sexta-feira, 23 de abril de 2010

Elizabeth Thornton - O anjo escarlate.txt

O anjo escarlate
Elizabeth Thornton

Romance Histórico - Bestseller nº 108


Copyright (c) 1990 by Mary George
Originalmente publicado em 1990 pela Kensington Publishing Corp.
TÍTULO ORIGINAL: Scarlet Angel
EDITORA Leonice Pomponio
ASSISTENTE EDITORIAL Patrícia Chaves
EDIÇÃO/TEXTO Tradução: Sulamita Pen
Revisão: Giacomo Leone
ARTE Mônica Maldonado
ILUSTRAÇÃO Thomas Schlück
COMERCIAL/MARKETING Silvia Campos
PRODUÇÃO GRÁFICA Sônia Sassi
PAGINAÇÃO Dany Editora Ltda.
(c) 2007 Editora Nova Cultural Ltda.
Impressão e acabamento: RR Donnelley Moore


PROJETO REVISORAS


Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos.
Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.
Cultura: um bem universal.

Disponibilização do livro: (Nutri) Rosangela
Digitalização: Palas Atenéia
Revisão: Nádia

Cornualha, Inglaterra, 1803

Ele estava em busca de vingança. E acabou encontrando o amor...
No passado, Cam Colburne, presenciou em uma prisão francesa um espetáculo de horror cometido pelo povo histérico. Testemunhou sua família ser condenada à morte pelos
atos de Gabrielle de Brienne, na época, uma menina, filha de um diplomata francês. Uma década depois, chegou o momento da desforra. Coulbourne rapta a adorável Gabrielle,
e a mantém como refém em seu castelo.
Gabrielle, não se amedronta com as ameaças de seu captor. Pois sente nos olhos de Coulbourne, a ternura que ele esconde sob o exterior de arrogância e indiferença.
A cada nascer do sol ela planeja sua fuga. Mas é durante a noite, que Gabrielle anseia por desvendar os segredos de Coulborne, com medo de que seu coração e sua
resistência se rendam ao charme sedutor daquele homem!

Elizabeth Thornton é especialista em escrever romances históricos. Ela adora pesquisar e procura criar tramas em cenários do passado cuja descrição seja a
mais verdadeira possível. O nome de Elizabeth é sinônimo de sucesso, e seus livros são cada vez mais elogiados e prestigiados!

Prólogo

Paris, 2 setembro 1792,
Os massacres na prisão. Abbaye

Pela pequena janela da torre, era possível observar a carnificina que ocorria no pátio da prisão. O último lote de prisioneiros fora arrastado das celas
e jogado diante dos juizes. E que juizes!
O populacho de Paris. Açougueiros de gorro vermelho e aventais de couro, com os braços cobertos de sangue. Os sans-culottes, a massa inculta da sociedade.
Os féderés, cidadãos das províncias que se intitulavam de soldados. Um bando indisciplinado de criminosos que poderiam assassinar um homem só de olhar para ele.
As execuções se arrastavam havia horas. A barbárie começara à tarde quando bandos de homens armados atacaram vários coches de sacerdotes que tinham sido
detidos por se recusarem a prestar o juramento constitucional. Dali, a multidão se encaminhara para a prisão de Carmes e matara todos os prisioneiros. Em seguida,
cerca de duzentos justiceiros haviam se encaminhado para Abbaye, onde as mortes violentas prosseguiram, indiscriminadas.
Enjoado e com o coração batendo forte, Cam fechou os olhos. O espetáculo intolerável se tornara ainda mais odioso pela presença das poissardes, esposas
de peixeiros e outros mercadores que serviam conhaque misturado com pólvora para fortalecer os executores na interminável tarefa. Cam espantou-se pela impassibilidade
das mulheres diante daquele espetáculo dantesco. Montes de corpos mutilados e o sofrimento intenso dos que ainda não haviam morrido.
Cam sabia que sua hora se aproximava. Era voz corrente que ninguém seria poupado, exceto as mulheres e as crianças. Sua madrasta e sua irmã de doze anos
estavam em outro local. Esperava que os canalhas não resolvessem eliminar também aqueles inocentes.
Outro homem empurrou-o e tomou seu lugar na janela. Cam sentou-se em um dos catres imundos. Quanta ironia! Há quinze dias, alegrara-se de terem sido mandados
para Abbaye, em vez de outra prisão onde sua irmã poderia ficar encarcerada junto com mulheres da rua.
Três meses na França, dois dos quais em um esconderijo, para acabar daquela maneira! Fora uma ingenuidade dar crédito, ainda na Inglaterra, aos primeiros
relatórios da Revolução! Pelas lições de sua própria história, deveriam ter aprendido que não havia moderação depois de derramamento de sangue.
A percepção tardia não lhes permitira prever do que seria capaz uma plebe enfurecida.
Tampou os ouvidos. Os gritos lancinantes se sucediam no pátio. Estirou-se no catre e procurou afastar o pensamento do destino que o aguardava.
Não deveria ter permitido à madrasta voltar ao convívio da família francesa, depois da morte do marido há cinco anos. Deveria ter mantido a irmã na Inglaterra,
apesar dos médicos que perseveravam na necessidade de um clima temperado para melhorar a saúde delicada. Deveria ter desafiado seus tutores antes de chegar à maioridade
e vir pessoalmente à França para acompanhar os acontecimentos. Deveria ter insistido para deixarem Paris nos primeiros dias de sua chegada, mesmo aceitando a hipótese,
enfatizada pela madrasta, de que Marguerite não sobreviveria à viagem.
Deveria...
Como prever tudo aquilo? Tinha dezesseis anos quando o pai morrera. Não houve pânico na Inglaterra com o início da Revolução. A família da madrasta era
poderosa e ligada ao trono francês. Por causa da saúde combalida de Marguerite, optaram por esconder-se até o pior passar.
A aristocracia francesa convencera-se de que seus dias estavam contados após o massacre de quinhentos soldados da guarda suíça no palácio das Tulherias
há dois meses e a nomeação de Georges Jacques Danton como ministro da Justiça.
A família real estava sob estreita vigilância na tenebrosa prisão dos Templários. Embaixadas estrangeiras tinham sido fechadas. Os aristocratas, despidos
de seus títulos, haviam deixado seus castelos, procurado esconderijos ou arriscado uma fuga pelo canal da Mancha.
Paris se mantivera na expectativa. E as represálias haviam começado contra os prisioneiros indefesos que superlotavam as prisões. Clérigos, advogados, jornalistas,
cidadãos comuns que haviam criticado os rumos da Revolução e por isso considerados perigosos, além de aristocratas que haviam sido descobertos nos esconderijos.
- Quando nos levarem para fora, não devemos oferecer resistência - um dos padres carmelitas avisou. A morte dos mais dóceis parecia ser executada com maior
rapidez.
Cam sentou-sê e avaliou a cela. Dez sacerdotes ajoelhados rezavam pela salvação.
- Um bom conselho para um velho que está com o pé na cova. - Rodier, um advogado, sentou-se ao lado de Cam.
Rodier e Cam haviam se tornado amigos durante os dias tenebrosos da prisão. Rodier era um homem carismático, muito feio e otimista. Fora membro dos moderados
girondinos que atualmente tinham sido desacreditados.
- Não está pensando em seguir os conselhos do velho padre, está? - Rodier falou em voz baixa.
O advogado admirava não apenas a coragem do jovem aristocrata inglês que se arriscara por devoção à família, mas também a desenvoltura no idioma francês.
Considerava a maioria dos nobres ingleses e franceses como um bando de ignorantes.
Mesmo assim o jovem precisava de orientação e por isso Rodier resolvera protegê-lo. O jovem fora inteligente. Não revelara seu título, nada menos do que
um duque. Dera aos carrascos o nome correto - Camille Colburne - que fora aceito sem comentários. Por sua aparência, poderia passar por um espanhol ou até francês,
apesar dos olhos azuis luminosos.
Na cela iluminada apenas pelos archotes de breu do pátio, a expressão de Cam não podia ser decifrada.
- Só se o inferno congelar - Cam resmungou. Rodier riu e vários sacerdotes se benzeram diante da blasfêmia.
- Gosto de jovens intempestivos, Camille. Mas é preciso conter a intrepidez. Pense em sua madrasta e sua irmã. Use a cabeça. Se sobrevivermos a esta noite,
haverá um amanhã.
- Quero morrer satisfeito.
- Por levar junto um ou dois canalhas?
- O que o senhor sugere?
- Nada posso prometer-lhe, mas sugiro que siga minha orientação. Creio que teremos oportunidade de nos defendermos.
- Está se referindo ao tribunal fictício presidido por Maillard, o agitador de multidões?
- Maillard pode ser o líder, mas existe outro que detém o poder e que age nas sombras do anonimato. Não reparou nele?
- Não. De quem se trata?
- De Mascaron, braço direito de Danton. Poucos ouviram falar dele.
- Nesse caso ele pode estar aqui para impedir os assassinatos.
- De maneira nenhuma. Danton jamais pensaria em contrariar a plebe. Ele seria morto, com certeza.
- O que seria bem merecido - Cam afirmou com amargura.
- Entretanto algo me diz que Mascaron veio para cá com um motivo definido e...
Um barulho de passos na escada circular de pedra impediu Rodier de prosseguir. Ouviram-se trechos de canções revolucionárias. A luz sob a porta aumentou.
Dentro da cela, só se ouviam a ladainha das preces dos sacerdotes.
Todos se levantaram, ao escutar a chave ser posta na fechadura.
- Vai me seguir? - Rodier perguntou.
- Sim. - Cam ficou ao lado do protetor.
- Para todos os efeitos, será meu sobrinho. Procure parecer humilde e deixe-me falar. Se eles sentirem o cheiro da sua aristocracia, estamos perdidos.
Uma turba dos temíveis sans-culottes irrompeu na cela. Com as mãos sujas de sangue brandiam sabres, lanças e machadinhas de açougueiro. Os prisioneiros
foram seguros por mãos rudes que os arrastaram e empurraram. O progresso nos degraus estreitos foi estimulado com pontapés e imprecações. No pátio, uma justiça arbitrária
os aguardava.
O cenário de horror fez com que hesitassem. O pátio parecia uma fornalha imensa e diabólica. Duas fogueiras tinham sido acesas para facilitar o trabalho
final. A direita e no raio de visão dos que eram interrogados, os condenados eram esquartejados. Carroças levavam embora os cadáveres empilhados. Mulheres, algumas
com orelhas espetadas nos aventais, encarregavam-se de encher o assoalho das carroças. Só interrompiam a tarefa para dançar a carmanhola. Os gritos dos assassinos
e das vítimas era ensurdecedor. Cam fez um esforço para não ceder à vontade de vomitar.
Os juizes, na maioria bêbados, sentavam-se ao redor de uma mesa. Rodier fez um esforço para esquecer o cenário, puxou a manga de Cam e adiantou-se.
Cam recriminou-se pela própria atitude de submissão. Se Rodier perdesse ô jogo, os dois morreriam. Cam não desistira da idéia de levar um dos executores
com ele.
Maillard, o herói da Bastilha que usava óculos na ponta do nariz, assinalava um veredicto sumário se o prisioneiro fosse aristocrata ou clérigo. Sem exceções.
Vez por outra, Maillard lançava olhares entendidos para um homem atraente, de idade indefinível que estava sentado nos fundos, envolto em uma capa negra.
Seria aquele Mascaron?
Cam percebeu-se analisado pelo olhar de águia de Maillard. Não conseguiu desfitá-lo.
Ele sabe quem eu sou, refletiu e escutou Rodier dirigir-se em tom confiante ao tribunal. Manteve o olhar nas pedras do chão.
- Citoyens, se acham que meu sobrinho e eu somos inimigos da Revolução, eu, Marie-Gilbert Rodier, lhes imploro que cumpram seu dever e livrem a França de
todos os traidores de nossa causa gloriosa.
- Por que o senhor foi preso? - Maillard não se mostrou impressionado com a retórica.
- Fui denunciado como traidor. - Rodier não se inibiu. - Por quem? - Maillard ergueu as sobrancelhas.
- Pelos inimigos de meu senhor.
- Fale logo, homem, quem é o seu senhor? Não quero ficar aqui a noite inteira!
- Meu senhor é o general Dumouriez.
O impacto não poderia ter sido mais certeiro. Embora no momento Danton e os cordeliers estivessem estremecidos, Dumouriez era um girondino. Naquela altura
o general comandava o exército francês que ia ao encontro das forças hostis da Áustria e da Prússia que estavam sob o comando do duque de Brunswick.
Homens sensatos evitavam uma disputa com Danton ou com Dumouriez até que a liderança fosse decidida.
- O senhor tem provas?
- Tinha. Os documentos me foram tirados antes de eu vir para cá com meu sobrinho. Quando o general Dumouriez voltar dos campos de batalha, virá prestar
testemunho a nosso favor. Afinal, somos seus funcionários.
Maillard hesitou e, com o olhar, pediu a opinião silenciosa daquele que se escondia nas sombras.
- O senhor está livre. O próximo.
- Eu gostaria de saber o nome do jovem - Mascaron, o da retaguarda, ordenou com voz suave.
- Camille. - Cam antecipou-se à resposta de Rodier e sentiu-se como Davi diante de Golias. - Camille Colburne.
- Ele é filho de minha irmã. - completou Rodier.
Os sans-culottes começavam a ficar inquietos. Rodier agarrou o cotovelo de Cam e arrastou-o em direção aos portões imponentes de ferro que se abriam para
a rua Saint Marguerite, rumo à liberdade.
As saídas estavam congestionadas com carroças e cavalos. Rodier e Cam foram obrigados a recuar diante dos impropérios gritados pelas poissardes.
Cam admirava-se por Mascaron não tê-los denunciado. A mentira fora palpável.
- Não imagino por que ele veio - Rodier olhou por sobre o ombro -, mas uma coisa é certa. Mascaron prefere o anonimato e por um bom motivo. A Revolução
é uma amante volúvel.
Cam, sem vontade de decifrar o enigma de Mascaron, pensava em uma maneira de libertar a irmã e a madrasta.
- O que é aquilo? - Rodier segurou-o pela manga e indicou a direção com um gesto leve de cabeça.
As portas da ala feminina da prisão foram abertas. Algumas mulheres e crianças foram trazidas para o pátio. Assobios grosseiros e brincadeiras obscenas
se seguiram.
- Não! - Cam adiantou-se, chocado, mas foi contido por Rodier.
- Mon Dieu, quer matar-nos? Calma. Mascaron não é assassino de mulheres ou crianças.
As poissardes e outras mulheres deixaram o trabalho brutal nas carroças e avançaram em direção ao grupo das recém chegadas que se abraçavam umas as outras,
chorando. Cam reconheceu a figura ereta da madrasta na última fileira. Soluçando, agarrada na mãe, Marguerite.
- Matem as aristocratas!
Cam tentou desvencilhar-se de Rodier. E foi Mascaron que o impediu de cometer uma ação drástica ao se interpor entre a multidão irada de mulheres e suas
vítimas.
- Para trás! Para trás! - Mascaron berrou. - Matem a quem quiser depois da condenação do tribunal! Para trás! Haverá muitos condenados antes do final da
noite!
A turba, acuada pela autoridade, recuou entre murmúrios de desagrado.
Mascaron voltou para a mesa, mas permaneceu em pé.
- Madame de Brienne, adiante-se! - Maillard chamou, aproveitando o momento.
Sussurros ergueram-se para todos os lados. O conde de Brienne, seguindo os passos do amigo general Lafayette, tentara se bandear para os austríacos uma
semana antes. Fora agarrado por um bando deféderés e executado no local. A mulher e a filha foram trazidas para Paris e aprisionadas em Abbaye. Os sentimentos contra
Lafayette, que conseguira fugir, exacerbaram-se. Mas ele permanecia fora do alcance do populacho. Os Brienne, não.
- Um passo à frente, madame de Brienne. - Maillard desestimulou as mulheres furiosas.
Uma menina de sete ou oito anos veio para a frente, puxando a mão de uma mulher pálida de olhar inexpressivo.
- Sou Gabrielle de Brienne e esta é minha mãe. - A menina falou com calma, sem arrogância e como se não visse a carnificina a seu redor.
Cam imaginou que a imagem daquela criança haveria de mexer com o sentimento de todos. Parecia um anjo que refletia as chamas da fogueira. Um anjo escarlate.
No rosto em forma de coração, dois olhos enormes. Ela parou na frente da mãe, como se a pudesse proteger. Cam teve vontade de afastar dos algozes a imagem da inocência.
- Quieto! - Rodier segurou-o, adivinhando seus pensamentos.
- Menina - Maillard falou sem rudeza -, deixe sua mãe se defender.
- Maman não pode falar - a menina disse com ligeiro tremor na voz - desde Clermont.
Em Clermont, Brienne e sua família tinham sido capturados e o conde fora executado diante delas.
Se a mãe não podia falar, não poderia ser condenada. As mulheres ficavam cada vez mais revoltadas.
Sem saber o que fazer, Maillard voltou-se para seu superior.
- Gabrielle - Mascaron adiantou-se -, se puder provar sua lealdade à Revolução, mademoiselle e sua mãe estarão livres.
Um uivo de protesto ergueu-se.
- Silêncio! - Mascaron rugiu.
A multidão calou-se diante da pistola que ele tirou da cinta. A menina fitou os algozes e fixou-se no homem que falava com ela.
Cam não duvidou que por trás da concordância forçada da ralé, houvesse um vulcão pronto a entrar em erupção. Se isso acontecesse, nada deteria as lavas
ansiosas por sangue. Nem Mascaron, nem Maillard, nem a oratória de Danton poderiam defender aquelas inocentes.
As reflexões de Cam foram interrompidas pela voz límpida da menina que entoava uma das canções revolucionárias, Ça Ira!
O que será, será! As pessoas repetem. O que tiver de ser, será! Apesar de nossos inimigos, Seremos bem-sucedidos.
Enquanto ela cantava, o refrão foi dito primeiro pejos féderés, depois pelos sans-culottes e finalmente pelas mulheres do mercado. Muitos dos que gritavam
por vingança mal continham as lágrimas.
Cam ficou enojado.
Algumas prisioneiras ajoelharam-se em atitude de oração.
O hino da Revolução lhes causara mal-estar. Elas faziam parte dos inimigos da canção, os aristocratas odiados. Com os títulos e os bens confiscados, nada
mais lhes restava a não ser a vida. Quando a canção terminou, o restante do grupo seguiu o exemplo das primeiras. De cabeça baixa, jovens mães e seus filhos rezavam
junto com mulheres idosas, à espera de um milagre ou uma morte rápida.
- Por Deus, não! - Cam gemeu.
Ele não podia acreditar que a menina, em sua inocência, justificara a sentença de morte para as mulheres e as crianças às suas costas.
Estouraram aplausos e gritos dos revolucionários. Maillard levantou a mão e pediu silêncio.
- Citoyenne Brienne, Gabrielle de Brienne. As duas estão livres.
O nome de cidadã para quem, há pouco, ostentava com orgulho o título de condessa.
Sem saber o que fazer, a menina olhou para Mascaron. Apareceram dois soldados da Guarda Nacional para acompanhar mãe e filha. A menina passou perto de Cam
e fitou-o. Os olhos brilhantes de lágrimas pareciam duas esmeraldas. Impossível não notar que eram idênticos aos de Mascaron. Cam sentiu-se traído, sem entender
o motivo.
Pensou em aproximar-se da madrasta e da irmã que aguardavam a sentença. Foi quando viu Mascaron afastar-se do pátio, desaparecendo por entre as carroças
lotadas de cadáveres.
Naquele instante, entendeu que a libertação de Gabrielle e de sua mãe fora o propósito da vinda dele ao tribunal de Abbaye. O destino dos outros ficaria
entregue ao sanguinário Maillard. O líder dos sans-culottes procurou um papel no bolso.
Devagar, começou a ler os nomes dos condenados.
- Não! - O grito de Cam foi abafado pelo rugir da plebe.- Morte aos aristocratas!
Como uma onda compacta, a multidão foi para a frente. Cam teve uma rápida visão da irmã ser arrancada dos braços da madrasta, antes de ser golpeado na cabeça.

Capítulo I

1803, onze anos mais tarde

Lorde Lansing, um homem de trinta anos, sentava-se em uma poltrona estofada nos aposentos do duque de Dyson na confortável residência de Hanover Square.
Refletia sobre o futuro sombrio da Europa depois de Napoleão Bonaparte ter tomado as rédeas do destino da França.
- Vai achar falta de companhia em Londres - Lansing afirmou, brincando com um de seus cachos loiros.
Cam Colburne, o duque, enfiou a cabeça dentro da água do banho e voltou, cuspindo e sacudiu os cabelos.
- Simon, seja um bom amigo e dê-me aquela toalha. Lansing atirou para o amigo uma das toalhas quentes que estavam diante da lareira.
Cam agarrou-a com uma das mãos, saiu de dentro da banheira e começou a se enxugar.
- Isso aconteceu por causa do tratado de paz - Lansing retomou o assunto.
- O que tem isso? - Cam abotoou os calções de cetim branco.
- Londres está vazia. Parece que todos resolveram ir para Paris, dar uma espiada em Bonaparte.
- Trata-se de uma paz efêmera. Em um mês ou dois, estaremos novamente em guerra.
- Se o sr. Pitt convencer a oposição a cumprir suas ordens.
- O sr. Pitt é bastante persuasivo - Cam alegou. - Ah, meus sapatos estão ali. - Calçou as meias de seda branca e os escarpins pretos com fivelas prateadas.
- Não gosta muito do líder da oposição, não é, Cam?
- Do sr. Fox? Não. Ele é um whig convicto. São os mais perigosos. Onde está minha gravata?
- No encosto da cadeira, onde a deixou. Por falar nisso, onde está seu criado pessoal?
- Ah, ele ficou em Dunraeden. - Cam referia-se à sua fortaleza inexpugnável da Cornualha que se projetava no canal da Mancha. Viajara três dias para chegar
a Londres. - Muito obrigado por ter-me mandado a mensagem, Simon. Detestaria perder esse encontro.
- O sr. Pitt mostrou-se muito interessado em sua presença. Ele está convicto de que somente milorde poderá convencer Fox a moderar o discurso na Câmara.
- É mesmo? - Cam amarrou a gravata branca com maestria. - E disse o motivo?
- Ele acha que após ter analisado as idéias do sr. Fox, milorde poderá evitar certos exageros.
- Fox é idealista e liberal. É o quanto basta. Simon! O que acha de agir como um cavalheiro para um homem desajeitado?
Simon ajudou o amigo a vestir um casaco justo azul-marinho com botões prateados.
- Que maravilha - Simon admirou o corte do traje. - Quem é seu alfaiate?
- Weston, da Old Bond Street.
- Santo Deus, é o alfaiate de Brummel! Cam mirou-se no espelho longo de báscula.
- Estou aprovado? Meu criado perderá o direito de dizer que sou incapaz como um bebê?
- Saiu-se muito bem, Cam.
Lansing refletiu que seu amigo era muito bem-apessoado. Além de atraente, tinha título e fortuna. O duque de Dyson era dotado de físico de atleta. Contudo,
sempre dava a impressão de um homem solitário que afastava intimidades presunçosas. Lansing tinha o privilégio de constar como um dos poucos amigos fiéis de Cam.
- De quem os homens da Cornualha herdaram os olhos azuis?
- De nossos pais. - Cam espetou um diamante no nó da gravata.
- A ocasião pede vestimenta tão formal?
- Louise está oferecendo uma recepção para seus compatriotas. Vou para lá depois do encontro com o sr. Pitt e o sr. Fox. Se quiser ir, considere-se convidado.
- Meu francês não é muito respeitável - Lansing desculpou-se.
- Bobagem. Os immigrés franceses são mais propícios a praticar o inglês. Além do mais, como iremos para a França no final de semana, nada melhor do que
um pouco de prática.
- Como está Louise?
- Bem, pelo que me lembro. - Cam ajustou a renda dos punhos. - Não está?
- Pelo amor de Deus, Cam! Louise é sua amante há dois anos. Como pode abandoná-la por meses a fio? Ela é uma mulher bonita e desejável. Qualquer um ficará
feliz com as atenções dela.
Cam levantou as sobrancelhas.
- Será que ela encontrou outro protetor?
- Não que eu saiba. Não importa. Desculpe-me ter tocado no assunto.
- Não se acanhe. Pode falar.
- Bem... tenho observado o seu modo de encarar a vida e...
- Sim?
- Algumas vezes, Cam, chego a pensar que milorde só se interessa por causas políticas.
- Bem, não estamos falando de Louise, não é? Se está procurando uma desculpa para não ir à França, é só dizer.
- Não se trata disso. Não fique zangado, mas a idéia me parece muito forçada.
Lansing aceitara de imediato a proposta ousada de Cam de seqüestrar um dos ministros de Napoleão para obter informações militares vitais. Entretanto ficara
descontente de não confiar o plano ao sr. Pittr líder do partido. Em alguns casos, o duque de Dyson se achava no direito de impor as próprias leis. Lansing admitia
ter agradecido os métodos pouco ortodoxos do amigo em algumas ocasiões. Mas quando Cam revelara claramente as intenções atuais, ele começara a desinteressar-se.
Cam serviu conhaque para os dois.
- Nós conhecemos os pensamentos do sr. Pitt. A despeito da ameaça que o sr. Fox proclama, a guerra com a França será retomada em maio. Faltam poucas semanas.
Antes do final do ano a Inglaterra poderá esperar a visita de Napoleão que pretende subjugar-nos. Se pudermos estar um passo à frente da França, valerá o risco.
- Concordo, mas...
- O que é, Simon?
- Precisamos envolver uma garota tão jovem?
- Gabrielle de Brienne tem dezoito anos. Não é nenhuma criança.
- O tal Mascaron, avô dela...
- Primeiro assistente do ministro da Marinha.
- Não haveria outra maneira de conseguir informações dele? Raptar a neta para obter resgate não me parece... cavalheiresco, se quiser minha opinião.
- Estamos em uma guerra, Lansing! Mascaron está em posto privilegiado! Ele poderá nos revelar a posição da armada francesa! Ficaremos sabendo quando e onde
Bonaparte pretende atacar-nos! - Cam inspirou fundo, procurando acalmar-se. - De qualquer forma, é muito tarde para desistir. Mas se quiser afastar-se, não o impedirei.
- Acha mesmo que eu o abandonaria a essa altura, Cam?
- Conheço sua lealdade para com os amigos, Lansing.
- Minha família tem um débito consigo que jamais poderá ser pago. Quando penso que milorde arriscou sua carreira política para salvar a vida do estouvado
de meu irmão...
- Esta é uma história antiga, Simon e será melhor esquecê-la. Por falar nisso, como está Justin? Há tempos não o ouço falar dele.
- Justin está servindo num posto avançado do exército britânico. Fort York, no Alto Canadá.
- Isso o manterá fora do calor das disputas.
- Estou contando com isso.
- Canadá não é a Irlanda, Simon. Fique sossegado. Creio que o tempo de Justin se envolver com subversivos já passou.
- Espero que ele tenha aprendido a lição. - Simon fez uma pausa. - Cam, e quanto à jovem?
- Gabrielle? - Cam deu de ombros.
- Continuo do seu lado, Cam. Porém Pitt jamais apoiaria o rapto da jovem. E se o sr. Fox desconfiar disso, terá o maior prazer em arruinar-nos.
- Arruinar a mim, seria o mais correto dizer. Bem... está na hora.
- Creio que ele tem tão pouca afeição por milorde, como milorde por ele.
- Não se preocupe tanto, Simon. A jovem ficará escondida em Dunraeden. É pouco provável que alguém fique sabendo disso. Mesmo se a descobrirem, tenho uma
explicação razoável para a presença dela. Além disso, conheço o sr. Fox. Sei o que ele pensa.
Cam e Lansing desceram a grande escadaria em cantiléver. Na porta da frente, um criado entregou-lhes o chapéu e a bengala. Não usavam sobretudo. A temperatura
de final de abril era agradável.
- Isso lhe dá uma vantagem, Cam.
Cam acenou para um fiacre que estava parado na esquina. Deu o endereço do sr. Pitt na Baker Street e subiu no veículo atrás de Lansing.
O fiacre arrancou com um movimento brusco e continuou sacolejando pelas ruas pavimentadas de pedras de Mayfair. Em minutos, cruzaram a Oxford Road e entraram
na área conhecida como Marylebone.
Lansing disse que o amigo tinha a vantagem de ninguém lhe conhecer os pensamentos, mas Cam nem escutou o comentário, imerso em seus pensamentos.
Cinco cavalheiros sentavam-se ao redor da mesa da elegante sala de jantar do sr. Pitt. A refeição fora servida ali mesmo. Evitar os clubes masculinos exclusivos
de St. James era uma maneira de não despertar a atenção. Qualquer um estranharia a reunião de dois inimigos políticos de longa data, Charles Fox e William Pitt.
O grupo heterogêneo de whigs e tories despertaria suspeitas.
William Pitt organizara o jantar, embora houvesse renunciado ao poder há um ano como protesto. Sua soberania na questão irlandesa fora arranhada. Contudo
continuava trabalhando nos bastidores com a mesma roda seleta de jovens brilhantes, dentre os quais Cam e Lansing. Ainda era o líder dos tories e dirigia os rumos
da Inglaterra. Não era segredo que o primeiro-ministro - seu sucessor imediato - era apenas um figurante.
Do outro lado da mesa sentava-se Charles James Fox, líder da oposição. Tinha cinqüenta e poucos anos e era o mais idoso dos presentes. Richard Sheridan,
o dramaturgo, grande amigo de Fox, ocupava a cadeira à sua direita.
Fox ajeitou o corpanzil no assento e observou os companheiros. Refletiu que se um evento catastrófico atingisse a sala de jantar do sr. Pitt, seria um dia
triste para a Inglaterra. Corrigiu-se. Não seria uma tragédia se ele e Sheridan já houvessem saído.
Fox escondeu o sorriso atrás do guardanapo branco de linho. Recomendou-se paciência até o sr. Pitt decidir-se a revelar qual o objetivo daquela reunião
informal entre whigs e tories. Os dois partidos sentavam-se em lados opostos na Câmara e tinham idéias políticas diversas.
Fitou Sua Alteza, Camille Colburne, duque de Dyson, um de seus inimigos mais ferrenhos. Embora não houvesse aceitado nenhum cargo do sr. Pitt, ele se conservava
nas coxias do cenário político. Usava sua influência e suas idéias bem articuladas para moldar a política. Além da capacidade de oratória, era um pensador. Sua lógica
era impecável. A retórica que empregava na Câmara dos Lordes era sempre persuasiva. Ele era indispensável para Pitt e um espinho na pele de Fox. Vários jovens whigs
haviam abandonado o partido por causa da língua afiada de Cam.
O quinto duque de Dyson tinha admiradores de ambos os sexos. Os rapazes copiavam seu modo de ser. As anfitriãs se engalfinhavam para tê-lo como convidado.
O distanciamento de Dyson era o que mais despertava a atenção.
Poucas mulheres resistiam a esse apelo, mas Dyson não era dado a conquistas. Era um homem enigmático. O sr. Fox detestava enigmas na política. Geravam situações
imprevisíveis e muitas vezes desastrosas.
O duque não era um homem dado a paixões. Era frio e controlado. Os olhos azuis nunca denunciavam o que se passava em sua mente.
Fox ficara satisfeito quando Lansing persuadira o duque a ir com ele para a Irlanda, onde o visconde Castlereagh, amigo deles, assumira o cargo de primeiro
secretário. Fox não gostava de Castlereagh.
Fox analisou a figura esguia, quase ascética de Pitt que iniciava a preleção. Escutou o líder dos tóri sem interferir. E somente deu o aparte ao final do
discurso.
- Espera mesmo o apoio dos whigs se a Inglaterra declarar guerra à França? Presumo, sr. Pitt, que tenha argumentos bastante persuasivos como último recurso.
Pitt retrucou que os interesses da Inglaterra deveriam sobrepor-se a quaisquer outras considerações, mesmo a lealdade ao partido.
Fox deixou passar a impertinência e continuou a bebericar o vinho do Porto. Irritava-o ter de escutar conselhos de um homem cujos pontos de vista desdenhava.
Estava convicto de que o partido seguiria sua liderança em caso de guerra com a França. Se o Tratado de Amiens fosse rompido, o governo seria derrubado e o país
mergulharia em um caos. Admirado pelo fato de Dyson ter-se mantido em silêncio, virou-se para Sheridan.
- O que devo dizer a eles, Sherry?
- Diga-lhes que vão para o inferno!
- Os senhores escutaram meu amigo. - Fox empurrou a cadeira e levantou-se. - Façam isso ou agarrem-se ao tratado. Rompam-no e eu farei da Câmara um inferno.
- Ora, mas não teremos de ir para o inferno - Cam finalmente falou com calma.
- Como foi que disse?
- O diabo virá a nosso encontro.
- Ao que está se referindo? - Fox indagou com olhar brilhante.
- A Napoleão Bonaparte, primeiro-cônsul da França - Cam explicou o óbvio. - O senhor se encontrou com ele logo depois que a paz foi assinada, não foi? Paris
sempre foi sua cidade favorita, segundo eu soube. Por que não se senta, sr. Fox? Todos sabem que o senhor não se deixa persuadir. Pelo contrário, é um homem de convicções
inabaláveis. O senhor se encontrou com esse... O que ele é? Um ditador? Um tirano? Ou um benfeitor da humanidade? Creio que o senhor já formou uma opinião a respeito
para nortear nossa conduta futura em relação à França. Nós estamos prontos para escutar conselhos, sr. Fox. Por que não tenta convencer-nos de que Bonaparte não
representa ameaça para a Inglaterra? Para simplificar, Napoleão pretende ou não conquistar a Inglaterra?
Horas mais tarde, Fox e Sheridan levantaram-se das mesas de pano verde do White' s e embolsaram o dinheiro que haviam ganhado do duque de Portland. Fox
queixou-se ao amigo da derrota sofrida na casa do sr. Pitt.
- Eu me sinto lesado - Fox admitiu, depois de terem se sentado em uma das salas de leitura.
- Essa será uma constante - Sheridan falou. - Charles, vamos encarar uma verdade. Estamos fora dos cargos públicos porque temos feito inimigos poderosos.
- Ah, mas aquele não passa de um aprendiz.
- De quem está falando, Charles?
- Dyson.
- De novo com esse assunto? Ele pode ser aprendiz, mas é inteligente. Ele pode tentar cercá-lo, mas também sabe que não o vencerá em um debate.
- Acha mesmo? - Fox sentiu-se lisonjeado.
- Claro. Mas isso não o impedirá de virar a mesa. Ele entende que Napoleão é a antítese de tudo o que Charles Fox já enfrentou com luta.
- Estranho que Dyson tenha chegado a essa conclusão. Bem, Sherry, um passeio a Paris será esclarecedor. Todos esqueceram os princípios nos quais a Revolução
se baseou. A carnificina para nada serviu. Acha mesmo que o megalomaníaco histérico que se intitula de primeiro-cônsul acredita que poderei apoiar seus projetos
na Inglaterra?
- Por que não? Todo o mundo pensa isso.
- Napoleão é anti-republicano. Ele é traidor dos princípios nos quais a Revolução foi fundamentada!
- Por isso, nós os whigs radicais lutaremos contra ele se for necessário.
- E os tories conservadores certamente vão se opor a ele por se tratar de uma ameaça à ordem estabelecida.
- Lansing estava certo ao afirmar uma vez que a política produz estranhos aliados.
- E verdade.
- Sabe de uma coisa, Fox? Dyson é muito esperto. Ele nos chama a todos de liberais, apesar de estarmos em campos opostos. Concorda com isso?
- Claro que não. Quem pode saber o que Dyson é? Ele é um livro fechado. E aposto minhas fichas que ele não é liberal. Ele nos odeia, mas jamais confessará
isso.
Um criado de libre entrou e os dois ficaram em silêncio. O rapaz recolheu jornais velhos, garrafas vazias e copos, e saiu.
- Charles, quem é Mascaron?
- É um fiel aliado de Bonaparte que foi indicado por ele para o Almirantado ou Ministério da Marinha como eles dizem.
- Quais os antecedentes dele?
- Meu caro Sherry, nesses tempos de incerteza, ninguém se interessa muito por tais pormenores.
- Acho que Dyson e Lansing o conhecem. Eles se entreolharam quando o nome foi mencionado.
- Bastante observador, Sherry.
- Obrigado. Voltando a Bonaparte, o que pretende fazer, Charles?
Fox pensou alguns minutos antes de responder.
- Ele terá de ser contido. Na minha opinião, Bonaparte deseja tornar-se senhor da Inglaterra. Dyson está certo. O primeiro-cônsul está usando a paz para
reunir uma armada e invadir a Inglaterra. Fui informado disso. Se não cortarmos logo as asas dele, não haverá como impedi-lo.
- Informado? Charles, ainda está se correspondendo com Talleyrand?
- O que tem isso?
- E um dos homens de Bonaparte!
- E um francês. - Fox deu de ombros.
- Entendo sua atitude. Se a Inglaterra declarar guerra à França, será impossível manter coeso nosso partido. Isso romperia os princípios de paz que têm
sido veiculados há anos.
- Paz com os revolucionários. Não com Bonaparte.
- Nossos homens aceitarão isso?
- Creio que sim, Sherry. Se pudermos encurralar a França e dar a impressão de que estamos sendo forçados a declarar guerra.
- Napoleão não seria tão estúpido.
- Um homem ambicioso muitas vezes esquece o bom senso. Sherry, o que acha de irmos ao Brooks?
A mudança súbita de assunto confundiu Sheridan.
- O quê?
- Vamos ao Brooks? A noite está apenas começando.
- Ah! Está pensando em gastar o que foi ganho no jogo? Se não se incomoda, Charles, prefiro ir a Cavendish Square. Prometi a Harry dar uma espiada em seu
sarau.
- Cada um tem seu gosto.
- E suas fraquezas.
Não era segredo que o ponto fraco de Sheridan era a bela e erudita condessa de Bessborough. O de Fox, era o jogo. E ele preferia o Brooks, onde se apostava
alto. Acreditava na sorte.
- Qual será a de Dyson? - Fox murmurou.
- Não gosta dele, não é?
- Não. Para ser sincero, a nova geração não me agrada. Os dois sempre se divertiam quando falavam dos jovens. Sheridan ergueu um brinde.
- A nova geração.
- Que é insípida e não é intrépida! - Fox levantou o copo e os dois beberam. - Nós dois podemos ensinar a eles algumas coisas a respeito da vida, Sherry.
Meu Deus, eles têm a mente tão estreita e vazia!
Sheridan tomou o vinho e deixou a taça na mesa lateral.
- Está enganado a respeito de Dyson, Charles.
- Por que diz isso, Sherry?
- Creio que ele se deixa levar pelos próprios demônios.
- Tolice - Fox fez pouco caso. - Ele é uma pessoa fria. Pobre da Inglaterra se algum dia Dyson chegar a suceder Pitt.
- Acha isso possível?
- Em política, nunca se sabe. Mas...
- Sim? - Sherry interessou-se.
- Eu gostaria de poder afastá-lo da política antes de esse dia chegar.
- O que não me parece provável.
- Não - Fox concordou. - Eu o verei manhã na Câmara?
Ainda não acredito que prometi apoio a Pitt e a seus aliados. Dyson é inteligente, mas isso deveria ser o máximo que eu deveria admitir.
- Agora Pitt lhe deve um favor. Não se esqueça de cobrar isso.
Os dois amigos deixaram o White's rindo a valer.
A casa alugada para a amante ficava em Gloucester Place, distrito de Marylebone, a poucos minutos da seleta Mayfair onde Cam tinha sua residência. Com a
imigração francesa, Marylebone se tornara um prolongamento da França.
Circunstâncias favoráveis a Louise Pelletier, uma immigrée francesa. Chegara à Inglaterra com vinte anos - há oito - com a mãe viúva que morrera em seguida.
Sem conhecimentos nem recursos ela tivera duas opções. Ser a preceptora dos filhos de lorde Tuttle ou tornar-se sua amante.
Louise nunca se arrependera do rumo que dera à sua vida. Durante anos tivera vários protetores e sempre lhes concedera o congé, ou seja, os dispensara.
Sempre com o cuidado de selecionar antes o próximo eleito. Não se baseava apenas na riqueza. Louise tinha padrões. Era graciosa, culta e de gosto refinado. E com
Cam Colburne, suas expectativas foram excedidas. Era mais educada do que a maioria das mulheres de sua classe e não era tola. Sabia descartar as mulheres que cobiçavam
o duque, sem mostrar as garras afiadas. Afinal, Cam não tolerava mulheres ciumentas.
A noite foi agradável. Embora os convidados não fossem de primeira linha - com exceção dos cavalheiros que tinham livre acesso tanto na alta-roda quanto
em ambientes menos seletos -, a conversa esteve animada e versou, na maior parte do tempo, sobre Bonaparte. Atento, Cam não escutou nenhum nome que o interessasse.
E ficou satisfeito quando os presentes começaram a retirar-se.
Com olhar semi cerrado, fitou Louise despedir-se dos homens com a graça costumeira. Lembrou-se das palavras de Lansing e admitiu que esperava fidelidade
da amante. Afinal, pagava caro pelo privilégio.
Apoiado no corrimão de ferro trabalhado, observou o saguão. Transpirava elegância, como sua ocupante. Nos meses em que ele estivera fora da cidade, Louise
remodelara todos os ambientes. Tivera carte Manche para gastar e soubera aproveitar cada centavo. A mobília francesa branca e dourada era um cenário perfeito para
uma dama.
Cam pensou em seu castelo na Cornualha. Em comparação com o ambiente de Louise, Dunraeden era quase rústico. Louise se apressaria em modificar tudo. Embora
admirasse a elegância, ele gostava de preservar sua herança. Como as aquarelas pintadas por sua mãe e que ocupavam lugar de honra na sala de jantar. Cam também conservara
objetos sem muito valor, mas que tinham vindo de outras gerações dos Colburne.
Louise fechou as portas e voltou-se. Era uma beldade. A nova moda dos vestidos esvoaçantes de cintura alta valorizavam o corpo perfeito. Ela abriu os braços
e aproximou-se depressa.
- Ah, Cam, como senti sua falta. - abraçou-o pelo pescoço.
- Verdade? - Cam levantou-lhe o queixo.
Ela o encarou com franqueza nos olhos escuros e Cam mãe duvidou da afirmativa. Lansing na certa pensara em reprimi-lo. O amigo era muito sentimental.
Eles subiram a escada, abraçados. Apesar de fatigado por três dias de viagem, Cam esqueceria a exaustão diante da maestria de Louise como amante.
Durante os últimos meses nos confins da Cornualha, suas poucas parceiras tinham sido as moças voluptuosas das tavernas. Louise tinha a pele sedosa que exalava
a fragrância de violetas.
Depois de terem feito amor duas vezes, Cam levantou-se.
- Por que não fica esta noite, milorde? - Louise fitou o físico desnudo com cobiça.
Cam tinha porte atlético. Ombros largos, peito coberto de pêlos escuros, quadris estreitos e pernas musculosas. O sorriso leve iluminava os traços esculpidos
do rosto e faziam Louise prender a respiração.
- Não posso. Sem meu criado pessoal, sinto-me incapaz como um bebê.
Louise teve de aceitar a desculpa insatisfatória. Uma amante era paga para entender. Ela chegara a pensar que conseguiria demolir a muralha de isolamento
que o envolvia. Camille Colburne era um homem que salvaguardava a privacidade.
Ele também deixara claro desde o início que não desejava filhos. Dera-lhe até lições de como evitar uma gravidez, como se ela não soubesse. Louise não podia
deixar de pensar que um bebê os uniria, mas não ousava desobedecer-lhe.
Algum dia, Cam se casaria. Nobres precisavam de herdeiros. Lansing uma vez a consolara. Sempre haveria um lugar na vida do duque para uma mulher com tantos
talentos. Louise garantiu a si mesma que jamais deixaria mulher nenhuma suplantá-la.
- De quanto tempo será sua ausência dessa vez? - Louise forçou um sorriso.
- Até o final da semana. - Cam sentou-se na cama para calçar os sapatos. - Aliás, eu gostaria de lhe falar sobre isso.
- Sim? - Louise assustou-se.
- Tenho uma pupila na França. Pretendo trazê-la para Dunraeden. Sei que ela não gostará da mudança por isso terei de cercear-lhe a liberdade até ela se
consolar com o destino. Tenho criados no castelo, mas apenas uma é mulher. Nem mesmo sei se a menina fala inglês. O que acha de fazer-lhe companhia durante algum
tempo para ajudá-la?
- Quer que eu vá para Dunraeden? - Louise perguntou, atônita.
Um aristocrata da melhor estirpe não levava a amante para o castelo centenário da família. Também não apresentava as damas da família para mulheres de sua
categoria. A menos...
Cam acabou com as esperanças da moça.
- Ninguém deve saber de sua presença no castelo, nem que minha pupila chegará da França. Quero evitar os caçadores de dotes.
- Eu adoraria ir para a Cornualha.
-Talvez fosse melhor pensar no assunto. Dunraeden é muito isolado. Não há nenhum tipo de distração. Depois de uma semana ou duas, começará a sentir-se prisioneira.
Não poderei ficar lá o tempo inteiro. Se apesar disso quiser ajudar-me...
- Claro que irei! - ela o interrompeu.
- Louise, não se trata de um piquenique. Minha pupila não virá por vontade própria e poderá dar algum trabalho.
- Qual a idade dela?
- Dezoito anos.
- Não será difícil lidar com uma jovem dessa idade. Como ela é?
- Não sei. Não a vejo há mais de dez anos. Louise inspirou fundo.
- Quando iremos?
- Mandarei avisá-la. - Cam envergou o casaco requintado e ajeitou a gravata.
Ela não teve tempo de formular nenhuma das perguntas que lhe passavam pela mente. Cam beijou-a no rosto e saiu.
Apesar da curta distância entre Gloucester Place e Hanover Square, Cam chamou um tílburi. Não estava vestido para a garoa fina que caía. Aproximava-se a
hora de cumprir a promessa sagrada. Teve a impressão de sentir o sabor doce da vingança.
Na verdade, tratava-se de fazer justiça. Homens como Mascaron não podiam ficar impunes enquanto os ossos de suas vítimas apodreciam em valas comuns. Danton,
Marat e Robespierre, autores dos massacres de setembro e do terror que se seguiu, haviam pagado por seus pecados.
Um a um, os juizes dos tribunais fictícios haviam caído. Ele não os matara pessoalmente, mas contribuíra para a derrocada deles com auxílio de Rodier e
de seus agentes. Mascaron e Maillard haviam escapado durante anos.
Maillard mostrara mais sensatez de que seu chefe e fugira. Contudo Rodier o descobrira em Paris, vivendo com identidade falsa. Mesmo a ascensão de Bonaparte
não lhe garantira o sossego.
A justiça fora feita com auxílio de parentes de uma das vitimas dele. O corpo de Maillard fora encontrado havia um mês boiando no Sena, com o pescoço quebrado.
Mascaron fora exonerado oficialmente de qualquer envolvimento com os massacres das prisões. Sob a égide de Napoleão, sua subida ao poder fora meteórica.
Cam prometera a si mesmo que a descida seria ainda mais rápida.
Mascaron provara ter sete vidas. Escapara enquanto Danton e seus seguidores eram guilhotinados. Rodier seguira sua pista uma dezena de vezes e perdera todas.
Até a procura de Gabrielle de Brienne - que acabaria por levá-los a Mascaron - fora infrutífera. Depois do massacre na prisão de Abbaye, a menina sumira.
Rodier não demorara em confirmar as suspeitas de Cam. A menina não apenas era parente, mas neta de Mascaron. Rodier o conhecera nos anos pré-revolucionários
em Paris. Ambos eram advogados, mas na época ele não tivera notícia de familiares de Mascaron.
Um ano depois, Rodier desvendara a história. A neta e o avô não se conheciam. A mãe de Gabrielle fora criada no campo pelos avós maternos e Mascaron não
gostava deles. Quando a filha casou-se com Brienne e Gabrielle nasceu, a ruptura foi completa.
Até a noite do massacre da prisão.
Nem mesmo um indivíduo insensível e calculista como Antoine Mascaron deixaria de fazer uma tentativa de salvar a filha e uma neta. Se elas houvessem enfrentado
o mesmo destino das outras mulheres prisioneiras, teria sido uma grande ironia. Mascaron e Danton tinham sido os responsáveis pela sanha sanguinária e vingativa
da gentalha.
Na certa Mascaron soubera da prisão da filha Elise tarde demais.
Quando Mascaron reapareceu como líder da nova sociedade francesa, Cam prometera si mesmo não perder a oportunidade de vingar-se.
O tílburi parou diante da casa vazia de Hanover Square. Cam entrou, chamou um servo, ordenou para que a lareira de seu gabinete fosse acesa e que trouxessem
seu melhor conhaque da adega.
Enquanto esperava, destrancou uma gaveta e tirou dali uma carta. Leu novamente o conteúdo, como se não o houvesse memorizado até a última letra. Fora escrita
por Rodier.
Gabrielle de Brienne fora localizada. Embora fosse um mistério o paradeiro anterior da jovem, Mascaron passara a apresentar abertamente sua neta Gabrielle.
Há pouco tempo, ela estivera com o avô em Paris. Por algum motivo desconhecido, ela fora recolhida à solidão de um castelo às margens do Sena. Sem perda de tempo,
um dos agentes de Rodier empregara-se no local como jardineiro.
Château de Vrigonde, perto de Gaillard. Era onde Gabrielle se encontrava. Gaillard era uma grande fortaleza construída por Ricardo I da Inglaterra para
dominar os franceses. O caminho mais fácil da volta seria navegar pelo Sena até Rouen e depois pela costa da Normandia. Atravessar o canal da Mancha e chegar à Cornualha.
Seria muito simples raptar a jovem, Cam refletiu, satisfeito. Serviu-se de uma dose generosa de conhaque e tomou-a de uma só vez. Não se sentia tão estimulado
desde a época em que ajudara na fuga de alguns amigos girondinos de Rodier, depois da execução de Maria Antonieta no inverno de 1793.
O mundo parecia ter enlouquecido. Quarenta mil homens, mulheres e crianças tinham sido executados em dez anos. E Charles Fox tinha o descaramento de recomendar
os ideais e princípios da Revolução! E Lansing o censurava porque pretendia raptar uma jovem!
Gabrielle de Brienne, o anjo escarlate.
Cam largou-se na poltrona ao lado do fogo, esticou as pernas para a frente, tornou a encher o cálice e dessa vez bebeu aos goles.
Dissera a verdade a Simon. Não pretendia ferir a jovem. Ela seria apenas um peão na jogada. Seu alvo era Mascaron. E apenas Rodier tinha conhecimento de
seus planos para o homem diabólico. Simon era muito sentimental, mas assim mesmo indispensável a seus propósitos. Era um amigo leal.
Criticou a si mesmo por ter convidado Louise a ir para a Cornualha. Na certa também começava a amolecer o coração. Aquilo nunca fizera parte do plano. Simon
novamente! À sua maneira, Simon conseguia mexer com a consciência de uma pessoa.
Mas também não seria nenhuma tragédia. A presença de Louise em Dunraeden poderia beneficiar a todos. A jovem ficaria satisfeita pela companhia feminina.
E ele teria por perto, sempre que precisasse, o corpo macio e perfumado da amante. Seria uma troca benéfica sob todos os pontos de vista. As camponesas da região
tinham um inconveniente. Cheiravam a peixe.
Voltou a pensar em Gabrielle. Como seria sua aparência atual? Ela se lembraria de Abbaye? Qual a influência da história sangrenta da França em sua vida?
Por várias vezes, Mascaron e a neta haviam escapado da morte por um triz.
Ela ficaria apavorada ao ser raptada. Uma pena, embora inevitável. Cam deveria fazê-la entender que estaria segura enquanto lhe obedecesse. Em poucos meses,
a provação teria fim. Pelos relatórios, Bonaparte estava reunindo a esquadra para a invasão da Inglaterra. Assim que Mascaron lhes fornecesse as informações das
quais necessitavam, a jovem seria mandada de volta para a França. Cam ficaria livre para fazer com Mascaron o que lhe aprouvesse.
Cam voltou ao passado, ao tempo que fazia parte de uma família feliz. Talvez pelo excesso de conhaque sentiu um nó na garganta que o impediu de respirar.
No momento seguinte, estava de volta a Abbaye. Era como sentir outra vez o calor das fogueiras, ouvir os gritos das vítimas e experimentar a angústia de
um jovem que nada podia fazer pela família. Procurou não pensar nas cenas chocantes. Aquilo ainda o levaria à loucura e de nada adiantaria.
Terminou de tomar o conhaque e serviu-se de mais uma dose.
Gabrielle de Brienne, o anjo de Abbaye. Foi como pensara nela assim que a vira. A primeira idéia fora adorá-la. Oh, Deus, como estivera errado! Quantas
vezes a condenara ao inferno pelo que ela fizera. Algum dia...
Deus, mas isso era um absurdo! Não se poderia acusar uma criança de sete anos de um crime tão bárbaro. Culpou mais uma vez a bebida pela ira que voltara
a acometê-lo.
A jovem não seria indispensável para que a justiça fosse feita. Cansado, passou a mão nos olhos e procurou defender-se dos pensamentos inquietantes.
Queria Gabrielle à sua mercê e sonhara em fazê-la prisioneira. Estava determinado a fazê-la sofrer, mesmo que em parte, pelo que provocara naquela noite.
No mínimo, desejava amaldiçoá-la frente a frente. E não seria um insulto deixá-la aos cuidados de sua amante? Aquelas fantasias ridículas o atormentavam.
Levantou-se e jogou o cálice na lareira. O cristal despedaçou-se ao tocar no mármore do consolo. Em segundos um lacaio veio correndo.
- A... Alteza? - o rapaz gaguejou.
- Mande aprontar o coche. - Cam dirigiu-se para a entrada. - Vamos para Richmond.
- Richmond, Alteza? - Eram quatro horas da manhã e Richmond ficava a uns doze quilômetros. Mesmo nesses tempos modernos, os salteadores garimpavam as estradas.
- Levarei quatro palafreneiros a cavalo. Diga que eu preciso da parelha mais rápida. Ah, avise-os para irem armados.
- Mas, Alteza...
- O que é, homem de Deus?
Eles haviam saído do gabinete e Cam estava com um pé no primeiro degrau da escada de mármore branco.
- Qual o endereço que devo dar a Thomas?
- Nenhum. Quero apenas arejar minha mente que está coberta por teias de aranha.
Cam não teve sorte. Os caprichos da imaginação estavam muito entranhados. Não puderem ser banidos. Permaneceram intocados por muito tempo e até durante
o sono.


Capítulo II

- Sacre mom de Dieu! Não sei para que se preocupar!
- O tanto, Rollo! Todos no Château estão ocupados de uma maneira ou de outra. Ninguém dará por nossa falta. O que Mascaron não souber, não irá incomodá-lo.
Agora vamos soltar esse bote na água ou perderemos o encontro.
Quem acabava de falar - e não parecia ter mais de quinze anos - encostou o ombro na proa da pequena embarcação e empurrou-a com força para dentro do rio.
Rollo foi o primeiro a pular para dentro. Em um ato reflexo agarrou seu interlocutor pelo calção e jogou-o para dentro do barco.
Gabrielle de Brienne aborreceu-se e bateu na mão que a erguera.
- Sei me virar sozinha. Santa Virgem! Ficou maluco?
Rollo deu risada e pegou os remos no centro do barco. Gabrielle escalou as barricas cheias de Calvados, a aguardente de sidra, e o carregamento de renda
de Tosny coberto por tecido impermeável. Acomodou-se perto da cana do leme.
Haviam feito aquela viagem inúmeras vezes. No último mês, Rollo começara a tratá-la com a deferência devida a uma mulher, o que a irritava. Por dez anos
haviam sido criados como irmãos e ela era capaz de fazer tudo o que Rollo fazia, às vezes até melhor. Goliath, avô de Rollo e tutor deles, ensinara-lhes tudo o que
sabia. Gabrielle estava certa de que suplantava os homens em tudo. Na equitação, no tiro, na esgrima e até na inteligência.
Droga! Virou a cabeça e cuspiu nas águas escuras e lamacentas do Sena.
- Isso não são modos de uma dama.
- O que um remador sabe a respeito de damas? - ela se irritou.
- Um pouco mais de que mademoiselle. Será que não aprendeu nada com a inglesa, Gaby? Ela vem lhe ministrando aulas há um mês!
Rollo, um jovem de dezoito anos e constituição robusta como o avô, se referia à sra. Blackmore, uma viúva inglesa contratada por Mascaron para uma tarefa
impossível, segundo Rollo. Transformar Gaby em uma lady.
Gabrielle fungou com pouco caso e ele prosseguiu remando.
Gabrielle admitiu que tudo mudara para pior, depois da chegada da professora inglesa. Tivera de vestir-se como mulher. Saias e anáguas horríveis, espartilhos
e calções insuportáveis. Há um mês Rollo resmungaria que ela negligenciava a tarefa. Naquela altura, não a deixava encostar nos remos. Desse jeito, seus músculos
acabariam atrofiados! Suas mãos estavam ficando macias! E horror dos horrores. Ao se examinar diante do espelho grande de báscula, achara suas formas arredondadas
demais. Independentemente de quantas horas praticava esgrima com Goliath, cavalgava ou nadava nua no Sena. A suavidade parecia espalhada como uma doença.
Até Mascaron se modificara. Durante anos ela fora forçada a não chamá-lo de avô e tivera de disfarçar-se de menino para despistar os perseguidores. Durante
aquele tempo Mascaron aplaudira sua perícia com o florete e a pistola. Orgulhara-se da coragem e da habilidade da neta que sabia tomar conta de si mesma. Mas isso
fora nos tempos difíceis da Revolução, quando tinham sido caçados. E no alvorecer da nova era, o que ela se esforçara para aprender e agradá-lo perdera o valor.
Certo que tivera a permissão de continuar a exercitar os esportes masculinos. Afinal ninguém sabia o que aconteceria na França no outro dia.
Por que de repente Antoine Mascaron decidira torná-la uma lady? Admitiu que nenhuma atitude mudaria o fato de ela ser uma mulher. Mas mulheres tinham cheiro
horrível de perfume e davam passos curtos por causa da roupa ridícula que usavam. Gabrielle descobrira também que as mulheres não precisavam movimentar-se. Pareciam
bonecas à mercê dos homens. Que mentalidade estreita! Não entender que representavam uma parte insignificante na vida deles! Homens faziam coisas importantes. Iam
para a guerra ou se tornavam contrabandistas. Homens as privavam de aventuras. Mulheres ficavam em casa e enchiam baldes com lágrimas.
Gabrielle tentara agir como uma lady. Queria que Mascaron se orgulhasse dela. Esperança vã. Passara dois meses com ele em Paris e se sentira excluída. As
mulheres a quem fora apresentada olhavam-na como se ela fosse um aleijão.
Ela falava demais, não era graciosa nem tinha modos dignos de uma dama. As mulheres a evitavam. E tudo piorara depois do incidente vergonhoso nas Tulherias.
Laporte se excedera e tentara beijá-la. Gabrielle o deixara estirado de costas no chão com um golpe ensinado por Goliath. E isso, na frente do primeiro-cônsul. Mascaron
a mandara de volta para o castelo de Vrigonde e contratara a inglesa. No último mês, sua liberdade fora cerceada. E piorara nos últimos dias.
As conversações de paz em Paris não avançavam. Os ingleses não desistiam de Malta. Lorde Whitmore sugerira a Mascaron negociações menos formais. As partes
mal se conheciam. A desconfiança e o desacordo imperavam. Um intervalo nas negociações acirradas seria benfazejo. Mascaron, político hábil, deixara o Château de
Vrigonde à disposição do embaixador inglês. Whitmore aceitara a oferta com satisfação. O castelo era bem situado, a um dia de viagem de Paris e tinha uma bela vista
do Sena.
Gabrielle apertou o leme com raiva. Desde a chegada do inglês, Mascaron mostrava-se radiante.
- Aceitação! Respeitabilidade, Gaby! De agora em diante, esse será nosso lema - o avô dissera.
Gabrielle se apavorava. Não tinha a menor idéia de como se comportar socialmente. Nada mais absurdo do que ser anfitriã de homens acostumados às finuras
dos altos níveis sociais. Poucas coisas perturbavam a serenidade de Gabrielle. E aterrorizava-a imaginar o que teria de fazer quando os convidados de Mascaron chegassem
na manhã seguinte.
As atividades daquela noite pareceram-lhe brinquedos de criança. Gaby suspeitava que os dias de clandestinidade chegavam ao fim. O que seria muito triste.
A necessidade a forçara a adotar o disfarce de um garoto ao qual se acostumara. Era um disparate supor que ela poderia transformar-se de repente em uma lady bem-nascida.
Além do mais, estava muito feliz de ser como era.
Seria mesmo?
- Chegamos! - Rollo descansou os remos.
Gabrielle virou o leme para a direita e o barco chegou ao porto. Rollo desceu e puxou a embarcação para a margem. Silhuetas se destacaram no escuro e vieram
ao encontro deles. Gabrielle puxou a aba do chapéu para cobrir a testa e levantou a gola da capa. Era conhecida como William Hanriot, irmão mais novo de Rollo. Os
contrebandiers consideravam Gabrielle de Brienne encerrada como freira em uma das torres de pedra do Château de Vrigonde.
A sombra da fortaleza medieval de Gaillard, a carga foi desembarcada e o negócio, concluído. Gabrielle e Rollo não negociavam diretamente com os contrabandistas
ingleses, todos habitantes da Cornualha, que esperavam na costa da Normandia dentro de suas embarcações velozes. De Rouen, o Sena mudava de característica. Apenas
homens experientes e intrépidos arriscavam a vida e os barcos nas águas turbulentas do estuário. Várias embarcações haviam afundado e muitos homens tinham ali encontrado
a morte. Todavia ninguém pensava em desistir do comércio lucrativo. Era um meio de vida que desafiava os séculos.
Os contrebandiers não se incomodavam com a guerra, com a Revolução, com Bonaparte nem com os fiscais ingleses de impostos que surgiam nos veleiros rápidos.
Para Gaby e Rollo, a empreitada era uma aventura. Para os outros, um negócio arriscado.
Com o dinheiro no bolso, foram até o centro da pequena cidade de Andely. Rodearam a catedral e entraram na taverna Les Trois Frères, reduto conhecido dos
contrabandistas. O local estava lotado de homens rudes e mal vestidos. Alguns funcionários e comerciantes. Poucos soldados e viajantes. E damas da noite.
Alguém tocava acordeão. Homens barulhentos jogavam cartas. A maioria fumava cachimbos de barro. O ar estava impregnado de fumaça.
Gabrielle e Rollo sentaram-se em uma das mesas do canto e pediram Calvados que beberam aos goles. Rollo tirou do bolso um cachimbo e uma algibeira com fumo.
Gabrielle sentiu a pele arrepiar-se. Um homem de surpreendentes olhos azuis a observava com interesse. Inquieta, lembrou-se de que muitos homens, especialmente
os mais atraentes, interessavam-se por rapazes. Virou-se de costas para ele e segurou a bainha do punhal. Sentiu-se mais segura e os dedos pararam de tremer.
Não era a primeira vez que se via vítima de tais olhares. Em Paris, quando usara trajes femininos e ousados, vira a mesma atenção no rosto de vários cavalheiros.
Isso a aterrorizava mais do que enfrentar a lâmina de uma espada. Aprendera que mostrar constrangimento era tido como provocação. Fora agarrada várias vezes e repelira
os avanços com intrepidez. Vestida como rapaz, imaginava-se imune aos olhares cobiçosos.
Fitou o estranho de revés. Ele continuava a encará-la. A inquietação transformou-se em medo.
Cutucou Rollo e pediu o cachimbo. Espantado, Rollo cedeu. Gabrielle prendeu o artefato entre os dentes. Inspirou e exalou, copiando os gestos dos barqueiros
mal-encarados. Ela gostava do cheiro de tabaco, mas não gostava de fumar. Entretanto, precisava aparentar ser um homem de verdade.
Uma criada da taverna passou carregando uma bandeja com canecos. Gabrielle devolveu o cachimbo para Rollo e beliscou o traseiro amplo da moça. Rollo gargalhou.
A rapariga virou-se, raivosa. Ao ver quem fora o autor da façanha, sentou-se no colo de Gabrielle que corou intensamente.
Berthe, a garota, já se mostrara interessada no barqueiro jovem e imberbe. Gabrielle fizera o impossível para desestimular a moça, ainda mais que a outra
contava com a amizade de um brutamontes que se considerava seu protetor. Gabrielle considerou-se perdida. A moça era avantajada e Gabrielle não conseguiu movê-la
de seu colo. Arriscou uma espiada para o estranho.
- Do que está rindo, Cam? - Lansing brincava, distraído, com a alça de um caneco de estanho.
- Aquele jovem espevitado tenta passar-se por homem. Aposto que ele nem sabe o que fazer com a mulher que tem no colo.
- Mas essa não deve ser a opinião daquele sujeito.
Cam estreitou os olhos para o grandalhão que se levantava devagar. O recinto ficou em silêncio e cabeças se voltaram para testemunhar a ocorrência. Cam
descruzou as longas pernas e endireitou-se na cadeira.
- Cuidado, Cam - Lansing avisou-o. - Essa briga não é nossa. Lembre-se por que estamos aqui.
Do Le Havre na costa da Normandia, rio acima até Rouen e até Andely, eles haviam vasculhado tudo. Rodier ficara em Rouen com tudo pronto para a viagem.
Deveriam chegar ao Château de Vrigonde naquela noite, ostensivamente ao lado de lorde Whitmore. Não fora difícil arrumar um convite para entrar na toca do leão.
Em poucas horas alcançariam a pequena fortaleza de Mascaron e o plano seria posto em prática. O embaixador não entendera a presença dos emissários do sr.
Pitt, mas mantivera a opinião para si mesmo. Para Whitmore era suficiente que o duque de Dyson fosse homem de confiança do sr. Pitt.
Cam decidiu que tudo teria de parecer correto. Nem uma palavra sobre o rapto deveria extravasar. Como Lansing afirmara, Pitt não aprovaria um ato daquela
natureza. Além disso, se o primeiro-cônsul ficasse sabendo das intenções secretas, Mascaron se tornaria inútil para os propósitos deles.
Em menos de uma semana, a Inglaterra chamaria de volta seus diplomatas antes de declarar guerra à França. Cam nunca estivera tão perto de realizar um objetivo.
Gabrielle de Brienne seria a isca para agarrar Mascaron. Embora não tivesse a mais remota intenção de arriscar o sucesso da missão, a despeito de sua sede de vingança
e contra toda a lógica, não podia abandonar o jovem barqueiro indefeso.
O homem apelidado de Touro adiantou-se em direção ao garoto que se contorcia sob a mulher que estava em seu colo. A rapariga percebeu os movimentos do camarada.
Deu um grito, ficou em pé e escondeu-se atrás da cadeira do jovem. O barqueiro franzino também viu Touro e empalideceu. Levantou-se sem pressa e Cam fez o mesmo.
Touro deu um rugido e jogou-se sobre sua presa. O rapaz afastou-se e atingiu o homenzarrão com um pontapé. Touro estatelou-se no chão, levando junto uma
cadeira.
- Saia daqui! - o companheiro do jovem gritou e jogou-se sobre Touro.
O jovem hesitou por alguns instantes e saiu correndo.
Os homens se levantaram e explodiram em gritos de encorajamento para os contendores que lutavam no chão. Logo a luta se generalizou. Cadeiras foram quebradas.
Copos e canecos voavam. Berros se sucediam, de raiva e de dor.
Sem pensar no que fazia, Cam correu atrás do menino. Gabrielle, apesar de rápida, notou que perderia a dianteira. Entrou na cavalariça e fechou a porta.
Seu perseguidor arrebentou a madeira com dois pontapés. Gabrielle, que desembainhara o espadim, recuou com a lâmina estendida.
- Não pretendo machucá-lo - ela afirmou. - Quero apenas que vá embora.
Os únicos sons audíveis eram a respiração deles e o relinchar dos cavalos assustados. A fragrância da colônia masculina que pôde ser sentida apesar do cheiro
dos cavalos era agradável.
Gabrielle entendeu que ele não a levava a sério, o que a deixou mais assustada. Ensaiou vários golpes com mestria. Abaixou-se com a arma em riste e o outro
braço para trás em posição de equilíbrio.
- Quero apenas falar-lhe - Cam assegurou.
O jovem atacou e Cam desviou-se, desembainhando a própria arma.
- Sei como usar um florete - Gabrielle avisou-o.
- Não duvido. Qual seu nome?
- Não sou o tipo de garoto que o senhor está imaginando. Encoste em mim e corto sua mão fora.
- O quê?
- Vi muito bem como o senhor me olhava.
- Santo Deus! É nisso que estava pensando? Pode ter certeza de que se enganou.
- Não sou idiota. Conheço muito bem esse olhar. Não quero nada com o senhor!
Cam enfureceu-se e atacou. Gabrielle não era inexperiente, mas sentiu no ombro a força do braço do oponente. Mesmo sabendo que não poderia superá-lo em
resistência e força, revidou o lance. Depois de alguns golpes rechaçados com facilidade, Gabrielle recuou e analisou o adversário.
Não temeu o físico atlético, mas sim o ar de confiança que ele exalava por todos os poros.
- Não precisa mostrar o que sabe - Cam falou com suavidade. - Poderá acabar machucado.
Gabrielle estreitou os lábios diante do insulto, determinada a arrancar o sorriso presunçoso daquele rosto.
Lembrou-se dos ensinamentos de Goliath e tornou a investir com golpes calculados para desestabilizar o inimigo. Na primeira oportunidade, investiu com fúria,
mirando o ombro do atacante.
Cam desviou-se e com um movimento circular prendeu o florete do jovem oponente. Gabrielle pensou que seu pulso estivesse quebrado, tamanha a fúria com que
o estranho arrancou-lhe a arma da mão. A pequena espada foi para o chão, inútil.
Arfante, Gabrielle notou a calma do adversário e a frieza de seu olhar. Recuou, encostou-se na parede e estendeu a mão.
- Por favor, monsieur, deixe-me ir. Não sou o tipo de garoto que o senhor está imaginando - ela repetiu.
Cam aproximou-se e prendeu-a na parede.
- Não se assuste. - Cam viu o olhar arregalado. - Não pretendo machucá-lo. Quero apenas saber seu nome.
- Por favor, monsieur.
- Não tente me enganar dizendo que é um aprendiz de barqueiro. Quem lhe ensinou a esgrimir dessa maneira?
Gabrielle tentou afastar-se, mas ele a impediu. O estranho era envolvente. Assustador.
- Por que não me diz seu nome?
Ela nunca vira olhos tão azuis. Os cabelos escuros semi longos estavam desalinhados e conferiam ao desconhecido aparência jovial. Apesar disso, não era
nenhum jovem como Rollo. Alto, experiente, poderoso, confiante e não confiável. Determinado. Ela estremeceu. Teria de atender ao pedido ou ele jamais a soltaria.
- William Hanriot.
- Um belo nome normando. Gostei de você. Desde o começo.
Gabrielle nunca sentira tanto pânico. Engoliu em seco. Cam riu com certa suavidade.
- Meninos não me atraem, William. Os ingleses não são tão liberais como os franceses. Neste ponto não há nada a temer.
- O que o senhor quer de mim? - Gabrielle escondeu as mãos nas costas para que ele não lhes visse o tremor.
Ela se espantou por ele ser inglês. Moreno, tinha a aparência de um corsário, mesmo falando o francês correto.
- Apesar de você ser um jovem delgado, é corajoso, embora mantenha uma boa dose de vulnerabilidade. Eu poderia empregá-lo. Vi que não teve medo daquele
homenzarrão e também não receou enfrentar-me.
- O senhor poderia ter me vencido.
Cam notou o desapontamento da afirmativa.
- Se vier trabalhar comigo, eu lhe mostrarei onde estão seus erros. Poderia transformá-lo em um excelente esgrimista.
- Não posso.
- Não? O que o prende aqui? Qual a sua idade? Catorze? Quinze? Aqui não é um lugar apropriado para um garoto. Eu posso proporcionar-lhe uma vida melhor.
- Não!
Cam não entendia a própria insistência. Os recentes acontecimentos na França eram de importância bem maior. O garoto tinha um certo exagero de maneirismos
que o intrigara no momento em que pusera os olhos nele. Não era divertido. Era comovente.
Não soube explicar por que saíra atrás do garoto. Não pretendia assustá-lo. Mas o instinto assoprava que a tragédia tocara a vida do menino. Os olhos grandes
e expressivos que desafiavam o mundo. Ele ainda não aprendera a ocultar seus sentimentos. Isso viria com o tempo.
Cam lembrou-se de si mesmo quando jovem. Corajoso e disposto a enfrentar o inimigo. Desejou que o menino não se tornasse duro e insensível. Valeria a pena
preservar a inocência?
Também não soube explicar o que o atraía no garoto, embora não gostasse de meninos. Talvez fosse a admiração diante da coragem e a vontade de proteger os
pontos vulneráveis.
- Falarei com seus pais, se é isso o que o preocupa - Cam falou com firmeza. - Creio que gosta da Cornualha. A meu lado, terá uma vida melhor.
- Não. Eu não quero ir com o senhor.
Gabrielle percebeu que o desagradava e seu coração disparou. O desconhecido era determinado. Nada o faria desistir. Passou a língua nos lábios ressecados.
Notou-o estreitar os olhos diante daquele gesto feminino e impensado. Apavorou-se diante da intensidade daquele olhar e não teve como impedir o estranho de agir.
Ele lhe arrancou o capuz da cabeça.
- Eu deveria ter adivinhado! - ele murmurou. - Por isso deixou-me tão confuso. Uma jovem, pelo amor de Deus!
Gabrielle achou que ele parecia aliviado com a descoberta.
- Uma mulher! Como pude ser tão tolo? - Cam ficou sério.
Gabrielle sentiu que sua alma era despida.
- Cam? Onde foi que se meteu?-uma voz interrompeu-os.
- Aqui, Simon!
Cam soltou-a e foi até a entrada.
- Não diga nada e não se mexa - ele advertiu-a. Gabrielle sentiu frio, apesar do casaco de lã grossa e cruzou os braços. Fitou o espadim largado e não ousou
pegá-lo. A arma de pouco lhe adiantaria. Oferecer resistência seria inútil. Naquela altura teria de lutar contra dois.
A primeira impressão do recém-chegado foi boa. Era loiro e parecia sincero. Não era mal-encarado. Na certa ria com freqüência, como fazia no momento. As
covinhas eram responsáveis pelo encanto do sorriso. Gabrielle sentiu-se mais aliviada e inexplicavelmente mais segura com a presença dele.
- Que coisa estranha, Cam. Sabe que o rapaz... - Lansing interrompeu-se ao ver quem estava no fundo da estrebaria.
De maneira inconsciente, Gabrielle jogou os cabelos longos para trás dos ombros.
- Um gigante do lado de fora está à procura do menino que, afinal, não é nenhum garoto - Lansing considerou.
Escutou-se um berro do lado de fora com a intensidade do urro de um leão ferido.
- Anjo!
O gigante veio por trás, empurrou Lansing para o lado e foi em direção de Gabrielle. Em um segundo, Cam bloqueou-lhe a passagem.
- Goliath! Ah, Goliath. - Gabrielle esquivou-se de Cam e jogou-se nos braços estendidos do homem imenso.
- Se o senhor não tirar as mãos dela - Cam avisou em uma voz que Lansing mal reconheceu -, pode considerar-se um homem morto.
De imediato, Lansing entendeu o erro e segurou o braço de Cam.
- Cam, você ficou louco? Este é o cavalheiro pelo qual estávamos esperando. Ele mora na propriedade de Mascaron e veio até aqui para conduzir-nos ao château.
Quanto à jovem, não pode imaginar quem seja?
A tensão dentro daquele pequeno espaço tornou-se palpável. Apesar do aviso de Lansing, Cam parecia disposto a enfrentar o homenzarrão. Goliath não se intimidou
nem um pouco com o olhar faiscante de Cam. Preparou-se para reagir contra qualquer movimento que ameaçasse tirar a jovem de sua proteção.
Aos poucos, a postura desafiadora de Cam começou a dar sinais de descontração. Fitou Gabrielle e a memória deu sinal de vida sem, no entanto, aflorar à
superfície.
- Quem é mademoiselle?
Gabrielle não soube explicar o receio que a acometeu. Não queria revelar seu nome. Com lábios trêmulos, abaixou as pálpebras para que não lhe percebessem
a confusão. Abrigou-se melhor nos braços amigos de Goliath.
- Cam, ela é Gabrielle de Brienne - Lansing respondeu à pergunta.
Gabrielle abriu os olhos e sentiu-se queimar pelas chamas expelidas pelo olhar daquele a quem chamavam de Cam. Piscou, receosa. Percebeu que o fogo nos
olhos dele cedeu lentamente a um controle rígido. Desde os dias tenebrosos da Revolução, ela não via uma aversão tão profunda.
Alguma coisa pavorosa desencadeou-se no ar. Gabrielle estremeceu quando Goliath levantou-a nos braços. O inglês não tentou deter Goliath que se encaminhou
para fora a passos largos.
Naquela noite, os antigos sonhos voltaram a atormentá-la.

O perfume das flores das macieiras chegava a todos os cantos do Château de Vrigonde. Cam refletiu que, no futuro, toda vez que pensasse na Normandia, se
lembraria daquela fragrância refrescante e agradável.
O salão de recepções estava lotado. Grupos de dois ou três conversavam a respeito da primeira sessão de negociações. Cam refletiu que Mascaron devia ser
um homem de recursos notáveis. Pareceu-lhe que muitos dos tesouros de Versalhes - pinturas, tapeçarias, lustres de cristal, mesas e cômodas com gravuras em ouro
e incrustações em porcelana e marfim - haviam encontrado refúgio naquele recinto abastado.
Porém o tesouro que Mascaron mais prezava não estava na sala. Aquele ambiente era refinado demais para a jovem. Pelo que lhe parecera, ela combinava mais
com os servos. Chegara a dar razão para Rodier. Mascaron não arriscaria sua posição para salvar a neta. Mas na noite anterior quando fizera menção a seu nome, tivera
certeza do contrário, pelas palavras altamente elogiosas do avô.
Vira quando o gigante Goliath levara a jovem atrevida e sem modos para os fundos da casa. Sem dúvida por ela não saber comportar-se.
- Creio que já nos encontramos antes - Mascaron afirmou, estudando o hóspede com atenção.
- Pode ser - Cam disfarçou -, embora eu não tenha lembrança do fato.
Alguém pediu a atenção de Mascaron e o constrangimento se desfez.
Cam não sabia o que esperar daquele homem que fora um dos perpetradores dos massacres de prisioneiros. Imune àquele verniz, imaginara algo mais sinistro
que denunciasse o monstro que ele escondia sob a superfície.
Era como se Mascaron não houvesse sido afetado pelos acontecimentos anteriores e posteriores aos massacres. Apesar dos cabelos brancos, aparentava menos
do que os sessenta anos que deveria ter. Esbelto, tinha olhar inteligente e inspirava confiança. Cam achou aquele refinamento obsceno. Repugnante.
Talleyrand, líder da delegação francesa, aproximou-se.
- O bom gosto de nosso anfitrião é extraordinário, n'est- ce-pas?
- O senhor conhece Mascaron há tempos? - Cam sabia que os dois eram conhecidos desde o começo da Revolução.
- Sim. Enveredamos por caminhos diversos e felizmente agora estamos na mesma estrada. Milorde viu o Ticiano? - Talleyrand saiu mancando e convidou Cam a
segui-lo.
Ele acompanhou os passos lentos do ministro de Relações Exteriores da França ê admirou a jovem pintada na tela magnífica.
- É a filha de Luís XV - Talleyrand explicou.
- O quadro veio do palácio de Versalhes? - Na verdade não se tratava de uma pergunta.
- Sim. Por infelicidade os tesouros de Versalhes foram vendidos durante a Revolução. A aversão às obras de arte imperava. Tudo que trouxesse a pecha da
realeza era um anátema naqueles tempos. Sinto dizer que Versalhes sofreu o impacto de nosso ódio.
- Assim como os reis - Cam afirmou com secura.
- Podemos dizer, Alteza, que Luís XIV construiu Versalhes, Luís XV aproveitou-o e Luís XVI pagou por isso. Devemos lembrar-nos dessa lição de História.
- História da França - Cam corrigiu-o.
- Vossa Alteza acha que isso jamais ocorrerá na Inglaterra?
- É pouco provável.
- Está supondo que o caráter inglês é mais estável do que o francês?
- Na minha opinião, os ingleses são menos idealistas. Somos apáticos e desinteressantes.
Talleyrand riu, tomando as palavras de Cam como um cumprimento.
- Vossa Alteza comete uma injustiça com seus compatriotas. Conheço pelo menos um inglês para quem o idealismo não é estranho. Estou me referindo a Charles
Fox.
- Isso é verdade - Cam ironizou, perdendo o interesse na conversa.
Mascaron entrou na sala com outro cavalheiro.
- Que surpresa - Cam murmurou. - O que Fouché está fazendo aqui?
Joseph Fouché ocupara o posto de ministro da Polícia. Numa medida popular, Bonaparte o demitira no ano anterior. Fouché era temido por todos. Tinha espiões
por toda a parte e seus métodos eram escusos.
- O primeiro-cônsul começou e entender a utilidade de Fouché nesses tempos incertos. Bem, estamos todos aqui. Podemos começar?
Na primeira rodada de negociações, Cam se manteve apático. Estava preocupado com a execução de seu plano. Pensou em como conseguiria captar a confiança
de Gabrielle de Brienne. Sua idéia fixa era supor a reação de Mascaron.
Antoine Mascaron já fora acusado de ser um traidor de sua classe. Mas nem sempre fora assim. Nascera no seio de uma família normanda com pretensões à nobreza.
Os Mascaron já haviam ocupado um lugar na periferia da corte francesa. Porém a sorte não sorrira para essa família. Fizera parte da pequena nobreza que empobrecera,
trocando o poder por respeitabilidade.
Antoine alcançara a maioridade, desiludido com o status quo. Era ambicioso e não pretendia esperar pelos favores de algum homem importante por conta de
seus antepassados. Inteligente, vira poucas opções e decidira dedicar-se às leis.
Com vinte e poucos anos, cedera à pressão da família para casar-se. Escolhera a filha de um vizinho. Uma moça tranqüila cuja beleza não o prendeu por muito
tempo. Houve outras mulheres, nenhuma significativa. Ele não tinha tempo para envolvimentos emocionais. Ocupava-se em construir uma carreira.
Quando nasceu a filha Elise, ele ficou viúvo. Elise foi morar com os avós maternos. Os Mascaron mais velhos morreram. O que também não o impressionou. Como
sempre, a carreira vinha em primeiro lugar.
Com o passar dos anos, as visitas à filha cessaram. Ela se casou com o conde Robert de Brienne, um nobre de classe inferior e soldado profissional que servia
na cavalaria francesa. Um monarquista não tinha utilidade para os interesses políticos de Mascaron. Fora o genro quem insinuara ser Mascaron um traidor de sua classe.
Elise teve filhos e apenas uma menina sobreviveu. A ruptura entre Mascaron e os Brienne foi total. Ele, no entanto, não se incomodou.
A Revolução tomou a França de assalto no verão de 1789. Mascaron e vários outros haviam previsto os eventos e preparado a si mesmos para as mudanças. Os
idealistas atiravam-se na luta pelo poder.
Mascaron não era idealista. Suas ambições eram egoístas. Pelo tempo que foi possível, lutou em duas frentes. Freqüentava as reuniões revolucionárias que
pregavam a destruição da aristocracia. Ao mesmo tempo usava sua influência para aplacar o ódios dos revolucionários. Contava com o agradecimento dos aristocratas
que poderiam ser restaurados ao poder.
Mascaron não cobiçava a fama. Sua meta era o poder. Prosperou aderindo ao partido político que mais favorecia sua ambição no momento, sem nenhum problema
de consciência.
No outono de 1792, ele era um fiel seguidor de Georges Jacques Danton. A serviço dele, foi para Toulon. Quando voltou, Paris fervilhava com notícias. Brienne
fora executado em Clermont. A esposa e a filha eram prisioneiras em Abbaye. Poucos sabiam que Elise de Brienne era sua filha. Quando procurou um meio de libertá-la
sob custódia, não revelou o parentesco.
Mascaron não ficara sabendo de nenhum movimento para exterminar os presos. Os massacres o surpreenderam. Chegou a Abbaye no auge da carnificina. A população
histérica impunha as próprias regras. Embora não sentisse afeição pela filha e pela neta, descobriu que não o agradava uma ameaça a um familiar tão próximo.
O nome Brienne era odiado em Paris. Por isso mandou Gabrielle e a mãe para uma pequena fazenda no subúrbio onde moravam os Hanriot, soldados dos Brienne
há várias gerações. Elise morreu logo depois. Ela nunca pôde recuperar-se do choque de ver o marido assassinado!
Os anos seguintes foram catastróficos para Mascaron. Seu amigo Danton foi executado. Apesar de fazer aberturas à oposição, ele não foi bem recebido por
Robespierre. Três dias após a execução de Danton, circularam volantes em Paris amaldiçoando a carreira de Mascaron e sua descendência aristocrata. O que mais pesava
contra ele era o envolvimento com os septembriseurs, nome dado aos que haviam participado dos massacres de 1792.
O ato bárbaro que contara com apoio da população, passou a ser condenado. Nos panfletos, dizia-se, ironicamente, que Mascaron instigara a carnificina e
Maillard fora o executor.
Fouché, que lhe devia muitos favores, o avisou que a prisão era iminente e que os amigos não poderiam defendê-lo. Mascaron preparou-se para um esconderijo.
Ao longo dos anos, acumulara uma fortuna considerável. Pensou em ir para a Inglaterra com Gabrielle.
Fouché alertou-o, depois de confidencias de seus agentes, de que não haveria lugar seguro para ele na Inglaterra. Pareceu-lhe que ele errara em algum momento
e por isso despertara a ira de um inimigo poderoso.
Se não fosse por Gabrielle, ele teria enfrentado a Convenção. Ocorreu-lhe que a neta poderia tornar-se um meio para que o punissem. Desistiu de defender-se
diante de seus pares. Só lhe restou, então, um caminho. Com novas identidades, ele e Gabrielle se esconderam.
Não demorou muito e foram traídos. Tornaram-se fugitivos. Os percalços foram tantos que Mascaron convenceu-se de que era vítima de uma vendeta pessoal.
Fouché, que lhe fornecia informações durante as viagens, nunca fora capaz de descobrir quem era o vingador implacável.
Tudo aquilo foi esquecido. Bonaparte tornou-se indiferente aos antigos ódios. A traição, em tais circunstâncias, não representava mais ameaça. Oito anos
mais tarde, com a estrela novamente em ascensão, Mascaron subiu a escadaria do castelo de Vrigonde. Tinha tudo o que sempre desejara. Posição, poder e riqueza. Sorriu
diante de uma ironia. Nada se comparava à feroz devoção por uma menina.
Gabrielle.
Ela estava em seus aposentos, nervosa, vestida para o primeiro jantar social. E os salões do castelo jamais haviam visto convidados tão ilustres. Uma das
criadas dava os últimos retoques em seus trajes.
- Não há pressa - Mascaron afirmou. - Nossos convidados estão reunidos na grana salle para um drinque de Calvados antes do jantar. Esperarei na sua sala
de estar.
Ele fechou a porta e fitou o santuário de Gabrielle. Sorriu, sacudiu a cabeça e sentou-se em uma poltrona estofada diante da lareira sem chamas.
O recinto, um tanto pobre, era do gosto da neta. Estilo, elegância e os tesouros de Versalhes não a sensibilizavam. Em uma das paredes, reinava a cômoda
alta de carvalho da avó. Do outro lado, destacavam-se cadeiras com assentos bordados pela mãe. Nas paredes, miniaturas de membros da família que ela nem conhecera.
Lembranças parcas. O pouco que restara, fora presente da avó paterna, Maríe de Vrigonde.
Tudo fora perdido com a Revolução. Mascaron comprara o castelo do último proprietário que se metera em dificuldades com a lei. Ele teria preferido a elegância
de St. Germain em Paris, mas Gabrielle adorava a Normandia. Tinha sangue normando nas veias. E o avô também queria preservar qualquer indício que recordasse a ela
a estabilidade e sua infância.
Gabrielle entrou em meio a um frufru de saias. Orgulho, prazer e ternura se sucederam no coração do avô que sorriu, radiante. Ela se aproximou com o passo
incerto de quem não estava acostumada a andar com a elegância devida a uma lady.
- Então, Antoine? Gostou do traje que pediu para eu vestir essa noite? - Os olhos verdes de Gabrielle mostravam a ansiedade pela resposta.
O vestido era de gaze branca. O corpete de cetim era bordado com fios de ouro. O decote baixo e quadrado revelava a curva do busto jovem. O cabelo fora
trançado e formava uma coroa no alto da cabeça. A pele levemente bronzeada e saudável demonstrava vida ao ar livre.
Mascaron imaginou se a neta não abandonara o hábito de banhar-se nua.
- Uma verdadeira princesa - ele derreteu-se. - Gabrielle, decidi levá-la para Paris.
- Ainda não! O senhor prometeu que eu poderia ficar aqui até acostumar-me com roupas femininas. Além disso, a sra. Blackmore está comigo há apenas um mês.
Preciso de mais algum tempo. Por favor, Antoine.
- A sra. Blackmore é uma inútil. Eu a despedirei.
Mascaron conhecera a inglesa em uma das reuniões famosas de madame Récamier. A jovem viúva necessitada aceitara com alegria a oferta de emprego, mas não
soubera orientar Gabrielle de maneira adequada. Ele se irritava com a mulher. Sua neta a dominava e nada aprendera.
- Tenho aprendido muitas coisas com ela - Gabrielle tentou dissuadir o avô da idéia de ir para Paris. - Mais um pouco e...
- Não!
Gabrielle descartou a idéia de o inglês ter revelado ao avô que a encontrara em Andely. Mascaron a apresentara com orgulho aos cavalheiros e os dois que
lá conhecera nada disseram. Com o silêncio de Goliath ela sempre contava. Mas o do inglês a deixou surpresa.
- Antoine, por favor...
- Seria pedir demais que se dirija a mim como vovô?
- Perdoe-me, mas às vezes esqueço que não há mais necessidade de fingir.
Durante anos o receio de que resolvessem vingar-se em Gabrielle fizera Mascaron adotar o disfarce do parentesco deles. Gabrielle tivera de adotar a identidade
de um menino e adaptar-se à vida rude que levavam.
- Sinto-me culpado, Gabrielle, por tê-la privado de muitas coisas. Prometo que tudo vai mudar.
- Rollo acha que tudo foi uma grande aventura.
- E qual a sua opinião, minha filha?
- Sobrevivemos. Não é o que importa?
- Talvez.
- Por que a incerteza, vovô?
- Talvez eu devesse ter feito as coisas de maneira diferente.
- O que, por exemplo?
Mascaron cruzou os braços na altura do peito.
- Eu não a deixaria assumir a identidade de um garoto, se imaginasse seu apego a essa imagem desabonadora. Digo no linguajar, no comportamento não adequado
para uma jovem...
- Ah, então eu deveria ter cavalgado pela França vestindo saias?
- E por que não? - Mascaron divertiu-se com a expressão de amuada da neta.
- Eu não quero prejudicá-lo. Se aprendi a agir e a pensar como um menino, não deverá ser difícil fazer isso como menina.
- Menina, não. Uma jovem belíssima. Só lhe falta um pouco de refinamento. Alguns meses em Paris resolverão o problema.
Gabrielle não respondeu.
- Gaby, você não quer se tornar uma dama? Ela evitou dizer que o avô acertara.
- Todos riem de mim.
- Todos, quem? Gabrielle pensou no inglês.
- Todos! Ah, mas eu não me importo.
Mascaron abraçou-a pelos ombros.
- Escute o que eu lhe digo. Não vai demorar e terá todos a seus pés.
Gabrielle tornou a pensar no cavalheiro de Andely e sorriu.
- Minha filha, depois de algum tempo em Paris, passará a rir de sua relutância atual. Garanto que não desejará outra vida. Sou um homem velho. Velhos tornam-se
egoístas. Eu a quero a meu lado no pouco de vida que me resta.
Gabrielle deu-se conta das implicações das palavras do avô. Ela ficara sem os pais em um curto intervalo de tempo. Em breve perderia Rollo para a academia
militar de Paris. Mascaron era o suporte que os mantinha firmes e unidos. Sem o avô, seu mundo desmoronaria. Isso seria abominável.
- Não diga isso! - Gabrielle deu um grito e atirou-se nos braços dele. - Por favor, nunca mais repita uma coisa dessas! Escutou bem? Nunca! O senhor está
dizendo isso para conseguir o que deseja, não é verdade? - Falou alto sem esconder a ansiedade.
- Sessenta anos representam alguma coisa para você? Essa é uma idade em que muitos já não têm ambições. O peso dos erros acumulados muitas vezes é maior
do que o volume de acertos.
- O senhor é um homem saudável e muito atraente.
- Fico feliz em saber que essa é a sua opinião. Gabrielle, seu mundo até agora foi muito restrito. Não conhece os jovens de sua idade. Pretendo retificar
essa omissão. A solução é Paris e não aceitarei nenhum argumento em contrário.
Ela fitou o avô, inquieta pela afirmativa anterior dele.
- Minha filha, não se preocupe. Viverei até os cem anos - Mascaron gostaria de dizer muito mais coisas, mas não se atreveu. - Em algumas semanas, você deixará
o castelo de Vrigonde para começar uma nova vida e assumir seu lugar na sociedade. Estamos de acordo?
Sem alternativas, Gabrielle assentiu a concordância.
Eles desceram a grande escadaria, ao encontro dos convidados. Gabrielle deteve-se na entrada. Suas mãos suavam e a boca ficou seca. Teve certeza de que
nada tinha em comum com aqueles cavalheiros sofisticados. Pela mão protetora de Mascaron, entrou no salão.

Capítulo III

Nos dias que se seguiram, Gabrielle evitou o quanto pôde os convidados do avô. Durante o dia era mais fácil, pois ficava na companhia de Rollo e da sra.
Blackmore, enquanto as conversações prosseguiam no grande salão.
A dama de companhia a incentivava a bordar, a caminhar com uma pilha de livros na cabeça e outras tarefas que competiam a uma lady e eram consideradas como
inutilidades por Gabrielle. As tardes eram reservadas para atividades prazerosas ao lado de Rollo. Cavalgavam pela propriedade e quando estavam bem longe do ouvido
de todos, praticavam tiro com as pistolas. As vezes, pescavam. Ela lamentou o avô ter proibido o acesso à sala de esgrima até a partida dos convidados.
As noites eram constrangedoras. Gabrielle era obrigada a vestir-se e a agir como anfitriã. Enervante. Intimidava-se na Presença de Talleyrand e Fouché,
nomes que a haviam aterrorizado durante a Revolução.
Podia jurar que o duque não gostava dela e não entendia o motivo. Afinal, nem mesmo se conheciam. E por sentir a aversão dele, ela não ficava à vontade.
E para piorar tudo, em atenção aos convidados, usava-se quase exclusivamente o idioma inglês.
Em condições normais, falar inglês não teria sido o problema mais grave. Nos tempos difíceis em que viviam como fugitivos, Mascaron não perdia a esperança
de que poderiam abrigar-se na Inglaterra. Por isso sempre ministrava aulas para a neta que aprendia com facilidade. Além disso a convivência com a sra. Blackmore
melhorara a conversação. Mas a fluência se esvaía quando ela olhava para o duque. Se tentasse falar, gaguejaria até o silêncio. Por isso Gabrielle não largava de
sua dama de companhia que adorava tagarelar.
- A sra. Blackmore fala por nós duas - Gabrielle explicou para Rollo que estranhara os silêncios da amiga. Da beira do talude, ela fitou as águas do Sena
e a. fortaleza arruinada de Gaillard.
Rollo, deitado sobre uma pedra grande, mastigava uma folha seca de grama. Os cavalos estavam amarrados em árvores mais afastadas da margem perigosa.
- Eu que o diga. Ninguém consegue pronunciar uma só palavra quando ela abre a boca. Se ela mencionar outra vez aquele lugar onde nasceu...
- Bath.
- Isso mesmo. Se ela tocar novamente nesse nome, sou capaz de estrangulá-la. Ainda bem que ela voltará logo para... Bath.
- Sim, quando eu for com vovô para Paris. - Gabrielle entristeceu-se ao pensar que eles teriam de tomar rumos diferentes. Rollo iria para a academia militar
e ela teria de assumir sua posição na nova sociedade francesa.
- Isso se dará mais cedo do que está pensando.
- Como é?
-Pelo que se comenta, a paz poderá ser rompida em breve. Algo a ver com Malta. É apenas uma questão de tempo e nossos países estarão novamente em conflito.
A sra. Blackmore não vai querer ser apanhada atrás das linhas inimigas.
Gabrielle não se surpreendeu. Desde o início o avô duvidava que as duas delegações chegassem a um consenso.
- Quando vão partir? - Gabrielle perguntou, suspirando.
- Amanhã ou depois.
- Tão cedo?
- Segundo entendi, Mascaron quer estar presente quando Talieyrand e Fouché fizerem um relatório para o primeiro-cônsul.
Gabrielle sentou-se ao lado de Rollo e reclinou-se nos cotovelos. Um gavião pairava com as asas abertas. De repente, o pássaro fechou as asas e investiu
sobre um bando de pombos. Agarrou um deles enquanto os outros voavam para longe.
Gabrielle sentou-se, nervosa. Os antigos pesadelos de criança tinham voltado para assombrá-la. Uma presença odiosa e sem rosto no encalço deles. O nome
continuava um mistério, mas o propósito, não. Alguém desejava a morte deles.
Durante anos Mascaron se debatera sobre o enigma da identidade do homem. Nenhum de seus inimigos fora tão tenaz em seu ódio. Ela e o avô não haviam conhecido
a paz em nenhum local. Tinham sido denunciados para as autoridades um sem-número de vezes. Escapavam sempre por um triz. Foi somente com a chegada de Bonaparte ao
poder que as antigas disputas perderam a importância.
Aos poucos os pesadelos foram apagados.
Até aquele momento.
Gabrielle deu um pulo para disfarçar as lágrimas.
- Ah! Academia militar! - ela fez pouco caso. - Acha que isso lhe trará alguma vantagem? Jamais chegará a ser metade do homem que eu sou, Rollo Hanriot!
- Não? - Rollo levantou-se e, bem mais alto de que Gabrielle, desafiou-a de brincadeira. - Pois eu torno a afirmar. Nunca deixará de ser uma pequena mulher,
Gabrielle de Brienne!
Os dois riram ao lembrar-se de uma brincadeira de quando os dois eram crianças. Gabrielle quebrara uma lasca do dente de Rollo por causa de um insulto semelhante.
- Quem chegar por último ao castelo é um bobo! - Gabrielle desafiou-o.
- Espere! Mascaron não vai gostar disso!
- Não? - Em instantes ela alcançou os cavalos.
- Não. E também não vai gostar de ver que você não está montada de lado.
- Darei um jeito em Mascaron - Gabrielle disse com mais coragem que convicção.
Ela montou como um homem e apoiou os pés nos estribos. As saias foram levantadas até as coxas.
- Gabrielle... - Rollo não terminou a frase.
Ela incitou o cavalo para a frente e Rollo não teve alternativa a não ser segui-la.
Cam viu os cavaleiros que chegavam a galope. Sozinho na torre leste, aproveitara o convite de Mascaron para contemplar a paisagem daquele ponto privilegiado.
Estreitou os olhos diante daquela visão. Abaixada na sela, os cabelos loiros soltos ao vento, Gabrielle parecia uma amazona. Ela diminuiu a marcha do cavalo quando
o avô apareceu na porta da estrebaria. Entregou as rédeas para um menino e apeou. Aproximou-se do avô e abraçou-o.
Cam não sabia explicar por que tudo em Gabrielle o irritava. Sob a aparência de um anjo, modos de um menino de rua. A risada atrevida, fresca e natural
chegou até ele, perturbadora.
Encontrara Gabrielle várias vezes em seus passeios pela propriedade. O rapaz, Rollo, estava sempre por perto. Os dois pareciam duas crianças brincando sem
nenhum senso de conduta. E quando se ouvia a conversa deles, notava-se o uso entremeado de expressões vulgares.
O que não tinha a menor significância. Cam interessava-se apenas em descobrir o traçado das terras e se haveria ocasiões em que a jovem estivesse desprotegida.
E descobrira um segredo que facilitaria o rapto de Gabrielle.
Em duas ocasiões, da janela de seu quarto, observara a jovem sair às escondidas uma hora antes do jantar. Era um segredo oculto a sete chaves. Na terceira
vez, seguiu-a até uma gruta rochosa. No local havia um riacho que cruzava a propriedade de Mascaron e desaguava no Sena.
Ele entendeu de imediato qual o propósito de Gabrielle e assim mesmo não se afastara.
Como uma criança inocente, ela tirou a roupa e revelou a silhueta virginal. Ficou imóvel por um momento como uma estátua de mármore antes de pular na água.
Os cabelos dourados soltos espalhavam-se e douravam a água. Cam não soube explicar por que o afetava tanto aquela beleza inocente.
Apavorou-se com a evolução de seus sentimentos diante da nudez de Gabrielle. Decidiu que estava há muito tempo no celibatário e que precisava de uma mulher.
E que não fosse Gabrielle de Brienne, uma criança.
Ela era o oposto do que Cam admirava nas mulheres. Era desajeitada e não sabia conversar. Caminhava a passos largos. Tinha mãos calosas e cheiro de cavalo.
Passava longe das virtudes femininas. E além de tudo, era estouvada.
Teve a impressão de que ela o temia. Era possível sentir o mal estar da jovem em sua presença. Ela sempre desviava o olhar, quando por acaso encontrava
o dele. Estranho era esse medo aborrecê-lo e ao mesmo tempo dar-lhe grande satisfação.
- Milorde vai cometer um engano - Lansing avisou-o ao escutar o comentário na biblioteca de Mascaron. - Moscas se pegam com mel e não com vinagre.
- E daí?
- Seria mais fácil atraí-la com uma boa conversa ou até um flerte. Como anfitrião do avô ela se sente como um peixe fora da água.
- Flertar com uma estouvada daquelas?
- Não há muitas opções femininas, Cam. A não ser que pretenda ceder aos olhares convidativos da outra mulher presente.
- Pois me parece que a sra. Blackmore está mais interessada em Talleyrand.
- Ora, não queira me fazer de tolo. Além disso, a delegação francesa partirá amanhã. Pelo menos durante um dia, ficará com o campo livre.
- Eu seria tentado, se as circunstâncias fossem diferentes. Envolver-me com a dama de companhia de Gabrielle só servirá para complicar tudo. O embaixador
ficará mais um dia no castelo. Preciso precaver-me.
Lansing entendeu o propósito de Cam. Verificar a casa e a área externa antes de executar o plano.
Os dois amigos abriram as portas francesas e foram até o terraço de pedras. Cam tirou dois charutos do bolso e ofereceu um deles a Lansing. Fumaram durante
algum tempo antes de se afastarem da casa e parar sob a sombra de um castanheiro.
- O que soube a respeito de Fouché? - Lansing indagou. Eles haviam ficado surpresos com a presença sinistra de
Fouché na delegação francesa. Cam pedira a Rodier para fazer averiguações.
- O relato nada trouxe de assustador. Trata-se apenas de má sorte. Fouché vai nos atrapalhar um pouco.
- E o que isso significa, para ser mais exato?
- A confiança de Bonaparte em Talleyrand não é absoluta. Fouché é a garantia que Talleyrand irá comportar-se.
- Bonaparte não confia no ministro de Relações Exteriores?
- Talleyrand é o único que parece não entender que a paz é apenas para manter as aparências. Fouché não larga do pobre ministro nem um instante. Chega a
ser cômico.
- Cam, já considerou a hipótese de Fouché reconhecer-nos?
- Isso é irrelevante.
- Mas poderá não ser com o tempo, se Fouché suspeitar que Gabrielle foi raptada. Não o subestime, Cam. Ele é inteligente.
- Confie em mim, Simon. Fouché jamais descobrirá nada. Em um futuro próximo, Mascaron terá perdido a importância.
- Espero que saiba o que está fazendo, milorde.
Cam exalou um anel de fumaça.
- Gosta da jovem, não é, Simon?
- Não vou negar. Ela é um tanto diferente, mas...
- Escandalosa, isso sim! Anda com contrabandistas e veste calças! Gabrielle de Brienne não faz parte de pessoas de bem.
- Engano seu. Mascaron e o pai eram bem-nascidos. Tenho certeza de que ele não conhece certos tipos de atividade da neta.
- Se a situação fosse outra, eu mesmo teria grande prazer de informá-lo o que eu soube em Andely. Mas, com certeza Gabrielle inventaria uma desculpa. Ela
faz o que quer com Mascaron.
- E nem poderia ser de outra forma. Ela é sua única neta. - Lansing estreitou os olhos. - A jovem não é exatamente o que milorde esperava, não é mesmo?
- O oposto - Cam concedeu. - Ela esgrima como um espadachim experiente, cavalga como uma amazona e atira como um mosqueteiro. Ela deveria ficar sob a guarda
de um domador de leões. Pobre Louise.
A gargalhada de Lansing assustou um bando de gansos que ciscavam nas proximidades.
- Era exatamente o que eu estava pensando - ele falou depois de limpar as lágrimas por tanto rir. - Gabrielle não se entregará sem uma luta. Mesmo que ela
tenha medo, não se deixará dominar pelo receio.
- Vejo que está muito bem informado sobre ela, Lansing. Incomoda-se de me dizer onde obteve dados tão relevantes?
- Trata-se apenas de uma intuição baseada em algumas palavras ouvidas aqui e acolá. - Lansing sorriu. - Enquanto Vossa Alteza confraternizava com o embaixador,
eu me familiarizava com as pessoas do local. Aquele homenzarrão, o tal Goliath, orgulha-se muito dela.
- Um cão-de-guarda fiel. Onde ele se situa na história?
- Ele não é um homem de Mascaron. Ele é um Hanriot. Essa família serve os Brienne desde os tempos feudais. A lealdade dele é dirigida a Gabrielle. Não há
como definir a posição dele. É uma espécie de administrador da propriedade. Mas seu interesse fundamental é na jovem. Faz o papel de guardião. É como se fosse da
família e ao mesmo tempo... - Lansing sacudiu a cabeça. - Ele não se mistura aos convidados de Mascaron, embora seja o responsável pelo castelo. Com Rollo é diferente.
O rapaz age como membro da família. Ele e Gabrielle são como irmãos.
- Goliath é um empregado?
- Não saberia dizer-lhe. Mesmo se fosse, seria apenas de Gabrielle e não de Mascaron.
- Depois de encontrar Gabrielle em Andely, refleti bastante sobre o gigante.
- Milorde deveria ser agradecido a ele. Se Goliath houvesse contado o que houve a Mascaron, o avô teria cerceado a liberdade da neta e nosso plano encontraria
mais dificuldades de execução. Gabrielle é muito bem guardada, mesmo supondo-se que ela seja a dona do castelo.
- Também já pensei nisso.
- Tudo resolvido?
- Vamos caminhar mais um pouco e eu lhe contarei os pormenores.
Cam subiu o último lance de escada pensando em Gabrielle. Entardecia. O patamar tinha uma janela pequena. As velas ainda não tinham sido acesas. Eles quase
se chocaram na penumbra.
- Pardon, monsieur. - Gabrielle procurou esquivar-se. Cam impediu-lhe o objetivo. Com uma das mãos segurou-se no corrimão e apoiou a palma da outra na parede
oposta. Ela recuou e estreitou os olhos.
- Monsieur?
De maneira revolucionária, Gabrielle não o chamava pelo título, o que o aborrecia. Devagar, Cam subiu mais um degrau. Ela permaneceu imóvel.
- Nós fomos interrompidos em Andely - Cam expressou-se em inglês.
Gabrielle analisou-o cuidadosamente e Cam sorriu com gentileza surpreendente. Aos poucos a tensão da jovem começou a ceder.
- Andely - ela sorriu com timidez. Gostaria de pedir-lhe para revelar como ele conseguira desarmá-la com tanta facilidade. Sua perícia era merecedora de
inveja.
- Simon tentou flertar com mademoiselle.
Gabrielle sacudiu a cabeça e levantou os ombros, em uma seqüência curiosa.
- Não sei o que é flertar. Não conheço a palavra. - ela o fitou com interrogação verdadeira.
- Quer que eu lhe mostre o que é?
- Isso pode ser mostrado? - A inocência era inquestionável.
Cam segurou-a pela nuca.
- Doucement - Cam disse quando ela estremeceu. - Calma. - A cútis de Gabrielle era cálida e lisa como cetim. - É fácil e inteiramente indolor. Il n'y a
pás de la douleur.
Gabrielle assustou-se quando sentiu os lábios dele nos seus. Agarrou-se nos ombros dele, mas não o afastou. Cam beijou-a com leveza, sem paixão, mas com
carinho.
- Flertar não é tão ruim, é?
Hipnotizada, ela sacudiu a cabeça em um gesto negativo.
O beijo seguinte foi intenso. E quando Gabrielle lutou para soltar-se, Cam usou de força para pressioná-la contra a parede. Ele pensou em cera quente que
se moldava em suas mãos, desejosa, feminina, suave. Os lábios de Gabrielle tinham gosto de sidra, doce e embriagadora. Cam abafou-lhe o pequeno grito de aflição.
Ele perdera o controle diante da resposta inocente. Ainda não sentira uma explosão tão instantânea com nenhuma mulher. Afastou-se, chocado e formulou uma
imprecação violenta. Gabrielle entendeu o sentido, sem conhecer as palavras. Ele a culpava pelo que acontecera.
Gabrielle desvencilhou-se, espumando de raiva.
- Porco! - ela retribuiu. - Se encostar em mim outra vez suas mãos imundas, eu o destituirei de sua masculinidade e com ela alimentarei seus parentes no
chiqueiro!
Ela ainda praguejava quando Cam bateu a porta do quarto. Parou de falar quando escutou as risadas do inglês.


Com movimentos graciosos, Gabrielle ajeitou melhor o corpo desnudo na pedra de contornos arredondados onde tomava sol. Os cabelos loiros formavam uma cascata
dourada que refletia os raios de sol e fios secos ondulavam na brisa fragrante.
Era como estar sozinha no Paraíso, ela ponderou, deliciada. O marulhar da água de encontro à pedra onde tomava banho de sol. O salto de peixes pequenos
que emergiam para caçar moscas. O zumbido das abelhas e de milhares de outros insetos. O farfalhar das folhas ao vento.
Através das pálpebras semi cerradas, notou a mesma fragata ancorada ao longe. Notara a embarcação elegante nos dias anteriores. Sentiu-se curiosa a respeito
do dono, da tripulação e da carga que o veleiro levava.
Escutou o som de um galho que se partiu. Sorriu. Deveria ser um coelho ou uma raposa aproveitando o calor do sol.
- Não se assuste. Não pretendo machucá-la.
Gabrielle reconheceu a voz de imediato. Seu coração disparou. Fiel aos ensinamentos de Goliath, evitou movimentos bruscos. Ajoelhou-se devagar e jogou os
cabelos para a frente para disfarçar a nudez da melhor maneira que pôde. Suas roupas - de menino e com uma pistola escondida - estavam ao alcance da mão. Sombreou
os olhos por causa do sol.
- O que o senhor está fazendo aqui?
Alguns fatos pareceram estranhos para ela. O inglês estava vestido com roupas rústicas de trabalhador ou de um contrebandier. Por que ainda não fora embora
como os outros? Os personagens mais importantes não estavam mais no castelo. Mascaron e Rollo tinham ido para Paris há vários dias. Goliath também não estava.
- Por que veio até aqui? - ela insistiu e começou a levantar-se.
- Seu avô pediu-me que a buscasse.
- Mascaron?
- Ele vai se demorar em Paris e eu me ofereci para levá-la até ele.
Na verdade, Gabrielle não tinha motivos para duvidar dele. Afinal, ele contava com a confiança de Mascaron. E as suspeitas diminuíram ao lembrar-se da situação
constrangedora em que se encontrava. Corou intensamente.
- Por que não se veste? - Cam sorriu. - Eu lhe contarei tudo no caminho. - ele afastou-se e virou-se de costas.
Gabrielle teve certeza de que Cam desejava envergonhá-la, ou não teria vindo pessoalmente buscá-la. Mesmo nesse caso, poderia ter-se mantido a distância.
Ela pegou as roupas. Vestiu a camisa e as ceroulas.
- Está bem assim - o inglês falou com rispidez. Gabrielle sentiu o perigo de imediato e estreitou os olhos.
Tinha experiência suficiente para detectar a tensão de um inimigo preparado para atacar. Em um ato reflexo ajoelhou-se e buscou a pistola, mas não a encontrou.
- É isso o que está procurando? - A poucos passos Cam inclinou a cabeça e apontou a arma. - Fique quieta e nada lhe acontecerá.
Gabrielle endireitou-se, sem desfitar o cano da pistola.
- Não sei o que o senhor pretende de mim, mas é certo que não deseja matar-me.
Mal acabou de falar, Gabrielle disparou a correr. Cam havia bloqueado o caminho mais fácil de acesso ao castelo. Ela teve de passar por cima dos pedregulhos
da margem, ignorando os Pés que se machucavam. Começou a escalar a escarpa. Não subira dois metros quando sentiu que a seguravam pelo tornozelo. Ela deu pontapés
e agarrou-se nas pedras.
- Desça daí ou terei de arrastá-la para baixo!
Gabrielle contorceu-se com mais empenho e apenas conseguiu soltar-se da rocha. Cam preparou-se para tomá-la nos braços, mas ela tentou evitar seu raptor.
Literalmente voou com o ímpeto e estatelou-se sobre as pedras. A falta de ar impediu-a de gritar quando o saibro e as pequenas pedras se enterraram em sua pele.
- Gabrielle!
Cam correu, virou-a e a manteve imóvel sob suas coxas, enquanto a apalpava para ver se ela havia se machucado. Sem forças para empurrá-lo, Gabrielle manteve-se
imóvel apesar da indignação de ser apalpada com intimidade. Não conseguiu evitar as lágrimas.
- Mademoiselle não teve fraturas. Eu a ajudarei. Se ficar quieta, nada lhe acontecerá. Eu juro.
Gabrielle percebeu de imediato que ele pretendia amordaçá-la. Sem forças para gritar, mordeu-lhe a mão que passava o lenço em sua boca. Não teve tempo de
afastar-se. O soco teve o som de uma explosão e ela desmaiou.
Cam tremia. Nunca batera em uma mulher. Recriminou-se por ter sido tão rude. Mas não podia esperar que a jovem, desarmada, se empenhasse numa luta tão violenta.
Será que ela não tinha juízo para saber quando fora derrotada?
Sentiu remorsos ao vê-la tão machucada no rosto e nos ombros. A veste tinha sido dilacerada. A raiva de si mesmo era tão grande como a que sentia dela.
Usou o lenço para limpar a sujeira do rosto ferido. Tarefa inútil. Nem quis pensar no estrago que fizera no queixo.
- Mas que droga - ele murmurou. Tirou o casaco grosso e enrolou-o em Gabrielle como se ela fosse um bebê. - Droga - resmungou novamente, tomou-a nos braços
e levantou-se.
Voltou para o local onde a encontrara e tirou o pequeno barco a remo de Rollo do esconderijo. Deitou Gabrielle na popa e entrou. Quem encontrasse as roupas
dela e o bote abandonado, saberia o que deduzir.
O rio estava tranqüilo. Era no meio da noite que os contrabandistas faziam seus negócios. Cam estava certo de que não enfrentaria problemas. Com a ajuda
de Rodier, enviara Goliath a Tosny, rio acima, para caçar patos selvagens. Quando o homenzarrão voltasse, já teriam ido embora.
O navio a vela estava ancorado na margem oposta. Quando o alcançaram, Lansing adiantou-se para pegar Gabrielle. Sem comentários sobre o estado da moça,
sua fisionomia disse tudo.
- Para onde pensa que vai levá-la? - Cam perguntou ao ver o amigo afastar-se.
- Para baixo. Ela precisa de cuidados.
- Dê-me a moça.
Lansing, sem discutir, entregou Gabrielle nos braços estendidos de Cam.
- Mande Will trazer água quente. E trate de sair da minha frente. Não se esqueça. Ela não é confiável sob hipótese nenhuma! - Cam fitou Lansing e a tripulação
com olhar duro e ficou satisfeito ao comprovar rostos submissos que acenaram o aceite.
Cam desceu, empurrou a porta da cabine e deitou Gabrielle no beliche. Com mãos trêmulas, tirou o casaco grosseiro e avaliou os ferimentos da jovem inconsciente.
A gata selvagem que lutara com unhas e dentes cedera lugar a uma criança que fora espancada por algum monstro. Ele mesmo. Recriminou-se mais uma vez pela
violência que usara contra a jovem. Não tinha por costume guerrear com mulheres.
Bateram na porta. Cam, pálido e silencioso, aceitou a bacia com água morna e fechou a porta na cara do jovem camareiro.
Com os dentes cerrados, começou a remover com cuidado as tiras de tecido estraçalhado. Usou um pano embebido na água para limpar as arranhaduras e os ferimentos
que desfiguravam a pele. Procurou concentrar-se na tarefa.
Gabrielle gemia e se movia sem parar. Sentia o toque suave e as palavras de conforto.
- Goliath? - ela sussurrou. - Nós os despistamos?
- Sim, eles foram despistados - Cam respondeu.
Aos poucos ela se descontraiu e não fez mais objeções ao tratamento doloroso. Cam notou uma cicatriz antiga sob o busto esquerdo, outra na coxa e mais uma
no ombro. A verdade atingiu-o como se fosse a explosão de um projétil. Aqueles ferimentos tinham sido provocados por uma espada. Uma porção de perguntas sem resposta
lhe passaram pela mente.
Cam passou a ponta do dedo nas marcas. Não podia imaginar o autor da façanha. Só em pensar naquilo, teve vontade de matar o responsável pelas cicatrizes.
Gabrielle teve um espasmo involuntário e começou a choramingar como uma criança.
- Goliath. Por favor. Está doendo. - A voz era baixa e trêmula. Soluços sacudiam os ombros estreitos.
Cam engoliu o nó que se formara em sua garganta e abriu um baú que ficava aos pés do beliche. Tirou um frasco de láudano. Misturou um pouco com água em
um copo. Segurou-lhe a cabeça e a fez beber. A desorientação não permitiria que ela reconhecesse quem apoiava o copo de encontro a seus lábios. Esperou um pouco
antes de começar a limpar os ferimentos do rosto.
O primeiro toque trouxe um gemido angustiando. Cam não soube explicar como as palavras de carinho vieram a seus lábios.
- Está tudo bem, minha querida. Estou aqui. Durma. Velarei por seu sono. Juro que ninguém mais poderá feri-la, enquanto eu tiver um sopro de vida no meu
coração.
Gabrielle acalmou-se - pelas palavra ou pelo láudano - e Cam prosseguiu nos curativos. Depois da assepsia, ele espalhou ungüento cicatrizante nas feridas.
Tirou uma camisa limpa da arca e vestiu em Gabrielle pela cabeça. Alisou o tecido sobre o corpo inerte e cobriu-a até o queixo com a manta. Limpou o suor da própria
testa.
Impaciente, tentou afastar pensamentos inadequados. Gabrielle de Brienne não passava de uma isca para atrair Mascarom. Ela era sua prisioneira. Qualquer
outra idéia seria uma rematada loucura. Como aquela que cometera ao tomá-la nos braços na escadaria escura do castelo de Vrigonde.
Por pouco não a possuíra ali mesmo. Sentir Gabrielle render-se por um simples beijo quase o fizera perder a sensatez.
Esqueça aquele beijo, Cam admoestou-se.
Beijara muitas mulheres em sua vida. O impacto causado teria um único motivo. Fora o primeiro homem a despertar a feminilidade em Gabrielle de Brienne.
Nunca fora o primeiro com nenhuma de suas amantes. Na certa a novidade o deslumbrara. Ela não fazia parte do grupo de mulheres que o atraía.
Em poucos dias chegariam à Cornualha. Louise estaria à sua espera e ele encontraria paz de espírito. Na perfeição do amor que faziam, ele esqueceria a idéia
de possuir uma jovem inexperiente. As formas maduras de Louise apagariam a imagem de Gabrielle de sua mente.
Recuou e fitou-a. A jovem, inconsciente, miúda e indefesa. Quando acordasse, se transformaria em uma tigresa. Felizmente o láudano faria efeito por mais
algumas horas. Até lá encontraria maneira melhor de lidar com Gabrielle de Brienne. E com ele mesmo.
Antes de sair da cabina, não resistiu a um impulso. Afastou-lhe do rosto uma mecha de cabelos loiros e voltou-os ao travesseiro.
Ela gemeu e mexeu o queixo em um espasmo.
Cam entendeu que, ao acordar, Gabrielle o odiaria. Sem saber por que, a idéia não o agradou.


Gabrielle acordou aos poucos e gemeu. Lutou contra a escuridão que teimava em não abandoná-la. Precisava pensar. Estavam fugindo novamente. Fora ferida
e Goliath cuidara dela. Fora salva. A cabeça latejava. O corpo estava dolorido. Respirar demandava esforço.
- Goliath?
Não houve resposta. Procurou lembrar-se do que acontecera. Apoiou-se nos cotovelos, apesar da dor nas costelas e das têmporas que pulsavam intensamente.
Ele estava sentado junto à mesa e fitava-a com olhar impenetrável. Gabrielle olhou ao redor da cabina e lembrou-se da fragata que vira ancorada no Sena.
Deu um grito, jogou as cobertas para o lado e tentou levantar-se. O enjôo e a tontura impediram-lhe o intento.
Ele se aproximou e procurou deitá-la. Desesperada, procurou atingi-lo com golpes, mas a força estava ausente. Depois de alguns minutos, caiu para trás,
arfando.
- Chega, Gabrielle! Ninguém quer machucá-la.
Ela não se comoveu com a gentileza inesperada. O duque procurou arrumar o travesseiro e Gabrielle lembrou-se de tudo. Só não mordeu de novo a mão que passou
diante de seu rosto, porque o simples ato de cerrar os dentes fazia seu rosto doer. Soluçando mais de raiva do que pela dor, encolheu-se em um canto.
Cam notou o ódio com que Gabrielle o fitava e refletiu que a melhor maneira de subjugar a jovem seria revelar os fatos mais importantes do rapto. Se a persuadisse
de que o confinamento seria indolor e temporário, talvez ela resolvesse obedecer-lhe apesar da relutância.
- Devo informá-la de que se tornou minha prisioneira. Eu a levarei para a Inglaterra. Se tudo correr bem, será solta em um mês ou dois e poderá retornar
à França. Nosso objetivo não é mademoiselle. Desejamos informações. Se seu avô cooperar, mademoiselle regressará ao convívio dele muito antes do que imagina. Juro
que não há nada a temer.
Mesmo sem confiar no juramento do duque, Gabrielle admitiu que ela apenas serviria de isca para os ingleses obterem dados que lhes interessava. Teve pena
de Mascaron. Depois de tudo o que enfrentara, não merecia aquilo.
- Se não tentar resistir, juro que não a machucarei.
Novo juramento. Gabrielle abaixou as pálpebras para demonstrar a vontade de matar que a consumia.
- Onde estamos?
- Em meu veleiro. Estamos nos aproximando de Rouen. Eu a levarei para a minha casa na Cornualha.
- Jamais conseguirá seu objetivo. Se Goliath não o apanhar, o macaréu se encarregará de fazer isso. Sua embarcação ficará em frangalhos. - Gabrielle lamentou
não poder curvar para baixo o lábio.
- Ninguém virá à sua procura, Gabrielle. Pensar de outra forma será como acalentar fantasias.
- Acha mesmo que Mascaron e Goliath pensarão que me afoguei por causa das roupas que deixei para trás? Eles não são idiotas! Enquanto não acharem meu corpo
não cessarão de me procurar.
- Mesmo quando encontrarem o barco danificado de Rollo?
Os olhos de Gabrielle brilharam como duas esmeraldas.
- O senhor não afirmou querer informações? Se eles pensarem que estou morta...
- É muito inteligente para uma jovem.
- Sinto muito, mas de um inglês não se pode dizer o mesmo.
Cam aproximou-se, ameaçador. Gabrielle procurou levantar-se e abafou um gemido de dor. Tudo recomeçou a girar e ela se apoiou na parede.
- Pelo amor de Deus! O que está imaginando? Que pretendo esquartejá-la?
A risada de Gabrielle soou como um grito sufocado e patético. Ele a machucara seriamente. Quando a puxara do rochedo, poderia tê-la deixado aleijada. Em
tempo nenhum ela esqueceria o tratamento rude a que fora submetida. O orgulho começava a derreter. Assustava-a ficar sozinha com um estranho que não se importava
se ela viveria ou morreria. Sentia dores. Estava exausta. E ele ainda se achava no direito de caçoar!
- Sente-se antes que caia, está certo? Eu trouxe algo para comer.
Cam recuou e ela deslizou pela parede até sentar-se no chão. Aceitou o copo que ele lhe ofereceu e levou-o aos lábios. Bebeu alguns goles do consomé e sentiu
o estômago pesar.
- Não posso. - Gabrielle devolveu o copo e Cam pegou-o. Inquieto, ele deu alguns passos e parou diante do beliche.
- Quando eu a puxei do rochedo, pensei em agarrá-la nos braços. Mademoiselle não deveria ter se jogado.
Gabrielle não respondeu.
- Tive de atingi-la ou não teria conseguido trazê-la, entende? Não tive intenção de machucá-la.
O mutismo aumentou a raiva, mas também a vergonha de Cam.
- Se agir como homem, será tratada como tal. E se tentar enganar-me, será punida.
- Não tenho medo do senhor!
Gabrielle piscou quando Cam levantou a mão para coçar o pescoço. Ele percebeu o movimento. Apesar do receio, ela o enfrentaria com unhas e dentes. Não pôde
deixar de admirá-la.
- Se não se importa com seu destino, pense ao menos em seu avô.
- Ele não está a seu alcance.
- Não? Pois então imagine os resultados do boato afirmando que foi capturada por britânicos! Para efeito de cálculo, vamos dizer que mademoiselle conseguisse
escapar e voltar para a França. Eu lhe direi o que aconteceria. As autoridades concluiriam que seu avô passou informações aos inimigos para salvar sua vida. Não
preciso dizer-lhe o que eles fariam, não é? Oficialmente, negaríamos tudo. Mas espalharíamos a notícia de que Mascaron era um de nossos agentes, embora contrariado.
- Crápula!
O ódio de Gabrielle pareceu diverti-lo.
- Em poucos dias estaremos na Cornualha. Mademoiselle passará por minha protegida, Gabrielle de Valcour, resgatada da França. Seremos parentes distantes.
Entendeu?
Ela concordou com um leve aceno de cabeça que aumentou sua dor.
- Eu consegui apenas roupas de menino. - Ele atirou um embrulho no beliche. - De qualquer forma, mademoiselle fica mais à vontade com calça do que usando
saias.
Naquele momento, Gabrielle deu-se conta de que usava apenas uma camisa de homem. Olhou para Cam e corou.
- Não havia nenhuma mulher a bordo para cuidar de seus ferimentos. Sei que não a agradaria que estranhos a vissem... desta maneira.
- O senhor é um estranho - Gabrielle disse em um fio de voz e com os olhos fechados.
Cam teve vontade de tomá-la nos braços e acarinhá-la, mesmo sem duvidar que ela o mataria, se pudesse.
- Quando estiver vestida, eu a levarei até o convés. O ar puro lhe fará bem. Alegre-se. Enfrentaremos o macaréu em um dia ou dois. Talvez meu navio naufrague.
- Rezarei por isso. - Gabrielle abriu os olhos. Os dois sabiam que era verdade.

Capítulo IV

Durante a breve escala em Rouen, Gabrielle teve de escrever uma carta para o avô, ditada por Cam. Ela sabia que Mascaron e Goliath não aceitariam a idéia
de sua morte sem uma prova contundente. Por outro lado imaginava a tristeza deles quando recebessem a mensagem. Inconformada com o papel de refém dócil, escreveu
o curto recado sem uma palavra de protesto. Seria preciso esconder o ódio para atingir seus objetivos.
Cam tomou o papel nas mãos e leu. Em poucas palavras, uma explicação de que Gabrielle estava viva e bem.
- Era só isso que o senhor pretendia dizer?
Ele dobrou a folha e guardou-a no bolso interno do casaco.
- Meu emissário entregará a missiva para seu avô e fará um relatório do que esperamos dele.
- E se Mascaron não aceitar suas determinações, inglês?
- Meu nome é Cam. Será melhor acostumar-se com ele. Mademoiselle é minha pupila, lembra-se?
Gabrielle nem teve forças para discutir. Embora sem ossos quebrados, as costelas protestavam ao menor movimento.
- Se Mascaron recusar-se a obedecer-lhe, o que acontecerá? - ela insistiu.
- Mademoiselle não vai gostar de saber. Ela o fitou com frieza, sem dizer nada.
Cam sentiu-se um canalha valentão e Gabrielle era a responsável por seu comportamento grosseiro. Passou a mão nos cabelos.
- Nada lhe acontecerá se fizer o que digo, está bem?
- Espera mesmo que eu acredite nisso, depois de tudo o que me fez?
Cam recusou-se a discutir.
- Está presa na cabina há muito tempo. Precisa respirar um pouco de ar puro.
Gabrielle não queria que a vissem machucada e com trajes de menino. Mas a determinação na fisionomia de Cam a fez desistir de lutar contra. Permitiu que
ele a ajudasse a subir, mas só pensava na própria recuperação e na perspectiva de matá-lo.
No convés, ela viu-se frente a frente com Lansing. Empalideceu. Não estava preparada para o envolvimento dele no rapto.
Cam observou o constrangimento entre seu amigo e Gabrielle. Experimentou uma satisfação inexplicável. Assobiando, deixou a vítima sob custódia de Lansing.
Desceu até o cais para a reunião com Rodier.
- Sinto muito que tivéssemos de nos encontrar em tais circunstâncias - Lansing desculpou-se depois de alguns minutos.
Gabrielle desviou o olhar. Fitou o duque se afastar no pequeno barco e refletiu em suas chances de escapar. Rouen era um porto movimentado. Haveria muitos
barcos para se esconder... se encontrasse coragem para tentar.
Avaliou o ambiente. Com exceção de Lansing, ninguém prestava atenção nela. Fingindo interesse na margem distante, afastou-se devagar.
- Gabrielle, por favor. - Lansing aproximou-se e segurou-a pelo cotovelo. - Não poderei permitir que deixe o navio. Estarei arriscando muito mais do que
minha vida, se deixá-la cometer essa tolice.
- Eu não estava pensando...
- Não? Então permite que eu lhe tome o braço. Se mademoiselle escapar, Cam haverá de devorar minha alma.
Gabrielle soltou-se e desfiou um rosário de imprecações em francês. Lansing corou. Ele ouvira aquelas palavras apenas na boca dos marinheiros de Calais
e Marselha. Enquanto ele se quedava imóvel pelo espanto, Gabrielle correu em direção à amurada. Tentou alçar-se, deu um grito de dor e caiu. Lansing correu e levantou-a
nos braços.
- Gaby, o que foi?
Ofegante, Gabrielle lutava para respirar.
- M... minhas c... costelas. Acredito que... - Gabrielle desmaiou.
Por um instante, Lansing pensou tratar-se de um truque, conforme Cam o prevenira. E como o duque fizera, carregou a jovem adormecida para baixo. Antes de
ela voltar a si, rasgou um lençol e enfaixou-lhe as costelas com as tiras. Quando Gabrielle abriu os olhos, Lansing segurava um cálice com conhaque. Ele também vira
as cicatrizes anteriores.
- Beba.
Obediente, ela tomou um gole da bebida. Aos poucos, a cor começou a voltar às faces lívidas.
- Por que não disse nada a Cam a respeito das costelas?
- Para quê? Não estão quebradas.
- Como pode afirmar isso com toda a dor que está sentindo?
- Eu já quebrei costelas. Sei a diferença.
Mais uma vez Lansing convenceu-se de que, sob a aparência frágil de Gabrielle, escondia-se a alma e força de um guerreiro. Lembrou-se de Boadicéia, antiga
rainha britânica que se sacrificara inutilmente diante dos romanos invencíveis. A imagem desanimou-o.
- Gabrielle, estou lhe avisando para seu próprio bem. Não lute contra Cam. Isso lhe trará aborrecimentos. Para ele não fará diferença o fato de estar lidando
com uma mulher.
Ela sentou-se e estreitou os olhos.
- Então me deixe ir embora antes de ele voltar.
- Não.
- O senhor viu o que ele fez comigo. - Gabrielle tocou o queixo e os ferimentos do rosto. - Ele me odeia. Ele não ficará satisfeito enquanto não...
- Não!
- Por quê? Não estou lhe pedindo que faça nada. Apenas vire as costas por alguns minutos.
Lansing ficou em pé.
- Não, pela última vez!
- Que tipo de domínio ele tem sobre o senhor? - Gabrielle gritou, desesperada.
- O melhor de todos. Eu lhe devo minha lealdade! E nunca mais me peça que o traia!
- Entendi. - ela voltou a se deitar.
- Pois eu duvido que tenha entendido alguma coisa. - Lansing tirou o cálice das mãos dela. - Gabrielle, é preciso que saiba de uma coisa. Não há um homem
neste barco ou em Dunraeden que fará o que mademoiselle sugeriu. De uma forma ou de outra Cam mereceu nosso respeito e nossa lealdade. Pode-se dizer que fomos escolhidos
a dedo. Entendeu o que eu quis dizer?
Gabrielle suspirou.
- Ninguém tomará seu partido contra Cam. Se tentar fugir em Dunraeden, acabará sofrendo as conseqüências. Cam governa a propriedade como se fosse rei. Ele
impõe as próprias leis e prescinde as normas inglesas. - Lansing foi até a porta e voltou-se. - Ninguém deseja vê-la sofrer, Gabrielle. Mas há muito mais em jogo
do que a vida de uma jovem. Desista de lutar e Cam agirá com justiça.
Lansing esperou alguma ponderação por parte da jovem. Como não veio, saiu, trancou a porta por fora e guardou a chave no bolso.


Rouen, como Chester, na Inglaterra, conservava características medievais. Ruas tortuosas, pedras arredondadas no pavimento das ruas, casas de madeira e
pedra.
Cam caminhou até o arco que abrigava um grande relógio, o Gros Horloge, que dava o nome à rua. Olhou por sobre o ombro. Ao ver que não era seguido, entrou
em uma sapataria. Com a saudação combinada, foi levado até o corredor dos fundos, atravessou a casa e chegou ao pátio externo.
Um homem olhou para cima. A seus pés, retalhos de couro amontoados. Limpou as mãos nas calças, levantou-se e foi ao encontro de Cam.
Gilbert Rodier era um homem de muitos disfarces e ao longo do tempo, aperfeiçoara todos. O rosto expressivo e o talento para a mímica eram fundamentais.
Vestido de maneira apropriada, Rodier poderia passar-se por demente, velho devasso, o mais rude dos homens ou por um que fosse a escória da humanidade. Mesmo seus
agentes muitas vezes não o reconheciam. O que o salvara em inúmeras ocasiões.
Os dois homens cumprimentaram-se com efusão.
- Chegou bem a tempo. - Rodier indicou um dos bancos para Cam sentar-se. - Algum problema?
- Nada que eu não pudesse resolver. Tudo transcorreu da maneira previsível. - Cam tirou do bolso a mensagem de Gabrielle e entregou-a a Rodier.
Não houve necessidade de explicações. O plano fora elaborado semanas antes. Rodier guardou o papel e sentou-se ao lado do amigo.
- Quais as novidades, Rodier?
- É quase certo que o primeiro-cônsul se tornará imperador no final do ano. O Tribunato votou a favor da proposta.
- Ouvi falar sobre isso - Cam sorriu.
- Isso o agrada?
- Claro. Essa estratégia será um golpe para Charles James Fox e seus comparsas liberais. Os americanos também não gostarão da idéia. Graças a Deus, Bonaparte
não é muito perspicaz.
- Ele acha que nem precisa se preocupar com isso. Confia no destino e na sorte. Com a sua boa estrela em ascendência, ele se acha invencível e imagina que
o mundo cairá a seus pés.
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo e imaginaram o futuro das respectivas pátrias que lhes pareceu sombrio.
- Cam, eu gosto do sr. Fox. Eu gostaria que tivéssemos alguns aliados com as idéias dele na França.
Ambos haviam discutido várias vezes sobre o assunto, mas Cam não pretendia argumentar mais. Rodier não se convenceria de que a Revolução Francesa se apoiara
em princípios errôneos e que, ao longo do tempo, o poder da aristocracia seria gradualmente transferido para uma base mais ampla.
Rodier, como Fox, era um idealista. Fora o idealismo que o fizera rebelar-se contra a tirania do poder absoluto. Fora o idealismo que o levara a seguir
um rumo que muitos rotulariam como traiçoeiro. Mas Rodier também fora abençoado com um pouco do realismo gaulês. Caso contrário, não apoiaria o plano de raptar Gabrielle
de Brienne.
- Soube mais alguma coisa sobre o passado de Gabrielle? Rodier mostrou-se preocupado.
- O suficiente para nossos objetivos. Mas há muitas lacunas que não puderam ser preenchidas. - Deu uma batida leve no ombro de Cam. - Espero que não tenha
levantado um peso maior de que poderá carregar. Vossa Alteza não capturou uma jovem comum. Gabrielle de Brienne é uma combatente feroz que poderia ter recebido as
esporas de cavaleiro pelas lutas enfrentadas.
Rodier prestou informações sobre o período compreendido entre a libertação de Abbaye e o ressurgimento na sociedade francesa. Apesar da concisão do relato,
Cam pôde imaginar o tipo de vida a que Gabrielle fora submetida. E a incredulidade transformou-se em raiva.
- Se Mascaron temia pela segurança da neta, por que não a escondia? - Pensou nas cicatrizes que vira no corpo de Gabrielle. - Outras mulheres atravessaram
incólumes a Revolução. Por que ele a fez disfarçar-se de menino? Por que insistiu que ela o acompanhasse?
- Quem é que sabe? Mascaron pode ter sido influenciado pelo destino trágico das mulheres que pagaram pelos companheiros. Esqueceu de quantas foram guilhotinadas
ao lado de irmãos, maridos e pais? Gabrielle tinha dois agravantes contra ela. Filha de Robert de Brienne e neta de Mascaron.
A família e os amigos de Rodier não haviam escapado da morte.
- É lamentável que o destino dela estivesse atado ao de Mascaron - Cam considerou.
- Ainda está. - Rodier levantou-se e estendeu a mão. - É melhor ir embora. A maré não espera por ninguém. O que pretende fazer quando isso terminar?
Cam ficou em pé e apertou a mão do amigo.
- Será que vai terminar?
- Por mais de dez anos milorde foi arrastado pela sede de vingança. Sua vida perderá o sentido sem Mascaron para ocupar-lhe a mente.
- O senhor pensa demais. - Cam deu risada e foi embora. Andando pelas vielas de Rouen, ele pensou nas palavras de Rodier e admitiu que o amigo não deixava
de ter razão. Desde Abbaye, estivera envolvido em várias causas políticas e se tornara indispensável para Pitt. Mesmo assim seu objetivo principal fora Mascaron.
E no futuro?
Talvez fosse oportuno considerar a próxima geração dos Colburne. Um homem em sua posição precisava de herdeiros.
Estava com trinta e dois anos e era o último de sua linhagem que datava dos tempos da conquista normanda.
Sem saber por que, lembrou-se de Gabrielle. Ah, o oposto de uma duquesa. Imaginá-la mãe de seus filhos era uma aberração.
Todavia não pôde deixar de pensar que seria o primeiro homem da vida da jovem. O que também era um absurdo. Ela o odiava e pensava em seu raptor como um
monstro. Foi obrigado a admitir que, sem a própria cumplicidade, Gabrielle poderia ter sido poupada da vida rude que fora obrigada a suportar.
Mascaron os tornara inimigos para sempre. Teria de lembrar-se disso quando pensasse em Gabrielle nas horas de insônia.
Tratou de refletir no passado para esquecê-la.
Sua mãe morrera logo após o parto e o pai se desinteressara pelo filho. Ele fora criado por uma sucessão de amas e governantas que não suportavam o isolamento
de Dunraeden. Sua infância fora triste e solitária até o pai voltar a casar-se. No início se recusara a aceitar a jovem esposa de seu pai e não a chamava de mãe.
Aos seis anos, era uma criança introvertida e tímida. Aos poucos, os encantos da jovem madrasta acabaram por conquistar o menino carente de afeição.
Dunraeden assumiu o aspecto de lar. Cam se considerou o mais feliz dos meninos quando nasceu Marguerite, sua irmã. Maman, sua madrasta, chegara a fazê-lo
aceitar o pai, até então uma sombra em sua vida. A madrasta era alegre, bondosa, cheia de vida e iluminava tudo em sua passagem.
Cam aproximou-se do cais onde seu navio estava ancorado. Marguerite. Dera o nome em homenagem à irmã. De repente retornou a última imagem da madrasta e
da irmã. Fechou as mãos em punhos.
Mascaron arrancara dele as duas únicas pessoas que tiveram significado em sua vida. Ele recusou-se a sentir remorso pelas agruras que Gabrielle fora obrigada
a suportar. Se ela descobrisse o papel representado pelo duque de Dyson na derrocada de Mascaron, na certa eliminaria o último representante dos Colburne. O destino
lhes reservara caminhos opostos.
Impassível, venceu o pequeno trajeto de bote até o Marguerite e deu ordens para levantar âncora rumo a Caudebec, próximo porto do Sena.
Em Caudebec o macaréu foi impressionante. A maré encontrava-se com as águas do Sena em grande velocidade e o rio era atirado de volta sobre si mesmo. E
ainda estavam longe da boca do estuário.
Gabrielle estava trancada na cabina há mais de vinte e quatro horas. Ela nem se incomodava. Não queria a presença daquele a quem considerava como uma praga.
O camareiro abriu a porta para avisá-la que o capitão pedia sua presença no convés.
- O que ele quer agora? - ela não escondeu o rancor.
- A maré virou, mademoiselle - Will respondeu. - Entraremos no macaréu a qualquer minuto.
- E daí?
- Se o Marguerite afundar, ninguém deve ficar na parte de baixo do barco. Ordens do capitão.
Gabrielle subiu sem discutir. Entre Caudebec e a costa situava-se sua última oportunidade para escapar. Mas suas esperanças se esvaíram ao ver as águas
agitadas do Sena. Atirar-se no rio seria morte certa, mesmo para uma nadadora experiente como ela.
Will a vigiava, atento. Conduziu-a até uma entrada próxima da popa e avisou para que se segurasse com força. As ordens de Cam eram ouvidas apesar do rugido
das ondas. As velas foram desferradas e os homens corriam para cumprir as tarefas. Era impossível deixar de fitar o capitão.
Ele estava em seu elemento e desafiava o perigo. Não se via traços do aristocrata indolente. Cam absorvera a energia da natureza que pretendia dominar.
O espetáculo era perturbador.
De repente o navio endireitou-se e a tripulação gritou.
- O que houve? - Gabrielle perguntou.
- Estamos indo na maré, mademoiselle - Will respondeu. - Nada nos deterá até chegarmos ao canal da Mancha. Dali, se Deus quiser, de volta ao lar.
Lar. A palavra foi uma facada em seu coração.
Cam a fitava com postura de vencedor. Ela estremeceu e, com insolência premeditada cuspiu no chão. Engoliu o medo e sorriu.
Cam atirou a cabeça para trás e gargalhou.


Dunraeden.
No alto do promontório rochoso, o castelo erguia-se sobre o canal da Mancha como uma sentinela das margens a sudoeste, a Cornualha. Gabrielle estremeceu
e fez o sinal-da-cruz. O navio se aproximava das muralhas da fortaleza.
- Não se impressione com o exterior - Lansing aproximou-se da amurada. - Cam modernizou o castelo. Dunraeden tem os confortos de um lar moderno. Pode acreditar
em mim, Gabrielle. Tudo foi pensado para tornar sua estadia confortável.
- Continuará sendo uma prisão.
- Somente se mademoiselle quiser. Ficarei aqui para fazer-lhe companhia.
- Claro. Condenados devem ter carcereiros. - ela olhou por sobre o ombro. Cam a fitava com expressão indefinível.
Gabrielle seguiu a direção apontada por Lansing. Em outras circunstâncias teria admirado a paisagem deslumbrante, os rochedos avermelhados e as faixas de
praias brancas. Mas apenas uma idéia ocupava-lhe a mente. Uma fuga pelo mar estava destinada ao fracasso.
- Quando a maré baixa pode-se ver quilômetros de praias sem fim. Nessa ocasião, aparecem inúmeras cavernas que são muito usadas pelos contrabandistas -
Lansing disse.
Gabrielle estreitou os olhos. Aquela era uma notícia interessante, embora nada conseguisse divisar a distância.
- Quando a maré retorna - Cam falou atrás deles -, as praias ficam mais perigosas. Muitos já perderam a vida por isso. A velocidade do retorno das águas
é assombrosa. Foi o que manteve Dunraeden ao largo de ataques por mar durante séculos. Bem, mas isso não passa de interesse acadêmico. --Cam e Lansing se entreolharam.
- Enquanto Gabrielle for minha hóspede, terá de permanecer dentro das muralhas do castelo.
- Claro - Lansing retrucou. - Nem poderia ser de outra forma.
O Marguerite foi ancorado em uma pequena enseada em meio às costas altas. Os passageiros foram para a terra num bote a remo. Um caminho estreito rodeava
a base do despenhadeiro e se aproximava do castelo.
Gabrielle impressionou-se com a fenda natural na formação rochosa que separava o castelo do restante da Cornualha. Por ali também não havia possibilidade
de fuga. E o pânico instalou-se em seu coração quando escutou o ribombar dos portões que eram fechados.
As reminiscências de quando fora encarcerada com a mãe em Abbaye voltaram à sua mente. Quem poderia imaginar o horror que as esperava? Maman. Ela e a mãe
enfrentando uma turba enfurecida de féderés. Nadar no Loire com uma costela quebrada. Pular das muralhas de Valence sobre uma carroça em movimento. Mas nada a horrorizara
mais do que os muros da prisão. Com olhar apavorado perscrutou as ameias e as torres que a cercavam.
- Gaby? O que foi? - Cam tocou-lhe o ombro.
Gabrielle, pálida e transtornada, parecia ter visto um fantasma. Sem pensar no que fazia, Cam tomou-a nos braços. Carregou-a pelo pátio e subiu a escada
estreita que levava ao salão nobre.
- Conhaque! - gritou para o criado que chegava correndo. Sentou-a em um sofá e afastou-lhe os fios de cabelo do rosto. - Minha querida, não fique assim.
Estou aqui. Prometo que nada lhe acontecerá. - Beijou-lhe levemente as pálpebras, os arranhões do rosto e os lábios.
Ela o encarou com incerteza e uma ligeira ruga na testa. Cam massageou-lhe os músculos tensos do pescoço e dos ombros.
- Gaby... Gaby.
Ela entreabriu os lábios e fitou-lhe a boca.
- Cam! Que bom que milorde voltou!
Louise Pelletier descia devagar a escada de pedra, sem acreditar no que via. O duque de Dyson acalentava um cavalariço. Cam se mexeu e os cabelos loiros
despencaram por cima de seu braço. Ao ver o olhar abismado de Louise, sorriu, envergonhado.
- Minha pupila. - ele indicou a silhueta esguia que tinha no colo. - A travessia foi terrível. A pobre criança mal pode andar. - Pegou o cálice de conhaque
que o criado trouxera e fez Gabrielle beber tudo.
- Santo Deus! O que houve com ela? - Louise imaginou as possibilidades daquela jovem representar uma ameaça. A maneira como Cam a segurava e como olhava
para ela eram inquietantes. Conteve suas dúvidas. - Cam, por que não me avisou que se tratava de uma criança? Nem sei se os trajes que milorde encomendou irão servir.
Gabrielle desvencilhou-se, ficou em pé e felizmente cambaleou para tornar verídica a história de Cam. Ele levantou-se devagar.
- Gabrielle, cumprimente sua dama de companhia, mademoiselle Louise Pelletier. Ela é sua conterrânea. Louise, permita que eu lhe apresente minha pupila,
Gabrielle de Valcour.
Sem refletir, Gabrielle segurou as calças e fez uma cortesia. Louise gargalhou e Gabrielle deu-se conta do ridículo do cumprimento para quem parecia um
garoto. Corou.
Torceu as mãos enquanto a outra, que exalava fragrâncias de um paraíso tropical, jogou-se nos braços do duque. Deduziu que se tratava de um romance ou até
um noivado. Notou o desapontamento da dama quando o duque a afastou.
Louise iniciou uma conversa tipicamente doméstica e Gabrielle analisou a compatriota. Louise Pelletier era o resumo de tudo o que ela admirava em uma mulher.
Bela, elegante, feminina e confiante em seu poder de sedução. Louise pestanejava e sorria.
Flertava.
Depois de ser beijada pelo duque em Vrigonde, Gabrielle procurara o significado da palavra no dicionário. Louise Pelletier dominava o assunto e com desenvoltura.
Gabrielle fitou o duque. Admitiu que ele era um homem atraente. Mas desde que o encontrara em Andely, tivera o pressentimento de que ele representava uma
ameaça. O que se confirmara.
Rindo de algo que Louise dizia, Cam não poderia estar mais descontraído. Gabrielle recriminou-se pela vontade de sorrir. Embora ele houvesse mostrado bondade
há poucos momentos, já demonstrara uma rudeza difícil de esquecer. Ela era prisioneira deste homem e não sua pupila.
Retesou-se ao perceber que os dois a observavam.
- Impossível! - Louise exclamou.
- Essa palavra não existe em meu vocabulário - Cam respondeu. - Se não quiser a tarefa, minha querida, encontrarei quem a desempenhe.
Louise sorriu como quem se desculpava.
- Cam, não me entenda mal. Eu quis dizer que não seria fácil. Olhe para ela. - Louise segurou o pulso de Gabrielle e virou-lhe a mão para cima.
Confusa, sem entender, Gabrielle ficou rígida como uma estátua e fitou a própria mão que Cam observava. Ao notar os calos, as unhas sujas e quebradas, escondeu
as mãos nas costas.
- Não se trata apenas dos trajes de rapaz. É a maneira como ela se move e se comporta. Veja a postura.
Ambos olharam para as pernas de Gabrielle que estavam afastadas. Ela tornou a corar. Não saberia dizer onde encontrava coragem para erguer o queixo. Lembrou-se
dos olhares e comentários cruéis nos salões de Paris. Piscou para afastar as lágrimas.
- Que cheiro horrível! - Louise fez uma careta. - O que é isso?
Cam cheirou a manga do capote rústico.
- Peixe e água do mar. Um banho e uma troca de roupas darão um jeito nisso.
Os dois riram e Gabrielle continuou rígida.
- Ela sabe conversar? - Louise abafou outra risada.
Cam percebeu, tarde demais, as chispas de ódio que eram lançadas pelos grandes olhos verdes. Agarrou Gabrielle pelo pulso e levou-a até a escadaria, escutando
um longo repertório de imprecações que envergonharia a sensibilidade de um contrabandista.
Louise quedou-se boquiaberta. Cam sentiu as orelhas em fogo. Tampou a boca de Gabrielle e arrastou-a para cima.
Gabrielle entendeu o motivo de ter-lhe sido destinado o quarto circular na torre sul. Com vista para o canal, era uma prisão sem nenhuma possibilidade de
fuga.
Fingiu uma indiferença que estava longe de sentir. Foi até a grande cama de baldaquino com cortinado de veludo azul e largou-se no colchão de plumas como
se fosse uma criança. Ou melhor, um menino.
- Sua criada se chama Betsy - Cam avisou-a.
- Não esquecerei.
Gabrielle evitou encará-lo. Notou as tapeçarias de Bruxelas nas paredes e a poltrona estofada ao lado da lareira. Apesar do conforto, não deixava de ser
uma prisão.
- Betsy virá ajudá-la a tomar banho e vestir algo adequado para o jantar.
- Entendi. - ela fitou os tapetes.
Cam cruzou os braços e encostou-se na porta fechada.
- Não tenho intenção de ofender ninguém. - Gabrielle fitou-o com hostilidade. - Para todos os efeitos, é minha pupila. Nada mais natural para um tutor do
que se preocupar com o comportamento e os trajes da protegida. Estou representando meu papel.
Ela nada respondeu e a paciência de Cam se esgotava.
- Aconselho-a a conformar-se, Gabrielle. Nas próximas semanas terá de aprender a se vestir e a agir como uma lady. Se eu escutar novamente seu linguajar
grosseiro, prometo lavar sua boca com sabão!
Gabrielle deu um pulo da cama e enfrentou-o com uma coragem que provocou admiração em Cam.
- Quer que eu me torne uma lady como Louise Pelletier? - ela o desafiou.
- E por que não? Se quiser, poderá aprender a ser como Louise.
Ela recuou e fitou-o com desprezo. Cam afastou-se da porta.
- O senhor fede.
- O quê?
- A peixe podre. - Ela fechou o nariz com o polegar e o indicador.
- Gabrielle - Cam advertiu-a.
Ela agarrou-lhe o pulso e levantou-o como se lidasse com um rato morto.
- Inglês, o senhor precisa de uma manicura.
- Meu nome é Cam! Cam, entendeu? Será que ainda não aprendeu?
Gabrielle largou-lhe a mão e fitou-o com escárnio.
- Se me obrigar, posso até chamá-lo de Cam, mas jamais de cavalheiro! Nem aquela mulher de lady! O senhor acha que não reconheço qualidades quando as vejo?
Ela é ainda pior do que o senhor. Uma coisa eu lhe digo. A última coisa no mundo que desejo é ser igual a ela. Ou ao senhor.
Gabrielle não teve tempo de afastar-se. Cam agarrou-a pelos ombros e também a mirou com ódio.
- Tem razão. Jamais será como Louise. Mas eu lhe digo que terá de tentar! Meu nome é Cam, droga! Cam! Repita!
- Cochon! - Gabrielle cuspiu.
Cam viu as lágrimas espremidas por trás das pálpebras fechadas e comoveu-se. Não queria que ela o visse como um monstro.
- Gaby, eu não quis dizer nada daquilo! Por que insiste em lutar contra mim? Desista, por favor.
Abraçou-a sem encontrar muita resistência. Acariciou-lhe as costas, a cintura e o contorno dos quadris como se quisesse protegê-la dele mesmo. A lógica
desfez-se na bruma sensual que lhe invadiu a mente.
Gabrielle virou a cabeça e a incerteza fez-se mais uma vez presente em seu olhar.
Cam não chegou a decidir o que teria de fazer. Escutou os sons de uma agitação no pátio.
- Cam! Cam! É a guerra! - A voz de Lansing ergueu-se no ar.
Gabrielle soltou-se, correu até a janela e escancarou-a.
- Onde está Cam? - Lansing gritou.
Os homens atiravam os chapéus e as capas para cima, dando vivas.
Cam afastou Gabrielle e postou-se no peitoril.
- É a guerra, Cam! - Lansing gritou ao ver o amigo. - Sua Majestade declarou guerra à França há dois dias! - ele não escondia a alegria.
Cam fechou a janela e fitou Gabrielle. Ela parecia um bloco de mármore.
- Não sou seu inimigo, Gabrielle.
- Suponho que eu não seja sua prisioneira - a voz veio contaminada de sarcasmo.
- Não tinha de ser assim.
Ela forçou uma risada.
- Sinto muito, inglês, mas não lhe devo lealdade. O senhor é inimigo da França. Isso o torna meu inimigo.
Cam saiu, bateu a porta e trancou-a. Gabrielle largou-se na cama e concentrou-se no baldaquino.
Detestava aqueles olhares intensos e escurecidos que a assustavam tanto como a raiva incontida. Quando Cam a fitava daquela maneira, ela pensava em masculinidade,
violência, superioridade, animal. Ah, como gostaria de ter nas mãos uma arma para forçá-lo a manter distância.
Haveria de encontrar uma maneira de fugir e voltar para a França sem desgraçar o avô.
Fechou os olhos e adormeceu de pura exaustão.


Passava da meia-noite quando Cam caminhou pelo corredor rumo aos aposentos de Louise. O salão nobre encontrava-se às escuras. A única iluminação que entrava
pelas janelas altas vinha do pátio onde havia sentinelas de prontidão.
Impaciente e mal-humorado, creditou a Gabrielle o desastre de sua primeira noite de volta ao lar. Estremeceu ao lembrar-se das últimas horas.
O jantar transcorrera em meio a um cenário de horror. A tigela de sopa escorregara das mãos de Gabrielle. A colherada de purê de batatas arremessada no
seu ombro e que por pouco não o atingira no rosto. A taça de vinho derrubada no colo de Louise e que obrigara a pobre moça a sair correndo. A barra do vestido dispendioso
de Gabrielle que se rasgara ao ficar preso no pé da cadeira. O que mais o irritava era mais uma vez ter pensando em um anjo ao vê-la descer a escada.
Uma bruxa, isso sim!
Tinha certeza de que tudo fora premeditado. E teria dado um fim merecido a tanta provocação, se Simon não houvesse interferido em favor de Gabrielle. Ele
afirmara que a pobre criança ainda estava sofrendo por causa dos ferimentos e das costelas.
- Costelas? - Cam se admirara.
Gabrielle retribuíra com um sorriso aflito o olhar interrogativo e apertara a mão sob o busto. Mais tarde, ele entendera que ela era uma atriz nata ao vê-la
encostar o polegar no nariz e balançar os outros dedos.
Agradeceu a Deus a lição. Isso o ensinaria a não maquinar fantasias idiotas a respeito de sua refém. E mais uma vez desejou nunca ter pensado em raptá-la.
Felizmente teria um descanso. Na manhã seguinte iria para Londres. Haveria um encontro na Câmara. O debate seria a respeito da guerra que fora declarada.
Ficaria ausente por uns quinze dias e deixaria Gabrielle aos cuidados de Lansing. Deveria sentir pena do amigo. Não sentiu. Lansing gostava de Gabrielle. Além disso,
podia contar com Louise para quebrar o orgulho da jovem.
Cam bateu na porta do quarto de Louise e entrou. Ela o esperava vestida com um penhoar de gaze que pouco deixava à imaginação. Recebeu-o com um sorriso
cálido e braços estendidos. Cam fitou-a com admiração e desejo. Louise sabia ser mulher. O perfume era inebriante e a pele, sedosa.
Beijou-a. Queria esquecer a imagem de Gabrielle. Levou Louise para a cama.


Capítulo V

No dia 18 de maio de 1803, o rei Jorge III, em um de seus momentos mais lúcidos, declarou guerra à França. Cinco dias mais tarde a Câmara dos Comuns reuniu-se
para debater a posição adotada pela Inglaterra. Esperava-se que os adversários William Pitt e Charles James Fox, respectivamente líderes tóri e whig, fizessem os
discursos mais inflamado de suas vidas. Os clubes masculinos de St. James ficaram vazios. Os freqüentadores acotovelavam-se em Westminster para conseguir os poucos
assentos reservados à população.
As galerias estavam lotadas. Muitos jornalistas não foram admitidos por falta de espaço. De seu lugar, Cam cumprimentava um ou outro conhecido. Disfarçou
um bocejo. O debate se arrastava e Pitt ainda não chegara.
- Sr. Pitt! Sr, Pitt!
Cam observou Pitt ocupar seu lugar costumeiro na terceira fila atrás do banco ministerial, próximo a um dos pilares. A platéia estava ansiosa para ouvi-lo.
O orador do momento encerrou rapidamente sua palestra e sentou-se.
Pitt subiu na tribuna e foi calorosamente aplaudido. Seus argumentos a Favor do reinicio das hostilidades eram previsíveis e sua lógica, como sempre, foi
irrefutável. Seu poder de persuasão era poderoso.
Do outro lado do recinto, na primeira fila dos oposicionistas de Sua Majestade, o sr. Fox e Richard Sheridan.
Depois de uma hora de discurso, Pitt conseguira inflamar os participantes a favor da longa lista de queixas contra o primeiro-cônsul da França. A pior das
transgressões citadas referiam-se aos métodos clandestinos de obtenção de informações militares.
- Agentes comerciais - foi o eufemismo usado por Pitt.
- Espiões! - o clamor ergueu-se nas galerias.
Pitt falou sem interrupção por quase duas horas e com pouca consulta a suas anotações. Conclamou os ouvintes para reconhecer que a decisão de Sua Majestade
fora acertada e que era preciso livrar o mundo de um tirano. Sentou-se em meio a uma nova onda de aplausos.
Todos os olhares se voltaram para o sr. Fox. Ele, que nunca hesitara em responder um discurso longo em igual período de tempo, resolveu não falar naquela
noite. O debate foi adiado para o dia seguinte e a sessão terminou às dez horas.
Cam encontrou-se com Richard Sheridan no saguão.
- Muito bem, Dyson - Sheridan saudou-o. - Creio que os senhores ficaram muito satisfeitos depois desta noite de trabalhos.
- Bastante - Cam concordou.
Os dois fitaram o sr. Pitt que, rodeado por uma multidão de admiradores, sorria com as congratulações.
- Mesmo a contragosto - Sheridan continuou -, sou obrigado dar a mão à palmatória. O sr. Pitt esteve em sua melhor forma. Oratória esplêndida!
- Concordo plenamente - Cam retrucou. Viu Castlereagh no meio de um grupo e pediu licença.
Sheridan segurou-o pelo braço.
- Milorde virá amanhã para escutar o que sr. Fox tem para dizer?
- Eu não perderia isso por nada desse mundo. Sheridan tirou um relógio do bolso do colete.
- Tenho de ir andando. Esse foi um péssimo negócio. Conte com minha simpatia. - Com um sorriso inocente, Sheridan despediu-se.
Cam saiu pensando nas palavras enigmáticas de Sheridan. Reuniu-se com Castlereagh e Canning. A conversa girou em torno do discurso incomparável de Pitt.
Alugaram um coche e foram à residência de Pitt na Baker Street, onde aguardaram pelo dono da casa.
No escritório de Pitt, Canning encarregou-se dos drinques.
- Nada melhor do que vinho do Porto para comemorar. - Havia várias garrafas no aparador.
- Excelente - Cam concordou.
Era de conhecimento geral que o sr. Pitt consumia vinho do Porto em quantidade para fins medicinais, segundo ele. Cam disse a si mesmo que, apesar da constituição
delgada, Pitt nunca estivera com saúde tão boa.
A conversa girou sobre banalidades até Pitt entrar. Os convivas se desmancharam em elogios, o que, como de costume, deixou o político pouco à vontade. Ele
aceitou a taça de vinho das mãos de Canning e interrompeu as palavras de Castlereagh.
- Cavalheiros, temos boas notícias da França. - Pitt esvaziou a taça e foi novamente servido. - Apesar da belicosidade de Bonaparte, a ameaça de invasão
iminente é remota ou mesmo inexistente. Isso não quer dizer que devemos diminuir nossa vigilância. Soubemos, por fontes seguras, que a armada francesa está espalhada
pelos quatro cantos do mundo.
- Quem são essas fontes seguras? - Canning sorriu de orelha a orelha, supondo a resposta.
- Espiões - Cam respondeu.
- Delta, para ser mais preciso - Pitt emendou. Somente Cam sabia que Delta era o codinome de Rodier na Inglaterra.
- Então por que aquele palavrório todo na sessão de hoje na Câmara? - Castlereagh fingiu descrédito.
- Está se referindo aos comentários sobre o uso de espionagem pela França?
- Arengas, senhores - Canning interveio.
- Meu coração está dividido em partes iguais entre a indignação e o fervor patriótico - o visconde de Castlereagh afirmou. - O sr. Pitt tem a capacidade
de fazer com que acabemos rendidos à sua lógica.
- A espionagem é um negócio sujo. - Pitt levantou os ombros. - Mas é um instrumento necessário em tempos como esses. Agora, cavalheiros, se já se divertiram,
temos mais o que falar.
Cam não duvidou que o informante de Rodier fosse Mascaron. Somente alguém altamente situado no Ministério da Marinha teria acesso a esse tipo de informações
que eram passadas adiante. Pelo relatório de Rodier era evidente que a declaração de guerra fora uma surpresa para Bonaparte, apesar do arsenal e da armada que vinha
organizando há meses.
A esquadra da França, além de dispersa, era numericamente inferior à da Inglaterra. As tripulações eram inexperientes. Depois das derrotas sofridas ao longo
dos anos, a frustração dominava os homens.
Bonaparte tratava de recuperar-se da inércia anterior. Um exército de trabalhadores foi empregado para construir embarcações de transporte e invasão que
pudessem levar milhares de homens pelo canal da Mancha. Havia planos para a construção de portos artificiais ao longo da costa, alguns deles já em andamento. Antes
do final do ano, Bonaparte contaria com uma esquadra para lutar contra a Inglaterra.
- Isso é muito sério - Canning comentou ao final da explanação de Pitt.
- Concordo. Mas há dois pormenores a nosso favor.
- Quais?
- O almirante Nelson é um deles. Os franceses não têm ninguém que se equipare a ele. O outro é nosso clima extravagante e tão deplorado que poderá ser nossa
salvação.
A conversa prosseguiu a respeito do discurso de Fox esperado para o dia seguinte. Há um mês o apoio de Fox para a guerra contra a França parecera crucial.
Mas em poucas semanas muita coisa acontecera. O primeiro-cônsul recebera do senado o direito de proclamar seu sucessor. Uma monarquia hereditária era preferível
do que o despotismo.
Cam lamentou que o confronto final entre os navios franceses e ingleses tivesse de ser adiado, mesmo que por alguns meses. Gabrielle teria de ficar sob
sua custódia por mais tempo. Gostaria de livrar-se dela o quanto antes, para concentrar-se em assuntos mais importantes.
Pensou em como seria a vida da jovem quando voltasse para casa. Mascaron estaria pagando por haver tomado parte nos massacres de setembro. Gabrielle ficaria
sem ninguém para orientá-la ou para cuidar de seus interesses.
Criticou a si mesmo por aquela preocupação. No entanto não podia deixar de refletir sobre o desamparo dela se ficasse sem o avô. Goliath não tinha a menor
influência. Nem toda a lealdade do mundo livraria Gabrielle de algum francês poderoso que resolvesse derrubá-la. Ela voltaria a ser uma fugitiva.
Despediu-se de seus companheiros e voltou para Hanover Square, pensando no que faria a respeito de Gabrielle. Nunca lhe ocorrera poupar Mascaron para salvá-la.
O plano fora cuidadosamente elaborado e Cam não questionava a sensatez do projeto. Havia uma alternativa. Torná-la sua pupila de verdade e educá-la para assumir
um lugar na sociedade, embora não a francesa.
Ponderou nos méritos da questão. Não se considerava nenhum monstro sem consciência para deixar uma jovem à deriva de um destino incerto se voltasse para
a França. Gabrielle era inocente. Nada fizera de errado. E se ele soubesse daquele propósito, talvez aceitasse seu destino.
Sentiu-se aliviado. Prometeu a si mesmo que tomaria as atitudes justas. Gabrielle perdera o lar e enfrentara momentos terríveis quando os agentes de Rodier
haviam perseguido Mascaron.
Convenceu-se de que ficaria livre da responsabilidade quando encontrasse um marido para ela. Teria de ser um cavalheiro rico e com título. Lansing foi rejeitado
de imediato. Não desejava uma jovem tão agressiva e turbulenta para um homem bondoso e terno como Simon. O marido de Gabrielle teria de ter pulso e vontade firmes.
A Câmara ficou ainda mais lotada na noite seguinte. Os jornalistas estavam a postos, prontos para o tão esperado debate.
O discurso de Fox foi impecável. Lúcido. Pleno de sutilezas e objetivos elevados. Ele baseou-se em princípios universais em oposição à visão estreita de
Pitt. O tóri advogara agressão implacável. Fox defendia negociações exaustivas, sem fechar as portas para um conflito armado se fosse absolutamente necessário.
O respeito de Cam por Fox aumentava. Sem descartar aliados ou despertar suspeitas, Fox traçava novo caminho para os whigs. Era um estratagema brilhante,
embora inescrupuloso, para um homem que professava compromissos inabaláveis com as idéias sublimes que pregava. Cam nunca subestimara a habilidade de Fox em usar
de quaisquer meios para conseguir seus objetivos.
Fox falou durante três horas. Embora os tories houvessem vencido a votação, ele foi aclamado como gênio e seu discurso, considerado como um legado para
a nação. Fox perdera no voto, mas ganhara o debate.
Do lado de fora da Câmara, Cam foi um dos primeiros a cumprimentar Charles Fox.
- Não se vá, Dyson - Fox pediu, apesar de todos os que o rodeavam. - Há alguém ansioso para falar sobre a jovem que o senhor raptou na França. Não podemos
falar aqui. Vá a minha casa mais tarde. O assunto é de seu interesse, Alteza.
Cam ficou sem voz. Quando se recuperou do susto, Fox já conversava com outros. Seria uma tolice recusar o convite. Era imperativo descobrir o quanto ele
sabia a respeito de Gabrielle. Se tivesse conhecimento de tudo, com certeza não somente o denunciaria, como deixaria todos os tories em situação embaraçosa. Cam
também precisava identificar a fonte de informação.
Cam chegou à casa de Fox na Clarges Street e foi levado até um vestíbulo pequeno. Sons de uma reunião festiva chegaram até ele. Em minutos Fox apareceu
precedido por outro cavalheiro. Era Jorge, o príncipe de Gales.
- Vossa Alteza Real. - Cam levantou-se.
- Dyson - o príncipe reconheceu-o, amável.
O herdeiro do trono sentou-se e fez sinal para que os outros o imitassem. Foram trocadas algumas amabilidades, embora o príncipe não ficasse à vontade na
presença de pessoas do tipo de Dyson.
O duque de Dyson não gostava dele, o príncipe pensou. Dyson era um tóri e, portanto, ligado a Pitt. Jorge ainda não esquecera que os tories haviam lhe negado
apoio havia anos quando precisara de mais recursos para manter um estilo de vida digno de um príncipe. Não aceitaram as despesas feitas para remodelar a Carlton
House e fazer do palácio um exemplo para a.nação. Aqueles campônios rústicos, de cara amarrada, o haviam chamado de extravagante. Não imaginavam que houvesse outras
coisas na vida atem do trabalho.
Também não podia perdoar Pitt de tirar a regência das mãos dele quando Sua Majestade, Jorge III, tornou-se quase incapaz por seus momentos de loucura. Haveria
de chegar o dia em que Pitt e seus seguidores seriam alijados do poder. Então seriam trocados por quem provara ser seu amigo. Lembrou-se imediatamente de Charles
Fox e Richard Sheridan.
Cam notou o sorriso de triunfo no rosto redondo do príncipe, uma pessoa frívola sem nenhum conteúdo.
- Dyson, uma história estranha chegou a meus ouvidos - Fox abriu o jogo.
- Foi o que deduzi. Creio que está se referindo a minha pupila.
- Pupila? - o príncipe repetiu.
- Sim. Gabrielle de Valcour.
Cam esperou alguns segundos para contar a história que inventara. Gabrielle era a última sobrevivente da família de sua madrasta. Descobrira que todos os
Valcour haviam perecido na Revolução. A jovem fora criada na pobreza por estranhos e ele se comovera. Em outras circunstâncias, advogados teriam transferido a órfã
para sua custódia. Mas com a ameaça das hostilidades, seguira o caminho mais curto. Ele a trouxera em seu navio para a Cornualha.
- Ela foi raptada e, segundo os relatos, maltratada - Fox considerou.
- Por incrível que pareça, Gabrielle não queria deixar a França. Lamentei ter de usar um mínimo de coação para trazê-la.
- Mínimo? Não foi o que me disseram.
- Diga-me o nome dessas pessoas. Gostaria de falar com elas pessoalmente - pediu o príncipe.
- Pois eu gostaria de saber o que a jovem tem para dizer. - Fox deu risada.
- Dirá o que já lhe contei.
- Foi ameaçada?
- Tudo isso é irrelevante, cavalheiros - o príncipe afirmou, com sua fala arrastada.
- E qual o tópico principal?
- Dyson, sinto dizer-lhe que milorde comprometeu uma jovem bem-nascida - o príncipe alegou.
Aquilo nunca ocorrera a Cam.
- Não entendi, Alteza.
- Meu prezado lorde. - O príncipe descruzou e cruzou para o outro lado as pernas grossas calçadas com meias de seda. - Uma testemunha relatou que milorde
ficou com ela na cabina de seu navio durante quatro dias.
- E por um bom motivo, Alteza. Conforme já expliquei, Gabrielle não queria ser resgatada. Tive de ficar com ela para que não fugisse.
- Meu prezado Dyson - o príncipe reprovou-o. - Acredito no senhor, mas fatos são fatos.
- O senhor não parece entender - Fox impacientou-se - que o rapto da jovem francesa deixou a Inglaterra em situação delicada.
- Inglaterra! - Cam riu com vontade. - Perdoe-me sr. Fox, se eu duvidar de sua afirmativa.
- Dyson, pense bem. Pupila ou não, o senhor raptou uma cidadã francesa. O senhor forçou-a a tornar-se sua amante?
Cam começou a entender a manobra de Fox. Gabrielle seria usada para forçá-lo a agir contra a vontade.
- A jovem é minha pupila e não minha amante.
O príncipe ficou em pé o que obrigou os outros a fazerem o mesmo.
- Ela é francesa ou não?
- É, Alteza.
- Então não há alternativa. Exijo que a deixe sob minha custódia o mais depressa possível. De agora em diante, ela ficará sob minha proteção.
- Alteza, não creio que seja apropriado - Cam murmurou.
- Essa será uma medida temporária - garantiu o príncipe de Gales. Quando tivermos certeza de que não há fundamento nos boatos, sua... pupila lhe será entregue
em seguida. Se não fizermos isso, os falatórios crescerão.
Cam estreitou os olhos.
- Não tenho objeções.
- Estamos combinados.
Cam fez uma mesura respeitosa, mas com sorriso irônico.
- Alteza.
O príncipe anuiu e retirou-se.
- Inglaterra, sr. Fox? - Cam falou em voz baixa. - Não imaginei que fosse dado a hipérboles.
- Saiba perder, Dyson. Eu lhe garanto que não estou exagerando. Algumas palavras levantadas na Câmara e isso se transformaria facilmente em um incidente
internacional de primeira magnitude. Pitt não iria gostar nada de escutar rumores soprados pelos whigs no momento em que a Inglaterra se prepara para prosseguir
a guerra com a França.
- Corrija-me, se eu estiver errado. O que deverei fazer para contar com sua discrição?
- Creio que o senhor deveria tirar férias...
- Como é?
- ...da política.
- O senhor me lisonjeia por achar que sou uma ameaça a seu partido.
- Não a meu partido, mas para a Inglaterra. Veja que não subestimo sua capacidade.
Fox preparou-se para sair.
- Um momento, sr. Fox. Se eu decidir seguir seus conselhos, qual será minha recompensa? Ou melhor, o que acontecerá a Gabrielle?
- O destino dela está nas mãos do príncipe, Dyson. Não se preocupe. Nada de mal acontecerá a ela. O senhor terá tempo suficiente para cuidar de suas propriedades
na Cornualha e em Yorkshire. Retire-se da política e eu lhe garanto que os whigs manterão silêncio. Eu lhe darei alguns minutos para se recuperar.
Fox sorriu, saiu, fechou a porta e foi ao encontro do príncipe em seu gabinete.
- Então? - O príncipe levou uma taça de vinho tinto aos lábios. Inalou o buquê da bebida antes de tomar um gole.
- Se não estou enganado, Alteza, consegui convencê-lo. Obrigado por sua intervenção.
- Esqueça. Fico satisfeito em poder ajudar. Não acha que Dyson poderia casar-se com a jovem e arruinar seus planos?
- Ela pode ser bem-nascida, mas segundo os relatos, mais parece de origem bárbara. Não seria nem de longe adequada para o papel de duquesa. Dyson não aceitaria
um enlace tão pouco adequado.
- Tem razão, Charles.
O príncipe refletiu que os dois tinham assumido posições pouco adequadas. Fox se casara com sua amante, uma atriz que distribuíra favores entre ele e Fox.
Pensou na sua querida Maria, sra. Fitzherbert, sua esposa secreta e morganática, que tivera de descartar por causa da eslovena Caroline de Brunswick que lhe fora
imposta. Lágrimas lhe vieram aos olhos.
Tudo por culpa de Pitt. Era certo que o casamento lhe trouxera dinheiro. Porém Pitt e seus tories haviam dado com uma mão e retirado com a outra. Uma dívida
de meio milhão de libras que teria de ser restituída com juros de quatro por cento! Ele, príncipe de Gales, herdeiro do trono britânico, estivera à beira da ruína
financeira durante anos. O Parlamento finalmente o tirara das dificuldades. E mais uma vez os tories vieram em seu encalço. Pitt era mesmo uma pedra em seu sapato.
- O que poderemos ganhar com o descrédito de Dyson? - O príncipe observou o corpanzil de Fox e considerou-se magro como um palito. Olhou para o próprio
colete com os botões estourando e encolheu o estômago.
- Se eu bem conheço o sr. Pitt, a influência de Dyson terá fim. Ele se tornará um empecilho para o partido. Eles o esquecerão.
- Pensei que pretendesse derrubar o sr. Pitt. Fox deu uma risada gutural.
- O sr. Pitt é diabólico, mas esse eu conheço. Pensarei nele mais tarde. Dessa vez, Alteza, Dyson é a minha caça.
Pensativo, o príncipe bebia devagar o vinho da Borgonha.
- O que Dyson lhe fez de mal?
- Pessoalmente? Nada que eu saiba. Minha perspectiva é muito mais ampla. Ele tem pouco mais de trinta anos, não é?
- O que tem isso?
- Na minha opinião, Dyson é um fanático e está perto do centro do poder. Teria muito tempo pela frente para moldar o Parlamento e a política governamental
de acordo com seus interesses.
O príncipe imaginou Dyson no lugar de Pitt nos vinte ou trinta anos subseqüentes. Em particular, enquanto durasse seu reino como próximo monarca da Inglaterra.
- Santo Deus!-- A visão aterrorizou-o. Bebeu o vinho de uma só vez. - Charles, o senhor é um homem previdente!
Fox deu risada.
- Vamos voltar à presença de meus convidados, Alteza? O partido espera que eu cumpra com meu dever.
O príncipe precedeu a saída.
Com a volta de Cam, Gabrielle tornou a inquietar-se. Ela e Simon davam a volta nas ameias do castelo quando o duque de Dyson entrou pelo portão norte. De
longe, ela sentiu o péssimo humor com que ele regressara. Estremeceu e aproximou-se de Lansing que seguiu seu olhar,
- Por Deus! É Cam! O que o trouxe de volta tão cedo?
Gabrielle não se alegrou como Simon. O interlúdio abençoado pela ausência do duque estava para terminar. Lansing lhe permitira muitas liberdades. O duque
não seria um carcereiro tão leniente.
Suas conjecturas foram confirmadas quando entrou no salão nobre pelo braço de Simon.
- Devo crer que na minha ausência a administração do castelo foi deixada a cargo de Gabrielle?
Ela não se deixou enganar pelo tom casual. Simon saudou Cam com efusão antes de responder e segurou o braço de Gabrielle que ameaçava afastar-se.
- Gabrielle chorou muito por causa do confinamento. Ela não gosta de ler e nunca aprendeu a bordar. Estava ficando louca dentro da torre. Por isso tive
a idéia de apresentá-la a Dunraeden.
Ela sentiu-se constrangida com o olhar intenso do duque. Fora fácil enganar Lansing e fazê-lo pensar que ele planejava tudo. Durante uma semana ela se familiarizara
com todos os cantos da fortaleza pensando em seu objetivo maior. Fugir. Esperava que o duque não pudesse ler a verdade em seu olhar.
- Ela deixou o castelo?
- Não ainda - Lansing respondeu.
- Nem deverá fazê-lo. - O duque pareceu descontrair-se e deu um arremedo de sorriso. - Gabrielle, não a estou reconhecendo. - Fitou o vestido de musselina
branca, o decote quadrado, as mangas bufantes, as fitas de cetim que prendiam as madeixas douradas.
- Alteza. - Ela fez uma cortesia profunda que pareceu mais um insulto e criticou a si mesma por provocá-lo.
Lansing nada percebeu e fitou Gabrielle com ternura.
- Como pode ver, Cam, fizemos progressos consideráveis. Gabrielle sabe ser uma lady... quando quer.
Gabrielle pestanejou e Cam resmungou.
- Onde está Louise? - Ele caminhou para a escada.
- Não sei - Simon respondeu. Cam subiu os degraus de dois em dois.
- Encontre-a, Gabrielle - o duque chamou do pavimento superior -, e peça que me espere na biblioteca. Simon, venha para meus aposentos. Agora.
- O que deu nele? - Lansing murmurou.
- Eu percebi que ele estava de mau humor.
- Cam? Ele nunca perde o sangue-frio.
- Pois afirmo que ele está perturbado.
- Quando o conhecer melhor, Gabrielle, entenderá o absurdo desse comentário. Cam tem a solidez do Gibraltar. Ele não descarta as emoções voláteis que aborrecem
os pobres mortais. Nós, no caso.
Gabrielle resolveu não contradizê-lo. Lansing e ela jamais concordariam em relação ao caráter do duque.
- Simon! - o duque rugiu.
- Já vou. - Lansing apressou-se.
Gabrielle encontrou Louise no último pavimento.
- O inglês voltou e espera pela senhora na biblioteca.
- Cam está de volta? - Louise não escondeu a alegria.
Durante a ausência de Cam, Louise não escondera a antipatia por Gabrielle. Por outro lado, Gabrielle, considerada como selvagem, fizera jus ao título. Procurou
não desapontar as expectativas de Louise. Com Simon, ela se comportara de maneira exemplar.
- Ele está de mau humor - Gabrielle avisou a outra.
- Ah, já se vê que o conhece pouco - Louise fez pouco caso e desceu.
Pelo jeito, Gabrielle poderia considerar-se a única em Dunraeden que sabia interpretar a disposição do duque. Ela não se incomodava com cara feia, desde
que seu dono se mantivesse longe dela. Subiu e foi para seu quarto.
Encontrou Betsy, por quem desenvolvera grande afeição. A criada se tomara de amores por ela. Sabia bajular e dar ordens como uma mãe zelosa.
Betsy apressou-se a pegar toalhas e arrumou um biombo em volta da grande banheira de cobre.
- Tomei banho ontem - Gabrielle protestou, desanimada.
- Mas está cheirando mal - Betsy garantiu, sem se voltar e testou a temperatura da água com o cotovelo.
Gabrielle levantou o braço e inspirou.
- Só um pouco. - Lembrou-se para não sacudir os ombros. - Foi a senhora quem passou o ungüento em mim. Posso não estar perfumada, mas minha pele está suave
como a de um bebê. E meus calos estão sumindo graças ao linimento de óleo de peixe de cheiro horrível.
- Agora que Sua Alteza voltou, não vai querer sua pupila exalando odores como se fosse uma barrica de pescado.
Betsy aproximou-se de Gabrielle e, sem a menor cerimônia, arrancou-lhe as roupas. Avaliou a pele nua como se estivesse selecionando um ganso para o jantar
de Natal.
- Muito bom, muito bom. As cicatrizes estão sumindo. - A criada ajudou-a a entrar na banheira. - Usaremos o ungüento apenas na hora de dormir. Mas na hora
das abluções matinais, terá de lavar-se muito bem.
- Eu não poderia ao menos passá-lo nas mãos? - Gabrielle estendeu-as. - Veja, estão macias e brancas como um linguado.
- E também cheiram como um. Não insista. Só poderá usar a pomada na hora de dormir.
Durante alguns minutos, Gabrielle permitiu-se aproveitar as delícias do banho perfumado.
- Ele está muito mal-humorado.
- Quem?
- O inglês.
Betsy franziu o cenho.
- O duque - Gabrielle corrigiu-se.
- Milorde nunca perde a calma - Betsy garantiu. Gabrielle lembrou-se das ocasiões em que o vira extremamente feroz.
Betsy ajudou-a a sair da água, embrulhou-a em uma toalha grande, sentou-a na cama e tornou a examinar os ferimentos.
Gabrielle observou-a. A criada devia ter mais de quarenta anos e, sob a touca, notavam-se cabelos grisalhos. Todos a respeitavam e ela se orgulhava de ter
ajudado no nascimento do duque quando ainda era menina. Não admitia que se dissesse uma palavra contra ele e só aceitava ordens de milorde. Era uma devoção cega.
- Por que a senhora diz isso? - Gabrielle perguntou, de maneira inofensiva.
Betsy, satisfeita com o estado da jovem entregue a seus cuidados, deu-lhe um tapa carinhoso nos quadris e ajudou-a a se vestir.
- Eu gostaria que milorde perdesse a paciência. Há muitos anos ele não demonstra seus sentimentos verdadeiros. Betsy abotoou as costas do corpete.
- Não entendo o que a senhora quer dizer. A criada suspirou.
- Houve um tempo em que ele era como qualquer um de nós. Ele se transformou quando perdeu a madrasta e a irmã.
- O que aconteceu com elas?
Betsy pegou a toalha molhada e pôs o quarto em ordem.
- Ele foi para a França em 1792 para trazê-las de volta. As duas foram assassinadas durante os massacres das prisões. Eu não o reconheci quando voltou para
Dunraeden. Nunca mais sorriu nem perdeu a paciência. Voltou a ser como era quando garoto.
- Como era?
- Solitário. Não demonstrava emoções. - Betsy fez um relato comovido de fatos da infância de Cam.
Gabrielle esqueceu-se do homem que a raptara. Imaginou um menino pequeno, sem mãe, com pai ausente e criado por estranhos. Comparou com a própria infância
onde sobrava carinho.
- O pai dele deve ter sido um homem muito cruel - Gabrielle comentou.
- Creio que suas atitudes egoístas não foram propositais. E tudo mudou, quando ele tornou a casar-se.
Gabrielle escutou com admiração a descrição das alegrias que a madrasta de Cam trouxera para Dunraeden.
- Ela deu ao enteado um macaco de presente?
- Isso mesmo. E o animal quebrou a reserva de milorde. O danado era tão matreiro que parecia humano. Chamava-se Lúcifer. Nome bastante adequado. Milorde
perseguia o bicho o tempo inteiro. Eles brincavam como se fossem duas crianças. E cometiam inúmeras diabruras.
- E isso foi bom? - Gabrielle sorriu.
- Ah, foi. Meninos devem ser meninos e não modelos de boas maneiras.
- Não consigo imaginá-lo como uma criança travessa. Betsy suspirou.
- Depois da morte da madrasta e da irmã, os anos de alegria foram apagados.
Gabrielle supôs o que o duque teria sofrido, comparando o fato com a perda dos próprios pais. Ela tivera Goliath e Mascaron para suprir a lacuna e o duque
ficara sem ninguém.
Imaginou que tipo de homem o duque teria sido se as circunstâncias de sua vida houvessem sido diferentes.
- A senhora gosta muito dele, não é?
- Gostar não é a palavra exata. Eu desejo o melhor do mundo para ele. Ela era sua tia, não era?
Gabrielle não entendeu.
- Quem?
- A madrasta de milorde. Mademoiselle tem o mesmo sobrenome.
Gabrielle arrumou os cabelos e evitou encarar Betsy.
- É, tenho. Mas eu não a conheci. - Envergonhava-se de enganar uma pessoa que só demonstrara bondade. Teria de fazê-lo para não arriscar a vida de Mascaron.
- Mademoiselle se parece com ela - Betsy afirmou, inocente e ajudou Gabrielle a pentear-se. - Sabe o que eu acho?
- O quê?
- Que mademoiselle poderia dar tantas alegrias a milorde quanto o macaco de sua infância.
Surpresa, Gabrielle nada respondeu e Betsy saiu do quarto.
Como era de se esperar, a aversão de Gabrielle pelo duque diminuiu com o relato - premeditado ou não - de Betsy. Era impossível não se enternecer com a
infância triste de um menino e com a catástrofe que o atingira quando jovem. Pensou em como seria quebrar a casca em que ele se envolvera.
Recriminou-se. O duque era seu inimigo e não tivera a menor consideração por ela. Seria uma tolice não tratá-lo da mesma forma.
Betsy voltou para avisá-la de que Sua Alteza a esperava na biblioteca. Gabrielle encontrou Lansing na galeria.
- Deus, não sei o que houve com ele. - Simon sacudiu a cabeça.
- Do que está falando?
- Não faça nada que não quiser, lembre-se disso. Eu a apoiarei em suas decisões, sejam elas quais forem.
Gabrielle alarmou-se.
- Simon, o que...
- Gabrielle!
O coração dela deu um salto. O duque estava na entrada da biblioteca.
- Venha cá! - Cam ordenou. - Preciso lhe falar.
- Será melhor ir logo - Lansing murmurou e passou por ela.
Gabrielle endireitou os ombros e desceu devagar, apoiando-se no corrimão da escada. Parou no último degrau. Louise Pelletier, transtornada, saiu da biblioteca,
passou por ela e subiu.
Gabrielle aproximou-se da porta e resistiu ao desejo de fugir. De queixo erguido entrou na sala, fechou o trinco e voltou-se para encarar o duque. Os olhos
dele ardiam a fogo lento, ao contrário do que todos afirmavam. Engoliu em seco e imaginou se não estaria imaginando coisas. Aquele homem nunca fora um menino. Ela
teria de pensar nela mesma.
- Sente-se -- Cam disse com rispidez.
Ela obedeceu depressa. Suas pernas não a sustentariam em pé por muito tempo. Cam acomodou-se atrás da mesa enorme e a tensão a abandonou.
O duque apoiou-se nos cotovelos e cruzou as mãos.
- Certas circunstâncias tornam imperativo o nosso casamento... o mais depressa possível.
Gabrielle não se surpreendeu. Desde o começo soube que existia um romance entre o duque e Louise Pelletier. Aguardou o final do pronunciamento.
- Mademoiselle não tem nada a dizer sobre o assunto? - Cam não pode deixar de divertir-se.
Gabrielle hesitou.
- Felicitações.
- A irreverência não combina com seu temperamento. Gabrielle sentiu-se pouco à vontade. Quando estava calma, podia conversar em inglês com bastante fluência.
Nervosa, perdia nuances de linguagem. .
- O que houve com Louise?
- Por favor. - O duque retesou-se. - Vamos deixar Louise fora dessa discussão.
O pedido agradou Gabrielle e ela esperou pelas próximas palavras de Cam.
- Naturalmente será um casamento de conveniência - ele afirmou.
Gabrielle já escutara que os ingleses seguiam costumes estranhos. E não seria ela quem consertaria o mundo. O problema não era seu.
- Depois de alguns meses será fácil conseguir uma anulação. - Cam aguardou um pronunciamento.
- Uma anulação seria... adorável. - Gabrielle nem pensava em discutir com ele sobre um fato para ela pouco significativo.
- Encontrei um sacerdote para oficiar a cerimônia.
- Um sacerdote - ela repetiu e procurou mostrar-se inteligente.
- Ele é da Igreja Anglicana. Na atual situação não importa a que doutrina pertence. Não acha?
- Claro. A Igreja Anglicana me parece a mais... apropriada. - A menos que Louise fosse católica. Mas isso era problema de Louise.
- Ele chegará esta noite. Tomei a liberdade de conseguir uma licença especial.
- Tão cedo? - Gabrielle perguntou por falta de outra coisa para dizer.
- Quanto antes, melhor. Como já lhe disse, o casamento terá de ser realizado imediatamente. - O duque fitou-a com o cenho franzido. - Não lhe interessa
saber o que houve?
- Não... para mim isso não significa nada.
O duque poderia casar-se com Louise, Betsy ou qualquer outra. Ela até o abençoaria. Felizmente ele não se estendera sobre as qualidades insuperáveis de
Louise Pelletier. Uma beleza incomparável, educação incomum e ótima origem. Não poderia explicar por que as lágrimas afloravam.
- Deverei vestir algo diferente para a ocasião?
O duque fitou-a de modo estranho, sacudiu a cabeça e pressionou uma das têmporas.
- Mas que jovem imprevisível! Não. Não precisa se trocar.
Gabrielle estava aliviada. Escapara de um sermão por haver perambulado pela propriedade na ausência do duque. Durante o jantar longo e silencioso convenceu-se
de que Lansing e Louise não haviam tido a mesma sorte. Para contrabalançar a sisudez reinante, Gabrielle esmerou-se nas boas maneiras.
Betsy veio buscá-la para a cerimônia. Gabrielle se deteve na entrada da capela. O duque e Simon estavam no altar, de costas para ela. Na frente deles, um
pastor com hábito negro.
- Onde está Louise?
- Foi embora - Betsy respondeu.
Gabrielle vira poucas igrejas por dentro. Na época da Revolução, elas foram fechadas. Sua fé, como tudo o mais em sua vida, viera de Goliath. Observou os
vitrais, o teto abobadado, as velas e as flores do altar. Betsy empurrou-a para a frente. Ela chegou ao altar e ajoelhou-se. Poucas vezes em sua vida sentira a presença
Divina. Queria rezar, mas as palavras não lhe ocorreram.
O sacerdote ergueu-a, sorriu e uniu as mãos dela e do duque.
- Meus amados...
Tarde demais, Gabrielle deu-se conta do que estava acontecendo.
- Por que milorde casou-se comigo? - Furiosa, Gabrielle andava a passos largos de um lado a outro na frente de Cam. A aliança pesava como chumbo. Não podia
acreditar que o enlace houvesse sido realizado com seu consentimento.
Para satisfazer as aparências, ela fora instalada em um aposento contíguo. Cam se espantara ao ser convocado para comparecer aos aposentos dela.
O duque olhou para o retrato de Héloise de Valcour pendurado sobre o consolo da lareira. Sorridente.
Paciente, ele enumerou os eventos que haviam culminado no casamento. Gabrielle, naquela altura, a duquesa de Dyson, parecia uma fera enjaulada. Cam não
pôde deixar de lembrar-se da pele bronzeada e macia, das pernas bem torneadas.
- Entendo que milorde salvou seu pescoço com esse casamento apressado. Mas e meu avô? - Gabrielle se deteve diante dele.
- Procure raciocinar. Quando transpirar a notícia de que a neta de Mascaron está na Inglaterra e Charles Fox quiser apanhá-la, todas as atenções se voltarão
para seu avô. Ele não apenas se tornará inútil para meus propósitos, como a vida dele não valerá mais nada.
- Por que usou meu nome verdadeiro na cerimônia. Por que não usou Valcour?
Cam se fizera a mesma pergunta e não encontrara resposta.
- Betsy, Lansing è o sacerdote manterão segredo. Gabrielle fitou-o descrente.
- Acha mesmo que eu a queria como esposa? Ora, já lhe disse mil vezes que esse é um casamento de conveniência. Assim que sua utilidade terminar para mim,
o matrimônio será anulado.
Gabrielle entendia por que o duque voltara tão revoltado de Londres. A necessidade do enlace devia tê-lo enojado. Engoliu em seco.
- Sinto muito por Louise.
- Deixemos Louise fora de nossa conversa. - O problema já fora resolvido.
- O que ela sabe? - Gabrielle insistiu.
- Nada. Por favor, não falemos de Louise.
- Milorde não lhe disse nada? Como pôde ser tão cruel?
- Cruel? - Cam espantou-se.
- Não lhe explicou que em alguns meses ficaria livre para casar-se com ela?
- Casar-me com Louise? Ficou louca?
- Mas eu pensei...
- O que foi que pensou? Gabrielle não precisou responder.
- Nunca me passou pela cabeça me casar com Louise. Entendeu?
Gabrielle negou com um gesto de cabeça e estremeceu.
- Gabrielle?
- Perdoe-me. Isso não é de minha conta. Em quanto tempo poderei voltar para a França?
- O quanto antes, melhor.
- Ainda bem que nós nos entendemos. Cam levantou-se.
- Durma bem, duquesa. - Ele foi para seu quarto, murmurando uma imprecação.
Demorou uma hora-e custou meia garrafa de conhaque até ele se acalmar. Não saberia explicar por que o desapontamento o atormentava. Tudo saíra melhor do
que o esperado. Gabrielle concordara com seus planos sem nenhum protesto. As tentativas de convencimento em contrário tinham vindo de Lansing e Louise.
A conversa com Lansing começara de maneira afável. Cam relatara os detalhes do encontro com o príncipe de Gales em Londres e eles haviam tentado descobrir
como os cavalheiros haviam descoberto o rapto de Gabrielle.
- Só pode ser alguém que esteve a bordo do navio - Lansing concluiu. - Infelizmente a maioria dos homens já se dispersou. Alguns voltaram para a França
com outros trabalhos.
- Meus homens são de confiança. Não costumam levar histórias adiante - Cam afirmou, convicto.
- Na maior parte das vezes. Mas...
- Mas o quê?
Lansing fitou o amigo com franqueza.
- Alguém pode ter se desgostado com milorde. Quando trouxe Gabrielle a bordo, ela se encontrava em péssimo estado.
Cam enrubesceu e tossiu para disfarçar.
- Não foi por minha culpa. Gabrielle se jogou do penhasco.
Em todo caso eu gostaria que milorde fizesse perguntas, discretamente é claro, para ver o que será possível descobrir. Enquanto isso ficamos com um problema.
O que fazer com Gabrielle?
Droga de Lansing, Cam refletiu e estirou para a frente as longas pernas. Fechou os olhos e lembrou-se da cena da biblioteca. Seria capaz de esquecer o choque
que o acometera com a sugestão de Simon? Ele tivera a coragem de oferecer-se para solucionar a situação imprevista. Casar-se com Gabrielle de Brienne!
- Sei que ela o agrada. - Cam entendeu o ridículo do próprio tom de acusação.
- Se é um pecado - Simon sorriu -, assumo a culpa. E se não estou enganado, Gabrielle não tem nenhuma aversão por mim.
- Simon - o duque procurou manter a calma -, isso está fora de questão.
- E por quê?
- Por que eu não quero.
Seguiu-se uma discussão acalorada e Cam manteve-se inflexível.
- E por que tem de ser milorde? - Lansing quis saber. - Será que está apaixonado por ela?
Cam deu um sorriso irônico.
- Exatamente o contrário. Tenho de me casar com Gabrielle por não estar apaixonado por ela. Gabrielle o dominaria por inteiro, Simon.
Eles haviam se separado de mau humor e com semblante carrancudo, mas Cam não pretendia desistir. O homem que pusesse uma aliança na mão de Gabrielle teria
de dar as cartas.
Naquele jogo as apostas eram altas demais e não poderiam envolver um terceiro personagem. Se Simon viesse a tornar-se marido de Gabrielle, acabaria por
estragar os planos. Intolerável!
Depois da conversa com Simon, o duque fora para a biblioteca onde Louise o aguardava.
Frio, sem se exaltar, dera a Louise uma versão sem muitos detalhes das circunstâncias que o obrigavam a se casar com Gabrielle. Explicara que seus inimigos
ameaçavam arruinar sua carreira política se não agisse de maneira correta com a jovem francesa.
Louise empalidecera e começara a gaguejar.
- Não... oh, não! Diga que isso não é verdade!
- Infelizmente é. Tenho de fazer isso.
- Ela é sua pupila! Milorde nada fez de errado.
- Claro que não. Mas o sr. Fox e seus aliados não enxergam o caso dessa maneira. O sr Pitt pensaria como eles.
Cam, com olhar semi cerrado observou-a afastar-se. E quando ela se virou, arfava.
- Não acredito que milorde se casará com ela! - Louise forçou uma risada e sacudiu a cabeça. - Não está pretendendo dizer que fará dela a sua duquesa, está?
- Estou.
- Ela o fará cair no ridículo!
Cam nada disse e ergueu as sobrancelhas. Louise descontrolou-se.
- Gabrielle é uma selvagem estouvada! Nunca encontrei uma jovem desse tipo. Nada pude fazer com ela. O linguajar que emprega! A maneira como se comporta!
O cheiro dela é suficiente para esvaziar um salão inteiro.
- Simon não compartilha de sua opinião. Mas isso não vem ao caso. Eu lhe disse que pretendo me casar com Gabrielle. Estou cumprindo meu dever. Não vou discutir
com ninguém as qualidades de minha futura esposa.
Louise hesitou diante das palavras ditas de maneira a não aceitar contestação. Se não agisse com cautela, acabaria por perdê-lo. Sorriu debilmente.
- Perdoe-me. Quando entrei nesse quarto a última coisa que pensava escutar era que milorde pretendia se casar. Fui tomada pela surpresa.
O sorriso de Cam não alcançou os olhos.
- Nas atuais circunstâncias, é impossível para a senhorita permanecer em Dunraeden - Cam afirmou com rudeza.
Louise controlou-se ao máximo para esconder o ódio que a consumia.
- Farei o que milorde achar melhor.
A solução encontrada foi Louise deixar o castelo naquele mesmo dia em um fiacre alugado para que o escândalo não alcançasse as núpcias do duque. Apenas
uma coisa aplacou o desapontamento de Louise. A evidência de Cam entrar em um casamento de conveniência, sem nenhum envolvimento amoroso. O lugar de Louise na vida
dele estaria garantido. O que lhe deu coragem para fazer uma pequena sugestão.
- Tenho amigos em Falmouth que não vejo há anos. Tinha intenção de visitá-los ao término da temporada. Antes de milorde me pedir que viesse a Dunraeden.
Se milorde não se importar e não lhe causar inconvenientes, eu gostaria de ser levada até uma estalagem decente em Falmouth. Lá poderei encontrar a residência de
meus amigos.
Falmouth ficava a poucas horas de Dunraeden. A ligação entre eles poderia continuar sem interrupções. Se ela voltasse para Londres, poderia levar semanas
ou meses até Cam voltar a encontrar-se com ela.
O duque ficou em silêncio por alguns minutos.
- Por que não? - ele perguntou mais para si mesmo. - Não tenho intenção de dar ordens arbitrárias a respeito de sua vida. Pense um pouco, minha querida.
Tem certeza de que não se aborrecerá em Falmouth? As lojas e os entretenimentos não são aqueles a que está acostumada.
Cam não deixou claro se pretendia ou não se encontrar com ela.
- O círculo social de meus amigos é tudo o que desejo - ela respondeu, cerrando as pálpebras. E o assunto foi encerrado.
Cam lembrou-se da conversa e tornou a encher com conhaque o cálice vazio. Pensou em tudo o que Louise dissera a respeito de Gabrielle. Tivera vontade de
estrangulá-la pelos comentários venenosos. O que não deixava de ser ridículo. A opinião de Louise não divergia muito da sua. Gabrielle não era civilizada e estava
muito longe do padrão exigido para uma duquesa. E era óbvio que não gostava dela.
Tomou um gole e voltou a sentar-se na poltrona estofada de brocado. Fechou os olhos. Havia ocasiões em que Gabrielle não parecia estar totalmente imune
à sua presença. Se isso fosse verdade, ela se esforçava para ignorá-lo da mesma forma como ele agia em relação a ela. Descerrou as pálpebras e inalou profundamente.
Deixou o cálice sobre a mesa e levantou-se. Foi até o quarto adjacente. Hesitou por um momento antes de abrir a porta e entrar.
Uma vela solitária ardia no castiçal. Gabrielle dormia. Os cabelos espalhados no travesseiro e um braço caído na beira da cama. Parecia um anjo. Cam fechou
a porta e deu alguns passos à frente. Inalou o perfume de lilases que pedira a Betsy que deixasse no vaso.
Achou estranho e tornou a inspirar. Peixe! Poderia jurar que se tratava de linguado. Fitou Gabrielle e cerrou os dentes. Levantou a mão largada até o nariz.
O cheiro de pescado quase o fez vomitar. Ela fizera aquilo de propósito!
Largou a mão de Gabrielle como se fosse ferro quente e saiu apressado. Não havia necessidade de ir tão longe para afastá-lo. O duque de Dyson nunca levara
nenhuma mulher à força para a cama. As mulheres o procuravam. Nunca tivera de correr atrás delas!
Mulher? Sua esposa não passava de uma criança birrenta. Ficou feliz ao lembrar-se que uma mulher de verdade o aguardava de braços abertos não muito longe
dali. Vestiu-se e saiu.
Em menos de meia hora estava a caminho de Falmouth.


Capítulo VI

Na rua Richelieu, perto da St. Honoré, dois cavalheiros tomavam clarete no pavimento superior de um dos cafés que proliferavam na área. Um deles era Joseph
Fouché, antigo ministro de Polícia de Bonaparte. O outro, Gervais Dessins, era um de seus mais novos recrutados. Discutiam os últimos acontecimentos de Londres,
onde Dessins atuava. Em particular, falaram sobre o debate ocorrido entre Fox e Pitt há algumas semanas.
- Um discurso estranho para quem sempre defendeu os interesses da França - Fouché observou tendo nas mãos o texto do discurso de Fox. - Poderia até se acreditar
que o sr. Fox mudou de lado.
Dessins esticou as longas pernas. Fouché admirou a elegância do subordinado. Dessins era um homem atraente e não muito fiel com as mulheres. O que em nada
o depreciava. Ele reunia com facilidade informações a respeito dos mais altos escalões da aristocracia inglesa. Poucas portas lhe eram fechadas. Angariava confiança
e simpatia com facilidade. Dessins era um ator profissional e nunca pensara alçar a posição em que Fouché o colocara. Seu único defeito era não ser dotado de acuidade
política. O que também não importava. Seus agentes reuniam informações. A interpretação dos fatos ficava por conta exclusiva dele.
Apesar disso divertia-se em pedir opiniões, as quais não tinha intenção de seguir.
- O que achou disso? - Fouché levantou as folhas.
- Pareceu-me um discurso criterioso - Dessins respondeu. - Pode-se notar, monsieur Fouché, que ele expressa sentimentos favoráveis à França. E na atual
conjuntura inglesa, ele foi muito ousado.
- Acho que ele disse muito pouco.
Dessins fitou o superior de esguelha. Fouché era um homem sutil. Atrás da fisionomia ascética, escondia seus pontos de vista.
- Na minha opinião, o sr. Fox continua com as mesmas idéias de sempre.
- Por acaso o senhor foi admitido no seu círculo de amizades?
- Não precisamente. Mas posso dizer, sem presunção, que me incluo entre os homens em que o sr. Fox confia.
- O primeiro-cônsul ficará satisfeito em saber disso. - Fouché serviu mais vinho ao companheiro. - Fez muito bem de ter granjeado a simpatia do sr. Fox.
Devo confessar que mandei dois de meus melhores agentes para a mesma missão. O senhor foi o único que conseguiu mais do que um conhecimento fugaz com o homem. Como
se deu isso?
Dessins tomou um gole de clarete.
- Prestei um pequeno serviço para o sr. Fox.
- E?
- Não é segredo para ninguém que o sr. Fox nutre uma forte antipatia pelo duque de Dyson.
- E vice-versa. Encontrei o duque durante as negociações de paz. Uma pessoa interessante. Continue.
- Dyson tem uma amante. Louise de Pelletier. Pelo que eu soube, ela foi para a Inglaterra não para fugir da Revolução, mas para ficar rica. Fiz amizade
com mademoiselle Pelletier. Ela me contou, era sigilo, que Dyson estava trazendo uma pupila da França chamada Gabrielle de Valcour. O senhor a conhece?
- O nome não me é estranho. E depois?
- O sr. Fox se mostrava esquivo. Digamos que eu não tivesse nada a perder seguindo meu instinto. Levei Louise Pelletier até a propriedade de Dyson e depois
fui para Falmouth que fica a poucas horas do castelo. Cansado de esperar, pensava em desistir e voltar para Londres, quando a fragata ligeira de Dyson apareceu.
Um belo navio, diga-se de passagem. Está ancorado em Falmouth.
- Então?
- Um golpe de sorte.
Dessins sorriu e começou a descrever o que acontecera na taverna de uma velha hospedaria de Falmouth. O camareiro de Dyson falava demais. Apesar de adorar
o duque, acabara contando que a pupila viera contra a vontade e que se machucara na luta para não ser agarrada.
-Ela é prisioneira na fortaleza de Dyson.
- O rapaz confiou no senhor para contar-lhe tudo isso?
- Claro. Eu me transformei em um devoto dos Bourbon sem nenhuma simpatia para com uma jovem tola que não reconhecia a boa sorte de contar com a Inglaterra
como santuário.
Cheguei a ponto de acusar o cavalheiro de ser muito clemente com a pupila. A defesa do garoto foi mais de que eloqüente. Ele me revelou muito mais do que
eu precisava saber.
- Tudo o que me revelou é muito interessante. Mas como o senhor conseguiu fazer o sr. Fox interessar-se pelo assunto?
- Eu mesmo fiquei admirado. Voltei para Londres no mesmo dia. Escrevi para o sr. Fox e relatei o que havia descoberto. Tomei o cuidado para revestir minhas
palavras com alguma indignação: Por mais que eu deplore os acontecimentos recentes na França, lamento ver uma compatriota tratada com tão pouco respeito e dignidade...
e assim por diante. Fox mandou me chamar no mesmo dia para que eu pudesse fazer um relato completo das circunstâncias que envolveram o rapto da jovem. Ficou muito
agradecido pelo que lhe contei. Desde então passei a fazer parte de seu rol de amigos.
Fouché franziu a testa.
- Para que o sr. Fox queria as informações que o senhor lhe passou?
- Não poderei lhe dizer. Ele não me revelou. Mas aconteceu algo estranho... -
- Sim?
- Logo depois, Dyson casou-se com sua pupila. Apareceu o anúncio nos jornais e Fox ficou muito descontente.
- Verdade? E como ficou sabendo do descontentamento? - Fouché escondia a custo a impaciência. Dessins era muito lento e não adiantava apressá-lo.
Dessins fitava os entalhes do consolo.
- Eu estava lá quando Fox leu a notícia no Gazette.
- Onde exatamente o senhor estava?
- Ah? No Brooks. Em um dos clubes masculinos. Uma fortaleza whig. Embora a cuisine deixe muito a desejar, a companhia...
- Sim, sim. Entendi. Descreva apenas como foi que o sr. Fox manifestou o aborrecimento em relação às núpcias do sr. Dyson.
- Pelo que me lembro, ele atirou o jornal em cima da mesa e praguejou: Droga de homem! Nunca esperei que ele fosse tão longe! Mas ele ainda vai ouvir falar
de mim, Sherry.
- Sherry?
- Richard Sheridan, o dramaturgo.
- Interessante. E o que o senhor concluiu de tudo isso?
- Pareceu-me que Fox desejava complicar a vida de Dyson e o duque saiu na frente.
- Brilhante - Fouché murmurou com um sorriso benévo-lo. - Descubra o que puder. Acredito que vale a pena continuar a amizade com Louise Pelletier. Ela poderá
nos ser útil de alguma forma. - Consultou o relógio. - Está na hora de sua entrevista com o primeiro-cônsul. Ele está ansioso para escutar as suas boas novas.
Fouché evitou rir diante do sorriso presumido de Dessins. Não era para menos. Bonaparte expressara o desejo de encontrar-se pessoalmente com o agente que
conseguira tornar-se íntimo do sr. Fox. O primeiro-cônsul esperava que, no caso de a França invadir a Inglaterra, Fox lhe daria apoio. O que era uma idiotice. Nenhum
inglês, em sã consciência, defenderia Napoleão em caso de invasão armada.
Mas isso seria um problema para Talleyrand, ministro de Relações Exteriores, resolver. Ele frustrara um segundo golpe contra a vida do primeiro-cônsul,
baseando-se em informações recebidas da Inglaterra.
Fouché imaginou quem poderia ser o informante e suspeitou de Fox. Seus agentes haviam descoberto que Talleyrand e Fox mantinham uma correspondência clandestina.
Fox era um enigma. Não aprovava Bonaparte. mas também não o queria assassinado. Isso poderia ter algo a ver com o código de honra dos cavaleiros tão louvado pelos
ingleses. Um raciocínio com pouca lógica.
- Iremos juntos às Tulherias. - Fouché suspirou e se levantou.
Nos portões do palácio eles se separaram. O novo ditador da França instalara-se nas Tulherias, a imensa residência antes ocupada pelos Bourbon. Fouché não
refletiu na ironia da situação, preocupado com as informações de seus agentes que lotavam sua mesa. Há semanas pedira uma investigação sobre a família Valcour na
França e perguntara a seu amigo Mascaron a respeito do convidado do castelo de Vrigonde durante as malfadadas negociações de paz.
Por uma das janelas compridas de seu gabinete, Mascaron observava os campos ao sul. A imagem de Gabrielle continuava viva em sua mente, com o som de seu
riso e o perfume de seus cabelos.
Gabrielle fora raptada há dois meses. Sessenta dias de buscas secretas e inúteis. Os raptores sabiam que ele estava de mãos atadas. Não ousara pedir ajuda
a nenhuma autoridade, muito menos a Fouché, seu amigo de tantos anos.
O mais estranho fora Fouché ter vindo procurá-lo com perguntas sobre Dyson. Não podia acreditar na existência de dois raptos simultâneos e nada dissera
a Fouché sobre Gabrielle. Limitara-se a explicar que Dyson mencionara a idéia de tirar da França uma jovem parente cujo nome não lhe fora dito. Esperava que Fouché
não houvesse desconfiado da verdade.
O ódio lhe corroía o coração. Dyson. Jamais teria suposto que o raptor de Gabrielle fosse seu hóspede e que pertencesse à aristocracia inglesa. Logo os
ingleses, tão zelosos de seu rígido código de honra! Imaginara que os idealizadores pudessem ser monarquistas franceses que passavam informações aos ingleses.
Como pudera ser tão cego! Enquanto mandava investigar todos os cantos de Tosny a Paris, Dyson levara Gabrielle a bordo de um navio ancorado diante de Vrigonde.
Dyson não o enganaria mais! Agora estava na posse de um nome, de um local e das origens do plano.
O mais importante era não esperar até que as forças armadas dos dois países resolvessem seus. problemas. Isso poderia demorar meses, anos até. Mascaron
não queria se arriscar. Fouché teria tempo e oportunidade para descobrir a verdade. Ele era seu amigo, mas também um homem ambicioso. Faria qualquer coisa para retomar
o posto de ministro de Polícia! Nessas circunstâncias, a amizade não seria levada em conta. Mascaron não se preocupava com ele próprio, mas sim com Gabrielle.
Passou a mão nos olhos, sem conter a emoção. Sentia-se incapaz. Para executar seu plano, seria forçado a depender de outros. Não poderia abandonar o Ministério
da Marinha para não despertar suspeitas. Soubera que estava sendo observado pelos raptores de Gabrielle. Fouché iniciara uma investigação a respeito de Dyson. O
tempo passava depressa. Teria de agir sem demora.
Um barulho leve interrompeu-lhe o raciocínio. Goliath estava parado na porta. Impossível ler os pensamentos do normando. Convivia com Goliath há mais de
uma década e eles ainda eram estranhos um para o outro. O único elo entre os dois era Gabrielle. Ele não confiaria a segurança da neta para ninguém mais.
- Tudo pronto? - Mascaron foi até sua mesa.
- Partirei esta noite.
- Ninguém deve suspeitar...
- Ninguém saberá de nada.
Eles se entreolharam em silêncio durante alguns momentos e Mascaron suspirou.
- Não tenho nada mais para lhe dizer, Goliath... a não ser boa sorte e desejar que a traga de volta para nós.
- É o que pretendo fazer, senhor.
Os dois homens refletiam sobre o mesmo tema. A fortaleza de Dunraeden era praticamente impenetrável.
As semanas seguintes ao casamento transcorreram em uma rotina curiosa. Para o mundo, Gabrielle se tornara a duquesa de Dyson, senhora de Dunraeden. Ao mesmo
tempo, não deixara de ser prisioneira. Seus passos eram controlados pelas sentinelas que se postavam nas muralhas e nas entradas. O duque afirmava que a vigilância
evitava a aproximação de esquadras invasoras pelo canal. Gabrielle resolveu testar a assertiva. Uma noite escapou até a capela. Em meia hora, foi descoberta em seu
esconderijo.
- No púlpito? - Cam estreitou os olhos?
- E por que não? Entalhar é meu passatempo favorito. Os trabalhos em madeira da capela são extraordinários. Não resisti à vontade de vê-los de perto. Espero
não ter cometido nenhuma transgressão. - Gabrielle encarou-o com franqueza.
- Claro que não, minha querida. - Cam acariciou-lhe o rosto. - Este é seu lar e milady tem liberdade para ir onde quiser. Mas nesses tempos perigosos, seria
prudente manter-me informado de seus movimentos. Estamos entendidos?
- Perfeitamente. - Ela conteve o ímpeto de desfiar uma parte das imprecações que conhecia.
Cam se comportava de maneira serena. Não erguia a voz nem perdia a paciência. Mas por baixo daquela superfície, Gabrielle sentia emoções imprevisíveis prontas
para explodir.
Apesar daquela civilidade, ela o temia como nunca. Depois do casamento, não houve nenhum tipo de ameaça. Pelo contrário. O duque a tratava com deferência
e fazia o possível para tornar-lhe a estadia satisfatória. De acordo com Betsy e Simon, ele era um modelo de virtudes.
Os dois eram uma fonte inesgotável de histórias sobre seu marido. Gabrielle escutava em silêncio, sem conceder-lhes muita confiança. Era difícil reconhecer
uma pessoa de tantas qualidades num homem frio e insensível como o duque. Eles lhe explicaram que a mudança se dera quando ele fora para a França em busca da mãe
e da irmã. Uma conclusão ocorreu a Gabrielle. Por ter perdido as duas na Revolução, Cam odiava tudo o que se referisse à França.
Gabrielle sentia tensão quando ele se aproximava. Felizmente Cam procurava manter distância e mantinha-se ocupado com seus afazeres. Mas fazia questão que
ela desempenhasse corretamente sua parte no acordo. O papel de duquesa. Gabrielle afirmara que não havia necessidade de tanto esforço, pois sua presença no castelo
não seria demorada. Cam dera de ombros e dissera que essa atitude era a esperada por todos.
- Despertar suspeitas poderia criar um clima de antagonismo, se milady insistir em comportar-se de outro modo - explicara ele.
Gabrielle não pôde deixar de dar-lhe razão. Todos, exceto Cam e Lansing que sabiam da verdade, consideravam-na a mais afortunada das jovens. O duque a salvara
de uma vida miserável e ainda a honrara com um título. Seria inconcebível querer escapar desse destino. As sentinelas e a vigilância nada mais, eram do que medidas
de proteção para sua vida. Ninguém poderia garantir que os pusilânimes franceses não tentariam levá-la de volta. Depois do episódio da capela, todos passaram a creditar-lhe
um grande descuido com a própria segurança. Apesar da suspeita de que não se tratava de um casamento por amor, estavam certos de que o duque fora magnânimo e esperavam
que Gabrielle correspondesse às expectativas.
Aos poucos Gabrielle passou a sentir-se mais à vontade com os habitantes de Dunraeden, excluindo-se o duque. Os servos se esmeravam no atendimento. Betsy
e Simon tratavam-na como uma verdadeira duquesa. Ela, porém, não esquecia de que era uma prisioneira que teria outra vida assim que retornasse à França.
As semanas se passavam sem nenhuma referência à sua libertação e Gabrielle passou a pensar mais seriamente em uma tentativa de fuga. Mas como atravessar
o canal, mesmo se conseguisse ultrapassar as muralhas? Somente se embarcasse como clandestina em algum navio. Na região havia contrabandistas. Simon deixara escapar
que eles se reuniam nas cavernas dos rochedos. Era provável que contrebandiers fraíiceses cruzassem o canal rumo à Cornualha. Seria preciso estudar as possibilidades.
Sob a tutela de Betsy, ela conhecera todos os recantos de Dunraeden. Aposentos, salas, corredores e porões. Familiarizara-se com os móveis, cortinas e papéis
de parede. Entretanto a sala de armas permanecia trancada e à chave, em poder do duque. Sem desanimar, Gabrielle resolveu aproveitar-se de um erro crasso na estratégia
de Cam. O quarto da duquesa não era revistado. Ela escondera sob o colchão uma faca de entalhar, um traje de rapaz e uma corda de cânhamo. Chegara a hora de testar
a primeira parte do plano.
Escolheu o momento com cuidado. Durante os meses de confinamento descobrira que o conde passava algumas noites fora do castelo. Nessas ocasiões, depois
de retirar-se para dormir, Gabrielle o escutava dispensar o criado de quarto e sair. Voltava ao amanhecer. Ela não suspeitara que as ausências fossem por algum encontro
amoroso. Ela o conhecia como espião. Era de se esperar que espiões mantivessem reuniões na calada da noite.
Chegou a pensar que o marido desistira das atividades noturnas. Até sua paciência ser recompensada.
Em seu quarto, ela permanecia acordada, pensando na altercação daquela tarde. Cam a chamara na biblioteca e lhe dissera para copiar uma carta para o avô.
Sem novidades. As cartas eram levadas a intervalos regulares para assegurar a Mascaron que a neta estava viva, com saúde e ainda em poder de seus raptores. Daquela
vez Gabrielle se enfurecera.
- Já faz mais de dois meses que Vossa Alteza me trouxe para cá!
- O que tem isso? - Cam cruzou os braços na altura do peito.
Ela evitou observá-lo. Moreno, constituição atlética, lembrava um guerreiro medieval e era sem dúvida um homem muito atraente. Mas não a agradava o sorriso
irônico na boca sensual, o brilho sagaz nos olhos azuis nem o ar condescendente que adotava quando estavam a sós.
- Por quanto tempo ainda terei de permanecer em Dunraeden?
Cam levantou-lhe o queixo com a ponta do indicador.
- Já está aborrecida com a minha companhia? Uma esposa de apenas dois meses?
Gabrielle virou o rosto.
- Sou sua prisioneira.
- Que absurdo. Milady é a minha duquesa, a dona do castelo. Não lhe falta nada. Sabe quantas mulheres dariam o que possuem para estar em seu lugar?
- Ora, Alteza! Não tenho o menor interesse em ser sua duquesa.
- E eu acredito. Essa é uma tarefa que vai além de sua capacidade.
Gabrielle corou de ódio.
- Se Vossa Alteza se acha superior a mim, está muito enganado!
- Se compararmos suas ambições com as de um homem, concordo que haverá poucos concorrentes. Mas para uma mulher de verdade, Vossa Alteza ainda tem muito
a aprender.
Gabrielle pretendera apenas dizer que ambos eram semelhantes por nascimento.
- Visto as roupas escolhidas por milorde. Cuido de meu linguajar. Lorde Lansing afirmou que meu comportamento tem sido irrepreensível. Aceitei o papel que
milorde me destinou. O que mais Vossa Alteza deseja? - ela não entendia por que o desprezo de Cam a incomodava.
O duque levantou-se, ameaçador.
- Nada! Milady não passa de uma criança brincando de ser adulta. Agora escreva a carta como uma menina obediente.
Trêmula e furiosa pela injustiça, Gabrielle ficou em pé. Desde que chegara a Dunraeden esmerava-se para manter um comportamento exemplar em todos os sentidos.
De certa maneira e contra qualquer explicação lógica, vinha tentando conquistar a estima de Cam. Acabava de convencer-se de que tudo fora inútil. O duque a ridicularizara.
Seu esforço tinha sido em vão. O desgosto se transformou em ira. A cautela foi esquecida. Queria apenas mostrar-lhe quão pouco se incomodava com a opinião dele.
- Escreva de próprio punho essa... - procurou em seu vocabulário inglês a imprecação mais chocante - ... carta!
Com semblante feroz, Cam agarrou-a pelos ombros.
- Garanto que não usa esses termos com lorde Lansing! Será que ele desperta a mulher que se esconde atrás de tanta grosseria? Acha que não sei por que reserva
para ele seus sorrisos e suas palavras ternas? - Cam sacudiu-a. - Por Deus, Gabrielle! Esqueceu-se de que é minha esposa! Será melhor não dar a ele o que está me
recusando.
Espantada, ela não soube ao que atribuir aquele rompante. Cam soltou-a, afastou-se e passou a mão nos cabelos.
- Por favor, saia daqui antes que eu faça alguma coisa que traga arrependimento a ambos.
Gabrielle não esperou segunda ordem. Abriu a porta, segurou as saias e correu.
Em seus aposentos, alternou momentos de tristeza e raiva. Andava de um lado a outro, parava na beira da cama e continuava a jornada incessante pelo quarto.
Pegou uma das meias de seda que deixara no chão e rasgou-a em tiras.
Para uma mulher de verdade, Vossa Alteza ainda tem muito a aprender.
Milady não passa de uma criança brincando de ser adulta.
Torceu as tiras nas mãos como gostaria de fazer com o pescoço de Cam e foi até o espelho de báscula.
A jovem que a mirava do outro lado não era diferente das que freqüentavam os salões parisienses. Que injustiça! Ela se esforçara ao máximo para agir como
uma lady. Lansing a elogiara. Por que o duque a reprovara daquela maneira?
Ora, estava certa de que isso não lhe importava.
Será que ele desperta a mulher que se esconde atrás de tanta grosseria?
O que o duque pretendera insinuar? Será que ele não enxergava o busto e os cabelos longos?
Acariciou os seios e soltou os cabelos diante do espelho. Concluiu que o duque de Dyson devia ser cego. Ela era uma mulher como todas as outras. Lembrou-se
de Louise Pelletier, a mulher que sabia comportar-se como mulher, segundo Cam.
Assegurou a si mesma que isso também não importava. Triste, foi para a cama. Não deveria tentar ser o que não era. Chorou bastante e concluiu não saber
quem gostaria de ser.
Depois de algum tempo escutou o duque vir para o quarto contíguo e despedir o criado. Em segundos, ouviu uma batida na porta intermediária.
- Gabrielle?
Ela sentiu o coração bater em descompasso.
- Gabrielle? - Cam insistiu.
Ela ficou imóvel e em silêncio. Cam praguejou, bateu a porta do quarto e saiu para suas atividades clandestinas. Das outras vezes, ele evitara fazer ruídos.
Gabrielle esperou meia hora antes de sair da cama. Vestiu a roupa de menino e pegou o rolo de corda. Passou pelo espelho e reconheceu Gabrielle de Brienne.
- Mostrarei a ele quem é mulher de verdade! - ela resmungou e apagou as velas.
Como de costume, as portas do quarto estavam trancadas. Foi até a janela, sentou-se no parapeito e pôs-se em pé na saliência estreita de pedra que acompanhava
o muro oeste. Como sua janela dava para o pátio, teria de alcançar uma das torres de onde poderia lançar a corda. Passo a passo, costas pressionadas na parede, prosseguiu
até a torre oeste. Embaixo, sombras se moviam pelo pátio. Mas ninguém olhou para cima.
O pior momento foi quando ela se lançou sobre o parapeito da torre. Sentiu uma ruptura em sua grande agilidade. Poderia ser pela inatividade prolongada.
A verdade era, que, ao segurar-se na corda, experimentou todos os músculos e ossos do corpo repuxados, além da dor nas costelas. Não poderia arriscar-se. Se alcançasse
as rochas embaixo, não tinha certeza se conseguiria voltar. Reconheceu que precisava praticar mais. Contentou-se em ficar pendurada, apoiando os pés na parede.
Nas semanas seguintes, Gabrielle viu muito pouco o marido. Ele se levantava ao alvorecer e retornava depois de a esposa ter se retirado para seus aposentos.
Lansing procurava desculpá-lo. A propriedade era muito extensa e o duque passava a maior parte dos dias visitando arrendatários e supervisionando projetos de natureza
experimental.
Aquela situação agradou a Gabrielle. Ela não tinha a menor vontade de estar na companhia do duque. Betsy e os outros servos - repletos de noções românticas
- deviam estar desapontados com a falta de devoção do duque para com sua esposa. Paciência. Gabrielle lamentava apenas não contar mais com sua ausência noturna.
Por algum motivo que ela desconhecia, os encontros de espionagem haviam sido suspensos. Convencida de que, sem exercícios vigorosos, jamais conseguiria
atingir o outro lado dos parapeitos do castelo, resolveu arriscar-se em treinamentos noturnos. Cam nunca suspeitou de nada e com o correr das semanas, Gabrielle
exercitou-se ao máximo. Aos poucos voltava à agilidade primitiva. E também aos calos. Durante o dia, escondia as mãos. À noite, passava a pomada de Betsy que cheirava
a peixe.
Começava a sentir-se mais confiante na própria habilidade de controlar o destino. Não evitava sorrir quando via Cam. Logo estaria longe dele e de seu poder.
Nada mais a impediria.
Foi quando o duque a encontrou com Lansing. E tudo mudou.
Lansing não estava apaixonado por Gabrielle, contrariando a opinião de Cam. Simon preocupava-se com ela e comovia-se com seu destino infeliz. Por princípio,
era contrário ao emprego de inocentes em jogos perigosos. Depois de conhecer Gabrielle, arrependia-se de não ter dissuadido o duque daquele plano.
Não tivera intenções de ficar em Dunraeden. Era jovem, solteiro e sentia-se atraído pela vida agitada de Londres. No entanto, não tivera coragem de deixar
Gabrielle sozinha com o duque.
Confiava em seu amigo. Mas a rispidez que notara nele em relação à duquesa o incomodava. Tentara falar com o amigo a respeito, mas Cam encerrava o assunto
sem cerimônias.
Lansing nunca pensara em Gabrielle como a duquesa de Dyson. Era Gabrielle de Brienne, uma refém inocente que fora arrancada de casa e do convívio com os
seres amados. Convenceu-se de que não seria possível Gabrielle voltar à sua vida anterior como se nada houvesse acontecido. Na França, a idéia era de que ela se
afogara. Como voltar a Mascaron sem despertar suspeitas? No mínimo, sua reputação estaria arruinada.
Cam se casara com ela, mas o enlace seria anulado assim que Gabrielle perdesse a utilidade. Pela recusa de Cam em discutir o futuro de Gabrielle, tornava-se
cada vez mais evidente de que o duque não tinha nenhuma ternura pela jovem. Ele continuava a encontrar-se com Louise, porém com mais discrição. Era preciso agir
como um homem casado.
Só haveria uma solução possível. Para evitar o vexame de ser abandonada, Gabrielle teria de casar-se em seguida. Como Lansing fora um dos que raptara a
jovem, ele se convenceu de que faria o supremo sacrifício.
Com essa idéia em mente, Simon resolveu falar com Gabrielle. Um dos criados disse que ela se dirigira para a torre que ocupava anteriormente. Encontrou-a
sozinha, sentada no vão de uma das janelas, absorta na visão do canal da Mancha. Usava um vestido de musselina branca com fitas de cetim verde que a deixava com
aspecto frágil. Ensimesmada, só percebeu a presença de Lansing quando ele a chamou.
Gabrielle virou-se, bela e triste.
- Pensando em sua casa? - Lansing aceitou o convite para sentar-se no peitoril a seu lado.
A Normandia ocupava os pensamentos de Gabrielle. Imaginava onde Roland, o líder dos contrabandistas locais, estaria obtendo o suprimento de Calvados. Pensava
muito em Goliath e no que ele estaria fazendo. Lembrava-se de Mascaron com tranqüilidade. Sentia um nó na garganta ao recordar-se de Rollo, garboso no uniforme militar.
- Uma de nossas criadas estava para casar-se quando fui trazida para cá - Gabrielle comentou.
- Isso a deixa infeliz?
- Claro que não. Eu desejo a ela muitas felicidades. Minette conseguiu agarrar um de nossos jardineiros, um rapaz muito disputado pelas moças. - Gabrielle
amassava e desamassava as pontas das fitas verdes. - Como pode ser isso?
- Não entendi.
- Minette.
Lansing concluiu que os olhos grandes de Gabrielle pareciam duas esmeraldas.
- Até Rollo gostava dela. Afirmou que Minette era uma mulher de verdade. O que ele quis dizer com isso?
Lansing esforçou-se para não rir.
- Creio que ela devia gostar de flertes.
- O quê? Eu não gosto disso! - Gabrielle lembrou-se do beijo de Cam no castelo de Vrigonde e sentiu um calor estranho.
- Não gosta? - Lansing admirou-se. - Minha querida, em nossa sociedade o flerte é costumeiro. É uma habilidade que homens e mulheres bem-nascidos aprendem
e desenvolvem.
- Assim como atirar ou esgrimir? Lansing segurou o riso.
- De uma certa maneira, sim.
- E pode melhorar com a prática?
- Sem dúvida.
- Ah, Simon! Seria pedir demais para ensinar-me? Simon afastou uma ponta de constrangimento. Cam era um homem civilizado, inteligente e sensível. Não se
ressentiria com aquela brincadeira inocente. Além do mais, ele não estava no castelo.
- De maneira nenhuma. - Lansing sorriu. - Eu adoraria. Gabrielle suspirou, franziu os lábios e fechou os olhos.
- Ah, esse tipo de flerte. Gabrielle, nunca foi beijada? Ela abriu os olhos.
- Sim. E não gostei.
- Não gostou? Bem, isso é... uma tragédia! Deixe-me mostrar-lhe como o beijo pode ser agradável. - Simon abraçou-a. - Chegue mais perto.
Gabrielle obedeceu e inclinou a cabeça para trás. Os lábios de Simon roçaram os dela, frios como a neve.
- Abra a boca - Simon pediu.
- Eu não faria isso! - A voz de Cam quebrou o silêncio como um tiro de pistola.
Gabrielle e Simon se separaram com olhar de culpa. Cam entrou e os dois se puseram em pé.
- Cam! - Simon exclamou. - Pensei que estivesse examinando as sinalizações do rochedo.
- Por isso envolveu-se nesse agradável tête-à-tête
- Oh, não! Milorde, não faça interpretações errôneas. Eu estava apenas ensinando a arte de flertar para Gabrielle. Um treino para ela freqüentar a sociedade.
Cam fixou o olhar na esposa e Gabrielle não desfitava os sapatos. Lansing avaliou a situação constrangedora em que se encontrava.
- Milorde não gostaria de continuar com as lições, já que está aqui? - Lansing disfarçou o mal-estar. - Agora se me permite, tenho o que fazer.
Lansing fez uma mesura para Gabrielle, deu de ombros e saiu.
- Flertar? - Cam falou depois de alguns minutos e aproximou-se. Gabrielle não duvidou que ele estivesse irado.
- Lorde Lansing estava me ensinando a ser uma mulher de verdade.
Os olhos de Cam faiscavam.
- E o que poderíamos interpretar exatamente dessas palavras?
- Milorde sabe. - Gabrielle fitou a porta entreaberta.
- Tenha a bondade de refrescar minha memória.
- Milorde disse que eu jamais seria como Louise. E eu gostaria de ser como ela.
- Eu disse isso? Gabrielle anuiu.
- Milady deseja tornar-se uma verdadeira mulher? - Foi possível perceber traços de ternura nas palavras de Cam.
- Não sei. - Gabrielle ergueu os ombros. - Eu tive apenas uma lição, mas talvez eu não consiga aprender.
- Seria mais adequado solicitar as lições do marido.
- Milorde me ensinaria a comportar-me como mulher? - Gabrielle não escondeu as dúvidas.
Cam prendeu a respiração.
- Minha querida, essa é uma tarefa específica para um esposo. Eu teria o maior prazer em satisfazer sua vontade. - Ele aproximou-se. - Em que ponto havia
parado com Simon? Ah, sim. Abra sua boca para mim. - Cam segurou-lhe os ombros e Gabrielle sentiu o calor dele envolvê-la.
- Espere um pouco...
- Doucement - Cam sussurrou quando ela estremeceu. - Calma. É fácil e inteiramente indolor.
O duque beijou-lhe levemente o arco das sobrancelhas e as pálpebras. Gabrielle teve a impressão de que os lábios dele queimavam. Ele continuou a trilha
de beijos pelo queixo, lóbulos das orelhas, contorno do rosto e pela curva do pescoço.
- Por favor... - Gabrielle não continha a ansiedade. Cam beijou-lhe os lábios, doce e levemente. Gabrielle lembrou-se de uma brisa de verão.
- O que achou? - O duque afastou-se. Gabrielle abriu os olhos.
- Agradável. Fiz tudo certo?
Cam resmungou qualquer coisa ininteligível antes de beijar Gabrielle de novo. Dessa vez de maneira sensual. Com a impressão de estar flutuando, ela agarrou-se
nas lapelas do casaco dele para não cair. Depois imaginou ser levada para a profundeza das águas.
Cam, que só pretendera sentir o sabor de Gabrielle, não conseguia afastar-se. Durante semanas tivera de lutar para não perder o controle. Dissera a si mesmo
que havia uma centena de motivos para manter distância de Gabrielle. Nem mesmo conseguia explicar a atração por uma mulher tão diferente das que o agradavam. Uma
coisa era certa. Por causa dela, sua sensibilidade com as outras fora modificada.
Louise sentira algo diferente e insistira na suspeita de que havia outra mulher. Cam encontrara inúmeras desculpas para não vê-la. Uma mortalha descera
sobre o que anteriormente fora um relacionamento mais do que satisfatório. Louise era uma mulher sensual e experiente. Ela não fora culpada por seu desinteresse.
Admitiu que ficara deslumbrado com a paixão por uma jovem inocente. Imaginava-a como Eva, uma sereia ingênua rodeada de mistérios. Perigosa. Um anjo escarlate.
Agarrou-a pelos cabelos enquanto a beijava. Nunca desejara tanto uma mulher. Era desesperador. Não pôde predizer o que teria acontecido, se a houvesse encontrado
com outro homem que não Simon. Gabrielle lhe pertencia. Faria com que essa constatação se tornasse uma realidade. O beijo tornou-se mais intenso e a ansiedade ameaçava
sair fora do controle.
O desejo físico era uma novidade para Gabrielle. Apesar disso sentiu o risco. O duque era seu inimigo. Precisava fugir. Seu corpo não obedeceu ao comando
do cérebro. Sensações estranhas deixavam sua pele sensível e aceleravam sua circulação.
Cam levantou a cabeça. Teve certeza de que a possuiria com facilidade, independentemente do pânico que via mesclado ao desejo nos olhos verdes. E foi isso
que o fez encontrar forças para recuar. Tentou rir. O som pareceu-lhe esganiçado. Recriminou-se. Precisava de calma. Não podia alterar-se.
- Para uma noviça, milady saiu-se admiravelmente.
Gabrielle passou os dedos nos lábios quentes e fitou Cam, espantada.
- Com um pouco de prática, milady se tomará uma perita.

Capítulo VII

Cam admitiu que Louise Pelletier era incomparável. Tinha estilo, não discutia com ele, não tinha crises de ciúme, não o enganava. Na cama, sabia dar e receber
prazer. Muitos o invejavam, devia ser um louco. Estava ansioso para dispensá-la.
Ele abriu a porta da casa que alugara para ela na Church Street em Falmouth. Uma criada de bochechas rosadas e sorriso tímido pegou seu chapéu e suas luvas.
Foi até os aposentos de Louise.
- Querido. - Louise estava sentada junto à penteadeira.
No meio do quarto, uma banheira de cobre com água perfumada. Louise acabava de tomar banho. Ela era uma mulher fascinante, quer estivesse bem vestida ou
enrolada em uma toalha. O ambiente recendia a flores. Irritou-o pensar em Gabrielle.
Cam aproximou-se de Louise e beijou-lhe a boca. A bela dama encostou-se nele e envolveu-o em uma nuvem de gaze e renda rosa. Ele afastou-se um pouco e admirou-a.
Nada usava sob o déshabillé. A pele brilhava como cetim.
- Deve aborrecê-la muito ficar no meu aguardo - Cam murmurou e beijou-lhe os dedos.
Ela andou pelo quarto tocando nos objetos como se não os conhecesse. Um recinto que transpirava feminilidade. Exasperado, Cam tornou a lembrar-se de Gabrielle.
Louise voltou a escovar os cabelos.
- Nunca esperei que milorde ficasse à minha disposição.
- Um homem casado não dispõe de muitos momentos para si mesmo.
Louise arqueou uma sobrancelha e continuou com sua tarefa. Cam sentou-se em uma poltrona com arabescos dourados.
- Sinto muito, Louise, mas não poderei ficar. Tenho muitas coisas para fazer em Dunraeden.
- Quer saber de uma coisa, Cam? Milorde estava certo a respeito de Falmouth.
- É mesmo?
- Para ser sincera, venho me aborrecendo. - Era o mínimo que ela ousava dizer em relação ao abandono a que vinha sendo submetida.
- Isso não me surpreende. - Cam levantou-se, disposto a aproveitar a deixa. - Devo ser uma pessoa desagradável. Fico surpreso que tenha me suportado tanto
tempo.
Louise entendeu o rumo da conversa. As visitas do duque rarearam na proporção direta da diminuição de seu ardor. A ruptura parecia iminente. E como cavalheiro,
deixava para ela tomar a iniciativa.
- Muitos de meus amigos estão de partida para Brighton. Eu estava pensando em ir com eles.
- Essa seria uma ótima idéia. A presença do príncipe de Gales será motivo para muitas diversões. - Cam tirou um pequeno pacote do bolso e jogou-o no colo
de Louise. - Essa é uma compensação. Terei de ficar na Cornualha por algum tempo. Não sei quando poderemos nos encontrar outra vez.
Louise guardou o embrulho no cofre de jacarandá que estava sobre a penteadeira e fitou-o de esguelha.
- Eu teria permissão de saber quem é minha rival?
Cam aproximou-se, abriu o penhoar transparente e beijou-lhe o ombro desnudo.
- Louise, não existem rivais para a sua beleza. - Cam passou o polegar nos lábios polpudos. - Não diga nada. Sabe muito bem que isso teria de acontecer
mais cedo ou mais tarde.
Louise afastou-se, fechou o négligé e apertou com força a faixa de cetim.
- Se não me engano, o casamento combinou com Vossa Alteza.
- Por que diz isso?
- Bobagem. Por um momento, imaginei que pudesse estar enamorado daquela criança. - Louise deu uma risada. - Eu deveria saber que seus gostos não tenderiam
para o exotismo. Diga-me, Cam, já encontrou uma preceptora para ela?
Cam agarrou-lhe um pulso, notou que Louise estremeceu e beijou-lhe a mão em um gesto irônico.
- Vamos esquecer seu último comentário - O duque falou com frieza.
- Eu não pretendia...
- Claro que não. O aluguel da casa de Londres está pago por um ano. Se precisar de alguma coisa, procure meu administrador.
Louise observou-o sair e escutou a batida da porta da frente. Abriu o cofre e o pacote que recebera. Conforme o previsto, a indenização fora generosa. Mas
nada haveria de mitigar a humilhação que sofrera. Perder Cam para alguma beldade superior a ela seria triste. Pensar que fora desalojada por uma jovem grosseira
e selvagem era algo insuportável. Certamente seria alvo de chacotas.
Fitou o relógio ornamentado no consolo da lareira. Puxou a campainha para chamar a criada. Vestiu-se sem demora.
Olhou-se no espelho de báscula e ficou satisfeita. Era uma mulher no apogeu da beleza. O duque de Dyson a subestimara ao tratá-la com tão pouca consideração.
Mandou um criado entregar a mensagem que se apressara em escrever. A compensação financeira que recebera pelo rompimento não seria suficiente para manter
seu padrão de vida por muito tempo. Depois de uma hora, seu visitante chegou e foi recebido na sala de estar do térreo.
- Gervais. - Louise estendeu as duas mãos. O olhar de admiração do rapaz foi um bálsamo para seu orgulho ferido. - Alegro-me em vê-lo.
Gervais Dessins fez uma mesura elegante e sentou-se ao lado de Louise.
Dessins merecera a confiança de Louise. Chegara a Falmouth há poucas semanas e morava com amigos immigrés como ele. Era uma companhia agradável e Louise
tivera muito tempo livre. Com isso florescera uma amizade divertida. Dessins dissera privar de certa familiaridade com o príncipe de Gales. Seria uma tolice não
aproveitar uma oportunidade dessas.
- O senhor ainda vai para Brighton? - ela não usou de evasivas.
- Amanhã, como já havia lhe dito.
- Eu poderia ter a ousadia de pedir para acompanhá-lo?
- Com prazer, minha querida. O que motivou essa mudança súbita?
Louise deu uma risada e sacudiu a cabeça.
- Tédio, Gervais. Acabarei morrendo se não tomar cuidado. Além disso seus louvores a Brighton deixaram-me curiosa. Ou será que se arrependeu de sua promessa
de apresentar-me a seu círculo de amigos?
- Louise, não cometa essa injustiça. E Dyson? Sua Alteza vai nos encontrar lá?
- Infelizmente Cam não poderá deixar Dunraeden no momento. Eu mencionei que a criança com quem ele se casou necessita de supervisão constante?
Depois da dispensa sumária, Louise permitiu-se fazer considerações que antes mantinha sob sigilo. Deu um sorriso e escondeu uma risada atrás da mão. Com
um pouco de encorajamento, fez uma descrição de vários acontecimentos envolvendo Gabrielle, aos quais atribuía comicidade. Dessins não continha as gargalhadas.
E atrás da expressão calculada de charme, a mente de Dessins trabalhava. Compreendera que Louise Pelletier era uma amante desprezada embora se esforçasse
para dar uma impressão oposta. Dessins não acreditou que Louise começava a desencantar-se com seu protetor, mas teve o cuidado de não revelar seu ceticismo.
Ele despediu-se e venceu a curta distância que o separava de seu alojamento. Pensou na melhor maneira de aproveitar as novidades que lhe tinham sido confiadas.
Qualquer informação a respeito do duque de Dyson haveria de melhorar seu relacionamento com o sr. Fox e com o príncipe de Gales. Uma mulher traída, se bem aproveitada,
era uma arma valorosa.
Pensou no que ficara sabendo a respeito da esposa do duque. Fouché ficaria interessado na reviravolta dos acontecimentos. Dessins considerou a necessidade
de travar conhecimento com a jovem duquesa. Aos poucos um plano tomou conta de sua mente. Falar com o sr. Fox requeria sutileza. Seu próprio interesse na duquesa
de Dyson teria de ficar oculto.
Gabrielle tinha o pensamento fixo na fuga. Fugir sozinha a apavorava tanto quanto permanecer em Dunraeden como prisioneira de Cam. O pior de tudo era ter
se deixado levar por uma curiosidade insana. Lamentava ter brincado com a idéia de tornar-se uma mulher verdadeira. Deveria ter nascido menino. O duque não a teria
beijado e aqueles olhares intensos que a surpreendiam a todo momento seriam dirigidos a outra pessoa. Recriminou-se. Deveria estar mesmo ficando louca. Incomodava-a
pensar que o duque beijaria outra mulher.
Seria naquele momento ou nunca mais. Gabrielle ajeitou a corda enrolada no ombro e calçou um par de luvas grossas, antes de transpor o beirai da janela
de seu quarto. Caminhou passo a passo pelo parapeito de pedra, com as costas coladas na parede. O duque passaria a noite fora do castelo. Lansing se despedira há
dias. A vigilância diminuíra. Jamais teria outra oportunidade.
Além disso, ele se encontrava em perfeitas condições físicas. Não compreendia a própria relutância em deixar a fortaleza que lhe servia de prisão.
Na certa era o terror da maré traiçoeira que ameaçava engolir a todos. Mesmo assim fizera um estudo dos horários em que Dunraeden ficava ilhado em meio
ao turbilhão de água salgada. E já tivera a experiência de enfrentar o macaréu em Caudebec.
O frontão terminava bem acima do parapeito da torre oeste. Gabrielle não se intimidou. Abaixou-se, procurou o equilíbrio, amarrou a corda em um dos pilares
e começou a descer por ela até as rochas sem se incomodar com as dores e o desconforto.
A que distância ficariam as cavernas? Só as vira de longe, no dia em que chegara a Dunraeden. Desde então nunca mais lhe permitiram sair do castelo. Se
não calculasse o espaço de maneira correta, morreria afogada. O coração deu um pulo. Uma nuvem cobriu a lua e Gabrielle estremeceu.
As rochas eram escorregadias por causa das algas ou do limo. Abaixou-se e procurou o equilíbrio. Atingiu a areia e correu. E não demorou a escutar o rugido
da arrebentação. Gabrielle correu ainda mais. A silhueta dos despenhadeiros de pedra erguia-se para os céus.
Faltaria muito para alcançar as grutas? Afundou os pés em um lamaçal e caiu. Soluçando, levantou-se. A água a rodeava e enchia suas botas. A maré a alcançara.
Tirou os sapatos e disparou. Minutos depois a água alcançava seus tornozelos. A maré a engoliria antes da aproximação dos rochedos.
- Ah, Cam - Gabrielle soluçava. - Ah, Cam.
Naquele momento o duque, montado em Caesar, aproximava-se do castelo por terra. A chuva começava a cair. Cam levantou a gola do manto e incitou o cavalo
a um galope.
Na última semana tentara aproximar-se de Gabrielle. Insensível, ela se afastava sempre mais e usava Simon para se proteger do marido. Pensara em mandar
Simon para o outro lado do mundo, mas o amigo se antecipara e comunicara que voltaria para Londres. Cam fingiu relutância com a partida do amigo, mas ninguém acreditou.
Nem mesmo saberia dizer o que pretendia com Gabrielle. Entre eles nada mais poderia haver além de desconfiança e hostilidade.
Gabrielle era esperta. Desde que fora encontrada nos braços de Simon, voltara aos maus modos. Cavalgava como homem, derrubava talheres e comida no chão.
Isso sem contar o uso das imprecações em inglês que dizia ter aprendido em Dunraeden e o cheiro de linguado que não a abandonava. Revoltado, Cam não comia mais peixe.
Eram tentativas para mantê-lo afastado. E ele ainda dava risada.
Sentia-se aliviado por ter terminado a ligação afetiva com Louise. Para ser honesto, teria de admitir que o fizera por Gabrielle. Ela o deixara impotente!
Cam deu uma risada maliciosa. Perto da duquesa sua virilidade era inquestionável.
Agasalhou-se melhor. O vento piorava. Uma nuvem escondeu a lua. Estava no caminho que levava ao promontório rochoso de Dunraeden. Escutou o rugido da maré
que avançava para a terra. A lua apareceu e Cam viu Gabrielle.
De cabeça baixa, cabelos soltos ao vento, ela corria velozmente pela areia com a espuma das ondas a seus pés. Cam entendeu o propósito da duquesa e o erro
de cálculo que ela cometera. Deu um grito e esporeou o cavalo. Obediente, Caesar empinou-se e pulou um afloramento de rochas pontiagudas. Atingiu a areia e desequilibrou-se.
Cam conseguiu manter o animal nas quatro patas e o fez disparar para a frente.
Gabrielle caiu e submergiu. Arfante, ajoelhou-se e ficou em pé. Os rochedos não se aproximavam nunca. Correra quilômetros e as pernas já não lhe obedeciam.
Exausta, prosseguia às cegas. Ela gritou quando a água chegou à sua cintura. Sentiu a força da correnteza.
Prendeu a respiração e voltou à superfície, sufocada. Foi arrastada pela maré e jogada de um lado a outro. Imergiu e pensou que seus pulmões fossem estourar.
Sem forças para lutar, foi arrastada para baixo.
Cam puxou-a pelos cabelos e agarrou-a pela cintura. Gabrielle voltou à superfície engasgada e cuspindo. O duque não perdeu tempo para avaliar as condições
dela. O importante era ela estar viva. Mais tarde analisaria o desespero que se apossara dele quando por pouco não a perdera no redemoinho das águas. Fora o mesmo
senso de perda que o arrasara no tribunal de Abbaye. Carregou Gabrielle e montou. O baio entendeu o toque dos tornozelos, virou-se e foi rumo ao caminho do castelo,
para longe das águas predatórias.
Gabrielle sentiu o movimento do cavalo e soluçou, aliviada. Aos poucos, percebeu que era segura por braços fortes. Os braços de Cam. O duque abraçou-a com
firmeza e Gabrielle chorou de encontro a seu peito.
Algum tempo depois, ela ergueu a cabeça. O cavalo havia parado e Cam a fitava com olhar interrogativo.
- Eu tive de fugir - Gabrielle alegou com voz fraca.
- Por quê?
- Eu tinha de tentar.
- Por quê?
- Não sei.
- É tão grande sua vontade de afastar-se de mim? - Ele a beijou com ternura.
Gabrielle sentiu os movimentos inquietos do cavalo, a chuva que os ensopava e escutou o rugido dos vagalhões. Sentiu o gosto de sal dos borrifos da água.
Depois mais nada. Apenas o calor do corpo do marido.
Cam perdera a prudência no momento em que Gabrielle pareceu-lhe fora de seu alcance. Mais tarde voltaria a ser comedido. Nem mesmo se importava se ela estava
assustada. Ela merecia isso por ter transformado sua vida em um inferno.
Raiva e desejo se mesclavam, fazendo Cam estremecer. Ele a beijou com força, quase com selvageria. Seus braços pareciam torniquetes envolvendo o corpo delgado.
Ficou satisfeito ao sentir o medo de Gabrielle. Ela conheceria a força da paixão de um homem maduro e insaciável.
Embora fosse inocente nos meandros da paixão, Gabrielle não se sentiu ameaçada por aquela rudeza. Pelo contrário. Admitiu o despertar de sensações desconhecidas
e desconcertantes. Cam a arrastara para as profundezas sensuais desde o primeiro encontro. Pensava em corresponder àquele beijo para compensá-lo das emoções violentas
provocadas por sua fuga.
Cam queria possuí-la ali mesmo, na areia. Não lhe importavam a chuva nem o vento. Nisso sentiu-a tremer sem controle e a consciência acusou-o.
- Meu Deus, que estou fazendo? - Cam murmurou para si mesmo. - Ela está em choque.
Protegeu-a com o próprio corpo e instigou a montaria para a frente.
Gabrielle não desfez o mal-entendido. Os tremores eram pela presença do marido. Quando havia começado a ter emoções semelhantes?
Betsy esperava por ela no pátio. Os servos e os guardas testemunharam uma explosão de temperamento nunca vista. O duque ameaçou a todos e recriminou-os
pela falta de consideração com a segurança de Sua Alteza.
Betsy levou a duquesa até o quarto. Um banho quente foi providenciado e logo Gabrielle estava pronta para dormir. Palavras se fizeram desnecessárias. Ela
sentia-se arrependida por haver abusado da boa vontade de todos em Dunraeden.
Sentada na grande poltrona de braços, bebeu um pouco do conhaque, conforme ordens de Betsy.
Cam entrou, molhado até os ossos e segurando uma corda.
- Deixe-nos a sós, Betsy - ele ordenou, sem esperar argumentos.
Betsy agarrou as toalhas molhadas, fez uma cortesia e foi até a porta.
- Espere! - O duque apontou para as roupas de rapaz amontoadas no chão. - Jogue isso fora. Sua Alteza não precisará mais delas.
Ele esperou Betsy sair, trancou a porta e nela se encostou.
- Para onde milady pretendia ir? - Cam mostrou-lhe a corda.
Gabrielle levantou-se, olhando para o inimigo. O momento de ternura ficara para trás. Era certo que estava agradecida por ele ter-lhe salvo a vida. Mas
se não houvesse sido raptada, nada daquilo teria sucedido.
- Estou esperando por uma resposta.
- Para a França.
- Perdoe-me. Não poderia supor que milady fosse uma nadadora tão experiente. Quem sabe pensou em soltar as asas e voar sobre os mais de trinta quilômetros
que separam os dois países? Eu havia me esquecido que anjos têm asas. Bem, estou lhe avisando. Pretendo cortar suas asas, meu anjo.
Em um ato de reflexo, Gabrielle jogou-se na cama e procurou algo sob o colchão. Voltou-se com a mão erguida segurando uma faca de cozinha.
Parado na porta, o duque limitou-se a sacudir a cabeça.
- Gabrielle, não adiantará...
Ela murmurou uma imprecação e levantou a faca mais um pouco.
- ...as roupas de rapaz, o andar de homem, o modos estabanado, o linguajar inconseqüente, o cheiro de peixe. O que a fez pensar que alguns detalhes poderiam
transformá-la?
Gabrielle recuou e sacudiu a cabeça.
- Jamais pretendi fazer-lhe mal.
- Palavras vãs! Desde o começo milorde me fez sofrer.
- Engano seu, minha querida. Se me deixar, provarei que nunca lhe desejei nenhum mal. - Cam afastou-se da porta e notou o lampejo de medo no olhar da duquesa.
- Confie em mim.
Ele jamais seduzira uma mulher e considerava a sedução um jogo inescrupuloso. As mulheres sempre se haviam aproximados por vontade própria. Admitiu, porém,
que seu desejo jamais atingira aquele nível de exacerbação. Queria tomar conta de Gabrielle. Precisava influenciar sua vida, mas não como raptor. Era necessário
protegê-la. Ansiava possuí-la. Ela teria de perder os escrúpulos virginais e entender que ambos tinham sido feitos um para o outro.
Cam deu mais um passo para a frente.
- Milorde é meu inimigo - ela gritou. - E tenho de lutar contra quem me deseja mal.
- Não, meu anjo, sou seu marido. E seu dever é me amar.
- Um casamento de conveniência! Milorde prometeu que o mesmo seria anulado.
Cam estava a meio metro de distância.
- Não vou forçá-la. Mas se não quiser me aceitar, terá de usar essa faca.
- Pois é o que farei. - Gabrielle apontou para o coração do marido... com a mão trêmula.
Ele procurou acalmá-la, transmitindo sinceridade de propósitos.
- Escolha, meu amor. - O duque deu um sorriso irônico. - Beije-me ou use a faca.
- Cam... não... por favor- Gabrielle sussurrou.
Era a primeira vez que ela utilizava seu nome de batismo. Até aquele momento, Cam havia mantido a respiração sob controle. Estremeceu. Murmurou o nome dela
e estendeu o braço. Gabrielle retesou-se. Por um instante, a dúvida foi cruel e Cam chegou a pensar que a esposa usaria a faca. Mas não. Ela soltou os dedos e a
lâmina caiu no tapete com um baque surdo. Cam segurou-a nos braços e escutou um choramingo de protesto que não tardou em sumir junto com a resistência que ela oferecera.
- Não lute contra mim - pediu o duque, com os lábios colados nos de Gabrielle. - Por favor, não faça isso. Não vê que é tarde demais? Lute por qualquer
outra coisa, mas não por isso.
O beijo foi intenso e profundo.
O duque nunca se interessara em ser o primeiro amor de uma mulher. Preferia as mais experientes. Estava a ponto de perder a cabeça por Gabrielle, o que
nunca lhe ocorrera. Gostaria de possuí-la naquele instante, no chão.
Sempre fora consciente de que teria de casar-se para assegurar a linhagem. E esperava de sua esposa apenas a tolerância às intimidades da vida conjugal.
Os prazeres mais intensos ficavam para outra classe de mulheres. Entretanto não havia a menor dúvida que pretendia fazer de Gabrielle muito mais do que uma esposa
convencional.
Quando o beijo terminou, os dois estavam trêmulos. Cam fechou os olhos e procurou recuperar uma pequena porção de sensatez.
Gabrielle não poderia supor que houvesse tanta gentileza oculta no marido. Aquele era o Cam descrito por Betsy e Simon, o duque que eles conheciam. O homem
caloroso e compassivo. Ele nunca demonstrara mais do que traços dessa faceta de seu caráter. Mesmo assim, teve a impressão que o conhecia a vida inteira.
- Cam - Gabrielle murmurou, acariciando-lhe os contornos do rosto másculo e enérgico. Nunca se sentira mais segura.
Ela não tinha idéia das sutilezas da estratégia de Cam. Nem percebeu quando o penhoar de seda deslizou dos ombros e foi parar a seus pés. Cam roçou levemente
os lábios pelo rosto, pelos olhos e pelo pescoço de Gabrielle. Ela jamais sentira sensação tão agradável quanto as mãos de Cam explorando suas costas. O marido tornou
a beijá-la e Gabrielle suspirou de satisfação.
Gabrielle não percebeu a mudança progressiva e tênue na natureza do beijo. Movida pela curiosidade, abriu os lábios para a invasão do marido. Já ouvira
falar por essa estranha preferência dos beijos ingleses. O que devia ser normal, em se tratando de uma raça esquisita de pessoas.
Ela concluiu que o calor que sentia era provocado pelo conhaque que bebera. Sentiu-se zonza e oscilou nos braços de Cam. Mais do que depressa ele a ergueu
e deitou-a na cama. Ao vê-lo endireitar-se, supôs que ele pretendesse sair do quarto.
- Por favor, não me deixe.
Cam despiu as roupas molhadas com uma velocidade que a fez sorrir. Mas o sorriso feneceu quando o viu parado na frente dela.
A imagem perfeita da masculinidade. Um inimigo respeitável em qualquer teste de energia, foi o primeiro pensamento que ocorreu a Gabrielle. O peito musculoso
era coberto de pêlos negros que se estreitavam na cintura.
- Milorde é muito atraente... mas eu nunca podia imaginar...
Cam tomara cuidado para não amedrontá-la. A esposa nunca vira um homem desnudo e ansioso antes. Pensou em apagar as velas, mas desistiu. Seria como tirar
o prazer de ambos.
Contido, estendeu-se ao lado de Gabrielle.
- O corpo das mulheres adapta-se perfeitamente ao dos homens. - Ele sorriu ao ver o olhar de descrédito de Gabrielle. Ela estava certa. Ele a faria sofrer.
Cam acariciou a cascata de cabelos dourados que se espalhava pelo travesseiro e ombros da esposa.
Admitiu que ela superava suas expectativas. Esbelta, flexível e com a pele sedosa. Nem faria diferença se ela se banhasse com óleo de peixe.
Gabrielle refletiu se o vendaval de sensações que a deslocava faria parte das promessas que lera nos olhos do marido nas últimas semanas. Levada pela corrente
de emoções, emergiu na maré da paixão de Cam. Ele a guiava para as profundezas desconhecidas onde a única segurança seria agarrar-se nele. Seu último pensamento
coerente foi a certeza de que, ao se afogar, ela o arrastaria junto.
Cam enterrou o rosto nos cabelos de Gabrielle e abraçou-a, humilhado. Nenhuma mulher se entregara a ele com tanta liberalidade. Ele estava acostumado a
pagar por favores sexuais. Deu-se conta que nenhuma de suas amantes o desejara por ele mesmo.
Gabrielle fitava o teto. O silêncio era desagradável. Nervoso e preocupado, puxou-a para perto dele.
- No que está pensando?
Gabrielle virou a cabeça para fitá-lo. Atordoada e sonolenta, ela acariciou-lhe o peito.
- Isso muda tudo.
- Sim, muda. - Cam beijou-lhe levemente os lábios.
- Por quê?
- Eu não vou mandá-la de volta à França. Simon me convenceu que seria a pior coisa que eu poderia fazer. Como explicar sua ausência durante esses meses
todos?
- Milorde deveria ter pensado nisso antes.
- Quando eu a trouxe para cá, não dei importância ao fato.
- Será que não lhe ocorreu que eu também poderia ter meus pontos de vista?
- E qual a solução que milady pode sugerir?
- Tenho certeza que Rollo ficaria feliz em casar-se comigo. Poderíamos espalhar um boato que meu avô recusou sua permissão e por isso resolvemos fugir.
Cam apertou o pulso fino com tanta força que se admirou de não ter lhe quebrado um osso.
- Milady é minha esposa e pode estar grávida de um filho meu. Gabrielle! - Ele segurou-lhe o rosto com as duas mãos. - Isso parece ser tão ruim para você?
Um sorriso doce iluminou a fisionomia de Gabrielle e seu olhar faiscou.
- É isso o que Vossa Alteza quer?
- Claro que é! Por Deus, é o que mais desejo!
Cam levantou-lhe a cabeça e beijou-a com paixão e rudeza. Pretendia mostrar com a força de seu ardor o que não ousava revelar com palavras.


Era a primeira vez que Gabrielle teria o privilégio de sair pelos portões da frente de Dunraeden. O dia prometia ser magnífico e o passeio, agradável.
Usando um traje negro de montaria, sorriu com timidez e admirou-se da aparência atraente do marido. Corou ao lembrar-se da noite anterior. E franziu a testa
ao ver o animal que o cavalariço trazia para ela. Rambler, a montaria mais dócil da grande estrebaria de Dunraeden, era conhecida como uma lesma de quatro patas.
Gabrielle fitou o marido com suspeita e ele disfarçou um sorriso com maestria.
Apesar disso e de ter de montar de lado como uma dama, ela não deixava de sorrir. Não tinha idéia de como a felicidade a deixava bela nem como o coração
de Cam disparara ao vê-la.
O duque ia à frente, como se desejasse ministrar-lhe alguma lição. Cavalgaram pelas areias molhadas e avistaram as paredes da torre por onde Gabrielle descera
na noite anterior. A luz do sol brilhante, o despenhadeiro rochoso assumia um aspecto assustador.
- Se milady houvesse escorregado ou a corda arrebentado...
- Ah! Isso não passou de brinquedo de criança!
- É preciso levar certas coisas mais a sério, Gabrielle! Gabrielle abaixou a cabeça.
- Minha querida, por favor. Prometa-me que nunca mais tentará tolice semelhante. É demais o marido pedir isso para a esposa?
Ela tornou a corar.
- Agora não tenho mais motivos para querer fugir. - Tratava-se de uma afirmativa sincera.
Gabrielle estava consciente que após os acontecimentos daquela noite, os liames entre ela e o marido seriam permanentes. Apaixonada, ainda não refletira
sobre as conseqüências daquela situação. Embora Cam fosse muito reservado, ela acreditava que também seria amada. Confiava na disposição e na habilidade de ambos
para resolver as diferenças que surgissem.
Não podia esconder o pequeno desapontamento de notar a volta da personalidade intimidativa do marido. Na noite anterior Cam se comportara como um homem
doce e terno. Apaixonado. Gabrielle não queria acreditar que ele voltasse a restabelecer a distância entre ambos. Os ingleses eram conhecidos como pessoas reservadas,
mas ela precisava da proximidade que haviam partilhado naquela longa noite de amor. Queria a intimidade em todos os níveis e momentos.
- Não, meu marido - ela enfatizou com os olhos brilhantes. - Não tentarei novamente.
- Quero sua palavra.
- Eu lhe faço um juramento.
Cam fitou-a com um sorriso arrebatador.
- Ótimo, minha querida.
Ele percebeu sinceridade na expressão de Gabrielle. Ainda assim não se deu por satisfeito. O elo que se formara entre eles não seria suficiente para prendê-la
caso a esposa fosse forçada a decidir-se por outras lealdades. Não poderia mantê-la prisioneira para sempre. Fazer amor seria suficiente para conservá-la a seu lado?
Com olhar distante refletiu que haveria apenas um meio de evitar a idéia de fuga.
Um filho seria o único elo que a prenderia para sempre. Gabrielle não almejaria mais voltar para a França. Ele refletiu sobre os anos de investigação exaustiva.
Mascaron. Seria preciso apenas uma palavra sua e Rodier revelaria às autoridades francesas as atividades traiçoeiras de Mascaron. Com as informações a respeito do
tamanho, da potência e da distribuição da armada francesa, o plano chegaria ao final, o que na verdade assumia uma importância secundária. Cam desejava a cabeça
de Mascaron. E embora pela primeira vez estivesse com ele na palma da mão, hesitava. Por causa de Gabrielle, ocorria-lhe a idéia de subverter o curso da vingança
acalentado durante anos.
Gabrielle notou-lhe o olhar frio e distante.
- Cam, o que houve?
- Tenho de mostrar-lhe algumas coisas.
Eles desmontaram na praia. Gabrielle o seguiu despenhadeiro acima por um caminho estreito que unia Dunraeden ao continente. Próximo do alto, Cam parou em
uma saliência protegida de rocha de onde se avistava a força da maré contra a margem.
- Um quilômetro e meio em linha reta - ele afirmou. - Mas milady virou para oeste. No escuro é quase impossível encontrar o rumo certo.
Gabrielle estremeceu. Imaginou o perigo que enfrentara a noite passada. Apesar disso, a antiga teimosia não a abandonou.
- Sou como um gato com sete vidas. Ainda não usei todas.
- Eu não esperava escutar um comentário tão despropositado - Cam afirmou com rispidez.
Gabrielle ergueu o queixo, desafiadora.
- Considera um despropósito uma prisioneira tentar escapar?
- Era isso o que pretendia? Fugir? - Ele aproximou-se, ameaçador e agarrou-a pelos ombros. - Então por que não usou a faca contra mim ontem à noite?
- Cam, por favor. - Gabrielle procurou desvencilhar-se. - Está me machucando.
- Não precisa responder. Eu sei o motivo.
Beijou-a com ardor e Gabrielle correspondeu com igual intensidade. Cam ajoelhou-se e levou-a junto. Antes de perceber o que acontecia, ele já havia desabotoado
o casaco da esposa e provocava-a com carícias sensuais.
- Cam, aqui não. - O protesto fraco desmentiu suas reações.
Cam não respondeu e esmerou-se em fazer Gabrielle esquecer qualquer restrição que porventura a impedisse de entregar-se a ele.
- Não posso acreditar que fiz isso.
- Uma vergonha sem tamanho - Gabrielle concordou e aconchegou-se mais no colo do marido.
Ele traçou um caminho de beijos pelo rosto delicado da esposa.
- E o mais inacreditável é milady ter consentido nisso.
- Vergonhoso! - ela insistiu com graça e abriu os olhos. - É isso o que fazem as pessoas casadas?
- Sim, meu amor. Mas não em um cenário como esse e em plena luz do dia. - Os olhos azuis de Cam brilhavam, divertidos.
- Então qual seu interesse em fazer com que eu aprenda a cometer desatinos?
O duque apenas sorriu. Gabrielle inspirou fundo e fitou-o de revés.
- Tenho a impressão de que Vossa Alteza se acha um entendido em todos os assuntos, não é verdade?
- Não a decepcionei, não foi? Os dois riram.
- Cam?
- O que é?
- Existe algo que apenas milorde poderia me ensinar. - Gabrielle brincou com as dobras da gravata de Cam. Ele segurou a pequena mão e beijou-lhe a palma.
- Cuidado, meu amor, ou terei de cometer um ato vergonhoso novamente.
Gabrielle arregalou os olhos e deu risada.
- Estou falando sério, Cam - ela contradisse aos risos.
- Fale, minha querida - ele encorajou-a a continuar.
- Como foi que rompeu todas as minhas defesas? - Gabrielle voltava a refletir sobre Andely e na maneira como o marido a vencera. Nunca encontrara um adversário
daquela envergadura.
Cam pensou em como seduzira Gabrielle. Talvez ela houvesse se decepcionado.
- Milady quer dizer que a obriguei a fazer o que não desejava?
- Imagine só! - ela demonstrou surpresa. - Era o que eu mais gostava de fazer! Pratiquei religiosamente os movimentos por horas a fio com Rollo. Milorde
tem uma habilidade cem vezes superior.
Cam engoliu em seco antes de perceber que falavam de assuntos diferentes.
- Gabrielle, a que está se referindo?
- À esgrima, é claro. - Ela ficou de joelhos. - Não poderia me ensinar os golpes que usou em Andely?
- Não. - A negativa não admitia argumentos. Cam levantou-se,-arrumou o calção e caminhou até os cavalos a passos largos.
- Por que não? - Gabrielle levantou-se e foi atrás dele. - Cam! Imagine só como Goliath se sentiria se eu o derrotasse em seu próprio terreno! Jamais consegui
vencê-lo. - Imaginou a surpresa de seu bom amigo, mas perdeu de imediato a vontade de rir.
Cam estava furioso.
- Pois eu não tenho a menor vontade de ser derrotado em meu próprio terreno! Por acaso me considera algum imbecil? Acha mesmo que eu lhe entregaria um florete
nas mãos e lhe ensinaria a vencer-me?
A referência a Goliath despertara a ira de Cam. Era a certeza de que o coração de Gabrielle continuava na França. Ela o abandonaria na primeira oportunidade!
- Cam, por favor, - Gabrielle segurou-o pela manga do casaco, mas ele se desvencilhou. - Não pense em uma tolice dessas. Eu jamais tive intenção de feri-lo.
Por isso não usei a faca quando tive oportunidade.
Nas semanas que se seguiram, Cam demonstrou claramente não confiar em Gabrielle e passou a cercear-lhe a liberdade com mais rigor. Ela continuava sendo
uma prisioneira. Era vigiada durante o dia pelos guardas e à noite por Cam.
Apesar disso, ia para os braços do marido com boa vontade. Naqueles momentos íntimos, convivia com o homem pelo qual se apaixonara. Oferecia a Cam muito
mais do que ele exigia. Gabrielle se inflamava com a mais leve das carícias. Era fácil entregar-lhe livremente o corpo. O difícil era fazê-lo corresponder às necessidades
dela. Ela ansiava por uma intimidade verdadeira que lhes permitisse partilhar os segredos do coração. Cam pretendia mantê-la a distância, mas Gabrielle não cedia
àquelas intenções. Nos momentos que se seguiam à paixão, falava sobre si mesma, seus receios e sonhos. Segredos que não confessara a ninguém.
Satisfeito e sonolento, Cam se descontraía um pouco e revelava fatos de sua vida.
Gabrielle absorvia cada palavra que lhe era confiada. E passou a entender que o marido tinha receio de amar. Ele não confiava no amor. Cam perdera todos
a quem mais amava e recusava-se a revelar detalhes daquela tragédia. Ele não tocava no assunto. As circunstâncias da morte da irmã e da madrasta eram um tabu. Gabrielle,
com sua natureza generosa e paciente, procurava livrá-lo aos poucos dos receios que o perturbavam. A intuição feminina lhe dizia ter conseguido penetrar no coração
do marido. Seu objetivo maior era conquistar-lhe a confiança. Uma tarefa difícil. Cam imaginava segurar a esposa erguendo muralhas cada vez mais altas. Não enxergava
ser o amor que a prendia.
Por vezes Gabrielle perdia a paciência. Uma dessas ocasiões foi a noite em que suspeitou estar grávida.
- Milady está com as regras atrasadas - Betsy comentou, enquanto a aprontava para dormir,
- É mesmo? - ela espantou-se. Esquecera de fazer as contas.
- Uma semana - Betsy congratulou-se com a própria perspicácia. - É a primeira vez que isso acontece desde que veio para Dunraeden.
- Para ser sincera, nunca fui desregulada.
Uma batida na porta anunciou a presença de Cam. Gabrielle franziu os lábios e Betsy deu um grande sorriso.
A criada pediu licença para sair e Cam seguiu-a até o corredor. Gabrielle supôs que o marido escutara a conversa.
- Vossa Alteza me envergonhou. - Gabrielle fulminou-o com o olhar quando Cam voltou. Frustrada, foi para a cama e esmurrou os travesseiros.
- Eu jamais faria isso propositalmente.
Cam chegou a tomá-la nos braços, mas Gabrielle desviou-se, arfando.
- Pare de achar que sou criança! - Em pé, ela o encarou. - Sou uma pessoa adulta!
- Não posso discordar. - Ele se referia à confissão de Gabrielle feita em uma noite. Ela temia jamais se tornar uma mulher de verdade e ele a convencera
do contrário. - Se não me falha a memória, concordamos que a minha querida esposa suplantou as minhas expectativas.
- Milorde não me leva a sério. Deveria ter perguntado a mim e não fazer indagações à minha criada.
Ele sorriu, contrito.
- Perdão, cometi um erro. Pensei que não lhe agradaria eu ficar sabendo.
- Claro que não me agradou! Estou atrasada apenas uma semana. Isso pode não representar nada, pelo amor de Deus!
- Mas nunca lhe ocorreram atrasos - Cam retrucou com olhar brilhante.
- Eu estar grávida serviria muito bem a seus propósitos, não é mesmo? Assim eu não poderia escalar paredes ou descê-las por meio de uma corda, nem esgrimir!
Cam aproximou-se e acariciou-lhe os ombros.
- Calma, querida. Está se aborrecendo por nada. Vamos dormir.
Gabrielle não consentiu que o marido a puxasse.
- Quer saber de uma coisa? Se eu resolvesse deixá-lo, nada me impediria de fazê-lo. Nada, entendeu?
- Engano seu, meu amor. Eu a encontraria nem que tivesse de chegar ao fim do mundo. Agora vamos dormir - ele repetiu e a tomou nos braços.
Gabrielle notou a ternura que brilhava no olhar de Cam, mas também a determinação implacável. Desanimada, considerou que o marido jamais entenderia o que
a mantinha ao lado dele. Começou a chorar. Entre soluços e suspiros mergulhou em uma explicação confusa - metade em francês, metade em inglês e com muitas imprecações
- a respeito da necessidade de trancafiá-lo no sanatório de Bedlam. Concluiu afirmando que seria um benefício para a humanidade em geral e para ela em particular.
Cam mostrou-se incansável na tarefa de acalmá-la. Esmerou-se em carícias íntimas até tirar-lhe o fôlego. Suspiros entremearam-se com gemidos. Beijos roubaram
a respiração de ambos. Corações bateram em descompasso.
Com simplicidade, Gabrielle resolveu mostrar ao marido que ambos eram vulneráveis. Dedicou-se nas carícias mais sutis e por isso mesmo, sensuais.
- Eu te amo, te amo, te amo... - ela sussurrou junto aos lábios de Cam.
Eles se amaram com desespero. Cam tentou refrear o próprio ímpeto, mas Gabrielle provocou-o até a loucura.
Gabrielle não permitiu que ele se afastasse.
- Não o deixarei esquecer que pretende ir atrás de mim até no fim do mundo. Se afirmou isso, é porque me ama - ela comentou sem presunção.
- Também não a deixarei esquecer que se tornou uma amante adorável no leito matrimonial.
- E isso é uma arte? - Gabrielle perguntou, corada pelo prazer.
- Na qual acabará se transformando em especialista - Cam provocou-a e beijou-lhe as faces enrubescidas.
Gabrielle arregalou os olhos.
- Se não me engano, Alteza, sua prática é muito maior que a minha.
Cam engasgou, antes de confessar.
- Nunca estive apaixonado.
- Acho melhor praticarmos mais um pouco.
Ele não chegou a discursar sobre a fisiologia masculina. E nem precisou. O calor e a mestria intuitiva de Gabrielle encarregaram-se de anular as hesitações.
Ao ver as reações do marido, ela começou a descobrir seu poder sobre ele e resolveu explorar essa capacidade até seus limites.


Capítulo VIII

Setembro trouxe um alívio para os dias quentes e úmidos do verão na Cornualha. Na zona rural, cintilavam as cores do outono. O trigo e as frutas amadureciam.
Os lavradores estavam felizes com as colheitas abundantes. Gabrielle nada viu. Apesar de estar na região há quatro meses, ela não tivera permissão de aventurar-se
para além do topo dos despenhadeiros de onde se avistava Dunraeden e sempre na companhia de Cam. Não houve passeios dignos de boas lembranças. Não recebeu visitas.
Não praticou esgrima nem cavalgou pelo campo. Nada que lembrasse aventuras com os contrebandiers que tanto a alegravam na Normandia. O verão fora tedioso com os
dias em que o sol não se escondia antes das dez da noite.
Gabrielle sentia falta do marido. Até mesmo Louise seria bem-vinda, embora pensasse na moça com sentimento de culpa. Afastara Cam da mulher com quem ele
poderia ter-se casado. Nos poucos dias que estivera com Louise antes da partida apressada, Gabrielle sentira a intimidade inegável entre eles. Um verdadeiro compromisso.
Mesmo sem simpatizar muito com Louise, ela chegou a lastimar não ter feito amizade com a bela mulher. Pelo menos teria companhia.
Sentia-se solitária e aborrecida. Não tinha a menor aptidão para desempenhar o papel de castelã. Nem precisaria. Não havia festas, entretenimentos nem convidados.
Apenas uma sucessão de tarefas monótonas. Fazer inventário de roupas de cama e banho, louças e talheres. Supervisionar os deveres do exército de servos, entre os
quais muitas moças recém contratadas. Eram serviços que não a atraíam. Arrumar quartos, limpar prata e cristais. Sua preferência recaía sobre a sala de armas e a
estrebaria. Mas os dois últimos faziam parte dos domínios exclusivos do duque.
Cam passava o tempo ocupado com os problemas da propriedade. Vez por outra, ele ia a Londres por curtos períodos. Gabrielle odiava a distância que o marido
interpunha entre eles durante os dias. Ela o amava, mas desejava sobretudo a amizade de Cam.
Com o passar dos dias, ela tornou-se mal-humorada. Queria mais liberdade em uma demonstração da boa-fé do marido. Se não fosse pelos criados, não saberia
o que se passava no mundo. Implorou informações sobre seu avô. Cam afirmava não saber de nada. Gabrielle encontrava-se próxima ao desespero.
Convenceu-se de que teria de provar sua confiabilidade de alguma maneira. Imaginativa ao extremo, elaborou vários planos, e rejeitou todos. Imaginou alguns
incidentes em que ela o defenderia do perigo. Teria de salvá-lo no momento preciso, não sem antes se ferir. Então, Cam se ajoelharia, arrependido. Entretanto, ela
refletiu que não poderia expor a vida do marido a riscos desnecessários. Finalmente chegou a um projeto mais simples ao qual faltava a dramaticidade que lhe era
tão cara. Deixaria Dunraeden e voltaria por conta própria. O plano lhe parecia mais factível quanto mais pensava no mesmo. Cam ficaria arrasado quando descobrisse
sua fuga. Sentia fazê-lo sofrer, mas ele seria recompensado quando ela voltasse a Dunraeden pela porta da frente. As provas de seu compromisso com o marido seriam
inegáveis. Mas como isso poderia ser feito?
Era quase certo que estava grávida. O processo envolvido não poderia arriscar a vida do bebê. Como a fuga não seria verdadeira, também não romperia a promessa
feita ao duque.
Em poucos dias Gabrielle estava com um plano em mente que foi posto em prática em uma manhã úmida e sombria. Avisou Betsy que pretendia fazer pessoalmente
uma relação dos uniformes dos servos. Em Dunraeden os criados trocavam de uniforme na primavera e no outono. No final da manhã, ela havia escondido em uma fronha
um dos conjuntos marrom e bege usados pelos pajens. Aproveitou uma ausência de Betsy e guardou a pequena trouxa no fundo de seu guarda-roupa. Voltou ao salão nobre
momentos depois, com olhar brilhante e as faces coradas. Encontrou Cam à sua espera.
O marido tirou-lhe um fiapo do rosto antes de levá-la a seu gabinete.
- Gabrielle, está parecendo uma flor. A gravidez lhe fez bem.
- Não devia falar assim, Cam. Ainda é cedo para termos certeza.
Ele apontou a poltrona, pedindo que Gabrielle se sentasse e entregou-lhe um pedaço de papel.
- Pedi a um médico que a examinasse antes do final da semana.
Gabrielle não respondeu e fitou-o com olhar intenso.
- Não me peça para copiar isto.
- Gaby, isso é necessário para assegurar a aquiescência de Mascaron. Caso contrário eu não lhe pediria.
- Por que não dizer a verdade?
- Nosso casamento não fará nenhuma diferença.
A discussão que se seguiu foi acalorada e deixou a ambos abalados.
- Nada me fará acreditar que está fazendo isso por seu país. Isso é pessoal! Milorde odeia meu avô! Isso não é verdade? Responda!
A verdade não precisou ser dita. Pálido e com os lábios apertados, o duque a forçou a obedecer-lhe. Gabrielle copiou a carta e levantou-se.
- Gostaria que me dissesse por que o odeia tanto. Cam não respondeu e afastou-se.
- Eu amo você! - ela gritou. - Isso não é o suficiente?
- Milady entrega seu amor com muita facilidade.
Com um grito de raiva, Gabrielle saiu e bateu a porta. Cam permaneceu imóvel, olhando a porta fechada. Depois de alguns minutos foi até a janela. A chuva
que começara há horas continuava implacável. Uma névoa fina subia do canal.
Das outras vezes, Cam se ausentara para levar pessoalmente as cartas escritas por Gabrielle. Entregava-as a um mensageiro que atravessava o canal da Mancha
ou ia até um porto próximo.
Prevendo que ele faria o mesmo processo, Gabrielle escutou atentamente no corredor. O duque ordenou a um criado que preparasse seu cavalo. Momentos mais
tarde, ele saiu e as portas da frente foram cerradas.
Ela pediu que o jantar fosse servido em seu quarto e assim que a criada trouxe a bandeja e se retirou, Gabrielle começou a agir.
Trinta minutos depois um pajem desceu devagar a grande escadaria levando a bandeja intocada do jantar de Sua Alteza. O pequeno número de servos presentes
no salão nobre nada reparou de anormal. Nem no fato de o jovem não ir para a cozinha e virar no sentido oposto. A maioria dos criados já se retirara e os poucos
remanescentes estavam aflitos para fazer o mesmo.
Na biblioteca, Gabrielle deixou a bandeja pesada em uma cadeira. Pegou um volume estreito de uma das estantes e voltou ao hall. Esperava dar a impressão
de que a duquesa destinara uma incumbência ao pajem. Olhou para os lados e rumou até um salão de onde se podia observar o pátio. Foi até a janela. A chuva continuava
e a neblina era espessa.
Não teve de esperar muito. Passava da hora da troca dos guardas e eles estavam impacientes para se abrigar do mau tempo.
Gabrielle abriu a janela de guilhotina que distava a quase três metros do chão e passou pelo beirai esgueirando-se contra a parede. Esticou-se segura pela
ponta dos dedos e deu um pulo, caindo agachada. Tirou um gorro de dentro do bolso e prendeu dentro dele as trancas.
Apesar de ainda não estar escuro, os archotes do pátio tinham sido acesos por causa da neblina.
Ao escutar o rangido dos portões, apressou-se. Esperava não chamar a atenção. Seu uniforme escuro não seria percebido em meio à chuva e ao nevoeiro. Soubera
por alguns comentários esporádicos de Betsy que a maioria das sentinelas não moravam no castelo. Ocupavam-se com outras atividades lucrativas nas horas de folga,
como por exemplo o contrabando. Ergueu a gola do casaco, abaixou o gorro e a cabeça. Aproveitou o ir e vir dos homens e imiscuiu-se no meio deles. Passou pelo portão
e chegou ao lado de fora.
Quando começou a correr, deu de encontro com um homem enorme encoberto pela névoa.
Sem pensar, Gabrielle desculpou-se em francês.
Aflita, procurou escapar, mas foi impedida por duas mãos fortes. Uma a arrastou até a muralha e a outra lhe tampou a boca, sufocando um grito.
Gabrielle, apavorada, fitou quem a atacara e arregalou os olhos.
- Goliath... - Sem conseguir falar mais nada por causa da emoção, jogou-se nos braços dele, tremendo.
Sentiu a barba de seu protetor raspar em seu rosto e um conforto familiar invadiu-a. Aconchegou-se nos braços de Goliath e lembrou-se de quantas vezes ele
a protegera como um escudo. Ele cheirava a couro, tabaco e Calvados. A imagem da Normandia e de suas macieiras floridas veio-lhe à mente. Começou a chorar.
Goliath disse qualquer coisa em voz baixa e sacudiu-a. Gabrielle procurou acalmar-se e empenhou-se em uma tentativa patética e inútil para falar. Ele sacudiu
a cabeça e sorriu. Cauteloso e encorajador, fez sinal para que Gabrielle o seguisse.
Eles saíram do caminho que levava para o alto do despenhadeiro e Gabrielle viu-se perdida. Seguia Goliath e admirava-se como ele podia conhecer tão bem
a região. Ensopada, com fome e frio, começou a refletir na estupidez de seu plano.
- Onde estamos?
A escuridão era total. Goliath a levara até uma caverna. Dentro de instantes, uma lamparina foi acesa.
- Venha - ele a conduziu para o fundo.
Gabrielle suspirou e obedeceu-lhe. Não duvidou que Goliath tivesse vindo com o propósito de levá-la para a França. Apesar da intranqüilidade que rodeava
sua vida, ela tinha uma certeza. Não poderia ir com ele. Seu lugar era ao lado do marido. Imaginou como convencê-lo de que não o acompanharia.
Uma hora depois sentiu-se mais fortalecida. Comera pão, queijo e tomara uma dose de Calvados. Sem o casaco molhado, sentada em uma barrica, enrolou-se melhor
na manta rústica de lã. Ocasionalmente fitava Goliath de revés. Ele escutara o relato em silêncio e em seguida lhe contara detalhes sobre o Château de Vrigonde.
Só não revelara o que pretendia fazer naquela altura dos acontecimentos.
Goliath a observava, sem definir qual a resolução que deveria tomar. Passara semanas observando o traçado da região. Para os habitantes locais, ele era
o chefe de um bando de contrabandistas franceses. Tornara-se benquisto pela qualidade do conhaque barato que trazia pelo canal. Aos poucos ganhara a confiança dos
ingleses. Eles haviam lhe permitido o uso de uma das cavernas. Assim Goliath e os homens podiam esconder-se caso os coletores de impostos aparecessem antes da mercadoria
ter sido entregue. Havia encontrado Gabrielle num momento crítico. Em meio àquele nevoeiro seria impossível levar o barco carregado de volta à França. A fuga poderia
demorar dias. Para piorar, Gabrielle lhe contara uma história que o deixara confuso.
- Por que deseja ficar aqui se vejo infelicidade em sua fisionomia, minha menina? Ela ergueu a cabeça.
- Eu já lhe disse, Goliath. Estou casada. Sou a duquesa de Dyson.
- Mademoiselle o ama?
Ela lembrou-se de como haviam se separado. Cam mostrara-se cruel, frio e vingativo. Violento. As promessas de amor feitas no ato de suprema intimidade esvaziavam-se
à luz do comportamento subseqüente.
- O que o amor tem a ver com isso, Goliath?
- Poderíamos ter uma solução assim que pisássemos em solo francês.
- O que está pretendendo insinuar?
- Divórcio. - Goliath fitou-a com atenção. - Em circunstâncias normais eu não faria essa sugestão. Mas nesse caso... - Ele deu de ombros.
Gabrielle empalideceu. Desde a Revolução o divórcio se tornara muito comum na França.
- Ele garantiu que virá atrás de mim, se eu fugir.
-Então terei de dar um jeito no seu duque antes de embarcarmos de volta.
- O quê?
Com um sorriso malvado, Goliath passou a lateral da mão no pescoço.
- Não! Goliath, nem pense nisso. Pode ser que eu o ame... um pouco.
Goliath descobriu o que desejava saber e mudou de assunto.
- O que a levou a vestir-se de pajem e esgueirar-se para fora do castelo em uma noite como esta?
O que mesmo ela fazia fora do castelo em uma noite como esta? Gabrielle fitou as pontas descascadas das botas. Ah, sim. Pretendia mostrar ao teimoso do
marido que o amor a fazia prisioneira e não as muralhas de uma fortaleza impenetrável. Fitou Goliath e sorriu.
- Tinha intenção de ministrar uma lição ao duque. Agora é a sua vez de falar. Estava pensando seriamente em entrar no covil do leão?
- Eu realizava um reconhecimento do terreno. Descobri que os guardas costumam jogar cartas à noite no alojamento. Consegui que eles me convidassem para
participar. O duque a ama?
Gabrielle assustou-se com a pergunta.
- Não da maneira como eu gostaria de ser amada. - Ela fechou os olhos e encolheu-se no assento improvisado.
Goliath cocou a barba grisalha. Não sabia o que fazer com o duque. Poderia apenas desacordá-lo e levá-lo para a Normandia até Gabrielle resolver o que deveria
ser feito com ele. Não daria certo.
- Anjo, não se esqueça de que não é mais uma criança.
- Minha infância terminou muito cedo - Gabrielle suspirou.
- Terei de levá-la de volta ao castelo antes que mandem uma patrulha atrás de você. - Goliath decidiu-se.
- Permitirá que eu fique na Inglaterra?
- No momento, sim.
- Dirá a Mascaron que o duque nada fará contra mim? Acho... acho que estou grávida.
Naquele instante Goliath pensou em matar o duque e mudar a resolução inicial.
- Não se preocupe, meu amigo. Estou feliz com a idéia do bebê. E não ficarei nada contente se o senhor eliminar o pai de meu filho. - Gabrielle sorriu com
tristeza.
Convicto de que não poderia deixá-la à mercê do duque, Goliath ajudou-a a se levantar. Precisava de respostas antes de partir.
- Vamos. - Ele preparou-se para sair, mas parou assim que se afastaram da caverna.
Ele escutou um ruído estranho e levantou a mão para alertar Gabrielle do perigo. Ela olhou para os lados e nada viu por causa do nevoeiro. Goliath empunhou
o punhal que tirou da cintura e os dois escutaram o som de pistolas sendo engatilhadas.
- Em nome de Sua Majestade, o rei Jorge, ordeno que se rendam!
- Cam nos encontrou! - Gabrielle murmurou.
- Pior. - Goliath levantou as mãos. - Os fiscais do imposto.
Gabrielle teve de erguer os braços ao sentir o cano de uma arma nas costas.
- Falmouth? - Cam ergueu as sobrancelhas e leu novamente o papel que estava em suas mãos. - Quem é o contrabandista francês que está detido na alfândega
de Falmouth junto com meu pajem?
Ned Hoverley começou a tremer. A recompensa oferecida pelo pajem para trazer a missiva era insignificante diante do perigo a que fora exposto. Não poderia
imaginar quem era o destinatário. Jamais pensaria que Cam, conforme estava escrito no papel, fosse o duque em pessoa. Voltaria para torcer o pescoço do infeliz!
- Alteza, deve ter havido algum engano. Eu... A raiva do duque era quase palpável.
- Quem é o francês que foi capturado junto com ele? - Cam insistiu.
- G... Goliath, eu escutei o pajem dizer.
O ar no gabinete de Cam pareceu congelar-se. O mensageiro tremeu ainda mais ao receber a moeda por serviços prestados.
- Devo levar uma resposta, Alteza?
- Não será necessário. Uma noite na cela será proveitosa para... meu pajem. Quem é o encarregado de lá? Claverley?
- Não, Alteza.
- Ah, eu me lembro. Ele foi demitido por contrabando, não foi?
Ned não respondeu.
- Então deve ser Penhanley.
- Sim. - Ned imaginou o que o duque diria se soubesse que a sra. Penhanley adorava rendas francesas.
- Então não haverá problemas.
Ned concordou. Naquele lugarejo remoto, o duque de Dyson é que era a lei e não o louco Jorge III que ocupava o trono da Inglaterra.
Nas duas horas seguintes, Cam tentou convencer-se de que não se incomodava com o mal-estar de sua esposa e nem com as condições precárias da alfândega de
Falmouth. Sua esposa merecia sofrer as conseqüências do comportamento intempestivo. Ela o abandonara e ele só ficara sabendo de sua ausência ao receber a nota por
ela escrita.
Gabrielle estava grávida e prometera não fugir! Ela o fizera acreditar em promessas vãs. Cam disse uma imprecação e jurou que jamais encostaria um dedo
naquela duquesa falsa. Sentiu o gosto amargo da traição. Viu-se como um escravo de Gabrielle. Pensara até em desculpar-se pelo comportamento rude que tivera. Nem
mesmo enviara a carta que a obrigara a copiar. Decidira esquecer a sede de vingança contra Mascaron e poupar mais um sofrimento para ela.
Quando a encontrasse, faria ela entender a justiça de um homem ultrajado e a medida da submissão de uma esposa. Gabrielle reconheceria o quanto ele fora
bondoso e paciente com ela.
Cam alimentou seu ódio por mais uma hora, depois, como era natural, a mesma foi decrescendo gradualmente. Assim como a resolução de deixá-la entregue ao
próprio destino. Começou a ser atormentado com pensamentos de que ela poderia estar sujeita a tratamento rude. Acabou sendo torturado por fantasias macabras.
Saiu para buscá-la, acompanhado por um grupo de soldados e disse a si mesmo que tomara aquela atitude por causa do filho que estava para nascer.
Gabrielle foi tirada da cela e entregue à custódia do duque. A sua alegria durou pouco tempo. Estremeceu ao ver a fisionomia do marido. Não chegou a agradecer
nem a perguntar sobre o destino de Goliath. Foi conduzida sem demora até uma carruagem.
Sozinha dentro do veículo foi vencida pelo desânimo. Sem nada enxergar por causa da escuridão e da neblina, admitiu que Cam fizera uma interpretação errônea
de sua fuga. Ele jamais se convenceria de que ela pretendera voltar. Fora capturada. Era óbvio que o marido pensava o pior. Pelo menos a segurança de Goliath, embora
não a liberdade, estava assegurada.
O coche parou e Gabrielle recebeu ajuda para descer.
- Onde está Sua Alteza? - ela fitou os seis cavaleiros que a acompanhavam. - E meu amigo?
- O duque foi direto para o castelo - um deles respondeu, evasivo.
- Onde estamos?
Um palafreneiro aproximou-se trazendo as rédeas de uma montaria.
- Na cocheira, Alteza. A carruagem não consegue subir a escarpa até o castelo.
Em Dunraeden, Gabrielle encontrou os servos cabisbaixos e distantes. Na certa não se conformavam de vê-la vestida com o libre de um pajem. Apenas Betsy
continuava com o bom humor habitual.
- Foi apenas um logro.
- Como é? - Betsy não entendeu e ajudou-a a trocar de roupa.
- Um jogo.
- Ah, uma brincadeira. Milorde precisava disso durante esse tempo todo.
A criada deixou-a e Gabrielle escutou Cam entrar em seu próprio quarto. Preparou-se, com bastante compostura, para o momento em que o marido viria à sua
procura. Nenhum barulho na porta que ligava os dois aposentos. O duque fora dormir.
Ao alívio inicial, seguiu-se uma sensação de afronta. Ah, não se importaria se Cam não quisesse ouvir nenhuma explicação. Soprou as velas, arrumou os travesseiros
e deitou-se na grande cama vazia.
Resoluta, fechou os olhos, disposta a dormir. Em instantes refletiu que ainda não se dera conta do tamanho da cama. Foi para o meio e suspirou. Grande e
fria, concluiu. Pôs um travesseiro nas costas e sentiu-se menos solitária. Estremeceu. Os pés pareciam dois blocos de gelo. Com certeza pela manhã ela estaria congelada
e ninguém em Dunraeden lamentaria o fato. Uma lágrima deslizou por sua face. Talvez Betsy se importasse. E Goliath também, se ele soubesse.
Gabrielle sentou-se e olhou para a frente sem nada ver. Suspirou e levantou-se. Alguém teria de engolir o orgulho e dar o primeiro passo. E pareceu-lhe
que teria de ser ela. Foi até a porta do quarto contíguo e hesitou. Virou a maçaneta e entrou nos aposentos do marido.
No recinto quase totalmente escuro, Gabrielle viu uma pequena luminosidade junto à janela. Inalou o odor de tabaco. Cam fumava um charuto.
- Seria mais sensato adiarmos nossa discussão até eu me acalmar um pouco - ele alegou em tom monocórdio.
- Cam, não é o que você está pensando. Acredite. Eu não iria abandoná-lo. Ainda mais estando grávida de um filho seu.
O riso foi caçoísta.
Gabrielle aproximou-se do marido.
- Eu pretendia apenas dar-lhe uma lição. Inesperadamente, encontrei Goliath. Expliquei tudo a ele e nos preparávamos para voltar quando fomos presos.
Cam murmurou uma imprecação e virou-se de costas.
- Poupe-me de suas mentiras! Vá embora. Se continuar a provocar-me não poderei responder por mim.
Gabrielle sentiu remorsos. Não suportava vê-lo sofrer.
- Eu o amo - ela afirmou com lágrimas nos olhos. - Era o que eu desejava provar.
- Pelo amor de Deus! - O duque amassou a ponta do charuto no cinzeiro. - Não precisa encenar um drama, Gaby! - Desviou-se da mão estendida da esposa.
- Desculpe-me.
- Saia daqui enquanto ainda tenho condições de oferecer-lhe esta chance. Estou fora de mim. Por favor, não tenho intenção de machucá-la.
- Não pense que pode assustar-me com facilidade, Cam. Na verdade, a maior agonia do duque era imaginar os riscos a que a esposa se expusera. Continha-se
para não lhe dar uma boa surra no traseiro.
- Queria provar que me amava? - ele ironizou.
- Eu... É isso mesmo.
Cam beijou-a com tamanha fúria que jogou a cabeça de Gabrielle para trás. Em segundos, tirou-lhe a camisola, jogou a esposa de costas no colchão e deitou-se
sobre ela.
Gabrielle nunca sentira um desespero tão grande nos beijos de Cam e descobriu que o desejo dele era um estopim para a própria ânsia.
Cam tentou dizer-lhe que a submissão de Gabrielle era o mais importante.
- Eu te amo, Gabrielle. - Ele surpreendeu-se com as próprias palavras.
Eles permaneceram deitados, um nos braços do outro, arfantes e atônitos. Cam se recuperou primeiro, sentou-se, acendeu a vela da mesa-de-cabeceira e observou
Gabrielle.
Sua esposa não tinha o menor decoro. Nem mesmo tentou cobrir-se. Admitiu que Gabrielle era a mulher mais bela e desejável que já conhecera. A beleza dela
vinha sobretudo de dentro para fora. Não era apenas externa.
- Cam, precisamos conversar. - Gabrielle tocou-lhe o peito.
- Não. - Ele segurou-lhe os cabelos e tornou a beijá-la.
Gabrielle soltou-se.
- Cam, por favor, acredite em mim. Eu ia voltar. Juro.
- E Goliath viria junto!
- Eu não sabia que Goliath estava na Cornualha. Por acaso, tropecei nele. Por favor, acredite era mim. - Gabrielle admitiu que poderia parecer uma louca.
- Santo Deus. O que fez com ele?
- Está na masmorra. - Cam criticou a si mesmo por havê-lo encerrado na torre sul, nos aposentos anteriormente ocupados por Gabrielle, e com todo o conforto.
Gabrielle fitou-o e seu receio desapareceu aos poucos.
- Ainda bem. Receei que pudesse tratá-lo com violência.
O duque deu um soco no balaústre da cama e Gabrielle caiu para trás.
- Eu deveria mandar enforcá-lo por espionagem!
- Milorde sabe que Goliath não é espião. Ele veio para me levar de volta à Normandia. Apenas isso.
Cam pensou na discussão que tivera com Goliath após Gabrielle ter sido retirada da aduana. O homenzarrão não se intimidara e o acusara de tratar Gabrielle
com brutalidade. Lembrou-o que ela era uma jovem inocente que fora raptada de dentro de seu lar.
Corado pela veracidade da incriminação, Cam respondera que ela se tornara duquesa e que, em breve, seria mãe do próximo duque na linha de sucessão do título.
Ela não poderia aspirar a uma posição mais elevada a menos que se casasse com o próprio Napoleão Bonaparte ou com o príncipe de Gales.
A ira de Goliath cedeu lugar a uma piscadela. Depois disso, ele concordou em responder às perguntas de Cam sobre o que Mascaron sabia e qual tinha sido
o propósito da vinda para a Cornualha.
Cam decidiu que não confiaria em Gabrielle nem se ela jurasse com a mão em cima da Bíblia. Havia apenas uma maneira de ele exercer seu domínio.
- Cam, o que houve?
Gabrielle percebeu o propósito do marido e tentou afastar-se, mas foi agarrada com violência.
- Eu a avisei para não ficar aqui! Por que não me escutou, Gabrielle? Está na hora de aprender que nossas ações trazem conseqüências.
Ela intuiu que não era o amor que o condicionava. Não teve medo, mas seu coração estava destroçado. Entretanto não sucumbiria sem luta. Passou a provocá-lo
e procurou abaixar-lhe a guarda com carícias e beijos. Cam sentiu-se fraquejar, mas logo dominou a situação. Recusava-se a renunciar e congregou forças para se conter.
Segurou os pulsos de Gabrielle. Queria a submissão da esposa e não seu amor. Ela teria de obedecer a seu marido. E servi-lo.
Gabrielle não tentou resistir nem emitiu nenhum som de protesto. Cam esperava lágrimas ou recriminações que não vieram. Ela ficou deitada como uma pedra,
dominada e pensativa.
Cam, vazio e insatisfeito, puxou a colcha para cobri-la. Gabrielle não demonstrou apreciação pelo gesto delicado. De costas, como ele a deixara, continuava
a fitar o dossel. O silêncio de Gabrielle o enervava.
Virou-se e abraçou-a pela cintura. Gabrielle suspirou e afastou a cabeça. Não como um desafio, mas com indiferença. Cam ficou arrasado.
- Gabrielle...
- Sim? - O desinteresse não poderia ser maior.
- Fale-me sobre as cicatrizes que tem no ombro e na coxa. Como foi que as conseguiu?
Novamente ela se calou.
- Por favor, Gabrielle, fale comigo - Cam murmurou e acariciou-lhe os cabelos. Era o primeiro gesto de ternura que demonstrava desde que ela entrara naquele
quarto.
Surpresa, Gabrielle hesitou. Fitou-o com interrogação e começou a falar.
- A bala no ombro resultou do encontro com os féderés nos arredores de Lyon. Eles nos esperavam em uma emboscada. - Ela parou de falar e voltou no tempo.
- Quando foi isso?
- Não me lembro. Creio que eu deveria estar com dez ou onze anos. Depois daquele verão, Goliath começou a me ensinar a como usar uma pistola.
Sob as cobertas, Cam passou a ponta dos dedos na cicatriz da coxa e subiu para outra sob o busto.
- E estas?
- Mais ou menos a mesma história. - Gabrielle deu de ombros. - Deve entender que não procurávamos os confrontos. Quando nos sentíamos encurralados, tínhamos
de nos defender.
Cam afastou-se um pouco e analisou-lhe o perfil.
- Mas você era apenas uma criança! Deveria estar aprendendo a costurar e a ler.
- É verdade. Mas em uma luta, um florete é mais útil que uma agulha ou uma pena. Pode acreditar em mim.
A leviandade de Gabrielle deixou-o aborrecido.
- Seu avô tem muita culpa nisso.
- O senhor não tem idéia do que acontecia. - Gabrielle retraiu-se ao perceber a censura.
O vento chocalhava as vidraças e esse era o único som que perturbava o silêncio. Cam abraçou-a e acariciou-lhe o braço.
- Conte-me o que houve.
A respiração de Gabrielle acelerou-se.
- Éramos fugitivos. Meu mundo se resumia a Mascaron, Goliath e Rollo. Eles eram os únicos em quem eu podia confiar. Era uma vida dura. Eu não podia ser
mulher naquela sociedade masculina. Isso despertaria maledicências e suspeitas.
- Então teve de transformar-se em um menino.
Gabrielle anuiu. Cam fechou os olhos e lembrou-se que fora muito duro ao analisar a esposa. Desprezara sua falta de feminilidade e lhe dissera que faltava
muito para ela se tornar uma mulher de verdade. Imaginou como aquelas palavras poderiam tê-la perturbado.
- Eu nunca me deixei enganar por sua aparência de rapaz.
- É mesmo? - Gabrielle corou de satisfação.
- Creio que me apaixonei quando Goliath tirou-a de Andely e levou-a de volta ao chateou de Vrigonde.
Gabrielle fitou-o, admirada.
- É verdade. Eu apenas não queria admitir isso nem para mim mesmo.
- Mas o que disse...
- Eu sei - Cam interrompeu-a. - Fui um idiota! Não quero que se modifique, que deixe de ser quem é. Na verdade, não pretendi transformá-la em uma lady,
nem mesmo no início.
Estupefata, Gabrielle encarou-o.
- Continue com a história, minha querida.
- Não há muito para contar. Como já relatei, éramos fugitivos e estávamos sempre à frente dos perseguidores. Alguém, e não sei quem era, queria a nossa
cabeça. Nunca podíamos ficar em um mesmo lugar por muito tempo. Perdemos a conta de quantas vezes fomos traídos. Tivemos sorte de escapar com vida. A cicatriz na
coxa foi em conseqüência do espadim de um guarda nos muros de Valença. Tentávamos escapar depois de ter ouvido que os representents en mission tinham chegado na
região. Caí do muro e quebrei uma costela.
- O que Mascaron imaginava? Torná-la uma mártir? Na certa havia muitas outras maneiras de protegê-la. Parentes, um convento, um santuário em algum outro
lugar.
- Não seria possível. Mascaron e Goliath tinham a mesma opinião e os mesmos receios. Alguém que odiava meu avô poderia raptar-me e fazer de mim um instrumento
de vingança contra ele.
Cam abraçou-a, protetor.
- Sinto muito. Perdoe-me. Eu não sabia. Não podia saber.
Gabrielle franziu o cenho.
- Não faz mal. Não me importei de lhe contar. Não falaria no assunto para ninguém mais. Foram fatos muito marcantes e tristes de minha vida.
Cam não conseguiu responder. Um nó bloqueava-lhe a garganta. Felizmente Gabrielle não entendera suas palavras. Fora ele quem, por odiar Mascaron, mandara
seus agentes perseguirem-nos implacavelmente. Jamais encontraria perdão para si mesmo pelo sofrimento que causara a Gabrielle. O mais grave era não haver reparação
possível para tantos danos.
Cam apertou-a entre os braços e beijou-a.
- Agora é sua vez. - Gabrielle segurou-lhe os ombros e afastou-o um pouco. - Nunca me contou o que aconteceu com sua mãe e sua irmã. Sei que foi buscá-las
na França. O que houve com elas? Por que não conseguiu repatriá-las?
Imóvel, o duque retraiu-se com expressão impenetrável.
- Entendo. - Gabrielle suspirou.
- Gabrielle, por favor. Procure compreender que somos muito diferentes. Foi por isso que me senti atraído logo no início. Sinto sua naturalidade para revelar
idéias e sentimentos. Não tenho certeza se poderei agir com reciprocidade.
- Do que está com medo?
Ele tornou a abraçá-la com força, como se tivesse medo de que a arrebatassem. E foi no santuário dos braços de Gabrielle que encontrou energia para falar
sobre o episódio mais doloroso de sua vida.
Escolheu as palavras com cuidado e por vezes hesitava. Não queria penalizar a esposa com tormentos desnecessários. Ela não precisava saber da culpa que
ele atribuía a Mascaron pela morte de sua madrasta e de sua irmã. Não mencionou a prisão onde elas haviam sido encarceradas, nem o nome de Mascaron. O que contou
serviu para satisfazer a curiosidade de Gabrielle. E, sem saber, Cam acabou por transmitir com suas palavras toda a culpa e raiva acumuladas durante tantos anos.
Gabrielle acariciou-lhe o pescoço e os ombros até o término do relato, quando se fez um momento de silêncio que pesava pelas recordações de ambos.
- A loucura que se estabeleceu naquela época na França é difícil de ser explicada. - Gabrielle estremeceu. - Eu gostaria de apagar aqueles fatos de minha
memória e também que milorde pudesse esquecer. Existe um espectro que não posso identificar e que ameaça o futuro.
- Não diga mais nada, meu amor. Nada poderá nos atingir. Eu não o permitirei.
Gabrielle escondeu o rosto no pescoço do marido.
- Cam, deixe Goliath voltar para Vrigonde. Se alguma maldade acontecer a ele, como poderei ser feliz? - Ela se pôs a chorar convulsivamente e demorou para
perceber que o marido tornava a falar. - O que foi que disse?
- Eu estava dizendo que concordo. Decidi mandar Goliath de volta para a França. Ele poderá informar a seu avô sobre a mudança das circunstâncias. Mascaron
está livre, Gaby. Goliath dirá isso a ele.
Gabrielle recomeçou a soluçar. Acalmou-se depois de alguns momentos, quando conseguiu sorrir com lágrimas nos olhos.
- Assim está melhor. - Cam limpou-lhe os cílios úmidos com uma das pontas do lençol.
Ela deu um suspiro longo e tremido, e fez um esforço para controlar-se. Cam beijou-a e abraçou-a, mas sentiu Gabrielle retrair-se.
- Quero fazer amor, Gabrielle. Não como foi há pouco, mas como deve ser.
Aos poucos ela descontraiu-se. Daquela vez o amor deles foi repleto de afetividade e ternura.

Não se podia esperar que a vigilância obsessiva de Cam cedesse da noite para o dia. Ele admitia, do fundo do coração, que a esposa o amava e aceitara a
explicação sobre a presença de Goliath na Cornualha naquela noite. Mas não podia esquecer que Gabrielle viera até ele como uma prisioneira e esse era um fato perturbador.
Depois da decisão tomada, Cam descobriu, infeliz, que jamais se veria livre de uma terrível suspeita. Apesar do amor que Gabrielle tinha por ele, se lhe
fosse dada opção de escolha, provavelmente ela não ficaria com ele. França e Inglaterra estavam em guerra. Para supor o menos grave, Gabrielle ficaria dividida.
Se a fidelidade a Mascaron fosse ameaçada, qual deles ela escolheria? Cam assegurou-se que o tempo agiria a seu favor. Ela levava no ventre um filho. Quando desse
à luz e assumisse a maternidade, haveria de reconciliar-se com seu destino. Nesse ponto não haveria mais necessidade de bancar o marido cauteloso.
Gabrielle, por sua vez, demonstrava uma paciência que surpreendia os mais íntimos. Ainda não completara dezenove anos e sob alguns aspectos era ingênua
em relação à vida. Porém amadurecera muito e se tornara uma mulher de grande percepção. Sempre tivera um talento natural para julgar o caráter das pessoas. O avô
dizia que essa era uma perspicácia normanda. Com amor, convertia-se em sensibilidade. Ela amava Cam e por isso sabia ser paciente. Embora não gostasse das restrições
que o marido lhe impusera, entendia a origem dos conflitos do duque. Estava certa que, com o nascimento da criança, tudo seria resolvido para melhor.
Gabrielle reconhecia que nunca estivera tão feliz. Com o retorno de Goliath para a França e a tranqüilidade do avô provisoriamente assegurada, sentia-se
livre para amar Cam integralmente.
A felicidade de Gabrielle era contagiosa. Cam sempre demonstrara indulgência para com os servos de Dunraeden. A nova duquesa introduzira calor e simpatia
irresistíveis. Os criados trabalhavam assobiando. Os risos ressoavam pelos corredores e no salão nobre. Brincadeiras sucediam-se sem parar. Desde a chegada de Gabrielle
a Cornualha, estabelecera-se uma nova fase na vida dos habitantes de Dunraeden.
- Uma segunda conquista normanda! - Cam exclamou, rindo.
Ele se encontrava no seu gabinete e preparava-se para abrir a carta que trazia o sinete real.
- Tem razão, Alteza - Stewart, o administrador, concordou. - Comenta-se na ala dos criados que a duquesa tem apenas de agitar o dedo mínimo e Dunraeden
inteira se curvará à sua vontade.
- E o que dizem sobre o duque? - Cam ergueu as sobrancelhas e franziu os lábios.
O sr. Stewart tossiu e fitou-o de revés. A prudência ganhou espaço na confiança incipiente que ameaçava alastrar-se perigosamente?
- Sinto muito, Alteza, mas nada tenho para dizer.
Sorrindo, Cam observou a saída digna do sr. Stewart. Sacudiu a cabeça e abriu o lacre real.
Sua Majestade, a rainha, pedia sua presença em Windsor para as apresentações formais da nova duquesa.
Era uma convocação que não poderia ser recusada.


Capítulo IX

O castelo de Windsor não era a residência preferida de Jorge, príncipe de Gales. Em sua opinião, Carlton House em Pall Mall era muito mais adequado para
os herdeiros da casa de Hanover. Carlton House começava a ganhar a reputação de ser um dos palácios mais magnificentes da Europa. Apenas Versalhes, o monumento a
Luís XIV abandonado desde a Revolução, causava ciúme ao príncipe.
Enquanto seu criado particular apertava-lhe o espartilho, Jorge como sempre sonhava com o manto real. As fantasias eram bem agradáveis.
No passado, outros príncipes pensavam na ascensão ao trono como uma conquista no campo de batalha. Jorge abandonara tais propósitos. Seu irmão, York, era
um guerreiro admirado, um líder.
No passado o invejava. No momento, não mais. Transformara-se em um esteta, patrono das artes das quais era grande conhecedor. Seu legado à nação seria tão
duradouro como Poitiers e Agincourt, porém de outra natureza. Jorge valorizava a beleza, a elegância, o refinamento e sua crescente coleção de obras de arte. Prometera
a si mesmo ter um palácio que rivalizasse com Versalhes.
- Uma moeda por seus pensamentos, Jorge - seu irmão, duque de Clarence, falou, deitado sobre a colcha adamascada da cama imensa do irmão.
- Eu pensava por que Windsor exerce tanta atração sobre papai. Mamãe nunca foi feliz aqui.
- Não posso discordar. - Clarence comparou a própria silhueta corpulenta com a do irmão mais velho. - Mamãe detesta este lugar apesar de todas as reformas
que foram feitas. E não é para se admirar. Na minha opinião, é o castelo mais frio e ventoso que já vi.
- Windsor é uma peça de museu e não uma residência. Nesses tempos modernos, somente papai escolheria um palácio velho para morar.
- Está esquecendo de mencionar o duque de Dyson. Ele possui inúmeras propriedades que vão até as fronteiras escocesas. Assim mesmo resolveu morar na Cornualha,
em uma fortaleza horrível.
- Dunraeden. Não sei o motivo por que Dyson me desagrada. Deve ser por contar com a confiança de nosso pai.
Clarence deu risada.
- Qual seu jogo, Jorge? Por que insistiu para mamãe convidar o duque e a duquesa para virem a Windsor?
O príncipe olhou-se no espelho de báscula, dispensou o criado e sentou-se em uma cadeira Luís XV dourada.
- Sempre tive preferência por esse período de decoração - Jorge comentou de maneira irrelevante. - O que o faz pensar que tenho algo a ver com a presença
de Dyson aqui?
- Então por que nós estamos aqui? Fomos convocados de volta a Windsor apesar de nossa intolerância explícita ao castelo, para estar presente a uma audiência
privada onde a duquesa de Dyson será apresentada a nossa mãe.
Sua Alteza Real cruzou os dedos. Lembrou-se dos conselhos de seu melhor amigo, Charles Fox. Não entendia a necessidade de não confiar a ninguém o segredo
a respeito da duquesa de
Dyson.
- Estamos apenas curiosos para conhecer a dama em questão.
- Nós, da realeza, ou nós do plural?
- Os dois. Isso é coisa de Fox, se quer mesmo saber. Ele acha que há algo estranho sobre o casamento de lady Dyson. - O príncipe delineou as circunstâncias
que o levaram a persuadir a rainha a convocar a visita da duquesa de Dyson.
Clarence bocejou.
- Na minha opinião, Jorge, Fox precisa fazer um exame na cabeça. Meu lema é viva e deixe viver. Ninguém de nós, e muito menos Fox será capaz de passar incólume
por um exame minucioso da vida privada. - Clarence pensou em sua querida amante, a sra. Jordan, e no bando de FitzClarence com que ela o presenteara ao longo dos
anos. - Jorge! Não pensou em persuadir mamãe a receber Fox aqui, não é? Se papai ficar sabendo de uma coisa dessas...
- Não seja ridículo, Clarence. Acha mesmo que sou um imbecil?
Charles Fox era persona non grata aos olhos do rei. Se não fossem as restrições das leis inglesas, o rei já teria mandado enforcá-lo. Escutar o nome dele
era suficiente para desencadear no rei um acesso de loucura.
- Perdão, Jorge. No entanto permita-me dizer que não entendo como sua manobra poderá ter sucesso. Dyson apresentará a esposa e voltará correndo para a Cornualha.
- Ele não fará isso. - O príncipe mostrou-se confiante. - Sua Majestade, a rainha, não permitirá isso. Sabe como mamãe gostava da mãe de Dyson.
- Sei. Elas foram muito unidas quando mamãe veio para a Inglaterra como uma jovem noiva.
- Mamãe é madrinha de Dyson.
- É mesmo?
- Eu a convenci que a jovem duquesa precisa de uma patronesse. E também que o ostracismo social da duquesa se deve a rumores infundados sobre as núpcias.
- Não escutei nenhum boato.
- Clarence, isso não tem importância. - Sua Alteza suspirou. - Com a maior boa vontade do mundo, mamãe fará com que Dyson apresente a esposa à sociedade.
E quando isso acontecer, Charles estará por perto para fazer as perguntas.
- Por que Fox tem de interrogá-la? Por que o príncipe de Gales não faz isso pessoalmente? Se, como pensa, ela quer ser resgatada de Dyson, terá apenas de
fazer o pedido a um de nós quando a oportunidade se apresentar. Por que tem de ser Fox?
- E como é que vou saber? Quem pode imaginar como funciona a mente de um político? Meu irmão acaba de me dar uma idéia. Depois da audiência, vamos dar um
jeito de separar Dyson da duquesa. Falaremos com ela em particular. Se ela quiser abandoná-lo, dará o primeiro passo.
Sua Alteza ficou em pé a custo e olhou-se mais uma vez com admiração no espelho de báscula.
- Já que viemos a Windsor, suponho que teremos de falar com papai - Clarence comentou.
- Se não o fizermos, mamãe jamais nos perdoará. Vamos, Clarence. Está na hora de conhecermos a duquesa de Dyson.
Gabrielle tentava conter o tremor das mãos que o marido segurava, encorajador.
Fora um longo trajeto para chegar à residência de Hanover Square e depois até o castelo de Windsor. O esplendor desconcertava Gabrielle. Ela abominava a
pompa e a cerimônia.
Cam lhe dissera que seria uma audiência informal. Então por que usar o vestido mais suntuoso de seu guarda-roupa? O traje, em branco e tons de marfim, fora
a indumentária do casamento da mãe de Cam.
Um exército de costureiras fora chamado para reformá-lo e deixá-lo mais moderno. Ricamente bordado em dourado e tons suaves, tinha cauda de gaze, decote
quadrado e mangas bufantes. A gaze era tão bordada que dava a impressão de ser renda de Bruxelas.
A cauda era o maior problema. Incomodava-a não ver o fim da mesma. Apesar de praticar durante horas, ainda se atrapalhava. Com as plumas de avestruz que
Betsy lhe arrumara no penteado, tivera de praticar mais um pouco e não pudera evitar os próprios risos.
Windsor era intimidador. Depois de passar pela entrada Henrique III, poderia jurar que a cidade inteira de Andely cabia dentro das muralhas do castelo.
- É um castelo ou um palácio? - perguntara a Cam enquanto eram conduzidos até a presente sala onde aguardavam a rainha.
Em sua opinião, havia torres suficientes para doze castelos. O luxo ultrapassava a sua imaginação. Ricas tapeçarias nas paredes, tetos e afrescos em dourado,
pinturas e porcelanas de preço incalculável. O que mais a impressionou foram os lustres de prata trabalhada e as mesas de prata. Até as cadeiras eram incrustadas
com esse metal nobre.
- Os dois - Cam respondera.
Gabrielle estava feliz de não pertencer à família real. Não saberia cuidar daqueles tesouros. Lembrou-se da grand salle de seu castelo na Normandia. Não
gostava daquele ambiente. Era o salão de recepções de Mascaron e refletia o gosto dele. A perfeição fria a deixava receosa. Preferia ambientes mais modestos ou as
comodidades aconchegantes de Dunraeden.
Quando começara a pensar em Dunraeden como seu lar e não como prisão? Não saberia precisar.
Cam explicara a história de cada peça do mobiliário e dos recantos que foram acrescentados pelas gerações anteriores dos Colburne. O duque lhe dera plenos
poderes para decorar o castelo à sua vontade, mas anotara as peças das quais não pretendia se desfazer, algumas delas horríveis. Gabrielle garantiu a ele que fariam
juntos a remodelação que fosse necessária.
Ela inclinou-se sobre o braço da poltrona.
- Vai demorar? - sussurrou depois de uma longa espera.
- Não muito.
Para distraí-la, Cam contou várias histórias engraçadas sobre personagens ilustres - a começar por Guilherme, o Conquistador - que haviam construído, aumentado
e reformado a fortaleza ao longo dos séculos, culminando com o atual esplendor.
Gabrielle deu um pulo quando foi aberta a porta de acesso à Câmara de Audiências da Rainha.
- Calma, Gaby. Não há nada a temer - Cam assegurou-lhe, em vão, pela centésima vez.
Ela não soube dizer se entrara um servo em uniforme resplandecente ou um par do reino vestido com traje de gala. O personagem convidou-os a passar para
o outro salão. Cam segurou-a pelo cotovelo e conduziu-a pelo tapete.
- Respire fundo - o duque avisou-a e ela obedeceu.
Cam fizera de tudo para acalmá-la. Explicara que a rainha era uma provinciana em perspectiva com preferência pela vida do campo. Odiava cerimônias e os
trâmites reais. Pedira a presença da duquesa por questões de dever. Cam não dissera que, apesar das predileções da rainha, o protocolo e as tradições tinham de ser
obedecidos ao pé da letra.
Gabrielle estava magnífica. Incomparável. A gestação em início a fizera desabrochar. Cam orgulhava-se de sua esposa. Não lhe revelara que encomendara às
costureiras a reforma na saia de nesgas e a armação da anágua que permitiriam disfarçar os passos largos. E muito menos dissera que o colar de esmeraldas valia um
resgate real.
Gabrielle tropeçou, mas Cam segurou-a pela mão enluvada e o deslize mal foi notado pelos que os observavam. Detiveram-se diante da mulher de pequena estatura
sentada na poltrona real e ricamente trajada em cetim cinzento. Várias damas de companhia a rodeavam. Ao lado da rainha, conforme Cam lhe avisara, o príncipe de
Gales e o irmão, duque de Clarence. Gabrielle mal escutou as palavras do marido que a apresentava à rainha. Consciente da extensão da cauda do vestido, fez uma reverência
profunda. De olhos baixos, manteve a postura até a rainha, com voz suave, permitir-lhe levantar-se. Sem discernir o rumo da conversa, só teve certeza do acerto das
respostas pelo brilho no olhar de Cam.
- Sua esposa é adorável - a rainha afirmou depois de alguns minutos. - Por favor, Cam, conceda-me alguns minutos em particular. Precisamos conversar.
O duque não teve escolha. Antes de fechar a porta, olhou por sobre o ombro e sorriu para Gabrielle. Notou que o príncipe de Gales e Clarence a ladeavam,
assim como duas damas de companhia da rainha.
Nos seus aposentos privativos, a rainha dispensou as acompanhantes com um gesto. Só depois, Sua Majestade explicou-se.
A rainha gostava de Cam. Afinal era sua madrinha, embora ela não mostrasse nenhum apego por muitos de seus afilhados. O objetivo dela era aprovar Gabrielle
como duquesa e assim por fim aos boatos que seu casamento ocasionara.
- O príncipe de Gales ofereceu-lhe apoio - a rainha afirmou, confidencial.
- Muita bondade dele - Cam foi irônico.
- Nenhuma porta será fechada para sua esposa.
- Na primavera talvez...
- Será muito tarde. - Sua Majestade pediu a presença de suas damas que vieram em seguida. - É melhor apagar o fogo antes que o mesmo se espalhe. - A rainha
levantou-se e Cam imitou-a. - Jorge lhe dirá o que deve ser feito.
- Obrigado, Majestade.
- Faço isso por sua mãe. Quando ela se foi, tão jovem, perdi uma grande amiga.
Assim que a rainha se foi, Cam saiu apressado. Pensou em estrangular o príncipe se ele ousara ofender Gabrielle. O som de risos, suaves e íntimos, fez com
que ele se apressasse ainda mais. Encontrou-os no salão nobre, reunidos em volta de uma magnífica armadura de criança que pertencera a Carlos I.
- Cam - ela o chamou. - Veja que interessante. Windsor teve o mesmo destino de Versalhes quando o rei foi decapitado.
- Como é? - ele perguntou a Gabrielle, analisando os dois membros da família real.
- Os revolucionários, tanto da Inglaterra como da França, executaram o rei e tiveram a desfaçatez de vender os bens deles.
- Na Inglaterra - o príncipe explicou - os revolucionários atendem pelo nome de parlamentaristas.
As damas de companhia davam risinhos abafados por trás dos lenços de renda.
- Está se referindo a Carlos I? - Cam voltou a si. - A Cornualha teve de vender bens do castelo de Windsor para pagar os exércitos.
- Meu avô - Gabrielle começou a explicar para o príncipe
- também foi um dos que se aproveitaram dos tesouros de Versalhes. No nosso castelo da Normandia...
- Gabrielle! - O duque sorriu para suavizar a reprimenda.
- É tarde, precisamos ir.
Ela corou pelo deslize grave. A madrasta de Cam, uma Valcour, nada tinha a ver com a Normandia. Segundo a história inventada por ele, Gabrielle não se lembrava
dos parentes e fora criada por estranhos. Ela criticou-se em silêncio pela língua solta.
- Não diga que temos de ir embora, Cam.
- Ora, Dyson - Clarence interveio. - Prometi mostrar à duquesa a sala da Ordem da Jarreteira. Ela não acredita que a primeira ordem da cavalaria inglesa
é representada por uma peça íntima do vestuário feminino.
Disposta a disfarçar a gafe que cometera, Gabrielle riu e falou com a dama de companhia mais jovem.
- Lady Mary, estes cavalheiros estão caçoando de mim? Uma liga?
- É verdade, Alteza. Uma liga - Mary respondeu. - Embora possa ser uma questão de ponto de vista rotular isso como glória ou vergonha.
- Perdoe-me, mas creio não haver entendido.
- Clarence adora contar a história - foi a vez de o príncipe interferir. - Dyson, por que não deixa a duquesa acompanhá-lo? Seria uma pena estar em Windsor
e não ver as bandeiras e os escudos dos cavaleiros da Ordem. Enquanto esperamos, tomaremos um pouco de vinho do Porto.
- Gabrielle? - Cam perguntou.
- Ah, sim, por favor!
Clarence sorriu para o duque e deu o braço para Gabrielle.
- O rei Eduardo III deu um baile no castelo de Windsor em 1347 ou 48, não me lembro bem... - Clarence faltava enquanto se afastavam.

- O rei apanhou a jarreteira - Gabrielle contou para Cam uma hora mais tarde, enquanto a carruagem saía da pequena aldeia de Windsor rumo a Londres, a vinte
e cinco quilômetros de distância. - Na certa milorde já sabia disso.
- Sim, mas esqueci muitos detalhes.
Gabrielle não se fez de rogada. O relato a fascinara.
- Os cortesãos do rei e algumas damas se empenharam em comentários pouco gentis.
- O que era de se esperar. A lenda diz que Joana de Kent era amante do rei.
- Ah, claro que milorde conhece a história - Gabrielle não escondeu o desapontamento.
- Não me lembro de muita coisa. Pode continuar.
- Tem certeza?
- Sim.
- Pois eu acho que ela não era amante do rei.
- Por quê?
- O Príncipe Negro, filho do rei, casou-se com ela. Mas isso não importa. O rei apanhou a liga, fitou os olhares maliciosos e disse: Honi soit qui mal y
pense.
- A vergonha é para quem pensa em maldade.
- Milorde quer me enganar. Não direi mais nada.
Amuada, Gabrielle ficou em silêncio.
- Gaby, não me recordo de tudo. Continue.
- Está bem. - Ela suspirou. - O rei prometeu que, em um futuro não distante, os cortesãos haveriam de orgulhar-se de usar a liga. Não demorou muito e ele
fundou a Ordem dos Cavaleiros da Jarreteira. - Ela mudou logo de assunto. - O que o príncipe de Gales lhe disse quando eu saí com Clarence?
- Nada que mereça ser comentado. Gabrielle, eu estava pensando em ficar em Londres por uns dois meses. Fizemos uma longa viagem desde a Cornualha. Poderíamos
aproveitar o tempo para apresentá-la à sociedade.
- Oh, não! Por favor! Não me sinto preparada para isso!
- Claro que está! Minha querida, sua atuação esta noite foi extraordinária. Fico orgulhoso de ser seu marido. Além do mais, não poderei deixar a cidade
no momento.
- Então mande levar-me de volta para a Cornualha.
- Do que está com medo?
- De nada e de tudo. Esta noite quase estraguei o jogo.
- Mas conseguiu recuperar o engano. Tenho certeza que isso não se repetirá.
- Cam, pense um pouco. Alguém poderá me reconhecer! Lorde Whitmore e seus agentes me foram apresentados em Vrigonde.
- Falarei com Pitt em particular. Ele saberá o que fazer. Não me causará surpresa se lorde Whitmore for mandado para a Irlanda durante o período de nossa
estadia em Londres.
- Ah, como se isso fosse tudo. Cam, não poderei ser feliz na sociedade.
- Por quê?
- Jamais tive vontade de freqüentar salões e ambientes requintados. Não tenho vocação para ser uma dama. Eu já o ouvi dizer algo semelhante. - Gabrielle
deu um grito quando Cam sentou-a em seu colo e abraçou-a.
- Tenho a mania de falar demais. E muitas vezes, bobagens.
- As palavras eram sinceras...
- Eu estava lutando contra seu charme irresistível. Pode-se culpar um guerreiro derrotado de usar as armas que lhe restam? Juro em nome da Ordem da Jarreteira
que aquela opinião não foi sincera.
- Cam...? Milorde é cavaleiro da Ordem?
- Bem, de certa maneira. Eu estava pensando nas ligas de minha mulher. - Por baixo da saia-balão, ele acariciou a perna de Gabrielle e puxou uma das ligas.
- Cam?
- O que é? - Cam beijou-a no pescoço.
- Sou uma lady. Solte-me.
- Não sem a minha liga! - Ele tirou-lhe o sapato e um minuto depois exibiu o troféu.
- Minha meia vai cair!
- Não me tente! - Cam fitou-a com intensidade.
- O que vai fazer com isso?
Ele enfiou a tira de elástico e renda no braço.
- Pronto. Acabei de criar a ordem das ligas de Gabrielle.
- Creio que os ingleses são todos malucos!
- Agora vamos ao teste. - Cam esfregou a palma das mãos.
- Teste? - Gabrielle fitou-o com suspeita. Nunca vira o marido tão bem-humorado.
- Um cavaleiro da ordem deve ser testado. Por exemplo, pelo fogo.
- Ah, então preciso estabelecer meus próprios métodos, pois a ordem é minha.
- Isso me parece razoável. Pode falar.
Gabrielle cochichou sua idéia e Cam segurou-a pelos ombros.
- Estou lhe avisando, minha querida, que apenas um cavaleiro deverá passar por essa prova. Nesse caso, este seu amo e senhor.
- Aqui não, Cam! O que o cocheiro vai pensar?
- Honi soit qui mal y pense - Cam provocou-a, malicioso e beijou-a.
Cam não confessou para Gabrielle que recebera ordens expressas da rainha para ficar em Londres. O príncipe de Gales deixara bem evidente que eles deveriam
fazer parte da próxima temporada. Gabrielle ficaria apavorada só de pensar no fato.
Ele preocupou-se com a possibilidade de ser descoberta a verdadeira identidade da esposa. Espantava-o saber que seu instinto territorial assemelhava-se
ao dos animais. Gabrielle lhe pertencia e só desistiria dela depois de morto. Uma idéia nada civilizada. Ela o repreenderia, se soubesse.
A carruagem fez uma curva e Cam protegeu melhor a esposa adormecida. Gabrielle suspirou e aconchegou-se mais. Garantiu a si mesmo nunca permitir que a felicidade
dela fosse ameaçada.
Os inimigos haviam-no forçado a alterar a estratégia. Em algumas semanas a questão da identidade de sua esposa seria irrelevante. Dependia apenas de Mascaron
vir para a Inglaterra. Ninguém mais o culparia por escamotear o nome do avô de Gabrielle das autoridades francesas.
Rodier estava providenciando a saída de Mascaron da França. Cam acreditava que ele viria sem constrangimentos. Mascaron não era tolo e concluiria que seu
tempo no Ministério da Marinha estava com os dias contados. Ficar na França o prejudicaria.
Lansing lhe dissera certa vez, que se Fouché viesse a suspeitar que Gabrielle fora raptada, acabaria descobrindo tudo.
Já chegara a refletir sobre a hipótese de denunciar às autoridades francesas que Mascaron passava informações para o serviço secreto inglês. Pensar em Mascaron
fazia seu sangue ferver de ódio. Mas isso fora antes de apaixonar-se por Gabrielle.
Quanto à temporada que os aguardava, não se preocupava. Tinha confiança na habilidade de Gabrielle de comportar-se à altura de sua nova posição social.
Depois voltariam para a Cornualha. No ano seguinte, nasceria o filho deles. A vida nunca fora tão doce.

Naquela mesma noite o príncipe de Gales reuniu-se com alguns de seus amigos na Carlton House. Clarence participou do encontro Fox e Sheridan tinham vindo
na companhia de Gervais Dessins, um imigrante francês. O príncipe não gostou do jovem.
- Nunca me acostumarei com o frio de Windsor. - O príncipe fitou as chamas da lareira enorme e as vidraças cerradas. - Estou congelado.
- Alteza, qual a sua impressão sobre a duquesa de Dyson? - Charles Fox limpou a testa suada com o lenço.
Richard Sheridan pegou a garrafa de conhaque no aparador Hepplewhite. Serviu-se e ofereceu a bebida para os outros. Não havia servos na sala. O príncipe
dispensara-os em nome da privacidade.
- Uma jovem extraordinária.
- Cativante - o duque de Clarence endossou as palavras do irmão. A duquesa o fizera sentir-se o homem mais inteligente da Inglaterra, opinião contrária
a todos que o conheciam. Uma pena Dyson tê-la conhecido primeiro. - Não me surpreenderá se ela revolucionar a sociedade - comentou com malícia.
- Até pode ser - Fox fixou em Clarence seu olhar penetrante. - Mas o principal é descobrir por que Dyson a mantinha como prisioneira na Cornualha.
- Não temos certeza desse fato - Sheridan interveio, conciliador.
Fox fitou Dessins com olhar interrogativo e o francês deu uma tossidela. Dessins sugerira um ardil aceito sem demora. Fox teria de persuadir o príncipe
a usar de sua influência e trazer a duquesa de Dyson para a sociedade. Se por um lado Fox pretendia desacreditar Dyson, de outro Dessins tinha objetivos mais dissimulados.
Recebera instruções de Fouché para tornar-se amigo da duquesa. Congratulou-se por ter conseguido a confiança do sr. Fox e por reavivar as cinzas das suspeitas do
político. Entretanto, para seus propósitos, não poderia demonstrar o interesse na duquesa.
- Segundo o camareiro de Dyson, o duque foi muito brutal com a jovem quando a raptou.
- Ele nunca negou ter forçado a saída de Gabrielle da França - Sheridan comentou.
- Louise Pelletier, amante de Dyson, deixou escapar algumas coisas interessantes.
- Diga logo.
- Que a jovem era uma criatura literalmente selvagem.
- Não sei como Dyson foi se envolver com uma pessoa dessas.
- Estão enganados - o príncipe afirmou. - Clarence, conte-lhes depois a respeito de Gabrielle. Cavalheiros, se querem a minha opinião, creio que estamos
seguindo a pista errada.
O príncipe deteve o olhar nas peças requintadas do mobiliário de Luís XV que já haviam enfeitado os salões do palácio de Versalhes. A duquesa ficaria espantada
quando entrasse no Carlton House.
Disse a si mesmo que o caso Dyson o aborrecia. Tinha problemas mais sérios com que se preocupar. Por exemplo, as reformas de Carlton House. Voltou a pensar
em Windsor. Não decidira se transformaria o local no palácio mais luxuoso da Europa, quando fosse coroado rei. Se a decisão fosse positiva, teria de criar um salão
que pudesse rivalizar com o dos Espelhos de Versalhes. Não. Teria de superar a criatividade de qualquer rei francês. Até lá poderia passar o tempo tornando mais
bela sua residência em Brighton. A posteridade haveria de julgá-lo.
- Um casamento por amor! - Sheridan ironizou.
- Algo me diz que assustei Dyson e por isso ele se casou com a jovem - Fox alegou. - E por um motivo ainda não detectado, ele reluta em apresentá-la à sociedade.
Alteza, ela permanecerá na cidade?
- Ah? - O príncipe pensava nos mistérios da decoração.
- Gostaria de sondá-la.
- Ficar na cidade? - O príncipe esforçou-se para voltar à reunião. - Ah, a jovem duquesa! Sim, é claro. Dyson chegou a agradecer-me por meu interesse em
favor da esposa. Não relutou nem um pouco em satisfazer os desejos de Sua Majestade. Ah, isso já me custou muito trabalho, Charles. Terá de encontrar outro meio
de chegar ao duque.
O príncipe não aceitou as despedidas de ninguém. Insistiu em mostrar aos convidados as últimas reformas de Carlton House. Decidira trocar a severa decoração
holandesa por algo mais opulento. Ninguém ousou contradizê-lo.
Os amigos foram dispensados de madrugada, ansiosos de se verem livres de encontro tão aborrecido. Exceto Dessins que, exultante, foi para casa e não conseguiu
dormir.
A duquesa não era Gabrielle de Valcour, segundo Fouché o informara. Suspeitava-se que Gabrielle fosse a neta de Mascaron que, se comentava, morrera afogada.
O duque de Clarence dissera, sem suspeitar de nada, que o avô da duquesa tinha um castelo na Normandia. Tudo se encaixava.
Deitado na cama, Dessins fitava o dossel. Se agisse corretamente, o primeiro-cônsul lhe concederia honrarias inimagináveis. Seria considerado o salvador
da França. Mascaron, como assistente do ministro da Marinha, teria passado inúmeros segredos para os britânicos. A duquesa era a chave para deslindar o mistério.
Fouché suspeitava que ela fosse uma refém. O que não parecia provável diante do que Clarence sugerira naquela noite. De qualquer forma, ela teria de voltar para
a França.

Da janela de seu escritório no Ministério da Marinha, Mascaron observava a mais bela cidade da Europa que vestia o manto rendado de luzes para a noite.
Refletia amargamente nas ironias de sua vida. E na maior de todas. Uma inocente pagaria pelos pecados dele. Pensou em Gabrielle e em Dyson. Amaldiçoou os deuses
por seus caprichos.
Mais uma vez a vitória fora arrebatada de suas mãos no momento final. O poder o iludira. A riqueza não o ajudara. A desgraça o perseguira. O espectro da
morte não lhe era estranho. Goliath retornara persuadido de que Gabrielle estava protegida por um homem que a amava.
A tolice de confiar nos ingleses fizera com que se descuidasse. A sua cegueira fora imperdoável. Teria sido muito simples traçar uma linha de união entre
fatos e personagens. Dyson. Héloise de Valcour. Abbaye. Os anos em que tinham sido perseguidos como animais. O rapto de Gabrielle. Finalmente a ameaça da descoberta.
Dyson o teria traído ou Fouché teria descoberto tudo sozinho? Não importava. O resultado seria o mesmo.
Rezou para que antes de enfrentar o pelotão de fuzilamento, Goliath lhe dissesse que tivera sucesso no último e desesperado empreendimento. Para salvar
Gabrielle, Goliath teria de eliminar o inglês.
A porta foi aberta e um funcionário entrou.
- Monsieur Fouché, sir.
Mascaron sorriu diante da inquietação do jovem.
- Acalme-se, Montaine. Fouché e eu nos conhecemos há tempos. Este encontro já deveria ter acontecido. Peça-lhe que entre.
Mascarou sentou-se atrás da escrivaninha. Esperando o pior, apagara todas as evidências que pudessem incriminá-lo. Mas se Fouché quisesse, produziria certezas
que lhe serviriam.
Mascaron não ofereceu a mão para o visitante. Meia hora depois, Fouché chamou pelo funcionário. Montaine entrou correndo. Encontrou Mascaron inconsciente
e caído sobre a mesa.
- Tudo aconteceu de repente - Fouché explicou. - Estávamos tomando vinho branco de Reno. De repente o sr. Mascaron queixou-se de dor de cabeça e desmaiou.
Montaine pegou a garrafa aos pés de Mascaron e deixou-a sobre a mesa.
- Ele está... Morto?
- Apenas desmaiado. - Fouché tocou na testa de Mascaron. - Parece estar com febre. Chame os porteiros. Eu levarei monsieur Mascaron até a casa dele.
O cocheiro não precisou de instruções. O endereço lhe fora fornecido de antemão. Castelo de Vrigonde.
Fouché refletiu que poderia levar Mascaron até a conciergerie. Se não encontrassem provas, elas seriam facilmente fabricadas. Mas suas ambições iam além
de Mascaron. O avô era a isca para a neta. Ela, para o duque inglês. E com esses três ases, o primeiro-cônsul certamente o alçaria ao posto que ocupava anteriormente.
Não se deve confiar demais, Fouché advertiu-se. Talvez o duque não se importasse com Gabrielle. Nesse ponto, as evidências eram incertas. Deu de ombros.
Ainda lhe restavam dois pássaros na rede.
Quando Dyson resolvesse agir, Fouché soltaria a armadilha.

Cam entendeu que subestimava seus inimigos quando viu Louise Pelletier.
Imediatamente procurou Gabrielle com o olhar. Levou alguns minutos para localizá-la no salão superlotado de Devonshire House. Ela se encontrava com Gervais
Dessins, o mais devotado dos admiradores que conquistara havia uma quinzena, depois que os jornais deram a notícia de que ela fora recebida pela rainha.
Louise aproximou-se de Gabrielle e Gervais com um sorriso que não agradou a Cam. Confiante, intimidativo e superior. Tudo em excesso para quem se dirigia
a uma duquesa. Louise não se demorou e logo foi à procura de outro grupo.
O alívio de Cam durou até enxergar o sr. Fox que se entretinha numa palestra com o príncipe de Gales e a anfitriã Georgina, duquesa de Devonshire. Os Devonshire,
grandes admiradores de Fox, contribuíam generosamente para sua causa. Cam se encontrava em uma fortaleza whig. Embora nas reuniões sociais a política tivesse pouca
importância, ele não se sentia à vontade rodeado por pessoas que, sob seu ponto de vista, só falavam asneiras.
Do outro lado do salão, Fox ergueu a taça em um brinde e Cam retribuiu. Sheridan derretia-se por causa de lady Bessborough e lorde Granville-Leverson-Gower,
amante dela, pouco podia fazer. O conde, marido da beldade, rodeava os três como um corvo. Devonshire, anfitrião perfeito, circulava de um lado a outro. Todos sabiam
que a dama a seu lado era sua amante e Devonshire House, o lar dela. Triângulos amorosos não surpreendiam círculos de posição social elevada.
Ali estavam representadas as mais importantes famílias whigs. Os Melbourne, os Holland, os Oxford, os Ponsonby, além de uma multidão de personagens de menor
mérito. Ao pensar nos escândalos que envolviam a maioria dos pares do reino, Cam concluiu que sua própria conduta em relação a Gabrielle poderia ser condenada. Fitou
novamente Louise e convenceu-se de que a presença dela não era por coincidência. Louise viera mal-intencionada.
- O que ela está fazendo aqui? - Cam não conteve a irritação.
- Louise? - Lansing seguiu o olhar do amigo.
- Ela mesma!
- Não ouviu dizer que ela é o mais novo flerte do príncipe de Gales? Ela é convidada para todos os lugares. Eu comentei isso com milorde.
- Comentou nada! Também não acredito nesses convites.
- Louise pode não ser admitida em Windsor ou outras casas de elevada estirpe. Mas poucas portas estão fechadas para ela. Se alguém quiser a presença de
Sua Alteza Real terá de inscrever o nome de Louise na lista dos convidados. O que houve, Cam?
Os pares se formavam para dançar a quadrilha. Gabrielle sorriu de longe. Perto dele, Louise e seu par.
- Cam - Lansing bateu-lhe no ombro -, não me diga que seus pecados o estão perturbando! Esqueça isso, amigo. Não contou para Gabrielle que se transformou
em um homem de caráter irreprovável?
- Não, mas essa é uma omissão que pretendo retificar em breve.
Não dissera a Gabrielle que no início do casamento alugara uma casa para Louise em Falmouth.
- Ela está aqui - Lansing sussurrou.
- Quem?
- Lady Caroline Ponsonby, filha de Bessborough.
Cam fitou as portas por onde acabava de entrar uma jovem loira e dois cavalheiros.
- Lady Caroline e seus cães de guarda - Cam comentou, cínico.
- São irmãos dela - Lansing alegou.
- Simon! O que esteve fazendo durante a minha ausência?
Lansing sorriu, tímido.
- Milorde não foi o único a ser atingido pelas flechas de Cupido.
Cam nada respondeu.
- Sei no que está pensando, Cam. Que os Bessborough jamais permitirão o meu enlace com ela, pois pretendem casá-la com um herdeiro whig rico e com grandes
títulos.
- Isso mesmo. - Caroline Ponsonby era muito teimosa para alguém de caráter tão gentil como o de Lansing.
- William Lamb é louco por ela - Lansing afirmou sem desfitar a jovem que cumprimentava os conhecidos.
- Pensei que o herdeiro Devonshire estivesse na corrida.
- Ah, ele não passa de um menino.
Cam evitou comentar que o marquês de Hartington era da mesma idade de Caroline Ponsonby.
- Não creio que William Lamb tenha muita chance - Lansing afirmou. - As mães, lady Melbourne e lady Bessborough têm aversão uma pela outra.
Cam acreditava que Caroline Ponsonby escolheria quem mais lhe agradasse. E segundo ouvira dizer, William Lamb liderava o cortejo.
Quando a música terminou, Lansing pediu licença ao amigo. Foi em direção de Caroline; e Cam, na de sua presa.
Gabrielle parou de sorrir quando viu seu marido aproximar-se de Louise Pelletier e sair com ela da aglomeração. Cabeças juntas que lembraram intimidade.
Gabrielle hesitou, fingindo procurar um conhecido.
Charles Fox percebeu a cena e inclinou a cabeça. Gabrielle estremeceu e procurou Cam. Não o encontrou. Ouviu risos. Virou-se. Seu marido levava Louise para
fora do salão de baile.
- Alteza, permita que lhe ofereça meu braço - Charles Fox falou com suavidade.
Confusa, Gabrielle não teve outro recurso a não ser aceitar a gentileza. Cam prometera não sair do seu lado para evitar transtornos. Sentiu-se abandonada.
Traída. Cam a deixara sozinha e procurara a companhia de uma beldade.
- O... obrigada. - Gabrielle permitiu que o sr. Fox a conduzisse para o corredor.
Casais caminhavam e outros estavam sentados tête-à-tête nas cadeiras dispostas junto às paredes.
Gabrielle sentou-se, cruzou as mãos no colo e esperou um interrogatório que certamente viria. A história fora repetida à exaustão. E quanto menos falasse,
melhor. Gabrielle de Valcour fora retirada da França contra sua vontade. Depois de semanas Cam e ela acabaram se apaixonando e o enlace ocorrera em seguida. Sobre
sua vida na França não poderia citar nomes para não arriscar a vida de pessoas inocentes. O sr. Fox sentou-se a seu lado.
- A sra. Fox pediu-me para agradecer-lhe pessoalmente por sua bondade.
- Sra. Fox?
- Será que a minha Liz esqueceu de dizer seu nome?
- Sr. Fox, creio que houve um grande mal-entendido. Não tive o prazer de conhecer a sra. Fox.
- As duas foram às compras na quinta-feira.
Gabrielle estranhou o teor da conversa, embora seu instinto lhe dissesse que ele não lhe queria mal.
- Vossa Alteza não se lembra?
Gabrielle procurou recordar-se. Na quinta-feira a chuva dera uma trégua. Cam, ocupado com negócios, insistira para ela sair acompanhada por uma das criadas.
O cocheiro fora orientado para percorrer as melhores lojas da Bond Street. A carruagem fizera uma parada e o gerente de um dos estabelecimentos a ajudara
a descer. Os vendedores se esmeraram em atenções e mesuras, o que deixara Gabrielle irritada. Limitara-se a comprar agulhas e linhas.
Na seção de fitas, notara que o gerente advertia um vendedor que atendia uma senhora mais velha. O rapaz recebera ordem para dar atenção prioritária à duquesa
de Dyson.
- Oh, Deus, aquela era a sra. Fox?
- Era.
Gabrielle não contara nada para ninguém, muito menos para Cam. Oferecera a cadeira para a outra cliente e garantira ao vendedor que esperaria sua vez. O
gerente não permitira. Gabrielle teimara e dissera que a dama chegara primeiro. Sem nada comprar, não perdera a oportunidade de instruir os funcionários sobre os
deveres de "fraternidade, igualdade e liberdade". Estendera o braço para a senhora que fora ofendida e as duas saíram da loja. Na rua, haviam se separado.
- Sinto muito por ter causado transtornos a ela.
- Transtornos! Minha querida, Elizabeth ficou encantada!
- É mesmo? - Gabrielle duvidou e imaginou o que o marido diria se soubesse que ela enunciara o lema da Revolução, ainda mais em público!
- Sua Alteza, o duque, sabe que se casou com uma republicana? - Fox pareceu ler-lhe a mente e divertiu-se, sem malícia. - Não se preocupe, Alteza, esse
será nosso pequeno segredo.
Gabrielle não se julgava uma adepta da república, mas não debateu o assunto com o sr. Fox.
- Não me considero amigo de seu marido - Fox disse com seriedade. - Milady sabe disso. Mas se lhe convier, milady, pode considerar-me um amigo. Não estou
afirmando isso levianamente. Se precisar, poderá contar com meu apoio.
Fox fitou-a com intensidade que teve a força de um raio. Gabrielle ficou satisfeita de poder confiar na amizade dele. Agradeceu à Providência o encontro
fortuito que tornara aquilo possível.
E mais uma vez o sr. Fox leu seus pensamentos.
- A sra. Fox tem pouco a ver com isso, mas posso entender por que ela gostou tanto de Vossa Alteza. Bem, não pretendo fazer-lhe perguntas constrangedoras.
Tenho certeza que as respostas estudadas seriam perfeitas. Entretanto eu lhe peço que se lembre do que lhe direi. Sou seu amigo. Pode esperar minha proteção sempre
que for preciso. Não tentarei deixar outra vez Dyson em situação difícil - ele mexeu as sobrancelhas grossas -, pelo menos no que disser respeito à sua jovem e bela
esposa. Porém não prometo nada se ele cometer um ato inoportuno na Câmara.
Gabrielle e Fox conversaram mais um pouco sobre generalidades antes de voltar ao salão de baile onde Gervais Dessins aguardava, impaciente. Fox despediu-se
e os deixou.
- Vossa Alteza demorou-se na companhia do sr. Fox - Dessins comentou enquanto aguardavam a orquestra.dar os acordes iniciais.
- Interessante, não vi a sra. Fox. Ela está aqui?
- Não. A sra. Fox não costuma sair muito. Para dizer a verdade, ela não costuma ser recebida na alta-roda. A antiga notoriedade não perdeu sua força.
- Como assim?
- No ano passado, a mulher que todos pensavam ser amante de Fox revelou ser esposa dele.
- Não entendi.
- Eles estavam casados há anos.
- Pensei que o sr. Fox fosse um libertino.
- Ele gosta que pensem isso, mas é muito devotado à sra. Fox. Não há dúvida de que ela foi amante dele antes do casamento e não há muitos cavalheiros que
assumem as amantes.
Gabrielle não duvidou disso. O valor do sr. Fox elevou-se mais um pouco diante de seus olhos.
- Vossa Alteza conhece a sra. Fox pessoalmente?
Gabrielle anuiu, distraída. Acabava de ver Louise Pelletier, desacompanhada, voltar ao salão. Permitiu que Dessins a levasse rumo ao salão de jantar e,
perto da escadaria, encontraram Cam.
- Cam, seu rosto! - Gabrielle gritou.
- Eu estava tentando fazer amizade com um gato - Cam respondeu, pesaroso. Limpava com o lenço um ferimento que sangrava. Havia sangue por toda a parte.
- Venha jantar conosco - Dessins convidou-o.
- Não, obrigado. Se não se importam, tenho de cuidar disso. Eu os encontrarei mais tarde.
Eles observaram em silêncio o duque subir os degraus, apressado.
- Estou imaginando quem seria o gato a que ele se referiu.
- Está mesmo?
A sensação de desânimo aumentou a ponto de pesar como uma pedra caindo no estômago de Gabrielle. Ela engoliu em seco e tratou de erguer o queixo. Não deveria
ceder às fantasias sem fundamento.
Cam a cumprimentara pelo sucesso de seu desempenho naquelas duas semanas de permanência em Londres. Desde a apresentação à rainha, passara por inúmeras
festas e chegara ao baile de gala dos Devonshire. Sempre com a postura de uma verdadeira duquesa. Por que então ceder a pensamentos ridículos?
Contemplou a mesa ricamente adornada com prata e cristais. Sobre as toalhas de renda, uma infinidade de iguarias destinadas aos mais finos paladares. Enquanto
Dessins servia os pratos, Gabrielle admitiu que ficara inquieta ao ver Louise Pelletier aproximar-se com as garras expostas.
Louise lhe dissera ter passado a maior parte do verão em Falmouth. Cam nunca lhe falara sobre isso. Por que ela se referira à noite de casamento deles?
Havia algo estranho e desconhecido que precisava ser descoberto.
Dessins falou o tempo inteiro. Gabrielle fitava a porta, mas Cam não voltava.
- Em que altura do Sena fica o castelo de seu avô?
- Como é? - Gabrielle alertou-se, ciente do perigo. O sorriso inocente de Dessins não a enganou.
- Fica próximo de Andely, Tosny ou... Vrigonde?
Gabrielle fitou-o, impassível.
- Gabrielle, pode confiar em mim. Sou seu amigo.
Dessins era jovem, atraente e bem relacionado. Nem mesmo Cam duvidara de suas boas intenções. Apesar de ter aceitado a companhia dele naquelas duas semanas,
Gabrielle descobriu que não gostava dele.
- Quem é o senhor?
Dessins riu, dissimulado.
- A pergunta deveria ser quem é a senhora?
- Como o senhor bem sabe, Gabrielle de Valcour antes de me casar.
- Sei, sei. Dyson tirou-a da França e tornou-se seu tutor.
- Isso mesmo.
- Por que ele se casou com Vossa Alteza?
- Por amor.
- Permita-me duvidar disso.
Embora falassem em voz baixa e em francês, calaram-se enquanto os criados de libre removiam os pratos vazios e tornavam a completar as taças com vinho.
- Por que diz isso?
Dessins deu de ombros.
- Não pretendo ofender ninguém. Vossa Alteza sabe disso tão bem quanto eu.
- Sei o quê? - Gabrielle impacientou-se.
- Ora que o duque, para manter as aparências no casamento, tirou a amante do castelo de Dunraeden. Mas a instalou nas proximidades. Em Falmouth, para ser
mais exato.
Gabrielle permaneceu em silêncio por alguns minutos, antes de ceder às emoções.
- Isso é mentira! - gritou.
As conversas ao redor cessaram e depois recomeçaram em sussurros.
- Gabrielle, como é que não sabia? Seu casamento foi uma farsa.
- Nada disso. - Ela procurou controlar-se. - Foi por amor!
- Ele a raptou e a fez de refém! O duque teve de casar-se, pois o príncipe de Gales constrangeu-o a entregar a refém que ficaria sob a custódia da Coroa.
- Eu era sua pupila. Nós nos apaixonamos. E nos casamos. - Gabrielle falou devagar, cansada.
- Ah, e por isso ele não dispensou a amante! Agora entendo o que aconteceu. Milady se apaixonou por ele.
Gabrielle negou com um gesto de cabeça, mas o olhar a traiu.
- Dyson a usou. A sua paixão foi uma grande vantagem para ele. Tornou-se mais fácil de manipular milady. - Dessins segurou-a pelos pulsos e impediu-a de
levantar-se. - Por favor, escute-me! Se eu imaginasse sua ignorância dos fatos, não teria tocado no assunto. Dyson trouxe-a para a Inglaterra contra sua vontade.
Suponho que milady casou-se com ele para proteger Mascaron, seu avô. Tenho uma mensagem dele.
Gabrielle fechou os olhos.
Dessins era um mentiroso. Cam a amava e jamais trairia os votos matrimoniais.
Ao mesmo tempo lembrava-se de cenas, trechos de conversa e impressões que conferiam veracidade às palavras de Dessins.
Louise Pelletier. Louise Pelletier. Louise...
O que realmente importava era a mensagem de seu avô. O restante seria resolvido mais tarde. Abriu os olhos.
- Eu gostaria de dar uma volta pelos jardins, Dessins. Por favor, acompanhe-me.
- Com o maior prazer.
Mais tarde, através de uma janela no pavimento superior de Devonshire House, Dessins observou a partida de Gabrielle. Ela foi conduzida até a carruagem
por Lansing que ficara muito irritado ao encontrar a esposa do amigo conversando com o imigrante francês em um canto dos jardins. O duque mandara chamar um médico
às pressas e fora para Hanover Square onde ficaria à espera deles.
Dessins sorriu. Gabrielle, apesar do choque a que fora submetida, comportara-se com a dignidade de uma duquesa.
Ele não poderia estar mais orgulhoso de si mesmo. A duquesa de Dyson era mesmo a neta de Mascaron. Ela confessara tudo e garantira desejar voltar com ele
para a França. Aquele fora o melhor desempenho de sua carreira. Em um golpe de gênio aproximara as duas mulheres de Dyson. Louise, mesmo sem saber, o ajudara imensamente.
Teve certeza que Gabrielle não acreditaria na inocência de seu marido, nem que ele jurasse com a mão sobre a Bíblia.
Gabrielle era inteligente e cautelosa. Como um agente treinado, ela deixara de lado as considerações pessoais e fora direto ao assunto assim que encontraram
um arvoredo que os esconderia de olhares indiscretos. Não houve lágrimas, nem recriminações. Admirável.
- Quem é o senhor?
Ele dissera que trabalhava para Mascaron, que levara meses para localizá-la e outro tanto para falar com ela em campo neutro. Inquietara-se quando Gabrielle
perguntara por Goliath. Fouché nunca mencionara aquele nome.
- Eu o mandei de volta para avisar Mascaron que as circunstâncias haviam mudado - ela dissera.
- Ele não chegou lá.
Gabrielle empalidecera e balbuciara algo incompreensível. Dessins entendeu que conseguira romper a confiança que a duquesa depositava no marido. Em um momento
de homem de bom caráter, considerou-se tão inescrupuloso como todos os que a rodeavam. Suspirou e foi à procura de Louise Pelletier.
O pequeno trajeto até a casa dela foi feito em silêncio. Dessins, pensando em Gabrielle, não aceitou o convite para tomar um drinque e segurou-a pelo braço.
- O que houve com Dyson?
- Ele me insultou. - Louise se desvencilhou dele e correu para dentro.
Satisfeito, Dessins voltou para a carruagem imaginando o que o duque faria para sair daquele embaraço.
Louise deu vazão a seu mau humor assim que a porta foi fechada. Viu a estatueta de porcelana de Dresden, presente de Cam e que estava sobre a mesa do hall.
Não teve dúvidas. Arremessou-a no chão. A peça espatifou-se em milhares de pedaços minúsculos.
Os criados vieram correndo. Ela os mandou embora aos gritos, foi para o quarto e bateu a porta com força. Furiosa, não notou que um pedaço de gesso se desprendeu
do teto.
Cam a desprezava e tinha pena dela! E ainda tivera coragem de falar com ela naqueles termos depois de transformar em duquesa uma selvagem da Normandia!
Parou de andar de um lado a outro e mirou-se no espelho. Admitiu que era uma mulher bonita. Então por que sentira a dor da rejeição naquela noite? E por
três vezes?
Na verdade ficara aliviada de ser dispensada pelo príncipe de Gales. Aquele homem balofo lhe causava asco. Quando faziam amor, ela imaginava que estava
ao lado de uma baleia. Ele que voltasse para a sua querida lady Hertford. Felizmente ele lhe dera um bracelete de diamantes como compensação pelos danos sofridos.
Uma peça preciosa para uma rosa delicada, ele dissera.
Uma ninharia, isso sim!
Dessins também a recusara. Ninguém lhe tirava da mente que Dessins pensava em outra. Percebera no olhar dele quando o convidara para entrar.
Tirou uma garrafa de conhaque de uma das gavetas da cômoda. Tomou uma dose. Sentou-se na cama e tornou a completar o cálice, enquanto repassava os acontecimentos
daquela noite.
Mal contivera o entusiasmo e o sabor de triunfo quando Cam, na presença da esposa, a convidara para ir até a biblioteca. E se decepcionara assim que a porta
fora fechada.
- Acha mesmo que eu ficaria impassível diante das provocações destinadas a causar problemas entre mim e minha esposa?
- Eu mal dirigi a ela duas palavras - Louise protestou. Cam queria saber o que se passara entre as duas no salão de baile de Devonshire.
- Cam, falamos apenas de banalidades. Roupas, conhecidos comuns, coisas assim.
Ela estava certa que Cam recuperaria o bom senso e se arrependeria do casamento. Até se oferecera para uma noite de reconciliação. Houve uma recusa formal.
No passado, em posição de amante, sempre engolira a própria raiva. Naquele momento, sem nada a perder, não mediu as palavras.
- Milorde me usou e descartou-me como um pano velho!
- Creio que deveríamos falar em troca. Eu paguei muito bem pelo uso que fiz.
- Hipócrita! Os homens são todos iguais! Mulheres como eu são ótimas para a cama. Mas se casam com as puras.
- Tem razão. Gabrielle chegou virgem aos meus braços. Mas não teria feito diferença se ela houvesse conhecido outros homens antes de mim. Eu jamais teria
me casado com outra mulher. Louise, eu não lhe devo explicações. Estou apenas dizendo isso para que não haja mal-entendidos. Afaste-se dela. Não deixarei que a faça
sofrer.
- Cam... como pôde preferi-la a mim? Ela foi criada como uma camponesa. Ela o envergonhará e o fará objeto de chacotas.
Cam conservou silêncio durante algum tempo e suspirou.
- O que mais eu poderia dizer-lhe? A senhora parece esforçar-se para não compreender. Gabrielle pode estar vestida com roupas de menino ou com traje de
gala. Isso para mim não faz diferença. Eu a amo por ela ser Gabrielle. Simples, não é? A senhora não pode entender isso, pois não conhece o amor. Minha querida,
eu a lastimo.
Louise sentiu o sangue ferver e, em um ato reflexo, golpeou-o com o abridor de cartas. Cam desviou-se, mas a lâmina atingiu-o no rosto. Louise recuou, assustada
com o que fizera.
- Talvez eu tenha merecido isso. Digamos que somos iguais. - Cam a deixara.
Como pudera ter se enganado tanto? Em Falmouth suspeitara que ele estava apaixonado pela esposa e aceitara o fato. Mas Dessins afirmara que ela poderia
conquistar até Napoleão Bonaparte, se quisesse. Como fora tola em acreditar em lisonjas falsas!
Estava na hora de esquecer as loucuras e de considerar o futuro. Na última semana recebera duas ofertas. Nenhuma delas excitante. Uma era do sr. Robert
Leslie, um homem de meia-idade que morava na fronteira e a queria como esposa. A outra fora de Freddie Lamb, filho mais novo de lorde Melbourne e que a desejava
como amante.
Pesou as vantagens e desvantagens dos oferecimentos e sentou-se para escrever uma mensagem de aceite. Para quem? Mastigou a ponta da caneta, refletindo.
Se consentisse em casar-se com o sr. Leslie, iria morar distante da civilização. Na certa ele pretendia ter filhos, o que a obrigaria a uma conduta acima
de qualquer suspeita. Mas Robert era um homem rico e sua posição como sra. Leslie seria respeitável.
O Freddie Lamb tinha fama de temperamental e seus bolsos não eram muito fartos. Por outro lado, ele a instalaria em Londres, onde havia oportunidade de
conhecer outras pessoas. Naquela noite conhecera o marquês de Lorne, herdeiro do duque de Argyle, e ele se mostrara interessado. Como encontrá-lo de novo se saísse
da cidade?

Meu querido Freddie, a resposta é positiva. Milorde esperava outra coisa?

Capítulo X

Gabrielle sentiu um grande vazio interior. Entorpecida, concluiu que merecera aquele desfecho. Desde o começo soubera que o duque era seu inimigo. Teria
lutado contra ele até o fim, se não houvesse enfrentado uma arma que lhe era desconhecida. A sedução. Dessins estava certo. Cam havia manipulado para ela se apaixonar.
Deveria odiá-lo, mas sentia apenas remorso.
Goliath pagara o preço daquela loucura. Dessins não soubera elucidar com exatidão o destino de Goliath. Era preciso agarrar-se na esperança de Mascaron
tê-lo mandado em outra missão. Mas a realidade somente seria desvendada quando ela voltasse para a França com Dessins. Ele prometera que iriam antes do final do
mês. Até o momento da partida, ela teria de ficar distante de Cam, o que não espantaria seu marido. Era um comportamento esperado para uma mulher traída. Fingir
afeição nessas circunstâncias até despertaria suspeitai Não poderia errar duas vezes. Aprendera a lição.
Um engano não explicaria o tamanho da tolice que cometera. Traição seria um termo mais exato. Ela era cidadã francesa e Cam, espião inglês. Os dois países
estavam em guerra. Cam a usara para coagir Mascaron a revelar segredos militares. E mesmo sabendo de tudo isso, caíra na cama dele na primeira carícia.
Estava grávida. Teria um filho de seu inimigo.
As lágrimas desceram pelo rosto de Gabrielle. Estava sozinha em seu quarto. Ninguém a escutaria chorar. Cam lhe pedira para esperá-lo, pois havia um assunto
particular para discutirem. Não queria falar com ninguém e muito menos com ele. Tinha receio de cometer alguma indiscrição.
A situação aflitiva duraria pouco tempo. Em breve ela escaparia do poder do duque para sempre.
Privá-lo do filho seria uma forma de castigo, embora Gabrielle não cogitasse em vingança. Precisava manter a mente atilada para que ela e o avô pudessem
escapar das artimanhas do duque. Teria de ser tão inescrupulosa como ele. Não havia espaço para fraquezas.
A batalha final não admitiria misericórdia.
Pensou em Louise Pelletier e não conteve os soluços. Imaginou Louise e Cam rindo dela nos momentos de maior intimidade. Fechou os olhos. A dor era imensa.
Cam a moldara a seu agrado e ela conspirara para a própria derrocada. Pensara que o marido a amava. Quanta ingenuidade! Um homem mundano como ele jamais poderia
apaixonar-se por Gabrielle de Brienne!
Mas de nada adiantaria remoer o passado. Era preciso pensar no futuro, em Mascaron e na Normandia. Lembrou-se de seu lar, da cômoda de sua avó e da saleta
onde guardava os tesouros que só tinham valor para ela.
Quando voltasse para Vrigonde, Mascaron estaria livre da ameaça de Cam. Ele afirmara que as autoridades francesas fariam suposições se descobrissem que
ela fora prisioneira dele na Inglaterra. Dessins a tranqüilizara. O primeiro-cônsul confiava em Mascaron. Gabrielle ficara aliviada, mas também sentira angústia
de comprovar a própria ingenuidade. Aceitara como verdadeiras quaisquer afirmações de Cam.
Quando pensou em Goliath, começou a odiar o marido.


- Milorde teve sorte - disse o médico. - Por muito pouco seu olho não foi atingido. - Ele terminou a sutura no rosto de Cam.
- Foi um abridor de carta - Cam fez pouco caso. Dr. Harlow levantou uma sobrancelha.
- A cicatriz desaparecerá com o tempo.- O médico guardou os instrumentos na maleta.
Cam não respondeu. Pegou uma camisa limpa. Seu criado fora dispensado. Ele não gostava de ajuda quando ia para a cama com Gabrielle. Vestiu o robe de brocado
e apertou o cinto.
- Dr. Harlow - Lansing tomou a iniciativa de falar em nome do amigo -, foi muita bondade ter saído da cama para nos atender. - Segurou no braço do médico
e conduziu-o para fora do quarto.
Cam deu-se conta de sua falta de boas maneiras.
- Ah, sim, muito obrigado, dr. Harlow.
O médico resmungou qualquer coisa e saiu com Lansing. Cam segurou um candelabro no alto e examinou o ferimento com as suturas negras.
- Fizeram um belo serviço em seu belo rosto - Lansing comentou ao voltar. - Seu criado cuidará disso. - Pegou a camisa e o casaco sujos de sangue.
- Obrigado, Simon, por ter trazido Gabrielle para casa. - Cam mirou a porta do quarto da esposa e pensou em como faria para despedir o amigo sem ofendê-lo.
Lansing largou-se em uma poltrona.
- Que noite pavorosa! Primeiro foi milorde com Louise, depois eu com lady Caro.
Cam resignou-se ao inevitável e deixou o candelabro de prata no consolo da lareira. Lansing não estava com pressa.
- Lady Caro o desdenhou?
- Prefiro não falar disso, Cam, se não se importa.
- Como queira.
Cam sentou-se e conservou um silêncio diplomático. Depois ofereceu ao amigo um charuto fino de uma caixa de marfim e pegou um também. Lansing acendeu os
dois e os amigos fumaram por alguns minutos.
- Ela não me desdenhou - Lansing confessou. - Eu é que não tive coragem de falar com lady Caro.
- Por quê?
- Ela é intelectual demais para mim.
- Ela disse isso?
- Não foi preciso. Passei a meia hora mais desconcertante de minha vida tentando conversar com ela em grego clássico.
Cam engasgou com a fumaça que acabava de inalar. Tossiu.
- Simon - Cam falou com voz rouca -, eu não me preocuparia com isso. Grego é uma língua morta. Não precisará dela em nossa sociedade.
- Eu sei. - Simon não poderia estar mais desanimado. - Só tenho um consolo. William Lamb não se sairá melhor do que eu.
- Isso quer dizer que está resignado a seu destino? Lansing riu.
- Não. Quer dizer que eu tive muita sorte. Eu nem sabia disso. Imagine só, acorrentado a uma intelectual! E todas as primas e tias de lady Caro parecem
sofrer do mesmo mal.
- Entendo. Deve ter sido terrível imaginar como seria conversar com elas se entrasse na família.
Lansing anteviu a cena. A duquesa de Devonshire, lady Spencer e lady Bessborough visitando sua propriedade na Irlanda. Estremeceu.
- Apenas as mulheres da família de lady Caro são inteligentes. Não entendo como os homens Spencer conseguem ser tão obtusos.
- Não há explicação lógica para o fato.
- Cam - Lansing mudou de assunto -, como vai justificar os acontecimentos desta noite para Gabrielle?
- Pensarei em alguma coisa. - Ele mirou o relógio sobre consolo da lareira.
Lansing entendeu o olhar e levantou-se.
- Eu não gostaria de estar em seu lugar. Aceite meu conselho, procure agir com gentileza antes de se envolver em explicações.
- O que me sugere, Simon?
- E como quer que eu saiba? Presentes e outras coisas desse gênero não têm valor para Gabrielle. Por falar nisso, há notícias da França?
- Tenho, mas nada que possa agradá-la. Mascaron está incomunicável. Parece que teve uma febre súbita e foi levado para seu castelo no Sena. Ninguém pode
chegar perto dele. Dizem que está gravemente enfermo.
- Milorde não disse nada para Gabrielle?
- Não. Rodier está achando as notícias muito estranhas.
- Santo Deus, então elas são péssimas!
Na opinião de Cam, eram preocupantes. Rodier não acreditava na súbita enfermidade e conseqüente afastamento de Mascaron do Ministério da Marinha. A segurança
no castelo de Vrigonde aumentava as suspeitas. Mascaron poderia estar fingindo por um motivo desconhecido ou então se tornara prisioneiro. Cam nada disse a Lansing,
mas já estava elaborando um plano para tirar Mascaron da França o mais depressa possível.
Ele levou Lansing até a porta da frente e foi até seu gabinete tomar um conhaque antes de enfrentar Gabrielle.
Resolvera confessar tudo sobre Louise e pedir perdão à esposa. Ele não enxergava nenhuma maneira de suavizar o golpe que a verdade causaria. Não queria
magoar Gabrielle, mas não havia outra maneira. Louise, Fox ou qualquer outro inimigo já deveriam ter lançado as sementes da desconfiança.
Estava convencido de ser merecedor da ira de Gabrielle que certamente o atingiria. Primeiro a deixaria desabafar e depois tentaria fazê-la acalmar-se por
meio dos carinhos que ela mais gostava.
Sorriu e fez uma careta de dor por causa do ferimento na face. Tornou a pensar na cena terrível com Louise na biblioteca de Devonshire.
O primeiro impulso de matar Louise fora contido a custo.
Não acreditara nos protestos de inocência dela, mas seu ódio diminuíra ao perceber que ela se considerava a grande prejudicada.
Milorde me usou e descartou-me como um pano velho!
Jamais esqueceria aquelas palavras. Nunca pensara em si mesmo daquela forma. Afinal pagara um preço alto pelos favores íntimos de Louise. Fora uma barganha.
Gabrielle nada pedia e ao mesmo tempo exigia tudo. Teria de convencê-la de que já entregara o que de mais precioso possuía. Amor, fidelidade, estima e o
coração. Gabrielle lhe daria outra oportunidade porque o amava. E se as posições estivessem invertidas? Com certeza ele a mataria. Mas para os homens era diferente.
Além disso, precisava fazê-la entender que não a traíra de verdade.
Suspirou, endireitou os ombros, saiu do gabinete e subiu a escada devagar. Parou com a mão no trinco da porta do quarto de Gabrielle e inspirou fundo antes
de entrar.
Ela, vestida para dormir e sentada no peitoril da janela, olhava o pátio. Ao olhar para ele, Cam teve certeza que ela ficara sabendo de tudo.
Cam aproximou-se devagar, ajoelhou-se e beijou-lhe o abdome.
- Eu te amo, Gabrielle. Por favor, acredite em mim.
Ela parecia um bloco de gelo.
- Para que dizer isso agora, Cam?
Ele se levantou, segurou-lhe os pulsos e conduziu-a até um espaço mais iluminado do quarto.
- Assim está melhor. Quero ver seu rosto enquanto conversamos.
Gabrielle sentou-se na cadeira que ele indicava.
- Eu também.
Cam apoiou os quadris na pequena escrivaninha. Observou Gabrielle. Teria preferido mil vezes qualquer cena temperamental do que a frieza imperturbável que
ela demonstrava.
- Gabrielle, quando nós nos casamos, eu tinha uma amante.
- E por muito tempo depois - Gabrielle falou com indiferença.
- Posso imaginar quem lhe contou essas histórias.
- Pode.
- Nós concordamos que nosso casamento seria de conveniência.
- E voltará a ser desta noite em diante.
Cam não cedeu à provocação e cruzou os braços.
- Gabrielle, desde que nós nos tornamos marido e mulher no verdadeiro sentido, não levei nenhuma outra mulher para a cama. E mesmo antes, eu a desejava
muito, embora eu fosse mantido a distância.
- Milorde é um grande mentiroso.
- Nunca lhe contei nenhuma mentira!
- Ora, então disse a verdade ao afirmar que eu jamais poderia ser uma mulher como sua amante?
- Eu já lhe expliquei esse comentário infeliz! - Ele não desejava duelar com Gabrielle. Esperava confessar-se, obter o perdão e tudo voltaria ao normal.
Afastou-se da mesa.
- Milorde, que sempre foi imaginativo em suas explicações, pode me dizer onde esteve na noite de nosso casamento?
Cam murmurou uma imprecação.
- E que diferença faz? Milady não me queria e fui para um lugar onde seria bem recebido.
- Na casa de Louise Pelletier que milorde alugou para ela em Falmouth.
- Isso mesmo!
Gabrielle fitou-o com os lábios trêmulos e abaixou as pálpebras sem conseguir disfarçar as lágrimas.
- Gabrielle, uma jovem inocente não pode entender certas coisas. Sei o que está pensando. Não, não se afaste. Meu relacionamento com Louise era apenas físico,
nada mais que isso. Para ser bem claro, ela vendia o corpo por dinheiro! Esta noite ela pretendia criar problemas entre nós. E me agrediu com uma faca, quando tornei
a afirmar que o relacionamento não seria retomado. Eu só amei uma mulher na minha vida. Você, Gabrielle.
Impossível duvidar da verdade daquele olhar profundo.
Gabrielle torceu os lábios. Cam escolhera mais uma arma de seu imenso arsenal. A sinceridade. Ele era um mestre na arte da mistificação. Ela passou a ponta
dos dedos no ferimento da face de Cam.
- Foi isso mesmo que aconteceu entre milorde e Louise esta noite? Ou houve mais alguma coisa que a deixou revoltada?
Cam havia esperado cena de ciúme e ódio ou um rio de obscenidades. Mas não aquele desprezo frio e agressivo.
- Vamos para a cama. - Palavras não haveriam de convencê-la.
Gabrielle soltou-se com violência, tropeçou para trás e caiu de encontro a uma cadeira. Endireitou-se e estreitou os olhos.
- Milorde ficou louco se acha que consentirei em fazer amor. Não o quero mais. Por que não vai procurar Louise? Se ela ainda o quiser, é claro. Ou então
encontre outra que esteja disposta a receber suas atenções.
- Esse estilo é bem o seu.
- Por que não me poupa de suas palavras e sai daqui de uma vez? - Gabrielle correu para trás da cadeira.
Cam jogou a cadeira para o lado.
- Por que insiste em não me escutar?
Ele a segurou pelos ombros.
- Eu lutarei contra milorde.
- Pode tentar.
Gabrielle não soube explicar como a sua determinação começou a abandoná-la. Cam conseguira restaurar sua confiança com moderação, humildade e ternura. Chegara
a pensar que ele rastejaria a seus pés.
Não foi o que sucedeu. Viu o ódio no olhar do marido. Ela o provocara demais, talvez até de maneira inconsciente. Não pensara em castigá-lo por Goliath
e Mascaron. Cam não deveria saber o que ela descobrira, até que fosse tarde demais para agir. Na verdade, ele esperava punição pelos pecados que cometera como marido.
Ela poderia soltar as rédeas da raiva impunemente.
Com um movimento que aprendera com Goliath, levantou as duas mãos com força e derrubou Cam. Ele não fez nenhum esforço para levantar-se. Se Gabrielle não
estivesse com tanta raiva teria dado muitas risadas.
- Devasso! Mistificador! Patife! - ela gritou e fez a complementação com várias pérolas imprecativas do idioma francês.
Cam arregalou os olhos.
- Esta é a Gabrielle que estou mais acostumado. - Ele apoiou-se em um dos cotovelos e observou-a andar em volta dele com passadas largas.
- Como teve coragem de dizer que se apaixonou por mim em Andely?
- É a mais pura verdade, embora eu não tenha explicação para o fato.
- Mentiroso! Como um homem apaixonado leva outra para a cama?
- Ele fará isso quando pensar que a mulher amada está longe de seu alcance.
- Nós fizemos um juramento perante Deus!
- Votos que não tínhamos intenção de cumprir!
Arfando, com as mãos nos quadris, Gabrielle fitou-o com fúria. Cauteloso, Cam sentou-se com as pernas cruzadas.
- E aquelas noites que milorde se ausentava de Dunraeden?
- Que noites? - Cam procurou ganhar tempo.
- Para onde ia? - Gabrielle abaixou-se para encará-lo. - Responda!
- Sabe muito bem e eu já lhe expliquei por quê. - Gabrielle virou-se. - E vou repetir. Não houve nenhuma mulher em minha vida após termos transformado
nosso enlace em um casamento verdadeiro. Perdoe-me. Eu não sabia que minhas ausências de Dunraeden lhe causaram agonia. Talvez eu deveria ser mais discreto...
Gabrielle interrompeu-o com uma risada.
- Mesmo se fosse indiscreto eu jamais teria descoberto nada. Pensei que se dedicasse à espionagem. Eu desejava que ficasse longe do castelo o maior tempo
possível.
Ele não respondeu e Gabrielle continuou a andar sem rumo pelo quarto.
- Que ironia! Naquelas noites em que me deixava para se encontrar com Louise eu ficava apavorada de pensar que milorde pudesse desconfiar o que eu pretendia
fazer!
- Eu não a deixei por Louise. Milady foi bem clara em suas recusas. O que pretendia fazer? - Aproveitou que Gabrielle estava de costas e levantou-se.
- Vai achar o fato hilariante.
- Gabrielle...
- Eu me balançava em uma corda nas paredes externas de Dunraeden, preparando-me para a grande fuga. - De repente ela lembrou-se que semanas antes de tentar
a fuga, Cam parara de sair durante a noite, o que lhe causara pesar. Na certa fora a época do rompimento com Louise.
Gabrielle sentiu que sua vontade férrea enfraquecia. Foi até a porta e escancarou-a.
- Estou exausta e minha cabeça parece que vai explodir. Sugiro continuarmos a conversa quando estivermos em melhor disposição de espírito.
- Estou de pleno acordo - o duque a surpreendeu, caminhou até a porta e se deteve na soleira. - Posso beijar sua mão?
Gabrielle sentiu o sangue ferver. Cam era o protótipo do inglês aristocrata. Urbano, sofisticado e liso como granito polido.
- Se quer mesmo saber...
Gabrielle deu um grito. Cam tomou-a nos braços e beijou-a com fúria. Ela debateu-se. Cam fechou a porta com o pé, levou-a até a cama e jogou-se com ela
sobre o colchão. Gabrielle usou as imprecações mais pesadas que conhecia. Cam atirou a cabeça para trás e riu.
Ela agarrou-lhe os cabelos.
- Não ouse rir de mim, inglês!
- Se estou rindo é por ter encontrado de novo minha esposa. O papel de duquesa é para ser representado em público, não comigo.
- Não adianta, milorde me perdeu para sempre.
Cam estacou, tenso. Gabrielle recriminou-se por ter falado demais.
- O que está pretendendo dizer com isso? - ele a segurou pelos cabelos e levantou-lhe a cabeça.
- Serei sua duquesa, mãe de seu filho - Gabrielle despistou-o. - Mas para milorde, nada mais poderei ser.
- Está exagerando, Gabrielle - Cam afirmou, sem esconder a raiva. - Depois de pensar sobre o assunto, haverá de acalmar-se.
- Não quero que encoste mais em mim.
- Acha que vou aceitar isso?
- Milorde não tem outra escolha.
- Pois eu lhe mostrarei...
Tarde demais, Gabrielle entendeu que o desafiara. Tentou soltar-se, mas ele era muito mais forte. Jogar-se de um lado a outro de nada adiantou e ela mudou
de tática. Em vez de se debater, ofereceu resistência passiva. Cam imediatamente se aproveitou da situação.
Gabrielle sentia o coração partido. Não podia esquecer que fora traída em sua confiança. As pessoas que mais amava no mundo haviam sofrido por isso. Assim
que ele lhe soltou os punhos, arranhou-o. Cam tornou a segurá-la com violência e beijou-a.
Gabrielle queria e precisava odiá-lo. Não entendeu por que não conseguia. O calor a desorientava. As carícias íntimas e primorosas do marido fizeram-na
esquecer dos propósitos anteriores. Ele segurou o rosto de Gabrielle e beijou-a com imenso carinho.
- Eu te amo, Gabrielle. Não me abandone.
- Eu também te amo, Cam - ela não pôde evitar as palavras.
O amor deles foi intenso, mas não perdeu a ternura que ambos sentiam.

Entre as muitas preocupações que envolveram Cam nos dias que se seguiram, a maior delas foi traçar uma estratégia para tirar Mascaron de Vrigonde. A segurança
do castelo fora finalmente rompida e as notícias eram incontestáveis. Mascaron encontrava-se muito doente. O médico particular não saía da cabeceira do enfermo.
Não fora possível descobrir por que o castelo continuava tão bem guardado. Se as atividades de Mascaron a favor do serviço secreto britânico houvessem sido
descobertas, ele estaria preso na conciergerie ou em qualquer outra prisão francesa. O julgamento e a execução seriam breves e de domínio público.
Cam manteve sigilo para não alarmar Gabrielle sem, no entanto, desistir de seu objetivo maior. Tirar Mascaron da França. Se fosse apenas por Mascaron, não
teria erguido um dedo para ajudá-lo. Mas era a felicidade de Gabrielle que lhe importava. Por isso se encarregaria pessoalmente do plano.
Recriminava-se por tê-la feito sofrer além do suportável. O silêncio de Gabrielle a respeito de Louise Pelletier testava os limites de sua paciência. Ela
voltara a ser a esposa dedicada e dócil. Mas era impossível não notar a reserva incomum no comportamento da esposa e ele não sabia como romper a barreira. Gabrielle
mantinha reclusa uma parte de si mesma, o que o exasperava. De certo modo, sentia-se como se fosse ele o traído.
Resolveu tocar no assunto em uma noite depois de terem feito amor.
- Não falemos mais sobre esse assunto, Cam. Tudo foi perdoado. Tire isso de sua lembrança. Eu já esqueci.
- Então por que está tão diferente comigo, Gabrielle?
- Está imaginando coisas.
- Foi por que rompi o juramento?
- Juramento?
- O que fizemos diante de Deus, segundo suas próprias palavras.
Gabrielle estirou-se ao lado de Cam.
- No dia de nosso casamento houve uma coisa estranha.
- O que foi?
- Senti a presença de Deus quando nós nos ajoelhamos diante do altar. Foi uma emoção muito forte e não consegui rezar. Uma tolice. - Gabrielle bocejou e
aconchegou-se no marido.
- Não creio que seja uma tolice.
- Acredita em Deus, Cam?
- Claro. Isso a surpreende? Acha que tenho um caráter tão ignominioso que não me permite acreditar Nele?
- Oh, não. Até mesmo o demônio acredita. - Gabrielle encostou-se no ombro dele e fechou os olhos.
Cam sacudiu-a.
- Ficaria satisfeita se renovássemos nossos votos diante de Deus?
- Bobagem. Estou feliz, Cam. De verdade.
- Mesmo assim...
Gabrielle fechou-lhe os lábios com a ponta dos dedos.
- Isso de nada adiantaria, Cam. Deus não existe. Ou se existir, recusa-se a me escutar.
- Não se deixe levar por todas as barbaridades que foram cometidas durante a Revolução. Deus existe, Gabrielle. Quem somos nós para exigir Sua prestação
de contas?
Ela arregalou os olhos.
- Nunca imaginei ouvi-lo dizer isso. Para alguém desavisado, daria a impressão de que Deus perdoa os adúlteros - Gabrielle não conteve a amargura.
Adúltero.
Era difícil engolir essa palavra. Ela não podia estar falando dele. Gabrielle o atingira em cheio.
- Deus me perdoe. Não sou perfeito. Mas eu juro que de hoje em diante provarei ser digno de sua confiança.
O pranto de Gabrielle começou manso e evoluiu para soluços. Confuso, Cam abraçou-a e cobriu-a.
Ele admitiu que Londres e suas futilidades o cansavam. Na primeira oportunidade voltariam para a Cornualha.
Queria de volta a jovem que capturara seu coração. Arrependia-se de tê-la feito assumir o papel de duquesa que ela desempenhava com perfeição. Tinha saudade
da antiga Gabrielle que então se escondia atrás do verniz que lhe servia de segunda pele. Charme, graça e beleza que o faziam suspirar pelo que perdera.
A jovem vestida de menino que enfrentava desafios e agia com sinceridade. A Gabrielle de Andely que o desafiara. A amazona perfeita. A Eva nadando no Sena.
A Gabrielle que praguejara como a mulher de um peixeiro depois de ter sido beijada na escadaria de Vrigonde. A jovem que lutara com unhas e dentes quando fora raptada.
Tinha sido um cego em não reconhecer que ela ofuscava as outras mulheres. Fora arrogante e preconceituoso quanto à noção de virtudes femininas. Gabrielle
se tornara um modelo de mulher que ele passara a admirar.
E por que estourara de orgulho quando ela fizera a cortesia diante da rainha em Windsor? Ele a desafiara e Gabrielle suplantara todas as expectativas.
Santo Deus, nada daquilo lhe importava. De calça ou de vestido de baile, desfiando imprecações ou frivolidades. As circunstâncias nada significavam. Era
Gabrielle que fazia a diferença. A essência de seu caráter e de sua personalidade. Já tivera o privilégio de contar com isso uma vez quando ela aprendera a confiar
nele.
Como provar que merecia uma segunda chance?
Sem esquecer da própria culpa foi ao encontro do William Pitt em Baker Street.
- Gostaria de tomar um bom vinho do Porto? - Pitt perguntou quando Cam sentou-se.
Cam aceitou.
- Sou-lhe grato pela ajuda em relação a lorde Whitmore e seus auxiliares.
- Não foi difícil conseguir a ausência deles. Veio até aqui para falar sobre isso, conforme me prometeu?
- Eu lhe peço desculpas por ter de adiar a oportunidade um pouco mais.
- Quanto tempo?
- Uma semana. Duas no máximo.
Pitt nada disse. Conhecia Cam e sabia que ele não viera até ali sem propósitos. Nos últimos meses especulara muito sobre as modificações de comportamento
do jovem amigo.
A primeira surpresa fora o casamento repentino. Mesmo assim não dera crédito aos rumores de rapto. Pensara em avisá-lo para apresentar a esposa à sociedade,
mas Sua Majestade se antecipara.
A duquesa de Dyson surpreendera a todos. As anfitriãs de alta classe disputavam sua presença que era uma garantia de sucesso nas festas. O último boato
fora a cena que a antiga amante de Cam fizera em Devonshire House. O que aumentara a popularidade da duquesa. O casal parecia ter superado os percalços e era visto
em todos os locais em clima de ternura.
- Sr. Pitt - Cam interrompeu os devaneios do político -, tenho pensado em pedir-lhe o uso de dois navios de guerra.
Pitt assustou-se e derramou um pouco de vinho.
- O que milorde disse? - Abismado, Pitt limpou a frente do paletó preto com um grande lenço branco.
- Preciso de dois navios de guerra britânicos.
- Foi o que imaginei ter ouvido. Cam, não tenho autoridade para dispor de um barco a remos, quanto mais um navio de guerra! Esqueceu que não sou mais primeiro-ministro?
E mesmo que fosse, seu pedido seria despropositado.
- É uma questão de segurança nacional.
Cam expôs a história que havia preparado. Não disse mentiras. Relatou apenas o que serviria a seus propósitos.
- Antoine Mascaron - Pitt repetiu ao término da história. - Imagino o que ele terá para nos dizer se conseguirmos trazê-lo para cá.
- Ele está em ótima posição no Ministério da Marinha. Não sabemos se concordará ou não em vir.
Pitt deixou a taça vazia na mesa lateral e estreitou os olhos.
- Diga-me, Cam, qual seu interesse em Mascaron?
- Creio que nós todos estamos interessados na segurança de nosso país.
- Onde conseguiu tantas informações? Nas últimas semanas, não tive conhecimento de nenhum fato da França que pudesse despertar meu interesse.
- Tenho meus contatos.
Pitt fitou-o intensamente.
- Acha que não mereço maiores explicações?
- Sem dúvida. Em uma ou duas semanas...
- Sim, sim, eu sei. Vossa Alteza afirmou que me contará tudo.
- Isso mesmo.
Cam refletiu sobre os resultados de suas confidencias. Pitt não haveria de gostar de soltar da gaiola um pássaro como Mascaron.
- Bem, veremos o que eu posso fazer. Mas não lhe prometo milagres.
- Obrigado. - Cam disfarçou o sorriso que trairia o senso de triunfo.
- Posso ver a satisfação em seu semblante, Cam. Espero que seja merecedor do que lhe for concedido.
Pitt acompanhou-o até a porta, voltou ao seu gabinete e viu a taça quase cheia.
Droga de homem! Nem mesmo teve a decência de tomar o vinho do Porto!

Os planos de Cam progrediam a passos lentos. Os de Gabrielle, bem mais rápidos. Na véspera da partida para a França, ela debatia-se em dúvidas. Deveria
ou não deixar uma carta de despedida para o marido? Dessins, com argumentos persuasivos, insistia na negativa. Afirmava que o duque era um oponente poderoso e já
demonstrara ser implacável na perseguição de suas ambições. A mais leve desconfiança do que estava sucedendo poderia frustrar os planos antes dos mesmos serem iniciados.
Ela não deveria esquecer de Mascaron e do que poderia ter acontecido com Goliath.
Era angustiante seguir a sugestão de Dessins. Mesmo sem ter certeza se Cam a amava, ela o desculpara pelo que acontecera com Louise. Embora o amasse desesperadamente,
seria difícil perdoá-lo pelo jogo duplo que empregara com Mascaron e Goliath. Não se conformava de deixar o marido sem uma palavra, mas o dever lhe recomendava cautela.
Não se importava com seu próprio destino. Entretanto em relação ao que devia a Mascaron e a Goliath, seu amor por Cam não tinha o menor significado. Se
ficasse na Cornualha, o marido não hesitaria em usá-la como uma ferramenta contra seu avô.
Mascaron insistiria para que ela se divorciasse de Cam, o que seria melhor para ambos. Cam, com o campo livre, voltaria para Louise. Se soubesse antes que
eram amantes, jamais teria aceitado o enlace proposto por ele. Apesar das negativas do duque, Gabrielle suspeitava que ele amava aquela beldade.
Cam e Louise. Uma pílula amarga demais para ser deglutida. Uma faca atravessada em seu coração. Admitiu que teria uma última noite com o marido. Seria memorável.
A lembrança de Cam para o resto de sua vida.
Tinham recebido convite dos Melbourne para jantar. O duque, apesar da relutância, resolveu aceitar. Lady Melbourne era uma excelente anfitriã e sabia conduzir
uma boa reunião. Escolhia a dedo os convidados e ninguém se aborrecia. Os duques estavam presentes, bem como os principais membros dos círculos parlamentares e da
corte. Gabrielle nada via. Tinha olhos apenas para seu marido.
Cam era de longe o homem mais atraente nos salões de lady Melbourne. Lansing e lorde Paget também eram bonitos, mas apagados. Dessins, a quem evitou como
uma praga a noite inteira, também era um homem vistoso, mas sem o porte atlético de seu marido. A cicatriz avermelhada no rosto de Cam adicionara uma pitada a mais
de encanto perigoso na fisionomia de virilidade inquestionável.
Gabrielle ignorou Dessins que não desistia de chamar-lhe a atenção. Eles haviam conversado antes e a partida fora combinada para o dia seguinte. Ela não
queria pensar nisso e muito menos falar no assunto.
A um certo momento, Cam percebeu que o barulho das conversas no grande salão diminuía aos poucos. Virou-se. Louise Pelletier acabava de entrar de braço
com Freddie Lamb. Sentiu Gabrielle retesar-se e começar a tremer.
Os espectadores interessados conservaram-se mudos para observar o encontro entre a jovem esposa do duque de Dyson e a antiga amante dele. Lady Melbourne
fulminou com o olhar o filho transviado e Freddie aproximou-se da mãe. Cam endireitou os ombros e segurou na mão enluvada de Gabrielle. Ele procurou transmitir no
gesto um resumo de seus sentimentos. Desculpas, remorso, segurança e amor.
Louise estreitou os olhos, bloqueou a passagem deles e ignorou Gabrielle.
- Cam, foi bom encontrá-lo. - O sorriso brilhante não combinava com o ódio que transbordava de seu olhar. - Querido, o telhado de nossa casa precisa de
reparos. Milorde cuidará disso pessoalmente ou devo dirigir-me ao administrador de seus negócios?
Se pudesse, Cam a teria estrangulado. Gabrielle empalideceu e apertou o braço do marido. Sentiu a tensão que ele procurava controlar. Charles Fox apressou-se
em segurar o cotovelo de Gabrielle. Richard Sheridan procurou distrair Cam de sua intenção assassina.
- Dyson, por favor não vá embora - Sheridan falou. - Estava esperando uma oportunidade para falar com milorde.
Cam abafou o ódio e fitou a mão do cavalheiro que lhe segurava pelo braço.
- Uma palavra apenas - Sheridan insistiu e virou Cam para o outro lado.
- Finalmente a sós. - Charles Fox fitou Gabrielle com simpatia. - Daquelas janelas altas descortina-se uma vista belíssima. Quilômetros além do St. James
Park.
Ela acompanhou Fox até o local apontado e nada viu além da escuridão.
Fox deu uma risada.
- Acredite em mim, Alteza. O parque está bem ali.
Gabrielle sorriu levemente ao fitar os olhos bondosos de Fox.
- Assim está melhor. Vossa Alteza não deve deixar uma mulher daquela estirpe roubar sua compostura.
- Se ela houvesse roubado apenas isso!
- Está enganada, milady. Embora sem morrer de amores por seu marido, devo dizer-lhe o que todos sabem. O relacionamento de Sua Alteza com Louise Pelletier
terminou há muito tempo.
- É mesmo?
Gabrielle fitou de revés a mulher que fora considerada um modelo de perfeição por Cam. Sozinha no meio do salão. A maioria estava de costas para ela. Em
instantes Freddie Lamb levou-a para fora do recinto. Uma mulher digna de piedade.
A orquestra recomeçou a tocar e as conversas foram reiniciadas.
- Não gaste suas simpatias com ela - Fox aconselhou-a. - Louise não tem um pingo de bondade nas veias.
- O senhor está lendo outra vez meus pensamentos! Creio que não deve ser uma pessoa muito popular, se faz isso com todos os seus conhecidos.
- Não sou mesmo. - Fox hesitou pensando na afirmação surpreendente.
Sheridan chegou com o duque e a conversa generalizou-se. Ânimos controlados, Sheridan e Fox se desculparam e foram para o salão de jogos. Cam agradeceu-lhes
a intervenção oportuna.
- Nem acredito no que estou escutando - Sheridan cochichou com Fox.
- Vossa Alteza é um homem afortunado - Fox fitou Cam com olhar penetrante. - Espero que saiba disso. - Despediu-se de Gabrielle com ternura, sem se importar
com o espanto de Cam.
Algumas horas depois, já em seus aposentos, Cam tentou explicar a vingança de Louise, mas Gabrielle recusou-se a escutar. Aquela seria a última noite deles
juntos. Ela não queria perder nenhum minuto precioso.
Gabrielle abraçou-o e beijou-o com paixão.
- Faça amor comigo, Cam.
- Gabrielle - ele protestou com um gemido. - Precisamos conversar.
- Não quero. Não será necessário.
Ela pressionou o corpo junto ao do marido e procurou romper a resistência que ele demonstrava. Não demorou muito e Cam estendeu-se na cama ao lado da esposa.
Ele refletiu que o que realmente importava era apenas o momento presente e o amor que Gabrielle lhe oferecia.
Porém, após refletir um pouco, tentou recusar novamente a tentação.
- Ordens médicas, meu amor. Sem exageros por causa da gravidez.
Mas não havia defesa possível contra os rogos e a sensualidade de Gabrielle.
Mais tarde, Cam tentou novamente assumir uma postura racional.
- Gabrielle, precisamos conversar.
Ela fingiu-se exausta.
- Abrace-me, Cam, como se não pudesse mais me soltar.
- Jamais a deixarei, minha querida.

O dia amanheceu claro e brilhante. Gabrielle fez a primeira refeição do dia sozinha no quarto. O duque se despedira com entusiasmo alegando um compromisso
não muito definido. Às dez horas, ela pediu a carruagem. Deu ordens ao cocheiro para levá-la até a loja da Bond Street onde fora algumas vezes. Para bem do decoro,
uma criada acompanhou-a.

Mais tarde, Cam, demonstrando uma certa preocupação, foi à procura do gerente da loja. O homem garantiu-lhe que nada notara de anormal na duquesa. Alegre
e disposta, ela se encantara com o cetim dourado que combinava com um leque recém adquirido.
Ela encontrara uma conhecida na loja. Depois de alguns minutos de conversa, a duquesa pedira uma folha de papel e uma pena. Escrevera algumas palavras,
dobrara a mensagem e a entregara à amiga. A mulher desconhecida partira. Em seguida ela mandara a criada de volta ao castelo com ordens de trazer o leque em questão
para comparações de cor. Não pretendia comprar o tecido errado.
Após a saída da criada, a duquesa alegara um compromisso urgente. O gerente não conseguiu convencê-la para esperar a volta da criada. Gabrielle deixou a
loja e subiu em um filburi que estava à sua espera.
- Tem certeza que o veículo a aguardava? - Cam estava furioso.
- Quase absoluta, Alteza. Vi uma pessoa, não sei se era homem ou mulher, dentro do carro.
Cam bateu com força o punho na mesa, espalhando papéis para os lados. Os dois cocheiros, a criada de Gabrielle e o gerente levaram um susto e não se mexeram.
- Quem era a mulher que se encontrou com minha esposa?
Porém, ninguém na loja conhecia a identidade da mulher, embora um dos vendedores tenha dito que o rosto não lhe era desconhecido.
Cam recostou-se na poltrona e fechou os olhos. Fora um dia terrível. Depois de encontrar-se com o mensageiro de Rodier nas docas de Wapping, fora para casa
e encontrara o castelo em alvoroço. Naquela altura, a duquesa já estava desaparecida há mais de doze horas.
Ele não sabia no que pensar. Nada fazia sentido. Não acreditava que Gabrielle quisesse abandoná-lo. Nenhuma mulher amaria um homem com tanta intensidade
como ocorrera na noite anterior e depois fugiria dele. Também não fugira por causa da cena ridícula de Louise.
Teria ela sido enganada? Sofrera coação? Fora presa em uma armadilha? Ou fora subornada? Não podia esquecer que Gabrielle fora sua prisioneira. Durante
esse tempo todo ela poderia ter esperado uma oportunidade para conseguir a liberdade.
Levantou-se e deu um berro. Não podia aceitar que o objetivo da duquesa fosse aquele. Ela o amava. Levava seu filho no ventre. Gabrielle não era matreira.
Alguma coisa acontecera. Não havia outra explicação.
Acidente ou rapto.
O primeiro caso era improvável. Naquelas doze horas as autoridades já teriam recebido alguma notícia ou descoberto um acontecimento infeliz. A polícia vasculhava
as ruas de Londres à procura de uma dama com as características físicas de Gabrielle.
Cam cerrou os dentes. Rapto. Deveria ter imaginado que Mascaron mandasse seus aliados à procura de Gabrielle para repatriá-la. Fora um tolo ao imaginar
que Mascaron aceitaria perder a neta para sempre.
Mas, após refletir, descartou também essa hipótese. Naquela manhã, Lansing e ele haviam encontrado o mensageiro de Rodier. Não havia dúvida sobre o grave
estado de saúde de Mascaron. Ele não teria condições de planejar nada, muito menos um rapto no exterior.
De acordo com Rodier, algo sinistro acontecia em Vrigonde. Soubera também que um tal de Fouché viera várias vezes ao castelo e sempre à noite.
Fouché. Cam sabia que o homem era um mestre da espionagem. Teria Fouché descoberto que Mascaron era um agente do serviço secreto inglês? Improvável. Se
ele tivesse alguma prova contra Mascaron, o avô de Gabrielle teria um julgamento sumário e seria executado de imediato.
Mas enquanto a duquesa não fosse encontrada, o caso Mascaron teria de ser esquecido. Naquele momento dois navios de guerra britânicos rumavam para a costa
normanda. Sua fragata ligeira estava ancorada em Deal e a tripulação esperava por ordens. Nada disso importava. O objetivo crucial era descobrir o paradeiro de Gabrielle.
Impaciente, andou de um lado a outro. Lansing já deveria ter voltado. Cam o mandara interrogar Gervais Dessins, na esperança de encontrar alguma pista.
Não esperava muita coisa.
A duquesa não gostava muito de Dessins. Só o tolerava por tratar-se de um compatriota.
De repente lembrou-se do incidente em Melbourne House. Charles Fox e Richard Sheridan haviam impedido uma cena desagradável que haveria de constrangê-los.
Ora, Charles Fox sempre fizera tudo para desacreditá-lo! Se não fossem as artimanhas de Fox, ele e Gabrielle nem teriam saído de Dunraeden. Uma coisa era certa.
Fox seria a chave para descobrir o paradeiro de sua esposa.
Furioso e disposto a matar, Cam foi até a porta. Seu ódio aumentou ao ouvir uma voz detestável no vestíbulo. Abriu a porta e, pelo olhar de Fox, o duque
percebeu que a raiva de Fox era tão grande como a sua.
- O que fez com ela? - Fox rugiu.
- Onde está minha mulher? - Cam berrou.
Lansing entrou atrás de Fox e evitou que os dois homens se empenhassem numa briga. A custo, Lansing conseguiu convencer os cavalheiros furiosos a continuar
o debate no gabinete de Cam. E assim foi feito.
- Onde está minha esposa, sr. Fox?
Fox fez uma carranca e atirou uma folha de papel na mesa de Cam.
- Leia! Espero que sua explicação seja boa.
Cam reconheceu a caligrafia de Gabrielle. No alto da folha, o nome e o endereço da loja de Bond Street onde ela fora vista pela última vez.
- A sra. Fox encontrou Sua Alteza por acaso - Fox explicou ao ver a confusão de Cam. - As duas tinham um conhecimento anterior. A duquesa escreveu um recado
e pediu para que minha mulher o entregasse para mim. Não faz meia hora que o recebi.
Cam desdobrou o papel e leu.

Prezado sr. Fox,
O senhor afirmou que era meu amigo. Por favor, diga a meu marido que estou bem. Ele não precisa se preocupar com meu destino. Um dia talvez possamos nos
encontrar, quando os dois países não estiverem mais em guerra. Adieu, Gabrielle

Cam perdeu a cor em seu rosto e a cicatriz tornou-se ainda mais evidente. Gabrielle o abandonara por vontade própria. O significado do bilhete era óbvio.
Só tornariam a se ver quando os conflitos tivessem fim.
- Prometi minha proteção à duquesa e pretendo cumprir com minha palavra. Se ela acha que devia ir para a França, não permitirei que a traga de volta em
hipótese nenhuma.
Lansing fitou os dois sem entender.
- O que está acontecendo? Quem falou em França?
Os cavalheiros o ignoraram.
- Minha maior preocupação diz respeito a Gabrielle - Cam afirmou, ríspido. - Não admitirei interferência, muito menos a sua, sr. Fox, se eu tiver de arrastá-la
de volta pelos cabelos.
- Gabrielle voltou para a França? - Lansing gritou.
- Sim! - os dois inimigos gritaram em uníssono.
- Nada poderia ser pior que isso! - Lansing largou-se em uma cadeira. - Cam, se Fouché puser as mãos nela... Deus, não quero pensar nisso.
Fox apoiou as duas mãos na mesa de Cam.
- Dyson, não sairei desta casa enquanto não receber uma explicação satisfatória. Nem pense que poderá abusar de sua esposa com impunidade! Permita-me lembrar-lhe
que tenho certa influência dos dois lados do canal da Mancha. Em suma, Dyson, cometerá uma grande tolice se ignorar o poder de meus amigos.
Cam não chegou a dar a resposta impetuosa que desejava.
- Eles são poderosos até que ponto, sr. Fox?
- Talleyrand deve a mim um favor considerável, Dyson. Infelizmente, posso ter comprometido a amizade do primeiro-cônsul pelo discurso que fui forçado a
fazer na Câmara. Mas Bonaparte pode ter me perdoado.
Os dois homens se entreolharam. Calculistas. Medindo forças.
Fox admitia que nas últimas semanas o duque de Dyson demonstrara uma faceta inacreditável de seu caráter. Era humano! As esperanças não estavam perdidas.
Cam avaliava a conveniência de fazer de Fox seu confidente. Era notório que ele tinha trânsito livre em vários setores franceses, apesar da guerra. Desde
os primórdios da Revolução, Fox provara ser um aliado infatigável da França. Suspeitava-se que ele alertara Talleyrand sobre a tentativa de assassinato de Bonaparte
por realistas inconformados. E fora Talleyrand quem colhera os louros por haver evitado a morte do primeiro-cônsul.
Na França, Talleyrand prestava contas apenas para Napoleão. Era o todo-poderoso. Também era sabido que ele e Fouché não se toleravam.
- Sente-se, sr. Fox. O que vou dizer poderá levar algum tempo. Primeiro, eu lhe devo um pedido de desculpas. Pensei que o senhor fosse o responsável pelo
desaparecimento de minha esposa. - Inspirou fundo. - Não tenho idéia de como tudo foi feito. Alguém deve tê-la ajudado a fugir. Seja como for, não duvido que Gabrielle
ficará em grande perigo se voltar para a França.
- Cam! - Lansing interveio. - Eu ia falar quando cheguei e acabei me omitindo! Gervais Dessins deixou seu alojamento sem comunicar seu paradeiro. Nenhum
de seus amigos sabe dizer o que aconteceu com ele.
- Cavalheiros, estamos perdendo tempo! - Fox assegurou. - Vamos voltar ao começo e decidir qual será o próximo passo!


Capítulo XI

Gervais Dessins estava inquieto. Fouché deveria ter voltado há dias. Considerava-se tão prisioneiro como a jovem e o homem trancados nos aposentos de cima.
Naquele momento deveria desfrutar do luxo de Paris e não estar encarcerado em um lugar horrível no meio do nada!
Odiava a Normandia e os normandos. Detestava o castelo de Vrigonde. Parecia um chiqueiro, o que, na verdade, era previsível. Os homens de Fouché tinham
sido alistados no submundo parisiense.
A porta foi aberta e o médico de Mascaron apareceu na entrada.
Mais um camponês, Dessins refletiu com asco. O homem idoso e curvado entrou arrastando os pés, olhando para os lados, receoso. Quando viu Dessins, aproximou-se.
- Senhor... eu gostaria de saber... se seria permitido... - Hesitou antes de continuar. - A égua premiada de Mascaron está quase parindo.
Antes que Dessins pudesse responder àquele comentário ridículo, um dos homens que estava sentado à mesa de jogo levantou-se. Era Savarin, um homem que se
intitulava a pessoa de confiança de Fouché. Tocou no ombro do médico e o homem estremeceu.
- O que foi, velho? Está preocupado com as cabras e éguas? - Savarin caiu na gargalhada.
- Perdoe-me, senhor, mas nunca pretendi ser o que não era - o homem expressou-se com humildade. - Não sou médico de pessoas, mas sim de animais.
Savarin sacudiu-o.
- Eu disse que é médico e acabou-se! Agora vá atender a copeira ou o moço da estrebaria. Melhor, vá espiar seu paciente lá de cima.
O pomo-de-adão do dr. Adams subiu e desceu de modo alarmante.
- Alguém tem de tomar conta dela - ele gemeu.
- Savarin, por que não deixa o velho cuidar da égua? - Dessins interveio.
- Ele não pode deixar a casa. São ordens de Fouché.
- Tenho dois filhos - o dr. Adams falou. Eu os treinei e eles poderiam fazer o serviço.
Savarin e Dessins se entreolharam.
- Não vejo por que não chamá-los - Dessins afirmou. - Creio que ele é motivado apenas por um coração bondoso.
- É, pode ser. - Savarin conhecia o valor de um bom cavalo. E também a eficácia do terror. Agarrou o medico pelas lapelas do paletó. - Mande buscar seus
filhos, velho! Mas estou lhe avisando. Um movimento em falso e cortarei o pescoço deles antes de passar a faca na sua! - Ele jogou o pobre homem para trás.
O médico cumprimentou todos com um gesto de cabeça antes de sair, de costas e tropeçando. Acabou se esparramado no chão e provocou uma gargalhada geral.
Levantou-se depressa e correu.
Dessins sacudiu a cabeça e procurou o barrilote de Calvados. Sua preferência era pelo conhaque, mas... encheu o cálice e sentou-se em um canto para meditar.
Nada tinha em comum com os homens de Fouché. Desde que trouxera Gabrielle, há uma semana, mal escondia o desdém. Pensara entregá-la a Fouché pessoalmente.
Tivera de deixá-la aos cuidados de Savarin que insistira em sua permanência até a chegada de Fouché.
Perto da meia-noite ouviu-se o barulho das rodas de uma carruagem que chegava ao pátio. Em pouco tempo Dessins foi chamado. Encontrou Fouché muito à vontade
na biblioteca de Mascaron. Aquele local não mostrava sinais da profanação que fora levada a efeito no restante do pequeno castelo.
Com um gesto quase descortês, Fouché indicou uma cadeira. Dessins sentou-se e esperou.
- Por que o senhor chegou dois dias antes do combinado? - Fouché interrogou-o.
Dessins esperava uma recepção mais amigável.
- Não quis arriscar. Senti que a jovem estava amolecendo diante do marido.
- Ah, fez bem - Fouché admitiu com um sorriso. - Uma pena eu não poder sair antes de Paris.
Ele estava satisfeito. Não apenas por apertar o cerco em volta do espião inglês, mas por ter recebido uma missão delicada do primeiro-cônsul. Charles Fox,
o idealista, estava em Paris para um encontro secreto com Talleyrand. Fouché fora encarregado da segurança do sr. Fox. A honra lhe coubera por sugestão do próprio
Talleyrand que, na certa, sabia quem era o melhor.
Talleyrand não demonstrava esperteza em vários aspectos. Fouché não podia acreditar que o ministro de Relações Exteriores ainda tivesse esperança na paz
entre a França e a Inglaterra, apesar da inclinação oposta de Bonaparte. Concluiu que o sr. Fox devia estar numa missão inútil e que a indulgência de Napoleão se
devia ao fato de ser grato por Fox ter-lhe salvado a vida. Bonaparte não esquecia com facilidade.
A satisfação de Fouché diminuiu ao lembrar-se que fora Talleyrand, e não ele, quem evitara a segunda tentativa de assassinato contra Napoleão. A carta secreta
do sr. Fox fora enviada para Talleyrand. Ah, mas tudo isso mudaria em breve.
- Não houve dificuldades?
- Nenhuma significativa - Dessins garantiu. Fouché levantou as sobrancelhas. Gostava de detalhes.
- Fomos parados no cais por um destacamento de guardas que procuravam por uma jovem. Gabrielle, a neta de Mascaron, estava vestida como rapaz. Passamos
sem incidentes.
- Algo mais?
- A jovem mencionou um homem chamado Goliath.
- Eu o conheço. Não é importante.
Dessins não revelou que a ansiedade pelo destino daquele homem tinha sido o principal ponto de convencimento para Gabrielle deixar a Inglaterra.
- Ah.
- Ele abandonou o posto ao lado de Mascaron há algum tempo. É um contrabandista conhecido. Algo mais?
- Não.
Fouché tamborilou na mesa com uma pena de escrever.
- Quanto tempo teremos de esperar por Dyson?
- Dyson?
Fouché deu uma risada contida.
- Meu garoto, a jovem é apenas uma isca. Deve ter imaginado meu propósito, não é?
- Dyson não sabe onde ela está. - Dessins franziu o cenho. - Não deixamos pistas. Gabrielle nada deixou escrito. Saí de meu alojamento sem me despedir de
ninguém.
Daquela vez o sorriso de Fouché expressou uma superioridade insuportável.
- Meu garoto, tudo foi executado a contento. Não se espante. Se houvéssemos deixado pistas, Dyson desconfiaria. Ele não é nenhum idiota. Saberá unir os
pontos e quando chegar, estarei à sua espera.
- Mas a jovem...
- Não é importante.
- Não pretende interrogá-la?
- Claro que não.
Uma sucessão de emoções delineou-se no rosto de Dessins. Frustração. Descrédito. E finalmente uma fúria incontrolável.
- Dyson não virá atrás dela. Gabrielle nada significa para ele. Não leu meus relatórios?
- Claro. E tudo o que o senhor escreveu só confirmou minhas suspeitas. Não duvido que Dyson virá.
Dessins levantou-se.
- Eu gostaria que o senhor confiasse mais em mim.
Fouché também ficou em pé.
- Eu o farei da próxima vez.
- Seria muito lhe pedir um transporte para Paris, senhor?
- Paris?
- Meu trabalho terminou.
- E foi bem-feito. Mas quero que entenda meu ponto de vista. O senhor sabe demais. Até Dyson ser apanhado, eu preferia que aceitasse a hospitalidade de
Vrigonde.
Dessins não ousou recusar.

Mascaron estava agitado. Gabrielle afastou a manta do catre e foi até a cama do avô. Não havia velas, mas as primeiras luzes da manhã penetravam pelos cantos
do pequeno quarto.
Mascaron abriu os olhos a custo.
- Gabrielle? - Ele estendeu a mão que a neta beijou.
- Estou aqui. Mascaron, não temos muito tempo. O doutor voltará em instantes. Procure entender. O senhor foi drogado. Eles vêm lhe ministrando opio. Se
ao menos pudesse lutar contra os efeitos...
Tudo estava perdido. Trancada com o avô há dias, ela ainda não ficara sabendo o que seus captores desejavam. Dessins lhe dissera um amontoado de mentiras.
Seu lar fora tomado por uma horda de bandidos que mantinha Mascaron sedado. E para quê?
Dispunha de pouco tempo antes daquele arremedo de médico fazer o avô engolir mais uma dose da droga.
- Vovô, concentre-se. Por favor, diga-me. O que aconteceu com Goliath?
A voz desesperada de Gabrielle pareceu quebrar o estupor que o envolvia. Mascaron estreitou os olhos como se tentasse localizar algo.
- Eu o mandei à sua procura.
- Duas vezes?
Ele anuiu.
- Por que, vovô?
- Dyson... não é... confiável.
- Por que não devo confiar em meu marido?
- Ele estava em Abbaye - Mascaron sussurrou, cada vez mais fraco.
- Vovô, não durma, por favor! Por que o estão sedando?
- Ordens de Fouché.
- Ele está aqui?
Mascaron anuiu e fechou os olhos.
- Vovô, por que estão lhe ministrando sedativos?
Mascaron tentou reagir e sacudiu-se com espasmos.
- Eles contam com a idéia de que você não me abandonará. Como posso sair daqui? Salve a si mesma, minha querida, antes que seja tarde demais.
Ele arfava pelo esforço. Gabrielle acariciou-lhe o rosto.
- Nunca mais o abandonarei. Nunca.
A agitação de Mascaron aumentou.
- Vá embora! Embora... antes que seja tarde.
- Está bem. Meu marido virá nos buscar.
Mascaron arregalou os olhos e tornou a fechá-los.
- Ele... é pior do que Fouché. Ele me odeia e sei por quê.
Mascaron voltou à inconsciência. Gabrielle endireitou-se e encarou os carcereiros, que entravam no quarto, erguendo o queixo com o orgulho de uma duquesa.
- Exijo uma explicação! Quero saber por que estou presa aqui!
O maior de todos levantou-a pela cintura. Gabrielle não tentou escapar. Já fizera isso uma vez e por castigo a haviam deixado longe do avô um dia inteiro.
Em seguida o homem curvo entrou no quarto com uma caneca de estanho nas mãos. O médico viera trazer o veneno.
- Miserável! Eu não o deixaria tratar meu cachorro, quanto mais um ser humano! - Gabrielle fitou-o com olhar faiscante.
O pobre homem se deteve, tremendo, e nada respondeu.
- O senhor não é médico! Não é homem! O senhor não passa de um verme nojento!
Os outros riram e Gabrielle fitou-os com ódio, mas engoliu as imprecações ao lembrar-se que era uma duquesa.
- Droga! Droga! Droga! - ela bateu os pés, inconformada e ajoelhou-se ao lado de Mascaron.
Virou o rosto para não ver Mascaron tomar o sedativo.
Depois que eles se retiraram, Gabrielle despejou água do jarro na bacia de louça e cuidou das abluções do avô. Em seguida cuidou de si mesma. Depois de
se lavar, vestiu a calça e notou a mancha úmida no tecido na altura dos joelhos. Passou o dedo e procurou sentir o cheiro. Era a sidra onde fora acrescentado o ópio.
Espantada voltou ao lado da cama onde estivera ajoelhada. No tapete não se notavam manchas. Mas a umidade era inequívoca. O falso médico havia derramado
quase todo o sedativo, mas o terror o impediu de confessar a incompetência.
Gabrielle vestiu-se rapidamente e ajoelhou-se outra vez ao lado de Mascaron. Sacudiu-o gentilmente e depois com maior vigor. Ele protestou com um gemido,
mas abriu os olhos. Ansiosa, bombardeou-o com perguntas em voz baixa, sem tirar os olhos da porta.
Mascaron entendeu a urgência e esforçou-se para responder com clareza.
Ao fim de algum tempo, Gabrielle sentou-se sobre os calcanhares, perdida em pensamentos.
- Minha querida, perdoe-me. Sinto imensamente ter chegado a esse ponto.
- Não perca as esperanças, vovô. - Ela sorriu com lágrimas nos olhos. - Apesar do que me contou, sei que meu marido virá nos salvar.
Mascaron segurou a mão da neta.
- Sua fé em Dyson é tocante, mas eu não gostaria que isso lhe causasse decepção. Ele me odeia. Eu já não lhe contei tudo?
- Sim, mas o amor é mais poderoso que o ódio. E ele me ama, vovô.
Mascaron adormeceu, com esperança que a confiança de Gabrielle não fosse quebrada.

Cam chegou ao entardecer daquele mesmo dia. Gabrielle escutou o estrépito das rodas da carruagem e correu para a janela. O vozerio e som de portas batendo
acordou Mascaron.
- O que houve? - ele murmurou.
- Uma carruagem e, pelo jeito, não foi bem-vinda.
A porta do veículo foi aberta e três cavalheiros desceram. Gabrielle deu um grito.
- O que houve? - Mascaron insistiu.
- Ele caiu na armadilha de Fouché!
Cam olhou as janelas superiores do castelo e percebeu o rosto de Gabrielle colado em uma das vidraças.
Antes de ser agarrado pelos guardas, uma voz imperiosa ordenou o contrário.
Fouché, da entrada, reconhecera os recém-chegados.
- Meu prezado Fouché - Talleyrand adiantou-se, mancando -, sinto-me lisonjeado com essa recepção. O senhor já conhece Sua Alteza, duque de Dyson e o sr.
Charles Fox?
Talleyrand não esperou convite e entrou no castelo.
- Mas que constrangimento - Talleyrand disse quando Fouché o alcançou. - Seus guardas nos confundiram com bandidos ou coisa parecida. Não se preocupe. Ordenei
a meus homens que os dominassem da maneira mais gentil possível.
Fouché, ainda espantado, conduziu-se até a biblioteca. Com um sorriso que não alcançou os olhos, abriu a porta e deu precedência aos acompanhantes.
- Pode ir à frente, sr. Fouché - Cam falou, de trás. Fouché relanceou um olhar para seus homens reunidos no saguão. Sem suas ordens, eles não sabiam o que
fazer. Levantou os ombros e entrou na biblioteca. Cam seguiu-o e fechou a porta.
Dali a instantes, Fouché abriu-a novamente, parou na entrada e dirigiu-se aos dois homens que estavam no corredor.
- Tragam a jovem.
Em questão de minutos, Gabrielle foi trazida à biblioteca. Seu primeiro instinto foi atirar-se nos braços do marido, mas não o fez por notar-lhe a fúria
estampada no rosto.
- Duquesa - Fouché adiantou-se, divertido. - Por obséquio, diga a Sua Alteza que o retorno à França foi por vontade própria.
- Sim, mas...
- E que nenhuma violência lhe foi infringida desde que chegou a Vrigonde.
- É verdade, Cam. Ninguém tocou em mim. O que está acontecendo?
Gabrielle percebeu que o marido e o sr. Fox não eram prisioneiros de Fouché. Talleyrand parecia aborrecido e a expressão de Cam era impenetrável. Fox fitou-a
com simpatia.
- Vamos levá-la para casa, Gabrielle - Fox garantiu com gentileza.
- Não estou entendendo.
- O primeiro-cônsul assinou um salvo-conduto para milady.
- Nossos países estão em guerra. Como o senhor chegou aqui? - Gabrielle sentiu as pernas bambas e apoiou-se em uma cadeira para não cair.
- Foi muito simples, duquesa. - Talleyrand encarou Fouché e respondeu. - O sr. Fox e Sua Alteza, o duque, têm imunidade diplomática. E o salvo-conduto deles
está com o sr. Fouché. Não é verdade, Fouché?
- É. - Ninguém percebeu o lampejo de ódio que atravessou o olhar de Fouché.
Gabrielle fitou Cam. Ele não retribuiu o olhar e consultou o relógio de bolso.
- Se não sairmos logo, perderemos a maré - ele falou com Fox.
- Maré? - Fouché espantou-se.
- Sim. Levarei o sr. Fox para casa na minha fragata. No momento, ela deve estar em Rouen.
- Será preciso tomar cuidado para não ser atingido por balas francesas - Fouché comentou de modo casual.
- Não haverá perigo - Cam retrucou. - Recebemos escolta francesa para toda a costa da Normandia. O primeiro-cônsul insistiu nessa precaução. Ele não quer
que nada aconteça ao sr. Fox.
- Seus encontros têm sido proveitosos? - Fouché fitou Fox e Talleyrand, sem dar atenção ao tom de advertência de Cam.
- Muito - Fox foi enfático.
- E terminaram tão cedo?
- Diplomacia requer tempo - Talleyrand alegou com ironia. - Estamos apenas no início das conversações.
- E quanto a meu avô? - Gabrielle ignorou as farpas disparadas entre os cavalheiros.
Fouché fitou o documento que tinha nas mãos.
- Esta carta não faz menção a Mascaron.
- Cam? - Gabrielle implorou.
- Mascaron é cidadão francês - ele respondeu. - Não vejo motivos que o façam ter vontade de ir para a Inglaterra. E mesmo que quisesse, minha autoridade
não vai tão longe.
Gabrielle fitou-o, estarrecida.
- Não posso ir sem ele!
- Milady virá comigo - o duque assegurou no tom implacável que ela bem conhecia. - Ordens do primeiro-cônsul.
- Milorde... falou com Bonaparte?
Cam segurou a cadeira para Gabrielle sentar-se. Só então os cavalheiros fizeram o mesmo.
- Felizmente os pontos de vista de Bonaparte em relação às mulheres são semelhantes aos meus. Ele acredita que uma esposa rebelde deve ser castigada.
- Minha filha - Fox intercedeu. - Foi uma tolice, embora compreensível, ter vindo visitar seu avô ao saber que ele estava doente. Mas uma esposa deve manter-se
fiel ao marido. O primeiro-cônsul entendeu o dilema.
Gabrielle preparou-se para explicar que o avô não estava doente, mas que fora sedado, no entanto o olhar de Cam impediu-a de falar.
- Irei com milorde.
- Excelente. A docilidade e o silêncio de uma esposa são sempre bem-vindos.
Fouché deu risada e o sr. Fox tossiu.
Talleyrand virou a cabeça de lado para analisar a jovem que causara todo aquele transtorno. Diplomatas do mais alto escalão e de ambos os lados tinham sido
envolvidos no caso. E a duquesa não era nenhuma Helena de Tróia. Como Menelau, Dyson empregara todos os meios disponíveis para trazer a esposa de volta.
O ministro das Relações Exteriores lembrou-se da entrevista com Bonaparte. Fora pessoalmente requisitar a carta que entregaria à jovem na custódia do marido.
Bonaparte, mesmo sem ter simpatia pelos ingleses, acedera ao pedido apenas para retribuir o grande favor que devia a Charles Fox. O alto cargo de Mascaron no Ministério
da Marinha impedira a solicitação de um salvo-conduto para ele. Os amigos ingleses haviam entendido o impasse. Por enquanto, Mascaron teria de permanecer na França.
E de preferência fora do alcance das garras de Fouché.
Mesmo se Mascaron fosse culpado, Talleyrand refletiu, Fouché não tinha provas disso. O que, para Fouché, isso pouco significava. Muitas pessoas pagavam
por culpas alheias para que outros pudessem atingir os objetivos. Esse recurso era empregado até mesmo por Bonaparte. Porém, Mascaron era mais que isso. Assim como
a jovem e Dyson, era uma pedra no caminho das ambições de Fouché. E daquela vez, Fouché ultrapassara os limites.
Talleyrand foi tirado de suas reflexões pela voz modulada de Charles Fox que falava com Fouché sobre Mascaron.
- Tive o prazer de conhecê-lo da última vez que estive em Paris - Fox contou. - Era uma época auspiciosa para os dois países. Ele está em condições de receber
visitas?
- Infelizmente, não. - Fouché negou com um gesto de cabeça. - O pobre Antoine delira o tempo todo. Foi acometido por uma febre estranha. O médico não o
abandona. Uma tristeza.
Gabrielle mordeu a língua para não falar. Começava a entender que aqueles cavalheiros civilizados, em vez de se matarem, estavam empenhados em uma farsa
onde representavam o papel de grandes amigos.
Fox fitou Talleyrand e levantou-se.
- Mascaron tem sorte em tê-lo como amigo devoto, sr. Fouché.
- Antoine e eu nos conhecemos há muito tempo. - Fouché era todo sorrisos. - Larguei tudo quando ele me chamou.
- Entendo - Fox respondeu com secura.
Todos se levantaram e foram até a porta. Gabrielle sentiu no ombro a mão firme de Cam.
- Devo dizer, sr. Fouché - Fox comentou -, que apreciei sua bondade em tomar medidas para a nossa segurança.
- Medidas que o senhor desrespeitou ao vir para cá, sr. Fox - Fouché empregou um tom amistoso.
Fox ergueu as sobrancelhas grossas e parou com a mão no trinco.
- Oh, Deus, foi mesmo! Ora, se o senhor não disser nada ao primeiro-cônsul, eu também não direi.
- Obrigado sr. Fox - Fouché foi irônico.
- Não seja por isso - Fox respondeu, cortês. - Entendo estas coisas. O senhor está nas boas graças do primeiro-cônsul. Espero ouvir em breve que o senhor
foi reconduzido à sua posição de ministro de Polícia. Tenho certeza que será merecido. - Fox saiu, seguido pelos outros.
Gabrielle abriu a boca e virou-se para Cam.
- Nem uma palavra! - ele sibilou.
- Não entendo! Por que todos são amáveis?
- Acha que teríamos conseguido entrar aqui de outro jeito? Quero tirá-la daqui antes que o mundo desabe.
- Mas...
- Quieta!
Cam impeliu-a sem muita delicadeza para fora do quarto. No pátio, Fouché despediu-se de Gabrielle como se ela fosse uma hóspede de honra. Infeliz, ela não
reagiu quando o marido a empurrou para dentro da carruagem.
- A bientô, monsieur Fouché - ela escutou Cam despedir-se. - Talvez nos encontremos antes de nossas previsões. - Apressado, ele entrou no veículo.
Confio nele!, Gabrielle procurou convencer-se enquanto se afastavam velozmente do castelo de Vrigonde e de Mascaron.
Fouché observou a carruagem de Talleyrand afastar-se e ser engolida pela noite. Voltou para o castelo e chocou-se com o médico. Praguejou e afastou o pobre
homem da frente a pontapés.
- Será que meu destino é ficar rodeado por imbecis?
Ninguém riu. O médico infeliz tentava levantar-se e ficar longe de Fouché.
Não teve tempo. Fouché acertou-lhe a ponta da bota com violência. O homem deu um grito lancinante e Fouché sorriu. Após uma noite de humilhações, aquele
som foi como um linimento para uma ferida infeccionada.
Todas as esperanças arruinadas! O duque e a jovem estavam fora de seu alcance. Ele ficara de mãos atadas, pois deveria garantir a segurança deles. Imunidade
diplomática! Furioso, Fouché lembrou-se que ainda lhe restava um pássaro na gaiola. Mascaron.
Poderia apostar que o duque voltaria para buscá-lo assim que deixasse a esposa no navio. Ah, pegar o inglês em uma armadilha seria seu maior prazer. A alegria
teve curta duração. Sua cabeça iria rolar se algo acontecesse ao duque em solo francês. Mas também não ficaria de braços cruzados enquanto o inglês levava embora
seu prêmio.
De repente, começou a distribuir ordens.
- Depressa. Vamos para Paris!
- P... Paris? - o médico gaguejou, apavorado. Fouché estreitou os olhos. Não pensara em levar o homem, mas o terror daquela fisionomia despertou-lhe suspeitas.
- Tem alguma objeção a respeito?
O homem começou a tremer. Olhou todos sem ter coragem de falar.
Fouché sorriu, cruel. Aquele homem era culpado de alguma coisa. Um bom interrogatório em Paris o faria confessar e o inútil iria para a guilhotina.
- Apronte seu enfermo. O senhor vem conosco. - Virou-se. - Dessins, vá com ele. Será responsável se ele escapar. O que estão esperando?
Os homens se apressaram em cumprir as ordens, sem preocupar-se com maiores esclarecimentos. Ao descobrir que os cocheiros de Fouché estavam bêbados, Savarin
decidiu não preocupar o patrão com um fato tão trivial. Dois homens da região foram encarregados do serviço. Foi fácil convencer os filhos do médico. Eram tão apavorados
como ele.
Depois de dez minutos de estrada, os ocupantes da carruagem começaram a suspeitar que uma dupla de malucos os conduzia em desabalada carreira. Fouché praguejava.
O médico se apoiava no paciente adormecido e Dessins segurava-se nas alças do forro. As rodas passaram em um buraco enorme e o coche oscilou perigosamente. Fouché,
irado, abaixou a janela, pôs a cabeça para fora e gritou obscenidades. Os cocheiros não escutaram ou não se importaram. O que estava com as rédeas estalou o chicote
e instigou os cavalos a uma velocidade maior.
Fouché olhou por sobre o ombro. Os cavaleiros que deviam protegê-los ficavam para trás.
- Idiotas! Onde...
A carruagem fez uma curva em alta velocidade e Fouché foi atirado para fora do banco. O veículo saiu da estrada e deu a impressão de que tombaria. Por um
milagre, havia uma trilha de carroça que seguia até o rio. Os cavalos tropeçaram, endireitaram-se até serem contidos pelo cocheiro.
Fouché levantou-se do chão e, tropeçando, saiu do veículo. Escutou um tropel que se aproximava. Atônito e impotente, observou cavaleiros passarem a galope,
indiferentes ao coche que estava fora da estrada. Pálido, fitou os condutores, sem acreditar no que via. Eles desatavam os cavalos. Foi quando entendeu ter sido
preso em uma armadilha.
Homens saíram de trás das moitas e rodearam o coche. Dessins desceu com as mãos para o alto. O médico seguiu-o, descendo com um pulo e empunhando uma pistola
engatilhada. Mascaron veio atrás.
- Meus homens virão em nosso encalço, assim que entenderem o engano. - Fouché arreganhou os dentes.
- Se eu fosse o senhor, não teria tanta certeza. - O médico pediu a dois homens que ajudassem Mascaron. - Eles estão a caminho de Paris, seguindo o veículo
errado.
Fouché não podia acreditar que aquele homem determinado fosse a mesma criatura patética que ele maltratara. Parecia bem mais alto e pelo menos vinte anos
mais jovem.
- O que pretende fazer conosco? - Dessins perguntou.
- Nada - o médico divertiu-se. - Não somos açougueiros nem assassinos. Amarre-os sem amordaçá-los. Se bem conheço o sr. Fouché, ele ficará feliz de dirigir
sua raiva contra os outros. Para isso, nada melhor que seu jovem amigo.
Dessins engolia em seco. Suas esperanças de conseguir honrarias caíam por terra. Fouché faria dele a válvula de escape pelos acontecimentos daquela noite.
Fouché e Dessins foram amarrados e deixados dentro do veículo vazio. O médico fez uma mesura e despediu-se.
- Amanhã cedo alguém os encontrará, mas nós já estaremos longe.
Homens e cavalos sumiram na escuridão. Um bote estava ancorado na margem. Os dois cocheiros ajudaram Mascaron e embarcar. O médico curvou-se e empurrou
o barco para a correnteza.
- Esperem! - Mascaron ainda estava tonto pelo efeito do ópio. - Eu gostaria de saber o nome do homem que me resgatou. - Estendeu a mão para o médico.
- Sou um homem de Dyson. - O médico apertou a mão de Antoine Mascaron. - É só isso que lhe posso dizer.
Rodier tirou a mão e encostou o ombro na popa do barco. Um impulso e o bote foi para a água. Os homens seguraram os remos e levaram a embarcação para as
águas tranqüilas do Sena.
Rodier recuou, fitando os que se afastavam, aliviado pelo término da missão. Por dois motivos. Seus conhecimentos de medicina se resumiam a uma cabeça de
alfinete. Não gostava de lidar com Fouché frente a frente. Além disso preferia ordenar eventos onde a casualidade tivesse pouco peso.
Admitiu que existira a possibilidade dos planos falharem. Se Gabrielle houvesse recusado a ordem de partir com o marido. Se Fouché não decidisse ir para
Paris. Se seus homens não fossem chamados para servir como cocheiros. Se...
Rodier riu, satisfeito. A sorte lhes sorrira ou as preces de alguém tinham sido atendidas.

A bordo da fragata ligeira do duque de Dyson o ambiente era festivo. Vinho à vontade, brindes sucessivos e muitas brincadeiras. Até mesmo Talleyrand estava
sorridente. Ninguém se deu conta que o duque e a duquesa não conversavam. Gabrielle não largava um minuto sequer do avô, o que parecia natural, pois Mascaron confidenciara
que seus planos excluíam estabelecer-se na Inglaterra.
Ela custava a controlar o nervosismo conseqüente aos últimos acontecimentos. Estavam ancorados em Rouen à espera da maré virar. Poderia levar dias até chegarem
na Cornualha. Estremecia ao pensar que teriam de enfrentar o macaréu traiçoeiro. Além disso, cruzariam o canal! Santo Deus! Aqueles homens não entendiam que uma
guerra estava em curso? Tudo seria possível. Se escapassem das águas traiçoeiras, poderiam ser atacados por um navio de guerra francês. Não podia entender tanta
despreocupação.
Olhava de um para o outro e pensava tratar-se de um sonho. Acordaria como prisioneira em Vrigonde. Piscou para ter certeza que estava acordada. Eles pareciam
um bando de meninos em um convescote. Uma vergonha.
Escutou em silêncio Rollo contar a história da corrida maluca na carruagem de Fouché.
- Quando caíamos no buraco - Lansing interveio -, achei que tudo estava perdido. E aquela curva, Rollo! Não sei como conseguiu fazer isso! Eu teria perdido
o controle dos cavalos.
- Conheço a estrada como a palma de minha mão - Rollo comentou, corado pelo elogio. - Por isso recebi a tarefa, não foi?
- Goliath também conhece bem o território - Lansing afirmou.
- Eu não estava aqui - Goliath alegou. - Eu tinha ido para a Cornualha cuidar dos interesses de Gabrielle, quando soube que ela partira para Londres.
- Como voltou para cá? - Fox perguntou, oferecendo a caixa de rape. Somente os mais velhos aceitaram a honra sem precedentes.
Goliath deu de ombros.
- Foi simples. Fiz parte da tripulação da fragata.
- Incrível! - Talleyrand admirou-se.
- Ah, como eu gostaria de ter trinta anos a menos! - Fox comentou. - Teria feito essa viagem maravilhosa e visto a cara de Fouché quando saiu do coche!
- Isso se não houvesse quebrado o pescoço - Gabrielle afirmou.
- Foi um trajeto desenfreado - Rollo afirmou. - Como nos velhos tempos, lembra-se, Gaby? Só faltou a sua presença, com os dentes à mostra e o florete desembainhado!
- Esses dias estão longe de Gabrielle - Cam interveio com secura e deu ordem ao camareiro para servir mais vinho para todos.
- Isso merece uma história, Gabrielle? - Sheridan interessou-se.
- Qual o seu papel nesse regate, sr. Sheridan? - Gabrielle corou e mudou de assunto.
- Minha bela dama. - Sheridan levou a mão ao coração. - Nos meus tempos de juventude, eu teria matado dragões por sua causa. Agora... vim atrás de uma brincadeira.
Gabrielle franziu a boca e os outros riram.
- Eu devo a todos muito mais do que jamais poderei pagar-lhes - ela falou, de braços com o avô. - Creio que está faltando alguém, não é?
- Quem?
- O médico idoso. Nem mesmo sei o nome dele. Comecei a suspeitar que ele fosse um de seus homens, Cam - Gabrielle fitou o marido com malícia.
- Não conheço nenhum médico - o duque assegurou.
- O que o senhor acha, vovô?
- Lembro-me dele vagamente - Mascaron trocou olhares entendidos com Cam. - Mas pareceu-me um incompetente. Na metade do tempo eu evitava tomar a droga e
ele nem mesmo notava.
- Ah.
Cam anuiu para Talleyrand que tomava vinho e fitou Mascaron. Este se levantou de imediato.
- O senhor não vai nos deixar! - Gabrielle segurou na mão do avô.
Mascaron ajudou-a a levantar-se.
- Minha querida, a maré não espera por ninguém. Seu marido precisa levantar âncora ou terá de aguardar por mais doze horas.
- Vovô, por favor, venha conosco!
Mascaron abraçou-a.
- Sou como um cão velho. Jamais seria feliz em um canil novo.
- Nunca terei um momento de paz sabendo que o senhor é um fugitivo!
- Fugitivo? Eu? Fouché não poderá atingir-me. O que sei a respeito dele é suficiente para condená-lo ao fuzilamento.
Mascaron aproveitou a confusão de Gabrielle sobre aquela falta de lógica e deixou-a nos braços de Cam.
- Agora beije este seu velho avô e mostre aos ingleses o valor dos normandos.
Gabrielle sorriu, apesar das lágrimas. Cam apertou-lhe os ombros enquanto Mascaron seguia Talleyrand para o cais. Rollo segurou-lhe a mão.
- Eu esperava que fôssemos todos para a Inglaterra.
- Eu teria pensado nisso, Gaby, mas há uma menina...
- Nem o senhor. - Gabrielle fitou Goliath coçar a barba.
- Serei sempre um seu criado. Se eu soubesse que precisava de mim... - Goliath entendeu que Gabrielle necessitava de um sermão e lamentou delegar a tarefa
para outro. - Eu a deixo em boas mãos. - Fitou Cam e procurou aceitar aquelas palavras.
Os quatro desceram quando a tripulação já se encontrava a postos. A prancha de desembarque foi levantada. Cam deu ordens para içar as velas e foi para a
amurada.
Na boléia da carruagem de Talleyrand, Rollo acenou. Goliath, que montava um grande ruão, virou a montaria e sumiu na escuridão. Na certa voltava para Vrigonde.
Dentro do coche, Talleyrand e Mascaron ficaram em silêncio durante um bom tempo.
- Por que disse aquilo para sua neta? - Talleyrand foi o primeiro a falar.
- Não sei ao que está se referindo - Mascarou disfarçou.
- Que sabia o suficiente sobre Fouché para condená-lo.
- Ora, eu tinha de dizer alguma coisa ou ela teria insistindo para eu ir também.
- E quais são seus planos?
- Não tenho nenhum. Voltarei para o meu gabinete no Ministério da Marinha e esperarei pelos acontecimentos.
- Entendo. Para falar a verdade, Mascaron, eu poderia ter mandado Fouché para o pelotão de fuzilamento várias vezes.
- Imagino que sim.
- E Fouché poderia ter feito o mesmo comigo - Talleyrand comentou sem amargura. - Monsieur Mascaron, poucos de nós podem jactar-se de ser isentos de culpa.
E pelo que seu genro relatou, o senhor é um dos grandes pecadores.
Mascaron não sabia o que Dyson revelara. Por isso esperou para Talleyrand continuar.
- Fouché e eu não somos amigos, tampouco inimigos. De certa forma, somos colegas. Tenho pensado que o futuro da França é muito incerto. É um benefício para
o nosso país contar com amigos poderosos do outro lado do canal.
A idéia não era original. Fora expressa pelo duque de Dyson quando haviam conversado em particular no veleiro. Dyson estava certo de que o sogro não tinha
planos imediatos e não se mostrara inclinado a deixá-lo aos cuidados de Fouché.
- Deixe Fouché comigo - Talleyrand dissera. - Sei como dobrá-lo.
Aquele foi um favor que o jovem duque garantira pagar cem vezes se fosse necessário e sempre que estivesse a seu alcance. Talleyrand entendera. Favores
representavam moedas de troca e eram muito mais úteis que dinheiro no banco.
- Nunca é demais ter amigos bem posicionados - Talleyrand comentou.
- Assim como Charles Fox - Mascaron sugeriu.
- E como Dyson, seu genro.
Os dois trocaram olhares entendidos.
- Sempre poderei empregar um bom homem no Ministério de Relações Exteriores. Se estiver interessado, ficarei satisfeito em dar-lhe um cargo.
- Mas Fouché quer a minha cabeça.
- Está enganado, monsieur Mascaron. As ambições de Fouché transcendem personalidades. Ele deseja o poder. Nesse caso, posso ser útil a ele. - Talleyrand
recostou-se no assento estofado. - Está tudo certo.
As palavras de Talleyrand tinham o som de profecia.

Dunraeden. Do convés do Marguerite, Gabrielle reviu as muralhas largas e as torres imponentes. No alto, gaivotas sobrevoavam o castelo e seus gritos eram
ouvidos ao longe. No ar, cheiro de água salgada e de peixe. O sol acariciava o cenário que se descortinava diante de Gabrielle. As águas muito azuis e brilhantes
características da costa da Cornualha. A vegetação convidativa e calorosa.
Era como a volta ao lar. Ela riu e olhou por sobre o ombro. Cam estava de cenho franzido. Desde que haviam saído da Normandia, poucas risadas haviam sido
ouvidas. Gabrielle contara como se dera a fuga com Dessins e Cam erguera um muro de reserva que ela não conseguira derrubar. Não pudera convencê-lo de que fugira
por dever a Mascaron e pelo receio do que acontecera a Goliath. Cam encarava o episódio como traição. Ou pior. A culminância de um esquema deliberado de fuga há
muito planejado, no qual Dessins servira apenas como oportunidade e meio.
Gabrielle esperava por um ajuste final de contas. Qualquer coisa era preferível àquela frieza. Ele a evitava sistematicamente desde que Fox, Sheridan e
Lansing tinham sido levados por um bote até um navio de guerra inglês, no meio do canal da Mancha.
Uma nuvem obscureceu o sol e Dunraeden ficou com aspecto tenebroso. Gabrielle estremeceu. Cam e Dunraeden combinavam. A fragata ancorou e o duque ajudou-a
a entrar no bote que os conduziria até a margem.
- Estamos com aspecto horrível. - Gabrielle tentou romper o silêncio. Cam se encontrava com a roupa manchada e ela continuava com o traje rústico de camponês.
Cam murmurou qualquer coisa ininteligível.
Gabrielle tentou novamente entabular conversação, sem resultado. Eles passaram pelos portões que foram fechados com estrondo.
Quando chegaram ao salão nobre, Gabrielle resolveu mudar de tática. Olhou ao redor, como se esperasse ver alguém.
- O que está esperando? - Cam empurrou-a em direção à escadaria.
- Ora, Louise, é claro.
- Ela não está aqui - ele respondeu com brusquidez.
- Não? Milorde encontrou alguma outra para rivalizar comigo?
Cam agarrou-a pelo pulso e arrastou-a para cima. Os criados arregalaram os olhos, estáticos. Cam ignorou-os. Gabrielle sorria.
Gabrielle parou de sorrir quando foi levada ao quarto circular no alto da torre sul.
- Por que me trouxe para cá?
- Milady preferia a masmorra?
- Cam, será que nunca vai aprender?
- Já aprendi! - ele retrucou com selvageria e Gabrielle recuou. - Com milady, nunca se deve facilitar. - Os olhos dele emitiam faíscas. - A senhora pretendia
roubar meu filho sem a menor dor de consciência!
- Cam, não é nada disso!
Ele foi até a porta.
- Cam, precisamos conversar. - Gabrielle foi atrás dele. Cam virou-se, furioso. - Não vá, por favor. Fale comigo.
- Tudo já foi dito. - Ele saiu e bateu a porta. Gabrielle escutou o barulho da chave e largou-se na cama.
Minutos depois a porta foi aberta e Betsy entrou com toalhas e um jarro de água quente. Aborrecida, a mulher desfiou uma ladainha sobre os inúmeros pecados
de Sua Alteza.
- Ele não quis me escutar - Gabrielle afirmou.
- Pois faça com que a escute!
Gabrielle tirou o traje de rapaz e entregou tudo para Betsy.
- Milorde mandou jogar tudo fora.
Gabrielle não escutou, pensando no conselho de Betsy.
- Vossa Alteza deseja mais alguma coisa?
- Sim, Betsy. Sua ajuda para fazer milorde recuperar o juízo.

Era meia-noite quando Cam foi para o quarto, sem definir os próprios sentimentos. Nos últimos dias enfrentara as mais diversas emoções e recusava-se a admitir
que sofria as dores do tão famoso coração partido.
Sem sucumbir à piedade de si mesmo, tirou o casaco, a camisa e largou-os no chão. Recusava-se a exercer os direitos maritais com uma esposa que não o amava.
O adultério também não o tentava. Não havia solução plausível para o problema.
Estirou-se de costas na cama e apoiou a nuca na palma das mãos. Decidiu que Gabrielle ficaria trancada em Dunraeden até o fim da vida.
Ele entendia o absurdo daquela pretensão. Gemeu e virou-se de lado. Não sabia qual a decisão mais acertada nem o que desejava fazer. Gabrielle o enganara,
traíra sua confiança e fizera de sua vida um inferno.
Ele era inglês e aquele era seu castelo. Tinha o direito de trancar sua esposa e jogar a chave fora. Ninguém haveria de recriminá-lo. Mas não era o que
desejava.
Um som leve no quarto contíguo chamou-lhe a atenção. Apoiou-se nos cotovelos. A porta intermediária foi aberta, ele ficou de pé em um pulo e Gabrielle entrou.
Betsy descumprira suas ordens! Não descartara as roupas de rapaz. Gabrielle o desobedecera e saíra da torre! Estreitou os olhos. Gabrielle trazia dois floretes
nas mãos.
Com uma saudação caçoísta, ela atirou uma das armas para Cam que a apanhou em um ato reflexo. Gabrielle rapidamente empunhou a outra.
- Mas o que...
Ela abaixou-se, preparada como um esgrimista.
- En garde, Alteza - ela o desafiou e aproximou-se.
Cam não duvidou das intenções da duquesa e aparou o golpe. Desviou-se do caminho quando Gabrielle atacou de novo.
- Essa atitude não a levará a parte alguma.
- É o que veremos. Espere até a ponta de minha lâmina tocar seu pescoço.
- Gabrielle! Perdeu o juízo? Poderá ferir nosso filho com essa brincadeira absurda.
Cam pensou em jogar no chão o florete, mas Gabrielle tornou a avançar e ele teve de se defender. Eles se analisavam em círculos.
- Não posso lutar com alguém em suas condições - Cam afirmou.
- O que representa uma grande vantagem para mim.
Ele aparava os golpes e Gabrielle insistia.
- Não quero machucá-la.
- Ótimo. Era o que eu esperava. Milorde não se importa se eu pensar o contrário, não é?
- O que está pretendendo? - Cam afastou-se e Gabrielle desferiu mais um golpe.
- Quero conversar com milorde. Quero que fale comigo.
- Não sou eu quem guarda segredos!
- Nem sobre Abbaye?
Cam estacou. Desprevenida, Gabrielle não pôde evitar tocar com a lâmina no torso desnudo do marido.
- Milorde tinha de abaixar a guarda? - Irritada, ela se apressou em examinar o ferimento.
Cam largou o florete, preocupado com um perigo maior.
- O que sabe a respeito de Abbaye?
- Ah, foi apenas um arranhão. - Gabrielle disfarçou e limpou o sangue com um lenço branco que tirou do bolso.
Cam agarrou-lhe os pulsos e ela deixou cair a arma.
- Responda, Gabrielle!
Ela se endireitou e fitou-o com perturbação.
- Milorde estava em Abbaye. Sei o que houve com sua mãe e sua irmã. Milorde também acusou meu avô por tudo o que houve.
- Quem lhe contou isso? - A fisionomia de Cam era uma máscara de gelo.
- Meu avô.
- Como ele descobriu?
- Não sei... - ela mentiu.
Cam sacudiu-a para soltar-lhe a língua e Gabrielle suspirou.
- Os juizes que integraram aquele tribunal desprezaram as leis e tiveram um triste fim ao longo dos anos. Meu avô descobriu a conexão recentemente. Ele
foi o único que permaneceu vivo, embora houvesse sido perseguido implacavelmente. Por isso vivíamos fugindo. Ele não sabia quem estava por trás disso, mas tinha
certeza que se tratava de uma vingança. - Gabrielle inspirou fundo. - Não quero falar sobre isso agora, Cam. Mais tarde, talvez. Precisamos conversar sobre nós.
- O que está me dizendo é muito interessante - ele alegou, cínico. - Continue, por favor. - Virou-se e foi até a janela
- Não sei o que deseja saber - Gabrielle murmurou.
- Quando Mascaron lhe contou a história?
- No dia em que milorde nos resgatou de Fouché. Ele não queria que eu fosse com milorde.
- Ele preferia deixá-la nas garras daquele homem?
- Não. Vovô queria que eu fugisse. E eu o teria feito facilmente, se quisesse. Eu não queria deixar meu avô. Eu também sabia que milorde viria à minha procura
quando descobrisse que Dessins me contara uma porção de mentiras.
- Uma pena não ter confiado em mim antes. Ou será que a idéia de me abandonar também não saiu de sua mente?
- Cam, se fosse por mim, eu não teria me importado. Mas eu não queria servir de instrumento para atingir meu avô. Eu não queria deixar você! E também não
podia abandonar Mascaron! Dessins me fez acreditar que algo acontecera com Goliath.
- Por que Goliath voltou para a Cornualha quando estávamos em Londres?
- Para me proteger. Mascaron havia descoberto tudo sobre Abbaye.
- Como ele soube que eu estava lá? Tenho certeza que ele não se lembrava de mim.
- Fouché contou a ele que milorde levara a pupila para a Inglaterra à força. Os dois raptos representavam uma grande coincidência. Descobriu que se tratava
de mim e começou a suspeitar que era milorde quem o perseguia há anos. Ele fez indagações e descobriu seu nome... - Gabrielle fitou os pés.
- E...?
Gabrielle inspirou fundo antes de continuar.
- Mascaron lembrou-se que a duquesa de Dyson, nascida Héloise de Valcour, e sua filha tinham sido assassinadas em Abbaye durante os massacres de setembro.
Ele também se lembrou que milorde o vira como um dos executores e concluiu que meu rapto fazia parte de sua vingança.
- Continue.
- É tudo o que eu sei.
- Ou o que pretende dizer - Cam ironizou.
- Não sei se encontrarei palavras...
- Meu Deus! Vejam que arma Mascaron lhe entregou! Pode condenar-me! Eu confesso! Fui eu quem a persegui por meio de meus agentes. Por minha causa, você
foi obrigada a viver como um menino e adotar a vida de vagabundo! Sou culpado também pelas cicatrizes em seu corpo! Por minha causa, milady nunca teve paz. Foi minha
sede de vingança que tornou sua vida intolerável. - Dominado pelo ódio, Cam bateu com os punhos fechados na parede.
Gabrielle não notou o vento que sacudia as cortinas e agitava as chamas da vela.
- Eu queria lhe dizer outra coisa - ela falou com voz embargada pela emoção. - Sinto muito por todo o sofrimento que teve de enfrentar. Sinto pelo que aconteceu
a sua mãe e a sua irmã. Sinto ter cantado aquela melodia estúpida. Eu não sabia o que estava fazendo. Os carcereiros ficavam felizes em ensiná-las às crianças. O
que mais me entristece é meu avô ter vindo naquela noite para Abbaye para nos libertar. Não sei mais o que dizer. Eu gostaria que milorde pudesse encontrar em seu
coração uma maneira de me perdoar.
Cam não estava preparado para o que acabava de ouvir. Gabrielle desejava que Mascaron não a tivesse libertado! Aquilo era uma blasfêmia. Ele dava graças
aos Céus pela interferência de Mascaron! Sua mãe e sua irmã, assim como as outras mulheres, estavam condenadas independentemente de qualquer decisão do tribunal.
Ninguém poderia conter uma multidão sedenta de sangue.
Jamais poderia lamentar a libertação de Gabrielle. Ah, como gostaria de ter feito o mesmo por sua madrasta e sua irmã. Teria dado a vida por elas. Mas seu
próprio destino também fora ameaçado até Rodier intervir. Ou melhor, fora o sinal de Mascaron para Maillard que evitara sua sentença de morte. Tratou-se de um capricho
e Cam o amaldiçoara por isso. Queria ter morrido junto com os seres amados.
Mas ele e Gabrielle haviam sobrevivido. Por Deus, como se alegrava por isso!
- Gabrielle...
Ele levantou a cabeça e procurou-a pelo quarto, mas não a encontrou. Certamente Gabriellle o vira ensimesmado e aproveitou a oportunidade para fugir. Apavorado,
Cam vestiu o casaco, foi para o corredor e berrou para os criados acordarem. Ele se lembrou da noite em que ela quase se afogara na maré que subia. Desceu os degraus
de dois em dois, chegou ao pátio e gritou para que abrissem os portões. Homens se aproximavam, sem saber o que fazer. Pensaram em um ataque francês e prepararam
as armas.
Cam não esperou por ninguém. Disparou pelo pátio, atravessou os portões abertos, passou pelas rochas e pulou as pedras até chegar na areia.
- Gabrielle!
Silêncio.
A maré estava chegando.
- Gabrielle!
Nada viu nem ouviu. Exceto o rugir da ressaca e o bater do próprio coração. Nem sinal de Gabrielle. Lamentou não ter ido para as muralhas. De lá teria uma
visão mais ampla. Apressado, voltou por onde viera.
Teria de encontrá-la! Jamais se perdoaria se algo lhe acontecesse. O desespero tomou conta dele. Arfante, entrou no salão nobre. Os servos, sonolentos,
estavam reunidos em pequenos grupos.
- Vasculhem o castelo de alto a baixo! - Cam subiu a escadaria correndo sem lhes dizer o que ou quem deveriam procurar.
Na disparada rumo aos parapeitos, uma claridade chamou-lhe a atenção. Vinha debaixo da porta do quarto de Gabrielle na torre. Ele parou e demorou alguns
segundos para recuperar o fôlego.
Então girou o trinco e entrou. O alívio deixou-o com as pernas bambas.
Gabrielle, vestida com uma camisola transparente, escovava os cabelos.
- Cam, o que houve? - Ela se espantou com o olhar assustado e a aparência descomposta do marido.
- Pensei que você tivesse fugido. - Cam se esforçava para recuperar o fôlego.
- Para onde eu iria? - Gabrielle largou a escova.
- Sua porta estava destrancada.
- Não é proeza tão grande destrancar uma porta, Cam.
Cam pensou no verdadeiro significado daquelas palavras.
Se Gabrielle quisesse realmente deixá-lo, não haveria como impedi-la.
- Ouça, minha querida - ele procurou controlar a ansiedade -, se quiser deixar Dunraeden, não a impedirei. Na verdade, eu mesmo a levarei para onde desejar
e providenciarei para que nada lhe aconteça.
Gabrielle engoliu em seco.
- Eu lhe agradeço, Cam, mas nada disso será necessário. Eu quero ficar aqui, a seu lado. Quero estar onde você estiver.
Cam fechou os olhos para sufocar a emoção.
- Meu anjo - ele sussurrou. - Poderá me desculpar? - O peso dos pecados que cometera era insuportável. - Perdoe-me por ter feito de sua vida um tormento
constante, de ter ordenado sua perseguição a meus agentes, por tudo o que a fiz sofrer quando criança.
Gabrielle arregalou os olhos e não conseguiu falar. O silêncio prolongado angustiou-o ainda mais.
- Não a culpo por me odiar. Mas se me der uma oportunidade, juro que passarei o resto de minha vida tentando redimir meus erros.
- Não faça isso, meu amor! Eu é que tenho de lhe pedir perdão. Jamais poderei agradecer-lhe pelo que fez por meu avô. Sei muito bem o quanto custou para
você deixar o ódio de lado e salvá-lo.
- Oh, minha querida, não fiz isso por ele, mas por você. Também descobri que não o odeio. Nem poderia. Não foi ele quem a salvou da multidão enfurecida?
- Cam a impediu de aproximar-se. - Espere até eu terminar, Gaby. Preciso dizer algumas coisas para ficar em paz com minha consciência.
Ele andou pelo quarto e parou diante de Gabrielle.
- Louise Pelletier...
- Esqueça, Cam. Não o recrimino pelo que aconteceu - Gabrielle interrompeu-o. - Isso pertence ao passado.
Cam passou a mão nos cabelos.
- Espero que acredite em mim. Mas você representa tudo o que eu mais admiro em uma mulher.
- Obrigada, Cam. Tentarei não decepcioná-lo. Não tem sido fácil, mas com sua ajuda aprenderei a me comportar como uma dama.
- Não me importo nem um pouco com elas!
Gabrielle recuou, espantada com a rispidez.
- Ainda não entendeu que foi uma fada usando calças quem roubou meu coração? - ele deu uma risada. - Fui um tolo em não admitir que essa fada arisca ultrapassou
em qualidades todas as mulheres que eu conheci. O que importam calças ou saias? O principal é o que medimos em caráter e honradez. Jamais me perdoarei por tentar
transformá-la em outra pessoa. Minha querida, por favor, seja sempre a Gabrielle de Brienne que eu conheci em Andely.
Gabrielle sorriu enquanto as lágrimas deslizavam por sua face.
- Seu amor deve ser muito grande para me pedir isso, Cam.
- Haverá uma possibilidade de retribuir esse amor?
- Querido, eu jamais deixarei de amá-lo.
Ambos ficaram imóveis olhando um para o outro por algum tempo.
Gabrielle quebrou o encanto. Com um grito, jogou-se nos braços do marido. Cam beijou-a com ardor. Havia muitas coisas para serem ditas, mas ele não sabia
ao certo por onde começar.
- Falaremos mais tarde. - Cam levou-a para o leito. - Ah, meu anjo, faz tanto tempo... Me ame, apenas me ame.
- Sempre, Cam. Sempre.

Muito mais tarde, depois que eles disseram tudo o que duas pessoas apaixonadas dizem uma para a outra, no meio da noite, Cam beijou-a delicadamente e disse:
- Meu anjo, partiremos para Londres quando você quiser. - Dunraeden trazia recordações amargas para Gabrielle.
- Isso não me agrada, Alteza. Não quero que nosso filho cresça na cidade.
Cam acariciou-lhe o abdome ligeiramente abaulado.
- Tenho uma propriedade em Yorkshire e uma residência em Chester.
Isso também não agradou à duquesa.
- Então o que deseja?
Gabrielle riu.
- Trancá-lo no meu castelo na Cornualha e jogar fora a chave.
Os olhos de Cam brilharam.
- Milady será minha carcereira?
- Inglês, eu lhe prometo. Jamais o perderei de vista!
- Cuidado. Vossa Alteza também será minha prisioneira. E eu tenho maior experiência nesses casos.
- Muito esperto - Gabrielle sussurrou. - Não sabe que esse é o meu maior desejo?

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O Anjo Escarlate - Elizabeth Thornton


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