos:
Podeis aprender que o homem
�� sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
N��o �� a morte mas a vida.2
A compreens��o desses quatro versos deve levar em conta
a autoria e a fonte. Considerado como parte de um poema, seu
sentido sugere a import��ncia da vida humana, n��o s�� pela signi-
fica����o das palavras, mas tamb��m pelos recursos formais que
apoiam essa significa����o. Alguns exemplos: "medida" rima
com "vida", sugerindo aproxima����o dos dois termos; "homem"
e "medida" aparecem duas vezes, a repeti����o �� um recurso que
destaca essas palavras; a consoante "m" presente nos dois voc��-
bulos �� reiterada em outros, propondo elos entre todos eles:
homem (2 vezes), melhor medida (2 vezes), mais, morte, mas;
ocorre uma adjetiva����o inusitada: "medida" vem caracterizado
por "melhor", isto ��, em vez de quantidade, mede-se a qualida-
de. Os recursos formais acentuam o valor da vida humana, na
vis��o do poeta criador dos versos.
Releia os mesmos versos, agora inseridos em um an��ncio:
M E L O N E T O , Jo��o Cabral de. "Preg��o tur��stico do Recife", do livro Paisagens com
figuras. In: Antologia po��tica. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1965. p. 115-116.
9
O an��ncio retoma o quarteto, colocando-o em um novo
texto e alterando seu sentido. Ele mescla homenagem e divulga-
����o das editoras que publicaram a obra de Jo��o Cabral de Melo
Neto, no dia seguinte ao do falecimento do poeta. Abaixo dos
versos, seu nome vem em destaque, seguido pelas datas de nas-
cimento e morte.
Neste caso, qual a "medida" do homem? E qual a "medi-
da" do poeta? Como a de todo ser humano, sua vida teve um
final. No entanto, sendo artista, ele permanece vivo por meio de
sua obra: enquanto for lido, sua poesia se eterniza como sua
"melhor medida".
Passemos a outro exemplo. Em 1953, Cec��lia Meireles
publicou um poema narrativo, Romanceiro da inconfid��ncia,
resultado de dez anos de pesquisa hist��rica, mesclando resgate
hist��rico e elabora����o po��tica. O livro est�� organizado em
v��rias partes, cujos t��tulos se alternam, retomando as denomina-
1 0
����es de "Falas", "Cen��rios" e "Romances". Dentre estes, o
"Romance LIII ou das palavras a��reas" apresenta um refr��o ���
conjunto de versos que se repetem ao longo do poema:
Ai, palavras, ai palavras,
que estranha pot��ncia, a vossa!3
No poema "Romance LIII", bem como ao longo de todo o
livro Romanceiro da inconfid��ncia, os versos do refr��o s��o
repetidos em fun����o dos fatos hist��ricos e dos diferentes senti-
dos do termo "palavra" naquele contexto: ter expressado o
sonho dos inconfidentes; ter possibilitado a organiza����o do
grupo; ter figurado nos poemas de alguns deles, como Tom��s
Antonio Gonzaga e Cl��udio Manuel da Costa; ter sido usada
pelo traidor que delatou o movimento; ter sido empregada para
condenar os participantes.
Esse mesmo refr��o foi utilizado como ep��grafe, ou texto de
abertura, em memorial ��� isto ��, um curriculum vitae circuns-
tanciado ��� de um docente e pesquisador universit��rio. Trans-
postos a esse novo contexto, os versos assumiram nova significa-
����o, pois pesquisa e ensino s��o atividades nas quais a palavra ��
usada para registrar, transmitir e divulgar conhecimentos.
Ao longo deste livro, vamos tratar de quest��es voltadas
para a leitura, a an��lise e a interpreta����o do poema, por vezes
sem levar em conta o contexto, exclusivamente por raz��es did��-
ticas. No entanto, deve ficar claro que tanto poemas quanto
outros g��neros textuais devem sempre ser interpretados levan-
do-se em conta a situa����o de comunica����o e as condi����es de
produ����o. Sem apoio no contexto, todo texto corre o risco de ter
seu sentido truncado.
3 M E I R E L E S , Cecilia. Obra po��tica. Rio de Janeiro: Jos�� Aguilar, 1958. p. 793.
1 1
Al��m disso, n��o se pode esquecer o papel fundamental do
leitor. E sua leitura que vai dar sentido ao poema.
Unidade do poema
Como toda obra de arte, o poema tem uma unidade, fruto
de caracter��sticas que lhe s��o pr��prias. Ao analisar um poema, ��
poss��vel isolar alguns de seus aspectos, em um procedimento
did��tico, artificial e provis��rio. Nunca se pode perder de vista a
unidade do texto a ser recuperada no momento da interpreta����o,
quando o poema ter�� sua unidade org��nica restabelecida.
Durante as etapas da an��lise, o leitor n��o deve perder de
vista o horizonte da unidade do poema, no momento em que
todos os aspectos devem ser relacionados uns aos outros, para a
interpreta����o do texto como obra una, coesa e coerente.
Igualmente, ser�� preciso considerar o poema em fun����o
das condi����es de produ����o: quem o escreveu? Quando? Com
qual finalidade? Dirigido a qual interlocutor? A leitura que
fazemos hoje �� a mesma ou se alterou? Na etapa final da inter-
preta����o, �� preciso que o leitor leve em conta a unidade do
poema, assim como as rela����es entre texto e contexto.
N��o h�� receitas
Cabe ao leitor ler, reler, analisar e interpretar. Ao analisar,
�� mais simples come��ar pelos aspectos mais palp��veis do
poema, aqueles que saltam aos olhos ��� ou aos ouvidos. A
seguir, �� preciso estabelecer rela����es entre os diversos aspectos
do texto para tentar interpret��-lo e, ainda, buscar elos entre
texto e contexto. Como j�� foi dito, essa rela����o �� fundamental
para a compreens��o do sentido.
1 2
Sendo assim, cada leitura toma-se uma experi��ncia ��nica,
vivida por um leitor espec��fico que buscar�� as pistas que cada
poema lido lhe sugere. Por isso n��o h�� "receitas" para analisar e
interpretar textos; isso nem seria poss��vel, dado o car��ter parti-
cular e espec��fico de cada cria����o de arte e considerada, igual-
mente, a variedade de contextos que podem envolver cada leitura.
O pr��prio texto e o pr��prio contexto devem sugerir ao estudioso
quais as linhas de seu percurso. Mas, de certo modo, �� poss��vel
pensar em "t��cnicas" de an��lise que seriam uma esp��cie de
apoio para a leitura do poema.
Esta obra pretende contribuir parcialmente nesse sentido,
tratando da an��lise dos aspectos formal e r��tmico do poema.
Dado o primeiro passo ��� a an��lise formal e r��tmica ���, ser��
preciso que o leitor prossiga, estabelecendo rela����es entre estes
e os demais aspectos do poema: escolha do vocabul��rio, cate-
gorias gramaticais predominantes/ausentes, organiza����o sint��-
tica, figuras. Ele dever�� tentar perceber como se processou n��o
s�� a escolha ou sele����o de palavras, mas tamb��m a combina����o
que aproximou certas palavras umas das outras, visando ao
efeito po��tico.
A interpreta����o dificilmente ser�� a palavra final, se for
feita por uma s�� pessoa. O texto liter��rio talvez seja aquele que
mais se aproxima do sentido etimol��gico da palavra "texto":
entrela��amento, tecido. Como "tecido de palavras", o poema
pode sugerir m��ltiplos sentidos, dependendo de como se perce-
ba o entrela��amento dos fios que o organizam. Ou seja: geral-
mente, ele permite mais de uma interpreta����o. Dada a plurissig-
nifica����o inerente ao poema, a soma das v��rias interpreta����es
seria o ideal.
2 O ritmo do poema
No compasso da vida
Toda atividade humana se desenvolve dentro de certo
ritmo. Nosso cora����o pulsa alternando batidas e pausas; nossa
respira����o, nossa gesticula����o, nossos movimentos s��o ritma-
dos. H�� trabalhos coletivos ��� tanto no campo como na ind��s-
tria ��� que t��m rendimento maior em virtude do ritmo conjunto
de todos os participantes. O resultado de certas provas esporti-
vas depende do ritmo dos membros da equipe.
O ritmo aparece tamb��m na produ����o art��stica do homem.
De um modo especial, na poesia. Como o ritmo faz parte da
vida de qualquer pessoa, sua presen��a no tecido do poema pode
ser facilmente percebida por um leitor atento, que ��, ao mesmo
tempo, um ouvinte. A poesia tem um car��ter de oralidade muito
importante: ela �� feita para ser falada, recitada. Mesmo que leia-
mos um poema silenciosamente, perceberemos seu lado musi-
cal, sonoro, pois nossa audi����o capta a articula����o (modo de
pronunciar) das palavras do texto. Se o leitor passar da percep-
����o superficial para a an��lise cuidadosa do ritmo do poema, ��
prov��vel que descubra novos significados no texto, como ilus-
tram as leituras "r��tmicas" que se seguem.
1 4
O compasso dos versos
A musicalidade (sugest��o de m��sica e ritmo) pode partir
do t��tulo, algumas vezes. Como na letra da can����o "A banda",
de Chico Buarque de Holanda. O nome remete a m��sica, mul-
tid��o, festejo. A partir da��, fica-se na expectativa de um texto
que contenha essas sugest��es. �� o que acaba acontecendo. A
banda passa e altera a vida das pessoas: o triste vira alegre; o
velho se torna crian��a; o que est�� parado come��a a se movi-
mentar. A tem��tica est�� apoiada no ritmo do texto: simples,
marcado, contagiante:
Estava �� toa na vida,
O meu amor me chamou,
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor.1
O ouvinte capta o apelo do texto gra��as �� harmoniza����o de
todos os seus elementos ��� um deles, o ritmo. �� poss��vel come-
��ar a perceb��-lo por meio da observa����o das s��labas po��ticas:
Es- TA- va a -TO- a- na- VI (da)
O- M E U - a- MOR- me- cha- M O U
Pra- VER- a- B A N - da- pas- SAR
Can- T A N - do- COl- sas- de a- MOR.
As s��labas destacadas s��o fortes; as outras, fracas. Se
usarmos os sinais - e , respectivamente, para s��labas fortes e
fracas, ocorrer�� o seguinte:
Es- TA- va a -TO- a- na- VI (da)
- II - - I I
1 H O L A N D A , Chico Buarque de. " A banda". In: Chico Buarque de Holanda. LP. S��o Paulo: RGE 5303, 1966.
1 5
O- M E U - a- MOR- me- cha- M O U
Pra- VER- a- BAN- da- pas- SAR
Can- T A N - do- COI- sas- de~a- MOR.
A regularidade de ritmo facilita a memoriza����o. Trata-se,
aqui, do ritmo da letra da can����o, sem levar em conta a sua
melodia, ou seja, o texto apenas em rela����o ��s palavras que o
comp��em, como uma esp��cie de poema.
Al��m do jogo da altern��ncia entre s��labas fortes e fracas
��� que vem a ser a cad��ncia do poema ���, h�� outros efeitos
sonoros. A repeti����o de letras, por exemplo:
EsTava �� Toa na vida
O Meu aMor Me chaMou
Era ver a banda Passar
Cantando Coisas de aMor.
Voc�� percebe a retomada das seguintes consoantes: T, na
primeira linha ou primeiro verso; M no segundo verso; P, no ter-
ceiro; e C, al��m de M, no quarto. Em todos os versos h�� um
outro som que se repete: a vogal A oral e nasal, �� ou An:
O meu _ m o r me eh mou
Pr ver b AN dA p A ss A r
C t do coisAs de Amor.
As repeti����es lembram o som das percuss��es da banda.
Tamb��m marcam o compasso da marcha, ritmo musical que
1 6
percorre todo o texto. A banda rompe com o cotidiano das pes-
soas, que se p��em a ouvi-la, levadas por um feiti��o irresist��vel.
Enquanto ela passa, dura o encantamento, a ilus��o. Depois, tudo
volta a ser como antes:
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou.
Neste ��ltimo quarteto, a repeti����o do som S (grafado " s "
ou "ss"), remete ao sil��ncio depois da passagem da banda e do
final da festa.
Palavra-chave e jogo de sons
No poema "Jos��", de Carlos Drummond de Andrade, h��
uma estrofe que formula uma s��rie de hip��teses, todas elas ini-
ciadas pela conjun����o condicional "se", repetida em alguns ver-
sos, como uma esp��cie de eco, apoiando e ampliando o sentido
do texto. Nesse caso, a palavra-chave "se" contamina outros ter-
mos com sua sonoridade:
Se voc�� gritasse,
se voc�� gemesse,
se voc�� tocasse
a valsa vienense,
se voc�� dormisse,
se voc�� cansasse,
se voc�� morresse...
Mas voc�� n��o morre,
voc�� �� duro, J o s �� ! 2
A N D R A D E , Carlos Drummond de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964.
p. 130.
1 7
Nesse trecho, �� poss��vel notar v��rios efeitos sonoros e r��t-
micos. A palavra "se" aparece repetidamente, sempre na mesma
posi����o: a an��fora (repeti����o de uma palavra, na mesma posi����o,
em versos diferentes) �� valorizada pelo eco que a mesma s��laba
faz no interior de outras palavras, como "voC��", "gritaSSE",
"gemeSSE", "tocaSSE " etc. O jogo sonoro ap��ia-se na altern��n-
cia entre s��labas fortes e fracas:
Se - vo - C��- gri - TAS(se)
Se - vo - C��- ge - MES(se)
O leitor percebe as hip��teses n��o s�� pelo sentido, mas
tamb��m pelas rimas, pela sonoridade, pelo ritmo. Da�� a for��a de
contraste dos dois versos finais: o termo "mas", no in��cio do
oitavo verso, op��e a realidade �� s��rie de alternativas hipot��ticas,
produzindo ruptura simult��nea do sentido e da seq����ncia sonora.
O ritmo como cria����o do poeta
As no����es de metro, verso e ritmo est��o estreitamente
ligadas em nossa tradi����o liter��ria. As leis de metrifica����o ou
versifica����o apresentam normas a ser seguidas, estabelecendo
esquemas definidos para a composi����o do verso. No sistema
qualitativo, tais regras subdividem os versos em p��s ou segmen-
tos, compostos de s��labas longas e s��labas breves. No sistema
sil��bico ou acentuai, elas determinam a posi����o das s��labas for-
tes em cada tipo de verso.
O ritmo �� formado pela sucess��o, no verso, de unidades
r��tmicas resultantes da altern��ncia entre s��labas acentuadas (for-
tes) e n��o-acentuadas (fracas); ou entre s��labas constitu��das por
vogais longas e breves.
At�� o in��cio do s��culo XX valorizava-se sobretudo a con-
tagem sil��bica dos versos. Mais recentemente, essa no����o asso-
1 8
cia-se �� das unidades r��tmicas, que, de certo modo, abrange a
anterior. A nova posi����o cr��tica permite analisar o ritmo do
verso livre, inova����o modernista que n��o segue nenhuma regra
m��trica, apresentando um ritmo novo, liberado e imprevis��vel.
Na leitura de um poema, o verso se destaca j�� a partir da
disposi����o gr��fica na p��gina: uma margem �� direita, outra ��
esquerda dos versos; uma linha em branco separando as estro-
fes. Cada verso ocupa uma linha, marcada por um ritmo espec��-
fico. Um conjunto de versos comp��e a estrofe, dentro da qual
pode surgir outro postulado m��trico: a rima, ou seja, a seme-
lhan��a sonora no final de diferentes versos. Uma vez que a
prosa se imprime em linhas ininterruptas, a organiza����o do
poema em versos caracteriza, graficamente, um tra��o distintivo
do poema.
As normas m��tricas foram seguidas de modo diferente em
cada per��odo liter��rio. Ora se preferia determinado esquema r��t-
mico, ora se mesclavam diferentes tipos de metro. Em certas
��pocas surgia uma inova����o. A mais marcante, historicamente,
foi o verso livre modernista, que n��o segue nenhum tipo de
esquema r��tmico preestabelecido, como se retomar�� adiante.
A m��trica ��, de certo modo, exterior ao poema. Ao com-
por, o poeta decide se vai, ou n��o, obedecer ��s leis m��tricas que
seriam um suporte ou ponto de apoio. Nada mais que isso. Gra-
��as �� criatividade do artista, o poema, depois de pronto, assume
um ritmo que lhe �� pr��prio.
O ritmo pode decorrer da m��trica, ou seja, do tipo de
verso escolhido pelo poeta. Ele pode resultar ainda de uma s��rie
de efeitos sonoros ou jogo de repeti����es. O poema re��ne o con-
junto de recursos que o poeta escolhe e organiza dentro de seu
texto. Cada combina����o de recursos acarreta um novo efeito.
Por isso cada poema cria um novo ritmo.
Um pouco mais �� frente, voc�� vai ver os tipos de verso, de
estrofe e os recursos f��nicos mais freq��entes em nossa l��ngua.
1 9
No final, uma an��lise de texto ilustrar�� a correla����o entre o
ritmo e os demais aspectos do poema. O objetivo �� que se passe
a ler o poema com os olhos e os ouvidos, isto ��, como uma orga-
niza����o visual e sonora. O leitor comum perceber�� o ritmo po��-
tico isolado do significado, enquanto o leitor atento, treinado a
ouvir, poder�� captar no poema o ritmo e o significado como
uma unidade indissol��vel.
3 Ritmos
Cada ��poca tem seu ritmo
A pr��pria origem da palavra "arte" implica uma atividade
transformadora realizada pelo homem. Essa atividade, por sua
vez, traz sempre, direta ou indiretamente, certas marcas das
condi����es concretas em que ela se efetua. Da�� se compreende
que o ritmo, componente do poema, deva ter alguma rela����o
com a ��poca ou a situa����o em que �� produzido.
Um exemplo: a vida das pessoas, durante muito tempo,
era mais padronizada, talvez mais calma. Nesse per��odo, o
ritmo era sim��trico e regular. Ele correspondia �� vida que as
pessoas levavam. A regularidade ��� de vida e de ritmo po��tico
��� prevaleceu at�� fins do s��culo XIX e in��cio do s��culo XX.
A partir da segunda d��cada do s��culo XX, a vida das pes-
soas tornou-se mais liberta de padr��es e mais imprevis��vel. O
ritmo dos poemas acompanhou o processo: tornou-se mais
solto, mais livre, menos regular, menos sim��trico.
Simetria
Leia um trecho de "Remorso", de Olavo Bilac:
2 1
Sinto o que esperdicei na juventude;
Choro, neste come��o de velhice,
M��rtir da hipocrisia ou da virtude,
Os beijos que n��o tive por tolice,
Por timidez o que sofrer n��o pude,
E por pudor os versos que n��o disse!1
Para verificar a m��trica do poema, vamos fazer a escans��o
do primeiro verso. Escandir significa dividir o verso em s��labas
po��ticas. Note que nem sempre as s��labas po��ticas correspondem
��s s��labas gramaticais. O leitor-ouvinte pode juntar (ou separar)
s��labas, quando houver encontro de vogais, de acordo com a
melodia do verso. O ouvido de cada um vai indicar como proce-
der. Leia e releia em voz alta, percebendo a cad��ncia do verso:
Sin- to o - que es- per- di- CEI- na- ju- ven- T U (de)
1 2 3
4
5
6
7
8
9 1 0
Ao escandir, isto ��, dividir um verso em s��labas m��tricas,
em portugu��s, a contagem se det��m na ��ltima s��laba t��nica. Se
houver outra(s) depois dela, n��o se considera(m) para efeito
m��trico. No verso acima, voc�� observa que algumas s��labas apa-
recem em letras mai��sculas. S��o as s��labas fortes ou acentuadas.
Podemos resumir o esquema r��tmico (m��trico) desse verso da
seguinte maneira: E.R. 10(6-10). Ou seja: �� um verso de 10 s��la-
bas po��ticas, como se indica antes do par��ntese; s��o acentuadas
as s��labas de n��mero 6 e de n��mero 10, como se indica no inte-
rior dos par��nteses. Ele �� composto de dois segmentos r��tmicos:
o primeiro at�� a sexta s��laba e o segundo, at�� a d��cima.
Leia em voz alta os tr��s versos seguintes, em que aparece
o mesmo E.R. 10(6-10):
1 B I L A C , Olavo. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1976. p. 94.
22
Cho- ro- nes- te- co- ME- ��o - de - ve- LHI (ce)
1
2
3
4
5 6 7 8 9 1 0
M��r- tir- da hi- po- cri- SI- a ou- da- vir- TU (de)
1 2 3
4
5
6
7 8 9 1 0
Os- bei- jos- que- n��o- Tl- ve- por- to- LI (ce)
1 2 3 4
5
6
7
8
9 1 0
No pen��ltimo verso, o metro (tamanho) �� o mesmo ��� dez
s��labas. O que muda �� a posi����o das s��labas acentuadas:
Por- ti- mi- DEZ- o- que- so- FRER- n��o- PU (de)
1
2
3
4
5
6
7 8 9 1 0
Representa-se assim este E.R.: 10(4-8-10). Isto ��: verso
de dez s��labas ou decass��labo, com acento na quarta, na oitava e
na d��cima s��labas. O primeiro tipo sugere a biparti����o em dois
segmentos r��tmicos; este segundo, a triparti����o.
J�� no ��ltimo verso, retorna o E.R. 10(6-10):
E- por- pu- dor- os- VER- sos- que- n��o- DIS (se)
1
2
3
4
5
6
7 8 9 1 0
�� poss��vel perceber outro acento, menos forte, na quarta
s��laba ("dor"). A indica����o �� feita entre colchetes por ser acento
secund��rio: E.R. 10([4]-6-10).
Releia os seis versos de Bilac. Voc�� vai verificar que a
��ltima s��laba po��tica �� sempre acentuada: ela marca o fim do
verso, do segmento r��tmico. Al��m da altern��ncia entre s��labas
fortes e fracas, o ritmo prov��m de outros efeitos sonoros, como
a repeti����o de letras ou palavras. Um deles, a rima: repeti����o de
sons semelhantes no final de versos diferentes. Verifique as
rimas do trecho anterior:
2 3
juventude / virtude / pude
velhice / tolice / disse
No conjunto, fica a impress��o de sim��trica regularidade.
No pen��ltimo verso, h�� uma altera����o no esquema r��tmico, pre-
parando o verso final, aspecto mais relevante do remorso do
poeta: "os versos que n��o disse". Percebe-se o metro apoiando a
famosa chave de ouro parnasiana.
Assimetria
A partir das primeiras d��cadas do s��culo XX, o ritmo dos
poemas come��a a ser cada vez mais solto e distanciado das
regras da m��trica tradicional. Veja, como exemplo, "O poeta
come amendoim", de M��rio de Andrade:
Brasil que eu amo porque �� o ritmo do meu bra��o
[aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balan��o das minhas cantigas amores e dan��as.
Brasil que eu sou porque �� a minha express��o muito
[engra��ada,
Porque �� o meu sentimento pachorrento
Porque �� o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de
[dormir.2
Percebe-se um poema completamente diferente do ante-
rior. Vamos come��ar pelo vocabul��rio, pelas palavras emprega-
das em cada texto. No primeiro: "esperdicei", "m��rtir", "hipo-
L A F E T �� , Jo��o Lu��s (Org.). M��rio de Andrade (antologia). S��o Paulo: Abril Educa-
����o, 1982. p. 16-17. S��rie Literatura Comentada.
2 4
crisia", "virtude", "timidez", "tolice" ��� termos cultos, pr��prios
da linguagem escrita. No segundo: "engra��ada", "pachorrento",
"jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir" ��� express��es
simples, freq��entes na linguagem falada.
Passemos �� sintaxe, ordem dos termos na frase. No poema
de Bilac, h�� invers��es: "Por timidez o que sofrer n��o p u d e " que,
em ordem direta, ficaria assim: "O que n��o pude sofrer, por
timidez". No poema de M��rio, a ordem dos termos �� a m e s m a
da linguagem corrente: direta. Quanto ao metro, no primeiro
p o e m a todos os versos se assemelham: decass��labos. No segun-
do, cada verso tem um tamanho diferente. Observe:
Bra- sil- que eu- a- mo- por- que �� o- rit- mo- do - meu-
1 2 3
4
5
6 7 8 9 10 11
bra- ��o a- ven- tu- RO (so)
12 13 14 15 16
No primeiro verso, 16 s��labas po��ticas. Quanto aos acen-
tos, voc�� ver�� que eles podem variar a cada leitura, pois trata-se
de verso livre, cuja acentua����o n��o obedece ��s regras m��tricas
cl��ssicas. Isto ��: os acentos n��o s��o fixos, com exce����o do da
��ltima s��laba. Outra leitura do m e s m o verso, separando vogais,
resultaria em um n��mero maior de s��labas po��ticas.
0 verso dois �� bem menor; apenas sete s��labas:
O- gos- to- dos- meus- des- CAN (sos)
1 2 3 4 5 6 7
Verifique como o metro varia de verso para verso. Os ter-
mos simples, a ordem direta, o ritmo liberado do p o e m a refle-
tem o novo modo de vida do s��culo XX.
N o s dois casos, o ritmo faz parte de u m a concep����o de
arte, de uma vis��o de mundo. N �� o h�� um ritmo melhor, outro
25
pior; apenas ritmos diferentes, cada um traduzindo um modo de
ver o mundo e de viver. Insisto: n��o basta analisar o ritmo. ��
preciso associ��-lo, sempre, aos demais aspectos do texto. Deve-
se, ainda, relacionar a obra ao contexto sociocultural em que ela
foi produzida ��� �� preciso interpretar o texto em fun����o do con-
texto. O modo de compor associa-se �� tem��tica do poema para
traduzir um modo de vida, um conjunto de valores, uma vis��o
de mundo.
4 Sistemas de metrifica����o
A marca����o latina
Para metrificar ou "medir" versos existe mais de um tipo
de versifica����o. Entre os latinos e os gregos da Antiguidade
cl��ssica havia o sistema quantitativo: considerava-se a altern��n-
cia entre s��labas longas e s��labas breves. A unidade de tempo
seria a s��laba longa, representada pelo sinal / - /. A s��laba breve,
representada pelo sinal / /, correspondia �� metade da longa,
ou seja, duas breves seriam equivalentes �� dura����o de uma s��la-
ba longa.
De acordo com a distribui����o das s��labas longas e das
breves, o poeta compunha diferentes segmentos de versos, cha-
mados p��s. Estes s��o os principais p��s m��tricos do sistema
quantitativo:
uma breve e uma longa: / - / p��j��mbico
uma longa e uma breve: / - / p�� trocaico ou troqueu
duas longas: / - - / p�� espondeu
uma longa e duas breves: / - / p�� d��tilo
duas breves e uma longa: / - / p�� anapesto ou anap��stico
2 7
Com o passar do tempo, em vez de dura����o, ou seja, alter-
n��ncia entre longas e breves, passou-se ao crit��rio de intensidade,
isto ��, �� altern��ncia entre s��labas acentuadas e n��o-acentuadas.
O sistema quantitativo, adaptado ao crit��rio de intensida-
de, permanece em algumas l��nguas. Em portugu��s, nosso siste-
ma �� o da contagem de s��labas m��tricas, ou seja, o sistema sil��-
bico-acentual. Conta-se o n��mero de s��labas dos versos; em
seguida, localizam-se as s��labas fortes, t��nicas ou acentuadas
em cada verso.
No entanto, a influ��ncia do sistema latino permanece.
N��o raro l��em-se coment��rios sobre o ritmo anap��stico de um
poema. Trata-se da altern��ncia entre duas s��labas fracas e uma
s��laba forte, numa adapta����o da quantidade r��tmica ao sistema
acentuai. Al��m disso, esse tipo de crit��rio pode possibilitar a
descoberta de parentesco r��tmico entre versos aparentemente
diferentes. Por exemplo, um verso curto (5 ou 6 s��labas) e um
verso longo (10 ou 12 s��labas). Embora de tamanhos diferentes,
eles talvez possam apresentar o mesmo ritmo: tern��rio anap��sti-
co / - /; ou bin��rio troqueu / - /; ou j��mbico / - / etc.
Na verdade, um sistema influencia o outro. Certas ��pocas
s��o r��gidas, impondo regras de composi����o. Outras s��o menos
rigorosas, permitindo ao escritor a liberdade de compor com
certa independ��ncia em rela����o a regras. Encontramos grandes
poetas tanto entre os que seguiram quanto entre os que se afas-
taram das regras.
Contando as s��labas m��tricas
A organiza����o do poema em versos agrupados em estrofes
faz o ritmo saltar aos olhos do leitor. A rima, quando presente,
acentua essa impress��o. No entanto, �� a cad��ncia do verso lido
em voz alta que realmente indica a altern��ncia de s��labas fortes e
fracas. S��o as regras de versifica����o ou de metrifica����o que esta-
2 8
belecem onde deve cair o acento t��nico em cada tipo de verso.
Na mesma posi����o da s��laba forte, ocorre a cesura, pausa que,
geralmente, divide o verso em partes ou segmentos r��tmicos.
Vamos examinar versos regulares de uma a doze s��labas
po��ticas, observando como funcionam em poemas de diversos
autores e ��pocas. No final, vir�� um resumo esquem��tico dos v��-
rios modelos r��tmicos encontrados.
Verso de uma s��laba
No verso em que s�� h�� uma s��laba po��tica, a s��laba ��nica
�� acentuada. Veja, como exemplo, "Serenata sint��tica", de Cas-
siano Ricardo:
Rua
torta.
Lua
morta.
Tua
porta.1
Como indica o t��tulo, o poema �� uma "serenata sint��tica",
pois cada verso tem uma s�� palavra e, cada palavra, apenas uma
s��laba po��tica, pois s�� se conta at�� a ��ltima s��laba t��nica do
verso:
RU(a) /TOR(ta)/ /LU(a) /MOR(ta) // // TU(a)/POR(ta).
' C A S S I A N O R I C A R D O . Poesias compl��tas. Rio de Janeiro: Jos�� Olympio, 1 9 5 7 .
p. 2 7 9 .
2 9
O t��tulo e a constru����o do texto (sem nenhum verbo)
sugerem a expectativa do poeta, numa caminhada incerta ("rua
torta", noite sem lua) at�� a amada ("tua porta"). O leitor pode
ampliar a d��vida proposta pelo texto: a serenata ser�� ouvida ou
n��o? A porta se abrir�� ou permanecer�� fechada?
Verso de duas s��labas
Nesse tipo de verso, o acento cair�� necessariamente sobre
a ��ltima s��laba, antecedida por uma s��laba breve (n��o-acentua-
da). Um dos exemplos mais conhecidos em l��ngua portuguesa ��
de Casimiro de Abreu, recriando em "A valsa" o ritmo que o
t��tulo indica, como exemplifica o trecho a seguir:
Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
T��o p��lida2
Note como soa o ritmo deste poema:
Na- VAL (sa)
Can- SAS (te)
Fi- CAS (te)
Pros- TRA (da)
Tur- BA (da)
L A U R I T O , Ilka Brunhilde (Org.). Casimiro de Abreu (antologia). S��o Paulo: Abril 2
Educa����o, 1982. p. 28-31. S��rie Literatura Comentada.
3 0
Pen- SA (vas)
Cis- M A (vas)
E es- TA (vas)
T��o- P�� (li-da)
Todos os versos obedecem ao mesmo esquema r��tmico:
E.R. 2(2).
Veja agora um exemplo moderno, isto ��, contempor��neo,
de Jos�� Lino Gr��newald, em um poema concreto em que o
aspecto visual ou ��cone tamb��m assume grande import��ncia:
f o r m a
r e f o r m a
d i s f o r m a
t r a n s f o r m a
c o n f o r m a
i n f o r m a
f o r m a 3
No primeiro verso e no ��ltimo h�� apenas uma s��laba po��ti-
ca: FOR(ma). Nos demais, h�� duas, sendo a ��ltima acentuada:
re-FOR(ma)/ dis-FOR(ma)/ trans-FOR(ma)/ con-FOR(ma)/ in-
FOR(ma). Al��m da regularidade m��trica, a repeti����o de "forma"
no interior de todos os versos tamb��m produz efeito r��tmico.
Verso de tr��s s��labas
Leia um trecho de "Trem de ferro", de Manuel Bandeira:
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
S I M O N , Iumna Maria e D A N T A S , Vin��cius (Orgs.). Poesia concreta (antologia). S��o Paulo: Abril Educa����o, 1982. s/p. S��rie Literatura Comentada.
3 1
Passa poste
Passa pasto
Passa boi4
Estes versos triss��labos imitam o movimento do trem:
FO- ge- BI (cho) / FO- ge- PO (vo) / PAS- sa- PON (te)/
PAS- sa- POS (te)/ PAS- sa- PAS (to)/ PAS- sa- BOI
Em todos eles, s��o acentuadas a primeira e a terceira s��la-
bas, com E.R. 3(1-3). O verso de tr��s s��labas, ou triss��labo, pode
tamb��m apresentar um ��nico acento. Cabe ao leitor aplicar o
ouvido e descobrir as s��labas fortes. �� preciso deixar fluir a
m��sica do verso, sem atentar ao sentido l��gico dele, enquanto
se contam as s��labas po��ticas. Em uma etapa posterior, as con-
clus��es sobre o ritmo poder��o auxiliar a interpreta����o do texto.
Por��m, no momento da escans��o, os demais aspectos deveriam
desaparecer, ficando s�� a cad��ncia e a altern��ncia entre s��labas
fortes e fracas.
Verso de quatro s��labas
Os exemplos de versos de quatro s��labas, ou tetrassil��bicos,
v��o conduzir a v��rios esquemas r��tmicos. Observe este in��cio de
"A casa", de Vin��cius de Moraes:
Era uma casa
Muito engra��ada
N��o tinha teto
N��o tinha nada5
4 B A N D E I R A , Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Jos�� Olympio, 1966 .
p. 145.
5 M O I S �� S , Carlos Felipe (Org.). Vin��cius de Moraes (antologia). S��o Paulo: Abril Educa����o, 1980. p. 6 8 . S��rie Literatura Comentada.
3 2
�� poss��vel ler o primeiro verso de duas maneiras diferentes:
1) E- ra u- ma- CA (sa), com E.R. 4(1-4) (um s�� segmento
r��tmico)
2) e- RA U- ma- CA (sa), com E.R. 4(2-4) (dois segmentos
r��tmicos)
Refa��a a leitura. Tente localizar os acentos. O fato vai se
repetir: ora o acento interno (que fica no interior do verso) cai
na primeira, ora na segunda s��laba. Quando isso acontece,
temos a tens��o r��tmica, que resulta da dupla possibilidade de
leitura. Colocado em evid��ncia pela tens��o r��tmica, o verso
deve merecer aten����o especial do leitor. Neste caso, trata-se da
ambig��idade da casa: ��, ou n��o, uma casa? Os versos seguintes
colocam d��vida quanto a isso, j�� que a casa "n��o tinha teto",
"n��o tinha nada". �� tens��o r��tmica acrescenta-se a tens��o
sem��ntica. Passemos ao segundo verso, tamb��m com duas leitu-
ras poss��veis:
1) MUI-to e n - g r a - �� A (da), com E.R. 4(1-4)
2) Mui- TO EN- gra- ��A (da), com E.R. 4(2-4)
Neste segundo verso, associa-se a tens��o r��tmica �� sem��n-
tica, agora criada pela ambig��idade do termo "engra��ada": que
faz rir? Estranha? Extravagante? Ou tudo isso junto? Nos dois
outros versos, os acentos n��o s��o m��veis, n��o aparece tens��o
r��tmica, sendo o E.R. 4(2-4):
N��o - Tl - nha - TE (to)
1 2 3 4
N �� o - T l - n h a - N A (da)
1
2 3 4
3 3
Na exposi����o negativa do que falta �� casa n��o pode
haver ambig��idade, o sentido �� ��nico. O ritmo acompanha a
significa����o.
Verso de cinco s��labas
0 verso de cinco s��labas, ou pentass��labo, chama-se redon-
dilha menor. Na Idade M��dia, os poetas portugueses j�� o empre-
gavam nas cantigas de amor e de amigo. Entre os modernos,
Cec��lia Meireles o retoma, bem como aos demais versos curtos
(de uma a seis s��labas). Leia um terceto de "Tempo celeste":
Dorme o pensamento.
Riram-se? Choraram?
Ningu��m mais recorda.6
Verifique a escans��o do primeiro e do segundo versos do
terceto:
DOR- me o- PEN- sa- M E N (to) E.R. 5(1-3-5)
1 2 3 4 5
R I - r a m - s e - c h o - R A (ram) E.R. 5(1-5)
1 2 3 4 5
No terceiro verso encontramos duas leituras poss��veis,
resultando em tens��o r��tmica:
1) Nin- G U �� M - mais - re - COR (da) E.R. 5(2-5)
1 2 3 4 5
2) Nin- gu��m- MAIS - re- COR (da) E.R. 5(3-5)
1 2 3 4 5
6 M E I R E L E S , Cecilia. Obra po��tica. Rio de Janeiro: Jos�� Aguilar, 1958. p. 557.
3 4
O significado do verso ��� o valor da lembran��a ��� �� acen-
tuado pela tens��o da dupla leitura.
Verso de seis s��labas
Novamente um poema de Cec��lia Meireles para ilustrar o
verso de seis s��labas ou hexass��labo. Trata-se de um trecho reti-
rado de uma das "Can����es":
H�� noite? H�� vida? H�� vozes?
Que espanto nos consome
de repente, mirando-nos?
(Alma, como �� teu nome?)7
Vamos escandir:
H��-NOI-te? H��-VI-da? H��-VO(zes?) E.R. 6(2-4-6)
1 2 3 4 5 6
Que es- P A N - to- nos- con- SO (me) E.R. 6(2-6)
1 2 3 4 5 6
de - re - PEN - te - mi- RAN (do-nos?) E.R. 6(3-6)
1 2 3 4 5 6
A L - m a - c o - M O �� - t e u - N O (me?) E.R. 6(1-4-6)
1 2 3 4 5 6
Em "Debussy", Manuel Bandeira retrata uma crian��a
adormecendo em uma cadeira de balan��o, com um novelo de
linha na m��o. A estrofe ��nica do poema tem um ritmo peculiar,
fruto da mescla do verso de seis s��labas com outro, maior.
Observe o verso que se repete:
7 M E I R E L E S , Cec��lia. Obra po��tica. Rio de Janeiro: Jos�� Aguilar, 1958. p. 909.
3 5
1 Para c��, para l��...
2 Para c��, para l��...
3 Um novelozinho de linha...
4 Para c��, para l��...
5 Para c��, para l��...
6 Oscila no ar pela m��o de uma crian��a
7 (Vem e vai...)
8 Que delicadamente e quase a adormecer o balan��a
9 - Psio... ���
10 Para c��, para l��...
11 Para c�� e...
12 ��� O novelozinho caiu.8
Os doze versos que comp��em o poema organizam-se
musicalmente, como sugere o t��tulo, homenagem a Debussy
(1862-1918), um compositor impressionista franc��s. A compo-
si����o se expressa por meio de duas vozes, ou seja, em duas
modula����es ou temas. O primeiro, contido nos versos curtos
(v. 1, 2,4, 5, 7, 9, 10 e 11), trata do efeito do balan��o sobre o fio
de linha, acompanhando o movimento da crian��a. O segundo,
expresso pelos versos longos (v. 3, 6, 8 e 12), retrata a pr��pria
crian��a, com o novelozinho de linha na m��o. O verso inicial
repete-se mais quatro vezes e meia. Meia, porque ele fica pela
metade, como um acorde suspenso, no pen��ltimo verso. Ao
lado dos demais versos curtos, ele apresenta um car��ter descri-
tivo, reproduzindo o movimento do balan��o, enquanto os versos
longos t��m um car��ter narrativo, contando o que acontece com
o objeto que est�� sendo embalado. O poema �� feito da integra-
����o de todos os elementos que o comp��em. Um deles, o esque-
ma r��tmico do verso de seis s��labas:
Pa- ra- C��- pa- ra- L�� E.R. 6(3-6)
1 2 3 4 5 6
B A N D E I R A , Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Jos�� Olympio, 1966. p. 6 4
3 6
O efeito de balan��o vem do metro, da repeti����o no interior
do pr��prio verso ("para" e "para") e da identidade f��nica (de
sons) entre as s��labas acentuadas do verso que apresentam a
mesma vogal ("cA" e "'A"), resultando em rima interna (rima
no interior do verso). Acrescente-se ainda a repeti����o do mesmo
verso em quase metade do poema. Desse conjunto de recursos
surge o ritmo musical, integrando-se �� tem��tica do texto.
Verso de sete s��labas
0 verso de sete s��labas, heptass��labo ou redondilha maior,
�� o mais simples, do ponto de vista das leis m��tricas. Basta que
a ��ltima s��laba seja acentuada; os demais acentos podem cair
em qualquer outra s��laba. Talvez por isso ele seja o verso predo-
minante nas quadrinhas e can����es populares. Verso tradicional
em l��ngua portuguesa, j�� era freq��ente nas cantigas medievais.
Ele se faz presente em "Peixe vivo", uma conhecida cantiga
popular entoada por crian��as em brincadeiras de roda:
Como pode o peixe vivo
Viver fora da ��gua fria?
Como poderei viver
Sem a tua companhia?
Vamos metrificar:
C o - m o - P O - d e o-PEI-xe-VI (vo) E.R. 7(3-5-7)
1 2 3 4 5 6 7
V i - v e r - F O - r a - d a ��- gua- FRI (a) E.R. 7(3-7)
1 2 3 4 5 6 7
CO- mo- PO- de- REI- vi- VER E.R. 7(1-3-5-7)
1 2 3 4 5 6 7
Sem- a- T U - a- com- pa- NHI (a) E.R. 7(3-7)
1 2 3 4 5 6 7
3 7
A redondilha maior, esse verso mel��dico, al��m de muito
freq��ente na letra das can����es folcl��ricas e populares, aparece
ainda em poemas de todas as ��pocas, em Portugal e no Brasil.
Verso de oito s��labas
Para ilustrar o verso de oito s��labas, ou octoss��labo, leia parte
da letra de uma can����o de Noel Rosa, "A melhor do planeta":
Tu pensas que tu �� que ��s
A melhor mulher do planeta,
Mas eu �� que n��o vou fazer
Tudo o que te der na veneta.9
Escandindo, fica assim:
Tu- P E N - sas- que- T U - ��- que- ��S E.R. 8(2-5-8)
1 2 3 4 5 6 7 8
a- me- LHOR- mu- LHER- do- pla- NE (ta) E.R. 8(3-5-8)
1 2 3 4 5 6 7 8
mas- E U - ��- que- N O - vou- fa- ZER E.R. 8(2-5-8)
1 2 3 4 5 6 7 8
T U - d o o - q u e - t e - D E R - n a - v e - N E ( t a ) E.R. 8(1-5-8)
1 2 3 4 5 6 7 8
Como no caso dos outros versos, s��o esses apenas alguns
exemplos. Outros tipos de acento podem aparecer, sendo bem
freq��ente o que divide o verso ao meio, com acento na quarta e
na ��ltima s��labas.
9 JoAo A N T �� N I O (Org.). Noel Rosa (antologia). S��o Paulo: Abril Educa����o, 1982.
p. 27. S��rie Literatura Comentada.
3 8
Verso de nove s��labas
Para o verso de nove s��labas, ou eneass��labo, nosso exemplo
�� retirado da parte III do "Canto do Piaga", de Gon��alves Dias:
N��o sabeis o que o monstro procura?
N��o sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros.
Vem roubar-vos a filha, a mulher!10
O ritmo de todo o segmento �� o mesmo: um eneass��labo
tern��rio, isto ��, composto de tr��s segmentos r��tmicos. Veja a
escans��o do primeiro verso:
N��o- sa- BEIS- o- que o- M O N S - tro- pro- CU (ra)
1
2
3
4
5 6
7
8
9
E.R. 9(3-6-9)
Nos outros versos, repete-se o mesmo esquema r��tmico. O
efeito �� encantat��rio, enfeiti��ador, tal qual o monstro evocado
pelo poeta que apavorava os ind��genas.
Outro tipo de versos eneass��labos aparece em "Ou isto ou
aquilo", de Cec��lia Meireles. Leia em voz alta:
Ou se tem chuva e n��o se tem sol
Ou se tem sol e n��o se tem chuva."
O esquema r��tmico revela um verso bipartido, com E.R.
9(4-9). Harmonizam-se metro e significado: o primeiro seg-
B R A I T , Beth (Org.). Gon��alves Dias (antologia). S��o Paulo: Abril Educa����o,
1982. p. 14. S��rie Literatura Comentada.
1 1 M E I R E L E S , Cec��lia. Ou isto ou aquilo. 5. ed. S��o Paulo: Civiliza����o Brasileira, 1981. p. 57.
3 9
mento r��tmico do verso levanta uma alternativa; o segundo pro-
p��e a alternativa oposta.
Verso de dez s��labas
0 verso de dez s��labas, ou decass��labo, foi um dos preferi-
dos pelos poetas cl��ssicos do s��culo XVI. Ele domina o c��lebre
poema ��pico Os lus��adas, de Lu��s de Cam��es. Aparece nos
sonetos da ��poca e tamb��m nos de todas as outras, por ser um
verso de grande efeito sonoro.
No Classicismo havia dois tipos de decass��labos: o her��ico,
com E.R. 10(6-10), e o s��fico, com E.R. 10(4-8-10). Leia a seguir
a estrofe 24 do Canto V de Os lus��adas. Trata-se do momento em
que os lusos avistaram terra, ap��s muito tempo no mar, em uma
noite de lua. No texto, a lua �� o "planeta" de "meio rosto":
1 Mas j�� o planeta que no c��u primeiro
2 Habita, cinco vezes, apressada,
3 Agora meio rosto, agora inteiro,
4 Mostrara, enquanto o mar cortava a armada,
5 Quando da et��rea g��vea um marinheiro,
6 Pronto co'a vista: "Terra, terra," brada.
7 Salta no bordo alvoro��ada a gente,
8 Co'os olhos no horizonte do Oriente.12
Verifique os acentos do primeiro e do s��timo versos:
Mas- ja o- pia- NE- ta- que- no- C��U- pri- MEI (ro)
1 2
3
4
5
6
7
8
9 1 0
Sal- ta- no- BOR- do al- vo- ro- ��A- da a- GEN (te)
1
2
3
4 5 6 7 8 9 10
1 2 C A M �� E S , L U �� S de. Os lus��adas. 10. ed. S��o Paulo: Melhoramentos, 1956. p. 174.
4 0
Trata-se de decass��labos s��ficos, com E.R. 10(4-8-10).
Fa��a a contagem dos demais versos, com exce����o do sexto. Veja
o verso 2:
Ha- bi- ta- cin- co- VE- zes- a- pres- SA (da)
1
2
3
4
5
6 7 8 9 1 0
O E.R. 10(6-10) aponta um decass��labo her��ico. O
mesmo E.R. pode ser encontrado para os versos 3, 4, 5, 8. O
verso 6 vai apresentar dupla leitura poss��vel, isto ��, tens��o r��tmi-
ca ��� ora her��ico, ora s��fico:
1) Pron- to- co'a- vis- ta- TER- ra- ter- ra- BRA (da)
1 2 3
4
5
6
7
8
9 1 0
E.R. 10(6-10);
2) Pron- to- co'a- VIS- ta- ter- ra- TER- ra- BRA (da)
1 2 3
4
5
6
7
8
9 1 0
E.R. 10(4-8-10).
Pode-se considerar a tens��o r��tmica como um modo de
enfatizar o an��ncio de "terra �� vista", meta importante do grupo
de viajantes.
A partir do Classicismo, o decass��labo foi sendo enrique-
cido ritmicamente, com variantes de novos acentos em rela����o
aos dois tipos iniciais. Veja como ele aparece no primeiro verso
do d��stico (estrofe de dois versos) que funciona como refr��o
(estrofe que se repete) no poema "A catedral", de Alphonsus de
Guimaraens:
E o sino canta em l��gubres responsos:
Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!13
G O L D S T E I N , Norma e C A M P E D E L L I , Samira. Literatura brasileira: estudo de textos. 2. ed. S��o Paulo: ��tica, 1975. p. 152.
4 1
Os dois versos t��m tamanhos diferentes: dez e sete s��la-
bas, respectivamente. Vamos examinar o maior:
E o- si- no- C A N - ta em- L��- gu- bres- res- PON (sos)
1
2
3
4 5
6
7
8
9 1 0
E.R. 10(4-6-10)
A medida que se forem lendo e analisando poemas, ser��o
encontradas novas varia����es r��tmicas poss��veis para este e para
os outros tipos de versos.
Verso de onze s��labas
O hendecass��labo, ou verso de onze s��labas, tamb��m per-
mite mais de um tipo de acentua����o. Veja a primeira parte do
poema "I-Juca-Pirama", de Gon��alves Dias:
No meio das tabas de amenos verdores,
cercadas de troncos ��� cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d'altiva na����o;
S��o muitos seus filhos, nos ��nimos fortes,
Tem��veis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extens��o.14
Neste trecho, todos os versos se assemelham. Vamos escan-
dir os dois primeiros:
No- MEI- o - das- TA- bas- de a- M E - nos- ver- DO (res)
1
2
3
4
5
6 7 8 9 1 0 1 1
E.R. 11(2-5-8-11)
B R A I T , Beth (Org.). Gon��alves Dias (antologia). S��o Paulo: Abril Educa����o,
1982. p. 44. S��rie Literatura Comentada.
4 2
cer- CA- das- de- TRON- cos- co- BER- tos- de -FLO (res)
1
2
3
4 5
6
7
8
9 1 0 1 1
E.R. 11(2-5-8-11)
O esquema r��tmico dos demais �� o mesmo. Resulta da�� um
ritmo cuja musicalidade enfatiza o clima ("amenos verdores",
"troncos ��� cobertos de flores") e as personagens her��icas do
poema ("altiva na����o", "��nimos fortes", "tem��veis na guerra").
Verso de doze s��labas
O verso de doze s��labas ou alexandrino �� um verso longo
e muito querido dos poetas cl��ssicos e dos parnasianos. ��
menos freq��ente em outras ��pocas. Geralmente, tem um acento
e uma cesura (divis��o) na sexta s��laba, ficando subdividido ao
meio. Cada uma das metades chama-se hemistiquio. Observe o
ritmo dos alexandrinos criados por Cruz e Souza na estrofe ini-
cial do soneto "Amor":
Nas largas muta����es perp��tuas do universo
O amor �� sempre o vinho en��rgico, irritante...
Um lago de luar nervoso e palpitante...
Um sol dentro de tudo altivamente imerso.15
Metrifiquemos o primeiro verso:
Nas- lar- gas- mu- ta- ����ES- per- p��- tuas- do u- ni- VER (so)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
E.R. 12(6-12)
G O N �� A L V E S , Aguinaldo Jos�� (Org.). Cruz e Souza (antologia). S��o Paulo: Abril 1
5
Educa����o, 1982. p. 46. S��rie Literatura Comentada.
4 3
Quanto ao segundo, vai ser poss��vel a dupla leitura, pois
ocorre tens��o r��tmica:
1)0 a-mor-��-sem-pre o-VI-nho e- n��r-gi-co' ir-ri-TAN (te)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
E.R. 12(6-12)
2) O a-mor-��-SEM-pre o- vi-nho e- N��R-gi-co ir-ri-TAN (te)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
E.R. 12(4-8-12)
Os alexandrinos ora apresentam dois hemistiquios, com
E.R. 12(6-12), ora se subdividem em tr��s segmentos r��tmicos,
com E.R. 12(4-8-12). No verso em que h�� tens��o r��tmica, note
que h�� tamb��m tens��o sem��ntica, isto ��, quanto �� significa����o:
o poeta diz que o amor �� o vinho e qualifica esse vinho com
dois adjetivos que, por serem opostos, estabelecem uma tens��o
em rela����o ao sentido: vinho "en��rgico" (qualidade positiva) e
"irritante" (caracter��stica negativa). Ritmo e significado ap��iam-
se mutuamente. No verso 3 e no verso 4, o esquema r��tmico ��
12(6-12).
Rigorosos quanto �� forma, os parnasianos praticavam a
fus��o sonora dos dois hemistiquios do verso alexandrino. Isto ��:
o final do primeiro segmento r��tmico deveria ligar-se ao in��cio
do segundo, como ensina Olavo Bilac em seu Tratado de versifi-
ca����o: "A lei org��nica do alexandrino pode ser expressa em dois
artigos: 1?) quando a ��ltima palavra do primeiro verso de seis
s��labas (hemistiquio) �� grave, a primeira palavra do segundo
deve come��ar por uma vogal ou por um H; 2��) a ��ltima palavra
do primeiro verso (hemistiquio) nunca pode ser esdr��xula".16
Em poetas modernos h�� mais flexibilidade.
1 6 B I L A C , Olavo Bilac. Tratado de versifica����o. 3. ed. S��o Paulo: Francisco Alves, 1918. p. 68.
4 4
Versos com mais de doze s��labas
Voc�� talvez esteja pensando em perguntar se h�� versos
maiores do que o alexandrino. H�� e, geralmente, s��o versos
compostos de dois outros versos menores. Por exemplo: o verso
de 14 s��labas seria equivalente a dois versos de 7 s��labas; o de
15 s��labas, a um de 7 mais um de 8 s��labas.
Tudo o que foi dito aqui refere-se apenas aos versos regu-
lares, aqueles que obedecem ��s regras tradicionais de acentua-
����o m��trica. Quando os versos n��o forem regulares, o ritmo ��
outro, como voc�� ver�� a seguir.
5 Versos regulares
Os versos regulares, como j�� foi dito, s��o os que obede-
cem ��s regras cl��ssicas estabelecidas pela m��trica, determinan-
do a posi����o das s��labas acentuadas em cada tipo de verso. As
rimas aparecem de modo regular, marcando a semelhan��a f��ni-
ca no final de certos versos. Os exemplos que ilustram o cap��tu-
lo anterior s��o de versos regulares.
Versos brancos
Quando os versos obedecem ��s regras m��tricas de versifi-
ca����o ou acentua����o, mas n��o apresentam rimas, chamam-se
versos brancos. S��o brancos os versos do poema "Uruguai", do
poeta ��rcade Bas��lio da Gama (s��c. XVIII):
L��, como �� uso do pa��s, ro��ando
Dois lenhos entre si, desperta a chama,
Que j�� se ateia nas ligeiras palhas,
E velozmente se propaga. Ao vento
Deixa Cacambo o resto e foge a tempo1
G O L D S T E I N , Norma e C A M P E D E L L I , Samira. Literatura brasileira: estudo de textos.
2. ed. S��o Paulo: ��tica, 1975. p. 28.
4 6
Esse trecho conta como o her��i ind��gena Cacambo ateou
fogo ao acampamento de seus inimigos. Cada verso tem dez
s��labas po��ticas. O primeiro, o terceiro e o quarto versos s��o
s��ficos, com E.R. 10(4-8-10); os outros dois s��o her��icos, com
E.R. 10(6-10). As rimas n��o aparecem, pois os versos brancos
apresentam regularidade m��trica, por��m n��o rimas.
Para os versos regulares ou para os brancos, s��o estes os
esquemas r��tmicos mais freq��entes:
4 7
Versos polim��tricos
O nome por si j�� diz: poli = muito; metro = tamanho. Esse
�� o nome que se d�� a um conjunto de versos regulares de tama-
nhos diferentes. Embora de tamanhos diferentes, t��m as s��labas
fortes geralmente localizadas nas posi����es indicadas pelas
regras m��tricas tradicionais. Al��m disso, essas s��labas ocupam
posi����es fixas, na primeira como nas demais leituras. Leia os
versos polim��tricos criados por Vin��cius de Moraes:
Paisagem
1 Subi a alta colina
2 Para encontrar a tarde
4 8
3 Entre os rios cativos
4 A sombra sepultava o sil��ncio.
5 Assim entrei no pensamento
6 Da morte minha amiga
7 Ao p�� da grande montanha
8 Do outro lado do poente.
9 Como tudo nesse momento
10 Me pareceu pl��cido e sem mem��ria
11 Foi quando de repente uma menina
12 De vermelho surgiu no vale correndo, correndo...2
O poema comp��e-se de tr��s quartetos em versos m��trica-
mente desiguais. O desenho formado na p��gina, assim como a
metrifica����o, apresentam uma grada����o: ambos v��o se alargan-
do progressivamente. No in��cio, o poema sugere um desliga-
mento reflexivo; no final, a imagem pl��stica da menina remete
aos aspectos concretos do cotidiano.
Esse percurso se apoia na op����o pelos versos polim��tri-
cos, com tamanhos gradativamente aumentados do in��cio ao
final do texto. �� importante observar que os acentos recaem
sempre sobre as mesmas s��labas, eles s��o fixos, diferentemente
do que ocorre com os versos livres, como voc�� ver�� a seguir.
Leia os versos indicados e confira seu esquema r��tmico: verso 3:
E.R. 5(3-5); verso 4: E.R. 9(2-6-9); verso 11: E.R. 10(2-6-10);
verso 12: E.R. 14(3-6-8-11-14).
Os versos polim��tricos foram empregados, sobretudo, a
partir da segunda d��cada do s��culo XX, como um modo de ino-
var o ritmo de nossa poesia.
2 M O R A E S , Vinicius de. Antologia po��tica. 2. ed. Rio de Janeiro: Editera do Autor, 1960. p. 120.
4 9
Versos livres
Os versos livres n��o obedecem a nenhuma regra preesta-
belecida quanto ao metro, �� posi����o das s��labas fortes, nem ��
presen��a ou regularidade de rimas. Esse tipo de verso, t��pico do
Modernismo, vem sendo muito usado a partir da segunda d��ca-
da do s��culo XX. Num poema em versos livres, cada verso pode
ter tamanho diferente, a s��laba acentuada n��o �� fixa, variando
conforme a leitura que se fizer. Como no poema abaixo, de
Alberto Caeiro, heter��nimo de Fernando Pessoa:
O espelho reflete certo: n��o erra porque n��o pensa.
Pensar �� essencialmente errar.
Errar �� essencialmente estar cego e surdo.3
Releia o texto. Verifique como o ritmo �� solto e imprevis��-
vel. Note como os acentos podem mudar de lugar, conforme a
leitura. O verso livre modernista tem um ritmo irregular cujo
efeito d�� uma esp��cie de vertigem. Ap��s a grande voga desse
verso, os poetas retornaram ao verso tradicional, inovando-o,
reinventando-o, na medida em que passavam a utiliz��-lo de
modo nunca visto anteriormente. Por exemplo: agrupam-se ver-
sos de metro (tamanho) igual, com acentua����o distribu��da de tal
modo que o leitor sup��e estar diante de versos desiguais. Ou,
inversamente, sucedem-se versos desiguais cuja acentua����o os
faz parecerem semelhantes.
O verso livre �� muito mais dif��cil que o regular, embora
possa dar a impress��o contr��ria, conforme testemunha Manuel
Bandeira, no ensaio "Poesia e verso":
Mas verso livre cem por cento �� aquele que n��o se
socorre de nenhum sinal exterior sen��o o da volta ao
3 P E S S O A , Fernando. Obra po��tica. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. p. 240.
5 0
ponto de partida, �� esquerda da folha de papel: verso
derivado de vertere, voltar. �� primeira vista, parece mais
f��cil de fazer do que o verso metrificado. Mas �� engano.
Basta dizer que no verso livre o poeta tem de criar seu
ritmo sem aux��lio de fora. (...) Sem d��vida, n��o custa
nada escrever um trecho de prosa e depois distribu��-lo
em linhas irregulares, obedecendo t��o-somente ��s pau-
sas do pensamento. Mas isso nunca foi verso livre. Se
fosse, qualquer um poderia p��r em verso at�� o ��ltimo
relat��rio do Ministro da Fazenda.4
Durante muitos per��odos, entre os s��culos XV e XX, a
busca da simetria se fez presente em todas as artes, inclusive na
poesia. �� o caso do alexandrino em duas partes iguais de seis
s��labas (hemist��quios) e do decass��labo em duas partes quase
iguais, com E.R. 10(6-10). A partir de fins do s��culo XIX, a
simetria foi perdendo terreno no campo das artes. Em poesia, os
simbolistas deram os primeiros passos que culminaram na libe-
ra����o r��tmica do Modernismo. Em lugar da simetria, surge a
irregularidade, o contraste, a disson��ncia, o efeito imprevis��vel
ou inesperado.
Quando se voltou aos metros tradicionalmente chamados
regulares, sobretudo a partir de 1945, estes se viram transfigu-
rados em novos. �� o caso da poesia de Jo��o Cabral de Melo
Neto, Murilo Mendes, Ferreira Gullar, Jos�� Paulo Paes, Affonso
Romano de Sant" Anna e de outros poetas surgidos a partir de
meados do s��culo passado. A liberdade r��tmica criou uma nova
m��sica do verso, tornando o metro mais livre, o poema menos
regular do que os tradicionais, o ritmo mais seco e contundente.
Em outras palavras, um ritmo inesperado, irregular, din��mico
como o da vida do homem contempor��neo.
4 B A N D E I R A , Manuel. Itiner��rio de Pas��rgada. Rio de Janeiro: Livraria S. Jos��, 1957. p. 230-231.
5 1
Uma observa����o importante: a diferen��a entre os tipos de
verso �� somente de estrutura, n��o de qualidade. H�� belos poe-
mas em versos regulares, belos poemas em versos polim��tricos
e belos poemas em versos livres. O modo de compor traduz a
vis��o de mundo de uma certa ��poca. Muda o modo de vida,
mudam as formas art��sticas. Cada poeta escolhe o ritmo que
julgar adequado ao tema que vai tratar. O leitor deve buscar
integrar o ritmo, seja ele qual for, aos demais aspectos estrutu-
radores do poema.
6 Estrofes
D��sticos, tercetos...
Estrofe �� um conjunto de versos. Uma linha em branco
vem antes, e outra, depois da estrofe, separando-a das demais
partes do poema e marcando a sua unidade. H�� estrofes de dife-
rentes tamanhos. De um s�� verso, de dois, de tr��s ou maiores.
Conforme o n��mero de versos que a comp��em, a estrofe recebe
um nome diferente:
No per��odo anterior ao Modernismo, as estrofes predomi-
nantes eram os tercetos, os quartetos, as quintilhas, as sextilhas,
5 3
as oitavas e as d��cimas. Ap��s a libera����o r��tmica modernista, as
composi����es em verso passaram a apresentar todo tipo de estro-
fe e de verso.
Os quartetos e os tercetos comp��em o soneto, poema de
forma fixa de mais longa perman��ncia em nossa tradi����o liter��-
ria, do qual se falar�� adiante. Conv��m observar que, quando se
trata de composi����o popular, a estrofe de quatro versos tem
estrutura menos elaborada (podem rimar apenas os versos
pares) e recebe o nome de quadra ou, no diminutivo, quadrinha.
A quintilha e a sextilha s��o estrofes que podem rimar livremen-
te, sem obedecer a esquemas r��gidos. A d��cima organiza-se
como estrofe composta de um quarteto seguido de um sexteto,
havendo um esquema diferente de rimas em cada subestrofe que
a comp��e.
S��o freq��entes os poemas que mesclam mais de um tipo
de estrofe. �� medida que o leitor de poesia vai enriquecendo
seu repert��rio, o contato com poemas antigos e modernos reve-
la novos modos de organiza����o dos versos no poema.
Para n��o entrar em exaustivas exemplifica����es, detenho-
me apenas em alguns tipos de estrofe: o refr��o, a oitava e a
quadrinha.
Refr��o
H�� poemas com v��rios tipos de organiza����o estr��fica. Ora
as estrofes s��o todas iguais: s�� tercetos; s�� quartetos; s�� quinte-
tos, e assim por diante. Ora as estrofes s��o diferentes uma da
outra. ��s vezes, um grupo de versos repete-se ao longo do
poema; trata-se do refr��o. O refr��o facilita a memoriza����o nas
can����es, tendo um papel r��tmico importante em todas as ��pocas.
O exemplo a seguir �� da Lira IV de "Mar��lia de Dirceu", do
��rcade Tom��s Ant��nio Gonzaga:
5 4
Mar��lia, teus olhos
S��o r��us, e culpados.
Que sofra e que beije
Os ferros pesados
De injusto Senhor.
Mar��lia, escuta
Um triste Pastor.
Mal vi o teu rosto,
0 sangue gelou-se.
A l��ngua prendeu-se,
Tremi, e mudou-se
Das faces a cor.
Mar��lia, escuta
Um triste Pastor.
Nas duas primeiras estrofes da Lira IV voc�� observa cinco
versos iniciais, de cinco s��labas, descrevendo a beleza de Mar��-
lia e a atra����o que ela exerce sobre o poeta. Os dois versos
finais comp��em o refr��o, que vai se repetir ao longo do poema.
O refr��o invoca a aten����o da amada para seu "pastor", como se
autonomeavam os poetas do Arcadismo.
Aparentemente, s��o os mesmos os versos que se repetem.
Na verdade, entre uma apari����o do refr��o e outra, como h�� os
versos que se intercalam, o tom do apelo vai ficando mais forte
e denso �� medida que a leitura do poema avan��a. O leitor perce-
be que o par amoroso vai separar-se, e o refr��o se torna um
lamento cada vez mais acentuado, at�� a pungente despedida da
estrofe final:
Mas eu te desculpo.
Que o fado tirano
Te obriga a deixar-me;
Pois basta o meu dano
Da sorte, que for.
5 5
Mar��lia, escuta
Um triste Pastor.
Oitava
A oitava (estrofe de oito versos) aparece nos dez cantos de
Os lus��adas, de Cam��es, e em outras composi����es ��picas. Eis
suas caracter��sticas: oito versos decass��labos; rimas organizadas
da seguinte forma: 1? tipo de rima ��� versos 1, 3, 6; 2��. tipo ���
versos 2, 4, 6; 3�� tipo ��� versos 7 e 8. Voc�� j�� leu uma estrofe de
Os lus��adas, p��ginas atr��s. Observe esta outra, do Canto I:
Vasco da Gama, o forte Capit��o,
Que a tamanhas empresas se oferece,
De soberbo e de altivo cora����o,
A quem fortuna sempre favorece,
Para se aqui deter n��o v�� raz��o.
Que inabitada a terra lhe parece
Por diante passar determinava
Mas n��o lhe sucedeu como cuidava.2
Os versos s��o decass��labos her��icos, com E.R. 10(6-10).
Quanto ��s rimas, eis a distribui����o:
1) v. 1 capitfo / v. 3 cora����o / v. 5 raz��o
2) v. 2 oferece / v. 4 favorece / v. 6 parece
3) v. 7 determinava / v. 8 cuidava
Ao ler e analisar poemas, voc�� vai notar que a estrofe ��� ou
um grupo de estrofes ��� estabelece certa unidade, no interior do
1 C A M P E D E L L I , Samira Youssef (Org.). Tom��s Antonio Gonzaga (antologia). S��o Paulo: Abril Educa����o, 1980. p. 12, 13, 14. S��rie Literatura Comentada.
2 C A M �� E S , L U �� S de. Os lus��adas. 10. ed. S��o Paulo: Melhoramentos, 1956. p. 25.
5 6
texto. O verso seria a primeira unidade; a estrofe, a segunda. Ela
s�� pode ser interpretada em fun����o do poema todo e vice-versa. ��
a partir dela que voc�� pode come��ar a analisar um texto po��tico.
Quadrinha
Quadrinha �� o poema de quatro versos que, geralmente,
desenvolve um conceito relativo �� filosofia popular.
�� nesse tipo de composi����o que Carlos Drummond de
Andrade se inspira ao compor quadras em homenagem a seus
amigos, no livro Viola de bolso. Veja duas delas:
Murilo Mendes
Alt��ssimo poeta puro,
��s tu, meu Murilo Mendes,
que estrelas, no c��u escuro,
al��ando os bra��os, acendes.
& Maria da Saudade
Esparsa (alto mist��rio] eis que a poesia
reconquista, na luz, sua unidade
Ela mora, perfeita alegoria,
em Murilo e Maria da Saudade.3
O que marca a estrofe ��, graficamente, o espa��o em bran-
co antes e depois dela; e, fonicamente (sonoramente), as rimas,
que enfatizam a sua unidade.
Alguns poemas mant��m o mesmo tipo de rima em todas
as estrofes. A maioria muda de rima a cada estrofe. O cap��tulo
seguinte trata das rimas, seu emprego e sua classifica����o.
3 A N D R A D E , Carlos Drummond de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964 .
p. 379.
7 Rimas
Parentesco sonoro
Rima �� o nome que se d�� �� repeti����o de sons semelhantes,
ora no final de versos diferentes, ora no interior do mesmo
verso, ora em posi����es variadas, criando um parentesco f��nico
entre palavras presentes em dois ou mais versos. Retome o
minipoema "Encontro", de M��rio Quintana, que voc�� leu no in��-
cio deste livro. H�� rima quando acontece o "encontro" de duas
palavras na "esquina do poema" e elas se olham "at��nitas e
comovidas" como "duas irm��s desconhecidas". A semelhan��a
sonora aproxima termos que, fora do poema, o leitor n��o pensa-
ria em relacionar.
Rima interna e rima externa
A rima externa ocorre quando se repetem sons semelhan-
tes no final de diferentes versos. Pode tamb��m haver rima entre
a palavra final de um verso e outra do interior do verso seguin-
te. Temos, ent��o, a rima interna. Em ambos os casos ��� rima
externa ou interna ���, trata-se de um recurso de grande impacto
musical e r��tmico que contribui para o sentido do texto.
5 8
Rima consoante e rima toante
A rima pode ser consoante e toante. Rima consoante ��
aquela que apresenta semelhan��a de consoantes e vogais, como
no quarteto de Carlos Drummond de Andrade.
Senta-te nesta cadeira (EIRA)
e aceita nosso jantar. (AR)
Tranq��ilo: em casa mineira (EIRA)
nunca faltou um lugar. (AR)
1
Observe que nessas rimas assemelham-se tanto as vogais
quanto as consoantes.
Rima toante �� a que s�� apresenta semelhan��a na vogal
t��nica, sem que as consoantes ou outras vogais coincidam.
Observe as rimas toantes no poema "Melancolia", de Guilherme
de Almeida:
1 Sobre um fruto cheiroso e bravo (vogal t��nica A)
2 todo pintado de vermelho vivo (vogal t��nica I)
3 uma lagarta verde dorme, (vogal t��nica O)
4 O sil��ncio quente do meio-dia (vogal t��nica I)
5 respira como o papo de uma ave. No ar alvo (vogal
t��nica A)
6 a asa de uma cigarra risca um silvo (vogal t��nica I)
7 longo - brilhante - e some. (vogal t��nica O)
8 Melancolia, (vogal t��nica I)2
Eis as rimas toantes:
' A N D R A D E , Carlos Drummond de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964.
p. 383.
G O L D S T E I N , Norma. Do penumbrismo ao modernismo: o primeiro Bandeira e
outros poetas significativos. S��o Paulo: ��tica, 1983. p. 72.
5 9
v. 1 bravo / v. 5 alvo
v. 2 vjvo / v. 4 dja / v. 6 silvo / v. 8 melancolia
v. 3 dorme / v. 7 some.
Para efeito de an��lise, ficou convencionado designar cada
rima por uma letra do alfabeto: 1�� tipo de rima do poema: A;
2o. tipo, B; 3o. tipo, C; e assim por diante. Para exemplificar, uma
estrofe de "Efeitos de Sol", de M��rio Pederneiras:
Belo tempo o da messe rima A
Do Sol que a Terra e que as espigas doira... rima B
P��ra quem passa nos trigais, parece rima A
Que a terra �� toda loira rima B
3
Nesse quarteto, a rima �� A B A B .
Rimas cruzadas, emparelhadas, interpoladas,
misturadas
De acordo com o modo como as rimas se distribuem ao
longo da estrofe ou do poema, elas podem ser cruzadas (ou
alternadas), emparelhadas, interpoladas ou misturadas.
Leia um trecho de "Dados biogr��ficos", de Carlos Drum-
mond de Andrade:
Mas que dizer do poeta rima A
numa prova escolar? rima B
Que ele �� meio pateta rima A
e n��o sabe rim rima B
Que veio de Itabira, rima C
terra longe e ferrosa? rima D
3 Id. ibid., p. 17.
6 0
E que seu verso v rima C
de vez em quando p ?" rima D
Sobre essas duas estrofes, pode-se dizer que as rimas obe-
decem ao esquema ABAB CDCD. Rimas desse tipo recebem o
nome de rimas cruzadas ou alternadas.
Observe outro modo de distribuir as rimas, na primeira
estrofe de "O sentimento dum ocidental", de Ces��rio Verde:
Nas nossas ruas, ao anoitec rima A
H�� tal soturnidade, h�� tal melancol rima B
Que as sombras, o bul��cio, o Tejo, a mares rima B
Despertam-me um desejo absurdo de sofr : rima A
5
Nesse caso, temos rimas ABBA. As rimas B s��o empare-
lhadas. As rimas de tipo A s��o chamadas interpoladas.
Se as rimas tiverem outro tipo de organiza����o, chamam-se
rimas misturadas. Quando aparece um verso sem rima, diz-se
que �� o caso de rima perdida ou rima ��rf��, como ilustram os ver-
sos de um poema de Fernando Pessoa:
1 Vaga saudade, tanto
2 D��is como a outra que ��
3 A saudade de quanto
4 Existiu aqui ao p��.
5 Tu, que ��s do que nunca houve,
6 Punges como o passado
7 A que existir n��o aprouve.6
4 A N D R A D E , Carlos Drummond de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964.
p.413.
5 A M O R A et al. Presen��a da literatura portuguesa. S��o Paulo: Difus��o Europeia do Livro, 1961. p. 271. v. II.
6 P E S S O A , Fernando. Obra po��tica. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. p. 577.
6 1
Rimam os versos 1 e 3 (t /qu ), os versos 2 e 4
( /p ) e os versos 5 e 7 (h /apr ). J�� o verso 6 n��o rima
com nenhum outro: �� rima perdida ou rima ��rf��.
Rimas agudas, graves ou esdr��xulas
Quanto �� posi����o do acento t��nico, a rima coincide com a
palavra final do verso: rimas agudas, formadas por palavras
agudas ou ox��tonas; rimas graves, formadas por palavras graves
ou parox��tonas; rimas esdr��xulas, formadas por palavras esdr��-
xulas ou proparox��tonas. Classifiquemos as rimas do quarteto
de "Poemeto ir��nico", de Manuel Bandeira:
O que tu c h a m a s tua paixi rima A
�� t �� o - s o m e n t e curi��s rima B
E os t e u s desejos ferventes v rima A
Batendo a s a s na irreal rima B
As rimas A (paix /v ) s��o agudas; as rimas B (curio-
s /irreal ) s��o graves. Todas as rimas s��o consoantes.
C o m o o esquema �� A B A B , trata-se de rimas cruzadas.
Vamos repetir, analisando o quarteto inicial de um soneto
de Cruz e Souza:
�� um pensar flamejador, dard; (A)
uma explos��o de r��pidas id; (B)
q u e com um mar de e s t r a n h a s odiss (B)
saem-lhe do cr��nio escultural, til ...8 (A)
7 B A N D E I R A , Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Jos�� Olympio, 1966 .
p. 2 3 - 2 4 .
8 G O N �� A L V E S , Aguinaldo Jos�� (Org.). Cruz e Souza (antologia). S��o Paulo: Abril Educa����o, 1982. p. 4 7 . S��rie Literatura Comentada.
6 2
As rimas A (dard /tit ) s��o esdr��xulas; e as B
(id /odiss ) s��o graves. Como a distribui����o �� ABBA, as
primeiras (A) s��o interpoladas, e as segundas (B), emparelha-
das. Todas s��o rimas consoantes.
Rima rica e rima pobre
S��o dois os modos de conceituar rima rica e rima pobre: o
primeiro crit��rio �� gramatical; o segundo, f��nico.
De acordo com o crit��rio gramatical, a rima pobre ocorre
entre palavras pertencentes �� mesma categoria gramatical (dois
substantivos, dois adjetivos, dois verbos etc). E a rima rica se
d�� entre termos pertencentes a diferentes categorias gramati-
cais. Para ilustrar, um quarteto de Greg��rio de Matos, do soneto
"�� instabilidade das cousas do mundo":
Nasce o Sol e n��o dura mais que um d
Depois da luz se segue a noite esc
Em tristes sombras morre a formos
Em cont��nuas tristezas, a alegr ,9
Comparando os termos que rimam, segundo o crit��rio
gramatical, percebemos que "dia" e "alegria" apresentam rima
pobre, por pertencerem �� mesma categoria gramatical (substan-
tivos), enquanto "escura" (adjetivo) e "formosura" (substantivo)
configuram rima rica, pela diferen��a de categoria gramatical.
Pelo crit��rio f��nico, a rima �� pobre ou rica conforme a
extens��o dos sons que se assemelham. Na rima pobre, igualam-
se as letras a partir da vogal t��nica. Na rima rica, a identifica����o
9 G O L D S T E I N , Norma e C A M P E D E L L I , Samira. Literatura brasileira: estudo de textos.
2. ed. S��o Paulo: ��tica, 1975. p. 14.
6 3
come��a antes da vogal t��nica. Classifiquemos as rimas no quar-
teto inicial de "Um beijo", de Olavo Bilac, pelo crit��rio f��nico:
Foste o beijo melhor da minha v (A)
Ou talvez o pior... Gl��ria e tor (B)
Contigo �� luz subi do firma (B)
Contigo fui pela infernal desc (A)
As rimas A s��o interpoladas e pobres, pois as palavras
vida e descida s�� se identificam a partir da vogal t��nica; as
rimas B s��o emparelhadas e ricas, pois a igualdade de sons entre
as palavras que rimam j�� se inicia antes da vogal t��nica: firma-
mento e tormento. Neste ��ltimo caso, o E �� a vogal t��nica; e
desde o M, consoante de apoio do E, j�� se d�� a identifica����o.
Resumo
Classifica����o quanto a
Tipos de rima
Posi����o no verso
Interna ou externa
Consoante ��� rimam consoantes e vogais
Semelhan��as de letras
Toante - rima apenas a vogal t��nica
Cruzadas - ABABAB
Emparelhadas - AA BB CC
Distribui����o ao longo
Interpoladas ��� A ... A
do poema
Misturadas - irregularmente distribu��das na
estrofe ou no poema
Pobres (mesma categoria gramatical)
Categoria gramatical
Ricas (categoria gramatical diferente)
Pobres (identidade da vogal t��nica em diante)
Extens��o dos sons
Ricas (identidade desde a consoante que vem
que rimam
antes da vogal t��nica)
B I L A C , Olavo. Poesias. 29. ed. Rio de Janeiro: Civiliza����o Brasileira, s/d. p. 332.
8 Poema e poesia
Poema em prosa e prosa po��tica
Depois de perceber como s��o variados os ritmos e os
metros, voc�� talvez esteja pensando na seguinte quest��o: ser��
que a poesia s�� se faz presente nos versos? N��o, n��o apenas
nos versos. A poesia pode estar presente em outras obras art��s-
ticas: pe��as musicais, quadros, esculturas, fotografias, bales,
ou seja, em diferentes cria����es art��sticas. Algumas dessas
obras s��o consideradas po��ticas, por serem elaboradas de
modo a criar no leitor/ouvinte/espectador um efeito pr��ximo
ao do poema: convidam �� releitura e permitem mais de uma
interpreta����o.
No caso da literatura, a poesia tamb��m pode estar presen-
te na prosa, como exemplificam o poema em prosa e a prosa
po��tica. O poema em prosa �� um texto completo, com caracte-
r��sticas semelhantes ��s dos poemas, mas, em vez de ser escrito
em versos, tem a escrita seq��encial da prosa. Foi praticado
pelos simbolistas, como Cruz e Souza, mas tamb��m aparece em
outras ��pocas, inclusive em nossos dias.
A express��o "prosa po��tica" indica pequeno trecho com
organiza����o similar �� do poema, escrito em prosa, inserido em
um texto de outro g��nero, em prosa n��o-po��tica. Pode aparecer
6 5
em meio a uma not��cia, cr��nica, conto, romance, pe��a teatral,
carta etc.
Leia um exemplo de poema em prosa, "Sobre sucatas",
criado pelo poeta Manoel de Barros:
Isto �� porque a gente foi criada em lugar onde n��o
tinha brinquedo fabricado. Isto porque a gente havia que
fabricar os nossos brinquedos: eram boizinhos de osso,
bolas de meia, autom��veis de lata. Tamb��m a gente fazia
de conta que sapo �� boi de sela e viajava de sapo. Outra
era ouvir nas conchas as origens do mundo. Estranhei
muito quando, mais tarde, precisei de morar na cidade.
Na cidade, um dia, contei para minha m��e que vira na
Pra��a um homem montado no cavalo de pedra a mostrar
uma faca comprida para o alto. Minha m��e corrigiu que
n��o era uma faca, era uma espada. E o homem era um
her��i da nossa hist��ria. Claro que eu n��o tinha educa����o
de cidade para saber que her��i era um homem sentado
num cavalo de pedra. Eles eram pessoas antigas da his-
t��ria que algum dia defenderam a nossa P��tria. Para mim
aqueles homens em cima da pedra eram sucata. Seriam
sucata da hist��ria. Porque eu achava que uma vez no
vento esses homens seriam como trastes, como qual-
quer peda��o de camisa nos ventos. Eu me lembrava dos
espantalhos vestidos com as minhas camisas. O mundo
era um peda��o complicado para o menino que viera da
ro��a. N��o vi nenhuma coisa mais bonita na cidade do
que um passarinho. Vi que tudo que o homem fabrica
vira sucata: bicicleta, avi��o, autom��vel. S�� o que n��o vira
sucata �� ave, ��rvore, r��, pedra. At�� nave espacial vira suca-
ta. Agora eu penso uma gar��a branca de brejo ser mais
linda que uma nave espacial. Pe��o desculpas por come-
ter essa verdade.1
1 B A R R O S , Manoel de. Mem��rias inventadas. S��o Paulo: Planeta, 2003. prancha XV.
6 6
Observe a express��o inicial: "isto ��". Geralmente, ela apa-
rece no meio de uma frase. Colocada no in��cio do texto, parece
sugerir a continua����o de uma conversa entre o poeta Manoel de
Barros e o leitor, iniciada anteriormente.
O processo se acentua, com a repeti����o da mesma expres-
s��o, logo em seguida. O emprego de "a gente", al��m da constru-
����o "lugar onde n��o tinha brinquedo" ��� com o informal "ter"
em vez do formal "haver" ���, instaura o tom de bate-papo entre
amigos, aproximando poeta e leitor. Ao longo do poema em
prosa, o leitor acompanha o estranhamento do menino do inte-
rior, em seus contatos iniciais com o universo da cidade. A des-
cri����o da est��tua mescla tom po��tico e ironia.
No final, ocorre o emprego inusitado do verbo "come-
ter" ��� cujo objeto direto costuma pertencer ao campo sem��n-
tico dos termos que indicam algo errado: falha, pecado, enga-
no, crime ou similar. O emprego de "verdade" nesse papel leva
o leitor a refletir sobre o choque entre os dois universos em
contato.
Ainda que escrito em forma de prosa, o texto apresenta
v��rios recursos po��ticos, como repeti����o de palavras (isto por-
que, a gente, cidade, homem, faca, her��i, hist��ria, sucata, cami-
sa, nave espacial); alitera����es ou repeti����o da mesma consoante
(homem, montado, morar, minha m��e, mundo etc); asson��n-
cias ou repeti����o da mesma vogal (lembrava, espantalhos,
sucata, peda��o e t c ) ; compara����es, enumera����es, met��foras
(ouvir nas conchas as origens do mundo; seriam sucata da hist��-
ria; o mundo era um peda��o complicado).
O leitor �� levado a retornar ao texto para mais releituras,
em busca da interpreta����o.
Como exemplo de prosa po��tica, leia trecho da cr��nica "A
navega����o da casa", de Rubem Braga, descrevendo uma casa
aquecida, em certa noite muito fria:
6 7
[...]
Detenho-me diante de uma lareira e olho o fogo. ��
gordo e vermelho, como nas pinturas antigas: remexo
as brasas com o ferro, baixo um pouco a tampa de
metal e ent��o ele chia com mais for��a, estala, raiveja e
grunhe. [...]
Remonto mais no tempo, rodeio fogueiras da
inf��ncia, grandes tachos vermelhos, tenho vontade de
reler a carta triste que recebi outro dia de minha irm��.
[...] De s��bito me vem uma lembran��a triste, aquele
sag��i que eu trouxe do norte de Minas para minha noiva
e morreu de frio porque o deixei fora uma noite em Belo
Horizonte. Doeu-me a morte do sag��i: sem querer eu o
matei de frio; assim matamos, por distra����o, muitas ter-
nuras. Mas todas regressam, o pequeno bicho triste
tamb��m vem se aquecer ao calor de meu fogo e me per-
doa com seus olhos humildes. Penso em meninos.
Penso em um menino.2
A passagem �� marcada por recursos po��ticos: personifica-
����o, compara����es, sinestesias ��� associa����o de diferentes
sugest��es sensoriais ���, repeti����o de letras e palavras, paralelis-
mos sint��ticos. �� uma esp��cie de momento po��tico denso, antes
e depois do qual a cr��nica segue seu curso.
Poesia visual
Por vezes, os versos se associam a uma imagem, combi-
nando palavras e sugest��o visual. Esse recurso ocorreu em v��rias
��pocas. O rom��ntico Fagundes Varela criou versos em homena-
gem ao s��mbolo do cristianismo retomando a forma da cruz:
B R A G A , Rubem. " A navega����o da casa". In: A N T O N I O C A N D I D O ; C A S T E L L O , A .
Presen��a da literatura brasileira. S��o Paulo: Difus��o Europ��ia do Livro, 1964.
p. 364-365. v. III.
6 8
E s t r e l a s
S i n g e l a s ,
L u z e i r o s
Fagueiros,
Espl��ndidos orbes, que o mundo aclarais!
Desertos e mares, ��� florestas vivazes!
Montanhas audazes que o c��u topetais!
A b i s m o s
Profundos!
C a v e r n a s !
E t e r n a s !
E x t e n s o s ,
I m e n s o s
E s p a �� o s
A z u i s !
Altares e tronos
Humildes e s��bios, soberbos e grandes!
Dobrai-vos ao vulto sublime da cruz!
S�� ela nos mostra da gl��ria o caminho
S�� ela nos fala das leis de ��� J e s u s ! 3
O poeta franc��s Guillaume Appolinaire (1876-1944)
publicou Caligramas: poemas de paz e de guerra, em 1818. O
termo caligrama tem origem grega: cali indica beleza; grama
refere-se �� escrita. O caligrama �� um poema que associa pala-
vras e imagem, tipo de composi����o criada pelo poeta grego
S��mias, no s��culo III a.C. O caligrama de Appolinaire, "A
pomba apunhalada e o jato d'��gua", �� uma homenagem a ami-
gos do poeta. Leia o texto ��� no original ou traduzido ��� e
observe como ele est�� distribu��do visualmente.
Os criadores de caligramas pretendem que sua cria����o
seja um poema com dupla possibilidade de leitura: para ser lido
independentemente da sugest��o visual ou, ainda, associado ao
desenho em que se insere.
V A R E L A , Fagundes. In: C I T E L L I , Adilson. Poesia brasileira: romantismo. 9. ed.
S��o Paulo: ��tica, 1999. S��rie Bom Livro.
6 9
A P O L L I N A I R E , Guillaume. "La colombe poignard��e et le jet d'eau". Apud <http://
4
french.chass.utoronto.ca/frel80/Callig.html> . Acesso em novembro de 2005.
Em portugu��s, tradu����o literal da autora.
7 0
Douces figures poignard��es
Doces figuras apunhaladas
Ch��res l��vres fleuries
Queridos l��bios floridos
MIA MAREYE YETTE LOME
MIA MAREYE YETTE LORIE
ANNIE et toi MARIE
ANNIE e voc�� MARIA
o�� ��tes
onde est��o
vous ��
voc��s ��
jeunes filles
mocinhas
MAIS
M A S
pr��s d'un
perto de um
jet d'eau qui
jato de ��gua que
pleure et qui prie
chora e implora
cette colombe s'extasie
esta pomba se extasia
Tous les souvenirs de nagu��re Todas as lembran��as de
outrora
0 mes amis partis en guerre
�� meus amigos que partiram
para a guerra
Jaillissent vers le firmament
Jorram em dire����o ao
firmamento
Et vos regards dans l'eau
E seus olhares em dire����o ��
dormant
��gua adormecida
Meurent m��lancoliquement Morrem melancolicamente
O�� sont-ils Braque et Max
Onde est��o eles Braque e
Jacob
Max Jacob
Derain aux yeux gris comme
Derain de olhos cinzentos
l'aube?
como a aurora?
O�� sont Raynal Billy Dalize
Onde est��o Raynal Billy Dalize
Dont les noms se
Cujos nomes se tornam
m��lancolisent
melanc��licos
Comme des pas dans une
Como passos soando numa
��glise
igreja
O�� est Cremnitz qui s'engagea Onde est�� Cremnitz que se
alistou
Peut-��tre sont-ils morts d��j��
Talvez j�� estejam mortos
De souvenirs mon ��me est
Minha alma est�� cheia de
pleine
lembran��as
le jet d'eau pleure sur ma
o jato d'��gua chora sobre
peine
minha dor
7 1
Ceux qui sont partis �� la
Os que partiram para a guerra
guerre au nord se battent
lutam ao norte
Maintenant
agora
Le soir tombe o sanglante mer A noite cai �� mar sangrento
Jardins o�� saigne
Jardim onde sangra o louro
abondamment le laurier
flor rosa abundantemente
rose fleur
Guerri��re
guerreira
Poesia concreta
O movimento concretista brasileiro, em meados do s��culo
XX, foi inventivo na explora����o de t��cnicas visuais, produzindo
poemas-cartazes e objetos ilustrados. Al��m da sugest��o visual,
suas cria����es t��m certo car��ter l��dico, jogando com invers��es e
desmembramentos de palavras. Voc�� j�� leu, no cap��tulo 4, o
poema de Jos�� Lino Gr��newald cujo eixo �� a palavra "forma".
Leia o poema "Epit��fio para um banqueiro", de Jos��
Paulo Paes, tendo em mente que epit��fio �� um pequeno texto
que se coloca no t��mulo, em homenagem ao morto. Note como
a decomposi����o da palavra principal resulta numa forma inova-
dora de reorganizar o texto:
Epit��fio para um banqueiro
n e g �� c i o
e g o
�� c i o
c i o
O 5
Na cria����o de Pedro Xisto, o efeito predominante �� a
invers��o:
5 P A E S , Jos�� Paulo. Um por todos: poesia reunida. S��o Paulo: Brasiliense, 1986. p. 90.
7 2
i nf i n i to
nf i n i t o
f i n i t o
ini t o
n i t o
i t o
to
o
ot
ot i
o t i n
ot i n i
ot i n i f
oton i fn
ot ini fni6
Nos anos 1970, alguns criadores dedicaram-se aos poe-
mas visuais, dialogando tamb��m com a m��sica, o teatro e as
artes pl��sticas. �� o chamado grupo da poesia jovem ��� anos 70,
que n��o constitui um movimento organizado, mas apresenta em
comum o tom l��dico e bem-humorado.
Seus versos/palavras/imagens chegavam ao p��blico em
folhetos mimeografados. Por isso houve quem chamasse essas
manifesta����es de poesia marginal. Era uma forma de protesto,
durante o regime autorit��rio do pa��s na ��poca. Seu papel foi evi-
denciar o desejo de mudan��a e revelar alguns nomes importan-
tes: Walmir Ayala, Chacal, Ana Cristina C��sar, Nicolas Behr,
Leila Miccolis, Francisco Alvim, Cacaso, Torquato Neto, Paulo
Leminski, Antonio Ris��rio, Ledusha, Katia Bento, autora do
poema a seguir:
X I S T O , Pedro. In: A N T O N I O C A N D I D O ; C A S T E L L O ,
6
A . Op. cit , s/p.
7 3
PEGA LADR��O!
Algu��m tirou
um peda��o
do meu
P 0
Atualmente, diferentes formas po��ticas coexistem. Os
poetas contempor��neos s��o inventivos e livres para se inspirar
no estilo que julgarem adequado �� manifesta����o de sua criativi-
dade po��tica.
7 H O L L A N D A , Helo��sa B. e P E R E I R A , C. A. M. (Orgs.). Poesia jovem: anos 70 (antologia). S��o Paulo: Abril Educa����o, 1982. p. 91. S��rie Literatura Comentada.
9 Figuras de efeito sonoro
Alitera����o
Alitera����o �� a repeti����o da mesma consoante ao longo da
estrofe ou do poema. O leitor deve buscar que efeito esse recur-
so produz na significa����o do texto. No soneto "Bra��os", de
Cruz e Souza, aparecem v��rias alitera����es. O texto corresponde
ao que o t��tulo anuncia: a descri����o de membros superiores
femininos. Observe as alitera����es em destaque e procure verifi-
car em que medida elas sugerem a vis��o da parte do corpo que
est�� sendo descrita. As consoantes BR da palavra-t��tulo bra��os
v��o levar a sonoridade dessa palavra-chave para outras, produ-
zindo um tipo de alitera����o. Note tamb��m as outras alitera����es
destacadas no texto (S, V, T, M).
BRa��oS nerVosoS, BRancaS opul��n��iaS,
BRuMaiS BRancuraS, f��lgidaS BRancuraS
alVuraS caSfflaS, VirginaiS alVuraS,
laTeSC��n��iaS daS raraS laTeS����n��iaS.
AS faSCinanTeS, M��rbidaS dorM��n��iaS
doS TeuS aBRa��oS de leTaiS flexuraS,
produzem SenSa����eS de agreS TorTuraS,
doS desejoS aS MornaS floreS����n��iaS.
7 5
Asson��ncia
Asson��ncia �� o nome que se d�� �� repeti����o da mesma
vogal em um verso, um conjunto de versos ou ao longo do
poema. Observe a asson��ncia de A, vogal t��nica do nome femi-
nino que d�� t��tulo �� letra da can����o "Clara", de Caetano Veloso:
Seja na forma nasal (AN, ��), seja na forma oral (A), a
mesma vogal predomina na estrofe, em que o tema �� a mulher
chamada Clara. Dado o significado do nome e a hora luminosa
do dia ("manh�� madrugava"), o som que se repete parece suge-
rir luz, claridade.
N��o estou afirmando que a vogal A significa esta ou
aquela id��ia, nem poderia faz��-lo. Esta letra ou outra, bem
como qualquer repeti����o, s�� adquire sentido apoiada nos outros
recursos presentes no texto.
G O N �� A L V E S , Aguinaldo Jos�� (Org.). Cruz e Souza (antologia). S��o Paulo: Abril 1
Educa����o, 1982. p. 15. S��rie Literatura Comentada.
F R A N C H E T T I , Paulo e P �� C O R A , Alcyr (Orgs.). Caetano Veloso (antologia). S��o 2
Paulo: Abril Educa����o, 1981. p. 49. S��rie Literatura Comentada.
7 6
Certos poemas s��o particularmente ricos em alitera����es e
asson��ncias, como "Violoncelo", de Camilo Pessanha (alitera-
����o de S, TR, L, M e asson��ncia de A e O):
As figuras sonoras de repeti����o n��o t��m um sentido por si
pr��prias, mas somam seu efeito �� significa����o do poema, cujo
t��tulo j�� sugere a musicalidade que vai percorr��-lo. Note que a
m��trica e as rimas associam-se ��s repeti����es de letras na sonori-
dade e ritmo de "Violoncelo". As correspond��ncias sonoras
refor��am a correspond��ncia entre os diferentes universos: celes-
te (astros), aqu��tico (lemes, lacustre) e mineral (alabastro).
Tamb��m na prosa po��tica aparecem figuras sonoras, como
ilustra um trecho do conto "Uns bra��os", de Machado de Assis e
cujo eixo �� a personifica����o dos bra��os femininos que encantam
o jovem In��cio, prendendo-o �� casa em que reside como apren-
diz, sujeito aos maus tratos do chefe. Observe os efeitos sonoros
que, somado a outros recursos, valorizam o atributo feminino
que leva o rapaz a desistir de retornar �� casa dos pais:
(...)
3 P E S S A N H A , Camilo. Clepsidra e outrospoemas. 5. ed. Lisboa: ��tica, 1969. p. 238.
7 7
Repeti����o de palavras
A repeti����o de palavras �� um recurso muito freq��ente.
Quando acontece sempre na mesma posi����o (in��cio, meio ou
final de v��rios versos), recebe o nome de an��fora. Observe
como a empregou Oswald de Andrade, no poema "V��cio na
fala", cria����o po��tica bem-humorada que acentua o contraste
entre fala informal com acento regional e fala culta urbana:
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor, dizem mi��
Para pior pi��
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E v��o fazendo telhados5
No in��cio dos cinco primeiros versos, a mesma palavra:
"para". Essa retomada sustenta a enumera����o que mescla termos
cultos urbanos e regionalismos (no final dos versos 1,2, 3 , 4 e 5).
O verso final quebra a enumera����o, interrompe a repeti����o e
conclui: a a����o ("fazendo") acontece, apesar da fala "errada",
segundo a l��ngua-padr��o.
Mais uma vez, v��-se que �� dif��cil analisar o aspecto r��tmi-
co sem associ��-lo aos demais. Por outro lado, sem a an��lise dos
4 M A C H A D O D E A S S I S . Obra completa, v. 2. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962. p. 492.
5 A N D R A D E , Oswald de. Poesias reunidas. S��o Paulo: Difus��o Europ��ia do Livro, 1966. p. 80.
7 8
recursos sonoros, os demais aspectos talvez fiquem bem menos
ricos e sugestivos.
No mesmo poema de Oswald de Andrade, aparece outra
an��fora. No meio dos versos 1, 2, 4 e 5, repete-se a palavra
"dizem", enfatizando o lado oral da l��ngua, t��o valorizado pelos
modernistas, sobretudo por Oswald e M��rio de Andrade (que,
apesar do sobrenome igual, n��o eram parentes).
H�� repeti����es de palavras que n��o ocorrem sempre na
mesma posi����o, mas de modo misturado no poema. O impor-
tante �� localizar a repeti����o e depois verificar qual a sua contri-
bui����o para a interpreta����o do texto.
H�� casos em que o poeta cria uma esp��cie de jogo com os
sons, alternando a posi����o de sons semelhantes no interior
de palavras diferentes, como em "A tenta����o e o anagrama", de
M��rio Quintana:
Quem v�� um fruto
Pensa logo em furto6
Neste d��stico, M��rio Quintana faz uma esp��cie de brinca-
deira po��tica. A partir da troca de posi����o entre U e R em
"fruto/furto", quanta sugest��o...
O recurso sonoro pode confirmar o sentido do texto. Ou,
em outros casos, criar tens��o (ambig��idade, duplicidade de sen-
tido). Observe a estrofe abaixo, de "Hora de ter saudade", de
Ribeiro Couto. Ocorre identidade de sons; todavia, a diferen��a
gr��fica (da escrita) produz diversidade de sentido. Leia:
Houve aquele tempo...
(E agora, que a chuva chora,
ouve aquele tempo!).7
6 ZiLBERMAN, Regina (Org.). M��rio Quintana (antologia). S��o Paulo: Abril Educa-
����o, 1983. p. 39.
7 G O L D S T E I N , Norma. Do penumbrismo ao modernismo: o primeiro Bandeira e
outros poetas significativos. S��o Paulo: ��tica, 1983. p. 73.
7 9
Observe os termos "houve" (verbo haver, 3a pessoa do
pret��rito perfeito) e "ouve" (verbo ouvir, 2a. pessoa do imperati-
vo afirmativo). Do ponto de vista sonoro, h�� identidade; do ponto
de vista sem��ntico e sint��tico, diferen��as. Surge uma tens��o que
amplia o sentido do poema. O poeta lamenta o tempo que pas-
sou. Depois, ironicamente, faz alus��o ao clima do momento
presente. Por��m a nostalgia aparece: "a chuva chora" (alitera����o
de CH) e o termo "ouve" �� amb��guo, duplo. Trata-se do verbo
ouvir, mas o leitor �� remetido ao primeiro verso, inevitavelmen-
te. Conclus��o: ao lado da ironia, ecoa a m��goa da saudade.
Onomatop��ia
Chama-se onomatop��ia a figura em que o som da letra
que se repete lembra o som produzido pelo objeto nomeado,
como o do refr��o do poema "Os sinos", de Manuel Bandeira:
Sino de Bel��m, pelos que ainda v��m!
Sino de Bel��m, bate bem-bem-bem.
Sino da Paix��o, pelos que l�� v��o!
Sino da Paix��o, bate b��o-b��o-b��o.%
As onomatop��ias, nesse caso, remetem ao som dos sinos,
elemento central do poema, como anuncia o t��tulo.
B A N D E I R A , Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Jos�� Olympio Editora, 1966. p. 88-89.
10 Poemas de forma fixa
Formas e g��neros tradicionais
Algumas composi����es em verso t��m um padr��o fixo
determinante de sua estrutura. O mais conhecido, dentre os poe-
mas de forma fixa, �� o soneto, formado por dois quartetos e
dois tercetos, querido dos poetas de todas as ��pocas. O mais
popular �� a quadrinha, o quarteto de sentido completo. H�� mui-
tos outros, dentre os quais destaco alguns, em r��pida descri����o.
Balada ��� Feita para ser cantada, baseia-se no princ��pio
da repeti����o que facilita gravar o texto na mem��ria. A mesma
id��ia ou a mesma frase repete-se ao t��rmino de cada estrofe.
Costuma apresentar tr��s oitavas (estrofes de oito versos), geral-
mente com versos de oito s��labas. Algumas baladas populares
relatam lendas, sendo uma esp��cie de narra����o versificada.
Vilancete ��� Tamb��m chamado de vilancico, come��a com
um mote, tema ou motivo, a ser desenvolvido ao longo do
poema. O mote est�� contido em uma estrofe curta inicial. A
seguir, v��m as voltas, tr��s ou mais estrofes maiores que desen-
volvem e glosam ou comentam o mote. Nas estrofes da volta
repete-se um dos versos do mote.
Ode ��� Entre os antigos gregos e romanos, composi����o
alegre para ser cantada. Depois passou a designar um poema
8 1
l��rico em que se exprimem os grandes sentimentos da alma
humana. Pode celebrar fatos her��icos, religiosos, o amor ou os
prazeres. Sem obedecer a regras r��gidas, a ode costuma ser divi-
dida em estrofes iguais e com mesmo n��mero de versos.
Can����o ��� �� uma composi����o curta, cujo teor pode ser
ora melanc��lico, ora sat��rico. Permite todos os temas e nem
sempre se destina a ser cantada. Pode ou n��o apresentar estribi-
lho ou refr��o. As can����es nacionais incorporam-se �� tradi����o de
todos os povos.
Madrigal ��� Composi����o curta, destinada a homenagear
algu��m, por vezes valendo como uma confiss��o de amor. Pode
ser estruturado em qualquer metro, mas geralmente emprega a
redondilha ou mescla versos de seis e de dez s��labas.
Elegia ��� Composi����o destinada a exprimir tristeza ou
sentimentos melanc��licos.
Id��lio, ��gloga ou pastoral ��� Composi����es que celebram a
vida no campo, a natureza, a atividade agr��cola e pastoril, ou
seja, o bucolismo.
Rondo ou rondei ��� Sucedem-se tipos iguais de quadras
ou estrofes maiores, em versos de sete s��labas. Os dois primei-
ros versos de uma estrofe s��o retomados adiante, em cada
estrofe.
Epital��mio ��� Poema composto para celebrar um casamento.
Triol�� ��� Comp��e-se de uma ou mais oitavas em versos de
sete ou oito s��labas. Aparecem dois tipos de rima. O quarto
verso repete o primeiro, e os dois versos finais da estrofe reto-
mam os dois primeiros.
Sextina ��� Comp��e-se de seis sextilhas, geralmente em
versos decass��labos, seguidos de um terceto final. Os versos
devem terminar com palavras de duas s��labas. As palavras
finais dos versos da primeira estrofe devem reaparecer em ver-
sos das outras estrofes.
8 2
Haicai ��� Tipo de poema japon��s, composto de 17 s��la-
bas, distribu��das em tr��s versos apenas: o primeiro de cinco, o
segundo de sete e o terceiro de cinco s��labas. Originalmente
sem rima, no Brasil vem sendo retomado de maneira rimada.
Consiste na anota����o po��tica e espont��nea de um momento
especial. Leia "Inf��ncia", de Guilherme de Almeida:
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".1
Soneto
O poema de forma fixa encontrado com mais freq����ncia,
como j�� se disse, �� o soneto. Composto de dois quartetos e dois
tercetos, o soneto geralmente apresenta versos de dez ou doze
s��labas. Aparecem rimas de um tipo nos quartetos (AB), e de
outro, nos tercetos (CD).
O soneto costuma conter uma reflex��o sobre um tema
ligado �� vida humana. Ao retomar o modo camoniano de com-
por sonetos, o poeta moderno presta uma homenagem ao gran-
de cl��ssico da l��ngua portuguesa, reconhecendo no presente o
legado cultural de tempos passados. Como exemplo, leia a
seguir o "Soneto do amor total", de Vinicius de Moraes.
Amo-te tanto, meu amor... n��o cante
O humano cora����o com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo al��m, presente na saudade.
1 B A R R O S , Frederico Ozanam Pessoa de (Org.). Guilherme de Almeida (antologia).
S��o Paulo: Abril Educa����o, 1982. p. 77. S��rie Literatura Comentada.
8 3
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mist��rio e sem virtude
Com um desejo maci��o e permanente.
E de te amar assim, muito e ami��de,
�� que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.2
Na unidade de 14 versos do poema �� poss��vel perceber as
subunidades formadas pela estrofe. A l �� m do tema ��� uma refle-
x��o sobre um modo de amar ���, tamb��m o metro garante a unida-
de do conjunto. O verso �� o decass��labo. As rimas apresentam o
esquema A B A B A B B A C D C D C D . O texto tem um desenvolvi-
mento progressivo, com aumento de intensidade que vai envol-
vendo o leitor at�� o exagero dos versos finais ("morrer de amar").
Di��logo entre g��neros
��s inova����es r��tmicas acrescentaram-se, nos ��ltimos tem-
pos, mudan��as quanto aos g��neros liter��rios. Em vez dos poe-
mas de forma fixa, a poesia contempor��nea organiza-se em
poemas de formas n��o-fixas, ou melhor, n��o prefixadas. Por
vezes, refere-se a g��neros da prosa liter��ria e n��o liter��ria. Caso
retome uma das composi����es tradicionais, o poeta modernista e
contempor��neo o faz, geralmente, de maneira renovada, num
processo l��dico intertextual, esp��cie de jogo em que a cria����o
do presente dialoga com g��neros tradicionais de forma cr��tica.
Muitos desses poemas sugerem que o texto deve ser comple-
mentado pela reflex��o do leitor.
2 M O R A E S , Vinicius de. Antologia po��tica. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960.
p. 293.
8 4
Veja como isso ocorre numa quadrinha do contempor��neo
Ferreira Gullar:
Uma voz
Sua voz quando ela canta
me lembra um p��ssaro mas
n��o um p��ssaro cantando:
lembra um p��ssaro voando3
Observe a escassa pontua����o: s�� aparece uma vez, entre
os versos 3 e 4, indica����o de que cabe ao pr��prio leitor estabele-
cer o ritmo da leitura. A coloca����o pronominal no verso 2 apon-
ta para a linguagem informal. O segundo verso termina com a
conjun����o "mas"; geralmente ��tona, torna-se t��nica, aqui,
devido �� posi����o na s��laba final do verso. Repeti����es e rima
est��o presentes, mas o conjunto difere bastante do ritmo e do
estilo das quadrinhas tradicionais. Ao mesmo tempo que o
poeta as retoma e homenageia, ele o faz num formato que reme-
te a nossa ��poca. O leitor deve imaginar o inusitado paralelo: a
voz "que voa".
O poeta Jos�� Paulo Paes recria a "Declara����o de bens"
num poema que retoma o estilo enumerativo do g��nero hom��ni-
mo, para elencar legados da pr��pria trajet��ria, em tr��s quartetos
de versos irregulares, marcados pela an��fora: todos eles s��o ini-
ciados pelo possessivo de primeira pessoa. Verbos e pontua����o
est��o ausentes.
Declara����o de bens
meu deus
minha p��tria
minha fam��lia
3 F E R R E I R A G U L L A R . Toda poesia: 1 9 5 0 - 1 9 8 0 . 2. ed. S��o Paulo: Civiliza����o Brasileira, 1 9 8 1 . p . 242.
8 5
minha casa
meu clube
meu carro
minha mulher
minha escova de dentes
meus calos
minha vida
meu c��ncer
meus vermes4
S��o listados bens materiais, afetivos, culturais. O leitor ��
convidado a retom��-los, avaliar a ordem em que se apresentam
e interpretar a escolha feita pelo poeta.
Affonso Romano de Sant" Anna cria uma "Cr��nica poli-
cial" em cinco tempos ��� ou artigos, conforme os documentos
legais ���, dos quais voc�� vai ler o primeiro, subdividido em dois
par��grafos. Paralelismos e recursos sonoros percorrem versos
irregulares que retratam a viol��ncia urbana atual. A cr��nica
geralmente descreve um fato real. Em seu final, traz uma con-
clus��o ou reflex��o. Ao elencar em cinco partes sua "Cr��nica
policial", o poeta Sant Anna prop��e que o fecho fique por conta
do leitor.
Cr��nica policial
1.
�� Ontem tr��s homens duros e armados
entraram em casa de um casal amigo
comeram, beberam, violentaram uma visita,
levaram dinheiro, objetos e sa��ram em zombaria
��� num carro que largaram no sub��rbio da Central.
4 P A E S , Jos�� Paulo. Um por todos: poesia reunida. S��o Paulo: Brasiliense, 1986. p. 82.
8 6
�� Ontem a filha de um amigo esperava o ��nibus
Chegou-lhe um mulato forte, que lhe deu um bote,
levou-lhe a bolsa e o corpo para o matagal
surrando-a com pedra e pau. E ela morria,
n��o conseguisse correr e se lan��ar na frente a um
[carro
que obrigado a parar levou-a ao hospital.5
5 S A N T ' A N N A , Affonso Romano de. Que pais �� este? 2. ed. Rio de Janeiro: Civiliza-
����o Brasileira, 1980. p. 44.
11 N��veis do poema
As partes do todo
Os cap��tulos anteriores tratam essencialmente do aspecto
r��tmico do poema, ou seja: constru����o m��trica, tipo de estrofes
e de versos, acentua����o dos versos, rimas, repeti����es. Al��m
desse, devem ser analisados outros n��veis ou aspectos estrutu-
rais do poema, sempre tendo em vista que cada um deles deve
ser relacionado aos demais, a fim de se chegar �� interpreta����o
do poema em sua unidade.
J�� ficou dito que n��o h�� receitas para analisar e interpretar
textos, dado o car��ter espec��fico de cada obra liter��ria. Tamb��m
j�� foi comentado que certas t��cnicas podem ser ��teis para a lei-
tura mais aprofundada de textos. �� nesse sentido que segue um
coment��rio, como sugest��o, sobre os outros aspectos do poema
��� a utiliza����o do que ser�� exposto fica a crit��rio da sensibilida-
de de cada leitor.
Acho importante acrescentar que esta �� s�� uma aborda-
gem inicial. Ser�� fundamental que outras leituras te��ricas, al��m
da exercita����o da leitura de poemas e do trabalho pr��tico com
textos po��ticos, ampliem a bagagem do interessado em poesia.
8 8
N��vel lexical
�� poss��vel analisar o l��xico do texto, verificando de quais
palavras ele �� composto. O vocabul��rio do texto revela um n��vel
de linguagem: culto ou coloquial, por exemplo. De modo geral,
a linguagem coloquial �� mais freq��ente nos poemas modernos e
contempor��neos. Mas tamb��m h�� alguns deles em linguagem
culta, assim como tamb��m existem poemas tradicionais com-
postos em linguagem simples.
Em seguida, deve-se pesquisar as categorias gramaticais
presentes no poema, qual delas predomina e como s��o emprega-
das no texto. A preponder��ncia de verbos de a����o, conforme o
sentido do texto, costuma indicar bastante dinamismo; o de ver-
bos de estado, dependendo do sentido do poema, sugeriria
pouco dinamismo. A aus��ncia de verbos �� ��ndice de estaticida-
de. Os substantivos abstratos indicariam generaliza����o; os con-
cretos, particulariza����o. Procede-se a um levantamento dos
adjetivos, locu����es adjetivas e ora����es adjetivas, ou seja, dos
caracterizadores em geral. Deve-se sempre relacionar o subs-
tantivo ao adjetivo que o acompanha, buscando verificar que
associa����es estabelecem um com o outro.
Al��m do levantamento das categorias gramaticais, con-
v��m verificar como o autor as utiliza: �� o emprego usual? �� um
emprego novo? O que sugere cada termo, isoladamente? E em
conjunto ��� no verso, na estrofe, no poema?
Quanto aos verbos, recomenda-se pesquisar o tempo e o
modo verbal. Conforme a significa����o dos versos, o tempo ver-
bal pode apontar proximidade (presente) ou distanciamento
(passado/futuro); o modo representaria a realidade (indicativo)
ou a possibilidade, o desejo (subjuntivo).
Ao concluir o estudo da escolha das palavras que com-
p��em o poema, torna-se mais f��cil e seguro constatar como elas
contribuem para a interpreta����o do texto.
8 9
O emprego dos tempos verbais exerce importante fun����o
no poema "M��os dadas", de Carlos Drummond de Andrade:
N��o serei o poeta de um mundo caduco.
Tamb��m n��o cantarei o mundo futuro.
Estou preso �� vida e olho meus companheiros.
Est��o taciturnos mas nutrem grandes esperan��as.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente �� t��o grande, n��o nos afastemos.
N��o nos afastemos muito, vamos de m��os dadas.
N��o serei o cantor de uma mulher de uma hist��ria,
n��o direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da
[janela,
n��o distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
n��o fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo �� a minha mat��ria, o tempo presente, os
[homens presentes, a vida presente.1
Escrito no per��odo que antecedeu a Segunda Guerra Mun-
dial (1939-1945), o poema tem como eixo o sentimento de soli-
dariedade. Organiza-se em um jogo de oposi����es entre o que o
poeta aceita ��� expresso em forma verbal afirmativa no presen-
te do indicativo e do imperativo (estou, est��o, considero, ��,
vamos) ��� e o que ele recusa ��� expresso em forma verbal nega-
tiva distanciada do presente: o futuro do indicativo (n��o serei,
n��o cantarei, n��o direi, n��o distribuirei). Dentre essas recusas,
situam-se tanto o que j�� est�� superado (caduco) quanto o que
ainda est�� por acontecer (futuro). "Caduco" e "futuro" apresen-
tam rima toante, ocupam posi����o semelhante (final de verso) e
exercem a mesma fun����o sint��tica (caracterizam o substantivo
"mundo"). Associam-se na rejei����o total do poeta em voltar-se
ao que quer que seja fora do tempo presente.
1 A N D R A D E , Carlos Drummond de. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964.
p. 111.
9 0
Na segunda estrofe, os quatro primeiros versos enumeram
outras recusas do poeta: temas das escolas liter��rias que o pre-
cederam. No verso final, paralelismo, forma verbal no presente
do indicativo e repeti����o do adjetivo enfatizam a atitude do
escritor consciente e solid��rio.
Retome um poema que j�� apareceu ilustrando o verso de
uma s��laba ��� "Serenata sint��tica", de Cassiano Ricardo:
Rua
torta.
Lua
morta.
Tua
porta.
Nesse poema n��o h�� verbo nenhum. Fica sugerida a hip��-
tese de estaticidade, que a an��lise do poema pode confirmar ou
n��o. Em cada estrofe, dois versos e duas palavras: um substan-
tivo e um caracterizador (adjetivo), em dois deles ("torta",
"morta"); substantivo precedido de pronome, no outro ("tua").
Em uma primeira leitura, "rua torta" seria rua sinuosa. No
plano conotativo, pensa-se em "rua" como via, caminho, pas-
sagem, destino; e em "torta" como dif��cil, sinuosa, misteriosa,
duvidosa.
No terceiro verso, "lua" n��o �� apenas o sat��lite da Terra,
mas tamb��m o complemento rom��ntico de uma serenata; no
quarto, "morta" significa sem vida. A express��o "lua morta",
registram os dicion��rios, refere-se �� aus��ncia de luar ��� a cha-
mada Lua nova, noite sem luar, sem luz. Se a noite �� escura, a
obscuridade a torna misteriosa.
A estrofe final d�� a pista sobre o destino da serenata: "tua
porta". Tanto a porta concreta da casa da pessoa homenageada,
9 1
quanto a imagin��ria, a do cora����o. Porta que n��o se sabe se ser��
aberta, ou n��o, para o seresteiro, o poeta.
O poema �� permeado pelo clima de expectativa e incerte-
za. A estaticidade que percorre o texto resulta tanto do sentido
do vocabul��rio quanto da aus��ncia de verbos.
N��vel sint��tico
O leitor pode ler a organiza����o sint��tica do texto, come-
��ando pela pontua����o, isto ��, o levantamento do tipo de per��o-
dos do texto: curtos ou longos; frases ou ora����es isoladas. As
vezes aparece o paralelismo ou a mesma constru����o sint��tica
(mesmo tipo de verbo com mesmo tipo de complemento; com-
bina����o semelhante de substantivo e adjetivo; locu����es introdu-
zidas pelo mesmo termo etc), em versos diferentes. O poema
"M��os dadas", comentado h�� pouco, ilustra o modo como esses
recursos produzem efeito de sentido no texto.
O relacionamento entre paralelismos �� um dos componen-
tes que concorrem para o sentido do texto. Por vezes, certos ter-
mos s��o omitidos, podendo o leitor perceber quais seriam e
interpretar essa aus��ncia. Interroga����es, retic��ncias, invers��es
sint��ticas podem tamb��m apontar pistas.
Volto ao poema "Jos��", de Carlos Drummond de Andra-
de, do qual voc�� j�� viu um trecho anteriormente. Observe agora,
nesta estrofe, os paralelismos e as interroga����es:
o dia n��o veio,
o bonde n��o veio,
o riso n��o veio,
n��o veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou
e agora, Jos��?
9 2
Nos tr��s primeiros versos h�� um tipo de paralelismo sin-
t��tico ou repeti����o. Varia o sujeito, permanece o mesmo predi-
cado: "n��o veio". No quarto verso, a constru����o �� a mesma,
mas o efeito de impacto decorre, agora, n��o do paralelismo, e
sim da invers��o, colocando em destaque a palavra "utopia".
Na varia����o dos sujeitos, uma grada����o: "o dia" (passar do
tempo), "o bonde" (locomo����o no espa��o), a emo����o contida
no "riso", e, enfim, o projeto imposs��vel da "utopia". Nos ver-
sos seguintes, repete-se o sujeito, modifica-se o verbo que,
paralelisticamente, est�� sempre no passado: "acabou" (id��ia
de fim), "fugiu" (evas��o, fuga) e "mofou" (estragou, tornan-
do-se impr��prio para o uso). Os verbos no passado marcam o
distanciamento entre o texto ��� ou suas enumera����es ��� e o
presente. Ap��s a nega����o e o fim de tudo, tem-se o efeito de
perplexidade da interroga����o dirigida ao Jos�� que pode ser
cada um de n��s.
Encadeamento ou enjambement
Encadeamento, cavalgamento ou, usando um termo fran-
c��s, enjambement, �� a constru����o sint��tica especial que liga um
verso ao seguinte, para completar o seu sentido. Explicando
melhor: esse verso �� incompleto quanto ao sentido e quanto ��
constru����o sint��tica, apenas. M��tricamente, ritmicamente, ele
tem todas as s��labas po��ticas, e, se for verso regular, poder�� ter
rima. Surge, portanto, uma esp��cie de choque entre o som
(completo), a organiza����o sint��tica e o sentido que s�� se com-
pletam no verso seguinte. Ou seja: tens��o. Geralmente, o enca-
deamento produz uma rela����o bastante complexa entre esses
dois n��veis, resultando em ambig��idade de sentido. Atente para
os encadeamentos na estrofe inicial de "O aspecto mais lindo da
cidade", de Oleg��rio Mariano:
9 3
Sob a chuva, a Cidade
Espelhante de casaria,
Tem a esquisita sensualidade
De gata que se lambe e que se acaricia...
Friorenta, l��brica Cidade.2
A sintaxe e a pontua����o ligam os versos 1/2 e os versos
3/4. No primeiro caso, destaca-se o termo "Cidade": em mai��s-
cula e no final do verso; ao mesmo tempo, restringe-se o termo:
a cidade "espelhante de casaria". No segundo caso, repete-se o
processo com "sensualidade", no final do verso 3, especificada
a seguir: "de gata que se lambe e se acaricia". Nos dois casos, o
termo colocado em final de verso sofre uma esp��cie de redu����o
em seu sentido pelo enjambement que o liga, pela sintaxe, ao
verso seguinte. No conjunto dos versos, esta ambig��idade vai
ser ampliada pelo contraste sugerido no verso final: "Friorenta,
l��brica Cidade". A ant��tese "friorenta" x "l��brica" amplia a ten-
s��o sugerida pelos dois encadeamentos, instaurando duplici-
dade de sentido, na medida em que se associam aspectos con-
tradit��rios para descrever uma mesma paisagem.
O enjambement, ou encadeamento, �� um recurso que deve
ser analisado cuidadosamente, j�� que surge tens��o relativa a
som, sintaxe e sentido. Geralmente, seu efeito pode ser associa-
do ao de outros recursos empregados nos mesmos versos ou em
versos pr��ximos.
N��vel sem��ntico
O aspecto sem��ntico est�� sempre presente em todos os
n��veis do poema. As figuras sonoras, a organiza����o sint��tica, o
vocabul��rio, o emprego das categorias gramaticais s�� podem
ser analisados tendo-se em vista o sentido global do texto.
2 M A R I A N O , Oleg��rio. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1968 . p. 6 1 .
9 4
Ao isolar, para fins did��ticos, o n��vel sem��ntico, o intuito
�� apenas comentar algumas figuras cuja presen��a no poema
pode implicar importantes efeitos sem��nticos.
Figuras de similaridade
Compara����o ��� Tamb��m chamada de s��mile, �� uma figu-
ra que aproxima dois termos, por interm��dio de uma locu����o
conjuntiva: "como", "assim como", "tal", "qual", e outras do
mesmo tipo. Como exemplo, dois versos de "Lembran��a de
morrer", de ��lvares de Azevedo:
Eu deixo a vida como deixa o t��dio
Do deserto o poento caminheiro3
O "como" comparativo aproxima a partida do poeta da
caminhada no deserto.
Met��fora ��� H�� muitos estudos sobre essa figura de gran-
de efeito po��tico. De maneira simplificada, pode-se compreen-
der a met��fora como uma compara����o abreviada, ou seja, da
qual se retirou a express��o "como" ou similar. Conforme o tipo
de constru����o da met��fora, varia seu efeito po��tico. Um exem-
plo de Cam��es: "Amor �� fogo que arde sem se ver".
Alegoria ��� Geralmente, �� conceituada como uma seq����n-
cia de met��foras, associando e aproximando elementos que,
normalmente, n��o teriam nenhum parentesco. A "Dama Bran-
ca", que percorre o poema hom��nimo de Manuel Bandeira, sor-
rindo-lhe nos "desenganos" e acompanhando-o por anos a fio, ��
a alegoria da morte, como esclarecem os versos finais:
G O L D S T E I N , Norma e C A M P E D E L L I , Samira. Literatura brasileira: estudos de textos. 2. ed. S��o Paulo: ��tica, 1976. p. 51.
9 5
��� A Dama Branca que eu encontrei,
H�� tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei.
Sorriu-me em todos os desenganos.
Essa const��ncia de anos a fio,
Sutil, captara-me. Imaginai!
Por uma noite de muito frio,
A Dama Branca levou meu pai.4
Ocorre oculta����o de sentido apenas provisoriamente. Ao
terminar a leitura do poema, o enigma se desfaz, a alegoria ou
met��fora continuada se esclarece e o leitor percebe qual �� a
identidade da "Dama Branca".
Sinestesia ��� �� o recurso que sugere associa����o de dife-
rentes impress��es sensoriais, ou seja, sugest��es ligadas aos
cinco sentidos: vis��o, tato, audi����o, olfato, paladar. O verso de
"Anoitecer", de Cec��lia Meireles, associa impress��es visuais e
t��teis: "As crian��as fecham os olhos sedosos".
Figuras de contiguidade
Meton��mia ��� �� o emprego de um termo por outro, numa
rela����o de contiguidade ou vizinhan��a. Por exemplo: causa pelo
efeito; sinal pela coisa significada; continente pelo conte��do;
possuidor pela coisa possu��da. No poema "O espelho", Manuel
Bandeira diz: "Tu refletes as minhas rugas". As rugas seriam
ind��cio da idade da figura refletida no espelho.
Sin��doque ��� Emprego de uma palavra por outra, em uma
rela����o de compreens��o ou inclus��o: parte pelo todo; singular
pelo plural; g��nero pela esp��cie; abstrato pelo concreto. "Bilhe-
B A N D E I R A , Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Jos�� Olympio, 1966.
4
p. 67-68.
9 6
te perdido", de Guilherme de Almeida, come��a assim: "Duas
palavras s�� para dizer... o qu��?". N��o se trata de duas palavras,
mas de um bilhete completo, como indica o t��tulo.
Figuras de oposi����o
Ant��tese ��� Consiste na aproxima����o de id��ias contr��rias.
Retomando o exemplo de Cam��es, a primeira parte do verso
"Amor �� fogo que arde" op��e-se �� segunda: "sem se ver". �� a
principal figura de oposi����o, ao lado do oximoro, da ironia e do
paradoxo.
O oximoro relaciona termos ant��nimos ou de sentido con-
tr��rio, estabelecendo entre eles um elo sint��tico (coordena����o,
determina����o etc). O poema "Ulysses", de Fernando Pessoa,
mereceu do te��rico Roman Jakobson5 uma an��lise centrada nos
ox��moros. Leia a estrofe inicial e note como se d�� o emprego
sint��tico dos ant��nimos:
O mytho �� o nada que �� tudo.
O mesmo sol que abre os c��us
�� um mytho brilhante e mudo ���
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.6
A ironia �� o emprego de uma palavra como se ela fosse o
seu ant��nimo. Exemplo: quando algu��m se dirige a uma crian��a
levada, chamando-a de "meu anjinho". O paradoxo �� uma afir-
ma����o que parece contr��ria ao senso comum. Por vezes resulta
de uma seq����ncia de ant��teses e sugere atitude de questiona-
mento ou espanto, como no soneto camoniano "Amor �� fogo
5 J A K O B S O N , Roman. "Os ox��moros dial��ticos de Fernando Pessoa". In: Ling����stica.
Po��tica. Cinema. S��o Paulo: Perspectiva, 1970. p. 93 a 118.
6 Id. ibid., p. 97.
9 7
que arde sem se ver", analisado por Antonio Candido na obra
indicada na Bibliograf��a Comentada (veja a p��gina 109). O
mesmo ocorre no poema do contempor��neo ��sio Macedo Ribei-
ro, em versos irregulares, bem-humorados e questionadores:
Vida
Vida: cisco
que o vento sempre leva,
a ��gua sempre lava,
o fogo queima sempre
e a terra esconde dentro de si.
Vida: fio invis��vel,
Corrente unida a fr��gil cadeado.
A vida �� de morte!7
Parentescos po��ticos
Ao empregar figuras na constru����o do poema, o poeta
cria sugest��es m��ltiplas de significa����o, tanto no plano denota-
tivo como no conotativo. A an��lise do n��vel sem��ntico deve
sempre ser associada �� dos outros n��veis. �� importante relacio-
nar as palavras, em fun����o de sua semelhan��a e de sua diverg��n-
cia. Podem-se aproximar termos, em um poema, pelas mais
diversas raz��es:
��� por estarem na mesma posi����o;
��� por estarem em posi����o sim��trica;
��� por terem a mesma fun����o sint��tica;
��� por pertencerem �� mesma classe gramatical;
��� por terem a mesma sonoridade etc.
R I B E I R O , ��sio Macedo. Pontua����o circence. S��o Paulo: Ateli��, 2000. p. 70.
7
9 8
Devem-se buscar as aproxima����es poss��veis, sempre rela-
cionando cada aspecto ao conjunto do poema como uma unidade.
Ao concluir e interpretar, �� preciso ter em mente que o
poema est�� enquadrado em uma vis��o de mundo, a do poeta; e
que reflete, direta ou indiretamente, um contexto hist��rico-
social. Eventualmente, a interpreta����o pode ser enriquecida
gra��as a um paralelo com outros textos do mesmo autor ou
��poca, ou com outros poemas de tem��tica semelhante. Como
muitos temas s��o universais e v��lidos em diferentes ��pocas,
cada leitor far�� a sua interpreta����o, em fun����o do momento e do
lugar em que vive, assim como de seu repert��rio de leitura.
Um repert��rio amplo permite ao leitor perceber os jogos
intertextuais, uma vez que muitos poetas dialogam com outros
criadores ��� escritores, m��sicos, artistas pl��sticos ��� de sua
��poca ou de ��pocas precedentes. Voc�� leu, no cap��tulo 4, o
poema "Debussy", de Manuel Bandeira. Nada se diz, no texto,
sobre o compositor franc��s. Qual seria a raz��o da escolha desse
t��tulo? Provavelmente, o modo como o poema foi composto,
organizado em duas partes superpostas, como duas m��os tocan-
do ao piano ou duas vozes moduladas ��� uma descritiva e outra
narrativa.
Ao longo da nossa hist��ria liter��ria, a "Can����o do ex��lio"
de Gon��alves Dias foi retomada por in��meros poetas, cada um
deles propondo a sua vis��o do Brasil, como contraponto ao
retrato ufanista e idealizado do poema rom��ntico.
Assim, mais uma vez se repete a mesma indica����o: o
melhor caminho �� somar leituras e mais leituras.
12 Estabelecendo rela����es
Um exemplo de an��lise e interpreta����o
Lembrando que a interpreta����o de um texto ��� quando
feita por uma s�� pessoa ��� �� necessariamente incompleta, isto ��,
aberta �� complementa����o de novas e enriquecedoras leituras ���
at�� mesmo ao longo do tempo ���, passo agora �� an��lise de um
poema em seus v��rios aspectos, procurando relacionar uns aos
outros, para chegar �� interpreta����o.
Trata-se de "Sem barra", do poeta contempor��neo Jos��
Paulo Paes (1926-1998).
Enquanto a formiga
carrega comida
para o formigueiro,
a cigarra canta,
canta o dia inteiro.
A formiga �� s�� trabalho,
a cigarra �� s�� cantiga.
Mas sem a cantiga
da cigarra
que distrai da fadiga,
1 0 0
seria uma barra
o trabalho da formiga!1
O poema "Sem barra" retoma a tradicional f��bula de
Esopo, "A cigarra e a formiga", de um ponto de vista diverso
daquele do texto original. A an��lise de seus v��rios aspectos per-
mite verificar como isso ocorre.
Os versos se distribuem em tr��s estrofes: a primeira e a
��ltima s��o quintetos, a estrofe central �� um d��stico.
Primeira estrofe
Comecemos pelo primeiro quinteto. Os versos m��trica-
mente iguais s��o redondilhas menores, t��m cinco s��labas po��ti-
cas, como ilustram os versos 1 e 3:
En - Q U A N - to a - for - M(ga)
Car - RE - ga - co - M](da)
1 2 3 4 5 E.R. 5(2-5)
Aparecem rimas consoantes ��� "formiguEIRO/intEIRO
��� e toantes ��� formiga/comida ��� num ��nico per��odo compos-
to por tr��s ora����es, todas elas com verbo claramente expresso:
1) Enquanto a formiga carrega comida para o formigueiro; 2) a
cigarra canta; 3) canta o dia inteiro.
A primeira estrofe parece retomar a f��bula tradicional. No
entanto, o leitor atento perceber�� o desequil��brio no emprego
dos verbos que indicam a����o: a da formiga �� explicitada uma s��
vez, enquanto a da cigarra se repete duas vezes. Qual seria a
raz��o do emprego desse recurso? O poeta estaria tentando cha-
mar a aten����o do leitor para o canto da cigarra?
1 P A E S , Jos�� Paulo. Olha o bicho! 11. ed. S��o Paulo: ��tica, 2003.
1 0 1
Na f��bula de Esopo, escritor da Antiguidade greco-latina,
assim como na vers��o francesa de La Fontaine, no s��culo XVII,
a cigarra exemplificava o comportamento de quem n��o tinha
vontade de trabalhar. Seu canto seria um pretexto para ocultar
a pregui��a.
Na tradi����o po��tica ocidental, a cigarra e seu canto foram
mudando de figura e passaram a ser associados �� atividade
art��stica. A repeti����o do verbo "cantar", na primeira estrofe,
provavelmente sinaliza que m��sica, canto e cria����o po��tica,
hoje, j�� s��o reconhecidos e valorizados.
Segunda estrofe
A estrofe central �� um d��stico que apresenta uma curiosa
contradi����o: as frases, sintaticamente, afirmam algo que a so-
noridade contesta.
Os dois versos apresentam o mesmo metro, redondilhas
maiores ou versos de sete s��labas, com o mesmo esquema r��tmi-
co: E.R. 7(3-5-7), ou seja, verso de sete s��labas, com acentos
po��ticos nas terceira, quinta e ��ltima s��labas.
Os dois versos tamb��m apresentam a mesma organiza����o
sint��tica, resultando num paralelismo: [sujeito + verbo de estado
+ predicativo do sujeito\. Em geral, a fun����o de predicativo do
sujeito �� exercida por um adjetivo, mas, nesse caso, emprega-se
um substantivo, sugerindo uma identifica����o entre esse termo e
o sujeito a que se refere: "A formiga �� s�� trabalho, / a cigarra ��
s�� cantiga". Seria poss��vel traduzir essa formula����o por uma
equa����o matem��tica:
Formiga = trabalho cigarra = cantiga"]
ou:
Formiga _ Cigarra
Trabalho Cantiga
1 0 2
("Formiga" est�� para "trabalho" assim como "cigarra" est�� para
"cantiga".)
O emprego do verbo "ser", de estado, indica situa����o per-
manente, aceita por todos ao longo do tempo.
Vejamos, agora, o que sugerem as rimas: formIGA / can-
tlGA (consoante) e cigArra / trabAlho (toante). Ocorre o opos-
to do que a sintaxe sugeria: a trabalhadora aproxima-se do
canto, ocorrendo o inverso com a cantora. O leitor atento perce-
ber�� a pista impl��cita nos recursos f��nicos empregados pelo
poeta e a dupla leitura poss��vel da estrofe central, sobrepondo
��� e opondo ��� o ponto de vista moderno ao tradicional.
Terceira estrofe
A ��ltima estrofe, o segundo quinteto, mescla versos de
diversos tamanhos:
Mas - S E M - a - can - Tl(ga)
1 2 3 4 5 E.R. 5(2-5)
Da - ci - GAR (ra)
2
3
E.R. 3(3)
Que - dis - TRAI - da - fa - Dl(ga)
1 2 3 4 5 6
E.R. 6(3-6)
Se - Ri - a-u - ma - BAR(ra)
1 2 3 4 5
E.R. 5(2-5)
0 - tra - BA - lho - da - for - Ml(ga)
1 2 3 4 5 6 7
E.R. 7(3-7)
Convido o leitor a questionar: por que os versos da ��ltima
estrofe s��o de diferentes metros ou tamanhos, uma vez que os
1 0 3
das duas primeiras se assemelham? Possivelmente a resposta
decorra do exame de outros aspectos do mesmo quinteto.
Nesse quinteto de versos desiguais, as rimas s��o regula-
res. Identificam-se sonoramente os versos 1, 3 e 5: cantIGA /
fadIGA / formIGA; e os versos 2 e 4: cigARRA / bARRA. A
semelhan��a do termo "formiga" aponta em duas dire����es opos-
tas: de um lado, o peso da "fadiga"; de outro, a leveza da "can-
tiga". Que dire����o escolher? Como equilibrar os dois aspectos?
A resposta fica a cargo da pr��pria formiga ou do leitor, quando
estiver nesse papel. A outra rima aproxima os termos "cigarra"
e "barra", associa����o tamb��m aberta �� interpreta����o do leitor:
como viver�� a cigarra, com ou "sem barra"? De novo caber�� ao
leitor a decis��o, no momento em que ele viver o papel de cigarra.
A estrofe se inicia pelo termo "mas", conjun����o coorde-
nada adversativa que indica oposi����o. O leitor �� levado a supor
que o que se diz nessa estrofe apresenta contraste em rela����o ao
que foi dito anteriormente. Na primeira estrofe, retomava-se a
f��bula tradicional, com leve indica����o da revaloriza����o da
cigarra, por meio da repeti����o do verbo "cantar", ampliando a
presen��a do inseto musical na estrofe: esse termo exerce a fun-
����o de sujeito duas vezes, pela repeti����o do verbo "cantar", ao
passo que a formiga tem o mesmo papel apenas uma vez. Na
segunda estrofe, a rima se superp��e �� constru����o sint��tica do
d��stico e prop��e uma leitura ��s avessas, acenando para a poss��-
vel invers��o de pap��is das duas personagens.
Ao come��ar pela conjun����o "mas", a terceira estrofe assu-
me a desconstru����o da f��bula tradicional, como se apresentasse
uma s��rie de questionamentos: n��o se pode cantar enquanto se
trabalha? Cantar ou criar n��o poderiam ser considerados, tam-
b��m, uma forma de trabalho? Quem canta num dia, n��o poderia
trabalhar no outro e vice-versa? �� vis��o invertida da f��bula cor-
responde um ritmo marcado por diferentes tipos de versos, de
modo a apoiar, m��tricamente, o que o texto diz: os seres vivos
1 0 4
podem desempenhar diferentes pap��is, de diferentes formas,
em diferentes contextos; e ainda: a vida de todos seria mais
f��cil, mediante maior coopera����o e solidariedade.
Cabe um coment��rio sobre o registro de linguagem. O
t��tulo antecipa o termo "barra", que volta a ser empregado no
pen��ltimo verso. Obviamente, trata-se de uma escolha do poeta.
Essa palavra faz parte do registro coloquial da linguagem, em
nosso pa��s2. "Barra pesada" ou simplesmente "barra" quer dizer
"situa����o dif��cil, complica����o". A presen��a da express��o fami-
liar num dos doze versos do poema e no t��tulo sinaliza que esse
registro remete �� linguagem ��� e ��s situa����es ��� da vida coti-
diana das pessoas comuns, de todos n��s. J�� tinha ficado clara a
reformula����o proposta para a f��bula tradicional: o papel da
cigarra e da formiga �� pass��vel de mudan��a, ao longo dos tem-
pos, conforme a situa����o e o contexto. Al��m disso, elas podem
inverter os pap��is, em diferentes momentos.
A partir da terceira estrofe, o poeta ultrapassa a simples
retomada da f��bula, propondo uma amplia����o da reflex��o e
envolvendo o leitor em seu poema: h�� muitos pap��is a serem
exercidos, em diferentes ritmos, momentos e situa����es. Posi-
����es r��gidas s��o como "barras" ou situa����es dif��ceis de enfren-
tar. Com flexibilidade e abertura a mudan��as, todas as pessoas
sairiam ganhando.
H�� diferentes maneiras de dialogar com textos de outras
��pocas, seja por meio de par��frases (retomada das mesmas id��ias
do mesmo ponto de vista), seja por meio de par��dias (retomada
de um ponto de vista cr��tico e, por vezes, bem-humorado). No
caso de "Sem barra", Jos�� Paulo Paes cria uma par��dia, em tom
leve, com cr��tica focada no esp��rito conservador das pessoas que
2 Esse emprego do termo "barra" ocorre apenas no Brasil, n��o se estendendo a
outros pa��ses que falam a mesma l��ngua, como Portugal, Angola, Mo��ambique,
Cabo Verde.
1 0 5
se apegam �� tradi����o da f��bula e de sua moral, na qual est�� impl��-
cita uma vis��o r��gida dos pap��is sociais.
Na par��dia alegremente cr��tica, o poeta contempor��neo,
ao mesmo tempo, homenageia uma obra do passado e a recria
criticamente. �� como se dissesse: as f��bulas s��o textos impor-
tantes, devem ser lidos, mas �� preciso faz��-lo com olhos atuali-
zados, de hoje, com o repert��rio decorrente de nossas leituras e
de nossa experi��ncia no mundo. Ao propor uma reformula����o
criativa da hist��ria da cigarra e da formiga, o poeta convida o
leitor a compartilhar com ele a cren��a no poder e na vitalidade
da cria����o po��tica.
13 Vocabul��rio cr��tico
Alitera����o: R e p e t i �� �� o d a m e s m a consoante n o interior d e u m o u mai s
v e r s o s .
An��fora: F i g u r a q u e c o n s i s t e n a r e p e t i �� �� o d a m e s m a p a l a v r a , n a m e s m a p o s i �� �� o , e m v �� r i o s v e r s o s (sempre n o c o m e �� o , s e m p r e n o
m e i o o u s e m p r e n o final d o v e r s o ) .
Ant��tese: F i g u r a qu e a p r o x i m a t e r m o s de sentido o p o s t o .
Asson��ncia: R e p e t i �� �� o d a m e s m a v o g a l dentro d e u m o u m a i s v e r s o s .
Cad��ncia: A l t e r n �� n c i a entre s��laba s fortes e fracas no i n t e r i o r do
m e s m o v e r s o .
Cesura: P a u s a q u e o c o r r e n o i n t e r i o r d o v e r s o , l o g o ap��s a s �� l a b a acentuada.
Compara����o: T a m b �� m c h a m a d a d e s �� m i l e , �� u m a figur a que a p r o x i m a d o i s t e r m o s , p o r m e i o d a c o n j u n �� �� o : " c o m o " o u similar.
Encadeamento: T a m b �� m c o n h e c i d o c o m o enjambement o u c a v a l g a -
m e n t o , esse r e c u r s o o c o r r e q u a n d o u m v e r s o apresenta liga����o
sint��tica (e de sentido) c o m o v e r s o seguinte.
Escans��o: F a z e r a escans��o o u escandir u m v e r s o consiste e m d e c o m -
p �� - l o e m s��labas o u p��s m��tricos.
Esquema r��tmico (E.R.): �� o n o m e q u e se d�� �� f �� r m u l a q u e i n d i c a
quantas s��labas po��ticas t e m o v e r s o (fora dos par��nteses) e quais
as s��labas acentuadas (dentro dos par��nteses).
Estrofe: C h a m a - s e estrofe o c o n j u n t o de v e r s o s de um p o e m a .
1 0 7
Met��fora: De m a n e i r a s i m p l i f i c a d a , p o d e - s e c o m p r e e n d e r a m e t �� f o r a c o m o u m a c o m p a r a �� �� o a b r e v i a d a , o u seja, d a qual s e r e t i r o u a
e x p r e s s �� o " c o m o " o u similar.
Meton��mia: F i g u r a que consiste e m n o m e a r u m do s aspectos d e u m a
representa����o g l o b a l , n u m a rela����o d e v i z i n h a n �� a o u contiguidade.
M��trica ou metrifica����o: S i n �� n i m o de v e r s i f i c a �� �� o , �� o estud o d o s m e t r o s , p �� s , acentos e ritmo do v e r s o .
Paralelismo: C o n s i s t e n a r e p e t i �� �� o d a m e s m a c o n s t r u �� �� o sint��tica dentro d o p o e m a .
Poema: O p o e m a em v e r s o s �� um text o qu e se c o m p �� e de estrofes,
m a r c a d o p o r recursos s o n o r o s e r��tmicos. G e r a l m e n t e , o p o e m a
p e r m i t e outras leituras a l �� m da linear, p o i s sua c o m p o s i �� �� o s u g e -
re associa����o entre express��es ou p a l a v r a s p o s i c i o n a d a s estrategi-
camente n o texto.
Poema em prosa: T e x t o em p r o s a , curto, c o m as m e s m a s caracter��sti-
cas d o p o e m a e m v e r s o s .
Poesia: A l �� m d e f i g u r a r e m p o e m a s , a p o e s i a o u efeito po��tic o p o d e estar presente em outras cria����es art��sticas q u e , c o m o o p o e m a ,
c o n v i d a m o leitor/espectador/ouvinte a retornar �� o b r a m a i s de
u m a v e z , d e s v e n d a n d o as pistas que ela apresenta p a r a a interpre-
ta����o de seus (m��ltiplos) sentidos.
Poesia visual: P o e m a s q u e , a l �� m do text o c o m p o s t o p o r p a l a v r a s , t a m -
b �� m apresentam i m a g e m , c o m o os caligramas, a p o e s i a concreta e
parte das p r o d u �� �� e s d a c h a m a d a p o e s i a j o v e m dos anos 70.
Prosa po��tica: T r e c h o i n s e r i d o e m u m g �� n e r o e m p r o s a , c o m a s m e s -
m a s caracter��sticas d o p o e m a e m p r o s a .
Rima: S e m e l h a n �� a entre o s sons n o interior d o m e s m o v e r s o ( r i m a
interna) o u n o f i n a l d e v e r s o s diferentes ( r i m a externa). P o d e ser
consoante ( q u a n d o rimam v o g a i s e consoantes) ou toante ( q u a n d o
r i m a m apenas a s v o g a i s t��nicas). P o d e m ser p o b r e s o u r i c a s , c o n -
f o r m e a e x t e n s �� o dos sons que rimam ou a categoria gramatical.
Q u a n t o �� d i s p o s i �� �� o , p o d e m ser alternadas ou c r u z a d a s , e m p a r e -
lhadas, interpoladas o u misturadas.
Sin��doque: F i g u r a q u e e m p r e g a u m t e r m o p e l o o u t r o , e m rela����o d e c o m p r e e n s �� o o u inclus��o.
1 0 8
Sinestesia: S u g e r e associa���� o s i m u l t �� n e a de diferente s i m p r e s s �� e s
s e n s o r i a i s , isto �� , s u g e s t �� e s l i g a d a s aos c i n c o sentidos: v i s �� o ,
audi����o, olfato, paladar, tato.
Verso: C a d a linha d e u m p o e m a , c o m r i t m o espec��fico, diferente d o d e
u m a l i n h a d e p r o s a . H �� v �� r i o s tipos:
brancos: v e r s o s regulares q u e n �� o apresentam rimas;
livres: v e r s o s de r i t m o solto cuja s��laba acentuada n �� o se f i x a e m
u m a m e s m a p o s i �� �� o e c u j o ritmo v a r i a c o n f o r m e a leitura ou
o leitor;
polim��tricos: v e r s o s regulares d e t a m a n h o s diferentes, cujas s��la-
bas acentuadas s��o fixas n u m a m e s m a p o s i �� �� o ;
regulares: apresentam rimas e s e u ritmo segue as regras d a m �� t r i -
ca cl��ssica.
14 Bibliografia comentada
ALONSO, D��maso. Poesia espanhola. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, 1960.
Obra extensa, em que o autor mostra sua trajet��ria de apai-
xonado leitor de poesia a cr��tico especializado. Ao mesmo
tempo que aborda conceitos te��ricos, apresenta exemplos,
analisando poemas em l��ngua espanhola.
ANTONIO CANDIDO. O estudo anal��tico do poema. S��o Paulo:
Humanitas, 2004.
Obra essencial, trata de quest��es relacionadas �� an��lise e
interpreta����o de poemas, em apresenta����o clara e recheada
de exemplifica����es.
. Na sala de aula. 8. ed. S��o Paulo: ��tica, 2000.
O livro apresenta an��lises de poemas de diferentes ��pocas,
exemplificando, de maneira clara e did��tica, possibilidades
de descoberta dos significados do poema.
BILAC, Olavo e PASSOS, Guimar��es. Tratado de versifica����o. 3��. ed.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1918.
Obra dif��cil de encontrar. Mas sua consulta �� poss��vel em
bibliotecas, nesta edi����o ou em uma das edi����es posteriores.
Bosi, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. S��o Paulo: Cul-
trix/Edusp, 1977.
1 1 0
Em seis cap��tulos, o autor faz reflex��es sobre o fen��meno
po��tico e sua rela����o com outros campos do conhecimento.
O cap��tulo "O som no signo" aponta na mesma dire����o
deste volume. Obra imprescind��vel.
CAMPOS, Geir. Pequeno dicion��rio de arte po��tica. S��o Paulo:
Cultrix, 1978.
Gloss��rio de termos po��ticos, explicados com objetividade
e clareza. Livro ��til para os estudiosos da poesia.
CHOCIAY, Rog��rio. Teoria do verso. S��o Paulo: McGraw-Hill do
Brasil, 1974.
Em 16 cap��tulos com exemplos em l��ngua portuguesa, o
autor faz um estudo que amplia, desenvolve e complementa
a proposta deste trabalho, tratando do ritmo do poema.
COHEN, Jean. Estrutura da linguagem po��tica. S��o Paulo: Cul-
trix/Edusp, 1974.
O autor v�� a poesia como "desvio" da prosa. Sua grande
contribui����o consiste na proposta de "f��rmulas" pr��ticas
para aplica����o em an��lise liter��ria. Os exemplos analisados
s��o de autores franceses.
D'ONOFRIO, Salvatore. "Elementos estruturais do poema". In: O
texto liter��rio: teoria e aplica����o. S��o Paulo: Duas Cidades,
1983.
Nesse texto o autor resume as principais tend��ncias cr��ticas
da atualidade, al��m de propor uma esp��cie de roteiro para
an��lise e interpreta����o do texto po��tico.
DUCROT, Oswald e TODOROV, Tzvetan. Dicion��rio das ci��ncias
da linguagem. Edi����o portuguesa orientada por Eduardo
Prado Coelho. Lisboa: Dom Quixote, 1973.
Dentre os verbetes, aparecem conceitos importantes para os
que se interessam pela an��lise ling����stica e liter��ria, parte
deles voltada para a linguagem po��tica.
1 1 1
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da l��rica moderna. S��o Paulo: Duas
Cidades, 1978.
No cap��tulo inicial - "Considera����es preliminares" -, o
autor estabelece a import��ncia da poesia no mundo moder-
no. Nos demais, comenta a obra de grandes poetas: Baude-
laire, Ungaretti, Garcia Lorca e outros.
JAKOBSON, Roman. "Ling����stica e po��tica". In: Ling����stica e
comunica����o. S��o Paulo: Cultrix, 1969.
Ensaio que trata das fun����es da linguagem, particularmente
da fun����o po��tica, evidenciando a import��ncia de seu papel
nos textos liter��rios e n��o-liter��rios. Texto fundamental
para estudantes do curso de Letras.
JOLIBERT, Josette e colaboradores. Formando crian��as produto-
ras de textos. 2 vol. Tradu����o de W. M. F. Settineri e B.
Charles Magne. Porto Alegre: Artmed 1994. v. II.
Embora voltada para professores de l��ngua materna, trata-se
de obra fundamentada em importantes teorias ling����sticas e
estil��sticas que trata da natureza do poema. Bastante ��til
para os interessados no tema.
PFEIFFER, Johanes. Introdu����o �� poesia. Lisboa: Europa-Am��ri-
ca, 1966.
Em linguagem simples, o autor aborda com muita seriedade
temas fundamentais para o estudo da literatura. O cap��tulo
inicial - "Ritmo e melodia" - relaciona-se com as propostas
deste livro.
TOMACHEVSKI, B. "Sobre o verso". In: Teoria da literatura: for-
malistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973.
Ensaio ��til para a an��lise r��tmica do poema. Apesar dos
exemplos estrangeiros, sugere aplica����es variadas e ��teis.
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Lançamento Só Livros com sinopses e Grupo Bons Amigos:
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