terça-feira, 13 de abril de 2010

Nicole Jordan - Amor Cativo.txt

Amor Cativo
(Tender Feud)

Nicole Jordan

CAPITULO I

Argyll, Escócia, 1761

Ela só podia estar louca. O estranho que tampava sua boca devia ser produto de uma imaginação fértil demais.
Mas talvez estivesse realmente acordada, em plena posse de suas faculdades mentais, e de fato sendo atacada no gabinete de seu tio, no meio da noite.
Katrine Campbell arregalou os olhos verdes para o homem de feições duras e cabelos negros como o ébano. Ela voltara à Escócia depois de uma ausência de
quinze anos, cm busca do romance e aventura que seu temperamento passional tanto pedia, mas jamais imaginara que fosse encontrar algo parecido com isto!
Mas a verdade era que nada até então saíra como o planejado.
Ela chegara da Inglaterra naquela tarde, praticamente junto com a carta que enviara ao tio, e o encontrara no meio de um grande tumulto. Pelo que pudera
entender, uma centena de cabeças de gado fora roubada pelos inquilinos do duque de Argyll, aparentemente em retaliação pelo aumento dos aluguéis. Sendo o administrador
das propriedades ocidentais do duque, Colin Campbell queria ver os ladrões presos e punidos o mais rapidamente possível.
_ Esses malditos MacLean! _ berrara ele para o jovem soldado inglês que viera comunicar o roubo. _ Vou pendurá-los na forca por isto! Foi a última vez que
roubaram o clã Campbell!
Katrine percebeu que a hora era pouco adequada para conversar com o tio pedindo sua permissão para uma estada mais prolongada. E, de fato, se teve tempo
para persuadi-lo a deixá-la passar a noite ali antes dele sair batendo a porta, resmungando contra parentes inoportunos e os MacLean ladrões.
Ela ficou quase agradecida aos tais MacLean por distraírem a atenção de seu tio logo em sua chegada. Assim teria mais tempo para preparar seus argumentos.
Um viúvo sem filhos como Colin Campbell dificilmente aceitaria de bom grado a idéia de hospedar uma sobrinha que não via há anos. Contudo, Katrine esperava convencê-lo
a deixá-la ficar pelo menos um mês e em troca se ofereceria para cuidar da casa que, pela aparência das janelas e dos móveis empoeirados, estava precisando da atenção
de uma mulher caprichosa.
Decidida a provar que podia ser útil, começou a arrumar alguns cômodos, ignorando os resmungos da criada mal-educada. Terminado o jantar, escreveu cartas
para suas duas irmãs e a tia Gardner, avisando-as de sua chegada em segurança. Era bastante tarde quando finalmente recolheu-se para o quarto.
Cerca de uma hora e meia depois, como estava alerta, esperando a chegada do tio, Katrine ouviu um som vindo do andar de baixo: um rangido leve de uma dobradiça
precisando de óleo.
Ela levantou-se rapidamente, jogando um cobertor nos ombros. Sua bagagem maior ainda não chegara e precisava de algo para cobrir a camisola. Depois de calçar
os chinelos, olhou-se no espelho para ver se seus cabelos crespos e rebeldes continuavam obedientemente trançados e presos sob a touca dê dormir. Acendendo uma vela,
saiu do quarto e dirigiu-se para a escada, de onde avistou luz sob a porta do gabinete.
Bateu na porta de leve, mas não esperou a ordem de entrar.
_ Tio, o senhor conseguiu capturar os...
Num átimo de segundo Katrine viu que o estranho usava uma casaca preta e tinha os cabelos negros presos com uma fita. No mesmo olhar captou um dos livros
de registro de seu tio aberto sobre a escrivaninha, iluminado por um lampião.
_ Desculpe, mas o que... _ começou, confusa, mas as palavras mal tinham saído quando o estranho, levantando-se de um salto, veio tampar-lhe a boca com a
mão.
Com os olhos arregalados de susto, ela fitou o homem sob a luz da vela que carregava. O rosto era forte, com maxilares bem marcados e queixo agressivo.
Olhos escuros brilhavam sob sobrancelhas espessas. Dhu... a palavra em gaélico, o dialeto escocês, para a cor preta foi a primeira coisa que lhe acorreu ao pensamento.
Negro e perigoso.
Tudo indicava que havia surpreendido um intruso na casa de seu tio.
Ela quis lutar, pedir socorro, mas a palma calosa continuou firme sobre sua boca enquanto o homem a puxava para dentro do gabinete e fechava a porta.
_ Fique quieta e nem um pio! _ A ordem veio num tom baixo e assustou-a ainda mais. Foi dada na voz de um cavalheiro de cultura e acostumado a comandar.
Além disso, tinha um nítido sotaque escocês.
Á luz de sua vela, Katrine pôde ver que os olhos não eram negros, como pensara de início, mas azuis, num tom profundo, escurecidos por cílios espessos.
Tirando-lhe a vela da mão, ele disse no mesmo tom baixo e cultivado:
_ Quando eu tirar a mão, você não vai gritar. _ Foi uma ordem, não um pedido, embora ele parecesse estar esperando uma concordância.
Com o coração aos saltos, Katrine balançou a cabeça lentamente, pedindo perdão a Deus pela mentira. No instante em que o intruso tirou a mão, ela respirou
fundo e soltou um grito terrível, esperando que fosse ouvido no castelo de Kirchun, onde ficava a milícia inglesa.
O homem reagiu no mesmo instante, levantando novamente a mão, mas desta vez Katrine estava preparada. Com um movimento rápido, ergueu o pé e enfiou o salto
do chinelo no peito do pé do vilão enquanto se virava, tentando alcançar a maçaneta da porta. A ação fez o homem deixar cair a vela, que se apagou ao bater no chão.
Praguejando baixinho, o intruso atirou-se sobre Katrine, ao mesmo tempo jogando o ombro contra a porta que ela já conseguira abrir. Desta vez ele a pegou
por trás, tampando-lhe a boca com a mão enquanto a continha pela cintura com o braço direito. A manta que ela usava escorregou, enrolando-se em sua cintura e quadris,
aumentando seu confinamento.
Presa, impotente, mal conseguindo respirar, Katrine viu-se arrastada para perto da escrivaninha. O braço musculoso deixou sua cintura para pegar o lampião,
contudo ela não foi capaz de se desvencilhar. Só pôde virar um pouco a cabeça, conseguindo ver um rosto furioso antes de o homem apagar a luz...
No escuro, o intruso a fez ajoelhar-se e agachou-se ao seu lado. Mantendo a mão sobre sua boca, encostou uma lâmina fria em seu pescoço.
O sussurro foi suave como seda, mas mais mortal do que aço
_Tente isso de novo e você vai conhecer o fio do meu punhal.
Não se atrevendo a mexer nem um dedo, Katrine ficou ali, trêmula. Agora estava apavorada. Uma lâmina no pescoço, um corpo firme e masculino apertado contra
o seu Sensações mais do que suficientes para perturbarem a natural sensibilidade de uma jovem dama finamente educada!
E se ele pretendesse mesmo assassiná-la?, pensou, tremendo da cabeça aos pés.
No silêncio, podia ouvir a respiração do homem e os batimentos de seu próprio coração. Por que ninguém aparecia?
Seu grito, se não tivesse trazido os milicianos, deveria no mínimo ter acordada a criada, a única pessoa daquela casa que não se envolvera na caça aos ladrões.
Inútil, pensou Katrine, com desdém. A mulher provara, de novo, ser uma inútil. Com toda a certeza a covarde estava escondida embaixo da cama, com um travesseiro
tampando os ouvidos.
Desejando poder fazer o mesmo, ela sufocou uma risada histérica e concentrou-se em suas pernas que estavam adormecendo. Se ao menos conseguisse se mexer
um pouco...
Como que em resposta às suas preces, o intruso abaixou a arma e tirou a mão de sua boca. Mas, em vez de libertá-la, ele a prendeu pelo peito, perto do pescoço.
Katrine enrijeceu-se diante do atrevimento. Ora, o braço do homem estava tocando seus seios!
O contato íntimo a fez tomar consciência do quanto seu corpo era macio em comparação com o do intruso. O pior era que a proximidade estava lhe causando
um efeito estranho e indesejado. Seus mamilos estavam se enrijecendo.
Chocada com a reação involuntária, Katrine lançou um olhar para cima. Talvez o homem não estivesse notando onde seu braço se apoiava.
Mas talvez ele soubesse muito bem.
Ele baixou o olhar. O luar que entrava pela janela aberta fazia seus olhos escuros cintilarem e delineava os planos severos de seu rosto, dando-lhe um aspecto
ameaçador. Só que evocava um tipo diferente de perigo.
Katrine sentiu a pulsação acelerar. Sua garganta secou de repente e seus lábios se entreabriram de medo. Percebeu o olhar do homem descendo para sua boca.
Apesar da sala estar fria, sentia-se esquentar mais a cada minuto que passava. O corpo do homem a aquecia. Podia sentir seu calor e as batidas de seu coração por
trás da casaca preta.
Ou aquilo seria apenas produto de sua imaginação desenfreada?
Katrine tentou engolir apesar da garganta seca. Nenhum cavalheiro que conhecia a afetara dessa maneira. Também nenhum cavalheiro a olhara desse jeito...
Era só razoavelmente bonita, tendo pouco da encantadora beleza de suas duas irmãs mais novas. O queixo era pronunciado demais e seus cabelos formavam uma massa indisciplinada
de cachos naturais, espessos e vermelhos como fogo. Além disso, tinha um gênio terrível e uma língua afiada que afastara mais do que um possível pretendente. Apesar
disso, só continuava solteira aos vinte e três anos por vontade própria. Impusera-se o compromisso de ver suas irmãs bem casadas antes de pensar em arranjar um mando.
Mas nesse momento, desejou ter um mínimo de experiência com os homens para saber lidar com esse vilão que agora, além de ameaçar sua vida, ameaçava sua virtude.
Ainda olhando para seu captor, Katrine sentiu um arrepio. Sua imaginação estava lhe pregando peças, pensou, pois o calor que emanava dele era quase confortador
e o cheiro másculo de sua pele, agradável.
Katrine prendeu a respiração quando viu o olhar do intruso descer e se fixar em seus seios. Vestia uma camisola de flanela espessa, mas podia sentir o olhar
atravessando o tecido, tocando-a com intimidade. Mal se atrevendo a respirar, ficou observando em tenso silêncio enquanto o olhar descia ainda mais.
Ela quase desmaiou quando o homem falou:
_ O que é isto, um cobertor? _ Ele levantou um canto da manta com a ponta do punhal.
Katrine não conseguiu encontrar a voz, mas sabendo que tinha de responder, só balançou a cabeça, assentindo.
O homem esperou um instante e depois afastou-se dela vagarosamente. Ao ver a lâmina cintilar sob o luar, Katrine não conseguiu evitar um choramingo de pavor.
_ Não vou machucá-la _ disse ele baixinho _, a não ser que você me dê motivos para isso.
Com um gesto rápido, ele puxou o cobertor e cortou uma tira com o punhal. Katrine ficou observando a cena com olhos arregalados e estremeceu quando o homem
estendeu a mão para ela.
_ Vou ter de amordaçá-la, moça. Não quero que grite de novo.
Katrine não conseguiu dizer nada. Pela primeira vez em sua vida, a língua lhe faltou. Ficou só olhando para ele, trêmula e indefesa.
O intruso, sem dúvida percebendo o quanto ela estava assustada, foi delicado enquanto a amordaçava com a tira do cobertor e amarrava as pontas do tecido
por cima da touca de dormir. E, quando voltou a falar, usou um tom agradável.
_ Parece que os soldados dos Campbell não vão aparecer _ disse, cortando mais tiras do cobertor _ Na certa confundiram seu grito com o de um gato selvagem.
O tom foi tranqüilizador, mas Katrine ainda tremia.
_ Você trabalha aqui? _ perguntou ele, pegando-lhe as mãos e cruzando-as no pulso para poder amarrá-las.
Ele a confundira com uma criada, pensou Katrine, desviando o olhar. Claro, patroas e serviçais eram bem parecidas em trajes de dormir.
_ Você poderia encontrar coisa melhor para fazer do que servir o lacaio de Argyll.
Lacaio de Argyll? Obviamente ele estava falando de seu tio. Katrine, apesar do medo, sentiu o sangue começar a ferver. Teria respondido à altura se não
fosse pela tira de lã enfiada em sua boca.
Mas o desejo de dizer alguma coisa sumiu quando ele a fez sentar no chão e ergueu a barra da camisola para amarrar-lhe os pés. Katrine simplesmente gelou
ao sentir os dedos quentes tocando sua pele nua, deslizando pela parte de trás de suas pernas enquanto o homem passava a tira de lã para amarrar os tornozelos.
Ela soltou um soluço de indignação. O estranho parou por um segundo e ergueu o olhar, encarando-a. Apreensiva, Katrine censurou-se pela emoção que o olhar
e o toque de seu captor lhe causavam. Tinha a impressão de que aquelas mãos ásperas soltavam fogo ao tocar sua pele, o calor se espalhando e indo se acomodar em
lugares cuja existência uma dama refinada jamais deveria reconhecer.
O homem abaixou a cabeça para continuar sua tarefa. Uma mecha de cabelos negros e ondulados tombou sobre a testa aristocrática.
Katrine sentiu uma onda de alivio por escapar do olhar penetrante do intruso.., e algo mais: raiva por esse vilão de negro exercer um efeito tão perturbador
sobre ela.
Deu boas vindas à raiva. Afinal, era uma emoção mais satisfatória do que o medo e a fazia se sentir bem menos impotente e indefesa. Enquanto o homem continuava
a amarrá-la, tentou distrair sua mente pensando nas palavras exatas que diria se não estivesse amordaçada.
Quando ele terminou, pegou o cobertor e arranjou-o sobre seus ombros...
_ Pronto, assim você ficará mais confortável.
A preocupação fingida atiçou a ira de Katrine. Ora, como poderia ficar confortável quando estava sentada no chão frio e amarrada como um peru de Natal?
Na escuridão, ouviu o homem bater uma pederneira e em seguida acender o lampião. Vendo-o virar-se, encarou-o cheia de fúria, mas nos olhos escuros detectou
uma leve zombaria que considerou um insulto.
_ Agradeço você não ter gritado de novo _ observou ele. _ Repercutiria muito mal para um cavalheiro das Terras Altas ser obrigado a machucar uma mulher.
Cavalheiro! Ela gostaria de poder dizer claramente o que pensava sobre suas pretensões à fidalguia.
O homem voltou a sentar-se à escrivaninha e debruçou-se sobre o livro de registros. De onde estava Katrine não podia ver o que ele fazia, mas percebeu que
molhava várias vezes a pena no tinteiro. Por algum tempo, os únicos sons na sala foram o raspar da pena e da areia sobre o pergaminho, usada para secar a tinta.
Apesar das amarras, Katrine começou a relaxar um pouco. Tudo indicava que não seria assassinada tão cedo, o que já era algum conforto. E, na verdade, salvo pela
garganta seca e a falta de circulação em alguns pontos dos pulsos e tornozelos, o homem não lhe fizera nenhum mal.
Ela tentou ocupar o tempo pensando em quem seria o estranho e por que estava mexendo nos livros. Ele falava bem demais para ser um ladrão comum. A casaca
e as calças eram extremamente bem cortadas, valorizando sua figura alta e magra. As botas de montaria que lhe chegavam acima dos joelhos não deixavam dúvidas sobre
a alta qualidade.
Mas, bem vestido ou não, ele era um criminoso rude, cruel e perigoso. Já provara isso ao ameaçá-la com o punhal, cujo cabo agora aparecia por cima do cano
da bota direita. Sentindo o sangue ferver diante da lembrança, estudou atentamente o perfil do invasor para, posteriormente, poder descrevê-lo para as autoridades.
No entanto, nunca conseguiria esquecer esse rosto, a testa alta, o queixo quadrado e os olhos azul-escuros como a noite. O homem devia ter uns trinta e
poucos anos. Se não fosse pela barba de dois ou três dias, ele poderia ser considerado bem bonito, pensou Katrine com magnanimidade. Os lábios cheios e os cabelos
ondulados deviam ser atraentes para algumas mulheres. De fato, ela mesma poderia achá-lo bastante atraente se o tivesse conhecido em outras circunstâncias. Mas um
homem tão selvagem definitivamente não fazia parte de seus sonhos.
Nesse momento, como se tivesse percebido que estava sendo observado, o estranho virou-se para olhá-la. Examinou-a de alto a baixo, captando todos os detalhes
de sua desarrumação. Vários cachos tinham se soltado da trança e escapado da touca de dormir, que caíra um pouco para trás por causa da mordaça. A camisola estava
erguida acima dos tornozelos amarrados, mostrando seus pés e uma boa parte das pernas.
Vendo onde o olhar do homem estava se demorando, Katrine ergueu o queixo e encarou-o com expressão indignada. Ele lhe deu um sorriso.
_Você tem belos tornozelos.
Katrine descobriu que mesmo tomada de fúria era capaz de corar de embaraço. Concedendo uma vitória temporária ao vilão, apressou-se a abaixar a barra da
camisola, cobrindo os pés.
Em troca de sua modéstia ela só recebeu uma risadinha cínica. O homem voltou a se preocupar com sua escrita. Um bom tempo depois, ele fechou o livro e começou
a procurar alguma coisa nas gavetas. Katrine viu-o tirar uma bolsinha e espalhar seu conteúdo sobre a mesa. Avistando de relance um bastão vermelho, deduziu que
o pequeno objeto de metal que ele examinava à luz do lampião era um selo. Seria o do seu tio? Ou do duque?
O estranho enrolou o selo num lenço e enfiou-o no cinto. Voltou a guardar a bolsinha na gaveta e levantou-se com um movimento ágil e gracioso. Virou-se
e encarou Katrine. Desta vez ela recusou-se a demonstrar medo. Mesmo quando o homem abaixou-se diante dela para verificar se a mordaça e as amarras nos pulsos estavam
firmes, ela continuou rígida. Mas, quando ele estendeu a mão para seus tornozelos, Katrine puxou os pés com um olhar desafiador.
Ele não a tocou e exibiu um outro de seus sorrisos devassos.
_Lamento ter de deixá-la assim, gata selvagem, mas já vi do que você é capaz. _ Fez uma pausa e depois colocou um dedo sob o queixo de Katrine, erguendo-o
para melhor ver seu rosto. _ É uma grande pena eu ter tão pouco tempo nesta noite. Em outras circunstâncias, talvez me empenharia em aprofundar nosso conhecimento.
Katrine arregalou os olhos. O descarado estava flertando com ela!
_Quer que eu deixe o lampião aceso? _ indagou ele, enquanto se levantava.
Que arrogância inacreditável! O vilão estava tão certo que não seria apanhado que aceitava deixar uma luz enquanto fugia. Não parecia nem minimamente preocupado
com a possibilidade dela identificá-lo.
O homem fez uma mesura exagerada e zombeteira.
_Dê minhas lembranças a Colin Campbell. _ Uma nota caçoísta tingiu suas palavras, fazendo-a ranger os dentes por cima da tira de lã enquanto ele se dirigia
para a janela.
Observando-o cheia de fúria, Katrine jurou que acertaria contas com o sujeito. Quando seu tio voltasse, se empenharia ao máximo para ver esse valentão mal-educado
caçado por todos os soldados e magistrados do condado de Argyll. De fato, o próprio duque seria informado sobre o acontecido com todos os detalhes!
Ela ainda fazia seus juramentos quando o homem saltou pela janela e fechou a vidraça atrás dele.
Katrine esperou vários minutos antes de levar as mãos atrás da cabeça para soltar a mordaça. O vilão poderia voltar. Foi difícil soltar a tira com as mãos
amarradas, mas finalmente sentiu-a se afrouxar. Com um suspiro de alívio, ela arrancou a lã sufocante da boca e massageou os lábios inchados.
Estava estendendo as mãos para os tornozelos quando ouviu um outro som de passos no lado de fora da casa. Ficou imóvel, com o coração batendo forte. A janela
rangeu de novo quando foi aberta.
_Raith, onde está você, rapaz? _ O sussurro veio acompanhando um braço grosso que abria a vidraça.
Katrine sufocou um soluço de susto ao ver um outro homem na janela. Esse era mais baixo e robusto, e exibia cabelos tão vermelhos como os dela sob a boina.
E mais, usava o xale xadrez proibido preso ao ombro, o que, para ela, era a confirmação de suas intenções perversas.
O recém-chegado encarou-a com igual surpresa.
_Acho que foi Raith quem a amarrou assim _ disse com um forte sotaque das Terras Altas, que pareceu estranho aos ouvidos de Katrine, mais habituados com
o inglês.
_ Raith... então esse é o nome do... do patife? - A milícia vai gostar de conhecer sua identidade!
O ruivo obviamente percebeu o erro que cometera ao revelar o nome de seu cúmplice, pois fez um ar consternado. Com uma agilidade surpreendente para
seu físico robusto, subiu no peitoril e saltou para dentro do gabinete, exibindo uma boa parte de pernas peludas sob o saiote escocês.
_Oh, não, moça, você não vai denunciá-lo. Raith me cortaria a cabeça!
_Bem, se ele não cortar, eu cortarei. Doerá do mesmo jeito. _Pensando melhor, Katrine acrescentou: _- No entanto, poderei usar de uma certa demência se
você desamarrar minhas mãos.
_ E quem é você? _ perguntou o homem, cauteloso. Dava a impressão de não ser muito inteligente.
_ Sou Katrine Campbell, a sobrinha de Colin Campbell. Agora quer fazer o favor de me soltar?
_ Ninguém nos contou que Campbell tinha uma sobrinha aqui.
_ Eu cheguei hoje! Agora me solte, seu bobo, antes que eu comece a gritar chamando a milícia.
Por alguns instantes Katrine imaginou que o homem era mesmo retardado, pois ele ficou ali parado, só olhando para seus pulsos amarrados. Mas pelo menos
parte de seu cérebro devia funcionar adequadamente, porque acabou tomando uma decisão. Ajoelhando-se ao lado dela,, pegou a mordaça caída no chão.
Katrine percebeu duas coisas em rápida sucessão: primeiro, dissera a coisa errada; segundo, ia ser novamente silenciada. Ela sentiu o sangue ferver. Não
tinha a menor intenção de se submeter pacificamente a ser amordaçada com o trapo molhado!
No entanto, ela não teve escolha. Tentou lutar, claro, mas se seu primeiro captor tinha mãos de aço, esse possuía duas vezes mais força, devido ao peso
muito maior. Ele a subjugou como se estivesse lidando com uma criancinha e a amordaçou com facilidade. Depois, passando o braço pela sua cintura, ergueu-a como se
fosse uma pena e atirou-a sobre o ombro.
Ofegante, furiosa, Katrine socou as costas do bruto, mas não causou mais efeito do que uma mosca batendo num touro. Viu-se obrigada a parar por um instante,
quando o homem saltou a janela, por medo de rachar a cabeça no peitoril. Mas, assim que se viu do lado de fora, ela voltou a bater inutilmente nas costas cobertas
de tecido xadrez. Os gritos abafados que soltou enquanto atravessavam o jardim também foram em vão pois, de cabeça para baixo, com um ombro poderoso enfiado em seu
estômago, ela mâl conseguia respirar e menos ainda articular o que faria com seu raptor se ele a soltasse.
Desistindo de socar, Katrine tentou arranharas costas poderosas, mas o homem continuou correndo, dirigindo-se para um arvoredo. Quando de relance ela avistou
um cavalo amarrado a um tronco, redobrou seus esforços para escapar, contorcendo-se e chutando desesperadamente. Em troca, recebeu uma palmada no traseiro. Seu gemido
de indignação foi cortado quando o bruto atirou-a de bruços sobre a sela.
A falta de respiração a atordoou por um instante, mas quando seu captor afastou as mãos para pegar as rédeas, Katrine, com um impulso dos pés e um empurrão
com as mãos amarradas, conseguiu deslizar para fora do cavalo, caindo de joelhos no chão. Ouviu o homem resmungar sobre diabinhos encrenqueiros enquanto ele a devolvia
à posição anterior e montava.
O golpe no estômago que Katrine recebeu quando o cavalo avançou a silenciou por alguns minutos. Não tinha mais respiração para tentar gritar. Quando finalmente
a recuperou e começou a arranhar a perna peluda que aparecia sob o saiote, uma mão pesada apertou-a contra a sela, quase quebrando-lhe as costelas. Katrine, exausta
e dolorida, desistiu da luta.
Talvez, refletiu enquanto avançavam pelo meio da noite, devia ter prestado mais atenção às palavras de tia Gardner. Sua tia inglesa sempre se referia aos
parentes de seu pai como "os montanheses selvagens e pagãos", queixando-se com freqüência que seu cunhado - enchera a cabeça da filha com bobagens românticas sobre
a Escócia. E agora, menos de doze horas depois de sua chegada, estava sendo raptada por um maluco.
Ela não poderia dizer quanto tempo levou aquela cavalgada. Rangendo os dentes sobre a tira, tentou lembrar-se de sua educação cristã enquanto era sacudida
sem piedade quilômetro atrás de quilômetro. Mesmo assim, mais de uma praga violenta chegou à sua língua afiada. Não sentia mais medo. O desejo de matar o superara
por completo.
Finalmente o cavalo diminuiu a marcha e a cavalgada dolorida terminou.
_Agora segure a língua _ disse seu captor, com mais preocupação do que ameaça na voz. _ Raith não vai gostar nada quando souber que eu revelei o nome dele
ou que você ameaçou chamar os soldados.
Segure a língua! Katrine rangeu os dentes sobre a mordaça. Sua raiva estava explodindo. Jurou matar o bruto. Jurou se vingar dele, mesmo que levasse a vida
toda tentando.
Cambaleante, dolorida, sentindo que a espinha' se transformara em geleia, Katrine deixou-se deslizar para o chão e permaneceu ali, imóvel, enquanto seu
captor desmontava. Mas, quando ele a pegou pelo braço para ajudá-la a ficar em pé, conseguiu reunir forças para se desvencilhar. incapaz de chutara canela do bruto,
como gostaria de fazer, atacou-o inutilmente com as mãos amarradas.
Apunhalando seu raptor com os olhos, levantou as mãos e conseguiu puxar a mordaça.
_ Seu pateta idiota! Seu... seu bruto! Vou vê-lo pendurado na forca por isto!
O cobertor há muito caíra de seus ombros, mas apesar de estar com péssimo aspecto, com os cabelos desgrenhados, Katrine enfrentou o robusto escocês, pronta
para a batalha.
O homem só ficou olhando, como se ele fosse um tigre e ela um cachorrinho atrevido, tentando morder suas patas.
Foi então que Katrine percebeu que não estavam sozinhos. Um arrepio gelado percorreu sua espinha. Havia outros cavalos e o pequeno bosque estava iluminado
com tochas.
Vagarosamente ela virou a cabeça e sentiu o coração dar um salto quando viu que era o alvo de vários olhares ferozes. O lugar estava cheio de homens, vestindo
roupas escocesas e brandindo pistolas ou espadas.
A visão gelou seu sangue e no mesmo instante acabou com todas as idéias românticas que alimentara sobre os valentes habitantes das Terras Altas.
Estavam todos olhando fixamente para ela, inclusive o vilão de cabelos negros como ébano que invadira a casa de seu tio. Ele modificara um pouco seus trajes.
Agora, em vez de casaca e colete, usava um xale escocês em tons de verde preso no ombro, à moda das Terras Altas.
Nessas roupas, parecia ainda mais perigoso. E agora não havia mais sinal da arrogante zombaria. Seu rosto parecia escuro, havia uma expressão de fúria nos
olhos que iam do homem robusto para ela.
_ Com todos os diabos, Lachlan, que invenção foi essa?

CAPÍTULO II

Raith MacLean ficou olhando para seu parente, contendo a raiva até ouvir uma explicação para o que saíra errado, embora desconfiasse que ele era o único
culpado pela situação. Lachlan não primava pela inteligência e não seria a primeira vez que desobedecia ordens. Ficara encarregado de vigiar a guarnição no castelo,
mas não se encontrava em seu posto quando Raith terminara sua tarefa no gabinete de Campbell. Também não chegara ao ponto de encontro na hora combinada. Tudo indicava
que ficara nervoso e partira em sua procura. Os dois deviam ter se desencontrado na escuridão.
No entanto, até agora a invasão do território dos Campbell saíra exatamente como o planejado. Mais ao sul, dois outros destacamentos de MacLean tinham criado
uma diversão que obrigara o administrador do duque e os soldados partirem numa louca perseguição. A ausência de Colin Campbell dera a Raith a oportunidade de executar
seu real propósito, alterar os livros de registro.
Um plano inteligente. Mais fácil do que roubar gado, menos sangrento do que uma guerra e mais eficaz do que ambos.
Aliviaria a carga dos MacLean da ilha de Mull, vítimas de aluguéis exorbitantes, e afetaria o duque no bolso. Raith modificara as anotações para indicarem
rendas maiores do que as recebidas e agora os livros estavam tão confusos que nem o administrador conseguiria arrumá-los.
E, se fosse necessário, Raith poderia usar o selo de Argyll para emitir recibos atestando o pagamento dessas rendas mais altas. Campbell, sem dúvida, desconfiaria
deles devido ao roubo do selo, mas não teria como provar que eram falsificados.
Raith tivera uma imensa satisfação em prejudicar o clã Campbell dessa nova maneira, para compensar a constante traição dos Argyll. Seu próprio clã não sofrera
tanto como os outros. Os MacLean de Ardgour eram um dos poucos que não tinham perdido suas terras depois dos levantes de 1715 e 1745. Os MacLean de Dura haviam perdido
tudo, inclusive seu chefe, ficando expostos à perfídia de Argyll. Fora por isso que Raith viera em seu auxílio. Na condição de lorde de Ardgour, tinha a obrigação
moral de proteger e defender seus parentes.
A execução do plano correra sem perturbações, exceto pelo fato de ele ter sido surpreendido no gabinete pela moça de cabelos de fogo, vestida em trajes
de dormir. Não esperava encontrá-la na casa de Campbell e não tinha a menor idéia do que ela fazia ali.
Raith olhou para a moça que estava vermelha de indignação. Tinha olhos verdes e brilhantes, que escureciam quando ela estava brava, como agora.
Mas ele também estava bravo por ter sido forçado a esperar por Lachlan. A esta altura ele e seu bando já deveriam estar muito longe para escapar de qualquer
tipo de perseguição.
_Lachlan _ ele repetiu com clara impaciência _ , por que não nos conta que invenção foi essa?
O ruivo ficou olhando, como se não tivesse entendido.
_Ora, eu trouxe a moça para você.
_Você enlouqueceu? O que posso querer com ela?
_É a sobrinha de Colin Campbell.
Raith estreitou os olhos fitando Katrine.
_Quem disse isso?
_Ela mesma. Disse que se chama Katrine Campbell.
Katrine, parada ali, tremendo de frio, vestida de camisola enquanto seu destino era decidido, assustou-se com a ferocidade que viu brilhar nos olhos azul
escuros. Não precisou pensar muito para compreender que a reação surgira diante de seu sobrenome. Ele a desprezava por ser uma Campbell. Lançando um olhar à sua
volta, percebeu que todos os outros montanheses compartilhavam dessa antipatia.
Foi Raith quem deu palavras ao que o grupo pensava. Sua expressão combinou com o tom gelado que imprimiu à voz enquanto seus olhos examinavam Katrine com
desdém:
_Leve-a de volta, Lachlan. Não pretendo ficar em companhia de uma parente de um Campbell sanguessuga. _ Ele virou-se abruptamente para os cavalos amarrados
nas árvores. - Montem, rapazes, não ficaremos aqui para sermos pendurados numa forca. A gritaria dessa mulher deve ter atraído os soldados.
Katrine ficou dividida entre o desejo de retrucar e a idéia mais sensata de manter a boca fechada. O bom senso venceu. Se o homem não queria nada com ela,
filo tentaria fazê-lo mudar de idéia. Começara a soltar um suspiro de alívio quando seu robusto raptor interveio novamente, alarmado.
_Mas Raith, você não entendeu! Pense bem. Colin Campbell pagará uma boa soma para tê-la de volta. Resgate! _ berrou, fazendo seus companheiros pararem e
Katrine segurar a respiração de novo.
Raith examinou-a de alto a baixo antes de balançar a cabeça.
_Não. A idéia é boa, mas não necessária. Já nos vingamos de Colin Campbell. Além disso, não é o dinheiro dele que queremos, mas o de Argyll.
_Bem _ disse o ruivo um tanto decepcionado _ , é possível que o maldito duque, esteja disposto a pagar. Ela é uma Campbell, não?
Katrine sentiu suas palmas ficarem úmidas quando os olhos azuis se fixaram nela. O líder dos bandidos não parecia aprovar a idéia de prendê-la em troca
de um resgate mas, por outro lado, a olhava como um predador observando o alvo de sua destruição. Ela decidiu que já era mais do que hora de desencorajar a especulação.
_Vocês não podem me prender para conseguir um resgate! _disse de supetão. _ Isto é, poder vocês podem, mas não adiantaria nada. Duvido que meu tio pague
para me ver de volta.
Houve uma pausa antes de Raith responder.
_Oh, e por que não?
_Porque meu tio mal me conhece e o duque nunca pôs os olhos em mim.
_Agora me diga por que eu deveria confiar na palavra de uma Campbell?
O tom suave e sarcástico, com o leve sotaque escocês, a irritou. Katrine devolveu o olhar procurando mostrar a mesma arrogância.
_Você não é obrigado a acreditar, mas essa é a verdade. Cheguei ontem da Inglaterra. A família de minha mãe é inglesa e eles nos acolheram quando...
_Ora, quem diria _ resmungou Lachlan. _ Uma maldita sassenach.
O termo em gaélico denominava todos nascidos na Inglaterra, mas na boca de um montanhês era um palavrão. - Minha mãe pode ter sido inglesa e eu posso ter
vivido na Inglaterra a maior parte de minha vida, mas sou meio escocesa _ disse Katrine, de cabeça erguida. _ De fato, tenho este nome por causa do lago Katrine.
_ Sua revelação não pareceu fazer nenhum efeito nos montanheses.
_Uma Campbell inglesa _ murmurou Raith, seu tom ácido transformando a frase numa obscenidade.
Katrine pôde ver que ele falava pelos seus compatriotas, pois todos a olhavam como se fosse um objeto vil. Lachlan, porém, parecia mais preocupado com o
fracasso de seu plano. Olhou feio para Katrine, queixando-se amargamente.
_Eu devia saber, depois de você me socar e arranhar como um bicho, que ninguém pagaria para tê-la de volta.
Katrine devolveu o olhar de seu raptor com indignação. Ele parecia acusá-la por não ser a presa valiosa que imaginara. Mas discutir com Lachlan não lhe
traria nenhum proveito nem a tiraria da difícil situação. Já sabia muito bem quem era o chefe.
Olhou inquisidoramente para o homem chamado Raith, esperando que ele fosse cavalheiro o bastante para libertá-la. Ele ainda a examinava com a mesma expressão
dura, mas houve uma ligeira modificação no seu olhar.
Alarmada com o que suspeitava, Katrine tentou dar um passo para trás e quase caiu por esquecer-se que estava com os pés amarrados.
_Por favor, não permitam que isso os detenha. Vocês devem estar ansiosos para partir.
_Não tão ansiosos assim.
_Bem, eu estou bastante desejosa de voltar para casa.. assim, acho melhor ir me despedindo.
Raith cruzou os braços sobre o peito musculoso, coberto com o xale escocês.
_E como você pretende voltar?
_Andando. Gosto muito de andar.
_Quer dizer que espera que a deixemos aqui, neste lugar isolado, para se cuidar sozinha.. e vestindo apenas uma camisola?
_Eu não me importo, juro. Você não precisa se preocupar com meu bem estar.
_Pode ter certeza disso, srta. Campbell. Tenho muita gente com quem me preocupar.
_Então não pretende me libertar? _ Katrine engoliu para controlar o tremor em sua voz.
_E por que eu faria isso? Para você mandar a milícia atrás de nós?
_Não farei isso, juro. Se me deixar ir, esquecerei o incidente, esquecerei que o vi. Nunca nos encontramos. De fato, não tenho a menor vontade de aprofundar
nosso conhecimento. Além do mais...
O homem interrompeu sua tagarelice histérica.
_Da mesma forma que concordou em não gritar no gabinete de seu tio? Como as mentiras saem fácil da boca de um Campbell.
Katrine não teve resposta. Num desespero crescente, disse bem devagar, como se estivesse falando com uma criança:
_Você acaba de dizer que não quer o dinheiro de meu tio e eu já lhe expliquei que o duque não se interessará em pagar por mim. Não há propósito em me prender
para conseguir resgate.
_Não estou pensando em resgate. Duvido que seu tio avarento esteja disposto a se separar de sua prata. Mas mesmo ele não gostaria de ver uma parente maltratada.
Afinal, sangue é sangue. Você servirá como garantia contra a perseguição dos MacLean de Dura.
MacLean, pensou Katrine com um misto de temor e desagrado. Os ladrões de gado. Seus pensamentos devem ter se refletido em seu rosto, pois o homem lançou-lhe
uni sorriso enviesado.
_Você deve entender como seria imprudente libertá-la, agora que sabe quem somos nós.
_Imprudente! _ Nem por um instante ela acreditou que o atrevido estava preocupado com a possibilidade dela identificá-lo. Essa ousadia era não só insolente,
como também temerária. - Imprudente seria não me libertar, O que você está planejando é uma loucura. Meu tio ficará furioso, O duque ficará furioso. Eles o caçarão,
os soldados do castelo...
_Estou morrendo de medo.
_Não pode fazer isto comigo! _ protestou Katrine, frustrada, vendo que suas ameaças não surtiam efeito.
_Posso sim.
A zombaria voltara aos olhos azuis, atiçando a ira de Katrine. Se não estivesse com os tornozelos amarrados, sapatearia de ódio.
_Eu não vou com você!
_Lamento enormemente ter de desapontá-la, srta. Campbell, mas a senhorita não tem escolha.
Ela lançou um olhar aflito a sua volta, procurando um jeito de fugir, mas o homem logo percebeu sua intenção, porque disse:
_Não pense em tentar escapar, já vou avisando. Será bem pouco digno termos de caçá-la.
Antes de ela poder responder com azedume que seria impossível para uma pessoa fugir com os pés amarrados, ele virou-se e dirigiu-se para seu cavalo, um
animal tão preto como seus cabelos.
_Espero que os soldados o apanhem!
_Você irá com Lachlan _ respondeu ele, sem olhar para. trás.
O aborrecimento de Katrine diante dessa declaração foi quase tão grande como o de Lachlan.
_Eu não quero essa mulher! Prefiro cavalgar com um gato selvagem.
Katrine sentiu uma, certa satisfação diante do protesto do ruivo. Pelo menos conseguira obter um saudável respeito pelas suas unhas. Mas se ele se atrevesse
a tratá-la como fizera antes...
Incapaz de pensar em algo violento o suficiente, Katrine olhou feio para as costas de Lachlan. Ele também se virara para pegar o cavalo e agora estava afagando
a crina de um alazão.
_Meu pobre bichinho _ resmungou para consolar o animal. _Sei que você também não quer carregar essa diabinha.
_O sentimento é mútuo, posso lhe garantir _ declarou Katrine, com igual desdém. _ Não me agrada nem um pouco ser atirada sobre um cavalo como um saco de
batatas por um pateta que não tem a menor...
_Eu sugiro _ interrompeu-a Raith falando do outro lado do pequeno bosque enquanto montava _ , que você encontre outros modos de descrever Lachlan. Ele não
gosta de ouvir desaforos.
A resposta: "Que brilhante?" estava na ponta da língua de Katrine, mas a ferocidade na expressão de Lachlan a fez dirigir seu azedume para Raith.
_Se ele não gosta de ser chamado de pateta, que tal grosseirão ou monstro? Esses adjetivos se aplicam a todos vocês.
Ele se aproximou montado no cavalo. Havia um leve sorriso em seu rosto.
_Devo lembrar-lhe srta. Campbell, que seu bem-estar depende de sua boa vontade.
O tom sardônico teve como claro objetivo enfurecê-la. O bruto era muito mais alto do que ela e, montado como estava, a obrigava a entortar o pescoço
para encará-lo. E pior, vestida de camisola, estava exposta aos olhares lascivos dos doze homens comandados pelo demônio de cabelos negros.
No entanto, sua pouca roupa não parecia atiçar o interesse do insolente moreno. Os olhos azuis a examinavam com ceticismo, dizendo com clareza que ele não
via nada de encantador nela.
Oh, como gostaria de lhe dar um bofetão. Katrine olhou em volta procurando uma arma qualquer, um pedaço de pau, uma pedra, para acabar com o sorrisinho
sardônico.
Ele, captando seu olhar, imaginou que Katrine estava novamente pensando em fugir.
_ Eu não cometeria a tolice de tentar escapar Não vai resultar em nada.
_Pelo contrário, vai me resultar em grande satisfação.
_E eu encontrarei a mesma satisfação em impedi-la.
O frio letal que surgiu em seu tom e olhar lembraram a Katrine o quanto o homem era perigoso e a fragilidade de sua situação. De repente se deu conta
de que estava à mercê de um bando de criminosos. Eles podiam raptá-la ou matá-la e espalhar seus pedacinhos por todas as Terras Altas. Ela estremeceu e apertou os
braços contra o peito.
Vendo-a estremecer e captando o medo em seus olhos, Raith hesitou por um segundo e depois tirou o longo xale xadrez do ombro.
De má vontade, estendeu-o para Katrine.
_Tome, fique com isto. Oferecer conforto para uma Campbell, inglesa ainda por cima, é algo que vai contra meus princípios, mas você será inútil para nós
se morrer de frio!
Consideração encantadora, pensou Katrine de mau humor, enquanto lançava um olhar para o xale.
_Posso ter estado distante da Inglaterra por um bom tempo, mas conheço a lei. O uso do xadrez dos clãs está proibido nas Terras Altas.
_Não reconheço o direito do governo inglês de decretar o que devo vestir e que armas tenho de usar, mas já que você conhece a lei, deve saber que o xadrez
não é proibido para mulheres. E então, você quer ou não o xale?
Katrine não queria aceitar nada senão sua liberdade mas, se deixasse de aceitar o xale, estaria somente se prejudicando. A noite eslava mesmo fria, apesar
de ser quase verão. Ela levantou o olhar para Raith e viu-o assistindo sua luta íntima com cínica zombaria. Fumegando em silêncio, bem consciente que o homem preferiria
vê-la congelada, pegou o a peça de roupa e, meio sem jeito por causa das mãos amarradas, conseguiu colocá-lo sobre os ombros.
_Você não precisa se desmanchar em mostras de gratidão.
Katrine não se dignou a responder o sarcasmo. Endireitando os ombros, erguendo o queixo, lançou-lhe um olhar de tão completo desdém que o insolente deveria
ter tombado morto.
Mas ele simplesmente riu.
_ Deixe Lachlan ajudá-la a montar. Se você conseguir segurar a língua e se comportar de maneira civilizada, creio que ele a deixará sentar na sela. _ Depois,
virando-se para os homens, acrescentou: _ Apaguem as tochas, rapazes, e vamos partir. Temos um longo caminho pela frente antes de amanhecer.
Ele era decididamente odioso, pensou Katrine. enquanto olhava para as costas de Raith.
Mas então as tochas foram apagadas e a escuridão a fez se esquecer do montanhês atrevido e se concentrar no pateta que a precipitara nessa triste situação.
Ouvindo Lachlan se aproximar. ela ficou tensa e fechou os punhos, preparada para se defender de qualquer violência.
_ Eu não tentarei lutar corri você se mantiver as garras escondidas _ disse o ruivo.
Katrine também não queria lutar porque sabia que levaria a pior. Assim, corno não tinha escolha, aceitou o tipo de trégua que ele ofereceu, deixando-se
ser colocada no cavalo.
Como não podia abrir as pernas, sentou-se de lado, enganchando o joelho na maçaneta da sela. Quando se acomodou, enrijeceu o corpo para não encostar nem
um centímetro dele em seu captor, que estava montando.
No entanto, foi difícil evitar o contato quando Lachlan esporeou o cavalo para partir a galope atrás de seus companheiros. Apesar de se agarrar à crista
do animal, ela foi atirada contra o peito largo do escocês, e teria caído se um braço poderoso não a segurasse pela cintura.
A cavalgada foi melhor do que a anterior porque agora ela estava sentada. No entanto, o medo era praticamente o mesmo. Agora desciam uma ravina íngreme
e envolta em neblina sob a luz fraca do luar e Katrine teve certeza de que o cavalo iria tropeçar a qualquer momento e atirá-la para longe. Agarrando-se desesperadamente
à crina do animal, ela fechou os olhos para não ver o seu fim. Começava a se arrepender por ter vindo à Escócia. Seqüestro não era o que tinha em mente quando sonhara
com romance e aventura. E os ferozes montanheses que a cercavam estavam muito longe do escocês altivo, porém carinhoso, que criara cm sua imaginação. Fies não tinham
a menor pena dela. Na manhã seguinte, estaria cheia de hematomas em várias partes do corpo.
Manhã. Uma onda de desespero tomou conta de Katrine. Se não conseguisse soltar antes do alvorecer antes de notarem sua ausência, podia esquecer a idéia
de passar algum tempo nas Terras Altas.
Tio Colin a mandaria embora, com toda a certeza. Apesar de não ter tido a menor culpa no seqüestro, sentiu uma pontada de remorso por criar um problema
para Colin Campbell. A última coisa que pretendia era dar trabalho e agora ele teria de sair em seu socorro.
Se pudesse encontrá-la.
Katrine deixou cair os ombros, desanimada. Como tudo pudera mudar tão drasticamente em tão pouco tempo? Fora mesmo na véspera que chegara à Escócia? Fora
na véspera que estivera aguardando ansiosamente a primeira visão das colinas das Terras Altas, depois de tantos anos?
Ela sacudiu a cabeça lembrando-se de seu entusiasmo. Navegara pelo estuário de Lorne e ao desembarcar hospedara-se numa estalagem no pitoresco porto de
Oban. Na manhã seguinte, contratara um charreteiro para levá-la à casa do tio, a uns trinta quilômetros mais para o interior. Deixara os criados na cidade, com instruções
para mandarem sua bagagem para a residência de Colin Campbell e voltarem para a Inglaterra, se não recebessem notícias dela em dois dias.
A grandiosidade das Terras Altas era tudo o que ela lembrava. Agarrando-se ao banco da charrete, olhara a sua volta tomada de encantamento. Ao norte avistou
o Ben Cruachan, uma das mais altas montanhas da Escócia, coberta do verde vivido da primavera. Ao leste, a distância, ficava o lago Awe, que há séculos provia a
proteção e o sustento do clã Campbell.
Na extremidade oposta do lago ficava o castelo Kilchurn, uma enorme construção de pedra com uma torre retangular que fora construída por um Campbell e servira
como quartel general das tropas governistas durante o levante jacobino de 1745.
A pouca distância do castelo, perto de um grupo de pequenos sítios, ficava a casa de dois andares que ela recordava de sua infância.
O quanto estaria longe da casa de seu tio agora?, pensou Katrine, ainda agarrada á crina do cavalo. Fora impossível para ela se orientar na escuridão estando
de cabeça para baixo na sela.
Katrine obrigou-se a sair da depressão, mentalmente se punindo por estar se deixando desanimar. Teria de escapar de seu captor sozinha ou então precisaria
encontrar algum modo de avisar os soldados que certamente viriam no encalço do bando sobre seu paradeiro. Seria útil, percebeu, descobrir mais sobre o lugar onde
estava e para onde os montanheses se dirigiam.
Decidida a captar informações sobre sua localização, Katrine abriu os olhos e tentou ver alguma coisa a sua frente. À luz fraca da lua só conseguiu divisar
as costas largas dos MacLean e os cabelos negros de seu chefe. Ele estava inclinado para o homem ao seu lado conversando baixinho. Katrine aguçou os ouvidos para
captar os sussurros que ocasionalmente chegavam até ela, mas os montanheses falavam gaélico. Por mais atenção que tentasse prestar às sílabas dissonantes da língua
das Terras Altas, só conseguia entender uma ou outra palavra.
Lançando olhares disfarçados para os dois lados, Katrine tentou distinguir o terreno. Só via morros altos e não conseguiria dizer qual deles era o Ben Cruachan.
O pior era que os pinheiros a sua esquerda estavam começando a aumentar, o que sugeria a presença de uma floresta que os encobrira bem rapidamente.
Uma trilha. Sim, ela precisava deixar uma trilha para os homens de seu clã. Respirando com cuidado, Katrine mudou de posição na sela.
_Não comece com gritaria senão eu a porei de bruços outra vez _resmungou Lachlan.
Mas Katrine não tinha a menor intenção de abrir a boca ou chamar atenção. Vagarosamente, com um cuidado infinito, largou a crina do cavalo e enfiou as mãos
amarradas sob o xale xadrez. Puxando o tecido da camisola centímetro por centímetro, encontrou a barra e as duas fileiras de renda que a adornavam, que ela mesma
costurara desafiando os princípios presbiterianos de sua tia Gardner.
Nunca imaginara que sua teimosia se revelaria tão útil, pensou enquanto arrancava a renda ponto por ponto. Agora estava grata pelo xale pois, além de calor,
ele lhe proporcionava um escudo para esconder suas ações.
Quando estava com uma tira de uns dez centímetros, Katrine cortou-a com a unha e deixou-a cair no chão.
Não se atreveu a olhar para trás para ver se seu estratagema tinha dado certo. Como não houve nenhum grito de alerta por parte de Lachlan, ela decidiu que
o ruivo não desconfiara de nada. Soltando vagarosamente a respiração que estava prendendo, começou a repetir o procedimento.
Conseguira deixar cair o terceiro pedaço de renda quando o grupo se aproximou de um dos muitos casebres que se espalhavam pelos vales da Escócia. A moradia
humilde estava escura e silenciosa, mas Katrine a olhou com esperança, imaginando se não valeria a pena dar um bom grito para atrair os habitantes.
O mesmo pensamento deve ter ocorrido a Raith MacLean porque ele subitamente deu meia-volta e veio se aproximando dela. Katrine sentiu um aperto no coração.
Ele obviamente queria passar sem ser notado e sem dúvida estava preparado para amordaçá-la ou coisa pior se ela se atrevesse a abrir a boca.
Katrine enrijeceu-se enquanto ele avançava. Sua simples presença a desencorajou de gritar. Quando ele freou o cavalo abruptamente, Katrine imobilizou-se,
prendendo a respiração.
Notou que o olhar do homem estava fixo na escuridão atrás dela. Os olhos escuros fulminaram Katrine. Sabendo o que iria encontrar, ela virou a cabeça. A
tirinha de renda era perfeitamente visível luz do luar.
Ela pensou em negar sua culpa, mas, quando viu a expressão no rosto do homem, não se atreveu nem mesmo a respirar.
_Continue em frente e espere por mim _ ele ordenou a Lachlan em voz baixa, mas o tom fez Katrine estremecer. _ Se ela der um gemido, trate de silenciá-la.
Katrine teve a sensação de que ele pretendia usar algo mais eficiente do que uma mordaça. Não emitiu nenhum som enquanto passavam pelo casebre nem quando
todos se juntaram perto de algumas arvores esperando a volta do líder. Ele não demorou muito a chegar.
_Ela deixou uma trilha de renda branca para os soldados de seu tio seguirem _ anunciou Raith enquanto se aproximava dela. Mesmo sob a luz fraca do luar
Katrine pôde ver que a raiva substituíra a expressão de zombeteiro desdém que ele usara antes. O primeiro à ser repreendido foi Lachlan. _ Você não percebeu o que
ela estava fazendo?
_Eu não pensei... _ Lachlan abaixou a cabeça, tão envergonhado que Katrine quase sentiu pena dele.
_Há quanto tempo a senhorita está espalhando suas pequenas pistas, srta. Campbell?
Katrine, com a boca subitamente seca, não conseguiu responder. Encolheu-se assustada quando ele estendeu a mão para pegar-lhe o braço sem nenhuma delicadeza.
_Há quanto tempo?
_Alguns minutos! _ gritou ela. Depois, vendo os olhos escuros se estreitando, acrescentou: _ Talvez mais do que isso.., uma meia hora...
_ E quantos pedacinhos de pano deixou cair?
_T... três. _ Ela odiou o modo como sua voz tremeu, mas não Conseguiu evitar.
_Pelo seu próprio bem espero que esteja dizendo a verdade. _Largando o braço de Katrine, ele a chocou afastando o xale que a cobria.
_O que está fazendo?
Ele não respondeu. Examinava a frente da camisola à procura de indícios incriminadores. Levantando a barra, estudou o enfeite de renda, comparando a parte
que faltava ao pedacinho que tinha na mão. Aparentemente, não confiara na palavra dela.
Não foi a falta de confiança que a fez corar, mas sim a audácia dele em desnudar suas pernas quase até a coxa. Quando Raith deixou cair a barra da camisola
com um gesto de desdém, Katrine ergueu o queixo numa atitude de desafio.
_Um prisioneiro tem o direito de tentar escapar.
_ A senhorita tem o direito de ficar imóvel e manter a língua entre os dentes, nada mais.
O tom deu nos nervos de Katrine, no entanto ela não teve chance de responder, pois logo Raith chamou um dos homens.
_ Ewen, quero que volte atrás no caminho e encontre até a última tirinha de pano. _ Depois, virou-se novamente para Katrine.
_Se a senhorita está tão ansiosa para se desfazer de partes da camisola, serei obrigado a removê-la de vez.
_Você não se atreveria!
_Então queira ter a gentileza de agir como uma refém exemplar por algumas horas, sem nos criar atrasos.
A ameaça de Lachlan foi mais violenta:
_Se ela tentar algo desse tipo de novo, eu a esganarei!
Fumegando, Katrine fechou a boca enquanto o grupo voltava a avançar.
Desta vez, porém, Raith foi cavalgando atrás de sua prisioneira, de modo a ficar de olho nela. Ele definitivamente subestimara a engenhosidade da moça,
pensou, olhando exasperado para a tirinha de renda que tinha na mão.
Devia ter imaginado que ela possuía a mesma argúcia do resto do seu clã. E pensar que no gabinete de Colin Campbell ele se sentira atraído por ela. Por
um perigoso momento sentira o impulso de tomá-la nos braços, de cobrir possessivamente os lábios entreabertos de medo, de descobrir os doces segredos que seu corpo
esguio prometia.
Mas, a descoberta de sua verdadeira identidade destruíra essa atração.
Raith fez uma careta de desdém. Unia Campbell com sangue inglês. Não podia existir combinação mais traiçoeira. Não, sua reação a ela fora apenas um impulso
carnal, masculino, que qualquer homem sentiria ao tocar uma mulher bem feita, com pouca roupa. E as respostas espirituosas que tinham despertado seu interesse não
eram mais do que um indicio de um gênio terrível.
Os cabelos ruivos deviam ter lhe dado uma pista. Os cachos flamejantes diziam que não se tratava de uma moça calma e recatada como a mulher com que ele
se casara. Katrine Campbell também não tinha grande beleza. No entanto, a pele que cobria os ossos fortes de seu rosto possuía um brilho quase luminescente, como
uma radiação...
Pondo um fim a essa linha de pensamento, Raith repreendeu-se em silêncio. Sua falecida esposa teria ficado chocada ao se ver comparada com uma megera de
cabelos de fogo. Katrine Campbell era uma virago e um estorvo, por mais bonita que pudesse parecer, por mais que afetasse as partes de sua anatomia que ele não
podia controlar. Mas, por enquanto, a manteria em seu poder. Queria ter certeza que os homens de seu clã não iriam retaliar contra os MacLean de Dura pelas ações
dessa noite. Também ficaria com ela até Argyll reconsiderar o aumento abusivo dos aluguéis e impostos.
Ela não tinha saída, pensou Katrine, quase ao mesmo tempo. Raith MacLean era um ladrão e um patife malvado, pois ameaçara deixá-la sem a camisola. Suspirou
desanimada, reconhecendo sua derrota temporária. Naturalmente não deixaria de tentar escapar. Mas por enquanto conservaria sua energia e limitados recursos para
ocasiões mais propícias.
Essas ocasiões, contudo, não se apresentaram no transcorrer da longa noite. Katrine começou a cansar-se de manter os olhos abertos à procura de acidentes
geográficos que poderiam ajudá-la a descobrir sua posição. Por mais de uma vez ela surpreendeu-se cabeceando e nessas ocasiões se repreendia por esse lapso em sua
força de vontade. Mas, um pouco antes da lua desaparecer, pegou no sono.
Estava escuro como breu quando o alazão finalmente parou. Sen4ado a falta de movimento, Katrine acordou e deu-se conta de que estava encostada no peito
largo de Lachlan. Endireitando-se de repente, viu Raith MacLean em pé ao lado do alazão, com um olhar impaciente.
_ Esperaremos aqui por Ewen _ informou ele, enquanto erguia as mãos para ajudá-la a desmontar.
Katrine ficou tensa, perturbada pelo calor dos dedos longos e firmes em sua cintura. Mas, quando ele a colocou no chão, esqueceu-se de todo o desconforto
ao descobrir que suas pernas adormecidas não iam suportá-la. Com um gemido, tombou para a frente no instante em que Raith virava-se para se afastar. Ela agarrou-se
a ele numa tentativa desesperada de se equilibrar. Prendeu a respiração enquanto um arrepio de estranho temor percorria sua espinha. Membros musculosos. Força vital.
Intensa virilidade. Seu coração começou a bater com tal força que teve certeza de que ele era capaz de sentir.
O corpo esguio de Raith MacLean se enrijecera com o impacto e apesar de ter erguido as mãos no mesmo instante para ampará-la, Katrine teve a clara
impressão de que ele gostaria de estar em qualquer lugar, menos ali, involuntariamente abraçado a um corpo semi-despido.
Ele esperou até ela recuperar o equilíbrio e depois deixou cair as mãos. Com o coração ainda batendo acelerado, Katrine olhou para o rosto de Raith, impenetrável
na escuridão.
_Você pode sentar naquela pedra. _ A voz dele foi severa, fria, em nada combinando com o calor que seu corpo momentaneamente oferecera.
_Que pedra? _ Katrine ainda estava rouca de sono e seu tom foi bastante ríspido. Como podia ver alguma coisa quando a noite estava escura como breu? Mas,
olhando melhor para o negrume atrás de Raith MacLean, conseguiu divisar os contornos de uma rocha plana, a alguns passos de distância.
_E como você espera que vou chegar até lá? Eu não posso andar com os pés amarrados.
Raith pensou em pegá-la no colo, mas ainda estava perturbado devido ao momento anterior. Continuava sentindo o contato com coxas esguias e seios fartos
e macios, de modo que prudentemente decidiu não voltar a cometer o erro de tocá-la tão intimamente. Com um gesto ágil, retirou o punhal da bota e inclinou-se para
cortar as tiras.
Arrastando as pernas, como se fosse uma velha, Katrine dirigiu-se para a pedra e sentou-se. Todos os ossos de seu corpo doíam. Se estivesse menos frio,
teria se deitado e pegado no sono imediatamente. A temperatura caíra drasticamente, aumentando seu desconforto.
Tremendo, Katrine lutou com as mãos amarradas para puxar o xale para mais perto do corpo. Raith MacLean também devia estar sentindo frio, pensou, embora
tivesse vestido a casaca preta que o fazia se misturar tão perfeitamente com a noite.
Procurando por ele, tentou ver alguma coisa na escuridão. Devia estar se juntado aos outros homens que haviam se reunido a uma certa distância. Não podia
vê-los, mas escutava seus murmúrios enquanto conversavam.
Era uma boa oportunidade para ela se livrar de um outro desconforto. Descendo da pedra e indo vagarosamente até o outro lado dela, levantou a camisola meio
sem jeito e conseguiu atender sua necessidade.
Quando voltou para a pedra, sentiu o desespero voltar com toda força e deixou os ombros caírem, desanimada. Tia Gardner tinha razão. Nunca deveria ter glorificado
as besteiras românticas que seu pai enfiara em sua cabeça. Mas, como poderia ter evitado, quando suas lembranças mais antigas estavam relacionadas com as Terras
Altas, com suas magníficas paisagens e povo indomável? Deixara a Escócia aos oito anos e com essa idade não tinha como esquecer as histórias que ouvira sentada no
colo do pai, histórias sobre os homens rudes e corajosos que habitavam a região, sobre os clãs e suas disputas, sobre ferozes lealdades e ódios, e, em especial,
ódio pelos ingleses.
Seu pai lutara com o clã Campbell ao lado dos ingleses durante a Quarenta e Cinco, como era conhecida a rebelião de 1745. Mas, com sua morte na batalha
de Culloden Moor, Anne Campbell voltara para a Inglaterra com suas três filhas, indo morar com uma irmã.
Tinham sido anos muito sóbrios. Tanto tia Gardner como seu marido eram presbiterianos convictos e viam com desconfiança qualquer coisa que se assemelhasse
a alegria ou diversão. Depois da morte da mãe, Katrine fizera o possível para poupar suas irmãs dessa criação rígida. Tomara para si a responsabilidade de cuidar
das meninas, suavizando os rígidos princípios de sua tia e intervindo com persuasão, lógica e também com sua língua afiada, quando preciso.
Sim, anos sóbrios mas também felizes que haviam passado depressa. Dois meses antes Katrine estivera organizando a festa de casamento de sua irmã mais nova,
Roseline, e supervisionando o ajuste 4o vestido de noiva que fora de sua mãe.
Fora um momento emocionante, cheio de lembranças e de dor da separação ver a irmã que criara como se fosse uma filha se transformar numa jovem mulher, pronta
a ser entregue a um marido e ao mundo. Ao ver Roseline usando o rico vestido de noiva, Katrine sentiu seus olhos se marejarem. Já experimentara essas sensações antes,
por ocasião do casamento da outra irmã, Louise, que agora, depois de três anos já estava esperando o segundo filho.
A melancolia de Katrine durante aquele momento com Roseline a fez confessar sua determinação de um dia voltar ao seu local de nascimento. Contou à irmã
sobre o desejo que vinha crescendo dentro dela há muitos anos.., o desejo ardente de conhecer a vida fora da cidade de Ramsey, famosa apenas pela sua excelente produção
de repolhos e nabos. A paisagem da região era tristonha e pouco inspiradora, sendo apenas uma planície extensa que jamais poderia se comparar com o selvagem esplendor
das Terras Altas escocesas. Não se contentaria em permanecer ali, não sem pelo menos uma única vez tentar satisfazer sua vontade de viver um romance e uma grande
aventura.
Apenas por causa deste sonho havia permanecido solteira. Sempre achara que havia algo em falta nos cavalheiros ingleses que conhecia. Eles eram dóceis demais
e pareciam sem graça para seu coração passional.
_Quando eu me casar _ dissera a Roseline _ , será com um líder, ousado e corajoso... um homem lutador, como papai, mas que saiba ser gentil.., um homem
com fogo no coração que incendiará meu sangue... _ Ela se interrompera corando, dando-se conta de como fora inadequada essa conversa para os ouvidos jovens de sua
irmã.
Então Roseline se casara, o que a fizera se sentir solitária e um tanto estranha. Decidira então que chegara a hora de procurar seu próprio futuro.
Não fora fácil convencer os tios que estava mesmo decidida a voltar para a Escócia, mas como era maior de idade e tinha seus próprios meios, acabara vencendo
a disputa. Embora ainda protestasse, tio Gardner insistira em tornar sua viagem o mais segura possível. Assim, viajando numa confortável carruagem e acompanhada
por uma criada e um guarda armado, ela atravessara a Inglaterra até Liverpool, onde tomara o navio para a Escócia.
Como estivera entusiasmada com sua chegada no dia anterior! Agora, contudo, não conseguia mostrar o menor interesse no terreno que a cercava. Estava cansada
demais para pensar em fugir e só conseguiu forças para amaldiçoar baixinho os bandidos que a haviam raptado e agora pareciam decididos a matá-la de exaustão e fome.
Para sua surpresa, Raith apareceu ao seu Lado justamente naquele instante, e entregou-lhe um frasco de água e uma bolacha de aveia. Ela ficou surpresa e
grata com essa atenção, mas decidiu não agradecer.
Quando Raith voltou para perto de seus homens, Katrine começou a comer vagarosamente o biscoito, ouvindo o tilintar de arreios enquanto os cavalos pastavam
a pouca vegetação que conseguiam encontrar no terreno pedregoso. Cavalos?
Katrine endireitou-se de um salto. Um seqüestro não poderia continuar sem cavalos. Sua pulsação se acelerou desordenada quando ia percebeu que tinha o meio
perfeito de estragar os planos dos MacLean, ou pelo menos atrasá-los. Os cavalos estavam soltos para pastarem. Os ferozes montanheses continuavam a uma distância
segura, ignorando sua presença. Se uma mulher de branco, desconhecida para os animais, começasse subitamente a saltar, sacudindo os braços e gritando a plenos pulmões,
eles se espantariam.
Apesar do frio, Katrine sentiu as palmas úmidas de suor enquanto tentava calcular quanto tempo Raith levaria para alcançá-la e se conseguiria sobreviver
a sua fúria.
No entanto, talvez nunca tivesse uma melhor oportunidade do que essa para tentar escapar. Se não tentasse agora, jamais se perdoaria.
Katrine terminou o último pedaço de bolacha de aveia, mas mal conseguiu engolir de tão nervosa. Não se dando tempo para mudar de idéia, pegou unia ponta
do xale meio desajeitada e levantou-se cautelosamente.
Então, depois de respirar fundo, ela abriu a boca para emitir um rito de gelar o sangue.

CAPÍTULO III


O pandemônio foi instantâneo. As micagens de Katrine assustaram os cavalos, que saíram a galope pela escuridão. Os montanheses gritaram, sobressaltados,
e desembainharam punhais e espadas para se defenderem de um ataque inimigo. Todos menos Raith.
Certo de que Katrine era a causa do caos e não a vítima, ele soltou um palavrão e correu para ela.
Katrine já se virara para fugir, mas não foi rápida o bastante. Sentiu um braço firme se fechar em torno de sua cintura e erguê-la dolorosamente do chão
enquanto a mão tampava sua boca para por fim ao berreiro.
Ela lutou, determinada a prosseguir até a morte _ ou quase, porque preferida viver _ e conseguiu chutar a canela de Raith. Ele praguejou de novo antes de
suas pernas se entrelaçarem com as dela, fazendo os dois caírem estatelados. Apesar de ele ter esticado um braço para amortecer a queda e suportar o impacto no quadril
direito, o tombo tirou a respiração do corpo de Katrine.
Ela ficou ali no chão, ofegando, consciente de que Raith tirara a mão de sua boca, mas não conseguiu fôlego para um outro grito.
_ Pelo amor de Deus! _ resmungou Raith, respirando com dificuldade. _ Será que você está cortejando a morte?
Katrine sentiu a fúria de Raith em cada parte de seu corpo que estava em contato com ela; no braço que esmagava suas costelas, logo abaixo dos seios, no
peito poderoso apertado contra suas costas, nas coxas musculosas que aninhavam seu traseiro...
Ela quase parou de respirar, consciente da intimidade da posição. Sentiu a reação viril à proximidade... um ligeiro enrijecimento, um leve palpitar, um
calor sutil fluindo entre eles. Seu próprio corpo estava quente e... excitado. Não havia outra palavra para descrever o choque de estar apertada contra os contornos
masculinos de seu captor.
Alarmada com suas reações e as dele, Katrine moveu os quadris tentando aliviar a pressão, mas só conseguiu se insinuar mais sugestivamente no ninho formado
pelas coxas de Raith.
_Por todos os santos _ ele sibilou _ , será que não vai parar de se debater, sua maldita sassenach?
_ Já lhe disse que sou só meio inglesa!
_E a outra metade é uma porcaria de Campbell!
Katrine levantou a cabeça para protestar, mas só soltou um gritinho abafado quando sua face foi dolorosamente arranhada pela barba de Raith. Ele resmungou
algo em gaélico que ela deu graças por não entender e depois rolou para o lado, deixando-a sofrer a indignidade de cair de bruços sobre as agulhas de pinheiro.
Raith levantou-se de um salto e puxou-a pelo braço, obrigando-a a se erguer.
_Eu não devia ter confiado em você, deixando-a sem um guarda por perto _ disse, mal contendo o desejo de esganá-la. Ainda agarrando seu braço, arrastou-a
até a pedra e a fez sentar. _ Se tem alguma vontade de atingir a meia idade, vai ficar aqui quietinha e fechar o bico!
Seus dedos ossudos continuaram enfiados no ombro de Katrine enquanto ele ordenava aos homens que fossem procurar os cavalos e os esperava voltar.
Pelo menos os montanheses tiveram uma grande dificuldade em recuperar suas montarias na escuridão, pensou Katrine com a satisfação da vingança, quando o
último homem voltou, cerca de uma hora depois. O horizonte a leste estava começando a clarear com a aproximação do alvorecer. Ewen já viera se reunir aos companheiros
depois de passar um bom tempo caçando pedacinhos de renda. Fora pouco conforto para ela o montanhês ter voltado com apenas mais duas tirinhas, provando que falai-a
a verdade, pois agora tinha de enfrentar a expressão colérica de Raith e pensar no que aconteceria em seu futuro imediato. Ela ficou ainda mais assustada quando
ouviu-o dizer aos homens que prosseguissem sem ele.
Agora não haveria ninguém para servir de testemunha e ele poderia silenciá-la de uma vez por todas usando seu punhal...
Quase em pânico, Katrine olhou para Raith. Ele estava sentado ao seu lado na pedra, com um joelho erguido e a mão no cabo do punhal. Seu coração deu um
salto quando notou os dedos se apertando.
_Você... você não se atreveria a usar o punhal em mim _ disse trêmula, vendo a expressão cruel nos olhos azuis.
_É mesmo? E por que não?
_Porque você precisa de mim. _ Ela engoliu em seco, desejando que sua voz não estivesse saindo tão esganiçada. _ Seria tolice matar uma prisioneira antes
de fazer uso dela.
_Concordo inteiramente, srta. Campbell, mas posso pensar em outras formas de castigo para seus truques. _ Ele levantou-se e estendeu a mão. _ Agora venha,
madame, seu cavalo a espera.
Raith fez da cortesia um insulto o que deixou Katrine mais irada. Cheia de desdém, olhou para ele e depois para o único cavalo restante.
_Não quero cavalgar com você.
_Seus desejos não significam nada.
_Então vou mudar minhas palavras. Recuso-me a cavalgar com você.
_Escute aqui _ disse Raith com um gesto impaciente. _ Só temos uma única montaria. Você não tem opção senão ir comigo... a não ser que prefira andar.
_Prefiro mesmo!
_Então, seja feita a sua vontade!
Katrine encarou-o, surpresa.
_Quer dizer que vai me fazer andar?
_Parece-me que você disse que gosta muito de caminhar.
_Mas, neste terreno? _ Sua voz foi quase um gritinho enquanto ela olhava a sua volta. A neblina escondia a altura dos morros próximos, mas o chão era pedregoso
e tinha uma vegetação áspera. Certamente teriam de descer ravinas e subir encostas e não parecia haver uma trilha. _ Posso quebrar uma perna
_Estou disposto a aceitar o risco. _ Depois de uma pausa, ele acrescentou: _ Quer reconsiderar?
_Certamente que não!
Em resposta, Raith ajoelhou-se ao lado dela e tirou o punhal da bainha. Katrine prendeu a respiração e recuou.
_Fique quieta!
Para choque e enorme embaraço de Katrine, Raith começou a cortar tiras de flanela da barra da camisola, o que a deixou com a metade inferior das pernas
expostas. Com as faces em fogo, ficou observando ele amarrar as tiras, formando uma corda improvisada.
Ela hesitou quando recebeu a ordem de estender as mãos amarradas -
_O que pretende fazer?
_Evitar que você fuja.
_E como eu conseguiria?
_Imagino que, com algum tempo, você encontraria um jeito. Raith amarrou a corda improvisada em torno dos pulsos de Katrine e depois passou-a pela tira de
lã que já a prendia. Dando um nó bem forte, levantou-se com a outra extremidade da corda na mão.
_Agora levante-se, srta. Campbell. Temos muito caminho pela frente.
Ele pegou-a pelo braço para ajudá-la a levantar mas, quando a estava conduzindo para perto do cavalo, Katrine parou, desafiadora.
_ Eu não vou fazer isso! Não vou andar atrás de você como se fosse uma vaca sendo levada para o mercado!
_ Então serei obrigado a arrastá-la.
Katrine estava em dúvida se ele faria mesmo isso, mas ao olhar para seu rosto fechado, resolveu não correr o risco. No entanto, queixou-se amargamente contra
o tratamento enquanto ele a posicionava atrás do cavalo e montava. Com o rosto queimando de humilhação, chamou-o de ladrão, grosseirão, monstro e de todas as outras
palavras que lhe acorreram à mente.
_ Presumo que você quer ser amordaçada de novo.
A ameaça fez Katrine se calar. E quando ele pôs o cavalo em andamento, puxando-a pela corda, ela seguiu-o, obediente, embora da má vontade.
Foi uma subida, mas a caminhada poderia ser pior. O céu clareara e Katrine podia ver onde pisava. E Raith ia devagar, parando o cavalo preto sempre que
ela precisava se desviar de algum obstáculo para evitar torcer o tornozelo.
Estavam indo para o norte, pensou Katrine, tentando se lembrar o que teria à frente. Por anos se debruçara sobre livros tentando descobrir o máximo de informações
sobre as Terras Altas.
Mas ela logo teve de desistir de formar um mapa em sua cabeça para concentrar-se em manter o equilíbrio. O terreno ia ficando cada vez mais inóspito à medida
que subiam, com plantas que arranhavam suas pernas, e pés de urze que lhe chegavam à altura do ombro. Os chinelos úmidos por causa do orvalho começaram a fazer bolhas
em seus pés.
Ocupada com seus infortúnios, Katrine não encontrou o que dizer. Estava decidida a suportar a dor sem um pio embora estivesse guardando um arsenal de nomes
para chamar seu maldito captor quando se dignasse a falar com ele. Seus olhos verdes prometiam vingança cada vez que Raith olhava para trás.
Tornou-se um ponto de honra para ela não esmorecer. Rangendo os dentes contra a dor em suas pernas e as bolhas nos calcanhares, continuou em frente. Mostraria
ao bando todo que um Campbell seria capaz de suportar qualquer tortura que um MacLean inventasse.
Talvez fosse por isso que achou terrivelmente humilhante quando, depois de quase uma hora de caminhada, quando tinham atingido um terreno plano, ela tropeçou
numa raiz e caiu de barriga, mal tendo tempo para estender as mãos amarradas para amortecer a queda. Ficou ali, no solo úmido, tentando recuperar o fôlego e piscando
para afastar lágrimas indesejadas. Urna das bolhas em seus calcanhares estourara e havia raspado o joelho na queda.
E o malvado montanhês que era a causa de seus ferimentos continuava sentado na sela, olhando-a com ceticismo, em clara dúvida se devia descer para ajudá-la
ou não.
Depois, chegando a uma decisão, ele desmontou. Katrine tentou levantar-se sozinha, determinada a recusar sua ajuda, mas calculou mal a extensão de seu ferimento
e colocou peso demais no joelho machucado. Deixou-se cair de novo com um gemido de dor.
Os dedos que se fecharam em torno de seus braços foram surpreendentemente delicados. Raith ajudou-a a sentar e nesse momento viu a bolha estourada em seu
calcanhar.
_Por que não me avisou?
Então a culpa era dela?, pensou Katrine, desejando que um raio caísse na cabeça do malvado. Como suas preces não foram atendidas, acrescentou mais um item
a sua lista de coisas das quais pretendia vingar.
_ Você estava tão ansioso em pôr um fim à minha existência que não tive coragem de atrapalhá-lo. _ Quando a rispidez de seu tom fez Raith erguer os olhos
para ela, acrescentou: -_ Um Campbell não maltrataria um prisioneiro desta maneira.
Katrine sentiu uma leve satisfação ao ver a expressão de culpa e remorso no rosto moreno. Mas queria vê-lo totalmente envergonhado.
_ Por favor, não se preocupe demais _ disse por entre os dentes cerrados enquanto ele tirava os chinelos de seus pés. _ Posso estar arranhada e sangrando,
mas não preciso de seus cuidados.
_ Não seja mais gornerel do que o necessário.
_ O que é gomerel? _ Ela sabia muito bem que Raith a estava chamando de idiota, mas não quis admitir que entendei-a o insulto.
Ele não respondeu. Voltou para perto do cavalo e mexeu dentro de uma bolsa de couro. Katrine viu-o extrair um lenço e abri-lo, re
velando o selo que roubara do gabinete de seu tio. Por que fizera isso?, pensou, mas jamais se dignaria a perguntar.
Ela forçou-se a se manter em silêncio quando ele voltou com o lenço e o frasco de água, sentando-se ao seu lado, e só deixou escapar um pequeno soluço quando
colocou os pés em seu colo e começou a refrescá-los com o lenço umedecido. Não sentiu dor porque o toque foi delicado, mas os dedos longos em sua pele causaram o
mesmo calor de antes.
Katrine ficou totalmente imóvel, tentando analisar seus sentimentos. Cada vez que ficava perto desse homem, quando era tocada por ele, sentia uma estranha
excitação, completamente diferente do medo ou da fúria que seriam esperados.
Contra sua vontade, começou a estudá-lo, notando os cílios espessos e as faces bronzeadas, achando absurdo ter julgado a fisionomia dele pouco atraente
ou assustadora. A barba por fazer contribuía para o aspecto de ferocidade, mas a preocupação suavizara os traços, fazendo-o parecer menos onipotente e mais humano.
Mas então ele ergueu os olhos azuis, fazendo-a prender a respiração. Agora tinham a cor de um céu noturno coberto de nuvens. Como pudera esquecer o quanto era perigoso?
_Seu joelho está sangrando _ murmurou Raith, com voz rouca. Katrine tornara-se subitamente consciente da força latente que existia nele e de sua própria
vulnerabilidade.
_Vejo que é muito observador _ retrucou ela, mas seu tom foi fraco, sem sinal da agudeza de antes. _ No entanto, recuperou sua rebeldia quando ele empurrou
a barra da camisola para expor o joelho. _ Ei! O que pensa que está...
_Não pretendo ameaçar sua virtude _ disse Raith secamente.
_Tenho de limpar esse joelho.
_Posso fazer isso sozinha!
_Deixe-me cuidar dele.
_Por quê?
Raith lançou-lhe um olhar zombeteiro.
_Porque eu já comecei e porque você não está em condições de fazer isso sozinha.
Katrine cerrou os punhos, retesando a tira que a amarrava.
_Escute aqui, não quero que você fique olhando meus tornozelos de novo.
_Eu desviarei o olhar _ respondeu Raith, curvando a boca num sorrisinho maldoso. _ Agora queira ficar quieta por alguns instantes.
Com todo o cuidado, quase ternamente, ele limpou o sangue e examinou o ferimento.
_Você vai viver _ diagnosticou, ignorando o olhar indignado de Katrine e a tensão em seu corpo.
_Que pena para você.
_Não, nunca pensei em machucá-la. Mas você tem um jeito especial para acabar com a paciência de um homem. _ Suspirando, Raith endireitou-se enquanto olhava
para o céu, como procurando respostas. _ O que vou fazer com você?
Katrine sentiu uma certa satisfação ao perceber que possuía o poder de irritá-lo.
__Já pensou na hipótese de me soltar?
O olhar que Raith lhe lançou explicou claramente o que pensava sobre a possibilidade, mas ele levou um bom tempo para responder.
_Não. Mas acho que agora não existem mais motivos para você ficar amarrada.
Ele tirou o punhal da bainha com o gesto ágil que a assustava, mas Katrine sentiu mais desânimo do que medo quando ele cortou a tira de lã que prendia seus
pulsos.
Não estaria sendo libertada se seu captor tivesse a menor suspeita de que ela poderia fugir ou ser salva.
Desconsolada, Katrine esfregou os pulsos doloridos, mal prestando atenção em Raith quando ele pegou as tiras de flanela que usara para puxá-la.
_O que vai fazer agora? _ perguntou ao vê-lo se ajoelhar novamente ao seu lado.
_Aplacar minha consciência.
O tom foi muito seco e Katrine levou alguns instantes para entender. Só percebeu o real significado das palavras quando ele enrolou o tecido macio
em torno de seu joelho.
Um tanto surpresa com a consideração, Katrine saiu de seu desânimo para perguntar por que ele a tomara com prisioneira.
_Você odeia meu tio em particular ou todos os Campbell em geral?
De início Raith só emitiu um resmungo e Katrine pensou que fosse parar por ali. Mas, depois de um instante, ele prosseguiu:
_Colin Campbell? Esse é um ladrão.. e dos piores. - Katrine arregalou os olhos, achando difícil acreditar. Não podia imaginar seu tio, tão sisudo e rígido,
envolvendo-se em atividades ilegais. Ele era um reformista convicto, um dos escoceses anti-católicos que tinham jurado defender o presbiterianismo como a única fé
cristã. Mostrava a mesma devoção severa de seus tios ingleses.
_Ladrão é uma palavra forte demais, não acha? E o que ele fez para merecer esse termo?
_Nenhuma palavra é forte demais para um Campbell que enche seus cofres com a prata dos MacLean.
Katrine teve vontade de dizer que se Colin estivesse enchendo cofres seria os do duque de Argyll, não os seus. Na posição de administrador das terras ocidentais,
inclusive as ilhas nas costas das Terras Altas, ele se empenharia em ver o duque recebendo os aluguéis e impostos devidos, nem um centavo a mais nem menos. No entanto,
achou prudente não fazer esse comentário inflamado.
_Pode ser que tio Colin só queira justiça. Ontem, quando cheguei, ouvi-o dizendo que os MacLean tinham se recusado a pagar os impostos ao duque de Argyll.
Ela procurara escolher com cuidado as palavras, mas não foi bem-sucedida. As sobrancelhas negras de Raith se uniram numa expressão de profundo desagrado.
_O velho duque nem tinha esfriado na tumba quando seu filho aumentou arbitrariamente os impostos e taxas de arrendamento a um ponto muito além do que seus
inquilinos poderiam pagar. Não existe justiça na tirania.
Antes de sair da Inglaterra, Katrine lera nos jornais que o velho duque morrera subitamente devido a uma doença grave. Seu filho tomara-se o quarto duque
de Argyll e o chefe do poderoso clã Campbell. Lembrou-se de ter visto uma tarja preta no braço de seu tio.
_Você é um dos arrendatários do duque?
Raith lançou-lhe um olhar sombrio enquanto terminava de colocar a atadura no joelho e passava para as bolhas nos calcanhares.
_Graças a Deus, estou livre dessa maldição. Os que têm de agüentar o despótico governo de Argyll são os MacLean de Duart, pobres infelizes.
Katrine olhou-o pensativa. Se estava bem lembrada, era o senhor de Duart que exercia a chefia do clã MacLean. Então por que não era ele quem estava defendendo
seus parentes?
_Eu imaginava que esse fosse um assunto para ser resolvido pelo lorde de Duart.
_Não existe mais um lorde de Duart. Ele foi morto no quarenta e cinco, como tantos de seus pares.
A amargura tingiu cada palavra de Raith. Katrine pôde entendê-la, pois perdera o pai nesse levante. De fato, havia muito poucas famílias escocesas que não
haviam perdido pelo menos um ente querido nos muitos anos de lutas. Os montanheses sempre tinham estado divididos em suas lealdades, mas depois da virada do século,
com a união da Inglaterra e da Escócia sob um único governo, a violência aumentara. Tropas britânicas haviam sido convocadas para sufocar os freqüentes levantes
e o resultado fora sempre sangrento. A pior e última insurreição ocorrera em 1745, quando os dás haviam se levantado em favor do Belo Príncipe Charlie, neto do deposto
rei James II da Inglaterra e filho do homem que os. montanheses ainda consideravam como seu verdadeiro rei. O levante de 45 terminara na derrota amarga e sangrenta
dos jacobinos, ou partidários da linhagem do rei James II, em Culloden.
Depois do Quarenta e Cinco, os defensores do príncipe tinham sido impiedosamente caçados pelos ingleses vitoriosos, cuja intenção era destruir o velho sistema
de clãs, com origem em épocas feudais. Muitos dos chefes escoceses foram executados e outros fugiram para o exílio. Várias propriedades foram confiscadas. Armas,
como o punhal que Raith MacLean carregava, passaram a ser proibidas para os escoceses, o mesmo acontecendo com o padrão xadrez, ou tartan, a altiva insígnia da individualidade
e orgulho de cada clã. Só os soldados que serviam nos exércitos do rei tinham permissão de usar o saiote e o xale.
_A maioria das terras de Duart já estavam perdidas antes disso _prosseguiu Raith, interrompendo os pensamentos de Katrine _graças às maquinações dos primeiros
duques de Argyll. O que restou delas foi parar nas mãos do terceiro duque, em pagamento pela suposta traição de seus compatriotas.
Katrine irritou-se diante da acusação. Os duques de Argyll tinham sido sempre leais partidários da coroa inglesa durante os anos de rebelião. Naturalmente,
seriam o alvo da animosidade e calúnia de montanheses como os MacLean, que haviam se posto ao lado do príncipe Charles, da linhagem dos Stuart.
Mas e quanto a Raith MacLean?, pensou Katrine. Ele dissera não ser inquilino do duque. Então, quem seria? Um ladrão de gado, lembrou. Uma tal ocupação não
era incomum nessa região turbulenta. Para sobreviverem depois do Quarenta e Cinco, muitos montanheses haviam se tornado renegados e roubavam o gado de seus vizinhos.
Ela não teve dificuldade em imaginar Raith MacLean liderando seus parentes em ataques contra outros dás para saquear ou executar ferozes atos de retaliação,
com base na lei das Terras Altas. No entanto, quando o vira pela primeira vez, ele estava envolvido numa tarefa mais adequada a um estudioso ou contador.
Subitamente Katrine endireitou-se, fazendo Raith largar a atadura que estava aplicando.
_Os livros! _ exclamou em triunfo. _ Você estava mexendo nos livros de registro de meu tio! Foi algo ligado aos aluguéis, certo?
Raith estreitou os olhos, mas não disse nada. Katrine sabia que estava certa. Ele viera em socorro dos MacLean por orgulho de clã.
Alterara os registros em favor de seus parentes. Mas isso não explicava por que a mantinha cativa.
_ Você não esperava me encontrar lá, não é? Seus espiões não lhe contaram sobre minha chegada.
O olhar de Raith a alertou que estava pisando em terreno perigoso.
_De fato, eu esperava entrar e sair sem ser notado.
_Então, por que aceitou o louco gesto de Lachlan me seqüestrando? Creio que a última coisa que você queria era me ter em suas mãos.
_Acertou. Realmente a última coisa que desejo é ficar perto de uma Campbell matreira e de língua afiada. _ De novo ele pronunciou o nome com ódio, voltando
a sua tarefa.
_Então, como eu me ajusto aos seus planos? Você disse que não queria resgate.
_Já lhe disse. Você servirá de garantia para impedir que os Campbell se vinguem nos MacLean de Duart. Enquanto eu a tiver em meu poder, seu tio pensará
duas vezes antes de partir para a retaliação pelo que fiz esta noite.
Katrine não estava tão certa de que seu tio mudaria seus planos ou trairia seu senso de justiça apenas para salvar-lhe a pele. No entanto, seria tolice
continuar a expressar suas dúvidas ao homem que a tinha em seu poder.
_Meu tio virá atrás de você. Sabe disso, não? _ disse com fingida confiança enquanto Raith voltava a calçar os chinelos em seus pós.
_Não faz mal. Os MacLean têm sido perseguidos a ferro e fogo pelos Campbell muito antes do Quarenta e Cinco. Sabemos como evitar a captura. Eles não me
prenderão. E não a encontrarão. Raith falou com segurança, pondo um ponto final no assunto. Depois abaixou a barra da camisola e levantou-se.
_ Acha que pode continuar agora?
_Eu tenho escolha? _ disse Katrine, desanimada.
_Não, mas você pode cavalgar comigo.
_Que nobre oferta! Sua consciência deve estar mesmo perturbando-o.
Ignorando a ironia, Raith estendeu a mão.
_ Acho que você está disposta a ser sensata.
_ Tem certeza que pode tolerar minha presença num mesmo cavalo? Eu não gostaria de ser um estorvo.
_ Será um prazer _ sorriu Raith com alguma relutância.
Katrine não tinha nenhum desejo de dividir um cavalo com ele, mas estava grata por não ter de andar, pois as bolhas doíam muito. Permitiu que Raith a pusesse
na sela, só que dessa vez montou como homem, não se importando por exibir as pernas até os joelhos. A segurança era melhor do que a modéstia.
No entanto, ela sentiu o perigo do arranjo assim que Raith montou. Fora um erro aceitar ficar tão perto dele. Apertada contra os contornos musculosos de
um homem que obviamente lutara, cavalgara e trabalhara durante toda sua vida, sentiu-se de repente fraca e impotente. O contato era perigoso... empolgante. E tornou-se
mais perturbador quando Raith fez o cavalo andar.
As sensações deixaram Katrine totalmente desconcertada. Esse acelerar do sangue não devia acontecer com alguém como ele. Raith MacLean não era um herói
de sonhos conjurado pela sua imaginação, mas sim um proscrito, um ladrão.
Mas ele era também um homem. E um homem com um corpo esguio e flexível que parecia ser o complemento masculino para seu próprio corpo. Um peito amplo que
oferecia apoio e conforto, coxas poderosas que acomodavam as dela numa maneira flagrantemente sugestiva. E seu calor.., o coração de Katrine começou a bater mais
forte.
Incapaz de se mexer sem chamar a atenção, Katrine ficou aliviada quando sentiu uma mão forte em seu ombro, fazendo-a se endireitar. Por um momento ela imaginou
se afetara seu captor do mesmo modo que ele a afetara. Mas depois repreendeu-se por seus tolos pensamentos. Raith MacLean, apesar de sua óbvia virilidade, era totalmente
indiferente a ela. Ele simplesmente não queria vê-la encostada nele. Dali em diante ela concentrou-se em manter o contato entre eles dentro do limite mínimo.
Depois de algum tempo Katrine quase se esqueceu de sua difícil situação, entretida em admirar a beleza majestosa das montanhas das Terras Altas. O sol se
infiltrava por entre as árvores e em todos os cantos ela via roseiras silvestres ainda envoltas pela névoa da madrugada.
Eles seguiam o curso de um riacho e a água, enquanto corria sobre pedras e troncos caídos, criava uma música que parecia ecoar na quietude. Logo começaram
a subir em linha reta, por entre as nuvens, como se fossem perfurá-las. Quando chegaram ao alto do morro, Katrine prendeu a respiração ao ver o céu azul e uma águia
dourada pairando orgulhosa. Sentiu seu espírito voando com ela.
Apesar de tudo por o que estava passando, nunca se sentira tão viva.
Subitamente Katrine percebeu que estava feliz cm ter voltado às Terras Altas. Uma grande empolgação, há muito reprimida, começou a desabrochar em semi íntimo.
Não, não ia deixar que o seqüestro estragasse sua volta ao lar paterno. Gozaria a gloriosa manhã e não pensaria demais sobre seu futuro imediato.
Raith observou a expressão de enlevo de Katrine em rígido silêncio, tentando ignorar seu toque, sua aparência, o modo como seus olhos cintilavam enquanto
ela captava cada detalhe da paisagem. seus cabelos indomáveis brilhavam como fogo à luz do sol e quando uma madeixa escapou da trança já meio desmanchada e foi soprada
contra seu rosto pelo vento, ele estremeceu e praguejou em silêncio. Estava totalmente arrependido de ter mandado seus homens à frente enquanto lidava com ela, mas
não quisera atrasá-los mais. Era perigoso um bando de montanheses armados estar trafegando por aquela região à luz do dia. Se por acaso as tropas inglesas estivessem
em seu encalço, ele seria o único responsável pelo rapto da srta. Campbell. Agora, porém, daria um mês de aluguel de seus próprios arrendatários só para ter uma
outra montaria.
Era ele, talvez, que devia descer e caminhar, já que não parecia mais ter controle sobre o corpo. Estivera meio excitado desde que conhecera a tentadora
mulher de cabelos de fogo e, quando a tocava, quando sentia o corpo macio junto ao seu como agora, movendo-se ritmicamente acompanhando o passo do cavalo, a excitação
era total.
Havia uma explicação simples para ele estar tão fisicamente atraído para uma Campbell, pensou Raith rangendo os demites. Fazia um bom tempo que não tinha
uma mulher porque, apesar de conhecer uma dúzia das que moravam em sua propriedade e viriam a sua cama de bom grado, sua condição de senhor do clã e sua consciência
o impediam de conseguir vantagens de seus dependentes.
Mas o desejo carnal era uma necessidade básica e fácil de ser atendida. Havia uma simpática viúva, em Strontian, que ficaria encantada em servi-lo e uma
graciosa filha de um taberneiro, em Corran, que flertara com ele durante sua última estada na cidade. Se preciso, poderia visitar os bordéis de Edimburgo para algumas
noites de farra, como fazia no tempo em que cursava a universidade.
Ele precisava muito se aliviar. Talvez então não ficaria tão afetado pela proximidade de uma mulher, em especial por uma mulher como essa... uma Campbell
geniosa, enfurecedora, cujo corpo esguio tinha a capacidade de acender nele chamas ardentes da exata cor de seus cabelos.


CAPITULO IV


Para o aborrecimento de Raith, Katrine de repente tomou-se muito falante, bombardeando-o com perguntas sobre a região que percorriam. Ele respondeu com
monossílabos mal-humorados até finalmente perder a paciência.
_Você não consegue ficar de boca fechada?
Surpresa com o ataque, Katrine pensou na última pergunta que fizera e não achou nada errado em indagar o nome de uma florzinha vermelha que avistara nas
fendas das rochas. Talvez Raith MacLean não quisesse conversas com uma Campbell.
_Você seria capaz de me amordaçar de novo só por eu admirar uma flor? _ Ela arregalou os olhos em fingida inocência. _ Aposto que sua consciência não lhe
daria sossego.
Katrine quase sorriu ao ver um músculo se contraindo no queixo moreno. Raith teria o maior prazer em fazê-la descer do cavalo, mas ainda sentia remorso
por causa das bolhas e do ferimento no joelho. Ele que sofresse de culpa! Afinal, torturar uma indefesa prisioneira ia fazê-lo se aborrecer mais ainda.
Durante a meia hora seguinte, Katrine continuou tagarelando com uma cordialidade melosa, só parando de tanto em tanto para esperar por respostas que nunca
vinham.
Mas quando chegaram ao alto de um morro, perdeu a voz diante de tanta beleza.
_Que lugar maravilhoso _ disse ela finalmente, contemplando o vale relvado, cercado por picos altos, de aparência selvagem, com seu pequeno lago cintilando
ao sol. Desejou ter trazido suas tintas e pincéis, embora soubesse que não conseguiria captar todo aquele encanto rude.
_Sabe onde estamos? _ perguntou Raith de repente.
_Não. Eu deveria saber?
_Pensei que agora fosse a hora de sua consciência a alfinetar. Tem certeza de que não está sentindo o sangue manchando suas mãos de Campbell?
Katrine lançou-lhe um olhar intrigado.
_Aqui é Glencoe _ explicou Raith. Você deve ter ouvido falar deste lugar. Ou será que os Campbell têm a conveniente mania de esquecer suas traições?
Ela não respondeu. Ouvira falar muito no vale de Glencoe, mas não era algo bom de lembrar.
_Acho que precisarei refrescar sua memória _ disse Raith, com um leve sarcasmo, olhando-a atentamente. _ As tropas inglesas do regimento de Argyll, liderados
por Robert Campbell de Glenyon, acamparam junto com os MacDonald neste local por quinze dias. Depois, quebrando todas as leis da hospitalidade civilizada, assassinaram
seus anfitriões. Quer que eu continue?
_Não _ murmurou Katrine, desejando que Raith não a olhasse com tanto ódio e desprezo, como se estivesse culpando-a pelos feitos de seus antepassados. O
assassinato dos quarenta MacDonald pelos Campbell acontecera setenta anos antes.
_Agora este lugar é chamado de vale das lamentações.
Katrine virou-se para novamente apreciar a paisagem, embora já não possuísse a mesma beleza. Tudo por culpa de Raith, que a fizera sentir-se um verme por
ser uma Campbell. Os montanheses tinham um rígido código de leis, guardando longas lembranças de feitos passados. Nas Terras Altas, atos de violência resultavam
em ferozes inimizades entre famílias e retaliações sangrentas, com os descendentes vingando-se de crimes cometidos por gerações anteriores. E, por esse código, ela
era tão culpada pelo massacre como seus antepassados.
Tentando afastar a depressão, Katrine contemplou o vale com olhos de artista, escolhendo que trecho da paisagem gostaria de pôr numa tela.
Mesmo assim, ficou satisfeita em deixar a cena de incrível beleza. Quando saíram pela passagem na extremidade oposta de Glencoe, ela respirou fundo, inalando
o ar frio e úmido da manhã, como se assim pudesse apagar a lembrança do massacre.
Raith, contudo, não parecia disposto a deixá-la esquecer de seus antepassados. Quando passaram pelas ruínas calcinadas de uma granja, ele aproveitou a oportunidade.
_Cortesia dos soldados ingleses _ disse causticamente, num tom que afetou os nervos de Katrine.
_Não tenho a menor dúvida de que vocês cometeram crimes igualmente atrozes quando perseguiram os Campbell?
_Pare com esse falatório ou eu a calarei à força.
Katrine apertou os lábios. Raith MacLean falava um inglês perfeito, mas quanto mais eles entravam nas Terras Altas, mais surgia o sotaque escocês. Talvez
seu modo de falar mudasse quando suas emoções eram atiçadas. A raiva fazia escurecer seus olhos azuis, que agora tinham o tom das nuvens tempestuosas do norte da
Escócia.
Katrine olhou para o rosto másculo e atraente, e mordeu o lábio. Tinha de tomar cuidado para não irritar esse homem cruel que a raptara, afastando-a de
sua terra e sua família.
De repente sentiu-se minto cansada de lutar contra ele, de ser obrigada a se defender de seu ódio e desdém. Ela deixou cair os ombros, desanimada.
Sim, estava muito cansada. Talvez devesse tentar cochilar um pouco. Pelo menos assim evitaria que sua língua afiada o provocasse a tornar realidade a ameaça
de amordaçá-la de novo. Deixou a cabeça cair para a frente, esperando ser capaz de se manter ereta para evitar um contato maior com seu captor.
Mas não foi bem sucedida. Um pouco depois, quando adormeceu, relaxou contra o corpo de Raith. Ele a fez se endireitar com Um gesto brusco, que a acordou.
_Por Deus! Sente-se direito e pare de me fazer de travesseiro!
Katrine obedeceu por alguns instantes, mas logo o cansaço falou mais alto e ela pegou no sono, voltando a recostar-se no peito de Raith. Um sinalzinho de
alerta soou em seu cérebro, avisando-a do contato íntimo, porém ela o ignorou. O corpo que a sustentava era quente e confortador, e, no momento, não tinha a força
de vontade para se negar esse consolo.
Raith não conseguiu ser cruel o bastante para lhe negar o conforto. Ele endireitou-se, rígido, e praguejando em silêncio deixou-a dormir.
Depois de algum tempo, Raith mudou de posição na sela, aninhando o corpo mole de Katrine na curva de seu ombro. A cabeça da moça tombou para trás, deixando-o
ver perfeitamente seu rosto. Contra a vontade, ficou olhando para ela, examinando os traços firmes e ao mesmo tempo delicados, impressionando-se com a pele clara
e luminosa. Na verdade, a moça Campbell não tinha uma beleza especial, mas era atraente. Havia nela um encanto sutil que o afetara, despertando e vontade de protegê-la.
Quando um cacho vermelho caiu na testa de Katrine, Raith afastou-o com a ponta do dedo. Foi apenas um ato reflexo, disse consigo mesmo, lembrando-se quem
era a mulher que dormia em seus braços: uma Campbell e meio inglesa para piorar a situação.
No entanto, enquanto olhava para o rosto adormecido, sentiu um aperto no coração, uma emoção não desejada agitando-se dentro de seu peito. Com os atrevidos
olhos verdes fechados e os longos cílios castanhos sombreando as faces pálidas, Katrine Campbell parecia indefesa e inocente como uma criança.
Com um suspiro, Raith forçou-se a desviar o olhar. Mas, claro, não tinha como ignorar a presença do corpo jovem amoldado ao seu. Ao respirar mais fundo,
sentiu a leve fragrância de lavanda que emanava dos cabelos ruivos. Ele balançou a cabeça. Teria mesmo o direito de trazê-la para a amarga disputa que mantinha com
os Campbell? Seria certo usá-la como peão no jogo perigoso em que havia se envolvido ao desafiar a soberania de Argyll?
Mas ele sabia que havia uma única resposta para essas perguntas. Lembrou-se dos orgulhosos homens de Duart, que haviam se humilhado a virem pedir seu auxílio.
Mesmo não sendo o chefe desse ramo do clã, vira-se na obrigação de ajudá-los no que fosse possível.
E era o que estava fazendo. Usaria qualquer meio a sua disposição, mesmo se isso implicasse em manter como refém uma moça inocente e indefesa.
Mas Katrine Campbell não era tão indefesa assim, pensou com um sorrisinho sardônico. Nunca conhecera alguém que se ajustasse menos a essa descrição. Ela
levara sua paciência ao limite com suas tentativas de enganá-lo. Precisava manter a cabeça fresca para estar à altura da astúcia de sua refém e defender-se de sua
língua afiada. Sentia que conhecera apenas uma pequena parte dela, o que se devia ao impacto do seqüestro e ao cansaço. Katrine Campbell ainda não reunira todas
suas forças.
_ Que Deus tenha pena dos pobres diabos que atravessarem seu caminho quando chegar essa hora _ resmungou Raith. Apertou os lábios quando pensou na ironia
da situação. Ele era o raptor e, supostamente, quem estava no comando. Então, por que sentia tão pouco controle? Por que sentia-se tão acossado quando nem mesmo
chegara a seu destino?
Nesse instante Katrine mexeu-se em seus braços, acomodando-se mais confortavelmente entre suas coxas. Ele contraiu os músculos ao contato com os quadris
que se pressionavam contra sua virilha. Ao ver que ela continuava num sono profundo, engoliu o palavrão que aflorara a seus lábios e forçou seus pensamentos a seguirem
uma linha menos perigosa.
No momento não tinha como escapar da proximidade, mas assim que chegasse a Cair House se livraria dela. Sua casa era muito grande e lá não precisaria ver
a moça, se não quisesse. Ele a mandaria para a cozinha e nunca mais a veria. Os criados eram de absoluta confiança e a vigiariam de perto.
Esse pensamento ajudou-o a esfriar o sangue. Valendo-se de sua determinação, conseguiu ignorar quase por completo a tentadora feminilidade que ameaçava
seu controle.
Katrine continuou dormindo por quase uma hora. Quando estavam deixando os montes para trás e aproximando-se do lago Linnhe, ela começou a se mexer, acordando
vagarosamente. Continuou aninhada no ombro de Raith, absorvendo a força e o calor que emanavam dele. Abriu os olhos pouco a pouco e viu um pescoço bronzeado, com
tendões salientes, e um queixo agressivo, coberto por uma barba de alguns dias.
A súbita descoberta de onde e com quem estava a alarmou. Corando, ela endireitou-se e pigarreou, rezando para seu captor não fazer nenhum comentário. Deu
graças por Raith não dizer uma só palavra.
Quando chegaram à margem do lago, Katrine, enrolando-se mais no xale por causa do vento frio, perguntou:
_ Vamos ter de atravessar?
_Sim, mas o cavalo está cansado e não vou obrigá-lo a carregar nós dois.
_ Eu não sei nadar. _ Raith lançou-lhe um olhar de menosprezo, mas não respondeu. Fez o cavalo seguir pela margem pedregosa do lago. Depois de algum tempo
eles avistaram um pescador que dirigia seu barco para a beira da água.
_ Fique de boca fechada _ cochichou Raith no ouvido de Katrine. _ Se esse sujeito descobrir que você é inglesa, amarrará uma pedra em seu pescoço e a jogará
no meio do lago. Eu mesmo já pensei em fazer isso algumas vezes.
Katrine esteve a ponto de dar uma resposta malcriada, mas conteve-se por medo de ser atirada na água gelada enquanto Raith negociava a travessia, falando
em gaélico com o pescador. Quando o homem lançou-lhe um olhar desconfiado, puxou o xale para cobrir-se melhor, esperando que suas origens inglesas não fossem tão
evidentes.
Pouco depois, os dois estavam sendo transportados para a outra margem, enquanto o cavalo nadava atrás. Tentando ignorar o cheiro forte de peixe que exalava
do pequeno barco, Katrine lançou um olhar para Raith e viu-o olhando para a margem oposta com impaciência. Curiosa, imaginou o que ele teria dito ao pescador para
explicar seus estranhos trajes, mas logo decidiu que Raith MacLean era arrogante demais para se dignar a dar explicações.
Ele também não se mostrou nada cavalheiresco, pois, assim que o barco tocou a terra, saltou para a margem e pegou as rédeas do cavalo para tirá-lo da água,
não fazendo nenhuma menção de ajudá-la.
Katrine rangeu os dentes quando enfiou os pés na água gelada e olhou feio para Raith que conversava baixinho com o animal, afagando-lhe o focinho.
_ Rápido _ disse ele ao vê-la mancando em sua direção. _ Temos quilômetros pela frente.
Katrine parou abruptamente. Ora, por que teria de correr, gelada como estava, para obedecer um tirano grosseiro?
_ Minhas bolhas estão ardendo. Será que esqueceu que estou toda machucada?
Raith apertou os lábios engolindo o palavrão que estivera prestes a dizer. Então pegou-a nos braços e, sem grandes gentilezas, colocou-a na sela, montando
logo em seguida.
A planície que agora percorriam estava salpicada de granjas de aparência próspera. A distância, depois de uma larga faixa de terra plantada com cevada,
aveia e ervilhas, erguia-se uma cadeia de montanhas.
_ Creio que você não está disposto a me contar para onde pretende me levar _ disse Katrine, não esperando resposta.
Contudo, pelos seus conhecimentos sobre a geografia das Terras Altas, calculou que, como tinham deixado o vale de Glencoe para trás, aquelas só podiam ser
as montanhas Ardgour. _ Penso que não quer me dar maiores informações por medo que eu possa denunciá-lo. _ Ela olhou por cima do ombro para ver o efeito de suas
palavras.
Com um brilho sardônico no olhar, Raith fez uma leve mesura com a cabeça.
_ Então a senhorita deseja uma apresentação formal? Pois bem, srta. Campbell. Sou Raith Alasdair Hugh MacLean, décimo segundo MacLean de Ardgour, ao seu
dispor.
Katrine ficou olhando-o boquiaberta enquanto seu cérebro assimilava a revelação. O décimo segundo MacLean de Ardgour.
_ Você é um chefe de clã? Você é o lorde de Ardgour?
_Por que tanta dificuldade em acreditar em mim?
_Porque você é um ladrão de gado!
_ Não tirei nada que já não tivesse sido roubado por Argyll ou seu administrador.
_ Hum. Raith nem mesmo é um nome típico dos MacLean.
_ Minha avó era uma MacRaith, se lhe interessa saber.
Katrine silenciou, tentando absorver melhor a revelação. Então ele era Raith MacLean, o senhor de Ardgour. Isso explicava seu jeito arrogante. Estava acostumado
a comandar e seu obedecido. Como fora tola! Devia ter percebido desde o início que seu captor não era um homem comum.
Recusando-se a ser intimidada pelo olhar orgulhoso e penetrante, Katrine examinou o rosto moreno com curiosidade, Raith. Sim, o nome tinha um som áspero
e arrogante que combinava bem com seu dono.
Ela virou-se para a frente, estudando o terreno que percorriam procurando captar todos os detalhes para uma futura fuga. A estrada larga que atravessava
as plantações ia se estreitando à medida que se aproximavam das montanhas. Logo alcançaram um trecho que mal dava para uma carroça passar, com escarpas rochosas
em ambos os lados. Ficou claro até mesmo para seus olhos não treinados que a passagem poderia ser facilmente defendida de um clã inimigo ou soldados ingleses. E
também ser facilmente vigiada para impedir a fuga de um prisioneiro.
Desanimada, Katrine manteve-se em silêncio até a estradinha de terra subitamente se transformar numa alameda coberta de cascalho, com árvores em ambos os
lados. No fim da alameda, aninhada entre as ásperas encostas das montanhas de Ardgour, ficava uma grande mansão construída em pedra.
_Imagino que essa é sua sede ancestral _ disse Katrine, tentando não demonstrar o quanto estava impressionada. _ Você disse que os soldados ingleses não
o encontrariam. Ora, com uma casa deste tamanho, eles com toda a certeza sabem onde você mora.
_O que eu disse, Katrine Campbell, foi que eles não encontrariam você.
A resposta deixou-a ainda mais desanimada ao confirmar sua crença de que Raith pretendia atirá-la numa masmorra. Todavia, querendo disfarçar o medo, disse
com sarcasmo:
_Estou curiosa para conhecer as tramas maldosas que são arquitetadas num ninho de jacobinos.
_ Posso garantir que não são tão venenosas quanto as elaboradas num covil dos Campbell _ retrucou Raith, dirigindo o cavalo para uma continuação mais estreita
da alameda, que levava para os fundos da mansão.
O animal, obviamente conhecendo o caminho das estrebarias, apertou o passo. Katrine avistou uma série de construções em pedra e madeira. A maior delas,
que ficava no centro, era uma estrutura de dois andares. No térreo abrigava uma cocheira e o andar de cima devia ser um tipo de alojamento.
O senhor dos MacLean devia estar sendo esperado com ansiedade, pensou Katrine, porque assim que eles entraram no pátio calçado, surgiu um grupo de homens.
Ela reconheceu alguns deles. Eram os que tinham participado do ataque aos Campbell. Contudo, todos a olhavam com hostilidade.
_Seja bem-vindo, primo _ disse alguém num tom bem-humorado, quebrando o pesado silêncio.
Grata pelas palavras que tinham rompido o clima hostil, Katrine lançou um olhar na direção de onde viera a voz e viu um homem alto e magro encostado no
batente da porta da cocheira, mordiscando uma palha. Olhando mais atentamente, notou a semelhança que ele tinha com seu captor. Possuía os mesmos cabelos negros
e traços fortes de Raith, mas o rosto era mais fino e o nariz mais adunco. Quando o cavalo se aproximou dele, pôde notar que seus olhos eram castanho-escuros.
Esses olhos a examinavam ousadamente. Katrine enrubesceu quando eles se demoraram em sua camisola e nas pernas expostas até o joelhos.
_Então essa é a impetuosa Campbell _ murmurou o homem, no mesmo tom bem-humorado.
Não se deixando abater pelo clima hostil, Katrine ergueu o queixo, juntando o que restava de sua dignidade.
_Tenho de ficar quieta porque estou em grande desvantagem. Valorize este momento, Callum - exclamou Raith. _ Talvez seja o último.
_A senhorita é mesmo tão terrível como me contaram? _ Um brilho maroto cintilou nos olhos de Callum enquanto ele se afastava da porta da cocheira e vinha
ao encontro deles. _ Permita que eu me apresente. Sou Callum MacLean, ao seu dispor. Bem-vinda a Cair House. _ Ele pegou a mão de Katrine e beijou-a de leve como
faria se estivessem na corte.
Katrine sorriu e imaginou como esse homem polido e bem-humorado podia ser parente do sisudo Raith.
_Devo dizer que não esperava encontrar boas maneiras num covil de ladrões de gado _ disse, usando o mesmo tom ligeiro de Callum.
Raith resmungou enquanto apeava do cavalo.
_A senhorita parece ter afetado os nervos de meu primo _ sorriu Callum.
_Fico satisfeita com isso _ disse Katrine, olhando para Raith que, com cara feia, estendia os braços para ajudá-la a descer. Ia acrescentar mais alguma
coisa, mas sua voz transformou-se num soluço quando ele a puxou da sela e pegou-a no colo com um gesto brusco. Temerosa de ser atirada longe, Katrine agarrou-se
ao seu pescoço.
_Não é difícil uma sassenach me dar nos nervos _ disse Raith, enquanto caminhava para a casa com passos decididos. _ Eles são. uma pestilência, uma praga.
Seguindo-os mais calmamente, Callum dirigiu-se a Katrine falando por cima do ombro de Raith.
_Meu primo prefere esquecer, mas eu também sou meio inglês. Um acidente de nascença, eu diria.
Ele lançou a Katrine um olhar tranqüilizador e ao mesmo tempo galante. Ela não pôde deixar de sorrir. Acontecesse o que acontecesse, iria gostar de Callum
MacLean.
Um pouco mais animada, Katrine olhou a sua volta e notou que o lugar onde estavam denotava cuidados e riqueza. O pátio calçado fora cuidadosamente varrido
e a horta que avistava mais adiante parecia bem organizada e livre de ervas daninhas. A ala que se estendia numa linha perpendicular à mansão devia abrigar a cozinha,
áreas de serviço e despensas. A casa em si possuía três andares, dezenas de janelas e várias chaminés. Os vidros muito limpos refletiam o sol da manhã.
Eles chegaram a uma robusta porta de carvalho e Raith, com um ar impaciente, esperou Callum abri-la. Quando entraram num longo corredor, Katrine viu que
o interior da casa era tão elegante como seu exterior. O assoalho brilhava como espelho. As paredes acima dos lambris eram revestidas de brocado. Quando passaram
por um cômodo com porta aberta, ela pôde ver um tipo de sala de trabalho, onde algumas mulheres limpavam prataria e consertavam roupas.
Katrine deu graças por todos estarem ocupados naquela casa, livrando-a da humilhação de ser vista nos braços de Raith, usando uma camisola suja e com as
pernas nuas. Nesse instante, porém, uma porta se abriu e uma criada bem vestida entrou no corredor e arregalou os olhos para a cena a sua frente.
_Diga a Flora para vir aqui _ ordenou Raith para a mocinha, que fez uma reverência apressada e saiu correndo.
_Quem é Flora? _ indagou Katrine, não esperando resposta. Realmente queria perguntar para onde estava sendo levada. Raith começou a subir um estreito lance
de escadas. A passagem dos criados, pensou Katrine, surpresa por estarem subindo e não descendo para os porões.
_Devo dizer que estou espantada - sondou ela. - Pensei que fosse ser posta numa masmorra.
_Não me tente. Essa idéia me é muito simpática.
_Que vergonha, primo, ameaçar assim uma moça _ censurou Callum. _ Você nem mesmo tem uma masmorra!
Katrine sentiu um enorme alívio. Tudo indicava que não seria colocada numa cela úmida, com correntes nos pés. Mas então, onde ficaria?
Callum deu voz aos seus pensamentos quando chegaram ao primeiro patamar.
_Onde você pretende acomodar a dama, primo? Devo lembrar-lhe que não seria apropriado mantê-la em seus aposentos.
_Callum, você está gravemente enganado se pensa que tenho segundas intenções com esta moça. Eu jamais me deitaria com uma cadelinha gerada por um Campbell.
Katrine ofendeu-se com o termo, mas ao mesmo tempo se tranqüilizou por saber que sua virtude não estava ameaçada. Callum, obviamente chocado com as palavras
do primo, ergueu uma sobrancelha. Quando a desceu, piscou para Katrine.
_Se você não a quer, primo, ela pode dormir em minha cama - ofereceu com magnanimidade, fazendo Katrine corar e reconsiderar sua impressão favorável de
Callum MacLean.
_ Quando você experimentar a língua de víbora desta mulher, não ficará tão ansioso em tê-la como parceira de cama.
Um brilho maroto dançou nos olhos de Callum.
_Se eu experimentar a língua dela, primo, garanto que a moça não terá interesse em usá-la com outro propósito que não seja o prazer.
Escandalizada, Katrine desviou o olhar com as faces em fogo.
_E então, Raith, o que pretende fazer com ela? _ insistiu Callum, enquanto subiam um outro lance de escadas. _ Vai prendê-la no alojamento dos criados?
_Não. Quando ela se recuperar de seus ferimentos _ ele fez questão de ressaltar a palavra _ , vai ajudar na cozinha, onde os criados a vigiarão.
_Não vou me submeter a isso! _ protestou Katrine.
_Prefere ficar trancada?
Katrine fuzilou Raith com os olhos, mas calou-se diante da ameaça.
Quando chegaram ao terceiro andar, Raith entrou à esquerda e depois parou numa porta situada no final do corredor. Callum abriu-a e Katrine pôde ver que
era um quartinho de sótão. Ao entrar, avistou uma cama estreita, um lavatório e um pequeno baú para guardar roupas.
Felizmente não era uma cela úmida, pensou, enquanto Raith a depositava sobre a cama. E não havia correntes à vista.
_Suponho que você vai arranjar algumas roupas para ela, não é? _ disse Callum, parado na porta. _ Ë, ela tem o mesmo tamanho de Ellen... uns centímetros
mais alta, talvez, e um pouco mais de busto.
Katríne teria ficado desconcertada com esse escrutínio masculino se sua atenção não tivesse sido desviada para o rosto de Raith, que subitamente se tornara
fechado e sombrio.
_Quem é Ellen? _ perguntou.
Ignorando-a, Raith olhou feio para o primo.
_Meta-se com sua própria vida, Callum, e fique longe desta moça. _ Depois, olhando com desdém para Katrine, acrescentou: _Flora arranjará alguma coisa para
ela usar.
_Quem é Flora? _ quis saber Katrine, com crescente irritação devido ao modo como os dois falavam dela como se não estivesse ali.
Sua carcereira ._ informou Raith laconicamente e ganhando a última palavra ao fazer o primo sair e fechar a porta atrás deles.
Sozinha, Katrine olhou ao redor. O quarto era muito limpo e razoavelmente confortável. E ela não fora trancada a ferros, o que significava que Raith pretendia
tratá-la mais como uma criada do que como uma prisioneira.
Triste consolo, pensou, mordendo o lábio. Quanto tempo ficaria ali até seu tio conseguir libertá-la? Uma semana? Um mês? A perspectiva de permanecer prisioneira
nesse covil de ladrões a apavorou.
Mas Katrine logo se recompôs, endireitando as costas. Podia ser prisioneira de Raith MacLean, mas não estava a sua mercê. Havia dezenas de modos que poderia
usar para se vingar do seqüestro e, assim que estivesse mais descansada, pensaria nisso. O arrogante senhor dos MacLean imaginava que ela se submeteria mansamente
ao cativeiro, mas não perdia por esperar. Encontraria meios sutis de enfrentá-lo, de sabotar seus planos até ser resgatada ou conseguir fugir. Uma fuga. Sim, era
nisso que tinha de se concentrar. Fuga e vingança.
Ela aproveitaria cada oportunidade que surgisse para tornar a vida de Raith MacLean miserável. Ele amaldiçoaria o dia em que havia posto os olhos nela pela
primeira vez.

CAPITULO V


Para sua imensa frustração, Katríne não teve oportunidade de colocar seus planos em prática nos primeiros dias de cativeiro. Foi obrigada a admitir, de
má vontade, que teria de esperar tempos mais favoráveis.
Uma fuga parecia impossível. Seus captores a vigiavam de perto. No dia em que chegara a Cair House testara por duas vezes os limites de sua prisão. Na primeira
tentativa um robusto criado barrou seu caminho no instante em que pôs os pés fora da casa. Na segunda, estava quase na cocheira quando Lachlan a viu e gritou. Katrine
correu de volta para a cozinha, pois não tinha a menor intenção de ser novamente carregada no ombro do grandalhão como se fosse um saco de batatas. Foi humilhante
ser perseguida pelo pátio enquanto os MacLean a observavam com desdém. Isso a fez decidir que esperaria até seus captores relaxarem a guarda.
Seus planos de tornar a vida de Raith MacLean um verdadeiro inferno também tiveram de ser adiados porque nem sequer voltara a encontrá-lo. No entanto, continuava
tendo grandes motivos para lembrar-se de seus votos de retaliação porque o senhor dos MacLean, além de raptá-la, esperava que, como prisioneira, ganhasse seu próprio
sustento.
Katrine, contudo, aprendera a duras penas que teimosia e orgulho não lhe valeriam de nada. Sua rebeldia anterior resultara em doloridas bolhas e um joelho
ferido. E mais, o olhar de Raith, na chegada a Cair House, lhe dera plenos motivos para acreditar que se fosse além das medidas, ele a colocaria a ferros, mesmo
não possuindo uma masmorra. Decidira então continuar a desempenhar as tarefas que lhe tinham sido impostas, suportando a indignidade com severa determinação.
De certa maneira, o trabalho era bem-vindo. Ela nunca fora dada à indolência e uma ocupação a impedia de pensar demais em seu infortúnio. E, tinha de reconhecer,
trabalhar era muito melhor do que passar dias e dias trancada no quarto, o que a deixaria maluca.
O trabalho era extenuante, mas o pior era o tratamento que recebia. Os criados que cuidavam do interior da casa a tratavam com frieza e rancor, e obviamente
haviam recebido ordens de não conversarem com ela. Todavia, ela não tinha dúvidas de que o repúdio devia-se principalmente ao fato de ser uma Campbell e meio inglesa.
Podia jurar que alguns deles teriam preferido atirá-la aos urubus.
Só a ajudante de cozinha demonstrava alguma gentileza, mas esse comportamento, ela sabia bem, devia-se ao fato de ela estar assumindo muitas de suas tarefas.
No dia em que chegara, fora posta para trabalhar na imensa cozinha, limpando verduras e areando praios de estanho.
Sua principal carcereira, a governanta de Cair House, a tratava com frieza, mas sem hostilidade. Flora MacDonald era uma mulher trabalhadeira, sisuda, de
cabelos grisalhos e faces rosadas, que comandava com perfeição os seus domínios. Se lembrava-se que os Campbell haviam massacrado os MacDonald durante a rebelião,
não deixava transparecer.
Por sorte, Katrine era habituada aos afazeres domésticos e a governanta sabia dividir as tarefas com justiça. Cair House era um típico lar escocês, onde
não existia o desperdício e oúde todos os moradores contribuíam com uma parcela de trabalho.
Flora aceitara a presença de Katrine em seus domínios com a severa admoestação de que ela não seria maltratada se cumprisse suas obrigações. Com o passar
dos dias Katrine tivera de admitir, com mau humor, que sua tia Gardner, a mais caprichosa das donas de casa, teria admirado a capacidade e eficiência de Flóra.
Katrine ficou sabendo que a governanta viera a Cair House acompanhando sua falecida patroa, que também era uma MacDonald.
_ Faz sete anos que estou aqui e há seis sou a governanta _ contou Flora, num raro momento de tranqüilidade, enquanto Katrine limpava nabos. _ Este emprego
exige alguém acima de minha posição social, mas a patroa insistiu. _ Uma sombra de tristeza escureceu seus olhos azuis. _ Ellen MacDonald era a mais doce das criaturas.
Que Deus tenhà piedade de sua alma.
_ Ellen era a mãe do lorde? _ perguntou Katrine, querendo extrair o máximo do momento de nostalgia de Flora. Sua intenção era obter informações sobre seus
captores que poderiam ajudá-la na elaboração de seus planos de fuga.
_ Não, ElLen era a mulher do Lorde.
Katrine arregalou os olhos. Jamais pensara em Raith MacLean como sendo humano o bastante para ter uma família. Agora entendia porque ele ficara tão furioso
quando Callum falara que ela e Ellen tinham o mesmo tamanho. O orgulhoso lorde de Ardgour não quisera macular a memória de sua falecida esposa permitindo que uma
Campbell inglesa usasse suas roupas.
Um igual sacrilégio seria Katrine usar o xadrez dos MacLean, como algumas das criadas. Flora lhe arranjara um vestido marrom de lãzinha, comprido demais
para ela porque fora feito para ser usado com anquinhas, além de algumas roupas de baixo. Sua generosidade não fora a ponto de fornecer um espartilho ou anáguas,
mas mesmo assim Katrine estava contente por ter algo mais que vestir do que a camisola. Flora também devia se preocupar com a decência das criadas, pois providenciara
um lenço de linho para ser amarrado cobrindo o decote do vestido.
Katrine não via o arrogante lorde de Ardgour desde sua chegada. Também não se encontrara com Callum ou outra pessoa disposta a desobedecer as ordens do
chefe falando com ela.
O silêncio forçado lhe fazia mais mal do que a prisão. Acostumada a compartilhar todos seus pensamentos com as irmãs e a discutir com as primas, estranhava
não ter ninguém com quem desabafar.
Apesar de suas tarefas, lhe restava muito tempo livre para pensar, quando fazia-se sempre as mesmas perguntas: Quando seria libertada? Quanto tempo se passaria
antes de seu tio descobrir que ela estava nas montanhas das Terras Altas? Poderia esperar que um destacamento de soldados ingleses viesse em seu socorro? E seu tio
Colin, tão parcimonioso com dinheiro, se mostraria disposto a pagar um resgate? E se tentasse fugir, teria alguma perspectiva de sucesso?
No terceiro dia de cativeiro, Katrine estava tão ansiosa para conversar com alguém que veria com agrado até mesmo o grandalhão Lachlan. Mesmo os rápidos
diálogos com Flora estavam escasseando, pois a governanta, depois de observar seu trabalho, claramente decidira que ela não precisava de supervisão, como acontecia
com as criadas mais jovens.
Esse, de fato, era o motivo de Katrine estar sozinha na lavanderia. Ela mexia um imenso caldeirão onde as roupas brancas tinham sido postas para ferver
quando sentiu os cabelos de sua nuca se eriçarem, como pressentindo que alguém a observava.
Quando virou-se, contudo, só viu os apetrechos da lavanderia: uma tina com a tábua de esfregar, uma mesa comprida onde as roupas secas eram dobradas e uma
grande banheira de cobre, além de banquetas e cadeiras.
Ela voltou para seu caldeirão, mas a estranha sensação continuava a perturbá-la. Alguns instantes depois voltou a virar-se para trás e dessa vez viu de
relance uma sombra perto da banheira.
Levantando a saia para não tropeçar na barra e erguendo a colher de pau pronta a se defender com ela, Katrine atravessou o cômodo pé ante pé e espiou atrás
da banheira. Foi grande seu espanto ao ver uma menina com cerca de oito anos encolhida de medo.
Era uma criança bonita, com faces rosadas e longos cabelos negros. Ou seria bonita, pensou Katrine, se estivesse mais limpa. O rostinho mostrava uma boa
camada de sujeira, os cabelos estavam embaraçados e empoeirados, e a saia xadrez bem encardida. Os olhos escuros a olhavam com receosa cautela.
Katrine deixou cair a colher de pau e sorriu aliviada.
_ Não tenha medo. Eu não ia bater em você. Estava só preparada para me proteger, no caso de você querer me morder. Pensei que você fosse um rato, sabe?
A brincadeira não causou nenhuma mudança na expressão da menina.
_ Mas claro _ continuou Katrine _ , eu devia saber que Flora jamais admitiria ver ratos nesta casa. E, agora que estou vendo melhor, você é grande demais
para ser um rato. E bonita demais também.
A menina continuava encolhida, os olhos assustados. De tanto em tanto lançava um olhar para a porta, como se preparando para fugir.
Mas Katrine não queria perder a platéia. Depois de passar três dias sendo evitada por todos, ficaria grata por ser notada até mesmo pelo gato do quintal.
_ Nossa, você me assustou _ disse, agachando-se perto da menina. _ Como conseguiu andar por aí sem fazer barulho? E qual é o seu nome? Eu me chamo Katrine.
_ Não acrescentou o sobrenome, porque, se a garotinha já não fora avisada de sua presença, não ia divulgar um fato que, com toda a certeza, a faria sair correndo.
Não houve resposta e Katrine sorriu para a criança de ar tão solene.
_ Deve ser bem desconfortável ficar ajoelhada neste chão duro. Por que não vai se sentar naquela cadeira? Assim me fará companhia enquanto eu trabalho:
Você apareceu na hora certa, sabe? Eu estava louca para conversar com alguém.
Flora irrompeu na lavanderia nesse exato momento. Ela parou, franzindo a testa, ao notar que Katrine estava fora de seu posto de trabalho. Depois, quando
viu a menina, seu rosto ensombreou. Com passos rápidos atravessou o cômodo e pegou Katrine pelo braço, fazendo-a se levantar.
_ Que idéia foi essa? Fique longe da menina!
Katrine levantou-se indignada. Era injustiça Flora repreendê-la por ter parado de mexer o caldeirão por um minuto. Más, ao ver a governanta por uma mão
protetora na cabeça da menina, percebeu que a mulher estava mais preocupada com a garotinha do que com as roupas. Ela considerou-se ofendida. Jamais faria mal a
uma criança! Mas, antes que pudesse protestar, Flora dirigiu-se à menina.
_ Agora saia daqui, mocinha _ ordenou ela, mas usando de delicadeza. _ Tem biscoitos frescos na cozinha.
Depois que a garotinha levantou-se de um salto e fugiu correndo, Katrine deu vazão a sua fúria.
_ Só conversei com ela por um instante. Eu jamais maltrataria uma criança!
_ Fique longe dela.
_ Por quê? Quem é ela?
_ Você não precisa saber. _ A governanta levantou o queixo, obstinada. _ Agora vá cuidar da roupa. Lembre-se do que eu disse. Quero essa roupa branquinha.
Branquinha!
_ E eu que pensei que você fosse uma pessoa compreensiva _resmungou Katrine indignada, enquanto Flora saía da lavanderia.
Katrine voltou para o caldeirão, mas quanto mais pensava no insulto da governanta, mais seu sangue fervia.
O calor do fogo também não estava ajudando a acalmar seu mau humor. Depois de algum tempo começou a transpirar e o joelho arranhado, em contato com o pano
áspero da saia, voltou a arder. Ela lançou um olhar esperançoso para as janelas, mas resolveu não abrir nenhuma. Flora era bem capaz de acusá-la de estar querendo
fugir. Afastando um cacho úmido que lhe caíra na testa, inclinou-se e levantou a saia até o joelho para examinar o ferimento.
_ Se você se virar para cá um pouquinho mais eu terei uma melhor visão do que pediu sua atenção.
Katrine sobressaltou-se a ouvir a voz masculina, deixando cair a colher de pau no caldeirão. Callum MacLean estava encostado no batente, com os braços cruzados
sobre o peito, usando um colete comprido de couro e sapatos de fivela.
_ O que está fazendo aqui? _ perguntou ela, irritada.
_ Observando você _ sorriu Callum, com um ar travesso. _Se me perdoa a ousadia, é uma visão e tanto.
_ Não. Não lhe perdôo a ousadia! _ retrucou Katrine, com o máximo de dignidade que conseguiu reunir. Que atrevimento o sujeito espiando-a daquele modo!
Mas Callum não mostrou o mínimo arrependimento enquanto a olhava abaixar a saia com um gesto furioso.
_ Precisa de ajuda? Com suas saías, quero dizer.
Katrine fuzilou-o com o olhar, ignorando seu ar inocente.
_ Obrigada, mas não preciso de sua ajuda.
Virando-se de costas para ele, tentou pescar a colher de pau da água, mas queimou os dedos. Poderia ter chorado de raiva e frustração. Quando finalmente
conseguiu pegar a colher, ela trouxe consigo uma camisa de homem, grande e finamente pregueada. Sem dúvida pertencia ao dono da casa, pensou, enfezada. Lembrando-se
de novo de seu cativeiro, resmungou uma praga contra o malvado lorde dos MacLean, o responsável por tudo o que estava passando.
Logo, porém, ela voltou a tomar consciência da presença do primo do vilão. Os olhos escuros pareciam estar furando suas costas. Quando Callum disse que
viera ver como ela estava passando, Katrine transferiu toda a fúria para ele e recusou-se a responder.
_ Por que tanta irritação? - perguntou ele, zombeteiro. - Foi alguma coisa que eu disse?
Katrine rangeu os dentes, desejando que Callum parasse de atormentá-la. Mais uma observação provocadora e ela iria gritar... ou explodir.
_ Quer fazer o favor de sair daqui? Estou certa de que tem coisas mais fascinantes a fazer do que ficar me espionando.
_ Acho que não. Creio que não existe algo mais fascinante do que assistir um ataque de fúria de uma moça bonita.
Foi a gota d'água. Katrine levantou a colher de pau e atirou a camisa ensopada na direção de Callum. Ela atingiu a parede perto da porta. Apesar de não
ter estado em real perigo, ele recuou instintivamente, mas sem desviar o olhar zombeteiro de seu rosto.
Foi nesse exato momento que seu primo surgiu na porta. Raith observou a cena com cinismo: Katrine, de punhos cerrados e olhar furioso; a roupa molhada caída
no chão. Em seguida, ergueu uma sobrancelha para o primo, como fazendo uma pergunta, antes de voltar seu olhar para Katrine.
Ela sentiu o coração parar com a súbita chegada de Raith. Via-o pela primeira vez sem a barba de vários dias, e precisou olhar com mais atenção, tentando
assimilar essa mudança em sua aparência. Bonito era uma palavra muito fraca. Impressionante, talvez. E ainda perigoso. No entanto, possuía uma elegância aristocrática
indiscutível. Estava vestido como qualquer outro cavalheiro de riqueza e posição. Tinha os cabelos presos numa trança amarrada com uma fita azul. As botas de cano
alto brilhavam. O jabô branco e engomado contrastava com sua pele morena e os cabelos negros. A casaca azul de veludo realçava os ombros largos e o porte masculino.
Nas mãos enluvadas, ele carregava um chapéu de três bicos.
Ao se dar conta que os duros olhos azuis estavam voltados para ela, Katrine sentiu o sangue afluir ao seu rosto. Fora pega olhando. fixamente para seu captor,
mas não conseguira evitar, apesar da humilhação de ter sido surpreendida dando vazão a sua fúria contra o primo atrevido.
_Foi sorte ela ter errado a pontaria _ observou Raith secamente, com os olhos ainda em Katrine.
_Eu não errei! _ Ela conseguiu responder com acidez, apesar de ainda não ter afastado o olhar da elegante figura masculina do lorde dos MacLean. _ Garanto-lhe
que tenho ótima pontaria. Se eu quisesse atingir o sr. MacLean, teria conseguido.
_Meus amigos me chamam de Callum.
_Que bom, sr. MacLean _ repetiu Katrine, deixando claro que não pretendia usar o nome de batismo.
_A srta. Campbell não tem por hábito respeitar as normas sociais, Callum. Para diferenciar seus amigos, ela simplesmente evita chamá-los de "grosseirão"
ou "patife" _ disse Raith, erguendo novamente uma sobrancelha para o primo. _ Então diga-me, o que acha dela agora, depois de experimentar uma amostra de seu mau
gênio?
Callum deu de ombros. Examinando Katrine de alto a baixo, sorriu preguiçosamente.
_Nunca achei muita graça em mulheres delicadas. Um pouco de gênio é sempre bem-vindo.
_Um pouco de gênio? Eu diria que ela tem o temperamento de uma megera.
Katrine irritou-se, mas sabia muito bem que não tinha argumentos para discordar. Um de seus primos ingleses a apelidara de "megera indomada" depois que
ela lhe dera um soco na orelha por estar tentando tomar liberdades. E muitas vezes ela brincara com sua irmã mais nova dizendo que Roseline era uma rosa inglesa
enquanto ela mesma era um cardo escocês. Sim, sabia que estava longe de ser mimosa e delicada, mas não gostou de ouvir isso da boca de Raith.
No entanto, antes que pudesse responder, Callum começou de novo.
_Eu consigo esquecer um mau gênio quando a moça é bonita. E a srta. Campbell é bonita. - Ao ver o primo cerrar os lábios em aparente desdém, ele continuou:
- Ora, vamos, Raith, você pode honestamente ignorar que ela compõe um atraente quadro com o rosto corado pelo calor do fogo e os cabelos ruivos caindo em cachos?
Raith recusou-se a responder, embora soubesse o que tinha a dizer. Ignorar Katrine Campbell era algo que jamais conseguiria fazer, e principalmente agora,
quando ela lhe parecia mais encantadora do que nunca. O rosto corado tornara-se ainda mais luminoso e os cachos que tinham escapado dos grampos davam a impressão
de possuírem uma energia própria. Eles atraíam um homem, fazendo-o desejar soltá-los de vez e emaranhar-se neles.
Oh, sim, Callum estava certo, pensou Raith, bem consciente de que seu primo estava sentindo a mesma atração. Com um esforço, afastou o olhar de Katrine
e dirigiu-se a Callum.
_É bom você se lembrar quem ela é e por que está aqui.
_Ah, mas eu me lembro.
_Então, se não consegue dominar suas inclinações galanteadoras melhor do que isto, sugiro que se afaste dela por .completo.
_Como você está fazendo? _ zombou Callum.
Raith contraiu os lábios e não respondeu. Não explicou que hesitara muito em procurar Katrine. Também não admitiu a preocupação com seu bem-estar. Jamais
diria a ninguém que lamentava imensamente a necessidade de pô-la para trabalhar em suas cozinhas... especialmente agora, depois de vê-la labutando perto do fogão.
Mas teria sido muito mais cruel mantê-la trancada.
E, de fato, ela não parecia estar se dando mal. Afinal, tivera ânimo para atirar uma roupa molhada em seu primo. Tudo indicava que se preocupara sem necessidade.
Devia ter ficado longe, pensou. Em especial porque sua prisioneira malcriada e de lingüinha afiada estava obviamente ansiosa para fazer dele o novo alvo de sua ira.
Podia sentir o calor dos olhos verdes atravessando sua alma.
Katrine estava mesmo fumegando. Não agüentava mais ouvir aqueles dois conversarem sobre ela como se não estivesse ali e precisou de todo o seu controle
para não berrar.
_E por que tanto interesse em afastar seu primo de mim? _ perguntou com as mãos na cintura. _ Receia que ele vai me seduzir, ou que eu o corromperei?
_As duas coisas hipóteses são bastante válidas. _ Raith fixou o olhar na barriga de Katrine. _ Não quero mandá-la de volta ao seu tio carregando um bastardo
de meu primo.
Katrine deixou o queixo cair, chocada. Antes que pudesse recuperar a presença de espírito para perguntar se ele já tomara medidas para negociar seu resgate,
Raith virou-se abruptamente e saiu da lavanderia.
A saída arrogante deixou-a ainda mais furiosa. Se Raith MacLean ainda estivesse ali, jogaria todo o conteúdo do caldeirão nele.
_Maldito! _ resmungou, cerrando os punhos.
_A qual das duas idéias você faz objeção? - perguntou Callum. _ Ter filhos ou gerar um filho meu?
Ela assustou-se. Tinha esquecido que Callum continuava ali. Mas, quando se deu conta do que ele perguntara, sentiu as faces ficarem da cor de seus cabelos.
_ Oh, não, acho as duas idéias formidáveis! _ ela anunciou em voz alta. _ Por que não termos doze filhos? Seria uma maravilha eu voltar para a casa de meu
tio calvinista com doze moleques segurando em minhas saias! Aí sim, que ele me poria para fora!
A amargura em sua voz foi grande. Callum enfrentou seu olhar furioso com um sorriso simpático. Já embaraçada devido à explosão, Katrine desviou o olhar
e voltou a cuidar da roupa.
_Aqui a ilegitimidade não tem o mesmo estigma que na Inglaterra _ disse Callum, com calma e bom humor. _ Nascimentos acidentais não são considerados uma
desgraça. De fato, os filhos bastardos costumam receber o mesmo carinho dos nascidos de casamentos. Sei disso por experiência própria. Sou um deles. Nunca ninguém
me discriminou devido ao meu nascimento... mas não gostam muito da idéia de eu ter sangue inglês.
Lembrando-se de que Callum havia lhe dito que era meio inglês no dia de sua chegada, Katrine imaginou quais seriam as circunstâncias de seu nascimento.
No entanto, a conversa estava tomando um rumo que não a agradava.
_Obrigada, sr. MacLean, por querer me tranqüilizar, mas penso que não aceitarei a tarefa de gerar seus filhos. A verdade é que não pretendo ficar aqui por
muito tempo. _ Pelo menos, era o que esperava. Rezava para seu tio já estar a sua procura, percorrendo as Terras Altas com um regimento de soldados ingleses. Afinal,
eram do mesmo sangue. Tio Colin talvez até se veria obrigado a pagar pela sua libertação...
_Você não acharia ter meus filhos uma tarefa onerosa _ disse Callum, interrompendo seus pensamentos. _ De fato, posso dizer, sem medo de errar, que você
estará perdendo um grande prazer.
Katrine ergueu os olhos para o teto, implorando aos céus que lhe dessem paciência. A persistência de Callum MacLean era incrível... tão grande como seu
convencimento. Exasperada, lançou um olhar por cima do ombro para ele e viu diabinhos dançando em seus olhos escuros.
_ Sei que estou sendo pouco modesto _ sorriu Callum. _ Faz parte do meu charme juvenil.
Katrine fuzilou-o com o olhar, mas Callum não se deu por vencido. Apesar de seu atual estado de espírito, ela não conseguiu se manter imune ao bom humor
e charme do atrevido rapaz. Pouco a pouco sua fúria foi diminuindo diante do sorriso maroto. Ela quase devolveu o sorriso antes que sua atenção fosse desviada para
uma movimentação no pátio.
Uma das janelas da lavanderia dava para as estrebarias. Katrine avistou um pequeno grupo de homens e reconheceu os cabelos vermelhos de Lachlan. Se não
fosse por eles, nem saberia que era o grandalhão, pois, como Raith, Lachlan estava vestido em alto estilo, usando casaca e calças de couro.
Então ela viu o próprio lorde dos MacLean. Ele saíra da casa por uma porta dos fundos e atravessava o pátio, alto e imponente, o rosto bonito muito sério
e tendo em volta de si uma aura de impenetrabilidade.
Katrine imaginou se o bando não estaria partindo para um outro ataque, mas logo percebeu que, vestidos daquele jeito, só podiam estar saindo para uma visita
a vizinhos. Ela ia perguntar a Callum para onde estavam indo os MacLean quando ele ofereceu a informação.
_Raith precisa fazer uma pequena viagem. Meu caro primo vai cuidar de negócios.
Uma onda de esperança tomou conta de Katrine. Estando o chefe de seus captores distante, talvez devesse tentar fugir...
Mas Callum, como se tivesse lido seus pensamentos, deu uma risadinha e balançou a cabeça.
_É melhor tirar essa idéia da cabecinha, Katie. Raith deixou ordens para você ser cuidadosamente vigiada. Tenho certeza que não conseguirá caminhar meio
quilômetro antes de ser trazida de volta.
Katrine reconsiderou seus pensamentos com relutância. Seria humilhante tentar orna fuga e ser arrastada de volta pelos cabelos. Nesse instante, avistou
uma sombra perto da janela. Aproximando-se dela, viu a menina que encontrara antes sair correndo das sombras da cozinha e parar junto de Raith.
Quando viu a menina, Raith também parou e sorriu para ela, um sorriso tão doce que Katrine prendeu a respiração. Raith disse alguma coisa que ela não conseguiu
compreender, mas a criança não hesitou nem um instante antes de atirar-se em seus braços. Ele a pegou no colo e continuou a andar, conversando com a menina, parecendo
não se importar com o estrago que seus bracinhos sujos poderiam estar fazendo ao. seu jabô branco.
Quando chegou perto dos cavalos, Raith colocou-a no chão e afagou-lhe a cabeça antes de ela sair correndo como um coelho assustado na direção da cocheira.
Seu olhar seguiu-a enquanto ele montava e saía do pátio em companhia dos outros homens.
Katrine virou-se para Callum com um olhar inquisidor.
_ Quem é aquela menina?
_ O nome dela é Margaret, mas nós a chamamos de Meggie.
_ Sim, mas o que ela faz aqui? Quem são seus pais?
_ Os pais dela estão mortos.
_ Então, quem cuida dela? Pelo estado de suas roupas, eu diria que ninguém se incomoda com ela.
Callum, que agora estava sério, deu de ombros.
_ Parece que Flora cuida dela, mas não sei ao certo.
_ Mas alguém deve ser responsável por essa criança!
_ Bem, claro _ disse Callum, um tanto intrigado com o interesse de Katrine. _ O lorde é responsável por todos os membros de seu clã. Mas, no caso de Meggie,
Raith é o seu tutor legal.
_ Então ele deveria providenciar para a menina ser bem cuidada. Ela é pequena demais para estar andando por aí desacompanhada.
_ Por que não se queixa com Raith?
_ Pode ser que eu faça isso. _ E me queixarei de muitas outras coisas, pensou Katrine.
Ela voltou para o caldeirão e seus pensamentos ficaram tão voltados para Meggie que nem ouviu o comentário de Callum.
_ Bem acho que fui dispensado. _ Quando Katrine não respondeu, ele acrescentou: _ E esquecido por causa de uma garotinha. Que decepção!

No dia seguinte, Katrine estava na cozinha, enrolando biscoitos da massa que Flora preparara. Ao seu lado, a ajudante limpava ervilhas.
Quando Flora saiu por um momento, ela tentou conversar com a criada. Era uma das mais jovens e talvez pudesse ser subornada.
Se conseguisse persuadi-la a levar um bilhete para seu tio ou para a guarnição inglesa mais próxima...
No entanto, tudo o que ela recebeu foi um olhar desinteressado. Depois de dez minutos de monólogo, finalmente perguntou se a criadinha era mal-educada por
natureza ou apenas covarde demais para desobedecer as ordens do lorde de não conversar com uma Campbell.
A mocinha só sorriu e pegou um balde para ir buscar água no poço.
_ Deixe-me fazer isso _ ofereceu Katrine. _ Seria bom sair um pouco da casa.
A única resposta foi o mesmo olhar desinteressado e o som da porta abrindo e fechando.
_ Sei que sou uma prisioneira aqui _ resmungou Katrine _, mas você podia pelo menos ter a cortesia de agradecer meu oferecimento.
_ A moça não estava sendo mal-educada. _ A voz de Raith veio de trás dela, fazendo-a saltar de susto. _ Ela simplesmente não a entende porque só fala gaélico.
Quando ela se virou sentiu um frio na boca do estômago e um absurdo acelerar da pulsação. Raith estava com um ombro encostado na porta, vestido com muito
mais descontração do que na manhã anterior, sem casaca ou colete.
_ Se você sabia que ela não podia me entender, porque me deixou continuar, me fazendo de boba?
_ Eu fazer você de boba? Não tive nada com isso. Você estava indo muito bem sem a minha ajuda.
Apertando os lábios, Katrine voltou para a mesa onde estava a massa.
_ Quando você pretende me soltar?
_ Quando você não for mais necessária.
Katrine olhou com raiva para a mistura de aveia com gordura, o que a lembrou de uma das queixas que queria fazer ao seu captor. Depois, socou uma pelota
de massa, desejando que fosse o nariz de Raith.
_Aveia! Estou farta de aveia! _ falou, pontuando cada palavra com um aperto na massa. _ Biscoito de aveia, sopa de aveia, mingau de aveia! Pensei que você
tivesse meios para oferecer alguma variedade para seus prisioneiros.
_Algumas crianças escocesas não comem mais do que uma bolacha de aveia por dia e se consideram afortunadas.
O tom de Raith se tornara cortante, mas Katrine o ignorou.
_Você ameaçou me trancar se eu não o servisse, mas eu esperava algo mais do que rações de fome. Mas pensando bem, acho que eu preferiria mesmo morrer de
inanição. Meu tio teria uma boa causa para sua vingança quando você lhe devolvesse meu cadáver.
Houve uma pequena pausa antes de Raith responder.
_Eu não sabia que você não estava recebendo alimentação adequada. Acho que Flora andou levando muito a sério seus deveres como carcereira.
_Sem dúvida!
_Você devia ter pedido mais comida a ela.
_Ah, é? E como acha que eu iria convencê-la? Flora só estava seguindo suas ordens.
_Não foram essas minhas ordens... e você poderia ter me procurado.
Ora, e como ela iria se humilhar desse jeito quando o que realmente queria fazer era chutar-lhe as canelas, pensou Katrine, enfrentando os olhos azuis com
o cenho franzido. Não era grande conforto saber que Flora, e não Raith, era a responsável pela sua dieta de aveia.
_Olhe, estou até surpresa por você me deixar ficar em sua cozinha _ disse, com azedume. _ Não tem medo que eu envenene sua comida?
Raith devolveu o olhar sério por um instante, mas logo relaxou o rosto, assumindo uma expressão de zombaria.
_Não. Se você tentasse me envenenar, seu cadáver jamais chegaria ao seu tio.
_Mas juro que eu o faria, se me fosse dada a oportunidade. Aliás, não descobri nenhum veneno. Com toda a certeza eu encontraria algo letal na horta, se
tivesse permissão para sair da casa.
_Será que estou detectando uma admoestação? _ Dessa vez havia humor nos olhos e lábios de Raith.
_Admoestação! É muito mais do que isso, seu... seu malvado sem coração! Nunca tratei nem mesmo o mais humilde de meus criados como você me tratou. Eu nunca...
_ Sabe como os bons moradores de Langholm, uma cidadezinha perto da fronteira, tratam as mulheres mal-humoradas, que estão sempre, reclamando? Colocam nelas
uma mordaça parecida com um bridão de cavalo. Ela fica presa na cabeça e tem uma ponta de ferro que encosta na língua. Isso cala qualquer megera.
_ Você nunca se cansa de fazer suas ameaças vis e desumanas? - A expressão de Katrine alternava fúria e desdém.
A resposta foi uma risadinha que a atiçou ainda mais. Raith MacLean estava se divertindo com sua raiva! Ela olhou em volta, procurando uma arma para mostrar
ao mal-educado que não estava para brincadeiras. Seu olhar caiu sobre o sgian dhu que a ajudante de cozinha estivera usando para cortar os fios das ervilhas, a faca
que era a única lâmina que os rebeldes montanheses tinham permissão de possuir. Pegando-a, virou-se para Raith.
Ele ergueu uma sobrancelha, como desafiando-a a usar a faca. O brilho de antecipação nos olhos azuis refletia o quanto a idéia de lutar com ela o divertia.
Mas Katrine jamais cometeria um gesto como esse. Ficou ali, impotente, cheia de fúria. Nunca seria capaz de ferir um ser humano, nem mesmo aquele abominável
Raith MacLean. E ele sabia muito bem disso.
Raith foi o primeiro a quebrar o silencio.
_ Que tipo de variedade você gostaria de ter em seu cardápio? - disse suavemente, desarmando-a por completo.
Sentindo-se uma completa tola por brandir uma faca que nunca tivera a intenção de usar, Katrine forçou-se a ficar de cabeça erguida enquanto recolocava
o sgian dhu na mesa.
_Eu gostaria de legumes.
_Legumes? Muito bem, direi a Flora. _ Raith ficou olhando-a por um instante e depois, sem pedir licença ou se despedir, saiu da cozinha.
A ira de Katrine aumentou mais um pouco diante dessa grosseria. Olhando feio para onde ele saíra, resmungou uma frase que colocava sérias dúvidas sobre
a legitimidade do nascimento do lorde, estendendo o xingamento para seu primo e Lachlan. Mas, quando voltou à massa, centrou seu ressentimento apenas em Raith.
Estava descontando sua fúria nos pobres biscoitos, quando Flora entrou na cozinha.
_O lorde disse que você deve comer o mesmo que todos _ anunciou ela, não parecendo nem satisfeita nem aborrecida com as novas ordens.
_Quanta generosidade _ resmungou Katrine, não especialmente encantada, e acrescentou por entre os dentes. _ A arrogância do patife! Eu devia ter enfiado
a faca nele quando tive oportunidade.
Flora ouviu e estreitou os olhos azuis, que nada perdiam.
_Aqui nas Terras Altas temos um ditado: "Se você não pode morder, não mostre os dentes.
_Eu ainda não tentei mordê-lo _ retrucou Katrine, dando outro soco na indefesa massa - , mas garanto-lhe que guardarei isso em mente.
Só então lembrou-se que não o interrogara sobre sua pupila.

CAPÍTULO VI


Katrine tentava se convencer que não podia tirar a menina órfã do pensamento porque criara duas irmãs mais jovens. Não importava em que tarefa estava se
ocupando, o quanto procurava se concentrar em resolver o próprio problema de efetuar uma fuga de Cair House, a visão dos olhos escuros e assustados no rostinho pálido
não saía de sua mente.
Foi por isso que na tarde daquele mesmo dia ela achou que sua imaginação a estava enganando quando sentiu a presença da criança enquanto varria o piso de
pedra de uma das salas de trabalho.
Mas não era sua imaginação. Quando virou-se, descobriu os olhos solenes a observando. Meggie estava logo perto da porta, segurando o que parecia ser uma
boneca de trapos. O rosto e cabelos estavam tão sujos como no dia anterior, mas ela usava um vestido diferente, menos sujo.
_ Alô _ cumprimentou, parando de varrer. _ Você é Meggie, não? Está vendo, eu descobri seu nome.
Meggie só continuou olhando.
_ Estou honrada por receber sua visita. _ Especialmente quando Flora mandou-a ficar longe de mim, pensou Katrine.
Não houve resposta.
Katrine parou de sorrir enquanto inspecionava a menina. Ela era quieta... quieta demais. Mas talvez, como a ajudante de cozinha, só falasse gaélico.
Lembrando-se do incidente na cozinha, Katrine lançou um rápido olhar para a porta, quase esperando ver o lorde dos MacLean espionando. No entanto nem ele
nem seu primo, ou Flora, estavam à vista.
_ Você compreende inglês, Meggie? _ disse e repetiu a pergunta usando algumas das poucas palavras que sabia do dialeto.
A menina entendeu pelo menos a palavra sassenach porque recuou, com um brilho assustado no olhar. Katrine percebeu que dissera a coisa errada e voltou a
varrer a sala. Não queria forçar Meggíe.
Mantendo seus movimentos constantes e vagarosos, ela de vez em quanto lançava um olhar para a garotinha, esperando que fosse fugir a qualquer instante.
Ao ver que ela continuava no mesmo lugar, começou a cantarolar baixinho uma música que aprendera em criança, sobre dois corvos discutindo a sorte de um cavalheiro
andante. Vendo Meggie inclinar a cabeça como um passarinho curioso, colocou a letra na canção.
Uma levíssima sombra de sorriso surgiu nos lábios da criança e tocou o coração de Katrine. Ela parou de varrer e cantou a música até o fim. Quando terminou
o último verso, os olhos de Meggie brilhavam.
Katrine sentiu o coração batendo de alegria no silêncio que se seguiu. Mesmo se não falassem a mesma língua, ela conseguira um contato com a garota.
_ Quer cantar comigo, Meggie? Á letra é muito comprida, mas você parece ser uma menina inteligente e acho que vai decorar rápido. A primeira linha é bem
fácil. Repita comigo: "Eu estava andando pela..."
_ E o bastante, srta. Campbell.
A voz de Raith veio da porta e surpreendeu Katrine com sua aspereza. Quando ela se virou, viu que as feições dele estavam sombrias. Mas o salto absurdo
que seu coração deu naquele momento não teve nada a ver com a surpresa de sua chegada ou a expressão de desagrado. Era a simples presença dele que a afetava dessa
maneira.
Essa constatação perturbadora só acrescentou força às suas palavras de irritação.
_ Você tem sempre de aparecer de mansinho? Você e seu primo já me tiraram um ano de vida com os sustos que me pregam quando se aproximam de mim. Se continuarem
a agir assim, vou viver bem pouco!
Katrine arrependeu-se de levantar a voz no mesmo instante, porque Meggie encolheu-se, apertando a boneca contra o peito. Ela também não procurou proteção
em Raith e lançou um olhar assustado para seu rosto sério, como que concluindo que iria ser castigada por desobedecer ordens. Partindo em defesa da menina, Katrine
explodiu:
_ Ela não fez nada de errado! Só está aqui por minha culpa. Ela queria fugir, mas eu a fiz ficar cantando uma música que atraiu sua atenção. Se você tem
de castigar alguém, castigue a mim.
Raith ignorou-a, mas suavizou o olhar quando fixou-o em sua pupila.
_Meggie, você não deveria estar aqui. Por que não vai procurar Flora?
A menina só olhou para ele, assustada.
_Meggie, vá agora _ disse Raith.
A garotinha lançou-lhe um olhar angustiado e saiu correndo da sala. Quando ela desapareceu de vista, Raith virou-se para Katrine.
_Fique longe dela. _ O tom foi tão suave e mortal que Katrine teve de lutar para não estremecer.
_Eu não ia machucá-la. Jamais maltrataria uma criança, apesar de você me achar capaz de tudo.
_Não quero ver você perto dela. _ O tom continuou letal.
_Mas por quê? Penso que está sendo totalmente irracional. Tudo o que fiz foi conversar com ela e...
_Ela não fala.
_Meggie não fala inglês? Mas ela pareceu entender bem a música e...
_O que estou querendo dizer é que Meggie não fala com ninguém.
_E principalmente não com você, sem dúvida! Eu também faria o mesmo se eu fosse criança e você me olhasse com essa cara. Ela só pode ter medo de você. E
a propósito, por que trata tão mal essa criança? Ela é sua pupila, sua responsabilidade. Devia criá-la muito melhor.
Raith apertou os lábios, visivelmente lutando para manter a paciência.
_Você está completamente errada, moça. Eu não maltrato minha pupila e ela não consegue falar com ninguém, inclusive comigo.
_ Ele fez uma pausa, olhando-a com desprezo. _ Agradeça aos soldados sassenach por isso.
_Oh, claro, tudo é culpa dos ingleses! E o que eles poderiam ter feito com uma criança indefesa?
Quando Raith falou, seu tom baixo foi cortante.
_Eles estupraram e mataram a mãe dela diante de seus próprios olhos.
Katrine ficou encarando-o boquiaberta, num silêncio chocado. Envergonhada de suas palavras ásperas, ela engoliu em seco, sentindo a consciência pesada.
_Como... _ começou, mas descobriu que sua voz era apenas um sussurro. Ela parou, engoliu em seco e recomeçou: _ Como se permitiu uma coisa dessas?
_Permitiu? _ O olhar de Raith pareceu transpassá-la. _ Pelo amor de Deus, srta. Campbell, onde esteve até agora? Escondendo a cabeça sob as cobertas? Estupro
e morte são comuns nas Terras Altas, são o modo inglês de fazer justiça. Desde o Quarenta e Cinco, nós, que nos mantivemos leais ao verdadeiro rei, temos sido tratados
como animais.
O rosto de Raith parecia feito de granito e seu tom vibrou entre os dois. Todavia, foi seu olhar que gelou o sangue de Katrine, fazendo-a estremecer.
Mesmo vivendo em seu mundinho protegido na Inglaterra, ela ouvira falar das atrocidades nas Terras Altas, mas imaginava que havia exagero nos relatos. Jamais lhe
passara pela cabeça conciliar histórias de feridos sendo mortos à espada, de rebeldes queimados vivos e mulheres e crianças atacadas com a beleza das terras da qual
se lembrava tão bem. Talvez simplesmente não quisera acreditar em tais horrores.
Mas Meggie era jovem demais para ter estado envolvida nas retaliações depois do Quarenta e Cinco.
_Quando isso aconteceu? _ perguntou Katrine, lembrando-se da expressão atormentada nos olhos escuros e desejando compreender a situação.
_Você quer detalhes? Que curiosidade mórbida!
Katrine enrijeceu o corpo com a resposta. Estava claro que Raith não pretendia explicar nada para ela, uma Campbell inglesa.
_Não se trata de uma curiosidade mórbida _ disse calmamente. Eu só queria saber mais sobre Meggie.
_Isso não lhe diz respeito. Só quero que se mantenha longe dela. Em outras circunstâncias, Katrine teria respondido com azedume, dizendo que só queria ajudar,
mas dada à resposta que recebera anteriormente, apenas desculpou-se:
_Eu... eu falei impensadamente.
_É algo que faz com freqüência, concorda? Talvez seja melhor usar a vassoura em vez da língua.
O arrependimento de Katrine sumiu diante do sarcasmo de Raith. Virando-se de costas para ele, pegou a vassoura e começou a varrer com gestos decididos.
Esperava que ele fosse embora. Mas alguns instantes depois ainda podia sentir o olhar sombrio em suas costas. Não podia imaginar por que ele continuava
ali, por que vinha à ala de serviço para atormentá-la.
Com raiva renovada, Katrine aumentou a velocidade de seus gestos. Foi com satisfação que fez a poeira voar na direção do lorde de Ardgour, esperando que
o arrogante se engasgasse com ela.
Raith simplesmente afastou-se, mas não foi embora.
_Esta manhã _ disse ele, no mesmo tom impassível de antes
_ você mencionou o desejo de sair da casa. Resolvi atender seu pedido. Na verdade, não existe motivo para você ficar trancada aqui o tempo todo.
Mal acreditando em seus ouvidos, Katrine procurou esconder sua ansiedade. Suas chances de escapar agora seriam muito maiores.
_Não vejo motivo para você não ter maior liberdade _ continuou Raith. _ Já dei ordens para ser vigiada vinte e quatro horas por dia. Não conseguirá nem
mesmo usar a casinha sem que uma dezena de pares de olhos a acompanhem.
Então era sorte ela não ser obrigada a usar a privada, já que em seu quarto havia um urinol. Mas uma dama jamais falava nessas coisas.
Mordendo a língua, Katrine lançou um olhar rancoroso para Raith. Com toda a certeza ele se regozijara em acender suas esperanças para em seguida destruí-las.
Claro que ele não faria a oferta se pensasse que sua prisioneira tinha a menor possibilidade de escapar.
Gostaria de poder recusar a oferta magnânima com altivez, mas só perderia com isso. Depois de passar vários dias trancada, estava desesperada por respirar
um pouco de ar livre. No entanto, preferiria ser esquartejada do que agradecer o senhor. dos MacLean.
_Sua generosidade é tocante _ retrucou, no tom mais ácido que conseguiu. Depois, encostando a vassoura na parede, fez uma reverência.
A falsidade de sua gratidão irritou Raith.
_Um dia, srta. Campbell...
Ele não terminou a ameaça, mas Katrine ergueu o queixo, encarando-o num desafio. Não tinha a menor idéia do que ele pretendia fazer, mas com toda a certeza
não seria algo agradável. Decidiu que não seria a primeira a abaixar o olhar, que não perderia a compostura sob aquela expressão feroz. Já estava se sentindo muito
desconfortável quando Raith, sem uma outra palavra, virou-se de costas e saiu.
Katrine respirou fundo e relaxou quando ouviu os passos se afastando. Depois voltou a varrer com renovado vigor, decidida a tirar Raith MacLean da cabeça.
No entanto, só conseguiu um êxito parcial, pois sempre que lembrava da trágica história de Meggie, recordava-se do olhar desdenhoso de seu tutor, da acusação qt~
vira em seus olhos, como se a culpasse pelo que os soldados ingleses haviam feito.
No instante em que viu Flora, ela perguntou sobre a menina.
_É verdade que Meggie não pode falar?
_Sim, é. Pobre menina! _ disse a governanta, balançando a cabeça.
Katrine quis saber mais, mas Flora fechou a boca, como se fosse uma ostra. Só quando ouviu Katrine censurar o lorde por não estar cuidando direito de sua
pupila que ela voltou a falar.
_Aqui nas Terras Altas nós temos um ditado: "Não fale mal daqueles cujo pão você come.
Katrine já percebera que ~i gover~1anta tinha o hábito de pontuar suas falas com provérbios e esse em particular viera na hora exata. Ela acabara de se
servir da primeira refeição decente que ia ter desde seu seqüestro. Olhando para a cheirosa torta de carne com legumes, resolveu conter a língua.
Com o estômago cheio, foi mais fácil tornar-se otimista sobre o futuro. Depois do jantar, então, sua disposição melhorou muito e quando estava subindo as
escadas para se recolher ao seu quartinho, recuperara toda sua antiga confiança.
Sim, de algum modo conseguiria enganar seus captores. Só seria um pouco mais difícil do que imaginara de início. Ficaria de olhos abertos, esperando a oportunidade
certa. Se não conseguisse escapar sozinha, com toda a certeza seu tio viria libertá-la. Enquanto isso, aproveitaria ao máximo a permissão de sair da casa. No dia
seguinte exploraria as vizinhanças e tentaria formar uma idéia melhor da região.
Ela começou a elaborar seus planos enquanto vestia a camisola e trançava os cabelos. Quando entrou debaixo das cobertas já estava ansiosa pelo dia seguinte.
Seu último pensamento antes de adormecer foi desejar que não chovesse.
Quando Katrine acordou, notou com alegria que ainda não amanhecera. As montanhas que avistava pela estreita janela de seu quarto ainda estavam imersas na
escuridão, mas faixas vermelho-claras agora cortavam o céu. Cheia de entusiasmo, ficou ali por mais um instante, vendo as sombras da noite desaparecerem e depois
apressou-se a se lavar e vestir. Soltou a trança, libertando os cachos vermelhos, mas não quis perder tempo se penteando. Deixou os cabelos soltos, caindo em cascata
pelos ombros. Não querendo que seus chinelos já maltratados se estragassem no orvalho, saiu do quarto descalça, como costumava fazer quando era criança e como era
hábito de todas as moças e meninas das Terras Altas.
Ela desceu pé ante pé. Apesar de ter obtido a permissão do lorde para deixar a casa, temia ser impedida de explorar o vale se acordasse os moradores.
Quando chegou à cozinha, encontrou apenas a ajudante.
_ Vou sair por um instante _ explicou, sabendo que não seria compreendida. _ Não vou demorar. _ A moça sorriu timidamente mas não fez menção de pará-la.
No momento em que se viu do lado de fora, Katrine parou abruptamente, deliciando-se com a esplêndida paisagem. A cena a cativou. As montanhas estavam banhadas
numa luz acinzentada, enquanto o horizonte tornara-se carmim. Encantada, ela respirou fundo. Era uma magnífica madrugada de fim de primavera, fria e clara, com um
brilho que prenunciava um dia ensolarado. Sim, fora por isso que quisera tanto voltar às Terras Altas.
Os pensamentos de fuga saíram completamente de sua mente. Ela queria apenas ser parte desse novo e belo dia. E gostaria de aproveitá-lo sozinha.
Katrine lançou um olhar a sua volta. O pátio estava deserto, mas o murmúrio de vozes masculinas vindo das estrebarias foi uma forte indicação de que o clã
MacLean começava a acordar.
Rezando para não ser vista, deu a volta na estrebaria e tomou a direção da trilha que levava a um riacho que corria nos fundos da mansão. Quando chegou
ao final do pátio calçado, esgueirou-se atrás dos arbustos de azaléia e fez uma pausa para admirar de novo a magnífica paisagem.
Diante dela as encostas das montanhas de Ardgour elevavam-se abruptamente para o céu, e agora os picos estavam tingidos pelo rosado do alvorecer. Bem perto,
acompanhando a margem oposta do riacho, ficava a mata, com árvores altas e arbustos verdejantes.
Inclinando-se, Katrine puxou a barra da saia e prendeu-a na cintura para não tropeçar. Depois, usando a ponte de troncos para atravessar o regato murmurante,
entrou na mata.
De uma das janelas de seu quarto, Raith assistiu a partida de Katrine.
_ O que esta atrevida está pretendendo? _ resmungou, apertando o peitoril.
Praguejando baixinho, ele atravessou o quarto nu como estava e pegou o xale xadrez que pendia de um cabide. Enrolando-o na cintura e prendendo-o com um
cinto largo, formou um saiote. A outra extremidade atirou sobre o ombro esquerdo, cobrindo o peito. Feito isso, apressou-se a sair do quarto, decidido a perseguir
Katrine.
Raith deu graças pela inquietação que o fizera saltar da cama mais cedo que o habitual e ir para a janela. Avistara sua refém tomando a direção das estrebarias
e imaginou se ela ia tentar roubar um cavalo. Mas seus homens já estavam bem alertas para essa possibilidade e haviam tomado todas as providências para impedi-la.
Katrine teria maior dificuldade ainda em fugir pelo lado das montanhas, porque ali o terreno era. selvagem e traiçoeiro para os que não o conheciam. Mesmo
um caçador experiente podia se perder nele. Duvidava que ela conseguisse escapar por ali, mas não ia mais se deixar surpreender pela engenhosidade de sua refém.
Por isso a seguiu, com os sentimentos em tumulto, como estava acontecendo desde que decidira manter Katrine Campbell como refém. Sentia apreensão com a
possibilidade de ela conseguir fugir. Irritação por ter de ser ele a pessoa a impedi-la. Desagrado pela atração que essa moça geniosa exercia sobre ele. E, apesar
de relutar em admitir, preocupação com sua segurança. Foi esse último sentimento que mais pesava na mente de Raith MacLean enquanto ele seguia o caminho que Katrine
tomara, com passos largos e decididos.
Ele atravessou o riacho. Depois de uns cem metros, a trilha se abria num vale. Antes mesmo que chegar a ele, pôde ouvir o turbilhonar de outro pequeno rio
que cascateava pelas rochas até chegar a um pequeno mas profundo lago. Quando entrou no vale, fez uma pausa, procurando por entre a névoa azulada uma moça esguia
e de cabelos de fogo.
De início não teve êxito. A distância, viu apenas partes da superfície cintilante do lago, mas nada de Katrine Campbell.
Estava já na metade do vale quando a avistou bem a sua esquerda. Sentada numa pedra chata e coberta de musgo perto da cascata, com os braços em torno dos
joelhos, ela assistia ao nascer do sol.
Ela o viu. Pôde perceber isso pelo modo como levantou a cabeça e enrijeceu o corpo. No entanto, não tentou fugir. Só ficou olhando-o cautelosa, enquanto
ele subia a encosta.
Katrine surpreendeu-se com aquela súbita aparição e com o efeito que ela exerceu sobre seus sentidos. Era absurdo o modo como seu coração saltava quando
se via diante desse homem, censurou-se. Afinal, Raith MacLean era seu raptor, um inimigo de seu clã. Não devia pensar nele como um cavalheiro qualquer e muito menos
desenvolver uma atração por ele.
Todavia, ela não conseguiu afastar o olhar, não teve como evitar seguir o progresso de Raith enquanto ele subia, observando os poderosos músculos de seus
braços e pernas. Quando ele levantou um joelho mais alto para vencer uma rocha, o saiote afastou-se expondo uma boa parte de coxa. Ele estava nu sob o xale, percebeu
Katrine, chocada. Ela corou, repreendendo-se de novo. Esse modo de vestir podia ser ilegal mas não era incomum. Antes do Quarenta e Cinco grande parte. dos escoceses
mais pobres usavam apenas o xale, embora sempre o acompanhassem de meias e sapatos. Mas Raith estava descalço. Dali pôde ver que seus pés eram fortes e graciosos,
e que as pernas e o peito ostentavam pêlos tão negros como seus cabelos.
Confrontando-se com tanta masculinidade, Katrine não sabia exatamente como agir. Com toda a certeza, ficar olhando fixamente para ele como se fosse uma
tola não era o comportamento adequado nas circunstâncias. Com um esforço, afastou o olhar. Quando Raith chegou perto, ela estava estudando umas margaridas que cresciam
numa fenda da rocha.
_ Quer me fazer o favor de dizer o que está fazendo aqui? _perguntou ele num tom enganosamente suave.
_ Eu queria ver o nascer do sol.
_ Não diga.
_ Você disse que eu podia sair da casa porque não haveria jeito de eu fugir.
Como Raith não respondesse imediatamente, Katrine imaginou que iria retirar a permissão. Preocupada, ergueu os olhos para ele e viu-o com o rosto muito
sério, com o cenho franzido. Raith encarou-a por alguns instantes e então sua expressão se desanuviou.
_ Não imaginei que você saísse numa excursão para ver a paisagem _ disse ele secamente, sentando-se ao lado dela.
Um tanto aflita por vê-lo assim tão perto, Katrine respirou fundo para se acalmar.
_ Você está acostumado com tudo isto _ ela fez um gesto abrangendo a natureza que os cercava _, mas eu apenas sonhava com isso. - Raith nem mesmo lançou
um olhar de relance para a vista. Sentindo os olhos azuis fixos nela, Katrine mudou de posição e tentou dirigir sua atenção para outro lugar. _ Vi um veado bebendo
no lago.
_ Foi sorte não encontrar um gato selvagem.
_ Um gato selvagem? Aqui?
_ Sim, aqui. _ Raith deu um leve sorriso. _ Mas você não deve se preocupar. Sem dúvida saberia lidar com ele.
Quando finalmente Katrine ergueu o olhar para Raith, ele encontrou os olhos verdes com expressão divertida.
_ Além disso - continuou ele -, um gato da montanha geralmente evita os humanos e não luta se não for provocado.
Inclinando-se para trás, Raith apoiou o peso nos cotovelos e estendeu as pernas compridas, cruzando-as nos tornozelos. Katrine ficou tensa, não conseguindo
ignorar a ousada exibição de músculos masculinos.
_ Mas os gatos selvagens não são o maior perigo daqui _ continuou Raith, no mesmo tom agradável. _ O grande problema nestas colinas é o nevoeiro. O céu
pode estar perfeitamente claro num instante e no seguinte aparece uma neblina mais espessa do que uma sopa de ervilhas, que cobre o vale por dias seguidos. Se fosse
surpreendida por uma dessas, não sobreviveria.
Katrine fitou-o com clara descrença.
_ É a pura verdade, garanto. Peça a qualquer MacLean contar a história de Gillean, o primeiro chefe de nosso clã. Ele foi surpreendido pela neblina e vagueou
sem rumo por quatro dias. Estava quase desmaiando de inanição quando colocou seu machado de guerra ao lado de um pé de uva-do-monte e deitou-se para morrer. Foi
daí que surgiu a idéia de nosso brasão.
Katrine não conseguiu evitar a curiosidade.
_ E o que aconteceu? _ perguntou, quando Raith permaneceu em silêncio. _ Ele morreu?
_ Não. Foi encontrado, desmaiado. Mas ele era um montanhês e não uma moça de cidade, e inglesa, como você.
_ Está querendo me assustar. _ Katrine estreitou os olhos, mas os azuis escuros de Raith a enfrentaram.
_ Não. Estou só alertando... e tentando evitar problemas para mim. Não quero ser obrigado a salvá-la.
Katrine duvidava muito que o próprio lorde em pessoa se daria ao trabalho de salvá-la se ela se visse nessa situação, mas não disse nada. Compreendera bem
o que ele quisera dizer: se estivesse planejando fugir pelas montanhas, talvez não saísse viva dali.
O pensamento a fez refletir melhor. Poderia mesmo morrer tentando fugir por esse território inóspito. Ela não corria risco de vida em Cair House e seria
tolice morrer numa tentativa de fuga se ainda havia uma boa chance de seu tio vir em seu socorro.
Contudo, ela se recusou a deixar Raith MacLean estragar a beleza do alvorecer obrigando-a a pensar em seu cativeiro. Cerrando os lábios, voltou o olhar
para o horizonte, decidida a ignorar seu indesejado companheiro -
O silêncio entre eles estendeu-se por vários minutos. Sentado ao lado de Katrine, Raith também admirava o nascer do dia, mas estava tendo dificuldade em
manter sua mente ocupada com pensamentos tranqüilos. Seu olhar teimava em se desviar para a mulher ao seu lado, percorrendo as linhas esbeltas de seu corpo.
Imaginando se ela sempre mantinha a espinha assim tão ereta, deslizou o olhar para a cintura fina e curvas suaves dos quadris. Seus olhos experimentados
logo notaram a falta de um espartilho e anquinhas. Lembrava-se das pernas bem torneadas, agora cobertas pela saia. Mas a imaginação o fez visualizá-las em torno
de sua cintura enquanto desfrutava de indescritível prazer com sua refém.
A imagem fez seu ventre se contrair.
Tentando banir esse pensamentos, Raith ergueu os olhos para os cabelos de Katrine, o que foi um grave erro. A massa de cachos cor de cobre estava simplesmente
radiante sob os primeiros raios do sol.
Determinado a romper o encantamento em que a feiticeira Campbell o estava envolvendo, Raith pigarreou e deu voz ao primeiro pensamento que lhe ocorreu.
_ Flora me contou que você não lhe deu nenhum trabalho.
Katrine não respondeu. Uma conversa desse tipo poderia levá-la a perder a paciência. Refreou a língua, desejando que Raith fosse embora.
_ Você parece ter bastante experiência em cuidar de uma casa - continuou ele, preguiçosamente.
_ Estou acostumada a supervisionar os criados da casa de minha tia _ esclareceu Katrine, forçada a responder. _ Tia Gardner está convencida que para saber
mandar, a mulher deve saber fazer.
A frieza do tom deveria ter persuadido Raith a ir embora, mas ele não parecia ansioso para terminar a conversa.
_ E as bolhas em seus pés? Já estão curadas?
A mudança de assunto foi perturbadora, pois a fez lembrar-se da delicadeza com que ele cuidara de seus pés e do joelho machucado. Não estava com a mínima
vontade de discutir. seus problemas, mas resolveu que seria mais sábio responder a pergunta. Raith MacLean era bem capaz de querer vê-las.
_ Sim, já estão curadas.
_ E seu joelho?
Estaria ele querendo deixá-la sem jeito? Katrine teve de resistir ao impulso de puxar mais a saia.
Murmurando uma resposta afirmativa, lançou um olhar de esguelha para Raith. Com o xale escuro, os cabelos negros soltos e despenteados, o queixo escurecido
pela barba, ele mais parecia um bandoleiro.
Como podia encontrar tanto prazer em observá-lo? E por que achava sua perigosa masculinidade tão atraente?
Não era justo, pensou ressentida. Raith não se mostrara nem um pouco impressionado com ela, enquanto a simples visão dele a estava perturbando a ponto de
ela achar que iria enlouquecer. O pior era que a lamentável reação de seu corpo aumentava sempre que seus olhos se encontravam com os dele. Sem dúvida, se ele viesse
a tocá-la de novo.
Katrine forçou seus pensamentos a mudarem de rumo. Não devia estar com essas idéias tolas. Não queria que ele a tocasse, não podia estar atraída por esse
homem. Ele era o lorde de Ardgour e um feroz inimigo dos Campbell e dos ingleses.
Foi pensar nos ingleses que levou-a a recordar a triste história de Meggie.
_Há quanto tempo Meggie não fala? _ perguntou, dando graças pela possibilidade de mudar de assunto.
Raith não pareceu compartilhar sua opinião, pois franziu o cenho e não respondeu. No silêncio que se seguiu, Katrine estudou-o. Os cabelos escuros eram
iguais aos da menina, e havia até mesmo uma leve semelhança em seus traços.
_Meggie é sua filha? _ perguntou abruptamente.
Raith virou-se para ela, estreitando os olhos, perplexo.
_Não. Não é.
_Não seria nenhuma desgraça para um homem ser pai de uma criança tão graciosa como Meggíe. E seu primo já me contou que a ilegitimidade não provoca um estigma
como na Inglaterra.
O rosto de Raith ensombreou-se ante aquela irritante franqueza.
_Que eu saiba, não sou pai de nenhuma criança viva. Minha mulher morreu de parto.
_Oh! _ Katrine olhou-o com um ar solene, desconfiando que Raith não gostaria de falar na mulher. _ Lamento.
_Penso que Meggie é um tipo de sobrinha. _ A irritação no rosto de Raith suavizou um pouco. _ A mãe dela era uma prima distante minha.
_E faz muito tempo que Meggie perdeu os pais?
_Perdeu a mãe. O pai dela já havia morrido. Foi fuzilado como traidor antes mesmo da menina nascer.
_Está bem então. Faz tempo que Meggie perdeu a mãe? Quantos anos tinha?
_Cinco.
_Os soldados.. - eles... _ Katrine não conseguiu terminar a pergunta.
_Quer saber se eles a violaram como fizeram com sua mãe? Não, srta. Campbell. _ O tom de Raith foi baixo e assustador. _ Mas eles a maltrataram muito antes
de seus parentes aparecerem para salvá-la. Os malditos pagaram com a vida, mas Meggie, traumatizada, perdeu a voz.
Katrine ficou olhando para ele, achando difícil até mesmo imaginar o horror pelo qual a criança tinha passado.
_Alguém devia ajudá-la.
_Isso não é da sua conta. _ Raith levantou-se abruptamente. - Eu a avisei para ficar longe de Meggie. Ela não precisa ser constantemente lembrada do que
os ingleses fizeram a sua mãe.
_É crueldade sua me igualar àqueles soldados... àqueles animais.. ou sugerir que eu poderia tolerar um crime tão hediondo, especialmente um cometido contra
uma criança. Nenhuma pessoa civilizada toleraria!
_Será mesmo? Vocês ingleses, vocês Campbell... - Raith enunciou os nomes como em dúvida sobre qual era o mais desprezível.
_ Vocês... criaturas civilizadas, tem noções peculiares sobre o que é hediondo. Ficam chocados com os maus tratos contra crianças, mas toleram a traição
e o assassinato. Bem, explique isso a Meggie e fale também das centenas de crianças escocesas que viram seus lares incendiados ou sentiram a lâmina de uma espada
inglesa.
Katrine recuou, estremecendo ante a expressão sombria de Raith. Mas era inútil continuar essa discussão ou tentar se defender do ódio de seu captor. Raith
MacLean nunca deixaria de vê-la como um inimigo sanguinário em quem não devia confiar.
_ Quando você pretende negociar meu resgate?
_ Quando me aprouver!
Katrine encarou-o, furiosa. Depois um pensamento lhe ocorreu de repente. Se o lorde de Ardgour tivesse sido ligado o seu seqüestro, Cair House já deveria
ter recebido a visita dos soldados ingleses. Ela não vira nenhum movimento anormal e, sem dúvida, teria sido escondida em algum canto caso houvesse estranhos chegando.
Sim, Raith não pretendia assumir a responsabilidade pelo seqüestro.
_Meu tio não faz idéia que você me raptou, não é?
_Espero que não.
_E a milícia?
_Com toda a certeza eles têm suas desconfianças. Eu e vários membros de meu clã fomos convidados para comparecermos ao forte William e conversarmos com
o comandante da guarnição.
Então fora por isso que Raith e seus companheiros tinham saído tão luxuosamente vestidos. Agora, pelo menos, Katrine tinha certeza de que alguém a estava
procurando.., ou estivera. Raith MacLean com toda a certeza fornecera pistas falsas. Além disso, até mesmo um general inglês relutaria em enfrentar um chefe das
Terras Altas sem prova de culpa. Agora que uma certa paz chegara à Escócia, vigorava a política de evitar derramamento de sangue.
Mas a menção do forte William deu a Katrine motivo de otimismo. Ela sabia que essa guarnição ficava no sopé do Ben Nevis, o pico mais alto do país. Olhou
para o horizonte, esperançosa. A distância, a muitas léguas dali, ela podia avistar uma imensa montanha que supôs ser Ben Nevis. Ela até parecia próxima, mas não
tanto quanto o necessário. Se conseguisse sobreviver aos perigos do terreno e da neblina traiçoeira, teria de atravessar o lago Linnhe a nado, pois seria mais fácil
ela criar asas do que alguém aceitar transportá-la.
Notando a direção para qual Katrine olhava, Raith adivinhou seus pensamentos. E, vendo o brilho de desespero em seus olhos, sentiu outra pontada de culpa
por ter de usá-la em sua luta contra Argyll e Colin Campbell. Mas não podia lhe oferecer nenhum conforto, pois ele mesmo não tinha certeza de qual seria o resultado
de tudo aquilo. Também não podia garantir se ArgylI concordaria com os termos do resgate.
Ela só aumentou ainda mais seu remorso quando perguntou, num fio de voz:
_Você tentou entrar em contato com meu tio?
Raith passou a mão pelos cabelos. Com toda a certeza Katrine entendia por que ele não podia assumir a responsabilidade pelo seqüestro. No momento que fizesse
isso as montanhas de Ardgour ficariam cheias de soldados ingleses. Subitamente sentiu uma raiva imensa.
Ela não pertencia às Terras Altas. Não a queria ali. No entanto, seria obrigado a aturar sua presença por mais algum tempo.
A raiva deu um tom ácido a sua voz quando respondeu:
_O que queria que eu fizesse? Que mandasse um cartaz indicando seu paradeiro?
_Eu pensei... _ Katrine parou, envergonhada pelo modo como sua voz tremeu. _ Pensei que você pelo menos apresentaria suas exigências ao meu tio para ele
poder tomar providências sobre o resgate.
_É o que pretendo fazer, mas não serei tão idiota a ponto de me identificar. E será quando eu quiser. Quando chegar a hora, eu a usarei como for mais adequado.
Os olhos de Katrine cintilaram de indignação.
_Você nem mesmo é um criminoso adequado. Não teve nem a decência de conduzir um seqüestro dentro dos procedimentos normais.
Ela jamais conseguiria ser dócil por muito tempo, pensou Raith, aliviado. Por outro lado, angustiava-o aquela situação toda, pois não encontrava prazer
em vê-la humilhada ou derrotada.
_O verdadeiro criminoso é seu tio.
_Não! Meu tio é o homem mais honesto que conheço.
_Ah, claro. Honesto em seu uso impiedoso da autoridade. Mas existem algumas qualidades em um homem que devem ser mais respeitadas do que a honestidade.
_E quais são elas?
_A compaixão, por exemplo. Seu tio desempenha suas tarefas de administrador sem nem mesmo um único pensamento para as pessoas que oprime. Ele segue as ordens
de Argyll de aumentar os aluguéis como se fosse um retardado.
_Ora, se o duque aumentou os aluguéis, ele deve ter tido um bom motivo.
_Se acha a cobiça um bom motivo...
Ela endireitou os ombros e devolveu o olhar sombrio de Raith.
_Você está pronta a defendê-lo até a morte, não é? Não importa qual tenha sido a traição de Argyll que levou os MacLean de Duart a perder suas terras. Não
importa os malditos Campbell terem traído seus conterrâneos na rebelião de Quinze e na Quarenta e Cinco.
_Essa é sua opinião!
_Eles sempre foram os traidores da Escócia. Judas é o sinônimo perfeito para Campbell.
_Pare de vilipendiar os Campbell!
_Primeiro pare de endeusá-los!
Furiosa, Katrine levantou-se de um salto. Seria inútil tentar conversar com esse bandoleiro. Com um gesto decidido, juntou as saias e começou a descer a
encosta, irritada por não poder fazer uma saída mais rápida e mais digna. Quando lançou um olhar para cima, viu Raith em pé, o olhar cheio de rancor.
_Fique longe de Meggie _ advertiu ele. _ Entendeu?
_Sim, entendi! _ respondeu ela, parando para dizer o que estava atravessado em sua garganta. _ Mas agora é você que está agindo como um tolo. Meggie precisa
de alguém que cuide dela, que a mantenha limpa e lhe ensine bons modos. Ela precisa de afeto e compreensão. Eu poderia ajudar, mas você é cego e cabeçudo demais
para ver isso! A idéia de que uma Campbell inglesa seria capaz de oferecer orientação e carinho para uma criança está claramente fora de sua maldita capacidade de
compreensão!
Com isso, Katrine deu-lhe as costas e se afastou, saboreando a satisfação de ter dito a última palavra.

CAPITULO VII

_Quando eu quiser _ resmungou Katrine tirando o sabão dos olhos. Estava indignada com a recusa de Raith em negociar sua libertação com rapidez. Praticamente
não pensara em outra coisa desde a discussão de dois dias atrás e sua fúria parecia esquentar a água em que se banhava.
Ainda fumegando de raiva, ela terminou de enxaguar os cabelos com a água do jarro e esticou o braço para pegar a toalha. Porém, antes de sair da banheira,
lançou um olhar para a porta da lavanderia. Tomara o cuidado de trancar a porta e fechar as janelas, mas achava um tanto difícil não ser perturbada.
Não que esperasse uma platéia. Callum MacLean, que talvez fosse suficientemente atrevido para espionar uma dama em seu banho, partira no dia anterior só
Deus sabia para onde, e ainda não havia voltado. Como era domingo, Flora e os outros criados tinham ido à igreja. Os MacLean de Ardgour eram presbiterianos e não
católicos, como grande parte dos jacobinos.
Ela surpreendeu-se um pouco quando Flora não objetou ao uso da banheira de cobre. Estava ansiosa por lavar os cabelos e na bacia do quarto jamais conseguiria
enxaguá-los a contento. Uma das criadas de dentro da casa, porém, comentara que ela era bem uma Campbell por se achar boa demais para tomar banho no riacho, como
uma verdadeira montanhesa.
Katrine engolira a custo as palavras para não aceitar o tolo desafio. Não via por que entrar na água gelada .quando havia uma boa banheira na lavanderia.
Além disso, caía uma chuvinha fria e constante, típica das Terras Altas. Não sendo acostumada a essas condições, poderia pegar uma febre se quisesse exibir sua valentia.
Depois de se secar, ela pôs uma outra roupa que Flora providenciara. A saia era comprida demais como a outra e o corpete puído não lhe assentava bem, mas
era um prazer vestir peças limpas após um banho tão gostoso.
Depois de amarrar o lenço de linho para cobrir o decote, Katrine começou a esvaziar a banheira. Encheu um balde e foi abrir a porta. Descobriu então que
tinha uma jovem visita.
_Meggie! _ sorriu. _ Então você também não foi à igreja. _Era simplesmente escandaloso o modo como a educação religiosa da menina estava sendo negligenciada,
pensou, mas depois reconsiderou. Talvez ela tivesse medo de ficar no meio de muita gente. _Você deve estar tão solitária como eu _ acrescentou Katrine. _ Gostaria
de me fazer companhia esta manhã?
A única resposta que obteve foi um olhar solene. Pondo o balde no chão, Katrine estendeu a mão. Ia ignorar as ordens de Raith MacLean, pois não podia virar
as costas para a pobre órfã. Além disso, sempre encontrava satisfação em desafiá-lo.
_Venha, você pode sentar ao meu lado enquanto penteio os cabelos. Vou levar muito tempo para desembaraçá-los.
Meggie olhou longamente para a mão que lhe era oferecida. Katrine esperou, sabendo que não podia forçar a confiança da menina, por mais que desejasse tê-la.
Foi com alegria que viu os dedinhos sujos se fecharem em torno dos seus. Então, feliz, fez a menina entrar e puxou um outro banquinho para perto da lareira.
_Pronto. Agora você pode ficar pertinho de mim.
Dando início a um monólogo, Katrine começou o longo processo de pentear seus cachos úmidos. Continuou falando sobre todos os assuntos que lhe passavam pela
cabeça e a uma certa altura sentiu uma mãozinha em seu braço. Olhando para o lado, viu Meggie pegando um de seus cachos ruivos e observando-o com espanto.
_Eu sei _ disse ela, desejando encontrar um meio de estabelecer uma comunicação melhor com a menina. _ Meus cabelos têm mesmo essa cor absurda e enrolados
assim me dão muito trabalho. Gostaria de ter cabelos como os seus, Meggie. Lisos e negros. _ Ela parou e inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse avaliando
a garota. _ Seus cabelos ficariam ainda mais bonitos se estivessem lavados, penteados e presos com uma fita. Por acaso quer que eu a ajude?
Meggie lançou um olhar para a banheira.
_Você gostaria disso? Terei muito prazer em esquentar mais água. Depois você poderá mostrar a Flora e a seu tutor como pode ser bonita.
Pelo menos a menina compreendia o que era um banho, pensou Katrine, enquanto Meggie se inclinava para tirar os sapatos. Em seguida foi a vez das meias.
Depois Meggie desceu do banquinho e começou a soltar os cordões do peitilho com alguma dificuldade. Katrine tentou ajudá-la, mas logo percebeu que a garotinha não
gostava de ser tocada.
Não querendo insistir, Katrine manteve distância. Desejou ardentemente poder, de alguma forma, minorar esse mudo sofrimento. O que Meggie realmente precisava,
pensou enquanto ia pegar a chaleira com água quente, era de uma boa dose de alegria, amor e companheirismo.
Quando voltou a colocar a chaleira no fogo, Katrine inclinou-se procurando o que desejava. Encontrando um pedaço de carvão adequado, puxou-o de lado para
esfriar. Quando Meggie entrou na água e começou a se ensaboar, ela foi para perto da parede caiada e depois de pensar um pouco à procura de inspiração, começou a
desenhar.
Fez dois rápidos retratos de Meggie. Um a mostrava com o rosto sujo e cabelos desgrenhados; no outro ela estava sorrindo, limpa e com os cabelos presos
por uma fita.
Terminado o desenho, ela deu um passo para trás, esperando que a menina tivesse sido tocada em sua vaidade feminina.
_ E então? O que você me diz? Não acha que a da direita está muito mais bonita?
Meggie não respondeu, mas parecia fascinada com os retratos. Ficou olhando para eles durante o resto do banho e estava tão distraída que nem recuou quando
Katrine lavou seus cabelos.
_ Muito bem _ disse Katrine quando Meggie estava enrolada numa toalha. _ Por que você não me leva ao seu quarto? Tenho certeza de que lá encontraremos um
vestido bem limpinho para você usar. Por acaso você tem fitas? Espero que sim, pois todas as minhas estão nas malas que deixei na casa de meu tio.
Quando elas passavam pela parede com os desenhos, Meggíe parou e estendeu a mão para tocar a garota sorridente. Depois, para enorme surpresa de Katrine,
virou-se para ela e sorriu.
Se era possível entregar o coração a alguém, foi o que Katrine fez naquele instante. Com todo o cuidado, tocou os cabelos da criança, que desta vez não
recuou.


Só muito mais tarde, quando teve tempo para refletir, Katrine imaginou se agira sabiamente. Conseguira limpar o carvão da parede caiada antes de Flora chegar,
mas quando a governanta viu Meggie de vestido limpo, com as faces rosadas e cabelos trançados, lançou-lhe um olhar sério e desconfiado. No entanto, a mulher não
disse uma única palavra de repreensão e, se saiu para contar ao lorde que suas ordens haviam sido desobedecidas, Katrine não tinha como saber.
Todavia, logo Katrine estava ocupada demais para se preocupar com o que Raith diria, pois ele voltara com vários convidados e ela foi convocada a ajudar
nos preparativos do almoço.
Enquanto polia a comprida mesa seguindo as ordens de Flora, pôde ouvir pessoas rindo e conversando. Quando percebeu que havia senhoras no grupo, enrijeceu
o corpo involuntariamente. Era estranho e perturbador pensar em Raith MacLean recebendo convidados como qualquer cavalheiro civilizado. Obrigando esse pensamento
a afastar-se de sua mente, concentrou-se na possibilidade de fugir, imaginando como poderia aproveitar a presença de visitas.
Por um instante acalentou a idéia de se mostrar e pedir socorro, mas logo abandonou-a. Dificilmente encontraria nesse covil de jacobitas alguém disposto
a ouvi-la. E mais, se Raith estivesse preocupado com a possibilidade de ela ser vista, teria mandado alguém trancá-la no quarto ou em qualquer outro lugar da propriedade.
Depois dessa deprimente conclusão, o resto do dia de Katrine - passado principalmente na cozinha com os outros criados, preparando comida e lavando pratos
- , lhe pareceu interminável. Aquela gente só pensava em comer, reclamou em silêncio. Ao longo almoço seguira-se uma ceia leve e mais tarde o chá.
Devia haver um cravo em uma das salas de visita, pois à noite, depois de serem servidos cerveja para os cavalheiros e vinho para as damas, Katrine ouviu
algumas notas do instrumento. Um pouco depois, quando Flora a mandou buscar uma travessa na copa, ouviu uma voz feminina lendo em voz alta e sentiu saudades da casa
de sua tia, onde ela e as irmãs tinham passado tantas noites se entretendo dessa maneira.
Era quase meia-noite quando Katrine ouviu as carruagens partindo, mas Flora só deu permissão para os criados se retirarem meia hora depois. Katrine deu
graças por poder subir ao seu quarto, pois estava exausta.
Cansada e tristonha, ela entrou no corredor mal iluminado. Acabara que chegar à estreita escada de serviço quando o som de passos firmes a fez parar. Seu
coração saltou quando Raith MacLean, esplendoroso em traje de gala, saiu das sombras.
Ele usava uma casaca de rico brocado dourado, colete em negro e dourado, calças, meias e sapatos pretos. O conjunto realçava a pele morena, enquanto que
a peruca branca e a renda em seu pescoço e punhos o faziam parecer um nobre da corte francesa.
Katrine ficou parada, incapaz de desviar o olhar. Raith também parou, como se não esperasse encontrá-la ali. Os olhos azuis estudaram seu rosto e depois
desceram para seus lábios entreabertos.
_ Como vai, srta. Campbell? _ disse ele com extrema polidez.
Nervosa, Katrine não respondeu, pois não confiava em sua voz. Não entendia por que o cumprimento formal a entristecera nem por que ficara tão impressionada
com a visão de seu captor ricamente vestido. De repente ela se sentiu envergonhada de sua aparência.
Quando Raith fez uma leve mesura e continuou seu caminho, Katrine seguiu sua figura magnífica com o olhar, sentindo a garganta apertada. Por que se sentia
tão feia?
Ela ficou ali no corredor, ouvindo Raith cumprimentar Flora pelo excelente atendimento e comida que seus convidados haviam recebido. Depois, recobrando
o juízo, juntou as saias e subiu as escadas correndo. Não achava o sujeito atraente. Não! E certamente não esperava uma palavra gentil vinda dele, jurou, enxugando
uma lágrima.
Mas, quando chegou em seu quarto, atirou-se na cama e, pela primeira vez desde seu seqüestro, chorou.

Pela manhã Katrine recuperara um pouco de seu ânimo, mas não o entusiasmo. Uma chuvinha fina e gelada a impediu de sair, acabando com seu plano de ir novamente
assistir ao nascer do sol junto ao lago. Irritada, ela obedeceu de má vontade quando Flora a mandou bater manteiga na leiteria.
A leiteria fora construída com pedras e ficava semi-enterrada no chão, de modo a manter-se bem fria para conservar o leite, a manteiga e os queijos que
eram armazenados ali. Havia só uma pequena janela para fornecer um pouco de iluminação. Trabalhando ali, Katrine estremeceu várias vezes, apesar do esforço de levantar
e abaixar o bastão da manteigueira.
Sua única companhia durante a manhã foi uma mocinha de faces rosadas que ficou trazendo baldes de leite e colocando-o em grandes vasilhames mergulhados
em água. Imaginou que também devia haver uma granja próxima que fornecia provisões para a mansão.
A mocinha falava inglês, mas não se mostrou disposta a conversar. Por isso Katrine ficou sinceramente encantada quando viu Meggie entrar, um pouco depois
do almoço.
_ Meggie! Você é exatamente quem eu queria ver.
Em seguida parou, notando que a menina estava com o rosto limpo e os cabelos trançados. Vendo a saia vermelha e o xale com as cores dos MacLean limpos e
passados, ela ficou imaginando se Flora, envergonhada, resolvera cuidar melhor da garota.
_ Você está linda hoje! O vermelho combina bem com sua pele morena e seus cabelos. Suponho que tenho sorte de ser uma Campbell, pois o tartan de nosso clã
é azul e verde, e assim não entra em choque com minha crina vermelha.
Meggie desceu as escadas da leiteria. No mesmo instante Katrine pôs o batedor de lado, grata pela desculpa para parar com sua tarefa. Estava ficando com
bolhas nas mãos e seus braços doíam.
Sorrindo para Meggie, ela tirou um pequeno objeto que guardara no cinto, enrolado num trapo.
Os olhos da menina se iluminaram quando viu o pedaço de carvão que Katrine usara para desenhar no dia anterior.
_ Quer que eu faça alguma coisa para você ver? Quando Meggie chegou bem perto, Katrine imaginou que estivesse querendo dizer sim.
_ O que gostaria que eu desenhasse?
Meggie ergueu a mão e apontou para Katrine.
_ Eu? Você quer que eu desenhe meu próprio retrato? Muito bem.
Ajoelhando-se no piso da leiteria, ela escolheu uma pedra maior e mais plana e desenhou uma figurinha com cabelos encaracolados batendo manteiga. Quando
acrescentou alguns borrões para dar a impressão de manteiga derramando, Meggie emitiu um leve som gutural que fez o coração de Katrine se encher de carinho.
_ Quer tentar, Meggie?
A menina voltou a ficar muito séria, mas não recuou quando Katrine estendeu-se o carvão e apontou para uma outra pedra.
_ E agora, o que você pretender desenhar? Que tal uma flor? Acha que pode fazê-lo?
Porém, em vez de desenhar uma flor, Meggie tentou copiar a figura que Katrine fizera, mordendo o lábio inferior enquanto labutava com o carvão. Apesar de
seu empenho, só conseguiu produzir um borrão. Quando levantou a cabecinha, havia lágrimas de frustração em seus olhos escuros.
"Oh, Meggie, eu não queria aumentar sua tristeza."
_ Está ótimo, querida. Olhe, você não tem um lápis de verdade. Mas devemos começar com algo mais simples. Vamos tentar uma flor desta vez, talvez uma margarida.
Deixe-me mostrar como.
Ela fechou a mão em torno da de Meggie, satisfeita por a menina não fugir do contato.
_ Veja. Primeiro vamos fazer uma bola. Assim _ disse, guiando a garota. _ Agora vamos fazer as pétalas. Está vendo? Agora tente fazer uma sozinha.
Meggie foi um pouco mais bem sucedida em copiar a margarida, mas Katrine pôde ver pela sua expressão tristonha que ela não estava satisfeita com suas obras.
Levantando-se e tirando a poeira da saia, disse:
_ O que você precisa, querida, é um pouco de inspiração. E sei exatamente onde a encontraremos. Venha, a chuva passou e podemos ficar lá fora. Esta manteiga
já está pronta mesmo. _ Ela estendeu a mão e seu coração novamente se encheu de alegria quando a menina pegou-a, confiante.
Havia vários cavalos selados no pátio, mas, por sorte, nenhum MacLean por perto. Katrine sabia que Raith não gostaria nada dela levar Meggie ao vale. Prendendo
a saia na cintura para não molhar a barra, pegou a mão da menina e dirigiu-se para o riacho, saltando poças e desviando-se de galhos molhados.
A tarde ainda estava úmida e sombria, mas de vez em quando um raio de sol conseguia vencer a camada de nuvens. Mesmo num dia tão miserável _ como dissera
Flora _ o vale com seu pequeno lago e grandes montanhas ao fundo formavam um lugar mágico.
_ Sempre achei que a beleza torna a alma mais expressiva _ disse Katríne à menina quando encontrou uma pedra mais seca para se sentarem. _ Olhe bem, Meggie.
Depois feche os olhos e sinta a beleza. Você a está sentindo, não é? Agora pense na margarida que você quer desenhar. Veja-a em sua mente... o miolo amarelo e as
pétalas brancas e macias. Quando conseguir vê-la bem clara em sua mente, abra os olhos, pegue o carvão e comece a desenhá-la.
Meggie fechou os olhos e permaneceu imóvel por um longo tempo. Observando o rostinho de traços fortes, Katríne impressionou-se com a semelhança entre Raith
e a menina. A testa alta, as sobrancelhas grossas e os longos cílios negros eram iguais. Mas, aborrecida por estar lembrando-se do senhor dos MacLean, ela forçou
os pensamentos a seguirem uma outra linha.
Meggie abriu os olhos e pegou o carvão. A linhas que desenhou pareceram mais com uma margarida e ela obviamente se satisfez com seus esforços porque, quando
ergueu a cabeça, estava sorrindo.
Katrine teve vontade de abraçá-la, mas logo lembrou que a menina não gostava de ser tocada. Dando-lhe apenas uns tapinhas carinhosos em sua mão, disse:
_ Ficou ótimo, meu bem. Por hoje chega. Amanhã tentaremos um outro tipo de flor.
Depois de alguns minutos, vendo que Meggie parecia um tanto inquieta, convidou:
_ Que tal darmos um passeio por aí?
Naturalmente, não obteve resposta, mas já estava aprendendo a entender o rosto expressivo da menina e pôde ver que a idéia lhe era simpática. Levantando-se,
estendeu a mão para ela.
Katrine já tivera a oportunidade de ver que havia duas trilhas saindo do vale. Escolheu a que ficava ao seu lado esquerdo, que dava para uma pequena pastagem.
Tivera oportunidade de vê-la no primeiro dia em que estivera ali. A trilha subia o morro, atravessava um bosque e depois se abria numa área relvada, onde pastavam
alguns carneiros. Ela evitou passar perto de um pequeno chalé feito de pedras e com um espesso telhado de palha. A fumaça de fogo de turfa saindo da pequena chaminé
indicava que havia alguém ali.
Na primeira vez que estivera ali encontrara um velho pastor cuidando dos carneiros e ele a ameaçara com seu cajado, indignado com sua intromissão. A ferocidade
do montanhês só servira para sublinhar a ameaça de Raith de que ela encontraria grande dificuldade em tentar fugir pelo caminho das montanhas.
Depois dessa pequena pastagem a trilha continuava subindo e, quando Katrine e Meggie chegaram ao alto do morro, ouviram barulho de água; a continuação do
riozinho que corria nos fundos de Cair House.
Estavam para descer quando Katrine avistou um bicho que chamou sua atenção. Dando a mão para a menina, saiu da trilha e atravessou um bosque fechado até
se ver numa grande clareira. Ali, perto do regato, encontrou uma estranha coleção de equipamentos que não tinham nada a ver com o pastoreio de carneiros: vários
recipientes de tamanhos variados, uma grande estrutura de tijolos que parecia ser um forno e dois grandes latões de cobre com longos tubos.
Ela logo desconfiou que descobrira uma destilaria de uísque ilegal. Conhecia bem o que os habitantes das Terras Altas sentiam a respeito das leis inglesas
que os tolhiam e era escocesa o bastante para concordar com eles em muitos aspectos. Os montanheses não se conformavam em ter de pagar impostos exorbitantes pelo
privilégio de fabricarem sua -bebida nativa. Por isso, a fabricação ilegal de uísque era considerada um trabalho honrado.
Ela gostaria de permanecer ali por mais algum tempo inspecionando os recipientes, mas Meggie logo perdeu o interesse pela novidade e começou a puxar sua
mão.

As duas voltaram para a trilha e continuaram andando por ela até encontrarem uma campina muito maior do que a anterior, com árvores em sua extremidade oposta.
_ Que tal apostarmos uma corrida, Meggie? _ convidou sorrindo. _ Até aquelas árvores. Vamos ver quem ganha?
Meggie respondeu com um olhar brilhante e ansioso.
_ Certo. Então... um, dois, três, já!
Katrine começou a correr, fingindo que estava fazendo o máximo para ganhar. Pouco a pouco foi deixando Meggie tomar a frente. Enquanto corria, ofegante,
sobre a relva úmida, riu com um abandono que não experimentava desde sua infância.
E foi assim que Raith as encontrou: correndo pela campina com as saias erguidas até os joelhos, parecendo duas ciganas. Uma onda de alívio e fúria tomou
conta dele e o fez esporear o cavalo para avançar rapidamente. O alívio não era apenas por Katrine não estar em Cair House quando os soldados ingleses tinham surgido
numa visita inesperada, mas também por tê-la alcançado a tempo. Depois do bosque, no final da campina, ficava a casa da parteira que ajudara sua esposa.
Morag. Seu estômago se contraía à simples menção do nome dessa mulher. Sua mente continuava cheia de lembranças da agonia de Ellen e das imagens sangrentas
de seu filho natimorto.
Ele não parara para analisar seus sentimentos. Só sabia que não queria ver Katrine ou Meggie perto da velha bruxa.
As duas pararam quando chegaram ao fim da campina. Percebendo que não pretendiam seguir caminho, ele freou o cavalo para não assustá-las chegando num galope
furioso.
Manteve o olhar fixo em Katrine enquanto se aproximava. Ela estava corada e despenteada, pois apesar de seus belos cabelos de fogo estarem presos com uma
fita, uma dúzia de cachinhos que haviam escapado do confinamento emolduravam seu rosto, acentuando a luminescência da pele clara. Como Meggie, estava dobrada ao
meio, tentando recuperar o fôlego. Quando virou-se em sua direção, pôde ver a alegria e risos que brilhavam em seus olhos verdes. Ele cerrou os dentes, lutando contra
dois desejos conflitantes: o de levá-la para a cama e de dar-lhe uma boa sova.
As risadas de Katrine cessaram quando avistou Raith se aproximando com os olhos azuis expressando desagrado. Ela parou onde estava, com todos sentidos em
alerta em reação à presença de seu captor. Ele usava uma camisa branca e larga aberta no peito e calças justas no xadrez do clã que lhe moldavam as pernas compridas
e musculosas acima das botas de cano alto.
Raith sorriu para Meggie quando puxou as rédeas do cavalo, mas Katrine viu claramente que o sorriso não era sincero.
_Venha cavalgar comigo, Meggie _ convidou ele num tom agradável que também pareceu fingido. _ Eu a levarei de volta para casa. Seu primo Callum voltou e
está perguntando por você.
Meggie olhou para Katrine, o rosto expressando visivelmente que estava ansiosa para ir com Raith. Percebendo que a menina queria parar com a brincadeira
das duas, sentiu-se subitamente ressentida e traída, o que lhe pareceu um total absurdo. A criança obviamente adorava seu tutor e encantava-se com suas atenções.
Com um sorriso para esconder o aborrecimento, encorajou:
_ Claro que você deve ir, meu bem. Quem sabe poderemos voltar aqui numa outra ocasião.
_ Acho que não _ disse Raith, inclinando-se para pegar a mão que Meggie lhe estendia. Com um movimento ágil, acomodou a menina na sela a sua frente o que
fez Katrine perceber que os dois já tinham cavalgado juntos muitas vezes. Não querendo estragar o prazer da menina, ela conteve a resposta azeda que estava subindo
aos seus lábios e lançou somente um olhar colérico para Raith.
Ele nem pareceu notá-lo. Virou a montaria sem nem mesmo um olhar e afastou-se deixando-a sozinha com sua fúria.
Meggie, contudo, olhou por cima do ombro largo de seu tutor e acenou uma despedida. Katrine sentiu lágrimas nos olhos diante da doçura do gesto.
Ela ficou olhando os dois sumirem de vista e então começou a longa caminhada de volta à mansão. Tinha a impressão de que Raith MacLean não pusera um ponto
final naquela questão.
E estava certa. Quando entrou na trilha, saindo da campina, o viu voltando. Teria passado por ele sem nem uma palavra, mas Raith usou o cavalo para impedir
sua passagem. O rosto moreno parecia muito mais severo do que o habitual.
_Eu lhe avisei sobre a neblina. srta. Campbell. Ninguém aqui sentiria muito sua morte, mas você pôs a vida de Meggie em perigo trazendo-a a este lugar ermo.
_Nós nos mantivemos sempre na trilha _ resmungou Katrine enquanto Raith desmontava. _ Pelo menos, ficamos nela a maior parte do tempo.
_Não quero saber de nada. Enfie na cabeça que não deve vir mais aqui, com ou sem Meggie.
O modo arrogante como Raith pôs as mãos nos quadris a irritou tanto quando o tom exigente.
_Você sabe o que eu penso? _ disse com azedume.
_ Não, mas tenho certeza de que você vai me contar.
_ Acho que você tem medo de que eu descubra algo em minhas caminhadas. Algo ilegal. Uma destilaria clandestina, talvez. Tem receio que eu vá denunciá-lo
ao fisco quando for libertada. _ Katrine lançou-lhe um olhar triunfante. _ Seria apenas mais uma prova de que seu clã está envolvido em atividades ilegais.
Diante da ameaça nada sutil, Raith cerrou os punhos, decidido a não deixar Katrine Campbell levá-lo à violência.
_ Você é uma completa idiota se pensa que eu me preocuparia com cobradores de impostos. É em Meggie que estou pensando. Em primeiro lugar, você não conseguiria
protegê-la, e nem a si própria, dos animais e vagabundos que andam por aqui. Em segundo, trazer Meggie para tão longe de casa só a estimulará a sair sozinha.
Katrine endireitou os ombros. Embora detestasse admitir, não pensara nessas possíveis conseqüências. No mínimo deveria ter avisado Meggie para não tentar
visitar o vale ou a campina sem a companhia de um adulto.
_ Não acredito que você esteja preocupado com a menina _ disse, tentando passar por ele. _ Se pensasse nela, não a deixaria viver suja e desleixada, sem
nenhuma supervisão tanto em...
Katrine parou quando os dedos de Raith se fecharam em torno de seu braço, obrigando-a a olhar para ele.
_Sua maldita inglesa, não é de supervisão que ela necessita, mas sim ser protegida contra você!
A acusação feriu e insultou Katrine. Ela deixou a raiva extravasar para mascarar a mágoa.
_Meggie não precisa de proteção contra mim. Será que ninguém aqui entende que eu jamais faria mal a uma criança? Eu nunca usaria um inocente em meu próprio
benefício, como certas pessoas.
Ela esperava fazê-lo sentir-se culpado, mas não foi bem sucedida.
Raith só apertou os dentes, os olhos cintilando de raiva.
_Posso não ter uma masmorra, srta. Campbell, mas isso não me impedirá de pô-la a ferros.
_Então faça isso, me tranque! Estou farta de suas ameaças e recuso-me a agüentá-las por um minuto mais que seja!
_Eu nem comecei a ameaçá-la _ Raith apertou mais o braço de Katrine. _ Deixe-me deixar bem claro, para não haver nenhum mal entendido. Se você tocar num
fio de cabelo de Meggie, vai desejar nunca ter nascido.
Maltratar Meggie? Maltratar uma criança inocente? Katrine ficou indignada demais para responder.
_E se você ousar tentar ganhar a confiança de minha pupila com a intenção de usá-la em sua fuga, vai se arrepender amargamente.
A raiva de Katrine transbordou. Com um movimento ágil, desvencilhou-se de Raith e deu-lhe uma bofetada. Ele reagiu imediatamente, segurando-a pelos dois
braços. Seu rosto moreno era uma máscara de cólera quando a puxou mais para perto.
Por um longo momento Katrine ficou olhando para ele, chocada com sua própria reação e vendo a marca de seus dedos na face bronzeada.
_Sua diabinha! _ resmungou ele. Num movimento igualmente violento, seus lábios desceram sobre os dela.
O beijo brutal tinha a intenção de punir e possuir. Katrine surpreendeu-se com seu ardor. Os lábios de Raith esmagaram os seus, forçando-os a se entreabrirem
para ele mergulhar a língua quente e ousada.
Ela tentou virar a cabeça, mas uma mão forte a pegou pelos cabelos, impossibilitando-a de se mexer. No entanto, não houve dor. Foi uma sensação assustadora
e emocionante. E incrivelmente prazerosa. O calor e a excitação tomaram conta dela enquanto Raith a abraçava com força, mantendo-a contra seu corpo rijo.
Raith estava igualmente excitado, porque Katrine ouviu-o gemer baixinho antes de se afastar subitamente e encará-la com seu olhar tempestuoso. Ela devolveu
o olhar, muda, com o coração batendo tão forte que tinha certeza que podia ser ouvido no silêncio que se seguiu.
Não foi capaz de ler a expressão no rosto moreno, mas percebeu que Raith lutava com emoções conflitantes. Embora tivesse pouca experiência para nela basear
uma suposição, seu instinto feminino a fez reconhecer o desejo no olhar ardente.
Katrine sentiu o corpo de Raith relaxar um pouco e soube que ele ia beijá-la de novo.
_Linda diabinha _ murmurou Raith com voz rouca, enquanto os olhos escuros de desejo fitavam a boca úmida e entreaberta de Katrine. Depois ele encheu os
pulmões de ar e inclinou novamente a cabeça.
Desta vez ele tomou a boca de Katrine com menos raiva e muito mais desejo. Por um instante Katrine permaneceu imóvel, enquanto ele penetrava a língua em
sua boca com ousadia, explorando os cantos mais sensíveis. Aquela deliciosa invasão foi provocando nela uma reação incontrolável. Trêmula, começou a responder ao
beijo, abrindo mais os lábios, movimentando a língua num impulso instintivo. O que fazia era perigoso, sua consciência a alertava, mas todo o medo, toda a hesitação,
toda a timidez foram levadas por uma onda de sensações ardentes.
Apesar da entrega de Katrine, Raith sentia nela ainda uma certa apreensão. Então ele deslizou a mão da nuca descendo até as costas, acariciando-a vagarosamente,
puxando-a para ainda mais perto de si.
Uma onda de calor começou a se espalhar no ventre de Katrine e ela descobriu-se respondendo ao contato íntimo com ansiedade, mergulhando os dedos nos cabelos
de Raith, apertando sua cabeça para junto de seu corpo quando a boca masculina deixou a sua e foi descendo até alcançar um dos seios, mordiscando-o de leve.
Katrine estremeceu, gemendo ante a intensidade do prazer que até então desconhecia. Ela arqueou as costas involuntariamente, levada pela ânsia de sentir
o corpo ser tocado ao máximo. Contudo, quando Raith fez menção de afastar o corpete, ela subitamente enrijeceu o corpo.
Raith poderia ter acalmado o receio com facilidade, mas o doce protesto o fez recuperar o juízo. Com má vontade, afrouxou o abraço que ainda os unia.
Ele praguejou baixinho, suplicando por controle. Fechando os olhos, respirou fundo com dificuldade, amaldiçoando-se por sua fraqueza. Com imenso esforço
conseguiu soltar o braço de Katrine, quando tudo lhe pedia para deitá-la sobre a relva e possuí-la ali mesmo.
Sabendo que tinha de colocar uma distância segura entre eles, Raith deu um pequeno passo para trás embora todos os sentidos clamassem por uma união completa
de seus corpos. Por um instante ficara louco com o desejo de possuir a moça, uma Campbell, uma odiada sassenach. Uma cativa que estava temporariamente sob sua proteção.
Não podia usar como desculpa a afirmação de que ela o provocara além da razão. Sua atitude fora imperdoável. Abruptamente virou-se de costas, não confiando em si
mesmo para falar ou permanecer mais um segundo perto dela sem tocá-la ou beijá-la de novo.
Perplexa, Katrine ficou observando-o pegar as rédeas do cavalo. Se o óbvio desejo de Raith a abalara, o afastamento súbito fora ainda mais chocante. Pensou
que ele fosse virar-se para dizer alguma coisa, nem que fosse para xingá-la, mas ele não ofereceu desculpas nem explicação. -
Mas, quando ele montou, pareceu lembrar-se do que tinham estado discutindo, pois lançou-lhe um olhar colérico.
_Não vou avisá-la de novo. Fique longe de Meggie. - E, pela segunda vez em uma hora, afastou-se a galope.
Katrine permaneceu parada por um longo tempo, os pensamentos confusos e as emoções desencontradas. Depois, bem devagar, levou os dedos aos lábios latejantes,
lembrando-se da possessividade da boca incansável de Raith, da força de seu abraço ardoroso. Ainda trêmula, respirou com dificuldade. Não compreendia o que tinha
acontecido entre eles. Não compreendia nada.
Por que Raith a beijara daquele jeito se a odiava tanto?


CAPÍTULO VIII


Katrine levou vários minutos para se recuperar depois da partida de Raith. Só então começou a andar na direção de Cair House, dividida entre a raiva pela
ousadia de seu captor, o embaraço pela intimidade que tinham compartilhado e o espanto pela sua reação ao beijo ardente.
Estava totalmente despreparada para o efeito devastador daquelas carícias. Não tinha a menor experiência para compará-las com algo que já tivesse lhe acontecido.
As sensações que Raith despertara nela tornavam uma brincadeira a paixão que fantasiara em seus sonhos românticos. Mais perturbador ainda era a consciência de que,
por alguns instantes, quando estava envolvida nas incríveis sensações de desejo e necessidade, ela imaginara Raith MacLean como o homem de seus sonhos. Alguém com
um gênio para combinar com o meu e capaz de incendiar meu sangue, pensou. Minha alma gêmea.
Katrine enrubesceu. Que loucura a possuíra para chegar ao ponto de comparar o bruto selvagem com a terna alma gêmea que tanto desejava encontrar? Ela esfregou
o braço no local onde os dedos de Raith tinham beliscado a pele macia. Logo surgiriam manchas roxas. Mas agora era sua consciência que estava manchada. A cor em
suas faces se acentuou quando lembrou-se do modo como respondera ao beijo. Nunca mais teria coragem de enfrentar Raith.
Quando chegou ao pátio, Katrine atravessou-o com cautela, rezando para não se encontrar com seu captor.. Por sorte não viu nem sinal dele. Havia vários
cavalos amarrados diante da estrebaria e eles a fizeram lembrar do que Raith dissera a respeito da volta do primo. Parecia que Callum havia trazido companhia.
Imaginando onde estaria Meggie, ela entrou pela porta dos fundos para encontrar a cozinha numa atividade frenética. Os criados corriam de um lado para o
outro preparando comida e bebida para os convidados.
Flora, com farinha até os cotovelos, cerrou o cenho quando viu Katrine entrar.
_ Já era mais do que hora de você aparecer. _ Com um gesto de cabeça, indicou uma grande travessa sobre a mesa que continha vários jarros de cerveja e uma
garrafa de uísque. _ Leve isto para o salão atrás da cocheira. Os rapazes devem estar querendo uma outra rodada.
A possibilidade de Raith estar entre os "rapazes" fez Katrine se rebelar.
_ Não. Não vou servir ninguém. Mande outra pessoa em meu lugar.
_ Por favor, meu bem, faça o que estou mandando. _ Limpando as mãos no avental, Flora levantou a bandeja e colocou-a nas mãos de Katrine. _ Assim, menina
_ falou com carinho, enquanto voltava aos seus bolinhos.
Katrine ficou ali parada, tomada de indecisão. Era a primeira vez que Flora lhe pedira gentilmente para fazer alguma coisa. Recusar um pedido tão simples
seria agir como uma ingrata.
_ Está bem, eu levo, mas não espere que eu vá servi-los.
Com grande dificuldade ela conseguiu abrir a porta da cozinha enquanto equilibrava a bandeja e segurava as saias compridas demais para não tropeçar. Assim
que se aproximou da cocheira, ouviu vozes alegres de homens vindas do fundo. A perspectiva de ver-se frente a frente com Raith MacLean fez seu coração bater freneticamente.
Ansiosa, entrou no pequeno corredor depois da cocheira e hesitou diante de uma porta aberta, espiando para dentro.
O salão diante dela era grande e aparentemente servia como local de reuniões para o clã MacLean. Numa das extremidades havia uma imensa lareira e no centro
ficava uma pesada mesa de carvalho. Era um recinto bem masculino, projetado para atividades e não para oferecer conforto, tendo como decoração apenas cabeças de
veado empalhadas colocadas nos espaços entre as janelas. Os outros espaços vazios nas paredes antes deveriam estar cobertos das mais variadas armas e certamente
era o que aconteceria se não fosse pela lei proibindo os escoceses de possuírem armas. Havia uma dúzia de homens sentados nos bancos em torno da mesa e todos pareciam
muito à vontade, conversando e rindo. Em nada faziam lembrar criminosos planejando golpes.
Katrine reconheceu alguns deles. Callum, Lachlan, o grandalhão que a raptara, e Ewen, o homem que voltara para pegar os pedacinhos de renda que ela deixara
cair como pistas para os soldados. E Raith. Ele estava sentado na cabeceira da mesa à sua direita e por isso só podia ver seu perfil.
Quando ouviu alguém mencionar o nome Campbell, ela desconfiou que os homens haviam se reunido para discutir seu destino. Aguçando os ouvidos, esforçou-se
para entender o que planejavam. Qualquer informação, por mais insignificante que fosse, poderia lhe ser útil... Então um MacLean a avistou e um súbito silêncio caiu
sobre o salão.
Respirando fundo para reunir coragem, Katrine entrou no que considerava um covil de feras. Notou Raith observando-a enquanto ela depositava a bandeja perto
de Callum. Mas embora evitasse olhá-lo, embora procurasse se fortalecer, o impacto dos olhos azuis fez sua pulsação se acelerar. Uma reação absurda, pois ele a examinava
com frieza, com a expressão severa de sempre.
Ela não saberia dizer por quê, mas o olhar frio a deprimiu. O desdém que Raith sentia por ela não se alterara, apesar do beijo que haviam trocado há pouco
tempo. Callum, por sua vez, recebeu-a com um grande sorriso.
_ Ah, bela Katie! Você é uma linda visão para olhos cansados.
O alegre e vagaroso cumprimento a irritou. A única pessoa que costumava chamá-la de Katie era seu pai e considerava o diminutivo pessoal demais para ser
usado gratuitamente por esse patife charmoso. Além disso, o sotaque escocês de Callum estava mais pronunciado do que o habitual, denunciando que ele já exagerara
na bebida.

_ Você está embriagado _ acusou ela, mas sua desaprovação não pareceu exercer o menor efeito sobre Callum. Seu sorriso só aumentou e ele estendeu o braço,
tentando pegá-la pela cintura. Ela saltou para trás, olhando feio, mas a resposta foi uma alegre piscadela.
Katrine pensara em deixar o salão o mais rápido possível, mas resolveu se demorar, sabendo que enquanto estivesse ali os MacLean não conversariam sobre
suas tramas. Como sua presença iria atrasar um pouco seus planos e isso lhe pareceu uma pequena e saborosa vingança. Endireitando os ombros, começou a servir a cerveja.
Quando voltou a se aproximar de Callum, ele pegou a jarra e serviu-se sozinho. Olhando em volta, levantou a caneca de estanho e falou:
_ Um brinde a todos nós por entregarmos com êxito o carregamento!
Os homens responderam vagarosamente, lançando olhares cautelosos para Katrine enquanto erguiam as canecas. Ela olhou para Callum intrigada, imaginando qual
seria a tal carga.
_ O que você quis dizer com esse brinde? Em que tipo de atividades ilícitas você e seus cúmplices estão envolvidos?
_ Katie, você está me ofendendo! _ sorriu Callum, bem humorado. _ Daqui a pouco vai nos acusar de sermos livres comerciantes.
_ Livres comerciantes! Contrabandistas, isso sim!
Raith interrompeu a conversa secamente.
_ Sugiro, meu caro primo, que tome cuidado com o que revela à srta. Campbell. Ela já ameaçou nos denunciar aos cobradores de impostos ingleses.
_ Oh, Katie, você nunca faria isso conosco, não é?
_ E por que a dúvida, Callum? _ perguntou Raith, antes que ela pudesse dizer alguma coisa. _ Seria apenas mais um caso de um Campbell traindo seus compatriotas.
Katrine apertou os lábios com força. Estava a ponto de dizer que não só acusaria os MacLean de sonegação de impostos, como também de contrabando e rapto,
mas achou melhor não dizer nada devido ao clima hostil. Sua expressão, contudo, deve ter denunciado seus sentimentos, porque Callum balançou a cabeça com fingida
tristeza.
_ Ah, que pena, Katie, você perdeu uma ótima oportunidade. Os soldados ingleses estiveram aqui ainda há pouco.
Soldados ingleses? Ali em Cair House?
_ Eles... eles estavam procurando por mim? _ perguntou, rouca.
_ E quem mais poderiam estar procurando, srta. Campbell? _disse Raith.
Katrine ficou olhando para ele chocada, percebendo o quanto estivera perto de ser resgatada. E Raith sabia disso, pensou analisando seus olhos azuis agora
sombrios. Ele a repreendera por colocar a vida de Meggie em perigo, mas gostara de saber que sua cativa estava longe da mansão.
_ Os soldados, como sempre, foram muito educados ao invadir minha casa _ zombou Raith _, e tiveram grande prazer em revistar cada cantinho de Cair House.
Devo dizer que eu também senti um grande prazer quando eles não encontraram nem sinal de você.
Fora por isso que Raith saíra a sua procura? Quisera impedi-la de voltar à mansão antes da milícia partir?, imaginou Katrine desanimada. Talvez por isso
que ele a beijara tão ardorosamente. Quisera adiar sua volta...
A suspeita de que fora usada de uma maneira tão calculista a magoou profundamente. E também atiçou sua raiva. Quis dizer a Raith, ali mesmo, como seus atos
haviam sido desprezíveis, mas não encontrou palavras que poderiam ser usadas por uma dama. A expressão levemente caçoísta que viu no rosto moreno aumentou sua sensação
de impotência e ela só conseguiu lançar-lhe um olhar feroz.
Raith MacLean teve a audácia de sorrir.
Katrine voltou para perto da bandeja e pegou uma jarra de cerveja, quase atirando-o em Lachlan, que era o MacLean mais próximo. O ruivo recuou. Lançando-lhe
um sorriso doce e forçado ela começou a dar a volta na mesa, enchendo as canecas vazias.
Foi então que alguém propôs um brinde:
_ Que quando estivermos subindo a montanha da fortuna não encontremos um amigo descendo!
Todos levantaram as canecas e beberam. Depois um outro MacLean gritou:
_ Que tenhamos cada vez mais amigos e nunca precisemos deles! Os brindes se sucederam e Katrine precisou correr de um lado para o outro para não deixar
as canecas vazias.
_ Que sejamos sempre alegres! _ propôs um outro homem. _E que jamais encontremos o mal!
Que vocês encontrem sempre o mal, emendou Katrine em silêncio e cheia de azedume enquanto servia uma outra rodada. Estava chegando perto de Raith quando
Ewen levantou-se e ergueu a caneca num gesto solene.
_ James Francis Edward, o verdadeiro rei!
_Verdadeiro rei? _ resmungou Katrine baixinho, irritada em constatar que os montanheses insistiam em ignorar o fato de que o rei James II, pai de James
Francis Edward, fora deposto por um protestante há mais de setenta anos. _ Você está falando no Velho Pretendente _ falou mais alto.
Na mesma hora Katrine percebeu que fizera mal em falar. Ouviu murmúrios de indignação. Os MacLean que haviam começado a erguer as canecas, pararam a meio
do caminho. Um homem idoso, cuja caneca ela estava enchendo, lançou-lhe um olhar que gelou seu sangue. Assustada, recuou, procurando inconscientemente a proteção
de Raith, sentado a sua esquerda. Todavia não chegou a se aproximar dele. Pisou na barra da saia comprida demais e tropeçou, procurando apoio na beirada da mesa.
O jarro que segurava caiu e a cerveja espalhou-se pela mesa e foi molhar o velho irritado.
_ Cadela maldita! _ gritou ele, levantando-se de um salto.
Katrine mal teve tempo de registrar o xingamento antes do velho puxar uma pistola do cinto e apontar diretamente para sua cabeça. No mesmo instante sentiu
dedos fortes pegando sua saia e subitamente descobriu-se sendo puxada para o colo de Raith. A explosão foi ensurdecedora. Katrine ficou atordoada com a sucessão
de acontecimentos. Raith xingava o velho em gaélico, que continuava com seus impropérios enquanto era contido por outros homens. Tentando recuperar o fôlego, ela
lançou um olhar para a pistola fumegante do velho e sentiu o sangue deixar suas faces. Escapara por pouco de ter a cabeça estourada.
A despeito dos xingamentos de Raith, o velho continuava lançando olhares de ódio para ela e seu queixo barbado tremia de cólera. Então, apunhalando-a com
o olhar, ele saiu.
Atordoada, Katrine ficou vendo-o se afastar. Quando seu agressor sumiu de vista, ela lançou um olhar ao redor e viu os MacLean com expressões ferozes. Seria
prudente, pensou, sair antes que um outro deles resolvesse usá-la como alvo.
Ainda fraca pelo susto, ela começou a levantar-se do colo de Raith. Ele, segurando-a pelo braço, ajudou-a a recuperar o equilíbrio, observando-a com o cenho
carregado. Sem uma única palavra, Katrine dirigiu-se meio cambaleante para a porta e saiu.
Ela não poderia dizer como chegou até a cozinha. Ao chegar lá, porém, percebeu que seria incapaz de enfrentar a curiosidade dos criados e os olhos observadores
de Flora. Sem ser notada, voltou a sair e foi se esconder na lavanderia.
Quase sem perceber o que estava fazendo, pegou uma vassoura e começou a varrer o piso de pedra, como se a tarefa fosse capaz de acalmar seus nervos. Contudo,
suas mãos tremiam tanto que mal conseguia segurar o cabo. Ela se enrijeceu toda quando ouviu Raith falar da porta, num tom suave:
_ Você está bem?
Uma onda de raiva tomou conta dela.
_ Não! Não estou bem! Detesto este lugar! Estou farta de ser mantida prisioneira! Estou farta de ser feita de boba. _ Parou, sem fôlego, olhando para Raith.
_ Já sei, já sei, não precisa dizer. Foi minha culpa, pronto!
Sua voz falhou no final da frase e embora mentalmente Katrine amaldiçoasse Raith, todo seu clã e os homens em geral, não conseguiu reunir forças para dizer
isso em voz alta. Largando a vassoura, sentou-se no banco diante da mesa de pinho e cobriu o rosto com as mãos trêmulas.
_ Você e seus capangas... não são mais do que pagãos incivilizados e sedentos de sangue...
Então ela começou a chorar baixinho, emitindo soluços abafados que comoveram Raith. Ele precisaria ter um coração de pedra para poder ignorar tanta tristeza.
Aproximou-se dela e sentou-se a seu lado. Pareceu-lhe o gesto mais natural do mundo pegá-la em seus braços.
_ Psiu _ murmurou, afagando seus cabelos.
Katrine escondeu o rosto em seu peito e deixou as lágrimas rolarem a vontade.
_ Aquele bruto... ele... ele tentou me matar.
_ Calma, menina, pare de chorar ou então você vai afogar em lágrimas. _ Raith acariciou os cachos vermelhos e tentou acalmá-la com palavras carinhosas,
como costumava fazer com Meggie. Percebia que Katrine não podia estar pensando com clareza ou senao não estaria aceitando seu conforto. Ele mesmo não estava agindo
com lucidez, refletiu, permitindo-se ficar perto dela, especialmente depois do que acontecera na campina. Ainda queimava de desejo insatisfeito. No entanto, enquanto
as lágrimas de Katrine ensopavam a frente de sua camisa, sentiu a semente de uma emoção muito mais suave, e nem por isso menos embriagadora do que o desejo, começar
a crescer em seu íntimo.
Passaram-se alguns instantes antes dos soluços diminuírem para Katrine poder falar com alguma coerência.
_ Por que aquele homem me odeia tanto? O que fiz para ser alvo de tanta hostilidade?
Raith suspirou, encostando a face nos cabelos ruivos. A resposta a essa pergunta estava a séculos de distância deles. O derramamento de sangue e a amargura
entre os MacLean e os Campbell jamais permaneciam dormentes por muito tempo e eram facilmente despertadas por um acidente tão simples como o derramar de um jarro.
Ele suspirou de novo, profundamente. Era o culpado por ter deixado a situação escapar do controle. Nunca deveria deixar essa pequena megera de cabelos de
fogo chegar perto de seus homens. Devia tê-la mandado embora no instante em que a vira entrar.
_ Hector não pode ser repreendido pelo seu ódio contra os Campbell _ explicou suavemente. _ Ele perdeu todos seus entes queridos nos levantes de Quinze
e Quarenta e Cinco. Isso não é algo que alguém esquece com facilidade.
_ Mas eu, pessoalmente, não fiz nada a ele.
_ Isso não faz diferença para um montanhês. Além disso, eu não diria que Hector agiu sem ser provocado. Primeiro você menosprezou o rei dele e depois ensopou-o
de cerveja. Não é de admirar que ele tenha perdido a paciência. _ Raith fez uma pausa e, quando voltou a falar, havia um tom brincalhão em sua voz. _ Você deve compreender
bem o que aconteceu. Seu temperamento é bem instável e cada vez que o solta, consegue pôr fogo no mato.
Ouvindo a brincadeira, Katrine fungou e afastou-se, levantando os olhos vermelhos para o rosto de Raith. Uma lágrima rolou e foi parar perto do canto de
sua boca ainda trêmula. Raith sentiu vontade de enxugá-la com um beijo.
_ Eu não devia ter falado no Velho Preten... no-seu rei. Mas a cerveja foi um acidente. Tropecei na barra da saía... ela é comprida demais para mim. _ Katrine
começou a chorar de novo e Raith pegou-a ternamente pelos ombros.
_ Então teremos de encontrar alguma coisa melhor para você usar. As roupas de minha mulher devem lhe servir bem.
Katrine parou de chorar de repente. Fungando de novo, olhou para Raith. Ele estaria mesma lhe oferecendo as roupas de Ellen? Com dificuldade, .engoliu um
soluço, lembrando-se do que Raith acabara de fazer... ele a tirara do caminho de uma bala.
_ Parece que tenho uma divida de gratidão com você.., por salvar minha vida.
_ E por deixá-la me usar como lenço _ sorriu Raith. _ E então, já fechou a torneirinha? _ Ele estendeu a mão para enxugar uma lágrima. _ A única coisa que
lhe peço, minha doce megera, é que você se esforce para não fazer comentários incendiários quando estiver perto de gente do meu clã. Senão serei obrigado a trancá-la
na masmorra para protegê-la.
Desta vez ele estava mesmo brincando, percebeu Katrine. E sorrindo. Um lindo sorriso. Um perigoso sorriso. Ela mirou os olhos azuis, sem tomar consciência
de outra coisa que não fosse o homem cujo hálito a tocava. Ainda se sentia abalada, mas a causa original desaparecera de sua mente.
O som de um pigarro chegou a eles. Katrine afastou os olhos de Raith com grande dificuldade e virou-se para a porta. Viu Callum balançando a garrafa de
uísque entre os dedos, dando a impressão de que já estava ali há bastante tempo. Imaginou se continuava embriagado, mas logo notou que sua expressão era totalmente
sóbria e um tanto especulativa.
Enquanto ela tentava recobrar a compostura enxugando as faces, Callum avançou para perto da mesa, servindo uma dose de uísque na canequinha de porcelana
que trouxera consigo.
_ Eu lhe trouxe uma gota disto para acalmar seus nervos _ disse, oferecendo a caneca a Katrine. _ Mesmo uma moça com seu gênio e coragem às vezes precisa
de ajuda.
_ Não bebo álcool.
Raith pegou a canequinha com um sorriso.
_ Beba, vai fazer bem para você. Beba, vamos, ele é perfeitamente legal. Nós pagamos todos os impostos.
Katríne hesitou por alguns instantes e depois tomou um gole.
A bebida desceu por sua garganta, queimando até o estômago e fazendo-a perder a respiração. Teria dito àqueles malvados o que pensava deles por a obrigarem
a tomar uma poção tão vil, mas não encontrou fôlego para falar.
Nesse momento, Lachlan surgiu na porta. Ele segurava a boina azul entre as mãos e parecia extremamente sem jeito.
Raith ergueu os olhos para o teto numa súplica muda, imaginando qual seria o próximo homem de seu clã que apareceria na lavanderia sofrendo de consciência
pesada. Katrine, por outro lado, ficou imaginando se o álcool afetara sua visão. Poderia jurar que via vergonha no rosto já vermelho do grandalhão.
Ele entrou timidamente.
_ Srta. Campbell? _ Ele hesitou e seus dedos grossos pareciam a ponto de rasgar a boina.
Katrine olhou para ele, perplexa.
_ Sim?
Mas Lachlan continuou de boca fechada e ficou um tom mais vermelho. Raith finalmente compadeceu-se de seu parente e interveio.
_ Lachlan, meu rapaz, o que você gostaria de dizer à srta. Campbell? Veio oferecer suas desculpas?
O ruivo pareceu aliviado por ter um motivo para afastar o olhar do rosto de Katrine e fixá-lo no chefe de seu clã.
_ Sim. Ela não deveria ter feito algo tão estúpido como ofender nosso rei, mas não merecia levar um tiro.
Katrine estivera pensando a mesma coisa, mas não gostou muito de Lachlan usar a palavra "estúpido" para descrever suas ações. No entanto, sorriu quando
o grandalhão continuou:
_Hector cometeu uma barbaridade. É algo abaixo de um MacLean guerrear com uma mulher. Todos os rapazes concordam com isso.
Katrine olhou para Lachlan com súbita aprovação. Ele fora ao fundo da questão, o que achava notável em alguém normalmente tão lento.
_ Barbaridade é pouco _ disse, ainda amuada.
_ Bem, Hector estava bêbado.
_ Concordo inteiramente, mas isso não é desculpa. Ele podia ter me matado.
_ Sim, eu sei _ disse Lachlan cabisbaixo. _ Um MacLean jamais deveria copiar os costumes de covardes, como os dos Campbell, por exemplo.
Katrine sentiu-se ofendida, mas decidiu que podia se dar ao Luxo de ser magnânima. Afinal, três dos MacLean, inclusive o chefe do clã, estavam praticamente
de joelhos diante dela. Era pena um momento tão impar não poder durar muito.
_ Obrigada, sr. MacLean _ disse ela, com um ar virtuoso. _Aceito suas desculpas e de seus parentes. E por favor, queira dizer a Hector que lamento ter-lhe
causado algum aborrecimento. Digalhe também que terei prazer em lavar sua camisa, se ele não tiver quem o faça.
Lachlan então olhou diretamente para ela com uma expressão satisfeita no rosto largo. Murmurando uma resposta incoerente, afastou uma mecha ruiva da testa,
enfiou a boina na cabeça e saiu quase correndo.
_ Ora, ora _ riu Callum. _ Nunca imaginei que fosse ver Lachlan tão preocupado com uma moça. Parece que você tem um novo apaixonado, bela Katíe. _ Ao ver
o ar de desagrado de Katrine, ele sorriu. _ Agora termine sua bebida, como uma boa menina.
_ Ah, agora estou entendendo. Não satisfeitos em atirar em mim, vocês pretendem me envenenar. Ou, no mínimo, me fazer perder os sentidos.
_ Vejo que você já está se recuperando _ murmurou Raith.
Katrine virou-se para ele zangada, mas quando viu os profundos olhos azuis lembrou-se de como Raith a consolara há poucos instantes e a beijara antes disso.
O pensamento a deixou embaraçada.
_ Recuperei o ânimo para minha própria sorte _ falou. _ Ela é minha única proteção contra esse bando de... de...
_ Pagãos incivilizados e sedentos de sangue? _ completou Raith.
O sangue subiu às faces de Katrine.
_ Acho que nem todos vocês são sedentos de sangue. _ Ela hesitou e depois levantou-se rapidamente. Tinha de evitar a proximidade de Raith. _ Agora, se vocês
me permitem, eu gostaria de me recolher ao meu quarto. _ Não dando tempo para receber uma negativa, entregou a caneca com uísque a Callum enquanto passava por ele
na saída da lavanderia.
Os dois homens ficaram olhando para a porta, surpresos com a fuga apressada. Então Raith olhou ao redor um tanto perplexo. Nunca em sua vida estivera tão
constantemente na cozinha de sua casa e menos ainda na lavanderia.
_ Roupas de Ellen, hein? _ murmurou Callum.
Raith ergueu os olhos para o primo e viu bom humor em seu rosto. Sorriu.
_ Uma fraqueza momentânea que sem dúvida virei a lamentar.
_ Sem dúvida.
Inclinando-se para apoiar os cotovelos na mesa atrás dele, Raith deixou escapar um suspiro.
_ O que há numa mulher em lágrimas que faz um homem ansiar por lhe oferecer consolo?
_ Desejo, talvez? A necessidade de se sentir poderoso?
Raith não respondeu, sabendo que o primo estava zombando dele.
_ Ah, a que ponto você desceu, primo _ brincou Callum. _Aproveitou-se do choro de uma mulher provocante para acariciá-la.
Raith balançou a cabeça vagarosamente.
_ Ela é mesmo provocante, não?
_ Mas é também uma diabinha. Uma megera com uma língua letal. Mas existe um jeito certo de se lidar com megeras e eu o descobri há muito tempo.
_ E qual é ele? _ quis saber Raith, erguendo uma sobrancelha.
_ Tente beijá-la. Ela não poderá falar se estiver com os lábios ocupados. _ Callum soltou uma risada. _ Mas não estou lhe contando nada que você já não
sabia.
Raith lançou-lhe um olhar atravessado, mas Callum ignorou-o e bebeu o resto do uísque da caneca. Depois aproximou-se do primo e colocou a garrafa sobre
a mesa.
_ Tome. Acho que você vai precisar disto muito mais cedo do que imaginava.

CAPITULO IX

Teria a milícia inglesa desistido da busca? Seu tio a abandonaria à mercê do clã MacLean? Katrine só foi encontrar tempo para se fazer essas perguntas dois
dias depois do incidente no salão no fundo da cocheira e as respostas para elas foram muito menos do que satisfatórias. Ela estava no segundo andar da casa, pois
recebera a tarefa de contar os lençóis e inspecioná-los à procura de rasgos. Usava um bonito vestido de fustão listado em azul e branco com a saia drapeada nos dois
lados dos quadris e armada com pequenas anquinhas, abrindo-se para exibir uma anágua branca. O peitilho azul com barbatanas afinava sua cintura e erguia os seios
no decote, que estavam modestamente cobertos com um lenço branco.
Fora um conforto e também uma pequena vitória receber roupas decentes. A pedido do lorde, Flora aparecera com várias peças de roupa tiradas do baú de sua
patroa, embora a governanta não parecesse muito satisfeita com essa profanação da memória da santificada Ellen MacLean.
O vestido era um pouco curto pois, como já haviam dito, ela era mais alta do que Ellen, e assim era muito melhor, pois pelo menos não correria o risco de
tropeçar e levar um tiro na cabeça.
Katrine cantarolava baixinho quando foi novamente surpreendida por Callum MacLean. Ele saíra de um dos quartos do corredor e parou ao vê-la na saleta das
roupas de cama e banho.
_ Cada dia mais bonita _ elogiou ele com sua habitual franqueza, observando-a da porta. Seu olhar foi uma descarada tentativa de flerte. Katríne corou quando
viu os olhos escuros descerem para seu decote, mas no fundo ficou satisfeita com a aprovação que leu neles. E, mais perturbador, flagrou-se imaginando se Raith mostraria
a mesma expressão quando a visse.
O bom humor de Katrine se foi quando pensou em Raith MacLean. Há dois dias estava evitando-o por completo ou talvez ele a estivesse evitando, não saberia
dizer ao certo. Mesmo assim recuperara-se mais rapidamente do susto de quase ter morrido do que do efeito devas tador e da ternura com que ele a consolara.
Decidida a não pensar no lorde, voltou toda sua atenção para os lençóis, ignorando Callum até ele voltar a falar.
_Raith partiu ontem para encontrar-se com os MacLean de Duart.
Ela lançou-lhe um olhar interessado, ansiosa em obter alguma informação sobre sua libertação.
_Quer dizer que ele entrou em contato com meu tio?
_Ainda não. E não vai fazer nada até saber o que Argyll está planejando em relação aos MacLean de Duart. Colin Campbell resolveu oferecer uma recompensa
a quem der informações sobre seu paradeiro, mas até agora não fez nenhuma retaliação contra nosso clã.
Uma recompensa? Já era algum consolo.
_Segundo Raith, o duque não tem a menor idéia de que os MacLean estão envolvidos em seu seqüestro.
_Sim, mas ele não é tolo e deve ter suas desconfianças.
Mas simples desconfianças não resultariam em sua libertação, pensou Katrine com tristeza. Ainda estava aborrecida por ter estado longe da mansão quando
os soldados tinham vindo a sua procura. Nunca mais encontraria uma oportunidade igual. Agora Raith, com toda a certeza, colocara vigias para avisá-lo da aproximação
da milícia e a trancaria ou a esconderia em outro lugar. Jamais permitiria que fosse encontrada.
_Bem, desejo que alguma coisa aconteça logo _ acrescentou cheia de ressentimento. _ Vocês não têm o direito de me manterem aqui.
_Pode ser que sua estada não seja muito demorada. Desconfio que meu caro primo está tão ansioso em se livrar de você quanto você está para sair daqui.
_Impossível _ disse Katríne secamente. _ Mas se está mesmo ansioso para me ver pelas costas, só tem de negociar minha libertação com meu tio.
_Raith ainda está pensando nas exigências que pretende fazer.
_Na certa está pensando em pegar pessoalmente o dinheiro do resgate.
Callum lançou-lhe um olhar maroto quando se preparava para sair.
_Penso que essa idéia não lhe ocorreu. Acho que vou sugeri-la. Quando Callum se afastou, Katrine continuou a pensar em sua situação. A idéia era desagradável,
mas ficava cada dia mais claro que permaneceria presa por um longo tempo. Contudo, nunca tivera o hábito de ficar lamentando uma circunstância que não podia controlar.
Enquanto estivesse em Cair House, deveria extrair o máximo de proveito de seus apuros. De fato, poderia até fazer algo de muito bom, corno auxiliar a pequena Meggie.
Mal vira a menina nos últimos dias, mas queria desesperadamente ajudá-la, apesar das ordens de Raith proibindo-a de encontrá-la:
Naquela noite Katrine esperou até todos estarem dormindo antes de acender uma vela e descer as escadas pé ante pé. Nunca recebera permissão de entrar na
parte da frente da mansão e por isso levou um bom tempo até encontrar a biblioteca. Vendo as fileiras de livros encadernados em couro, pôs o candeeiro sobre uma
mesinha e começou a folheá-los um a um à procura do que desejava.
E foi assim que Raith a encontrou. Na ponta dos pés, esticando-se para pegar um livro numa prateleira mais alta, usando uma camisola de cambraia um pouco
curta que expunha uma boa parte de suas pernas e tornozelos.
_Será que pode me explicar o que está fazendo aqui?
Katrine assustou-se com aquela aparição súbita. Com uma exclamação de espanto, deixou cair o livro que pretendia folhear.
_O que... o que você está fazendo aqui?
_Se não me engano, esta é minha casa.
_Eu sei... quero dizer... não esperava que você fosse voltar tão cedo.
_Isso é óbvio. _ Raith lançou-lhe um olhar autoritário enquanto se aproximava dela. _ Perguntei o que está fazendo aqui. Não me recordo de ter-lhe dado
permissão para se servir de minha biblioteca.
Katrine recuou, assustada, encostando-se nas estantes.
_Eu... eu estava procurando um livro para ler.
Ele parou a um passo de distância dela. Katrine olhou-o tensa, com os lábios entreabertos, quase sem fôlego.
Raith, estudando-a com olhos semicerrados, subitamente se deu conta de como seu rosto ficava ainda mais radiante sob a luz da vela, de como seu corpo parecia
provocantemente virginal envolvido por metros e metros de um tecido tão leve.
Ele baixou o olhar. A camisola fora de Ellen, mas Katrine Campbell tinha muito pouco em comum com sua esposa. Os cabelos ruivos e rebeldes estavam presos
numa trança grossa e os seios fartos delineavam-se contra o tecido macio. Ele podia discernir a sombra
dos mamilos com um mínimo de esforço. A visão fez o desejo despertar em seu corpo. Lutando contra ele, obrigou sua atenção a voltar para o assunto em questão.
_Por que _ perguntou com ameaçadora calma _ estou com a impressão de que você não disse a verdade?
Quando Katrine não respondeu, Raith inclinou-se para pegar o livro que ela deixara cair.
_Ervas Medicinais? _ leu e depois lançou-lhe um olhar penetrante. _ Será que você pretende me envenenar?
_Não... claro que não. _ Vendo-o erguer uma sobrancelha numa nítida expressão de ceticismo, Katrine levantou o queixo num gesto de desafio. No entanto,
logo achou que seria melhor confessar. Afinal, ia precisar da permissão de Raith para pôr em prática seus planos. _ Muito bem, se quer saber, vim procurar um livro
com bastante figuras.
Raith olhou para ela sem compreender.
_Eu... eu queria encontrar algumas ilustrações para Meggie copiar. Pretendo ensiná-la a desenhar.
_Você quer ensinar Meggie a desenhar.
_Foi exatamente o que eu disse _ retrucou Katrine, não gostando nada do modo como Raith conseguia intimidá-la com um simples olhar. _ Ela tem pouco talento
artístico, mas a técnica pode ser aprendida. Pensei que seria bom Meggie ter um meio de expressar seus pensamentos... de aliviar um pouco o tormento que sente. Como
não pode falar... _ Sua voz foi sumindo diante da expressão sisuda de Raith.
Ele surpreendeu-se com o anúncio, tanto pelo atrevimento de Katrine em desafiar abertamente suas ordens, quanto pelo fato de a idéia fazer sentido. Seria
mesmo bom para Meggie ter um meio de se comunicar e nada como uma mulher para lhe ensinar certas coisas. Por que não pensara nisso antes? E mais, não deveria ter
feito julgamentos apressados sobre essa representante dos Campbell. Agora estava percebendo que sua preocupação com a possibilidade de ela querer usar Meggie em
seu proveito não tinha nenhum fundamento. Seu interesse na menina era genuíno. Estranho, pensou, Ellen sentia muito medo de Meggie devido a sua expressão solene.
De novo, sem que conscientemente quisesse fazê-lo, surpreendeu-se lembrando de sua esposa e comparando-a com sua prisioneira. Ellen era delicada, gentil e tímida.
Corava quando ele brincava e fugia assustada quando o via franzir o cenho. Chorara muito na noite nupcial e apesar de ele ter conseguido acalmar seu pavor, jamais
conseguira aceitar plenamente seus carinhos. O leito matrimonial fora tudo, menos satisfatório. Ellen se submetia sem protestos durante suas pouco freqüentes visitas,
mas sempre o deixava com a impressão de que estava se impondo. Por mais gentil ou paciente que fosse, sua mulher sempre encarara o sexo como uma obrigação.
Não aconteceria o mesmo com Katrine, pensou, lembrando-se da ardente reação ao seu beijo. Tinha certeza que essa moça de gênio irascível e capaz de excitá-lo
com um simples olhar devolveria carícia por carícia, não apenas dando mas também exigindo.
Raith apertou os lábios, aborrecido com esses pensamentos. Era um tolo por estar fazendo comparações. Ellen fora uma criatura delicada, uma dama de maneiras
tranqüilas, que jamais falava alto e nunca externava irritação. Só uma única vez ele a ouvira levantar a voz _ quando gritara de agonia, tentando dar à luz ao seu
filho.
O sentimento de culpa e a auto condenação que o haviam perseguido depois da morte de Ellen o tinham levado a um longo período de abstinência. Não
fora apenas sua posição de chefe do clã e a aversão diante da idéia de gerar um filho ilegítimo que o impediram de procurar companhia feminina. Mais do que tudo,
o que o levara a isso fora a falta de desejo de gerar um filho, de submeter qualquer outra mulher às dores lancinantes que Ellen sofrera, de arriscar vê-la morta.
No fundo sabia que isso era bobagem, pois dezenas de crianças nasciam diariamente na Escócia, sem nenhuma complicação. Mas nem todos os trabalhos de parto eram acompanhados
por alguém como Morag...
Katrine, embaraçada com o silêncio, observou Raith cautelosamente, imaginando no que estaria pensando. Em seus olhos havia uma emoção que não conseguiu
decifrar.
_Por favor _ acabou sussurrando. _ Deixe-me fazer alguma coisa por Meggie. Só quero ajudá-la.
A súplica arrancou-o de suas reflexões e fez seu coração se comover. Ele perdera a batalha e sabia disso. Jamais poderia negar um pedido tão simples e altruísta.
Fechou os olhos, lutando contra o desejo de tomar Katrine nos braços. Fora um grave erro seqüestrá-la. Agora tinha de se livrar dela o mais rápido possível, antes
de perder novamente o controle, pois duvidava que na próxima vez seria capaz de parar só num simples beijo. Percebendo a verdade, tornando-se consciente do quanto
a queria, praguejou em silêncio.
Katrine estudou os traços firmes de Raith intrigada com o jogo de emoções que via no rosto moreno. O silêncio se prolongou por mais alguns instantes e foi
quebrado por uma resposta num tom baixo e áspero que a intrigou.
_Está bem, você pode ensinar Meggie a desenhar.
_Posso mesmo? _ Katrine não esperava que ele capitulasse tão depressa. _ Vou precisar de lápis e pergaminhos.
_Peça a Flora para procurá-los. As coisas que você precisa estão guardadas em algum baú. Minha mulher era muito prendada nesses refinamentos femininos.
_E também vou precisar de um lugar para trabalhar com Meggie, uma sala ou saleta onde exista uma escrivaninha ou uma mesa.
_Temos um quarto de brinquedos no segundo andar. Acha que servirá?
_Claro!
_Então tem minha permissão para usá-lo.
Ele ainda devia estar se sentindo culpado por ela quase ter morrido com o tiro de Hector, decidiu Katrine, surpresa com tanta benevolência.
_Deseja mais alguma coisa, srta. Campbell? _ indagou Raith secamente, quando a viu parada, olhando-o em silêncio.
Katrine hesitou um pouco, mas resolveu aproveitar a boa disposição de seu captor.
_Papel de carta e envelopes _ murmurou. _ Eu gostaria de escrever para a família que deixei na Inglaterra. Minhas irmas... minha tia... elas devem estar
preocupadas por não receberem notícias minhas. Claro que não direi uma única palavra sobre o seqüestro _acrescentou rapidamente, quando viu o rosto de Raith endurecer.
_ Só... só não quero deixá-las aflitas.
Raith conteve um suspiro, sabendo que perdera uma outra batalha.
_Muito bem, você poderá escrever a elas, desde que não conte onde está ou fale sobre seu tio. Naturalmente, lerei as cartas antes de serem enviadas.
_Sim... claro. Muito obrigada _ sussurrou Katrine.
O leve tremor em sua voz quase fez Raith perder a cabeça. Ficou ali, olhando-a e sentindo uma atração tão poderosa que era quase uma dor física.
Um longo momento carregado de sensualidade os envolveu. Era quase possível sentir a paixão fluindo entre eles. Raith estava terrivelmente consciente das
curvas suaves sob a camisola, e Katrine observava, fascinada, como a luz da vela fazia os cabelos negros e os olhos azuis brilharem.
Katrine sabia que devia subir para seu quarto, mas não conseguia reunir força de vontade para se mexer. Havia algo eletrizante nos olhos de Raith que a
fazia permanecer ali, que prendia a respiração em sua garganta. E se ele a beijasse de novo, pensou, alarmada. E por que queria tanto que ele a beijasse?
Por que essa moça o fascinava tanto, pensou Raith, hipnotizado. O que havia nela que o fazia perder a calma de um modo como nenhuma mulher conseguira antes,
que estimulava seus sentidos a um ponto além de qualquer lógica? Quase sempre sentia-se dividido entre a vontade de esganá-la ou beijá-la para sentir a resposta
apaixonada às suas carícias.
Raith começou a dar um passo para cobrir a distância entre eles, mas se conteve no último instante, cerrando dentes e punhos.
Não, aquilo não era normal! Com certeza reagia assim porque ha- -via muito tempo que não estava uma mulher. Seria melhor começar a visitar a viúva simpática
de Strontian que sabia como evitar filhos. E, com toda a certeza, devia fazer uso da garrafa de uísque que Callum tão sabiamente lhe entregara.
Com um movimento decidido, Raith deu um passo atrás.
Com um movimento decidido, Katríne fugiu para seu quarto...

Como se estivessem cumprindo um mudo acordo, os dois passaram a se evitar. Raith não se permitia acreditar que podia estar atraído por uma Campbell, por
mais bela e sedutora que fosse, enquanto Katrine recusava-se a admitir que seu captor a afetava, e não apenas fisicamente. Pensando bem, tinha de admitir que ele
possuía muitos dos atributos do príncipe encantado que criara em sua imaginação.
Raith passou aqueles dias ocupando-se com a administração de seu clã e Katrine com os afazeres domésticos e as aulas de desenho de Meggie. Todas as tardes,
por duas horas, ela trabalhava com a menina da maneira que costumava fazer com todos seus empreendimentos: lançando toda sua alma no projeto. No entanto, durante
o resto do dia, sentia-se sempre inquieta e irritável. Chovia sem parar, o que a impedia de sair de casa para admirar a beleza natural das Terras Altas. E o confinamento
forçado aumentava seu problema, pois surgiu um novo motivo para querer escapar do cativeiro: estava se enamorando de Raith.
Apesar de todos seus esforços, ele estava sempre em sua mente.
Passava um bom tempo se preocupando com a hipótese de ele voltar a beijá-la e imaginando como ela reagiria. Sabia muito bem que deveria repeli-lo até mesmo
com violência se se atrevesse a tomar novas liberdades, mas temia acabar respondendo ao beijo com o mesmo ardor de antes.
Oh, como gostaria que seu tio a libertasse o mais depressa possível! Desejava ter lembrado de perguntar a Raith, naquela noite na biblioteca, se já começara
as negociações de seu resgate. Agora não tinha coragem de aproximar-se dele com essas indagações. Escrevera para suas irmãs e tia, mas entregara as cartas para Flora
passá-las a Raith, pois não confiava mais em si mesma.
No entanto, de vez em quando ela praguejava baixinho contra o senhor de Ardgour por estar levando tanto tempo para resolver sua situação. Um dia Flora ouviu
seus resmungos e respondeu com mais um de seus provérbios: "Dê mais férias à língua do que à cabeça."
Katrine estava em Cair House há cerca de quinze dias quando descobriu mais sobre a falecida esposa de Raith. Fora com Flora procurar um bloco de desenho
numa elegante saleta de estar quando teve a atenção despertada por um quadro pendurado sobre uma graciosa lareira de mármore. Ele mostrava uma moça vestida no auge
da moda, com um penteado alto e elaborado, cuja pele de porcelana era acentuada por pó de arroz e e uma marca de beleza numa das faces. Via-se que era uma mulher
pequena, delicada e muito bonita.
_ Essa é Ellen MacDonald? _ perguntou sabendo a resposta antes de a governanta balançar a cabeça bruscamente.
O vestido era realmente luxuoso. A sobressaia de brocado cor de marfim estava drapeada em pesadas dobras sobre anquinhas largas para exibir uma saia de
rico cetim. O peitilho do mesmo cetim com barbatanas compridas fazia os seios delicados pareceram maiores no amplo decote. As mangas terminavam no cotovelo em cascatas
de preciosa renda. Katrine não conseguiu deixar de se sentir inferior e não foi só pela diferença no modo de vestir.
_Ela era muito bonita _ admitiu, numa vozinha fraca.
_Sim, linda. E tinha o gênio mais doce que se pode encontrar em uma moça.
O olhar que Flora lhe lançou fez Katrine calar, sem jeito. Ser comparada a um tal modelo de virtude, graça e beleza era muito deprimente.

Katrine estava pensando em Ellen naquela tarde, quando Raith fez uma visita ao quarto de brinquedos para acompanhar o progresso de Meggie. No mesmo instante
ela ficou tensa, como se ele fosse capaz de ler seus pensamentos.
Quando seus olhos se encontraram por cima da cabeça da menina, Katrine desviou os seus rapidamente. Estaria Raith comparando-a com sua mulher? Ela usava
um vestido muito simples de sarja cinzenta e apesar dos cabelos estarem bem presos num coque bem comportado, tinha certeza de que jamais conseguiria competir com
a lembrança da caprichosa elegância de Ellen.
Com algum esforço, Katrine mudou o rumo de seus pensamentos e obrigou-se a atender bem o dono da casa e exibir-lhe os avanços de sua pupila. Meggie usava
um vestidinho branco imaculado e tinha os cabelos negros presos por uma fita. Cheia de orgulho, mostrou a Raith um desenho de uma borboleta um tanto gorducha.
Ao ver o terno sorriso de aprovação que ele deu à menina, Katrine sentiu uma forte emoção tomar conta de seu coração. Não era de admirar que tivesse respondido
aos beijos. Qualquer mulher ficaria atraída por um homem capaz de tanta gentileza com uma criança. Todavia, a gentileza que ele dispensava à Meggie não se estendia
a ela, exceto em casos excepcionais, como acontecera depois de Hector tentar matá-la.
Katrine ouviu os elogios de Raith meio distraída, mas sobressaltou-se quando ele disse, num tom tranqüilo:
_ A srta. Campbell deve ser cumprimentada pelo seu trabalho.
_ Quando se virou para ela, seu rosto não mostrava a habitual ferocidade ou desdém. _ Muito obrigado _ acrescentou, no mesmo tom.
As palavras aqueceram a alma de Katrine. Pela primeira vez conseguira fazer alguma coisa em que Raith não encontrara defeito. No entanto, foi com grande
alívio que viu-o sair depois de alguns minutos, deixando-a sozinha com Meggie.
Desse momento em diante, Katrine passou a ter dificuldade em se concentrar na lição. Vendo que seria inútil insistir, pôs um fim à aula e levou a menina
para a cozinha, onde lhe serviria algo gostoso como prêmio pelos seus esforços naquele dia.
Enquanto Meggie comia o pudim, ela descascou os legumes para o jantar. Quando a menina terminou, Flora mandou-a subir e encarregou Katrine de ir buscar
um balde de creme na leiteria. Ela aceitou a incumbência com grande alegria, ansiosa por tomar um pouco de ar fresco. Parara de chover e um ou outro raio de sol
conseguira atravessar as nuvens para iluminar a tarde. Estava atravessando o pátio quase saltitante quando viu Lachlan MacLean entrar na leiteria. Curiosa, diminuiu
os passos e aproximou-se da edícula em silêncio.
Lachlan estava ajoelhado num canto, diante de um dos latões de leite, mas foi a visão de uma pesada espada em suas mãos que a surpreendeu. Poderia jurar
que ele estava desarmado quando entrara. Foi então que percebeu que havia um tipo de alçapão sob o latão. Ela deu um salto para trás, escondendo-se com o coração
aos saltos. Tinha certeza que se deparara com algo que não deveria ver.
Dando a volta na edícula pé ante pé, esperou até ver Lachlan dirigindo-se para a cocheira, carregando a espada. Tomada de curiosidade, Katrine entrou na
leiteria e inspecionou cuidadosamente o canto sobre o qual Lachlan se inclinara. Não conseguia ver nada de diferente no piso, mas vira um alçapão com seus próprios
olhos.
O que descobriu depois de vários minutos de sondagem quase a fez cair de costas. Um esconderijo. Um armário secreto cheio até a boca de armas dos mais variados
tipos: espadas, espadões e floretes, punhais, mosquetes, pistolas, escudos e muitas sacolas que deviam conter balas. Sem dúvida, se procurasse mais atentamente,
encontraria barris de pólvora, a não ser que Raith a considerasse perigosa demais para guardá-la dentro ou perto de sua casa.
Raith. Katrine sentiu o coração começar a bater forte. Aquelas ar-mas não somente eram instrumentos de destruição, numa quantidade suficiente para iniciar
uma pequena guerra, como era traição um habitante das Terras Altas possui-las. Punia-se crime dessa espécie com enforcamento. Embora pudesse gostar da idéia de ver
Raith MacLean esfriando numa cela por tê-la seqüestrado, o pensamento de que ele poderia ser enforcado era insuportável. Todavia, seria essa sua sorte se se provasse
que além de raptá-la ele possuía todo aquele armamento.
Vagarosamente ela fechou a porta do alçapão. Teria de pensar muito bem antes de decidir o que faria com essa nova informação.
Quando saía da leiteria entretida com seus pensamentos, Katrine recuou de susto ao dar de cara com o velho que tentara matá-la. Curvo e enrugado, ele ficou
imóvel, olhando-a com ferocidade, parecendo pronto a assassiná-la com seu cajado de pastor.
_ Eu... eu... _ Katrine parou e engoliu em seco, percebendo que não precisaria dar explicações por ter estado na leiteria. O velho com toda a certeza não
a vira espionando porque, caso contrário, ela já estaria acertando contas com o Criador.
Hector segurava alguma coisa enrolada num pano sangrento. Quando Katrine baixou o olhar para aquilo, o velho empurrou-lhe o pacote macabro nas mãos.
_ Dê isto a Flora MacDonald _ ele ordenou.
O coração de Katrine saltou quando o pano se abriu para revelar as entranhas de um animal. Pelo menos, esperava que fosse um animal. Só quando lembrou-se
que Flora pretendia fazer dobradinha para o jantar do dia seguinte que reconheceu o bucho de um carneiro, ainda quente. Pobre animal, pensou, meio fraca, sentindo
o estômago revirar.
Segurando a coisa sangrenta o mais longe possível, carregou-a até a cozinha e depositou-a, junto com o balde de creme, sobre a bancada em que Flora estava
trabalhando. Em seguida fugiu à procura de ar fresco. Respirando fundo, deixou-se cair num dos degraus da escada da cozinha e apoiou a testa nos joelhos, lutando
contra a náusea.
Continuava nessa posição, ainda não totalmente recuperada, quando ouviu o som de patas de cavalo no pátio calçado e depois de passos apressados.
_ Srta. Campbell... Katrine... o que aconteceu?
Ao ouvir a voz um tanto áspera, ela ergueu o rosto. Raith usava calças de montaria e uma camisa de linho com mangas dobradas até os cotovelos.
_ O que aconteceu? _ repetiu ele. _ Alguma coisa errada?
Katrine olhou-o, intrigada com a expressão em seu rosto. Se não o conhecesse bem diria que Raith estava genuinamente preocupado com ela.
_ Hector... ele me deu um bucho de carneiro.
_ Ele fez o quê?
Em vez de responder, Katrine começou a abaixar novamente a cabeça, mas Raith pôs um dedo embaixo de seu queixo, obrigando-a a encontrar seu olhar.
_ Conte-me o que aconteceu _ insistiu, continuando a prender-lhe o queixo até conseguir extrair um relato completo do acontecido. Então sua expressão se
suavizou e ele colocou o pé no degrau ao lado de Katrine e apoiou o braço no joelho. _ Então foi só isso? Pensei que você e Hector tivessem se envolvido numa luta
de vida ou morte.
Katrine ficou tensa ao ouvir essas palavras. A boca de Raith tremia um pouco, como se ele estivesse reprimindo um sorriso. O pior é que havia um brilho
muito suspeito em seu olhar, dando a impressão de que caçoava dela. Desejando que um raio caísse na cabeça dele, ela endireitou os ombros e fuzilou-o com o olhar.
_Pode ser que você esteja acostumado com coisas sangrentas, mas comigo é diferente. Prefiro carneiro já cozido.
_Eu também. _ Os olhos azuis cintilavam por trás dos cílios espessos.
Antes que Katrine pudesse dar uma resposta malcriada, Raith tirou um lenço do cinto e caminhou até um barril que ficava junto a uma das calhas do telhado
para captar água de chuva. Ela ficou acompanhando seus atos, um tanto perplexa com a surpreendente mudança de atitude. O brilho travesso que flagrara nos olhos de
Raith a tinha feito dar-se conta do quanto ele se parecia com Callum. Vendo-o molhar o lenço na água, Katrine teve um outro pensamento estranho. Se Raith MacLean
não fosse tão sério o tempo todo, se não vivesse assoberbado com as responsabilidades de seu clã, poderia ser um brincalhão charmoso como seu primo.
Raith atravessou o pátio torcendo o lenço e estendeu-o para ela.
_Passe isto no rosto. Você vai se sentir melhor.
Com um olhar cauteloso, Katrine aceitou o pano úmido e pressionou-o contra a testa. Ele refrescou a testa suada e afastou os últimos vestígios da náusea.
_Muito obrigada _ agradeceu, enquanto Raith sentava-se a seu lado no degrau.
_Por nada, srta. Campbell. _ Inclinou a cabeça numa mesura formal. _ Sempre a seu dispor.
Katrine olhou-o um tanto desconfiada. Poderia ser uma tirada sarcástica, mas havia um bom humor em seu tom.
_Você me pregou um susto dos bons. Nunca vi uma moça branca e verde ao mesmo tempo.
Um sorriso aflorou aos lábios de Katrine.
_Eu tenho prática em cuidar de uma casa e sei até cozinhar um pouco, mas nunca consegui lidar com carne fresca. Não tenho o menor talento para ser açougueira.
Raith tirou o lenço úmido das mãos de Katrine e com gestos suaves passou-o nas suas faces agora coradas.
_Sente-se melhor agora? _ murmurou, afastando alguns fios de cabelos que haviam lhe caído sobre a testa e prendendo-os atrás das orelhas.
_S... sim. _ Ela teve de arrancar a palavra da garganta enquanto se obrigava a não estremecer diante do toque. Odiava esse lado sensível de Raith MacLean.
Ele a fazia sentir coisas que não queria experimentar, fazia-a sentir capaz de realmente gostar dele... ou de amá-lo.
Katrine afastou rapidamente os pensamentos desse terreno perigoso. Muito sem jeito agora, evitou olhá-lo, desejando que voltasse a ser o bruto insensível
de antes. Gostaria de nunca ter se envolvido com esse perigoso montanhês. Gostaria que ele a beijasse de novo e fizesse seu sangue transformar-se em fogo...
Obrigando-se a controlar suas vergonhosos reflexões, forçou-se a fazer a pergunta que há muito estava em sua mente.
_ Você teve alguma notícia de meu tio? Callum me contou que você foi falar com seus parentes.
Raith levou algum tempo para responder. Durante sua última viagem fizera bom uso do selo ducal que roubara do gabinete de Colin Campbell, emitindo recibos
falsos para os MacLean de Duart. Isso, com toda a certeza, atrairia a atenção do Duque, mesmo que o seqüestro da sobrinha de seu administrador não o tivesse comovido.
No entanto, não pretendia revelar isso a Katrine.
_ Não, não tive novas notícias.
Katrine lançou-lhe um olhar intrigado, estudando sua expressão. Por que ele parecia relutante em falar sobre o assunto.
_ Então, o que pretende fazer?
_ O mesmo de antes. Espetar.
_ E com qual propósito? Ainda não entendi o que quer de meu tio.
_ É simples. Só desejo receber de volta uma parte do dinheiro que Colin Campbell e o duque de Argyll vêm roubando dos MacLean de Duart.
_ Roubando? Meu tio não é desonesto, já lhe disse. Pode ser que tenha sido zeloso demais ao obedecer as ordens do duque, mas...
_ Seu tio não é diferente do resto de seu clã.
Katrine começou a sentir o sangue ferver, mas Raith impediu-a de responder acaloradamente erguendo a mão.
_ Por favor, não quero discutir com você.
Ela engoliu as palavras. Também não desejava entrar em um confronto desnecessário. Inclinando a cabeça, examinou Raith. Não tinha a menor dúvida de que
ele tinha uma preocupação legítima com o bem estar de seu clã, mas em sua opinião estava tentando resolver o problema da maneira errada.
_ Quer me responder uma única pergunta? Por que não vai simplesmente conversar com o duque? Creio que se você apresentasse seu caso a ele, talvez fosse
ouvido. Procurando-o pessoalmente, poderá lhe explicar suas razões, poderá barganhar de alguma forma.
Raith suspirou.
_ Você conhece o atual duque de Argyll?
_ Não pessoalmente, mas soube que...
_ Ele possui todas as qualidades pelas quais os Campbell são famosos: falsidade, astúcia, covardia e avareza. Lembre-se que o general John Campbell lutou
ao lado do açougueiro Cumberland contra seus compatriotas.
Katrine percebeu que não adiantaria discutir. Para um homem das Terras Altas como Raith, qualquer um que não apoiasse a causa jacobita era considerado um
traidor da Escócia, mesmo se já tivessem se passado quinze anos depois da última rebelião ter sido esmagada de maneira trágica. Além disso, todos os duques de Argyll
haviam sido ferozes inimigos dos MacLean, pois seus clãs guerreavam há séculos e séculos.
_ Mesmo assim _ insistiu Katrine _ , faz mais sentido conversar como uma pessoa civilizada em vez de continuar uma briga que poderá levar a mais derramamento
de sangue.
Raith apenas balançou a cabeça e disse:
_ Algumas coisas valem um derramamento de sangue. Pretendo defender meu clã de todas as maneiras que encontrar... o que não inclui conversar pacificamente
com Argyll _ terminou, olhando-a fixamente.
_ Mas será que não entende? Se continuar a ser inflexível e vingativo, só conseguirá piorar a situação. Penso que deveria pelo menos pensar numa alternativa
menos violenta para este empreendimento perigoso em que está empenhado.
_A senhorita deixou sua opinião bem clara, srta. Campbell. Aliás, como sempre. Mas posso afirmar que está sonhando se pensa que uma questão como esta pode
ser resolvida numa mesa de negociações.
_ Talvez você até tenha razão. Mas como vai sair disso sem ao menos tentar?
Raith não respondeu. Frustrada, Katrine virou-se e ergueu os olhos para as montanhas de Ardgour. Suas encostas estavam se tornando cor de violeta. A urze
graúda florescera subitamente durante os dias em que se vira impedida de sair de casa por causa da chuva.
Ao lado dela, Raith cerrou o punho em torno do lenço. Irritava-o constatar que Katrine quebrara o mudo acordo que tinham respeitado até agora levantando
a questão de seu cativeiro e fazendo um outro ataque passional contra sua lógica. O que propunha jamais daria certo. Um MacLean nunca podia esperar algo que não
fosse traição por parte de um Campbell. Ele estava agindo da maneira certa, não tinha dúvidas sobre isso, mas não gostava nada de ter de se defender com tanta freqüência
de uma megera de cabelos de fogo e gênio para combinar com eles. Ela fazia seu sangue ferver _ de várias maneiras.
Ele voltou-se para Katrine, que estava olhando para as montanhas, e ficou admirando os cachinhos que tinham escapado do coque para enrolar-se em sinuosa
desordem em sua nuca. Ela precisava ser domada, precisava de alguém que lhe tirasse o fio afiado de sua língua. Ainda assim, não conseguia evitar de fantasiar como
seria transformar essa raiva apaixonada em apaixonado prazer...
Que inferno! Katrine Campbell estava se tornando um problema muito sério. No entanto, não conseguia ignorá-la, manter-se longe. Não era nem mesmo capaz
de afastar o olhar dela. Sua atenção foi atraída pelo colo exposto acima do pequeno decote do vestido caseiro, pelo brilho radiante de sua pele sob a luz do sol.
Era branca e sedosa, e livre das sardas que tantas ruivas possuíam. Distraidamente, ele imaginou se o resto de seu corpo seria igualmente imaculado.
Seu olha recaiu na cintura fina e em seguida deslizou para os quadris, continuando pela coxa até se demora nas mãos que ela cruzara sobre o colo. Estavam
vermelhas e machucadas...
Ele sentiu o coração se apertar. As mãos de Katrine eram longas e delicadas, típicas de uma dama. Pela primeira vez admitiu que a tratara com especial dureza
desde o seu seqüestro. Essa moça não estava acostumada a afazeres domésticos mais rudes. Também não merecia ser obrigada a fazê-los. Depois de alguns instantes,
ele quebrou o desagradável silêncio que se fizera entre eles.
_ Estive pensando em Meggie.
Katrine virou-se para ele com uma interrogação no olhar.
_ Você tem razão. Ela precisa de alguém que lhe ensine as coisas que crianças normais aprendem, que lhe dê uma atenção pessoal. Resolvi contratar uma governanta
para ela.
Katrine franziu o cenho.
_ Você vai ter de fazer uma escolha cuidadosa _ disse, cautelosa. _ Meggie é especial e seria cruel submetê-la a alguém que não está a par de sua situação.
_ Sei disso _ concordou Raith, balançando a cabeça. _ Por isso estou lhe pedindo que aceite o cargo até eu encontrar a pessoa adequada. Você será dispensada
de suas tarefas na cozinha, claro. Assim poderá passar mais tempo com a menina.
Katrine ficou encarando-o, surpresa com a oferta tão inesperada.
Raith sorriu.
_ O que foi, srta. Campbell. Perdeu a língua?
_ Eu... não, claro que não. Mas... não pensei que você confiasse em mim para ensiná-la.
_Meggie confia em você e isso já é mais do que suficiente para mim.
Katrine sentiu uma onda de emoções variadas. Seria um prazer trabalhar com a menina, mas a maior alegria era o fato de que Raith MacLean estava disposto
a confiar-lhe sua pupila. No entanto, jamais o deixaria saber disso.
_ E então _ insistiu ele _ , está disposta a aceitar minha oferta?
_ Sim, claro.
_ Então está bem. _ Raith levantou-se. _ Você pode começar amanhã, se isto lhe agradar. Vou instruir Flora para ajudá-la em tudo o que -for necessário.
Katrine assentiu com um gesto e nem mesmo respondeu quando Raith fez uma leve mesura e desejou-lhe um bom dia. Ficou observando-o atravessar o pátio e entra
na estrebaria, ainda paralisada pela surpresa.
Lamentava profundamente essa mudança no lorde de Ardgour, porque quando ele se comportava como um cavalheiro em vez de agir como um bruto, quando não a
enfrentava com seu feroz antagonismo, achava muito mais difícil resistir à poderosa e crescente atração que sentia por ele.

CAPÍTULO X

Foi um erro ter vindo aqui, pensou Raith, enquanto olhava para os galhos da árvore em que estava encostado, vendo a luz da manhã afastar as últimas sombras
do vale. Sentara-se junto à margem do riacho num ponto bem acima do local onde ele desaguava no lago. Sim, fora um erro. Era louco por ter vindo. Mas não conseguira
evitar. Nas últimas manhãs estivera vendo Katrine desaparecer na névoa acinzentada, dirigindo-se para o vale. Por três vezes fora capaz de reprimir o impulso de
segui-la. No entanto, neste dia acordara com uma inquietação que lhe provocava quase uma dor física. Depois de vários momentos de luta interior, vestira o xale à
moda escocesa e dirigira-se para os fundos da propriedade, 'meio desejando que Katrine não chegasse para assistir ao nascer do sol, por receio de sua reação ao deparar-se
com ela.
Não a viu se aproximando porque estava de costas, mas ouviu sua voz por cima do murmúrio do riacho. Ela cantarolava enquanto encontrava caminho por entre
as pedras.
O canto cessou subitamente. Raith olhou por cima do ombro. Ela estava novamente descalça, com os cabelos soltos caindo numa cascata de cachos. Prendera
a barra da saia velha e comprida demais na cintura, sob o peitilho. Os olhos verdes o examinaram intrigados, dando a impressão de que estava a ponto de fugir.
_Não fuja por medo de mim _ disse ele.
Katrine considerou a observação como um desafio.
_ Pensei que ninguém costumasse vir aqui _ retrucou, deixando claro que, se soubesse, teria ido a outro lugar.
_ Meu irmão e eu costumávamos vir pescar aqui.
Katrine hesitou, encontrando dificuldade em se concentrar na conversa. Era-lhe difícil desviar os olhos do corpo másculo de Raith.
Mordendo o lábio, repreendeu-se pela sua fraqueza. E para demonstra que não tinha medo do senhor de Ardgour, aproximou-se dele.
_Então você tem um irmão?
_Eu tinha um irmão. E uma irmã também, mas eles morreram levados por doenças infantis.
_Oh, lamento.
Katrine olhou para Raith, pensativa, imaginando que devia se sentir solitário sem pais, filhos, e sua bela esposa. Ela não concebia sua vida sem suas irmãs
e muitos parentes próximos. Mas Raith tinha seu clã, sua pupila e seu primo, e tudo indicava que era o tipo de homem que não precisava da companhia de outras pessoas,
sendo capaz de atravessar, se necessário, toda uma vida sozinho, mantendo-se distante, orgulhoso e auto-suficiente.
Então, o que estava fazendo ali? Ela não se surpreenderia com a presença de Callum, que não perdia nenhuma oportunidade para flertar. O primo de seu captor,
contudo, partira no dia anterior para uma missão secreta, e sem dúvida reprovável, e ainda não voltara.
_É interessante _ disse depois de alguns instantes. _ Eu nunca consigo pensar em você como tendo um irmão, uma infância normal...
_Até os canalhas de coração negro têm família.
_Não acho que você tem um coração totalmente negro.
_Verdade? E a que devo esse generoso julgamento? À sua promoção a governanta de Meggie?
_Bem, tenho de admitir que foi uni grande progresso para quem era ajudante da ajudante de cozinha.
Ele estava quase agradável nessa manhã, pensou Katrine, com uma vaga sensação de prazer. Se pudesse ignorar a seminudez de Raith, se conseguisse controlar
as loucas batidas de seu coração, talvez até pudessem ter uma conversa civilizada. E precisava falar com ele sobre Meggie.
Mais animada, ela aproximou-se e sentou-se ao lado dele no tapete de musgo que crescia na margem do riacho.
_Meggie progrediu bastante nesses últimos dias _ começou, enquanto Raith olhava para a água com o rosto muito sério.
_Uma boa notícia.
_Estou ensinando-a a usar a agulha para bordar e costurar... só algumas horas por dia. Ela ainda é muito novinha e não quero forçá-la demais.
Raith não respondeu. Katrine teve a impressão de que estava irritado com alguma coisa ou se esforçando para se controlar.
_Flora me contou que você às vezes lê para Meggie _ continuou ela, tentando uma outra abordagem.
_Sim, ela gosta de poesia. Parece acalmá-la.
A imagem do sisudo senhor de Ardgour lendo poesia para uma criança a intrigou. Sentiu vontade de saber mais, mas as respostas lacônicas que obtivera até
agora pareciam indicar que ele não estava interessado em falar sobre sua pupila.
Katrine pegou uma folha de capim e ergueu o olhar para o vale.
A urze florescera e tingia grandes áreas de violeta, misturando-se com o verde esmeralda da paisagem. Os primeiros raios de sol banhavam alguns pontos mais
altos com um suave brilho dourado.
_Este lugar é lindo _ murmurou com reverência.
Apesar da determinação de permanecer impassível, Raith lançou um olhar para a moça que tentava ignorar. A visão quase o fez perder a respiração.
Um raio de sol batia nos cabelos de Katrine, transformando-os numa cascata de fogo, que contrastava com a suavidade em seus olhos verdes. Essa jovem mulher
tinha um modo de olhar para o mundo como se tudo fosse novo, pensou Raith e, apesar de suas melhores intenções, sentiu-se atraído pela beleza que ela sentia tão
profundamente. Viu-se então questionando sua própria maneira de viver. Quando fora a última vez que fizera uma pausa em suas responsabilidades; seus ódios, para
desfrutar a maravilhosa paisagem que o cercava?
_Aqui é completamente diferente de onde eu moro _ disse Katrine, no mesmo tom reverente.
Raith estudou-a em silêncio, lembrando das cartas que ela escrevera para a família. Ele as lera rapidamente, certificando-se de que não davam nenhuma indicação
sobre o paradeiro da remetente. O tom era leve e alegre e as páginas tinham inúmeras observações sobre a beleza da Escócia e as modificações que haviam ocorrido
nas Terras Altas durante sua longa ausência. O pensamento o fez conscientizar-se do pouco que sabia sobre sua bela e geniosa prisioneira... e o quanto mais desejava
saber.
_Onde você mora?
Katrine surpreendeu-se com o interesse. Gostaria de dizer que morava na Escócia, mas sabia que seu tio, que já não a recebera com satisfação, jamais a deixaria
ficar depois da confusão em que se colocara.
_O endereço de suas cartas dizia Cambridgeshire _ sondou Raith, quando ela permaneceu em silêncio.
_Sim, claro. Meus tios moram lá. Eles nos acolheram quando meu pai foi morto em Culloden... _ Katrine parou de falar e lançou um rápido olhar para Raith.
Lamentava ter trazido à tona a inimizade entre os clãs, porque ela só serviria para atiçar o antagonismo entre eles.
_Minhas duas irmãs também moram lá _ apressou-se a acrescentar. _ A mais nova casou-se um pouco antes de eu vir para cá.
_E a outra?
_Louise? Ela também é casada. Está esperando seu segundo filho para breve. Espero que desta vez seja uma menina... _ Ela parou de novo ao perceber que entrara
em outro terreno desagradável. Raith perdera a esposa no parto e, com toda a certeza, não gostaria de ouvi-la falar sobre um novo sobrinho ou sobrinha. Mas, para
sua surpresa, ele continuou com a mesma expressão e se acomodou mais confortavelmente contra o tronco de árvore.
_E você? Pelo que me parece, nunca se casou.
A pergunta foi educada e o tom bondoso, mas pela primeira vez em sua vida Katrine esteve a ponto de lamentar não ser casada e não ter muitos admiradores,
pois gostaria que o belo e viril montanhês que estava sentado ao seu lado a visse como uma mulher atraente. Um absurdo, claro. Que diferença faria o fato de Raith
MacLean pensar bem ou mal dela? E mais, de que adiantaria?
Para disfarçar sua confusão, deu uma risadinha.
_Eu? E quem gostaria de casar comigo? Você mesmo, por inúmeras vezes, já apontou meus grandes defeitos. Tenho uma lingua afiada e um gênio terrível. Os
ingleses que conheço são todos gentis demais para desejarem passar o resto da vida ao meu lado.
Ao ver uma expressão estranha no rosto de Raith, Katrine emudeceu, não desejando ter mencionado os ingleses, outro ponto de contenda entre os dois.
Mas Raith não estava pensando nos ingleses. Imaginava como um homem qualquer poderia se deixar afetar por Katrine, principalmente depois de conhecê-la melhor.
Era verdade que ela estava longe de ser a moça tímida e dócil a ser contemplada de um pedestal por um homem romântico, mas era muito mais interessante do que todas
as mulheres que conhecera até então. Já estava se acostumando a apreciar sua conversa e as respostas espirituosas que sempre tinha na ponta da língua. Ela era extremamente
feminina. E tornava-se cada vez mais difícil para ele negar que a achava desejável. Com um simples olhar ela era capaz de levá-lo à paixão.
Nesse exato momento, sentia um forte impulso de beijá-la novamente.
Katrine mudou de posição, desdobrando as pernas e estendendo os pés para a beira do riacho. Reprimindo o desejo, Raith ficou observando-a quando colocou
os pés na água. O gritinho que soltou revelou que a água estava muito fria, mas logo depois ela abaixou-se para molhar as mãos.
_Meu pai uma vez me levou para brincar na água do lago perto de nossa casa _ contou Katrine com nostalgia. _ Se eu não tivesse gritado tanto por causa do
frio, talvez ele tivesse me ensinado a nadar.
Pegando um pouco da água cristalina, levou-a à boca com as mãos em concha. O sabor era tão doce e leve que quando foi tomar um outro gole, inclinou a cabeça
para trás e deixou a água escorrer para a ponta da língua.
_Você parece uma menina da idade de Meggie _ disse Raith. Katrine virou-se para ele, certa de que encontraria uma expressão de crítica. Mas pelo contrário,
Raith sorria, um sorriso puro, doce e bondoso que ele reservava para sua pupila. O calor que tomou conta de seu corpo a fez corar.
_E o que a trouxe às Terras Altas? _ perguntou ele, depois de alguns instantes.
_Você acreditaria se eu dissesse que vim à procura de aventura?
_E eu deveria acreditar?
_Sim _ sorriu Katrine. _ Eu não tenho o hábito de mentir. Fazia tempo que eu sentia vontade de voltar a minha terra natal, mas a verdade mesmo é que estava
cansada de ver só campos e campos plantados com repolho e nabos. Você não pode imaginar como a região de Cambridgeshire é sem graça comparada com esta exuberância.
_ Ela fez um gesto abarcando a paisagem ao redor. _ E qualquer coisa seria mais empolgante do que morar na casa de minha tia.
Uma ânsia por aventura e novidades, pensou Raith, entendendo um pouco melhor o que a impulsionava. Essa moça vivaz, geniosa e fogosa tinha paixão pela vida.
Ela o fazia pensar no quanto estivera perdendo em sua própria existência.
_Parece que consegui mais aventuras do que poderia imaginar - acrescentou Katrine.
Raith não pôde conter a emoção que o invadiu. "Eu a quero", pensou com uma convicção tão poderosa quanto o desejo que o consumia. "É loucura, mas eu a quero."
Tentou manter o bom senso. lembrando-se de quem ele era, de quem ela era. Mas perdeu a batalha consigo mesmo. Vagarosamente estendeu a mão para pegar uma gota de
água que escorria pelo queixo de Katrine.
O toque suave e o olhar apaixonado fizeram o coração de Katrine dar um salto. Apesar de sua inexperiência, sabia o que se passava com ele. Mas não sabia,
em absoluto, como lidar com um homem viril e perigoso como Raith. Entreabriu os lábios em silencioso protesto quando ele ergueu a mão para tocar uma mecha de seus
cabelos.
_ Voce... vai me beijar de novo?
_ Você gostaria?
Como poderia responder quando as sensações que ele despertava tornavam impossível o raciocínio?
_ Por que você sempre responde com outra pergunta?
_ Psiu. Não fale por que vou beijá-la. Feche os olhos, Katrine.
Ela foi incapaz de desobedecer o pedido.
Diante dessa capitulação, Raith fez um esforço final para resistir ao impulso dos sentidos. Seu olhar deslizou pelo rosto de Katrine. Vagarosamente ele
a puxou para mais perto, amaldiçoando-a pela sua sedução e maldizendo a própria fraqueza. Mais devagar ainda, soltou a mecha de cabelo para deslizar os dedos pelo
pescoço macio, acariciando a nuca.
A ternura do gesto fez Katrine suspirar. A mão era quente, plena de poder. Ela podia sentir o hálito de Raith em seus lábios. E, no instante seguinte sentiu
o doce calor da boca masculina cobrindo seus lábios e a atordoante rigidez do corpo masculino enquanto ele a puxava para mais perto do peito. Todo seu corpo reagiu,
tomado de excitação.
_ Bruxa _ ofegou Raith contra seus lábios quando terminou o longo beijo.
Katrine tentou, sem sucesso, ordenar os pensamentos em tumulto.
_ Você... você disse que eu era uma víbora _ protestou num tom quase inaudível.
_ Não, eu disse que você tinha uma língua de víbora. Mas estava enganado, muito enganado. Deixe-me experimentar mais sua doçura, bela Katie.
Raith inclinou-se novamente sobre a ela, desta vez tomando-lhe os lábios com urgência, a língua procurando e encontrando a dela enquanto amoldava melhor
o corpo contra o de Katnne. Entregando se, impotente, ela agarrou-se a ele. Abraçados,. foram deslizando para o chão.
Ficaram um longo momento perdidos no beijo apaixonado e quando Raith apoiou o peso do corpo num cotovelo, afastando-se, Katrine abriu os olhos e protestou:
_ Por favor, não pare.
Raith captou a incendiária paixão que habitava a alma dessa mulher rebelde e tentadora e seu desejo cresceu.
_ Não, claro que não _ prometeu enquanto examinava os olhos verdes que agora estavam suaves e enevoados. Ela ainda não havia sido despertada para o sexo
e o pensamento de ser o homem que iria conduzi-la para o amor provocou-lhe uma doce agonia.
Bem devagar, de modo a não assustá-la, tocou-lhe os lábios úmidos com a ponta dos dedos antes de descer a mão pelo pescoço. O busto de Katrine estava modestamente
coberto por um lenço de cambraia e, quando o afastou, deslizou a mão por trás do tecido da blusa para desnudar os seios. Ele prendeu a respiração diante da visão
estonteante.
Katrine mal podia respirar, perdida nas sensações cada vez mais intensas. Quando Raith moveu o polegar para acariciar o mamilo, ela gemeu de puro prazer.
Então ele inclinou a cabeça e Katrine sentiu o toque suave da respiração antes da boca se fechar sobre o bico intumescido. Ela estremeceu. As ondas de calor que
percorriam seu corpo eram tão prazerosas que teve vontade de gritar. A língua de Raith brincava com ousada intimidade.
_Raith... - implorou ela, entrelaçando os dedos nos cabelos escuros sem nem mesmo saber o que estava suplicando.
Ele continuou com o doce tormento vagarosamente, impiedosamente, saboreando, lambendo, mordiscando primeiro um mamilo e depois o outro, despertando a paixão
em cada ponto do corpo que se entregava com total abandono a suas carícias.
Ela sentiu o calor do corpo firme de Raith, que pressionava a turgidez de sua masculinidade contra seu ventre a cada movimento sensual da língua.
Raith continuou atormentando-a, mas os gemidos cada vez mais altos de Katrine acabaram chamando-o ao bom senso. Deus, o que estava fazendo?
Subitamente ele parou, apoiando a testa no colo de Katrine. Não pretendera ir tão longe; jamais se permitira perder dessa forma o autocontrole. Mas agora
sabia que não podia continuar.
Em agonia, ele rolou e ficou de costas, cobrindo os olhos com o braço e desejando ser capaz de voltar no tempo, para a época em que ainda não conhecia essa
mulher que o atraía tanto.
Katrine olhou-o surpresa, sem saber o que causara o súbito afastamento.
_ Raith, o que aconteceu?
_ É melhor você voltar para casa.
_ Voltar?
_ Katrine, por favor... _ A voz de Raith denunciava seu tormento. _ Por favor, vá.
Ela engoliu em seco, querendo descobrir o que fizera de érrado, em que o desagradara.
_ Isso jamais deveria ter acontecido _ disse ele finalmente, tão baixo que ela mal conseguiu ouvir.
Katrine então se deu conta da enormidade do que estivera a ponto de acontecer. Como uma leviana, permitira que Raith fizesse amor com ela, devolvendo beijo
por beijo, oferecendo o corpo para o prazer. Estivera pronta a se entregar a ele por inteiro.
Ela devia se envergonhar, pensou. Então por que sentia essa mágoa por Raith interromper o que haviam começado? E por que sentia os olhos se encherem de
lágrimas de decepção?
Com gestos apressados, não querendo chorar diante dele, Katrine arrumou o corpinho do vestido, cobrindo os seios ainda sensíveis devido às carícias apaixonadas.
Em seguida levantou-se, mas permaneceu ali totalmente sem jeito, não querendo afastar-se sem antes compreender o que havia entre eles.
_ Você não vem?
Raith forçou-se a olhar para ela, mas a visão de sua boca inchada pelos beijos o fez gemer e fechar novamente os olhos.
_ Não posso voltar neste estado.
Em outra ocasião, teria corado ante uma referência a um estado tão íntimo de um homem. Mas suas faces continuaram pálidas como cera. Quando o silêncio aumentou,
ela virou-se e afastou-se andando pesadamente, sentindo-se perdida.
Raith permaneceu ali, remoendo a culpa e o remorso. Como se permitira ir tão longe com Katrine? Como pudera se esquecer do abismo que os separava? Uma Campbell
e uma inglesa. Não podia existir uma combinação pior. Como pudera ignorar que Katrine era uma moça virgem? Podia ser uma cativa, mas estava sob sua proteção como
lorde de Ardgour.
Deus tenha piedade de mim, pensou Raith com amarga ironia. Apesar de tudo, entre todas as mulheres, queria apenas ela.
Katrine passou o resto do dia num estado de terrível atordoamento. O encontro com Raith a deixara confusa, com as emoções em conflito.
Durante a aula de desenho de Meggie, a menina teve de pegar-lhe o braço várias vezes para conseguir sua atenção, pois seus pensamentos insistiam em voltar
ao vale, onde ela havia conhecido os efeitos devastadores da paixão.
Já ouvira criados conversando para saber de um modo geral o que acontecia quando um homem e uma mulher faziam amor. Além disso, crescera numa fazenda, onde
as relações entre machos e fêmeas eram fatos corriqueiros. Conversara também com a irmã casada sobre a união física depois do casamento. Até estivera presente quando
Louise preparara Roseline para a noite de núpcias. Na época, ficara embaraçada e um tanto enojada, pois não podia compreender que uma mulher se submetesse obedientemente
aos avanços sexuais de um homem. Em todos seus sonhos sobre encontrar uma alma gêmea, nunca pensara no aspecto físico da relação, mas num laço espiritual.
Mas não tinha como negar que as carícias de Raith faziam seu sangue ferver. Estava convencida de que sua atração, em parte, devia-se ao fato de ele ser
um lorde escocês sem lei, um inimigo de seu clã. Desde o início sentira-se fascinada pela aura de perigo que o envolvia, algo que sempre faltara em sua vida até
então calma e sem graça.
Nas últimas semanas, porém, sua atração transformara-se em algo mais poderoso, um desejo que chegava a ser doloroso. E naquela manhã fora tão forte que
ela esquecera todas as noções sobre o bom comportamento do uma dama que lhe tinham sido enfiadas na cabeça desde a infância. Entregara-se às carícias de um homem
sem uma palavra de protesto. Quisera que Raith fizesse dela uma mulher, sua mulher.
Por que ele parara? Essa era a pergunta que não saía de sua mente. Seria por que descobrira que não conseguiria fazer amor com uma Campbell? Ou por que
não a achava bastante atraente?
Depois do almoço, Katrine foi à saleta de estar onde ficava o retrato de Ellen MacLean. O ciúme a envolveu enquanto fitava o retrato da Linda mulher. Não
pôde deixar de pensar como havia sido o relacionamento entre os dois. Raith beijara Ellen como fizera com ela, beijara seus seios, suas coxas?
Claro. Ellen fora sua mulher... e ela era apenas uma prisioneira.
Quanto mais depressa aceitasse esse fato, mais cedo conseguiria readquirir o equilíbrio emocional.
Katrine passou o resto do dia brigando com seus pensamentos. Às vezes conseguia afastá-los concentrando-se mais atentamente em seus afazeres. À noite, quando
se retirou para seu quarto, eles voltaram com força plena e a mantiveram acordada.
Bem depois da meia noite ela ouviu os gritos. Meggie!, reconheceu, com o coração aos saltos.
Levantou-se e correu para a porta. Os sons torturados vinham do andar de baixo. Sem parar para acender uma vela, desceu pela escada dos criados, quase caindo
na escuridão. Quando chegou ao corredor, viu uma luz fraca e a porta do quarto de Meggie aberta. Apressou-se até lá, parando na soleira.
Os gritos tinham dado lugar a um choro convulsivo e ela logo compreendeu por quê. Raith estava sentado na cama da menina, com ela no colo, afagando seus
cabelos e murmurando palavras de consolo. Meio distraidamente, notou que ele continuava vestido com os trajes do dia, o que indicava que ainda não se retirara para
dormir. Uma única vela iluminava o quarto.
Flora chegou nesse instante, quase sem fôlego. Devia ter sido acordada, pois ainda amarrava o cinto do roupão e a touca de dormir estava torta em sua cabeça.
Raith lançou um olhar por cima do ombro para as duas.
_ Vá buscar o láudano _ disse baixinho.
Flora saiu para atender ao pedido e Katrine ficou olhando para ele, desejando poder ajudar.
_ Acenda o lampião, por favor _ disse ele, em resposta à muda pergunta.
Katrine encontrou a pederneira ao lado do Lampião numa mesinha e quando o quarto estava banhado de luz, foi até Meggie. A menina agora soluçava, um som
tão sofrido que cortou seu coração. Era a primeira vez que ouvia Meggie emitir um som.
Ela tocou o ombro da garota que, talvez reconhecendo seu toque, não estremeceu.
_ O que a perturbou tanto? _ perguntou baixinho.
_ Pesadelos _ explicou Raith. _ Ela costuma tê-los, mas já fazia um mês que dormia tranqüila.
Flora entrou apressada, trazendo uma caneca de leite quente. Raith foi sentar-se com Meggie numa poltrona perto da janela e começou a administrar o sonífero.
Depois de alguns minutos, dispensou a governanta.
_ Obrigado, flora, pode se recolher agora.
_ Sim, milorde, se não precisa mais de mim.
Quando Flora saiu, Raith olhou para Katrine.
_ A senhorita também, srta. Campbell. Meggie logo vai estar bem. Não é necessário ficar.
Embora estivesse sendo dispensada, Katrine não queria sair. Nesse instante, Meggie afastou o rosto do ombro de Raith e estendeu a mão para ela, indicando
que queria que ficasse.
Um músculo se contraiu no queixo de Raith, mas, como aparentemente não queria negar a sua pupila o conforto da presença da amiga, fez que sim com um rápido
gesto de cabeça. Katrine, grata, foi até eles.
_ Agora durma, meu bem _ murmurou. _ Nada mais vai assustá-la. Quando Meggie fechou os olhos, obediente, Katrine acomodou-se no chão ao lado da poltrona,
ainda segurando a mão da menina. O silêncio caiu sobre o quarto e ela ficou imaginando como seriam os pesadelos e o que poderia fazer para acalmar a garota. A presença
de Raith, porém, levou-a logo a divagar sobre o que havia acontecido entre eles naquela manhã. Ele também estaria lembrando?
Lançou um olhar para Raith e notou, pela primeira vez, que parecia desarrumado. O colete estava amarrotado e uma sombra de barba escurecia seu queixo.
Raith também a avaliava. O brilho escuro em seus olhos subitamente lhe deu certeza de que ele estivera bebendo. Não falara arrastado nem mostrara outros
sinais de embriaguez, mas havia algo diferente no olhar ameaçador. Tentava esquivar-se dele, quando Raith falou:
_ Será que você sempre tem de andar por aí seminua?
Chocada com o tom rude, ela baixou o olhar. A flanela era delicada e fina, mas a camisola tinha mangas compridas, gola alta e muito tecido, e não revelava
suas formas _ exceto os pés, pois na pressa não se lembrara de calçar chinelos.
Dando-se conta da absurda observação de Raith, irritou-se. Quem era ele para fazer uma acusação desse tipo? Mais de uma vez ela o vira usando o xale como
saiote _ e nada mais.
_ Eu não tenho um roupão _ sussurrou, para não perturbar Meggie. _ Você me arrancou da casa de meu tio antes de minhas malas chegarem.
_Pois então peça a Flora para arranjar-lhe um. Assim poderá se mostrar com decoro, para variar. Estou rapidamente chegando à conclusão de que você adora
se exibir diante de meu clã.
Katrine olhou-o boquiaberta e teria respondido com azedume se não fosse pela menina. Nesse momento ela mexeu-se, inquieta, e Raith afagou-lhe os cabelos.
Katrine puxou os pés para baixo da barra da camisola e apoiou o braço nos joelhos, imaginando qual seria o motivo daquele ataque inesperado.
O silêncio voltou a cair enquanto ambos esperavam a resQiração de Meggie se estabilizar. Logo Katrine sentiu os dedinhos amolecerem em sua mão, indicando
que a menina dormia profundamente. Raith permanecia onde estava, certamente pretendendo esperar algum tempo, até ter certeza de que seus movimentos ao colocar Meggie
na cama não a acordariam.
Ele devia ter feito isto com freqüência, pensou, sentindo uma grande pena de Meggie e uma certa simpatia por Raith. Como o senhor do clã, ele tinha inúmeras
responsabilidades e obviamente carregava um pesado fardo.
Olhou para ele, tentando compreendê-lo. Raith era um líder, um lutador, o tutor de uma menina traumatizada. Ele protegia os seus com uma resolução férrea.
E ela não tinha dúvidas de que faria todos os sacrifícios para manter seu clã em segurança.
_Se eu pegasse os animais que a feriram... _ murmurou Raith, num tom baixo e letal, enquanto afagava os cabelos de Meggie.
Katrine sabia o que ele queria dizer, embora não completasse a ameaça. Raith lhe contara que os homens que haviam atacado Meggie e sua mãe estavam mortos.
Vendo seu olhar, desconfiou que eles tinham tido sorte.
_O que você pretende fazer sobre Meggie, sobre os pesadelos? _perguntou, querendo desviar a atenção dele da tragédia.
_O que você sugere? Que eu banque Deus? Se pudesse pôr um fim nesses pesadelos eu o faria, mas não tenho poderes sobrenaturais.
_Não é isso... eu só quis. dizer que me parece que Meggie deve se sentir solitária aqui, cercada apenas por adultos. Talvez a companhia de crianças de sua
idade a ajudasse.
_Isso dificilmente vai acontecer _ disse Raith, apertando os lábios. _ Não haverá mais crianças em Cair House enquanto eu for o lorde.
Katrine olhou-o perplexa com a decisão. Ele estaria declarando que amara tanto sua bela Ellen que não aceitava a idéia de se casar com outra mulher?
_Mas... _ Katrine fez uma pausa e depois recomeçou. _ Meggie precisa de algo para amar. Um bichinho de estimação, talvez...
_Ela parou ao ver o olhar sombrio de Raith.
_Acha que isso a fará esquecer? Acredita que o passado pode ser ignorado com tanta facilidade? Pensa por acaso que deixaremos de nos lembrar como os ingleses
violaram nossas mulheres e crianças, e queimaram nossas terras?
Katrine cerrou os punhos. Podia entender a amargura de Raith com o destino dos habitantes das Terras Altas nas mãos dos ingleses, depois da Quarenta e cinco,
mas eles não tinham sido os únicos a sofrer, a perder amigos e entes queridos.
_Não, não creio que o passado possa ser esquecido _ respondeu trêmula. _ Meu pai morreu em Culloden e nunca me esquecerei disso. Mas não deixo o passado
reger minha vida.
_Ah, Culloden. _ Raith deixou a cabeça cair contra o encosto da poltrona e fechou os olhos. _ O dia em que a Escócia se viu de joelhos... em que seus melhores
homens caíram diante dos canhões, como grãos cegados por uma foice. Mas nós, os MacLean, nos portamos com galhardia.
_Você estava lá? _ indagou Katrine, surpresa. _ Devia ser um menino ainda.
_Eu tinha dezessete anos. Idade bastante para segurar uma espada. _ Ele calou-se, a expressão distante, como se estivesse perdido em recordações. Quando
voltou a falar, sua voz saiu baixa e pesada. _ Não tínhamos a menor chance contra a superioridade dos ingleses em artilharia. Eles conseguiram uma "brilhante vitória"
contra montanheses famintos e exaustos. Cumberland, o carniceiro, não queria prisioneiros. Só deixou alguns poucos vivos para serem executados em público, como um
"exemplo". Os que sobreviveram ao massacre foram caçados e queimados vivos em seus esconderijos. Então começaram as verdadeiras atrocidades.., a morte e violação
dos inocentes.
Katrine permaneceu calada enquanto Raith falava, reproduzindo mentalmente os detalhes vívidos do que ele descrevia. Sim, Raith fora moldado pelo passado,
pela batalha de Culloden e muitas outras tragédias que haviam se abatido sobre os habitantes das Terras Altas.
Ele era um homem solitário, orgulhoso e amargo.
Ele respirou fundo e prosseguiu:
_O levante foi uma empreitada fútil desde o inicio. Mas que verdadeiro montanhês se recusaria a pegar em armas pelo Belo Príncipe Charlie? E pensar que
hoje ele é um devasso gordo e bêbado.
Raith esquecera de sua presença, Katrine sabia, ou não teria falado assim sobre o santificado príncipe que os escoçeses sonhavam em pôr no trono da Grã-Bretanha.
Não imaginava que um de seus partídários fosse capaz de vê-lo como era na verdade. Mas compreendeu que, apesar de tudo, ele mantinha sua feroz fidelidade à linhagem
dos Stuart. Seria sempre leal porque sua vida e a existência de seu clã estavam baseados na lealdade.
Ele abriu os olhos e fitou-a com dureza.
_Ah, sim, Culloden foi um espetáculo de morte... os Campbell, como verdadeiros judas, massacraram seus compatriotas. _ Fez uma pausa antes de acrescentar,
colocando ênfase nas palavras: _ Você disse que seu pai estava entre eles.
Só então Katrine se deu conta que ele poderia ter lutado contra seu pai. E se... oh, não!
_Sim, pode ter sido minha espada que tirou a vida dele _ disse Raith ao notar a expressão nos olhos de Katrine. _ Isso a desagrada, bela Katie?
Mas, com alívio, Katrine lembrou-se do relato que chegara a sua famiia. Fora um membro dos Murray que desferira o golpe fatal que pusera fim à vida de James
Campbell. Mesmo assim a dolorosa recordação de que os MacLean e os Campbell tinham lutado em campos opostos lhe fez ver como era imensa a distância que a separava
de Raith.
Ela virou o rosto, sabendo que a dor refletia-se em seus olhos. Cansada, deixou a cabeça tombar para a frente, apoiando-a nos joelhos. O ódio de Raith pelos
ingleses e os Campbell era profundo demais. Ele desprezava suas origens e tudo o que ela representava.
Com imenso desespero, Katrine fechou os olhos. Havia uma outra verdade que não conseguiria mais evitar de enfrentar. Ela estava se apaixonando por esse
homem duro e amargo, por esse chefe de clã que era seu inimigo mortal.


CAPITULO XI


Katrine passou o resto da noite debatendo-se em sua cama, desejando conseguir refrear o fluxo frenético dos pensamentos para poder descansar. Sem dúvida,
as três semanas de cativeiro tinham afetado sua mente.
Mas ao amanhecer, apesar de não estar na presença de seu captor, de não sentir seus olhos azuis devassando sua alma, foi obrigada a reconhecer a verdade.
Estava apaixonada por Raith MacLean.
Era uma loucura, era assustador, era maravilhoso. Finalmente encontrara o homem capaz de combinar com seu gênio e incendiar seu corpo... e nao tinha a menor
idéia do que devia fazer a respeito.
Ela ficou na cama bem depois do soL se erguer, com a cabeça sob os cobertores e a lembrança dos olhos azuis fazendo seu sangue ferver. Amaldiçoou sua covardia,
mas sentia medo de ver-se cara a cara com Raith. Teria de fazer o possível para evitá-lo, pelo menos até adquirir maior controle sobre suas emoções e ser capaz de
manter com ele uma conversa equilibrada.
Todavia, ela acabou saindo da cama e se arrumando. A preocupação com Meggie foi maior do que o desejo de evitar o senhor de Ardgour. A menina ainda dormia,
mas quando passaram os efeitos do láudano, ela acordou mostrando a notável capacidade de recuperação das crianças. Sua seriedade habitual estava um pouquinho mais
pronunciada, mas tudo indicava que havia se refeito da noite tormentosa.
Katrine esforçou-se para manter a lição de desenho bem alegre e surpreendeu-se quando uma das criadas interrompeu-a para dar um recado.
_ O lorde quer que você leve a menina ao estábulo _ disse a moça com um olhar de desdém, deixando bem claro que não aprovava ver uma Campbell como governanta
da menina.
Katrine mal notou a atitude da criada, pois sua pulsação se acelerou loucamente ante a perspectiva de ver-se frente a frente com Raith. Com gestos nervosos,
arrumou a fita no cabelo de Meggie e enfiou no coque os cachos rebeldes que já estavam fugindo de seu confinamento.
Mas não era Raith quem as esperava, mas Lachlan.
_ Você deve vir comigo _ disse o ruivo.
_ Por que?
_ Raith disse para encontrarmos um bichinho para a menina.
Lachlan fez um sinal para os estábulos e começou a atravessar o pátio. Katrine e Meggie o seguiram até um dos compartimentos. Ao olhar para dentro, ela
viu Hector MacLean e recuou assustada. Ele estava sentado na palha, segurando um cobertor como se fosse um pacote.
_ Trouxe um carneirinho para a menina _ explicou o velho, afastando a ponta do cobertor para expor uma carinha preta.
Katrine soltou uma exclamação de prazer. Um novelo de lã com uma cabecinha preta e perninhas finas.
_ Oh, Meggie, olhe! _ sorriu, enquanto as duas se sentavam na palha. _ Que gracinha!
Meggie hesitou, com os olhos grandes e escuros, e saltou, assustada, quando o bichinho baliu.
_ Não tenha medo, meu bem. Ele só chorou porque deve estar com fome. Venha, sente-se de novo.
Meggie levou algum tempo, mas com o incentivo de Katrine e Hector, logo estava com o animalzinho no colo. O cordeiro balia sem parar. Hector tirou da sacola
uma bolsa de couro macio que estava cheia de leite de ovelha. Quando ofereceu a teta improvisada, o carneirinho começou a mamar ansiosamente e depois de alguns instantes
Meggie já ganhara confiança suficiente para alimentá-lo. Quando olhou para cima sorrindo, Katrine sentiu o coração encher-se de alegria.
Encontrando o olhar de Hector, ela sorriu, expressando sua gratidão, e pôde ver, por sob a barba desgrenhada, um ensaio de sorriso.
Quando o cordeiro sentiu-se satisfeito, afastou-se do colo de Meggie, baliu de novo e começou a cheirar a mão da menina, que o abraçou carinhosamente.
Katrine sentiu-se envolvida por uma onda de emoção. Devia essa alegria a Raith, que aceitara sua sugestão.
Meggie estava tão enamorada de seu bichinho que não quis deixá-lo quando ele adormeceu em seus braços. Seus grandes olhos voltaram a ficar solenes quando
Hector voltou a enrolar o cordeiro no cobertor, dizendo que era hora de levá-lo de volta.
_Não fique triste, meu bem _ consolou Katrine. _ Ele ainda é muito novinho para ficar longe da mãe. Tenho certeza que Hector vai deixá-la visitar seu novo
amiguinho todos os dias.
_Não _ disse Lachlan abruptamente. _ Você não deve levar a menina para o vale.
Katrine lançou-lhe um olhar surpreso. A pergunta que estava em seus lábios, contudo, foi adiada quando o velho garantiu a Meggie que traria o cordeirinho
no dia seguinte para que ela o alimentasse.
Os três seguiram o velho pastor até o pátio e ficaram observando-o enquanto se afastava com o bichinho. Depois, com um sorriso,
Katrine mandou a menina entrar para se lavar e em seguida virou-se para Lachlan.
_Por que não posso levar Meggie ao vale? São ordens do lorde _ explicou o ruivo, um tanto sem jeito.
_Isso não responde minha pergunta.
_Bem, ele não quer ver a menina perto da velha bruxa.
_Que bruxa é essa? Não estou entendendo.
O rosto de Lachlan estava ficando cada vez mais vermelho. Obviamente te sentia-se desconfortável com o interrogatório.
_Ela mora no vale. _respondeu, com grande relutância.
_E por que devo manter Meggie longe dela?
_Eu sabia que uma moça teimosa como você não se contentaria com uma resposta simples _ resmungou Lachlan.

Contendo uma observação azeda, Katrine repetiu a pergunta, mas Lachlan manteve-se irredutível. Quando continuou a pressioná-lo, ele a aconselhou a procurar
o lorde. Muito curiosa agora, ela decidiu acatar a sugestão, apesar de sua determinação em evitar Raith.
Mas Raith não se encontrava em casa. Havia ido a Fort William para entrevistar candidatas a governanta. Foi Flora quem lhe contou isso no final da tarde,
enquanto as duas tomavam uma xícara de chá na copa _ uma honra singular que a mulher passara a conceder a Katrine depois de sua promoção ao cargo de governanta temporária
de Meggie.
_Quem é essa tal Morag que Lachlan mencionou? _ aventurou-se a perguntar Katrine, depois de uma pausa na conversa.
_Por que você quer saber? _ disse Flora, lançando-lhe um olhar agudo.
_Porque Lachlan disse que eu não devia levar Meggie para perde-la. São ordens de Raith, pelo que entendi.
_ Sim.
_ E então? _ insistiu Katrine.
_ Morag é a velha que mora no vale.
_ Isso eu sei _ disse Katrine, exasperada. _ Mas por que ninguém me fala sobre ela? Existe algum segredo que não posso saber?
_ Não há segredo algum _ respondeu Flora, depois de tomar um gole de chá. _ Ela é uma parteira excepcional. Mas o lorde não suporta nem mesmo ouvir seu
nome.
_ Por quê?
_ Porque ele a considera culpada da morte de Ellen e do seu filho. Mas não foi culpa de Morag. Ela tentou salvar o filho do lorde, mas não conseguiu. O
anjinho já estava morto antes do parto. Eu sei porque estava lá. Segurei a mão de minha pobre Ellen até o fim. Uma febre terrível a levou em poucas horas.
Katrine não falou por um longo tempo. Depois perguntou:
_ Mesmo assim o lorde acusa Morag?
_ Eu sei que não faz sentido. _ Flora balançou a cabeça com tristeza. _ O destino da mulher-é gerar filhos mas se eles vão ou não viver é uma decisão de
Deus. Mas tente explicar isso a um homem.
As duas permaneceram em silêncio. Katrine imaginou o que fizera Raith perder o discernimento. Pelo que vira nas últimas semanas, ele era justo e bondoso
no trato com os outros _ exceto no que dizia respeito aos Campbell, mas neste caso tinha motivos para seu preconceito. Contudo, não podia haver justificativa para
ele acusar a parteira de matar sua mulher e seu filho, culpando-a por uma fatalidade.
_ Ele deve ter amado muito Ellen _ murmurou com voz trêmula. Mas. Flora lembrou-se com quem estava falando e lançou-lhe um olhar que dizia claramente que
se o lorde tinha ou não amado sua mulher, não era da conta de uma Campbell.
_ Bem _ disse a governanta num tom seco, enquanto servia uma outra xícara de chá. _ O lorde não quer ver Meggie perto de Morag e é ele quem manda.
E tem de ser obedecido, completou Katrine em pensamento. Pelo menos agora a átitude de Raith naquele dia na campina fazia sentido.
_ Muito bem. Manterei Meggie longe de lá. Obrigada por me contar.
Quando Flora não respondeu, Katrine resolveu mudar de assunto.
_Se você não faz objeção em usarmos a sala de música, amanhã quero começar a ensinar Meggie a tocar o cravo.
Flora olhou para sua xícara de chá com o cenho franzido.
_Todas essas aulas de desenho e agora música. O que está querendo fazer? A menina ficará com idéias acima de sua posição.
_Acima de sua posição? Mas ela é a pupila do lorde.
_Sim, mas não há necessidade em transformá-la numa dama. Meggie não vai seguir o caminho normal das moças, não vai casar e ter filhos.
_Sim, você tem razão _ disse Katrine, tristonha. Para a menina não podia haver um casamento arranjado, como era o comum. Só um homem de imensa sensibilidade
seria capaz de cuidar dela, de tomá-la como esposa.
_Olhe, acho melhor você ensinar a menina um meio de ganhar seu pao.
_Eu também estou ensinando-a a costurar. Trabalhar como costureira é uma profissão honrada.
_Sim _ disse Flora, lançando-lhe um longo olhar. _ Mas como diz o ditado: "Não crie mais diabos do que você é capaz de matar".
_Mas, que eu saiba, não estou criando diabos.
_Não? E como podemos chamar o que você está fazendo com a menina, passando tanto tempo com ela? Se fosse você, eu não me afeiçoaria a ela. Isso será mau
para as duas.
_Não tema _ disse Katrine com convicção. _ Estarei longe daqui antes disso acontecer. Espero.
Mas naquela noite, quando pôs Meggie na cama e descobriu-se inundada de ternura, do tipo que uma mãe sente pelos seus filhos, percebeu a sabedoria do ditado
de Flora. Estava mesmo se tornando cada vez mais afeiçoada à criança. E, tolamente, estava se tornando cada vez mais afeiçoada ao dono da casa. E mais, já não sentia
vontade de escapar do cativeiro.

Raith voltou na tarde seguinte. Ela estava no estábulo com Meggie, Hector e o cordeiro quando ele chegou. No mesmo instante a menina pegou o animalzinho
e foi mostrá-lo ao tutor.
Katrine ouviu-o elogiar o cordeiro com entusiasmo e depois fazer perguntas práticas a Hector, que fora atrás de Meggie.
Apesar de sua relutância em enfrentá-lo, Katrine viu-se atraida pelo som de sua voz. Depois de limpar a palha de sua saia, saiu para o pátio.
Raith estava agachado ao lado de Meggie, com as rédeas do cavalo num das mãos e o chapéu na outra, sorrindo ternamente enquanto admirava o carneirinho.
Katrine fez uma pausa na porta do estábulo, observando seu rosto de traços marcantes, imaginando como pudera considerá-lo cruel ou arrogante.
Então ele olhou para cima.
Seus olhares se encontraram. Por um instante o dele pareceu terno. Katrine surpreendeu-se lembrando do calor de sua boca em seus selos, das carícias febris
de suas mãos calejadas. Por mais que se repreendesse por acolher essas lembranças perturbadoras, sentia-se incapaz de ignorá-las enquanto Raith a olhava daquele
jeito.
Para seu alívio, ele virou a cabeça e concentrou-se em Meggie e no cordeiro que começara a balir, aflito. Raith levantou-se com o dedo em riste, mas sorrindo.
_É melhor você alimentar esse coitadinho, Meggie, antes que morra de fome.
Quando a menina e Hector já estavam entrando no estábulo, Raith entregou sua montaria para um cavalariço e ao mesmo tempo lançou um olhar para Katrine que
claramente a dispensava.
Com toda a certeza, ele pretendia entrar logo em casa, mas ela precisava falar-lhe. Avançando rapidamente, fez a pergunta que a preocupava, apesar de temer
a resposta.
_Você conseguiu a governanta?
_Não. Entrevistei cinco delas, mas nenhuma era adequada para Meggie.
Ela sentiu um absurdo alívio. Afinal, queria ver alguém tomando conta de Meggie. Mais cedo ou mais tarde seria libertada e a menina precisava de uma mulher
carinhosa e maternal para lhe dar amor e atenção. Alguém também deveria continuar com as lições que ela começara.
_Tentarei de novo na próxima semana _ disse Raith, observando-a. _ Encontrarei alguém, mesmo que tenha de ir a Edinburgo.
Katrine assentiu, percebendo que Raith interpretara mal sua pergunta. Melhor assim. Como poderia confessar que sua preocupação não era apenas por Meggie?
Não lhe agradaria ver uma governanta contratada, uma estranha, ocupando seu lugar junto à menina que estava começando a amar, como também não queria apressar o dia
de sua partida...
Mas como poderia dizer a Raith que não estava tão ansiosa por deixar Cair House, para ser libertada?
O que diria Raith se soubesse que ela havia se apaixonado pelo lorde de Ardgour?

Par a seu pesar, seus sentimentos por Raith não mudaram. Apesar de vê-lo muito pouco nos dias seguintes, sua vontade de estar com ele aumentava.
E Raith era o culpado por essa situação. Ele a desarmara completamente, mostrando-lhe o lado gentil de sua natureza e acordara nela uma paixão que não podia
ser apagada. Á noite, quando estava sozinha em seu quarto esperando por um sono que não vinha, lembrava-se de seus beijos e carícias arrebatadoras. Seu corpo então
começava a arder em desejo febril.
Mas, além do desejo, inquietava-a uma vaga premonição de que algo ruim estava para acontecer, mesmo se fosse sua libertação. De fato, a única ocasião em
que se sentia em paz era quando estava com Meggie.
Pelo menos a menina parecia florescer sob sua tutela. Embora atribuísse muito da alegria de Meggie ao carneirinho, ela mostrava uma ansiedade para aprender
qualquer coisa, de leitura a desenho ou a costura. Mesmo não podendo falar, a garota era capaz de formar palavras com a boca e seus olhos jamais deixavam de brilhar
quando ouvia histórias que a interessavam. Para sua surpresa, Meggie mostrara uma real aptidão para a música e, antes de se passar uma semana, estava tocando peças
simples no cravo. Seu bordado também era notável para uma criança de sua idade e por isso logo recebeu a tarefa de bordar um lenço para Raith, com suas iniciais
e um galho de azevinho, a planta símbolo dos MacLean.
_Que belo lenço! _ elogiou Flora, quando viu os primeiros esforços de Meggie. _ O lorde vai ficar muito contente.
Nada poderia fazer a criança mais feliz, pensou Katrine, observando o rosto radiante de sua aluna.
Quanto a sua própria felicidade, ela praticamente não existia. Raith ignorava sua presença na casa. Era como se ela não existisse, como se o apaixonado
interlúdio ao lado do riacho jamais tivesse acontecido. Nem mesmo Callum estava por perto para diverti-la com suas tiradas ousadas, pois viajara há mais de uma semana
e ainda não retomara.
Mas era a atenção de Raith que desejava. Preferiria mesmo uma volta à hostilidade dos primeiros dias a essa total rejeição.
Pensava nele constantemente e também em sua esposa. O ciúme era uma nova emoção em sua vida, mas foi ele que a impulsionou a remexer nos baús de Ellen,
que estavam guardados num quarto do sótão. Para si mesma, deu a desculpa que procurava alguma roupa da qual faria vestidos para Meggie, pois era vergonhoso desperdiçar
tecidos tão bons. Mas no fundo sabia que ansiava por descobrir mais sobre a bela e jovem mulher que Raith amara. Talvez pudesse imitá-la em alguma coisa, tornando-se
mais atraente para ele, e assim deixaria de ser tratada como se fosse portadora de uma doença contagiosa.
O que encontrou nos baús não serviu em nada para aliviar sua insegurança: anquinhas e anáguas de babados, vestidos, frascos de perfume floral, uma caixinha
incrustada de madrepérola que continha as pintas postiças e marcas de beleza que a moça parecia ter gostado de usar. Tudo delicado e feminino. Nada do que ela teria
escolhido para usar, pensou. Com seu jeito prático e gênio forte, era o perfeito oposto de Ellen MacLean. Com o coração pesado, fechou as malas, dando-se conta de
que Ellen estava se tornando uma obsessão para ela.
Também não saía de sua cabeça a dor de Raith pela perda da esposa no parto e o que Flora lhe contara sobre Morag.


Katrine estava completando vinte e seis dias de cativeirõ quando resolveu descobrir por si mesma exatamente o que acontecera por ocasião do falecimento
de Ellen.
_Onde mora Morag? _ indagou de Lachlan à tarde, quando o viu perto do estábulo.
_Por que você quer saber? _ O ruivo lançou-lhe um olhar muito desconfiado.
_Soube que ela tem um conhecimento excepcional sobre ervas medicinais. Pelo que entendi, se eu tivesse um ferimento infeccionado, seria a ela a quem deveria
procurar.
_Sim, mas Raith não gostaria que fosse lá.
_E por que não? Ele disse que Meggie não podia ir ao vale, não eu.
_Mas não serei eu que irei lhe contar onde mora a mulher.
_Está bem, então _ disse Katrine, irritada. _ Descobrirei sozinha. Não pode ser muito longe daqui.
Lançando um olhar para Lachlan, deixando claro seu desagrado, Katrine seguiu a trilha que Hector tomava quando ia para casa. Tudo indicava que por ali cortaria
caminho, evitando ter de dar a volta pelo vale e o riacho.
Quando chegou ao pequeno pasto onde alguns carneiros andavam tranqüilamente, ela fez uma pausa para absorver a cena. A distânY cia podia ouvir as notas
tristonhas de uma gaita de fole, apesar dela estar proibida pelos ingleses, e o som fez um arrepio percorrer seu corpo. Isso era a Escócia no que tinha de mais magnífico.
Um verdadeiro mar de urze florida, tingindo todo o campo de violeta, os picos selvagens das montanhas se erguendo para tocar o céu azul, o som da gaita, o cheiro
da turfa queimando nos fogões...
A fumaça saía pela chaminé de Hector, mas não havia sinal dele. Katrine passou pela casa, depois pela destilaria de uísque e em seguida atravessou a campina
onde correra com Meggie. Quando chegou ao pequeno bosque que ficava na outra extremidade, avistou uma casinha feita de pedra e com telhado de palha. Devia ser a
casa de Morag. O lugar era muito bem cuidado. Havia vários canteiros de ervas e um pequeno estábulo para acomodar os animais domésticos. A fumaça azulada de um fogo
de turfá saía pela chaminé.
Ela diminuiu o passo enquanto se aproximava da porta. O que diria a Morag? Por favor, estou apaixonada pelo lorde e por isso quero saber mais sobre
Ellen MacLean. Ele a amava muito? Poderá ter afeto por uma outra mulher? Acha que um dia ele me amará?
Claro que não podia fazer essas perguntas. Mas, no mínimo, ten1 tarja ter mais informações sobre a morte de Ellen.
Sentindo as palmas das mãos úmidas de suor, Katrine bateu na porta. Ninguém veio atender. Bateu de novo, mais forte. Talvez a mulher estivesse nos fundos
do jardim, pensou, mas não viu nem sinal dela.
Desapontada, convenceu-se de que a mulher não estava por perto e começou a voltar, pensando em procurá-la num outro dia.
Assim que saiu do jardim, parou diante da visão de um cavaleiro na beira do pequeno bosque. Raith observava-a com a expressão mais severa que já vira em
seu rosto.
_Qual é a desculpa para esta vez? Estava procurando ervas para desenhar?
O sarcasmo deu-lhe nos nervos, mas ela corou enquanto pensava no que iria responder.
_E se fosse isso mesmo?
Raith ficou em silêncio por um longo instante e depois ordenou:
_Venha cá.
Katrine olhou-o com cautela. Na última vez em que ele a seguira, começara com uma repreensão e terminara com um beijo. Sentia que não conseguiria suportar
outra investida sem fazer ou dizer algo muito tolo, tal como confessar seu amor ou entregar-se por completo.
_Ir aí, para quê? _ E deu um passo para trás.
_Vou levá-la de volta para casa. Venha.
_Suponho que Lachlan lhe contou onde me encontraria. Que papelão o dele!
_Não esqueça que todos os membros de meu clã têm ordens de vigiá-la.
_Espiões, todos eles _ retrucou Katrine, irritada. _ E muito eficientes _ acrescentou, cheia de desdém.
_Venha já aqui. Não vou repetir mais.
As palavras foram ditas com entonação tão ameaçadora que Katrine resolveu não desobedecer. Imaginou Raith galopando em sua direção e pegando-a como se fosse
uma boneca de pano, como Lachlan fizera durante seu seqüestro. Sem dúvida seria mais digno concordar, mesmo que fosse sob protesto.
Mordendo a língua para não dar vazão a seu mau humor, Katrine foi até ele e aceitou a mão que lhe foi estendida. Sentiu-se arrepiar com o contato, pois
não conseguiu evitar de recordar a delicadeza daquela mão na última vez em que ela a tocara. No entanto, não houve nenhuma delicadeza no modo como ele a puxou, arrastando-a
para a sela.
Sentada à frente de Raith, Katrine podia sentir a tensão no corpo masculino. Percebeu que não precisaria se preocupar com possíveis carícias, devido ao
péssimo humor de Raith. Ela também estava furiosa e nunca responderia ardentemente a um beijo.
A hostilidade que crescera entre eles não deu sinais de diminuir enquanto Raith dirigia o cavalo para a campina.
_Eu lhe avisei para não vir aqui _ disse ele por entre os dentes cerrados. _ Você me desobedeceu de caso pensado.
_Não fiz nada disso! Você disse que não queria que eu trouxesse Meggie aqui.
_Também não quero você aqui.
_Por quê?
Ele não respondeu.
_Por quê? _ insistiu Katrine, sentindo a fúria crescer. _ Acha que Morag vai me assassinar como fez com sua mulher? Pensei que gostaria de se ver livre
de mim. Esse seria um bom meio de não ficar com meu sangue em suas mãos.
Ela sentiu Raith se enrijecer todo na sela. Fechou os olhos e suspirou fundo, como a suplicar aos céus por paciência.
Desviando o olhar do rosto atormentado, ela mordeu o lábio, arrependida do que dissera. Fora cruel tocar no nome de Ellen.
_Desculpe-me _ resmungou. _ Eu não tinha o direito de provocá-lo dessa maneira.
Raith não respondeu. Mesmo que quisesse falar, não teria resposta para a acusação. A menção a assassinato chegara mais perto da verdade do que gostaria
de admitir. Quando Lachlan lhe contara que Katrine fora procurar á velha bruxa, ele se sentira tomado de um medo absurdo, um medo que não poderia explicar nem mesmo
para si mesmo.
O silêncio caiu pesado entre eles, enquanto atravessaram a campina. Encorajada pela impressão de que Raith havia se acalmado, resolveu que a ocasião
era apropriada para uma conversa.
_Acho que eu não ia correr perigo com essa tal Morag _ começou. Vendo Raith permanecer em seu rígido silêncio, tentou de novo, mantendo a inflexão tranqüila.
_ Você nunca pensou na hipótese de estar errado em seu julgamento sobre essa mulher?
_Você não sabe nada do que aconteceu.
_Sei o que Flora me contou... que você não suporta ver Morag porque ela não foi capaz de salvar sua mulher e seu filho. Por que ela não foi capaz de bancar
Deus.
Raith xingou baixinho.
Katrine mordeu o lábio, desejando conseguir fazê-lo ver que estava sendo injusto com uma velha que não fizera nada senão usar seus melhores conhecimentos.
Tentou de novo, num tom mais incisivo.
_Você precisa entender que sua atitude é irracional. Você despreza a mulher por causa de uma tragédia inevitável, força seu clã a evitá-la...
_Eu não imponho minha atitude irracional a ninguém. Os membros de meu clã têm liberdade de procurar os serviços de Morag à vontade.
_E qual é a diferença? Seu preconceito contra ela tem o mesmo efeito de uma ordem direta. Seu clã tem tanto medo de desagradá-lo que...
_Chega!
_ Mas será que você não entende...
_ Pelo amor de Deus, basta!
Katrine estremeceu e calou-se.
Santo Deus, pensou Raith. Como gostaria de ser capaz de voltar atrás no tempo! Nunca deveria ter seqüestrado essa mulher capaz de irritá-lo e excitá-lo
com uma facilidade que o enlouquecia. No instante em que Lachlan aparecera carregando essa bela Campbell deveria ter saído galopando na direção oposta.
Quando Katrine respirou fundo, preparando-se para argumentar, ele a impediu.
_ Segure a língua _ ordenou com grosseria _ , ou a trancarei de uma vez por todas, nem que eu tenha de construir uma masmorra com minhas próprias mãos!
Raith sabia que usara uma violência na voz que em anos passados teria feito Ellen sair correndo de medo. Mas, quando Katrine virou-se para ele, não havia
o menor vestígio de medo em sua expressão. Pelo contrário, os olhos verdes cintilavam, prometendo que a batalha ainda não terminara.
Quando chegaram ao pátio, Katrine saltou do cavalo sem esperar a ajuda de Raith. Quase caiu de joelhos, mas estava irada demais para ligar para isso. Juntando
as saias, marchou para as escada dos criados. Quando chegou ao seu quarto, bateu a porta com força, não se preocupando com o barulho.
Passou os dez minutos seguintes tentando acalmar os nervos. Que loucura a possuíra fazendo-a desejar um homem que combinaria com seu gênio e incendiaria
seu sangue? Raith combinava mesmo com seu gênio, mas o fogo que colocara em seu sangue não tinha nada a ver com a paixão _ a não ser que fosse uma paixão por vingança.
Nunca mais se submeteria às suas exigências irracionais ou se assustaria com suas ameaças incivilizadas, nunca!
Finalmente lembrou-se da aula de desenho de Meggie, mas achou melhor não aparecer diante da menina como estava. Sem dúvida a assustaria.
Foi enquanto andava de um lado para o outro que Katrine chegou a uma decisão: tinha de forçar sua libertação. Só então haveria um fim nessa intolerável
situação com Raith. Seus caprichos a estavam levando à loucura. Num instante ele a beijava com ardor e no outro ameaçava trancá-la numa cela fria. Não suportava
mais. Tinha de pôr um fim a essa indecisão, a esse tumulto de incertezas. Chegara a hora de fazer algumas exigências.
Tentando se acalmar o suficiente para pensar com clareza, olhou a tranca na porta do quarto. Não era forte o suficiente para seu propósito. Para enfrentar
Raith, teria que se refugiar num lugar muito seguro, onde ele não poderia alcançá-la.
Depois de uma rápida inspeção, descobriu que nenhum cômodo da casa era adequado. A lavanderia tinha suas possibilidades, mas lá havia mais janelas do que
o desejado. No entanto, quando foi olhar a leiteria, soube que sua busca havia terminado. Com apenas uma porta de entrada, era de difícil acesso, e tinha a vantagem
de impedir a retirada de víveres necessários ao dia a dia e de armas que o violento clã de Raith guardava ali.
Katrine passou a meia hora seguinte juntando as coisas que iria precisar para um longo confinamento. Um maço de velas, um travesseiro e vários cobertores,
uma tigela com biscoitos frescos que surrupiara da cozinha, um jarro grande de água, uma bacia e um urinol. Sua última visita foi à biblioteca, onde pegou livros
para durarem uma semana, no mínimo, já que não tinha certeza de quanto tempo ficaria fechada.
Satisfeita, afinal, voltou à leiteria, acendeu uma vela, trancou a porta com a pesada barra de ferro e fechou a veneziana da única janela. Então sentou-se
para esperar.
A primeira pessoa a descobrir o ato de desafio foi uma das criadas que veio pegar um queijo e viu-se mandada embora. Quando a propria Flora surgiu para
investigar, Katrine calmamente explicou, falando por trás da porta fechada, que transformara a leiteria numa masmorra e não pretendia sair dali até conversar com
o tio em pessoa uma exigência impossível de ser atendida, sabia, mas que deveria pelo menos despertar a atenção de Raith. Estava convencida de que só levando seus
pedidos ão extremo conseguiria forçar alguma ação dele para apressar o fim de seu cativeiro. Aceitaria o envio da carta exigindo seu resgate, mas só quando tivesse
absoluta certeza de que já estava nas mãos de seu tio!
Raith ficou sabendo de suas exigências por meio de Flora, que lhe contara:
_A moça ficou maluca. É a única explicação para se trancar desse jeito.
Ainda furioso, ele respondera:
_Ela sempre foi maluca. Ignore-a e ela sairá quando sentir fome. Mas Katrine tinha uma grande reserva de comida e uma reserva ainda maior de determinação.
Continuava firme na manhã seguinte.
Por volta do meio-dia, todos os moradores da casa estavam a par da situação. E, para surpresa e desgosto de Raith, seu clã não se manteve totalmente ao
seu lado.
Callum, que voltara naquela manhã, foi o primeiro a reclamar e não usou de seu habitual tom de zombaria.
_ Primo, você não acha que está sendo duro demais com a moça, prendendo-a desse jeito? A leiteria é tão fria e incômoda como qualquer cela no presídio.
_ Eu? Por que diabos está me transformando no vilão desta história? Essa gata selvagem, teimosa como uma mula, é a única culpada por ter passado a noite
num buraco frio em vez de ficar na própria cama.
_ E que cama? Um catre, isso sim, bom para um serviçal, mas não para uma dama de sua classe. Penso que você deveria ao menos ouvir o que ela tem a dizer.
Raith rosnou e saiu do gabinete com passos duros, declarando que preferia morrer do que dar ouvidos à malcriada.
Mais tarde, foi a vez de Lachlan, que cortou o caminho de Raith enquanto este se dirigia para a cocheira.
_ Ela não merece ser tratada assim, nem mesmo por ser uma Campbell _ protestou o ruivo. _ Eu não a teria seqüestrado se soubesse que ia ser maltratada assim.
_ Pelo amor de Deus! _ resmungou Raith por entre os dentes. - Um mês atrás você estava pronto para enforcá-la só por ser quem é.
_ Sim, mas isso foi antes de eu conhecê-la melhor. Ela não é tão ruim assim para uma Campbell.
Raith selou um cavalo e saiu, querendo se afastar de todos seus parentes, que pareciam ter ficado tão malucos quanto a feiticeirínha de cabelos vermelhos
enfiada na leiteria.
Foi Flora quem primeiro avisou Katrine de que seu confinamento estava tendo repercussões positivas. No entanto, ao anoitecer do segundo dia, ela começou
a desanimar. Raith não se dera ao trabalho de reconhecer sua existência e muito menos de perguntar quais eram suas reivindicações.
No dia seguinte, para surpresa de Katrine, Flora fez duas viagens aflitas até a leiteria _ a primeira para perguntar se ela precisava de alguma coisa e
a segunda para implorar-lhe que parasse com aquela tolice, pois Meggie estava sem ninguém para ajudá-la nas aulas.
A culpa que Katrine sentiu, ao contrário do que se poderia esperar, serviu para incentivá-la a continuar firme até saber a decisão do lorde. Mais cedo ou
mais tarde teria de se afastar de Meggie e, quanto mais cedo isso acontecesse, melhor para as duas.
Mas Raith também não pretendia arredar pé de sua posição.
No dia seguinte, ele encontrou Hector diante da leiteria, segurando o carneirinho nos braços, que Meggie não saíra para ver. Olhando para a porta, o velho
balançou a cabeça grisalha.
_ Você também? _ disse Raith, erguendo os olhos para o céu.
Mas foi Meggie com séus olhos escuros, tristes e acusadores que finalmente convenceu-o. Ao anoitecer, a menina veio ficar diante dele na biblioteca, imóvel,
enquanto ele fazia anotações sentado à escrivaninha.
Raith praguejou em silêncio e capitulou com um suspiro.
_ Está bem; Meggie. Vá procurar Flora e peça a ela para pôr você na cama. Prometo que amanhã cedo você terá sua professora para lhe dar as aulas.
"Mesmo que eu tenha de dar uma surra nela para forçá-la a sair", ele jurou em silêncio, enquanto via o rosto da menina se alegrar de uma maneira que cortou
seu coração.
Raith forçou-se a dar um sorriso para a garota e esperou vários minutos depois de ela deixar a biblioteca para tomar as providências Então, com passos largos,
logo estava no pátio sob a luz fraca do crepúsculo, dirigindo-se para a leiteria. Quando chegou à porta, começou a bater furiosamente com •o punho fechado.
_Katrine! Abra esta maldita porta!
La dentro, ela sobressaltou-se. Não teve dificuldade em reconhecer a voz de Raith ou sua cólera.
_O que você quer? _ perguntou, um pouco trêmula.
_ Que pergunta idiota é essa? Quero que você saia daí!
_ É o que farei, quando puder conversar com meu tio.
O palavrão que Raith soltou a encorajou. Pôs de lado o livro que estivera tentando ler para afastar o tédio e subiu os degraus até a porta.
_ Terei prazer em discutir minha partida com meu tio.
_ Katrine _ alertou Raith. _ Não vou agüentar mais suas maluquices. Você está corrompendo todo o meu clã.
Katrine não sabia o que Raith estava querendo dizer, mas achou que so podia ser algo bom porque ele fora forçado a reconhecer sua existência.
_ Estou disposta a negociar.
O silêncio que se seguiu foi tão longo que Katrine teve a certeza de que ele tinha ido embora. Estava começando a descer os degraus, conformando-se
com alguma relutância a passar mais uma noite fria na solitária, quando ouviu a voz de Raith, muito mais suave agora.
_Katrine, tem alguém aqui que quer conversar com você.
_Quem?
_Você terá de abrir a porta.
_Posso ouvir muito bem sem fazer isso.
_Katrine, é Meggie. Você sabe que ela não pode falar.
_Meggie, meu amor _ ela começou, lutando contra sua consciência. _ Lamento termos de interromper as aulas, mas seu tutor está agindo como um burro teimoso.
Terei prazer em voltar ao meu cargo de governanta, assim que ele concordar em entrar em contato com meu tio.
Katrine teve tanta certeza que ouviu Raith trincando os dentes que sorriu.
Quando ele murmurou algo que não conseguiu ouvir, achou que estava falando com sua pupila. Finalmente ele levantou voz.
_Katrine, não vai adiantar. Meggie precisa vê-la. Tenho a impressão de que quer se certificar de que você não está ferida.
Katrine hesitou mais um instante.
_Está bem, ela pode entrar. Mas só se você for embora primeiro.
_Concordo.
Katrine ouviu o som de passos de afastando.
_Raith? _ perguntou depois de alguns instantes, para se certificar de que ele fora embora. Não ouvindo resposta, resolveu que seria seguro deixar Meggie
entrar. _ Ainda acho que é crueldade usar uma criança para me chantagear _ resmungou, enquanto lutava para levantar a tranca.
Ela abrira uma fresta da porta quando Raith subitamente empurrou-a com força, atirando-a para o lado enquanto entrava na leiteria. O choque deixou Katrine
paralisada por um instante. Num único salto, Raith desceu as escadas e olhou a sua volta, como para se certificar de que ela não descobrira o esconderijo das armas,
enquanto Katrine olhava para fora, tentando ver Meggie no pátio.
Quando se deu conta da verdade, ela teve vontade de chorar de raiva. Raith a enganara! Ah, de todos os truques sujos aquele fora o pior! Virou-se para ele,
furiosa.
_Seu maldito! Seu maldito patife das Terras Altas! Você me enganou!
_É mesmo? _ Ele assoprou a vela, apagando-a, subiu os degraus e pegou Katrine pelo braço. _ Eu avisei que não iria tolerar esta bobagem. Agora venha.
_Ai! O que .você está fazendo? Não vou a lugar algum com voce... _ Mas seus protestos cairam em ouvidos surdos enquanto Raith a arrastava da leiteria e
a fazia entrar na casa.
Foi humilhante ser arrastada pelo hall diante de uma platéia de criados boquiabertos e parentes desocupados que tinham aparecido para apreciar a comoção.
Katrine redobrou seus esforços para se desvencilhar.
_ Seu patife! Seu monstro! Seu... seu verme nojento! Vou vê-lo na forca por isto!
Ele começou a puxá-la pelos degraus da estreita escada de serviço, mas Katrine conseguiu sé soltar e correu para a porta. No entanto, antes que conseguisse
dar dois passos, ele a pegou. Com um gesto brusco, inclinou-se e atirou-a sobre o ombro.
Ela socou as costas de Raith com o pouco de forças que conseguiu reunir.
_Seu maldito! Grosseirão! _ conseguiu gritar quando chegaram ao segundo andar, tentando se agarrar ao corrimão.
_Meu Deus, você é mesmo uma cospe-fogo!
Raith gemeu de dor quando o punho de Katrine golpeou pela primeira vez um ponto sensível em suas costas. Em resposta, deu-lhe uma palmada forte no traseiro.
Ela gritou, mais de choque do que dor, porque estava protegida por várias camadas de saia e anáguas.
_ Bruto! Grosseirão! Seu... seu cabeça de mula!
_Daqui a pouco você não vai mais encontrar do que me xingar.
_Não? Ainda nem comecei minha lista!
Raith abafou uma risada, o que a deixou ainda mais enfezada. Voltou a socá-lo com toda a fúria e, se não o machucou, pelo menos levou-o a tropeçar quando
chegavam ao terceiro andar. Ele quase a deixou cair, mas recuperou o equilíbrio apoiando-se num joelho.
Raith não fez uma pausa nem para respirar, pois sabia que ela conseguiria se soltar a qualquer momento. Com passos largos, carregou-a pelo corredor até
estarem diante do seu quarto. Quando abriu a porta, entrou e colocou-a em pé no chão, sem grande delicadeza.
_ Você vai ficar aqui até recuperar o juízo! _ informou, enquanto se virava para sair.
Katrine olhou em 'volta querendo conseguir algo com que agredi-lo. O quarto não estava totalmente às escuras porque as venezianas ainda não tinham sido
fechadas. Avistando o castiçal de bronze perto da cama, agarrou-o e atirou-o com força. Ele bateu contra a parede perto da porta, a poucos centímetros da cabeça
de Raith.
Ele parou abruptamente e resmungando uma praga, virou-se bem devagar.
_ Eu avisei... _ E fechou a porta por dentro.
Katrine estremeceu ante a idéia de que ele queria privacidade para assassiná-la ali mesmo, naquele instante. Deu um passo para trás, assustada com o modo
como Raith estava avançando vagarosamente em sua direção. Mas não tinha para onde correr. Em poucos passos estava com as costas contra a parede.
Ela estremeceu quando as mãos fortes se fecharam em torno de seus braços.
_ Você é uma ameaça à população _ rosnou Raith _ , e a mim em particular. Não vou mais aturar isso.
Ele estava a ponto de sacudi-la, percebeu Katrine. Seus lábios se entreabriram num soluço de dor enquanto ele apertava seus braços.
Ao ouvir o soluço, Raith baixou o olhar para a boca de Katrine. Seu coração se apertou e a raiva desapareceu no mesmo instante. Não queria machucá-la. Deus,
não queria! Só desejava ardentemente estreitar essa mulher nos braços e possuí-la com toda a paixão de que era capaz.
Subitamente, o mundo ao redor pareceu se imobilizar. Era como se estivessem suspensos no tempo, num instante tenso e silencioso sem começo nem fim.
Katrine soube que Raith ia beijá-la. E sabia também que dessa vez ele não se contentaria apenas com um beijo. Ia fazer amor com ela, pondo um fim ao suspense
que a deixara inquieta desde o encontro sensual ao lado do regato. E sabia, acima de tudo, que era o que mais desejava em sua vida.
Raith, contudo, ainda não estava disposto a aceitar o inevitável. Ele gemeu baixinho, como se estivesse em furiosa batalha com um inimigo desconhecido e
invisível. E perdendo.
Então, rendendo-se às forças que atormentavam a ambos, sua boca pousou sobre os lábios de Katrine, numa exigência arrebatadora que para ela teve o sabor
de raiva, desejo e desesperada aceitação.

CAPITULO XII

Inevitável. Raith sabia disso há algum tempo, bem no íntimo de sua alma. Apesar de ter tentado desesperadamente manter-se distante, de procurar evitar brigas,
hostilidades e a atração, ele perdera a batalha.
Beijou-a com rudeza, como para puni-la, apertando o corpo dela contra o seu, tentando ainda escapar do feitiço agindo de maneira brutal. Mas, com um suave
gemido, Katrine amoldou-se mais contra ele, segurando sua camisa, fazendo-o sentir uma necessidade urgente, quase selvagem de ser parte dela, de possuir essa mulher
rebelde, irritante, encantadora, capaz de excitá-lo de uma forma que ~ nenhuma outra conseguira antes. Com fervor, pressionou a boca carnuda, incapaz de obter o
suficiente. Uma vez pensara que loucura o havia envolvido para fazê-lo querer tanto essa mulher. Mas era Katrine; ela era a loucura.
E agora ela estava em seus braços, entregando-se ao seu beijo ardente e selvagem. Selvagem. Com um esforço quase frenético, ele aliviou a rudeza do beijo.
O nome de Katnne estava em seus lábios, r meio maldição, meio prece, quando levantou a cabeça para respirar.
Katrine pensou que Raith fosse se afastar como fizera da outra
vez que se perderam em carícias. Instintivamente mergulhou os de-1 dos nos cabelos negros, tentando segurá-lo, enquanto arquejava:
_ Não, não pare.
_ Não.., não. _ Ele tomou novamente a boca ansiosa, tentando ser gentil, mas conseguindo apenas transmitir um fogo desesperado enquanto sua língua buscava
profundamente desvendar os mistérios da boca doce de Katrine.
O desejo apaixonado tomou conta de Katrine, despertando os lugares secretos de sua feminilidade, lugares que jamais haviam conhecido o toque de um homem.
Ela gemeu contra a boca de Raith enquanto ele, com movimentos ágeis, tirou o lenço que lhe cobria o colo e introduziu os dedos em seu decote.
Ele continuou beijando-a com ardor ao mesmo tempo que sentia a firmeza e a maciez dos. seios jovens, dos mamilos que já reagiam a seu toque. Katrine estava
tão excitada quanto ele, embora ele pudesse percéber um certo receio mesclado ao desejo.
Raith ergueu a cabeça.
_ Esta é sua primeira vez. _ Foi uma declaração, feita com voz rouca e terna, com um olhar tão intenso e quente que tocou o coração de Katrine.
Ela fez que sim, ouvindo sua respiração ofegante mesclar-se com a de Raith Sim, era sua primeira vez. Ele era seu primeiro amante e seria o único. Sabia
disso com uma convicção tão firme como as montanhas das Terras Altas.
Seus sentimentos por ele fulguravam como o briho de cristal nos olhos verdes. Mas não tinha certeza dos sentimentos de Raith.
Hesitante, estendeu a mão para tocar-lhe a face com a ponta dos dedos.
Algo na expressão de Katrine fez o coração de Raith se apertar. Os olhos dela estavam baços de sensualidade, mas o olhar era inquisidor, quase suplicante.
Só quando a ouviu dizer baixinho "por favor, não me deixe", foi capaz de entender. Ela estava se oferecendo e temia ser rejeitada.
Uma onda de prazer invadiu-o.
Com dedos tremulos começou a despi-la, soltando os laços do peitilho rígido para libertar os seios.
_ Bela Katie _ sussurrou com reverência, inclinando-se para beijar os mamilos. _ Como eu a quero.
Katrine suspirou emocionada e sussurrou o nome dele, mal acreditando que vivia aquele momento mágico.
Com gestos impacientes, Raith começou a soltar o corpinho do vestido mas, quando Katrine tentou ajudá-lo, ele afastou suas mãos.
_ Não, deixe-me fazer isto.
Obediente, Katrine ficou imóvel, os lábios entreabertos e a respiração incerta enquanto ele se demorava de propósito. Ansiava por tocá-lo, por abraçá-lo,
por sentir de novo o corpo másculo contra o seu, mas Raith estava decidido a conter a violência de seu desejo.
Vagarosamente o vestido e as anáguas seguiram o caminho do peitilho. Depois foi a vez das anquinhas, que ele soltou com dedos nervosos, e da combinação
de cambraia. Quando se ajoelhou para retirar as meias e sapatos, Katnne estava sofrendo um grave ataque de constrangimento, mas lutando contra as forças conflitantes
do pudor e do desejo, ela manteve o olhar na cabeça escura, imaginando como Raith podia permanecer tão calmo quando ela sentia-se tão agitada, quente e febril. Mas,
quando ele olhou para cima, pôde ver a paixão em seus olhos e soube que seu controle igualava-se ao dela.
Levantando-se, Raith deu-lhe um beijo leve e deliciosamente provocador, e afastou-se alguns passos. Todavia, continuou a admirá-la enquanto tirava a camisa.
Apesar de sua timidez, Katrine ficou olhando-o. Na semi-escuridão pôde ver os músculos ondulantes de seus braços e ombros, e desejou tocá-los.
Ele sentou-se no baú para tirar os sapatos e as calças. Como que enfeitiçada, Katrine não conseguiu desviar o olhar, nem mesmo quando Raith ficou nu diante
dela. Sentiu um pouco de medo, mas imaginar que ele poderia subitamente arrepender-se e se afastar-se levou-a a chamá-lo para juntar-se a ela novamente.
_ Raith... venha, me abrace.
Raith voltou para perto dela e tomou o corpo nu e trêmulo nos braços.
O leve embaraço de Katrine desapareceu com o beijo faminto.
_ Meu doce tormento _ murmurou Raith e continuou a falar baixinho, por entre os beijos.
Mas Katrine mal conseguiu entender o sentido das palavras roucas, pois estava dominada pelas sensações incríveis que Raith despertava nela. Tormento. Sim,
era o que ele estava causando, pensou loucamente, quando os dedos ásperos começaram a acariciar seus mamilos sensíveis.
_ Raith... por favor... _ Implorou, abraçando-se com força contra ele.
_ Devagar, Katie, devagar...
Mas o próprio Raith teve dificuldade em seguir essa determinação quando Katrine passou os braços em torno de seu pescoço e arqueou-se contra ele. Sentindo
o mesmo desespero _ como se fosse morrer se não a tivesse logo _ pegou a mão trêmula e a fez deitar-se na cama. Antes mesmo que pudesse deitar-se sobre ela, a boca
de Katrine já procurava cegamente a sua.
Ele respondeu o beijo com urgência e deslizou os dedos pela pele de cetim até encontrar o recanto macio entre as coxas. Para sua surpresa e deleite, constatou
que o corpo de Katrine já se aprontara para receber o dele.
Um longo e prazeroso estremecimento de antecipação percorreu-o.
Ele ergueu a cabeça para olhar para Katrine, para deliciar-se com o rosto corado com o prazer de seus beijos, com os cabelos cor de cobre espalhados desordenadamente.
Os lábios estavam úmidos e entreabertos, os olhos fechados, e a expressão falava de uma expectativa que fez sua pulsação se acelerar mais ainda com a vontade de
atendê-la e dar-lhe a satisfação que pedia.
_Eu sonhei tanto com isto... _ murmurou, deixando o olhar descer para as coxas esbeltas que se abriam sob seu toque.
Katrine também sonhara com isso, mas seus sonhos perdiam intensidade em comparação com a realidade de se entregar a esse homem belo e viril.
Katrine pensou que morreria de tanto prazer.
_Raith! _ choramingou, estendendo as mãos e enrolando os dedos nos pêlos macios que cobriam o peito musculoso.
Raith deixou-se puxar até que seu corpo se amoldasse ao dela de modo a permitir que os quadris ficassem colados.
_Devagar, amor... devagar _ ele alertou, enquanto rezava por encontrar a força de vontade para não mergulhar dentro dela como um adolescente com sua primeira
mulher.
Era como Katrine o fazia sentir, como se jamais tivesse feito amor com uma mulher antes dela. Era uma experiência nova, como ver o nascer do sol com ela
pela primeira vez.
_Katrine _ murmurou contra os cabelos de fogo enquanto seus dedos encontravam os segredos de sua feminilidade. Abrindo-a para ele, penetrou-a com imenso
cuidado, com infinito vagar. A exaltação que sentia só se intensificou.
Sob ele, Katrine segurou a respiração quando Raith a preencheu daquela forma cautelosa. Experimentou uni único instante de dor quando sua virgindade cedeu
sob o avanço carinhoso, mas estava tão envolvida pela excitação que mal a percebeu. Sentia-se atordoada, perdida numa escuridão sensual, mas Raith estava com ela,
compartilhando a deliciosa sensação de união.
_Eu a estou machucando? _ Raith perguntou ansioso.
_Não! Por favor.., não pare.
Tranqüilizado pela paixão que percebeu na voz dela, Raith recomeçou seus movimentos. Quando estava todo dentro dela, no seu calor receptivo, soltou um gemido
entrecortado.
O único pensamento que lhe ocorreu enquanto se derramava nela, enquanto possuía seu corpo, coração e alma, foi apenas o encantamento de sentir que a necessidade,
o desejo e a alegria podiam se mesclar, fazendo-o passar por uma experiência maravilhosa.
Depois todos os pensamentos desapareceram enquanto os tremores de prazer o envolviam num rodamoinho de sensações.
A noite já caíra por completo quando a paixão se esgotou e seus corpos relaxavam. Katrine sentia-se completa, purificada pelo fogo da paixão. Fazer amor
com Raith satisfizera todos os anseios que guardava no fundo de seu coração. A inquietação que sentira nos últimos tempos havia desaparecido para ser substituída
por uma serena alegria, uma certeza de que os dois pertenciam um ao outro, apesar das diferenças entre eles.
Quando Raith mexeu-se de leve, apertou-o em seus braços, temendo que se afastasse. Mas ele só acertou a posição do corpo para aliviála de parte de seu peso.
Katrine suspirou. Lânguida e feliz, continuou pensando no homem que amava. Ele era um líder anojado, um homem com um propósito, corajoso, mas cheio de bondade.
Era alguém com quem se podia contar. Além disso, possuía a mordacidade espirituosa que combinava com a dela. Imaginou-se contando às irmãs: esta é minha alma gêmea,
o homem com quem quero me casar. O homem cujos filhos quero carregar, cuja vida e fardos desejo compartilhar. E o encontrara nas Terras Altas, exatamente como sonhara.
Ela suspirou de novo quando sentiu Raith beijar sua testa.
_ Você está bem? _ A voz baixa e rouca interrompeu seu devaneio.
_ Estou. Eu nunca me senti tão bem.
Ele ergueu a cabeça. Na escuridão Katrine pôde sentir o olhar de Raith fitando-a intensamente e antes que pudesse abrir os olhos ele a beijou com doçura.
Depois, afastou-se vagarosamente.
_ Aonde você vai? -_ perguntou ela um tanto aborrecida, quando Raith levantou-se da cama.
_ A nenhum lugar. Calma. não vou sair daqui.
Katrine ouviu-o movimentar-se pelo quarto, antes de acender uma vela. Piscou com a luz e logo segurou a respiração quando a chama iluminou o corpo belo,
firme e excitante de Raith. Ele estava incrivelmente atraente com os cabelos despenteados tombando sobre a testa alta. Um bandoleiro impiedoso que roubara seu coração...
Mas nenhum bandoleiro teria mostrado tanta consideração, tanta ternura, enquanto derramava a água do jarro na bacia e a trazia para perto da cama junto
com uma pequena toalha. Então ele umedeceu o pano e o passou sobre suas coxas para lavar as evidências da paixão e de sua inocência.
Katrine não saberia dizer se ficou embaraçada pela intimidade do ato ou pelo modo casual como ele exibia sua nudez, mas o fato é que corou.
_ Fique quietinha _ disse, quando ela mudou de posição, inibida com seus cuidados. Ele terminou a tarefa em silêncio.
Enquanto a limpava, Raith lutava com suas próprias emoções. Não pretendera ir tão longe. Estava decidido a nunca mais tocá-la e, quanto mais, deixar sua
paixão escapar de seu controle. Sua idéia era prendê-la o resto da noite no quarto e conversar com ela pela manhã, quando estivesse mais calmo.
Esse era o plano, mas, como todos os outros envolvendo Katrine, também havia fracassado. Contudo, se tivesse conseguido pensar melhor, saberia que aquela
seria a única conclusão natural depois de semanas de frustração. E, por enquanto, não podia lamentar o que tinha acontecido. Não. Sentia-se vivo como nunca se sentira
desde... desde os dias despreocupados da juventude. Sentia-se vivo e alegre, com o sangue fluindo rápidos nas veias e um desejo forte ainda latejando em seu corpo.
Mas a culpa também perturbava sua consciência. Afligia-se com a possibilidade de ter engravidado Katrine. Enquanto delicadamente retirava os últimos vestígios
das manchas da pele, ele surpreendeu-se olhando para a junção entre as coxas esbeltas, não pensando no êxtase que sentira, mas calculando com um olho clínico o tamanho
de seus quadris e posição de sua ossatura. Seria ela capaz de ter filhos com facilidade? Ou também viveria a agonia de ter o corpo rasgado por um filho natimorto,
o que resultaria numa febre que esgotaria sua vida?
Mas agora era tarde demais para se preocupar com as conseqüências do ato. Com esforço, afastou os pensamentos mórbidos.
Colocando a bacia e o pano no chão, deitou-se na cama e tomou Katrine nos braços. Sentia uma necessidade imensa de protegê-la, de abrigá-la contra o mundo
e contra ele mesmo, mas agora queria apenas abraçá-la, saborear o momento de paz que partilhavam, o primeiro em semanas de convivência. Estranhamente, queria tranqüilizar
essa mulher geniosa e briguenta. Sentia pelo modo como Katrine escondera o rosto em seu peito que ela estava envergonhada. Reprimindo um sorriso, acariciou seus
cabelos. Nunca imaginara que essa Campbell de sangue quente fosse se mostrar tímida e sem jeito.
_Não há de que se envergonhar _ disse baixinho. _ O que aconteceu entre nós foi... _ Fez uma pausa, procurando a palavra adequada _ natural. _ E fora mesmo,
pensou. Fazer amor com Katrine fora tão natural como respirar.
Ela reencontrou sua coragem e afastou-se um pouco para poder olhá-lo nos olhos.
_Desculpe-me por não saber o que fazer... como agradá-lo...
_Você me agradou demais. Eu nunca... _ Raith parou subitamente. Não adiantava dizer-lhe que jamais experimentara tanto prazer. Depois dessa noite não aconteceria
de novo. Não permitiria. Disse, em vez disso: - Um homem preza a inocência numa moça. Mas você deveria tê-la guardado para seu marido.
Katrine permaneceu em silêncio. Aquele não parecia o momento apropriado para confessar que já pensava nele como seu marido. Raith obviamente não estava
pronto para ouvir isso. E ela precisava de tempo para ponderar como persuadi-lo a imitar seu modo de pensar.
_Sou o culpado pelo que aconteceu _ disse Raith baixinho. _Eu devia ter mais controle. _ Depois de um instante, deu uma leve risadinha. _ Nem me lembro
mais do motivo de nossa briga. Só sei que estava furioso.
Eu não queria deixá-lo furioso.
Não mesmo? Então suponho que isso é algo que vem sem você pensar. Pelo menos descobri um modo de calar sua linguinha afiada. Mas não posso permitir que
todas as discussões terminem com nós dois rolando na cama.
_E por que não? _ sorriu Katrine.
Ele riu baixinho de novo, mas falou com uma severidade que a assustou.
_Por vários motivos, mas principalmente por uma questão de honra.
Por que você não consegue fingir que é só um ladrão de gado e não um chefe de clã? Assim não teria de se preocupar tanto com a honra.
Com um suspiro, Raith fechou os olhos e pôs o braço sobre a testa. Porém, enquanto mudava de posição, sentiu a palha espetar suas costas.
_Callum tinha razão _ falou. _ Você não pode estar acostumada a um colchão como este. Amanhã vai se mudar para um dos quartos desocupados. Ficará nele até
ir embora.
Era uma concessão, sabia Katrine. Ele agora estava disposto a conceder-lhe a hospitalidade que oferecia para uma visita.
O problema era que nao queria mais ir embora. Nunca. Também não desejava ser apenas uma hóspede.
_Raith? _ começou, reunindo coragem. _ Penso que devo lhe contar porque me tranquei na leiteria. Estava cansada de esperar por uma informação relacionada
com meu resgate e pensei...
_Não quero falar sobre isso agora.
_Mas eu preciso lhe contar. Eu queria forçá-lo a entrar em contato com meu tio...
_Katrine, falaremos sobre isso amanhã. Assim, se houver qualquer incidente desagradável, você poderá se trancar num quarto decente e ficar ali quanto quiser.
O tom decidido a fez se rebelar.
_Acho que eu preferiria uma masmorra. Assim, pelo menos, você teria de me tratar como uma prisioneira de. guerra e não como uma inconveniência.., um estorvo.
Raith evitou comentar que ela era exatamente isso.
_Se eu tivesse uma masmorra, não seria idiota para prendê-la lá. Você suscitaria muita compaixão de meu clã.
_E merecidamente, devo dizer!
Ele ergueu-se num cotovelo.
_Katrine, não é hora para brigar.
_E por que não?
Raith olhou para ela, para os cabelos despenteados, os olhos cintilantes e a boca macia e vulnerável... Seu desejo voltou com intensidade. Mais uma vez,
uma única vez, ele pensou. O risco não seria maior.
_Porque, minha doce megera, temos coisas muito mais agradáveis para fazer _ falou, inclinando-se sobre ela.
_Raith, eu ainda acho que...
_Quer ficar quieta?
Sua mão deslizou entre os cachos ruivos e foi curvar-se sobre a nuca macia. Começou a beijar o queixo voluntarioso, a pele macia do pescoço.
Uma última vez, pensou Raith. Só mais uma, depois... Mas ele deixou o pensamento incompleto enquanto se entregava ao prazer de amá-la com toda a paixão
de que era capaz.
Mais tarde, quando Katrine dormia em seus braços, ele manteve-se acordado, olhando para o teto inclinado, observando as sombras dançantes produzidas pela
chama da vela.
Nunca deveria ter deixado o relacionamento chegar a esse ponto, nunca deveria ter envolvido Katrine num dilema que não poderia ter uma solução feliz. Não
a tocaria mais, nunca, mesmo que tivesse de sair de sua própria casa. Sim, talvez fosse essa a melhor atitude. Só distanciando-se de Katrine conseguiria fugir da
tentação de possuí-la.
Vagarosamente, de forma a não perturbá-la, Raith virou-se para olhar sua teimosa, irascível e independente refém. Sentiu um aperto no peito, uma emoção
indesejada. Katrine parecia muito inocente quando estava adormecida. Inocente e completamente em paz. Não tinha nada da virago de língua afiada.
Agora ela parecia saciada e tranqüila, mas mantinha a vivacidade que tanto o encantava. Era tão bela, tão bela...
Estendeu a mão para tocar a face corada, mas seu dedo enroscouse num cacho ruivo. Segurou-o por um logo momento, mas então soltou-o com determinação.
Se pretendia recuperar a capacidade de raciocinar, tinha de começar agora. E isso significava não se entregar ao desejo de tocá-la, de beijá-la até vê-la
entregar-se em total abandono.
Não, não podia permitir que isso acontecesse de novo. Nunca mais.
CAPITULO XIII


A madrugada estava terminando quando Raith desvencilhou-se cuidadosamente de Katrine. Esgueirando-se para fora das cobertas, vestiu-se depressa e foi até
a janela. Aspirou profundamente o ar frio, lembrando-se de sua resolução. Contudo, não conseguia banir de sua mente as recordações da noite que acabara de passar
com Katrine.
Praguejando baixinho, ele encostou o braço na janela e apoiou a testa nele. Para renovar sua decisão obrigou-se a pensar no motivo de Katrine estar ali,
de sua traição contra seu clã e das crenças de seu clã sucumbindo a uma insuportável atração por uma Campbell.
Katrine abriu os olhos devagar. Procurou por Raith ao lado da cama e então viu-o junto à janela, concentrado na paisagem.
Ergueu-se num cotovelo, puxando o cobertor para cobrir os seios.
_ Raitb?
Ele levou um longo momento para virar-se. Estava despenteado e a barba escurecia seu queixo. Os olhos azuis não mostravam qualquer emoção.
_ Eu estava falando sério na noite passada quanto a você mudar para um outro quarto. Flora lhe indicará um deles. Você pode continuar deitada o tempo que
quiser. Meggie, porém, ficará desapontada. Eu lhe prometi que você voltaria a lhe dar aulas nesta manhã. Seria muita gentileza sua continuar ensinando-a até a hora
de ir embora.
Raith parecia ter absoluta certeza de que ela iria partir, pensou Katrine. Ela respirou fundo, sabendo que chegara a hora de falar.
_ Eu não quero ir embora. Quero ficar aqUi.., com você.
_ Impossível. _ A resposta foi lacônica e tão veemente que doeu.
_ Por quê? Você não me quer?
_ Não a quero? O que eu quero tem muito pouco peso na questão. Se seu tio persuadir Argyll a tratar bem o meu clã, você será devolvida a ele sã e salva...
embora maculada.
A seriedade da afirmação não encobria o sofrimento.
_ Eu te amo _ confessou Katrine baixinho.
Raith suspirou profundamente antes de dizer, afinal:
_ Você está enganada.
_ É verdade, Raith, sei exatamente o que estou dizendo.
Ele virou-se para ela de novo, lançando-lhe um olhar atormentado.
_ Está confundindo paixão com amor.
_ É amor _ afirmou Katrine, enfrentando seu olhar. _ Ás vezes acontece.
_ Não. _ Raith balançou a cabeça. _ Você deve estar preocupada sobre com o que houve. Mas quero que entenda que se... se houver alguma conseqüência de nossa
união, eu a ajudarei financeiramente.
Conseqüência? Seria ele incapaz de dizer a palavra "criança"?
_ Eu gostaria de ter um filho seu _ disse Katrine, imaginando se a idéia de ter um filho o aborrecia porque havia perdido a esposa no parto, ou porque jamais
se casaria com ela por ser uma "maldita Campbell inglesa
Ele cerrou os dentes, parecendo aturdido sem saber o que responder. Depois de um silêncio que chegou a deixá-la tensa, ele falou, mudando completamente
de assunto:
_ O que você pretende fazer sobre Meggie?
Deus, pensou Katrine desesperada! Ele pretendia ignorar o problema do envolvimento entre eles: queria esquecer a intimidade que haviam partilhado e agir
como se a noite anterior não tivesse existido!
Sentiu vontade de argumentar, de insistir no assunto, mas viu que o momento não era propício. Ele estava confuso e tinha motivos para precisar de tempo
para assimilar a realidade de um amor que, sem dúvida, envolvia problemas.
_ Quanto a Meggie, claro que continuarei a ensiná-la _ disse calmamente. _ Ela não deve sofrer porque eu e você temos nossas diferenças.
_ Será bom para ela.
Sem mais uma palavra, Raith dirigiu-se para a porta. Pareceu hesitar um instante, mas logo levantou a tranca e saiu.
Katrine apertou o cobertor contra os seios. Raith seria mesmo capaz de esquecer tudo que se passara entre eles com tanta facilidade quanto queria mostrar?
Ela não conseguiria e também não o deixaria ignorar. Se conseguisse fazer as coisas ao seu modo, Raith acabaria aceitando o que ela já aceitava como um desígnio
do destino: que os dois tinham sido feitos um para o outro.
Mais cedo ou mais tarde a inimizade entre seus dás deixaria de ter importância para ele. Mais cedo ou mais tarde a devoção que sentia pela primeira esposa
se tornaria apenas uma lembrança distante. Sim, jurou Katrine, um dia Raith a amaria sem reservas ou amargura.
O pensamento a encheu de segurança e determinação.

A disposição de Katrine murchou quando ela teve de enfrentar as pessoas da casa. Todos, com exceção de Meggie, talvez, tinham visto ou sido informados de
que o lorde desaparecera na noite passada depois de arrastar sua refém ao quartinho do sótão.
A especulação rendeu a Katrine vários olhares curiosos dos criados, que lhe deram uma boa noção sobre os boatos que estavam correndo. Conseguiu ignorá-los
dedicando toda atenção às lições de Meggie, mas Flora passou o dia todo com um ar de completa desaprovação. Na hora do almoço, uma das arrumadeiras cruzou com Katrine
e resmungou uma palavra que a fez empalidecer de choque e raiva.
Ninguém mais disse nada. Ninguém exceto Callum.
À tarde, quando Meggie estava cochilando, Katrine entrou na sala de estar do segundo andar, sentindo-se infeliz e novamente marginalizada. Ganhara um novo
quarto, muito bonito, com vista para as montanhas de Ardgour, mas nem isso melhorara seu estado de espírito. Não via Raith desde a madrugada e e sabia, sem que ninguém
lhe cotasse, que ele redobrara esforços para evitá-la.
_E então, bela Katie, conseguiu cantar vitória? _ disse Callum da porta, enquanto ela tocava distraidamente as flores de um vaso.
Katrine virou-se e arregalou os olhos ante a elegância do primo de Raith. Ele usava os trajes de um cavalheiro das Terras Altas e era uma figura digna de
aparecer na corte, se esse tipo de indumentária não estivesse proibida. O saiote e as meias eram de finíssima lã e o casaco curto de veludo preto tinha uni corte
perfeito. O xale estava preso num ombro com um broche de prata pesada e havia rendas no colarinho e nos punhos da camisa.
_ Vamos a uru casamento _ disse ele justificando sua elegância. _ Uma moça Stewart e o filho de um lorde Cameron. Não seria adequado aparecermos vestidos
à moda do sul, apesar dos decretos dos ingleses.
Katrine balançou a cabeça. Esses escoceses agarravam-se orgulhosamente aos seus costumes, mesmo correndo o risco de serem enforcados por traição. Sentiu
uma onda de irritação diante de tanta teimosia.
_Que história é essa de eu cantar vitória? _ perguntou, sem esconder o mau humor.
_Suas novas acomodações. Tudo indica que foi bem sucedida erni fazer Raith atender suas reivindicações.
Katrine corou ao ouvir a calma certeza na voz de Callurn. Ele sabia exatamente o que acontecera entre ela e seu primo.
_Ele não lhe contou o que houve? _ perguntou, lutando contra o embaraço. Uma coisa era entregar sua inocência ao homem que amava. Outra, bem diferente,
era seu comportamento ser assunto de conversas públicas.
Mas Callum apressou-se a tranqüilizá-la.
_Raith jamais seria indiscreto sobre uma dama, Katrine. Acima de tudo, ele é um cavalheiro. Mas não foi difícil adivinhar.
Katrine levou as mãos ao rosto num gesto quase involuntário. Mal teve coragem de enfrentar o olhar do rapaz. No entanto, Callum não parecia condená-la.
Havia compreensão em seus olhos escuros.
_Isso ia acontecer _ disse ele, erguendo os ombros. _ De fato, estou surpreso por ter demorado tanto. Raith esteve agindo como um gato selvagem acuado desde
que pôs os olhos em você.
_Suponho que devo ser grata pelo seu apoio _ retrucou Katrine com azedume.
_Não me fustigue com sua língua letal, minha cara _ sorriu Callum. _ Você nunca precisou de meu apoio. Eu tive certeza, desde que a vi pela primeira vez,
que podia muito bem tomar conta de si mesma.
Sem pedir licença, ele entrou e acomodou-se no sofá forrado de damasco dourado, cruzando as pernas e entrelaçando as mãos no colo, dando impressão de que
pretendia permanecer na sala por mais algum tempo e discutir seu relacionamento com Raith.
_Confesso que fiquei satisfeito _ começou, confirmando as suspeitas de Katrine _ em ver você e Raith chegando a bons termos. Os dois ficaram em campos opostos
muito mais tempo do que eu esperava.
_Que bons termos? Se quer mesmo saber, continuamos em campos opostos. Ele se recusou a falar sobre meu resgate.
Callum ergueu uma sobrancelha.
_Quer dizer então que meu caro primo a seduziu sob seu próprio teto e agora está se recusando a enfrentar as conseqüências?
Katrine sentiu as faces em fogo diante de tanta franqueza.
_ Não _ admitiu. _ Raith prometeu que arcará com qualquer despesa se houver conseqüências... E para falar a verdade _ acrescentou, ainda mais embaraçada
_ . ele não me seduziu. Só... só aconteceu.
Houve um momento de silêncio enquanto Callum a observava atentamente.
_ Se você não fosse quem é, Raith a pediria em casamento.
Katrine lançou-lhe um olhar esperançoso.
_ Acha mesmo? _ Ela nunca pensara fazer de Callum seu confidente, mas ele poderia ajudá-la a compreender Raith.
_ Você conhece bem seu primo?
_ Sim. Fomos criados quase como irmãos. Estudamos com os mesmos professores particulares e fomos juntos à universidade. O velho lorde achava que eu era
um rapazinho esperto e providenciou para mim uma educação de cavalheiro.
Foi a vez de Katrine erguer uma sobrancelha. Callum lhe contara que era um filho natural e o fato de ter sido tratado como alguém da família, além de sua
semelhança com Raith, a fez imaginar se os dois homens eram mais do que primos. No entanto, as boas maneiras não permitiriam que fizesse uma pergunta direta, indagando
se o velho lorde era seu pai.
A pergunta não posta em palavras deve ter ficado evidente em sua expressão, pois Callum sorriu.
_ Não, o lorde de Ardgour não era meu pai, embora por muitas vezes desejei que fosse. Minha mãe foi uma escocesa que teve a infelicidade de se apaixonar
por um inglês. Um nobre, para ser exato. Um belo e rico lorde sassenach que já possuía uma mulher.
A despeito do tom leve, Katrine desconfiou que Callum guardava no íntimo uma grande amargura. Será que todos os MacLean tinham ódio dos ingleses, pensou
com um suspiro. Desanimada, andou pela sala nervosa. Quando se sentou, lançou um olhar preocupado a Callum.
_ Você disse que se eu fosse uma outra pessoa... O que acha que Raith mais detesta em mim, meu sangue inglês ou o fato de eu descender dos Campbell?
_ Acredito que seu lado Campbell. Raith foi criado ouvindo histórias sobre as traições dos Campbell e elas não são exageradas. Se você conhece um pouco
da história de seu clã, deve saber que cada chefe Campbell que viveu até agora era um mestre na astúcia. Eles nunca se envergonharam de bajular reis ou nobres em
posição de poder ou de usar meios inescrupulosos para atingir seus fins. Foi assim que um dos duques de Argyll obteve cartas de comissão para perseguir o clã MacLean
com fogo e espada.
Katrine ouviu em silêncio, sem uma palavra de protesto. Era estranho como Callum não a irritava como Raith quando comentava o passado. Mas Raith fazia todas
as discussões sobre os Campbell parecer uma acusação pessoal a ela, enquanto seu primo só apresentava fatos. E, para ser honesta, tinha de admitir que havia muito
de verdade no que ele falara. Os barões e duques de Argyll do passado tinham sido bem conhecidos pela sua habilidade em fomentar a luta e a discórdia e sempre haviam
ficado do poder.
_ Sabe, Katrine _ continuou Callum _ , temos bons motivos para acusar seus chefes de serem maldosos e espertalhões. Quando os MacLean de Duart perderam
suas propriedades há sessenta anos, o castelo de Duart foi entregue à coroa, mas acabou indo parar nas mãos de Argyll.
O castelo de Duart ficava na ilha de Mull, lembrou-se Katrine, perto do porto de Oban, onde ela havia desembarcado.
_ E, claro, houve Culloden _ disse Callum. _ Todos os verdadeiros escoceses se sentiram traídos pelos Campbell quando eles se colocaram ao lado dos ingleses.
Você pode culpar Raith por sentir a mesma coisa?
Ela não respondeu. Não havia nada que pudesse dizer, pois compreendia muito bem os sentimentos de Raith a respeito.
Callum continuou:
_ Depois do Quarenta e cinco, Raith passou um mau pedaço recuperando a propriedade de Ardgour. Estávamos à beira da ruína. Talvez seja por isso que ele
se sente pessoalmente responsável pelos MacLean de Duart. Afinal, ele conseguiu salvar sua herança quando os homens de Duart ficaram sem nada, nem mesmo com a terra
em que nasceram.
Katrine olhou para suas mãos, sentindo-se um tanto envergonhada. Freqüentemente criticara Raith por ser tão teimoso em sua oposição ao duque e jamais pensara
no seu lado da questão. Também nunca tentara ajudá-lo a atingir seus objetivos. O que ele queria parecia muito razoável, agora que pensava no assunto objetivamente:
aluguéis justos que não deixariam os MacLean de Duart à beira da inanição. Talvez, se ela falasse com o tio, ou levasse o caso dos MacLean diante do duque...
Mas, mesmo se os convencesse da justiça da causa dos MacLean, mesmo se Raith esquecesse de seu sangue de Campbeli, ainda assim não sabia se ele concordaria
em se casar com ela.
Katrine virou o rosto sombrio para Callum.
_Raith uma vez me disse que ele... que não haverá mais crianças aqui enquanto ele for o lorde. Tenho a impressão de que isso não me ajuda.
_Bem, quanto a isso, não posso culpá-lo por não querer voltar a passar pelo que passou. Morag, a parteira, viu-se obrigada a... a desmembrar seu filho para
tentar salvar Ellen. Nem preciso dizer que foi um algo terrível.
Katrine estremeceu.
_Então é por isso que ele nem quer tomar conhecimento da existência de Morag.
_Não o julgue com muita dureza, Katrine. Não é fácil para um homem esquecer uma situação como essa, quando ele se viu impotente para~fazer qualquer coisa
para ajudar. Raith quase enlouqueceu ao ver o filho e Ellen daquele jeito. Juro que uma guerra é menos traumática. Além disso, ele se culpa por não ter ido buscar
um médico em Edinburgo antes do parto, mas duvido que alguém poderia salvar Ellen. O médico que veio depois disse que Morag agiu da melhor forma possível e que nada
poderia ter sido feito pela mãe e pela criança.
Katrine manteve-se em silêncio, pensando na tragédia e desejando que houvesse alguma coisa que pudesse fazer para aliviar o sofrimento de Raith. A primeira
seria parar de criticá-lo por evitar Morag.
De repente Callum balançou a cabeça e deu uma risadinha travessa.
_Nossa, mas como ficamos sérios! Alegre-se, bela Katie. Este não é o clima adequado para antes de um casamento. Você já assistiu a uma cerimônia escocesa?
_Não.
_Ë pena que não possa nos acompanhar. Você se divertiria. A festança costuma ser longa e só estaremos de volta pela manhã?
_Todo esse tempo? Mas pensei que o casamento era algo muito simples aqui na Escócia.
_Ele pode ser simples, mas esse que vamos assistir se dará com toda a pompa e cerimônia. Igreja com culto, festas e muito mais. _ Callum riu. _ Eu prefiro
uma cerimônia simples, em que o casal se declara casado diante de testemunhas e já está tudo legal e terminado. Sem fricotes. Por sorte conseguimos nos agarrar às
nossas leis por ocasião de nossa união com a Inglaterra.
Katrine sabia ao que Callum se referia. O reconhecimento da legislação escocesa fizera parte do Ato de União, o tratado pelo qual a Inglaterra e a Escócia
tinham combinado formarem a Grã-Bretanha.
Depois da união, as leis sobre o casamento tinham permanecido imutáveis na Escócia. Não havia necessidade de ritos executados por um religioso nem de documentos
escritos. O casamento era um contrato verbal, selado por consentimento mútuo, mas considerado pienamente legal e até mesmo reconhecido na Inglaterra. Katrine lembrou-se
que há apenas poucos meses brincara com sua irmã mais nova, aconselhando-a a fugir com o noivo para a fronteira da Escócia, para evitarem os grandes e cansativos
preparativos para o casarnento.
A risada de Callum interrompeu seus pensamentos sobre núpcias.
_ Mantivemos muitos outros de nossos costumes, você sabia?
Acredite ou não, aqui nas Terras Altas ainda praticamos o roubo de noivas. É bom tomar cuidado, bela Katie. Um admirador poderá pegá-la de surpresa e você
acabará como a exausta mulher de um granjeiro com uma dúzia de moleques na barra da saia.
Katrine balançou a cabeça sorrindo. Duvidava que alguém fosse raptá-la para ser sua esposa. Pelo menos, não o único homem que amava.
_ Se me der a licença de interromper, primo _ a voz áspera veio do outro lado da sala _ , os cavalos já estão prontos.
Katrine olhou para a porta abruptamente. Raith fitava Cailum com ar sombrio.
Usando um traje típico ainda mais esplêndido do que o do primo, ele era o protótipo de um chefe de clã. O tartan dos MacLean parecia ter sido criado especialmente
para combinar com sua pele morena e o veludo e as rendas no pescoço e punhos eram dignas dos mais rico dos nobres. Vendo-o em todo seu esplendor, Katrine entendeu
facilmente por que os habitantes das Terras Altas admiravam tanto seus lordes.
Raith mal olhou para ela antes de se afastar. Nem sequer notou que ela o contemplava, embevecida.
Mas Callum notara sua reação. Com esforço, ela conseguiu enfrentar seus olhos.
_ Acho que é melhor você ir agora, Callum.
Ele levantou-se e estendeu a mão para despedir-se. Mas em vez de levá-la aos lábios, como seria de se esperar, apertou seus dedos num gesto de companheirismo
e apoio.
_ Coragem, Katie. Ele acabará caindo em si.
Ela não tinha tanta certeza, mas conseguiu sorrir.
Depois da partida de Callum, Katrine ficou sentada por uni longo tempo, pensando em Raith e imaginando se teriam um futuro juntos. Queria desesperadamente
continuar nas Terras Altas. Ali encontrara toda a aventura e excitação que poderia esperar. E romance.
Pouco a pouco seus pensamentos foram concentrando em casamentos e cerimônias. Lembrando-se de sua conversa com Callum, começou refletir sobre as leis escocesas.
Então uma idéia começou a se delinear em sua mente.

Mas o destino e Raith conspiraram contra ela. Dois dias se passaram antes de conseguir vê-lo de novo. Imaginou que ele estava fora, mas não tinha a quem
perguntar sobre seu paradeiro. Desde que passara a noite com Raith, Flora voltara a ser séria e seca, e as outras criadas seguiam seu exemplo. Quanto aos homens,
Callum, Lachlan e até mesmo Hector hàviam sumido. Um rapazinho viera trazer o caneirinho de Meggie para a menina alimentá-lo, mas se recusara a dizer qualquer palavra.
Fora como se ela voltasse a ser o odiado inimigo, apesar da posição de hóspede que suas novas acomodações lhe conferiam.
De início pensou que Raith devia ter voltado a Fort William para entrevistar candidatas a governanta e que Callum fora cuidar de contrabando _ se era mesmo
essa sua ocupação. Mas ao notar que vários dos homens mais chegados a Raith também não se encontravam por perto, concluiu que os MacLean tinham ido se encontrar
com seus parentes Duart. Essa possibilidade encheu-a de receio. Logo não teria mais tempo para persuadir Raith a deixá-la ficar. Reviu seus planos e decidiu que
não lhe restavam outras opções.
Katrine estava no quarto de brinquedos com Meggie quando Raith e seus parentes finalmente voltaram. No instante em que ouviu os cavalos no pátio, correu
para a janela. Quando viu Raith dirigir-se para a cocheira, calculou que ele iria para o salão tornar uma bebida com seus homens.
Era exatamente o que ela estivera esperando _ uma reunião do clã. Mandando Meggie desenhar um pássaro, ela correu para as escadas tomando a direção da cozinha.
Como imaginava, encontrou Flora colocando cerveja nos jarros e arranjando as canecas em bandejas.
_ Posso ajudar? _ ofereceu.
Flora lançou-lhe um olhar desconfiado, mas não objetou quando a viu pegar uma das bandejas.
Katrine carregou-a para o salão, com o coração querendo saltar pela boca. Quando chegou à porta, procurou por Raith. Para sua surpresa, viu-o de cabeça
baixa, olhando fixamente para a mesa, sem participar da conversa animada dos outros homens.
O primeiro a olhar para a porta foi Calhim.
_Ah, Katie! Entre. Senti saudade de você, minha ruiva linda. Raith ergueu a cabeça, semicerrando os olhos, mas Katrine teve o cuidado de se concentrar em
Callum. Descobriu que estava feliz por ver o malandro charmoso. E Lachlan também. E até mesmo Hector. Nem parecia que os conhecia há apenas um mês! Mas agora faziam
parte de sua vida e nada mais apropriado que fossem suas testemunhas, pensou com o coração aos saltos.
Reunindo toda sua coragem, ela entrou no salão.
_Devo confessar que também senti saudade de você _ disse a Callum num tom doce, colocando a pesada bandeja perto dele. _Sua viagem foi bem sucedida?
Callum lançou um olhar travesso para Raith.
_Sim, muito. Você gostará de saber que os MacLean finalmente apresentaram suas exigências ao seu tio, inclusive as condições de sua libertação.
Katrine, que colocava cerveja em uma das canecas, se imobilizou, rosto empalidecendo. Estaria Raith tão ansioso em se livrar dela que arriscara a sorte
de seus parentes com uma ação precipitada? Ou ele verdadeiramente pensava que estava na hora certa de dar a cartada seguinte no conflito?
Olhou para ele, encontrando uma expressão sisuda.
_Você contou que era o responsável pelo meu seqüestro?
_Não sou um idiota, srta. Campbell.
A resposta sardônica não aplacou seus temores. Apesar de Raith ter feito as exigências sem se identificar, o duque de Argyll iria saber que os MacLean estavam
por trás do rapto.
_Mas assim que você me libertar, o duque saberá quem você é. O que o impedirá de mandar prendê-lo?
Foi Callum quem respondeu, suavemente:
_Uma das condições é que Argyll não perseguirá ninguém.
_E as outras?
_ Argyll tem de fazer os tributos dos MacLean de Duart volta-
rem ao valor anterior e concordar em não aumentá-los por um período de cinco anos. Se ele aceitar e concordar em não retaliar contra nosso clã, nós a libertaremos.
Katrine colocou o jarro sobre a mesa, dando graças por ele não ter escapado de suas mãos trêmulas. Pensando no que Callum acabara de dizer, balançou a cabeça.
_ Estou feliz por vocês finalmente resolverem o impasse. Mas, quanto à questão de minha libertação voces... voces já devem estar sabendo que mudei de idéia.
Não quero ser devolvida ao meu tio. Quero ficar aqui, com todos vocês. Entendam...
Ela hesitou, respirando fundo.
_Estou reivindicando Raith MacLean, lorde de Ardgour, como meu legítimo marido.

CAPITULO XIV

O silêncio foi súbito e total. Depois, todos começaram a falar ao mesmo tempo.
_Marido!
_ Por que não nos contou, Raith?
_E com uma Campbell!
Ao lado dela, Callum riu.
_ Por Deus, Katie, você tem a coragem de um MacLean _ elogiou, aprovando a ousadia da moça.
Katrine deu pouca atenção ao clamor no salão, pois estava com a atenção concentrada em Raith. Fitava-o sentindo o coração batendo em seus ouvidos enquanto
aguardava sua reação. Declarara que ele era seu marido diante de testemunhas, segundo a lei escocesa. Se ele aceitasse, estariam casados.
Raith levantou-se. Seu rosto parecia esculpido em pedra.
_O que, em nome de Lúcifer, você pensa que está fazendo?
Houve novo silêncio, pesado e tenso. Katrine continuava a encará-lo, sem nem mesmo se atrever a respirar.
Na verdade, não tinha muita certeza do que estava fazendo. Só sabia que tivera de apressar os fatos. Raith se recusara a aceitar sua súplicas, não acreditara
nela quando dissera que o amava. Se fizesse a declaração pública, talvez ele percebesse que ela falava sério sobre querer permanecer em Cair House.
Essa atitude, pelo menos o forçaria a pensar na possibilidade de um casamento.
Katrine não só escolhera um momento em que parte do clã estava reunido para não ser ignorada, como também estava em segurança, cercada por um número maior
de pessoas. Raith não a esganaria em público, o que, no momento, parecia louco para fazer.
Como ela permanecia calada, Callum enfrentou a atmosfera tensa e a ira de seu primo, sorrindo para ele.
_ Posso oferecer minhas felicitações, primo? Você é um sujeito de sorte. Katrine será uma esposa perfeita para você.
_Não estamos casados _ Raith quase gritou para consternação de Katrine.
_Mas qual é o problema? _ Callum resolveu pôr mais fogo na situação. _ Você conhece a lei, as partes só têm de declarar consentimento mútuo diante de testemunhas
e...
_Não existe consentimento mútuo! _ Raith lançou um olhar feroz para Katrine. _ Prefiro me casar com um gato do mato.
Seus olhos faiscavam cheios de hostilidade. Katrine deu graças aos céus por não estar sozinha com ele. Num ato reflexo, chegou mais perto de Callum.
Raith, de fato, estava pensando em uma medida drástica. Mal conseguira se recuperar do último choque de vontades, mal conseguira fortalecer sua decisão
de manter-se longe dela, e agora Katrine tomara uma outra atitude maluca que o atingia, levando-o a suplicar a Deus por equilíbrio.
_Não há casamento e nunca haverá _ afirmou, decidido. _Não pretendo me casar de novo. E se o fizesse, não seria com uma Campbell de língua afiada e inglesa.
_Bem, é melhor ser amaldiçoado do que mal casado _ disse alguém.
Katrine pensou que fora Hector que falara, mas teve certeza de que foi Lachlan que veio em sua defesa.
_Acho que a srta. Campbell será uma boa senhora de Ardgour. Ela é modesta e prudente.
_Ela não é tão bonita como a falecida senhora _ observou um homem.
_Sim, mas tem seus encantos _ comentou uni outro.
Raith apertou os lábios. Estava surpreso por constatar que Katrine tinha outros aliados além de Lachlan, e furioso por perceber que estava perdendo o controle
da situação. Tinha de pôr um fim a essa discussão absurda antes que fosse longe demais. Ia abrir a boca para fazê-lo quando Hector falou:
_Por que diabos o lorde iria querer casar com ela?
_Sim, por quê? _ insistiu Ewen.
Raith, frustrado, percebeu que não poderia fugir do assunto. Seu clã tinha como certo que deveria opinar sobre seu casamento e estava preparado para discutir
todos os aspectos.
Ele cruzou os braços numa atitude beligerante.
_Sim, srta. Campbell, queira nos explicar por que eu devo querer me casar com a senhorita.
Katrine engoliu em seco. Podia sentir todos os olhos nela. Tinha um certo direito de fazer a reivindicação. Afinal, era uma moça cuja inocência fora tomada,
embora com consentimento, por um cavalheiro de meios e viúvo. Mas seria muito desagradável ter de tocar nesse assunto diante dos presentes.
_Porque seria a coisa honrada a fazer _ murmurou embaraçada. Os olhos de Raith se estreitaram tão perigosamente que Katrine recuou um passo.
_A senhorita terá de encontrar um motivo melhor _ disse Raith, ignorando o enrubescimento de Katrine. Ele já fizera a coisa honrada mantendo distância,
um feito que exigira um esforço quase sobre-humano depois da daquela maravilhosa noite de amor. Mas agora Katrine estava jogando sujo. Quer estivesse agindo por
vingança ou impulsionada pela crença infundada de que estava apaixonada por ele, preferia morrer enforcado do que deixá-la forçar a situação.
Erguendo o queixo voluntarioso, Katrine tentou um outro caminho.
_Muito bem. Você precisa de mim. Posso ajudar seu clã na briga com Argyll.
_Sim _ disse Lachlan, pensativo. _ Um casamento uniria os Campbell e os MacLean.
_Ah, mas seria nojento unir o sangue dos traiçoeiros Campbell com o do clã Gillean _ protestou Hector, chamando os MacLean pelo seu nome mais antigo.
Katrine irritou-se com os termos empregados pelo homem e com a idéia de que ela não era boa o bastante para ser admitida no clã MacLean.
_Posso tomar conta de Meggie melhor do qualquer um de vocês.
_Pretendo contratar uma governanta _ defendeu-se Raith.
_Filhos! _ interveio Lachlan, triunfante. _ O lorde de Ardgour precisa de um herdeiro.
_Sim, você precisa de um herdeiro _ declarou Katrine.
Raith cerrou os dentes, sentindo sua paciência se esgotando. Essa conversa nunca deveria ter acontecido diante de seu clã. Levantou-se, pensando em ir até
Katrine, mas conteve-se. Tinha de sair dali o mais rápido possível, antes de esganá-la.
Percebendo que ele ia se retirar, Katrine sentiu o gosto amargo da derrota. Estava grata por Lachlan tê-la defendido, mas sabia, pelo brilho de aço nos
olhos de Raith, que seria inútil. Ele não se deixaria persuadir.
Raith olhou para ela por um outro desconfortável instante antes de virar-se para a porta e caminhar até lá com passos decididos.
_Estou indo para Fort William _ rosnou, enquanto se afastava.
Katrine deixou-se cair no banco ao lado de Callum.
_E você precisa de mim _ murmurou,, num tom tão baixo que só Callum conseguiu ouvi-la. Ele tomou-lhe a mão num gesto de simpatia.
Houve um longo silêncio. Então finalmente alguém perguntou:
_Por que Fort William?
_Talvez para procurar uma governanta para Meggie _ arriscou um dos homens.
Lachlan olhou para Katrine perplexo.
_Não entendi _ disse, choroso. _ Afinal, vocês estão casados ou não?
_Acho que não _ sussurrou Katrine.
_Que pena. _ Lachlan balançou a cabeça. _ Até que era uma boa idéia. O maldito duque não mexeria com os MacLean se você entrasse para o nosso clã.
Houve uma outra discussão para avaliar se um casamento entre Raith e Katrine seria suficiente para impedir o duque de Argyll de implicar com os MacLean.
Hector afirmou que não acreditava nisso, enquanto Lachlan continuou a insistir em que Raith precisava de um herdeiro. Esse era um ponto sobre o qual a maioria
parecia concordar, mas não houve consenso.
De tanto em tanto Callum intervinha com um comentário, apoiando Katrine, mas ela mal ouviu suas palavras. Apesar de tudo, tentou se convencer, ainda não
era hora de se desesperar. Sabia que seria muito difícil Raith concordar em se casar com ela. Mas pelo menos agora ele sabia que estivera falando sério quando dissera
que o amava e queria se casar. Apesar da veemente rejeição, não abandonaria as esperanças.

Raith fez uma careta quando a chuva começou a cair durante sua volta de Fort William, três dias depois. Estava profundamente irritado com o aguaceiro e
com uma certa ruiva astuciosa e traidora. Infelizmente estava só e não tinha com quem conversar para protegêlo das imagens que atormentavam seus pensamentos. Imagens
de Katrine escapando descalça da casa para ir ver o nascer do sol. Dela correndo como criança, fazendo uma aposta com sua pupila. Dela ardendo de paixão em seus
braços e afirmando que o amava, anunciando-o ao mundo como seu marido.
Nunca em sua vida se sentira tão cercado.
Mas, ao contrário do que imaginara antes de partir, esse sentimento aumentava quanto mais ficava longe dela. Surpreendia-se com a saudade enlouquecedora,
a vontade desesperada de vê-la. Nem mesmo o seqüestro cometido por um clã inimigo a levara a perder o gosto pela vida. Katrine extraía o máximo de qualquer situação,
mesmo da mais difícil. Conseguira até conquistar o coração de seus parentes... Meggie, Flora, Lachlan, Callum... mesmo Hector, até certo ponto. Todos os corações
menos o dele. Nunca teria o dele, jurou. Recusava-se a render-se e estragar todos seus planos.
Mas, na verdade, não sabia como ia conseguir essa façanha. Ficar longe dela não adiantava muito, pois quando se afastava da casa ela começava a virar todo
o seu clã contra ele. E quando estava perto dela, alternava os estados de querer esganá-la e amá-la.., até um dos dois vencer a batalha.
Isso não pode continuar, pensou Raith, cansado. Ele estava perdendo o controle de sua vida e de seu destino.
Mesmo assim, não conseguiu aplacar a ansiedade ao finalmente chegar em casa depois de dois dias entrevistando as candidatas à governanta. Era a mesma ansiedade,
pensou de mau humor, que um marido poderia sentir por uma amada esposa depois de uma longa ausência. Indo contra esse sentimento, ele disse a si mamo que não queria
mais do que ir para seu quarto, lavar-se da sujeira da viagem, comer uma boa refeição e gozar a companhia de sua pupila.
Mas todas suas boas intenções caíram por terra quando ele entrou na casa e ouviu risos femininos vindo da sala de visitas.
Ele encontrou Katrine e Meggie em pé no meio da sala, quase abraçadas. Katrine segurava um leque na mão graciosa.
_ Mas claro que conheço as danças inglesas _ dizia ela, imitando um forte sotaque escocês. _ Meu papai era escocês, um típico representante das Terras Altas.
Vamos tentar de novo, meu bem?
Katrine estava um tanto ofegante e apoiava a mão na cintura de Meggie, dando a Raith a impressão de que estava ensinando a menina a dançar a quadrilha.
Uma cena encantadora, pensou ele, observando-as da porta enquanto Katrine começou a cantarolar uma música alegre.
Ela nunca parecera mais encantadora, com as faces coradas, os cachinhos rebeldes emoldurando o rosto bonito e um luminoso sorriso. E ele jamais vira Meggie
tão feliz. Não havia nenhum vestígio de medo nos grandes olhos escuros, só amor e prazer enquanto ela mordia o lábio em ávida concentração.
Contudo, apesar dos esforços das duas, havia pouca precisão em seus passos. Começaram a rodopiar pela sala, batendo nos móveis, tropeçando e rindo com seus
erros. Raith achou que a alegre espontaneidade só acrescentou charme ao seu desempenho. Por um instante até surpreendeu-se invejando sua pupila, por ser o alvo do
carinho de Katrine.
Ela seria uma boa mãe para Meggie, pensou de repente, observando as duas. De fato, sua simples presença era benéfica para a menina. Mas não! Katrine era
uma Campbell e sua refém. Logo iria embora. No instante que Argyll concordasse com os termos, ele a devolveria ao tio.
Raith afastou esse desagradável pensamento quando sua presença foi notada. A primeira a vê-lo foi Meggie, mas foi Katrine que parou de repente, apertando
o leque. Ele percebeu claramente a ansiedade nos olhos verdes que o fitaram do outro lado da sala.
Ele forçou-se a desviar o olhar, concentrando toda sua atenção em Meggie. Ela tinha o rosto aberto num brilhante sorriso e correu para os seus braços. O
gesto foi um alívio, pois ajudou-o a esconder sua luta íntima. A necessidade de abraçar Katrine quase venceu.
Ela também deu graças por ter tempo para recompor suas feições e mascarar seu desapontamento diante da indiferença de Raith.
Quando ele terminou de interrogar sua pupila sobre como passara em sua ausência, recebendo acenos de cabeça como resposta, um silêncio um tanto constrangedor
caiu sobre eles.
_ Você teve sorte em arranjar uma governanta? _ perguntou Katrine finalmente. Na verdade não queria saber, mas o suspense dos últimos dias sobre a decisão
de Raith estava acabando com seus nervos.
_ Sim _ disse Raith, com um olhar enigmático. _ Uma mulher mais velha que já criou cinco filhos. Ela chegará na semana que vem.
Katrine sentiu a tristeza invadir seu coração. Raith não a queria ali nem mesmo como governanta.
Ambos haviam momentaneamente se esquecido de Meggie, mas a garota logo captou o significado das providências tomadas. Quando notaram a tristeza estampada
em seu rosto, os dois se arrependeram por terem discutido o assunto diante da menina, que certamente precisaria ser preparada para a mudança. -
Raith ficou com a expressão sombria, vendo Katrine atravessar rapidamente o salão para pôr uma mão consoladora no ombro da menina.
_ Meggie esteve bordando um presente para você _ revelou Katrine, ansiosa por encontrar um assunto que desviasse a atenção de todos do problema desagradável.
_ Ela é muito habilidosa com a agulha. Querida, por que você não vai buscá-lo para mostrar ao seu tutor?
A menina virou-se obedientemente, mas toda a felicidade sumira de seu rosto. Raith sentia-se inconsolável. Era como se tivesse acabado de trair Meggie,
em vez de pensar em seu mais alto interesse.
_ Penso que Meggie vai gostar da mulher que contratei _ resmungou em sua própria defesa. _ Eu não contrataria outra pessoa.
_ Tenho certeza que sim.
Katrine respondeu numa entonação normal, sem nenhum traço de acusação, mas algo em suas palavras _ pesar ou sofrimento _ levouo a observá-la cuidadosamente.
Por que estava triste? Devia sentir-se alegre por saber que logo iria ser libertada;
Só então notou o que não havia visto a distância _ um pedacinho de veludo em forma de crescente colado na face de Katrine. Uma marca de beleza, pensou.
Nunca antes a vira com um recurso paia aumentar sua feminilidade.
Katrine corou quando percebeu que Raith havia notado sua tentativa de embelezamento.
_ Estávamos experimentando marcas _ disse, levando a mão à face.
Raith a impediu com um leve toque.
_ Não, não faça isso.
"Não.. deixe-me fazer isso." Katrine lembrou-se dele dizendo essa frase na noite em que haviam feito amor, quando ela começara a se despir para ele. Raith
também deve ter lembrado, pois seu olhar desceu para seu peitilho.
Katrine prendeu a respiração quando olhou nos olhos de Raith. Estavam quentes e escuros, da cor da noite. Sentiu-se fraca, vulnerável, ansiosa...
_ Esteve ensinando Meggie a usar um leque? _ A voz de Raith tornou-se subitamente rouca. _ Você a fará quebrar corações antes mesmo de ter idade para prender
os cabelos.
Katnne não conseguiu ordenar seus pensamentos para formar uma resposta. Num movimento involuntário, inclinou-se para Raith enquanto ele abaixava a cabeça.
Ele ia beijá-la, pensou confusa. Ia cobrir sua boca e então...
Ela sentiu a presença de Meggie no instante em que o hálito quente de Raith acariciou seus lábios. Raith afastou-se num movimento abrupto. Katrine virou-se
para a menina. Nunca em sua vida estivera tão pouco inclinada a dar atenção a uma criança. Nunca em sua vida fora tão impaciente.
Raith não lamentou o fato de Meggie ter voltado tão rápido. Aceitou o presente com efusivos elogios e legítima gratidão. Em seguida aproveitou para fugir,
dando graças por ter encontrado forças para afastar-se de Katrine depois de sentir a ansiedade sensual que a tomava.
Deus, pensou, os próximos dias iam ser tão difíceis quanto o último mês. Ele se surpreenderia tentando ouvir os passos de Katrine, o som de sua risada ou
espiando-a pela janela de seu quarto quando se esgueirava da casa pela madrugada. Teria de evitar os cômodos onde sabia que a encontraria, ou aqueles onde ela poderia
estar.
Em outras palavras, ele era um prisioneiro em sua própria casa. Ele mesmo se colocara nessa situação e agora não havia nada que poderia fazer para modificá-la.
Não até chegar a hora de levá-la de volta aos seus.

Ela não era mais uma prisioneira em Cair House, percebeu Katrine satisfeita. A reivindicação que fizera, pedindo Raith como marido tivera inesperadas conseqüências,
granjeando-lhe um novo respeito do clã MacLean. Apesar da recusa veemente de seu chefe, os subordinados estava pensando seriamente na possibilidade de um casamento
entre os dois.
As criadas, em particular, tinham passado a lançar-lhe olhares curiosos e leves sorrisos, certamente imaginando-a na posição de futura patroa. Flora esquecera
em parte sua moral ofendida para mostrar-se mais tolerante, voltando a convidá-la a tomarem chá juntas. De início achara estranho a governanta estar disposta a aceitar
uma Campbell para ocupar o lugar de Ellen MacDonald, mas acabara percebendo que a múlher, como os outros membros do clã, estava ansiosa por ver o lorde com um herdeiro
direto, que mantivesse a linhagem não interrompida desde o primeiro MacLean de Ardgour.
O melhor era não ser mais tratada como uma portadora de um mal contagioso nem vigiadà atentamente quando deixava a casa. Os
MacLean, concluiu, não esperavam mais que ela tentasse fugir. Era gratificante saber que eles estavam dispostos a aceitá-la, no caso de Raith mudar de idéia
e aceitar o casamento.
Mas ele não mostrava nenhuma inclinação nesse sentido. Fazia dois dias que a evitava por completo. Mas animada com o apoio de pelo menos parte do clã, conseguia
enfrentar o futuro com algum otimismo.
Por isso, naquela tarde, saindo a pedido de Flora para colher ervas para tingir a lã que posteriormente seria usada para fazer o tecido xadrez com as cores
do clã, ela cantarolava baixinho. Trouxera Meggie consigo, pois a menina gostava muito de mexer na terra. No bolso do avental carregava uma pequena pá para desenterrar
as raízes de arruda que forneciam o pigmento vermelho e tesouras para cortar as folhas da vassourinha, que davam o pigmento verde. Meggie carregava dois sacos de
pano para elas trazerem sua colheita.
A arruda crescia na horta, a pouca distância da casa. As duas já tinham colhido raízes para encher um saco e dirigiam-se ao vale à procura da vassourinha
quando ouviram patas de cavalo no calçamento de pedra. Lançando um olhar para trás por entre os galhos de uma árvore, Katrine avistou cerca de doze cavaleiros entrando
no pátio. Eles usavam as botas de cano alto e as casacas vermelhas da milícia inglesa.
Dois pensamentos lhe acorreram ao mesmo tempo: os soldados tinham vindo a sua procura e Meggie estava apavorada.
Três semanas atrás ela ficaria felicíssima em ver os dragões, mas agora sua única reação foi de aborrecimento. O gemido rouco de Meggie lhe cortou o coração.
Murmurando palavras de conforto, Katrine imediatamente largou as ferramentas e o saco, e deixou Meggie puxá-la aflita para o interior do bosque. Quando
estavam bem longe do pátio e completamente fora de vista, ela ajoelhou-se, tomou a menina nos braços, segurando o corpinho trêmulo num gesto de proteção.
_ Calma, meu bem, calma _ repetiu várias vezes. _ Você é minha queridinha e não deixarei que nada de mal lhe aconteça.
Pouco a pouco a menina foi se acalmando, mas as duas continuaram escondidas. Um bom tempo depois, Katrine ouviu passos e logo constatou que Callum viera
procurá-las.
_ Os soldados já foram embora _ anunciou ele.
Encontrando os olhos escuros, Katrine soube exatamente o que Callum estava pensando. Ela perdera a oportunidade de correr para os milicianos, de denunciar
os MacLean como seus seqüestradores. Bastaria ela se mostrar para os soldados prenderem Raith como criminoso.
Mas ela não deixaria Meggie naquela situação, mesmo que quisesse ver Raith preso, o que não queria. Não desejava mais ver os montanheses envolvidos em problemas
com a lei. Seu único desejo era proteger Raith e seu clã.
Mas, de certa forma, lamentava a oportunidade que perdera. Escondendo-se da milícia, deixara de declarar ao mundo que estava ali de livre vontade.
_ O que os soldados queriam _ perguntou, já sabendo a resposta.
_ Você, naturalmente. Seu tio está à sua procura.
A resposta de Callum não a surpreendeu, mas sua gravidade sim. Nunca estivera com uma expressão tão séria. Vendo seu ar inquisidor, ele soltou um suspiro.
_ O jogo mudou, Katie. Três dos MacLean de Duart foram presos. Eles estão no posto fiscal de Oban. Foram acusados de tê-la seqüestrado.

Katrine procurou Raith inutilmente. Ele parecia ter desaparecido, talvez tentando evitar um confronto com ela. Precisava desesperadamente falar com ele
sobre seus planos, porque quando entrara no salão atrás da cocheira, levara um choque ao ver os homens aprontado suas armas: afiando espadas e punhais, azeitando
mosquetões e pistolas.
Ela voltou a procurar pela casa toda. Concluindo que Raith tinha viajado, ficou esperando ansiosamente por sua volta. No entanto, a noite caiu e nenhum
sinal dele. Desistindo da espera, foi deitar-se planejando falar com ele assim que o dia amanhecesse.
Mas não teve de esperar tanto. Meggie teve outra crise de pesadeLos e embora ela tivesse acordado no instante em que ouviu os gritos, ao chegar ao quarto
da menina já encontrou Raith consolando-a.
Ele não a queria ali, pôde ver pela sua expressão, mas não se deixou abater. Mandou Flora voltar para a cama e foi ela mesma preparar o leite morno com
láudano. Enquanto os dois esperavam a ménina pegar novamente no sono, Katrine deu-se conta de que Raith devia ter estado em seus aposentos o tempo todo e não respondera
quando ela batera em sua porta.
Logo que Meggie adormeceu, Katrine quebrou o silêncio. Chamou-o baixinho e imediatamente viu-o ficar tenso, embora continuasse a agir como se ela não existisse.
_Raith, o que você pretende fazer sobre os MacLean que foram presos? -
_Não é de sua conta. _ Ele Levantou-se abruptamente com Meggie nos braços e carregou-a até a cama, onde a acomodou e cobriu.
_Como não é da minha conta? _ sussurrou Katrine, indignada. _ Onde já se viu dizer uma coisa dessas?
Em resposta, Raith saiu da sala. Katrine apagou a vela e seguiu-o pelo corredor.
_Raith, espere!
_Vá dormir! _ Ele deu a ordem rispidamente, entrando em seu quarto. Quando a porta foi fechada em sua cara, Katrine a abriu. Já no meio do quarto, Raith
virou-se e lançou-lhe um olhar fuzilante.
_Saia daqui!
Katrine mal o ouviu, a atenção concentrada na pilha de armas que se encontravam perto da lareira. Sob a luz de um lampião, estava a pedra de amolar que
ele estivera usando para afiar um espadão.
Fechando a porta vagarosamente, Katrine olhou para ele, assustada.
_Você está planejando um ataque?
_E o que acha que eu deveria fazer? Sentar numa poltrona enquanto meus parentes apodrecem da cadeia?
_Claro que não, mas não imaginei que fosse levar a vingança a esse ponto. _ tez um gesto mostrando a pilha de armas. _ Isto é um ato de barbárie.
_Pretendo libertar os MacLean.
_E depois? Mesmo que consiga, o que isso vai adiantar?
Ele hesitou antes de dar um longo suspiro.
_Talvez não adiante nada. _ Ela captou a vulnerabilidade surgir no rosto masculino antes de ele mascarar suas emoções.
_Não vai mesmo servir para nada _ insistiu Katrine. _ Você só voltará para o começo, com os aluguéis ainda exorbitantes e eu como sua prisioneira. Não é
bobagem?
Ele não respondeu. Foi para perto da lareira, atirou-se numa poitrona, recomeçando a tarefa de afiar a espada que fora interrompida pelos gritos de Meggie.
Sua atitude dizia claramente que não pretendia dar ouvidos a ela.
_Não entendo por que insiste nessa teimosia. Por que não vai procurar o duque e expor o seu caso?
_Para quê? _ retrucou Raith, lançando-lhe um olhar de desdém. _ Argyll só entende a linguagem da força. Nunca consentirá na diminuição dos aluguéis.
_ Como você pode saber se não tentar?
_ Pare com isso, Katrine!
_ Não, não paro!
Raith levantou a cabeça incrédulo.
_ Você é uma sonhadora. Veio às Terras Altas em busca de sonhos e ainda está sonhando.
_ E o que há de errado em sonhar?
_ Os sonhos a deixam cega para a realidade. Você não consegue ver o mundo como ele realmente é.
_ E você consegue? Por isso recorre à violência? Será essa a realidade, Raith? Mortes, raptos... Pense, pessoas irão morrer se você continuar com isso.
Sua gente irá morrer.
_ Não é da sua conta.
_ Maldição, claro que é da minha conta! Eu sou o motivo da prisão de seus parentes. Se não estivesse aqui, o duque jamais teria tomado essa medida.
As palavras expressaram indignação, mas também dor e medo. Dor porque Raith a estava afastando de sua vida. Medo porque o que ele planejava era muito mais
perigoso do que alterar os livros de registro. Contudo, vendo que não estava conseguindo convencêlo, forçou-se a usar um tom mais calmo.
_ Não quero que lhe aconteça nada de mal. 'Eu te amo.
A fisionomia de Raith permaneceu rígida e sua atitude distante, até mesmo hostil.
_ Raith _ implorou ela. _ Quero ajudar.
_ Não há nada que você possa fazer.
_ E seu fizer uma petição ao duque solicitando uma audiência? Talvez ele me ouça.
_ Não! Não quero que lute em minhas batalhas por mim.
_ E por que não? Você luta as batalhas de todos. Por que não posso ajudá-lo nas suas?
_ Meu clã é minha responsabilidade. Você não tem que interferir.
_ Raith, por favor, eu imploro.., não faça isso.
Ele fechou os olhos, amargurado. Querendo confortá-lo, Katrine atravessou o quarto e aproximou-se dele. Quando estendeu a mão para tocar seu braço, ele
saltou como se tivesse sido queimado.
_ Katrine, pelo amor de Deus! Saia daqui! -
_ Está com medo de ficar sozinho comigo, não é? _ desafiou-o, avançando um passo. _ Você tem medo de mim.
Raith levantou-se, deixando cair a espada, que tilintou ao bater no chão. Sua fisionomia era ameaçadora, seus punhos estavam cerrados. Mas Katrine permaneceu
imóvel, fitando-o. Não ia recuar nem um centimetro que fosse.
Os dois côntinuaram assim por um longo momento. Por trás da ferocidade do olhar de Raith, Katrine viu o desejo e a aceitação da inevitabilidade de suas
emoções.
Ela soube que havia vencido quando Raith praguejou baixinho e pegou-a pelos ombros. Então puxou-a com força contra si e beijou-a furiosamente, ardentemente.
Katrine aconchegou-se nos braços fortes e entrelaçou os dedos nos cabelos negros.
Momentos de doce loucura se seguiram, enquanto se entregavam à delícia das carícias apaixonadas.
_ Katie _ murmurou Raith roucamente, afastando-se.
_ Raith, faça amor comigo.
_ Sim...
E quando ele a beijou novamente, com desespero e urgência, todos os obstáculos e preocupações desapareceram. Raith sentia apenas o impulso dos sentidos,
a terrível carência que clamava por ser aplacada.
Ela mal conseguiu controlar sua excitação enquanto Raith lhe tirava a camisola e a levava para a cama. Pensou que ele fosse se despir, mas Raith deitou-se
ao seu lado, seus lábios roçando a pele suave até Katrine ficar inquieta e pedir por mais
_ Raith, por favor... _ suplicou, com um suave gemido.
Então ele se afastou para se despir, sem tirar os olhos dela. Estava linda, os cabelos livres da trança espessa, espalhando-se gloriosos sobre o corpo delicado.
Quando Katrine estendeu os braços, chamando-o, ele foi sem hesitar. Deitou-se ao lado dela, os corpos se ajustando como se tivessem sido feitos para permanecer
assim, unidos, em perfeita harmonia.
Suspirando, Katrine ficou imóvel sob Raith, sentindo-se saciada e feliz. Suspirando pesadamente, Raith ficou imóvel, saciado mas descontente, censurando-se
impiedosamente. Com a volta da razão retornaram as cruéis lembranças... Seu filho natimorto, Ellen. Ela ficara desvairada nas horas finais. Ele devia estar desvairado
agora para colocar a vida de Katrine em risco. Não podia continuar agindo daquela maneira. O preço era alto demais. Gostava demais dela. Ele...
A admissão dos próprios sentimentos o chocou. Em que instante seus motivos de vingança tinham sido substituídos pelo simples desejo que queimava nele agora
e que não tinha nada a ver com a luxúria? Ele a queria em segurança, ele a queria protegida.
Virando-se de lado, tomou o corpo relaxado e sonolento de Katrine nos braços. Confuso, pensou na transformação de seus sentimentos. O que ele sentira não
fora amor _ ele nunca poderia amar uma Campbell. A emoção era mais como uma febre queimando em seu sangue, uma febre contra a qual não conseguia lutar.
Mas por que estava tão indefeso? Por que tinha tão pouco controle quando se tratava de Katrine? Por que se sentia tão atraído por ela? Seguidamente ela
o enfurecera, abusara de sua paciência, desafiara sua autoridade, acabara com sua paz, interferira com seu clã, mudara sua vida e prioridades, penetrara em sua alma...
Raith acomodou Katrine melhor contra si e puxou as cobertas sobre eles enquanto ponderava o problema.
_ O que vou fazer com você? _ murmurou.
Mas a resposta era óbvia. Tinha de encontrar um modo de protegêla e proteger seu clã, o que significava colocá-la fora de seu alcance, onde não poderia
tocá-la, onde não seria tentado ou impulsionado a ignorar sua resolução, como acontecera nessa noite.
Quando Raith finalmente chegou a uma decisão, havia um nó em sua garganta. Mesmo assim, conseguiu dormir..
Katrine logo despertou. Ao ver-se na cama de Raith, aninhada em seus braços, sentiu uma alegria imensa. Gostaria de sempre acordar assim, com o homem que
amava a seu lado, aquecendo-a com seu calor.
Afastou-se um pouco, para contemplar o rosto adormecido. Para ela, não havia ninguém mais bonito. Apesar da sombra da barba espessa, no sono ele parecia
um garotinho indefeso.
Mas não se deixaria enganar por essa expressão pacífica. Sabia com plena certeza que, apesar de todos seus pedidos, das horas de amor que tinham compartilhado,
ele não mudara de idéia sobre ela, sobre o casamento ou sobre os planos de ataque contra o clã Campbell. De repente a alegria foi substituída pelo desespero.
Çom todo o cuidado, de modo a não perturbar Raith, Katrine desceu da cama e vestiu a camisola. Pé ante pé foi para perto da lareira para pegar as armas.
Seu coração parecia querer saltar do peito. Mas não havia escolha. O ódio e a matança tinham de parar, e se houvesse um único modo de impedir mais derramamento de
sangue, ela o empregaria. Mesmo se ele ficasse furioso. Mesmo se quisesse matá-la.
Pensou em colocar todas as armas no escudo, usando-o como se fosse uma bandeja redonda, mas não agüentaria o peso. Decidiu-se então pelo pesado espadão
e o escudo. Mesmo eles eram difíceis de carregar, mas conseguiu esgueirar-se para fora do quarto sem acordar Raith, e.depois dirigir-se para a escada de serviço,
saindo da casa pela porta de trás.
A lua estava cheia deixando a noite clara o suficiente para que visse a trilha que levava ao vale. Entrou nela andando o mais rápido possível, indo diretamente
para o lago. Sua intenção era atirar as armas nas águas profundas. Quando desse um fim às de Raith, iria para a leiteria, e mesmo se fossem necessárias cem viagens
durante a noite inteira, jurou, esvaziaria o esconderijo dos MacLean de todas as armas que existiam lá.
Mas primeiro cuidaria das que tinha em mãos. O escudo fez um barulho enorme quando atingiu a superfície prateada. Katrine ficou olhando satisfeita enquanto
ele e a espada afundavam.
Raith ouviu o barulho a alguma distância. Ele acordara e notara tanto a falta de Katrine como de sua espada. Indo para a janela do quarto, a vira tomando
a direção do vale, dobrada sob o peso da arma e do escudo. Intrigado, resolvera segui-la sem perder tempo.
Ao se dar conta do que Katrine acabara de fazer, ele parou abruptamente, murmurando uma praga. Por um instante sentiu somente raiva e impotência. Então
a impotência cedeu lugar a um instinto selvagem. Ele nunca fora violento com mulheres, mas jamais uma delas fora tão longe.
_ Katrine! _ gritou, e saiu correndo em sua direção. Ao ouvir o grito, Katrine virou-se assustada. Pensou em sair correndo, mas suas pernas pareciam coladas
ao chão.
_Você enlouqueceu de vez? Por Deus, isso não pode ficar assim!
Ela já o vira furioso, mas agora Raith parecia ter perdido todo o controle. Assustada, preparou-se para fugir. Correu em direção à casa, mas ele a alcançou
em segundos. Agarrou-lhe o braço e, completamente transtornado, arrastou-a até uma pedra. Sentou-se ali e, como faria com uma criança, colocou-a no colo e começou
a dar-lhe palmadas.
_Intrometida, louca, maldita inglesa...
Cada palavra era pontuada por uma palmada.
A agressão física não doía tanto quanto a humilhação. Lágrimas quentes toldaram os olhos de Katrine.
Quando ele a soltou, Katrine encarou-o com olhos molhados cheios de rancor. Não eram mais amante, mas inimigos mortais.
Ele enterrou o rosto nas mãos, caindo em si. Arrependia-se do que havia feito, mas agora era tarde. Com a voz embargada, disse:
_Eu nunca ergui a mão contra uma mulher antes. Não acontecerá de novo, Katrine, eu juro!
Reconhecendo que o provocara até o limite. de sua paciência, Katrine sentiu-se inclinada a perdoá-lo. Mas então ficou imaginando se o que não aconteceria
de novo seria a agressão física ou a entrega de amor.
_Raith... _ chamou, mas a resposta inesperada veio depois de um longo e penoso silêncio:
_Amanhã mesmo eu a mandarei de volta à casa de seu tio.
CAPÍTULO XV

Katrine apertou o xale mais 'contra o corpo. A madrugada estava pesada e fria e a neblina chegava a esconder totalmente bons trechos da trilha. Contudo,
sentia que devia atender ao impulso de visitar Morag.
Depois do abrupto anúncio de Raith na noite anterior, ela fizera tudo para demovê-lo da idéia, mas ele se mantivera inflexível. Apesar de todas as suas
súplicas, estava decidido a devolvê-lá ao tio. Depois de muito pensar, concluíra que a única coisa que poderia fazer era retardar ao máximo o momento da partida.
Assim, deixara a casa à primeira luz do dia. Não saberia explicar a necessidade de procurar Morag, exceto que sentia uma certa afinidade com ela. Morag
tamb~m fora rejeitada por Raith. Se ela não pudesse lhe dar respostas, talvez lhe oferecesse algum consolo.
Teve dificuldade em encontrar o chalé de pedras por causa da neblina e encontrou-a mais pelo cheiro do que pela visão, seguindo o odor da fumaça de turfa.
Acabou quase tropeçando na mulher, que estava ajoelhada diante de um dos canteiros que ladeavam o caminho até a porta, cortando folhas. Teve a impressão de que sua
visita era esperada, pois Morag levantou-se no mesmo instante, limpando as mãos no avental.
_ Você é a Campbell. Sou eu quem veio procurar.
_ Você é Morag?
_ Sim, Morag MacLean.
A mulher não era nada do que Katrine esperava. Como ouvira os outros moradores da mansão se referirem a ela como uma bruxa, imaginara-a magra, enrugada
e mal-humorada, mas Morag era uma velha baixinha e gorducha, com faces coradas, cabelos brancos e ar alegre.
_ Entre, vamos conversar. Prepararei um chá para nós.
_ Obrigada _ murmurou Katrine, aliviada com a boa recepção.
Ela seguiu Morag, mas teve de fazer uma pausa para ajustar sua vista e respiração ao interior do chalé. Estava escuro, pois a janela ainda não fora aberta,
e a fumaça de turfa se espalhava por todo o ambiente. Com lágrimas nos olhos, conseguiu ver um cômodo Umpo com uma cama perto da lareira, duas bancadas cheias de
panelas de ferro e de barro, e uma mesa com suas cadeiras.
_Sente-se, por favor _ disse a mulher.
Abaixando-se para evitar bater a cabeça nas plantas secas que pendiam das vigas do teto, Katrine sentou-se numa das cadeiras e ficou observando Morag se
inclinar sobre o fogo e preparar o chá.
Queria iniciar a conversa, mas não sabia exatamente como. Como sua anfitriã continuava calada, olhou a sua volta. Morag era rica pelos padrões das Terras
Altas. Como tinha o pequeno estábulo ao lado da casa, não precisava trazer os animais domésticos para dentro, como fazia a maioria dos granjeiros.
Lembrando-se do propósito de sua visita, focalizou o olhar na velha, que usava o xadrez dos MacLean. Instintivamente soube que ela era muito hábil em seu
trabalho. E também instintivamente gostou de Morag.
Depois de entregar a xícara de chá a Katrine, Morag sentou-se na outra cadeira. Seus olhos azuis e vivos avaliaram, observaram, enquanto bebia seu chá.
-
_Eu sei porque você veio _ disse, depois de alguns instantes.
_O lorde não quer que fique aqui.
Katrine surpreendeu-se com a afirmação e olhou espantada para a mulher.
_Não, eu não tenho o dom _ explicou Morag _ , mas conheço muito bem Raith MacLean.
_Você já o viu mudar de idéia?
_Raramente.
_Então não acha que um dia ele se casará comigo? Que poderá me amar?
_Vou ser sincera. O lorde terá de aprender a abrir o coração antes de chegar a esse ponto.
Katrine suspirou, desanimada. Era o que temia ouvir.
_Imagino que não existe também um modo de acabar a briga entre nossos clãs?
_Tudo depende do destino. Se o destinp do lorde for casar-se com você, ele se casará. Se o destino quiser que os MacLean e os Campbell parem de brigar,
eles pararão.
_Mas eu sempre achei que unia pessoa deve tentar fazer seu próprio destino. _ Katrine balançou a cabeça tristemente.
Morag surpreendeu-a de novo ao dar uma risadinha alegre - que fez suas faces ficarem ainda mais gordinhas.
_Eu não disse que não podemos dar uma mãozinha ao destino. E, pelo que eu soube, meu bem, você já vem fazendo isso. Nunca imaginei que fosse ver uma moça
tão arrojada a ponto de dizer ao lorde que ele era seu marido.
_ Eu estava desesperada _ sorriu Katrine, sem jeito.
_ Sim, você está apaixonada por ele.
_ Por que você consegue ver isso e Raith não?
_ Talvez ele não queira ver. _ Morag deu uru tapinha maternal na mão de Katrine. _ Agora beba seu chá como uma boa menina. É uma mistura secreta, que cura
os piores males, até um coração partido.
Katrine sorriu diante do exagero. Como Raith pudera cortar de sua vida essa alma tão boa?, pensou, observando a expressão carinhosa de Morag. Então lembrou-se
de Ellen e do óbvio amor que Raith sentia por sua falecida esposa.
Ia começar a perguntar sobre Ellen quando ouviu passos impacientes do lado de fora do chalé e depois uma batida forte na porta.
Morag levantou-se para atender e Katrine levou a mão ao peito, como se quisesse frear o coraçao.
Como esperava, Raith estava lá. Por entre a fumaça de turfa, pôde ver seu rosto sombrio. Seu primeiro impulso foi fugir, mas não por medo dele, e sim pela
vontade de adiar o inevitável.
Enquanto ele perguntava a Morag pela moça Campbell, seus olhos sondavam o interior escuro do chalé. No instante seguinte ele a avistou.
Não querendo se mostrar covarde, ela ergueu o queixo, levantou-se e avançou alguns passos.
_ Não entendo por que você saiu a minha procura. Eu não ia tentar uma fuga.
Como falara num tom beligerante, Katrine surpreendeu-se ao ver a expressão Raith suavizar-se um pouco, dando a impressão de que estava aliviado por encontrá-la
em segurança.
_ Eu me preocupei pensando que alguma coisa de mal pudesse lhe acontecer. Você poderia se perder na neblina.
_ Bem, não precisava. Encontrei o caminho com bastante facilidade. Vim procurar Morag porque preciso de um cataplasma para meu traseiro maltratado.
Raith só apertou os lábios ante a referência à sova que lhe dera.
Começou a dar um passo à frente, como se fosse avançar para pegála, mas logo parou. Katrine percebeu que ele não entraria na casa de Morag de livre e espontânea
vontade.
As duas mulheres trocaram um olhar de compreensão antes de Raith falar de novo, num tom áspero.
_Venha, vou levá-la para casa. Partimos para o litoral em uma hora.
Katrine balançou a cabeça obstinadamente, mas seu ato de desafio foi causado pelo desejo de atrasar a hora da partida.
_E como posso ir com você? Não dá para eu me sentar sem sentir uma agonia.
_Vou improvisar uma almofada. Agora venha. Você vai querer tempo para fazer as malas e despedir-se de Meggie.
A determinação dele era inabalável, pensou Katrine em desespero. Agradeceu Morag pela hospitalidade e foi atrás de Raith. A neblina estava começando a se
dissipar e ela pôde ver o cavalo pastando alguns metros à frente.
Eles ainda estavam no jardim de Morag quando Katrine pegou Raith pelo braço.
_Raith, espere! Por favor...
Ele virou-se com um movimento impaciente e olhou-a com o rosto impassível.
_Por favor.. não me obrigue a ir. Quero ficar aqui com você. Pode parecer tolice, mas sempre achei que era meu destino voltar às Terras Altas, onde encontraria
a pessoa certa para amar...
Sua voz foi diminuindo, assim como suas últimas esperanças se dissipavam diante da firme resolução de Raith. Teria chegado à humilhação e implorado que
ele a aceitasse como esposa se sentisse que o faria mudar de opinião. Como podia amar tão profundamente e não ser correspondida nem com um pouco de consideração?
A tristeza de Katrine fez romper a barreira de distanciamento de Raith. Usando o máximo de sua força de vontade conseguira manter-se firme até aquele instante.
O amor estava claro nos olhos verdes.
O amor, a mágoa e o sofrimento. Ele sentiu uma dor, intensa que o deixou momentaneamente paralisado. Amor. Um amor que não queria, não podia ter.
Um futuro junto dela era impossível. Ele desprezava coisas que ela respeitava, como seu clã e o governo inglês. A fragilidade dela o fazia lembrar da própria
impotência para controlar os eventos da vida. Mas como não gostar de alguém que o olhava com tanta devoção, com tanto desespero?
_ Raith... por quê? Por que não posso ficar aqui com você?
_ Katrine, por favor, não me peça isso.
Com os olhos cheios de lágrimas ela disse, contrariando todos seus princípios:
_ Você não tem de se casar comigo. Você não precisa...
_ Oh, Deus. _ Ele estendeu as mãos e tomou-a nos braços. _Não faça isso. Por favor, não chore.
_ Eu só gostaria que nossos clãs vivessem em paz.
_ Katrine, isso é perseguir um sonho.
Raith afastou-se um pouco e enxugou-lhe os olhos.
_ Bela Katie _ murmurou. _ Bela, geniosa e desbocada srta. Campbell... sempre pondo fogo em tudo. Você não pertence a este lugar _ disse, esforçando-se
para não demonstrar ternura. _ Você deve ficar com sua própria gente.
Katrine soube que aquela fora a palavra final. Em desespero, balançou a cabeça e deu um passo para trás. Sua garganta doía pelo esforço de conter o choro,
mas reuniu toda sua dignidade e endireitou os ombros, decidida a manter pelo menos a pose.
No entanto, o orgulho era uma barreira estreita demais para conter o sofrimento. Com dificuldade, conseguiu dizer a Raith que preferia caminhar. Não suportaria
dividir a mesma sela com ele, estar tão próxima e não poder expressar seus sentimentos.
Raith não discutiu. Pegou as rédeas do cavalo e a seguiu em silêncio, puxando o animal.
Katrine chegou primeiro ao pátio e diminuiu o passo ao ver Callum junto à porta, como se a estivesse esperando.
Ele veio a seu encontro e ergueu uma sobrancelha ao ver os olhos verdes marejados de lágrimas.
_ Então você vai mesmo embora?
Ela só conseguiu fazer que sim.
_ Raith é um tolo.
_ Talvez seja melhor assim. Quer tipo de vida levaríamos com um casamento baseado no ódio?
Callum tocou-lhe o rosto com a ponta do dedo, acompanhando a trajetória de uma lágrima. O gesto foi ao mesmo tempo triste e confortador, e Katrine sentiu
vontade de chorar de novo.
_ Eu devia ter me apaixonado por você, Callum. Então tudo seria mais simples.
_ Mas você nunca teve olhos para mim.
_ Se eu o tivesse visto antes...
_ Acredita mesmo que faria diferença? _ Callum balançou a cabeça com fingida tristeza. _ Katie, meu bem, eu nunca tive a menor chance. E devo dizer que
me senti ofendido, porque, se me perdoa a falta de modéstia, estou acostumado a ver as damas caindo aos meus pes.
Katrine tentou, mas não conseguiu sorrir. Agora não sentia mais do que um tumulto de sensações e um torpor assustador.
_ Preciso me despedir de Meggie _ gaguejou antes de correr para dentro da casa.
Callum lançou um olhar penetrante e acusador para Raith enquanto este entregava as rédeas a um cavalariço.
_ Você deve estar muito orgulhoso de si mesmo _ disse, sarcástico, quando Raith se aproximou dele. _ Ela passou por aqui como se tivessem lhe arrancado
a alma.
Raith passou pelo primo para entrar em casa sem dizer uma palavra.

Katrine deu graças pelo torpor que tomara conta dela e amortecia sua dor. Devia ter se surpreendido ao saber que Callum iria acompanha-los, mas depois da
comovente despedida de Meggie perdera todo o interesse no que a cercava. Mesmo quando o pequeno grupo liderado por Raith entrou em Corran, uma aldeia de pesca-dores,
e em seguida embarcou no bergantim de dois mastros que deveria levá-la de volta para casa, o misericordioso torpor continuou protegendo-a.
Só uma hora depois, enquanto olhava distraidamente para as praias do lago Linnhe, com o vento forte soprando em seu rosto e fazendo enfunar as velas, foi
que Katrine começou a tomar consciência do que a cercava. Callum era o capitão da embarcação, o que se tornara óbvio desde o início pelas ordens que dava à tripulação,
mas o navio era grande demais para ser usado em contrabando. Talvez contassem com sua velocidade para escapar dos agentes do rei, mas ele seria reconhecido com facilidade
e seus ocupantes capturados. Ela estremeceu ao pensar em Callum e seu bravo grupo de montanheses sendo presos pelos ingleses.
_ Está com frio, Katie? _ A voz de Callum, de repente tão perto dela, a assustou.
Ele entregara o timão ao imediato e viera conversar com ela.
_Não. Estava apenas pensando no que aconteceria se você fosse flagrado em suas atividades ilegais.
_Estou honrado com sua prcocupaçáo, minha cara _ sorriu Callum _ , mas acalme sua mente. Não serei preso por atividades ilegais. A não ser, claro, que você
venha a revelar ao seu tio a identidade de seus captores. Mas não fará isso, não é? Raith ficaria em má situação.
Ao ouvir o nome querido, a dor atravessou o torpor e apunhalou o coração de Katrine. Ela olhou para a popa, onde Raith estava apoiado na amurada, parecendo
tão distante e duro quanto as escarpadas montanhas das Terras Altas.
Afastando o olhar dele com dificuldade, Katrine voltou-se para Callum que, como o primo, estava usando trajes comuns, mais práticos para viagens, sem rendas
ou bordados, mas que possuíam igual elegância.
_Você não é um contrabandista, certo? _ murmurou Katrine, subitamente convencida de que se enganara a respeito dele.
_Lamento, Katie _ sorriu ele. _ Você escolheu pensar assim e eu não quis desapontar uma moça tão bela e encantadora.
_Então, o que é você faz? _ Ela não conseguiu evitar uma certa irritação por ele a ter ludibriado.
_Um humilde homem do mar _ disse Callum, com um brilho travesso no olhar. _ Apenas um humilde capitão de navio.
Humilde! Duvidava muito. Não havia absolutamente nada de humilde em Callum MacLean. Ele era arrojado, arrogante e sem lei, exatamente como seu primo. Seu
olhar expressou o que pensava, mas Callum não se deixou abater.
_Não me importo em receber um ou dois barris a título de pagamento pelos meus serviços, mas de um modo geral não lido com contrabando.
_E que "serviços" são esses, se me permite perguntar?
_Eu transporto escoceses indigentes para cidades inglesas, geralmente Blackpool ou Liverpool, onde eles encontram passagens para a América.
_Emigrantes?
_Asseguro-lhe que não existe nada de desonesto nisso.
_Claro que não.
_E existe uma necessidade para o que faço. Depois do Quarenta e Cinco, inúmeros habitantes das Terras Altas fugiram da Escócia temendo por suas vidas. Outros
foram despejados de suas terras pelos novos proprietários ingleses. Outros ainda se cansaram de tentar viver de um solo difícil, num clima mais difícil ainda. A
maioria dos emigrantes é muito pobre, e mesmo depois de vender todos seus bens materiais, não conseguem pagar o preço de uma viagem até a Inglaterra.
Katrine balançou a cabeça concordando, pensando nas centenas de escoceses que tinham ido para a América, abrindo mão de sua liberdade para se tornarem colonos
de grandes proprietários, na esperança de encontrar uma vida melhor. E Callum MacLean, que fingia ser um patife, os ajudava nisso. Sentiu a garganta apertada de
emoção.
_Aposto que você cobra uma ninharia, quando cobra.
_Nunca exigimos pagamento por parte dos que não têm como se dar a esse luxo. Alguns anos atrás um certo número de lordes das Terras Altas se reuniram para
prover os fundos para essas viagens.
_Lordes? Então Raith está envolvido?
_Claro. Aliás, foi idéia dele.
Naturalmente, pensou Katrine. O lorde tomando conta de seu clã. Seus olhos se encheram de lágrimas.
_Quanta nobreza de vocês.
_Não se trata de nobreza, Katie. É apenas um fato da vida. Não podemos virar as costas para os parentes.
_Claro que não _ murmurou ela, pensando nessa lealdade, que precipitara sua situação.
Como se estivesse lendo seus pensamentos, Callum abaixou a voz num sério alerta.
_Espero que você saiba qual é o risco que Raith está correndo ao devolvê-la ao seu clã. Uma palavra sua e ele será preso. Posso lhe assegurar que Argyll
ficaria muito satisfeito em vê-lo pendurado numa forca, assim todos nós.
_Eu nunca... eu jamais...
_Sei disso e Raith também . Mesmo assim, ficamos numa situação difícil. _ Callum lançou um olhar para o primo. _ Raith nunca se sentiu bem ao entregar o
controle de seu destino nas mãos de outros. E por isso que anda tão inquieto e pensativo.
_E você espera que eu sinta pena dele? Sem dúvida está planejando um ataque contra o meu clã.
_Entre outras coisas.
_E como você pode ficar aí, agindo como se fosse uma coisa insignificante? Pode haver mortes! Você e Raith poderão morrer.
_E você sentiria muito minha falta, bela Katie?
_Oh, você é impossível. _ Katrine lançou um olhar irritado para Raith. _ Os dois são.
_E por que não diz isso a Raith?
_Acho que é isso mesmo que eu vou fazer!
Só quando já estava marchando pelo tombadilho que Katrine se deu conta de que Callum a provocara para tentar tirá-la de seu desâmmc. A estratégia funcionara.
Ela estava novamente pronta para a batalha.
_Raith?
Ele se enrijeceu mas não se virou.
_Raith, não é tarde demais. Resta muito tempo ainda para conversarmos sobre tudo isto pacificamente. Você pode vir comigo e conversar com meu tio. Ele poderá
ser convencido a pedir uma audiência com o duque. Esse é o único modo pôr um fim nessa briga de clàs.
Raith então virou-se, mas seus olhos eram indevassáveis.
_Você acha mesmo que Argyll poderá aceitar. _ Não foi uma pergunta, mas uma declaração feita com desdém.
_Eu acho.., acho que devíamos pelo menos tentar.
Dirigindo-se a Callum, que se aproximara deles, Raith falou:
_Antes de atracarmos em Oban, quero que você passe por Mull. A srta. Campbell precisa ver com seus próprios olhos a extensão da traição do duque de Argyll.
Katrine abaixou a cabeça, desanimada. Voltou a sentir o misericordioso torpor que protegia seu coração do sofrimento.
_Você é quem manda, primo _ disse Callum fazendo uma mesura de fingida submissão. Depois pegou o braço de Katrine. _ Venha, vamos descer para nos abrigarmos
desta friagem. Flora me deu ordens expressas de servir-lhe litros de chá quente para você recuperar o ânimo.
Katrine, tristonha, assentiu. Seus olhos ardiam com lágrimas que recusava-se a deixar cair diante de Raith. Mas, quando se viu na cozinha do navio, chorou
baixinho. Não, nem mesmo uma centena de xícaras de chá poderiam curar a dor causada pela rejeição de seu amor.

O navio fez um desvio na rota para passar pela ilha de Mull, onde ficavam as ruínas do castelo de Duart. Em angustiado silêncio, ela ficou olhando o bergantim
cortar as ondas para aproximar-se da terra. Conseguira parar de chorar, mas evitava olhar para Raith, que estava ao seu lado.
As montanhas da ilha não eram tão altas como os picos que haviam deixado para trás e havia muita vegetação, com urze em flor. Mas, em contraste com essa
parte, o morro que dava para o estreito de Mulle parecia dramático com sua fortaleza destruída. Katrine conseguiu vê-la a uma boa distância, um rastro sombrio da
tempestuosa e muitas vezes violenta história dos clãs das Terras Altas, uma testemunha da destruição causada pelos homens através de guerras e negligência.
Os MacLean de Duart tinham perdido seu castelo três gerações antes, depois de ele ter sido assaltado e parcialmente destruído pelas forças governamentais.
Posteriormente a posse da área passara para o controle dos duques de Argyll, que a havia abandonado para aumentar a destruição.
_Contemple o castelo de Duart, srta. Campbell _ disse Raith finalmente, no tom cheio de amargura que vinha usando com ela. Contudo, desta vez, ela podia
compreendê-lo.
A fortaleza dos MacLean, antes majestosa, agora estava sem telhado, com as torres e muralhas se desfazendo em pó, as janelas estreitas abrindo-se para um
terreno estéril e pantanoso.
_Argyll é o dono de tudo isto _ contou Raith, num tom cansado. _ Você realmente acha que existe alguma coisa que eu poderia dizer a ele para modificar os
hábitos de toda uma vida?
Katrine ficou em silêncio. Não havia nada que pudesse dizer.

Quando eles chegaram a Oban, a tarde estava terminando. Katrine percebeu a impaciência de Raith e desconfiou que ele a culpava pelo atraso. Se não o tivesse
importunado, falando sobre a briga entre os clãs, ele não modificaria seus planos, levando-a diretamente para casa.
Ela olhou para a paisagem a sua frente. Era a mesma que avistara um mês antes, mas agora lhe parecia feia e sem graça. Em vez de se concentrar nos bangalôs
que salpicavam as ruas íngremes, as graciosas lojas e cabanas de pescadores, tentou avistar o posto fiscal onde os MacLean de Duart estavam preses. Imaginava se
Raith iria libertar seus parentes naquela mesma noite, depois de levá-la até a casa de seu tio.
O pensamento a assustou. E se conseguisse retardar Raith, impedindo-o de voltar antes do dia amanhecer? Callum lhe dissera que teriam de se apressar se
quisessem chegar à casa de seu tio antes da meia-noite. Claro que não existia a menor possibilidade deles pernoitarem em Oban, pois Raith não se aventuraria a se
hospedar numa estalagem, correndo o risco de alguém reconhecê-la. Esse também era o motivo de ela estar usando um chapéu de abas largas e um veu que escondiam inteiramente
seus cabelos vermelhos.
Por um louco instante, ela pensou em fugir para Raith não poder entregá-la ao tio, mas logo se deu conta de que isso era impossível. Talvez tentasse uma
fuga mais tarde, quando prosseguisse a viagem apenas com ele. Callum já lhe contara que haveria dois cavalos esperando no porto...
_E então, doçura, chegou a hora de me despedir. Meu coração está em lágrimas.
Ao ouvir Callum, Katrine forçou um sorriso.
_Obrigado por todas suas gentilezas _ conseguiu dizer com voz trêmula, enquanto estendia a mão enluvada. _Espero vê-lo.., não, vou vê-lo um dia desses.
_Oh, claro que sim, bela Katie. Talvez muito antes do que imagina. Pode ser que um dia eu a tenha como prima. _ Erguendo o véu de Katrine, ele inclinou-se
e beijou-a na face, num gesto tão terno e solene que quase a fez chorar de novo. _ Cuide-se, Katie, e mantenha a cabeça erguida.
Um bom conselho, pensou Katrine tristemente, quando Raith aproximou-se dela oferecendo o braço. Aceitando-o com dignidade, ela permitiu que ele a conduzisse
pela prancha de desembarque até os cavalos.
Logo estavam deixando Oban para trás. Os picos das Terras Altas os cercavam em silencioso esplendor, parecendo perfurar o céu azul, como a dor transpassava
o coração de Katrine.
Raith não disse uma única palavra durante o trajeto, só falando quando eles chegaram à margem de um regato, onde iriam descansar e deixar os cavalos beberem.
Mesmo nessa hora, foi apenas uma ordem tensa para ela desmontar e caminhar um pouco. Ele se aproximou para ajudá-la a desmontar, mas só tocou-a o mínimo necessário.
Katrine levantou o véu e evitou olhar para Raith enquanto ele cuidava dos cavalos. Concentrou-se em admirar o pôr-do-sol, que brilhava como fogo entre as
montanhas. Lembrou-se vagamente de sua intenção de fugir, mas agora só conseguia pensar em Raith. Talvez fosse essa a última vez em que o veria.
Ouviu-o mexendo no alforje de seu cavalo e em seguida aproximar-se dela com uma bolacha de aveia. Quando aceitava a comida, os dedos de Raith tocaram os
seus. Mesmo através das luvas, Katrine sentiu a emoção que um mínimo toque de Raith sempre lhe provocava.
_Raith... _ pediu, a voz entrecortada. _ Não posso deixá-lo sem.., sem...
Sua voz falhou antes que conseguisse completar a frase, mas pelo brilho atormentado nos olhos azuis, soube que ele compreendera. Precisava que Raith a amasse,
preçisava sentir as carícias que só ele poderia fazer em seu corpo. Ele, Raith, o homem que amava com loucura...
Ela ficou olhando-o, cheia de amor e desejo. Vendo que Raith permanecia imóvel, estendeu a mão para tocar seu braço, sem o menor pudor, decidida a ter o
momento, querendo uma lembrança que a sustentaria ao logos dos solitários anos que tinha à frente.
_Por favor, uma última vez.
Raith fechou os olhos, desesperado. Por Deus, ela acabaria deixando-o louco! Com um suspiro de aceitação, tomou-a nos braços.
Por um longo momento os dois ficaram abraçados, em silêncio. Naquele instante encantado, os dois poderiam ser um homem e uma mulher que tinham ido procurar
privacidade nas encostas das montanhas. Mas essa sensação não era suficiente para ambos.
Afastando-se ligeiramente, Raith tomou o rosto de Katrine nas mãos. Trêmula, ela entreabriu os lábios para receber o beijo tão ansiado.
Eles se despiram com gestos impacientes e então uniram seus corpos ardentes.

Raith deitou-se ao lado de Katrine, ofegante, a pele úmida esfriando rapidamente sob o frio do sereno. Como em mútuo acordo, ambos ficaram em silêncio,
contemplando o céu flamejante dar lugar às primeiras estrelas.
Tomando coragem, ele voltou-se para fitar Katrine. O amor transbordante de seu rosto agora sereno ameaçou destruir todos os vestigios de sua decisão.
_Temos de ir. _ Ele obrigou-se a falar e, quando a viu concordar com um leve gesto de cabeça, desejou ser capaz de voltar atrás.
Sem uma única palavra de protesto, Katrine levantou-se e começou a juntar as roupas espalhadas. Raith teve de usar todo seu controle para não abraçá-la
de novo.
Sem trocar uma só palavra, recomeçaram a viagem. Estavam atravessando a passagem de Brandor, à sombra do imponente Ben Cruachan, quando a lua surgiu. A
inevitabilidade da despedida atingiu-os como uma golpe.
Quando chegaram perto de seu destino, Katrine freou sua montaria. A distância se erguia a forma escura do castelo de Kilchurn, onde estava estacionada a
milícia inglesa.
_ Não devemos ir mais longe do que isto _ sussurrou ela.
_ Vou deixá-la em casa _ retrucou Raith num tom que não deixou margem para discussão.
Ele a levou quase até a porta da casa de seu tio e depois ajudou-a a desmontar. Leu dor, desespero e amor em seu rosto atormentado. Incapaz de se conter,
tomou-a nos braços e beijou-a fervorosamente.
Desta vez foi ela que interrompeu o beijo angustiado. Engolindo um soluço, respirou fundo e pressionou as palmas contra o peito de Raith, obrigando-o a
se afastar.
_ Raith, seja o que for o que está pretendendo, por favor, tome cuidado.
Raith sentiu um vazio tomar conta de seu coração. Com o rosto transtornado de dor, inclinou a cabeça e beijou-a na face.
_Vá para casa, bela Katie _ sussurrou, com voz trêmula. Quando ele montou e desapareceu na escuridão, Katrine só teve uma certeza: Raith estava levando
seu coração com ele.

CAPÍTULO XVI


Sem Ligar para as nuvens que antecipavam uma tempestade, Katrine estava deitada sobre a relva, olhando sonhadoramente para o céu. A mão deslizava sobre
o abdome numa carícia protetora.
Como fazia com freqüência nos últimos tempos, ela saíra sorrateiramente da casa de seu tio para passar a tarde em preguiçosa contemplação. Em ocasiões como
essa, em geral se concentrava nas experiências agradáveis de sua "provação", o nome que seu tio usava para descrever seu seqüestro. Mas ao ver as nuvens de chuva
escurecerem o céu, seus pensamentos foram para o dia em que se separara de Raith.
Depois de suportar a angústia da partida, entrara na casa do tio pela porta dos criados e, sem fazer barulho, subira para o quarto que lhe fora destinado
quando chegara à Escócia. Depois de trancar a porta, atirara-se sobre a cama sem nem mesmo se'despir e pegara no sono vencida pela exaustão.
No dia seguinte, quando acordou, precisou de mais uma hora para se recompor antes de se achar em condições de enfrentar o tio com um minimo de compostura.
Depois, reunindo sua coragem, desceu as escadas.
Um murmúrio de vozes masculinas a atraiu para o gabinete, o mesmo lugar em que se deparara com Raith pela primeira vez. Ao se aproximar da porta, viu o
tio conversando com um soldado inglês, que segurava respeitosamente o chapéu nas mãos.
Por um instánte ficou observando Colin Campbell, alto, um pouco enrugado, com traços que lembravam seu pai.. Usava uma pcruca branca, mas ela sabia que
por baixo dela havia cabelos ruivos, agora talvez grisalhos.
_ Não pode ser _ ouviu-o murmurar. _ Ele fugiram mesmo?
A pergunta fez Katrine sentir uma onda de apreensão. Talvez ele estivesse falando da missão dos MacLean de Ardgour para libertar seus parentes em Oban.
Ela deu um passo à frente enquanto seu tio amassava uma folha de papel.
_Malditos MacLean! Estão decididos a nos fazer de bobos. Ajudaram seus cúmplices a fugir nu meio da noite, sob o nariz dos seus guardas!
_Sim, sr. Campbell _ disse o oficial num tom cansado. _ Encontramos o carcereiro na outra cela, logo depois da fuga. Ele foi amarrado e amordaçado. Jura
que não viu seus atacantes.
Katrine soltou a respiração, aliviada. Nenhum sangue fora derramado e ninguém conhecia a identidade de seus salvadores. Endireitando os ombros, ela entrou
no gabinete.
_Tio?
Colin Campbell ergueu a cabeça num gesto impaciente e depois deixou cair o queixo. O oficial virou-se perplexo.
Katrine pigarreou antes de falar.
_Estou contente em vê-lo de novo.
_Katrine! Graças a Deus, você está bem.
O alívio estampado no rosto de seu tio a encheu de culpa, lamentando o que estava para fazer. Mas não poderia agir de outra maneira. Respirando fundo, ela
cruzou as mãos.
_Ora, tio Colin _ respondeu fingindo inocência. _ Existe algum motivo para eu não estar bem?
_Motivo? _ repetiu Colin, franzindo o cenho. _ Você era prisioneira dos malditos MacLean! É mais do que motivo.
_Mas eu não era uma prisioneira.
_Você não... Então, com todos os diabos, onde esteve até agora?
_Não tenho certeza. Penso que perto daqui.
_Você pensa? Pensa! Com toda a certeza pode me dar alguma pista sobie o paradeiro deles.
_Bem.., na verdade, não.
_Então diga-me quem são os canalhas. Prenderei todos e os colocarei a ferros...
_Lamento, tio. Não posso lhe dizer quem são eles.
_Então nem mesmo ficou sabendo o nome deles?
_De alguns, talvez, mas não me lembro agora.
_Não lembra? Maldição! Mandei dois destacamentos saírem àsua procura! O duque em pessoa despendeu todos os esforços possíveis para você ser encontrada.
Temíamos por sua vida!
O sotaque escocês de seu tio ficava mais pronunciado a cada segundo. Ele estava vermelho, parecendo à beira de um ataque de nervos.
_Lamento o senhor ter se preocupado sem necessidade. Eu nunca corri perigo. De fato, de um modo geral, fúi muito bem tratada.
Ele respirou fundo, tentando se controlar.
_Quer dizer então que você está afirmando que não foi seqüestrada?
Katrine procurou escolher bem as palavras, porque não queria mentir.
_Estou querendo dizer que fiquei Lá de livre e espontânea vontade.
_E os infernais MacLean... por acaso estão metidos nesta... nesta fuga? _ disse seu tio, brandindo o bilhete amassado.
_Eu... eu não saberia dizer.
_Praga! Então como você explica isto? _ Desamassando o papel, ele avançou para brandi-lo no ar.
Katrine tirou-o das mãos do tio delicadamente. A mensagem em si era breve. Apenas as palavras gaélicas: Bàs no Beatha , Morte ou Vida, o grito de guerra
dos MacLean.
Mas, abaixo do lema estava um pequeno desenho de um machado de guerra, envolvido por dois galhos. Ele era o símbolo dos MacLean de Ardgour e de vários outros
ramos do clã, mas não do ramo principal, os MacLean de Ardgour.
Desenhar o machado fora uma atitude perigosa e impensada, pois chegava muito perto de denunciar Raith como o malfeitor.
Esperando que sua consternação não transparecesse, Katrine balançou a cabeça.
_Mas isso não prova nada.
Colin explodiu diante da calma resposta.
_Agora olhe aqui, mocinha! Vai me contar os nomes dos patifes que a raptaram ou então eu... eu...
Katrine balançou novamente a cabeça, mas recusou-se a desviar o olhar.
_Não, tio, não vou fazer isso. Se eu revelar o nome de alguém envolvido, o senhor vai querer enforcá-lo e não desejo ter esse peso na consciência. Ninguém
me maltratou, não fui ferida e voltéi sã e salva. Não houve grande mal.
_Não houve mal? Como pode dizer isso quando eles nos fizeram de bobos? Alteraram meus livros de registro de uma forma que não pode ser consertada. Falsificaram
recibos de aluguel usando o próprio selo do duque. Roubaram nosso gado...
_Falsificaram recibos? Então foi por isso que... _ Katrine se interrompeu no mesmo instante. Não podia dar a impressão de que sabia do roubo do selo. _
Se o duque de Argyll não tivesse aumentado injustamente os tributos dos MacLean de Ardgour, nada disso teria acontecido. Parece-me que existe uma solução perfeitamente
razoável para esta situação.
_E qual é ela?
_Reduzir os aluguéis e tributos ao seu nível anterior.
_Sua graça jamais concordará com isso.
_Foi o que me disseram _ suspirou Katrine.
_De qualquer modo, isto não é da sua conta.
_Também me disseram isto.
O tio lançou-lhe um olhar agudo.
_Bem, agora é minha vez de dizer que você nunca deveria ter vindo para cá. Estou convencido de que depois de toda esta confusão deve voltar imediatamente
para a Inglaterra.
_Não, tio Colin, não farei isso. Pretendo permanecer aqui nas Terras Altas. Se o senhor quiser, sairei de sua casa, mas penso que seria pouco cristão o
senhor negar abrigo para alguém de seu próprio sangue.
_Claro que não lhe negarei nada, filha _ disse o tio, esfregando as têmporas com um suspiro cansado. _ Mas me diga, como vou explicar a Sua Graça que seu
desaparecimento não passou de uma brincadeira, depois de todo o trabalho que ele teve?
_Diga-lhe que eu não prestei atenção aos nomes dos que me raptaram e que agora não me lembro deles. Talvez o duque acabe acreditando qüe sua sobrinha é
uma desmiolada, até um tanto retardada, e não tinha idéia dos problemas que estava causando. Assim o senhor não será considerado culpado de nada.
_Katrine, o duque não vai aceitar isso. Posso garantir.
_Ele pode ser o chefe de nosso clã, mas não pode me obrigar a prestar testemunho se não houve crime.., a não ser que recorra à força. O senhor o deixará
me atirar na cadeia, tio?
_Pelo amor de Deus, claro que não! Que tipo de homem pensa que sou, capaz de abandonar gente de meu próprio sangue?
Katrine sorriu.
_Penso que você é um homem bondoso e compreensivo que me faz lembrar muito de meu pai. Estou contente por tê-lo como tio. - Aproximando-se dele, ficou nas
pontas dos pés e beijou-o no rosto. _ Obrigada por ter se preocupado tanto comigo. Tentarei compensá-lo por todas as aflições que causei. Agora que estou de volta,
prometo não causar mais problemas.
_Hum! Não sei se posso acreditar nessa promessa.
_Bem, agora o deixarei cuidar de seus afazeres. Posso ver que o senhor está muito ocupado. Tenha um bom dia. _ Ela fez uma pequena reverência, acenou com
a cabeça para o jovem oficial, que se afastara discretamente e fingia olhar pela janela.
No entanto, enquanto se virava para sair, ouviu o tio dizer:
_Não será a última vez que falamos sobre isto!
_Sei muito bem disso _ ela murmurou suavemente.
E não foi mesmo. Nas semanas que se seguiram, seu tio alternadamente exigiu, ameaçou e implorou para ela dizer o nome dos raptóres. Parecia que os MacLean
tinham iniciado um longo processo de vingança contra o clã Campbell. A cada quinzena, nos lugares mais desencontrados, surgiam recibos falsificados com o selo do
duque. Os soldados estacionados no castelo de Kilchurn voltavam de suas missões jurando que estavam caçando fantasmas. Ninguém aparecia para dar informações sobre
os culpados, apesar dos cartazes oferecendo recompensa e anúncios colocados nos jornais de Glasgow e Edinburgo. Dizia-se que o duque de Argyll estava furioso.
Katrine, por sua vez, vivia de lembranças. Procurou isolar-se num plano da existência onde os sentimentos não penetravam totalmente para não sofrer com
a rejeição de Raith. Sentia uma saudade enorme de Meggie e lamentava não ter conhecido melhor Morag, mas forçava-se a se recordar apenas os aspectos positivos de
seu cativeiro. Sentia falta da presença dos homens MacLean em sua vida. O belo e espirituoso Callum, Lachlan, com seu jeito tímido e bondoso, e até mesmo Hector,
sempre mal-humorado e beligerante. E Raith. A ousadia de sua liderança, seu carinho pela pupila, o modo como fazia amor...
Isso ninguém poderia lhe tirar. As lembranças de Raith ficariam com ela pelo resto de sua vida.
Essas lembranças e o filho dele.
Menos de um mês depois de sua volta, Katrine reconhecera os sintomas. A experiência de sua irmã Louise a preparara para o que deveria esperar. Em vez de
se assustar com o enjôo matinal e a sonolência todas as tardes, ficara maravilhada. O torpor ao qual se auto-induzira desaparecera, como sumira sua sensação de desconsolo.
Encontrara algo por que viver.
Ela teria o filho de Raith. Esse simples e belo fato era a única realidade em sua vida. Nada mais tinha importância. Criaria a criança ali, nas Terras Altas,
onde nascera, onde se apaixonara e onde ficaria para sempre seu coração.
No entanto, ainda não contara nada para o tio. Temia que Colin Campbell, um reformista convicto, fosse incapaz de entender sua falta de vergonha diante
de sua condição, essa condição que a encantava. Muitas vezes se surpreendia conversando com a frágil criatura que crescia dentro dela como se o filho já tiyesse
nascido.
Como nesse momento.
Mais uma vez ela acariciou o ventre ligeiramente crescido sob o xale, sem se importar com as nuvens escuras que anunciavam uma tempestade.
_ Tenho certeza que quando você crescer vai ouvir histórias sobre os MacLean e como seu papai me raptou _ disse carinhosamente.
_Mas, quando você tiver idade suficiente, eu lhe contarei toda a verdade e você tirará suas próprias conclusões.
_E eu que pensei que tivesse lhe avisado para se cuidar. _ Uma voz masculina bem-húmorada interrompeu seu monólogo. _. Será que não percebeu que vai chover,
bela Katie?
Sobressaltada, Katrine levou a mão ao coração ao se ver diante de Callum MacLean.
_ Por Deus, você me assustou! _ falou com dificuldade, tentando respirar fundo para se acalmar. Nem mesmo uma sombra a alertara sobre a aproximação de alguém,
pois as nuvens tinham escurecido completamente o sol. Callum devia ter vindo pelo outro lado da colina, pensou. Há quanto tempo a observava? A espionava?
Vendo sua expressão irritada, Callum balançou a cabeça tristemente.
_ Não parece nem um pouco satisfeita em me ver.
_Mas claro que estou satisfeita! Você só me surpreendeu.
_ Tem estado tão sozinha que precisa conversar consigo mesma?
_ Eu não estava falando sozinha, mas... _ interrompeu-se no mesmo instante, percebendo que quase revelara seu segredo. Não queria que Callum soubesse do
seu estado, pois não gostaria de ser objeto de pena ou zombaria.
_ Então, com quem? Não estou vendo ninguém por perto.
_ Ora, claro que eu estava falando comigo mesma. Só me pareceu tolice admitir.
Callum ergueu uma sobrancelha e examinou-a atentamente.
_ E que história é essa de "papai"?
_ O que você está fazendo aqui? Você pode ser preso!
_ E quem vai me prender? _ Ele deu de ombros.
_ Ora, a milícia, quem mais? Todos os soldados no condado de Argyll estão procurando por você e seu clã.
Rindo, Callum ajoelhou-se ao lado dela.
_ Eles que continuem me caçando. Não encontrarão nenhum motivo para me prender. A propósito, tenho vários recados para você.
_ Ele levantou a mão e começou a contar nos dedos. _ Meggie sente muito sua falta e a quer de volta. Flora mandou lembranças. E, acredite ou não, Hector
mudou de idéia. Parece que o carneirinho de Meggie não anda comendo bem, desde que você partiu. Hector agora fica dizendo que ele não faria grandes objeções se você
se voltasse como a senhora do clã.
Katrine estava com os olhos marejados de lágrimas. A lembrança de tudo o que perdera estava criando um vazio em seu coração. Era um consolo ser lembrada
pelas pessoas das quais aprendera a gostar durante o cativeiro. No entanto, a pessoa mais importante para ela estava decidida a ignorar até mesmo sua simples existência.
Raith. O homem pelo qual teria sacrificado tudo, pelo qual esquecera seus princípios e seu clã. Ele não lhe mandara nenhum récado.
Desejou que Callum satisfizesse sua ansiedade de ouvir alguma çoisa sobre Raith, porque estava decidida a não perguntar nada. Mas Callum parecia mais interessando
em saber dela. Sentiu o olhar penetrante estudar seu rosto.
_ Parece-me que você tem estado ocupada demais para se importar com as idas e vindas dos MacLean. Isso teria algo a ver com a espera de um apressadinho,
talvez?
Apressadinho. Um termo escocês para crianças nascidas fora do casamento.
_ Como você soube? _ Katrine tinha os olhos arregalados.
_ Talvez tenha sido o modo protetor como você está segurando sua barriga _ sorriu Callum, com um brilho maroto no olhar. _Ou então o modo como estava falando
sem haver nem uma alma por perto. Nem por um instante pensei que estivesse conversando com seus joelhos, principalmente quando ouvi uma frase tão intrigante como
"seu papai me raptou."
Katrine afastou nervosamente as mãos da barriga, pousando-as no colo.
_ Raith não sabe sobre a criança? _ Callum quis saber.
_ Não! E não se atreva a contar-lhe. Sou perfeitamente capaz de "arcar com qualquer conseqüência". Minha avó me deixou uma herança considerável.
_ Você não acha que ele tem o direito de saber?
_ Por quê? Foi ele quem me mandou embora.
Por um instante Callum não respondeu. Examinando-a de alto a baixo, pegou uma folha de um arbusto.
_ Acho que eu deveria me oferecer para me casar com você.
_ Você? Só pode ser brincadeira!
Callum fez um ar ofendido.
_ Estou magoado, Katie. A primeira proposta de casamento que já fiz na vida e você me responde desse jeito.
_ Ora, Callum, você sabe que não quis màgoá-lo... tenho certeza que qualquer mulher ficaria honrada em aceitá-lo como marido. Mas você sabe muito bem que
um casamento entre nós seria um absurdo. Você não me ama, exatamente como Raith.
_ Talvez, mas estou falando sério sobre anunciar nossa intenção de nos casarmos. Se Raith pensar que está a ponto de perdê-la para alguém, é possível que
caia em si.
Katrine não aprovou a idéia. Seu orgulho não permitiria tal atitude.
_ Sou extremamente grata pelo seu gesto, Callum, mas não quero Raith desse modo. Não quero que venha a se casar comigo simplesmente para dar nome ao meu
filho.
_ Tem certeza?
_ Absoluta. E quero que me prometa que não vai contar nada a Raith.
_Está bem, isso eu posso fazer. _ Callum lançou um olhar para as rochas atrás de Katrine. _ Ah, aí vem um amigo seu, Katie. Lachlan estava tão preocupado
com seu bem estar que veio checar pessoalmente.
Surpresa e contente, Katrine olhou para trás e viu Lachlan balançando a cabeça enquanto se aproximava dela com seus passos pesados.
_A senhorita não devia estar fora de casa num dia tão feio. Daqui a pouco vai cair uma tempestade. _ Ele não parecia muito satisfeito em vê-la. Olhou para
as cores de seu xale com ar de desaprovação.
Katrine, que estava a ponto de abraçá-lo, surpreendeu-se com a expressão zangada.
_A senhorita não devia estar usando o xadrez dos Campbell, se é que pretende ser uma MacLean. Não fica nada bem.
_Minha escolha do tartan não tem a menor importância _ disse rigidamente _ , já que não creio que jamais me tornarei uma MacLean.
_Ah, não sei não _ interrompeu Callum. _ Lachlan, meu rapaz, parece que estamos devendo congratulações. Logo a srta. Campbell nos presenteará com um novo
primo e ao lorde de Ardgour com um herdeiro.
_Um herdeiro? _ O rosto sardento de Lachlan abriu-se num grande sorriso. _ Não diga!
Katrine quis fulminar Callum com o olhar, indignada com sua indiscrição.
_Eu não prometi que não contaria nada a Lachlan, certo?
_Então a senhorita deve vir conosco agora mesmo _ disse Lachlan.
_Não! Não vou a nenhum lugar com vocês!
Katrine olhava assustada para o grandalhão. Ele parecia decidido seqüestrá-la de novo. Callum o impediu erguendo a mão, mas mesmo assim ela levantou-se
de um salto e começou a recuar.
_Não vou com vocês!
_Por que não? _ Lachlan estava magoado e confuso. _ Por que, se vai ter o filho do lorde? A senhorita não nos quer?
_Não os quero? _ A pergunta a abalou demais, mexendo com suas emoções reprimidas e com o controle tão dificilmente conquistado. Ela explodiu em lágrimas.
_Oh, por que vocês dois não me deixam em paz? Vocês, MacLean, já me criaram encrencas para a vida toda!
E saiu correndo, descendo cegamente a colina, indo procurar abrigo na casa do tio. Os primeiros pingos da tempestade estavam começando a cair.
Deixou na colina Lachlan, que coçava a cabeça sem entender, e Callum, olhando pensativo para ela.

CAPITULO XVII

Katrine estava sentada à penteadeira, prendendo os cabelos numa trança, preparando-se para dormir. Seus pensamentos estavam longe, agradavelmente voltados
para o maravilhoso evento que ocorreria na primavera seguinte. Na penumbra do quarto, ficava mais fácil esquecer a preocupação que o surgimento de Callum, quatro
dias antes, desencadeara.
Embora ele tivesse dado sua palavra, era-lhe difícil acreditar que ele guardaria seu segredo. Mas agora esse fato perdia importância. Ela não queria mais
nada com os MacLean, e muito especialmente çom Raith. Tinha certeza de que assim que ele ficasse sabendo, iria procurá-la para "arcar com as conseqüências". Ela,
no entanto, não precisava de nenhum apoio. Possuía bens suficientes para criar uma criança com conforto e se o tio se recusasse a deixá-la continuar ali, procuraria
uma casa num vilarejo qualquer das Terras Altas, onde seria fácil passar por uma jovem viúva.
Não, tinha orgulho demais para forçar Raith a aceitar uma criança indesejada. Mas, acima de tudo, sabia que não suportaria a dor de revê-lo, só para ter
seu amor mais uma vez rejeitado. Jurara não sofrer mais por causa de Raith e preocupar-se apenas em proporcionar um bom futuro para seu filho ou filha. Queria que
a vida da criança fosse cheia de amor, carinho e risos. Já se cansara de amargura e ódio.
Katrine parou de pentear os cabelos e acariciou a barriga. Usava um robe de brocado sobre a camisola de flanela, porque apesar de ainda estarem no início
do outono, as noites já eram bem frias. Não acendera o fogo na lareira porque, como pretendia continuar nas Terras Altas, teria de se acostumar com seu inverno rigoroso.
Quando estava começando a trança, ouviu o som de batidas atrás dela. Virou-se surpresa, pois a porta do quarto ficava a sua direita. Olhou as sombras criadas
pela luz bruxuleante da vela e teve a impressão de ver uma forma escura na janela.
Assustada e curiosa, pegou a vela, preparada.para usar o castiçal como arma se fosse necessário. Chegando à janela, abriu-a cuidadosamente. No instante
seguinte deparou com os olhos azuis que estavam sempre presentes em seus sonhos.
_ Raith...
Ela ficou imóvel, as emoções em sobressalto. O orgulho a levava a não querer que ele tivesse vindo, mas o amor a fazia exultar de felicidade.
Por um infindável momento ficaram se olhando, hesitantes, encantados, avaliando-se mutuamente.
Finalmente, um sorriso curvou os lábios de Raith.
_ Parece que, pela primeira vez, deixei você sem fala _ disse ele com suavidade. _ Não vai me convidar para entrar, amor? É bastante desconfortável ficar
aqui no parapeito. Uma queda de uns dois metros de altura não seria fatal, mas acho que barulho seria altamente inconveniente. Prefiro evitar os soldados de Argyll
no momento.
Katrine pareceu subitamente voltar à vida, as faces coradas, os olhos cintilando.
_ O que, em nome de Deus, você está fazendo aqui? Deve haver duzentos milicianos caçando os MacLean!
_ Quatrocentos, segundo a última estimativa. _ Raith ergueu uma sobrancelha. _ Eu não esperava que fosse me cobrir de beijos, mas poderia pelo menos mostrar
um pouquinho de carinho em suas boas-vindas. O que acha que estou fazendo aqui? Vim buscá-la para levá-la para casa.
_ Me buscar! Foi Callum que lhe contou, não foi? _ Seu tom foi indignado e acusador.
_ Não. Fiquei sabendo por Lachlan.
_ Oh, aquele... aquele traidor! Muito bem, Raith MacLean, vamos deixàr uma coisa acertada desde já, este bebê é meu e você não tem nenhum direito a ele!
_ Isso, minha cara Katrine, é algo a ser discutido. _ Raith começou a pular a janela. _ Ele é meu filho também, mas isso não vem ao caso no momento. Eu
me casaria com você de qualquer jeito.
_ Casar! _ Katrine olhou para ele, sentindo tudo ao mesmo tempo: surpresa, prazer, revolta e fúria.
Dois meses antes ela revelara seu amor e implorara a Raith para deixá-la ficar. Chegara ao ponto de pedi-lo em casamento diante de seu clã, esquecendo-se
do próprio orgulho. Mas ele a rejeitara essa e muitas Outras vezes. Ele a mandara embora, indiferente às suas lágrimas. Agora, sem mais nem menos, estava se intrometendo
em sua vida, dizendo que queria se casar. Na certa esperava que ela caísse aos seus pés em gratidão.
_Raith, nem pense em entrar aqui _ disse, ao vê-lo passar as pernas compridas pelo peitoril.
Mas seu alerta não surtiu o menor efeito. Raith entrou facilmente, como se entrar numa casa pela janela do segundo andar fosse algo corriqueiro..
_Raith, estou falando sério! Vá embora agora mesmo ou eu... eu gritarei pelo meu tio!
_Ainda não, eu lhe peço. _ Raith inclinou-se para bater a poeira das calças. Usava roupas inglesas, com uma casaca de lã azul e um jabô simples, em nada
lembrando um vilão. De fato, nunca parecera mais bonito.
Katrine recuou mais um passo.
_E preciso muito atrevimento para invadir o quarto de uma dama!
O sorriso de Raith irradiou charme e sedução.
_Não é o quarto de uma dama qualquer, mas o seu. Você é minha futura esposa, portanto...
_Não sou sua futura esposa coisa nenhuma! Pode tirar essa idéia absurda da cabeça agora mesmo!
_Além disso _ continuou ele suavemente, avançando enquanto ela recuava _ , estou apenas dando o troco. Parece-me que voce invadiu o meu quarto e não faz
muito tempo. Eu lhe implorei para sair, mas foi inútil. Lembro-me também como sua visita terminou...
Katrine viu-o lançar um olhar para a cama. Num gesto de defesa, levou a mão à garganta. Apesar dos seus protestos de que não o queria ali, seu corpo contradizia
as palavras. Sabia que não conseguiria resistir aos beijos e carícias. Não confiava nem mesmo em permanecer num mesmo quarto com ele, quando nem sequer conhecia
seus propósitos. Talvez estivesse pensando em levá-la à força. O pensamento a fez cair na realidade e recuar em direção à porta.
_Não faça isso, meu amor _ disse Raith chegando à porta antes dela. _ Primeiro temos de discutir nosso futuro.
_Nada disso! Você teve dezenas de oportunidades de discutir nosso futuro, mas ignorou todas elas. Não tenho mais nada a lhe dizer. De fato, recuso-me a
conversar com você. E contra meus princípios falar com um ladrão de gado.
_Muito bem _ disse ele calmamente, tirando a vela de suas mãos. _ Sempre tivemos mais sucesso fazendo amor do que conversando.
Katrine abriu a boca, chocada diante da declaração. Ficou ali parada, paralisada, enquanto Raith colocava a vela numa mesinha e voltava para junto dela.
Dando-se conta do perigo que corria, Katrine tentou fugir de novo para a porta, mas Raith encurralou-a num canto.
_Raíth, não! _ gaguejou, ao vê-lo erguer o braço.
Ele colocou as mãos de leve em seus ombros e vagarosamente começou a examiná-la de cima a baixo, demorando-se nos seios e abdome.
Katrine lutava para acalmar a respiração. Usava roupas bem comportadas, mas Raith a olhava como se estivesse nua. E para sua consternação, sentiu uma onda
de calor percorrer o corpo, em resposta àquele olhar devastador.
_Tão bonita... Você conhece a máxima escocesa que diz: escolha sua esposa quando ela está de touca de dormir? Um homem deve ver sua futura mulher vestida
o mais simplesmente possível, sem pintura ou roupas que possam atrapalhar seu julgamento. Eu já a vi usando touca de dormir. Foi em nosso primeiro encontro; lembra-se?
E já a vi com e sem roupas, e sei muito bem que tesouro estou conseguindo.
Katrine estremeceu. Antes Raith nunca se preocupara em conquistá-la com palavras amorosas ou com terna persuasão. Agora a estava submetendo a toda força
de seu charme e a experiência era embriagadora. Seus lábios se entreabriram em antecipação enquanto sentia o hálito quente acariciar sua testa e as mãos dele ocuparem-se
com o cinto de seu robe.
_Ele é muito bonito, querida, mas você não precisa dele.
O puxão suave para afastar a peça a fez voltar à realidade.
_Raith, não!
_Não me diga que você está tendo um ataque de modéstia porque não somos casados.
_Isto não tem nada a ver com modéstia!
_Então talvez você deseja que eu lhe faça a corte primeiro.
_Não! Não quero corte nenhuma e...
_Ainda bem, porque acho que nosso filho não conseguiria esperar.
Nosso filho. As palavras lhe pareceram as mais doces que já ouvira... foram quase tão doces quanto o toque dos lábios de Raith quando ele a beijou.
Ela arrepiou-se de prazer, desejando ter forças para negar as sensações que tomavam conta de seu corpo e afastá-lo.
_Ah, bela Katie _ murmurou Raíth ao levantar a cabeça. _Você me levou à beira da loucura por mais vezes do que pode imaginar. O que me resta senão aceitar
minha sina?
Katrine ainda lutava para recuperar a respiração que ele roubara com o beijo, mas conseguir reunir seu orgulho para falar:
_Você só quer se casar comigo porque estou grávida. Os olhos de Raith se suavizaram de tal forma que ela sentiu a garganta se apertar.
_Não, Katríne, não é esse o motivo. Quero me casar porque não posso viver sem você.
Katrine não encontrou o que dizer em resposta a essa surpreendente declaração. Raith sorriu e depois beijou-a outra vez.
_Meu coração, minha querida e doce menina...
Katrine fechou os olhos. Seu sisudo e amargo amante montanhês estava provando ser um sedutor hábil como seu primo. Mas não ia se deixar levar tão facilmente.
_Não vai adiantar, Raith. Você não vai me conquistar com palavras doces.
_Está bem, entã& serei mais direto. Quero que volte para mim porque sinto falta de sua implicância.
_Minha implicância! _ Ela abriu os olhos.
_Sim, minha doce megera, sua implicância. Preciso de sua linguinha afiada para me manter alerta. Ninguém discute comigo como você. Será uma excelente esposa,
desde que tenha um bebê para lhe ocupar a maior parte do tempo.
_Não, não vou ser sua esposa!
_E será uma mãe excepcional para Meggie. Não existe ninguém melhor para essa função.
Katrine olhou feio para ele.
_Eu teria sido uma boa mãe para ela dois meses atrás, mas você foi cabeçudo demais para reconhecer.
_Concordo plenamente e estou disposto a admitir que fui um tolo. A nova governanta de Meggie é boa, mas não chega aos seus pés.
Katrine quis perguntar como Meggie estava progredindo em sua ausência, mas se conteve.
_Não se atreva a usar a menina de novo para me fazer sentir culpada!
_Está bem, então não falarei de Meggie. Mas confesso que gostaria que nosso filho tivesse o meu nome.
_Então Campbell não é bom para ele?
_Não foi o que eu disse... mas MacLean é muito melhor. Penso também que você ainda não refletiu sobre as conseqüências de recusar minha proposta de casamento.
Não será fácil para alguém tão jovem como você criar sozinha uma criança.
_Está vendo? Eu sabia! Você não me quer, só deseja "arcar com as conseqüências". Agora veja se enfia isto na cabeça: posso criar muito bem de meu filho
sem você!
_Nosso filho. E eu quero mesmo você, Katrine.
_Não! Você só quer satisfazer seu orgulho masculino.
_E o que há de tão errado em eu querer cuidar de você? Protegêla, amá-la e sustentá-la? Ah, Katie, volte para casa comigo. Você não tem idéia de como minha
vida era tediosa antes de eu a conhecer. Nem o nascer do sol é totalmente bonito quando você não está lá para assisti-lo comigo.
Raith estava começando de novo. Queria tentá-la com doces palavras para atingir seus objetivos. Mas ela não iria ouvir!
_Não vou me casar com um bandido sem lei que não suporta pensar que eu tenho sangue inglês, um ladrão de gado que está sempre brigando com meu clã. Não
pretendo ter um casamento baseado no ódio!
_Eu nunca lhe pediria isso, doce Katie. Eu te amo. _ Raith deslizou os dedos por entre as dobras do robe e tocou de leve sua barriga. _ Eu amo vocês dois.
_Não acredito em você _ disse Katrine, tentando ignorar o arrepios que o toque lhe provocava.
_Agora quem está sendo cabeçuda?
Katrine ergueu o queixo voluntarioso, decidida a não se entregar.
_Não voltarei para casa sem você. Meu clã não me dará um momento de paz se eu não a levar de volta.
_Ótimo, você não merece mesmo momentos de paz.
_Meu coração também não me dará sossego.
Katrine recusou-se a responder a uma mentira tão deslavada. Raith não mostrara nenhum sinal de coração partido quando a mandara embora.
_Não vou a nenhum lugar com você. O único modo de me tirar daqui será me seqüestrando de novo e...
_Bem, é o que farei se não conseguir convencê-la de outra maneira.
Ela encarou-o, inquieta. Seu tom era leve, mas havia uma grande seriedade em sua expressão. Subitamente assustada, conseguiu empurrá-lo, desvencilhando-se
dele.
_Não! Desta vez as coisas são muito diferentes. Meu tio está aqui para me proteger.
Raith soltou um suspiro cansado.
_Você quer mesmo que eu vá às últimas conseqüências. Muito bem. Beije-me mais uma vez, doce Katie, porque poderá ser nossa última oportunidade.
_Ultima oportunidade? _ repetiu ela, cautelosa. _ O que está querendo dizer com isso?
Ele não se deu ao trabalho de explicar. Em vez disso, pegou a vela e, com passos largos, foi abrir a porta.
_Raith, feche essa porta! _ sibilou Katrine. _ Tio Colin vai ouvi'-lo!
_Espero que ouça mesmo. De fato, eu ficaria muito agradecido se você me levasse até ele.
_Levá-lo?
_Qual é quarto dele? _ Raith entrou no corredor.
_Você está maluco!
_Sem dúvida, mas a culpa é toda sua. Eu era perfeitamente são antes de conhecer você. Campbell! _ gritou ele. _ Colin Campbell, onde diabos está você? _
Ergueu a mão para bater violentamente na porta vizinha.
_Pelo amor de Deus! Raith, o que você está fazendo? Raith, não faça isso! _ Katrine correu atrás dele enquanto ele percorria o corredor batendo em todas
as portas que encontrava. _ Raith, por favor! _ gritou freneticamente, puxando sua manga. _ Você será enforcado!
_É bem possível, mas você não me deixou escolha, meu amor. Parece que este éo único modo de fazê-la acreditar em minha sinceridade.
Os dois pararam quando uma das portas, do fim do corredor foi aberta. Colin Campbell apareceu, de camisolão e touca de dormir, ainda piscando de sono.
Num gesto desesperado, Katrine colocou-se na frente de Raith numa absurda tentativa de protegê-lo. Ele a afastou para o lado, com delicadeza, e fez uma
mesura para seu tio.
_Ah, finalmente, Campbell. Peço desculpas por perturbar seu sono, mas vim me entregar.
O soluço de Katrine se fez ouvir no corredor silencioso. Seu tio olhava para ela e para Raith, sem entender o que se passava.
_Que diabos... Ardgour? E você? O que está fazendo aqui a essa hora da noite? Por acaso tem noção de que horas são?
_Passa um pouco das dez, imagino. E quanto mais cedo você me prender, mais cedo voltará para sua cama.
_Prender você? Que história é essa?
_Sou o bandido que raptou sua sobrinha.
_Você! _ O velho olhou para ele espantado.
Katrine gemeu e cobriu o rosto com as mãos.
_Não.. não pode ser _ gaguejou Campbell. _ Você é um cavalheiro... ou era quando nos vimos pela última vez.
_Mesmo assim, devo confessar minha culpa. Eu me apaixonei por Katrine quase que à primeira vista, mas na ocasião não me dei conta disso. Agora ela não quer
acreditar em mim.
_Claro que não! _ garantiu Katrine indignada, depois de se recuperar do espanto.
_Portanto, você está vendo. Não tenho escolha senão me entregar para deixar você me mandar para a forca. Quando eu estiver morto, sua sobrinha ficará cheia
de remorso. _ A expressão de Raith se entristeceu enquanto seus olhos demoravam-se em Katnine. _ Espero que se arrependa por ter minha morte em sua consciência,
amor. E isto deixará a pobre Meggie sem um tutor. Que pena.
Katrine ficou olhando para Raith, dividida entre a vontade de matá-lo e o desejo de arrancá-lo dali para evitar que seguisse o plano maluco que engendrara
e que ela não estava conseguindo entender.
_Você está mesmo maluco! _ declarou, exasperada. _ E deixe Meggíe fora disto.
_E quem, neste mundo de Deus, é Meggie? _ perguntou Colin, obviamente irritado por ser deixado fora da conversa.
_Minha pupila _ explicou Raith, em nada perturbado pela raiva que brilhava nos olhos de Katrine. _ Uma menina que gosta muito de sua sobrinha e que precisa
dela quase tanto quanto eu.
_Oh, o que é isto... _ disse Katrine, perplexa.
_Quer segurar para mim, querida? _ Raith entregou-lhe a vela, tirou uma pistola da cintura e entregou-a a Colin.
O olhar espantado do velho tornou-se extremamente cauteloso quando viu um montanhês brandindo uma arma proibida. Mas Raith simplesmente entregou a pistola
a ele, segurando-a pelo cano.
_Pronto, você vai querer isto para me prender. Campbell pegou-a e apontou-a para Raith. Sua expressão ficava mais furiosa a cada instante que se passava.
Katrine, aflita, percebeu que o tio estava fazendo a conexão entre seu rapto e todos os problemas que os MacLean estavam criando ultimamente, mas também notou sua
tentativa de se controlar e ser justo.
_Será que o entendi corretamente, senhor? É o responsável pelo seqüestro de minha sobrinha?
_Sim, sou.
_E por todos os malditos roubos de gado que vêm perturbando o clã Campbell nos últimos três meses? O senhor está por trás dessa sujeira toda?
_Eu não usaria esses termos _ disse Raith. _ Mas pode me responsabilizar.
_E veio aqui se entregar?
_Na verdade, vim buscar minha esposa, mas fui surpreendido com uma dificuldade. Ela agora declara que não me quer mais.
_Esposa? _ Colin quase gritou, enquanto seu olhar fuzilava Katrine.
_Isso mesmo. Katrine se casou comigo quando estava em Ardgour e...
_Isso é mentira! _ protestou ela. _ Não houve casamento, foi você mesmo quem disse!
_O problema é que eu não quis aceitar o casamento. Mas estou disposto a remediar isso agora mesmo.
_Não, não vai fazer isso! Eu não quero você...
_Por favor, querida, não me interrompa. Estou tentando explicar ao seu tio o que aconteceu. O fato, Campbell, é que sua sobrinha se apaixonou por mim enquanto
estava em Ardgour.
_Eu não me apaixonei nada!
Pensei que você não tivesse o hábito de mentir _ disse Raith, erguendo uma sobrancelha numa expressão de ceticismo. _ Será que agora vai negar agora que
me ama?
Katrine recusou-se a responder, mas o rubor que tomou conta de suas faces dispensava as palavras. Raith sorriu.
_Muito bem. E agora, onde é qüe eu estava? Ah, sim, sua sobrinha. Eu gostaria de consertar essa situação pedindo sua mão em casamento. Garanto-lhe que tenho
grande estima e afeto por ela. Ignorando as palavras lisonjeiras e o modo brincalhão que ele usara, Katrine bateu o pé. Não saberia dizer se estava mais furjosa
por Raith achar que só teria de se casar com ela para conquistá-la ou pelo fato de ele estar brincando com o perigo que enfrentava. Mas suas palavras seguintes aplacaram
a dúvida.
_Antes de você decidir os méritos de meu pedido, Campbell, há um pequeno detalhe que esqueci de mencionar. Logo nós dois seremos aparentados pelo sangue.
Katrine vai ter um filho meu.
Katríne deixou cair o queixo enquanto os dedos de seu tio se apertaram em torno do cabo da pistola.
_Você não lhe contou nada, amor? _ disse Raith, não se preocupando com o risco que corria com essa nova revelação.
_É verdade, Katrine? _ rugiu Colin, fazendo-a saltar de susto. Ela não respondeu. Com o rosto vermelho de raiva e frustração, evitou o olhar do tio e concentrou-se
em demonstrar sua fúria a Raith.

_Se é verdade _ disse Colín Cantpbell muito sério _ , então não existe dúvida nenhuma. Você tem de se casar. Imediatamente.
Katrine virou-se incrédula para o tio.
_O senhor quer que eu me case com um criminoso?
_Suposto criminoso, meu amor _ emendou Raith. _ Por favor, não me condene antes de pesar todos os fatos.
_É o bastante, senhor! _ Campbell estava indignado. Seus membros, queixo e touca de dormir tremiam de raiva. _ Não tolerarei esta desgraça ao nome Campbell.
Criminoso ou não, o senhor vai se casar com minha sobrinha o mais rápido possível.
Sorridente, Raith fez uma profunda mesura ao velho.
_Naturalmente, estou às suas ordens, sr. Campbell.
_Não, tio Colin! Não quero me casar com ele! Desgraça ou não, recuso-me a aceitá-lo como meu marido.
_E por que não? _ indagou Campbell olhando feio para a sobrinha.
_Por que ele não me ama!
_Ora, e o que o amor tem a ver com esta história?
_Raith só está se oferecendo para se casar comigo porque quer assumir a criança como filho dele _ acrescentou ela, meio sem jeito.
_E ele não está fazendo mais do que sua obrigação! Raith sorriu ao ver a expressão de revolta de Katrine. Dirigiu-se novamente a Campbell.
_Eu preferiria evitar demoras, se possível. Estou disposto a me casar com Katrine imediatamente, mesmo antes de o senhor me atirar na prisão.
Nesse momento, Colin Campbell virou-se para Raith com os olhos semicerrados.
_Será que o senhor está pensando em se casar com minha sobrinha apenas para evitar a punição pelos seus crimes?
_Eu nem sonharia com essa hipótese _ disse Raith tranqüilamente. _ De qualquer forma, duvido que meu casamento com sua sobrinha vai demover Argyll de suas
intenções. Mas quero estar preparado para qualquer eventualidade. Se o senhor me mandar para a forca, Katrine ainda terá um nome para nosso filho. Eu não gostaria
que ele entrasse neste mundo como um bastardo.
_Nem eu _ concordou Campbell, parecendo um pouco mais calmo. Mas, no instante seguinte, levantou a pistola, apontando-a para Raith. _ Muito bem, Ardgour.
Em nome do duque de Argyll, eu o estou acusando e prendendo pelo rapto de minha sobrinha e posse violenta de propriedades de Sua Graça.
Katrine não pôde acreditar no que ouvira.
_Não! Tio Colin, o que está fazendo? O senhor não pode prendê-lo. O duque vai enforcá-lo!
_Talvez não chegue a isso _ resmungou Campbell. _ Afinal, Ardgour é um chefe de clã. Mas pretendo deixar Sua Graça decidir 'o que vai acontecer com ele.
Raith sorriu de novo, mas desta vez seu sorriso estava cheio de desdém.
_Muito sábio. De fato, gostaria de conversar com o duque o mais rápido possível e consideraria um favor se o senhor tomasse as medidas necessárias.
_Farei mesmo isso, sem demora.
_E, como prova de minha voa vontade, gostaria de lhe devolver isto. _ Raith enfiou os dedos no cinto e tirou o selo do duque.
_Oh, não! _ exclamou Katrine em total exasperação. Uma confissão de culpa seria o pior que poderia acontecer no caso de Raith.
Não suportando mais presenciar tanto desvario, ela saiu marchando pelo corredor até seu quarto, batendo a porta atrás de si com violência suficiente para
sacudir as vigas.
Então deixou-se cair sobre a cama, levando os dedos aos lábios ainda inchados pela paixão dos beijos de Raith. Por Deus, o que iria acontecer com ele? O
duque, com toda a certeza, faria com que pagasse pelos seus crimes. E se tudo que ouvira sobre ele fosse verdade, Sua Graça dificilmente teria misericórdia com inimigo
um tão feroz de seu clã.
Estremeceu violentamente. Se Raith fosse enforcado, seu filho não teria um pai. E ela nunca mais acalentaria qualquer esperança de felicidade.


CAPÍTULO XVIII


Na tarde seguinte, Katrine esperava perto da cela onde Raith fora aprisionado. As últimas dezoito horas tinham sido terríveis e as próximas seriam piores
ainda, se ela fracassasse em sua missão.
Durante a longa noite insone e a manhã seguinte, ela se agoniara pensando sobre o que fazer com Raith. A única preocupação de seu tio era arranjar um nome
para seu filho. Ao acordar, ele logo renovara sua exigência de que ela se casasse com o lorde de Ardgour, mas não acreditava que o casamento ajudaria a libertar
Raith. Tio Colin acabara interrompendo seu discurso sobre honra, dizendo que iria conversar com o duque e suplicar sua demência, mas ela ainda não acreditava que
isso fosse adiantar.
Tinha de ajudar Raith a escapar, mas como? O castelo de Kilchurn era uma fortaleza construída em pedras, com soldados ingleses guardando-o ferrenhamente.
No entanto, ela ficara sabendo que o duque fora chamado à sede de seu clã em Inveraray, a cerca de vinte quilômetros dali, e voltaria ao cair da noite. Isso lhe
dava algum tempo para agir.
Depois de horas e horas fazendo cálculos e planos, finalmente chegara à conclusão de que, com um pouco de sorte, talvez fosse bem sucedida. Esquecendo-se
das dúvidas, não perdeu tempo em colocar seu plano em prática, juntando as peças de roupa que seriam necessárias e tirando uma pistola do gabinete do tio. Temendo
pela vida de Raíth, estava disposta a mentir, roubar e até matar para salvá-lo.
Imaginava que teria de subornar um guarda para conseguir entrar no castelo, mas, para sua surpresa, foi admitida sem dificuldade. Quando pediu permissão
para ver o prisioneiro, dizendo que ele era seu namorado e gostaria de verificar se estava bem, o oficial inglês, que a conhecia da casa de seu tio, teve pena dela.
Os gonzos da pesada porta de carvalho gemeram em protesto enquanto o oficial a abria para permitir sua entrada na cela.
Quando a porta se fechou atrás dela, Katrine levou algum tempo para sua visão se adaptar às sombras. Um raio do sol de fim de tarde entrava pela janela
alta e gradeada, dando uma ilusão de calor no frio cubículo de pedras. No canto ela avistou um catre, sobre o qual estava reclinada a figura de um homem. O quadro
fez seu coração de contrair de dor. Raith parecia adormecido, dando a impressão de estar alheio, ao fato de que essas talvez fossem as últimas horas de sua vida.
Esperou até ouvir a chave trancando a porta e passos se afastando.
_Raith? _ chamou, tirando o capuz da capa. Como ele não se mexesse, falou com mais urgência: _ Raith, por favor, acorde! Não temos tempo a perder. Precisamos
sair daqui agora mesmo.
Ele virou-se no catre, as pálpebras se abrindo vagarosamente. Quando a viu, sorriu, sonolento.
_Katrine. _ Sua voz aínda rouca de sono, vibrou na cela. _Você veio.
_Claro que vim. Por acaso pensou que eu deixaria que o enforcassem? Quero ajudá-lo a fugir.
Raíth sentou-se preguiçosamente, afastando uma mecha de cabelos que lhe caíra na testa.
_Perdoe minha burrice, querida, mas não estou entendendo. Você me pegou cochilando. Por que eu iria querer fugir?
_Porque eles vão executá-lo, ora!
_Ainda não fui condenado.
Katrine olhou-o espantada, não entendendo por que ele agia de uma forma tão indiferente. Cruzou as mãos, rezando por paciência.
_Raith, você deve entender que sua situação é muito difícil.
_Admito que meus atuais aposentos em nada se parecem com aqueles aos quais estou acostumado _ disse ele, depois de lançar um olhar ao redor. _ Mas não estou
em situação tão ruim assim. Não fui acorrentado à parede e me permitiram fazer a barba e trocar de roupa. Sem dúvida, sinto-me em muito melhor situação do que meus
parentes que ficaram presos no posto fiscal de Oban.
_Quer fazer o favor de parar de brincar? O duque vai chegar a qualquer instante.
_Ótimo. Estou ansioso para conversar com ele o mais rápido possível.
_Ansioso? _ Katrine não conseguia acreditar no que estava ouvindo. _ Não percebe o que o duque gostaria de fazer com você?
_Me esquartejar, imagino.
Para irrítação de Katrine, Raith levou as mãos ao alto da cabeça, espreguiçando-se. Depois, a voz baixando até transformar-se num murmúrio sedutor, entendeu
a mão e falou:
_Venha cá me beijar.
Ela esteve a ponto de correr para ele, ansiosa por perder-se no ardor de seus beijos. Mas a preocupação com o que estava para acontecer acabou prevalecendo.
_Por todos os santos, Raith, não temos tempo a perder. Você precisa sair daqui agora mesmo.
_Não, meu amor, não pretendo fazer isso _ disse ele, balançando tristemente a cabeça. _ Não vou a nenhum lugar. Tive muito trabalho para me meter aqui.
_Trabalho? De que loucura está falando? Parece que você quis ser preso.
_Bem, considerei a idéia de me trancar na leiteria de seu tio, mas decidi que isso não serviria plenamente ao meu propósito. Portanto, dei um jeito de ser
trancado no castelo de seu chefe.
Katrine sentiu a mesma anda de fúria que experimentara na noite anterior. Sentiu vontade de fazer uma declaração mordaz sobre a capacidade mental de Raith,
mas calou-se, cruzando os braços sobre o peito.
_Bem, então dê um jeito de ser libertado. Não tenho a menor intenção de carregar a culpa pela sua morte. Você vai fugir e ponto fmal!
_E viver o resto de minha vida como um fugitivo? Não, minha doce megera, vim resolver a situação e pedi-la em casamento, e não tenho a menor intenção de
partir sem você. _ Raith voltou a deitar no catre, ficando de bruços, com os braços dobrados e o queixo apoiado nas mãos.
Katrine resmungou uma praga. Com um gesto irado, soltou os cordões da capa e avançou para ele. Deixou-a cair dos ombros quando estava junto ao catre.
Raith prendeu a respiração diante da visão que teve, O peitilho do vestido de tafetá preto erguia os seios fartos a uma altura perigosa e a cor escura contrastava
deliciosamente com a pele alva. O resultado era provocante demais para um homem que há dois meses não conhecia companhia feminina. No momento, ele não podia pensar
em nada mais senão em libertar Katrine da elegante vestimenta.
Sem se dar conta do efeito que estava exercendo sobre Raith, Katrine colocou as mãos na cintura e olhou feio para ele.
_Raith MacLean _ começou, pronunciando bem as palavras como se estivesse se dirigindo a uma criança. _ Não podemos sair daqui juntos. Só uma mulher entrou
no castelo e eles desconfiariam vendo duas saírem. Você terá um bom, tempo antes dos soldados serem alertados, e eu ficarei aqui enquanto você escapa. _ Virando-se
de costas, Katrine ergueu a saia e remexeu nas camadas de anáguas sob ela.
Raith a observava, intrigado.
_Katie, meu coração, eu gostaria muito de fazer amor com você e não tenho objeções contra quase nenhum lugar, mas não admito fazê-lo numa prisão dos Campbell.
_Ótimo, porque não pretendo que façamos amor.
_Então por que está se despindo?
_Eu não estou me despindo! Só quero salvar sua inútil pele. Trouxe-lhe um de meus vestidos e um outro par de anquinhas. Você vai usar minha capa. Ela tem
um capuz bem grande e assim você poderá esconder o rosto.
Raith, para sua enorme frustração, atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.
_Não vou a lugar nenhum vestido com suas anáguas.
_E por que não? _ disse Katrine, ainda lutando para se livrar do excesso de roupas. _ Seu belo príncipe Charlie fugiu para a França disfarçado de mulher.
Você se considera superior a ele?
_Alguns poderão considerar uma traição eu responder honestamente essa pergunta. _ Raith rolou para o lado, dobrou o braço e apoiou o rosto na mão. _ Você
não me conhece se acha que vou me esconder atrás das saias de uma mulher. Mas, só por curiosidade, o que pretende fazer com as portas trancadas e os guardas ingleses?
_Meu plano é chamar o oficial aqui para você poder apontar a pistola de meu tio para ele _ Ela mostrou a bolsa que trouxera sob a saia, onde escondera a
arma. _ Então poderá amarrá-lo e amordaçá-lo como fez com o carcereiro de Oban.
Raith soltou uma risada, deliciando-se com a situação.
_Por Deus, Katie, eu a transformei numa montanhesa sedenta de sangue.
Olhando-o com fúria, Katrine conseguiu extrair do meio de suas anáguas uma saia de gorgorão preto. Raíth apenas balançou a cabeça.
_Estou grato pelo seu interesse, Katrine, mas falei sério quando disse que não vou sair daqui sem você. Não vou arredar um centímetro enquanto você não
estiver disposta a se casar comigo.
A súbita determinação em sua voz a fez parar. Ainda segurando a saia, olhou-o bem nos olhos e viu que ele não estava brincando. Balançou a cabeça, pensativa.
_Não tenho idéia de qual carta você tem na manga, Raith. Por que esse repentino desejo de se casar comigo?
_Eu já lhe expliquei na noite passada. Só há pouco tempo recuperei o juízo e descobri que não consigo viver sem você.
_Meu tio acredita que você quer se casar comigo apenas para aplacar a fúria do duque.
_Garanto-lhe que uma coisa não tem nada a ver com a outra.
_Bem, o fato de eu me casar com você não fará diferença para o duque. Foi você mesmo quem disse.
_E não vai fazer mesmo. Mas fará uma grande diferença para mim.
_Acho que você só quer dar um nome ao seu filho.
_Não, doçura, não se trata disso. Eu já tinha decidido me casar com você quando fiquei sabendo sobre a criança.
Katrine semicerrou os olhos, encarando-o com fúria.
_Você decidiu... Você decidiu?
Raith se deu conta do erro que cometera antes mesmo de ouvir o protesto. Preparou-se para a nova tempestade que via se formando nos olhos verdes, erguendo
rapidamente a mão num gesto de derrota.
_Ah, minha querida, não tenho a prática de Callum em inventar as frases que as moças adoram ouvir. Mas sou muito mais sincero do que ele. Não quero você
por causa de Meggie ou para dar um nome ao nosso filho. Quero você para mim, para sempre. Eu te amo, Katrine. Não sei mais o que dizer para convencê-la.
Ela sentiu a raiva se esvair. Estava quase conseguindo acreditar nele.
Raith levantou-se vagarosamente, enquanto ela o olhava, indecisa.
_Quero me casar com você agora mesmo, Katrine. _ Sua voz foi doce e persuasiva. _ Chame o oficial aqui e peça-lhe para buscar um de seus homens. Precisamos
de duas testemunhas, você conhece a lei.
O medo que a mantivera acordada na noite anterior voltou com toda a força. Com um soluço abafado, ela recuou, segurando a saia contra o peito num gesto
defensivo.
_Por que casar? Para eu ser uma noiva num dia e uma viúva no outro? Não vou suportar, não vou... _ As lágrimas afloraram abundantes em seus olhos.
_Oh, Deus _ suspirou Raith, pegando-a nos braços.,_ Detesto quando você chora.
_Não estou chorando. _ Ela engoliu em seco tentando-se controlar. Mas escondeu o rosto contra o ombro de Raith e deixou que afagasse seus cabelos.
_Tive de consolar Meggie deste mesmo jeito _ murmurou Raith suavemente. _ Ela estava chorando por sua causa.- Sabe que ela falou, pela primeira vez, dois
dias atrás?
Katrine ergueu a cabeça, esquecendo as lágrimas.
_Meggie? Ela falou?
_Sim. E sabe o que ela disse? Katie. Seu nome. Pediu-me para eu vir buscá-la. Ela precisa de você, Katrine, e eu preciso de você.
Katrine fechou os olhos, lutando contra o desejo de concordar com ele.
_Raith... por favor, não faça isto. _ Reunindo forças, tentou afastar-se dele. _ Você precisa partir antes que o duque chegue.
Raith só apertou o abraço,. recusando-se a soltá-la.
_Não, você tinha razão. Esta situação tem de ser resolvida e o único meio de conseguir isso é tentar uma aproximação com Argyll. Não vou sair daqui até
conversar com ele.
Katrine permaneceu calada.
_Era você mesma que sempre me mandava conversar com o duque.
_Mas não à custa de sua vida _ fungou ela.
_Existem outras vidas em jogo, além da minha.
O tom decidido a fez recordar-se do tipo do homem com que estava lidando. Um líder. Um lutador. Um homem que não esmorecia quando a sobrevivência de seu
clã estava em jogo. Sim, agora Raith falava como o perigoso estranho que a seqüestrara para proteger seus parentes, como o amante orgulhoso e amargo que roubara
seu coração e depois a mandara embora.
_Não é justo _ protestou, com os olhos voltando a se encher de lágrimas. _ Agora vou perder você de novo.
_Você não vai me perder, Katrine.
_Vou sim. O duque mandará enforcá-lo e então ficarei sem marido e Meggie sem tutor.
Raith tomou seu rosto entre as mãos.
_Meu doce amor, ninguém vai me enforcar. Por que não confia em mim?
_E por que eu deveria confiar? Você é um ladrão de gado. Nunca fez nada senão me raptar, me ameaçar e me bater. Fiquei toda roxa...
_Não fiz nada que você não merecesse. Quando a vi atirando minha melhor espada no lago...
_Seu bruto...
_Ah, Katie, sem dúvida estaremos discutindo quando formos velhinhos e...
Raith interrompeu-se ao ouvir passos perto da porta. Katrine enrijeceu o corpo.
_Vem vindo alguém! Santo Deus, o duque... Raith, por favor, fique pelo menos com a pistola.
_Não, isso só serviria para complicar minha situação. Já lhe disse, confie em mim, Katrine. _ Ele inclinou-se para beijá-la de leve nos lábios.
Ela quis protestar, implorar, mas não havia mais tempo. A chave estava virando na fechadura. Raith pediu que ela se afastasse enquanto a pesada porta era
aberta.
Katrine virou-se, olhando assustada para o cavalheiro que entrava na cela. Tinha aproximadamente a mesma idade de seu tio e usava um sobretudo de seda pesada,
uma peruca elaborada e finos sapatos com fivelas de prata. Sem dúvida era o duque, ele irradiava a poderosa personalidade dos Argyll. O general John Campbell de
Mamore, agora o quarto duque de Argyll, havia lutado sob as ordens do impiedoso Cumberland durante o levante de Quarenta e Cinco.
Ela apertou as mãos para impedi-las de tremer. Raith, ao contrário, cumprimentou o duque com uma mesura desdenhosa.
_Senhor duque. Estou satisfeito em vê-lo.
Enquanto a porta se fechava atrás dele, Argyll inclinou ligeiramente a cabeça num cumprimento frio.
_Ardgour.
O desagrado mútuo entre os homens era quase palpável, notou Katrine. Ela mordeu o lábio quando olhos cinzentos se fixaram nela.
_Srta. Campbell, presumo. _ Ele não lhe deu tempo de fazer uma cortesia, virando-se logo para Raith. _ Muito bem, Ardgour. Sou um homem ocupado e não gosto
de perder tempo. Vamos começar? Creio que me deve explicações sobre sua conduta com esta jovem dama.
_Perdoe-me, sua graça, mas não vejo por que lhe devo explicações.
_Como não? Raptou a sobrinha de meu administrador, levou-a para a cama, engravidou-a e agora tem a audácia de negar qualquer responsabilidade?
Katrine sentiu a tensão crescer entre os homens. Raith, apesar de não ter se mexido, mudara de atitude. Parecia rígido e alerta, mais perigoso do que nunca.
_O que aconteceu entre eu e Katrine só interessa a nós mesmos.
_Interessa ao tio da moça. De fato, ele tem todo o direito de exigir uma reparação.
_Colin Campbell já deu sua permissão para nos casarmos. Isso é tudo que o senhor precisa saber.
Argyll franziu mais o cenho.
_Sabe tão bem quanto eu que, como chefe do clã desta jovem, tenho a obrigação de protegê-la.
_Tenho satisfação em dizer que Katrine é uma Campbell que nunca precisou de sua proteção. E também não a quer.
Um leve corado tingiu as faces do duque, mostrando que sua raiva estava aumentando. Katrine desejou ardorosamente que Raith parasse de antagonizá-lo.
Argyll, porém, só fez um gesto com a mão, como se estivesse disposto a ignorar o desrespeito.
_Bem, então podemos ir direto ao assunto. Fui informado que você queria discutir a questão de suas atividades criminosas.
_Ah, sim _ disse Raith, num tom suave mas muito cáustico _... minhas atividades criminosas. _ Ele afastou-se e foi se encostar na parede, provocando Argyll
com sua falta de preocupação. _ Certo, então vamos examinar o insignificante caso que o senhor tem contra mim.
_Insignificante? Eu nunca chamaria as provas que tenho contra você de insignificantes.
_Permita-me discordar. Meu crime mais grave foi o roubo de noiva.
Katrine e o duque olharam para ele, perplexos.
_Roubo de noiva? _ repetiu Argyll.
_Tenho certeza que já ouviu esse termo antes, Sua Graça. Sou culpado apenas de querer Katrine para minha esposa. Como qualquer bom escocês sabe, o roubo
de noivas ainda acontece aqui nas Terras Altas. Nenhum tribunal escocês condenaria um homem por seguir uma tradição tão antiga.
Ele fez uma pausa, esperando para ver se suas palavras tinham sido bem entendidas. Katrine ficou olhando-o, confusa. Podia revelar que ele recusara-se terminantemente
a casar-se com ela, mas não tinha a intenção de tomar o lado do duque. E, sem o seu testemunho, o caso contra Raith era mesmo de pequena importância. Em vez de castigar
um homem por roubar uma noiva, seria mais provável um juiz escocês lhe dar os parabéns, mesmo se a moça tivesse sido levada contra sua vontade.
Argyll, conhecendo bem seu povo, procurou seguir uma outra linha.
_Você impôs condições para devolver a srta. Campbell ao seu tio. Só isso já seria suficiente para provar o seqüestro.
_Sugiro que o senhor leia com. mais cuidado a carta que lhe enviei. A pior coisa de que me podem acusar é cobiça. Minha exigência de diminuição dos aluguéis
e tributos poderia facilmente ser interpretada como um substituto do dote de minha futura esposa. Meu outro pedido, que os MacLean de Duart fossem poupados, também
estaria incluído no contrato pré-nupcial, pois seria esperado um gesto de boa vontade de sua parte por ocasião da união de nossos dois clãs.
Katrine prendeu a respiração ao ouvir a explicação de Raíth. Dote, ora essa! Ele devia ter inventado essa versão de sua carta recentemente, porque quando
a escrevera sua intenção era outra. Declarar o desejo de se casar com ela lhe dava uma defesa que bem poderia salvar sua vida e ajudar os MacLean de Duart. Ele jamais
abandonaria seus parentes.
Ela olhou para Raith com alguma indignação. Sentia-se usada e comprada. Qualquer que fosse a continuação da conversa, tinha certeza de que Raith preparara
uma resposta para todas as acusações que o duque poderia fazer. Ele arquitetara seu plano cuidando dos mínimos detalhes, mas a deixara acreditar apenas no pior :
que ele poderia ser condenado e enforcado.
Lembrando-se da terrível incerteza que a perseguira desde o aparecimento de Raith na noite anterior, Katrine cerrou os punhos. Queria dizer a ele exatamente
o que pensava sobre esse truque, mas fechou a boca ao ouvir o duque levantar novas acusações que iam sendo rebatidas uma a uma.
_E quanto ao meu selo roubado?
_Um selo do qual supostamente me apropriei.
_Está bem. Apropriou-se, então. Ele estava em sua posse. Meu administrador o recebeu de suas mãos.
_Quem pode afirmar que o senhor não o perdeu? Quem pode negar que eu o encontrei e o devolvi ao dono?
_Suponho que você também pretende negar o roubo de meu gado.
_Que provas o senhor tem?
_Não preciso de provas _ disse Argyll, ficando mais vermelho.
_ Eu poderia mandar enforcá-lo pela simples suspeita de roubo. Tenho certeza de que não encontraria dificuldade em arranjar testemunhas para afirmar que
o viram roubando os animais.
_Quer seja verdade ou não. Sim, já ouvi falar muito da justiça dos Campbell. _ Raith enfrentou o duque com um olhar duro. _Mande me enforcar e as Terras
Altas explodirão. O senhor sabe muito bem disto. Quer comandar esse tipo de derramamento de sangue?
Argyll ficou em silêncio por um bom tempo. Um músculo pulsava em seu pescoço.
_Eu podia mantê-lo preso aqui _ disse finalmente.
_Por quanto tempo? Já tive dezenas de oportunidades de fugir. Meus homens poderiam ter me libertado desde a hora em que cheguei. E, como o senhor pode ver,
recebi a visita de minha futura esposa, que veio com tudo preparado para me ajudar a fugir. _ Raith fez uma leve mesura para Katrine, que retribuiu com um olhar
furioso.
Ele não pareceu notar sua revolta, porque logo voltou a atenção ao duque.
_Repito, meu crime mais grave foi o roubo de noiva. No entanto, meu clã está disposto a continuar a briga. Estamos até preparados para pegarmos em armas,
se necessário.
O duque virou-se para Katrine com uma expressão severa.
_Seu tio me contou que a senhorita não quer depor contra este homem. Será que conseguirei fazê-la mudar de idéia?
_Não, Sua Graça. Lamento dizer que não quero a morte dele em, minha consciência _ disse ela com o queixo erguido, enfrentando a acusação.
Argyll, percebendo que seria inútil insistir, voltou-se novamente para Raith com um suspiro.
_O que você quer, afinal? Imagino que existe um propósito por trás de tudo isto.
_Meu propósito é simples, Sua Graça. Tento proteger os membros de meu clã dos desmandos de seu administrador e de sua cobiça de Campell.
_Vá devagar, Ardgour _ alertou Argyll suave, mas perigosamente.
Raith continuou com a mesma expressão confiante, porque sabia exatamente até onde podia ir.
_Como deixei claro em minha carta, é uma simples questão de fazer os aluguéis e taxas voltarem ao nível anterior. Mande seu administrador abaixar os aluguéis
e o senhor não terá mais problemas com meu clã.
Argyll parecia querer apunhalar Raith, mas sua frustração era evidente. Tinha de ceder.
_Tudo indica que você não me deixou escolha.
_Foi essa minha intenção _ sorriu Raith.
_Se seu pedido for atendido, os MacLean vão parar de perturbar meu povo?
_O senhor tem minha palavra. Os Campbell ficarão livres de roubos de gado e o senhor dos recibos falsos que têm aparecido ultimamente.
Argyll fungou de desdém.
_E você espera que eu confie na palavra de um velhaco?
_Encontro-me na mesma posição desagradável que o senhor está enfrentando. Tenho de aceitar a palavra de um chefe Campbell. _Raith então lançou um olhar
para Katrine, sua expressão se suavizando. _ Estou preparado para honrar uma trégua com o clã de minha mulher. De fato, agir de outra forma me custaria um preço
muito maior do que estou disposto a pagar.
Katrine quis interrompê-lo, dizendo que não era sua mulher, mas desistiu. A ternura que viu nos olhos azuis quase a fez esquecer sua indignação.
Lançou um olhar ao duque. Ele a examinava com grande frieza e sua expressão dizia bem claramente que ela traíra seu clã ao escolher se casar como lorde
de Ardgour. Essa condenação silenciosa só serviu para espicaçá-la.
_Agradeço pela sua bondosa oferta _ disse a Raith, com um olhar tão gelado quanto o do duque _ , mas você não precisa fazer a condescendência de se casar
comigo.
Ele ergueu as sobrancelhas, mas não aceitou o desafio. Em vez disso, dirigiu-se ao duque.
_E então, estamos acertados, Sua Graça?
_Raith, estou falando sério _ insistiu Katrine. _ Não sou sua futura esposa.
_Penso que devíamos conversar sobre isso mais tarde, meu amor.
_Não, vamos conversar agora! Não vou me casar com você. Pode fazer os acordos que quiser com o duque, mas deixe-me fora deles.
_Katrine, já falamos sobre tudo isto antes...
_Não falamos nada! Você decidiu por sua própria conta que eu ia ser sua esposa, sem me perguntar nada. Mas eu nunca concordei. E nunca vou concordar. Não
preciso de você nem da respeitabilidade do casamento. Meu tio não vai me expulsar de casa e, mesmo que o fizesse, tenho como manter meu filho sozinha!
_Katrine, se não quer se casar comigo por sua própria causa, pense na criança.
_Estou pensando nela! Estou pensando em todos os olhares hostis e palavras odiosas que ouvi de você e seu clã. Não vou criar uma criança ao lado de um homem
que me odeia e odeia os meus.
_Katrine... eu não a odeio. _ Ele levantou as mãos exasperado. _ Pense bem, eu só posso amá-la. Nada mais me induziria a conversar com o duque de Argyll
ou a me casar com uma Campbell. - O tom brincalhão fez Katrine ranger os dentes.
_Devo lembrar-lhe que meu filho será metade Campbell.
_Não, nada disso _ disse Raith balançando a cabeça. _ Nosso filho será apenas um quarto Campbell e um quarto inglês, o que talvez seja pior. Mas tenho fé
que meu sangue MacLean será forte o bastante para superar a desvantagem em relação aos outros.
_Oh, você.., você...
_Não me diga que não tem mais nomes feios para me chamar.
_Eu só comecei, seu bandido!
_Bem que eu desconfiava _ suspirou Raith e lançou um olhar apologético para o duque. _ Peço-lhe perdão por nós dois, Sua Graça.
Pela primeira vez desde que havia entrado na cela, a raiva que estava estampada no rosto do duque diminuiu um pouco.
_Acho que talvez a srta. Campbell venha a ser bem sucedida onde eu fracassei _ observou com zombaria.
_Em dar o meu castigo? _ murmurou Raith. Depois ele riu.
_Creio que esta é a hora onde Sua Graça deve nos dar parabéns e dizer que merecemos um ao outro.
_Tem toda a razão _ disse o duque sardonicamente, enquanto virava-se para a porta. _ Você será avisado de minha decisão, Ardgour _ ele acrescentou, deixando
a cela.
Katrine não se preocupou com o fato de ele não ter oferecido uma resposta direta a Raith. O duque obviamente não queria dar a impressão de que estava se
dobrando fácil demais. Mas, como ele mesmo dissera, não tinha outra escolha.
Quando os dois ficaram sozinhos, Katrine encarou Raith bufando de raiva.
_Seria muito perguntar o que a enfezou desta vez? _ disse ele, estudando-a cautelosamente.
_Você sabia o tempo todo que não ia ser enforcado. Sabia e me deixou pensar... Oh, como pôde ser tão cruel?
_Então você me ama, sofreu por mim.
_Não amo! E por mim podem arrancar seu coração mau e fazê-lo em pedacinhos!
_Katrine, eu lhe disse para não se preocupar. Falei que ia conversar com o duque...
_Você podia ter falado com ele há meses atrás. Implorei que fizesse isso, mas você não quis escutar.
_Na época eu não podia. Para negociar, precisava estar numa posição mais forte. Se eu tivesse tentado falar com ele nem conseguiria uma audiência. Porém,
depois do seu seqüestro, do roubo do selo e do gado, Argyll começou a me respeitar como um inimigo capaz de prejudicá-lo e parou para pensar nas conseqüências financeiras
de uma recusa em me ver.
_Então você se deixou prender, quase me matando de medo. Isso não me parece uma posição forte.
_Katrine, eu me entreguei para você se convencer de minha sinceridade. De outra forma, não acreditaria em mim, meu amor.
_Não sou seu amor!
O brilho de ternura voltou aos olhos azuis enquanto ele se aproximava dela.
_Sim, você é meu querido amor. Você falou em sofrimento. Se soubesse como sofri nesses últimos dois meses... _ Estendendo os braços, puxou-a para ele, apesar
da leve resistência de Katrine. _Você encheu minha vida de alegria e eu a deixei ir embora. Desde então, foi como se o sol parasse de nascer para mim.
Apoiando as mãos no peito de Raith, Katrine olhou-o com desconfiança. Mas, desta vez, ele parecia totalmente sério. Na verdade, nunca o vira tão submisso,
tão livre de orgulho, arrogância ou amargura. Ele estava diante dela em humilde súplica, sem colocar entre eles barreiras ou defesas.
_Eu te amo, Katrine - disse ele baixinho. _ Eu a quero como minha esposa. Desejo dormir ao seu lado pelo resto da vida e sempre acordar com você ao meu
lado.
Katrine sentiu o amor e o desejo suavizando seu coração.
_Seria bem feito se o tivessem enforcado, seu malvado _ resmungou.
Raith abriu um sorriso irresistível.
_Você não teria chorado por mim nem um pouquinho?
_Não, seu insensível. _ Mas apesar de querer manter-se séria, seus lábios tremiam com o esforço de sufocar um sorriso.
_Não sei por que não acredito em você.
_Mas eu sei por que não acredito em você _ disse Katrine, fingindo-se brava. _ Você ainda despreza os ingleses e continua odiando os Campbell. Nunca vai
desistir de lutar. Pelo que sei, vai acabar matando metade do meu clã.
_Não, querida. A briga está terminada, pelo menos no que me diz respeito, e desde que Argyll mantenha sua palavra. Para provar, estou até disposto a ficar
em paz com seu tio. Você pode convidá-lo para visitar nosso filho em Ardgour, se quiser.
Mas Katrine recusava-se em dar-lhe a satisfação de uma capitulação muito rápida. -
_Como posso concordar em me casar com você? Ainda nem recebi uma proposta decente.
_Muito bem. _ Raith abraçou-a com força. _ Quero que seja minha esposa, Katrine Campbell. Você me dará essa honra?
Esposa... Ela saboreou a palavra. Não havia dúvida sobre qual seria sua resposta. Ele era o homem que conseguia combinar com seu temperamento e incendiar
seu sangue. Sua alma gêmea.
_Olhe, seu eu disser sim, você vai ter de concordar com uma cerimônia de casamento de verdade. Quero me casar na Inglaterra, usando o vestido de noiva
de minha mãe e na presença de minhas irmãs.
Depois de um instante de hesitação, Raith assentiu.
_Mas só se nos casarmos aqui primeiro. Não vou por o pé num reduto sassenach sem ter uma esposa meio inglesa como proteção.
Katrine sorriu diante da idéia de Raith precisar de sua proteção.
_Então está bem. Aceito sua proposta. Vamos nos casar aqui primeiro.
_E agora mesmo.
_Muito bem, mas uma coisa precisa ficar acertada desde já: quero uma dúzia de filhos.
Uma sombra toldou o rosto de Raith.
_Não, Katrine, um é mais do que suficiente. Não quero me arriscar a perder você num parto.
_Você não irá me perder. As mulheres de minha família nunca tiveram problemas ao ter filhos.
_Pode ser, mas vamos ter apenas este e ponto final.
_Estou decidida, Raith, quero uma família grande.
_Conversaremos sobre isso depois do casamento _ esquivou-se ele.
_E quero que Morag me atenda no parto.
_Não, de modo algum! _ Ele balançou a cabeça com veemência. _ Você terá uma porção de médicos de Edinburgo. Melhor ainda, irá para lá quando chegar a hora
e...
_Então pode arranjar uma outra esposa.
Raith estreitou os olhos.
_Você é a mulher mais teimosa, briguenta e mandona que já encontrei na vida.
Ela desvencilhou-se delicadamente de seus braços.
_Não sou mais teimosa do que você. Se quer mesmo que eu me case com você, terá de me prometer que seu herdeiro nascerá em Cair House, pelas mãos de Morag.
Raith franziu a testa, mas Katrine ficou firme, com os braços cruzados, os cachinhos cor de fogo escapando do coque, a pele corada pela raiva. Examinando-a,
Raith sentiu o pulso se acelerar. Depois de uma longa pausa, soltou um suspiro. Quando ela o olhava daquele jeito que acabava sua paciência e fazia ferver seu sangue,
ele ficava perdido. Duvidava se um dia iria ganhar uma discussão com sua doce megera. De fato, com Katrine como sua esposa, dificilmente sua casa iria conhecer a
mesma paz de antes. Mas não suportaria que fosse de outra maneira.
_Negociar com você é muito mais difícil do que barganhar com o duque _ resmungou ele, estendendo-lhe a mão. _ Venha cá, bela Katie, vamos selar nosso trato.
_Raith _ protestou ela, enquanto era puxada para os braços dele. _ Você ainda não me prometeu...
_Psiu, meu amor. Você está sempre falando demais quando tento beijá-la.
Katrine silenciou quando os lábios de Raith cobriram os seus numa carícia carregada de amor e paixão.
_Eu te amo _ murmurou ele afastando-se um pouco. _ E você vai se casar comigo assim que eu conseguir arranjar as duas testemunhas.
_Sim... _ O sorriso de Katrine foi sonhador.
Por enquanto estava contente em não protestar. Por enquanto ela e Raith estavam de pleno acordo.
Com certeza, suas vontades de chocariam no futuro, que prometia ser turbulento. Com certeza eles iriam discutir, brigar e fazer amor...
Com outro suspiro, Katrine procurou novamente os lábios de Raith.
Era um futuro que não perderia por nada neste mundo.


EPILOGO

Ardgour, Escócia, 1762


Dezenas de velas queimavam no quarto principal de Cair House, iluminando uma cena de grande atividade _ o trabalho de parto da dona da casa. As três mulheres
que ajudavam Katrine mostravam calma e eficiência na execução de algo que para elas era comum: a chegada de um bebê ao mundo. O incomum nessa ocasião era a presença
do lorde ao lado da esposa.
Katrine conseguira que Morag fosse sua parteira, mas Raith impôs suas próprias condições, insistindo em estar presente ao nascimento. Quando Katrine fora
levada para a cama com contrações naquela manhã, ele puxara uma poltrona para perto da cama, sentara-se e recusara-se a sair, apesar das objeções de Morag e das
brincadeiras de Callum. Ele não iria deixá-la suportar sozinha a sua hora.
O tormento foi ainda pior do que ele esperava. Os gritos e gemidos de dor quase o fizeram enlouquecer, mas aparentemente ele os suportou com estoicismo.
Tanto Morag como Flora tinham lhe avisado que era melhor para uma parturiente não lutar contra a dor ou segurar os gritos. No entanto, ele estava com o estômago
contraído de medo, pois cada grito trazia de volta as recordações terríveis da morte de sua primeira esposa e de seu filho.
Ele não podia ver o que Morag estava fazendo ao pé da cama, ou no que Flora e a outra mulher, que já dera a luz a dez filhos, se ocupavam. Mantinha os olhos
em Katrine, dizendo-lhe com o aperto de mão e murmúrios de encorajamento _ entre preces ao Todo Poderoso _ que ele a amava e ficaria sempre ao seu lado.
Sua presença tranqüilizou Katrine. Por entre uma névoa de dor, ela sentia o amor do marido a cercando, e quando chegou o momento final, usou de todas as
forças para empurrar a nova vida para fora de seu corpo.
_ É um menino _ disse Morag com satisfação. _ Um belo e forte rapazinho.
No instante seguinte o choro de um recém nascido encheu o quarto. Katrine, ainda ofegando pelo esforço, deixou-se cair nos travesseiros.
Algum tempo depois, ela abriu os olhos. Queria muito pegar seu filho, mas queria mais ainda tranqüilizar Raith. Ele parecia exausto, tão exausto quanto
ela. Os cabelos negros estavam despenteados e sob a sombra da barba havia rugas de tensão que antes não se encontravam ali.
_ Você parece... _ murmurou Katrine, ainda rouca por causa dos gritos _, tão apavorado quanto eu fiquei... quando Hector me ameaçou com a arma.
_ Psiu, não tente falar agora, meu amor. _ Inclinando-se sobre ela, Raith afastou alguns cachos ruivos de sua testa úmida. _ Guarde suas forças.
Katrine começou a protestar, mas Flora chegou com uma xícara, mandando-a tomar um gole de chá de ervas. Depois de beber obedientemente, ela voltou a olhar
para o marido e para a mão forte que ainda segurava a sua. Foi então que viu o que fizera a ele nas horas de dor. A palma estava toda inchada, com marcas de suas
unhas.
_ Eu machuquei você!
_ Não, querida, isto não é nada.
Balançando a cabeça, ela levou a palma aos lábios e beijou-a.
_ Me desculpe.
Raith retribuiu beijando seus dedos um a um, com reverência.
_ Foi você que teve de sofrer. Se eu pudesse ter dado à luz por você, eu o faria.
O sorriso de Katrine foi fraco mas cheio de ternura.
_ Eu sei, mas esta é uma tarefa que só as mulheres podem fazer.
Os dois se entreolharam cheios de afeto. Depois Raith fechou os olhos e estremeceu.
_ Deus, nunca mais vou querer passar por isto _ disse com fervor.
Antes que Katrine pudesse dizer alguma coisa, a voz triunfante de Morag os interrompeu.
_ Seu filho, milorde. _ Ela estendeu o bebê que já fora lavado e enrolado em cueiros.
Meio sem jeito, Raith pegou-o no colo, segundo as instruções da parteira. Por um longo momento ficou olhado para o filho, com um ar de espanto. Quando finalmente
levantou a cabeça, sua expressão era de gratidão.
_ Obrigado, Morag _ disse suavemente. _ Obrigado por nos ter ajudado a chegarmos até aqui.
A mulher assentiu muito séria, mas o brilho de lágrimas em seus olhos denunciou a emoção do momento. Katrine observou a cena com alívio e alegria. Conseguira
curar uma outra amarga ferida.
Mas agora ela queria seu filho.
_ Raith, eu sempre o ouvi dizer que ele era nosso filho. Será que você vai me deixar pegá-lo?
_ Com todo o prazer, madame _ sorriu ele e ajoelhou-se cuidadosamente, pondo o bebê na cama, ao seu lado.
Katrine levantou a cabeça dos travesseiros.
_ Como ele é lindo! _ exclamou ternamente, com a admiração cega que só uma mãe poderia sentir.
Raith olhou para o filho com ceticismo, mas concordou para agradar Katrine.
_ Não tão lindo como a mãe dele.
Katrine sorriu enquanto seus dedos se entrelaçaram.
_ Como você pôde dizer que não passaria por isto de novo? Ele vale dez vezes a dor que senti.
_ Agora é melhor o senhor sair, milorde _ disse Morag, olhando para o bebê com olhos experientes. _ Sua senhora tem de alimentar o menino. _ Como se estivesse
esperando essa deixa, o bebê franziu o rostinho e começou a chorar. Morag sorriu para ele. _Sim, este mocinho é mesmo faminto.
_ Pelo som de seus pulmões, acho que ele puxou à mãe.
Katrine lançou-lhe um olhar de admoestação.
_ Agora vá, Raith. Tenho de alimentar seu filho.
Ele não obedeceu e ficou ali enquanto Katrine libertava da camisola o seio cheio de leite. Ainda de joelhos, assistiu fascinado a boquinha começar a procurar
pelo bico.
Katrine estava ocupada demais em atender seu filho para se sentir embaraçada pela presença do marido, algo que ia contra todas as normas. Uma felicidade
imensa a envolveu quando o bebê instintivamente encontrou seu bico. Era unia sensação estranha e boa saber que estava fornecendo sustento a um ser tão pequeno.
Algum tempo depois, Raith olhou para Katrine que observava o filho com o rosto pálido e cansado, mas cheio de amor. A beleza do quadro o comoveu.
Flora finalmente rompeu o encantamento. Quando o bebê adormeceu, ela começou a tirar o lorde do caminho das mulheres.
Agora Raith estava mesmo se sentindo demais. Morag estava inclinada sobre Katrine, incentivando-a a beber uma outra poção, enquanto Flora punha o recém
nascido no berço. Os olhos de Katrine estavam se fechando de exaustão.
Com alguma relutância, ele se levantou.
_ Agora vou deixá-la dormir _ disse, beijando-a na testa.
_ Estou mesmo um pouco cansada _ sorriu ela.
Raith já estava se afastando na direção da porta quando Katrine, com voz sonolenta, o chamou.
_ Sim, meu amor?
_ Você não precisou chamar um batalhão de médicos famosos, não é? _ disse, lembrando-se da discussão que tivera com o marido, durante a gravidez. Fora uma
dura batalha convencê-lo a deixar Morag cuidar de seu parto.
_ Não _ respondeu ele baixinho. Graças a Deus, não, pensou enquanto saía do quarto e descia para a sala.
Callum estava ali, fingindo ler. Quando viu Raith, ergueu uma sobrancelha.
Raith riu pela primeira vez depois de quinze horas.
_ Um menino.
Callum relaxou e seu rosto abriu-se num sorriso.
_ Isto pede um brinde _ falou, estendendo a mão para a garrafa de uísque que tinha a seu lado na mesinha. _ Além disso, você parece estar precisando muito
de um gole. _ Ele soltou uma risadinha. _ Afinal, que diabos lhe aconteceu lá em cima? Nem depois de Culloden você me pareceu tão exausto. E Katrine, como está?
_ Muito bem. As mulheres disseram que o nascimento foi relativamente rápido para um primeiro filho. _ Ele parou e fez um ar muito sério. _ Por Deus, eu
não queria perdê-la. _ Fechou os olhos e estremeceu. Se Katrine tivesse morrido, não haveria mais luz em sua vida.
_ Bem, você não a perdeu e agora Ardgour tem um herdeiro.
_ Sim.
_ E que nome você pretende dar a ele? _ Callum entregou-lhe o copo com a bebida.
_ Não sei. Eu estava com tanto medo do que poderia acontecer que nem me preocupei em escolher um.
_ Bem, então vamos brindar ao bebê. Que vocês tenham muitos mais...
_Primo, se você dá valor à sua vida, não me deseje outra provação como esta.
Callum deu uma risadinha e bateu-lhe nas costas.
_Acho que Katrine terá algo a dizer sobre isso.
_Imagino que sim _ concordou Raith com um sorriso cansado.
_Muito bem. Penso que agora você pode dispensar os médicos.
Raith fez que sim. Não contara a Katrine sobre os três cirurgiões que mandara vir de Edimburgo há uma semana. Eles tinham ficado hospedados em Corran e
sido chamados quando o parto começara. Agora estavam à espera numa das salas de visita.
_Acho que eles não ficarão muito contentes por terem vindo de tão longe para nada. Se eu fosse você, ofereceria a cada um deles um barril do seu melhor
uísque, além dos honorários combinados. _Callum riu. _ Nunca houve necessidade de manter segredo sobre a presença deles. Katrine sabiá que estavam aqui.
_Ela sabia?
_Ora, nada escapa a Katrine. Ela é muito esperta.
_Então por que ela não disse nada? Pensei que se descobrisse o que eu estava fazendo iria arrancar minha pele por eu não confiar em Morag.
_Ela achou que você precisava dos médicos para sua tranqüilidade... e acertou. Ah, primo, você deve amá-la muito. _ Callum balançou a cabeça como se não
conseguisse acreditar. _ Nunca pensei que fosse vê-lo tão louco por uma mulher.
_Espere até chegar sua hora.
_Espero que seja daqui a muito tempo. Não, primo, não sobrou ninguém para mim. _ Você ficou com Katrine e as irmãs delas já são casadas.
_Veremos _ sorriu Raith. Agora termine seu uísque, Callum. Tenho de encontrar Meggie para lhe dizer que ela tem um irmãozinho.
Várias horas depois, por volta da meia noite, Raith, Callum e Meggie entraram no quarto.
Raith aproximou-se da cama e viu o bebê dormindo na curva do corpo de Katrine.
_Querida, você tem visitas _ disse baixinho.
Katrine abriu os olhos e sorriu, sonolenta. Depois viu Meggie e acenou para ela.
_Venha aqui, minha querida. Venha ver o nenezinho.
Meggie obedeceu, ansiosa. Estava alerta apesar do avançado da hora, e seus olhos brilharam ao verem o menino.
_Que bonitinho _ sussurrou.
_Não é mesmo? _ murmurou Katrine, cheia de carinho com a menina.
Apesar de Meggie ser capaz de falar algumas sentenças, ela continuava sendo tímida e reservada.
_Qual é o nome dele?
Katrine olhou para o marido com muito amor.
_Eu gostaria que fosse Alan, por causa do pai de Raith.
Raith Sorriu com ternura.
_Acho que ele deveria se chamar James, por causa do seu.
Callum ergueu os olhos para o céu.
_Pelo amor de Deus, não vão começar a discutir numa hora dessas. Dêem os dois nomes ao menino e acabem logo com isso. Alan James.
Raith pegou a mão de Katrine.
_O que acha, meu amor?
_Eu gostei. E você Meggie?
_Sim.
_Muito bem. Agora, visita terminada _ disse Callum. _ Venha Meggie, vou pó-la na cama e amanhã você virá ver o bebê.
Quando os dois saíram, Raith deitou na cama cuidadosamente.
_Pretendo ficar aqui. _ Ignorando o protesto de Katrine, encostou-se na cabeceira e pôs o braço em torno do travesseiro, deixando o bebê no meio dos dois.
_ Esta é a nossa cama. Não pretendo abdicar de meus direitos só porque Alan James chegou.
_Mas Morag disse que preciso alimentá-lo de novo.
_Então pode começar, amor. Adoro olhar.
Vendo a expressão terna com que ele olhava para o filho, Katrine sorriu. Raith queria outros filhos, quer soubesse disso ou não, e ela pretendia dar-lhe
outros. Muito outros.
_A propósito _ disse Raith. _ Mandei uma carta para seu tio, dando-lhe a notícia, e convidei-o para vir conhecer Alan James.
_Você vai recebê-lo bem, não é, Raith?
_Claro que sim, minha doce megera. Ele será tão mimado que vai achar que é rei. _ Ele deu uma risadinha. _ E se Argyll resolver mandar um presente de batizado,
eu até poderei aceitar.
Katrine lançou um olhar inquisidor ao marido.
_Você alguma vez já se arrependeu de ter se casado com uma Campbell inglesa?
A expressão de Raith se suavizou ainda mais. Deslizando o corpo na cama, trouxe o rosto para perto do dela.
_Como você pode pensar uma coisa dessas?
_Penso que você sente falta do desafio de medir forças com o duque, meu amor.
_Você já é um bom desafio para um homem.
_E não sente saudade das lutas?
_Não. Agora tenho você. _ Raith beijou-lhe os cabelos ruivos para garantir-lhe que só tinha intenções pacificas. _ Não precisa se preocupar, querida. Eu
não quero mais saber de brigas entre clãs.
_Mas eu não estou preocupada. Pretendo mantê-lo tão ocupado me amando que você nem pensará nos Campbell.
_Queira Deus que eu tenha forças para suportar essa sina.
Katrine sorriu com o bom humor do marido. Com um suspiro de satisfação, aninhou a cabeça na curva do braço de Raith, tomando cuidado para não perturbar
seu filhinho adormecido.


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