sexta-feira, 23 de abril de 2010

Elizabeth Thornton - Inveterado sedutor.txt

Inveterado Sedutor
Elizabeth Thornton


Copyright (c) 2004 by Mary George
Originalmente publicado em 2004 pela Kensington Publishing Corp.
PUBLICADO SOB ACORDO COM KENSINGTON PUBLISHING CORP.
NY, NY - USA Todos os direitos reservados.
Todos os personagens desta obra são fictícios.
Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.
Título original: A Virtuous Lady
Tradução: Renata Bagnolesí
Editora: Leonice Poraponio
Editoras de Arte: Ana Suely S. Dobón, Mônica Maldonado
Paginação: Dany Editora Ltda.
Ilustração da Capa: Hankins + Tegenborg, Ltd.
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Rua Paes Leme. 524 - 10° andar
CEP 05424-010 - São Paulo - Brasil
Copyright para a língua portuguesa: 2005
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.


Digitalização: Afrodite
Revisão: Josina

Resumo:

Londres, 1846

Determinação e ousadia despertam o desejo de viver um grande amor!

O marquês de Ravensworth, considerado o homem mais devasso de Londres estava avidamente envolvido com sua conquista do momento quando a porta da biblioteca
se abriu. Na sua frente a meiga e comportada Samantha. Sua palavras ríspidas e ousadas intrigaram fortemente Hugh Montgomery. O coração de Samantha de repente disparou.
Sem entender, ela se sentiu atraída pelo malicioso cavalheiro. Será que ela poderia mudá-lo?

Capítulo I


Os suaves acordes da orquestra subiam pela imponente escada de mármore italiano, invadindo a tranqüilidade do quarto de Samantha Langland, que se preparava
para dormir.
- Essa valsa não me agrada - comentou Andie, em tom de reprovação, observando o reflexo pálido de Samantha no espelho da penteadeira de mogno. A ama escovava
o cabelo da jovem todas as noites, até ficarem macios como seda.
- Cem - murmurou ela, em seguida colocando a escova de prata em cima do móvel.
O fato de estar acontecendo um baile no grande salão de Broomhill House, no vilarejo de Richmond, perto de Londres, não perturbava nem um pouco o equilíbrio
da srta. Langland. Samantha não apreciava bailes. Nunca tinha ido a um, acreditava que dançar era algo frívolo e, portanto, detestava esse tipo de festividade.
A ama trançou-lhe o cabelo e fez um coque alto, que prendeu com um grampo. O toque final foi um gorro de algodão, amarrado sob o queixo de Samantha. A jovem
olhou no espelho e reprovou sua imagem. Parecia uma menina de doze anos, e não uma mulher de dezenove.
- Está na hora de você ir para a cama - disse a ama.
Samantha hesitou, pensando em lhe perguntar se poderia ler por alguns minutos antes de apagar as velas. Entretanto, algo na figura rechonchuda da mulher
a fez mudar de idéia. Ela se deitou na cama e cobriu-se até o queixo.
- Você está muito magra, minha filha - comentou Andie. - Está sumindo diante dos meus olhos. Vou preparar mingau de aveia todos os dias para você comer antes
do seu café da manhã inglês. - A ama era escocesa.
- Está bem, Andie - respondeu Samantha, resignada. Não tinha a menor intenção de discutir com sua ama naquele momento.
Andie se aproximou da cama, estudando a jovem com mais atenção.
- E essas olheiras, então! Ah, minha querida, você precisa parar de sofrer. Seu pai e sua mãe, que Deus os tenha, não gostariam de vê-la assim. Samantha,
faz mais de um ano que a tragédia aconteceu. Agora que o período de luto já passou, será que você poderia mostrar um pouco de alegria? Não está contente morando
aqui com seus tios?
Samantha engoliu em seco.
- Claro que estou contente, Andie. Só sinto um pouco de saudade da nossa casa e da tia Charlotte. Nada além disso.
Andie olhou pensativamente para a jovem por mais alguns instantes.
- Dê tempo ao tempo, minha querida. Faz apenas quinze dias que você está aqui. Não havia como ficar morando com a tia de seu pai. Uma jovem da sua idade
não pode se afastar da sociedade. Além disso, ela quase não conseguia cuidar de si mesma, quanto mais de você e de Vernon. Aqui, você tem a companhia da sua prima
Harriet. Londres não tem tanto verde quanto Shropshire, mas você vai se acostumar.
- Richmond não é Londres, Andie!
- Mas é quase, minha jovem. E há muitas damas e cavalheiros interessantes por aqui.
- Tia Esther se decepcionará se acredita que conseguirá transformar uma garota quacre em uma fina dama.
- Sua mãe a educou para ser uma dama de verdade. Ela não era uma dama antes de entrar para a seita protestante e tornar-se uma quacre?
- Mamãe sempre foi uma dama - concordou Samantha. - Afinal de contas, ela era irmã do tio John.
- Então trate de se lembrar de tudo que ela lhe ensinou, mas tenha em mente que você aprenderá outras coisas com seus tios.
Andie pensou em se desfazer de todos os trajes quacres de Samantha, vestidos sombrios, cinza, quando pendurou um deles no armário de mogno. A jovem a observou
com afeição.
- Ah, Andie, o que eu faria sem você? Eu te amo.
- Samantha! - exclamou a ama, virando-se de repente. - Cuidado com as suas palavras! Ah, minha querida, você sempre gostou de demonstrar seus sentimentos.
Mas eu lhe peço um pouco de cautela de agora em diante. O que seus tios diriam se a ouvissem? Agradeço ao bom Deus por seu pai jamais ter permitido que você e seu
irmão falassem como os quacres.
- Ora, Andie! Você não sabe que a Bíblia foi escrita na linguagem quacre? E você é puritana.
- Eu não sou puritana, Samantha. Sou presbiteriana escocesa.
- Não há diferença - provocou a jovem.
- Sassenachs! Samantha sorriu.
- Andie, acha justo usar esse dialeto escocês incompreensível e me negar o privilégio de conversar na linguagem quacre?
- Não é a mesma coisa, e você sabe muito bem disso. Seu tio é o seu tutor, e o que ele tolera em mim, jamais permitiria em você! E eu não gosto nem de imaginar
o que sua tia diria. Ela de certo teria uma crise nervosa.
Andie tinha razão, admitiu Samantha. Seus tios não gostariam de vê-la usando o dialeto quacre. Seu pai nunca permitira que os filhos falassem na linguagem
quacre, apesar de achar charmoso quando a esposa o empregava.
A expressão de Samantha tomou-se pensativa.
- Andie, você sabe quais são as intenções da tia Esther para mim. Vestidos elegantes, festas e bailes, concertos, peças de teatro e passeios, dentre outros
programas. Ela pretende que Vernon e eu ingressemos na alta sociedade. Não quero parecer ingrata ou rebelde, mas como posso permitir? Como posso ser leal a tudo
em que acredito, a tudo que minha mãe me ensinou?
Andie MacNair estava aos pés da cama de dossel, olhando atentamente para o rosto de sua adorada jovem.
- Sua mãe, como uma boa quacre, educou-a de acordo com os ensinamentos de Deus. Ela sempre foi uma mãe muito dedicada. Seu pai também, apesar de não ser
quacre, era temente a Deus. Portanto é mais do que justo que você também honre a memória dele. Agora seu tio é responsável por você. É seu dever lhe obedecer. Faça
tudo que lhe pedirem, sem achar que está pecando.
Os olhos de Samantha se encheram de lágrimas. Naquele momento, ela desejou ter escutado mais a mãe, desejou ter sido mais condescendente, mais tratável.
Desejou ter aproveitado mais as horas que havia passado com a família.
Naquela manhã ensolarada de julho, porém, quando Samantha e o irmão observavam os pais navegando pelas águas calmas do lago Windermere, quem poderia prever
que aconteceria uma tragédia? Quem poderia ter calculado que a tempestade vinda do oeste se transformaria em um redemoinho tão de repente? Quem poderia ter previsto
o horror daquele dia?
Samantha, ensopada da cabeça aos pés e aterrorizada, tinha testemunhado tudo. Nunca se esqueceria da cena que havia se transformado em um pesadelo constante.
Respirando fundo, ela esboçou um sorriso trêmulo.
- Boa noite, Andie. E obrigada... Obrigada por tudo. Andie MacNair aproximou-se para beijar a testa da jovem.
- Deus a abençoe, minha filha. Tenha bons sonhos. Samantha ficou sozinha com suas reflexões.
Ela e o irmão, Vernon, tinham sido educados de acordo com os dogmas quacres, apesar de o pai continuar sendo anglicano. Samantha sabia que existiam quacres
alegres, que gostavam de música e de danças, e que usavam roupas coloridas. Mas sua mãe não era assim. Jane Langland seguira as tradições quacres à risca.
O quarto começou a ficar quente, deixando-a agitada. Ela se descobriu e saiu da cama, então caminhou até a janela aberta. A brisa fria de outono a fez voltar
correndo para vestir o penhoar. Seu aposento se localizava nos fundos da casa e, da janela, Samantha avistava o rio Tâmisa brilhando com seu mistério. Ela imaginou
as águas do rio na época Tudor, cheias de barcaças coloridas transportando cortesãos sorridentes e suas damas para a corte Hampton. Sir Thomas More tinha navegado
por aquele rio desde sua propriedade rural em Chelsea, passando pelo palácio de Richmond, até a nova e magnífica residência de Henrique VIII.
A orquestra tocava a segunda valsa da noite. Samantha teria de aprender os passos de todas as danças, mas não tinha a menor intenção de dançar algo tão vulgar
quanto uma valsa.
Ela não censurava os tios, sir John e lady Esther, por oferecerem um baile em sua imponente mansão. Também não sentia a menor inveja por sua prima, Harriet,
estar no meio de todas aquelas pessoas da sociedade. Samantha Langland preferia não ir a bailes. Pelo menos por enquanto. E os tios haviam permitido que ela não
comparecesse. Vernon, por sua vez, aos dezessete anos de idade, dois menos que ela, não tinha os mesmos escrúpulos. Aceitara o convite sem pestanejar.
Não, Samantha não gostava de bailes. Apreciava um bom livro, mas, infelizmente, não havia nenhum no quarto que lady Esther lhe reservara. Seus livros estavam
vindo de Shropshire e só chegariam no final da semana. Se ao menos tivesse algo para ler, ela conseguiria adiar o pesadelo que a assustava todas as noites. Precisava
encontrar um de qualquer jeito.
Decidida, Samantha resolveu ir até a biblioteca do tio, que ficava bem longe do salão de baile, e escolher algo que lhe agradasse e que fizesse o tempo passar.
Evitando a escada em espiral onde poderia encontrar algum convidado, Samantha moveu-se com sua costumeira elegância, seguindo para a escadaria de funcionários.
Então desceu até o térreo.
Apertando o penhoar contra o peito, abaixou-se para pegar os chinelos e caminhou na ponta dos pés pelo corredor deserto. As vozes no salão chegavam até ela.
Samantha tirou um castiçal de uma das mesinhas encostadas à parede e entrou na grande biblioteca. Em seguida fechou a porta.

Capítulo II

No conforto da poltrona estilo rainha Anne, Samantha abriu os olhos e tentou se lembrar onde estava. Por um longo instante, ficou olhando para as chamas
das velas que iluminavam o espelho em cima da lareira. O gemido abafado do outro lado da porta da biblioteca invadiu sua consciência aos poucos, e Samantha tentou
juntar forças para se levantar, para afastar os vestígios de sono de seu rosto.
- Hugh? - A voz feminina era baixa e sensual. - Você não se preocupa com a minha reputação? Os outros convidados notarão a nossa ausência!
A risadinha que veio em seguida afastou qualquer indício de censura. Samantha ouviu o farfalhar de roupas de mulher, seguido de um suave protesto que foi
logo abafado por uma risada masculina. Ela franziu as sobrancelhas, curiosa. Não era tão inocente a ponto de não compreender o que acontecia do outro lado da porta
da biblioteca. A maçaneta se virou, e os sentidos de Samantha entraram em alerta. Não tinha a menor intenção de encarar o casal que estava prestes a... O pensamento
desapareceu em sua mente sem ter se formado por completo. Seria uma situação extremamente desagradável de presenciar, pensou.
Quando viu a porta entreabrir-se, ela apertou o livro contra o peito. Então se levantou. De repente, a porta foi escancarada, e Samantha ergueu o rosto,
preparada para enfrentar o inevitável encontro. Nada aconteceu. Por algum motivo inexplicável, o casal demorou a entrar.
- Hugh! Não tenha tanta pressa! - Mais um suave protesto ignorado pelo cavalheiro.
- Pelo que me lembro, Adèle, foi você quem sugeriu este encontro. Se prefere que eu volte para a sala de jogos, é só me dizer.
A conversa dos dois proporcionou a Samantha tempo suficiente para olhar a sua volta em busca de algum lugar para se esconder. Então ela se lembrou da moderna
engenhoca que seu tio acabara de adquirir. A idéia lhe ocorrera quando ele visitava o Parque Ostelery, a residência de seus vizinhos, o conde e a condessa de Jersey.
O tio a havia analisado na impressionante biblioteca de George Villiers e não sossegaria enquanto não instalasse uma em sua própria residência. Era uma questão de
orgulho e alegria.
Samantha deslizou até a parede do outro lado. Na ponta de uma das estantes de livros, seus dedos encontraram um pino. Puxou-o, e a parede de estantes transformou-se
em uma porta. Ela entrou e fechou-a depressa atrás de si. Não era um esconderijo que lhe agradava, afinal de contas tratava-se da sala de banhos de seu tio, reservada
aos homens quando eles queriam relaxar um pouco, longe dos problemas e de todos.
A escuridão a envolveu e, um pouco tarde demais, Samantha percebeu que esquecera seus chinelos junto da poltrona ao lado da lareira. Mas não voltaria para
buscá-los por nada deste mundo. Agora só lhe restava ter paciência. E muita. Estava determinada a esperar o casal decidir ir para outra parte da casa. Um quarto,
talvez. E logo, pois o chão de mármore sob seus pés descalços a fez se arrepiar. Samantha puxou o penhoar contra seu corpo esbelto, na tentativa de afastar o frio.
Longos minutos se passaram, e seus dentes começaram a bater. O frio naquele lugar estava se tomando insuportável. Samantha colou o ouvido à parede, mas não
conseguiu escutar nada além de sua própria respiração trêmula. Sua impaciência foi aumentando.
Com o máximo de cuidado, abriu a porta, torcendo para que os intrusos já estivessem bem longe dali. Doce ilusão. Foi acolhida pelos gemidos e murmúrios dos
amantes. Ela abriu um pouco mais a porta da passagem secreta e viu o casal acomodado no sofá de brocado de seda de sua tia. O cavalheiro havia acomodado a jovem
sob seu corpo. Samantha deu um passo para trás, escandalizada com aquele tipo de comportamento. Quem eram aqueles dois? Que liberdade eles tinham para estar ali?
Mais um gemido. Foi o suficiente para ela decidir que já suportara demais.
Ergueu o livro com capa de couro que segurava e jogou-o com toda sua força contra a lareira, onde ele caiu com um grande estrondo. Adèle emitiu um grito
histérico, e depois tudo ficou no mais profundo silêncio.
- Diabos! - exclamou Hugh Montgomery, o marquês de Ravensworth.
Com dedos trêmulos, Samantha fechou a porta e voltou para o seu esconderijo na passagem secreta. Havia um sorriso em seus lábios.
O marquês se levantou, desvencilhando-se das mãos de sua companheira. Em pé, ele ajeitou a gravata e olhou ao redor da espaçosa biblioteca, prestando atenção
em tudo. Seus olhos pararam no tapete em frente à poltrona, e um sorriso malicioso se formou em seus lábios. Ao olhar para a mulher ao seu lado, entretanto, o sorriso
desapareceu.
- Arrume-se, Adèle! - ordenou, olhando-a com desdém. Adèle sentou-se no sofá e tentou alisar seu vestido de seda amarrotado.
- O que foi isso? - perguntou ela, em um fio de voz, evidentemente temendo ser descoberta ali naquele estado. Adèle focalizou o rosto do homem que lhe fazia
companhia naquela biblioteca. Hugh Montgomery exalava sensualidade por todas as partes do corpo. Ela observou as feições aristocráticas relaxadas, meditando sobre
algo. Seu ar de confiança inabalável o deixava ainda mais encantador. Adèle estendeu um braço, tentando puxá-lo para baixo, de volta para o sofá. Dedos fortes apertaram-lhe
o punho e, segundos depois, ela estava em pé.
- Agora chega, Adèle. Nosso esconderijo não é mais secreto - disse Hugh, colocando um dedo contra os lábios. - Seja uma boa moça e saia daqui. Mais tarde
nos encontraremos.
A jovem entreabriu a boca para protestar, mas um olhar para a expressão de Ravensworth foi o suficiente para fazê-la mudar de idéia.
- Você promete? - perguntou ela, esperançosa.
- Como?- Era evidente que o marquês perdera o interesse na mulher.
- Acho que o visconde de Avery está tramando algo contra nós. - Adèle não tentou controlar a irritação. - Seu amigo não gosta muito de mim, não é?
O tom de voz de Ravensworth foi perfeitamente amigável.
- Já que está perguntando, a resposta é não. Mas não se preocupe, minha cara. Cada um tem seu gosto, e o dele é reputado ser difícil, ou melhor, impossível
de contentar.
Adèle não soube dizer se se tratava de um elogio ou não. Preocupada com seu próprio problema, tentando decidir se bancava a ofendida ou respondia à altura,
caso conseguisse pensar em uma resposta, ela se deixou levar até a porta.
Não, não cederia com tanta facilidade. Adèle tinha usado todas as suas armas para atraí-lo de volta a seus braços, mesmo que por pouco tempo. E quase conseguira.
Não que o marquês pretendesse ser tão constante quanto um amante. Não, ele fazia questão de não esconder das mulheres que o rodeavam que várias delas tinham o privilégio
de esquentar sua cama. Não apenas uma.
Sua sinceridade em relação a esse assunto era ultrajante, além de ofensiva, para uma mulher de posses. Ela, uma verdadeira beldade, uma condessa legítima,
viúva de um conde, não poderia ser rotulada como amante de Ravensworth. Seria uma mancha em sua reputação.
O marquês não mostrava preferência por um tipo específico de mulher, e aproveitava o que cada uma tinha a oferecer com uma casualidade que, em outros homens,
seria considerado um comportamento depravado. Mas Ravensworth era Ravensworth, um mulherengo, um boêmio, um notívago. Apesar disso, um grande sedutor. Poucas eram
as mulheres que resistiam aos seus encantos. Adèle St. Clair não era uma delas.
Ela alisou o peito do marquês.
- Você sabe onde me encontrar? Eu ainda tenho aquela casa na rua Duke.
- Sim, eu me lembro - respondeu ele, evasivo. Então abriu a porta e, praticamente, a empurrou para fora.
- Você vai me encontrar mais tarde? - insistiu Adèle.
- Se for conveniente - respondeu Ravensworth. Seu olhar era impenetrável.
Palavras exasperadas surgiram nos lábios dela, porém morreram sem serem proferidas, diante da inflexibilidade na expressão do marquês. Resignada, Adèle inclinou
a cabeça condizente, mas antes que pudesse á bientôt, a porta se fechou.
Ravensworth se virou na biblioteca e, com alguns passos, alcançou a poltrona antes ocupada por Samantha. Ele então se acomodou e cruzou as pernas. Depois
de alguns instantes de silêncio, o marquês se inclinou para pegar o livro caído. Tratava-se de um romance gótico daqueles que as moças adoravam.
- Pode sair do seu esconderijo, chérie - disse ele, pegando um pé do chinelo no chão, que analisou com o máximo de atenção.
Nas profundidades de seu esconderijo, Samantha estremeceu. Puxou a porta de seu refúgio, as segurando-se de que se encontrava longe das garras daquele homem.
Seria sua ruína. Um lápis, perigosamente colocado na ponta da estante, rolou para a frente, balançou por alguns momentos, então caiu no chão de madeira. Ravensworth
ouviu o barulho e, segundos depois, estava diante da porta secreta. Em um piscar de olhos, ele a abriu. Nas mãos, segurava um candelabro, o que lhe permitiria enxergar
com perfeição a pessoa que havia estragado seu encontro romântico com a bela viúva. Quando o marquês viu a figura de uma jovem fitando-o com solenes olhos cinza,
o sorriso sumiu imediatamente de seus lábios. Em seus 29 anos de vida, Ravensworth jamais vira aquela mulher.
Após alguns minutos de silêncio, ele sentiu a raiva crescendo dentro de si. Esperava encontrar algo bem diferente.
- Quem é a senhorita? E por que estava me espionando? Apesar de sua aparência dizer o contrário, Samantha não era uma pessoa que se apavorava com facilidade.
Não se deixaria intimidar pelo comportamento arrogante daquele homem. Juntando toda sua dignidade, ela saiu da sala de banhos.
- Eu lhe peço desculpas. Faz muito tempo que está esperando? A sala de banhos está vazia agora.
- Como? - Ravensworth mostrou-se perplexo com a pergunta. Ele colocou o candelabro em cima da mesa mais próxima.
Samantha não tinha a menor intenção de fustigar a ira daquele jovem cavalheiro com uma conversa sobre amenidades. O caminho até a porta da biblioteca estava
desocupado, e ela se aproveitou da situação. Ravensworth foi mais rápido, porém, impedindo-a de escapar.
Em outras circunstâncias, Samantha teria admirado a beleza viril do Adônis moreno que barrava sua saída. De repente, ela se conscientizou do poder de seu
adversário, e parou como um animal infeliz que, sem querer, acabou despertando um tigre adormecido.
O homem se aproximou dela. Se gritasse pedindo socorro, quem poderia ajudá-la? Quem a escutaria? O salão de bailes se localizava no andar de cima, e não
havia nenhum motivo para os convidados descerem. Samantha tentou relaxar. Aquele homem era convidado de seu tio e, portanto, subentendia-se, um cavalheiro. Em tese.
A lógica prevaleceu.
- Quem sou eu? O senhor acreditaria em anjo da guarda?
Samantha percebeu, pela tensão no maxilar dele, que sua tentativa de brincadeira falhara.
- Anjo da guarda? - repetiu Ravensworth. - Poderia me fazer a gentileza de se explicar melhor?
- Um anjo da guarda... para uma dama em apuros.
- E o que a senhorita pretendia guardar, se me permite a pergunta?
Agora não havia como voltar atrás.
- A virtude dela, é claro. - Samantha obrigou-se a olhá-lo tom determinação. A expressão dele permaneceu impassível.
O marquês apoiou o corpo contra a porta, o que aliviou um pouco a tensão de Samantha.
O olhar de avaliação de Ravensworth analisou com minúcia a garota trêmula que o encarava com tanta determinação. O pedaço de renda preso à cabeça dela escondia
os cabelos trançados, e o penhoar, abotoado até o pescoço, lhe dava ares de avó. Seu sotaque era refinado, porém suas roupas, um tanto quanto simplórias. Uma governanta,
quem sabe, ou uma dama de companhia.
- Quem lhe deu permissão para julgar os outros?
- Não me lembro de estar julgando alguém. Além disso, acredito que, se pensar bem, o senhor não pode me acusar dessa maneira. A moça protestou, mas o senhor
não quis escutar. Ela disse "não", e o senhor insistiu. Que tipo de mulher deixaria uma irmã em tamanho perigo?
- A senhorita não passa de uma criança! - exclamou o marquês, balançando a cabeça diante da figura inocente parada à sua frente. - A moça não estava de má
vontade.
- Eu a escutei recusando-o. - Samantha era obstinada.
- Diga-me, srta. Virtude - começou Ravensworlh com voz controlada -, seu "não" sempre significou "não'" e seu "sim", sempre "sim"?
- Exato.
- A senhorita não pode estar falando sério.
- Claro que estou. Como é possível a comunicação entre as pessoas se dizemos uma coisa que significa outra? Imagine a confusão!
- Srta. Virtude, a senhorita é a moça mais engenhosa que já conheci na vida, ou a mais ingênua.
- Por quê? O que está querendo dizer? - perguntou ela, franzindo o cenho.
O marquês riu.
- Não seja ridícula! A senhorita sabe o que estou querendo dizer. O que aconteceria com os galanteios, os flertes, se as pessoas dissessem exatamente a verdade?
Samantha o olhou com insolência.
- Tais fatos, suponho eu, teriam sua morte natural.
- E a senhorita não se arrependeria?
- Eu? Claro que não! Por que deveria?
Ravensworth pareceu incrédulo, depois confuso, e, por fim, descrente.
- Está me dizendo que nunca diz uma mentirinha, que nunca esconde parte da verdade, que nunca trapaceia quando se encontra em uma situação delicada?
- Nunca!
- Eu não acredito!
- Quer tentar?
Aquela história estava indo longe demais. O marquês de Ravensworth jamais recusava um desafio. Um brilho devasso iluminou-lhe o olhar.
- Com todo o prazer.
Em um movimento veloz, ele se afastou da porta e tomou Samantha em seus braços. Ela abriu a boca para expressar seu protesto, porém antes que pudesse dizer
uma única palavra, a boca de Ravensworth se aproximou e ele a beijou.
Hugh Montgomery era um amante experiente. Sabia como acabar com a resistência da mais relutante das mulheres. Sua boca deslizou ao longo dos lábios chocados
de Samantha, moldando-os com um ardor calmo, deliberado, suave, experimentando, saboreando-a com um prazer persuasivo.
Foi o primeiro beijo de verdade de Samantha, e ela se encantou. Relaxou contra os braços fortes e entreabriu mais os lábios, permitindo ainda mais aquela
invasão. O marquês, por sua vez, não se fez de rogado para se aproveitar do gesto inconsciente. Ravensworth aprofundou o beijo, deliciando-se com o doce sabor de
Samantha. Ao sentir a resposta inocente, um ligeiro tremor, ele ficou ainda mais encantado. Passou a provocá-la, despertando-a para o desejo masculino. Apertando-a
cada vez mais contra seu corpo, o marquês continuou com as carícias, querendo conhecer tudo que Samantha tinha a lhe oferecer. Uma tormenta de emoções, contagiante
e crescente, tomou conta de ambos, enlevando-os.
Foi o próprio marquês quem finalizou o beijo. Afastando a cabeça, ele concentrou-se nos olhos de Samantha. Claro que ela quisera seduzi-lo!
- Por que eu a beijei? - perguntou o marquês, ao mesmo tempo surpreso e maravilhado.
- Imagino que o senhor estivesse querendo provar alguma coisa - respondeu ela tão logo recobrou o fôlego.
- Estava? Ah, sim, agora me lembro! A senhorita quer que eu a beije outra vez?
- Não - sussurrou Samantha.
- Mentirosa! - A palavra foi uma carícia. Ele baixou a cabeça para capturar-lhe os lábios de novo, porém Samantha se esquivou.
- O senhor não entende. Eu não nego que não tenha gostado da experiência. Como não poderia? Mas não acho que beijar seja... saudável.
- E posso saber por quê?
Samantha estendeu os braços para o marquês analisar.
- Meus dedos estão formigando. Ravensworth encantou-se com aquela pureza.
- A senhorita ganhou. A senhorita realmente não tem malícia. Agora, acho que gostaria de beijá-la de novo.
Samantha, entretanto, já tinha recuperado a compostura quacre. Ela recusou a oferta com educação e determinação.
- Quem é a senhorita? - perguntou ele. - E não me venha com essa história de anjo da guarda.
- Quem sabe eu não seja sua nêmesis?
- Minha nêmesis? - Ele riu. - Ainda não nasceu mulher que consiga superar Hugh Montgomery, minha cara.
- Eu consegui! - Ela deu um sorriso acanhado, e o coração de Ravensworth parou por um segundo. As covinhas mais adoráveis surgiram nas bochechas de Samantha.
- Entretanto - continuou ela, olhando-o agora com seriedade -, eu não desejo seu mal. Na verdade, desejo-lhe tudo de bom.
- É mesmo? Por quê?
- E por que não?
- A senhorita nem me conhece - disse ele. - Ainda.
- Ora, sr. Hugh Montgomery! Desde quando o fato de desejar o bem de uma pessoa depende de conhecê-la? Eu desejo o bem de todas as pessoas do mundo.
- Até mesmo de bandidos e assassinos? - perguntou ele, zombeteiro.
- Claro. Isso não significa que eu torça para que eles consigam fazer o mal. Seria uma grande tolice da minha parte.
- Concordo!
- Agora é o senhor que está zombando de mim.
- De forma alguma. Eu jamais ousaria.
Os olhos dele eram calorosos. Samantha não se atreveu a sustentar aquele olhar. Baixando os olhos, viu os próprios pés descalços e lembrou-se dos chinelos.
Em uma demonstração de gentileza, Ravensvforth pegou-os e calçou-os nos pés de Samantha. As mãos dele estavam quentes, e mesmo assim ela sentiu um arrepio percorrer-lhe
o seu corpo. Uma explosão de risada serviu para introduzir a realidade de volta.
- Quem é a senhorita? Pelo menos me diga o seu nome.
Samantha ficou séria. Não queria que aquele homem soubesse seu nome. Pelo menos por enquanto. Ele abriu a porta e deixou-a passar. Seu sorriso era dos mais
encantadores e envolventes.
- Então, nêmesis do lorde Ravensworth, fique atenta! Eu não permitirei que a senhorita me supere outra vez.
O marquês observou Samantha se afastar por uma porta que imaginou ser a entrada para a escadaria da criadagem. Admitiu que seu interesse estava aguçado,
porém só um pouco. Ela era uma moça comum. Mas sua nêmesis? Ravensworth não tinha tempo para lidar com mulheres difíceis. Havia outras bem mais fáceis e cheias de
amor para dar. Precisava apenas estender o braço para conseguir o que queria. Mesmo assim, admitiu ele, relutante, demoraria algum tempo para esquecer aquele beijo.

Capítulo III

Lady Esther Grenfell era uma mulher bonita e elegante de quarenta e oito anos que, em sua juventude, fora considerada uma das jovens mais esplendorosas da
época. Naquele momento, ela encontrava-se sentada em sua cama bebendo uma xícara de chá. Ao que tudo indicava, seria uma manhã pouco agradável. Seu marido, sir John,
não parecia muito bem-humorado. Como um tigre enjaulado, caminhava de um lado para outro diante da cama, lançando-lhe olhares irritados.
- Esther! - disse ele em tom de acusação. - Sua filha foi longe demais. E incorrigível! Você não tem o menor controle sobre o comportamento dela? Harriet
precisa de uma boa surra, e se ela não mudar suas maneiras de hoje em diante, é exatamente o que acontecerá.
Lady Esther mordiscou um pedaço de torrada.
- Meu querido - começou ela, em um tom de voz calmo -, Harriet é jovem e inexperiente. Sei que, algumas vezes, seu comportamento parece ser... ousado, mas
ela é uma moça com um excelente coração.
- Parece ser ousado? Querida, o comportamento de Harriet "é" ousado. Você não entende, minha dileta esposa, que a nossa filha está ganhando a reputação de
namoradeira, atrevida, indisciplinada e bagunceira?
- Não exagere, meu amor.
Sir John ergueu o dedo indicador.
- Vamos enumerar, meu amor. Item um: um noivado rompido; item dois: fumar cigarros nos jardins de Carlton House; item três: uma corrida desenfreada de carruagem
até Twicke-nham, quando ela quase quebrou o pescoço. Por fim, item quatro: embebedar-se no Almack's. No Almack's, por Deus! E ainda por cima, insultar lady Jersey!
Não, não tem o menor cabimento. O comportamento dessa menina está cada vez pior.
- Quer dizer que também Sally Jersey foi enganada? - perguntou lady Esther, suprimindo um sorriso.
- Você não quer entender o que quero dizer, Esther. A falta de conduta de sua filha está maculando o nome da nossa família.
Lady Esther levantou-se da cama e caminhou até a penteadeira.
- Eu, realmente, não concordo com algumas atitudes de Harriet.
- E eu não concordo com todas! - continuou sir John. - Ela só causa problemas. E é um atrás do outro. Onde foi que erramos? Dos nossos seis filhos, ela é
a única que nos causou esse tipo de problema.
-Sim, todos os outros sempre se portaram muito bem.
- Por que Harriet não pode ser como eles?
- Quer saber por quê, meu amor? - disse lady Esther, olhando com afeição para o marido. - Porque a nossa filha mais nova puxou o pai.
- Você está se referindo ao meu comportamento na juventude. Foram tolices de um garoto. Permita-me adverti-la, Esther, que a conduta aceita em homens é totalmente
abominada em mulheres.
- E mesmo? - Lady Esther tirou uma mecha de cabelos grisalhos da testa do marido. - Pelo que me consta, o comportamento de sua irmã Jane, a mãe de Samantha,
foi impecável nos últimos anos. Antes, porém, ela deu muita dor de cabeça aos seus pais. Foi a má reputação dos Grenfell que fez com que meu pai demorasse a concordar
com o nosso casamento. Você só começou a se preocupar com o nome da sua família quando, nosso primeiro filho nasceu.
Sir John manifestou a intenção de falar algo, mas lady Esther prosseguiu depressa:
- Você melhorou, eu sei, se é o que pretendia dizer. E eu não tenho a menor dúvida de que Harriet também melhorará.
- E quando devemos esperar que isso ocorra? Hoje? Amanhã? Ano que vem?
- Torço para que ela siga os passos do pai, querido. Quando o homem certo aparecer na vida de Harriet, ela fará tudo que estiver ao seu alcance para merecer
a consideração dele.
- Você se deu conta de que a inscrição de Harriet para o AImack's foi cancelada? - perguntou John, lembrando-se de ter mais uma carta na manga.
- Sim, e qual é o problema?
- Qual é o problema? Eu não acredito que você não perceba a importância de uma atitude sem precedentes como essa. Ela foi excluída de um dos bailes mais
tradicionais da temporada londrina.
- Bah!- Lady Esther despiu a camisola e vestiu uma blusa de algodão quase transparente. O marido estudou o corpo esbelto da esposa com apreço.
- Esses patronos do Almack's acreditam que seus poderes estão acima de todos. A nossa família encontra-se em um patamar bem mais superior. Eu, realmente,
não me importo em passar as noites de quarta-feira com mulheres tão estúpidas que fingem ser modelos do bom comportamento. São todas hipócritas! Todo mundo sabe
que a sogra de Sally Jersey foi bastante ousada no passado. E ninguém se atreve a dizer nada. E o pior é que Sally se considera o modelo da boa conduta para jovens
como a nossa Harriet. - A voz de lady Esther evidenciava toda sua indignação.
Sabiamente, sir John não expressou sua opinião.
- Entretanto, acredito que Harriet deva enxergar seus erros sozinha.
Lady Esther colocou o vestido azul de cambraia, e o marido se ofereceu para ajudá-la a abotoá-lo. Azul sempre fora a cor predileta da esposa, pensou ele,
observando-a passar o pente pelos cachos escuros. Mesmo agora, depois de trinta anos, John ainda agradecia por haver conseguido conquistar uma mulher tão incrível
quanto Esther Woodward, a beldade de sua primeira e única temporada. Tivera de ser muito persistente para conseguir convencê-la a ceder aos seus encantos.
- Minha querida esposa - disse John, colocando as mãos nos ombros dela e olhando-a pelo espelho -, diga-me o que você tem em mente.
Esther foi até o quarto de vestir que, por conveniência e privacidade, eles tinham transformado em um santuário particular. Ela sentou-se em uma poltrona
e indicou para o marido sentar-se à sua frente. Antes de obedecer, ele pegou um cigarro e o acendeu.
- Pode começar, minha querida. Você tem minha total atenção.
- John, Harriet não é o nosso único problema. De certa maneira, uma maneira bem diferente eu diria, sua sobrinha Samantha também será um grande dilema para
nós.
- Bobagem! - Sir John foi enfático. - Samantha é uma jovem virtuosa. Ela é doce, não é frívola, podemos confiar no que diz, e jamais se envolverá com sujeitos
do tipo que parecem encantar tanto a nossa teimosa filha.
- Meu amor, ela é uma quacre.
- E qual é o problema?
- Eu não sei ao certo, porém você não acha que Samantha é um pouco moralista demais?
- Como assim?
- Bem... por exemplo, os vestidos que encomendamos chegaram esta semana. São modelos lindos, discretos e modestos para uma jovem participar de sua primeira
temporada. Eles a vestiram com perfeição. Todavia percebi que havia algo de errado quando ela começou a experimentá-los.
- O quê?
- Eu custei a perceber que qualquer vestido cortado abaixo daqui - Lady Esther indicou a metade de seu colo - foi preenchido com um pedaço de renda.
- Demonstra que a minha sobrinha tem a discrição adequada para uma garota da sua idade.
- Meu Deus, como você mudou! E não é só isso. Samantha é tão honesta que chega a ser grosseira. Se alguém lhe perguntar a opinião sobre um assunto, ela responde
sem pensar nas conseqüências.
- Não seja ridícula. Se alguém pergunta a opinião de uma pessoa a respeito de determinado assunto, espera-se que a resposta seja verdadeira. Samantha me
parece bastante direta.
- Eu concordo, querido, mas não é assim que funciona a sociedade. Ela tem muito a aprender. Sendo assim, acho que encontrei a solução perfeita.
Esther sorriu, satisfeita consigo mesma.
- E eu posso saber qual é?
- Perguntei à nossa filha se ela gostaria de ser mentora de Samantha e mostrar-lhe como agir perante a sociedade.
Sir John pareceu ter perdido a fala. Ficou alguns instantes em silêncio, raciocinando.
- Você perdeu o juízo? Nossa filha não seria capaz de ensinar um pescador a ingressar na sociedade. Samantha não precisa dos conselhos de Harriet.
- Não seja tão obtuso, meu querido. - As palavras eram duras, mas os modos de Esther, calmos. - Harriet dará um bom exemplo a Samantha. Ou você acha que
a nossa filha seria capaz de ensinar algo errado à prima?
- Esther, espero que você saiba o que está falando. Eu tenho as minhas dúvidas sobre esse plano. Para mim, o mais certo seria o contrário.
- Mas, John, Harriet é muito teimosa para ser corrigida por uma garota tão educada quanto Samantha!
- Exatamente!
- Você tem uma opinião tão ruim assim a respeito de nossa filha?
Havia um lampejo de irritação nos olhos de lady Esther.
- Claro que não, meu amor. Não precisa proteger sua cria de mim. Eu apenas gostaria que ela fosse um pouco mais parecida com a mãe.
- Mas Harriet é como você, John. Quantas vezes precisarei repetir a mesma coisa? E é por ela ser tão parecida com o pai que eu a considero a mais adorável
e a mais encantadora de nossos filhos.
- Esther!
- Não me repreenda. Estou sendo honesta, virtude que você acabou de confessar que admira. Harriet pode ser um pouco rebelde, mas ela é uma garota muito alegre
e cheia de vida. Foram essas as qualidades que me encantaram quando eu o vi pela primeira vez. Ah, John, você era tão cheio de vida... - Ela tocou o braço do marido.
- Eu não gostaria que o espírito alegre da nossa filha se quebrasse.
- Isso não acontecerá, meu amor. - John cobriu a mão delicada da esposa com a sua. Momentos depois, ele a puxou, obrigando-a a se levantar e sentar-se em
seu colo. - Você acredita que este homem idoso está um pouco menos animado ultimamente?
- Seu mentiroso!
Ela o olhou com falsa indignação.
- Vamos corrigir esse problema agora mesmo, esposa minha. - Sir John abraçou lady Esther por longos momentos.

- Preste atenção - pediu Harriet Grenfell. Dois pares de olhos observavam seus movimentos com extrema atenção.
- Tudo deve ser feito com o máximo de elegância. Pegue a caixa de rapé com a mão direita e passe-a para a esquerda. Assim. Então bata na caixa com a ponta
do dedo indicador da sua mão direita. - Ela reproduziu o gesto. - Agora, Vernon, preste muita atenção. Aqui está o truque. Abra a caixa com um estalido de seu dedão
esquerdo. - Harriet o fez com agilidade. - O pulso precisa estar relaxado. Se você abrir a caixa de rapé com muita pressa, todo o pó poderá cair. Agora, ofereça
a caixa para a pessoa que estiver mais próxima de você. - Ela estendeu a caixa de rapé aberta. - Experimente um pouco, prima.
Samantha olhou para a caixa.
- Parece canela. Como se faz?
- Assim - respondeu o irmão, orgulhoso de sua sabedoria. - - Pegue uma pitada entre o indicador e o polegar. - Ele olhou para Harriet, pedindo confirmação.
Samantha seguiu o exemplo do irmão. - Eu vi lorde Ravensworíh cheirar rapé durante o baile - disse Vernon, tentando se explicar.
Samantha sentiu um arrepio ao ouvir o nome.
- Não. Não coloque diretamente no nariz - advertiu Harriet. - Esfregue entre seus dedos antes. Então inale delicadamente com cada narina. Assim.
Os dois repetiram o gesto da prima. - É gostoso- disse Samantha, espirrando logo em seguida. - O que eu fiz de errado?
- Você cheirou demais - respondeu Vernon.
- Espero aprender com a prática.
- Não vai não, querida irmã. Essa é uma diversão exclusiva dos homens.
- Como assim? - Samantha olhou para a prima em busca de ajuda. Harriet deu de ombros.
- Um dos costumes ridículos impostos pela sociedade e que deve ser cumprido. Algumas mulheres não obedecem, mas normalmente são mulheres mais velhas, e não
jovens presas a essas normas como nós.
Um relógio sobre o mármore da lareira soou as horas, advertindo Vernon.
- Droga! Meu tutor está me esperando e eu não posso me atrasar. Estou tendo um pouco de dificuldade com o grego. Com licença, caras damas. - Ele se levantou
para deixar o pequeno salão amarelo, que era usado apenas pelos membros mais jovens da casa. À porta, Vernon se virou. - Samantha, você acha que poderia me ajudar
durante uma ou duas horas esta noite com as lições de grego do sr. Keith? As suas explicações são bem mais claras.
- Será um prazer.
- Prima Harriet, posso pedir também a sua ajuda na arte de cheirar rapé?
- Claro - respondeu ela, ainda encantada com o fato de a prima ser uma erudita.
A porta se fechou e Samantha voltou a se concentrar no assunto em questão.
- Harriet, seus movimentos são tão delicados. Estou enganada ou você tem prática no assunto?
Harriet sorriu com malícia.
- Eu jamais ousaria cheirar rapé em público. Mas quem poderá saber que o faço em particular? Quem se importa? Eu já vi mulheres cheirando rapé em público
dos dedos de um homem, mas nunca passa disso. Experimente de novo. - Harriet colocou uma pitada de rapé na ponta dos dedos e estendeu-os a Samantha. Dessa vez, ela
não espirrou tão depressa.
- Os principiantes sempre exageram no começo. O segredo é cheirar um pouquinho. Se a pessoa espirra logo ou faz careta ao cheirar, o efeito não é o mesmo,
- Posso experimentar?
- Claro. - Harriet passou a caixa de rapé para a prima, concluindo que Samantha era bem mais corajosa do que parecera a princípio.
Samantha repetiu várias vezes os movimentos, até tê-los aperfeiçoado.
- Eu gostei e não vejo mal algum em cheirar rapé de vez em quando.
- Concordo com você.
- Então, Harriet, quem sabe não possamos cheirar rapé vez por outra? Será nosso segredo.
- Ótima idéia - respondeu a prima, entusiasmada. Samantha provou ser uma excelente companhia, e Harriet encantou-se com sua mais nova amiga, pois a prima,
apesar de ser uma jovem extremamente recatada, não a recriminava por determinadas atitudes.
Todavia, no quesito dizer a verdade, nada além da verdade, Samantha mantinha a firmeza. Em meio aos membros da família Grenfell, não havia nada de mau nisso,
uma vez que ela não costumava manifestar sua opinião sem ser solicitada. Apenas aqueles que queriam um parecer realmente sinceros pediam que Samantha se manifestasse.
Isso, porém, pouco acontecia.
O comportamento cândido de Samantha poderia ser encarado como impertinente pela sociedade, e Harriet, no papel de mentora, usava todo seu charme para ajudá-la
a sair de alguma situação delicada.
Lady Grenfell assistia, atenta, à interação das jovens, observando com alegria a intimidade cada vez maior entre as duas. Ficou contente ao notar que, sob
a tutela de sua filha, o comportamento austero de Samantha tinha se tomado um pouco mais relaxado. Também não pôde deixar de observar que a companhia da prima estava
tendo um efeito benéfico sobre as atitudes de sua filha. Sentiu-se orgulhosa por seu plano estar funcionando. Pelo menos, diante dos olhos do pai, Harriet começara
a se comportar nos moldes de uma verdadeira dama da sociedade. Tanto que sir John até permitiu que ela voltasse a usar a carruagem para pequenos passeios.

Capítulo IV

O marquês de Ravensworth estava em seu escritório, no segundo andar de Albany House, em Piccadilly, Mayfair, na companhia de seu grande amigo, o visconde
de Avery. Os dois fumavam charutos Havana sentados em frente à lareira. Depois de alguns instantes de silêncio, o cavalheiro de cabelos escuros levantou-se e, endireitando
o corpo, caminhou até a janela.
- A neblina está um pouco forte - comentou ele, como forma de explicação.
- É verdade - observou o companheiro de cabelos claros. Ravensworth voltou para seu lugar. O visconde de Avery retomou a conversa de onde a haviam interrompido.
- Não que eu quisesse reprimi-la, mas imagino que um futuro marido deva ter certa voz ativa na conduta de sua noiva. Eu apenas quis conter os exageros de
Harriet.
- Eu concordo com você - disse Ravensworth. - Sendo luna jovem de berço e muito bem-educada, Harriet Grenfell precisa ser um pouco mais discreta. Seu comportamento
deixa muito a desejar. - O marquês soltou lentamente a fumaça de seu charuto. - Em uma mulher de outra classe social, essa atitude não acarretaria nenhum problema.
As pessoas talvez até considerassem uma provocação. Em uma esposa de alta linhagem, porém, seria um comportamento inaceitável. Como você conseguiu convencê-la a
terminar o noivado?
- Eu não a convenci - respondeu o visconde com certo pesar. - Foi idéia de Harriet. Eu apenas lhe disse que ela teria de escolher entre a originalidade e
a mim. Harriet ficou com a primeira.
- Você está arrependido? - perguntou Ravensworth, espantado por notar a decepção na voz do amigo.
- Claro que estou! Você acha que eu quero me envolver com uma dessas jovens sem graça que minha mãe fica jogando para cima de mim? O casamento é para a vida
inteira, meu amigo.
- Ora, Avery, você sabe que os homens podem ter outros interesses, se a esposa não for tão cativante.
- É, eu sei. - O visconde deu de ombros. - O problema é que perdi completamente o interesse nas outras mulheres, inclusive nas mais bonitas. Percebe a situação
em que me encontro?
- Meu Deus! - exclamou Ravensworth. - E mais sério do que eu pensava! Não fazia a menor idéia de que você estava apaixonado, meu amigo. Harriet conseguiu
virar a sua cabeça!
- Tenho de admitir que sim - respondeu Avery com um sorriso, tentando melhorar o humor.
Um criado entrou e ajeitou a madeira na lareira. Em seguida perguntou a Ravensworth se desejavam algo e então se retirou.
- Sendo assim, o problema adquire um aspecto completamente diferente. Você não tinha me contado que estava apaixonado pela jovem.
- E o que isso muda? Harriet não fará o mínimo esforço para realizar os meus desejos, e eu não tenho a menor intenção de ceder.
- Case-se com ela primeiro, depois obrigue-a a lhe obedecer!
- Você enlouqueceu, Ravensworth? - Avery estava incrédulo.
- De forma alguma, meu amigo. - Estou apenas usando a massa cinzenta entre as minhas orelhas. Pense um pouco! Por que o comportamento de Harriet Grenfell
é tão exótico? Por que ela não se adapta aos padrões da sociedade?
- Está no sangue. O pai dela, pelo que ouvi dizer, também era assim.
- Você está chegando perto, meu caro. A srta. Harriet Grenfell está acostumada a manipular os pais. Entretanto, quando ela se casar, de quem será a autoridade?
- Do marido, é claro.
- E se você fosse esse marido?
- Ravensworth, aonde você quer chegar? - Uma pontada de impaciência surgia na voz de Avery.
- Lembre-se: um marido, se souber como agir, tem poderes para guiar sua esposa. Ele pode ameaçá-la de uma série de maneiras. Privá-la de um vestido novo,
de se encontrar com as amigas. Você pode até enviar Harriet para uma de suas propriedades no Norte, se ela não se comportar como uma mulher casada.
- Harriet não gostaria nem um pouco de ser tratada assim.
- Claro que não, seu tolo! Esse é o ponto em questão. Uma mulher é como uma potranca. Ela precisa que lhe coloquem as rédeas.
As palavras de Ravensworth penetraram lentamente no cérebro do visconde de Avery.
- E assim que você pretende tratar sua esposa quando chegar a sua hora?
- Sem a menor sombra de dúvida! Isto é, se eu tiver o azar de me casar com uma jovem que ouse me desafiar. Esse dia, porém, está bem longe de chegar.
- O quê? Já encontrou alguém que despertou seu interesse? Achei que nunca fosse ouvi-lo falar em casamento.
- Sempre há um rabo de saia a minha volta, e você sabe bem disso. Mas tudo que eu continuo a oferecer é a minha cama. Nada mais.
- Um dia desses, Ravensworth, você vai encontrar sua nêmesis, e eu espero estar por perto para testemunhar o fato.
O marquês, que levava o charuto aos lábios, ficou imóvel.
- O que você disse? - Ele pareceu chocado. Avery repetiu o comentário.
Ravensworth exalou um anel de fumaça, que subiu devagar até o teto do aposento.
- Eu acho que já a conheci. - A voz dele não continha a menor emoção.
- E mesmo? - O interesse do visconde se acendeu. - E?
- Não foi nada de mais. Eu conheci uma garota no baile dos Grenfell. Na verdade, não foi exatamente no baile, e sim na biblioteca.
- O que você fazia na biblioteca da casa deles?
- Eu estava com Adèle?
- Entendi. Continue.
Ravensworth ficou pensativo, lembrando-se daquele momento.
- Ela me disse que o meu beijo lhe causava arrepios.
- Você só pode estar brincando. Quer dizer que beijou outra mulher enquanto estava com Adèle?
- Claro que não. Ela se livrou de Adèle.
- Como? Ela se livrou de Adèle? Corajosa essa jovem, hein!
- Eu diria ingênua.
- Quem é ela? - perguntou Avery, impaciente por conhecer a identidade da moça que havia encantado seu amigo.
- Eu achei que você pudesse conhecê-la. Os Grenfell contrataram alguma governanta ou dama de companhia nos últimos tempos?
- Não que eu saiba. Espere! Harriet me disse que sua prima está aqui. E uma jovem quacre de Shropshire.
- Nunca ouvi falar nesse lugar. - Ravensworth ficou quieto por alguns instantes. - O que é quacre?
- Quacres são membros de uma seita protestante, a Sociedade dos Amigos. Não sei mais detalhes. Pelo pouco que Harriet me disse, eles são pessoas extremamente
virtuosas..
- Ah... Que pena!
- Por quê? Você está interessado?
- Só um pouco. Por acaso ela é a prima pobre?
- Não posso afirmar. Talvez. Mas a formação dela é impecável. Gostaria de ver a árvore genealógica da família dessa jovem? Eu consigo, se você quiser. -
O rosto de Avery se contorcia em sorrisos.
- Não há necessidade. Eu não estou pensando em me casar.
- Não? Então é melhor tirar a garota da cabeça. Ravensworth olhou com curiosidade para o amigo.
- Eu falo sério, Ravensworth - advertiu ele. - Essa jovem não é daquelas que cedem aos seus encantos. Estou lhe dizendo, meu amigo, que ela é cheia de virtudes.
Nem pense em tentar corrompê-la.
- Você se esqueceu que a moça permitiu que eu a beijasse? Não forcei nada. Além disso, a virtude não lhe dará tudo que eu tenho a oferecer.
- Tenho plena convicção de que ela não aceitará nada que venha de você, nem de qualquer outro homem, que não seja com a bênção da Igreja.
- Avery, você é um romântico incurável - zombou o marquês, encarando-o.
- E você é tolo e cínico - respondeu o visconde.
Ravensworth ficou em silêncio.
- Vamos ver - comentou ele depois de alguns instantes. - Vamos ver.
Depois de um longo silêncio, Ravensworth recostou-se na poltrona. Ao observar a atmosfera esfumaçada de seu escritório, ele franziu o cenho.
- O ambiente aqui está insuportável - disse. - Vamos tomar um pouco de ar fresco? - O marquês apagou o charuto e levantou-se com determinação.
- Onde? - perguntou Avery, pegando sua capa. - No Hyde Park?
- Não. - Ravensworth ajeitou sua gravata impecável. - Um pouco mais longe. Que tal irmos até Richmond? Gostaria de visitar uns amigos que não vejo há tempos.
Lorde Avery abriu um grande sorriso.
- É mesmo? Por acaso seus amigos têm algum parentesco com os Grenfell de Richmond?
Ravensworth deu um tapa nas costas do visconde.

Richmond Park, uma vasta extensão de terra que Charles I reservara como área de caça, ficava a alguns minutos de carruagem de Broomhill House. Não se imaginava
que algum membro do beau monde se encontrasse lá àquela hora do dia, pois Richmond ficava a cerca de nove quilômetros de Londres e apenas os cavaleiros mais entusiasmados
se aventuravam tão longe. E, geralmente, no começo da tarde.
Samantha e Harriet não tinham o parque só para elas, pois os moradores de Richmond e das vizinhanças gostavam de aproveitar os encantos daquela área selvagem.
Entretanto, em uma área de mais de dois mil acres, cavaleiros e carruagens não costumavam se cruzar. Não logo cedo.
Depois de um passeio tranqüilo na carruagem de Harriet, em que as duas se revezaram para conduzi-la sob os olhos de um criado a cavalo, elas pararam perto
de alguns alamos. Harriet instruiu o criado a levar Duster para beber água. Evans obedeceu sem pestanejar, deixando-as sozinhas.
- Você se incomoda se eu fumar? Samantha não sabia se tinha escutado direito.
- Como?
Harriet repetiu a pergunta.
- Eu não vejo mal nenhum. Fique à vontade.
- Excelente. - Harriet tirou um pequeno cigarro de dentro de sua bolsa. - Eu não fumo em casa porque papai não aprova. Mas de vez em quando gosto me dar
ao luxo. Quer fumar comigo?
Samantha agradeceu e observou com atenção a prima acender o cigarro e aspirar profundamente.
- Soltando uma nuvem de fumaça! - exclamou Samantha. Harriet riu.
- Vejo que você conhece a canção dos homens. Imagino que tenha escutado de Vernon.
- Sim.
Uma carruagem se aproximou e as duas a acompanharam com os olhos. Dois jovens de fino trato, observou Samantha. Um moreno, o outro loiro. À medida que a
carruagem foi diminuindo a velocidade, ela concentrou o olhar no cavalheiro moreno. Ele lhe pareceu familiar.
Uma capa preta cobria os ombros largos. Então ele tirou as luvas e o chapéu e passou a mão no cabelo encaracolado. Tinha o rosto queimado pelo sol, e os
lábios, que começaram a sorrir, eram carnudos e...
- É Avery - disse Harriet, referindo-se ao homem loiro. - Pegue! Tome o cigarro! - No instante seguinte, Samantha viu o cigarro entre seus dedos.
- Srta. Grenfeil, como vai? - perguntou Ravensworth. - Imagino que sir John tenha se esquecido de seu último passeio, um tanto quanto desastroso. Como conseguiu
convencê-lo? -- Ele olhou para lorde Avery e sorriu.
Samantha reconheceu a voz e sentiu o coração disparar. Ela viu Ravensworth se aproximando com a carruagem e observando-a com atenção. Era uma garota modesta,
mas não puritana. Sendo assim, o fato de não desviar os olhos quando o cavalheiro a fitava com tamanha intensidade não pareceu vulgar.
- Permitam-me lhes apresentar... - começou Harriet, ligeiramente frustrada.
- Minha nêmesis - interrompeu-a Ravensworth sem desviar o rosto de Samantha. - Eu reconheceria esses olhos em qualquer lugar.
- Esta é minha prima, srta. Samantha Langland - finalizou Harriet. - Vocês se conhecem?
- Nós ainda não fomos formalmente apresentados. Ravensworth, a seu dispor, minha jovem. Este é o meu amigo lorde Avery.
Samantha cumprimentou-os com um delicado aceno de cabeça. Ravensworth, lembrando-se da noite do primeiro encontro de ambos, da confissão de que o beijo dele
a deixara trêmula, abriu um belo sorriso. Só para Samantha. Ela, por sua vez, sentia apenas o cigarro queimando sua mão.
- Fumando, srta. Langland? - perguntou Ravensworth, com uma nota de censura. - Cuidado com esse cigarro no meio dos seus dedos. A senhorita pode se queimar.
- Imagino que a srta. Grenfeil esteja lhe ensinando as proezas das damas da sociedade - declarou lorde Avery.
Samantha observou a cor surgir nas bochechas de Harriet e sentiu um forte ímpeto de agir em nome da prima. Como aqueles homens ousavam condená-la por estar
fumando, hábito que eles cultivavam com freqüência? Não havia nada de mau, nenhum motivo para culpa ou vergonha, ponderou ela.
- Querem fumar comigo? - perguntou Samantha, supondo que aquela fosse a etiqueta correta sobre fumar.
- Obrigado - respondeu Ravensworth. - Não deixe que a nossa presença a atrapalhe nesse prazer que parece tanto lhe agradar.
Samantha sentiu-se impelida a continuar. Com os gestos elegantes que vira a prima fazendo, levou o cigarro aos lábios rosados. Então inalou e exalou quase
em seguida. Naquele instante, descobriu que não gostava de fumar, mas não daria sua opinião se não lhe pedissem. Ela tentou outra vez.
- Muito bem, srta. Langland - comentou Ravensworth. - Pelo menos para uma primeira vez. Agora que já provou que é bastante audaciosa, por que não se livra
dessa coisa ridícula?
O comentário incitou Samantha a continuar com a indiscrição. Levou o cigarro à boca mais uma vez. Por infelicidade do acaso, ela aspirou muito profundamente.
Então começou a tossir sem parar. Samantha tentou recuperar o fôlego, e lágrimas escorriam por seu rosto. De repente, Ravensworth estava ao lado delas na carruagem,
- 0-Obrigada- sussurrou ela, ainda arruinada com o acesso de tosse.
- Não foi nada - respondeu o marquês, enxugando-lhe o rosto com seu lenço de Unho. - Harriet, seja uma boa menina e vá com Avery. Alguém precisa ser responsável
por estas duas. Avery! - chamou ele. - Vamos levar estas donzelas para casa.
Samantha segurou o lenço contra o nariz enquanto se recuperava. Assim que melhorou, ela se deu conta de que a carruagem de Avery já havia desaparecido. Com
sua prima Harriet. Ao olhar para Ravensworth, viu que ele sorria.
- Por favor, srta. Langland, livre-se desse objeto odioso - pediu ele, olhando para o cigarro na mão dela.
Envergonhada, Samantha deu um sorriso tímido e surpreendeu-se com o olhar de seriedade que de repente viu no rosto do marquês. Ela obedeceu depressa, jogando
o cigarro para fora da carruagem. O cigarro fez um círculo no ar e caiu no lombo de um dos cavalos que conduziam o veículo.
Por um momento, nada aconteceu. Depois, foi um pandemônio geral. O cavalo saiu em disparada, obrigando o outro a acompanhá-lo. Ravensworth segurou as rédeas
com força, ao mesmo tempo que tentava puxar Samantha para o seu lado, impedindo-a de cair para fora.
Ela se deixou proteger pela mão forte de Ravensworth e fechou os olhos, preparando-se para o pior.
Alguns quilômetros adiante, quando sentiu o ritmo frenético da carruagem diminuir, Samantha abriu os olhos devagar. Os cavalos pareciam ter se acalmado,
e Ravensworth, sério, controlava-os com facilidade. Ela esperou, pálida, pelo acesso de fúria. Com dedos trêmulos, Samantha ajeitou o chapéu.
- Está tudo bem, srta. Langland? - perguntou ele, com a voz calma.
- Sim, acho que sim - ela respondeu, segurando as mãos para acalmar o tremor.
Ravensworth tirou sua capa e colocou-a ao redor dos ombros de Samantha.
- Pronto. A minha capa vai mantê-la aquecida. Foi uma experiência bastante chocante, mas a senhorita se mostrou muito corajosa.
- Não foi a primeira vez que estive em uma carruagem em disparada. Por favor, verifique os cavalos. Sinto-me responsável por tudo que aconteceu e não quero
que esses pobres animais sofram ainda mais.
Ravensworth ignorou o pedido e tirou um pequeno cantil do bolso.
- Beba - ordenou ele. Samantha hesitou.
- Beba - repetiu Ravensworth.
Ela tomou um gole e sentiu um calor descendo por sua garganta e quase engasgou outra vez. Pouco depois o tremor parou.
Quando viu que Samantha havia se recuperado, Ravensworth entregou-lhe as rédeas. Então desceu da carruagem para ir olhar os cavalos.
- Não aconteceu nada com eles. Tivemos sorte. Acho melhor deixá-los descansar um pouco.
Com certa dignidade, Samantha começou a pedir desculpas e a agradecer, mas Ravensworth a interrompeu.
- Eu soube que a senhorita é uma quacre, srta. Langland.
- Minha mãe era quacre - corrigiu-o Samantha. - Eu apenas tento seguir os princípios dela.
- O fato de a ter surpreendido fumando me espanta. Senhoritas quacres costumam fumar?
- Ora, não há regras. Cada um segue a própria consciência no que diz respeito à conduta pessoal - explicou ela com seriedade.
- É uma resposta bastante conveniente.
-- Não é assim para todos os quacres. Para aqueles que não se preocuparam em desenvolver uma consciência, talvez seja conveniente. Mas não para mim.
- Entendo. Está querendo dizer que eu não tenho consciência?
- E tem? - Samantha perguntou, lembrando-se da cena na biblioteca.
- Não muita! Por quê? Algum problema? Houve uma pausa.
- Sim, para mim é um problema - ela respondeu, sincera.
- E mesmo? E posso saber o motivo? - Ravensworth viu o olhar de dúvida de Samantha e riu. - Sei que a senhorita é uma dama propensa a admitir um erro.
- Se o que diz fosse mesmo verdade, lorde Ravensworth, o senhor seria um insolente.
- E a senhorita realmente acha que eu sou um insolente? - Eu?- Samantha ficou surpresa com a pergunta tão direta.
- Eu não o conheço direito. Como poderia dizer?
- Srta. Langland - começou ele com mais seriedade -, peço-lhe para não formar uma opinião precipitada sobre a minha pessoa levando em consideração o nosso
primeiro encontro.
- Ravensworth tossiu para mascarar seu constrangimento. Samantha, por sua vez, não deu o menor sinal de que o assunto a incomodava, como seria o caso para
a maioria das mulheres.
- Sim, continue.
- A senhorita pode ter interpretado mal. Aquela jovem sabe como eu sou e não estava comigo de má vontade. Samantha ficou em silêncio.
- Eu posso não ter muita consciência, srta. Langland, mas não sou um insolente! Eu sou um homem honrado.
- Entendo - Samantha respondeu com indiferença.
- A senhorita me aceita como tal?
- Como um homem honrado? Se o fato lhe satisfaz...
- Não lhe satisfaz?
- Já que pergunta, não!
- Por que não? Ela deu de ombros.
- Honra! Qual é o código de honra que vocês homens seguem, milorde? Ele serve a quem? Quem dita as regras? Como a honra pode ser satisfeita por meio de duelos
e disputas? Entretanto, é nisso que os homens acreditam. Não, eu não creio que um homem honrado possa ser comparado a um homem consciente.
Ravensworth ficou surpreso com o desdém na voz de Samantha.
- O importante, cara senhorita, é que se eu lhe dou a minha palavra, deve acreditar.
Samantha começou a mexer em suas luvas, e Ravensworth percebeu que ela não queria prolongar o assunto. Ele, por sua vez, não tinha terminado. Não podia deixar
a história acabar assim.
- Acredita em destino, srta. Langland?
- Por quê?
- Porque estou começando a acreditar que a senhorita é a minha nêmesis. Os deuses a enviaram a mim?
- E por que os deuses lhe enviariam tal punição? - Pelo meu mau comportamento.
- O senhor é a única pessoa que se arrepende do seu mau comportamento ?
- Eu disse que me arrependo?
Samantha olhou bem dentro dos olhos de Ravensworth, como se quisesse ler a mente dele. Olhos azuis honestos, encimados por sobrancelhas espessas e curvadas.
Olhos expressivos, cheios de calor, diversão e algo mais escondido em suas profundidades.
- Ora, srta. Langland, não se pode esperar que urh homem consciente se arrependa de seu mau comportamento.
- E um homem honrado?
- Um homem honrado não se comporta mal. Os olhos cinza de Samantha analisaram a expressão de Ravensworth.
- E então? Não tem como responder?
- Eu não compreendo - confessou ela, reservada.
- Em termos claros - disse Ravensworth, tomando-lhe as mãos entre as suas -, gostaria que soubesse que, por mais que eu não seja tão virtuoso quanto outros
homens, tenho escrúpulos. Pode confiar em mim quando digo que sou um homem honrado.
- Obrigada - Samantha agradeceu, antes de se entregar a mais um de seus silêncios.
Ravensworth pegou as rédeas de volta.
- Acho que os cavalos já se recuperaram. Vamos encontrar sua prima? - O tom do marquês foi o mais natural possível.
Durante todo o caminho de volta, não foi dita nenhuma palavra a respeito de consciência ou honra, porém Samantha ficou meditando sobre o discurso dele. A
lógica lhe dizia que lorde Ravensworth era um homem perigoso, mas seus instintos lhe enviavam uma mensagem completamente diferente. Ela decidiu que não havia nenhum
mal em serem amigos, se ele desejasse, claro, pois sua consciência estava tranqüila.


Capítulo V

As gélidas temperaturas da primavera do ano de 1814 não influenciavam o bom humor de lady Esther e sir John. Com Napoleão Bonaparte confinado em Elba, a
Inglaterra desfrutava de um período de paz com a Europa continental pela primeira vez depois de mais de vinte anos. A confiança do público chegara a tal ponto que
muitas das unidades de Wellington haviam sido dispersadas, e outras tinham cruzado o Atlântico para juntar forças com os legalistas do Canadá contra os Estados Unidos
da América.
Embora as notícias das colônias não fossem das melhores, os Grenfell tinham um motivo especial para todo aquele contentamento. Estavam comemorando o nascimento
do mais novo neto, filho da filha mais velha do casal, que vivia com o marido e os outros filhos na cidade de Bath. Lady Esther e sir John decidiram passar algumas
semanas na casa da filha, que nunca lhes havia causado qualquer tipo de problema.
No curso normal dos acontecimentos, nada teria persuadido pais tão zelosos a deixar a filha impertinente e rebelde sozinha, mas lady Esther se viu abençoada
com o que chamava de "transformação" no comportamento de Harriet. Ela era outra pessoa, não se podia negar. Lady Esther não sabia se essa mudança se devia às investidas
de lorde Avery, que pareciam estar surtindo algum efeito, ou se a prima quacre exercia um efeito benéfico no caráter da jovem. Mas isso não importava. O fato de
o comportamento da filha, em público ou em particular, fazer jus a uma dama da sociedade lhe era suficiente. Lady Jersey, a leoa do Almack's, chegara até a insinuar
que Harriet receberia um convite para uma das reuniões. Os pais da jovem ficaram eufóricos diante da simples possibilidade.
A convicção de ambos em relação à transformação da filha era tamanha que eles não viram motivos para Harriet e Samantha não começarem a desfrutar a temporada
londrina, uma vez que as pessoas retomavam à cidade. Desde o início, a intenção do casal fora hospedar as duas na casa da tia Sophia, que seria a dama de companhia
das jovens. Richmond, onde se localizava a mansão dos Grenfell, era longe demais para duas debutantes que gostariam de estar em meio ao burburinho da sociedade.
Com a consciência tranqüila, os membros da criadagem se despediram de Samantha e Harriet, que saíram para Londres na carruagem da família. Andie aceitou
ir junto até Bath para cuidar do bebê recém-nascido, sabendo que seria mais útil por lá. Entretanto, ela deixou bem claro que seria apenas por algum tempo, devido
à lealdade ao ramo Langland da família. E embora não tivesse sido dito, a ex-babá tinha a esperança de cuidar dos filhos de sua querida menina. Em um futuro bem
próximo.
Vernon deveria permanecer em Broomhill House por mais um tempo. Ele logo ingressaria em Oxford, portanto precisava aperfeiçoar a gramática e sintaxe da língua
grega. Foi com um sorriso melancólico que se despediu da irmã e da prima, prometendo que assim que terminasse com aquele "inferno", ele se apresentaria na rua Half
Moon. Samantha não gostava de deixá-lo sozinho em Richmond, pois desde que haviam se mudado para a casa dos tios, o irmão abandonara o comportamento recatado dos
pais e demonstrava todos os indícios de que se transformaria em um verdadeiro dândi, como todos os jovens de seu novo círculo de amigos. Ela sabia que não havia
muito a fazer para reter os impulsos de um jovem inclinado à leviandade, uma vez que a influência de uma irmã não contava.
Sobre uma pessoa, todavia, a proximidade de Samantha surtia efeito. Harriet, durante os meses seguintes ao acidente da prima na carruagem, vinha sofrendo
dos piores traumas de . consciência que já passara na vida. O fato de Samantha jamais ter reclamado por Harriet ter colocado o cigarro na mão dela paia salvar a
própria pele aumentava ainda mais o remorso da jovem. Ela acreditava que seu comportamento fora pior do que apenas repreensível, mas quando tentara pedir desculpas,
Samantha insistira em dizer que não havia a menor necessidade. Ser desculpada com tanta facilidade a fez sentir-se ainda pior. Ravenswoith e Avery não perderam a
oportunidade de repreendê-la pelo ocorrido. Samantha, por sua vez, não proferira uma única palavra de censura. A consciência de Harriet a asfixiava. Aos poucos,
ela percebeu que Samantha era tão original e inconvencional quanto ela sempre sonhara ser, e o fato não lhe agradava em nada. Ao contrário, a descoberta passou a
ser uma preocupação. No passado, Harriet nunca se importara com o que os membros da sociedade pensavam sobre seu comportamento insolente. Contudo não toleraria nenhum
tipo de comentário, nenhum ostracismo para com a prima a quem tanto admirava. Tinha tomado uma decisão: nenhum ato ousado de sua parte levaria Samantha a cometer
uma gafe perante a sociedade. Harriet prometera a si mesma que se tomaria uma garota-modelo. Seu orgulho, todavia, estava profundamente ferido. Lorde Avery, com
quem Harriet rompera o noivado em um momento de fúria após ele ter lhe dado um ultimato, partia seu coração. Ah, como sentia saudade dele,.. De seu noivo. Mas Harriet
era uma moça muito orgulhosa. Não faria nada para reverter a situação. O primeiro passo teria de partir dele.
Desde o incidente com a carruagem, Avery passava grande parte do tempo em sua companhia, junto com o amigo Ravensworth. Sua intuição feminina lhe dizia que
seu ex-noivo não era completamente imune aos seus encantos. Além do mais, seu comportamento condizia com o que ele esperava de sua futura esposa. Entretanto, Avery
não dava nenhum indício de que lhe pediria para reatar o romance. A preocupação atormentava a pobre Harriet.
Samantha também estava inquieta com as atenções do amigo de Avery. À medida que seu relacionamento com Ravensworth se tornava mais, próximo, Samantha tinha
a impressão que o marquês começava a nutrir sentimentos mais profundos por ela. Essa noção, entretanto, saiu de sua mente quando ele lhe explicou, com ares de confidente,
que o duque de Dalbreck poderia não se casar com a mulher que ele amava, pois se esperava que fizesse uma bela aliança. Aquelas palavras a desapontaram um pouco,
uma vez que Samantha achava o marquês de Ravensworth o homem mais lindo que conhecia, mesmo admitindo que ele não era um partido adequado para uma jovem quacre de
respeito. Quando começou a perceber que estava se apaixonando por um homem com quem tinha pouco em comum, um homem que não fazia a menor questão de esconder seu
lado libertino, ela suprimiu tais emoções e tratou de se concentrar em uma direção mais adequada para a sua modesta educação. No entanto, não era nada fácil evitar
a companhia de Ravensworth, pois tanto ele quanto Avery pareciam ter muitos conhecidos em Richmond e em Twickenham. Os dois compareciam a todas as pequenas reuniões
organizadas para espantar o tédio dos longos meses de inverno. Samantha não demorou a notar que mesmo um homem de reputação duvidosa como Ravensworth era muito bem
recebido pelas anfitriãs das festas. Quando comentou o assunto com Harriet, a prima lhe explicou que, apesar da fama de mulherengo do marquês, ele se comportava
como um verdadeiro cavalheiro nessas ocasiões, e que era uma honra para as pessoas recebê-lo em sua casa.
Samantha não conseguia entender os motivos que levavam Ravensworth a procurar sua companhia, já que o marquês fizera questão de deixar bem claro que o pai
pretendia que ele se casasse com outra mulher. Sendo assim, ela não via a hora de ir para Londres, onde esperava conhecer pessoas e ambientes novos. Queria que suas
tentativas de evitar o homem que a deixava tão atordoada não parecessem tão óbvias.

O marquês de Ravensworth sorriu com malícia diante de seu reflexo no espelho em seu quarto de vestir em Albany House. Seu criado pessoal, Denby, que aguardava
pacientemente para ajeitar-lhe o casaco, observou o olhar do patrão e se pôs a imaginar em que ele estaria pensando.
Com gestos elegantes, o marquês deu o nó em seu lenço de seda e estudou o resultado com olhos críticos. Os cabelos desgrenhados e cacheados caíam-lhe no
rosto, característica marcante de todos os Montgomery.
Ele permitiu que o criado alisasse a superfície de seu casaco.
- O que você prefere? - perguntou Ravensworth. - O diamante ou a safira?
Denby olhou para o patrão da cabeça aos pés.
- Acho que a safira se destacaria mais, milorde. - Ravensworth esticou o braço para a caixa de madeira que o criado segurava. - Muito previsível, porém.
Posso sugerir o diamante?
Ravensworth sorriu diante da sagacidade do criado enquanto colocava o alfinete de diamante no lenço em seu pescoço. Denby sentia-se muito orgulhoso quando
o patrão, um homem de extremo bom gosto, lhe pedia opinião a respeito de um traje.
- É uma ocasião especial, milorde? - perguntou Denby, vendo-o passar o perfume de que mais gostava. O marquês não parava de se olhar no espelho.
- Pode-se dizer que sim, Denby. Acho que será uma noite excepcional. Eu arriscaria até dizer inesquecível.

Harriet Grenfell bancava a dama de companhia da prima ao ajudá-la a se vestir para a pequena reunião que seria o primeiro evento de ambas na temporada. Ela
tentava ajeitar os cabelos de Samantha, enrolando-os em seus dedos e prendendo-os com grampos na parte superior da cabeça. As mechas, todavia, escorregavam-lhe dos
dedos e caíam pelas costas da prima.
- Santo Deus! - exclamou Harriet, exasperada. - Nunca vou conseguir arrumar o seu cabelo. Por que não pedimos para tia Sophia cortá-lo? Este corte está muito
fora de moda, minha querida. Não prefere um cabelo curto como o meu? - Harriet levou a mão às madeixas na altura da nuca, orgulhosa de sua aparência.
- Deixe comigo - disse Samantha, pegando as mechas com suas mãos hábeis. Sem olhar no espelho, fez um coque solto e prendeu-o na nuca com alguns grampos.
Em seguida ela abriu uma gaveta e pegou um xale de renda, que colocou ao redor dos ombros para esconder parte de seu colo nu. Harriet quase chorou.
- Samantha, minha prima querida, você não pode estar pensando em ir a uma festa vestida desse jeito!
- O que há de errado com o meu vestido? - perguntou ela, examinando o traje de musselina.
- Não há nada de errado com o seu vestido - respondeu Harriet. - - São os toques adicionais que não estão caindo muito bem. Olhe para mim. Há algo de errado
com a minha aparência? Você acha que a minha roupa é indecente?
Samantha olhou para o vestido da prima, que era muito parecido com o seu, a não ser pela cor. Era de musselina azul-clara, combinando perfeitamente com os
olhos de Harriet.
- Claro que não. Você está linda, Harriet.
- Então, por que você insiste em se vestir assim? Por que não se veste como eu?
- Porque - começou Samantha, paciente - eu preciso ser fiel a mim mesma. - Suas bochechas enrubesceram quando olhou para a prima. Mas Harriet não se deixaria
vencer com tanta facilidade.
- Samantha, eu estou pensando apenas na sua felicidade. Não me agradaria nenhum pouco vê-la triste. Por favor, acredite em mim! Você nunca encontrará um
parceiro para dançar vestida assim. Eu sei do que estou falando. Os jovens cavalheiros são... Bem, eles querem distância de moças que parecem puritanas.
Samantha estava se divertindo com a conversa.
- Você acha que eu sou puritana?
- Claro que não! Quem melhor do que eu para saber que você não é puritana? Mas é a idéia que a sua aparência passa.
- Quando eles me conhecerem um pouco mais...
- Eles nunca irão conhecê-la melhor, Samantha - interrompeu-a Harriet, elevando o tom de voz. - Por favor, desculpe-me por estar sendo tão sincera, mas a
sua aparência é, no mínimo, excêntrica. Aliás, é pior do que excêntrica. Você parece uma intelectual. Nenhum cavalheiro se atreveria a vir falar com você.
Samantha ficou estupefata.
- Harriet, esse é o estilo que eu adotei, e os cavalheiros não me evitaram em Richmond.
- Eu concordo com você. Mas aonde fomos em Richmond? Apenas a festas familiares nas casas vizinhas, passeamos pelo parque. Não foi nada de mais. A reunião
dessa noite será de primeira grandeza. Não é tão grande quanto um baile, mas bem mais importante do que as festinhas de Richmond. Por favor, Samantha, permita-me
aconselhá-la nesse assunto.
Nenhum tipo de persuasão de Harriet conseguiria fazer Samantha mudar de idéia. Ela não acreditava que todos os cavalheiros pudessem ser tão frívolos a ponto
de se afastar de uma moça por causa de sua aparência pudica. Foi com o coração pesado que Harriet acompanhou a prima e a tia Sophia à festa da condessa de Blaine
em sua mansão na praça Cavendish. Seria uma noite desastrosa, pensou ela.


Capítulo VI

Samantha queria apenas uma coisa: um buraco escuro e cavernoso onde pudesse ficar sozinha e chorar sua miséria em paz. A princípio, pareceu-lhe que seria
uma noite de grandes alegrias e diversão, uma noite repleta de novidades. Até os convidados começarem a dançar no salão adjacente. Em um momento ela se encontrava
no meio de um grupo animado de moças, conversando e rindo, no outro se viu sozinha, deserdada por todas, que haviam sido convidadas para dançar. Apenas Harriet ficou
com a prima, rodeando-a como se temesse perdê-la de vista. Arruinar a noite de Harriet era o pior de tudo. Mas nada do que Samantha dissesse a convenceria a sair
de seu lado e a dançar com um dos jovens cavalheiros. Nem mesmo Avery conseguiu persuadi-la.
E assim elas ficaram sentadas entre as viúvas, ou passeando com Avery. Samantha, porém, tinha plena consciência dos olhares pesarosos das mulheres em sua
direção. Nunca esperara ser uma garota popular, mas sim ter um círculo de amigas agradáveis. Contudo, até esse pequeno prazer lhe seria negado. A vida na sociedade
poderia ser muito cruel, descobriu ela.
Perto do final da noite, Ravensworth apareceu, deixando Samantha ainda mais aborrecida. Diante de seus olhos, ele era o homem mais elegante e mais bonito
de todo o salão. E com esse pensamento veio a lembrança do que a prima lhe dissera sobre seus trajes. Temendo ver piedade nos olhos dele, como linha visto nos olhos
de tanta gente aquela noite, Samantha baixou o rosto.
Ela observou a desenvoltura com que o marquês ia de grupo em grupo, cumprimentado, conversando com todos, mostrando-se um membro muito querido. Quando Ravensworth
ergueu o olhar em sua direção, Samantha baixou os olhos lembrando-se dos conselhos da tia Esther, dizendo que era rude encarar os outros.
Foi com grande surpresa que ela recebeu o convite de Ravensworth para dançar. Nem teve tempo de negar, de lembrar de sua promessa de jamais se submeter a
algo tão vulgar. Não que não apreciasse danças, mas valsa, especificamente, não lhe agradava.
O marquês não tirara os olhos de Samantha desde que a vira pela primeira vez na festa. A roupa dela o surpreendeu. Como Samantha tivera coragem de aparecer
daquele jeito a um evento na sociedade? Por um instante ele se irritou por ela ser tão despreocupada em relação à aparência. Mas depois de um momento de reflexão,
a raiva desapareceu. Nenhum cavalheiro se aproximava dela. E Samantha era a culpada. O fato não o comovia. Não, uma situação como essa poderia se tomar vantajosa
para ele. Samantha ficaria mais receptiva diante do que ele estava prestes a lhe propor para o futuro. Uma vez que ela estivesse sob a sua proteção, Ravensworth
pretendia vesti-la com as melhores roupas, presenteá-la com as melhores jóias.
O marquês se divertiu com os cavalheiros que ignoravam Samantha. Enquanto perseguiam diamantes que julgavam ser de primeira linha, mulheres que eram apenas
aparência, Hugh Montgomery lhes arrancaria o prêmio da vitória com grande facilidade. Ele riu involuntariamente ao pensar no assunto. Mas logo ficou sério, lembrando-se
de que fora apenas um acidente do destino que a colocara em seu caminho. Em circunstâncias normais, ele jamais a teria olhado. Sua Samantha. Ravensworth repetiu
o nome em silêncio. Até o nome possuía poderes para enfeitiçá-lo.
Ele tinha plena certeza de que a preparara para o que estava em sua mente. Sua consciência o incomodava todas as vezes que se lembrava do que dissera a Samantha.
Meia verdade. Era um fato que seu pai esperava que o filho se casasse com uma jovem de seu meio, mas não acreditava que isso realmente aconteceria. Hugh Montgomery
jamais permitia que os desejos alheios o influenciassem. Sempre seguia suas inclinações, e seu pai, o duque, conhecia bem seu filho.
Ravensworth sabia que um dia se casaria, garantindo, assim, a sucessão. Sua esposa seria uma mulher de seu meio social, alguém que desempenharia com perfeição
o papel que lhe caberia. Mas ele jamais esperava amar tal mulher. Seria algo vulgar e desnecessário. Encontraria conforto em outro lugar. Com outra mulher.
Pretendia que seu relacionamento com Samantha fosse eterno. Ela não era uma jovem nobre, porém muito bem-educada e merecedora de toda sua consideração. Esse
tipo de acordo era comum em seu meio. Tentaria ser fiel, claro, mas se fracassasse, não haveria como descartar Samantha. Seria um gesto covarde e não condizente
com um homem honrado. O lugar de Samantha em sua vida estaria garantido para sempre.
Os acordes iniciais da valsa interromperam seus pensamentos. Confiante, Ravensworth foi até o grupo de viúvas a fim de convidar Samantha para dançar. Quando
os olhares de ambos se encontraram, ele abriu um belo sorriso.

Samantha não conseguia compreender por que o marquês insistia em lhe dizer que sua família esperava que ele estabelecesse uma aliança adequada aos padrões
da sociedade. Ela percebia a irritação crescente de Ravensworth enquanto a conduzia com toda elegância pelo salão de baile.
- Sabe - disse ele -, a família dos Montgomery é muito tradicional. Nossas origens remontam à conquista normanda.
- É mesmo? - comentou Samantha, imitando a afetação que observara nos membros da sociedade que pretendiam depreciar as intenções de seus inferiores. - Os
Langland são mais antigos.
Ravensworth pareceu espantado.
- É verdade?
- Sim - respondeu ela com um quê de indiferença. - Nós somos uma das famílias mais antigas.
- Langland? É um nome saxão?
- Não. não. É uma família bem mais antiga.
- Quem foram seus ancestrais, então? Um brilho se acendeu nos olhos dela.
- Acho que o nome do nosso ancestral era Adão.
- Adão Langland?
- Não. Apenas Adão. Pode-se encontrá-lo na Bíblia. Ravensworth sorriu.
- A senhorita é terrível. Sabe perfeitamente que eu não sou dos mais familiarizados com esse livro.
- Não me surpreende.
Ele a puxou para mais perto e a girou com tanta violência que Samantha quase caiu. Ela arregalou os olhos.
- Eu a adverti a não querer tirar vantagem de mim. Se não tiver cuidado com as palavras, farei com que a senhorita se arrependa do que disser.
- Estou ficando tonta - protestou Samantha.
- Essa é a minha intenção - respondeu Ravensworth, girando-a outra vez. - Quero deixá-la tão tonta quanto a senhorita me deixou.
A valsa terminou e Samantha continuou nos braços dele, tentando recuperar a compostura. Alguns instantes depois, Ravensworth deu-lhe o braço e, sem consultá-la,
levou-a para longe do salão de danças.

- Por que me trouxe até aqui? - perguntou ela. Os dois se dirigiram a uma pequena sala, depois de terem passado pelo bufê de comidas.
- Precisamos conversar - respondeu Ravensworth, indicando o sofá para que Samantha se acomodasse. Em seguida fechou a porta. - Em particular. Não quero correr
o risco de nos escutarem.
- Posso saber qual é o assunto?
Ao fitar os olhos de Samantha, ele percebeu que seria bem mais difícil do que imaginara a princípio.
- Bem... A senhorita sabe que meu pai espera que eu faça um bom casamento, não sabe?
- Claro.
- É uma dívida que tenho para com a minha família.
- Imagino que seja algo realmente importante para eles, pois o senhor já tocou várias vezes no assunto comigo.
O marquês se pôs a dizer que, apesar de não poder lhe dar seu sobrenome, ela teria seu coração para sempre. Samantha o escutava confusa enquanto Ravensworth
enumerava todos os benefícios que lhe caberiam se ela aceitasse fazer um acordo.
- Um acordo? - repetiu Samantha, tentando entender aonde ele queria chegar.
- Minha jovem - disse o marquês, sentando-se ao lado dela no sofá e tomando-lhe as mãos entre as suas -, a senhorita sabe quais são as minhas circunstâncias.
Eu lhe ofereço a minha proteção. Prometo que cuidarei da senhorita com todo o meu carinho. Será a minha verdadeira esposa em todos os aspectos, a não ser oficialmente.
Ravensworth a observou com atenção, tentando entender o que se passava na cabeça de Samantha. Será que aceitaria sua proposta?
Samantha tinha certeza de que não compreendera direito.
- Seja mais claro, milorde, e diga o que realmente espera de mim - disse ela, encarando-o com determinação.
O marquês começou outra vez, tentando expressar seus pensamentos com palavras que a convenceriam a aceitar sua oferta.
- Um acordo como esse não é incomum quando existe uma grande disparidade entre um homem e a mulher que ele deseja. Pense na sua felicidade! - continuou ele,
persuasivo. - A senhorita nunca mais será a parente pobre. Eu garantirei seu futuro. Não suportaria vê-la vivendo da caridade alheia. - O silêncio dela o incitou
a prosseguir: - Nós poderíamos viajar pela Europa. Eu a levaria para a Grécia e, quando seus parentes se acostumassem à idéia, nós nos estabeleceríamos na Inglaterra,
na minha casa em Kent. Tenho certeza de que a senhorita adoraria morar lá.
Uma fúria gélida tomou conta de Samantha. Ela não conseguia acreditar no que estava escutando.
- Mas se eu me casar com...
- É algo muito improvável, minha querida- interrompeu-a Ravensworth. - Não quero parecer brutal, mas a senhorita acha que esse sonho se realizará? A senhorita
é uma órfã sem dinheiro. Não possui dote a oferecer. - A voz dele exalava confiança. - Esta noite a senhorita deve ter notado como suas chances de arranjar um marido
são remotas. Para apreciar suas qualidades, um homem não pode ter preconceitos. Eu sou esse homem. A senhorita jamais receberá uma proposta melhor do que a minha.
Para o seu próprio bem, eu lhe imploro que aceite.
- Está me pedindo para ser sua amante, lorde Ravensworth? As palavras foram ditas com extrema clareza e, pela primeira vez, ele sentiu uma certa inquietação.
- Srta. Samantha, não coloque as coisas dessa maneira.
- Então o senhor não está me pedindo para ser sua amante?
- Se prefere analisar assim, sim, eu estou lhe pedindo para ser minha amante. Mas no meu íntimo a senhorita seria a minha verdadeira esposa.
- Ah, claro! Uma esposa que não é uma esposa de verdade. Nós poderemos ter filhos? - perguntou ela com ingenuidade.
- Se a senhorita quiser...
- O senhor quer?
- Sim - respondeu ele, levando as mãos de Samantha aos lábios e beijando-as com ternura.
- O senhor quer ter filhos bastardos comigo? Ravensworth cerrou os dentes, irado.
- Eu prefiro que a senhorita não use esse palavreado!
- Perdoe-me pela indelicadeza, milorde. E um costume quacre. Eu sempre fui muito direta.
Samantha puxou as mãos e se levantou. O semblante de tranqüilidade que sua expressão transmitia era bem diferente de seus sentimentos. Raiva, orgulho ferido
e espanto se misturavam, comprimindo-Ihe o peito.
- Sinto muito por ser tão deselegante, lorde Ravensworth, mas há uma série de motivos que me levam a recusar a sua... a sua oferta tão bem-intencionada.
A voz dela apresentava um ligeiro tremor.
- Em primeiro lugar, eu não tenho vocação para ser amante. Ah, perdoe-me pela grosseria. Não tive a intenção de ofender seus sentimentos com a minha sinceridade.
Ravensworth cerrou os dentes e respirou fundo.
- Eu não quero uma mulher que tenha vocação para ser amante - respondeu ele com amargura. - Por que insiste em insultar a nós dois? Se eu quisesse uma mulher
desse tipo, acha que teria me aproximado da senhorita?
- Em segundo lugar - continuou Samantha, ignorando-o deliberadamente -, eu jamais aceitaria uma ligação com o senhor, legal ou ilegal, mesmo que fosse o
último homem na Terra. - A voz de Samantha elevou-se um pouco, revelando um quê de histeria. Ela enfiou as unhas na palma das mãos, na tentativa de acalmar o tremor.
Queria sair dali o mais depressa possível.
Ravensworth se aproximou e pegou-lhe a mão.
- A senhorita está brava comigo. Acho que fui um pouco precipitado. Eu lhe darei alguns dias para pensar no assunto.
Samantha engoliu as palavras que lhe vieram aos lábios. Não demonstraria quanto estava magoada. Ela tentou se soltar, mas Ravensworth não permitiu.
- Não preciso de tempo para considerar a sua proposta, milorde. O senhor se gabou dizendo que era um homem honrado, sim, um homem honrado. E eu acreditei.
Ah, como fui tola... Honra! O senhor me insultou de todas as maneiras possíveis. Suma daqui com a sua honra!
Furioso, ele a segurou com mais força.
- Solte-me! - gritou Samantha, prestes a perder o controle. Dedos cruéis apertaram-lhe os ombros.
- Eu a soltarei desde que a senhorita responda a uma pergunta. Uma simples pergunta. A senhorita se importa comigo? Eu quero saber!
Samantha queria negar, porém não havia como.
- Ah, a senhorita não sabe mentir.
Ele tomou-lhe o rosto entre as mãos. Samantha não se mexeu, sabendo que poderia se dar mal se resistisse. Pela primeira vez, ela se deu conta do poder daquele
homem. E ficou com medo.
Não era a mesma pessoa que havia se preocupado com seu bem-estar nos últimos meses, que a salvara de um acidente com a carruagem. Era um verdadeiro estranho.
- Minha Samantha... - murmurou o marquês, beijando-a com ternura.
Apesar de fazer o máximo para se controlar, ela não foi capaz de conter os soluços. As lágrimas vieram ininterruptas. Ravensworth limpou-lhe o rosto e abraçou-a
contra seu peito em um esforço de confortá-la. Instantes depois, ele continuou com as carícias, beijando-Ihe o pescoço, a orelha. Quando entreabriu os lábios para
se entregar ao beijo, Samantha soube que havia perdido.
- Arrepiada, meu amor? - provocou-a Ravensworth em um murmúrio sensual.
Ao erguer os olhos, ela se deparou com a expressão de triunfo no rosto de Ravensworth, o que a fez sentir-se a pior das mulheres sobre a face da Terra.
- Solte-me! - gritou em desespero.
- Samantha... Samantha... não tente fugir de mim - disse ele, segurando-Ihe o queixo. - Você pertence a mim.
Ela encontrou os olhos de Ravensworth.
- Um dia eu acreditei que pudéssemos ser amigos, mas agora... - Samantha não terminou a frase. - Eu jamais esperava ouvir tamanha crueldade de um homem,
muito menos de um homem honrado. O senhor é um ser desprezível.
Ravensworth deixou a mão cair como se tivesse levado uma ferroada. Samantha aproveitou a oportunidade e saiu correndo da sala.
Passando a mão nos cabelos, ele sentou-se no sofá. Esperaria dez minutos antes de segui-la. Não queria levantar as suspeitas das pessoas. Além disso, Samantha
precisava se acalmar.
O marquês enfiou a mão no bolso do casaco e pegou um charuto. Enquanto fumava, pensou em como agiria caso pretendesse conquistar Samantha. Ele fechou os
olhos. Ela havia perdido o juízo. Por que havia achado a proposta insultante? Ele seria um duque e, portanto, tinha de fazer jus ao futuro título. Como poderia se
casar com uma mulher sem posses e sem título? Será que Samantha estava atrás da sua fortuna, como muitas outras? Não. Era uma idéia totalmente absurda. Fora de propósito.
Samantha Langland era apenas uma jovem virtuosa. Por que não compreendia o que se passava na cabeça dele?
De repente, ocorreu ao marquês que ele não tivesse perdido apenas uma batalha, mas sim toda uma guerra. A palavra "nêmesis" bombardeou-lhe a mente. Ravensworth
mordeu o lábio. Avery não conseguiria parar de rir quando soubesse do ocorrido.


Capítulo VII

Ao sair da sala, o único pensamento de Samantha era o de afastar-se de toda a crueldade daquelas pessoas que a haviam humilhado desde o instante em que entrara
naquela mansão. Com passos determinados, passou pelo salão de jantar abarrotado, esperando sentir a mão pesada de Ravensworlh em seu ombro a qualquer momento, porém
nada impediu sua fuga daquele lugar desprezível. Sentiu alguns olhares curiosos em sua direção, mas a sociedade não tinha o menor interesse em alguém que não fosse
de seu meio.
Quando chegou ao hall de entrada, Samantha hesitou, sem saber ao certo qual seria a melhor maneira de escapar. Seu manto encontrava-se no guarda-roupa, e
ela correu para pegá-lo.
Nem sequer pensou em avisar Harriel ou a tia Sophia de seus propósito. As emoções rodopiavam em sua cabeça de tal maneira que Samantha não conseguia ter
um pensamento racional. Tomava pela raiva e pela vergonha, estava fora de si. Apertando o manto contra o peito, ela saiu pela praça Cavendish sem saber aonde iria.
Queria apenas distanciar-se ao máximo do desprezível marquês de Ravensworth.
O vento soprou em sua pequena figura, e Samantha baixou a cabeça para escapar da rajada gélida. Seus passos, porém, não diminuíram. Em seu desespero, estava
quase correndo, tentando controlar os pensamentos confusos que iam e vinham em sua mente. Ela não ouviu a carruagem se aproximando, nem os gritos furiosos do condutor
até estar bem na frente dos cavalos assustados.
No instante em que Samantha notou o perigo que corria, era tarde demais. Tentou correr, mas os cascos do primeiro animal acertaram-lhe as costas, jogando-a
longe. Ela caiu de cabeça no chão e todo o ar pareceu sumir de seus pulmões. Ouviu ao longe vozes alarmadas, então tentou se levantar. Não teve forças, todavia.
Quando abriu os olhos, depois de uma vertigem, Samantha deparou com três rostos preocupados. Eram as três mulheres mais lindas que já vira em toda sua vida.
Ela abriu um sorriso trêmulo.
- Vocês são musas ou anjos? - perguntou antes de perder os sentidos.

As pálpebras de Samantha pesavam. Ela realmente não queria sair da segurança de seu sono, pensou, zonza. Se se recusasse a acordar, jamais teria de encarar
o mundo cruel outra vez. Alguém levantou-lhe a cabeça do travesseiro e pressionou algo contra seus lábios.
- Beba isto - ordenou uma voz suave. Samantha abriu os olhos e fitou o rosto angelical.
- Eu estou no céu?
- Não, minha jovem. Só que, se continuar tentando atropelar carruagens, é para lá que você irá. Qual é o seu nome? Seus pais devem estar preocupados com
o seu desaparecimento. Preciso informá-los sobre o seu paradeiro.
- Samantha. Meu nome é Samantha - respondeu ela antes de perder os sentidos de novo.
Quando acordou, algum tempo mais tarde, Samantha gemeu. Alguém colocou a mão fria em sua testa, e ela reconheceu a mulher que a ajudara antes.
- Beba este líquido - disse a mulher, colocando a caneca de caldo quente contra os lábios de Samantha, - Vai lhe fazer bem.
- Onde estou? Há quanto tempo estou aqui?
- Está na minha casa - respondeu a mulher. Ontem à noite, você foi atropelada pela carruagem da qual eu era passageira. Poderia ter morrido, sabia? Você
saiu correndo pela rua sem se importar com a sua segurança. Eu estava voltando para casa da ópera com as minhas irmãs.
- As três musas! - De repente, Samantha se lembrou.
- Não se deixe enganar, minha querida. Nós não chegamos nem perto de musas.
- Vocês são lindas.
- Pode até ser. Mas você nos deu um tremendo susto. Nós poderíamos tê-la matado! Agora, faça a gentileza de me dar o endereço da casa de seus pais, ou tutores,
para que eu os informe do ocorrido.
Samantha obedeceu e, logo em seguida, a beldade se retirou. Assim que deitou a cabeça no travesseiro, ela se lembrou de todos os acontecimentos da noite
anterior: a rejeição vergonhosa dos presentes no baile e a proposta absurda que Ravensworth lhe fizera. Suas bochechas enrubesceram quando recordou as caricias que
aquele homem lhe fizera. Esperava nunca mais vê-lo.
Repreendeu-se por ter saído da festa sem avisar ninguém, porém seu orgulho havia sido ferido. E muito. A lembrança suscitou os mesmos sentimentos de mortificação
e fúria, Ela reprimiu o nó que se formara em sua garganta e começou a soluçar. Como conseguiria encarar o mundo outra vez? As lágrimas escorriam sem parar por seu
rosto.
Sua salvadora retomou e parou de repente ao ver o estado de sua hóspede.
- Minha querida - disse ela, tomando-lhe as mãos trêmulas entre as suas. - Conte-me o que tanto a aflige. Quer que eu chame o dr. Pemberton de novo?
Aquelas palavras a desarmaram por completo. Antes de saber o que estava fazendo, Samantha contou-lhe toda a história, omitindo apenas a parte de Ravensworth.
Contou sobre sua mãe e a tarefa impossível de conciliar sua consciência com as frivolidades da vida na alta sociedade. A mulher aninhou-a em seus braços e escutou-a
em silêncio.
- As pessoas sabem ser muito cruéis - ela falou assim que Samantha terminou. - Você está certa em seguir a voz da sua consciência. Nunca deixe suas convicções
de lado. Dessa forma, jamais precisará baixar a cabeça. Olhe o mundo de cima para baixo, se for o caso, ou estale os dedos diante de todos.
- Foi o que eu fiz! - respondeu Samantha, sorrindo em meio às lágrimas.
- Assim é melhor. Sem autopiedade. Não perca seu tempo. Seja verdadeira consigo mesma e deixe o mundo seguir seu rumo. Mas acredite realmente nos seus princípios.
Não deixe que a opinião dos outros a influencie, afastando-a daquilo que você acredita.
Samantha sentiu-se confortada por aquela estranha e foi tomada por um profundo sentimento de gratidão.
- Agora você precisa se vestir e ir para casa. O que vou dizer a minha prima e à minha tia sobre o meu desaparecimento do baile? - perguntou ela, preocupada.
- Nunca se explique demais, minha querida. Atenha-se aos fatos. É mais fácil. Você foi dar uma volta, e uma carruagem a atropelou. Só isso.
Sim, pensou Samantha, é a verdade, mas não toda a verdade.
Samantha terminava de se arrumar quando ouviu urna carruagem se aproximando. Ainda não conseguia caminhar sozinha, então esperou que os criados de sua tia
viessem ajudá-la. A porta do quarto se abriu, e o último homem que queria ver surgiu diante de seus olhos.
- Ravensworth! - exclamou Samantha, notando o alívio nos olhos dele.
- Pode deixar que eu cuido de tudo agora, Harriette - disse o marquês, com seu famoso tom autoritário.
Samantha imaginou que ele estivesse se dirigindo a sua prima, mas era à mulher que a salvara. Então eles se conheciam.
- Quando eu estiver melhor - começou Samantha - faço questão de vir visitá-la... Harriette.
- Não! - ambos exclamaram ao mesmo tempo. Curiosa, Samantha olhou para os dois.
- Não é necessário - respondeu a mulher, segurando a porta aberta. - Além disso, eu estou de mudança da cidade. Esta casa é alugada e vou entregá-la no final
do mês.
- Mas quando nos veremos de novo? Eu lhe devo tanto e gostaria muito de poder visitá-la algum dia desses.
Enquanto ela falava, Ravensworth pegou-a no colo.
- Por favor, coloque-me no chão. Não me trate como uma inválida. Eu consigo andar. - Todos os nervos de seu corpo recuavam ao toque de Ravensworth. Ele ignorou
o pedido e saiu do quarto.
- Obrigado, Harriette. O que mais posso lhe dizer? Se algum dia você precisar de um amigo... sabe onde me procurar.
Ignorando os protestos de Samantha, ele desceu as escadas e saiu da casa.
- Samantha, graças a Deus você está bem! - exclamou Harriet, envolvendo-a em um caloroso abraço. - Ficamos tão preocupadas! O que aconteceu? Por que saiu
da festa sem avisar ninguém?
Samantha observou o interesse de Ravensworth. Entretanto, ainda não tinha coragem de encará-lo.
- Saí para dar uma caminhada e fui atropelada por uma carruagem.
Harriet deu um grito e riu.
- Ah, Samantha! Essas coisas só acontecem com você.
- Harriet, porque você ficou esperando aqui na carruagem? Por que não entrou para conhecer a mulher que foi tão gentil comigo?
Foi o marquês que respondeu:
- Eu fui incumbido de cuidar do assunto. Nós não queríamos causar mais problemas para a mulher.
A resposta não a satisfez, pois Samantha notou o constrangimento da prima. Havia um mistério ali, e ela não sossegaria enquanto não descobrisse qual era.

O marquês de Ravensworth sentou-se em uma cadeira da sala de espera da casa da tia Sophia. Dois dias sem dormir acentuavam suas olheiras. O visconde de Avery
não ficava muito atrás. As mulheres da casa tinham finalmente se recolhido para dormir.
- Que balbúrdia! - disse Avery, analisando o líquido âmbar em seu copo. - Se correr a notícia de que a srta. Langland foi acolhida pela cortesã mais famosa
de Londres, que chegou até a dormir na cama dela, a reputação de Samantha será arruinado para sempre.
- A notícia não se espalhará - afirmou Ravensworth. - Harriette Wilson é uma das mulheres mais discretas que conheço. Ela nunca prejudica os inocentes.
- Espero que sim. Gostaria de saber o que levou Samantha a resolver dar um passeio no meio de um baile. - Avery olhou para o amigo com curiosidade. - Ah,
não! Não me diga que você teve coragem?
Ravensworth terminou de beber o uísque em seu copo.
- Você tinha razão, Avery, e eu me enganei. Estraguei tudo.
- Ainda bem que não aconteceu nada de mais grave. Com a o tempo, ela se recuperará. Além disso, há muitas jovens por | aí dispostas a aceitar a proposta.
- Pare de me perturbar, Avery. Eu ainda não desisti de Samantha.
- Você não pode estar falando sério!
- Claro que estou.
- Ravensworth, você perdeu o juízo? Eu já lhe disse uma vez e repito: Samantha é uma garota muito virtuosa para o que você tem em mente. Deixe-a em paz.
Aceite o fato de que algumas mulheres preferem a morte a comprometer sua virtude. E a srta. Langland é... Bem, ela é muito refinada para o que você tem em mente.
- É tudo que você sabe - respondeu o marquês, sorrindo. - Nem imagina o que eu tenho em mente.
O visconde de Avery ficou sem palavras. Pouco depois, um brilho malicioso surgiu em seus olhos.
- Talvez ela não o aceite sob nenhuma circunstância. Você já pensou na hipótese de não fazer o tipo da jovem?
Ravensworth quase respondeu à provocação, porém mudou de idéia no último instante.
- Tive um dia muito duro. Não sei quanto a você, Avery, mas eu vou para a cama.
Eles se separaram na porta de entrada, e Ravensworth saiu andando em passos rápidos. Tinha plena convicção de que o coração de Samantha lhe pertencia, porém
conquistá-la, admitiu ele, era um assunto totalmente diferente. Ela e seus escrúpulos!
Ao chegar em casa, o marquês entregou o casaco ao criado pessoal e subiu as escadas, dois degraus de cada vez. Com o máximo de discrição, Denby ajudou o
patrão a se despir e desapareceu antes mesmo que ele percebesse.
Ravensworth sabia que tinha um grande problema pela frente. O que poderia oferecer a Samantha, uma vez que deixara bem claro que o casamento estava fora
de seus planos? Como poderia remediar a situação? Ah, mas como admirava os escrúpulos de Samantha! Todavia não permitiria que algo tão insignificante atrapalhasse
sua felicidade.
A primeira coisa que precisava fazer era impedi-la de reencontrar Harriette Wilson. Samantha jamais se esqueceria da generosidade daquela mulher. Entretanto,
precisava se proteger de sua própria inocência. Ravensworth instruíra o condutor da carruagem a voltar para a casa da tia Sophia por um caminho bem longo. Além disso,
era noite, e Harriette havia comentado sobre uma viagem prolongada a Paris com seu último protetor. Tudo daria certo.
Coitada! E ele fora o responsável por aquela noite terrível na vida de Samantha. Ravensworth não dormia havia 24 horas, e as sensações de preocupação, raiva,
angústia e remorso o tinham consumido durante todos aqueles terríveis momentos. Ele só se acalmara quando a pegara no colo, envolvendo-a com seus braços protetores.
A idéia de Samantha sair de sua vida era inconcebível. Não permitiria que ela atrapalhasse seus planos de tomá-la sua mulher.


Capítulo VIII

Durante grande parte da semana seguinte, Samantha ficou na cama. Embora completamente recuperada do acidente, não tinha a menor pressa de voltar para seu
suposto lugar na sociedade. Avery e Ravensworth apareciam todos os dias na casa de tia Sophia, mas Samantha se recusou a recebê-los. Nem Harriet conseguiu convencê-la.
As flores do marquês ela aceitava por mera educação, mas a prima decidiu não fazer nenhum comentário, achando que o acidente afetara Samantha bem mais do que havia
acreditado a princípio.
Seu estado de espírito, entretanto, não tinha nenhuma ligação com o acidente. Seus pensamentos confusos estavam completamente ocupados por tudo que ouvira
no desastroso baile. Ao se lembrar da frieza com que havia sido recebida na primeira grande festa de sua vida, Samantha gemeu, mortificada. E ao recordar as palavras
de Ravensworth, cerrou os dentes em fúria. Como ele ousara ofendê-la daquela maneira? Essas alterações de humor foram diminuindo com o passar dos dias, e ela logo
voltou ao seu estado de espírito normal.
Durante horas, Samantha ficou sentada em seu quarto analisando sua situação. Determinada a agir com lógica, ponderou sobre tudo que aprendera a respeito
da conduta entre os sexos.
No final da semana, já tinha chegado às próprias conclusões. A bela mulher que a ajudara lhe dera bons conselhos. É preciso ser fiel às próprias convicções.
Antes, ela aceitara cegamente os ensinamentos quacres da mãe. Só que sua mãe, descobriu Samantha com pesar, não era infalível.
Tia Sophia não notou nada de errado no comportamento recluso da sobrinha. As primas viam a senhora como uma pessoa muito querida, que nunca ralhava com elas
nem lhes fazia muitas perguntas. No papel de dama de companhia, Sophia deixava a desejar. Não costumava ficar nas festas que as sobrinhas freqüentavam, apenas acompanhava
as duas até seu destino. Ela exercia as próprias atividades com suas amigas viúvas. Era uma jogadora inveterada e passava a maior parte do tempo nos salões de jogos
com outras matronas. Além de jogar, elas adoravam falar da vida alheia.
Sophia aceitou a explicação do acidente de Samantha, bem como a descrição da mulher que a acolhera. Quando disse que gostaria de gratificar essa pessoa que
mostrara tanta generosidade, Ravensworth comentou que a mulher havia saído da cidade para uma longa viagem. Sophia não questionou a explicação. Não era uma mulher
desconfiada como sir John e lady Esther. Sendo assim, quando Samantha decidiu sentar-se à mesa para comer, tia Sophia nem se deu conta de que a sobrinha havia removido
todo e qualquer vestígio de renda que antes escondia o arredondado de seu colo.
Harriet notou a mudança nos trajes da prima, mas achou de bom tom manter-se em silêncio. Imaginou que a humilhação de Samantha perante a sociedade a tinha
levado a abandonar a rigidez dos costumes quacres. Harriet estava envergonhada pela experiência mortificante de Samantha, porém a admiração que sentia pela coragem
e pelo bom senso da prima era mais importante do que qualquer outro sentimento. Esperava apenas que Samantha decidisse cortar o cabelo de acordo com a moda. Com
a roupa certa e bem-arrumada, ela deixaria os homens encantados.

O primeiro passeio de Samantha na carruagem da tia foi a um pequeno escritório em Pimlico, para conversar com o consultor financeiro dos Langland. Ela explicou
ao atencioso sr. Jackson, agente de seu pai durante anos e anos, que gostaria de comprar um guarda-roupa novo para sua primeira temporada em Londres. O homem não
se perturbou. Sabia que as mulheres daquela família não costumavam gastar muito em frivolidades como vestidos e bugigangas. Como uma das herdeiras da fortuna dos
Langland, garantiu ele, Samantha possuía fundos mais do que suficientes para satisfazer suas necessidades. Todavia, se conhecesse as verdadeiras intenções de sua
cliente, o sr. Jackson poderia ter expressado seus sentimentos com mais cautela. Samantha foi instruída a comprar o que julgasse necessário e depois mandar as contas
para o escritório. As palavras tranqüilizadoras trouxeram de volta um sorriso aos lábios dela.
Harriet ficou surpresa e depois eufórica. Jamais lhe ocorrera que a parte Langland de sua família fosse rica. Eles não o demonstravam, a julgar pelo estilo
de vida modesto que levavam, e seus pais nunca tinham comentado nada a respeito. Samantha explicou à prima que os quacres não gostavam de admitir riqueza, e que
muitos deles eram tão ricos quanto os membros da alta sociedade. Os quacres eram honestos, trabalhadores e honrados, virtudes que traziam recompensas monetárias
quando se trabalhava com comércio e finanças.
Harriet, evidentemente, contou a novidade a seu amado, o lorde Avery, que foi correndo relatar o fato a Ravensworth. O marquês matutou a respeito da informação.
Claro que Samantha jamais aceitaria a proposta, agora indecente, que ele lhe fizera. Além de ser virtuosa, ela era uma mulher independente.
A condição financeira de Samantha não tinha grande importância para Ravensworth, mas ele sabia que sua adorável herdeira seria alvo de vários pretendentes.
A simples idéia o irritou, e quem acabou sendo o alvo de seu nervosismo foi seu criado pessoal. Denby imaginou se havia chegado a hora de pedir demissão, pois não
estava sendo nada fácil lidar com o marquês nas últimas semanas. E um criado com suas habilidades não teria a menor dificuldade em encontrar outro emprego. Mesmo
assim, ele decidiu esperar.

Ansiosa para ver seu mais novo modelo, Samantha abriu a caixa que havia sido entregue naquela noite por madame Godet, uma estilista renomada cuja loja se
situava na rua Seymour. Ela retirou o vestido de seda lilás com detalhes em prateado. Eufórica, Samantha esperou que a criada a ajudasse a se vestir. O decote era
baixo, porém recatado para os padrões da época, e as mangas curtas e bufantes eram presas ao braço por uma fita de seda prateada. A criada fechou os numerosos botões
na parte de trás do vestido, enquanto Samantha se admirava no espelho. A saia começava logo abaixo da linha dos seios. Como madame Godet dissera, era a última moda
em Paris.
- Obrigada, Alice.
- Se quiser, eu posso enrolar o seu cabelo - ofereceu a criada.
-- Não precisa.
- Srta. Samantha, a senhorita será a mulher mais bonita do baile - elogiou ela antes de sair do quarto.
- Essa é a minha intenção - respondeu Samantha com seriedade.
Ao se olhar no espelho, Samantha viu uma estranha. Seus olhos, notou maravilhada, haviam mudado para um tom misterioso de violeta, mas quando se movia, o
brilho prateado de seu vestido alterava o tom para cinza novamente. Samantha soltou os cabelos, que havia mantido trançados o dia inteiro, então os penteou até
ficarem lustrosos. As longas madeixas caíam sobre seus ombros, onduladas. Ela prendeu uma mecha de cada lado com pentes prateados cravejados por ametistas. Os brincos
também eram de ametista, Para finalizar, Samantha passou um pouco de batom nos lábios.
- Você se enganou, mamãe - murmurou ela. - A maneira de se vestir dos quacres não é uma proteção contra os predadores. É uma camuflagem covarde que serve
apenas para incitar a violência. Acredite em mim, vestida assim, eu parecerei apenas mais uma folha da árvore.
Na cama estavam os acessórios que Alice separara. Luvas brancas até os cotovelos, um xale de seda azul e prata para colocar ao redor dos ombros e um leque
francês decorado com minúsculas pérolas. Samantha pensou em colocar sua caixa de rapé na pequenina bolsa bordada, mas achou melhor não.
- Agora, minha jovem, vamos à toca dos leões - murmurou para si mesma.

A residência do visconde de Castlereagh ficava a menos de dez minutos de caminhada da praça James. Dez minutos a pé, porém quase uma hora de carruagem, pois
as ruas estreitas estavam abarrotadas de veículos de membros da sociedade que eram considerados da elite londrina. Receber um convite para um dos maiores bailes
da temporada era uma recomendação bem melhor do que um bilhete para o Almack's e bem mais agradável.
Samantha ficou aliviada ao saber que Ravensworth não faria parte do grupo. Avery explicou que ele era um dos convidados do jantar de lady Castlereagh, uma
honra singular, mas não inesperada para um dos herdeiros de um dos títulos mais prestigiados da realeza. O fato de se encontrar na carruagem do marquês naquele momento
a incomodou mais do que ela admitiria. Se pudesse opinar, Samantha teria recusado a oferta. Tia Sophia achara a solução perfeita para seus problemas, pois não gostava
de incomodar seu condutor, que odiava os atrasos dessas grandes ocasiões.
Os olhos de Harriet brilharam ao analisar o visual da prima. Samantha estava deslumbrante, e uma aura a envolvia, deixando-a encantadora. Até lorde Avery
se surpreendeu. Como será que o marquês de Ravensworth reagiria?

Entediado, Ravensworth estudou o salão de baile lotado. Samantha, pensou ele, ainda não tinha chegado. De repente, seu olhar foi capturado pela figura de
uma bela mulher, uma linda jovem rodeada de belos cavalheiros. Seus lábios se curvaram em um sorriso. Os gloriosos cabelos loiros soltos envolviam o rosto ovalado.
Ela usava o leque com todo seu charme, causando um efeito devastador. Com elegância, o marquês caminhou em direção à jovem, preparando um de seus sorrisos para chamar
a atenção dela.
Samantha olhou para cima e viu seu adversário se aproximando. Seus lábios congelaram um sorriso. Ravensworth, notou ela com amargura, não a reconheceu. Ele
ostentava um sorriso devastador.
Respirando fundo, Samantha fez uma mesura e olhou fixamente para os olhos azuis do marquês. De repente, ele a reconheceu. Ravensworth piscou uma, duas vezes.
Nos olhos dela havia desafio. Nos dele, fúria. Depois de alguns instantes, Samantha baixou a cabeça. Por que temer? Não tinha feito nada de errado.
Assim que chegou perto dela, Ravensworth pegou-a pelo braço sem a menor cerimônia.
- Com licença - pediu ele, dirigindo-se ao grupo de cavalheiros embasbacados. - Minha prima e eu temos um assunto familiar para discutir. - Sem a menor cerimônia,
levou-a para o hall.
- O que acha que está fazendo? - perguntou ele, irado. Um conhecido passou, e Ravensworth sorriu com educação. Então se voltou novamente para Samantha. -
Quem lhe deu permissão para usar seu cabelo dessa maneira? Onde pensa que está? Em uma casa de má reputação?
Samantha arregalou os olhos.
- Eu... Eu...
- E esse batom nos seus lábios?
Ravensworth tirou um lenço branco do bolso e, sem lhe pedir permissão, removeu o batom dos lábios dela. Samantha começou a se lamuriar. O marquês se enterneceu.
Estava pronto para tomá-la nos braços quando lorde Edgewood apareceu.
- Srta. Langland, essa dança é minha? - perguntou ele. - Peço desculpas, meu caro, mas o meu nome está no cartão de danças de sua prima. - O tom de Edgewood
era de escárnio. Pela primeira vez, Ravensworth notou o cartão que Samantha segurava na mão. Ele puxou-o com determinação e viu que ainda havia quatro espaços vagos.
Então escreveu seu nome em todos, sabendo que mais de duas danças proclamas mundo que havia se comprometido com a jovem em questão.
Ravensworth devolveu o cartão a Samantha e saiu deixando-a sozinha com um de seus admiradores daquela noite.

Os olhos de Harriet estudavam os dançarinos, procurando por sua prima. Fora uma noite de extremo sucesso para Samantha, o que a deixou radiante. Ela fora
a jovem mais requisitada da festa. Jovens cavalheiros brigavam para tê-la por perto. Harriet olhou para o homem ao seu lado. A devoção de lorde Avery durante todo
o baile satisfaria suas modestas ambições, mas ele se tornara um enigma. Apesar da presença assídua, suas atenções eram distantes.
- Samantha está dançando mais uma música com Ravensworth? - perguntou ela. - É a terceira vez na noite. O que ele pretende? Vai comprometê-la se demonstrar
tamanha atenção. Preciso advertir minha prima.
- Não faça isso - ordenou Avery. - Três danças com Ravensworth não arruinarão a srta. Samantha. Eu me lembro da época em que a irrepreensível srta. Grenfell
teria estalado os dedos diante de tamanha indiscrição.
Harriet ficou surpresa.
- É muito grosseiro de sua parte jogar na minha cara meu antigo comportamento. Foi seu desejo que eu me tomasse um pouco mais digna.
Avery baixou os olhos, envergonhado.
- E então, não foi? - indagou Harriet com veemência. Ele engoliu em seco.
- Harriet... - começou lorde Avery, algum tempo depois e com certa dificuldade. - Já faz algum tempo que tenho algo a lhe dizer.
- Fale.
O coração dela disparou. Para ganhar tempo, Avery tirou a caixa de rapé do bolso. Como poderia dizer a Harriet que havia se tomado monótona nos últimos tempos,
que ele preferia que ela demonstrasse um pouco mais do espírito aventureiro de antes? Avery achou melhor não. Com sua delicadeza habitual, colocou uma pitada de
rapé no pulso. Do canto dos olhos, viu que Harriet esperava que ele continuasse.
- Aceita um pouco de rapé?
- Como se atreve? - perguntou ela, afastando-se como se tivesse levado um tapa.
Foi naquele exato momento que um taciturno Ravensworth trouxe a radiante Samantha para o lado da prima.
- Lorde Avery, o senhor me permite? - perguntou Samantha, colocando a mão no braço dele.
- Eu a proíbo! - exclamou Ravensworth.
Ela o ignorou e continuou a se dirigir ao visconde.
- Por favor, lorde Avery.
- Ah, não, Samantha - suplicou Harriet. Uma calorosa discussão começou entre os quatro. Determinada a encerrar o assunto, Harriet segurou o pulso de Avery
e inalou com o máximo de delicadeza que conseguiu. Ele a olhou com admiração. Ela sorriu, um pouco trêmula. Então espirrou.
Naquele mesmo instante, a caixa de rapé escapou das mãos de Avery e foi parar ao lado de um grupo de viúvas. Bateu no rodapé e a tampa se abriu, espalhando
todo o conteúdo.
Com grande presença de espírito, Ravensworth pegou as duas jovens pelo cotovelo e as guiou na direção oposta.
- E a minha caixa de rapé? - perguntou Avery.
- Agora não. Agora não.
O visconde ficou parado por apenas um instante. Uma viúva espirrou, depois outra. Logo um grupo numeroso de matronas espirrava sem parar.
Lorde Avery saiu correndo.


Capítulo IX

Nas semanas seguintes, os dias se tomaram monótonos. Uma fila de admiradores se dirigia à rua Half Moon para levar as duas primas para um passeio. As jovens
mudavam de parceiros como mudavam de luvas, e Samantha achava impossível criar uma ligação mais estável com qualquer um de seus admiradores. Logo percebeu que ela
e Harriet haviam ganhado certa notoriedade em virtude da conduta atrevida no baile de Castlereagh. O incidente com a caixa de rapé não passara despercebido. Os homens
que tinham a boa sorte de serem vistos na companhia das duas primas ganhavam um certo status entre os amigos.
Tia Sophia não via nada de errado com a quantidade de pretendentes interessados nas sobrinhas. Havia apenas uma nuvem no horizonte que a preocupava. Houvera
um implacável atraso na entrega de um dos escassos bilhetes para o Almack's, uma ligeira inconveniência que logo se resolveria. A apreensão de Harriet era maior,
e ela agradecia a Deus por seus pais estarem bem longe, em Bath.
A princípio, Samantha se divertiu com sua popularidade, mas logo viu que as intermináveis excursões ao parque não tinham a menor graça. O ardor de lorde
Ravensworth também havia diminuído. Ele nunca se encontrava em meio aos outros cavalheiros que se aglomeravam à porta da casa de tia Sophia. Samantha disse a si
mesma que estava contente com o fato. Não existia futuro para uma jovem bem-educada e um homem de moral questionável.
O fato de Ravensworth agora saber que ela era dona de uma herança considerável se confirmava por sua conduta. Claro que Avery contaria a novidade ao amigo.
O marquês saberia, pensou Samantha, que não havia nada que um homem de sua espécie pudesse oferecer para convencer uma jovem de caráter e fortuna a aceitá-lo sob
quaisquer termos. Nem mesmo oferecendo seu ducado. A srta. Samantha Langland estava bem longe de seu alcance. E ela esperava que o futuro duque soubesse.
O marquês não se misturaria aos inúmeros admiradores de Samantha, e mesmo assim ela o encontrava em suas freqüentes excursões ao parque e em seus numerosos
passeios a Mayfair. Ele sempre se mostrava bem-humorado e a tratava da maneira mais galante possível. Apesar de estar acompanhada de um de seus fãs todas as vezes
que o encontrava, Samantha não achava nada fácil deparar com Ravensworth de braço dado com uma mulher. E sempre estonteante.
Quando conversavam, ela se esforçava a fim de não olhar para o rosto do marquês. Não queria ver aquele olhar provocativo. Além disso, acreditava que Ravensworth
estava zombando dela, ostentando algum tipo de poder que a subjugaria.
Diante do espelho, Samantha ensaiara uma série de olhares, mas ao tentar usar-los com Ravensworth, algo saiu errado. Durante uma breve conversa em uma noite
musical na casa de lady Besborough, ele caiu na risada e perguntou se ela estava com problemas para enxergar. O olhar que recebeu em seguida foi suficiente para
Samantha nunca mais enfrentar os olhos do marquês até que estivesse perfeitamente treinada.

Uma manhã, antes de a maioria dos membros da sociedade acordar, Samantha foi até a livraria Hatchard's. Por ironia do destino, encontrou Ravensworth quando
saía da loja carregando uma sacola. Sua intenção era ignorá-lo, mas ele a chamou, obrigando-a a se virar. Samantha o cumprimentou com um olhar frio e distante.
- Milorde.
Ela ouviu uma risada.
- Srta. Langland, permita-me apresentar-lhe lady Adèle St. Clair. Somos vizinhos em Kent. Acho que já lhe contei que possuo uma propriedade no campo - disse
o marquês.
O corpo de Samantha enrijeceu. Ela olhou para a mulher à sua frente e fez uma mesura. Lady Adèle a encarou com hostilidade, apesar do sorriso amável em seus
lábios.
Samantha se deu conta de que a companheira de Ravensworth a enxergou como uma rival e sentiu muita pena dela. Lady Adèle não era o tipo de mulher por quem
Ravensworth se interessaria. Em contraste ao vestido discreto de musselina verde que Samantha usava, lady Adèle vestia um modelo vermelho que realçava suas curvas.
- Eu não me lembro bem, mas acho que ambas se conheceram no baile de inverno dos Grenfell - comentou Ravensworth, malicioso.
Lady Adèle deu uma risadinha.
- Conhecendo tanta gente, como posso me lembrar? - Ela chegou mais perto de Ravensworth e estudou Samantha da cabeça aos pés. Satisfeita por julgar que a
outra não apresentava nenhuma ameaça, lady Adèle sorriu. - Eu não me lembro da srta. Langland.
Samantha não se espantou com a falta de tato da mulher e imaginou o que teria feito para merecer tamanho veneno.
- Nós não nos conhecemos! - exclamou ela. - Pois eu com certeza me lembraria.
Com o canto dos olhos, Samantha notou que Ravensworth estava radiante.
- Onde está a sua dama de companhia?
- Eu não preciso de dama de companhia, milorde. É só atravessar a rua que j á estou em casa. O que pode me acontecer nesse breve percurso?
- A senhorita ainda se atreve a perguntar depois... - Ravensworth parou no meio da frase. Samantha sabia que ele se referia à noite do acidente e sentiu
que tentava protegê-la da curiosidade natural da mulher ao seu lado. Foi uma gentileza. - Eu a acompanharei até a sua casa.
- Mas Hugh - começou lady Adèle -, você prometeu que me acompanharia ao meu conselheiro. Nós já estamos atrasados. Certamente a srta. Langland conseguirá
chegar sozinha em casa. Eu preciso da sua ajuda para explicar toda a complexidade da propriedade do falecido conde. É um assunto muito complicado para mim. - Ela
virou-se para Ravensworth com uma expressão de súplica em seu sorriso encantador.
- Nem pense em deixar a dama sozinha - interveio Samantha. - Eu não sou mais uma criança, e sei cuidar perfeitamente de mim.
- Tenho minhas dúvidas, srta. Langland! Não se estenda no assunto. Eu faço questão de acompanhá-la. Nós nos atrasaremos apenas alguns minutos. Adèle, você
vem conosco.
Em nome das boas maneiras, Samantha sentiu-se na obrigação de aceitar a gentileza de Ravensworth, mas não admitiria que aquele homem começasse a dar ordens
em sua vida.
- Posso saber qual livro a senhorita comprou? - perguntou lady Adèle, a fim de quebrar o silêncio.
- Razão e Sensibilidade. É um dos meus prediletos. Eu deixei o meu em Richmond e não suporto ficar sem. Conhece o livro?
- Ora! - interferiu o marquês. - Romantismo, que as mulheres tanto adoram. Eu achei, srta. Langland, que uma moça com a sua inteligência estaria acima de
tal mediocridade.
- Não me inclua na sua censura - disse lady Adèle. - Eu li o livro e o queimei assim que terminei. Não faz o meu estilo.
Assim que chegaram à casa da tia Sophia, Samantha virou-se para lady Adèle.
- Acredito que a senhorita esteja interpretando as intenções tia autora de maneira errônea. O gênero é mais para o humor do que para romance. Algumas pessoas
precisam ler o livro duas ou três vezes para compreender a ironia nas entrelinhas.
Lorde Ravensworth se mostrou interessado.
- Talvez eu deva ler o livro pela segunda vez. Pode me dar um exemplo do que está dizendo, srta. Langland?
- Claro. A primeira frase do livro é a chave do estilo da autora. "É uma verdade universal que um homem solteiro e rico busca uma mulher."
- E considera esse fato engraçado?- perguntou lady Adèle.
- É hilário! - declarou Samantha com solenidade. Lorde Ravensworth a olhou com desconfiança.
- O humor escapa a minha compreensão - declarou lady Adèle. - Poderia me ajudar a entender?
- Talvez a senhorita enxergue o humor se mudar o gênero do sujeito e do objeto.
- Uma mulher solteira e rica busca um marido - comentou lady Adèle.
- É uma noção ridícula, não acha? - perguntou Samantha com um sorriso malicioso. Ao observar a expressão nos olhos sombrios de Ravensworth, ela soube que
o marquês compreendera a mensagem,
Lady Adèle não era tola e percebeu a tensão que havia entre os dois. Ao se despedir, Samantha se arrepiou toda com o olhar de inimizade e raiva que recebeu
da mulher.

Quando Samantha encontrou Ravensworth outra vez, foi na condição de convidada de lorde Avery na ópera. Como era uma experiência nova, ela absorveu todo o
espetáculo de olhos arregalados, cheia de curiosidade. Foi Harriet quem lhe contou onde o marquês se encontrava. Ele segurava um pequeno binóculo e estava acompanhado
de lady Adèle St. Clair. O vestido dela era tão decotado que seus seios fartos estavam quase à mostra. Samantha olhou na direção oposta.
Ela não demorou muito para perceber que não gostava de ópera. Depois de horas de gritos felinos de uma soprano italiana no palco, o primeiro intervalo finalmente
chegou. Samantha olhou em volta, evitando o camarote de Ravensworth a sua direita. Então deparou com a beleza de três mulheres inclinadas sobre a beira do camarote
no andar de cima. Reconheceu-as como seus três anjos salvadores. No mesmo instante, Samantha ficou em pé e acenou para lhes chamar a atenção.
Estava claro que havia sido vista pelas mulheres, mas as três se viraram como se não quisessem reconhecê-la. Passando por Harriet e Avery, que conversavam
animadamente, ela saiu do camarote.
Ravensworth sinalizou para Harriet, que percebeu qual seria o próximo passo da prima. Ela puxou Samantha pela saia.
- Samantha, por favor! Não saia daqui. Não vá conversar com aquela mulher. Você não entende...
Samantha tentou se livrar das mãos da prima.
- Samantha, ela é Harriette Wilson, a mais famosa cortesã da cidade. Entendeu agora?
- Claro! - respondeu ela, finalmente compreendendo. - Como fui estúpida. Eu deveria ter imaginado. Mas como, se todos me tratam como uma criança?
Harriet relaxou. Lorde Avery mostrou-se confuso.
- Alguém pode me colocar a par do assunto, por favor? Samantha olhou para Ravensworth. Ele estava parado, encarando-a com atenção. Com um sorriso triunfante,
ela saiu do camarote. O marquês foi correndo atrás.
- Diabos! - praguejou Harriet, também indo atrás da prima.
- Posso saber o que está acontecendo? - perguntou Avery a ninguém em especial. Então ele se levantou e foi atrás dos outros três.
A recepção das três mulheres foi quase gélida. Sua salvadora a impediu de proferir qualquer palavra até que suas irmãs tivessem saído do camarote. Samantha
abriu a boca para falar, porém a mulher ergueu a mão.
- Pronto! Agora você descobriu quem eu sou e quer acabar com a sua reputação estando na minha companhia! - Ela mostrou-se furiosa. - Você achou que minhas
irmãs e eu apreciaríamos a sua atitude? Como se atreve, menina?! Se não se preocupa com o seu nome, pelo menos tenha cuidado com o meu.
- Eu não entendo - murmurou Samantha.
- Você arriscou a minha posição na sociedade, minha cara. Não quero escutar por aí que Harriette Wilson passou a corromper a moral de jovens inocentes. Eu
seria abandonada por todos os meus amigos, e com justa causa.
- Eu nunca achei que... Não tive a intenção de... - começou Samantha, horrorizada.
- É óbvio que não. Imagino que vá me dizer que as suas intenções eram as melhores, certo?
Arrasada, Samantha assentiu.
- Suas intenções eram as melhores. Em algum momento lhe ocorreu como os outros poderiam ser prejudicados pelo seu impulso intempestivo? Seu comportamento
é indesculpável!
- Eu fui uma tola - admitiu Samantha. - Jamais tive a intenção de lhe causar problemas.
- Talvez consigamos consertar a situação. Onde está seu acompanhante? É o marquês de Ravensworth?
Em meio aos inúmeros protestos, Ravensworth finalmente conseguiu entrar. Samantha baixou os olhos diante da expressão furiosa dele.
- Lorde Ravensworth, permita-me dar-lhe um conselho - disse Harriette Wilson. - Certifique-se de que esta jovem fique fora da cidade até esse escândalo ser
esquecido. Minhas irmãs e eu estamos muito constrangidas com esse incidente, e os amigos dela, se é que algum ainda permitirá ser tratado como tal, estarão na mesma
situação. Talvez dentro de alguns meses essa indiscrição deplorável já tenha sido esquecida e perdoada, mas até lá sugiro que a srta. Langland se mantenha bem longe.
- Escândalo? - perguntou Samantha com voz trêmula.
- A senhorita achou que ninguém repararia nessa loucura? - perguntou Ravensworth. - Amanhã, a esta hora do dia, seu nome estará na boca de toda Londres.
Ninguém a poupará, minha cara. Sua conduta esta noite mostrou que a senhorita está disponível. Olhe a sua volta! Repare nos olhares dos homens!
Samantha olhou ao seu redor e, horrorizada, percebeu que Ravensworth falava a verdade. Vários homens acenavam para o camarote em que ela se encontrava,
- Tudo na senhorita indica que é uma mulher de má conduta. Seu comportamento, seu cabelo...
Samantha afastou-se dele.
Harriet entrou no camarote naquele instante.
- Deixe-a em paz, Ravensworth! - ordenou ela, furiosa. Ele obedeceu, e Samantha saiu correndo para os braços da prima.
- Ah, meu Deus! - exclamou Harriette Wilson. - Era só o que me faltava. Agora são duas! Não acredito que isso esteja acontecendo comigo. O que eu fiz para
merecer esse castigo?
A mulher pôs a mão no braço de Ravensworth.
- Posso sugerir que leve essas jovens para casa antes que causem um tumulto?
- Peço desculpas pela confusão, minha querida. - Ele segurou a porta aberta para as duas passarem.
- Espere um instante, Ravensworth. - Ele se virou. - Seja gentil com a jovem. Eu gosto dela.

Capítulo X

Sentada na frente de Ravensworth, tia Sophia ouvia, assombrada, a história de suas sobrinhas. Ela estremeceu diante do tora brutal e também das palavras
cruéis.
Samantha também ouvia, imaginando que o lorde estava adorando seu papel de árbitro moral e não parecia aborrecido por recriminá-la com tanta displicência.
Sentada na ponta do sofá, ela prestava pouca atenção. Sua mente concentrava-se nos detalhes da terrível noite, na maneira como Ravensworth as arrancara do teatro
como se fossem criminosas perigosas.
Samantha olhou para o outro lado do sofá, onde sua prima chorava sem parar. Lorde Avery, que se encontrava ao lado dela, entregou-lhe um lenço. Sua demonstração
de bravura ao enfrentar Ravensworth no camarote da ópera havia desaparecido. Harriet tinha plena consciência de haver falhado com Samantha, e isso a deixava inconsolável.
Com seu lugar firmado na sociedade, ela não se importava nem um pouco, mas com sua prima era diferente. Não suportaria vê-la recriminada sem um motivo concreto.
Foi o repentino colapso da pobre Harriet que deu forças a Samantha. Ela não se esconderia como uma criatura amedrontada. Ser repreendida por ter constrangido
uma mulher com a disposição de Harriette Wilson seria aceito sem objeção. Mas, ter seu caráter colocado em jogo por haver inalado um pouco de rapé, por haver bebido
algumas taças de vinho em uma ou outra ocasião, e por ter sido pega fumando uma única vez era algo que não toleraria.
Samantha olhou com aprovação para lorde Avery afagando a mão da prima. Aquele homem condizia mais com um verdadeiro cavalheiro, um nobre, pois seu comportamento
fora o mais solícito possível. Ele as tinha acompanhado até a casa de tia Sophia, tendo sido instruído por Ravensworth para aguardá-lo lá. Samantha imaginou que
as necessidades da impaciente Adèle precisavam ser atendidas em primeiro lugar. Sem a menor discrição, Adèle especulara sobre o relacionamento do marquês com Samantha.
Esta não tinha a menor dúvida de que a bela aristocrata contaria com a simpatia do futuro duque. Tomara que eles sejam felizes, pensou ela, e as linhas em sua testa
aumentaram.
- Mas... lorde Ravensworth - interveio tia Sophia com certa timidez -, são apenas jovens mais animadas do que as outras. Talvez eu tenha sido um pouco relapsa
no meu papel de dama de companhia, porém agora que tenho conhecimento dos fatos em questão, prestarei mais atenção nessas duas.
- Madame, é tarde demais para tentar corrigir algo. Essas jovens se tornaram escandalosas demais para Londres. A péssima conduta delas colocou-as em uma
situação mais do que delicada. O acontecimento desta noite foi a gota d'água. - A voz do marquês tornava-se cada vez mais irritada. - Elas entraram no camarote de
Harriette Wilson. A julgar pela cor de seu rosto, suponho que saiba de quem estou falando. Essas duas perderam completamente o juízo.
Harriet chorava copiosamente, mas Samantha cerrou os dentes e endireitou-se em seu lugar.
Tia Sophia respirou fundo.
- Isso significa que as garotas arruinaram a chance de conseguir uma entrada para o Almack's? - perguntou ela.
Houve um silêncio momentâneo, que foi interrompido pelos soluços de Harriet.
- Almack's? - vociferou Ravensworth. - Almack's? Eu lhe informo, madame, que o único lugar onde essas duas "damas" serão aceitas é na cama de todos os libertinos
da cidade.
Os olhos da senhora se arregalaram em sinal de horror.
- Meus sais... - sussurrou ela, apertando a garganta. Harriet se levantou no mesmo instante,e saiu correndo da sala. Avery foi atrás.
- Está contente agora? - perguntou Samantha, inclinando-se sobre a tia para sentir-lhe o pulso. - O senhor não tem o direito de denegrir a nossa imagem dessa
maneira, lorde Ravensworth. Além disso, sua conduta no passado com relação à minha pessoa não lhe dá nenhum direito de agir como depositário dos princípios morais.
Pare com essa hipocrisia, por favor. - Samantha viu o brilho nos olhos do marquês e virou-se para acudir a tia. - Calma, tia Sophia. Não fique assim. Lorde Ravensworth
está exagerando. Harriette Wilson é uma mulher muito bondosa. A senhora a adoraria se tivesse a oportunidade de conhecê-la.
Aquilo foi demais para tia Sophia, que acabou por desmaiar. Ravensworth sentou-se segurando a cabeça entre as mãos, sem saber se ria ou se chorava.
Harriet voltou pouco depois com um pano embebido de vinagre, que colocou sob o nariz da tia. Esta logo voltou a si.
- É o sangue Grenfell - murmurou tia Sophia. - Eu deveria ter imaginado que não ficaríamos imunes nessa geração. Tal pai, tal filho; tal mãe, tal filha.
- Que sangue Grenfell?- perguntou Ravensworth, achando que a senhora havia perdido o juízo.
- As garotas estão infamadas - lamentou ela, como se não o tivesse ouvido. - Está no sangue, sabe? Eu adverti sua mãe, minha sobrinha - disse Sophia, dirigindo-se
a Harriet. - Eu lhe implorei para não se envolver com John Grenfell. Nós, os Woodward, sempre fomos muito circunspetos no que diz respeito à moral e aos bons costumes,
enquanto os Grenfell nunca se preocuparam com as convenções sociais. Quantos duelos ele travou! Como foi irresponsável... Mas sua mãe o quis mesmo assim. Agora,
olhe só o que aconteceu!
- Meu pai? - perguntou Harriet, chocada com a revelação da tia. - Eu não acredito. Ele sempre foi tão correto, tão cerimonioso. Não me diga que papai era
um... devasso?
- Bem, ultimamente não, é claro. Devo informá-la, porém, que a reputação dele não era das melhores antes de se casar com sua mãe. Isso foi há muito tempo,
Ah, Harriet, minha querida, está no seu sangue. - Ela inalou o pano com vinagre mais uma vez.
- O que eu lhe disse? - Avery cochichou para Ravensworth.
- E a mãe da srta. Langland? - perguntou o marquês com cautela.
- Ah, terrível aquela jovem! Eles eram conhecidos como Terríveis Grenfell. Jane Grenfell tinha um talento nato para travessuras. E como melhorar se o irmão
era ainda pior? Ele a estimulava a agir. Sinto em lhe dizer, Samantha, mas a sua mãe não foi recebida nas melhores salas da aristocracia. Não que se importasse.
Ela estalava os dedos para o mundo e continuava sua vida.
A notícia escandalizou Samantha.
- Está dizendo, tia Sophia, que minha mãe era uma libertina?
- Não como você imagina. Claro que não! Mas... Bem... Como posso colocar? Ela era uma moça muito teimosa, inclinada a aprontar. Até o dia em que Jane se
comprometeu e teve de se casar com seu pai.
- Meu pai? - perguntou ela, olhando para Harriet. As duas se aproximaram, buscando o conforto uma da outra.
- Eu nunca consegui entender - prosseguiu tia Sophia. - O comportamento de Graeme Langland sempre foi dos mais impecáveis. Era um cavalheiro em todos os
sentidos da palavra. Mas ele se comprometeu com sua mãe. Então o irmão de Jane, sir John, obrigou-o a se casar com ela. Claro, naquela época sir John já havia se
casado e se tomado um homem respeitável.
- Mas... mas a mamãe sempre foi tão correta, tão digna.
- Eu concordo, minha querida. Isso foi nos últimos anos. Ela e sir John eram o assunto da cidade. Quando se casaram, todos comentaram a "domesticação" dos
irmãos Grenfell. Você sabe, o casamento pode corrigir até o pior caráter.
Ravensworth suprimiu uma risada e olhou para Samantha, que ostentava um brilho de especulação em seus olhos.
- Encontrei a solução! - exclamou tia Sophia em um momento de repentina inspiração. Todos a olharam com grande interesse.
De repente, a cor voltou-lhe às bochechas.
- É claro! Vocês não enxergam? - Ela endireitou-se na poltrona. - As garotas precisam se casar o mais depressa possível! Sir John cuidará de tudo. Elas devem
partir imediatamente para Bath. Amanhã cedo! Nós chamaremos seu irmão, Samantha, para que ele as acompanhe. Eu, é claro, ficarei em Londres. Sou muito velha para
viajar e realmente não suportarei uma reprimenda do meu sobrinho. De certa forma - acrescentou tia Sophia -, eu preferia seu pai como era antes.
- Um momento, por favor - interferiu Ravensworth. - Não há necessidade de convocar o jovem Vernon. Ele é muito inexperiente para essa tarefa. Permita-me
que eu lhe ofereça meus serviços, madame. E lorde Avery irá comigo. - Ele sorriu para Samantha. - Colocarei a minha carruagem à disposição de vocês. Nós acompanharemos
as jovens e, com a presença de uma dama de companhia, acredito que cumpriremos as convenções sociais.
- Case-nos o mais depressa possível. Levem-nos a Bath como se fôssemos criminosas. Não quero saber de nada disso! Nós não somos suas pupilas, milorde - disse
Samantha entre os dentes cerrados. - Harriet, diga isso a ele.
- Samantha, por que a irritação? No instante em que você entrou no camarote de Harriette Wilson, eu soube qual seria o nosso destino - respondeu a prima,
sem a menor disposição para lutar.
- Chega! - ordenou uma tia Sophia austera. - Está decidido! Agradeço a sua generosa oferta, lorde Ravensworth, e aceito-a. Vamos marcar a partida para as
dez da manhã?
- Não, acho melhor às oito. Às dez horas, todos os devassos da cidade estarão batendo na sua porta. - Ele sorriu com malícia. - Apenas uma mala, minhas jovens.
Mesmo que isso signifique que as senhoritas tenham de se casar com seus futuros maridos durante a viagem.
Samantha o olhou com desdém. Sem se abalar e com sua habitual arrogância, o marquês ergueu o queixo.

Samantha abriu a porta de quarto de Harriet e entrou.
- Eu vi a luz acesa e decidi vir até aqui - disse ela. Harriet estava sentada na beira da cama penteando os cachos dourados. Quando viu a prima, deixou a
escova de lado.
- Samantha, eu prometi à mamãe que tomaria conta de você. Não posso lhe dizer quanto estou aborrecida por ter fracassado. - Não havia mais lágrimas para
chorar, mas Harriet assoou o nariz no lenço que segurava.
- Harriet! Harriet! Pare com isso, por favor! Eu pareço precisar de uma babá? Você não falhou comigo, prima. - Ela balançou a cabeça. - Você não achou que
eu fosse me adaptar aos costumes absurdos do seu beau monde, achou? Por favor, diga-me que não.
Harriet ergueu o rosto e fitou a prima.
- Se você for banida da sociedade, se as pessoas não quiserem recebê-la, eu estarei arruinada.
- Pare de falar besteiras! Eu sou herdeira dê uma fortuna considerável. Daqui a um ano atingirei a maioridade e poderei fazer o que bem entender. Não pense
que tenho a intenção de me casar com um dos jovens fúteis que me foram apresentados e perder o controle da minha fortuna.
Harriet parou de chorar de repente e olhou, incrédula, para a prima.
- Você realmente não se importa?
- Claro que não - respondeu Samantha com sinceridade. - Eu só me incomodo em saber que lhe causei tanta dor. Harriet, você pretende entrar para a sociedade,
e eu posso ter estragado seus planos. Seja sincera, eu arruinei a sua vida? Eu denegri a sua reputação?
- Reputação? Eu não me importo com o que a sociedade pensa de mim!
- Então por que a tristeza? É por minha causa? Você ainda não percebeu que temos as mesmas idéias? Por que deseja para mim o que eu tanto desprezo?
- Samantha - sussurrou Harriet, suprimindo um sorriso -, você acha que está no nosso sangue?
- Pode ser. Mas eu sou assim por convicção, e não apenas por laços de sangue.
- Os Terríveis Grenfell - disse Harriet, lembrando-se das palavras da tia.
- As primas encrenqueiras!
- As solteiras arruaceiras!
- As damas lamentáveis!
- As mulheres geniosas!
- Harriet, você acha que agora podemos cheirar rapé quando estivermos sozinhas? - perguntou Samantha assim que recuperou o fôlego.
Sem nenhuma palavra, Hamet pegou a caixa de rapé de sua penteadeira e entregou-a à prima.
- Aceita um pouco? - ofereceu Samantha.
As duas se divertiram sem parar durante quase uma hora. Samantha ficou contente por Harriet ter recuperado um pouco da alegria habitual. Quando mencionaram
a arrumação das malas para a viagem da manhã seguinte, todavia, o comportamento das duas tomou-se mais sério.
- Eu não gostaria de me encontrar com mamãe e papai.
- O que eles podem fazer conosco? Nós não fizemos nada de errado - declarou Samantha.
- Não, eles não podem fazer nada! - concordou Harriet, apegando-se ao pensamento.
- Nós temos uma à outra, e a companhia de lorde Avery será de algum consolo.
- E lorde Ravensworth? - perguntou Harriet, estudando a prima com atenção.
- Teremos de suportá-lo. Eu não admitirei que ele tente mandar em mim. Nós vamos para Bath. Será uma grande aventura, Harriet, e aproveitaremos cada segundo.
Harriet piscou. Depois de um momento de reflexão, ela assentiu.
- Você tem razão, Samantha, como sempre. Nós não fizemos nada de errado e não precisamos nos envergonhar. Eu não me inclinarei diante de um bando de fofoqueiros.
Vamos enfrentar juntas esse problema.
- A propósito, Harriet - disse Samantha levantando-se para sair do quarto da prima -, você vai levar a sua caixa de rapé, não vai? Eu ainda não tive tempo
de comprar uma para mim.
Harriet sorriu.
- Pode confiar em mim.


Capítulo XI

Quando Samantha e Haniet desceram para o jantar, o marquês informou-as de que estavam hospedados na melhor estalagem da aldeia. Verdade fosse dita, pensou
Samantha, era a única do local. Se é que podiam considerar aquele estabelecimento uma estalagem. Enquanto viajantes mais afortunados descansavam seus corpos em camas
macias do Hotel Castelo, Ravensworth havia preferido se alojar naquela pequena hospedaria pitoresca, em um povoado localizado a vinte quilômetros de Marlborough.
Agira assim em nome da reputação das jovens, pois temia encontrar alguém conhecido pelo caminho e piorar ainda mais a reputação delas.
A porta da sala privada se abriu e Ravensworth entrou.
- Está sozinha, srta. Langland? - perguntou ele olhando à sua volta. - Onde estão seus companheiros?
Samantha, com o toque certo de cortesia, mas pouco calor na voz, explicou que a prima e lorde Avery tinham saído para dar um passeio no pátio.
- Lorde Avery achou que o humor de Harriet melhoraria um pouco com um passeio depois da viagem tediosa na carruagem fechada. Ela parecia aborrecida.
Ravensworth digeriu aquela informação em silêncio por um instante, então caminhou até a lareira. Estendeu as mãos e esfregou-as. Samantha voltou a atenção
para o jornal em seu colo.
- Eu não preciso perguntar se está aborrecida, srta. Langland. - O tom de voz de Ravensworth era amável. - Pelo visto, não se aborrece com facilidade.
Samantha notou a repreensão por trás das palavras dele.
- É verdade, milorde.
O marquês sentou-se na poltrona em frente a Samantha e recostou-se contra as almofadas. Em seguida tirou uma caixa prateada do bolso e abriu-a com elegância.
Um brilho se acendeu nos olhos dela.
- Não seja tola a ponto de achar que vou convidá-la para cheirar rapé comigo. Espero que não se incomode se eu cheirar.
Samantha deu de ombros, indicando que ele poderia fazer o que bem entendesse. Mais uma vez, ela baixou os olhos para o jornal. Alguns instantes depois, Ravensworth
quebrou o silêncio de novo:
- Srta. Langland... Samantha, posso lhe fazer uma pergunta? Ela o olhou com curiosidade e esperou.
- Estou realmente interessado na sua versão dos acontecimentos. Duvido que a situação atual a esteja deixando contente. Mesmo assim, você está aqui, sossegada,
lendo as notícias de ontem como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo. Não se arrepende de haver se metido em um apuro tão grande e de ter levado sua prima
junto?
Um pouco mais treinada, Samantha lançou-lhe um olhar de indiferença.
- Eu não vejo mal nenhum em qualquer uma das minhas ações, milorde. Se a minha consciência estivesse pesando, seria um assunto completamente diferente. Nesse
caso, eu não ficaria em paz enquanto não colocasse tudo em sua devida ordem. Mas não pense que me verá cabisbaixa por uma pequena transgressão das convenções da
sociedade. Seria um absurdo sem tamanho.
Ravensworth grunhiu e sentiu a bile subir em sua garganta.
- Você não tem idéia do que é correto? Sua conduta não é nem um pouco adequada para uma jovem de berço e bem-educada. Para ser direto, Samantha, você desgraçou
a sua vida.
- Discordo! - Ela irritou-se e jogou o jornal no chão. - Desgraça? Não acha que é uma palavra forte demais? O que eu fiz de errado? Denegri o meu nome perante
uma classe social que desprezo? Agi errado ao conversar com uma mulher que foi tão amável comigo em um momento de apuro? Admito que eu fui descuidada ao abordar
a srta. Wilson na ópera, mas foi por pura ignorância, e não por malícia. - Sua voz vibrava com desdém. - Vivemos em um mundo distorcido em que uma jovem é condenada
por não fazer nada além de seu dever, enquanto um homem que se julga honrado pode fazer uma proposta absurda a uma moça de respeito...
- Acalme-se, Samantha - interrompeu-a Ravensworth. - Já faz um tempo que eu gostaria de conversar sobre a proposta que lhe fiz.
- Como ser atreve?! - ela gritou, levantando-se.
- Quer que eu reitere a minha proposta? - perguntou ele, confuso.
Samantha notou que o marquês zombava dela, ridicularizando-a.
- O senhor sabe perfeitamente que não. Eu achei que tivesse deixado bastante clara a minha posição a esse respeito. Seu modo de vida e sua conduta não se
coadunam com os meus princípios. - Os lábios de Samantha se curvaram em um sorriso. - Para ser mais específica, milorde, o homem a quem me entregarei não será da
sua espécie.
A última frase deixou Ravensworth furioso. Levantou-se de repente e deu um passo ameaçador na direção dela. Samantha foi indo para trás até suas mãos trêmulas
encontrarem a cômoda contra a parede.
Ele chegou sem pressa e, com negligência afetada, colocou as mãos ao lado do corpo de Samantha. A expressão de Ravensworth era impassível, porém ela acreditava
que mascarava alguma emoção mais profunda. Samantha sentiu o suave aroma da colônia masculina e virou a cabeça de lado para se afastar do perfume perturbador. A
proximidade dele era intimidante, e Samantha sentiu as faces enrubescerem. Então entreabriu os lábios para respirar melhor.
- Touché- murmurou Ravensworth sem a menor emoção. - Esse último comentário foi feito com a intenção de magoar, não é? Agora que atingiu seu objetivo, por
que se render? Continue, por favor. Você não se entregará a um homem da minha espécie. Foi aí que parou.
Os olhos de Samantha se dirigiram rapidamente à porta e, com certo sentimento de relutância, ela imaginou se deveria tentar escapar. A voz de Ravensworth,
tão próxima de seu ouvido, advertiu-a contra a tentativa:
- Nem pense nisso! - Ele pegou-lhe o queixo e forçou-a a olhar para cima. - Fale-me sobre um homem da minha espécie, Samantha. Eu quero ouvir.
Ela seria honesta, mesmo que Ravensworth ficasse possesso.
- O senhor não é coerente. O senhor me recrimina por haver desrespeitado as regras da sociedade, porém achou justo me pedir para ser sua amante. Em momento
algum se preocupou com a minha felicidade, Não pensou na paz de espírito da minha família. Pensou apenas na sua realização pessoal. O homem com quem eu me casar
será...
- O homem com quem eu me casar - o marquês a imitou, interrompendo-a. - Escute aqui, srta. Samantha Langland. O homem com quem você se casar serei eu ou
nenhum outro. - O tom dele ficou mais suave: - Você não entende nada, sua tola? - Ravensworth inclinou o rosto, estudando cada detalhe da feição dela. - Samantha?
- murmurou, como se pedisse permissão para fazer algo.
Embora não tivesse medo do marquês, ela reconheceu que Ravensworth transmitia certa ameaça e que, se fizessem amor, não haveria como voltar atrás. Estaria
perdida para sempre. Os lábios do marquês tocaram-lhe os olhos, e a força de vontade de Samantha arrefeceu. Seu coração disparou assim que começou a sentir um formigamento
espalhando-se por seu estômago. Ela observou os sintomas como se estivesse fora da cena, como se fosse um médico analisando os indícios de uma doença em um paciente.
- Samantha? - A voz dele foi ligeiramente persuasiva, e despertou algo profundo em seu ser. Ela inclinou o rosto para convidá-lo a beijá-la. Braços fortes
a envolveram e Ravensworth tomou-lhe os lábios com um carinho encantador. Sem pensar, Samantha encaixou o corpo no dele. Beijar Hugh Montgomery, pensou ela, era
o prazer mais esplêndido que já tinha vivenciado em toda sua existência.
Com certa relutância, Ravensworth se afastou de Samantha, decepcionando-a.
- Diga-me em que você está pensando! - ordenou ele, devorando-a com o olhar.
- Estou pensando que adoro beijá-lo. É uma sensação maravilhosa.
- Melhor do que cheirar rapé? - provocou o marquês.
- Quando eu cheiro rapé, só o meu nariz formiga. Quando você me beija, o formigamento se transforma em um verdadeiro tremor.
A resposta pareceu agradar bastante a Ravensworth. Ele inclinou-se para beijá-la novamente, e Samantha sentiu a sensação em seu corpo transformar-se em um
desejo insaciável.
- Agora diga-me em que está pensando.
- Eu quero mais... - respondeu ela.
- Mais o quê? - perguntou o marquês contra os cabelos sedosos.
Samantha tentou ordenar seus pensamentos. Não sabia ao certo se era aquilo que queria. Mas uma certeza tinha: Ravensworth lhe causava sensações que a deixavam
zonza.
- Eu não sei... Mais do que você tem a me oferecer - respondeu ela, afagando os cabelos negros.
- Minha querida... Eu quero você por inteiro. Samantha podia ouvir o coração dele batendo forte, tanto quanto o seu. Havia uma nova urgência, uma fome naqueles
lábios que a beijavam. Uma excitação selvagem a invadiu. Ravensworth sentiu a resposta dela, e suas carícias se tomaram mais ardentes, mais possessivas, impelindo-a
a render-se com abandono. De repente, Samantha ficou confusa e o afastou.
- Diga-me em que você está pensando - pediu ela, quase sem fôlego, tentando ler a expressão nos olhos brilhantes que a fitavam com tanto ardor.
- Eu estou pensando, minha linda jovem, que vou enlouquecer se não fizer amor com você.
O vermelho tomou conta das faces de Samantha, que não soube como responder.
- Samantha, espere um instante - disse Ravensworth, vendo a confusão nos olhos dela. - Eu não tenho a menor intenção de desonrá-la. Você precisa saber quais
são as minhas intenções para o nosso futuro.
Lágrimas ameaçavam cair dos olhos de Samantha, que se desvencilhou do abraço do marquês.
- Por favor, não diga mais nada. Não quero ouvir mais uma de suas propostas. - Ela deu uma risada trêmula. - Sei que tipo de homem você é. A culpa foi minha,
por haver permitido tais liberdades. Que loucura! Não estou me reconhecendo.
Samantha balançou a cabeça, na intenção de voltar ao normal. - Na minha vida não existe lugar para um homem com o seu caráter. Nós dois somos como água e
óleo. Saia de perto de mim!
- Samantha, por favor, me ouça. Eu lhe peço perdão... O som de passos subindo a escada o interrompeu.
- Inferno! - resmungou ele, seguindo para perto da lareira e recompondo-se.
Harriet entrou na sala naquele instante, alegre e com uma excelente aparência. O passeio fora um ótimo remédio para a falta de ânimo da jovem. Avery entrou
pouco depois.
Ela pegou o jornal do chão e sentou-se na poltrona perto da lareira. Então fingiu concentrar-se na leitura. O visconde sorriu para os outros dois.
O jantar, muito melhor do que o esperado em um ambiente como aquele, foi uma refeição bastante silenciosa. Com grande alívio, as damas pediram licença e
deixaram os cavalheiros na companhia da melhor garrafa de conhaque que a casa tinha a oferecer para os hóspedes.
Quando ficaram a sós, Avery encarou o amigo.
- E então? - perguntou Ravensworth.
- Uma verdadeira catástrofe.
- Ela recusou?
- Ah, não, ela aceitou. - Avery estava feliz da vida. - Vamos ver o que acontece de agora em diante.
- O que houve de errado?
O visconde ficou sério e baixou os olhos por um momento. Depois ergueu-os para o amigo.
- Algo que eu disse levou Harriet a crer que culpo Samantha pela situação em que as duas se encontram. Isso não faz o menor sentido.
- Mas a culpa é dela! - exclamou o marquês, sem pestanejar. Ele deu um longo gole em seu conhaque. - Não pense que me ofende em dizer o que se passa pela
cabeça de Samantha. Ela não tem a menor noção de como agir perante a sociedade. Tal mãe, tal filha. Disso não tenho a menor dúvida. O pai deveria ter sido mais enérgico
com essa jovem.
- Pelo que me consta, o pai dela sempre foi muito rigoroso, mas nunca bateu na filha.
- Esse é um assunto que pretendo resolver bem depressa - ameaçou Ravensworth. Ele encheu o cálice e o esvaziou no mesmo instante.
- Você ainda pretende tê-la? - perguntou*Avery, estudando o anel de diamantes em seu dedo.
- Se eu conseguir convencê-la, sim.
- Você sabe que essa jovem transformará a sua vida em um verdadeiro inferno.
- Eu saberei lidar com ela. Se estabelecermos nossa residência na África, tenho certeza de que Samantha se entenderá muito bem com a sociedade.
Lorde Avery sorriu.
- Harriet não vai gostar da idéia. Ela adora a prima. Se me permite, meu amigo, eu não acho que Samantha seja uma boa companhia para Harriet.
- Eu concordo com você, Avery. Samantha não é uma boa companhia para ninguém. Ela cria confusão por todos os lugares que passa. Olhe para mim. Até conhecê-la,
eu era um sujeito razoável, não é? Você me via mal-humorado com freqüência? Eu não tinha a menor preocupação com o mundo. - Ravensworth foi envolvido pela nostalgia
ao lembrar-se dos dias alegres de sua juventude. - A vida era tão simples naquela época... Eu adorava sair com as mais belas mulheres, mesmo as de reputação duvidosa.
Meu erro foi ter me encantado com uma jovem cheia de virtudes. Tome cuidado, caro visconde, para não cair na mesma cilada que eu. Essa moça me envolveu de tal maneira
que eu não sei mais discernir o certo do errado.
- Vamos beber, então - disse Avery, erguendo o copo.
Duas garrafas de conhaque mais tarde, os dois cavalheiros se ajudavam mutuamente a subir as escadas, que juravam terem se tomado mais longas. Eles caíram
na cama vestidos, sem se importar em tirar as botas cheias de lama. Denby, pensou Ravensworth em um momento de lucidez, por sorte não esta\ a presente para testemunhar
a desgraça do patrão.


Capítulo XII

Amanhã seguinte nasceu cinza e ameaçadora. Um dia para passar na cama, como dissera o dono da hospedaria ao entregar às damas um bilhete com a letra de Ravensworth.
O papel as informava que eles não se juntariam a elas antes do meio-dia, pois queriam aproveitar as horas para descansar.
As primas não acreditaram. Elas tinham acordado durante a noite com o barulho dos dois subindo as escadas e dirigindo-se, cambaleantes, para seus quartos.
O fato de ambos estarem sofrendo dos efeitos da bebedeira da noite anterior trouxe um sorriso de satisfação aos lábios das jovens, pois Ravensworth e Avery não haviam
permitido que elas colocassem uma única gota de álcool na boca.
- Justiça divina! - comentou Samantha, terminando de ler o bilhete. Ravensworth adicionara uma advertência nos termos mais diretos possíveis, ordenando que
permanecessem longe dos olhares do público até que chegasse a hora de continuarem a viagem. A dama de companhia deveria acompanhá-las em todos os momentos. Entretanto
isso não seria possível, pois Alice havia acordado com febre alta e não conseguira se levantar da cama.
Quando terminaram de tomar o café da manhã, elas voltaram para o quarto, onde Alice se virava de um lado para outro na pequena cama que fora acrescentada
ali. Como era de esperar, os lordes Ravensworth e Avery tinham cada um seu próprio quarto.
Samantha viu que a garota sofria demais e insistiu para que ela se mudasse para a sua cama, bem maior. Harriet ficou ao lado de Alice, enquanto Samantha
foi atrás do proprietário para pedir um pouco de mingau e chá quente para a doente. O fato de ter de desobedecer à ordem de Ravensworth de ficar longe dos outros
hóspedes a incomodou um pouco, mas ela faria tudo que estivesse ao seu alcance para aliviar o sofrimento de Alice.
Durante a maior parte da manhã, as duas se revezaram cuidando da criada. Uma chuva torrencial começou a cair, impedindo-as de sair para um passeio no pátio
a fim de tomarem um pouco de ar. Quando Alice adormeceu, Samantha decidiu lavar o cabelo e deixou-o solto. Por algum motivo, Ravensworth não aprovava seu cabelo
solto e, para não criar polêmica, ela o usava trançado e preso em um coque na nuca.
No final da tarde, e ainda sem nenhuma notícia dos cavalheiros, Samantha notou que o estado de saúde de Alice tinha piorado bastante e que precisariam chamar
um médico. Não seria um assunto tão simples de resolver como em circunstâncias normais, pois a chuva, que não demonstrava o menor indício de diminuir, tomara as
estradas intransitáveis. A estalagem, por sua vez, estava repleta de pessoas procurando um lugar para passar a noite antes que fossem obrigados a dormir em algum
ponto deserto da estrada. Na ausência de Ravensworth e Avery, Samantha decidiu ir atrás do cocheiro e instruí-lo para encontrar um médico.
Ela ficou parada no corredor escutando as vozes e risadas vindas do salão comunitário. A julgar pelas frases que chegavam a seus ouvidos, era evidente que
havia um bando de homens reunidos no estabelecimento, preparando-se para uma grande folia. Não havia nenhum lacaio à vista para chamar o cocheiro. Tinha sido muito
injusto da parte de Ravensworth, pensou ela, sentindo sua fúria aumentar, deixá-las em um apuro como esse.
Decidida, Samantha foi até o quarto dele e bateu na porta.
- Ravensworth! - chamou ela, o mais alto que conseguiu. - Ravensworth! Acorde! Preciso falar com você! - Nada aconteceu. Samantha tentou abrir a porta. E
conseguiu. - Ravensworth. Levante-se, por favor. Precisamos de um médico para Alice. Se você não sair da cama, eu mesma vou atrás de um.
O marquês se mexeu em meio aos lençóis. Então abriu os olhos.
- Saia daqui! - disse ele em um fio de voz. - Não percebe que não tenho condições de ajudá-la? Estou à beira da morte. Faça o que bem entender.
A ira de Samantha chegou a fervilhar em suas veias. Ela bateu a porta e desceu as escadas. Seu cabelo esvoaçava em todas as direções. Quando encontrou o
proprietário na cozinha, pediu-lhe que chamasse o cocheiro do marquês de Ravensworth e o enviasse o mais depressa possível para a sala de estar particular que fora
reservada para o grupo. O homem não a reconheceu e arregalou os olhos diante da cascata de cachos dourados, dos olhos reluzentes, da boca voluptuosa. A quem pertenceria
aquela deusa?, imaginou ele, estupefato.
Samantha saiu da cozinha com dignidade e começou a acreditar que os temores de Ravensworth a respeito de uma jovem sair sem a dama de companhia eram infundados.
Enganou-se, porém.
Quando chegou ao primeiro andar, um cavalheiro interpôs-se em seu caminho, impedindo-a de prosseguir. Ele inclinou-se no batente da porta e ajeitou a gravata.
Samantha hesitou, mas ao notar que o interesse do cavalheiro não se dirigia à sua pessoa, tentou passar ao lado do homem, cabisbaixa.
- Com licença - ela murmurou.
- Srta. Langland? - indagou o desconhecido. - Samantha Langland, não é?
Ela franziu as sobrancelhas, tentando se lembrar de onde o conhecia. O que viu nos olhos dele a deixou desconfortável.
- Eu não o conheço, senhor.
- Eu ficaria contente em retificar essa omissão. Nós temos uma conhecida em comum.
- Quem seria? - perguntou Samantha, sentindo o nervosismo chegar.
O cavalheiro abriu um sorriso.
- A srta. Harriette Wilson. Eu estava no camarote dela no dia em que você foi até lá. Harriette não nos apresentou, o que foi uma pena. Eu sou Reginald Overton,
conde de Grafton, seu criado. - A voz dele era acariciante.
- A srta. Wilson me ajudou muito em um momento de grande dificuldade - explicou Samantha, tentando passar por ele. Havia algo de ousado na maneira como o
sujeito a encarava.
O cavalheiro se aproximou e Samantha sentiu a respiração dele em suas faces.
- Você é uma linda jovem - disse o conde, afagando-lhe o cabelo. Samantha se afastou, mas ele a tomou nos braços.
Ela ficou tão surpresa com a ousadia daquele homem que não fez nada para resistir. Quando os lábios dele encostaram-se nos seus, entretanto, Samantha o empurrou
para trás. Grafton abriu um sorriso e tentou fazer com que ela entrasse em seu quarto. O pavor tomou conta de Samantha, dando-lhe forças para lutar contra aquele
homem. Mordeu-lhe os lábios quando ele tentou beijá-la novamente. Grafton se afastou, e ela aproveitou o momento para subir o pequeno lance de escadas.
Samantha não hesitou nem por um instante. Sabia onde estaria a salvo e foi para lá que se dirigiu. Passou pela porta de seu quarto e pela do de Avery, seguindo
direto para os aposentos de Ravensworth. Grafton vinha logo atrás. Tentando recuperar o fôlego, ela abriu a porta do quarto e jogou-se nos braços do marquês.
Ravensworth não sabia o que estava acontecendo. Depois que Samantha saíra de seu aposento, as palavras dela entraram em sua consciência, trazendo-o de volta
ao mundo dos sóbrios. Ele tinha saído da cama e abotoava a camisa quando ela entrou esbaforida. Braços fortes a envolveram. Ao olhar para a porta, Ravensworth viu
o conde parado à porta.
- Eu não sabia que você estava com Ravensworth - comentou Grafton com certa malícia. - Quem sabe não podemos chegar a um acordo. Claro, com o consentimento
dele.
Samantha não captou a mensagem escondida por trás das palavras do conde, mas Ravensworth entendeu perfeitamente. Ele afastou Samantha de seus braços e caminhou
até a porta. Ela ouviu o barulho, porém não viu o que aconteceu. O marquês estava em cima do conde de Grafton.
- Se ousar encostar um dedo na jovem, eu mato você - disse Ravensworth com um tom de voz bastante calmo. - Vamos resolver esse assunto com um duelo, se preciso
for.
Mal-humorado, o conde sentou-se no chão e massageou o queixo, que havia sido atingido.
- Como eu poderia saber que a dama está sob a sua proteção?
- Ravensworth - chamou Samantha, começando a compreender o que se passava ali. - Lorde Grafton me viu na companhia de Harriette Wilson. Se lhe explicarmos
o que aconteceu...
- Quieta, Samantha!
Poucos instantes depois, Grafton se levantou.
- Você deve ura pedido de desculpas à jovem - sugeriu Ravensworth, mascarando uma ameaça.
- Ravensworth - interferiu Samantha -, explique a nossa situação ao conde de Grafton.
- Explicar o quê, meu amor? - perguntou Ravensworth, olhando-a com uma expressão vazia. Ela estranhou, mas preferiu ignorar.
- Diga-lhe que a minha dama de companhia está viajando conosco, que não há nada de errado na nossa conduta.
- Você ouviu a jovem - disse Ravensworth.
- Eu lhe peço desculpas, srta. Langland, por meu comportamento ousado. Enganei-me em relação à situação. - Ele deu um passo para trás. - Perdoe-me pela intromissão,
Ravensworth. Foi um erro de julgamento mais do que natural, se é que você me entende.
Ravensworth ficou calado. Samantha se irritou com as insinuações na conversa e decidiu agir.
- Lorde Grafton, por favor, escute-me. Nós não estamos viajando sozinhos. Minhas acompanhantes estão...
- Basta, Samantha!
Quando Grafton saiu, o marquês fechou a porta de seu quarto.
- E então, madame, espero que tenha um excelente motivo para me explicar esse pequeno incidente.
Pela primeira vez, Samantha percebeu que Ravensworth usava apenas calça e camisa, esta aberta até o meio do peito. Ela sentiu uma grande urgência de tocá-lo.
Encontrava-se sozinha com um homem no quarto. Deveria estar apavorada, pois era quase a mesma situação que vivenciara com o conde de Grafton.
- Ele a beijou e você o mordeu - comentou Ravensworth, tendo notado o sangue na boca de Grafton.
- Ele me molestou! Foi deprimente! - defendeu-se Samantha.
O marquês franziu a sobrancelha.
- Você não sentiu formigamentos? Perguntou ele, enquanto continuava a se vestir.
- De forma alguma. Senti apenas nojo lembrando-se da boca grudada na sua.
- Imagino que você saiba o que isso significa marquês, dando o nó na gravata.
- O quê? - indagou Samantha, realmente curiosa.
- Samantha, algumas vezes você me decepciona. Conte-me como tudo aconteceu.
Ela relatou os fatos exatamente como haviam ocorrido, imaginando desencadear a raiva de Ravensworth.
- Espero que tenha aprendido a lição, minha jovem. - Ele parecia não se importar com o apuro pelo qual Samantha passara nas mãos do conde de Grafton. - Uma
mulher sempre deve estar sob a proteção de um homem. Um homem que saiba cuidar dela. Se o mundo soubesse que você pertence a mim, nada disso teria acontecido.
Samantha se desapontou. Talvez Ravensworth acreditasse que, em algum momento de insanidade, ela aceitaria sua proposta indecente. Faria questão de deixar
bem claro que não havia chance alguma de isso acontecer.
Samantha se endireitou antes de começar seu discurso.
- Nesse caso, a única solução que vejo é o casamento - disse ela com uma nota de amargura na voz. - Vou encontrar um jovem quacre que tenha as mesmas convicções
que eu. Um homem que me respeite e que me faça feliz. Sim, um marido quacre seria perfeito. Eu desfrutaria uma liberdade que é negada à maioria das mulheres.
- Não pense que existe um homem sobre a face da Terra que permita que a esposa desafie sua autoridade - respondeu o marquês. - Pode ser quacre, hindu, o
que for.
Samantha irritou-se com o ar de superioridade masculina.
- Você não sabe nada sobre os quacres.
- E você não sabe nada sobre os homens. Além do mais, eu já lhe disse qual é o seu destino. É melhor ir se acostumando à idéia.
Ele sorriu com certa maldade.
Samantha cerrou os dentes. Ravensworth fingiu não notar. Então deu o braço para ela.
- Vamos ver por onde andam nossos companheiros?
Do outro lado da porta, o casal deparou-se com Harriet e Avery vindo de direções opostas. Como era de esperar, eles perceberam que os dois haviam saído do
quarto do marquês. Avery baixou a cabeça. Harriet arregalou os olhos e balbuciou, um cumprimento.
- Harriet - começou Samantha, nervosa, tentando corrigir j a impressão errônea da prima -, havia um homem odioso me perseguindo. Ele me confundiu com...
com uma amiga íntima de Harriette Wilson. - A voz dela tomou-se mais ofegante à medida que tentava explicar a complexa história a Harriet. - Eu corri para o quarto
de Ravensworth em busca de proteção. O sujeito me beijou e queria me levar para o seu quarto, mas eu o mordi.
- Samantha não está se referindo a mim - interveio o marquês com um brilho nos olhos. - Ela entrou nos meus aposentos sem ser convidada.
- Claro, eu precisava de ajuda.
- Isso explica tudo - disse Ravensworth, severo. - Agora, vamos cuidar do assunto que precipitou toda essa aventura. Pelo que me consta, era algum problema
com Alice.
Algo dizia a Samantha que Ravensworth estava se divertindo com seu apuro. Algumas palavras bem escolhidas por parte dele teriam explicado seu comportamento
estranho, mas cada sentença proferida pelo marquês dava a impressão de que ela inventara o mítico cavalheiro que a beijara com tanto ardor. Logo Samantha desistiu
de explicar sua presença no quarto de Ravensworth, pois sabia ter agido errado ao ficar ali assim que o conde de Grafton se retirara.
Harriet a informou que ela e Avery a tinham procurado por alguns minutos, e que haviam passado pela porta fechada do quarto do marquês mais de uma vez. Sem
saber o que dizer, Samantha olhou para Ravensworth pedindo ajuda, mas ele se manteve calado, deixando-a cuidar sozinha do problema.
Durante o restante do dia, Samantha ficou lendo Razão e Sensibilidade, decidida a não causar mais complicações em sua vida. Ravensworth, por sua vez, não
podia estar com um humor melhor.
A febre de Alice era tão alta que o médico sugeriu que permanecessem na hospedaria por mais um dia. Ela correria risco de morte se saísse com aquele tempo
horroroso.
Uma viagem que demoraria dois dias para se realizar em circunstâncias normais estendeu-se para quatro.


Capítulo XIII

Apesar das palavras corajosas de Samantha e Harriet de que iriam encarar a estada em Bath como uma grande aventura, a proximidade cada vez maior dos pais
e tios as assustava. Quando a carruagem começou a lenta descida em direção ao centro da cidade, a conversa entre as duas parou. Os homens, que haviam ficado calados
durante a maior parte do percurso, estavam ocupados em ajudar o condutor a controlar os nervosos animais.
- A bela cidade de Bath é o sonho de um andarilho, mas um pesadelo até para o mais capaz dos condutores - disse o marquês, na janela da carruagem.
Bath era muito bonita, pensou Samantha. Entretanto a conversa com sir John, que aconteceria dentro em breve e seria bastante tumultuada, roubou, às duas
jovens, grande parte do prazer de observarem a beleza clássica da cidade. Apesar do temor com o que eslava por vir, ambas se impressionaram com o esplendor das construções
cheias de vidros.
A irmã de Harriet, Fanny, e seu marido, o reverendo Edward Damell, moravam em Laura Place, do outro lado da ponte Pulteney, em uma parte mais nova da cidade.
A carruagem parou perto de uma série de residências altas e imponentes que terminavam na rua Pulteney, o principal acesso para Sydney Gardens. Samantha protegeu
os olhos do sol e olhou para o jardim cercado, onde se realizavam piqueniques, concertos e queimas de fogos. Fazia parte da diversão dos moradores mais antigos de
Bath. Antes de Samantha ter tempo de organizar seus pensamentos, a porta da frente se abriu e sir John desceu os degraus da pequena escada para receber os visitantes.
- Nós estamos esperando vocês há dois dias - comentou ele, em tom ameaçador.
Samantha e Harriet se entreolharam sem saber como agir. Não era uma notícia das mais agradáveis, pois sir John não tinha como saber que eles estavam a caminho.
Tia Sophia preferira não avisá-los da chegada do grupo.
- Deixe a bagagem para os criados - ordenou ele, como se as moças estivessem tentando retardar o que as aguardava.
- Lorde Ravensworth, eu gostaria de dar uma palavra em particular com o senhor.
O marquês sorriu para o cavalheiro irado à sua frente.
- Entendo perfeitamente, sir John. Eu também preciso lhe falar em particular. Mas espero que não se incomode se Avery e eu sairmos antes para procurar um
lugar para passar a noite. O Hotel York, pelo que me lembro, é muito confortável e agradável.
- Há um hotel no final da rua Pulteney - disse sir John. - Os senhores encontrarão um quarto depois de ouvirem o que tenho a lhes dizer.
Samantha olhou de soslaio para o tio. Não lhe pareceu justo ele descontar sua raiva no marquês, pois, afinal de contas, Ravensworth interrompera seus afazeres
para acompanhá-las na viagem desde Londres.
- Mas... tio John... - começou ela.
- Silêncio!
Um certo aborrecimento incomodou Ravensworth.
- Imagino que esteja se referindo ao Hotel Sydney - disse ele. - Não duvido que haja quartos à disposição, mas eu prefiro ficar em um lugar mais afastado.
- As palavras foram educadas, porém a postura de Ravensworth era das mais aristocráticas. O olhar de sir John não se desviou do rosto do marquês. Alguns instantes
depois, ele pareceu ter chegado a uma decisão.
- Sinto muito pela indelicadeza. Não quis ofendê-lo. Gostaria de convidá-los para jantar conosco esta noite.
A tensão pareceu sumir do semblante do marquês, e Samantha suspirou aliviada.
- Será um prazer - respondeu Ravensworth. - Seria uma tolice encetar longas explicações antes que todas as partes envolvidas descansassem um pouco, não acha?
Os dois cavalheiros trocaram um olhar, e Samantha sentiu que uma mensagem secreta havia passado entre ambos. Então olhou para Harriet a fim de confirmar
suas suspeitas, mas a prima estava distraída. Lorde Avery nem se preocupara em descer da carruagem, e desviou o olhar como se não quisesse tomar parte na conversa.
Samantha teve a impressão de que seria a única pessoa a não participar do pequeno drama encenado por seu tio e Ravensworth. O pensamento a preocupou.

O temor de Samantha foi aumentando à medida que a tarde avançava. Ela esperava ser chamada a qualquer momento para levar um sermão dos tios, o que nunca
aconteceu. Embora a postura de ambos fosse mais reservada e formal do que de costume, nenhuma palavra de censura escapou dos lábios apertados de ambos. Quando Harriet
e lady Esther lhe dirigiam a palavra, notou Samantha, nenhuma das duas a olhava nos olhos. Apenas Edmund e Fanny pareciam normais. Mesmo assim, ela percebeu que,
vez ou outra, eles a encaravam com pena. O que estaria acontecendo?
Samantha encontrou a babá na escada, e as duas se abraçaram por longos instantes.
- Ah, minha querida - murmurou a babá, antes de voltar para seus afazeres com o bebê. Samantha deduziu que seu castigo seria terrível.
O jantar não diminuiu suas desconfianças, pois quando convocaram sua presença na sala de estar, Ravensworth era o único convidado. Ela parou na soleira da
porta, e seu coração disparou.
- Onde está Avery? - perguntou sem preâmbulos.
O sorriso de Ravensworth tinha a intenção de tranqüilizá-la.
- Ele pediu desculpas, mas já tinha outro compromisso agendado.
- Não é possível! - Samantha respondeu sem pensar.
- Se você pensa assim. - O marquês se virou para Fanny e retomou a conversa de onde a haviam interrompido.
A atmosfera à mesa do jantar estava carregada. Ela sentiu os pêlos em sua nuca se eriçarem. Quando um trovão reverberou lá fora, Samantha teve a certeza
de que o raio cairia em sua cabeça. Começou, então, a imaginar qual seria o destino que o tio lhe reservara. Além de enviá-la para as colônias, ela não conseguia
pensar no que mais poderia lhe acontecer. Samantha disse a si mesma que estava sendo tola e esforçou-se para deixar os temores de lado. Mesmo assim, comeu bem pouco
e quase não abriu a boca durante a refeição. O apetite de Ravensworth, por sua vez, era dos mais vorazes.
Quando a mesa foi limpa e os criados trouxeram pequenos cálices e uma garrafa de vinho do Porto, Fanny se levantou, indicando que as mulheres deveriam se
retirar. Ravensworth aproximou-se de sir John e trocou algumas palavras com ele.
- Samantha, por favor, permaneça conosco por alguns instantes. - A voz do marquês não toleraria uma negativa. Ravensworth foi até ela e guiou-a para um lugar
perto dele. Edmund sorriu, encorajando-a, e seguiu as damas para fora. Ficaram apenas os três.
Ravensworth colocou um pouco de Porto em um cálice e passou-o para Samantha.
- Beba! Você está pálida de tanto medo.
- Sim, eu estou com medo - respondeu ela, dando um gole na bebida.
- Quem começa? - perguntou sir John, olhando para o marquês.
- Pode começar - respondeu Ravensworth. - Sei perfeitamente o que vai dizer, mas lhe garanto que Samantha não faz a menor idéia. Eu dependo do senhor para
colocar um pouco de juízo na cabeça dela.
Samantha pegou o cálice e bebeu todo o conteúdo em um só gole.
Essa história está se tornando cada vez mais sinistra, pensou.
- Vá com calma, minha querida - disse Ravensworth.
- Por onde devo começar? - perguntou sir John. - Ah, sim. Na quinta-feira, eu soube, por intermédio de lady Harrington, uma grande fofoqueira, que minha
filha e minha sobrinha estavam sendo motivo de comentários em Londres por suas maneiras ousadas. Algo relacionado a rapé, pelo que me lembro...
- Eu posso explicar - interrompeu-o Samantha.
- Não piore ainda mais a sua situação - disse sir John, - Essa besteira não é o que me preocupa. Onde eu estava mesmo? Ah, sim. Lady Harrington também me
contou que minha filha e minha sobrinha foram apresentadas, na ópera, à famosa Harriette Wilson, pelo honorável marquês de Ravensworth.
- Eu posso explicar - murmurou Samantha, em outra tentativa.
- Não se preocupe com isso - disse o tio com um olhar furioso. - Fiquei tão nervoso com a mulher que cheguei a lhe dizer que se ela fosse homem, eu a desafiaria
para um duelo. Contudo, quando lady Harrington me apresentou para três jovens cavalheiros, um dos quais sobrinho dela, eles confirmaram toda a história. Eu fiquei
para morrer.
Sir John serviu-se de mais uma dose de Porto e bebeu depressa.
- É tudo? - perguntou Ravensworth.
Aproveitando que o marquês estava distraído, Samantha pegou seu cálice e bebeu mais um pouco. Um agradável calor espalhou-se por seus membros trêmulos. Era
uma sensação bem mais prazerosa do que o temor que a rondava.
- Ontem à noite - prosseguiu sir John -, em um concerto em Sydney Gardens, quando eu tinha decidido voltar a Londres, quem vocês acham que encontrei?
- Lady Harrington? - arriscou Samantha. Seu tio deu um sorriso sinistro.
- Eu fui abordado por aquele presunçoso do conde de Grafton.
- É mesmo? Agora a história está se tornando interessante - comentou Ravensworth com os olhos brilhando.
Ele se virou para Samantha e, ao ver o cálice dela cheio, tirou a garrafa de vinho de seu alcance.
- Um cavalheiro encantador - disse Samantha. - Nós o encontramos na estrada.
- Encantador? - A voz de sir John era impassível. - Saiba que o "cavalheiro encantador" se gabou ao me contar que a minha sobrinha havia se tomado amante
do marquês de Ravensworth.
Houve um silêncio, e sir John recostou-se na cadeira com um sorriso satisfeito nos lábios.
- Gostaria de saber o que o levou a pensar assim - comentou o marquês com ar inocente.
- O fato de Samantha se encontrar em seu quarto, na verdade em seus braços, quando o senhor estava nu.
- Eu posso explicar - começou Samantha.
- Minha querida, agora é tarde demais para explicações. Não duvido que você e lorde Ravensworth não tenham feito nada de errado. Como eu disse para seu pai
uma vez, as explicações da conduta questionável dele em relação a sua mãe não significariam nada perante os olhos da sociedade. São as ações que contam.
Ravensworth se mostrou interessado.
- Eu gostaria de ter conhecido esse cavalheiro.
- Meu pai era realmente um cavalheiro - respondeu Samantha com certa ameaça na voz. - Ele jamais teria ousado tirar vantagem da mamãe. Ele a amava.
- Era um homem honrado - disse sir John. - E conhecia perfeitamente seus deveres.
- Ah, claro. Samantha, deixe seu cálice na mesa e preste muita atenção - pediu-lhe o marquês. - Seu tio vai lhe dar uma lição de vida sobre o mundo cruel
em que vivemos.
- Não gosto do seu tom de voz, Ravensworth - disse sir John.
- Pode ser que não - respondeu ele com um sorriso desarmante -, mas permita-me tranqüilizá-lo, sir John. Eu sou um homem honrado. Tente explicar isso a Samantha.
Sir John não mediu suas palavras quando se dirigiu à sobrinha.
- É imperativo que Ravensworth se case com você o mais depressa possível, antes que a notícia a respeito da sua escandalosa conduta se transforme em conhecimento
universal. Sua reputação pode ser maculada, mas com a mão forte de um marido para reter seus impulsos mais ousados, e com a sua família por trás, eu não vejo motivos
para você ser excluída da sociedade.
Samantha abriu a boca, incrédula.
- Casar-me com Ravensworth? Não seja ridí... - Ela sentiu a voz sumir.
- Não há outra solução. Precisa se casar comigo - informou Ravensworth com convicção melancólica. - Sem querer, você me comprometeu.
- Eu? Eu comprometi você? - perguntou Samantha, chocada. - Posso saber como?
- Quem entrou no meu quarto? Quem atrasou a nossa viagem em dois dias? Quem quase me envolveu em um duelo com Grafton? Se você não se casar comigo, eu estarei
arruinado. Ninguém me receberá. Nenhuma mulher decente desejará se casar comigo. Então não conseguirei gerar um herdeiro legítimo para agradar a meu pai. Claro,
como uma mulher consciente, imagino que você reconheça o seu dever.
Sir John parecia pronto a dizer algo. Ravensworth o silenciou com um olhar e falou:
- Pode deixar comigo agora.
Sir John se levantou no mesmo instante e saiu da sala, deixando o futuro casal a sós.
- Isso é muito pior do que as colônias - comentou Samantha, sem saber o que fazer. - Você sabe que nós não podemos nos casar.
- Não, Samantha, eu não sei. - Ravensworth pegou a mão gelada dela entre as suas. Samantha bebeu mais um gole de Porto no intuito de tentar clarear as idéias.
- Ravensworth, eu sinto muito. Não tive a menor intenção de arruinar a sua vida.
Diante das palavras trêmulas, o marquês sentiu uma onda de culpa invadi-lo.
- Eu não estou reclamando, estou? Você sabe que a minha intenção sempre foi tê-la para mim. Não podemos tomar a situação agradável, minha querida?
- E seu pai? - perguntou ela. - Ele jamais aceitará a nossa união.
Ravensworth hesitou, escolhendo as palavras com o máximo cuidado.
- Papai não tem escolha. Só sei que ele não gostaria de me ver excluído da sociedade.
- Eu não entendo. Quando você me propôs ser sua amante, esse fato não arruinaria a sua vida, não é? E agora, se nós não nos casarmos, você será prejudicado?
Seu pai o aconselhará a voltar à sua idéia inicial.
O vinho, observou Ravensworth, começava a causar um efeito prejudicial em sua amada. Ele se viu obrigado a usar de toda sua lógica para persuadi-la a aceitar
sua vontade.
- Quando eu lhe pedi para compartilhar sua vida comigo - disse o marquês, cauteloso, pois precisava escolher as palavras corretas para não colocar tudo a
perder -, não sabia que você era uma herdeira.
- E o fato de eu ser herdeira de uma fortuna considerável faz alguma diferença?
- Claro!
- Como?
- Samantha, a minha intenção era protegê-la, adorá-la, tirá-la da pobreza. O mundo teria me louvado pelo meu nobre propósito.
- Então o mundo é bem pior do que eu imaginava. Ravensworth precisou de muita força de vontade para manter o autocontrole.
- Agora que o mundo sabe quem você é, eu poderia arruinar suas chances de fazer um bom casamento, mesmo que você tenha me comprometido.
- Não fale assim! É uma noção muito estúpida. Eu não me importo com o que o mundo diz. E você, Ravens... Ravens... Hugh?
O marquês deu um sorriso vago.
- Eu penso no meu pobre pai. Jamais ousaria privá-lo do herdeiro que ele tanto deseja. Sou apenas um filho tentando agradar ao pai.
- Alguma jovem do seu meio ficará muito contente em se casar com você - consolou-o Samantha, segurando-lhe o braço. Por algum motivo, o pensamento a desanimava.
- - E por que não você, Samantha? - Ele a puxou de sua cadeira e sentou-a em seu colo. - Por que não você?
A resposta dela ao toque de Ravensworth foi imediata. Samantha não era mais novata no abraço de um homem, afinal de contas, ele a beijara em três ocasiões
diferentes. Um simples beijo foi suficiente para ela se derreter toda. Poucos instantes depois, Samantha começou a desabo toar-lhe a camisa.
- Comporte-se, madame - murmurou Ravensworth.
- Beije-me, Hugh... - pediu ela. - Você sabe como eu adoro os seus beijos.
A tentação era grande, porém Ravensworth se controlou.
- Chega de beijos. Não vou mais beijá-la até que nos casemos. Ou melhor, pelo menos até que estejamos noivos. Está vendo? Você está querendo tirar vantagem
de mim mais uma vez.
- Eu sei. Sinto muito - respondeu Samantha, virando a cabeça. - Isso só acontece quando você me toca.
Ravensworth colocou-a imediatamente de volta na cadeira.
- Então estamos combinados? - perguntou ele, tentando esconder o desejo em sua voz.
- Sim. - Samantha suspirou, sem saber se a alegria que a inundava se devia ao vinho que bebera ou à presença de Ravensworth. Ou ao casamento.


Capítulo XIV

Nos dias que antecederam o matrimônio, o marquês e sua noiva depararam com um problema. Ravensworth se surpreendeu ao descobrir que Samantha pretendia fazer
parte das negociações sobre o contrato de casamento, o que não era nada comum naquela época. Mais problemas surgiram em seguida. Samantha tinha grande aptidão para
os negócios e chegou à mesa de negociações com uma exigência da qual não abriria mão: todos os lucros de sua fortuna deveriam ser creditados em uma conta pessoal.
Ravensworth protestou, pois uma soma tão grande permitiria que sua esposa se tomasse independente dele em todos os aspectos financeiros.
- Exato - respondeu Samantha. - Eu não abro mão do meu dinheiro. Faço questão de ter a minha independência.
Ravensworth apelou para sir John, que fez o possível para dissuadir a sobrinha de tal idéia, mas ela se manteve firme. Sua fortuna, após sua morte, seria
dividida igualmente entre seus herdeiros, mas até então os lucros seriam seus, e ela os administraria como bem entendesse. O marquês teria de se contentar com aquela
imposição em nome de seus futuros filhos. Nada faria sua noiva mudar de idéia, nem mesmo quando sir John revelou o valor do acordo que Ravensworth estava disposto
a fazer. Samantha ressaltou, com toda razão, que para a herdeira de uma fortuna, tal valor era irrelevante. Ravensworth cerrou os dentes, irado. De nada adiantou,
entretanto. A srta. Samantha Langland não se entregaria completamente aos cuidados de um homem. Precisava ter sua própria independência.
Por algumas horas torturantes, sir John achou que o casamento iria ser cancelado, pois Ravensworth se ofendeu com a provocadora insistência de Samantha.
Ele se reuniu para uma conversa em particular com o marquês e, por fim, conseguiu convencê-lo de que Samantha, casada, apesar de ser uma mulher financeiramente independente,
na realidade não teria poderes para desafiar a vontade do marido. Ravensworth pensou no assunto e acabou cedendo, mas sir John percebeu que o marquês não ficou muito
contente com o fato de sua futura esposa ter questionado sua integridade. Samantha protestou pedindo que ele se tranqüilizasse, já que, afinal de contas, pretendia
deixar a administração da fortuna aos cuidados do marido.
Ravensworth não tinha como saber que a determinação de Samantha em manter uma certa independência no casamento não se devia a uma falta de confiança nele
em especial, mas sim aos ensinamentos quacres de sua mãe e de outras mulheres. As quacres eram admiradas por suas qualidades de engenhosidade e liderança, e eram
estimuladas a participar, com a mesma posição dos homens, na administração de qualquer assunto que lhes fosse apresentado.
Ravensworth não sabia nada sobre o passado da noiva, e também não tinha o menor interesse em conhecê-lo. O que quer que fosse, Samantha era a única mulher
no mundo que detinha o poder de confundi-lo. As emoções do marquês iam de um extremo a outro. Às vezes ele era tomado por um desejo feroz de adorá-la e protegê-la.
Em outras, tinha vontade de trancá-la em um quarto escuro. Sua ânsia por aquela mulher havia superado o simples desejo físico. Não podia viver sem Samantha. Queria
dividir sua vida com ela. Simples assim.
O marquês jogara com perfeição e não se deixaria abater por um simples capricho feminino. Um ligeiro remorso o invadiu quando pensou na grande fraude que
armara para garantir a submissão de Samantha, mas logo o afastou, lembrando-se de que ela retribuía seus sentimentos. Não permitiria que Samantha sacrificasse a
felicidade de ambos por causa de escrúpulos mal orientados.
Sua vaidade, entretanto, se ressentia em virtude das ofensas infligidas por Samantha, e Ravensworth estava determinado a mostrar-lhe seu poder assim que
colocasse a aliança na mão esquerda de sua noiva. Nos dias anteriores ao casamento, Ravensworth ficou sonhando com uma esposa disciplinada que obedeceria ao marido
sem se rebelar.
A cerimônia realizou-se uma semana após a chegada deles a Bath, em Laura Place, e foi celebrada pelo reverendo Edmund Damell. A princípio, Ravensworth concordara
com um casamento quacre, se Samantha o desejasse, mas ao descobrir que os quacres costumavam fazer seus votos sem o testemunho do clero, ele mudou de idéia. Ela
ficou mais calma quando o marquês lhe disse que seria impensável surgirem dúvidas, no futuro, em relação aos descendentes de ambos: as crianças seriam herdeiras
do ducado de Dalbreck. Nesse assunto, Samantha cedeu à vontade de Ravensworth.
Ela notou seu noivo um tanto quanto distante nos dias anteriores ao casamento, e imaginou que ele a estivesse culpando pelas circunstâncias constrangedoras
que haviam forçado a união. O resguardo de Ravensworth a aborreceu, pois imaginava que uma aliança de alguém tão importante com alguém tão simples o incomodasse
ao extremo. Samantha sabia não constituir a escolha adequada para um futuro duque, mas tinha de admitir que desenvolvera um certo carinho por ele. Quem sabe não
conseguisse modificá-lo?

O primeiro evento de gala da temporada no Sydney Gardens aconteceu no dia do casamento de Samantha e Ravensworth. Tratou-se de um concerto musical no início
da noite, seguido por uma queima de fogos de artifício. Ravensworth propôs que, antes da programação noturna, a família se reunisse para um jantar em um dos terraços
de Sydney Gardens. Prometia ser uma noite agradável.
Samantha bebia seu champanhe aos poucos, sob os olhos atentos do marido, e analisava com interesse o fluxo contínuo de pessoas passeando no parque. Parecia
que toda Bath queria assistir ao concerto e se divertir. Quando ouviu o tio perguntar a Ravensworth quais eram seus planos imediatos, ela voltou á atenção para seus
companheiros de mesa.
- Ainda não decidi - respondeu ele, limpando a boca com o guardanapo. - Pensei em passar mais um tempo em Bath, hospedado no The Circus. Por outro lado,
minha propriedade em Kent é excelente para pescar e cavalgar nesta época do ano. Eu diria que uma temporada no campo depois dos últimos acontecimentos não seria
uma má idéia - concluiu Ravensworth, olhando para Samantha.
Ela se eriçou. Ficou furiosa por Ravensworth não ter pedido sua opinião e também por recordar os acontecimentos do passado diante dos outros.
- Você não me consultou a respeito das suas intenções, milorde - disse Samantha sem esconder sua irritação.
A taça de champanhe que Ravensworth levava aos lábios voltou para a mesa. Então se virou para Samantha.
- Ah, não, meu amor? - O tom dele era dos mais calmos, porém ela notou que o havia irritado. - Então me permita corrigir a omissão. - Ravensworth empurrou
a cadeira para trás e se levantou. - Vamos dar um passeio pelo parque. Samantha olhou para Harriet em um apelo silencioso.
- Excelente idéia - disse sua prima, pegando seu xale. - Por que não vamos todos? Ouvi dizer que a iluminação do parque é magnífica à noite. - Avery balançou
a cabeça para os lados, advertindo-a em silêncio, porém sir John foi mais rápido.
- Sente-se, minha filha. Você não percebe quando não é bem-vinda? Sei que você e Samantha não se desgrudam, mas devo lhe avisar que Ravensworth e eu não
permitiremos que o relacionamento de vocês continue como antes. - Ao ver que Harriet abriu a boca para protestar, o olhar dele tornou-se mais severo. - Não fui claro?
Sente-se, Harriet.
Houve um silêncio constrangedor por alguns instantes. Então lady Esther, com seu costumeiro aprumo, decidiu intervir para atenuar a tensão.
- Vá passear com sua esposa, Ravensworth. Desta vez nós permitiremos que monopolize Samantha - brincou ela, sorrindo. - No futuro, tente se lembrar, nobre
marquês, que não é de bom-tom casais se comportarem como eternos apaixonados. Mandarei Avery e Harriet atrás de vocês dentro de meia hora.
Ravensworth fez uma mesura.
- Seu desejo é uma ordem, madame - respondeu ele, retribuindo o sorriso. - Tentarei exprimir meus sentimentos nesse breve espaço de tempo que me foi concedido.
- O olhar que o marquês lançou para Samantha, todavia, não era nada animador.
Relutante, ela caminhou ao lado de Ravensworth, tentando não se incomodar com a troca de olhares tão familiar entre a tia e seu marido. A convicção de Samantha
de que o marido logo começaria a descontar sua fúria nela crescia a cada instante. O pensamento a levou a tomar a iniciativa.
- Como se atreve a me tratar como uma criança desajuizada na frente dos meus parentes? - perguntou com a voz cheia de raiva. - Quem lhe deu o direito de
decidir onde vamos morar no futuro? Teria sido muito gentil de sua parte pedir a minha opinião sobre o assunto. Seus modos são deploráveis.
Ravensworth respirou fundo.
- A jovem acabou de se casar e já deseja usurpar a autoridade do marido! Seria melhor para você, minha dileta esposa, se conformar com o seu destino. Pode
ter me induzido a este casamento, mas não pense que serei um marido complacente. Como minha amante, você estaria em uma posição bem mais vantajosa para ditar regras.
Como minha esposa, só tem o direito ao meu sobrenome e a minha cama. - Havia um brilho malicioso em seus olhos.
Samantha ficou sem palavras por alguns instantes.
- Seu... seu grosseiro! Inescrupuloso! - ela sibilou entre os dentes cerrados. - É esse tipo de gratidão que recebo por haver salvado a sua pele? Sabe tão
bem quanto eu que este casamento de conveniência é tão desagradável para mim quanto para você.
- Não se dê ao trabalho de negar que os acontecimentos ocorreram da maneira que você esperava - continuou ele, olhando de soslaio para Samantha. - Você se
destacou das outras mulheres por ter me pego com a guarda baixa. Eu não esperava esse tipo de duplicidade em uma garota quacre - acrescentou Ravensworth, enervando-a
ainda mais.
Eles tinham alcançado uma parte mais reservada, e o marquês parou de andar. Samantha se virou e o encarou. Ela ficava linda quando estava brava, pensou Ravensworth
envolvendo-Ihe o rosto com as mãos. A idéia da noite que teriam pela frente causou-lhe arrepios por todo o corpo. O desejo de possuí-la e tomá-la sua em todos os
sentidos desencadeou uma urgência selvagem dentro dele. Ravensworth a olhou com atenção, querendo absorver cada parte daquele belo rosto.
- Negue, lady Ravensworth, que sente algo por mim.
- Não conte com isso - sussurrou ela, sentindo os lábios do marquês em seu rosto.
- Eu farei de tudo para que isso aconteça - disse ele, beijando-a na boca com volúpia.
Ouviram passos se aproximando, e Ravensworth soltou Samantha com relutância. Seus olhos continuaram a admirá-la como se ele quisesse absorvê-la, e ela também
não conseguia desviar o olhar.
- Ravensworth, seu safado! - entoou uma voz feminina. Samantha a reconheceu de imediato e ficou tensa. Ela se virou para encarar a bela Adèle St. Clair,
acompanhada nada mais, nada menos, do que do conde de Grafton. Pelo visto, ele já havia se recuperado da mordida que levara no lábio. Os olhos da mulher brilhavam
com algo que Samantha não conseguiu identificar. Ravensworth, ao seu lado, se mostrava completamente à vontade.
- Adèle! - exclamou ele com entusiasmo. - Que surpresa mais agradável! Da última vez em que estivemos juntos, você não mencionou que pretendia vir para cá.
Nunca imaginei que uma cidade tão pacata pudesse despertar o interesse de uma pessoa tão festeira.
A mesura que Ravensworth fez para o sujeito que tentara violentar Samantha foi bastante cortês.
- Meu querido, quando você me contou sobre a sua viagem para cá, eu imaginei que pudesse ajudá-lo a aliviar o tédio, porém você arruinou minhas boas intenções.
Como eu poderia imaginar que você cairia na teia de uma jovem ingênua? Espero que tenha sido uma bela lição, Hugh. - Ela sorriu para Ravensworth, depois se virou
para Samantha: - Meus parabéns, querida! Você capturou o solteiro mais cobiçado de toda a Inglaterra. Grafton me disse como você conseguiu, mas eu não a recrimino.
No amor e na guerra, tudo é válido, não é mesmo? - O tom de ameaça era inconfundível. Ravensworth parecia lisonjeado, e Samantha, chocada.
- Permita-me parabenizá-la - disse Grafton.
- Obrigada - respondeu Samantha com o máximo de educação que conseguiu demonstrar. Então se virou para o marido em busca de orientação, mas ele estava entretido
em uma conversa com a condessa. Samantha caminhou em silêncio ao lado do conde de Grafton, enquanto Ravensworth seguia na frente, em uma animada conversa com Adèle
St. Clair. Uma sensação de abandono a inundou.
- Eu lhe devo um pedido de desculpas - disse Grafton. A distância entre os dois pares aumentava cada vez mais. Ravensworth nem olhava para trás a fim de
garantir que a esposa o seguia. A irritação de Samantha por estar sendo tratada com tanto desdém pelo marido na noite de seu casamento começou a aumentar, fazendo
seu sangue ferver.
- Não gostaria de me lembrar do seu horrível comportamento na noite em que nos conhecemos - disse ela, com a voz mais fria possível. - Prefiro me esquecer
das circunstâncias daquele encontro.
O sorriso de Grafton foi enigmático.
- Engana-se se acha que pretendo me desculpar pela maneira como agi aquele dia. Qualquer homem teria feito o mesmo. O que eu podia fazer? - Seu olhar escondia
um traço de insolência. - Sua aparência, naquela ocasião, era bem diferente da dama recatada que está ao meu lado agora.
Samantha ficou confusa.
- Por que quer se desculpar, então? - perguntou ela, preferindo ignorar a provocação explícita.
- Quero me desculpar por haver trazido Adèle para aborrecê-la. Se soubesse que vocês estariam aqui esta noite, eu não teria vindo com ela por nada. Por favor,
acredite em mim.
- Por quê? O que está querendo dizer? - Samantha perguntou, perplexa. - Lady Adèle também tem o direito de se divertir.
- Com seu marido? Samantha arregalou os olhos.
- Como assim? Seja mais claro, lorde Grafton.
- Perdoe-me se falei tolices. Achei que a senhora soubesse.
- O que eu deveria saber? Grafton deu de ombros.
- A longa ligação de Ravensworth com Adèle é de conhecimento público. Pelo que me consta, ela pretendia tomar-se marquesa.
Alguns instantes se passaram antes que Samantha compreendesse o que ele estava lhe dizendo.
- Está sugerindo que Adèle é amante de meu marido?
- Eu já falei demais - respondeu Grafton, mostrando um certo arrependimento. - Minha língua solta acabará me arruinando. Por favor, esqueça que toquei nesse
assunto.
Samantha ficou zonza. Ao olhar para a frente, viu que Ravensworth e Adèle os aguardavam. A distância entre os dois pares lhe permitiu tempo para se recompor.
- Não se preocupe, lorde Grafton - disse ela, soltando uma sonora risada. Em seguida ergueu a cabeça, orgulhosa. - O senhor deve saber que o nosso é um casamento
de conveniência. Sinto muito por haver estragado os planos da dama. Saiba que não foi minha intenção.
Quando eles chegaram ao lado dos dois, Samantha fez de tudo para não demonstrar sua irritação. Ela mascarou a dor lancinante em seu peito e olhou para Ravensworth.
Ao notar a fragilidade por trás daquele falso ar corajoso, o marquês soube imediatamente o que havia acontecido. De certa forma, ficou contente por saber
que Samantha estava magoada. Era como se a tristeza da esposa compensasse todos os aborrecimentos pelos quais ele tinha passado desde que a conhecera. Ravensworth
pretendia se explicar sobre Adèle no momento certo, uma vez que ela freqüentava os mesmos círculos que ele. Sua intenção era proteger Samantha das línguas ferinas,
poupá-la de aborrecimentos desnecessários. Grafton, todavia, tinha chegado antes, e o estrago eslava feito. Ravensworth se repreendeu por não ter confessado seu
envolvimento com a dama antes. A culpa era de sua esposa, pois Samantha não abria mão de seu idealismo. Mas naquela noite, ela se encontraria com a realidade, pensou
o marquês.
- Ravensworth - disse Samantha em uma voz sem emoção -, lorde Grafton estava me contando as últimas novidades de Londres, e eu não vejo a hora de contá-las
a Harriet. Soube que um cavalheiro do nosso conhecimento, que condenou severamente o meu modo de agir, não é o modelo de bom comportamento que finge ser. - Ela notou
a imperceptível tensão nos ombros do marido e sentiu-se vitoriosa. - Harriet, como eu, acredita que esse tipo de hipocrisia atrapalha o mundo.
- Calma, minha querida. Nós já vamos - respondeu ele, com o olhar frio. - O que você acha da idéia de Adèle? Ela vai dar uma grande festa em sua casa, em
Kent. Adèle e Grafton partem amanhã e nos convidaram para ir com eles.
Silêncio.
- Eu cheguei a comentar com você que somos vizinhos, não é? - prosseguiu o marquês. - Acho uma excelente idéia. Londres está fora de cogitação, pelo menos
por enquanto. Seus feitos não serão esquecidos tão cedo. Bath, por sua vez, não tem o charme da cidade grande nem as atrações rurais do campo. Kent é uma excelente
opção para o presente.
Ele estivera prestes a recusar o convite de Adèle, porém as palavras cortantes de Samantha e a expressão de hostilidade o tinham feito mudar de idéia.
- Eu gosto de Bath e gostaria de ficar com minha prima. Preciso da companhia dela - respondeu Samantha.
Ravensworth respirou fundo para não perder a paciência.
- Acho que você já prejudicou demais a reputação da pobre Harriet. Aposto como os pais dela ficarão contentes em vê-la longe da sua influência por um ou
dois meses. Vamos para Kent e ponto final. - Ele virou as costas para Samantha e voltou a atenção para Adèle, um gesto calculado para machucar sua intratável esposa.
Samantha levou as mãos à boca. Ravensworth atingira seu ponto vulnerável. Foi demais. Ela abafou um gritou e saiu correndo de volta pelo caminho por onde
viera. Ouviu Ravensworth chamando-a, mas o ignorou. A risada de lady Adèle ficou no ar. Casar-se com um homem tão desprezível fora o pior erro que cometera na vida,
porém pretendia corrigi-lo o mais depressa possível. Pediria a anulação do casamento.
Samantha não encontrou ninguém quando saiu do parque e acelerou os passos em direção à casa dos tios. Ao alcançar a porta, assustou-se com o barulho dos
fogos de artifício. Sem pensar, ela subiu as escadas correndo e trancou-se em seu quarto. Ravensworth fora acomodado no quarto ao lado, mas havia uma porta conectando
os dois aposentos. Se quisesse falar com ela, o marquês teria de arrombar a porta. Espero que Ravensworth aproveite sua noite de núpcias, Samantha pensou com amargura.
Em seguida jogou-se na cama e chorou todas as suas mágoas.


Capítulo XV

Ravensworth poderia ter arrancado todos os fios de cabelo de Samantha quando chegou em casa, após uma busca em vão por Sydney Gardens. Encontrou a esposa
a salvo, trancada em seu quarto. Ele bateu na porta durante vários minutos, mas Samantha se recusou terminantemente a deixá-lo entrar. As ameaças abafadas de anulação
do casamento o atingiram como uma pancada, mesmo através da porta fechada. Ravensworth quase não conseguia controlar a raiva. Ao perceber que não chegaria a nenhum
lugar e que começava a atrair a atenção dos criados, ele entrou em seu aposento e sentou-se em uma poltrona. Como Samantha se atrevia a desafiá-lo dessa maneira?,
perguntou-se inúmeras vezes. Se quisesse, ele tinha plenos poderes para destruí-la, para bani-la da sociedade, para entregá-la ao esquecimento. O que mais podia
fazer para convencer a jovem rebelde de que precisava ser mais amável cora seu marido? Ela lhe roubara o direito do que prometia ser uma noite cheia de prazeres.
A noite de núpcias! Naquele momento, Samantha deveria estar em seus braços, rendendo-se à paixão.
O fato de ela o ter enfrentado dizendo que pediria anulação do casamento foi mais do que Ravensworth podia tolerar. Seu orgulho havia sido ferido. E muito.
A marquesa descobriria que estava enganada se achava que sua vontade prevaleceria em uma disputa de poder. Ele a colocaria de joelhos, ou não se chamava Hugh Montgomery.

- Quem é? - perguntou Samantha com voz tímida quando ouviu baterem na porta mais uma vez.
- Sou eu, Alice. Vim lhe trazer o café da manhã - respondeu a criada.
Aliviada, ela se levantou, vestiu o penhoar e seguiu descalça até a porta. O chão frio a arrepiou toda. Em um piscar de olhos, Ravensworth estava dentro
do quarto.
Alice colocou a bandeja em cima da mesinha e virou-se para o casal que se entreolhava.
- Por enquanto é só, Alice - disse o marquês, praticamente empurrando-a para fora do quarto. Assim que ela saiu, Ravensworth trancou a porta.
- Agora somos apenas nós dois - falou ele em tom de ameaça.
Samantha apertou o penhoar contra o peito e encarou o marido com um ar de confiança que não sentia. Com o maior esforço, ela controlou o tremor para que
não transparecesse em sua voz.
- Eu falei sério ontem à noite, Ravensworth - disse ela, antes que o marquês começasse a repreendê-la. - Vou pedir ao meu tio que tome as devidas providências
para a anulação do casamento. Eu não tenho a menor intenção de privar lady Adèle da recompensa justa pelos serviços prestados.
O olhar de Ravensworth endureceu.
- Não vou pedir desculpas pelo que aconteceu no meu passado, Samantha. É um grande absurdo. Adèle nunca significou nada para mim. O lugar dela na minha vida,
se é que se pode chamar de lugar, era insignificante. Você é minha esposa e eu estou aqui para discutir seu futuro. Ou melhor, o nosso futuro.
A visão da cama desarrumada e do penhoar de Samantha começava a provocar Ravensworth. Ele controlou o súbito impulso de tomá-la nos braços. Havia decidido
que sua esposa precisava de mão firme, portanto não podia fraquejar.
- Como pode perceber, estamos sozinhos neste quarto - começou ele em tom de ameaça. Samantha umedeceu os lábios.
- Mais uma palavra a respeito desse assunto e eu consumarei nosso casamento de uma forma que você desejará jamais ter me desafiado. Fui claro?
Ela compreendeu e baixou a cabeça com o máximo de dignidade que conseguiu reunir.
- Ótimo, vejo que entendeu. - A voz dele era como seda.
- Quero a sua palavra, Samantha, de que não ouvirei mais nenhuma palavra sobre anulação. Você conhece a alternativa.
Em silêncio, ela pensava com fúria. Não era o lugar ou o momento para discutir com Ravensworth, que parecia pronto para assassinar alguém diante da menor
provocação.
- Você me dá a sua palavra?
Samantha respondeu apenas quando ele deu um passo para a frente.
O marquês segurou-lhe o queixo, e Samantha tentou mostrar uma expressão de indiferença; mas quando o dedo dele traçou o contorno de seus lábios em um gesto
lento e sensual, ela desviou o olhar para não demonstrar o efeito devastador daquele toque.
De repente, Ravensworth a soltou e foi até a janela.
- Samantha - tentou ele em tom conciliador. - Não queira testar a minha paciência e não discuta comigo. Pelo menos uma vez na vida, escute o que tenho a
lhe dizer e não fale nada. Partiremos para Kent em uma hora. Vou mandar Alice subir para ajudá-la a arrumar as suas coisas. - Ele hesitou por um instante, porém
continuou com firmeza: - Minha decisão não tem nenhuma relação com a festa na casa de Adèle. Eu pensei apenas em mim. - Quando Ravenswoith se virou para encará-la,
Samantha achou que o marido tinha se acalmado um pouco. - Talvez o nosso casamento tenha sido precipitado demais, o que não lhe deu tempo para se acostumar à idéia.
Precisamos de um período a sós, longe de tudo e de todos, de um pouco de paz para podermos nos conhecer melhor.
Ele esperou alguns instantes para ver se Samantha fazia algum comentário. Ela continuou a olhá-lo com seriedade e respeito.
- Diabos, Samantha, você não pode vir até o meio do caminho para me encontrar? - perguntou o marquês com a voz cheia de emoção.
- E Adèle? - indagou ela sem sair do lugar. - Se formos para Kent, não teremos a obrigação de recebê-la e...
- Claro que não tenho como evitar - interrompeu-a Ravensworth, irritado. - E por que deveria? Ela não fez nada para me ofender e nós somos vizinhos. Criaria
uma situação muito desagradável. As pessoas estarão atentas aos nossos passos. E eu não tenho a menor intenção de lhes dar motivo para falarem da minha vida. Todos
adorariam ver minha esposa e minha... Adèle - ele se corrigiu depressa - discutindo por qualquer motivo. Você não percebe que é a sua indiferença, a maneira como
você lida com a situação que os desarmará? Qualquer outro tipo de comportamento gerará comentários de todos os tipos, e eu não quero me tomar alvo de fofocas de
pessoas que não têm nada de melhor para fazer com o seu tempo.
Samantha endireitou o corpo e respirou fundo.
- Você está me pedindo demais - declarou ela com dignidade.
- Mesmo assim, você me obedecerá nesse assunto, Samantha. - Ravensworth se virou e foi até a porta. Ela ouviu-o destrancar a fechadura. - Esteja pronta em
uma hora.
Uma hora mais tarde, os dois embarcaram na mesma carruagem que os havia trazido de Londres a Bath. Foi uma despedida tensa, apesar de os parentes de Samantha
não saberem o que acontecera na noite anterior. Sabiam que havia algo de errado, mas não o quê. O comportamento de Ravensworth o entregava, mas o de Samantha, não.
Ela fez de tudo para se portar com o máximo de naturalidade. Quando chegou o momento de as primas se despedirem, Harriet abraçou-a com força.
- Encontre uma maneira de ir a Kent o mais depressa possível - sussurrou Samantha.
As duas ficaram de mãos dadas por alguns instantes. Então Samantha tirou uma carta do bolso e deu-a ao tio, pedindo que ele a entregasse a seu irmão. Ela
não revelou o fato de também ter chamado Vernon para ir a Kent tão logo ele pudesse. Era melhor que Ravensworth não soubesse.
Samantha observou a expressão impassível do marido ao entrar na carruagem. Ela fora obrigada a se casar com Ravensworth. E não pretendia ser alguém diferente
do que era. Se acreditava que conseguiria transformá-la em uma criatura passiva e comportada, ele logo descobriria seu erro.

No dia seguinte à partida de Ravensworth e Samantha para Kent, Harriet e lorde Avery passeavam por Sydney Gardens. Ela quase não conseguia esconder a tristeza.
Para um observador casual, o casal dava todas as evidências de estar em grande harmonia, mas alguém mais curioso perceberia que os dois pouco conversavam. O comportamento
dele era casual e cortês, mas sua companheira, normalmente tão alegre e tão sorridente, estava bastante séria. E recatada. Quando Avery a convidou para sentar-se
em um dos bancos diante da fonte, Harriet assentiu com extrema civilidade.
Depois de um momento de silêncio, ele reuniu toda sua coragem e decidiu iniciar uma conversa mais séria.
- Harriet, eu não pretendo ter um longo noivado - começou Avery.
- Noivado? Que noivado? - perguntou ela no tom de voz infantil que tanto o cativava. Ele a olhou por um ou dois instantes, pensando em qual seria a melhor
forma de prosseguir.
- Eu tomei o cuidado de providenciar uma licença especial - continuou Avery, como se Harriet não tivesse se manifestado. - Não gosto de noivados longos,
e já faz quase onze meses que eu a pedi em casamento.
- Aquele noivado foi quebrado poucas semanas após o pedido - comentou ela, dando de ombros.
- Eu sei. É aí que quero chegar. Nossos noivados duram um mês em média. Se casarmos dentro de uma semana com essa licença especial, nós interromperemos esse
terrível hábito de você devolver meu anel de noivado. - Avery abriu um belo sorriso, e Harriet se derreteu toda.
- Eu não posso devolver algo que não está comigo - respondeu ela com educação. - Na verdade, quase nem me lembro como é o anel de noivado. Ele ficou mais
tempo com você do que comigo.
Lorde Avery sorriu.
- Só por garantia, meu amor. Assim que nos casarmos, eu lhe devolverei o anel. Afinal de contas, a jóia lhe pertence. Eu só não quero ficar noivo outra vez.
Seria uma grande tolice, uma vez que as fofocas recomeçariam. Você me tornou motivo de chacota. - Assim que proferiu as palavras, Avery notou seu erro e tentou impedir
a resposta irritada que estava na ponta da língua de Haniet. Ele ergueu as mãos. - Acalme-se, minha querida! Eu me rendo! O que mais posso dizer? A vida é insuportável
sem você, Harriet. Eu fui um grande tolo ao tentar mudar sua personalidade, ao tentar apagar todas as qualidades que me deixaram tão encantado quando nos conhecemos.
Ele ficou alguns minutos em silêncio.
- Harriet, não tenho mais a menor pretensão de tentar dominá-la. Eu a admiro da maneira que você é. Alegre. Autêntica. Doce. Foi a sua ousadia que me encantou
e que capturou meu coração. Se consentir em se casar comigo, eu lhe prometo que não tentarei transformá-la em uma esposa submissa.
Harriet o olhou com certa perplexidade.
- Está querendo me dizer que, se eu aceitar me casar, você permitirá que eu cheire rapé, fume e beba um pouco de vinho de vez em quando?
Avery a envolveu em um caloroso abraço.
- Tudo dentro dos limites, meu amor. Eu posso até permitir que você me beije em público.
Os lábios de Harriet se entreabriram em muda incredulidade, e Avery aproveitou a deixa para lhe capturar a boca irresistível. Quando se afastou, ele notou
o espanto no rosto de Harriet. Era a primeira vez que tomava tais liberdades com ela.
- Avery, você sentiu? - perguntou Harriet, tentando recuperar o fôlego.
Nenhum dos dois prestou atenção às pessoas que passavam ocasionalmente na frente deles, olhando-os com curiosidade e espanto.
- O que você sentiu, meu amor? - perguntou Avery com um brilho malicioso no olhar. Sem esperar pela resposta, ele a beijou outra vez.
- Ah, meu querido... - murmurou ela - você deveria ter me beijado há muito tempo. - Quando Avery a puxou para mais um beijo, Harriet se afastou. - Você é
tão terrível quanto minha prima Samantha. É impossível ir contra as convenções quando tenho de manter duas pessoas na linha. Alguém precisa ter uma noção do que
é adequado na família. - Ela deu uma risada e tocou o lábio de Avery em um gesto brincalhão. A mão dele se fechou ao redor do pulso de Harriet.
- Vamos nos casar imediatamente. Aqui em Bath, se você quiser. Também pode ser em Londres ou na casa da minha mãe, em Kent. Todos os mal-entendidos que nos
importunaram desde o início do nosso relacionamento se resolverão logo que eu a tiver nos braços. Estou cansado de ser seu acompanhante, seu parceiro de dança e
até mesmo seu amigo. Ah, minha querida, eu serei muito mais, se você permitir.
Harriet riu ao observar que ele tentava manter suas emoções sob controle mediante um semblante sério. Aquele Avery impetuoso, amoroso, era uma grande novidade
na vida dela, e todo aquele desejo que ele vinha demonstrando começava a abalar seu equilíbrio, causando-lhe arrepios por todo o corpo. Harriet sempre o admirara,
mas os beijos ardentes lhe causaram um certo temor.
- Por favor, vamos nos casar bem rápido - disse ela com uma simplicidade encantadora.
Ah, como foi simples, pensou ele, feliz da vida. Abaixo as regras da sociedade e a noção insana de que uma jovem bem-educada se revoltaria com uma demonstração
de paixão. Pelo menos conseguira despertá-la.
- Diga-me quando e onde, minha Harriet.
- Pode ser na semana que vem? Ou ainda é cedo? - perguntou ela com os olhos reluzentes.
- Claro que não. Preciso conversar com seu pai. Um pensamento inundou-lhe a mente.
- Avery, e sua mãe? - indagou Harriet em um fio de voz. - Ela quase nunca sai de Kent. Não seria bom irmos visitá-la para contar-lhe a novidade? Quem sabe
dentro de uma ou duas semanas...
- Claro. E, por coincidência, a propriedade de Ravensworth fica na mesma cidade. Aposto como você também gostaria de passar alguns dias na companhia de Samantha.
- Seria possível? Sei que Samantha não está muito contente. Eu ficaria bem mais sossegada se pudéssemos nos encontrar e conversar um pouco. Na realidade,
ela me pediu para ir a Kent, e eu não posso virar as costas para a minha própria prima. Nós acabamos nos tomando muito próximas depois que ela se mudou paia a minha
casa.
Lorde Avery pensou em qual seria a reação de Ravensworth se as duas se encontrassem tão logo após a separação. Ele não gostaria que ninguém se intrometesse
em sua vida com Samantha. Disso o visconde tinha plena certeza.
- Harriet, meu amor, você não acha que não é um bom momento para visitarmos sua prima? Daqui a um mês ou dois, eu lhe prometo que iremos a Kent. - Ele escolheu
suas próximas palavras com cuidado: - Sei que vocês são muito chegadas, mas quando uma mulher se casa, esse tipo de intimidade passa a ser mais do marido. Sabe,
devo confessar que às vezes sinto ciúme da proximidade entre você e Samantha. Quando nos casarmos, minha querida, eu gostaria de ser o centro das suas atenções e
lealdade.
- Eu lhe prometo que você será o meu universo - disse ela com sinceridade. - Mas eu dei a minha palavra a Samantha. Preciso vê-la pelo menos mais uma vez.
Não compreendo a natureza dessa aliança com Ravensworth, mas entendo que minha prima precisa, e muito, de uma amiga. Confie em mim nesse assunto, Avery. Por favor.
Eu prometo que não me meterei entre eles, se é isso que o incomoda.
Harriet esperou, ansiosa, pela resposta.
- O que mais posso dizer? - declarou ele com um sorriso resignado. - Não seria educado não visitarmos o casal se estivermos nas redondezas. Além disso, faço
questão de que eles estejam entre os primeiros a saber do nosso casamento. Tenho uma condição a lhe impor: você jura que partiremos quando eu achar conveniente?
Ravensworth tem um temperamento terrível, e eu não gostaria de vê-lo irritado com uma intromissão, por mais discreta que seja. Não quero perder a confiança do meu
amigo de tantos anos. Eu sentiria muito a falta dele.
Harriet fez um juramento solene de acatar todas as decisões do futuro marido em todos os assuntos relacionados à futura visita. Avery deveria ficar sossegado,
entretanto ficou com a nítida sensação de que a presença deles na propriedade de Ravensworth seria desastrosa.


Capítulo XVI

Na segunda noite da viagem rumo a Kent, a carruagem de Ravensworth caiu em um grande buraco na estrada e a roda dianteira do lado esquerdo começou a balançar
demais. Naquele momento, o marquês estava encostado na janela, segurando Samantha contra o ombro. A carruagem parou de repente e foi jogada para á frente, tirando
os ocupantes de seu conforto. Samantha despeitou do cochilo e Ravensworth, alerta à situação perigosa, abriu a porta do veículo e saiu, levando a esposa consigo.
Ele a afastou e então começou a dar ordens ao condutor e aos criados que os acompanhavam.
Os cocheiros tentavam soltar os cavalos ariscos quando as nuvens negras no céu foram iluminadas por relâmpagos assustadores. A vibração dos trovões fez o
chão tremer. Samantha levou um grande susto e chegou mais perto da carruagem.
Instantes depois, a chuva começou a cair. Impiedosa. Ravensworth gritou algo para Samantha enquanto tentava segurar os cavalos, porém um segundo relâmpago
e o trovão quase simultâneo abafaram suas palavras. Um grande pânico a envolveu. Ela sabia que não havia motivos para uma reação como aquela, porém não conseguiu
evitar. Sentiu o mesmo amargor seco na boca de quando tinha testemunhado seus pais morrendo afogados. Parecia estar revivendo o pesadelo daquele dia fatídico. Com
dedos trêmulos, Samantha tampou as orelhas para abafar o som assustador da tempestade, sem notar que sua capa escorregou de seus ombros e caiu no chão.
O terceiro trovão ecoou no céu; o chão tremeu sob os pés dela, um suave grito escapou-lhe dos lábios e Samantha foi envolvida por um pânico cego, tropeçando
enquanto andava na lateral da estrada. Galhos acertavam-lhe o rosto e as mãos, mas ela os ignorou, querendo apenas encontrar um santuário para se proteger de seus
medos.
Samantha foi pega por trás e levantada, então encontrou um certo conforto contra o peito de Ravensworth. Ela sentiu o calor do corpo másculo contra o seu
e se aninhou nos braços do marido com certo desespero, murmurando sem parar o nome dele. Em um instante, Ravensworth a envolveu em sua capa, protegendo a ambos da
chuva torrencial.
Ele sussurrou palavras de consolo como se estivesse falando com uma criança desesperada. Os soluços secos e desesperados cederam espaço às lágrimas à medida
que um pouco da histeria foi passando. O fato de estarem indo para a hospedagem pouco adiante se registrou vagamente na mente de Samantha. Quando Ravensworth colocou-a
nos braços de um de seus cocheiros até montar em seu cavalo, ela protestou e fez de tudo para se manter sob a proteção do marido. Foi colocada na sela diante dele,
e então o marquês a envolveu com firmeza pela cintura.
Quando chegaram à hospedaria, a chuva havia diminuído, e Samantha continuou nos braços de Ravensworth. Assim que ele foi colocá-la no chão, ela o abraçou
com toda sua força, como se temesse que algo de muito ruim lhe acontecesse. Então Ravensworth a levantou novamente e levou-a para o quarto. Depois que a porta se
fechou, o marquês tirou as roupas molhadas de Samantha e enxugou-a, levando-a em seguida para perto da lareira. O fato de Samantha não fazer nenhum tipo de protesto
diante de tais liberdades perturbou bastante Ravensworth. Ele encontrou uma camisola na mala da esposa e vestiu-a nela. Então sentou-se na poltrona próxima à lareira
e aninhou-a em seus braços.
Enquanto afagava os cabelos longos de Samantha, ele sentiu-a relaxando contra seu peito. Murmurava palavras de conforto. Aquela demonstração de carinho e
a sensação de alívio de uma grande catástrofe trouxeram lágrimas aos olhos dela. Persuadida com palavras doces e suaves, Samantha começou a lhe relatar a trágica
seqüência de acontecimentos que havia testemunhado e o fatídico dia em que seus pais tinham sido engolidos pelas águas do lago Windermore sob uma terrível tempestade.
Ravensworth escutou em silêncio a descrição dos sentimentos de impotência enquanto ela olhava a catástrofe acontecendo, e de sua incapacidade de erguer um dedo para
salvar as pessoas a quem mais tinha amado no mundo. Quando terminou de contar a história, Samantha foi tomada por uma grande sensação de conforto. A batida constante
do coração do marquês era como um remédio acalmando seus nervos abalados. O suave barítono na voz de Ravensworth, a mão alisando seus cabelos e o carinho que recebia
foram suficientes para fazer com que ela adormecesse.
Durante um longo período, Ravensworth não se mexeu, pensativo. Ficou olhando para a esposa, encantado. Como fora capaz de coagir aquela criança indefesa
a tomar-se sua mulher?
A jovem que o agarrara com tanto pavor sob a tempestade e que se derretera em seus braços com tanta confiança, submetendo-se à sua proteção, era praticamente
uma estranha. Quando a conhecera, Ravensworth ficara encantado com a postura confiante, com o ar de tranqüilidade que a envolvia, com a determinação de suas palavras".
De certa forma, ele admirava o apego de Samantha a seus escrúpulos, que os tinha levado a um conflito tão aberto. Nunca faltara coragem a Samantha para desafiá-lo.
Essas qualidades e a consciência de uma sensualidade latente tinham despertado em Ravensworth o desejo de possuí-la a qualquer preço.
Entretanto, a jovem indefesa que depositara sua confiança em um marido desconhecido, permitindo, inclusive, que ele a despisse, desencadeou uma série de
novos sentimentos. Ravensworth nunca sentira nada assim. O fato de amar Samantha não era novidade, uma vez que ele descobrira isso pouco depois de terem se conhecido.
A sensação de não-merecimento que agora lhe envolvia o coração era uma emoção estranha e indesejável para o marquês. Ele sabia que não merecia o amor de uma mulher
como Samantha Langland. Ela era muito boa, muito inocente para alguém com seu passado obscuro, muito idealista, muito honesta, muito virtuosa, merecedora de um homem
bem melhor do que ele. Não que a idéia de entregá-la a outro lhe agradasse. Não, de forma alguma. Era algo que estava fora de cogitação. Samantha Langland lhe pertencia,
e assim seria até o final de suas vidas.
As pontadas de consciência que ele sentia antes beiravam a insignificância diante da onda de remorso que o consumia agora. A fim de satisfazer sua ânsia
de possuí-la, Ravensworth usara de todas as artimanhas possíveis para fazê-la render-se à sua vontade, completamente indiferente aos sentimentos de Samantha. Essa
atitude egoísta era natural para ele. Hugh Montgomery estava acostumado a conseguir o que queria de uma maneira ou de outra. Mas o que queria agora não podia ser
conquistado à força, por suborno ou insistência. Queria a estima de Samantha. Queria que ela se voltasse para ele com a mesma demonstração de confiança que revelara
em um momento de histeria. Hugh Montgomery, o marquês de Ravensworth, não se contentaria com um sentimento baseado em hipocrisia. Queria ganhar o respeito da esposa,
ser digno do sentimento. Em suma, ele tinha a intenção de conquistar Samantha demonstrando que havia mudado. Sua nova postura o incomodava um pouco, mas Ravensworth
estava determinado a colocar sua nova decisão em prática.
Ele se levantou da poltrona com Samantha nos braços e colocou-a com cuidado na cama. Com uma sensação de arrependimento, o marquês se afastou da mulher com
quem queria fazer amor e cobriu os suaves contornos de seu corpo com a manta de lã. Com um suspiro resignado, ele se virou e seguiu até a porta, afastando as imagens
que haviam assombrado seus dias e suas noites desde que a ingênua Samantha entrara em sua vida. Quanto tempo demoraria para que ela sucumbisse às investidas do novo
Ravensworth?, pensou ele. Até lá, muitos banhos frios e calma.
Quando Samantha acordou na manhã seguinte, ela não encontrou o marido. Não havia nenhum sinal de que ele estivera naquele quarto. De certo, reservara um
quarto para si mesmo. Ela deixou o pensamento girar em sua mente por alguns instantes enquanto se vestia com a ajuda da filha do dono da hospedaria. O fato de Ravensworth
não ter se aproveitado da oportunidade perfeita para consumar o casamento era muito estranho. Teria alguma relação com a bela Adèle? Samantha afastou a idéia deprimente
bem depressa.
A lembrança dos acontecimentos da noite anterior após a tempestade não era muito clara em sua mente, mas os sentimentos que Ravensworth havia despertado
com sua demonstração de cavalheirismo estavam bem vividos em sua memória. Nunca esperava encontrar tamanho conforto, tamanha devoção, tamanha consideração em um
homem como seu marido. Samantha teve de admitir que ele demonstrara um caráter que a surpreendera. O homem era um verdadeiro enigma. Sua conduta era tão inconsistente
que podia ser considerada quase excêntrica. Entretanto, a julgar pelos últimos acontecimentos, Samantha concluiu que devia ao marido um pouco mais de consideração.
Por esse motivo, decidiu ela, passaria a se comportar com mais seriedade.
A ansiedade de tomar-se a senhora de Oakdale Court, a propriedade de Ravensworth em Kent, começava a consumi-la. Queria chegar logo para começar a organizar
tudo. Samantha envolveu os ombros com um xale antes de descer as escadas para se encontrar com o marido, que tomava café em uma sala particular. Agora, ela enxergava
como o papel de sua mãe tinha sido importante para promover o bem-estar de todos os dependentes da propriedade de seu pai. O maior desejo de Samantha era seguir
os passos da mãe e ser uma grande aliada do marido que adorava a vida no campo. Ela só não conseguia entender como conseguira se apaixonar por um homem como Ravensworth.
Mas, pelo visto, havia algo por trás da máscara implacável. Ela quase não acreditava que um homem como ele fora capaz de confortar uma mulher à beira da histeria.
Samantha achou a nova solicitude de Ravensworth um pouco exagerada e deprimente, e imaginou se ele estaria aborrecido por sua conduta diante da tempestade
da noite anterior. Quando lhe agradeceu pela gentileza, ela notou um certo rubor no rosto do marido, uma característica de quando ele estava irritado.
Sendo assim, Samantha chegou à conclusão de que Ravensworth reprovara sua conduta. Para piorar ainda mais a situação, ele decidiu viajar do lado de fora
da carruagem, junto com o cocheiro. Faltava pouco para chegarem a Oakdale Court e ela sinceramente torcia para que tudo melhorassem quando estivessem na nova casa.


Capítulo XVII

A situação de Oakdale Court era um pouco pior do que Samantha imaginara. Tratava-se de uma propriedade abandonada e precisando de alguns reparos urgentes.
Os jardins estavam repletos de ervas, e os anexos, em um estado perigoso de descuido. Nada teria sido mais adequado para aquele momento da sua vida. Seus olhos brilharam
de alegria quando imaginou a tarefa que teria pela frente. A administração da mansão e da propriedade era um assunto bastante familiar. Henrique VIII não poderia
ter visualizado a magnitude de sua corte em Hampton com olhos mais admirados do que os da marquesa de Ravensworth ao analisar sua futura residência.
Ravensworth agiu como guia e mostrou-se um tanto quanto envergonhado com a situação do lugar. O cheiro de deterioração que pairava no ar era uma ofensa às
narinas de ambos e uma lembrança pungente de que ninguém nunca se preocupara com a casa da maneira como deveria. Ele apenas a usava para levar alguns amigos mais
próximos e as notórias "damas" da alta sociedade. A recordação da antiga libertinagem que transcorrera dentro daquelas paredes trouxe uma sensação de culpa ao marquês.
Talvez tivesse sido um erro levar sua nova esposa para lá.
Enquanto caminhavam pelo andar térreo da casa, Ravensworth notou a excessiva seriedade de Samantha.
- O que você acha? - perguntou ele quando a viu ajoelhar-se para observar o que um dia fora um belo tapete.
- Aubusson - comentou Samantha com certo pesar. - Não tem mais conserto. As traças acabaram com o tapete.
- Não estou falando do tapete, mas sim da casa. Acho que cometi um engano ao trazê-la para cá. É melhor voltarmos para a cidade, não acha?
Samantha foi pega de surpresa.
- E deixar a casa abandonada, em ruína? Você não pode estar falando sério, Ravensworth.
Ela não suportaria se o marido decidisse colocar um obstáculo nas ambições que havia começado a desenvolver. O marquês notou a irritação da esposa.
- Calma, minha querida. Seu desejo é uma ordem. Isto é, se você não se incomodar em colocar em ordem a casa de um ex-solteiro. Agora que estou prestes a
me tomar um homem de família, acho que a casa necessita de uma série de mudanças.
- Evidentemente - murmurou ela com certa distância, aproximando-se da lareira. - É melhor pedirmos para os criados limparem essas cinzas. Serão muito úteis
para o nosso jardim. Falando nisso, Ravensworth, onde estão os criados? Gostaria de conhecê-los.
- Há algumas pessoas por aí que cuidam da casa - disse ele. - Além disso, Denby deve estar chegando de Londres dentro em breve com o resto da nossa bagagem.
- Seu criado pessoal? Tenho certeza de que ele será muito útil.
- Peço-lhe desculpas mais uma vez, Samantha. Se soubesse que a casa estava em condições tão deploráveis, eu jamais teria sugerido que saíssemos de Bath.

- Ah, mas você nunca sugeriu - disse ela em um tom que Ravensworthencarou como uma provocação. Preferiu ignorar, contudo.
- É claro que precisaremos contratar mais pessoas para fazer as mudanças necessárias.
- Quem sabe não conseguimos recrutar o Exército de Wellington? - sugeriu ela com certa frieza, agora analisando a espessa camada de poeira sobre os móveis.
Samantha chegou até a escrever "limpem-me, por favor" em cima da mesa de jantar. Quando notou que o marido a observava com atenção, ela soube que conseguira irritá-lo.
- Não está tão ruim assim. O primeiro passo a ser tomado é chamar o administrador e dizer-lhe quais são os nossos planos.
Ravensworth respirou fundo e teve certa dificuldade em olhar dentro dos olhos de Samantha.
- Pelo que me consta, ele pediu demissão há alguns meses. Eu tinha me esquecido completamente desse detalhe.
- Não me surpreende! - exclamou ela, quase derrubando um vaso que ia pegar. - Imagino que você tinha assuntos bem mais urgentes ocupando sua mente. - A lembrança
das diversões frívolas que tanto prendiam a atenção de seu irmão Vernon e dos jovens com quem se relacionava em Richmond surgiu em sua mente. Ela olhou para Ravensworth
com ares de repreensão,
- Não, milorde, eu não me espanto com o fato de você ter negligenciado suas obrigações com os seus criados. Um homem da sua posição deve ter assuntos mais
urgentes para tratar, como o nó da gravata, o modelo da sua nova capa. Como se preocupar com algo tão banal quanto o bem-estar das pessoas que trabalham para você?
Melhor jogar, sair com os amigos para beber, freqüentar festas, divertir-se com as mulheres.
Até aquele momento, Ravensworth demonstrara tranqüilidade. Após as acusações de Samantha, entretanto, ele sentiu as emoções fervilharem em suas veias. O
choque misturou-se à indignação. Não foram as palavras da esposa que o enervaram, mas sim o fato de ela o ter comparado com um dândi de Londres. Ele admitia que
alguns episódios de seu passado ficariam melhores se esquecidos, mas nada que merecesse tamanha reprimenda. O problema de Samantha era a sua inocência. A maioria
das mulheres na sua posição teria a discrição de fazer vistas grossas às antigas aventuras do marido. Como conseguiria fazê-la mudar de idéia, mostrar-lhe que estava
disposto a mudar, que não queria mais saber daquela vida de libertinagem?, pensou ele.
- Samantha - disse Ravensworth assim que conseguiu recobrar o controle -, gostaria que você parasse de comentar sobre o meu passado lamentável. Ele ficou
para trás. O que importa agora é o presente. Eu posso ter chocado algumas pessoas, porém minha conduta jamais foi escandalosa. - Ele abriu um sorriso. - Ou seja,
não admitirei ser chamado de mulherengo. Eu nunca trouxe uma mulher para a minha casa. Quer dizer, uma mulher com quem me preocupasse o bastante para oferecer a
intimidade do meu lar. Vejo que o fato a surpreende, mas é a mais pura verdade. Quero ser muito honesto com você, minha querida. Admito que me diverti muito, mas
não mais do que os outros homens. - O silêncio da esposa o incomodou ao extremo, incitando-o a uma declaração mais passional: - Samantha, o fato de eu ter escolhido
uma mulher para ficar comigo até o final da vida deve significar algo para você. Os olhos dela registraram surpresa.
- Este casamento, pelo que me consta, nos foi imposto. Você nunca teve a intenção de me tomar sua esposa. A verdade é que eu o comprometi. E realmente sinto
muito, Ravensworth. Sou eu quem lhe deve um pedido de desculpas.
A consciência do marquês o incomodava.
- Samantha, minha querida... Eu gostaria de conversar com você sobre as circunstâncias do nosso casamento. - Ele se atreveu a olhar para os olhos da esposa,
e suas boas intenções desapareceram no ato. Como dizer àquela jovem inocente que ele havia tramado aquele casamento? A honestidade era a virtude suprema aos olhos
dela. Samantha o desprezaria se conhecesse a verdade. Ele deixaria para confessar sua duplicidade em um momento mais adequado.
- O que você ia dizer? - ela o pressionou. - Algo sobre o nosso casamento?
Ravensworth se recuperou depressa.
- Eu queria dizer que, apesar das circunstâncias do nosso casamento, eu não me arrependo de ter me casado com você. - Ele tomou as mãos de Samantha entre
as suas. - Apenas lhe peço uma chance para provar que sou um marido digno da sua confiança. Podemos nos dar uma trégua e começar tudo de novo? Eu farei o que estiver
ao meu alcance para que você não se arrependa de haver se casado comigo. E uma promessa. Palavra de honra.
Aquele discurso apaixonado a deixou sem palavras. Samantha quase nem se deu conta de ter assentido com um gesto da cabeça. Ravensworth não perdeu tempo.
Ele deu-lhe o braço e guiou-a para lhe mostrar o restante da casa. Embora soubesse que ainda havia muito a ser conversado, Samantha sentiu-se feliz. Por algum motivo
inexplicável, ela estava feliz. Feliz como nunca estivera antes.

Durante os dias que se seguiram, Samantha abraçou a tarefa de reformar Oakdale Court. Com o aval do marido, ela começou com uma excursão pela casa acompanhada
dos criados e dos serventes extras que Ravensworth contratara para ajudá-los. Por um instante, Samantha acreditou que ele realmente a escutara e contratara o Exército
britânico. E todos trabalhavam com a maior alegria, contentes por saber que aquela residência tão bela voltaria a brilhar em todo seu esplendor.
Samantha se revelou uma hábil comandante, afastando do serviço quem não julgasse à altura. Era uma característica que herdara do pai. Houve algumas reclamações,
é claro, mas os funcionários dispensados conseguiam, invariavelmente, uma segunda chance com o patrão. Ele tinha um traço mais clemente em sua personalidade.
Noite após noite da primeira semana em sua nova casa, Samantha adormecia no instante em que se deitava na imponente cama de madeira maciça. O marquês não
tinha a mesma sorte, apesar de compartilhar o mesmo cansaço. Ele também fazia sua parte para amimar a propriedade. Os esforços de Samantha se resumiam à casa, e
os dele, aos alqueires de terra que a rodeavam. Ravensworth colocara uma quantia razoável à disposição de Samantha para os gastos de manutenção, e também gastara
uma grande soma investindo em máquinas para a próxima colheita.
Enquanto ocupava seu tempo colocando sua propriedade em ordem, Ravensworth descobriu que nunca tinha sido tão feliz em sua vida. Um homem com todas as intenções
de ter um monte de filhos à sua volta. O fato de Samantha estar exausta e sem condições de dizer mais do que duas palavras durante o jantar era um grande obstáculo
para a realização de seus sonhos. Sua paciência, que nunca fora uma de suas grandes virtudes, começava a se esgotar. Ele se virava de um lado para outro na cama
todas as noites, imaginando quando teria a honra de compartilhar a mesma cama da esposa. Seria uma grande injustiça da parte dela mantê-lo distante quando ele estava
fazendo de tudo para mostrar que havia mudado seu modo de pensar. Queria uma vida mais regular, mais caseira, mais familiar. Ravensworth esperava que Samantha logo
reconhecesse seu empenho para se mostrar um homem mais caseiro.
Como era de esperar, a vizinha deles, lady Adèle, resolveu aparecer para uma visita em um momento bastante inoportuno. Samantha, usando um vestido velho
e uma touca que já tinha visto dias melhores, estava trabalhando no jardim, arrancando as ervas daninhas e preparando a terra para fazer uma pequena horta. Ela havia
acabado de arrancar um pé de alecrim quando viu um grupo de cavaleiros se aproximando. À frente vinha Ravensworth, impecável como um manequim. Samantha o olhou com
certa inveja. Esses eram os benefícios de ter um criado particular para ajudá-lo a se vestir. Sua criada era a nova ajudante da cozinheira, uma mulher franzina que
só se dignava a trabalhar quando fosse extremamente necessário. Samantha quase nunca precisava da ajuda dela. Preferia se vestir sozinha.
Quando o marquês notou a aparência desleixada da esposa, fez seus companheiros pararem um pouco longe. Samantha se endireitou e levou as mãos às costas doloridas.
- Você parece um espantalho - comentou Ravensworth, irritado. - Onde estão os jardineiros? Vou despedi-los por negligência no trabalho. Essa não é tarefa
para uma dama.
- Por que você os trouxe aqui?- perguntou Samantha com a mesma irritação e também envergonhada por estar sendo vista naquela situação. Os outros pareciam
ter saído de um retrato, de tão impecáveis. - Leve-os para casa. Eu encontro vocês na sala de estar - disse ela.
Ravensworth virou seu cavalo para atender ao pedido de Samantha, mas Adèle foi mais rápida.
- Como vai, lady Ravensworth? - perguntou ela, medindo-a da cabeça aos pés. - Hugh não pára de elogiar suas virtudes. Pelo que vejo, você está muito envolvida
com o seu trabalho. Seu esforço é louvável, digno de uma esposa dedicada.
- Chega de elogios, lady St. Clair - disse Samantha, com o máximo de bom humor que conseguiu demonstrar naquela circunstância,
- Não é minha intenção bajulá-la - respondeu a outra, olhando para Ravensworth, impassível em seu cavalo.
Como uma jovem quacre, Samantha aprendera a se dirigir a todas as pessoas com a mesma educação, mas ao olhar com desdém para aquela beldade que tentava ridicularizá-la,
notou que não conseguiria se ater aos princípios da mãe. Seus lábios se entreabriram para proferir uma resposta afiada, porém bastou um olhar do marido para impedi-la.
Samantha se lembrou de Ravensworth ter dito que o mundo estaria observando todas as suas reações, e ela não queria se indispor com o marido na frente de estranhos.
Samantha tirou as luvas de jardinagem e sorriu para todos.
- Sejam bem-vindos. Como podem ver, a nova senhora de Oakdale Court adora cuidar de seu jardim. - Ela abriu um belo sorriso e caminhou entre eles com grande
elegância, como se estivesse vestindo um modelo da última moda em Paris. - Ravensworth fará as honras enquanto eu troco de roupa. Vou pedir que lhes sirvam algo
na sala de estar. Como vai, lorde Grafton? - perguntou Samantha ao avistar o conde.
Ao chegar à cozinha, ela pediu licença e se retirou. Longe dos olhares curiosos de seus visitantes, Samantha subiu as escadas correndo e chamou Nell para
ajudá-la a se arrumar mais depressa. Em questão de minutos estava pronta para descer, porém não tão encantadora quanto a sua rival. Preferira usar um vestido mais
recatado. Ela, porém, possuía uma arma que usava apenas de vez em quando, pois Ravensworth não gostava. Mas aquela ocasião pedia. Samantha balançou os cabelos, que
desceram em ondas por suas costas. A mudança em sua aparência foi dramática. Olhando pela última vez para o espelho, Samantha saiu do quarto e, cheia de confiança,
se dirigiu à sala.


Capítulo XVIII

Um rápido olhar para a expressão sombria de Ravensworth a informou de que seu cabelo solto não lhe agradara nem um pouco. Todavia, como a condessa havia
sentado ao lado dele no sofá, Samantha sabia que não seria repreendida naquele momento. Grafton apresentou-a aos outros membros do grupo, e Samantha notou com certa
surpresa que todos eram, com apenas uma exceção, extremamente refinados.
A visita durou apenas meia hora, como era costumeiro naqueles dias. Quando seus convidados se levantaram, Samantha fez alguns comentários banais com o marido,
dirigindo-se a ele pelo título. No mesmo instante, a condessa desviou a atenção dos convidados para reparar na formalidade entre o novo casal.
- O que é isso, Hugh? Você estimula a sua esposa a tratá-lo com a deferência de um criado? Se o chamar de Ravensworth, minha querida - disse ela a Samantha
com ares de inocência -, você será a única mulher em Londres a não demonstrar intimidade com esse pândego.
O comentário exigia algum tipo de resposta, e Samantha percebeu os olhares constrangidos de quase todos os outros convidados. Ravensworth parecia ter criado
raízes no chão. Ela não podia dizer a verdade e revelar que ainda se sentia uma estranha ao lado do marido, e ele também nunca lhe pedira para chamá-lo por seu nome
cristão. Samantha virou a cabeça e deu um sorriso maroto para ele.
- Ah, eu tenho um apelido para o meu marido que uso apenas quando estamos sozinhos. Não me atrevo a mencioná-lo sem a permissão dele.
- Fique à vontade - respondeu o marquês, cheio de confiança.
- Se você não se importa, Monty - murmurou Samantha com ingenuidade.
Ravensworth cerrou os dentes e suas narinas se inflamaram, mas ele manteve a pose. Então puxou Samantha para o seu lado, envolvendo-a pela cintura.
- E abreviação de Montgomery - explicou ela em tom amável - Mas não é o apelido preferido do meu marido. Tenho alguns outros, porém não costumo usá-los na
frente dos outros.
Samantha sentiu uma pegada mais forte em sua cintura e ficou séria. Tentou se esquivar dos braços do marido, mas não teve jeito. Ravensworth se despediu
dos convidados prometendo-Ihes que os encontraria mais tarde para um jantar informal e um jogo de cartas.
Uma vez sozinhos, ele encarou Samantha, que disse ter inúmeros afazeres pela frente.
- Você é uma mulher incrível, Samantha Langland - disse o marquês, envolvendo-a em um forte abraço. Seus olhos não escondiam sua admiração. - Foi um grande
prazer vê-la em ação.
- E que mente rápida! - brincou ela.
- Monty! Posso lhe pedir algo, rainha querida? Gostaria que você começasse a usar o meu nome cristão.
- Quer me fazer passar por mentirosa? - brincou Samantha. - Você vai se acostumar, Monty. Além disso, quando ouvir esse apelido, saberá que é a sua esposa
que o chama. Cuide para me atender depressa quando escutar o chamado - disse Samantha com um olhar ousado.
- Fique sossegada, minha primavera.
- Primavera?
- Esse será o seu apelido. Você me faz lembrar dos jardins que tanto admira. Eu lhe dou permissão de fazer o que bem entender com a propriedade, mas para
esta planta em especial - continuou ele, afagando-lhe o rosto -, haverá apenas um jardineiro. Vou cultivar a minha primavera com todo o cuidado.
- Cultivar?
- Sim. E pretendo começar agora mesmo - disse ele, tomando-lhe o rosto entre as mãos. Samantha notou um pouco de incerteza em sua expressão normalmente tão
confiante. Sabia que exercia um grande poder sobre o marido e que era capaz de destruir a confiança dele com apenas uma palavra. Ela abriu um lento sorriso e se
viu envolvida em um abraço tão apertado que ameaçava esmagá-la.
Meses de privação com imagens vividas de uma Samantha receptiva em seus braços o atormentaram no instante em que sentiu os lábios dela contra os seus. Ravensworth
gemeu de prazer diante do calor do corpo feminino se derretendo contra o seu. A receptividade do abraço dela o inflamou. As mãos de Ravensworth alisavam todo o corpo
da esposa, desejando possuí-la ali mesmo.
- Não vou deixá-la em paz, minha querida - disse Ravensworth. - Tenha pena de mim. Você sabe que temos um assunto pendente que precisa ser resolvido o mais
depressa possível. - Os lábios dele se movimentavam no pescoço de Samantha. - Venha para a cama comigo. Agora. Você não vai se arrepender.
- Não será possível - disse ela. assim que recuperou o fôlego.
- Samantha! Não teste a minha paciência.
- Nós não podemos. Hoje é quinta-feira, e o piso do andar de cima será lixado. Todos os serventes estão lá.
- Bem, vamos para a biblioteca, então - disse Ravensworth, em desespero.
Samantha se mostrou chocada.
- Não há cortinas lá.
- O sótão?
- Seja razoável, Hugh. Venha ao meu quarto hoje à noite. O simples convite acabou com o ar dos pulmões de Ravensworth.
- Ah, minha querida, como eu esperei ouvir essas palavras - sussurrou ele, afagando-lhe o cabelo. Ravensworth se inclinou para beijá-la mais uma vez, porém
a aparição de duas criadas o impediu. Samantha se desvencilhou dos braços do marido com extrema graça e subiu as escadas. Antes, porém, ela lhe lançou um olhar de
flerte. Ravensworth ficou parado, pensando no que aconteceria dentro de algumas horas.

Os olhos de admiração do marquês se dirigiram à esposa por alguns instantes antes de se voltarem para seu companheiro de mesa. Estava impaciente para que
a noite na casa de Adèle terminasse para poder ir para a sua moradia com Samantha, onde passariam uma noite inesquecível. Ele a olhou conversando com um jovem tímido,
um homem que seguiria as ordens sagradas. Qual seria o assunto da conversa?, imaginou o marquês, sentindo uma pontada de ciúme.
Ravensworth não era o único observando Samantha com interesse. Lady Adèle St. Clair, embora resignada com o fato de ter perdido seu amante, não desperdiçava
uma única chance de atormentar sua rival. Ter perdido o marquês para uma moça tão insignificante era algo inadmissível, e ela encarou o fato como uma ofensa pessoal.
O que um homem com a classe de Ravensworth tinha visto em uma jovem tão simplória e sem nenhum grande atrativo?
Lady Adèle não tinha como saber que o traje recatado de Samantha havia sido escolhido por Ravensworth. Ele insistira para que a esposa usasse um modelo mais
comportado e o cabelo preso. Sua intenção era resguardar sua beleza apenas para si mesmo, e não compartilhá-la com outros homens. Era algo que ele não suportaria.
O marquês ficava furioso sempre que deparava com um olhar de desejo na direção de sua esposa. Como um dia pudera achá-la simples? Ela era a mulher mais encantadora
que ele já conhecera. Quando flagrou a si mesmo despindo-a mentalmente, Ravensworth se forçou a iniciar uma conversa amigável com a srta. Brown sobre o clima.
- Ouvi a palavra "Newgate"? - perguntou Adèle para o jovem que conversava com Samantha, o sr. Guy Sommerville. Samantha ergueu os olhos e notou que todos
olhavam era sua direção.
- Sim - respondeu o sr. Sommerville, com os olhos repletos de admiração por Samantha. - Lady Ravensworth conhece a sra. Elizabeth Fry, uma mulher quacre
que estuda a reforma penal,
- Nunca ouvi falar dessa mulher - comentou Grafton.
- Mas vai ouvir - respondeu Samantha,
- Lady Ravensworth visitou Newgate - interveio o sr. Sommerville, provocando murmúrios de surpresa de alguns dos convidados. Samantha olhou depressa para
o marido e sentiu um grande alívio ao notar que sua expressão continha mais curiosidade do que irritação.
- É verdade, Samantha?
- Sim, a sra. Fry era muito amiga de minha mãe. Quando cheguei à cidade, eu fui visitá-la e ela me convidou para examinar de perto as condições desumanas
das mulheres que vivem em Newgate, sem mencionar seus filhos inocentes. Eu me vi na obrigação de aceitar. Minha mãe teria feito o mesmo, e muitas mulheres quacres
assumiram o compromisso de ajudar a sra. Fry.
- Não é a melhor ocupação para uma dama refinada - comentou Adèle com certo desdém.
Os olhos de Samantha eram frios como gelo quando ela olhou para a sua anfitriã.
- Sabe que é a segunda vez no dia que me dizem algo parecido? Por sorte, eu não pretendo ser uma dama refinada. Prefiro ater-me às minhas responsabilidades.
- Eu acho que lady Ravensworth é uma mulher de grande fibra - declarou o sr. Sommerville.
- Sabe o que eu acho? - disse lady Adèle, começando a se irritar com o assunto. - Eu acho que essas pessoas merecem ficar trancafiadas em Newgate. Elas descumpriram
a lei e estão sendo castigadas.
Samantha ficou possessa e se recusou a aceitar o olhar de advertência do marido.
- Leis! - exclamou ela com voz trêmula. - Quais são as leis que protegem os menos favorecidos? Aquelas mulheres roubaram para alimentar os filhos famintos
e são condenadas como criminosas.
- Elas deveriam deixar que os maridos e pais os alimentassem, se é que eles existem - comentou um homem.
Samantha colocou os talheres na mesa em um gesto de impaciência.
- Meu caro senhor, sua erudição me espanta, pois o verdadeiro âmago da questão ficou evidente. Será que essas mulheres têm marido? Será que têm pai? Se esses
homens tivessem apenas desertado o Exército britânico, o problema não seria tão gritante. Eles deveriam estar em casa com suas esposas, cuidando de suas verdadeiras
famílias.
- Desertar o Exército? - Até o sr. Sommerville se surpreendeu.
Ravensvv-orth lançou um olhar intimidante para Samantha.
- Lady Ravensworth está apenas brincando. Conte a eles, minha querida.
Foi o que Samantha fez.
- A guerra é a forma mais ridícula de solucionar nossos problemas. Vejam o pobre Napoleão, por exemplo. - Ela ignorou o choque dos presentes. - Pensem em
todo o bem que ele fez para a França. Impostos mais justos, leis mais precisas, escolas e universidade para as massas. Até mesmo os americanos o admiram. Não tenho
a pretensão de dizer que ele é um exemplo de virtude, mas não é tão ruim quanto fomos levados a acreditar. O homem tem um bom coração. Nós deveríamos tê-lo acolhido,
e não o enviado a Elba como um criminoso comum.
- Madame, não se esqueça de si mesma - disse Ravensworth, desejando poder torcer-lhe o pescoço.
- Fique tranqüilo, Ravensworth - interveio lorde Grafton. - Somos todos amigos aqui. Até mesmo lorde Byron se expressa nos mesmos termos. Eu concordo com
lady Samantha, em especial sobre os americanos. Nunca entendi o motivo da nossa rixa com eles. São todos britânicos, como você e eu. Acho tudo isso uma grande inconveniência.
As palavras de Grafton serviram para enervar ainda mais o marquês.
- Permita-me ressaltar que em determinados lugares tais comentários seriam considerados de alta traição - declarou Ravensworth. - Como membro da realeza
e fiel servo de Sua Majestade, eu sei quais são os meus deveres. Estamos em guerra com os Estados Unidos da América. Não devemos falar ou agir com indiscrição. Neste
exato momento, o Exército britânico pode estar sofrendo ataque das tropas americanas. Se perdermos essa guerra, você ficaria satisfeito? Gostaria que os americanos
incorporassem o Canadá?
Lorde Grafton demonstrou sua indiferença, mas Samantha não tinha terminado o assunto.
- Claro que não quero que nada prejudique o Canadá. Mas quem provocou essa rixa estúpida? A Casa de Hannover...
- Samantha! - exclamou Ravensworth.- Não quero mais comentários sobre o assunto! - Era uma ordem, e não ura pedido. Observando o brilho perigoso nos olhos
do marido, ela preferiu ficar quieta. Por enquanto.
Quando os criados terminaram de tirar a mesa, Ravensworth chamou-a de lado antes que os homens se reunissem em outra sala para tomar vinho do Porto.
- Pelo amor de Deus, Samantha, tome cuidado com a sua língua. Se não pensa em você, pense na minha posição. Qualquer questionamento sobre a minha lealdade
perante a Coroa poderia me arruinar. - Ele apertou-lhe o braço para demonstrar que sua raiva fora mais pela demonstração em público do que por reprimenda pessoal.
- Agora, seja uma boa garota e converse sobre filhos e casamentos com as mulheres.
A conversa das mulheres na sala de estar foi bastante tediosa. Por sorte, Samantha encontrou na srta. Brown a mesma paixão que ela nutria por jardinagem.
A moça, originária de York, tinha grande conhecimento de ervas medicinais. Samantha ficou encantada com a sabedoria da srta. Brown. Lady Adèle parou alguns instantes
ao lado das duas, mas ao perceber que a conversa não tinha nenhum interesse para ela, virou-se para ir se juntar a outro grupo. Lady Adèle não fazia a menor questão
de esconder seu tédio sem a presença de homens.
- Você será uma excelente nora para o duque - comentou a srta. Brown. - Pelo que me consta, seu sogro adora ervas. Os jardins dele em Dalbreck Hail são bastante
famosos em Yorkshire. Seu marido certamente deve ter lhe contado a respeito da paixão do pai por jardinagem.
- Eu não sei nada sobre o duque, a não ser que ele é um homem bastante severo.
- Severo? O duque de Dalbreck? Alguém a enganou, minha querida. Ele é doce como uma ovelha. Pergunte a lorde Ravensworth.
- Você o conhece?
- Não muito bem. O duque não aparece muito em público desde a morte da esposa. E também não gosta de sair de Yorkshire. Sabia que ele já foi confundido várias
vezes com o jardineiro? Como você e eu, o duque adora cuidar de suas ervas.
- É mesmo? - admirou-se Samantha, revendo mentalmente a imagem que fazia do sogro. - De qualquer forma, imagino que um homem tão importante deva ter se decepcionado
com a escolha da esposa que o filho fez. - Tarde demais, Samantha percebeu que havia exteriorizado seus pensamentos em voz alta.
- De jeito nenhum. Ele é louco pelo filho. Além disso, a mãe de Ravensworth era filha de um homem bem simples. Foi um casamento por amor, e um grande choque
para o velho duque. O pai de Ravensworth não é assim. Ele é bem mais tranqüilo do que o filho, inclusive. Não costuma fazer cerimônia com nada. Tenho plena certeza
de que vocês dois se entenderão muito bem.
- Verdade? - disse Samantha, pensativa. A descrição da srta. Brown de seu sogro não condizia com o que Ravensworth lhe contara sobre a personalidade do pai.
Ela tentou se lembrar das circunstâncias em que ouvira o nome do duque pela primeira vez. Sim, nas semanas anteriores à fatídica noite, quando Ravensworth lhe pedira
para ser sua amante. Dissera que não podia se casar com ela, pois seu pai, o duque, esperava que o filho se casasse com alguém do seu meio social. Mentiroso! Tudo
não passara de um esquema para manipulá-la!
- Como? - perguntou ela ao ouvir a voz de lady Adèle invadindo seus pensamentos.
- Quero apenas saber a sua opinião, minha cara. Você acha que é ético para uma dama usar todos os artifícios para conquistar a atenção de um cavalheiro por
quem desenvolveu um carinho especial?
- A honestidade é sempre a melhor política - respondeu Samantha.
Ela escutou os comentários das outras mulheres com um sorriso indulgente nos lábios.
- Parece que fazemos de tudo para atingir os nossos objetivos - disse a srta. Brown, alegre. - Carruagens quebradas, lenços ou livros derrubados no momento
oportuno. Como somos tolas!
- Os homens são bem piores - comentou lady Susan, uma ruiva conhecida por ter cinco irmãos que despedaçavam o coração das jovens. - Nada os impede de atingirem
seus objetivos. Nossas táticas são infantis se comparadas às deles. Eu ouço meus irmãos conversando e fico perplexa. Quanto mais inatingível o objeto do desejo masculino,
mais desesperados eles ficam para alcançá-Io.
- O que eles podem fazer de tão cruel? - perguntou Samantha, interessada.
- Certa vez ouvi dizer de uma jovem que foi raptada, mas nem todos os cavalheiros costumam chegar a esse extremo. Entretanto, acredito que comprometer uma
dama é um truque bastante comum. Claro, a reputação de uma mulher é arruinada com facilidade, porém a honra do homem nessas situações quase nunca é atingida, quer
ele proponha casamento ou não.
- Como assim? Não estou entendendo direito.
- E simples - disse outra jovem, manifestando-se pela primeira vez. - Se um homem denigre um pouco sua reputação, quem se preocupa? Ele ganha fama de mulherengo,
só que nunca é ignorado pela sociedade. O fato costuma realçar seu encanto perante as mulheres. Como somos tontas!
- Porém uma mulher na mesma posição pode ter a vida arruinada se o homem se recusar a se casar com ela - opinou lady Susan. - Então, qualquer cavalheiro
determinado a ter uma mulher em especial precisa apenas fazer alguns arranjos. Claro, as herdeiras são o alvo mais comum. Algumas fingem até ser pobres para escapar
das armas desses inescrupulosos caçadores de fortunas.
- Vocês nunca prestam atenção ao que as mulheres mais experientes dizem - comentou uma das damas de companhia.
- Entendo - murmurou Samantha, ingressando em um de seus silêncios meditativos. Seus pensamentos iam e vinham. Ela não sabia como compreender tudo aquilo
que acabara de ouvir. Algo estava bastante óbvio. Ravensworth era um mentiroso inveterado. Tinha mentido para tentar convencê-la a ser sua amante, e também mentira
quando a convencera a se casar com ele. O homem tinha uma lábia e tanto! O brilho nos olhos de Samantha e o rosado em suas bochechas normalmente pálidas lhe proporcionaram
um encanto ímpar.
Quando entrou na sala de estar com os outros cavalheiros, Ravensworth olhou para a esposa e considerou-a a imagem mais linda que já vira na vida.


Capítulo XIX

Ravensworth não demorou muito para perceber o ressentimento de Samantha, cujos olhos se recusavam a encontrar os dele, e todas as tentativas que fazia de
aproximação eram ignoradas. O marquês logo desistiu, pois não tinha a menor intenção de participar aos outros membros da casa que havia se desentendido com a esposa.
A frieza dela não foi calculada para irritar o marido, mas quando subiram na carruagem para voltar para casa, as hostilidades vinham de ambas as partes.
- É melhor cobrir seu ombro para não se resfriar - disse ele, ajustando o xale de Samantha. - Você percebeu como a temperatura baixou? Não é muito comum
nesta época do ano.
Não havia como esconder o sarcasmo na voz do marquês. Samantha, por sua vez, não se deixaria abater.
- Acho que a temperatura nesta carruagem logo estará tão alta que você vai preferir estar no inferno - disse ela com toda calma.
Ravensworth jogou a cabeça para trás e riu.
- Vamos começar outra vez, minha doce Samantha? Como poderei me defender se não sei qual foi a ofensa que cometi. Duvido que esteja assim comigo apenas por
eu tê-la interrompido à mesa de jantar. - Ele ficou mais sério. - Saiba que não gostei do seu discurso, mas acho que convenci a todos de que você seria fiel ao seu
marido quaisquer que fossem seus sentimentos. - Ravensworth franziu o nariz em tom de brincadeira.
- Você é um mentiroso, senhor meu marido - falou ela sem o menor preâmbulo. - Mentiu para mim quando disse que seu pai se oporia ao nosso casamento. Você
tentou me transformar em sua amante fingindo que era impossível me oferecer casamento. Mas essa não era a verdade, não é mesmo, Ravensworth?
O coração dele parou por um segundo. Era evidente que as damas a tinham colocado a par da situação. Mais cedo ou mais tarde, ela teria descoberto. Ravensworth
apenas não imaginara que acontecesse tão cedo. Ele deveria ter lhe confessado a verdade quando tivera a oportunidade.
- Samantha, é melhor esquecermos esse assunto. Eu não sou mais o homem que era naquela época. Eu era egoísta, arrogante, não nego. Só que mudei. Por que
não acredita em mim?
- E mesmo? - perguntou ela com falsa doçura. - E quando essa mudança ocorreu?
Ravensworth pegou as mãos de Samantha e respondeu com toda a sinceridade:
- Pouco depois de eu ter lhe feito aquela proposta indecente. Quando você fugiu, e eu não sabia aonde tinha ido ou o que havia lhe acontecido. Saiba que
foram os piores momentos da minha vida. Eu não sabia o que fazer. Pela primeira vez, percebi que me preocupo mais com você do que comigo mesmo.
Samantha puxou suas mãos e sorriu com amargura.
- Isso foi antes ou depois de você ter descoberto que o casamento lhe traria uma fortuna?
- Que fortuna? - perguntou ele, perplexo.
- Ora, Ravensworth, não seja cínico. Você é o maior mentiroso que eu conheci na minha vida. Que fortuna? - imitou Samantha.
O marquês foi pego de surpresa.
- Está querendo dizer que sou um caçador de fortunas?
- Você armou o nosso casamento ou não? - perguntou ela.
- Não exatamente.
- O que isso significa? Diga-me a verdade pelo menos uma vez na vida.
- Significa que os acontecimentos ocorreram da maneira como eu desejava. Tinha a intenção de pedi-la em casamento, porém não sabia se você me aceitaria pelos
meus próprios méritos.
- Quais méritos? Eu sabia que você era um devasso, um homem de moral questionável. A primeira vez que nos encontramos, você estava tentando seduzir a pobre
Adèle. Foi o que eu pensei na ocasião. Pouco depois, você me perguntou se eu queria ser sua amante. Brincou com os meus sentimentos, acreditando que eu deixaria
os meus escrúpulos de lado por você não poder me oferecer casamento. E depois planejou o nosso casamento da maneira mais absurda, acreditando que era meu dever me
casar com você para salvar a sua reputação. Seu tratante!
Ravensworth manteve-se sob controle.
- Acalme-se, Samantha. Eu não nego que haja um fundo de verdade em tudo que está dizendo. Já não admiti os meus erros? Se eu não fui honesto com você, houve
um motivo. O fim justifica os meios. Se não lhe revelei minhas verdadeiras intenções, foi para garantir a nossa felicidade. Você teria recusado minha corte pelo
mais frívolo dos motivos. Sei que você havia criado uma aversão por mim por eu ter lhe proposto ser minha amante. Seu orgulho estava ferido, nada mais. Eu tentei
remediar a situação, sem sucesso. Mas saiba que tudo que fiz foi para salvar a sua reputação.
- É mesmo, milorde? Saiba que a estrada para o inferno está cheia de boas intenções.
Ravensworth não soube como responder, então ficou em silêncio durante o resto do trajeto. Quando a ajudou a descer da carruagem, ele fez uma última tentativa
de paz.
- Quer dizer que não terei o prazer da sua companhia na minha cama esta noite?
Samantha tropeçou e ele a segurou antes que ela caísse. Samantha praguejou, assustando-o.
- Eu aprecio mulheres apaixonadas. O fato de você admitir que me odeia mostra que está cedendo. Um amante teme apenas a indiferença.
Ela caminhou até a casa com toda a dignidade que conseguiu reunir, ouvindo o marido rir às suas costas.

O primeiro de seus visitantes chegou na manhã seguinte. Ravensworth voltou para casa e encontrou Samantha na biblioteca servindo chá para dois jovens cavalheiros.
Ele reconheceu Vernon, porém o outro lhe era estranho. Eles conversavam em voz baixa, observou o marquês antes de se fazer notar. Os olhares que recebeu dos três
levaram-no a crer que havia interrompido algum plano misterioso.
- Ra-Ravensworíh, você já chegou? Permita-me apresentar-lhe meu primo, o sr. John Caldwell, que veio nos visitar do Canadá.
O companheiro de Vernon se levantou para cumprimentar o marquês. Era um homem de cerca de 25 anos, sem grandes atrativos. Sua capa preta e calça bege não
tinham nada de especial, mas eram muito elegantes.
- Você é do ramo Grenfell ou Langland da família? - perguntou o marquês em tom amigável. Ao pegar a xícara de chá das mãos de Samantha, Ravensworth sentiu
um certo tremor nas mãos dela.
- Langland - responderam Vernon e Samantha em uníssono. Caldwell repetiu.
- Somos primos de segundo grau - disse ele, mas a resposta não satisfez Ravensworth.
No final de quinze minutos de interrogatório, o marquês foi interrompido por Samantha, que mudou o rumo da conversa. Em outras circunstâncias, ele teria
insistido, mas como sua esposa fazia questão de honestidade, afastou a idéia de que os três escondiam algo.
- Pretende ficar muito tempo na Inglaterra? - perguntou ele em tom amigável.
- Não. Preciso apenas resolver um problema particular antes de voltar para casa. Tenho mais uma semana. Espero não atrapalhar vocês com a minha presença
aqui.
- Claro que não - disse Samantha. - A família deve permanecer unida. Ficaremos muito contentes se pudermos ajudá-lo.
- Concordo! - exclamou Ravensworth. Pouco tempo depois, ele se levantou e pediu licença para se retirar. - Conversamos mais no jantar. - Ao passai- pela
poltrona de Vernon, o marquês deu um tapa nas costas do cunhado. - Não leve sua irmã muito a sério. Se precisar de um amigo, não hesite em me chamar.
- Obrigado.
Quando a porta se fechou, os três se entreolharam.
- Acho que o marquês chegou à conclusão errada - comentou Caldwell.
- Eu menti para meu marido - disse Samantha com voz trêmula.
- O que aconteceu?'- perguntou Vernon, levantando-se e caminhando de um lado para outro. - Não havia necessidade. Eu jamais teria trazido John aqui se soubesse
que Ravensworth não simpatiza com os americanos.
- Não, não, Vernon! Você está enganado. Ravensworth é leal à Coroa. Foi o que ele me disse algumas noites atrás. Até chegou a me reprimir por eu ter demonstrado
minha aversão à guerra. Eu não podia revelar a sua nacionalidade, sr. Caldwell. Ele o teria enviado às autoridades sem pestanejar. Para meu marido, o senhor é o
inimigo.
- Mesmo assim, ainda acho que devemos contar a verdade a Ravensworth - disse ele. - Eu não sou nenhuma ameaça para a Inglaterra. Tomei persona non grata
aqui pelo simples fato de a guerra no Canadá não estar indo bem para os britânicos. Nós, os quacres, somos considerados suspeitos por ambas as partes por nos recusarmos
a empunhar armas. Permita-me contar a verdade ao marquês. E se ele decidir me entregar às autoridades, eu não estarei correndo tanto perigo. O governo me colocará
em uma cela apenas até o final da guerra.
- Contar a Ravensworth que eu menti para ele? - A expressão de Samantha demonstrava todo o seu horror. - Impossível. Ele jamais me perdoaria. Não toque mais
nesse assunto, sr. Caldwell. Eu jamais poderia encará-lo outra vez.
- Nem eu - concordou Vernon. - Não gostaria de perder a estima do meu cunhado se ele descobrisse que participei dessa mentira.
O sr. Caldwell demorou apenas alguns instantes para se decidir.
- Está bem. Embora a idéia não me agrade, eu farei o que me pediram. Quanto menos vocês conhecerem meus planos, melhor. Eu apenas lhe direi que partirei
à noite para a costa, um dia desta semana. Vernon me acompanhará, depois seguiremos para Londres. Como Ravensworth nos considera dois jovens aventureiros, o fato
não o surpreenderá.
- Como você conheceu o sr. Caldwell, Vernon?
- Por intermédio de alguns conhecidos que sabiam que a nossa família era quacre. Eles estavam procurando um local seguro perto da costa para escondê-lo até
que encontrassem um barco para levá-lo embora. Quando recebi a sua carta, praticamente implorando para eu vir até aqui, encontrei a solução perfeita.
- Fique sossegada, sra. Ravensworth. Seu marido não saberá a verdade. Eu até a chamarei de prima Samantha. E a senhora me chame de John. Vamos ter o máximo
de cautela. Precisamos apenas decidir qual será o nosso parentesco. Há algum parente de vocês que tenha emigrado para o Canadá?
- - Não que eu saiba - respondeu Samantha, pensativa. - Na verdade, não temos nenhum parente por parte dos Langland, a não ser uma tia em Shropshire. Foi
por esse motivo que Ver-non e eu ficamos sob a responsabilidade de nosso tio, sir John Grenfell. De qualquer forma, toda família tem uma ovelha negra que foi para
as colônias em algum momento.
O sr. Caldwell sorriu.
- Precisamos inventar um parentesco - continuou ela. - Vamos dizer que meu pai tinha um irmão, John Langland, que partiu para o Canadá. A filha dele se casou
com seu pai. Pronto. O que acha, sr. Caldwell?
- Primo John - corrigiu ele. - Essa será a nossa história então, mas não seja muito minuciosa sobre o assunto. Por sorte eu ficarei apenas alguns dias, e
ninguém aqui poderá negar o nosso parentesco. Seu marido jamais saberá da sua mentira, a não ser que decida lhe contar.
Encerrado o assunto, os três saíram da biblioteca a fim de se arrumarem para o jantar. Samantha ficou mais calma quando o sr. Caldwell lhe garantiu que não
havia ninguém na região que pudesse colocar seu parentesco em dúvida. Ah, como Ravensworth a odiaria se soubesse a verdade! Ela se mostrara um exemplo da sinceridade
e, agora, estava traindo a confiança do marido. Samantha não gostava nem de imaginar a decepção do marquês se algum dia descobrisse a verdade. Ele jamais acreditaria
na pureza de seus motivos. Duas escolhas lhe restaram: contar a verdade a Ravensworth, e assim jogar o sr. Caldwell na cadeia por taívez um ano, ou mentir para Ravensworth
e ajudar o sr. Caldwell a escapar. Samantha ficou com a segunda opção, mesmo sabendo que o marido nunca compreenderia seus motivos. E por que deveria? Não, ela faria
de tudo para manter a verdade em segredo. Não queria perder a estima de seu marido. Jamais.


Capítulo XX

A sorte de Samantha foi Andie não se encontrar em Oakdale Court, pois a criada não sossegaria enquanto não descobrisse o que havia por trás daqueles olhos
cinza tão preocupados. Ravensworth, por sua vez, achou que ela ainda estava incomodada com a discussão de alguns dias antes.
Sua conduta o impedira de conquistar os privilégios de direito de um marido. Para piorar ainda mais a situação, Samantha passara horas e horas tentando recuperar
o tempo perdido com o irmão e o primo. Ravensworth pôs na cabeça que a esposa o estava castigando por seu comportamento.
Magoado com o desprezo de Samantha, o marquês passou a visitar sua vizinha, lady Adèle, com certa freqüência. O carinho com que ela o tratava fazia bem para
seu ego ferido. Em algumas situações, admitiu o marquês, a falta de originalidade de uma mulher em uma conversa não era necessariamente um sofrimento por algumas
horas. Adèle podia não ter uma mente brilhante, mas quando se tratava de mimar um homem, ela se igualava às outras. Nesse aspecto, sua esposa tinha um grande defeito.
O fato de Samantha não reclamar das ausências rotineiras do marido de nada adiantou para diminuir as suspeitas dele em relação ao seu comportamento distante.
E aquela indiferença o incomodava demais. Mais do que o marquês pretendia admitir. Quando entrou na sala de jantar onde ela e o primo tomavam o café da manha, Ravensworth
notou um caloroso sorriso entre os dois, o que o irritou ao extremo.
- A propósito, minha querida - disse ele, encontrando-a mais tarde na escadaria -, não se preocupe em preparar o jantar para mim hoje. Prometi ajudar Adèle
a comprar alguns cavalos para a sua nova carruagem. Hoje à noite haverá um leilão na cidade e, com sorte, ela conseguirá arrematar bons animais. Não posso prever
quanto vamos demorar.
Samantha o olhou com seriedade.
- Adèle? Quando você a encontrou?
Ravensworth alisou uma prega invisível na manga de sua camisa.
- Para ser sincero, minha dileta esposa, tenho passado em Beechwood sempre que estou por perto. Dia sim, dia não, mais ou menos.
Com satisfação, Ravensworth viu o choque se formando no rosto da esposa após sua revelação. Pouco depois, entretanto, ela recuperou a compostura e continuou
com seu semblante calmo.
- É muito gentil de sua parte me informar, milorde. Não sabia que você costumava ser tão solícito com seus vizinhos.
- Não sou assim com todos. A casa de Adèle é bem perto da nossa e, além disso, eu a conheço há bastante tempo. Desde a morte do conde, ela depende de mim.
Nada me daria mais prazer do que ter a sua companhia, Samantha, mas a minha carruagem acomoda apenas duas pessoas confortavelmente. Espero que não se incomode por
eu estar ajudando Adèle.
A sensação de injustiça que aquelas palavras provocaram evocou o antídoto perfeito para o fardo de culpa que a assolava desde que ela contara aquela mentira
horrorosa ao marido.
- Por que eu deveria me opor? - Samantha perguntou, evitando encontrar os olhos dele para esconder a hostilidade. - Como você mesmo ressaltou, sua intimidade,
digo, amizade com a dama é de longa data. Na verdade, a primeira vez que a vi foi na biblioteca da casa de meu tio, mas aquela cena já foi esquecida, não é, milorde?
Ao ver o sorriso sumir do rosto do marido, ela sentiu o sabor de uma grande vitória.
- A segunda vez que a vi, quando milorde nos apresentou na frente da livraria, você estava agindo como homem de negócios da dama. Pelo que me lembro, era
um assunto relacionado à propriedade do falecido conde. Claro, Adèle nunca teve capacidade para administrar seus próprios negócios. - A referência velada à administração
de Samantha de seu dinheiro acertou Ravensworth como um raio, mas ela estava furiosa e nada a deteria.
- A experiência de ajudar os menos favorecidos é muito gratificante - continuou Samantha. - Por favor, não se preocupe com os meus sentimentos sobre o assunto,
pois não tenho nenhum. Na sua ausência, vou ficar na companhia do meu primo, uma vez que Vernon tem um assunto para resolver na cidade.
- É mesmo? Nesse caso, eu lhe desejo um bom dia - respondeu Ravensworth, antes de descer as escadas e ordenar que um criado mandasse preparar sua carruagem.
O humor de Samantha era dos piores. Ela sabia que agira errado, que não havia sido honesta, mas o fato de Ravensworth estar cortejando Adèle lhe tirou o
equilíbrio.
Levantou a saia e subiu até seu quarto. Pouco depois, Samantha trajava sua melhor roupa de cavalgar. Ravensworth não aprovaria tal atitude, mas ele não estaria
lá para repreendê-la. Talvez nem ficasse sabendo. Ela havia prometido levar Caldwell para um passeio pela propriedade. Sua maior determinação era deixar bem claro
para um determinado cavalheiro que Samantha Langland não admitia ser ignorada dessa maneira.

O passeio de Vernon ao porto de Folkstone foi com o intuito de reconhecimento. Ele tinha usado todos o seu poder de persuasão para convencer o americano
a não se aventurar para o exterior em um momento tão crítico. Depois de muito relutar, Caldwell achou a atitude mais sensata a tomar. Preferiu manter em segredo
o dia exato de sua partida, pois não gostaria que Ravensworth, por obrigação, o acompanhasse em parte da sua viagem.
Quando voltou no final do dia, Vernon trouxe notícias não muito agradáveis. Ao chegar ao estábulo, ele viu a irmã e o amigo conversando no herbário. Ravensworth,
por sorte, não se encontrava por perto.
- Não temos tempo a perder - disse ele, segurando as rédeas do cavalo. - Precisamos partir imediatamente. O chefe da polícia está a caminho. Ele quer conversar
com Ravensworth sobre um americano que fugiu da cadeia.
Vernon ofegava, lutando para recuperar fôlego. Por um momento, Caldwell olhou para o amigo sem saber como agir.
- Você disse que o chefe de polícia está vindo para cá? - perguntou ele assim que notou a urgência de Vernon.
- Eu cavalguei feito um louco para chegar depressa. Ele deve estar meia hora atrás de mim. Todos os estrangeiros precisam mostrar seus documentos. Sendo
assim, você não poderá se passar por canadense.
Caldwell ficou em silêncio, tentando assimilar as palavras.
- E os Heriot? Quando eles me esperam?
- Eles me pediram para avisá-lo que você deve ficar escondido até o anoitecer. Não é seguro viajar à luz do dia.
- Aonde ele vai? - perguntou Samantha, tensa.
- Não faz a menor diferença. Nós o esconderemos na floresta, se preciso for! Mas vamos depressa! - exclamou Vernon, virando o cavalo.
- Espere! Gostaria de dar uma palavra com sua irmã. Você prepara o meu cavalo, por favor?
Apesar da impaciência, Vernon deixou-os a sós, mas antes pediu:
- Seja breve. Eu não quero encontrar o chefe de polícia, muito menos meu cunhado.
Caldwell pegou Samantha pelo cotovelo e levou-a para dentro do estábulo.
- Preciso partir imediatamente. Não quero que ninguém descubra que a senhora me escondeu na sua casa. Poderia ser acusada de cúmplice.
- Não se preocupe - disse Samantha, colocando a mão no braço de Caldwell de modo a tranqüiliza-lo. - Conheço um esconderijo perfeito. Há um chalé abandonado
aqui na propriedade, atrás do moinho. E usado como depósito pelos serviçais. Você deve se lembrar, pois passamos em frente hoje de manhã durante o nosso passeio.
- Sim, eu me lembro - respondeu Caldwell, obrigando-a a andar mais depressa. - Preste atenção no que vou lhe dizer. Tire todos os indícios da nossa presença
em Oakdale House o mais depressa possível, entendeu? Deve parecer que saímos correndo. Conte a quem perguntar que Vernon e eu soubemos de uma festa em Henley e decidimos
ir para lá. Os jovens da moda são imprevisíveis. Ninguém se surpreenderá.
- E as suas coisas? O que devo fazer com elas? Caldwell deu de ombros.
- Vernon pode voltar dentro de um ou dois dias para buscá-las. Precisarei pedir, emprestar ou até roubar roupas. Mas não tem problema. Enquanto isso, esconda
ou destrua-as.
Eles chegaram ao pátio do estábulo no instante em que Vernon apareceu com dois cavalos.
- Não fique tão preocupada- disse Caldwell antes de montar. - Amanhã a esta hora eu estarei a salvo em alto-mar.
Samantha olhou para os rostos animados dos dois e teve a estranha sensação de que eles estavam prestes a aprontar alguma.
- Esperem! - gritou ela, vendo-os se afastar. - Eu irei até o chalé à noitinha para levar um pouco de comida e uma troca de roupas para vocês.
Caldwell mostrou-se relutante, porém Samantha já havia se virado para se dirigir à casa.
- Tenha cuidado - disse ele seguindo em disparada atrás de Vernon.
Samantha havia acabado de colocar as coisas de Vernon em uma maleta quando ouviu vozes no andar de baixo. Depois de verificar se estava tudo em ordem, ela
levou a bagagem para o seu quarto e a colocou ao lado da de Caldwell, embaixo da sua cama. Quase não teve tempo de ajeitar a colcha, pois houve uma batida na porta.
- Milady - chamou a criada -, o chefe de polícia está lá embaixo e gostaria de lhe falar por alguns instantes.
Samantha sentiu o coração disparar.
- Diga a ele que descerei em um minuto - respondeu ela. Precisava se acalmar antes de enfrentar o chefe de polícia, Além de proteger Caldwell, Samantha estava
protegendo o marido. A lealdade dele à Coroa jamais poderia ser questionada. O marquês seria arruinado se as autoridades descobrissem que abrigara um inimigo do
Estado em sua própria casa. E não haveria como provar sua inocência. Samantha estremeceu. Em que enrascada se metera! Mas faria de tudo para sair daquele apuro.
Meia hora depois, ela viu o chefe de polícia se afastar da casa. Samantha nunca achara que seria tão fácil. Tomara-se uma grande mentirosa, e com tão pouca
prática. O chefe aceitara a súbita partida dos dois como um acontecimento natural, conforme Caldwell tinha previsto, e parecera pouco à vontade por ter de interrogar
uma mulher como ela. Logo ao chegar, ele deixara bem claro que a sua presença em Oakdale Place era apenas uma questão de formalidade. O fato de o chefe de polícia
ter aceitado todas as suas palavras como verídicas a deixara mais sossegada para a conversa que teria com Ravensworth.
O marquês apareceu tarde da noite, e Samantha já havia se recolhido em seus aposentos. Sua conversa com o marido aconteceria apenas no dia seguinte, quando
Caldwell já estaria bem longe dali. Além disso, a ausência de Ravensworth foi bastante providencial para ela organizar tudo. Assim que Caldwell partisse, Samantha
seria a mulher mais honesta do mundo, prometeu a si mesma, mas naquela noite precisaria de toda sua coragem para ajudar o pobre fugitivo.


Capítulo XXI

A noite estava gloriosa. A lua banhava todas as montanhas, todas as árvores e pedras com seu halo luminoso, e as estrelas brilhavam como diamantes na abóbada
negra do céu. Os sons eram inúmeros. Samantha virou a cabeça para escutá-los, e a brisa quente acariciou-lhe as faces como um amante invisível.
Era uma noite encantada, uma noite para as fadas dançarem em seus círculos mágicos, para as ninfas emergirem das profundezas das águas e enfeitiçar os mortais.
Era uma noite para o romance.
- Vamos lá, Bessie - disse ela, afagando a crina da égua. - Não tenha medo das criaturas da noite. Elas não passam de superstições. Agora, Ravensworth já
é outra história! Ele é uma criatura de carne e osso e muito temida.
Vinte minutos mais tarde, Samantha parou diante do chalé e desmontou. Parecia abandonado.
- John? Vernon?
A porta se abriu e um fio de luz apareceu. Era Caldwell.
- Onde está Vernon? - perguntou ela imediatamente.
- Foi na frente para preparar os meus amigos para a minha chegada. Eu não quero que o encontrem comigo. Também não quero que a senhora fique aqui mais do
que o necessário. Se alguém nos encontrar juntos... - Ele deixou a voz sumir, e Samantha se arrepiou diante da implicação daquelas palavras.
- Ninguém vai nos encontrar. Eu tomei o máximo de cuidado ao vir para cá - disse ela com uma confiança que não sentia. - Tome, você deve estar com fome.
Eu trouxe um pouco de comida.
A janela havia sido coberta com uma antiga manta para esconder a fraca luz da lanterna. Caldwell sentou-se à pequena mesa e apontou uma cadeira para Samantha
fazer o mesmo. Ela colocou a trouxa sobre a mesinha. Uma garrafa de vinho, algumas fatias de presunto, um pouco de frango, pão fresco e uma generosa fatia de torta
de maçã.
- Não trouxe prato e nem talheres.
- Não se preocupe com isso - respondeu Caldwell, tirando a rolha da garrafa de vinho já aberta. - Eu não me importo em fazer piquenique.
Samantha observou-o comendo com gosto até toda a comida desaparecer. Quando conversaram, foi sobre amenidades. A noite havia perdido sua magia. Tudo parecia
tão mundano. Ela suspirou e notou um brilho nos olhos de Caldwell.
- Quais são os seus planos imediatos? - perguntou Samantha.
- Tudo está sendo providenciado, como já lhe expliquei. Partirei amanhã. Para a sua proteção, é melhor que a senhora não saiba mais nada.
Ele terminou de comer e recostou-se na cadeira com satisfação.
- Foi um verdadeiro banquete. Nem sei como lhe agradecer. Caldwell, então, ofereceu um pouco de vinho a Samantha.
- Por que não? Não vejo mal nenhum em beber um pouco de vinho de vez em quando.
Ela deu um longo gole na bebida. E engasgou. O acesso de tosse que a acometeu fez com que Samantha derrubasse o vinho no vestido. Ela limpou o tecido com
o pano que trouxera para embrulhar a comida. Caldwell a olhou por alguns instantes antes de falar:
- Milady, espero que não se importe se eu for direto. Samantha ergueu os olhos diante da seriedade na voz dele.
- É uma reprimenda quacre? - brincou ela.
- Claro que não! Apenas algumas palavras de conselho de um amigo que, provavelmente, a senhora nunca mais encontrará.
Samantha ficou no mais profundo silêncio.
- Mas não faz mal! - Caldwell se levantou, e ela fez o mesmo. - Seja boa com Ravensworth.
Eles foram interrompidos pelo relinchar de um cavalo.
- Bessie nunca foi uma égua paciente. Acho melhor eu ir embora - comentou Samantha. - Eu lhe trouxe algumas roupas que estão em uma trouxa que deixei presa
na sela.
- Não se preocupe comigo - Caldwell a tranqüilizou, segurando-lhe as mãos. - Eu avisarei quando conseguir chegar ao Canadá. Obrigado por tudo que a senhora
fez por mim. - Em um gesto de agradecimento, Caldwell levou as mãos dela aos lábios e beijou-as com ternura.
Naquele momento, a porta se abriu e uma figura imponente e ameaçadora entrou.
- Ravensworth! - A palavra, quase um sussurro, escapou dos lábios de Samantha.
O silêncio se estendeu por vários instantes.
- Ravensworth a seu dispor - disse ele sem esconder a ironia. Deu um passo na direção de Samantha e agiu sem pensar. Ela tirou as mãos das mãos de Caldwell
e colocou-se entre os dois homens, com os braços abertos. Tal atitude tirou o marquês do sério. Com uma fúria demoníaca, ele afastou Samantha de seu caminho, fechou
o punho e acertou um soco em Caldwell. Ela tropeçou na mesa e caiu no chão. Quando conseguiu erguer a cabeça, viu que Caldwell estava de joelhos. Ravensworth segurava-o
pelo pescoço e o açoitava nas costas. Samantha gritou em sinal de protesto, mas ele não a escutou. Ela se levantou e jogou-se em cima de Caldwell para impedir que
aquela cena continuasse.
- Você se atreve a proteger este homem? - gritou o marquês, possesso.
- Ele não vai lutar com você! - gritou Samantha. - Ele não vai se defender. Você não compreende? Este homem é um quacre. Ele permitirá que você o mate, sem
se defender.
As palavras pareceram acalmar Ravensworth por um momento. Então toda sua fúria se voltou para a esposa. Ele apertou-lhe os punhos e olhou-a sem a menor piedade.
- Vagabunda! - Ravensworth a balançou como se ela fosse uma boneca de pano.
- Não é o que você está pensando - defendeu-se Samantha. De repente, as palavras penetraram em sua mente. - Como você ousa me acusar dessa maneira? Solte-me,
seu monstro! Como se atreve a proferir esse absurdo?
Ravensworth a chacoalhou outra vez, e Samantha não tentou escapar.
- John, saia daqui! Eu lhe imploro! Ele não vai me machucar, eu juro!
Caldwell, atrás do marquês, continuava ajoelhado no chão, massageando o pescoço dolorido. Ele se levantou e colocou as mãos na cabeça.
- Não... Não...
Ravensworth se virou como se fosse golpeá-lo novamente, mas Samantha puxou-o pela camisa.
- Hugh, escute-me! Ele é um quacre! Um quacre. Você não pode bater em um homem que jamais se defenderá. Pelo amor de Deus, seja racional. Deixe-o ir embora.
O marquês se virou para o adversário.
- Você é o homem mais desprezível que já conheci em toda a vida. Covarde! Não pense em se esconder atrás da minha esposa. Nada o salvará da minha fúria.
A esse discurso apaixonado, Caldwell respondeu com uma negativa, temendo ser chicoteado mais uma vez.
- Você não tem orgulho? Por que não luta comigo como um homem?
- Os quacres são diferentes -- respondeu Samantha, tentando fazer com que seu marido compreendesse. - Nós temos verdadeiro horror a qualquer tipo de violência.
Deixe-o ir, Hugh. Eu posso lhe explicar tudo.
O uso do pronome "nós" trouxe a ira de volta ao rosto do marquês.
- Um pacifista - disse ele com desdém. - Um pacifista. Quer dizer que eu não tenho o direito de defender a minha honra, que eu não posso desafiá-lo para
um duelo e acertar-lhe um tiro?
- Não se você quiser ser considerado um verdadeiro homem honrado - respondeu Samantha, enxergando a primeira pontada de esperança.
- Você é um homem de sorte. - Ravensworth riu com amargura. - Saiba que, se tiver molestado minha esposa de qualquer maneira, eu não hesitarei em acabar
com a sua vida. Sendo você quacre ou não.
Caldwell tossiu para tentar recobrar o comando de sua voz.
- Faça o que bem entender comigo. Eu apenas lhe imploro para que não machuque a sra. Samantha. Eu jamais ousaria encostar um só dedo nela. Milady é como
uma irmã para mim.
Eu errei ao permitir que ela me ajudasse, mas o senlior precisa acreditar que não fizemos absolutamente nada de errado.
- Nada de errado? E o que eu devo imaginar ao encontrar minha esposa com um homem em um chalé abandonado no meio da noite?
- Eu já disse que não aconteceu nada entre nós.
- John não tem culpa, Hugh. Foi tudo armação minha. Como você descobriu?
Ravensworth a olhou com extremo nervosismo, ignorando a pergunta.
- Eu deveria ter imaginado que os seus escrúpulos estavam por trás disso tudo. Samantha, você nunca conseguirá controlar sua ânsia de fazer o bem sem pensar
nas conseqüências?
- Eu gostaria de esclarecer... - interferiu Caldwell.
- Mais tarde - disse Ravensworth. - Volte para casa. Mais tarde conversaremos.
Caldwell fez menção de dizer algo, porém Ravensworth não escutaria.
- Meu bom homem, eu não quero mais saber de você aqui. Teremos tempo suficiente para acertar as nossas contas. Fui claro?
- O senhor não compreende...
- Saia daqui! - esbravejou o marquês. - Quero ficar sozinho com minha esposa. Será que é tão difícil de entender?
Caldwell hesitou, mas ao ver o apelo nos olhos de Samantha, retirou-se do chalé. Pouco depois, os dois ouviram o cavalo se afastando. Ravensworth se aproximou
dela e agarrou-a.
- Vadia! Bruxa!
- E mentira! E você sabe muito bem - gritou Samantha, revoltada. Não admitiria ser tratada daquela maneira.
Ao olhar nos olhos de Ravensworth, ela enxergou algo que a aterrorizou.
- Ah, não, Hugh! Por favor... - pediu Samantha, balançando a cabeça para os lados. - Eu não quero...
Ele não deu o menor indício de que ouvira o pedido e, como um homem agindo sob uma estranha compulsão, Ravensworth começou a tirar os grampos do cabelo dela.
Uma onda de cachos dourados escorreu pelas costas de Samantha.
- Por favor, Hugh, eu quero ir para casa.
- Você está recusando o seu próprio marido, Samantha? Vai inventar mais uma desculpa para evitar o inevitável?
- Eu não tenho medo de você, Hugh Montgomery - respondeu ela, olhando-o bem dentro dos olhos. Havia um sorriso nos lábios do marquês. - Hugh, eu posso explicar
tudo. Você não vai gostar de saber a verdade, mas não é tão ruim quanto parece.
- Eu não duvido.
- Por favor, Hugh!
- Depois. Depois você me conta a sua versão dos fatos.
- Depois do quê? - perguntou ela, tentando se afastar. - Você acha que eu permitirei...
Antes de terminar a frase, Samantha percebeu que cometera um grande erro. A fúria surgiu nos olhos dele diante da rejeição. Ela aproveitou para sair correndo.
Ravensworth a alcançou em um piscar de olhos e tomou-a nos braços.
- Hugh, eu estou com medo - sussurrou Samantha, engolindo um soluço. O marquês abriu os braços, e ela se entregou ao homem a quem amava.
- Calma, minha querida. Você sabe que eu jamais faria algo que pudesse machucá-la.
Samantha chorou nos braços do marido. Por um momento, ela perdeu o controle e se lembrou do dia da tempestade, quando Ravensworth a acolhera com tanto carinho.
Fechando os olhos, respirou fundo e se deixou envolver por aquele homem a quem tanto amava. Ravensworth a possuiu com paixão incontida, recusando-se a soltá-la
quando Samantha mordeu seu ombro em sinal da dor. Mas a dor logo passou, cedendo espaço a uma experiência inesquecível. Os dois permaneceram abraçados por um longo
período, deliciando-se com a novidade do amor.


Capítulo XXII

Quando recebeu a notícia de que o sr. Caldwell tinha conseguido escapar e que não havia o menor sinal dele em Oakdale House, Samantha nem se atreveu a piscar.
Ravensworth surgiu depressa em seu quarto demonstrando certa irritação.
- O safado deve ter escapado no meio da noite. Ele nem chegou a dormir na cama. Devo tê-lo amedrontado. Como ele pode ter achado que eu lhe faria algum mal?
- O que poderia ter dado essa idéia a Caldwell? - perguntou ela, tirando o lençol da cama que dividira com o marido na noite anterior. Samantha se espreguiçou,
sentindo uma grande alegria.
- Você parece uma gata que acabou de se refestelar com uma tigela de creme- brincou ele, acariciando-a com seu lindo sorriso. A visão da camisola em desalinho
e de um seio à mostra deram um outro rumo a seus pensamentos.
- Sou uma gata de sorte- respondeu Samantha, suspirando.
- Palavras ousadas para uma jovem pura que fugiu de mim como um coelho assustado.
- Você não pode me culpar!
Ela se levantou depressa da cama e foi até o quarto de vestir.
- Eu achei que você fosse nos matar. E Caldwell também. Mas não perturbe a sua mente com aquele jovem engenhoso. Se entendi direito o plano, eleja deve estar
em alto-mar, a salvo e a caminho da América.
Ela penteava o cabelo, sentada em frente à penteadeira, quando Ravensworth apareceu.
- Em alto-mar? América? Do que está falando, Samantha? - Ele se mostrou confuso.
Ela o olhou com inocência através do espelho enquanto prendia o cabelo com grampos.
- Caldwell não podia ficar aqui sem a documentação, sendo que o chefe de polícia estava atrás de um americano foragido. Não precisa se preocupar com ele.
Eu lhe garanto que Caldwell sabe o que está fazendo. A fuga foi planejada em todos os detalhes por seus amigos quacres. - Samantha deixou um grampo cair e se abaixou
para pegá-lo. Quando se levantou, surpreendeu-se com o olhar perplexo de Ravensworth. - Achei que você soubesse.
- Não. Como eu poderia saber? Eu sabia apenas o que você me contou. Imaginei que pudesse estar me escondendo alguma coisa, mas deduzi que Caldwell e seu
irmão estavam tramando algo e vieram até Kent para fugir um pouco da agitação das festas. Estou errado?
Samantha ficou calada.
- E então? - O marquês mostrou-se impaciente. - O que tem a me dizer?
Ela sentiu um nó no estômago. Seus olhos, que antes haviam revelado intimidade, agora eram frios e distantes. O azul tinha se tomado quase transparente.
Samantha começou a explicar as circunstâncias da chegada de Vernon e Caldwell e de como ela se oferecera para ajudá-lo sem envolver o marido.
- Eu não quis mentir, Hugh. Você precisa entender - terminou Samantha com uma nota de desespero na voz. - Entretanto, naquele momento, sabendo qual era a
sua posição perante os americanos e a guerra, pareceu-me a única solução. Como poderia abandonar Caldwell? Você mesmo me disse uma vez que o fim justifica os meios.
Sob tais circunstâncias, eu me vi na obrigação de deixar meus escrúpulos de lado. O olhar de desprezo de Ravensworth a deixou muda.
- E a sua consciência, Samantha? - perguntou ele com deboche. - Você não teve o menor pudor em contar uma série de mentiras para seu marido?
- Não, não é nada disso! - continuou ela, inundada pela culpa. - O que eu podia fazer? Foi uma emergência.
- Você poderia ter me contado a verdade, para início de conversa. Será que não sou digno da sua confiança? Eu confiei cegamente em você, e veja como fui
recompensado! Eu deveria ter imaginado que algo do gênero aconteceria. - O marquês cerrou o punho e acertou um soco em sua outra mão. - Droga! Como fui tão tolo
a ponto de acreditar em todas as suas mentiras? Eu estava disposto a fazer vistas grossas para o seu comportamento ousado. Esperava que, com o tempo, você se tornasse
minha companheira, que eu conseguiria acalmar seus ímpetos, que você um dia se tomaria minha duquesa. Ah, como me enganei! Eu deveria ter me casado com uma mulher
do meu nível, como sempre pretendi, uma mulher refinada que sabe como se portar diante de quaisquer circunstâncias. Mas, acima de tudo, uma mulher que fosse leal
com o marido em primeiro lugar. Ah, como fui ingênuo ao me casar por amor!
Ele se afastou, como se a visão de Samantha o enojasse. Ela permaneceu calada, sentada, deixando que a veracidade daquelas palavras penetrasse em sua mente.
- O que posso dizer?- murmurou Samantha pouco depois. - Minha conduta foi inaceitável, mas Hugh, você não pode encontrar uma maneira de me perdoar, de tentar
compreender
O dilema que enfrentei? Não pode pelo menos tentar me conceder uma trégua?
Ravensworth não a perdoaria. Ele havia colocado a esposa em um pedestal. E Samantha descera dali sem sua ajuda, destruindo, assim, todas as suas ilusões.
- Conceder uma trégua? Quando você me concedeu uma trégua? - perguntou o marquês, nervoso, rodeando-a. - Eu achei que estava quase conseguindo seu amor e
respeito. Você me fez sentir pior do que um verme. Fui um grande idiota bancando a parte do sábio e beneficente dono da propriedade, pois acreditei que você era
perfeita para mim. É demais! - Ravensworth deu uma risada nervosa.
Samantha enfiou as unhas na palma da mão no intuito de controlar seu pânico. Sabia que estava perdendo seu marido, e era o que merecia.
- Hugh, eu sinto muito - foi tudo o que ela conseguiu dizer.
- Achei que você fosse diferente das outras mulheres, que valia a pena conquistar seu amor. E você me fez de idiota.
- Hugh - choramingou Samantha, sem saber o que mais dizer para que o marido a perdoasse. - Não diga mais nada. Você está descontrolado. Quando sua raiva
diminuir um pouco, nós conversaremos mais sobre o assunto. Agora, seu orgulho está falando mais alto.
Sem dizer mais nada, Ravensworth se virou e caminhou até a porta.
Aquilo não estava acontecendo em sua vida, pensou ela, levantando-se na mesma hora. Era um pesadelo do qual dentro em breve despertaria.
- Aonde você vai?
- Voltar para a minha vida antiga - respondeu o marquês. - Naquele meio, são poucas as mulheres virtuosas, o que me alegra muito diante das atuais circunstâncias.
- Mas... E a noite passada?
- Não pense muito no assunto, minha querida. Uma andorinha só não faz verão. - Ele abriu a porta.
- Qua-quando eu o verei de novo? - insistiu Samantha.
- "Nunca" seria cedo demais, meu amor?
A porta de fechou atrás de Ravensworth, e Samantha se encolheu como se tivesse apanhado. Então sentou-se no banquinho da penteadeira, tentando controlar
o formigamento em seu corpo. Tinha perdido seu querido marido para sempre e não havia nada a fazer. Como fora tola a arriscar seu único atrativo, a virtude. Jamais
conseguiria recuperá-la. Ao inferno com a virtude!, pensou ela. Por que ele não pode me amar pelo que sou?

- Harriet? Ah, minha querida, é você mesma?
Harriet se espantou com o nervosismo na voz da prima. Segurou as saias de seu vestido vermelho, preparando-se para descer da carruagem do visconde de Avery
que acabara de chegar à propriedade de Ravensworth. Ela piscou duas vezes ao deparar com a imagem miserável de Samantha parada na escadaria de mármore da entrada
principal de Oakdale. Harriet apertou a mão de Avery.
- Meu Deus, Samantha! - ela exclamou, impressionada com o desleixo da prima. - O que aconteceu com você?
Diante da nota de solicitude na voz de sua tão estimada amiga, Samantha desceu as escadas correndo e se jogou nos braços de Harriet.
- Calma, calma, Harriet está aqui para ajudá-la. O que aquele bruto fez com você, minha querida?
- Nada - choramingou Samantha. - Fui eu quem estragou a minha vida. Por favor, não coloque a culpa em Ravensworth.
- Onde ele está?
- Faz quinze dias que partiu para Londres. Ele não quer me ver nunca mais.
Harriet ficou indignada.
- E não verá! Pedirei a Avery que vá até Londres lhe pedir satisfação.
O visconde ficou calado.
- Vamos entrar antes que fiquemos ensopados? - perguntou ele em tom casual, algum tempo depois. - Por que você não leva Samantha para dentro enquanto eu
entrego os cavalos ao cocheiro? Quem sabe depois de uma boa conversa nós não consigamos resolver o problema?
- Por favor, não fique brava com Ravensworth. Eu o enganei. Eu traí meu próprio marido. Não sou mais a jovem inocente que fui um dia.
Um olhar de horror passou pelo rosto normalmente calmo do visconde.
- Samantha... essa é uma notícia chocante!
- Não exagere, Avery! - observou Harriet com um sorriso débil que afastava qualquer tipo de rancor. - Vá cuidar dos seus afazeres e encontre-nos dentro de
uma hora.- Ela abraçou a prima e guiou-a escada acima para dentro da mansão de Ravensworth.
Depois de duas grandes taças do vinho Madeira reservado apenas para ocasiões especiais, o ânimo de Samantha começou a melhorar. Nada parecia tão triste quando
tinha o conselho capaz da prima para guiá-la. A notícia do casamento de Harriet foi uma grande alegria em meio a toda a tristeza que a envolvia desde a manhã em
que Ravensworth partira.
- Eu lhe desejo toda a felicidade do mundo.- Uma lágrima escorreu pelo rosto pálido de Samantha.
- Conte-me o que aconteceu - pediu Harriet, preocupada com o choro compulsivo da prima. Depois de algumas perguntas e em meio a soluços amargurados, Harriet
ficou a par de toda a história.
- Não vejo motivo para tanta preocupação - disse ela assim que Samantha terminou de falar. - É apenas uma briga de amor.
Samantha ficou impressionada com a lógica da prima.
- Não é assim, não, Harriet. Eu arruinei tudo. Você não percebe? Ele se apaixonou pela minha inocência, pela minha virtude, e eu destruí esse amor.
- Não seja exagerada! Se você fosse um pouco mais madura, não estaria passando por esse apuro. - Ela colocou o copo em cima da mesa e então abriu a bolsa.
Depois de um instante, tirou uma pequena caixa de rapé com um diamante incrustado.
- Não podia ser mais perfeito - comentou Samantha com um traço de alegria.
- Foi o presente de casamento de Avery. Aceita um pouco? O prazer de Samantha deu lugar á incredulidade.
- Quer dizer que Avery não se opõe a você cheirar rapé?
- Claro que não! Eu não me casei com um puritano. Ele é um homem de mente aberta e gosta que a esposa se destaque em meio à sociedade. - O peito de Harriet
se inchou de orgulho. - Não me diga que você parou?
Samantha pegou um pouco do pó aromático e levou-o ao nariz.
- Não. Mas Ravensworth não permite que eu cheire rapé. Harriet a olhou com espanto.
- Como não permite? Não acredito no que estou ouvindo! Samantha intimidada pelo marido? Não, definitivamente não é possível.
- Eu não permito que ninguém me intimide, Harriet. - Samantha endireitou-se ao notar a censura na voz da prima. -
E saiba que Ravensworth é um homem muito bom, melhor do que você pode imaginar. Admito que o comportamento dele seja um pouco estourado, mas, dessa vez,
isente-o de qualquer injustiça. A culpa é toda minha.
Pensativa, Harriet olhou para a prima.
- Se você tivesse de fazer tudo de novo, revelaria a verdade sobre Caldwell e permitiria que as autoridades o capturassem?
- Não! Claro que não! Harriet insistiu.
- Então onde você errou?
- Sinceramente? Não sei.
- Samantha, preste atenção. Você se meteu em uma série de encrencas, e só agora permitiu que lorde Ravensworth ficasse com a última palavra. Certo ou errado,
você sempre tomou o partido dele. E Ravensworth a admirava por isso! Agora, olhe só para você! Parece um cachorro abandonado com o rabo entre as pernas. Você não
tem mais aquele brilho de antes, não é mais aquela garota rebelde.
- Eu? Garota rebelde? - perguntou Samantha, rindo do apelido nada adequado para uma jovem quacre tão recatada.
- Sim. E que mudou a aparência de uma hora para outra. Primeiro, a mulher virtuosa; depois, a mulher fatal.
- Eu sei, mas foi por um bom motivo.
- Sua reputação foi colocada em jogo quando você entrou no camarote da cortesã mais famosa de Londres - continuou Harriet.
- Não seja injusta! Eu estava apenas cumprindo o meu dever.
- Isso não é tudo.
- Não?
Harriet não se deixou desanimar pela falta de interesse da prima no assunto.
- Não, claro que não! Quem foi praticamente violentada por um lorde amoroso e correu para se proteger nos braços de um cavalheiro nu?
- Ele não estava completamente nu - protestou Samantha.
- Ah, não? - perguntou Harriet, um tanto quanto desapontada. - Então não me contaram direito a história. Agora, quem encantou o coração do herdeiro de um
ducado que poderia ter qualquer mulher que desejasse?
- Como você sabe disso?
- Avery, é claro- respondeu Harriet, sem o menor remorso de estar acabando com a compostura frágil de Samantha. - Minha querida, esse tipo de deslizes não
acontecem com damas bem-nascidas e insípidas como água de rosa. Uma mulher dessas esconderia um belo jovem na propriedade do marido e sairia no meio da noite para
encontrá-lo? Responda!
Samantha baixou a cabeça, envergonhada.
- Encarando assim, vejo que o meu comportamento foi dos piores. Não me espanta o desgosto de Ravensworth. Você tem razão, Harriet, eu sou uma garota rebelde
e não sirvo para meu marido.
- Ah, Samantha, você não entendeu nada do que eu disse? Não prestou atenção em nada? Ravensworth não aceitaria uma esposa normal. Ele se cansaria na primeira
semana de casamento. Ao contrário do que o marquês possa ter lhe dito, ele admira a sua ousadia. No fundo, no fundo, Ravensworth não quer culpá-la. Acredite em mim,
Samantha, eu sei do que estou falando.
Samantha abriu a boca para discordar da prima, mas, de repente, um clarão de esclarecimento brilhou em sua mente.
- É verdade! É verdade!
- Claro que é verdade. Ou você acha que ele se apaixonou pelos seus princípios quacres? Não, não pense que essa característica não fez parte da atração,
mas você se lembra do primeiro encontro, aquele dia da carruagem?
- Aquele não foi o nosso primeiro encontro. Da primeira vez que o vi, Ravensworth me beijou.
Harriet arregalou os olhos, perplexa com a revelação ousada da prima.
- Samantha! E você deixou?
- Eu não pude impedi-lo! - admitiu ela, baixando os olhos.
- Bem, agora precisamos de um plano de ação - falou Harriet.
As duas passaram a discutir a complexidade do problema. Depois de um tempo, Samantha quebrou o silêncio:
- Harriet, o que vou fazer? Não posso persegui-lo como uma esposa proscrita. A cidade inteira ficaria sabendo da nossa briga.
A prima respirou fundo.
- Samantha, você está disposta a gastar um pouco para ter seu marido de volta?
- Eu tenho o dinheiro dos rendimentos. Pór quê?
- Encontrei a solução perfeita. Avery apareceu à porta.
- Posso entrar?
- Ah, querido. Você não imagina o que Samantha vai fazer por nós.
- Mal posso esperar para saber. Os olhos de Harriet brilharam.
- Samantha vai oferecer um baile em nossa homenagem. Não é um gesto muito amável?
- Muito - respondeu ele, inclinando a cabeça na direção de Samantha. - E onde se realizará o baile em questão?
- Aqui.


Capítulo XXIII

Quando Ravensworth ficava de mau humor, apenas um pensamento lhe ocupava a mente: embarcar em uma noite de tanta devassidão que a imagem da mulher que capturara
seu coração não o atormentaria em nenhum instante sequer. Dez horas mais tarde, depois de uma rápida viagem a Londres, ele estava instalado em seu quarto em Albany.
E logo em seguida saiu para a vida noturna da cidade.
Esse foi seu primeiro erro, pois depois de jogar e de beber, o marquês se viu envolvido por um sentimentalismo piegas que lhe causou uma sensação de impotência.
Além disso, continuava a desejar a mulher que havia colocado os interesses de um estranho acima dos do próprio marido. A traição ao país não o incomodava tanto assim,
porém a ofensa pessoal era algo quase impossível de suportar.
Embora estivesse em posição vantajosa, Ravensworth seguiu pela rua St. James, passando pelo parque St. James, caminhando até chegar ao bairro de Abbey. Ele
parou diante de uma modesta casa e bateu na porta com sua bengala de marfim. A porta se abriu quase no mesmo instante, e Ravensworth entrou. Esse foi seu segundo
erro da noite.
O marquês de Ravensworth não era estranho no estabelecimento da madame Rainier e de suas garotas. Em seus dias de solteiro, ele era um cliente assíduo e
respeitado que gostava de passar algumas horas se divertindo na companhia das belas jovens. O marquês acenou para um conhecido e tentou afastar o sentimento de culpa
que ameaçou oprimi-lo. Acomodou-se na grande poltrona de veludo, cruzou as pernas e serviu-se de uma dose de vinho, enquanto madame Rainier foi buscar a jovem que
o entreteria naquela noite.
O lugar estava tão cheio como de costume, com homens entrando e saindo, subindo e descendo as escadas. De certa forma, ele achou a alegria do ambiente deprimente,
embora os sorrisos das jovens quase nuas fossem constantes. Ravensworth não se importava com aqueles sorrisos vazios nem com o aroma do perfume francês que pairava
no ar. A fragrância de ervas de Samantha que inundava sua casa em Kent era bem mais sedutor, admitiu ele, embora relutante. Diante da lembrança da esposa, o marquês
tomou um longo gole de vinho.
Uma sombra escureceu-lhe o rosto, e ele ergueu os olhos para ver a forma feminina que caminhava em sua direção. Atrás da mulher que sorria, o'marquês avistou
uma jovem loira com o cabelo preso em um coque na nuca.
- Esta é Angèle, sua diversão para a noite - declarou madame Rainier em um tom confidencial, empurrando a jovem para os braços de Ravensworth.
O marquês engasgou com o vinho. Ela era a imagem de Samantha! O marquês deu um grito furioso e jogou na grade da lareira a garrafa vazia, que se estilhaçou.
Houve um silêncio no salão e depois tudo se transformou em um verdadeiro inferno. Ravensworth acusou madame Rainier de incitar garotas inocentes a entregai*em seus
corpos aos homens, esquecendo-se de que um dia tinha sido freqüentador assíduo do lugar. A jovem parecida com Samantha, uma das prediletas dos clientes, ficou parada,
perplexa, escutando a reprimenda do marquês.
A princípio, Ravensworth foi confundido com um pastor metodista cujo principal intuito era reformar um mundo que não tinha a menor intenção de ser reformado.
O acesso de Ravensworth foi tão chocante que madame Rainier não hesitou em chamar seus lacaios para ajudá-la a se livrar daquele sujeito tão inoportuno.
Ravensworth foi expulso do estabelecimento e tentou caminhar até sua casa. Em seu estupor de embriaguez, ele não se lembrou de muita coisa. Denby o ajudou
a se deitar na cama sem fazer um único comentário a respeito das marcas que desfiguravam o belo rosto de seu patrão. Esse era o comportamento de um criado que o
seguia havia mais de dez anos.
Quase quinze dias se passaram até o marquês se recuperar da surra que havia levado depois de sair da casa de madame Rainier. Durante esse período, ele não
saiu de casa e também não recebeu nenhum visitante. Por algum motivo inexplicável, não queria que nenhum comentário sobre o terrível incidente chegasse ao conhecimento
de sua virtuosa esposa. Quando, por esse motivo, Denby recomendou-lhe passar alguns dias no campo, Ravensworth se recusou terminantemente, pois não tinha a menor
intenção de voltar para casa como um cachorro abandonado.
O período de inatividade forçada lhe proporcionou tempo para refletir e analisar sua situação. Não sabia ao certo como agir. Ele teve de admitir que sua
vida sem Samantha não tinha graça, que não queria voltar à sua antiga existência. Na realidade, Ravensworth não estava conseguindo viver sem sua amada esposa. Mas
por nada no mundo ele daria o braço a torcer. Samantha Langland precisava pagar por sua traição. Ele a deixaria sofrendo durante um período, então voltaria quando
ela estivesse disposta e pronta para aceitar suas condições.
A agradável perspectiva do retomo a Kent melhorou bastante o humor do marquês, e ele até enviou um bilhete para Samantha, informando-a de que chegaria no
final da semana para resolver alguns assuntos relacionados à propriedade. O bilhete foi levado por seu mensageiro particular. Quando este voltou no dia seguinte,
Ravensworth ficou desapontado por ela não ter lhe enviado um simples cumprimento. Todavia, ao envolver o garoto em uma conversa casual, Ravensworth descobriu que
a dama estava muito ocupada preparando uma grande festa. O marquês ficou pasmo, mas teve a presença de espírito de esconder do criado o fato de não saber nada a
respeito da celebração.
Naquela mesma noite, enquanto cavalgava pensando na notícia que o criado lhe trouxera, Ravensworth foi surpreendido por um velho colega de escola, que lhe
agradeceu imensamente pelo convite para o baile em Oakdale House e informando-o de que chegaria na quinta-feira. Ravensworth respondeu com compostura, mas assim
que ficou sozinho outra vez, voltou para Albany House e convocou Denby.
Denby soubera por intermédio do criado do lorde Grafton que eles partiriam ao amanhecer para Oakdale House, para o baile de comemoração do casamento do visconde
e da viscondessa de Avery. Ele tomara a liberdade de fazer a mala do patrão, esperando apenas a permissão para partirem. Ravensworth deu sua palavra.
Quando a carruagem de Ravensworth chegou a Oakdale House, ele encontrou a rua principal e o estábulo cheios de carruagens e animais, como se fosse uma estalagem
pública. Cocheiros e criados iam e vinham carregando malas. Ravensworth nunca vira nada parecido, pelo menos não em Oakdale Court. Será que Samantha sabia quanto
custaria toda aquela brincadeira?
Pouco depois, Ravensworth entrou no salão principal de sua casa onde longas mesas de bufê haviam sido instaladas, repletas de todo o tipo de guloseimas capazes
de tentar o apetite de qualquer um. Ele estudou os rostos na galeria no andar de cima e viu Harriet e Avery, que apenas acenaram, não dando nenhum indício de que
se afastariam do grupo para cumprimentá-lo. Da anfitriã, nenhum sinal.
Ao perguntar para o maitre pela dona da casa, Ravensworth foi informado que ela havia saído para mostrar o jardim a um grupo de convidados. O marquês não
perdeu tempo em ir até lá. Pensando na imagem da esposa, ele abriu um belo sorriso. Ah, como sentira saudade...
- De qual parte das colônias você vem, meu bom homem? - perguntou ele antes de se retirar.
O maitre o analisou da cabeça aos pés.
- Do Canadá, senhor - respondeu ele antes de se virar para atender ao pedido de um convidado.
Não, ela não podia estar fazendo isso outra,vez! Ravensworth chegou ao santuário de Samantha poucos instantes depois.
Ela caminhava pelas fileiras de ervas explicando o significado medicinal, culinário e cosmético de todas. Fascinado, Ravensworth observou as damas da alta
sociedade impressionadas com o discurso apaixonado de Samantha.
- Meu Deus, ela é igualzinha a meu pai - murmurou ele.
- Que tipo de herança será passada para os meus herdeiros?
- A memória do pai acalmou seu temperamento, mas logo a lembrança do maitre o trouxe de volta à realidade.
Os olhos de ambos se encontraram e Samantha demorou apenas alguns instantes para se aproximar do marido.
- Ravensworth, você veio? - perguntou ela, oferecendo-lhe o braço. - Se vai reclamar por causa do seu quarto, sinto muito, mas saiba que não pude fazer nada.
- O que aconteceu no meu quarto? - perguntou o marquês, cada vez mais desconfiado.
- Ah, você ainda não subiu? Espero que não se incomode, mas eu acomodei Freddie Fielding e um amigo no seu quarto. Achei que não viesse, pois soube que estava
bastante ocupado na cidade.
- Não tem problema - disse ele. - Eu durmo com você.
- Infelizmente, não será possível, meu caro. Achando que havia me tomado viúva, eu acomodei algumas das damas solteiras no meu quarto. Convidei cerca de
cera pessoas para o baile de Harriet e Avery, e a casa ficou lotada. E, pelo visto, ninguém está se importando muito com a falta de espaço. Alguns pretendem até
ficar mais alguns dias conosco.
Diante da menção do baile, Ravensworth lembrou-se de suas sérias injúrias.
- Minha cara esposa, você não acha que teria sido adequado me consultar sobre essa festa antes de começar a gastar? Eu poderia preferir gastar esse dinheiro
jogando no período em que fiquei em Londres.
- Ah, você também jogou?
A brincadeira inesperada trouxe certa culpa a Ravensworth.
- Samantha!
- Pelo visto, milorde, você foi de um antro para outro - continuou ela. - Em relação às despesas do baile que estou oferecendo em homenagem ao casamento
de Harriet e Avery, não se preocupe. Nunca foi minha intenção gastar o seu dinheiro. Como você mesmo sabe, eu sou uma mulher independente nesse sentido.
O marquês gostaria de ter respondido àqueles comentários à altura, mas como não sabia qual sua posição atual com a esposa e quanto ela sabia sobre o ocorrido
na cidade, achou de bom-tom ignorar o assunto. Por ora. Além disso, estavam perto da entrada principal da casa, diante dos olhos de inúmeros convidados. Ravensworth
puxou-a de lado, afastando-a dos olhares curiosos.
- Tenho um assunto muito importante para discutir com você. Conte-me sobre aquele gigante que está fazendo as vezes de maitre.
- Ah, você já o conheceu? - perguntou Samantha com a expressão recatada. Então se abaixou para pegar uma violeta. - Olhe só que cor mais linda!
Aquilo foi demais para Ravensworth. Ele a pegou pelos ombros e obrigou-a a olhar dentro de seus olhos.
- Pare de brincadeiras! Quero saber a verdade. Onde você encontrou aquele homem?
- A história é que ele é sobrinho da sra. Rowtree, a nossa cozinheira.
- A história é... A história é... - o marquês a imitou em tom ameaçador. - Eu sou seu marido, Samantha! Quero a verdade, e não uma mentira criada para enganar
o chefe de polícia. Ele é ou não é o americano que escapou da cadeia algumas semanas atrás?
Ela permaneceu em silêncio.
- Fale, Samantha!
- Não, não! - respondeu ela, olhando-o com certo pesar. - Não tenho o direito de lhe dizer nada mais, e não vou dizer. Confie em mim pelo menos uma vez.
Sinto muito pela desobediência, mas a história me foi contada em segredo.
Ele apertou-lhe os ombros com mais força.
- Ravensworth, você está me machucando! Imediatamente, o marquês a soltou e deu um passo para trás.
Samantha suspirou ao notar a expressão de mágoa no rosto do marido.
- Ravensworth, confie em mim nesse assunto. Eu prometo que nunca mais tomarei nenhuma atitude sem antes consultá-lo a respeito das minhas intenções. Você
deve saber que o meu maior desejo é protegê-lo de situações desagradáveis.
O tom constrito de Samantha suavizou as linhas ao redor da boca do marquês.
- Samantha, por favor! Quem precisa de proteção é você. Acha que não tenho nenhum escrúpulo, que eu trairia a sua confiança em qualquer circunstância? Que
tipo de homem você acha que sou? Saiba que eu jamais tolerarei segredos entre nós.
- Jamais? Está bem, meu marido - disse ela, contente com a lealdade das palavras de Ravensworth. - Por enquanto uma trégua é suficiente? Mais tarde conversaremos
a respeito, pois não quero deixar nossos convidados sem atenção. Temos a obrigação de recebê-los muito bem. Preciso voltar para casa, se me der licença.
Ele fez menção de dizer algo, mas pensou melhor e ficou quieto.
- Samantha! Você continua a mesma incorrigível! O que vou fazer com você? Não pense que escapará da autoridade de seu marido! Vou querer um relatório completo
mais tarde, pode apostar. Você tem razão. Não é o lugar nem o momento para discutirmos esse assunto. Dê-me seu braço e permita-me acompanhá-la até a nossa casa.
- Com prazer - respondeu ela, controlando a risada. - Mas você se importa em entrar pela cozinha?
Ravensworth franziu as sobrancelhas, curioso.
- Um modelo e um espantalho - brincou ela. - O sublime e o ridículo.
- Você vai se dar muito bem com meu pai - comentou o marquês.
- É mesmo? Posso lhe fazer uma pergunta?
- Claro.
- O lenço no seu pescoço. Eu não reconheço esse nó. Parece novo e bastante complicado. Você deve ter demorado muito para consegui-lo.
Ravensworth riu.
- É verdade. É um nó à Ia Samantha.
Houve um momento de silêncio até que ela assimilasse as palavras.
- Sabe, Ravensworth, quando você é bom, é realmente bom, mas quando quer ser ruim, você é terrível!


Capítulo XXIV

Mais tarde aquele dia, quando Samantha saiu do quarto que dividia com duas jovens solteiras, tinha plena consciência da elegância de seu novo vestido francês.
E sabia que seu marido ficaria encantado. Um simples olhar na direção de Ravensworth confirmou suas suspeitas. Ele parecia abobado.
Ela se movimentou com graça em direção à escada principal da casa, onde o marquês conversava com seus convidados de honra. Harriet observou o sorriso congelado
de Ravensworth e se virou para ver o que lhe chamara a atenção. Quando viu a prima, ela abriu um belo sorriso, em sinal de aprovação. Avery olhou para o amigo, que
não tinha olhos para mais ninguém a não ser por sua linda esposa.
Samantha, resplandecente em um vestido prateado que nenhuma dama quacre jamais usaria, notou os três olhando em sua direção e baixou os olhos. Ao deparar
com seu decote, entretanto, ela desviou o olhar. Talvez tivesse ido longe demais, pensou, notando a expressão do marido.
Samantha deixara a escolha do modelo para usar no baile nas mãos de Fifi, sua nova criada pessoal. Fifi era como Denby. As instruções de Samantha tinham
sido precisas. "Vista-me como deve se vestir a consorte do marquês de Ravensworth, mas tenha em mente que eu sou uma mulher virtuosa que preza a simplicidade acima
de qualquer coisa". Os resultados tinham sido bastante gratificantes. Fifi sugerira apenas um par de pérolas e dois pentes combinando para prender o cabelo. Samantha
insistira em usar o coque, pois era a vontade de seu marido. Para completar, um par de luvas.
Samantha olhou para os seus convidados no salão e se alegrou com o caleidoscópio de cores. Em comparação às outras damas, ela era a mais recatada.
- Onde está o resto do seu vestido? - perguntou Ravensworth, aproximando-se da esposa e olhando para o decote um tanto quanto exagerado.
- Será que algum dia ouvirei um elogio seu? Quando esse dia chegar, saberei que estou parecendo uma freira! Gostou do meu cabelo?
- Está diferente. Onde estão os grampos?
- Pare com isso, Ravensworth - interferiu Harriet, juntando-se a eles com o marido. - Você está deslumbrante, prima! Adorei!
Os quatro desceram os degraus diante dos olhares curiosos dos convidados.
- É a última vez que você se veste assim - informou o marquês. - Não quero que todos os homens fiquem com os olhos vidrados em você. Olhe só para Grafton.
Parece um bobo. Mas não posso culpá-lo. No lugar dele, eu faria o mesmo.
- Não exagere. Eu sou a mais discreta desse grupo.
- Não brinque comigo, Samantha. Como se não soubesse! Você se parece com uma... - Ravensworth fez uma pausa para encontrar as palavras certas.
- Com uma mulher da vida mostrando seus dotes em uma casa de devassidão? - finalizou ela com um brilho polêmico nos olhos.
- Samantha, onde você escutou essas palavras? - perguntou ele, pálido. - Foi Grafton?
- Eu tenho as minhas fontes - respondeu ela, evasiva.
- Eu posso explicar tudo. Não é o que parece.
- Não se preocupe, meu querido - disse Samantha, controlando a vontade de rir. - Você me advertiu sobre o que aconteceria se você fosse para a cidade.
- Mas eu não fiz nada, Samantha! Eu sou inocente! A marquesa deu de ombros.
- É o que você diz.
Ravensworth teria continuado, porém a orquestra tocou as primeiras notas e ele foi obrigado a trocar de parceira com Avery. Enquanto dançava com Harriet
como convidada de honra, o marquês não tirou os olhos da esposa, que se movia sem o menor sinal de preocupação.
Foi um grande baile, o maior evento de gala da região. Toda a vizinhança havia sido convidada, aproximando o número de convidados de duzentos. O jantar seria
preparado por um chef que Samantha importara da França especialmente para a ocasião. Ela organizou uma bela festa para a prima, admitiu Ravensworth
Mais tarde, exausta de tanto dançar, Samantha pegou uma taça de champanhe e seguiu até a biblioteca, não sem antes olhar para o marido, que tentava escapar
das atenções de Adèle.
Ela sentou-se na poltrona e tirou os sapatos. Descansaria em paz por alguns instantes antes de retomar ao salão.
Samantha fechou os olhos e se lembrou do baile em Broomhill House, tanto tempo antes, quando tinha visto pela primeira vez o belo marquês de Ravensworth.
Bem, pelo menos aprendera a manipular o marido.
Ela colocou a taça de lado e abriu a pequena bolsa, de onde tirou uma caixa de rapé. Presente de Harriet. Quando foi abri-la.
Samantha fez algum movimento errado e deixou a caixa cair. O objeto rolou pelo tapete e foi parar debaixo da mesa, sob a janela.
Assim que conseguiu recuperá-la, ela sentou-se outra vez na poltrona e preparou-se para o ritual que tanto lhe agradava.
Naquele instante, lorde Grafton entrou sem ser convidado.
- Ah, não! - murmurou Samantha.
- Ah, sim! - respondeu lorde Grafton, aproximando-se dela para abraçá-la.
- O que está acontecendo aqui?- perguntou Ravensworth, apoiado no batente da porta, de braços cruzados, observando a cena. - Sabe, minha querida, tenho a
estranha sensação de dejà vu.
- Broomhill House - disse ela, soltando-se do abraço ardente de Grafton. Sem o menor pudor, Samantha abriu a caixa de rapé e pegou um pouco do pó entre os
dedos. Então cheirou.
- Delicioso!
- Eu estava pensando no nosso chalé de lua-de-mel - comentou o marquês em bom tom, frustrando a tentativa de Samantha de deixá-lo de lado naquela noite.
- Eu gostaria de falar sobre esse assunto com você - disse ela, levantando-se e passando por Grafton, que estava imóvel como uma estátua de mármore. - Eu
arrumei o chalé. Fiz uma pequena reforma, coloquei alguns móveis, uma cama.
- Minha querida, espere um instante. - Ele se virou para Grafton. - O nosso caro conde não precisa saber dos nossos assuntos domésticos, não é?
Grafton, sem graça, começou a se desculpar.
- Não precisa se desculpar, meu caro. Isso sempre acontece, sabe? Desculpe a pergunta, mas você é quacre? Não, não creio. Não que isso signifique alguma
coisa. Gostaria de lhe informar que não gostaria que uma cena como essa se repetisse. Fui claro o bastante?
- Si-sim - gaguejou Grafton.
Ravensworth abriu a porta da biblioteca e esperou que o conde se retirasse.
- Ah, faça-me um grande favor. Lady Adèle está me esperando no salão amarelo, perto da sala de estar. Você poderia ir até lá e lhe pedir desculpas? Diga-lhe
que tive um imprevisto. Vou ficar aqui com minha esposa, pois temos alguns assuntos pendentes.
Ele foi tão gentil que Grafton achou não estar entendendo direito. Seria o efeito da bebida? O conde saiu pela porta e fez uma mesura.
Ravensworth bateu a porta assim que o conde saiu correndo pelo corredor.
- E o nosso chalé de lua-de-mel? - repetiu o marquês, voltando a atenção para a esposa. - A quem pretende hospedar lá?
- Quem você acha? - perguntou Samantha com um olhar malicioso.
- Você é uma mulher incrível, Samantha Langland. Quem diria que faria tal previsão? Você tinha muita certeza do que estava fazendo, não é, minha querida?
- Sim.
- Sabia que eu voltaria?
- Claro.
- E mandou preparar o chalé para ficarmos juntos?
- Exato.
- Mas não era necessário.
Ravensworth se aproximou da esposa, que conseguiu se esquivar e proteger-se atrás do sofá.
- Lembre-se de que ainda não colocamos cortinas aqui.
- Como se eu me importasse. - Ravensworth estava ao lado dela um instante depois. Então a abraçou e puxou-a para perto de seu corpo.
Quando ele se inclinou para beijá-la, Samantha virou a cabeça.
- Antes de retomarmos nosso relacionamento, meu caro marido, precisamos discutir alguns detalhes.
- Concordo. Rendição total de ambas as partes.
- Parece-me razoável - disse ela, deixando-se jogar no sofá. - Eu achei que você fosse se explicar sobre aquele deslize de iniqüidade.
Ravensworth ergueu a cabeça.
- O que diria, meu amor, se eu me esquecesse de todas as explicações que você tem a me dar, se você se esquecer de todas as explicações que eu tenho a lhe
dar?
- Parece-me razoável - repetiu ela.
Os dois se beijaram com paixão, deixando para trás todas as desavenças. Seria o recomeço de uma grande paixão.

Fim


Elizabeth Thornton é especialista em escrever romances históricos. Ela adora pesquisar. Procura criar tramas em lugares do passado cuja descrição seja o
mais verdadeira possível. Depois de três anos sem lançar nenhum livro, Elizabeth retorna às prateleiras com o mesmo sucesso e ainda elogiada e prestigiada!--
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