sexta-feira, 14 de maio de 2010

Um trabalho como o do senhor - crônica de Marcos Mairton

UM TRABALHO COMO O DO SENHOR (9 fevereiro 2010)

Publicado por Luiz Berto em CONTOS, CRÔNICAS E CORDÉIS.

Autor: Marcos Mairton (*)

(Da série "Contos e Crônicas do Poder Judiciário")


Em 2006 eu era juiz titular da única vara federal de Mossoró. Na época,
havia ali mais de quinze mil processos em andamento, cuja
responsabilidade compartilhava com o juiz substituto da vara, que de
substituto tinha só o nome, pois na Justiça Federal os processos são
divididos meio a meio entre os dois juízes.

Nossa jurisdição abrangia sessenta municípios circunvizinhos e, por
causa disso, centenas de novos processos começavam a cada mês, a maioria
relativa a questões enquadradas como sendo de competência do Juizado
Especial Federal, aquelas cujo valor da causa não ultrapassa sessenta
salários mínimos.

Não sei se nos Juizados Especiais dos Estados do Sul-Sudeste do Brasil é
assim, mas em uma cidade do interior do Nordeste, como é o caso de
Mossoró, no extremo oeste do Rio Grande do Norte, é espantoso como para
ali acorrem, diariamente, miseráveis de todos os níveis abaixo da linha
da pobreza. Vão em busca de uma aposentadoria rural, um auxílio doença,
uma pensão por morte ou um benefício assistencial, também chamado de
LOAS. Gente que chega cedo, trazida em ambulâncias cedidas pelos
prefeitos das cidades vizinhas, estampando no rosto uma fome que parece
não se conter em seus estômagos. Arrumam-se por ali e ficam aguardando
sua vez de serem chamados para entrar na sala onde será decidida sua
sorte. Ao final da tarde, dez audiências se realizaram. A maioria delas
termina com uma sentença ou um acordo. Antes disso, as perguntas e as
respostas são quase sempre as mesmas:

- A senhora trabalha em quê?

- Agricultura.

- Planta o quê?

- Milho, feijão.

- Desde quando?

- Dêrna deu minina.

E por aí vai. Algumas vezes é verdade, outras não. Dos documentos
apresentados, em geral, pouco se aproveita. São declarações de vizinhos
de quem não se sabe o paradeiro, recibos sem identificação, papéis que,
se não atrapalham, também não ajudam a esclarecer muita coisa. Contratos
de parceria rural fabricados às vésperas do pedido do benefício,
freqüentemente comparecem aos autos, com firma reconhecida e tudo o
mais. Com o contrato nas mãos, o juiz pergunta:

- A senhora trabalha nas terras de quem?

- Parece que o nome é Manéu Suári, mas nós chama ele é Nezim de Tonha.

- E a senhora assinou algum contrato com ele, pra trabalhar lá?

- Nunca assinei nada não.

- É que tem um contrato aqui que a senhora assina com o senhor Manoel
Soares da Silva. A senhora lembra de ter assinado aqui?

- Sei não, me lembro não. Eu assinei uns papel quando eu fui dar entrada
lá no binifício.

Isto também não significa que a parceria rural não tenha ocorrido de
verdade. Neste país de formalidades, o sertanejo já aprendeu que um
papel pode valer mais que uma palavra de honra. Muitos se acostumaram a
mentir também. Na hora de separar o joio do trigo, o juiz vive o drama
de acabar negando o direito de quem o tem, concedendo-o a quem não
merece.

Mas também tem os fatos pitorescos. Um dia me apareceu o caso de um
rapaz de uns vinte e poucos anos de idade, pretendendo receber um
benefício assistencial com o qual garantiria seu sustento. Alegando
sofrer de retardo mental e epilepsia, ingressou em juízo representado
pela mãe, pois, segundo sustentava, não tinha condições de trabalhar,
nem tampouco de comparecer por si mesmo perante a Justiça.

Na audiência, compareceram ele e a mãe, acompanhados de um advogado já
conhecido de outros casos no Juizado, aliás, um profissional bastante
respeitado na região pela seriedade que demonstrava em seu trabalho.
Ministério Público presente, atento aos direitos do incapaz.

Mas, olhando para o rapaz, não pude perceber qualquer sinal de sua
deficiência mental. Com a experiência, a gente vai se acostumando a
perceber quem tem aquele olhar meio perdido dos que não estão muito
conectados com esse nosso mundo louco, que a gente chama de “o mundo
dos normais†. O olhar daquele rapaz não era assim. Parecia tranquilo e
atento ao que acontecia à sua volta. Desconfiei. Olhei o laudo pericial
e vi que o médico dizia haver um “retardo mental leve†, mas nada que
impedisse sua integração à vida social. Resolvi investigar:

- Dona Luzia, a senhora é mãe do Josenaldo, não é.

- Sou, sim senhor.

- E a senhora está aqui para falar em nome dele?

- É, sim senhor.

- Mas ele é maior de idade. Não dava pra ele vir sozinho?

- Dava não, doutor, porque ele não atina bem das coisas, não.

- É mesmo? - e, dirigindo-me ao rapaz - E então, Josenaldo, você
sabe por que está aqui?

- Vim atrás dum benefício, né?

- Mas, por quê? Você não tem condições de trabalhar, não?

- Tenho não, doutor. Não tenho força pra nada. Quer dizer, que dava pra
trabalhar dava, mas só se fosse num serviço assim como o do senhor.

- Assim como o meu, como?

- Assim: só sentado aí conversando; no ar condicionado; de vez quando a
mulher entra aqui com um cafezinho pro senhor, que eu vi. Aí dava, né.

O advogado corou. Vacilou entre o riso e a preocupação com minha reação.
Quis pedir a Josenaldo para não falar mais nada; quis me pedir
desculpas; terminou por não fazer uma coisa nem outra. Recuperado da
surpresa da resposta, emendei:

- De fato, Seu Josenaldo, ficar sentado aqui, conversando e tomando
cafezinho, é bom mesmo. Vou até mandar vir um cafezinho pro senhor
também. Dona Luciene, peça, por um cafezinho aqui pro Seu Josenaldo -
e dirigindo-me ao advogado dele - Doutor Castro, estou achando que o
seu cliente tem boas chances de ganhar a causa. Vamos ouvir logo as
testemunhas, pra ver se a renda da família está dentro do limite que a
lei prevê!

Ouvimos as testemunhas, o Ministério Público deu parecer favorável e eu
julguei o pedido procedente. Ao que tudo indicava, o rapaz e a mãe
viviam em extrema pobreza, e somente a epilepsia já seria suficiente
para lhe tirar as condições de cuidar de si mesmo.

Acredito que foi feita Justiça naquele dia.

Mas, desde então, cada vez que vejo as pessoas do lado de fora da sala
de audiência, esperando sua vez de entrar, reflito: - Será que a
impressão que o Seu Josenaldo teve do meu trabalho foi em conseqüência
do seu "retardo mental leve" ao qual se referia o laudo pericial? Ou
essa é mesmo a impressão que a maioria daquelas pessoas tem do trabalho
de um juiz?

Na dúvida, penso que é melhor cada julgador cuidar para que a imagem que
pessoas como Josenaldo tem de nós não corresponda à realidade!

(*) Marcos Mairton é Juiz Federal no Ceará, cordelista e crônista.
Gosta de cantar, compor e toca contrabaixo.
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