para jovens
leitores
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Machado
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Rio de Janeiro
2008
Copyright � 2008, Organizadores Ana Cristina Chiara, Antonio Carlos Secchin, Denise Brasil e Ivo Barbieri.
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Ilustra��es dos contos Jos� Carlos Braga
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Pedro Colmar Gon�alves da Silva Vellasco
CATALOGA��O NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
A848 Machado para jovens leitores / Organiza��o, Ana Cristina
Chiara [et al.]. - Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.
184p.
ISBN 978-85-7511-132-1
1. Assis, Machado de, 1839-1908. 2. Literatura para jovens.
I. Chiara, Ana Cristina.
CDU 869.0(81) (08)
As imagens de Machado de Assis utilizadas neste livro foram cedidas pela ABL.
Sum�rio
Nota editorial 9
Caro(a) leitor(a), 11
Amor e desamor 13
Flores e livros 15
Quando ela fala 16
O primeiro beijo 17
O penteado 19
A cartomante 21
Do di�rio de Aires 29
A Carolina 31
Gosto da liberdade 33
13 de maio de 1888 35
Conto de escola 36
Pancr�cio 43
Um gatuno 45
Artes e artistas 47
A vida � uma �pera 49
Um homem c�lebre 52
Cantiga de esponsais 60
Instinto de nacionalidade 64
Loucos 69
O alienista 71
Os navios do Pireu 72
Torrente de loucos 73
� gira! � gira! 76
Antes um navio no Pireu que cem cavalos no pampa 79
Fuga do hosp�cio da Praia Vermelha 82
Tipos inesquec�veis 85
Jos� Dias 87
O sineiro da Gl�ria 88
Dona Pl�cida 90
O administrador interino 92
Esse Aires 94
Paula Brito 96
Na arca de No� 97
Bichos de estima��o 99
Conversa de burros 100
Quincas Borba 104
Id�ias de can�rio 106
A borboleta preta 110
Contradi��es humanas 113
C�rculo vicioso 115
O vergalho 116
O verdadeiro Cotrim 117
Era uma vez uma choupana 119
Hist�ria da carochinha 120
Vol�pia do dinheiro 123
A carteira 125
O embrulho misterioso 129
O empr�stimo 131
A esmola da felicidade 138
S�tira pol�tica 141
143
Lobo Neves
144
A Seren�ssima Rep�blica 148
(confer�ncia do c�nego Vargas)
O dicion�rio 155
Tabuleta nova
Arquivo 159
161
Textos de Machado de Assis
162
Carta a Joaquim Nabuco 165
Machado na ABL
Textos sobre Machado de Assis 167
A �ltima visita (Euclides da Cunha) 168
P�ginas de saudade (M�rio de Alencar) 170
Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas 172
(Capistrano de Abreu)
Posf�cio 177
A um bruxo, com amor 178
(Carlos Drummond de Andrade)
Nota biogr�fica 181
Cronologia da obra 183
Nota editorial
O conte�do deste livro est� organizado por se��es tem�ticas, definidas a
partir dos assuntos mais caracter�sticos da obra machadiana. Cada se��o agrupa
textos de g�neros diversos e �pocas diversas da vida do escritor, mantendo
por�m a �nfase na prosa de fic��o, pois � essa que confere a Machado o status
de mestre maior da literatura brasileira e universal.
O foco da presente sele��o � o texto em si, buscando propiciar uma
experi�ncia de contato direto com a obra. Cada item da antologia � apresentado
como pe�a narrativa individual. Os contos selecionados est�o publicados na
�ntegra, ao passo que os trechos recortados de romances s�o apresentados como
hist�rias aut�nomas. Em alguns casos, demos um t�tulo fantasia para uso apenas
da presente edi��o, como em "Jos� Dias" (trecho extra�do do cap�tulo "Um dever
amar�ssimo", de Dom Casmurro) ou "13 de maio de 1888" (que na vers�o original
� "14 de maio de 1888"). Ao final de cada conto ou trecho de romance, � dada a
refer�ncia do livro de que foi extra�do, como indica��o para poss�veis explora��es
futuras da obra de Machado por parte do leitor. A mesma regra � seguida nos
poemas. No caso das cr�nicas e outras pe�as jornal�sticas, indica-se a data de sua
publica��o original. No final do volume, o leitor encontrar� uma breve nota
biogr�fica sobre o autor e uma cronologia da obra, contendo as datas das
primeiras edi��es de cada livro de Machado.
Acentuando seu car�ter de mosaico de textos, e a proposta de contato
direto do leitor iniciante com a obra, o volume come�a de maneira l�dica com
uma colagem de frases e par�grafos retirados de diferentes obras de Machado,
no lugar do que seria usualmente a apresenta��o ou o pr�logo. S�o frases e
textos em que Machado comenta o fazer liter�rio.
Na �ltima se��o tem�tica, intitulada "Arquivo", leva-se ao leitor um mosaico
de documentos de e sobre Machado. Desse "arquivo" constam trechos de discursos
de Machado na Academia Brasileira de Letras - institui��o por ele criada e que nele
teve seu primeiro presidente -, assim como trechos de carta ao amigo Joaquim
Nabuco. O volume se encerra com textos sobre Machado escritos por contempor�neos
e, finalmente, no lugar do posf�cio, um poema em sua homenagem, escrito no ano do
centen�rio de seu nascimento pelo poeta Carlos Drummond de Andrade.
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que os escrevesse tamb�m. E eis a raz�o do enciclopedista: � que quando
se faz um conto, o esp�rito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida
acaba, sem a gente dar por isso (Pap�is avulsos).
[...] o maior defeito deste livro �s tu, leitor. [...] tu amas a narra��o direita
e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo s�o como os
�brios, guinam � direita e � esquerda, andam e param, resmungam, urram,
gargalham, amea�am o c�u, escorregam e caem... (Mem�rias p�stumas de
Br�s Cubas). [Francamente eu n�o gosto de gente que deseja] chegar j� ao
cap�tulo do amor ou dos amores, que � o seu interesse particular nos livros.
[A senhora, amiga minha, se quer compor o livro,] tenha confian�a no
redator destas aventuras (Esa� e Jac�).
Note que aqui lhe poupei o trabalho[, leitor]; n�o o obriguei a achar por
si o que, de outras vezes, � obrigado a fazer. O leitor atento, verdadeiramente
ruminante, tem quatro est�magos no c�rebro, e por eles faz passar e repassar
os atos e os fatos, at� que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar
escondida (Esa� e Jac�). Aqui � que eu quisera ter dado a este livro o
m�todo de tantos outros - velhos todos -, em que a mat�ria do cap�tulo
era posta no sum�rio: "De como aconteceu isto assim, e mais assim". [...] �
claro, � simples, n�o engana a ningu�m; [...] quem n�o quer ler n�o l�, e
quem quer l�, para os �ltimos � que o autor conclui obsequiosamente
(Quincas Borba).
O melhor pr�logo � o que cont�m menos coisas [...]. Conseguintemente,
evito contar o processo extraordin�rio que empreguei na composi��o [...].
Seria curioso, mas nimiamente extenso, e ali�s desnecess�rio ao entendimento
da obra. A obra em si mesma � tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da
tarefa; se n�o te agradar, pago-te com um piparote [...] (Mem�rias p�stumas
de Br�s Cubas). Supondo, por�m, que o meu fim � definir estas p�ginas
como tratando, em subst�ncia, de coisas que n�o s�o especialmente do dia,
ou de um certo dia, penso que o t�tulo est� explicado. E � o pior que lhe
pode acontecer, pois o melhor dos t�tulos � ainda aquele que n�o precisa
de explica��o (Hist�ria
sem data).
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14
Machado
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0 primeiro beijo
Tinha dezessete anos; pungia-me um bu�ozinho que eu forcejava por
trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha fei��o verdadeiramente
m�scula. Como ostentasse certa arrog�ncia, n�o se distinguia bem se era uma
crian�a com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era
um lindo gar��o, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote
na m�o e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o
corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para
dar com ele nas ruas do nosso s�culo. O pior � que o estafaram a tal ponto, que
foi preciso deit�-lo � margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e
vermes, e, por compaix�o, o transportou para seus livros.
Sim, eu era esse gar��o bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina
que mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou
para mim os olhos cobi�osos. De todas por�m a que me cativou logo foi uma...
uma... n�o sei se diga; este livro � casto, ao menos na inten��o; na inten��o �
cast�ssimo. Mas v� l�; ou se h� de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma
dama espanhola, Marcela, a "linda Marcela", como lhe chamavam os rapazes do
tempo. E tinham raz�o os rapazes. Era filha de um hortel�o das Ast�rias, disse-
mo ela mesma, num dia de sinceridade, porque a opini�o aceita � que nascera de
um letrado de Madri, v�tima da invas�o francesa, ferido, encarcerado,
espingardeado, quando ela tinha apenas doze anos. Cosas de Espana. Quem quer
que fosse, por�m, o pai, letrado ou hortel�o, a verdade � que Marcela n�o possu�a
a inoc�ncia r�stica, e mal chegava a entender a moral do c�digo. Era boa mo�a,
l�pida, sem escr�pulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe n�o
permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa,
impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amores por
um certo Xavier, sujeito abastado e t�sico - uma p�rola.
Vi-a, pela primeira vez, no Rossio Grande, na noite das lumin�rias, logo
que constou a declara��o da independ�ncia, uma festa de primavera, um amanhecer
da alma p�blica. �ramos dois rapazes, o povo e eu; v�nhamos da inf�ncia, com
todos os arrebatamentos da juventude. Vi-a sair de uma cadeirinha, airosa e
vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma coisa que nunca achara
nas mulheres puras. - Segue-me, disse ela ao pajem. E eu segui-a, t�o pajem como
o outro, como se a ordem me fosse dada, deixei-me ir namorado, vibrante, cheio
das primeiras auroras. A meio caminho, chamaram-lhe "linda Marcela", lembrou-
me que ouvira tal nome a meu tio Jo�o, e fiquei, confesso que fiquei tonto.
Tr�s dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a uma
ceia de mo�as, nos Cajueiros. Fomos; era em casa de Marcela. O Xavier, com todos
os seus tub�rculos, presidia ao banquete noturno, em que eu pouco ou nada comi,
porque s� tinha olhos para a dona da casa. Que gentil que estava a espanhola!
Havia mais uma meia d�zia de mulheres - todas de partido - e bonitas, cheias
de gra�a, mas a espanhola... O entusiasmo, alguns goles de vinho, o g�nio imperioso,
estouvado, tudo isso me levou a fazer uma coisa �nica; � sa�da, � porta da rua,
disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a subir as escadas.
- Esqueceu alguma coisa? - perguntou Marcela de p�, no patamar.
- O len�o.
Ela ia abrir-me caminho para tornar � sala; eu segurei-lhe nas m�os,
puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. N�o sei se ela disse alguma coisa, se gritou,
se chamou algu�m; n�o sei nada; sei que desci outra vez as escadas, veloz como
um tuf�o, e incerto como um �brio.
Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas
0 penteado
Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos
cabelos, colhi-os todos e entrei a alis�-los com o pente, desde a testa at� as �ltimas
pontas, que lhe desciam � cintura. Em p� n�o dava jeito: n�o esquecestes que ela
era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe
que se sentasse.
- Senta aqui, � melhor.
Sentou-se. "Vamos ver o grande cabeleireiro",
disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com
muito cuidado, e dividi-os em duas por��es
iguais, para compor as duas tran�as. N�o as fiz
logo, nem assim depressa, como podem supor
os cabeleireiros de of�cio, mas devagar,
devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios
grossos, que eram parte dela. O trabalho era
atrapalhado, �s vezes por desazo, outras de
prop�sito para desfazer o feito e refaz�-lo. Os
dedos ro�avam na nuca da pequena ou nas
esp�duas vestidas de chita, e a sensa��o era
um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam
acabando, por mais que eu os quisesse
intermin�veis. N�o pedi ao c�u que
eles fossem t�o longos como os da
Aurora, porque n�o conhecia ainda
esta divindade que os velhos poetas
me apresentaram depois; mas, desejei pente�-los por todos os s�culos dos s�culos,
tecer duas tran�as que pudessem envolver o infinito por um n�mero inomin�vel
de vezes. Se isto vos parecer enf�tico, desgra�ado leitor, � que nunca penteastes
uma pequena, nunca pusestes as m�os adolescentes na jovem cabe�a de uma
ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitol�gico. Ainda h� pouco, falando dos seus
olhos de ressaca, cheguei a escrever T�tis; risquei T�tis, risquemos ninfa; digamos
somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as pot�ncias crist�s e
pag�s. Enfim, acabei as duas tran�as. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas?
Em cima da mesa, um triste peda�o de fita enxovalhada. Juntei as pontas das
tran�as, uni-as por um la�o, retoquei a obra alargando aqui, achatando ali, at�
que exclamei:
- Pronto!
- Estar� bom?
- Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? N�o vos esque�ais
que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabe�a, a tal ponto que
me foi preciso acudir com as m�os e ampar�-la; o espaldar da cadeira era baixo.
Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de um na linha
da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabe�a, podia ficar tonta, machucar
o pesco�o. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta raz�o a moveu.
- Levanta, Capitu!
N�o quis, n�o levantou a cabe�a, e ficamos assim a olhar um para o outro,
at� que ela abrochou os l�bios, eu desci os meus, e...
Grande foi a sensa��o do beijo; Capitu ergueu-se, r�pida, eu recuei at� a
parede com uma esp�cie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me
clarearam, vi que Capitu tinha os seus no ch�o. N�o me atrevi a dizer nada; ainda
que quisesse, faltava-me l�ngua. Preso, atordoado, n�o achava gesto nem �mpeto
que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras c�lidas e
mimosas... N�o mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des
Grieux (e mais era Des Grieux) n�o pensava ainda na diferen�a dos sexos.
Dom Casmurro
2 0
A cartomante
Hamlet observa a Hor�cio que h� mais coisas
no c�u e na terra do que sonha a nossa filosofia.
Era a mesma explica��o que dava a bela Rita ao
mo�o Camilo, numa sexta-feira de novembro
de 1869, quando este ria dela, por ter ido na
v�spera consultar uma cartomante; a diferen�a
� que o fazia por outras palavras.
- Ria, ria. Os homens s�o assim; n�o
acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela
adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo
que eu lhe dissesse o que era. Apenas come�ou
a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta
de uma pessoa...". Confessei que sim, e ent�o
ela continuou a botar as cartas, combinou-
as, e no fim declarou-me que eu tinha medo
de que voc� me esquecesse, mas que n�o era verdade...
- Errou! - interrompeu Camilo, rindo.
- N�o diga isso, Camilo. Se voc� soubesse como eu tenho andado, por sua
causa. Voc� sabe; j� lhe disse. N�o ria de mim, n�o ria...
Camilo pegou-lhe nas m�os, e olhou para ela s�rio e fixo. lurou que lhe
queria muito, que os seus sustos pareciam de crian�a; em todo caso, quando
tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a;
disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sab�-lo, e depois...
- Qual saber! Tinha muita cautela, ao entrar na casa.
- Onde � a casa?
- Aqui perto, na rua da Guarda Velha; n�o passava ningu�m nessa ocasi�o.
Descansa;
eu n�o sou maluca.
Camilo riu outra vez:
- Tu cr�s deveras nessas coisas? - perguntou-lhe.
Foi ent�o que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que
havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele n�o acreditava,
paci�ncia; mas o certo � que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova
� que ela agora estava tranq�ila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. N�o queria arrancar-lhe as ilus�es.
Tamb�m ele, em crian�a, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro
de crendices, que a m�e lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia
em que deixou cair toda essa vegeta��o parasita, e ficou s� o tronco da religi�o,
ele, como tivesse recebido da m�e ambos os ensinos, envolveu-os na mesma
d�vida, e logo depois em uma s� nega��o total. Camilo n�o acreditava em nada.
Por qu�? N�o poderia diz�-lo, n�o possu�a um s� argumento; limitava-se a negar
tudo. E digo mal, porque negar � ainda afirmar, e ele n�o formulava a incredulidade;
diante do mist�rio, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser
amada; Camilo, n�o s� o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr
�s cartomantes, e, por mais que a repreendesse, n�o podia deixar de sentir-se
lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma
comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na dire��o de
Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem
para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, tr�s nomes, uma aventura, e nenhuma explica��o das
origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de inf�ncia. Vilela seguiu a
carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai,
que queria v�-lo m�dico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu n�o ser nada, at�
que a m�e lhe arranjou um emprego p�blico. No princ�pio de 1869, voltou Vilela
da prov�ncia, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a
magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os
lados de Botafogo, e foi a bordo receb�-lo.
- � o senhor? - exclamou Rita, estendendo-lhe a m�o. N�o imagina como
meu marido � seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois,
Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela n�o desmentia as cartas
do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos c�lidos, boca fina e
interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte
e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais
velho que a mulher, enquanto Camilo era um ing�nuo na vida moral e pr�tica.
Faltava-lhe tanto a a��o do tempo, como os �culos de cristal, que a natureza p�e no
ber�o de alguns para adiantar os anos. Nem experi�ncia, nem intui��o.
Uniram-se os tr�s. Conviv�ncia trouxe intimidade. Pouco depois morreu
a m�e de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos
dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufr�gios e do invent�rio; Rita tratou
especialmente do cora��o, e ningu�m o faria melhor.
Como da� chegaram ao amor, n�o o soube ele nunca. A verdade � que
gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma
irm�, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele
aspirava nela, e em volta dela, para incorpor�-lo em si pr�prio. Liam os mesmos
livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez
e jogavam �s noites; - ela mal - ele, para lhe ser agrad�vel, pouco menos mal. At�
a� as coisas. Agora a a��o da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam
muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as m�os frias,
as atitudes ins�litas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala
de presente, e de Rita apenas um cart�o com um vulgar cumprimento a l�pis, e
foi ent�o que ele p�de ler no pr�prio cora��o; n�o conseguia arrancar os olhos
do bilhetinho. Palavras vulgares; mas h� vulgaridades sublimes, ou, pelo menos,
deleitosas. A velha cale�a de pra�a, em que pela primeira vez passeaste com a
mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim � o homem,
assim s�o as coisas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas j� n�o p�de. Rita, como uma serpente,
foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e
pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos,
remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vit�ria
delirante. Adeus, escr�pulos! N�o tardou que o sapato se acomodasse ao p�, e a�
foram ambos, estrada fora, bra�os dados, pisando folgadamente por cima de
ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando
estavam ausentes um do outro. A confian�a e estima de Vilela continuavam a ser
as mesmas.
Um dia, por�m, recebeu Camilo uma carta an�nima, que lhe chamava
imoral e p�rfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo,
e, para desviar as suspeitas, come�ou a rarear as visitas � casa de Vilela. Este
notou-lhe as aus�ncias. Camilo respondeu que o motivo era uma paix�o fr�vola
de rapaz. Candura gerou ast�cia. As aus�ncias prolongaram-se, e as visitas
cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse tamb�m nisso um pouco de amor-
pr�prio, uma inten��o de diminuir os obs�quios do marido, para tornar menos
dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu � cartomante
para consult�-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos
que a cartomante restituiu-lhe a confian�a, e que o rapaz repreendeu-a por ter
feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou
tr�s cartas an�nimas, t�o apaixonadas, que n�o podiam ser advert�ncia da virtude,
mas despeito de algum pretendente; tal foi a opini�o de Rita que, por outras
palavras mal compostas, formulou este pensamento: a virtude � pregui�osa e
avara, n�o gasta tempo nem papel; s� o interesse � ativo e pr�digo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o an�nimo fosse
ter com Vilela, e a cat�strofe viria ent�o sem rem�dio. Rita concordou que era
poss�vel.
- Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das
cartas que l� aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas da� a algum tempo Vilela come�ou mostrar-se
sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em diz�-lo ao
outro, e sobre isso deliberaram. A opini�o dela � que Camilo devia tornar � casa
deles, tatear o marido, e pode ser at� que lhe ouvisse a confid�ncia de algum
neg�cio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar
a suspeita ou den�ncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas
semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade,
e separaram-se com l�grimas.
No dia seguinte, estando na reparti��o, recebeu Camilo este bilhete de
Vilela: "Vem j�, j�, � nossa casa; preciso falar-te sem demora". Era mais de meio-dia.
Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural cham�-lo ao escrit�rio;
por que em casa? Tudo indicava mat�ria especial, e a letra, fosse realidade ou ilus�o,
afigurou-se-lhe tr�mula. Ele combinou todas essas coisas com a not�cia da v�spera.
- Vem j�, j�, � nossa casa; preciso falar-te sem demora - repetia ele com
os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e
lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que
ele acudiria, e esperando-o para mat�-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois
sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a id�ia de recuar, e foi andando. De
caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe
explicasse tudo. N�o achou nada, nem ningu�m. Voltou � rua, e a id�ia de estarem
descobertos parecia-lhe cada vez mais veross�mil; era natural uma den�ncia
an�nima, at� da pr�pria pessoa que o amea�ara antes; podia ser que Vilela
conhecesse agora tudo. A mesma suspens�o das suas visitas, sem motivo aparente,
apenas com um pretexto f�til, viria confirmar o resto.
24
Camilo ia andando inquieto e nervoso. N�o relia o bilhete, mas as palavras
estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou ent�o - o que era ainda pior eram-
lhe murmuradas ao ouvido, com a pr�pria voz de Vilela. "Vem j�, j�, � nossa
casa; preciso falar-te sem demora". Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom
de mist�rio e amea�a. Vem, j�, j�, para qu�? Era perto de uma hora da tarde. A
como��o crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que
chegou a cr�-lo e v�-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado,
considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precau��o era �til. Logo
depois rejeitava a id�ia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na dire��o
do Largo da Carioca, para entrar num t�lburi. Chegou, entrou e mandou seguir
a trote largo.
- Quanto antes, melhor, pensou ele; n�o posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a como��o. O tempo
voava, e ele n�o tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda
Velha, o t�lburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carro�a, que
ca�ra. Camilo, em si mesmo, estimou o obst�culo, e esperou. No fim de cinco
minutos, reparou que ao lado, � esquerda, ao p� do t�lburi, ficava a casa da
cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na
li��o das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam
abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente
Destino.
Camilo reclinou-se no t�lburi, para n�o ver nada. A agita��o dele era
grande, extraordin�ria, e do fundo das camadas morais emergiam alguns
fantasmas de outro tempo, as velhas cren�as, as supersti��es antigas. O cocheiro
prop�s-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que
n�o, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incr�dulo:
era a id�ia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com
vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no c�rebro;
mas da� a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros
conc�ntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carro�a:
- Anda! Agora! Empurra! V�! V�!
Da� a pouco estaria removido o obst�culo. Camilo fechava os olhos,
pensava em outras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe �s orelhas as
palavras da carta: "Vem, j�, j�...". E ele via as contor��es do drama e tremia. A casa
olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de
um longo v�u opaco... Pensou rapidamente no inexplic�vel de tantas coisas. A voz
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da m�e repetia-lhe uma por��o de casos extraordin�rios, e a mesma frase do
pr�ncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "H� mais coisas no c�u e na terra do
que sonha a filosofia...". Que perdia ele, se...?
Deu por si na cal�ada, ao p� da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e
r�pido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos
dos p�s, o corrim�o pegajoso; mas ele n�o viu nem sentiu nada. Trepou e bateu.
N�o aparecendo ningu�m, teve id�ia de descer; mas era tarde, a curiosidade
fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, tr�s
pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consult�-la, ela
f�-lo entrar. Dali subiram ao s�t�o, por uma escada ainda pior que a primeira e
mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava
para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza,
que antes aumentava do que destru�a o prest�gio.
A cartomante f�-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto,
com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio
no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas
e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, n�o de
rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,
morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou tr�s cartas sobre
a mesa, e disse-lhe:
- Vejamos primeiro o que � que o traz aqui. O senhor tem um grande
susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecer� alguma coisa ou n�o...
- A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante n�o sorriu; disse-lhe s� que esperasse. R�pido pegou outra
vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas;
baralhou-as bem, transp�s os ma�os, uma, duas, tr�s vezes; depois come�ou a
estend�-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
- As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Ent�o ela declarou-
lhe que n�o tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele,
o terceiro, ignorava tudo. N�o obstante, era indispens�vel muita cautela; ferviam
invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo
estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na
gaveta.
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- A senhora restituiu-me a paz ao esp�rito, disse ele estendendo a m�o por
cima
da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
- V�, disse ela; v�, ragazzo innamorato...
E de p�, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu,
como se fosse a m�o da pr�pria sibila, e levantou-se tamb�m. A cartomante foi
� c�moda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas,
come�ou a despenc�-las e com�-las, mostrando duas fileiras de dentes que
desmentiam as unhas. Nessa mesma a��o comum, a mulher tinha um ar particular.
Camilo, ansioso por sair, n�o sabia como pagasse; ignorava o pre�o.
- Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer
mandar buscar?
- Pergunte ao seu cora��o, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil r�is, e deu-lha. Os olhos da cartomante
fuzilaram. O pre�o usual era dois mil r�is.
- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito
do senhor. V�, v� tranq�ilo. Olhe a escada, � escura; ponha o chap�u...
A cartomante tinha j� guardado a nota na algibeira, e descia com ele,
falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada
que levava � rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima,
cantarolando uma barcarola. Camilo achou o t�lburi esperando; a rua estava
livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o
c�u estava l�mpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou
pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram �ntimos e
familiares. Onde � que ele lhe descobrira a amea�a? Advertiu tamb�m que eram
urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum neg�cio grave
e grav�ssimo.
- Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa;
parece que formou tamb�m o plano de aproveitar o incidente para tornar �
antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras
da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a
exist�ncia de um terceiro; por que n�o adivinharia o resto? O presente que se
ignora vale o futuro. Era assim, lentas e cont�nuas, que as velhas cren�as do rapaz
iam tornando ao de cima, e o mist�rio empolgava-o com as unhas de ferro. �s
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vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as
palavras secas e afirmativas, a exorta��o: "V�, v�, ragazzo innamorato"; e no fim,
ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos
recentes, que formavam, com os antigos, uma f� nova e vivaz.
A verdade � que o cora��o ia alegre e impaciente, pensando nas horas
felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Gl�ria, Camilo olhou
para o mar, estendeu os olhos para fora, at� onde a �gua e o c�u d�o um abra�o
infinito, e teve assim uma sensa��o do futuro, longo, longo, intermin�vel.
Da� a pouco chegou � casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro
do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal
teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
- Desculpa, n�o pude vir mais cedo; que h�?
Vilela n�o lhe respondeu; tinha as fei��es decompostas; fez-lhe sinal, e
foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo n�o p�de sufocar um grito de
terror: ao fundo, sobre o canap�, estava Rita morta e ensang�entada. Vilela pegou-
o pela gola, e, com dois tiros de rev�lver, estirou-o morto no ch�o.
V�rias hist�rias
28
Do di�rio de Aires
1888 - 16 de janeiro
T�o depressa vinha saindo do Banco do Sul encontrei Aguiar, gerente dele,
que para l� ia. Cumprimentou-me muito afetuosamente, pediu-me not�cias de
Rita, e falamos durante alguns minutos sobre coisas gerais.
Isso foi ontem. Hoje pela manh� recebi um bilhete de Aguiar, convid�ndome,
em nome da mulher e dele, a ir l� jantar no dia 24. S�o as bodas de prata.
"Jantar simples e de poucos amigos", escreveu ele. Soube depois que � festa
recolhida. Rita vai tamb�m. Resolvi aceitar, e vou.
25 de janeiro
L� fui ontem �s bodas de prata. Vejamos se posso resumir agora as
minhas impress�es da noite.
N�o podiam ser melhores. A primeira delas foi a uni�o do casal. Sei que
n�o � seguro julgar por uma festa de algumas horas a situa��o moral de duas
pessoas. Naturalmente a ocasi�o aviva a mem�ria dos tempos passados, e a
afei��o dos outros como que ajuda a duplicar a pr�pria. Mas n�o � isso. H� neles
alguma coisa superior � oportunidade e diversa da alegria alheia. Senti que os anos
tinham ali refor�ado e apurado a natureza, e que as duas pessoas eram, ao cabo, uma
s� e �nica. N�o senti, n�o podia sentir isto logo que entrei, mas foi o total da noite.
Aguiar veio receber-me � porta da sala - eu diria que com uma inten��o
de abra�o, se pudesse hav�-la entre n�s e em tal lugar; mas a m�o fez esse of�cio,
apertando a minha efusivamente. � homem de sessenta anos feitos (ela tem
cinq�enta), o corpo antes cheio que magro, �gil, ameno e risonho. Levou-me �
mulher, a um lado da sala, onde ela conversava com duas amigas. N�o era nova
para mim a gra�a da boa velha, mas desta vez o motivo da visita e o teor do meu
cumprimento davam-lhe � express�o do rosto algo que tolera bem a qualifica��o
de radiante. Estendeu-me a m�o, ouviu-me e inclinou a cabe�a, olhando de relance
para o marido.
[...]
A dona da casa, af�vel, meiga, deliciosa com todos, parecia realmente feliz
naquela data; n�o menos o marido. Talvez ele fosse ainda mais feliz que ela, mas
n�o saberia mostr�-lo tanto. D. Carmo possui o dom de falar e viver por todas
as fei��es, e um poder de atrair as pessoas, como terei visto em poucas mulheres,
29
ou raras. Os seus cabelos brancos, colhidos com arte e gosto, d�o � velhice um
relevo particular, e fazem casar nela todas as idades. N�o sei se me explico bem,
nem � preciso dizer melhor para o fogo a que lan�arei um dia estas folhas de
solit�rio.
De quando em quando, ela e o marido trocavam as suas impress�es com
os olhos, e pode ser que tamb�m com a fala. Uma s� vez a impress�o visual foi
melanc�lica. Mais tarde ouvi a explica��o a mana Rita. Um dos convivas - sempre
h� indiscretos - no brinde que lhes fez aludiu � falta de filhos, dizendo "que Deus
lhos negara para que eles se amassem melhor entre si". [...] Ouvindo aquela
refer�ncia, os dois fitaram-se tristes, mas logo buscaram rir, e sorriram. Mana Rita
me disse depois que essa era a �nica ferida do casal. Creio que Fid�lia percebeu
tamb�m a express�o de tristeza dos dois, porque eu a vi inclinar-se para ela com
um gesto do c�lice e brindar a D. Carmo cheia de gra�a e ternura:
-� sua felicidade.
A esposa Aguiar, comovida, apenas p�de responder logo com o gesto; s�
instantes depois de levar o c�lice � boca, acrescentou, em voz meio surda, como
se lhe custasse sair do cora��o apertado esta palavra de agradecimento:
- Obrigada.
Tudo foi assim segredado, quase calado. O marido aceitou a sua parte do
brinde, um pouco mais expansivo, e o jantar acabou sem outro rasto de melancolia.
1889 - Sem data
H� seis ou sete dias que eu n�o ia ao Flamengo. Agora � tarde lembrou-
me l� passar antes de vir para casa. Fui a p�; achei aberta a porta do jardim, entrei
e parei logo.
- L� est�o eles, disse comigo.
Ao fundo, � entrada do sagu�o, dei com os dois velhos sentados, olhando
um para o outro. Aguiar estava encostado ao portal direito, com as m�os sobre
os joelhos. D. Carmo, � esquerda, tinha os bra�os cruzados � cinta. Hesitei entre
ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos at� que
recuei p� ante p�. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude
uma express�o a que n�o acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu.
Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si
mesmos.
Memorial de Aires
34
13 de maio de 1888
Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou
a lei, que a regente sancionou, e todos sa�mos � rua. Sim, tamb�m eu sa� � rua, eu
o mais encolhido dos caramujos, tamb�m eu entrei no pr�stito, em carruagem
aberta, se me fazem favor, h�spede de um gordo amigo ausente; todos respiravam
felicidade, tudo era del�rio. Verdadeiramente, foi o �nico dia de del�rio p�blico que
me lembra ter visto. Essas mem�rias atravessavam-me o esp�rito, enquanto os
p�ssaros trinavam os nomes dos grandes batalhadores e vencedores, que receberam
ontem nesta mesma coluna da Gazeta a merecida glorifica��o. No meio de tudo,
por�m, uma tristeza indefin�vel. A aus�ncia do sol coincidia com a do povo? O
esp�rito p�blico tornaria � sanidade habitual?
14 de maio de 1893
Conto de escola
A escola era na rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era
de 1840. Naquele dia - uma segunda-feira, do m�s de maio - deixei-me estar
alguns instantes na rua da Princesa a ver onde iria brincar a manh�. Hesitava
entre o morro de S. Diogo e o campo de Sant'Ana, que n�o era ent�o esse parque
atual, constru��o de gentleman, mas um espa�o r�stico, mais ou menos infinito,
alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o
problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a
escola. Aqui vai a raz�o.
Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o
pagamento das m�os de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro.
As sovas de meu pai do�am por muito tempo. Era um velho empregado do
arsenal de guerra, r�spido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posi��o
comercial, e tinha �nsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e
contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham
come�ado ao balc�o. Ora, foi a lembran�a do �ltimo castigo que me levou naquela
manh� para o col�gio. N�o era um menino de virtudes.
Subi a escada com cautela, para n�o ser ouvido do mestre, e cheguei a
tempo; ele entrou na sala tr�s ou quatro minutos depois. Entrou com o andar
manso do costume, em chinelas de cordov�o, com a jaqueta de brim lavada e
desbotada, cal�a branca e tesa e grande colarinho ca�do. Chamava-se Policarpo
e tinha perto de cinq�enta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a
boceta de rap� e o len�o vermelho, p�-los na gaveta; depois relanceou os olhos
pela sala. Os meninos, que se conservaram de p� durante a entrada dele, tornaram
a sentar-se. Tudo estava em ordem; come�aram os trabalhos.
-Seu Pilar, eu preciso falar com voc�, disse-me baixinho o filho do mestre.
Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, intelig�ncia
tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas
trinta ou cinq�enta minutos; vencia com o tempo o que n�o podia fazer logo com
o c�rebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma crian�a fina, p�lida, cara
doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se
antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.
- O que � que voc� quer?
- Logo, respondeu ele com voz tr�mula.
Come�ou a li��o de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados
da escola; mas era. N�o digo tamb�m que era dos mais inteligentes, por um
escr�pulo f�cil de entender e de excelente efeito no estilo, mas n�o tenho outra
convic��o. Note-se que n�o era p�lido nem mofino: tinha boas cores e m�sculos
de ferro. Na li��o de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas
deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na t�bua, ocupa��o sem nobreza
nem espiritualidade, mas em todo caso ing�nua. Naquele dia foi a mesma coisa;
t�o depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do
mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das
quais recordo a interrogativa, a admirativa, a
dubitativa e a cogitativa. N�o lhes punha esses
nomes, pobre estudante de primeiras letras que
era; mas, instintivamente, dava-lhes essas
express�es. Os outros foram acabando;
n�o tive rem�dio sen�o acabar tamb�m,
entregar a escrita, e voltar para o meu
lugar.
Com franqueza, estava
arrependido de ter vindo. Agora que
ficava preso, ardia por andar l� fora, e
recapitulava o campo e o morro, pensava
nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o
Am�rico, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do
bairro e do g�nero humano. Para c�mulo de
desespero, vi atrav�s das vidra�as da escola, no claro azul do c�u, por cima do
morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda
imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado, pernas
unidas, com o livro de leitura e a gram�tica nos joelhos.
- Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.
- N�o diga isso, murmurou ele.
Olhei para ele; estava mais p�lido. Ent�o lembrou-me outra vez que
queria pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de
novo, e, r�pido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.
-Seu Pilar... murmurou ele da� a alguns minutos.
- Que �?
- Voc�...
37
- Voc� qu�?
Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes,
o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa
circunst�ncia, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que come�ava a
arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma
simples curiosidade vaga, natural indiscri��o; mas podia ser tamb�m alguma
coisa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos,
era mais velho que n�s.
Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito,
falando-lhe baixo, com inst�ncia, que me dissesse o que era, que ningu�m cuidava
dele nem de mim. Ou ent�o, de tarde...
- De tarde, n�o, interrompeu-me ele; n�o pode ser de tarde.
- Ent�o agora...
- Papai est� olhando.
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho,
buscava-o muitas vezes com os olhos, para traz�-lo mais aperreado. Mas n�s
tamb�m �ramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal
cansou e tomou as folhas do dia, tr�s ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as
id�ias e as paix�es. N�o esque�am que est�vamos ent�o no fim da Reg�ncia, e que era
grande a agita��o p�blica. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude
averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para n�s, era a palmat�ria. E essa l�
estava, pendurada do portal da janela, � direita, com os seus cinco olhos do diabo.
Era s� levantar a m�o, despendur�-la e brandi-la, com a for�a do costume, que n�o
era pouca. E da�, pode ser que alguma vez as paix�es pol�ticas dominassem nele a
ponto de poupar-nos uma ou outra corre��o. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que
lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou
tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.
No fim de algum tempo - dez ou doze minutos - Raimundo meteu a m�o
no bolso das cal�as e olhou para mim.
- Sabe o que tenho aqui?
- N�o.
- Uma pratinha que mam�e me deu.
- Hoje?
- N�o, no outro dia, quando fiz anos...
- Pratinha de verdade?
- De verdade.
Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo
do rei, cuido que doze vint�ns ou dois tost�es, n�o me lembra; mas era uma
moeda, e t�o moeda que me fez pular o sangue no cora��o. Raimundo revolveu
em mim o olhar p�lido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-
lhe que estava ca�oando, mas ele jurou que n�o.
- Mas ent�o voc� fica sem ela?
- Mam�e depois me arranja outra. Ela tem muitas que vov� lhe deixou,
numa caixinha; algumas s�o de ouro. Voc� quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a m�o disfar�adamente, depois de olhar
para a mesa do mestre. Raimundo recuou a m�o dele e deu � boca um gesto
amarelo, que queria sorrir. Em seguida prop�s-me um neg�cio, uma troca de
servi�os; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da li��o de sintaxe. N�o
conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E conclu�a a proposta
esfregando a pratinha nos joelhos...
Tive uma sensa��o esquisita. N�o � que eu possu�sse da virtude uma id�ia
antes pr�pria de homem; n�o � tamb�m que n�o fosse f�cil em pregar uma ou outra
mentira de crian�a. Sab�amos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos
termos da proposta, na troca de li��o e dinheiro, compra franca, positiva, toma l�,
d� c�; tal foi a causa da sensa��o. Fiquei a olhar para ele, � toa, sem poder dizer nada.
Compreende-se que o ponto da li��o era dif�cil, e que o Raimundo, n�o
o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu �til para escapar ao
castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcan��-la-ia do mesmo modo,
como de outras vezes; mas parece que era a lembran�a das outras vezes, o medo
de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e n�o aprender como queria -e
pode ser mesmo que em alguma ocasi�o lhe tivesse ensinado mal -, parece que
tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor - mas queria
assegurar-lhe a efic�cia, e da� recorreu � moeda que a m�e lhe dera e que ele
guardava como rel�quia ou brinquedo; pegou dela e veio esfreg�-la nos joelhos,
� minha vista, como uma tenta��o... Realmente, era bonita, fina, branca, muito
branca; e para mim, que s� trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um
cobre feio, grosso, azinhavrado...
N�o queria receb�-la, e custava-me recus�-la. Olhei para o mestre, que
continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rap� do nariz. "Ande, tome",
dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora
diamante... Em verdade, se o mestre n�o visse nada, que mal havia? E ele n�o
podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indigna��o...
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- Tome, tome...
Relanceei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em n�s; disse ao
Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, ent�o dissimulei;
mas da� a pouco, deitei-lhe outra vez o olho, e - tanto se ilude a vontade! - n�o
lhe vi mais nada. Ent�o cobrei �nimo.
- D� c�...
Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das
cal�as, com um alvoro�o que n�o posso definir. C� estava ela comigo, pegadinha
� perna. Restava prestar o servi�o, ensinar a li��o, e n�o me demorei em faz�-lo,
nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explica��o em um retalho
de papel que ele recebeu com cautela e cheio de aten��o. Sentia-se que despendia
um esfor�o cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que
ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.
De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em n�s, com
um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas da� a pouco, voltando-me outra vez
para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a
remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele n�o sorriu; ao contr�rio,
franziu a testa, o que lhe deu um aspecto amea�ador. O cora��o bateu-me muito.
- Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
- Diga-me isto s�, murmurou ele.
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, c� no bolso,
lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfar�ando muito; depois,
tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso,
dantes mau, estava agora pior. N�o � preciso dizer que tamb�m eu ficara em
brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o rel�gio andava como das outras
vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo,
pontuando-os com exclama��es, com gestos de ombros, com uma ou duas
pancadinhas na mesa. E l� fora, no c�u azul, por cima do morro, o mesmo eterno
papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele.
Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no
bolso das cal�as, que eu n�o daria a ningu�m, nem que me serrassem; guard�-laia
em casa, dizendo a mam�e que a tinha achado na rua. Para que me n�o fugisse,
ia-a apalpando, ro�ando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscri��o,
com uma grande vontade de espi�-la.
- Oh! Seu Pilar! - bradou o mestre com voz de trov�o.
Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me �s pressas. Dei
com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao p� da mesa,
em p�, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.
- Venha c�! - bradou o mestre.
Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consci�ncia dentro um par
de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ningu�m
mais lia, ningu�m fazia um s� movimento. Eu, conquanto n�o tirasse os olhos do
mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.
- Ent�o o senhor recebe dinheiro para ensinar as li��es aos outros? disse-
me o Policarpo.
- Eu...
- D� c� a moeda que este seu colega lhe deu! - clamou.
N�o obedeci logo, mas n�o pude negar nada. Continuei a tremer muito.
Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu n�o resisti mais, meti a m�o
no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro
lado, bufando de raiva; depois estendeu o bra�o e atirou-a � rua. E ent�o disse-
nos uma por��o de coisas duras, que tanto o filho como eu acab�vamos de
praticar uma a��o feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo
�amos ser castigados. Aqui pegou da palmat�ria.
- Perd�o, seu mestre... - solucei eu.
- N�o h� perd�o! D� c� a m�o! D� c�! Vamos! Sem-vergonha! D� c� a
m�o!
- Mas, seu mestre...
- Olhe que � pior!
Estendi-lhe a m�o direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns
por cima dos outros, at� completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas
e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; n�o lhe poupou nada, dois,
quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro serm�o. Chamou-nos sem-
vergonhas, desaforados, e jurou que se repet�ssemos o neg�cio, apanhar�amos tal
castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalh�es!
Tratantes! Faltos de brio!
Eu por mim, tinha a cara no ch�o. N�o ousava fitar ningu�m, sentia todos
os olhos em n�s. Recolhi-me ao banco, solu�ando, fustigado pelos improp�rios
do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ningu�m faria
igual neg�cio. Creio que o pr�prio Curvelo enfiara de medo. N�o olhei logo para
ele, c� dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que sa�ssemos, t�o
certo como tr�s e dois serem cinco.
Da� a algum tempo olhei para ele; ele tamb�m olhava para mim, mas
desviou a cara, e penso que empalideceu. Comp�s-se e entrou a ler em voz alta;
estava com medo. Come�ou a variar de atitude, agitando-se � toa, co�ando os
joelhos, o nariz. Pode ser at� que se arrependesse de nos ter denunciado; e na
verdade, por que denunciar-nos? Em que � que lhe tir�vamos alguma coisa?
- Tu me pagas! T�o duro como osso! - dizia eu comigo.
Veio a hora de sair, e sa�mos; ele foi adiante, apressado, e eu n�o queria brigar
ali mesmo, na rua do Costa, perto do col�gio; havia de ser na rua Larga de S. Joaquim.
Quando, por�m, cheguei � esquina, j� o n�o vi; provavelmente escondera-se em algum
corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a
algumas pessoas, ningu�m me deu not�cia. De tarde faltou � escola.
Em casa n�o contei nada, � claro; mas para explicar as m�os inchadas,
menti a minha m�e, disse-lhe que n�o tinha sabido a li��o. Dormi nessa noite,
mandando ao diabo os dois meninos, tanto o da den�ncia como o da moeda. E
sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar � escola, no dia seguinte, dera com
ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escr�pulos...
De manh�, acordei cedo. A id�ia de ir procurar a moeda fez-me vestir
depressa. O dia estava espl�ndido, um dia de maio, sol magn�fico, ar brando, sem
contar as cal�as novas que minha m�e me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo
isso, e a pratinha... Sa� de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusal�m. Piquei
o passo para que ningu�m chegasse antes de mim � escola; ainda assim n�o andei
t�o depressa que amarrotasse as cal�as. N�o, que elas eram bonitas! Mirava-as,
fugia aos encontros, ao lixo da rua...
Na rua encontrei uma companhia do batalh�o de fuzileiros, tambor � frente,
rufando. N�o podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o p� r�pido, igual,
direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu
senti uma comich�o nos p�s, e tive �mpeto de ir atr�s deles. J� lhes disse: o dia estava
lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, n�o sei como foi, entrei
a marchar tamb�m ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: "Rato na
casaca"... N�o fui � escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Sa�de, e acabei
a manh� na praia da Gamboa. Voltei para casa com as cal�as enxovalhadas, sem
pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e
foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da
corrup��o, outro da dela��o; mas o diabo do tambor...
V�rias hist�rias
Pancr�cio
Eu perten�o a uma fam�lia de profetas apr�s coup, post facto, depois do
gato morto, ou como melhor nome tenha em holand�s. Por isso digo, e juro se
necess�rio for, que toda a hist�ria desta lei de 13 de maio estava por mim prevista,
tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um
molecote que tinha, pessoa dos seus dezoito anos, mais ou menos. Alforri�-lo era
nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que os meus amigos deram o nome de banquete, em falta
de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as not�cias dissessem
trinta e tr�s (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simb�lico.
No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha l�ngua),
levantei-me eu com a ta�a de champanha e declarei que, acompanhando as id�ias
pregadas por Cristo, h� dezoito s�culos, restitu�a a liberdade ao meu escravo
Pancr�cio; que entendia que a na��o inteira devia acompanhar as mesmas id�ias
e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os
homens n�o podiam roubar sem pecado.
Pancr�cio, que estava � espreita, entrou na sala, como um furac�o, e veio
a abra�ar-me os p�s. Um dos meus amigos (creio que � ainda meu sobrinho)
pegou de outra ta�a, e pediu � ilustre assembl�ia que correspondesse ao ato que
eu acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz
outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os len�os
comovidos apanharam as l�grimas de admira��o. Ca� na cadeira e n�o vi mais
nada. De noite, recebi muitos cart�es. Creio que est�o pintando o meu retrato, e
suponho que a �leo.
No dia seguinte, chamei o Pancr�cio e disse-lhe com rara franqueza:
- Tu �s livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, j� conhecida
e tens mais um ordenado, um ordenado que...
- Oh! Meu senh�! Fico.
- ... um ordenado pequeno, mas que h� de crescer. Tudo cresce neste
mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste
tamanho; hoje est�s mais alto que eu. Deixa ver; olha, �s mais alto quatro dedos...
- Artura n�o que diz� nada, n�o, senh�...
- Pequeno ordenado, repito, uns seis mil r�is; mas � de gr�o em gr�o que
a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
- Eu vaio um galo, sim, senh�.
- Justamente. Pois seis mil r�is. No fim de um ano, se andares bem, conta
com oito. Oito ou sete.
Pancr�cio aceitou tudo; aceitou at� um peteleco que lhe dei no dia seguinte,
por me n�o escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que
o peteleco, sendo um impulso natural, n�o podia anular o direito civil adquirido
por um t�tulo que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois
estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancr�cio; da� para c�, tenho-lhe despedido
alguns pontap�s, um ou outro pux�o de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe
n�o chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me
perdoe!) creio que at� alegre.
O meu plano est� feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei
aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da aboli��o legal, j� eu, em casa,
na mod�stia da fam�lia, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que
dele teve not�cia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar (simples
suposi��o) � ent�o professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens
puros, grandes e verdadeiramente pol�ticos, n�o s�o os que obedecem � lei, mas
os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: �s livre, antes que o digam os
poderes p�blicos, sempre retardat�rios, tr�pegos e incapazes de restaurar a justi�a
na terra, para satisfa��o do c�u.
19 de maio de 1888
Um gatuno
Chegaram ao Largo da Carioca, apearam-se e despediram-se; ela entrou
pela rua Gon�alves Dias, ele enfiou pela da Carioca. No meio desta, Aires encontrou
um magote de gente parada, logo depois andando em dire��o ao largo. Aires quis
arrepiar caminho, n�o de medo, mas de horror. Tinha horror � multid�o. Viu que
a gente era pouca, cinq�enta ou sessenta pessoas, e ouviu que bradava contra a
pris�o de um homem. Entrou num corredor, � espera que o magote passasse.
Duas pra�as de pol�cia traziam o preso pelo bra�o. De quando em quando, este
resistia, e ent�o era preciso arrast�-lo ou for��-lo por outro m�todo. Tratava-se,
ao que parece, do furto de uma carteira.
- N�o furtei nada! - bradava o preso detendo o passo. - � falso! Larguem-
me! Sou um cidad�o livre! Protesto! Protesto!
- Siga para a esta��o!
- N�o sigo!
- N�o siga! - bradava a gente an�nima. - N�o siga! N�o siga!
Uma das pra�as quis convencer a multid�o que era verdade, que o sujeito
furtara uma carteira, e o desassossego pareceu minorar um pouco; mas, indo a
pra�a a andar com a outra e o preso - cada uma pegando-lhe um dos bra�os -, a
multid�o recome�ou a bradar contra a viol�ncia. O preso sentiu-se animado, e
ora lastimoso, ora agressivo, convidava a defesa. Foi ent�o que a outra pra�a
desembainhou a espada para fazer um claro. A gente voou, n�o airosamente,
como a andorinha ou a pomba, em busca do ninho ou do alimento, voou de
atropelo, pula aqui, pula ali, pula acol�, para todos os lados. A espada entrou na
bainha, e o preso seguiu com as pra�as. Mas logo os peitos tomaram vingan�a
das pernas, e um clamor ingente, largo, desafrontado, encheu a rua e a alma do
preso. A multid�o fez-se outra vez compacta e caminhou para a esta��o policial.
Aires seguiu caminho.
A vozeria morreu pouco a pouco, e Aires entrou na Secretaria do Imp�rio.
N�o achou o ministro, parece, ou a confer�ncia foi curta. Certo � que, saindo �
pra�a, encontrou partes do magote que tornavam comentando a pris�o e o
ladr�o. N�o diziam ladr�o, mas gatuno, fiando que era mais doce, e tanto bradavam
h� pouco contra a a��o das pra�as, como riam agora das l�stimas do preso.
- Ora o sujeito!
Mas ent�o?... perguntar�s tu. Aires n�o perguntou nada. Ao cabo havia
um fundo de justi�a naquela manifesta��o dupla e contradit�ria; foi o que ele
pensou. Depois, imaginou que a grita da multid�o protestante era filha de um
velho instinto de resist�ncia � autoridade. Advertiu que o homem, uma vez criado,
desobedeceu logo ao Criador, que ali�s lhe dera um para�so para viver; mas n�o
h� para�so que valha o gosto da oposi��o. Que o homem se acostume �s leis, v�;
que incline o colo � for�a e ao bel-prazer, v� tamb�m; � o que se d� com a planta,
quando sopra o vento. Mas que aben�oe a for�a e cumpra as leis sempre, sempre,
sempre, � violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Ad�o.
Esa� e Jac�
48
A vida � uma �pera
J� n�o tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. "O desuso � que me
faz mal", acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia
ao empres�rio e expunha-lhe todas as injusti�as da terra e do c�u; o empres�rio
cometia mais uma, e ele sa�a a bradar contra a iniq�idade. Trazia ainda os bigodes
dos seus pap�is. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa
de Babil�nia. �s vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais
idoso que ele ou tanto; vozes assim abafadas s�o sempre poss�veis. Vinha aqui
jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a
defini��o do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma
�pera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabe�a e replicou:
- A vida � uma �pera e uma grande �pera. O tenor e o bar�tono lutam
pelo soprano, em presen�a do baixo e dos comprimarios, quando n�o s�o o
soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presen�a do mesmo baixo e dos
mesmos comprimarios. H� coros numerosos, muitos bailados, e a orquestra��o
� excelente...
- Mas, meu caro Marcolini...
- Qu�?...
E, depois de beber um gole de licor, pousou o c�lice, e exp�s-me a hist�ria
da cria��o, com palavras que vou resumir.
Deus � o poeta. A m�sica � de Satan�s, jovem maestro de muito futuro,
que aprendeu no conservat�rio do c�u. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, n�o
tolerava a preced�ncia que eles tinham na distribui��o dos pr�mios. Pode ser
tamb�m que a m�sica em demasia doce e m�stica daqueles outros condisc�pulos
fosse aborrec�vel ao seu g�nio essencialmente tr�gico. Tramou uma rebeli�o que
foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservat�rio. Tudo se teria passado sem
mais nada, se Deus n�o houvesse escrito um libreto de �pera, do qual abrira m�o,
por entender que tal g�nero de recreio era impr�prio da sua eternidade. Satan�s
levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais
que os outros -e acaso para reconciliar-se com o c�u -, comp�s a partitura, e
logo que a acabou foi lev�-la ao Padre Eterno.
- Senhor, n�o desaprendi as li��es recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a
partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas,
admiti-me com ela a vossos p�s...
- N�o, retorquiu o Senhor, n�o quero ouvir nada.
- Mas, senhor...
- Nada! Nada!
Satan�s suplicou ainda, sem melhor fortuna, at� que Deus, cansado e
cheio de miseric�rdia, consentiu em que a �pera fosse executada, mas fora do c�u.
Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com
todas as partes, prim�rias e comprim�rias, coros e bailarinos.
- Ouvi agora alguns ensaios!
- N�o, n�o quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto;
estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que
a audi�ncia pr�via e a colabora��o amiga teriam evitado. Com efeito, h� lugares
em que o verso vai para a direita e a m�sica para a esquerda. N�o falta quem diga
que nisso mesmo est� a beleza da composi��o, fugindo � monotonia, e assim
explicam o terceto do �den, a �ria de Abel, os coros da guilhotina e da escravid�o.
N�o � raro que os mesmos lances se reproduzam, sem raz�o suficiente. Certos
motivos cansam � for�a de repeti��o. Tamb�m h� obscuridades; o maestro abusa
das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As
partes orquestrais s�o ali�s tratadas com grande per�cia. Tal � a opini�o dos
imparciais.
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa achar obra t�o
bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas
com o andar da �pera � prov�vel que estas sejam preenchidas ou explicadas, e
aquelas desapare�am inteiramente, n�o se negando o maestro a emendar a obra
onde achar que n�o responde de todo ao pensamento sublime do poeta. J� n�o
dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a
partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares,
e trabalhada com arte em outros, � absolutamente diversa e at� contr�ria ao
drama. O grotesco, por exemplo, n�o est� no texto do poeta; � uma excresc�ncia
para imitar as Mulheres patuscas de Windsor. Este ponto � contestado pelos
satanistas com alguma apar�ncia de raz�o. Dizem eles que, ao tempo em que o
jovem Satan�s comp�s a grande �pera, nem essa farsa nem Shakespeare eram
nascidos. Chegam a afirmar que o poeta ingl�s n�o teve outro g�nio sen�o
transcrever a letra da �pera, com tal arte e fidelidade, que parece ele pr�prio o
autor da composi��o; mas, evidentemente, � um plagi�rio.
- Esta pe�a, concluiu o velho tenor, durar� enquanto durar o teatro, n�o
se podendo calcular em que tempo ser� ele demolido por utilidade astron�mica.
O �xito � crescente. Poeta e m�sico recebem pontualmente os seus direitos autorais,
que n�o s�o os mesmos, porque a regra da divis�o � aquilo da Escritura: "Muitos
s�o os chamados, poucos os escolhidos". Deus recebe em ouro, Satan�s em papel.
- Tem gra�a...
- Gra�a? - bradou ele com f�ria; mas aquietou-se logo, e replicou: - Caro
Santiago, eu n�o tenho gra�a, eu tenho horror � gra�a. Isto que digo � a verdade
pura e �ltima. Um dia, quando todos os livros forem queimados por in�teis, h�
de haver algu�m, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos
homens. Tudo � m�sica, meu amigo. No princ�pio era o d�, e o d� fez-se r� etc. Este
c�lice (e enchia-o novamente), este c�lice � um breve estribilho. N�o se ouve?
Tamb�m n�o se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma �pera...
Dom Casmurro
Um homem c�lebre
- Ah! O senhor � que � o Pestana? - perguntou Sinhazinha Mota, fazendo
um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: - Desculpe
meu modo, mas... � mesmo o senhor?
Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do
piano, enxugando a testa com o len�o, e ia a chegar � janela, quando a mo�a o
fez parar. N�o era baile; apenas um sarau �ntimo, pouca gente, vinte pessoas ao
todo, que tinham ido jantar com a vi�va Camargo, rua do Areal, naquele dia dos
anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca vi�va! Amava o riso e a
folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a �ltima vez que folgou e riu,
pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca vi�va! Com que alma e
dilig�ncia arranjou ali umas dan�as, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana
que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se
gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez
minutos, a vi�va correu novamente ao Pestana para um obs�quio mui particular.
- Diga, minha senhora.
-� que nos toque agora aquela sua polca. N�o bula comigo, nhonh�.
Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem
gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos,
derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram �s damas, e os
pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada
vinte dias antes, e j� n�o havia recanto da cidade, em que n�o fosse conhecida. Ia
chegando � consagra��o do assobio e da cantarola noturna.
Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira
� mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rap�, cabelo
negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana
compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a
polca. Da� a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado.
Nem assim as duas mo�as lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta
vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, at� que,
alegando dor de cabe�a, pediu licen�a para sair. Nem elas, nem a dona da casa,
ningu�m logrou ret�-lo. Ofereceram-lhe rem�dios caseiros, algum repouso, n�o
aceitou nada, teimou em sair e saiu.
Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; s�
afrouxou, depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas a� mesmo esperava-
o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, � direita, a poucos metros de
dist�ncia, sa�am as notas da composi��o do dia, sopradas em clarineta. Dan�ava-
se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas disp�s-se
a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa
do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua
do Aterrado, onde morava. J� perto de casa, viu vir dois homens; um deles,
passando rentezinho com o Pestana, come�ou a assobiar a mesma polca, rijamente,
com brio, e o outro pegou a tempo na m�sica, e a� foram os dois abaixo, ruidosos
e alegres, enquanto o autor da pe�a, desesperado, corria a meter-se em casa.
Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia,
e que veio saber se ele queria cear.
- N�o quero nada, bradou Pestana; fa�a-me caf� e v� dormir.
Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o
preto acendeu o g�s da sala, Pestana sorriu e, dentro d'alma, cumprimentou uns
dez retratos que pendiam da parede. Um s� era a �leo, o de um padre, que o
educara, que lhe ensinara latim e m�sica, e que, segundo os ociosos, era o pr�prio
pai do Pestana. Certo � que lhe deixou em heran�a aquela casa velha, e os velhos
trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido
por m�sica, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no mo�o, ou tamb�m lhe
transmitiu no sangue, se � que tinham raz�o as bocas vadias, coisa de que se n�o
ocupa a minha hist�ria, como ides ver.
Os demais retratos eram de compositores cl�ssicos, Cimarosa, Mozart,
Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns tr�s, alguns gravados, outros
litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mal postos ali
como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite l� estava
aberto: era uma sonata de Beethoven.
Veio o caf�; Pestana engoliu a primeira x�cara, e sentou-se ao piano. Olhou
para o retrato de Beethoven, e come�ou a executar a sonata, sem saber de si,
desvairado ou absorto, mas com grande perfei��o. Repetiu a pe�a; depois parou
alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez
de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma
alhures. Haydn levou-o � meia-noite e � segunda x�cara de caf�.
Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar � janela
e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando
ia ao piano, e, de p�, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum
pensamento; mas o pensamento n�o aparecia e ele voltava a encostar-se � janela.
As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no c�u � espera de
algu�m que as fosse descolar; tempo viria em que o c�u tinha de ficar vazio, mas
ent�o a terra seria uma constela��o de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou
reflex�o trazia uma lembran�a qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a
essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas.
Talvez a id�ia conjugal tirou � mo�a alguns momentos de sono. Que tinha? Ela
ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A mo�a dormia ao som da polca, ouvida
de cor, enquanto o autor desta n�o cuidava nem da polca nem da mo�a, mas das
velhas obras cl�ssicas, interrogando o c�u e a noite, rogando aos anjos, em �ltimo
caso ao diabo. Por que n�o faria ele uma s� que fosse daquelas p�ginas imortais?
�s vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora
de id�ia; ele corria ao piano, para avent�-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era
em v�o; a id�ia esva�a-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos
correrem, � ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart;
mas nada, nada, a inspira��o n�o vinha, a imagina��o deixava-se estar dormindo.
Se acaso uma id�ia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma pe�a alheia,
que a mem�ria repetia, e que ele supunha inventar. Ent�o, irritado, erguia-se,
jurava abandonar a arte, ir plantar caf� ou puxar carro�a; mas da� a dez minutos,
ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imit�-lo ao piano.
Duas, tr�s, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado,
desanimado, morto; tinha que dar li��es no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou
�s sete horas. Vestiu-se e almo�ou.
- Meu senhor quer a bengala ou o chap�u-de-sol? - perguntou o preto,
segundo as ordens que tinha, porque as distra��es do senhor eram freq�entes.
-A bengala.
- Mas parece que hoje chove.
- Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
- Parece que sim, senhor, o c�u est� meio escuro.
Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:
- Espera a�.
Correu � sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as m�os
no teclado. Come�ou a tocar alguma coisa pr�pria, uma inspira��o real e pronta,
uma polca, uma polca buli�osa, como dizem os an�ncios. Nenhuma repulsa da
parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-
as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as
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disc�pulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva,
esquecera at� os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha s�,
teclando ou escrevendo, sem os v�os esfor�os da v�spera, sem exaspera��o, sem
nada pedir ao c�u, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum t�dio. Vida, gra�a,
novidade escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.
Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos,
quando voltou para jantar: mas j� a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela;
na composi��o recente e in�dita circulava o sangue da paternidade e da voca��o.
Dois dias depois, foi lev�-la ao editor das outras polcas suas, que andariam j� por
umas trinta. O editor achou-a linda.
- Vai fazer grande efeito.
Veio a quest�o do t�tulo. Pestana, quando comp�s a primeira polca, em
1871, quis dar-lhe um t�tulo po�tico, escolheu este: "Pingos de sol". O editor
abanou a cabe�a, e disse-lhe que os t�tulos deviam ser, j� de si, destinados �
popularidade, ou por alus�o a algum sucesso do dia - ou pela gra�a das palavras;
indicou-lhe dois: "A lei de 28 de setembro", ou "Candongas n�o fazem festa".
- Mas que quer dizer "Candongas n�o fazem festa"? - perguntou o autor.
- N�o quer dizer nada, mas populariza-se logo.
Pestana, ainda donzel in�dito, recusou qualquer das denomina��es e
guardou a polca; mas n�o tardou que compusesse outra, e a comich�o da
publicidade levou-o a imprimir as duas, com os t�tulos que ao editor parecessem
mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.
Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao t�tulo, o
editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe
apresentasse, t�tulo de espavento, longo e meneado. Era este: "Senhora dona,
guarde o seu balaio".
- E para a vez seguinte, acrescentou, j� trago outro de cor.
Exposta � venda, esgotou-se logo a primeira edi��o. A fama do compositor
bastava � procura; mas a obra em si mesma era adequada ao g�nero, original,
convidava a dan��-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava c�lebre. Pestana,
durante os primeiros, andou deveras namorado da composi��o, gostava de a
cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e
zangava-se quando n�o a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a
executaram, e ele l� foi a um deles. N�o desgostou tamb�m de a ouvir assobiada,
uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.
Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes,
e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos.
Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas
vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, f�cil e graciosa. E a� voltaram
as n�useas de si mesmo, o �dio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e
juntamente o esfor�o de compor alguma coisa ao sabor cl�ssico, uma p�gina que
fosse, uma s�, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. V�o
estudo, in�til esfor�o. Mergulhava naquele Jord�o sem sair batizado. Noites e
noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que,
uma vez que abrisse m�o da m�sica f�cil...
- As polcas que v�o para o inferno fazer dan�ar o diabo, disse ele um dia,
de madrugada, ao deitar-se.
Mas as polcas n�o quiseram ir t�o fundo. Vinham � casa de Pestana, �
pr�pria sala dos retratos, irrompiam t�o prontas, que ele n�o tinha mais que o
tempo de as compor, imprimi-las depois, gost�-las alguns dias, aborrec�-las, e
tornar �s velhas fontes, donde lhe n�o manava nada. Nessa alternativa viveu at�
casar, e depois de casar.
- Casar com quem? - perguntou Sinhazinha Mota ao tio escriv�o que lhe
deu aquela not�cia.
- Vai casar com uma vi�va.
- Velha?
- Vinte e sete anos.
- Bonita?
- N�o, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque
a ouviu cantar na �ltima festa de S. Francisco de Paula. Mas ouvi tamb�m que ela
possui outra prenda, que n�o � rara, mas vale menos: est� t�sica.
Os escriv�es n�o deviam ter esp�rito - mau esp�rito, quero dizer. A
sobrinha deste sentiu no fim um pingo de b�lsamo, que lhe curou a dentadinha
da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou da� a dias com uma vi�va de vinte e
sete anos, boa cantora e t�sica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu g�nio.
O celibato era, sem d�vida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo;
artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por
aventuras de petimetres. Agora, sim, � que ia engendrar uma fam�lia de obras
s�rias, profundas, inspiradas e trabalhadas.
Essa esperan�a abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou
� primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, d�-me o que n�o
achei na solid�o das noites, nem no tumulto dos dias.
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Desde logo, para comemorar o cons�rcio, teve id�ia de compor um
noturno. Chamar-lhe-ia "Ave, Maria". A felicidade como que lhe trouxe um princ�pio
de inspira��o; n�o querendo dizer nada � mulher, antes de pronto, trabalhava �s
escondidas; coisa dif�cil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar
com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer
alguns concertos semanais, com tr�s artistas, amigos do Pestana. Um domingo,
por�m, n�o se p�de ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do
noturno; n�o lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-
a com os olhos.
- Acaba, disse Maria; n�o � Chopin?
Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e
ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esfor�o de mem�ria,
executou a pe�a de Chopin. A id�ia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-
os em algum daqueles becos escuros da mem�ria, velha cidade de trai��es. Triste,
desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de S. Crist�v�o.
- Para que lutar? - dizia ele. - Vou com as polcas... Viva a polca!
Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como
para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a
ambi��o e a voca��o... Passou o velho matadouro; ao chegar � porteira da estrada
de ferro, teve id�ia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse
e o esmagasse. O guarda f�-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.
Poucos dias depois - uma clara e fresca manh� de maio de 1876 -, eram
seis horas, Pestana sentiu nos dedos um fr�mito particular e conhecido. Ergueu-
se devagarinho, para n�o acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia
profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente
que p�de, extraiu uma polca. F�-la publicar com um pseud�nimo; nos dois meses
seguintes comp�s e publicou mais duas. Maria n�o soube nada; ia tossindo e
morrendo, at� que expirou, uma noite, nos bra�os do marido, apavorado e
desesperado.
Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acr�scimo, porque na
vizinhan�a havia um baile, em que se tocaram v�rias de suas melhores polcas. J�
o baile era duro de sofrer; as suas composi��es davam-lhe um ar de ironia e
perversidade. Ele sentia a cad�ncia dos passos, adivinhava os movimentos,
porventura l�bricos, a que obrigava alguma daquelas composi��es; tudo isso ao
p� do cad�ver p�lido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas
da noite passaram assim, vagarosas ou r�pidas, �midas de l�grimas e de suor, de
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�guas-da-col�nia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de
um grande Pestana invis�vel.
Enterrada a mulher, o vi�vo teve uma �nica preocupa��o: deixar a m�sica,
depois de compor um r�quiem, que faria executar no primeiro anivers�rio da
morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer
coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.
Come�ou a obra; empregou tudo, arrojo, paci�ncia, medita��o, e at� os
caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o
r�quiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, c�lere a princ�pio,
afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, n�o lhe
sentia a alma sacra, nem id�ia, nem inspira��o, nem m�todo; ora elevava-se-lhe
o cora��o e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o r�quiem n�o
estava conclu�do. Redobrou de esfor�os; esqueceu li��es e amizades. Tinha refeito
muitas vezes a obra; mas agora queria conclu�-la, fosse como fosse. Quinze dias,
oito, cinco... A aurora do anivers�rio veio ach�-lo trabalhando.
Contentou-se da missa rezada e simples, para ele s�. N�o se pode dizer
se todas as l�grimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido,
ou se algumas eram do compositor. Certo � que nunca mais tornou ao r�quiem.
- Para qu�? - dizia ele a si mesmo.
Correu ainda um ano. No princ�pio de 1878, apareceu-lhe o editor.
- L� v�o dois anos, disse este, que n�o nos d� um ar da sua gra�a. Toda
a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?
- Nada.
- Bem sei o golpe que o feriu; mas l� v�o dois anos. Venho propor-lhe um
contrato: vinte polcas durante doze meses; o pre�o antigo, e uma porcentagem
maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.
Pestana assentiu com um gesto. Poucas li��es tinha, vendera a casa para
saldar d�vidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso.
Aceitou o contrato.
- Mas a primeira polca h� de ser j�, explicou o editor. � urgente. Viu a
carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; v�o fazer
a reforma eleitoral. A polca h� de chamar-se: "Bravos � elei��o direta!". N�o �
pol�tica; � um bom t�tulo de ocasi�o.
Pestana comp�s a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de
sil�ncio, n�o perdera a originalidade nem a inspira��o. Trazia a mesma nota
genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os
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repert�rios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para n�o cair em novas
tentativas. J� agora pedia uma entrada de gra�a, sempre que havia alguma boa
�pera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela por��o de
coisas que nunca lhe haviam de brotar do c�rebro. Uma ou outra vez, ao tornar
para casa, cheio de m�sica, despertava nele o maestro in�dito; ent�o, sentava-se
ao piano, e, sem id�ia, tirava algumas notas, at� que ia dormir, vinte ou trinta
minutos depois.
Assim foram passando os anos, at� 1885. A fama do Pestana dera-lhe
definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro
lugar da aldeia n�o contentava a este C�sar, que continuava a preferir-lhe, n�o o
segundo, mas o cent�simo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo,
acerca de suas composi��es; a diferen�a � que eram menos violentas. Nem
entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum
prazer e certo fastio.
Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, at�
virar perniciosa. J� estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que n�o sabia
da doen�a, e ia dar-lhe not�cia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca
de ocasi�o. O enfermeiro, pobre clarineta de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana,
de modo que o editor entendeu calar-se. O doente � que instou para que lhe
dissesse o que era; o editor obedeceu.
- Mas h� de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
- Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.
Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarineta foi p� ante p�
preparar o rem�dio; o editor levantou-se e despediu-se.
- Adeus.
- Olhe, disse o Pestana, como � prov�vel que eu morra por estes dias, fa�o-
lhe logo duas polcas; a outra servir� para quando subirem os liberais.
Foi a �nica pilh�ria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou
na madrugada seguinte, �s quatro horas e cinco minutos, bem com os homens
e mal consigo mesmo.
V�rias hist�rias
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Cantiga de esponsais
Imagine a leitora que est� em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma
daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio p�blico e toda a arte
musical. Sabem o que � uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma
missa cantada daqueles anos remotos. N�o lhe chamo a aten��o para os padres
e os sacrist�es, nem para o serm�o, nem para os olhos das mo�as cariocas, que
j� eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os
cal��es, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. N�o falo sequer da
orquestra, que � excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabe�a branca, a cabe�a
desse velho que rege a orquestra, com alma e devo��o.
Chama-se Rom�o Pires; ter� sessenta anos, n�o menos, nasceu no Valongo,
ou por esses lados. � bom m�sico e bom homem; todos os m�sicos gostam dele.
Mestre Rom�o � o nome familiar; e dizer familiar e p�blico era a mesma coisa em
tal mat�ria e naquele tempo. "Quem rege a missa � mestre Rom�o" - equivalia a
esta outra forma de an�ncio, anos depois: "Entra em cena o ator Jo�o Caetano";
- ou ent�o: "O ator Martinho cantar� uma de suas melhores �rias". Era o tempero
certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Rom�o rege a festa! Quem n�o
conhecia mestre Rom�o, com o seu ar circunspecto, olhos no ch�o, riso triste, e
passo demorado? Tudo isso desaparecia � frente da orquestra; ent�o a vida
derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se,
o riso iluminava-se: era outro. N�o que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que
ele rege agora no Carmo � de Jos� Maur�cio; mas ele rege-a com o mesmo amor
que empregaria, se a missa fosse sua.
Acabou a festa; � como se acabasse um clar�o intenso, e deixasse o rosto
apenas alumiado da luz ordin�ria. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala;
vai � sacristia beijar a m�o aos padres e aceita um lugar � mesa do jantar. Tudo
isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a rua da M�e dos Homens,
onde reside, com um preto velho, pai Jos�, que � a sua verdadeira m�e, e que neste
momento conversa com uma vizinha.
- Mestre Rom�o l� vem, pai Jos�, disse a vizinha.
- Eh! Eh! Adeus, sinh�, at� logo.
Pai Jos� deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que da� a pouco
entrava com o mesmo ar do costume. A casa n�o era rica naturalmente; nem
alegre. N�o tinha o menor vest�gio de mulher, velha ou mo�a, nem passarinhos
que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jucundas. Casa sombria e nua. O
mais alegre era um cravo, onde o mestre Rom�o tocava algumas vezes, estudando.
Sobre uma cadeira, ao p�, alguns pap�is de m�sica; nenhuma dele...
Ah! Se mestre Rom�o pudesse seria um grande compositor. Parece que h�
duas sortes de voca��o, as que t�m l�ngua e as que a n�o t�m. As primeiras
realizam-se; as �ltimas representam uma luta constante e est�ril entre o impulso
interior e a aus�ncia de um modo de comunica��o com os homens. Rom�o era
destas. Tinha a voca��o �ntima da m�sica; trazia dentro de si muitas �peras e
missas, um mundo de harmonias novas e originais, que n�o alcan�ava exprimir
e p�r no papel. Esta era a causa �nica da tristeza de mestre Rom�o. Naturalmente
o vulgo n�o atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doen�a, falta de
dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade � esta: a causa da melancolia de
mestre Rom�o era n�o poder compor, n�o possuir o meio de traduzir o que
sentia. N�o � que n�o rabiscasse muito papel e n�o interrogasse o cravo, durante
horas; mas tudo lhe sa�a informe, sem id�ia nem harmonia. Nos �ltimos tempos
tinha at� vergonha da vizinhan�a, e n�o tentava mais nada.
E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa pe�a, um canto
esponsalicio, come�ado tr�s dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha
ent�o vinte e um anos, e morreu com vinte e tr�s, n�o era muito bonita, nem
pouco, mas extremamente simp�tica, e amava-o tanto como ele a ela. Tr�s dias
depois de casado, mestre Rom�o sentiu em si alguma coisa parecida com inspira��o.
Ideou ent�o o canto esponsalicio, e quis comp�-lo; mas a inspira��o n�o p�de
sair. Como um p�ssaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes
da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspira��o do nosso
m�sico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas
chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, n�o mais. Teimou
no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando
a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais
triste, por n�o ter podido fixar no papel a sensa��o da felicidade extinta.
- Pai Jos�, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado.
- Sinh� comeu alguma coisa que fez mal...
- N�o; j� de manh� n�o estava bom. Vai � botica...
O botic�rio mandou alguma coisa, que ele tomou � noite; no dia seguinte
mestre Rom�o n�o se sentia melhor. � preciso dizer que ele padecia do cora��o:
mol�stia grave e cr�nica. Pai Jos� ficou aterrado, quando viu que o inc�modo n�o
cedera ao rem�dio, nem ao repouso, e quis chamar o m�dico.
- Para
qu�? - disse o mestre. - Isto passa.
O dia n�o acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, n�o assim o preto,
que mal p�de dormir duas horas. A vizinhan�a, apenas soube do inc�modo, n�o
quis outro motivo de palestra; os que entretinham rela��es com o mestre foram
visit�-lo. E diziam-lhe que n�o era nada, que eram macacoas do tempo; um
acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o botic�rio
lhe dava no gam�o - outro que eram amores. Mestre Rom�o sorria, mas consigo
mesmo dizia que era o final.
- Est� acabado, pensava ele.
Um dia de manh�, cinco depois da festa, o m�dico achou-o realmente mal;
e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por tr�s das palavras enganadoras:
- Isto
n�o � nada; � preciso n�o pensar em m�sicas...
Em m�sicas! Justamente esta palavra do m�dico deu ao mestre um
pensamento. Logo que ficou s�, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava
desde 1779 o canto esponsalicio come�ado. Releu essas notas arrancadas a custo,
e n�o conclu�das. E ent�o teve uma id�ia singular: rematar a obra agora, fosse
como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na
terra.
- Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre
Rom�o...
O princ�pio do canto rematava em um certo l�; este l�, que lhe ca�a bem
no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Rom�o ordenou que lhe
levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso
ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias,
debru�ados, com os bra�os por cima dos ombros, e duas m�os presas. Mestre
Rom�o sorriu com tristeza.
- Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que
eles
poder�o tocar...
Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao l�...
- L�, l�, l�...
Nada, n�o passava adiante. E contudo, ele sabia m�sica como gente.
- L�, d�... l�, mi... l�, si, d�, r�... r�... r�...
Imposs�vel! Nenhuma inspira��o. N�o exigia uma pe�a profundamente
original, mas enfim alguma coisa, que n�o fosse de outro e se ligasse ao pensamento
come�ado. Voltava ao princ�pio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da
sensa��o extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. Para completar
a ilus�o, deitava os olhos pela janela para o lado dos casadinhos. Estes
continuavam ali, com as m�os presas e os bra�os passados nos ombros um do
outro; a diferen�a � que se miravam agora, em vez de olhar para baixo. Mestre
Rom�o, ofegante da mol�stia e de impaci�ncia, tornava ao cravo; mas a vista do
casal n�o lhe suprira a inspira��o, e as notas seguintes n�o soavam.
-L�... l�...l�...
Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse
momento, a mo�a embebida no olhar do marido come�ou a cantarolar � toa,
inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um
certo l� trazia ap�s si uma linda frase musical, justamente a que mestre Rom�o
procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou
a cabe�a, e � noite expirou.
Hist�rias sem data
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Instinto de nacionalidade
Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como
primeiro tra�o, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas
liter�rias do pensamento buscam vestir-se com as cores do pa�s, e n�o h� negar
que semelhante preocupa��o � sintoma de vitalidade e abono de futuro. As
tradi��es de Gon�alves Dias, Porto Alegre e Magalh�es s�o assim continuadas
pela gera��o j� feita e pela que ainda agora madruga, como aqueles continuaram
as de Jos� Bas�lio da Gama e Santa Rita Dur�o. Escusado � dizer a vantagem deste
universal acordo. Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores
e poetas achar�o ali farto manancial de inspira��o e ir�o dando fisionomia
pr�pria ao pensamento nacional. Esta outra independ�ncia n�o tem Sete de
Setembro nem campo de Ipiranga; n�o se far� num dia, mas pausadamente, para
sair mais duradoura; n�o ser� obra de uma gera��o nem duas; muitas trabalhar�o
para ela at� perfaz�-la de todo.
Sente-se aquele instinto at� nas manifesta��es da opini�o, ali�s mal
formada ainda, restrita em extremo, pouco sol�cita, e ainda menos apaixonada
nestas quest�es de poesia e literatura. H� nela um instinto que leva a aplaudir
principalmente as obras que trazem os toques nacionais. A juventude liter�ria,
sobretudo, faz deste ponto uma quest�o de leg�timo amor-pr�prio. Nem toda ela
ter� meditado os poemas de Uruguai e Caramuru com aquela aten��o que tais
obras est�o pedindo; mas os nomes de Bas�lio da Gama e Dur�o s�o citados e
amados, como precursores da poesia brasileira. A raz�o � que eles buscaram em
roda de si os elementos de uma poesia nova, e deram os primeiros tra�os de nossa
fisionomia liter�ria, enquanto que outros, Gonzaga por exemplo, respirando ali�s
os ares da p�tria, n�o souberam desligar-se das faixas da Arc�dia nem dos
preceitos do tempo. Admira-se-lhes o talento, mas n�o se lhes perdoa o cajado
e a pastora, e nisto h� mais erro que acerto.
Dado que as condi��es deste escrito o permitissem, n�o tomaria eu sobre
mim a defesa do mau gosto dos poetas arc�dicos nem o fatal estrago que essa
escola produziu nas literaturas portuguesa e brasileira. N�o me parece, todavia,
justa a censura aos nossos poetas coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente
justa a de n�o haverem trabalhado para a independ�ncia liter�ria, quando a
independ�ncia pol�tica jazia ainda no ventre do futuro, e mais que tudo, quando
entre a metr�pole e a col�nia criara a hist�ria a homogeneidade das tradi��es,
dos costumes e da educa��o. As mesmas obras de Bas�lio da Gama e Dur�o
quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura
brasileira, literatura que n�o existe ainda, que mal poder� ir alvorecendo agora.
Reconhecido o instinto de nacionalidade que se manifesta nas obras destes
�ltimos tempos, conviria examinar se possu�mos todas as condi��es e motivos
hist�ricos de uma nacionalidade liter�ria; esta investiga��o (ponto de diverg�ncia
entre literatos), al�m de superior �s minhas for�as, daria em resultado levar-me
longe dos limites deste escrito. Meu principal objeto � atestar o fato atual; ora,
o fato � o instinto de que falei, o geral desejo de criar uma literatura mais
independente.
A apari��o de Gon�alves Dias chamou a aten��o das musas brasileiras
para a hist�ria e os costumes indianos. Os timbiras, I-Juca-Pirama, Tabira e outros
poemas do egr�gio poeta acenderam as imagina��es; a vida das tribos, vencidas
h� muito pela civiliza��o, foi estudada nas mem�rias que nos deixaram os
cronistas, e interrogadas dos poetas, tirando-lhes todos alguma coisa, qual um
id�lio, qual um canto �pico.
Houve depois uma esp�cie de rea��o. Entrou a prevalecer a opini�o de que
n�o estava toda a poesia nos costumes semib�rbaros anteriores � nossa civiliza��o,
o que era verdade; e n�o tardou o conceito de que nada tinha a poesia com a
exist�ncia da ra�a extinta, t�o diferente da ra�a triunfante - o que parece um erro.
� certo que a civiliza��o brasileira n�o est� ligada ao elemento indiano,
nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para n�o ir buscar entre as tribos
vencidas os t�tulos da nossa personalidade liter�ria. Mas se isto � verdade, n�o
� menos certo que tudo � mat�ria de poesia, uma vez que traga as condi��es do
belo ou os elementos de que ele se comp�e. Os que, como o Sr. Varnhagen, negam
tudo aos primeiros povos deste pa�s, esses podem logicamente exclu�-los da
poesia contempor�nea. Parece-me, entretanto, que, depois das mem�rias que a
este respeito escreveram os Srs. Magalh�es e Gon�alves Dias, n�o � l�cito arredar
o elemento indiano da nossa aplica��o intelectual. Erro seria constitu�-lo um
exclusivo patrim�nio da literatura brasileira; erro igual fora certamente a sua
absoluta exclus�o. As tribos ind�genas, cujos usos e costumes Jo�o Francisco
Lisboa cotejava com o livro de T�cito e os achava t�o semelhantes aos dos
antigos germanos, desapareceram, � certo, da regi�o que por tanto tempo fora
sua; mas a ra�a dominadora que as freq�entou colheu informa��es preciosas e
no-las transmitiu como verdadeiros elementos po�ticos. A piedade, a minguarem
outros argumentos de maior valia, devera ao menos inclinar a imagina��o dos
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poetas para os povos que primeiro beberam os ares destas regi�es, consorciando
na literatura os que a fatalidade da hist�ria divorciou.
Esta � hoje a opini�o triunfante. Ou j� nos costumes puramente indianos,
tais quais os vemos n'Os timbiras, de Gon�alves Dias, ou j� na luta do elemento
b�rbaro com o civilizado, tem a imagina��o liter�ria do nosso tempo ido buscar
alguns quadros de singular efeito, dos quais citarei, por exemplo, a Iracema, do
Sr. J. de Alencar, uma das primeiras obras desse fecundo e brilhante escritor.
Compreendendo que n�o est� na vida indiana todo o patrim�nio da
literatura brasileira, mas apenas um legado, t�o brasileiro como universal, n�o se
limitam os nossos escritores a essa s� fonte de inspira��o. Os costumes civilizados,
ou j� do tempo colonial, ou j� do tempo de hoje, igualmente oferecem � imagina��o
boa e larga mat�ria de estudo. N�o menos que eles, os convida a natureza
americana, cuja magnific�ncia e esplendor naturalmente desafiam a poetas e
prosadores. O romance, sobretudo, apoderou-se de todos esses elementos de inven��o,
a que devemos, entre outros, os livros dos Srs. Bernardo Guimar�es, que brilhante
e ingenuamente nos pinta os costumes da regi�o em que nasceu, J. de Alencar, Macedo,
S�lvio Dinarte (Escragnolle Taunay), Franklin T�vora, e alguns mais.
Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se �s vezes uma opini�o, que
tenho por err�nea: � a que s� reconhece esp�rito nacional nas obras que tratam
de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa
literatura. Gon�alves Dias, por exemplo, com poesias pr�prias seria admitido no
pante�o nacional; se excetuarmos Os timbiras, os outros poemas americanos, e
certo n�mero de composi��es, pertencem os seus versos pelo assunto a toda a
mais humanidade, cujas aspira��es, entusiasmo, fraquezas e dores geralmente
cantam; e excluo da� as belas Sextilhas de frei Ant�o, que essas pertencem
unicamente � literatura portuguesa, n�o s� pelo assunto que o poeta extraiu dos
historiadores lusitanos, mas at� pelo estilo que ele habilmente fez antiquado. O
mesmo acontece com os seus dramas, nenhum dos quais tem por teatro o Brasil.
Iria longe se tivesse de citar outros exemplos de casa, e n�o acabaria se fosse
necess�rio recorrer aos estranhos. Mas, pois que isto vai ser impresso em terra
americana e inglesa, perguntarei simplesmente se o autor do Song of Hiawatha
n�o � o mesmo autor da Golden legend, quem nada tem com a terra que o viu
nascer, e cujo cantor admir�vel �; e perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o J�lio
C�sar, a Julieta e Romeu t�m alguma coisa com a hist�ria inglesa nem com o
territ�rio brit�nico, e se, entretanto, Shakespeare n�o �, al�m de um g�nio universal,
um poeta essencialmente ingl�s.
N�o h� d�vida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente,
deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua regi�o; mas
n�o estabele�amos doutrinas t�o absolutas que a empobre�am. O que se deve
exigir do escritor antes de tudo, � certo sentimento �ntimo, que o torne homem
do seu tempo e do seu pa�s, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo
e no espa�o. Um not�vel cr�tico da Fran�a, analisando h� tempos um escritor
escoc�s, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser
bret�o sem falar sempre de tojo, assim Masson era bem escoc�s, sem dizer palavra
do cardo, e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior,
diverso e melhor do que se fora apenas superficial.
Estes e outros pontos cumpria � cr�tica estabelec�-los, se tiv�ssemos uma
cr�tica doutrin�ria, ampla, elevada, correspondente ao que ela � em outros pa�ses.
N�o a temos. H� e tem havido escritos que tal nome merecem, mas raros, a
espa�os, sem a influ�ncia cotidiana e profunda que deveram exercer. A falta de
uma cr�tica assim � um dos maiores males de que padece a nossa literatura; �
mister que a an�lise corrija ou anime a inven��o, que os pontos de doutrina e de
hist�ria se investiguem, que as belezas se estudem, que os sen�es se apontem, que
o gosto se apure e eduque, e se desenvolva e caminhe aos altos destinos que a
esperam.
24 de mar�o de 1873
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0 alienista
Come�o a ficar pat�tico e prefiro dormir. Dormi, sonhei que era nababo,
e acordei com a id�ia de ser nababo. Eu gostava, �s vezes, de imaginar esses
contrastes de regi�o, estado e credo. Alguns dias antes tinha pensado na hip�tese
de uma revolu��o social, religiosa e pol�tica, que transferisse o arcebispo de
Cantu�ria a simples coletor de Petr�polis, e fiz longos c�lculos para saber se o
coletor eliminaria o arcebispo, ou se o arcebispo rejeitaria o coletor, ou que
por��o de arcebispo pode jazer num coletor, ou que soma de coletor pode
combinar com um arcebispo etc. Quest�es insol�veis, aparentemente, mas na
realidade perfeitamente sol�veis, desde que se atenda que pode haver num
arcebispo dois arcebispos -o da bula e o outro. Est� dito, vou ser nababo.
Era um simples gracejo; disse-o, todavia, ao Quincas Borba, que olhou
para mim com certa cautela e pena, levando a sua bondade a comunicar-me que
eu estava doido. Ri-me a princ�pio; mas a nobre convic��o do fil�sofo incutiu-
me certo medo. A �nica obje��o contra a palavra do Quincas Borba � que n�o
me sentia doido, mas n�o tendo geralmente os doidos outro conceito de si
mesmos, tal obje��o ficava sem valor. E vede se h� algum fundamento na cren�a
popular de que os fil�sofos s�o homens alheios �s coisas m�nimas. No dia
seguinte, mandou-me o Quincas Borba um alienista. Conhecia-o, fiquei aterrado.
Ele, por�m, houve-se com a maior delicadeza e habilidade, despedindo-se t�o
alegremente que me animou a perguntar-lhe se deveras me n�o achava doido.
- N�o, disse ele sorrindo; raros homens ter�o tanto ju�zo como o senhor.
- Ent�o o Quincas Borba enganou-se?
- Redondamente. E depois: - Ao contr�rio, se � amigo dele... pe�o-lhe que
o distraia... que...
- Justos c�us! Parece-lhe?... Um homem de tamanho esp�rito, um fil�sofo!
- N�o importa; a loucura entra em todas as casas.
Imaginem a minha afli��o. O alienista, vendo o efeito de suas palavras,
reconheceu que eu era amigo do Quincas Borba, e tratou de diminuir a gravidade
da advert�ncia. Observou que podia n�o ser nada, e acrescentou at� que um
gr�ozinho de sandice, longe de fazer mal, dava certo pico � vida. Como eu rejeitasse
com horror esta opini�o, o alienista sorriu e disse-me uma coisa t�o
extraordin�ria, t�o extraordin�ria, que n�o merece menos de um cap�tulo.
Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas
Os navios do Pireu
- H� de lembrar-se, disse-me o alienista, daquele famoso man�aco ateniense,
que supunha que todos os navios entrados no Pireu eram de sua propriedade.
N�o passava de um pobret�o, que talvez n�o tivesse, para dormir, a cuba de
Di�genes; mas a posse imagin�ria dos navios valia por todas as dracmas da
H�lade. Ora bem, h� em todos n�s um man�aco de Atenas; e quem jurar que n�o
possuiu alguma vez, mentalmente, dois ou tr�s patachos, pelo menos, pode crer
que jura falso.
- Tamb�m o senhor! - perguntei-lhe.
- Tamb�m eu.
- Tamb�m eu?
- Tamb�m o senhor; e o seu criado, n�o menos, se � seu criado esse
homem que ali est� sacudindo os tapetes � janela.
De fato, era um dos meus criados que batia os tapetes, enquanto n�s
fal�vamos no jardim, ao lado. O alienista notou ent�o que ele escancarara as
janelas todas desde longo tempo, que al�ara as cortinas, que devassara o mais
poss�vel a sala, ricamente alfaiada, para que a vissem de fora, e concluiu:
- Este seu criado tem a mania do ateniense: cr� que os navios s�o dele;
uma hora de ilus�o que lhe d� a maior felicidade da terra.
Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas
Torrente de loucos
Tr�s dias depois, numa expans�o �ntima com o botic�rio Crispim Soares,
desvendou o alienista o mist�rio do seu cora��o.
- A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra
como tempero, como o sal das coisas, que � assim que interpreto o dito de S.
Paulo aos cor�ntios: "Se eu conhecer quanto se pode saber, e n�o tiver caridade,
n�o sou nada". O principal nesta minha obra da Casa Verde � estudar
profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir
enfim a causa do fen�meno e o rem�dio universal. Este � o mist�rio do meu
cora��o. Creio que com isto presto um bom servi�o � humanidade.
- Um excelente servi�o, corrigiu o botic�rio.
- Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele d�-me,
por�m, muito maior campo aos meus estudos.
- Muito maior, acrescentou o outro.
E tinham raz�o. De todas as vilas e arraiais vizinhos aflu�am loucos �
Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaniacos, era toda a fam�lia
dos deserdados do esp�rito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma
povoa��o. N�o bastaram os primeiros cub�culos; mandou-se anexar uma galeria
de mais trinta e sete. O padre Lopes confessou que n�o imaginara a exist�ncia de
tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplic�vel de alguns casos. Um, por
exemplo, um rapaz bronco e vil�o, que todos os dias, depois do almo�o, fazia
regularmente um discurso acad�mico, ornado de tropos, de ant�teses, de ap�strofes,
com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de C�cero, Apuleio e Tertuliano.
O vig�rio n�o queria acabar de crer. Qu�! Um rapaz que ele vira, tr�s meses antes,
jogando peteca na rua!
- N�o digo que n�o, respondia-lhe o alienista; mas a verdade � o que
Vossa Reverend�ssima est� vendo. Isto � todos os dias.
- Quanto a mim, tornou o vig�rio, s� se pode explicar pela confus�o das
l�nguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente,
confundidas antigamente as l�nguas, � f�cil troc�-las agora, desde que a raz�o n�o
trabalhe...
- Essa pode ser, com efeito, a explica��o divina do fen�meno, concordou
o alienista, depois de refletir um instante, mas n�o � imposs�vel que haja tamb�m
alguma raz�o humana, e puramente cient�fica, e disso trato...
- V� que seja, e fico ansioso. Realmente!
Os loucos por amor eram tr�s ou quatro, mas s� dois espantavam pelo
curioso do del�rio. O primeiro, um Falc�o, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-
se estrela-d'alva, abria os bra�os e alargava as pernas, para dar-lhes certa fei��o
de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol j� tinha sa�do para
ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, � roda das salas ou do
p�tio, ao longo dos corredores, � procura do fim do mundo. Era um desgra�ado,
a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-
se de uma garrucha, e saiu-lhes no encal�o; achou-os duas horas depois, ao p� de
uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade. O ci�me
satisfez-se, mas o vingado estava louco. E ent�o come�ou aquela �nsia de ir ao
fim do mundo � cata dos fugitivos.
A mania das grandezas tinha exemplares not�veis. O mais not�vel era um
pobre-diabo, filho de um algibebe, que narrava �s paredes (porque n�o olhava
nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:
- Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou
Davi, Davi engendrou a p�rpura, a p�rpura engendrou o duque, o duque engendrou
o marqu�s, o marqu�s engendrou o conde, que sou eu.
Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis
vezes seguidas:
- Deus engendrou um ovo, o ovo etc.
Outro da mesma esp�cie era um escriv�o, que se vendia por mordomo do
rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda
a gente, dava trezentas cabe�as a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro,
e n�o acabava mais. N�o falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei
um sujeito que, chamando-se Jo�o de Deus, dizia agora ser o deus Jo�o, e prometia
o reino dos c�us a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois
desse, o licenciado Garcia, que n�o dizia nada, porque imaginava que no dia em
que chegasse a proferir uma s� palavra, todas as estrelas se despegariam do c�u
e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus. Assim o escrevia ele no
papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse
cient�fico.
Que, na verdade, a paci�ncia do alienista era ainda mais extraordin�ria do
que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa.
Sim�o Bacamarte come�ou por organizar um pessoal de administra��o; e,
aceitando essa id�ia ao botic�rio Crispim Soares, aceitou-lhe tamb�m dois
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sobrinhos, a quem incumbiu da execu��o de um regimento que lhes deu, aprovado
pela c�mara, da distribui��o da comida e da roupa, e assim tamb�m na escrita
etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu of�cio.
- A Casa Verde, disse ele ao vig�rio, � agora uma esp�cie de mundo, em
que h� o governo temporal e o governo espiritual.
E o padre Lopes ria deste pio trocado - e acrescentava, com o �nico fim
de dizer tamb�m uma chala�a:
- Deixe estar, deixe estar, que hei de mand�-lo denunciar ao papa.
Uma vez desonerado da administra��o, o alienista procedeu a uma vasta
classifica��o dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes
principais: os furiosos e os mansos; da� passou �s subclasses, monomanias, del�rios,
alucina��es diversas. Isto feito, come�ou um estudo aturado e cont�nuo; analisava
os h�bitos de cada louco, as horas de acesso, as avers�es, as simpatias, as palavras,
os gestos, as tend�ncias; inquiria da vida dos enfermos, profiss�o, costumes,
circunst�ncias da revela��o m�rbida, acidentes da inf�ncia e da mocidade, doen�as
de outra esp�cie, antecedentes na fam�lia, uma devassa, enfim, como a n�o faria
o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observa��o nova, uma descoberta
interessante, um fen�meno extraordin�rio. Ao mesmo tempo estudava o melhor
regime, as subst�ncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos,
n�o s� os que vinham nos seus amados �rabes, como os que ele mesmo descobria,
� for�a de sagacidade e paci�ncia. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e
o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se
trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma quest�o,
e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma s� palavra a D.
Evarista.
Pap�is avulsos
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Rubi�o [...] andou por v�rias ruas, at� que subiu pela de S. Jos�. Desde
o Pa�o Imperial, vinha gesticulando e falando a algu�m que supunha trazer
pelo bra�o, e era a imperatriz. Eug�nia ou Sofia? Ambas em uma s� criatura
- ou antes a segunda com o nome da primeira. Homens que iam passando,
paravam; do interior das lojas corria gente �s portas. Uns riam-se, outros
ficavam indiferentes; alguns, depois de verem o que era, desviavam os olhos
para poup�-los � afli��o que lhes dava o espet�culo do del�rio. Uma turba de
moleques acompanhava o Rubi�o, alguns t�o pr�ximos, que lhe ouviam as
palavras. Crian�as de toda a sorte vinham juntar-se ao grupo. Quando eles
viram a curiosidade geral, entenderam dar voz � multid�o, e come�ou a
surriada:
- � gira! � gira!
Esse vozear chamou a aten��o de outras pessoas, muitas janelas dos
sobrados come�aram a abrir-se, apareceram curiosos de ambos os sexos e todas
as idades, um fot�grafo, um estofador, tr�s e quatro figuras juntas, cabe�as por
cima de outras, todas inclinadas, espiando, acompanhando o homem, que falava
� parede, com o seu gesto cheio de grandeza e de obs�quio.
- � gira! � gira! - berravam os vadios.
Um deles, muito menor que todos, apegava-se �s cal�as de outro, taludo.
Era j� na rua da Ajuda. Rubi�o continuava a n�o ouvir nada; mas, de uma vez
que ouviu, sup�s que eram aclama��es, e fez uma cortesia de agradecimento. A
surriada aumentava. No meio do rumor, distinguiu-se a voz de uma mulher �
porta de uma colchoaria:
- Deolindo! Vem para a casa, Deolindo!
Deolindo, a crian�a que se agarrava �s cal�as da outra mais velha, n�o
obedeceu; pode ser que nem ouvisse, tamanha era a grita, e tal a alegria do
pequerrucho, clamando com vozinha mi�da:
- � gira! � gira!
- Deolindo!
Deolindo tratou de esconder-se entre os outros, para escapar �s vistas da
m�e que o chamava; esta, por�m, correu ao grupo, e arrancou-o de l�. Em verdade,
era pequeno demais para andar em tumultos de rua.
- Mam�e, deixa eu ver...
- Qual ver! Anda!
Meteu-o em casa, e ficou � porta, a olhar para a rua. Rubi�o estacara o
passo; ela p�de v�-lo bem, com os seus gestos e palavras, o peito alto, e uma
barretada que deu em volta.
- Os malucos t�m gra�a, �s vezes, disse ela sorrindo a uma vizinha.
Os rapazes continuavam a bradar e a rir, e Rubi�o foi andando, com o
mesmo coro atr�s de si. Deolindo, � porta da loja, vendo o grupo alongar-se,
pedia chorosamente � m�e que o deixasse ir tamb�m, ou ent�o que o levasse.
Quando perdeu as esperan�as, enfeixou todas as energias em um s� gritozinho
esgani�ado:
-0 gira!
[...]
A vizinha riu-se. A m�e riu-se tamb�m. Confessou que o filho era uma
pestezinha, um endiabrado, que n�o sossegava; n�o podia perd�-lo de vista.
Qualquer distra��o, estava na rua. E isto desde pequenino; tinha ainda dois anos,
quando escapou de morrer embaixo de um carro, ali mesmo; esteve por um fio.
Se n�o fosse um homem que passava, um senhor bem vestido, que acudiu depressa,
at� com perigo de vida, estaria morto e bem morto. Nisto o marido, que vinha
pela cal�ada oposta, atravessou a rua, e interrompeu a conversa��o. Trazia o
cenho carregado, mal cumprimentou a vizinha, e entrou; a mulher foi ter com ele.
Que era? O marido contou a surriada.
- Passou por aqui, disse ela.
- N�o conheceste o homem?
- N�o.
O marido cruzou os bra�os e ficou a olhar, fixo, calado. A mulher
perguntou-lhe quem era.
- � aquele homem que nos salvou o Deolindo da morte.
A mulher estremeceu.
- Viste bem? - perguntou.
- Perfeitamente. Se eu j� o tinha encontrado outras vezes, mas ent�o n�o
estava assim. Coitado! E a molecada berrava atr�s dele. Qual! N�o h� pol�cia
nesta terra.
O que lhe do�a � mulher n�o era tanto o mal do homem, nem ainda
a surriada; mas a parte que teve nesta o filho -a mesma crian�a que o
homem salvara da morte. Realmente, como podia o menino reconhec�-lo, nem
saber que lhe devia a vida? Do�a-lhe o encontro, a coincid�ncia. Afinal,
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contentou-se de p�r todas as culpas em si. Se tivesse tido mais cuidado, o
pequeno n�o haveria sa�do, e n�o entraria na tro�a. Tremia de quando em
quando, e estava inquieta. O marido pegou na cabe�a do filho, e deu-lhe dois
beijos.
Quincas Borba
Antes um navio no Pireu que cem cavalos no pampa
Tivemos agora um caso mais
particular: um fazendeiro riograndense
deu um tiro na cabe�a e
desapareceu do n�mero dos vivos. O
telegrama nota que era homem de idade
- o que exclui qualquer paix�o amorosa,
conquanto as c�s n�o sejam inimigas
das mo�as; podem ser invejosas, mas
inveja n�o � inimizade. E h� v�rios modos
de amar as mo�as -o modo conjuntivo
e o modo ext�tico; ora, o segundo �
de todas as fases deste mundo. Al�m
de idoso, o suicida era rico, isto �,
aquele bem que a sabedoria filos�fica
reputa o segundo da terra, ele o
possu�a em grau bastante para n�o
padecer nos �ltimos da vida, ou antes
para viv�-los � farta, entre os confortos
do corpo e da boca. N�o tinha mol�stia alguma; nenhuma paix�o pol�tica o
atormentava. Qual a causa ent�o do suic�dio?
A causa foi a convic��o que esse homem tinha de ser pobre. O telegrama
chama-lhe mania, eu digo convic��o. Qualquer, por�m, que seja o nome, a verdade
� que o fazendeiro rio-grandense, largamente propriet�rio, acreditava ser pobre,
e da� o terror natural que traz a pobreza a uma pessoa que trabalhou por ser rica,
viu chegar o dinheiro, crescer, multiplicar-se, e por fim come�ou a v�-lo desaparecer
aos poucos, a mais e mais depressa, e totalmente. Note-se bem que n�o foi a
ambi��o de possuir mais dinheiro que o levou � morte - raz�o de si misteriosa,
mas menos que a outra; foi a convic��o de n�o ter nada.
N�o abaneis a cabe�a. A vossa incredulidade vem de que a fazenda do
homem, os seus cavalos, as suas bolivianas, as suas letras e ap�lices valiam
realmente o que querem que valham; mas n�o fostes v�s que vos matastes, foi ele
e nada disso era vosso, mas do suicida. As causas t�m o valor do aspecto, e o
aspecto depende da retina. Ora, a retina daquele homem achou que os bens t�o
invejados de outros eram coisa nenhuma, e prevendo o p�o alheio, a cama da rua,
o travesseiro de pedra ou de lodo, preferiu ir buscar a outros climas melhor vida
ou nenhuma, segundo a f� que tivesse.
O avesso deste caso � bem conhecido naquele cidad�o de Atenas que n�o
tinha nem possu�a uma dracma, um pobre-diabo convencido de que todos os
navios que entravam no Pireu eram dele; n�o precisou mais para ser feliz. Ia ao
porto, mirava os navios e n�o podia conter o j�bilo que traz uma riqueza t�o
extraordin�ria. Todos os navios! Todos os navios eram seus! N�o se lhe escureciam
os olhos e todavia mal podia suportar a vista de tantas propriedades. Nenhum
navio estranho; nenhum que se pudesse dizer de algum rico negociante ateniense.
Esse opulento de barcos e ilus�es comia de empr�stimo ou de favor; mas n�o
tinha tempo para distinguir entre o que lhe dava uma esmola e o seu criado. Da�
veio que chegou ao fim da vida e morreu naturalmente e orgulhosamente.
Os dois casos, por avessos que pare�am um ao outro, s�o o mesmo e
�nico. A ilus�o matou um, a ilus�o conservou o outro; no fundo, h� s� a convic��o
que ordena os atos. Assim � que um pobret�o, crendo ser rico, n�o padece mis�ria
alguma, e um opulento, crendo ser pobre, d� cabo da vida para fugir � mendicidade.
Tudo � reflexo da consci�ncia.
N�o mofeis de mim, se achais a� um ar de serm�o ou filosofia. O meu fim
n�o � s� contar os atos ou coment�-los; onde houver uma li��o �til � meu gosto
e dever tir�-la e divulg�-la como um presente aos leitores; � o que fa�o aqui. A
li��o que eu tirar pode ter a exist�ncia do cavalo do pampa ou a do navio do
Pireu; toda a quest�o � que valha por uma realidade, aos olhos do fazendeiro do
sul e do cidad�o de Atenas.
A li��o � que n�o pe�ais nunca dinheiro grosso aos deuses, sen�o com a
cl�usula expressa de saber que � dinheiro grosso. Sem ela, os bens s�o menos que
as flores de um dia. Tudo vale pela consci�ncia. N�s n�o temos outra prova do
mundo que nos cerca sen�o a que resulta do reflexo dele em n�s: � a filosofia
verdadeira. Todo Rothschild and Sons, nossos credores, valeriam menos que os
nossos criados, se n�o possu�ssem a certeza luminosa de que s�o muito ricos.
Wanderbilt seria nada; Jay Gould um triste cocheiro de t�lburi sem possuir
sequer o carro nem o cavalo, a n�o ser a convic��o dos seus bens.
Passai das riquezas materiais �s intelectuais: � a mesma coisa. Se o mestre-
escola da tua rua imaginar que n�o sabe vern�culo nem latim, em v�o lhe provar�s
que ele escreve como Vieira ou C�cero, ele perder� as noites e os sonos em cima
dos livros, comer� as unhas em vez de p�o, encanecer� ou encalvecer�, e morrer�
sem crer que mal distingue o verbo do adv�rbio. Ao contr�rio, se o teu copeiro
acreditar que escreveu os Lus�adas, ler� com orgulho (se souber ler) as est�ncias
do poeta; repeti-las-� de cor, interrogar� o teu rosto, os teus gestos, as tuas meias
palavras, ficar� por horas diante dos mostradores mirando os exemplares do
poema exposto. S� meter� em processo os editores se n�o supuser que ele � o
pr�prio Cam�es: tendo essa persuas�o, n�o far� mais que ler aquele nome t�o
bem visto de todos, aben�o�-lo em si mesmo; ouvi-lo aos outros, acordado e
dormindo.
Que diferen�a achais entre o mestre-escola e o seu copeiro? Consci�ncia
pura. Os fr�volos, crentes de que a verdade � o que todos aceitam, dir�o que �
mania de ambos, como o telegrama mandou dizer do fazendeiro do sul, como os
antigos diriam do cidad�o de Atenas. A verdade, por�m, � o que deveis saber, uma
impress�o interior. O povo, que diz as coisas por modo simples e expressivo,
inventou aquele ad�gio: quem o feio ama, bonito lhe parece. Logo, qual � a
verdade est�tica? � a que ele v�, n�o a que lhe demonstrais.
A conclus�o � que o que parece desmentir a natureza da parte de um
homem que se elimina por supor que empobreceu, n�o � mais que a sua pr�pria
confirma��o. J� n�o possu�a nada o suicida. A contabilidade interior usa regras
�s vezes diversas da exterior, diversas e contr�rias. 20 com 20 podem somar 40,
mas tamb�m podem somar 5 ou 3, e at� 1, por mais absurdo que este total pare�a;
a alma � que � tudo, amigo meu, e n�o � Bezout que faz a verdade das verdades.
Assim, e pela �ltima vez, repito que vos n�o limiteis a pedir bens simples, mas
tamb�m a consci�ncia deles. Se eles n�o puderem vir, venha ao menos a consci�ncia.
Antes um navio no Pireu que cem cavalos no pampa.
22 de novembro de 1896
Fuga do hosp�cio da Praia Vermelha
A fuga dos doidos do hosp�cio � mais grave do que pode parecer �
primeira vista. N�o me envergonho de confessar que aprendi algo com ela, assim
como que perdi uma das escoras da minha alma. Este resto de frase � obscuro,
mas eu n�o estou agora para emendar frases nem palavras. O que for saindo saiu,
e tanto melhor se entrar na cabe�a do leitor.
Ou confian�a nas leis, ou confian�a nos homens, era convic��o minha de
que se podia viver tranq�ilo fora do Hosp�cio dos Alienados. No bond, na sala,
na rua, onde quer que se me deparasse pessoa disposta a dizer hist�rias
extravagantes e opini�es extraordin�rias, era meu costume ouvi-la quieto. Uma
ou outra vez sucedia-me arregalar os olhos, involuntariamente, e o interlocutor,
supondo que era admira��o, arregalava tamb�m os seus, e aumentava o desconcerto
do discurso. Nunca me passou pela cabe�a que fosse um demente. Todas as
hist�rias s�o poss�veis, todas as opini�es respeit�veis. Quando o interlocutor,
para melhor incutir uma id�ia ou um fato, me apertava muito o bra�o ou me puxava
com for�a pela gola, longe de atribuir o gesto a simples loucura transit�ria, acreditava
que era um modo particular de orar ou expor. O mais que fazia, era persuadir-me
depressa dos fatos e das opini�es, n�o s� por ter os bra�os mui sens�veis, como
porque n�o � com dois vint�ns que um homem se veste neste tempo.
Assim vivia, e n�o vivia mal. A prova de que andava certo, � que n�o me
sucedia o menor desastre, salvo a perda da paci�ncia; mas a paci�ncia elabora-
se com facilidade - perde-se de manh�, j� de noite se pode sair com dose nova.
O mais corria naturalmente. Agora, por�m, que fugiram doidos do hosp�cio e que
outros tentaram faz�-lo (e sabe Deus se a esta hora j� o ter�o conseguido), perdi
aquela antiga confian�a que me fazia ouvir tranq�ilamente discursos e not�cias.
� o que acima chamei uma das escoras da minha alma. Caiu por terra o forte
apoio. Uma vez que se foge do Hosp�cio dos Alienados (e n�o acuso por isso a
administra��o) onde acharei m�todo para distinguir um louco de um homem de
ju�zo? De ora avante, quando algu�m vier dizer-me as coisas mais simples do
mundo, ainda que me n�o arranque os bot�es, fico incerto se � pessoa que se
governa, ou se apenas est� num daqueles intervalos l�cidos, que permitem ligar
as pontas da dem�ncia �s da raz�o. N�o posso deixar de desconfiar de todos.
A pr�pria pessoa - ou para dar mais claro exemplo -, o pr�prio leitor
deve desconfiar de si. Certo que o tenho em boa conta, sei que � ilustrado,
ben�volo e paciente, mas depois dos sucessos desta semana, quem lhe afirma que
n�o saiu ontem do hosp�cio? A consci�ncia de l� n�o haver entrado n�o prova
nada; menos ainda a de ter vivido desde muitos anos, com sua mulher e seus
filhos, como diz Lulu S�nior. � sabido que a dem�ncia d� ao enfermo a vis�o de
um estado estranho e contr�rio � realidade. Que saiu esta madrugada de um
baile? Mas os outros convidados, os pr�prios noivos que saber�o de si? Podem
ser seus companheiros da Praia Vermelha. Este � o meu terror. O ju�zo passou a
ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hip�tese.
Isto, quanto � segunda parte da minha confiss�o. Quanto � primeira, o
que aprendi com a fuga dos infelizes do hosp�cio, � ainda mais grave que a outra.
O c�lculo, o racioc�nio, a arte com que procederam os conspiradores da fuga,
foram de tal ordem, que diminuiu em grande parte a vantagem de ter ju�zo. O
ajuste foi perfeito. A manha de dar pontap�s nas portas para abafar o rumor que
fazia Serr�o arrombando a janela do seu cub�culo, � uma obra-prima; n�o
apresenta s� a combina��o de a��es para o fim comum, revela a consci�ncia de
que, estando ali por doidos, os guardas os deixariam bater � vontade, e a obra
da fuga iria ao cabo, sem a menor suspeita. Francamente, tenho lido, ouvido e
suportado coisas muito menos l�cidas.
31 de maio de 1896
83
86
Jos� Dias
Jos� Dias amava os superlativos. Era um modo de dar fei��o monumental
�s id�ias; n�o as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar
o gam�o, que estava no interior da casa. Cosi-me muito � parede, e vi-o passar
com as suas cal�as brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi
dos �ltimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia
as cal�as curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto,
com aro de a�o por dentro, imobilizava-lhe o pesco�o; era ent�o moda. O rodaque
de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerim�nia. Era magro,
chupado, com um princ�pio de calva; teria os seus cinq�enta e cinco anos. Levantou-
se com o passo vagaroso do costume, n�o aquele vagar arrastado dos pregui�osos,
mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da
conseq��ncia, a conseq��ncia antes da conclus�o. Um dever amar�ssimo!
[...]
Nem sempre ia naquele passo vagaroso e r�gido. Tamb�m se descompunha
em acionados, era muita vez r�pido e l�pido nos movimentos, t�o natural nesta
como naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso
sem vontade, mas comunicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos,
toda a cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves,
grav�ssimo.
Dom Casmurro
87
0 sineiro da Gl�ria
Entre tais e t�o tristes casos da semana, como o terremoto de Venezuela,
a queda do Banco Rural e a morte do sineiro da Gl�ria, o que mais me comoveu
foi o do sineiro.
Conheci dois sineiros na minha inf�ncia, ali�s tr�s - o Sineiro de S. Paulo,
drama que se representava no Teatro S. Pedro, o sineiro da Notre Dame de Paris,
aquele que fazia um s� corpo, ele e o sino, e voavam juntos em plena Idade M�dia,
e um terceiro, que n�o digo, por ser caso particular. A este, quando tornei a v�lo,
era caduco. Ora, o da Gl�ria, parece ter lan�ado a barra adiante de todos.
Ouvi muita vez repicarem, ouvi dobrarem os sinos da Gl�ria, mas estava
longe absolutamente de saber quem era o autor de ambas as falas. Um dia cheguei
a crer que andasse nisso eletricidade. Esta for�a misteriosa h� de acabar por
entrar na igreja e j� entrou, creio eu, em forma de luz. O g�s tamb�m j� ali se
estabeleceu. A igreja � que vai abrindo a porta �s novidades, desde que a abriu
� cantora de sociedade ou de teatro, para dar aos solos a voz de soprano, quando
n�s a t�nhamos trazida por D. Jo�o VI, sem despir-lhe as cal�as. Conheci uma
dessas vozes, pessoa velha, p�lida e desbarbada; cantando, parecia mo�a.
O sineiro da Gl�ria � que n�o era mo�o. Era um escravo, doado em 1853
�quela igreja, com a condi��o de a servir dois anos. Os dois anos acabaram em
1855, e o escravo ficou livre, mas continuou o of�cio. Contem bem os anos,
quarenta e cinco, quase meio s�culo, durante os quais este homem governou uma
torre. A torre era dele, dali regia a par�quia e contemplava o mundo.
Em v�o passavam as gera��es, ele n�o passava. Chamava-se Jo�o. Noivos
casavam, ele repicava �s bodas; crian�as nasciam, ele repicava ao batizado; pais
e m�es morriam, ele dobrava aos funerais. Acompanhou a hist�ria da cidade. Veio
a febre amarela, o c�lera-m�rbus, e Jo�o dobrando. Os partidos subiam ou ca�am,
Jo�o dobrava ou repicava, sem saber deles. Um dia come�ou a guerra do Paraguai,
e durou cinco anos; Jo�o repicava e dobrava, dobrava e repicava pelos mortos e
pelas vit�rias. Quando se decretou o ventre livre das escravas, Jo�o � que repicou.
Quando se fez a aboli��o completa, quem repicou foi Jo�o. Um dia proclamou-
se a Rep�blica, Jo�o repicou por ela, e repicaria pelo Imp�rio, se o Imp�rio
tornasse.
N�o lhe atribuas inconsist�ncia de opini�es; era o of�cio. Jo�o n�o sabia
de mortos nem de vivos; a sua obriga��o de 1853 era servir � Gl�ria, tocando os
sinos, e tocar os sinos, para servir � Gloria, alegremente ou tristemente, conforme
a ordem. Pode ser at� que, na maioria dos casos, s� viesse a saber do acontecimento
depois do dobre ou do repique.
Pois foi esse homem que morreu esta semana, com oitenta anos de idade.
O menos que lhe podiam dar era um dobre de finados, mas deram-lhe mais; a
Irmandade do Sacramento foi busc�-lo � casa do vig�rio Molina para a igreja,
rezou-se-lhe um responso e levaram-no para o cemit�rio, onde nunca jamais
tocar� sino de nenhuma esp�cie; ao menos, que se ou�a deste mundo.
4 de novembro de 1897
89
Dona Pl�cida
N�o te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confid�ncia
de Dona Pl�cida, e conseguintemente este cap�tulo. Dias depois, como eu a achasse
s� em casa, travamos palestra, e ela contou-me em breves termos a sua hist�ria.
Era filha natural de um sacrist�o da S� e de uma mulher que fazia doces para fora.
Perdeu o pai aos dez anos. J� ent�o ralava coco e fazia n�o sei que outros trabalhos
de doceira, compat�veis com a idade. Aos quinze ou dezesseis casou com um alfaiate,
que morreu t�sico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Vi�va e mo�a, ficaram
a seu cargo a filha, com dois anos, e a m�e, cansada de trabalhar. Tinha de sustentar
a tr�s pessoas. Fazia doces, que era o seu of�cio, mas cosia tamb�m, de dia e de noite,
com afinco, para tr�s ou quatro lojas, e ensinava algumas crian�as do bairro, a dez
tost�es por m�s. Com isto iam-se passando os anos, n�o a beleza, porque n�o a tivera
nunca. Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, sedu��es, a que resistia.
- Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ela, creia que me teria
casado; mas ningu�m queria casar comigo.
Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; n�o sendo, por�m, mais
delicado que os outros, Dona Pl�cida despediu-o do mesmo modo, e, depois de
o despedir, chorou muito. Continuou a coser para fora e a escumar os tachos. A
m�e tinha a rabugem do temperamento, dos anos e da necessidade; mortificava
a filha para que tomasse um dos maridos de empr�stimo e de ocasi�o que lha
pediam. E bradava:
- Queres ser melhor do que eu? N�o sei donde te vem essas fid�cias de
pessoa rica. Minha camarada, a vida n�o se arranja � toa; n�o se come vento. Ora
esta! Mo�os t�o bons como o Policarpo da venda, coitado... Esperas algum fidalgo,
n�o �?
Dona Pl�cida jurou-me que n�o esperava fidalgo nenhum. Era g�nio.
Queria ser casada. Sabia muito bem que a m�e o n�o fora, e conhecia algumas que
tinham s� o seu mo�o delas; mas era g�nio e queria ser casada. N�o queria
tamb�m que a filha fosse outra coisa. Trabalhava muito, queimando os dedos ao
fog�o, e os olhos ao candeeiro, para comer e n�o cair. Emagreceu, adoeceu, perdeu
a m�e, enterrou-a por subscri��o, e continuou a trabalhar. A filha estava com
catorze anos; mas era muito fraquinha, e n�o fazia nada, a n�o ser namorar os
capad�cios que lhe rondavam a r�tula. Dona Pl�cida vivia com imensos cuidados,
levando-a consigo, quando tinha de ir entregar costuras. A gente das lojas
arregalava e piscava os olhos, convencida de que ela a levava para colher marido
ou outra coisa. Alguns diziam gra�olas, faziam cumprimentos; a m�e chegou a
receber propostas de dinheiro...
Interrompeu-se um instante, e continuou logo:
- Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber... Deixou-me s�,
mas t�o triste, t�o triste, que pensei morrer. N�o tinha ningu�m mais no mundo e
estava quase velha e doente. Foi por esse tempo que conheci a fam�lia de Iai�: boa
gente, que me deu que fazer, e at� chegou a me dar casa. Estive l� muitos meses, um
ano, mais de um ano, agregada, costurando. Sa� quando Iai� casou. Depois vivi como
Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas m�os... - E mostrou-me as m�os
grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha. - N�o se cria isto � toa,
meu senhor; Deus sabe como � que isto se cria... Felizmente, Iai� me protegeu, e o
senhor doutor tamb�m... Eu tinha um medo de acabar na rua, pedindo esmola...
Ao soltar a �ltima frase, Dona Pl�cida teve um calafrio. Depois, como se
tornasse a si, pareceu atentar na inconveni�ncia daquela confiss�o ao amante de
uma mulher casada, e come�ou a rir, a desdizer-se, a chamar-se tola, "cheia de
fid�cias", como lhe dizia a m�e; enfim, cansada do meu sil�ncio, retirou-se da sala.
Eu fiquei a olhar para a ponta do botim.
Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o cap�tulo
anterior, observo que � preciso l�-lo para entender o que eu disse comigo, logo
depois que Dona Pl�cida saiu da sala. O que eu disse foi isto:
- Assim, pois, o sacrist�o da S�, um dia, ajudando � missa, viu entrar a
dama, que devia ser sua colaboradora na vida de Dona Pl�cida. Viu-a outros dias,
durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma gra�a, pisou-lhe o p�, ao acender
os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa
conjun��o de lux�rias vadias brotou Dono Pl�cida. � de crer que Dona Pl�cida
n�o falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus
dias: "Aqui estou. Para que me chamastes?". E o sacrist�o e a sacrist� naturalmente
lhe responderiam: "Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na
costura, comer mal, ou n�o comer, andar de um lado para outro, na faina,
adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste
agora, logo desesperada, amanh� resignada, mas sempre com as m�os no tacho
e os olhos na costura, at� acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso
que te chamamos, num momento de simpatia".
Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas
0 administrador interino
P�dua era empregado em reparti��o dependente do Minist�rio da Guerra.
N�o ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa
em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade dele.
Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu num meio bilhete de loteria, dez contos
de r�is. A primeira id�ia do P�dua, quando lhe saiu o pr�mio, foi comprar um cavalo
do Cabo, um adere�o de brilhantes para a mulher, uma sepultura perp�tua de fam�lia,
mandar vir da Europa alguns p�ssaros etc; mas a mulher, esta D. Fortunata que ali
est� � porta dos fundos da casa, em p�, falando � filha, alta, forte, cheia, como a filha,
a mesma cabe�a, os mesmos olhos claros, a mulher � que lhe disse que o melhor era
comprar a casa, e guardar o que sobrasse para acudir �s mol�stias grandes. P�dua
hesitou muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha m�e, a quem D. Fortunata
pediu aux�lio. Nem foi s� nessa ocasi�o que minha m�e lhes valeu; um dia chegou
a salvar a vida do P�dua. Escutai; a anedota � curta.
O administrador da reparti��o em que P�dua trabalhava teve de ir ao
Norte, em comiss�o. P�dua, ou por ordem regulamentar, ou por especial
designa��o, ficou substituindo o administrador com os respectivos honor�rios.
Esta mudan�a de fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. N�o
se contentou de reformar a roupa e a copa, atirou-se �s despesas sup�rfluas, deu
j�ias � mulher, nos dias de festa matava um leit�o, era visto em teatros, chegou
aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte e dois meses na suposi��o de uma eterna
interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o
lugar, porque chegara o efetivo naquela manh�. Pediu � minha m�e que velasse
pelas infelizes que deixava; n�o podia sofrer a desgra�a, matava-se. Minha m�e
falou-lhe com bondade, mas ele n�o atendia a coisa nenhuma.
- N�o, minha senhora, n�o consentirei em tal vergonha! Fazer descer a
fam�lia, tornar atr�s... J� disse, mato-me! N�o hei de confessar � minha gente esta
mis�ria. E os outros? Que dir�o os vizinhos? E os amigos? E o p�blico?
- Que p�blico, Sr. P�dua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua
mulher n�o tem outra pessoa... E que h� de fazer? Pois um homem... Seja homem,
ande.
P�dua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias,
mudo, fechado na alcova - ou ent�o no quintal, ao p� do po�o, como se a id�ia
da morte teimasse nele. D. Fortunata ralhava:
- Jo�ozinho, voc� � crian�a?
Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a
pedir � minha m�e que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o marido que se
queria matar. Minha m�e foi ach�-lo � beira do po�o, e intimou-lhe que vivesse.
Que maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgra�ado, por causa de uma
gratifica��o menos, e perder um emprego interino? N�o, senhor, devia ser homem,
pai de fam�lia, imitar a mulher e a filha... P�dua obedeceu; confessou que acharia
for�as para cumprir a vontade de minha m�e.
- Vontade minha, n�o; � obriga��o sua.
- Pois seja obriga��o; n�o desconhe�o que � assim mesmo.
Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido � parede, cara
no ch�o. N�o era o mesmo homem que estragava o chap�u em cortejar a vizinhan�a,
risonho, olhos no ar, antes mesmo da administra��o interina. Vieram as semanas,
a ferida foi sarando. P�dua come�ou a interessar-se pelos neg�cios dom�sticos,
a cuidar dos passarinhos, a dormir tranq�ilo as noites e as tardes, a conversar
e dar not�cias da rua. A serenidade regressou; atr�s dela veio a alegria, um domingo,
na figura de dois amigos, que iam jogar o solo, a tentos. J� ele ria, j� brincava,
tinha o ar do costume; a ferida sarou de todo.
Com o tempo veio um fen�meno interessante. P�dua come�ou a falar da
administra��o interina, n�o somente sem as saudades dos honor�rios, nem o
vexame da perda, mas at� com desvanecimento e orgulho. A administra��o ficou
sendo a h�gira, donde ele contava para diante e para tr�s.
- No tempo em que eu era administrador...
Ou ent�o:
- Ah! Sim, lembra-me, foi antes da minha administra��o, um ou dois
meses antes... Ora espere; a minha administra��o come�ou... � isto, m�s e meio
antes; foi m�s e meio antes, n�o foi mais.
Ou ainda:
- Justamente; havia j� seis meses que eu administrava...
Tal � o sabor p�stumo das gl�rias interinas. Jos� Dias bradava que era
a vaidade sobrevivente; mas o padre Cabral, que levava tudo para a Escritura,
dizia que com o vizinho P�dua se dava a li��o de Elif�s a J�: "N�o desprezes a
corre��o do Senhor; Ele fere e cura".
Dom Casmurro
93
Esse Aires
Esse Aires que a� aparece conserva ainda agora algumas das virtudes
daquele tempo, e quase nenhum v�cio. N�o atribuas tal estado a qualquer
prop�sito. Nem creias que vai nisto um pouco de homenagem � mod�stia da
pessoa. N�o, senhor, � verdade pura e natural efeito. Apesar dos quarenta anos,
ou quarenta e dois, e talvez por isso mesmo, era um belo tipo de homem. Diplomata
de carreira, chegara dias antes do Pac�fico, com uma licen�a de seis meses.
N�o me demoro em descrev�-lo. Imagina s� que trazia o calo do of�cio,
o sorriso aprovador, a fala branda e cautelosa, o ar da ocasi�o, a express�o
adequada, tudo t�o bem distribu�do que era um gosto ouvi-lo e v�-lo. Talvez a
pele da cara rapada estivesse prestes a mostrar os primeiros sinais do tempo.
Ainda assim o bigode, que era mo�o na cor e no apuro com que acabava em ponta
fina e rija, daria um ar de frescura ao rosto, quando o meio s�culo chegasse. O
mesmo faria o cabelo, vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da cabe�a
havia um in�cio de calva. Na botoeira uma flor eterna.
Tempo houve - foi por ocasi�o da anterior licen�a, sendo ele apenas
secret�rio de lega��o -, tempo houve em que tamb�m ele gostou de Natividade.
N�o foi propriamente paix�o; n�o era homem disso. Gostou dela, como de outras
j�ias e raridades, mas t�o depressa viu que n�o era aceito, trocou de conversa��o.
N�o era frouxid�o ou frieza. Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram
bonitas. A quest�o para ele � que nem as queria � for�a, nem curava de as
persuadir. N�o era general para escala � vista, nem para ass�dios demorados;
contentava-se de simples passeios militares - longos ou breves, conforme o tempo
fosse claro ou turvo. Em suma, extremamente cordato.
Coincid�ncia interessante; foi por esse tempo que Santos pensou em cas�lo
com a cunhada, recentemente vi�va. Esta parece que queria. Natividade op�s-
se, nunca se soube por qu�. N�o eram ci�mes; invejas n�o creio que fossem. O
simples desejo de o n�o ver entrar na fam�lia pela porta lateral � apenas uma
figura, que vale qualquer das primeiras hip�teses negadas. O desgosto de ced�lo
a outra, ou t�-los felizes ao p� de si, n�o podia ser, posto que o cora��o seja
o abismo dos abismos. Suponhamos que era com o fim de o punir por hav�-la
amado.
Pode ser; em todo caso, o maior obst�culo viria dele mesmo. Posto que
vi�vo, Aires n�o foi propriamente casado. N�o amava o casamento. Casou por
necessidade do of�cio; cuidou que era melhor ser diplomata casado que solteiro,
e pediu a primeira mo�a que lhe pareceu adequada ao seu destino. Enganou-se;
a diferen�a de temperamento e de esp�rito era tal que ele, ainda vivendo com a
mulher, era como se vivesse s�. N�o se afligiu com a perda; tinha o feitio do
solteir�o.
Era cordato, repito, embora esta palavra n�o exprima exatamente o que
quero dizer. Tinha o cora��o disposto a aceitar tudo, n�o por inclina��o � harmonia,
sen�o por t�dio � controv�rsia. Para conhecer esta avers�o, bastava t�-lo
visto entrar, antes, em visita ao casal Santos. Pessoas de fora e da fam�lia
conversavam da cabocla do Castelo.
- Chega a prop�sito, conselheiro, disse Perp�tua. Que pensa o senhor da
cabocla do Castelo?
Aires n�o pensava nada, mas percebeu que os outros pensavam alguma
coisa, e fez um gesto de dois sexos. Como insistissem, n�o escolheu nenhuma das
duas opini�es, achou outra, m�dia, que contentou a ambos os lados, coisa rara
em opini�es m�dias. Sabes que o destino delas � serem desdenhadas. Mas este
Aires - Jos� da Costa Marcondes Aires - tinha que nas controv�rsias uma
opini�o d�bia ou m�dia pode trazer a oportunidade de uma p�lula, e compunha
as suas de tal jeito, que o enfermo, se n�o sarava, n�o morria, e � o mais que fazem
p�lulas. N�o lhe queiras mal por isso; a droga amarga engole-se com a��car. Aires
opinou com pausa, delicadeza, circunl�quios, limpando o mon�culo ao len�o de
seda, pingando as palavras graves e obscuras, fitando os olhos no ar, como quem
busca uma lembran�a, e achava a lembran�a, e arredondava com ela o parecer. Um
dos ouvintes aceitou-o logo, outro divergiu um pouco e acabou de acordo, assim
terceiro, e quarto, e a sala toda.
N�o cuides que n�o era sincero, era-o. Quando n�o acertava de ter a
mesma opini�o, e valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava tamb�m guardar
por escrito as descobertas, observa��es, reflex�es, cr�ticas e anedotas, tendo para
isso uma s�rie de cadernos, a que dava o nome de Memorial.
Esa� e Jac�
Paula Brito
Mais um! Este ano h� de ser contado como um obitu�rio ilustre, onde
todos, o amigo e o cidad�o, podem ver inscritos mais de um nome caro ao
cora��o e ao esp�rito.
Longa � a lista dos que no espa�o desses doze meses, que est�o a expirar,
t�m ca�do ao abra�o tremendo daquela leviana, que n�o distingue os amantes,
como diz o poeta.
Agora � um homem que, pelas suas virtudes sociais e pol�ticas, por sua
intelig�ncia e amor ao trabalho, havia conseguido a estima geral.
Come�ou como impressor, como impressor morreu. Nesta modesta
posi��o tinha em roda de si todas as simpatias.
Paula Brito foi um exemplo raro e bom. Tinha f� nas suas cren�as pol�ticas,
acreditava sinceramente nos resultados da aplica��o delas; tolerante, n�o fazia
injusti�a aos seus advers�rios; sincero, nunca transigiu com eles.
Era tamb�m amigo, era sobretudo amigo.
Amava a mocidade, porque sabia que ela � a esperan�a da p�tria, e, porque
a amava, estendia-lhe quanto podia a sua prote��o.
Em vez de morrer, deixando uma fortuna, que o podia, morreu pobre
como vivera, gra�as ao largo emprego que dava �s suas rendas, e ao sentimento
generoso que o levava na divis�o do que auferia do seu trabalho.
Nestes tempos, de ego�smo e c�lculo, deve-se chorar a perda de homens
que, como Paula Brito, sobressaem na massa comum dos homens.
24 de dezembro de 1861
98
Bichos de estima��o
Cada homem simpatiza com um animal. H� quem goste de c�es: eu adoro-
os. Um c�o, sobretudo se me conhece, se n�o guarda a ch�cara de algum amigo,
aonde vou, se n�o est� dormindo, se n�o � leproso, se n�o tem dentes, oh! um c�o
� ador�vel.
Outros amam os gatos. S�o gostos; mas sempre notarei que esse
quadr�pede pachorrento e voluptuoso � sobretudo amado dos homens e mulheres
de certa idade.
Os p�ssaros t�m seus crentes. Alguns gostam de todo o bicho careta. N�o
s�o raros os que gostam do bicho de cozinha.
Eu n�o gosto do cavalo.
N�o gosto? Detesto-o; acho-o o mais intoler�vel dos quadr�pedes. � um
f�tuo, � um p�rfido, � um animal corruto. Sob o pretexto de que os poetas o t�m
cantado de um modo �pico ou de um modo l�rico; de que � nobre; amigo do
homem; de que vai � guerra; de que conduz mo�as bonitas; de que puxa coches;
sob o pretexto de uma infinidade de complac�ncias que temos para com ele, o
cavalo parece esmagar-nos com sua superioridade. Ele olha para n�s com desprezo,
relincha, prega-nos sustos, faz Hip�lito em estilhas. � um elegante perverso, um
tratante bem educado; nada mais.
Vejam o burro. Que mansid�o! Que filantropia! Esse puxa a carro�a que
nos traz �gua, faz andar a nora, e muitas vezes o genro, carrega fruta, carv�o e
hortali�as, puxa o bond, coisas todas �teis e necess�rias. No meio de tudo isso
apanha e n�o se volta contra quem lhe d�. Dizem que � teimoso. Pode ser; algum
defeito � natural que tenha um animal de tantos e t�o variados m�ritos. Mas ser
teimoso � algum pecado mortal? Al�m de teimoso, escoiceia alguma vez; mas o
coice, que no cavalo � uma perversidade, no burro � um argumento, ultima ratio.
15 de agosto de 1876
Conversa de burros
N�o tendo assistido � inaugura��o dos bondes el�tricos, deixei de falar
neles. Nem sequer entrei em algum, mais tarde, para receber as impress�es da
nova tra��o e cont�-las. Da� o meu sil�ncio da outra semana. Anteontem, por�m,
indo pela praia da Lapa, em um bonde comum, encontrei um dos el�tricos, que
descia. Era o primeiro que estes meus olhos viam andar.
Para n�o mentir, direi que o que me impressionou, antes da eletricidade,
foi o gesto do cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia
no meu bonde, com um grande
ar de superioridade. Posto n�o
fosse feio, n�o eram as prendas
f�sicas que lhe davam aquele
aspecto. Sentia-se nele a convic��o
de que inventara, n�o s� o bonde
el�trico, mas a pr�pria eletricidade.
N�o � meu of�cio censurar essas
meias gl�rias, ou gl�rias de
empr�stimo, como lhe queiram
chamar esp�ritos vadios. As
gl�rias de empr�stimo, se n�o
valem tanto como as de plena
propriedade, merecem sempre algumas
mostras de simpatia. Para que arrancar um
homem a essa agrad�vel sensa��o? Que
tenho para lhe dar em troca?
Em seguida, admirei a marcha serena do
bonde, deslizando como os barcos dos poetas, ao
sopro da brisa invis�vel e amiga. Mas, como �amos em
sentido contr�rio, n�o tardou que nos perd�ssemos de vista, dobrando ele para
o Largo da Lapa e rua do Passeio, e entrando eu na rua do Catete. Nem por isso
o perdi de mem�ria. A gente do meu bonde ia subindo aqui e ali, outra gente
entrava adiante e eu pensava no bonde el�trico. Assim fomos seguindo; at� que,
perto do fim da linha e j� noite, �ramos s� tr�s pessoas, o condutor, o cocheiro
e eu. Os dois cochilavam, eu pensava.
100
De repente ouvi vozes estranhas; pareceu-me que eram os burros que
conversavam, inclinei-me (ia no banco da frente); eram eles mesmos. Como eu
conhe�o um pouco a l�ngua dos Houyhnhnms, pelo que dela conta o famoso
Gulliver, n�o me foi dif�cil apanhar o di�logo. Bem sei que cavalo n�o � burro; mas
reconheci que a l�ngua era a mesma. O burro fala menos, decerto; � talvez o
trapista daquela grande divis�o animal, mas fala. Fiquei inclinado e escutei:
- Tens e n�o tens raz�o, respondia o da direita ao da esquerda.
O da esquerda:
- Desde que a tra��o el�trica se estenda a todos os bondes, estamos livres,
parece claro.
- Claro, parece; mas entre parecer e ser, a diferen�a � grande. Tu n�o
conheces a hist�ria da nossa esp�cie, colega; ignoras a vida dos burros desde o
come�o do mundo. Tu nem refletes que, tendo o salvador dos homens nascido
entre n�s, honrando a nossa humildade com a sua, nem no dia de Natal escapamos
da pancadaria crist�. Quem nos poupa no dia, vinga-se no dia seguinte.
- Que tem isso com a liberdade?
- Vejo, redarguiu melancolicamente o burro da direita, vejo que h� muito
de homem nessa cabe�a.
- Como assim? - bradou o burro da esquerda estacando o passo.
O cocheiro, entre dois cochilos, juntou as r�deas e golpeou a parelha.
- Sentiste o golpe? - perguntou o animal da direita. - Fica sabendo que,
quando os bondes entraram nesta cidade, vieram com a regra de se n�o empregar
chicote. Espanto universal dos cocheiros: onde � que se viu burro andar sem chicote?
Todos os burros desse tempo entoaram c�nticos de alegria e aben�oaram a id�ia dos
trilhos, sobre os quais os carros deslizariam naturalmente. N�o conheciam o homem.
- Sim, o homem imaginou um chicote, juntando as duas pontas das
r�deas. Sei tamb�m que, em certos casos, usa um galho de �rvore, ou uma vara
de marmeleiro.
- Justamente. Aqui acho raz�o ao homem. Burro magro n�o tem for�a;
mas levando pancada, puxa. Sabes o que a diretoria mandou dizer ao antigo
gerente Shannon? Mandou isto: "Engorde os burros, d�-lhes de comer, muito
capim, muito feno, traga-os fartos, para que eles se afei�oem ao servi�o;
oportunamente mudaremos de pol�tica, ali rightl".
- Disso n�o me queixo eu. Sou de poucos comeres; e quando menos
trabalho, � quando estou repleto. Mas que tem capim com a nossa liberdade,
depois do bonde el�trico?
101
-O bonde el�trico apenas nos far� mudar de senhor.
- De que modo?
- N�s somos bens da companhia. Quando tudo andar por arames, n�o
somos j� precisos, vendem-nos. Passamos naturalmente �s carro�as.
- Pela burra de Bala�o! - exclamou o burro da esquerda. Nenhuma
aposentadoria? Nenhum pr�mio? Nenhum sinal de gratifica��o? Oh! Mas onde
est� a justi�a deste mundo?
- Passaremos �s carro�as - continuou o outro pacificamente - onde a
nossa vida ser� um pouco melhor; n�o que nos falte pancada, mas o dono de um
s� burro sabe mais o que ele lhe custou. Um dia, a velhice, a lazeira, qualquer coisa
que nos torne incapaz, restituir-nos-� a liberdade...
- Enfim!
- Ficaremos soltos, na rua, por pouco tempo, arrancando alguma erva
que a� deixem crescer para recreio da vista. Mas que valem duas dentadas de erva,
que nem sempre � vi�osa? Enfraqueceremos; a idade ou a lazeira ir-nos-� matando,
at� que, para usar esta met�fora humana - esticaremos a canela. Ent�o teremos
a liberdade de apodrecer. Ao fim de tr�s dias, a vizinhan�a come�a a notar que o
burro cheira mal; conversa��o e queixumes. No quarto dia, um vizinho, mais
atrevido, corre aos jornais, conta o fato e pede uma reclama��o. No quinto dia
sai a reclama��o impressa. No sexto dia, aparece um agente, verifica a exatid�o
da not�cia; no s�timo, chega uma carro�a, puxada por outro burro, e leva o
cad�ver.
Seguiu-se uma pausa.
- Tu �s l�gubre, disse o burro da esquerda. N�o conheces a l�ngua da
esperan�a.
- Pode ser, meu colega; mas a esperan�a � pr�pria das esp�cies fracas,
como o homem e o gafanhoto; o burro distingue-se pela fortaleza sem par. A
nossa ra�a � essencialmente filos�fica. Ao homem que anda sobre dois p�s, e
provavelmente � �guia, que voa alto, cabe a ci�ncia da astronomia. N�s nunca
seremos astr�nomos; mas a filosofia � nossa. Todas as tentativas humanas a este
respeito s�o perfeitas quimeras. Cada s�culo...
O freio cortou a frase ao burro, porque o cocheiro encurtou as r�deas, e
travou o carro. T�nhamos chegado ao ponto terminal. Desci e fui mirar os dois
interlocutores. N�o podia crer que fossem eles mesmos. Entretanto, o cocheiro e
o condutor cuidaram de desatrelar a parelha para lev�-la ao outro lado do carro;
aproveitei a ocasi�o e murmurei baixinho, entre os dois burros:
- Houyhnhnms!
Foi um choque el�trico. Ambos deram um estreme��o, levantaram as
patas e perguntaram-me cheios de entusiasmo:
- Que homem �s tu, que sabes a nossa l�ngua?
Mas o cocheiro, dando-lhes de rijo uma lambada, bradou para mim, que
lhe n�o espantasse os animais. Parece que a lambada devera ser em mim, se era
eu que espantava os animais; mas como dizia o burro da esquerda, ainda agora:
"Onde est� a justi�a deste mundo?".
16 de outubro de 1892
Quincas Borba
Quincas Borba sentiu-lhe os passos, e come�ou a latir. Rubi�o deu-se
pressa em solt�-lo; era soltar-se a si mesmo por alguns instantes daquela
persegui��o.
- Quincas Borba! - exclamou, abrindo-lhe a porta.
O c�o atirou-se fora. Que alegria! Que entusiasmo! Que saltos em volta
do amo; chega a lamber-lhe a m�o de contente, mas Rubi�o d�-lhe um tabefe, que
lhe d�i; ele recua um pouco, triste, com a cauda entre as pernas; depois o senhor
d� um estalinho com os dedos, e ei-lo que volta novamente com a mesma alegria.
- Sossega! Sossega!
Quincas Borba vai atr�s dele pelo jardim fora, contorna a casa, ora
andando, ora aos saltos. Saboreia a liberdade, mas n�o perde o amo de vista. Aqui
fareja, ali p�ra a co�ar uma orelha, acol� cata uma pulga na barriga, mas de um
salto galga o espa�o e o tempo perdido, e cose-se outra vez com os calcanhares
do senhor. Parece-lhe que Rubi�o n�o pensa em outra coisa, que anda agora de
um lado para outro unicamente para faz�-lo andar tamb�m, e recuperar o tempo
em que esteve retido. Quando Rubi�o estaca, ele olha para cima, � espera;
naturalmente, cuida dele; � algum projeto, sa�rem juntos, ou coisa assim agrad�vel.
N�o lhe lembra nunca a possibilidade de um pontap� ou de um tabefe. Tem o
sentimento da confian�a, e muito curta a mem�ria das pancadas. Ao contr�rio,
os afagos ficam-lhe impressos e fixos, por mais distra�dos que sejam. Gosta de ser
amado. Contenta-se de crer que o �.
A vida ali n�o � completamente boa nem completamente m�. H� um
moleque que o lava todos os dias em �gua fria, usan�a do diabo, a que ele se n�o
acostuma. Jean, o cozinheiro, gosta do c�o, o criado espanhol n�o gosta nada.
Rubi�o passa muitas horas fora de casa, mas n�o o trata mal, e consente que v�
acima, que assista ao almo�o e ao jantar, que o acompanhe � sala ou ao gabinete.
Brinca �s vezes com ele; f�-lo pular. Se chegam visitas de alguma cerim�nia,
manda-o levar para dentro ou para baixo e, resistindo ele sempre, o espanhol
toma-o a princ�pio com muita delicadeza, mas vinga-se da� a pouco, arrastando-
o por uma orelha ou por uma perna, atira-o ao longe, e fecha-lhe todas as
comunica��es com a casa:
-Perro del infierno!
Machucado, separado do amigo, Quincas Borba vai ent�o deitar-se a um
104
canto, e fica ali muito tempo, calado; agita-se um pouco, at� que acha posi��o
definitiva, e cerra os olhos. N�o dorme, recolhe as id�ias, combina, relembra; a
figura vaga do finado amigo passa-lhe acaso ao longe, muito ao longe, aos peda�os,
depois mistura-se � do amigo atual, e parecem ambas uma s� pessoa; depois
outras id�ias...
Mas j� s�o muitas id�ias - s�o id�ias demais; em todo caso s�o id�ias de
cachorro, poeira de id�ias - menos ainda que poeira, explicar� o leitor. Mas a
verdade � que este olho que se abre de quando em quando para fixar o espa�o,
t�o expressivamente, parece traduzir alguma coisa, que brilha l� dentro, l� muito
ao fundo de outra coisa que n�o sei como diga, para exprimir uma parte canina,
que n�o � a cauda nem as orelhas. Pobre l�ngua humana!
Afinal adormece. Ent�o as imagens da vida brincam nele, em sonho, vagas,
recentes, farrapo daqui remendo dali. Quando acorda, esqueceu o mal; tem em si
uma express�o, que n�o digo seja melancolia, para n�o agravar o leitor. Diz-se de
uma paisagem que � melanc�lica, mas n�o se diz igual coisa de um c�o. A raz�o
n�o pode ser outra sen�o que a melancolia da paisagem est� em n�s mesmos,
enquanto que atribu�-la ao c�o � deix�-la fora de n�s. Seja o que for, � alguma
coisa que n�o a alegria de h� pouco; mas venha um assobio do cozinheiro, ou um
gesto do senhor, e l� vai tudo embora, os olhos brilham, o prazer arrega�a-lhe o
focinho, e as pernas voam que parecem asas.
Quincas Borba
Id�ias de can�rio
Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a
alguns amigos um caso t�o extraordin�rio que ningu�m lhe deu cr�dito. Alguns
chegam a supor que Macedo virou o ju�zo. Eis aqui o resumo da narra��o.
No princ�pio do m�s passado - disse ele -, indo por uma rua, sucedeu que
um t�lburi � disparada, quase me atirou ao ch�o. Escapei saltando para dentro
de uma loja de belchior. Nem o estr�pito do cavalo e do ve�culo, nem a minha
entrada fez levantar o dono do neg�cio, que cochilava ao fundo, sentado numa
cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabe�a
enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente n�o achara comprador. N�o
se adivinhava nele nenhuma hist�ria, como podiam ter alguns dos objetos que
vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.
A loja era escura, atulhada das coisas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas,
enferrujadas que de ordin�rio se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem
pr�pria do neg�cio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem
tampa, tampas sem panela, bot�es, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chap�us
de palha e de p�lo, caixilhos, bin�culos, meias casacas, um florete, um c�o
empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de
veludo, dois cabides, um bodoque, um term�metro, cadeiras, um retrato litografado
pelo finado Sisson, um gam�o, duas m�scaras de arame para o carnaval que h�
de vir, tudo isso e o mais que n�o vi ou n�o me ficou de mem�ria, enchia a loja
nas imedia��es da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro,
igualmente velhas. L� para dentro, havia outras coisas mais e muitas, e do mesmo
aspecto, dominando os objetos grandes, c�modas, cadeiras, camas, uns por cima
dos outros, perdidos na escurid�o.
Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. T�o velha como o
resto, para ter o mesmo aspecto da desola��o geral, faltava-lhe estar vazia. N�o
estava vazia. Dentro pulava um can�rio. A cor, a anima��o e a gra�a do passarinho
davam �quele amontoado de destro�os uma nota de vida e de mocidade. Era o
�ltimo passageiro de algum naufr�gio, que ali foi parar �ntegro e alegre como
dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais, abaixo e acima, de poleiro
em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemit�rio brincava um
raio de sol. N�o atribuo essa imagem ao can�rio, sen�o porque falo a gente
ret�rica; em verdade, ele n�o pensou em cemit�rio nem sol, segundo me disse
106
depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado
do destino do p�ssaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.
- Quem seria o dono execr�vel deste bichinho, que teve �nimo de se
desfazer dele por alguns pares de n�queis? Ou que m�o indiferente, n�o querendo
guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de gra�a a algum pequeno, que
o
vendeu para ir jogar uma quiniela?
E o can�rio, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:
- Quem quer que sejas tu, certamente n�o est�s em teu ju�zo. N�o tive
dono execr�vel, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. S�o imagina��es
de pessoa doente; vai-te curar, amigo...
- Como? - interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Ent�o o teu
dono n�o te vendeu a esta casa? N�o foi a mis�ria ou a ociosidade que te trouxe
a este cemit�rio, como um raio de sol?
- N�o sei que seja sol nem cemit�rio. Se os can�rios que tens visto usam
do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque � bonito, mas estou que confundes.
- Perd�o, mas tu n�o vieste para aqui � toa, sem ningu�m, salvo se o teu
dono foi sempre aquele homem que ali est� sentado.
- Que dono? Esse homem que a� est� � meu criado, d�-me �gua e comida
todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os servi�os, n�o
seria com pouco; mas os can�rios n�o pagam criados. Em verdade, se o mundo
� propriedade dos can�rios, seria extravagante que eles pagassem o que est� no
mundo.
Pasmado das respostas, n�o sabia que mais admirar, se a linguagem, se
as id�ias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, sa�a do bico
em trilos engra�ados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado;
a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e �mida. O can�rio,
movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe ent�o se
tinha saudades do espa�o azul e infinito...
- Mas, caro homem, trilou o can�rio, que quer dizer espa�o azul e infinito?
- Mas,
perd�o, que pensas deste mundo? Que coisa � o mundo?
-O mundo, redarguiu o can�rio com certo ar de professor, o mundo �
uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente
de um prego; o can�rio � senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora
da�, tudo � ilus�o e mentira.
Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os p�s. Perguntou-me se
queria comprar o can�rio. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que
vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma
cole��o de navalhas.
- As navalhas est�o em muito bom uso, concluiu ele.
- Quero s� o can�rio.
Paguei-lhe o pre�o, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira
e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa,
donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do c�u azul.
Era meu intuito fazer um longo estudo do fen�meno, sem dizer nada a
ningu�m, at� poder assombrar o s�culo com a minha extraordin�ria descoberta.
Comecei por alfabetar a l�ngua do can�rio, por estudar-lhe a estrutura, as rela��es
com a m�sica, os sentimentos est�ticos do bicho, as suas id�ias e reminisc�ncias.
Feita essa an�lise filol�gica e psicol�gica, entrei propriamente na hist�ria dos
can�rios, na origem deles, primeiros s�culos, geologia e flora das ilhas Can�rias,
se ele tinha conhecimento da navega��o etc. Convers�vamos longas horas, eu
escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.
N�o tendo mais fam�lia que dois criados, ordenava-lhes que n�o me
interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou
visita de import�ncia. Sabendo ambos das minhas ocupa��es cient�ficas, acharam
natural a ordem, e n�o suspeitaram que o can�rio e eu nos entend�amos.
N�o � mister dizer que dormia pouco, acordava duas e tr�s vezes por
noite, passeava � toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler,
acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observa��o - ou por hav�-la entendido
mal, ou porque ele n�o a tivesse expresso claramente. A defini��o do mundo foi
uma delas. Tr�s semanas depois da entrada do can�rio em minha casa, pedi-lhe
que me repetisse a defini��o do mundo.
- O mundo, respondeu ele, � um jardim assaz largo com repuxo no meio,
flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o can�rio,
dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto.
Tudo o mais � ilus�o e mentira.
Tamb�m a linguagem sofreu algumas retifica��es, e certas conclus�es, que
me tinham parecido simples, vi que eram temer�rias. N�o podia ainda escrever
a mem�ria que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Hist�rico e �s
universidades alem�s, n�o porque faltasse mat�ria, mas para acumular primeiro
todas as observa��es e ratific�-las. Nos �ltimos dias, n�o sa�a de casa, n�o
respondia a cartas, n�o quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era can�rio.
De manh�, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e p�r-lhe �gua e
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comida. O passarinho n�o lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem
faltava qualquer preparo cient�fico. Tamb�m o servi�o era o mais sum�rio do
mundo; o criado n�o era amador de p�ssaros.
Um s�bado amanheci enfermo, a cabe�a e a espinha do�am-me. O m�dico
ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, n�o devia ler nem pensar, n�o
devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco
dias; no sexto levantei-me, e s� ent�o soube que o can�rio, estando o criado a
tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a
indigna��o sufocou-me, ca� na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se,
jurou que tivera cuidado, o passarinho � que fugira por astuto...
- Mas n�o o procuraram?
- Procuramos, sim, senhor; a princ�pio trepou ao telhado, trepei tamb�m,
ele fugiu, foi para uma �rvore, depois escondeu-se n�o sei onde. Tenho indagado
desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ningu�m sabe nada.
Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas
pude sair � varanda e ao jardim. Nem sombra de can�rio. Indaguei, corri, anunciei,
e nada. Tinha j� recolhido as notas para compor a mem�ria, ainda que truncada
e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais
belas e grandes ch�caras dos arrabaldes. Passe�vamos nela antes de jantar, quando
ouvi trilar esta pergunta:
- Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?
Era o can�rio; estava no galho de uma �rvore. Imaginem como fiquei, e
o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me
importavam cuidados de amigos? Falei ao can�rio com ternura, pedi-lhe que
viesse continuar a conversa��o, naquele nosso mundo composto de um jardim
e repuxo, varanda e gaiola branca e circular...
- Que jardim? Que repuxo?
- O mundo, meu querido.
- Que mundo? Tu n�o perdes os maus costumes de professor. O mundo,
concluiu solenemente, � um espa�o infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse cr�dito, o mundo era tudo; at�
j� fora uma loja de belchior...
- De belchior? - trilou ele �s bandeiras despregadas. - Mas h� mesmo
lojas de belchior?
P�ginas recolhidas
A borboleta preta
No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no
meu quarto uma borboleta, t�o negra como a outra, e muito maior do que ela.
Lembrou-me o caso da v�spera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona
Eus�bia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A
borboleta, depois de esvoa�ar muito em torno de mim, pousou-me na testa.
Sacudi-a, ela foi pousar na vidra�a; e, porque eu a sacudisse de novo, saiu dali e
veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O
gesto brando com que, uma vez posta, come�ou a mover as asas, tinha um certo
ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, sa� do quarto; mas
tornando l�, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repel�o
dos nervos, lancei m�o de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.
N�o caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabe�a.
Apiedei-me; tomei-a na palma da m�o e fui dep�-la no peitoril da janela. Era
tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido,
incomodado.
- Tamb�m por que diabo n�o era ela azul? - disse comigo.
E esta reflex�o - uma das mais profundas que se tem feito, desde a
inven��o das borboletas - me consolou do malef�cio, e me reconciliou comigo
mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cad�ver, com alguma simpatia, confesso.
Imaginei que ela sa�ra do mato, almo�ada e feliz. A manh� era linda. Veio por ali
fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta c�pula de
um c�u azul, que � sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra
e d� comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; n�o sabia, portanto, o
que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que
me movia, que tinha olhos, bra�os, pernas, um ar divino, uma estatura colossal.
Ent�o disse consigo: "Este � provavelmente o inventor das borboletas". A id�ia
subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que � tamb�m sugestivo, insinuou-lhe que o
melhor modo de agradar ao seu criador era beij�-lo na testa, e beijou-me na testa.
Quando enxotada por mim, foi pousar na vidra�a, viu dali o retrato de meu pai,
e n�o � imposs�vel que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do
inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe miseric�rdia.
Pois um golpe de toalha rematou a aventura. N�o lhe valeu a imensidade
azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha
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de rosto, dois palmos de linho cru. Vejam como � bom ser superior �s borboletas!
Porque, � justo diz�-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, n�o teria mais segura
a vida; n�o era imposs�vel que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos
olhos. N�o era. Esta �ltima id�ia restituiu-me a consola��o; uni o dedo grande
ao polegar, despedi um piparote e o cad�ver caiu no jardim. Era tempo; a� vinham
j� as pr�vidas formigas... N�o, volto � primeira id�ia; creio que para ela era
melhor ter nascido azul.
Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas
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0 vergalho
Tais eram as reflex�es que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo
depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto
que vergalhava outro na pra�a. O outro n�o se atrevia a fugir; gemia somente
estas �nicas palavras: "N�o, perd�o, meu senhor; meu senhor, perd�o!" Mas o
primeiro n�o fazia caso, e, a cada s�plica, respondia com uma vergalhada nova.
- Toma, diabo! - dizia ele. - Toma mais perd�o, b�bado!
- Meu senhor! - gemia o outro.
- Cala a boca, besta! - replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos c�us! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos
que o meu moleque Prud�ncio -o que meu pai libertara alguns anos antes.
Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a b�n��o; perguntei-lhe se aquele preto
era escravo dele.
- �, sim, nhonh�.
- Fez-te alguma coisa?
- � um vadio e um b�bado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda,
enquanto eu ia l� embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda
beber.
- Est� bom, perdoa-lhe, disse eu.
- Pois n�o, nhonh�. Nhonh� manda, n�o pede. Entra para casa, b�bado!
Sa� do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjecturas.
Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflex�es, que sinto haver inteiramente
perdido; ali�s, seria mat�ria para um bom cap�tulo, e talvez alegre. Eu gosto dos
cap�tulos alegres; � o meu fraco. Exteriormente, era torvo o epis�dio do Valongo;
mas s� exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do racioc�nio achei-lhe
um miolo gaiato, fino, e at� profundo. Era um modo que o Prud�ncio tinha de
se desfazer das pancadas recebidas - transmitindo-as a outro. Eu, em crian�a,
montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaix�o; ele gemia
e sofria. Agora, por�m, que era livre, dispunha de si mesmo, dos bra�os, das
pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condi��o, agora
� que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as
quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!
Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas
116
0 verdadeiro Cotrim
N�o obstante os meus quarenta e tantos anos, como eu amasse a harmonia
da fam�lia, entendi n�o tratar o casamento sem primeiro falar ao Cotrim. Ele
ouviu-me e respondeu-me seriamente que n�o tinha opini�o em neg�cio de
parentes seus. Podiam supor-lhe algum interesse, se acaso louvasse as raras
prendas de Nh�-lol�; por isso calava-se. Mais: estava certo de que a sobrinha
nutria por mim verdadeira paix�o, mas se ela o consultasse, o seu conselho seria
negativo. N�o era levado por nenhum �dio; apreciava as minhas boas qualidades
- n�o se fartava de as elogiar, como era de justi�a; e pelo que respeita a Nh�-lol�,
n�o chegaria jamais a negar que era noiva excelente; mas da� a aconselhar o
casamento ia um abismo.
- Lavo inteiramente as m�os, concluiu ele.
- Mas voc� achava outro dia que eu devia casar quanto antes...
- Isso � outro neg�cio. Acho que � indispens�vel casar, principalmente
tendo ambi��es pol�ticas. Saiba que na pol�tica o celibato � uma remora. Agora,
quanto � noiva, n�o posso ter voto, n�o quero, n�o devo, n�o � de minha honra.
Parece-me que Sabina foi al�m, fazendo-lhe certas confid�ncias, segundo me disse;
mas em todo caso ela n�o � tia carnal de Nh�-lol�, como eu. Olhe... mas n�o... n�o
digo...
- Diga.
- N�o; n�o digo nada.
Talvez pare�a excessivo o escr�pulo do Cotrim, a quem n�o souber que
ele possu�a um car�ter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante
os anos que se seguiram ao invent�rio de meu pai. Reconhe�o que era um
modelo. Arguiam-no de avareza, e cuido que tinham raz�o; mas a avareza �
apenas a exagera��o de uma virtude, e as virtudes devem ser como os or�amentos;
melhor � o saldo que o deficit. Como era muito seco de maneiras tinha inimigos,
que chegavam a acus�-lo de b�rbaro. O �nico fato alegado neste particular era
o de mandar com freq��ncia escravos ao calabou�o, donde eles desciam a escorrer
sangue; mas, al�m de que ele s� mandava os perversos e os fuj�es, ocorre que,
tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao
trato um pouco mais duro que esse g�nero de neg�cio requeria, e n�o se pode
honestamente atribuir � �ndole original de um homem o que � puro efeito de
rela��es sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se
no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a
alguns meses; prova irrefut�vel, acho eu, e n�o �nica. Era tesoureiro de uma
confraria, e irm�o de v�rias irmandades, e at� irm�o remido de uma destas, o que
n�o se coaduna muito com a reputa��o da avareza; verdade � que o benef�cio n�o
ca�ra no ch�o: a irmandade (de que ele fora juiz), mandara-lhe tirar o retrato a
�leo. N�o era perfeito, de certo; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os
jornais a not�cia de um ou outro benef�cio que praticava - sestro repreens�vel ou
n�o louv�vel, concordo; mas ele desculpava-se dizendo que as boas a��es eram
contagiosas, quando p�blicas; raz�o a que se n�o pode negar algum peso. Creio
mesmo (e nisto fa�o o seu maior elogio) que ele n�o praticava, de quando em
quando, esses benef�cios sen�o com o fim de espertar a filantropia dos outros; e
se tal era o intuito, for�a � confessar que a publicidade tornava-se uma condi��o
sine qua non. Em suma, poderia dever algumas aten��es, mas n�o devia um real
a ningu�m.
Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas
118
Era uma vez uma choupana
Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona - um triste
molambo de mulher - chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no ch�o.
Sen�o quando, indo a passar um homem �brio, viu o inc�ndio, viu a mulher,
perguntou-lhe se a casa era dela.
- � minha, sim, meu senhor; � tudo o que eu possu�a neste mundo.
- D�-me ent�o licen�a que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original; n�o �
preciso estar embriagado para acender um charuto nas mis�rias alheias. Bom
padre Chagas! - Chamava-se Chagas. - Padre mais que bom, que assim me
incutiste por muitos anos essa id�ia consoladora, de que ningu�m, em seu ju�zo,
faz render o mal dos outros; n�o contando o respeito que aquele b�bado tinha
ao princ�pio da propriedade -a ponto de n�o acender o charuto sem pedir
licen�a � dona das ru�nas. Tudo id�ias consoladoras. Bom padre Chagas!
Quincas Borba
Hist�ria da carochinha
Bastos - Mas que modera��o � essa? Pois faz-se jus aos cantos do poeta
e ao cinzel do estatu�rio com um sistema de modera��o? Recorramos aos her�is...
Aquiles foi moderado? Heitor foi moderado? Eu falo pela poesia, irm� carnal da
pol�tica, porque ambas s�o filhas de J�piter.
Pacheco - Sinto n�o ter agora os meus artigos. N�o posso ser mais claro
do que fui naquelas p�ginas, realmente as melhores que tenho escrito.
Bastos - Ah! Vossa Senhoria tamb�m escreve?
Pacheco - Tenho escrito v�rios artigos de aprecia��o pol�tica.
Bastos - Eu escrevo em verso; mas nem por isso deixo de sentir prazer,
travando conhecimento com Vossa Senhoria.
Pacheco - Oh! Senhor.
Bastos - Mas pense, e h� de concordar comigo.
Pacheco - Talvez... Eu j� disse que sou da pol�tica de Sua Excel�ncia; e
contudo ainda n�o sei (para falar sempre em J�piter...), ainda n�o sei se ele � filho de
J�piter Libertador ou J�piter Stator; mas j� sou da pol�tica de Sua Excel�ncia; e isto
porque sei que, filho de um ou de outro, h� de sempre governar na forma indicada
pela situa��o, que � a mesma j� prevista nos meus artigos, principalmente o V...
Cena XIII
Os mesmos, Martins
Bastos - A� chega Sua Excel�ncia.
Martins - Meus senhores...
Silveira (apresentando Pereira) - Aqui o senhor vem convidar-te para
jantar com ele.
Martins - Ah!
Pereira - � verdade; soube da sua nomea��o e vim, conforme o cora��o
me pediu, oferecer-lhe uma prova pequena da minha simpatia.
Martins - Agrade�o a simpatia; mas o boato que correu hoje, desde
manh�, � falso... O minist�rio est� completo, sem mim.
Todos - Ah!
Mateus - Mas quem s�o os novos?
Martins - N�o sei.
120
Pereira (� parte) - Nada, eu n�o posso perder um jantar e um compadre.
Bastos (� parte) -E a minha ode? (a Mateus) Fica?
Mateus - Nada eu vou. (aos outros) Vou saber quem � o novo ministro
para oferecer-lhe o meu invento...
Bastos - Sem inc�modo, sem inc�modo.
Silveira (a Bastos e Mateus) - Esperem um pouco.
Pacheco - E n�o sabe qual ser� a pol�tica do novo minist�rio? � preciso
saber. Se n�o for a modera��o, est� perdido. Vou averiguar isso.
Martins - N�o janta conosco?
Pacheco - Um destes dias... obrigado... at� depois...
Silveira - Mas esperem: onde v�o? Ou�am ao menos uma hist�ria. �
pequena, mas conceituosa. Um dia anunciou-se um supl�cio. Toda gente correu a
ver o espet�culo feroz. Ningu�m ficou em casa: velhos, mo�os, homens, mulheres,
crian�as, tudo invadiu a pra�a destinada � execu��o. Mas, porque viesse o perd�o
� �ltima hora, o espet�culo n�o se deu e a forca ficou vazia. Mais ainda: o
enforcado, isto �, o condenado, foi em pessoa � pra�a p�blica dizer que estava
salvo e confundir com o povo as l�grimas de satisfa��o. Houve um rumor geral,
depois um grito, mais dez, mais cem, mais mil, romperam de todos os �ngulos da
pra�a, e uma chuva de pedras deu ao condenado a morte de que o salvara a real
clem�ncia. - Por favor, miseric�rdia para este. (apontando para Martins) N�o tem
culpa nem da condena��o, nem da absolvi��o.
Pereira -A que vem isto?
Pacheco - Eu n�o lhe acho gra�a alguma!
Bastos - Hist�rias da carochinha!
Mateus - Ora adeus! Boa tarde.
Os outros - Boa tarde.
Cena XIV
Martins e Silveira
Martins - Que me dizes a isto?
Silveira - Que hei de dizer! Estavas a surgir... dobraram o joelho: repararam
que era uma aurora boreal, voltaram as costas e l� se v�o em busca do sol... S�o
especuladores!
Quase ministro
124
A carteira
... De repente, Hon�rio olhou para o ch�o e viu uma carteira.
Abaixar-se, apanh�-la e guard�-la foi obra de alguns instantes.
Ningu�m o viu, salvo um homem que estava � porta de
uma loja, e que, sem o
- Olhe, se n�o d� por ela; perdia-a
de uma vez.
-� verdade, concordou
Hon�rio envergonhado.
Para avaliar a oportunidade
desta carteira, � preciso saber que
Hon�rio tem de pagar amanh� uma
d�vida, quatrocentos e tantos mil
r�is, e a carteira trazia o bojo
recheado. A d�vida n�o parece
grande para um homem da posi��o
de Hon�rio, que advoga; mas todas
as quantias s�o grandes ou
pequenas, segundo as circunst�ncias, en�o podiam ser piores. Gastos de fam�lia excessivos, a princ�pio por
servir a parentes, e depois por agradar � mulher, que vivia aborrecida da solid�o;
baile daqui, jantar dali, chap�us, leques, tanta coisa mais, que n�o havia rem�dio
sen�o ir descontando o futuro. Endividou-se. Come�ou pelas contas de lojas e
armaz�ns; passou aos empr�stimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos
a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um
turbilh�o perp�tuo, uma voragem.
- Tu agora vais bem, n�o? - dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado
e familiar da casa.
- Agora vou, mentiu o Hon�rio.
A verdade � que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes
remissos; por desgra�a perdera ultimamente um processo, em que fundara grandes
esperan�as. N�o s� recebeu pouco, mas at� parece que ele lhe tirou alguma coisa
� reputa��o jur�dica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.
D. Am�lia n�o sabia nada; ele n�o contava nada � mulher, bons ou maus
conhecer, lhe disse rindo:
as dele
125
neg�cios. N�o contava nada a ningu�m. Fingia-se t�o alegre como se nadasse em
um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites � casa dele,
dizia uma ou duas pilh�rias, ele respondia com tr�s e quatro; e depois ia ouvir
os trechos de m�sica alem�, que D. Am�lia tocava muito bem ao piano, e que o
Gustavo escutava com indiz�vel prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente
falavam de pol�tica.
Um dia, a mulher foi ach�-lo dando muitos beijos � filha, crian�a de quatro
anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.
- Nada, nada.
Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da mis�ria. Mas as
esperan�as voltavam com facilidade. A id�ia de que os dias melhores tinham de
vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com trinta e quatro anos; era o princ�pio
da carreira; todos os princ�pios s�o dif�ceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar,
pedir fiado ou emprestado, para pagar mal, e a m�s horas.
A d�vida urgente de hoje s�o uns malditos quatrocentos e tantos mil r�is
de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e,
a rigor, o credor n�o lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra
azeda, com um gesto mau, e Hon�rio quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco
horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir
nada. Ao enfiar pela rua da Assembl�ia � que viu a carteira no ch�o, apanhou-a,
meteu no bolso, e foi andando.
Durante os primeiros minutos, Hon�rio n�o pensou nada; foi andando,
andando, andando, at� o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes enfiou
depois pela rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na rua Uruguaiana.
Sem saber como, achou-se da� a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda,
sem saber como, entrou em um caf�. Pediu alguma coisa e encostou-se � parede,
olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia n�o achar nada, apenas
pap�is e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das
reflex�es, a consci�ncia perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse.
N�o lhe perguntava com o ar de quem n�o sabe, mas antes com uma express�o
ir�nica e de censura. Podia lan�ar m�o do dinheiro, e ir pagar com ele a d�vida?
Eis o ponto. A consci�ncia acabou por lhe dizer que n�o podia, que devia levar
a carteira � pol�cia, ou anunci�-la; mas t�o depressa acabava de lhe dizer isto,
vinham os apuros da ocasi�o, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a
cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido,
ningu�m iria entregar-lha; insinua��o que lhe deu �nimo.
Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com
medo, quase �s escondidas; abriu-a, e ficou tr�mulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro;
n�o contou, mas viu duas notas de duzentos mil r�is, algumas de cinq�enta e
vinte; calculou uns setecentos mil r�is ou mais; quando menos, seiscentos. Era a
d�vida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Hon�rio teve tenta��es de
fechar os olhos, correr � cocheira, pagar, e, depois de paga a d�vida, adeus;
reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a
guard�-la.
Mas da� a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o
dinheiro. Contar para qu�? Era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos
e trinta mil r�is. Hon�rio teve um calafrio. Ningu�m viu, ningu�m soube; podia
ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Hon�rio teve pena de n�o crer
nos anjos... Mas por que n�o havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava,
passava-o pelas m�os; depois, resolvia o contr�rio, n�o usar do achado, restitu�lo.
Restitu�-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal.
"Se houver um nome, uma indica��o qualquer, n�o posso utilizar-me do
dinheiro", pensou ele.
Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que n�o abriu,
bilhetinhos dobrados, que n�o leu, e por fim um cart�o de visita; leu o nome; era
do Gustavo. Mas ent�o, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe
efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cart�es, mais tr�s,
mais cinco. N�o havia duvidar; era dele.
A descoberta entristeceu-o. N�o podia ficar com o dinheiro, sem praticar
um ato il�cito, e, naquele caso, doloroso ao seu cora��o porque era em dano de
um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu
a �ltima gota de caf�, sem reparar que estava frio. Saiu, e s� ent�o reparou que
era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns
dois empurr�es, mas ele resistiu.
"Paci�ncia, disse ele consigo; verei amanh� o que posso fazer".
Chegando a casa, j� ali achou o Gustavo, um pouco preocupado, e a
pr�pria D. Am�lia o parecia tamb�m. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe
faltava alguma coisa.
- Nada.
- Nada?
- Por qu�?
- Mete a m�o no bolso; n�o te falta nada?
- Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a m�o no bolso. Sabes
se algu�m a achou?
- Achei-a eu, disse Hon�rio entregando-lha.
Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amiga
Esse olhar foi para Hon�rio como um golpe de estilete; depois de tanta luta com
a necessidade, era um triste pr�mio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe
perguntasse onde a achara, deu-lhe as explica��es precisas.
- Mas conheceste-a?
- N�o; achei os teus bilhetes de visita.
Hon�rio deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Ent�o
Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos
bilhetinhos, que o outro n�o quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Am�lia, que.
ansiosa e tr�mula, rasgou-o em trinta mil peda�os: era um bilhetinho de amor.
Contos fluminenses
128
0 embrulho misterioso
Foi o caso que, alguns dias depois, indo eu a Botafogo, tropecei num
embrulho, que estava na praia. N�o digo bem; houve menos trope��o que pontap�.
Vendo um embrulho, n�o grande, mas limpo e corretamente feito, atado com um
barbante rijo, uma coisa que parecia alguma coisa, lembrou-me bater-lhe com o
p�, assim por experi�ncia, e bati, e o embrulho resistiu. Relanceei os olhos em volta
de mim; a praia estava deserta; ao longe uns meninos brincavam - um pescador
curava as redes ainda mais longe -, ningu�m que pudesse ver a minha a��o;
inclinei-me, apanhei o embrulho e segui.
Segui, mas n�o sem receio. Podia ser uma pulha de rapazes. Tive id�ia de
devolver o achado � praia, mas apalpei-o e rejeitei a id�ia. Um pouco adiante,
desandei o caminho e guiei para casa.
- Vejamos, disse eu ao entrar no gabinete.
E hesitei um instante, creio que por vergonha; assaltou-me outra vez o
receio da pulha. � certo que n�o havia ali nenhuma testemunha externa; mas eu
tinha dentro de mim mesmo um garoto, que havia de assobiar, guinchar, grunhir,
patear, apupar, cacarejar, fazer o diabo, se me visse abrir o embrulho e achar
dentro uma d�zia de len�os velhos ou duas d�zias de goiabas podres. Era tarde;
a curiosidade estava agu�ada, como deve estar a do leitor; desfiz o embrulho, e
vi... achei... contei... recontei nada menos de cinco contos de r�is. Nada menos.
Talvez uns dez mil r�is mais. Cinco contos em boas notas e moedas, tudo
asseadinho e arranjadinho, um achado raro. Embrulhei-as de novo. Ao jantar
pareceu-me que um dos moleques falara a outro com os olhos. Ter-me-iam
espreitado? Interroguei-os discretamente, e conclu� que n�o. Sobre o jantar, fui
outra vez ao gabinete, examinei o dinheiro, e ri-me dos meus cuidados maternais
a respeito de cinco contos - eu, que era abastado.
Para n�o pensar mais naquilo fui de noite � casa do Lobo Neves, que
instara muito comigo n�o deixasse de freq�entar as recep��es da mulher. L�
encontrei o chefe de pol�cia; fui-lhe apresentado; ele lembrou-se logo da carta e
da meia dobra que eu lhe remetera alguns dias antes. Aventou o caso; Virg�lia
pareceu saborear o meu procedimento, e cada um dos presentes acertou de contar
uma anedota an�loga, que eu ouvi com impaci�ncias de mulher hist�rica.
De noite, no dia seguinte, em toda aquela semana pensei o menos que
pude nos cinco contos, e at� confesso que os deixei muito quietinhos na gaveta
da secret�ria. Gostava de falar de todas as coisas, menos de dinheiro, e
principalmente de dinheiro achado; todavia n�o era crime achar dinheiro, era
uma felicidade, um bom acaso, era talvez um lance da Provid�ncia. N�o podia ser
outra coisa. N�o se perdem cinco contos, como se perde um len�o de tabaco.
Cinco contos levam-se com trinta mil sentidos, apalpam-se a mi�do, n�o se lhes
tiram os olhos de cima, nem as m�os, nem o pensamento, e para se perderem
assim tolamente, numa praia, � necess�rio que... Crime � que n�o podia ser o
achado; nem crime, nem desonra, nem nada que embaciasse o car�ter de um
homem. Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as apostas
de cavalo, como os ganhos de um jogo honesto e at� direi que a minha felicidade
era merecida, porque eu n�o me sentia mau, nem indigno dos benef�cios da
Provid�ncia.
- Estes cinco contos, dizia eu comigo, tr�s semanas depois, hei de empreg�los
em alguma a��o boa, talvez um dote a alguma menina pobre, ou outra coisa
assim... hei de ver...
Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brasil. L� me receberam com
muitas e delicadas alus�es ao caso da meia dobra, cuja not�cia andava j� espalhada
entre as pessoas do meu conhecimento; respondi enfadado que a coisa n�o valia
a pena de tamanho estrondo; louvaram-me ent�o a mod�stia -e porque eu me
encolerizasse, replicaram-me que era simplesmente grande.
Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas
130
0 empr�stimo
Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genu�no sentido do
voc�bulo, que o vulgo ampliou �s historietas de pura inven��o. Esta � verdadeira;
podia citar algumas pessoas que a sabem t�o bem como eu. Nem ela andou
rec�ndita, sen�o por falta de um esp�rito repousado, que lhe achasse a filosofia.
Como deveis saber, h� em todas as coisas um sentido filos�fico. Carlyle descobriu o
dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestu�rio; e ningu�m ignora que os n�meros,
muito antes da loteria do Ipiranga, formavam o sistema de Pit�goras. Pela minha
parte creio ter decifrado este caso de empr�stimo; ides ver se me engano.
E, para come�ar, emendemos S�neca. Cada dia, ao parecer daquele
moralista, �, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro
da vida. N�o digo que n�o; mas por que n�o acrescentou ele, que muitas vezes
uma s� hora � a representa��o de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no
mundo com uma grande ambi��o, uma pasta de ministro, um banco, uma coroa
de visconde, um b�culo pastoral. Aos cinq�enta anos, vamos ach�-lo simples
apontador de alf�ndega, ou sacrist�o da ro�a. Tudo isso que se passou em trinta
anos, pode algum Balzac met�-lo em trezentas p�ginas; por que n�o h� de a vida,
que foi a mestra de Balzac, apert�-lo em trinta ou sessenta minutos?
Tinham batido quatro horas no cart�rio do tabeli�o Vaz Nunes, � rua do
Ros�rio. Os escreventes deram ainda as �ltimas penadas: depois limparam as
penas de ganso na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam
as gavetas, concertaram os pap�is, arrumaram os autos e os livros, lavaram as
m�os; alguns que mudavam de palet� � entrada, despiram o do trabalho e enfiaram
o da rua; todos sa�ram. Vaz Nunes ficou s�.
Este honesto tabeli�o era um dos homens mais perspicazes do s�culo.
Est� morto: podemos elogi�-lo � vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e
agudo. Ele adivinhava o car�ter das pessoas que o buscavam para escriturar os
seus acordos e resolu��es; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar
o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava
�culos, como todos os tabeli�es de teatro; mas, n�o sendo m�ope, olhava por cima
deles, quando queria ver, e atrav�s deles, se pretendia n�o ser visto. Fin�rio como
ele s�, diziam os escreventes. Em todo caso, circunspecto. Tinha cinq�enta anos,
era vi�vo, sem filhos, e, para falar como alguns outros serventu�rios, ro�a muito
caladinho os seus duzentos contos de r�is.
- Quem �? - perguntou ele de repente, olhando para a porta da rua.
Estava � porta, parado na soleira, um homem que ele n�o conheceu logo,
e mal p�de reconhecer da� a pouco. Vaz Nunes pediu-lhe o favor de entrar; ele
obedeceu, cumprimentou-o, estendeu-lhe a m�o, e sentou-se na cadeira ao p� da
mesa. N�o trazia o acanho natural a um pedinte; ao contr�rio, parecia que n�o
vinha ali sen�o para dar ao tabeli�o alguma coisa precios�ssima e rara. E, n�o
obstante, Vaz Nunes estremeceu e esperou.
- N�o se lembra de mim?
- N�o me lembro...
- Estivemos juntos uma noite, h� alguns meses, na Tijuca... N�o se lembra?
Em casa do Teodorico, aquela grande ceia de Natal; por sinal que lhe fiz uma
sa�de... Veja se se lembra do Cust�dio.
- Ah!
Cust�dio endireitou o busto, que at� ent�o inclinara um pouco. Era um
homem de quarenta anos. Vestia pobremente, mas escovado, apertado, correto.
Usava unhas longas, curadas com esmero, e tinha as m�os muito bem talhadas,
macias, ao contr�rio da pele do rosto, que era agreste. Not�cias m�nimas, e ali�s
necess�rias ao complemento de um certo ar duplo que distinguia este homem, um
ar de pedinte e general. Na rua, andando, sem almo�o e sem vint�m, parecia levar
ap�s si um ex�rcito. A causa n�o era outra mais do que o contraste entre a
natureza e a situa��o, entre a alma e a vida. Esse Cust�dio nascera com a voca��o
da riqueza, sem a voca��o do trabalho. Tinha o instinto das eleg�ncias, o amor
do sup�rfluo, da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos m�veis raros,
um voluptuoso, e, at� certo ponto, um artista, capaz de reger a vila Torloni ou a
galeria Hamilton. Mas n�o tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptid�o ou pachorra
de o ganhar; por outro lado, precisava viver. Il faut bien que je vive, dizia um
pretendente ao ministro Talleyrand. Je nen vois pas la necessite, redarguiu friamente
o ministro. Ningu�m dava essa resposta ao Cust�dio; davam-lhe dinheiro, um
dez, outro cinco, outro vinte mil r�is, e de tais esp�rtulas � que ele principalmente
tirava o albergue e a comida.
Digo que principalmente vivia delas, porque o Cust�dio n�o recusava
meter-se em alguns neg�cios, com a condi��o de os escolher, e escolhia sempre os
que n�o prestavam para nada. Tinha o faro das cat�strofes. Entre vinte empresas,
adivinhava logo a insensata, e metia ombros a ela, com resolu��o. O caiporismo,
que o perseguia, fazia com que as dezenove prosperassem, e a vig�sima lhe
estourasse nas m�os. N�o importa; aparelhava-se para outra.
132
Agora, por exemplo, leu um an�ncio de algu�m que pedia um s�cio, com
cinco contos de r�is, para entrar em certo neg�cio, que prometia dar, nos primeiros
seis meses, oitenta a cem contos de lucro. Cust�dio foi ter com o anunciante. Era
uma grande id�ia, uma f�brica de agulhas, ind�stria nova, de imenso futuro. E os
planos, os desenhos da f�brica, os relat�rios de Birmingham, os mapas de
importa��o, as respostas dos alfaiates, dos donos de armarinho etc, todos os
documentos de um longo inqu�rito passavam diante dos olhos de Cust�dio,
estrelados de algarismos, que ele n�o entendia, e que por isso mesmo lhe pareciam
dogm�ticos. Vinte e quatro horas; n�o pedia mais de vinte e quatro horas para
trazer os cinco contos. E saiu dali, cortejado, amimado pelo anunciante, que, ainda
� porta, o afogou numa torrente de saldos. Mas os cinco contos, menos d�ceis ou
menos vagabundos que os cinco mil r�is, sacudiam incredulamente a cabe�a, e
deixavam-se estar nas arcas, tolhidos de medo e de sono. Nada. Oito ou dez
amigos, a quem falou, disseram-lhe que nem dispunham agora da soma pedida,
nem acreditavam na f�brica. Tinha perdido as esperan�as, quando aconteceu
subir a rua do Ros�rio e ler no portal de um cart�rio o nome de Vaz Nunes.
Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do tabeli�o, as frases com
que ele lhe respondeu ao brinde, e disse consigo, que este era o salvador da
situa��o.
- Venho pedir-lhe uma escritura...
Vaz Nunes, armado para outro come�o, n�o respondeu; espiou por cima
dos �culos e esperou.
- Uma escritura de gratid�o, explicou o Cust�dio; venho pedir-lhe um
grande favor, um favor indispens�vel, e conto que o meu amigo...
- Se estiver nas minhas m�os...
- O neg�cio � excelente, note-se bem; um neg�cio magn�fico. Nem eu me
metia a incomodar os outros sem certeza do resultado. A coisa est� pronta; foram
j� encomendas para a Inglaterra; e � prov�vel que dentro de dois meses esteja
tudo montado, � uma ind�stria nova. Somos tr�s s�cios; a minha parte s�o cinco
contos. Venho pedir-lhe esta quantia, a seis meses - ou a tr�s, com juro m�dico...
- Cinco contos?
- Sim, senhor.
- Mas, Sr. Cust�dio, n�o posso, n�o disponho de t�o grande quantia. Os
neg�cios andam mal; e ainda que andassem muito bem, n�o poderia dispor de
tanto. Quem � que pode esperar cinco contos de um modesto tabeli�o de notas?
- Ora, se o senhor quisesse...
- Quero, decerto; digo-lhe que se se tratasse de uma quantia pequena,
acomodada aos meus recursos, n�o teria d�vida em adiant�-la. Mas cinco contos!
Creia que � imposs�vel.
A alma do Cust�dio caiu de bru�os. Subira pela escada de Jac� at� o c�u;
mas em vez de descer como os anjos no sonho b�blico, rolou abaixo e caiu de
bru�os. Era a �ltima esperan�a; e justamente por ter sido inesperada, � que ele
sup�s que fosse certa, pois, como todos os cora��es que se entregam ao regime
do eventual, o do Cust�dio era supersticioso. O pobre-diabo sentiu enterraremse-
lhe no corpo os milh�es de agulhas que a f�brica teria de produzir no primeiro
semestre. Calado, com os olhos no ch�o, esperou que o tabeli�o continuasse, que
se compadecesse, que lhe desse alguma aberta; mas o tabeli�o, que lia isso mesmo
na alma do Cust�dio, estava tamb�m calado, girando entre os dedos a boceta de
rap�, respirando grosso, com um certo chiado nasal e implicante. Cust�dio ensaiou
todas as atitudes; ora pedinte, ora general. O tabeli�o n�o se mexia. Cust�dio
ergueu-se.
- Bem, disse ele, com uma pontazinha de despeito, h� de perdoar o
inc�modo...
- N�o h� que perdoar; eu � que lhe pe�o desculpa de n�o poder servi-lo,
como desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, muito menos,
n�o teria d�vida; mas...
Estendeu a m�o ao Cust�dio, que com a esquerda pegara maquinalmente
no chap�u. O olhar empanado do Cust�dio exprimia a absor��o da alma dele,
apenas convalescida da queda, que lhe tirara as �ltimas energias. Nenhuma escada
misteriosa, nenhum c�u; tudo voara a um piparote do tabeli�o. Adeus, agulhas!
A realidade veio tom�-lo outra vez com as suas unhas de bronze. Tinha de voltar
ao prec�rio, ao advent�cio, �s velhas contas, com os grandes zeros arregalados e
os cifr�es retorcidos � laia de orelhas, que continuariam a fit�-lo e a ouvi-lo, a
ouvi-lo e a fit�-lo, alongando para ele os algarismos implac�veis de fome. Que
queda! E que abismo! Desenganado, olhou para o tabeli�o com um gesto de
despedida; mas, uma id�ia s�bita clareou-lhe a noite do c�rebro. Se a quantia fosse
menor, Vaz Nunes poderia servi-lo, e com prazer; por que n�o seria uma quantia
menor? J� agora abria m�o da empresa; mas n�o podia fazer o mesmo a uns
alugu�is atrasados, a dois ou tr�s credores etc, e uma soma razo�vel, quinhentos
mil r�is, por exemplo, uma vez que o tabeli�o tinha a boa vontade de emprestar-
lhos, vinham a ponto. A alma do Cust�dio empertigou-se; vivia do presente, nada
queria saber do passado, nem saudades, nem temores, nem remorsos. O presente
134
era tudo. O presente eram os quinhentos mil r�is, que ele ia ver surdir da algibeira
do tabeli�o, como um alvar� de liberdade.
- Pois bem, disse ele, veja o que me pode dar, e eu irei ter com outros
amigos... Quanto?
- N�o posso dizer nada a este respeito, porque realmente s� uma coisa
muito modesta.
- Quinhentos mil r�is?
- N�o; n�o posso.
- Nem quinhentos mil r�is?
- Nem isso, replicou firme o tabeli�o. De que se admira? N�o lhe nego que
tenho algumas propriedades; mas, meu amigo, n�o ando com elas no bolso; e
tenho certas obriga��es particulares... Diga-me, n�o est� empregado?
- N�o, senhor.
- Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil r�is; falarei ao ministro
da Justi�a, tenho rela��es com ele, e...
Cust�dio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um
movimento natural, ou uma divers�o astuciosa para n�o conversar do emprego,
� o que totalmente ignoro; nem parece que seja essencial ao caso. O essencial �
que ele teimou na s�plica. N�o podia dar quinhentos mil r�is? Aceitava duzentos;
bastavam-lhe duzentos, n�o para a empresa, pois adotava o conselho dos amigos:
ia recus�-la. Os duzentos mil r�is, visto que o tabeli�o estava disposto a ajud�lo,
eram para uma necessidade urgente - "tapar um buraco". E ent�o relatou tudo,
respondeu � franqueza com franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao
tratar da grande empresa, tivera em mente acudir tamb�m a um credor pertinaz,
um diabo, um judeu, que rigorosamente ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de
trocar de posi��o. Eram duzentos e poucos mil r�is; e dez, parece, mas aceitava
duzentos...
- Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, enfim, nem os duzentos
mil r�is posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, est�o acima das minhas
for�as nesta ocasi�o. Noutra pode ser, e n�o tenho d�vida, mas agora...
- N�o imagina os apuros em que estou!
- Nem cem, repito. Tenho tido muitas dificuldades nestes �ltimos tempos.
Sociedades, subscri��es, ma�onaria... Custa-lhe crer, n�o �? Naturalmente: um
propriet�rio. Mas, meu amigo, � muito bom ter casas: o senhor � que n�o conta
os estragos, os consertos, as penas-d'�gua, as d�cimas, o seguro, os calotes etc. S�o
os buracos do pote, por onde vai a maior parte da �gua...
- Tivesse eu um pote! - suspirou Cust�dio.
- N�o digo que n�o. O que digo � que n�o basta ter casas para n�o ter
cuidados, despesas, e at� credores... Creia o senhor que tamb�m eu tenho credores.
- Nem cem mil r�is!
- Nem cem mil r�is, pesa-me diz�-lo, mas � a verdade. Nem cem mil r�is.
Que horas s�o?
Levantou-se, e veio ao meio da sala. Cust�dio veio tamb�m, arrastado,
desesperado. N�o podia acabar de crer que o tabeli�o n�o tivesse ao menos cem
mil r�is. Quem � que n�o tem cem mil r�is consigo? Cogitou uma cena pat�tica,
mas o cart�rio abria para a rua; seria rid�culo. Olhou para fora. Na loja fronteira,
um sujeito apre�ava uma sobrecasaca, � porta, porque entardecia depressa, e o
interior era escuro. O caixeiro segurava a obra no ar; o fregu�s examinava o pano
com a vista e com os dedos, depois as costuras, o forro... Este incidente rasgou-
lhe um horizonte novo, embora modesto; era tempo de aposentar o palet� que
trazia. Mas nem cinq�enta mil r�is podia dar-lhe o tabeli�o. Cust�dio sorriu n�o
de desd�m, n�o de raiva, mas de amargura e d�vida; era imposs�vel que ele
n�o tivesse cinq�enta mil r�is. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! N�o; falso
tudo; tudo mentira.
Cust�dio tirou o len�o, alisou o chap�u devagarinho; depois guardou o
len�o, consertou a gravata, com um ar misto de esperan�a e despeito. Viera
cerceando as asas � ambi��o, pluma a pluma; restava ainda uma penugem curta
e fina, que lhe metia umas veleidades de voar. Mas o outro, nada. Vaz Nunes
cotejava o rel�gio da parede com o do bolso, chegava este ao ouvido, limpava o
mostrador, calado, transpirando por todos os poros impaci�ncia e fastio. Estavam
a pingar as cinco; deram, enfim, e o tabeli�o, que as esperava, desengatilhou a
despedida. Era tarde; morava longe. Dizendo isto, despiu o palet� de alpaca, e
vestiu o de casimira, mudou de um para outro a boceta de rap�, o len�o, a
carteira... Oh! A carteira! Cust�dio viu esse utens�lio problem�tico, apalpou-o
com os olhos, invejou a alpaca, invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o
couro, a mat�ria mesma do precioso recept�culo. L� vai ela; mergulhou de todo
no bolso do peito esquerdo; o tabeli�o abotoou-se. Nem vinte mil r�is! Era
imposs�vel que n�o levasse ali vinte mil r�is, pensava ele; n�o diria duzentos, mas
vinte, dez que fossem...
- Pronto! - disse-lhe Vaz Nunes, com o chap�u na cabe�a.
Era o fatal instante. Nenhuma palavra do tabeli�o, um convite ao menos,
para jantar; nada; findara tudo. Mas os momentos supremos pedem energias
supremas. Cust�dio sentiu toda a for�a deste lugar-comum, e, s�bito, como um
tiro, perguntou ao tabeli�o se n�o lhe podia dar ao menos dez mil r�is.
- Quer ver?
E o tabeli�o desabotoou o palet�, tirou a carteira, abriu-a, e mostrou-lhe
duas notas de cinco mil r�is.
- N�o tenho mais, disse ele; o que posso fazer � reparti-los com o senhor;
dou-lhe uma de cinco, e fico com a outra; serve-lhe?
Cust�dio aceitou os cinco mil r�is, n�o triste, ou de m� cara, mas risonho,
palpitante, como se viesse de conquistar a �sia Menor. Era o jantar certo. Estendeu
a m�o ao outro, agradeceu-lhe o obs�quio, despediu-se at� breve - um at� breve
cheio de afirma��es impl�citas. Depois saiu; o pedinte esvaiu-se � porta do cart�rio;
o general � que foi por ali abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os
ingleses do com�rcio que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes.
Nunca o c�u lhe pareceu t�o azul, nem a tarde t�o l�mpida; todos os homens
traziam na retina a alma da hospitalidade. Com a m�o esquerda no bolso das
cal�as, ele apertava amorosamente os cinco mil r�is, res�duo de uma grande
ambi��o, que ainda h� pouco sa�ra contra o sol, num �mpeto de �guia, e ora batia
modestamente as asas de frango rasteiro.
Pap�is avulsos
A esmola da felicidade
- Deus lhe acrescente, minha senhora devota! - exclamou o irm�o das
almas ao ver a nota cair em cima de dois n�queis de tost�o e alguns vint�ns
antigos. - Deus lhe d� todas as felicidades do c�u e da terra, e as almas do
purgat�rio pe�am a Maria Sant�ssima que recomende a senhora dona a seu
bendito filho!
Quando a sorte ri, toda a natureza ri tamb�m, e o cora��o ri como tudo
o mais. Tal foi a explica��o que, por outras palavras menos especulativas, deu o
irm�o das almas aos dois mil r�is. A suspeita de ser a nota falsa n�o chegou a
tomar p� no c�rebro deste: foi alucina��o r�pida. Compreendeu que as damas
eram felizes, e, tendo o uso de pensar alto, disse piscando o olho, enquanto elas
entravam no carro:
- Aquelas duas viram passarinho verde, com certeza.
Sem rodeios, sup�s que as duas senhoras vinham de alguma aventura
amorosa, e deduziu isto de tr�s fatos, que sou obrigado a enfileirar aqui para n�o
deixar este homem sob a suspeita de caluniador gratuito. O primeiro foi a alegria
delas, o segundo o valor da esmola, o terceiro o carro que as esperava a um canto,
como se elas quisessem esconder do cocheiro o ponto dos namorados. N�o
concluas tu que ele tivesse sido cocheiro algum dia, e andasse a conduzir mo�as
antes de servir �s almas. Tamb�m n�o creias que fosse outrora rico e ad�ltero,
aberto de m�os, quando vinha de dizer adeus �s suas amigas. Ni cet exc�s d'honneur,
ni cette indignit�. Era um pobre-diabo sem mais of�cio que a devo��o. Demais, n�o
teria tido tempo; contava apenas vinte e sete anos.
Cumprimentou as senhoras, quando o carro passou. Depois ficou a olhar
para a nota t�o fresca, t�o valiosa, nota que as almas nunca viram sair das m�os
dele. Foi subindo a rua de S. Jos�. J� n�o tinha �nimo de pedir; a nota fazia-se
ouro, e a id�ia de ser falsa voltou-lhe ao c�rebro, e agora mais freq�ente, at� que
se lhe pegou por alguns instantes. Se fosse falsa... "Para a missa das almas!", gemeu
� porta de uma quitanda e deram-lhe um vint�m - um vint�m sujo e triste, ao
p� da nota t�o novinha que parecia sair do prelo. Seguia-se um corredor de
sobrado. Entrou, subiu, pediu, deram-lhe dois vint�ns -o dobro da outra moeda
no valor e no azinhavre.
E a nota sempre limpa, uns dois mil r�is que pareciam vinte. N�o, n�o era
falsa. No corredor pegou dela, mirou-a bem; era verdadeira. De repente, ouviu
abrir a cancela em cima, e uns passos r�pidos. Ele, mais r�pido, amarrotou a nota
e meteu-a na algibeira das cal�as; ficaram s� os vint�ns azinhavrados e tristes, o
�bolo da vi�va. Saiu, foi � primeira oficina, � primeira loja, ao primeiro corredor,
pedindo longa e lastimosamente:
- Para a missa das almas!
Na igreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacrist�o, ouviu
uma voz d�bil como de almas remotas que lhe perguntavam se os dois mil r�is...
Os dois mil r�is, dizia outra voz menos d�bil, eram naturalmente dele, que, em
primeiro lugar, tamb�m tinha alma, e, em segundo lugar, n�o recebera nunca t�o
grande esmola. Quem quer dar tanto vai � igreja ou compra uma vela, n�o p�e
assim uma nota na bacia das esmolas pequenas.
Se minto, n�o � de inten��o. Em verdade, as palavras n�o sa�ram assim
articuladas e claras, nem as d�beis, nem as menos d�beis; todas faziam uma zoeira
aos ouvidos da consci�ncia. Traduzi-as em l�ngua falada, a fim de ser entendido
das pessoas que me l�em; n�o sei como se poderia transcrever para o papel um
rumor surdo e outro menos surdo, um atr�s de outro e todos confusos para o
fim, at� que o segundo ficou s�: "n�o tirou a nota a ningu�m... a dona � que a p�s
na bacia por sua m�o... tamb�m ele era alma"... � porta da sacristia que dava para
a rua, ao deixar cair o reposteiro azul escuro debruado de amarelo, n�o ouviu
mais nada. Viu um mendigo que lhe estendia o chap�u roto e sebento; meteu
vagarosamente a m�o no bolso do colete, tamb�m roto, e aventou uma moedinha
de cobre que deitou ao chap�u do mendigo, r�pido, �s escondidas, como quer o
Evangelho. Eram dois vint�ns; ficavam-lhe mil novecentos e sessenta r�is. E o
mendigo, como ele sa�sse depressa, mandou-lhe atr�s estas palavras de
agradecimento, parecidas com as suas:
- Deus lhe acrescente, meu senhor, e lhe d�...
Esa� e Jac�
142
Lobo Neves
Lobo Neves, a princ�pio, metia-me grandes sustos. Pura ilus�o! Como
adorasse a mulher, n�o se vexava de mo dizer muitas vezes; achava que Virg�lia
era a perfei��o mesma, um conjunto de qualidades s�lidas e finas, amor�vel,
elegante, austera, um modelo. E a confian�a n�o parava a�. De fresta que era,
chegou a porta escancarada. Um dia confessou-me que trazia uma triste carcoma
na exist�ncia; faltava-lhe a gl�ria p�blica. Animei-o; disse-lhe muitas coisas bonitas,
que ele ouviu com aquela un��o religiosa de um desejo que n�o quer acabar de
morrer; ent�o compreendi que a ambi��o dele andava cansada de bater as asas,
sem poder abrir o v�o. Dias depois disse-me todos os seus t�dios e desfalecimentos,
as amarguras engolidas, as raivas sopitadas; contou-me que a vida pol�tica era
um tecido de invejas, despeitos, intrigas, perf�dias, interesses, vaidades.
Evidentemente havia a� uma crise de melancolia; tratei de combat�-la.
- Sei o que lhe digo, replicou-me com tristeza. N�o pode imaginar o que
tenho passado. Entrei na pol�tica por gosto, por fam�lia, por ambi��o, e um pouco
por vaidade. J� v� que reuni em mim s� todos os motivos que levam o homem
� vida p�blica; faltou-me s� o interesse de outra natureza. Vira o teatro pelo lado
da plat�ia; e, palavra, que era bonito! Soberbo cen�rio, vida, movimento e gra�a
na representa��o. Escripturei-me; deram-me um papel que... Mas para que o estou
a fatigar com isto? Deixe-me ficar com as minhas amofina��es. Creia que tenho
passado horas e dias... N�o h� const�ncia de sentimentos, n�o h� gratid�o, n�o
h� nada... nada... nada...
Calou-se, profundamente abatido, com os olhos no ar, parecendo n�o
ouvir coisa nenhuma, a n�o ser o eco de seus pr�prios pensamentos. Ap�s alguns
instantes, ergueu-se e estendeu-me a m�o:
- O senhor h� de rir-se de mim, disse ele; mas desculpe aquele desabafo;
tinha um neg�cio, que me mordia o esp�rito. E ria, de um jeito sombrio e triste;
depois pediu-me que n�o referisse a ningu�m o que se passara entre n�s; ponderei-
lhe que a rigor n�o se passara nada. Entraram dois deputados e um chefe pol�tico
da par�quia. Lobo Neves recebeu-os com alegria, a princ�pio um tanto posti�a,
mas logo depois natural. No fim de meia hora, ningu�m diria que ele n�o era o
mais afortunado dos homens; conversava, chasqueava, e ria, e riam todos.
Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas
Tabuleta nova
Referido o que l� fica atr�s, Cust�dio confessou
tudo o que perdia no t�tulo e na despesa, o mal que
lhe trazia a conserva��o do nome da casa, a
impossibilidade de achar outro, um abismo, em suma.
N�o sabia que buscasse; faltava-lhe inven��o e paz
de esp�rito. Se pudesse, liquidava a confeitaria. E
afinal que tinha ele com pol�tica? Era um
simples fabricante e vendedor de doces,
estimado, afreguesado, respeitado, e
principalmente respeitador da ordem
p�blica...
- Mas o que � que h�? perguntou
Aires.
-A rep�blica est� proclamada.
- J� h� governo?
- Penso que j�; mas diga-me V. Ex.a:
ouviu algu�m acusar-me jamais de atacar
o governo? Ningu�m. Entretanto... Uma
fatalidade! Venha em meu socorro,
Excelent�ssimo. Ajude-me a sair deste embara�o. A tabuleta est� pronta, o nome
todo pintado. Confeitaria do Imp�rio, a tinta � viva e bonita. O pintor teima em
que lhe pague o trabalho, para ent�o fazer outro. Eu, se a obra n�o estivesse
acabada, mudava de t�tulo, por mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro
que gastei? V. Ex.a cr� que, se ficar Imp�rio, venham quebrar-me as vidra�as?
- Isso n�o sei.
- Realmente, n�o h� motivo; � o nome da casa, nome de trinta anos,
ningu�m a conhece de outro modo...
- Mas pode p�r Confeitaria da Rep�blica...
- Lembrou-me isso, em caminho, mas tamb�m me lembrou que, se daqui
a um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje,
e perco outra vez o dinheiro.
- Tem raz�o... Sente-se.
- Estou bem.
144
- Sente-se e fume um charuto.
Cust�dio recusou o charuto, n�o fumava. Aceitou a cadeira. Estava no
gabinete de trabalho, em que algumas curiosidades lhe chamariam a aten��o, se
n�o fosse o atordoamento do esp�rito. Continuou a implorar o socorro do
vizinho. S. Ex.a, com a grande intelig�ncia que Deus lhe dera, podia salv�-lo. Aires
prop�s-lhe um meio-termo, um t�tulo que iria com ambas as hip�teses -Confeitaria
do Governo.
- Tanto serve para um regime como para outro.
- N�o digo que n�o, e, a n�o ser a despesa perdida... H�, por�m, uma raz�o
contra. V. Ex.a sabe que nenhum governo deixa de ter oposi��o. As oposi��es,
quando descerem � rua, podem implicar comigo, imaginar que as desafio, e
quebrarem-me a tabuleta; entretanto, o que eu procuro � o respeito de todos.
Aires compreendeu bem que o terror ia com a avareza. Certo, o vizinho
n�o queria barulhos � porta, nem malqueren�as gratuitas, nem �dios de quem
quer que fosse; mas, n�o o afligia menos a despesa que teria de fazer de quando
em quando, se n�o achasse um t�tulo definitivo, popular e imparcial. Perdendo o
que tinha, j� perdia a celebridade, al�m de perder a pintura e pagar mais dinheiro.
Ningu�m lhe compraria uma tabuleta condenada. J� era muito ter o nome e o
t�tulo no Almanaque de Laemmert, onde podia l�-lo algum abelhudo e ir com
outros, puni-lo do que estava impresso desde o princ�pio do ano...
- Isso
n�o, interrompeu Aires; o senhor n�o h� de recolher a edi��o de
um
almanaque.
E depois de alguns instantes:
- Olhe, dou-lhe uma id�ia, que pode ser aproveitada, e, se n�o a achar boa,
tenho outra � m�o, e ser� a �ltima. Mas eu creio que qualquer delas serve. Deixe
a tabuleta pintada como est�, e � direita, na ponta, por baixo do t�tulo, mande
escrever estas palavras que explicam o t�tulo: "Fundada em 1860". N�o foi em 1860
que abriu a casa?
- Foi,
respondeu Cust�dio.
- Pois...
Cust�dio refletia. N�o se lhe podia ler sim nem n�o; at�nito, a boca
entreaberta, n�o olhava para o diplomata, nem para o ch�o, nem para as paredes
ou m�veis, mas para o ar. Como Aires insistisse, ele acordou e confessou que a
id�ia era boa. Realmente, mantinha o t�tulo e tirava-lhe o sedicioso, que crescia
com o fresco da pintura. Entretanto, a outra id�ia podia ser igual ou melhor, e
quisera comparar as duas.
- A outra id�ia n�o tem a vantagem de p�r a data � funda��o da casa, tem
s� a de definir o t�tulo, que fica sendo o mesmo, de uma maneira alheia ao regime.
Deixe-lhe estar a palavra imp�rio e acrescente-lhe embaixo, ao centro, estas duas,
que n�o precisam ser gra�das: das leis. Olhe, assim, concluiu Aires, sentando-se
� secret�ria, e escrevendo em uma tira de papel o que dizia.
Cust�dio leu, releu e achou que a id�ia era �til; sim, n�o lhe parecia m�.
S� lhe viu um defeito; sendo as letras de baixo menores, podiam n�o ser lidas t�o
depressa e claramente como as de cima, e estas � que se meteriam pelos olhos ao
que passasse. Da� o que algum pol�tico ou sequer inimigo pessoal n�o entendesse
logo, e... A primeira id�ia, bem considerada, tinha o mesmo mal, e ainda este outro:
pareceria que o confeiteiro, marcando a data da funda��o, fazia timbre em ser
antigo. Quem sabe se n�o era pior que nada?
- Tudo � pior que nada.
- Procuremos.
Aires achou outro t�tulo, o nome da rua, Confeitara do Catete, sem advertir
que havendo outra confeitaria na mesma rua, era atribuir exclusivamente � do
Cust�dio a designa��o local. Quando o vizinho lhe fez tal pondera��o, Aires
achou-a justa, e gostou de ver a delicadeza de sentimentos do homem; mas logo
depois descobriu que o que fez falar o Cust�dio foi a id�ia de que esse t�tulo ficava
comum �s duas casas. Muita gente n�o atinaria com o t�tulo escrito, e compraria
na primeira que lhe ficasse � m�o, de maneira que s� ele fazia as despesas da
pintura, e ainda por cima perdia a freguesia. Ao perceber isto, Aires n�o admirou
menos a sagacidade de um homem que, em meio de tantas tribula��es, contava
os maus frutos de um equ�voco. Disse-lhe ent�o que o melhor seria pagar a
despesa feita e n�o p�r nada, a n�o ser que preferisse o seu pr�prio nome:
Confeitaria do Cust�dio. Muita gente certamente lhe n�o conhecia a casa por
outra designa��o. Um nome, o pr�prio nome do dono, n�o tinha significa��o
pol�tica ou figura��o hist�rica, �dio nem amor, nada que chamasse a aten��o dos
dois regimes, e conseguintemente que pusesse em perigo os seus past�is de Santa
Clara, menos ainda a vida do propriet�rio e dos empregados. Por que � que n�o
adotava esse alvitre? Gastava alguma coisa com a troca de uma palavra por
outra, Cust�dio em vez de Imp�rio, mas as revolu��es trazem sempre despesas.
- Sim, vou pensar, Excelent�ssimo. Talvez convenha esperar um ou dois
dias, a ver em que param as modas, disse Cust�dio agradecendo.
Curvou-se, recuou e saiu. Aires foi � janela para v�-lo atravessar a rua.
Imaginou que ele levaria da casa do ministro aposentado um lustre particular
que faria esquecer por instantes a crise da tabuleta. Nem tudo s�o despesas na
vida, e a gl�ria das rela��es podia amaciar as agruras deste mundo. N�o acertou
desta vez. Cust�dio atravessou a rua, sem parar nem olhar para tr�s, e enfiou pela
confeitaria dentro com todo o seu desespero.
Esa� e Jac�
A Seren�ssima Rep�blica
(confer�ncia do c�nego Vargas)
Meus senhores,
Antes de comunicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre
para o nosso pa�s, deixai que vos agrade�a a prontid�o com que acudistes ao
meu chamado. Sei que um interesse superior vos trouxe aqui; mas n�o ignoro
tamb�m -e fora ingratid�o ignor�-lo - que um pouco de simpatia pessoal se
mistura � vossa leg�tima curiosidade cient�fica. Oxal� possa eu corresponder a
ambas.
Minha descoberta n�o � recente; data do fim do ano de 1876. N�o a
divulguei ent�o - e, a n�o ser o Globo, interessante di�rio desta capital, n�o a
divulgaria ainda agora - por uma raz�o que achar� f�cil entrada no vosso
esp�rito. Esta obra de que venho falar-vos carece de retoques �ltimos, de
verifica��es e experi�ncias complementares. Mas o Globo noticiou que um s�bio
ingl�s descobriu a linguagem f�nica dos insetos, e cita o estudo feito com as
moscas. Escrevi logo para a Europa e aguardo as respostas com ansiedade. Sendo
certo, por�m, que pela navega��o a�rea, invento do padre Bartolomeu, � glorificado
o nome estrangeiro, enquanto o do nosso patr�cio mal se pode dizer lembrado
dos seus naturais, determinei evitar a sorte do insigne Voador, vindo a esta
tribuna, proclamar alto e bom som, � face do universo, que muito antes daquele
s�bio, e fora das ilhas brit�nicas, um modesto naturalista descobriu coisa id�ntica,
e fez com ela obra superior.
Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado a Arist�teles, se
lhe perguntasse: Credes que se possa dar um regime social �s aranhas? Arist�teles
responderia negativamente, como v�s todos, porque � imposs�vel crer que jamais
se chegasse a organizar socialmente esse articulado arisco, solit�rio, apenas
disposto ao trabalho, e dificilmente ao amor. Pois bem, esse imposs�vel fi-lo eu.
Ou�o um riso, no meio do sussurro de curiosidade. Senhores, cumpre
vencer os preconceitos. A aranha parece-vos inferior, justamente porque n�o a
conheceis. Amais o c�o, prezais o gato e a galinha, e n�o advertis que a aranha
n�o pula nem ladra como o c�o, n�o mia como o gato, n�o cacareja como a
galinha, n�o zune nem morde como o mosquito, n�o nos leva o sangue e o sono
como a pulga. Todos esses bichos s�o o modelo acabado da vadia��o e do
parasitismo. A mesma formiga, t�o gabada por certas qualidades boas, d� no
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nosso a��car e nas nossas planta��es, e funda a sua propriedade roubando a
alheia. A aranha, senhores, n�o nos aflige nem defrauda; apanha as moscas,
nossas inimigas, fia, tece, trabalha e morre. Que melhor exemplo de paci�ncia, de
ordem, de previs�o, de respeito e de humanidade? Quanto aos seus talentos, n�o
h� duas opini�es. Desde Pl�nio at� Darwin, os naturalistas do mundo inteiro
formam um s� coro de admira��o em torno desse bichinho, cuja maravilhosa
teia a vassoura inconsciente do vosso criado destr�i em menos de um minuto.
Eu repetiria agora esses ju�zos, se me sobrasse tempo; a mat�ria, por�m, excede
o prazo, sou constrangido a abrevi�-la. Tenho-os aqui, n�o todos, mas quase
todos; tenho, entre eles, esta excelente monografia de B�chner, que com tanta
sutileza estudou a vida ps�quica dos animais. Citando Darwin e B�chner, � claro
que me restrinjo � homenagem cabida a dois s�bios de primeira ordem, sem de
nenhum modo absolver (e as minhas vestes o proclamam) as teorias gratuitas
e err�neas do materialismo.
Sim, senhores, descobri uma esp�cie araneida que disp�e do uso da fala;
coligi alguns, depois muitos dos novos articulados, e organizei-os socialmente.
O primeiro exemplar dessa aranha maravilhosa apareceu-me no dia 15 de
dezembro de 1876. Era t�o vasta, t�o colorida, dorso rubro, com listras azuis,
transversais, t�o r�pida nos movimentos, e �s vezes t�o alegre, que de todo me
cativou a aten��o. No dia seguinte vieram mais tr�s, e as quatro tomaram posse
de um recanto de minha ch�cara. Estudei-as longamente; achei-as admir�veis.
Nada, por�m, se pode comparar ao pasmo que me causou a descoberta do
idioma araneida, uma l�ngua, senhores, nada menos que uma l�ngua rica e variada,
com a sua estrutura sint�xica, os seus verbos, conjuga��es, declina��es, casos
latinos e formas onomatopaicas, uma l�ngua que estou gramaticando para uso
das academias, como o fiz sumariamente para meu pr�prio uso. E fi-lo, notai
bem, vencendo dificuldades asp�rrimas com uma paci�ncia extraordin�ria. Vinte
vezes desanimei; mas o amor da ci�ncia dava-me for�as para arremeter a um
trabalho que, hoje declaro, n�o chegaria a ser feito duas vezes na vida do mesmo
homem.
Guardo para outro recinto a descri��o t�cnica do meu ar�cnide, e a
an�lise da l�ngua. O objeto desta confer�ncia �, como disse, ressalvar os direitos
da ci�ncia brasileira, por meio de um protesto em tempo; e, isto feito, dizer-vos
a parte em que reputo a minha obra superior � do s�bio de Inglaterra. Devo
demonstr�-lo, e para este ponto chamo a vossa aten��o.
Dentro de um m�s tinha comigo vinte aranhas; no m�s seguinte cinq�enta
e cinco; em mar�o de 1877 contava quatrocentas e noventa. Duas for�as serviram
principalmente � empresa de as congregar: o emprego da l�ngua delas, desde que
pude discerni-la um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi. A minha
estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma fizeram-lhes crer que era eu
o deus das aranhas, e desde ent�o adoraram-me. E vede o benef�cio desta ilus�o.
Como as acompanhasse com muita aten��o e miudeza, lan�ando em um livro as
observa��es que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus pecados, e
fortaleceram-se ainda mais na pr�tica das virtudes. A flauta tamb�m foi um
grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, elas s�o doidas por m�sica.
N�o bastava associ�-las; era preciso dar-lhes um governo id�neo. Hesitei
na escolha; muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos
tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava
exposta a compara��es que poderiam amesquinh�-la. Era-me preciso, ou achar
uma forma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei
o segundo alvitre, e nada me pareceu mais acertado do que uma rep�blica, �
maneira de Veneza, o mesmo molde, e at� o mesmo ep�teto. Obsoleto, sem nenhuma
analogia, em suas fei��es gerais, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe
ainda a vantagem de um mecanismo complicado - o que era meter � prova as
aptid�es pol�ticas da jovem sociedade.
Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os diferentes modos
eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, inicia��o dos filhos da
nobreza no servi�o do Estado. Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos
no saco, e extra�a-se anualmente um certo n�mero, ficando os eleitos desde logo
aptos para as carreiras p�blicas. Este sistema far� rir aos doutores do sufr�gio;
a mim n�o. Ele exclui os desvarios da paix�o, os desazos da in�pcia, o congresso
da corrup��o e da cobi�a. Mas n�o foi s� por isso que o aceitei; tratando-se de
um povo t�o ex�mio na fia��o de suas teias, o uso do saco eleitoral era de f�cil
adapta��o, quase uma planta ind�gena.
A proposta foi aceita. Seren�ssima Rep�blica pareceu-lhes um t�tulo
magn�fico, ro�agante, expansivo, pr�prio a engrandecer a obra popular.
N�o direi, senhores, que a obra chegou � perfei��o, nem que l� chegue t�o
cedo. Os meus pupilos n�o s�o os sol�rios de Campanella ou os utopistas de
Morus; formam um povo recente, que n�o pode trepar de um salto ao cume das
na��es seculares. Nem o tempo � oper�rio que ceda a outro a lima ou o alvi�o;
ele far� mais e melhor do que as teorias do papel, v�lidas no papel e mancas na
pr�tica. O que posso afirmar-vos � que, n�o obstante as incertezas da idade, eles
150
caminham, dispondo de algumas virtudes, que presumo essenciais � dura��o de
um Estado. Uma delas, como j� disse, � a perseveran�a, uma longa paci�ncia de
Pen�lope, segundo vou mostrar-vos.
Com efeito, desde que compreenderam que no ato eleitoral estava a base
da vida p�blica, trataram de o exercer com a maior aten��o. O fabrico do saco
foi uma obra nacional. Era um saco de cinco polegadas de altura e tr�s de
largura, tecido com os melhores fios, obra s�lida e espessa. Para comp�-lo foram
aclamadas dez damas principais, que receberam o t�tulo de m�es da rep�blica,
al�m de outros privil�gios e foros. Uma obra-prima, podeis cr�-lo. O processo
eleitoral � simples. As bolas recebem os nomes dos candidatos, que provarem
certas condi��es, e s�o escritas por um oficial p�blico, denominado "das inscri��es".
No dia da elei��o, as bolas s�o metidas no saco e tiradas pelo oficial das extra��es,
at� perfazer o n�mero dos elegendos. Isto que era um simples processo inicial na
antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos os cargos.
A elei��o fez-se a princ�pio com muita regularidade; mas, logo depois, um
dos legisladores declarou que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas
bolas com o nome do mesmo candidato. A assembl�ia verificou a exatid�o da
den�ncia, e decretou que o saco, at� ali de tr�s polegadas de largura, tivesse agora
duas; limitando-se a capacidade do saco, restringia-se o espa�o � fraude, era o
mesmo que suprimi-la. Aconteceu, por�m, que, na elei��o seguinte, um candidato
deixou de ser inscrito na competente bola, n�o se sabe se por descuido ou
inten��o do oficial p�blico. Este declarou que n�o se lembrava de ter visto o
ilustre candidato, mas acrescentou nobremente que n�o era imposs�vel que ele
lhe tivesse dado o nome; neste caso n�o houve exclus�o, mas distra��o. A
assembl�ia, diante de um fen�meno psicol�gico inelut�vel, como � a distra��o,
n�o p�de castigar o oficial; mas, considerando que a estreiteza do saco podia dar
lugar a exclus�es odiosas, revogou a lei anterior e restaurou as tr�s polegadas.
Nesse �nterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e tr�s cidad�os
apresentaram-se candidatos ao posto, mas s� dois importantes, Hazeroth e
Magog, os pr�prios chefes do partido retil�neo e do partido curvil�neo. Devo
explicar-vos estas denomina��es. Como eles s�o principalmente ge�metras, � a
geometria que os divide em pol�tica. Uns entendem que a aranha deve fazer as
teias com fios retos, � o partido retil�neo; outros pensam, ao contr�rio, que as
teias devem ser trabalhadas com fios curvos - � o partido curvil�neo. H� ainda
um terceiro partido, misto e central, com este postulado: as teias devem ser
urdidas de fios retos e fios curvos; � o partido reto-curvil�neo; e finalmente, uma
quarta divis�o pol�tica, o partido anti-reto-curvil�neo, que fez t�bua rasa de
todos os princ�pios litigantes, e prop�e o uso de umas teias urdidas de ar, obra
transparente e leve, em que n�o h� linhas de esp�cie alguma. Como a geometria
apenas poderia dividi-los, sem chegar a apaixon�-los, adotaram uma simb�lica.
Para uns, a linha reta exprime os bons sentimentos, a justi�a, a probidade, a
inteireza, a const�ncia etc, ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como
a bajula��o, a fraude, a deslealdade, a perf�dia, s�o perfeitamente curvos. Os
advers�rios respondem que n�o, que a linha curva � a da virtude e do saber,
porque � a express�o da mod�stia e da humildade; ao contr�rio, a ignor�ncia, a
presun��o, a toleima, a parlapatice s�o retas, duramente retas. O terceiro partido,
menos anguloso, menos exclusivista, desbastou a exagera��o de uns e outros,
combinou os contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a exata
c�pia do mundo f�sico e moral. O quarto limita-se a negar tudo.
Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas sa�ram do saco,
� verdade, mas foram inutilizadas, a do primeiro por faltar a primeira letra do
nome, a do segundo por lhe faltar a �ltima. O nome restante e triunfante era o
de um argent�rio ambicioso, pol�tico obscuro, que subiu logo � poltrona ducal,
com espanto geral da rep�blica. Mas os vencidos n�o se contentaram de dormir
sobre os louros do vencedor; requereram uma devassa. A devassa mostrou que
o oficial das inscri��es intencionalmente viciara a ortografia de seus nomes. O
oficial confessou o defeito e a inten��o; mas explicou-os dizendo que se tratava
de uma simples elipse; delito, se o era, puramente liter�rio. N�o sendo poss�vel
perseguir ningu�m por defeitos de ortografia ou figuras de ret�rica, pareceu
acertado rever a lei. Nesse mesmo dia ficou decretado que o saco seria feito de
um tecido de malhas, atrav�s das quais as bolas pudessem ser lidas pelo p�blico,
e, ipso facto, pelos mesmos candidatos, que assim teriam tempo de corrigir as
inscri��es.
Infelizmente, senhores, o coment�rio da lei � a eterna mal�cia. A mesma
porta aberta � lealdade serviu � ast�cia de um certo Nabiga, que se conchavou
com o oficial das extra��es, para haver um lugar na assembl�ia. A vaga era uma,
os candidatos tr�s; o oficial extraiu as bolas com os olhos no c�mplice, que s�
deixou de abanar negativamente a cabe�a, quando a bola pegada foi a sua. N�o
era preciso mais para condenar a id�ia das malhas. A assembl�ia, com exemplar
paci�ncia, restaurou o tecido espesso do regime anterior; mas, para evitar outras
elipses, decretou a valida��o das bolas cuja isen��o estivesse incorreta, uma vez
que cinco pessoas jurassem ser o nome inscrito o pr�prio nome do candidato.
Este novo estatuto deu lugar a um caso novo e imprevisto, como ides ver.
Tratou-se de eleger um coletor de esp�rtulas, funcion�rio encarregado de cobrar
as rendas p�blicas, sob a forma de esp�rtulas volunt�rias. Eram candidatos,
entre outros, um certo Caneca e um certo Nebraska. A bola extra�da foi a de
Nebraska. Estava errada, � certo, por lhe faltar a �ltima letra; mas, cinco
testemunhas juraram, nos termos da lei, que o eleito era o pr�prio e �nico
Nebraska da rep�blica. Tudo parecia findo, quando o candidato Caneca requereu
provar que a bola extra�da n�o trazia o nome de Nebraska, mas o dele. O juiz
de paz deferiu ao peticion�rio. Veio ent�o um grande fil�logo - talvez o primeiro
da rep�blica, al�m de bom metaf�sico, e n�o vulgar matem�tico -, o qual provou
a coisa nestes termos:
- Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar que n�o � fortuita a aus�ncia
da �ltima letra do nome Nebraska. Por que motivo foi ele inscrito
incompletamente? N�o se pode dizer que por fadiga ou amor da brevidade, pois
s� falta a �ltima letra, um simples a. Car�ncia de espa�o? Tamb�m n�o; vede; h�
ainda espa�o para duas ou tr�s s�labas. Logo, a falta � intencional, e a inten��o
n�o pode ser outra sen�o chamar a aten��o do leitor para a letra k, �ltima
escrita, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um efeito mental, que
nenhuma lei destruiu, a letra reproduz-se no c�rebro de dois modos, a forma
gr�fica, e a forma s�nica: k e ca. O defeito, pois, no nome escrito, chamando os
olhos para a letra final, incrusta desde logo no c�rebro esta primeira s�laba: Ca.
Isto posto, o movimento natural do esp�rito � ler o nome todo; volta-se ao
princ�pio, � inicial ne, do nome Nebrask. -Can�. - Resta a s�laba do meio, bras,
cuja redu��o a esta outra s�laba ca, �ltima do nome Caneca, � a coisa mais
demonstr�vel do mundo. E, todavia, n�o a demonstrarei, visto faltar-vos o preparo
necess�rio ao entendimento da significa��o espiritual ou filos�fica da s�laba, suas
origens e efeitos, fases, modifica��es, conseq��ncias l�gicas e sint�xicas, dedutivas
ou indutivas, simb�licas e outras. Mas, suposta a demonstra��o, a� fica a �ltima
prova, evidente, clara, da minha afirma��o primeira pela anexa��o da s�laba ca
�s duas Cane, dando este nome Caneca.
A lei emendou-se, senhores, ficando abolida a faculdade da prova
testemunhal e interpretativa dos textos, e introduzindo-se uma invoca��o, o
corte simult�neo de meia polegada na altura e outra meia na largura do saco.
Esta emenda n�o evitou um pequeno abuso na elei��o dos alcaides, e o saco foi
restitu�do �s dimens�es primitivas, dando-se-lhe, todavia, a forma triangular.
Compreendeis que esta forma trazia consigo uma conseq��ncia: ficavam muitas
bolas no fundo. Da� a mudan�a para a forma cil�ndrica; mais tarde deu-se-lhe o
aspecto de uma ampulheta, cujo inconveniente se reconheceu ser igual ao tri�ngulo,
e ent�o adotou-se a forma de um crescente etc. Muitos abusos, descuidos e
lacunas tendem a desaparecer, e o restante ter� igual destino, n�o inteiramente,
decerto, pois a perfei��o n�o � deste mundo, mas na medida e nos termos do
conselho de um dos mais circunspectos cidad�os da minha rep�blica, Erasmus,
cujo �ltimo discurso sinto n�o poder dar-vos integralmente. Encarregado de
notificar a �ltima resolu��o legislativa �s dez damas, incumbidas de urdir o saco
eleitoral, Erasmus contou-lhes a f�bula de Pen�lope, que fazia e desfazia a famosa
teia, � espera do esposo Ulisses.
- V�s sois a Pen�lope da nossa rep�blica, disse ele ao terminar; tendes
a mesma castidade, paci�ncia e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, at� que
Ulisses, cansado de dar �s pernas, venha tomar entre n�s o lugar que lhe cabe.
Ulisses � a Sapi�ncia.
Pap�is avulsos
154
0 dicion�rio
Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em
cosmografia professava a opini�o de que este mundo � um imenso tonel de
marmelada, e em pol�tica pedia o trono para a multid�o. Com o fim de a p�r ali,
pegou de um pau, concitou os �nimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no
pa�o, vencedor e aclamado, viu que o trono s� dava para uma pessoa, e cortou
a dificuldade sentando-se em cima.
- Em mim, bradou ele, podeis ver a multid�o coroada. Eu sou v�s, v�s
sois eu.
O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria, indenizando os tanoeiros,
prestes a derrub�-lo, com o t�tulo de Magn�ficos. O segundo foi declarar que, para
maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de Bernardino,
Bernard�o. Particularmente encomendou uma genealogia a um grande doutor
dessas mat�rias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual
general romano do s�culo IV, Bernardus Tanoarius - nome que deu lugar �
controv�rsia, que ainda dura, querendo uns que o rei Bernard�o tivesse sido
tanoeiro, e outros que isto n�o passe de uma confus�o deplor�vel com o nome
do fundador da fam�lia. J� vimos que esta segunda opini�o � a �nica verdadeira.
Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernard�o que todos os seus
s�ditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse
ato em uma raz�o de ordem pol�tica, a saber, que a unidade moral do Estado
pedia a conformidade exterior das cabe�as. Outro ato em que revelou igual
sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do p� esquerdo tivessem um
pequeno talho no lugar correspondente ao dedo m�nimo, dando assim aos seus
s�ditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O uso dos
�culos em todo o reino n�o se explica de outro modo, sen�o por uma oftalmia que
afligiu a Bernard�o, logo no segundo ano do reinado. A doen�a levou-lhe um olho,
e foi aqui que se revelou a voca��o po�tica de Bernard�o, porque, tendo-lhe dito um
dos seus dois ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual a An�bal
- compara��o que o lisonjeou muito -, o segundo ministro, �mega, deu um passo
adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos. Esta cortesia foi
uma revela��o; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento.
Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius. N�o
faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a mo�a
Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a m�sica e a poesia, era
requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel � dinastia deca�da. Bernard�o
ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a fam�lia bradava-
lhe que uma coroa na cabe�a valia mais que uma saudade no cora��o; que n�o
fizesse a desgra�a dos seus, quando o ilustre Bernard�o lhes acenava com o
principado; que os tronos n�o andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo.
Estrelada, por�m, resistia � sedu��o.
N�o resistiu muito tempo, mas tamb�m n�o cedeu tudo. Como entre os
seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava pronta a
casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bernard�o
aceitou a cl�usula, louco de amor e confiado em si: tinha mais um olho que
Homero, e fizera a unidade dos p�s e das cabe�as.
Concorreram ao certame, que foi an�nimo e secreto, vinte pessoas. Um
dos madrigais foi julgado superior aos outros todos: era justamente o do poeta
amado. Bernard�o anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro;
mas ent�o, por uma inspira��o de insigne maquiavelismo, ordenou que n�o se
empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum
dos concorrentes estudara os cl�ssicos: era o meio prov�vel de os vencer.
N�o venceu ainda assim, porque o poeta amado leu � pressa o que p�de,
e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernard�o anulou esse segundo concurso;
e, vendo que no madrigal vencedor as locu��es antigas davam singular
gra�a aos versos, decretou que s� se empregassem as modernas e particularmente
as da moda. Terceiro concurso, e terceira vit�ria do poeta amado.
Bernard�o, furioso, abriu-se com os dois ministros, pedindo-lhes um
rem�dio pronto e en�rgico, porque, se n�o ganhasse a m�o de Estrelada, mandaria
cortar trezentas mil cabe�as. Os dois, tendo consultado algum tempo, voltaram
com este alvitre:
- N�s, Alfa e �mega, estamos designados pelos nossos nomes para as
coisas que respeitam � linguagem. A nossa id�ia � que Vossa Sublimidade mande
recolher todos os dicion�rios e nos encarregue de compor um vocabul�rio novo
que lhe dar� a vit�ria.
Bernard�o assim fez, e os dois meteram-se em casa durante tr�s meses,
findos os quais depositaram nas augustas m�os a obra acabada, um livro a que
chamaram Dicion�rio de Babel, porque era realmente a confus�o das letras.
Nenhuma locu��o se parecia com a do idioma falado; as consoantes trepavam
nas consoantes, as vogais dilu�am-se nas vogais, palavras de duas s�labas tinham
156
agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma gra�a, uma
l�ngua de cacos e trapos.
- Obrigue Vossa Sublimidade esta l�ngua por um decreto, e est� tudo
feito.
Bernard�o concedeu um abra�o e uma pens�o a ambos, decretou o
vocabul�rio, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a m�o da
bela Estrelada. A confus�o passou do dicion�rio aos esp�ritos; toda a gente
andava at�nita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua pelas novas locu��es:
diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como passou? -Pflerrgpxx, rouph, aa? A
pr�pria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, prop�s-
lhe que fugissem; ele, por�m, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma
coisa. Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigais.
O melhor deles, apesar da l�ngua b�rbara, foi o do poeta amado. Bernard�o,
alucinado, mandou cortar as m�os aos dois ministros, e foi a �nica vingan�a.
Estrelada era t�o admiravelmente bela, que ele n�o se atreveu a mago�-la, e cedeu.
Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando ou
meditando. Parece que a �ltima coisa que leu foi uma s�tira do poeta Gar��o, e
especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda:
O raro Apeles,
Rubens e Rafael, inimit�veis
N�o se fizeram pela cor das tintas;
A mistura elegante os fez eternos.
P�ginas recolhidas
160
Textos de Machado de Assis
Machado na ABL
Discurso inaugural
Senhores:
Investindo-me no cargo de presidente, quisestes come�ar a Academia
Brasileira de Letras pela consagra��o da idade. Se n�o sou o mais velho dos
nossos colegas, estou entre os mais velhos. � simb�lico da parte de uma institui��o
que conta viver, confiar da idade fun��es que mais de um esp�rito eminente
exerceria melhor. Agora que vos agrade�o a escolha, digo-vos que buscarei na
medida do poss�vel corresponder � vossa confian�a.
N�o � preciso definir esta institui��o. Iniciada por um mo�o, aceita e
completada por mo�os, a Academia nasce com a alma nova e naturalmente
ambiciosa. O vosso desejo � conservar, no meio da federa��o pol�tica, a unidade
liter�ria. Tal obra exige n�o s� a compreens�o p�blica, mas ainda e principalmente
a vossa const�ncia. A Academia Francesa, pela qual esta se modelou, sobrevive
aos acontecimentos de toda a casta, �s escolas liter�rias e �s transforma��es
civis. A vossa h� de querer ter as mesmas fei��es de estabilidade e progresso. J�
o batismo das suas cadeiras com os nomes preclaros e saudosos da fic��o, da
l�rica, da cr�tica e da eloq��ncia nacionais � ind�cio de que a tradi��o � o seu
primeiro voto. Cabe-vos fazer com que ele perdure. Passai aos vossos sucessores
o pensamento e a vontade iniciais, para que eles os transmitam tamb�m aos seus,
e a vossa obra seja contada entre as s�lidas e brilhantes p�ginas da nossa vida
brasileira. Est� aberta a sess�o.
1897.
Sess�o de encerramento
Um artigo do nosso regimento interno imp�e-nos a obriga��o de adotar
no fim de cada ano o programa dos trabalhos do ano vindouro. Outro artigo
atribui ao presidente a exposi��o justificativa deste programa.
Como a nossa ambi��o, nestes meses de in�cio, � moderada e simples,
conv�m que as promessas n�o sejam largas. Tudo ir� devagar e com tempo. N�o
faltaram simpatias �s nossas estr�ias. A l�ngua francesa, que vai a toda a parte,
j� deu as boas vindas a esta institui��o. Primeiro sorriu; era natural, a dois
passos da Academia Francesa; depois louvou, e, a dois passos da Academia
Francesa, um louvor vale por dois. Em poucos meses de vida � muito. Dentro do
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pa�s achamos boa vontade e anima��o, a imprensa tem-nos agasalhado com
palavras amigas. Apesar de tudo, a vida desta primeira hora foi modesta, quase
obscura. Nascida entre graves cuidados de ordem p�blica, a Academia Brasileira
de Letras tem de ser o que s�o as associa��es an�logas: uma torre de marfim,
onde se acolham esp�ritos liter�rios, com a �nica preocupa��o liter�ria, e de
onde, estendendo os olhos para todos os lados, vejam claro e quieto. Homens
daqui podem escrever p�ginas de hist�ria, mas a hist�ria faz-se l� fora. H�
justamente cem anos, o maior homem de a��o dos nossos tempos, agradecendo
a elei��o de membro do Instituto de Fran�a, respondia que, antes de ser igual aos
seus colegas, seria por muito tempo seu disc�pulo. N�o era ainda uma faceirice
de grande capit�o, posto que esse rapaz de vinte e oito anos meditasse j� sair �
conquista do mundo. A Academia Brasileira de Letras n�o pede tanto aos homens
p�blicos deste pa�s; n�o inculca ser igual nem mestre deles. Contenta-se em fazer
na medida de suas for�as individuais e coletivas, aquilo que esse mesmo acad�mico
de 1797 disse ent�o ser a ocupa��o mais honrosa e �til dos homens: trabalhar
pela extens�o das id�ias humanas.
No pr�ximo ano n�o temos mais que dar andamento ao anu�rio bibliogr�fico,
coligir os dados biogr�ficos e liter�rios, como subs�dio para um dicion�rio
bibliogr�fico nacional, e, se for poss�vel, alguns elementos do vocabul�rio cr�tico dos
brasileirismos entrados na l�ngua portuguesa e das diferen�as no modo de falar e
escrever dos dois povos, como nos obrigamos por um artigo do regimento interno.
S�o obras de f�lego cuja import�ncia n�o � preciso encarecer a vossos
olhos. Pedem diuturnidade paciente. A const�ncia, se alguma vez faltou a homens
nossos de outra esfera, � virtude que n�o pode morar longe desta casa liter�ria.
O �ltimo daqueles trabalhos pode ser feito ainda com maior pausa; ele
exige n�o s� pesquisa grande e compassada aten��o, mas muita cr�tica tamb�m.
As formas novas da l�ngua, ou pela composi��o de voc�bulos, filhos de usos e
de costumes americanos, ou pela modifica��o de sentido original, ou ainda por
altera��es gr�ficas, ser�o mat�rias de �til e porfiado estudo. Com os elementos
que existem esparsos e os que se organizarem, far-se-� qualquer coisa que no
pr�ximo s�culo se ir� emendando e completando. N�o temamos falar no pr�ximo
s�culo, � o mesmo que dizer daqui a tr�s anos, que ele n�o espera mais; e h� tal
sociedade de dan�a que n�o conta viver menos. N�o � vaidade da Academia
Brasileira de Letras lan�ar os olhos t�o longe.
A Academia, trabalhando pelo conhecimento desses fen�menos, buscar�
ser, com o tempo, a guarda da nossa l�ngua. Caber-lhe-� ent�o defend�-la daquilo
que n�o venha das fontes leg�timas - o povo e os escritores - n�o confundindo
a moda que perece, com o moderno, que vivifica. Guardar n�o � impor; nenhum
de v�s tem para si que a Academia decrete f�rmulas. E depois, para guardar uma
l�ngua, � preciso que ela se guarde tamb�m a si mesma, e o melhor dos processos
� ainda a composi��o e a conserva��o de obras cl�ssicas. A autoridade dos
mortos n�o aflige e � definitiva. Garrett p�s na boca de Cam�es aquela c�lebre
exorta��o em que transfere ao "Generoso Amazonas" o legado do casal paterno.
Sejamos um bra�o do Amazonas; guardemos em �guas tranq�ilas e sadias o que
ele acarreta na marcha do tempo.
N�o h� justificar o que de si mesmo se justifica; limito-me a esta breve
indica��o de programa. As investiga��es a que nos vamos propor, esse recolher
de leitura ou de outiva, n�o ser� um of�cio brilhante ou ruidoso, mas � �til, e a
utilidade � um t�tulo, ainda nas academias.
P�ginas recolhidas
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Carta a Joaquim Nabuco
Meu querido Nabuco,
Quero agradecer-lhe a impress�o que me deixaram estas suas p�ginas de
pensamento e recorda��es. V�o aparecer justamente quando V. cuida de tarefas
de ordem pol�tica. Um professor de Douai, referindo-se � influ�ncia relativa do
pensador e do homem p�blico, perguntava uma vez (assim o conta Dietrich) se
haveria grande progresso em colocar Aristides acima de Plat�o, e Pitt acima de
Locke. Conclu�a pela negativa. Voc� nos d� juntos o homem p�blico e o pensador.
Esta obra, n�o feita agora mas agora publicada, vem mostrar que, em meio dos
graves trabalhos que o Estado lhe confiou, n�o repudia as faculdades de artista
que primeiro exerceu e t�o brilhantemente lhe criaram rara a carreira liter�ria.
Erro � dizer, como V. diz em uma destas p�ginas, que "nada h� mais
cansativo que ler pensamentos". S� o t�dio cansa, meu amigo, e este mal n�o
entrou aqui, onde tamb�m n�o teve acolhida a vulgaridade. Ambos, ali�s, s�o
seus naturais inimigos. Tamb�m n�o � acertado crer que, "se alguns esp�ritos o
l�em, � s� por distra��o, e s�o raros". Quando fosse verdade, eu seria desses raros.
Desde cedo, li muito Pascal, para n�o citar mais que este, e afirmo-lhe que n�o
foi por distra��o. Ainda hoje, quando torno a tais leituras, e me consolo no
desconsolo do Eclesiastes, acho-lhes o mesmo sabor de outrora. Se alguma vez me
sucede discordar do que leio, sempre agrade�o a maneira por que acho expresso
o
desacordo.
Pensamentos valem e vivem pela observa��o exata ou nova, pela reflex�o
aguda ou profunda, n�o menos querem a originalidade, a simplicidade e a gra�a
do dizer. Tal � o caso deste seu livro. Todos vir�o a ele, atra�dos pela subst�ncia,
que � aguda e muita vez profunda, e encantados da forma, que � sempre bela. H�
nestas p�ginas a hist�ria alternada da influ�ncia religiosa e filos�fica, da
observa��o moral e est�tica, e da experi�ncia pessoal, j� agora longa. O seu interior
est� aqui aberto �s vistas por aquela forma lapidaria que a mem�ria ret�m melhor.
Id�ias de infinito e de absoluto, V. as inscreve de modo direto ou sugestivo, e a nota
espiritual � ainda a caracter�stica das suas p�ginas. Que em todas resplandece um
otimismo sereno e forte, n�o � preciso dizer-lho; melhor o sabe, porque o sente
deveras. Aqui o vejo confessado e claro, at� nos lugares de alguma tristeza ou des�nimo,
pois a tristeza � facilmente consolada, e o des�nimo acha depressa um surto.
[...]
Reli Massangana. Essa p�gina da inf�ncia, j� narrada em nossa l�ngua, e
agora transposta � francesa, que V. cultiva tamb�m com amor, d� imagem da vida
e do engenho do Norte, ainda para quem a conhece de outiva ou de leitura; deve
ser verdadeira.
N�o h� aqui s� o homem de pensamento ou apenas temperado por ele;
h� ainda o sentimento evocado e saudoso, a obedi�ncia viva que se compraz em
acudir ao impulso da vontade. Tudo a�, desde o sino do trabalho at� a paci�ncia
do trabalhador, a velha madrinha, senhora do engenho, e a jovem mucama, tudo
respira esse passado que n�o torna, nem com as do�uras ao cora��o do mo�o
antigo, nem com as amarguras ao c�rebro do atual pensador. Tudo l� vai com
os primeiros educadores eminentes do seu esp�rito, ficando V. neste trabalho de
hist�ria e de pol�tica, que ora faz em benef�cio de um nome grande e comum a
todos n�s; mas o pensamento vive e viver�.
Adeus, meu caro Nabuco, ainda uma vez agrade�o a impress�o que me
deu; e oxal� n�o esque�a este velho amigo em quem a admira��o refor�a a
afei��o, que � grande.
19 de agosto de 1906
Machado de Assis e Joaquim Nabuco -correspond�ncia
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A �ltima visita
Euclides da Cunha
Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda
do poeta, em Laranjeiras, n�o acreditaria que estivesse t�o pr�ximo o desenlace
de sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde dizia o quarto do querido
mestre, um grupo de senhoras - ontem meninas que ele carregara no colo, hoje
nobil�ssimas m�es de fam�lia - comentavam-lhe os lances encantadores da vida
e reliam-lhe antigos versos, ainda in�ditos, avaramente guardados em �lbuns
caprichosos. As vozes eram discretas, as m�goas apenas rebrilhavam nos olhos
marejados de l�grimas, e a placidez era completa no recinto, onde a saudade
glorificava uma exist�ncia, antes da morte.
No sal�o de visitas viam-se alguns disc�pulos dedicados, tamb�m
aparentemente tranq�ilos.
E compreendia-se desde logo a antilogia de cora��o t�o ao parecer
tranq�ilos na imin�ncia de uma cat�strofe. Era o cont�gio da pr�pria serenidade
incompar�vel e emocionante em que ia a pouco e pouco extinguindo-se o
extraordin�rio escritor. Realmente, na fase aguda de sua mol�stia, Machado de
Assis, se por acaso tra�a com um gemido e uma contra��o mais viva o sofrimento,
apressava-se em pedir desculpas aos que o assistiam, na �nsia e no apuro
gentil�ssimo de quem corrige um descuido ou involunt�rio deslize. Timbrava em
sua primeira e �ltima dissimula��o: a dissimula��o da pr�pria agonia, para n�o
nos magoar com o reflexo da sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de
sentir e de agir, que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez
embara�adora e recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranq�ila e
soberana.
E gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente
her�ico na morte...
Mas aquela placidez augusta despertava na sala principal, onde se reuniam
Coelho Neto, Gra�a Aranha, M�rio de Alencar, Jos� Ver�ssimo, Raimundo Correia
e Rodrigo Ot�vio, coment�rios divergentes. Resumia-os um amargo
desapontamento.
De um modo geral, n�o se compreendia que uma vida que tanto viveu
outras vidas, assimilando-as atrav�s de an�lises sutil�ssimas, para no-las
transfigurar e ampliar, aformoseadas em s�nteses radiosas - que uma vida de tal
porte desaparecesse no meio de tamanha indiferen�a, num c�rculo limitad�ssimo
de cora��es amigos. Um escritor da estatura de Machado de Assis s� devera
extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora como��o nacional.
Era pelo menos desanimador tanto descaso -a cidade inteira, sem a
vibra��o de um abalo, derivando imperturbavelmente na normalidade sua
exist�ncia complexa, quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem
quarenta anos de literatura gloriosa...
Neste momento, precisamente ao enunciar-se este ju�zo desalentado,
ouviram-se umas t�midas pancadas na porta principal da entrada.
Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 a 18 anos
no m�ximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecess�rio diz�-lo: ningu�m
ali o conhecia; n�o conhecia, por sua vez, ningu�m; n�o conhecia o pr�prio dono
da casa, a n�o ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isto ao ler
nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado grav�ssimo tivera o
pensamento de visit�-lo. Relutara contra essa id�ia, n�o tendo quem o
apresentasse: mas n�o lograra venc�-la. Que o desculpassem, portanto. Se n�o lhe
era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos not�cias certas do seu estado.
E o an�nimo juvenil - vindo da noite - foi conduzido ao quarto do
doente.
Chegou. N�o disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a m�o do mestre;
beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo
ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.
A porta Jos� Ver�ssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.
Mas deve ficar an�nimo. Qualquer que seja o destino dessa crian�a, ela
nunca mais subir� tanto na vida. Naquele momento o seu cora��o bateu sozinho
pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo - no meio segundo em
que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis - aquele menino foi
o
maior homem de sua Terra.
Ele saiu -e houve na sala h� pouco invadida de desalentos uma
transfigura��o.
No fast�gio de certos estados morais concretizam-se �s vezes as maiores
idealiza��es. Pelos nossos olhos passara a impress�o visual da Posteridade.
30 de setembro de 1908
Jornal
do Commercio
P�ginas de saudade
M�rio de Alencar
Comecei a escrever estas p�ginas algumas horas antes de morrer Machado
de Assis; retomei-as um m�s depois, e pelo tempo adiante, sem outro pensamento
que o de fazer falar a saudade. V�o como sa�ram, um pouco desconexas, conforme
� o car�ter delas, de p�ginas soltas. N�o cuidei de escrever sobre a obra do
escritor, sen�o de homem, contando as impress�es da nossa conviv�ncia de
alguns anos. Era inevit�vel por isso falar tamb�m de mim; mas estou que o fiz
o estritamente necess�rio e ningu�m achar� que pretendi p�r-me em realce �
conta da lembran�a do meu grande amigo.
28 de setembro de 1908
Venho da casa de Machado de Assis. L� estive todo o dia de s�bado,
ontem e hoje, e agora estou sem �nimo de continuar a ver-lhe o sofrimento;
tenho receio de assistir ao fim que eu desejo n�o tarde. Eu, seu amigo e seu
admirador grande, desejo que ele morra, mas n�o tenho coragem de o ver morrer.
O meu pensamento est� com ele, e escrever sobre ele agora � um modo de
acompanh�-lo, de velar carinhosamente a seu lado nos �ltimos instantes em que
possa ainda aquele nobre e alto esp�rito pousar no fr�gil corpo trabalhado.
Ele ignora o horr�vel mal que o vai devastando; por�m sofre; e o que ele
temia era o sofrimento f�sico, que anula o valor moral, e afeia e entorpece a
criatura. Ouvi-lhe uma vez estas palavras acerca de Artur de Oliveira: "Levou
tempo a morrer de uma mol�stia grave. Uma mol�stia grave n�o se contenta de
uma merenda ligeira, � ponta de uma mesa; n�o, ela quer comer sentada e a fartar,
e devagarinho, saboreando..."
N�o lhe perdoou essa ironia o acaso, mestre ou inimigo de ironias. Era
fina e justa a imagem, e a sorte, para mostrar que o era, deu-lhe uma mol�stia
grave por companheira insepar�vel dos seus �ltimos dias. N�o bastava que ele
sofresse na alma; e eu sei quanto ele sofreu, desde que ficou s� no mundo, h�
cinco anos. Ouvia-lhe as falas �ntimas e posso afirmar que lhe fiquei conhecendo
a fei��o de bondade que ele trazia talvez velada para o mundo.
Era essencialmente bom e puro, de uma delicadeza e sensibilidade que
n�o podia, por mais que o quisesse, acomodar-se � rudeza das coisas e dos
homens. Essa mesma delicadeza e sensibilidade o fez t�mido e aparentemente
fraco, a ele que foi um forte. Contradi��o da natureza, que t�o bem se exprimiu
no genial humor de toda a sua obra. Os que s� conhecerem o escritor, n�o
adivinhar�o o homem, e os que s� tiverem lido superficialmente o homem e o
escritor, entender�o que houve nele duas figuras distintas e opostas, que entretanto
n�o eram nem distintas nem opostas, sen�o uma s� figura, que se velava ou
descobria voluntariamente, pelo respeito de si mesma e o receio de n�o parecer
sincera, aos olhos dos outros.
A beleza foi a sua inspiradora e guia, a beleza divina, que � a perfei��o
moral e pl�stica; repousada para a atitude que forma a est�tua e medida para
a eternidade contra a a��o do tempo, que � como um vento forte - onde lhe
embara�am o caminho com o excessivo, a� tudo ele abate e destr�i. Capaz de ser
terno, com abund�ncia de cora��o, Machado de Assis escondeu no escritor a
ternura do homem, e na intimidade do afeto reservava a manifesta��o do seu
sentimento � eloq��ncia do gesto s�brio. Certa maneira de apertar a m�o equivalia
nele a um grito de alma; o seu olhar sabia suprir toda a piedade e simpatia que
a voz temia dizer, fugindo � �nfase de conven��o ou � palavra banal.
Era por instinto e por estudo um elegante na alma e na intelig�ncia.
Jamais lhe surpreendi o gosto da maledic�ncia; mais propenso a dizer e pensar
o bem que o mal, n�o o dizia logo, sem a certeza de o dizer acertado, para n�o
desmoralizar o bem que dissesse. Do mal que pensava, todo ou quase todo
provinha da suspic�cia, pr�pria de um t�mido e de um experimentado que sabe
discernir e raciocinar o sofrimento.
Tinha o esp�rito forrado de uma filosofia forte, que lhe dera a pr�pria
vida e a cultura. Sabia que o que �, � porque tem de ser. Compreendia a maldade
e a bondade, admirava o idealismo da regenera��o humana, entendendo a sua
inutilidade e inefic�cia; n�o tinha nenhuma forma de religi�o e admitia e
respeitava todas as religi�es. Tudo era express�o humana, e n�o lhe cabia sen�o
olhar e comentar os homens. N�o os acusava, reproduzia-os; e � natureza m�
opunha o sorriso inteligente, que � o gesto adequado � beleza, melhor que as
l�grimas indiscretas. Era um puro, nobre e grande artista, superior �s modalidades
de escolas. Com o decorrer do tempo, agora que vai acabar a presen�a corp�rea
do escritor, crescer� a admira��o da sua obra e ficar� para sempre. Valeu-lhe sobretudo,
para a fazer t�o igual, um gosto instintivo que, dirigindo-lhe a cultura, na mesma
cultura se apurou e se firmou, evitando-lhe o erro em pontos de arte e estilo.
Alguns escritos
Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas
Capistrano de Abreu
As Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas ser�o um romance? Em todo caso
s�o mais alguma coisa. O romance aqui � simples acidente. O que � fundamental
e org�nico � a descri��o dos costumes, a filosofia social que est� impl�cita.
Esta filosofia define-se facilmente evocando os dois nomes de La
Rochefoucauld e Sancho Pan�a. Com efeito vemos, de um lado, o ceticismo,
perguntando se, atr�s de um ato que desperta o entusiasmo e desafia a cr�tica e
a malevol�ncia, n�o h� motivos rec�nditos que o reduzem a propor��es de um
fato qualquer banal. De outro, h� a satisfa��o, h� o contentamento que acha que
tudo vai muito bem, no melhor dos mundos imagin�veis.
Segundo esta filosofia, nada existe de absoluto. O bem n�o existe; o mal n�o
existe; a virtude � uma burla; o v�cio � um palavr�o. Tudo se reduz a uma evolu��o:
a passagem do importuno para o oportuno, ou do oportuno para o importuno.
Os homens bem o sabem. Por que n�o reagem?
Primeiro, por causa das formalidades, a mais consistente de quantas
argamassas conservam preso o edif�cio da sociedade. Segundo, pelo interesse que,
se n�o encobre o caminho direito, leva a embicar para dire��o oposta. Depois a
vaidade, a covardia, a covardia principalmente...
Filosofia triste, n�o �? O autor � o primeiro a reconhec�-lo, e por isso
p�e-na nas elucubra��es de um defunto, que nada tendo a perder, nada tendo a
ganhar, pode despejar at� as fezes tudo quanto se cont�m nas suas recorda��es.
A sua vida levou-o, ali�s, a tais conclus�es. Nasceu de pais ricos e
complacentes, que o amavam com ardor, mas de um amor antes espec�fico e
animal do que esclarecido e elevado. As suas inconveni�ncias e travessuras
passavam como rasgos de esp�rito. As suas exig�ncias, por mais esdr�xulas, eram
sempre satisfeitas. Da� a primeira tend�ncia - para a satisfa��o, para o otimismo,
tend�ncia auxiliada pela fatuidade, que herdara do pai.
Veio a amar, mas sensualmente e "durante quinze meses e onze contos de
r�is". Foi a este prop�sito que lhe sobrevieram as primeiras d�vidas e desgostos. Mas
quem sabe?, pensou consigo. Se o meu amor fosse puro, seria outro o desenlace.
Viu, por�m, que n�o seria. Encontrou no navio em que embarcara um par
que se amava legitimamente. A mulher morre, e � pretexto para versos, e no
aplauso por estes suscitado afoga-se a dor da perda que considerava irrepar�vel.
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Na universidade em que estudou, a face dos objetos poderia modificar-
se. Se o estudo o arrastasse; se a ci�ncia com sua beleza m�scula o atra�sse ou
uma id�ia qualquer o prendesse; poderia ter sido diferente o resto de sua carreira.
N�o sucedeu assim. O que queria era a carta de bacharel; esta obteve-a
sem grandes dificuldades. E, como o problema do bem nunca se desenhara em
sua consci�ncia, o problema da verdade nunca palpitou em seu esp�rito.
Volta para a p�tria e perde a m�e. Uma dor grande o possui. Aguilhado
por ela, vai procurar lenitivo na solid�o. O pai visita-o, em vez de encontrar nele
a ang�stia e o desconsolo, Br�s Cubas s� enxerga a vaidade por ter recebido uma
carta do regente, ao mesmo tempo que o desejo de o introduzir na pol�tica.
Mostra-se agora um ensejo que poderia dar outra dire��o � vida de Br�s
Cubas. Encontra uma mulher nobre, digna, de uma virtude que n�o permitia
d�vidas, de um car�ter que n�o admitia transa��es.
Amou-a, se � que podia amar; por�m, ela era pobre, filha natural e os
c�lculos do pai apontavam-lhe outra, que era uma apresenta��o para a deputa��o.
Fez a corte a esta; foi bem recebido. Tudo parecia encarrilhado da melhor maneira...
quando um rival, que n�o lhe era superior, seduziu a sua noiva acenando-lhe com
a coroa de marquesa.
Se n�o fosse Br�s Cubas, teria sofrido um choque terr�vel; mas o nosso
her�i n�o era homem de abalos. Sua vaidade foi amarrotada e muito mais a do
pai, que n�o p�de resistir ao golpe. Mas n�o passou disto; nem protestos, nem
maldi��es contra as mulheres, nem coisa nenhuma. J� chegara � teoria das edi��es
humanas, e vira que isto de amor, por maior que seja a impress�o causada no
momento, dificilmente escapa ao rid�culo, quando passa o �xtase.
Viu mais tarde que a amizade de fam�lia � um logro, pois sua irm� e seu
cunhado por causa da heran�a n�o hesitavam em quebrar os la�os.
Ent�o atirou-se � vida f�cil, �s pol�micas de jornais. Se tivesse de ganhar
a vida; se a necessidade o obrigasse ao labor; � prov�vel que diverso fosse o seu
futuro; mas nem no exterior, nem no �ntimo encontrava incentivos para a
atividade.
N�o tardou muito que voltasse para o Rio Virg�lia, a mulher que por
ambi��o lhe preferira o outro. Encontraram-se os dois e n�o se sabe bem por que
- provavelmente porque de importunos tinham passado a oportunos come�aram
a se amar.
Amor cego, que chegou �s cumeadas do sentimento, para depois ir
baixando, baixando at� ficar rente com o solo. Br�s Cubas a princ�pio nada viu,
enlevado no primeiro �mpeto; depois, por�m, notou que a alma que ele julgava
pertencer-lhe inteira era dominada por muitas outras considera��es: a vaidade,
o gosto de ser admirada, o medo, uma certa ingenuidade impudente...
O marido desconfiou; mas, embora car�ter de rija t�mpera, apenas gretado
por certos preconceitos, n�o teve coragem de desafrontar-se, porque viu que isto
seria tornar p�blica a mancha dom�stica.
Da� a tempos, Virg�lia teve de acompanhar o marido a uma prov�ncia de
que fora nomeado presidente, ap�s incidentes bastante curiosos.
Nada prendia Br�s Cubas a Virg�lia; o amor fora substitu�do pela saciedade
em ambos; o filho, que Virg�lia a princ�pio anunciara, morrera antes de nascer.
Por isso, acabou cedendo �s propostas de casamento que sua irm� lhe fazia. Mas
estava escrito que ele nunca havia de formar fam�lia: a noiva morre poucos dias
antes do ato realizar-se.
Foi depois do falecimento da noiva que Br�s Cubas entrou na pol�tica.
Foi deputado, escapou de ser ministro e n�o foi reeleito. Imagine a sua decep��o!
Mas um amigo o consolou, um amigo de viver bastante agitado, que da
ociosidade fora levado ao v�cio, e do v�cio ao crime. Este amigo, a quem uma
fortuna herdada inesperadamente afastara do caminho da corre��o, imaginou
um sistema de filosofia: o humanitismo.
Tudo � bom; tudo � grande; tudo � santo. A humanidade reside no todo,
mas reside igualmente no indiv�duo. Como, por conseguinte, pode lesar-se a si
pr�pria?
No humanitismo podemos dar por conclu�da a carreira de Br�s Cubas.
Toda a sua vida anterior levara-o a esta f�rmula filos�fica.
Achada, o resto n�o passa de aplica��es.
E agora podemos dizer como ele: vede que trabalho de arte anima estas
Mem�rias: de um lado, a vida do personagem n�o passa de um acidente, de um
lado que prende as observa��es; de outro, � claro que com o viver que ele levou
n�o podiam diferir as observa��es e conclus�es.
Se depois de expor a moralidade das Mem�rias, quis�ramos consider�-las
como produto liter�rio, encontramos uma tarefa que nada tem de f�cil. As
Mem�rias s�o um livro conc�ntrico, isto �, h� dentro dele muitos livros, de
tend�ncias nem sempre convergentes; � por conseguinte como parcelas e n�o
como todo que deve ser estudado.
Este trabalho, muito interessante ali�s, n�o o tentaremos aqui, porque
muita coisa existe que n�o entendemos.
Diremos simplesmente ao leitor: tolle et lege. Talvez desejasse mais
anima��o e variedade no estilo; que certas ant�teses fossem menos empregadas,
que os saltos fossem menores; que os contrastes n�o fossem t�o crus. N�o
importa! Tolle et lege. Se entenderes, h�s de passar algumas horas �nicas - misto
de fel, de loucura, de r�ctus. Se n�o entenderes, tanto melhor. � a prova de que
�s um esp�rito puro, consciencioso, firme, ing�nuo, isto �, um pouco tolo.
30 de janeiro e l� de fevereiro de 1881
Gazeta de Not�cias
A um bruxo, com amor
Carlos Drummond de Andrade
Em certa casa da rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trastejada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o c�u e a noite.
Outros leram da vida um cap�tulo, tu leste o livro inteiro.
Da� esse cansa�o nos gestos e, filtrada,
uma luz que n�o vem de parte alguma
Pois todos os casti�ais
est�o apagados.
Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os minist�rios
e deit�-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.
Conheces a fundo
a geologia moral dos Lobo Neves
e essa esp�cie de olhos derramados
que n�o foram feitos para ciumentos.
E ficas mirando o ratinho meio cad�ver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma express�o a que n�o acho nome certo
(das sensa��es do mundo a mais sutil):
vol�pia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?
178
O vento que rola do Silvestre leva o di�logo,
e o mesmo som do rel�gio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paran�,
mostra que os homens morreram.
A terra est� nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem come�a a sussurrar alguma coisa
que n�o se entende logo
e parece a can��o das manh�s novas.
Bem a distingo, ronda clara:
� Flora,
com olhos dotados de um mover particular
entre mavioso e pensativo;
Marcela, a rir com express�o c�ndida (e outra coisa);
Virg�lia,
cujos olhos d�o a sensa��o singular de luz �mida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar l� fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Concei��o.
A todas decifraste �ris e bra�os
e delas disseste a raz�o �ltima e refolhada
mo�a, flor mulher flor
can��o de manh� nova...
E ao p� dessa m�sica dissimulas (ou insinuas, quem sabe)
o turvo grunhir dos porcos, tro�a concentrada e filos�fica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que v�o � rua da Miseric�rdia e n�o a encontram.
O efl�vio da manh�,
quem o pede ao crep�sculo da tarde?
Uma presen�a, o clarineta,
vai p� ante p� procurar o rem�dio,
mas haver� rem�dio para existir
sen�o existir?
E, para os dias mais �speros, al�m
da coca�na moral dos bons livros?
Que crime cometemos al�m de viver
e porventura o de amar
n�o se sabe a quem, mas amar?
Todos os cemit�rios se parecem,
e n�o pousas em nenhum deles, mas onde a d�vida
apalpa o m�rmore da verdade, a descobrir
a fenda necess�ria;
onde o diabo joga dama com o destino,
est�s sempre a�, bruxo alusivo e zombeteiro,
que revolves em mim tantos enigmas.
Um som remoto e brando
rompe em meio a embri�es e ru�nas,
eternas ex�quias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencen�.
O estribeiro Oblivion
bate � porta e chama ao espet�culo
promovido para divertir o planeta Saturno.
D�s volta � chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar.
N.E.: O poema "A um bruxo, com amor" de Carlos Drummond de Andrade, foi extra�do do livro A vida
passada a limpo (Carlos Drummond de Andrade � Grana Drummond; www.carlosdrummond.com.br).
Nota biogr�fica
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu na cidade do Rio de Janeiro
(RJ), em 21 de junho de 1839. Filho do mulato e pintor de paredes Francisco Jos�
de Assis e da imigrante a�oriana Maria Leopoldina Machado de Assis, pouco se
sabe de sua inf�ncia. Pelo pai, descendia de pardos forros. Cedo perdeu a m�e e
a �nica irm�; foi amparado, at� o segundo casamento do pai, pela madrinha,
senhora abastada. J� adulto, Machado padeceu de dist�rbios neurol�gicos,
diagnosticados como surtos de epilepsia.
Aos 16 anos, publicou seu primeiro trabalho liter�rio, o poema "Ela", na
revista Marmota Fluminense, de Francisco de Paula Brito - que costumava acolher
e incentivar novos talentos. Dois anos depois, entrou para a tipografia e livraria
de Paula Brito e tornou-se amigo de v�rios escritores.
Ingressou na Imprensa Nacional em 1856, como aprendiz de tip�grafo, e
l� conheceu Manuel Ant�nio de Almeida, que se tornou seu protetor. No ano de
1858, j� era revisor e colaborador no Correio Mercantil. Em 1860, passou a
trabalhar na reda��o do Di�rio do Rio de Janeiro. Tamb�m escrevia regularmente
para a revista O Espelho, a Semana Ilustrada e o Jornal das Fam�lias, no qual
publicou de prefer�ncia contos.
Em 1862, come�ou a colaborar em O Futuro, �rg�o dirigido por Faustino
Xavier de Novais, irm�o de sua futura esposa. Seu primeiro livro de poesia,
Cris�lidas, saiu em 1864. Em 1867, foi nomeado ajudante do diretor de publica��o
do Di�rio Oficial. Em 12 de novembro de 1869, casou-se com aquela que seria sua
companheira durante 35 anos, Carolina Augusta Xavier de Novais.
O primeiro romance de Machado, Ressurrei��o, saiu em 1872. No ano
seguinte, o escritor foi nomeado primeiro-oficial da Secretaria de Estado do
Minist�rio da Agricultura, Com�rcio e Obras P�blicas, iniciando assim a carreira
de burocrata, que seria seu meio principal de sobreviv�ncia. Machado intensificou
a colabora��o em jornais e revistas, como O Cruzeiro, A Esta��o e Revista Brasileira.
Em 1880, tornou-se oficial do gabinete de Pedro Lu�s Pereira de Sousa, ministro
interino da Agricultura, Com�rcio e Obras P�blicas - posto que j� tinha ocupado,
no gabinete de Manuel Buarque de Macedo. No ano de 1881, foi publicado o romance
que daria uma nova dire��o � sua carreira liter�ria, Mem�rias p�stumas de Br�s
Cubas. Em 1889, foi promovido a diretor de Com�rcio no Minist�rio em que servia.
Grande amigo de Jos� Ver�ssimo, continuou colaborando na Revista
Brasileira tamb�m na fase dirigida pelo escritor paraense. Do grupo de intelectuais
que se reunia em sua reda��o, surgiu a id�ia da cria��o da Academia Brasileira
de Letras, projeto que Machado apoiou desde o in�cio. Ele comparecia �s reuni�es
preparat�rias e, no dia 28 de janeiro de 1897, quando se instalou a Academia, foi
eleito presidente da institui��o, � qual se dedicou at� o fim da vida.
Em 20 de outubro de 1904, morria Carolina, fato que muito abalou o
escritor e motivou a escrita de um de seus mais c�lebres sonetos, "� Carolina".
Quatro anos mais tarde, em 29 de setembro de 1908, na cidade do Rio de Janeiro
(RJ), falecia Machado de Assis.
182
Cronolog�a da obra
Poesia
Cris�lidas, 1864
Falenas, 1870
Americanas, 1875
Ocidentais, 1880
Poesias completas, 1901
Conto
Contos fluminenses, 1870
Hist�rias da meia-noite, 1873
Pap�is avulsos, 1882
Hist�rias sem data, 1884
V�rias hist�rias, 1896
P�ginas recolhidas, 1899
Rel�quias de casa velha, 1906
Romance
Ressurrei��o, 1872
A m�o e a luva, 1874
He/ena, 1876
lai� Garcia, 1878
Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas, 1881
Quincas Borba, 1891
Dom Casmurro, 1899
Esa� e Jac�, 1904
Memorial de Aires, 1908
Teatro
Hoje avental, amanh� luva, 1860
Desencantos, 1861
Queda que as mulheres t�m para os tolos, 1861
O caminho da porta, 1863
O protocolo, 1863
Quase ministro, 1864
Os deuses de casaca, 1866
Tu, s� tu, puro amor, 1880
N�o consultes m�dico, 1896
Li��o de bot�nica, 1906
Cr�nica (publica��es p�stumas)
Cr�nicas de L�lio, 1958 (org. Raimundo Magalh�es Jr.)
Bons dias!, 1990 (org. John Gledson)
Sele��o de cr�nicas, 2003 (org. Salete de Almeida Cara)
Correspond�ncia (publica��es p�stumas)
Correspond�ncia de Machado de Assis, 1932 (org. Fernando Nery)
Correspond�ncia de Machado de Assis a Magalh�es de Azeredo, 1969 (org. Carmelo
Virgilio)
Machado de Assis e Joaquim Nabuco -correspond�ncia, 2003 (org. Gra�a Aranha,
3 ed.)
A editora Eduerj com objetivo de levar um pouco de Machado de Assis e sua obra àqueles que ainda não conhecem, ou conhecem pouco ,apresenta a todos este livro que trata de capítulos da obra Machadiana
LINK PARA BAIXAR PDF:
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Abraços fraternos!
Bezerra
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