terça-feira, 30 de março de 2010

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Sapos e Beijos
Sarah Mlynowski
Contra-capa:

Ok. Finalmente eu consegui superar a questão terrivelmente injusta sobre os
poderes da minha mãe só terem sido herdados pela minha irmã mais nova, e não
por mim. Mas essa história de magia está virando a cabeça delas! Minha mãe agora
é "viciada em magia", Miri está querendo salvar o mundo, e o único feitiçozinho de
amor que eu pedi acabou dando errado. Terrivelmente errado. Muito errado. Agora,
o destino de tudo está em minhas mãos. Minha família. O mundo. A festa de
formatura.

"Esta brilhante continuação de Feitiços e sutiãs prova que Mlynowski é uma
séria candidata è coroa de Meg Cabot," (Publihsing News)

"Adorável e divertido... os fãs aguardarão ansiosos pela próxima aventura
de Rachel." (Booklist)



Orelhas do livro:

Rachel finalmente conseguiu superar o fato de que apenas sua irmã mais
nova, Miri, herdou os poderes mágicos da sua mãe. Mas agora a bruxaria está
saindo de controle...

Quando tudo que Rachel queria era um simples feitiço de amor para
reconquistar seu ex-quase-namorado Raf, Miri resolve que vai salvar o mundo. O
ponto de partida é colocar em segurança as vaquinhas de um matadouro do
interior. O que nenhuma das duas podia imaginar é que as vacas iam acabar
parando no pátio do colégio de Rachel, destruindo as instalações e causando um
prejuízo gigantesco. Miri também tem em sua lista salvar as baleias de um
derramamento de óleo na França, dar comida e roupas para os necessitados na
África, salvar os animais que estão presos no circo...

Além de tudo, a mãe das meninas resolveu que já é hora de voltar a
namorar e, durante um encontro particularmente chato, decide usar um pequeno
feitiço para ler os pensamentos do seu acompanhante, facilitando a conversa entre
eles. A partir daí, ela não pára mais de usar magia - para pintar as raízes dos
cabelos, alongar as unhas, apagar as luzes e até para tomar banho!

Para piorar, o feitiço de amor não funciona; ou melhor, funciona, mas para a
pessoa errada. E enquanto sonha em reconquistar Raf, Rachel precisa lidar com um
novo namorado que a ama perdidamente e beija muito bem. Ele esta enfeitiçado? É
claro que isso é o de menos. Considerando que ela tem de controlar sua mãe e sua
irmã, de repente Rachel se tornou a pessoa mais sensata da casa.




Sarah Mlynowski nasceu em Montreal em 1977, é
formada em literatura inglesa e escritora em tempo integral.
Seu primeiro best seller, Milkrun, já vendeu mais de 600 mil
exemplares. A autora também lançou livros para adultos, além
de ter participado de coletâneas de contos. O primeiro livro
sobre as aventuras de Rachel e sua irmã Miri, Feitiços e sutiãs,
já foi publicado em diversos países, e a série já conta com um
terceiro volume depois de Sapos e beijos.
Capa: Adaptação da versão original por Diana Cordeiro
Ilustrações: Robin Zingone.
SARAH MLYNOWSKI




Tradução de LUIZ ANTONIO AGUIAR



Para Laura Dail,
minha fantástica agente.
Porque ela adora Rachel
tanto quanto eu.



Obrigada elevado à potência de um trilhão a:

Wendy Loggia, minha extraordinária editora, assim como ao restante da
equipe da Delacorte Press Random House Children's Books: Beverly Horowitz, Chip
Gibson, Isabel Warren-Lynch, Tamar Schwartz, Gayley Carillo, Kenny Holcomb,
Adrienne Waintraub e Jennifer Black. Agradecimentos especiais a Christine Labov
pela sua incan-sável (e sempre animada) capacidade editorial. Ao extraordinário
grupo do outro lado do pequeno lago: Ruth Alltimes, Sarah Davies, Lisa Grindon,
Laura Burre todos da Macmillan. Ao extraordinário artista Robin Zingone pela
criação da magnífica arte de capa. Às pessoas que trabalharam como loucas para
fazer o filme: Lisa Callamaro, Claire Lockhart, Helen Wan e todos da Fox 2000 e da
Storefront Pictures. A Shannon Browne por sua fabulosa assistência. A Gail Brussel,
meu incrível agente de publicidade.

A meu trio de leitoras de muito tempo, sem as quais eu ficaria
desamparada: minha mãe, Elissa Ambrose (que sempre sabe exatamente o que eu
estou tentando dizer); Lynda Curnyn (minha cúmplice no crime); Jess Braun (que
nunca teve medo de me dizer quando alguma coisa está uma droga). E a meu mais
novo e jovem leitor e público-teste, Avery Carmichael. Vocês são o máximo.

A papai, Louisa, Robert, Vickie, John, Jen, Bonnie, Robin, Ronit e Jess D.,
pelo amor e apoio. A Aviva, minha irmã e inspiração para Miri. (Não, Squirt, eu juro
que você não foi, digamos, tão nerd assim.) A Gary e Darren, os irmãos Swidler,
que fizeram o favor de me ensinar a dar um mooshie. Agradecimentos especiais
aTodd(ie), meu irmão caçula, ao meu super-herói pessoal (e marido), que não
somente sabe de tudo, mas é tão generoso que me deixa roubar suas melhores
frases.
1. Minha vida amorosa está voando por aí (e eu também)

Eu estou montada numa vassoura voadora, meus braços apertando tanto a
cintura da minha irmã mais nova que estou quase matando a menina.

- Ei, garotas! Tudo bem com vocês? - minha mãe chama a gente lá de
baixo. Ela está nos observando de uma janela no segundo andar do chalé. - Não
ficaram enjoadas com o vôo? Não sei como vocês me convenceram a permitir uma
coisa dessas.

- Eu estou bem - Miri gorjeia feliz.

- Eu também - minto, enquanto nós duas balançamos para cima e para
baixo como se estivéssemos numa gangorra mal-assombrada. Estamos montadas
em uma vassoura de plástico, a menos de um metro e meio do solo coberto de
orvalho.

Em que mundo louco eu poderia estar bem? Meus olhos estão totalmente
fechados, estou mordendo os lábios e todos os meus músculos estão tensos de
tanto medo.

- Não quero vocês voando por aí por mais de uma hora - avisa minha mãe. -
Então, é para estarem de volta às 11 horas em ponto. Vou deixar a janela aberta
para vocês poderem entrar direto na volta. Se acharem que alguém viu vocês,
voltem imediatamente. E, Rachel, não ouse tirar esse capacete!

Como ela sabe do meu plano secreto?

- Mas ele dá coceira!

- Ela não vai tirar, mãe. - Miri bate no meu joelho.

- Pronta? Lá vamos nós!

A náusea e a tonteira tomam conta de mim. Talvez não tenha sido uma ideia
tão brilhante assim. Minhas pernas estão balançando frouxas, feito pernas de
boneca de pano, e a vassoura está começando a me esfolar.

- Não vá rápido demais - eu protesto numa voz superesganiçada, como se
eu tivesse acabado de inalar um balão de hélio. - E vê se não sobe demais também.
Cuidado pra gente não bater num avião. E não...

A vassoura salta à frente, eu solto um grito e, de repente, estamos voando
sobre o norte do estado de Nova York.

- Tenham cuidado! - minha mãe grita lá de baixo. Eu estou voando. Eu
estou voando! Eu estou voando!!!!!!!!!!
Certo, estou apavorada de ter de voltar para a escola. Mas, pelo menos,
nestas férias de primavera estou voando alto. Literalmente.

Com todo cuidado, abro o olho direito ao passarmos zunindo pelo portão do
nosso chalé alugado e dispararmos sobre a estrada poeirenta. O vento acaricia meu
rosto, meus braços, meu cabelo... Acho que o vento acabou de jogar uma folha no
meu nariz. Mas e daí? É demais, não é?

Não olhe para baixo, não olhe para baixo!

Eu olho para baixo.

Meus cadarços estão pendurados nas laterais do meu tênis novo rosa como
se fossem orelhas moles de cachorro. Eu devia ter dado um nó duplo. São os tênis
rosa que minha mãe comprou para me animar. Resumindo bastante uma história
longa e de cortar o coração, passei os primeiros poucos dias de férias arrasada
porque Raf Kosravi, o amor da minha vida, me odeia porque eu (sem querer) dei
um bolo nele no Baile da Primavera, e fui ao casamento do meu pai.

Comprar o tênis foi um bocado atencioso da minha mãe. Ela está mesmo
tentando ser mais compreensiva. Na mesma noite em que ela me trouxe esse
presente-surpresa para me animar, ela baixou sua fatia de pizza de tofulame (fatias
de tofu horríveis e sem gosto, em formato de rodelas de pepperoni) e anunciou:

- Miri, proibir você de usar magia não está adiantando. Se de um jeito ou de
outro você vai fazer, como já tem feito nos últimos dois meses, quero lhe ensinar a
fazer mágica com responsabilidade. Nós três vamos fazer uma viagem. Comecem a
fazer as malas.

Meu queixo caiu no meio de uma garfada. Mamãe finalmente tinha visto a
luz! Olha só, faz pouco tempo que descobri que minha mãe é uma bruxa. Minha
irmã, também. Todo mundo é bruxa, menos eu. Bem, meu pai não é, nem minhas
amigas. Mas todo mundo que mora comigo.

E minha mãe baixou uma regra rigorosa: absolutamente nenhuma mágica
até Miri terminar seu treinamento. Minha mãe, em seu uso diário, é antimagia,
prefere ser uma bruxa não-praticante. Então, essa mudança de postura era uma
coisa e tanto.

- É isso aí! - eu comemorei, já pensando no que devia pôr na mala. Roupas
de sair ou suéteres tipo não-vou-ver-ninguém-que-valha-a-pena-impressionar? Não
me incomodava de sair da cidade, principalmente porque minha melhor e agora
única amiga (desde que me encrenquei terrivelmente no desfile de moda da
escola), Tammy, está passando as férias de primavera no Golfo do México com sua
mãe e a madrasta (sim, a mãe dela é casada com uma mulher), - Mágica para
todos! Dá pra lançar um feitiço do amor no Raf?

- Não abuse da sorte - foi a resposta da minha mãe. - Fazer feitiços de amor
não é o que considero ser um exemplo de responsabilidade.

Mas, que adianta ter uma mãe bruxa se ela não faz nem um ínfimo feitiço do
amor no garoto dos meus sonhos? Se ao menos ela fosse mais amiga e menos
mãe.

Bem, na manhã seguinte deixamos comida extra para Tigger, nosso gato, e
Goldie, nosso peixinho, alugamos um carro, saímos do nosso apartamento
aconchegante no centro de Manhattan e fomos para um chalé alugado no meio do
nada, onde minha mãe disse que não teríamos vizinhos curiosos para testemunhar
nossas brincadeirinhas.

Chegamos na quarta-feira à noite, há exatamente dois dias. Quarenta e oito
horas em um chalé de dois quartos que cheira a uma mistura de naftalina e maçãs.
Quarenta e oito horas sem TV a cabo. Nem DVDs. Sem Internet. Eu não tinha nada
para fazer a não ser assistir à minha mãe ensinando Miri, o que, para minha
surpresa, não era muito engraçado. Bem, é meio engraçado. Pelo menos, minha
mãe finalmente está deixando Miri fazer mágica na prática, em vez de apenas dar
sua aula sobre história da bruxaria. Mas ver Miri tentar levitar objetos inanimados
cansa logo.

A caneca de café cor de pêssego flutuando a oito centímetros acima da mesa
da cozinha é impressionante. Nove centímetros é inacreditável. Treze centímetros é
aterrorizante. Quinze centímetros... apavorante. Depois de dois dias, levantar toda
a louça da cozinha ficou um bocado repetitivo. Na verdade, é de dar sono. Mas só
naquela tarde, quando minha mãe estava mostrando a Miri como fazer flutuar um
papel-toalha, que me ocorreu que se Miri podia fazer um papel voar, por que não
podia fazer nós duas voarmos?

Achei a vassoura no armário do vestíbulo. Era velha e murcha, e algumas
cerdas estavam torcidas em ângulos estranhos de noventa graus, mas dava pro
gasto.

- Tem alguma coisa de verdade nessa lenda de que as bruxas voam em
vassouras? - perguntei, puxando a vassoura para fora, fazendo uma lata de lixo
cair na minha cabeça.

- Bem... - minha mãe hesitou. - Não.

Não entrei nessa. Se um papel-toalha podia levitar, por que não uma
vassoura? Avancei na direção dela e a encarei, tá no fundo dos seus olhos verdes.

- Você jura?

Em vez de responder, ela percorreu as unhas roídas pelo cabelo pintado de
louro cortado na altura do ombro e estremeceu.

- O quê? - Miri gritou, pulando da cadeira, fazendo com que o papel-toalha
descesse flutuando de volta para a mesa. Ainda bem que ela não estava mais
treinando com os copos. - Você me disse que voar em vassouras era um mito.

- Eu sei. - Minha mãe parou um instante para morder a unha de seu
polegar. Ela e minha irmã tinham essa mesma mania nojenta. - Mas eu estava
preocupada com você. Não quero você voando por Manhattan, correndo o risco de
se chocar contra o Empire State.

Fiquei tão animada, tão contente, que aplaudi. De agora em diante eu
viajaria com estilo. Metros superlotados cheirando a suor? Nunca mais. Correr
atrasada para a escola? Nem pensar. O único caminho que eu ia pegar agora era a
Estrada da Vassoura.

- Me ensine já! - gritei.

- Você quer dizer que ela tem de ensinar para mim - Miri disse indignada.

- Se eu soubesse que ia ensinar você a voar, teria comprado cigarros -
minha mãe disse.

- Você prometeu parar! - eu resmunguei.

- Eu sei, eu sei. E parei, certo? É que deixar vocês voarem vai ser muito
estressante. - Ela levou a unha do seu polegar à boca de novo. - Vou ensinar, mas
vocês têm de prometer....

Tomar cuidado, ir devagar, voar baixo, seja o que for, sim, sim, sim!

- ...usar seus capacetes de bicicleta.

Gemi. Só minha mãe conseguia fazer uma coisa tão legal como voar parecer
idiota.

*

Um vento feroz soprou para dentro da minha boca um cacho do meu cabelo
castanho, cortado na altura dos ombros. Mas vale a pena. Eu estou voando! Sim, o
capacete idiota está apertado e coçando, mas ainda assim me sinto uma felizarda.
Ora, quantas garotas de 14 anos voam fora da cabine pressurizada de um avião?
Nada de amendoim, nem portas de emergência, nem aeromoças. Nem crianças
chorando. Nenhum estranho disputando o braço da poltrona. Nenhum passageiro
nervoso passando por cima de você a cada dois segundos para ir ao banheiro. É
bem mais civilizado.

Ainda mais que minha mãe mostrou a Miri como acoplar um visor bem legal,
para visão noturna, na parte frontal dos capacetes, então nós podemos ver no
escuro.

Vuuuum! Iupiii! Legal! Frio.

Mesmo já sendo abril, parecia que a gente estava bem no meio do inverno.
Apesar da malha que eu estou usando por debaixo do meu jeans, assim como o
suéter sob minha jaqueta, meu corpo está todo arrepiado. Tinha certeza de que, se
largasse da Miri, mesmo que uma mão apenas, ia despencar. E ia ser péssimo
morrer tão nova.

Só que estava desesperada para coçar minha cabeça por debaixo do
capacete.

- Aonde nós vamos? - Miri gritou lá da frente.

- Deixa isso pra lá! Só voar está ótimo!

Eu sou um pássaro varando a noite. Uma pipa costeando a praia. Passamos
por cima dos topos das árvores floridas e, apesar dos meus problemas, eu não
conseguia parar de rir.

- Mais alto! - gritei.

Ela ergue o nariz da vassoura e, mesmo tendo de me segurar muito forte
para não escorregar da traseira, eu quero mais.

- Curva de trezentos e sessenta graus!

- Mas eu mal consigo pilotar reto! - ela reclama. - Cala essa boca. Estou
tentando me concentrar!

Embora ela e mamãe tenham enfeitiçado a vassoura, voar ainda exigia que
Miri a conduzisse manualmente (e magicamente).

Deixamos para trás outra estrada escura. A cidade está completamente
vazia, e só por isso minha mãe está deixando a gente voar. Não queremos ser
vistas. É um pássaro, um avião, são duas garotas numa vassoura!

- Olhe lá! - eu grito, apontando com a ponta do meu tênis novo para uma
fazenda abaixo. Pelo menos cinquenta vacas estão pastando e nos olham, no que a
gente passa sobre as cabeças delas. Sinto cheiro de estrume. Bem que eu queria
não precisar me segurar com minhas mãos na Miri, assim eu podia tapar o meu
nariz. Argh!

- O que tem ali? - eu aponto com o tênis para um brilho de luzes brilhantes
a distância.

Ela redireciona a vassoura e nos dirigimos para as luzes amarelas,
vermelhas, azuis, as quais, à medida que nos aproximamos, tomam a forma do
rosto de uma mulher gigante.

- É um drive-in! - eu me animo. Apenas um carro está lá, o que não pode
ser bom para o negócio deles. Mas pode significar menos gente para nos ver, em
potencial. Miri flutua parada atrás de uma árvore alta para que o motorista e sua
namorada não nos vejam. Eu sempre quis ver um filme num drive-in. Achava que
eles não existiam mais. Que viagem ao passado. O chão é pavimentado com pedras
arredondadas e não com concreto. Na frente da enorme tela há duas fileiras de
lanternas que irradiam uma leve claridade na noite. Como é romântico. Suspiro.

Se eu fosse uma bruxa, meu único desejo seria que Raf gostasse de mim
novamente. Nem ia me importar em ter apenas uma amiga sobrando. Não, meu
único pedido seria o Raf.

Está bem, e talvez para que minha cabeça parasse de coçar. Mas esse
segundo pedido ia ficar bem atrás do primeiro na minha lista.

Fecho os olhos e engulo um nó na garganta. Não devo pensar em Raf. Não
devo pensar no que poderia ter acontecido. É melhor seguir em frente.

- Vamos sair daqui? - eu pergunto. Miri dá partida repentinamente na
vassoura e viramos de volta para uma estrada próxima.- Tome cuidado - eu
aconselho. - Tem um carro vindo na nossa direção.

Ela dá um puxão para cima na frente da vassoura para que o pequeno
Toyota Tercei branco não nos veja.

- Eu acho que está estacionado - ela comenta.

Maravilha. Provavelmente duas pessoas dando uns amassos e esfregando
isso bem na minha cara. Todo mundo tem namorado, menos eu. Eu ainda nem
sequer dei meu primeiro beijo. Não de verdade. E provavelmente nunca vou dar.
Só se o Raf me perdoar... Três dias faltando para o dia-R. Dia do Raf. O dia do
renascimento do namoro. No momento, ele está passando as férias de primavera
em Nova Orleans. Se eu soubesse o hotel em que está hospedado, Miri e eu
poderíamos voar até lá e fazer uma serenata de canções tristes.
Sem chance. É perseguir demais o carinha. (Como se passar quarenta vezes
por dia diante do armário dele no colégio não fosse.)

Peraí. Não tem um casal no carro. É uma mulher. Sozinha. Batendo a cabeça
contra o volante. E agora ela está abrindo a porca do carro. Está indo para a
traseira e abrindo o porta-malas.

Aimeudeus. Talvez tenha uma pessoa morta lá dentro! Talvez a gente esteja
prestes a testemunhar a cena final de um assassinato. Mas a gente não vai poder
contar nada à polícia, então vamos ter de dar um telefonema anônimo de um
telefone público aí pela rua e usar um daqueles modificadores de vozes que faria
nossas vozes parecerem de homens...

Ela tira um sinalizador luminoso do porta-malas. Oh, bem.

Coço. Coço, coço. Será que minha mãe vai descobrir se eu tirar esse troço
da cabeça por meio segundo?

Miri está a ponto de dar uma guinada e se afastar quando digo a ela para
esperar.

- Por quê? - ela pergunta, aborrecida. - Não podemos deixar que ela nos
veja. E se ela tiver uma câmera no celular e passar por e-mail nossa foto para
aqueles jornais sensacionalistas? Daí, a gente ia ficar presa para sempre numa
instalação supersecreta do governo, como a Área 51.

- Pára, tá? - eu ordeno. Além do mais, não vou ser eu que vai ser colocada
em uma sala acolchoada com fios elétricos cravados na cabeça. Bem, é claro que
eu ia visitá-la.

Ela breca a vassoura e nós ficamos de novo paradas flutuando para cima e
para baixo sobre a estrada.

- Ela não está conseguindo ligar o carro - eu digo. - E daí? - Miri questiona,
virando a cabeça na minha direção. - Você virou mecânica agora?

Tão irônica, essa menininha.

- Você não acha que a gente deve ajudá-la com nossas habilidades
especiais? - insinuo. A testa dela se franze confusa. - Você é uma bruxa! - lembro a
Miri. Como pode se esquecer, um minuto que seja, de seus poderes? Eu lembro
deles o tempo todo.

Ainda com a testa franzida.

- Você acha que eu devia ligar o carro dela?

- Não, eu acho que você devia fazer o carro dela voar. Daí, a gente podia
apostar uma corrida. - Eu bato com a ponta do tênis na panturrilha dela. - Claro,
ligue o carro dela!

Ela me dá uma cotovelada no braço e eu quase caio da vassoura.

- Você está tentando me matar? - eu grito.

Ela se vira para a mulher sozinha e coça o capacete bem em cima de onde
estão suas têmporas.
- Psiu! Deixa eu me concentrar.

De repente, a gente dá uma descida de sessenta centímetros.

- Cuidado! - eu grito, cerrando os dentes.

- Opa! Desculpa. - A vassoura bamboleia. - Estou tentando ajudá-la, mas
não é tão fácil concentrar-se em duas coisas ao mesmo tempo.

- Dá pra acabar com isso rápido?

O corpo todo de Miri fica tenso e então vem um sopro gelado e vruum!, o
Tercei ruge, voltando a funcionar, e a mulher dá um pulo de no mínimo trinta
centímetros, sem conseguir entender o que aconteceu.

- Isso! - eu exclamo e bato nas costas de Miri com a frente do capacete.

- Consegui! - ela guincha, fazendo um V com os dedos. E é quando a
vassoura começa a fazer círculos.

- O que você está fazendo? - eu pergunto muito nervosa.

- Eu não sei - ela balbucia.

- Pare com isso, por favor! - Estou ficando tonta novamente. Supertonta.
Flashbacks da hora da dança do casamento do meu pai. - Mais devagar! - Eu grito,
não que ela escute coisa alguma. Meu maxilar está cerrado, meus dentes estão
rangendo, meus pés estão balançando frouxos e eu posso muito bem ter perdido
um dos meus tênis novos. Cabelo voando em todas as direções. Acho que acabei de
engolir um passarinho. Agora seria uma hora superlegal para os meus poderes
finalmente aparecerem.

Ou agora.

Estamos fazendo círculos maiores. Três metros de raio, seis metros. Nove
metros. Ambas estamos agarradas na vassoura e gritando, e não sei mais para
onde é para cima nem para baixo. E por que estou sentindo cheiro de esterco
novamente?

Borrões de pontos pretos e brancos. Nossa! Oh, não. Acho que estamos
voando em círculos sobre a fazenda. Estamos caindo na fazenda. Estamos a ponto
de mergulhar na fazenda.

- Segure-se bem! - Miri grita, no que nós....

Oh, não. Por favor não. É muito nojento! É...

...TCHIBUM!
2. Conseguiu o leite?

Muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu. Você deve estar de brincadeira.

- Acho que quebrei minha cabeça - Miri diz.

Eu estou deitada de barriga para baixo, minhas pernas abertas como se eu
fosse uma rã, meus olhos fechados bem apertados.

- Se você tivesse quebrado a cabeça, não ia estar falando - eu respondi,
agradecendo secretamente pela sabedoria das mães e a chatice delas com
capacetes. Apesar de a minha irmã ser faixa marrom em tae kwon do, ela tem
somente 12 anos, menos de l,40m de altura, 34 kg e é um bocado frágil.

Sinto uma respiração quente no meu rosto. Tomara que seja a Miri. Abro os
olhos. A boca de uma vaca está a três dedos de mim.

Fecho os olhos novamente.

- Uma vaca está quase me comendo. Mir? Sério, você está inteira? - A
respiração pára, eu olho de novo e vejo a vaca, já entediada, indo embora. Ai!
Minha perna está ardendo. Eu me sento e vejo meu joelho esquerdo sangrando por
um rasgão no meu jeans e na malha. Ai, ai, ai! E meu queixo dói também. Acho
que quebrei os ossos do rosto. Meus olhos ardem como se tivesse caído cloro neles.

- Estou - ela resmunga.

No mínimo cinquenta vacas de todos os tamanhos, e todas malhadas, com
manchas pretas e brancas, nos cercam. Mexo meus pés bem devagar, com cuidado
para não assustar o rebanho. Tenho absoluta certeza de que vacas não comem
humanos, mas não quero provocá-las. E se de repente elas ficam atraídas por
sangue? Olho nervosa para o meu joelho machucado. Acho que o ferimento fecha
sem pontos. Tomara.

Fico de pé e ajudo Miri a se levantar.

- Epa! - ela exclama. - Você cortou o queixo. Está doendo?

- Não muito. Mas tenho certeza que está lindo. Minha perna está mais
machucada. Você está bem?

- Estou. Mas a vassoura já teve dias melhores. - Ela aponta para o que
sobrou da vassoura, quebrada ao meio. Os dois pedaços estão caídos no chão
enlameado (espero que seja mesmo lama).

Tiro o capacete e coço minha cabeça feito louca. Ah. Aponto então para um
dos animais.

- Tem alguma chance da gente poder voar para casa numa dessas coisas aí?
Muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu.

Eu dou um saito para trás.

- Melhor não.

Miri vai para junto da vaca e com todo cuidado faz carinho nele (ou nela? Eu
é que não vou conferir), na mancha negra que ele/ela tem no lado.

- Vem aqui ver - ela diz. - Ele não é do tipo assustado. É uma gracinha, não
é? - (Miri obviamente decidiu-se sobre o sexo do animal.) Ela continua a afagá-lo,
como se fosse um cachorro.

Muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu.

Só minha irmã pensaria que uma vaca de quase meia tonelada é uma
gracinha.

- É um bicho inútil, a menos que brotem asas nele para nos levar pra casa -
eu digo. - Temos de ir embora daqui. Alguma ideia? - Felizmente, eu não tinha
perdido nenhum dos meus tênis. Mas, definitivamente, eles não pareciam mais tão
rosa assim. Andei na ponta do pé e examinei a área procurando uma saída. Ai, ai,
ai. Meu joelho dói. Mais ou menos seis metros à frente tem uma cerca.

Muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu.

- O que você acha que "muuuu" significa? - Miri pergunta em voz alta.

- Sei lá. - E neste momento, realmente não estou nem aí. - Algum palpite da
distância que estamos de casa?

- Aposto que quer dizer que ele está feliz. Como quando Tigger ronrona.

- Miri! Preste atenção! Casa: a que distância estamos? - Nosso gato
dificilmente ronrona. Pelo menos, não quando estou por perto. Ele prefere minha
mãe e Miri. Deve ser essa coisa de bruxa.

Ela pára de afagar a vaca e me encara.

- A gente só voou por dez minutos, não podemos estar tão longe. Vamos, se
você está com tanta pressa assim. Adeus, lindo! Muu!

Corremos em direção à cerca - Miri pula, eu manco - e tento encontrar o
portão. Mesmo com o visor noturno tenho dificuldades para enxergar.

- E você tem certeza que não consegue lançar um feitiço na vaca? - eu
pergunto. - Para a gente poder voar pra casa?

Ela balança sua cabeça.

- E se alguém nos vir?

- Ora, e qual é a diferença? Alguém podia ter nos visto na vassoura.

- Talvez outra bruxa. E daí nós podíamos voar juntas - comenta minha irmã,
ansiosa por encontrar uma semelhante sua. Tudo indica que eu não sou o bastante
para ela.
- Até parece que tem outra bruxa no norte de Nova York. Aposto que todas
elas viveram em algum lugar legal, como a Transilvânia ou Salém. Ah, vamos lá,
Miri. Faça a vaca voar! - Minha perna estava realmente começando a arder.

- Não vou fazer bicho nenhum voar. Uma vassoura é uma coisa, mas eu não
vou tratar uma vaca como se fosse um objeto!

- A gente não está fazendo um show de circo aqui - eu reclamo, irritada. - A
gente só vai montar nesse boi, mais nada. As pessoas montam em cavalos, não é?
- Dá para ver que falar isso não está adiantando nada. - Então como vamos para
casa?

Ela aponta para os meus pés. Ah, finalmente ela tem uma ideia legal!

- Perfeito - digo. - Vou bater os tênis um no outro três vezes e zupt!,
estamos de volta no chalé, certo? Ela revira os olhos. - Nãããããããããão.

- Num balão de ar quente? - pergunto esperançosa.

- Seus tênis foram feitos para andar.

Eu resmungo.

- O portão é aqui - eu digo, localizando a dobradiça. - Seja como for, que
lugar você acha que é este em que estamos agora? - Miri pergunta. Um bar de leite
instantâneo?

- Uma fazenda leiteira, boba.

Quando voltamos à estrada, vimos uma placa na porta.

- Chama-se Sammy - eu digo, esfregando o joelho que ainda estava
ardendo.

- Adeus, vacas lindinhas! - Miri cantarola, acenando. E então nós seguimos o
caminho para casa, a vassoura sendo melancolicamente arrastada atrás de nós.

Quarenta e cinco minutos mais tarde, chegamos ao chalé. Minha mãe está
estatelada sob uma colcha verde-musgo na sala de jantar, lendo um romance.

- Por que vocês não usaram a janela? - ela pergunta. Seu olhar cai sobre o
meu jeans rasgado. Quando Miri lhe conta sobre a vassoura quebrada, ela tem um
ataque de pânico.

- Chega - ela declara ao examinar meu queixo. - Ninguém mais vai voar
nesta família. E por que, ai, ai!, por que eu parei de fumar?

*

O dia seguinte é cheio de desastres. Primeiro, eu acordo e de cara vejo que
minha pequena esfoladura facial tinha se transformado numa enorme bolha
vermelha no meu queixo. O segundo acontece quando estamos num armazém,
nesta tarde, comprando alguma coisa para o jantar. Minha mãe está pensando se
leva uma caixa de hambúrgueres vegetarianos variados, Miri está apertando
tomates e eu tinha acabado de jogar uma caixa de pão ázimo no carrinho porque
achei que era bom comer um pouco disso na Páscoa judaica, esta semana - não
que alguém fosse se lembrar disso, com todo o pão comum que a gente estava
comendo. Minha mãe não é religiosa. Meu pai também não, mas ele normalmente
celebra a Páscoa, o que significa nenhuma massa, nem pizza, nem nenhum pão
comum em casa. Mas, nada de Seder este ano; ele e minha nova madrasta estão
em lua-de-mel no Havaí. Acho que eu sinto um pouco de falta do Seder. No ano
passado, a filha da minha madrasta, Prissy, fez as tradicionais quatro perguntas,
daí cantamos aquela música da cabra ("Então veio o gato e comeu a pobre cabra,
que meu pai comprou por dois zuzim, uma pequena cabra, uma pequena cabra." Eu
nem desconfio o que é um zuzim nem por que o gato comia a pobre abra, mas
cantávamos com toda a força dos nossos pulmões), e depois escondemos o pão
ázimo. Meu pai, no final, deu vinte dólares para cada uma, para devolver o pão
ázimo, como mandava a tradição. Não me lembro em que gastei o dinheiro. Mas
bem que aqueles vinte dólares agora iam chegar em boa hora.

Seja como for, depois de pegar a caixa de pão ázimo, fico olhando
tristemente para os filés de carne de vaca, sabendo que havia mais chance de
minha mãe nos botar para comer todas as falsificações do que nos fazer uns bifes.
Zero para ambas. E é quando eu vejo. A tabuleta sobre a carne saborosa e
suculenta diz CARNE DE VACA SAMMY.

Sammy? Oh, não. Fuja dessa ala. Fuja dessa ala. Sammy não é nenhuma
fazenda leiteira. É um abatedouro. Recuo um passo, bem ligeira, e quase tropeço
numa prateleira de temperos. Então eu pisei num tênis pequeno. Miri. Será que ela
não viu?

Ela sacode o pé.

- Cuidado, sua desajeitada. O que há com você?

- Nada - eu gaguejo. Eu, bem como quem não quer nada, viro de costas
para a seção de carne e estico os ombros para bloquear a tabuleta.

- O que você está fazendo? - ela pergunta e tenta espiar por cima do meu
ombro esquerdo. Eu me inclino mais ainda para a esquerda. Ela tenta olhar pelo
outro lado. Eu me movo. Esquerda, direita, esquerda, direita.

Preciso distraí-la.

- Você já viu os tomates? Humm!

- Você está escondendo alguma coisa?

- O que vai no fundo da minha alma?

Ela rói o canto da unha do polegar juntamente com a pele.

- Já sei que eles vendem carne aqui, Rachel. Não sou nenhuma idiota.

Qualquer um pensaria que uma vegetariana não morderia as partes do
próprio corpo, mas não. Eu passo meu braço em torno do ombro estreito dela e a
empurro para a prateleira de cereais. Ela se debate sobre o meu abraço e se volta
em direção ao congelador, os olhos cheios de repulsa no que vai examinando os
pedaços de carne. Talvez ela nem repare. Talvez alguém grite fogo! Talvez...

Seu rosto empalidece. Seu queixo cai. Seus olhos se enchem de lágrimas.
Acho que ela percebeu.

- Oh, não - ela lamenta.
- Miri, não fique triste.

- Mas todas aquelas vacas lindas vão morrer! - Seu lábio está tremendo e
seus ombros começam a se encolher, e ela parece um pouco como se estivesse
tentando remexer o corpo numa dança. - Elas vão virar o jantar de alguém.

Eu confirmo.

- Infelizmente, não o meu.

O que não ajuda nem um pouco, por que faz Miri chorar de vez bem no meio
do mercado.

Onde está nossa mãe? Eu espio pelas fileiras e a localizo emaranhada com
aquelas absurdamente frustrantes caixas de plástico com vegetais. Não há
necessidade de perturbá-la. Posso cuidar da emergência aqui.

Odeio ver minha irmã chorar. Sei que ela está sendo um bocado dramática,
assim como está levando esta coisa de vaca muito a sério, mas somente uma
pessoa sem coração consegue ver a irmã caçula nessa tristeza e não ficar tocada. É
como ter um chumaço de cabelo arrancado da cabeça. Ou um pulmão puxado fora
do meu tórax. Ou um rim de meu... Humm, eu não sei onde os rins ficam. Eu devia
mesmo prestar mais atenção na aula de biologia. Tirei um B no meu último
trabalho. Mas, neste mês, eu vou me concentrar, estudar e fazer o meu dever de
casa, como a Miri faz, e talvez eu seja capaz de salvar a minha nota final...

O que eu preciso mesmo é salvar a minha vida amorosa.

O que a Miri realmente precisa, eu concluo da expressão no rosto dela, é de
um tranquilizante. Mas voltando ao salvamento... eureka!

- Miri - eu digo, dando um tapinha nas têmporas. Se isso faz você ficar tão
chateada, por que não as salva?

Ela pára de chorar, e eu vejo, por trás de suas pestanas brilhantes e
ridiculamente longas, a esperança nos seus olhos.

- Como? - ela pergunta.

Eu tenho de pensar em tudo?

- Use seus poderes, boba. Você não pode salvar todas as vacas do mundo,
mas provavelmente pode inventar um plano para salvar as da fazenda Sammy.

Ela manuseia um pacote de bife e então enxuga as mãos no jeans.

- Você acha que eu consigo?

- Claro. Nós procuraremos no A² - conhecido também como Manual de
Referência Absoluta e Autorizada de Espantosos Feitiços, Poções Estarrecedoras e
História da Bruxaria desde o Início dos Tempos. Minha irmã prefere usar os feitiços
para fazer suas mágicas em vez de simplesmente fazer um zapt de repente só com
sua vontade, já que misturar ingredientes e pronunciar encantamentos dão às
bruxas mais controle. Depois do feitiço improvisado de ligar o carro na última noite
e o subsequente mergulho de cabeça no dormitório das vacas, fiquei totalmente de
acordo com essa estratégia.
- E nós precisamos comprar uma vassoura nova - acrescento.

- Você acha que a mamãe vai deixar a gente voar de novo? - ela pergunta,
duvidando.

- Claro. Quando eu caí da minha bicicleta, ela não insistiu que eu andasse
novamente?

- Acho que foi, sim - Parece que Miri não está convencida.

- Deixa essa coisa da permissão da nossa mãe comigo. Concentre-se em
descobrir o feitiço certo. - Talvez a gente pudesse tornar as vacas indestrutíveis.
Talvez a Miri pudesse aplicar o feitiço em nós, também.

- Faz um tempinho, vi um feitiço de garantir segurança - Miri lembra. - Isso
pode funcionar.

- Ou quem sabe você encontra um feitiço de imortalidade? - Nada poderia
nos ferir! Íamos parecer um pouco gastas quando nosso cabelo começasse a cair,
daqui a uns poucos séculos, mas seríamos indestrutíveis, como vampiras, sem ter
de beber sangue, mas usando aquelas roupinhas sexy de couro vermelho e sapatos
de salto alto.

*

O feitiço de garantir segurança venceu. Parece que a Miri acredita que ela
tem mais a dizer nessa coisa de magia do que eu. Não posso imaginar por quê. No
entanto, consegui convencer minha mãe de que Miri ia ficar traumatizada para
sempre senão voasse de novo numa vassoura, e tinha que ser imediatamente.
Então, minha mãe fez com ela um teste ao redor da vizinhança, antes de nos deixar
sair sozinhas outra vez. Decidimos não contar para ela sobre o plano de Proteção
das Vacas. Ela está na cama, lendo, e parece que não quer se preocupar com mais
nada. Além do mais, ela disse que Miri poderia fazer mágica, certo? E salvar vacas
mostra uma consciência social (para as vacas), então isso é, definitivamente, uma
prova de responsabilidade.

- Você pode parar de me bater? - Miri reclama no que os meus joelhos
repetidamente (sem eu querer) ficam batendo na parte de trás das suas
panturrilhas.

Está certo, esta última foi de propósito.

- Se você parar de ziguezaguear, eu paro de bater em você - retruco,
negociando.

Ela dá um puxão na parte da frente da vassoura, empinando para cima e eu
escorrego para trás, quase caindo na outra ponta. Excelente. Quem sabe, o corpo
inteiro engessado ajude a elevar meu status social? Não. Meu queixo redesenhado
certamente não vai me dar nenhum privilégio. Meu estômago está se revirando e
eu não acho que é por estarmos voando a seis metros de altura. Embora eu tenha
certeza de que isso não está ajudando nada. Agora que as aulas estão a menos de
quarenta e oito horas de começar, não dá mais para fingir que não sei o trauma
que vou ser forçada a suportar.

Olha só, faz uns poucos meses, convenci Miri a lançar o feitiço da dança em
mim, por isso eu pude fazer parte do show de moda do JFK, e finalmente entrar na
Lista-A. Mas minha mãe descobriu e teve um ataque, daí desfez o feitiço, e minha
habilidade de dançar caiu para zero e fiz papel de uma completa idiota. E não estou
falando daquele jeito eu-estou-tão-gorda-diz-a-modelo-de-quarenta-e-cinco-quilos.
Eu colidi com as outras garotas do meu número de dança como se fossem pinos de
boliche. Destrocei o cenário. E então eu (soluço) faltei a um encontro com Raf,
porque pensei que ele nunca mais ia querer ser visto comigo. Minha vida social está
oficialmente destruída.

Talvez a Miri borrife um pouco do feitiço da segurança em mim. Preciso ser
protegida de London Zeal, a aluna do último ano que dirigiu o show, cuja perna eu
quebrei quando acidentalmente trombei com ela no palco.

Embora eu possa precisar mais do feitiço para me proteger de Melissa Davis,
e isso eu percebo quando sobrevoamos a cerca da fazenda Sammy. Sei que é
errado odiar, mas ela é diabólica. Ela é uma mini-London Zeal, uma caloura como
eu que tortura qualquer um que não seja da Lista-A, flerta com o meu
quase-ex-quase-namorado, o Raf, e roubou minha ex-melhor-amiga, Jewel. Se
bem que a Jewel tem sido às vezes levemente diabólica também, desde que o show
de moda a corrompeu. Como fez comigo, temporariamente. Mas, pelo menos,
estou arrependida. Imagino que haja coisas mais importantes na vida do que a
Lista-A. Eu estou praticando uma boa ação. Eu estou salvando vacas!

- Pronta? - eu pergunto no que Miri se equilibra na nova vassoura. Tentei
convencê-la a comprar uma com cerdas rosa, mas ela achou que nós tínhamos de
usar uma de palha, bem tradicional, para combinar. Assim, testemunhas em
potencial não pensariam que estivessem vendo um cometa fúcsia.

- Pronta.

Passamos o dia procurando o feitiço, procurando os ingredientes e
misturando-os, e agora o que nós temos de fazer é borrifar a mistura nas vacas.
Mantenho um braço ao redor de Miri e uso a outra mão para abrir a pochete presa
em torno da minha cintura e tirar o saquinho de plástico. A pochete é da minha
mãe, claro. Eu nunca teria algo tão obscenamente laranja e molambento. Ou nada
que se chamasse de pochete. No saquinho, tem uma mistura de alho, hortelã, sal e
arroz. Parece mais com um detergente de lavanderia do que com ingredientes
mágicos, se você me perguntar, mas o que sei eu?

Miri toma um fôlego profundo e recita:


De um perigo de estarrecer,
Eu prometo deste dia em diante,
Abrigar e proteger.

Bem, se eu fosse a garota mais sortuda do mundo, estaria com o Raf numa
Mercedes e não com minha irmãzinha numa árvore, mas, ora! E o galho está
machucando meu bumbum. Tento encontrar uma posição confortável no que o
Homem-Aranha salta de uma linha telefônica para um prédio.

- Você sabe - eu cochicho por cima de um broto de folha - de uma certa
maneira, você é uma espécie de Homem-Aranha.

Miri se volta para mim e seus olhos cintilam ao luar.

- Como assim?

- Você tem poderes e você pode usá-los para ajudar o mundo. Como fez
esta noite, salvando as vacas.

Ela morde sua unhazinha rosada e pergunta:

- Mas o que mais eu posso fazer?

- Você pode fazer tudo o que quiser - eu respondo, repentinamente excitada
pela ideia de ser a mentora de uma super-heroína. - Acabar com as guerras,
encontrar casas para os órfãos....

- Salvar as baleias! - ela exclama.

- Exatamente. E você pode usar uma capa prateada, uma malha rosa e
algum tipo de máscara sexy para os olhos. Com brilhos! É claro que eu usaria
alguma coisa similar como sua parceira. Seríamos mais ou menos como Batman e
Robin!

Ela estica o braço para os galhos finos acima dela e se ergue.

- Vamos para casa fazer uma lista - diz Miri excitada. Eu estava errada.
Minha mãe claramente não é a única pessoa que pode fazer mágica ficar idiota.




3. As rodas do ônibus vão... Shazam!

- Garotas - minha mãe diz ao dar uma guinada para a pista da direita,
cortando sem piedade um motorista distraído -, tenho uma confissão a fazer.

Saí de carro com minha mãe somente três vezes na minha vida inteira, o
que já foi demais. Ela. É. A Pior. Motorista. Do mundo. Ela provocou, no mínimo,
seis quase-acidentes nos últimos vinte minutos. Eu me agarro no cinto de
segurança por precaução.

- Eu adivinho - digo. - Você não tem carteira de motorista.

Minha mãe solta uma risadinha.

- Hilariante. Na verdade, espertinha metida, eu gostaria de discutir uma
coisa importante. Uma coisa séria....

Talvez ela conte, finalmente, por que desistiu da bruxaria! E o que causou a
briga entre ela e a tia Sasha, essa tal tia que a gente nunca viu.

- Quero conversar sobre namoro.

Não! Uma conversa com mamãe sobre sexo. Será que existe alguma coisa
mais embaraçosa? Para acrescentar vinagre ao ferimento, estou presa no carro na
volta para a cidade, então nem posso dar a desculpa de que preciso fazer o dever
de casa. Minha única opção é fingir que estou dormindo. Viro a cabeça até ela se
encostar na janela do passageiro, fecho os olhos e solto um falso ronco
retumbante.

- Rachel - ela diz -, pode relaxar. Não é sobre o seu namoro. É sobre o meu
namoro.

Eu arregalo os olhos de repente. Isso dá pra eu aguentar.

- Seu namoro? - Taí, deveria ser engraçado. Minha mãe até que saiu com
uns poucos caras depois do divórcio, mas somente nos fins de semana quando
ficávamos na casa do meu pai (ela não queria ser do tipo que levava muitos tios
para casa), mas logo desistiu. Desde aí, homens para ela eram, no máximo, para
tomar uma xícara de café árabe forte, tipo mocha joe.

- Alguém especial? Alguém do trabalho? Você está apaixonada? - Que
gracinha! Minha mãe apaixonada! Minha mãe tem um namoradinho secreto? Será
que ela foge escondida do nosso apartamento para vê-lo à noite?

- Ninguém até agora. Mas eu gostaria de começar de novo. Ver seu pai se
casando novamente me fez pensar que é tempo de eu seguir em frente também. E
eu queria saber o que vocês duas acham disso.

Um namorado novo! Muito engraçado! Alguém para me explicar os segredos
da mente masculina. Ou... alguém que tenha um filho interessante. A conversa está
me agradando. Eles vão se casar e eu vou ganhar um irmão bem legal. Que pena
que os pais do Raf ainda estejam juntos. Mas que coisa horrível para se pensar.
Desejar a eles os anos de aflição do divórcio apenas porque minha mãe poderia se
casar com o pai do Raf. E, aliás, ele aí ia ser meu irmão, o que ia ser também
mucho louco, se a gente acabasse se casando. - Ou pior: e se minha mãe e o pai
dele se divorciassem? O Raf e eu estaríamos proibidos de nos ver. Assim como
Romeu e Julieta. Que romântico!

- Acho mesmo que você deveria começar a sair com caras de novo - eu falo.
- Já está na hora.

Pelo menos, a gente teria um homem para mudar as lâmpadas. Minha mãe
é tão preguiçosa nisso. A lâmpada do teto do meu quarto queimou um dia desses.
E qual foi a resposta da minha mãe quando pedi que ela a trocasse? Que eu mesma
deveria fazer isso. Espera aí. E se eu me machucasse? Isso é um trabalho para
padrasto. Assim como levar o lixo para fora. E tirar a mesa. E levar minha mãe
para viajar, daí eu posso dar umas festas bem iradas em casa.

- Miri? - minha mãe pergunta. - O que você acha?

- Eu... eu não sei - Miri murmura.

- Ora, mana, dá uma força! - eu viro o corpo para o lado para encará-la.
Será que ela nunca viu a Oprah? Um "Vai fundo, mãe, vai!", ou, no mínimo, um
"Vai nessa, menina!" parece apropriado à situação.

Minha mãe suspira.

- Eu perguntei a opinião dela.

Miri enrola um cacho de seu cabelo castanho no polegar, fazendo a ponta do
dedo ficar vermelha.
- É só que ainda não estou pronta para usar outro vestido de
dama-de-honra cor-de-rosa e nojento.

Minha mãe ri.

- Eu disse namorar, querida, e não casar.

Eu reviro os olhos.

- É isso, Mir. Você já está se adiantando.

- Se for pra você ficar feliz, está tudo bem, mãe - Miri responde.

Bem, não tem a menor chance de a gente usar vestidos rosa no casamento
da minha mãe. Estou pensando num longo preto e sexy. Talvez a gente saia do
país e faça o casamento em outro lugar. Que tal no Caribe? Bom, não? Então a
gente poderia se casar na praia - quer dizer, ela poderia se casar na praia - e a
gente poderia se bronzear ao mesmo tempo.

- Você tem alguém em vista? - perguntei animada. Ela poderia sair com o
bombeiro do segundo andar, o Dave. Ele é bem gostoso!

- Não - ela responde. - A verdade é que já nem sei como encontrar homens
que valham a pena, atualmente. A última vez que eu tive um namorado de verdade
foi há dezessete anos!

PING!

- Já sei!

- Não, senhora, você não vai me pôr num daqueles sites de encontros de
novo, Rachel. São tão humilhantes!

- Não é nada disso o que eu ia sugerir, chefona - respondo,
desdenhosamente. Na verdade, estava pensando que ela podia participar do reality
show "Quem quer casar com minha mãe?" Mesmo eu odiando ver reality shows na
tv, no mínimo servia para eu começar a acompanhar um programa desses. Mas se
a capacidade de ser humilhada em público é o teste-de-fogo dela, é melhor pensar
em outra coisa. - É melhor você se convencer logo de que não é tão fácil encontrar
homens interessantes em Manhattan. Você não vê tevê? As chances de você casar
novamente nos seus 40 anos são de uma em cem. A maioria dos homens da sua
faixa etária estão casados, mortos, são gays ou idiotas.

- Para começar, eu tenho 39. - Sem o menor cuidado, ela entra cortando um
carro que estava se aproximando na pista ao lado e, um milésimo antes da batida,
volta para a sua pista. - Mas talvez você tenha razão. Minhas amigas solteiras não
estão achando a coisa muito fácil. Onde eu vou encontrar homens?

Tomara que minha mãe tenha mais sorte do que eu. Se eu não fui capaz de
encontrar um garoto na minha faixa etária e nenhum deles está casado, nem
morto, nem saiu do armário ainda, as chances da minha mãe não são nada boas.

Ela ergue as mãos como se esperasse uma resposta e dá uma guinada para
a esquerda, cortando um ônibus diagonalmente atrás de nós. Ela é mesmo uma
péssima motorista. No que o ônibus passa, dou uma olhada nas janelas e quase
desmaio, de tão chocada.
Um cara gostoso. Dois caras gostosos. Três... aimeudeus. O ônibus está
cheio de homens gostosos.

Não dá pra acreditar. Meu coração bate tão acelerado que quer saltar do
peito. Será... que fui eu que fiz isso acontecer? Quem sabe finalmente eu virei uma
bruxa? Tento abaixar o vidro da janela telepaticamente.

Nada.

Uma coincidência. Ainda assim. Que sorte.

- Siga aquele ônibusl - eu grito, apontando. Minha mãe me olha,
engasgando, como se eu tivesse deixado meu cérebro no chalé.

- Como é que é?

- Aquele ônibus está cheio de homens! Você perguntou onde pode encontrar
candidatos a namorado. É ali! - Meu corpo sobe e desce no assento como um ioiô.

- Eu não vou perseguir um ônibus - ela diz, balançando a cabeça. - Não
quero ser multada por dirigir acima do limite de velocidade.

- Está vendo algum guarda? - Eu dou uma espiada tipo exagerada para fora
da janela. - Não estou vendo guarda nenhum. Vamos atrás deles!

- Você ficou maluca.

- Use a mágica! - eu grito.

- Eu não vou usar mágica! Eu sou uma bruxa não-praticante!

- Mãe! É um novo capítulo em sua vida. Faça algumas mudanças!

A distância entre nós e o ônibus está aumentando.

- Não sei, não - ela diz. - Não é o que eu queria dizer quando...

- A hora é esta. Faz o pneu do ônibus furar! Esvazie o tanque de gasolina
dele! - O ônibus está distante agora, a quase um campo de futebol. Dois campos de
futebol! Três! Eles estão escapando! - Siga aquele táxi! - eu grito.

- Aquilo não é um táxi - Miri fala, rispidamente, do banco de trás.

Por que ela precisa ser tão literal? Afinal de contas, eu sei disso, mas
sempre quis dizer essa frase. Soa tão bem.

- Rachel, dá um tempo - minha mãe diz, mas enquanto sua boca forma as
palavras, seus olhos contam uma história diferente, desejando, ansiosamente, por
Homens-nos-seus-calcanhares. E foi quando uma rajada de ar frio entrou no carro.

Estava me perguntando por que de repente o ar-condicionado ligou sozinho,
quando boom!

O ônibus está inclinado para a direita. Minha nossa! Isso! Isso! Minha mãe
conseguiu furar o pneu do ônibus! Ela range até parar e entra no acostamento.

Estou estourando de tanto orgulho, como se estivesse olhando meu próprio
filho dar seus primeiros passos.

- Foi você que fez isso!

- Eu... eu... eu - minha mãe gagueja.

- Rápido, vamos encostar nele - eu instruo.

Ela ouve e estaciona o carro no acostamento, bem atrás do ônibus.

- Tá, e agora? O que vamos fazer? - Miri pergunta, chutando meu assento
por trás. Que bebezona!

- Vamos oferecer ajuda - respondo. Sei que minha aparência não é das
melhores, no momento, por causa do arranhão no meu rosto, mas o ferimento
melhorou de ontem para hoje e a Miri está muito bonitinha vestindo um macacão.

- E se eles forem perigosos? - minha irmã gatinha-assustada pergunta. -
Podem ser um bando de serial killers.

- Sim, um ônibus cheio de serial killers, puxa, muito provável. Ora, vamos,
Miri. Vamos lá! - eu digo e destranco minha porta.

Lanço uma olhada para minha mãe. Ela parece completamente apatetada,
em choque, piscando sem parar como se ciscos tivessem entrado em seus olhos.

- Vamos! É agora ou nunca!

Ela olha com desejo para o ônibus, olha para mim, e então quando eu acho
que vai sair dali correndo, baixa o corta-sol para se ver no espelho e dá uma
conferida geral.

- Está bem, vamos lá.

lurru! Só queria que ela não estivesse usando esse jeans idiota, ajustado na
cintura. Mas tenho de admitir que ele faz o bumbum dela parecer bem Jeniffer
Lopez.

Eu abaixo meu espelho para uma olhada rápida. Fora o queixo ridículo, tudo
parece normal. Compleição = clara, nariz = pequeno, olhos = castanhos, dentes =
certinhos.

- Mas que coisa estúpida - Miri resmunga. - O que você vai fazer? Ajudar a
trocar o pneu?

- Nós não vamos ajudar ninguém. Nós vamos fazer a nossa mãe encontrar
homens. Agora, ponha um bonito sorriso por-favor-namore-minha-mãe nesse seu
rosto e vamos lá.

- Nem pensar. Prefiro ficar aqui e checar a minha lista de Salve o Mundo.
Deixem o celular para o caso de vocês duas serem sequestradas e eu poder chamar
a polícia aqui de trás.

Ela é a rainha do drama.

- Mantenha as portas fechadas - diz minha mãe, bem enfática, e então sai
do carro. Cautelosamente, ela checa o tráfego, hesita, e então, segurando minha
mão, me conduz em direção ao ônibus.

Antes que nós possamos alcançar a frente, a porta abre e um homem alto,
magro, usando um chapéu de camurça marrom (numa óbvia tentativa de cobrir os
parcos cabelos brancos) desce. Ele está usando um moletom da Patagônia pesado e
verde, e um crachá que diz Baseball Hall of Fame, Líder da Excursão balança em
seu pescoço. Uma excursão de beisebol! Excelente. O guia estica os braços acima
da sua cabeça e então coça as grossas sobrancelhas grisalhas, olhando admirado
para nós, que vamos nos aproximando. Seu olhar oscila de minha mãe para mim,
então volta para mamãe e então ele sorri.

- Olá!

Minha mãe endireita o corpo. Vai nessa, garota!

- Olá - ela diz, só que soa mais como puá...!

- Olá - ele repete. Excelente ao quadrado. Nós fizemos contato. Dou uma
cotovelada em minha mãe.

- Podemos ajudar? - ela pergunta, percebendo a minha deixa não-tão-sutil.
- Quer uma carona?

O Bom Guia de Viagem balança a cabeça.

- Não, não. Mas obrigado. Muita gentileza. Muito amável de sua parte. - Ele
(ah, sim) toca na aba do seu chapéu como se fosse uma espécie de caubói. Da
década de 1940. - O motorista acabou de ligar para o Socorro Móvel, mas vão
levar, no mínimo, trinta minutos para chegar aqui.

- Ótimo - minha mãe diz, olhos ainda cravados nos dele. O Velho Guia de
Viagem não se afastou.

Uau. O Velho Guia de Viagem está flertando com minha mãe! Ele tem cem
anos de idade! Bem, no mínimo cinquenta anos.

O VGV estende sua mão coberta de pêlos brancos.

- Meu nome é....

- E aí, Lex? - diz uma voz estrondosa. No que o proprietário da voz desceu
do ônibus, meu coração literalmente desfalece. Se eu fosse um desenho animado,
meu coração podia estourar, saltando da minha blusa, e ficar balançando. Que cara
lindo. Com a metade da idade do VGV, e no mínimo com 1,80m de altura, espessos
cabelos castanhos-claros e coroado com maçãs do rosto deliciosamente bem
talhadas. Ele está usando um jeans desbotado e um moletom Yankee. Será que é
um jogador de beisebol?

- Acho que os rapazes estão ficando impacientes - ele diz, e estala os dedos.

- Olá, moças - ele acrescenta, quando repara em nós duas.

Então, mais dez homens descem do ônibus atrás dele. Mais dez homens
gostosos. Todo sujeito que sai sorri para minha mãe. E como pescar namorados
num pequeno tanque fechado, cheio de peixes.

- Ah, mas que viagem é essa, de vocês? - minha mãe pergunta a Lex, que
ainda não tinha percebido que devia sair da frente agora. Quer dizer, ora! Minha
mãe não devia perder seu precioso tempo com ele quando há outros padastros
viáveis e de idade mais apropriada. Lex bem que poderia ser meu avô-padrasto.
Quem sabe dá para apresentar ele à minha avó?

- Sou o guia desta excursão de um dia ao Hall da Fama Nacional de Beisebol
em Cooperstown. Saímos todo domingo de abril a outubro. Você já esteve lá?

- Não - ela responde. E movimenta os cílios. Ah, não, o que ela está
fazendo? Está desperdiçando seu charme! Eu levanto a sobrancelha como uma
indireta sugestiva para fazê-la passar para o próximo.

- Ia ser um prazer levá-la um dia, Senhora...?

Minha mãe cora num profundo fúcsia.

- Senhorita, atualmente. Mas por favor, me chame de Carol.

- Eu me chamo Lex - ele diz e mostra sua mão coberta de pêlos brancos de
novo. Minha mãe dá a mão também, aparentemente ignorando meus sinais de
sobrancelha. Abortar plano!

- Esta é minha filha, Rachel.

Eu estendo a minha mão relutantemente. E então me viro para a multidão
de homens mais jovens e mais gostosos e estendo minha mão para o espécime
mais próximo.

- E qual é o seu nome? - pergunto.

- Jimmy - o rapaz responde. Ele é bonito. Cabelo ruivo, jaqueta jeans,
dentes bonitos.

Puxo minha mãe de perto do Lex. Não tem sentido namoricar um sapo
quando estamos cercados de príncipes.

- Mãe, este é Jimmy.

Ela ri.

- Olá, Jimmy. Sou Carol.

- Prazer em conhecê-la - ele diz, com uma voz rouca e sexy. - Você mora
em Nova York?

- Moro - ela responde numa voz gorjeante bem de bonequinha que eu não
sabia que ela fazia. Impressionante. Algo nauseante. A gatona velha tem lá seus
truques guardados na manga.

- E você?

"Isso, menina!"

- Não - ele responde, balançando sua cabeça. - Flórida. Vim visitar o irmão
da minha esposa e...

Eu devia ter visto a aliança no dedo dele, antes de me animar. Ah, não. E se
esses caras forem todos casados? E se eles morarem todos na Flórida?

Dá para aguentar a Flórida. Nada contra. Escola nova. Bronzeado
permanente, Disneyworld... Mas minha mãe ser uma amante de alto luxo? Não
mesmo. E muito dramático. Eu veria as crianças da outra mulher na escola e
fingiria não saber onde o pai delas passava as noites. E se eu me apaixonar pelo
filho dele de 17 anos? Teria a obrigação ética de contar a ele, ainda que partisse
seu coração em pedaços?

Eu retorno bruscamente a minha atenção para a cena no momento exato
em que minha mãe está sendo apresentada a Adam, o cara gostoso usando
moletom dos Yankees, cunhado solteiro do homem da Flórida (sem aliança). Muito
melhor.

- Eu moro em Jersey City - ele estava dizendo.

Ah, que pena, nada de bronzeado, mas morando mais perto o namoro deles
pode ficar mais fácil. Menos voos de avião.

- Eu sou agente de viagens - ela diz.

- Uma das melhores da cidade! - eu completo. As maçãs do rosto dela ficam
vermelhas. - Ela não é bonita quando fica envergonhada? - eu digo e ela coloca a
unha do polegar na boca e está a ponto de dar uma mordida quando eu,
gentilmente, puxo a mão dela fora. Será que ela precisa fazer essas coisas que
afugentam homens justamente quando está na frente deles?

- Muito bonita - Lex diz, me surpreendendo. Chega, velhote! Pare de dar em
cima da minha mãe!

- Eu estava pensando em planejar uma viagem para visitar o Jimmy, minha
irmã e as crianças - Adam diz, deslizando para junto dela. - Você acha que pode me
dar umas orientações?

- Na verdade - ela diz, enquanto escava um dedo no outro, por trás das
costas, achando que eu não estava vendo -, eu me especializei em viagens de
lua-de-mel....

Mais que depressa, dou uma pisada no pé dela. Será que ela é incapaz de
sacar um toque desses?

- Mãe, tenho certeza de que você pode ajudá-lo. Por que não dá a ele o seu
cartão de visitas profissional? Então, ele vai poder te telefonar. - Eu tento usar
minha inexistente telepatia para ajudá-la a entender. Cartão... telefone .. namoro...

Ela inclina a cabeça e então pára de escavucar-se o tempo suficiente para
remexer em sua bolsa e pegar o cartão. - Preciso fazer reserva para algumas
viagens - brada Lex. - Você me dá um cartão também?

Ai, ai. Como você consegue dar tanto na vista, velhote? Eu achava que
caubóis fossem mais sutis.

Sorrindo, minha mãe começa a distribuir cartões como se fossem balas em
um shopping, em dezembro.

- O que você recomenda nesta época do ano? - Lex pergunta, mais uma vez
entrando na conversa.
- A França é bonita na primavera...

Vá para qualquer lugar, Lex, contanto que deixe minha mãe em paz!
Quando estou a ponto de interromper, um outro bonitão, loiro com grandes olhos
verdes, entra no meio deles.

- Você é uma agente de viagem? Eu preciso de uma ajudinha com minhas
milhas...

Picadela, piscadela. Claro que ele precisa.

Vinte minutos mais tarde, estamos de volta ao carro e a Operação AMMEN
(Ajude Minha Mãe a Encontrar um Namorado) foi um sucesso esmagador. O que
mais eu posso dizer? Eu sou brilhante.

- Não consigo acreditar que funcionou - minha mãe diz atordoada. - Eu
distribuí onze cartões!

- Vocês levaram tempo demais - Miri resmunga. - Estou congelando aqui. Dá
para você ligar o carro e fazer funcionar o aquecedor? Eu vou pegar uma gripe.

Eu ligo o aquecedor e o rádio e fico remexendo o bumbum no assento ao
ritmo da música. Talvez eu me torne uma casamenteira profissional. Sou que nem
uma artista de marionetes, manipulando as emoções de inocentes que nem
suspeitam do que está acontecendo. Quem precisa de mágica? Tudo o que eu
preciso são de estratégias inteligentes.

Bem, nós precisamos da mágica para parar o ônibus. Mas todo o resto fui eu
que fiz. Posso fazer qualquer coisa em que ponha minha mente, decidida a fazer,
exatamente como minha mãe sempre me disse que eu podia. Bem, nem tudo. Não
há nada que eu possa fazer para evitar o começo das aulas amanhã. Se ao menos
eu pudesse conjurar um feitiço para cancelar a escola. Ou, no mínimo, uma
tempestade de neve bem esquisita.

Não tem como eu encarar o colégio amanhã. Alguma chance de o pessoal da
JFK ter esquecido do fiasco que foi o show de moda? Bem, já se passou uma
semana inteira. Até parece.

Mesmo que as massas tenham esquecido, não há chance de a turma
horrenda do show de moda ter esquecido também. A London, provavelmente,
passou a semana inteira bolando maneiras de me torturar. Afinal de contas, eu a fiz
cair no palco e ainda quebrei sua perna. Oh, Deus. Preciso arranjar uma maneira de
me esconder. Quem sabe meu queixo machucado possa funcionar como um
disfarce? Não, aposto que a marca vai ter sumido amanhã. A inflamação já
começou a diminuir.

Mas Miri deu uma ideia melhor. Se eu pegasse um resfriado, podia ficar na
cama o dia inteiro. Eu desligo o aquecedor.

- Ficou doida? - Miri pergunta. - Está congelando nesse carro. Você quer
pegar um resfriado?

- Quero! - Eu abaixo a janela e aspiro o ar gelado.
3. Nem totalmente sumida. Nem totalmente esquecida

Trim! Trim! Trim! Triml

Nananananananããããooooooooooo. São sete horas da manhã. Segunda de
manhã e minha garganta não dói nadinha, apesar de tudo que eu fiz. Como é
possível? Fiquei aspirando ar frio direto. Tomei banho e dei uma volta pelo
quarteirão - sem secar os cabelos! De propósito, não tomei vitamina antes de ir
para a cama! (Não conte para o meu pai, ele é obsessivo com vitaminas.) Também
não tomei meu copo de suco de laranja noturno. E eu adoro meu copo de suco
noturno. A carga de vitamina C me dá sonhos lindos.

alvez eu esteja com febre. Estou sentindo uma dor de cabeça forte. Eu devia
estar, no mínimo, com 38.3, talvez 38.8. Minha garganta não está inflamada, mas
estou me sentindo quente. Talvez tenha de ser hospitalizada. Talvez o pessoal da
escola se sinta culpado em criticar severamente alguém que está doente e me
envie flores e um daqueles cartões, de tamanho natural, que todo mundo assina,
em diferentes cores. Na verdade, eles provavelmente vão achar que a minha
atuação horrenda no show de moda tenha sido resultado da doença, e eu vou ser
perdoada, porque ninguém pode ficar zangado com alguém que está doente.
Lista-A, aqui vou eu de volta! Além do mais, tenho um médico gostosíssimo para
cuidar de mim até eu ficar boa de novo. Isso!

Corro para o banheiro, paro na borda da banheira e coloco o termômetro
sob a língua.

- Ah, desista. Você está em perfeita saúde - Miri diz, entrando apressada e
abrindo a torneira.

- F...óia! - murmuro, que traduzo para Fora! na língua não-termômetra. -
...tou du'nte. Puvavelmente contazioso.

Ela põe pasta na escova.

- Deixa de manha e vamos pro colégio. Você vai ficar ótima.

Não vou nada. Eu me olho no espelho e começo a ofegar. Meu queixo está
todo coberto com uma crosta e parece pior do que nunca. Parece uma barba. Mas
essa história toda não começou por culpa da Miri? Perder minhas habilidades como
bailarina, machucar o queixo. Estou a ponto de mandar ela dar o fora, mas, em vez
disso, decidi tentar me acalmar. Eu não deveria ficar tão emotiva quando estou
mortalmente doente.

O termômetro apita e marca... 36.7?

O quê? É impossível. Como posso não estar com febre? Eu estou em perfeita
saúde. Como pode ser? Humm, 36.7 é uma temperatura normal? Talvez seja uma
doença perigosa que faça a temperatura cair. Talvez ao meio-dia chegue a 32.2, de
tarde 26.6 e de noite eu vire um picolé, incapaz de me movimentar sem meus
dedos baterem como fossem galhos cobertos de gelo.
Miri arranca o termômetro traidor das minhas mãos.

- Você está bem. Vá se vestir.

Falando em gelo, talvez esteja nevando lá fora. Então a escola vai decretar
um dia sem aula por causa da neve e eu vou ter que ficar em casa. Corro de volta
para o meu quarto e abro as persianas da janela.

Tremendo sol. Um belo dia ensolarado. Mas o tempo não deveria se tocar e
refletir o meu estado de espírito?

- Mãe! - eu grito. - Posso ficar em casa hoje? Por favooor?

- Não! - ela grita de volta através das paredes.

Desabo na minha cama desfeita e puxo as cobertas até a cabeça.

- Mas eu vou ser uma pária social naquele colégio! E estou com barba!

- Eu disse a você que se você fosse madura o suficiente para usar mágica,
teria de ser também madura o bastante para enfrentar as consequências. Além
disso, você não pode se esconder para sempre.

Para sempre, não. Mas pelo menos até que a minha turma se forme. Então
eu seria uns poucos anos mais velha do que os outros, quando finalmente voltasse
para o colégio. No mínimo, meu corpo vai alcançar o das outras garotas. Haja
esperança! Até mesmo minha irmãzinha caçula me vence nesse departamento, com
seus seios bojo-B. Que injustiça!

- Mas eu estou parecendo um homem!

Dá para eu escutar a risada dela. Rá-rá.

- Não é tão grave assim, Rachel. Termine de se aprontar para ir para a
escola.

Sei, tá mais com cara de eu me aprontar para sofrer toda humilhação do
mundo.

Se eu caminhar com passos bem pequenos, consigo chegar atrasada. Como
não trouxe um bilhete de casa, vou ser expulsa. Então, nunca mais vou ter de
voltar à escola! Só que aí também não vou entrar na universidade. Daí, nunca que
vou conseguir um bom emprego e o único lugar onde poderia trabalhar seria o
McDonalds e tudo o que eu comeria seria Big Mac e fritas, e um dia minha vizinha
me encontraria com duzentos quilos, incapaz de passar pela porta do meu
apartamento infestado de gatos.

Faço minhas passadas levemente mais largas. E aperto meu casaco preto
acolchoado. O sol brilhante, ilusoriamente, faz o tempo parecer quente quando, na
verdade, está mais frio do que ontem.

No que estou a poucos quarteirões do colégio, uma coisa aparece. Como
uma Times Square silenciosa. Uma multidão de alunos está reunida fora do prédio.
Xiiiii! Será que todos eles estão me esperando para debochar de mim? Será que
virei tão famosa assim?

- Que barato, cara! - um estudante sênior diz, enquanto passa. - Vou poder
voltar pra cama.

Eu gostaria de voltar para a minha cama. Gostaria de voltar para a escola da
garotada menor. E corro para o meio da multidão e tento escutar o que o pessoal
mais velho está falando, para descobrir o que tinha acontecido.

- ...essas vacas lá dentro. Não é engraçado? Deve ser o trote de final de
curso dos seniores - um deles arrisca. Vacas?

- O melhor trote que eu já vi - diz um outro. - Como conseguiram fazer uma
coisa dessas? Colocar cinquenta vacas no ginásio da escola sem ninguém ver?
Cinquenta vacas?

As palavras e o barulho rodopiam à minha volta, como se eu tivesse num
carrossel.

- ...duvido que alguns dos seniores são espertos o bastante para arrumar
um jeito de fazer uma coisa dessas...

- ...provavelmente aqueles idiotas da Brentwood High...

- ...as aulas vão ser canceladas...

- ...grandes prejuízos no colégio...

- ...agentes da saúde têm de descontaminar...

Imediatamente, me senti zonza, como se tivesse doado sangue. Não
poderiam ser as vacas da Miri, podiam? As vacas da fazenda Sammy? Não. Talvez.
Será que a Miri desejou que elas fossem transportadas para o ginásio do colégio?
Mas por que ela ia desejar que viessem parar no ginásio do meu colégio? Ela nunca
veio aqui, neste colégio. Ela está na escola intermediária.

E será que eu sou parcialmente responsável pelos prejuízos nas instalações
do colégio? Estou me sentindo mal. Por outro lado - nada de escola! Tão doce e tão
amargo. E então eu enxergo o Raf.

Minhas bochechas se esquentam apesar do frio.

Mesmo de costas para mim, sei que é ele pelo casaco de couro de camelo.
Era seu casaco de outono/primavera, o tal que ele usava quando eu o vi, pela
primeira vez, em setembro, e já achei que ele era interessante. Pelo resto da minha
vida, sempre vou pensar no Raf quando vir um garoto com casaco de couro de
camelo. Ou qualquer coisa da cor de couro de camelo. Como calda de caramelo.
Que é uma delícia.

Raf não está usando luvas. Ele deixou cair uma delas no meu apartamento
na noite em que veio me pegar (e eu não estava lá) para o Baile da Primavera. Já
que uma peça de roupa é um ingrediente-chave no feitiço do amor, é claro que eu
pedi à Miri para preparar um para mim. Infelizmente, ela ainda está traumatizada
com a confusão provocada pelo feitiço do amor que nós jogamos no papai, e não
está muito ansiosa para retornar ao jogo da afeição-falsa por enquanto. (Um
pequeno desastre que nos aconteceu quando tentamos acabar com o casamento do
meu pai e sua noiva. Obviamente, nós resolvemos a situação, já que eles estão,
atualmente, em lua-de-mel no Havaí. Uma longa história, mas deixa eu dizer que
nossa madrasta não pareceu tão ruim como nós temíamos, no final.)
Tomara que ele não esteja sentindo frio nas mãos. Acho que, agora em
abril, não há muito sentido em comprar um novo par de luvas. Embora ele
provavelmente possa encontrar alguma liquidação fantástica.

Ele me viu? Está com ódio de mim? Será que seria melhor eu me esconder
ou me desculpar de novo? Você tem de fazer as coisas acontecerem, eu lembro a
mim mesma.

Se eu posso voar numa vassoura sem cinto de segurança, posso conversar
com um garoto que gostava de mim.

Mas, primeiro, preciso esconder meu queixo. Subo minha gola olímpica para
cobrir a metade de baixo do meu rosto. Muito melhor assim. Ótimo, agora lá vou
eu. Contando até dez. Eu bato os pés no chão e conto.

Nove, dez.

Mais dez segundos.

Ele está indo embora. Meu cavaleiro-no-camelo está desaparecendo no
horizonte como sol se pondo. Sei que devia correr atrás dele, mas meus novos
sapatos estão grudados no chão como se fossem caroços de barro cor-de-rosa. Eu
sigo meio-afundada na minha poça de tristeza particular até escapulir dela de
repente, quando escuto uma risadinha abalada.

Olho para a minha direita e vejo Jewel Sanchez, Melissa Davis e Stephy
Collins em pé, fazendo um semicírculo, todas sorrindo para mim. Com seus cabelos
castanhos, vermelhos e loiros, elas parecem para mim como As Panteras, só que
malvadas. Estão todas usando modelitos novíssimos de volta à escola: jeans
apertados, casacos de primavera de grife, óculos de sol colocados no alto de seus
cabelos que haviam acabado de passar por um tratamento completo de luzes etc.
Mesmo sabendo que Melissa é da mesma altura que Jewel, mais ou menos um
metro e setenta, ela parece mais alta do que ela. O ego deve acrescentar alguns
centímetros da mesma forma que a câmera acrescenta quilos. Os cachos cor de
mogno de Jewel estão presos na sua cabeça num estilo que tenta parecer que ela
apenas jogou-os para trás. Só que, depois dos nossos anos de Bee-Bee (Best-Buds:
traduzindo, Melhores Amigas), eu sei que ela levava, no mínimo, uma hora fazendo
aquilo. O longo rabo-de-cavalo loiro de Stephy se foi e seu cabelinho curto à la
Fada Sininho, junto com seu tipo miúdo, fazem parecer que ela tem sete anos. Uma
menina malvadinha de sete anos, do tipo que rouba seu doce. As três e Doree
Matson tiveram a sorte de serem as quatro calouras escolhidas por London para o
show de moda. Portanto, elas são agora super lista-A. Infelizmente, se os três
pares de olhos delas fossem raios laser, eu seria desintegrada imediatamente. Bem
rápido, baixo os olhos para os meus sapatos. Vou apenas me desviar delas, antes
que possam me dar o bote. Devagar, controlada. Um passo, dois, três. Corra,
corra, corra!

Epa!

Uma pessoa controlada não tropeça num bicicletário e desaba sobre seus
cotovelos, não é?

Vejo um flash de luz e espero que tenha ficado inconsciente. Vou acordar
num hospital, finalmente vivendo no cenário choroso do um-bocadão-de-flores/
cartões-tamanho-natural/médico-gostoso. Mas quem disse que tenho uma sorte
dessas? Já posso ouvir o trio diabólico de calouras tagarelando. Não posso acreditar
que Jewel, minha ex-melhor-amiga, esteja realmente rindo de mim. Ignorar é uma
coisa, mas rir? Do meu lugar no chão, vejo as redondezas embaçadas,
principalmente devido à irritação do fundo dos meus olhos.

Até que uma mão familiar me toca, vindo me ajudar.

- Oi! - diz Tammy. - Aqui está você!

Nunca fiquei tão feliz de ver o rosto da minha nova melhor amiga.

- Obrigada, meu Deus - eu digo, equilibrando-me e limpando a sujeira do
meu casaco. - Eu senti a sua falta! Quando você voltou?

- Na noite passada, às 11h. - Ela enruga seu nariz e gentilmente toca meu
queixo. - Isso aí deve estar doendo, não é?

- Tudo bem. Você parece ótima - digo, e dou nela um abraço bem apertado.
Diferente de mim, ela parece bronzeada e relaxada. - Como foram as férias? Ela
solta a mochila na calçada.

- Fantásticas. Mergulhei no meio de tubarões.

- Como é?

- Fiquei numa gaiola debaixo dágua cercada por enormes tubarões-martelo!
Foi ótimo.

- Mas era seguro? Por que você quis fazer isso?

- A gaiola protege você totalmente. E como assim "por quê"? Qual o outro
jeito da gente ver tubarões de perto?

Eu viro o queixo na direção de Jewel, Melissa e Stephy e então enrolo a gola
olímpica de volta. Aquelas garotas são tubarões no mar do nosso colégio.

- Acho que eu devia ter trazido uma gaiola para cá.

Tammy ri e então fica na ponta dos pés e examina o pátio.

- Você viu o Aaron?

- Não. Você não falou com ele depois que voltou?

- Não. E ele não me passou nenhum e-mail desde que eu o deixei no
domingo. Por que será? Você acha que tem alguma coisa errada? Eu sei que ele
estava indo para a festa de Mick Lloyd na noite que eu fui para o Golfo do México.
Eu morro se ele estiver namorando outra pessoa. Você não ouviu nada, ouviu? -
Imediatamente, ela coça a ponta do nariz, como sempre faz quando se sente
insegura. É um pouco grande na parte mais larga e ela está convencida de que o
tamanho do seu nariz é a razão de nunca ter encontrado um namorado antes de
Aaron.

- De quem? Você é a única pessoa que ainda fala comigo.

Não receber nenhum e-mail do namorado por oito dias não parece um bom
sinal. Não que eu fosse dizer isso a ela. Tem certas coisas que uma melhor amiga
nunca deve dizer. Uma delas é "Eu acho que ele não gosta mais de você". Outra é:
"Tem razão, seu nariz é bem grande." Mas a verdade é que não é por causa do
nariz dela que Tammy nunca arranjou um namorado. Ela nunca arranjou um
namorado porque os garotos são todos uns idiotas. Quer dizer, eu nunca tive um
namorado de verdade e não tem nada errado comigo, certo? Bem, exceto pelo fato
de a minha família ser meio melosa e um bocado estranha. E minha barba, mas
isso é novidade. Ora, seja como for eu acho que não é nada bom ele não ter
entrado em contato com ela durante as férias. Especialmente depois de terem
ficado três horas se beijando no sofá, no casamento do meu pai, e isso mal faz oito
dias, agora.

- Na certa, ele andou ocupado, só isso - digo eu. Ela franze as sobrancelhas,
sem acreditar, e então boceja, cobrindo a boca.

- Eu estou cansada.

- Provavelmente devido à diferença de fuso horário.

- É somente de uma hora - ela diz, rindo.

- Alunos! Olá? Alunos? - A Sra. Konch, a diretora, está gritando num
alto-falante. Ela é pequena e roliça, e me lembra um rocambole. - Todos, por favor,
desocupem o local! Verifiquem o seu e-mail do colégio esta noite para receberem
notícias!

- Que loucura - Tammy murmura. - Você acha que o boato sobre as vacas é
verdade? Não dá para acreditar. - Ela encolhe os ombros e boceja
simultaneamente.

- Hum... ah. É, não dá. - Sei que eu devia me preocupar com as vacas, mas,
no momento, estou mais preocupada como olhar de raio laser vindo de London
Zeal. Ela está a pouca distância de mim, cercada pela turma super-glamourosa e
cintilante do show de moda. As garotas estão inteiramente maquiadas, com seus
batons mais fortes, saias de algodão curtas, botas pretas na altura do joelho. Os
garotos estão com seus casacos de couro preto super na moda e jeans amassados.
London está toda de branco: jaqueta jeans, saia de couro branca, um salto branco
de 5 cm no seu pé que não está quebrado, para combinar com a perna imobilizada
de alto a baixo num gesso absolutamente branco. Ela não ia querer quebrar a sua
regra de roupa-de-uma-cor-só.

Eu não devia debochar; o gesso da perna dela era inteiramente culpa minha
e eu me sinto horrível por isso. Timidamente, eu me aproximo do grupo.

- London, eu sinto muito - eu disse sinceramente. Mesmo ela sendo uma
peste, não merecia ter a perna quebrada.

O grupo dá uma risadinha. London vem mancando na minha direção.

- Sente muito? - ela sibila. - Ah, mas você vai sentir mesmo. E demais,
quando eu tiver acabado com você. - Ela espeta sua unha francesinha no meu peito
e então volta mancando para suas amigas.

Os calouros da Lista-A me odiarem é uma coisa. Mas os seniores da Lista-A
também?

Estou condenada.

- Vamos sair daqui - Tammy diz.
- Certo. Quer ir lá pra casa?

Tammy dá uma última olhada no pátio, parecendo à procura de Aaron.
Então ela me dá um sinal de tudo bem com sua mão direita. Debaixo d'água, num
mergulho, esse sinal pode significar qualquer coisa, de está-tudo-bem até
os-seus-ouvidos-estão-doendo a sim-eu-estou-bem até eu-sou-espetacular. Então,
tem vezes que não tenho certeza do que significa, mas, no momento, eu acho que
ela está dizendo "Tá legal".

- Por favor, esvaziem as instalações do colégio! - a diretora Konch diz
novamente, parecendo ansiosa e irritada como se fosse nossa culpa que as vacas
tivessem invadido o ginásio.

Como se.

*

- As vacas estão no ginásio? - Miri ri, estridentemente, às seis horas daquela
noite, batendo com os pés no meu tapete.

- Fala baixo - eu digo, - Nossa mãe está vendo o noticiário no quarto dela.

- Como pode? Você tem certeza que fomos nós que fizemos isso?

- Não, mas faz sentido. Você fez zapt nelas para colocar todas a salvo, elas
desapareceram e esta manhã havia cinquenta vacas no ginásio do meu colégio.
Coincidência? Eu não acho. - Ela dá um pontapé na cadeira, que tomba de lado. -
Cuidado - aviso a ela. Os pontapés de Miri são como miniarmas. - O feitiço foi mais
um feitiço de mudança do que de segurança - eu acrescento, inclinando a cabeça. -
No entanto, sua vontade essencial teve a estupidez de achar que as vacas ficariam
mais seguras no ginásio. Quem sabe?

Ela agita as mãos, claramente exasperada.

- Mas... mas... o que vai acontecer com elas agora?

- Como eu vou saber? Me diz isso você, que fez a mudança!

Ela tenta mordiscar seus dedos, mas eu puxo a mão dela.

- Só podem ser as nossas vacas - ela diz. - Mas como foram parar no
colégio? Você acha que, subconscientemente, eu estava tentando fazer você
escapar da aula?

Ah!

- Miri, que gracinha! Mas ouça, embora ache um amor essa sua
preocupação, acho que você deveria fazer o feitiço de reversão.

- Sem chance - ela diz, balançando sua cabeça. - Pra começar, o feitiço de
reversão é de cinco vassouras e eu não quero me afundar ainda mais nessa
confusão. - Junto a cada feitiço no livro há ícones de vassouras. Uma vassoura
significa que o feitiço é leve e fácil; cinco significa que é extremamente intrincado e
difícil de executar. - E depois, não vou mandar as vacas de volta. Tem de haver
outro jeito. A gente tem de mandá-las para algum outro lugar.

- E como vamos fazer isso?
- A gente vai até lá e zapt!, elas desaparecem de novo. - Ela mordisca seu
dedo, então engole.

- Você comeu a sua pele? Mas que porcaria. - Eu balanço a cabeça, sentindo
enjoo. - E... nem pensar. Não podemos entrar na escola. Escutei sirenes da polícia
quando estava saindo. A coisa lá está difícil agora. Alguém pode nos ver.

Ela me olha em pânico.

- Eles sabem que fomos nós?

- Claro, Miri, quando viram aquelas vacas no ginásio, adivinharam que a
irmã caçula de uma das alunas tinha feito um feitiço mágico.

Ela tapa os olhos com as mãos.

- Oh, não!

- Eu estava sendo sarcástica. Claro que eles não sabem! Estão pensando
que foi um trote dos seniores.

Ela respirou fundo.

- Bem, o que vai acontecer? - Acabei de receber um e-mail. A escola vai
estar fechada amanhã e quarta-feira, mas abre de novo na quinta-feira. A boa
notícia é que eu consegui mais dois dias. Obrigada pela ajuda!

O telefone toca e eu o agarro.

- Ele está com mononucleose! - Tammy diz, contente. - Por isso ele não
passou nenhum e-mail! Estava derrubado demais até para chegar perto do
computador. Não é maravilhoso?

- Um momento - eu digo e empurro Miri para fora do quarto.

- Você pode falar com ela depois, por favor? - Miri grita. - Alô? Importante!

- Me dá dois segundos. É uma conversa particular - eu respondo e fecho a
porta. - Tam, estou feliz que ele não tenha acabado o namoro com você, mas você
não está preocupada em ficar doente também? - E então ela teria de faltar as
aulas. Algumas pessoas são sortudas mesmo, não são? Pausa.

- Eu estou me sentindo bem.

Eu cochicho no telefone para que a pequena Miri não possa escutar.

- Mas é a doença do beijo. Você sabia? Passa pela saliva. E vocês dois...
ficaram no maior amasso.

- Mas eu estou bem. E seja como for - agora sua voz fica tão baixa que
parece um cochicho - minha mãe ia me matar. - Era para se pensar que ter duas
mães iria tornar a família de Tammy superliberal, só que Tammy não conta nada
para elas. - Mas não são grandes notícias?

- Você dormiu no meu sofá hoje. Vendo Casablanca. Você adora esse filme -
eu digo, mais para mim do que para ela. Sonolência é um dos sintomas da
mononucleose.
- Eu estava exausta, Rachel. Mergulhar é cansativo. Especialmente entre
tubarões.

Miri está dando pancadas na porta. E a Tammy está com mononucleose e
vai me abandonar na escola.

- Ótimo. Tenho de desligar. Quer vir aqui amanhã ver Titanik? - ela gosta de
qualquer filme que tenha ganhado o Oscar. E talvez a gente possa usar a mesma
escova de dentes e daí eu pego mononucleose dela. Perfeito.

Nós desligamos e eu deixo minha irmã entrar.

- E o que vamos fazer com as vacas? Vamos contar pra mamãe? - ela
pergunta, desamparada.

- Rachel! - minha mãe, aparentemente uma vidente, grita da sala. - Seu
colégio está aparecendo na tevê!

Miri e eu corremos para o quarto da minha mãe e lá, na tevê, estão as
vacas. Um repórter está em pé à frente delas.

- Hoje, na escola JFK, um trote de alunos alcançou um nível inédito.
Alguém... muuuuuuu! - "ai, ai", eu gemo - deu um jeito de colocar cinquenta vacas
no ginásio da escola. Relacionando com outras notícias, isso explica o misterioso
desaparecimento no sábado do gado da fazenda Sammy um matadouro no norte de
Nova York.

O cenário muda para a Sammy.

- Ei! - minha mãe diz, debaixo de seu acolchoado púrpura. - Isso não é
perto...

Lá, lá, lá. Miri começa a mordiscar suas unhas. Eu fico mexendo no cabelo.
Um homem mais velho está na tevê.

- Foi uma coisa estranha - ele diz, parecendo inteiramente espantado. - Os
animais estavam aqui ruminando às 19h, mas sumiram às 4h. Não ouvimos nada. É
quase sobrenatural. Se não soubéssemos que é impossível, íamos pensar que foi
trabalho dos alienígenas...

- Meninas - minha mãe diz, seus olhos direto em nós, - vocês têm alguma
coisa para me dizer? A gente se encolhe.

- Rachel - ela começa. - Foi esse o seu plano para conseguir que as aulas
fossem canceladas?

Ela acha que eu fiz isso? Alô! Eu sou a garota que ficou para trás. A garota a
quem a natureza esqueceu de dar o gene de bruxa.

- Mãe, eu juro que não sabia que isso ia acontecer.

Ela dá tapinhas no lugar onde o lençol ainda não estava amarrotado, ao lado
dela.

- Por que vocês duas não sentam aqui e explicam tudo?

O rosto de Miri se contrai como uma passa. Lá vem choradeira.
- É minha culpa! - ela geme, lágrimas se derramando aos montes. - Eu
estava tentando salvar as vacas! ­ Soluço... - Não queria colocar elas no ginásio do
colégio, eu juro, e agora alguém inocente vai levar a culpa. E não pode ser eu
porque daí as pessoas vão saber de tudo, mas eu não quero que seja outra pessoa
porque seria muito injusto. - Miri então vai para o lugar onde estava nossa mãe e
eu me jogo na ponta da cama.

Minha mãe passa a mão no cabelo de Miri.

- Então vocês estavam tentando salvar as vacas - ela diz.

Nós concordamos freneticamente.

- Isso mesmo!

- Entendo.

Tá bem, agora que ela sabe, tudo vai ficar bem. Minha mãe vai nos dizer
como resolver a situação e vai dar um jeito em tudo. Fim do problema!

- Como vocês vão resolver isso? - mamãe pergunta. O quê?

- Hum, nós? - eu estranho.

- Eu disse que vocês podiam usar mágica. Mas também disse que têm de
encarar as consequências. E isso significa não esperar que eu arrume a bagunça
que vocês aprontam. - Ela balança seu dedo indicador diante de nós. - Vocês duas
têm que se virar sozinhas.

Miri afunda no colchão.

- Você pode dar algum conselho? - ela pede, com a voz esganiçada.

- Posso. Da próxima vez que você lançar um feitiço, pense no que está
fazendo. Para onde você pensou que as vacas estavam indo?

- Para algum lugar seguro? - minha irmã responde.

- Sim, mas onde?

- Eu não sei.

- Agora você já sabe - minha mãe diz severamente. - Assim você será mais
cuidadosa da próxima vez. ­ E então ela sorri? De onde surgiu este sorriso?

- Você está bem, mãe?

- Desculpem-me - ela diz, ainda rindo. - É só que estou pensando numa
outra coisa.

- Outra coisa?

O que a distrairia além da transferência que fizemos das vacas pelo estado?

- O que há com você?

E aponta o controle remoto para a tevê e a desliga.
- Lex ligou hoje.

- Lex? - Miri pareceu confusa. - Luther?

- Sim, a nêmesis do Super-Homem ligou para mamãe - eu digo, deitando
nas pernas de Miri. - De que planeta você veio? Lex é o velho do ônibus. - Eu não
acredito que ele já ligou. Só faz um dia que nós voltamos. Ele está obviamente
interessado. - O que ele quer?

- Levar-me para jantar - ela diz, com um amplo sorriso.

Miri cobre a cabeça com o cobertor.

- Eu não quero que você namore novamente! Você vai se esquecer de nós.

- Nunca, jamais - mamãe diz, tranquilizando-a.

- Bem, eu não estou preocupada - eu disse. - Eu quero que você namore
novamente. Só que não com ele. Você não vai sair com ele, vai?

- É claro que vou - ela responde. - Por que não iria? Você não achou ele
simpático?

- Simpático e velho - eu digo. - Ele provavelmente janta às cinco da tarde e
pede só uma canja. - Miri ri debaixo da coberta e eu acrescento: - Você devia é sair
com sujeitos mais jovens. - Eu me junto a Miri debaixo das cobertas e então
sentamos, e assim parecia que estávamos dentro de uma barraca.

Minha mãe suspira.

- Não seja maldosa, Rachel. E não tem outros caras batendo na minha
porta.

- Quando você vai sair com ele? Este sábado à noite? - Pelo menos, alguém
nesta casa tem um namorado. Eu ergo o edredom e puxo minha mãe para ficar
comigo embaixo dele.

- Não - ela diz, sentando-se ao meu lado. - Eu disse que teria o maior prazer
de sair com ele no fim de semana do dia oito.

Aparentemente, mamãe joga duro. Nada de programas de última hora.
Alguém deve estar recomendando livros sobre encontros para ela.

- Mas é daqui a três semanas e meia!

- Não é tão longe - ela diz. - É na próxima vez que vocês estarão na casa do
seu pai.

- Nós não somos bebês, mamãe - resmungo eu. - Você tem o direito de ter
sua vida quando estamos aqui. Papai tem a vida dele. Você deveria ter a sua
também. - Posso sentir ela dando de ombros, no escuro. - Então você concorda
comigo? - eu pergunto. - Um jantar no sábado à noite?

- Não. Eu pedi a ele para ligar de novo perto da data.

- Isso foi bom - Miri diz, displicentemente. - Já que ele é tão velho, pode ser
que até lá tenha batido as botas.
Minha mãe ri, então nós três caímos na gargalhada e nossa-barraca parece
quente e acolhedora como um casulo.

- Está na hora de começar a fazer o jantar ­ minha mãe diz e desmonta o
nosso refúgio.

- Não - eu peço. Não quero romper esta bolha. Não quero voltar à realidade
ainda. Não quero me preocupar com vacas ou em ir para a escola, nem com Raf ou
London nem qualquer coisa dessas.

- Tudo vai ficar bem - ela diz, dando um tapinha no meu joelho.

Talvez ela esteja certa. O problema das vacas cedo ou tarde será resolvido.
E o quanto pode ser cruel a vingança da London?




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Toc! Toc!

Graças a Deus por Tammy. Se ela não tivesse sentado perto de mim, eu,
definitivamente, teria de pedir transferência para outro colégio.

Os últimos dois dias passaram muito rápido. Por que as coisas boas passam
tão rápido? Férias. Dinheiro. Sorvete.

Nós duas estamos sentadas do lado direito do auditório, na primeira fila. Eu
avisei a Tammy que ficar perto de mim poderia contaminar seu status social, mas
ela estava convencida de que, depois de uma semana e meia, a panelinha do show
de moda teria esquecido tudo sobre mim. Os anos de adolescência são como os
anos de cachorros. Treze dias significam treze meses.

Como sempre, há boas e más notícias. As más notícias é que elas não
esqueceram. London Zeal está batendo na minha cadeira. Sim, London e seu bando
dos brilhantes seniores da Lista-A seguiram-me até o meu lugar para poderem se
sentar atrás de mim e ficarem batendo nas costas do meu assento com a ponta de
suas botas pontudas. Muito maduro, não? Estou tentando ignorá-las. A outra má
notícia é que um cheiro de bosta de vaca está pairando na escola inteira.

A boa notícia é que minha barba se foi. Uma vez que eu, muito habilmente,
a escondi debaixo de minha gola na segunda, ninguém jamais soube que ela existiu
e agora é como se nunca tivesse acontecido.

Toc Toc. Se o auditório não tivesse assentos embutidos, minha cadeira teria
sido projetada para o outro lado da sala, a esta altura.

Toc, toc. Ela está me fazendo desejar que eu tivesse lhe quebrado ambas as
pernas.
Tammy boceja.

- Você parece cansada - eu comento. - Não está?

- Não.

- E sua garganta não está doendo? - Glândulas inchadas são outro sintoma
de mononucleose.

- Não. E o pobre do Aaron que está com mononucleose. Não eu.

Ambas estamos tentando negar a realidade. Tammy adormeceu no meu sofá
ontem novamente. Mas eu não podia suportar estar na escola sem ela.

Toc. Toc, toc.

Basta! Eu viro o rosto para minha nêmesis.

- Sim, London?

Sua perna boa está erguida, prestes a chutar meu assento.

- Se não é a Rochelle Weiner - ela diz.

- É Rachel Weinstein - eu respondo. - Em que posso ajudá-la? - O que ela
quer de mim? Uma das minhas pernas boas? Mas eu já tinha pedido desculpas a
ela.

- Eu estou surpresa em ver você aqui.

- Eu estudo aqui.

- Sim, mas não serão meses muito agradáveis para você, isso eu lhe
prometo. Você devia pedir transferência. A menos que você esteja se divertindo
com a cobertura. - Ao lado dela, os puxa-sacos do show de moda soltam
risadinhas.

Do que ela está falando? O que quis dizer com cobertura? Eu olho para
Tammy para uma explicação, mas ela parece adormecida. Eu não respondo, então
me viro para frente. Foi uma proeza e tanto conseguir que a garota mais popular
da escola me odiasse, não foi?

No palco, a Sra. Konch, o vice-diretor Earls e Will Kosravi, irmão do Rafe
presidente do conselho estudantil, ajeitam-se. Então o Sr. Earls pigarreia no
microfone. London chuta minha cadeira de novo.

Eu dou uma cotovelada em Tammy.

- Você está bem?

Seus olhos se abrem.

- Eu não estou cansada.

A Sra. Konch toma o microfone.

- Eu queria que nós pudéssemos estar de volta em circunstâncias mais
alegres, mas, infelizmente, a escola foi vítima de uma terrível maquinação. - Ela
olha ameaçadoramente atravessando as filas e filas de estudantes. - Nós vamos
descobrir o culpado. Se alguém tem alguma informação, ganhará uma recompensa.
E aos responsáveis, a punição será menos rigorosa se confessarem. Eu escorrego
na cadeira. Toc.

- Os animais - ela diz, franzindo as sobrancelhas enquanto risos abafados
podem ser ouvidos das filas - causaram graves prejuízos ao chão do ginásio...

Foi mesmo?

- ...e também nas dez salas vizinhas ao ginásio, os vestiários...

O quê, lá também?

- ...e a lanchonete.

Vacas estúpidas, hiperativas.

- Vamos ter de fazer algumas mudanças - ela continua. - Primeiro, todas as
aulas de ginástica vão acontecer do lado de fora. Por isso, vistam-se
adequadamente. Segundo, até que as salas sejam recuperadas, algumas turmas de
calouros serão reunidas. Confiram os horários das turmas nos quadros de
atividades. Por último, a biblioteca ficará aberta para o almoço.

Você gostaria de algumas fritas com aquele Shakespeare? Talvez Raf fique
numa dessas turmas.

Toc.

Ronc.

Ai, ai.

*

Mas que sorte. Em vez de ficar na mesma sala do Raf, quem ficou comigo
foram Melissa e Jewel.

Eu puxei uma Tammy grogue para a fileira de trás. Quando eu estou a ponto
de me sentar, Melissa escorrega para o assento. Eu pego a cadeira em frente a ela.
- Guardei para a Doree - Melissa diz. Eu aponto para a carteira vazia ao lado dela.

- E aquela?

Jewel escorrega para a carteira, dando de ombros. Meu estômago afunda.
Não que eu espere que ela me ajude. Neste último estágio do jogo, somente um
lugar permanece vazio. É perto da janela, então eu sento Tammy nele - talvez o ar
fresco a mantenha acordada - e me agacho ao lado dela no linóleo duro e frio.
Quando olho para cima, a bochecha de Tammy já está achatada na carteira. O que
me deixa sem ninguém para conversar.

Doree Matson, de longe a mais chata de todas as calouras da Lista-A,
principalmente porque se acha inteligente e nunca conversa em classe, entra
afetadamente pela sala.

- Olá, querida! - ela fala, cantante, para Melissa, enquanto senta na carteira
guardada para ela.

Janice Cooper, uma amiga de Tammy, senta no chão ao meu lado.

- Eu sinto muito - ela diz numa voz muito séria. - Como você está?

- Sente muito por quê? - eu pergunto, sem saber do que ela está falando.
Ela me encara.

- Por você ter sido colocada lá... Que chato!

Como?

- Colocada onde?

Em vez de me olhar, ela remexe no pauzinho que prende seu longo cabelo
castanho.

- Você não viu?

- Viu o quê? - O pânico está me envolvendo como uma camisa de força.

- Ah, sabe como é. Não tem nenhuma importância. - Ela cora e olha para
baixo, para o livro.

Péssimo sinal. Péssimo mesmo, pior do que barata no banheiro! Eu me
estico e sacudo o braço de Tammy, tentando manter minha voz baixa.

- O que está acontecendo? Tammy abre os olhos.

- Não estou cansada,

- O que eu não vi? - eu cochicho.

Ela fica ruborizada, de repente, e volta a prestar atenção...

- Olha, Rachel, estou tentando encontrar alguém para tirar você de lá...

Será que alguém escreveu sobre mim nas paredes dos banheiros? Meu sutiã
foi pendurado num mastro de bandeira?

- Tirar o quê?

- Sua foto no site dos esquisitões.

- O quê? - eu dou um grito agudo. Eu nem sequer sabia que havia um site
de esquisitões.

Tammy se agacha na minha direção e cochicha.

- Rachel, eu lamento. Não vi sentido em dizer a você, já que sabia que você
ia ter um troço e aí ia virar esquisita mesmo... Não, quer dizer, ia ficar
transtornada... quer dizer, ia ficar aborrecida. É uma coisa estúpida, feita pelas
garotas seniores. Aaron me contou e eu conversei com a Sra. Konch, pedindo que
tirem o site do ar, mas acho que a administração está ocupada demais com o
negócio das vacas para fazer qualquer coisa agora.
Acho que vou ter um ataque.

- O que tem nesse site? - eu cochicho.

- Você não querer saber. Mas não se preocupe. Nós vamos deletá-lo.

Gostaria que eu mesma fosse deletada.

*

O dia progrediu de muito ruim para muito pior. Nossa turma de matemática
não foi duplicada porque estamos adiantadas, mas Hayward nos deu um
teste-surpresa e eu devo ter errado absolutamente tudo. Não conseguia me
concentrar. E eu nunca tirei nota ruim num teste de matemática em toda a minha
vida. Matemática é comigo mesmo. Juro que eu não estou sendo vaidosa, mas
algumas pessoas me consideram um gênio em matemática. Durante o teste, no
entanto, mal podia me lembrar do que é um polinômio porque tudo o que eu
conseguia pensar é que precisava entrar na Internet.

E então Jewel, Melissa e Doree também estavam na minha turma de
biologia, coisa que eu teria amado há um mês, mas agora eu só queria chutar a
cabeça delas com a ponta do meu sapato.

Eu vejo o Raf quando ele está a ponto de sair para o almoço. Seu cabelo
escuro está caindo sobre o olho. Ele enfia o braço em seu casaco de couro. Preciso
quebrar o gelo, falar alguma coisa que possa me ajudar a engrenar uma conversa
Que tal sobre os Mets? Está ensolarado lá fora, não é? Vem aqui sempre? Eu podia
lhe contar que ele deixou cair uma luva no meu apartamento. Mas então eu teria de
devolvê-la. E o que eu cheiraria quando eu sentisse a falta dele?

Então, vou só pedir desculpas. Respiro bem fundo, como se estivesse a
ponto de mergulhar debaixo d'água, e então ando direto para ele e digo:

- Oi.

Ele fecha o casaco sem olhar nos meus olhos.

- Oi.

- Como foi em Nova Orleans?

- Bom.

- Vocês comeram camarão? Ouvi dizer que a comida do mar é fantástica. É
mesmo? O Mardi Gras é nesta época do ano? Não, espere, é em fevereiro. Ou
março. Eu li alguma coisa sobre isso na Cosmo. Você leu? Provavelmente não... -
Meu balbucio emudeceu. - Raf, eu lamento muito por não ter ido ao Baile da
Primavera.

Ele fecha seu armário.

- Deixa pra lá.

Ele tem um cheiro tão gostoso. Por que eu fui tão estúpida? Eu deveria ter
dito a ele que eu tinha o casamento do meu pai naquela noite. Eu deveria saber
que ele não se importaria que eu tivesse estragado o show. Eu devia ter confiado
nele. Eu me apoiei no armário do lado.
- Não, juro. Achei que você nunca mais ia querer ser visto em público
comigo, depois do que aconteceu no show de moda.

- Por que eu me importaria com o que aconteceu no show.

- Porque eu fiz papel de louca. - Eu fiquei olhando para o chão.

- E daí?

Eu tinha uma espécie de esperança por um não-você-não-fez-nada-disso. Eu
olho para cima e percebo que ele está olhando direto para mim. Eu fico de cara
com os seus olhos castanhos escuros.

- Daí eu achei que você não ia aparecer.

Há também um verde nos seus olhos, pontinhos de esmeralda que eu nunca
tinha notado antes.

- Escuta - ele diz. - Não me importa a mínima aquele show estúpido. Mas é
muito ruim você achar que eu sou tão superficial a ponto de me importar com o
que as outras pessoas falam. Só que - ele continua - a coisa toda do casamento foi
estranha. Por que você aceitou sair comigo? Você devia saber que o casamento do
seu pai era na mesma noite.

- Bem, eu... eu não achava que o casamento... - Minha voz ficou fraca.
Explicar que eu estava tentando acabar com o casamento do meu pai me faria
parecer mais psicótica ainda. - Eu sinto muito - foi tudo o que eu conseguia
produzir.

- Bem, deixa pra lá - ele diz novamente. - A gente se vê.

E com uma encolhida de ombros ele se retirou do corredor. Ai. É tão injusto.
Ele não sabe que eu teria dado meus molares tanto quanto meus dentes caninos
para ir ao Baile da Primavera com ele? Perdi três bailes do JFK: O Baile do Outono,
O Eterno Inverno e agora o Baile da Primavera.. Já que o Baile de formatura é
exclusivamente para seniores e seus acompanhantes, eu serei oficialmente a única
pessoa da escola inteira a não ir a nenhum baile este ano. Não que eu saiba
dançar, mas isso não significa que eu, realmente, não queira ir.

Tammy desliza ao meu lado e coloca seu braço ao redor dos meus ombros.

- Vamos almoçar?

Eu balanço a cabeça aceitando sem dizer uma palavra.

*

Finalmente, no sétimo tempo, entro na Internet, porque é quando temos
aula com computadores. Já que cada um tem sua própria estação, eu chego cedo o
bastante para pegar o lugar da janela ao fundo. Pelo menos esta aula não está com
turma dobrada.

Tammy senta perto de mim.

- Ainda acho que você não devia ver isso - ela diz, apoiando a cabeça em
sua mão. - Eu mesma não quero ver novamente.
- Bem, você não tem de sentar perto de mim se não quiser. Na verdade,
não devia sentar perto de ninguém, já que está com mononucleose. E eu tenho
lepra social. Agora, qual o endereço do site?

Ela digita para mim.

Talvez não seja eu. Talvez seja sobre uma garota que se parece comigo...
minha sósia. Na Rússia. É quando um close de mim e da minha barba aparecem na
tela.

Certo, não sou só eu. Há outras pessoas na tela também, dez ou mais
alunas infelizes o bastante para aparececem no site. Há também um título: Os
esquisitos da Escola JKF. Mas eu não consigo respirar. Minha barba está no site e
eu achando que a tinha escondido tão bem. Há também um foto de eu caindo sobre
o bicicietário. Acho que aquele brilho luminoso que eu vi então foi um flash de uma
câmera.

- Não olhe - Tammy diz. É claro que eu olhei. London está em pé na porta.
Toda de branco. Sorrindo bem afetada.

*

Eu achei que nada podia ser pior do que aquela quinta-feira! Como as coisas
podiam ficar piores do que naquela quinta-feira?

Mas a sexta-feira foi muito pior.

- Eu estou doente - Tammy fala no telefone traidor.

- Vou fazer de conta que você não disse isso.

- Tenho uma consulta no médico esta manhã. Minha garganta está
queimando.

- Não, Não. Não! Você não está doente! É só sua cabeça!

- Eu sinto muito.

Não posso acreditar que ela está me fazendo ir para a escola sozinha. Não
agora, que eu sou a estrela do site dos esquisitões.

E ia piorar ainda mais. Sentei no chão em quase todas as minhas aulas.
Mesmo eu não tendo ido tão mal quanto pensei no teste de matemática, a Sra.
Hayward ficou preocupada demais com o meu A- e me fez ficar depois da aula
Quando acabou, havia uma foto minha e da minha barba no meu armário.

Começa a chover. Tenho aula de ginástica na área externa. O irritante
professor de ginástica obriga a gente a fazer a aula, não importa sob que
condições. Chuva? Cólicas? Perna quebrada? Não interessa - ontem eu vi até a
London com suas roupas de ginástica. Jogamos softball, já que abril é o mês do
softball. Eu deixo cair a bola vezes seguidas e fico muito molhada.

Já que não tenho ninguém com quem almoçar, como sozinha na biblioteca.
Não vi o Raf o dia todo.

Fico sozinha na sexta-feira à noite, e nem pensar em uma das festas
lendárias da Lista-A na casa do Mick Lloyd (eu estou tão distante da Lista-A que fui
parar praticamente na Lista-Z). No sábado, acordei com um mísero resfriado sem
febre, o que significa, infelizmente, que eu realmente não peguei a mononucleose.
Já que não tenho amigos, não tenho nada a fazer, então me dedico ao dever de
casa e fico olhando minha foto no site dos esquisitões. Eu mudo a tela quando
minha mãe ou Miri chega perto. Deixar elas verem que eu sou uma fracassada é
bastante humilhante. E Miri está num humor bom demais para eu querer
perturbá-la. Devido a alguns produtos químicos no chão do ginásio, as vacas não
vão poder ser utilizadas na produção de bifes. Então Miri contactou a APVS, a
Associação de Proteção da Vida dos Animais, e eles levantaram dinheiro para a
transferência das vacas para um refúgio no Alabama. No final das contas, o ginásio
foi mesmo um lugar mais seguro para elas. Agora, vão poder ter uma vida longa e
feliz. Sorte delas. Eu queria ser uma vaca. Na segunda-feira, a fechadura do meu
armário não abre.

Alguém retirou a fechadura do meu armário e colocou uma outra. Tive de
chamar o zelador para abri-la.

Mesmo procurando à beça, não vejo Raf o dia todo.

Na terça-feira, descubro uma caricatura minha e da minha barba nos
banheiros do primeiro, segundo e terceiro andares, grafitadas na parte de dentro
das portas dos reservados, junto com outros rabiscos. E eu não estou dizendo isso
porque estou muito sensível, mas porque parece mais uma caricatura de um
homem das cavernas. E se não estivessem acompanhadas com o slogan "Rachel
Weinstein é um homem", jamais saberia que era eu. Eu tento apagar uma delas
com o sabão barato da escola, mas não adianta. O zelador, meu novo melhor
amigo, promete cuidar delas no fim de semana.

Eu vejo Raf apenas uma vez, de longe, mas ele não me vê. Na quarta-feira,
minhas roupas são roubadas. Já que não temos mais acesso aos armários da sala
de ginástica, deixo minha calça, suéter e sapatos numa bolsa, na arquibancada,
enquanto jogo softball na posição da terceira base. Infelizmente, no fim da aula, a
bolsa com minhas roupas e meus (soluço) tênis novos havia sumido. Tenho de usar
meus tênis fedorentos de ginástica, uma camiseta comprida verde e calça de
moleton verde pelo resto do dia. A calça fica entrando no bumbum e eu tenho
constantemente de ajustá-la. Tá bem, puxá-la. É claro que já que eu estou com
minhas roupas de ginástica nojentas, vejo o Raf a cada quatro segundos. No
corredor, nas escadas, no bebedouro. Posso sentir ele me olhando também, me
observando. Numa das vezes, ele abriu a boca como se fosse dizer alguma coisa,
mas eu rapidamente me escondi. Não preciso que ele fique rindo de mim também.

Na quinta-feira, ao descer o corredor sênior para ir para a segunda aula,
ouço uma risada histérica. E vejo uma grande multidão de alunos cercando a
London, que está usando outra roupa toda branca. Seus braços estão
estremecendo acima de sua cabeça. Seus quadris estão balançando de um lado
para outro. O que está errado com ela?

- Você parece direitinho como ela - uma das puxa-sacos grita. - Você pegou
o jeito!

A voz anasalada de London penetra em meus tímpanos.

- Estou chamando isso de Rachel Elétrica.

Oh, não. Ah, Jesus. Eu sabia que quando danço parece que estou sendo
eletrocutada. Eu sabia disso! Miri sempre me diz que não é tão ruim assim, mas
isso prova que é. Mantenha a cabeça baixa e acelere, digo para mim mesma.
- Aqui está ela! - uma das puxa-sacos grita no que eu passo por entre elas.

Não olhe, não olhe...

- Rochelle! Por que você não nos mostra como se faz? - London cacareja.

Ignore-as. Apenas ignore-as. Finja que elas não existem.

- Rochelle! - Ouço o grito dela ao virar a esquina, já me distanciando.

No fim do dia, grupos de garotas pela escola toda estão fazendo a Rachel
Elétrica. Nos corredores. Nas salas de aula, na biblioteca. É mais popular do que foi
a Macarena. Mas, na altura da última aula, já não suporto mais aquilo e me
escondo no banheiro. As lágrimas escorrem por minhas, bochechas enquanto vejo
meu rosto barbado. Tá bem, sei que mereço algum castigo cármico por todas as
coisas terríveis que fiz no mês passado, mas, peraí! Não tenho amigos a não ser
uma melhor amiga ausente (a mononucleose foi agora confirmada), o amor da
minha vida me odeia e agora o colégio inteiro me odeia? É demais.

E se London pode dar o meu nome a uma dança, como ela nunca se lembra
dele? Hein, hein?

Quando eu chego em casa, já estou mais que deprimida, Minha mãe vai
trabalhar até tarde, então eu fico livre para me afundar à vontade. Eu deito com o
rosto no chão, deixando o tapete rosa absorver minhas lágrimas de frustração.
Tigger escolhe este momento para se sentar em minhas costas.

O telefone toca, toca e toca, e eu sei que é a Tammy para saber de mim,
mas não consigo me levantar.

Quando Miri chega em casa do tae kwon do, ela pega Tígger e se senta ao
meu lado.

- Olá - ela diz. - Porque você está deitada no chão?

- Eu... elas... - Embora eu tenha prometido a mim mesma que não faria, eu
quebro a promessa e conto toda a história, exceto sobre o site dos esquisitões.
Seria humilhar te demais - E eu nem me importaria muito, mas o fato do Raf não
gostar mais de mim é a pior parte.

Minha irmã parece horrorizada. Tigger fica só correndo para lá e para cá.

- Mas que filha-daquilo. Odeio ela. O que eu possa fazer para você se sentir
melhor?

Eu me viro e olho para o teto.

- Transforme todas elas em gatos. - Embora provavelmente elas fossem me
cercar e me arranhar até a morte. - Não se incomode. E daí? Não tem nada o que
se fazer.

- Eu sei o que pode animar você! - Miri diz, olhos brilhantes. - Vamos fazer
alguma coisa da lista de Salve o Mundo que organizamos nas férias.

- Por que não? - Pelo menos, vou ter alguma coisa para fazer. E eu sabia
que ela ia acabar me pedindo ajuda nessa lista. Péssimo que eu tenha caído no
sono enquanto ela a fazia.
Ela corre para o seu quarto e volta, acenando com um artigo do New York
Times.

- Fiz um pouco de pesquisa para o item número um: ajudar os sem-teto,
Este artigo é sobre a desnutrição das pessoas que moram nas ruas de Manhattan.
Eu estava pensando que a gente podia zaptear alguma comida para eles.

- Certo - digo eu, desanimada. Eles podem comer o meu jantar. Não estou
com fome nenhuma. Nem almocei hoje. A biblioteca estava cheia, então eu me
escondi no banheiro e conversei com a minha caricatura.

Miri me observa estranhamente.

- Por que você não relaxa? Que tal um banho? E tevê! Você parece
estressada. Podemos trabalhar nisso no final de semana. - Ela escapa de volta para
o seu quarto. Em vez de ver tevê, eu me levanto do chão e ligo o computador. E é
bem o que eu temia. Há um novo retrato meu ao lado do que eu estou com barba.
Estou com roupas de ginástica, tirando a calça do meu bumbum. Parece tão
patético que eu começo a rir. Estou oficialmente no fundo do poço. E lá no fundo,
com a calça enfiada no bumbum.

- O que é tão engraçado? - Miri pergunta e antes que eu possa sair da tela,
ela vê. Uma irmã mais nova não devia ver a irmã mais velha ser tão humilhada. É
como ver o pai chorando ou sua atriz favorita sem maquiagem. Eu espero que ela
comece a soluçar, mas, em vez disso, seu rosto fica vermelho e seus pulsos
cerrados socam minha cadeira. - Foi a London que fez isso?

- Não se preocupe. É só uma piada.

- Não diga isso! Você está realmente me deixando maluca!

- Eu sou uma fracassada, certo? Sua irmã mais velha é um fracasso social.

*

Choro durante o jantar. Choro no banho. Quando vou para a cama, meus
olhos estão inchados e eu pareço um quati. Espero que a London traga a máquina
amanhã. A foto vai ser a campeã de todas.

Eu caio num sono sem sonhos. Às três da manhã, acordo com um vulto
sobre mim.

- O que você esta fazendo, Mir?

- Eu não sou Miri; eu sou a fada dos dentes - o vulto diz. - Você está
sonhando.

Sonho estranho, eu penso, ao cair no sono novamente. Quando o
despertador dispara e me acorda, limpo as lágrimas que viraram crosta nos meus
olhos. Não vou voltar para a escola. Eu vou me esconder. Eu tiro o travesseiro de
debaixo da cabeça e cubro o rosto com ele. Deito em alguma coisa áspera. Alguma
coisa que cheira... como um garoto? A luva de lã cinza do Raf? Por que esta luva
está debaixo da minha cabeça? Não me lembro de tê-la tirado da gaveta de
camisas para abraçá-la. Eu a aperto. Então eu olho... e vejo Miri no vão da porta.

- Tenho alguns planos para você se sentir melhor - ela diz, acanhadamente.
Áspera e doce luva. Eu olho de volta para Miri. Então de volta para a luva.
Isto... isto significa o que eu acho que significa?

- Que fada dos dentes que nada! Você fez o feitiço do amor?

Ela me dá um sorriso envergonhado.

- Fiz, sim.

Sim! Raf vai gostar de mim novamente. E se ele gostar de mim novamente,
vai gostar de mim para sempre - mesmo quando o feitiço acabar. Pelo menos, eu
espero que sim.

- Mas eu pensei que você estivesse com medo de fazer feitiços do amor.

- E estava. Mas não suporto ver você tão triste. Então, eu fiz. A gente cai
mas tem de subir na vassoura de novo, certo?

Como ela é meiguinha! A nuvem sobre a minha cabeça vai embora
dançando. Girando para longe. E também a Rachel Elétrica.

- Eu amo você! - digo, e esfrego a luva no meu rosto. Tá bem, faz cócegas,
mas e daí? O Raf vai me amar novamente! Vai ver a gente já vai estar se beijando
na hora do almoço!

- Agora, lembre-se, os feitiços de emoção são temporários. E um feitiço do
amor dura somente de três a quatro semanas. E leva um dia ou dois para fazer
efeito.

Droga.

- Outro almoço no banheiro!

Ela ri novamente e me mostra o que parece uma bola de tênis feita em
casa, só que feita de tiras de elástico, cola e papel alumínio.

- Não necessariamente. Mas você tem de quicar isto em London Zeal.

- Como é que é?

- Atire nela, depois deixe quicar e eu lhe prometo que seu dia será melhor.

Eu sinto uma ardência de excitação.

- O que você fez?

Ela me joga a bola e dá uma piscadela.

- Você vai ver.
6. Quica, garota, quica

Não vejo nem Raf nem London por toda a manhã. Infelizmente, vejo os
desenhos me caricaturando nas portas dos banheiros.

Finalmente, encontro o Raf quando eu estou indo para o softball, com a
roupa de ginástica. Ele hesita, mas então me dá um meio sorriso e se afasta. Um
meio sorriso! Uhuhu! Não significa que o feitiço está funcionando?

Depois da ginástica, avisto London mancando sozinha no corredor,
parecendo um pingente de gelo. Calças brancas largas, capuz branco, chapéu de
feltro branco. Ela deve ter investido num guarda-roupa inteiramente novo e sem
cor para combinar com o gesso.

- Bonita roupa - ela rosna. - Combina com você.

Agora é a minha chance. Estive carregando a bola pegajosa o dia todo,
agarrada na minha mão, o que não melhorou minha caligrafia para anotações, nem
minhas habilidades no softball. Eu a atiro na perna dela.

- O que você está fazendo, sua monstra? - ela pergunta no que a bola atinge
seu tornozelo bom, quica duas vezes e então rola pelo corredor.

Eu acertei. Consegui!

- Você é mesmo muito estranha - ela diz. Nada acontece. É péssimo. Eu
tinha uma espécie de esperança que ela se transformasse num sapo.

- Tenha um bom dia - eu digo e corro para as escadas. Não que ela fosse
correr atrás de mim. Ela não está com muita mobilidade ultimamente. Eu corro
para o meu armário (onde eu deixei minhas roupas por segurança) e tento
lembrar-me da nova combinação. Não funciona. Oh, não. Ela mudou minha
fechadura novamente?

Acontece que... esta fechadura se parece muito com a antiga. Minha
fechadura original. Eu tento a combinação: 27, 12, 33... Funciona! Minha antiga
fechadura voltoul Como aconteceu?

Eu abro o armário e encontro minhas roupas. E não somente as roupas que
eu estava usando hoje, mas as roupas que estava usando na quarta-feira. Assim
como meus - uau - tênis rosa. Abracadabra!

O feitiço de Miri deve ter alguma coisa a ver com tudo isso. Eu pego uma
roupa e corro para o banheiro para me trocar. E o que tem na porta onde havia um
urso desenhado? Há um desenho de uma garota colocando um enchimento Kleenex
em seu sutiã. É um desenho malfeito, com um marcador preto, mas eu sei que é
London. Como eu sei? Porque no desenho estão as palavras "London Zeal usa
enchimento".

*
- Você tem que me contar que feitiço fantástico foi esse - eu digo, me
jogando na cama de Miri. Não parei de rir o dia todo.

Ela gira em sua cadeira.

- Com este elástico e esta cola, suas ações quicarão de volta para ela. É
temporário, mas muito bom.

Eu dou uma gargalhada.

- Foi impressionante. Você não tem ideia. Quando eu cheguei na aula de
informática, todo mundo estava no site dos esquisitões que estava cheio de fotos
estranhas da London. London descorando seu buço. London antes da plástica no
nariz. London babando em seu travesseiro. Todas as minhas fotos foram
substituídas pelas fotos dela! Ela estava furiosa e gritando com todo o seu bando,
porque aparentemente elas eram as únicas que sabiam da senha para acessar o
site. E então, quando eu desci o corredor, todos estava fazendo aquela coisa
estranha de dançar-arrastando os pés. E vocês sabem de como a chamavam? A
London Bamba! Rá! No fim do dia, ela estava praticamente na Lista-Z!

Tá bem, ótimo, talvez apenas na Lista-B, mas, ainda assim, ela tinha sofrido
um rebaixamento definitivo. Seu próprio grupo de puxa-sacos a estava evitando!

- Mas você quer saber a melhor do dia? As roupas dela sumiram! Ela teve de
usar a roupa de ginástica o dia inteiro. - Pelo menos era toda verde, assim ela não
teve de quebrar a regra de uma cor só.

Miri sorri.

- E o Raf?

Suspiro.

- Pouca coisa.

- Eu sabia disso. Avisei que podia acontecer.

- Eu sei, eu sei. Estou tão contente! Foi o melhor dia da minha vida!

- Você sabe - ela disse timidamente. - Ser feliz é realmente a melhor
vingança. E uma maneira de ser feliz é ajudar os outros. Então você me ajuda com
o feitiço de alimentar os sem-teto amanhã?

- Sem falta - prometo. - Seu desejo é uma ordem para mim. E eu estou
devendo um bocado a você.

No jantar, eu ainda estou pensando em tudo o que aconteceu naquele dia.

- Garotas - minha mãe diz, servindo-nos o ensopado de batata e brócolis.
Ai. - Lembram de Adam da excursão?

- Ah, sei - eu digo. - O yankie gostosinho.

Minha mãe ri, seus braços balançam e o molho que ela está segurando
respinga na sua blusa.

- Opa! Ele mesmo. Ele deixou um recado me convidando para sair.
- Vai nessa, mãe! - eu grito. Gol! - Eu sabia que meu plano ia funcionar.
Está vendo? Eu disse a você. Agora você promete me ouvir quando eu tenho
sugestões?

- Sim, Rachel, você estava certa. Prometo sempre adotar seus conselhos de
namoro.

Eu passo um guardanapo para ela.

- Então quando vocês vão sair?

Ela limpa os respingos e balança a cabeça.

- Sair? Não. Eu já tenho um encontro com Lex.

Não acredito.

- Alô? Não seja doida, mamãe. Você pode sair com mais de um cara.

- Rachel, não é justo com eles - ela diz. Eu dou uma risada.

- Mamãe, até que haja um anel em seu dedo, você pode sair com uma
centena de homens. Um milhão. - Embora eu nem imagine como ela ia se lembrar
de todos os nomes. Às vezes, ela tem dificuldade de lembrar o meu. Acho que tem
a ver com essa coisa de ter mais de 30 anos. Seja como for, ela precisa mesmo de
algum tipo de banco de dados para encontros.

- Não sei, não, querida. Não tenho muito tempo livre.

- Mãe, quais são seus planos para esta noite? Ler um romance de amor?
Amanhã um de mistério? Você vai achar tempo.

Ela mastiga um pedaço de brócolis parecendo pensativa.

- Talvez, eu veja como é sair com Lex primeiro e então marque um encontro
com Adam.

Eu largo minha colher, desgostosa.

- Mãe, Adam ligou hoje. Você não vê Lex há duas semanas. Adam é
mercadoria quente. Em duas semanas ele pode estar noivo. - Ela obviamente não
lê Cosmo. ­ O que você vai fazer é o seguinte... - eu digo cheia de autoridade. -
Você vai ligar para o Adam. Vai dizer que sairá com ele neste fim de semana.

- Mas...

- Mas nada. Eu sei que Miri e eu estaremos aqui. Grande coisa. Nós somos
praticamente adultas. Não precisamos de uma babá.

Ela parece em dúvida.

- Tem certeza?

- Tenho! - eu falo alto e chuto Miri por debaixo da mesa. Apoio, tá?

- Isso mesmo - ela diz relutantemente.
Minha mãe toma um gole de seu suco de abobrinha, baixa o copo e então
faia:

- Está bem, vou ligar para ele.

- Quando? - eu pergunto.

- Amanhã?

Não. Resposta errada.

- Ligue para ele agora antes que fique com medo. - Eu estendo a mão e
pego o telefone. - Qual é o número?

Ela balança a cabeça.

- Eu não vou conseguir falar com ele com vocês duas me observando.

- Nós iremos para a outra sala. - Eu puxo Miri pelo braço.

Quando já estamos no outro lado da porta fechada da cozinha, Miri dá um
tapa na minha mão.

- Ela não está pronta.

- Ela está pronta. E está discando, deixe-a fazer a parte dela.

- Mas quem disse que você está certa? - Miri resmunga. - Você só teve um
encontro.

Eu faço ela calar a boca com um gesto.

- Como você sabe fazer uma vassoura voar? Algumas coisas são inatas.

- Você é uma inata - ela replica.

- Isso nem sequer fez sentido. Você pode calar a boca agora? - Eu pressiono
meu ouvido contra a porta.

- Oi Adam?... Sim, é Carol... Bem, obrigado, como você está?... Sábado à
noite? É amanhã. Bem... Eu...

Normalmente eu nunca recomendaria a uma mulher que aceitasse um
encontro para o dia seguinte. Mas este era um caso especial. Eu volto para a
cozinha e aceno vigorosamente, dizendo sim.

Ela encolhe os ombros e diz:

- Tá bem, certo. Por que não?

Iurruu ao quadrado! Minha mãe vai sair com um cara!

- Ele não tem filhos? - eu balbucio para ela, mas ela não consegue entender.
Oh, bem. Seja como for, preciso apressá-la com o telefonema, para manter o
telefone livre para a declaração de amor de Raf.

*
- Eu não posso ir - minha mãe grita, o cabelo louro escorrendo em seus
ombros, a toalha rosa felpuda envolvendo seu corpo magro. - Não tenho nada para
vestir.

É verdade. Podem acreditar em mim. Já tentei atacar o guarda-roupa dela
dúzias de vezes.

- Experimente o que eu botei em sua cama - eu digo.

Felizmente para ela, enquanto ela estava no chuveiro (por uma hora inteira,
eu devo acrescentar; e espero que ela tenha reservado tempo para raspar as
pernas para essa ocasião especial), separei as roupas que achei que eram mais
apropriadas para um encontro. Sua calça preta sexy (quer dizer, a mais sexy que
encontrei; ela precisa seriamente fazer algumas compras), um suéter verde-limão
com decote cavado, os saltos pretos mais altos e seu colar de prata em forma de
coração que ela comprou há anos e nunca usou. Perguntei a Miri se ela aprovava
minhas escolhas, mas ela não estava nem um pouco interessada. Não que ela
soubesse alguma coisa de estilo. Ela acha que bolinhas e listras combinam. De
qualquer modo, ela também está ocupada demais terminando o seu trabalho de
escola. Sim, ensaios de inglês na noite de sábado. Uma vencedora autêntica, hein?
Não que eu tenha alguma coisa selvagem e louca para fazer. Nenhum plano a não
ser ajudar Miri com os feitiços de Salve o Mundo.

- Como eu estou? - minha mãe me pergunta, totalmente vestida,
rodopiando.

- Ótima - Ela está feminina e classuda. Seus peitos estão um pouquinho
caídos, mas não há nada que ela possa fazer quanto a isso. Juro a vocês, eu nunca
vou amamentar. O que eu deveria fazer é encorajá-la a comprar um sutiã que
empina os peitos. Eu deveria me tornar a estilista dela em tempo integral. Talvez
seja o que vou fazer quando crescer. Sério. Eu poderia trabalhar exclusivamente
para estrelas de cinema. Os desenhistas me enviariam todos os seus últimos
modelos, desesperados para que eu os usasse em minhas clientes. É claro que eles
mandariam também alguma coisa para a Rachel aqui.

No entanto, não tenho certeza se eu quero uma carreira em que eu tenha de
lidar com os egos frágeis das pessoas o tempo todo. Preciso encontrar um trabalho
em que eu possa depender de mim mesma. Talvez eu vire uma pintora. Ou uma
romancista. Depois de todo o sofrimento por que passei recentemente, tenho
certeza de que poderia escrever um troço qualquer realmente pesado e terrível,
alguma coisa que venderia bem.

- Qual é a sua estratégia de maquiagem? - eu pergunto para minha mãe.
Não que ela não seja atraente, mas acresentar cor em suas bochechas não ia fazer
mal. Se nós tivéssemos algum tempo sobrando, eu poderia encorajá-la a uma visita
ao cabeleireiro (isto é, marcar um horário) para ela se livrar dessas raízes escuras
absurdas.

- Eu quero parecer natural - ela diz. - Um pouco de blush?

- Certo, vai funcionar. - Eu a levo para o espelho do banheiro, como se ela
estivesse amarrada. - E um pouco de rímel e gloss nos lábios.

Ela chupa suas bochechas para dentro e aplica a cor. Eu nem sabia que ela
tinha blush! Abro o estojo de maquiagem. Marca Plum Fairy. Estou surpresa. Ela
parece saber o que está fazendo. Por que ela não usa maquiagem com mais
frequência?
Quando termina, começa a enrolar suas roupas nos dedos e a mordiscar
suas unhas.

- A que horas ele vem? - eu pergunto.

- Não antes de sete e meia.

- São somente sete horas! É melhor você relaxar ou vai ficar ansiosa e ele
vai perceber seu desespero

- Não estou desesperada. Estou nervosa. Por que eu estou nervosa?

Eu pego sua mão trêmula e a puxo para a cozinha.

- Por que você não toma uma taça de vinho, senta-se e lê um de seus
livros? Entre num clima de romance.

Aprovando, ela abre uma garrafa de Merlot.

- Agora fique calma - eu digo e dou para ela um livro. Pelos próximos vinte
minutos não ouço um pio dela. Até...

- Opa!

Um grande pingo de vinho tinto, de algum modo, aterrissou no seio
esquerdo do bonito suéter da minha mãe.

- O que você fez? - eu pergunto sem acreditar.

- Derramou.

O relógio da parede diz que ela tem cinco minutos. O que eu vou fazer
agora? Procuro no seu guarda-roupa e não há outras opções. E é então que eu noto
seus dentes. Por que eles parecem tão sujos?

- Mãe, você escovou seus dentes hoje? Eles estão marrons.

Ela pousa a taça de vinho em seu livro e corre para o espelho.

- Acho que é por causa do vinho tinto. Ficaram manchados.

- Bem, escove-os novamente. Você não pode ir no seu primeiro encontro
com os dentes manchados! - O relógio agora diz quatro minutos.

- Mas o que eu vou usar? - Ela está comendo os dedos de tanta aflição.

- Sei lá! Vou encontrar alguma coisa enquanto você escova os dentes.

Nunca soube que vinho tinto fazia aquilo! Devia ser ilegal.

Três minutos.

Freneticamente, vou revirando as roupas do guarda-roupa dela. Muito
desalinhado, muito feio, muito de trabalho. Talvez alguma coisa minha? O suéter
bonito de decote em V. Não, muito jovem. Dois minutos.

- Já saiu? - eu grito.
- Quase - ela diz, e então eu ouço ela gargarejar. Cuspida. - Você encontrou
alguma coisa?

- Encontrei. O suéter verde-limão, mas você o estragou. - Se ao menos
tivesse um jeito de limpar a mancha. Sim, certo. Até eu sei que vinho tinto é difícil
de sair. Se ao menos tivéssemos algum removedor de mancha superforte. Se...

Se ao menos minha mãe fosse uma bruxa e pudesse fazer um zapt! para a a
mancha ir embora...

Ela está em pé na minha frente, vestida somente com suas calças e o sutiã
bege.

- Então? O que eu vou usar?

Eu ponho meus braços em seus ombros, olho diretamente para o seu olho e
digo:

- O que você estava usando antes.

- Mas está manchado - ela responde, aturdida.

- Suma com a mancha.

Suas narinas incham.

- Rachel, você sabe que eu sou uma bruxa não-praticante.

- Não, mãe, você era uma bruxa não-praticante. Mas é hora de evoluir. Não
haverá consequências em limpar sua blusa. Sério, o que pode acontecer? Todos os
tira-manchas no país vão inexplicavelmente se queimar? Eu sei que você não usava
mágica quando éramos crianças porque queria que tivéssemos uma infância normal
e isso até funcionou bem. Já tivemos um bocado de momentos ruins, e ninguém
mais precisa se preocupar com isso aqui. Mas você prometeu seguir o meu
conselho. E eu estou dizendo para usar mágica. Zapt! Confie em mim. Faça isso
logo!

Ela fez zapt nos pneus do ônibus, então qual o problema de limpar uma
mancha? Devia é fazer mágica para surgir um novo guarda-roupa, mas vamos
levar essa coisa de mágica a um passinho de cada vez.

Ela me puxa para o closet.

- Rachel, deve haver uma outra coisa para eu usar - ela agarra um
entediante vestido branco abotoado até embaixo.

- O encontro vai ser no escritório?

Então um suéter preto de manga comprida.

- Num funeral?

Uma blusa de gola listrada.

- Vai esquiar na montanha?

A campainha toca, interrompendo nosso bate-bola fascinante. O pânico
drena toda maquiagem de suas bochechas. Eu seguro seu suéter limão e o agito
diante dela como uma bandeira.

- É só fazer a mágica!

- Eu... mas... - Ela rói a unha do polegar. No andar de baixo, a campainha
toca novamente.

- Mãe? - Miri chama. - Você quer que eu atenda?

- Suma com essa droga! - eu grito.

- Certo! - Seus lábios se franzem, a temperatura na sala cai e a mancha...
some. Uau. Foi demais. E estranho. Como ela conseguiu concentrar sua energia
direto no suéter? E se for como radiação. Será que eu deveria ter usado um
daqueles protetores de raios x, como no dentista?

- Está feito. Não foi tão mal, foi?

A campainha toca mais uma vez.

- Miri, você pode atender? - eu grito e atiro o suter para minha mãe, no
momento com o sutiã à mostra. Ela o desliza por sua cabeça e ajusta-o em frente
ao espelho. - Perfeito - eu digo. - Vamos lá! Ah, mãe? Agora que você está disposta
a usar mágica...

- Eu não vou mais precisar usar mágica - ela diz, com os lábios apertados.

- Claro, claro. Sei disso. Mas se o encontro estiver chato, quer dizer, se ele
começar a cochilar ou a falar sobre esportes, trabalho ou outra coisa, faça zapt
para seu celular tocar e finja que é uma de nós com uma emergência aqui em casa.

Ela revira os olhos, o que não é o seu olhar mais encantador.

- Não faça isso no seu encontro - eu aconselho.

Na hora em que Adam entra pela porta da frente, minha mãe e eu estamos
prontas para cumprimentá-lo com sorrisos. Eu tento, delicadamente, tirar Tigger do
caminho com o meu pé, mas ele não se mexe. Miri está lá também e ela está
mal-humorada.

Na verdade, eu é que gostaria de sair com o Adam. Ele é muito gostoso. Em
seu suéter cor de cobre (muito melhor do que o moletom dos Yankees,
evidentemente) e com suas maçãs do rosto tipo modelo, ele parece um deus grego.
Será que existe mesmo essa coisa de deus grego? Se as bruxas são de verdade,
então talvez Adônis seja também! Talvez Adam seja ele!

Um deus grego moraria em Jersey?

- Oi, garotas - ele diz. - Oi, Carol. Pronta?

Miri faz um rosto do tipo de quem está com cólicas e desaparece da sala.
Tigger sibila e a segue.

- Vocês dois divirtam-se! - eu grito do corredor.- E traga ela de volta até a
meia-noite! Brincadeira! - Mais ou menos. Não queremos nenhum rola-rola ainda.
No momento, duas bruxas na família já é demais.
7. A Fonte de Suco

- Por que você acha que ele ainda não ligou? - eu deixo escapar em voz alta,
cinco minutos depois. Miri e eu estamos deitadas na mesa da cozinha, com os pés
para cima contra o papel de parede cheio de maçãs. Miri encolhe os ombros.

- Sei lá. Vai ver ele não está tão a fim de você assim.

Gentilmente, dou um pontapé na canela dela, jogando ela para o lado.

- Agora, podemos nos concentrar no meu negócio? - ela pergunta. - Você
prometeu.

- Sim, vamos salvar o mundo. Qual é o seu plano?

- Eu disse a você, número 1 da lista. Alimentar os sem-teto.

- Todos eles?

- Aos poucos, sim. Mas meu plano no momento é concentrar nos sem-teto
da Washington Square Park. E eu encontrei um feitiço multiplicante. Então tudo o
que precisamos é pegar comida, multiplicá-la e então distribuir de graça. O que
você acha?

- Boa ideia. Quando vamos distribuir a comida?

- Amanhã. Se funcionar. Vamos primeiro ter de juntar um pouco de comida.

- Brownies?

- A ideia é alimentar, não engordar.

Hora de colocar o chapéu de boas ideias. Que expressão péssima! Meu pai
fala isso o tempo todo. Ele ligou hoje do Havaí; ele e Jennifer estavam num luau.
Não pude entender nada do que ele estava dizendo com aquela música hula-hula.
Tudo o que pude ouvir era ele me lembrando de tomar as minhas vitaminas. Ai...

- A comida deve ter muitas vitaminas. Espinafre por exemplo.

Ela tenta fazer piada.

- Eles são sem-teto, não sem-paladar.

- É bom para o Popeye, mas não para eles?

- Rachel, nós não podemos distribuir pratos de espinafre. Precisamos de
alguma coisa que as pessoas gostem. E que seja saudável. E que seja gostoso.

- Suco de laranja - eu digo, repentinamente inspirada. - Ou laranjas, assim
não precisamos de copos.

Miri bate seus pés juntos.

- Perfeito! Você é um gênio. Muito fácil. E vitamina C não apenas alimenta,
mas melhora a disposição das pessoas!

- Podemos até fazer um pouco de suco também para a Tammy. Talvez
assim ela melhore e volte logo pro colégio.

Miri gira o corpo de modo a se sentar bem ereta na mesa.

Ela se inclina para o A².

- Precisamos de uma colher de chá de hortelã, um sétimo de uma xícara de
chocolate, dez gramas de casca de uva. E uma amostra do que queremos
multiplicar. Só precisamos de uma laranja. Certo, então, você procura os
ingredientes e consegue as colheres para as medidas. Vou fazer o feitiço no meu
quarto.

Meia hora depois, já tínhamos misturado tudo. Miri está sentada de pernas
cruzadas no carpete, com a laranja em sua mão, e eu estou sentada atrás dela. Ela
usa uma colher de prata para cobrir a fruta numa mistura que parecia deliciosa e
então a baixa para o chão coberto com o carpete.

- Vai manchar - eu aviso. - A gente devia fazer isso no meu quarto... Meu
carpete já não está tão novo mesmo. - O que foi laranja agora é rosa, devido aos
produtos químicos para exterminar pulgas (culpa do Tigger).

- Até seria melhor, se o seu guarda-roupa inteiro não estivesse no chão. -
Ela solta um profundo suspiro.

Agora é um

Colocado no chão,

Eu inclino a cabeça três vezes

E agora é uma porção.

De repente, o quarto fica gelado e a coisa mais estranha acontece: a laranja
começa a se transformar.

Divide-se em duas, como se estivesse nascendo. E então ambos os pedaços
começam a crescer até o tamanho adulto, me dando arrepios.

Acho que nunca vi uma coisa tão repugnante.

Vinte segundos se passam e a laranja e seu clone fazem tudo de novo - eles
racham no meio e começam a crescer, Então os quatro fazem a mesma coisa. É
como se estivéssemos vendo um filme de ficção científica. A próxima coisa que eu
sei é que há pelo menos cinquenta laranjas cobrindo o chão e o quarto está
começando a cheirar como um arvoredo. Cem laranjas. Duzentas. Uau! Jamais vi
um truque tão legal. Eu dou um passo para trás.

- Olhe onde pisa! - Miri avisa. Quatrocentas. O carpete está coberto de, no
mínimo, duas camadas de laranjas. O quarto está inundado de laranjas. Ela fica de
pé e sobe para sua cama.

Oitocentas.

- Ei... Mir? Quantas vão ser no total? - Eu subo para a cadeira de sua mesa
enquanto a pilha de laranjas duplica de altura.

- Eu... ai, ai!

Nossos olhos se fixaram na explosão cítrica e não conseguimos não rir. Mas
a diversão rapidamente se transformou em susto. Perigava a gente se afogar aqui.

- Não tem como fazer isso parar? - eu peço, e salto sobre as frutas para
ficar ao lado dela na cama.

- Sei lá - As laranjas já estão passando da altura do colchão. Se ela não
tivesse um colchão com a parte de cima com a espuma superalta, nós estaríamos
submersas agora. Freneticamente, ela vira aos piparotes as páginas do livro de
mágica.

- Miri, ache um feitiço para parar essa coisa!

- Estou tentando!

As laranjas espalhavam-se agora sobre a cama.

- A gente vai se afogar em laranjas! - eu digo, e me preparo para arrastar
nós duas para algum lugar não-cítrico e seguro. Mas, quando estou a ponto de
pular, Miri murmura alguma coisa e a loucura multiplicadora pára.

- Essa foi por pouco! - Miri diz, dando um tapinha agradecida no A². A
seguir, cuidadosamente ela desce da cama e tenta ultrapassar a inundação. - Eu
vou dormir no seu quarto esta noite.

*

- E daí? Conte tudo pra gente - eu falo, no que enfio uma garfada bem
grande de ovos poché na minha boca.

Estamos sentadas no reservado de um restaurantezinho perto de casa, na
Décima com a Broadway. Costumava ser o nosso lugar favorito de brunch, mas não
vínhamos aqui há tempos. As fritas são sempre bem crocantes. Minha mãe sempre
se recusa a pedir batatas fritas para ela, então come a maior parte das minhas.

- Foi interessante - minha mãe diz na mesa, rasgando o saquinho de açucar
e despejando em seu café. Seu cabelo curto está preso num rabo de cavalo
apertado, que ajuda a disfarçar suas horríveis raízes marrons. Aparentemente, ela
precisa de mim para ser sua estilista 24 horas por dia, 7 dias por semana.

Quando mamãe voltou para casa na noite passada, Miri e eu já estávamos
dormindo na minha cama. Tá bem, é mentira; nós estávamos bem acordadas, mas
não queríamos explicar a Operação Laranja. Fechamos a porta da Miri, esperando
que minha mãe não espiasse ali dentro. Seja como for, minha mãe sempre verifica
meu quarto primeiro. Acho que é porque ela faz isso há mais tempo, já que sou a
filha mais velha. Ela entrou de mansinho no meu quarto às 23h30 e, quando nos
viu juntas, disse um Ah, que lindo! E era mesmo, até a Miri se enrolar no edredom
com se fosse um sari e daí eu quase morri de frio.
Estamos planejando contar a ela sobre as laranjas. Por isso sugerimos o
brunch. Mas é claro que vamos contar a ela... depois que a gente crivar ela com
perguntas sobre o encontro, pelo maior tempo possível.

Miri derrama o vidro de ketchup em suas fritas e na omelete de tofu.

- Como foi?

- Fomos para um restaurante em Little Italy. Primeiro nós pedimos...

- Ele não fez nada idiota como fazer o pedido por você, fez? - Miri pergunta.

- Não, por que ele faria isso? - Ela rouba uma das minhas fritas e mergulha
no ketchup de Miri.

Miri encolhe os ombros.

- Ouvi dizer que alguns homens fazem isto.

Ela está fazendo um excelente jogo com o nosso plano de
crivar-mamãe-de-perguntas,

- Conversamos sobre umas coisinhas sem importância - mamãe diz. - Sei lá,
o tempo que está fazendo em Nova York, vocês duas...

- Então, nós somos coisinhas sem importância? - eu pergunto.

- Você entendeu o que eu quero dizer. Seja como for, quando os aperitivos
chegaram, a conversa parou. E ambos nos concentramos em nossos pratos. A
salada de queijo de cabra ficou, de repente, o prato mais interessante que eu já
tinha visto. Um minuto se arrastou para dois, então três, quatro...

Oh, não. Pior impossível. Empurrei minha mãe para sair com um cara
novamente antes que ela estivesse pronta, e agora eu a traumatizei para o resto da
vida. Ela vai desistir de namorar e arranjar outro gato.

- E então eu não consegui mais aguentar. Aí, entrei na mente dele.

- Você jura? - pergunto, pasma.

- Li a mente dele para saber o que eu podia falar.

Primeiro ele estava pensando que eu era bonita, mas que obviamente não
tínhamos nada em comum. E ele estava se perguntando qual tinha sido o resultado
do jogo dos Yankees.

- Que idiota - eu interrompo.

- Então eu deixei escapar: "Qual terá sido o resultado do jogo dos
Yankees?".

- Isso mesmo, mamãe! - Não acredito!

- Você não precisava ler a mente de ninguém para inventar essa - Miri
comenta. - Ele não era o único que estava usando uma camisa de malha dos
Yankees? Na excursão de beisebol?
Eu me viro para Miri e mando ela ficar quieta.

- Foi brilhante, mamãe! O que ele disse?

- Seus olhos ficaram brilhantes de repente. E ele disse que estava pensando
a mesma coisa!

Miri limpou o ovo de sua boca.

- Odeio torcedores dos Yankees. Ele seria muito mais interessante se
torcesse para os Mets.

- Não é você que tem de sair com ele - digo. Eu me inclino sobre a mesa. -
Então o que aconteceu depois?

Minha mãe rouba um punhado das minhas fritas.

- Conversamos sobre beisebol por algum tempo.

- Você não sabe nada sobre beisebol - Miri diz, franzindo o cenho.

- Certo. Então eu tive de fazer mais leitura de mente. Vocês iam ficar
chocadas de saber quanta coisa de esporte esse cara tem na cabeça. É realmente
impressionante. Resultados, RBIs...

- O que é isso? - eu pergunto. Minha mãe pode finalmente me explicar a
linguagem secreta dos garotos!

- Sei lá? foi tudo o que eu consegui. Os homens pensam muito sobre
esportes. E sobre uma outra coisa - ela diz e então fica ruborizada.

Ei. Eu quero que minha mãe saia com caras, mas dispenso detalhes
desnecessários.

- Bem, em suma, eu, basicamente, mantive a conversa sobre o que ele
estava pensando - ela diz.

- Mãe - Miri fala, balançando a cabeça em sinal de desaprovação -, o que
aconteceu com aquela história de querer um cara que goste de você pelo que você
é?

- Eu sei, eu sei. Mas eu não me apaixonei pelo cara, sabe? Eu estava um
bocado nervosa e considerei a noite como uma experiência. Para descobrir o que
podia acontecer.

- E o que aconteceu? - Miri e eu perguntamos ao mesmo tempo.

- Sai, azar! - eu exclamei. - Me compra uma coca.

Minha mãe riu.

- Ele me convidou para sair de novo. Esta noite.

Eu fico besta.

- Você aceitou?
- Não. Disse que talvez na próxima semana.

- Você gostou dele? - Não consigo acreditar nisso.

- Ele gostou de mim. Acho que suas palavras exatas foram "Você talvez seja
minha alma gêmea". Mas eu ainda não sei como eu me sinto em relação a ele.
Vê-lo esta noite seria excessivo. Mas, tenho de admitir, é ótimo ser desejada. De
qualquer forma, vamos ver depois. O que vocês duas fizeram na noite passada?

Abortar o assunto! Mudar o rumo! Eu quero evitar esse tema o máximo que
for possível.

- Hum... o que vocês pediram como prato principal?

- Fettuccine Alfredo. Agora, falando de vocês duas...

- Espere! - Miri exclama. - E a sobremesa? Minha mãe dá um sorriso.

- Sorbet de limão. E o que vocês duas comeram?

Laranjas?

*

Então minha mãe viu as laranjas. E não ficou tão chateada. Depois de Miri
ter resumido seu plano, mamãe veio com o discurso de "tenha cuidado" (ora, ela
está usando mágica para ajudar sua vida amorosa; e está sendo tão cuidadosa
assim, por acaso?) e então, para o nosso espanto, ofereceu-se para ajudar a
distribuir as laranjas.

- Eu preferia estar perto quando vocês forem falar com estranhos - ela
explicou.

E é onde estamos agora. No parque da praça Washington, distribuindo
laranjas para todo mundo que está com cara de faminto. Cada uma de nós encheu
duas sacolas de shopping com todas que pudemos carregar. O sol está brilhando e
meu primeiro saco já está quase vazio.

- Você gostaria de comer uma fruta? - pergunto para uma mulher mais
velha, deitada em um cochonete sobre um banco.

Ela me olha desconfiada, então eu coloco a laranja, gentilmente, na ponta
do banco dela. Ela pega, aperta e então aprova com um gesto de cabeça. Dou
outra a ela e nós três vamos para outro lugar.

Minhas mãos estão começando a rachar devido ao frio, mas me sinto quente
por dentro, como se eu tivesse acabado de tomar uma xícara de chocolate. Não me
lembro da última vez em que nós três nos divertimos tanto. Quando nossas sacolas
se esvaziaram, voltamos ao apartamento para pegar mais laranjas e nos dirigimos
ao Lower East Side.

- Laranjas! Você quer frutas? - Miri cantarola, parecendo feliz e
determinada. Suas bochechas estão coradas, seu cabelo está voando ao vento e ela
não parou de rir a tarde toda. Perto dela, minha mãe tem esse mesmo olhar, como
se tivesse sido beijada pelo sol. E aposto que eu também estou assim. Dou o braço
para elas e descemos a calçada dando risadas, supercontentes, cheirando como um
carrinho de vender frutas.

*

Meu bom humor dura até a manhã seguinte, quando o Raf passa pelo meu
armário no colégio. Eu aceno e nossos olhos se encontram e eu penso, é agora!
Mas então... ele me dá seu meio sorriso, retribui o aceno e se afasta. Alô? Achei
que ele estava sob o efeito do feitiço. Por que não está funcionando? Será que a
raiva de mim é tão forte?

Não tenho tempo para ficar pensando nisso porque fomos convocados para
um segundo encontro do colégio inteiro no auditório. Eu vou para lá arrastando os
pés e acho um lugar na fileira da frente. Sozinha. Com lugares vazios nos dois
lados. Aparentemente, meu status de fracassada está ainda intacto.

A Sra. Konch, o Sr. Earls e Will Kosravi estão de volta no palco.

- Temos más notícias - avisa o Sr. Earls. - O conserto dos prejuízos no
ginásio, na lanchonete, nas salas dos armários e nas salas do térreo custarão
aproximadamente quarenta mil dólares.

Um engasgo coletivo na sala.

- O mais lamentável é que a companhia de seguro não cobre danos
causados por vacas. Especialmente porque eles estão certos de que é um ato de
vandalismo ou, como alguém qualificou, um trote de um sênior.

Eu me afundo no assento. O seguro não vai cobrir?

Will toma o microfone.

- Pessoal, estou implorando a vocês... Se alguém sabe quem é o
responsável, entregue esses caras. Porque o dinheiro tem de vir de algum lugar.
Por favor, façam o que é certo. - É quase como se ele estivesse olhando
diretamente para mim... direto para a minha alma culpada.

A culpa explode em meu estômago como se fosse um caso grave de
intoxicação alimentar. Talvez eu deva confessar tudo. Vou para o escritório da
Konch e admito que é minha culpa. Da minha família, para ser exato. Certo. Eu não
posso envolver a Miri nisso. O governo ia ficar maluco e ela seria obrigada a viver
numa caixa de vidro onde cientistas doidos estudariam cada movimento dela. Pobre
Miri. Eu quero envolvê-la num edredom quente e protegê-la, e não denunciá-la.
Afinal de contas, ela não queria fazer nenhum mal. Estava tentando salvar as
vacas.

O Sr. Earl está olhando fixamente para os seniores da fileira de trás. Não
suspeita de mim. Eu olho para a Sra. Konch. Ela está olhando as últimas fileiras
desconfiada. E Will ainda está... me observando. Olhando direto para mim,
Intensamente. Rapidamente, eu desvio o olhar. Minha nossa. Ele sabe. Ora!
Impossível. Ele não pode ter nem ideia. Provavelmente ele não está nem mesmo
me olhando. Ele está admirando alguma gostosona atrás de mim. Por que eu não
sou uma diva, não é mesmo!? Eu olho para trás, mas o bloco de filas atrás de mim
está lotado de garotos do segundo ano. Hum. Devagar, levanto a cabeça outra vez.
Oh, não. Ele ainda está olhando! Eu sei, ele provavelmente me odeia por causa do
Raf. Deve ser por isto. É claro que ele não sabe sobre as vacas. Ele me odeia
porque eu dei um bolo em seu irmão mais novo. Assim como eu quero proteger
Miri, Will quer proteger Raf.
*

Eu sento no livro de feitiço de Miri para chamar sua atenção.

- Precisamos fazer um zapt! para aparecer algum dinheiro.

- Tenho quarenta dólares - diz ela, apontando com o queixo para o seu
porquinhode moedas.

- Precisamos de um pouco mais do que isso. - Ainda tinha cheiro de laranja
no quarto, mesmo depois de termos dado todas elas.

Ela deixa cair sua caneca.

- Quanto?

- Quarenta mil.

- Ficou maluca?

- Infelizmente não. O conserto do prejuízo das vacas é caro. E eles não
sabem onde conseguir o dinheiro.

O rosto dela perde a cor.

- O que nós vamos fazer?

- Roubar um banco?

Ela pula da cadeira e abre o porquinho da poupança, que não parece nada
com um porco, já que é um caça-níqueis de plástico. Você aperta uma cereja e ele
abre. Eu sei disso não porque ela tenha me mostrado, mas porque uma vez tive de
pedir emprestado a ela cinco dólares. Bem, dez dólares. Tá certo, cinquenta, mas
eu estava desesperada. Ela acena com uma nota de vinte no ar.

- Vamos fazer o feitiço da multiplicação!

- Não sei, não - digo, assustada. - Eu não quis dizer que a gente precisa
fazer um zapt! para aparecer o dinheiro, não literalmente.

- Por que não? É perfeito! A gente faz as notas aparecerem e você manda
tudo pelo correio. Fim do problema.

- Tenho absoluta certeza de que isso é megailegal.

Ela arria na cadeira.

- Porquê?

Mesmo que me doa, eu explico.

- Nós estaremos criando cédulas falsas. Cada cédula tem um número de
série. Então, o colégio logo ia descobrir. E se eles não descobrissem, iam acabar
tendo um monte de problemas.

Mas quando foi que eu me tornei a irmã responsável aqui?
- Eu acho que ninguém vai perceber - ela diz obstinada.

- Além disso é um bocado arriscado. Nós já causamos muitos problemas. E
você tem de pensar nas consequências. Neste caso, prisão. - Tento lembrar o que
nós aprendemos durante o primeiro semestre em economia. - Ora, ninguém pode
fabricar o próprio dinheiro. Ia causar inflação.

- Eu não quero isso.

- Nem eu. Mas não importa. Precisamos de um outro plano. Temos de
ganhar dinheiro.

Ela puxa o seu livro de feitiço que está debaixo de mim.

- Eu já dei minha ideia. Se não gostou, invente outra coisa. Estou ocupada.
Preciso encontrar um jeito de mandar laranjas para a África.

- Como é que é?

- Ajudar os órfãos africanos é o número dois da minha lista. Você saberia do
que estou falando se não tivesse caído no sono quando a estávamos escrevendo.
Eles precisam de vitamina C mais do que os nova-iorquinos. A gente podia ir de
vassoura para lá, ia ser uma viagem bem rápida.

- Existem aviões, sabia? Invente uma maneira de ganhar dinheiro e nós
podemos fazer uma viagem. - Eu devia dar uma olhada nessa lista. Miri resmunga.

- Aviões. Por favor. Não entendeu, foi? Eu tenho poderes.

É melhor arrumar umas passagem de primeira classe. A coisa subiu à
cabeça dela.

*

É terça-feira de manhã e eu ainda não tenho ideia de como arranjar
dinheiro. Estou tentando enfiar meu casaco no armário, tentando ser discreta tanto
quanto possível, quando vejo o Will, em pé como uma estátua, olhando para mim.
De novo, intensamente, como se estivesse se consumindo. Seu cabelo preto parece
desalinhado e seus grandes olhos castanhos estão brilhando à beça. Vamos, Will, é
hora de deixar a raiva para trás. O Raf e eu estamos a ponto de ficar juntos
novamente, tão logo o feitiço faça efeito, e então você vai se sentir um idiota por
ficar me encarando.

Eu separo os livros necessários em meus braços e marcho para longe dele.
Que idiota. Um idiota sexy, mas ainda assim um grande idiota.

*

- Não beba neste copo - Tammy me repreende, apontando seu dedo para
mim, desaprovadoramente.

- Epa! - Eu devolvo o seu copo de café à mesa com um bang! - Vacilei!

- Foi a sua terceira tentativa - ela cochicha. ­ Eu to de olho.

Tammy está sem voz porque ainda está doente. Estamos ambas sentadas
num sofá de camurça cor de malva em sua sala de estar, vendo uma maratona de
filmes clássicos. Nossas cabeças estão em extremidades opostas e nossos pés estão
embolados no meio.

- Vá por mim, não é possível que você queira ficar doente. Aaron e eu
estamos péssimos. Não podemos nem mesmo sair de casa! Como um
relacionamento pode durar quando o casal não pode se ver?

- Se você quiser que dure, vai durar. Vá por mim, ficar em casa é melhor do
que ir para o colégio - eu me queixo. - Não vou suportar nem mais um dia. Você
não sabe como é. Ninguém fala comigo. Jewel não olha para mim. Melissa sibila
como uma cobra quando eu passo. Pelo menos a London tem estado ausente...
Muito suspeito, né? Vai ver ela não agüentou o remédio da sua própria vingança.
Pelo menos, tiraram ela do site dos esquisitões. O Raf me ignora. E agora o irmão
dele me odeia também! Eu disse a você, ele está me perseguindo! E eu tive de
almoçar na biblioteca denovo. Ninguém quer falar comigo!

- Rachel, eu falei com Janice e ela perguntou por você. Ela me disse que
sempre procura por você no almoço.

- Ah, é... - Bem, havia me esquecido da Janice, Sherry e Annie.- Eu acho
que ia ser legal. - Mas elas são amigas de Tammy, não minhas. E elas são um
pouco chatas, para ser honesta. - Bem que eu podia me sentar com elas. - Ou...

Faço outra tentativa de beber no copo d'água dela.

*

O sinal do fim das aulas toca e eu estou quase saindo do prédio quando me
viro e vejo Will atrás de mim.

Porque será que o irmão da minha paixonite está me seguindo? E será que
se trata mesmo de perseguição, já que ele é tão bonito? Os olhos, o cabelo... bem
do jeito do jeito do Raf, mas com ombros mais largos.

Saio apressada pela porta. Ele me segue. Eu disparo pela rua. Ele continua
atrás de mim. Viro na rua Décima. Ele também. Acelero mais ainda. Ele idem. Dou
uma guinada para a esquerda na esquina e me escondo numa loja de revistas.
Segundos mais tarde, ele passa pela frente da loja. Eu leio Teen People e então,
dez minutos mais tarde, quando não há mais ninguém à vista, vou correndo para
casa.

*

- Mãe, você pode me ajudar a levar o material de reciclagem? - eu pergunto.
- É um bocado de coisa para carregar.

Terminamos o jantar e estamos arrumando tudo. Alguma coisa está
cheirando a sardinhas queimadas. Deve estar vindo do depósito de reciclagem.
Pego a caixa de pizza, minha mãe reúne as caixas de papelão vazias que tinham
sido empilhadas e carregamos tudo para o lixo do segunda andar. Agora o corredor
fede.

- Como foi a escola? - minha mãe pergunta.

- Melhor - Bem, mais ou menos, já que almocei com Janice, Annie e Sherry.
Mas elas não são uma razão para eu levantar de manhã.
Dave, também conhecido como o bombeiro gostoso, está trancando seu
apartamento. Ele acena, dirige-se para a escada, pára, então volta na nossa
direção.

- Ei, garotas, precisam de ajuda? - ele pergunta, mostrando seu sorriso sexy
de dentes salientes.

- Tudo bem por aqui - minha mãe responde. - Mas obrigada.

- Você está com um perfume ótimo, Carol. - Dave diz, fazendo com que eu
quase derrubasse a garrafa que eu estava segurando.

Do que ele está falando? Tudo o que eu consigo sentir é cheiro de sardinha.
Arght!

Minha mãe fica profundamente vermelha.

- Obrigada. É tão gentil.

- Eu estava pensando se você gostaria de ir em algum lugar para tomar um
drinque?

Bem-vindos, senhoras e senhores. Estamos oficialmente dentro do Twilight
Zone. Estamos morando neste prédio há uma década. Verdade, minha mãe está
sozinha há alguns anos, mas, ainda assim, o bombeiro nunca mostrou nenhum
interesse por ela. O que tem nesse depósito de reciclagem que causou esta
mudança no coração dele?

- Talvez - minha mãe responde timidamente, separando uma mecha de seu
cabelo atrás da orelha. Ela dá tchau e nós, silenciosamente, voltamos ao
apartamento.

Tão logo ela fecha a porta, eu pergunto:

- Que história é essa?

Rubor.

- Como assim?

Eu ainda posso sentir o cheiro das sardinhas queimadas. De onde será que
está vindo? Ergo o nariz no ar e aspiro. Para a direita. Perto da mamãe. Muito perto
da mamãe. É a mamãe. Eu cheiro seu pescoço.

- Por que você está usando caldo de sardinha como perfume?

Ela dá um passo para trás.

- É um novo perfume que estou experimentando.

Minha mãe não compra nenhuma colônia desde 1989. Alguma coisa aqui é
suspeita e não é apenas o perfume.

- Por que você comprou alguma coisa que cheira tão mal?

Ela hesita.
- Eu não comprei.

- É uma amostra grátis?

- Não exatamente.

Abracazam!

- É um feitiço! - eu gritei. Mamãe torna a ficar vermelha.

- É um... perfume para atração. Eu estava procurando no meu antigo livro
de magia e este pareceu interessante. Então, achei que... bem, eu pensei, por que
não fazer uma tentativa? Só para ver no que vai dar. De qualquer forma,
considerando o que acabou de acontecer - ela cochicha -, acho que funciona.

- Hum... alô? Pode me dar um pouco dele?

- É muito forte para uma adolescente. Quando você for mais velha. Talvez.
Se você me provar que pode usá-lo com responsabilidade e apropriadamente.

Eu podia usá-lo apropriadamente agora mesmo.

*

Hora do almoço de sexta-feira! A semana está quase acabando. Estou quase
entrando na sala de ginástica, quando dou com Will me esperando do outro lado da
porta.

Eu me escondo atrás de Janice e deslizo furtivamente para o banheiro. Dez
minutos mais tarde, quando a maior parte da turma já saiu para o almoço e eu
presumo que as aulas dos seniores já começaram, tento abrir a porta. Mas ele está
lá, andando pra cima e pra baixo no corredor, esperando por mim.

- Rachel! - ele diz, parecendo sofrido. - Ei, espere. Eu estive tentando
conversar com você durante a semana toda.

Está tudo perdido. Eu não tinha onde me esconder. Vou ter de ficar parada
aqui e levar uma bronca.

- É, eu notei.

- Tem uma coisa que eu quero dizer a você - ele diz, sua voz ficando alta.

Espero que isso não demore. Estou com fome. E Janice me convidou para
encontrar com ela e com as garotas no Quiznos, mais abaixo no quarteirão.

- Eu sei. Então faz logo o que tem de fazer.

Ele dá um passo em minha direção. Ele é bonito mesmo. Nunca um
gostosão desses tinha gritado comigo antes.

- Acho que estou apaixonado por você - ele diz, e antes que eu morra por
causa do choque, ele chega mais perto, olha profundamente nos meus olhos e me
beija.
8. Alguma coisa emprestada

Se eu tivesse morrido com o choque, a essa altura Will Kosravi teria me
ressuscitado. Porque ele está me beijando. Primeiro foi como se eu estivesse vendo
a cena de longe: vejo as mãos de Will gentilmente acariciando o meu rosto,
enquanto os seus lábios pressionam os meus. É tudo um romance tipo uma grande
história de amor. Mas então ele abre a boca e meu cérebro se encontra com o meu
corpo.

Minha língua acabou de tocar na língua de alguém! E era macia!

Oh, Meu. Deus. Estou beijando Will Kosravi. Eu estou dando beijo de língua.
E esta coisa toda de língua faz com que beijar um garoto real seja muito mais
interessante do que beijar meu travesseiro ou as costas da minha mão. Não posso
acreditar que depois de todos estes anos imaginando o que é beijar, e como a
gente se sente, eu esteja finalmente fazendo a coisa.

Como ele tem mais de 1,80m de altura, meu rosto está inclinado num
ângulo de 90°, que não parece doer, porque sua mão está agora cuidadosamente
apoiando meu pescoço. Ele cheira a almíscar, como loção de barba. Aimeudeus,
estou beijando um garoto que é mais velho o bastante para se barbear!

Eu tenho de admitir, é muito bom.

E é para eu fazer alguma coisa? Além de deixar minha boca aberta enquanto
minha língua é sugada para lá e para cá feito um carrinho de supermercado? Talvez
eu tenha de fazer alguma coisa com meus lábios, será? Movê-los de um lado para
outro? E se eu morder a língua dele por engano? Será que eu tenho o pior beijo do
mundo? Se eu soubesse que ele ia me beijar, tinha cuspido fora meu chiclete. Onde
está meu chiclete? Sem dúvida estava aqui antes desta comoção do beijo começar.
Deveria estar escondido entre meus molares e gengivas como uma tartaruga
amedrontada. Eu não quero que a minha língua saia procurando por ele porque... e
se for isso a única coisa que não se deve fazer quando se está beijando? Ai, ai,
acho que estou sentindo o chiclete atrás da minha língua. Talvez eu deva engoli-lo
de uma vez. Mas e se eu engolir a língua dele junto? E daí, morro sufocada?

No instante em que dou por mim, finalmente, Will se afasta, o que quer
dizer que o beijo acabou. Agora ele está sorrindo para mim, dizendo:

- Legal!

- Hum... uau! - Eu estou meio sem saber ao certo em que planeta estou. Por
que o irmão de Raf me beijou?

- Eu estava falando sério. Acho que eu amo você... - ele contínua, seus
olhos parecendo girarem.

O quê, o quê, o quê? Amor? Como é possível que o irmão do amor de minha
vida me ame? E eu amando o irmão dele? Will se curva para me beijar, mas agora
eu interrompo com minha mão.
- E o Raf?

- Eu sabia que vocês dois estavam ficando juntos, mas perguntei a ele se
podia sair com você e ele disse que tudo bem. Podemos fazer alguma coisa neste
fim de semana?

- Tudo bem - eu digo, em parte por causa da surpresa, em parte devido à
rejeição. O Raf não se importa que seu irmão goste de mim? Que me ame? Como
pode ser? Sem chance de eu deixar a Miri sair com o Raf. A menos que esteja tudo
completa e totalmente acabado.

Meu coração se afunda. Raf deve estar se sentindo completa e totalmente
acabado em relação a mim. Nem mesmo o feitiço do amor podia superar tanta
aversão.

- Outro beijo? - Will pergunta, colocando a mão no meu rosto.

- Claro. - Bem, por que não?

*

- Não faz nenhum sentido - eu digo para a Tammy pelo telefone do meu
quarto. Estou deitada na minha cama, meus pés se apoiam contra a parede.

- Nem sei o que dizer a você - ela fala, com a voz ainda rouca.

- Você acha que eu devia cancelar o encontro?

- Você quer sair com ele?

- Quero sair com o irmão dele! Não estou entendendo nada. Eu nunca tive a
menor pista de que ele sentia alguma coisa por mim, nadinha mesmo.

- Ele disse quando começou a gostar de você?

Boa pergunta. Ele gostava de mim quando eu estava saindo com o Raf? Ou
talvez gostasse de mim desde o primeiro dia da escola, mas achava que não tinha
nada a ver um sênior se encontrar com uma caloura. Ele deve ter ficado com
ciúmes quando Raf me convidou para o Baile da Primavera.

Eu ouço a chave de Miri tilintar na porta de frente.

- Rachel? Você está em casa?

- No meu quarto!

- Imagine! - ela grita com a força dos seus pulmões enquanto fecha a porta
- Nós vamos para a África! Encontrei um feitiço de transporte!

Eu, nervosa, tento cobrir o receptor do telefone com a mão, mas eu acho
que foi tarde demais.

- Ficou doida? - eu grito. E agito o telefone para ela.

Os olhos dela se arregalam e seu queixo cai.

Eu coloco o telefone de volta no meu ouvido e tento parecer indiferente.
- Qual a sua pergunta? Quando Will começou a gostar de mim? Não tenho
certeza. Talvez faça pouco tempo.

Silêncio. E então:

- Sua irmã acabou de dizer que encontrou um feitiço de transporte? E que
vocês estão indo para a África?

Terrível. Eu agito o meu punho fechado para Miri.

- O quê? Ah, não, você deve ter escutado errado. - Pense rápido! - Ela disse
que o trem, hum... cheirava. Como... a África.

Miri se enrosca como uma bola na minha cama e seus lábios estão tremendo
de medo.

Outro silêncio. Tammy não vai engolir essa. Nosso disfarce está arruinado.
Miri acabou de estragar tudo! Eu confio em Tammy, claro, mas nunca se sabe; esse
segredo é muito sério. E se ela contar para a mãe dela e eles chamarem a
imprensa e então Miri e minha mãe forem descobertas? Minha nossa. Vou ser
obrigada a morar com o meu pai!

- Como a África cheira? - Tammy pergunta.

Eu suspiro.

- Hum... Algo seco? Ouça, Tammy, eu posso falar com você depois? Minha
irmã está tendo uma espécie de pane mental aqui do meu lado.

- Certo. Falo com você mais tarde.

Miri pula para junto de mim na cama.

Ai, ai.

- Dá para tentar não dizer ao mundo inteiro que você é uma bruxa? E sinto
muito perguntar, mas...- eu acrescento, ao reconhecer a parte traseira do meu
jeans favorito frouxamente solto no traseiro esquelético de minha irmã. - Eu lhe dei
permissão para pegar minhas roupas emprestadas?

- E daí? - ela resmunga, o rosto espremido contra o meu travesseiro. - Você
não está usando ele, está?

E foi quando a água fria do que aconteceu se derramou sobre a minha
cabeça. Estúpida, estúpida, estúpida. Will na verdade não está apaixonado por
mim?

- Que desastre!

Miri vira a cabeça para me olhar.

- Você não está louca de verdade, está?

- A luva do Raf - eu bufo - não era dele. Ele deve ter pedido emprestado as
luvas do Will.

- Como é que é? - Ela afunda o rosto atrás do travesseiro. - Ah, não.
Eu começo a rir. Não posso evitar. Conto os acontecimentos do dia para Miri
e termino com um glorioso: "Mas que merda, hein?"

Ela concorda.

- O que vamos fazer? Você quer usar um spray de reversão do coração?
Temos um pouco já pronto para usar. Ou eu posso tentar fazer um feitiço para
reverter o outro, mas é difícil, tem cinco vassouras. Acho melhor usar o spray de
reverter o coração mesmo.

- Acho melhor. - Suspiro! É o Raf que eu quero que goste de mim. É do Raf
que eu gosto. Se bem que o Will beija bem à beça. Mas tenho certeza de que o Raf
também. - Posso usá-lo no encontro da gente, amanhã. Ele quer me levar para
jantar.

- Você vai usar o feitiço para reverter no restaurante? E se ele der um
ataque?

Bem pensado. Um novo plano é necessário. E se ele me abandona na mesa?

- Melhor dar um jeito nessa confusão logo que ele tocar a campainha. Como
arrancar fora um band-aid - eu digo. Suspiro!

- Qual é o problema?

- É bom ter um garoto como Will dizendo que ama a gente. Mesmo que
pareça estranho e acima das expectativas. Principalmente agora, que todo mundo
tem me tratado como uma grande cretina.

- Eu posso fazer outro feitiço para o Raf se você quiser.

- Vamos nos concentrar num único feitiço do amor por enquanto - eu digo.

Ela muda de posição e põe os pés contra a parede.

- Foi bom? - Ela fica supervermelha. - A parte do beijo.

- É. Foi ótimo.

- Não foi nojento?

- Não foi, não. Foi gostoso. - Mas não era o Raf.

- Oi, garotas! - minha mãe cumprimenta, aparecendo no quarto. Não sabia
que ela estava em casa. - O que estão fazendo?

- Discutindo um desastre mágico - eu admito. Por que não? Talvez ela dê
algum conselho. - Nós colocamos o feitiço do amor no cara errado. Ela se apoia no
canto da cama.

- Garotas, eu avisei para serem cuidadosas.

Nós levantamos nossas cabeças. Ela suspira.

- Que tal me contarem tudo sobre isso enquanto faço um macarrão para o
jantar antes do meu encontro? - Ela entra na cozinha.
Fico preocupada. Será que algum alienígena tomou conta do corpo da minha
mãe?

- Outro encontro? - Miri pergunta.

- Isso mesmo - mamãe fala do outro lado do apartamento. - Vai ser um fim
de semana ocupado. Dave me convidou para um drinque esta noite. E amanhã
Adam esta me levando para o teatro.

- Dois encontros num fim de semana? - eu grito. Apesar do meu novo falso
namorado, minha mãe está com a agenda amorosa mais agitada do que a minha.
Patético.

- Três, na verdade - ela diz e escutamos a água cair - Eu vou encontrar
Jean-Paul para um queijos e vinhos no domingo.

Triplamente patético.

- Jean-Paul? - A esta altura eu pulo da cama, vou para a cozinha e me
encosto no balcão.

- Quem é esse Jean-Paul? - Miri pergunta, aborrecida, braços cruzados, no
vão da porta.

- Um cara que eu conheci nesta semana. Ele é francês.

Esse é que deve saber beijar. Afinal beijo de língua não se chama french
kiss, em inglês, à toa.

- Onde você conheceu um francês? - Onde eu posso encontrar um francês?
Sempre quis comer fondue de queijo enquanto cochichavam no meu ouvido na
língua do amor.

Ela abre o armário e pega o talharim.

- Foi uma coisa meio doida. Eu estava andando pela rua e ele topou direto
comigo. Derrubou minha bolsa do ombro. Primeiro, achei que fosse um ladrão,
parecia que ele ia pegar o meu dinheiro, mas ele me ajudou a recolher as minhas
coisas, disse-me que eu era magnifique e me convidou para sair.

- Incroyable. - Sem dúvida, a tal eau de sardines não faz mal.

Ela pega uma colher de madeira da gaveta e aponta para a própria.

- Alguma sugestão do que eu deveria usar?

- Por que você não faz aparecerem algumas roupas novas? - Miri sugere.
Um tanto sarcástica, devo acrescentar.

Mamãe hesita.

- Estou tentando usar mágica moderadamente.

Miri ri com desdém.

- Certo. Bem, vou estar no meu quarto.
Mamãe parece como um pássaro ferido.

- Dever de casa?

- Não. Trabalho de salvar o mundo. Até queria que a gente conversasse
mais sobre isso, mas você anda muito ocupada ultimamente. - E com isso, ela sai
com passos largos.

- Eu apenas estou tentando ser uma pessoa mais feliz - minha mãe diz,
tristinha. - Talvez seja uma má ideia, afinal de contas.

- Não, não, não, deixa que eu converso com ela - prometo. Minha mãe está
indo tão bem nessa sua reestréia amorosa; não pode desistir agora. Eu ajeito o
cabelo para que pareça que ela tem franja.

- Ah, está ótima.

- Você acha? Hora de mudar o penteado?

- Isso, claro que sim. - Eu já venho dizendo isso há dois anos.

- Mais longo? Ou mais curto? - Ela dobra as mechas ao meio e ajeita o
cabelo na altura do queixo. - O que você acha?

Acho bom e bem feminino.

- Longo, com certeza. Você devia deixar o cabelo crescer. E cuidar das suas
raízes!

Quando o jantar fica pronto, Miri e eu comemos enquanto minha mãe toma
banho.

No que eu estou lavando os pratos, minha mãe entra agitada na cozinha.

- Vou estar lá embaixo se vocês precisarem de alguma coisa.

- Divirta-se - eu digo, distraída. E então olho para ela.

Ai. Meu. Deus.

- Ei, mãe?

- O que você acha? - ela pergunta ansiosa.

- O que você acha - como eu podia dizer isso - de Dave perceber que o seu
cabelo cresceu 60 centímetros num único dia?

E foi isso. Não num dia, mas nos últimos sessenta minutos. Parece que
mamãe fez uma visita a um salão de beleza mágico. Está comprido, louro e bonito.
Raízes? Que raízes? Ela parece a Barbie. Cinderela. Rapunzel.

Ela mordisca seu polegar.

- Você acha que eu exagerei?

- Bem... - é melhor não acabar com sua ilusão. Ela precisa de um elogio
para aumentar sua confiança. - Você está ótima. Linda.
Ela me dá uma de suas grandes piscadelas excêntricas, com seu olho
fechado que parece não se mover. - Ele é um bombeiro.

Resmungo.

*

- Suba nas minhas costas - Miri diz na manhã seguinte, irrompendo no meu
quarto, segurando sua mochila junto do peito.

- Como é?

- Vamos. Quero que você venha comigo para a Tanzânia para ajudarmos os
órfãos.

Há algumas partes desta afirmação que eu não entendo. Saio da cama e
estico meus braços acima da minha cabeça.

- Explique devagar e razoavelmente, por favor?

Ela vira os olhos.

- Há crianças na Tanzânia...

- Onde?

- Tanzânia... é na África, idiota... Eles não têm comida suficiente, nem
roupas, nem livros.

- E...

- E nós estamos indo fazer alguma coisa por eles.

- Como nós vamos para lá, exatamente? Não vamos de vassoura. Levaria
muito tempo. Não esqueça que eu tenho um encontro que preciso resolver esta
noite.

Miri bate os pés.

- Você não me escutou? Encontrei um feitiço de transporte. Posso
transportar a gente para qualquer lugar. Tudo o que temos de fazer é pensar no
lugar, segurar dois lítios de bateria juntos, cargas positiva e negativa, uma em
frente da outra, pronunciar o feitiço e ir embora.

Cômico.

- Parece bom. E nossa mãe vai deixar a gente ir para a África?

Miri fica de repente muito interessada no zíper de sua mochila.

- Mais ou menos.

- Você perguntou?

- É minha culpa se ela ainda está meio dormindo? Perguntei a ela se eu
podia ajudar os órfãos e ela disse "leve sua irmã". Pra mim, já está bom.
Concordo. Visto um jogging e um moletom com capuz.

- Está bem, vamos. O que eu tenho de fazer?

- Tenho de levar você nas minhas costas, porque somente eu e o que eu
estou segurando serão transportados.

- Posso fazer um xixi antes?

Ela suspira.

- Está bem, mas anda logo.

Vou rápido ao banheiro e volto para o meu quarto. Miri se agacha.

- Suba nos meus ombros!

Rindo, eu salto e envolvo o pescoço dela com os braços.

- Eu vou causar uma hérnia em você.

Miri resmunga e se levanta.

- É a única forma de conseguir fazer isso. Agarre minha mochila. Tudo o que
precisamos está nela.

- Comprimidos para a malária?

- Rá, rá! Só vamos ficar lá cinco minutos. Tente não ser mordida por um
mosquito. - Ela balança a cabeça para a esquerda. - E eu acho melhor não beber
água por lá também. Agora fique quieta enquanto eu recito o feitiço.

É um plano ruim, eu sei disso.

- Miri...

- Psiu, tenho de me concentrar. Ela cerra os punhos em torno de cada
bateria, entrelaça os dedos juntos e pigarreia.

Transportar para o lugar que está na minha mente,

O poder de meus punhos deve ser usado velozmente!

Meus braços escorregam e eu estou a ponto de dizer para ela que eu vou
cair quando um choque de eletricidade percorre o meu corpo. Opa! Aposto que é o
que se sente quando um raio cai na gente. De repente, minha pele fica quente e
seca. Em vez da minha cama, tudo o que eu vejo são pontos e formas nas cores
azul, vermelha e amarela, como se eu estivesse olhando num caleidoscópio. Mesmo
agarrada à minha irmã, meu corpo parecia sem peso, como se eu estivesse
nadando debaixo d'água. A próxima coisa que eu percebo é que a mancha de
cores está se solidificando numa floresta e numa casa de estuque. O secador de
cabelo é desligado e eu consigo sentir a gravidade de novo.

- Chegamos! - Miri se alegra. Tonta, eu escorrego de suas costas e meus
pés tocam o chão de terra. Eu olho em volta mas eu não consigo ver muito além da
construção de um só andar, porque está muito escuro.
- Já é noite? O transporte parece que foi num segundo.

Miri balança a cabeça.

- Aqui são sete horas depois - ela cochicha. - Vamos tentar não atrair
atenção sem necessidade. Pode ter leões, você sabe.

Meus braços ficam inteiramente arrepiados com a possibilidade de
aparecerem animais assassinos, assim como por causa do frio.

- Você tem certeza que estamos na África? Não era para estar quente aqui?

Miri alcança sua mochila.

- Você não sabe geografia? As estações no hemisfério norte são opostas às
do hemisfério sul.

Essa foi demais. Minha cabeça está latejando, embora possa ser da viagem
supersônica e não dessa informação. Odeio como eu fico quando tenho dor de
cabeça. Meus olhos ficam semicerrados como uma dessas bonecas dementes. Miri,
no entanto, parece bem. Outra vantagem de ser uma bruxa com plenos direitos e
poderes é que elas aparentemente não precisam de aspirina.

- Vamos em frente, pode ser? - eu pergunto. - Qual o seu plano, afinal de
contas?

- Siga-me - ela diz e pega uma lanterna. Ela se aproxima da construção,
encontra a maçaneta da porta e a abre facilmente. As pessoas daqui não devem
ficar muito preocupadas nem em ter a casa invadida por ladrões, nem por um leão
criminoso.

Eu a sigo para dentro de uma pequena sala de aula, as tábuas do chão
rangendo a cada passo nosso. As poucas cadeiras e mesas parecem bastante
gastas. Na parede, há um pequeno quadro retangular com números e letras
rabiscadas nele. Miri livra-se de sua mochila e tira fora uma laranja, seu livro de
matemática e - aquela é minha blusa verde?

Ela deixa tudo no chão empoeirado perto da mesa do professor.

- Estes alunos são todos órfãos e precisam de comida, roupas e livros.
Então, vamos fazer o feitiço da multiplicação. - A seguir, ela tira um pote de
plástico com uma mistura já preparada de hortelã, chocolate e casca de uva.

- Pronta? - ela pergunta.

Mesmo na escuridão, posso ver que os olhos da minha maninha estão
brilhando. Eu sinto um arrepio de orgulho. Miri é realmente uma super-heroína.

Ela dá um profundo suspiro e começa:

Aqui está uma só

Localizada no chão,

Eu inclino a cabeça três vezes

E agora há uma porção!
*

Quando nós nos transportamos de volta para os EUA, estou emocionalmente
acabada... e sonolenta. Miri encheu a escola de laranjas, livros e tops. Para me
preparar para jogar em Will a poção de reversão do coração, tomei banho, sequei o
cabelo e apliquei gloss nos lábios. A razão de eu me embonecar (incluindo colocar
meu jeans favorito e uma sexy blusa vermelha nova) é que eu mantenho a
esperança de que, depois do feitiço da reversão congelar seu coração, Will deverá
continuar pensando que eu sou bonita e poderá convencer seu irmão a gostar de
mim novamente. Eu estou bem segura do poder de sugestão dos irmãos.

Minha mãe está igualmente entrincheirada em seu processo de se enfeitar, e
fazemos um baile. O rádio está tocando, nós duas estamos cantando sob o secador
de cabelo, compartilhando o mesmo rímel.

Miri perambula no banheiro enquanto nos aprontamos.

- Por que você não deixa eu colocar um pouco de maquiagem em você? - eu
pergunto a ela. - Garanto que vai gostar.

Ela revira os olhos.

- Tenho coisas mais importantes a fazer com meu tempo do que me pintar.
Como o número três da minha lista: libertar o mundo das minas terrestres.

Mamãe ergue os olhos, enquanto passa o delineador.

- Você já fez seu dever de casa?

Miri balança a cabeça negativamente.

- Vou fazer à noite.

- Ótimo. E eu fiz para você um pastelão de tofu com brócolis para o jantar. É
só esquentar no forno para tostar. Você sabe fazer isso, certo?

- Sei, mãe. Ao contrário de sua outra filha, eu sei usar os apetrechos da
cozinha.

Um incendiozinho à toa na cozinha e vou ter de escutar isso para o resto da
minha vida. Como eu ia divinhar que marshmallows são inflamáveis?

Não fiquei ofendida porque sei que ela está aborrecida com o novo dossiê de
encontros da minha mãe e não comigo. Enquanto esperava que as blusas, livros e
frutas se multiplicassem, tentei falar com ela sobre essa sua birra, mas Miri se
recusou a discutir o assunto. Eu disse a ela que mamãe precisava ver outras
pessoas. E que Miri tem de aprender a dividir. Ela atirou uma laranja na minha
cabeça.

A campainha toca.

Epa! O que eu posso dizer? Mesmo sabendo que não ia sair do apartamento,
já que ele vai disparar à toda para algum lugar seguro assim que o feitiço o atingir,
não posso evitar que calafrios percorram minha espinha. Eu falo baixo. - Miri? Você
está pronta? Está com a reversão do coração?

Ela se junta a mim no vestíbulo e me dá o vidro.
- Está bem. Pronta? - eu pergunto. - Você abre; eu jogo - Eu fico em
posição. Toc! Toc! Toc! Eu digo de novo para Miri:

- Pronta?

Ela confirma. Vamos com tudo agora.

Meu dedo está no disparador e eu estou a ponto de apertar o spray quando
tudo o que eu vejo é vermelho.

Will trouxe rosas. Três dúzias de rosas. De caule comprido. Eu mal posso ver
seu rosto porque está bloqueado por uma floresta. Nunca tinha ganhado flores de
um garoto.

(É mentira. Quando eu tinha cinco anos, no dia dos namorados, meu pai
trouxe para casa um ursinho para Miri e duas caixas embrulhadas, uma para mim e
outra para minha mãe. Uma estava em papel prateado e outra com papel da
Barbie. Ele me disse para eu escolher. Eu escolhi a prateada, porque era brilhante.
Ele riu e me disse para escolher a outra, mas eu recusei. Um trato era um trato. Ele
concordou. Minha caixa tinha uma dúzia de rosas. Minha mãe ganhou um
conversível da Barbie. Nós trocamos.)

- Oi, Rachel! - Will cumprimenta. - Isso aqui é para você.

Epa! Adorável! Gentil! Doçura! Eu deixo cair o vidro de spray no carpete e
abraço as flores.

- Obrigada! Deixa eu colocá-las na água.

Eu me retiro para a cozinha. Lamentável. O primeiro garoto/homem
não-parente que me dá rosas e eu não posso nem sair com ele. Se ao menos eu
pudesse, apenas por esta noite... não. Seria perda de tempo. Não vou sair com Will
para depois jogar um spray nele. Ridículo. Masoquismo. Para nós dois. E ele ficaria
se perguntando se eu tinha ficado maluca. Levar uma caloura para jantar. Loucura!
Há normas sociais que precisam ser preservadas ou a sociedade colegial cairá em
ruínas!

- Que lindas! - minha mãe exclama, interrompendo. - Deixa que eu cuido
delas. Vá embora, querida.

- É um prazer conhecê-la, Sra. Weinstein. - Will dá a sua mão. - Will. - Ele é
tão adoravelmente adulto.

Minha mãe cumprimenta-o

- Prazer em conhecê-lo, também, Will. Mas já faz tempo que não sou mais
Weinstein. Carol Graff, mas pode me chamar de Carol. - É estranho que ela não
tenha se irritado porque eu vou sair com alguém tão alto. Estou um pouco nervosa.
Ele parece um homem. E agora ela está piscando os cílios. Minha mãe está
flertando com o meu namorado? Que desagradável. - Então onde vocês vão nesta
noite? - ela pergunta. Pisca, pisca.

- Bem, minha amiga... - ele fala enquanto eu procuro pelo vidro. Tenho de
colocar um ponto final nesta bola de neve desastrosa imediatamente. Tenho de
jogar o spray nele. - London... - London? - está dando uma festa esta noite. E eu
prometi que passaria lá antes do jantar. Se estiver tudo bem para você, Rachel.
Falando em doce vingança!

Miri pega o frasco do chão e aponta. Ela olha para mim pedindo aprovação.

- Não! - eu praticamente grito. - Espere um segundo. - Coração batendo, eu
agarro o vidro de spray das mãos dela, enfio na minha bolsa e digo - Tchau, volto à
meia-noite.

E empurro Will para a porta.

*

- O que - London exclama, estreitando os olhos ­ você está fazendo aqui? -
Suas bochechas estão tão rosadas quanto sua blusa vermelha, jeans vermelho,
botas vermelhos, unhas pintadas de vermelho e gesso vermelho. Eu não tenho
ideia de como este último item foi possível.

Estou saindo do banheiro do primeiro andar. (Sim, London mora num tríplex
insano. Eu levo um minuto me divertindo com a imagem dela lutando para descer e
subir os degraus com o gesso.) A diabólica está esperando por mim, fumegante e
enfurecida.

Todos os olhos da sala estão em nossa direção.

- Você pode, por favor, sair do meu apartamento, Rochelle? - Ela enfia o
dedo em mim como se fosse uma espada. Por que ela está sempre apontando para
mim?

Risos percorrem a sala e eu quero morrer. Ou, no mínimo, chorar. Parece
que a festa estava ótima e London reconquista sua posição no topo da escala social
do JFK. E eu estou mais uma vez lá embaixo, como um verme. Eu estou quase indo
para a porta, quando Will vem em meu socorro.

- Ela está comigo. Por quê? Algum problema?

Mas que lindo filme adolescente!

A boca de London se abre, mas, no início, nenhum som se ouve. Finalmente,
ela resmunga:

- Por que você estaria saindo com ela? Ela é uma esquisita!

- Rachel é a minha nova namorada - ele replica.

A turma fica agitada. As meninas seniores cochicham com suas amigas e os
juniores sortudos o bastante por terem sido convidados enviam frenéticas
mensagens de texto para suas gangues. Alheio a tudo, Will acaricia meu ombro.

- Quer ver o que está acontecendo lá em cima?

Ainda estou girando no mundo N. Sou uma namorada. Sou uma namorada!
Adoraria estampar o slogan numa camiseta: Eu, Rachel Weinstein, caloura nerd,
sou a namorada (temporária) do presidente do conselho estudantil! Uau!
Maravilhoso.

Eu faço que sim com a cabeça e Will me dá a mão - sim, me dá sua mão na
frente de todo mundo -, e nós passamos pela ainda-em-estado-de-choque London
para subir as escadas. Eu seguro a vontade de mostrar a língua para ela. (Bem, fiz
isso, sim, mostrei apenas um pouquinho e Will não viu.)

Quando chegamos à sala do segundo andar, Bosh, um sênior, e Will se
cumprimentam batendo as mãos num high five.

- Oi, cara. - Bosh está no conselho estudantil com Will. Embora ele seja o
tesoureiro, não foi eleito devido às suas habilidades matemáticas. É um desses
caras super-populares que vive vestido com roupas esportivas e boné de beisebol,
que parecem ursinhos de pelúcia e são amados por todo mundo. Dá para imaginar
ele crescendo e se tornando um Norm do Cheers. Acho que Bosh é seu sobrenome,
mas não estou certa. Tudo passa, como a Madonna.

- Bosh, você conhece a Rachel? - Quando Will nos apresenta, seus olhos
permanecem firmemente plantados em meu rosto. Eu sou como batata frita, que a
gente não consegue parar de comer.

Bosh me cumprimenta batendo nas minhas mãos.

- Só de nome, cara. Will não parou de falar em você durante a semana
inteira.

- Quer um pedaço de alcaçuz? - Will pergunta e tira um pequeno embrulho
de seu bolso.

- Quero - respondo. Ele parte um pedaço e o dá para mim.

- Eu sempre tenho alcaçuz comigo. Sou um total viciado em açúcar. - Ele dá
uma mordida em cada extremidade de seu pedaço e sopra como se fosse um
canudo.

Will é tão gracinha.

Estaria mentindo se dissesse que não estou adorando isso tudo. As notícias
do nosso relacionamento, ainda mais pela diferença de idades, se espalham mais
rápido do que uma gripe. As pessoas quase me derrubam no chão de tanto que
apontam.

- Oi, Rachel - diz Mercedes Redding, sênior e ex-co-autora do desfile de
moda com London. - Como vai? - Mercedes não falava comigo desde o desastre.
Mas agora eu estou de volta no radar, baby!

Viva ao quadrado!

Fico contente em conhecer o restante da turma do Will (Como se eu já não
soubesse quem eles são. Rá!) Jerome, Nelson e Schumacher. Um estava no desfile
de moda e dois são do time de beisebol. Todos os três estão na Lista-A. Óbvio.

Enquanto eu passeio ao redor da sala, sinto-me uma rainha de braço dado
com o meu rei. Ninguém vai implicar comigo de novo. Como se atreveriam, se sou
considerada namorável pelo Will? Finalmente escapei da casinha do cachorro!

O peso da minha bolsa em meu ombro me lembra que não é por muito
tempo, no entanto. Vou jogar spray nele esta noite para fazer seu coração voltar ao
normal. E então eu serei a garota que Will rejeitou depois de um dia. Não tem
problema. É do Raf que eu gosto, ora, não dele. Eu encho minha boca com alcaçuz
e analiso meu dilema. O quanto antes a gente terminar, melhor.
Falando no diabo. Por pouco eu me engasgo com o confeito vermelho. Raf
está sentado no sofá com Melissa em seu colo.

Eles estão namorando? Não, não, não! Honestamente, que droga ele vê
nela? Ela ri de alguma coisa que ele diz e joga para trás seu cabelo comprido e
brilhoso. Ela está usando um top apertado tomara que caia da cor do céu para
mostrar seu corpo magricela, seus peitos grandes e seus olhinhos bem azuis.
Exibida.

Como ela conseguiu entrar aqui? Só trapaceando. Essa aqui é uma festa da
Lista-A sênior e ela é somente uma coitada de uma caloura.

Will põe o braço ao redor da minha cintura. Raf levanta os olhos. Nossos
olhos se encontram.

Vou vomitar. O mais ligeiro que posso, desvio o olhar. Como ele pode fazer
isso? Ele sabe o quanto Melissa foi horrível comigo. Que cretino. Eu preciso sair
daqui; não posso ver Raf e Melissa todos cheios de carinhos um como outro. As
paredes começam a se fechar no que imagens atravessam minha cabeça a jato. Raf
e Melissa de mãos dadas no corredor. Raf rindo para Melissa do jeito que ele
costumava fazer comigo. Eu estou vendo a distância, sozinha de novo. Sozinha
como sempre. Eu queria que alguém aqui se transformasse num leque. O ar aqui
está úmido e espesso demais para eu conseguir respirar.

- Vamos comer agora? - Will pergunta, lendo minha mente.

- Vamos. - Eu o sigo como uma boneca deprimida enquanto ele dá tchau
para todo mundo. Vou jogar spray nele logo que a gente sair. Não há necessidade
de desperdiçar o tempo num jantar. Peraí! Eu bem que poderia continuar com isso.
Meu coração se frustra no que fechamos a porta de London atrás de nós. Não tenho
nada pelo que ficar esperando. O Raf está se apaixonando por Melissa e London vai
tornar minha vida ainda mais miserável quando souber que Will me chutou. É uma
passagem de volta à cidade dos Fracassados.

Will está segurando minha mão, silenciosamente me ajudando a descer as
escadas. Provavelmente já percebeu o quanto eu sou patética e já superou o feitiço
por si próprio. Para acrescentar um pouco de ultraje à minha dor, ele vai me
dispensar antes que eu jogue o spray nele. Quando estamos na rua, pego a minha
bolsa. Não que haja necessidade. Ele já está todo pálido e parece enjoado.

Ele tosse duas vezes.

- Eu preciso conversar com você uma coisa.

Não acredito. Minha postura horrível realmente quebrou com o feitiço. Eu
vou terminar com ele primeiro:

- Eu não acho que seja preciso...

- Você gostaria de ser meu par no baile?

Ai. Meu. Deus.

Baile? No baile dos seniores? Uma caloura no baile? Ia compensar todas as
festas que eu faltei este ano, já que essa é a mãe das festas. O clímax de todos os
filmes de adolescentes. Vestido armado, limusine, buque de flores...
Eu vou ao baile! Se não jogar o spray nele. Mas, então, e o Raf? Raf, baile,
Raf, baile. Enquanto eu peso os dois na minha balança imaginária e minha mão
ainda segura o vidro de spray dentro da minha bolsa, Will se curva e me beija.

Nham! (Três beijos em uma semana! Estou numa enrascada.) Ele parece
muito com o Raf. Tão bonito quanto. Mais alto. E cheira a alcaçuz. E o Raf não quer
nada comigo. Ele está provavelmente beijando Melissa neste exato segundo.
Talvez, eu acho, enquanto a língua de Will faz essa coisa gostosa quase circular,
este novo relacionamento me ajudará a esquecer o meu antigo amor.

Eu deixo a reversão do coração quieta na minha bolsa. Bem, porque não?
Baile, beijos, saindo da lista dos fracassados... O que mais eu poderia pedir? Eu
recuo e dou um sorriso.

- Acho que podíamos ir ao Spark's - ele sugere. - Está bom? Você come
carne?

Uau.




9. E o Oscar vai para...

- Você está ótima, Rachel - diz de passagem um cara do penúltimo ano.

Bosh me cumprimenta batendo nas minhas mãos.

- Tudo em cima?

- Estamos numa realidade alternativa? - Tammy pergunta.

Eu dou um meio aceno para os meus súditos. Estive ensaiando o gesto a
tarde toda. Algo como o aceno da Miss América com um toque mais agitado nos
dedos.

- Estranho, não é?

Não são nem nove da manhã de segunda-feira e a notícia já correu por toda
parte. Mais uma vez, alcancei o pináculo da sociedade da escola. Tudo o que eu
tenho a fazer é namorar o rei para que todos finjam que gostam de mim. É tão
falso quanto os peitos de London. Pelo lado positivo, eu estou indo ao baile! Outra
boa notícia é que as turmas já não estão com lotação dobrada. Os operários têm
trabalhado em regime de horas extras - não sei (gulp!) de onde está vindo o
dinheiro.

Mas nem a adulação nem a carteira-só-pra-mim é a melhor parte do dia.
Oh, não, o verdadeiro prêmio é que Tammy está de volta. Ela me fez uma surpresa
aparecendo junto do meu armário esta manhã. Eu ataquei-a com mil abraços.
Aaron, infelizmente, ainda está de cama. Parece que seu caso é muito, muito pior.
- Eu já nem sei como ele é - Tammy lamenta. - Minhas mães ainda não me
deixam visitá-lo! Elas têm medo que eu tenha uma recaída.

Eu me sinto mal com isso... mas dessa maneira fico com a Tammy só para
mim!

Mesmo eu tendo contado para ela que Will e eu estamos juntos, Tammy não
estava preparada para a repentina adoração dos nossos colegas. É como se eu
tivesse acabado de ganhar o prêmio de Melhor Diretor e agora todos querem estar
nos meus filmes. E dessa vez, aprendi a lição. Eu não vou, repito, não vou deixar
de incluir Tammy na lista-A. Se querem me adorar, vão ter de adorar Tammy
também.

Exemplo de caso: nós entramos na aula de matemática, e Doree e Jewel
estão sentadas lá atrás.

- Olá, Rachel! - Jewel diz. - Guardei um lugar para você.

Doree afaga meu lugar como se fosse um trono.

- Venha se sentar conosco.

Eu dou a elas meu meio aceno. Tammy suspira.

- Sente-se lá com elas, se você quiser.

Até parece.

- Está brincando? - De jeito nenhum eu vou dar àquelas garotas uma
segunda chance. Ou no caso de Jewel, uma terceira chance. - Vamos nos sentar
aqui - eu digo, apontando para dois assentos vazios na fileira da frente.

Tammy me dá o seu sinal positivo de mergulhador e sorri.

- Ela acha que é boa demais para nós? - Doree resmunga ofendida.

Sim. Boa demais.

*

Estamos na hora do almoço, quando duas mãos grandes e sexy cobrem
meus olhos.

- Adivinha quem é, linda?

Obviamente o feitiço deixou Will cego. Bonitinha, sim. Bonita, talvez. Mas
linda? Bem que eu queria.

Eu me desembaraço de suas mãos e beijo o seu rosto.

- Oi, Will. - Minha turma inteira está observando. Ele se apoia no meu
armário.

- O que você está fazendo agora?

- Indo almoçar.
- Em vez disso, quer ficar conosco?

- Vocês não têm aula? - Calouros e secundaristas almoçar entre 11h e
11h45; juniores e seniores, no período seguinte.

- Tenho, eu quero que você venha para a aula de física. - Ele ri. - Não,
ganhei uma dispensa agora para ir a uma reunião do Conselho. E os seniores têm
uma sala aí embaixo. Vamos?

- Não posso. Tammy e eu vamos comer uma pizza.

Seu rosto se abate.

- Vocês duas não podem ir? Por favor?

Tammy aparece atrás de mim:

- Ele disse por favor.

*

- Bem, quero escutar as sugestões de vocês - Will diz para nós. - Precisamos
inventar um tema. O Baile será dia 27 de maio. Daqui a menos de quatro semanas.

O que eu tenho de inventar é um vestido. Uma princesa linda, um vestido do
tipo onde-ela-conseguiu-esta-maravilha.

Estou deitada num sofá rosa, meus pés em cima das pernas do presidente
do colégio. Não sei o que é mais incrível meu acesso aos sofás do colégio ou às
pernas de um rapaz.

A sala é pequena, mas aconchegante, cheia de sofás, pôsteres e uma
geladeira abastecida. Quem diria? É como um dormitório universitário no porão da
escola.

- Vampiros? - disse o secretário do conselho, River Eugenicks, um sênior
superpopular. É a única pessoa que eu já vi capaz de usar quatro argolas na
sobrancelha e uma gravata borboleta para vir ao colégio todos os dias. Ora! Quer
dizer. Os dois estilos simplesmente não combinam. A menos que, como River, você
seja da Lista-A, superinteligente e um especialista em MTV.

- Todo mundo só usando preto - ele continua, mascando um pouco de
alcaçuz vermelho, que Will distribuiu no início da reunião. - E as lâmpadas do
ginásio seriam todas vermelhas. Tudo o que precisamos é uma máquina de fumaça
e estamos mais do que feitos.

Pelo menos ninguém mencionou a possibilidade do ginásio não ser limpo a
tempo para o baile. Porque tem de ser. Fazer o baile no ginásio é uma tradição do
JFK, assim como o desfile de moda é, tradicionalmente, o que consegue fundos
para o baile de formatura. Os dez mil dólares arrecados no show de moda são
utilizados na decoração, comida e música.

- E se a gente chamar de Noite dos Mortos? - Kat, a vice-presidente, diz,
rindo. Seu nome todo é Katherine Postansky. Sua calça capri bege e moletom com
capuz, rosto pálido e mecha de cabelo negro liso a fazem ficar parecida com uma
casquinha de sorvete. E ela usa uma caneta roxa atrás da orelha, como se fosse
uma cereja. Ela é quase da minha altura, provavelmente 1,50m mais ou menos, e
um número a menos nas roupas. E ela ri bastante - por qualquer razão. Ela é
adorável e está na Lista-A. Foi uma das cinco juniores convidada para a festa de
London no sábado. Isso sem falar que ela é a única menina no Conselho, andando
com esses caras superpopulares todos os dias.

As outras pessoas da sala são Tammy e Bosh, e eles estão sentados juntos
no terceiro sofá. Já estou notando que a cada cinco minutos Bosh se aproxima um
pouco mais de Tammy. Talvez ele esteja se apaixonando! Imagine se a Tammy
encontra um novo namorado no Conselho Estudantil. Ia ser demais, hein? Ou
melhor, eu gosto do Aaron - ele pararece inofensivo -, mas na verdade eu não
posso sair em dupla de casais com eles. O presidente do Conselho Estudantil não ia
querer ser visto com um humilde calouro. Ninguém além da sua namorada, é claro.
E a namorada do seu amigo. E, assim, eu e Tammy podíamos ir ao baile juntas.
Nós compraríamos os vestidos no shopping, alugaríamos uma limusine, sorriríamos
uma para outra enquanto nos acon-chegamos nos braços dos nossos pares. Ai, não
posso acreditar que estou mesmo pensando em ir ao baile com ele! Fiquei maluca?
Cega? E os riscos?

Epa! Acho que fiquei cega. Acabei de perceber que tem mais uma pessoa na
sala: Jeffrey Zeigster, que está sentado no canto, fazendo seu trabalho de ciência.
Seu cabelo castanho parece coberto de gel e seus óculos são tão grossos que
parecem vidraças à prova de bala. Aloô, ele nunca ouviu falar em lentes de
contato? Ele faz parte do Conselho, mas é o único membro não-eleito. Foi indicado
pela Konch devido à sua altíssima média. Parece que ele vê esta reunião mais como
uma sala de estudo do que como uma oportunidade para ajudar a melhorar a
qualidade da vida estudantil no JFK.

- Vamos esperar que o ginásio fique pronto a tempo - diz Will. - Nós já
reunimos um grande número de doações de ex-alunos para os reparos. A
administração investiu o dinheiro primeiro nas salas de aula. Mas o ginásio e a
lanchonete têm de ser completamente refeitos e isso vai custar uma nota.

Ah, sim. Eu tinha a intenção de tratar disso com a Miri. Infelizmente, estou
um pouco preocupada com toda esta coisa do feitiço do amor de Will.

Kat concorda com cada palavra de Will, sua cabeça parece uma bola
quicando.

- Até a gente ter alguma notícia, vamos esperar pelo melhor.

- Tudo certo. Outras ideias? Festa à fantasia? ­ diz Will. - Não é meio
antigo?

- Não - disse River. - Mas eu duvido que a London Zeal e seus puxa-sacos
vão querer se fantasiar.

A maioria da sala ri. Eu fico animada. Parece que nem todo mundo é fã dela.

- Quem sabe ela se fantasia de bruxa - Kat diz. - Não ia precisar nem do
vestido.

Engraçado como são as coisas; piadas de bruxa me deixam um pouco
desconfortável.

- Ela não é tão ruim - comenta Will. - É minha amiga. - Mas que político, ele
é amigo de todo mundo.
- Como você iria? - eu pergunto para Kat, ansiosa para mudar de assunto.
Mas eu gosto da Kat. Ela é engraçada e sua política anti-London a tornou numa
mentora em potencial. Eu resisto ao impulso de idiotamente pedir a ela para ser
minha amiga.

Ela encolhe os ombros.

- Eu não vou. Sou uma mísera júnior.

- Vamos continuar com as ideias brilhantes, pessoal - Will chama a atenção.

Isso é tão triste. Ela dá várias ideias e não vai ao baile?

- E a Atlântida, caras? - sugere Bosh. - Sabe? A cidade perdida no fundo do
mar. Tirei ótimas fotos quando eu estava mergulhando no mês passado.

Os olhos de Tammy brilharam.

- Você mergulha?

Bosh ajeita a postura.

- Sim, cara. Por quê? Você também?

- Claro! Eu vivo para isso.

- Fantástico! - ele diz e então batem as mãos no alto, num high five.

Será que Tammy ficou corada ou foi impressão minha? Eles vão se
apaixonar, casar-se e ter bebês mergulhadores.

- Eu odeio água - comenta River, tocando no piercing em sua sobrancelha.

- Não me diga, River! - Kat ri.

Um cara que tem como sobrenome a palavra em inglês que quer dizer rio e
odeia água é engraçado.

- Vamos pensar em alguma outra coisa - completa Kat.

Tammy pigarreira.

- E a noite do Oscar?

Bosh dá o sinal positivo de mergulhador.

- A gente podia colocar um tapete vermelho até o ginásio.

- A gente podia distribuir umas miniaturas de estatuetas pelo pessoal - River
diz rapidamente. - Você sabe, pelo melhor bigode etc.

Estranho, mas engraçado. Contanto que não seja para a melhor barba.

A ideia parece agitar o cérebro de Wili.

- Gostei - ele diz. - Podíamos projetar filmes antigos em preto e branco na
parede.
- Um fotógrafo podia ficar ali fora tirando fotos como um paparazzo! - Kat
sugere.

- Todos a favor? - Will pergunta. Todos levantamos as mãos. Todos, com
exceção do Sr. Estudioso do Canto. Will volta-se para ele, olhando para trás do
sofá. - Jeffrey, você topa?

Surpreendido, Jeffrey deixa seu lápis cair.

- O quê?

- O tema do Oscar para o baile.

Seus olhos se espremem, misteriosos.

- Baile?

- O baile do fim do ano. Formatura. Tema: Oscar.

- OK - ele murmura e então continua com o seu trabalho.

- Ele é tímido - Kat cochicha para mim. - Então estamos combinados - diz
Will pressionando meu joelho.

Kat levanta uma sobrancelha.

- E Amy?

River ri com desdém.

- Se ela anda tão ocupada com seu namorado para vir às reuniões, então
não tem direito a voto.

Eu me esqueci da Amy Koppela. Ela está no Conselho também
supostamente encarregada do baile. Muito alta, muito magra, muito loira e muito
lista-A. Aparentemente, muito interessante, ou interessante demais para vir às
reuniões do Conselho.

- Quem ela está namorando? - eu pergunto.

- Um cara da NYU - Will responde. - Ela passa os dois primeiros períodos no
dormitório dele. Vamos considerar o voto dela a favor do Oscar. Então seis votos
dizem sim. E o tema é o Oscar. Obrigado, Tammy.

Eu faço um polegar para cima para Tammy. Eu sei que na língua de debaixo
d'água significa alguma coisa além de um bom trabalho, mas ela capta a ideia.

*

Tammy e eu assistimos à aula de inglês na nona nuvem. Se a gente
flutuasse um pouco mais alto, íamos bater no teto. Tão logo a aula começa, enfio
um bilhete no seu exemplar de Sonho de uma noite de verão, a peça de
Shakespeare sobre uma loucura acontecendo por causa de feitiços de amor. Bem
apropriado. Será que eu deveria me preocupar com o que vai acontecer quando eu
estiver no próximo ano e estudarmos Macbeth?

Minha observação: ótimas ideias!
Ela cora feliz quando lê meu bilhete e então me atira outro de volta: Eu não
posso acreditar que você vai conseguir ir. Que sortuda.

Eu escrevo de volta: Você pode conseguir ir também. Bosh estava babando
em você.

E então eu recebo: "carinha sorrindo"


Eu: O que isso significa??? Você gosta dele?

Tammy: Eu já tenho um namorado, lembra? Não posso ir no baile com o
Bosh! Ele tem um primeiro nome, pelo menos?

Eu: Sei lá. Mas talvez deixem você ir já que teve a ideia.

Tammy: Sem chance. Eles não deixam nem mesmo a Kat ir.

Eu: Maluquinha, hein? Gostei dela. Ela é tão meiguinha para alguém da
Lista-A. Você gosta dela?

Tammy: Sim. Ela é simpática, apesar...

Eu: Apesar... do quê?

Tammy: Apesar de ela estar apaixonada pelo seu novo namorado!

Eu olho para o bilhete e afundo na cadeira. Dois segundos mais tarde eu me
curvo diante de Tammy e cochicho:

- Por que você acha que ela gosta do Will?

- Ela fica olhando para ele o tempo todo. E, quando ele falou com ela, a Kat
ficou vermelha. Dava pra ver. Você não sacou?

Eu encolho os ombros. Não saquei nada. Minha auto-confiança é
extraordinária. Quase um superpoder.

- Não se preocupe - Tammy diz. - Ele não olhava para ela de volta. Ele só
tem olhos para você.

Taí uma coisa com que não estou preocupada. Pelo menos por algumas
semanas, até o feitiço deixar de funcionar. Vou ter de lembrar a Miri para estender
o efeito para garantir minha ida ao baile. Posso fazer a reversão depois, afinal de
contas. Imediatamente depois. Forçar alguém a gostar de você não é a coisa mais
legal do mundo para se fazer. E Will é um garoto tão fantástico que merece
realmente ficar apaixonado.

Quando o sinal toca, empilho meus livros e me dirijo para a porta. E é
quando eu dou um encontrão no Raf. Quase que beijo ele sem querer. Ou melhor,
meio que querendo. Ou melhor...

Acho que estava distraída ou qualquer coisa assim, por que dei uma virada e
minha testa colidiu com o ombro dele e meu exemplar de Sonho de uma Noite de
Verão e as notas que o acompanhavam voaram pelos ares, as capas do meu
fichário espalharam-se como asas de pombos. Nisso, eu também voei para trás e
acabei caindo de costas, meu cabelo esparramado no chão sujo e eu desejando que
um zapt me levasse direto para outro país. Canadá, talvez?
Raf está, de repente, de joelhos, ao meu lado, a mão no meu ombro.

- Você está bem? - ele pergunta, sua testa enrugando em adoráveis
pequenas rugas. Eu olho lá no fundo dos seus olhos salpicados de pontinhos e me
sinto como se estivesse submersa num banho de espuma cheio de bolhas

Meu coração naufraga. E não é devido ao golpe na minha testa. Dor de amor
não-correspondido.

- Rachel? - seus lábios deliciosos falam. Eles são vermelhos e reconchudos e
suculentos e... - Rachel? - ele pergunta de novo.

- Oi, Raf.

- Oi, Raquel. Eu machuquei você?

- Sim - eu respondo. Meu coração está partido em mil pedaços porque não
estamos mais juntos. - Quer dizer, não, eu estou bem. Tudo bem.

Ele me segura pelo braço e gentilmente me ajuda a ficar de pé. Então larga
meu braço, pega o meu fichário do chão e o entrega para mim.

- Acho que isso aqui é seu - ele diz, e então, depois de dar um aperto final
no meu cotovelo e no meu coração, ele desaparece da minha vida e do corredor.

*

- O feitiço de reverter o coração está quebrado - eu digo para Miri, abrindo
sua porta.

- O quê? - Ela está em sua mesa lendo o A² e não olha para mim.

- Eu tentei usá-lo. Fico com dor no estômago toda vez que vejo o Raf. Eu
não consigo lidar com essa coisa. Então, eu tentei usar em mim mesma, mas tudo
que eu fiz foi sujar meu cabelo. Por que não funcionou?

- Esse feitiço é de apenas uma vassoura. Não é avançado o bastante para
você se autopiruletar.

Eu sei que só tem uma vassoura, mas é auto o quê?

- Eu não tenho ideia do que você está falando.

- Autopiruletar é quando você está tentando enganar você mesmo com um
feitiço de emoção. E não funciona a menos que o feitiço seja, no mínimo, de quatro
vassouras.

- Então o que eu posso fazer? Nada? - Essa dor tem de acabar.

Ela hesita.

- A gente podia tentar um feitiço do antiamor. É de cinco vassouras. Deve
conseguir autopiruletar.

Perfeito.

- Eu preciso dessa coisa.
- Você parece drogadona, falando assim.

Eu desabo, de costas, em sua cama.

- Sério. Você pode me fazer esse feitiço?

Ela abaixa o lápis e inclina a cadeira toda para trás.

- Você...

- Não faça isso. Está me deixando nervosa - eu interrompo.

Ela inclina ainda mais a cadeira só para me aborrecer.

- Se você quer tanto, ok, eu lhe dou o feitiço. Conheço um que é perfeito.

Excelente. Eu não quero mais sentir dor. Raf, quem e esse cara?

- Preciso dele agora.

Sua cadeira ainda está toda na diagonal, ela passa as páginas rapidamente.

- Mas você tem certeza?

- Claro. Por que não?

- Tem certeza de quer acabar com seus sentimentos?

- Estou me sentindo uma porcaria de gente. Quero, sim.

- Lembra toda aquela coisa que mamãe nos disse sobre viver o bom e o
mau da vida?

- É a mesma mãe que, magicamente, pintou seu cabelo de loiro no sábado?

Miri faz uma expressão irritada.

- Ela disse isso antes de mudar a cor do cabelo, quando ainda não estava
perdida. Ela falou que viver a tristeza deixa você mais forte.

Faço meu muque para ela:

- Eu já sou forte. Olha só.

Ela se inclina mais próxima do chão.

- Coisas tristes tornam você uma pessoa mais interessante. Mais profunda.

- Nesse caso, eu devo ser a pessoa mais interessante do mundo. - Mas
talvez ela esteja certa. Talvez fazer um zapt! para desaparecer com minha paixão
não-correspondida possa me tornar mais superficial e chata. Mas e daí? Pelo
menos, vou ser feliz. - Vamos lá! - eu grito, e a cadeira inclinada de Miri de repente
desliza para trás e ela cai no chão. Ela dá um guincho de surpresa. - Eu avisei. Tá
tudo bem?

Ela diz que sim e eu vou atender o telefone que tinha começado a tocar.
Talvez seja o Raf me dizendo que ainda está apaixonado por mim e daí eu não
preciso mais do feitiço antiamor.

- Alô, Rachel.

- Pai! Você voltou! - Meu pai finalmente retornou à terra firme. - Como foi a
viagem?

- Maravilha. O kaukau era ono. Isso quer dizer que a comida era deliciosa. O
surfe estava uma delícia. O... ­ Eu vôo um pouco, pensando no Raf. Ouço um som
abafado e percebo cinco segundos tarde demais que ele provavelmente acabou de
dizer - minha babe e nova esposa, Jennifer, quer dizer aloha.

Humpf! A verdade é que durante toda aquela coisa do casamento percebi
que ela não era tão ruim como eu achava que fosse. Mas será que isso significa que
vamos ter de ser amiguinhas e trocar telefonemas agora? E que história é essa de
falar com jeito-de-surfista-havaiano? Eles agora estão mesmo surfando?

- Aloha! - ela gorjeia.

- Oi, Jennifer. Você pegou onda?

- E como! Você tinha de ver eu cortando as grandonas! - Ela continua a me
contar como eles "traçaram as ondas" e "voaram à toda", de verdade. No final,
ainda me promete mandar fotos "marcantes" e me garante que está "fissurada" pra
ver a gente nesse fim de semana, então pede para falar com a Miri.

Miri fica mal-humorada no que eu dou o telefone para ela, então revira os
olhos e revira mais ainda. Enquanto isso, eu me pergunto se tem a ver eu usar em
mim o feitiço do antiamor. Ou aliás qualquer outro feitiço. O histórico de bruxaria
da Miri não é do tipo impecável. As vacas foram reaparecer no meu ginásio.

Finalmente, Miri desliga, reclamando.

- Ela está nos mandando fotos por e-mail! Eu acabei de limpar minha caixa
de entrada de tudo que tinha daquele casamento idiota.

- Vamos falar sobre os ingredientes - eu digo.

- Você precisa conseguir vela preta, sal do Mar Morto, girassóis e uma
mecha do cabelo do Raf. E então os sentimentos que você tem por ele irão embora.
Pelo menos temporariamente.

Humpf-grrr! Mas como é que vou conseguir cabelo do Raf? E será que eu
realmente quero que meus sentimntos por ele vão todos para a terra do
Nunca-mais?

- E se eu decidir que quero ser uma escritora quando crescer? Ou uma
pintora? Ainda vou ser capaz de usar essa dor como inspiração?

Ela se recosta em sua cadeira.

- Ei, do que você está falando agora? Pensei que você quisesse ser uma
astronauta.

Certo. Eu disse isso algum dia. Ou um piloto de foguete no ramo do turismo
espacial, mas isso porque de acordo com o 60 Minutes, essa profissão vai ser a
próxima a se tornar um grande negócio. Astronauta. Pintor, profissional em fazer
compras para o guarda-roupa dos chiques e famosos. Tudo isso parece exigir um
bocado da gente. O que não nos mata, nos torna mais fortes, certo? Eu decido que
realmente não quero nada artificial remendando meus sentimentos.

Quer dizer, honestamente... Minha irmã não é nada experiente. E se o
feitiço funcionar ao contrário e, em vez de eu me desapaixonar, eu me apaixono
mais ainda, por exemplo. Ou qualquer coisa do gênero, tipo fundo do poço?

- Deixa pra lá o feitiço antiamor. Vou me virar sozinha. Ficar na real, sabe?

Afinal de contas, eu, dessa vez, estou com preguiça demais para sair atrás
de todos esses ingredientes. Ela encolhe os ombros e vira a página.

- Você é quem sabe. Aposto que o verdadeiro motivo é você estar com
preguiça demais para ir atrás dos ingredientes. Posso voltar para o salvamento das
baleias agora?

Como ela sabe?

*

O resto da semana voa num surpreendente atordoamento de felicidade. Will
aparece junto do meu armário depois de todas as aulas e sempre me dá um beijo
rápido nos lábios. Ele esconde bilhetinhos-eu-amo-você nos meus livros de aula. As
tardes são passadas nos lugares da Lista-A. Os almoços são com o pessoal do
Conselho, no lounge. Na terça-feira, pedimos pizza, entregue direto na nossa sala!
Que tal essa? Na quarta, peguei o Bosh acariciando os ombros de Tammy. Na
quinta, percebo como Kat fica vermelha quando Will lhe dá atenção. Mas o estranho
é que ela é simpática comigo. E não é daquelas que são exageradamente
simpáticas e por trás são malignas, não... Ela me emprestou sua caneta roxa
quando acabou a tinta da minha. Ela ri das minhas piadas. Genuinamente
simpática. Se eu fosse ela, eu me odiaria.

Embora a London Zeal esteja de volta ao topo da Lista A, parece que ela
esqueceu seu ódio por mim ou, pelo menos, não tem mais o objetivo de se vingar.
Devido ao meu novo status de nova namorada-de-Will, eu fui perdoada e aprovada
pelos calouros, secundanistas, juniores e seniores da Lista-A, e por tabela pela
escola toda. Todos, com exceção do Raf.

Ultimamente, quando ele passa por mim, eu não consigo dele nem mesmo o
meio sorriso de antes. Raf não está nada impressionado com meu sucesso.

Qual é o problema dele agora? Ele não gosta de mim, então ninguém mais
pode gostar de mim também? Por que os garotos são tão irritantes?

Na sexta-feira, Tammy e eu estamos sentadas na aula de biologia quando
alguém bate na porta. Eu vejo Will pela janela e sinto um calor por dentro. Uma
coisa especial. Forte. Estranha. Só com o Raf eu costumava me sentir assim. Será
possível que eu esteja começando a gostar do Will também? Será que gosto dele
mesmo? É possível gostar de dois rapazes ao mesmo tempo? Dois irmãos?

- Entre, Sr. Kosravi - o Sr. Frederick diz. A coisa boa é que não importa com
qual dos dois eu case, eu serei sempre a Sra. Kosravi. Se eu mudar o meu nome, o
que eu acho que não vou fazer. Não posso abrir mão da minha identidade! Vejo o
rosto de Will e bloqueio a discussão na minha mente. (Acho que agora não tem
nada que eu seja capaz de decidir.) Ele cochicha alguma coisa com o Sr. Frederick,
que aprova e então olha para nós.
- Srta. Weinstein e Srta. Wise, por favor sigam o Sr. Kosravi. Vocês estão
dispensadas do resto da aula.

Uau! Tammy aperta minha mão enquanto nós, ansiosamente, seguimos Will,
passando pelo olhar invejoso e cheio de desejos ocultos de Doree. Tenho certeza de
que na verdade não há nenhum problema. Como Will é maravilhoso! Fingir que
alguma coisa está errada para nos livrar da aula de biologia!

- Obrigada! - eu disse, beijando seu rosto. Ele tem um cheiro tão gostoso.

- Foi fantástico - Tammy comenta. - Estava tããããão chato lá.

Will balança a cabeça.

- Não me agradeça ainda. Preciso da ajuda de vocês. Estamos numa reunião
de emergência no Conselho. O baile está quase sendo cancelado.




10. Como eu acabei com o mundo

- Diz pra gente o que aconteceu - Bosh pede, balançando a cabeça, sua mão
gentilmente apoiando-se... no joelho de Tammy? Uau.

Tammy fica pálida, depois cora, ri, então franze as sobrancelhas, e,
devagar, se afasta do alcance de Bosh.

Enquanto isso, Will anda para lá e para cá pela sala, seus braços agitando-se
acima da sua cabeça.

- O ginásio não vai ficar pronto a tempo.

Meu estômago revira como se eu tivesse engolido uma bola cheia de areia.

- Ainda que acabem os consertos - Will continua -o assoalho vai estar frágil
demais no primeiro mês para os estudantes poderem dançar nele. A mesma coisa
com a lanchonete. Eu gostaria de matar as pessoas que fizeram essa brincadeira
das vacas.

Lá, lá, lá.

River grunhe.

- A gente não podia alugar um lugar?

Will balança a cabeça,

- Esse é o segundo problema. Konch está convencida de que a história com
as vacas foi um trote dos seniores, e então ela quer cancelar o baile até que
alguém confesse.

- O quê? - todos nós gritamos. Estou quase vomitando no assoalho.

- Eu a convenci a não fazer isso. Então, em troca ela está nos forçando a
entregar o dinheiro arrecadado do desfile de moda para o baile para ajudar nos
custos do conserto.

- O quê? - Bosh grita. - Cara, como vamos conseguir pagar o baile se a
gente aceitar isso?

Will continua.

- Ela recomendou que a gente comece cancelando a banda e o fotógrafo. E
talvez também o aluguel das mesas.

- Mas onde é que ela acha que vamos comer? - River pergunta indignado. -
No chão?

- Oh, não se preocupe - Will diz sarcasticamente. - Ela sugeriu cancelar o
jantar, também. Mas então lembrou que já fizemos um depósito para o fornecedor
com o dinheiro do adiantamento da venda de ingressos. O que nós vamos fazer? O
baile vai ser daqui a três semanas. Mas, até o momento, tudo o que garantimos é a
refeição. E nem sequer uma refeição inteira. O depósito foi só de mais ou menos
sete mil, o que significa que vai cobrir os aperitivos e talvez metade do jantar, se a
gente quiser que nos sirvam frango estragado.

- Que droga, cara - Bosh diz. - Não podemos dar uma festa na rua. Vamos
então alugar um espaço e deixar CDs tocando ou qualquer coisa assim.

- A gente precisa de uma banda - River defende. - CDs eu posso escutar em
casa.

Will balança a cabeça, desolado:

- Ah, pessoal, e eu vou ser o presidente do Conselho responsável pelo baile
mais fajuto que já aconteceu.

- A gente devia então cancelar tudo - River diz.

Sem chance! Então Will será o presidente responsável pelo cancelamento do
baile!

- Calma. Qual é o custo total do baile? - eu pergunto.

Will solta um suspiro e diz:

- Devia custar vinte e sete mil e quinhentos dólares. Isso ia cobrir tudo. E
estava funcionando perfeitamente antes das vacas, porque já tínhamos dez mil do
desfile de moda, espaço de graça, e as entradas para o baile iam render cinquenta
dólares por pessoa. E já que nós estamos esperando em torno de trezentos e
cinquenta pessoas comprando os ingressos, tudo estava resolvido... estava
resolvido.

- Você não pode cancelar o baile de jeito nenhum - diz Kat, tamborilando de
leve com sua caneta roxa. (Como ela nunca perde essa caneta? Eu perco uma por
dia.) - Temos de arrumar o dinheiro. Vamos aumentaro preço dos ingressos.
- Se a gente cobrar muito caro pelos ingressos - River observa -, as pessoas
não vão querer gastar tanto dinheiro. O que a gente tinha de fazer é dar um
desconto, já que nem ao menos vamos ter uma banda. Nem sobremesa.

- Não podemos aumentar o preço dos ingressos - Will observa, balançando a
cabeça, totalmente desanimado. - Já vendemos alguns por aí. O preço não pode
mudar.

Eu faço os cálculos:

- Então vocês esperavam ganhar dezessete mil e quinhentos dólares com a
venda dos ingressos. O que significa que precisamos levantar dez mil dos fundos do
desfile de moda para mantermos o baile como planejamos, assim como mais
alguma grana para o aluguel do lugar. Isso quer dizer que a gente precisa levantar
entre doze e quinze mil dólares.

Will faz um sinal com a cabeça concordando. Kat continua tamborilando com
sua caneta.

- A gente consegue. Vamos encontrar um outro lugar. Depois a gente se
preocupa em como vamos pagá-lo. Só fazemos a reserva quando tivermos como
levantar o dinheiro. Mas a gente vai conseguir o dinheiro. Precisamos conseguir.

Will hesita.

- Têm certeza? Temos somente três semanas. Vai ser um bocado difícil. E a
gente ainda tem as provas...

- A gente consegue, cara - Bosh afirma. O restante de nós concorda.

- Certo, então. - Will dá um suspiro profundo. Vamos fazer um brainstorm.
Jeffrey, você pode me passar o alcaçuz?

No canto, perto do armário, Jeffrey ergue os olhos do seu caderno. Ele é um
fantasma. De novo, eu nem o tinha percebido. Ele murmura alguma coisa para si
mesmo, estica o braço para dentro do armário e joga o pacote para Will. Kat fala:

- A gente precisa procurar clubes e hotéis disponíveis.

Will sorri agradecido para Kat. Eu sinto uma fagulha de culpa por causar a
ele toda essa aflição. E uma minúscula fagulha de ciúmes.

- Certo - ele diz. - Temos de começar por aí mesmo. Vamos fazer uma lista
e Rachel e eu vamos checá-los no fim de semana.

Ah! Aprendeu, Kat? Oh, não.

- Oh, eu vou para a casa do meu pai - confesso. Seu rosto empalidece. Fica
como as placas do assoalho.

- O quê? Vai? Não vou ver você o final de semana inteiro?

Eu confirmo com a cabeça.

- São só dois dias. Eu ligo para você. Felizmente, eu já sabia o número dele
de cor por causa do Raf. Não que alguma vez eu tenha ligado para Raf. Ele fica
chateado por alguns poucos segundos e depois vira-se para Kat.
- Kat, você se importaria de vir comigo?

- É claro que não. Seria ótimo.

Eu reviro meus olhos para Tammy. E nem mesmo posso ficar com raiva,
porque a Kat é tão... simpática.

*

- Nós acabamos com o balie - eu falo para a Miri no trem para Long Island. -
Não dá pra acreditar.

- Hum, hum - ela murmura, afundada no assento, lendo o A².

- Ia ser uma coisa histórica para os calouros, eu indo para o baile com o
presidente do Conselho. Só que não vai acontecer. Poderia a vida ser mais injusta?

- Hum, hum - ela repete. Huuum.

- Tem um rinoceronte neste trem?

- Hum, hum.

- Você não esta prestando atenção em mim!

- Hum, hum.

Eu movimento minha mão em frente ao rosto dela.

- O que foi? - ela pergunta, finalmente me olhando.

- Nós acabamos com o baile por causa daquelas vacas. Você percebeu isso?

- Sim, eu percebi. Mas não foi nada tão sério assim, foi? É apenas um baile,
ora. Um baile elitista estúpido. Um baile ao qual você nem mesmo estaria indo, se
não fosse o feitiço do amor - ela diz, cochichando as três últimas palavras. - Tem
coisas muito mais importantes com as quais você devia se preocupar.

Sei que normalmente sou um pouco egoísta. Mas tenho certeza de que Miri
deve assumir um pouco da responsabilidade por essa crise. Não que eu vá apontar
culpados, mas foi um pouco de culpa dela, sim.

- O que você está fazendo?

Ela puxa um caderno de notas.

- Me preocupando com coisas mais importantes do que o baile. Como livrar
o mundo das minas terrestres, número três da minha lista, e do tráfico de
escravos, número quatro. Depois, recuperar a camada de ozônio, número cinco. E
houve um derramamento de óleo nesta manhã na costa da França. Você sabe
quantas baleias vão morrer? - Ela faz uma flecha no livro de anotações dela. - O
óleo acaba de mudar para o número três.

Eu me contorço no meu lugar.

- Está bem, desculpe. Isso parece um bocado sério.
Ela balança a cabeça e eu percebo círculos roxos em torno de seus olhos.

- A vida é séria - ela diz e suspira, então volta à leitura deixando-me
olhando para as minhas mãos.

Eu bem que precisava ir à manicura.

*

A família bronzeada inteira está esperando por nós na estação de trem.

- Aloha! - Jennifer e meu pai cumprimentam. Preciso de um par de óculos
escuros; a camisa florida azul e vermelha do meu pai é superbrilhante. E, oh, não,
Jennifer está usando uma coroa de flores. Vou ter de dar mais uma semana à
animada lua-de-mel deles. Mas é só isso! Depois, eles têm de voltar a ser tão
infelizes quanto o resto da humanidade.

Estou confusa. Como pode Prissy, também conhecida como Priscilla, que
tinha ficado com os pais de Jennifer em Long Island, estar tão bronzeada? Ela
rapidamente esclarece tudo quando diz:

- Eu estou bonita? Queria ficar tão bonita como mamy e ficar com a pele
escura também, então eu fiz auto-bronzeamento!

- Não acredito - digo, espantada. Ela tem só cinco anos. Isso não é contra a
lei?

Ela balança a cabeça, confirmando, toda feliz.

Entramos todos no Mercedes deles. Prissy pula para o seu assento de
criança e rapidamente enfia o dedo bronzeado no nariz.

Eu tento encarar Miri para rirmos secretamente da cena toda, mas ela está
perdida nos pensamentos de salvar o mundo.

- Vocês logo descobrirão um tesouro! - Jennifer lê, depois de abrir o biscoito
da sorte. - Vocês sabem o que isso significa - ela diz, piscando para o meu pai no
reservado do Happy Palace, nosso restaurante chinês favorito.

- Que tesouro? - eu pergunto a Jennifer enquanto mordisco um biscoito de
amêndoa. - Você enterrou dinheiro no quintal? - Bem que eu preciso de grana!

- Não - ela responde, e então ri. - Quer dizer, um novo acréscimo.

- Você está acrescentando uma nova ala na casa? - eu pergunto. Agora Miri
e eu não teremos de dividir um quarto quando estivéssemos lá.

Jennifer olha para o meu pai.

- Bem, não - ela responde.

Não?

- Então que tipo de acréscimo? - eu pergunto. E então a coisa bate bem na
minha cara. Eu engasgo com o biscoito, começo a tossir e agarro meu copo d'água.

Miri finalmente acorda de seu devaneio.
- Já? - ela pergunta, sem acreditar.

Ela está grávida? Mas... mas... mas eu ainda nem estou acostumada com
Prissy. E... onde eles vão colocar o bebê? Eles não precisariam de um quarto de
crianças? Isto quer dizer que eu terei uma cama beliche com Prissy?

- Quando o bebê vai nascer?

- Que bebê, mamãe? - Prissy pergunta, chupando um biscoito. - O que é
nascer?

Meu pai e Jennifer riem.

- Nós não estamos grávidos! - ela diz, ainda rindo, seus olhos
azul-esverdeados piscando.

Então do que ela está falando?

- Você vai comprar um cachorro?

- Você sabe o trabalho que dá um cachorro? - Jennifer pergunta, sacudindo
seu cabelo louro sedoso bonito sobre os ombros. - Sem chance. Nós estamos
tentando ter um bebê. Mas ainda não estamos grávidos.

Será que eu realmente preciso de uma preocupação dessas? Prissy bate com
o pequeno punho na mesa, rosto franzido.

- Nada de outros bebês.

Silêncio.

- Bebês são engraçados! - Jennifer afirma com sua voz gorjeante. - Você
será a irmã mais velha!

- Não quero ser a irmã mais velha - ela insiste, balançando seu rabo de
cavalo. - Eu quero ser a irmã menor.

Eu decido tentar ajudar. Taí uma coisa que eu conheço e posso contar:
dizem as más línguas que quando me avisaram da chegada de Miri eu cuspi em
protesto.

- Você pode ser a irmã mais velha e ainda ser uma irmã menor - eu explico.
- Você tem muita sorte. Você pode ser os dois! Eu bem que queria ser os dois.

Que legal teria sido se eu tivesse uma irmã mais velha? Alguém para me
dizer o que usar, me ajudar com a minha maquiagem. Humm. Eu tenho sido uma
espécie de irmã mais velha da minha mãe recentemente.

- Eu não quero ser a irmã mais velha - Prissy diz sem hesitar.

Miri ri.

- Pena que a decisão não seja sua.

- Nada de outros bebês! - Prissy grita com toda força dos seus pulmões e
pega o seu terceiro biscoito.
Todos do restaurante viram-se para olhar.

- Nada de açúcar - Jennifer diz, tirando o prato de biscoitos de perto dela.

*

O tema surgiu novamente na manhã seguinte.

Estávamos sentados, olhos sonolentos, na cozinha, preguiçosamente
deliciando-nos com nossos ovos pochê, quando uma pergunta de Prissy aterrissa na
mesa como uma panqueca.

- De onde vêm os bebês? - Seus olhos azul-esverdeados são grandes e
inocentes.

Miri começa a tossir.

Eu tomo um longo gole do meu suco de laranja e tento enxergar o fundo do
meu copo. Ficaria estranho se eu fosse para debaixo da mesa?

- Bem... - meu pai começa.

Oh, Deus. Oh, não. Não faça isso. Ele não vai contar a ela, vai? Não posso
pensar em nada mais penoso do que ter de ouvir meu pai falar sobre os pássaros e
as abelhas.

Eu me lembro bem quando escutei pela primeira vez falarem sobre os fatos
da vida: o irmão mais velho de Jewell nos contou tudo quando estávamos na
segunda série. Fui para casa e perguntei para minha mãe se aqueles boatos eram
verdadeiros. Lembro que fiquei um bocado horrorizada. Entra aonde? Seja como
for, nunca discuti esse assunto com meu pai e, certamente, não quero começar
agora. Até onde eu sei, ele nem sequer sabe que eu sei.

- Bem... - meu pai começa novamente. Eu olho para Miri e suas bochechas
estão vermelho-cereja como eu imagino que as minhas estejam também, Jennifer
faz uma tentativa.

- Quando as mães e os pais se amam...

Miri e eu afundamos em nossas cadeiras.

- ...eles dormem juntos no mesmo quarto, a sós - ela continua. (Os detalhes
decorativos deste prato são muito interessantes. Um belo prato. Ótimo prato. Um
ótimo prato branco.) - E é quando eles fazem um bebê.

- Ah - exclama Prissy. Então seus olhos se apertam em pequenas vírgulas. -
Mas como eles fazem um bebê?

Silêncio...

- Com amor - meu pai diz. Mas será que isso poderia ser mais
dolorosamente embaraçoso? Preferia estar fazendo uma prova enquanto um
dentista obturava minhas cáries. (Não que eu tenha cáries; tenho dentes perfeitos,
ao contrário da minha irmã, que tem de escovar os dentes com Kool-Aid. Será que
o Will tem cáries? Ele come um bocado de alcaçuz. Aposto que o Raf tem dentes
perfeitos... Não, nada de pensar no Raf! Melhor escutar a conversa sobre sexo da
Jennifer!)
Prissy pensa a respeito da nova e extremamente vaga explicação, e assente
com um lento movimento da cabeça. Então, enfia uma garfada cheia de ovo na
boca e o assunto é esquecido - por ela. Quanto a mim, vou ficar aterrorizada pelo
resto da vida.

Estamos indo para o shopping à tarde porque Prissy, inexplicavelmente,
pintou corações com Liquid Paper em seus sapatos de couro preto legítimo. Papai
nos avisa que podemos escolher alguma coisa para nós.

- Jeans novo! Jeans novo! - eu peço no interior da Macy's, arrastando-os do
departamento de sapatos infantis para o departamento de jovens.

- Você já tem um jeans - meu pai diz. - Está usando ele.

Verdade. Eu podia até mesmo usar o feitiço da multiplicação para conseguir
outros mais, se quisesse.

- Uma garota nunca tem jeans em excesso - Jennifer diz, vindo em minha
defesa. Eu quase desmaio de surpresa com a minha nova e inesperada aliada.
Jennifer-Lua-de-Mel é impressionante! E tão esperta. Eu empilho dez pares em
meus braços e vou para o provador de roupas.

Jennifer atua como comentarista, enquanto experimento cada calça.

- Grande demais. Tem um tamanho menor?

Ou:

- Escuro demais. Cor clara está na moda nesta estação.

- Ela está certa! As pessoas em Londres estão todas usando jeans claros.

Enquanto estamos reduzindo a escolha a dois pares, Miri, meu pai e Prissy
estão sonolentos desabados no sofá.

- Qual eu devo escolher? - É como me pedir para escolher entre meu pai e
minha mãe. Eu gosto dos dois.

- Leve os dois - Jennifer diz. - Hang ten! Isso quer dizer "vá em frente".

Viva o Havaí.

Se Jennifer continuar assim, entre meu pai e minha mãe, eu a escolho como
minha favorita.

É só quando voltamos para o carro que eu percebo que Miri não comprou
nada.

- Onde está a sua roupa nova? - pergunto.

- É, querida - meu pai diz, saindo com o carro do estacionamento. - Eu disse
que você podia pegar o que quisesse. E já que Rachel comprou dois pares de jeans,
você podia escolher duas roupas novas.

- Não estou precisando de nada - ela responde. - Mas você pode pegar o
dinheiro correspondente e doá-lo para uma instituição de caridade à sua escolha,
em meu nome.
Oh, céus!

Jennifer dá uma entortada na sua cabeça para trás.

- Como é que é?

Exatamente o que eu sinto. Que piegas. Meu pai também olha para trás (o
que provavelmente não é seguro). Mas ele sorri para minha irmã como se ela
tivesse sido aceita em Harvard.

- Fazer isso vai me deixar muito feliz. Você escolhe a instituição de caridade
e eu dou o dobro do que eu gastei nos jeans de Rachel.

Isso não é justo. Suspiro. Eu sou horrível. É claro que é justo.

- Obrigada, papai - Miri diz.

Ela devia mesmo é doar esse dinheiro para o baile.

*

Eu me preparo para ligar para o Will antes do jantar. Vai ser a primeira vez
que ligo para ele; ele me ligou todos os dias na semana passada. Eu fecho a porta,
sento na cama e pego o telefone.

- ...comprou para ela um jeans lindo. Acho que eu devia voltar lá e pegar
um par - escutei Jennifer dizer. - Alô? Alguém na linha?

Droga!

- Desculpa. Vou desligar.

- Você precisa do telefone, Rachel?

- Eu posso esperar.

- Não se preocupe, eu vou acabar logo. Irma, falo com você amanhã, ok?

Não sei o que aconteceu com ela. Primeiro, jeans novo, e agora ela está
desocupando o telefone para que eu possa ligar? Será que a gente colocou um
feitiço nela sem querer? Não. Será possível que os contos de fada estejam todos
errados? Quando a futura-madrasta-monstro entra oficialmente para a família, ela
se torna simpática? Melhor eu aproveitar isso enquanto durar. Pode acabar junto
com o bronzeado dela.

- Obrigada.

Eu espero pelo sinal. Então, com as mãos suadas, disco o número. Não sei
por que estou tão nervosa. Ele gosta de mim. Ele me pediu para ligar. Não há,
absolutamente, nenhuma razão para eu ficar...

- Alô?

Coração. Explodindo. É por isso que eu devia ficar nervosa. É o Raf. Eu devia
desligar. Não, não posso. Sem dúvida ele tem o identificador de chamadas. Não
que vá reconhecer o número de Long Island. Mas ele sabe que o meu pai mora
aqui. E ele poderia me ligar de volta. Mas o que eu devo fazer? Eu não posso pedir
ao garoto de quem, secretamente, eu ainda gosto, para chamar seu irmão! Isso é
horrível. Muito pior do que meu pai falando sobre sexo. Por que eu não bloqueei o
meu número?

- Alô? - Raf repete.

Mas... talvez não seja Raf. Como vou saber? Os alôs deles parecem iguais.
Provavelmente, é o Will. É claro que é o Will.

- Alô! - eu digo, tentando parecer otimista. Tento usar meus poderes
não-existentes de persuasão. Que seja o Will! Seja o Will!

- Alô - a voz diz novamente. - Quem é?

Não é o Will. O Will saberia que sou eu. O Raf não saberia também que sou
eu? Eu devia desligar. Não desligue! Eu podia dizer que a ligação caiu. Seja
madura! Minhas mãos estão agora, tão suadas que o fone escorrega dos meus
dedos.

- Rachel - eu guincho, pressionando o fone firmemente contra o meu ouvido.

- Que Rachel?

Ele está (seja ele quem for) brincando, não é? Qual deles não me conhece?

- Rachel Weinstein.

- Eu estou brincando com você, Rachel. É Mitch.

- Ah, oi. - Eu bato levemente minha mão suada contra a minha testa. Eu me
esqueci do irmão número três. Ele não está no meu radar diário desde que foi para
a Universidade de Nova York. Mas pensei que ele não morasse na casa. Por que
está atendendo o telefone? Apenas para me fazer sentir uma idiota?

- Então com quem você quer falar? - ele pergunta, rindo. - Raf ou Will?

- Raf, por favor. Quer dizer, Will. Will! - Agora eu estou confusa.

Ele ri novamente e grita:

- Will, telefone!

Fico satisfeita quando se divertem comigo. Segundos mais tarde, o Will
atende o telefone.

- Alô?

Eles têm a mesma voz!

- Oi, Will.

- Rachel! Como você está?

- Com dor de cabeça. - Começou agora. - E você?

- Bem. Kat e eu vimos uns lugares e encontramos alguns legais. Vou levar
fotos e preços para mostrar na segunda-feira.
- Muito bom. O que você vai fazer esta noite?

- Queria estar com você, mas vou para uma festa com Jerome e os rapazes.
Ei, e sexta? Eu estava pensando em ir no Patsy's.

Hum. Simplesmente a melhor pizzaria da cidade.

- Parece delicioso. - E romântico. Eu já posso ver um fio de mussarela entre
nós como o espaguete em A dama e o vagabundo.

- Ótimo. Meus pais adoram aquilo lá e eles querem conhecê-la.

- Seus pais? - Eu não estou pronta para conhecê-los e ser conhecida. Não é
uma coisa que deveria acontecer mais tarde? Quando estivéssemos noivos? O que
eu vou usar?

- Não se preocupe. Vão ser só eles. E meus irmãos também.

Agora me ferrei de verdade.

*

- É hora de irmos para a cama - meu pai avisa, desligando a tevê. Eu me
levanto e me espreguiço.

- Não quero ir dormir - Prissy diz, ainda firmemente afundada no sofá.

Jennifer ri.

- Ah, é? Mas é claro que você vai pra cama. E agora.

- Não vou, não - Prissy teima. Ela se vira e enfia a cabeça entre dois
travesseiros.

Jennifer a ergue pela cintura e a carrega para o quarto.

- Vai, sim, minha jovem!

Prissy começa a dar chutes no ar e a gritar:

- Quero dormir com vocês.

- Mas qual é o problema com você, esta noite? Meninas crescidas dormem
em suas próprias camas.

Miri e eu rapidamente dizemos boa-noite, deixando-os lidar com o trauma
infantil de Prissy e, depois de nos lavarmos, nos recolhemos à privacidade de nosso
quarto limão merengue.

- Temos muito o que conversar - eu falo.

- Eu sei. Mas espere até todos dormirem.

Não sei por que ela quer esperar, mas eu estou cansada demais para
discutir. Não vai fazer mal se eu tirar um cochilo antes.

Mergulho no mundo dos sonhos e a coisa seguinte que vejo é Miri me
sacudindo para me acordar.

- Vamos conversar sobre o baile? - pergunto meio grogue.

- Isso mesmo - ela grunhe. - Mas vamos fazer isso na França. - Ela agita
duas baterias e um tipo qualquer de poção púrpura na minha frente. - Eu encontrei
um feitiço para limpar a água.

Então é por isso que ela queria esperar. Mas temos de fazer isso agora,
quando estou me sentindo como um zumbi?

- Você está brincando? Não acha que está se entusiasmando demais com
essa coisa de ajudar?

Ela se senta no chão.

- Vamos logo. A gente discute isso quando estivermos lá.

Eu suspiro e subo no Expresso Miri. Será que estou acumulando pontos de
milhagem? Gostaria de ganhar uma viagem grátis para as Bahamas, por favor.

Segundos mais tarde, paramos numa praia tranquila. O nascer do sol está
lançando sombras num tom de rosa pastel e laranja na água - ah, se eu tivesse
uma câmera aqui! - e o ar parece salgado e delicioso. Desculpe... Délicieux.

Miri vai trabalhar no problema do óleo. Eu faço um anjo de neve na areia.

- Estarei bem aqui se você precisar de mirn - eu digo.

- Ah, muito obrigada.

Poucos minutos mais tarde, ela já terminou e eu estou no céu. A calmaria
das ondas é música para os meus ouvidos. Será que eu posso me mudar para a
França?

- Certo, baleias salvas. Vamos pra casa - Miri anuncia, agachando-se ao
meu lado.

Já? Eu afago o lugar ao meu lado.

- Este pedaço de praia está reservado para você, mocinha. Qual é a pressa?

Miri encolhe os ombros e se arrasta para trás.

- Dois minutos. E então eu tenho de voltar ao trabalho.

Eu sussurro e jogo um pouco de areia em sua direção.

- Pare de ser esquisita. E falando nisso, não posso acreditar que você não
comprou roupas novas hoje.

Ela suspira.

- Como eu posso comprar roupas quando há pessoas no mundo que estão
congelando por falta de roupa?

Não quero parecer egoísta nem nada assim, mas o que ela acabou de dizer
parece totalmente sem sentido.

- Muito bem, então. Para qual instituição de caridade vai dar o seu dinheiro?

- Não sei ainda! Esse é o problema. Há muitas causas. Os Sem-Teto, Paz
para o Oriente Médio, Aids, direitos dos animais....

Resposta errada.

- O baile! Precisamos de dinheiro para o baile! Lembra da nossa discussão
sobre como me ajudar a ganhar dinheiro? É isso! Então, ajuda a gente!

Ela se apoia nos cotovelos.

- O baile não é caridade.

- Atualmente é. Os alunos do JFK pagaram trinta mil dólares para fazer os
reparos no colégio. Por causa das vacas. Aquelas vacas, as suas. O colégio está
usando o dinheiro do baile para consertar o ginásio, então nós precisamos levantar
dinheiro para alugar um salão de baile.

- Eu não vou desistir da paz no Oriente Médio por causa de um baile
estúpido.

Alô? Ela não se sente nem um pouco responsável por essa confusão?

- Mas você acabou com o baile! Você deveria se sentir responsável!

Miri irrompe em lágrimas.

Epa! Eu me sento e ponho o braço em volta dela. Ela começa a soluçar
silenciosamente, como se temesse que qualquer som pudesse... assustar as
baleias?

- O que foi? - eu pergunto.

- Eu me sinto - ...soluço - ...tão - ...soluço - ...mal. Porque eu acabei com o
baaaaaaaaaaaile. ­ Catarro goteja em seu lábio superior. - E eu... - soluço - ...não
sei como... - soluço - ...consertar isso. E há tantos problemas sérios nesse mundo.
E eu tenho de consertar todos também. Eu achava que podia ser feliz sendo uma
bruxa e com todos esses poderes, mas eu me sinto tão... - soluço - ...responsável
por tudo. Tem esse peso imenso no meu peito como se alguém estivesse sentado
nele o tempo todo.

Minha pobre e meiga irmã. Eu preciso fazer ela rir. Não sabendo o que mais
poderia fazer, em sento em seu estômago.

- Algo parecido com isto?

Ela ri timidamente, mas logo começa a chorar de novo. Então soluça.

- Você está me machucando - ela diz e eu rolo para o lado. Sujei toda a
camisa dela de areia.

- Já sei o que vai fazer você se sentir melhor - eu digo.

- O quê?
- A Torre Eiffel! Vamos pra Paris!

Ela sacode sua cabeça.

- Eu estou exausta. Nós não podemos apenas ir para casa e dormir?

Festa interrompida.

- Certo, mas não podemos, pelo menos, levar uma baguete?

Ela aperta as baterias em suas mãos pequenas e movimenta a sua coluna.

- Numa outra vez.

Quando voltamos para Long Island, vou direto para debaixo dos meus
lençóis.

- O que nós vamos fazer sobre o baile? - Miri pergunta, indo para a cama.

Eu penso um minuto antes de responder.

- Precisamos levantar dinheiro. E claro que ia ser legal ter uma ajuda como
a sua nisso. Então, pare de se preocupar. Depois a gente inventa alguma coisa.
Agora, quanto à sua sensação de responsabilidade sobre o mundo inteiro...

De repente, nós ouvimos a porta perto de nós se abrir, seguida por
pequenos pés correndo pelo corredor, então a porta do quarto do meu pai e de
Jennifer se abre.

- Prissy? - meu pai pergunta. - O que você está fazendo aqui?

- Nada de outros bebês! - ela berra. - De agora em diante, vou dormir com
vocês. Não quero nenhuma irmã.

Miri e eu começamos a rir. Depois de alguns minutos debatendo com meu
pai e com Jennifer sobre a questão de ela ficar ali ou não, Prissy os cansa e ganha a
discussão.

Minhas pálpebras ficam pesadas.

- Deixa eu descansar por dois segundos e então a gente continua a
conversa. - Fecho os olhos por dois segundos, mas a próxima coisa que eu vejo é a
luz escoando através das venezianas. Miri está na mesa fazendo listas e é de
manhã. Toda aquela viagem foi um bocado exaustiva.

*

- Olá? - eu digo, ligando a luz do corredor. - Mãe?

- Parece que ela saiu - Miri diz, jogando a sua mochila de fim de semana no
chão.

Hein? Ela sempre está aqui quando a gente volta. Sempre.

- Talvez esteja dormindo - eu digo. Daí, abro a porta e acendo a luz do
quarto dela. Nada. Sua cama desfeita parece muito com a minha, coberta com
roupas.
- Estranho - eu digo. - São oito horas da noite e ela não está em casa? Será
que saiu para um encontro na noite passada? Hoje é domingo! Ela devia estar em
casa para nos receber. - Com biscoitos e leite e... Epa! Ando assistindo muito a
esses seriados antigos na tevê.

Decidimos ficar vendo tevê até ela chegar em casa. Às dez, Miri está
dormindo no sofá.

- Vá pra a cama - eu digo, dando uma cutucada nela. - Eu ficarei esperando.

Eu estou começando a me preocupar. E se alguma coisa aconteceu com ela?
A que horas eu deveria ficar em pânico? Por que ela não telefonou? Eu tento o
celular dela, mas cai direto na caixa postal.

Às dez e meia, estou andando de um lado pro outro. Às cinco para as onze
estou a ponto de começar a ligar - bem, não para a polícia mas, no mínimo, para o
bombeiro do térreo - quando, finalmente, ouço a chave da minha mãe na porta.

- Oi, querida - ela diz, descendo o zíper de um par estonteante de botas
novas, de salto alto e pele de leopardo. De onde isso veio? - Eu não sabia que era
tão tarde.

- Da próxima vez, mãe, você liga pra casa quando estiver atrasada. - Eu
estou a ponto de acrescentar que vou ter de botar ela de castigo se ela fizer isso de
novo.

Ela baixa a cabeça.

- Desculpa, de verdade, querida. - Ela me dá um abraço apertado. - Onde
está sua irmã?

- Dormindo. São 11h - eu digo. Ela fala, com a voz entrecortada.

- Realmente, não imaginava que fosse tão tarde. Quer me contar do fim de
semana de vocês? Eu faço um chá.

Suspirando, eu a segui até a cozinha e me joguei na cadeira.

- Como foi seu fim de semana? Animado?

- Puxa vida, e como! Eu saí... muito.

- Quantos encontros você teve?

Ela ri enquanto enche a chaleira.

- Quatro.

- Quatro! - Eu ainda nem sabia que ela já conhecia quatro homens! Quem
são eles? - Tem o bombeiro, Adam, o geriátrico Lex... Quem mais?

Ela balança a cabeça.

- Eu tive de remarcar com Lex. Quando ele me ligou na sexta-feira para
confirmar, meu fim de semana estava lotado.

Eu ergo uma sobrancelha.
- Eu o encaixei no cronograma dos coquetéis no próximo sábado das cinco
às sete. - Ela abre dois pacotes de chá de ervas e joga-os em duas canecas com
rodelas de limão. Depois, pega o calendário da parede para confimar - Isso, das
cinco às sete. - O mês todo está coberto com garranchos vermelhos.

- Deixa eu dar uma olhada nisso, por favor. - Não consigo acreditar. Tem
nomes de homens e de lugares escritos em todas as noites da próxima semana.
Dois na sexta. Três no sábado. Sim, três. Minha mãe ficou maluca? Quando ela se
tornou a Mãe Namoradeira Maluca?

O que tenho de fazer para que a minha agenda fique como a dela?




11. Minha mãe, minha dor de cabeça

No caminho para a sala de chamada, Tammy me pára no vão da escada,
olha ao redor para ter certeza que ninguém está ouvindo e cochicha:

- Bosh me ligou ontem à noite.

- O quê? Nem brinca.

- Mas foi. - Os olhinhos dela brilham maliciosamente. - Ficamos batendo
papo por três horas. Disse a ele que eu tenho um namorado, mas ele não me
deixava largar o telefone!

- Tammy, como vocês conseguiram conversar por tanto tempo? - Quantas
vezes será que ele disse cara durante o papo?

- A gente falou de tudo. Vida. Filmes. Mergulho na França. Ele foi pra lá com
sua família no ano passado e estava um bocado contente porque o derramamento
do óleo acabou não prejudicando a vida marítima nem os navios naufragados
debaixo d' água. Dá pra acreditar nessa história? O óleo simplesmente
desapareceu. Quer dizer, da noite para o dia, não deixou nem sinal.

Chega de falar nesse óleo estúpido!

- Mas, voltando ao Aaron - eu interrompo. Os resultados da nossa aventura
na França estão em tudo que é jornal. Todas as explicações e teorias conspiratórias
possíveis têm sido sugeridas, sendo que a minha favorita envolve Oprah, Bill Gates
e um submarino-aspirador. - O que você vai dizer pro Aaron?

- Será que vocês podiam desbloquear as escadas? - eu escuto.

Eu olho e Melissa está nos encarando.

Eu reviro os olhos e carrego Tammy para a sala de chamada, e a gente vai
para duas cadeiras vazias na fila de trás. Eu sinalizo para ela continuar.
- Então? Seu namorado atual? Continue.

Ela desliza na cadeira e seus ombros afundam.

- Falei com ele também. Por dois minutos. Não acho que a gente tenha
tanto em comum quanto eu achei que tivesse.

- O que isso quer dizer?

- Bem, ele não gosta de filmes nem de mergulho. Parece que só se importa
com Beisebol-Fantasia. Ele desligou o telefone para ir ver como andam seus
pontos, ou coisa assim.

O que é que acontece entre esses homens e o beisebol?

- Mas você ainda gosta dele?

Ela hesita.

- Bem, ele é legal. Eu gosto dele... mas como amigo. Não como... você
sabe. Aquele frio na barriga desapareceu.

- Não é certo você ficar com ele se já não está sentindo a mesma coisa.

- Eu sei, eu sei. Mas como eu posso acabar com alguém que está doente de
cama? É muita malvadeza. - Suas sobrancelhas caem. Nunca tinha percebido como
as sobrancelhas dela são expressivas. - Numa hora em que eu levar a canja pra
ele, solto tudo e digo: A propósito, estou terminando com você. Acho que não vou
conseguir fazer uma coisa dessas.

Ela sabe fazer uma canja? Impressionante.

*

São quatro e meia e eu estou na sala de estar do Raf.

Impossível, você grita. Como pode?

Will tomou a decisão chocante de trocar a hora da reunião do Conselho do
almoço para depois das aulas, na casa dele em West Village.

Obviamente, tive um total ataque de pânico quando ele casualmente
mencionou a mudança.

- Não vou deixar você na mão - Tammy disse, tentando me tranquilizar, o
que não funcionou, porque não é ficar sozinha que me faz ficar sem ar. É ver onde
o Raf vive. E dorme. E come.

Infelizmente, parece que Raf não está em casa. Talvez ele esteja fora numa
farra com Melissa. Ou talvez esteja no Stromboli ou em qualquer lugar que a
Lista-A tenha decidido fazer o ponto de reunião de hoje, depois do colégio, o que é
mais provável.

Fora nós, não há ninguém na casa. Os pais do Will ainda não chegaram. Eu
tinha um pouco de esperança de encontrá-los - então, talvez, a gente pudesse
cancelar o Jantar-para-nos-conhecermos de sexta-feira, também conhecido como
Com-certeza-será-a-pior-noite-da-minha-vida. E se eu não puder disfarçar meus
sentimentos verdadeiros pelo Raf? A família inteira vai passar a me odiar?

Will e eu estamos sentados no carpete branco no meio da sala. Folhetos de
hotéis e clubes estão espalhados diante de nós.

- São os únicos lugares que ainda têm nossa data disponível - Will explica.

- Não podemos mudar a data? - Bosh pergunta, no sofá, com a cabeça no
colo de Tammy. Alguém está avançando bem rápido, cara.

- Infelizmente, não - Will diz. - O fornecedor do bufê já está parcialmente
pago e a banda está contratada. Na verdade, temos sorte de a JFK fazer sempre o
baile na quinta-feira porque os lugares são muito mais caros no fim de semana.

Uma tradição do JFK: os seniores ganham a sexta-feira depois do baile de
folga.

- Bem - continua Will. - Mas, acho que a gente encontrou o lugar certo. Só
queria que vocês dessem uma checada nos números. É um lugar chamado
Penthouse 50 e o salão vai nos custar quatro mil dólares. Mas, ao contrário dos
hotéis, eles deixam a gente trazer a comida de fora. E tem ainda terraços fechados
com vistas panorâmicas da cidade, já que é no quinquagésimo andar de uma torre
da parte alta da cidade. Kat e eu achamos ótimo.

Bosh aprova.

- Parece legal, cara.

- Está bom pra mim - River diz.

- Jeffrey?

Jeffrey dá uma espiada de detrás do sofá. De onde ele surgiu? Juro que não
veio andando conosco.

- Está ótimo - ele murmura.

Nós pedimos à Amy para vir também, mas ela só fez sorrir para nós. Tudo
em cima, vamos para o baile!

Will liga para o Penthouse 50 para confirmar.

- Tudo certo - ele diz depois de desligar. - Eu vou retardar o depósito o
máximo possível. Mas, sério, a gente precisa de ideias para levantar fundos.
Alguma sugestão? Temos apenas poucas semanas. Rachel, Raf disse que você é
uma calculadora humana. Quanto dinheiro nós temos de levantar para irmos
adiante? Exatamente?

Eu sei que meu coração não devia ter dado esse pulo agora, mas... O Raf
ainda fala de mim? Eu estou apatetada. Agora, vamos ver.

- Vinte e sete mil e quinhentos dólares foi o que custou antes, mais quatro
mil pelo salão. Menos o lucro, se a gente mantiver o preço das entradas de
cinquenta dólares por cabeça... - Bem, estou apenas me mostrando. Era só tomar
os quatro mil de agora com os dez mil que já estavam faltando. - Quatorze mil. -
Claro que, se houver mais garotos legais como Will e Bosh, garotos que saem com
garotas não-seniores, teríamos mais pessoas para irem ao baile. Ah. Apague essa
ideia. Eu estou aguardando ansiosamente por meu status especial.

- O que você acha, Rachel? - Will pergunta. - Será que podemos levantar
todo esse dinheiro a tempo?

Eu não posso acabar com o baile. Não posso acabar com a reputação do
Will. Olho bem fundo nos olhos dele. O garoto está tão apaixonado por mim que vai
escutar qualquer coisa que eu disser.

- Acho, sim - respondo na minha voz mais segura.

- Claro que podemos.

- Certo - ele diz. - Vamos para o brainstorm. Idéias por favor!

Kat gira sua caneta púrpura entre os dedos.

- Podemos abrir o baile para os não-seniores? - ela pergunta
esperançosamente.

- Sem chance - River diz. - Nossa turma vai se revoltar. Ninguém vai querer
um bando de calouros acabando com o estilo da nossa festa.

Eu lhe lanço um olhar diabólico.

- Não ia adiantar - Bosh acrescenta, cabeça sempre no colo da Tammy. -
íamos ter de encomendar mais mesas e mais comida, e nossos custos iam subir.

Kat encolhe os ombros.

- Vendemos chocolates?

- Haja chocolate pra tanta grana - River responde.

- Por que não fazemos outro desfile de moda?

Por favor, não. Eu mal me recuperei do último.

- Lavagem de carros? É o que as pessoas nos cinema sempre fazem - eu
digo. E já estou vendo brincadeiras com a água e muita, muita espuma de sabão, o
Raf limpando a espuma do meu queixo, olhando bem fundo nos meus olhos, me
beijando... Ou melhor, o Will. Will, Will, Will.

- Vamos precisar de um bocado de carros - Bosh diz, acabando com a minha
fantasia. - Temos de lembrar que a maioria das pessoas em nosso colégio não
dirige. Isso aqui é Manhattan.

- Precisamos aproveitar as nossas habilidades - River diz, manuseando o
piercing da sua sobrancelha.

O que eu tenho que ninguém mais tem? Uma irmã que é uma bruxa, é isso.
Como eu posso usar melhor a mágica da Miri? Talvez vendendo laranjas? Talvez a
Miri possa comparecer com alguma coisa até melhor para vender e todo o dinheiro
vai para o colégio. Como uma vassoura voadora! Tá bem, isso não, mas alguma
coisa mais viável. E então nós podemos fazer...

- Um leilão!
O rosto de Will se ilumina.

- É uma ótima ideia. Podemos pedir às pessoas para fazerem doações.
Entradas de teatro, cartões de presentes, esssas coisas. Podemos pedir doações
aos pais.

- Aposto que consigo CDs da MTV - River diz.

- Eu trabalho na Borders - Kat diz. - Talvez eles possam doar alguns livros.

- Maravilha! - Will esfrega as mãos como se estivesse fazendo fogo. - Vou
tentar conseguir uns casacos de couro. Meu pai trabalha no ramo. Podemos colocar
alguns cartazes por toda a escola pedindo doações. E podemos pedir aos
comerciantes da vizinhança do colégio. Vou pergunta à Konch se podemos fazer o
leilão num horário depois das aulas, assim os alunos de todas as séries podem
fazer lances também. Até podíamos convidar os pais. Vai ser demais.

- Gostei - fala a Kat. - Mas precisamos de algumas coisas bem caras. Não
vamos vender quatorze mil dólares só de livros e CDs de rap.

Will parece preocupado.

- Acho que posso arranjar uma coisa bem cara - eu falo sem pensar e com
uma confiança que não estou sentindo.

Tammy ergue as sobrancelhas assustada.

- O quê, por exemplo, cara? - Bosh pergunta.

- Eu... Eu não quero dizer ainda. Mas eu tenho uns meios muito bons,
incríveis mesmo, de conseguir algum coisa... Bem, não se preocupem - eu digo
vagamente, e, então, logo começo a sentir enjoos. - Onde é o banheiro?

- Suba os degraus, então siga o corredor até a terceira porta à sua esquerda
- Will diz e então começa a anotar as ideias.

Eu peço licença para sair e começo a minha jornada pelo corredor. Ou pelo
museu. Todos os espaços do papel de parede estão cobertos de fotos de família
com os três garotos em cada momento do crescimento deles. Will vestido de pirata
no Halloween. Acho que é o Will. Pode bem ser o Raf. Ou o Mitch. Eu subo outro
degrau. Raf com cinco anos. Chocada com o cabelo escuro do Raf (num corte tipo
pajem, rá-rá!), uma covinha adorável na sua bochecha esquerda, um grande
sorriso com os dentes de leite faltando. Um casaquinho xadrez de lã, minicalças de
veludo cotelê.

E isso aqui deve ser...

O quarto do Raf. Um engasgo abafado. Eu sei que é o quarto do Raf, porque
a porta está aberta e, de onde estou, posso ver nosso livro grosso e verde da turma
de calouros, o Biologia: Compreendendo Organismos, na mesa dele. Fico
imaginando como é o resto do quarto. Desarrumado? Limpo? Tem alguns quadros?
Algumas fotos... minhas?

Eu não devia.

Eu devo!
Eu não podia.

Eu posso!

Eu faço. Dou um profundo suspiro e mergulho direto no quarto do Raf.
Todos os meus sentidos ficam totalmente dominados. Tinta azul! Cheiro de garoto!
Paredes cobertas de livros! Laptop prateado! Colcha cinza com barcos a vela e...
Raf nela!

Oh, não. Por favor, não.

- Olá! - diz uma voz. A voz do Raf.

Raf está esparramado de bruços, atravessado em sua cama, escrevendo
num caderno. Eu sou um cervo congelado pelos faróis de neblina de um carro. Se
pelo menos eu fosse uma bruxa. Se eu pudesse sumir, correr de volta para as
escadas. Ou voar através da parede. Ou voar ao redor do mundo como um
super-herói e voltar no tempo três minutos atrás. Então, poderia, calmamente,
descer o corredor e encontrar o banheiro, em vez de ser flagrada na situação
mais-dolorosa-do-que-uma-agulha-no-olho.

Coração. Acelerando. Calma, calma.

- Ah! Oi, Raf - eu digo na melhor voz fingida. - Aqui não é o banheiro.

Por favor, me diga que eu não acabei de dizer essa idiotice. Por favor. Agora
ele está me associando ao banheiro. Como é possível que eu torne esta situação
tão ruim ainda pior?

Ele vira seu caderno para baixo e ergue sua sobrancelha esquerda.

- É do outro lado do corredor.

Eu começo a recuar imediatamente.

- Rachel, espere - ele diz, repentinamente.

Eu paraliso meus passos. Os formigamentos que estavam percorrendo a
minha espinha já estão nos meus pés

- Hein? Ahn?

Ele gira e agora está recostado na cabeceira da cama.

- Como... você sabe... está tudo?

Na vida? No amor? Eu sinto saudades de você, eu não consigo não pensar
em você. Então, me apoio no batente da porta.

- Bem.

- É? Como é que vocês estão indo lá embaixo?

- A gente está tentando salvar o baile.

Ele inclina a cabeça e olha para suas mãos.
- Você vai? Meu irmão convidou você?

Minhas bochechas queimam.

- Bem, então... - ele diz e dá de ombros. Então olha de volta para mim.
Nossos olhos se encontram. - Bom baile pra você.

- Obrigada - eu digo. - Tudo bem. Tenho de volar lá pra baixo. - Não!
Espere! Quero ficar com você!

- Pode fechar a porta?

Volto para a sala confusa, sentindo-me como se tivesse levado uma
bofetada. O Raf ainda sente alguma coisa por mim? Será que ele se importa que eu
esteja namorando o Will? Por que ele parece tão chateado? Foi ele quem me deu o
fora. Eu disse sim para o Will porque o Raf não queria nada comigo.

Então por que eu me sinto como se tivesse cometido o maior erro da minha
vida?

*

Estou indo ao MOMA com o Jordan - minha mãe diz, no que eu entro em seu
quarto, quando chego. - Termine seu dever antes de ver tevê. E veja se a Miri
termina a leitura do A². Ela está atrasada em seu treinamento. Deixei dinheiro na
mesa da cozinha, para você pedir comida chinesa...

De novo? E quem é Jordan?

Minha mãe bate a mão em sua boca aberta.

- O que foi?

- Esqueci a roupa dentro da máquina de lavar. Você acha que pode... Ah,
deixa pra lá.

Ela fecha os olhos e franze os lábios e a coisa seguinte que eu vejo é uma
pilha de roupas nossas, seca e dobrada, em pilhas bem-feitas sobre sua cama.

Todo o trabalho de dobrar e separar roupas que eu fiz por anos fica perdido
em uma memória distante e cruel.

- Como eu estou? - ela pergunta, se virando. Está usando calças (novas) cor
de chocolate, uma blusa branca (nova) e seu colar com o formato de coração.

- Linda. Divirta-se - eu digo e a beijo na testa. Ela sai numa enorme
agitação, e eu tento brecar a confusão dentro de mim, provocada pelo Raf, e me
concentrar na tarefa imediata - pensar no que eu vou arranjar para o leilão.
Encontro Miri em sua mesa.

- Estou um bocado ocupada - ela diz sem erguer a vista. - Você já ouviu
falar dos incêndios nas matas da Califórnia? O que vamos fazer?

- Não muito - eu falo, deitando-me na minha posição usual, meus pés
apoiados na parede. - Podemos reservar uns poucos segundos para discutir a
ameaça de não termos o baile?
Ela fecha o caderno e se vira para mim.

- Tudo bem, o que é?

- Os alunos doaram a maior parte do dinheiro para consertar a escola,
certo? Mas, já que essa confusão toda parcialmente é sua culpa, eu ainda preciso
da sua ajuda. Como você prometeu. Para levantar o dinheiro para o baile. E nós
vamos fazer um leilão. Então preciso que você faça aparecer alguma coisa que eu
possa doar. Alguma coisa que a gente possa vender. Alguma coisa boa e cara.

- Como o quê?

- Sei lá. O que você pode fazer aparecer? Vamos pensar.

Ela solta um suspiro, então abre seu caderno numa página em branco.

- O que adolescentes querem?

O fim das espinhas, o fim das regras:

- Ficar mais velhos.

- Acho que não vou conseguir fazer isso. - Ela coça o nariz com o lado
errado da caneta e desenha uma linha azul nele. Eu tento não rir; eu não quero
interromper o fluxo da sessão de brainstorm dela. - E uma viagem para algum
lugar? - ela sugere.

- Como a gente ia fazer isso? Fazer a pessoa voar em sua vassoura com
mais um convidado?

- Rá-Rá! Quem sabe com um zapt eu consigo algumas passagens de avião
para Cancun.

- É? Isso parece mais coisa de hacker de computador do que bruxaria. - Eu
pego o travesseiro dela e o equilibro uns meus pés.

- Você pode parar? Eu durmo nisso, tá?

- Isso me ajuda a pensar. Talvez a gente consiga que a mamãe nos ajude.

- Tá brincando? Ela tem estado muito ocupada ultimamente.

- É mesmo. Ela está precisando de um clone dela para se encontrar com
todos esses caras. Ei, isso ia ser ótimo. Você pode fazer clones? - Eu faria a minha
clone para ir à escola por mim. Qual seria o nome dela? Eu penso em London e faço
caretas. Rochelle não, definitivamente.

- Acho que não.

- E um iPod? - Bem que eu queria ter um. Eu jogo o travesseiro para Miri e
ela o agarra no seu colo.

- Um laptop? - Ela joga o travesseiro de volta.

- Uma tevê? - Eu arremesso direto de volta para ela, como se estivéssemos
jogando uma batata quente.
Ela o atira direto novamente.

- Uma tevê de tela plana? Muitas tevês de teia plana!

Eu pego-o com as mãos e então me deito nele.

- Perfeito! Uma fantástica tevê vai nos render pelo menos uns tantos mil
dólares. A gente faz aparecer uma, então usamos o feitiço da multiplicação e
abracadabra, o baile está salvo! Tem algum feitiço para aparecer tevês?

- Duvido. Mas tenho uma tonelada de coisas para fazer esta semana. Estou
experimentando um feitiço para limpar o rio Hudson e talvez o Mississipi também.
Então vamos fazer do sábado o dia dos feitiços. Até lá, a gente pensa em alguma
coisa.

- Perfeito! Não tenho mesmo nada para fazer no sábado. Will vai estar
trabalhando e a Tammy vai estar tomando conta do Aaron. - Eu me dou conta do
quanto isso soa egoísta. Aqui estou eu pedindo à Miri um favor e esperando que ela
se encaixe na minha agenda. Ainda assim, não há razão para que não possamos
ser eficientes com o nosso tempo, não é? E, no que diz respeito ao baile, tempo é
fundamental!

- Achei que ela não gostava mais dele.

- Ela gosta dele como amigo, mas é só isso. Mas como ele está com
mononucleose, ela se sente muito culpada pra terminar com ele agora. -
Realmente, eu não gosto de fofocar muito com Miri sobre os meus amigos. Ela
nunca me conta nada sobre os dela. Humm, eu nem tenho certeza se ela tem
algum amigo. - Então sábado será o dia da irmã. Talvez a gente possa ver um filme
na tevê nova! - Talvez eu deva ficar em casa e ver tevê na sexta, também, em vez
de sair com o Will e o Raf. Como eu posso lidar com os dois - correção: todos - com
todos os irmãos Kosravi ao mesmo tempo?

Eu preciso de um clone. Rochelle, onde está você?

- Ah, será que você pode me fazer mais um favorzinho? - eu pergunto. -
Preciso que você prorrogue o feitiço do amor naquela luva.

- Como é que é? - Miri diz, balançando a cabeça. - Você não pode prorrogar
o feitiço do amor. Não é um livro emprestado da biblioteca, você sabe.

- O quê? - eu grito. - Você está brincando comigo? O que eu vou fazer? O
amor do Will por mim vai acabar e eu vou ficar sem nada! A menos que o Raf
comece a gostar de mim novamente... Ah, claro! Parece que eu perdi o Raf para
sempre.

Miri se abaixa em sua cadeira de novo, rindo histericamente.

- Estou apenas brincando. É claro que eu posso fazer o feitiço novamente.
Você pode dormir com a luva esta noite. Puxa, você devia ter visto a expressão no
seu rosto. Foi tão engraçado.

Hilário.

*

A Operação Salvar o Baile, também conhecida como o Leilão, foi aprovada
pela diretora e marcada para segunda-feira, dia 24 de maio, que será a somente
três dias do baile.

Estou no banheiro do colégio tentando conseguir que o
auto-secador-não-precisa-tocar funcione quando Jewel e Melissa entram. Elas
começam a movimentar o cabelo excessivamente quando me vêem.

- Oi, Rachel - Jewel diz, me olhando pelo espelho. Eu sinto aquela pontada
familiar no meu coração. Nós éramos muito amigas. Antes que ela se juntasse ao
lado negro

- Oi - eu respondo e paro de agitar as mãos como uma esquisita. Eu seco
minhas mãos no meu novo e fabuloso jeans. O banheiro é pequeno demais para
nós três.

- Então, Rachel - Melissa diz, chegando perto de mim. Ela reforça o seu
batom. - Ansiosa para o jantar desta noite? O Fatsy é o meu favorito. Amo aquela
pizza branca.

O quê?

Não que só vou ter de me virar com o meu namorado, meu
ex-quase-namorado e amor de minha vida, os pais deles, mas também com minha
arquiinimiga? Então Melissa e Raf estão saindo a sério? Direto, feito namorados
mesmo? Talvez eu enfie o cortador de pizza nela. Talvez eu enfie mesmo alguma
coisa cortante em mim. Esperar horas num pronto-socorro deve ser melhor do que
aguentar uma noite inteira no restaurante, mesmo que seja o melhor do mundo. (E
eu sei o que é esperar por horas num pronto-socorro. Uma pessoa tem de ser
atropelada por um rolo compressor para que o médico venha vê-la. Quando eu
tinha cinco anos, meu dedo ficou preso na porta do carro e tive de esperar seis
horas até chegar alguém finalmente aparecendo sei lá de onde, e tudo o que ele fez
foi me dar um ponto malfeito e um pirulito.)

Os olhos verdes de Melissa estão piscando de maldade.

Sabe o que mais? Não vou mais deixar ela me intimidar. Era para ela ser
simpática comigo; eu sou praticamente sua cunhada. Então por que o Raf e Melissa
são problema pra mim? Dane-se. O Raf não me quer? Bem, eu não quero ele. Estou
namorando alguém mais velho e mais esperto. Alguém que quer me namorar. Bem,
talvez seus sentimentos estejam um pouquinho enfeitiçados, mas isso é
irrelevante. Eu tenho um namorado. Raf é passado.

- Estou, sim - digo, na minha voz mais alta, mais
pode-de-vir-com-tudo-que-eu-seguro. - Vejo você mais tarde.

E com isso, saio do banheiro.

Não foi a minha melhor fala para fechar uma cena, mas, pelo menos, não
tropecei no bicicletário.

*

É noite de sexta-feira e mais uma vez minha mãe e eu estamos agindo
como carrinhos de corda de brinquedo, correndo por todo o apartamento. Ela está
de roupão de banho, secando seu perfeito cabelo louro e longo, enquanto eu luto
para descobrir a roupa certa para minha noite do inferno em potencial.
Quando a campainha toca, beijo a Miri na testa e vou para o quarto da
minha mãe dizer tchau.

- Divirta-se esta noite! - eu digo, minha voz abafada pelo barulho do
secador.

Ela está com a cabeça inclinada para baixo e sorrindo, então parece que ela
está franzindo as sobrancelhas.

- Você também! Aonde você está indo?

Que cheiro de queimado. Melhor que tenha sido seu cabelo queimando e não
um cigarro.

- No Patsy - eu digo.

- O quê?

- Patsy!

- Churrascaria? Divirta-se! Você pode abrir... - O secador abafa suas
palavras.

- O quê? Não consigo ouvir você.

- Pode deixar! - ela diz, e franze os lábios para abrir a janela do seu quarto
com uma pancada.

Eu agarro minha bolsa e saio pela porta.

*

É um desastre.

Não, juro. Sei que eu já chamei muitas coisas de desastre antes, mas este
aqui é nível onze na escala Richter. Aqui está a arrumação dos lugares na mesa
redonda: Will está à minha esquerda. Depois dele, Mitch. Depois, Louise, sua
namorada. Depois, o Sr. Kosravi (- Chame-me de Don, doçura - diz ele). Perto de
Don está a Sra. Kosravi (que fica o tempo todo me olhando com irritação, muito
provavelmente por rejeitar seu caçula e logo depois pegar seu filhote do meio).
Junto da Sra. Kosravi está Mefissa. O que quer dizer que quem está sentado à
minha direita? (Que rufem os tambores, por favor.)

Raf.

Como isso pôde acontecer? E como se o jogo da dança das cadeiras tivesse
dado errado. E agora toda hora que o Raf ou o Will mexem suas pernas, seus
sapatos acidentalmente batem em mim e lançam ondas por todo o meu corpo. Meu
pé esquerdo - Will. Pé direito - Raf. Meus sensores do cérebro estão
superenergizados. E Melissa está me ignorando inteiramente, rindo e trocando
piadas com a Sra. Kosravi (ela a chama de Isabel) e Louise. Os pais de Melissa, de
Louise e os Kosravi se conhecem há um bocado de tempo. Que gracinha, tão
chique!

Isabel e Louise soltam estrondos de riso e minhas costas endurecem. Quem
ia adivinhar que Melissa tinha alguma coisa engraçada para dizer? Eu fixo o olhar
no meu prato de salada Caesar.
Tá bem, não é tudo um desastre. A lula frita está maravilhosa. E a verdade
é que ouvir três garotos implicarem e brincarem um com o outro é muito bom.

- Você quer jogar bola amanhã? - Mitch pergunta para Will. Não é nenhuma
surpresa que Mitch seja tão gostoso quanto seus irmãos mais novos. Os três têm o
mesmo cabelo escuro sexy, os mesmos olhos escuros e são magros e atléticos. O
cabelo de Mitch é o mais comprido, seu rosto mais anguloso. O cabelo de Will é o
mais curto e eu acho que ele é o mais alto. O Raf tem o sorriso aberto. E um
cacheado no cabelo que os outros não têm.

- Não posso - diz Will -, ao contrário de você, eu trabalho nas sextas-feiras.

Ele é tão responsável, meu namorado. Quantos garotos de 18 anos
trabalham para ser independentes?

- Por que você trabalha tanto? - Mitch pergunta.

Raf parte o pão pela metade e o mergulha na sua sopa de ervilha.

- Para ganhar dinheiro. Você sabe o que é, aquela coisa verde que você
continua mamando da mamãe e do papai.

Engraçado. Bem. Mas ele não tem um emprego. E assim vai.

Mas ele tem sim uma gota de sopa no canto da boca. Ele a lambe fora.
Tenho de parar de olhar os lábios do Raf. Em vez disso, devo olhar os do Will.

- Você é um comediante, Lóbulos! - Mitch se debruça sobre a mesa e puxa a
orelha de Raf. - Não é que ele tem as orelhas molengas? Raf, sua namorada dá
mooshies em você?

Eu? Como? Ah, sim. Eu sou a namorada do Will.

Raf se embaraça e fica muito vermelho.

Melissa pára de conversar para soltar um sorriso para toda a mesa, como se
estivesse recebendo um prêmio. O Prêmio da Esnobe do Ano.

- Você nem imagina quando ele era mais novo - Mitch diz. - O Raf tinha as
maiores orelhas do mundo. Orelhas de Dumbo. Will e eu costumávamos prendê-las
com fita por detrás da cabeça. Nós ainda achamos que você devia ter feito cirurgia.
- Ele termina com o resto de sua salada.

- Ele parecia mesmo meio monstro - Will diz, provocando.

- Felizmente ele ficou com aparência mais normal quando cresceu - Mitch
diz. - Mais parecido com a gente do que com o Dumbo.

Raf pisca para Melissa.

- Se eu fosse parecido com um deles, nunca sairia do meu quarto.

Por que ele não dá uma piscadela para mim?

- Oh, Lóbulos e seu amor bruto! - diz Will e ri. Eu dou uma piscada para
Will. Ele pisca de volta. Ah!
- O que é um mooshíe! - a irritante Melissa pergunta.

- Puxe o lóbulo da orelha dele - Will explica. - Vamos, você precisa
experimentar isso.

Raf ainda está ruborizado, mas ele ri também. Adorável. E esse jeito dele de
irmão caçula é tão bonitinho.

Não é bonitinho! Não é bonitinho!

Melissa estica o lóbulo da orelha dele e a mesa inteira gargalha.

- Muito macia mesmo - ela exclama.

O garçom aparece para limpar a mesa, interrompendo a festa de amor e
salvando-me de dolorosas pontadas de ciúmes.

- Alguma notícia da bolsa de estudos de Colúmbia? - Don pergunta para
Will.

- Que bolsa de estudos? - eu pergunto.

- Nada demais ainda - Will diz, tentando não dar importância ao lance. - O
departamento de ciência política está pensando em me dar uma bolsa. Nada muito
alto. Somente para os livros.

Além de tudo, meu namorado é modesto! Aguenta essa, Raf! E ciência
política! Meu namorado provavelmente quer ser presidente. O que significa que, um
dia, eu poderei ser a primeira dama. Se eu conseguisse manter o feitiço por tanto
tempo, o que não vai acontecer, é claro. Mas ele podia ficar tão profundamente
apaixonado por mim no baile que, até sem o feitiço, ele me amaria - e eu a ele - e
nós viveríamos felizes para sempre, ou alguma coisa parecida. Que legal! Legal
demais mesmo! Eu me tornaria a melhor primeira dama da história! Ia poder usar
conjuntinhos bem talhados e dizer "Força Aérea 1, me leve para as Bermudas!" E
eu terei seguranças. E, é claro, muito trabalho de caridade e esta coisa toda. Cuidar
da saúde e do seguro social. Será que ia ter de cortar o cabelo? Todas as primeiras
damas têm cabelo de vovó. Será que é uma exigência do cargo? Mas, eu podia
cortá-lo e, depois de ser eleito, deixá-lo crescer de novo. Primeira dama por trinta
segundos e já estou fugindo dos meus deveres. Mesmo assim.

- Eu devia ter conseguido uma bolsa de estudos para a NYU - Mitch diz.

- A troco de quê? - Will pergunta.

Mitch arreganha os dentes.

- Meu charme e beleza?

A mesa toda resmunga.

- Eu acho que sua cabeça pode precisar de uma cadeira só para ela. Está
ficando grande demais - Raf diz, rindo afetadamente.

Eu sufoco uma risada.

- Achava que o mais novo é que devia ser o ator canastrão da família -
Melissa diz.
Isabel sorri para os três filhos.

- Não aqui. Meu caçula é o introvertido. Meu mais velho não pára de falar e
o do meio está tentando conquistar o mundo.

Melissa toca a mão de Raf.

- Raf? Você vai concorrer a presidente do conselho estudantil também?

Ele balança a cabeça.

- Não estou interessado.

- Jura? - Seu rosto fica desapontado. Alguém quer entrar no lounge do
conselho estudantil. - Você ia ser tão bom presidente.

- Duvido. Eu não posso enganar tanta gente assim.

- Ei! - Will diz, obviamente ofendido. - Eu não engano ninguém.

- Brincadeira, brincadeira.

Muito grosseira.

- Se você é tímido - eu deixo escapar - por que entrou no desfile de moda?

Nossos olhos se encontram.

- Não fui eu que fiz isso - ele diz. - O Will foi quem me inscreveu.

- Eu achei que seria bom para você - Will comenta. - Você precisava fazer
mais amigos além de T.S. Eliot e Dylan Thomas.

Ah. Eu tiro os olhos do Raf e sorrio para Will. Como ele é meigo.
Preocupando-se com seu irmão menor.

- Você vai participar de novo do desfile no ano que vem? - Melissa pergunta
para Raf.

Ele dá de ombros.

- Talvez.

- E você, Rachel? - Melissa pergunta, a maldade brilhando no fundo dos seus
olhos. - Vai tentar o desfile de novo, também?

- Quem sabe? - eu digo e pego meu copo d'água. O que eu devia fazer era
atirar a água nela. Como pode o Raf gostar de alguém tão horrível? Ele parece ter
uma falha no caráter. Will é definitivamente o melhor irmão.

- Mãe - Mitch pergunta -, você vai costurar as etiquetas de acampamento
para mim?

Acampamento? Que acampamento?

Ela assente e toma um gole de vinho.
- Claro, querido. É só me trazer tudo o que você quiser que seja etiquetado.

- Você não acha que com vinte e um anos é hora de conseguir um trabalho
de verdade no verão? Ou, no mínimo costurar seu próprio nome nas camisas? -
pergunta Will.

Isabel ri pacientemente.

- Ah, pare com isso. Não tem nada de errado em receber uma pequena
ajuda de mamãe. Estou ajudando o Raf com as etiquetas de acampamento de novo
este ano. E fico feliz em ajudar você também, Will.

As pontas moles das orelhas de Raf ficam rosadas. Eu resisto ao impulso de
dar um mooshie nele.

- Não sabia que você trabalhava num acampamento! - digo ao Will. Nunca
entendi o que atrai tanto em acampamentos. Barracas? Mosquitos? Aulas de
natação obrigatórias? Não é a minha. Se meus pais quisessem me mandar para
algum lugar no verão, eu escolheria o Club Med.

- É. Wood Lake. É no alto de Adirondacks. Não disse a você que eu vou
voltar lá neste verão? Meu último verão - ele diz para Mitch.

- Você só está com inveja de todo o poder que vou ter como chefe da seção
- Mitch comenta.

- Não posso acreditar que te nomearam chefe de alguma coisa - Will encara
seu irmão e coloca o seu braço em torno de meus ombros. - Rachel, o que você vai
fazer neste verão? Por que não vem comigo?

Eu quase derramo minha água.

- Não, obrigada, acampamentos não são para mim.

Tanto quanto eu gosto do Will, também gosto de ser uma garota da cidade.
Raf concorda.

- Eu realmente não consigo vê-la lá.

Como é que é? Eu me mordo em silêncio. Como ele ousa comentar o meu
potencial num acampamento!

- Posso levar os pratos? - pergunta o garçom, e nossas tortas logo estão na
nossa frente. Quem o Raf pensa que é? De agora em diante, estou totalmente a fim
do Will. Raf, quem é esse cara?

*

Depois que Don entrega o cheque (Will tentou pagar a nossa conta, mas seu
pai riu dele), Melissa sugere que a gente vá ver um filme.

- Esse eu já vi - vou logo dizendo. Esta noite dolorosa tem de acabar. Nunca
me senti tão confusa. Não posso evitar ficar pensando no Raf.

Melissa ri debochada.

- Mas nós ainda nem decidimos em qual filme vamos.
- Tenho visto muitos filmes ultimamente. Já são dez e quinze e eu disse à
minha mãe que chegaria em casa à meia-noite. Quem sabe num outro dia?

Colocamos as cadeiras de volta nos lugares e nos dirigimos para a porta em
fila indiana. E foi quando eu não pude evitar de olhar para os maiores seios do
mundo.

Geralmente eu não olho para decotes. Mas o vestido da mulher era tão
decotado e a fenda entre os seios literalmente mostrava...

Aquele cordão de prata de coração parece familiar. Aquele pescoço parece
familiar. Aquele queixo. Aquele rosto. Oh, Meu. Deus. É minha mãe. Meus olhos
voltam para a fenda entre os seios dela. Não são os seios da minha mãe. Bem, não
eram, até ontem. Minha mãe está sentada numa mesa para dois, usando um
vestido preto com decote bem baixo que eu nunca tinha visto antes, mastigando
um pedaço de crosta de pão. À sua frente está Adam.

Mitch colide com as minhas costas porque eu dei uma brecada. Ele segue
minha linha de visão.

- Bonita - ele diz e então assobia, o que faz com que minha mãe dê uma
olhada.

Inicialmente, ela ri, mas então quando se dá conta do que está acontecendo,
seu rosto e suas bochechas ficam corados. Ela dobra o braço sobre o peito. Tarde
demais! Então, finge que não me vê e vira de volta para o seu acompanhante.

Minha boca se abre, mas nenhum som sai. A mulher que me deu à luz está
me ignorando?

- Mãe?

Ela não olha. Será que não é a minha mãe? Talvez minha mãe tenha um
clone também.

A mulher morde a unha do seu polegar. Oh, é minha mãe sim.

- Mãe?

Ela olha, fingindo surpresa.

- Ora, olá! - Ela está debochando de mim? - Adam, você se lembra de minha
filha, Rachel?

- Prazer em vê-lo novamente - eu digo baixinho.

- Achei que Rachel tinha lhe ligado - Adam diz, parecendo confuso.

- Eu disse isso? - minha mãe pergunta. - Eu quis dizer a Miri. Ando trocando
muito o nome das duas. É a Miri que precisa que eu vá direto para casa depois do
jantar.

Hein? O quê?

- Não tem nada de errado com a Miri. Quando nós saímos ela estava...

Minha mãe me dá um olhar por-favor-cale-a-boca e eu percebo que ela
acatou a minha esperta sugestão de magicamente-faça-seu-celular-tocar-quando-
você-está-entediada. E eu acabei de fazer a coisa toda ir por água abaixo. Epa!

- É a sua mãe? - Mitch diz, botando a cabeça por cima do meu ombro. -
Bonita.

Will, que já estava umas poucas mesas adiante, volta.

- Boa-noite, senhora Graff. Estamos pensando em ir ao cinema. Rachel pode
chegar um pouco mais tarde esta noite?

Eu tento balançar a cabeça sem realmente balançá-la. Por que não posso
projetar meus pensamentos? Por que por que, por quê?

- É claro, Will - ela diz com um grande sorriso, obviamente pensando que
está me fazendo um grande favor. - E eu disse a você para me chamar de Carol.

Will pega minha mão e aperta.

- Obrigado.

- Maravilha - eu murmuro, dando a ela e a seus peitos um olhar
chamuscante por todo o caminho até a porta. Eu queria que minha mãe tivesse um
namorado. Quando vou aprender a tornar cuidado com o que eu desejo?




12. É uma da manhã. Você sabe onde sua mãe está?

As luzes do quarto de Miri ainda estão acesas, então eu bato na porta.

- Você está acordada?

Nenhuma resposta. Abro a porta e encontro o quarto vazio. Onde ela se
meteu, nesse mundo cruel? Ah, não. Ela podia estar em qualquer lugar do mundo.

Estou a ponto de entrar em pânico quando sinto uma rajada de frio, luz e
uma umidade me cercando. Miri se materializa no meio do quarto.

- Oi - ela diz, piscando furiosamente, espantada em me ver. - Quando você
chegou em casa?

- Há dois minutos. Onde você estava?

- Arkansas. Despoluindo o Mississipi. Como foi sua noite?

- Uma droga. - Não consegui me concentrar no filme. Pra começar, era um
daqueles chatos, com ação e mais ação, sete perseguições de carro, uma depois da
outra, que me deixaram tonta. Meu grande problema era que todos nós estávamos
dividindo um saco de pipoca supergrande, que estava com Raf. Então, mesmo eu
querendo mais do que tudo um punhadinho daquelas delícias amanteigadas, não ia
dar para eu simplesmente esticar a mão para o colo do meu ex-quase. O que ia
parecer?

Melissa estava rindo e cochichando com Raf o tempo todo, o que eu achei
perturbador e irritante. Como pode um cara que gostou de mim gostar dela? Mas o
que mais distraía minha atenção eram os dedos do Will, que ficavam desenhando
círculos na palma da minha mão. Olha só, Raf é tão, tão passado. Will é
simplesmente impressionante. Inteligente, simpático, ambicioso. Um sênior. O que
mais eu poderia querer em um namorado?

Miri se livra de suas roupas molhadas e as deixa amontoadas junto à sua
porta.

Eu cubro os olhos:

- Nossa mãe ainda não chegou em casa, chegou? Eu a encontrei no
restaurante. Pode-se dizer que foi no mínimo embaraçoso.

- Não, ela ainda não voltou. - Em silêncio, ambas ficamos pensando no
assunto.

Eu me sento em sua mesa.

- Você não acha que ela está indo um pouquinho longe demais? Ela faz
mágica até para lavar roupa.

Miri suspira.

- Ontem ela fingiu que tinha preparado aqueles tacos de tofu mexicanos.
Mas eu tinha visto ela simplesmente fazê-los aparecer.

- O que está acontecendo com ela?

- Ela tem agido meio estranha desde que o papai se casou. Namorando, me
deixando fazer mágica. E então você a convenceu que não tinha mal fazer uma
mágica de vez em quando. Nem um milhão. E encontrei um maço de cigarros vazio
no quarto dela. Para piorar tudo, ela está fumando novamente.

Ela tem andado um pouco exagerada. Minha mãe, obviamente, não sabe o
que significa moderação. Falando nisso, a cintura da minha calça está escavando a
minha barriga.

Eu comi pizza demais. E tiramisu. E o alcaçuz do Will, no cinema. Pelo
menos, não avancei naquela pipoca, ou não ia conseguir nem respirar. Um bocejo
escapa da minha boca.

- Você parece exausta - Miri diz. - Por que não vai dormir?

- Vou, sim. E você?

- Ainda tenho mais um feitiço para fazer esta noite. Os incêndios na mata
estão botando vidas em perigo na Califórnia - ela comenta. - Lembra do ano
passado? Preciso acabar com isso agora.

Eu passo a mão em seu cabelo ensopado e emaranhado.
- Moderação? Alô!

Ela me dá uma rápida encolhida de ombros.

- Pelo menos, sei de onde peguei a doença.

*

- Pronta para trabalhar? - pergunta minha irmã enquanto puxa a coberta do
meu corpo semi-adormecido. O ato é conhecido na nossa casa como "técnica de
acordar por congelamento". Ela descobriu isso faz tempo, quando tinha três anos, e
desde então se habituou a me torturar. Eu murmuro um palavrão muito feio
debaixo do meu travesseiro.

- Temos muito o que fazer hoje! - ela cantarola. Eu puxo as cobertas para
cima da cabeça de novo.

- Volte mais tarde. Vá aborrecer a nossa mãe.

- Se liga, queridinha! Mamãe já está longe no encontro do café-da-manhã. E
de lá ela vai direto para o encontro do almoço. Estamos sozinhas, eu e você. O dia
todo.

Eu vocifera. Pensamento rápido.

- Eu tenho de...

- Não comece a inventar.

Eu me sento na cama.

- Quais são os seus planos para nós, precisamente?

- Primeiro, vamos fazer aparecer uma tevê para o seu leilão. Depois, vamos
fazer chover na Califórnia.

Soa justo.

- Um projeto para mim e outro para você?

- Se você quer dizer um para o patético baile e outro para a melhoria da
humanidade, então sim.

Depois de uma chuveirada e de uma tigela de cereal, estou pronta para
trabalhar. Eu me sento em sua mesa, balançando as pernas.

- Pode zaptear a coisa, garota. Uma tevê das grandes saindo.

Ela me empurra de cima do seu caderno.

- Encontrei um feitiço perfeito. É chamado de feitiço da encarnação.

- Parece assustador. Como funciona?

- Precisamos de uma foto do que nós queremos criar, meia xícara de
espelho quebrado, meia xícara de amendoim amassado e duas xícaras de lixo.
- Isso tudo eu posso arranjar.

- Muito bom - ela diz. - Faça isso enquanto trabalho no feitiço da chuva.

Minha primeira parada é na sala de correspondência do prédio no saguão do
andar térreo. Lá, eu procuro por um dos milhões de folhetos e catálogos que nos
são enviados diariamente no recipiente para reciclagem. Ganhe um milhão de
dólares! Ah, claro. CDs grátis! Claro. Limpeza de tapete! Não, obrigada. Lojas de
eletrônicos na cidade! Ding, ding, ding, nós temos um ganhador! Levo o catálogo
para cima, me jogo no sofá e procuro pela tevê perfeita. Humm. Há uma espantosa
quantidade de termos que soam como uma língua estrangeira. Como plasma.
Conjunto Vídeo-TV. S-vídeo. Proporção dimensional. E muitos acrônimos que não
sei o que significam. Como LCD. HDTV Não-CRT RGB+H/V. E o que dizer de T.I.VC?
Tudo. Isso. Vira. Confusão.

- Miri, que tipo de tevê eu devo escolher? - eu grito.

- Estou ocupada tentando salvar a Califórnia!

Eu folheio e folheio e folheio várias páginas. Realmente, encontro uma tevê
de que gosto: HVTV Plasma Display Wide-screen. Parece maior que o nosso
apartamento. Possivelmente do tamanho da Times Square.

Gostei mais dessa porque a imagem na tela é uma cena de A Noviça
Rebelde e a maioria dos outros é de propaganda de futebol. Na tela, Maria
(também conhecida como Julie Andrews) está sentada na grama verde com seu
violão, cantando para as crianças von Trapp, vestidas com cortinas. Adoro essa
cena! Deve ser um bom sinal. E o azul das montanhas da Áustria e o verde da
grama estão bem vívidos; aposto que esta tevê é top-de-linha.

- Dóóó é pena de alguém - eu canto animada. - Ré, que anda para trás. Mi,
pronome que não tem - ...Rá-rá-rá! - Fá... - segure a nota, você consegue! -... que
falta que me faz... - eu corro, rindo, para o quarto da minha irmã. - Encontrei! - eu
digo, enfiando o catálogo debaixo do nariz dela. - Você gosta?

- Bom trabalho. Agora arranje os outros ingredientes.

Não tem graça.

- Como você resolve um problema como minha Miri-a? - Eu canto por todo o
caminho de volta para o sofá. Próximo! Meia xícara de espelho quebrado. Parece
complicado. Como eu vou quebrar um espelho? E isso não vai me trazer muita má
sorte? - Miiiiiiiiiiiirrrrrriiiiiii?

- Estou trabalhando. Use a cabeça!

Bem, o que é sorte, afinal de contas? Aposto que minha mãe tem um
espelho de mão em algum lugar. Dez minutos e uma grande bagunça mais tarde,
encontro um pequeno espelho debaixo da pia. Agora, onde é o melhor lugar para
quebrá-lo?

Na mesa de cozinha? Não, eu não quero ficar comendo cacos de espelho
depois. Na banheira? Não, como é que eu ia tomar banho nela mais tarde?
Hummm. É melhor fazer isso no corredor. (Embora, caso alguém saia do elevador
enquanto eu estiver quebrando o espelho, pode até me prender. Será que isso é
vandalismo?) Posiciono o restante das folhas do catálogo no chão e coloco o
espelho em cima. Estou quase dando uma sapatada quando percebo que não estou
usando sapatos. Brilhante. Voltando para dentro de novo.

Oops. Uma chave seria tão útil agora. Ring. Ring. Ring! Que anda para
trás....

Miri abre a porta, mal-humorada.

- Lamento. Preciso apenas de um sapato. E uma chave. Quer me ver
quebrar o espelho?

Ela me lança um tênis rosa e resmunga:

- Tá bem.

- Este sapato não. Me dá um da mamãe. - Ela me dá um de salto alto (outro
sapato novo? Minha mãe é inacreditável), e eu o calço. Muito bonito. Eu devia usar
essas coisas com mais frequência. É tão interessante. - Pronto? Aqui... vai! - Eu
esmago o espelho sob meu pé. Crashhhh. - Arrá! Está vendo?Tudo sob controle.
Não precisa me olhar desse jeito. - Eu me abaixo para catar os cacos grandes. Ah. -
Você pode me passar alguma coisa para colocar estes cacos?

*

Lá pelas 3, já reuni todos os ingredientes necessários.

- A Operação Tevê de Tela Grande para o Leilão, conhecida sob o código de
OTVTGL, está pronta para ser acionada. Inicialização dada. Energizada.
Sintonizada.

- Você quer parar com estes trocadilhos horríveis de tevê, por favor? - Miri
pede, enquanto joga no caldeirão a sujeira que eu recolhi do lixo da cozinha.

- Mas é engraçado. Experimente. Você está pronta para entrar no ar?

Ela atira um amendoim no meu braço.

- Por que você não ajuda?

Eu me sento de pernas cruzadas junto dela. Tigger esfrega seu rosto no meu
joelho.

- O que eu posso fazer?

- Esmague os amendoins, rasgue a foto e misture tudo com os pedaços do
espelho. Então plante a mistura na terra como se fosse uma semente. Ponha água,
pronuncie o feitiço e espere a tevê crescer. E você pode levar o Tigger para fora
para ele não atacar o nosso pé de tevê.

Uau.

- É o feitiço mais ousado que eu já ouvi. Vai crescer alguma coisa aqui?

- Eu acho que sim.

As possibilidades são infinitas. Por onde começar? Quais são as minhas
coisas favoritas? Gotas de chuva nas rosas? Eu levanto Tigger e tento carregá-lo
para fora. Ele tenta arranhar meu queixo com suas garras que precisam ser
cortadas. Bigodes no gatinho? Eu posso passar sem esse item.

- Eu posso fazer crescer um vestido novo para o baile?

- Você não pode usar o vestido que comprou para o Baile da Primavera?

Ah.

- Não é elegante o bastante.

- Por que nós não levantamos primeiro dinheiro para o baile e então nos
preocupamos com o que usar nele?

Eu deixo o Tigger lá fora, bato a porta antes que ele possa voltar, dou língua
para Miri e começo a esmagar amendoins. Vai ser um espanto. Tomara que a gente
não ferre com a coisa toda, o que tenho certeza que não vai acontecer. O feitiço
parece muito honesto. O que pode dar errado? Bem convicta, estou quase rasgando
a página ao meio, quando fico paralisada de medo. Se o feitiço criar qualquer coisa
que estará na imagem, eu devia examinar o que está atrás dela! Eu sou tão
inteligente que isso vai acabar me matando. Viro a página e dou com a figura de
um homem segurando um controle remoto. Bom palpite, Rachel! Imagine se a
gente fizesse crescer a mão de alguém! E se ela nos atacasse? E se nos
estrangulasse? E se começasse a nos fazer cócegas?

- Vou cobrir esta mão com um marcador preto para evitar que surjam partes
de um corpo decepadas aqui.

Miri ri.

- Boa sacada.

Boa sacada mesmo. O que ela faria sem mim? Encontro um marcador
permanente na cozinha, e então assim como eu consigo manchar de tinta todos os
meus dedos, consigo também cobrir a mão do cara.

- Pronto - eu digo. Rasgo a imagem, coloco os pedaço numa tigela de
plástico e acrescento os pedacinhos do espelho quebrado. Então, esmago os
amendoins com uma colher de sopa e jogo na tigela. Usando a mesma colher que
misturei a droga toda, recolho-a e jogo no caldeirão de terra.

Do espelho um reflexo

E um encanto complexo

Plantados nas profundezas da terra

Para um nascimento que não berra.

Miri borrifa algumas gotas d'água em cima e eu sinto aquele familiar arrepio
de frio.

Isso! Uma tevê de tela plana! Quando nós fizermos a multiplicação do
feitiço, vou ficar com uma para nós.

- Ei, por que você não separa a massa em duas pra gente ficar com uma na
sala?
Ela pensa um pouco na ideia, então balança a cabeça.

- E se somente aparecer a metade de uma tevê? Ou duas de vinte e cinco
polegadas em vez de uma de cinquenta? - Ela carrega a tigela para o meu quarto,
coloca-a cuidadosamente no chão debaixo da minha janela e abre as venezianas. -
Isso aqui precisa da luz do sol - explica. - E eu acho que devíamos deixar ela
crescer aqui, porque seu quarto é maior.

Isso, certo. Ela está tentando evitar uma repetição do caso das laranjas. O
quarto da Miri ainda está com aquele cheiro.

- Tudo bem - eu falo. - Uma já serve. - Por enquanto. Cutuco o caldeirão
como dedão do pé. - Quanto tempo leva para crescer?

- Duas luas. 48 horas.

- Então vamos passar para o próximo feitiço! - Eu agito meus dedos no ar. -
Chuva, chuva, siga adiante, volte em algum outro dia bem distante.

- Rachel, nós estamos tentando fazer chover na California, não acabar com
a chuva. E temos de nos concentrar. E difícil. Tem cinco vassouras.

Arregaçando as mangas, eu a sigo até o seu quarto. Eu prestes a
resmungar; "Do que a gente precisa?"

Quando Miri vira para uma página sebenta do A².

- Um copo d'água, pimenta e uma panela. Assim que a água começar a
ferver, a gente pronuncia o feitiço.

É só isso? Que coisa.

- Sem problemas. É só isso pra fazer chover? A gente matava essa de olhos
fechados.

- Só que temos de fazer o feitiço na Califórnia. E teremos de fazer uma
fogueira.

- Vou levar uns marshmallows!

Miri franze o cenho.

- Pelo menos não vamos levar nenhum forno, ou você ia queimar o estado
inteiro.

Eu subo em suas costas.

- Onde exatamente estamos indo na Califórnia? Podemos ir para a Rodeo
Drive, o paraíso das grifes ou... Espere! Vamos ao Kodak Theatre.

- Onde?

- Onde estão os Oscars! Talvez a gente consiga ver uma estrela!

- Você pode ficar quieta?

Humm. Eu me agarro à Miri enquanto ela faz o tal truque e num piscar de
olhos estamos na...

O céu está azul. O ar está quente. E eu bato com o cotovelo em uma
minivan vermelha. Estamos num estacionamento?

- Onde estamos?

- Disneylândia - Miri diz, envergonhada. - Foi único lugar que eu pude
pensar da Califórnia.

- A gente não podia ir para a Rodeo Drive, mas podia vir pra cá?

- Tem de ser alguma coisa que eu possa visualizar!

- Mas nós vamos acender uma fogueira num estacionamento lotado?

- Temos de encontrar um lugar vazio. Eu trouxe um escudo refletor que
podemos usar para ninguém nos ver.

Caminhamos um pouco sem rumo por alguns instantes, até que
encontramos uma área deserta. Miri puxa um jornal de sua bolsa, rasga-o em
pedaços e toca fogo num deles com um fósforo. Quando a chama pega, ela enche a
panela com um copo d'água e pimenta, coloca uma luva térmica e segura a panela
sobre as chamas.

A técnica exige um bocado da minha ajuda.

- Deixa que eu seguro - eu disse, peguei a panela dela e a segurei acima das
chamas. - Arme o escudo!

Ela remexe em sua bolsa, puxa-o e abre o que parece um guarda-chuva.
Enfeitiçado, eu suponho. Quatro segundos se passam. Miri levanta-se na ponta do
pé para examinar a panela.

- Já está fervendo? Eu não vejo bolhas.

- Não.

Trinta segundos se passam.

- E agora?

- Não.

Mais vinte segundos.

- E agora? - ela pergunta, danada da vida.

- Miri, se você continuar perguntando, não vai ferver.

- Não diga coisas tão absurdas. Vai ferver de qualquer maneira. E tenho de
pronunciar o feitiço ao sinal da primeira bolha.

- Pronto - eu digo, observando a água. - Acho que está a ponto de pipocar.

Ela se aproxima, abre o livro e recita o feitiço:
Céu doce e tão grande,

Vista-se de nuvens que choram.

Como um chuveiro forte e onde

Está seco suas gotas logo molham.

Um frio queima minhas bochechas. Sim!

- Já senti. Deve funcionar.

Ela examina o céu azul.

- Mas eu não vejo nenhuma nuvem.

- Provavelmente vai levar uns minutinhos.

- Mas a maioria dos feitiços de mudança de clima funciona imediatamente -
ela diz. - A gente devia ter trazido aqueles marshmallows para ter o que fazer
enquanto isso.

- Eeepa! Mas eu tenho uma ideia melhor. Vamos dar uma volta na Space
Mountain! Quando a gente estiver terminando, já deverá estar chovendo à beça.

- Bem.... - ela hesita. - Está bem. Já estamos aqui mesmo, não é?

Uau!

- Você podia nos zaptear para a gente ficar na ponta da fila?

Miri encolhe os ombros.

- Posso tentar.

Dois Space Mountains, três Mad Tea Parties e um Big Thunder Mountain
mais tarde, ainda não havia chovido então decidimos monitorar o clima de casa.

Enquanto eu estudo para uma prova de biologia, Miri escreve um ensaio
para a aula de inglês, fazendo intervalos a cada cinco minutos para checar as
notícias meteorológicas na Internet. Mas até agora - nada. O sol está
orgulhosamente brilhando sobre a Califórnia, zombando totalmente de nós.

- Eu espero que não tenha faltado nada - ela diz, nervosa. - Era um feitiço
de cinco vassouras. Talvez a chuva esteja caindo em outro lugar.

Eu abro as venezianas. Está um dia lindo.

- Não está chovendo aqui, também.

- Tenho de fazer xixi - Miri diz e desaparece para ir ao banheiro.

- Eu vou checar a tevê! - Infelizmente, ainda não tinha brotado nada
parecido com um eletrodoméstico do caldeirão de sujeira e espelho quebrado.

- Nada? - Miri pergunta quando chega.
- Nada. Agora eu é que tenho de fazer xixi.

- Eu também - Miri diz.

- Você acabou de fazer!

- Mas, não fiz tudo - A gente ficou se enfrentando um instante e logo
disparamos para o banheiro. Por sorte, corno sou mais alta e tenho pernas mais
longas, chego primeiro.

Não percebo o vapor quente até sentar-me na privada. O chuveiro parece
estar jorrando totalmente aberto. Fui eu que esqueci ele assim? Será que minha
mãe está lá dentro?

- Ei, aí dentro - eu chamo. Nenhuma resposta.

Faço xixi rapidamente, me limpo, dou descarga e abro a cortina florida do
chuveiro.

A água está ligada sem ninguém dentro do box. Estranho. Eu devo ter
deixado assim sem querer. Ah, está quente.

Eu me estico para desligar e me esforço para girar as torneiras. E me
esforço mais.

Humm. A torneira está fechada. Mas então... como a água está correndo?

- Você fez alguma coisa com o chuveiro? - eu grito.

Ela bate na porta.

- Não entre no banho agora! Você é tão malvada. Eu disse que tinha de
fazer xixi de novo e você vai tomar banho? O que você quer que eu faça, urinar na
pia?

Um jato de água quente escalda minha mão. Ai. Eu destranco a porta.

- Eu não estou tomando banho, sua tonta. A água está correndo sozinha.
Você não percebeu como aqui está quente? - Como pode alguém com tanto poder
ser tão desorientada?

- Você tem certeza? - Ela me empurra do caminho e vai se queimar na água
que sai da torneira. - Aaaai. O chuveiro está quebrado.

- Não brinca. Como um chuveiro... Minha nossa! Eu acho que o feitiço
funcionou. Entendeu chuveiro no sentido mais literal.

A mão de Miri vai direto tapar a sua boca.

- Ai, ai! Sabia que tinha uma malandragem aí. Não acredito que eu ferrei
com tudo. O que vamos fazer? Vamos acabar com toda a água quente do prédio!

- Que tal chamar o zelador? - eu sugiro.

- Para quê? Ele nunca vai poder consertar esse chuveiro.

Está juntando muito vapor no banheiro.
- Você tem alguma roupa que quer que fique enrugada?

- Muito engraçado.

- Chuva, chuva vá embora, saia logo lá pra fora.

Ela se senta na privada fechada e põe a cabeça em suas mãos.

- Eu acho que isso não vai funcionar.

- E eu achei que você tinha de fazer xixi.

- Essa coisa me assustou. - Ela olha para mim, chateada. - Talvez a gente
tenha simplesmente de deixar a água correr. Não vai chover para sempre, vai?

- Você não pode fazer um feitiço de reversão?

- Talvez, mas já disse a você que esse é de cinco vassouras. Além do mais,
não tenho todas as matérias-primas... eu acho que até conseguiria se eu tivesse.

- Vamos dar alguns minutos. Cedo ou tarde o sol surge de novo. - Parece
que o sol está brilhando aqui, agora, está tão quente. - Tenho de sair deste lugar.
Estou suando tanto que parece uma tempestade.

Fecho a porta às nossas costas.

- O que nós vamos fazer agora? Mais dever de casa?

- Eu acho que sim.

Nós abrimos nossos respectivos cadernos e nos colocamos em nossos
respectivos lugares (eu na cama de Miri, Miri em sua mesa) e estamos quase nos
compenetrando quando Miri vai de novo para o banheiro.

- Ainda está correndo água - ela diz, sentando-se na cadeira da mesa. - Ou
chovendo, sei lá.

A campainha toca lá embaixo. Miri pula.

- Está esperando alguém?

- Ninguém.

A gente se aproxima do interfone.

- Alô? - Miri diz.

- Oi! É o Lex! Estou aqui para pegar Carol.

Muito ruim, Carol é MNA (Mãe na Ausência). E o Lex não tem tempo a
perder. Afinal, ele já tem uns cem anos de idade.

- O que vamos fazer? - Miri cochicha.

- Por que você está cochichando? Ele não pode te ouvir. A audição piora com
a idade. E você não está apertando o botão do interfone, ligue para nossa mãe. Eu
falo com ele.
- Oi, Lex! - eu digo poucos segundos mais tarde, abrindo a porta.

Ele está segurando um buque de margaridas.

- Para você e Miri.

- Obrigada! - Quando pego as flores de seus braços (segundo buque em
menos de um mês! Novo recorde!), noto que ele tem mãos bonitas. Dedos
compridos, unhas certinhas. Palmas das mãos grandes. Eu achava que as palmas
das mãos envelhecessem e enrugassem, mas não. No ano passado, dei luvas de
couro para o meu pai em seu aniversário. Quando ele as colocou, ficou nadando
nelas. Elas eram, no mínimo, dois tamanhos maiores, mas em Lex? Eu aposto que
cairiam como uma luva. Ah, sim, eram luvas mesmo. Lex é mais alto do que eu me
lembrava também. Embora talvez seu chapéu de caubói estivesse lhe dando uns
dez centímetros a mais.

- Então, como tem passado, Rachel? - Ele me dá um sorriso simpático. -
Como está a escola?

- Ótima, obrigada. - Minha irmã e eu destruímos o ginásio, mas agora que
eu estou namorando o presidente do Conselho, está tudo bem. - E você?

- Bem, tenho trabalhado um bocado nas últimas semanas. O turismo de
beisebol esquenta de novo na primavera, então estou guiando muitas excursões.

Miri volta do telefone e cruza os braços no peito.

- Ela não está atendendo - Miri diz, ignorando Lex. Ele dá a ela o mesmo
sorriso simpático e toca no seu chapéu.

- Você deve ser Miri.

Ela revira os olhos.

- Suposição brilhante.

Impressionante. Minha mãe não está atendendo, então tenho de me livrar
do Lex por ela. Sei que eu nunca me livrei de um cara sozinha, então como posso
me livrar de alguém por outra pessoa? Fico pensando nas desculpas que eu já
escutei no cinema. Não é nada errado com você, é comigo. Podemos ser amigos?
Não estou em um bom momento, emocionalmente falando.

Não que a minha mãe mereça muito esforço para uma desculpa criativa.
Ora, deixa pra lá... vou ser somente honesta.

- Nós não sabemos onde nossa mãe está - eu explico. - Eu não sei o que
dizer a você. Ela pode estar a caminho de casa. Pode ficar a vontade aqui
esperando, se quiser.

Lex enruga a testa chateado.

- Ela teve de ir ao escritório esta manhã?

Sim, certo. O escritório do amor.

- Acho que sim - digo logo.
- Eu posso esperar, então. - Ele olha para Miri e depois para mim. - Se
vocês duas não se importarem.

- Não, claro. - Meu coração amolece de simpatia. Ele nos traz flores e minha
mãe nem mesmo se incomoda em aparecer? - Quer beber alguma coisa?

Ele tira os sapatos, alinha-os, pendura seu chapéu no cabideiro e me segue
em direção à sala.

- Água está ótimo.

Taí uma coisa que temos de sobra. Muita, muita, muita água. Será que ele
gostaria dela fervendo? Enquanto eu apanho um copo, eu escuto:

- Posso usar o banheiro?

- É claro - respondo, com a água correndo da pia. Tão logo as palavras saem
dos meus lábios, percebo o engano. - Espere! - eu grito. Tarde demais.

A porta está aberta e o vapor continua.

- Tem alguém aí dentro? - ele pergunta, obviamente confuso.

Eu estou quase dizendo "Miri", quando ela aparece perto de mim.

Nós estamos montando um spa? Experimentando a ashtanga yoga?

- O chuveiro disparou.

Ele espreme os olhos no vapor.

- Você quer que eu dê uma olhada?

Isso podia ser a receita para um desastre. Por outro lado...

- Por que não?

Ele entra e seu rosto, imediatamente, começa a pingar de suor. Eu espero
que ele não esteja velho demais para este tipo de atividade. Um ataque do coração
seria péssimo. Eu nem sei fazer ressuscitação de emergência. Mas quero aprender.
Também sempre quis aprender a manobra de Heimlich. Certa vez vi uma mulher
tirar um osso de galinha da garganta bloqueada de um homem. Aposto que Miri ia
gostar disso, já que está tão empenhada em salvar vidas ultimamente.

- Mir - eu começo, mas então paro. Talvez não seja a hora.

Miri está batendo na minha coxa com as costas de sua mão.

- E se ele perceber que o chuveiro está enfeitiçado? - ela murmura.

Faço um sinai para ela ir embora. Ora, até parece que ele vai fazer uma
relação dessas: chuveiro quebrado, uma destas garotas deve ser uma bruxa!

- Pelo menos, fique de olho nele, por favor - Miri sussurra e volta para o seu
quarto.

- Que esquisito - ele murmura lá de dentro do vapor. - Vou tentar
desmontar a válvula da torneira. Se não funcionar, experimento fechar o registro
no porão. Você tem uma chave inglesa?

Pisco, pisco. Ele ri.

- Onde está sua caixa de ferramentas?

Isso nós temos. Em algum lugar. Volto poucos minutos mais tarde e entrego
a caixa de ferramentas dentro daquele suadouro.

- Você sabe o que está fazendo?

- Hum-hum! Não se preocupe comigo.

- Não vá se queimar. - Não queremos ser processadas.

- A água quente acabou. Agora só tem água fria, e aí fica mais fácil.

- Que bom. - Tenho certeza de que todo mundo que está se preparando
para sair nessa noite de sábado vai adorar isso.

- Então, como vai você? Que tal contar umas histórias para me distrair,
enquanto conserto isto aqui?

- Vamos fazer um leilão para levantar dinheiro para o baile. Meu namorado é
o presidente do conselho estudantil... - Eu falo sem parar, e ele parece interessado
de verdade e continuo e continuo e ele, realmente, parece interessado, assentindo,
fazendo sugestões. Dez minutos depois, sua camisa está totalmente encharcada e o
que sobrava de seu cabelo grisalho está todo molhado.

- Acho que está resolvido - ele diz no que ele dá uma girada rápida na chave
de parafuso. E então, a água pára.

Ah. Meu. Deus. Ele é um mágico. Bem, não exatamente, já que suas
habilidades reverteram a mágica sem fazer mais mágica, mas ainda assim. Uau.

- Muito obrigada - eu digo, bastante impressionada, - Miri! Ele conseguiu!

Miri entra no banheiro nevoento.

- É imposs... - Ela pára de falar quando vê que a água não está mais
correndo. - Oh, Obrigada.

Como ele fez isso? Talvez tenha usado mágica. Talvez ele seja um bruxo
também. Ou um mago. Um feiticeiro? Um ser estranho? Não. Se fosse, não estaria
com duas manchas de suor debaixo dos braços. Não é uma gracinha? Um mortal,
ora. E simpático. Embora mamãe esteja na fase de Mãe na Ausência, mesmo assim
ele se molhou todo para nos ajudar.

Talvez encorajar mamãe a sair com outros caras não tenha sido a melhor
das ideias.

Lex olha o seu relógio.

- Foi realmente um grande prazer, garotas, mas parece que a mãe de vocês
esqueceu do nosso encontro, então acho melhor ir embora. Por favor, diga a ela
que eu estive aqui.
Ele se dirige para a porta, calça os sapatos e enfia o chapéu firmemente em
sua cabeça.

Ahhhhh. Ele é tão simpático! Muito mais simpático do que o Adam ou o
bombeiro. Eles são bonitões, mas nunca fizeram nada por nós, nem agiram de
modo a parecer, nem remotamente, interessados na gente. Porque eu me intrometi
na vida particular da minha mãe? E ele é tão hábil. Ah, se eu tivesse encorajado
minha mãe a sair apenas com o Lex, a essa altura eles estariam praticamente
noivos. E aquela lâmpada do quarto que é difícil de alcançar já estaria trocada. E
mamãe não estaria correndo por aí como uma galinha de cinco cabeças.

- Espero ver você de novo - Miri diz, a voz parecendo triste. Aparentemente,
até minha irmã eu-quero-que-mamãe-fique-infeliz-e-sozinha-e-toda-nossa ficou
encantada pelo Lex.

Ele gira a maçaneta da porta e nos dá um sorriso simpático.

- Cuidem-se, meninas.

- Obrigada - nós respondemos, engolindo lágrimas. Está bem, não
realmente, mas quase.

A porta se fechando ecoa em todo o apartamento. Eu suspiro.

- Mamãe simplesmente deu um bolo no homem mais simpático do mundo.

Miri balança a cabeça, melancólica.

- Eu sei! O que vamos fazer com ela? Você acha que ela está na crise da
meia-idade?

- Acho.

- Ela devia simplesmente fazer um zapt! para se dar um Corvette de
presente e acabar com isso.

Quando ela, finalmente, nos liga de volta, às sete e meia, estou furiosa.

- Onde você está? - eu mal consigo ouvi-la, há muito barulho do outro lado.

- Está tudo bem, querida? - ela grita.

- Você faltou ao seu encontro! - eu grito de volta.

- O quê? Não estou escutando! Eu estou no meu encontro!

- Não, você furou com o Lex!

- Eu não consigo escutar você, querida. A ligação está terrível. Vou tentar
não chegar em casa muito tarde. Eu deixei dinheiro caso vocês precisem de alguma
coisa! Façam seus deveres!

Isso. É. Absurdo. Miri e eu passamos o resto da noite andando de um lado
para o outro. E reclamando da nossa mãe. E andando para lá e para cá mais um
pouco. Demos uma parada para ver Saturday Night Live, mas retomamos a andada
durante os comerciais.
Dormimos no sofá. Quando o relógio deu duas da manhã, sou acordada pelo
barulho da chave na porta. Então, a luz aparece num zapt! Sim, num zapt! Miri
ainda está dormindo, mas pulo logo me pondo de pé, pronta para atacar.

- O que deu em você? - eu resmungo, mãos nos quadris. Sniff. Sniff. Sniff. E
mamãe cheira a cigarro. Como se tivesse tomado um banho de cigarros. - Você
está fumando de novo.

Ela fica com a cara no chão.

- Bares - murmura. - As pessoas fumam dentro deles.

Argh. Ela simplesmente mentiu olhando diretamente na minha cara. Não se
fuma nos bares da cidade!

- Mãe, você está fumando de novo. Está fazendo mágica como uma louca.
Está indo a mais encontros do que você pode controlar. Está chegando em casa
muito tarde. Deixou Lex esperando.

Ela sorri sem graça.

- Você está na crise da meia-idade?

Seu rosto endurece numa expressão incompreensível. Devagar, ela tira os
sapatos e deixa-os esparramados no chão. Depois, passa por mim e vai para a
cozinha.

- Eu me esqueci do Lex.

Eu a sigo.

- Eu sei. Foi uma grosseria.

Ela faz um sinal para eu deixá-la em paz e enche um copo d'água.

- Você nem mesmo queria que eu saísse com ele!

- Eu estava errada. Admito. Ele é muito simpático e você provavelmente
arruinou as suas chances com ele. Eu espero que você esteja contente agora.

Ela encolhe os ombros.

- Há muitos peixes no mar. Mas, francamente, Rachel, eu não gosto nada
que uma menina de 14 anos de idade fique me dizendo o que fazer.

- Bem, alguém tem de dizer. Você está agindo feito louca. - Eu giro o dedo
indicador na lateral da cabeça. - Por que você tem de ser tão radical? Ora, você
saiu de não-mágica, não-namoro e não-fumar e deu um mergulho total na mágica,
no namoro e no cigarro. Você não sabe ir devagar? Primeiro um dedinho rosado,
depois os pés, a perna...

Ela bate com o copo na mesa, espirrando água para tudo quanto é lado.
Como se eu não tivesse tido problemas hidráulicos suficientes por uma noite.

- Será que não estamos nos entendendo? Eu sou a mãe. Você é a filha. Eu
digo a você o que fazer.
Eu me sinto como se tivesse levado um soco no estômago.

- Então aja como minha mãe - eu retruco.

Daí, corro para o meu quarto, batendo a porta atrás de mim. É melhor que
ela venha me pedir desculpas. Ela sempre vem conversar comigo quando eu bato a
porta. Bater a porta = eu preciso conversar.

Cinco minutos se passam. O que ela está fazendo? Eu checo o corredor. Que
coragem a dela! Está tomando banho. Eu espero que a água ainda esteja fria.




13. Pelo menos meu nome do meio não é Lucrécia

Eu e minha mãe nos ignoramos mutuamente no domingo. Não que ela
estivesse por perto para ser ignorada. Saiu para almoçar com Nick, passou em casa
à tarde, tirou um cochilo e decidiu preparar um suflê de queijo para o jantar (por
puro remorso, eu aposto), mas então esqueceu o suflê no forno enquanto tomava
banho e o deixou queimar. Ela faz zapt e consegue um outro suflê para nós,
acompanhado de uma salada e sidra de maçã, e então sai com Tony para jantar.
Por princípio, me recuso a comer a sua comida culpada, e faço um macarrão com
queijo. Tipo saído do microondas. Acidentalmente, ponho leite demais e acaba
ficando um mingau de macarrão.

Miri passa a maior parte do dia tentando, sem conseguir, encontrar um
feitiço da chuva que funcione. Eu passo a maior parte do dia no telefone com
Tammy.

Ela:

- Bosh me convidou para o baile!

Apesar da minha simpatia pelo pobre Aaron, eu grito de alegria:

- Nós podemos ir em dupla de casais!

Tammy:

- Eu não posso ir ao baile com outra pessoa, se ainda tenho namorado! E,
aliás, não vai ter mesmo nenhum baile.

- Vai, sim - eu retruco. - Deixa que eu me preocupo com isso. E você deve
se preocupar em terminar logo com o Aaron.

Enquanto isso, verifico a tevê plantada, que ainda se parece com uma tigela
de lixo e nem um pouco com uma televisão.

- Mas já não deveria estar crescendo? - eu pergunto pela décima sexta vez.
Miri cutuca a mistureba com um lápis.

- Leva tempo.

- Mas não brotou nada. E eu sei do que estou falando. Fiquei deitada no meu
tapete observando aquela coisa nas últimas oito horas.

- Espere até amanhã.

- É melhor funcionar. Eu não tenho nenhum plano de reserva.

Ela abre a janela para deixar entrar ar fresco.

- Você tem que pensar positivamente! Se não acreditar nisso, não vai
funcionar. E como a fada dos dentes.

- Você fala como a mamãe.

- Bem, ela estava certa, não estava? Assim que eu disse que não acreditava
na fada, que eu sabia que era a mamãe, ela parou de colocar dinheiro debaixo do
meu travesseiro. E o que foi que eu ganhei com isso?

- Ficou cinco dólares mais pobre?

- Exato. Mas não se preocupe. Até amanhã, pelo menos. Aí você pode dar
um ataque. Minha mágica já deixou você na mão?

Bem, já. O telefone toca, distraindo-me.

- Oi, querida!

- Oi, papai - eu digo e me deito na minha cama. - Como vai você?

- Uma semana longa. Você sabe. Voltar ao escritório depois daquelas férias
gloriosas. - Ele boceja em meu ouvido.

- Cansado?

- Um pouco.

Nós conversamos por alguns segundos e então ele passa o telefone para
Jennifer.

- Como está você? - eu pergunto.

- Está um hospício aqui - ela responde. - Você não vai acreditar no que
minha filha está fazendo. Ela se recusa a dormir em sua própria cama.
Simplesmente se recusa. Como você acha que nós podemos engravidar se ela não
nos deixa sozinhos?

Ai! Não sei muito bem por que ela acha que eu sou uma pessoa apropriada
para se discutir sobre isso. Epa! Será que ela acha que somos amigas?
Companheiras? Ela acha que eu sou alguém que quer saber sobre seu
relacionamento conjugal com meu pai? Mas que nojento. Eu não vou suportar uma
coisa dessas. Fecho os olhos, tentando expulsar as imagens repulsivas - e isso
torna tudo pior.
- Não sei o que dizer. - Exceto: "Por favor pare de falar nisso."

- Estou tão deprimida! Não tenho tempo a perder. Já estou com trinta e seis
anos. E Priscila está agindo como uma criança.

- Ela só tem cinco anos.

- Quase seis. É aniversário dela na próxima semana lembra? Ela está muito
velha para isso! Eu estou muito velha para isso!

- Tenho certeza de que ela vai superar essa fase.

Um longo suspiro.

- Eu sei. Você está certa, Rachel. Você sabe exatamente o que eu estou
pensando.

O que está acontecendo aqui? Por que eu sou a sua nova melhor amiga? Ela
é minha madrasta. Ela devia estar fazendo o seu papel - malvada e mandona. E
minha mãe devia estar agindo como uma mãe. Por que ninguém pode se com
portar como devia?

- É que passei tanto tempo me preocupando com o casamento que agora
estou atrasada em meus outros projetos. Como encontrar uma casa para alugar no
verão em Hamptons. E meu carro tem me dado problemas...

Bip!

Obrigada, Meu Deus. Toca o sinal de outra chamada na linha.

- Um segundo - eu digo e atendo. - Alô?

- Oi, linda - disse a voz máscula e grave de Will.

Ah. Está vendo? Nenhuma confusão de papel neste setor aqui, finalmente.
Eu - namorada.

- Oi! Como foi o resto do seu fim de semana?

- Ótimo. E você? O que você fez na noite passada? - ele pergunta.

- Oh, eu não estava muito animada - eu disse. Eu não posso dizer a ele que
eu fiquei em casa não fazendo nada num sábado à noite, posso?

- Você está melhor?

Um namorado preocupado. Gracinha.

- Tudo bem. Quais são as novidades?

- A Penthouse 50 pediu um depósito. Dei a eles dois mil dólares.

Sem pânico.

- Onde você conseguiu o dinheiro? Da venda dos ingressos?

- Não, tive de usar o adiantamento da venda de ingressos para dar um
depósito ao fornecedor do bufe. Simplesmente tirei das minhas economias.

Sinto um frio no estômago.

- Você está brincando? O dinheiro que você estava economizando para a
universidade? - Será que ele não sabe a primeira regra dos negócios: nunca use
sua própria grana?

- Sem problema. Você disse que vai trazer algo valioso, certo? Pode me dar
uma dica do que vai ser?

Ele está baseando seu futuro em minhas promessas? E se eu não puder
cumprir?

- É um segredo. Até amanhã.

Epa. Eu esqueci a Jennifer!

- Will, um momentinho! Tenho de me despedir na outra chamada. - Click. -
Jennifer?

- ...sabe? E meu bronzeado já está indo embora todas as boas casas já
foram alugadas.

Eu acho que ela não percebeu que eu tinha saído da linha.

- É terrível, Jennifer. De verdade. Olha, tenho de desligar. Will e eu temos
de trabalhar para o leilão do baile. Temos de levantar quatorze mil dólares.

- Eu adoro leilões! Vocês estão vendendo coisas boas?

Gulp.

- Espero que sim.

- Posso ir?

- Claro, pais e mães estão convidados. - Como acabei de associá-la à
palavra mãe? - Posso lhe contar tudo sobre isso no próximo fim de semana?

- Claro, desculpe. Divirta-se com Will. Convide-o para ir aos Hamptons por
uma semana.

- Achei que você ainda não tinha uma casa.

- Mas vou encontrar uma. Então, você quer convidá-lo?

Meu dedo está raivosamente pairando sobre o botão

Flash.

- Não, ele vai para um acampamento neste verão.

- Ah, é? Qual acampamento?

- Wood Lake - eu respondo.
- Jura? Pode ser uma boa ideia.

- Jennifer, eu tenho de desligar. Preciso resolver uma emergência no
colégio, lembra-se? - eu digo tchau e mudo de linha. - Então onde a gente estava?
- Oito dias até o leilão e onze dias até o baile, era onde a gente estava. E eu ainda
não tenho nem tevê nem vestido.

*

Segunda de manhã e a tevê não cresceu ainda, nem mesmo uma antena. Eu
corro para o colégio com o coração pesado. No almoço, compro um pãozinho na
lanchonete e vou direito para o lounge. Will e Kat já estão lá, sentados no chão,
cortando plaquetas para o leilão.

Eu me jogo ao lado de Will e ele me beija na testa.

- Então, você vai me contar o grande segredo? O que você vai trazer? - Ele
me olha com aqueles olhos de por-favor-me-alimente de cachorro felpudo.

- Tevês de tela plana - eu falo, sem pensar. Epa! Pense positivamente, não
fale positivamente. - Estou tentando - acrescento rápido.

Os cachorros felpudos ficam acesos.

- Elas valem uns quatro mil dólares. Seria ótimo. Como você as está
conseguindo?

- Ligações familiares - disse eu, tão displicentemente quanto possível. - Mas
ainda estou resolvendo alguns detalhes.

Kat assente com a cabeça.

- Incrível! Quando você acha que pode trazê-las?

- Eu... - É uma pergunta excelente. Melhor ainda é como eu vou trazê-las?
Planejo carregá-las nas minhas costas? Ora, sem preocupações. Miri deve conhecer
um feitiço de transporte. Talvez ela os coloque em suas costas e faça o transporte.
Não.

Will ri para mim.

- A gente devia enviar e-mail com a lista das coisas que vão ser leiloadas, aí
os estudantes saberão que eles têm de trazer muito dinheiro. Ou os cartões de
créditos dos pais.

- Estou com sede - Kat diz, guardando sua tesoura. - Alguém quer um
refrigerante?

- Não, obrigado - eu e Will respondemos.

- Vejo vocês às cinco. - Kat tira a carteira da mochila e fecha a porta atrás
dela.

Imediatamente, Will envolve os braços em torno da minha cintura.

- Finalmente, estamos sozinhos.
Minha pulsação se acelera como se eu tivesse acabado de correr para a aula.
Ele me dá um daqueles beijos perfeito. Suave, meigo, quente. Como eu sou
sortuda!

Depois de alguns minutos, eu me afasto.

- Temos de voltar a trabalhar - eu digo, rindo. - Estes folhetos não vão se
fazer nem se pendurar sozinhos.

- Verdade. Mas nós precisamos de mais papel. Você pode olhar na pasta de
Kat? Ela disse que trouxe cartolina laranja.

- Está bem. - Eu salto do sofá rosa e tiro a pasta de Kat da sua mochila. -
Está aqui - eu digo, tirando a cartolina. E é quando eu vejo alguma coisa escrita em
uma tinta azul caprichada na aba interna. Primeiro o seu endereço e então:

Kat Kosravi

Kat Postansky-Kosravi

Sra. Katkerine Kosravi

Sra. Will Kosravi

Sm. Katherine Lucretia Postansky-Kosravi

Fecho a pasta com um tapa. Sem a prova concreta bem na minha cara é
mais fácil não me importar que Kat goste do Will. É possível que, sem o feitiço, Will
sentisse alguma coisa por Kat?

- Will - eu pergunto, dando a ele a cartolina laranja -, se nós não
estivéssemos juntos, quem você gostaria de convidar para o baile?

Ele deita de bruços e tira a tampa de um marcador preto.

- Provavelmente a Kat.

Oh, não.

- É mesmo? Vocês dois já ficaram?

As maçãs do rosto dele ficam vermelhas.

- Eu e Kat? Não. Das garotas, ela é minha melhor amiga.

- E você nunca pensou em convidar ela pra sair?

Ele desloca-se para o chão, parecendo constrangido.

- Eu pensei sobre isso. Mas quando você apareceu, percebi que era com
você que eu queria namorar. E ficar junto. - Ele me joga um beijo. - Não fique com
ciúmes.

Não foram ciúmes que percorreram a minha espinha. Foi culpa. Eu me sinto
mal por ela. Não somente porque seu nome do meio é Lucretia, mas porque roubei
seu namorado. Tão logo o baile termine, eu vou deixar ele livre.
*

Vou direto para o quarto, quando eu chego em casa. Mamãe está fora, é
claro. E ainda não há nenhuma tevê. Miri já está sentada, em frente ao caldeirão,
observando.

- Se não tiver nada de manhã, tentaremos alguma coisa nova.

- Hum-hum.

Passo a noite me remexendo e me virando, me virando e me remexendo.
Cada vez que eu viro em direção à tigela, não posso evitar de abrir os olhos e ver
que não tem nada lá. Não me lembro de como peguei no sono, mas a próxima
coisa que me dou conta é que a luz do sol já está atravessando as minhas
pálpebras. Eu as abro devagar. Por favor, que a tevê esteja lá. Bem grande, por
favor.

Aimeudeus. Em frente aos meus olhos está a maior tv que eu já vi.
Estende-se sobre a minha janela, da minha cama até a minha mesa. Não acredito.
O feitiço funcionou! Eu fico admirando-a totalmente impressionada. É linda.
Deslumbrante. Um artefato metálico de verdadeira beleza. Longa, retangular, preta
e lisa.

- Miri! Venha ver! - eu grito. Mas uma rápida olhada no relógio me avisa que
são somente seis horas da manhã. Epa!

Um segundo depois, ela está na minha porta, vestida com short e um top
curto - e coberta de fuligem.

- Cresceu?

- Onde você estava?

Miri boceja.

- Lá no meio do incêndio nas matas, tentando apagar o fogo. Mas não
consegui.

Ela, realmente, está começando a me preocupar.

- Você não dorme mais?

Ela revira os olhos.

- Não posso perder tempo dormindo, Rachel. Tenho coisas muito
importantes para fazer.

Ela se aproxima da tevê e põe os dedos na teia.

- Esta é ótima.

- Não é? Vamos fazer o feitiço da multiplicação logo! Vamos fazer cinco para
o leilão, mais uma para você e outra pra mim!

Ela levanta uma sobrancelha.

- Mamãe não vai ganhar nenhuma?
Hum.

- Por enquanto, não. Eu não falo com mamãe desde a nossa briga. Não
posso esperar para mostrar isso ao Conselho. Nós podemos fazer o feitiço da
multiplicação logo depois das aulas?

- Poderíamos, sim. Mas tenho de saber como controlá-lo. Se aparecerem
centenas delas, como aconteceu com as laranjas, vamos ter um sério problema de
espaço por aqui.

- Ela fica na ponta dos pés, como se estivesse medindo o tamanho dela. -
Aliás, não sei nem se duas caberiam aqui. Se não, vamos quebrar as tevês.

- Podemos fazer o feitiço na sala de estar, então. - Bem, vamos ver. Vamos
ter de resolver isso. Cha-ching! Mesmo que, se por alguma inexplicável razão o
feitiço da multiplicação não funcionar, já tenho uma tevê para doar. Uma tevê que
vale, no mínimo, quatro mil dólares! Eu sou demais! Quero testá-la imediatamente.
Encontro a tomada e me espremo entre a tevê e a minha cama para ligá-la.

- E agora... - digo com minha voz de anúncio-de-rádio - o momento da
verdade. - Ligo a tomada e me espremo de volta na minha cama, onde minha irmã
já se instalou, confortavelmente.

- Provavelmente, temos de ligá-la - a sabichona ensina. Eu tenho de
levantar de novo?

- Não tem controle remoto?

- Está aqui - ela diz e aperta Power. E nada.

- Aperte o botão de ligar na tv - eu oriento. Ela faz isso e ainda nada.

- Talvez esteja esquentando - ela diz. - Aposto que vai estar funcionando na
hora em que a gente voltar da escola.

Eu bocejo.

- Pode ser. Vou voltar para a cama.

- E eu vou para a Antártica. Você não acreditaria no que está acontecendo
com a camada de ozônio lá.

Eu suspiro.

- É melhor você vestir alguma coisa quente.

*

- Rachel, onde você vai conseguir as tevês? E quando elas vão chegar? - Will
pergunta durante o almoço. Estamos sentados no lounge do Conselho, terminando
as plaquetas para o leilão.

Eu ignoro a primeira pergunta.

- Está tudo em cima. Só tenho mais um pequeno problema para resolver. -
Que tenho certeza que nós seremos capazes de resolver.
Bosh me faz um sinal de OK.

- Muito bom, cara. Vamos fazer um novo cartaz avisando!

- Ei, peraí - eu digo, de repente com medo. - Sabe como é, para o caso de
elas não estarem funcionando.

Tammy ergue uma sobrancelha.

- É melhor funcionarem - River replica depressa. - A gente precisa de
alguma coisa cara. Senão, o leilão não vai adiantar nada.

Ó, Deus. Ele está certo. Expulso as preocupações da minha cabeça. Vão
funcionar. Têm de funcionar.

- Não se preocupe. As tevês são novas, não são? - Kat pergunta.

- Sim, novinhas em folha. - E de uma marca nova também.

- Então elas vão funcionar direito. Se não, meu tio tem uma loja de
consertos eletrônicos na Primeira Avenida. Ele consegue consertar qualquer coisa.

Disso eu duvido.

- Ei, caras? - resmunga uma voz no fundo da sala.

- O que foi? - River pergunta.

- Caras? - a voz diz de novo. Ah, é Jeffrey. - Eu estava pensando - ele
murmura. - Se estiver bem para vocês, no grande dia, eu gostaria de ser o
leiloeiro.

Will coça a cabeça.

- Você sabe fazer isso?

- Sei - ele responde.

Will olha para mim como se pedisse um conselho. Eu dou de ombros.

- Certo, então - ele diz. - Se você sabe mesmo. Eu espero que eu saiba o
que estou fazendo.

*

Corro direto para o meu quarto depois do colégio e peço:

- Vamos levar nosso bebê para dar uma volta!

- Hein? - pergunta Miri do outro lado da parede.

- Vamos ver um pouco de tevê de alta definição! - Eu jogo minha jaqueta no
chão e mergulho na minha cama Miri se junta a mim. Pego o controle e aperto o
botão Power. Vamos, vamos.

De repente, há um jato de cores e o vazio da tela se transforma numa
mistura de azuis e verdes.
Isso! Lindo! Há montanhas, colinas e gramado... e Julio Andrews cantando
com as crianças von Trapp.

Fá... que falta que me faz!

- Funciona! Funciona! - Miri se anima. - Eu sou o máximo!

Funciona, mas é Julie Andrews que é o máximo na tela da tevê. Bem, hum...

- É A Noviça Rebelde.

- Eu sei! - Miri guincha. - Eu adoro esse filme!

- Mas esta é exatamente a cena que tinha na imagem que eu cortei do
catálogo. Não é estranho? Que canal é esse?

- Três - Miri morde o polegar. - Deixa eu mudar.

Ela desliza até a tevê e aperta o botão para mudar de canal. Uma igreja
aparece na tela.

Obrigada meu deus. Eu suspiro.

- Pelo menos não é...

"Como se resolve um problema como Maria?", as freiras na tela da tevê
estão cantando.

Neste momento, Maria não é o meu problema.

- Mude o canal de novo - eu ordeno. Tenho dezesseis, quase dezessete...

Gotas de suor escorrem na minha testa.

- De novo?

Miri muda para mais dez canais e todos estão mostrando cenas de A Noviça
Rebelde. Finalmente, voltamos ao canal três, e novamente vemos o Dó-Ré-Mi.

Eu enfio a cabeça na almofada e gemo. Espere um segundo. Eu levanto as
sobrancelhas.

- Não precisamos da conexão para tevê a cabo?

Miri confirma.

- Vou arranjar um conversor.

Miri é uma superestrela da tevê a cabo. Sério. Antes de comprarmos uma
assinatura, ela já conseguia ligar em vários canais. Agora que é uma bruxa, talvez
possa nos conectar com todas as estações do universo.

Quando ela volta, ajeita o conversor e o conecta à tevê. Poucos minutos
mais tarde, ela se senta na cama.

- Vamos tentar agora. - Ela muda o canal.
A Noviça Rebelde.

A Noviça Rebelde.

A Noviça Rebelde.

- Desligue! É muito assustador - eu digo. Estou me sentindo como se
aranhas estivessem passeando nas minhas costas.

Miri aperta o botão Power. Mas não desliga.

- O que deu errado? - eu pergunto.

- Não sei. Não está funcionando - ela diz, o pânico infiltrando-se em sua voz.

E então de volta ao dó, dó, dó, dó...a. tevê berra.

Antes que eu seja a segunda pessoa deste apartamento a ter um colapso
nervoso, me espremo atrás da tevê e arranco o fio da tomada na parede. Daí,
suspiro aliviada. Problema resolvido.

Dóóóóó! - cantam Maria e as crianças.

Eu fecho os olhos, morrendo de dor de cabeça.

- E agora?

Miri balança a cabeça atordoada.

- Não tenho a menor ideia.

- Talvez você tenha de fazer o feitiço da reversão.

- Estou com medo deste feitiço. Talvez seja como tinta e precise de tempo
para secar.

É verdade. Deve apenas precisar se assentar. Como um bolo. Nós a
examinamos de novo depois do jantar, mas ainda está cantando.

- Certo, vamos ver como vai estar amanhã de manhã então. - Eu pego meu
travesseiro: - Esta noite a gente dorme no seu quarto, Miri!

Ela geme.

- Se você roubar as minhas cobertas, você e as crianças vonTrapp vão
cantar duetos a noite inteira, escutou?

- Acho que não é um dueto. São sete crianças.

- Você entendeu.

Na manhã seguinte, escancara minha porta com toda força. Infelizmente,
vejo as colinas ainda muito nítidas. Acho que ainda não é hora de fazer o feitiço da
multiplicação.

*
- Caras, estamos ficando sem espaço por aqui - Bosh diz. É depois das aulas
e estamos tentando conseguir espaço para guardar todos os donativos que
coletamos. Há CDs, livros, vales para jantar, um cacto (nenhuma pista sobre quem
trouxe isso), roupas de grifes, visitas a spa, milhagens de avião, partidas de golf,
cartões de presentes, sapatos, pratos e iPods, tudo novo. É impressionante como
as pessoas dão coisas por uma boa causa. E é impressionante como os alunos da
JFK se unem em situações assim.

- Estou tentando pensar em qual seria o melhor lugar para colocar todas
estas coisas. Talvez no armário - Bosh sugere, apontando para uma área grande de
guardados no lado esquerdo da sala. - Tammy, você quer cuidar disso comigo?

River, Will, Kat e eu rimos. Tammy fica com o rosto num tom de vermelho
intenso. Bosh tem usado todas as técnicas do manual para ficar com Tammy, mas
ela não está ajudando. Ela me escreveu pela Internet na noite passada, contando
que não tem como terminar com Aaron. Ele ainda está doente de cama. E mesmo
quando ele melhorar, ela ainda não vai se separar dele. Ela tem pesquisado muito e
leu que estresse prejudica o sistema imunológico e, se ele ficar muito nervoso,
pode ter uma recaída. E, se ele tiver uma recaída, não vai conseguir fazer as
provas e teria que repetir o ano.

TamTam: Eu não ia suportar a culpa de ter causado um coisa dessas!

Princesa Rachel: Você nunca vai terminar com ele? Você vai casar com ele ?

TamTam: Tenho de esperar até ele terminar as provas em junho.

Princesa Rachel: Mas assim você vai perder o baile! É na próxima semana.

TamTam: É só um baile. Não é o fim do mundo.

Tam é legal demais. Mas, agindo dessa maneira, está levando Bosh à
loucura. Cada vez que ela o rejeita, ele parece que a quer mais. Ele decora a parte
de fora do armário dela com fotos de sua última viagem de mergulho. Ele traz
conchas marinhas para ela. Diz para ela que é mais bonita do que um peixe
tropical.

- Rachel - diz Will, me trazendo de volta à realidade. - Qual é o tamanho das
tevês? Elas vão ser entregues aqui? Onde você acha que nós devemos colocá-las?

Numa casa maluca de um parque de diversões?

- Hum, eu ainda não sei. Vou saber disso amanhã.

Fuga. fuga. Fuga.

Eu quase arranco os cabelos no caminho para casa vindo do colégio. Com o
leilão, o estresse e minhas últimas oportunidades de ver Relissa (que é como o
pessoal está chamando Raf e Melissa ultimamente), além da minha mãe, eu estou
surpresa de não estar ainda sem cabelo.

Ah, sim, minha mãe e eu ainda não estamos nos falando. Já faz quatro dias!
Nunca ficamos com raiva uma da outra por tanto tempo. Ela ainda nem mesmo
disse coisa alguma sobre a tevê cantante. E eu sei que ela já a escutou. Como
poderia não ter escutado?

Em casa, vejo que a tevê ainda canta e, com uma sensação de naufrágio,
vou para o quarto da Miri, que está uma bagunça. Há papéis por todo o chão,
anotações e listas estão fixadas nas paredes e Tigger está se espreguiçando na sua
cama ainda desfeita. Ela está sentada no centro do desastre, descarregando o
conteúdo da mochila na bagunça.

- O que aconteceu aqui? - eu pergunto.

- Estou apenas tentando ter alguma ideia.

- O que nós vamos fazer? Vamos nos livrar da tevê? Você consegue
encontrar um outro feitiço que funcione? E acho que vou dormir no seu quarto para
sempre porque esse filme não pára de passar... - O telefone toca e eu atendo - Alô?

- Miri está, por favor? - guincha uma voz miúda. Miri tem uma nova amiga!
Finalmente!

- Está. Quem está falando, por favor?

- É Ariela, lá da escola.

- Espere um segundo. - Eu dou um sorriso e passo o telefone para Miri. -
Ariela - digo.

Miri balança a cabeça com força.

- Diga a ela que estou ocupada - ela fala, fazendo caretas.

- Por quê? - eu digo, também fazendo caretas, de volta.

Ela empurra o fone para longe.

- Quer deixar recado? - eu pergunto, perplexa.

- Quero - diz Ariela. - Queria saber se Miri quer vir pra cá neste fim de
semana. Umas amigas vêm dormir aqui em casa.

- Eu falo com ela. Ela tem o seu número?

- Bem, eu já dei a ela, mas Miri nunca me ligou.

Enquanto Ariela fala o número do seu telefone, eu olho para minha irmã.

- Por que você não liga de volta para ela? - eu pergunto depois de desligar.

- Não tenho tempo para programinhas de final de semana - diz Miri. - Você
sabe disso. Eu mal consigo fazer o dever de casa e salvar a droga do mundo. Não
tenho nem mesmo feito meu Tae Kwon Do ultimamente.

Eu bem que estava me perguntando o que tinha acontecido com o Tae Kwon
Do.

- Você está ficando maluca. E por que você está usando uma meia branca e
outra preta?

Ela olha para seus pés descombinados.

- Epa! Já disse a você, tenho muita coisa pra fazer. Agora voltando a você.
Não, você não pode dormir no meu quarto novamente. Você dorme com a boca
aberta e tem mau hálito. E eu ainda não encontrei um novo feitiço para a tevê.
Estou tentando, mas tenho de pesquisar como fazer chover e eu preciso voltar para
a Antártica para cuidar do problema da camada de ozônio. E minha cabeça dói.

- Não diga, e a minha? - Eu sento perto dela e ouço o papel sendo
amarrotado.

- Cuidado! - ela diz, aborrecida.

- Desculpe - Eu puxo o papel debaixo de mim e quando vou dar para ela,
vejo escrito em vermelho, em cima, do lado direito: D-. O que é isto?

1.8x-2=14

E, debaixo, Miri escreveu: x - 1.5

O que, é claro, está errado. É 2, Miri. A resposta é 2!

Não acredito.

- Você levou bomba na prova de matemática?

Ela pega o papel da minha mão.

- Eu não. D- não reprova ninguém.

- Miri, o que aconteceu? Você não estudou?

- Não tenho tempo para isso, tá bem? O que é mais importante, um teste de
matemática ou a camada de ozônio? - Ela abre a boca para dizer alguma coisa
mais, mas em vez disso boceja.

Eu começo a revirar seus papéis.

- Você está tendo problemas em todas as suas aulas?

- Pare. Está tudo bem. - Ela tenta deitar nos papéis para eu não conseguir
ver mais nada.

Eu agarro o que parece ser um relatório sobre a leitura de um livro.

- C-? Miri, você tem de estar brincando comigo. - Encontro um teste de
francês. Um F. - Ah, Miri, qual é? Você me prometeu que começaria a prestar
atenção nas aulas.

Ela agita as mãos sobre a cabeça.

- Estou tentando. Mas tenho coisas demais para fazer!

- Miri, uma bruxa com boa educação pode resolver mais problemas globais
do que uma bruxa que larga a escola.

- Eu não vou ser reprovada, tá bem? Estou dando o meu melhor. Mas estou
exausta! Então será que você pode evitar desperdiçar o meu tempo? Você está me
atrapalhando e eu tenho um bocado de coisas para fazer.
Ela perdeu o juízo.

Escutamos a chave da minha mãe na porta da frente. Que simpático dela,
voltar para casa.

- Garotas? - ela chama. - Vocês podem vir aqui na cozinha, por favor? Eu
gostaria de conversar com vocês.

Maravilha. E agora vai inventar o quê? Miri me segue, em silêncio, para a
cozinha, onde encontramos nossa mãe já sentada na mesa.

- Garotas - ela começa -, sei que me verem tocar minha vida adiante está
sendo amedrontador para vocês. Ver uma mãe namorando deve ser difícil para
crianças de qualquer idade.

Exatamente o que eu precisava para piorar todos os meus problemas: A Tal
Conversa de Mãe Divorciada: Eu Tenho Uma Vida. Bem, pelo menos, ela está
conversando comigo de novo.

Clic, clic. Clic, clic. Minha mãe está batendo com as unhas na mesa. Minha
mãe está batendo com suas longas unhas vermelhas na mesa. Desde quando
minha mãe tem unhas longas e vermelhas?

Eu pego sua mão para dar uma boa olhada.

- O que é isso?

- Minhas unhas - ela responde, corando.

- Não, você roía suas unhas. Feito Miri. - Eu seguro a mão esquerda da
minha irmã. - É nojento. Mas são dela. Onde estão as suas unhas?

Ela tira sua mão.

- Eu dei um jeito nelas, certo?

- Você foi num salão e botou unhas postiças ou você tez aparecer ­ puf! -
um novo par de mãos?

- Rachel, que importância tem isso?

Ela não percebe?

- Importa para mim. Você está se tornando uma maluca.

- Não estou, não - ela diz, e então, diante de meus olhos, ela faz zapt e
aparecem um cigarro e um cinzeiro. - Eu entendo que meus namoros perturbem
vocês. Mas preciso que vocês duas cresçam comigo. Eu ainda sou a mãe de vocês.
- Ela bate com sua garra na testa. - Tinha mais alguma coisa que eu tinha de
conversar com vocês. Mas não consigo me lembrar o que era. Tenho muita coisa
ocupando minha cabeça ultimamente. Era alguma coisa sobre o seu pai...

- Pelo menos ele está agindo como um pai - eu murmuro, apertando a mão
de Miri. - Mais do que você, pelo menos. Você sabe que Miri está se dando mal na
escola?

Miri tira o seu braço e faz uma cara feia para mim. Minha mãe se curva para
Miri enquanto, magicamente, acende um cigarro.

- Querida, acho que é o seu jeito de se vingar de mim por causa dos meus
encontros...

- Não tem nada a ver com seus encontros! - eu respondo. - Miri também
está enlouquecendo. Eu estou morando com duas doidas! - E com isso, fujo à toda
da cozinha e vou para o meu quarto. Não saio de lá até escutar a porta da frente
bater, duas horas depois. Deve ser minha mãe indo para outro encontro. A porta da
Miri está fechada, então eu faço um sanduíche de queijo-quente no grill (chega de
enroladinhos de legumes), faço meu dever de matemática e vou para a cama.

O que vou fazer? Minha mãe e minha irmã estão ficando malucas e não há
chance de conseguirmos dinheiro suficiente no leilão para salvar o baile. E se a
gente não conseguir, as economias e a reputação do meu namorado estão
oficialmente arruinadas. E... soluço... se o baile realmente acontecer, eu nem
sequer tenho um vestido para usar.

Eu pisco os olhos em lágrimas e tento adormecer.

Uma difícil proeza quando a minha cantiga de ninar é a ameaçadora
execução de A Pastora de Cabras Solitária de A Noviça Rebelde.




14. Licença para se emocionar

Aaron voltou. Agora que ele está bem de saúde e de volta ao colégio,
Tammy não pode mais passar o dia todo com Bosh.

- Termine logo com ele! - eu suplico a ela na aula de biologia.

- Não posso! - ela diz, com jeito de quem está muito infeliz. - Ele ainda está
muito frágil. Você já o viu? Está um bocado pálido e muito magro.

Ela está certa. Já o havia visto na sala de chamada, e ele parecia muito
abatido.

- Mas o baile vai ser daqui uma semana! E você nem mesmo gosta mais
dele!

- Eu sei, eu sei, mas não posso fazer isso. É só um baile, ora. O Bosh
entende.

De novo essa de é só um baile? Que contradição.

Quando chego do colégio, encontro Miri bem no centro do desastre, vestida
com um top curto e usando orelheiras. Ela deve ter feito uma conexão
Califórnia-Antártica. Decido esquecer a nossa briga.
- Como foi o seu dia?

Nenhuma resposta. Aparentemente, ela decidiu não esquecer.

- Olá, menina! O que está fazendo?

- Eu não estou falando com você. Você me chamou de idiota.

Quem mandou você agir como uma idiota?

- Desculpe. Mas eu quero que você faça o seu dever de casa. E que estude
para as provas.

- Ah, é? Agora você é minha mãe?

- Bem, alguém tem de ser sua mãe. - Eu me sento junto dela. - Você tem
alguma prova por estes dias da qual eu devia ser informada?

- Não.

Eu faço cócegas debaixo dos seus braços.

- Não acredito em você.

- Sai fora. Pára com isso - ela diz, rindo. - Bem, eu tenho uma prova de
matemática amanhã. Contente?

- Muito. Você estudou?

- Vou estudar, assim que terminar este global...

- Chega de salvar o mundo - eu digo bem séria. - Não nesta noite, pelo
menos. Depois do jantar, vamos trabalhar em equações e desigualdades.

Ela suspira.

- Vamos fazer o nosso próprio jantar novamente. Mamãe tem outro
encontro. Ela zapteou uma pizza, mas parece estar meio borrachuda.

- Surpresa, surpresa.

Ela se recosta para trás, rindo.

- Mas vou deixar você me ajudar. Você me deve um favorzinho, afinal de
contas.

- Por quê?

- Está escutando alguma coisa?

Eu apuro os ouvidos.

- Não. Deveria?

- Deveria. A noviça rebelde. Eu fiz o feitiço da reversão de cinco vassouras
para ficarmos livre da sua tevê. E ela sumiu.
Eu ponho meus braços ao redor do pescoço dela.

- Impressionante! Você conseguiu! Obrigada! Dormi somente cinco minutos
na noite passada.

- Nem brinca. Eu ouvi todas as suas mexidas, reviradas e suspiros - Miri diz.
- Rachel, o feitiço da reversão foi tão legal. Eu tive de comprar um cristal claro e
enterrá-lo numa tina de sal por uma hora. Então coloquei numa corrente de prata e
fiquei usando-o ao redor do pescoço enquanto dava voltas em torno da tevê. E,
finalmente, ela desapareceu. - Miri estala os dedos. - Assim!

- Obrigada, obrigada, obrigada! - Mas o pânico rasteja de volta para dentro
de mim. - O que eu vou levar para o leilão, agora? Não tenho nada. Nada. Zilch.
Zip.

Bem, a gente poderia tentar uma das tevês de futebol. Pelo menos não seria
um musica!. Só que eu ia ter de ficar escutando aqueles comentaristas de esportes
a noite toda.

- Não se preocupe. Vou encontrar um novo feitiço, para você poder fazer
uma tevê. Só preciso de algum tempo.

- Nós não temos tempo! Estamos indo para a casa do papai amanhã e o
leilão é na segunda-feira! Precisamos conseguir alguma coisa já!

- Bem, eu não preciso tanto assim estudar matemática - ela diz, parecendo
aliviada.

Eu me lembro do D- dela.

- Acho que você precisa sim. Matemática esta noite, o feitiço amanhã. -
Suspiro. O que é mais um dia? Não é nenhuma sangria desatada, é?

*

- Encontrei um feitiço de transformação - Miri cochicha no trem para Long
Island. - Basicamente, é só transformar alguma coisa em outra coisa da mesma
família.

- Hein?

- Um rádio numa tevê grande, por exemplo.

Solto um suspiro de alívio,

- Parece perfeito.

- Então o que você quer zaptear? Uma tevê novamente?

- Acho que sim. E então, se funcionar, a gente usa o feitiço da multiplicação
para fazer um punhado delas. Precisamos levantar quatorze mil dólares, lembra?

Quando saímos do trem, não encontramos o carro de meu pai.

- Onde ele está? - eu me pergunto em voz alta. E é quando eu avisto
Jennifer no banco do motorista de um Mercedes-Benz conversível novinho em folha.
Muito chique. E muito prateado. E Jennifer está tocando a buzina como uma doida,
rindo e acenando. Imagino que ela esteja se sentindo melhor agora. Engraçado o
que um carrão novinho em folha pode fazer.

- Oi, garotas - ela cantarola. - Um presente do seu pai. Gostaram?

Eu gosto.

- Vou na frente! - Miri grita. E pula para o assento ao lado de Jennifer. Eu
deslizo para o pequeno assento de trás. Cheira deliciosamente, como cem bolsas de
couro novas. Os assentos parecem macios como a pele de um bebê.

Jennifer dá ré e manobra para a estrada. E embora o vento faça um campo
de batalha em meu cabelo, barafundando ele todo e me fazendo parecer uma
cantora de uma banda da década de 1980, não me importo.

Porque eu tenho um novo plano. Quem precisa de uma tevê? Nós vamos
zaptear um carro.

*

Parabéns pra você, nessa data querida! Muitas felicidades, muitos anos de
vida! Parabéns, querida Prisciíla! Parabéns pra você!

Prissy respira bem fundo e sopra todas as sete velas (uma a mais para dar
sorte) colocadas em seu bolo de chocolate.

- Você quer saber o que eu desejei? Eu desejei não ter mais irmãs nem
irmãos. Você acha que o meu desejo vai ler atendido?

Jennifer e meu pai se contorcem nas cadeiras da sala de jantar.

- Esperamos que não - papai diz.

Tudo o que eu quero é que este jantar termine logo. Miri e eu temos muito o
que fazer esta noite. Jennifer ri na mesa.

- Você quer ganhar o seu presente de aniversário agora?

Prissy bate palmas, muito excitada.

- Quero! O que é que eu vou ganhar? Um castelo da princesa Barbie? É o
que vocês vão me dar? Por favor, por favor, por favor, por favor. Onde ele está?

- Aqui! - Jennifer diz, dando a Prissy um envelope elegante com um laço
rosa no canto.

Mas o que é aquilo, minha nossa? Uma ordem judicial proibindo-a de se
aproximar do quarto deles à noite?

Prissy sacode o envelope e então o rasga. Ela tira uma fotografia de dentro
dele.

- Hein? - ela diz, olhando a foto. - O que é isso? A foto mostra algumas
crianças remando numa canoa.

No céu está escrito Wood Lake em letras tipo bolha. Como é que é?
- Como presente de aniversário, compramos duas semanas no
acampamento! É um lugar especial para garotas e garotos. Você vai dormir num
beliche e brincar o dia todo!

Prissy parece confusa.

- Não vou visitar o papai?

Jennifer ri.

- Você vai passar algumas semanas com ele em Los Angeles neste verão.
Mas primeiro o acampamento!

- Vocês vão pra lá também?

Jennifer balança a cabeça.

- Eu não, mas suas irmãs vão! Nós compramos uma temporada para Miri e
para Rachel também! E elas vão ficar lá o verão inteiro!

- O quê? - Acampamento? Como assim? O acampamento do Raf e do Will?

Meu pai vem e beija nossas cabeças.

- Eu me lembro o quanto vocês duas sempre quiseram ir para um
acampamento de verão, então imaginei que seria um presente de aniversário
perfeito para vocês duas também.

- Mas meu aniversário só é em dezembro - Miri gagueja.

- E o meu em agosto - eu protesto.

- É um presente antecipado. Surpresa! - Alguém quer Prissy fora de casa. E
desesperadamente.

- Mas eu nunca quis ir a um acampamento. Club Med! É aonde eu queria ir.
- Por um outro lado... passeios de barco ao luar e fogueiras com o Raf? Quer dizer,
com o Will. Passeios de barco ao luar e fogueiras com o Will. Meu namorado. Raf...
e Will?

Meu pai fica momentaneamente confuso.

- Oh. Bem, você devia ter me dito antes de pagarmos tudo adiantado. E não
foi você que sugeriu a ideia para a Jennifer? Ora, juro que você vai adorar aquilo lá!
Até sua mãe achou uma ótima ideia.

Como é que é? Aposto que era isso o que ela queria conversar com a gente,
mas estava ocupada demais para se lembrar. Minhas costas endurecem. Acho que
ela quer nós duas fora de casa também.

Papai ergue sua taça de vinho.

- Vocês três terão um ótimo verão! - Ele toma um pequeno gole e começa a
cortar o bolo. - Pedaço pequeno OU grande? - ele me pergunta.

Não posso acreditar que minha mãe aprovou isso sem nem mesmo falar
com a gente. Mas quer saber? Não tenho nem mesmo tempo para me preocupar
com essa coisa agora. Meu prato já está cheio. Embora um pedaço de bolo caia
bem.

- Grande, por favor.

*

- Você já tem tudo que a gente precisa? - eu sussurro.

- Espero que sim - Miri diz. - Nós vamos acabar sendo pegas - ela
acrescenta.

- Não vamos, não! Pense positivamente.

Se alguém na rua do meu pai abrir a persiana, nós seremos vistas logo. Por
alguma razão, acho que duas garotas voando num triciclo deve chamar um bocado
de atenção mesmo que seja às três da madrugada de um domingo.

- Pronta? - Miri pergunta.

- Pronta. - Antes que eu perceba, já estamos no ar.

- Não posso acreditar que eles estão nos obrigando a ir para o Wood Lake -
Miri diz enquanto sobrevoamos o telhado do vizinho. - Como eu posso salvar o
mundo estando num acampamento?

E está dizendo isso pra mim?

- Eu não entendo como a gente vai ao banheiro. São do lado de fora das
barracas? Vamos fazer xixi nos arbustos? - A nojentice da coisa me assusta, assim
como a culpa. Eu estava planejando interromper o feitiço do amor de Will depois do
baile, mas agora não tenho escolha senão estendê-lo por todo o verão. Ia ser uma
droga ficar num acampamento com dois ex-namorados, não ia? E, seja como for,
namorar o Will tem sido divertido. Até parece que o Raf está doido para voltar
comigo.

- O que eu não posso acreditar é que papai pediu à mamãe e ela deixou -
Miri questiona.

- Provavelmente, ela quer a gente fora do caminho para poder namorar
vinte quatro horas por dia, sete dias por semana.

- Nem brinca. Tá bem, chega de conversa. Preciso me concentrar.

Nosso novo plano é ligeiramente arriscado, e olha que sou eu quem está
dizendo. Decidimos zaptear um Mercedes novo com o feitiço transformador. Assim,
não precisaríamos nos preocupar em controlar o feitiço da multiplicação. Por isso
estamos no meu triciclo (que eu tinha dado para Miri, que tinha dado para Prissy),
que descobrimos que voa tão bem quanto uma vassoura. Isso foi bom porque não
encontramos uma única vassoura na casa - Jennifer é chique demais - então,
tivemos de usar o aspirador de pó high-tech, que pesa, pelo menos, uns cinquenta
quilos.

Estamos voando em direção ao JFK. O colégio, não o aeroporto, embora já
tenhamos passado pelo aeroporto. Eu espero que eles não nos peguem em seu
radar. Ninguém aqui está querendo ser presa por invadir espaço aéreo proibido.
Nós tentamos usar o feitiço do transporte, obviamente, mas por alguma razão o
triciclo se recusou a mover-se junto conosco (talvez tenha um peso máximo?).
Como ele é parte integrante do nosso plano, tivemos de usar uma técnica de vôo
mais primária. Não é o mais confortável para mim, admito, já que estou esmagada
na frente de Miri entre o guidom e o assento. O E.T. fez isto parecer muito mais
divertido. Pelo menos, estamos todas de preto numa tentativa de camuflagem.
(Não que o triciclo amarelo-canário vá nos entregar, ou algo assim.) Quando
chegarmos no JFK, vamos usar o feitiço de abrir-a-porta para entramos. O feitiço
funciona bem. Nós o testamos na garagem antes do jantar. É feito com óleo e -
olha só! - sementes de sésamo. Também conhecido como gergelim. O feitiço
realmente manda dizer a frase abre-te sésamo. Sem brincadeira. Depois do jantar,
nós testamos o feitiço da transformação. Como? Fizemos um vestido para eu usar
no baile. Um vestido de seda, verde-esmeralda, longo, lindo. Pedimos
emprestado/roubamos uma das roupas da Barbie da Prissy e a transformamos num
perfeito vestido de baile. E a melhor parte do feitiço é que funciona imediatamente:
a roupa esticou-se para o meu tamanho e o tafetá cresceu bem diante dos nossos
olhos. O vestido caiu perfeitamente em mim. Se eu for a um outro desfile de moda
(o que ninguém vai me deixar fazer), gostaria de usá-lo.

O plano é bem capaz de funcionar. As luzes da Ponte Queensboro estão
piscando na nossa frente; a lua cheia está brilhando diante das nossas cabeças. O
vento no meu rosto é quente, a coceira no capacete é mínima (Miri carrega estas
coisinhas para onde quer que a gente vá), tenho o melhor vestido para o baile...
acho que devia estar feliz. Sei que reclamo demais, mas a verdade é que sou a
garota mais sortuda do mundo. Moro numa cidade maravilhosa, tenho pai e mãe
(mais outra mãe) que me amam e uma irmã mais nova que não somente me adora
como é uma bruxa. Vou bem na escola e tenho um namorado e uma melhor amiga
fantásticos. Vou passar o verão servindo de comida para mosquito. Mas eu lutarei.
Pelo menos, Miri vai estar comigo.

De repente, o triciclo desce a poucos metros do chão e meu estômago se
atira em minha garganta. Mas, então, nós estabilizamos.

Eu disse também que sou feliz por ser saudável?

Enquanto voamos alto sobre a cidade e acima dos prédios, eu olho lá para
baixo para os táxis e as pessoas em miniatura, que parecem peças de tabuleiro de
Banco Imobiliário. E então, antes que eu perceba, a viagem acaba e nós
aterrissamos no campo de beisebol do JFK. (É um campo em miniatura; nós
estamos em Manhattan, afinal de contas.) Não importa o quanto voar é divertido,
mas é sempre bom sentir a grama sob meus pés. Quando tiro o capacete e balanço
a cabeça, Miri já está na porta pondo sua mágica para funcionar.

Eu empurro o triciclo e a encontro na entrada do ginásio a tempo de vê-la
lançar as sementes de sésamo na maçaneta da porta e dizer:

Óleo para escorregar

Falar para pinicar,

Quem acredita não entorta

Abre-te Sésamo, a porta!

A porta se abre, obediente.

- Bom trabalho! - eu grito feliz, e entro no prédio arrastando o triciclo atrás
de mim. A entrada está muito escura. Não queremos ligar as luzes por medo de
atrair atenção. Porque eu tirei o capacete? Ia ser bom ter visão noturna agora.

- Onde a gente vai colocar essa coisa? - Miri se pergunta em voz alta.

- No auditório. Siga-me. - Enquanto eu me arrasto no corredor vazio, todos
os sons me fazem pular. Estar no colégio sozinha a noite dá calafrios.

Abro as portas do auditório e vejo fileiras e mais fileiras de assentos. Agora,
onde colocamos o carro?

- Vamos fazer a transformação no palco - eu digo, então subo os degraus e
puxo a cortina. Vai ser o grand finale! Este é, realmente, o melhor plano que eu já
inventei. No site da Mercedes, vimos que o carro da Jennifer custou sessenta mil
dólares. Assim, se o maior lance for de apenas um quarto do dinheiro, quinze mil,
eu salvo o baile praticamente sozinha (com a ajuda de Miri e da sua mágica, é
claro).

Miri sobe no palco e tira os ingredientes da mochila sementes de girassol,
uvas passas, farinha e suco de limão. Ela joga tudo num recipiente de plástico
púrpura que pedimos emprestado/roubamos lá em casa. Com os ingredientes
misturados, ela diz:

- Pronta? Eu tenho de derramá-lo no triciclo.

- Vamos lá! - Que maravilha. Ela está zapteando uma Mercedes. E alguma
pessoa sortuda vai comprar o carro e sair daqui guiando ele direto para...

- Peraí!

Ela pára, ainda na etapa da farinha.

- O quê?

- Como a pessoa vai levar o carro para fora? - Eu aponto para as quatro
paredes. - Não tem porta de garagem aqui.

Ela coloca o recipiente de volta no chão do palco que estala sem cessar.

- Epa! Eu pensei que nós fôssemos fazer isso lá fora.

- É melhor desejarmos um carro com alarme ou a Mercedes terá
desaparecido até a segunda-feira.

Poucos minutos mais tarde, arrastamos o triciclo e os ingredientes de volta
pelo corredor, saímos do prédio e colocamos o veículo na área junto ao portão do
colégio. Então, Miri começa a derramar a mistura, cantarolando:

Transforme este ser,

Com o ciclo da vida,

Para esta nova lida

De lagarta uma borboleta aparecer

(- E este foi o verso que eu acrescentei - ela diz, rindo.)
E uma Mercedes de um triciclo.

Seus lábios tremem, o ar fica frio e eu dou um passo gigante para trás, para
não ser amassada. Tchau, amiguinho triciclo! Você serviu bem a mim, a Miri e a
Prissy. Passamos tempos fantásticos juntos no Central Park. Mas, agora, você se
tornará outro ser. Ou, pelo menos, em alguma coisa que terá um preço alto no
leilão.

Nada acontece nos primeiros poucos segundos, mas então o pneu da frente
se expande, como um chiclete do qual se assopra uma bola. Quando chega ao
tamanho de um carro, de repente se parte em dois e se separa. Fazendo o chão
tremer sob nós, a estrutura metálica do triciclo começa a se expandir, tornando-se
o corpo de um carro Maravilha! O pequeno assento triangular se transforma em
cinco assentos de couro preto de pelúcia e o guidão se transforma num volante de
carro. No que a parte de dentro se completa, a parte externa se expande para uma
forma líquida e então endurece num aço brilhante e finalizado.

Trinta segundos mais tarde, um carro conversível Mercedes amarelo-canário
ali diante de nós.

- Funcionou! Funcionou, funcionou! - Eu não consigo parar de pular.

Miri pula comigo, igualmente deliciada. Uau. Um vestido de um baile é uma
coisa, mas isto é um carro. Minha irmã caçula zapteou o melhor carro do mundo,
praticamente de um grão de alpiste. A capota brilha sob o luar e eu acaricio o
espelho lateral.

- Vamos nos certificar que funciona antes de ficarmos felizes - Miri diz com
cautela. - Não quero que seja um outro fiasco.

Ela está certa. Sofremos muitos fiascos ultimamente. Mal sou capaz de
conter minha excitação. Eu vou direto para o assento do motorista.

- Eu dirijo! - Eu sempre quis dizer isso. - Mas você pode ficar no assento do
carona - acrescento.

Entro de um pulo pela janela lateral, como eles faziam nos anos 1950. Ai.
Eles deviam fazer carros menores nos anos 1950, Isso! As chaves estão sobre o
assento. A mágica é tão inteligente,

- Aonde estamos indo? - Miri pergunta, abrindo a porta do carona. - Mas,
você sabe que não sabe dirigir, certo?

Eu ponho o cinto de segurança.

- De volta para Long Island?

Ela começa a roer as unhas.

- Estou brincando! Que tal a gente dar uma rodada pelo pátio? Será que é
difícil? Milhões de idiotas fazem isso. - Agora se eu pelo menos tivesse uma ideia de
como ligar o carro.

- Ponha a chave na ignição - Miri aconselha. Óbvio. Eu me curvo para a
ignição e introduzo a chave.

Feito. Ainda não.
- Você acha que está quebrado?

Ela ri.

- Você tem de virá-la.

Certo. Eu giro a chave e o carro ruge para a vida. Maravilha! Agora vamos
ver. Acelero? Como vou saber onde é o acelerador? Eu pressiono meu pé direito. A
máquina ruge, mas nada acontece.

- Deve estar quebrado - eu digo, desanimada.

- Acho que você é uma idiota - Miri diz, ainda rindo. - Você tem de tirar do
ponto morto. Ponha o pé no outro pedal. - Faço o que ela manda. - Agora ponha o
pé de volta para o primeiro pedal. Devagar. Eu disse, devagar! A gente avança
sacolejando pouco mais de um metro à frente, até que eu pressiono o freio. Ufa.

- Eu declaro o carro funcionando! - Checamos a marcha-à-ré, o
ar-condicionado, o aquecimento, o pára-brisa, a capota conversível, os controles do
computador dos assentos e janelas e, é claro, o CD. A voz de Céline Dion se projeta
dos alto-falantes.

- Tudo perfeito! - Miri exclama. - E cheira a novo e a couro. Exatamente
como o carro de Jennifer. Que pena que ela já tenha comprado o dela, ou a gente
podia zaptear um grátis para ela.

- Oh, como você cresceu, pequeno triciclo - eu digo, como uma mamãe
orgulhosa.

Saímos do carro, levando as chaves conosco. (Vou deixar elas no lounge do
conselho de estudantes na manhã de segunda-feira.)

- Perfeito - Miri diz. - Vamos voltar para Long Island.

Eu subo nas costas dela e vamos embora.

*

- Sumiu! Sumiu! Temos de chamar a polícia!

É como sou acordada na manhã seguinte.

Miri e eu pulamos juntas da cama e corremos para a garagem de dois
carros, onde estão meu pai, Jennifer e Prissy, de pé, estatelados.

O carro do meu pai ainda está lá. Mas, na vaga do carro de Jennifer está o
meu velho triciclo. Pelo menos, acho que é o meu velho triciclo. Parece exatamente
o mesmo só que ficou... prateado?

Lágrimas estão correndo pelas bochechas de Jennifer e suas mãos estão se
agitando acima da cabeça, histericamente.

- Alguém roubou meu carro! E bem da - ela solta um gemido alto - minha
garagem!

Meus olhos se encontram com os de Miri. Encrenca à vista. Se a minha
bicicleta está aqui e o carro de Jennifer desapareceu, isso não quer dizer que no
campo de beisebol da escola está o carro de Jennifer?

- Alguém ouviu alguma coisa na noite passada? - meu pai pergunta,
coçando a careca.

- Não - Miri e eu respondemos ao mesmo tempo. Jennifer soluça,
balançando a cabeça.

- Eu ouvi! - Prissy fala. - Foi depois que eu fui para a cama de vocês e vocês
dois estavam dormindo. Havia um barulho e eu tentei acordar vocês, mas, mamãe,
você me disse que eu estava sendo uma bebezona e que eu devia ir dormir.
Quando eu vou para o acampamento?

- Vou chamar a polícia - meu pai diz.

- Pelo menos, eu ainda não tinha posto o assento de criança da Prissy -
Jennifer comenta.

- O que mais tinha no carro? - papai pergunta.

- Meu CD da Céline Dion - ela soluça. - Eu amo aquele CD.

É oficial agora. Nós roubamos o carro da nossa madrasta. E para
acrescentar um pouco de deboche ao dano, o feitiço transformou as cores dele.

Miri e eu batemos em retirada para nosso quarto enquanto nosso pai chama
a polícia.

- Eu sabia que parecia com o carro dela - Miri diz.

- Como isso foi acontecer? - eu murmuro. - Temos de nos transportar até a
escola agora e fazer a transferência. Já!

- Não podemos simplesmente desaparecer no meio do dia - Miri diz. - Você
não acha que papai vai perguntar onde nós estamos?

- Então temos de dizer a ele que temos de ir pra casa. E agora. Eu arrumo
tudo. Você diz para papai que esqueceu um trabalho da escola que tem de ser
entregue amanhã e tem de voltar para a cidade. E que eu me ofereci para ir pra
casa com você.

*

Seis horas depois, estamos tomando o trem de volta para a cidade (papai
insistiu em se certificar que a gente embarcava), paramos no apartamento para
pegar o feitiço de inversão, entramos de novo no campo de beisebol da escola
sorrateiramente e revertemos o feitiço. Na hora em que a polícia chegou na casa do
meu pai, o carro estava de volta em sua garagem, causando, com certeza, muita
confusão. O negócio é que era o carro de Jennifer - isso eles puderam verificar
pelos números de registro -, mas era ainda amarelo-canário.

- Até que eu gosto mais assim - Jennifer disse. Eu não me arrisco a
perguntar sobre o triciclo.

Neste momento, estou andando para cima e para baixo em meu quarto.
Fracassei. Tudo o que eu tinha de fazer para salvar o baile era levar alguma coisa
para o leilão, e eu não tenho nada que preste para levar. E agora nós não vamos
ganhar dinheiro suficiente na segunda-feira e Will vai perder seus depósitos e não
vai haver baile e tudo por minha culpa.

Mas não é isso o que mais está me aborrecendo. O que está arranhando o
meu cérebro é como o carro de Jennifer acabou no JFK. Será que a mágica não cria
coisas do nada? E as outras coisas que fizemos aparecer? As laranjas, por exemplo?

Vou direto para o superbagunçado quarto de Miri.

- Nós estamos roubando essas coisas? - eu pergunto. Ela continua a
escrever sem olhar para cima.

- Eu é que ferrei com tudo. Deixa pra lá.

- Nada veio do nada, você entende? Lembra quando você zapteou as vacas
para elas sumirem e irem para algum lugar onde estariam em segurança? Então,
elas terminaram no ginásio. Se todas as coisas têm de ir para algum lugar, é
apenas lógico que têm de vir de algum lugar.

Inflexivelmente, ela balança a cabeça.

- Você está errada. Pode parar de desperdiçar o meu tempo, por favor? Eu
tenho pessoas reais para ajudar. Pessoas com fome. - E com isso, ela se levanta,
me empurra do seu quarto e bate a porta na minha cara.

Eu ligo meu computador. Eu digito desaparecimento de laranjas no item
procurar. Duzentas e trinta mil entradas aparecem.

Clico na mais recente. Talvez alguém noticie a falta de algumas laranjas.

"Frutas desaparecem nas lojas Tristate". Oh, não. Foi em 24 de abril,
sábado. No mesmo dia em que nós fizemos aparecer as laranjas aqui. Que
estranho. E é noticiado que todos os caixotes de laranjas no armazém da Tristate
desapareceram inexplicavelmente. Foi a gente que provocou isso? Começo a sentir
dor no estômago.

Engraçado que as laranjas sumiram das lojas e não das plantações. Talvez
porque Miri seja uma bruxa urbana, pode ser?

E sobre as roupas que a gente distribuiu?

Eu digito desaparecimento de roupas e fico horrorizada ao ler que cem
camisas desapareceram da Bloomingdale's do Soho, em 10 de maio, sexta-feira,
uma pessoa do corpo de funcionários foi demitida, apesar de ter afirmado que não
as tinha levado.

Será que a mágica está apenas roubando as coisas?

Mas, e se eu fosse ao Circuit City, e um vendedor me dissesse que uma tevê
de cinquenta polegadas tinha desaparecido, certo dia, e então reapareceu logo
depois?

Em vez de salvar o dia, nós estamos tomando dos ricos para dar aos pobres,
é isso? Não somos Batman e Robin, mas somente Robin Hood, um alegre
bandoleiro?
15. Ir uma vez,ir duas vezes, ir quartorze mil vezes

Estou escondida no armário do conselho estudantil.

O primeiro sinal acabou de tocar e não posso ser vista no corredor porque
todos vão me perguntar onde está a tevê e eu vou ter de admitir o meu fracasso.
Admitir que não tem tevê nenhuma. Nem carro, nem nada. Eu não tenho nada para
o leilão. Will vai terminar comigo, com feitiço ou sem feitiço. Vamos levantar
apenas algumas poucas míseras centenas de dólares e Will vai perder o depósito e
vai ficar conhecido como o pior presidente do Conselho que já existiu. E eu vou
ficar conhecida como a pior namorada que já existiu. Não é de admirar que eu
nunca tive um namorado. Sou um risco para os homens.

Provavelmente ele vai ficar tão perturbado que vai precisar de um tempo
para repensar a vida e vai se afastar do colégio por um semestre inteiro. Durante
esse tempo, vai arranjar algum emprego, como por exemplo motorista de limusine.
Toda vez que passar pelo campus de Columbia, sentirá um peso em seu coração e,
então, um dia ele pegará algum cliente maluco que gritará com ele sem nenhuma
razão e, então, vai se distrair e avançar direto para cima de um poste, então vai se
desviar, mas vai rodopiar, vai cair direto da Ponte do Brooklyn e mergulhar para a
morte.

Soluço. Matei meu namorado.

Eu vim cedo, hoje, com a esperança de ser inspirada pelas doações.
Infelizmente, elas estão a milhares de dólares de distância de poderem servir de
inspiração genuína. Se pelo menos pudéssemos leiloar viagens em vassouras. Mas,
depois do que descobri no domingo, não sei muito bem se quero usar magia
novamente.

Ouço a porta se abrindo e fico imóvel. Clomp, clomp, clomp. Estou a ponto
de ser descoberta. Descoberta. A pessoa está abrindo o armário. Ele/ela deve ter
farejado o meu desespero. As luzes atingem meus olhos e eu pisco duas vezes.

- O que você está fazendo aqui? - pergunta Kat. - O que houve?

Terrível. Ela vai me denunciar ao Will, me mostrar como uma completa
fraude e ele vai terminar comigo. Sei que ela sempre agiu de maneira simpática,
mas, na certa, vai usar o meu fracasso para tirar vantagem. Antes que eu possa
evitar, irrompo em lágrimas.

- Não tenho nenhuma tevê! - eu choramingo. - Não tenho nada para vender.
O leilão vai ser um grande fracasso e tudo por minha culpa.

A testa cremosa como baunilha de Kat se enruga de preocupação.

- Não é sua culpa. Você não botou as vacas no ginásio.
Eu soluço. Ela não sabe de nada.

- Mas prometi a Will que eu teria alguma coisa para o leilão.

Ela se acomoda no armário ao meu lado.

- Vamos raciocinar. O que você tem que seja vendável?

Ela não me ouviu?

- Nada, esse é o problema.

Ela tira a caneta púrpura detrás da orelha e tamborila no armário.

- Você não é um gênio em matemática? As provas estão chegando. Por que
você não vende períodos de tempo em que pode dar dicas para os outros?

Bem...

Ora, que boa ideia. Eu podia, sim, dar umas aulinhas. E me dou conta de
outra coisa. Tem um bocado de gente inteligente no JFK. Não sou a única. Que tal
eles ajudarem outras pessoas a fazer trabalhos? Biologia? Meu coração acelera de
excitação.

- Nós podemos pedir aos melhores alunos para leiloar aulas!

- É isso - Kat diz, rindo. - Problema resolvido.

Minha mente está girando.

- E não é só isso. Tem um milhão de coisas que a gente pode leiloar. Como
por exemplo... um encontro com o sénior mais gostoso do colégio?

A caneta de Kat está batendo todo o tempo.

- Limpeza de armário? Escravo por um dia? Aulas de tênis?

Eu a puxo e dou um grande abraço nela.

- Você é um gênio!

Ela sai do armário.

- Eu vou pedir à Konch que nos deixe de folga esta manhã para a gente
preparar tudo. Comece a fazer a lista de todos os serviços.

Ela me atira a sua caneta.

- Tomara que isso funcione.

Eu já estou fazendo anotações quando o sinal toca.

*

- Não posso acreditar que ela disse não - Tammy diz, balançando a cabeça.
- Estamos tentando salvar o baile dela!
- Ela é horrível. O que você esperava? - eu pergunto.

É hora do almoço dos calouros e Tammy e eu estamos lavando as mãos no
banheiro feminino antes de retornar para o lounge. London se recusou a dar aulas
de dança para o leilão. E não foi porque ela não pode - tirou o gesso no começo da
semana passada - é só porque não está com vontade. (Quem sabe? Talvez ela não
tenha com quem ir ao baile!) Não que isso vá fazer diferença. Arranjamos
cinquenta alunos que querem oferecer seus serviços.

Estamos tão ocupadas reclamando da London que mal percebemos Jewel,
Melissa e Doree entrando em bando no banheiro.

Sabe o que mais? Não tenho mais medo delas. Na verdade...

- Garotas - digo corajosamente -, tenho um favor para pedir a vocês.

As três ficaram paralisadas pelo choque.

- O quê? - Melissa fala rispidamente, cruzando os abraço

- Eu estava imaginando se vocês três, e mais a Stephy, não desejariam
fazer parte do leilão sênior hoje e vender uma lição de dança, já que se saíram tão
bem no desfile. Que tal? A gente ia ficar muito grato.

Tammy, Doree, Jewel e Melissa estão todas me olhando como se eu devesse
ser encarcerada. Melissa balança a cabeça.

- Você ainda não notou que Stephy não tem vindo às aulas há mais ou
menos um mês?

Oh. É mesmo. Eu me debruço na pia.

- O que houve com ela?

- Ah! - Doree exclama. - Ela está com mononucleose. Tammy leva um susto
e começa a prestar atenção.

- Está?

Melissa lhe dá um sorriso diabólico.

- Hum-hum! Ela pegou do seu namorado. Eles tiveram uma pequena sessão
de amassos nas férias de primavera.

- O quê? - Tammy e eu gritamos.

- Lamento que seja eu a pessoa a estar te contando isso. - Ela ri. - Mas o
seu namorado é um pilantra.

Primeiro, Tammy fica muda. Seus lábios formam um chocado Oh.

- Você não vai começar a chorar, vai? - Melissa diz, divertindo-se horrores
com a situação.

O Oh de Tammy, lentamente, se transforma num imenso sorriso.

- Fantástico! Ele não podia ter virado mais passado!
Dou uma risada. Melissa, Jewel e Doree olham-se tipo nos achando muito
estranhas.

- E vocês três, então? - eu pergunto. Elas já serviam bem.

Melissa balança seu longo cabelo vermelho nas suas costas.

- Até parece.

Oh, bem. Perguntar não ofende. Eu dou de ombros e estou a ponto de me
dirigir para a porta quando eu ouço:

- Eu topo.

Eu me volto e percebo que foi a Jewel. Ela está me olhando direto nos olhos.

- Jura? - eu pergunto. Meu coração dá um salto. Será possível? Será que é o
jeito de Jewel de... fazer as pazes?

Doree e Melissa estão com as sobrancelhas franzidas para ela.

- Sim - ela diz, rindo cheia de expectativas para mim. - Por que não?

*

- Sessenta, temos sessenta e cinco? Sessenta e cinco do jovem com o
suéter vermelho. Temos setenta? - provoca Jeffrey.

Nunca tinha visto um leiloeiro, mas aposto que Jeffrey é o melhor de todos.
Quem diria que ele é capaz de falar?

O auditório está lotado de estudantes, professores e pais. Levantamos mais
de oito mil dólares até agora, o que é ótimo, mas não é o bastante. Já vendemos a
maioria dos itens - roupas, livros, CDs, pôsteres de cenas de cinema, jantares. Já
leiloamos quase todos os serviços dos alunos. Kat e eu estamos sentadas em
cadeiras plásticas fora do palco, contabilizando a renda. Bosh e Tammy estão -
muito suspeito! - ausentes. Estou certa de que estão se entendendo no lounge do
Conselho. Logo depois que deixamos o banheiro, Tammy encontrou Aaron na
cafeteria que foi finalmente reformada e terminou com ele.

- Último lance, setenta dólares por dez horas de aula de biologia? Vamos,
meninos e meninas, a química da coisa é uma enrolação só! Se vocês não
passarem em biologia, não conseguirão ir para uma boa universidade. Setenta do
sujeito com cavanhaque na última fileira. Eu escutei setenta e cinco? Setenta,
dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três. Vendido!

Ah. Minhas cinco horas de supervisão de matemática foram vendidas por
oitenta dólares. Não importa. As lições de dança de Jewel ficaram por duzentos.

Jeffrey ergue o próximo item sobre a cabeça.

- Duas entradas para o baile para não-seniores. O preço começa com cem
dólares para ambos. Eu ouvi cem?

Mas de onde vieram essas entradas? Will deve ter enfiado elas no leilão.

Um cara do segundo ano levanta sua plaqueta. Kat me dá uma cutucada
com os pés.

- Talvez eu deva comprá-los - ela brinca.

- Eu ouvi cento e vinte? Cento e vinte para a garota ali de trás! Eu ouvi
cento e trinta?

- Você pelo menos vai dar uma passada, não vai? - eu pergunto.

Ela balança a cabeça, dizendo não.

- Só posso entrar se um sênior me convidar.

- Isso é loucura. Você trabalhou nesse baile o ano inteiro. O baile não
aconteceria sem você.

Ela dá de ombros.

- É assim que funciona. Não fique tão chocada - ela acrecenta, me dando
um grande sorriso. - Não é o fim do mundo.

- Cento e trinta. Eu ouvi cento e quarenta?

- Compre as entradas! - eu digo. - Aí você vai.

- Eu não tenho ninguém com quem ir - ela diz. - Juro, não tem problema. Eu
vou no próximo ano. - Sua cabeça fica ereta, mas eu não posso evitar de notar que
seus olhos se arrastam para o outro lado do palco, onde Will está agora de pé,
segurando quatro casacos.

Eu sinto um peso no estômago. Will teria convidado Kat se não fosse o
feitiço do amor de Miri. Como com as laranjas, as roupas e o carro, eu roubei a
afeição dele de outra pessoa.

- Vendido por trezentos dólares para a ruiva bonita! Minha cabeça estala
com a palavra ruiva. Eu olho por trás da cortina para ver quem estaria
comemorando a compra. Melissa. Dou um gemido. Melissa está indo para baile?
Isso quer dizer que o Raf vai estar no baile também.

- Talvez vocês quatro possam ir juntos - Kat sugere.

Dou um gemido duplo.

- O próximo item, doado pelo generoso Sr. Kosravis da Kosa Coats & Goods,
são os clássicos casacos de couro de alta qualidade para homens, na cor castanho,
tamanhos pequeno, médio, grande e extragrande. No varejo valem seiscentos e
trinta e cinco dólares cada. Vamos começar pelo tamanho pequeno. Eu ouvi cem
dólares?

Meu coração cambaleia. Agora, vou achar que estou vendo o Raf em tudo
quanto é lugar. Definitivamente um problema em potencial.

Mas não o único. Os casacos do Will são os nossos últimos itens. Isso quer
dizer que não temos mais nada para vender no leilão. E levantamos apenas dez mi!
dólares. Ainda precisamos de mais quatro mil! Mesmo se os casacos alcançarem
seus valores reais, teremos mais dois mil, duzentos e quarenta dólares!
Eu observo com uma sensação de enterro enquanto o casaco de tamanho
pequeno sai por quatrocentos e cinquenta dólares, o médio e o grande por
seiscentos dólares cada e o extragrande vai para o Sr. Earls por somente trezentos
e cinquenta dólares. Conseguimos mais dois mil dólares.

Mas não o bastante. Depois de tudo isso, vamos ter de cancelar o baile.

Estou quase chorando quando Will caminha até River com uma mala de
viagem. Mais casacos?

- E como nosso último item da noite, também da Kosa Coats & Goods,
temos uma mala nova em folha de couro, marca Izzy Simpson, edição limitada,
com valor no varejo de mil e quinhentos dólares.

Maravilha! Mais um item! E um item ótimo, isso eu sei com certeza. Izzy
Simpson é a minha designer preferida. Não que eu, algum dia, fosse desperdiçar
tanto dinheiro numa mala. Mas, se alguém comprá-la, estamos quase salvos.

- Vamos começar com o lance de quinhentos dólares! Temos algum
arrematante?

A esta altura, eu e Kat afastamos as cortinas para o lado e estamos,
nervosamente, vendo se há candidatos a compradores. Até eu estou roendo as
unhas. Vamos, vamos.

Uma plaqueta levantada, é a da Srta. Hayward.

- Quinhentos dólares para a professora de matemática na fileira da frente.
Estou vendo setecentos dólares? Vamos, pessoal, é por uma boa causa!

Uau, valeu, Srta. H! Quem diria que ela gosta de grifes? Ninguém seria
capaz de adivinhar isso, por suas tediosas calças e suéteres cinza.

Amy Koppela levanta a plaqueta. Tão simpática, ela, em comparecer.

Então, a Srta. Hayward levanta a dela novamente.

London Zeal ergue sua plaqueta. Uau!

- Mil e trezentos dólares - Jeffrey diz. - Eu vi mil e quinhentos?

A sala fica silenciosa. For favor, não me venha dizer que só vão faltar
setecentos dólares!

Vamos, Amy, você é o pior membro que o Conselho já teve! Não pode pelo
menos comprar uma mala?

E foi quando uma plaqueta levantou-se no fundo da sala.

- Dois mil dólares - a pessoa disse numa voz familiar. Quem é?

Todos nós dos bastidores ficamos em choque. É possível?

- Dois mil é o lance. Dou-lhe duas. Vendido para a moça loura no fundo!

Eu fico na ponta do pé e vejo Jennifer acenando para mim. Ó meu Deus!
Tão logo a multidão começa a se dispersar, eu corro direto para a minha
madrasta.

- Não acredito que você comprou isso.

- Por que não? É linda e foi um negócio fantástico. É uma edição limitada. Eu
já estava na lista de espera da Henri Bendel. Mas, como eu comprei aqui, posso
abater no imposto de renda.

- Mas como você sabia que a gente precisava de dois mil dólares?

Ela me mostra um papel coberto de números.

- Fiquei acompanhando. Você disse que precisava de levantar quatorze mil,
certo? Então era o que faltava.

- Uau - é tudo o que eu posso dizer.

- Eu era contadora antes de Prissy nascer, você sabe.

Eu, de fato, não sabia.

Ela paga a compra e dá tchau.

- Conseguimos! - Will diz, me agarrando e me fazendo rodar. - Levantamos
quatorze mil dólares! O baile vai ser maravilhoso. E tudo graças a você, Rachel.
Este leilão foi ideia sua.

Ele me põe no chão e me olha nos olhos.

- Eu amo você! Juro! - ele diz.

E você sabe o que eu queria? Neste momento, o que eu desejaria mais do
que qualquer coisa era nunca ter usado o feitiço do amor. Eu queria que as
palavras dele fossem verdadeiras.

*

Todo mundo só conversa nos próximos dois dias sobre o baile, baile, baile.
Está em alta! Depois da auta, na terça, Tammy e eu fomos ao shopping para
comprar um vestido para ela e sapatos para mim. Quando cheguei em casa, passei
uma hora andando pelo apartamento, tentando aprender a me equilibrar nos meus
novos saltos de 5 cm. Pelo menos nem minha mãe, nem minha irmã estão aqui
para caçoar de mim: Miri está trancada em seu quarto fazendo Deus sabe o quê (é
bom que ela não esqueça o seu dever de casa), e minha mãe está fora, como de
costume. Não que nós já estejamos conversando. Quando ela chega em casa, às
nove, parecendo exausta e fora de si, faz desaparecer seus sapatos e vai direto
para a cama. Vou para a cama uma hora depois, contando as horas (quarenta e
quatro) até o baile.

Na hora em que cheguei em casa na quarta-feira, mal podia conter a minha
excitação. Calcei direto os meus novos sapatos de salto alto para continuar
praticando com eles. Quando eu ouço a televisão da minha mãe, meu bom humor
me convence que já é tempo de fazer as pazes.

Vou para o quarto dela. A porta está entreaberta e eu, devagar, empurro-a
para abri-la de vez. Eu a encontro em sua cama, cercada de uma grande bagunça.
Roupas e caixas de papelão de comida estão empilhadas nos lençóis e o quarto
fede como um cinzeiro.

- Você está doente? - eu pergunto.

Ela balança a cabeça, mas não se move. Eu me aproximo e vejo que a sua
cama não é a única coisa que está desarrumada. Seu cabelo está cheio de nós, sua
pele parece pastosa e suas unhas estão roídas até o sabugo. Imediatamente, subo
na cama, para junto dela, pondo para o lado um suéter de caxemira amassado.

- Qual é o problema?

- Eu estou bem - ela diz, e faz num zapt! para a luz acender. - São os
homens. Tive uma porção de encontros e sei que todos gostam de mim, mas eu no
fundo não gosto deles. Você quer um pedaço de cheesecake? - ela pergunta e
então o faz aparecer. - E torta? - e então aparece uma também. - Eu quero um
cappuccino. - O cappuccino aparece numa bandeja em sua cama. - Não importa.
Acho que quero uma xícara de chá. - O cappuccino é substituído. - Ou talvez...

- Pare. Pare já! - eu digo. - Você está se sentindo bem? Ela encolhe os
ombros.

- Para falar a verdade, estou um pouco deprimida.

Não brinca!

- Por que você não se arruma um pouco?

Mamãe assente com um movimento da cabeça e faz um gesto rápido com a
mão.

- Não! - eu digo, agarrando com força o seu pulso. - Tome um banho de
verdade.

Ela pestaneja.

- Ah. Mas é mais fácil desta forma.

- Eu sei que é mais fácil. Mas um banho ia fazer bem a você.

Ela pensa a respeito e decide aceitar a sugestão. Enquanto minha mãe toma
o seu banho, começo a limpar o seu quarto. Um suéter aqui, um casaco ali...O que
é toda esta droga? Por que ela fez tudo isso aparecer? Por que era fácil? Talvez por
isso ela esteja tão deprimida. Quando a gente consegue as coisas tão facilmente,
não significa nada.

Como um vazio eu-amo-você, eu penso, triste.

Depois que termino a limpeza, procuro Miri, que também parece exausta.
Ela está sentada no chão, cercada por três pastas com as etiquetas: Salvar as
baleias, Incêndio na mata e uma nova, O Círculo do Mal.

Outro caso de problemas mentais. Mas, tenho de tratar um membro
desequilibrado da família por vez.

- Mamãe está em crise - eu digo.
Primeiro, ela parece confusa e me bate a preocupação de que ela pergunte
"quem é mamãe?", mas então as nuvens somem e ela diz:

- O que há com ela?

Será que estas pessoas moram na mesma casa? Eu estou começando a me
questionar se alguém vê alguma coisa além de mim.

- É só vir comigo, tá? - eu digo.

E meia hora mais tarde, quando escutamos a água do banho descendo pelo
ralo, Miri e eu estamos esperando minha mãe na cama.

- O que está acontecendo? - minha mãe pergunta.

- E uma intervenção - eu respondo. - Mãe, você não devia usar mágica
nenhuma, se não consegue fazer isso com moderação.

- Mas eu... - ela começa e então pára. Então se afunda na cama. - Não
acredito que isto esteja acontecendo. De novo.

Hum?

- Como é que é?

- Foi por isso que parei de fazer mágica. E me tornei uma bruxa
não-praticante. Quando eu era garota, sua tia, avó e eu usávamos mágica para
tudo. Roupas, provas, escola, garotos, amigos. Mas eu nunca fui feliz. Nada tinha
importância. E não era apenas eu. Minha mãe e irmã também nunca foram felizes
de verdade. Resolvi, então, parar de usar magia. Parar e pronto. Na faculdade,
estudei à beça e consegui fazer meus exames por conta própria, comprei minhas
próprias roupas e encontrei meu namorado. Seu pai. E, isso sim, me fez feliz.

- Não por muito tempo - Miri diz. - Ele deixou você. Não funcionou.

- Se eu não tivesse casado com seu pai, não teria tido vocês duas. Não
trocaria minha situação por nada neste mundo. Não estou dizendo que tudo foi
perfeito, mas aprendi a viver por mim mesma.

- Já entendi - eu falo. - Continue.

Minha mãe solta um profundo suspiro.

- Quando sua avó viu como eu estava em paz, decidiu fazer o mesmo. Nós
duas percebemos que nossos poderes eram mais uma maldição do que uma
bênção.

Juramos que não usaríamos mágica de novo. É claro, quando Sasha
percebeu o que estávamos fazendo... que eu deixei acontecer... que eu não usei
mágica mesmo quando...

- Ela se engasga e as lágrimas escorrem por suas bochechas.

Eu me inclino para ela. Finalmente, minha mãe vai nos contar por que não
fala com tia Sasha.

- Então o que aconteceu?
Ela balança a cabeça.

Não, não vai.

- Eu devia ter imaginado que isso ia acontecer de novo - minha mãe disse
finalmente. - Que não ia conseguir só ficar na provinha, que ia afundar toda de
novo. Não está na minha natureza. Eu não posso viver assim. Tenho de me afastar
da magia. - Ela inclina a cabeça devagar. - É isso, sou uma viciada, não posso
começar a usar.

- Você tem certeza que precisa parar totalmente? - Miri pergunta.

- Tenho - ela diz. - Estão vendo? Eu não pretendia ser tão radical desta vez.
Mas eu sou uma bruxa tudo-ou-nada. Lamento, garotas.

Eu abraço minha mãe com força.

- Prometo apoiar você, seja o que for que você fizer. Nós duas. Certo, Miri?

Mas minha irmã já está perdida em seus próprios pensamentos. Eu a cutuco
nas costas e ela, rapidamente, volta ao mundo e confirma com a cabeça.

- O quê? Ah, sim, claro que estou do seu lado. Mas não tenho de desistir
também, tenho? Tenho muita coisa de que preciso cuidar. Coisas importantes.

- Cada um tem de fazer o que precisa fazer - minha mãe diz. - A decisão é
sua.

Miri parece aliviada.

- Bom. É que eu ainda estou trabalhando no feitiço da chuva para a
Califórnia. E, Rachel, eu acabei de descobrir que o circo está na cidade e eu tenho,
de verdade, de cuidar disto primeiro. Você acha...

Como ela é insensível.

- Miri, eu acho que mamãe tem o bastante com o que se preocupar e não
precisa se envolver no seu próximo projeto - eu falo. Ora! Você fuma um cigarro
em frente a uma pessoa que está precisando parar de fumar? Dou em minha irmã a
minha melhor levantada de sobrancelha tipo pare-de-ser-uma-idiota e digo - Por
que você não leva mamãe para a cama e arruma o jantar para ela?

- Mas eu estou realmente...

Eu dirijo a ela o meu olhar tipo não-brinca-comigo.

- Ah, tá bem.

Minha mãe toca no meu rosto.

- Quando você se tornou tão madura?

Madura? Eu?

- Boa pergunta.

Depois que nós a colocamos na cama, fazemos jantar e arrumamos tudo,
sigo Miri até o seu quarto e fechamos a porta.

- Tudo bem, que história é essa sobre circo? Você está planejando se tornar
uma acrobata ou alguma coisa assim?

Bem, até que é um trabalho legal. Eu sempre quis experimentar um trapézio
de verdade. Quando eu era mais nova, tentei algo na vara da cortina, mas tenho de
admitir que não terminou bem para mim, nem para Miri (ela era a apanhadora),
nem para a sala de estar. Ela joga um folheto para mim.

- O Circo da Família Faher está em Nova York! Eu leio o papel amarelo
xerocado.

- E daí? Você quer ir lá?

Ela agarra o folheto de volta, enrola-o e bate com ele em minha cabeça.

- Não, eu não quero ir. Você não sabe como os circos são cruéis?
Acorrentam os animais no chão! Trancam eles em gaiolas! Obrigam elefantes, leões
e macacos a fazerem truques totalmente antinaturais!

- Eu gosto de circo - digo.

Nossos pais nos levavam ao circo quando a gente era criança. Humm, agora
que estou pensando sobre isso, me lembro que a Miri passava a maior parte do
tempo chorando, enquanto eu passava a maior parte do tempo comendo
algodão-doce. Hum.

- Temos de salvá-los! É nossa responsabilidade! Circos com animais já são
ilegais na maioria dos países. Suécia, Áustria, Costa Rica, índia...

- Vamos nos sentar um pouco e conversar sobre isso. - Eu me sentei
confortavelmente em sua cama.

- Não quero me sentar! - ela grita, parecendo um bocado histérica. - Nós
temos de ir lá. Agora.

- Agora? Como? Esta noite? - Meus planos para esta noite têm tudo a ver
com muito sono. - Olha, essas últimas semanas têm sido muito estressantes. O
baile é amanhã e agora eu gostaria de relaxar. Ela estreita seus olhos.

- Os elefantes não conseguem relaxar. Eles ficam muito ocupados tendo
ganchos de metal presos nas patas.

Golpe baixo.

- É uma imagem e tanto.

- Você não pode fingir que essas coisas não acontecem. - Ela desaparece do
quarto e retorna com as baterias de lítio. - Eu já vou. Você vem comigo ou não?

Ela está descontrolada.

- Vamos aproveitar a noite para pensar melhor sobre o assunto. Daí,
fazemos um plano. Por que não fazemos uma passeata? Ou um protesto? Não
temos de fazer isso esta noite. Eu fiz muita pesquisa na Internet e as
consequências de nossos feitiços têm sido....
- Eu disse que já estou indo. Pelo jeito, você não vai comigo. - Ela junta os
punhos, cerra bem os olhos e diz: - Me leva para o lugar que está na minha mente.

Mas que droga. Eu pulo nas suas costas.

- O poder das minhas mãos cerradas devemos conjurar. Eu fecho os olhos
me preparando para a luz forte.

- Não funcionou! - Miri exclama, zangada.

Eu abro os olhos. Na realidade, ainda estamos no quarto dela. Eu deslizo de
trás dela.

- O que aconteceu?

Ela coloca os punhos em seus quadris:

- Você engordou?

- Não! - Que irritação. - Talvez as baterias tenham acabado. Você tem
sobressalentes?

Ela faz beicinho.

- Nãooooooo. Acho que vamos ter de voar. Vou botar a camuflagem! - ela
diz, despindo-se. - E levar o escudo refletivo só para garantir.

- Também podemos esperar um segundo e conversar sobre essa coisa toda
como pessoas racionais, ou não?

- Não tem nada para conversar. Tenho de ajudar, é minha responsabilidade.

- Nem tudo o que acontece no mundo é sua responsabilidade!

- Você não entende - ela diz enquanto veste minha calça de jogging preta. -
Você não é uma bruxa. Ai, essa doeu.

- Tem razão, eu não sou. - Pode ser que ela não esteja tão errada afinal de
contas. Eu não sei como ela se sente. Não sofro a pressão de sentir a capacidade
de fazer tanta coisa boa. De sentir que a saúde e a felicidade do mundo todo estão
nas minhas mãos. Não conheço o medo que vem com a mágica. Eu não sei de
nada.

Ela pega nossa vassoura, coloca um pulôver e então prende o capacete.

- Você vem comigo? - ela pergunta.

A única coisa que eu sei é que é meu dever ajudar minha irmã.

- Vou - eu digo e saio para o meu quarto para me trocar. - Tenho escolha? -
Eu escrevo um bilhete para a nossa mãe.

Miri vem para o meu quarto, a vassoura a reboque. Ela escancara a janela e
entra uma brisa de ar fresco.

- Não podemos perder tempo - ela diz, montando na vassoura. - Vamos lá!
Prendo o capacete, subo atrás dela, seguro o escudo de proteção e me
abaixo enquanto a vassoura salta para a janela aberta.

Aqui vai o supernada.




16. Devia ter tomado um táxi

- Qual é exatamente o seu plano? - eu pergunto ao som do vento,

- Hein?

- Plano? Qual? É? O seu? - eu grito diretamente em seu ouvido.

- Não consigo escutar você! - ela responde, obviamenteme ignorando.
Engraçado, eu posso ouvir a ela.

Estamos voando sobre os edifícios do Chelsea, meus saltos de cinco
centímetros abaixo de mim. Infelizmente, na minha pressa, me esqueci de calçar
alguma coisa mais apropriada.

Miri faz alguns círculos sobre um grande centro de convenções enquanto ela
pensa onde vai aterrissar. Quando ela vê uma entrada lateral que parece vazia,
mergulha no pavimento e rapidamente desce a vassoura para o solo. Nós descemos
sobre o cimento. Gostaria que ela aprendesse a aterrissar melhor nesta coisa; um
dia, vou quebrar um braço, com certeza.

É óbvio que este é o pior plano que ela já inventou. Estamos numa parte um
pouco deserta da cidade, no West Side. Não custa nada para sermos atacadas.
Enquanto recupero meu equilíbrio, Miri já está na porta lateral do centro de
convenções, recitando seu feitiço de abre-te sésamo. Entrego a vassoura para ela,
que a apoia contra o muro de tijolos.

A porta se abre e Miri entra correndo. Fico relutante em segui-la.

- Vai ter gente treinando aí dentro - eu cochicho. - O que você vai fazer?
Como exatamente você vai salvar esses animais? - tenho medo de me perder dela,
então vou togo atrás.

- Não feche a porta - Miri me diz. - Para o caso de termos de fazer uma
saída rápida - ela explica.

Palavras não exatamente encorajadoras.

Ótimo. Meu coração se acelera quando entro no prédio às escuras. Pelo
menos, estamos com nossos capacetes de visão noturna. Talvez esta noite não seja
o melhor momento para invadir o circo.
- ROWRRRRRRRRRRRRRRR! - O rugido de um animal selvagem ecoa em
torno. Estou certa de que era um leão. Ou um tigre. Muito possivelmente um urso.
Aimeu.

Ficamos paralisadas.

- Miri. Isto. Não. É. Seguro. - eu sibilo com o queixo cerrado.

- Não se preocupe. Vai dar tudo certo.

E é quando eu a vejo.

Uma leoa enorme lambendo sua imensa pata.

E ela nos vê.

Dou um pulo de uns seis metros para trás antes de perceber que ela está
numa jaula. Uma jaula trancada. Há duas leoas nela, e ambas são bege, sem juba
e estão deitadas no canto. Na verdade, são meio gracinhas, as duas. Uma delas
está apoiando sua pata sobre a pata da outra. É um tipo de carinho. Eu me
pergunto se são irmãs e...

- ROOOOOOOOOOAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA-AAAAAR! - A rabugenta irmã
mais jovem, obviamente. Eu pulo uns três metros para trás.

Será que a tranca da jaula é segura?

- Pobres leoazinhas - Miri murmura, avançando na ponta dos pés em direção
aos animais. Leoazinhas? Grandes desse jeito? - Olha só como estão sofrendo de
claustrofobia nessa jaula minúscula.

Eu agarro seu ombro para que ela não se distancie. Prefiro minha irmã
inteira e aquelas leoas parecem famintas. Bem, parecem sonolentas. Mas talvez
seja só um truque.

- Devíamos começar por aqui - ela diz, remexendo dentro de sua sacola.

Eu começo a ficar em pânico.

- Começar o quê?

- A libertá-las, o que mais?

Chega. Ela ficou doida. Eu estou ficando doida. Eu a sacudo pelos ombros.

- Você está louca? O que você vai fazer? Abrir as jaulas e soltar as duas
irmãs leoas em Nova York? Vão nos devorar como aperitivos e então mastigam
toda Manhattan como prato principal!

Sabe de uma coisa? Aqui cheira mal. Muito parecido com o JFK depois da
invasão das vacas.

Ela se agita para tirar a minha mão de seu ombro.

- Você acha que eu sou idiota? Manhattan não é lugar para elas. Estou
mandando as duas para casa. Onde elas podem correr livremente. Agora, me larga!
Eu recuo alguns passos e dou uma boa olhada para minha raivosa irmã de
cabelo desgrenhado e rosto vermelho. Ela definitivamente está fora de si. Eu acho
que minha família toda precisa de umas férias.

Ela tira uma caixinha de plástico da bolsa, abre-a, então põe o livro de
feitiço na sua frente e recita:

Rédeas todas fora,

Suas correntes largue agora,

Amanhã onde você nasceu vai estar

E livre para sempre será

Miri atira a mistura nelas e eu sinto o familiar arrepio de frio, então
pergunto:

- Você não pode simplesmente fazer que elas estalem os calcanhares juntos
três vezes?

As duas leoas começam a desaparecer. Tornam-se uma imagem cada vez
mais transparente, então somem.

- Ótimo - Miri exclama.

Eu só espero que elas não reapareçam atrás de mim. Cuidadosamente, viro
a cabeça. Nada. Solto um longo suspiro.

- Para onde você acha que elas foram?

- Hum... África. Vamos ver quem são os próximos - Miri cochicha. Mas ela
breca quando avista um treinador no fundo do salão rondando por perto de uma
jaula. - Espere ele ir embora - ela cochicha. Nós ficamos paradas e eu começo a
entrar em pânico. E se a gente for pega? Como vamos explicar o desaparecimento
dos animais? Seríamos presas por sequestro? Mesmo que eles não encontrem a
prova?

Quando o treinador vem na nossa direção, nos abaixamos atrás de uma
coluna.

- Não se mexa - Miri murmura.

Cinco minutos mais tarde, o treinador desaparece, entrando numa sala ao
fundo fora de vista e nós vamos para a próxima jaula. Camelos, eu adoro camelos.
Não é ótima essa história de eles não precisarem de água? E que gracinha são as
corcundas! Não que eu queira uma corcunda como aquela ou algo parecido. Volto
minha atenção para Miri, que agora recita de novo o feitiço.

E eles desaparecem!

Depois foram os tigres, elefantes, zebras, cavalos, jacarés e lhamas, todos
se foram para sempre. Finalmente, estamos no que eu acho que é a última jaula.

Tem duas cabras nela. Uma mamãe cabra e seu filhote.

Mais uma vez, Miri recita o feitiço, joga a mistura, blablablá, o arrepio de
frio, o desaparecimento. Bem, a cabra grande desaparece, mas o filhotinho não sai
dali.

Miri se aproxima da gaiola.

- Qual foi o problema, cabritinho?

- Tente de novo - eu digo para ela, já irritada. Agora, estou sentada no
chão, cansada demais para me importar com o que esteve naquele chão antes de
mim.

Miri tenta novamente.

- Rédeas fora - blablablá! O bode ainda está lá.

- Alguma coisa não está funcionando - Miri diz. - Vou checar o que é. - Ela
procura por uma fechadura, encontra, recita o feitiço do abre-te sésamo e abre a
jaula. - Não é bonitinho? Alô, coisinha linda. Por que você não quer ir pra casa? -
Carinhosamente, ela afaga na sua cabeça.

Eu me aproximo da porta. Ele é uma gracinha. Pequeno, também. É todo
branco, com um pequeno nariz cinzento malhado e duas pequenas orelhas
triangulares que parecem moles apontando para o teto alto. Eu aposto que ele deve
ser ótimo para se dar um mooshie. Parece um ursinho de brinquedo. Um bode de
pelúcia. Billy, o bode de pelúcia. Ele está tão encolhidinho, provavelmente tem
somente poucas semanas de vida.

- Talvez ele tenha nascido aqui - eu comento. - Foi por isto que não
desapareceu.

Billy olha para nós e arregala seus olhos umedecidos.

- Oi - Miri e eu murmuramos.

E é quando acontece.

Billy atira-se à frente. Escapa dos braços de Miri, direto por entre minhas
pernas abertas, e para fora da jaula, correndo numa velocidade que eu nunca
pensei que fosse possível para um cabrito. Um bebê leão talvez. Mas um cabrito?
Ele é mais rápido do que uma bala. Enquanto eu e Miri ficamos vendo a cena sem
acreditar, Billy, o Super-cabrito, corre direto para a porta. A porta aberta.

- Pegue ele! - Miri grita, e lá vamos nós atrás do bicho. Bem, eu estou rindo
um pouquinho. Não posso evitar. Mas corro atrás do cabrito assim mesmo, direto
através do centro de convenções, até me ver do lado de fora, me perguntando para
onde ele foi.

- Billy desapareceu - digo para Miri.

- Quem é Billy? - ela pergunta, ofegando. - É melhor a gente voar. Assim vai
ser mais fácil para....

A vassoura não está mais onde ela deixou.

- O que...?

- O que você esperava que acontecesse numa rua isolada dessas? - eu grito.
Alguém vai ter uma surpresa e tanto quando tentar varrer o chão de casa. - Olha
ali o Billy! - eu digo, apontando para a pequena criatura, no momento lambendo
sua pata.

Nós disparamos atrás dele. E ele corre. E nós atrás. Caçamos Billy por toda
a extensão da rua Trinta e Nove, nos encolhendo de medo cada vez que
atravessávamos uma avenida, rezando para que ele não terminasse como queijo de
cabra. Continuamos atrás dele pela Quarenta e Dois e pela Oitava, e então direto
para....

Oh, não. Na estação do metro, não!

Miri fica paralisada na plataforma.

- A gente não tem permissão pra pegar o metro tão tarde da noite - ela
choraminga.

Temos permissão para uma caçada por Manhattan, mas não para pegar o
metro? Isso faz sentido? Eu a ignoro e desço as escadas, dois degraus por vez,
tentando agarrar Billy, O intrépido Supercabrito.

- Venha aqui, Billy - eu chamo, mas ele não pára. E, para piorar, corre direto
por baixo da roleta. É claro que não estou com meu cartão de metro. Por que
estaria? São duas da manhã!

- Dê a voita - ordeno à minha irmã de rosto cinzento. Ela está quase da
mesma cor de Billy, que está agora calmamente se lambendo de uma forma muito
indecente do outro lado da roleta.

Miri me obedece, eu pulo a roleta e vou pra cima de Billy. Ele é rápido e
escapa logo que eu fico a pouquíssimos centímetros de agarrá-lo. Felizmente, há
somente duas outras pessoas esperando pelo metro.

E então Billy, o Supercabrito, dá um pulo voador.

- Não, Billy, não! - nós gritamos.

Ele cai diretamente nos trilhos do metro.

Nossos queixos caem de horror e chegamos até a beirada. Billy parece ter
percebido que cometeu um erro, porque agora está balindo alto e suas pernas
estão tremendo.

- Temos de salvá-lo - Miri diz e dá um passo em direção ao trilho.

Eu seguro a minha irmã com toda a força do meu braço.

- Só sobre meu cadáver você vai descer num trilho do metrô.

- Mas... mas...

E então nós ouvimos. Oh, sim, o rumor do trem se aproximando
velozmente.

- Oh, não - Miri geme. Meu coração bate quase tão rápido quanto o trem
que vem vindo. No que os faróis brilham na nossa direção, vejo o pobre Billy, olhos
grandes e umedecidos, pedindo a nossa ajuda.
Miri guincha, estica suas mãos era direção ao trem e grita:

- Pare!

Seus lábios se franzem, eu sinto o calafrio e o metro range para uma
repentina parada.

A estação está silenciosa. Até que Billy bale. O condutor põe a cabeça para
fora da janela.

- Que diabo houve aqui? - ele pergunta. - Ficamos sem energia. - Ele vê
Billy. - Isso tudo por causa de um cabrito.

- Um pequeno cabrito - eu digo. - Que meu pai comprou por dois zuzim.

Miri começa a chorar.

*

Conduzo minha irmã aos prantos e o cabrito sonolento que ela está
embalando pelos degraus às escuras. Parece que Miri apagou a energia da estação
inteira. Obrigada, meu Deus, por nossos capacetes de visão noturna.

- Eu quase matei você - Miri diz para o bode entre soluços.

- Sim, foi isso mesmo - eu digo, quando finalmente saio para a noite do lado
de fora. Estou furiosa. Nós não temos vassoura, nem baterias, nem dinheiro e
nenhum metrô funcionando e meus pés estão me matando. Não somente meus
sapatos estão acabados, mas meus pés também estão.

- Você tem de pensar nas consequências...

Oh, não. Eu olho ao redor.

A cidade inteira está às escuras. Como se fosse uma manta de escuridão.
Como se todas as luzes cintilantes que normalmente iluminam a cidade tivessem se
queimado simultaneamente, ou...

- Epa... Minha nossa! - Miri chia. - Eu fiz...?

- Sim, Miri. Parece que fez. Parece que seu truquezinho de parar o trem
acabou com toda a energia de Manhattan. - Estou muito furiosa. Estou fumegando.

- Bem, o que mais eu poderia fazer? E o pobre e pequenino Billy?

Chegamos em casa duas horas mais tarde. Não vou nem mencionar meus
pés inchados e deformados. Estou com raiva demais para conversar com minha
irmã, então, deixo ela e Billy se virarem sozinhos para dormir. Deixo o capacete
que coça no chão e vou para o quarto da minha mãe. Depois de ter certeza que ela
está dormindo profundamente, enrolada em seus cobertores, esquecida do mundo,
eu a beijo na testa e sigo para o meu quarto, deixo cair no chão meu equipamento
de camuflagem e deslizo para debaixo dos cobertores. Eu preciso dormir! O baile é
amanhã e eu vou ficar tão cansada e vou parecer tão exausta e não tem luz e eu
nem sei que horas são porque meu relógio não está funcionando e... por favor, por
favor, faça com que todas as coisas estejam melhores pela manhã.
17. Blackout

Sou acordada pelo grito de Miri:

- Não, Tigger, não! Deixe Billy em paz! - e percebo que talvez nem sempre
tudo parece melhor pela manhã. Olho para o meu despertador, mas está apagado.
Por favor, não me digam que a luz ainda não voltou.

E então me lembro do cabrito, aí saio da cama para ver como nosso
convidado está se saindo. Encontro Billy na mesa da cozinha, balindo feito louco,
Tigger sibilando na cadeira vizinha e Miri falhando miseravelmente em administrar
o ménage.

- Que horas são? - pergunto, esfregando o sono dos meus olhos.

- Oito e meia - Miri responde.

Eu suspiro.

- Vou chegar atrasada na escola!

- Não tem escola hoje - ela diz, puxando a cadeira de Tigger por toda a
cozinha até a pia. - A luz não voltou.

Ela aponta para o rádio próximo à pia. Eu ponho ele na mesa da cozinha e
aumento o volume. Humm. A boa coisa é que estamos sem baterias de lítio mas
não sem pilhas AAA.

A voz que vem do rádio é alta e firme.

- Às duas e nove da manhã, hora local, toda a ilha de Manhattan foi atingida
por um inexplicável blackout. Vagões de metro pararam no meio do túnel, as luzes
das ruas se apagaram e os moradores ainda estão esperando que o serviço seja
normalizado. A causa do blackout é ainda desconhecida. Todas as escolas estão
fechadas hoje e a maioria dos negócios está parada até que a energia seja
restaurada, o que só vai acontecer, nas melhores estimativas, amanhã de manhã.
A campainha de Wall Street não vai tocar...

Você tem de estar brincando. Ai. Meu. Deus.

- Miri! Você está ouvindo?

Billy bale. O gato mia. Eu suspiro.

Em vez de ouvir e de se preocupar, Miri olha Tigger enquanto ele pula da
cadeira para cima do balcão e ela o agarra antes de ele atacar a mesa. Eu afundo
na cadeira vazia de Tigger e apoio minha cabeça latejante em meus braços.

- O que você acha que significa balir? - Miri pergunta.
- Eu acho que significa "quero minha mãe" - eu respondo.

- Outras notícias - o locutor de rádio continua. - Animais exóticos têm
aparecido em lugares inesperados por todo o país. Esta manhã, uma companhia de
dança de Birmingham, Alabama, encontrou um elefante de 107 toneladas no palco
da Arena BJCC.

Chega! Já era demais.

- Sente-se, Miri. - Acho que minha voz soou séria, porque ela deslizou na
cadeira, segurando Tigger bem apertado em seu colo. - Está percebendo o que
você fez? Tentando salvar os animais do circo, você causou um blackout em toda a
cidade. E mais, você botou em perigo os animais que tentou salvar! Eles acabaram
de encontrar um elefante no Alabama! Podia ser um jacaré no Maine!

- Um jacaré não podia ter nascido no Maine - ela diz, ruborizando-se.

- Como você sabe? Coisas estranhas têm acontecido! O que estou dizendo é
que você tem de perceber que todos os seus feitiços têm consequências. Você tem
de pensar e eu digo, realmente pensar, sobre cada e toda ação antes que você
acabe estragando tudo!

- Mas eu pensei que os animais tivessem nascido na selva... - ela gagueja.

- Eu sei que alguns deles vieram de lá, mas você não investigou nada e
muitas pessoas... e animais... vão se machucar.

Seus olhos se encheram de lágrimas.

- Eu queria apenas ajudar.

- Eu sei, e isso foi muito digno. Mas você não está ajudando! Você está
fazendo as coisas ficarem piores! O que você acha que vai acontecer com aquele
elefante? Eles não vão vesti-lo com sapadlhas de bale e malha apertada, e dar a ele
um papel de estrela no Quebra-nozes! Vão derrubar ele com um tranquilizante e ele
pode até acabar ferido. É o que você quer?

- Não - ela choraminga. Billy bale.

- Está vendo? Tudo tem um preço. As vacas têm de ir para algum lugar,
então elas foram parar no ginásio da escola. As laranjas têm de vir de algum lugar.
A Mercedes teve de vir de algum lugar. As coisas não vêm do nada. Você não está
fazendo nada aparecer do nada, Miri. Sua mágica apenas muda as coisas de um
lugar para o outro.

- Estou roubando - ela diz, e começa a chorar novamente. - Você está certa.
Ajudar apenas torna as coisas piores. Eu sou a pior super-heroína que já existiu!

Finalmente, minha mensagem chegou nela.

- E eu ainda não sei o que aconteceu com o óleo que você fez desaparecer.
Espero que tenha acabado numa refinaria de petróleo ou no quintal de algum cara
sortudo. Mas, está vendo? Você é como a mamãe. Ela é uma magicomaníaca. Você
é uma fazer-o-bem-maníaca.

Ela assente de cabeça.
- De agora em diante, vou cuidar da minha própria vida. Só vou enfiar o
nariz nos meus próprios livros.

Bom. Bem, não exatamente.

- Não foi o que eu quis dizer...

- Vou parar de tentar fazer o mundo melhor - ela diz tristonha. - Nunca mais
vou ajudar ninguém.

Agora ela está radicalizando para o outro lado.

- Você não precisa não ajudar ninguém. Você têm de parar de ajudar todo
mundo.

- Hein?

Eu contorno a mesa e me sento, encarando minha irmã.

- Você tem de aprender que fazer uma centena de coisas pela metade
significa que você não está fazendo nada cem por cento. Nos últimos dois meses,
você tentou alimentar e vestir os sem-teto, acabar com os incêndios da Califórnia,
dar um jeito na camada de ozônio e salvar os animais do circo, entre outras coisas.
É demais. Você precisa tentar cuidar de um problema de cada vez. Toda ação tem
custos, mesmo as ações que não têm mágica. O que você deve fazer para ajudar
de verdade é planejar. Mapeie as suas ações em potencial para poder calcular as
consequências previamente. Nesse caminho, você fará o bem, sem dano. Ela
enxuga os olhos com as costas das mãos.

- Parece lógico.

Eu passo a mão na cabeça de Billy.

- Eu sei. Eu sou muito inteligente.

O telefone toca e nós duas pulamos. Agarro ele antes que minha mãe
acorde. Ela precisa descansar.

- Rachel? Você está bem?

- Sim, Will. Eu estou bem. E você?

- Não tão bem. Acabei de ligar para o Penthouse 50 e o baile está
oficialmente cancelado.

O que houve agora? O que mais poderia dar errado? Que maldição deixou o
baile tão azarado? Por que, por que, por quê?

- Por causa da luz?

- Isso mesmo - ele diz, suspirando.

- Mas nós ainda temos o espaço, certo? A banda não pode cantar sem um
microfone? Nós poderíamos iluminar a sala com velas. Seria muito romântico!

- Poderíamos, mas a sala que alugamos fica no quinquagésimo andar. Todos
teriam de subir as escadas.
Oh, certo. Sem elevador.

- Eles não têm salas no andar térreo?

- Têm, mas o outro problema é que todas as portas só abrem com cartões
magnéticos, então não funcionam sem energia. - Sua voz fica baixa. - Eu não posso
acreditar nisso tudo.

- Mas eles não podem transferir a data? - eu pergunto, já desesperada. -
Nós podemos fazer o baile amanhã ou na próxima semana...

- Rachel, todas as datas estão reservadas. A banda e os apetrechos
alugados não podem ficar para outro dia e eles não restituiriam os depósitos a não
ser que o baile seja esta noite. Então, a menos que a luz volte, está acabado.

Não apenas Miri e eu causamos o maior blackout na área metropolitana,
mas acabamos com o baile. De novo.

Eu termino de falar com o depressivo Will e conto as últimas notícias para
Miri, Billy e Tigger.

- Temos de acordar mamãe - Miri diz.

- Não - eu digo, com firmeza. - Ela está se recuperando. Nós não vamos
pedir a ajuda dela. Nós é que temos de cuidar disto. Vamos tentar o feitiço da
reversão.

- Mas os animais...

- Os animais ficarão melhor. Se nós revertermos o feitiço de ir para casa e
os animais voltarem, talvez toda a corrente de eventos seja desfeita. Billy não
correria pelo metro, você não teria de salvá-lo e a energia não teria acabado. Eu sei
que estamos apostando alto, mas vale a pena tentar.

- Está bem - Miri suspira e eu a sigo para o seu quarto. - Mas eu preciso
recarregar o cristal no saleiro por uma hora. E não prometo que vai funcionar.

- Eu sei. Mas vamos arriscar.

Ao meio-dia, compramos novas baterias e nos transportamos de volta para
o centro de convenções. Felizmente, o cabrito é leve e Miri o está carregando numa
bolsa sobre seu ombro enquanto eu estou atrás usando o colar de cristal e
segurando o escudo-guarda-chuva.

Luz brilhante!

Descemos bem atrás de um carro de polícia. Quatro policiais e uma multidão
cercam a porta da frente do centro de convenções.

- Aqueles desgraçados dos grupos dos direitos dos animais - alguém fala.

Vamos para a entrada lateral.

- Temos mesmo de contornar toda a parte de trás da construção? - eu
pergunto, surpresa.

- Como o cristal já está encantado - ela diz -, você pode cuidar disso? Eu
ando meio azarada nos últimos dias.

Poder, eu poderia, mas sei que eu faria mais mal do que bem. Ela tem de
aprender a enfrentar as consequências. Eu balanço a cabeça dizendo não e dou a
ela o colar de cristal. Ela me passa a bolsa com o cabrito e suspira.

- Isso tem de funcionar - ela diz. - Billy está sentindo falta de sua mãe.
Pronta?

- Estou - eu digo e começo a puxar Miri para contornar a construção de
milhões de metros quadrados e do tamanho de um quarteirão, com o escudo
reflexivo nos escondendo dos olhos que nos rodeiam. Vinte minutos e seis tropeços
mais tarde, estamos de volta à entrada lateral. No que ela dá o passo final,
escutamos uma explosão de rugidos, balidos e uivos dos animais agora de volta ao
interior do centro. Parecem um pouco irritados, não é?

Um treinador escancara a porta lateral e grita para um policial próximo:

- Os animais voltaram! Deve ter sido algum tipo de golpe publicitário!

Tiro Billy da bolsa e levo ele, livre, para a porta.

- Corra, cabritinho, corra! Vamos sair daqui - eu falo enquanto um policial e
um outro sujeito se aproximam da porta. Avançamos sorrateiramente pela rua,
esperando ver as luzes do tráfego funcionando. Para o nosso desapontamento,
ainda não funcionam. E é tudo o que conseguimos com um ótimo feitiço reversor.

Miri suspira.

- Qual a ideia seguinte?

Achamos um feitiço da luz de cinco vassouras, mas antes de tentarmos na
cidade, testamos no nosso apartamento. Botamos fogo em nossas cortinas.

Minha mãe está agora acordada no seu quarto, conversando no telefone,
sem saber do nosso papel nesta catástrofe.

Ficamos escutando o rádio, que nos informa que o problema foi localizado.
Um bloqueio de energia em torno da Times Square causou uma ondulação, que fez
a energia cair em toda a ilha. Quem causou o bloqueio não está, é claro, nas
notícias. O locutor também diz que se espera que a energia esteja de volta amanhã
de manhã bem cedo. Eu lanço a Miri um olhar raivoso.

- Ótimo - eu falo. - Um dia atrasado.

- Será que eu deveria tentar outro feitiço? - Miri pergunta.

- Não - eu digo, resignada, - É muito arriscado. E se der errado? Eles dizem
que vão consertar até amanhã de manhã, então temos de esperar.

- Mas seu baile é esta noite.

Eu estremeço.

- É apenas um baile. - Eu tento sorrir.

- Eu me sinto péssima - Miri diz. - Se vocês pudessem fazer o baile em
algum lugar fora da cidade.

- Onde por exemplo? Disneylândia?

- Muito engraçado. - Então ela dá um pulo. - Já sei! Já sei! Você não disse
que o tema era a noite do Oscar?

- Isso mesmo. Mas duvido que a gente seja capaz de ir para Los Angeles. A
menos que toda a turma se pendure nas suas costas.

- E o drive-in? Você sabe, aquele que nós sobrevoamos? Fica apenas a
quarenta minutos daqui. Eles não estão na cidade, então têm energia.

- Como iríamos para lá? Não podemos todos voar em vassouras e o metrô
não está funcionando. A gente não conhece ninguém que tenha nem mesmo um
carro, quanto mais um ônibus.

Ela suspira.

- É verdade.

Escutamos a porta da minha mãe se abrir e ela vem para a cozinha num
robe de banho. As raízes do seu cabelo estão de volta ao normal (escuras), suas
unhas estão de volta ao normal (maltratadas) e seus peitos estão de volta ao
normal (pequenos e caídos). Mas ela está sorrindo.

- Bom dia, garotas!

- Você parece feliz - Miri diz, desanimada.

- Eu dormi muito bem, obrigada. E tive uma conversa muito simpática com o
Lex. Lembram-se dele? Ligou para saber como as três garotas estão se virando no
blackout. Não foi delicado da parte dele?

Ah, sim! Foi delicado da parte dele.

- Lex é mesmo um cara simpático, mãe. Você devia sair com ele. - Peraí um
segundo. O Lex é um guia de turistas. E um guia de turistas tem um ônibus à
disposição. Eu começo a pular e fico tão excitada que mal consigo falar. - Ligue
para ele de novo! Lex! Ônibus!

No que a compreensão baixou no rosto de Miri, ela começou a pular ao meu
lado.

- Nós precisamos ir ao baile! Sair da cidade! Por causa da falta de energia!
Você acha que o Lex pode nos ajudar?

Minha mãe parece confusa.

- Perguntar não ofende. Hum, meninas, vocês não têm nada a ver com o
problema da luz, têm?

As quatro horas seguintes foram bastante tumultuadas. Primeiro, tivemos de
contar à minha mãe o que nós fizemos e, felizmente, ela não deu um ataque. Em
vez disso, deu um grande abraço em Miri.

- Tal mãe, tal filha - ela diz, alisando o cabelo de Miri. - Nós esquecemos da
importância da moderação, não foi? E ambas tivemos de enfrentar as
consequências.

- Se eu tivesse poderes - eu digo, lamentando-me - eu os usaria com
cuidado e só bem de vez em quando.

Minha mãe e irmã tomam isso como uma deixa para começarem a rir
incontrolavelmente.

Quando ela se acalma, mamãe nos diz que, agora que está de volta, pode
monitorar nossas trapalhadas mais de perto. E que, sim, Miri pode usar magia, mas
não incondicionalmente. Então mamãe nos ajuda, de maneira não-mágica, a
localizar direito o drive-in (alô, catálogo de telefone) e os proprietários, que moram
um pouco mais abaixo, na estrada do cinema. É um casal de idosos gentis que nos
cobram apenas mil dólares. Mas se oferecem para passar os filmes que quisermos
ao fundo. A Garota de Rosa Choque! Grease! Carrie! Tudo bem, talvez Carrie, não.
Eu ficaria feliz em ver qualquer filme, menos A Noviça Rebelde. Mas, bem, então
minha mãe chama Lex de novo e ele concorda em encher o ônibus com a garotada
que está indo, toda ansiosa, para o seu baile de formatura. Ele também pede a um
outro motorista de ônibus, seu amigo, para nos ajudar.

Então, eu ligo para Will para falar das boas notícias.

- Você não existe! - ele diz. - Vou pedir à Kat para começar a ligar para
todos os seniores. Bosh, River e eu iremos mais cedo para começar a trabalhar
como comitê de organização. Tudo bem se você for me encontrar lá? Ou você quer
trazer suas coisas e vir comigo para o drive-in?

- Eu vou me aprontar aqui. Preciso de um bocado de tempo para me
embelezar. - Nem quero pensar nas minhas olheiras.

- Você é bonita de qualquer jeito.

Ele é o melhor namorado do mundo. Quer dizer, na verdade, o que mais eu
poderia querer?

Enquanto vou me vestindo, ouço mamãe e Miri conversando na cozinha.
Mamãe está fazendo um enroladinho vegetariano (- Vou tentar diminuir o excesso
de tofu, eu prometo!) enquanto ajuda Miri com seu dever de casa.

O telefone toca quando eu estou secando o cabelo com a toalha.

- Sou eu! - grita Kat. - Não acredito que você salvou o baile! Você é a maior.
De verdade. Que pena que você é uma caloura ainda, ou poderia concorrer para
presidente no próximo ano. Eu queria só dizer que você é demais! Tenha uma
ótima noite hoje!

E foi quando me veio exatamente o que eu tinha de fazer.
18. Bonita com tênis rosa

Ajeito meu cabelo num rabo de cavalo, ponho um dos meus jeans novos e
deslizo meus pés inchados para dentro dos meus tênis.

- Você tem certeza? - Miri pergunta.

- Tenho - Penduro minha bolsa com as roupas no braço esquerdo e ajeito as
duas bolsas menores na minha direita.

Ela me dá um abraço.

- Divirta-se. Se você precisar de mim, vou estar aqui e não salvando o
mundo.

- Bem - eu digo. - Você precisa relaxar. Por que não lê um pouco?

- Estava pensando em ver A Noviça Rebelde.

- Rá-rá.

Ela ri e volta para o seu quarto.

Alguém bate na porta. Quem é?

- Alô? - eu falo no interfone.

- Oi. É o Lex!

O que ele está fazendo aqui?

- Achei que ia encontrar você na escola.

- Ele veio nos levar - diz minha mãe, saindo do seu quarto num andar
deslizante. Está vestida com um velho jeans e uma blusa de algodão, e parecendo
ela mesma de novo.

- Miri, venha se despedir e nos dar um abraço! - ela pede.

Hein?

- Você está indo também?

Ela fica ruborizada.

- O Lex me pediu para acompanhá-lo na viagem. Se estiver tudo bem para
você. Ele achou melhor nos pegar primeiro, e iríamos para a escola. Se você deixar
ele entrar, é claro. - Ela olha minha bagagem, interrogando-me. - Você está
planejando se vestir no drive-in?
Eu abro a porta e encontro Lex corado, suado e rindo. Ele está segurando
um buque.

- Para você - ele diz para minha mãe. Uau. - Prontas, garotas? - ele diz,
inclinando o seu chapéu.

- Uau - eu exclamo, pegando minhas bolsas. - Só preciso que você dê uma
rápida parada antes de eu ir para a escola.

Ele pega as bolsas das minhas mãos. Que gentil, eu penso, bastante
impressionada.

Kat abre a porta da frente e a mantém bem aberta.

- O que você está fazendo aqui?

- Eu vim apanhar você - respondo.

Ela ri.

- E por quê? Eu não vou a lugar nenhum.

- Vai, sim. - Dou a ela a sacola de roupas. - Este é o seu vestido de baile.

- O quê...? - ela gagueja, surpresa. - Eu não posso ir. Eu não tenho um par.

- Tem, sim.

- Quem?

Eu dou um sorriso.

- É surpresa. Você calça quanto?

- 37.

Eu dou a segunda sacola para ela.

- Este é seu dia de sorte. Eles até estão amaciados.

Ela está segurando ambas as bolsas, olhando para mim como se tivesse
acordado num outro planeta.

- Não estou entendendo nada.

Eu ouço Lex buzinando lá fora.

- Agora, apresse-se e vista-se. Sua abóbora está esperando.

*

Quando entramos no drive-in, eu já posso ver o arco-íris de garotas em seus
vestidos de baile dançando nas pedras arredondadas com seus pares vestindo
smokings. Na tela grande está passando um velho filme em preto e branco que eu
não conheço e a banda está cantando uma daquelas canções que sempre se ouve
no rádio. Sob uma fileira de clarabóias brilhantes estão o bufe do jantar e as mesas
lindamente arrumadas. A festa já está à toda. Dois ônibus vazios, alguns carros e
poucas limusines estão estacionadas na nossa frente.

- Tem certeza que está tudo bem? - Tammy cochicha enquanto nos
juntamos à fila para descer do ônibus. - Ainda não entendi o que está acontecendo.
- Ela olha para Kat que está um pouco atrás de nós. - Por que ela está usando o
seu vestido?

Aperto de leve o braço de Tammy e ignoro a pergunta. Felizmente, ela
avista Bosh pela janela e segue rindo, esquecendo de mim.

- Olhe como ele está lindo de smoking - ela fala, endireitando seu vestido
vermelho sem alças.

Quando eu desço os degraus do ônibus, vejo Will em seu smoking e minha
garganta fica seca. Meu coração bate mais rápido, tão forte até que eu posso
senti-lo no meu pescoço e dedos, Will está conversando com o fotógrafo, rindo e
concordando com alguma coisa que ele está dizendo. Quando ele olha e me vê
observando-o, um sorriso ilumina seus olhos.

Ele ainda não notou que eu estou usando jeans. Segurando minha última
sacola, eu caminho no tapete vermelho em sua direção.

- Oi - eu digo quando ele está a meio metro de mim. Eu tiro o colar de
cristal da minha bolsa e o coloco no pescoço.

Ele fará uma garota muito feliz, eu penso, ao rodeá-lo. Mas não a mim.

- O que... Por que você fez isso? - Ele pisca repetidamente, sem saber o que
acabou de atingi-lo. Quando dou o último passo, ele abre a boca. E fecha. Abre de
novo.

Está bem, eu admito. Uma parte de mim, meu ego, está pensando que ele
vai continuar a gostar de mim. Que seus sentimentos por mim são mais fortes do
que qualquer feitiço.

Ele pisca de novo.

Oh, bem. Uma garota pode sonhar à vontade. Mas a verdade é que,
enquanto o que ele sentia por mim não era real, o que eu sentia por ele também
era uma ilusão. Eu estava enamorada pelo que ele representava, por ele ser tão
popular, seu status social, seu suprimento inesgotável de alcaçuz. Mas nunca houve
uma mágica de verdade entre nós.

Eu dou um profundo suspiro.

- Ouça, Will, temos de conversar. Você é um cara ótimo, mas eu acho que
não devemos ficar juntos. Eu não queria deixar você sozinho esta noite, então eu
trouxe outro par para você. - Eu aponto para o ônibus quando Kat está descendo o
último degrau.

Seus olhos seguem meus dedos. E se iluminam. Kat está linda. O vestido se
ajusta a seu corpo de uma forma que calças capri e moletons nunca poderiam se
ajustar, e seu cabelo ondula sobre seus ombros. Ela e Will sorriem timidamente um
para o outro.

- Oi - ela fala.
- Você está muito bonita - ele responde, não deixando de olhá-la por um
segundo.

Kat caminha em nossa direção e me olha interrogativamente.

- Nós terminamos - digo para ela. - Você se importa em ser o par dele nesta
noite?

A cabeça de Kat vai de mim para Will várias vezes.

- Você tem certeza disso? - ela me perguna incrédula.

Eu faço um movimento de cabeça, dizendo que sim, e rio. Depois, vou
embora. Ele pega a mão dela e vão para a pista de dança.

Então.

O que fazer nas próximas quatro horas até poder voltar para a cidade? Acho
que vou esperar no ônibus. Ou talvez na minha árvore?

Eu subo para o lugar onde Miri e eu, faz uns dias, vimos O Homem Aranha,
e lá me ajeito bem confortável. Uma música lenta começa e ecoa pela noite. De
onde estou, vejo Will e Kat abraçados, dançando ao som da música. Atrás deles,
Lex e mamãe também estão dançando, totalmente alheios ao que ocorre em volta.
Sob uma clarabóia, Tammy e Bosh se olham profundamente nos olhos. Todos os
casais estão de volta onde deviam estar. Como no final de Sonho de uma noite de
verão. Se nós, bruxas, atrapalhamos, pense apenas que tudo foi consertado.

Quase tudo. Eu engasgo, um bolo trava na minha garganta, quando vejo Raf
e Melissa dançando devagar, a cabeça dela no ombro dele, os braços dele em torno
da cintura dela.

Meu coração se acelera ao ver os dois. Mesmo que eu tente me convencer
que não estou me importando, o sentimento antigo volta como um soco. Ou talvez
nunca tenha na verdade me deixado. Tudo está de volta ao normal, incluindo meus
sentimentos pelo Raf. Se ao menos ele sentisse a mesma coisa.

De repente, ele desvia o olhar para a árvore e nossos olhares se encontram.
E ele ri para mim. É possível? Ele poderia estar sentindo a mesma coisa?

E quando uma gota de chuva cai em minha testa. Duas gotas. Três, quatro.
Eu olho para cima através dos galhos para ver o céu desaparecendo atrás de
nuvens tristemente pretas. De repente, as nuvens derramam sua chuva. Em dois
segundos, toda a turma de seniores está gritando e procurando por uma cobertura
não-existente.

Oh, não! Depois de tudo, o baile vai ser arruinado!

Eu olho o aguaceiro. Pelo menos eu não estou usando maquiagem.

Fecho os olhos, puxo toda a energia que eu possa reunir de cada poro do
meu corpo até poder senti-la implodindo dentro de mim e desejo com todo o meu
coração:

Chuva, chuva, vá embora,

Vá ajudar Los Angeles!
Sinto uma onda de frio e então... nada. Eu abro um olho. E então o outro. E
parou de chover.

Hein? Eu fiz...isso?

Vejo as nuvens pretas lentamente desaparecerem, deixando em seu lugar
uma noite estrelada encantadora de volta sobre o baile.

E enquanto eu fico pensando no que acaba de acontecer, meu corpo formiga
com eletricidade.

Eu fiz isso.

Eu. Fiz. Isso.

Aimeudeus.

AIMEUDEUS.

Uau!
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