sexta-feira, 14 de maio de 2010

Uma confissão apaixonada - crônica de Marcos Mairton.

UMA CONFISSÃO APAIXONADA (5 janeiro 2010)

Publicado por Luiz Berto em CONTOS, CRÔNICAS E CORDÉIS.

Autor: Marcos Mairton (*)
(escrito sob o pseudônimo de Vassili Gubarov)


Desde meus primeiros passos como juiz, logo percebi que a sala de
audiências é um lugar mágico, onde se misturam verdades e mentiras, mas
também se revelam sentimentos os mais diversos. Temores, ódios, paixões,
tudo vem à tona quando menos se espera.

Digo isso a propósito de uma audiência que presidi há muitos anos,
quando era juiz de uma vara criminal em Fortaleza. Antes de entrar na
sala de audiências, dei mais uma olhada no processo para o qual estava
agendado o interrogatório. Só então percebi a idade do réu: setenta e
quatro anos. O detalhe me chamou a atenção, pois não é comum pessoas
dessa idade saírem por aí tentando passar dinheiro falso. E era esse o
crime do qual o senhor Manoel Antonio dos Santos era acusado, o do art.
289, § 1º, do Código Penal: guardar ou introduzir em circulação moeda
falsa.

Pensei nisso por alguns instantes, mas logo entrei na sala onde todos me
aguardavam. O procurador da República, a assistente de audiências, o
defensor público e o senhor Manoel. Estava tudo pronto para começarmos o
interrogatório.

Seu Manoel não aparentava os setenta e quatro anos que tinha. Era um
homem de estatura mediana, moreno, magro, com postura de quem tinha
muito vigor. Os cabelos muito negros deixavam transparecer que os
pintava. O bigode também. Usava óculos escuros que o defensor
apressou-se em pedir que tirasse. Doutor Queiroz sabia que eu gostava de
ver os olhos dos réus enquanto os interrogava.

Cumprimentei a todos e comecei a explicar ao réu como a audiência
deveria acontecer. Seu Manoel prestava atenção. O olhar demonstrava
respeito e humildade:

- Está entendendo tudo, Seu Manoel? - perguntei, como de costume.

- Sim, senhor. Estou entendendo, sim, senhor.

Enquanto explicava, pensava em como um cidadão daqueles ia parar ali, na
frente do juiz, respondendo pelo crime de moeda falsa. Afinal, a
experiência havia me ensinado que aquele é um delito que requer certa
frieza - para não demonstrar nervosismo na hora de passar as notas
falsas adiante - e alguma relação com a parte mais organizada do mundo
do crime. No mínimo, algum contato com o fabricante ou fornecedor das
cédulas. Não é como uma lesão corporal, ou mesmo um homicídio, que se
pode cometer por um impulso, em um momento de perda do controle
emocional.

Comecei a fazer as perguntas:

- Bem, Seu Manoel, de acordo com a denúncia, o senhor foi até uma
mercearia e comprou um litro de cachaça, pagando com uma nota de
cinquenta reais, mas o dono da mercearia desconfiou e perguntou a um
rapaz que estava lá se a nota era falsa. Foi assim mesmo?

- Foi, sim senhor.

- Bem, então, como o rapaz não soube dizer se a nota era falsa, o
comerciante pediu a um garoto que estava ali, que chamasse um policial
que mora perto da mercearia, para que o policial visse a nota. O senhor
confirma que foi assim?

- Desse jeito mesmo. Aí o rapaz da polícia veio, olhou a nota,
esfregou e disse que o dinheiro era falso. E era mesmo. Isso eu não vou
negar para o senhor, não.

- Mas, o senhor sabia que a nota era falsa?

- Sabia, sim senhor.

A segurança e a tranquilidade do homem me impressionavam. Cheguei a
achar que ele não havia entendido a pergunta. Refiz:

- Mas, Seu Manoel, me diga uma coisa: o senhor sabia que o dinheiro
era falso, desde o momento em que foi ao comércio comprar a cachaça, ou
o senhor quer dizer que ficou sabendo depois que o policial falou?

- Não, doutor juiz, eu sabia desde o começo. Quando o homem da bodega
disse que ia chamar a polícia, eu fiquei só esperando ele descobrir. Aí
ele, com a experiência dele, viu e me deu voz de prisão. Mas, naquela
hora, eu estava só esperando ser preso mesmo.

- E o senhor já tinha costume de passar dinheiro falso?

- Tinha não, doutor, foi a primeira vez. Mas, deixe eu lhe dizer uma
coisa: eu, naquele tempo - que está fazendo três anos agora, não é?
- naquele tempo eu andava assim meio doido. Pra mim não importava nada
não, tanto fazia eu ficar preso como ficar solto. Eu queria era beber
cachaça até me acabar mesmo. Aí eu tava procurando um jeito de beber
mais, porque meu dinheiro já havia acabado, e, em um bar que havia lá
perto, eu pedi a um rapaz que estava tomando uma cerveja, que me pagasse
uma "meiota", quer dizer, uma garrafa dessas de refrigerante cheia
de cachaça. Aí ele me deu aquela cédula de cinquenta e disse: - Olha,
véi, vai lá naquela bodega da outra esquina e tenta comprar um litro de
cachaça com essa nota, que, se tu conseguir passar ela, tu pode ficar
com a cachaça. Aí o troco tu traz pra mim. Nessa hora, eu vi logo
qual era a proposta dele.

- E mesmo assim aceitou? - perguntei interessado.

- Aceitei, doutor! Eu queria era a cachaça. Eu não estou lhe dizendo,
que eu não tava me importando no que ia dar? Eu tava perdido, doutor.
Pra mim, tanto fazia eu me acabar em cachaça como ir pro xadrez.

Olhei para o defensor e percebi em seu semblante um ar de surpresa
diante da sinceridade do homem ao fazer aquela confissão. O procurador
da República também se espantava e me olhou erguendo os ombros. Senti
que todos queríamos saber mais sobre como tudo acontecera. Eu ainda não
havia ditado uma só resposta para a assistente, mas prossegui com as
perguntas, em parte confiando em minha memória, em parte por pura
curiosidade:

- Seu Manoel, mas houve alguma coisa que deixou o senhor assim,
desgostoso da vida? Eu pergunto por que o senhor demonstra ser um homem
decidido com suas coisas, que sustenta o que diz, disposto. Aliás, é bem
jovem para sua idade. Não parece uma pessoa assim desgostosa.

- Não, doutor, eu sou assim mesmo, como o senhor está dizendo. As
minhas coisas sempre foram muito corretas e, graças a Deus, o erro que
cometi eu estou aqui é pra pagar mesmo. Agora, se eu disser para o
senhor que eu estava "no meu normal" naquele tempo, eu vou estar
mentindo, porque, depois que aquela desgraçada foi embora. Ave Maria, me
desmantelou demais.

- Ah, tinha mulher no meio!? - perguntei quase afirmando.

- Ora se tinha, doutor! Mulherzona bonita, nova, trinta e oito anos de
idade. Para um velho de setenta como eu, era uma perdição. Aquela ali,
quando eu vi que deu certo pra mim, eu nem acreditava. Botei logo dentro
de casa. Aí, tudo que ela quisesse tava à disposição dela. Nem que eu
gastasse minha aposentadoria todinha, pra mim estava bom. Só que a
danada era sem-vergonha, doutor. Só queria que eu desse as coisas para
ela, mas, em toda oportunidade que tinha, me traía com uns rapazes mais
novos. E não era só com um, não, era com tantos aparecessem. Se ela se
engraçasse do rapaz, ela ia mesmo. Eu até falei sério com ela uma vez:
"Olha, Dorinha, se você quer ter suas saídas com algum rapaz, eu
entendo, porque eu sou um homem velho e não dou conta de você, que é
nova. Mas você ficar saindo assim, com um e com outro, não está certo.
Você parece que não se valoriza.". Mas ela não tinha jeito, não. Só
fazia me abraçar e dizer: "Que é isso, meu véi? Não fique com raiva de
mim não". Aí continuava do mesmo jeito. Eu também não dizia mais nada,
senão ela podia se zangar e ir embora. Apesar que nem adiantou, porque
acabou aparecendo um que ela quis mesmo, pra valer, e ela foi embora com
ele. Aí foi quando eu me desmantelei de vez.

Quando ele chegou nesse ponto da narração, percebi que seus olhos
marejaram. Instintivamente, suas mãos procuraram os óculos escuros que
estavam sobre a mesa, mas, parecendo lembrar a recomendação do defensor
" para não usar os óculos " deixou-os novamente onde estavam. Tentei
ajudar:

- Pode por os óculos, Seu Manoel! - disse.

- Precisa não, doutor. Obrigado. A gente às vezes fica assim meio
envergonhado porque sempre aprende que o homem não deve chorar, mas eu
não posso ter vergonha do meu sentimento por ela não, porque, graças a
Deus, o tempo que eu tive com ela foi muito bom. Essas coisas todas que
eu passei depois, de ter sido inclusive preso, foram culpa minha mesmo.
Eu, com setenta e um anos quando ela foi embora - porque ela ficou
comigo um ano e um mês - deveria saber que uma mulher nova e bonita
daquela não ia querer ficar com um velho como eu.

A essa altura, todos na sala de audiência estavam emocionados. Tentando
dar mais leveza à situação, resolvi fazer um comentário jocoso sobre o
romance:

- Seu Manoel, que situação!. Mas, eu tenho impressão, assim, pelo
jeito do senhor falar, que se ela voltasse, o senhor queria.

- Na hora, doutor! - disse ele, sem titubear - Na hora! Se aquela
desgraçada voltasse, seria a maior alegria pra mim! E o cantinho dela
está guardado lá em casa. Ave Maria de eu ter uma felicidade dessas!

Sorrimos todos, inclusive ele. Passei a ditar o depoimento para a
assistente e dei continuação à audiência. O Procurador da República não
quis perguntar nada. Pediu dispensa das testemunhas e propôs a
condenação pela pena mínima, com substituição por prestação de serviços
à comunidade. A defesa concordou. Seu Manoel disse que o que fosse
decidido estaria bom para ele. Queria pagar pelo que fez.

E assim foi feito. Resolvemos o processo em um tempo recorde e o senhor
Manoel Antonio dos Santos saiu dali aliviado, pronto para cumprir o que
fora determinado. Depois disso, nunca mais ouvi falar dele.

Mas, ainda hoje lembro daquela audiência e da emoção daquele homem de
setenta e quatro anos de idade, falando da grande paixão de sua vida. De
como ela o levou ao céu e ao inferno. E do quanto estava pronto para
vivê-la ainda mais um pouco, apesar de todos os riscos que certamente
traria.

Bem aventurados os que vivem ou já viveram uma grande paixão!

(*) Marcos Mairton é Juiz Federal no Ceará, cordelista e crônista.
Gosta de cantar, compor e toca contrabaixo.
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