segunda-feira, 29 de março de 2010

Uma Difícil Decisão - Rebecca Winters.txt

UMA DIFÍCIL DECISÃO
(Bride Fit for a Prince)
Rebecca Winters
Quem quer casar com um príncipe?

Esse era o nome do concurso de que Ann Dassiter participou e do qual saiu
vencedora. Contudo, sem poder cumprir o contrato, pediu a sua irmã gêmea, Carla, que a
substituísse e se casasse com o enigmático príncipe.
Carla Dassiter achou o desafio bastante interessante... O contrato exigia um
casamento de apenas trinta dias, e além disso ela estava precisando de.que algo
diferente lhe acontecesse.
Decidida, partiu para a Itália. Porém, ao conhecer o deslumbrante Luigi Tescotti,
descobriu estar diante do homem de seus sonhos... Mas será que ela, uma mulher sem
nenhuma vocação para uma vida sofisticada, poderia se casar com um príncipe?

Sabrina no. 1290

Copyright © 2002 by Rebecca Winters
Originalmente publicado em 2003 pela Silhouette Books, divisão da Harlequin Enterprises Limited.

Todos os personagens desta obra são fictícios.
Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.

Título original: Bride Fit for a Prince
Tradução: Edith Sciulli
Editora e Publisher: Janice Florido
Editora: Fernanda Cardoso
Editoras de Arte: Ana Suely S. Dobón, Mõnica Maldonado
Paginação: Dany Editora Ltda.

EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Rua Paes Leme, 524 - 10° andar
CEP 05424-010 - São Paulo - Brasil

Copyright para a língua portuguesa: 2003
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.

Impressão e acabamento:
RR DONNELLEY AMÉRICA LATINA
Tel.: (55 11) 4166-3500

Disponibilizado: Cristiana P.
Digitalizado e revisado: Nelma M.
CAPÍTULO I


-- Carla, espere!
Carla Dassiter acabara de prender a mochila na traseira de sua moto, quando sua irmã gêmea
veio, bela como sempre, a seu encontro. Elas não se viam fazia pelo menos cinco meses. Estavam
em setembro. Como o tempo voara!
Carla, com lama até nos cabelos trançados, que não mais pareciam loiro-acinzentados,
esboçou um grande sorriso que iluminou-lhe os rosto.
-- E melhor eu não abraçá-la, Ann.
-- Por favor, nem pense nisso! -- Ann gargalhou, sem se aproximar.
-- Pensei que estivesse em Los Angeles. Por que não me avisou que viria a Prunedale? Eu
teria dado um jeito de tirar uns dias de folga.
-- Não houve como. Ontem à noite aconteceu uma coisa sobre a qual precisamos conversar,
portanto, peguei o avião para San José logo cedo.
-- Como soube que eu estava na casa dos Olivero?
-- O Dr. Wood me disse que você tinha vindo mais cedo para cuidar do parto complicado
de um bezerro. Resolvi arriscar, esperando que ainda estivesse aqui.
O bezerro passara por maus momentos, mas agora tudo ia bem. A mãe e seu gracioso bebê
estavam ótimos.
-- O que há de errado, Ann?
-- Meu agente me ligou ontem à meia-noite e me disse que consegui um grande papel em
um novo filme com Cory Sievert, para o qual fiz um teste há duas semanas!
-- Está brincando! Que maravilha! -- Carla gritou e abraçou a irmã, se esquecendo da lama.
Ann recuou e tentou limpar a roupa.
-- Não pude acreditar. A atriz escolhida descobriu que ficara grávida. Ontem ela foi parar
no hospital por causa de uma crise renal e não poderá atuar. Eles precisavam de outra pessoa
imediatamente, e eu fui a sortuda!
Após tantos papéis pequenos, Carla soube que aquela era a grande oportunidade pela qual
Ann esperava há anos. Mas conhecia a irmã muito bem. Ela poderia ter ligado para contar a notícia.
Ann queria algo mais, do contrário não viria a Los Angeles sem avisar.
-- Estou tão feliz por você!
-- Eu também, Carla, mas só há um probleminha. Ontem à noite venci outro concurso!
-- Sério? Qual foi o prêmio, dessa vez?
Ao longo dos anos, sua irmã participara de muitos concursos de beleza. Com traços
clássicos e pernas longas, ganhara um bom dinheiro, e pudera se manter enquanto tentava se tornar
uma estrela de Hollywood.
-- Algo incrível, mas não posso recebê-lo. Não agora que tenho de estar no set logo cedo.
Esse filme é a grande chance de minha carreira, Carla. E por isso você precisa me ajudar. Quero
pedir-lhe um favor.
-- O que você ganhou? -- Carla ficou intrigada.
-- Digamos que fui escolhida para algo.
-- Para quê?
-- Terei de explicar, portanto, por favor, me ouça. Há mais ou menos um mês, resolvi
participar de um ato beneficente para os sem-teto, chamado "Quem Quer se Casar com um
Príncipe?" Fiquei sabendo dele por intermédio de umas garotas que estavam sendo testadas para um
papel...
-- Espere um minuto! Você entrou nessa depois de ter participado daquele outro concurso
humilhante no ano passado: "Quem Quer se Casar com um Milionário?"?!
-- Foi pela publicidade -- Ann se defendeu. -- Graças a Deus, não fui escolhida naquele.
E, mesmo que fosse, fingiria um desmaio e não me casaria. A segunda colocada teria de casar-se
com aquele milionário obeso em seu hotel em Las Vegas. Mas dessa vez era diferente! Um príncipe
europeu deslumbrante e abastado viria a Hollywood para escolher uma noiva. Pareceu tão
romântico como quando o príncipe Rainier, de Mônaco, veio à América para se casar com Grace
Kelly.
-- Parece mais um lobo em pele de cordeiro.
-- Como pode dizer isso? As moças e eu concordamos que, mesmo que não fôssemos
escolhidas, seria por uma causa válida e chamaríamos muita atenção, visto que haveria muitos caça-
talentos e diretores de cinema na platéia. A exposição poderia nos ajudar a conseguir um contrato
em um grande filme. Além disso, você precisava vê-lo, Carla! Ele veio até o palco vestido em seu
traje de gala quando eu fui escolhida junto com outras finalistas. Tenho uma foto dele. Veja.
Carla não teve outra escolha senão olhar a figura.
-- Não é incrível?
Carla tinha de admitir que aquele homem se parecia com tudo o que uma garota sonhadora
poderia imaginar de um príncipe. Cabelos castanho-escuros, olhos castanhos e envolventes.
-- Quase desmaiei quando o príncipe passou por nós e se ajoelhou a minha frente. Ele disse
em voz baixa que se decidiu assim que viu minha foto no formulário de inscrição. Antes que eu
pudesse fazer qualquer coisa, ele pôs este anel de noivado maravilhoso em meu dedo. Dá para
acreditar que, entre todas aquelas belas mulheres, ele escolheu a mim?
Na verdade, Carla não estava nem um pouco surpresa. Ann era lindíssima.
-- Então... você já avisou que o casamento não vai acontecer porque estará muito ocupada
trabalhando em seu próximo filme?
-- Ainda não -- Ann respondeu depois de um silêncio constrangedor. -- Era sobre isso que
queria falar com você. Sabe, quando fiz a inscrição, o selecionador foi esperto o suficiente para
incluir uma cláusula no contrato que não existia no concurso "Quem Quer se Casar com um
Milionário?".
Carla se exasperou.
-- Quer dizer que cometeu o mesmo erro e assinou outro contrato antes de desfilar para o
príncipe como uma novilha em um leilão de gado?
-- Não seja tão grosseira! Saiba que tomei o cuidado de ler a cláusula. Faz toda a diferença.
Por isso assinei os papéis perante os advogados dos organizadores e do príncipe.
-- O que dizia, afinal de contas?
-- "Terá de se casar com o príncipe dentro de vinte e quatro horas após a chegada a seu país
e viver com ele por um mês. Se após este período um dos dois quiser voltar atrás, é possível pedir o
divórcio, sem questionamentos, e o projeto de caridade para os sem-teto não será prejudicado." É
um arranjo perfeito. Se não quiser permanecer casada, terei ganhado uma viagem para a Europa, e
mais toda a publicidade.
Carla custava a compreender. Ann inclinou a cabeça para trás, num gesto típico que
demonstrava o quanto estava tensa.
-- "Supondo que vocês venham a se apaixonar, você ficará casada e viverá feliz para
sempre em seu palácio, sem ter de se preocupar com dinheiro nunca mais." Mas só se essa fosse a
vida que desejo para mim, o que não é o caso!
Carla gemeu, horrorizada. A teimosia da irmã a colocara em apuros antes, mas nada se
comparava a isso. Sentiu as faces esquentarem.
-- O que faz esse príncipe? Fica por aí tentando se casar de tempos em tempos para fazer
caridade e porque não pode ter uma relação íntima com uma mulher de outro modo? O que há de
errado com esse homem? Pode até ser um assassino sanguinário, Ann. Já pensou o quanto isso pode
ser perigoso? E se você engravidasse? Acha mesmo que o príncipe manteria o acordo de trinta dias
se estivesse carregando um herdeiro real? Se imagina que ele concederia o divórcio e permitiria sua
saída do país com o filho dele na barriga, aí então terei certeza de que está louca!
-- Não há chance de eu engravidar, confie em mim. -- Os olhos verdes de Ann brilharam
com intensidade. -- Mas esse não é o ponto. Se conhecesse a linhagem dele, não ficaria tão
desconfiada.
-- Desconfiada? O que esse príncipe fez é sem dúvida a coisa mais pavorosa, absurda e
monstruosa de que já ouvi falar! Annabelle Dassiter, como pode se desvalorizar dessa forma?
Vender-se apenas por publicidade? Onde está seu orgulho?!
-- Orgulho não paga meu aluguel, minha querida. Se eu soubesse que conseguiria o papel
mais cobiçado do ano não teria entrado nesse concurso, e não estaria neste dilema agora.
-- Que dilema? Diga a eles que fará um filme e que terão de escolher outra candidata.
-- Já tentei, mas não funcionou. Hoje de manhã, antes de voar para cá, pedi a meu advogado
para examinar o contrato. Ele me informou que não há como escapar. Por isso você é a única pessoa
no planeta que pode me ajudar.
-- Ah, não, nem venha me pedir para... -- Carla não queria sequer aventar tal possibilidade.
Pôs o capacete, deu partida na moto e pegou a estrada para a fazenda de Pike Baxter, o gato
da família, não vinha se alimentando. Carla prometera dar uma olhada nele, na volta para a clínica.
No entanto, Ann a seguiu no carro alugado. Assim que Carla chegou e tirou o capacete, a
irmã se aproximou, aflita.
-- Dê mais uma olhada na foto. O nome dele é Enzo Tescotti. Tem vinte e oito anos, só um
a mais que nós. Pode ver que não há nada de errado com ele.
-- Eu devia ter imaginado que era italiano. Ai, meu Deus!
-- Aqui está a passagem de primeira classe para Turim, onde Enzo e a corte real a receberão
assim que descer do avião. Por sorte, você participou daquele congresso de veterinária na Inglaterra
depois da formatura, então tem passaporte. Também comprei a passagem de San José até Los
Angeles. Já que o vôo para a Itália sai depois de amanhã, terá de ir para Los Angeles amanhã. Pode
pernoitar em meu apartamento. E eu a levarei ao aeroporto logo cedo, antes de ir para o estúdio.
-- Não poderia fazer isso, mesmo que quisesse. Tenho meu trabalho.
-- Já cuidei disso. Disse ao Dr. Wood que você ganhou um mês de férias na Itália, com
todas as despesas pagas, e ele ficou muito contente. Fala que está trabalhando muito e que está
merecendo mesmo umas boas férias. Juro que me garantiu que ficaria bem até você voltar. Então,
está tudo acertado!
-- Só se esqueceu de uma coisa, Ann. Não levo a vida como se fosse uma grande piada. --
E devolveu a foto e as passagens para a irmã.
-- Talvez porque a leve a sério demais. Não sou como você. Foi muito triste quando papai
morreu e ficamos cheias de dívidas. Mamãe fez tudo o que pôde, e mesmo assim teve de vender a
fazenda. Você é igual a ela.
-- Nossa mãe fez o necessário para nos manter vivas!
-- Porém, podia ter se casado com vários homens que lhe propuseram, mas não.
-- Porque amava muito papai.
-- Tanto que após a morte dele caiu em depressão e acabou morrendo de um ataque
cardíaco. É provável que você também morra cedo, e eu ficarei só.
-- Ann...
-- É isso mesmo. Você trabalha muito, e tem de pagar as dívidas da faculdade. Nem possui
um carro, e tem de andar por aí com uma moto usada.
-- Sabe que sempre gostei de motos.
A de Carla era uma Danelli Strada 100 esporte, que vencera todas as competições por dez
anos antes de a companhia fechar de repente.
-- E ela me leva para onde preciso. E o melhor é que é minha! -- Carla apontou para o
carro alugado de Ann.
-- Mas mora em um apartamento minúsculo de dois quartos, nos fundos da clínica, e pode
ouvir todos os gemidos dos animais doentes do norte de Monterey enquanto tenta dormir. Não tem
uma vida amorosa e chance alguma de vir a ter uma, trabalhando para o Dr. Wood, que tem idade
bastante para ser seu avô. Dedica a maior parte do tempo entrando e saindo de estábulos e
chiqueiros. Quando foi a última vez que fez algo para se divertir?
-- Eu me divirto com meu trabalho, Ann. Quis ser veterinária desde que Jásper quase
morreu, quando éramos meninas, e o Dr. Wood o salvou. Em alguns anos vou conseguir morar num
lugar só meu. Enquanto isso, não reclamo, e pretendo viver muito. Acontece que amo a vida que
levo.
-- Eu também! Por isso não posso perder essa oportunidade agora. Com o dinheiro do
filme, poderei viver pelo menos cinco anos sem dificuldades.
-- É uma fortuna! Alegro-me por você, e lamento por ter se metido nessa confusão.
-- Não tanto quanto eu. Só queria ser vista, não escolhida.
Ann tinha lágrimas nos olhos. E eram sinceras.
Carla desviou o olhar. Não sabia como lidar com a irmã naquele estado, pois isso não
acontecia com freqüência.
-- Devia ter pensado melhor antes.
-- Sabe de uma coisa? Você se transformou numa mulher insensível depois que foi à
faculdade. Não consigo entender.
"Será?"
O comentário de Ann a atingiu com intensidade. Após a morte da mãe, Carla se fechara para
as emoções, mas não percebera que isso era tão evidente.
-- O que aconteceu com a irmã que pregava peças em seus pretendentes e depois me pedia
para ajudar? Que eu me lembre, nunca a deixei na mão quando me implorava para sair com eles
porque tinha mudado de idéia. E jamais lhes contei que tínhamos trocado de lugar.
Carla se esquecera daqueles dias mais felizes. Tinha de admitir que Ann fora uma grande
amiga na época de colégio, quando se apaixonara pelo vizinho, Jerry.
-- É o que estou fazendo agora, Carla. Implorando que me ajude. Meu agente disse que
tenho de estar às seis horas da manhã no estúdio. Se eu não aparecer, perderei o papel, ficarei
"queimada" e ele não me representará mais. Só posso pedir a mão a minha família. Por favor!
Carla sentiu que o cerco se apertava e fechou os olhos com força.
-- Está pedindo muito.
-- Sei disso. Se ajudar em algo, arquitetei um plano de emergência.
-- Qual é?
-- Fiz um cheque de dez mil dólares para o príncipe. É todo o dinheiro que tenho até eu
receber o pagamento, dentro de duas semanas. Quando chegar à Itália, seja honesta com Sua Alteza.
Diga que é minha irmã e que está em meu lugar. Explique que, na mesma noite em que me
escolheu, me ofereceram o papel mais importante de minha vida. Devolva o anel de noivado e
entregue o cheque. Deve cobrir as passagens e qualquer outra despesa que o príncipe possa ter tido.
Diga também, se ele quiser mais dinheiro por causa da quebra de contrato, que entre em contato
com meu advogado. Assim que tiver feito isso, poderá dar meia-volta e pegar o primeiro vôo de
volta para casa, Carla. Juro que Enzo é um amor. Todas as outras finalistas o acharam um doce e
queriam ser escolhidas. Não haverá problema nesse sentido.
-- Você não sabe nada sobre esse homem -- murmurou Carla.
O pior de tudo era que a sugestão de Ann lhe parecia plausível. Imaginou que, se
conversasse com o príncipe pessoalmente, lhe oferecesse o dinheiro e explicasse a situação...
-- Pode ser, mas tenho certeza de que não é o monstro no qual você o transformou. Apenas
lembre, Carla: não decidi participar do concurso para recuar, caso fosse escolhida. Eu iria até o
final. Mas, quando meu agente me deu a notícia sobre o papel, não pude recusar. Olhe... você já tem
sua carreira estabelecida. Não pode tirar três dias para me ajudar a alavancar a minha? Isso é pedir
muito?
Colocado dessa maneira...
-- Não. -- Sentia-se mesmo em dívida com a irmã por favores do passado.
-- Oh, querida, obrigada, obrigada! -- Ann começou a chorar e a soluçar e a abraçou, sem
se importar com a lama.
-- Desculpe-me por ter te deixado tão tensa. Três dias não são tanto sacrifício. Vou sugerir
ao príncipe que se case com a segunda colocada. Ela também teve de assinar o contrato. Aposto que
ficará radiante em assumir seu lugar.
-- Lógico que vai! É uma morena bonita, e estuda arquitetura em Carmel. Eles passaram um
vídeo dela em que vencia várias competições de hipismo. Não sei como Enzo não a preferiu.
Parecia muito mais adequada para se tornar uma princesa.
Graças a Deus havia uma segunda colocada. Isso facilitaria a tarefa de Carla.
-- Por que não volta à clínica e me espera lá, Ann? Não sei quanto terei de morar nos Pike.
-- Tudo bem. Ficarei no carro e estudarei meu texto para amanhã. Depois, iremos até sua
casa, e eu a ajudo a fazer as malas.
-- Que malas? Só preciso de roupa íntima, uma calça jeans e um top para uma viagem de
trinta e seis horas. E todo o tempo de que posso dispor. A égua dos Selander vai parir a qualquer
momento. Quero estar aqui para cuidar de tudo.
-- Mas você não pode se encontrar com o príncipe vestida dessa maneira!
-- Não sou a noiva dele. Ninguém se importará com minha aparência.
-- Só espero que não se sinta uma tola quando vir toda aquela gente no aeroporto a sua
espera com toda pompa e circunstância.
-- Ele vai ter o que merece por tê-la comprado como uma mercadoria. E tão asqueroso que
ainda não acredito que seja real.
O príncipe podia ser atraente, mas Carla apostava que havia um traço de insanidade na
família Tescotti. Quanto mais cedo pudesse tirar Ann daquela confusão, melhor.

Dois dias depois, Carla passou pela alfândega em Milão e tomou um vôo de conexão para
Turim.
Abriu o cinto de segurança, ansiosa para encontrar o príncipe e resolver tudo. Apesar de
estar cansada, voar de primeira classe fora uma experiência agradável. Em uma hora, estaria no
avião de volta e dormiria durante toda a viagem.
Passou a alça da bolsa por sobre o ombro e seguiu com os outros passageiros até a sala de
espera, no terminal.
Havia uma multidão no saguão. Carla esperou pela grande recepção, mas para sua surpresa
nada aconteceu. Circulou por alguns minutos, aguardando ser abordada ou pelo menos ouvir o
nome da irmã ser anunciado.
Que estranho... parecia que ainda não chegara ninguém da casa real para apanhá-la. Talvez
tivesse ocorrido um imprevisto, e o príncipe não pudera evitar o atraso.
Aos poucos, a multidão se foi, e só restou um homem com um olhar misterioso, sentado em
uma cadeira. Aparentava trinta e poucos anos, e seus cabelos eram pretos e longos. Lia um jornal
italiano. O jeans surrado e a jaqueta de couro preto davam impressão de uma personalidade forte.
Existia algo nos homens italianos que Carla percebera desde o instante em que entrara no
terminal de Milão. Não importava como se vestiam, pois possuíam um certo estilo e elegância que
os destacava dos demais.
Foi forçada a admitir que essa era a razão de sua reputação de amantes sedutores. Sobretudo
aquele estranho moreno, cujas feições marcantes faziam seu coração acelerar.
Ele a fitou, e quando seus olhares se encontraram, Carla sentiu um intenso calor tomar conta
de todo seu corpo. Virou-se, constrangida por encará-lo daquela forma. Seguiu para o balcão, sem
hesitar.
Se o príncipe não viesse logo, escreveria um bilhete e o deixaria no envelope junto com o
anel e o cheque. Antes de embarcar no avião de volta, dentro de meia hora, pediria ao atendente da
companhia aérea que o entregasse a Sua Alteza.
-- Signorina Dassiter?
Uma voz estranha e envolvente se fez ouvir atrás dela. Carla se voltou e se deparou com o
estranho de olhar misterioso. Era um homem alto, com pelo menos um metro e oitenta e cinco. Seus
olhos negros, penetrantes, pareciam devorar-lhe as feições e os cabelos, presos em um rabo.
-- Você é do palácio?
-- Sim, sou. Meu nome é Luigi. -- Seu inglês era perfeito, com um sotaque forte que ela
achou lindo.
-- Pensei que o príncipe Enzo viesse me receber.
-- Temo que ele tenha tido um imprevisto. Fui escolhido para... cuidar de você.
-- Quem é? Um de seus seguranças?
-- Iria se sentir mais segura se eu dissesse que sim?
Não. Para dizer a verdade, Carla achava que aquele homem poderia lidar com qualquer
situação. O que a incomodava era a entonação zombeteira e arrogante. Parecia que o emissário do
príncipe a fizera esperar de propósito.
Ele não gostava dela. O instinto de Carla lhe dizia isso, e não conseguia censurá-lo.
Qualquer mulher que participasse de um concurso para vender o corpo para um homem
desconhecido merecia o desdém do mundo.
Por outro lado, qualquer um que trabalhasse para um príncipe sem moral era tão desprezível
quanto.
-- Digamos que me responder com outra pergunta soou bastante maquiavélico. Mas eu não
devia estar surpresa. Esta é a terra de Maquiável, o mestre da astúcia, não é?
Por uma fração de segundo, os olhos dele brilharam com uma estranha emoção que a
arrepiou.
-- O príncipe ficará impressionado com seu conhecimento de história política italiana,
signorina. Parece que ainda nos reserva muitas surpresas. Vamos pegar suas malas?
-- Não trouxe nenhuma.
-- Claro que não. Uma futura princesa precisa de um novo guarda-roupa. -- Deslizou o
indicador na face dela. -- O veludo parece combinar com você. Com certeza o príncipe Enzo não
resistirá.
-- Essa é uma de suas funções? Inspecionar a mercadoria real? -- Carla recuou, para tentar
controlar a excitação que lhe invadira o corpo.
-- Considere isso como um lapso que não pude evitar. Não tornará a acontecer. Agora que é
a noiva do príncipe, ele não permitirá que nenhum outro a toque, sob pena de morte.
-- Uma atitude bastante feudal da parte de seu senhor mandá-lo para descobrir meu maior
defeito. Pois vou avisando que tenho muitos. -- E esboçou um sorriso gelado.
-- Não achei que gostaria tanto de minha missão. Exceto pelo vestido de noiva, que foi
comprado há algum tempo, o príncipe me disse para atender a todos seus desejos. Assim que
deixarmos o aeroporto, será um prazer levá-la para comprar o enxoval real. Ao longo da Via Roma
você encontrará as melhores lojas de nosso país -- sussurrou, estudando as formas voluptuosas com
cuidado.
Carla usava jeans e um top bem surrado, e a atitude dele lhe pareceu ofensiva.
-- Você não vai me levar a lugar nenhum, porque não precisarei de roupas novas.
-- Então é mesmo um sonho que se torna realidade, signorina. Avisarei o príncipe de que
pretende mantê-lo feliz na cama matrimonial por trinta dias e trinta noites.
-- Cuidado, Luigi, você está se excedendo.
-- Se a falta de preocupação com trajes é um dos defeitos que mencionou, admito que estou
ansioso para descobrir os demais.
-- Entregaria isto ao príncipe para mim, por favor? -- pediu-lhe, ansiosa por fazer o jeito
malicioso dele desaparecer.
Carla remexeu na bolsa, onde também estavam seus apetrechos de higiene e lingerie,
apanhou a caixa de veludo com o anel e a entregou a Luigi. Após abrir a tampa, ele segurou a mão
dela.
-- Sabia que este anel data do início do século XVI, quando as casas de Piemonte e de
Monferrato formaram uma importante aliança através do casamento?
Para surpresa de Carla, Luigi colocou o anel em seu dedo. E o estudou por um momento,
para depois prosseguir:
-- Estava me perguntando por que você não o estava usando. Agora tenho a resposta.
Apesar de esta jóia ser a mais valiosa de toda a coleção da família Tescotti, é uma peça de ouro
pesada, e não combina com sua delicada mão. Direi a Sua Alteza para escolher algo mais moderno.
As mãos de Carla estavam ásperas e avermelhadas de tanto lavá-las e esfregá-las antes das
cirurgias, e nenhum creme que passara melhorara seu aspecto. Soltou-se dele, transtornada pelo
toque.
Retirou o anel, guardou-o na caixa e entregou-a a Luigi.
-- Tenho outra coisa para o príncipe. -- Apanhou o envelope com o cheque na bolsa.
-- Dez mil dólares. Pelo que eu saiba, o príncipe não esperava nenhum presente de
casamento seu. Entretanto, sei de algo de que Enzo gostaria, e essa é a quantia necessária para
adquiri-lo. Você o fará o homem mais feliz do planeta. -- Guardou a caixa e o envelope nos bolsos
e a segurou pelo cotovelo. -- E uma bela tarde de outono. Já que não precisa de roupas, pensei que
gostaria de dar um passeio pela cidade, para relaxar. Seria interessante que conhecesse seu reino
antes do casamento, amanhã. Podemos começar?
-- Não irei a lugar nenhum com você, e o dinheiro não é presente algum -- Carla retrucou,
desvencilhando-se dele.
-- Está tremendo... Mas saiba que não há razão para ter medo de mim. Fiz um juramento de
protegê-la com minha vida. Sou a única pessoa que tem a confiança total do príncipe Enzo.
-- Então precisa avisá-lo de que não haverá casamento.
-- Achei que só o noivo tinha o que vocês americanos chamam de crise pré-matrimonial --
brincou, sorrindo, condescendente. -- Está se mostrando uma surpresa em tantos aspectos que estou
cativado.
-- Olhe, Luigi, seja quem você for... serei honesta.
-- Quer dizer que não foi até agora?
Carla respirou fundo, tentando se acalmar.
-- Antes de tirar mais uma conclusão errada, escute-me. Não sou a mulher que o príncipe
escolheu para se casar.
O divertimento no olhar dele a deixava furiosa. Ele apanhou uma fotografia em seu bolso de
trás.
-- Então quem é esta?
A foto era a que Ann mandara com o formulário de inscrição.
-- Sei que se parece comigo, pois sou a irmã gêmea de Ann. Chamo-me Carla.
-- Carla. -- Luigi tomou a bolsa dela e apanhou seu passaporte. Comparou os dois retratos.
-- Seu nome consta como Carla Ann Dassiter.
-- Sim. Minha irmã se chama Annabelle, mas usamos apenas Ann. Nosso pai quis que nós
duas tivéssemos o nome de nossa mãe.
-- Que mentira você inventou... E óbvio que teme dar um passo tão grande. Quem iria
imaginar, vindo de uma aspirante a atriz de Hollywood?
Carla tivera o suficiente daquele tom sarcástico.
-- Luigi, está confundindo minha frustração com temor. Por que não me escuta? Tentarei
mais uma vez: não sou a escolhida do príncipe!
Como se estivesse em seu direito, ele abriu a carteira dela e olhou sua carteira de motorista.
-- Carla Ann Dassiter.
-- Isso não nos levará a lugar nenhum. Vim até aqui para explicar ao príncipe que Ann não
pode se casar, porque vai estrelar um novo filme. Os dez mil dólares são para as despesas com as
passagens e outros gastos.
Luigi permaneceu em silêncio, e ela seguiu avante:
-- Minha irmã sente muito por quebrar o contrato. Asseguro-lhe que cumpriria o
combinado, mas na noite do concurso seu agente lhe acenou com uma oportunidade única. Ann não
podia recusar.
A quietude a enfurecia.
-- Eles começaram a filmar em Hollywood ontem, e Ann teria de estar no set às seis da
manhã. Assim, anteontem ela me procurou e me pediu para entregar o anel e o dinheiro ao príncipe.
Carla se perguntou se ao menos ele a ouvia.
-- Se não é o suficiente, diga-lhe para contatar seu advogado. Ann escreveu seu nome e
número no envelope. Acho que isso é tudo. Agora tenho de ir. Estão chamando o meu vôo para
Milão.
O terminal se enchera de novo.
-- Por favor, minha carteira e meu passaporte, sim?
Para seu alívio, Luigi guardou tudo na bolsa e a entregou.
-- Darei seu recado ao príncipe.
Enfim, uma reação!
-- Obrigada. Por favor, diga a Sua Alteza que sinto muito por minha irmã não saber sobre a
proposta do filme a tempo de desistir do concurso. Mas se ele for maravilhoso como Ann diz, tenho
certeza de que não terá problemas em encontrar outra noiva. Ann me falou que a segunda colocada
estava louca para ser escolhida. Lembre ao príncipe de que ela é a morena encantadora, praticante
de hipismo. Ah, sim! E estudante de arquitetura. A moça será a noiva ideal para Sua Alteza. Se ele
agir rápido, um jato particular poderá buscá-la para a cerimônia amanhã. Agora, tenho mesmo de ir.
Adeus.
CAPÍTULO II


Aliviada por se afastar dele, Carla entregou o cartão de embarque ao atendente da
companhia aérea e entrou depressa no avião. Depois de encontrar sua poltrona e se acomodar, pôde,
enfim, relaxar.
Tudo saíra melhor do que esperara. De certo modo, ficou satisfeita por não ter precisado
conversar com o príncipe. Apesar da repulsa que sentia por seu método de conseguir uma noiva,
teria sido duro encará-lo e dizer-lhe que a irmã não o queria para marido.
Quanto a Luigi, precisava parar de pensar nele e esquecer que existia. Aquele homem
mexera com ela de um modo assustador, na certa porque era estrangeiro e desconhecido. Carla
ainda se arrepiava ao se lembrar de seu toque na face e nas mãos.
Nunca reagira ao sexo oposto daquele modo. Pior: era invadida por uma sensação de perda
ao perceber que não o veria de novo.
Muito estranho, já que chegara à conclusão de que ela e Ann talvez não tivessem os
sentimentos normais de uma mulher. Todas as amigas delas haviam se casado, e muitas já tinham
filhos.
Quando adolescentes, Carla e Ann sempre tinham companhia para sair e, mesmo assim,
nenhuma das duas tivera um namorado sério.
Na faculdade de veterinária, houve vários estudantes interessados em Carla, que estava
absorta demais nos estudos para se envolver. Acontecera o mesmo com Ann, que saíra com alguns
atores famosos. Seu desejo de se tornar atriz entretanto, era mais forte do que o de ter uma relação
estável.
Agora, de repente, um estranho fizera Carla perceber que era um ser humano de carne e
osso, com necessidades que pareciam ter ficado adormecidas por todos aqueles anos. Que irônico
imaginar que fora preciso um italiano para despertar sua sensualidade.
"Não qualquer italiano, Carla." Sua intuição com animais e seres humanos costumava estar
correta. O rapaz que trabalhava para o príncipe Enzo era diferente. Ela percebera isso desde o
momento em que o vira sentado, indiferente ao mundo a seu redor.
No fundo, tinha a sensação desconfortável de que ele seria inesquecível. E isso era tão
perturbador que ela apanhou seu livro para ocupar a mente com qualquer coisa além dele.
Aos poucos, as poltronas foram ocupadas. Carla tentou se concentrar na história, mas era
impossível, e parecia que o avião nunca iria decolar.
Uma comissária entrou na aeronave. Sorria e conversava com os passageiros. Aproximou-se
de Carla e disse:
-- Signorina Dassiter? Poderia vir comigo, por favor?
-- Por quê? O que há de errado?
-- Não sei. Há dois policiais no terminal que desejam lhe falar.
"Ah, não!" Luigi devia ter falado com o príncipe, e agora ela seria detida. Devia saber que
fora fácil demais.
-- Como cortesia, eu lhes falei que encontraria a senhorita. Tenho certeza de que não deseja
o constrangimento de um interrogatório a bordo.
-- Não, de modo algum. Mas o avião já vai decolar.
-- Eles garantiram que será rápido.
-- Certo. Obrigada.
Carla se levantou, trêmula, apanhou a bolsa e seguiu a comissária até o terminal. Dois
policiais italianos a esperavam na saída.
-- Signorina Dassiter?
-- Sim.
-- Signorina Ann Dassiter? -- indagou o outro oficial.
-- Não. Meu nome é Carla. Ann é minha irmã.
-- Seu passaporte, por favor.
Mais uma vez ela abriu a bolsa para apanhá-lo. O policial o recebeu e olhou a fotografia.
-- Muito obrigado. -- E o guardou em seu bolso, -- Se puder nos acompanhar...
-- O que quer dizer? Tenho de tomar o avião!
Os policiais sorriram um para o outro.
-- Sua Alteza Real entende que sua bela noiva americana está em crise pré-nupcial, um
problema que acha muito charmoso. Ele crê que a esta altura a senhorita o tenha superado, e pede
que a levemos até sua presença.
-- Não! Quero dizer, vocês não entendem, eu não sou a noiva dele! Posso provar, se me
deixarem dar um telefonema!
-- Sua Alteza nos avisou de que não seria simples.
Os dois riam.
-- Venha, signorina. Ninguém faz o príncipe esperar. No entanto, ele fez uma exceção para
sua noiva, desta vez. Vamos levá-la até ele.
Carla sentiu que apenas dificultaria tudo se continuasse a se opor. Como sua irmã pôde
imaginar que dez mil dólares resolveriam a situação?
"Enzo é um doce. Todas as outras finalistas o acharam um amor e queriam ser escolhidas.
Não haverá problema nenhum."
Carla pressentira que havia algo errado. E agora o confirmara. O príncipe Enzo possuía
apenas um título e nada mais! Por isso não houve ninguém da casa real a sua espera, e por isso
precisava comprar uma noiva.
Essa era a razão provável para Enzo ter usado seu status de celebridade para ser o centro das
atenções em um enorme evento de caridade de Hollywood. Sem dúvida precisava de uma esposa
para sustentá-lo! Onde mais no mundo, a não ser nos Estados Unidos, as pessoas doariam grandes
quantias para caridade para estar com um príncipe europeu?
Que escolha melhor do que uma atriz de Hollywood tola, com uma polpuda conta bancária
que poderia alimentar todos os sem-teto de uma vez?
A escolha do príncipe começava a fazer sentido. Todos sabiam que uma estrela de cinema
valia milhões. O suficiente para deixá-lo bem, da maneira como estava acostumado antes de sua
fortuna ter acabado ou de ele a ter esbanjado.
Pelo jeito, o porta-voz do príncipe Enzo não perdera tempo em explicar que a signorina
Dassiter tentara quebrar o contrato e dissera que não era a noiva certa. Devia, inclusive, tê-lo
aconselhado a extorquir o máximo de dinheiro que pudesse.
Parecia que Carla não tinha escolha agora senão encontrar o príncipe e esclarecer a grotesca
situação que ele criara, devido à própria ganância.
Uma vez que pudesse provar que Enzo não tinha nada a não ser um título inócuo, lei
nenhuma poderia obrigar a irmã de Carla a cumprir o absurdo contrato.
Para não fazer uma cena, Carla concordou em acompanhar os policiais. Assim, os três
entraram em um elevador próximo e desceram.
Para seu desespero, imagens do empregado moreno e astuto do príncipe a impediam de
concentrar-se no confronto iminente. Sem dúvida, Luigi elaborara um plano para Enzo, em troca da
promessa de uma gorda fatia dos lucros dos futuros filmes de Ann.
Carla estivera certa desde o início. Nas veias de Luigi corria um sangue maquiavélico, mas
ele nem desconfiava de que a ascendência dela provinha do impetuoso povo nórdico.
Quando o elevador chegou ao térreo, Carla se preparou para o que tinha de enfrentar, e
estreitou os olhos.
Os policiais a conduziram para uma porta no final do corredor e a destrancaram. Na rua,
uma van da polícia os aguardava. Eles a ajudaram a sentar-se atrás, num espaço destituído de
janelas.
Após seguir vinte minutos sem saber para onde a conduziam, ela sentiu que a van diminuía a
velocidade e parava.
Quando saiu, viu-se em frente a um prédio de apartamentos de tamanho médio, em algum
lugar no coração de Turim. Observou um homem de capacete descer da moto no estacionamento.
Arregalou os olhos ao constatar que se tratava de uma Danelli novinha. Não era possível, a
não ser que...
Mas quando a empresa começara a fabricá-las de novo?
Para seu espanto, um dos oficiais foi até ele e entregou-lhe o passaporte dela. Após uma
breve conversa, voltou para a van e partiu, deixando-a aturdida.
"Então esse é o príncipe."
Parecia que ele tinha um pouco mais de dinheiro do que Carla imaginara. A não ser que
estivesse coberto de dívidas e quisesse que sua noiva o salvasse. Uma máquina fabulosa como
aquela devia ter custado cem mil dólares pelo menos. Talvez muito mais.
O rapaz retirou o capacete sem se preocupar em ajeitar os cabelos, que ficaram
desarrumados.
-- Buongiorno, signorina.
O som áspero e sedutor da conhecida voz masculina a deixou boquiaberta.
"Luigi!" Carla odiou o fato de ele estar mais atraente do que nunca.
-- Não me diga... -- Seu coração batia acelerado. -- Presumo que é aqui que o príncipe
mora agora, já que perdeu todas suas propriedades há muito tempo.
-- Como você é esperta!
-- Sim. Obrigada por ser sincero sobre isso. -- Carla decidiu ignorar o sarcasmo. -- Pena
que minha irmã não é uma atriz famosa e rica ainda. Isso tudo poderia ter um final diferente se Ann
estivesse pronta a dar as costas para o sucesso e se devotar a um príncipe falido.
-- Não se pode culpar um homem por tentar -- Luigi devolveu, com um dar de ombros
elegante.
-- Creio que não. Porém, apostou tudo na mulher errada. Mas, como Ann é minha irmã,
posso falar por ela. Ann pode ser um pouco tola às vezes, mas é uma boa pessoa, que quer consertar
a situação com o príncipe. Pensa que se trata de um homem charmoso, civilizado, que vai entender
as circunstâncias e fazer um acordo com seu advogado. Espero que seja assim, para que tudo fique
bem. Tenho de viajar para os Estados Unidos hoje à noite.
-- Que tal entrarmos e descobrirmos? Está bem?
Luigi a conduziu para a entrada dos fundos, onde uma escadinha conduzia ao segundo
andar. Passou por duas portas à esquerda e colocou a chave na fechadura.
Carla ouviu latidos.
-- Basta, Valentino!
Assim que a porta se abriu, um lindo boxer marrom-claro o cumprimentou com tamanha
alegria que o coração de Carla se encheu de ternura. O primeiro sorriso de verdade que ela via
iluminou o semblante de Luigi, que pôs o capacete sobre a mesa e brincou com o cão.
Falou com ele em italiano, e Carla só entendeu as palavras "Signorina Dassiter", antes de ele
se virar para ela.
-- Valentino vai "lhe dar cinco" se estender a mão.
"Dar cinco" era uma gíria para duas pessoas batendo as palmas uma da outra. O inglês de
Luigi era excelente. Pelo visto, o príncipe contratara alguém bem inteligente para agir em situações
como aquela.
Carla levantou a mão. Valentino ergueu a pata e a tocou com o grau certo de força para não
derrubá-la. Encantada, abaixou-se e o abraçou pelo pescoço, afagando-o atrás das orelhas.
-- Você é lindo! -- disse, com suavidade.
Ele lambeu-lhe a boca, como retribuição ao elogio.
-- Eu também te amo. -- Carla, rindo muito, beijou-lhe a cara. -- Sim, amo, criatura
maravilhosa.
Incapaz de se conter, ela se ajoelhou para examinar suas patas brancas. A coloração era
perfeita.
-- Você tem as marcas e a estrutura de um verdadeiro campeão. -- Beijou a cabeça de
Valentino, antes de se levantar.
-- Para um cão e um ser humano que não entendem a língua um do outro, vocês dois
venceram a barreira sem problemas -- murmurou Luigi, um tanto seco.
O boxer a rodeou, cheirou e lambeu-lhe as mãos e as pernas. Podia sentir o odor do hospital
veterinário onde Carla trabalhava e morava.
-- É porque sou louca por animais. Há quanto tempo o príncipe o tem?
-- Oito anos.
-- Homem de sorte... Ele deixa você levar Valentino para passear?
-- Sempre.
-- Se eu trabalhasse para Sua Alteza, seria minha tarefa favorita.
Luigi a olhou de um modo que ela não pôde definir.
-- Venha para a outra sala.
Ansiosa por encontrar o príncipe e terminar com tudo, Carla o seguiu.
A decoração era modesta, com móveis que aparentavam ser de segunda mão, assim como
seu apartamento de um quarto nos fundos da clínica.
-- O príncipe Enzo passa mesmo por um período difícil. Sinto-me em casa.
-- Ele gostará de saber disso. Por favor, sinta-se à vontade.
Carla se acomodou numa cadeira. Valentino se deitou perto de seus pés. Passaram-se alguns
minutos de silêncio até que perguntou:
-- Por que o príncipe demora tanto?
-- Ele saiu um instante.
-- O que está acontecendo aqui? -- Carla indagou, desconfiada.
-- Como o casamento é amanhã, o príncipe está ocupado. Já vai voltar. -- Luigi sentou-se
no sofá na frente dela.
-- Ele terá de se apressar, se quiser que a outra candidata esteja aqui a tempo.
Luigi se recostou e esticou as pernas longas e fortes.
-- Vamos, signorina... Com certeza não vai continuar com essa história de gêmea, não é?
Carla se pôs de pé de imediato. O movimento incomodou o cão, que logo se colocou diante
dela, para que não saísse. Em outra situação, ela riria, mas nada daquilo era divertido.
-- Onde está o telefone? Vou ligar para Ann, e ela explicará tudo.
-- O príncipe usa apenas um celular.
-- Então suponho que você também tenha um. Posso usar o seu? -- pediu, irritada.
-- Eu o emprestaria, mas está descarregado.
-- Que conveniente...
Como que alegando inocência, Luigi deu de ombros.
-- Precisamos discutir os horários de amanhã antes que o príncipe Enzo chegue. É meu
dever prepará-la para a cerimônia. Por que não se senta e relaxa? Ansiedade demais antes do
casamento atrapalhará a noite de núpcias. O príncipe tem planejado tudo desde que viu sua
fotografia, no mês passado. E espera encontrar sua nova companheira tão ansiosa quanto ele, para
começar a vida como marido e mulher. Eu devo cuidar para que Sua Alteza não se desaponte.
-- E é claro que minha opinião não conta! -- Carla disparou, ruborizada.
-- Não, mesmo. Você assinou um contrato, que eu mesmo redigi para o príncipe, perante o
advogado dele. Está tudo acertado, signorina. Ninguém pode quebrá-lo, nem mesmo o Papa.
-- Eu não assinei nada. Foi minha irmã.
Luigi a encarou. Ela lutou para não desviar o olhar.
-- Vamos supor que isso seja verdade... e você tenha mesmo uma irmã gêmea chamada
Ann. Isso não vai impedir que o casamento ocorra amanhã. Se sua irmã tivesse ouvido com atenção
a descrição do príncipe Enzo que o comitê lhe forneceu, teria constatado que em suas veias corre o
sangue dos Bórgia, além do dos Tescotti. É fato histórico que Maquiavel usou César Bórgia como
modelo para seu livro sobre o príncipe que reinou sem consideração moral por seus aterrorizados
súditos. Se eu fosse você, pensaria bem em como influenciar seu novo marido a não mandar
prender sua gêmea por tê-la mandado em seu lugar. A prisão não é lugar para a noiva do príncipe
Enzo. -- Luigi se aproximou.
-- Ann não está aqui para ser presa. -- Carla se recusava a se deixar intimidar.
-- Sim, é verdade. Mas você está.
-- Pensei que o príncipe me queria como noiva.
-- Evidente que você será sua princesa, mas permanecerá mantida em prisão domiciliar.
Carla sentiu que o cerco se fechava, mas não deixaria que Luigi percebesse sua aflição.
-- Então agora chegamos ao motivo verdadeiro dessa farsa ridícula. Minha irmã já lhe fez
um cheque de dez mil dólares, que é todo dinheiro que possui. Com o próximo filme, tenho certeza
de que poderá lhe pagar cinco vezes mais. Qual é o preço dele? Se Ann não der conta, eu mesma
irei até meu banco para ver quanto posso tomar emprestado. E assim, ficaria endividada pelo resto
da vida.
-- Sua lealdade com sua irmã é admirável, signorina. Se tiver mesmo uma... -- completou,
muito tranqüilo. -- É uma lástima que dinheiro não seja a questão aqui.
Luigi apanhou o cheque em seu bolso e o pôs sobre a mesinha de café.
-- Então o que é? Por que o príncipe armou essa confusão para escolher uma noiva
americana? A não ser que... ele tenha algum defeito genético herdado dos Bórgia que seja
conhecido por todas as nobres italianas, que o evitam como a peste bubônica -- Carla concluiu,
com um sorriso maroto.
Com a elegância de uma pantera, Luigi se ergueu.
-- Sua cabeça não é tão vazia quanto eu pensava, por isso não vou estragar a surpresa.
Amanhã descobrirá por si mesma com o que concordou em se casar.
-- Isso é bárbaro!
Ao ouvir seu grito, o boxer gemeu e ficou em posição de guarda.
Um sorrisinho de escárnio surgiu no canto da boca de Luigi.
-- Valentino gosta muito de você, o que é uma surpresa, considerando sua devoção ao
príncipe. Mantenha o volume de sua voz razoável e ele não a tratará como intrusa. É a última coisa
que deseja fazer. Como pode ver, está abanando a cauda.
Carla podia lidar com Valentino. O cão era fabuloso. Quanto a Luigi, ele a encurralava cada
vez mais.
-- Você me trouxe até aqui com uma mentira. Não verei o príncipe antes do casamento, não
é?
-- Agora está começando a compreender.
Carla suspirou.
-- Bem, já que não me dá escolha senão me render, que tal conceder à prisioneira um último
favor antes da execução de amanhã?
Luigi sorriu.
-- Seu desejo é um ordem, signorina.
-- Está falando sério?
-- Pode pedir.
-- Podemos dar uma volta pela cidade como me prometeu?
-- Sem dúvida. Vou chamar a limusine.
-- Não... eu quero dizer em sua moto.
Um silêncio estranho tomou conta do ambiente. Carla gostou do espanto dele.
-- Em um filme que aluguei uma vez, uma americana ia na garupa da moto de um
camarada, passeando pelas ruas de Nápoles. Parecia tão divertido o modo como ele seguia pelas
ruas estreitas e pelos becos... Os dois iam até lugares interessantíssimos, nos quais um carro não
entraria.
-- Turim é uma cidade do Norte com espaços amplos, jardins, ruas e ângulos retos,
signorina.
-- Tudo bem, Luigi. Eu entendo. Mesmo.
-- O que acha que entende?
Bom. Ela despertara sua curiosidade, como queria.
-- Que é sua responsabilidade me proteger até amanhã.
-- E?
-- Eu devia ter percebido que não se sente seguro para me levar para uma volta de moto
sem que possa ocorrer um acidente. Poderia ter me dito, mas me esqueci de seu orgulho. Sei que o
orgulho de um italiano é maior do que o dos outros homens.
Luigi não fazia idéia de quanta satisfação Carla sentia por lhe dizer isso.
-- Se havia algo que queria proteger era sua sensibilidade feminina, signorina. Você teria
que ficar colada a mim, como minha segunda pele -- completou, com aspereza, sem deixar dúvida
sobre o que pensava. -- Contudo, se é seu desejo, longe de mim negá-lo à adorável noiva do
príncipe.
Carla tornou a se desviar, animada por ter atingido seu primeiro objetivo. Mas sabia que o
segundo passo seria mais difícil.
-- O banheiro fica no final do corredor, à direita. Sinta-se à vontade para se refrescar
enquanto apanho o capacete do príncipe para você.
-- Mas no filme a mulher não usava...
-- Esqueça o filme. Se, Deus nos livre, algo inesperado acontecesse, jamais me perdoaria se
você sofresse algum ferimento. Com ou sem príncipe.
Luigi permaneceu parado com as mãos nos quadris, forte e viril. Carla estremeceu diante da
idéia de ficar colada a ele.
-- Se mudou de idéia, signorina...
-- Não. Estarei pronta em um minuto.
-- Ótimo. Já vai anoitecer.
Carla percorreu o corredor com as pernas bambas, e Luigi era o responsável por isso.
Valentino a seguiu, e ela ouviu sua respiração forte perto da porta do banheiro. Parecia seu
cão, e isso a fez lembrar como sentia a falta de Chloe.
Ao retornar, Luigi a esperava com um capacete sob o braço e um outro preto, na mão.
Ele disse algo em italiano para o cachorro, que se sentou, e abriu a porta.
-- Depois de você -- disse a Carla, e apontou a saída.
Quando alcançaram o estacionamento, ele já tinha posto o capacete.
Daquela distância, ela podia ler o nome do modelo. Era uma Super Danelli NT-1.
-- Quanto custa uma máquina dessas?
-- Em liras ou dólares?
-- Dólares.
-- Uns cento e cinqüenta mil.
-- Para um príncipe falido, ele lhe deve pagar um bom salário, para que possa comprar isso.
Luigi a ignorou e colocou o capacete nela. Seus olhos penetrantes encontraram os de Carla
por um momento.
Luigi subiu na moto, ligou o poderoso motor e virou-se para ela.
-- Quando subir, coloque os pés nos apoios e me abrace, entrelaçando os dedos. É tudo o
que tem de fazer.
Carla soube que Luigi era um homem perigoso assim que o viu. Nem em seus sonhos mais
selvagens estivera numa motocicleta como aquela. Apostava que podia atingir mais de cento e
sessenta quilômetros por hora em menos de dez segundos. A sensação devia ser emocionante.
Céus, não fosse pela confusão em que Ann se metera, Carla estaria vivendo o melhor
momento de sua vida!
Seu coração bateu acelerado quando Luigi acionou a embreagem e engatou a marcha. Estava
impaciente, fazendo-a imaginar que era agora ou nunca.
Sem conseguir ocultar a ansiedade, Carla sentou-se na garupa e ajustou a bolsa a tiracolo.
-- Estou pronta -- avisou-o.
Ajeitou o capacete, pôs os pés nos apoios e enlaçou a cintura dele. Assim que entrelaçou os
dedos, a moto pareceu ganhar vontade própria.
Luigi manobrou no estacionamento, e depois de um salto inicial, tudo ao redor foi perdendo
a cor. Pode-se dizer que voaram em direção à rua.
CAPÍTULO III


Aquilo era puro êxtase.
Luigi tinha total controle sobre a moto, que deslizava por entre os carros. O modo ousado
como fazia as curvas com precisão denotava a experiência de um profissional.
Será que ele participava de corridas nas horas livres, motivo pelo qual pudera comprar o
veículo? Ou aquele era um modelo especial pago por patrocinadores?
A adrenalina correu pelas veias de Carla diante da idéia de montar uma das melhores
motocicletas do planeta. Ainda assim, percebeu que Luigi tomava cuidado para que nada lhe
acontecesse.
Carla se perguntou para onde ele a estaria levando. A estrada parecia conduzir aos arredores
de Turim, onde se viam construções muito antigas e casas em estilo barroco.
Quando o sol mergulhou no horizonte, os quatro rios de Turim e suas dezenas de jardins
haviam ficado para trás. Chegaram a um vale cujos desenhos formados pelas plantações de uva
lembravam uma colcha de retalhos. A essência deliciosa da fruta os envolvia.
Apesar de o ar estar mais frio, Carla se sentia aquecida pelo calor do corpo de Luigi.
Estavam colados como se fossem um só. A sensação era indescritível.
Ela não queria que o passeio mágico acabasse, e gemeu desapontada quando Luigi saiu da
estrada e tomou uma trilha entre a vegetação. Imaginou que ele quisesse descansar um pouco antes
de retornar.
Logo chegaram a uma charmosa casa de campo de três andares com um pórtico. As
venezianas verdes fechadas contrastavam com o alaranjado das paredes.
Luigi desacelerou e parou no pátio vazio. O lugar parecia deserto para Carla, que se lembrou
de seu plano e concluiu que aquele era o melhor momento para a fuga. Talvez não tivesse outra
chance.
Carla logo desceu da moto e levantou o anteparo do capacete. Enquanto esperava que ele
descesse, observou tudo ao redor. Ciprestes altos se destacavam na paisagem. Anoitecia. Seriam
necessárias as luzes da moto para que encontrasse a estrada.
-- Foi um passeio e tanto -- Carla comentou assim que ele desmontou. -- Antes de
voltarmos, posso me sentar nela um pouco?
Luigi ainda usava o capacete, o que tornava impossível ver a expressão dele. Ele ergueu o
anteparo.
-- Vá em frente.
-- Será que pode me ajudar?
Luigi emitiu um som, talvez de impaciência, mas fez o que ela pediu. Ergueu-a com
facilidade, e Carla se sentou.
-- É mais emocionante que abrir meu presente favorito na manhã de Natal,! Como se
acendem as luzes do painel?
Luigi girou a chave na ignição. O movimento fez com que seu braço esbarrasse no seio dela.
O contato tão íntimo, mesmo que acidental, fez o coração dela bater mais forte.
-- É... é uma bela obra de arte, não? -- Carla murmurou, trêmula.
-- Ainda estamos falando da moto? -- Luigi a fitava com sensualidade.
A escuridão camuflou o rubor das faces dela.
Para sua surpresa, Luigi decidiu tirar o capacete. Carla não entendeu a razão, pois supunha
que retornariam logo à cidade. Mas essa era a distração de que precisava para dar seu próximo
passo.
Sem perda de tempo, Carla empurrou os pés da moto para trás, ligou o motor, engatou a
marcha, e a motocicleta disparou feito um míssil.
Carla escutou frases esbravejadas em italiano atrás de si, que logo se dissiparam por causa
do barulho do motor. Rezou para ganhar uma boa dianteira e seguiu pelo caminho de terra.
Céus, a máquina era mesmo poderosa, e ela mal conseguia controlá-la! Logo se aproximou
da estrada que levava a Turim.
Se conseguisse chegar à embaixada americana, pediria ajuda para regressar aos Estados
Unidos. Luigi reclamaria a motocicleta, e sua irmã arrumaria um advogado para cuidar do príncipe
Enzo.
Dez quilômetros adiante, passou por Monferrato. Mais um quilômetro, e a moto pareceu
perder força. Carla tentou acelerar, mas nada aconteceu.
Para seu desespero, o ponteiro de combustível apontava para vazio!
-- Não!
Ela foi obrigada a parar à beira da rodovia.
Poderia tentar uma carona, mas não ousava deixar uma moto de cento e cinqüenta mil
dólares ali. Por outro lado, era muito pesada para empurrar. Tinha de esperar que alguém a ajudasse
a comprar gasolina.
Logo notou um velho caminhão azul se aproximar. O motorista parou e desceu, deixando os
faróis acesos.
Carla observou um homem alto e bem apanhado vir em sua direção, com um galão de
combustível em uma mão e um capacete na outra. Quando deu-se conta de quem era, suas pernas
bambearam.
Não podia negar que Luigi era muito bonito.
Havia gradações de beleza no reino animal. Valentino tinha grande mérito como um boxer.
Se houvesse um concurso para os homens, Luigi seria um grande campeão. Tamanha atração fazia
Carla esquecer que ele era seu inimigo.
Encontrá-la fora brincadeira de criança para Luigi, que sabia que sua moto estava quase sem
combustível.
O motivo pelo qual escolhera a casa de campo não era mais mistério. Era óbvio que
pertencia a um amigo pronto a lhe fazer qualquer favor, até mesmo emprestar um caminhão e
gasolina.
-- Eu a subestimei, signorina. Acredite, não vai acontecer outra vez.
-- Não se pode culpar uma garota por tentar -- Carla zombou, tentando dar de ombros,
como ele fizera antes, mas falhou.
Luigi fez que não ouviu, foi até a moto e abriu a tampa do compartimento de combustível.
Carla tremia de frio e de nervoso.
Ele pôs a gasolina, retornou ao caminhão para guardar o recipiente, e voltou rápido. Tirou a
jaqueta e estendeu-a a ela.
-- Vista isto.
-- Não precisa, estou bem.
-- O príncipe Enzo não me perdoará se você aparecer no casamento com um resfriado.
Sendo assim, irá usá-la, mesmo que eu tenha de obrigá-la a vesti-la.
Ela sabia que ele falava sério e decidiu obedecer. Puxou o zíper sobre a bolsa pendurada no
pescoço, mas não lhe daria o prazer de saber como era bom sentir-se protegida pelo couro ainda
aquecido pelo corpo dele.
-- Suba na moto, signorina -- ordenou, firme.
Carla se ajeitou atrás dele, e mais uma vez passou os braços ao redor de Luigi.
-- E o caminhão?
-- É um pouco tarde para se preocupar com a propriedade alheia.
O comentário a fez sentir-se mais culpada por ter feito algo tão ousado como roubar sua
fabulosa moto debaixo de seu nariz e tentar escapar.
Luigi manobrou e, de repente, disparou para Monferrato em alta velocidade, sem se
preocupar com a passageira a suas costas.
Agora que sabia que ela podia dirigir, deixou a moto voar, pelo prazer que lhe dava e pela
raiva que sentia. Carla sabia que não haveria outra oportunidade de escapar.
Como Luigi não lhe permitira usar o telefone, teria de inventar algo mais engenhoso.
Estavam em guerra, e é prerrogativa do prisioneiro buscar a liberdade.
Carla não podia se casar com o príncipe Enzo. Não faria isso!
-- Depois de você, signorina. -- Luigi abriu a porta da casa de campo.
Talvez os andares superiores estivessem fechados, mas alguém morava no térreo. Entraram
numa cozinha ampla com um belo piso de lajotas. Um aroma delicioso pairava no ar, vindo do
forno. Carla sentia tanta fome que sua boca se encheu d'água.
Luigi tirou o capacete e depois ajudou-a a tirar o dela. Carla livrou-se do agasalho, e Luigi
colocou tudo sobre uma mesa de canto que ficava junto da parede.
-- Há um lavabo no final do corredor. Fique à vontade, e então vamos comer.
-- De quem é este imóvel?
-- De um amigo. Há um casal que cuida de tudo. Dormiremos aqui, e amanhã cedo eu a
levarei à igreja, para que se case.
Não adiantava discutir. Luigi não a escutaria. Por enquanto, teria de concordar com ele até
que tivesse outra oportunidade de fugir.
-- Junte-se a mim -- Luigi convidou quando ela saiu do banheiro.
Carla sentou-se diante dele à mesa que ficava ao lado da lareira. O calor era agradável, e
contrastava com o ar frio noturno.
Ela comeu com apetite a vitela e a massa, mas recusou o vinho. Carla não bebia, o que era
ótimo, visto que tinha de estar sóbria para achar um jeito de escapulir.
Percebera que não havia grades nas janelas. Quando Luigi estivesse adormecido, poderia
sair correndo pela mata até a estrada e conseguir uma carona para Turim.
Ele tomou o resto do vinho e reclinou-se no espaldar. Cruzou as pernas longas e fortes nos
tornozelos num gesto masculino quase insolente.
-- Não precisa ficar nervosa com a cerimônia. Um padre falará em italiano na capela
particular do palácio Tescotti, e só a família do príncipe estará presente. No momento certo, você
dirá "aceito" em inglês e pronto.
-- Pode me arrastar até lá, mas não conseguirá uma palavra minha. -- Carla se ergueu.
-- Tudo bem. -- Os olhos negros mostravam uma expressão divertida de indiferença. -- Se
for tola o suficiente para ficar calada, o príncipe responderá por você.
-- E também não usarei um vestido de noiva!
-- Como quiser, signorina. Assim como você, o príncipe não está interessado no que vai
usar ou não...
-- Acredita mesmo que Deus aprovaria essa situação?!
-- Como não posso falar por Ele, não tenho idéia. -- Luigi também se levantou. -- O que
importa é que você se casará diante da Igreja, da nação, e é claro, legalmente.
Carla permaneceu imóvel e frustrada. Luigi se pôs a tirar a mesa e apagar a vela.
-- Vai amanhecer dentro de poucas horas. Apesar de parecer poder dispensar seu sono de
beleza, tenho certeza de que está cansada do longo vôo de Los Angeles. O quarto fica à direita do
banheiro. Não é luxuoso, mas está limpo. Siga-me.
Agora que comera e se sentia revigorada, Carla ansiava por se evadir.
-- Que cama você quer? Perto da janela ou da porta?
-- Não estou pronta para dormir!
-- Pois, quando estiver, lembre-se de que os andares superiores estão fechados. Mas por
favor, não se preocupe. Nenhuma namorada reclamou de eu roncar ou andar durante a noite.
Entretanto, caso esses sejam alguns de seus graves defeitos, prometo não contar nada ao príncipe.
Amanhã à noite ele poderá descobrir seus lindos segredos por si mesmo.
Como uma criança birrenta, Carla atirou a bolsa no leito próximo da vidraça e foi até lá. A
janela podia ser aberta com facilidade.
-- Você pode tentar... -- Luigi sussurrou.
Quando Carla se virou, viu que ele já se acomodara na outra cama sem ao menos tirar as
botas.
Aquilo não daria certo! Sem olhar para ele, ela saiu para a sala. A porta fora trancada.
As janelas da cozinha não abriam. Era prisioneira dele.
Sentindo-se como personagem de um pesadelo, Carla sentou-se no chão em frente à lareira.
Abraçou os joelhos e observou as chamas fracas.
Não parecia haver maneira de vencer Luigi. Teria de esperar até o encontro com o príncipe,
no altar, para ter outra chance de surpreender a todos e fugir.
Mas parecia óbvio que Luigi colocaria guardas para assegurar que nada de errado
acontecesse durante a cerimônia. Se tentasse algo, na certa não passaria da soleira da capela.
Não conseguia ver um fim para esse pesadelo.
Desesperada, procurou uma estratégia que pudesse vencê-lo. Pensou em várias
possibilidades.
Uma hora mais tarde, algo lhe ocorreu que poderia dar certo. Se tivesse coragem para por
em prática.
Era algo muito ousado. Tanto que, em outras circunstâncias, seria algo impensável para
Carla.
No entanto, encontrava-se num beco sem saída.
Quando o fogo se apagou, Carla retornou ao quarto. O plano não podia mais ser adiado,
A luz da lua iluminava o físico musculoso de seu carcereiro, ainda vestido.
-- Luigi?
-- Si, signorina?
Ela engoliu em seco, sem saber se ele estivera dormindo.
-- As chamas se apagaram.
-- Era inevitável.
-- Eu sei. Acontece que... quero dormir, mas estou acostumada a um clima mais quente.
Está frio perto da janela, e o cobertor é tão fino...
-- Vamos trocar de cama. Fique nesta aqui. -- Luigi puxou o lençol e as cobertas para ela.
Carla agradeceu em voz baixa. Tirou os sapatos e as meias, e se deitou. Ele a cobriu e
dirigiu-se ao outro leito. Ela percebeu que Luigi tomara cuidado para não tocá-la.
Horas antes, Luigi fizera e dissera coisas que a levaram a acreditar que, se houvesse
oportunidade, ele não hesitaria em tirar proveito da situação.
Precisava enviar um sinal mais claro. Se pelo menos Luigi a beijasse, revelaria ao príncipe
que o homem que mandara para protegê-la não era confiável. Se conseguisse convencê-lo de que
ela cedera aos encantos dele, Enzo cancelaria o casamento.
Suspirou, alto o bastante para que Luigi ouvisse, e se sentou no colchão.
-- O que está fazendo agora?
-- Ainda estou com frio, Luigi. Aí, pensei em soltar meus cabelos para ficar um pouco mais
aquecida.
Aborrecido, ele deixou o quarto. Voltando em seguida com sua jaqueta, notou que Carla
soltara a cabeleira.
-- Deite-se e eu a cubro com isto.
Não era isso o que ele devia dizer. Ela estava fazendo tudo errado. Reunindo coragem,
falou:
-- Obrigada. Não tenho dúvida de que o agasalho vai ajudar. Mas não estou acostumada a
dormir sozinha, e preciso do calor de outro corpo.
-- O homem com quem dormiu ontem sabe que você passará os próximos trinta dias com o
príncipe Enzo? -- Luigi indagou, a expressão oculta pela escuridão.
Ela o zangara, o que era bom.
-- Eu me referia a Chloe, uma cachorrinha frágil que ninguém queria. A pobrezinha nasceu
com um defeito nas patas da frente. Mas como Chloe não está aqui, imaginei que pudesse se deitar
comigo, Luigi. Ficarei bem mais aquecida com você aqui.
Carla não queria que ele pensasse que estava tentando seduzi-lo. Tudo o que pretendia era
que a beijasse. Mas tinha de parecer muito natural.
Um clima estranho pairava na atmosfera. Luigi pôs a jaqueta sobre ela.
-- Não está tão frio assim.
-- Talvez esteja, para mim, porque estou com medo.
-- Não há necessidade disso. O príncipe não exigirá nada que não possa dar. Ele também
assinou o contrato.
-- Vejo que vocês são muito íntimos. -- Carla sentou-se de repente. -- Mas ninguém sabe
o que acontece entre um homem e uma mulher atrás de portas fechadas. Apesar de achar que está
sendo sincero, não pode fazer promessas por outra pessoa. Se eu for obrigada a me casar com ele,
tudo pode acontecer.
-- É isso mesmo. Pode ser que você o ache mais atraente do que pensava e decida que quer
fazer amor com o príncipe.
Luigi distorcera suas palavras de propósito. Carla tentou driblar a frustração e continuou:
-- Pela foto que minha irmã me mostrou, Sua Alteza parece ser muito bonito, mas essa não
é a questão. Enzo é um completo estranho para mim. Sempre quis que minha primeira experiência
fosse com o homem que amo!
Aquilo o aturdiu.
-- Espera que eu acredite que nunca dormiu com um namorado?
-- Não. Não espero nada de você. Nem ao menos se importa em manter a mulher errada
como refém. Por que eu pensaria que posso convencê-lo de algo inacreditável até mesmo para
mim?
Carla podia entender a reação dele. Sua inexperiência com homens era embaraçosa.
Virou-se para o lado e puxou a jaqueta até a altura do queixo. Era muito difícil fazer pose de
mulher fatal, e Luigi não estava caindo na rede.
-- Fazer amor pode ser muito agradável, e não um destino pior que a morte, como diziam as
esposas de antigamente.
-- Sei muito bem disso, mas me recuso a ser cobaia para o prazer do príncipe.
-- Deveria ter pensado nisso antes de descer do avião em Turim.
-- Sim, mas fui uma tola ao tentar ajudar minha irmã, e lhe dei o benefício da dúvida. Devia
saber que ele mandaria alguém em seu lugar. Sei que você só está fazendo o que o príncipe
mandou, mas eu esperava que fosse gentil hoje.
Carla esperou. Sabia que aquele cérebro inteligente distorceria tudo, o que não era nem um
pouco lisonjeiro. Se Ann estivesse ali, não teria de planejar nada. Luigi ficaria tão atraído que
encontraria um quarto com cama de casal no andar superior.
Claro que, se Ann tivesse ido à Itália, teria dito a Luigi que a levasse direto ao príncipe,
portanto não adiantava pensar nisso.
-- Você não tem medo de mim?
-- Não, Luigi. O príncipe confia muito em você, é óbvio. Além do mais, qualquer homem
que tem uma Danelli só tem uma amante na cabeça, e não é uma mulher.
Ele achou graça e se deitou na cama, atrás dela.
Meu Deus, o que fizera?
Luigi passou um braço embaixo do travesseiro dela e com o outro a envolveu. Logo Carla
sentiu sua quentura. O perfume de seu sabonete ainda se desprendia de sua pele.
-- Como sabe tanto sobre motocicletas?
Carla sentia a respiração dele na nuca. Não fora uma boa idéia, afinal!
-- Tivemos alguns vizinhos ricos, durante a adolescência. O filho mais velho, Jerry, possuía
várias motos que ficavam numa garagem especial nos fundos da residência. Eu costumava ir lá
conversar com ele. Jerry me ensinou a dirigir e fazer pequenos reparos. Logo eu estava lendo todas
suas revistas sobre motos. Um dia, trouxe uma Danelli Strada 100 esporte, linda, preta e amarela.
Apaixonei-me na hora e aprendi tudo o que podia sobre a marca. Jerry prometeu que, se um dia
resolvesse vendê-la, eu poderia comprá-la.
-- Você devia ter dez anos quando esse modelo foi fabricado em Milão -- Luigi calculou,
apertando o abraço.
-- Isso mesmo. Ainda depois de casado, Jerry sempre visitava os pais, e mantivemos a
amizade. Há uns seis meses ele me ligou para dizer que estava vendendo suas motos, que mantinha
em perfeitas condições, e perguntou se eu ainda queria comprar a Danelli Strada. Evidente que
agarrei a chance, porque são as melhores que existem.
-- Concordo.
-- Sabe que a minha continua perfeita?
-- Não me surpreende.
-- Quando não trabalha para o príncipe, você corre?
-- Eu corria, de vez em quando.
-- Para a Danelli?
-- Entre outras. -- Luigi assentiu com um gesto de cabeça.
Parecia que não tiraria mais nenhuma informação dele.
-- Para alguém que parou, você ainda é muito bom.
Na verdade, ele era sensacional, mas não lhe daria tal prazer.
-- Que elogio! Estou pasmo.
-- Você conhece o dono, Luca Danelli?
-- Si -- sussurrou perto do rosto dela, espalhando uma sensação indizível em seu baixo-
ventre.
-- Sabe por que pararam de fabricar?
-- O braço direito dele nos negócios, o homem que serviu com Luca na Segunda Guerra,
morreu de repente. Ele suspendeu toda a produção de uma vez quando novas companhias
começavam a surgir.
-- Nunca li sobre isso em minhas revistas.
-- Luca manteve isso em particular.
-- Quem era seu parceiro?
-- Ernesto Strada.
-- É o nome dele em minha moto. Eu pensei que Strada significasse "rua" em italiano,
porque é uma moto de passeio.
-- Qualquer um que não soubesse disso chegaria a essa conclusão.
-- O sr. Danelli deve estar idoso agora.
-- Não sabe que não existem italianos idosos? -- Luigi brincou.
-- Se quer dizer que aos noventa ele ainda corre atrás de mulheres, saiba de uma coisa: isso
não é privilégio dos italianos.
-- Você deve saber.
-- Luigi... já que ele voltou a fabricar, será que eu poderia visitar a fábrica quando for para
Milão tomar o avião para casa?
-- Não. -- Prendeu uma mecha de Carla atrás de sua orelha. -- Todas as motocicletas que
chegarão ao mercado no ano que vem terão de ficar em segredo até irem para os showrooms do
mundo todo.
-- Mas e aquela que você dirige?
-- A minha é deste ano.
-- Ele nunca abre uma exceção?
-- Quer saber se posso usar minha ligação com o príncipe Enzo para arranjar uma visita
especial?
Carla acenou com a cabeça.
-- Algo assim. Diga seu preço e eu pagarei.
-- Tentado como estou para obter o que quero de você, temo que isso quebraria minha
promessa ao príncipe. -- Luigi tocou os lábios dela com os dedos.
Carla se arrepiou. Antes de se deitarem, quis ser beijada para contar ao príncipe que ele não
era confiável. Mas algo mudara nos últimos minutos. Adoraria ter aquela boca sensual na sua, mas
por si própria.
-- O príncipe tem de saber? -- Carla não acreditava que lhe indagara isso.
-- Não, mas eu saberia.
Suspirando, ela se virou para a parede. Parecia que a seu modo Luigi era um homem
honrado.
-- Tenho uma idéia que pode agradar a nós dois, signorina.
-- O que é?
-- Não faça nada contra a cerimônia do casamento amanhã, e eu arranjo tudo com o sr.
Danelli para você. Se for uma noiva obediente, deixarei escolher qualquer moto como presente de
casamento, depois da lua-de-mel.
-- É muita generosidade sua, mas você não tem condições para tal.
-- Por que diz isso?
-- Porque, se o príncipe não tem dinheiro, seu salário deve vir de outra fonte, e não é
suficiente para comprar uma moto caríssima. Essa conversa é ridícula, já que não pretendo me casar
com Enzo.
-- Você não tem escolha, bellissima.
-- Não me chame assim! Vá para sua cama agora. Estou aquecida com sua jaqueta.
Obrigada por me cobrir com ela.
-- Para ser franco, estou bem confortável aqui, onde há espaço para nós dois. Você se
importa?
-- Se não se incomodar com meu ronco...
-- Se você nunca teve um amante, como sabe que ronca?
-- Minha irmã ronca, e somos idênticas.
-- Tudo bem. Estou acostumado com o ronco do Valentino, portanto, o seu não vai me
incomodar.
Ele sempre tinha uma resposta para tudo.
-- Eu o ouvi roncar no corredor. Você sabia que há uma operação que pode dar um jeito
nisso?
-- Acho que o príncipe gosta dele do jeito que é. O barulho é reconfortante na escuridão da
noite.
-- Valentino dorme com o príncipe?
-- Todas as noites. Incomoda?
-- É lógico que não. Que meigo...
O príncipe ganhara um ponto em sua estima.
-- A maioria das noivas não ia querer dividir a cama com um cão.
-- O príncipe deveria ter avisado as participantes desse seu hábito.
-- Por sorte, escolheu uma mulher que dorme com uma cadela chamada Chloe. Você e seu
futuro marido têm algo especial em comum. É um bom começo. Posso ver os quatro juntinhos no
leito real.
-- Pois sua imaginação é muito mais fértil que a minha.
-- Qual é a raça de sua cachorra?
-- É uma pug.
-- Ah... uma raça famosa pelo ronco.
-- Sim. E ela me protege sempre, também.
-- Valentino ficará encantado.
-- Duvido. Chloe não gosta de outros animais e pessoas. Nem meu carteiro conseguiu
conquistá-la, e ele é a pessoa mais adorável que conheço.
-- Talvez seja porque está interessado em você, signorina, e sua cachorrinha percebe o
perigo.
-- Acho que é porque ela foi maltratada pelo antigo dono.
-- É uma pena, mas aposto que o príncipe a conquistará.
-- Essa conversa não levará a nada. Se não se importa, gostaria de dormir agora.
Seu plano de atrair Luigi para beijá-la não estava funcionando. Mesmo que tivesse dado
certo, ela perderia o controle e se afastaria dele. Não importava o quanto quisesse evitar casar-se,
beijar um estranho para escapar não era algo que podia fazer. Devia estar louca quando decidiu pôr
a idéia em prática.
A culpa era de Luigi. A atração por ele aumentava a cada minuto. Carla tinha mais de uma
razão para deixar a Itália assim que possível.
-- Desejo-lhe bons sonhos. Mas sei que não precisa disso, porque em menos de doze horas
será uma princesa. Seu futuro marido é um felizardo. Buona notte, signorina.
Os lábios dele em sua têmpora eram como uma bênção e provocavam um calor intenso em
suas entranhas. Carla ficou imóvel para que ele não percebesse sua reação.
Apesar de toda a masculinidade que emanava de Luigi, sabia que estava segura como se
fosse sua irmã, o que deveria ser reconfortante.
E era. Mas algo lhe dizia que gostaria de ter conhecido Luigi sob outras circunstâncias.
Tentando dormir, imaginava como seria estar ali como turista e de repente encontrar aquele
belo italiano ao descer do avião, em Turim.
E se ele a abordasse e lhe mostrasse a cidade em sua moto? Quem sabe até pudessem se
apaixonar...
CAPÍTULO IV


__ Signorina Dassiter?
A voz de Luigi parecia distante, e em nada se parecia com a do amante ardente de seus
sonhos.
-- Venha! É o dia de seu casamento. Não vai querer se atrasar. Preparei seu café.
"Dia do casamento?" Ela despertou de repente e sentou-se na cama.
Não estavam abraçados observando os surfistas em Big Sur, na Califórnia. Acordara no
mesmo quarto, na casa de campo onde Luigi a mantivera prisioneira.
-- Não estou com fome! -- gritou, antes de se levantar.
-- Então é sua responsabilidade se desmaiar durante a cerimônia.
Carla calçou os tênis. Ótimo. Luigi ainda estava na cozinha.
Sem perder mais um segundo, correu para a janela e a abriu. Não poderia escapar. Havia um
homem de meia-idade trabalhando no jardim.
-- Buon giorno, signorina -- ele a cumprimentou, inocente.
No entanto, Carla tinha todos os motivos para achar que Luigi o colocara ali para evitar
qualquer tentativa de fuga.
-- Bom dia -- murmurou, tornando a fechar a janela.
Não havia mais nada a fazer, senão apanhar a bolsa e ir ao banheiro.
Enquanto prendia os cabelos numa trança, um novo plano se formou em sua mente.
Evidente que iriam a Turim de moto. Assim pularia da garupa em alguma parada, num semáforo ou
no trânsito. Podia ser perigoso, mas valeria a pena, mesmo se tivesse de ir ao hospital em uma
ambulância. O absurdo casamento não aconteceria se estivesse ferida.
Deixou o banheiro ansiosa para pôr em prática sua nova estratégia. Luigi já não estava na
cozinha. Embora a fome fosse imensa, passou reto pela refeição que ele preparara e saiu para o
jardim.
-- Até que enfim -- ele comentou, zombeteiro. -- Que linda manhã de outono para um
casamento!
"Ainda não estamos na igreja, meu rapaz."
Luigi já pusera o capacete e aguardava ao lado da moto. Ele a ajudou a vestir sua jaqueta e
pôs o outro capacete nela.
Carla viu o caminhão estacionado no pátio e imaginou que pertencia ao caseiro, que o
trouxera de volta durante a noite. Para seu desalento, ficara de tal maneira imersa nos sonho em que
Luigi a abraçava que não ouvira nada.
-- Este é seu dia especial. Espero que goste dessa nossa volta a Turim. Suba. -- E, após se
acomodar na moto, ligou a ignição, e o poderoso motor rugiu.
O homem no jardim acenou para eles, quando passaram em direção à estrada.
Carla avistou, incrédula, duas limusines pretas com bandeiras com um brasão real surgirem
de repente para escoltá-los. Seu plano de evadir-se fora por água abaixo.
Apesar de não poder ver através dos vidros escuros dos carros, imaginou que havia muitos
seguranças prontos a impedir qualquer imprevisto.
É claro que Luigi mentira sobre o telefone celular precisar ser recarregado. Não poderia ter
cuidado de tantos detalhes se estivesse incomunicável.
Como resolver aquela situação?
Se fingisse passar mal, Luigi a ignoraria e seguiria as ordens do príncipe. Entrou em pânico
ao se ver seqüestrada dessa forma a plena luz do sol. Seus corpos estavam tão colados que ele
perceberia qualquer movimento seu.
Centenas de curiosos observavam o cortejo, fascinados. Mesmo que gritasse por socorro,
ninguém a escutaria. Quando atingiram os arredores de Turim, duas viaturas da polícia se juntaram
às limusines. As sirenes ligadas forçavam os veículos a abrir espaço.
Quando percebeu que se aproximavam de um dos palácios barrocos que vira na véspera,
Carla se viu invadida por uma sensação de desalento.
Se tivesse propensão a desmaiar, o momento era propício. Entretanto, era uma moça forte.
Se o príncipe queria tanto se casar com ela, teria de arrastá-la à força para o altar.
Logo chegaram a um portão, pelo qual um guarda uniformizado os deixou passar. Carla
imaginou que apesar de o príncipe não ter posses e viver num apartamento na cidade, seus pais
deviam ocupar uma ala do palácio que, sem dúvida, era mantido com o dinheiro arrecadado com
visitas e excursões.
Imaginou também que os parentes mantinham certos privilégios, como o uso da capela real
para batizados e casamentos.
Céus. Casamentos... O seu casamento" Com um estranho!
O carro seguiu pela propriedade repleta de árvores e continuou por uma estrada particular
que conduzia a uma entrada lateral do palácio. Luigi permaneceu logo atrás. Por fim, parou e saltou
da moto.
Ele a ajudou a descer também, e logo estavam cercados por uma dezena de guardas
uniformizados. Luigi entregou seu capacete a um deles.
-- Vou mandar guardar suas coisas -- Luigi avisou ao tomar-lhe a jaqueta, a bolsa e o
capacete.
Outro guarda esperava a seu lado, pronto para receber os pertences.
-- Luigi, por favor não me obrigue...
-- Serão só trinta dias, lembra? Se quiser um divórcio após esse período, não haverá
problema -- tranqüilizou-a, com um olhar misterioso.
-- Mas tudo isso é um grande engano. Se desse um telefonema para minha irmã, saberia a
verdade! -- Carla implorava, com lágrimas nos olhos.
-- É tarde demais para a verdade. Você vai se casar com o príncipe. Assim que passarmos
por aquelas portas, caminharemos até o hall, que leva à capela. Eu a conduzirei ao altar e avisarei
quando deve dizer "sim".
Carla não podia acreditar no que estava acontecendo.
-- Se tentar se debater ou gritar, eu a carregarei sobre meu ombro, até que a cerimônia
esteja terminada. Entendeu?
-- Isso é loucura!
-- Tem razão, porém, é o que o príncipe deseja. -- Luigi esboçou um sorriso cruel.
-- Ele deve ser o homem mais mimado do planeta!
-- Como sua esposa, tenho certeza de que será a primeira a descobrir. Você precisa ir ao
banheiro antes de continuarmos?
-- Não!
-- Muito bem. Dê-me a mão.
-- Não vou fazer isso!
Assim que Carla terminou a frase, Luigi fez o que prometera: colocou-a sobre o ombro.
-- Ponha-me no chão, Luigi!
Ele a ignorou e começou a andar. Carla podia ver o chão de mármore branco e os espelhos
ao longo do caminho até a capela, onde se ouvia o som de um órgão.
-- Não pode fazer isso perante o padre!
-- Ele é a última de suas preocupações. É óbvio que o padre e a família do príncipe irão
concluir que é uma atitude típica dos americanos... alardear sua falta de respeito pelas tradições no
dia do casamento do príncipe. Os americanos são conhecidos por seu comportamento pouco
civilizado. Sua atitude só virá a confirmar isso.
-- Como ousa me dizer tal coisa?! Se estivesse em meu lugar, faria qualquer coisa para
fugir!
-- Signorina, agora é você que parece ter uma imaginação fértil.
-- Pare! Por favor, Luigi, ponha-me de pé...
-- Você já teve sua chance.
-- Quero outra. Você venceu, certo?
-- Como saberei se não é mais um de seus truques? -- Luigi parou diante do portão
dourado da capela.
-- Não vai... mas não quero ofender a Deus, que os fará pagar por este crime.
-- Estou pronto a aceitar a punição. O príncipe está ansioso para vê-la. -- Ele a colocou no
chão, e notou que tremia.
Carla deu uma última olhada em volta. Havia seguranças em toda parte.
"Você não tem saída, Carla Dassiter. Não há mais o que fazer agora. Talvez haja uma
oportunidade mais tarde, entre a cerimônia e a noite de núpcias."
Evitando encarar Luigi, Carla fitou o portão. Ele tomou-lhe a mão para impedir qualquer
outra tentativa de fuga.
-- Depois de passarmos por este portão seguiremos até o corredor principal e logo
estaremos no altar. Vamos -- ele incitou, quando um dos guardas abriu as portas.
Luigi praticamente a arrastava, e Carla foi obrigada a andar. Parecia um filme de ficção
científica a que assistira uma vez, no qual um casal do futuro dava as mãos e saltava de um planeta
prestes a explodir na direção de um feixe de luz, sem saber o que lhes aconteceria.
Carla concentrara a atenção no tapete vermelho que cobria o mármore. Ao olhar para o altar,
ficou atordoada ao ver a família real vestida a rigor, com longos, fraques e jóias.
O príncipe Enzo a esperava. Em seu traje de casamento, parecia ainda mais bonito do que na
fotografia que Ann lhe mostrara.
A sua esquerda, uma jovem morena muito bonita, com um vestido branco e uma coroa na
cabeça. Luigi não comentara que o príncipe tinha uma irmã. Ao lado dela, duas mulheres bem
vestidas, de cerca de sessenta anos. Uma delas também usava uma pequena coroa. Decerto era a
mãe do príncipe, e a outra devia ser uma tia.
Carla observou então os dois senhores de meia-idade à direita do altar. Um deles, de
aparência aristocrática e cabelos pretos, usava um traje parecido com o do príncipe. Devia ser seu
pai, apesar da pouca semelhança entre eles. O outro, algum parente próximo.
Luigi a conduziu até o altar, e um padre idoso postou-se diante do grupo.
Apesar de estar ali contra a vontade, Carla percebia a seriedade da situação e sentia-se
ridícula no sagrado cenário.
Não podia deixar de pensar em suas roupas, que ali pareciam ofensivas. Porém, nada podia
fazer naquele momento além de manter a cabeça erguida até a terrível experiência terminar.
O príncipe Enzo observou-a com atenção, depois sorriu, tomou-lhe a mão e beijou-a.
Ann estava certa sobre ele. Parecia simpático, e tinha os olhos castanhos mais bonitos e as
covinhas mais graciosas que já vira. Era Luigi, seu homem de confiança, o cérebro astuto que
articulara toda aquela trama cinematográfica.
Carla permaneceu ao lado do príncipe sem que Luigi soltasse sua mão. A situação era tão
ridícula que podia jurar que aterrissara em alguma zona sombria do espaço. Qualquer um poderia
dizer que estava se casando com Luigi.
O padre começou a falar em italiano. Tudo o que Carla entendia era que se casava com um
príncipe que parecia ter saído do conto de Branca de Neve.
Um rapaz atraente como Enzo seria capaz de conquistar qualquer mulher, italiana ou não.
Carla se perguntava por que escolhera uma americana. Ainda mais uma aspirante a atriz em
Hollywood.
Agora que se achava ao lado dele, tinha certeza de que Enzo não escolhera Ann pelo
dinheiro que ganharia com os filmes. Do contrário, não haveria a cláusula de trinta dias no contrato,
que permitia a ambos se divorciar.
Nada fazia sentido. Ann não tinha terras, poder, nada que sustentasse um casamento político
como nos tempos antigos.
Algo estava errado. Carla apenas não sabia o que era, e Luigi não ajudava nada fazendo
pequenos círculos em sua palma com o polegar.
Ele talvez não tivesse consciência do fato, mas a carícia a deixava louca. Tentou soltar a
mão, mas Luigi a apertou ainda mais.
Tão preocupada se achava com a excitação que o toque provocava que mal compreendeu
quando ele sussurrou a seu ouvido:
-- É hora de dizer "sim". Se recusar, eu responderei em seu lugar.
O olhar bondoso do padre pairava sobre ela.
Carla quis gritar que fora levada até ali à força, mas o sacerdote não tinha culpa de nada. Só
Deus sabia os segredos daquele dia e seria o juiz de tal perfídia. Um dia Luigi e o príncipe teriam de
responder a Ele.
-- Vá em frente e diga "sim" ao padre -- ela murmurou de volta para Luigi.
Seu seqüestrador sorriu, satisfeito. De repente apanhou o anel no bolso e colocou-o em seu
dedo anular da mão esquerda. Em seguida, proferiu algumas palavras em italiano ao padre, que
acenou com a cabeça e se voltou para o príncipe.
Por um instante, Carla teve a impressão de que se casava com Luigi, mas não podia ser.
Luigi não podia ser um príncipe.
Carla tentou escutar a resposta do príncipe Enzo, e rezou para que ele desistisse na última
hora. Para seu desalento, Luigi apertou-lhe os dedos, distraindo-a. Parecia aliviado por ter cumprido
sua missão.
Conseguira exatamente o que queria! Não só a levara ao altar como com palavras simples e
uma jóia também ajudaram o príncipe a aprisioná-la em uma união forçada.
Quando o órgão recomeçou a tocar, Carla percebeu que a cerimônia terminara. O padre fez
o sinal-da-cruz e seguiu para o corredor. A família Tescotti foi atrás.
Carla esperava que o príncipe fosse até ela, mas foi Luigi quem a conduziu. Enzo os seguia,
acompanhado da irmã.
Era evidente que Luigi temia que Carla fizesse uma cena e fugisse do novo marido, motivo
pelo qual o hábito de marido e mulher marcharem juntos fora abandonado.
Pelo visto, ele só a soltaria nos aposentos do príncipe. Entretanto, antes teria de passar pela
fila de cumprimentos na galeria espelhada.
-- Meus parabéns, princesa -- o padre a cumprimentou com um forte sotaque. -- Que Deus
os abençoe.
Princesa Tescotti. Carla gemeu. Haveria algo mais absurdo que isso?
-- Obrigada, padre -- balbuciou.
Luigi sussurrou algo para o sacerdote, em seu idioma. Para espanto de Carla, ele respondeu
em inglês:
-- Foi uma grande honra, filho.
-- Luigi... -- A mulher que tinha semelhança com o príncipe veio abraçá-lo.
Luigi era tido em grande estima pelos parentes de Enzo. A mulher chorava de alegria, falava
rápido e em italiano, e os dois começaram a conversar.
Então, Luigi se virou para Carla e disse em inglês:
-- Deixe-me apresentar Carla Ann Dassiter, dos Estados Unidos, que agora faz parte da
família Tescotti.
Carla foi beijada em ambas as faces.
-- Achei que este dia nunca chegaria. Rezamos por tanto tempo, não é, Francesco? --
perguntou ao marido.
O pai do príncipe beijou-lhe a testa.
-- Meu filho escolheu uma bela noiva, que parece perfeita para ele.
"Como?!" O príncipe Enzo seria um aspirante a ator? Talvez por isso tivesse escolhido Ann,
porque achou que podia usar sua ajuda para conseguir papéis. Por que não pensara nisso antes?
-- Após a lua-de-mel, venha ao palácio para nos conhecermos melhor.
Mais uma vez, Luigi respondeu por ela. Os pais do príncipe acenaram com a cabeça.
Carla estava irritada. Se Luigi pensava que a dominara, enganara-se. Não haveria lua-de-
mel. Assim que pudesse ficar a sós com o príncipe, arrumaria um jeito de escapulir.
Por enquanto, ainda era prisioneira de Luigi.
Ele a apresentou para o outro casal, e explicou que eram amigos íntimos da família. Os
quatro trocaram apertos de mão e depois Carla e Luigi saíram. Foram até onde estava sua
motocicleta.
Parecia que não conversaria com o príncipe até voltar ao apartamento.
"Está ótimo para mim! Escaparei pela janela, mesmo se para isso tiver que fazer uma corda
com os lençóis!"
Dois guardas lhes entregaram seus pertences. Carla pôs o capacete. Luigi fez o mesmo e
vestiu a jaqueta. Subiu na moto e virou-se para ajudá-la. A seu sinal, as limusines os guiaram por
uma estrada particular até um portão nos fundos da propriedade. Logo chegaram à rua principal,
que percorreram em alta velocidade.
O trajeto durou cerca de quinze minutos. De repente, Luigi virou â esquerda, deixou as
limusines e o tráfego pesado do meio-dia para trás e dirigiu até uma marina particular à beira do rio.
Desceu um aterro até onde um pequeno barco permanecia ancorado. Uma prancha estreita
de madeira permitiu que Luigi dirigisse até dentro da embarcação.
Só um motorista muito hábil numa máquina como a Danelli faria uma manobra tão perfeita
sem causar um acidente. Luigi parou a moto, desligou o motor e ajudou-a a descer.
Carla tirou o capacete, enquanto ele puxava a prancha para o piso do barco. Confusa por não
terem voltado ao apartamento do príncipe, ela observava, paralisada, Luigi desamarrar as cordas e
desatracar. Foi quando entendeu que perdera a oportunidade de pular para terra firme e fugir.
O rio parecia bastante fundo. Talvez não fosse seguro mergulhar.
-- Em seu lugar, eu não faria isso -- ele murmurou, desaparecendo em seguida na cabine.
Segundos depois Carla ouviu o ruído do motor. O que ele estaria planejando, agora? Entrou
na cabine, determinada a descobrir.
O barco não era um iate real. Tinha de se lembrar do que Luigi lhe dissera. O príncipe não
tinha condições de comprar nada mais caro. Porém, havia o essencial, como um banheiro, uma
cozinha e uma sala.
"E um quarto..."
Todo o conforto de um lar. Carla estaria radiante se estivesse em sua lua-de-mel de verdade,
com um marido que amasse.
Luigi foi até o compartimento do motor, na frente da embarcação, e deixou a porta aberta.
Tirara a jaqueta. Os cabelos pretos desgrenhados e a barba por fazer, em vez de deixarem-no menos
atraente, realçavam sua masculinidade. Carla não conseguia desviar-se de sua visão.
Ele se sentou na cadeira do capitão e fitou-a com intensidade.
-- Bem-vinda a bordo da Serpentina, princesa. Deve estar faminta. Ficará feliz em saber
que na primeira parada o príncipe Enzo se juntará a nós. Aí poderá comer.
-- Você é bom no que faz, Luigi. Por isso é responsável pelo trabalho sujo dele. Já que é
assim, por que não lhe devolve isto? -- Mais uma vez ela se livrou do anel de noivado e o atirou
nele.
Num movimento rápido, Luigi o apanhou e o guardou no bolso.
-- Há algo mais que possa fazer por Vossa Alteza?
Seu olhar sarcástico foi a gota d'água. Ela se sentia um pouco enjoada, e voltou para o
deque. Observou as ondas por um instante, mas isso só piorava o mal-estar.
Fechou os olhos e se apoiou na barra de proteção. Seu estado de fraqueza tinha muito mais a
ver com aquela situação absurda do que com fome.
Luigi dera um jeito de isolá-la e escondê-la. Agora estava ali, a milhares de quilômetros de
casa, nas mãos de dois homens inescrupulosos que participavam de um jogo diabólico.
Não se enganara quando suspeitara que o príncipe tinha traços de loucura em seus genes.
Nesse dia fora forçada a se casar com ele. Mas isso não significava que fariam sexo!
Devia haver coletes salva-vidas a bordo. Assim que achasse um, nadaria e pediria socorro.
Notou um pequeno armário e correu até ele. Abriu-o. Havia uma corda, um remo e vários
coletes. Sem hesitar, apanhou um e vestiu-o.
Com um impulso subiu na barra de proteção.
-- Vai a algum lugar? -- Luigi a segurou e pôs de volta no chão.
-- Deixe-me ir!
-- Antes de fazer algo tão tolo quanto se atirar no rio, sugiro que ouça o que o príncipe
Enzo tem a dizer. Ele está a sua espera, na cabine.
Carla piscou.
O motor silenciara. Tinham atracado, e ela nem percebera.
-- Deixe-me ajudá-la. -- Luigi tirou o colete dela. -- Precisa de ajuda para andar?
Ela tentou em vão tirá-lo do caminho.
-- Se não quer aparecer nos tablóides, tente manter uma certa postura, Alteza. Além dos
guarda-costas, há membros da imprensa a nos observar da costa, e tirando fotografias.
-- Ótimo! Talvez descubram que fui raptada!
-- Na realidade, ficaram sabendo de sua reação no aeroporto, ontem. Ver você se atirar no
rio daria mais força ao boato.
-- Que boato?!
-- De que o príncipe se casou com uma virgem muito tímida. Acho que devem estar se
divertindo a valer.
-- Não dou a mínima! -- E voltou para a cabine.
E deparou com o príncipe Enzo. Ele vestia camisa e calça esporte. Sem aquele luxo todo,
parecia um rapaz comum. Sorriu-lhe, gentil.
-- Signora... antes que diga qualquer coisa, quero agradecer por ter participado do concurso
em Hollywood, e por ter cumprido seu compromisso. Graças a você, agora estou casado com a
mulher que amo. Enquanto estiver com Maria em nossa lua-de-mel, pense em algo que possamos
lhe dar em retribuição. Alguma coisa que gostaria de ter, mas que provavelmente nunca compraria.
Carla ficou tonta. Talvez por isso tivesse ouvido algo sobre Enzo sair de lua-de-mel com
alguém de nome Maria.
-- Não entendo. Nós não nos casamos?
Ela ouviu o motor de uma limusine do lado de fora.
-- Sim, mas não um com o outro. Tenho de ir, agora. Meu irmão lhe explicará tudo.
-- Quem é seu irmão?
-- Luigi não lhe contou?
-- Ainda não -- Luigi respondeu. -- Primeiro vamos à refeição.
Ele disse algo em italiano que fez o príncipe rir, antes de se afastar.
Luigi puxou uma cadeira para Carla.
Atordoada, ela acomodou-se e olhou para os sanduíches e a salada. Luigi devia ter posto a
mesa enquanto procurava pelo colete.
Ele sentou-se diante dela e encheu dois cálices de vinho. Carla decidiu que precisava de uma
bebida forte e tomou vários goles.
-- Está melhor?
-- Não. Faça o favor de me explicar o que está acontecendo, Luigi.
-- Assim que terminarmos de almoçar.
-- Não conseguirei comer nada enquanto não elucidar o que o príncipe Enzo quis dizer. Se
ele se casou com a morena que achei que fosse sua irmã, só posso ter me casado com você.
-- Si, signora.
Carla deixou o copo cair.
-- Isso é impossível! O padre me chamou de princesa.
-- O padre Nicco tem um senso de humor incrível.
-- Talvez, mas não diria isso se não fosse verdade. Meu Deus... você forçou Enzo a trocar
de lugar porque você é o príncipe!
-- Um acidente natural. Quando fiz vinte e cinco anos, tornou-se meu dever, como
primogênito dos Tescotti, aceitar o trono e me casar com a moça que meus pais tinham escolhido.
Mas não estava apaixonado pela princesa Benedetta, e sabia que aquela vida não era para mim.
Desse modo, renunciei ao trono, às propriedades e à fortuna. No entanto, meu pai levou minha
atitude para o lado pessoal. Não consegui convencê-lo de que minha decisão não tinha nada a ver
com o amor pela família. Nós brigamos, e acabei deixando o palácio sem nada. Com este
casamento, meu irmão Enzo herdou tudo de que abri mão.
"Irmão?!"
De repente a imagem do pai dele, com cabelos pretos, veio-lhe à memória. Assim como
algumas palavras que Luigi dissera no dia anterior. "Jurei que a protegeria com minha vida. Na
verdade, sou a única pessoa no mundo na qual o príncipe Enzo confia sem reservas".
-- Devia ter adivinhado sobre vocês. Agora estou mais confusa ainda. Se Enzo estava
apaixonado, por que foi até Hollywood e fingiu que procurava uma noiva?
-- Porque eu precisava me casar.
-- Sinto muito, Luigi, mas isso não faz sentido. Minha irmã assinou um documento com o
nome dele.
-- Se ler o documento com cuidado, encontrará meu nome. Enzo foi a Hollywood para
confundi-las. Era um risco necessário. Você estava certa sobre minhas tendências maquiavélicas.
Carla se lembrou de uma conversa com a irmã.
-- Hoje de manhã, antes de vir para cá, pedi a meu advogado que lesse o contrato que
assinei. Ele me garantiu que não há como escapar. Por isso, você é a única pessoa que pode me
ajudar.
O advogado de Ann não tinha sequer percebido!
-- Enzo devia ter se casado com Maria quando fez vinte e cinco anos e herdado o trono que
rejeitei, mas papai estava tão amargurado com minha atitude que se recusou a dar sua bênção a ele.
Esperava que eu mudasse de idéia. No mês passado, eu soube que Enzo e Maria vão ter um filho.
Desse modo, vi que algo tinha de ser feito para que papai permitisse o casamento com a bênção da
Igreja. Passei a noite elaborando uma estratégia, e no dia seguinte fui ao encontro de meu pai.
Disse-lhe que não queria meu título de volta e que, enfim, encontrara a mulher certa para mim.
Como concessão a meus pais, concordei em me casar na capela da família se Enzo pudesse se casar
também.
Não importava o quanto Carla pensasse, nunca imaginaria tal situação.
-- Os dez anos que fiquei longe devem ter ajudado a convencer papai. E claro que eu estava
feliz por Enzo, mas vivia um outro dilema.
-- Porque você tem alergia a casamento assim como ao trono.
-- Si.
CAPÍTULO V


____ Como eu disse ontem, você é mais inteligente do que imaginei -- Luigi a elogiou,
recostado no espaldar.
Saber que ele preferia ficar solteiro não devia tê-la magoado tanto.
-- É um homem muito esperto, Luigi. Por isso escolheu alguém de Hollywood que adora
chamar a atenção, e que não ficaria casada depois de descobrir que rejeitou o trono.
Ele ficou em silêncio.
-- Sorte sua ter assinado o contrato com minha irmã, não comigo.
-- Insiste ainda que tem uma irmã gêmea?
-- Sim. Ainda bem que Ann só quer saber de ser atriz, portanto, você está salvo. Agora que
já fiz o papel de noiva substituta e ajudei Deus, a nação, Ann e a família Tescotti, estou salva
também e posso voltar a minha amada Prunedale.
Após a declaração, Carla apanhou um sanduíche de frango e o devorou.
-- Hum, está bom mesmo! Devia provar um. -- Carla comeu a outra metade e serviu-se de
salada de frutas, saboreando a refeição.
-- Conte-me sobre Prunedale. Nunca ouvi falar desse lugar -- Luigi pediu, após um
instante.
-- Poucas pessoas fora do Estado a conhecem. É uma comunidade rural no norte da
Califórnia. Há muitos pomares e animais.
-- Deve gostar deles, já que ficou amiga de Valentino tão rápido.
-- Ele é lindo.
-- Então... se não é mesmo uma atriz, será que é fazendeira?
-- Não.
-- Não vai satisfazer minha curiosidade?
-- Talvez, se satisfizer a minha primeiro.
-- O que quer saber?
-- Quando podemos ir para o aeroporto? Gostaria de chegar a Milão ainda hoje.
-- Queria poder ajudá-la, mas seus trinta dias ainda não acabaram. Durante esse período
precisaremos convencer meus pais de que estamos apaixonados e que queremos que nosso
casamento dê certo.
-- Não estamos legalmente casados! -- O sangue subiu-lhe à cabeça.
-- Estamos, sim. Quando me falou para eu dizer "sim" ao padre, selou seu destino, sendo
Annabelle ou Carla Ann. Se tiver alguma dúvida, pergunte a ele.
Não era necessário. Tivera o pressentimento de que se casava com Luigi durante a
cerimônia. Na noite anterior, sonhara com ele como seu marido. Uma espécie de premonição?
-- Posso dizer que tivemos um bom começo. Aparecer na igreja com a mesma roupa da
viagem mostrou que é tão rebelde quanto seu marido. Nem é preciso dizer que nunca uma italiana
escolhida por meus pais faria isso. Foi um toque de autenticidade para nós dois.
"Meu filho escolheu uma bela noiva, que parece perfeita para ele." Naquele momento,
entendeu o elogio.
Luigi parecia ler seus pensamentos, pois acrescentou:
-- Por isso tem de ficar aqui pelo prazo estipulado no contrato. Se você partir, papai saberá
que tudo foi um truque.
-- Um truque inspirado no próprio Maquiavel! Não quero mais fazer parte disso.
-- Você já faz. Juntou-se a mim nesse jogo perigoso quando o contrato foi assinado. Não
tenho nada a perder. Entretanto, as conseqüências de uma decisão intempestiva de sua parte recairão
sobre meu irmão, que não tem culpa de nada.
Alarmada por ouvir aquilo, apesar de ter sido Ann que a colocara nessa confusão, Carla
sentiu o coração disparar.
-- O que quer dizer?
-- Isso mesmo. Se me deixar antes do prazo, meu pai se vingará tirando o título de Enzo.
-- Por quê? Ele não se tornou mais compreensivo depois de tantos anos?
-- Até certo ponto. Se descobrir que armei tudo, não hesitará em me machucar, usando meu
irmão. Ao contrário de mim, Enzo sempre quis ser rei e deixar a família orgulhosa. Ele tem muitas
idéias de mudanças que quer colocar em prática. Não tem idéia de como meu irmão quer agradar
nosso pai. Só que não vai conseguir se tudo for por água abaixo. Será muito difícil para ele. Enzo
sofrerá se tiver de encarar isso ao voltar da lua-de-mel enquanto a esposa grávida precisa de seu
apoio.
Luigi terminou o vinho e o sanduíche que pegara, e se levantou.
-- Se sua consciência ficar bem com a quebra do contrato que acreditei ter sido assinado em
comum acordo, vá embora antes que eu mude de idéia. Seu passaporte já está em sua bolsa. Só
saiba que há um grupo imenso de repórteres em terra tirando fotos. Estão prontos para armar um
escândalo. Se é isso o que quer, antes mesmo do avião de meu irmão decolar...
Quanta arrogância tentar fazê-la sentir-se culpada!
-- Não fui eu que assinei o contrato!
-- Uma vez conheci dois gêmeos idênticos. Eles sentiam dor ao mesmo tempo. Um sofria
um corte, o outro sangrava. Quando um precisava de ajuda, o outro pressentia, e ia a seu encontro.
-- Foi isso mesmo o que fiz, e veja a situação!
-- Tudo poderia ser pior. Você podia ter se casado com alguém que realmente queria isso.
-- E seus pais vão se convencer depois de um mês? -- Carla quis saber, magoada com o
comentário.
-- Depois desse período, a imprensa terá o que comentar. Publicarão uma foto do filho mais
velho dos Tescotti abandonado pela esposa americana, que decidiu pelo divórcio devido a
diferenças culturais irreconciliáveis. A monarquia me entenderá. O rei não poderá ir contra isso, e
Enzo cumprirá seu destino. Estará com Maria, e pelo menos alguém na família Tescotti realizará
seu sonho.

-- "Olá. Não estou em casa. Deixe sua mensagem, e retornarei assim que possível."
-- Ann? É Carla. Sei que está aí, que ainda não saiu para o trabalho. Vou ligar daqui a dois
minutos. Por favor atenda, é import...
-- Carla?!
-- Graças a Deus! Não tenho muito tempo.
Não era bem a verdade, mas ela usava o celular de Luigi, que, por milagre, voltara a
funcionar. A última coisa que queria era começar uma longa conversa pessoal com a irmã, com ele
ao lado.
-- Você deve estar voltando. Não se preocupe, conversaremos depois. Eu a pego no
aeroporto de Los Angeles, como combinamos.
-- Não. É por isso que estou telefonando.
-- O que foi? Você está estranha, Carla. O príncipe lhe fez algo?
-- Olhe, Ann, é uma longa história. Terei de permanecer em Turim por mais trinta dias.
-- É o que estou pensando?!
-- Não! Bem, sim, de certa forma. Sabe...
-- Ah, meu Deus! Você se apaixonou por aquele príncipe maravilhoso e se casou, Carla!
Não acredito!
Luigi estava a seu lado no sofá. De repente, se aproximou, e Carla pôde sentir seu calor.
-- É minha vez -- ele sussurrou e tomou dela o telefone.
-- Buon giorno, Annabelle.
Seguiu-se um silêncio. Pelo menos agora ele saberia que Carla fora sincera.
-- Aqui é Luigi Tescotti. Carla me falou que é sua irmã gêmea e que você encontrou meu
irmão em Hollywood, no concurso. Creio que é uma atriz em ascensão.
Seu inglês com sotaque italiano era muito sedutor, e o comentário não poderia deixar de
agradar Ann.
Carla baixou a cabeça, e imaginou o que viria em seguida. Para sua surpresa, ele passou o
braço em volta de seus ombros, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
-- Minha esposa parece confusa, porque se casou comigo, e não com Enzo. Quando ele me
mandou buscá-la no aeroporto, foi amor à primeira vista para nós dois. Tenho de agradecer-lhe por
tê-la mandado em seu lugar. Foi o destino.
"Não faça isso, Luigi."
-- Após passarmos a noite juntos, decidimos oficializar nossa união. Foi um casamento
duplo. Enzo se casou com a mulher que ama desde a adolescência.
Carla gemeu. Luigi a abraçou mais forte.
-- Agora que somos parentes, estou ansioso por conhecê-la. Tomara que nos encontremos
logo. Nos próximos dias, sua irmã e eu estaremos em nossa lua-de-mel. Incomunicabile. Mas não
poderíamos partir sem antes lhe contar as boas notícias. Vou passar de novo para sua irmã. Carla
está louca para falar com você. Ciao, Annabelle.
E passou o aparelho a Carla.
-- Ann?
-- Bem, bem, bem... A vida nos prega surpresas mesmo. Você faz parte da realeza, agora.
Espere até eu contar a todos no estúdio que minha irmã é a princesa Tescotti.
-- Não sou princesa, Ann. Luigi renunciou ao trono, anos atrás.
-- Ele parece atraente. Quantos anos tem?
-- É mais velho que o irmão.
-- Tenho trinta e cinco -- ele informou, beij ando-lhe o rosto.
-- Pelo menos é bem mais novo do que o Dr. Wood -- Ann a provocou.
Carla engoliu em seco. Se a irmã conhecesse Luigi, achá-lo-ia o homem mais sexy do
mundo.
-- Pelo modo como dirige sua Danelli, Luigi está longe disso, sem dúvida.
-- Ele tem uma moto?
-- Sim, e eu a dirigi.
Luigi apertou seu braço, lembrando-a da tentativa de fuga.
-- Agora entendo por que tudo aconteceu tão depressa. Faça-me um favor e me mande uma
foto dele.
-- Tentarei. Escute, Ann... tenho de desligar agora.
-- Espere. Só me diga uma coisa: como foi sua primeira vez?
"Minha grande cena de sedução foi um desastre."
-- Depois conversamos sobre isso. Até mais. -- E desligou.
Luigi a fitou, pegou o celular e se levantou.
-- Acho que você gostaria de uma ducha antes de partirmos.
-- Sim. Obrigada.
-- Irei depois. Tudo de que precisa está no banheiro. Há um conjunto de moletom limpo no
armário. Depois vamos lavar nossas roupas.
-- Tem até máquina de lavar?
-- É fundamental para viagens longas.
Grata pela notícia, Carla se ergueu e apanhou a bolsa com seus apetrechos.
-- Não sabia que um barco podia ser tão confortável.
-- Eu o comprei há anos, e faço melhorias quando estou livre. Há paisagens maravilhosas
na Europa, e a imprensa não poderá atrapalhar nossa viagem de três dias.
O coração dela deu um salto. Três dias a sós com ele?!
-- O máximo que podem conseguir são alguns retratos do barco com lentes especiais.
Carla foi para o banheiro. Franziu o cenho e virou-se para ele.
-- Os paparazzi estão sempre atrás de você?
-- Nem queira saber.
-- Mas você recusou a coroa há anos!
-- Uma vez príncipe...
-- Que horror!
-- Se forem ousados o bastante para nos perseguir com outra embarcação, podemos pegar a
moto e despistá-los.
A Danelli significava muito mais para ele do que o amor pelo esporte. Representava a
liberdade, de um modo que ninguém nunca entenderia.
-- Agora entendo por que a trouxe a bordo.
-- Depois de um dia duro de trabalho, não há nada que eu preze mais do que uma volta de
moto.
-- O que faz para viver?
-- Nada de que não goste.
-- Você sabia que há poucas pessoas no mundo que podem dizer que gostam do que fazem?
-- Quando tinha vinte e cinco anos, decidi descobrir como seria isso.
-- E encontrou a felicidade?
-- É uma pergunta interessante. Não tenho certeza se isso existe. -- Luigi ficou sombrio.
Momentos depois, sob o chuveiro, Carla ainda pensava naquela frase.
Ao conhecer Luigi melhor, percebeu que contrariar a família o fizera sofrer. E não pôde
evitar indagar-se se não lutava também contra outro problema. Algo a ver com sua aversão ao
casamento.
Uma mulher, talvez?
Quem quer que fosse que tivesse conquistado Luigi devia ser alguém notável. Inesquecível.
Não importava o que ocorrera entre eles, deixara uma grande cicatriz.
"Ah, Ann... quando me implorou para vir à Itália, eu sabia que estava me metendo em
confusão. Só não contei que um príncipe com uma jaqueta de couro fosse roubar meu coração assim
que pus os olhos nele."
De repente, Carla se lembrou de que dali a um mês a imprensa publicaria que o filho mais
velho da família Tescotti fora abandonado e estava sofrendo.
Quando deixasse a Itália, após trinta dias, haveria alguém muito magoado, sim. Ela.

Pelos próximos três dias, eles navegaram pelas águas dos rios Dora Riparia, Sangone e Pó.
Apesar de Luigi tê-la alertado sobre a imprensa, a inigualável paisagem das colinas e dos Alpes a
fez esquecer de tudo.
De manhã até de noite eles comiam e descansavam sob o sol do outono. Carla observava a
paisagem e tentava não prestar atenção apenas a seu marido, que dirigia o barco e lhe dava
informações sobre os arredores.
Luigi era melhor do que um guia turístico. Tinha o privilégio de ter viajado, era culto e lhe
relatava fatos que davam colorido à história dessa parte da Europa.
-- A cada curva do rio, há uma nova paisagem maravilhosa. É tão lindo, Luigi! Eu poderia
viajar assim para sempre.
-- Você sabe o que disse Le Corbusier...
-- O arquiteto francês?
-- Si, esposa mia. Ele acha que nossa cidade tem mais beleza natural do que qualquer lugar
na Europa.
-- Concordo!
Cada minuto com Luigi a enfeitiçava mais. O fato de ele a tratar como a irmãzinha de seu
melhor amigo a deixava louca.
Apesar de querer ficar longe dos paparazzi, Luigi sabia o que fazia quando decidiu ficar a
sós com ela no barco. Dentro da cabine, podia ser ele mesmo e não tinha de se preocupar em fingir
estar apaixonado por sua mulher.
Quando anoitecia, eles atracavam, e Luigi dormia no sofá. Carla ficava, tranqüila, na cama
de casal, esperando que o marido arrumasse uma desculpa para ficar com ela, nem que fosse para
conversar. Mas nada acontecia.
-- Qual o nome daquela montanha?
-- A que fica atrás do Castelo Valentino é a Montanha Rosa, a segunda mais alta da Europa
depois do Mont Blanc.
-- Valentino... é seu cachorro!
-- Si. -- Luigi sorriu.
-- O nome é por causa do castelo?
-- Será que você pensou que foi inspirado pelo famoso amante italiano dos filmes mudos
americanos?
-- Como saber, não é?
-- O Castelo de Valentino faz parte da Casa de Savóia. Maria Cristina, a filha de Henrique
IV e esposa do rei Victor Amadeus I, de Savóia, o reconstruiu ao estilo francês. Embaixo do Parco
del Valentino está o famoso Clube Cerea de Remo. Essa área é usada para a corrida Silver Skiff, na
qual vários clubes de remo aristocráticos competem.
-- Já participou?
-- Participava, de vez em quando.
Passaram sob a ponte Isabella, e deram com a parte central de um submarino, relíquia da
Primeira Guerra Mundial. Ao lado, havia uma chata dessa época transformada em restaurante.
Outra ponte surgiu na paisagem.
-- Um dia, se houver tempo, antes de voltar aos Estados Unidos, vá ao Museu Nacional de
Automóveis ali à esquerda, Carla. Há carros de época e motos interessantíssimas.
O modo como Luigi disse aquilo a fez entender que talvez tivesse de ir sozinha. Como se
quisesse lembrá-la de que a hora do adeus chegaria antes que percebesse.
Atingida pelo comentário, Carla deixou a cabine e foi para perto das barras de proteção. O
sol se punha, fazendo com que as árvores na beira do rio formassem sombras.
Pouco depois, atracaram em uma marina particular, no ancoradouro. Um homem amarrou as
cordas, e Luigi esticou a prancha do barco até a margem. O som oco da madeira batendo no solo
ecoou no coração ferido de Carla.
A lua-de-mel chegara ao fim.
Se fossem amantes, não poderia ter desejado uma lua-de-mel mais idílica.
-- Carla, venha pôr seu capacete. Quero sair daqui antes que todos os repórteres de Turim
cheguem.
Ela se apressou para pegar a bolsa e o obedeceu. Pouco depois, subiu na garupa.
Com a habilidade de sempre, Luigi passou pela prancha até a margem. No caminho para a
rua, avistaram várias vans de emissoras de televisão, que iam até a marina.
Luigi não exagerara sobre a mídia. Era um horror ser cercado dessa maneira toda vez que
aparecia em público.
Carla sentiu a mudança na marcha, e a moto deu um salto para frente. No curto trajeto para
o prédio, os pneus mal tocaram o chão.
Ao avistar o edifício, pensou que estavam seguros, mas ao se aproximarem uma multidão de
fotógrafos surgiu. Era provável que estivessem escondidos à espera de Luigi e sua esposa
americana.
Sem demora, ele foi até os fundos e entrou no estacionamento. Saltaram da Danelli, e Luigi
conduziu Carla para o prédio. Passaram por um repórter com um microfone.
Luigi abriu a porta do apartamento e a deixou passar. Carla ficou desapontada por não
encontrar Valentino.
-- Onde está ele?
-- Deixei Valentino com meus vizinhos, os Loti. O filho deles, Giovanni, toma conta dele
para mim. Vou pedir para trazê-lo.
-- Não podemos ir buscá-lo?
Luigi tirou o capacete e a jaqueta e observou-a por um momento.
-- Se você quiser se ver frente a frente com aquele repórter, fique à vontade.
-- Quer dizer que eles se atrevem a entrar no edifício?!
-- Fazem de tudo para conseguir o que querem.
-- Por isso você fez a polícia me escoltar até aqui no dia em que cheguei. Para evitar mais
comentários da imprensa.
-- Tomamos medidas drásticas para manter o casamento em segredo. Mas, agora que já
descobriram tudo, querem fotos suas.
-- Então vamos dar o que querem, e eles irão embora.
-- Não se importa? -- Luigi indagou, hesitante.
-- Não sei como é isso, mas, já que quer convencer seus pais de que estamos felizes, que
mal pode haver? Se não fugirmos dos repórteres, talvez eles mostrem um pouco de compreensão.
Responderemos às perguntas e ficaremos livres disso. Pode até ser divertido.
Ele parecia surpreso. Permaneceu calado, passando a mão pelos cabelos na nuca.
-- Vou deixar que você fale -- afirmou, por fim. -- Venha.
CAPÍTULO VI


-- Ei, princesa, aqui!
Carla virou em direção a dois repórteres, que tiraram fotos sem cessar.
-- Olhem, rapazes, é o seguinte. Se prometerem não me chamar de princesa, será um prazer
cooperar com vocês. Podem me tratar por Sra. Tescotti. Sou recém-casada, e como vocês devem
imaginar, gostaria de ter alguns dias de privacidade com meu marido. Podem dizer que a mídia será
bem-vinda daqui a duas semanas, às seis horas da tarde. Se concordarem em nos deixar em paz até
lá, lhes darei meia hora para tirar fotografias e fazer entrevistas. O que me dizem?
-- Seu marido também participará?
Ela sentiu a presença de Luigi atrás de si. Ele a abraçou pela cintura.
-- É claro que sim.
Mais flashes espoucaram a seu redor.
-- Obrigada! Molte grazie!
E os jornalistas deixaram o prédio.
-- Você acaba de conseguir um pequeno milagre, Carla.
O comentário mexeu com ela. Assim como seu abraço que pouco durara.
-- Vamos pegar Valentino?
Seguiram pelo corredor, e Carla temeu que Luigi pudesse notar os fortes batimentos de seu
coração. Como queria que continuasse a abraçá-la...
Luigi foi até a última porta. Podiam-se ouvir vozes na sala. Assim que atenderam, Valentino
correu para cumprimentar o dono, muito alegre. Três dias era muito tempo de separação. Carla
morria de saudade de Chloe.
Um adolescente e sua mãe apareceram. Os dois falaram rápido em italiano com Luigi, e ele
os apresentou a Carla. Apesar de calorosa e cordial, a mulher parecia preocupada. O garoto também
se mostrava ansioso.
-- O que há de errado? -- Carla sussurrou.
-- Há alguns dias o gato deles esteve no hospital veterinário. Está doente de novo, e não
podem levá-lo de volta, porque o marido está viajando. Eu me ofereci para levá-lo de moto.
-- Posso ver seu gato, Giovanni?
-- Si. Por aqui, signora.
Carla o seguiu até a cozinha, onde um gato persa grande e cinza estava deitado, prostrado.
-- Como ele se chama -- indagou, ao se ajoelhar a seu lado.
-- Fígaro.
-- Oh, pobre Fígaro... Você é muito fofo. O que ele teve, Giovanni?
-- O doutor falou que estava desidratado. Fígaro estava bem quando o trouxemos. Agora
ficou doente de novo.
-- Pode me trazer a água dele?
-- Si, signora.
O garoto colocou a tigela de água ao lado de Carla. Fígaro não se mexeu.
Carla molhou os dedos e segurou o bichano para que lambesse a água. Fígaro hesitou um
momento, mas depois começou a reagir.
Ela repetiu o movimento. O gato foi bebendo até que ficou mais animado, e, por fim, passou
a beber da tigela.
-- Ele está com sede. A tigela ficou à disposição dele o tempo todo?
-- Si.
-- Sabe por que Fígaro não estava bebendo água?
O menino se dirigiu à mãe, que falava pouco inglês, repetiu a pergunta e traduziu para Carla.
-- Mamãe pensou que estivesse doente de novo.
-- Mas o médico não falou sobre desidratação?
-- Si.
-- Desde quando ele não toma água?
Giovanni mais uma vez recorreu à mãe, que agora torcia as mãos, um pouco nervosa.
-- Ela falou que não sabe. Fígaro sempre sobe na pia do banheiro para beber.
-- Vocês enchem a pia para ele?
-- Não. A torneira estava pingando há meses, mas há alguns dias meu pai, enfim, a
consertou.
-- Ah... então está explicado.
Luigi se agachou a seu lado. Valentino estava entre eles.
-- Como assim? -- ele perguntou, os olhos escuros e expressivos a fitá-la.
Carla sorriu para o marido, e depois para o garoto e a mãe.
-- Fígaro é uma criatura de hábitos firmes e um tanto preguiçoso. Ficou tão acostumado a
tomar água na pia, que quando a torneira parou de pingar ele parou de beber.
Giovanni riu e contou à mãe. Todos riram, inclusive Luigi.
-- Você tem de treiná-lo a beber da tigela. Fique com Fígaro esta noite. Faça-o beber de
seus dedos até que ele perceba o que deve fazer. Se o vir indo para o banheiro, mostre a tigela. Em
alguns dias esse danadinho vai aprender, mas já estará bem amanhã.
-- Mamãe falou que você é um gênio.
Carla achou graça. Acariciou o gato e se ergueu.
-- Eu queria ser. Fico feliz em ter podido ajudar. Foi um prazer conhecê-los.
A signora agradeceu, dando-lhe tapinhas na mão, e foi imitada pelo filho. Luigi despediu-se,
e retornaram pelo corredor em silêncio. Valentino andava no meio dos dois, acompanhando-lhes o
ritmo.
Luigi trancou a porta assim que entraram no apartamento. Em seguida, pôs as mãos nas
paredes do corredor, impedindo a passagem dela. O boxer o olhava, curioso.
-- Como sabia o que fazer? Não me diga que é porque ama os animais. Percebi isso assim
que conheceu Valentino.
-- Você vai acreditar?
-- Acho que mereço uma resposta.
-- Não há mistério, Luigi. Sou veterinária.
Ele a encarou como se fosse aquilo um quebra-cabeça insolúvel.
-- Em Prunedale?
-- Sim.
-- Parece que eu devia tê-la chamado de Dra. Dassiter, não é?
-- Como você, detesto títulos. O Dr. Wood me chama de Carla.
-- Dr. Wood?
-- É o diretor do Hospital Veterinário do Norte de Monterey. Trabalho para ele e moro lá.
-- Você mora lá?
-- No quarto dos fundos.
-- Ele também?
-- Na casa ao lado.
-- Que conveniente...
O tom sarcástico de Luigi a enfureceu.
-- E é! Terei de pagar um aluguel barato nos próximos dez anos para saldar minhas dívidas
com a faculdade. O Dr. Wood é meu senhorio e meu chefe. Assim posso me sustentar e economizar
um pouco.
-- Você cozinha para ele também?
-- Às vezes.
Em geral, era ele quem fazia comida para ela. Era seu hobby desde que a esposa falecera.
Cozinhava muito melhor do que Carla, que não gostava de admitir o fato para ninguém.
-- Sem dúvida esse doutor a esperava de volta há dias.
-- Não. Ann conversou com ele antes de falar comigo. Inventou que ganhei um mês de
férias na Europa ou algo assim. Meu chefe foi gentil e me deu uma licença. Na realidade, eu queria
voltar. A égua dos Selander dará cria, e eu queria estar presente. -- Carla mal conseguia respirar
devido à proximidade dele.
-- Mas o príncipe malvado da família Tescotti a aprisionou. -- Luigi observou-a da cabeça
aos pés. -- Se eu não a tivesse forçado a se casar comigo, estaria trabalhando no que ama agora.
-- Isso mesmo.
-- Com certeza o Dr. Wood dará conta de ficar longe de você por mais vinte e sete dias.
-- Ele dá conta de tudo! -- Carla detestava aquelas insinuações.
-- Bem, se é assim, não vou mais me sentir culpado por privá-lo de sua eficiente assistente
por um mês. Para ser franco, a rapidez com que diagnosticou o problema de Fígaro me faz acreditar
que a perda do Dr. Wood foi positiva para nós, não é, Valentino?
Luigi acariciou o cão, que latiu como se tivesse entendido tudo. E talvez tivesse. Carla
trabalhava com animais havia tempo suficiente para saber que existia uma espécie de comunicação
telepática entre eles e os seres humanos.
-- Você não teria comentado o problema do ronco de Valentino se não estivesse
preocupada. O que há de errado com ele? -- Luigi indagou, erguendo a cabeça de repente.
Ela mordeu o lábio. Valentino era tudo para Luigi.
-- Deixe-me fazer uma pergunta, primeiro. Você o cria desde que nasceu?
-- Não. Há oito anos eu o achei numa rua nos fundos do prédio, quase morto de fome. Era
um filhote, acho que nem tinha desmamado. Trouxe-o para cá e o tratei, e não pude me desfazer
dele.
Um homem com um coração de ouro.
-- Esse problema é comum na raça dele, Luigi. Se tratado cedo, pode-se remover um pouco
da carne no fundo da garganta para impedir o bloqueio. Se não, é possível que ocasione
dificuldades respiratórias. Depois de oito anos sem usar toda sua capacidade respiratória, não sei se
a operação poderá reverter o problema.
-- Os veterinários da clínica onde o levei nunca mencionaram isso.
-- É provável que a questão não seja tema de estudo na faculdade. Eu mesma não tinha
percebido como o ronco pode ser sério em raças com focinho curto até começar a trabalhar com o
Dr. Wood. Ele continua a me ensinar coisas novas.
-- Se eu arranjar tudo, você faria a operação assim que fosse possível? -- Luigi pediu,
acariciando as costas do cão.
-- Quer dizer... aqui, em Turim?
-- Onde mais? Se fossemos à Califórnia para isso, Valentino teria de ficar em quarentena.
Não quero fazê-lo esperar tanto para aliviar seu sofrimento.
Carla ajoelhou-se ao lado do cachorro e o afagou.
-- Não está sofrendo tanto assim. Valentino cresceu com essa dificuldade e, como eu disse,
talvez uma operação não melhore sua condição. Por outro lado, pode prolongar sua vida.
-- Quanto?
-- De seis meses a dois anos, dependendo de sua saúde em geral. O boxers vivem cerca de
dez a catorze anos. Mas você precisa saber que, apesar de o risco ser mínimo, alguns animais não
sobrevivem à anestesia geral.
-- E se ele fosse seu?
-- Não hesitaria em fazer tudo para melhorar sua qualidade de vida.
-- Foi o que imaginei. Amanhã vamos ver o que podemos fazer.
-- Luigi... duvido que um hospital local permita que uma estrangeira opere. Não funciona
assim.
-- Você está certa. Mas conheço um lugar onde não haverá impedimento.
-- Onde?
-- As propriedades dos Tescotti são muito grandes, e há muitos animais. Um veterinário
trabalha lá para meu pai. E existe uma sala de cirurgia no estábulo, com tudo de que precisa.
-- Pensei que você...
-- Eu também, mas acabei de descobrir que não sou tão orgulhoso assim. Não quando diz
respeito ao bem-estar de Valentino, ou de meu irmão.
-- Como assim?
-- Quando eu pedir permissão a meu pai para que você use o local, ele e minha mãe ficarão
convencidos de que nosso casamento vai bem. É algo a mais para ajudar Enzo.
Carla desviou o olhar e se levantou. Se os pais deles eram como a maioria das pessoas que
conhecia, achariam muito difícil entender como um casamento que começou tão bem pudesse
acabar em um mês.
Uma coisa era ser fotografada como esposa de Luigi para que os pais os vissem nos jornais.
Outra bem diferente era bancar a esposa amorosa diante deles. A idéia não a agradava nem um
pouco.
-- Acho que você não devia...
-- Está tudo decidido.
-- O veterinário do rei não se aborrecerá se levar outra pessoa?
-- Você é minha mulher. Ele terá de aceitar. -- Luigi foi até o hall para apanhar a jaqueta e
o capacete, seguido de Carla e Valentino. -- Se quiser tomar banho, só há água quente por dois
minutos, por isso, fique atenta. Irei falar com meus pais. Amanhã cedo eu voltarei, e iremos os três
cuidar da cirurgia de meu amigão.
Carla tentou disfarçar o sorriso ao imaginar como tudo devia ser diferente no palácio.
-- Quando quiser dormir, use meu quarto. Pode usar minhas roupas. Amanhã teremos muito
o que fazer, inclusive uma coisa especial. Então, procure dormir bem.
Luigi partiu antes que Carla pudesse tentar descobrir o que era. Ficou só com o cão, que
gemia com a ausência do dono.
Carla se sentia abandonada. Depois de quatro dias e noites, acostumara-se com o marido
junto dela.
-- Vamos, Valentino. Pode dormir comigo. Sei que sou uma substituta horrível, mas o que
podemos fazer? Também preciso de aconchego.
Valentino a seguiu. Carla entrou debaixo das cobertas. Usava uma das camisetas de Luigi.
Assim que se ajeitou, o cachorro subiu na cama, aninhou-se a seu lado e repousou a cabeça sobre
sua perna.
Carla acariciou-lhe as orelhas. No escuro, ele roncava como Chloe. Era quase como ter sua
cadela de volta, exceto por ela ser menor e por dormir em cima das cobertas entre suas pernas.
Mesmo assim, era muito gostoso ter Valentino consigo, e Carla adormeceu.

No dia seguinte, logo cedo, Carla e o Dr. Donatti, o veterinário da propriedade do rei,
arregaçaram as mangas, anestesiaram Valentino e deram início à intervenção cirúrgica.
Luigi passou mal. Carla se embeveceu e jurou a si mesma que aquele lindo cachorro ainda
daria muitas alegrias a seu dono.
CAPÍTULO VII


Carla se voltou para o outro paciente. O Dr. Donatti tirara a máscara. Os médicos trocaram
sorrisos cúmplices de quem cumprira com sucesso sua missão.
Ela monitorou a respiração de Valentino com o estetoscópio. Até o momento, tudo corria na
mais perfeita ordem.
-- Não se preocupe. O cão de Luigi vai ficar bem. Esteve nas mãos de uma profissional
excelente. -- O Dr. Donatti piscou, bem-humorado.
O modo afetuoso com que o veterinário falou o nome de seu marido fez Carla ver como
gostava do filho mais velho dos Tescotti. O médico sabia como estava temerosa por Luigi. Se algo
acontecesse a Valentino...
-- Foi uma honra trabalhar com o senhor, doutor. Obrigada pela ajuda. -- Carla se
esforçava para não chorar.
-- A honra foi toda minha.
-- Vou ficar com Valentino até ele acordar. Acha que poderia levar Luigi para a cozinha e
lhe dar algo para animá-lo?
-- Era o que eu ia sugerir. Quando criança, ele sempre teve predileção pelos animais. Trazia
de tudo aqui, desde coelhos com orelhas machucadas até faisões com asas quebradas. Com os olhos
úmidos, me pedia que cuidasse deles, e corria para fora, porque não suportava ver. E Enzo era do
mesmo jeito.
-- O que vocês dois estão cochichando? -- Luigi indagou, com a voz fraca.
-- Só estava dizendo a sua mulher que ela fez um excelente trabalho. Agora estou com sede,
e um café não faria mal. Venha comigo, Luigi. Quando voltarmos, Valentino terá despertado.
-- Pode ir. Não vou sair do lado dele.
-- Eu já volto. -- Donatti saiu da sala.
"Pobre Luigi... Devia ter percebido como a situação seria difícil para ele. Teria sido melhor
que houvesse esperado do lado de fora."
Como o médico afirmara, momentos depois Valentino começou a acordar. Muito feliz,
Carla verificou seus sinais vitais de novo. Tudo certo.
Sua garganta ficaria dolorida por cerca de duas semanas, mas ele ficaria ótimo.
Enfim, o cão abriu os olhos.
-- Boa tarde, Valentino. É tão bom vê-lo acordado! Não fique triste por causa do tubo de
soro, vou tirá-lo logo. Como está meu menino? -- Carla acariciou sua cabeça. -- Você foi um
paciente maravilhoso. Eu te amo. -- E beijou-lhe a testa.
-- Continue assim e ele logo deixará de ser meu cachorro. -- Luigi já se sentia mais forte.
Valentino o ouviu, levantou o tronco e gemeu.
-- Sem chance, Luigi. Vê como ele o olha?
-- Graças a você, Valentino poderá viver um ou dois anos a mais. -- Acariciou as costas do
cão.
De repente, Luigi puxou Carla para si e deu-lhe um beijo quente e firme na boca.
Foi tão natural que ela se viu retribuindo.
Luigi continuou a beijá-la. O alívio com o bom resultado da operação devia ter sido o
motivo pelo qual se entregou ao marido e se aproximou mais.
O ritmo da respiração dos dois mudara, o calor de seus beijos aumentava. A alegria que
sentiam parecia se transformar em paixão. Estavam colados um ao outro, incapazes de se separar.
-- Luigi querido? -- uma mulher o chamou da porta. -- Ah... me perdoe...
Luigi conseguiu recuperar-se sem problemas. Afastou-se um pouco de Carla, com toda a
calma.
-- Tudo bem, mãe... Entre. Só estava agradecendo a minha esposa pelo sucesso da cirurgia.
Carla enrubesceu ao se dar conta de como se oferecera a ele e que fora surpreendida pela
última pessoa que queria ver ali.
Embora compreendesse por que Luigi se deixara envolver, a mãe dele suporia que a lua-de-
mel ainda transcorria a todo vapor.
Carla se afastou para que Luigi tivesse de soltá-la.
-- Se quiser continuar, podemos voltar depois, filho.
Agora Carla entendeu de quem Luigi herdara a ironia. Ela precisava fazer algo, e começou a
tirar o avental. Para seu desespero, usava o mesmo jeans e a blusa do casamento.
Apesar de ter comprado peças novas, preferiu operar com suas velhas roupas. Os pais dele
não sabiam disso, claro, e pensariam que ela era a pessoa mais estranha que já tinham conhecido.
Carla pegou o estetoscópio e checou mais uma vez os sinais vitais de Valentino. Enquanto
Luigi e a mãe conversavam, o pai se aproximou dela.
-- Como está o cão?
-- Até agora tudo bem.
-- Teve dúvidas sobre isso?
-- Nunca se pode ter certeza absoluta.
-- Luigi confia em você sem reservas. Se pensar o quanto ele é cabeça-dura, é um grande
elogio. Estamos muito felizes por nosso filho ter se casado com uma moça tão fantástica. Bem-
vinda à família, Carla. Posso chamá-la assim?
-- Lógico!
A sinceridade do pai de Luigi soou tão genuína que ela recuou, aflita. Quando chegasse a
hora de deixar a Itália, ficaria arrasada.
Aquele dia não devia ter acontecido, tudo estava ficando complicado demais.
No fundo, sabia que Luigi se preocupava com os sentimentos dos pais em relação ao
casamento. E agora ela também. Estava apavorada.
-- Meu filho me disse que você perdeu seus pais há muito tempo.
-- É verdade.
-- Talvez um dia, em breve, poderá me ver como um verdadeiro pai e me chamar de Papo.
Talvez quando vocês tiverem um bebê.
Carla ficou angustiada. Não haveria bebê! Dali a um mês ela e Luigi não estariam mais
juntos. Tudo tinha sido um erro.
-- Carla? -- a mãe se aproximou, evitando assim que precisasse responder as difíceis
perguntas do marido. -- Não quer usar sua influência e convencer nosso filho para virem jantar no
palácio, esta noite? Ele disse que vocês têm outros planos, mas não podem fazer uma visita mesmo
que rápida?
-- Nós adoraríamos, mas eu não ousaria deixar Valentino sozinho. Podemos marcar outra
ocasião? -- tornou Carla, sem saber bem o que dizer.
-- Quem sabe pudessem resolver tudo no mesmo dia, como fizeram com os jornalistas,
livrando-se da questão para sempre?
-- Sem dúvida. Vamos ligar depois, para combinar. -- A sogra deu-lhe um tapinha no
braço. -- Você também está convidado, Valentino. Obedeça sua nova mamãe e melhore logo.
"Nova mamãe..."
-- Lembre-se do que falei -- o pai de Luigi sussurrou, abraçando-a com afeto. Então, virou-
se para Valentino. -- Você está em ótimas mãos, menino. -- E beijou o cão atrás das orelhas.
Toda a família Tescotti adorava animais. Mais um motivo para Carla gostar muito de todos
eles...

Por volta das nove e meia da noite, Valentino estava desperto e queria deixar a sala de
cirurgia. Carla retirou o tubo de soro e liberou-o para ir para casa.
Havia conversado bastante com o Dr. Donatti sobre alguns casos, enquanto permaneciam
atentos ao cão. Luigi não parava de andar em círculos, e acabou aceitando a sugestão dos dois para
ir cavalgar, ficando fora por várias horas.
Durante sua ausência, Carla pôde pensar em seu beijo de gratidão. Como era uma romântica
incorrigível, transformara-o em algo mais. Sua reação decerto tinha sido provocada pela inquietação
do marido.
Como fora tola em se deixar levar assim... Luigi devia estar arrependido de sua ousadia. Se
fosse embora no dia seguinte, não haveria mais incidentes deste tipo. No entanto, a notícia de sua
partida iria transtornar a família Tescotti, sobretudo Enzo e Maria.
Porém, talvez Luigi decidisse que isso seria melhor do que passar mais vinte e quatro horas
com uma esposa tonta que não amava. Quando preparara o fatídico contrato, não planejara que ela
se apaixonasse por ele. Se Luigi contava as horas para se livrar da prisão, Carla o deixaria o mais
breve possível. Apesar de ter perdido o controle sobre seus sentimentos, conservava o orgulho, que
a auxiliaria até poder ficar sozinha e sofrer.
Mesmo assim, imaginar se separar dele para sempre era insuportável. Não conseguia pensar
isso naquele momento.
"Como será depois de um mês sem tornar a vê-lo?"
Ainda refletindo sobre o caos em que sua vida se transformara, Luigi retornou com uma
aparência bem melhor. A Sra. Donatti, uma mulher charmosa com quem Carla logo simpatizara,
não teve de insistir para que Luigi comesse a refeição que preparara.
Ele comeu com vontade o delicioso macarrão com frutos do mar e pediu mais um pedaço de
torta de chocolate.
-- Você ainda é a melhor cozinheira de Turim, Bianca. Ê sempre um privilégio comer aqui.
Mas está ficando tarde. Precisamos levar Valentino para casa, e vamos deixar vocês descansarem.
-- Pode ir para o caminhão, que eu levo o cachorro. -- O médico se virou para Carla. --
Ele pode deitar a cabeça em seu colo.
-- Tudo bem.
Ela agradeceu aos anfitriões e se apressou para sair.
Anoitecera. Logo o médico apareceu com Valentino e o pôs no banco do veículo, com todo
o cuidado. Valentino repousou a cabeça na perna de Carla, que o acariciava sem parar.
O Dr. Donatti lhe entregou um vidro de analgésicos. Carla apertou sua mão.
-- Obrigada por tudo.
-- Assim parece que não vamos mais nos ver. Venha nos visitar com Valentino.
-- Vamos tentar.
Carla teve vontade de chorar por causa da indiferença de Luigi. Fora um dia glorioso, mas
irreal. Nada era verdadeiro, pois seu casamento era baseado numa mentira que iria estourar antes
que a noite terminasse.
Ele ligou o motor e logo se afastaram do chalé, em silêncio. Após alguns momentos, Carla
percebeu que continuavam longe da cidade.
-- Para onde estamos indo?
-- Para a casa da fazenda.
-- Por quê? -- indagou, surpresa.
-- Valentino adora o lugar. Ele pode ficar deitado em frente à lareira, e tem bastante espaço.
O apartamento é muito apertado. Quero que meu amiguinho fique confortável até se recuperar. --
Fez uma pausa, depois continuou: -- Algum senão?
-- Só há um quarto...
-- Nós demos um jeito da outra vez.
-- Não somos casados de fato, Luigi.
-- Já discutimos isso.
-- Sabe o quero dizer. Se continuarmos com essa farsa, mais pessoas vão se magoar, como
seus pais. Hoje isso ficou bem evidente.
-- Se está me dizendo que quer acabar com tudo agora, pode esquecer.
-- Por favor, me escute. Posso visitar seus pais amanhã e explicar tudo. Quando virem que
quis ajudar seu irmão, vão amá-lo ainda mais.
-- Terminou?
-- Não! Seus pais parecem muito felizes juntos. Não vão querer condená-lo a um casamento
sem amor. Eu sei que não!
-- Por que quer tanto voltar para a Califórnia de repente? Porque eu a beijei?
Apesar da escuridão, ele podia ver que ela havia corado.
-- Foi o que pensei -- concluiu, irritado. -- Se quisesse, teria dormido com você naquela
noite, quando me provocou.
Carla cerrou as pálpebras, lembrando-se de como fora tola.
-- Não tenha medo. -- Luigi trocou de marcha para ultrapassar outro veículo. -- Sabe que
está segura comigo. Se quiser esse tipo de prazer, conheço mulheres que...
-- Chega!
Cada palavra dele era uma flecha em seu coração.
-- Já que esclarecemos isso, por que não me conta o que papai lhe disse para deixá-la
assim?
-- Queria que o chamasse de Papo quando tivermos um filho.
-- Você não lhe falou que Valentino já é suficiente? -- Luigi gargalhou.
-- Pode rir, mas seu pai falou sério. Ele e sua mãe vão ficar arrasados quando nos
separarmos. Você também estava preocupado antes, não tente negar.
-- E por acaso estou negando? Lembre-se de que não há garantias de que duas pessoas vão
ficar juntas, nem quando o casamento é baseado num amor verdadeiro. Meus pais são maduros, e
vão ter de aceitar isso. Estou mais preocupado com você.
-- Como é?!
-- Isso mesmo. Por que a pressa em partir? Talvez seja algo que não me contou...
-- Não sei o que quer dizer.
-- Acho que sabe. Há um homem em sua vida que está mantendo em segredo?
"Sim, seu grande tolo! É você, Luigi. Só você!"
-- Seu silêncio é o suficiente. Quem é? O Dr. Wood?
-- Ah, por favor, não! Ele já era casado e tinha filhos quando eu era criança.
-- Então é o sujeito que lhe vendeu a Danelli Strada. Jerry, não é?
A memória de Luigi era como a de um computador. Ela balançou a cabeça.
-- Essa conversa não tem sentido. Não quero mais falar nisso.
-- Pensei que ele fosse casado.
-- E é!
-- Mas ainda a visita de vez em quando.
-- Ele vai ver a família!
-- Será bom esse camarada saber que está casada, que vive fora do país e não espera mais
por ele.
-- Jerry me ensinou a dirigir uma moto, Luigi. Não me esquecerei disso nunca.
-- Já passou da idade de alimentar um caso que devia ter terminado no colegial.
O comentário a deixou atordoada. Olhou-o, magoada.
-- Você também não é um menino. Quantas garotas ensinou a dirigir, em sua época?
Ele diminuiu a velocidade para fazer a curva e entrar na estrada da casa da fazenda.
-- A única mulher que chegou perto de minhas motos me ensinou uma lição que nunca vou
esquecer.
Carla sentiu um intenso calor percorrer-lhe o corpo.
-- Decida se vai ficar ou partir.
-- Por Deus, Luigi! Você sabe que eu não faria nada para prejudicar seu irmão.
-- Achei que não, mas tinha de garantir. -- Ele estacionou e desligou o motor. -- Valentino
não entenderia se o deixasse, agora.
-- Como se eu pudesse... -- sussurrou para o belo animal, que tinha os olhos semicerrados.
-- Deixe-me entrar e esticar um cobertor para ele diante da lareira.
Luigi abriu a porta, e Carla pôde sentir o ar da montanha. Estava bem mais frio do que
alguns dias atrás. Ela procurou sua silhueta alta e poderosa na escuridão, mas o marido já entrara na
casa.
Se ele a amasse, tudo o que podia desejar estaria ali. Como não era o caso, teria de fingir
que Luigi era um amigo, e nada mais.
-- E claro que posso ficar mais umas semanas, Valentino. Você vai me ajudar a suportar a
dor. O que acha?
De repente Luigi se aproximou e abriu a porta para ela.
-- Tudo pronto. Vamos, rapaz.
O cachorro ergueu a cabeça e tentou se levantar, mas não tinha firmeza. Luigi o tomou nos
braços e o levou para dentro. Carla os seguiu, com as pílulas.
O caseiro acendera a lareira. O fogo estava forte, e iluminava os dois colchões que Luigi
pusera de cada lado do cobertor. Valentino estava deitado sobre ele, próximo ao calor.
-- Fique com ele enquanto pego as coisas no caminhão.
Carla assentiu. Dirigiu-se à cozinha, achou um garfo na gaveta e usou seu cabo para amassar
um comprimido numa tigela. Havia várias garrafas de suco na geladeira. Abriu uma, misturou o
líquido com o remédio e pôs a tigela ao do cão.
-- Beba, garoto. Sua garganta dói, mas sei que está com sede.
Como fizera com o gato dos Lotti, Carla molhou os dedos no suco e os pôs na boca de
Valentino. Ele os lambeu. Percebeu o gosto doce, e começou a beber da tigela.
-- Isso. Muito bem.
Animada por ele beber tudo, ela serviu mais suco.
Luigi entrou cheio de pacotes e os colocou sobre o balcão da cozinha. Então, notou a garrafa
quase vazia.
-- Valentino já tomou o analgésico.
-- Você é mágica -- ele murmurou, com certa aspereza.
-- Não, é apenas bom senso. Quando operaram minhas amídalas, eu tomava suco congelado
num palitinho. Um cachorro não é diferente.
-- Se quiser se arrumar para ir dormir, eu o faço tomar o resto.
Carla foi para o quarto, com as roupas novas, feliz por ter algo novo para usar.
Tomou um banho rápido, vestiu uma camisola e um robe. Quando voltou para a sala, Luigi
havia trazido mais lenha, e também travesseiros e cobertores.
Ela enxaguou a vasilha de Valentino e a encheu com água fresca. Em seguida, sentou-se no
colchão e desfez a trança. Escovar os cabelos após um dia cansativo conferia uma sensação
deliciosa.
Logo Luigi se juntou a Carla. Vestia calça azul-marinho, cor que lhe caía muito bem. A pele
morena, os cabelos e olhos pretos eram incríveis. Ela ficaria olhando para ele para sempre.
Luigi se deitou em seu colchão e conversou com Valentino em italiano. O cão abanou a
pequena cauda.
-- Preciso saber o que disse a ele -- ela pediu, sorrindo.
-- Que vamos jogar bola amanhã. Valentino adora quando a escondo e ele tem de procurar.
Eu digo se está frio ou quente. -- O lindo sorriso de Luigi derreteu-lhe o coração.
-- Valentino, você é mesmo muito inteligente!
O cachorro deu um gemido engraçado.
Carla sentiu uma terrível coceira nas mãos. Lembrou-se do creme que o Dr. Donatti lhe
dera. Pegou o tubo e passou um pouco na pele, sem muita esperança. Mesmo assim, o colega fora
gentil em oferecê-lo.
-- Você tem alguma alergia, Carla?
-- Sim. É o sabão que uso antes das cirurgias.
-- Percebi que suas mãos estavam ásperas quando pus o anel de noivado em seu dedo.
-- Aposto que sim. A maioria das mulheres tem a pele macia e bonita.
-- A maioria das mulheres não tem seus talentos.
-- Obrigada. Vou tomar isso como elogio.
-- E é.
-- Luigi... -- Tampou o tubo e o guardou. -- O que eu vou fazer nas próximas três
semanas? É claro que cuidarei de Valentino até ele se recuperar, mas isso levará poucos dias. Estou
acostumada a me manter ocupada.
-- Bem, talvez queira trabalhar comigo.
-- O que você faz? -- indagou, curiosa.
-- Adivinhe.
-- Bem, depois daquele contrato, acho que é advogado.
-- Está frio, não é, Valentino.
-- Marinheiro, então? -- Carla arriscou, ao recordar seu amor por barcos.
-- Mais frio. Se tiver paciência, em poucos dias satisfarei sua curiosidade.
-- Por que tanto mistério?
-- Quero ter o prazer de ver sua reação.
-- Agora estou intrigada.
-- Ótimo! A intriga é o tempero da vida.
-- Com os genes da família Bórgia, você faz isso com toda a naturalidade.
Seus olhares se encontraram.
-- E os genes maquiavélicos?
-- Esses também.
-- Você não fica tensa comigo?
Tensa.
Excitada.
Apaixonada.
Tudo isso.
-- Devo ficar? -- Carla respirou fundo.
-- Talvez.
-- Não me diga que se transforma à meia-noite... -- Um estremecimento de desejo
percorrendo-lhe a pele.
-- Creio que seria melhor não descobrirmos -- concluiu, gélido.
Luigi ergueu-se num movimento rápido. Sua sombra fazia com que parecesse ainda mais
alto e perigoso do que no dia em que Carla o vira pela primeira vez, no aeroporto.
Valentino não era o único que o admirava. Mais uma vez ela fazia papel de tola. Virou a
cabeça para o lado.
-- Irei falar com os Cozza, antes que fique tarde.
-- Os caseiros?
-- Sim. Não demoro. Não se preocupe. Vou trancar a porta.
-- Nós ficaremos bem.
Depois que Luigi saiu, Carla tirou o robe e entrou sob as cobertas. Por muito tempo tentou,
sem sucesso, entender as atitudes dele.
Luigi tinha uma personalidade fascinante, mas Carla não conseguia decifrar todas as suas
facetas. O importante, porém, era saber que se transformara em seu mundo.
Agora estava com ele. E ali ficaria até que a mandasse embora.
CAPITULO VIII


Três noites se passaram. Luigi e Valentino dormiam em frente à lareira. Com cuidado para
não fazer barulho, Carla foi até o quarto. Queria ligar para seu patrão do celular de Luigi. Eram
duas da manhã. Esperava que o Dr. Wood ainda estivesse no hospital.
-- Hospital Veterinário do Norte de Monterey.
-- Olá, Janie. É Carla. Como vão as coisas?
-- Carla! Está tudo bem, mas o Dr. Wood acabou de sair. Ele foi à casa dos Selender.
-- Sério? Foi por isso que liguei. Queira saber se a égua deles já pariu.
-- Está acontecendo agora.
-- Eu devia estar aí...
-- E suas férias? Você está brincando! Eu faria tudo para estar em seu lugar. Aqueles
rapazes mais bonitos que estátuas gregas passeando pelas ruas!
Carla apertou o aparelho contra a orelha. Entendia muito bem o que Janie dizia. Por acaso,
estava casada com o homem mais atraente do planeta.
Era hora de mudar de assunto:
-- Como está Chloe?
-- Ela dorme no hall entre a sala de cirurgia e o apartamento, a sua espera.
-- Ah... -- Os olhos de Carla se encheram de lágrimas.
-- Toda as noites o Dr. Wood a leva para ficar com Roxy, para ela não se sentir tão sozinha.
Ele acha que ajuda.
Roxy era uma adorável boston terrier.
-- Esse é nosso Dr. Wood.
-- Ele é um amor.
-- Janie, por favor, diga ao doutor que liguei.
-- Claro. Eu colocaria Chloe ao telefone, mas quando você não está ela fica nervosa se
alguém se aproxima, exceto o Dr. Wood.
-- Sei disso. Obrigada por lembrar, Janie.
-- Não se preocupe. Aproveite suas férias ao máximo antes de voltar para casa.
"Casa?"
Como Prunedale voltaria a ser seu lar, sem Luigi?
Ligar para o hospital não fora uma boa idéia. Seus nervos estavam à flor da pele.
-- Carla? Você ainda está aí?
-- Oi, sim... -- Enxugou os olhos. -- Parece que você tem outra ligação, Janie. Ligarei de
novo, em breve. Até mais.
Carla desligou, aterrorizada com a idéia de deixar Luigi para sempre. Sua vida jamais seria a
mesma.
Voltou para a sala, para vê-lo dormindo. Colocou o celular sobre a mesa, dirigiu-se ao
colchão e se deitou.
-- Com saudade de casa? -- disse a voz vibrante que tanto amava.
Carla estremeceu. Se ele soubesse...
-- Achei melhor ligar para meu chefe e ver como estavam as coisas.
-- Está tudo bem?
-- Sim. -- Tinha certeza de que Luigi podia ouvir o bater acelerado de seu coração. --
Desculpe-me se o acordei.
-- Não. Não estava conseguindo dormir.
-- Por quê? Não se sente bem?
-- Estou ótimo, não é isso.
-- Então, o que foi?
-- Você não percebeu?
-- O quê? Não entendi. -- Carla se sentou, afastando os cabelos da testa.
-- Escute...
Luigi era um homem feito, mas nos últimos dias, enquanto descansavam, levavam o cão
para passear e faziam as refeições, Carla descobriu que ele podia agir como um menino incorrigível.
Valentino despertou e se pôs-se em posição de guarda.
-- Não estou ouvindo nada.
-- Exactamente! Você acabou com o problema dele. Eu ficava horas acordado, e agora não
suporto o silêncio.
A resposta foi tão inesperada, que Carla caiu na gargalhada.
-- Devia ter pensado nisso antes, cavalheiro.
-- Não é só isso. Valentino não é mais meu. Desde que você chegou, ele gosta de dormir em
sua perna. E eu fico aqui sozinho.
"Eu também, Luigi. E te quero tanto que chega a doer."
-- Feche os olhos e eu vou lhe contar uma história.
-- Qual?
-- É bem conhecida. Era uma vez um belo príncipe que morava em um reino distante.
-- Minha mãe já tentou me contar essa, Carla. E eu não gostei.
-- Não me surpreende. Como você, o príncipe tinha todas as riquezas possíveis. Não
imagina que era triste, não é? Mas era. Costumava correr pela floresta, o que fazia dele um ótimo
atleta. Com o passar dos anos, tornou-se amigo das pessoas, e fazia todo tipo de boas ações. Mas
algo o incomodava. Todo final de tarde, antes do pôr-do-sol, o príncipe subia até o alto de sua torre
e olhava através das barras da janela do castelo. Desejava ser livre como os cidadãos lá embaixo.
Valentino tornara a se deitar. Pelo menos ele estava ficando com sono.
-- Por ironia, os cidadãos tinham seus próprios sonhos. Observavam o castelo na montanha,
das janelas de suas casinhas. Esqueciam-se do barulho e das roupas no varal, e desejavam ser o
príncipe, e andar pelo país o dia todo na limusine real com motorista, enquanto comiam chocolate.
-- Chocolate? -- Luigi deu risada.
-- Deliciosas trufas e pêras das árvores do jardim do príncipe -- ela prosseguiu, sorrindo.
-- Acho que o príncipe desconhecia esses sonhos. -- Luigi não mais sorria.
-- Bem, não conhecia mesmo. Sua energia estava concentrada em conquistar sua liberdade.
-- Para quê?
-- Ah... pensei que não gostava de ouvir histórias.
-- Mudei de idéia.
-- É uma pena, mas não conheço o final.
-- Bem agora que estava chegando à parte boa. Invente algo. Viva perigosamente.
Carla lhe lançou um olhar velado e notou que as íris pretas e brilhantes a observavam.
Arrepiou-se.
-- Achei que estava fazendo isso ficando a seu lado.
Ele passou a mão pelos cabelos como se estivesse perturbado.
-- Escute, amanhã vou lhe mostrar o que aconteceu com o príncipe, e você saberá o fim da
história.
-- Que bom! -- Ela se animou. -- Olhe, não sei quanto a você, mas eu estou com sono.
Carla deitou a cabeça no travesseiro e, de repente, sentiu-o acomodar-se junto dela.
-- Luigi?
Ele se aproximara como na primeira noite que passaram juntos.
-- O que está fazendo?
Seu marido encostou o rosto em sua cabeleira ainda úmida.
-- Tudo bem se eu ficar aqui? Estou com frio.
Eram as mesmas palavras que ela usara na ridícula tentativa de seduzi-lo.
-- Não tem mais lenha lá fora?
-- Eu teria de cortar mais. -- E a abraçou.
Carla esperou por um beijo durante um momento que lhe pareceu muito longo. Faminta e
ansiosa por sentir sua boca, virou-se um pouco. Esperava estar nos braços dele de novo desde que
foram surpreendidos na sala de cirurgia.
-- Luigi? -- sussurrou, ansiosa por um contato.
Não houve resposta.
Foi quando Carla constatou que ele adormecera. Ficou ali o resto da noite, aflita, entre o
homem e o cão que adorava. Depois de horas insones, acabou por pegar no sono.

Ao acordar, Carla notou, desapontada, que estava só.
Luigi lhe deixara um bilhete sobre o balcão da cozinha: "Levei Valentino para os Cozza.
Quando voltar, iremos a Turim. Está frio. Já que vamos de moto, é melhor usar o agasalho que
comprou."
Carla apreciou a idéia. Iria descobrir o que o príncipe fazia para ganhar a vida. O que quer
que fosse, ele devia estar ansioso para tornar à rotina normal, e não seria ela que o impediria.
Tomou o desjejum depressa e penteou-se. Passou um batom novo, alaranjado. Até o
momento não usara nenhuma maquiagem.
Olhou as compras que estavam em cima da cama. Decidiu usar uma calça creme e uma
blusa de mangas compridas e gola alta, no mesmo tom. Certamente ficaram bem com o novo
cardigã.
Luigi apareceu minutos depois, pronto para sair. Não comentou nada sobre sua aparência,
mas a observou atento, ao vestir a jaqueta de couro. Seu olhar deixava Carla aturdida.
Ela colocou o capacete, fingindo indiferença. Caminharam juntos até a moto, que já estava
no pátio.
-- Sua motocicleta parece faiscar debaixo do sol, como se dissesse: "Estou pronta. Venha
me pegar se tem coragem".
-- Pelo que lembro, você já fez isso.
Os olhares dele se encontraram.
-- Desculpe-me por isso, Luigi.
-- Não venha com essa -- brincou. -- Nós sabemos que faria tudo outra vez, sem hesitar,
se precisasse. Convivi com você o suficiente para saber que combinamos muito bem.
Ele subiu na moto e ligou o motor.
"Combinamos muito bem?" Ela subiu também e abraçou-o.
-- Saiba que tenho ascendência viking.
-- Percebi isso assim que pus os olhos em você. -- Luigi riu. -- É muito ousada, esposa
mia. A maioria dos homens teria medo de enfrentá-la.
O barulho do motor abafou a resposta dela.
Logo chegaram à estrada. Todas as mágoas ficaram para trás, perdidas na alegria de estar
com o homem que tanto amava.
Ao se aproximarem dos arredores de Turim, Luigi tomou a direção oeste. Deixaram a
estrada principal, e várias curvas os levaram a uma área industrial.
Por fim, ele diminuiu a velocidade para fazer mais uma curva que conduzia ao
estacionamento de um conjunto de armazéns. Havia muitos carros ali, e um pequeno prédio. Luigi
parou atrás dele. Desceram do veículo, e Luigi foi abrir a porta. Existia uma placa com uma palavra
em italiano, que Carla deduziu que significava "particular".
Foi conduzida pelo marido à primeira entrada à esquerda. Parecia um escritório comum,
com computadores e monitores.
-- Você lida com computadores? -- ela perguntou, aproximando-se da mesa e tirando o
capacete.
Luigi sentou-se numa cadeira giratória e ligou seu computador. Parecia não ter ouvido a
indagação.
Carla o observou por um instante. A energia que ele emanava a fez aproximar-se e olhar a
tela.
O projeto intitulado Protótipo 1, Danelli LT-1, uma moto de corrida, surgiu no monitor.
Mais um clique e a complexa configuração do motor apareceu. Carla fez logo uma associação.
-- LT... Luigi Tescotti -- sussurrou, admirada.
As peças do quebra-cabeça começavam a se juntar. Ele era engenheiro mecânico.
-- Você substituiu Ernesto Strada... Por isso tinha acesso a tantas informações sobre o
mundo do motociclismo.
-- Nunca poderia substituir um gênio como ele. Ernesto era um homem muito a frente de
seu tempo. Fora Luca, que era rico, a maioria das pessoas na área pensava que era louco.
-- Como uma raposa. Minha Strada 100 ainda faz a concorrência sentir inveja.
-- Só aprimorei um pouco suas idéias com o projeto digital EDF. Agora tudo funciona com
injeção eletrônica. Luca gostou das mudanças, e uma coisa levou à outra. Ele decidiu pôr as motos
Danelli no mercado de novo, e me convidou para participar.
-- Não seja tão modesto, Luigi. Por favor, me mostre o que mais desenhou.
-- As máquinas que verá agora são para passeio, não para corrida. Fiz a divulgação pela
internet e contatei alguns grandes distribuidores na Europa.
-- Tenho certeza de que recebe pedidos do mundo todo.
-- É uma pena que a internet não estivesse disponível para Ernesto. -- Luigi meneou a
cabeça. -- Este é um dos modelos mais populares. É a 600 cc, especialmente desenhada para ser
confortável em viagens longas. Cada vez mais mulheres usam motos hoje. Eu a desenhei com o
objetivo de atraí-las, mas os homens também acabam gostando.
As combinações de cores surgiam na tela: bege e chocolate, azul cobalto e azul-claro,
alaranjado e creme, violeta e cor de alfazema.
-- Ah... Eu não saberia qual escolher! São tão lindas!
-- Dei o nome a este modelo de La Dolce Vita.
-- A boa vida -- ela leu a tradução. -- É perfeito. E com essa cor de chocolate, você tocou
no prazer secreto da maioria das pessoas.
Luigi esboçou um largo sorriso.
-- E eu achei que você era um príncipe pobre. Elas devem estar vendendo como água.
Mostre-me mais.
Mais um clique no mouse e outro modelo apareceu.
-- Essa é uma 1000 cc, especial para agradar o piloto de corrida que quer algo poderoso
mesmo quando não está nas pistas. Mistura preto e uma série de cores primárias.
-- O nome é The SideWinder. Onde eu nasci, isso é uma cascavel.
-- É a melhor da categoria. A cobra se arrasta com um movimento ondulante lateral de seu
corpo e consegue um poderoso impulso do lados. E é isso o que se quer em trilhas montanhosas.
-- Deixe-me ver todas!
Luigi a entreteve por alguns instantes.
-- Não me diga que acabou! -- Carla reclamou quando ele parou de clicar.
-- As outras são motos de corrida.
-- Como a sua vermelha?
-- Sim.
-- Como você a chama?
-- The Monster.
-- Que apropriado!
Ele achou graça.
-- Está bem, Luigi Tescotti. Confesse. Quero ver sua arma secreta para as mulheres.
-- Acha que eu tenho uma?
-- Sei que tem.
De repente, ele desligou o computador e se levantou. Seus olhos estavam cheios de paixão.
"Se ele pudesse olhá-la assim, Carla Dassiter..."
-- Tanto crédito merece uma recompensa -- murmurou Luigi.
Eufórica, ela o seguiu para um cômodo nos fundos. Luigi destrancou a porta e a fez entrar.
Carla perdeu o fôlego.
Rodeada por equipamentos de corrida, estava uma moto como nunca vira. Deslumbrada,
observou o veículo de três cores, prata, dourado e creme. Não havia palavras para descrevê-la.
-- Você gosta?
-- Se gosto... -- respondeu, com dificuldade. -- Como pode me perguntar isso? Nunca vi
algo tão lindo em toda minha vida. Se colocá-la nas ruas, causará um monte de acidentes. Os
motoristas não vão saber para onde olhar.
-- Concordo.
Seu tom áspero e seu olhar intenso a fascinavam.
-- Acho que Lancelot causou o mesmo impacto quando galopou sob o sol com a armadura
cintilante.
-- Na verdade, tive em mente Lady Godiva. -- Luigi a fitava com um leve sorriso nos
lábios. -- O sol fazendo seus cabelos longos e finos brilharem... É de tirar o fôlego.
-- Esvoaçando ao vento, não é? Então era isso o que o príncipe sonhava na janela da torre!
-- Algo assim.
-- Que nome deu a essa?
-- Ainda não decidi. Estou entre dois.
-- Não vai me dizer?
-- Não. Esse modelo ainda não está à venda.
-- Por quê?
-- Fiz um teste com ela na pista, mas não na estrada. Ainda são as longas distâncias que
contam.
-- Quase queria não ter visto. -- Carla deu as costas para a moto.
-- Não entendi.
-- Não se deve cobiçar os bens alheios...
Luigi gargalhou.
-- Não tem graça! Quando chegar em casa, terei de me contentar com minha Strada 100. --
Mordeu o lábio. -- É lógico que estou satisfeita com ela, mas sabe o que quero dizer. Obrigada por
me trazer até aqui. Foi o máximo. Agora acho melhor voltarmos. Valentino está esperando para
passear.
-- Não quer visitar a fábrica primeiro?
-- Não. É melhor não. Como minha mãe dizia, se você não pode gastar, não vá olhar
vitrines.
-- Sua mãe era uma mulher sábia.
-- Sim. Se ela morasse perto do castelo do príncipe, teria olhado para sua janela apenas uma
vez.
-- É difícil encontrar gente que se controla assim.
-- Nem me diga. Minha irmã ficou tão frustrada, que pôs na cabeça que poderia comprar o
que quisesse. Estou começando a achar que Ann tinha razão. Com o que ganho como veterinária,
precisaria economizar uns trinta anos para comprar uma coisa dessas. E então estarei velha e gorda
demais para dirigir uma moto.
-- Bem, se seu futuro será esse, é melhor aceitar minha proposta agora.
-- Que proposta? -- Encarou-o, curiosa.
-- Desde que vi sua habilidade para dirigir, quando roubou minha Danelli, quis levá-la para
passear comigo na estrada.
-- Está brincando, não é?
-- Venha, vamos arrumar uma roupa adequada.
Luigi começou a tirar algumas peças da prateleira tão depressa que Carla não conseguiu
acompanhar seus movimentos. Logo se viu diante de um capacete brilhante, creme, luvas, botas,
calça e jaqueta da mesma cor.
Ele a ajudou a se vestir e puxou o zíper. O toque pareceu queimar-lhe a pele.
-- Luigi, eu nem sabia que existiam acessórios nesse tom!
-- Foram feitos para combinar com esse modelo.
Ela estacou.
-- Vai me deixar dirigi-la?
-- Por que não?
O olhar de ambos se encontrou.
-- Mas, Luigi...
-- Nada de "mas". Onde está a mulher ousada que planejou sua fuga assim que pôs os olhos
em minha moto?
Carla ficou vermelha. Tornou a fitar a motocicleta e encarou o marido.
-- E se acontecer algo e eu bat...
-- Se Deus quiser, voltaremos sãos e salvos. Ande. Vou levar a Danelli para fora. Poderá
dirigir um pouco pelo estacionamento, para se acostumar.
-- Para onde vamos? -- Carla quis saber, mal contendo a alegria.
-- Agora que sei que gosta de chocolate, pensei na Suíça!
-- Sempre quis ir para lá! -- Achou que poderia explodir de felicidade.
Logo depois, Carla dirigia a estupenda máquina. Não podia acreditar que estivesse mesmo
acontecendo. Lembrou-se de quando era adolescente e ficava na garagem de Jerry, sonhando em
dirigir uma linda Danelli.
Luigi fora buscar seu equipamento no escritório. Fechou as salas e retornou, pronto para
partir. Esperou Carla parar a seu lado.
-- O que acha, signora Tescotti?
-- Se Jerry me visse agora, não iria acreditar. Ah, Luigi... este é o dia mais emocionante de
minha vida! Não sei como agradecer...
Antes que pudesse terminar, ele ligou o motor de sua moto. Segundos depois, estava longe.
Parecia uma mancha vermelha.
O que fora aquilo? Por que Luigi disparara sem lhe dizer nada?
Algo o fizera deixá-la para trás. Carla receou que não a tivesse esperado ao notar que não
podia acompanhá-lo.
Se estivesse com a sua Danelli, seria diferente. Mas tinha nas mãos a melhor motocicleta de
corrida do mundo! Não era sua, e nunca poderia comprá-la.
Talvez Luigi a estivesse testando para ver se era boa de estrada. Os genes maquiavélicos
podiam aprontar essa armadilha. Nesse caso, teria de mostrar-lhe do que era capaz, e rezar para que
nada acontecesse.
As pessoas olhavam-na à medida que ganhava velocidade por entre os automóveis. Dois
rapazes dirigindo Vespas tentaram alcançá-la, em vão. Carla acelerou para não perder Luigi de
vista. Não ficaria para trás de jeito nenhum.
A corrida começou.
A moto tão poderosa engolia os quilômetros. Em poucos minutos saíram de Turim, e subiam
as montanhas.
O tráfego estava um pouco lento. Carla podia mudar de faixa sem ter de mudar a marcha.
Luigi, decerto, quis lhe dar uma folga, pois encostou a seu lado assim que fez uma curva.
Quando conseguiu olhá-lo, ele fez um sinal de positivo com o polegar. Vindo dele, era um
grande elogio. Carla ficou aliviada por o marido parecer o mesmo de novo. Agora podia apreciar a
paisagem.
Conhecia o lago Maggiore apenas por livros. Era difícil acreditar que a próxima vista que se
descortinava diante de seus olhos mostrava o lindo lago, com pitorescos chalés ao redor.
Dirigir com Luigi até um lugar tão bonito a deixava muito exultante.
Carla desceu o vale atrás dele e teve de correr outra vez para alcançá-lo, quando o marido
tomou uma outra estrada que levava para as altas montanhas.
O caminho se encontrava deserto. Voavam como o vento em direção ao norte. Nuvens
carregadas começavam a se formar no céu, mas Luigi não parecia se preocupar.
Alegres como crianças, aproveitavam a liberdade, contagiados pela mágica do momento.
Tudo teria sido perfeito se não começasse a chover. Caíram pingos espaçados, mas logo
rajadas fortes atingiam seus rostos.
Luigi acenou-lhe para que o seguisse. Desceram a montanha em direção à cidade. Ainda
bem que ele guiava mais devagar. Os pneus não aderiam tão bem à pista molhada.
Por fim, alcançaram Locarno, onde se via a bandeira suíça nas janelas de um dos hotéis.
Chovia a cântaros.
Mas Luigi sabia para onde ir. Logo encontrou um posto, e abasteceram os tanques.
Ele pagou o frentista e se juntou a Carla. Em movimento, ela não percebera como estava
frio.
-- Disseram-me que essa tempestade não vai passar até amanhã. Liguei para uma pousada
perto daqui, onde estive uma vez. Eles têm um quarto vago. Vamos.
O coração de Carla acelerou.
Desde que chegara à Itália tinham dormido separados, no apartamento, no barco e na casa da
fazenda. Essa noite não devia ser diferente.
Mas era, de alguma forma. Não poderia usar Valentino como escudo.
CAPÍTULO IX


-- Aqui está. Affettato musto, cazzola, nocino and torte delia nonna.
A mulher suíça de faces avermelhadas que cuidava da pousada com o marido levou o jantar
ao quarto deles e colocou-o na mesa perto da lareira.
-- Bom apetite -- disse em inglês, com seu forte sotaque.
-- Grazie. -- Luigi fechou a porta assim que ela saiu.
O fogo crepitava na lareira, e a chuva caía sobre o telhado do chalé. A cena não poderia ser
mais aconchegante, ou melhor: romântica.
Preocupada, Carla lançava olhares furtivos para Luigi, que se aproximou. Vestido com um
jeans e uma malha preta, sua beleza masculina a seduzia.
"Ele é meu marido pela lei dos homens e pela lei da Igreja. É meu marido em meu coração.
E mesmo assim, o que sou para ele?"
-- Tudo parece tão especial quando você fala em italiano. O que é affettato?
-- Nada de mais.
Pela primeira vez, Luigi parecia entediado, e não tinha idéia de como isso a feria.
-- É uma entrada de salame e presunto. Para o prato principal teremos salsicha, batatas e
queijo. E para sobremesa uma torta de que irá gostar. Quanto ao nocino, não sei se apreciará.
-- Nocino?
-- Hum... é um licor de nozes. É ótimo no final da refeição após o café.
-- Terei de experimentar depois.
-- Nosso passeio trouxe à tona seu lado mais aventureiro.
O comportamento de Luigi estava estranho outra vez, e Carla soube que algo saíra errado.
Começou a comer, e o silêncio continuou. Em meio à refeição, não suportou mais.
-- Nunca vou me esquecer do dia de hoje, Luigi. Eu ia lhe agradecer em frente a seu
escritório, mas você foi embora de repente.
-- Não tem de me agradecer por nada. Disse-lhe que, se colaborasse com o casamento,
poderia escolher qualquer moto como presente. Sempre cumpro minha palavra.
Carla baixou a cabeça. Luigi revelava uma nova faceta naquela noite.
"Não seja assim, Luigi. Você está tão frio e distante!"
-- Eu não poderia ficar com a motocicleta. -- Carla deixou o garfo de lado no prato.
-- Por que não? Seu estranho código de honra não permite aceitar meu presente a menos
que durmamos junto antes? Se esse é o problema, podemos resolvê-lo hoje mesmo.
-- Não brinque com algo tão importante para mim!
-- Quer dizer que você quer se preservar até a morte para o tal Jerry?
Tinha de pôr um ponto final nas provocações de seu marido.
-- Houve uma época em que me interessei por ele, mas Jerry era oito anos mais velho e
sempre me tratou como criança. Continuamos amigos por causa do amor pelas motos. Só isso.
-- Mas pensou nele hoje. -- Luigi se servia de uma fatia de torta.
-- Claro! Ele tinha uma Danelli e me ensinou a dirigir. -- Carla se levantou. -- Se Jerry
soubesse que dirigi nos Alpes o último modelo de corrida do engenheiro-chefe da Danelli, teria um
ataque cardíaco. Na verdade, nem acreditaria.
-- Ele ainda corre?
-- Não. Agora que tem filhos, a mulher o fez parar.
-- Coitado...
-- Nem todo homem quer liberdade como você, Luigi. Juro que estarei fora de sua vida
assim que passarem os trinta dias.
Ela foi até a porta.
-- Aonde pensa que vai?
-- Descer. Quero comprar alguns mapas e cartões-postais.
-- Irei junto.
-- Não. Por favor, fique e aproveite seu café.
-- Prefiro acompanhar minha mulher a tomá-lo sozinho -- insistiu, levantando-se também.
-- Não se refira a mim dessa forma.
-- Que forma? Você é minha mulher. Não importa se aceita o fato ou não, mas a moto é
sua.
O mesmo assunto outra vez. Carla se sentiu um pouco fraca, e se apoiou na soleira.
-- Não fiz nada para merecê-la. Você teve de me arrastar para a igreja.
-- Tem razão. -- Ele se aproximou. -- Mas poderia ter feito uma cena na frente do padre, e
ficou quieta. Tem minha gratidão, e a de Enzo também.
-- Isso não quer dizer que me deve algo tão caro. Acho que entende isso.
Luigi lhe lançou um olhar penetrante, desafiando-a a continuar.
-- Talvez um dos motivos pelos quais você renunciou ao trono seja o fato de sentir que não
tem direito sobre todas as propriedades e riquezas que não conseguiu com o suor de seu rosto. Eu o
respeito muito por agir de acordo com seus princípios.
-- Você está certa, mas não foi só isso. -- Luigi ainda não queria se abrir.
Não havia mais nada a dizer. Ela abriu a porta, e desejou que a tristeza passasse.
-- Princesa Tescotti... Princesa... olhe para cá!
Atordoada pela série de flashes, Carla se virou direto para o peito de Luigi. Ele a puxou para
dentro e fechou a porta, e então chegou mais perto.
-- Era isso o que eu temia. Por essa razão não queria que fosse lá embaixo sozinha.
-- Foi só um susto. -- Carla pousou o rosto na curva do pescoço dele. -- Devia ter me
lembrado de como você odeia a imprensa e ficado aqui.
-- Esqueça de mim, Carla. É você quem precisa de proteção. Até voltar para Califórnia,
acho que vamos ficar na casa da fazenda para que tenha liberdade e privacidade.
Ela fechou os olhos com força. Ficava claro que o divórcio aconteceria. Como uma tola
romântica, seu subconsciente a fizera viver em negação.
Mas agora não!
As palavras dele tiveram o dom de acordá-la. Para sobreviver até a partida, só havia uma
coisa a se fazer.
-- Acho que quero provar o licor agora. -- Carla se desvencilhou de seus braços. -- Posso
servir-lhe um cálice?
Luigi a seguiu, sem responder. Tudo bem. Ela o faria de qualquer forma. Serviu dois cálices
e ergueu um para o marido. Reuniu coragem e o encarou.
-- Antes de pedir-lhe algo importante, quero propor um brinde. A você, Luigi. Não é o lobo
em pele de cordeiro que imaginei, quando minha irmã me pediu auxílio.
Ela tocou o cálice dele com o seu e tomou todo o líquido de uma vez. Sentiu a garganta
queimar, porém a dor em seu peito era maior.
Luigi ficou imóvel, o que a deixava ainda mais tensa.
-- Agora, quanto ao favor, poderia solicitar ao Dr. Donatti para eu ficar em seu consultório
enquanto estiver aqui? Você precisa voltar ao trabalho, e tenho de fazer alguma coisa. Como o Dr.
Donatti trabalha numa região silvestre, cuida de muitos animais selvagens.. Poderia aprender muito
com ele.
-- Você não poderia ficar lá à noite.
-- Evidente que não. Isso estragaria seu elaborado plano. Pensei que pudesse me levar até lá
antes de ir trabalhar, e me buscar na volta. Seríamos um casal normal.
Carla não conseguia desvendar-lhe a expressão. Luigi parecia estar em dúvida sobre algo
sério. Alisou o peito em um gesto inconsciente.
-- Se a fará feliz, falarei com ele.
Fora mais fácil do que imaginara. Sem dúvida Luigi estivera imaginando o que fazer com
ela nas próximas semanas. Agora poderia relaxar.
-- Obrigada. -- Pôs o cálice na mesa. -- A não ser que queira ir primeiro, gostaria de tomar
banho.
-- Não tenho pressa. O favor que quero de você pode esperar.
As palavras puseram-na em alerta. A adrenalina percorreu suas veias, e Carla se apressou
em ir para o banheiro. Quando voltou, vestida num roupão fornecido pela pousada, Luigi falava ao
telefone. Alguém levara a bandeja com os pratos do jantar.
Perturbada pelo olhar dele, Carla foi para a cama e entrou debaixo das cobertas.
-- Oh... -- ela murmurou ao encontrar uma trufa sobre o travesseiro. -- Que gentil!
Obrigada, Luigi.
-- Tudo para agradar minha esposa.
Ela ficou nervosa. Ele queria algo.
-- O que irá me pedir?
-- Quando a vi dirigir com tanta habilidade, tive várias idéias que não consigo esquecer.
-- Nós dois sabemos que sou apenas uma amadora.
-- Não escolheu a carreira de corredora, Carla, mas tem um grande talento natural. Conheço
o assunto, confie em mim.
Ela pôs o chocolate sobre as cobertas.
-- Parece que hoje à noite eu só vou lhe agradecer...
-- Não estou reclamando, estou?
-- Não. Claro que não.
-- Vários editores de revistas de motos têm me pedido para escrever um artigo sobre mim.
Luca também tem insistido nisso.
-- Entendo por que não o fez.
-- Sei que sim. Confio em você. Do contrário, não a teria deixado chegar perto da moto que
trará fortuna para Luca de novo. Você não sabia disso quando falei que era uma arma secreta.
-- Sabia. A moto é revolucionária. O que o incomoda é saber que os editores querem a
história do homem que não quis ser príncipe. Eles venderiam milhões de exemplares. Que tolice
imaginar que você concordaria com isso!
-- Não com essa história. Mas com sua ajuda, poderei promover nossa nova linha de
produtos sem falar sobre meu passado.
"Minha ajuda?" Quantas vezes discutia com Luigi apenas para acabar cedendo por estar
apaixonada demais para fazer qualquer coisa que os separasse? Se não pusesse de lado essa loucura,
sofreria pelo resto de seus dias. Em que situação se metera por ter escutado Ann!
"O filme vai fazer minha carreira deslanchar, Carla, por isso você tem de me dar uma mão."
-- Acho que auxiliá-lo no marketing de suas motos está fora do contrato de casamento,
Luigi.
Se suas palavras tinham soado agressivas e imaturas, tudo bem. Carla lutava para ficar bem,
se é que isso era possível.
-- Certo. Vai acontecer o que imaginei depois que eu a acompanhar aos Estados Unidos.
Pela primeira vez Carla suspeitou que Luigi estivesse tendo a mesma dificuldade que ela,
quando pensava na separação. Se fosse verdade, ele teria de falar.
-- Por que faria isso?
-- Para tirar uma foto sua dirigindo a Strada 100 pela fazenda com sua maleta de veterinária
na garupa, e a trança esvoaçando. Essa imagem esclareceu algumas idéias que tive para o artigo.
Enfim, sei o que fazer.
-- Então era isso o que queria? Que eu posasse em minha moto para você?
-- Enquanto você corre, o fotógrafo vai trabalhar. Nem notaria sua presença.
Ela desviou o olhar. "Por que não se apaixonou por mim, Luigi?"
-- Há anos venho querendo homenagear Ernesto e Luca de uma forma inovadora, falando
deles desde os tempos da guerra até hoje. O ponto importante do artigo será mostrar seu impacto
não só no mundo no motociclismo, mas na sociedade em geral. Uma fotografia de uma moderna
veterinária americana em um modelo antigo de Ernesto reforçará a idéia de que as Danelli foram
feitas para durar para sempre. Deve ter sido o destino que a fez vir à Itália no lugar de sua irmã.
Saberei escolher a foto certa, quando a vir.
-- Quer dizer a foto em que eu e a moto estamos cobertas de lama.
-- Algo assim. -- O olhar animado dele era um alívio para a dor em seu peito. -- A legenda
dirá: "Até uma veterinária maluca de Prunedale, Califórnia, EUA, não pode ficar sem sua Strada
100".
Carla baixou a cabeça. Tinha de admitir que a idéia era genial.
Havia uma grande curiosidade sobre o fechamento da fábrica Danelli. Qualquer revista que
tivesse a oportunidade de publicar as notícias sobre sua volta espetacular faria fortuna com o artigo.
Ia dizer que Jerry morreria de inveja quando descobrisse que a motocicleta que lhe vendera
apareceria na capa, porém lembrou-se da reação de Luigi na última vez que mencionou seu nome.
-- Não há dúvida de que sou uma grande fã da Danelli-Strada, então é o seguinte... -- Carla
olhava fundo nos olhos dele. -- Depois que eu voltar, o fotógrafo poderá me procurar no hospital.
Você não precisa ir. Eu também sempre cumpro minhas promessas.
-- Fico feliz em ouvir isso, mas não haverá uma exclusiva se eu não acompanhar cada passo
do artigo, incluindo as fotografias. De qualquer forma, você ainda será minha esposa.
-- O que está dizendo? Que eu saiba o contrato de casamento é por trinta dias, e depois
podemos pedir o divórcio sem questionamentos.
-- Excelente memória. No entanto, não sabemos quando o divórcio será assinado. É um juiz
italiano quem decidirá.
-- Com certeza o nome Tescotti ajudará a uma resolução rápida.
-- Você é que pensa.
-- O que quer dizer?
-- Que nossos tribunais são um pouco lentos. Até que seja oficial, você será
responsabilidade minha.
-- Não se preocupe, Luigi. Com o oceano entre nós, poderá levar sua vida como se nunca
tivéssemos nos casado.
"Quanto a mim, não imagino como vou sobreviver."
-- Se nunca tivesse sido príncipe, faria isso. Mas há certas regras que todo Tescotti deve
seguir. Até que saia o divórcio, devo protegê-la.
-- Não preciso disso.
-- De qualquer modo, recuso-me a ser o único Tescotti a fugir de sua obrigação. Então,
parece que viveremos juntos na Califórnia até o fim do casamento.
-- Isso é loucura!
-- É assim que as coisas são. -- Luigi pôs as mãos na cintura. -- Tive a impressão de que
você não podia esperar para rever Chloe e voltar a trabalhar.
-- E não posso mesmo! -- afirmou, com sinceridade. -- E a entrevista que ia dar à
imprensa sobre o príncipe abandonado pela esposa devido às diferenças culturais irreconciliáveis?
-- Quando a isso, nada mudou. Meus pais tentarão me contatar assim que a lerem. Enzo dirá
a eles que eu a segui a Prunedale para tentar salvar nossa união.
-- Não pode deixar seu trabalho dessa forma! -- protestou, horrorizada.
-- O notebook é uma grande invenção. Enquanto você estiver ocupada, eu vou trabalhar.
Carla procurava, desesperada, por uma saída.
-- O quarto atrás do hospital não é grande o suficiente para dois.
-- Meu barco era menor.
O barco...
-- Valentino ficará arrasado quando você partir.
-- Quando tenho de viajar, ele fica muito bem na fazenda com os Cozza.
-- Luigi... não quero que vá.
-- Eu sei. Mas lembre-se de que foi o amor por meu irmão que causou essa situação. Se não
estiver errado, foi por amor a sua irmã que você entrou nessa. Com um pouco de paciência, tudo se
resolverá.
-- É uma espera terrível.
-- Talvez agora você esteja começando a entender parte do fardo do príncipe enquanto ele
olhava pela janela de sua torre.
-- Uma parte... e o que é o resto?
-- Vou tomar banho e dormir no sofá. -- Luigi apanhou o outro roupão.
Ela sentou-se aturdida.
-- Por que não me responde?
-- Não se preocupe com isso.
-- Impossível. Luigi, há algo de errado com você?
-- Está me perguntando como médica?
-- Pode ser. Pensei que talvez haja outra razão para ter desistido do trono, algo que seus
pais ainda não saibam.
-- E o que seria?
-- Uma doença degenerativa? Algo que fez com que não quisesse se casar para não trazer
sofrimento para a mulher amada?
-- Que teoria interessante... Se for esse o caso, por que está preocupada?
-- Sou um ser humano. Ninguém deve ficar só, nessa situação.
-- Eu não estou só agora.
-- Não brinque com isso! Estou falando sobre uma companheira com quem sempre poderá
contar.
-- Está dizendo que pretende se candidatar?
Desesperada com a possibilidade de que ele estar sofrendo, ela gritou:
-- Diga-me a verdade! Você tem alguma doença?
-- Todos temos de encarar a morte.
Impelida por uma força incontrolável, correu até ele e agarrou-lhe os braços.
-- Pelo amor de Deus não faça isso, Luigi! Eu não agüento!
-- Não sabia que se importava tanto comigo, Carla.
-- Pare com isso!
-- Parar o quê?
-- Pare de brincar com tudo o que digo. Fale sério comigo, pelo menos uma vez.
-- Isso é tão importante para você? -- Luigi respirou fundo.
De repente, baixou a cabeça e a beijou, segurando seu corpo trêmulo.
Faminta pelo seu beijo, Carla enlaçou-o pelo pescoço, procurando aproximar-se o máximo
possível.
-- Carla... -- Luigi murmurou, abraçando-a.
Com avidez, levou-a a um lugar onde nunca estivera, nem mesmo em seus sonhos.
De algum modo, chegaram até a cama. Envolvida em seus braços e pernas, ela puxou a
cabeça dele para si e ofereceu-se, para que o prazer continuasse para sempre.
Nada podia ser compreendido. Quando Luigi parou de beijá-la, ela protestou.
-- Não pare, Luigi. Estou aqui para você. Não se preocupe em ficar só.
-- Você iria tão longe a ponto de ter um filho meu? -- ele quis saber, pousando o rosto
entre seus seios.
-- Se isso o fizer feliz, sim -- afirmou, sem hesitar.
Luigi beijou-lhe o rosto, as pálpebras, o nariz e a boca.
-- Você é uma mulher incrível.
"Sou uma mulher apaixonada, Luigi."
-- Será que sua resposta seria a mesma se soubesse que meu problema não tem a ver com
uma morte iminente?
Carla demorou um pouco para compreender. O calor da paixão a fazia reagir devagar.
-- Quer dizer que não tem uma doença incurável ou qualquer coisa parecida.
Como fora tão tola para deixar aquilo acontecer? Agora ele sabia o quanto o amava...
Empurrou-o com toda a força e saltou da cama.
-- Nunca disse que tinha.
-- Não. Só me deixou acreditar nisso! -- ela vociferou, amarrando o robe.
-- Não pude evitar. Nunca conheci ninguém tão altruísta. Começo a entender como sua
irmã a manipulou para vir em seu lugar.
-- Deixe-me em paz, Luigi!
-- Vai mesmo me dizer que não achou nossa experiência tão boa quanto eu?
Carla deu-lhe as costas, sem saber o que fazer com suas emoções. Procurou o chocolate
entre as cobertas.
-- Apesar de rápida, superou minhas expectativas. Estava tão entretido que quase esqueci
que estava disposta a me dar um filho por piedade, e não por amor.
-- Já chega, Luigi!
-- Tenho de confessar que houve um momento em seus braços em que foi difícil notar a
diferença -- continuava a torturá-la.
Luigi a segurou por trás. Então, lhe tomou o chocolate e deu uma mordida.
-- Hum! E quase tão bom quanto você. -- E beijou-lhe o pescoço. Em seguida, foi para o
banheiro.
Lágrimas rolaram pelo rosto de Carla.
"Nunca mais me fará de tola, Luigi!"
Quando ele entrou no banho, Carla apanhou seu celular e fez uma ligação para Ann, que
devia estar acordando.

Meia dúzia de repórteres se apinhavam no pequeno apartamento. Valentino rodeava o sofá
em que Carla e Luigi estavam sentados. Ele a abraçava.
Tinham concordado em se vestir para a entrevista como se fossem trabalhar, ou seja, com
jeans e pulôveres.
Diante dos outros, Luigi agia como um marido devotado. Ficava melhor do que no papel de
amante apaixonado.
Desde a horrível experiência em Locarno, não tinham tido mais contato físico, nem
conversado sobre o artigo da revista ou sobre o futuro. Carla lhe dissera que visitar seus pais estava
fora de questão.
Mais uma semana e ela estaria de volta à Califórnia com Luigi. Mal podia esperar para
mostrar-lhe a surpresa que havia preparado. Até lá, deixaria que o marido direcionasse a entrevista.
Era vital, para proteger Enzo.
-- Por que não se revezam com as perguntas? Comece você -- Luigi sugeriu, e acenou para
um homem sentado ao canto.
O repórter pigarreou.
-- Todos querem saber como vocês se conheceram.
-- Meu irmão a conheceu primeiro, em uma visita aos Estados Unidos. Quando retornou,
me mostrou sua foto. Eu elogiei sua beleza, e ele me disse que ela viria à Itália para comprar uma
moto. Como meu trabalho é desenhá-las, disse que seria um prazer ajudar a moça. Carla esperava
ver meu irmão no aeroporto, mas encontrou a mim. Tornei-me seu prisioneiro desde então.
Luigi era tão bom que chegava a assustar.
A próxima questão veio de uma mulher. Ela sorriu para Carla.
-- O que você pensou quando o viu pela primeira vez?
-- Que Luigi era misterioso e perigoso. Descobri que estava certa assim que ele me raptou e
me pôs na garupa de sua motocicleta.
-- Mas você não se importou -- perguntou um outro repórter.
-- Luigi se redimiu quando percebi que dirigia tão bem quanto desenhava. As motos são um
de meus hobbies.
-- O que a fez se casar com ele tão rápido?
Luigi acariciava seu pescoço até aquele momento. A indagação o fez parar.
-- Valentino.
Ao ouvir seu nome, o cão pousou a cabeça sobre o joelho dela, que afagou-lhe as orelhas.
-- Este rapazinho lindo conquistou meu coração.
-- Minha mulher é veterinária na Califórnia. -- Luigi sorriu.
-- Quem poderia resistir a este olhar adorável? --- Carla abraçou Valentino.
-- Como farão para conciliar o trabalho em dois continentes diferentes?
Outra rodada de perguntas começara. Luigi tomou a iniciativa:
-- Ainda estamos em lua-de-mel, e não decidimos tudo.
"Essa foi a declaração do século..."
-- Como é estar casada com um príncipe, sra. Tescotti?
-- Se tivéssemos nos casado antes de Luigi renunciar ao título, eu poderia lhe dizer.
Portanto, lhe digo como é ser casada com um homem que trabalha em horário comercial. Temos de
nos adaptar a um orçamento curto, porque Luigi investe tudo que ganha na empresa. Está me
ensinando a cozinhar, e ambos cuidamos de Valentino. Quando temos tempo, passeamos de moto.
A mulher se inclinou em sua direção.
-- Como ele é?
Carla gostava dela.
-- Seu senso de humor me deixa furiosa às vezes. Sempre tem resposta para tudo, e faz a
explicação mais absurda parecer plausível.
-- Está descrevendo meu marido! -- a jornalista brincou.
As duas riram.
Um jornalista que não sorrira até o momento se virou para Luigi.
-- Você foi noivo da princesa Benedetta. Dizem que ela nunca se casou porque jamais o
esqueceu.
Carla se preparara para ser gentil, mas o comentário impertinente pôs tudo abaixo. Ela podia
responder àquilo:
-- É uma crença romântica perpetrada por membros da mídia que precisam da especulação
para continuar a vender jornais. Se há alguma verdade nisso, as pessoas deviam se apiedar por ela
não ter coragem de seguir com sua vida.
O olhar indignado do rapaz revelava sua raiva diante da resposta que era destinada a Luigi.
-- Então, Sra. Tescotti, se o príncipe partisse seu coração, você, como muitas americanas,
não teria problemas em substituí-lo.
-- Não há comparação entre nós duas. Luigi se casou comigo. Sou sua esposa, seja
americana ou italiana. -- Olhou para a aliança do homem. -- Quando chegar do trabalho, hoje à
noite, pergunte a sua mulher o que ela faria se você a deixasse. Acho que ouvirá o mesmo. Mais
alguma questão? Se não, passo a palavra a meu marido.
Luigi retirou o braço de seus ombros e inclinou-se para a frente.
-- Já lhes demos quarenta e cinco minutos e fotografias. Responderei a mais uma pergunta
só.
-- O que sua esposa lhe deu de presente de casamento?
-- Dez mil dólares.
A sala ficou em silêncio, e todos pareciam surpresos.
-- Meu marido começou a trabalhar tarde. O dinheiro representa minha confiança nele.
-- E o que o príncipe lhe deu? -- Era evidente que o repórter hostil a provocava. Não
conseguira a história que queria.
-- A maior emoção de minha vida. Se dirigisse motos, você entenderia.
-- Todos nós nos lembramos da brilhante carreira de motociclista do príncipe -- outro
jornalista acrescentou.
-- Porque ele é genial. Logo irão conhecê-lo por seu talento como engenheiro. -- Carla
engoliu em seco. -- É difícil ser a mulher de alguém assim.
-- Obrigada por nos deixar invadir sua casa. E óbvio que estão muito felizes. Tudo de bom
para vocês. -- A repórter se levantou e apertou a mão de Carla.
CAPÍTULO X


As fotos ficaram ótimas, Sra. Tescotti. A Mundo do Motociclismo ficará honrada em tê-la na
capa. Você é muito fotogênica, se entende o que quero dizer.
Carla fora se encontrar com Colin Grimes, um belo fotógrafo de trinta anos que viera de
Londres a pedido de Luigi. Ela e a Strada 100 estavam cobertas de lama, após dirigir pela fazenda
dos Olivera, enquanto ele tirava as fotos.
Ela ignorou a presença do marido, a alguns metros de distância do homem que já fora
motociclista.
-- Obrigada, Colin. Sou eu que me sinto honrada. Você trabalha para a melhor revista de
motociclismo que existe.
-- Posso citar isso? -- Piscou para ela.
-- Sim. -- Sorriu para os olhos azuis brilhantes. -- Leio todas as revistas sobre motos desde
que tinha dez anos. A sua é muito superior às outras, em reportagens e fotografias.
-- Você lhe pagou para dizer isso, Luigi?
-- Não foi necessário. -- Carla achou graça. -- Agora, se me dão licença, tenho de voltar
para o hospital. Preciso limpar minha moto e tomar um banho.
-- Vamos segui-la em meu carro -- Colin concordou, com um aceno de cabeça. -- Não se
esqueça de que os levarei para jantar antes de partir para San José.
-- Estamos ansiosos. Vou até usar um vestido especial. Aliás, meu marido ainda não me viu
com vestido algum.
-- Com uma esposa bela como você, as roupas não têm importância.
Em seu esforço em elogiá-la, Colin tocara num assunto que Carla tentava esquecer.
-- Suas palavras o levarão longe, Colin Grimes -- ela o provocou. -- Creio que é verdade
que as mulheres se vestem para as outras mulheres, afinal.
Ainda sem olhar para o marido, Carla ligou o motor.
-- Luigi, encontrarei você e Colin na sala de espera da clínica em uma hora. Preciso desse
tempo para me transformar. Vocês não me reconhecerão.
Carla lhes deu um sorriso e pegou a estrada.
Minutos depois, parou nos fundos do hospital. Com a mangueira, limpou a Danelli. Secou-a
e guardou-a na garagem. Entrou na clínica pelos fundos, com a maleta.
Assim que entrou no apartamento, Ann veio abraçá-la. As irmãs foram até o banheiro, e
Carla trancou a porta.
-- Obrigada por me livrar dessa -- Carla sussurrou.
-- Era o mínimo que eu podia fazer, depois de tudo por que passou. Acho que estamos
quites. -- Pela primeira vez na vida, Ann parecia constrangida.
-- Você está sensacional com meu vestido.
-- Somos idênticas, lembra? Carla, tem certeza de que quer fazer isso? Desde que me ligou
de Locarno e me contou sobre o plano, tive um mau pressentimento.
-- Você não estava lá quando ele chegou perto de fazer o imperdoável.
-- Mas não aconteceu porque no fundo Luigi é um bom sujeito. Veja o que fez pelo irmão.
-- Isso é diferente.
-- Como?
-- Porque ele me fez dizer e fazer coisas naquela pousada que eu nunca... Ah, nada disso
importa mais!
Ann mordeu o lábio. Era um tique que ela e a irmã tinham em comum quando ficavam
nervosas ou animadas.
-- Se Luigi é tão esperto como diz, muito antes do que pensamos perceberá que trocamos de
lugar.
-- Por isso eu deixei Chloe brincando com Roxy na casa do Dr. Wood. Contanto que eu
tenha tempo de cair fora daqui antes que ele descubra tudo, ótimo. Você terá de ficar pronta para
fazer o mesmo. O mais depressa que puder.
-- Não se preocupe. Tenho de voltar ao estúdio depois de amanhã. Carla? Por favor, me
diga para onde vai.
-- É melhor não, ou Luigi arrancará a informação de você. Ele tem um jeito...
-- Por que não admite que está apaixonada e vê o que acontece?
-- Eu faria isso se achasse que ele sente o mesmo por mim. Luigi teve a chance em
Locarno, mas deixou passar.
-- Não entendo. Ele parecia apaixonado quando falou comigo, do barco.
-- Luigi é capaz de enganar qualquer um, quando necessário, até você.
-- Quanto tempo ficará fora? -- Ann quis saber, alarmada.
-- Disse ao Dr. Wood que no máximo uma semana. Qualquer outro chefe já teria me
despedido há muito tempo. Ele é tão doce que falou que meus problemas conjugais precisam ser
resolvidos primeiro.
-- E está certo.
-- Luigi logo se cansará desse jogo absurdo e voltará para a Itália.
-- E se não fizer isso?
-- Nem brinque! Luigi não poderá cuidar dos negócios daqui para sempre. -- Encarou Ann.
-- Você fez minha mala?
-- Sim. E pus sua bolsa nela. Está tudo no carro alugado que parei no estacionamento do
Dr. Wood. Eu o deixei destravado. As chaves estão na ignição.
-- Tudo bem. Você já sabe tudo sobre meu marido, mas tenho de contar-lhe as últimas
novidades. Você jantará com um homem muito atraente da revista O Mundo do Motociclismo
chamado Colin Grimes. Ele é de Londres e era motociclista. Agora é o fotógrafo principal deles.
Luigi estava de mau humor quando os deixei na fazenda dos Olivero, então preste mais atenção a
ele do que a Colin.
-- Parece que ele está com ciúme.
-- Não, Ann. Acho que está pressentindo que algo não está certo, mas não imagina o que
possa ser.
-- O homem parece assustador...
-- E é. Boa sorte.

Era madrugada quando Carla ouviu uma batida na porta do quarto do hotel. Não conseguira
dormir. O som das ondas na praia de Big Sur mantiveram-na acordada.
Se não tivesse ouvido a voz da irmã logo depois da batida, teria ligado para a recepção para
pedir ajuda.
-- Carla? Acorde! Deixe-me entrar.
Algo terrível devia ter acontecido.
-- O que foi? -- perguntou, assustada. Levantou-se da cama de camisola e destrancou a
porta. -- Como sabia que eu viria para cá?
Carla abriu a porta e soluçou.
-- Luigi!
-- Acreditou mesmo que podia fugir de mim? -- Seu vulto alto e escuro ocupava toda a
passagem.
Ele entrou no quarto. Não havia como se esconder. Fechou a porta com o pé. Parecia grande
e poderoso na penumbra. Agia com imponência, como o príncipe que fora um dia.
-- Não. Eu só precisava de um tempo para mim -- explicou, desafiadora. -- Vivemos
juntos por um mês, dia e noite.
-- É o que fazem os recém-casados.
-- Por favor, Luigi, não comece. Estamos prestes a nos divorciar.
Para seu desespero, ele sentou-se na cama, encarou-a e indagou:
-- Você entrou com o pedido?
-- Sabe que não.
-- Nem eu. -- Ele deu de ombros.
-- Escute aqui, foi você quem preparou aquele documento horrível. Fez com que eu
acreditasse que tinha cuidado de tudo!
-- Eu faria isso, mas, depois de ficar com você por um mês, decidi que não gosto do que
está determinado ali. Vim aqui para refazer tudo. Por sorte, sua irmã decidiu colaborar e me trouxe
ao lugar em que poderia estar. E com isso me poupou de contratar um detetive.
-- Eu devia saber que não podia confiar nela.
-- Ann fez o que pôde para me ludibriar. Aquela é uma grande mulher, mas eu reconheceria
minha esposa em qualquer canto, e assim que pus os olhos nela na sala de espera da clínica descobri
tudo. Teria chegado mais cedo, mas tive de me livrar de Colin, primeiro. Ele ficou encantado com a
verdadeira Sra. Tescotti, mas creio que foi sua irmã quem o fez cair de joelhos.
-- Minha irmã tem muitas explicações a dar. Não fui eu que assinei aquele maldito
contrato!
-- É uma boa descrição. Minha mulher sempre foi boa com as palavras. Acho que é sua
principal característica.
-- Você é imoral, sabia?
-- Sei disso há anos. Do contrário não teria virado as costas para o trono. -- Luigi parecia
entediado de novo, o que aumentava a fúria dela.
-- Se acha que assinaria qualquer coisa concebida pelo mestre da trapaça, então não me
conhece. Eu lhe dou sua liberdade. Aproveite e vá embora!
-- Estive pensando no que disse em Locarno. -- Luigi ignorou a explosão de Carla.
-- Eu disse muitas coisas sem sentido. Como ousa falar nisso?
-- Você falava sério quando disse sobre estar comigo em qualquer situação? Sobre ser a
mãe de meu filho?
-- Que homem cruel! -- Carla cruzou os braços.
-- Conversei com meu pai, na semana passada. Prometi a ele que seria avô assim que
possível. Ele me contou que minha mãe já tinha comprado dois gorros de batismo. Um para o bebê
de Enzo e Maria, e um para o nosso. Não podemos desapontá-la agora. Você não quer um bebê
nosso?
-- Um dia vou querer vários. Com o homem certo.
-- O que tenho de fazer para ser esse sortudo? Tenho novidades. Tive uma longa conversa
pelo telefone com Enzo outro dia, quando ele voltou da lua-de-mel. Sua primeira ação como
príncipe será doar o chalé onde você operou Valentino ao Estado. Ele transformará a propriedade
num santuário nacional de vida selvagem e num abrigo de animais. É parte da idéia que meu irmão
tem há anos. Todas as criaturas, grandes e pequenas, sem casa ou abandonadas terão um lar. Enzo já
está procurando alguém para cuidar do projeto. Alguém com a qualificação do Dr. Donatti e um
amor instintivo pelos animais.
"Pare com isso!"
-- Mamãe e papai estão insistindo para que Enzo e Maria morem no palácio com eles.
Assim, quem cuidar do projeto poderá morar no pequeno palácio, na outra fazenda. Eu disse a Enzo
que não precisava mais procurar, porque minha mulher faria o trabalho.
-- Chega! Você virou as costas para tudo isso há anos. Agora acha que acreditarei que
moraria lá?
-- Não sou o príncipe herdeiro. Como disse àqueles jornalistas, trabalho em horário
comercial. Minha esposa tem de morar onde trabalha, e assim será. Nós temos uma parceria. Tem
de admitir que o apartamento já está apertado com Valentino, Carla. Se consegue pensar em Chloe
e nas crianças que teremos lá, sua imaginação é melhor que a minha.
Luigi fora longe demais. Sem seu amor, tudo o que dizia se tornava pura punição.
-- Saia daqui agora ou chamarei a polícia!
-- Duvido que faça isso. Quando souberem que estamos em lua-de-mel, saberão que é uma
briga doméstica e irão embora.
-- Tem essa idéia fixa de lua-de-mel na cabeça. Você precisa é de uma mulher que suporte
suas brincadeiras. Por que não prepara um outro evento em Hollywood com você como o grande
prêmio? Poderia se chamar "Quem Quer se Casar com o Ex-Príncipe?". Muitas garotas bonitas não
hesitariam em participar. Todos sabem que um ex-príncipe é muito mais emocionante que um
príncipe. Terá a imagem do garoto rebelde e encontrará seu par perfeito.
-- Estou olhando para meu par agora. Não há outro melhor.
-- Não estou disponível. Por que não pede à princesa Benedetta?.
-- Valentino já escolheu você. E verdade que lhe dei a melhor emoção de sua vida?
-- Nunca digo nada de brincadeira.
-- Você se referia à moto?
-- Luigi... -- Meneou a cabeça, desesperada. -- Quando isso vai acabar?!
-- Quando me disser que me ama. Quando eu ouvir que está tão apaixonada por mim que
não pode nem respirar sem minha presença. Quando estiver em meus braços como na pousada e me
implorar para fazer amor com você pelo resto de nossos dias. Até quando vai continuar me
torturando?
Carla ergueu a cabeça, abalada com a revelação de que ele também estava sofrendo.
-- Quando... se apaixonou por mim? -- Ainda não conseguia acreditar.
-- Quando me perguntou se eu era um dos guarda-costas de Enzo.
-- Você me conquistou antes disso. Foi no instante em que me viu a olhá-lo no saguão do
aeroporto. Oh, Luigi... Você era o homem mais atraente que eu já tinha visto! Não pode imaginar
como me dominou e como te amei! A dor de guardar meus sentimentos quase acabou comigo.
-- Nunca mais faça isso, Carla. Preciso demais de você. Venha aqui, querida, para
acabarmos com a tristeza e começarmos a viver de verdade.
Carla sentiu-se corpo flutuar. Luigi a abraçou e a beijou, e seus corpos começaram a se
mover como um só. E ela que pensara que andar em sua garupa, colada a ele, fosse o êxtase!
EPÍLOGO


Eu batizo Anna Dassiter Tescotti em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. --
O padre Nicco devolveu a comportada menina a Luigi, que estava tão feliz que parecia dez anos
mais moço.
Carla pôde ter uma idéia de como ele era quando mais jovem, mas se sentia agradecida por
não tê-lo conhecido quando se encontrava dominado pela incerteza e angústia. O momento não teria
sido apropriado para nenhum dos dois.
Ela fitou Anna, com seus cachos pretos brilhantes e rostinho de anjo. Os cílios pretos
pequeninos lhe realçavam os olhos, que provavelmente seriam verdes. O queixo determinado era
idêntico ao do pai.
Luigi era louco pela filha. Francesco Tescotti era louco pela neta.
Pobre Valentino... Nunca tivera concorrência antes. E que bom que Chloe já passara pela
quarentena e pudera ir para o palácio com eles! O boxer não se mostrava muito interessado, mas
ela, sem dúvida, o distraía.
Por alguma razão, Chloe parecia reagir à indiferença dele seguindo-o por toda parte, dentro
do palácio e nos jardins da propriedade. Era estranho, já que sempre tivera medo da própria sombra.
Chloe fazia Carla pensar em si mesma. A postura indiferente de Luigi no aeroporto mudara
o curso de sua vida para sempre.
Olhou para o marido mais uma vez e viu que ele lhe sorria. Era um sorriso diferente de
todos os que lhe dera. Esse continha tanta ternura que mostrava que qualquer sombra em seu
coração se desvanecera.
"Como posso ser tão abençoada", ela se perguntava.
-- Luigi? -- o padre Nicco chamou-o, pigarreando. -- Se você confiar sua filha a um
membro da família, atenderemos a seu desejo de renovar os votos de casamento.
Para espanto de Carla, em vez de ele ir até a mãe, entregou a menina a Ann, que estava de
pé ao lado de Colin. Ao entregar-lhe a criança, Luigi lhe agradeceu por tê-los unido.
Carla já agradecera a Ann milhares de vezes. Era provável que o fizesse para sempre, ainda
mais agora que a irmã cuidaria da menina e dos cães enquanto ela e Luigi fariam uma pequena
viagem de lua-de-mel.
Luigi se virou para Carla. Tomou-lhe a mão e a beijou, conduzindo-a para a frente do padre,
que parecia muito satisfeito.
-- Queridos filhos, vamos começar. Carla Ann Dassiter Tescotti, aceita Luigi Tescotti como
amado marido?
-- Eu aceitei na primeira vez, querido, e reforço meu compromisso. Amo você com minha
alma e meu coração. -- A voz trêmula ressoava na capela.
-- Luigi, você aceita Carla Ann como esposa para amá-la e respeitá-la até que a morte os
separe?
Sem tirar os olhos de Carla, ele afirmou, solene:
-- É claro que sim! Ela é meu mundo -- declarou com emoção.
Carla ouvia os soluços atrás de si. Maria era tão sensível quanto ela. O menino deles, o
príncipe Alberto II, que recebera o nome do avô de Luigi, tinha covinhas e se parecia com Enzo,
que esbanjava felicidade.
O sagrado momento levara os orgulhosos avós às lágrimas. Os pais de Maria, o Dr. Wood e
os Donatti estavam ao lado, exultantes.
-- Pode beijar a noiva, Luigi.
Ele tomou o rosto de Carla entre as mãos.
-- Está pronta para nosso passeio?
-- Tenho vivido para isso, meu querido.
-- Que bom! Mal posso esperar para tirarmos essas roupas de casamento.
-- Eu também!
Luigi lhe deu um longo e caloroso beijo.
-- Dou graças a Deus por seu amor. Dei para sua nova moto o nome de Noiva Princesa,
quando entreguei o artigo da revista para publicação.
-- Está brincando, não é? Posso perguntar qual era a outra opção? -- Carla franziu o cenho.
-- Noiva Fujona.
-- Luigi... você não pode dar esses nomes ridículos para motos!
Ele deu de ombros e riu. O tipo de riso que ela tanto amava.
-- Ah, vou fazê-lo pagar!
-- Por que você acha que eu disse isso? -- Luigi beijou-lhe a ponta de seu nariz bem-feito.
-- A vida com você é uma grande aventura. Nunca quero que acabe.
-- Nem eu, querido.
E se beijaram com paixão mais uma vez.
Carla nunca descobriu o que fizera seu marido se tornar um homem tão fechado, antes de
conhecê-la. Mas não importava. Afinal, era a dona da chave que lhe abriu o coração.

* * * *
REBECCA WINTERS, escritora americana e mãe de quatro filhos, ficou entusiasmada com
o novo milênio, pois significava um novo começo. Tendo se despedido dos alunos a quem ensinava
francês e espanhol, hoje está livre para passar mais tempo com a família, viajar e escrever os
romances de que tanto gosta.--
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