CHATÔ:
O REI DO BRASIL
FERNANDO MORAIS
Copyright (c) 1994 by Fernando Morais
Capa e projeto gráfico:
Hélio de Almeida
Foto da capa:
José Medeiros/Arquivo O Estado de Minas
Tratamento gráfico da capa:
Nelson Mielnik / Graphbox
Preparação:
Marcos Luiz Fernandes
Índice remissivo:
Beatriz Calderari de Miranda
Revisão:
Cecilia Ramos
Eliana Antonioli
Ana Maria Barbosa
Carmen S. da Costa
2 ª edição
5ª reimpressão
1ª edição (1994) com 1 reimpressão
Dados Internacionais de Catalogação na Publicaçãu (cie)
(Câmara Brasileira do Livro, sn, Brasil)
Morais, Fernando,1946-
Chatô : o rei do Brasil, a vida de Assis Chateau-
briand / Fernando Morais. São Paulo : Companhia das
Letras,1994.
Índices para catálogo sistemático:
7. Brasil : Jornatistas : Biografìa 420.5
1996
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Para Marina
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André Malraux alimentava a ilusão de escrever a biografia do Chi-
quinho Matarazzo, mas eu consegui demovê-lo dessa rematada bes-
teira. Acho que, como vingança, tentou escrever um livro sobre
a minha vida, mas acabou desistindo. Depois foi a vez do padre
Dutra, que cercava parentes meus pelas esquinas, em busca de in-
formações para compor um romance sobre a minha vida. Quem
também andou bisbilhotando as minhas misérias, com planos de
imortalizar-me em papel, foi a princesa Bibescu, da Romênia, edi-
tora e escritora. Os três fracassaram, mas a todos eu havia feito
uma modesta exigência: a obra teria que começar descrevendo a ce-
na em que eu e minha filha Teresa aparecíamos nus, sentados na foz
do rio Coruripe, comendo bispos portugueses, tal como fizeram
meus ancestrais caetés, quatro séculos atrás. O deslumbrante pi-
quenique, que já povoou alguns delirios meus, seria a forma ideal
de divulgar a origem do meu sangue amerindio na Europa.
Assis Chateaubriand
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Inteiramente nus e com os corpos cuidadosamente pintados de verme-
lho e azul, Assis Chateaubriand e sua filha Teresa estavam sentados no chão,
mastigando pedaços de carne humana. Um enorme cocar de penas azuis de
arara cobria os cabelos grisalhos dele e caía sobre suas costas, como uma
trança. O excesso de gordura em volta dos mamilos e a barriga flácida, es-
condendo o sexo, davam ao jornalista, a distância, a aparência de uma velha
índia gorda. Pai e filha comiam com voracidade os restos do bispo Pero Fer-
nandes Sardinha, cujo barco adernara ali perto, na foz do rio Coruripe, quan-
do o religioso se preparava para retornar à pátria portuguesa. Quem apuras-
se o ouvido poderia jurar que ouvia, vindos não se sabe de onde, acordes do
Parsifal, de Wagner. No chão, em meio aos despojos de outros náufragos,
Chateaubriand viu um exemplar do Diário da Noite, em cujo cabeçalho era
possível ler a data do festim canibal:15 de junho de 1556. De repente o dia
escureceu completamente e ele sentiu algo úmido e frio encostado em seu
pescoço.
O delírio fora interrompido pelo gesto do enfermeiro que esfregava um
chumaço de algodão embebido em iodo na garganta do paciente. Ao lado, o
cirurgião duvidara que aquele homem - o interno número 4695 - tivesse
67 anos, como informava a ficha do hospital. A pele alva era lisa, quase fe-
minina, sem rugas nem estrias, contrastando com o pescoço pequeno e gros-
so, típico de nordestino. Através da janela de dez por dez centímetros corta-
da no centro do lençol cirúrgico que cobria o corpo da cabeça aos pés, só era
possível ver, além do pescoço, as pontas salientes das clavículas. O rosto es-
tava inteiramente oculto pelo lençol, sob o qual se desenhava o formato da
máscara de baquelita que envolvia o nariz e a boca do paciente, dando ao
perfil a aparência de um focinho. O tecido branco cobria parte de um tubo
de borracha sanfonada que estava ligado a um tambor de aço, de cujo inte-
rior o único pulmão vivo do doente tentava desesperadamente sugar oxigê-
nio para manter o organismo funcionando. A respiração estava ficando crí-
tica, e se a cânula da traqueostomia não fosse introduzida logo, as chances de
sobrevivência do paciente seriam nulas. O indicador e o polegar esquerdos
do médico esticaram a pele abaixo do pomo-de-adão, escolhendo o anel da
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FERNANDO MORAIS
traquéia que seria secionado pela incisão. Estendida para o lado, num gesto
mecânico, a mão direita recebeu o bisturi, cuja lâmina em forma de meia-lua
brilhava à luz forte do refletor preso no teto. Quando o cirurgião encostou o
aguçado fio de navalha na garganta do doente, acabou a luz do hospital e a
sala foi tomada por completa escuridão.
- Puta que pariu! - o médico levantou a mão direita num solavanco,
como se tivesse levado um choque. - Mais um segundo e eu degolava o ho-
mem!
Indiferente ao palavrão, uma enfermeira saiu pela sala cirúrgica tatean-
do o ar em busca da maçaneta da porta:
- Vou mandar ligar o gerador de emergência, doutor.
Antes que ela conseguisse sair, a luz voltou junto com o ruído de um ge-
rador que começava a funcionar no porão da clínica. Mal-humorado, o mé-
dico dava ordens:
- Esterilizem os instrumentos de novo. Enfermeiro, me dê mais iodo,
vamos começar tudo outra vez.
Não houve tempo para começar nada. O gerador engasgou uma, duas
vezes, a luz piscou e apagou de novo. O médico desabafou, a voz filtrada pe-
la máscara de linho que cobria metade do seu rosto:
- Não é possível! Alguém rogou praga neste sujeito. Se ele escapar des-
ta, não morre nunca mais.
Inerte sobre a mesa de operação, imerso em coma profundo, jazia o jor-
nalista Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, um dos homens
mais poderosos do Brasil. Ele fora transportado para a elegante clínica Dou-
tor Eiras, no bairro de Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, na manhã do
dia anterior, 26 de fevereiro de 1960, sob a falsa suspeita de estar sofrendo
um infarto. O diagnóstico errado levou-o diretamente ao pronto-socorro car-
diológico. Ao tentar reanimá-lo, um jovem médico de plantão comprimiu-
lhe com tal força o tórax que uma das costelas trincou. Chateaubriand não
reagiu à agressão, nem deu qualquer sinal de que fosse recobrar os sentidos.
Assustado com a responsabilidade de ter nas mãos a vida de alguém tão im-
portante, o estagiário pediu que chamassem com urgência o próprio dono
do hospital. Meia hora depois chegaria um homem alto, magro, de nariz
comprido, aparência melancólica e ombros curvados - o médico Abrahão
Ackerman, um dos sócios da clínica e o mais famoso e festejado neurocirur-
gião brasileiro.
Ackerman cruzou cabisbaixo a pequena multidão de repórteres, políti-
cos e mulheres elegantes que se amontoavam nos jardins em busca de notí-
cias do ilustre moribundo. Atravessou sozinho a recepção, sumiu em uma
porta e minutos depois reapareceu vestido de guarda-pó branco, levando na
mão direita uma maleta de couro negro. Caminhou até o setor de cardiolo-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
gia e já encontrou Chateaubriand cercado por uma dúzia de médicos e en-
fermeiros. Sem cumprimentar ninguém, ordenou:
- Tirem a roupa dele.
Enquanto os enfermeiros se esforçavam para mover aquele corpo iner-
te e despi-lo do terno de linho branco, Ackerman tirou da malinha um pe-
queno instrumento de metal brilhante, como uma colher de café de cabo des-
proporcionalmente longo. Deu dois passos até a cama e iniciou um exame
clínico sumário. Ao abrir as pálpebras do doente, deparou com duas pupilas
baças que pareciam anunciar que aqueles olhos jamais veriam de novo o que
quer que fosse. Mexeu a própria cabeça alguns centímetros para o lado, pa-
ra permitir a incidência da luz do refletor sobre os olhos opacos,arregalados
por seus dedos. Os cantos da boca de Ackerman caíram, dando à atenta e si-
lenciosa platéia o primeiro indício de que a coisa ali não ia bem. Deu um pas-
so, parou diante dos joelhos de Chateaubriand e martelou de leve sob cada
uma das rótulas com o instrumento de metal, testando os reflexos: nada. Ne-
nhum músculo se movia, nada respondia ao estímulo. Tirou um estetoscó-
pio da maleta, fechou os olhos como se aquilo o ajudasse a ouvir melhor e
auscultou o peito pálido do jornalista em vários lugares. Voltou à mesa late-
ral e olhou radiografias e papéis com resultados de exames. Com o ar cada
vez mais preocupado, agachou diante da sola dos pés do doente e passou a
dar batidas suaves na junção dos dedos com a planta dos pés, horizontal-
mente, na expectativa de que, como acontece com os macacos e os bebês re-
cém-nascidos, os dedos agarrassem instintivamente o estilete roliço. Tentou
em vão uma, duas, várias vezes, ora num pé, ora no outro. Derrotado pela
inércia do corpo, Ackerman pôs-se de pé e, grave, anunciou o diagnóstico:
- Infelizmente não foi um infarto. Ele apresenta sinal de Babinski nos
dois pés. Isso significa que o doutor Assis Chateaubriand sofreu uma lesão
neurológica grave, provavelmente uma trombose dupla, que afetou seu cé-
rebro bilateralmente. Tudo indica que ele esteja tetraplégico. O edema pare-
ce ter provocado também um distúrbio respiratório profundo: um dos pul-
mões já não funciona. Ele não vai sobreviver.
Os raros amigos íntimos e os auxiliares mais próximos de Chateau-
briand já suspeitavam, nos últimos meses de 1959, que sua saúde não ia bem.
Exímio remador e nadador, avesso à bebida e aos cigarros - que detestava
-, gabava-se às gargalhadas de ter uma "saúde muar ". Em setembro daque-
le ano, no entanto, ele surpreendera a todos com um gesto que pareceu um
presságio do que lhe aconteceria cinco meses depois: para espanto generali-
zado, assinou uma escritura pública doando a 22 empregados 49% do con-
trole acionário do maior império de comunicações jamais visto na América
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FERNANDO MORAIS
Latina, os Diários e Emissoras Associados. A imprensa internacional noti-
ciou que um "milionário excêntrico" havia dado um conglomerado de no-
venta empresas de presente a trabalhadores: dezenas de jornais, as princi-
pais estações de televisão, 28 estações de rádio, as duas mais importantes
revistas para adultos do país, doze revistas infantis, agências de notícias,
agências de propaganda, um castelo na Normandia, nove fazendas produti-
vas espalhadas por quatro estados brasileiros, indústrias químicas e labora-
tórios farmacêuticos, estes encabeçados pelo poderoso Schering. Dias antes
do anúncio da partilha ele, que nove anos antes tinha sido o pioneiro na ins-
talação da televisão na América Latina, inaugurara a Tv Piratini, em Porto
Alegre, a sexta de sua cadeia e a primeira do Cone Sul. A colossal rede de co-
municações se estendia do alto do rio Madeira, nos confins da selva amazô-
nica, até Santa Maria da Boca do Monte, nas vizinhanças do Uruguai. Para
alguns, a doação de um patrimônio tão valioso a empregados era "mais uma
loucura do Chatô", como era conhecido. Outros imaginavam que, vendo a
morte se aproximar, Chateaubriand decidira se antecipar ao destino e resol-
ver em vida o problema da sucessão nas suas empresas.
Embora ele jamais admitisse ter qualquer problema de saúde, os amigos
comentavam discretamente, entre si, que os sintomas de distúrbios se torna-
vam cada vez mais freqüentes. No começo de fevereiro o jornalista Carlos
Castello Branco, colunista de sua revista O Cruzeiro, cruzou com o patrão na
ante-sala da diretoria do Banco Nacional de Minas Gerais e ouviu o comen-
tário do dono do banco, o mineiro José de Magalhães Pinto:
- Está acontecendo alguma coisa com o Chateaubriand. Ele engordou
muito ultimamente e está com um ar meio aparvalhado. Na idade dele, isso
pode ser um mau sinal.
A amiga paulista Maria da Penha Miiller Carioba chamou a atenção do
jornalista mais de uma vez para o inchaço no rosto, os esquecimentos imper-
doáveis em alguém de memória tão atilada e a repetição desconcertante de
um antigo cacoete: os cochilos em público. Ao longo da vida, espetáculos
teatrais e discursos solenes sempre funcionaram como sonífero infalível para
Chateaubriand, que costumava deixar de sobreaviso Irany, o fiel secretário
particular que ele arrastava para onde fosse, a fim de evitar vexame maior:
- Enquanto for apenas um cochilo, deixe-me dormir em paz que eu
acordo logo. Quando eu começar a roncar muito alto, chute minha canela
sob a mesa.
Agora, entretanto, ele ressonava ao despachar com auxiliares, cochilava
durante a assinatura de contratos importantes, já dormira até no meio de
uma audiência com o presidente da República. Interrompia grosseiras des-
composturas nos subalternos com o queixo enfiado no peito, olhos fechados,
roncando - à sua frente, surpreso, o funcionário não sabia se ia embora ou
se esperava de pé até que o patrão acordasse para encerrar o sermão. Depois
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
vieram as vertigens. Em ambientes abertos ele andava normalmente, mas os
espaços fechados, estreitos, faziam-no caminhar como um bêbado. Para ven-
cer os quinze metros que iam do seu caótico gabinete ao elevador do prédio
de O Jornal, na rua Sacadura Cabral, no centro do Rio de Janeiro, perdia o
prumo e camboleava, quase trombando nas paredes. Os que suspeitavam
de problemas circulatórios ou vasculares e se atreveram a aconselhar uma
visita ao médico tiveram o desprazer de ver um bicho raivoso. Nesses mo-
mentos ele se transtornava. Rangia os dentes com tal violência que o ruído
chegava a incomodar o interlocutor; sapateava os pequenos pés no chão e
berrava palavras metralhadas com um sotaque nordestino tão carregado que
poucos entendiam o que dizia. Aí também era possível conhecer outro ses-
tro peculiar - quando queria agradar, adoçar, o tratamento era "vosmecê".
Para ofender, "senhor" ou "senhora", sempre:
- O senhor se meta com a sua vida. Não preciso de médicos e muito
menos de conselhos.
Reconhecia a grosseria e recuava às gargalhadas:
- Estou muito bem, imagine. Quem pode atestar minha boa saúde são
as mulheres. As mulheres! Não se preocupe, eu vou morrer no ar, vou explo-
dir dentro de um avião, em pleno ar!
Indiferente às advertências, seguia como se nada o ameaçasse. Dividia
o tempo entre a embaixada do Brasil em Londres - cargo para o qual havia
sido nomeado pelo presidente Juscelino Kubitschek no final de 1957 - e o
comando de seus negócios no Rio e em São Paulo. Para desconforto do mi-
nistro das Relações Exteriores, seu velho amigo Horácio Lafer, o tempo que
passava no Brasil era infinitamente maior que o dedicado à embaixada. Al-
tos funcionários de carreira do Itamaraty, inconformados com a entrega de
um dos mais importantes postos da Chancelaria a um estranho à corporação,
eram os primeiros a ironizar seu desempenho:
- Quem somar os dias que Chateaubriand passou em Londres nesses
três anos descobrirá que na verdade ele é embaixador do Brasil na Inglater-
ra há apenas três meses - debochavam -, mas o Foreign Office prefere as-
sim. Estando no Brasil ele causa menos constrangimentos à Chancelaria bri-
tânica.
Sua impaciência em permanecer na Inglaterra o tempo exigido pelo car-
go fez com que, sendo ele o embaixador de direito, o posto fosse exercido de
fato pelo ministro-conselheiro Antônio Borges Leal Castello Branco, irregu-
laridade freqüentemente denunciada pelos jornais que lhe faziam oposição.
Chateaubriand dedicava a estas e outras críticas o mais olímpico desprezo.
No máximo, repetia o clichê:
- Isso é coisa de comunistas, de índios botocudos. Gentinha atrasada,
esses jornalistas brasileiros. Pensam como africanos...
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FERNANDO MORAIS
Por mais tentadores que fossem os encantos da "Corte de Saint James",
como ele se referia à Inglaterra, era a sedução exercida pela política brasilei-
ra que o atraía permanentemente para o eixo Rio-São Paulo. Sobretudo na-
quele final de 1959: no ano seguinte haveria eleições presidenciais e em pou-
cos meses seria inaugurada a chamada "obra do século "- Brasília, a nova
capital brasileira, uma cidade nascida do nada, construída no meio do mato
em três anos por Kubitschek. Mesmo sendo devedor ao presidente por sua
nomeação para um dos mais cobiçados empregos do Brasil, Chateaubriand
tornou-se um adversário público da mudança da capital. Ainda que permi-
tisse a seus jornais cobertura jornalística simpática ao empreendimento, ele
pessoalmente, em artigos assinados, era implacável nas críticas ao presiden-
te, a quem chamava de "o faraó Kubitschek". Alheio à ingratidão, Juscelino
mantinha-o em Londres. Era um jogo que interessava a ambos: ter como em-
baixador na Inglaterra um ácido crítico de sua obra mais importante soma-
va pontos à imagem que Kubitschek cultivava com carinho especial - o pre-
sidente queria passar à história como um democrata, um estadista generoso,
que não guardava ressentimentos pessoais. Chateaubriand, por seu lado,
alimentava o mito de que seus jornais podiam defender posições opostas às
do dono - muito embora essa aparente liberalidade editorial escondesse uma
velha tática que ele adotava com habilidade havia meio século: acender uma ve-
la para cada santo e, assim, garantir ao seu império sempre uma porta aber-
ta em cada lado.
Mesmo tendo jurado, de maneira teatral, jamais pôr os pés na futura ca-
pital do Brasil, à medida que se aproximava a data da inauguração ele foi
mudando de posição, argumentando que o mal maior - a construção - já
estava feito e agora não restava outra alternativa senão ocupar a cidade. No
fim do ano já era um defensor de Brasília. Na noite de Natal, enquanto ves-
tia o smoking para ir a um jantar da alta sociedade carioca, brigou com seu
amigo e principal repórter, David Nasser, exatamente porque o jornalista
atacara a nova capital em artigos publicados na revista O Cruzeiro:
- Todo mundo já reconhece a grandeza de Brasília, de Furnas, de Três
Marias. Só você insiste em ser contra, turco maldito. Só você, com esse seu
eterno pessimismo. Por quê? Por que não muda de idéia, como eu mudei?
- Porque tenho a minha opinião.
- Opinião? Se você quer ter opinião, compre uma revista.
- Se o senhor está precisando de um jornalista sem opinião, compre um
de salário mínimo. Eu me demito.
Chateaubriand largou sobre a cama a camisa nova, da qual catava alfi-
netes, e bateu carinhosamente no ombro do empregado:
- Não faça uma coisa dessas. Um louco como o Juscelino não merece o
fim da nossa amizade. Estou lhe pedindo, por favor.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Nasser sabia que aquela conversa era uma espécie de jogo não combina-
do entre os dois. Ele se gabava de ter sido anti-Dutra quando o patrão era
dutrista, anti-Vargas quando Chateaubriand defendia a permanência de
Vargas, e agora atacava Kubitschek em pleno idílio do chefe com Juscelino.
David Nasser ficou. Semanas depois Chateaubriand sairia a público para de-
fender o presidente da "campanha pertinaz" que lhe movia O Estado de S.
Paulo, que ele passara a chamar ironicamente de "o porta-voz do esquerdis-
mo udenista" :
- O Estado agora deu de negar tudo o que a administração Kubitschek
tem promovido pelo progresso do Brasil. Se alguém nesta terra tomasse a sé-
rio os vaticínios desse jornal, o abismo já haveria tragado este país. A sorte é
que os leitores olham os articulistas do Estado como uma fauna delirante, re-
crutada entre o que o paroxismo partidário tem de mais doentio.
Se Assis Chateaubriand estava mal, como suspeitavam seus amigos, is-
so não transparecia em seus escritos e muito menos em sua febril atividade
política. Quando foi nomeado embaixador em Londres, tentou em vão man-
ter a cadeira de senador pelo estado do Maranhão, embora a Constituição
fosse clara quanto à ilegalidade de alguém ocupar simultaneamente os dois
cargos. Assumiu em Londres sem ter renunciado ao mandato parlamentar,
que acabou sendo extinto pela Mesa do Senado. Mas continuou fazendo po-
lítica como se ainda fosse senador. O mesmo Kubitschek que ele defendera
semanas antes era insultado nos primeiros dias de 1960 nas páginas de seus
jornais. "Em vez de perturbar a vida da Brazilian Traction, que tanto tem fei-
to por este país", escreveu, "o presidente deveria se dedicar a arranjar titica
de galinha para adubar nossos cafezais. Trabalhe duro, forte e feio em titi-
ca de galinha, presidente, que é o melhor que pode haver em matéria de es-
terco para a recuperação dos nossos cafezais." As vésperas da trombose, cha-
mava Kubitschek de "pateta alvar ' porque o presidente prometera pôr fim
à condição do Brasil de fornecedor de matérias-primas para os países indus-
trializados:
- Nesse ponto, minhas divergências com o presidente Kubitschek sem-
pre foram as maiores e mais profundas. Por toda parte, na Inglaterra, me
apresento com orgulho como produtor de algodão, café, milho, arroz e ma-
mona. Se depender de mim, o Brasil continuará por mais trinta anos como
produtor preferencial de matérias-primas.
Exageradamente elegante, Kubitschek responderia ao artigo malcriado
com um convite para o jornalista ir a Brasília, ainda não inaugurada, partici-
par da recepção que o governo ofereceria no Palácio da Alvorada ao presi-
dente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, que ali iniciaria uma viagem
oficial de quatro dias pelo Brasil. A deferência era completa: na manhã de
terça-feira, 23 de fevereiro, Chateaubriand embarcou no avião presidencial
em companhia da primeira-dama, Sarah Kubitschek, com destino à futura
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FERNANDO MORAIS
capital. No avião ia também um velho amigo seu, o banqueiro Walther Mo-
reira Salles, então embaixador do Brasil em Washington. Dias antes, ao che-
gar ao Brasil para preparar a viagem de Eisenhower, Moreira Salles lera uma
notinha em O Jornal, certamente escrita por Chateaubriand, em que era cita-
do como "dono da segunda fortuna do Brasil". Mineiro discreto, avesso a
coisas desse tipo, ele aproveitou a viagem para cobrar do amigo a referência
provocadora:
- Chateaubriand, por que você escreveu aquela bobagem? Você sabe
que nem é verdade e sabe também que eu não gosto dessas coisas...
Ele admitiu o crime e, sem risos, revelou que a causa era a informação
que chegara a seus ouvidos de que o Moreira Salles, o sólido banco do em-
baixador, andara arranjando dinheiro para o jornal Última Hora, de seu ar-
quinimigo Samuel Wainer:
- Foi só uma advertência, Walther. Você sabe que neste país há dois
homens de quem eu tenho ciúmes como se fossem mulheres: você e o Eugê-
nio Gudin. E você anda me corneando com o Samuel Wainer.
Ao chegarem a Brasília, um aguaceiro desabava sobre a cidade - e foi
com a barra das calças salpicada de lama que Chateaubriand almoçou com
o presidente e o general Juraci Magalhães, governador da Bahia. Às duas da
tarde, Kubitschek convidou os dois para o acompanharem na saudação que
faria pelo rádio do helicóptero presidencial a Eisenhower, cujo avião já se
aproximava da cidade. O presidente estava extremamente cordial:
- Chatô, apesar da chuva o vôo vai permitir que você veja o lago
em toda a sua extensão, e lhe dará uma boa perspectiva da cidade. Venha co-
nosco.
No pátio externo do palácio o coronel-aviador Múcio Scorzelli, piloto do
helicóptero, informou que um dos dois convidados teria de ficar em terra,
pois o aparelho não comportava quatro passageiros. Kubitschek discordou:
- Se só dois podem embarcar, coronel, leve o Juraci e o Chatô. Eu sigo
de carro para a base aérea e aguardo o presidente Eisenhower lá.
E dirigindo-se a Chateaubriand:
- Você será o primeiro brasileiro a cumprimentar o presidente dos Es-
tados Unidos. Saúde-o em meu nome.
Chateaubriand cumpriu emocionado - num inglês com forte acento
paraibano - a missão que lhe fora atribuída pelo presidente e, de quebra, foi
colocado na primeira fila das autoridades que receberam Eisenhower na ba-
se aérea. Passou o resto da tarde na casa de Israel Pinheiro, diretor da Nova-
cap, a estatal encarregada da construção da cidade, deliciando-se com um de
seus passatempos prediletos, uma criação de beija-flores em cativeiro. Saiu
de lá e visitou os dois prédios que suas empresas construíam em Brasília pa-
ra a instalação do Correio Braziliense e da Tv Brasília. À noitinha foi ao hotel,
tomou banho e vestiu-se com o apuro que a recepção exigia: apesar do calor
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
infernal que fazia no Planalto Central, vestiu um terno preto de lã inglesa,
enfiou na cabeça um chapéu gelot e tocou para o Palácio da Alvorada. Ten-
do recusado o carro oficial que Kubitschek pusera à sua disposição, passou
o dia montado em um estropiado jipe da reportagem dos Associados, o mes-
mo que agora o levava para jantar com o presidente dos Estados Unidos.
Um inusitado contingente de policiais brasileiros e americanos havia si-
do mobilizado para garantir a segurança de Eisenhower no Brasil. No Rio de
Janeiro temiam-se hostilidades por parte da União Nacional dos Estudantes,
a uNE, em apoio à revolução cubana. O governo paulista, por sua vez, anun-
ciara que 7 mil policiais civis e militares estariam de prontidão nas ruas da
cidade no dia 25 para manter a ordem durante as seis horas em que o presi-
dente Eisenhower permanecesse em São Paulo, onde só o governador e mais
ninguém - jornalistas inclusive - poderia chegar a menos de quinze me-
tros do visitante. Nem a futura capital federal - na realidade apenas um gi-
gantesco canteiro de obras - ficou a salvo do rigor imposto pela segurança
norte-americana. A caminho do palácio Chateaubriand pôde ver soldados e
policiais à paisana espalhados por prédios em obras, escondidos sob viadu-
tos inacabados, falando em radiocomunicadores portáteis atrás de moitas de
capim. No portão onde terminava a alta grade de arame que cercava o palá-
cio havia soldados do Exército armados de metralhadoras, fuzileiros navais
norte-americanos, policiais espalhados por todos os cantos. O jipe não pôde
passar. Um policial brasileiro aproximou-se e ordenou que Chateaubriand
descesse e exibisse sua credencial. Sem capa ou guarda-chuva que o prote-
gesse, ele já saiu do veículo indignado:
- Eu nunca carreguei um documento em toda minha vida! Sou o Assis
Chateaubriand, embaixador do Brasil na Inglaterra e diretor dos Diários As-
sociados!
Um agente americano que ouvia a conversa se intrometeu:
- Imprensa? Não entra. Este é um jantar privativo. Retire-se.
Colérico, o que piorava ainda mais seu inglês, Chateaubriand berrava:
- Não se atreva, seu moleque, não se atreva! Sou convidado do presi-
dente da República. Fui o primeiro brasileiro a saudar o presidente Eisen-
hower hoje. Me dê licença que vou entrar. Tenho pressa.
Podia ser quem fosse, mas sem identificação não entrava. Chateau-
briand perdeu a paciência. Gritou palavrões ininteligíveis em português e
inglês e decidiu ir embora dali. Quando subia no jipe alguém veio do palá-
cio em seu socorro. Era o seu velho amigo coronel Vernon Walters, membro
do staff militar de Eisenhower, acompanhado do chefe da Casa Civil da Pre-
sidência da República, José Sette Câmara. A notícia do tumulto na portaria
chegara aos ouvidos de Juscelino e os dois estavam ali para desfazer o equí-
voco. Contrafeito, Chateaubriand aceitou entrar apenas para cumprimentar
os dois presidentes. Inventou uma desculpa para recusar o jantar, deixou ra-
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FERNANDO MORAIS
pidamente o salão palaciano, subiu no jipe e tocou para o aeroporto. Embir-
rado com a desfeita, nem sequer passou no hotel para pegar a mala e deci-
diu não retornar ao Rio no Viscount presidencial. No improvisado balcão da
Panair retirou um dos dois bilhetes que estavam sempre reservados em seu
nome em todos os vôos da empresa - domésticos e internacionais - e em-
barcou de volta para o Rio. Minutos após a decolagem do Constellation, per-
guntou à aeromoça em que ponto da viagem já se encontravam. Ao ouvir a
resposta, pediu folhas de papel, baixou a mesa do encosto do banco diantei-
ro, enfiou os dedos no bolsinho superior do paletó, tirou um toco de lápis,
lambeu a ponta do grafite e iniciou, pela última vez, um ritual diário que já
durava meio século - escrever à mão o artigo do dia seguinte, datando-o do
local onde se encontrasse: "Bordo do Bandeirante da Panair do Brasil
(entre Brasília e Dores do Indaiá, Minas Gerais) - 23 de fevereiro".
A luz voltou definitivamente ao hospital logo depois dos dois blecautes
e a cirurgia pôde ser concluída com êxito - quer dizer, a cânula foi introdu-
zida sem maiores problemas na traquéia, embora o paciente permanecesse
em coma. Desde o dia anterior os médicos ocultavam da opinião pública a
gravidade do quadro divulgando boletins oficiais que falavam apenas em
"crise hipertensiva" , mas já se sabia que Chateaubriand estava condenado.
Para manter as aparências, sua rede de jornais havia publicado, depois do
texto escrito no avião, dois artigos velhos, localizados em gavetas da reda-
ção: "A juriti de Mayfair ', escrito em setembro do ano anterior, e "A revolu-
ção da água no México e na Índia", feito dez dias antes em sua fazenda Rio
Corrente, no interior de São Paulo. Apesar do sigilo, notícias de seu estado
real circulavam por todo canto. A clínica Doutor Eiras, um vasto conjunto de
casarões de dois pavimentos cercados por palmeiras e árvores frondosas,
tornara-se pequena para receber tanta gente. A informação bateu em Lon-
dres, e a primeira visita ilustre a aparecer na clínica foi o embaixador britâ-
nico no Brasil, Geoffrey Wallinger, trazendo duas mensagens. A primeira
era do secretário de Estado para Assuntos Estrangeiros, Selwyn Lloyd. Em-
bora a diplomacia britânica visse com alívio a perspectiva de que Chateau-
briand deixasse a embaixada em Londres, Wallinger simulou emoção ao
chegar ao hospital e, britanicamente, transmitiu "sinceros votos de que sua
saúde possa ser recuperada brevemente". A outra mensagem, disse o embai-
xador aos repórteres, vinha "de minha graciosa soberana, a rainha Elizabeth
II". Preocupada com as notícias que recebera em Buckingham, sua majesta-
de enviava ao embaixador brasileiro, "em meu nome e no do povo da Co-
munidade Britânica, votos do mais pronto restabelecimento". Para produzir
tão escassas palavras, o gabinete real pedira à embaixada britânica no Rio
que enviasse um informe ao Foreign Office com um resumo da situação em
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
que Chateaubriand se encontrava. No extenso documento que Londres rece-
beu, redigido e assinado pessoalmente por Wallinger, o embaixador britâni-
co ressaltava a importância política do doente, que era tratado, com surpre-
endente intimidade, por "Chateau":
Sua enfermidade tem sido estampada nas manchetes de todos os jornais e vei-
culada em todas as emissoras de rádio do país, e o interesse geral que o seu es-
tado de saúde desperta dá uma medida da influência colossal que ele exerce no
Brasil. Conversei com muitas pessoas a respeito de Chateau - com seus amigos
e com seus implacáveis inimigos -, e o denominador comum entre os seus co-
mentários foi que, se ele fosse afastado do panorama brasileiro, esse panorama
inevitavelmente sofreria enormes transformações. Um industrial muito influen-
te fez os seguintes comentários, os quais correspondem a uma espécie de avalia-
ção racional do homem: - Chateau é respeitado, mas com o tipo de respeito en-
gendrado pelo medo e não pela afeição.
No decorrer dos últimos anos, parte de sua antiga impetuosidade em ques-
tões políticas foi atenuada, e sua influência na política local tem sido, de modo
geral, salutar. Nem o presidente nem a oposição podem ignorá-lo, e se hoje te-
mos pessoas como Horácio Lafer e Sebastião Paes de Almeida no governo, e um
homem como Walther Moreira Salles como embaixador em Washington, a res-
ponsabilidade cabe a Chateau. Esses não são os homens que Juscelino e Augus-
to Frederico Schmidt gostariam de haver colocado nesses postos; porém, fazer
de Chateau um inimigo teria sido por demais perigoso, até mesmo para o go-
verno de fato no poder. A desaparição deste personagem deve, por conseguin-
te, causar um enorme impacto no país.
O presidente Juscelino Kubitschek aparecera em pessoa no fim da tar-
de, após determinar que sua mulher, Sarah, e o vice-presidente da Repúbli-
ca, João Goulart, fizessem visitas diárias em seu nome. Dois funcionários dos
Diários Associados foram encarregados de receber e transformar em notícia
os 5 mil telegramas que haviam chegado até então de todas as partes do
mundo com votos de pesar pela tragédia que se abatera sobre o jornalista.
Um grupo de elegantes senhores com aparência de estrangeiros apareceu à
tarde e foi imediatamente cercado pelos repórteres que imaginavam tratar-
se de médicos vindos do exterior para assistir o doente, ou membros da co-
mitiva de Eisenhower. Houve certa decepção quando se identificaram: era a
diretoria do Centro Europa Livre, uma associação anticomunista de antigos
dirigentes políticos do Leste europeu apeados do poder pelos socialistas de-
pois da guerra: Jan Reisser, ex-ministro tcheco; Alexandre Nicolaef, ex-
ministro da Bulgária; Peter Olins, ex-ministro da Letônia; Frikas Meiras,
ex-ministro da Lituânia; e Tadeus Skowronski, ex-ministro da Polônia. A
pouca familiaridade com a língua portuguesa - ou apenas um ato falho-
levou Reisser, o presidente do Centro, a cometer uma gafe com os jornalis-
tas: na saída do hospital, disse que estava ali "para apresentar os pêsames à
família desse gigante da luta anticomunista". Os europeus eram espiados a
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FERNANDO MORAIS
distância por um grupo de desafetos: a direção da Associação dos Carrega-
dores de Malas do Aeroporto de Congonhas, de São Paulo, ligada aos comu-
nistas, que fora ao Rio visitar o passageiro que durante longos anos lhes
garantira as mais generosas gorjetas. O governador de Nova York, Nelson
Rockefeller, telefonara duas vezes aos médicos pe.dindo notícias do amigo
doente. Telegramas vindos de câmaras municipais de todo o país anuncia-
vam sessões solenes em homenagem ao enfermo e a aprovação de leis dando
o nome dele a ruas e praças. Antecipando-se à morte, algumas cidades comu-
nicavam ter dado a Assis Chateaubriand "o título póstumo de cidadão hono-
rário". A inspiração para tais iniciativas pode ter partido de seus próprios
empregados. Em Belo Horizonte, por exemplo, o diretor geral dos Associa-
dos, Pedro Aguinaldo Fulgêncio, já havia recebido e cumprido a ordem vinda
do Rio de mandar as duas emissoras locais, as rádios Guarani e Mineira, to-
car apenas música clássica durante todo o dia. Em pleno sábado de Carnaval.
As listas de registro de visitantes espalhadas pelos jardins e salas de es-
pera da clínica exibiam, no fim do dia, centenas de nomes de ex-presidentes
da República, deputados, intelectuais, banqueiros, industriais, militares, di-
plomatas, jornalistas e, em número muito superior ao de homens, mulheres,
muitas mulheres. Mulheres de todas as idades e origens sociais, mulheres
belíssimas e mulheres decrépitas queriam saber se ele ia sobreviver. Cober-
tas de jóias, elegantes mulheres do society vindas de várias capitais brasilei-
ras e até do exterior não disfarçavam o ciúme com que olhavam para atrizes,
coristas, ex-misses, cantoras, bailarinas e prostitutas de luxo do Rio e de São
Paulo que circulavam desenvoltas pelos jardins do hospital. Mais que os ho-
mens, as mulheres pareciam sinceramente abaladas com o desastre que
ameaçava o homenzinho que agonizava num quarto atrás daquelas paredes
amarelas. Mesmo sabendo que nenhum ruído perturba alguém em estado de
coma, após a traqueostomia os médicos, por força do hábito, transferiram
Chateaubriand para um anexo da clínica mais afastado e tranqüilo, chamado
"Chalé Olind". Ali, onde imaginavam que ele estaria a salvo do burburinho
provocado por visitantes e repórteres, instalaram uma tenda de oxigênio e
equipamentos de emergência no quarto amplo, com vista para um bosque de
jequitibás. Todos passaram a aguardar o desfecho final.
Já era noite fechada quando os cinco médicos contratados pelos Diários
Associados se reuniram mais uma vez em volta do leito do moribundo. Ao
cabo de um exame demorado e minucioso, Ackerman, que funcionava como
chefe da equipe, pediu que chamassem ao quarto a alta direção dos Asso-
ciados. Na realidade, a "alta direção" do império sempre fora uma única
pessoa, o próprio doente. Na ausência dele, e por uma espécie de direito ad-
quirido, pois nada formalizava esse status, três homens de sua confiança res-
pondiam pela cadeia: seu primo Leão Gondim de Oliveira, diretor da revista
O Cruzeiro e dos Laboratórios Schering, João Calmon, responsável pela praça
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
do Rio de Janeiro e por um feudo que ia dessa cidade até a fronteira norte do
país, pulava o Centro-Sul e englobava o Rio Grande do Sul, e Edmundo
Monteiro, que dirigia São Paulo, Paraná e Santa Catarina, embora detivesse
o título de "diretor geral" dos Associados. A chamada dos médicos revelou
que a luta pelo poder começara com o rei ainda vivo. A rigor, apenas os três
deveriam subir, mas a sala foi tomada por diretores de outras áreas, repór-
teres sem cargos de direção mas amigos do chefe, colegas de Chateaubriand
na Academia Brasileira de Letras. Além deles, a maioria dos 22 beneficiados
com a doação das ações feita cinco meses antes também se sentiam donos-
e surgiram de todos os pontos do país para garantir que fosse cumprida a úl-
tima vontade do imperador. Quem não conseguiu chegar a tempo mandou
avisar que estava a caminho. Um silêncio excitado e ansioso tomou a sala
quando um dos médicos, instruído por Ackerman, pôs-se a ler a "observa-
ção médica" oficial que, por um lapso, acrescentara um ano à idade real do
paciente:
- Paciente: Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, bran-
co, 68 anos, desquitado. O exame neurológico comprovou a ocorrência de
acidente vascular encefálico, que provocou coma, tetraplegia, miose intensa,
paralisia do véu e das cordas vocais. Foi identificado sinal de Babinski bila-
teral. A angiografia revelou lesão do tronco cerebral e comprometimento da
porção inicial da basilar e do ramo espinhal anterior. Radiografias indicam a
existência de enfisema pulmonar, bronquiectasias e secreção mucopurulen-
ta abundante. Exames para localização do bacilo de Koch revelaram resulta-
dos negativos.
Ninguém ali precisava saber o que significava bronquiectasia ou Ba-
binski bilateral para entender o que tinha acontecido: o Velho Capitão, como
os bajuladores gostavam de tratá-lo, estava indo embora. Delicado, Acker-
man traduziu para um português mais inteligível o que fora lido por seu as-
sistente:
- O doutor Assis sofreu uma trombose cerebral dupla. Os recursos
mais modernos da medicina foram utilizados para apurar a extensão do
quadro. Ele está completamente paralítico do pescoço para baixo, perdeu o
paladar e a voz. Um pulmão ficou inteiramente inutilizado. Lamento infor-
mar aos senhores que o estado dele é crítico. Vou retirar-me para redigir um
boletim médico tornando pública a traqueostomia de urgência a que ele foi
submetido hoje.
Na saída Ackerman pegou Edmundo Monteiro pelo braço. O médico
sabia que oficialmente Chateaubriand tivera três mulheres, de quem tinha se
separado e com as quais não se dava mais. Os filhos brigavam entre si e es-
tavam, em graus diferentes, rompidos com o pai. Na dúvida sobre com
quem tratar da questão mais delicada, decidiu recorrer à formalidade - e
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FERNANDO MORAIS
formalmente Edmundo Monteiro era o diretor geral. Ackerman levou-o pa-
ra outra sala e, com o ar ainda mais melancólico, anunciou:
- Doutor Edmundo, os médicos que assistem o doutor Assis são unâ-
nimes: ele está sobrevivendo vegetativamente. É um milagre que tenha re-
sistido até agora. Quero informar-lhe que ele tem poucas horas de vida. Co-
mo dirigente das empresas, o senhor pode providenciar os funerais.
Monteiro achou natural que coubesse a si a honra de enterrar o chefe.
Tirando Austregésilo de Athayde - que afinal não tinha cargo de direção no
império -, o amigo mais antigo de Chateaubriand era ele. Quantos, como
ele - aí incluídos o presidente da República, as amantes, os filhos, os Roc-
kefeller, a rainha Elizabeth -, quantos puderam tratar o doutor Assis de
"Chatô" sem ouvir um palavrão como resposta? Aquele era um privilégio
que tinha custado caro. Só ele sabia o que vivera desde a longínqua véspera
da Revolução de 30, quando, menino de treze anos, fora à redação dos Diá-
rios, em São Paulo, pedir um emprego de contínuo. Nada mais natural, por-
tanto, que o dr. Ackerman o chamasse para enterrar Assis Chateaubriand.
Cabelos lisos e glostorados grudados na cabeça, bigodinho fino sobre os lá-
bios, o pequenino Edmundo Monteiro - que conseguia ser ainda menor que
o chefe que morria - parecia um gigante ao entrar no quarto onde estava
Chateaubriand. O tom com que pediu para que a maioria dos presentes se
retirasse dava idéia de quem é que estava mandando. Juntos, ele, João Cal-
mon, Leão Gondim e Austregésilo de Athayde começaram a acertar os deta-
lhes do enterro. Edmundo defendia que o corpo fosse velado no plenário do
Senado Federal, de onde o funeral sairia para o Cemitério São João Batista.
Athayde foi contra:
- Ele era um imortal, tem que ser velado na Academia Brasileira de Le-
tras, isso é uma tradição. O Salão dos Poetas Românticos já está preparado
para receber o corpo. Além disso, ele já não era mais senador, deixou o Se-
nado há três anos para assumir a embaixada em Londres.
Alguém telefonou ao vice-presidente da República, João Goulart, que
era também o presidente do Senado, e descobriu-se que o regimento interno
da casa previa situações como aquela: o privilégio de ser velado no plenário
da Câmara Alta era extensivo aos ex-senadores. Àquela altura o grupo já ti-
nha de novo se ampliado, a cama do doente estava outra vez cercada por
uma dúzia de pessoas. A referência à embaixada em Londres fez surgir ou-
tra alternativa, proposta não se sabe por quem:
- Se ele morreu como embaixador do Brasil, o enterro não tem que sair
nem do Senado nem da Academia, mas do Itamaraty.
Um repórter político tomou a iniciativa de procurar o prefeito do ainda
Distrito Federal, Sá Freire Alvim, e pedir um caminhão do Corpo de Bom-
beiros para transportar o ataúde. O prefeito respondeu que não, que um ho-
mem como Chateaubriand precisava ser levado "à sua última morada" num
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
blindado militar, que ele próprio se encarregaria de conseguir com o mare-
chal Odílio Denys, que tinha assumido o Ministério da Guerra duas sema-
nas antes. A questão do local do velório, no entanto, ainda não estava resol-
vida. Optou-se afinal, por uma solução salomônica: o corpo seria velado no
Senado, mas para que a Academia e o Ministério das Relações Exteriores não
fossem esquecidos, ele seria sepultado com o fardão de imortal e o féretro
passaria pela porta do Itamaraty antes de seguir para o cemitério. Todos es-
tavam de acordo até que alguém lembrou que, tendo ingressado na imorta-
lidade cinco anos antes, Chateaubriand havia engordado bastante:
- Vamos precisar tomar emprestado o fardão de outro acadêmico. O
dele não entra mais no corpo.
Agora ele já não era mais Chateaubriand, dr. Assis ou embaixador, mas
"o corpo", embora clinicamente ainda estivesse vivo. E todas as providên-
cias para que o corpo chegasse gloriosamente ao Cemitério São João Batista
tiveram de ser revistas quando Edmundo Monteiro chamou a atenção dos
demais para o óbvio: era sábado de Carnaval e o enterro ia ser realizado no
Rio de Janeiro. Como é que um cortejo aberto por um blindado militar levan-
do um morto ilustre poderia atravessar a cidade sem trombar com escolas de
samba, blocos de sujos, bêbados sambando pelas ruas? Não haveria o risco
de acontecer uma provocação? E se os foliões decidissem acompanhar o en-
terro como se seguissem um bloco carnavalesco? Foi preciso refazer todo o
roteiro para evitar que o caráter solene do funeral fosse comprometido pela
orgia.
Foi aí que Chateaubriand voltou a ouvir. Não se tratava de um milagre,
mas sem que ninguém percebesse ele viveu por alguns minutos um fenôme-
no médico conhecido como "superficialização do nível de consciência", que
costuma ocorrer em pacientes submetidos a anestesia geral e em vítimas de
acidentes violentos. Sem que a pessoa saia totalmente do coma, um de seus
sentidos - em geral a audição - volta a funcionar por instantes. Mesmo
embriagado pelo efeito dos remédios e pelo choque da trombose, Chateau-
briand começou a escutar tudo o que se dizia à sua volta. Podia identificar
perfeitamente a voz de Athayde anunciando que ia para casa preparar o dis-
curso fúnebre. "No dia em que nos conhecemos", dizia ele, "Chateaubriand
e eu combinamos que o primeiro que morresse seria saudado pelo outro na
beira da cova." Ao perceber que o sepultamento de que falavam era o seu,
realidade, delírio e fantasia se misturaram, deixando-o aterrorizado. Fune-
ral, que funeral? Será que aqueles imbecis não percebiam que ele estava vi-
vo? Já ia mandá-los de volta aos estábulos, como fizera milhares de vezes ao
longo da vida, quando percebeu que não tinha voz. Quis mexer os braços,
mas nada se movia. Os olhos! Bastaria um olhar severo e eles perceberiam
na hora a besteira que estavam fazendo. Nada, o negrume tomava conta de
tudo. Nem mesmo os pensamentos ele conseguia organizar direito. Longe
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FERNANDO MORAIS
de trazer luz, cada tentativa de abrir os olhos custava um esforço brutal e só
aumentava a terrível sensação de vertigem, em que ele parecia rolar no vá-
cuo de uma espiral negra, sem fim. Nem a memória se agarrava ao que quer
que fosse. A cena da antropofagia, em que ele e a filha comiam o bispo Sar-
dinha, se confundia com outra, onde aparecia um menino pálido e magro
como uma lagartixa, sentado sozinho sobre uma pedra grande, no meio da
caatinga. O menino tentava falar, mas a voz não saía, cortada por uma ga-
gueira atroz. Em seguida voltavam a vertigem, os pedaços do bispo, a espiral,
o negrume. Desistiu de tentar entender onde estava e o que lhe acontecera.
À sua volta as pessoas continuavam falando. Reconheceu a voz de seu
querido amigo Antônio Sanchez Galdeano contando alguma coisa sobre as-
fixia e pulmão de aço. Alguém comentava a maior tragédia aérea no Brasil
até então, ocorrida dois dias antes na baía da Guanabara: um Dc-6 da Mari-
nha dos EuA, que transportava a banda dos fuzileiros navais americanos
(que tocaria durante a visita de Eisenhower), chocou-se no ar com um Dc-3
da Real Aerovias, matando 67 pessoas, entre elas todos os músicos da ban-
da. A voz de Galdeano e a referência a fuzileiros americanos reavivaram al-
guma coisa perdida no fundo da memória de Chateaubriand. Resolveu ten-
tar de novo recapitular o que lhe acontecera antes da escuridão, mas era
constantemente interrompido por mais escuridão, pela fantasia do bispo
português e pela imagem do menino gago, sozinho e tentando falar. Fuzilei-
ros! Ele tinha batido boca com fuzileiros navais na porta do Palácio da Alvo-
rada! Mas quando tinha sido aquilo? Usou o que lhe restava de energia
para livrar-se da escuridão e do menino gago e conseguiu reconstituir frag-
mentos da cena recuperada pela lembrança. Depois da humilhação na porta
do palácio, atravessara o gramado com Vernon Walters e Sette Câmara. Ou-
vira pedidos de desculpas do chefe do Cerimonial e caminhara emburrado,
a passos rápidos, até a mesa principal, onde se encontravam Kubitschek e
Eisenhower. A memória guiava-o em direção à cara sardenta e sorridente do
presidente americano quando, no meio do salão, alguém o tomara pelo bra-
ço, tentando saudá-lo. Era o general pernambucano Dantas Barreto, que o
metera no xadrez em 1911, em Recife. Nesse instante uma nuvem de horror
tomou conta dos pensamentos de Chateaubriand. Dantas Barreto? Mas Dan-
tas morrera em 1931! Um defunto de trinta anos, fardado e bebendo vinho
com Juscelino e Eisenhower? Mas então, meu Deus, aquela gente que con-
versava à sua volta tinha razão: ele tinha morrido mesmo. Ali devia estar
apenas sua alma, ou que nome tivesse o que restara de seu espírito ainda não
desencarnado. O choque provocado pela certeza da própria morte levava-o
de volta ao coma total. A audição começou a desaparecer outra vez, o negru-
me estava tomando conta de tudo. Ele ainda conseguiu identificar outra voz
que chegara - era o médico Antônio da Silva Mello, seu colega de Acade-
mia, o irônico amigo de infância que entrava na sala da clínica. Calvo, enor-
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CHATÔ: O REI DO BRASIL
mes suíças sob as orelhas, pincenê pendurado na ponta do nariz, Silva Mel-
lo olhou o corpo por alguns minutos e dirigiu um solene pedido aos pre-
sentes:
- Antes de enterrá-lo, não se esqueçam de mandar cortar os culhões e
doá-los à Academia Nacional de Medicina para pesquisas. Talvez a ciência
consiga explicar o que é que as mulheres viam de tão especial nesse sujeito.
Segundos antes de mergulhar de novo na escuridão eterna, Chateau-
briand viu pela última vez o menino branquelo lutando contra a gagueira.
Só então percebeu que o garoto era ele mesmo, aos sete anos. Sentiu uma
profunda piedade de si próprio e entendeu a imagem como sua derradeira
despedida do mundo dos vivos. Sua hora finalmente tinha chegado.
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A gagueira não tinha sido a única mazela a infernizar a infância do me-
nino que assombrou os resquícios de memória de Chateaubriand. Além de
gago ele era feio, raquítico, amarelo e opilado. A cor da pele - a "palidez
goianense" - denunciava os três séculos da malária ancestral que desfigu-
rava a população de Goiana, pequena cidade da Zona da Mata pernam-
bucana de onde viera todo o seu ramo materno. Ele próprio tinha nascido
alguns quilômetros acima, na margem paraibana do açude que separava os
dois estados nordestinos. No lado sul da represa estava Bom Jardim, em Per-
nambuco, e na parte de cima, já na Paraíba do Norte, ficava a cidade de Um-
buzeiro, nome do modesto conjunto de casas onde ele nascera. Com o correr
do tempo, Umbuzeiro carregaria duas glórias e um insólito orgulho: era a
terra natal de Chateaubriand e de Epitácio Pessoa e produzira um povo
que se gabava de primeiro matar, depois discutir. Os mais pacatos diziam
com candura que não era bem assim. Ali ninguém matava ninguém pura e
simplesmente. Quando entendia necessário, Deus Nosso Senhor é quem de-
cidia eliminar alguns galhos decrépitos da espécie humana. Como procu-
ravam viver em comunhão com o céu, os umbuzeirenses se encarregavam
de cumprir a vontade divina e abatiam esses galhos. Mas quase sempre era
sem dor e com misericórdia.
Os pais de Chateaubriand, Francisco José e Maria Carmem, tinham se
casado muito jovens, pouco antes da proclamação da República. No dia em
que ele nasceu, 4 de outubro de 1892 - Dia dos Animais e de são Francisco
de Assis -, o casal já havia tido o primogênito, Jorge. A devoção da mãe ao
padroeiro do dia facilitou a escolha do nome do bebê, um nome comum
como as centenas de nomes de santos dados a meninos do Nordeste. O so-
brenome - Chateaubriand Bandeira de Melo -, no entanto, além de lhe
emprestar uma opulência familiar que a seca e as vicissitudes haviam devas-
tado décadas antes, ocultava a raiz do tronco materno, Guedes Gondim,
e exibia extravagância européia pouco comum naqueles confins no final do
século xix. Esquisito e impronunciável para a maioria das pessoas do lugar,
o Chateaubriand de seu nome nascera singelamente de um gosto do avô pa-
terno. Admirador do poeta e pensador francês, o fazendeiro e plantador de
algodão José Bandeira de Melo comprara em meados do século uma escola
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CHATÔ, O REI DO BRASIL.
na região de São João do Cariri, na Paraíba, e batizara o estabelecimento com
o sonoro nome de Colégio François René Chateaubriand. Custou pouco pa-
ra que ele ficasse conhecido como "o seu José do Chateaubriand". E menos
ainda para a corruptela popular se encarregar de comer a contração e ele vi-
rar apenas José Chateaubriand. Apesar de difícil, o nome se incorporou ao
dono com tal força que ao nascer-lhe o primeiro filho, Francisco José, ele não
hesitou em registrá-lo com o sobrenome francês. Com o segundo foi mais
simples: ele batizou-o nada menos que com o nome de Chateaubriand Ban-
deira de Melo.
A natureza das coisas indicava que Francisco de Assis nasceria em casa
abastada. Pelo lado do pai ele teria a contabilizar nomes como o de João Ca-
pistrano Bandeira de Melo, conselheiro do Império, governador do Ceará e
de Minas Gerais. Herculano Bandeira de Melo, primo de seu pai que se apre-
sentava como "o único cavalheiro saído dos canaviais do mato pernambuca-
no", tinha larga folha de serviços prestados à Coroa. Depois de ter sido se-
nador imperial, foi ele quem iniciou, como governador de Pernambuco-
ou "presidente de estado", como eram denominados os governadores esta-
duais até 1930 -, a dragagem e modernização do porto de Recife e a cons-
trução dos serviços de esgotos da cidade. O sangue materno vinha dos Ma-
rinho Falcão, dos Correia de Oliveira e dos Guedes Gondim, poderosos so-
brenomes de senhores de engenho cuja pronúncia revelava a propriedade
de incalculáveis populações de escravos e de latifúndios que atravessavam
estados. Mas a vida quis que fosse diferente. Ao arrasar os algodoais do Ca-
riri, a seca de 1877 decretou a falência dos Bandeira de Melo. Neto e bisneto
de donos de muita terra e muito dinheiro, o advogado Francisco José Chate-
aubriand Bandeira de Melo era um modesto juiz municipal em Umbuzeiro
em outubro de 1892, quando nasceu Francisco de Assis, seu segundo filho.
Um rígido orgulho o impedia de aceitar ajuda do sogro Urbano Gon-
dim, capitão da Guarda Nacional e próspero fazendeiro em Timbaúba, do
lado de lá da divisa pernambucana. O máximo a que consentiu foi receber
um favor do conselheiro João Alfredo no início de sua carreira. Festejado na-
cionalmente como líder da abolição da escravatura, o pernambucano João
Alfredo ocupava pela segunda vez a presidência do Conselho do Império,
em 1888, ano em que o pai de Chateaubriand se formou em direito. Maria
Carmem Gondim havia sido criada por uma irmã do conselheiro. Ao conhe-
cer o jovem Francisco José, ainda estudante, João Alfredo entendeu que era
a hora de juntar de novo os Bandeira de Melo com os Guedes Gondim-Cor-
reia de Oliveira, raízes que já haviam se cruzado gerações antes. Ao promo-
ver o casamento dos dois, João Alfredo cedeu ao nepotismo e ofereceu ao
rapaz um dos mais cobiçados presentes com que poderia sonhar um recém-
formado bacharel nordestino: o cargo de promotor público em Goiana, terra
da noiva e do próprio conselheiro. Mas o emprego duraria pouco - o tem-
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fERNANDO MORAIS
peramento difícil e a vocação nômade de Francisco José logo o tirariam de lá.
Aprovado em concurso, deixou Goiana e ingressou na magistratura. A ca-
rência de comarcas na Paraiba fazia dele uma espécie de juiz itinerante, que
exercia a profissão assinando sentenças em lombos de burros e balcões de
farmácias pelo interior do estado. Assim, o filho mal chegaria a conhecer
Umbuzeiro. Chateaubriand nem havia feito o primeiro aniversário, em
meados de 1893, quando o pai foi destacado para ássumir o juizado munici-
pal de Ingá do Bacamarte, meia dúzia de léguas ao norte de sua cidade na-
tal. Ali ele viveu até 1896.
O menino custou a começar a falar, e a dificuldade que tinha para pro-
nunciar uma frase inteira provocava risos nos adultos e em Jorge, o irmão
mais velho. Demorou para a família descobrir que aquilo não era um encan-
to comum às crianças de sua idade: ele já estava beirando os três anos quan-
do os pais entenderam que o menino era gago. Se a feiúra e a magreza não o
faziam diferente dos amigos - ali quase todos eram feios e magros -, a ga-
gueira da infância o transformaria num tímido incurável, arredio e envergo-
nhado. Foi nessa época que o pai, cansado das dificuldades e da vida de ci-
gano que o cargo lhe impunha, decidiu mudar-se com a família para Recife.
Tentando demovê-lo da idéia, o Partido Republicano ofereceu-lhe uma cadei-
ra de deputado federal pela Paraíba. O surpreendente Francisco José rejeitou
o presente alegando que preferia criar vacas leiteiras numa pequena chácara
que alugara nas redondezas da capital. Cedeu o mandato parlamentar para o
irmão mais moço, Chateaubriand, argumentando que, embora o caçula fosse
médico e não tivesse qualquer vocação para a política, "era o melhor orador
da família". Juntou a mulher e os dois filhos e tocou para a cidade grande.
Foi no sobrado de azulejos da rua da Aurora, em Recife, onde mora-
vam, que nasceram seus dois outros filhos, Oswaldo e Urbano Ganot. A fa-
mília vivia com dificuldades, mas ninguém se lembra de algum dia ter falta-
do comida em casa ou escola para as crianças. Mesmo transformado em
criador e vendedor de leite, o pai preservava o refinamento intelectual dos
antepassados. Os quatro filhos cresceram ouvindo à noite, em casa, saraus
de música e de poesia. Um barulho metálico acordava Assis Chateaubriand
toda madrugada. Ele já sabia de onde vinha o ruído, mas sempre repetia o
gesto de chegar os olhos à beira da janela do quarto para ver o pai, que ain-
da não completara trinta anos, descarregar da carroça os enormes latões-
chamados garibáldis - cheios de leite. Antes de o sol nascer o ex-juiz e qua-
se deputado ia até o sítio e trazia para a porta da casa na cidade, puxando
pelo cabresto uma parelha de mulas, a enorme carroça, repleta de latões. Ali
os distribuidores os recolhiam para entregar o produto aos consumidores,
de porta em porta. Na hora do almoço o pai devolvia a carroça ao sítio e
retornava com a capanga de couro repleta de cédulas miúdas que desamas-
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FERNANDO MORAIS
sava esticando uma a uma sobre a mesa. Separado por valores, o maço de di-
nheiro era entregue religiosamente a d. Maria Carmem, a tesoureira da casa.
A agressividade de Recife, os meninos estranhos e o movimento de tan-
ta gente desconhecida só fizeram aumentar ainda mais a timidez de Cha-
teaubriand. Se os irmãos Jorge, Oswaldo e Ganot podiam ser vistos no meio
de bandos de moleques, brigando nas ruas, tomando banho de mar e empi-
nando papagaios, o raquítico Francisco de Assis passava os dias agarrado à
saia da mãe. Já se tinha tentado de tudo para fazê-lo engordar um pouco: re-
gimes especiais, canjas, suco retirado de músculo de boi. Durante meses ele
foi obrigado a tomar vidros e mais vidros do enjoativo leite maltado Horlick,
"A Nutricious Food-Drink for all Ages", que um marinheiro trazia em cai-
xas no vapor que vinha do Sul, mas nada deu resultado. Os médicos
tranqui-
lizavam a família: não havia por que se preocupar com a magreza dele, aqui-
lo não era doença. Mas quanto à gagueira podiam desistir, que a medicina
ainda não tinha descoberto a cura para tal moléstia. Ele teria de conviver pa-
ra sempre com a sofreguidão de tentar completar cada frase, cada palavra.
Aconselhados por amigos e parentes, os pais experimentavam mezinhas e
tratamentos domésticos para superar o problema. Punham-no diante de um
espelho para que se visse tentando falar corretamente; apagavam as luzes, à
noite, para ver se na escuridão a voz se animava a sair como a dos irmãos;
obrigavam-no a conversar com outros gagos, na esperança de que o diálogo
pudesse curar um deles. Mas nada dava certo. Ao contrário, ele ficava mais
irritado, emburrava e chegava a passar dias sem abrir a boca a fim de não
pronunciar nem uma sílaba. No dia que tentaram obrigá-lo a falar com pe-
quenas pedras sob a língua - um método infalível, diziam, que já havia
curado milhares de gagos pelo mundo -, ele começou a tossir, engasgou e
por pouco não morreu asfixiado.
O único e efêmero progresso havia sido obtido tempos antes pela pa-
ciência e pelo desvelo do pai. Foi quando se anunciou que o afamado com-
positor paulista Carlos Gomes estava para chegar a Recife. O autor de O gua-
rani chegaria a bordo de um vapor em trânsito para Belém do Pará, onde
seria empossado como diretor do Conservatório Musical do Estado - e ci-
dade em que, meses depois, acabaria falecendo. No caminho o navio faria
uma escala em Recife, e o maestro seria homenageado com um almoço em
Olinda na casa de Eugênio Samico, grande amigo de Francisco José e, como
ele, um apaixonado da música. Encarregado de dar as boas-vindas ao visi-
tante, o pai de Chateaubriand, encheu de elogios meia folha de papel e deci-
diu que quem faria a saudação ao maior músico brasileiro seria o filho gago.
Sem gaguejar. Passou as tardes seguintes lendo o texto para o menino. Lia
uma palavra e pedia que ele a repetisse. Lia mais uma e esperava até que o
garoto pudesse repetir as duas. Trancados num cômodo nos fundos da casa,
os dois passaram as tardes naquele maluco exercício de cura e amor. Depois
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CHATÔ: O REI DO BRASIL.
de dez dias de esforço de ambos - houve um dia em que o nervosismo do
pequeno foi tanto que ele urinou nas calças -, a saudação tinha sido intei-
ramente decorada. No dia do almoço, diante da basta cabeleira branca de
Carlos Gomes, Chateaubriand não se aterrorizou com a possibilidade de es-
quecer alguma palavra ou de voltar a gaguejar. Seu único medo era urinar
na roupa de marinheiro que a mãe costurara especialmente para a ocasião.
Única criança no meio de tantos adultos, ele levantou-se a um sinal do pai,
caminhou até a mesa do maestro e repetiu a mensagem inteira. Sem esque-
cer, sem gaguejar e sem molhar as calças. O pai beijou-o emocionado e co-
chichou no seu ouvido:
- Quem quase mijou nas calças fui eu, meu filho.
Sem saber que tinha acabado de assistir a um milagre, Carlos Gomes le-
vantou-se, beijou a fronte do menino e ofereceu-lhe de presente a única coi-
sa que havia ao alcance da mão: uma laranja-cravo retirada do meio de uma
fruteira posta sobre a mesa. Guardando absoluto silêncio depois de tanto su-
cesso, Chateaubriand ficou com o pai até o fim da tarde na casa de Samico.
Juntos acompanharam o cortejo que levou o compositor de volta ao porto e
depois tomaram o rumo de casa. A notícia da cura já havia chegado à rua da
Aurora. D. Maria Carmem garantia que a graça alcançada era fruto das no-
venas que ela e as amigas da Ordem Terceira de São Francisco haviam feito.
O santo tinha ouvido suas preces. Quando os dois entraram na casa, a mãe
atirou-se em prantos aos pés do menino. De mãos postas ao céu, agradeceu
a são Francisco de Assis pela bênção. Mas a emoção generalizada durou
pouco. Maria Carmem pediu que o filho contasse com suas próprias pala-
vras como tinha sido a façanha do almoço. Chateaubriand tentou falar uma,
duas, três vezes, e desistiu. Continuava tão gago quanto antes.
A família deixou passar alguns meses depois do episódio para voltar a
insistir na técnica da memorização de textos curtos como maneira de curar a
gagueira, mas nunca mais teve sucesso. Com o correr do tempo, chegou
a hora de enviar o filho à escola. No começo de 1898, como já tivesse quase
seis anos, os pais o matricularam em uma escola pública do bairro. Cuidado-
samente recomendado para a professora como uma criança nervosa e pro-
blemática, Chateaubriand nem chegou a completar a primeira semana de
aula. Poucos dias após o início do curso, um bedel do grupo escolar veio tra-
zê-lo de volta à mãe. Vítima de deboches e brincadeiras dos colegas, ele sim-
plesmente desistiu de falar o que quer que fosse dentro da classe. De gago
ele estava se transformando em mudo. Traumatizados com o sofrimento do
filho, Francisco José e Maria Carmem procuraram outras escolas, contrata-
ram sucessivas professoras particulares que tentavam alfabetizar o garoto
em casa, mas nada deu certo. Ele se tomava de pânico na presença de es-
tranhos e, além de não pronunciar uma só palavra, punha-se a chorar. Os
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FERNANDO MORAIS
pais se renderam. Muito mais grave do que ter um filho analfabeto era ter
um filho infeliz.
Quando faltava um ano para virar o século, Chateaubriand ganhou uma
irmã adotiva, Judite, que os pais decidiram criar. Ela se incorporou à família
quando o pai, aborrecido com a vida de produtor e vendedor de leite, deci-
diu prestar um concurso federal para o cargo de conferente de alfândega.
Mais afeito à música e às letras do que às matemáticas, Francisco José aca-
bou obtendo classificação tão medíocre que só lhe restaram duas alternati-
vas igualmente incômodas: assumir a chefia da seção alfandegária em Porto
Alegre, no Sul do país, ou em Belém, no extremo norte. O problema é que
qualquer uma delas implicaria separar-se temporariamente da família, já
que seria um desatino mudar-se para tão longe com a mulher, os quatro fi-
lhos e a filha adotiva. Acabou optando por Belém do Pará. Mas antes de par-
tir tomou uma decisão que mudaria a vida do filho complicado: durante o
período em que o pai ficasse fora, o menino seria criado pelo avô materno,
Urbano Gondim, em Timbaúba. Esta, na verdade, era uma antiga prescrição
do médico da família, segundo o qual "a vida selvagem" talvez fosse o me-
lhor remédio tanto para a gagueira quanto para o raquitismo do garoto.
Depois de passar um dia inteiro com a cara colada no vidro da janela do
trem em que embarcara em Recife, Chateaubriand foi apanhado na estação
de Camutanga por Genoíno, capanga do avô, e levado de carroça para Tim-
baúba. As propriedades do capitão Urbano compreendiam um engenho de
açúcar em Sapé e outro em Lagoa Cercada, a fazenda Manoel de Matos, de
algodão e raras cabeças de gado, no vilarejo de Rosa e Silva, e a fazenda prin-
cipal, Mocós Velho, toda plantada de cana-de-açúcar e que ficava em Tim-
baúba, onde ele passaria a viver a partir daquele dia. A rigor, o município de
Timbaúba é que tinha sido edificado dentro das terras do capitão. Tudo mar-
geando um e outro lado do rio Capibaribe Mirim.
As primeiras semanas no mato mostraram que o médico talvez tivesse
razão. Para alguém que sofrera tanto com a disciplina, os modos e a gente
empertigada de Recife, viver feito bicho era como entrar no paraíso. Para
substituir os almofadinhas que tanto o insultavam na capital, ele adotara co-
mo companheiros na fazenda a gente mais simples do mundo: os filhos de
colonos, meeiros e modestos empregados do avô. No lugar dos emprnados
Cavalcanti, Bezerra e Menezes, dos novos amigos ele não sabia sequer o pri-
meiro nome. Eles agora eram o Sirigóia, o Dedo Mole, o Toinho Venta de Bo-
de, o Juca do Padre e o Canela Preta. Todos, como ele, analfabetos. Antes de
o dia clarear Chateaubriand saía da casa-grande carregado de bolas de gude
e pipas - que lá se chamavam bisarronas - e só voltava à noite. Frequen-
temente chegava em casa com a cara e as pernas escalavradas por brigas fe-
rozes com quem insistisse em rir da gagueira que nem ali o abandonara.
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FERNANDO MORAIS
Um dia o capitão Urbano chamou-o a um canto e, com o ar severo de
quem ia anunciar algo muito importante, sentenciou:
- Gagueira é vergonha. Quanto mais vergonha de falar você tiver, mais
gago você vai ficando. O único jeito de curar isso é falar sozinho. Falar até
cansar, até secar a saliva, mas sozinho. De hoje em diante você vai passar al-
gumas horas do dia sentado na pedra Preta, na beira do rio, falando consigo
mesmo. Se isso não o curar, pode desistir que é porque Deus quis que você
ficasse desse jeito para o resto da vida.
No princípio ele de fato sentia muita vergonha, mas era de ficar ali con-
versando com ninguém. Falava baixo, com receio de que o vissem e espa-
lhassem que o neto do capitão tinha ficado doido. Mas acabou se acostuman-
do. Pa ssou a inventar interlocutores imaginários, com quem tentava falar
sem engasgar. Conversava com o pai, com os amigos ausentes, com a mãe,
com a avó Jesuína, com os irmãos, com as filhas do capitão, suas tias. Mas es-
ses exercícios vocais diários não o importunavam tanto. Afinal, aquilo era a
única disciplina a que tinha sido obrigado, e que acabaria resultando eficaz.
No mais era perambular com aqueles que o avô chamava de "a canalha do
engenho", os seus novos amigos. Apanhavam canários-da-terra e os treina-
vam para as selvagens rinhas, jogavam bola de gude, nadavam, pescavam.
E provocavam os adultos. Na porta da venda de Pedro Salvador, o bando
declamava em coro, para depois fugir às carreiras:
Tengo, terengo, tengo
Maravia
Pedro pelou a mãe
Na água fria
Contra os desafetos os versos beiravam a obscenidade. Benedito Sin-
frônio era o dono do mais cobiçado mangueiral de Timbaúba, que ele guar-
dava empunhando uma rudimentar espingarda de sal. Cada investida dos
moleques contra as árvores carregadas de frutos era respondida com tiros
certeiros que costumavam deixar as costas e as pernas em carne viva por
semanas. Para ele havia uma cantiga especial:
Calango, tango
Do calango da lacraia
A mulher do Benedito
Foi peidar, cagou na saia
Autoritário e rabugento, o avô se preocupava cada vez mais com a me-
tamorfose do neto. Quando o menino chegou a Timbaúba ele tinha a certe-
za de estar diante de um santo. Mas em muito pouco tempo as más compa-
nhias e a absoluta falta de freios o haviam transfigurado. Puxando os pêlos
da própria barba, o capitão Urbano rosnava pela casa, o dedo acusador
apontado em sua direção:
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
- Isto nunca será um homem de verdade! Deus Nosso Senhor se apiede
de minha filha, que botou no mundo um canalhinha destes, para vergonha
e maldição da família! Onde já se viu um Guedes Gondim desmoralizar a ca-
sa-grande, envergonhar sua gente?
Os domingos começavam com o avô o obrigando, a poder de cascudos,
a acompanhá-lo à igreja:
- Anda, capeta. Hoje você vai pedir perdão a Deus por viver tão pró-
ximo de Satanás.
À noite, ao levar as três últimas filhas solteiras ao baile dominical, era o
velho quem ditava que ritmos poderiam ser executados pelos músicos. Pa-
ra irritação das filhas - e das demais freqüentadoras dos bailes, que nada ti-
nham a ver com o moralismo do capitão -, ele já chegava avisando:
- Baile freqüentado por uma Guedes Gondim só pode ter quadrilha e
lanceiro. Figurado, nem pensar.
O problema é que o chamado "figurado" - os schottisch, as polcas e os
pas-de-quatre - era exatamente o ritmo que permitia aos pares dançar de
mãos dadas e, num descuido dos pais, arriscar um beijo. Mesmo sabendo
que ninguém, nem os músicos nem qualquer convidado, se atreveria a deso-
bedecer suas ordens, os bailes deixavam o capitão Urbano inquieto. Vigilan-
te com as filhas, quando perdia o neto de vista já sabia onde encontrá-lo. Da-
va a volta nos fundos da casa onde sempre se realizavam aquelas festas
para flagrá-lo trepado no telhado de um curral de cabras, espiando pelo al-
to da janela as moças de cócoras no banheiro, fazendo xixi. Toda vez que is-
so acontecia, ele era levado para casa arrastado pela orelha. A avó Jesuína
era a única a se compadecer da sorte do neto:
- Urbano, um dia você ainda vai matar o Francisquinho. Ele é muito
fraquinho, não come direito, não pode suportar castigos tão violentos.
O avô, no entanto, estava convencido de que chegara a hora de se livrar
do estorvo:
- Nós somos os únicos responsáveis por isto. Minha filha nos entregou
um menino civilizado e vai receber de volta um tarado, um pequeno ban-
dido.
A avó discordava. Francisquinho chegara a Mocós Velho doente do cor-
po e da cabeça, e graças aos exercícios de falar sozinho agora era um meni-
no normal:
- Hoje ele é uma criança como qualquer outra. Se aos nove anos ele não
sabe ler nem escrever, isso não é problema nosso, ele não veio aqui para ser
alfabetizado. O que vale é que ele chegou aqui gago e será devolvido falan-
do como qualquer mortal. O menino está pronto para ser amansado, mas is-
so quem tem obrigação de fazer é a mãe dele.
Curado ou doente, santo ou demônio, isso pouco importava para o avô.
A verdade é que não queria mais a responsabilidade de ter o neto crescendo
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FERNANDO MORAIS
como um bicho sob seus olhos. Genoíno foi o encarregado de concretizar a
expulsão do paraíso, levando-o de volta a Recife. Só ao chegar à capital é que
soube que a família trocara a velha casa da rua da Aurora, à beira do Capi-
baribe, por outra no bairro de Dois Irmãos, nas imediações do açude do mes-
mo nome e de outro, menor, chamado açude do Prata. Casualmente o pai se
encontrava em Recife com a família, licenciado por uma semana de seu tra-
balho em Belém. Foi ele quem mais se surpreendeu com a cura da gagueira
do menino. Impaciente, querendo sair logo para conhecer as redondezas do
lugar onde iria viver, Chateaubriand mal teve tempo de ouvir o pai contar
que, além dos afazeres na alfândega, ele trabalhava na capital paraense co-
mo redator do jornal O Noticias, de Alcides Bahia, e que tinha se tornado pes-
soa de excelentes relações no Pará:
- Sou amigo íntimo do governador do estado, Augusto Montenegro-
gabava-se - e freqüentador assíduo do palácio.
Revelou. também que, apesar de levar uma vida boa, estava tentando
usar a influência política dos amigos para transferir-se de volta para a alfân-
dega de Recife. O filho recém-chegado estava pouco interessado naquela
aborrecida conversa de adultos, queria mesmo era ganhar logo a rua. Ao ten-
tar escapulir, foi impedido pela mãe. Insistiu, bateu o pé, fez birra e só foi im-
pedido quando ela decidiu aplicar-lhe a primeira surra da vida. A liberdade
a que ele se habituara em Timbaúba tinha chegado ao fim. Apanhou no pri-
meiro dia, no segundo, no terceiro. Disposto a não se curvar à disciplina ma-
terna, apanhava uma vez por dia. Mas nãu se entregou. A mãe concluiu que
a única maneira de conseguir manter o filho em casa era trancá-lo a chave
em um cômodo sem janelas. Chateaubriand só pensava e só desejava a vol-
ta a Timbaúba. Lá, apesar da severidade do avô, ele era livre, fazia o que bem
entendesse. Em Recife sentia-se um escravo da mãe, dos irmãos, da ama Ro-
salina. Aquilo não era uma casa, mas um pátio de prisão. Nenhum rigor, en-
tretanto, era suficiente para mantê-lo longe da rua. Ele logo se incorporou
aos bandos de pequenos desocupados que passavam os dias enfurnados nas
matas em redor do açude Dois Irmãos. Nadava, roubava frutas, seviciava
pequenos animais domésticos, empinava bisarronas.
Quando estava de passagem pela cidade, o pai insistia na velha cateque-
se cultural, imaginando que as artes poderiam ter o condão de afastá-lo
daquela vida delinqüente. Nesses saraus - que não chegavam a ser exata-
mente um castigo para ele -, o filho era levado a ouvir intermináveis decla-
mações de poesia nas casas dos amigos, sessões de solfejo e até maçantes lei-
turas de originais de trechos de livros que jamais seriam publicados. Nos fins
de semana em que Francisco José se encontrava em Recife, o filho era lava-
do, escovado e vestido a caráter para acompanhar o pai à casa do engenhei-
ro Ernesto Brotherhood, no bairro de Apipucos. Ali juntavam-se, nos sába-
dos à noite, comerciantes, industriais, usineiros de cana e simples boêmios
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
que tinham no amor pela música uma característica comum. Chateaubriand
era a única criança a ter o privilégio de ouvir e ver funcionando uma moder-
nidade sem similar no Nordeste, que o dono da casa exagerava ao garantir
ser a única do Brasil: uma victorola - nome tirado do fabricante, a Casa Vic-
tor inglesa -, inexplicavelmente chamada pelos pernambucanos de "zono-
fone" e que alguns garantiam chamar-se, na verdade, gramofone. Recém-
chegados de navio, discos de óperas italianas e francesas, de marchas e de
sinfonias magnetizavam o grupo até o nascer do sol.
Mas bastava o pai tomar o navio rumo a Belém para o menino se juntar
de novo à sua quadrilha. Transformado em típico moleque de rua, ele era o
oposto do garoto amedrontado, gago e encolhido que deixara Recife poucos
anos atrás. Num único ponto ele permanecia o mesmo. Aos dez anos de ida-
de, continuava tão analfabeto como antes. Assim, Chateaubriand já era qua-
se um rapazinho quando manifestou pela primeira vez algum interesse pela
leitura. Os rudimentos das primeiras letras lhe foram transmitidos por dois
paraibanos - Manoel Távora Cavalcanti e Álvaro Rodrigues Campos - e
pelo tio Antônio Feliciano Guedes Gondim, que visitavam com freqüência a
casa da família em Dois Irmãos. Exemplares velhos do Diário de Pernambuco
e do Jornal de Recife, abandonados no porão da casa, foram sua primeira car-
tilha. Ele passava ao largo dos artigos e notícias para se fartar com os anún-
cios - ou " manteigas " como eram chamados. Carregava no bolso, recortado,
o primeiro "manteiga" que conseguiu ler inteiro - um pequeno classificado
da agência funerária Casa Agra, situada no largo do Carmo, de propriedade
de Joca Arara, que além de papa-defunto também era literato e cronista do jor-
nal, e que teria seu estabelecimento imortalizado em poema de Augusto dos
Anjos. O "manteiga" era composto de uma única frase, que dizia: "Ali vai Jo-
ca Arara: os caixões de defuntos na frente e os seus bichos roendo". Quando
descobriu, com a ajuda do tio, que os "bichos " do anúncio se referiam à fau-
na cadavérica, Chateaubriand passou a exibir o pequeno recorte aos amigos,
como um troféu ao humor negro.
A alfabetização improvisada se processou com surpreendente rapidez
para quem até então parecia alimentar profunda indiferença por qualquer
coisa impressa em letra de fôrma. Em pouco tempo já era capaz de ler o jor-
nal inteiro, e daí para aprender a escrever e fazer contas foi um pulo. Força-
dos pela alta dos aluguéis, os pais decidiram, tempos depois, mudar-se de
novo para o outro lado da cidade: desta vez o destino era Olinda. Foi ali que
a mãe resolveu contratar os serviços de um vizinho belga, monsieur Alphon-
se Debrot, que ia todas as manhãs à casa da rua do Carmo dar aulas de con-
versação em francês para a família. Quando o pai estava em Recife, também
se incorporava à classe. O curso doméstico produziu uma situação insólita:
oficialmente analfabeto, já que nunca tinha posto os pés regularmente em
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FERNANDO MORAIS
qualquer escola, Chateaubriand passou a arranhar um francês inusitado pa-
ra um garoto naquelas circunstâncias.
Mas tanto o curso do professor Alphonse como a passagem por Olinda
teriam curta duração. A umidade do litoral e o excesso de trabalho com os
filhos acabariam abatendo d. Maria Carmem. Os primeiros sintomas de que
algo não ia bem com a saúde da mãe foram as dores no peito. Logo ela co-
meçou a perder peso, a tossir seco. O pai, preocupado, veio mais uma vez de
Belém em socorro da família. Uma consulta superficial ao médico revelou o
temido diagnóstico: manchas escuras tomavam-lhe os dois pulmões, sinal de
que uma tísica brutal se avizinhava. Se ela não fosse retirada logo do litoral,
seu tempo de vida seria muito curto. Mais eficiente do que qualquer remé-
dio, prescreveu o médico, o ideal seria levá-la imediatamente para uma re-
gião alta e de clima seco. Francisco José lembrou-se de um lugar belíssimo
que ele vira algumas vezes nas viagens de trem de Recife para a Paraíba.
Com a construção da estrada de ferro, em 1888, aquele lugarejo, batizado
com o nome de Chã de Carpina, ainda no estado de Pernambuco, tinha sido
transformado em entroncamento de duas linhas. Um ramal saía à esquerda,
em direção a Nazaré da Mata e depois Itabaiana. O outro dava em Limoei-
ro. O que havia no lugar, além da modesta estação ferroviária, era apenas
um pequeno comércio em volta de um campo desmatado a golpes de foice.
A grande capoeira que cercava o local, situado a duzentos metros de altitude,
garantia clima ameno, de baixas temperaturas, exatamente o que o médico re-
ceitara para a cura da esposa. O único inconveniente do lugar não seria obs-
táculo para o aventureiro Francisco José: lá não havia sequer uma casa em
condições de receber uma família de bem. Mas isso era um detalhe sem im-
portância: com a ajuda de amigos, ele próprio construiria a casa em pouco
tempo.
E assim foi. A mulher, os quatro filhos e a filha adotiva foram instalados
provisoriamente na casa de parentes, em Nazaré da Mata, até que a constru-
ção ficasse pronta. O modelo da casa, que ele chamava de "estilo norman-
do", tinha sido copiado de uma fotografia tirada de uma revista estrangeira.
Em volta, Francisco José plantou com suas próprias mãos um pequeno bos-
que que impedisse o progresso de violentar o saudável clima local, típico da
região da Mata Seca. Já com a mulher e os filhos morando lá, ele conseguiu
mais uma licença na alfândega de Belém para realizar um capricho. Tomou
um vapor para o Rio de Janeiro e, com a ajuda do conselheiro João Alfredo,
conseguiu nos viveiros do Jardim Botânico mudas de árvores frondosas pa-
ra o bosque em torno da casa nova. Ao retornar poucos dias depois a Per-
nambuco, levou no porão de carga do navio sua preciosa bagagem: centenas
de pequenos cestos de vime contendo mudas de sucupira e de martinézia
mexicana, que plantou nas imediações da casa, duas a duas, como uma co-
luna militar. Ao cavoucar o chão para enfiar as mudas vindas do Rio, Fran-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
cisco José traçava, sem o saber, uma alameda que ainda estaria viva na vira-
da do milênio, cem anos depois.
Nem o governador nem os amigos importantes tiveram força suficiente
para arranjar transferência de Belém para Recife. Cada vez mais envolvido
com o aglomerado que ia nascendo em volta da casa, em Chã de Carpina, ele
se tornou ainda mais ausente do trabalho na alfândega. Quando as árvores
cresceram e começaram a encher-se de folhas, ele passou a dizer que mora-
va na "floresta dos leões" - uma homenagem a João Souto Maior, líder re-
belde da Revolução de 1817, apelidado "Leão do Tejucopapo", e a seus se-
guidores, os "leões", que se haviam refugiado naquele lugar depois de uma
escaramuça com as tropas da Metrópole. Como acontecera antes com o seu
próprio sobrenome, aos poucos Floresta dos Leões deixou de ser a toponí-
mia apenas da casa de Francisco José para se tornar o nome do lugar, como
um todo. Ninguém mais se referia a Chã de Carpina, mas apenas a Floresta
dos Leões. Para reforçar, encheu a vila de leões esculpidos em madeira,
bronze, cimento, gesso. Leões de todos os estilos e tamanhos podiam ser vis-
tos por quem chegasse ali: da estação de trens até a entrada do pequeno ce-
mitério, nenhum lugar foi esquecido. Apesar dos protestos generalizados
contra denominação tão esdrúxula, ele insistia em só chamar o vilarejo pelo
nome que lhe dera, e brigava com quem se atrevesse a dizer que vivia - ou
estava - em Chã de Carpina. Nas páginas do Reacção, jornalzinho que ele
criou e dirigia, era enorme a confusão dos pequenos anunciantes que depen-
diam do reembolso postal para suas vendas: alguns se diziam estabelecidos
em Carpina, mas a maioria já imprimia em seus anúncios o novo apelido do
lugar, mesmo sabendo que Floresta dos Leões era um endereço inexistente,
que não constava dos guias do Correio. Em 15 de dezembro de 1901 o per-
sistente Francisco José Chateaubriand Bandeira de Melo conseguiu sua gran-
de vitória: naquele dia a prefeitura de Pau d'Alho, município ao qual o lu-
gar estava ligado, baixou a lei nº 12, transformando Chã de Carpina em
distrito e mudando-lhe o nome para Floresta dos Leões. E foi com este nome
que o distrito transformou-se em vila, em 1909, e em município, em 1928.
Maior que a paixão de Francisco José por Floresta dos Leões, entretan-
to, era seu feroz jacobinismo paraibano. Afastado havia muitos anos da Pa-
raíba, radicado em Pernambuco, casado com uma pernambucana e pai de
dois filhos nascidos em Recife, ele tratava a Paraíba com um bairrismo pas-
sional, que chegava ao paroxismo. Freqüentemente reclamava com a mulher
do risco que significava criar os filhos longe daquilo que chamava "o centro
de gravidade paraibano":
- Mais um pouco e estas crianças vão perder todo o contato com a ter-
ra de seus antepassados.
Como era impossível despachar a mulher, os quatro rapazes e Judite pa-
ra a Paraíba, dois anos depois de a família ter chegado a Floresta elegeu-se
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FERNANDO MORAIS
Chateaubriand para a repatriação. Não foi uma escolha casual: os pais ha-
viam conseguido que ele, que não tinha feito o curso primário, ingressasse
no primeiro ano de ginásio, com a condição de que fosse aprovado em um
exame de admissão. Para Francisco José, nada mais adequado para os prepa-
ratórios do que uma boa estada na Paraíba. Foi assim que no final de 1903 As-
sis Chateaubriand mudou de endereço mais uma vez. Graças a uma gentile-
za de sir Christopher Raw, engenheiro inglês, embarcou de graça num trole
da Great Western até depois de Itabaiana, onde terminavam os trilhos da fer-
rovia. No ponto final das obras da Western já o esperavam o tio e padrinho
Chateaubriand Bandeira de Melo, médico em Campina Grande, um menino
com um jumento para carregar as malas e Galante, o cavalo que ia levá-lo.
Os meses em Campina Grande foram quase todos passados no casarão
do tio Chateaubriand. O médico decidiu encurtar o cabresto do sobrinho,
certo de que aquela era a última chance que este teria de se civilizar: se não
entrasse no ginásio, estava fadado a morrer chucro. Em poucos meses o me-
nino precisou assimilar tudo o que deixara de aprender em quatro anos de
curso primário abandonado. Ele passava as manhãs e as tardes, com a ajuda
de uma professora, lendo cartilhas e livros de português, aritmética e geo-
grafia e cosmografia do Brasil. Ao saber que do exame constaria uma prova
de língua estrangeira opcional - poderia ser francês ou inglês -, ele sentiu-
se à vontade para escolher o francês, valendo-se dos rudimentos adquiridos
nas aulas de monsier Alphonse. À noite sempre havia algum parente para
vir tomar-lhe a lição. Quando não era o tio Chateaubriand, vinha sua mulher
laiá Bandeira de Melo. A familiaridade com as letras trazia consigo alguns
benefícios: antes de dormir, ele já conseguia ler escondido, à luz de um can-
deeiro de azeite, exemplares ensebados dos versos fesceninos de Bocage e as
Palavras cirricas de Albino Forjaz Sampaio.
O pouco tempo que sobrava da vida de estudante - ou de cascabulho,
como se dizia então - ele aproveitava em novas atividades: inspirado pelo
velho Escobar Gallieni, um amigo da família, apaixonou-se por colecionar
selos. Sempre que podia, ia à casa do amigo idoso para ver as novidades vin-
das de Madagascar, da Europa, da Índia. De lá fazia uma visita ao fórum pa-
ra assistir aos julgamentos presididos por seu primo, o juiz Barnabé Gondim,
um homem de olhos azuis e enorme carapinha vermelha - um assa, como
diziam no Nordeste - que atribuía suas características físicas a remoto pa-
rentesco com invasores holandeses. Pelo fórum desfilava diariamente aos
olhos do garoto uma fauna sem igual: desde homens acusados de pequenos
furtos até grandes latifundiários defendendo o direito de multiplicação, ma-
nu militari, de suas propriedades. E muitos doidos. Toda vez que surgia um
acusado cujo comportamento fugia dos pachorrentos valores locais, era mais
simples classificar o infeliz como louco e condená-lo ao hospício. Muitos
anos depois um deles, inconformado com a sentença, acabaria assassinando
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
o juiz Barnabé num acesso de fúria. Mas a grande estrela do tribunal era o
promotor Ascendino Carneiro da Cunha, grande orador, homem de princí-
pios rígidos e campeão de batalhas judiciárias. Numa região em que se ma-
tava por quase nada, ele era implacável com qualquer trabuqueiro que tives-
se a má sorte de se sentar num banco dos réus à sua frente. O promotor era
a figura predileta de Chateaubriand. Apesar do calor escaldante do lugar, ele
se vestia como um dândi britânico: fraque, calças listradas, cravo na lapela,
luvas e polainas. E se dirigia aos meninos chamando-os de boy. Campina
Grande se deliciava com os modos do doutor Ascendino, assim como não
entendia os hábitos e os horários de outro tio de Chateaubriand, o fazendei-
ro Antônio Guedes Gondim. Para os metódicos camponeses e agricultores
que viviam na cidade, era incompreensível que o velho Gondim - que se
apresentava como descendente de normandos - acordasse todos os dias às
nove da manhã, tomasse o café às dez, almoçasse às três da tarde e só fosse
jantar às dez da noite. Nà enorme mesa de refeições de sua casa-grande, em
Paraguaçu, nunca havia menos de 25 convivas. Para facilitar o entendimen-
to das coisas, os campinenses inventaram uma explicação para aquela vida
exótica. "São costumes espanhóis ", diziam.
Os meses passados em Campina Grande correram rápido. No começo
de novembro ele retornou a Recife e no fim do mês enfrentou a banca de se-
leção do ginásio da Escola Naval. Chateaubriand teve um desempenho pífio
em português e aritmética, recebendo como classificação um medíocre "Sim-
plesmente ". Com o "Plenamente" obtido em francês, geografia e cosmogra-
fia do Brasil, conseguiu média suficiente para ser admitido. No dia 22 de no-
vembro de 1904, aos doze anos, ele deixava oficialmente de ser analfabeto.
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3
A qualidade da educação que o filho receberia não era exatamente a
principal preocupação de Francisco José. Ele não ocultava de ninguém que
seu grande temor era "a contaminação do menino pela fraqueza dos bárba-
ros da fronteira meridional" - os pernambucanos. Com a ajuda de parentes
e amigos da família, Chateaubriand foi encarregado de conseguir uma casa
para viver em Recife. Tinha de ser lugar limpo, asseado,
freqüentado por fa-
mílias e nas proximidades de alguma escola. Naturalmente, não podia ser
nada caro. Poucos dias depois de iniciar a procura avisou ao pai que tinha
escolhido uma boa pensão - para ser mais convincente, usou o termo "ir-
reprochável", ao descrever o lugar -, de propriedade de Raimundo de
Oliveira, chefe aposentado da estação de trens de Cinco Pontas. Rigoroso e
moralista, Oliveira seria o guarda exemplar das virtudes de um estudante
adolescente. Mas o pai nem o deixou acabar de falar:
- De forma alguma. Não posso deixá-lo nas mãos de alguém que nun-
ca viu Cabaceiras nem conhece Catolé do Rocha. Você terá que ficar sob a
curatela de um paraibano.
O pai decidiu resolver pessoalmente o problema e viajou para Recife.
Juntos, foram dar num sobrado senhorial da rua do Imperador, em cujo tér-
reo funcionava a empresa João Rufino & Cia., um grande armazém de arma-
rinho por atacado. Deu a volta por trás do balcão, abraçou um dos donos e
apresentou-o ao filho:
- Este é o José Pessoa de Queiroz, um paraibano de verdade, com san-
gue na guelra. Além de paraibano, teve a ventura de nascer em Umbuzeiro,
como você. É com ele que você vai morar.
Pessoa de Queiroz era sócio de João Rufino da Fonseca na loja e mora-
va com a família no quarto e último andar do prédio. A sem-cerimônia de
Francisco José foi recebida com naturalidade pelo amigo:
- Terezinha e eu receberemos o Francisquinho com muito prazer. O
terceiro andar está vazio e nós podemos instalá-lo hoje mesmo.
Eram aposentos régios para um menino. Com grandes janelões dando
para a rua, o amplo salão do terceiro andar foi transformado em quarto de
dormir e sala de estudo, com uma mesinha, uma cadeira e um candeeiro. Sa-
bendo que o hóspede era um matuto, armou ao lado da cama uma rede
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
branca, trazida do Maranhão. Luxo raro naquela época, o quarto dispunha
também de um banheiro próprio. Para deixar o filho mais à vontade, Fran-
cisco José tomou uma assinatura de refeição para que ele almoçasse e jantas-
se todos os dias no Rio Hotel, perto da casa de Pessoa. E todas as manhãs
d. Terezinha aparecia no quarto com uma bandeja com café, leite, beiju, ta-
pioca e angu de milho fresquinhos. Ao se recolher, à noite, o garoto notava
que as rosas do jarro ao lado da cama tinham sido trocadas.
Desinteressado do ginásio, Chateaubriand levava uma vida escolar pí-
fia, como se aquilo fosse uma obrigação da qual devesse se livrar o mais de-
pressa possível. Latim, história universal, química e geometria não desper-
tavam nenhum apetite nele. Passou a devorar jornais e a freqüentar grupos
de poetas e literatos mais velhos do que ele. Pela mão de Pessoa de Queiroz,
aproximou-se dos frades do Convento de São Francisco, com os quais come-
çou a aprender as primeiras noções da língua alemã. Uma noite surpreendeu
os amigos declamando, em um alemão incompreensível, o que supunha ser
o passeio de Fausto, de Goethe. Cada vez mais percebia, entretanto, que se-
ria impossível fazer cursos e freqüentar rodas sem dinheiro. Como a escola
só lhe tomava parte do dia, achou que era hora de arranjar trabalho. Confi-
denciou o plano a um dos poucos amigos que fizera na escola, Severino Pe-
reira da Silva, um ano mais novo que ele e recém-chegado de Taquaritinga
do Norte, no sertão pernambucano. Como o outro também estivesse à pro-
cura de emprego, decidiram batalhar juntos. Um funcionário da João Rufino
& Cia. contou-lhes que um armazém de tecidos próximo dali estava preci-
sando de vendedores. Na manhã seguinte os dois já se encontravam a pos-
tos atrás do balcão da Othon Mendes & Cia., de metro e tesoura na mão, cor-
tando pano. Quando Chateaubriand lhes deu a notícia, em uma de suas
visitas à Floresta dos Leões, os pais tentaram demovê-lo daquela loucura-
afinal, ele tinha apenas doze anos -, mas nada conseguiram. Convencida de
que o filho não deixaria o trabalho, a mãe, ainda doente, aconselhou-o a apli-
car direito o salário e não dissipá-lo em bobagens:
- Faça um curso de música, que a educação mu.sical é imprescindível.
Aprenda a tocar bombardino. Estou organizando uma bandinha familiar e
você poderá se incorporar a ela em poucotempo. O Jorge e o Oswaldo estão
aprendendo flauta, o Ganot já sabe tocar tuba, seu pai aprende violino e eu
toco piano. Quando você vier a Floresta, poderemos fazer saraus para os
amigos.
Com seu primeiro salário comprou o tal bombardino e contratou uma
professora para três aulas semanais de uma hora. Não tinha muita queda pa-
ra a música, mas não queria fazer uma desfeita à mãe e resolveu tentar. O
que lhe interessava de verdade eram as leituras. Jornais, romances, revistas,
ensaios, ele lia o que lhe caísse nas mãos. Além do curso de alemão, que pro-
gredia com rapidez, retomou as aulas de francês com o mesmo professor
Al-
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FERNANDO MORAIS
phonse que freqüentara sua casa na rua do Carmo, em Olinda. E foi da boca
dos franciscanos que soube da existência, em Recife, de um verdadeiro te-
souro abandonado: em um casarão da Magdalena, perto do Prado, jazia uma
preciosa biblioteca de livros alemães, que tinha sido deixada por seu dono,
um desconhecido de quem só se sabia ter morrido em circunstâncias miste-
riosas. Uma noite, jantando com amigos do pai no restaurante do hotel, ou-
viu um dos participantes da mesa contar que tanto a casa como os livros
haviam pertencido a um seu concunhado, Cirilino Magalhães, genro do vis-
conde de Rio Formoso. Acometido de uma crise de melancolia depressiva du-
rante uma viagem de navio para o Rio de Janeiro, Cirilino pediu ao barbeiro
do vapor uma navalha emprestada para cortar um fio de cabelo que o inco-
modava. Caminhou até o portaló e de um só golpe abriu a própria garganta
de um lado ao outro. Chateaubriand tentou simular pesar diante da tragédia,
mas não conseguiu ocultar a alegria de ter chegado tão perto da solução do
mistério. Ao pedir permissão para consultar os livros da biblioteca, recebeu a
surpreendente resposta do homem:
- Meu filho, pode carregar tudo. É um presente e uma homenagem à
memória do doutor Cirilino. Aqueles livros não têm utilidade para nós.
Quantas pessoas falam alemão em Pernambuco? Pode passar lá amanhã
com uma carroça e levar tudo.
Os frades não haviam exagerado. Eram centenas de volumes primoro-
samente encadernados em couro, contendo coleções de dicionários, obras-
primas da poesia e da filosofia e o que havia de melhor na literatura germâ-
nica. Ao alcance da mão estava tudo de Goethe, tudo de Schiller, tudo de
Heine, tudo de Nietzsche. Ao folhear, ao acaso, um volume de baladas de
Goethe, encontrou uma pequena anotação a lápis no canto da página: "A as-
siduidade com que Goethe faz menção à araucária brasileira". Seguiu as
marcações nas margens e viu que o falecido dono da biblioteca havia anota-
do mais de trinta passagens em que o poeta revelava seu interesse pela ár-
vore nacional. Tomou outro volume, correu as páginas com os dedos e viu
mais e mais rabiscos a lápis. Além de preciosa, a biblioteca já vinha anotada!
O tempo disponível das semanas seguintes foi todo consumido com o pre-
sente, devidamente limpo, organizado e transportado para o seu quarto na
casa dos Pessoa de Queiroz. O usufruto da raridade foi dividido com os
franciscanos, que o ajudavam a traduzir os trechos mais difíceis.
A familiaridade com as coisas do espírito transformava a escola e o em-
prego em atividades cada vez mais aborrecidas. Do ginásio ele não tinha
mesmo como se livrar, mas o trabalho no atacadista de tecidos tornara-se um
suplício insuportável. Chamou o amigo Severino, que entrara junto com ele
na Othon Mendes & Cia., e propôs que deixassem juntos o emprego. Severi-
no discordou, argumentando que lá eles poderiam continuar estudando e,
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
além disso, ganhavam relativamente bem. Ambos eram pobres e tinham
obrigação de ser prudentes. Mas Chateaubriand já sabia o que queria:
- Severino, ser prudente é antes de tudo ser medíocre. Vamos passar o
resto da vida com os cotovelos plantados nesse balcão, cortando pano. Se vo-
cê quer dedicar sua vida a ser o homem da tesourinha, eu não tenho voca-
ção para isso. Vou-me embora amanhã mesmo.
Na verdade, ele tinha resolvido deixar o armazém várias semanas antes.
O que o prendera lá nos últimos tempos era o vizinho que ocupava o prédio
em frente à loja: a redação e as oficinas do Jornal Pequeno, um diário funda-
do no último ano do século XIX. Quando o gerente descuidava, Chateaubriand
atravessava a rua e invadia a redação. Lá ele se deixava hipnotizar pelo tra-
balho dos repórteres, redatores e, sobretudo, pela mágica dos gráficos catan-
do os tipos de metal para compor, letra por letra, o jornal que ia ser lido por
milhares de pessoas. Sua realização não estava entre as peças de chita e ca-
roá empilhadas no atacadista, mas do outro lado da rua. Certa noite entre-
ouviu uma conversa de José Pessoa de Queiroz com um amigo, em que seu
hospedeiro dizia: "Quem manda na imprensa pernambucana são os Lund-
gren, os maiores anunciantes do Nordeste". Conversando com outras pes-
soas, ele descobriu que aquilo era a pura verdade. Industriais têxteis, senho-
res de engenhos, criadores de cavalos de raça, os Lundgren mandavam na
imprensa e em quem mais quisessem no Nordeste. Pois então, decidiu, os
Lundgren é que lhe dariam o emprego.
Confiante, Chateaubriand inverteu a lógica e pediu suas contas na Othon
Mendes sem saber sequer se seria recebido pelos milionários de origem es-
candinava de quem até então mal tinha ouvido falar. Saiu do antigo empre-
go, passou em casa, vestiu o único terno que tinha no guarda-roupa, pegou
o chapéu e caminhou até a porta do casarão cercado de muros da rua Padre
Roma. Sentou-se num banco de pedra existente na porta da casa e lá perma-
neceu horas ao sol, esperando que alguém da família entrasse ou saísse. No
final da tarde encostou na porta um Decauville - o único automóvel exis-
tente no Nordeste, dizia-se - guiado por um motorista que levava a seu
lado, empinada, d. Ana Louise Lundgren. A matriarca do clã dirigia pes-
soalmente duas indústrias da família, a Companhia de Tecidos Paulista e a
Pernambuco Powder Factory, das quais nasceria, anos depois, um império
de comércio varejista espalhado por todo o país com o nome de Casas Per-
nambucanas. Quando ele chegou perto do veículo, a mulher perguntou:
- Quem é você?
- Sou o Chateaubriand Bandeira de Melo, de Floresta dos Leões. A se-
nhora pode me atender um minuto?
A mulher mandou que ele entrasse. Lá dentro, morto de constrangi-
mento, com o chapéu posto sobre os joelhos, disse o que pretendia:
- Estou aqui para lhe pedir um emprego, uma colocação.
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FERNANDO MORAIS
- Mas como é que vou lhe dar um emprego se nem o conheço? O que
você sabe fazer? De onde mesmo você disse que vem? Como é seu nome?
Embaraçado com o interrogatório, ele balbuciou sobrenomes de pessoas
conhecidas que poderiam dar informações a seu respeito, falou de parentes
importantes, mas acabou não conseguindo dizer o que tinha repetido tantas
vezes na longa espera. Louco para se ver livre daquela situação e sem se atre-
ver a confessar que estava ali para pedir um emprego de jornalista, acabou
dizendo a única frase que lhe veio à cabeça:
- Aceito fazer qualquer tipo de serviço...
Expedita, Ana Louise liquidou a conversa na hora:
- Está bem. Você vai trabalhar como copeiro aqui em casa.
Agora não tinha mais conserto. Desempregado, só lhe restava aceitar o
que a mulher oferecera. Profundamente arrependido da imprudência que
cometera ao pedir demissão da loja, concluiu que tinha deixado de ser bal-
conista com a ilusão de virar jornalista e acabara como mordomo de milio-
nários. No primeiro dia de trabalho a patroa mandou que tirassem suas me-
didas para fazer um uniforme e foi logo ensinando a ele que tipo de talheres
se usava ao servir peixe, que vinho deveria acompanhar tais e quais pratos,
como se servia à francesa, em que posição os copos deveriam ser postos à
mesa. Chateaubriand aprendeu que se podia beber champanhe a qualquer
hora do dia ou da noite sem receio de parecer provinciano. A única exigên-
cia da elegância era abrir a bebida sem estrondo, e para isso bastava pres-
sionar o polegar esquerdo no vão do fundo da garrafa e soltar a rolha sua-
vemente, com o polegar e o indicador direitos. À noitinha, todos os dias, ele
tinha de registrar em um caderno grosso os gastos diários com a casa. De-
pois de uma semana de trabalho a patroa chamou-o au escritório:
- Meu filho, tenho observado seu jeito de trabalhar, suas conversas
com os outros empregados, sua letra no caderno de contabilidade. Você é
muito desenvolto, muito bem preparado para estar trabalhando como copei-
ro. Isto é um desperdício. Você não prefere trabalhar lá na administração da
indústria?
Ele sentiu-se encorajado a desfazer o mal-entendido do primeiro dia:
- Na verdade eu vim aqui para lhe pedir um emprego num dos jornais
da cidade. Eu falo um pouco de alemão, um pouco de francês, estou estu-
dando filosofia com os padres. Mas este foi o emprego que a senhora me ofe-
receu, e como eu já tinha me demitido do armazém de tecidos fiquei com
vergonha e decidi aceitar. Se a senhora quer saber a verdade, eu não quero
continuar sendo mordomo. Não tenho vergonha de fazer o serviço, mas não
é essa a carreira que escolhi.
Ele nem chegou a experimentar o dólmã de brim branco e botões dou-
rados que usaria no trabalho doméstico. Na manhã seguinte já estava na rua
do Rosário, diante da mesa de José de Godói e Vasconcelos, diretor da re-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
cém-fundada Gazeta do Norte, vespertino criado nos últimos dias de 1906 por
um grupo de jornalistas, empresários e intelectuais pernambucanos. Vascon-
celos, que Chateaubriand descobriu ser um velho amigo de seu pai, relutou
muito antes de aceitá-lo como funcionário do jornal. Espantado com a ma-
greza e a baixa estatura do rapazinho, imaginava estar diante de uma crian-
ça. Ele mostrou a caderneta escolar para provar que já tinha quase quinze
anos e disparou, sem gaguejar, suas qualidades: um pouco de francês, um
pouco de alemão, filosofia com os padres, Goethe, Schiller. Para impressio-
nar o jornalista, tinha deixado deliberadamente sobre a mesa, bem visíveis,
um exemplar da Revue des Deux Mondes e um de Les Annales, que tomara em-
prestados com o professor Alphonse para ler em casa. E arrematou:
- Tenho recortados e guardados em casa mais de quatrocentos artigos
escritos por Carlos de Laet. E li todos, meu senhor.
Deu resultado. Nem tanto por se tratar de um colecionador de artigos
do polemista carioca, naturalmente, mas Vasconcelos se rendeu e o contra-
tou. Nas primeiras semanas Chateaubriand atuou mais como publicitário do
que como jornalista: era ele quem dava forma aos anúncios classificados-
os "manteigas" - que eram entregues por clientes no balcão à entrada do
prédio. Só depois é que passou a escrever notinhas curtas sobre fatos desim-
portantes ocorridos na cidade. A ele cabia também revisar, três vezes por se-
mana, as provas dos melosos poemas de autoria de um certo Charles
Khoury, que o jornal publicava inexplicavelmente em francês, tal como eram
entregues à redação. A Gazeta do Norte era um jornal curioso. No primeiro
número os donos anunciaram que seu projeto era combater "as tripudiantes
oligarquias mascaradas que vicejam em todos os estados na ostentação cri-
minosa de seu predomínio nefasto". Mas no mesmo editorial "prometiam
volver também nossas vistas para o lado dos fatos que envolvem os gran-
des e respeitáveis interesses das classes conservadoras". A indefinição edito-
rial podia ser medida pela edição do terceiro aniversário do governo do de-
sembargador Segismundo Antônio Gonçalves, ocorrido em abril de 1907,
pouco depois da admissão de Chateaubriand na redação. Ao lado de rasga-
dos elogios ao caráter e à administração do governador, o jornal lamentava
que, ao mesmo tempo, "o comércio definha, a indústria fecha suas fábricas,
a lavoura sucumbe e o povo emigra, sem trabalho e sem esperança".
Foi nessa época que seu pai conseguiu afinal ser transferido de Belém
para a alfândega de Recife, mas passou a viver em Floresta dos Leões, junto
com a família. Diariamente ele deixava Floresta no trem da manhã, chegava
a Recife pouco antes do almoço, passava um par de horas no porto e às três
da tarde já estava na estação ferroviária, embarcando de volta para casa. De
vez em quando passava no jornal para ver o filho, e, nas raras ocasiões em
que dormia em Recife, podia ser visto à noite nas palestras organizadas na
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FERNANDO MORAIS
redação do Jornal Pequeno por seu proprietário, Tomé Gibson. Acabava apa-
recendo na alfândega apenas uma ou duas vezes por semana.
Chateaubriand via o comportamento do pai com apreensão e pressentia
que ele acabaria tendo problemas com seus superiores. Nas rodas da cidade
já se comentava que havia qualquer coisa contra ele, algo como um proces-
so, ou uma denúncia, circulando pela burocracia federal em Recife. Mesmo
estando com o espírito preparado, levou um choque quando alguém lhe en-
tregou, na rua, uma plaquete de quarenta páginas impressa nas oficinas do
Diário de Pernambuco, encimada pelo título assustador: "Proezas do chefe de
seção Chateaubriand de Melo nas alfândegas do Pará e de Pernambuco".
Tratava-se de um longo e minucioso dossiê contra o pai, assinado pelo coro-
nel Manuel Pinto da Fonseca, inspetor do Ministério da Fazenda. Os dois ha-
viam se tornado inimigos no Pará, quando o pai acusara o coronel de ter
recebido como propina, de um fornecedor de material para as obras da al-
fândega, um luxuoso serviço de cristal e prata importado da Europa, avalia-
do em dez contos de réis. A partir de então Pinto da Fonseca dedicaria seus
dias a vigiar pessoalmente os deslizes do desafeto - tarefa que não deman-
dou grande esforço. O filho tinha ouvido falar da briga dos dois, mas não po-
dia imaginar que uma futrica de barnabés terminasse em escândalo público.
Sentado num canto da redação, correu ansiosamente os olhos pelo livrete.
Era um relatório sobre as atividades do pai no serviço público, seguido da
transcrição de dezenas de telegramas enviados pelo inspetor ao ministro da
Fazenda, Davi Campista, contendo críticas funcionais a Francisco José. O fo-
lheto começava acusando-o de incompetência e absenteísmo e relacionava
várias suspensões que recebera como punição por não comparecer ao traba-
lho. Só então Chateaubriand entendeu por que o pai dispunha de tanto tem-
po para cuidar de Floresta dos Leões ou, quando trabalhava em Belém, para
estar tantas vezes com a família em Recife. "Esse desequilibrado que se au-
to-intitula um 'Leão da Floresta' fez mais", dizia a denúncia, "liderando mo-
vimentos de agitação e anarquia na alfândega contra a inspetoria." Entre os
delitos de que o coronel Pinto da Fonseca acusava o pai, na passagem deste
pela alfândega do Pará, havia desde "esbanjamento de dinheiro público na
compra de limpa-penas" até a reintegração de um funcionário, anteriormen-
te demitido pelo inspetor, "que havia sido condenado pelo crime de pede-
rastia". .
O relatório terminava falando da grande paixão de Francisco José por
Floresta dos Leões: "Haja o que houver, esteja onde estiver, sejam quais fo-
rem as suas obrigações na alfândega de Recife, às três horas da tarde há de
forçosamente abandonar tudo para tomar o trem que deve conduzi-lo a Flo-
resta dos Leões, que constitui o objeto principal de sua monomania. Ali resi-
diu e continua a residir, e diz abertamente que só aceita o emprego no Mi-
nistério da Fazenda com a condição de poder morar lá. Passa quase todos os
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
dias à porta da repartição ou percorrendo o comércio à cata de donativos pa-
ra o monumento que pretende erigir aos heróis pernambucanos em Floresta
dos Leões - dos quais ele se intitula o rei. Funcionário desequilibrado, co-
mo todos o reconhecem, alardeia não temer nem recear coisa alguma en-
quanto dispuser do apoio do senador Herculano Bandeira de Melo - e não
foi debalde que promoveu recepção festiva ao senhor presidente da Repúbli-
ca em Floresta dos Leões. Pela sua reconhecida inépcia e inaptidão, é inteira-
mente inútil em qualquer cargo, muito principalmente no de chefe de seção.
A bem da decência e da disciplina, venho rogar a Vossa Excelência, senhor
ministro, que se digne de retirar desta alfândega referido chefe de seção".
Chateaubriand respirou aliviado ao terminar a leitura. Apesar da dure-
za com que o pai era tratado, não havia no documento nada que atingisse
sua honra. As maiores acusações eram quase ingênuas e referiam-se a traços
de personalidade que ele via como virtudes - a excentricidade e a paixão
por Floresta dos Leões. Ao encontrar-se com o velho dias depois, na casa de
Pessoa de Queiroz, perguntou se ele já tinha visto o livrete e recebeu como
resposta um sorriso:
- Esse coronel é um maníaco, meu filho. Não dê importância ao que
ele diz.
Aparentemente o ministro da Fazenda pensava da mesma forma, pois,
apesar da veemência da denúncia, Francisco José permaneceu no posto, e
sem mudar seu comportamento. Como se nada tivesse acontecido, deixava
a alfândega todos os dias às três da tarde para tomar o trem para Floresta
dos Leões. A vida do pai continuava a mesma, mas a de Chateaubriand es-
tava na iminência de mudar mais uma vez. O pagamento do salário no jor-
nal começou a atrasar, os anúncios de empresas que dependiam do governo
estadual tornavam-se raros. Os artigos de Godói e Vasconcelos mostravam
que o fim do matutino estava próximo. "Contra nossa riqueza produtiva que
diminui, inventam-se novos impostos; contra a nossa liberdade política, as-
sestam-se as baterias constitucionais", escrevia ele. "É visível a soma de sa-
crifícios que tenho feito para manter a Gazeta do Norte, que, enquanto estiver
sob a minha direção, há de mostrar ao público as escandalosas negociatas, os
indecentes arranjos dessa administração sem escrúpulos que arrasou o poder
econômico do estado." Em 27 de julho de 1907 Vasconcelos reuniu os funcio-
nários para informar que naquele dia o jornal circularia pela última vez.
Chateaubriand iria amargar um longo período de desemprego. A pou-
ca experiência acumulada no jornal era insuficiente para pleitear um lugar
nos grandes diários da cidade, e os pequenos não tinham condições de pa-
gar salário decente a ninguém. Ao saber que a Gazeta tinha fechado as por-
tas e o filho estava com dificuldade de conseguir emprego, o pai se sentiu à
vontade para chamá-lo para uma conversa séria. Num jantar no Rio Hotel,
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aconselhou-o a aproveitar a oportunidade e dedicar-se com afinco aos pre-
paratórios para ingressar na Faculdade de Direito. Dali a alguns meses ele
terminaria o ginásio e o melhor que faria era guardar aquele tempo para
entrar com brilho na universidade. Francisco José assegurou que voltaria a
pagar todas as suas despesas em Recife, compromisso que abandonara a pe-
dido do filho quando este começou a trabalhar no jornal. A contragosto Cha-
teaubriand aceitou a proposta - mesmo porque não tinha alternativa -,
deixando claro ao pai, no entanto, que bastaria garantir o pagamento das re-
feições no hotel. Para suas despesas pessoais, ele faria bicos na cidade e ar-
ranjaria algum dinheiro.
Com prazer ele se entregou inteiramente aos livros durante mais de um
ano. Quando se cansava das aulas de filosofia e dos compêndios de direito
em alemão e francês, mergulhava na leitura dos grandes articulistas da épo-
ca, cujos trabalhos recortava e guardava para ler em pacotes nos intervalos
dos estudos. Nesse período, leu tudo o que escreveram os mais importantes
nomes da imprensa de Pernambuco e do Sul, como Alcindo Guanabara,
Eduardo Salamonde, Carlos de Laet - de cujos artigos já era colecionador
- e mesmo Rui Barbosa, que não militava então na imprensa diária. Aos
poucos foi adquirindo, com aqueles autores, a convicção de que, mesmo em
um ensaio publicado num jornal diário, o raciocínio transformado em argu-
mento era muito mais sólido que o mais contundente adjetivo. Ao ser apre-
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tado pelo amigo Pedro Paranhos à obra de Eduardo Prado, leu com avi-
a Ilusão americana, os Fastos da ditadura, os estudos sobre Anchieta e a co-
ação jesuíta. Formado em Paris e sobrinho-neto do barão do Rio Bran-
co, Paranhos não apenas indicava leituras para Chateaubriand, mas também
familiarizava o amigo com os bons modos europeus. Referindo-se a ele co-
mo "o fidalgo da caatinga", Chateaubriand o anunciava como sendo o res-
ponsável por sua evolução da barbárie para a civilização. "Pedroca Paranhos
foi quem me ensinou maneiras e savoir faire. Até conhecê-lo eu era cru, e a
partir daí comecei a perder minha natureza anti-social", dizia. "Antes disso,
eu não passava de um barbatão da caatinga, um garrote que nunca levou fer-
ro. Foi Pedroca quem me ferrou e marcou meu couro para a vida civilizada."
Leu tudo o que caiu em suas mãos e ainda conseguiu tempo para dar aulas
particulares, escrever pequenos artigos para jornais e, com isso, levantar al-
gum dinheiro.
Com os olhos voltados apenas para os jornais, terminou o ginásio com
um desempenho abaixo do medíocre. Quando recebeu o histórico escolar
que acompanhava o diploma, leu sem surpresa que das dez matérias cons-
tantes do currículo ele tinha recebido "Plenamente" apenas em francês e in-
glês. Em letras vermelhas o boletim trazia, adiante das oito disciplinas res-
tantes, a palavra "Simplesmente ". Seu objetivo, entretanto, era outro. O esforço
que fizera ao longo de tanto tempo seria recompensado no dia 2 de novem-
bro de 1908, quando recebeu o resultado do exame de habilitação ao curso
jurídico e social da Faculdade de Direito. Ele tinha sido aprovado com grau
nove em filosofia do direito e seis em direito romano. As notas obtidas resul-
tavam de uma tática deliberada: ele aprofundou-se em filosofia do direito,
aproveitando a facilidade de ler alemão fluentemente, para garantir assim a
admissão, ainda que recebesse nota baixa na segunda matéria. Agora ele po-
deria dedicar-se ao estudo de direito romano sem a ansiedade que o exame
provocava.
A notícia de que Chateaubriand, encerrados os preparatórios, já estava
de novo disponível para o trabalho - e procurando emprego - chegou aos
ouvidos do jornalista Pedro Avelino, amigo de seu pai. Avelino localizou-o
no sobradão dos Pessoa de Queiroz para segredar-lhe que um grupo de in-
telectuais da cidade, liderados pelo professor Henrique Augusto Millet, es-
tava preparando o lançamento de um novo jornal para os próximos dias. O
Pernambuco - assim se chamaria o diário - já tinha três andares alugados
nas imediações do rio Capibaribe e em poucas semanas o jornal estaria nas
ruas. Se quisesse trabalhar como aprendiz, Avelino arranjaria o emprego. O
salário não seria lá essas coisas, mas revelando talento para a profissão logo
ele seria promovido. No íntimo Chateaubriand sentia-se ofendido por rece-
ber um convite para ser "aprendiz" e ganhar meio salário, mas não podia jo-
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FERNANDO MORAIS
gar fora a oportunidade de voltar a uma redação. No último dia do mês de
novembro ele estreava como aprendiz de repórter de O Pernambuco. Quan-
do circulou o primeiro número do jornal, ficou constrangido diante dos ami-
gos e dos frades do convento, a quem falara com entusiasmo sobre o novo
emprego, ao ver que fora esquecido pelos patrões. Na primeira página, sob
o título "Os nossos", o diário publicou os nomes dos componentes da reda-
ção "para facilitar-lhes a entrada nos lugares até onde seja lícito penetrar um
representante da imprensa e para evitar que pessoas inteiramente estranhas
à nossa tenda de trabalho ilaqueiem a boa-fé do público, dizendo-se envia-
das do Pernambuco sem de fato o serem". Passou os olhos na lista e não en-
controu o seu nome.
Arrependeu-se de ter aceito o emprego de aprendiz. A discriminação
deixou-o irritado, mas não havia mais remédio, ele ia continuar no jornal. A
vida nova de universitário o arrebatava. Ele já não se apresentava mais às
pessoas envergonhado de ser apenas um colegial - agora era um acadêmi-
co de direito. Nem sempre era necessário declinar a condição. Na época es-
tava em voga entre os universitários andar de fraque, cartola, polainas e até
de luvas - igualzinho ao promotor de Campina Grande que ele silenciosa-
mente ridicularizara. Chateaubriand não resistiu à moda. Juntou o dinheiro
que tinha guardado, conseguiu mais algum com o pai e providenciou uma
farpela como exigia a etiqueta acadêmica. Não dispensou sequer o plastrom,
peitilho duro de fustão engomado. Ele planejava dedicar todas as suas ener-
gias ao curso. Invejando a fama dos grandes juristas do Rio, imaginava ter-
minar a faculdade com brilho, embarcar para o Sul e montar uma poderosa
banca na capital da República. Com o passar do tempo, porém, a vida no jor-
nal ia aumentando a sedução sobre ele. Não que isso o fizesse relegar a fa-
culdade a segundo plano. Ao terminar o primeiro período letivo, estava en-
tre os alunos com o melhor aproveitamento da classe - nas provas finais,
sua nota mais baixa tinha sido oito, em direito constitucional. Nas outras dis-
ciplinas - direito internacional público, direito civil, direito internacional
privado e diplomacia - recebera grau nove. Mas a tentação continuava no
jornalismo. Sem deixar o trabalho no Pernambuco, conseguiu publicar cola-
borações regulares sobre agricultura e pecuária no jornal A Cidade, de Naza-
ré da Mata, nas imediações de Floresta dos Leões.
Foi nessa época que Chateaubriand viveu sua primeira e platônica pai-
xão. A moça se chamava Amélia Jansen de Almeida Castro, sobre quem ele
pôs os olhos pela primeira vez na casa de Lily Bandeira de Melo, prima de
seu pai. Ele já tinha ouvido o pai falar da avó dela, Ana Jansen, de cuja famí-
lia se aproximara em Belém do Pará. Lily, a prima - que era ferrenha adep-
ta do espiritismo -, soube que Chateaubriand andava "com indagações fi-
losóficas sobre a existência de Deus" e resolveu convidá-lo para uma das
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FERNANDO MORAIS
sessões espíritas que organizava em sua casa, num segundo andar da rua Fi-
lipe Camarão, em Recife. Ele já havia lido tudo o que havia nas livrarias da
cidade sobre Allan Kardec, Gabriel Delannee e Katie King, mas reagira com
esnobismo àquele mundo povoado de fantasmas:
- À exceção da metafísica germânica, as forças anímicas secretas me
deixam frio, indiferente.
Lily insistiu dizendo que identificara em Chateaubriand vocações me-
diúnicas, e que tais virtudes não podiam ser desperdiçadas. "Não adianta
vocês tentarem reeducar almas penadas por meu intermédio", ele respondia,
"pois no meu subterrâneo só vão encontrar feras primitivas e monstros sub-
versivos." Acabou cedendo aos apelos e freqüentando o centro por algumas
semanas. Para frustração de Lily, a única alma a interessá-lo ali não era a dos
mortos, mas a de Amélia. A insuperável timidez, todavia, o impedia de apro-
ximar-se da moça. Quando ela deixou de ir ao centro espírita ele também
desapareceu de lá. Durante alguns meses alimentou a esperança de um dia
criar coragem e abordá-la. Leu poetas românticos para memorizar versos e
ter alguma coisa original a dizer-lhe, mas a vergonha era maior que a pai-
xão. O encanto morreu sem que a jovem tivesse ouvido dele uma só pala-
vra de amor. Amélia acabaria casando-se com um amigo de Chateaubriand.
E dela ele só voltaria a ter notícias muitas décadas depois, quando se tor-
naria amigo dos netos de sua irmã, Hortênsia, que se casara sucessivamente
com os empresários Alberto Monteiro de Carvalho e Olavo Egídio de Souza
Aranha.
Chateaubriand associava a timidez à sua fragilidade e à total inaptidão
para qualquer esforço físico. Ele não se animava a fazer nenhuma ginástica.
Passava a vida estudando e trabalhando, mas invejava nos amigos - que
eram muito poucos - o gosto e a disposição para os esportes. Ia da Facul-
dade de Direito para o jornal e de lá para casa, passando ao largo dos bailes
e farras freqüentados pelos colegas. Não fumava e muito raramente aceita-
va uma taça de vinho ou champanhe. Durante os cinco anos em que viveu
na casa dos Pessoa de Queiroz, jamais aceitou um convite para subir um lan-
ce de escadas e almoçar com o casal e as filhas, tal era seu embaraço, mesmo
diante de pessoas amigas. Trazendo no rosto um ar de tristeza eterna, ves-
tia-se sempre como um velho, de terno e chapéu pretos. Ao ser apresentado
a Gilberto Amado, seu contemporâneo de faculdade e redator do Diário de
Pernambuco, apenas apertou-lhe a mão e pronunciou duas ou três palavras
gentis. Ao afastar-se, ouviu o jovem polemista perguntar:
- Quem é esse magrelo elétrico que parece um calango assustado?
Não se ressentia por não ser um boêmio festeiro, mas lamentava que a
timidez o impedisse de praticar esportes. Não conseguia nem nadar em pú-
blico, coisa que o atraía desde os tempos do Capibaribe Mirim, em Timbaú-
ba. Ir à praia significava exibir sob a camiseta o peito fino como um caniço e
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
revelar aos passantes sua saúde precária. A timidez o estava transformando,
confessava aos amigos, "num neurosado puro, dominado por uma saraban-
da de fantasmas". Ao completar dezessete anos imaginou que o remédio
para seus males poderia estar no Exército. Sem consultar ninguém, alistou-
se como soldado do 34" Batalhão de Infantaria do quartel de Peixinhos, em
Recife. Mas de novo a saúde seria um obstáculo. Dois carimbos azuis da jun-
ta médica do quartel selaram a exclusão: "saúde insuficiente" e "estatura fí-
sica inferior aos padrões exigidos pelas Forças Armadas". Humilhado, deci-
diu que iria servir o Exército de qualquer maneira. Ao contrário dos rapazes
de sua idade, que recorriam aos amigos influentes para escapar do recruta-
mento, ele foi bater às portas de Pedro Paranhos para conseguir a anulação
do laudo que o impedira de prestar o serviço militar. Semanas depois apre-
sentava-se fardado ao capitão Irênio Silva, comandante do batalhão de in-
fantaria.
Se não mudou em nada sua aparência, à primeira vista a exaustiva roti-
na militar ajudou muito a romper com a timidez - ou pelo menos com a
vergonha de praticar esportes. Mas no primeiro exercício de marcha feito
pela tropa achou que ia morrer. Era um trajeto de vinte quilômetros pelo
mato. Antes de chegar à metade começou a sentir vertigens, a visão ficou
turva, o ar não chegava aos pulmões. Ao perceber que ele arquejava de can-
saço, o capitão Irênio aproximou-se e aconselhou:
- Menino, saia de forma e tome o trem de volta para o quartel.
Apesar de ofegante, Chateaubriand recebeu a ordem como um insulto,
uma chicota da. Disciplinadamente, rejeitou a sugestão do chefe:
- Capitão, em nome do meu dever de soldado, não posso aceitar a aju-
da que o senhor me oferece. Vou continuar a caminhada.
Foi a pé até o fim da marcha, mas seus superiores perceberam que seria
desumano tratá-lo como um jovem normal. O comandante do quartel, coro-
nel Alberto Gavião Pereira Pinto, chamou-o para uma conversa e ofereceu-
lhe funções administrativas, mais compatíveis com sua saúde. Ele rejeitou:
- Eu me alistei voluntariamente no Exército para aprender a obedecer
e a mandar. Não sou doente e não quero ser tratado assim. Não posso abrir
mão de praticar todos os exercícios que são impostos à tropa.
O coronel decidiu por uma solução intermediária. Ele passaria a dirigir
o jornalzinho do quartel, chamado O Fundão, e faria palestras para a tropa
sobre grandes batalhas militares. Para não perder o contato com os soldados,
continuaria participando dos exercícios mais leves e poderia escolher algum
esporte para praticar regularmente. Um ano depois, ao cruzar pela última
vez os portões do 34" Batalhão de Infantaria, se não era um campeão, Cha-
teaubriand pelo menos já podia se considerar um exímio praticante de esgri-
ma. A timidez nãu tinha sido de todo vencida, mas deixara de ser, como no
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FERNANDO MORAIS
passado, uma doença. E, se um ano de dura disciplina não fora suficiente
para ensiná-lo a obedecer, sem dúvida nenhuma ele aprendera a mandar.
A moda na imprensa brasileira na virada do século não era a notícia,
mas a polêmica. Jornalista que decidisse fazer carreira como grande editor
ou como repórter de talento estava condenado a desaparecer sob a poeira da
obscuridade. Quem tivesse planos de brilhar, que preparasse a pena e arran-
jasse alguém para combater. A polêmica era o palco ideal para o exercício da
elegância, da erudição e, quase sempre, da ferocidade no ataque. Verdadei-
ro teste de resistência, sua importância podia ser medida pelo tempo que du-
rasse, com os dois contendores de pé. Uma polêmica que só resistisse um
mês não era digna do nome. Mais do que o conteúdo, foi o tempo de dura-
ção que imortalizou, por exemplo, a guerra de palavras entre o jurista Ernes-
to Carneiro Ribeiro e Rui Barbosa em torno do projeto de Código Civil do
presidente Campos Sales, no segundo ano do século. A rigor, o assunto não
deveria ultrapassar as paredes dos tribunais e da Câmara dos Deputados,
mas foi nas páginas dos jornais que os dois duelaram. A arenga durou até
1905. Foi assim que o Brasil alfabetizado se emocionou, como nas lutas de
boxe, com disputas memoráveis como "Carlos de Laet contra Camilo Caste-
lo Branco", "Júlio Ribeiro contra o padre Sena Freitas " ou "Hemetério José
dos Santos contra Machado de Assis". Iniciada a peleja, os litigantes estavam
qualificados a se apresentar em público não apenas como jornalistas ou ad-
vogados, mas como "polemistas". E quanto mais notável fosse a vítima da
polêmica, tanto maior seria o prestígio do polemista.
No auge da chamada Campanha Civilista, em 1910, quando Rui Barbo-
sa disputava a Presidência da República com o marechal Hermes da Fonse-
ca, Chateaubriand já havia deixado o Pernambuco e trabalhava no Jornal do
Recife, diário de propriedade de Luís de Faria. Embora não houvesse diferen-
ças essenciais nas propostas dos dois candidatos a presidente, Rui Barbosa
ainda desfrutava as glórias de seu desempenho na conferência internacional
da Holanda, de onde voltara como o "Águia de Haia". O pequenino baiano
anunciava que o Brasil vivia uma guerra entre a pena (ele) e a espada (o ma-
rechal). Em defesa do voto secreto, percorreu o Brasil realizando conferên-
cias públicas e inaugurando prática inédita por aqui - uma campanha elei-
toral. A disputa dividiu o país. No Rio de Janeiro, partidários do
hermismo
usavam as colunas do Jornal do Comercio e de A Imprensa para combater Ma-
nuel de Oliveira Lima, escritor e diplomata pernambucano ligado a Rui Bar-
bosa. Membro da Missão de Propaganda e de Expansão Econômica do Brasil
na Europa, Oliveira Lima era acusado de usar o posto oficial, em conferên-
cias internacionais, para empurrar o Brasil para posições antiamericanas.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Tratava-se de uma típica polêmica federal, que jamais passaria pela pro-
víncia. Mas, quando os ecos dela aportaram em Recife, Chateaubriand decidiu
apresentar-se como voluntário naquela guerra, sem ter sido convocado por
ninguém. Ele sabia que na verdade o que importava não era a vítima dos ata-
ques, mas a eleição presidencial e os dois candidatos. Além de concordar com
as posições de Oliveira Lima, havia outro dado a justificar sua intromissão na-
quela peleja de gigantes: o ofendido era um pernambucano, que precisava ser
defendido por um nordestino. Mesmo conhecendo-o superficialmente, Cha-
teaubriand alimentava a distância grande admiração pelo gordíssimo e ferino
diplomata, um maníaco pela atividade epistolar que chegava a escrever 1600
cartas por ano aos amigos. Sua intenção não era esgrimir com o Jornal do Com-
mercio ou com Alcindo Guanabara, seu antigo ídolo e diretor de A Imprensa.
Nem sequer a defesa de Oliveira Lima o seduzia tanto. O que ele queria era
bater-se com o hermismo.
Quando saiu publicado no Jornal do Recife, seu primeiro artigo, intitula-
do "Em defesa do sr. Oliveira Lima", foi recebido com olímpica indiferença
pelo público. Os leitores nem mesmo sabiam quem era o "A. Bandeira de
Melo" que o assinava. Três dias depois, no entanto, outro artigo aparecia no
jornal com a mesma assinatura e sob o mesmo título. Só então se percebeu
que alguém - o tal A. Bandeira de Melo - decidira meter Pernambuco na-
quela briga nacional com dureza nunca vista, nem nas melhores polêmicas
do Rio de Janeiro. Advertido por amigos, o "coronel" Faria, dono do jornal,
logo decidiu: não haveria um terceiro artigo nem o autor continuaria traba-
lhando no jornal. Indignado, acabou pessoalmente com o atrevimento. Cha-
mou Chateaubriand à sua sala e passou-lhe uma descompostura:
- Sua linguagem rude não cabe em nosso jornal, seu Bandeira de Melo.
Seus artigos ferem a linha de conduta e a orientação política do Jornal do
Re-
cife.
- O senhor não tem que se amedrontar com minha linguagem, coronel.
Meu objetivo não são os homens de bem, mas apenas certos judas da vida
nacional.
- Quem o senhor imagina que é para usar o meu jornal em insultos ao
ex-ministro da Guerra? O senhor não sabe que eu sou hermista, que este é
um jornal hermista? Só mesmo em Pernambuco um frangote de dezessete
anos se dá a petulância de enfiar-se numa questão como essa e de se imis-
cuir nos problemas internacionais do Brasil.
Chateaubriand ainda tentou argumentar, mas o velhote já tinha decre-
tado o fim de tudo aquilo:
- Gostaria que o senhor se considerasse posto para fora deste jornal a
pontapés.
Inconformado, tentou arranjar outro veículo para publicar a série abrup-
tamente interrompida, mas ninguém quis mexer naquele vespeiro. Temeroso
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FERNANDO MORAIS
de que sua estréia na polêmica pudesse abortar por falta de palco, bateu em
todos os jornais da cidade. Mas, assim como os três partidos políticos locais,
também a imprensa pernambucana estava toda comprometida com o her-
mismo. Chateaubriand não entregou os pontos: juntou suas economias, pe-
diu dinheiro emprestado aos amigos e mandou imprimir por conta própria
um folheto de quarenta páginas, contendo os dois artigos que causaram sua
demissão e mais os sete seguintes, que tinham sido censurados. O título do
trabalho era o mesmo dos artigos: "Em defesa do sr. Oliveira Lima". Admi-
rador de Camilo Castelo Branco, mandou imprimir na capa palavras do pan-
fletário português: "Este país é uma calamidade, acorrentado a um pelouri-
nho de opróbrio". Aproveitou o prefácio para "zurzir o sr. Luís de Faria" e
tornar públicas as razões que o levaram a pagar do bolso a publicação de ar-
tigos que a imprensa local rejeitara.
Ele acusava os dois jornais cariocas de funcionar "à custa das achegas
dos cofres públicos " e defendia Oliveira Lima com fervor: "Não é possível
deixar ser assim vilipendiado um brasileiro de caráter, simplesmente, só e só
porque ele se recusou, altiva e dignamente, a receber no balcão da Europa os
trinta dinheiros com que deveria acovardar-se ante a grimpa do militarismo
recidivo". Quanto à questão central do debate - o antiamericanismo de Oli-
veira Lima -, Chateaubriand sustentava que "o perigo americano reside na
desmedida ascendência moral, política e econômica dos Estados Unidos so-
bre todo o continente" . Esbanjando surpreendente erudição para um adoles-
cente, citava Renan, Nietzsche, Cantù e Bluntschli para argumentar que o
Brasil, fruto da mistura de negros, índios e portugueses, deveria ver com
cautela a aproximação com us Estados Unidos: "Sabe-se do ódio que os nor-
te-americanos têm ao negro. O linchamento e a fogueira são processos sumá-
rios para matar-se os filhos da raça maldita. Um preto criminoso ali rara-
mente vai ao tribunal. Uma multidão ululante, com alguns paus de lenha e
uma lata de querosene - esse é o júri que aguarda o infrator da lei. Isso não
é justiça, dizemos nós. Mas é yankee, forçoso é obtemperar".
Segundo Chateaubriand, a polêmica ocultava o ódio hermista ao civilis-
ta Oliveira Lima, que por razões de princípio se recusara a receber na esta-
ção de Bruxelas o futuro presidente da República. E, se a questão era o mili-
tarismo, então que se discutisse o militarismo sem rodeios. Para isso, era
preciso ir às raízes do problema no Brasil, coisa que ele fazia, ao encerrar o
folheto, com indagações provocadoras: "Que foi a proclamação da Repúbli-
ca, senão uma revoluçãu de quartéis, uma rebelião da tropa? Quem melhor
do que o marechal Floriano Peixoto encarnou o militarismo, o privilégio da
classe, o ódio ao civil?".
À repercussão foi imediata. Pernambuco silenciara diante dos ataques a
um filho ilustre que, afinal, fora defendido por um moleque nascido na Pa-
raiba. Até os mais fiéis defensores do marechal Hermes da Fonseca viram-se
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
obrigados a reconhecer a coragem e o atrevimento do garoto. Semanas de-
pois que o folheto circulou em Recife, Ulisses Costa, antigo redator-chefe de
A Cidade, de Nazaré da Mata, abriu-lhe as portas mais difíceis da imprensa
pernambucana, conseguindo para ele um emprego de redator do Diário de
Pernambuco. O salário de cem mil-réis - nenhuma fortuna, mas muito di-
nheiro para alguém de dezessete anos - permitiu que ele abandonasse as
aulas de lógica e psicologia que dava diariamente na Associação Cristã de
Moços. Ainda saboreando a glória do panfleto, recebeu um convite para ga-
nhar trezentos mil-réis mensais como articulista do Jornal Pequeno. Os dois
diários eram hermistas declarados, mas ninguém queria perder a oportuni-
dade de ter em suas páginas, devidamente policiado, o pequeno demônio
paraibano. Mesmo consagrado em Pernambuco como polemista, Chateau-
briand não se deu por satisfeito. Ao visitar seu amigo Pedro Paranhos, co-
mentou que tudo aquilo não passava de provincianismo:
- Uma boa polêmica tem que ser travada no Sul, ou não terá repercus-
são nacional. E isso é só uma questão de tempo. Vou temperar o aço do meu
florete e ficar em guarda, porque não tarda muito e o inimigo aparece.
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Chateaubriand já havia recusado vários convites para disputar cargos
eletivos. Justamente em 1951, quando decidiu que queria ser senador, não
era ano de eleições. Nem aquele, nem o próximo, nem o seguinte. Inconfor-
mado, resolveu pedir socorro ao amigo Drault Ernanny, que andava de na-
moro com o presidente Getúlio Vargas. Embora fosse dono de uma empre-
sa petrolífera, Drault era, paradoxalmente, um conhecido defensor dos
planos de Vargas de estatizar a exploração de petróleo no país - circunstân-
cia que nos últimos meses lhe abrira as portas do Palácio do Catete. No final
daquele ano, poucas semanas depois de tomar a decisão, o jornalista foi à
casa do amigo em busca de uma intermediação com o presidente:
- Seu Drault, andei dando um balanço na trajetória dos Associados e o
resultado do inventário é de encher os olhos: já temos dezenas de jornais e
estações de rádio, duas televisões, uma editora de livros e a revista mais im-
portante da América do Sul.
O banqueiro paraibano apenas olhava, curioso por saber aonde aquela
conversa ia chegar, enquanto o jornalista caminhava pela casa, falando sem
parar e gesticulando de maneira teatral:
- Ou seja, temos tribunas impressas, tribunas radiofônicas e até essas
mágicas tribunas televisivas. Temos tudo? Não, seu Drault, não temos. O
que falta ao time dos Diários Associados é uma tribuna convencional, uma
caixa de sabão onde eu possa subir e falar em nome da nossa cadeia. Por que
é que faço todos esses rodeios? Para lhe comunicar que refleti bastante e de-
cidi que vou ser senador.
Drault Ernanny festejou a decisão de Chateaubriand, mas este chamou-
lhe a atenção para o obstáculo legal:
- O problema é que a próxima eleição para o Senado, que renovará um
terço daquele parlamento, só vai acontecer em outubro de 1954, daqui a qua-
se três anos, e eu queria ser senador já.
O outro reagiu com espanto:
- Esse não é apenas "um problema" como você pensa, Chateau-
briand. É a Constituição do país que estabelece isso. Se só vai haver eleições
em outubro de 1954, você só poderá disputar a sua vaga no Senado naque-
la data. Esse é um obstáculo insuperável, que nem Vargas nem ninguém
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Até então os dois haviam coexistido pacificamente na redação da revis-
ta, dirigida por Veríssimo e que tinha como colaboradores, entre outros, Ma-
chado de Assis, Joaquim Nabuco, Graça Aranha e o próprio Sílvio Romero.
As três dezenas de palavras, porém, foram suficientes para pôr fim ao armis-
tício. Indignado, Romero passou a fustigar Veríssimo em artigos publicados
em jornais. Quando não havia o que criticar na obra do outro, decaía para
ofensas pessoais, chegando a debochar da cor parda da pele de Veríssimo.
Os ataques eram eventualmente respondidos por este, mas a polêmica só to-
maria vulto muito tempo depois, quando Veríssimo publicou pela editora
Garnier o livro Que é literatura?. Ao final de ensaios sobre Sainte-Beuve, Rus-
kin e Nietzsche, Veríssimo destina as últimas sessenta páginas do livro a res-
ponder à campanha que Romero lhe movia. Tratando-o de "matuto ", "paxá
da crítica indígena" e "manipanço provinciano", acusa Romero de ter passa-
do trinta anos refazendo sempre a mesma obra, a própria obra: "Em país al-
gum, em literatura alguma, talvez nenhum autor se tenha tanto citado a si
mesmo como o senhor Sílvio Romero. Dificilmente se lhe encontrará uma
página em que Sílvio Romero não cite Sílvio Romero. Jamais se viu tão ex-
traordinário caso de masturbação intelectual".
Leitor e simpatizante do autor, Chateaubriand acompanhava a distân-
cia a guerrilha de farpas, e exultou quando finalmente chegou à Livraria
Francesa de Recife o exemplar do livro de Veríssimo que havia encomenda-
do. Conhecendo bem o ofendido, entretanto, comentou com os amigos per-
nambucanos que o agressor podia se preparar para o pior:
- Para escrever a resposta, Romero vai molhar sua pena em ácido sul-
fúrico. Estamos diante de um embate de paquidermes, meus senhores!
Só muitos meses depois, já em 1910, entretanto, é que apareceriam nas
livrarias recifenses os primeiros exemplares da réplica de Sílvio Romero. Ela
veio sob a forma do livro Zéverissimações ineptas da critica (repulsas e desaba-
fos), publicado pela lusitana Editora do Porto. Ansioso, Chateaubriand co-
meçou a leitura encostado ao balcão da Francesa. Sem prefácio, prólogo ou
introdução, o autor ia direto à garganta do inimigo, nas primeiras linhas:
"Não costumo ler o sr. José Veríssimo, principalmente depois do seu último
concurso de história geral e do Brasil, em que se revelou duma ignorância
abaixo de qualquer classificação. Já dantes raramente o lia, por causa da cha-
teza de suas idéias, a confusão de seu espírito, o tom rebarbativo de seu es-
tilo, a irritante pretensiosidade de seu dogmatismo, disfarçado entre conjun-
ções e advérbios contraditórios ". Meia dúzia de páginas adiante e ele era
ainda mais duro: "Anda, Zezé, pede auxílio ao Capistrano, o famigerado, e
vem; quero esmagar-te de vez, patureba".
Ele fechou o volume e comentou com o livreiro Manuel Nogueira:
- Pelo jeito, é puro curare. É letal.
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FERNANDO MORAIS
Correu à redação do Jornal Pequeno e em um par de horas já tinha lido
todas as 180 páginas. Era material corrosivo, como jamais se publicara em
qualquer polêmica anterior. Veríssimo era chamado de "tucano da literatu-
ra brasileira", "Zebríssimo" e tratado como um ignorante: "Ele não com-
preende a etnografia, nada sabe de mitologia, de crítica religiosa, de econo-
mia política, de direito, de moral, de ciência social - o que importa dizer, é
um incompetente para julgar a vida intrínseca de um povo. Zé Veríssimo, no
seu atraso, nunca entendeu a moderna crítica sociológica, por mim introdu-
zida no Brasil. Aprende, Zé, abre os olhos, estuda, lê coisas sérias. A cada
capítulo a fuzilaria se intensificava. Ironizando a análise da obra de Nietzsche
feita por Veríssimo, Romero dizia que "em 1868, quando no Recife eu e meus
amigos líamos Comte, Littré, Buckle, Scherer, Taine, Max Mizller, Renan, Va-
cherot, ele não passava de um caborezinho de onze anos. José Veríssimo an-
dava ainda pescando tartarugas no Amazonas ou tomando açaí em Belém
quando eu e Tobias já tínhamos saído do positivismo". Como golpe de mi-
sericórdia, apelava ao racismo: "E quem se atreverá a duvidar, no Brasil, que
um mulato escuro como o sr. José Veríssimo, o nosso pardo Zezé, por exem-
plo, não é um latino e que os latinos do século v não eram mais arianos?"
Atordoado com o que acabara de ler, Chateaubriand correu à sala de
Tomé Gibson, diretor do jornal, para anunciar que tinha decidido se intro-
meter entre as duas locomotivas que se chocavam. Com o livro na mão,
ameaçou:
- Seu Gibson, vim comunicar-lhe que escolhi o seu jornal para respon-
der a este filho da puta.
Saiu de lá diretamente para as tiras - as compridas aparas de papel em
que escreviam os redatores. No dia seguinte o Jornal Pequeno começava a pu-
blicar seus cinco artigos, todos intitulados "A morte da polidez" e assinados
pelo nome que o consagrara na polêmica anterior - A. Bandeira de Melo.
Ele chamava o "livreco" de Silvio Romero de "Romerizações ineptas da crí-
tica" e se referia ao autor como "um exibicionista, um bufão, um espalhafa-
toso que elegeu a grosseria e o desaforo como armas de combate entre ho-
mens de letras". Provocador, dizia que "o sr. Romero supõe-se o maior e
melhor crítico nacional - estólido fora convencê-lo da inanidade de tão es-
tulta pretensão". Ao longo dos artigos, disseca a História da literatura brasilei-
ra, de Romero, para provar que o crítico nada sabia da língua alemã, ao con-
trário do que alardeava nos ataques a Veríssimo. Conta 21 citações em
alemão e acusa Romero de tê-las subtraído de obras traduzidas para o fran-
cês: "Ele escamoteou corajosamente em livros franceses citações em alemão
para no-las dar, já de segunda mão, como flores novas e frescas, colhidas no
luxuriante vergel de Goethe, de Wundt e confrades ". Mais grave que tudo
isso, assegurava, era o fato de o crítico ter se transformado em um "assassi-
no" com a publicação do livro contra José Veríssimo. Segundo Chateau-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
briand, Romero já havia trucidado as oligarquias em seus artigos e encerra-
va a lista de homicídios decretando o fim da amabilidade no Brasil: "Sílvio
Romero estrangulou a metafísica, supliciou o romantismo, matou a polidez
".
Publicado o último artigo no Jornal Pequeno, mãos anônimas se encarre-
garam de fazer chegar ao Rio, pelo primeiro vapor, a série completa. O pró-
prio Chateaubriand jamais ficaria sabendo quem patrocinou o gesto, mas a
verdade é que semanas depois já se encontrava em todas as livrarias da ca-
pital o livro A morte da polidez, de A. Bandeira de Melo. Na capa, em lugar do
nome da editora, estava escrito "Edição de alguns amigos", que os aliados
de Sílvio Romero diziam ser apenas um disfarce, já que a edição teria sido
paga por José Veríssimo. Quando soube que seus artigos tinham sido trans-
formados em um livro que estava sendo devorado pelos luminares do Rio,
Chateaubriand se preparou, aguardando o tão esperado ataque do crítico.
Os ecos do sucesso que o livro fazia no Sul não o entusiasmavam. O que ele
desejava ardentemente era bater-se com Sílvio Romero. Como aquecimento
para a luta maior, desancou o jornalista e poeta Osório Duque Estrada, au-
tor da enigmática letra do Hino Nacional brasileiro, que saíra em defesa de
Romero nas páginas do Correio da Manhã. As semanas se passavam e nenhu-
ma notícia da resposta de Sílvio Romero chegava a Recife. Nem chegaria ja-
mais. Antes de reagir, o crítico teve a cautela de informar-se com amigos de
Recife sobre a identidade do misterioso A. Bandeira de Melo. Ao saber que
o autor da petulância era um pirralho, um terceiranista de direito de Recife,
dedicou-lhe apenas um humilhante post-scriptum nas suas "Provocações e
debates " publicadas no Jornal do Commercio: "Condeno-o ao perpétuo des-
prezo, que é o que merece a audácia de um aspirante da literatura. Jamais
me ocuparei da sua pessoa ou de seus fracassados pendores críticos e literá-
rios". Para Chateaubriand aquilo era o fim. O sonho de tornar-se um pole-
mista nacional morrera provisoriamente nas cem páginas do seu livrinho.
O baque provocado pelo desfecho da frustrada polêmica só seria ame-
nizado pelo retorno da família a Recife. Com a mãe curada da tuberculose, o
pai decidira vender a casa de Floresta dos Leões e voltar com os filhos para
a capital. Embora o tio-avô Herculano Bandeira de Melo tivesse sido eleito
governador do estado três anos antes, em 1908, seu pai se recusava a aceitar
qualquer facilidade vinda da política oficial, permanecendo como fiscal da
alfândega. Para manter a família em Recife, a solução foi empregar todos os
filhos. Jorge, o mais velho, obteve uma vaga de conferente no Ministério da
Fazenda. Oswaldo foi trabalhar com o irmão jornalista como revisor do Diá-
rio de Pernambuco, e Ganot, o caçula, virou entregador de cartas do Correio.
A segurança da vida familiar só tinha um inconveniente: a mãe exigia que
todos os filhos - ele inclusive - lhe entregassem seus salários no fim do
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FERNANDO MORAIS
mês, e era ela quem administrava o destino do fundo comum da família. Pri-
meiro vinham as despesas da casa, o aluguel, a escola dos pequenos. Só o
que eventualmente sobrasse é que era redistribuído entre os quatro rapazes.
Já freqüentador das rodas da intelectualidade pernambucana, Chateau-
briand se sentia constrangido por ter de pedir dinheiro à mãe para as despe-
sas mais simples.
Embora tratado em casa como uma criança, sua vida profissional era
cada vez mais a de um adulto. Ao contrário do que decretara Sílvio Romero,
o desprezo a que fora condenado não seria tão perpétuo. Seu nome cresceu
em Pernambuco, intelectuais importantes aproximavam-se dele, e até a co-
luna de questões filológicas, que ele assinava uma vez por mês no Diário com
o pseudônimo de "Orosco ", passou a ser citada regularmente pelo grande
lingüista Said Ali no Jornal do Commercio, no Rio. À noite escrevia artigos de
fundo para o Diário de Pernambuco e para o Jornal Pequeno e durante o dia fa-
zia reportagens para o último. Seu prestígio, somado ao fato de que falava
francês e alemão, dera-lhe o privilégio de ser o entrevistador permanente
de toda personalidade importante que passasse pela cidade, escala obrigató-
ria na rota dos transatlânticos entre o Brasil e a Europa. Pelo menos uma vez
por semana ele embarcava numa pequena alvarenga que o levava a bordo
dos navios atracados na baía. Quando a permanência dos transatlânticos em
Recife era mais demorada, ele fazia as vezes de cicerone para o entrevistado
ilustre que quisesse conhecer a cidade. Foi assim que se tornou amigo de
personagens como o historiador Capistrano de Abreu, o político Maurício
Nabuco e o industrial Delmiro Gouveia, ou de estrangeiros que acabariam
tendo papel importante na sua vida, no futuro, como o milionário canaden-
se Alexander Mackenzie, da poderosa empresa Brazilian Traction. Em geral
as entrevistas eram feitas no próprio barquinho, para onde o entrevistado
era descido dentro de uma cesta amarrada por cordas ao convés dos navios.
Em uma dessas ocasiões, ao mostrar a cidade ao escritor Graça Aranha, Cha-
teaubriand apresentou Heloísa, filha do autor de Canaã, a seu patrão Fran-
cisco Rosa e Silva, dono do Diário de Pernambuco. Embora o grande chefe da
política pernambucana fosse 38 anos mais velho que Heloísa, então uma me-
nina de dezesseis anos, pouco tempo depois os dois acabariam se casando.
A vida transcorreu sem grandes tropeços até o dia 3 de abril de 1911,
quando ele sofreu o seu primeiro grande golpe. Ao chegar em casa à noite,
depois do fechamento do jornal, deu com o cadáver do pai estirado sobre
uma cama. Um infarto o matara minutos antes. A mãe e Jorge tentavam con-
solar os irmãos menores, vizinhos entravam e saíam. Alguma defesa inte-
rior contra a dor o impedia de pensar na morte e na ausência do velho - ele
só conseguia se preocupar com as providências que precisaria tomar para
garantir-lhe um enterro digno. Nos últimos anos Chateaubriand chegara a
ficar cismado com o surpreendente e rápido envelhecimento de Francisco
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
José - não tendo ainda chegado aos cinqüenta anos, o pai adquirira em pou-
co tempo a aparência de um ancião, com a cabeça e os vastos bigodes intei-
ramente brancos. Mas nada disso o levara sequer a imaginar que algum pro-
blema de saúde o estivesse afetando. Agora, ali, diante do pai morto, ele se
esforçava para não se punir pelos momentos que deixaram de estar juntos,
pelo tempo que dedicara aos livros e ao trabalho em prejuízo de um conví-
vio maior com o pai que ele conhecera tão pouco. A única maneira de não se
martirizar com aqueles pensamentos era assumir o lugar que lhe cabia a par-
tir daquele momento, o de chefe da família.
Consultou a mãe e soube que as economias acumuladas nos últimos
meses somavam quinhentos mil-réis, a quarta parte do dinheiro necessário
para pagar um enterro decente. Correu à casa de Manoel Medeiros, gerente
do Banco de Crédito Real de Pernambuco, e tomou com ele um empréstimo
de um conto e quinhentos mil-réis, amortizáveis em oito meses. Quando
chegou à Casa Agra para ajustar o enterro com Joca Arara, o dono da fune-
rária o tranqüilizou:
- Já está tudo pago e providenciado, inclusive o aluguel das charretes
para os acompanhantes. O prefeito Arquimedes de Oliveira e o doutor José
Pessoa de Queiroz passaram aqui antes do senhor e deixaram tudo acertado
comigo.
Francisco José teve um funeral de luxo, a que compareceram as figuras
mais ilustres da política e da inteligência de Recife. À saída do cemitério,
Chiquinho Rosa e Silva, filho de Francisco Rosa e Silva, chamou Chateau-
briand a um canto:
- Meu amigo, o melhor remédio para superar uma perda como esta é
o trabalho. Vem agitação política por aí e vamos precisar de gente de con-
fiança. Venha conversar comigo hoje à noite, em casa.
Depois de jantar com a mãe e os irmãos, caminhou até o casarão da rua
Benfica. Chiquinho, seu companheiro de redação no jornal, foi direto ao as-
sunto: temia-se que a oposição estivesse preparando em segredo a candida-
tura do general Dantas Barreto ao governo do estado, nas eleições do final
do ano. De Paris, onde se encontrava, o conselheiro Rosa e Silva escrevera ao
filho determinando que ninguém tomasse nenhuma atitude antes de sua
volta, mas que já fossem se preparando para a possibilidade de enfrentar nas
urnas o ministro da Guerra do presidente Hermes da Fonseca. Quando quis
saber o que deveria fazer, Chateaubriand ouviu uma resposta irônica:
- Por enquanto, nada. Apenas continuar tratando a oposição a sal e sol
no Diário e, se possível, no Jornal Pequeno também. Vamos esperar as ordens
do Conselheiro.
Francisco de Assis Rosa e Silva, o "Conselheiro" , era o mais acabado
modelo de oligarca nordestino. Milionário, ele se distinguia dos tradicionais
coronéis do interior do Brasil apenas pelos bons modos e pelo verniz de cul-
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FERNANDO MORAIS
tura adquiridos nas freqüentes viagens à Europa. Na virada do século che-
gara a exercer interina e precocemente a Presidência da República em subs-
tituição ao paulista Campos Sales, de quem era vice-presidente constitucio-
nal. Antes disso, com 38 anos, fora presidente da Câmara dos Deputados e,
logo depois, ao ser eleito vice-presidente da República, assumira a presidên-
cia do Senado. Dono do Diário de Pernambuco, Rosa e Silva passou a contro-
lar com mão de ferro a política pernambucana a partir de sua primeira elei-
ção para a Câmara Federal em 1894. Mesmo a distância - que tanto podia
ser o Rio de janeiro ou Paris -, desde 1896 vinha fazendo sucessivamente,
sem exceção, todos os governadores do estado: Joaquim Correia de Araújo,
Antônio Gonçalves Ferreira, Segismundo Antônio Gonçalves e, agora, o tio-
avô de Chateaubriand, Herculano Bandeira de Melo, todos eleitos pelo Par-
tido Republicano de Pernambuco para cumprir as ordens do cacique. Entre
a robusta maioria que fizera na Câmara Estadual estava seu filho Chiquinho,
que os adversários preferiam chamar maliciosamente de "Rosinha". Dos
trinta deputados que compunham a Câmara, apenas três não lhe deviam
obediência. Mas era no Senado Estadual - órgão instituído pela Constitui-
ção de 1891- que os números exibiam com maior eloqüência seu poder: lá
todos os quinze membros eram rosistas, eleitos sob sua tutela. Seu poder era
tamanho que os candidatos à Presidência da República costumavam dizer
que "quem tem Rosa tem o Norte do Brasil - sem Rosa ninguém se elege,
contra Rosa ninguém governa". Ao descrevê-lo, Gilberto Amado dizia tra-
tar-se de "um dândi de olhos de um azul intenso, riscados por um piscar
contínuo, que fuzilavam secos. De seu rosto, rodeado de barba crespa casta-
nho-claro, bem tratada, emanava dignidade ".
Para arrostar a política do "Napoleão do Norte ", o Partido Republicano
Conservador foi buscar um herói de guerra que pouca gente sabia que tinha
nascido em Pernambuco. O general Emídio Dantas Barreto deixara seu esta-
do natal ainda adolescente, ao migrar para o Sul. No Rio, alistou-se como vo-
luntário para combater na Guerra do Paraguai, de onde retornou com a pa-
tente de oficial, concedida por bravura em combate. Em 1891 passou poucos
meses em Recife como major do Exército, ocupando a chefia do II Distrito
Militar. Seu nome só iria aparecer nos jornais no final de 1910, já general-de-
divisão, quando o presidente Hermes da Fonseca anunciou que ele seria o
seu ministro da Guerra.
A candidatura de Dantas acabou sendo lançada um mês depois da mor-
te do pai de Chateaubriand, num grande comício na cidade de Jaboatão. De
sua ampla casa nos arredores de Paris, Rosa e Silva simulou indiferença,
mandando dizer que talvez até pudesse vir a apoiá-lo. "Afinal, não há diver-
gências maiores a nos separar", dissera ele, "já que somos ambos hermistas
,
caranguejos do mesmo balaio." Ninguém acreditou na mensagem vinda da
França - até as pedras das ruas sabiam que o lançamento da candidatura do
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
General era uma afronta a Rosa e Silva, e que sua eventual eleição seria o fim
do rosismo. Na verdade, nem o próprio Rosa acreditava que alguém se atre-
vesse a sair candidato ao governo de Pernambuco sem antes pedir sua bên-
ção. Três meses depois, no entanto, o Partido Republicano Conservador lan-
çou oficialmente o nome de Dantas Barreto, não deixando dúvidas de que se
tratava de uma candidatura de oposição. Surpreso e incrédulo, Rosa e Silva
embarcou de volta ao Brasil.
Trazendo a bordo o ilustre passageiro, o Amazon chegou a Recife no dia
31 de agosto, mas para surpresa geral não atracou no porto, permanecendo
parado na barra. Para aumentar o clima de mistério, Rosa e Silva não desem-
barcou, ordenando que fossem levados a bordo seus homens de confiança: o
governador Herculano Bandeira de Melo, o deputado Estácio Coimbra, pre-
sidente da Câmara Estadual, e seu filho Chiquinho. Este conseguiu infiltrar
Chateaubriand na pequena delegação, argumentando com o pai que o jovem
se tornara um aliado fiel do rosismo e "um dos jornalistas pernambucanos
mais temidos no Rio de Janeiro ". O Diário de Pernambuco anunciou a volta de
seu dono ao país em noticiário que ocupava inteiramente a primeira e a se-
gunda páginas, clichês com a foto de Rosa e Silva e até versos encomenda-
dos às pressas a um poeta local para saudar seu retorno a Pernambuco. A ex-
citação da cidade, que já fervilhava com o acontecimento, aumentou ainda
mais quando à noitinha um pequeno escaler do transatlântico encostou no
cais e um marujo do navio saiu para recolher pijamas nas casas dos novos
passageiros, um sinal evidente de que os quatro iam dormir a bordo. Duran-
te três dias a vida de Recife girou em torno do dinossauro de metal que
boiava na barra e da interminável reunião que, dentro dele, se desenrolava
secretamente nos três camarotes de Rosa e Silva. No dia 2 de setembro o por-
to se encheu de curiosos para esperar o barquinho que trazia todos para a
cidade, enquanto o Amazon ligava os motores e zarpava novamente. Para es-
panto geral, na pequena embarcação estavam apenas Chiquinho, o governa-
dor Herculano de Melo, Estácio Coimbra e Chateaubriand: Rosa e Silva se-
guira no navio para desembarcar apenas na escala seguinte, em Maceió, e
retornar por terra a Recife.
Só três dias depois, em 5 de setembro, ardendo de curiosidade, é que os
pernambucanos tomaram conhecimento do primeiro fruto da conspiração
no Amazon: o governador Herculano Bandeira de Melo renunciou ao cargo
alegando razões de saúde. Mas isso era apenas o começo. Seu sucessor cons-
titucional, o presidente do Senado Estadual, Antônio Pernambuco, repetiu o
gesto, renunciando por idênticas "razões de saúde". Declarado vago, o car-
go passou a ser ocupado pelo deputado Estácio Coimbra, presidente da Câ-
mara Estadual. Estava posta em prática a tática concebida por Rosa e Silva
para tentar derrotar Dantas Barreto. Assustado com as notícias da enorme
repercussão da candidatura do general entre a população, o conselheiro te-
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FERNANDO MORAIS
mia que nos três meses que os separavam das eleições (marcadas para o dia
7 de dezembro) o nome do general pudesse crescer muito e que ele acabasse
se elegendo. Para encurtar o prazo, ordenou as duas renúncias. Com a va-
cância do cargo de governador, as eleições tinham de ser convocadas para
dali a sessenta dias. Toda a operação fora montada para roubar a Dantas Bar-
reto trinta dias de uma campanha que já começava a arrebatar o estado. As
renúncias e a convocação das eleições para 5 de novembro, porém, não cau-
saram tanto impacto quanto a decisão mais explosiva tomada no navio: para
disputar com Dantas Barreto, Rosa e Silva decidira dispensar intermediários
e sair ele próprio candidato a governador de Pernambuco.
A campanha se desenrolou sob enorme emoção. Carregando a bandei-
ra da luta contra a oligarquia rosista, o Partido Republicano Conservador
conseguiu, apesar do nome, transformar o general num símbolo das reivin-
dicações dos pobres, em oposição à elite chique que Rosa e Silva encarnava.
No dia 5 de novembro de 1911 as eleições transcorreram com os partidários
de Dantas acusando os rosistas de corrupção, fraude e violência em todo o
estado. Dois dias depois, Chateaubriand preparava uma edição especial de
doze páginas do Diário de Pernambuco para festejar o 86ó aniversário do jor-
nal - o mais antigo da América Latina - e proclamar a vitória de seu pro-
prietário: Rosa e Silva fora eleito governador com 21613 votos, contra 19 385
dados a Dantas Barreto. Na noite anterior, quando circulou pela cidade a no-
tícia de que o jornal iria anunciar a vitória de Rosa e Silva, uma pequena
multidão se postou diante do prédio, ameaçadora. Quando finalmente a edi-
ção foi às ruas, na manhã do dia 7, o número de pessoas tinha aumentado
muito. Os populares ameaçavam incendiar o prédio, com os jornalistas lá
dentro, se o jornal continuasse a ser distribuído. Convocada por Rosa e Sil-
va, a milícia estadual postou trinta soldados armados de carabinas nas jane-
las do edifício, conseguindo intimidar os manifestantes. Grupos armados de
paus, pedras e revólveres, no entanto, seguiam os entregadores, seqüestra-
vam os pacotes de jornais e organizavam fogueiras por toda a cidade. A con-
flagração começava.
Dantas Barreto recusava-se a aceitar os resultados da eleição, alegando
que o governo fraudara o pleito em todo o estado. Como exemplo, os dan-
tistas denunciavam que na cidade de Triunfo o descaramento tinha sido tan-
to que a oposição só conseguira obter um solitário voto. O Diário de Pernam-
buco se transformara em símbolo do rosismo e era para lá que a malta se
dirigia, vinda de todos os cantos. Aterrorizada, a direção suspendeu a distri-
buição do jornal, que ficou mais dois dias sem circular. No terceiro dia Cha-
teaubriand decidiu que o jornal tinha de voltar às ruas. Mesmo sendo, de
longe, o mais jovem de toda aquela gente - ele mal acabara de completar
dezenove anos -, parecia ser o mais corajoso de todos. Rugia pela redação
semi-abandonada pelos funcionários assustados:
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
- Fechem o partido, retirem a candidatura, resistam, façam o que qui-
serem, mas um jornal não pode ficar sem circular. Isto é uma covardia. Nós
vamos nos cobrir eternamente de vergonha se os leitores ficarem mais um
dia sem ler o Diário.
Conseguiu convencer o dono, seu filho Chiquinho e os demais dirigen-
tes políticos e acabou rodando uma edição magra, de apenas quatro páginas.
Segundo ele, o tamanho não importava. Algum jornal tinha de sair daquelas
oficinas e ser distribuído. Quando os carregadores, na manhã do dia 10, co-
meçaram a sair às ruas, os primeiros tiros foram disparados do meio da mul-
tidão contra as paredes do edifício. Os praças postados nas janelas respon-
deram ao fogo atirando para o alto, mas o povo não recuava. A poucos
metros tropas do Exército assistiam a tudo impassíveis, dando o primeiro si-
nal de que o presidente da República talvez estivesse com Dantas. Quando
a tensão diminuiu, a tropa federal ocupou o prédio, retirando de lá os pra-
ças da Polícia Militar que o guardavam. Da rua, o povo aplaudiu quando os
oficiais obrigaram a deixar o edifício, em fila indiana e de mãos postas à ca-
beça, 29 cangaceiros armados, metidos em gibões de couro e com talabartes
de cartuchos cruzados no peito, que tinham sido trazidos do interior por
partidários de Rosa e Silva. A ação dos soldados do Exército animou ainda
mais os opositores de Rosa e Silva: para eles, o gesto era um sinal claro de
que o marechal Hermes da Fonseca tinha tomado partido a favor de seu ex-
ministro da Guerra.
O Diário ficou mais duas semanas sem circular. Com medo de serem lin-
chados pelo povo, os três diretores - Chiquinho Rosa e Silva, Artur Albu-
querque e Ulisses Costa - decidiram não sair mais de casa e entregaram a
direção do jornal a Chateaubriand. Convencido do perigo que significava
deixar o prédio altas horas da noite, ele buscou no porão a velha cama de um
vigia e colocou-a na redação, onde passou a dormir. Comandando o peque-
no grupo que decidiu resistir, andava permanentemente com uma pistola
Mauser calibre 38 presa à cintura. No dia 24, imaginando que o clima de ter-
ror pudesse estar chegando ao fim, Chateaubriand tirou mais uma edição do
Diário. Na verdade era apenas uma reprodução do jornal que o povo impe-
dira de circular no dia 10, trazendo como única novidade um editorial que
ele escrevera, intitulado "Vitória digna". Insistindo na tese de que as urnas
já haviam decidido o pleito e que agora restava apenas cumprir a liturgia
exigida pela lei e fazer o Congresso Estadual referendar a vitória de Rosa e
Silva, o artigo estimulava os rosistas a resistir: "O general Dantas Barreto de-
clara que, se o Congresso não respeitar a vontade do povo, o povo fará o seu
reconhecimento. O veredicto do Congresso terá que ser respeitado, e se con-
tra ele insurgir-se o caudilhismo anarquizador, seremos nós que aconselha-
remos as vítimas desse grande crime a correrem às armas pela defesa da li-
berdade e da autonomia de Pernambuco ". O editorial nem chegou a ser lido:
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FERNANDO MORAIS
antes de chegar às mãos dos leitores, toda a edição foi queimada nas ruas por
populares. Inconformado, ele mandou rodar o mesmo clichê no dia seguin-
te, e de novo pilhas de jornais foram transformadas em fogueiras por toda a
cidade.
Com o agravamento cada vez maior da situação, ficava claro que as tro-
pas do Exército, comandadas pelo general Carlos Pinto, amigo de Dantas, es-
tavam estimulando o povo a derrubar o governo estadual e dar posse ao
candidato derrotado nas urnas. O chefe da guarnição federal já não escondia
de ninguém que estava decidido a impedir que o Congresso referendasse o
nome de Rosa e Silva. Quem deveria ser empossado imediatamente era seu
camarada de armas. De mera escaramuça entre facções políticas, a situação
adquiriu contornos de uma guerra, com o número de mortos em Recife e no
interior aumentando a cada dia. De vassoura em punho - os partidários de
Dantas eram conhecidos como "vassouristas" -, hordas de populares rola-
vam pelas cidades, ameaçadoras, exigindo que o Congresso reconhecesse o
general como governador eleito. Uma manhã Chateaubriand foi chamado ao
palácio por Estácio Coimbra. Quando entrava no gabinete do governador, o
prédio foi sacudido por pesado bombardeio - eram as tropas do general
Pinto, forçando Coimbra a abandonar o governo. Mesmo em inferioridade
numérica, a modesta guarda palaciana reagia. Com a cabeleira negra assa-
nhada, o governador empunhou um fuzil, entregou outro a Chateaubriand
e ordenou com firmeza que ele abrisse fogo contra o local de onde vinha o
ataque. Cacos dos cristais das janelas, despedaçados pelos tiros, se espalha-
vam pelos tapetes do gabinete. A balaceira durou dez minutos, mas Cha-
teaubriand diria mais tarde que tinha a impressão de que estava ali havia ho-
ras. Coimbra parecia tranqüilo:
- Não se preocupe, Bandeira, que isto é só intimidação. Eu não sairei
daqui.
Quando o fogo terminou, o governador explicou que tinha uma impor-
tante missão política para o jovem: procurar Chiquinho Rosa e Silva em seu
nome e convencê-lo a não embarcar para a Europa naquela noite, como se
comentava pela cidade. Para o governador, a situação não era tão sombria
que justificasse a deserção do filho do candidato eleito:
- Já temos gente no Rio diminuindo a pressão do governo federal so-
bre Pernambuco; e o presidente Hermes acabará aceitando Rosa e Silva
como o eleito. Precisamos que o Congresso Estadual referende logo nosso
candidato, e a presença de Chiquinho é essencial. Não apenas pela falta que
seu voto pode fazer, já que muitos deputados e senadores fugiram, com
medo da multidão. É também uma questão moral, ele é o filho de Rosa e Sil-
va, não pode fugir. Se ele for embora, não fica mais ninguém aqui.
Chateaubriand saiu do palácio e tomou um bonde em direção à casa dos
Rosa e Silva. Por onde passava, via multidões dando vivas a Dantas Barreto.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Tomado de pânico em meio ao fanatismo generalizado - se fosse reconhe-
do como um rosista, o linchamento seria inevitável -, enterrou o chapéu
na cabeça, baixou os olhos e meteu-se entre a turba. Atravessar uma cidade
tomada pelos inimigos, no entanto, revelou-se um risco desnecessário. Chi-
quinho Rosa e Silva não só estava decidido a partir como pediu a Chateau-
briand que transmitisse a Coimbra um conselho - o governador também
deveria abandonar o poder e a cidade imediatamente:
- A situação é irremediável, as tropas federais vão empossar Dantas de
qualquer maneira. Não temos como ou com quem resistir. Não temos polí-
cia, não temos povo e acho que já não temos nem deputados nem senadores.
Diga a Coimbra que embarco hoje à noite. Está tudo perdido.
Na volta a situação tornara-se ainda mais tensa. Havia focos de incên-
dios em vários pontos da cidade e multidões mais numerosas nas ruas.
Quando chegou perto do Palácio do Campo das Princesas, a segunda ofen-
siva das tropas federais estava rebentando. Preocupado com a sorte de Está-
cio Coimbra, Chateaubriand aproximou-se de um popular armado de cara-
bina que ajudava os soldados na fuzilaria contra o palácio. Fingindo ser
partidário de Dantas, perguntou ao livre-atirador se "o filho da puta"
continuava lá dentro. O homem disse que não, que Coimbra havia fugido
para a Chefatura Estadual de Polícia, de onde tentava resistir. O fogo agora
era para forçar a guarda palaciana a se render. Chateaubriand conseguiu se
esgueirar pelos muros da cidade até o local onde Coimbra se escondera e, ao
transmitir-lhe o resultado da visita a Chiquinho, percebeu no rosto do gover-
nador os sinais da derrota. Sem os Rosa e Silva, a resistência perdia o sentido.
Naquela mesma noite Estácio Coimbra tomava o veleiro Aquidabã em
direção a Maceió. E, antes mesmo que Chiquinho chegasse a Paris, sua pro-
fecia se concretizava: dos 45 membros do Congresso Estadual, trinta fugi-
ram. Os quinze restantes não hesitaram em referendar o nome de Dantas
Barreto como governador eleito. Empossado no dia 19 de dezembro, o gene-
ral decidiu acertar contas com o que restava do rosismo em Pernambuco. A
violência contra a imprensa era grande, mas, mesmo sabendo que dirigia um
jornal identificado como uma das últimas marcas de Rosa e Silva no estado,
Chateaubriand não entregou os pontos. No dia 18 de janeiro de 1912 ele pôs
de novo o Diário nas ruas, agora denunciando o regime de terror que a polí-
cia estadual impusera aos aliados de Rosa e Silva. O jornal era permanente-
mente guardado por policiais à paisana que revistavam quem entrava e saía.
Anunciantes e até cobradores que aparecessem por lá eram ameaçados pela
polícia na porta do prédio.
No começo de fevereiro Chiquinho Rosa e Silva retornou da Europa e
reassumiu a direção do Diário. Duas semanas depois de sua chegada, um jor-
nalista foi espancado quando entrava no jornal, e no dia 23 de fevereiro uma
tropa armada invadiu a redação para levar presos Chiquinho e Chateau-
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FERNANDO MORAIS
briand. Os dois passaram três dias metidos dentro de uma caixa-d'água sub-
terrânea cheia de baratas, com os pés atolados no lodo até o joelho. Sem luz,
sem alimentação e sem poder sequer sentar, acabaram sendo libertados da
mesma maneira como tinham sido presos: sem nenhuma explicação. Os dois
saíram da cadeia direto para a redação, onde escreveram longa reportagem
contando em detalhes a violência de que tinham sido vítimas. Quando a edi-
ção estava pronta para ser impressa, o jornal foi invadido por um grupo de
paisanos armados de barras de ferro, destruindo tudo o que encontravam
pela frente. Móveis, máquinas, impressoras, linotipos, nada restou intacto. O
Diário submergiu naquela noite para só reaparecer um ano depois, vendido
a novos donos. O inacreditável inquérito poliçial instaurado para apurar o
empastelamento conseguiu o prodígio de provar que o atentado tinha sido
praticado pela própria direção do jornal. Na conclusão final, o delegado de-
clarou que o Diário havia recorrido "à suprema coragem dos vencidos: o
suicídio". Apontou como mandante da "autodestruição" seu proprietário,
Francisco de Assis Rosa e Silva, e como um dos autores o repórter Francisco
de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, auxiliado por seu irmão Urbano
Ganot Chateaubriand.
Sem o emprego no Diário e respondendo a dois processos criminais mo-
vidos por Dantas Barreto, Chateaubriand levou pouco tempo para voltar à
rotina de antes. O salário que recebia no Jornal Pequeno era insuficiente para
mantê-lo e ajudar a criar os irmãos, e ele conseguiu um emprego de cinqüen-
ta mil-réis mensais como correspondente em Recife de um certo O Jornal, de
São Luís do Maranhão, e mais alguns trocados enviando noticiário irregular-
mente para o jornal A Noite, do Rio. Contrafeito, teve de voltar a dar suas
aulas de lógica e psicologia na Associação Cristã de Moços. Para ele, nada
era tão aborrecido e irritante como responder às perguntas dos ignorantes
alunos da ACM. As horas vagas entre o trabalho e a Faculdade de Direito
eram consumidas na esgrima e em sua nova emoção, as brigas de galos. Seu
trabalho como jornalista o aproximara de Arthur, marido de Ana Louise
Lundgren, que era um dos maiores galistas do Brasil, além de criador de ca-
valos puros-sangues. Meses antes Lundgren havia importado da Inglaterra
por 10 mil libras esterlinas o reprodutor Péricles, vencedor do Derby britâ-
nico. Chateaubriand recebeu de presente do industrial dois galos machos de
excelente pedigree - um bretão e um espanhol - e uma fêmea índia, para ti-
rar crias. Aos sábados, se não estivesse nadando ou empunhando um flore-
te no quartel de Cinco Pontas, podia ser visto nas rodas de apostas das ri-
nhas de Recife tentando melhorar o orçamento familiar à custa do sangue
das aves. Com o retorno da tranqüilidade à vida política do estado, Estácio
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Coimbra voltara a viver em Recife e sonhava abrir um novo jornal "para
reacender a chama civilista", mas eram apenas planos.
Durante quase dois anos a atividade principal de Chateaubriand residiu
apenas no Jornal Pequeno. Sabendo que ele passava dificuldades, o diretor
Tomé Gibson ofereceu-lhe setenta mil-réis extras pela cobertura da tempora-
da lírica de 1913. O jornalista achou graça nas palavras do chefe, por saber
que era exagero chamar de "temporada lírica" uma atividade bissexta, que
acontecia em Recife muito irregularmente. Parada obrigatória dos grandes
transatlânticos internacionais, se um navio transportando uma companhia
estrangeira se visse na emergência de fazer uma escala mais demorada em
Recife, a temporada lírica estava inaugurada. Naquele ano, entretanto, havia
de fato um calendário prévio, e grupos vinham de fora especialmente para se
apresentar na cidade. A familiaridade com os sons do gramofone nos saraus
a que o pai o levava mais as aulas de música a que a mãe o obrigara a assis-
tir eram toda a formação de que dispunha para se meter a ser crítico lírico.
Mas sua estréia ocorreu sem problemas. De fraque, ocupou o camarote alu-
gado pelo jornal no Teatro Santa Isabel para ouvir Clara della Guardia, so-
lista de uma companhia italiana de comédias, interpretar a Gioconda de
D'Annunzio. Quem leu a coluna de Chateaubriand no jornal, no dia seguin-
te, imaginou estar diante de um velho freqüentador das temporadas euro-
péias: "Della Guardia não é uma intérprete à altura de Tina de Lorenzo ou
de Maria Melato", escreveu, "mas há nela tanta distinção, tão fina com-
preensão de seus papéis, ao par de um timbre tão perfeito de voz, que ao sair
do teatro o espectador leva a certeza de haver sentido palpitar uma das sen-
sibilidades femininas mais discretas e gentis". Na apresentação seguinte,
Madame Butterfly, foi tamanho o encanto do jornalista pela intérprete do pa-
pel-título, "la signorina Levy", que a crítica acabou resvalando o ridículo:
"Não se trata aqui de homenagear a beleza singular da senhorita Levy, mas
apenas de reconhecer-lhe o talento invulgar e irrecusável para o canto lírico.
A fina sensibilidade pernambucana exige sua permanência em nossas terras
por mais tempo. Só temos a lamentar que Puccini não esteja vivo e de passa-
gem pelo Recife para encorajá-la a só representá-lo, só Puccini, sempre Puc-
cini". Só depois de encerrada a temporada, já com os setenta mil-réis no bol-
so, é que ele soube que os galanteios à "signorina Levy" poderiam ter-lhe
custado caro. Quem patrocinara a viagem da companhia italiana a Pernam-
buco tinha sido o industrial Delmiro Gouveia - menos pelo amor à ópera do
que por um antigo romance que mantinha desde a Europa com a cantora.
Foi também como repórter do Jornal Pequeno que Chateaubriand pôde
realizar um sonho quase impossível a qualquer outro mortal na época, e que
o conquistaria para sempre: voar. Um ano antes ele já tivera a oportunidade
de entrar numa barquinha de vime e sobrevoar Recife num balão pilotado
pelo português Ferramenta, um maluco que percorria o mundo desafiando
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#
FERNANDO MORAIS
a lei da gravidade. Agora chegava à cidade o francês Lucien Deneau com um
avião de verdade, engenho que o povo só tinha tido a oportunidade de ver
de longe, meses antes, quando passou sobre a capital pernambucana o ita-
liano Gino Sanfelice dirigindo uma máquina inidentificável a distância. Sem
autonomia para grandes aventuras, o avião do francês, um Blériot, não che-
gou à cidade voando, mas prosaicamente amarrado ao convés do paquete
Mucury. A maior distância percorrida até então por algum aparelho voador
tinha sido o trajeto entre Paris e Roma. Chateaubriand foi a bordo ver a
aeronave e, mais do que por suas características técnicas, interessou-se pelo
fato de que a máquina tinha assento duplo, capaz de levar um passageiro
além do condutor. À noite, durante a recepção que o Jockey Club ofereceu
ao visitante, frustrou-se ao saber que tinha chegado tarde no pedido de ca-
rona: Gonçalves Maia, também do Jornal Pequeno, havia cercado Deneau no
hotel e acertara com ele um vôo-reportagem no Blériot. Ao medir com os
olhos a estatura e o peso do piloto francês, Chateaubriand resolveu jogar
sujo e perguntou:
- Qual é a capacidade de carga do seu monoplano?
- No máximo 150 quilos - respondeu o francês.
- Desculpe se sou indiscreto, mas quantos quilos o senhor pesa, mon-
sieur Deneau?
- Cem quilos. Por que tantas perguntas?
- Se o senhor pesa cem quilos, estaremos na iminência de uma tragé-
dia quando seu avião decolar com Gonçalves Maia a bordo. Ele pesa seten-
ta quilos. O voluntário para o vôo encontra-se à sua frente, e pesa apenas 48
quilos. Sou eu: muito prazer.
Não podia haver argumento mais definitivo. A ciumeira que isso gerou
no jornal foi tão grande que se conseguiu uma balança do matadouro muni-
cipal para que todos os repórteres se pesassem, teste que só fez consolidar
sua posição - ele era mesmo o mais raquítico de toda a redação. Nas três se-
manas que antecederam o vôo ele dedicou-se apenas ao Blériot e a seu pilo-
to. A cada quatro, cinco dias, saía uma reportagem sobre outro aspecto
da novidade, já devidamente desembarcada e estacionada na raia do hipó-
dromo, de onde decolaria. Chateaubriand descreveu as pesquisas que ti-
nham levado o brasileiro Alberto Santos Dumont, seis anos antes, a se trans-
formar no primeiro ser humano a levantar do chão um aparelho mais
pesado do que o ar, relatou aos leitores os raids organizados na Europa nos
últimos anos, os acidentes. Na última reportagem da série, explicou em de-
talhes o que era o Blériot - um motor de cinqüenta cavalos e sete cilindros
que levantava uma armação de cedro e alumínio coberta por um encerado
de linho betuminoso, pesando ao todo quatrocentos quilos. Com dois passa-
geiros a bordo - pesando ambos, no máximo,150 quilos, ele sublinhara -,
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#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
a Blériot podia desenvolver uma velocidade de até cem quilômetros por
hora.
Todas as noites ele ia para o hall do hotel desfrutar, junto com Deneau,
a glória de ser o primeiro pernambucano - não seria o segundo brasileiro?,
alguém indagou - que experimentaria, como dissera num dos artigos, "a
empolgância de uma perspectiva toda nova, absolutamente desconhecida".
Até que afinal chegou o dia 10 de junho. Para o povo de Recife, ele era a pes-
soa mais importante, não o francês que dali a alguns dias embarcaria sua ge-
ringonça num navio e nunca mais apareceria por lá. Apanhado em casa de
manhã por Deneau, assustou-se com a chuva que caía sobre a cidade, mas o
francês o tranqüilizou: o avião decolaria assim mesmo. No meio das milha-
res de pessoas que se aglomeravam no Jockey, deu-se ao luxo de passar di-
reto pelo governador Dantas Barreto, ignorando a mão amistosa que o gene-
ral lhe estendia. A reação das pessoas variava à medida que ele caminhava
com Deneau em direção ao aparelho. Um soldado agarrou-o pelo braço e o
exibiu para os circunstantes, gritando:
- Aqui está! É este o menino que vai subir!
Uma mulher arrastando uma penca de filhos decepcionou-se:
- Mas é esse moleque chocho, mirrado, franzino que vai voar? Pensei
que fosse um homem...
Uma linda moça, alta, de pele clara, aproximou-se dele, segurou-lhe o
pulso esquerdo com uma das mãos e com a outra amarrou nele uma meda-
lhinha de ouro, com a imagem de uma santa. Com um sorriso, desejou-lhe
boa viagem:
- Não tenha medo, ela vai protegê-lo.
O vôo foi curto, mas emocionante. Saíram do prado e tomaram a dire-
ção do bairro de Afogados, depois voltaram e acompanharam o leito do rio
Capibaribe até o Brum. Ao passar sobre o centro da cidade, o piloto meteu a
mão dentro de um alforje que trazia sob o banco e atirou para cima centenas
de cartões-postais contendo sua foto e trazendo no verso a inscrição: "Souve-
nir de mon passage à Pernambuco. M. Deneau". Retornaram para Santo Amaro
e tomaram o rumo da Estrada de Ferro de Olinda, onde deveriam pousar.
Como havia gente demais na esplanada destinada ao pouso, o francês,
preocupado, gritou para Chateaubriand que se descessem ali na certa mata-
riam muita gente. O avião fez um vôo rasante, mas o povo não arredava pé
do lugar. Quando faltava pouco para tocar o chão, subiu de novo. De Olin-
da o Blériot tocou rumo a Recife. A intenção de Deneau era pousar no pátio
da Faculdade de Direito, mas lá outra multidão impedia a aterrissagem. De-
pois de algumas voltas sobre a cidade, acabaram pousando ali mesmo-
com grande risco para o piloto e seu passageiro e para os curiosos. Para evi-
tar que alguém fosse atropelado, Deneau fez o avião ziguezaguear sobre a
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FERNANDO MORAIS
pista, o que acabou jogando-o contra um barranco, onde por fim parou com
uma das asas arrebentadas.
No dia seguinte o Jornal Pequeno publicaria duas reportagens. Uma, me-
nor, era assinada por Gonçalves Maia, o que perdera o lugar no avião, que
começava se lamentando "por pesar 68 quilos, em vez dos 48 do sr. Cha-
teaubriand, desta folha". Em seu artigo de meia página, intitulado "A minha
impressão de um vôo de aeroplano", Chateaubriand parecia ter retornado
de outro planeta. Feita na primeira pessoa, a reportagem revelava a emoção
de ver Recife do alto: "Até a preparação para a aterrissagem, eu não sentira
nada. A contemplação do panorama da cidade me absorvera por tal forma a
atenção que eu não cogitara se tinha nervos para me tocar de outras emo-
ções que não esta, de uma esplêndida beleza. A atitude é de um embeveci-
mento religioso, não da cidade com suas pontes, mas diante do oceano ru-
moroso quebrando-se nos arrecifes, em espumas lúcidas, e sobretudo dos
arrabaldes, enchendo de reminiscências antigas e de uma poesia bíblica nos-
sos olhos admirados ". O único momento em que o pânico ameaçou a viagem
foi quando o avião caiu cerca de duzentos metros, "como num precipício",
para preparar o pouso. As mãos de Chateaubriand se crisparam instintiva-
mente, o aparelho e os dois passageiros pareciam precipitar-se irremediavel-
mente para o chão. Ele gritou, mas percebeu que o ruído do motor e o ven-
to forte produzido pela hélice impediam que Deneau ouvisse qualquer som
vindo do banco traseiro. O medo só passou quando o avião estabilizou de
novo para aterrissar. O susto contribuiu para que ele terminasse seu artigo
com emoção indescritível: "Eu não saberia exprimir a sensação que infeliz-
mente não posso pormenorizar aqui, tanto ela é forte, empolgante e violen-
ta. Espero experimentar tal emoção ainda outra vez na vida" - um fecho
premonitório para alguém que, décadas depois, viria a ser o civil brasileiro
com o maior número de horas voadas em toda a história da aviação. No ban-
quete de despedida oferecido a Deneau, ele seria ainda mais enfático. Trans-
formado no centro das atenções dos convidados, gesticulava e anunciava em
voz alta: "Sou outro homem depois desse vôo! Uma modesta máquina me
fez transcender mais que anos e anos de estudo de filosofia e da alma huma-
na. O dia 10 de junho de 1913 marca a grande mudança na minha vida!".
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A primeira grande mudança na sua vida só começaria a acontecer, na
verdade, dois anos depois - e nada teria a ver com aviões. Caminhando pe-
los corredores da Faculdade de Direito - que ele havia deixado vários me-
ses antes, ao terminar o curso -, Chateaubriand viu um pequeno edital que
tinha sido pregado no quadro de avisos no dia anterior: "Termo de abertu-
ra. Ao 1º de maio de 1915, nesta secretaria da Faculdade de Direito de Reci-
fe, foram abertas as inscrições para o concurso de professor de filosofia do
direito e direito romano, de acordo com o disposto no artigo número 43 do
decreto nº 11530. O diretor ". Para ele, o anúncio do concurso coincidia com
um período de absoluta descrença e enorme falta de apetite pelo jornalismo.
Depois da escaramuça com Dantas Barreto, a única experiência gratificante
que vivera na profissão tinha sido a breve passagem pelo Estado de Pernam-
buco. O jornal fora criado por Rosa e Silva e Estácio Coimbra em 1913 para
reorganizar a oposição a Dantas e juntar os cacos do Partido Republicano de
Pernambuco, escorraçado da política pernambucana pelo novo governo.
Para fazê-lo foram chamados os mais ilustres perseguidos de 1911. A valen-
tia com que Chateaubriand se portara na batalha que se seguiu à derrota de
Rosa e Silva seria premiada com um convite para acumular os dois postos
mais importantes do Estado, e ele foi nomeado redator-chefe e secretário de
redação.
Em sua curta passagem pelo jornal ele revelou talento e firmeza, mesmo
quando isso significava ter de discutir diariamente com os patrões para con-
vencê-los a publicar ou cortar determinados temas. Foi assim que Chateau-
briand transformou o Estado em instrumento de propaganda da luta armada
que, no Ceará, o padre Cícero Romão Batista liderava contra o governo mi-
litarista local. Padre Cícero - ou "Padim Ciço", como o tratavam os milha-
res de beatos armados que o seguiam - acabaria depondo o coronel que go-
vernava o Ceará, assumindo provisoriamente o poder estadual. A oposição
intransigente que fazia nas páginas do jornal ao popularíssimo governo de
Dantas Barreto custou a Chateaubriand mais um "processo de responsabili-
dade por crime de imprensa", movido contra ele pelo general, do qual seria
absolvido no Superior Tribunal de Justiça.
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FERNANDO MORAIS
Foi como diretor do Estado que ele conheceu o quaker norte-americano
Percival Farquhar, dono da Rio de Janeiro Light & Power, da Companhia Te-
lefônica Brasileira, da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, das ferro-
vias Mogiana e Paulista, em São Paulo, da Port of Pará - proprietária do
porto de Belém do Pará - e da Amazon Development Land Colonization
Co. Assim como acontecia com suas ferrovias construídas na Rússia czaris-
ta, suas minas de carvão na Europa Central e seus engenhos de açúcar em
Cuba, Farquhar dirigia as empresas brasileiras de Paris, Nova York ou da
Pensilvânia, onde mantinha a sede de seu império internacional. Do gover-
no brasileiro ele recebera como doação 60 mil quilômetros quadrados de ter-
ras para colonização, área que décadas depois viria a constituir o estado do
Amapá. Chateaubriand foi encarregado de entrevistar o magnata a bordo do
Amazon, no porto de Recife, quando o milionário tinha acabado de realizar
sua mais ousada epopéia tropical: a construção, no meio da selva amazôni-
ca, da ferrovia Madeira-Mamoré. No ano anterior, os portuários de Belém
haviam organizado uma paralisação para protestar contra o surto de febre
amarela que eclodiu na cidade, e Farquhar contratou o melhor: mandou cha-
mar o cientista Osvaldo Cruz, que em 1906 erradicara a mesma peste no Rio
de Janeiro, para sanear Belém e combater os focos de malária surgidos entre
os trabalhadores da Madeira-Mamoré. Defensor da internacionalização da
economia brasileira - o que logo transformaria Chateaubriand em seu alia-
do incondicional -, Farquhar acreditava que nenhum país poderia se de-
senvolver sem bons hotéis e cozinheiros refinados. Como o Brasil do come-
ço do século não dispunha de nenhuma das duas qualidades, ele próprio
tomou a iniciativa de equipá-lo. Construiu em São Paulo a elegante Rotisse-
rie Sportsman e o Hotel Guarujá, no litoral paulista, e importou da cozinha
do Elysée Palace Hotel, de Paris, o chef Henri Gallon. Quando os dois se co-
nheceram, o americano tinha acabado de comprar o terreno do antigo Con-
vento da Ajuda, no Rio de Janeiro, onde pretendia construir um hotel "capaz
de deixar o Waldorf Astoria parecido com uma tapera amazônica". Além de
se transformar, poucos anos depois, no principal advogado dos interesses
brasileiros da holding Brazil Railway, Chateaubriand acabaria roubando de
Farquhar o chef Gallon, que seria seu mordomo até o fim da vida.
A passagem pelo Estado de Pernambuco, porém, não lhe traria apenas
bons amigos. Quando Rui Barbosa, chefe inconteste do civilismo, começou a
aproximar-se do general Dantas Barreto, Chateaubriand defendeu junto a
Rosa e Silva e Estácio Coimbra o rompimento público do jornal com o
"Águia de Haia". As humilhações impostas por Dantas ao Diário de Pernam-
buco e a cada um deles, individualmente, ainda estavam muito frescas para
serem esquecidas apenas porque Rui Barbosa decidira fazer uma aliança po-
lítica. As discussões dentro do jornal eram intermináveis, pois com exceção
de Chateaubriand todos estavam de acordo em que seria uma temeridade
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
brigar com "o homem que encarna a cabeça do sistema solar da inteligência
brasileira", como advertira Rosa e Silva. Chateaubriand fincou pé e acabou
convencendo os patrões. Encarregado de escrever o artigo de fundo que
anunciava a ruptura, precisou se conter para manter o alto nível, e terminou
reconhecendo que a decisão tinha "um sentido de amargor e melancolia pelo
afastamento da companhia de um guia providencial como Rui Barbosa". O
processo de rompimento fora extremamente desgastante para ele, que saiu
do episódio convencido de que para Rosa e Silva e Coimbra o jornal era ape-
nas um instrumento para intervir na política local, e nada mais. Apesar de
ter sobrevivido no posto após a luta contra Rui Barbosa, Chateaubriand, iro-
nicamente, deixaria o jornal meses depois motivado por uma insignificante
crise interna. Ele vetara a publicação de uma carta do jornalista Martinho
Garcez em defesa de seu sogro, o ex-governador Segismundo Antônio Gon-
çalves, que tinha sido atacado pelo jornal. Os donos do Estado determinaram
que a carta deveria ser publicada. Aborrecido, Chateaubriand simplesmente
limpou as gavetas de sua mesa e demitiu-se do jornal.
Nos meses seguintes, sua única ligação com o jornalismo eram os arti-
gos que vez por outra publicava no Jornal Pequeno. Graças à influência de
Al-
berto Groschke, casado com uma Lundgren, associou-se a um escritório de
advocacia local, ao qual passou a dedicar-se em tempo integral. Foi assim
que o inesperado concurso aberto pela Faculdade de Direito despertou-lhe a
tentação de abandonar de vez as redações para fazer carreira como advoga-
do e professor. Como as inscrições se encerrariam dali a três meses, no final
de agosto de 1915, e as provas se realizariam em setembro, ele teve tempo
suficiente para se preparar. Nesse meio tempo, começou a namorar Maria da
Penha Lins de Barros Guimarães, a Poli, conhecida como uma das moças
mais bonitas e elegantes de Recife. Amiga de jovens intelectuais como Ma-
nuel Bandeira, José Lins do Rego e Gilberto Freyre, Poli se orgulhava de
"nunca ter alisado um banco de escola". Falava francês e inglês com fluên-
cia, conhecia os clássicos da literatura, mas tinha sido educada por precep-
tores, sem nunca ter sido obrigada ao desconforto de aprender nada coleti-
vamente, em uma sala de aula comum. Magra, alta e de pele singularmente
alva para uma região tórrida como o Nordeste, ela já havia despertado arre-
batadoras paixões em rapazes de Recife. A lenda contava que o principal ci-
nema da cidade, o Politeama, tinha sido batizado assim como uma forma
pouco sutil encontrada pelo dono para cortejá-la, já que o nome poderia tam-
bém ser lido como "Poli te ama". Sua entrada nos bailes do Clube Interna-
cional, aos sábados, era aguardada por um numeroso "sereno" - o grupo
de populares que se postava à entrada do clube para admirar a distância as
mulheres da alta sociedade. Apesar de tantos encantos, Poli chegara aos 29
anos sem ter se casado, fato que, para os padrões de uma época em que as
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FERNANDO MORAIS
moças começavam a procurar marido aos catorze, a transformava inevita-
velmente em solteirona.
Quando Chateaubriand, inscrito para o concurso, começou a freqüentar
todas as noites o casarão dos Guimarães, na rua da União, o boato correu a
cidade: ele estava namorando Poli com segundas intenções. A intriga dizia
que ele só se animara a desencalhar uma moça mais velha - ela tinha seis
anos mais que ele - para se aproximar do pai dela, diretor da Faculdade de
Direito, e do irmão, professor Genaro Guimarães, que, além de membro da
Congregação da escola, integrava a banca examinadora do concurso. Ao sa-
ber da futrica, Chateaubriand reagiu indignado e anunciou que os dois esta-
vam noivos:
- Já pedi a mão de Poli ao professor Joaquim de Barros Guimarães e o
casamento está marcado para dezembro deste ano, independentemente do
resultado do concurso. Quem está difundindo essas calúnias contra mim é
um bisbilhoteiro que atende pelo nome de general Dantas Barreto. O único
sentimento que me move é o amor a Poli.
Ninguém jamais saberia se o amor era o único sentimento que movia
Chateaubriand. Mas, se a intimidade com a família de Poli lhe dava alguma
esperança de passar no concurso sem dificuldades, um inesperado obstácu-
lo veio perturbar seus planos de tornar-se catedrático de direito romano. No
último dia das inscrições um nome bem conhecido seu apareceu pregado no
quadro de avisos da faculdade como candidato à mesma cadeira: Joaquim
Pimenta. Cearense do sertão de Inhamuns, seis anos mais velho que Cha-
teaubriand, ateu, marxista e anticlerical, Pimenta conseguia conjugar as qua-
lidades de refinado filósofo com uma ativa militância no nascente movimen-
to operário pernambucano. Sua sombra aparecia invariavelmente por trás
das agitações grevistas locais, fossem elas de maritimos, cortadores de cana,
motorneiros de bondes ou empregados da britânica Pernambuco Tramway.
Chateaubriand já havia se defrontado com ele quatro anos antes, na campa-
nha que levou Dantas Barreto ao governo do estado. Promotor público em
Recife, Pimenta renunciou ao cargo como protesto contra a corrupção eleito-
ral atribuída a Rosa e Silva e aderiu por inteiro à luta pela posse de Dantas.
Ao assumir o governo, o general nomeou-o secretário da Instrução Pública
do estado. Além do preparo intelectual, Joaquim Pimenta contava com uma
vantagem sobre Chateaubriand: era livre-docente em direito, circunstância
que funcionaria como uma espécie de voto de Minerva, na remotíssima hi-
pótese de o concurso terminar empatado.
As suspeitas de que Chateaubriand seria favorecido por seus amigos da
banca examinadora, somadas ao fato de que dois inimigos políticos iriam se
defrontar na disputa da cátedra, atraíram para o concurso um inusitado in-
teresse da população. O que estava em questão, diziam os jornais, não era a
cadeira de direito romano, mas o poder de Dantas Barreto novamente fusti-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
gado por Rosa e Silva. Terminadas as provas escritas, os dois foram subme-
tidos separadamente ao exame oral. Sorteados os pontos, Chateaubriand
dissertou sobre a tese "O interdicto uti possidetis" e Pimenta sobre "Nomolo-
gia jurídica e seus sistemas: arbitrarismo, naturalismo físico e fenomenis-
mo". Ninguem acreditou no que lia, semanas depois, quando a Faculdade
de Direito fez publicar o resultado do concurso: "Verificado que cada candi-
dato obteve seis votos, foi pelo senhor diretor Sofrônio Portela desempatada
a votação em favor do sr. Francisco de Assis Chateaubriand". Se o empate já
causaria espanto, a ousadia da banca ao decidir em favor de Chateaubriand
se transformou em notícia de primeira página de todos os jornais do dia se-
guinte - a maioria, naturalmente, contrária ao resultado do concurso. Se-
gundo a imprensa, Sofrônio Portela dera inicialmente seu voto a Pimenta,
como determinava a lei, e chegara a mandar lavrar a ata com o resultado. Só
depois, "cedendo a sugestões estranhas", é que resolvera desempatar em fa-
vor de Chateaubriand. Os estudantes de direito reuniram-se em ruidosa as-
sembléia na faculdade e enviaram um telegrama de protesto ao presidente
da República, Venceslau Brás: "Maioria corpo discente Faculdade Direito
protesta esbulho candidato Joaquim Pimenta, livre-docente, merecedor lu-
gar concurso. Resultado político deturpa justiça dentro próprio templo do
direito".
Ouvido pelos jornais, Pimenta disse apenas que "promoveria os meios
legais" para reaver seus direitos preteridos. Tratado pela imprensa governis-
ta como "frangote explorador do rosismo" e "frou-frou das saias elegantes ",
Chateaubriand era acusado de ter sido classificado "apenas por dedicações
afetivas" - alusões explícitas ao fato de estar de casamento marcado com a
irmã de um de seus examinadores. Ele recusou-se a dar declarações à im-
prensa, alegando que não iria discutir "a decisão de uma corte inatacável
como a Congregação da Faculdade de Direito de Recif". Joaquim Pimenta
recorreu do resultado, exigindo que a lei fosse cumprida e ele nomeado ca-
tedrático de direito romano. Dantas Barreto enviou um telegrama ao presi-
dente da República, subscrito por ele e por Manuel Borba, governador elei-
to que tomaria posse dali a dois meses, dando conta ao chefe da nação de seu
desacordo com a decisão da faculdade de nomear Chateaubriand. Simulta-
neamente ao recurso dirigido à Congregação, Pimenta enviou outro ao mi-
nistro da Justiça, Carlos Maximiliano, autor da reforma que instituíra a exi-
gência da livre-docência para desempate em concursos de cátedra. Ao saber
que engrossava a conspiração para tomar-lhe o lugar conquistado, Chateau-
briand não pensou duas vezes e resolveu bater às portas de quem, em últi-
ma instância, iria decidir a questão: o presidente da República. Consciente
de que sua peregrinação por gabinetes do Rio seria demorada, fez uma cole-
ta de dinheiro entre os amigos ricos de Recife para pagar a passagem e co-
brir as primeiras despesas que tivesse no Distrito Federal. Do comendador
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FERNANDO MORAIS
português José Maria de Andrade, provedor da Santa Casa de Misericórdia,
recebeu, além do auxílio em dinheiro, uma ajuda providencial: uma carta de
apresentação dirigida ao empresário Ernesto Pereira Carneiro, sócio da fir-
ma Mendes & Cia. na propriedade do Jornal do Brasil. Deixou Recife às car-
reiras, mal tendo tempo de se despedir da família na casa da rua da Aurora.
Encheu uma mala de roupas, juntou documentos e, na saída, transferiu ao ir-
mão Oswaldo a responsabilidade de cuidar e alimentar seus bichos de esti-
mação - um casal de ferozes jacamins, aves que o pai trouxera da Amazô-
nia e que ele usava como guardas da casa. Deixou com a mãe um bilhete de
despedida para ser entregue à noiva e partiu.
Ao desembarcar do vapor no Rio de Janeiro, na segunda semana de ou-
tubro de 1915, Chateaubriand teve noção da tempestade que o esperava na
capital. A caminho do hotel, comprou jornais do dia - A Época e a Gazeta de
Noticias - e viu que a disputa pela cátedra era o assunto da imprensa cario-
ca, transformada no "caso Chateaubriand-Pimenta". O recurso de Pimenta
ao ministro, os telegramas de Dantas Barreto e dos estudantes ao presidente
da República, os protestos em Recife contra sua nomeação, estava tudo
transcrito nos diários. O agora deputado federal Gonçalves Maia - o mes-
mo que perdera para ele o lugar no avião de Deneau - dava entrevistas con-
denando o resultado do concurso, que atribuía "à politicagem que invade o
ensino". O primeiro aliado que buscou para montar a contra-ofensiva foi
José Veríssimo. Hipocondríaco incurável, o crítico combinou de se verem na
Farmácia Werneck, na rua da Quitanda, seu ponto predileto para encontros.
Habituado a enfrentar adversários, Veríssimo sugeriu em poucos minutos
a estratégia ideal para derrubar o trabalho disparado de Recife contra Cha-
teaubriand:
- Primeiro você tem que ganhar a imprensa, e isso não será difícil. Mui-
ta gente aqui já conhece seu nome. Depois vamos bater à porta de alguns fi-
gurões que possam levar seu caso ao Palácio do Catete. Sem a simpatia do
presidente da República você morrerá à míngua aqui no Rio.
Rabiscou num pedaço de papel alguns nomes e endereços importantes
e antes de se despedir pegou na prateleira um vidro de remédio e entregou-o
a Chateaubriand:
- Você deve estar com bronquite, está com o peito chiando muito. Leve
esse vidro de xarope Famel e tome uma colherzinha quatro vezes ao dia. É
infalível.
Na manhã seguinte, Veríssimo pegou-o no hotel para uma visita ao con-
de Afonso Celso, a quem pediriam um parecer jurídico sobre o caso, que fa-
riam chegar às mãos do presidente. Ao recebê-los em sua casa, o autor do fa-
moso Por que me ufano do meu pais já tinha notícias da pendenga. Algumas
pessoas de Recife - entre elas Tomé Gibson, do Jornal Pequeno - tinham te-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
legrafado pedindo seu apoio para Chateaubriand. Afonso Celso se dispôs a
redigir o parecer e, apressado, tratou de dispensar os visitantes:
- Posso começar a escrever amanhã mesmo, mas seria importante que
o professor chateaubriand viesse ao Rio para conversarmos pessoalmente.
Foi o próprio interessado quem desfez o equívoco:
- Senhor conde, não há dois Chateaubriand nessa briga, mas um só, e
sou eu mesmo.
Afonso Celso se espantou:
- Você? Mas então foi um pirralho de três arrobas quem saiu em defe-
sa do Veríssimo na polêmica contra Sílvio Romero? Pois então, meu filho,
pode contar comigo. O parecer sai em poucos dias.
Durante um mês Chateaubriand não teve descanso. Pela mão de Verís-
simo, foi sendo levado à presença dos mais notáveis nomes da política e da
inteligência do Rio de Janeiro e de São Paulo. E assim acabou tornando-se
amigo e tendo como seus defensores figurões como o político e escritor pau-
lista Alfredo Pujol, o senador Virgílio de Melo Franco e seu filho Afrânio, o
jurista Pedro Lessa - ministro do Supremo Tribunal que era conhecido
como o "Marshall brasileiro", numa referência ao grande jurista norte-ame-
ricano John Marshall. Na casa de Lessa emocionou-se ao ser apresentado a
seu ídolo Capistrano de Abreu (que, como repórter, conhecera superficial-
mente em Recife) e mal se agüentou nas pernas quando o constitucionalista
cumprimentou-o "pela coragem de haver liderado o rompimento do Partido
Republicano de Pernambuco com Rui Barbosa". Além do apoio oferecido
por Ernesto Pereira Carneiro, conseguiu ressuscitar uma velha amizade per-
nambucana com o jornalista Luís Gomes, pai do jovem cadete Eduardo Go-
mes, para assegurar-se de que no Jornal do Brasil não sairia uma linha que
pudesse prejudicar sua cruzada pela cátedra. Lembrou que anos antes fora
correspondente em Recife de A Noite, do Rio, jornal que agora vinha assu-
mindo discretamente a defesa de Joaquim Pimenta. Decidiu procurar pes-
soalmente o ex-patrão para tentar atraí-lo para sua causa. Irineu Marinho
ouviu pacientemente sua versão do caso até o fim para tranqüilizá-lo:
- Foi muito importante o senhor ter vindo aqui. Estou acompanhando
sua demanda desde o começo e vejo nela a eiva da política local. Estou con-
vencido de que a razão está com o senhor e não mais permitirei a publicação
dos telegramas que temos recebido do Recife em defesa do outro candidato.
Chateaubriand quis saber se era necessário deixar algum documento do
processo na redação, mas Marinho já estava ganho:
- Vá lutar por sua nomeação tranqüilo quanto a este front. Darei ao pe-
lotão de fuzilaria do convés deste vespertino a ordem para cessar fogo con-
tra o senhor.
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FERNANDO MORAIS
Em sua peregrinação pelas mais ilustres casas do Rio, o jovem nordes-
tino estava colocando em prática um projeto deliberado que ele confessara a
alguns amigos:
- Para um moço pobre que chega da roça aqui no Rio, o capital mais
importante que ele tem que levantar são as relações com gente influente. Se
conseguir isso, depois é só colocar essas relações para render juros. Daí em
diante a vida se encarrega da minha sorte.
Ele percebeu que os juros começavam a surgir quando jornalistas pas-
saram a procurá-lo para falar da briga. Nas entrevistas, Chateaubriand tra-
tava da questão com bom humor, insistindo em que a "campanha mofina"
que moviam contra ele não passava de "simples querelle d'allemand, que mais
me tem divertido do que impressionado". A Gazeta de Noticias porém, con-
tinuava publicando todos os dias extensa correspondência vinda de Pernam-
buco em defesa de Pimenta. Vicente Piragibe, que tinha sido preso por Dan-
tas em Recife na refrega de 1912 e que agora era deputado e dono do diário
A Época, abriu as colunas de seu jornal para que Chateaubriand se defendes-
se dos ataques do outro diário. Ele acabou acertando que publicaria um ar-
tigo semanal em A Época enquanto estivesse no Rio, pelo que receberia re-
muneração suficiente para sua manutenção na capital. O primeiro versava
sobre as conseqüências da morte do líder político gaúcho Pinheiro Machado.
Era um trabalho ligeiro, escrito sem maiores preocupações. Mas três dias de-
pois, ao abrir as páginas do paulista O Estado de S. Paúlo, ele quase perdeu a
fala: seu artigo era elogiado por Júlio Mesquita! Para um jovem jornalista re-
cém-chegado da província, um elogio de Mesquita significava o salvo-con-
duto indispensável à entrada no olimpo da imprensa nacional. Tendo como
portador Alfredo Pujol, de quem se tornara amigo, Chateaubriand enviou
uma carta de agradecimento ao diretor do Estado: "Seu artigo faz aos paulis-
tas uma apresentação triunfal deste modesto nortista que lê diariamente
seu jornal desde 1910", escreveu. "Ganhá-lo como padrinho em São Paulo é
uma dessas fortunas extraordinárias, que só uma alma de elite como a sua
poderia propiciar a um jovem e obscuro jornalista provinciano." Poucos dias
depois, soube por Pujol que a carta tivera o condão de transformar Mesqui-
ta em um novo e poderoso aliado na luta pela conquista da cátedra. Para co-
roar a vitória, na semana seguinte outro artigo seu era elogiado na coluna do
escritor e político Félix Pacheco no Jornal do Commercio.
Apesar de tudo, ele ainda estava muito longe de ser uma unanimidade
entre os cariocas. Além da campanha diária na Gazeta, o jornalista e escritor
Paulo Barreto - o João do Rio - massacrava-o em colunas publicadas em
O Pais, na Cazeta de Noticias e no Rio Jornal. Indignado com a injustiça que te-
mia cometer-se contra Joaquim Pimenta, o escritor decretou que só silencia-
ria quando Chateaubriand, derrotado na disputa, deixasse definitivamente
o Rio de Janeiro. Ao saber que João do Rio era conhecido pelos desafetos
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
como "Cascavel", Chateaubriand anunciou que iria "introduzir métodos pa-
raibanos nas polêmicas cariocas". Conseguiu que um amigo lhe trouxesse do
laboratório do Asilo de Alienados de Recife uma cascavel de verdade e en-
viou-a ao jornalista dentro de uma caixa de chapéus, embrulhada para pre-
sente e acompanhada de um amável cartão. Á campanha chegou ao fim, mas
João do Rio jamais saberia que o remetente tomara o cuidado de mandar se-
car as glândulas venenosas da serpente antes de despachá-la à redação do
jornal.
Dois meses depois de seu desembarque no Rio, Chateaubriand enten-
deu que chegara a hora de levar a questão ao presidente da República, antes
que as articulações originárias de Pernambuco pusessem tudo a perder.
Preocupado com a desenvoltura com que ele circulava pelo Rio, Dantas Bar-
reto conseguira mobilizar três membros do governo federal, os ministros
Carlos Maximiliano, da Justiça, e o pernambucano José Bezerra, da Agricul-
tura, e mais o presidente do Conselho Superior do Ensino, Brasílio Macha-
do. A única solução que o governador pernambucano aceitava para o caso
era a anulação pura e simples do concurso pelo presidente, seguida da aber-
tura de um novo edital. Para Dantas, qualquer outra saída seria recebida
como uma derrota política pessoal, com todos os inconvenientes que isso
significaria para o presidente. O governador confidenciara a amigos que
Chateaubriand pagaria agora a humilhação de tê-lo feito "suar três camisas"
ao ler o manifesto de rompimento do PRP com Rui Barbosa, redigido pelo jor-
nalista. Desfrutando de indiscutível popularidade, o general Dantas Barreto
ascendera à condição de político de prestígio nacional. Com a morte do se-
nador Pinheiro Machado, fundador e comandante do Partido Republicano
Conservador, seu nome surgia naturalmente como candidato à sucessão de
Venceslau Brás. Para enfrentá-lo, Chateaubriand sabia que tinha de buscar
socorro junto aos pesos-pesados da capital federal. Arrebanhou seis parece-
res a favor de sua nomeação, assinados pelo jurista Pedro Lessa, pelo escri-
tor Afonso Celso, pelos políticos Afrânio de Melo Franco, Esmeraldino Ban-
deira e Manuel Vilaboim, e por seu conterrâneo mais ilustre, o senador
Epitácio Pessoa. Com a ajuda do deputado Vicente Piragibe, conseguiu que
fosse afinal marcada a audiência com o presidente Venceslau Brás. Na últi-
ma hora ainda ganhou outro forte aliado para sua causa, o almirante Alexan-
drino de Alencar, ministro da Marinha. No dia da audiência, uma vistosa co-
mitiva formada por Pedro Lessa, Afrânio de Melo Franco e Álváro de
Carvalho subiu com ele as escadas do Palácio do Catete.
Venceslau Brás ouviu-o, como o próprio Chateaubriand diria depois,
"com um mutismo de frade de pedra". Teatral, o jornalista gesticulava, dis-
cursava, levantava-se da cadeira, derramando sobre o presidente uma tor-
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FERNANDO MORAIS
rente de argumentos. Falou das perseguições de que tinha sido vítima, dos
atentados, prisões, do terror e da censura a que Dantas submetera o jornal
que ele dirigia em Pernambuco. Do outro lado da mesa, o mineiro de gros-
sos bigodes negros apenas escutava, sem sequer assentir com a cabeça. De
seus acompanhantes, apenas o ministro Pedro Lessa falou:
- Presidente, estou aqui para dar meu testemunho a respeito da limpi-
dez do direito desse rapazola e para matar a intriga e os mexericos que en-
volvem sua pessoa.
Quando o tempo previsto para a audiência se esgotava, Chateaubriand
entregou uma pasta ao presidente da República:
- Aqui estão opiniões sobre este caso, assinadas por seis dos mais ilus-
tres e honrados homens públicos deste país. Junto a elas anexei, para poupar
o tempo de vossa excelência, um memorial de treze linhas que redigi e que
sintetiza as minhas razões.
Na verdade o memorial tinha sido escrito pelo advogado Aníbal Ma-
chado, mas Chateaubriand, ao se levantar da cadeira, insistiu na autoria do
documento:
- Escrevi apenas treze linhas, presidente. O memorial não tem mais
porque tem tudo.
Venceslau Brás só abriu a boca quando os quatro já se preparavam para
sair. Foi solene:
- Deixe comigo os pareceres. Se me convencer de que tem um direito
líquido, nenhuma força será bastante forte para impedir seu provimento na
cadeira de professor da faculdade de Pernambuco. Agirei neste caso como
agiria dom Pedro II.
Alguns dias depois da audiência Chateaubriand foi localizado, tarde da
noite, na redação de A Época e levado às carreiras para a Rotisserie America-
na, onde políticos, jornalistas e juristas o aguardavam para festejar. Um de-
les trazia nas mãos uma cópia manuscrita do telegrama que o presidente da
República enviara naquela tarde ao governador Dantas Barreto e a seu su-
cessor Manuel Borba. Em treze linhas, Venceslau Brás mudava o curso da
vida de Chateaubriand:
Telegrama n 59, de 8 de dezembro de 1915.
General Dantas Barreto e doutor Manuel Borba
Recife
A Lei do Ensino, em seu artigo 48, obriga o Governo a nomear o candidato
que obteve lugar em concurso; o artigo 49 acrescenta que o ministro confirmará
o veredictum da Congregação ou mandará proceder a novo concurso, isto, no
caso de grave irregularidade, que não houve no concurso procedido na faculda-
de daí. A vista, portanto, dos termos expressos na lei, o Governo não tem a fa-
culdade de escolher outro candidato que não seja o indicado pela Congregação,
e, por isso, vai ser feita a nomeação do doutor Assis Chateaubriand. Sinto, por
isso, não poder atender aos desejos dos amigos. Afetuosas saudações,
V. Brás
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Chateaubriand viu-se obrigado a permanecer mais trinta dias no Rio a
fim de atender a todos os convites para festas, jantares e coquetéis comemo-
rativos da grande vitória. Para dar conta dos compromissos, tinha de supe-
rar a incurável timidez. Ele confidenciava aos amigos que "tolerar a vida so-
cial consiste em verdadeira calamidade para mim, que preferia o trabalho
intelectual e uma existência mais caipira". Mas a alta sociedade e a intelec-
tualidade pareciam querer estender para sempre a satisfação de ter conse-
guido, por meio daquele magriço que falava obsessivamente, esmagar o po-
der e o populismo do general Dantas Barreto. Ninguém se referia a Joaquim
Pimenta como derrotado, mas só ao governador de Pernambuco. Como se a
volta de Chateaubriand a Recife pudesse levar embora o símbolo vivo da vi-
tória contra Dantas, os novos amigos o aconselhavam a fixar-se definitiva-
mente no Rio, abandonando o que tinha sido, a rigor, o único objetivo de
toda a campanha - a cátedra de direito romano. "O que estava em jogo não
era um empreguinho em Pernambuco, mas uma batalha moral e política
contra o PRC, e nós vencemos", diziam. "Você não pode jogar pela amurada
de um vapor o prestígio que conquistou na cápital federal para voltar a dar
aulas em Recife e escrever artigos em jornais da província." Donos de jornais
tentavam convencê-lo a permanecer no Rio com sedutores convites. juristas
afamados ofereciam-lhe sociedade em respeitadas bancas de advocacia, mas
ele resistia à tentação de ficar. Atordoado com o inesperado estrelato, con-
fessou a José Veríssimo:
- Durante todo esse tempo, sempre tive a convicção de que venceria a
parada contra Dantas. Mas só agora me dei conta de que jamais cheguei a me
imaginar de pé em frente a um bando de alunos, dando aulas de direito ro-
mano.
Veríssimo se alegrou com o que imaginava ser o anúncio da decisão de
permanecer no Rio, mas Chateaubriand tratou de esclarecer que tinha resol-
vido partir:
- Não sei onde será o meu futuro, mas agora tenho que voltar. Eu se-
rei eternamente amaldiçoado pelos pernambucanos se não retornar a Recife.
No dia 3 de janeiro de 1916 dezenas de pessoas se postaram no porto de
Recife para receber de volta aquele que, embora fosse paraibano, teria as gló-
rias de um vitorioso filho da terra. Procurando capitalizar eleitoralmente as
comemorações, o deputado federal Estácio Coimbra embarcou com Cha-
teaubriand no vapor que saíra do Rio dias antes e recebeu com ele os aplau-
sos quando a pequena alvarenga levou-os do navio ao porto. Do cais a cara-
vana seguiu até a matriz da Piedade, em Santo Amaro, onde o padre Abel
Pequeno - que contribuíra com um conto de réis na coleta de fundos para
a viagem ao Rio - celebrou missa "em ação de graças pelo regresso do maior
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FERNANDO MORAIS
intelectual nordestino". No primeiro banco da igreja ficaram Coimbra, a mãe
do homenageado, seus três irmãos e Poli, que ele só pudera cumprimentar
com um aceno, a distância. Presente em todos os atos, o diretor Sofrônio Por-
tela anunciou que a Congregação da Faculdade de Direito tinha sido convo-
cada para reunir-se no dia 5 e dar posse a Chateaubriand como catedrático
de direito romano.
Nos dias que se seguiram, os jornais locais transcreveram artigos publi-
cados pela imprensa do Sul que revelavam detalhes da batalha política pela
nomeação. Em todas as notícias, Chateaubriand era tratado com exagerados
elogios que o descreviam como "o verdadeiro Leão do Norte" ou "o Davi
paraibano que destruiu Dantas, o Golias do populismo". O Jornal Pequeno re-
produzira com destaque "A hora que passa", o último artigo que ele escre-
vera para A Época, na véspera do regresso, agradecendo a acolhida que o Sul
lhe dera e o apoio que recebera da inteligência carioca. Ele ainda publicaria
dois artigos no Jornal Pequeno - um intitulado "Um presidencialista de ver-
dade", elogiando o comportamento de Venceslau Brás no caso, e outro cha-
mado "A flauta de Ariel", em que agradecia o empenho de Félix Pacheco a
seu favor na disputa da cátedra.
O destino não daria tempo a Chateaubriand sequer para decidir o que
faria em Recife. Ele havia recebido propostas para associar-se a escritórios
locais de advocacia, para dirigir jornais, para abrir novos diários, para dedi-
car-se exclusivamente às aulas da Faculdade de Direito. Ainda consultava
amigos sobre que rumo tomar quando foi procurado por Ana Louise Lund-
gren, de quem fora mordomo por alguns dias, com um convite para retornar
ao Rio. As empresas da família sustentavam uma demanda judiciária que
havia começado anos antes em Recife, e que de recurso em recurso pousara
agora nas barras do Supremo Tribunal. Para defendê-la na corte federal, a
parte contrária recorrera aos serviços de outro umbuzeirense, o ex-ministro
e candidato declarado à Presidência da República Epitácio Pessoa. A expec-
tativa era de que o processo ainda duraria alguns meses antes da decisão fi-
nal, e as indústrias da família não poderiam ficar a descoberto no Distrito Fe-
deral, enquanto os adversários contavam com a vigilância de um advogado
residente no Rio. Ana Louise resumiu o objetivo da conversa: o nome esco-
lhido pelos Lundgren para enfrentar Pessoa no Supremo tinha sido o seu.
Surpreso, Chateaubriand tentou recusar a proposta, alegando que não pode-
ria opor-se a alguém que tinha sido um dos articuladores de sua vitória no
caso da cátedra. Além disso, reconhecia que ainda não tinha estatura sufi-
ciente para duelar com o experimentado advogado paraibano. A milionária
contra-atacou com um argumento irrecusável: Chateaubriand receberia vin-
te contos de réis mensais durante sua permanência no Rio, fora os honorá-
rios advocatícios. Vinte contos era um dinheirão, o dobro do que ele gastara
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
para viver confortavelmente durante os três meses que passara na capital fe-
deral. Decididamente aquela era uma proposta irresistível, e ele aceitou.
Menos de um mês depois de sua chegada a Pernambuco ele estava de
novo arrumando as malas para retornar ao Rio. Dois dias após desembarcar
em Recifi recebera solenemente o título de doutor e fora empossado como
professor catedrático - cargo que lhe custara tanto esforço e que ele, ironi-
camente, não chegaria jamais a exercer por um só dia. Às vésperas do em-
barque, tomou coragem e foi à casa de Poli para enfrentar o problema que
vinha martelando sua cabeça nas últimas semanas: desmanchar o breve noi-
vado. O turbilhão em que se envolvera após o regresso o impedira de falar
com ela mais demoradamente, mas era chegada a hora de resolver tudo.
Chateaubriand foi recebido com tal frieza por Poli que não teve coragem
para sugerir o fim do romance. Deu voltas e mais voltas e terminou dizendo
a ela que sua permanência no Sul poderia perdurar por um ano - "ou até
mais, pois a burocracia judiciária é imprevisível", reforçou sem muita con-
vicção. Ao fim de tantos rodeios, propôs "a melhor solução para ambos":
adiar por um ou dois anos o casamento que, pelas promessas anteriores, já
deveria ter se realizado em dezembro. Ambos pareciam saber que aquilo era
apenas uma cena teatral, e que ele jamais regressaria a Pernambuco. Sem
mover um músculo do rosto, Poli ouviu a arenga lembrando-se das intrigas
que circularam pela cidade quando começaram a namorar. Manteve a ele-
gância durante todo o tempo, sem pronunciar uma sílaba, mas estava mor-
tificada com o que acabara de ouvir. Despediu-se de Chateaubriand esfor-
çando-se para não deixar transparecer que estava à beira de um choque
emocional. Ainda assim, foi ela quem teve coragem de pôr fim a tudo. Le-
vantou-se e, sem estender-lhe a mão para um cumprimento final, encerrou o
assunto:
- Eu entendi tudo, Chateaubriand. Não haverá mais casamento, nem
agora nem nunca. Passe bem.
Entrou em casa silenciosamente e trancou-se no quarto que, por lon-
gos anos, seria sua clausura. Poli só voltaria a pôr os pés na rua em 1926, dez
anos depois.
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Chateaubriand não mentira o tempo todo em seu último encontro com
Poli. Ele tinha sido honesto pelo menos ao prever a duração de sua perma-
nência no Rio. O processo capengou por mais de um ano pelos meandros do
Supremo e só chegou ao fim em meados de 1917. Demorou muito, mas ter-
minou com uma vitória espetacular dele sobre Epitácio Pessoa. Mesmo con-
trafeito com a derrota para um iniciante, Pessoa reagiu com bom humor ao
encontrar Chateaubriand nos corredores do fórum:
- Não foi uma derrota minha, mas uma vitória de Umbuzeiro.
Ele voltou a Pernambuco assim que saiu a sentença e, ao reunir a famí-
lia Lundgren em Recife para transmitir a boa notícia, comunicou também
que decidira abrir mão da remuneração a que teria direito pelo trabalho
como advogado - até então ele recebera apenas os vinte contos mensais
para sua manutenção no Distrito Federal. Os clientes insistiam em pagar,
mas ele foi de uma sinceridade desconcertante ao justificar a recusa:
- Prefiro tê-los eternamente como meus devedores. Melhor do que ter
o dinheiro dos Lundgren é ter os próprios Lundgren para sempre dentro do
meu embornal.
Depois de tantos meses de convívio com a atmosfera cosmopolita da ca-
pital federal, Recife já não significava mais que uma cidadezinha de provín-
cia para ele. Decidido a mudar-se definitivamente para o Rio, liquidou os
compromissos em Pernambuco, entre os quais incluiu seu desligamento for-
mal do PRP. Dias antes de partir, em meados de setembro, recebeu um bilhe-
tinho em que o industrial Delmiro Gouveia agradecia um artigo que ele es-
crevera no Rio e mandara publicar na imprensa local sob o título "Uma
resposta a Canudos". Nele Chateaubriand elogiava a força empreendedora
de Gouveia como a única alternativa para a industrialização do Nordeste e
para manter a região a salvo de revoltas populares como a de Canudos, ocor-
rida duas décadas antes. Delmiro Gouveia, que fora seu adversário na guer-
ra contra o rosismo em 1912, acabaria por aproximar-se dele tempos depois.
Industrial têxtil aliado ora a grupos italianos ora a norte-americanos, ele se
transformara no flagelo dos interesses britânicos que dominavam o mercado
da fabricação de linhas de costura no Brasil. Apesar de não ter tido uma edu-
cação formal, era um homem muito perspicaz, dono de um refinamento que
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
atualizava regularmente nas férias que passava em sua elegante villa de Ná-
poles, na Itália - e cuja propriedade ocultava "para não ser tomado por um
desperdiçador por estes matutos daqui ". Ao ler "Uma resposta a
Canudos",
enviara ao jornalista o bilhete de poucas linhas, escrito com dificuldade:
"Doutorzinho, você sabe escrever tão bonito da gente que este pobre matu-
to nem tem como agradecer-lhe. Aqui houve sertanejo que chorou ". Como-
vido, Chateaubriand resolveu fazer uma "despedida telúrica " do Nordeste:
pediu ao usineiro Costa Azevedo, o Tenente, que reunisse para um almoço
em sua fazenda de Mussurepe os poucos amigos que deixaria em Pernam-
buco: Frederico Lundgren, José Maria de Andrade, Pedro Paranhos, Ma-
nuel de Brito e Delmiro Gouveia, entre outros. No dia da reunião, convocou
Múcio Leão, Justino Vaz de Oliveira e Tancredo Bandeira de Melo para lhe
fazerem companhia. Tomaram o trem até Limoeiro e dali caminharam a pé,
pelo mato, os quarenta quilômetros que os separavam da propriedade de
Tenente. Passadas algumas semanas, Chateaubriand, já instalado no Rio, re-
ceberia a notícia de que seu almoço de despedida fora a última aparição pú-
blica de Gouveia: dias depois ele seria assassinado, supostamente a mando
dos industriais britânicos que se atrevera a enfrentar.
Chateaubriand chegou ao Rio precedido por uma fama de que poucos
brasileiros da época podiam desfrutar tão precocemente. Com 25 anos re-
cém-completados, era visto como a grande fulguração, o nome que se desta-
cava daquilo que a preconceituosa elite do Sul chamava de "o exército do
Norte " - os intelectuais que migravam para o Rio em busca do sucesso. Ele
sobrevivera à repressão de Dantas Barreto sem se submeter à humilhação de
ter de fugir de Pernambuco, como haviam feito seus chefes do PRP; forçara o
partido a abandonar Rui Barbosa e redigira o manifesto de rompimento com
o "Águia de Haia". Vencera Joaquim Pimenta depois de revelar dotes de ex-
perimentada raposa política, ao mobilizar até o presidente da República em
sua defesa; fora o adolescente que ousou provocar a vaidade de Sílvio Ro-
mero; advogado recém-formado, impusera a Epitácio Pessoa uma amarga
derrota nas barras do Supremo. Esquecendo o desprezo com que tratava os
nortistas, a inteligência da capital federal sentia-se orgulhosa de que ele ti-
vesse "abdicado do posto de vice-rei do Nordeste para vir fazer carreira no
Rio como um comum ", como dissera uma nota de A Época. Desconfiado do
farfalhar que cercava o novo personagem da vida carioca, o poeta Olavo Bi-
lac comentou que se tratava efetivamente de "um talentoso publicista ", mas
que as pessoas deviam tomar cuidado com ele: "Chateaubriand tem brilhan-
tes na cabeça, mas carrega cascalhos nos bolsos ". Profético, Bilac garantia
que o jovem nordestino não se mudara de Recife em busca apenas de uma
banca de advocacia ou de espaço nos jornais: "Ninguém traz um arsenal in-
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FERNANDO MORAIS
telectual como o que dizem ter para gastá-lo em panfletos ou na tribuna-
o destino desse moço aqui no Rio é o poder ".
Ele próprio, no entanto, dizia aos amigos que estava apenas em busca
de "uma alavanca" que garantisse seus primeiros anos no Rio:
- Se conseguir um ponto de apoio para sobreviver por aqui durante
um ou dois anos já estarei satisfeito. Depois vou pensar no que fazer.
Disposto a consolidar a poderosa rede de relações pessoais que começa-
ra a montar na campanha pela cátedra, decidiu que tão cedo não trabalharia
como empregado em nenhum jornal. Queria dedicar-se à advocacia, ganhar
algum dinheiro e aproximar-se de pessoas influentes. A alavanca apareceu
logo, sob a forma de uma pequena mesa de madeira instalada numa salinha
alugada nos altos da Casa Crashley, na rua do Ouvidor. Ali passou a fun-
cionar seu escritório de advocacia, e já no primeiro dia começavam a chegar
clientes enviados por seus dois protetores, Afrânio de Melo Franco e Alfre-
do Pujol, donos respectivamente das duas maiores bancas do Rio e de São
Paulo. Semanalmente publicava notas políticas em A Época, no Jornal do Com-
mercio e no Correio da Manhã. A convite de Júlio Mesquita, chegou a publicar
artigos no Estadinho, o vespertino lançado dois anos antes pelo Estado de
S. Paulo. Embora escrevesse regularmente sobre política internacional, o
triunfo dos bolcheviques no final da Revolução Russa mereceria dele um
único artigo, publicado no Correio da Manhã, em que Chateaubriand se es-
pantava com o romantismo dos comunistas: "Há qualquer coisa de tocante
na inocência sinistra com que o russo cândido e imaginativo se dispõe a rea-
lizar a experiência coletivista", escreveu. "Os homens que se estraçalham em
guerra civil agora na Rússia matam-se por um ideal. E a absorção mais com-
pleta da personalidade pelo interesse coletivo." Seu alvo predileto continua-
va a ser Rui Barbosa. Em seus artigos gabava-se de ser "um dos vagos bra-
sileiros que combatem Rui, a ele e à sua belicosidade de armazém de secos e
molhados". Indiferente à adoração nacional pelo baiano célebre, rotulava-o
como "um político regional, de discurso caipira cheio de pieguismo
aliadó-
filo". Em plena Primeira Guerra Mundial, acusava Rui de "oferecer tudo à
França, à Inglaterra e à Rússia, menos aquilo de que precisam, que é solda-
do e espingarda". Aparentemente, entretanto, seu interesse pelo jornalismo
se resumia aos artigos. Observava a distância a modernização da imprensa
do Rio e de São Paulo: as empresas construíam sedes próprias, importavam
equipamento sofisticado, as cores chapadas começavam a aparecer nos diá-
rios. Os caudalosos artigos - as "várias ", como eram conhecidos - que en-
chiam páginas e páginas de jornais começavam a dar lugar a temas da atua-
lidade, que os autores chamavam solenemente de "inquéritos".
Sua sala de visitas se dividia entre o escritório da rua do Ouvidor, a
mesa cativa na Rotisserie Americana, onde almoçava e jantava todos os dias,
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
e o amplo apartamento que alugara para viver no elegante Hotel dos Estran-
geiros. O hotel se transformara no lugar da moda dos políticos por ter sido
o palco, anos antes, do assassinato de Pinheiro Machado, ocorrido em seu sa-
guão principal. Nesses lugares ele ficou amigo de uma fauna variada, que ia
de gente como o industrial Jorge Street, os políticos mineiros Antônio Carlos
e José Bonifácio Ribeiro de Andrada, a músicos como Catulo da Paixão Cea-
rense, passando por figuras como o conde Modesto Leal, milionário portu-
guês a quem os desesperados recorriam para tomar empréstimos a "juros es-
corchantes" de 8% ao ano. Aproximou-se também de outro nobre - na
época era comum adquirir-se no Vaticano, a preços razoáveis, títulos de no-
breza -, o conde paulista Sílvio Álvares Penteado, e em pouco tempo sua
mesa na Rotisserie era freqüentada pelos nomes mais requisitados da inteli-
gência e, sobretudo, do dinheiro carioca e paulista. Seu companheiro insepa-
rável passou a ser o jovem engenheiro Eugênio Gudin, diretor da Brazil Rail-
way, com quem dividia diariamente um assento nos bondes cariocas. Os
dois haviam se conhecido anos antes em Pernambuco, quando Gudin dirigiu
a instalação das linhas da Pernambuco Tramway & Power. E foi em meados
de 1918 que Gudin ouviu o amigo falar, pela primeira vez, de seus planos
para o futuro. Chateaubriand havia pedido seu aval para um empréstimo
que tomaria no Banco Germânico. O dinheiro, confessou, seria utilizado na
compra de um luxo descabido para a época: um automóvel. Mais precisa-
mente, uma espetacular baratinha Panhard Levassor francesa, com carroce-
ria desenhada por Labourdette, que ele vinha cobiçando desde que fora lan-
çada na Europa. Cauteloso, Gudin perguntou se não seria imprudência
tomar dinheiro emprestado para dissipá-lo na compra de um carro de luxo.
Como a advertência vinha do avalista, Chateaubriand sentiu-se na obrigação
de ser sincero:
- Seu Gudin, eu só advogo para ganhar dinheiro e comprar um jornal.
Acha que andando de bonde e fazendo vida de classe média inspiro con-
fiança aos acionistas da futura gazeta? O carro próprio é hoje o melhor índi-
ce de prosperidade. O importante não é ter dinheiro, mas transmitir a ilusão
de que ele não anda longe de mim.
Diante do espanto de Gudin, arrematou, teatral:
- A fortuna não anda mais a pé, mas de automóvel. E se for uma Pan-
hard, tanto melhor. As sociedades vivem de mitos. Quero que a burguesia
alimente o mito da minha petulante fortuna, porque é dessa burguesia que
precisarei, muito em breve.
Gudin deu o aval, mas não conseguiu guardar o segredo. Logo circula-
va pela praça a notícia de que Chateaubriand queria montar ou comprar um
jornal. Pedro Lessa e Afonso Vizeu, que tinham projeto idêntico, foram pro-
curá-lo com uma proposta pronta: queriam associar-se a ele para montar um
diário de dezesseis páginas, "leve, cintilante, com editoriais que não tives-
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FERNANDO MORAIS
sem mais que trezentas palavras e noticiário pulverizado em pílulas minús-
culas". Cada um dos três sócios teria um terço do controle da empresa - e
os donos da idéia emprestariam a Chateaubriand a parte dele, que seria
amortizada aos poucos, com os lucros do jornal. Delicadamente ele pulou
fora do projeto, pretextando que seria temerário montar um jornal de deba-
tes como o que se imaginava, sendo um dos donos "um gênio vulcânico e
panfletário" como Pedro Lessa:
- Isto nunca será um jornal, mas um paiol de pólvora de combustão es-
pontânea.
A Gudin ele confessou a verdadeira razão da recusa em associar-se aos
dois:
- O que eu mais almejo é ter um diário, seu Gudin. A proposta deles
era muito tentadora e os dois são meus amigos. Mas jornal é como mulher:
não dá para dividir com sócios. Prefiro esperar mais tempo e ter um sozinho.
Enquanto a oportunidade não surgia, ele investia na advocacia. Sua
fama chegou aos ouvidos de alguém que conhecera anos antes: Alexander
Mackenzie, presidente da holding Brazilian Traction, que por meio da Light
& Power controlava bondes, luz, gás e energia em várias capitais brasileiras.
Ao final de um jantar com Mackenzie no Automóvel Club, Chateaubriand ti-
nha sido contratado para representar, em processo que corria no Supremo, o
"polvo canadense", como os nacionalistas radicais chamavam o grupo es-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
trangeiro. Chateaubriand já conhecia bem a trajetória da Light no Brasil, em-
presa que em diversas ocasiões ele mesmo defendera espontaneamente dos
ataques da esquerda em artigos publicados em Recife e no Rio. No Supremo
ele teve como adversário o renomado jurista Manuel Vilaboim, mas acabou
repetindo a façanha da demanda anterior e saiu vitorioso. Quando Macken-
zie chamou-o para os cumprimentos de praxe e para o acerto de honorários,
Chateaubriand recorreu à mesma conversa que usara com os Lundgren e re-
cusou-se a receber o dinheiro, acumulando mais alguns juros no banco de re-
lações que aos poucos ia construindo:
- Tornar-se amigo de um gigante da estatura de sir Alexander Macken-
zie é a maior remuneração que poderia almejar um brasileiro que luta como
eu pelo desenvolvimento de seu país. A conta já está paga.
A conta não estava paga, como Mackenzie perceberia anos depois, mas
pelo menos daquela vez o industrial não precisou desembolsar um vintém.
Insistindo em oferecer alguma retribuição, Mackenzie terminou por contra-
tá-lo como advogado fixo da banca da Brazilian Traction, o que o levaria a
fechar o escritório da rua do Ouvidor.
Semanas depois Chateaubriand era convocado por Nilo Peçanha, minis-
tro das Relações Exteriores, para uma audiência. Durante duas horas, foi
submetido a dura sabatina pelo ministro a respeito da política exterior do
Brasil e sobre interpretação de tratados internacionais. Como estavam em
campos opostos no essencial - Peçanha era pró-aliados, Chateaubriand era
germanófilo -, discordaram a respeito de quase todos os temas abordados.
Ao final da conversa, o ministro atirou:
- Estou precisando de um nome para ocupar o cargo de consultor de
leis de guerra no ministério e queria alguém que tivesse a coragem de diver-
gir dos meus pontos de vista. Se o emprego lhe interessar, o lugar é seu.
O emprego interessava muito, e o Palácio do Itamaraty, onde funciona-
va a Chancelaria brasileira, era um excelente lugar para plantar a ponta de
mais uma alavanca. Sua passagem por lá, porém, duraria menos de um ano.
A perspectiva de fazer jornal novamente, mesmo como empregado, voltaria
a tentá-lo meses depois. Instalado em um prédio novo na recém-construída
avenida Central, o Jornal do Brasil importara linotipos, máquinas novas para
impressão e um moderno sistema de clicheria. Nos últimos anos seus donos
vinham tentando adaptá-lo aos moldes da melhor imprensa estrangeira,
transferindo os pequenos anúncios para a primeira página, como faziam os
diários norte-americanos, e imprimindo o cabeçalho em cores. Mas as refor-
mas técnicas não se refletiam no essencial, que era a vendagem. Mesmo ocu-
pando parte do "mais alto edifício da América do Sul" e dispondo do mais
completo parque gráfico do Brasil, o jornal vendia muito pouco. Sócio majo-
ritário do Jornal do Brasil, o conde pernambucano Ernesto Pereira Carneiro
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#
FERNANDO MORAIS
entendia que, depois das reformas implantadas pelos antigos sócios, sua
missão era rechear o jornal com o melhor material humano disponível na
praça. Era preciso arranjar um grande jornalista para transformar a melhor
gráfica no melhor jornal do país. A escolha acabou recaindo sobre o jovem
que ele ajudara a se instalar no Rio anos antes e que se transformara na gran-
de estrela da cidade.
Convertido à tese que defendia a internacionalização cada vez maior da
economia brasileira, Chateaubriand recusou o convite. Veemente, respon-
deu a Pereira Carneiro que não via sentido em trabalhar em um jornal que
"açoitava o capital estrangeiro" e se referia à ferrovia Madeira-Mamoré
como "um enclave ianque que ameaça a soberania brasileira":
- Não entendo como o senhor, um industrial moderno e esclarecido,
permite que essa corja de socialistas transforme seu diário numa trincheira
contra o desenvolvimento. Com essa gente eu não posso trabalhar.
Pereira Carneiro garantiu-lhe "carta branca para tirar o jornal da poei-
ra". Sabia de sua competência profissional e lhe daria liberdade para mudar
o que quisesse, com a condição de fazer do Jornal do Brasil um veículo impor-
tante e respeitado. Ele acabou aceitando o convite, e escreveu que iria "cons-
tituir um corpo de colaboradores de elite para dar brilho às páginas desta fo-
lha". Para que não restasse dúvida a respeito da linha editorial que pretendia
implantar, seu primeiro convidado foi o engenheiro Pires do Rio, que tinha
sido inspetor federal justamente no "enclave ianque" de Farquhar, a ferrovia
Madeira-Mamoré. Para o cargo de conselheiro do jornal, chamou João Tei-
xeira Soares, assessor de Mackenzie na direção da Brazilian Traction. Tirou
José Carlos Rodrigues da direção do Jornal do Commercio para, junto com To-
bias Moscoso, ajudá-lo a reformar a redação. O tom moderado seria dado
por outros membros do "corpo de elite " que Chateaubriand atraiu para o
jornal, como o conde Afonso Celso e seu antigo ídolo Carlos de Laet. De Re-
cife mandou chamar um companheiro da "despedida telúrica" de Pernam-
buco, Múcio Leão. Em pouco tempo o jornal recuperava prestígio, voltava a
vender bem e se tornava de novo um empreendimento economicamente
saudável. Além de dirigir e orientar o Jornal do Brasil, ele escrevia artigos
diários - sempre a lápis, pois jamais aprenderia a lidar com as ainda raras
e modernas máquinas de escrever que Pereira Carneiro importara para a re-
dação.
Chateaubriand trabalhava todos os dias até de madrugada. Sua única
diversão era freqüentar, em companhia do chinês Fu Shi-kai, uma casa de fu-
mantes de ópio na Lapa carioca. Quando alguém indagava se era um consu-
midor da droga asiática, ele explicava que não, que ia à casa por mera
curiosidade, "para ver o veneno sutil penetrar no cérebro dos consumidores
e dourar-lhes a fisionomia com uma alegria ingênua de criança". No mais,
mantinha os hábitos morigerados da juventude em Recife, alheio a festas e à
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
boemia. Acordava sempre antes de o sol nascer, pegava seu skiff no Club
Guanabara e remava até alto-mar. Quando o dia clareava, tomava um breve
banho de sol em Copacabana e nadava por meia hora. Retornava ao clube,
treinava um pouco de esgrima, saía para um rápido expediente no escritório
de Mackenzie e ia para a redação. O banho de mar era um costume raro no
Rio de Janeiro da época - só se freqüentava a praia regularmente a conse-
lho médico. Além dele, a única presença constante à beira-mar era a de um
rapaz moreno, cabeçudo, que aparecia todas as manhãs em Copacabana.
Curioso, Chateaubriand acabou se aproximando do ex-seminarista pernam-
bucano, que descobriu chamar-se Belarmino Austregésilo de Athayde:
- Você é nadador profissional?
- Não, venho aqui apenas tomar um sol e dar umas braçadas.
- Receita médica?
- Não, na verdade eu freqüento a praia para flertar com as mulheres.
Belarmino também era jornalista - trabalhava em A Tribuna, do mato-
grossense Antônio Azeredo da Silveira - e isso facilitou a aproximação. A
partir do primeiro encontro, todas as manhãs Chateaubriand passava com
sua Panhard para pegá-lo em casa e irem juntos à praia. Logo identificaram
divergências políticas: enquanto Chateaubriand escrevia a favor dos Impé-
rios Centrais, Belarmino defendia as democracias, a França e a Inglaterra.
Mas ambos gostavam do mar e de mulheres, e era isso que importava, não
as discrepâncias filosóficas. Certa manhã Belarmino ficou sentado na areia
olhando as moças que passavam na calçada, enquanto o amigo nadava mar
adentro. O tempo passava e Chateaubriand não voltava. O outro ficou preo-
cupado, começou a juntar gente e nada de o amigo aparecer. Quando por
fim conseguiu arranjar um salva-vidas que o socorresse, Chateaubriand vol-
tava calmamente para a areia, como se nada tivesse acontecido. Simulando
tranqüilidade, Belarmino recebeu-o com humor negro:
- Eu já estava aqui ensaiando o discurso que teria de fazer à beira da
sua cova.
Chateaubriand gostou da brincadeira e sugeriu que estabelecessem ali o
que a moda ditava - um pacto:
- Então estamos combinados: se eu morrer primeiro, você faz o discur-
so no meu túmulo. Se você partir antes, eu fico encarregado de despedi-lo do
mundo.
Os pactos fúnebres estavam em voga no Rio. O poeta Aníbal Teófilo e
seus colegas de saraus, por exemplo, haviam pactuado que o primeiro deles
a morrer deveria ter o peito banhado com gotas do perfume francês Idéal
dentro do caixão. A morte de Teófilo - assassinado a tiros por Gilberto
Amado - fez desaparecer das perfumarias os estoques de Idéal, e a direção
do cemitério precisou intervir para que o funeral do poeta não se transfor-
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FERNANDO MORAIS
masse numa festa. Por muitos anos o Idéal tornou-se o perfume da moda en-
tre os intelectuais do Rio.
Decorreram poucos dias para que Chateaubriand temesse ter chegado a
hora de cumprir o pacto feito com Athayde. No começo daquele ano de 1918,
o navio inglês Demerara atracou no porto do Rio trazendo a bordo a mais
destruidora epidemia que o mundo jamais vira até então, a gripe espanhola,
e o amigo cearense caiu de cama contaminado pela doença. Em quatro me-
ses a praga tinha deixado um rastro de 20 milhões de mortos nos países por
onde passara, e no Brasil o surto se alastrava com rapidez incontrolável. Em
poucas semanas só as cidades do Rio e de São Paulo já haviam contado mais
de 25 mil mortos. Em um só dia morreram 1200 pessoas no Rio. Durante
duas semanas, Chateaubriand e mais dois gráficos - os três únicos a não
contrair a gripe no prédio da empresa - tiveram de fazer sozinhos o Jornal
do Brasil. Igualmente deserta, a redação do maior jornal de São Paulo, o Es-
tado, ficou entregue a apenas dois redatores que se mantiveram a salvo, Leo
Vaz e Monteiro Lobato. Uma noite, ao fechar na gráfica a magra edição do
jornal do dia seguinte, Chateaubriand soube que a mulher de seu amigo
Afrânio de Melo Franco acabara de morrer contaminada pela doença. O es-
tupor nacional, entretanto, só chegaria ao clímax nos primeiros dias de 1919,
quando os jornais noticiaram que o paulista Rodrigues Alves, recém-eleito
presidente da República, tinha sido abatido pela gripe. Mas a terrível pande-
mia, que não fizera distinção entre poderosos e populares, decidiu poupar o
"Caboclo" Belarmino, como Chateaubriand o apelidara. Recuperado, ele
apareceu na redação do Jornal do Brasil para comunicar ao amigo que sobre-
vivera:
- Meu caro Chateaubriand, quem escapa de praga que mata até presi-
dente da República está fadado a viver para sempre. Pode rasgar seu discur-
so, porque na minha sepultura você não vai falar.
No Brasil a gripe espanhola deixou como saldo 300 mil mortos e uma
enorme crise política. A Constituição determinava que, caso o presidente
morresse antes da posse, novas eleições deveriam ser convocadas - e foi as-
sim que o mineiro Delfim Moreira, vice de Rodrigues Alves, assumiu interi-
namente até que o novo chefe da nação fosse eleito. Seu curto governo ter-
minou apelidado de "regência republicana", pois quem mandava de
verdade era seu ministro da Viação e Obras Públicas, Afrânio de Melo Fran-
co. Rui Barbosa recusou o convite do governo para chefiar a delegação bra-
sileira à Conferência de Paz de Paris, que redundaria no Tratado de Versa-
lhes. Em seu lugar, à frente de um navio repleto de assessores, secretários,
ministros e respectivos familiares, acabou seguindo para a França Epitácio
Pessoa, então ministro aposentado do Supremo. Sepultado o presidente que
nem chegara a ser empossado, Rui tornou pública a verdadeira razão da re-
cusa, anunciando sua candidatura à sucessão presidencial. Chateaubriand já
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começava a organizar sua infantaria para combater o baiano ilustre quando
seu conterrâneo e amigo Epitácio Pessoa convocou os jornalistas de agên-
cias noticiosas em Paris para comunicar que iria disputar a Presidência com
Rui Barbosa.
Pereira Carneiro já havia decidido colocar o Jornal do Brasil a serviço da
campanha do chefe civilista quando Chateaubriand lembrou-lhe o entendi-
mento que haviam feito quando ele assumiu a direção da empresa: ele teria
total liberdade para determinar a linha política, e quando isso gerasse diver-
gências com o dono, a diretoria seria convocada para deliberar. O conde acei-
tou a ponderação e, nos dias que antecederam a reunião, Chateaubriand de-
dicou-se a fazer proselitismo contra Rui, tanto em conversas com os diretores
que decidiriam a questão, como em duríssimos artigos que publicava diaria-
mente no jornal. Para ele Rui Barbosa fora durante a guerra, um belicoso
pela metade, que defendia a entrada do Brasil no conflito mas não a belige-
rância ativa ". Relembrou a campanha que fizera contra a indicação de Rui
para a chefia da delegação que iria à França. Na época, sustentara que não
fazia sentido mandar a Versalhes um embaixador que relembrasse o "papel
medíocre " que o Brasil tivera na guerra. Para dar combate duro ao adversá-
rio, deixava de lado até suas convicções germanófilas. "Não consta da litera-
tura da primeira conflagração mundial", escreveu, "uma única página em
que Rui Barbosa proponha a mobilização de um corpo expedicionário que
desembarcasse na França e atirasse contra o militarismo prusso-germânico."
Para Chateaubriand, um jornal que se prezasse não podia fazer a campanha
de alguém que tinha levado o Brasil a passar para o mundo a imagem de
uma nação acovardada e ambígua. Pereira Carneiro se curvou aos argumen-
tos do empregado e decidiu que o Jornal do Brasil permaneceria neutro na
campanha presidencial. Nem a obra literária de Rui escaparia da ironia do
cutelo de Chateaubriand: "Rui Barbosa é para mim, que conheço mal os fós-
seis da língua portuguesa, um dos mais notáveis escritores estrangeiros do
nosso atual idioma", escreveu no Correio da Manhã. "Leio-o de dicionário em
punho."
Quando se aproximava o dia da convenção que formalizaria a candida-
tura de Rui Barbosa, Júlio Mesquita decidiu ir em pessoa ao Rio para anun-
ciar o apoio de seu jornal ao baiano. Pediu a Pedro Lessa que promovesse
um encontro com Chateaubriand para manifestar frente a frente a indigna-
ção com que recebera a campanha feita contra seu candidato nas páginas do
Jornal do Brasil. Chateaubriand, que não o conhecia pessoalmente, ficou im-
pressionado com a simplicidade do dono do maior jornal do país, como re-
velaria tempos depois: "Mesquita desembarcou do trem na Central e hospe-
dou-se num quarto sem banho do Hotel Avenida. Recebeu-me sem paletó,
sentado numa cama de solteiro. Ninguém poderia ser mais destituído de ga-
las e, até mesmo, do mais singelo conforto ". A acolhida, entretanto, nada
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FERNANDO MORAIS
teve de afetuosa. O paulista foi polido o tempo todo, mas tratou Chateau-
briand com dureza. Encerrou a curta conversa sem um sorriso:
- Meu respeito pelo seu talento permanece, mas o senhor deve saber
que estou indignado com suas agressões ao doutor Rui Barbosa.
À noite Chateaubriand retornou ao Avenida. Sem considerar a frieza
com que fora recebido à tarde, entrou no quarto do dono do Estado levando
na mão uma raridade: uma garrafa de vinho Mosela alemão, safra de 1911,
para presentear ao adversário momentâneo:
- Doutor Júlio, seu gesto comigo em 1915 transformou-me para sem-
pre em seu escravo. Consegui esse vinho com o velho Mengt, do Hotel Inter-
nacional, para que o senhor, ao bebê-lo, esqueça as grosserias deste bugre
paraibano.
Desconcertado com o gesto, Mesquita resmungou:
- Muito obrigado. Quando chegar a São Paulo vou mandar-lhe uma
garrafa do vinho Flor de Lis. Mas continuo considerando desrespeitosa a
maneira como o senhor vem tratando Rui Barbosa.
A objeção de Mesquita não refreou a iracunda campanha de Chateau-
briand contra Rui. Impedido pela neutralidade de Pereira Carneiro de con-
tinuar a atacá-lo pelo Jornal do Brasil, conspirava em todas as frentes onde
identificava alguém solidário ao candidato adversário. Todas as noites, an-
tes de dormir, ele batia à porta do ex-ministro Nilo Peçanha, agora seu vizi-
nho de quarto no Hotel dos Estrangeiros, para tentar demovê-lo do apoio
que prometera a Rui Barbosa. O argumento era sempre o mesmo: aquela era
uma candidatura morta, pois Epitácio Pessoa ganharia as eleições sem tirar
os pés de Versalhes.
Setuagenário, Rui tentou sem êxito ressuscitar a Campanha Civilista-
era difícil justificar o civilismo desta vez, contra um adversário civil - e aca-
bou concentrando sua plataforma em uma novidade chamada "questão so-
cial". Pela primeira vez no Brasil alguém tão respeitado falava em "democra-
cia social". Buscou apoio nas idéias do ex-presidente americano Abraham
Lincoln, para sustentar a precedência do trabalho sobre o capital, defendeu
com veemência o liberalismo em praça pública, mas o destino corria por ou-
tros caminhos. A falta de unidade entre São Paulo e Minas Gerais em torno
de sua candidatura - basicamente apoiada pelo Rio de Janeiro - acabaria
dando a vitória a Epitácio Pessoa. Que, como Chateaubriand previra, elegeu-
se sem sair da França. A ascensão do paraibano de Umbuzeiro à Presidência
da República quebrava uma tradição de quase três décadas, que mantivera
o cargo sucessivamente nas mãos de mineiros ou paulistas, dando curso à
chamada "política do café-com-leite". Salvo a solitária exceção feita ao gaú-
cho Hermes da Fonseca, desde 1894 a presidência vinha sendo aritmetica-
mente atribuída aos dois estados: dos seis presidentes eleitos no período,
três eram mineiros e três paulistas.
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CHATÔ. O REI DO BRASIL
A primeira das inúmeras crises militares do governo de Epitácio Pessoa
eclodiu pouco depois da posse. A iniciativa foi do próprio presidente, ao co-
meter a imprudência - única em toda a história da República - de no-
mear um paisano, o engenheiro e historiador Pandiá Calógeras, para o Mi-
nistério da Guerra. Os protestos da oficialidade contra a presença de um
civil no mais alto posto militar do país agitavam os quartéis quando o minis-
tro agravou a crise com o anúncio da contratação de uma missão militar
francesa para "aperfeiçoar técnica e profissionalmente o Exército brasileiro".
Irredutível às exigências de que demitisse Calógeras, Pessoa não só o man-
teve no cargo como apoiou publicamente a decisão, anunciando que a mis-
são francesa já estava contratada e seria chefiada pelo coronel Maurice Ga-
melin, ex-membro do estado-maior do marechal Joffre na Primeira Guerra
Mundial. Amigo de Calógeras desde 1916, quando este amargava o ostracis-
mo a que fora atirado por Venceslau Brás, Chateaubriand saiu em defesa do
ministro. Em artigos assinados diariamente no Jornal do Brasil e no Correio da
Manhã, declarou guerra "a tudo quanto é misoneísta e jacobino, dentro e fora
do Exército, que combata a vinda da missão". Identificou um dos raros ofi-
ciais que apoiavam a contratação, o coronel Genserico de Vasconcelos, e con-
tratou-o como assessor para assuntos militares da redação do Jornal do Brasil.
Para Chateaubriand, a presença da missão no Brasil era "a única possibilida-
de de apressar-se a educação profissional do nosso corpo de oficiais, que em
contato com uma cultura mais avançada vão conter o processo de desinte-
gração do Exército, roído pelo vírus da politicagem". Quando Gamelin em-
barcou na França com destino ao Brasil, Chateaubriand festejou com um ar-
tigo: "A batalha contra velhos coronéis e generais reiúnos já está ganha. Só
um grande chefe de elite como o coronel Gamelin poderá transformar nossa
força de terra em um corpo robusto, disciplinado, leal à Constituição e fiel à
pátria. Quem se opõe à missão francesa são os arruaceiros de quarteladas".
A vitória reforçava seu prestígio junto ao presidente, algo que ele havia de-
monstrado na montagem do governo: além de ter participado da indicação
de Calógeras para o ministério, Chateaubriand conseguira fazer José Pires
do Rio, seu assessor no Jornal do Brasil, ministro de Viação e Obras Públicas,
responsável por todas as construções do governo federal no país.
Em meados de 1919, Afrânio de Melo Franco convidou Chateaubriand
para se incorporar a um grupo de intelectuais cariocas que tinham fretado
todo um vagão de trem para ir a São Paulo assistir à estréia da peça teatral
O contratador de diamantes. Escrita por Afonso Arinos, a peça permanecera
inédita após a morte do autor, ocorrida três anos antes. Agora os paulistas
decidiam montá-la em grande estilo no Teatro Municipal só com amadores,
escolhidos a dedo entre a elite cafeeira de São Paulo. O cenógrafo era o pin-
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tor José Wasth Rodrigues, retratista oficial da alta sociedade paulista. O con-
tratador era representado por Eduardo Aguiar de Andrada, e o papel de
d. Branca ficou para Eglantina Penteado da Silva Prado. A certa altura do es-
petáculo a orquestra regida por Francisco Mignone atacava um minueto, e o
público veria saindo de trás das cortinas dezesseis mocinhas e dezesseis ra-
pazes - entre os quais era possível identificar o jovem Júlio de Mesquita Fi-
lho e sua futura mulher, Marina Vieira de Carvalho. O fidalgo português era
Gofredo da Silva Telles e o ouvidor, René Thiollier. Temia-se que, com a ma-
ciça presença de elegantes no palco, não sobrasse ninguém para assistir ao
espetáculo, e que as portas do Municipal tivessem de ser abertas para o
povo.
A única participação do povo, na verdade, quase estragou a festa dos
barões do café. Na véspera do dia previsto para a estréia,10 de maio, as cos-
tureiras das casas de moda e confecção de São Paulo jogaram um jato de
água fria no entusiasmo da Paulicéia anunciando uma greve geral por au-
mento de salários - tinham finalmente chegado a São Paulo as temidas
"mudanças sociais" inspiradas na Revolução Russa. Sem os "lindíssimos
costumes" de que a imprensa tanto falava, não haveria peça alguma. A firme
intervenção do prefeito Washington Luís - um dos maiores entusiastas da
montagem teatral - pôs fim ao odioso movimento paredista. Mas a estréia
precisou ser adiada até que as costureiras obtivessem o aumento exigido.
Fechadas as cortinas - sob aplausos generalizados, claro -, a trupe e
os convidados vindos do Rio foram homenageados com um banquete no ca-
sarão de Alfredo Pujol, na rua Pirapitingui. O dono da casa aproximou-se de
uma das atrizes amadoras, a adolescente Iolanda Penteado, de dezesseis
anos, e cochichou em seu ouvido:
- Quero apresentar-lhe um rapaz nortista que é um gênio. Ele veio do
Rio com o Afrânio e está aqui em casa.
Iolanda ainda estava vestida à Luís XV, com uma peruca coberta de tal-
co sobre a cabeça, quando conheceu Chateaubriand. Segundo ela mesma di-
ria depois, "ele ficou tonto" diante de sua beleza. Iolanda revelaria também
que, apesar de tê-lo achado "um rapaz não muito bonito", tinha ficado hip-
notizada por sua conversa. Chateaubriand convidou-a para caminharem
juntos pelos jardins e foi ali mesmo, um par de horas após conhecê-la, que
lhe propôs casamento. Ao recusar de chofre, Iolanda não imaginava que
aquele seria apenas o primeiro pedido - apaixonado por ela até o fim da
vida, Chateaubriand voltaria a repeti-lo, sempre em vão, dezenas de vezes.
Ao retornar ao Rio e comentar em uma roda da Livraria Leite Ribeiro que
havia recebido um "não" de Iolanda - "uma verdadeira princesa austría-
ca", dizia -, Chateaubriand ouviu uma confissão do aviador Alberto San-
tos Dumont:
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
- A recusa dela a seu pedido me consola. Quando Iolanda rejeitou mi-
nha proposta de casamento, meses atrás, achei que fosse por causa da dife-
rença de idade, pois sou trinta anos mais velho que ela. Mas se ela disse não
a você, que é um jovem, está tudo explicado: Iolanda não deve gostar de ho-
mens que andam com a cabeça nas nuvens, como nós dois.
Ao findar a segunda década do século, Chateaubriand já era alguém ab-
solutamente integrado à refinada vida intelectual e política do Rio de Janei-
ro. Por alguns meses chegou a ser presidente de uma empresa de seguros, a
Sotto Mayor & Araújo Costa, embora não detivesse uma única ação da com-
panhia. Conspirava na Rotisserie Americana, tomava chá com Mackenzie e
Arno Pierson - os homens da Light - no britânico Club Central e jogava
boliche com Capistrano de Abreu no Clube Germânia. Num desses encon-
tros, Capistrano pediu que ele intermediasse um favor junto a Pereira Car-
neiro:
- Chateaubriand, eu não conheço esse conde pernambucano, mas sou-
be que ele, além de ser um homem educado, conta seu dinheiro por milha-
res de contos. Você poderia convencê-lo a mandar copiar a parte dos textos
do Conselho Ultramarino português relativos à Capitania de Pernambuco e
imprimi-los na tipografia do jornal. Ele pagaria a um bom copista entre cem
e duzentos mil-réis por página e prestaria um serviço relevante à nossa
cultura.
A edição acabou não saindo, mas pouco tempo depois Capistrano esta-
va de novo às voltas com Chateaubriand, desta vez para tentar impedi-lo de
concorrer à Academia Brasileira de Letras na vaga de Olavo Bilac, que mor-
rera meses antes. Mário Alencar, Alfredo Pujol e Miguel Couto decidiram
que ele tinha "o corte e o talhe" exigidos pela mais ilustre confraria brasilei-
ra. Ao saber do projeto, Capistrano, Pedro Lessa e Júlio Mesquita se junta-
ram para demover o jovem de 27 anos daquela aventura. Chamaram Cha-
teaubriand para uma conversa antes mesmo que ele tivesse tempo de aceitar
o convite para a disputa. Capistrano foi encarregado de resumir o que o gru-
po pensava daquilo - e o fez com poucas palavras, sem a menor cerimônia:
- Soubemos que você está ensaiando para entrar na Academia, a mes-
ma Academia que seus artigos tanto açoitam. Vimos dizer-lhe que somos
contra.
Chateaubriand tentou brincar, dizendo que, como paraibano, era inso-
lente e extrovertido demais para uma casa tão austera:
- O humor brusco da Paraíba não se concilia com o ambiente fino e
agradável de uma sociedade acadêmica como aquela.
Capistrano não estava para conversa e deixou isso claro:
- É uma sem-vergonhice de sua parte querer entrar naquele bródio de
cinqüenta meias-patacas. Pois bem: essa idéia tem nosso integral repúdio. Se
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pelo menos ali estivessem alguns quinhentões baianos... Não caia nessa as-
neira, não nos decepcione.
A advertência fora tão dura que ele percebeu que não tinha saída. Se ce-
desse à tentação de virar imortal, abalaria suas relações com os três amigos.
Decidiu comunicar a desistência ao grupo que o lançara, agora ampliado
pela presença do jornalista Félix Pacheco. Chateaubriand fez um longo e sin-
cero discurso, insistindo em que para ele as letras não eram um meio para o
aprimoramento do espírito, mas "a ferramenta de trabalho de um operário"
que viera ao Rio para ganhar a vida:
- Sei que tenho familiaridade suficiente para conversar com Goethe,
Schiller, Molière, Renan, Machado de Assis e Alencar. Mas é preciso que vo-
cês saibam que, honestamente, lido com as palavras para sustentar uma fa-
mília de onze pessoas que vive em torno de minha mãe viúva, no Recife. A
Academia vai matar minhas ambições de homem de ação.
Félix Pacheco rebateu que aquelas palavras escondiam o verdadeiro sen-
tido da recusa - a soberba:
- O Rio já te deu tanta coisa... Tu surgiste aqui com um estridor tão
violento, com uma luminosidade tão grande que perdeste a vontade de de-
sejar algo mais. O que queres na verdade é fazer da renúncia à Academia um
traço da tua originalidade. Para seres original, desdenhas a Academia.
O médico e educador Miguel Couto insistiu em que o jornalista, embo-
ra nunca tivesse produzido uma sílaba de ficção, era "um literato de calibre
muito superior ao da maioria dos imortais da Academia", mas Chateau-
briand deu a conversa por encerrada:
- É aí que todos vocês se equivocam com relação à minha profissão. O
jornalismo é uma arte que nos divorcia completamente da literatura. O ho-
mem de imprensa é a mais viva contradição do escritor. Nós, jornalistas, não
passamos de índoles descritivas. Somos no máximo coloristas dos fatos, se
quiserem, mas nunca, jamais, criaturas de imagens e de idéias. Meus pensa-
mentos não estão na Academia, eu lhes asseguro.
Capistrano de Abreu era o único de todos - os contrários e os favorá-
veis à candidatura - a saber que os pensamentos de Chateaubriand de fato
não estavam na Academia. Certamente já não estariam nem mesmo no Bra-
sil, a julgar pela carta de apresentação que o próprio Capistrano enviaria em
março de 1920 a um amigo que vivia na Alemanha:
[...) Chateaubriand embarca este mês para Berlim e pedir-lhe-ei que, se puder, o
procure. De pequena estatura, glabro, nasceu em Umbuzeiro, na Paraíba, como
o Epitácio. Tem menos de trinta anos, é docente da Faculdade de Recife. Veio ao
Rio há uns três anos por negócios de advocacia. Aqui foi ficando, primeiro
numa comissão da Secretaria do Exterior, depois como jornalista. Colabora no
Correio da Manhã, por cuja conta vai agora à Alemanha para um semestre. É re-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
dator-chefe do Jornal do Brasil, que fundou Rodolfo Dantas, comprou Rui e nele
manteve uma campanha brilhantíssima contra Floriano. Muito tempo ficou nas
mãos dos filhos do geógrafo Cândido Mendes, agora está nas do conde Pereira
Carneiro. Chateaubriand é jornalista honesto, moderado e culto. É germanófilo
como o Correio da Manhã; vários de seus artigos têm sido traduzidos no Deuts-
che Zeitung, de São Paulo. Ele irá muito recomendado pela colônia.
109
7
Não passava pela cabeça da maioria dos donos de jornais, na imprensa
brasileira do começo do século, gastar dinheiro mandando repórteres fazer
coberturas fora do país. Na verdade, nem fora de seus estados. O comum era
os próprios patrões - ou seus amigos e parentes com pendores para as le-
tras - aproveitarem viagens de turismo e recreio ao exterior para, na volta,
publicar suas impressões nos diários. As raríssimas exceções tinham ocorri-
do quando da assinatura do Tratado de Versalhes, na França, que estabele-
ceu as condições para o fim da Primeira Guerra Mundial. Daí, certamente, o
espanto com que Chateaubriand recebeu o inusitado convite feito por Ed-
mundo Bittencourt, o dono do Correio da Manhã, naquela tarde de novembro
de 1919. Bittencourt chamou o colaborador do jornal para um chá na varan-
da de seu casarão à beira da praia, em Copacabana, e fez a proposta sem ro-
deios: o Correio queria que ele passasse um ano na Alemanha, escrevendo arti-
gos e fazendo entrevistas com os vencidos da Primeira Guerra. Chateaubriand
quis saber por que ele tinha sido o escolhido, e recebeu como resposta um
rasgado elogio:
- Escolhi o melhor. Eu não poderia mandar nessa missão um jornalis-
ta médio ou um sofrível. E o melhor que eu conheço é você. A Alemanha é
um país central, de onde você poderá circular com desenvoltura pela Euro-
pa. Reconheço que o salário não é grande coisa, mas será suficiente para você
se manter com dignidade.
Ele tinha sido chamado para ocupar o cargo de secretário-geral do cen-
so nacional que seria realizado no Brasil no ano seguinte, mas aquela era
uma oportunidade única. Chateaubriand não se cansava de dizer em público
que o Correio tinha sido o único jornal brasileiro "a conservar a altivez e a li-
berdade diante da torrente de calúnias contra os vencidos de hoje". Para ele,
o Tratado de Versalhes era "um crime da força bruta e da arrogância a res-
peito do qual nunca fui neutro". Sua simpatia pela Alemanha era tal que
João do Rio - o mesmo que recebera dele a cascavel embrulhada para pre-
sente - acusava-o abertamente de ser um agente a soldo de Berlim. Não po-
deria haver melhor patrão, portanto, para germanófilo tão radical. Bitten-
court pretendia que Chateaubriand viajasse ainda naquele ano, mas passaram
várias semanas até que ele se desfizesse de tantos compromissos no Rio-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
ele já não trabalhava mais no Jornal do Brasil, mas continuava escrevendo ar-
tigos para outros diários - e só em março de 1920 seu navio atracaria na Itá-
lia, primeira escala européia antes de instalar-se na Alemanha.
Foi de uma Roma com quase todos os serviços em greve, e onde estava
só de passagem, que Chateaubriand enviou sua primeira e curta entrevista
- a reprodução de uma conversa mantida com Guglielmo Marconi duran-
te um chá no Grande Hotel. Era um trabalho insosso, cujo único mérito foi
ter conseguido fazer falar o inventor do telégrafo sem fio, conhecido como
um homem inacessível à imprensa. De inesperado, só o bom humor com que
o taciturno Marconi encerrou a entrevista. Quando Chateaubriand quis sa-
ber se o físico trabalhava em algum novo invento, ele respondeu que estava
tentando falar pelo rádio com o planeta Marte, mas sem muito sucesso-
"pois parece que a greve já atingiu os radiotelegrafistas do outro mundo".
Em companhia do embaixador Souza Dantas fez uma rápida viagem a Flo-
rença e de lá partiu finalmente para Berlim, onde pretendia fixar residência
pelos doze meses seguintes.
A partir de abril de 1920, o Correio da Manhã passaria a publicar dois ar-
tigos semanais assinados por Chateaubriand. Em troca de algumas libras a
mais, recebeu o convite para que o material fosse publicado simultaneamen-
te no diário La Nación, de Buenos Aires. Além disso, a cada dez dias o Cor-
reio trazia uma longa entrevista feita por ele com um personagem da vida
alemã. O primeiro da série foi o industrial Walther Rathenau, dono do con-
glomerado AEG. Logo na abertura da entrevista o jornalista revelou a surpre-
sa que lhe causara a simplicidade da sala de trabalho de Rathenau, o maior
fabricante europeu de turbinas, locomotivas, lâmpadas e automóveis: "O ga-
binete do presidente da AEG tem a sobriedade de uma cela de trapista", es-
creveu Chateaubriand, "que lembra mais uma sala de meditação que de tra-
balho". Depois dele desfilaram pelas páginas do jornal os perfis do economis-
ta Georg Gothein, ministro do Tesouro da República de Weimar, do panfle-
tário Maximilian Harden, diretor do semanário Zukunft, dos generais Hoff-
mann, Von der Goltz e Von Gallwitz, do banqueiro Bernard Dernburg, dos
cientistas Wassermann e Haber, diretores do Kaiser Wilhelm Institut, presi-
dido pelo físico Albert Einstein, que naquele ano receberia o prêmio Nobel
de física. A cada entrevistado Chateaubriand pedia contatos, bilhetes e car-
tas de apresentação para tentar chegar perto de quatro personagens conhe-
cidos pela ojeriza que tinham por jornalistas: os marechais Hindemburgo e
Ludendorff, o almirante Tirpitz e o teórico marxista Karl Kautsky, festejado
internacionalmente como o herdeiro político de Friedrich Engels.
Em meados do ano, durante breve viagem a Paris, o jornalista recebeu
no hotel a visita de um certo conde de Carapebus, que o procurava em nome
da Família Real brasileira. A princesa Isabel, filha de d. Pedro II e autora da
lei que abolira a escravatura no Brasil, mandava convidar Chateaubriand
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FERNANDO MORAIS
para passar um fim de semana no castelo da família em Eu, no Noroeste da
França. Durante os anos em que trabalhara no Rio de Janeiro, ele encabeçara
uma campanha, por meio de artigos no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil,
pela revogação do decreto que banira a Família Imperial do território brasi-
leiro. Durante a disputa pela Presidência da República, meses antes, Chateau-
briand arrancara de seu conterrâneo Epitácio Pessoa o compromisso de que,
eleito presidente, ele revogaria o decreto. Vitorioso, Pessoa telegrafou ao ami-
go para anunciar que a promessa estava cumprida: "Umbuzeiro está vitorio-
so nessa jornada. A revogação do banimento da Família Imperial vai ser um
dos meus primeiros atos como presidente da República". Ao saber que esta-
va na França o jovem que liderara a campanha em favor de sua anistia, a prin-
cesa e o seu marido, o conde d'Eu, quiseram conhecê-lo de perto.
Chateaubriand acabou passando não dois, mas seis dias no Castelo d'Eu
e passeando em companhia da princesa pelos campos da Normandia. Para
não emocioná-la demais - quase uma octogenária, de cabelos inteiramente
brancos, Isabel acabaria falecendo poucas semanas após aquele encontro -,
ele ocultava a real situação em que se encontravam os negros no Brasil, para
muitos dos quais a libertação não passara de um pedaço de papel. Frequen-
temente ela voltava ao assunto:
- E então, doutor Assis, o que foi feito dos negrinhos que vendiam co-
cada, tapioca e beijus nas ruas de Petrópolis em 1888?
Chateaubriand desconversava, dissimulado:
- Vão bem, alteza, os seus negrinhos vão muito bem.
Da França ele embarcou para uma temporada em Londres. Era seu pri-
meiro vôo em um avião comercial - um moderno Junker de alumínio, de
três motores e oito lugares, que nem de longe lembrava o minúsculo Blériot
em que se aventurara sete anos antes pelos céus de Recife. Embora empre-
gado do Correio da Manhã, Chateaubriand continuava mantendo boas rela-
ções com o conde Ernesto Pereira Carneiro, dono do Jornal do Brasil e seu an-
tigo patrão. E o pretexto para realizar a viagem tinha sido um telegrama que
ele recebera do conde, que se encontrava na capital inglesa, convidando-o
para um almoço em que o jornalista e empresário pernambucano seria ho-
menageado por um grupo de lordes. Esnobe, o conde dizia a Chateaubriand
que ele seria "o único convidado desse lado daí do canal para o ágape"-
o que ele chamava de "esse lado daí do canal" era a Europa continental. A
recepção seria na City, o que obrigou o convidado a já embarcar em traje
protocolar. Maneco Mendes Campos, um amigo brasileiro que vivia em Pa-
ris, achava uma insensatez alguém "vestir um fraque e atravessar o canal da
Mancha em um aeroplano, sob nevoeiro fechado, só para comer um pedaço
do presunto de York que lord Mayor oferece a um fidalgo pernambucano".
Com planos de passar algumas semanas em Londres, Chateaubriand to-
mou um quarto no elegante Hotel Claridge's, para onde acabou arrastando
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Pereira Carneiro. Ele se deliciava com a ingenuidade do conde, que, apesar
de experimentado jornalista, não resistia ao assédio dos repórteres da im-
prensa de mexericos sociais da City. Tempos depois Chateaubriand descre-
veria em um artigo a atmosfera que cercava o dono do Jornal do Brasil na Eu-
ropa:
A imprensa de reportagens remuneradas, a cuja disposição Ernesto Pereira Car-
neiro deliberou ficar, é universal, existe em toda a Europa. A reputação de dis-
pensador generoso de publicidade do conde, segundo constatei, já atravessara
o Atlântico. Ele era um mantenedor ultramarino de jornais. Ao desembarcar em
Lisboa, segundo me confessou, se vira envolvido por um cardume de espertos
enquêteurs, peritos na arte de reportagens a mil-réis forte o centímetro. Imagi-
nem um conde sul-americano, jornalista, armador, com mais de 1 milhão de li-
bras nos bancos da City, como tinha o nosso santo conde! Não era um fidalgo
que dava às praias do Tâmisa, mas uma baleia tropical, que assanhava a cobiça
e o faro dos repórteres do subjornalismo britânico. Entrei uma manhã no belo
salão de visitas do apartamento amarelo de Afonso xIII, que ele ocupava, quan-
do o doce Ernesto se deixava extirpar voluptuosamente por dois ágeis jornalis-
tas londrinos. Liquidado o conde, marcharam para mim.
Marcharam em vão. Malandro, o que mais divertia Chateaubriand era
provocar a burguesia britânica. Todas as manhãs ele se escarrapachava em
um dos confortáveis sofás centrais do lobby principal do Claridge's para fo-
lhear, escandalosamente, seu exemplar do Daily Worker, o jornal do Partido
Comunista inglês, adquirido, junto com outras publicações, num quiosque
das proximidades. Indignados, os hóspedes do hotel - banqueiros, políti-
cos, financistas da City - eram obrigados a testemunhar diariamente aque-
le acinte. E quanto mais cara feia aparecesse, mais Chateaubriand provoca-
va - ao dobrar as páginas do jornal, abria os braços e balançava as folhas no
ar, como se estendesse um lençol.
Um dia a coisa entornou e Chateaubriand foi procurado em seu quarto
por um funcionário com um ultimato da direção: os moradores permanen-
tes se queixavam muito da provocação feita com o Daily Worker, todas as ma-
nhãs, e ele teria de se mudar do hotel. Ele protestou, gritou, reclamou, mas
foi tudo em vão: em 24 horas precisava liquidar as contas e deixar o Clari-
dge's. Sem acreditar no que ouvia, tomou o elevador e bateu à porta da suí-
te que o ex-primeiro-ministro Lloyd George alugava para escrever as suas
Memórias de guerra. O político britânico não entendeu o que é que ele tinha
a ver com aquele problema e, portanto, entendia menos ainda por que aque-
le rapaz pequenino e de fala incompreensível se atrevia a bater à sua porta
para reclamar de um funcionário de hotel. Ainda assim resolveu ouvir a con-
fusa história até o fim. Chateaubriand contou em detalhes o que aconte-
cera, e insistiu em que não era um gesto provocativo, até porque ele lia vá-
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FERNANDO MORAIS
rios jornais no saguão do hotel todos os dias, e não apenas o Daily Worker.
E garantiu:
- Não tenho pendores comunistas, mas em uma nação democrática
ninguém pode impedir-me de ler um jornal comunista.
Lloyd George acabou por concluir que, de fato, o hotel cometia uma in-
justiça com o rapaz. Tirou o robe, colocou paletó e gravata e desceu à gerên-
cia do hotel investido da autoridade de ex-comandante supremo das forças
aliadas na Primeira Guerra Mundial. Lá chegando, apenas comunicou que,
se Chateaubriand fosse expulso, ele também deixaria sua suíte definitiva-
mente. O hotel não teve outra alternativa senão engolir o impertinente hós-
pede sul-americano. Que, de pirraça, a partir daquele dia passou a ler exclu-
sivamente o Daily Worker no saguão do Claridge's, guardando os jornais
conservadores para ler no quarto.
Para alívio da direção do hotel, entretanto, o desconforto duraria pou-
co. Semanas depois Chateaubriand resolveu fazer as malas e voltar para Pa-
ris, levando consigo o conde Pereira Carneiro. Na véspera da partida, jantou
com o antigo e o novo patrão, Edmundo Bittencourt, que estava de passa-
gem pela Inglaterra. O dono do Correio da Manhã disse estar muito satisfeito
com o trabalho que o repórter realizava na Europa, mas era portador de um
convite para que ele retornasse ao Brasil. O novo governador de Pernambu-
co, José Bezerra Cavalcanti, decidira fazer um agrado a Bittencourt e coloca-
ra à disposição do Correio uma cadeira de deputado federal - e o nome in-
dicado pelo próprio ofertante para ocupá-la era o de Chateaubriand. "Embora
me sinta ufano da minha condição de brasileiro diante de um convite desses,
recuso sem pestanejar", ele respondeu. "O Parlamento não faz parte dos meus
sonhos."
De volta à capital francesa, espantou-se, semanas depois, quando Ernes-
to Pereira Carneiro - um conde papalino, católico praticante e marido fide-
líssimo - pediu sua companhia para "conhecer Montmartre por dentro". O
conde esclareceu, desde logo, que não pretendia "espojar-se no vício, mas
apenas flertar com ele, ver como era a cara de Satanás". Chateaubriand mal
conhecia o bairro boêmio de Paris, pois, quando não ia ao teatro ou à ópera,
dormia sempre às dez da noite, e precisou recorrer a um especialista na ma-
drugada parisiense, o amigo Maneco Mendes:
- Maneco, não acredito no que ouvi daquela boca que recende a santi-
dade. Se o conde me tivesse dito que ia arrebentar os miolos com dois tiros
de uma garrucha do Pajeú de Flores, eu não me assustaria tanto.
Apesar do espanto, mandaram preparar uma ceia para três no cabaré
Abbaye de Theléme, onde passariam juntos a última noite de Chateaubriand
em Paris. Os dois encomendaram aos donos da casa a presença de algumas
"ladies britânicas de alto coturno" para animar a festança. No fim da noite
,
ao se recolherem ao Hotel Royal, Chateaubriand e Maneco comentavam que
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
o conde saíra daquela abadia do pecado tão puro quanto entrara. Seu único
delito tinha sido o exagerado consumo de champanhe. "O que o conde Pe-
reira Carneiro queria era medir a força de sua própria beatitude ", gargalha-
va Chateaubriand. "Eu sabia que nenhuma das falenas que borboleteavam
naquela boate lograria seduzir o Xenócrates pernambucano."
O retorno de Chateaubriand a Berlim coincidiu com a presença na capi-
tal alemã do marxista Kautsky, que vivia na Áustria. O jornalista já havia
tentado entrevistá-lo antes. Desembarcou na cidade e simplesmente bateu à
porta da casa de Kautsky. A mulher deste recebeu-o cordialmente, mas foi
taxativa: o marido não falava com jornalistas. Não ia ser diferente agora, ele
percebeu ao ser recebido por madame Kautsky à porta do amplo apartamen-
to da Windscheidstrasse. Polida, ela disse que a entrevista não seria possível:
- Tudo o que meu marido tem a dizer ele escreve e publica nos jornais,
meu jovem.
Chateaubriand não se conformou:
- Confesso que essa maneira de receber um colega estrangeiro não me
parece muito recomendável para um apóstolo do socialismo. Tenho encon-
trado hospitalidade diferente na residência dos representantes mais exalta-
dos da burguesia e do capitalismo...
Diante da renitente negativa da mulher, tentou uma última jogada:
- Desta vez tenho informações que talvez interessem ao senhor
Kautsky. Entrevistei ontem o economista August Müller, ex-ministro do In-
terior, e ele contou-me, em primeira mão, que está embarcando para a Rús-
sia nos próximos dias, à frente de uma missão de industriais teutónicos. Meu
jornal só publicará essas informações daqui a alguns dias, mas eu terei o
maior prazer em reproduzir para seu marido tudo o que o doutor Miiller me
disse.
O golpe baixo deu certo, e valeu a Chateaubriand três horas de entrevis-
ta com aquele a quem os dirigentes soviéticos se referiam como "o renega-
do", o homem cujo sobrenome iria parar na capa do livro A revolução prole-
tária e o renegado Kautsky, escrito por Lenin em 1918. Ao final da entrevista
(que renderia uma página inteira no Correio da Manhã), Kautsky inverteu os
papéis e passou a interrogar Chateaubriand sobre a política no Brasil: quan-
tos deputados tinha a direita no Brasil? Ela era reacionária como a da Ale-
manha? Quantos partidos socialistas existiam no Parlamento brasileiro?
Chateaubriand disse ter sentido enorme dificuldade para responder àquele
"terrível quebra-cabeça", e só encontrou uma maneira de resumir, para um
Karl Kautsky de olhos arregalados, o que era o Parlamento brasileiro:
- Doutor Kautsky, o Poder Legislativo no meu país é quase sempre um
seio de Abrahão, largo, generoso, onde todos os deputados só aspiram a
um objetivo: a bem-querença do Poder Executivo.
115
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FERNANDO MORAIS
Animado com o sucesso da entrevista no Brasil, Chateaubriand partiu
em direção a sua próxima presa: o general Erich Ludendorff, ex-chefe do es-
tado-maior de Hindemburgo na Primeira Guerra que, três anos depois, se
juntaria a Hitler no comando do fracassado putsch de Munique. Quando sou-
beram que aquele pequenino brasileiro viajaria a Munique pára entrevistar
Ludendorff, os correspondentes da imprensa americana em Berlim reagiram
com gargalhadas. Alguns deles chegaram a apostar que ele voltaria à capital
de mãos abanando. O que os americanos não sabiam é que aoembarcar no
trem noturno com destino à Baviera, Chateaubriand levava na pasta a cópia
de uma carta de recomendação que outro entrevistado, o general Von der
Goltz - que lutara ao lado de Ludendorff na batalha de Tannenberg -, en-
viara ao superior. O autor da apresentação enchera o repórter de confiança,
ao despachá-lo para Munique:
- Com esta carta nas mãos o senhor, como no Fausto, irá até o Reino das
Madres, e verá tudo.
O trem atrasou quase cinco horas, não tinha aquecimento, a noite esta-
va gelada, e só de madrugada é que Chateaubriand arranjou um leito para
descansar um pouco. Quando conseguiu falar pelo telefone de Munique com
a casa do general, em Ludwigshohe, uma voz mal-humorada disse que Lu-
dendorff o esperara até dez minutos antes, como tinha sido acertado, e tive-
ra de sair para só retornar às 18h45. Na hora exata, depois de rodar
vinte mi-
nutos de táxi até a villa em que vivia o militar, um criado o introduziu ao
salão principal da casa - descrito minuciosamente na reportagem -, onde
Ludendorff entrou em seguida. Sem apertar-lhe a mão, sem dar boa-noite, o
general, vestindo um puttee de pano cinzento, tinha no peito um guardana-
po branco e em uma das mãos uma faca de comida, que ele brandia como se
fosse uma espada. Aproximou-se de Chateaubriand e disse raivoso, autori-
tário:
- O senhor está aqui desde a manhã. Como aparece a estas horas da
noite na minha casa, se a carta do general Von der Goltz fala em um compro-
misso entre três e quatro da tarde? Imagino que o senhor deve ter dissipado
seu tempo pela cidade. Tenho visitas, não posso mais recebê-lo. Retire-se,
por favor.
"Ele brandia a faca e avançava para o repórter num ímpeto de felino as-
sanhado ", escreveria Chateaubriand no jornal. "Tudo isso foi dito num tom
de quem convida para a briga. Fiquei atônito. As mãos tremeram-me. Enca-
rei o general e vi-o de sobrecenho carregado, os olhos cheios de ira. Perma-
necemos alguns segundos a olhar um para o outro, sem dizer palavra, jogan-
do uma cena muda. Ouvi um bater de pratos. Certamente jantavam. O meu
ímpeto era dar de costas àquele bruto e partir. Pensei, entretanto, na fortuna
que me sorria de poder entrevistar-me com o antigo primeiro quartel-mes-
tre, e decidi tomar Ludendorff como ele era: um selvagem bravio e cru." O
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CHATÓ, O REI DO BRASIL
nervosismo provocado pela cena era tal, Chateaubriand diria depois, que
seu maior medo era não conseguir pronunciar uma só palavra em alemão.
E falar em francês ali certamente poria tudo a perder. Tomou coragem e
avançou:
- Senhor general, meu trem atrasou várias horas e eu tive dificuldades
para me comunicar por telefone com sua casa. Se estou aqui a esta hora é
porque de sua casa me deram essa orientação. Peço desculpas pelo atraso in-
voluntário e faço um apelo para que o senhor me receba amanhã.
Ainda "de arma na mão" mas já mais calmo, o general cedeu:
- Venha às onze da manhã. Economize o dinheiro do táxi e venha de
trem de Munique até aqui. O trem chegará às 11h05, e da estação até minha
casa o senhor gastará cinco minutos a pé.
Como a entrevista já estava garantida, ele não resistiu à tentação de fa-
zer mais uma provocação, como vingança pelo sermão que fora obrigado a
ouvir:
- Prefiro vir de táxi mesmo, general. A crise do carvão está desmorali-
zando a proverbial pontualidade dos trens alemães.
A antipatia do repórter pelo personagem parece ter durado pouco. Na
entrevista publicada pelo Correio - a primeira concedida pelo militar desde
que abandonara o Estado-Maior alemão -, apesar de ressalvar que a pri-
meira impressão tinha sido "abominável", Chateaubriand apresenta Luden-
dorff apoteoticamente, como o "César loiro da Alemanha", o "Ubirajara ful-
vo ", "o homem que fez tremer o mundo quando desencadeou a ofensiva de
1918 como um terremoto, abalando a Europa dos Alpes às costas flamen-
gas". O general falou horas e horas a respeito de quase tudo, previu equivo-
cadamente que Lenin cairia em poucos meses e ao final enviou uma mensa-
gem manuscrita "aos compatriotas brasileiros de estirpe alemã", transformada
em clichê e reproduzida pelo jornal.
Naquela mesma noite Chateaubriand tomou o Expresso Oriente de Mu-
nique para Karlsruhe, onde dormiu e de onde partiu na manhã seguinte, a
caminho de Saint-Blasien, na Floresta Negra, para a entrevista com o almi-
rante Alfred von Tirpitz. Animado pela entrevista com Ludendorff, ele foi ao
encontro do almirante sem nenhum arranjo prévio, confiando apenas em
uma carta de apresentação que fora enviada àquele por seu genro, Karl von
Hasseler, secretário da embaixada do Reich em Roma, a quem Chateau-
briand tinha sido apresentado logo ao chegar à Europa. A carta não tivera
resposta e, além disso, o jornalista sabia que só muito excepcionalmente os
militares alemães que mais se celebrizaram na Primeira Guerra Mundial re-
cebiam jornalistas. E quase nunca abriam exceção aos representantes de paí-
ses que tivessem participado da guerra contra a Alemanha. Em resumo,
tudo jogava contra o sucesso da empreitada.
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FERNANDO MORAIS
Ao se registrar na portaria do hotel de Karlsruhe, Chateaubriand perce-
beu que, além de todas as dificuldades, seu sobrenome também conspirava
contra a entrevista. O gerente tinha sido gentilíssimo até o momento em que
ele pediu um pedaço de papel para redigir um telegrama a Von Tirpitz, pre-
venindo-o de sua chegada no dia seguinte a Saint-Blasien para o pretendido
encontro. Já fazia alguns meses que o jornalista deixara de assinar "A. Ban-
deira de Melo ", substituindo-o pelo nome com que ficaria conhecido, "Assis
Chateaubriand" ou simplesmente "A. Chateaubriand". Ao pegar o papel
para transmitir a mensagem e ver o sobrenome francês na assinatura, o ho-
mem voltou-lhe abruptamente as costas, dizendo em voz alta para outro
funcionário:
- Não me espanta o cinismo desses franceses ao vir procurar o almi-
rante, meses depois de querer enfiar sua cabeça no laço de uma forca. O que
me envergonha como alemão é saber que Von Tirpitz os recebe e agasalha...
Escaldado com o ocorrido em Munique, chegou cedo a Saint-Blasien-
uma estação de cura para tuberculosos aos pés da Floresta Negra - e só teve
tempo de deixar as malas no hotel, tomar um rápido drinque em um dancing
para se aquecer e pegar o táxi em que escalaria a ladeira rumo à casa do al-
mirante. Para sua surpresa quem atendeu à porta foi o próprio Tirpitz... mas
para avisar que não haveria entrevista alguma:
- Doutor Chateaubriand, nós fomos criminosamente atingidos pelo
Tratado de Versalhes, que nos desarmou. A leste temos os inimigos russos,
a oeste temos os inimigos britânicos. Eu o recebo em minha casa em atenção
ao pedido do meu genro, mas não posso dar entrevistas a jornalistas de paí-
ses que romperam relações ou que combateram a Alemanha. Seria impa-
triótico.
Enquanto abria apressadamente a pasta, de onde tirava recortes de jor-
nais, Chateaubriand partiu para a ofensiva:
- Almirante, meu único fuzil é a minha caneta, e todas as vezes que a
usei para falar do grande conflito eu o fiz em favor da Alemanha. Critiquei
meu próprio país por nossa pusilanimidade durante a guerra. Tenho aqui
recortes do meu jornal para que o senhor aprecie a orientação do Correio da
Manhã quanto à política estrangeira do Brasil. Trago também um artigo que
publiquei em alemão no Deutsche Zeitung, excelente diário editado em São
Paulo pelo meu amigo Rodolfo Troppmair, que não deixa dúvidas quanto às
minhas convicções. E trouxe para o senhor, ainda que em português, algu-
mas das entrevistas que realizei nos últimos meses na Europa. Por estes es-
critos, o senhor verá que eu não sou um inimigo.
Era mais um militar que se rendia. Dias depois o Correio da Manhã pu-
blicava duas páginas inteiras com a entrevista que começava descrevendo a
vegetação que cercava a casa de Tirpitz, da Floresta Negra: "Aqui nada há
que recorde a Prússia amarga, de solo exausto e pobre, de natureza rude e
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
severa. Aqui é uma féerie de verdura transparente, de vegetação luxuriante,
de terra fresca e doce, de céu poético e azulado, como se o iluminasse um
raio de sol da Itália. O automóvel que me levava conduziu-me através do la-
birinto da floresta, galgando as estradas em ziguezague, de onde víamos pe-
nhascos e precipícios que lembram as pedras atormentadas do Rio de Janei-
ro". No meio das massudas colunas de texto um clichê exibia mais um
manuscrito em alemão - que desta vez Chateaubriand arrancara de Tirpitz,
agradecendo "a boa conduta dos alemães, no Brasil, durante a guerra".
Quando regressou, triunfante, a Berlim, Chateaubriand foi aconselhado
por médicos a liquidar, com uma cirurgia, um velho problema de rinite que
o clima europeu agravara. Nem o cirurgião que o operou - o cientista de ul-
tradireita Gustavo Killian, do Kaiser Wilhelm Institut - conseguiria escapar
de uma entrevista. Aproveitando os encontros que tiveram nos dez dias em
que permaneceu convalescente no hospital, Chateaubriand entrevistou-o
para uma reportagem sobre o avanço da medicina e da ciência na Alemanha
do pós-guerra.
Essa obsessão jornalística de querer transformar em notícia tudo o que
estivesse ao alcance de sua mão acabaria, ironicamente, sendo a causa do en-
cerramento abrupto de sua experiência como correspondente na Europa. Ao
receber em Berlim um pacote contendo os exemplares de duas semanas do
Correio da Manhã, ele deu com uma minúscula nota - um "tópico", como
chamavam na época - que o deixou indignado. Na verdade tratava-se de
uma brincadeira ingênua do jornalista Pedro da Costa Rego, ironizando o es-
tilo Chateaubriand de trabalhar. Os jornais haviam noticiado que o rei Jor-
ge II, da Grécia, fora hospitalizado depois de ser mordido por um macaco.
Sem assunto para encher sua coluna, Costa Rego escreveu que muito prova-
velmente àquela hora Chateaubriand estaria entrevistando o macaco... Ele
saiu apressado do hotel e foi à estação telegráfica, de onde transmitiu uma
mensagem a Edmundo Bittencourt exigindo que o autor do deboche fosse
punido - uma ilusão, já que Costa Rego era o poderoso secretário de reda-
ção do Correio e o braço direito de Bittencourt. Como não recebesse respos-
ta, simplesmente fez as malas e pediu demissão do jornal. Telegrafou de
novo ao Brasil comunicando a decisão e pedindo a dilatação, por mais al-
guns dias, do prazo já vencido de sua carta de crédito na Europa. Temendo
que a burocracia e a dificuldade de comunicações o prendessem por muito
tempo na Alemanha, tomou mil libras emprestadas com o jornalista Theo-
dor Wolff, deputado e diretor do Berliner Tageblatt, e partiu. O retorno repen-
tino acabou impedindo-o de fazer aquela que imaginara ser a mais impor-
tante de todas as entrevistas que planejara - com o marechal Hindemburgo.
Ele já havia viajado a Hamburgo, em agosto, para um encontro previamen-
te acertado com o militar, mas lá chegando a entrevista teve de ser desmar-
cada. Adiado para fins de novembro, o encontro acabaria não acontecendo.
119
#
FERNANDO MORAIS
No dia 15 de novembro de 1920, Chateaubriand estava em alto-mar, a bor-
do de um transatlântico inglês, a caminho do Brasil.
Mal pôs os pés no Rio de Janeiro, Chateaubriand já tinha emprego ga-
rantido. O conde Pereira Carneiro, que acabara de assumir o controle do Jor-
nal do Brasil, comprando a parte da empresa Mendes & Cia., chamou-o
para ocupar o lugar de redator-chefe, o mesmo que ele deixara meses antes,
ao partir para a Europa. Mais uma vez, entretanto, ele nem esquentaria di-
reito a cadeira no novo trabalho. Nos primeiros dias de junho de 1921, pediu
as contas a "seu Ernesto ", como tratava o conde. As razões de sua saída nun-
ca ficaram muito claras. Em um artigo publicado meses depois, ele insinuou
que o diretor-tesoureiro do jornal teria sugerido um substancial aumento em
seu salário em troca do apoio à candidatura do mineiro Artur Bernardes à
Presidência da República. Chateaubriand teria recusado a oferta - "apesar
de acumular algumas dezenas de contos de dívidas " - e pedido demissão.
Mais tarde voltaria ao tema, dizendo que saiu ao perceber que o conde iria
mesmo colocar o jornal a serviço da candidatura de Bernardes. Ambas as
versões seriam satisfatórias se na campanha eleitoral o Jornal do Brasil não ti-
vesse ficado ao lado do fluminense Nilo Peçanha e, portanto, contra Artur
Bernardes.
Seja como for, ele acabou indo buscar refúgio, de novo, no frondoso es-
critório de advocacia de Afrânio de Melo Franco. A decisão fazia parte de
uma estratégia: ao retomar a profissão de advogado, que tinha sido a sua
"alavanca" ao chegar ao Rio, Chateaubriand pretendia dar passos decisivos
na realização de seu antigo sonho de ter o próprio jornal. Com essa idéia fixa
na cabeça ele passou os três anos seguintes acumulando relações e dinheiro.
Uma vez que cavar dinheiro parecia cada dia mais difícil, investia na am-
pliação de seu cartel de amizades influentes - uma maneira um pouco mais
lenta de chegar ao que lhe interessava. Para se aproximar da próspera colô-
nia alemã, organizou uma campanha de arrecadação de fundos para o setor
de pesquisas científicas do Kaiser Wilhelm Institut, de Berlim, que acabou
rendendo, em dois meses de trabalho,140 contos de réis - ou 4 mil libras
esterlinas.
Em uma de suas viagens de trabalho a São Paulo, Chateaubriand rece-
beu uma chamada telefônica que parecia ter vindo do céu: do outro lado da
linha estava o conde Francisco Matarazzo, o homem mais rico do Brasil. Dois
anos antes, na sua primeira passagem pelo Jornal do Brasil, o jornalista aten-
dera um homem que entrara na redação pedindo que se noticiasse, ainda
que discretamente, a morte por acidente, ocorrida na Itália, do jovem Erme-
lino Matarazzo, filho do conde. Como que iluminado pelo instinto, o próprio
redator-chefe resolveu redigir um caprichado obituário, e assinou embaixo.
120
#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
Comovido com a homenagem, Matarazzo telefonava agora para agradecer
pessoalmente. Apanhou Chateaubriand no centro da cidade e levou-o a vi-
sitar algumas de suas fábricas. No final do dia ofereceu-lhe um jantar na
enorme casa térrea de colunas brancas instalada no meio de sua villa da ain-
da pacata avenida Paulista. Quando o cabriolé o deixava à porta do Hotel
Esplanada, à noite, o milionário chamou Chateaubriand a um canto para ofe-
recer-lhe um raro privilégio. Estendeu-lhe a ponta de seu próprio paletó e
sussurrou:
- Doutor Assis, o senhor foi muito generoso com o meu finado filho.
Desculpe a intimidade, mas esta é uma superstição da Calábria, na Itália,
onde eu nasci. Esfregue as pontas dos dedos aqui no meu paletó, que é para
eu passar-lhe um pouco da minha sorte.
Passou. Ali nascia uma amizade sólida e rendosa - pelo menos para
Chateaubriand - que duraria até a morte do conde, em 1937. Dividendos
menores, mas igualmente originários de boas amizades, ele já vinha colhen-
do no Rio de Janeiro. Alfredo Pujol indicou seu nome a Raoul Dunlop, pre-
sidente da Liga do Comércio do Rio (futura Associação Comercial), e ele foi
contratado como consultor jurídico da entidade, trabalho que se resumia a
dar pareceres sobre processos judiciais. Com a pilha de processos aumentan-
do a cada dia sobre sua mesa, sentiu necessidade de um auxiliar. Pediu au-
torização a Melo Franco para colocar mais uma mesinha num canto do escri-
tório e instalou ali, recém-chegado do Nordeste, seu irmão Oswaldo, que
acabara de se formar em direito. Rabugento, encrenqueiro e depressivo
(Chateaubriand chamava-o, meio por carinho, meio por ironia, de "Mimo-
so '), Oswaldo se metera em uma briga com o governador da Paraíba, Sólon
Barbosa de Lucena, e foi obrigado a se demitir do cargo de promotor de Jus-
tiça e abandonar o estado. Mas a passagem dele pelo Rio seria curta. Valen-
do-se do prestígio do irmão mais velho, poucas semanas depois Oswaldo
conseguia ser nomeado procurador da República em São Paulo.
Chateaubriand terminaria o ano de 1921 em grande estilo, com o lança-
mento de seu livro Alemanha, um cartapácio de quase quinhentas páginas,
no qual o jornalista reeditou os melhores artigos e entrevistas feitos no ano
anterior na Europa. Tanto a idéia da publicação do livro como praticamente
todo o trabalho de seleção do material, composição e impressão tinham sido
iniciativa do empresário alemão Paulo Beck, que se encantara com o autor
ao ler seus artigos no Jornal do Brasil e no Correio, ainda antes da viagem. Até
o custo da edição - ao todo, vinte contos de réis - ficara por conta do ad-
mirador. Para surpresa de Beck, do editor - o lusitano Álvaro Pinto, da AI-
manak Laemmert - e até do autor, o livro foi um sucesso de vendas. Tanto
que, além de pagar todos os custos de produção, ainda rendeu a Chateau-
briand outros vinte contos de réis.
121
#
FERNANDO MORAIS
Vinte contos, entretanto, ainda era dinheiro insignificante para a reali-
zação do sonho de ser dono de um jornal. O importante, enquanto o dinhei-
ro não vinha, era ir engordando o rol de amigos influentes. E foi por volta
dessa época que a mão do destino o guiou até o mais influente deles. Ale-
xander Mackenzie chamou-o para um encontro no escritório da Light, e lá
chegando deu com um velho conhecido seu: o industrial americano Percival
Farquhar.
No ano anterior, em uma de suas viagens a Paris, Chateaubriand janta-
ra uma noite no casarão da avenue Iéna em que Farquhar vivia sozinho, ser-
vido por catorze criados. O dono da casa recebeu-o de fraque e calça listra-
da, e quando os garçons começaram a servir o jantar o convidado espantou-se
com a lista impressa que lhe foi posta diante dos olhos, contendo as centenas
de marcas de vinhos disponíveis na adega da casa, cujo dono era abstêmio.
Farquhar vinha de uma vitoriosa viagem a Moscou, onde convencera Lenin
a renovar as concessões que suas empresas tinham na Rússia, desde os tem-
pos do czar, de exploração de ferrovias (que ele mesmo construíra) e poços
de petróleo em Baku, capital da recém-criada República Socialista Soviética
do Azerbaijão, às margens do mar Cáspio.
No escritório da Light, no Rio, Chateaubriand deparava com o mesmo
Farquhar de antes: além de seco, taciturno, incapaz de um sorriso, ao contrá-
rio do jornalista, que já falava com absoluta fluência, o industrial era gago.
Ele foi direto ao assunto:
- Doutor Assis, o Mackenzie chamou-o aqui porque o doutor Afonso
Pena Júnior, advogado das minhas empresas no Brasil, vai assumir a direção
do Banco do Brasil e terá de nos abandonar. Gostaria que o senhor assumis-
se o lugar dele.
Chateaubriand sabia do que se tratava e achava que aquela era uma
guerra perdida - guerra em que Farquhar estava metido no Brasil havia vá-
rios anos. Uma empresa de mineração de propriedade dele, a Itabira Iron
Ore Company, havia adquirido na região de Natividade, no vale do rio
Doce, em Minas Gerais, uma área de mais de 3 mil alqueires, em cujo subso-
lo calculava-se que estivesse escondido um tesouro de mais,de 1 bilhão de
toneladas de minério de ferro. Simultaneamente, Farquhar assumira o con-
trole acionário da Estrada de Ferro Vitória-Minas, caminho natural para o
escoamento do minério até o Espírito Santo. Uma persistente campanha de
setores nacionalistas combatia a entrega de concessões como aquela a gru-
pos estrangeiros. Os adversários de Farquhar sustentavam que, se abrisse a
exploração das jazidas de minério de ferro a grupos internacionais, o país
iria sofrer, dois séculos depois, sangria idêntica à provocada pelo ciclo do
ouro: exauridas as reservas, as empresas retornariam a seus países de ori-
gem, em prejuízo da economia brasileira. Um dos mais destacados líderes do
movimento nacionalista era um advogado mineiro que se elegera deputado
122
#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
federal por duas vezes e que agora era governador de Minas Gerais e candi-
dato declarado à Presidência da República: o mesmo Artur Bernardes que
Chateaubriand dizia ter sido a causa de sua saída do Jornal do Brasil. Bernar-
des se recusava terminantemente a autorizar que fosse assinado o contrato
permitindo a Farquhar a exploração da monumental jazida. Se Chateau-
briand assumisse a causa, era com Bernardes que iria se haver. Homem de
poucas palavras, Farquhar queria apenas saber se ele aceitava o convite: sim
ou não? Por todas as razões, ele deveria simplesmente dizer sim. O cliente
era milionário e a causa, para as convicções de Chateaubriand, era justíssi-
ma, patriótica. Meses antes ele escrevera vários artigos acusando seu amigo
e presidente Epitácio Pessoa de "jacobino ultranacionalista". por ter "come-
tido o crime de lesa-progresso" ao estatizar o porto de Rio Grande e as fer-
rovias da Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer du Brésil, de Porto Ale-
gre, cujo controle acionário o próprio Farquhar havia adquirido em 1910. Em
1911 Farquhar investira as primeiras 300 mil libras de lucro da Auxiliaire na
construção de ramais que a ligassem às linhas da Argentina Railway e da
Uruguay Railway, ambas controladas por ele.
Ao contrário do americano, Chateaubriand era um homem de muitíssi-
mas palavras, e à proposta seca respondeu com um espetáculo de retórica:
- Seu Farquhar, se um feiticeiro do direito como Afonso Pena Júnior
não conseguiu arrancar esse contrato do governador Bernardes, como é que
o senhor imagina que um jagunço como eu vai obter esse milagre? Vou ser
sincero, seu Farquhar: estou convencido de que Bernardes, assim como não
assinou o contrato com Afonso Pena, não o assinará comigo. Quer saber
mais? Esse contrato ele não assina com ninguém.
- Doutor Assis, tenho grande necessidade de seus serviços. Quero ape-
nas que o senhor me responda: aceita ou não aceita?
- Se é assim, não é convite, é intimação. Não cabe relutância e eu acei-
to entrar nessa guerra.
- Muito obrigado. Quanto é que seus serviços vão custar, doutor
Assis?
- Seu Farquhar! Para mim o senhor é um serviço público! Se todo mês
eu dôo meus honorários de professor licenciado de direito para a compra de
livros para a biblioteca da faculdade, como é que poderia cobrar do senhor?
Lutar para que o senhor explore o ferro de Minas Gerais não é uma causa co-
mercial, é uma cruzada cívica! Estar a seu serviço é para mim uma obriga-
ção nacional.
Farquhar não caiu na armadilha:
- Muito obrigado pelas palavras, doutor Assis, mas minhas empresas
não aceitam colaboração não remunerada. O senhor estabeleça o valor de
seus honorários e indique a casa bancária em que eles devem ser depositados.
123
#
FERNANDO MORAIS
Nos dez meses seguintes Chateaubriand jogou com Artur Bernardes um
interminável braço de ferro. O que era uma modesta oposição provincial à
assinatura do contrato de permissão acabou se transformando em uma cam-
panha nacional, que contava com o apoio de políticos de expressão, como o
senador paulista Alfredo Ellis, e de industriais do porte de Jorge Street. Para
os nacionalistas, Assis Chateaubriand passou a ser o símbolo da entrega das
riquezas brasileiras. Não um advogado, mas o testa-de-ferro da Itabira Iron
no Brasil. Irredutível em suas posições, Bernardes não concordava com o
projeto de Farquhar de construir em Minas uma usina siderúrgica capaz de
produzir 150 mil toneladas anuais de aço. Para um empreendimento que exi-
giria investimentos de 42 milhões de dólares, Farquhar dera parceria a inves-
tidores de Nova York, Londres, Amsterdam e Paris. Nada disso parecia con-
vencer o governador mineiro. Nas reuniões que tinha em Belo Horizonte
com Chateaubriand, Bernardes insistia em que, para os interesses nacionais,
o que convinha era a manutenção do sistema então vigente - o estímulo à
instalação de várias pequenas usinas, cuja construção deveria ser precedida
de uma exigência: os empreendimentos podiam ser controlados por capitais
privados ou estatais, desde que brasileiros. "A grande siderurgia estrangei-
ra", dizia ele a Chateaubriand, "matará a pequena, que é um patrimônio do
povo mineiro." Em relatório enviado a Farquhar, Chateaubriand contou que
"custou enorme esforço conter uma crise de apoplexia" quando ouviu, no
meio de um despacho, esta declaração de princípios do governador mineiro:
- O senhor não acha que estaremos fazendo coisa mais útil ao Brasil,
guardando esses depósitos de ferro por mais trezentos anos? Que patrimô-
nio não iríamos legar aos nossos compatriotas...
Chateaubriand tentava argumentar que seria preferível, então, vender o
ferro para os estrangeiros, convertê-lo em ouro e capitalizá-lo:
- Com isso podemos legar aos nossos compatriotas um pico do Itabira
não como uma montanha de ferro, mas como um maciço de ouro puro!
Quando começava a declamar a boa receptividade com que as empre-
sas de Farquhar eram tratadas na maioria dos países ("Até na Rússia de Le-
nin, governador!", ele se exaltava, "até na Rússia de Lenin!"), Bernardes res-
pondia com indiferença:
- Não posso ter apreço por uma empresa estrangeira que quer esbura-
car Minas Gerais, doutor Assis...
Desesperado com a renitência do governador, Chateaubriand apelou
para um golpe baixo: com a ajuda de Henry L. Hunt, um empregado de Far-
quhar nos Estados Unidos que vinha freqüentemente ao Brasil dar apoio téc-
nico às demandas políticas e judiciais do patrão, forjou em uma gráfica do
Rio um recorte de notícia saída em um jornal norte-americano. Era uma en-
trevista - que nunca tinha existido, claro - em que o presidente dos EuA,
Calvin Coolidge, anunciava com todas as letras ser francamente favorável à
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#
CHATÔ. O REI DO BRASIL
importação, pelos Estados Unidos, de minério de ferro de países fornecedo-
res de matérias-primas. Os dois fizeram chegar às mãos do governador a no-
tícia fraudada, na esperança de que a garantia de um grande mercado com-
prador, como os Estados Unidos, pudesse fazê-lo mudar de idéia. Nada:
Bernardes leu com absoluta indiferença o recorte de jornal, que alguém con-
trabandeara para sua pasta de despachos diários, antes de atirá-lo à cesta de
lixo.
Por alguma misteriosa razão, depois de um ano de negociações que não
saíam do lugar, Chateaubriand percebeu sinais de que Bernardes estava
prestes a abrandar sua inflexibilidade. Ele desconfiava de que o governador,
candidato a presidente, pretendia arrefecer a imagem de nacionalista intran-
sigente e, ao mesmo tempo, cortejar o indispensável apoio do presidente Epi-
tácio - que estava longe de ser o xenófobo a que Chateaubriand se referira
- para sua campanha. O que era apenas uma suspeita se confirmaria em
pouco tempo. Bernardes mandou avisar que autorizaria a assinatura do con-
trato, tal como Farquhar pretendia, mas que o imposto estadual por tonelada
exportada, que era de trezentos réis, seria decuplicado para três mil-réis.
Por mais absurdo que pudesse parecer um governante multiplicar por
dez, da noite para o dia, o valor de um imposto, Bernardes imaginava ter
dado um xeque-mate em Farquhar e Chateaubriand: a decisão jogava por
terra as acusações de intransigência e agora, se o empreendimento não fosse
implantado, seria por decisão de Farquhar, não dele. Chateaubriand ainda
tentou, em vão, reduzir o tributo estadual para mil-réis por tonelada. Ape-
sar de indignado com o golpe que sofrera, em 1922 cumpriu sua obrigação
como advogado e telegrafou a Farquhar transmitindo o que chamou de "ex-
torsiva proposta" do governador mineiro. Para seu espanto - e, muito pro-
vavelmente, de Artur Bernardes -, Farquhar mandou responder que acei-
tava a exigência. E mais: já tinha mandado refazer o projeto para instalar
uma siderúrgica com capacidade para produzir não 150 mil, mas 250 mil to-
neladas de aço por ano.
Maus fados, no entanto, pareciam perseguir os negócios de Farquhar no
Brasil. Embora o governo acabasse assinando o contrato, o Tribunal de Con-
tas da União recorreu a filigranas jurídicas e não aceitou registrá-lo, alegan-
do que descumpria a legislação brasileira. E mesmo tendo tido sua validade
reconhecida por meio do decreto 5568, assinado por Washington Luís em
novembro de 1928, o contrato acabou sendo declarado caduco por Getúlio
Vargas em 1931. Persistente, Farquhar ainda investiria no Brasil, criando a
Companhia Aços Especiais Itabira - Acesita, empreendimento cujo contro-
le acionário cairia nas mãos do Banco do Brasil em 1952. Destino idêntico ao
que fora dado à Itabira Iron Ore, que depois de passar às mãos de um gru-
po nacional transformou-se, durante a Segunda Guerra Mundial, na Compa-
nhia Vale do Rio Doce, uma empresa estatal. Como, aliás, sonhava o gover-
125
#
FERNANDO MORAIS
nador Artur Bernardes. E para indignação eterna de Chateaubriand, que
amaldiçoou o episódio até o último dia de sua vida.
Se não davam para realizar o sonho de comprar um jornal, os honorá-
rios recebidos de Farquhar eram mais que suficientes para satisfazer seu
luxo preferido, os carros elegantes. Além de pagar a dívida contraída para
comprar a Panhard, adquirida de segunda mão de Celina, mulher do milio-
nário Lineu de Paula Machado, o dinheiro permitiu-lhe montar uma peque-
na frota: importou uma segunda Panhard, zero quilômetro, comprou do em-
presário Carlos Guinle um Rolls-Royce usado e mandou trazer de São Paulo
um Du Pont que um grupo de industriais importara dos Estados Unidos
para dar de presente ao deputado Júlio Prestes, o qual recusara a gentil ho-
menagem. Anos depois Chateaubriand diria que "a esplendorosa frota de
máquinas de alto bordo" era essencialmente destinada a transportar "os
acionistas potenciais da minha futura cadeia de jornais". Enquanto estes não
apareciam, ele se deliciava à vertiginosa velocidade de 130 quilômetros por
hora no areal que cercava a lagoa Rodrigo de Freitas e pelas recém-abertas
avenidas do Rio de Janeiro. A seu lado iam os amigos Manuel Vilaboim, o
cirurgião Maurício Gudin, o industrial Olavo Egídio de Souza Aranha, a so-
prano Maria Melato e quando estava no Rio a "princesa austríaca" Iolanda
Penteado, agora casada com Jaime da Silva Telles.
Quando soube que o general Cândido Rondon pretendia fazer, em com-
panhia do ministro da Guerra, Pandiá Calógeras, e de Capistrano de Abreu,
uma viagem de vistoria dos postos militares do vale do Paraíba, em São Pau-
lo, Chateaubriand ofereceu-se para transportar o grupo em um de seus bóli-
dos. O austero militar mato-grossense rejeitou a oferta, mas ele insistiu com
Calógeras que queria ir junto, "ainda que fosse como mero ordenança" do
general. Rondon levou a sério a pilhéria e, nos primeiros dias da viagem de
trem, tratou o jornalista como a um subalterno de caserna, que estranhou ser
chamado não por seu nome, mas apenas por "impedido" - termo usado
por oficiais para tratar os soldados rasos colocados a seu serviço pessoal.
Para diversão de Calógeras e Capistrano, Rondon a cada parada do trem se
dirigia a ele com ordens secas: "Impedido, pegue minha bagagem"; "Impe-
dido, transmita estas mensagens pelo telégrafo". Ao longo dos dez dias de
duração da viagem - que Chateaubriand insistia em chamar de "bandeira"
-, os dois acabaram se tornando amigos, ligados por um interesse comum,
os índios. Anos antes o general havia feito os primeiros contatos com cain-
gangues, nhambiquaras, pauatês, tacuatês e urumis. E, como chefe da Co-
missão de Linhas Telegráficas do Exército, organizara uma expedição pelo
rio Amazonas, da qual fizeram parte o ex-presidente dos Estados Unidos
Theodore Roosevelt e um grupo de etnólogos do Museu de História Natural
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
de Nova York. Encerrada a excursão pelo vale do Paraíba, o "impedido"
conseguira convencer Rondon a criarem, juntos, um Clube Sertanista, desti-
nado a "preservar as culturas dos nossos selvagens". Anos depois Chateau-
briand diria que a idéia do clube só não floresceu por uma razão, que, na ver-
dade, stava se tornando uma obsessão sua: eles não dispunham de um
jornal para apoiar o projeto.
De volta ao Rio, Chateaubriand seria convidado pelos escritores Antô-
nio de Alcântara Machado e Graça Aranha e pelo deputado Manuel Vila-
boim para participar de uma aventura que tramavam, juntamente com um
grupo de artistas e intelectuais paulistas: uma semana de arte moderna, a ser
realizada em São Paulo no mês seguinte, fevereiro. Chateaubriand andava
meio escaldado com a leviandade dos intelectuais. Pouco tempo antes, con-
fidenciara ao escritor Humberto de Campos um segredo que ouvira do in-
ventor Santos Dumont: o "pai da aviação" estava apaixonado por uma mu-
lher casada. O objeto do secreto amor do maior herói brasileiro era "a
fabulosamente linda" madame Lettelier, mulher do diretor do diário pari-
siense Le Journal. "Trata-se de uma paixão lírica, casta e idílica", ironizara
Chateaubriand, "mas Santos Dumont não pensa em outra coisa." Para seu
desespero, dias depois o segredo apareceria escancarado em uma coluna as-
sinada por Humberto de Campos em A Gazeta.
Assim, quando Alcântara Machado, Graça Aranha e Vilaboim surgiram
com aquela conversa, foram recebidos a pedradas. O que os três imagina-
vam que seria "um marco na vida intelectual do Brasil", um acontecimento
destinado a tirar a poeira da cultura nacional, não passava, para Chateau-
briand, de "uma maluquice despropositada". Só aceitou ouvi-los, pacien-
temente, para tentar demover com desdém os "modernistas" que o procu-
ravam:
- Essa semana de arte de vocês não abalará coisíssima alguma. Será no
máximo uma semana de secos e molhados. Não contem comigo, que não
quero me meter em nenhum bas-fond acadêmico.
Os três insistiam que era essencial ele participar. Na tentativa de tê-lo
como cúmplice, Graça Aranha deu-lhe o privilégio de ler, em primeira mão,
a "bomba" que preparava para a semana paulista: a conferência intitulada
"A emoção estética na arte moderna", que tanto escândalo iria produzir um
mês depois, em São Paulo. Ao final da leitura, Chateaubriand livrou-se do
maço de papéis como se aquilo estivesse contaminado. Partiu para cima do
autor, a quem tratava pelo prenome, de dedo em riste:
- Zé Pereira, vocês enlouqueceram. Isto não é arte, não é literatura: é an-
ticapitalismo puro. Vocês vão urrar contra o dinheiro e contra a influência da
cultura portuguesa no Brasil? Pois façam-no sozinhos. Não contem comigo.
127
#
FERNANDO MORAIS
Graça Aranha irritou-se com a reação do amigo:
- Que horror, Chateaubriand, você está é com medo das conseqüên-
cias da semana entre seus amigos milionários, que são todos conservadores.
- É verdade, esta é a pura verdade - assumiu sem constrangimentos.
- Não quero desagradar o capitalismo. É com ele que estou metido. Sou ex-
clusivamente um homem em busca de um jornal que seja o primeiro, o pai
de uma fieira de outros. Como é que vou achar meu velocino de ouro andan-
do atrás de um bando de desocupados que pretendem escandalizar exata-
mente o mercado a que se dirige o meu sonhado jornal? Minha intuição diz
que este país está sendo virado de pernas para o ar, e vocês estão querendo
contribuir para isso. Portanto, eu repito: não contem comigo nem para a se-
mana, nem para o dia, nem para o minuto da arte moderna.
128
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Se falhou na avaliação da Semana de Arte Moderna - que decidida-
mente não foi "uma semana de secos e molhados" -, a intuição de Chateau-
briand estava certa quanto às reviravoltas que o Brasil começaria a viver em
1922. Em março daquele ano um barbeiro, um operário, dois funcionários
públicos, um eletricista, dois alfaiates e um gráfico, liderados pelo jornalista
Astrojildo Pereira, fundam no Rio o Partido Comunista do Brasil. Quatro
meses depois, na madrugada de 5 de julho, Chateaubriand testemunharia de
perto a elevação da temperatura política a níveis insuportáveis. Na noite do
dia 4 ele saiu do Hotel dos Estrangeiros e, como fazia costumeiramente, foi
até a sede do Ministério da Guerra buscar o ministro Calógeras para jantar.
Ao entrar no gabinete soube que um grupo de oficiais, liderados pelo capi-
tão Euclides Hermes (filho do marechal e ex-presidente Hermes da Fonseca),
acabara de tomar o quartel do Forte de Copacabana. Era a primeira reação a
um decreto do presidente Epitácio Pessoa, baixado dias antes, fechando o
Clube Militar e mandando prender seu presidente, o marechal Hermes. En-
tre os revoltosos estavam nomes que o Brasil se habituaria a ouvir nas déca-
das seguintes, como os tenentes Eduardo Gomes, Siqueira Campos, Juarez
Távora e Odílio Denys. À uma e meia da madrugada, ao lado do ministro,
Chateaubriand ouviu o estrondo do primeiro tiro de canhão disparado do
Forte de Copacabana. Em seguida viriam mais canhonaços, desta vez contra
o quartel-general do Exército, na ilha das Cobras, o arsenal da Marinha e o
Túnel Novo.
Quando o dia clareou, tentativas de levante ocorridas na Vila Militar e
na Escola Militar já haviam sido esmagadas pelo governo. Calógeras man-
dou a artilharia pesada da Fortaleza de Santa Cruz bombardear o forte, mas
os rebeldes resistiram durante todo o dia aos disparos de canhão. Insone,
Chateaubriand não saía de perto do ministro. Na madrugada do dia 6, com
a situação aparentemente sob controle do governo, ouviu Calógeras exigir
do capitão Euclides, por telefone, a imediata rendição dos sublevados. Eucli-
des e Siqueira Campos decidem abrir os portões do forte e deixar sair os que
quisessem se render. A maioria debanda, só permanecendo lá dentro uma
décima parte dos trezentos amotinados.
129
#
FERNANDO MORAIS
Da baía, dois couraçados aumentam o bombardeio contra o forte. Cha-
teaubriand ouve outro telefonema, em que Calógeras dava um ultimato ao
capitão Euclides, que decide parlamentar pessoalmente com o ministro, mas
ao chegar lá é preso. Calógeras deixa o ministério de carro, levando consigo
o coronel Malan d'Angrogne, o capitão Castro e Silva e Chateaubriand. Vi-
sitam o Forte do Vigia, onde os tiros vindos do quartel amotinado tinham
deixado vários mortos, e tocam para Copacabana. "Na praia eu assisti de
perto aos últimos combates ", Chateaubriand escreveria depois, "e pude ver
a areia ainda quente, embebida do sangue dos bravos que sucumbiram de
um lado e de outro."
No forte, os poucos oficiais que ainda resistiam decidem dividir entre si
os 29 pedaços de uma bandeira do Brasil, picada a canivete, e saem para um
combate suicida com os 3 mil soldados das tropas que cercam a região. Na
caminhada pela avenida Atlântica alguns se dispersam, outros são presos.
Restam dezoito militares, aos quais se junta Otávio Correa, um civil que as-
sistia a tudo a distância e que resolveu aderir à insurreição. Cercado por
mais de 3 mil soldados do governo, o grupo vai sendo dizimado, e ao final
são presos os dois únicos sobreviventes: Eduardo Gomes e Siqueira Campos.
Embora nunca tenha ficado claro qual era o número exato de militares que
haviam deixado o quartel a pé, de fuzil nas mãos, o episódio entra para a his-
tória como a Revolta dos Dezoito do Forte. Dos mortos de Copacabana nas-
cia um movimento militar que iria influir decisivamente na vida brasileira
nas quatro décadas seguintes, o tenentismo.
Mas a primeira conseqüência política do levante já seria sentida no dia
seguinte, quando o país despertou sob estado de sítio. A expectativa geral
era de que o período de exceção seria breve e duraria no máximo até novem-
bro, quando tomava posse como presidente da República um velho conheci-
do de Chateaubriand, que havia sido eleito em março: Artur Bernardes. Só
que a posse veio, mas a democracia não. E, para desespero de quem, como
Chateaubriand, passara a ter um desafeto como presidente da República,
não viria tão cedo: Bernardes carregaria em sua biografia o triste privilégio
de ter sido o único presidente brasileiro a exercer todo o seu mandato com o
país sob estado de sítio, sucessivamente renovado.
Chateaubriand não precisaria esperar muito tempo para sentir sobre
sua cabeça o peso da mão do novo presidente. Tinham se passado poucos
dias da posse quando ele achou que seu arsenal já acumulara munição sufi-
ciente para a realização do velho sonho: comprar seu próprio jornal. E come-
çou sonhando alto. Depois de fazer uma oferta de compra de A Noite (rejei-
tada por seu dono, Irineu Marinho), ele ouvira falar que tanto o Jornal do
Brasil como o Jornal do Commercio estavam à venda, e se interessou pelo pri-
meiro. Pediu que Alfredo Pujol falasse em seu nome com o dono do jornal,
mas o resultado foi desanimador. O conde Ernesto Pereira Carneiro negou
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
que quisesse vender o Jornal do Brasil. Para fazer uma oferta que o seduzisse
seria necessário, segundo palavras de Pujol, muito mais dinheiro do que to-
das as alavancas de Chateaubriand conseguiriam arrecadar:
- Tire o seu cavalo da chuva: lá no escritório do seu Ernesto eu pude
ver o último balanço de uma de suas empresas, a Companhia de Comércio
e Navegação. Só nela ele tem um patrimônio de 93 mil contos!
Chateaubriand desconfiava de que por trás das duas recusas poderia es-
tar a mão do presidente da República, preocupado com o risco de deixar
uma arma tão poderosa como um jornal nas mãos do adversário. Mais cau-
teloso, pediu a Raoul Dunlop para entabular negociações com o comenda-
dor lusitano Antônio Ferreira Botelho, dono do Jornal do Commercio, mas re-
comendou expressamente que seu nome fosse omitido do negócio. Desta
vez foi diferente: o jornal de fato estava à venda, e o preço pedido - 4500
contos de réis - estava dentro do que Chateaubriand imaginava ser sua ca-
pacidade de arrecadação. Agindo com total discrição para não despertar a
atenção de Artur Bernardes, obteve uma opção de compra (sempre em nome
de Dunlop, o suposto interessado) e conseguiu que Júlio Mesquita mandas-
se ao Rio Ricardo Figueiredo, gerente do Estado de S. Paulo, para auditar a si-
tuação administrativa e financeira - o que na época se chamava "examinar
a escrita" - da empresa. Em poucas semanas estava tudo pronto para a as-
sinatura do contrato de venda. Chateaubriand já se sentia o dono do quase
centenário Jornal do Commercio, fundado em 1827 pelo bonapartista Pierre
Plancher, editor francês de Voltaire, que se exilara no Brasil com a ascensão
de Carlos x ao trono francês.
Seus temores não eram infundados. Às vésperas do fechamento do ne-
gócio, o comendador Botelho procurou Dunlop para comunicar-lhe que a
opção estava cassada e que o jornal não seria vendido. "Pode não parecer
uma atitude muito correta da minha parte", disse Botelho, "mas eu não te-
nho como resistir às pressões de um presidente da República que acaba de
tomar posse e que governa um país sob estado de sítio." Não foi difícil des-
cobrir o autor da inconfidência. Valendo-se das relações que ainda mantinha
no jornal onde fizera carreira e que dirigira anos antes, o recém-nomeado
ministro das Relações Exteriores Félix Pacheco - o mesmo que tentara fazer
de Chateaubriand um "imortal", lançando-o candidato à Academia Brasilei-
ra de Letras - conseguiu uma cópia da opção e a exibiu ao presidente da Re-
pública:
- Doutor Bernardes, está vendo esta opção?
Por trás do pincenê, o presidente olhou aquilo com desinteresse:
- Sim. O que há de mais nisso?
- Doutor Bernardes, Raoul Dunlop é o pseudônimo de Assis Chateau-
briand. E Chateaubriand, o senhor sabe, é o pseudônimo de Percival Far-
quhar e de Alexander Mackenzie. Estes serão os verdadeiros donos do jor-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
nal que Chateaubriand vai comprar pela mão de Dunlop. Imagino que o se-
nhor, um patriota, não permitirá que um dos jornais mais antigos do conti-
nente caia nas mãos da Itabira Iron e da Light.
Enquanto relia a folha de papel, Bernardes caminhava pela sala, como
se falasse sozinho:
- Esse Chateaubriand é inacreditável. Todos nós temos um mito brasi-
leiro: o deste é Caxias, o daquele é Floriano, o outro tem Rui Barbosa. Os he-
róis do mundo de Chateaubriand são Farquhar, Pierson, Mackenzie, Herbert
Couzens. Agora anda de namoro com um tal engenheiro Billings. Nunca o
vi pronunciar o nome de um brasileiro como objeto de sua admiração.
Voltou-se para Pacheco e anunciou:
- Esse negócio não vai se realizar.
Só um ano depois é que Chateaubriand entenderia o motivo da traição
do conservador Félix Pacheco, que agira menos por razões políticas que pes-
soais: em 1923 o autor da intriga compraria, ele próprio, o Jornal do Commer-
cio. Desolado e sem ter a quem recorrer, poucos dias após a fracassada com-
pra do jornal Chateaubriand ainda tentaria ir à forra contra o presidente que
sepultara seu sonho. Em julho de 1922 o deputado federal Raul Fernandes
fora eleito governador do estado do Rio de Janeiro derrotando, por 33 mil
votos a 16 mil, o "tenente" Feliciano Sodré. Ligado ao ex-presidente Nilo Pe-
çanha, adversário de Artur Bernardes, Raul Fernandes preocupava-se com
os rumores de que o novo presidente iria decretar intervenção federal no es-
tado, impedindo sua posse. O caminho para isso já vinha sendo preparado
por Sodré, que alegava que sua derrota tinha sido fruto de fraude eleitoral
promovida pelos partidários do vencedor.
Faltavam poucos dias para a transmissão do cargo, marcada para 31 de
dezembro, quando Raul Fernandes contratou os serviços de Chateaubriand
e do advogado Levi Carneiro para entrarem no Supremo Tribunal Federal
com um pedido de habeas-corpus que garantisse sua posse. Para surpresa de
Chateaubriand, o Supremo impôs uma derrota ao presidente ao acatar o pe-
dido e determinar que Fernandes fosse empossado no dia 31, juntamente
com os deputados eleitos para a antiga Câmara Estadual, agora já denomi-
nada Assembléia Legislativa. Mas a alegria de Chateaubriand, de novo, ia
durar pouco. Insistindo na tese da fraude, Feliciano Sodré empossou a "sua"
assembléia e tomou posse ele próprio como governador. Durante dez dias o
estado do Rio viveu a absurda situação de ter dois governadores e duas as-
sembléias legislativas. Era o pretexto de que Bernardes precisava: alegando
que um estado não podia viver sob tão caótica duplicidade de poderes, no
dia 10 de janeiro de 1923 o presidente nomeou Aurelino Leal interventor fe-
deral no estado, anulou as eleições de julho e convocou um novo pleito-
que seria vencido por quem? Pelo mesmo Feliciano Sodré.
133
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FERNANDO MORAIS
Se aos 31 anos já conseguira inimigos tão poderosos como o rabugento
presidente da República, em 1924 Chateaubriand tinha acumulado enorme
prestígio do outro lado - e era inegavelmente uma figura influente entre
políticos e empresários das, na época, chamadas "classes conservadoras".
Ainda não podia ser considerado um milionário, mas tinha dinheiro sufi-
ciente para mudar-se para um luxuoso apartamento de três dormitórios e co-
zinha no Copacabana Palace Hotel, um colosso cinematográfico construído
um ano antes pelo empresário Otávio Guinle com cimento alemão, mármo-
re italiano, cristais tchecos e talheres franceses e que tinha sido inaugurado
pelo rei Alberto da Bélgica. Para a nova casa Chateaubriand levou consigo
os mordomos franceses Thérèse e Henri Gallon, que surrupiara de Farquhar.
Um indicador de poder para a época, seu nome apareceria naquele ano pela
primeira vez nos arquivos do Foreign Office, incluído no relatório anual que
a embaixada inglesa enviava a Londres sobre as principais personalidades
brasileiras. Segundo o perfil enviado à Inglaterra, tratava-se de "jornalista
íntimo do ex-presidente Epitácio Pessoa, atualmente trabalhando como ad-
vogado para a Brazil Traction Company e para a Itabira Company '. O infor-
me resumia as refregas de Chateaubriand com Artur Bernardes, sublinhan-
do que, na opinião do presidente, ele era "um homem perigoso por estar
intimamente ligado ao capital estrangeiro - e o presidente alimenta um
ódio sem medidas ao capital estrangeiro em geral".
Mesmo sem ser bonito, Chateaubriand não era mais o ser amarelo e do-
entio da infância. E, apesar de continuar franzino e não ter crescido muito-
mal passava de 1,60 m de altura -, ele não se transformara tampouco em
um homem feio. Ainda assim, o encanto e o magnetismo que exercia sobre
as mulheres eram proporcionais ao sucesso que fazia no jornalismo e na ad-
vocacia. Suas incursões nas chamadas "respeitosas relações com moças de
família", no entanto, podiam ser contabilizadas nos dedos de uma só mão:
descontado o silencioso encanto por Amélia Jansen, a freqüentadora do cen-
tro espírita de Recife a quem não conseguira dirigir uma sílaba, ele vivera
apenas o polêmico romance com Poli, a paixão permanente e nunca corres-
pondida por Iolanda Pentea do e, já morando no Rio, um fugaz flerte com a
filha de Alfredo Pujol. Sua principal diversão eram as mulheres "de reputa-
ção menos ortodoxa", as "falenas", como ele próprio as definia. Eram coris-
tas, bailarinas de dancings, atrizes - atividades a que poucas moças de famí-
lia se arriscavam, naquele começo de século.
Agora, porém, ele se flagrava de novo apaixonado por uma "moça de
família", desta vez uma linda francesinha. Fazia alguns anos que Chateau-
briand jogava olhares compridos sobre a moça, passageira freqüente do bon-
de da Light que ele e Eugênio Gudin tomavam diariamente, ainda no tempo
das vacas magras. Depois de muita insistência ele acabou conseguindo se
aproximar de Jeanne Paulette Marguerite Allard, vinte anos, funcionária da
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Casa de Câmbio e Exportação Daubonne, que se mudara da França para o Bra-
sil quatro anos antes, acompanhando os pais, Angeline Gabison e Hyppolyte
Auguste Allard. O pai era um renomado architecte décorateur francês, premia-
do em diversas exposições na Europa, que viera ao Brasil para ser o gerente
das indústrias Betanfelle, fabricante de móveis de estilo no Rio de Janeiro.
O namoro, que durava alguns meses - um exagero, para os padrões de
Chateaubriand -, coincidiu com a revolução de julho de 1924, em São Pau-
lo. Naquele mês o general reformado Isidoro Dias Lopes reabriria a ferida da
guerra entre Bernardes e os militares, mantendo sob o controle de rebeldes
não apenas um quartel, como acontecera em Copacabana, mas toda a capi-
tal paulista. E desta vez a duração do levante não seria contada em horas,
como no Rio. Foram necessárias três semanas de fuzilaria e pesados bombar-
deios aéreos sobre São Paulo para retomar a cidade. Obrigados a marchar
para o Sul, os militares revoltosos acabariam se juntando a outras tropas de
insurretos levantadas pelo capitão do Exército Luís Carlos Prestes no Rio
Grande. Nascia ali um movimento épico da história política brasileira - e
uma dor de cabeça que acompanharia Bernardes por todo o seu governo
-, a Coluna Prestes. Como acontecia com tudo que pudesse fustigar Bernar-
des, a revolta de São Paulo foi apoiada por Chateaubriand. Além de se ma-
nifestar publicamente a favor dos paulistas, ele organizou um grupo de ami-
gos para cercar de gentilezas o jornalista Júlio Mesquita durante todo o
tempo em que este esteve preso pelo governo no Hospital do Exército, no
Rio, sob a acusação de ter ficado ao lado da rebelião.
São Paulo ainda fumegava sob a artilharia dos aviões do governo fede-
ral quando Chateaubriand cruzou na rua do Ouvidor com o jornalista Sabóia
de Medeiros. Com ar de conspirador, Medeiros puxou-o para um vão de
porta e sussurrou:
- Acabo de estar com o Toledo Lopes...
Chateaubriand reagiu aos berros:
- Aquele mulato aça com fumaças de inglês? Não o suporto!
Olhando para os lados, com medo de que alguém os ouvisse, Medeiros
continuou:
- Fala baixo! Acabei de estar com o Toledo Lopes e ele me disse que
quer vender O Jornal.
Os olhos de Chateaubriand cintilaram:
- De verdade? Mas isso é como uma baleia que encalha numa praia de
famintos! Aquele caloteiro deve a turcos e suíços, mas sou obrigado a reco-
nhecer que O Jornal é uma folha que me seduz...
O "mulato aça" era o baiano Renato Toledo Lopes, jornalista que não
chegava a ser uma das estrelas do Rio, e a folha que seduzia Chateaubriand
era um matutino quase recém-nascido, se comparado ao centenário Jornal do
Commercio que Bernardes o impedira de comprar. O Jornal fora fundado cin-
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FERNANDO MORAIS
co anos antes por Lopes, à frente de uma dissidência de jornalistas que ha-
viam abandonado o Jornal do Commercio por divergências com Félix Pacheco.
Nas rodas intelectuais da cidade comentava-se que Lopes entrara no negó-
cio com modestos cinqüenta contos de réis, e na realidade apenas empresta-
ra seu nome para os verdadeiros donos do empreendimento: Pandiá Caló-
geras, Arrojado Lisboa e Pires do Rio, "idealistas a serviço da siderurgia
estrangeira no Brasil", comentou ironicamente o jornalista Mário Hora (o
proprietário nominal, pelo menos, era de fato Toledo Lopes). Desestimula-
dos de seu projeto pela eleição do ultranacionalista Artur Bernardes, teriam
dado o jornal de mão beijada (ou vendido "na bacia das almas", como se di-
zia) a Toledo Lopes.
Pouco comum àquela época, o título escolhido era uma deliberada pro-
vocação contra o Jornal do Commercio, a que ninguém se referia por seu ver-
dadeiro nome. Os leitores chegavam à banca e simplesmente pediam:
- Me dê "o jornal" de hoje.
O jornaleiro já sabia que se tratava do Jornal do Commercio. Aproveitan-
do-se da fama criada pelo outro, decidiram batizar o novo diário apenas com
o nome de O Jornal. Por medida de economia (o que desmente a tese de que
ele seria um mero testa-de-ferro de entreguistas endinheirados), Lopes for-
mou uma equipe quase que só de amigos familiarizados com as letras - en-
tre eles o jovem ensaísta Sérgio Buarque de Holanda e o refinado crítico
Al-
ceu Amoroso Lima, que já no primeiro número estrearia como crítico
literário assinando a coluna "Bibliografia". Jornalistas mesmo, com experi-
ência no ramo, havia na redação apenas dois: o dono e o português Vitorino
de Oliveira, até então o braço direito de Irineu Marinho em A Noite. Escrito
em linguagem pomposa, mesmo tendo adquirido prestígio entre as elites O
Jornal sobreviveu por cinco anos sem nunca atingir tiragens expressivas, até
que Toledo Lopes decidiu passá-lo adiante.
Com um olho fixo na baleia que dera à sua praia e o outro grudado em
Artur Bernardes, Chateaubriand repetiu a operação e de novo recorreu a
Al-
fredo Pujol para intermediar o negócio. Ao saber que, somados o patrimônio
e o passivo da empresa, Toledo Lopes pedia 6 mil contos de réis pelo jornal,
Chateaubriand sapateou e rangeu os dentes:
- Usurário filho da puta! Ele quer me tosquiar! Ele quer me vender por
6 mil contos um jornal que lhe custou cinqüenta contos! São 120 vezes mais!
Mesmo esperneando, ele pediu outra vez emprestado a Júlio Mesquita
o gerente paulista para "levantar a escrita" do jornal, e acabou convencido
de que o preço não era assim tão estratosférico. Toledo queria à vista, como
"sinal prévio", trezentos contos de réis - que não seriam devolvidos se o ne-
gócio não prosperasse. Passados sessenta dias, mais 1500 contos. Os 4200
contos restantes seriam pagos em quinze prestações mensais, acrescidas de
juros bancários. Chateaubriand inventariou as economias que tinha deposi-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
tadas em bancos, resultado principalmente de seu trabalho para Percival
Farquhar. No lugar dele, qualquer pessoa com um pingo de bom senso teria
desistido da compra: raspadas todas as contas bancárias, seu patrimônio fi-
nanceiro alcançava 170 contos de réis - ou seja, 3% do que o jornal custava.
Seu dinheiro não era suficiente sequer para pagar a entrada.
Mas a história de Chateaubriand, diria décadas mais tarde um de seus
melhores amigos, era "a história da dívida". De algum lugar aquele dinhei-
ro haveria de sair. Antes de mais nada, entretanto, ele precisava arranjar os
130 contos que faltavam para o sinal prévio. Conseguiu o empréstimo sem
juros na Casa Sotto Mayor, a maior atacadista de tecidos do Rio, com o com-
promisso de saldá-lo dali a noventa dias. O dono da empresa, seu amigo
Cândido Sotto Mayor, acenou com outro auxílio: se o empréstimo fosse li-
quidado no prazo, ele se comprometia a tirar mais algum dinheiro do pró-
prio bolso para "comprar um lote de ações" e contribuir com o pagamento
do restante da dívida. Chateaubriand sabia que a aparente generosidade
ocultava o temor de que a letra de câmbio que ele assinara não representas-
se suficiente garantia do pagamento. Para seduzi-lo a honrar o compromis-
so, o credor oferecia um prêmio pela pontualidade.
Para levantar em dois meses os 1500 contos restantes Chateaubriand te-
mia o pior: ter de se sujeitar aos juros proibitivos de um agiota - ou seja,
cair nos braços do conde Modesto Leal. Os amigos tentaram demovê-lo da
idéia maluca, advertindo-o de que a agiotagem era uma bola-de-neve rolan-
do contra o tomador do dinheiro: quanto mais ele pagasse juros, mais a dí-
vida crescia. Mas as semanas se passavam e o dinheiro não aparecia. Depois
de percorrer três ou quatro bancos, descobriu que tinha crédito na praça mas
que isso não refrescava muito a situação, já que o empréstimo só sairia se
apresentasse como avalista o dono de uma fortuna proporcional à cordilhei-
ra de dinheiro pretendida. E ninguém seria insano o suficiente para avalizar
um empréstimo daquele vulto tomado por alguém que declaradamente não
tinha como pagá-lo.
O prazo imposto por Toledo Lopes chegava ao fim sem que o dinheiro
aparecesse, quando Júlio Mesquita, já em liberdade, chamou-o para uma
conversa em seu quarto do Hotel Glória. O paulista foi direto ao assunto:
- Doutor Assis, ponha o pé no mundo, suma. Vá arranjar quem lhe ga-
ranta os 4200 contos das prestações.
Atônito, sem entender o que se passava, ele esclareceu:
- Mas doutor Júlio, não adianta lutar pelos 4200 contos. Ainda não con-
segui levantar nem os 1500 que vencem dentro de poucos dias. Acho que
vou perder os meus 170 e os 130 de Sotto Mayor.
Júlio Mesquita tranqüilizou-o:
- Insensato, não perca tempo contando-me histórias. Sente o pé no
mundo e vá buscar o dinheiro para o restante do compromisso, porque eu
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FERNANDO MORAIS
acabei de desgraçar um pai de família. Convenci o Pujol a endossar seus
papéis.
Chateaubriand correu ao escritório de Pujol para assinar promissórias
do empréstimo bancário que estavam sendo avalizadas antes mesmo de se-
rem preenchidas. Ao chegar lá, encontrou o jurista "com calos na língua" de
tanto lamber selos - indispensáveis naquela época para que qualquer papel
tivesse valor legal. Alfredo Pujol recebeu-o com um gracejo:
- Não sei que mal eu fiz à Providência para que ela me tornasse amigo
de dois malucos como você e o Mesquita. Ele recomendou que eu fizesse um
seguro de vida de 1500 contos, e se você não pagar o empréstimo eu simples-
mente rebento os miolos e salvo minha família da miséria.
Chateaubriand sabia que só mesmo a autoridade patriarcal que Mesqui-
ta exercia sobre Pujol seria capaz de convencer o advogado a arriscar parte
significativa de seu patrimônio - os 1500 contos que estavam sendo avali-
zados naquele momento (equivalentes, em 1994, a mais de 1 milhão de dó-
lares) seriam suficientes, por exemplo, para se importar dos Estados Unidos,
na época, uma frota de mais de duzentos luxuosos automóveis Chevrolet
Voltinette, o carro da moda no Rio. Aquele era um empréstimo que poderia
virar fumaça em poucos meses, e se isso acontecesse jamais seria quitado.
Mais do que ele, Pujol sabia disso, e recomendou que Chateaubriand tratas-
se de conseguir meios para pagar em dia as quinze prestações restantes. Sua
esperança de não ter de arcar com a dívida de que era fiador residia nisso:
com o jornal funcionando haveria pelo menos alguma garantia de entrada
de dinheiro - e, portanto, de que o empréstimo seria honrado.
Chateaubriand entendeu que era chegada a hora de começar a gastar o
abstrato capital que tão cuidadosamente acumulara durante uma década no
Rio e em São Paulo: as amizades. As tais classes conservadoras não queriam
um jornal equilibrado, que defendesse "os grandes interesses nacionais"?
Então, que pagassem por isso. Mas não era do seu temperamento simples-
mente "pedir dinheiro" aos incontáveis amigos influentes que fizera desde
1915. Ainda sem ser dono de nada, mas sentindo que O Jornal estava prati-
camente ao alcance da mão, saiu em campo vendendo ações de uma imagi-
nária Sociedade Anônima O Jornal, que só existia na sua cabeça. Na primei-
ra porta em que bateu o resultado foi animador: Raoul Dunlop não só
garantiu a "compra" de cinqüenta contos em ações como ainda se compro-
meteu a arranjar mais um grupo de "acionistas" no Rio. Na segunda, melhor
ainda. O poderoso empresário carioca Guilherme Guinle, presidente da
Companhia Docas de Santos, "subscreveu" 150 contos do capital da futura
empresa.
A conselho de Júlio Mesquita, Chateaubriand viajou para São Paulo,
instalou seu quartel-general no melhor hotel da cidade, o Esplanada, atrás
do Teatro Municipal, e dali saía todos os dias em busca de subscritores. A
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CHATÓ, O REI DO BRASIL
primeira investida paulista foi pífia. Jorge Street (que pessoalmente não
comprou uma única ação) levou-o à casa de Basílio Jafet, dono da Estampa-
ria Ipiranga, e o resultado da visita foram minguados dez contos de réis. Mas
sua sorte em São Paulo ia mudar. O conde Sílvio Álvares Penteado ficou com
cinqüenta contos e, a exemplo de Dunlop, transformou-se em "agente" de
Chateaubriand entre os empresários paulistas. Outro "nobre", o conde As-
drúbal do Nascimento, presidente da Cervejaria Antarctica, desembolsou
110 contos. José Carlos de Macedo Soares, presidente da Associação Comer-
cial de São Paulo, mais cinqüenta contos. Levando nas mãos uma carta de
apresentação de Álvaro de Carvalho, Chateaubriand desceu a serra do Mar
e em Santos foi à procura do cafeicultor e exportador Vicente de Almeida
Prado. O fazendeiro ouviu sua exposição em silêncio e ao final sacou o talão
de cheques. Preencheu uma folha e entregou ao visitante:
- Estes vinte contos são pela apresentação do meu amigo e parente Ál-
varo de Carvalho.
Assinou mais outra folha:
- E estes outros vinte contos são a homenagem que os cafeicultores
paulistas devem ao jornalista do Norte que tanto conhece café e que com tan-
to brilho e competência o defende.
Como um exímio contorcionista, Chateaubriand conseguia tomar di-
nheiro tanto dos que se sentiam representados por sua oposição ao governo,
como Almeida Prado, como daqueles que apoiavam Artur Bernardes, como
o industrial paulista Roberto Simonsen. E foi Simonsen quem fechou com
chave de ouro sua peregrinação por São Paulo, ao comprometer-se pessoal-
mente com a compra de cinqüenta contos em ações e ainda acenar com a
possibilidade de vir dinheiro mais grosso:
- Vou organizar uma subscrição entre os empresários de São Paulo.
O senhor pode contar com pelo menos vinte vezes mais do que acaba de
receber.
Já estava na sua conta bancária o dinheiro resultante do aval de Pujol
para a segunda prestação, que cimentaria o negócio. E aparentemente não
haveria problemas para o pagamento das quinze parcelas seguintes: ainda
que o jornal não desse um mísero real de lucro, se as prometidas doações-
ou melhor, as "vendas de ações" - se materializassem, a dívida estaria li-
quidada. Pontualmente na data estipulada - 30 de setembro -, Assis Cha-
teaubriand comprou um cheque visado na Casa Bancária Boavista no valor
de 1500 contos de réis. Uma montanha de dinheiro equivalente a uma vez e
meia o capital do banco que recebia o depósito. Os donos do estabelecimen-
to, Alberto Boavista e o barão de Stavedra, pediram a Chateaubriand que só
entregasse o cheque a Toledo Lopes no final da tarde: eles queriam que o di-
nheiro dormisse pelo menos aquela noite no banco, para engordar o balan-
ço de setembro, fechado no último dia do mês.
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FERNANDO MORAIS
Ainda que não fosse uma informação pública, a notícia de seu projeto
de comprar O Jornal estava longe de ser um segredo. Chateaubriand morreu
convencido de que Artur Bernardes só soube do negócio horas depois de ele
ter assumido formalmente a posse da empresa - embora alguns de seus co-
laboradores, como Alceu Amoroso Lima e Nelson Werneck Sodré, susten-
tassem que na realidade o presidente da República sabia de tudo e acompa-
nhara cada passo da operação, mas decidira fazer vista grossa à realização
da compra. A convicção de Chateaubriand de que conseguira enganar o pre-
sidente se baseava principalmente na legislação da época: os jornais eram so-
ciedades anônimas constituídas por ações ao portador, o que permitia dissi-
mular quem era o real proprietário da empresa. De qualquer forma, a
caminho da rua Rodrigo Silva, onde ficava o jornal, ele pegou Austregésilo
de Athayde e só então revelou o segredo ao amigo:
- Caboclo, venha comigo que nós vamos tomar posse de O Jornal. Aca-
bei de comprar aquele diário e quero você como testemunha na hora de sa-
cramentar o negócio.
Com o consentimento ou não de Bernardes, às oito da manhã de 30 de
outubro de 1924 Assis Chateaubriand atravessou as oficinas instaladas no
térreo do pequeno prédio de quatro andares da rua Rodrigo Silva, subiu o
primeiro lance de escadas, passou sem cumprimentar ninguém pela reda-
ção, no primeiro andar, subiu a pé mais dois pavimentos e sentou-se na ca-
deira que até então pertencia a Renato Toledo Lopes. Aos 32 anos ele reali-
zava o sonho de ser dono de um jornal. E começava a sonhar mais alto ainda:
aquele seria apenas o primeiro de uma cadeia de diários que ia gerar filho-
tes por todos os cantos do país.
Chateaubriand assumiu a direção de O Jornal com o estrondo das tem-
pestades de verão da Paraíba. Como se quisesse deixar bem claro que vinha
para ficar, para presidir a nova empresa ele chamou ninguém menos que o
ex-presidente Epitácio Pessoa. Uma das diretorias foi entregue a Alfredo Pu-
jol e a outra a Rodrigo Melo Franco de Andrade, o responsável pela coleta
de dinheiro em Minas Gerais. Cercado pelas três mais luzidias estrelas da
política, do direito e da intelectualidade, trabalhou freneticamente nas suas
primeiras semanas como dono de jornal. Antes mesmo de substituir o nome
de Toledo Lopes pelo seu, no frontispício do jornal, começou a caçar colabo-
radores de renome. No Brasil, só O Pais e O Imparcial, assinantes do serviço
integral da agência de notícias americana United Press, publicavam regular-
mente artigos assinados sobre política e cultura internacionais. Mas eram as-
sinaturas de analistas da própria agência, nomes pouco conhecidos do pú-
blico. Chateaubriand resolveu inovar e, após breve troca de telegramas,
trouxe para as páginas de O Jornal nomes cobiçados internacionalmente,
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
como o prêmio Nobel de literatura Rudyard Kipling, o ex-presidente francês
Raymond Poincaré e o ex-premiê britânico Lloyd George - o mesmo que
anos antes salvara sua hospedagem no Claridge's, em Londres.
Entre os astros domésticos, manteve os nomes mais significativos da
equipe do antigo dono, como Alceu Amoroso Lima, e contratou como cola-
boradores regulares Capistrano de Abreu, Afnnso Taunay, Fidelino de Fi-
gueiredo, Miguel Couto, Carlos de Laet e Humberto de Campos - este pu-
blicava um conto semanal no rodapé do jornal. De São Paulo importou um
jornalista que já era conhecido em todo o país pelo sucesso de seus
quatro li-
vros infantis, o jovem José Renato, que em homenagem ao avô adotava o
nome de José Bento Monteiro Lobato. Criou uma sucursal paulista e para di-
rigi-la convidou Plínio Barreto, que por dois anos fora responsável, com Jú-
lio Mesquita e Alfredo Pujol, pela Revista do Brasil. Para tratar de assuntos
econômicos e financeiros vieram Pandiá Calógeras, Paulo Castro Maya e o
engenheiro Ferdinando Laburiau. Quando Epitácio Pessoa, preocupado com
as finanças da empresa, quis saber onde o jornal iria arranjar dinheiro para
pagar tanta gente importante, Chateaubriand não esquentou a cabeça:
- O senhor está colocando o carro na frente dos bois. Um princípio ba-
silar do capitalismo diz que primeiro a pessoa trabalha, e só depois recebe.
Vamos deixá-los trabalhar em paz, depois se vê como pagá-los.
Os temores de Pessoa não eram infundados. Pouco tempo depois de
contratado, Capistrano de Abreu daria o primeiro passo para a construção
da fama que acompanharia Chateaubriand para o resto da vida - a de mau
pagador. Em um discreto bilhete dirigido a Calógeras, Capistrano se quei-
xou de que "não era justo o Xatô" - era assim que ele grafava o apelido do
amigo - "pagar em dia os quatro artigos mensais de Carlos de Laet", ao
passo que ele ainda não vira a cor do dinheiro "de um jornal que se esgota
em poucas horas". Sob pressão, Chateaubriand mandou pagar-lhe quinhen-
tos mil-réis, mas tanto a cobrança quanto a preocupação de Epitácio Pessoa
deixaram-no com a pulga atrás da orelha. Se quisesse mesmo levar avante o
plano de fazer O Jornal espalhar filhotes pelo Brasil afora, não seria com o di-
nheiro da venda em bancas que iria realizar o sonho.
Familiarizado com a imprensa estrangeira, Chateaubriand sabia que
para dar lucros um jornal deveria ter, além de leitores, anunciantes. "Temos
uma das mais pobres e mesquinhas imprensas do mundo", ele repetia para
quem aparecesse em sua sala de trabalho. "E sabem por quê? Porque pos-
suímos uma indústria e um comércio que não anunciam." Tentava pessoal-
mente convencer seus amigos industriais a aderir à moda da propaganda,
mas era bater em ferro frio. Tornou-se um cruzado que fazia pregações so-
bre "a autoridade da imprensa britânica":
- Essa autoridade nasce da independência econômica, que por sua vez
é fruto de um volume de publicidade paga, que assegura milhões de libras
141
#
FERNANDO MORAIS
anualmente a qualquer um dos periódicos de Londres, Liverpool e Man-
chester. Quando surgiu o rádio na Inglaterra, o governo proibiu anúncios no
novo veículo, temendo que o desvio das verbas de propaganda comprome-
tesse a autoridade e o prestígio da imprensa escrita.
Chateaubriand insistia em sublinhar as vantagens que as indústrias te-
riam se anunciassem o que produziam, mas industriais poderosos, como o
conde Francisco Matarazzo, ouviam aquela arenga com ceticismo e desinte-
resse:
- Doutor Assis, eu não sou contemporâneo dessa tal de propaganda-
dizia o conde. - Se meus filhos quiserem vender com anúncios, não me opo-
rei. Mas eu sou de outra era.
O próprio Chateaubriand sabia que a ignorância não era só dos poten-
ciais anunciantes. Mesmo os grandes jornais brasileiros ainda viviam na ida-
de da pedra da publicidade e da propaganda. Não havia no país sequer meia
dúzia de agências de propaganda. Eram a de Pedro Didier e Valentim Har-
ris, A Ecléctica, de Jocelyn Bennaton e João Castaldi, a Petinatti, de Francis-
co Petinatti, e mais nada. Até mesmo os outdoors só apareceriam no Brasil
cinco anos depois, produzidos pelo tipógrafo italiano Amedeo Vigianni - e
ainda assim sob a forma de toscos cartazes ovais, tão pequenos que podiam
ser pregados nos postes de luz. O máximo a que se tinha chegado era a figu-
ra do agente individual de reclames, uma espécie de corretor que levava os
raros anúncios para os jornais e ganhava uma comissão sobre o faturamen-
to. A composição dos anúncios era feita pelos tipógrafos nas próprias gráfi-
cas dos jornais - nada muito diferente dos "manteigas" da adolescência
pernambucana de Chateaubriand. Propaganda feita em "estéreos", nome
com que eram conhecidos os clichês, era raríssima. As fábricas estrangeiras
instaladas aqui eram uma exceção - e entre elas a americana General Mo-
tors inaugurou uma "agência" interna própria, chamada Seção de Propagan-
da, onde trabalhavam cinco pessoas, encarregadas de criar, produzir e for-
necer a seus revendedores cartazes e folhetos.
Foi Van Dyck, presidente da filial brasileira da indústria de lâmpadas
General Electric, que, sabendo da obsessão de Chateaubriand pelo assunto,
chamou sua atenção para um turista que passava férias no Rio: o americano
Fitz Gibbon, chefe do Departamento de Propaganda do New York American,
matutino publicado em Nova York pela cadeia do czar da imprensa dos Es-
tados Unidos, William Randolph Hearst. Talvez valesse a pena visitá-lo no
hotel, sugeriu Van Dyck, para se aconselhar sobre como lidar com o proble-
ma da publicidade nos jornais brasileiros. Chateaubriand marcou um almo-
ço com Fitz Gibbon no Copacabana Palace. Antes que a sobremesa chegas-
se, Fitz Gibbon - "o primeiro perito em propaganda a aparecer nesta terra",
diria Chateaubriand - havia decidido demitir-se do grupo Hearst e mudar-se
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#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
para o Rio, onde criaria, dias depois, o Departamento de Propaganda de
O Jornal. Com expressas recomendações do novo dono do matutino:
- O senhor vem para o Brasil para me ajudar a acabar com o jornalis-
mo doutrinário, contemporâneo do século passado. Com sua ajuda, quero
estabelecer métodos norte-americanos de vender mercadorias por intermé-
dio da imprensa diária. Vamos impor aos magazines novas formas de fazer
seus anúncios. Quem não vier atrás de nós vai morrer de fome, seu Gibbon.
Enquanto não começavam a pingar os anúncios arrancados por Gib-
bon, Chateaubriand ia dando a O Jornal uma cara nova. Convidou para ser
redator-chefe o "Caboclo", Belarmino Austregésilo de Athayde. Para secretá-
rio de redação contratou o jornalista Azevedo Amaral, que era redator-che-
fe do Correio da Manhã, e sugeriu a ele que começasse a substituir os intermi-
náveis e soníferos artigos que ocupavam meia, uma e até duas páginas por
uma novidade que fazia muito sucesso na imprensa dos Estados Unidos-
as reportagens. A primeira delas causou furor entre os leitores e tratava de
um personagem cuja sombra acompanharia Chateaubriand por muitas dé-
cadas: o coronel e etnólogo inglês Percy Fawcett, que surgira no Brasil acom-
panhado de um filho e de um ajudante para "libertar a população" de uma
suposta Atlântida encravada na Amazônia brasileira, uma sociedade de 10
mil anos de existência, povoada por brancos e implantada sobre o maior veio
de ouro do planeta. Quando O Jornal se interessou pelo assunto, Fawcett já
se embrenhara pela selva adentro - de onde, aliás, jamais retornaria. Mas o
talentoso Azevedo Amaral mandou ouvir as dezenas de pessoas que haviam
estado com Fawcett antes da partida, o que foi suficiente para que o próprio
redator-chefe do jornal escrevesse uma emocionante série de reportagens in-
titulada "Haverá uma Atlântida brasileira?". O material foi publicado contra
os conselhos de Cândido Rondon, que conhecera Fawcett e a quem conside-
rava "uma combinação de embusteiro e louco, um megalomaníaco alucina-
do que está atrás de ouro ou apenas de se promover na Europa".
Vivendo a delicada situação de estar rompido com o governo, Chateau-
briand decidiu consolidar suas relações com as fatias restantes do poder-
onde quer que elas estivessem. Ao visitar o influente d. Sebastião Leme, ar-
cebispo coadjutor do Rio de Janeiro, ouviu um pedido do prelado: já que O
Jornal mantinha há muitos anos uma coluna diária sobre o protestantismo,
por que não criar outra, sobre o catolicismo? A única exigência que a Igreja
fazia, se o pedido fosse atendido, é que as duas colunas saíssem em lugares
diferentes do jornal, nunca lado a lado. O agnóstico e incréu Assis Chateau-
briand fez um discurso de carola para responder ao pedido, mas seu lingua-
jar deixou o bispo de olhos arregalados:
- Eminência, essa coluna foi criada pelo afro-brasileiro Toledo Lopes,
antigo dono do jornal. Como todo híbrido, esse mulato pachola gostava de
exibir independência, e por isso teimava em manter essa coluna protestante.
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#
FERNANDO MORAIS
Mais do que isso, ele cevou na redação uma malta de energúmenos espíritas
e protestantes, só para atacar o clero e apoquentar vossa eminência.
Não precisava tanto, mas Chateaubriand continuou:
- Não sou homem de meias medidas, eu vou ao cabo. A coluna católi-
ca vai ser criada, mas vai permanecer sozinha, monopolística em nossa casa.
A partir de amanhã estão rifados todos os gemidos calvinistas e allankarde-
quianos no meu diário.
Ao chegar à redação e contar, às gargalhadas, o diálogo com o arcebis-
po, ele garantia:
- A partir de hoje, estamos atolados no coração de dom Sebastião Leme
e da Igreja até o último dia de nossas vidas!
Depois do afago ao poder espiritual da Igreja, estava na hora de fazer
um cafuné ao poder secular do capital. Inaugurando uma prática que seria
marca registrada de seus jornais ao longo dos anos, Chateaubriand lançou a
primeira de suas célebres "campanhas". E, como era a primeira, o objeto da
homenagem tinha de ser, naturalmente, o poder a que ele precisaria recorrer
nos momentos de dificuldades mais materiais: tratava-se de uma campanha
para estimular a população a fazer uso intensivo do cheque. Uma campa-
nha significava que o assunto ia ser tema de seguidas reportagens no jornal,
de enquetes e pesquisas com os interessados e, muitas vezes, de concursos
de que os leitores participavam preenchendo cupons publicados em O Jor-
nal. Antes que o ano terminasse, Chateaubriand ainda mandaria fazer cam-
panhas pela preservação dos monumentos históricos brasileiros; contra a ca-
restia; contra as emissões desenfreadas de moeda pelo governo; contra a
inflação (que na época mal passava de 1 % ao mês); a favor da criação de um
Instituto de Defesa do Café e, finalmente, contra o entesouramento de moe-
da - e a favor de maior crédito oficial ao comércio e à indústria.
Apesar de continuar fazendo clara oposição a Bernardes, Chateau-
briand mantinha relações cordiais com políticos que apoiavam o presidente,
entre os quais se encontrava o deputado federal gaúcho Lindolfo Collor, que
era também redator-chefe de O Pais. E foi Collor quem o procurou para di-
zer que um colega seu da Câmara Federal queria conhecer de perto o jorna-
lista do Norte que tanta polêmica provocava no Rio. O deputado chamava-
se Getúlio Dorneles Vargas. Chateaubriand foi visitar Vargas no
apartamento
em que este morava com a família no Hotel Wilson, na praia do Flamengo.
A conversa durou um par de horas, e o jornalista se impressionou com
a cultura e a vivacidade do político gaúcho de pouco mais de quarenta anos,
que se apresentava como "um spenceriano, um positivista individualista, ao
contrário de meus conterrâneos Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros,
comtistas ortodoxos" . Disse que, como assinante do jornal argentino La Na-
ción, lera com grande interesse os artigos e entrevistas que o jornalista en-
viara da Europa. Ao perguntar pelos planos de Chateaubriand para o futuro,
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Vargas ouviu-o dizer que nos próximos meses queria criar um vespertino
novo no Rio de Janeiro e, logo em seguida, montar ou comprar um jornal em
São Paulo e outro em Minas Gerais, dando início a uma cadeia nacional de
informação. A pronúncia da palavra "nacional" fez brilhar os olhos do de-
putado:
- Mais do que qualquer outra coisa, este país precisa de instituições
que lhe dêem unidade. Cada estado brasileiro é uma ilha voltada de costas
para as outras, como se fossem países diferentes. A cadeia de jornais que tu
projetas pode ser um embrião da unidade nacional por que eu tanto luto. Se
precisares de ajuda para a realização de seus planos, podes contar comigo.
Ao descrever o encontro para os colegas de redação, Chateaubriand dis-
se que Getúlio "seria até uma pessoa agradável, não fosse o cheiro do charu-
to fedorento que mantém o tempo todo na boca, como uma chupeta de
bebê ". Apesar da aversão ao fumo, Chateaubriand teria de suportar o vício
do gaúcho pelos meses seguintes, quando este se tornou assíduo freqüenta-
dor da redação de O Jornal, ao final das sessões do Congresso. Mas um ob-
servador que pudesse prever o futuro diria que Chateaubriand ainda seria
obrigado a conviver com os charutos de Vargas não apenas por meses, mas
até a morte do homem que acabara de conhecer.
145
9
Para espanto de todos que de alguma maneira haviam se metido naque-
la aventura, em meados de 1925 O Jornal era um indiscutível sucesso. Espan-
to de todos, menos de Chateaubriand. Ele sabia o que estava fazendo e aon-
de queria chegar. Como resultado da catequese de Fitz Gibbon, em menos
de um ano o faturamento de publicidade tinha dobrado. Boa parte das vin-
te páginas diárias estava coberta por anúncios da Antarctica, da General Mo-
tors, da companhia Sul-América de Seguros, de várias casas bancárias, de
distribuidoras de combustíveis e de inúmeros, incontáveis laboratórios, bra-
sileiros e estrangeiros: eram anúncios de remédios para eczemas, para en-
gordar, para emagrecer, para tosse, bronquite e rouquidão, para curar go-
norréia, para expelir vermes, para mulheres que tinham pouca (ou muita)
menstruação. Um estrangeiro que pousasse os olhos sobre aquele mar de
anúncios - alguns exageradamente grandes, outros microscópicos - ima-
ginaria tratar-se de uma publicação dirigida a médicos ou a pacientes de
hospitais. E o leitor que conhecesse, mesmo superficialmente, a história de
seu dono ficaria intrigado com um inexplicável mistério: quase um ano de-
pois de passar às mãos de Chateaubriand, O Jornal não tinha recebido um
único anúncio da Light. A surpresa era maior para os que sabiam que nessa
área o "polvo canadense" não tinha meias medidas. Ao buscar a noiva, que
era telefonista da direção da Light, o jovem jornalista Mário Hora, por exem-
plo, viu um dossiê revelador dos métodos da empresa para tratar os jornais
de oposição. Numa pasta estavam colados os recortes das campanhas feitas
contra a Light, com uma anotação a lápis, no pé da página: "Campanha ini-
ciada no dia tal, e terminada no dia tal. Pagos ao jornal: tantos contos de
réis". Ao lado do nome de cada jornal e cada revista, estava registrada a
quantia desembolsada para silenciá-los. Se pagava até aos inimigos, por que
Mackenzie não estaria ajudando a um de seus melhores amigos e protetores?
Mesmo sem os anúncios da Light, as finanças do jornal iam muito bem,
a ponto de permitir que as prestações fossem saldadas religiosamente em
dia. Aproveitando a bonança, no começo de 1926 Chateaubriand decidiu fa-
zer uma experiência para testar a receptividade do mercado ao seu projeto
de lançar um vespertino. Durante algumas semanas O Jornal, que não circu-
lava às segundas-feiras, passou a sair nesse dia, no meio da tarde, sob a for-
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#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
ma de vespertino. O fracasso do empreendimento levou-o a suspender a
nova edição um mês depois de lançada.
Chateaubriand retornou à política de reforçar a redação com colabora-
dores de renome. Passaram a assinar artigos regulares, além dos que tinham
sido chamados no ano anterior, nomes como os de Afrânio Peixoto, do ban-
queiro José Maria Whitaker, de Virgílio de Melo Franco, e até de Herbert
Moses, que, embora fosse da equipe de A Noite, dividia com Neto dos Reis
uma coluna publicada no concorrente sob o título de "Aviação nacional",
uma das favoritas de Chateaubriand. Com a série "Os diálogos de mr. Slang",
Monteiro Lobato passou a colaborar regularmente com O Jornal até o ano se-
guinte, quando seria convidado a trabalhar na missão comercial brasileira
nos Estados Unidos. Apesar de admirá-lo, Chateaubriand se queixava da fal-
ta de assiduidade e do comportamento boêmio do escritor paulista. Lobato
aparecia no jornal para entregar sua coluna e "ficava horas por lá, fazendo
ponto na redação, conversando e cavaqueando com os colegas", reclamava
o patrão.
Reconciliado com os modernistas de quem escarnecera em 1922, Cha-
teaubriand convidou alguns deles para o jornal, que agora tratava por "mi-
nha taba": para dirigir a recém-aberta sucursal de Belo Horizonte, chamou o
jovem advogado Milton Campos. Este arrastou consigo, para escrever sobre
literatura, outro modernista mineiro, um ainda obscuro poeta chamado Car-
los Drummond de Andrade. Da "semana de secos e molhados" ainda se in-
corporaria a O Jornal o paulista Oswald de Andrade, que em seu artigo de
estréia anunciou que estava ali para "passar em revista as últimas produ-
ções literárias da mocidade futurística da Paulicéia". Para não deixar dúvi-
das quanto à sinceridade com que abraçava a onda modernista, o próprio
Chateaubriand assinou um artigo de primeira página saudando a pintora
Tarsila do Amaral como uma "mulher dinâmica do mundo superindustria-
lizado em que vivemos, e que está traduzindo, com insolência, o frenesi da
expansão paulista". E durante a viagem do "escritor futurista" italiano Filip-
po Tommaso Marinetti ao Brasil Chateaubriand insistiu em ser o cicerone
oficial do visitante - que chegou a levar, acompanhado por intelectuais e es-
trelas do café soçaite, para uma inusitada visita a um terreiro de quimbanda
no alto de uma favela carioca. Todos, claro, devidamente protegidos por sol-
dados armados de espingardas. Depois de mostrar São Paulo ao visitante,
publicou uma entrevista maluca sobre Marinetti feita com Juó Bananére,
pseudônimo do engenheiro Alexandre Marcondes Machado, que infligia pâ-
nico aos poderosos e governantes não por seus projetos politécnicos, mas
pelo sarcasmo de seus versos e crônicas, escritos num idioma próprio, uma
mistura de português e italiano - tal como era falado pelos imigrantes ita-
lianos em seus primeiros dias de Brasil. Na entrevista, Chateaubriand trata
Bananére com toda a seriedade:
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FERNANDO MORAIS
Daqui a duzentos anos, quando o português e o italiano forem, em São Paulo,
como o hebraico e o sânscrito, dois idiomas mortos, lidos por eruditos, será na
prosa ágil de João Bananére, o precursor, que as gerações futuras
terão com-
preendido a linguagem do futurismo. Avistei-o há três dias a fim de ouvi-lo e
resumir-lhe as impressões sobre o futurismo. Vou transmitir a palestra que tive
com ele no próprio idioma pitoresco em que ele me falou. Fala, Bananére:
"As minha impressô supra du Marinetti? lo axo chi o Marinetti é um núma-
ro! Fui illo chi inventô o futurismo, u Mussolino i a modinha da Maricota sai da
Xuva. A primeira circunferenza che illo fiz inzima du u Gazino, fui una billeza!
Aparicia a fêra do Largue do Arroche. Tenia batata, tumato, banana, pexe pn-
dre, uova con pintigno, ecc., ecc. [...] U futurismo é una tinria literaria chi man-
da a prantá batata tuttas tradiçó, a storia, u passato i tutto chi é veglio. Tutto chi
é veglio non presta i a gente deve agiugá fora. U paio, a maia, i u avô da genti,
quano fica veglio a genti devi turcê o piscoço e agiugá nu lixo. U nRn i u Gurreiu
Baolistano chi giá stó podri di veglio pricisa agiugá fora tambê".
Bananére, ele próprio um filofascista, termina a entrevista ironizando os
pendores mussolinistas de Marinetti:
"U Marinetti stive nu migno saló i axó u succo! Illo vai cavá pra mim u lugáro
de barbieri ufficiale du Muçsolino. Io fiquê tó intusiasmato chi até fiz un verso
futturiste prelle:
Vai-si a primèra pomba disrertata!
U Marinetti é una gavargadura!
Quano vem u garadura
lo vô vê qui bixo dei i giá vorto.
A lua uem sainn
U sulr tarnbr urm vinu
1 us dois s'iracontráro!
Deu u giacaré c'oa cabra!
lo cumpré um Forde
1 ir Xico cumprô una eRua marella
In vô mistiçá ella.
Gurro vê se dista passoca sai un presidentino
Bra ista ripubliga avacagliada.
Abaxo Piques, venti di Mussolinário
Di mila vcnti seis."
Chateaubriand aproveita a estada em São Paulo para escrever uma sé-
rie sobre o modernismo paulista, na qual se destacava a entrevista com "um
forte pintor russo, Lázaro Segall", que a milionária mecenas Olívia Guedes
Penteado havia contratado "para pintar um pavilhão de sua casa, consagra-
do ao culto da modernidade ". Para o jornalista, "só mesmo a metrópole de
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Francisco Matarazzo e Pereira Ignacio pode demonstrar tal entusiasmo pela
arte moderna".
Seu interesse central, entretanto, continuava voltado para o que chama-
va "o caráter cosmopolita" que queria imprimir ao jornal. Mas os artigos es-
peciais, quase todos comprados com exclusividade do New York American
Syndicate, acabavam transmitindo ao leitor mais atento a impressão de que
reinava no jornal uma enorme confusão ideológica, pelo menos no plano in-
ternacional: durante uma semana, por exemplo, O Jornal era a única publica-
ção brasileira onde se podiam ler textos escritos por Leon Trotsky, fundador
do Exército Vermelho soviético e ex-comissário da Guerra da uRss. Às vés-
peras de entrar nas fatais listas de inimigos de Stalin, Trotsky assinou uma
série de artigos que ocupavam sempre o lugar mais nobre do jornal, o lado
direito do alto da primeira página. Isso numa época em que ainda nem ha-
via trotskistas no Brasil - o primeiro e mais notório deles só apareceria por
aqui quatro anos depois: o respeitado crítico de arte Mário Pedrosa. Mas,
logo depois de Trotsky, Chateaubriand publicaria, com igual destaque, uma
caudalosa história do fascismo assinada pelo próprio Benito Mussolini.
Como repique, a personalidade internacional seguinte seria um fiel seguidor
das idéias de Mussolini, o general falangista espanhol Primo de Rivera.
Esses extensos tijolaços nacionais e estrangeiros continuavam dando ao
jornal a aparência gráfica de um diário oficial. Tentando refrescar essa ten-
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FERNANDO MORAIS
dência, Chateaubriand aumentou de vinte para 24 o número de páginas,
agora divididas em dois cadernos, sendo o segundo freqüentemente impres-
so em cores. Em abril de 1925 uma nova experiência foi feita, e o segundo ca-
derno foi impresso nas oficinas do La Nación, em Buenos Aires, em rotogra-
vura, técnica ainda desconhecida dos diários brasileiros. Na cobertura da
morte do aviador português Sacadura Cabral, o jornal usou fartamente a cli-
cheria para reproduzir fotos do morto e do avião com que pretendia dar a
volta ao planeta. Além de se preocupar com a estética, Chateaubriand insis-
tia nas reportagens: seu primo Rafael Correa de Oliveira (neto do conselhei-
ro João Alfredo, que dera o primeiro emprego a seu pai) é colocado no en-
calço da Coluna Prestes, e pela primeira vez o público lê na grande impren-
sa algo que até então só aparecia em panfletos políticos: entrevistas em que
os chefes rebeldes descrevem suas refregas contra as forças regulares do go-
verno federal. Encantado com o lado romântico e aventuresco de Prestes, a
quem se referia nos artigos como "o fogoso capitão gaúcho", e sabendo que
a divulgação dos movimentos da Coluna era mais uma maneira de azucri-
nar o presidente da República, Chateaubriand já havia contratado antes o
general Nestor Sezefredo dos Passos para, sob o cauteloso pseudônimo de
"General Z.", assinar artigos no jornal analisando do ponto de vista militar
a marcha rebelde que se transformara na maior dor de cabeça do governo
Bernardes.
Além de Rafael Correa de Oliveira, outros repórteres do jornal - como
Azevedo Amaral e o mineiro Luís Amaral - voltariam a acompanhar a Co-
luna pelo interior do país e a publicar novas séries contando as peripécias
daquele endemoniado exército de trôpegos que as mais bem equipadas for-
ças de Bernardes jamais conseguiriam vencer. Lidas obrigatoriamente pelos
censores do ministro da Justiça, Afonso Pena Júnior (a quem Chateaubriand
substituíra como advogado de Farquhar), as reportagens costumavam sair
- quando eram liberadas - até um mês depois de escritas. Indignado com
a propaganda oficial, que comparara Luís Carlos Prestes ao cangaceiro Vir-
gulino Ferreira, o "Lampião", Chateaubriand revida na primeira página de
O Jornal: "O ministro da Justiça, que tanto se preocupa em censurar, não de-
via permitir a ignomínia dessa comparação. Lampião é um bandido, um sal-
teador vulgar, um miserável que assassina para roubar, um degenerado que
se fez cangaceiro a fim de dilapidar os bens e tirar a vida de seus semelhan-
tes. O capitão Prestes é um revolucionário, e, enquanto não for julgado por
um juiz civil ou um conselho de guerra, faz parte do Exército brasileiro. O
raid do capitão Prestes valerá pela tenacidade e pelo arrojo do soldado-me-
nino de 26 anos, bravo, ardente, pugnaz, como decerto o Brasil não tinha vis-
to nada comparável".
Como se tal atrevimento não fosse suficiente provocação contra o
presi-
dente, Chateaubriand ainda abriria nas páginas de O Jornal uma subscrição
pública destinada a coletar dinheiro dos leitores para ajudar os rebeldes,
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
soma que seria entregue a Prestes e Miguel Costa (seu companheiro no co-
mando da Coluna) pessoalmente por seu irmão Oswaldo Chateaubriand e
pelo repórter Luís Amaral. O exemplo dado por Chateaubriand acaba sendo
seguido por Irineu Marinho, em A Noite, e por Edmundo Bittencourt no Cor-
reio da Manhã. O gesto de Chateaubriand fica registrado no diário do histo-
riador oficial que acompanhou toda a trajetória da Coluna, o "bacharel fe-
roz" Lourenço Moreira Lima:
O dr. Luís Amaral, representante d'O Jornal, nos levou a primeira importância ad-
quirida pela grande subscrição nacional feita para nos socorrer - auxílio esse que
recebemos com o maior prazer, porque foi uma manifestação inequívoca de que
o povo brasileiro aplaudia a campanha que empreendêramos na defesa de suas
liberdades mais caras. [...] Conosco já estivera o dr. Correa de Oliveira, também
representante d'O Jornal, a quem se devem as fotografias tiradas da Coluna [...).
Quando a exaurida Coluna ameaça chegar ao fim, O Jornal despacha
mais repórteres ao exterior para ouvir seus comandantes. Em carta enviada
a Siqueira Campos (um dos sobreviventes da revolta do Forte de Copacaba-
na, em 1922), Prestes conta como foi seu encontro com os jornalistas de Cha-
teaubriand: "No dia 24 de fevereiro aqui chegaram o dr. Rafael C. de Olivei-
ra, que pôde observar um dos momentos mais críticos de nossa vida
revolucionária [...). Prontos, nus, doentes e feridos, terminando uma longa
marcha a pé, tendo atravessado trinta léguas de pantanal. As fotografias en-
tão tiradas são o melhor testemunho. A minha, então, é a de um verdadeiro
jagunço [...]. O dr. Luís Amaral, também representante de O Jornal, esteve
aqui alguns dias. Tirou algumas fotografias que devem ser publicadas. Deu-
me notícias tuas, do general Miguel e de João Alberto". A insistência de Cha-
teaubriand em promover Prestes e defender com tanto entusiasmo a anistia
"a todos os revoltosos, desde 1922", acabaria redundando na primeira e mais
ruidosa baixa nas hostes de O Jornal. O presidente da empresa, Epitácio Pes-
soa, acabaria pedindo demissão do cargo. Motivo: "O desgosto de presidir
um diário que advogava o perdão de rebeldes militares que cometeram o cri-
me de sublevação contra três administrações" - inclusive a sua própria.
Mas nem só de política poderia viver um jornal que vendia 40 mil exem-
plares e se gabava de ter quase 3 mil assinantes, espalhados por dezenove
estados e territórios - liderados por Minas, com 985 assinaturas, o Distrito
Federal, com 377, e São Paulo, com 349. Apesar do ar ainda carrancudo,
dado pelos artigos nacionais e estrangeiros, O Jornal certamente começava a
cair no gosto da população. Um diretor da Casa Pacheco, um dos maiores
magazines varejistas cariocas, conta em entrevista que suas vendas dobra-
ram em poucos meses, e assegura que o maior retorno desse salto é prove-
niente dos anúncios feitos em O Jornal. E foi pensando nesses leitores - afi-
nal, eles é que estavam garantindo a prosperidade de seu empreendimento
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FERNANDO MORAIS
- que Chateaubriand decidiu, sem qualquer cerimônia, se apropriar do que
ele considerava "uma grande campanha" do concorrente A Noite.
Dois anos antes, em 1923, o jornal de Irineu Marinho promovera, em
parceria com a Revista da Semana, um concurso popular para descobrir "a
mulher mais linda do Brasil". As eliminatórias estaduais levaram 24 intermi-
náveis meses até que um júri, formado pelo caricaturista Raul Pederneiras,
pelo pintor Batista da Costa e pelo escultor Correia Lima, escolheu, entre
mais de trezentas finalistas, a jovem santista Zezé Leone, que logo depois se
tornaria atriz de cinema. Alegando que A Noite e a Revista da Semana tinham
plagiado uma idéia em voga fazia muitos anos nos Estados Unidos, Cha-
teaubriand não teve cerimônia em registrar em nome de O Jornal a marca
"Miss Brasil" - um concurso de beleza que se realizaria anualmente sob os
auspícios do jornal como "uma homenagem à nossa mais linda patrícia".
Estava enganado quem supusesse que o furto iria desencadear uma
guerra entre ele e Marinho. Este, passadas poucas semanas, decidia vender
A Noite, após quinze anos à frente do jornal, e lançar um novo diário no Rio
de Janeiro, levando consigo Herbert Moses e Antônio Leal da Costa. E, ape-
sar da experiência fracassada de Chateaubriand, o grupo decidira pôr nas
ruas um vespertino. Para escolher o nome do futuro jornal, Marinho valeu-
se de um original concurso: qualquer pessoa poderia depositar sua sugestão
em urna colocada no Liceu de Artes e Ofícios. O nome que obtivesse o
maior número de indicações seria o escolhido, e o autor - ou autores - da
sugestão receberia como prêmio uma assinatura gratuita, durante um mês,
da nova publicação.
Quem leu O Jornal nos trinta dias que durou a promoção do antigo dono
de A Noite ficou com a impressão de que aquela era mais uma "campanha"
de Chateaubriand. Na verdade o que ocorreu é que, sabendo que Irineu Ma-
rinho já não dispunha de um veículo para divulgar o concurso (ele deixara
A Noite brigado com o novo dono, Geraldo Rocha, a quem acusava de ter lhe
passado a perna), Chateaubriand deu ordens para que seu jornal se encarre-
gasse de difundir, por meio de reportagens diárias - intituladas "Um bom
nome para um bom jornal" -, a promoção que iria escolher o título do novo
vespertino. Ao final de um mês, foi O Jornal que tornou público o resultado:
apuradas 26 520 sugestões, os nomes mais votados tinham sido, pela ordem,
Correio da Noite, O Globo, Última Hora, Jornal da Noite, A República, Diário da
Noite, A Reação, O Tempo, O Cruzeiro e A Tarde. O título Correio da Noite, esco-
lhido por 3382 pessoas para aquele que, décadas depois, seria um dos qua-
tro maiores jornais do país, não pôde ser adotado, pois já estava registrado
em nome de alguém. A escolha acabou recaindo sobre o segundo colocado,.
e assim foi batizado pelos 3080 leitores que haviam sugerido O Globo. O
dono do jornal mal teve tempo de ver de pé o novo vespertino, lançado na
última semana de julho: no dia 21 de agosto morria Irineu Marinho. Seu fi-
152
CHATÔ, O REI DO BRASIL
lho Roberto, de apenas 21 anos, decidiu passar a direção do jornal a Euricles
de Matos para só assumi-la cinco anos depois, com a morte deste.
A experiência frustrada do início de 1926 com a circulação vespertina de
O Jornal, somada à ocupação do espaço, no Rio, pelo lançamento de O Globo,
fez com que Chateaubriand voltasse os olhos para São Paulo - cidade onde
estava o dinheiro e onde, por coincidência, havia um jornal à venda. Era o
Diário da Noite, um vespertino com poucos meses de vida, que havia sido
fundado no começo de 1925 por Plínio Barreto, Rubens do Amaral e Leo Vaz
(o mesmo que, junto com Monteiro Lobato, sobrevivera à gripe espanhola na
redação do Estado em 1918). Ao saber que o jornal ia mal das pernas, Cha-
teaubriand tomou o Cruzeiro do Sul, trem noturno que ligava o Rio à capital
paulista, e amanheceu com sua tenda armada no Hotel Esplanada.
Desta vez sem intermediários, saiu em campo para se entender com os
donos do Diário da Noite, que não pediam muito pelo jornal - cerca de um
terço do que lhe custara O Jornal. Antes de bater o martelo, foi até a fazenda
de Júlio Mesquita, em Louveira, no interior de São Paulo, pedir a bênção do
dono do Estado para o novo negócio. Só depois de receber o nihil obstat do
patriarca da imprensa paulista é que saiu em busca de dinheiro. O prestígio
e o poder acumulados em dez meses de funcionamento de O Jornal o anima-
ram a repetir a operação que fizera em setembro do ano anterior. Desta vez
assestou suas baterias contra empresários, industriais e agricultores paulis-
tas - só para Carlos Leôncio "Nhonhô ' Magalhães, presidente da Socieda-
de Rural Brasileira, conseguiu "vender" quarenta contos de ações. Como o
novo jornal estava instalado em São Paulo, sentiu-se "no dever" de bater no-
vamente às portas de Guilherme Guinle - um carioca, sim, mas afinal ele
era o dono da Companhia Docas de Santos. Ao ver o empresário preencher
um cheque de 75 contos, exclamou:
- Os astros estão a nosso favor, doutor Guinle. O valor que o senhor
está pagando por esse lote de ações do Diário da Noite é exatamente o que o
falido New York Times custou, trinta anos atrás, a Alfred Ochs. Estamos no
bom caminho!
Guinle sabia com quem estava falando:
- Esqueça as ações, Chateaubriand. Isto é filantropia, é dinheiro a fonds
perdu.
Com a ajuda de Rodrigo Melo Franco, Chateaubriand obteve mais algu-
mas contribuições em Minas Gerais. E o dinheiro que faltava para assumir a
propriedade do jornal ele levantou vendendo antecipadamente a seus clien-
tes preferenciais - bancos, companhias de seguros, laboratórios - páginas
e páginas de anúncios que seriam publicados por meses a fio tanto no Diário
da Noite, que ainda não lhe pertencia, quanto em O Jornal. No dia 2 de junho
de 1925, embora seu nome ainda não aparecesse no cabeçalho nem no expe-
diente, o Diário da Noite era propriedade de Chateaubriand, que manteve Plí-
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#
FERNANDO MORAIS
nio Barreto e Rubens do Amaral como diretores e Leo Vaz como redator-
chefe. A marca do novo dono apareceria em poucos dias, com o jornal com-
batendo, solitária mas encarniçadamente, o projeto do governo federal de
construir um segundo porto no estado de São Paulo, na cidade de São Sebas-
tião. Para Chateaubriand aquilo era uma insensatez, uma imbecilidade,
uma demência, uma chapada ignorância, uma coceira maluca. "Uma vaidade
de gente que não sabe dar valor ao dinheiro público" . Os defensores da idéia
o acusavam de estar apenas pagando, em reportagens e editoriais, a dinhei-
rama que lhe dera Guilherme Guinle, dono da Docas de Santos, que se sen-
tia ameaçado pelo projeto. Mesmo assim, a tese de Chateaubriand saiu ven-
cedora, e o porto nem chegou a sair do papel.
Menos de seis meses após mudar de mãos, o jornal que capengara des-
de a fundação exibia uma invejável robustez econômica: antes de terminar o
ano, apresentava lucros de 311 contos. Tanto dinheiro transformava-se em
um insondável mistério, a julgar pelo que afirmaria, décadas depois, Ed-
mundo Monteiro, que jura ter mantido fechada num cofre, durante anos, a
cópia de um lançamento de caixa datado do primeiro dia de funcionamento
do jornal sob a nova direção. Segundo ele, lá estava escrito: "Formação de ca-
pital: fulano, tantos contos, beltrano, tantos contos, sicrano, tantos contos.
Total em caixa, duzentos contos". O lançamento seguinte, feito no mesmo
dia, registrava uma retirada de dinheiro feita pelo irmão do dono: "Emprésti-
mo ao dr. Oswaldo Chateaubriand: duzentos contos". Para Monteiro, aquela
era uma prova indiscutível de que "oficialmente a nova empresa nasceu e que-
brou no dia de sua fundação - e este seria o retrato mais fiel da história dos
nossos jornais".
Ainda que fruto de algum inexplicável milagre, a verdade é que o Diá-
rio da Noite tinha mesmo apurado ao longo dos primeiros meses os tais 311
contos anunciados como "lucro". Pois foi com esse dinheiro que Chateau-
briand alugou a sede da antiga Rotisserie Sportsman, na rua Líbero Badaró,
nos baixos do viaduto do Chá, e transferiu para lá o jornal, devidamente
equipado por uma recém-adquirida rotativa Albert - um prodígio da enge-
nharia capaz de rodar por hora 30 mil exemplares de um caderno de dezes-
seis páginas, duas das quais em cores. Do propalado lucro do Diário da Noi-
te ainda sobrou dinheiro para que Chateaubriand adquirisse de Monteiro
Lobato e transferisse para São Paulo a respeitada Revista do Brasil, que pas-
sou a ser dirigida por Rodrigo Melo Franco de Andrade.
Não se imagine, porém, que tamanha abastança fosse um privilégio do
braço paulista dos negócios de Chateaubriand. No Rio de Janeiro O Jornal
exibia opulência semelhante ou até maior que a do Diário da Noite. Para o jor-
nal carioca foi comprada uma máquina ainda mais sofisticada que a Albert
que fazia tremer o velho prédio do vale do Anhangabaú: uma Hoe de alta
velocidade, novinha em folha, capaz de imprimir duas vezes e meia mais
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
jornais que a máquina instalada em São Paulo - ou seja, 72 mil exemplares
por hora, continuamente. Quando os técnicos acabaram de aparafusar a im-
pressora no chão do andar térreo do prédio do jornal, Chateaubriand dava
voltas e voltas em torno dela, dando-lhe tapinhas como quem bate no lom-
bo de um puro-sangue premiado. Para expressar tanta admiração, recorria
ao superlativo nordestino:
- Isto não é um prelo, é um despotismo! Um despotismo, meus se-
nhores!
Importado dos Estados Unidos, o despotismo foi apresentado aos leito-
res através de uma edição comemorativa do centenário do nascimento de
d. Pedro II e sobre o desenvolvimento da indústria no Brasil. O calhamaço
quebrava dois recordes da imprensa brasileira: até então nenhum jornal ti-
nha posto na rua uma edição com 68 páginas, assim como nenhum veículo
jamais conseguira vender, num só dia, um volume tão grande de publicida-
de como a estampada em O Jornal de 2 de dezembro de 1925.
A compra de um novo jornal em São Paulo e da Revista do Brasil, a im-
portação de máquinas caras e sofisticadas, a edição especial de O Jornal-
tanto barulho acabou despertando a serpente que dormia no Palácio do Ca-
tete e que, aparentemente, tinha decidido deixar Chateaubriand em paz. A
verdade é que, simulando indiferença aos negócios do adversário, Artur
Bernardes, por meio de informantes plantados dentro do jornal, vinha acom-
panhando secretamente, desde setembro do ano anterior, os detalhes de to-
das as operações realizadas pela empresa. O presidente era informado, ho-
ras depois, de cada real que entrava ou saía do prédio da rua Rodrigo Silva.
A primeira suspeita nasceu quando ele fez as contas do dinheiro levantado
por Chateaubriand para a compra de O Jornal. Somou os 170 contos que o
jornalista tirara do próprio bolso, os 130 tomados à Sotto Mayor, os 1500 ava-
lizados por Alfredo Pujol, acrescentou o que havia sido apurado na venda
de ações para os empresários mineiros, paulistas e cariocas e mais as presta-
ções que haviam sido pagas a Toledo Lopes: tudo junto não chegava a 4500
contos. Se o jornal fora vendido por 6 mil contos, a conclusão era cristalina:
os 1500 contos que faltavam tinham sido dados por Mackenzie. Ou por Far-
quhar, Billings, Couzens ou Pierson, tanto fazia. Era dinheiro estrangeiro
controlando a opinião pública por intermédio de um jornal brasileiro - o
que, na cabeça do presidente da República, justificava a inexplicável ausên-
cia de anúncios da Light, por exemplo, em O Jornal.
Nos primeiros dias de dezembro Chateaubriand, ao entrar no elevador
de um banco no centro da cidade, lá cruzou com o geólogo Arrojado Lisboa,
que já foi perguntando:
- Você já sabe que estão preparando sua saída de O Jornal?
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FERNANDO MORAIS
Chateaubriand achou que se tratasse de uma brincadeira, mas por pre-
caução não quis tratar daquele assunto em um elevador cheio de estranhos
e disfarçou o espanto:
- Algumas ações estão sendo negociadas, mas é a meu pedido.
- Não é isso. Um diretor do jornal está comprando ações em seu nome.
É uma ofensiva violenta, e com dinheiro do governo federal.
Chateaubriand nem chegou a sair do elevador. Voltou ao térreo e che-
gou ofegante à sua sala no jornal. Abriu sôfrego o cofre que ficava num can-
to e, aí sim, quase teve um infarto: seu mais precioso documento - a exten-
sa lista de acionistas que haviam contribuído para a compra de O Jornal-
tinha sido furtada. Pediu a Austregésilo de Athayde que convocasse uma
reunião de todos os acionistas que estivessem na cidade. No final da tarde
estavam lá duas dezenas de industriais, banqueiros, comerciantes e juristas.
A maioria deles já havia vendido suas ações a um diretor do jornal - cujo
nome Chateaubriand jamais revelaria -, que dizia estar comprando os pa-
péis em seu nome. A operação era facilitada pela legislação vigente, que es-
tabelecia que eram ao portador as ações das sociedades anônimas. Lívido,
ele começou a disparar telefonemas para acionar quem pudesse ajudá-lo a
entender o que estava acontecendo. Antes que a noite caísse já elucidara o
mistério: o dinheiro para a compra das ações tinha saído dos cofres do Ban-
co do Brasil. E a ordem para liberar os milhares de contos havia partido do
próprio presidente da República.
Pelo plano engendrado no Palácio do Catete, Bernardes pretendia ad-
quirir sorrateiramente o controle acionário da Sociedade Anônima O Jornal,
destituir seu dono e depois revender a empresa ao antigo proprietário, Re-
nato Toledo Lopes. Se a trama viesse a público, o presidente diria desconhe-
cer a operação, cuja responsabilidade seria assumida por Toledo Lopes.
Além disso, comprar ações de uma empresa e assumir o controle dela não
era nenhum crime. Com a ajuda de Athayde, Eugênio Gudin e Afonso Vi-
zeu, Chateaubriand contabilizou a extensão do estrago feito por Artur Ber-
nardes. Por suas contas, o plano tinha sido abortado a tempo: o pacote de
ações compradas a mando do presidente não chegara aos 50% do capital-
insuficiente, até aquele momento, pelo menos, para tirar o jornal de suas
mãos.
No mesmo dia Chateaubriand redigiu a convocação de uma assembléia
geral dos acionistas, com a finalidade de mudar os estatutos da empresa e
eleger nova diretoria. Para realizar tais mudanças, precisaria ter a seu lado
dois terços dos acionistas. Se marcasse a assembléia para o dia seguinte, re-
duziria o tempo que Bernardes teria para comprar mais ações - mas, com
as precárias comunicações daquele tempo, corria o risco de não conseguir
reunir todos os acionistas que ainda não tinham sido procurados pelos ho-
mens do governo que se anunciavam como seus intermediários. Se chamas-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
se a assembléia para duas semanas depois garantiria a presença de todos,
mas ampliaria o prazo de que o governo dispunha para manobrar. Havia até
o risco de o presidente, valendo-se dos instrumentos de exceção que o esta-
do de sítio lhe franqueava, cometer alguma tropelia jurídica e simplesmente
proibir a reunião. Ficou no meio-termo e convocou a assembléia para cinco
dias depois. Chateaubriand varou a noite dando telefonemas e despachando
emissários para todos os cantos, com dois objetivos: primeiro, advertir os
acionistas para que não vendessem suas ações a ninguém que os procurasse
em seu nome, já que aquilo era "uma operação de despejo " movida contra
ele pelo presidente da República, "um crocodilo que prepara as mandíbulas
para me triturar" . Quem quer que os procurasse falando em seu nome deve-
ria ser tratado como um "traidor miserável". E depois, claro, ele queria se as-
segurar da presença de todos na assembléia geral. Certo de que Toledo Lo-
pes estava servindo como a "mão do gato " de Bernardes, em toda a conjura,
terminava os telefonemas com um alerta:
- Cuidado com o crioulo, que ele certamente está por trás disso. O que
esse macaco quer é transformar O Jornal num segundo Diário Oficial a servi-
ço de Bernardes aqui na capital.
Ao falar com os acionistas (que descobriu, perplexo, serem dezenas e
dezenas), Chateaubriand enfrentou de tudo. Enfureceu-se com os que nem
quiseram atendê-lo e insultou os que se acovardaram - Bernardes, que ain-
da tinha um ano de governo pela frente, sempre empunhando a ameaçado-
ra espada do estado de sítio, fazia terrorismo mandando espalhar a notícia
de que não permitiria que a assembléia se realizasse. Alguns, como Darke de
Mattos e Gabriel Bernardes, que aparentemente tinham vendido suas ações
sabendo do golpe, voltaram atrás e aderiram a Chateaubriand. A blitzkrieg
para salvar o jornal da rapina do governo acabaria rendendo a Chateau-
briand um inesperado saldo de quase 2700 contos, dinheiro colocado nas
suas mãos para a eventualidade de ser necessário recomprar algum pacote
de ações vendido aos homens de Bernardes. Um dos que, além de apoiá-lo
politicamente, abriram seus talões de cheques foi o cafeicultor Carlos Leôn-
cio "Nhonhô" Magalhães. Ele não só depositou na conta do jornalista algu-
mas centenas de contos, como ainda deixou mais 3500 contos à disposição de
Chateaubriand, "reservados para alguma emergência". A gentileza de Ma-
galhães veio acompanhada de uma frase de efeito:
- Esta não é uma guerra de Assis Chateaubriand contra Bernardes. É a
guerra do café e dos cafeicultores contra um presidente mofino, um inimigo
jurado do café.
Recebeu uma resposta à altura:
- E eu vejo que não estou falando com um reles fazendeiro, mas com
um brasileiro de peito cabeludo!
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FERNANDO MORAIS
Cinco dias depois, a assembléia era instalada às dez da manhã, na pró-
pria sede do jornal. Para presidi-la foi escolhido por aclamação o veterano e
respeitado Francisco Sales, membro do grupo que, décadas antes, fundara
com Américo de Campos e Rangel Pestana a Provincia de São Paulo. Uma pas-
sada de olhos nos presentes permitia contabilizar a confortável maioria que
o grupo de Chateaubriand detinha. Lá estavam, entre outros, Epitácio Pes-
soa, Alfredo Pujol, vários Melo Franco, Carlos Leôncio de Magalhães, José
Maria Whitaker, o novo presidente da Liga Comercial do Rio, Araújo Fran-
co, e seu antecessor, Raoul Dunlop, Afonso Vizeu, Gabriel Bernardes, Aus-
tregésilo de Athayde, Herbert Moses, Eugênio Gudin, Darke de Mattos, Ar-
rojado Lisboa, Sabóia de Medeiros. Encarregado de fazer discretamente a
contagem de votos, Athayde circulou pelo salão repleto e depois cochichou
no ouvido de Chateaubriand: a assembléia tinha número suficiente para de-
liberar e eles detinham os dois terços indispensáveis à pretendida mudança
dos estatutos.
No final da tarde, depois de sete horas ininterruptas de reunião, a bata-
lha tinha sido vencida. A partir daquele momento todo acionista que quises-
se passar adiante suas ações - que continuavam, por exigência legal, sendo
papéis ao portador - deveria ter anuência prévia da maioria simples do res-
tante dos sócios. A nova diretoria da Sociedade Anônima O Jornal foi anun-
ciada sob palmas: Epitácio Pessoa aceitara ser reconduzido à presidência
abandonada meses antes, Alfredo Pujol era o novo vice-presidente. Virgílio
de Melo Franco e Assis Chateaubriand tinham sido eleitos diretores. A as-
sembléia foi encerrada com um emocionado discurso feito de improviso por
Chateaubriand:
- O caso de O Jornal, é preciso que se diga, não foi uma operação legí-
tima e comercial de compra de ações no mercado do Rio e de São Paulo. Não.
Foi um assalto levado a cabo com todas as armas da perfídia. As ações foram
adquiridas falsamente em meu nome. Seria descrer do Brasil se três ou qua-
tro valdevinos sem escrúpulo pudessem abocanhar um diário do timbre mo-
ral do nosso para transformá-lo em vassoura de negocistas, em balcão ignó-
bil de interesses espúrios e inconfessáveis.
Mesmo sem ter citado uma só vez o nome de Bernardes no discurso, As-
sis Chateaubriand saiu dali anunciando que havia imposto "uma nova, do-
lorosa e humilhante derrota ao mais poderoso presidente que o Brasil tivera
em todos os tempos". Nem ele mesmo, porém, acreditava nas últimas pala-
vras. Passadas algumas semanas o Brasil elegeria novo presidente e Bernar-
des já não amedrontaria mais ninguém. Afinal, fora o próprio Chateau-
briand quem, no mês de agosto, dera um "furo de reportagem " em todos os
jornais concorrentes, ao anunciar em primeira mão que Washington Luís Pe-
reira de Souza, senador paulista e ex-governador do estado, iria disputar a
Presidência da República nas eleições de março de 1926 pelo Partido Repu-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
blicano Paulista, tendo como candidato a vice o mineiro Fernando Melo
Viana. Quando O Jornal e o Diário da Noite deram a notícia, o vice-presiden-
te da República, Estácio Coimbra - o governador interino de Pernambuco
com quem Chateaubriand resistira ao tiroteio na guerra contra Dantas Bar-
reto - achou que o jornalista tinha perdido o juízo:
- Chateaubriand, aposto minha cabeça como o noticiário que você pu-
blicou não passa de fantasia. O que ouço diariamente de Bernardes é o opos-
to do que aparece nos seus jornais. Depois da revolução de 5 de julho, o pre-
sidente não pode nem ouvir falar na possibilidade de ver um paulista
governando o Brasil. A má vontade dele com São Paulo é corrosiva.
- Aposta a cabeça? Pois então prepare-se para terminar seus dias deca-
pitado.
A "fantasia" dada com exclusividade iria se materializar no dia 15 de
março de 1926, quando Washington Luís e Melo Viana se elegeram sem con-
correr com ninguém, disputando sozinhos as eleições, praticamente sem ad-
versários. Os oito meses que naquela época separavam a eleição da posse do
presidente da República transformaram Bernardes em uma carta fora do ba-
ralho. Mesmo gabando-se de ser um homem que "não chutava perna de alei-
jado ", Chateaubriand ainda preparava uma despedida triunfal para seu ad-
versário em fim de governo.
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Ao dar cabo ao breve noivado com a francesa Jeanne Paulette Allard, em
fins de 1924, pela segunda vez, em uma vida tão pobre de amores, Chateau-
briand desfazia um romance às vésperas do casamento. A européia Jeanne
reagiu sem o radicalismo pernambucano de Poli, mas se sentiu igualmente
insultada. Afinal, Chateaubriand chegara a acompanhá-la ao cartório para
autorizar os proclamas públicos, última providência legal antes da celebra-
ção do casamento. Ao contrário de Poli - que respondera ao desgosto tran-
cando-se em casa por dez anos -, a jovem Jeanne simplesmente fizera as
malas e voltara para a França. E foi certamente por conhecer a vida afetiva
pregressa de Chateaubriand - e, acima de tudo, sua incontrolável vocação
para a infidelidade amorosa - que seus amigos imaginaram ouvir uma pi-
lhéria quando, em 1926, ele anunciou que no dia 2 de junho se casaria com
Maria Henriqueta Barrozo do Amaral, de 21 anos.
Filha do juiz Zózimo Barrozo do Amaral e dona de deslumbrante bele-
za, a alvura de sua pele acabaria tornando-a conhecida apenas como "Maria
Branquinha". Tamanha era a formosura da melancólica jovem que ela des-
frutava um privilégio disputado por qualquer moça da época: ter no primei-
ro lugar da interminável fila de seus requestadores um dos mais fulgurantes
astros do modernismo, o poeta pernambucano Manuel Bandeira. Redator de
O Jornal, Bandeira desafiava a fúria de Chateaubriand ao adotar como musa
inspiradora de seus poemas a futura mulher do patrão. Mais do que isso-
comentava-se à sorrelfa nas rodas intelectuais -, Bandeira alimentava pela
bela Branquinha profunda porém prudente e silenciosa paixão.
Tão espantoso quanto a notícia de que Chateaubriand iria se casar foi o
casamento em si. Ao contrário da extravagância e do barulho que envolviam
tudo o que ele fazia, aquela mais se assemelhava, para usar a frase de efeito
que o jornalista tanto repetia, "a uma cerimônia de monges trapistas". Na
manhã do dia 2, como prometera, Chateaubriand saiu sozinho do Copaca-
bana Palace e foi diretamente para a elegante casa da noiva, na rua Marquês
de Olinda, em Botafogo. Lá o esperavam, além da moça, seus pais e o juiz de
paz Ernesto Berg, apenas os dois padrinhos exigidos por lei: pela noiva, Vir-
gílio de Melo Franco, e da parte do noivo o médico Antônio da Silva Mello.
Mais ninguém. Encerradas as formalidades, sem festa, sem champanhe e
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
sem notícia nos jornais, os dois retornaram ao hotel onde ele vivia. Entre pi-
lhas de presentes, encontraram, preso a um cartão de Sir and Lady Mackenzie,
um embrulho contendo uma raridade de museu: um serviço de chá de pra-
ta inglesa que tinha pertencido à rainha Anne, da Inglaterra. Passaram no
Copacabana Palace as duas primeiras semanas de casados e só então toma-
ram o Rolls-Royce de Chateaubriand e tocaram para um hotel em Campos
do Jordão, no contraforte paulista da serra da Mantiqueira, onde um aparta-
mento já os esperava para a lua-de-mel.
Na primeira manhã da viagem de núpcias, Maria Henriqueta levantou-
se mais cedo, banhou-se e saiu para passear nas cercanias do hotel. Quando
retornou, Chateaubriand já tinha tomado banho e fazia o desjejum na sala
contígua ao quarto de dormir. Ela caminhou até o banheiro e percebeu que
uma das toalhas de banho permanecia intata, pendurada no cabide. Voltou
e advertiu-o, delicadamente mas com firmeza:
- Chateaubriand, você se enxugou na mesma toalha que eu. Vamos es-
tabelecer uma coisa desde já: neste casamento cada um terá sempre a sua
própria toalha de banho e de rosto.
Ela já havia descoberto muitas outras esquisitices do marido na noite
anterior, ao desfazer a mala de viagem dele: as roupas tinham sido atiradas
lá dentro a esmo, emboladas e amarrotadas, transformando a mala em um
ninho de guaxos. Como um menino apanhado em flagrante, ele reconheceu,
humilde, que "uma das muitas coisas que não sabia nesta vida era fazer ma-
las". Ao tentar arrumar as roupas, ela deparou com três camisolões e uma
estranha touca presa por um elástico a algo que parecia um pequeno coador
de café. Temerosa de que aquilo escondesse alguma perversão secreta do
marido, interrogou-o, preocupada:
- Chateaubriand, que maluquices são estas aqui?
Sem nenhum constrangimento ele explicou que os camisolões eram
aquilo mesmo que ela estava vendo: apenas camisolões de dormir que usa-
va desde garoto - "muito mais confortáveis que qualquer pijama". E a ou-
tra peça não era um sutiã, como ela poderia imaginar: era uma espécie de
queixeira que o médico recomendara que ele usasse para manter a boca fe-
chada durante o sono e corrigir a respiração e o ronco noturno. Mas não era
só isso. Ao lado do amontoado de roupas, ocupando quase metade da mala,
a esposa deu com resmas de papel de jornal em branco, cortadas no tamanho
de uma carta e dispostas em várias pilhas cintadas com cartolina. Num can-
to da mala, presos por um elástico, dez lápis pretos. Já bem-humorada, Ma-
ria Henriqueta continuava intrigada com os hábitos do marido:
- E para isto aqui, Chateaubriand, qual é a explicação que você vai dar?
Para que trazer tanto papel e lápis para a lua-de-mel?
- Trabalho, Branquinha. O que me espera nas próximas semanas é tra-
balho, muito trabalho.
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Ele de fato passou dias rabiscando freneticamente. Escrevia sempre a lá-
pis, na frente e no verso do papel, e ia empilhando aquilo no chão, ao lado
da mesinha onde trabalhava. A mulher não perguntava nada, só olhava.
Três semanas depois de terem chegado às frias montanhas da estância pau-
lista, retornaram ao Rio felizes e gratificados pela fecundidade da lua-de-
mel: Chateaubriand carregava no banco de trás do carro as insólitas pilhas
de papel descobertas pela mulher na noite de núpcias, agora inteiramente
cobertas por garranchos que lembravam algo recém-inventado pela ciência
- os traços de um eletrocardiograma. Eram os originais do livro Terra desu-
mana, sobre Artur Bernardes - que ele escrevera em tão pouco tempo e pre-
tendia transformar no "funeral de luxo com que sepultarei esse defunto mi-
neiro". Maria Henriqueta ainda não sabia, mas já levava na barriga um filho
de Chateaubriand.
As exéquias de Bernardes ainda iam demorar um pouco. Ao saber do
teor do livro, o presidente fez chegar aos ouvidos do autor, por intermédio
de amigos comuns, que não hesitaria um instante em fazer uso dos poderes
que lhe dava o estado de sítio para censurá-lo: pura e simplesmente o livro
seria proibido de circular. Só no dia 30 de outubro, quando faltavam duas se-
manas para a posse do novo presidente, é que Chateaubriand se animou a
mandar os originais para as oficinas de O Jornal - onde Umberto Porta era
o único linotipista capaz de decifrar sua letra incompreensível para a maio-
ria das pessoas. No dia em que Terra desumana chegou às livrarias, seu prin-
cipal personagem era apenas um cidadão comum, incapaz de qualquer vin-
gança.
As primeiras linhas do prefácio sugerem uma obra amena, escrita "na
solidão das montanhas suaves de Campos do Jordão, a 1650 metros acima
do mar, muito acima das coisas humanas, longe do torvelinho das paixões
coletivas". A placidez, porém, começa e termina nesse parágrafo. Logo em
seguida, denuncia que não publicara o livro antes "porque o regime de sítio
e a censura à palavra escrita impossibilitavam a livre manifestação do pen-
samento sobre os atos e a pessoa do dr. Bernardes". Ironizando os momen-
tos de liberdade concedida em que o presidente afrouxara a censura - hia-
tos dos quais muitas vezes ele próprio fora beneficiário -, Chateaubriand se
comparava ao escravo da lenda árabe, cuja língua tinha sido cortada pelo vi-
zir Mahaseb, que constantemente o provocava: "Anda, fala", dizia o senhor,
"de que te queixas?".
Com pouco mais de duzentas páginas, Terra desumana (cujo subtítulo
era A vocação revolucionária do presidente Artur Bernardes) começa com uma
análise da personalidade de Bernardes: a ausência nele de traços tímidos e
pacatos, típicos dos mineiros, se explicava por sua origem, a Zona da Mata
- região de gente rude, que no século passado carregava o estigma de pro-
duzir os mais duros e intratáveis senhores de escravos. Dizia-se que a pior
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FERNANDO MORAIS
ameaça que se podia fazer a um escravo que cometesse repetidas faltas era
prometer vendê-lo "a um senhor da Zona da Mata". A isso se somava, para
a formação do caráter de Bernardes, escreveu Chateaubriand, a educação re-
ligiosa que ele recebera no também mineiro Seminário do Caraça - famoso
pela dureza medieval e pela intolerância com que tratava os alunos. Só al-
guém nascido e criado nessas condições, especulava o jornalista, seria capaz
de confessar desconsolado, a um amigo, depois de quatro anos na Presidên-
cia da República: "Foi-se o meu quatriênio e eu ainda não acabei de me vin-
gar de todos".
Nem o próprio autor conseguia entender como escapara ileso do inimi-
go cuja ferocidade agora denunciava: "A mim mesmo, há dois anos, faço
esta interrogação: por que o dr. Bernardes não me prendeu, se me julga um
traidor da Pátria? Por que, quando desfechou o golpe da compra das ações
de O Jornal, não me mandou para a ilha da Trindade?". Aos poucos, pacien-
te e minuciosamente, Chateaubriand vai passando o bisturi sobre o seu de-
funto. O permanente mau humor do presidente explicava-se facilmente: ele
"não tolera o Rio de Janeiro", sentimento que confessara anos antes, ao su-
gerir a mudança da capital do país para o interior de Goiás. "Aos olhos bea-
tos do presidente", debochou, "o carioca é um sátiro que anda por estas
praias úmidas, verdadeiro ninho de beijos, a ofender a moral com a impu-
dência de sua nudez pecaminosa ; é um malandrim que vive a desacreditar
o prestígio da autoridade."
O esquartejamento é lento: Bernardes foi o único responsável por todas
as revoltas militares ocorridas no país nos quatro anos anteriores; seu jaco-
binismo econômico atrasou em décadas a vida do país ("Na sua cabeça fuzi-
la a preocupação constante do chamado perigo yankee - e eu não consigo
conceber o Brasil senão como o futuro núcleo dos Estados Unidos na Amé-
rica do Sul"); a imoralidade e a perseguição política foram as duas únicas
marcas deixadas no país por seu governo ("Tivemos presidentes que fizeram
coisas perversas. Outros perpetraram atos imorais. O dr. Bernardes foi o úni-
co que fez coisas perversas e imorais ao mesmo tempo"). Para Chateau-
briand não há dúvida, trata-se de um doente mental: "O presidente tem
surtos
delirantes, que não passam despercebidos aos que friamente o examinarem
com olho de psiquiatra. O dr. Artur Bernardes abandonou o governo, mas a
carcaça de sua obra política continuará a contaminar a nação".
E a primeira crítica publicada sobre Terra desumana é francamente con-
trária ao livro. Para surpresa de todos, ela sairia publicada no primeiro do-
mingo seguinte ao lançamento no próprio O Jornal, e assinada por um velho
amigo do autor: Austregésilo de Athayde. O "Caboclo" sabia que punha em
risco o emprego e a pele, mas não se acovardou. Varias vezes, disse ele, caíra
nas suas mãos um documento menos fiel à realidade que aquele livro: "O
único, indisfarçável objetivo do autor é apresentar o presidente Bernardes
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#
FERNANDO MORAIS
como um monstro", escreveu Athayde, "uma criatura tarada, daquelas que
ficam na história espantando as gerações - a fria encarnação do tirano com
o sadismo do ódio e da vingança". Sabendo que Chateaubriand pudera de-
dicar tempo e tranqüilidade para escrever o livro, Athayde não poupa o ami-
go: "O olhar agudo que Assis Chateaubriand lançou sobre a obra de Bernar-
des trai o impressionismo do jornalista, método que faz do homem de imprensa
um eterno improvisador de idéias, arrastado a pronunciar-se em poucas ho-
ras sobre temas complexos que exigem a seriedade de longas meditações.
Chateaubriand não pôde escapar a essa espécie de fatalidade de que todos
somos vítimas mais ou menos acentuadas".
O imprevisível e contraditório Chateaubriand decepcionou os que espe-
ravam um tiro, uma surra ou, no mínimo, uma carta de demissão como tro-
co à insolência. A resposta viria três dias depois sob a forma de um civiliza-
do artigo de primeira página em O Jornal. Afirmando sentir enorme prazer
em discutir com us críticos sinceros de sua obra - "mesmo que essa crítica
esteja no terreno diametralmente oposto, em que Austregésilo de Athayde se
coloca para julgar a obra do presidente Bernardes" -, Chateaubriand
recor-
re ao bom humor para responder: "Athayde é um grande cético e um irôni-
co maior ainda, que trouxe de oito anos da vida de seminário o íntimo de-
sengano do Eclesiastes". Só isso, na sua opinião, explicaria o fato de o amigo
"olhar com o mesmo e tranqüilo ceticismo tanto o presidente Bernardes
quanto os que hoje pretendem arrasar o chefe de Estado". Chateaubriand
termina o artigo com uma sarcástica autocrítica: "Seria mesquinho se eu ti-
vesse escrito um livro para destruir o presidente Bernardes - um homem
que já estava no ocaso e que eu tinha certeza de que nenhuma força huma-
na poderia mais galvanizá-lo para voltar a ter qualquer parcela de poder na
vida pública do Brasil".
No domingo seguinte, O Estado de S. Paulo traz uma crítica elogiosa ao
livro, assinada por Plínio Barreto. E na edição de dezembro da Revista do Bra-
sil aparece uma resenha que à primeira vista poderia despertar suspeitas, já
que seu autor, como Chateaubriand, também detestava Bernardes. No arti-
go, Rodrigo Melo Franco de Andrade afirma que o livro era vela demais
para tão minúsculo defunto. Como se concordasse com a autocrítica publi-
cada em O Jornal, Melo Franco dizia que Terra desumana acabava sendo, no
fundo, uma obra de lisonja ao ex-presidente: "Chateaubriand empresta,
realmente, tanta importância a Artur Bernardes que este acaba parecendo
uma figura capital de nossa história republicana". E discorda do vaticínio de
que "a carcaça" do ex-presidente ainda exerceria profunda influência sobre
a vida do Brasil: "Isto seria atribuir honra e estimação demais a um bacharel
que a fortuna conduziu aos empurrões ao Catete - apenas um bom-moço,
com tão poucas letras quanto os outros que andam por aí. Como poderia a
mentalidade de um bacharel medíocre e neurastênico resistir, sem equilí-
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#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
brio, ao domínio absoluto de 30 milhões de homens? Se lhe confiassem, al-
gum tempo antes, sete ou oito rapazes a encaminhar na vida, talvez ele os
acomodasse razoavelmente arranjando-lhes empregos públicos. Mas 30 mi-
lhões de brasileiros eram demais para o sr. Bernardes. Ele perdeu a
cabeça".
No fim da crônica, afirma que o subtítulo do livro poderia muito bem ter sido
eliminado: "O que o sr. Chateaubriand chama a sua 'vocação revolucioná-
ria', no fundo, não tem nada de vocação - tem tudo de improviso".
Duas edições - de "oito milheiros" cada, esclareciam. os repetidos
anúncios do livro publicados em O Jornal e no Diário da Noite - evaporaram
nas livrarias em poucas semanas. Só então é que apareceria na praça não
mais uma crítica - mas outro livro para responder a Térra desumana. Amigo
de Bernardes e filho de um eminente conselheiro do Império, José Júlio Sil-
veira Martins pôs nas livrarias Noção do Agredido - Em resposta ao Terra desuma-
na. Em duzentas páginas, defende o "nacionalismo patriótico" do ex-presi-
dente e afirma, com todas as letras, que Chateaubriand não escreveu seu li-
vro para defender idéias, mas apenas como vingança, por ter sido impedido
por Bernardes de ganhar algumas centenas de milhares de libras de comis-
são pelo fracassado contrato com a Itabira Iron Ore. Para Silveira Martins,
Chateaubriand nunca passou de "patrono do sindicato Itabira e advogado
dos judeus da City: no imenso deserto moral de Terra desumana, só um oásis
ergue para os céus a copa de suas palmeiras - é a Itabira! Chateaubriand
desconhece os negocinhos de cinqüenta ou cem contos. Numa transação, ou
ganha quinhentos contos ou não ganha nada. Os outros costumam dizer:
desgraça pouca é bobagem. Chateaubriand modificou o refrão e diz: dinhei-
ro pouco é tolice".
Terra desumana, de qualquer forma, só viria a ser consagrado como obra
séria muito tempo depois da morte de Chateaubriand, ao ser qualificado por
Wilson Martins, em sua História da inteligência brasileira, como o livro "mais
devastador escrito contra Artur Bernardes ou, de fato, contra qualquer pre-
sidente brasileiro. É um dos panfletos mais brilhantes de nossa literatura po-
lítica, escrito com inteligência vibrante e incomparável agudeza, análise pro-
funda de um caráter e desenho de uma mentalidade como jamais se havia
feito no país - e como ninguém voltaria a fazer depois dele".
Com o fim do "consulado bernardesco", como Chateaubriand se referia ao
governo que terminava em novembro de 1926, o país tinha tudo para supor
que afinal iria viver um período de paz. Antítese do emburrado e irascível Ar-
tur Bernardes, o "paulista" (que na verdade nascera em Macaé, no Estado do
Rio) Washington Luís era um festeiro desenvolvimentista ("governar é abrir es-
tradas" era seu lema) que não parecia querer encrenca com ninguém. O primei-
ro sinal de que a paz não era apenas retórica foi dado pelo novo presidente no
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#
FERNANDO MORAIS
dia de Ano-Novo, ao decretar o fim do estado de sítio que durara mais de qua-
tro anos. A mais sonora resposta ao gesto do presidente viria em pouco mais
de um mês: no começo de fevereiro de 1927, depois de derrotar sucessivamen-
te dezoito generais à frente de tropas federais, a invicta Coluna Prestes atraves-
sa a fronteira brasileira, se interna nas selvas bolivianas e depõe armas ao ma-
jor Carmona Rodó, representante do governo boliviano, pondo termo à mais
longa marcha militar de que se tem notícia. A histórica foto batida em Puerto
Gaiba mostra o major César Barón, comandante do destacamento boliviano,
Luís Carlos Prestes, Miguel Costa e Lourenço Moreira Lima, escrivão oficial da
marcha. No centro da fotografia, de óculos, botas de cano longo e um bloco de
anotações na mão, o repórter Luís Amaral, do Diário da Noite.
Usufruindo do clima de liberdade reinante - que ninguém poderia ju-
rar quanto tempo duraria -, Chateaubriand coloca O Jornal e o Diário da Noi-
te na liderança de uma nova campanha, que chamava de "movimento cívi-
co" pela concessão de anistia aos combatentes da marcha, exilados na Bolí-
via e que já começavam a se dispersar para o Paraguai e a Argentina. Essa sepa-
ração seria o primeiro indício de que em pouco tempo os principais coman-
dantes da Coluna estariam em campos políticos opostos. Chateaubriand dá
ordens a seus diretores para que os dois jornais iniciem outra campanha, que
acabaria adquirindo expressão nacional, de coleta de dinheiro para ajudar a
manter os combatentes e seus familiares no exílio. Diariamente publicam lis-
tas de nomes de leitores de todo o Brasil, acompanhados das respectivas
contribuições. Luís Amaral é o encarregado de entregar a Prestes, na Bolívia,
a primeira remessa de dinheiro obtida: dezessete contos de réis. Como retri-
buição Prestes autoriza a publicação em O Jornal e no Diário da Noite de um
pacote com duzentas páginas de diários e gráficos da Coluna entregues ao
repórter. O material sai com estrondo nos jornais, na série intitulada "Ouvin-
do e falando a Luís Carlos Prestes, o condottiere fascinante da Coluna" - far-
tamente ilustrada com os mapas, fotografias e desenhos das figuras de Pres-
tes e Miguel Costa. Prestes doa a Luís Amaral, para fazer finanças, sessenta
exemplares do boletim O Libertador, órgão oficial da Coluna, dos quais 25 são
repassados a O Globo e os restantes rifados por O Jornal a cinco mil-réis o bi-
lhete. "Alguns dos jornais da campanha", garante o redator, "ainda estão
salpicados pelo sangue vertido pelos patriotas." Os compradores das rifas,
às centenas, têm seus nomes publicados diariamente - embora boa parte
deles preferisse se ocultar atrás de iniciais ou simplesmente como "um anô-
nimo". Em meio à cobertura é noticiada com todo destaque a visita que
d. Leocádia Prestes, mãe do "Cavaleiro da Esperança", faz à redação de O
Jornal para agradecer o apoio à luta do filho. A cortesia rende mais um arti-
go assinado por Chateaubriand no dia seguinte.
As duas campanhas - de arrecadação de fundos e pela anistia - são
reforçadas por artigos quase diários do dono dos jornais, sempre assinados
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CHATÔ, O REI DO BRASIl
e publicados na primeira página. Invariavelmente sobra chumbo para Ber-
nardes. Chateaubriand afirma ser injusto que o ex-presidente "que ensan-
güentou o Brasil, que dilapidou a fortuna pública, mande-se para a Europa
com seus cúmplices de mazorca, e que permaneçam no exílio ou no fundo
das masmorras os que se rebelaram contra esse novo Cola de Rienzo. Sus-
tenta que, para "arrastar Luís Carlos Prestes à barra de um tribunal, será pre-
ciso, antes, fazer o mesmo com o sr. Artur Bernardes ". E sugere ("se isso não
fosse honra demais para tão lamentável criatura") que o ex-presidente seja
mandado para a prisão e depois, então, tentasse se beneficiar da anistia rei-
vindicada. Além de editoriais assinados, Chateaubriand publica algumas
vezes, sob a aparência de anúncios pagos, inexplicáveis artigos identificados
como "A pedidos ". Nestes, o tom é ainda mais venenoso: "O Brasil inteiro
conhece Artur Bernardes, o degenerado a quem um manicômio aguarda em
breve, o miserável que, por sadismo, pôs a prêmio por quinhentos contos de
réis a cabeça do capitão Prestes. O ex-presidente é, em resumo, um lamentá-
vel inválido de espírito, um degenerado moral com fenômenos já alarman-
tes de paralisia". O Jornal publica também artigos assinados por Juarez Tá-
vora, ex-comandante da Coluna e agora preso na ilha da Trindade, que
tinham sido censurados nos últimos dias do estado de sítio.
Se a campanha de fundos renderia bons frutos - além dos dezessete con-
tos anteriores, Oswaldo Chateaubriand é encarregado de levar mais 25 contos
para Prestes repartir entre seus camaradas -, a outra não deu em nada. Tida
como certa depois da deposição de armas na Bolívia, a anistia não viria no
primeiro ano do governo Washington Luís. Nem no segundo, nem no últi-
mo. É certo que o novo presidente tinha revogado o estado de sítio, fechado
o presídio da ilha da Trindade, libertado os presos políticos sem processo e
os jornalistas incursos na Lei de Imprensa. Por mais quatro anos, porém, os
rebeldes - não apenas os da Coluna, mas todos os que se levantaram con-
tra o governo federal desde a revolta do Forte Copacabana, em 1922 - conti-
nuariam a amargar a cadeia, a clandestinidade ou o exílio. A obsessão de
Chateaubriand, de um lado, em arrancar a anistia do governo - movido,
aparentemente, mais pela repulsa a Bernardes do que por qualquer outra ra-
zão - e, de outro, a intransigência de Washington Luís em não anistiar
quem quer que fosse acabariam por azedar as relaçôes do turbulento jorna-
lista com o novo presidente.
Depois foi a vez de Washington Luís jogar querosene na fogueira, ao
transferir para Porto Alegre e logo em seguida simplesmente demitir Oswal-
do Chateaubriand do cargo de procurador da República em São Paulo. Wash-
ington Luís se sentia atingido pelos artigos escritos no Diário da Noite por Os-
waldo (um anti-semita de maus bofes, neurótico, sem o talento do irmão
famoso mas com uma fúria dez vezes maior), embora jamais viesse a admi-
tir que essa era a razão verdadeira da demissão. Assim, acabou arranjando
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FERNANDO MORAIS
um pretexto jurídico para alegar que o cargo de procurador da República era
incompatível com o de diretor de jornais.
O Chateaubriand mais poderoso saiu em defesa do irmão, desmasca-
rando o artifício utilizado por Washington Luís. Até um advogado de porta
de cadeia sabia que o país parava para discutir lana-caprina: num extremo o
líder do governo no Congresso Nacional, deputado Manuel Vilaboim, gas-
tava horas e horas na tribuna mais importante do Brasil garantindo que
aquele era um ato administrativo corriqueiro do presidente, que nada tinha
de vendeta política. No outro, Assis Chateaubriand escrevia intermináveis
tripas de papel em seus dois jornais para sustentar que Oswaldo nào era di-
retor da empresa, mas apenas gerente administrativo do Diáriu da Noite: "O
sr. Washington Luís é uma dessas baleias que o arrivismo político do Brasil
fez, há oito meses, dar à praia do Flamengo, junto à ponte do Catete", mar-
retava. "Na escuridão do sítio, quando toda a gente andava às apalpadelas,
uma noite o sr. Bernardes recolheu o pesado cetáceo que agora o sr. Vilaboim
é obrigado a carregar às costas, o dorso arqueado, suportando o ônus dessa
carga sobre os ombros." Para ele, o decreto de demissão do irmão tinha sido
assinado "pela pena rombuda de um coronel literário, esse pobre advogado-
zinho de Batatais". A verdade é que um funcionário público do décimo esca-
lão consumiu dias e dias de energia do presidente da República, de sua ban-
cada no Congresso e de dois importantes jornais para nada: Washington Luís
não voltou atrás e Oswaldo Chateaubriand perdeu o emprego.
Perdeu um e ganhou outro melhor, pois o irmão, de pirraça, resolveu
colocá-lo no posto que o presidente o acusava de ocupar, o de diretor do jor-
nal. Após a morte de Júlio Mesquita, Plínio Barreto fora convidado para
substituí-lo na direção do Estado de S. Paulo, deixando o comando do Diário
da Noite. Com a ida de Oswaldo para a direção, que dividia com Rubens do
Amaral, o Diário da Noite, até então tateando em busca de uma linha
edito-
rial mais definida, foi se transformando, aos poucos, em um jornal popular.
Ao contrário do irmão mais velho, O Jornal, que cada dia mais se firmava
como "um diário das classes conservadoras". Os grandes crimes faziam a
alegria da redação do jornal paulista. A seçãu "Última hora" (nome de que
se apropriara, depois de ser preterido no concurso para a escolha do título
de O Globo) passou a ser o destino das pequenas
notícias policiais que apa-
reciam na hora de fechamento do jornal: o suicídio da atriz Nina Sanzi, a sur-
ra pública dada pela população em um governador japonês que não cum-
pria as promessas de campanha, o arrombamento de um cofre na rua São
Bento, um cliente que chamou a polícia para protestar contra uma conta ex-
cessivamente alta no rendez-votrs Ba-ta-clan, de Joanita Bell. Uma boa histó-
ria policial, como o assassinato de um diretor da Standard Oil por jagunços,
no sertão nordestino, sustentava dias e dias de reportagens mais extensas.
Não importava muito que a notícia fosse falsa: a prisão do cangaceiro Lam-
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CHATô, O REI DO BRASIL
pião pelas forças de Luís Carlos Prestes rendeu repetidas páginas no jornal
- mesmo que a Coluna já estivesse exilada na Bolívia e o mitológico canga-
ceiro só viesse a cair nas mãos da polícia, morto, dez anos depois. Mas como
o Diário da Noite detinha os direitos de publicação dos artigos comprados
para O Jornal, esse mar de sangue convivia pacificamente com as séries lite-
rárias de Monteiro Lobato, entrevistas com o modernista Augusto Frederico
Schmidt e com o escritor espanhol Miguel de Unamuno feitas por Di Caval-
canti e caudalosos artigos do político ultranacionalista Plínio Salgado de
exaltação "do tipo nacional".
A mobilidade de Oswaldo à frente do Diário da Noite se explicava tam-
bém por um acontecimento que obrigaria Chateaubriand a dedicar menos
tempo a São Paulo: em março daquele 1927 nascera seu filho com Maria
Branquinha, um menino a que deram o nome de Fernando Antônio Cha-
teaubriand Bandeira de Melo. Com o nascimento de Fernando, Chateau-
briand decidiu mudar-se do hotel e comprar de Celina Guinle de Paula Ma-
chado uma das mais belas casas do Rio de Janeiro, conhecida como a Vila
Normanda - que, apesar do luxo e do requinte com que fora construída, era
utilizada apenas um ou dois meses por ano como "casa de verão " da famí-
lia Guinle de Paulá Machado. De frente para a praia de Copacabana e ocu-
pando a metade do quarteirão formado pela avenida Atlântica e pelas ruas
Siqueira Campos e Figueiredo Magalhães, a Vila Normanda era um casarão
de três pavimentos, revestido de pedra emoldurada por madeira entalhada
à mão. No enorme gramado que a cercava, um bosque de coqueiros dava à
européia arquitetura uma aparência tropical. Nunca se soube exatamente
quanto Chateaubriand pagou (e se pagou) pela casa, mas seus inimigos es-
palharam a futrica segundo a qual, depois da mudança do jornalista para lá,
seus aposentos - salões, oito dormitórios, adega - recendiam a hipotecas e
duplicatas vencidas.
Nada desmentia tais suspeitas, mas o certo é que dinheiro - ou, pelo
menos, crédito - já deixara de ser problema para Chateaubriand havia mui-
to tempo. Para festejar o bicentenário da introdução do café no Brasil, por
exemplo, O Jornal quebrara seu próprio recorde, colocando nas ruas uma
edição comemorativa de 192 páginas - mais da metade delas ocupada por
anúncios. Decidido a mudar a sede de O Jornal, Chateaubriand namorava o
velho prédio da fábrica de doces Colombo, situa do na rua Treze de Maio.
Seu plano era derrubar a fábrica e ali levantar um prédio. Mas, para que o
negócio se justificasse, seria necessário alargar um quarteirão da Treze de
Maio, que, apesar de registrada oficialmente como uma rua naquele trecho,
não passava de uma viela. Chateaubriand contratou um engenheiro, convo-
cou os demais donos de imóveis das imediações e fez uma proposta ao pre-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
feito do Distrito Federal, Antônio Prado Júnior: se a prefeitura alargasse o
quarteirão, receberia dos proprietários dos imóveis daquele trecho, como
contrapartida, uma faixa de 55 metros de extensão por quinze metros de fun-
do. Negócio fechado.
Os ventos pareciam tão favoráveis que Chateaubriand chegara a virar
banqueiro por poucos dias, ao adquirir (também não se sabe exatamente
como) 55% do controle acionário do Banco do Comércio, do Rio de Janeiro.
Menos de uma semana depois de comprá-las, arrependeu-se e passou as
ações adiante. Na mesma ocasião ocorrera-lhe que, se os laboratórios farma-
cêuticos eram os maiores anunciantes de seus jornais, aquilo era um claro si-
nal de que davam dinheiro. Por que, então, não comprar um deles?
Pelo menos naquela época, no entanto, suas atenções estavam voltadas
mesmo era para o nunca abandonado sonho de ter uma rede nacional de veí-
culos de comunicação. Ao saber que o Diário de Noticias, de Porto Alegre,
agonizava por falta de recursos, achou que era hora de colocar um pé no Rio
Grande do Sul. O que os donos do jornal lhe ofereciam era uma subscrição
de ações para aumento do capital da empresa que lhe daria o controle abso-
luto do diário. O negócio estava na iminência de ser fechado quando o jovem
deputado federal gaúcho Osvaldo Aranha conseguiu brecar as negociações.
Aranha temia que por trás da ambição de montar uma cadeia nacional de
jornais e revistas estivesse oculto algum plano político de Chateaubriand
com vistas à sucessão de Washington Luís, em 1930. O suposto candidato
poderia até nem ser o próprio jornalista, imaginava o deputado. Mas, com
jornais estrategicamente plantados em algumas capitais brasileiras, aquele
nortista baixinho poderia complicar os projetos que um pequeno grupo de
gaúchos, liderados por Getúlio Vargas, tramava para as eleições presiden-
ciais de 1930. O melhor era não correr riscos, e Aranha preferiu, por seguran-
ça, fazer gorar a compra do Diário de Noticias.
Por excesso de zelo ou desinformação, Osvaldo Aranha atirava no ad-
versário errado. Ao invés do que ele imaginava, desde os primeiros encon-
tros na redação de O Jornal as relações entre Chateaubriand e Vargas pare-
ciam crescer assentadas sobre sólido cimento. Os insultos que o jornalista
com freqüência dirigia ao presidente da República pareciam não afetar os la-
ços que uniam Chateaubriand a Getúlio, que, afinal, era o ministro da Fazen-
da de Washington Luís. Mais do que isso, a guerra contra o presidente não
interrompeu as visitas freqüentes que o ministro continuava fazendo publi-
camente à redação de O Jornal - nem impediam que Chateaubriand o visi-
tasse duas ou três vezes por semana, à noite, em sua casa da ladeira do As-
curra. Vargas acabaria se transformando em privilegiada fonte de notícias
políticas para Chateaubriand, para declarado ciúme de Lindolfo Collor, que
não escondia esse sentimento de ninguém:
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FERNANDO MORAIS
- Eu sou redator-chefe de O Pais, um jornal governista. Sou o porta-voz
do governo na Câmara Federal e líder da bancada gaúcha no Congresso. E
como é que eu tomo conhecimento das notícias do Ministério da Fazenda?
Lendo O Jornal, um diário de oposição. E por que isso? Porque o confidente
do ministro é o dono desse jornal de oposição.
Muitas vezes a informação era passada a Chateaubriand apenas para
municiá-lo, com a promessa de não publicar nada, como acontecera em
agosto daquele ano. Vargas o chamara à noite para uma conversa em sua
casa após o jantar. Como sempre, caminhavam pelo jardim, onde os intriga-
va uma misteriosa lápide funerária cravada entre as flores, eom dizeres es-
critos em holandês - que depois Alzira, a filha de Getúlio, descobriria ser o
túmulo do general holandês Van Henndorp, ex-comandado de Napoleão,
que terminara seus dias naquela casa e que os Vargas supunham, equivo-
cadamente, que ali tivesse sido sepultado. Mais uma vez Chateaubriand su-
portou estoicamente as baforadas do charuto cubano até que Vargas tirou do
bolso e exibiu ao jornalista um pedaço de papel. Era o telegrama com que o
governante gaúcho Borges de Medeiros comunicava que ele, Getúlio Vargas,
seria o candidato do PR ao governo do Rio Grande. Aquela informação não
podia ser publicada, mas Chateaubriand poderia usá-la como moeda de tro-
ca em seus contatos políticos.
Passados alguns dias, Vargas reuniu a bancada gaúcha no Congresso
para ler e tornar público o telegrama de Borges de Medeiros. Lindolfo se roía
de inveja pelos corredores do Palácio Tiradentes:
- Isto é uma miséria. Só hoje os deputados gaúchos tomaram conheci-
mento de um segredo político dessa transcendência. E sabem quando o nor-
tista Chateaubriand viu o original desse telegrama? Há três dias!
Foi também graças a Getúlio, de outra feita, que Chateaubriand deu em
primeira mão uma notícia da área militar que nenhum jornal tinha. Candi-
dato a deputado, o tenente João Cabanas, egresso da Coluna Prestes, conse-
guira um habeas-corpus do Supremo Tribunal para fazer um comício na cida-
de mineira de Juiz de Fora - já que o comandante militar da região, general
Nepomuceno Costa, anunciara que a palavra de Cabanas estava proibida em
sua área. Indignado com a decisão judicial, o general não teve dúvidas em
assestar suas baterias verbais contra a mais importante corte do país, acusan-
do os juízes de estarem "a serviço do comunismo". Depois disso, os repórte-
res de todos os jornais - inclusive O Jornal, naturalmente - estavam atrás
da confirmação de um boato que circulava pelo Rio: o general Nepomuceno
teria recebido uma punição do ministro da Guerra, general Nestor Sezefre-
do dos Passos (o mesmo "General Z." que assinara secretamente artigos so-
bre a Coluna em O Jornal), pelas agressões verbais dirigidas ao Supremo.
Ninguém conseguia nada: o suposto punido fechou o bico, e o ministro proi-
biu qualquer declaração da área militar sobre o assunto. Chateaubriand ten-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
tou, em vão, arrancar alguma informação de seu antigo analista militar, mas
não foi sequer recebido pelo ministro. Decidiu então recorrer a Vargas. Na-
quela noite haveria um jantar oferecido por Washington Luís a um governa-
dor do Norte, a que compareceriam os ministros da Fazenda e da Guerra.
Vargas nao conseguiria obter do general Sezefredo alguma luz? À uma e
meia da manhã toca o telefone na redação de O Jornal. Do outro lado da li-
nha Getúlio disse apenas a Chateaubriand: "Pode escrever - o general foi
punido". No dia seguinte o furo dado em manchete por O Jornal saía no ar-
tigo de Chateaubriand - que, moleque, atribuía a fonte de sua informação
"a um repórter secreto que nosso diário mantém no governo federal".
É impossível afirmar que razões levaram Chateaubriand, a partir de en-
tão, a colocar seus jornais, e sobretudo o influente O Jornal, escancaradamen-
te a serviço de Vargas. Pode ter sido apenas uma retribuição aos favores que
lhe prestava o gaúcho - afinal, à época apenas mais um político de impor-
tância regional. Mas a raiz desse apoiu poderia muito bem estar no apurado
olfato político de Chateaubriand, capaz de farejar, a anos ou quilômetros de
distância, a canoa certa em que embarcar. A verdade é que Getúlio Vargas
passaria a ser o objeto freqüente e preferencial de seus artigos de primeira
página em O Jornal e no Diário da Noite paulista.
Assim, ainda em novembro de 1927, quando Vargas nem sequer havia
deixado o Ministério da Fazenda para assumir o governo do Rio Grande do
Sul, Chateaubriand já se põe a ressaltar suas qualidades de estadista, "um
desses temperamentos de que tanto o Brasil precisa para restabelecer a har-
monia da República". E deixa claro que está falando de um homem corajo-
so. Incensa Getúlio e mói tanto o presidente Washington Luís como seu su-
cessor em São Paulo, o governador Júlio Prestes: "O ministro Vargas não é
um desses bons-moços capazes de ver a guerra civil em seu estado como o
fizeram Washington Luís e Júlio Prestes em 1924 - que se asilaram pacata-
mente em fazendas de Itapetininga, até onde não chegava nem a notícia da
revolta militar na capital paulista e muito menos o estrondo das granadas
que arrebentavam na cidade. Getúlio Vargas foi um ator corajoso e frio da
guerra civil". Quem leu seu artigo sobre a posse de Getúlio no governo do
Rio Grande do Sul, em 25 de janeiro de 1928, certamente acreditou que Cha-
teaubriand estava delirando. À exceção de cerimônias de posses de governa-
dores de estados importantes como Minas e São Paulo, escreveu, "o Brasil
ainda não tinha registrado tanto estridor como a transmissão de poder que
hoje se verifica no Rio Grande". De olho em um pleito presidencial que
só
aconteceria dali a dois anos, afirmava que Vargas estava colocado entre as
duas grandes forças que prometiam entrechocar-se na sucessão presidencial
- "a corrente reacionária", representada por São Paulo, e a "liberal", dus
políticos mineiros. Se essa contradição viesse a levar o Brasil a um confron-
to, "Getúlio Vargas será a única ponte para que todos atravessem". O fim do
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FERNANDO MORAIS
artigo parece a súmula de um processo de beatificação: "Apesar de ter saído
das entranhas mirradas e sequinhas de Borges de Medeiros, Vargas é a no-
vidade que o Brasil saúda como o novo sol".
Seu vaticínio sobre o risco de um choque entre mineiros e paulistas logo
começou a tomar forma. Se Getúlio alimentava sonhos presidenciais, Antô-
nio Carlos Ribeiro de Andrada, governador de Minas, também parecia afiar
seu canivete com vistas a 1930. E não era só ele. Em reuniões políticas e so-
ciais, o presidente Washington Luís deixava escapar que o governador pau-
lista Júlio Prestes era "um nome interessante" para uma disputa que parecia
se avizinhar prematuramente. Logo após ser empossado no governo do Rio
Grande do Sul, Vargas recebeu Chateaubriand em Porto Alegre para uma
entrevista jornalística. Ao final da conversa, contou que sua primeira
viagem
como governador seria a São Paulo, a convite de Júlio Prestes. Chateau-
briand assustou-se com a desenvoltura do governador paulista e perguntou
a Getúlio por que ele não aproveitava para ir também a Minas Gerais. "Pela
simples razão de que não fui convidado", respondeu Vargas, "talvez pela
circunstância de que eu e o governador Antônio Carlos ainda não nos conhe-
cemos pessualmente, só isso."
Antes mesmo de embarcar de volta para o Rio, Chateaubriand telegra-
fou a Afrânio de Melo Franco pedindo-lhe que revelasse com urgência o epi-
sódio a Antônio Carlos, insistindo em que era "vital que Vargas fosse convi-
dado a estender sua viagem a Minas". Ao entrar na redação de O Jornal, já
encontrou Afrânio à sua espera:
- Falei com Antônio Carlos e ele pede que você seja o portador oficial
do convite a Getúlio.
Chateaubriand recusou a honraria, alegando que daquela maneira ia
parecer um convite formal e desdenhoso. Sugeriu que o porta-voz do gover-
nador mineiro fosse o irmão de Antônio Carlos, José Bonifácio, que além do
parentesco era deputado e líder da bancada de Minas Gerais na Câmara Fe-
deral. Semanas depois, na recepção a Vargas no Palácio da Liberdade, sede
do governo mineiro, Chateaubriand não escondia o entusiasmo por ter sido
"o santo Antônio que alcovitou um namoro que pode mudar a cara do
Brasil".
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11
Para tentar entender pelo menos um dos ingredientes da paixão de que
Chateaubriand foi tomado por Getúlio Vargas, é preciso recuar um pouco e
rever os episódios que antecederam o retumbante lançamento da revista
Cruzeiro (assim mesmo, sem o O inicial, que só seria acrescentado tempos de-
pois), ocorrido em dezembro de 1928. Um ano antes, quando Getúlio ainda
era ministro da Fazenda, Chateaubriand, frustrado com a malograda com-
pra do Diário de Noticias de Porto Alegre, resolveu ousar de novo. Já que não
dava para ampliar sua rede em direção ao Sul, por que não pensar em um
produto que atingisse o Brasil inteiro? Por meio de amigos soube que o jor-
nalista português Carlos Malheiros Dias planejava lançar uma revista de cir-
culação nacional. No meio do caminho faltara dinheiro e o lusitano começa-
va a desistir. Ao tomar conhecimento disso, Chateaubriand quis saber quanto
custaria ressuscitar o projeto, lançar a revista e indenizar Dias pelos gastos já
realizados. Não era tanto dinheiro, já que Cruzeiro não dispunha de gráfica
própria e, assim, o investimento inicial não era nenhum despropósito: com
quinhentos contos de réis ele assumiria o controle integral da empresa que
formalmente já existia - e que, ironicamente, mesmo não sendo dona de
uma única linotipo, chamava-se Empresa Gráfica Cruzeiro S.A.
É claro que quinhentos contos não assustavam alguém que, como ele, já
havia se metido em negócios muito mais vultosos. Afinal, aquilo era um ter-
ço do empréstimo que Pujol avalizara. O único problema é que, pouco ou
muito, Chateaubriand não tinha esse dinheiro. Nem esse nem qualquer ou-
tro. Ou, ainda: Chateaubriand nunca tinha dinheiro algum. Tinha prestígio,
tinha "alavancas ", começava a ter poder, mas dinheiro que era bom, nada.
Quem tinha dinheiro eram os banqueiros, os industriais, os comerciantes, os
usineiros de açúcar do Nordeste e os cafeicultores de São Paulo. Mas sobre-
tudo os banqueiros. Os agricultores viviam se lamentando porque chovia
demais ou porque chovia de menos - mas, chovesse ou fizesse sol, ele nun-
ca vira um banqueiro chorar miséria. Nem mesmo dos mineiros, famosos
pela avareza, Chateaubriand podia se queixar. Ao contrário, costumava di-
zer que Minas Gerais era o seu "Vaticano do crédito": lá o dinheiro era sem-
pre pródigo, e, quando a vida o compelia ao pecado mortal do atraso no pa-
gamento de uma letra, o perdão acabava vindo.
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#
FERNANDO MORAIS
Antes de bater às portas d.o Vaticano, entendeu que talvez fosse mais
eficiente recorrer àquele a quem todos os banqueiros - mineiros ou não-
obrigatoriamente prestavam reverência: o ministro da Fazenda, seu amigo
Getúlio Vargas. A revista que ele descreveu para o ministro nada tinha a ver
com a dos planos de Malheiros Dias: a Cruzeiro de Chateaubriand era uma
revista com papel da melhor qualidade, repleta de fotografias, contaria com
os melhores articulistas e escritores do Brasil e do exterior, e assinaria todos
os serviços estrangeiros de artigos e fotografias. Impressa em quatro cores
pelo sistema de rotogravura, a revista teria de ser rodada em Buenos Aires,
já que a qualidade das gráficas brasileiras estava "abaixo do nível das africa-
nas". E tinha mais: Cruzeiro seria semanal, com tiragem de 50 mil exempla-
res (e não os 27 mil imaginados por Malheiros), que circulariam em todas as
capitais e principais cidades do Brasil. Os olhos de Vargas faiscavam. Sem
qualquer protesto de Chateaubriand, acendeu um robusto Santa Damiana e
foi direto ao que interessava:
- De quanto tu precisas para pôr a revista nas ruas em doze meses?
- Com 250 contos eu assumo imediatamente o controle da empresa,
que já está montada. O resto do dinheiro eu arranco nas primeiras semanas
de circulação. Tenho a promessa de contratos de publicidade com a Antarc-
tica, a Sul-América de Seguros, a fábrica de vitrolas e rádios Victor e a estam-
paria América Fabril. Com a revista nas ruas, triplico isso em dois dias. Eu
vou vender pessoalmente os anúncios nobres, impressos em cores.
Getúlio caminhou pela sala e sorriu:
- Tu és um homem de sorte. Daqui a meia hora vou receber em au-
diência o banqueiro Antônio Mostardeiro, um compadre do Sul que nomeei
presidente do Banco do Brasil. Ele vai te arranjar esses 250 contos. E esse di-
nheiro não vai ser do Banco do Brasil. Mostardeiro vai te emprestar dinhei-
ro do Banco da Província, que é dele.
Mostardeiro entrou na sala na hora marcada, acompanhado de Correa
e Castro, diretor da carteira de câmbio do banco oficial. Getúlio expôs ao
presidente do Banco do Brasil o projeto de Chateaubriand e enfiou-lhe a
faca:
- Coronel Antonico, o nosso jornalista precisa de um empréstimo ime-
diato de quinhentos contos de réis. Assim que o negócio dele começar a ren-
der, ele te paga. Eu garanto a operação.
Todos se espantaram: o banqueiro pelo pedido inesperado e Chateau-
briand pelo equívoco cometido por Getúlio, que podia pôr tudo a perder: na
verdade 250 contos eram mais do que suficientes para fechar o negócio. Quis
corrigir a cifra, mas Getúlio fez um gesto com a mão para que silenciasse.
Mostardeiro tentou refugar, disse que precisava de alguns dias para consul-
tar seus diretores, mas Vargas insistiu:
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
- Não, Antonico, tu não entendeste. Isso é negócio para ser fechado
agora, nesta mesa. Essa revista vai ser um bacamarte para nossos planos po-
líticos futuros.
A reunião durou pouco e Mostardeiro só aceitou fechar o negócio ali, à
queima roupa, depois de reduzir o valor inicial do empréstimo à metade.
Chateaubriand podia contar com o dinheiro depositado em sua conta três
dias depois. Getúlio se levantou para acompanhá-lo até a porta do elevador,
e no caminho o jornalista quis corrigir o engano de cifra:
- Ministro, quinhentos contos é o valor total do negócio. Eu só preciso
de 250 contos.
Vargas deu uma gargalhada:
- E surpreendente que alguém como tu seja tão mau comerciante.
Quando quiseres tomar dinheiro de um banqueiro, tens que pedir o dobro
do que necessitas. Os banqueiros sempre emprestam a metade do que lhes
pedem. Se tu abres a boca naquele momento, receberias apenas 125 contos.
Vai comprar a nossa revista.
Mas nem tudo eram rosas na vida de Chateaubriand. Proporcional ao
poder e à influência que adquiria, começava a nascer uma cáustica e sistemá-
tica oposição a tudo o que ele fazia e às causas que defendia. O primeiro veí-
culo a congregar inimigos de Chateaubriand tinha surgido em julho de 1927
em São Paulo. Era o Diário Nacional, órgão oficioso do Partido Democrático,
organização de oposição criada em 1926 por um grupo de paulistas que um
ano depois decidiram colocar um jornal nas ruas. Tendo à frente o jornalista
Paulo Duarte, os advogados Adriano Marrey Júnior e Vicente Rao, e o histo-
riador Paulo Nogueira Filho, entre outros, nos primeiros meses de funciona-
mento o Diário Nacional chegou a compartilhar com os jornais de Chateau-
briand a defesa de causas comuns - como a exaltação à Coluna Prestes e a
exigência de anistia para os combatentes.
Mas parou aí. Por trás de tudo que Chateaubriand ou suas empresas fi-
zessem, o jornal descobria algum deslize, um negócio mal contado. Paulo
Duarte garantia que a compra da Vila Normanda tinha origens obscuras:
dos seiscentos contos que custou "o palácio da avenida Atlântica" (10% do
total pago pela compra de O Jornal), quatrocentos teriam vindo de uma ope-
ração escusa com o banco Crédit Foncier e os outros duzentos teriam sido
obtidos por Oswaldo, irmão de Chateaubriand, por meio de uma venda de
terras no bairro do Jaraguá, na capital paulista. Paulo Duarte cavocou cartó-
rio por cartório em São Paulo e descobriu que não havia nem nunca tinha ha-
vido qualquer imóvel registrado em nome de Oswaldo Chateaubriand-
quer dizer, tratava-se de uma história inventada. Quando não tinha munição
própria, o Diário Nacional transcrevia artigos dos jornalistas Mário de Brito e
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FERNANDO MORAIS
Mattos Pimenta, militantes do diretório fluminense do PD e redatores do mo-
ralista e ultraconservador A Ordem, jornal da direita católica publicado no
Rio. Foi de lá que saiu a série de artigos escritos por Mattos Pimenta denun-
ciando a operaçãu que estaria por trás da compra do terreno da rua Treze de
Maio, pelo qual Chateaubriand havia pago 2 mil contos de réis (mais duzen-
tos contos de impostos, transmissão e escritura). Desse total, segundo o
jor-
nal,1500 contos tinham vindo das burras do conde Modesto Leal, que exigi-
ra como garantia a hipoteca das máquinas de O Jornal, do terreno e até do
prédio a ser edificado nele. O dinheiro restante Chateaubriand teria "arran-
cado" do Banco de Crédito Real de Minas Gerais, um banco controlado pelo
governo mineiro. Mattos Pimenta denunciava que o mesmo imóvel já hipo-
tecado ao Conde Modesto Leal tinha sido novamente penhorado ao governo
de Minas. Para retribuir a ilegal generosidade, Chateaubriand, garantia o
jornal, escrevera "alguns artigos endeusando o governador de Minas, Antô-
nio Carlos, e submeteu subitamente O Jornal [...] à candidatura Antônio Car-
los à Presidência da República". Ou seja, além de denunciar Chateaubriand
por ganhar dinheiro com um negócio lesivo aos cofres do Estado, acusavam-
no de estar traindo Getúlio Vargas, com quem estava cada dia mais compro-
metido, e trabalhando pela candidatura de Antônio Carlos. O Diário
Nacio-
nal afirmava também que, quando apertado para explicar a origem dessa
dinheirama, Chateaubriand alegava ter feito um contrato antecipado de pu-
blicidade com a companhia de seguros Sul-América no valor de 12 mil con-
tos de réis - "contrato que ele jamais exibe a quem quer que seja", dizia o
jornal, "pela simples razão de que nunca existiu".
Em vão Paulo Duarte tentou atrair para a guerra de guerrilha contra
Chateaubriand seu amigo Júlio de Mesquita Filho, que com a morte do pai,
ocorrida em 1927, assumira a direção de O Estado de S. Paulo. Julinho, como
era conhecido, não quis entrar numa briga que não era sua nem de seu jor-
nal. Decepcionado com o que considerou um recuo do amigo, Paulo Duarte
registraria em suas memórias: "Fora isso, jamais a menor nuvem sombreara
a minha amizade com Julinho ". Quanto a Chateaubriand, este parecia tratar
com ferina e estudada indiferença os ataques recebidos. "Muitos desses que
agora nos acusam", escreveu em uma nota, "são rapazes que há pouco tem-
po viviam dia e noite postulando trabalho em nossos jornais. Como jamais
levantei a voz para subalternos meus, recebo esses resmungos com cordura
e urbanidade."
E as agressões, de fato, se circunscreviam aos donos dos jornais. Em um
mercado de trabalho tão estreito, era comum que o redator que à noite escre-
vesse uma nota contra Chateaubriand no Diário Nacional fosse escalado, du-
rante o dia, para respondê-la em seu segundo emprego nas páginas do Diá-
rio da Noite - o que ocorria, por exemplo, com o jovem crítico Geraldo
Ferraz, que trabalhava como repórter à tarde no primeiro e à noite marcava
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FERNANDO MORAIS
o cartão de ponto no segundo como "cozinheiro" - nome dado aos redato-
res encarregados de juntar notícias de várias origens e transformá-las em um
único texto.
Nessa época retornou da França a ex-noiva Jeanne. Embora já o encon-
trasse casado e pai de um filho, ela o convidou para ser padrinho de seu ir-
mão caçula e temporão, o pequenino Gigil. Chateaubriand afeiçoou-se ao ga-
roto, a quem buscava freqüentemente na casa dos pais para passear de barco
e, às vezes, para passar os domingos no casarão da avenida Atlântica em
companhia do filho - mais novo que Gigil, Fernando tinha então quase três
anos. Era comum que Gigil dividisse com o padrinho pesadas cerimônias
oficiais - como receber alguma delegação de fora na estação da Central do
Brasil, ao som de furiosas bandas de músicas - ou amenos passeios pela ele-
gante Rotisserie Americana, na rua do Ouvidor. Aos domingos Gigil era le-
vado até o Club Guanabara, onde Chateaubriand guardava seus dois novos
barcos - um double sculler suíço e uma piroga canadense -, e saíam mar
adentro. Quando Fernando não podia estar junto, Chateaubriand apanhava
ao acaso um dos meninos que zanzavam pelas imediações do clube para fa-
zer companhia a Gigil.
Na hora do embarque, para não ter de pisar nas águas mefíticas da
Companhia de Saneamento City que cercavam o Guanabara, os garotos
eram levados até o barco nos braços de Benedito, um parrudo mulato parai-
bano, dublê de chofer e guarda-costas de Chateaubriand. Se Gigil se queixas-
se do fedor da água e, repugnado, tapasse o nariz, Chateaubriand dava gar-
galhadas dizendo o que, aos ouvidos do menino, soava como uma tara
olfativa:
- Que é isso, meu filho? Respira fundo que isso é puro oxigênio, é ozo-
na! Isso é tonificante!
Maníaco por disciplina, o padrinho obrigava Gigil (e que criança mais
estivesse com eles, fosse Fernando, fosse um garoto apanhado na rua) a cum-
primentar todos os que passavam com uma saudação em japonês, incom-
preensível para os pequenos: "Banzai Nipon!" (Viva o Japão!). Era a sua ma-
neira de homenagear o país que ele considerava o exemplo máximo da
disciplina. E repetia para os meninos, durante o passeio, coisas igualmente
ininteligíveis para crianças daquela idade:
- Temos que ser bismarckianos, meus filhos. Bismarckianos! Todo mun-
do tem que ter um norte na vida, e para isso é preciso ser disciplinado, é pre-
ciso ser bismarckiano!
Enquanto ele remava - em geral atravessavam a baía até a Fortaleza de
Santa Cruz e voltavam -, os meninos ficavam encarregados de manter a
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
proa do barco apontada na direção do Corcovado. Irritava-se quando algum
deles fazia algo errado, mas Gigil e Fernando testemunhariam que bastava
aparecer um rabo-de-saia para fazer naufragar a bismarckiana disciplina de
Chateaubriand. Mais de uma vez, quando havia mulher bonita por perto-
qualquer beldade que passasse nas imediações, a bordo de algum iate -, os
garotos viram Chateaubriand se confundir com remos, cordas e lemes e aca-
barem todos dentro da água, tentando desvirar o barco capotado. Se o erro
era de responsabilidade de um dos garotos, ele se irritava até ranger os den-
tes e repetia a frase reveladora de seu caráter paradoxal:
- Adoro ser professor, mas detesto ensinar!
Mas não era sempre que ele podia dedicar tempo ao filho e ao afilhado.
Enquanto uma equipe preparava o lançamento de Cruzeiro, o que incluía fre-
qüentes viagens a Buenos Aires para arranjar uma gráfica que imprimisse a
revista, ele voltou a dividir seu tempo entre o Rio e São Paulo, animado com
o sucesso que o Diário da Noite fazia. A vida nômade, sem endereço perma-
nente, obrigava-o a passar semanas inteiras na capital paulista, o que às ve-
zes levava sua mulher a só conseguir comunicar-se com ele por cartas. Aris-
tocrática, Maria Henriqueta remetia a São Paulo ou deixava em sua mesa de
trabalho bilhetes em que não escondia o constrangimento de precisar lhe pe-
dir dinheiro para as despesas mais banais:
Chateaubriand :
Você não imagina o quanto me constrange ser obrigada a lhe aborrecer com
esses meus pedidos. Não sei se por causa da vida agitada que o Fernandinho
leva ou por qualquer outra razão, volta e meia me sinto atacada por uma eleva-
ção de temperatura renitente que vem à tarde e que, embora não passe de 37,5
a 38 graus, me deixa totalmente deprimida, sem ânimo para nada. Por expe-
riência já constatei que só com alguns dias de bom clima e muito repouso con-
sigo combater. Habitualmente costumo ir para Campos do Jordão, mas dessa
vez penso que, devido ao coração, o médico prefere Teresópolis por ser menos
alto.
Os hotéis de lá regulam uma diária em 180 mil-réis. Penso que três contos da-
riam bem para quinze dias, o que já é mais que suficiente. Tenho a certeza de
que você não se aborrecerá com isso e desde já, como sempre, lhe fico imensa-
mente grata.
Maria
Em meio à desordenada administração que impunha às suas empresas,
de São Paulo mesmo ele dava ordens para que fosse concedido um "vale" à
esposa - o que fazia com freqüência até para si próprio, para ter algum di-
nheiro no bolso, obrigando a criação de uma confusa e infernal contabilida-
de paralela. Nada disso tinha importância para ele, que só pensava na polí-
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FERNANDO MORAIS
tica e na expansão das empresas. E estas, apesar da desorganização, pare-
ciam navegar em mar de almirante.
Mesmo firmando-se cada vez mais como um jornal popular, de crimes
e escândalos, o Diário da Noite se transformava também em uma usina de jo-
vens talentos. Rubens do Amaral tinha sido nomeado redator-chefe e, para
se juntar a Flávio de Carvalho, Geraldo Ferraz, Di Cavalcanti e ao comunis-
ta catarinense Brasil Gerson, ele trouxera do Rio Rafael Correa de Oliveira
para substituir Mário Pedrosa (que fora mandado para um estágio na Ale-
manha pelo Partido Comunista, ao qual aderira em 1926). Depois da série de
reportagens que escrevera sobre a Coluna Prestes, Rafael tinha se transfor-
mado na grande revelação da imprensa. No meio daquela fauna de anar-
quistas, comunistas e modernistas, chamavam a atenção a elegância e os
educados modos britânicos do jovem estudante de direito Oscar Pedroso
Horta, que começara no jornal com uma seção de xadrez e depois se trans-
formaria em colunista social homiziado sob o pseudônimo de "Athanásio
Torres ". Isto, claro, para desespero de Chateaubriand, que, embora cortejas-
se o dinheiro dos ricos, vociferava pela redação dizendo "corar de vergo-
nha" ao ler as colunas dos jornais dedicadas à alta sociedade:
- Não há viajante nessas colunas que não seja "ilustre" e que não tenha
"engrandecido o nome do Brasil no estrangeiro". Não há delegado brasilei-
ro, mesmo nos congressos mais pífios, que não tenha tido uma "brilhante
atuação". Nas seções mundanas dos jornais, o adjetivo transformou-se numa
instituição calamitosa.
As diferenças de personalidade entre os irmãos Assis e Oswaldo acaba-
vam se refletindo no dia-a-dia do jornal. Certa vez, Oswaldo - a contragos-
to, mas cumprindo ordens expressas de Chateaubriand - escalou Geraldo
Ferraz para cobrir a segunda exposição de Lasar Segall em São Paulo. Embo-
ra o dono considerasse "um escândalo" o jornal não ter publicado nada sobre a
mostra, Oswaldo ainda resistia ao transmitir a orientação ao repórter:
- Geraldo, esse pintor russo é doido varrido. Portanto não exagere nas
tintas. Neste jornal, lugar de louco é na página policial, não na cultural.
Quando Ferraz entregou a reportagem ao chefe, Oswaldo ainda re-
clamou:
- A nota está conforme o Assis quer, mas para mim está louvaminhei-
ra demais. Insisto em que o homem é doido mesmo.
Tanto essas contradições diárias na vida do jornal como a heterogênea
formação política dos repórteres e redatores que trabalhavam lá refletiam a
controvertida personalidade de Assis Chateaubriand. Ele próprio surpreen-
dia seus leitores. Em uma segunda-feira sufocava-os com um maçudo artigo
sobre política internacional. Na quarta-feira saltava, com igual veemência,
para ataques corrosivos a um decreto que, alegando que a gravidez compro-
metia o desempenho profissional no magistério, pretendia proibir as profes-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
soras de escolas públicas de se casarem. No amplíssimo leque de suas prefe-
rências, na quinta-feira voltava à política e na sexta gastava todo o seu arti-
go de primeira página desancando um minúsculo anúncio, publicado no
próprio Diário da Noite, em que um leitor oferecia dois contos de réis a quem
lhe conseguisse um emprego no Banco do Brasil.
Quando tentava explicitar melhor seu norte ideológico, a confusão só
aumentava. Em artigos sucessivos, ora dizia que suas empresas só existiam
"como instrumento da ação conservadora para a defesa dos interesses da
produção brasileira". Ora criticava o governo federal "por acreditar em pa-
tranhas que querem convencer as autoridades brasileiras da existência de
uma conspiração bolchevista, prestes a estourar entre nós ", e protestava ao
ver que "o direito de reunião dos nossos trabalhadores vem sendo perturba-
do por incursões intempestivas da polícia, com disparos de tiros a esmo que
acabam matando operários inermes". Quando os artigos de Mussolini e Pri-
mo de Rivera se tornavam muito freqüentes, deixando no ar a suspeita de
simpatias pelo extremismo que germinava na Europa, era taxativo: "Ne-
nhum diário tem divergido mais do fascismo do que nós. Se o sr. Mussolini
possui admiradores da obra de tirania que exercita dentro de seu país, esses
admiradores não se encontram em nossas colunas".
Mas quem se dispusesse a ler com maior acuidade e atenção os artigos
de Chateaubriand talvez pudesse identificar ali os primeiros indícios de uma
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FERNANDO MORAIS
má fama que o perseguiria até após a morte. Em algumas ocasiões, seus jor-
nais pareciam deixar de ser a "alavanca" que ele tanto proclamava, para se
assemelharem mais a uma gazua. A primeira vítima visível da afiada ferra-
menta seria o conde Matarazzo, seu senhorio no prédio ocupado pelo Diário
da Noite, no vale do Anhangabaú, em São Paulo. Algum mal-estar contra o
conde nascera de sua decisão de quase nunca anunciar nos jornais de Cha-
teaubriand - embora nisto nada houvesse de pessoal contra o dono, mas
apenas a convicção de que suas indústrias prescindiam da eficiência da tão
propalada publicidade. Mas a situação se agravava toda vez que o contador
do império Matarazzo comunicava que o valor do aluguel seria corrigido-
ou simplesmente quando tentava cobrar pagamentos atrasados que se acu-
mulavam por meses e meses. Sempre que isso acontecia, o Diáriu da Noite-
e nunca O Jornal, que era o jornal "sério" - saía às ruas com uma tijolada no
industrial italiano, como esta:
O sr. Matarazzo não paga, nem aos seus operários nem au Brasil, um pequeno
juro do privilégio de ser milionário. Visitei há muitos anos a sua maior fábrica, em
companhia do filho, sr. Matarazzo Júnior, e tive uma sensação de desolação pelo
que de desinteresse naquela casa se me deparou pela sorte do operariado. Que
diferença enorme entre a conduta de um Jorge Street, na fábrica Maria Zélia, e
a do sr. Matarazzo na Maria Ângela! Esse deslize lamentável da obra do conde
Matarazzo, em grande parte, é fruto das idéias rudimentares do velho indus-
trial. O conde Matarazzo, como chefe de indústria, ficou em 1840 e 1850.
Não
tem muito nítida a noção do respeito à dignidade dos homens que trabalham
como operadores anônimos do nosso esforço; desconhece o sentido da palavra
filantropia, que outros patrões hrasileiros, como os srs. Jorge Street e Guilherme
Guinle têm ensinado, ou como fazem os americanos. O conde Matarazzo não
cora ao confessar, de público, que se aproveita da deplorável inconsciência do
nosso trabalhador - não faz, por exemplo, o que a Light está praticando no Riu
e em São Paulo [...]. Em síntese, o conde Matarazzo continua na pré-história da
indústria.
O conde Francisco Matarazzo - que não gostava de anunciar nos jor-
nais de Chateaubriand e insistia em receber em dia seus aluguéis - era "um
milionário privilegiado", um industrial de "idéias rudimentares", não tinha
respeito pela dignidade dos operários - ou seja, o leitor do Diário da Noite
estava diante do homem das cavernas. E os outros empresários e suas indús-
trias? Bem, os Laboratórios Alvim e Freitas (por mera casualidade, grandes
anunciantes de O Jornal e do Diário da Noite) eram um exemplo de moderni-
dade - segundo Chateaubriand pudera apurar, com seus próprios olhos,
em reportagem feita pessoalmente por ele naquela empresa. A norte-ameri-
cana General Electric (que só naquele ano iria gastar mais de mil contos em
publicidade) era uma indústria preocupada com o conforto de seus trabalha-
dores - "exemplo que vem de suas unidades instaladas nos Estados Uni-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
dos, que empregam mais de 70 mil pessoas". E a Light? Sobre a empresa di-
rigida por Mackenzie, Chateaubriand encerraria um artigo com uma antoló-
gica, definitiva afirmação: "No mês vindouro a Light &Power completa
mais um ano de atividade no Brasil. Fora outro o nível mental da nossa gen-
te e esse dia deveria ser feriado nacional".
Indiferente à repercussão que enormidades como essa causavam entre
seus adversários, Chateaubriand se preparava, no final de 1928, para a mais
estrondosa promoção realizada por suas empresas até então: o lançamento
de Cruzeiro. No final da tarde de 5 de dezembro, quando a avenida Rio Bran-
co fervilhava de gente que deixava o trabalho ou saía às ruas para as primei-
ras compras de Natal, 4 milhões de folhetos - três vezes o número total de
habitantes do Rio - foram atirados do alto dos prédios sobre a cabeça dos
passantes. Os volantes anunciavam o breve aparecimento de uma revista
"contemporânea dos arranha-céus", uma revista semanal colorida que "tudo
sabe, tudo vê". Muitos dos panfletos traziam reproduzidos, no verso, anún-
cios que seriam veiculados na nova publicação. Por conta de um contrato de
permuta realizado com o americano William Melniker, diretor no Brasil da
Metro Goldwyn Mayer, a revista publicaria anúncios regulares do estúdio
americano em troca da exibição, antes de toda película da MGM distribuída
para qualquer ponto do país, de um curtíssimo filme feito em Buenos Aires
mostrando uma máquina de rotogravura imprimindo exemplares de Cruzei-
ro. Todo aquele conjunto de ações se constituía, garantira Fitz Gibbon a Cha-
teaubriand, "no mais moderno processo americano de infiltração na cons-
ciência dos consumidores".
No dia 10 de dezembro, por fim, consegue-se um verdadeiro milagre
para um país cujas comunicações ainda estavam na idade da pedra: a revis-
ta Cruzeiro estava nas bancas de Belém a Porto Alegre, simultaneamente.
Além de usar caminhões, barcos e trens, Chateaubriand fretou um bimotor
- o Aiko, da companhia francesa Latécoère - para que nenhuma cidade
importante fosse esquecida pela distribuição. Como se quisesse esbanjar
competência, até nos principais pontos-de-venda de Buenos Aires e Monte-
vidéu havia repartes da revista - da mesma edição em português que cir-
culava no Brasil. Os dois primeiros exemplares a chegar às mãos de Cha-
teaubriand foram mandados para Getúlio Vargas e para o padrinho e patrocinador
Antônio Mostardeiro.
Na capa do número um, em fundo azul emoldurado por uma tarja pra-
teada, publicou-se um desenho hiper-realista do rosto de uma moça com ar
vamp, unhas cintilantes, sombra nos olhos e boquinha pintada, como se so-
prasse um beijo para seus 50 mil leitores. Completando a atmosfera fatal, so-
bre o rosto da melindrosa esvoaçavam as cinco estrelas de prata do Cruzei-
ro do Sul que haviam inspirado o nome da revista. No editorial sem assinatura
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FERNANDO MORAIS
da primeira página, a direção prometia uma publicação bem mais ingênua
do que sugeria o ar lascivo da moça da capa: esclarecia que, se um jornal
pode ser o órgão "de um partido, de uma facção, de uma doutrina", uma re-
vista como Cruzeiro, no entanto, seria um instrumento de educação e de
cultura: "Onde se mostrar a virtude, animá-la; onde se ostentar a beleza,
admirá-la; onde se revelar o talento, aplaudi-lo; onde se empenhar o pro-
gresso, secundá-lo".
A publicidade do primeiro número prenunciava tempos de vacas mui-
to gordas para Chateaubriand. Quase metade das 64 páginas estava repleta
de anúncios. Além de páginas inteiras em cores oferecendo os automóveis
Lincoln, as novas vitrolas da Victor (que já tinham evoluído das "victorolas
" do
século passado para "Victrolas Ortophonicas") e filmes da Metro Goldwyn
Mayer, havia um mar de anúncios, onde se vendia de tudo. Produtos de be-
leza para mulheres ("Rugas? Rugol! E adeus rugas!" Se o remédio não fun-
cionasse, o anunciante acenava com um prêmiu de consolação: 3 mil dólares
para a mulher que comprovasse a ineficácia de Rugol), elegantes jóias da fi-
lial da britânica Mappin & Webb e, como sempre, remédios, muitos remé-
dios. Curiosamente, as quatro primeiras páginas estavam cobertas de minús-
culos anúncios classificados de hotéis - hotéis chiques e pensões vagabun-
das -, o que por muitos anos se tornaria uma praxe na revista.
No miolo, impressos em sofisticado papel cuchê e ilustrados por foto-
grafias em abundância, artigos, reportagens e contos traziam, sob o título,
um inexplicável e preciso registro: o tempo necessário para o leitor ler cada
um deles. Por exemplo, a leitura da entrevista exclusiva com o presidente de
Portugal, Oscar Carmona (feita por Rocha Martins, "nosso colaborador em
Lisboa"), iria demandar treze minutos e vinte segundos. O conto "Salva pelo
amor", de Phyllis Duganne, era mais longo: 26 minutos e vinte segundos. A
reportagem sobre a realização do filme Helena de Tróia (da MGM, claro), dez
minutos redondos. A reportagem "Como se domam as feras" - na verdade
um conjunto de fotos encimadas por legendas extensas - podia ser lida em
brevíssimos cinco minutos e seis segundos. O texto recordista era uma entre-
vista com Luiz Seel, pioneiro da produção de desenhos animados no Brasil.
O leitor gastaria 38 minutos e dezessete segundos para aprender os segredos
da animação dos bonecos Mutt & Jeff pelo cinema americano.
Se a mania maluca de publicar o tempo de leitura morreu no primeiro
número, tanto a revista quanto a prosperidade que ela ostentava pareciam
ser definitivas. As sucessivas edições de Cruzeiro engordavam a cada sema-
na com anúncios e mais anúncios. Muitas vezes o leitor ficava em dúvida
so-
bre se determinada matéria publicada pela revista era uma reportagem in-
formativa ou um anúncio pago, disfarçado de jornalismo. Quando não era
"A maior inauguração do ano" (na verdade apenas a abertura do novo pré-
dio da companhia de cigarros Souza Cruz), podia ser a página inteira de fo-
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FERNANDO MORAIS
tos e texto dedicada à nova seção de contratos da velha amiga Light & Po-
wer. Mesmo para um jornalismo tão ingênuo como o que se fazia no Brasil
do final dos anos 20, onde talvez aqueles assuntos fossem de fato de interes-
se para a época, aquilo cheirava a matéria paga. Diante da insistência dos ini-
migos - quase todos os dias vinha chumbo de A Ordem e do Diário Nacional
- que queriam porque queriam ver os tais anúncios oriundos do fantástico
contrato com a Sul-América, estes acabaram aparecendo, e em todos os nú-
meros da revista. Os da Sul-América e os da Lacta, da cervejaria Antarctica,
da América Fabril, da Victor e de dezenas de laboratórios. Alguns exibiam o
privilégio de ter brasileiros célebres como garotos-propaganda. Uma página
inteira das Casas Isnard, anunciando rádios, estampava em fotografia po-
sada ninguém menos que o embaixador do Brasil na Liga das Nações e ex-
ministro das Relações Exteriores Afrânio de Melo Franco "e candidato ao
prêmio Nobel da paz sintonizando o seu Philco modelo 45-C, o rádio dos ar-
tistas célebres, políticos eminentes, jornalistas cultos, militares ilustres, in-
dustriais abastados e amadores exigentes ". Anúncios mais recatados ofere-
ciam "às damas na nossa sociedade" a moderna toalha sanitária Modess,
capaz de evitar dissabores e "resguardar os vestidos de fazendas mais leves
e delicadas".
A cornucópia em que pareciam ter se transformado os negócios de Cha-
teaubriand - não só na revista, mas o dinheiro parecia surgir copiosamen-
te também no Diário da Noite e em O Jornal - aguçou a legítima aspiração de
uns poucos e mais ingênuos "acionistas" (os pioneiros que haviam contri-
buído para montar os alicerces da rede que começava a nascer) de receber al-
gum dividendo daqueles empreendimentos. Quando o paulista Elói Chaves,
por exemplo, tentou discretamente saber se as ações que adquirira já haviam
dado algum filhote, ouviu de Chateaubriand uma resposta sem qualquer
acanhamento:
- Minhas empresas já pagam dividendos a seus acionistas. Mas são di-
videndos cívicos! Cada tostão que caiu em nossos alforjes foi multiplicado
,
sim. E é distribuído todos os dias. Não individualmente, mas a toda a nação,
através de idéias. Veja a severidade com que mergulhamos na campanha
pelo voto secreto no Brasil. São esses os dividendos físicos que, pelo menos
por enquanto, pretendemos distribuir.
Aos que o acusavam de receber recursos de origens escusas, Chateau-
briand reconhecia, em editoriais assinados, que estava mesmo em uma maré
de fartura, mas que aquilo não o transformara num argentário mesquinho.
"O dinheiro só nos preocupa como um meio", insistia, "como um instru-
mento para pagar bons serviços destinados à feitura impecável dos nossos
veículos." Não era o destino do dinheiro, contudo, o que a limentava a ima-
ginação dos inimigos, mas a origem dele. Para esta interrogação também
Chatea ubriand tinha resposta, que publicava com todos os efes e erres: "O
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
dinheiro nos chega por três únicas vias: a publicidade, as assinaturas e a ven-
da avulsa". O destino e a origem não eram suficientes para satisfazer a curio-
sidade dos desafetos? O importante era saber quanto faturavam os veículos
do pequeno conglomerado que eles já chamavam de "o consórcio Chatô"?
Nenhum problema. Descontados os tais 12 mil contos da Sul-América, que
geravam tanta desconfiança - e que ele não contabilizava por considerá-lo
um "contrato futuro", teoricamente suscetível de ser rompido a qualquer
momento -, havia muito, mas muito dinheiro entrando no caixa de suas
empresas, como ele próprio esclareceria em um artigo escrito no começo de
1929: "No ano passado essas três fontes (publicidade, assinaturas e venda
avulsa) nos deram quase 4500 contos de lucro líquido. Se 1929 terminar
como está começando para nós, o grupo de empresas liderado por O Jornal
terá uma receita líquida de 12 mil contos de réis".
Ou seja: em valores corrigidos para 1994, Chateaubriand pretendia en-
fiar no bolso, no final daquele ano, sem contar o "contrato futuro" da Sul-
América, uma montanha de dinheiro de aproximadamente 8,5 milhões de
dólares de altitude. Tamanha abundância, porém, não significava que ele es-
tivesse pagando as monumentais dívidas que assumira, já que o dinheiro
que entrava ficava mesmo era nos seus próprios negócios. Como o próprio
dono explicava: "Esses recursos nos permitiram instalar recentemente na
Alemanha, como correspondente permanente de O Jornal, o jornalista Sérgio
Buarque de Holanda. E são esses mesmos recursos que vão pagar a viagem
e as despesas do nosso colaborador Mozart Monteiro, que partiu ontem para
a Rússia como o primeiro jornalista brasileiro a fazer uma minuciosa, hones-
ta e desinteressada série de reportagens sobre a república dos sovietes
". O
resto, destemperava, "o resto é inveja de uma concorrência dirigida por si-
baritas, que quanto mais se encharcam de champanhe nas Noites, mais min-
guam seus jornais".
O soberano desprezo com que tratava inimigos, adversários e concor-
rentes não ocultava a obsessão de que Chateaubriand estava tomado: refor-
çar sua presença no Rio e em São Paulo e ampliar a sua rede de veículos de
comunicações por todo o país, com os olhos postos no pleito de 1930. Para
chegar lá, entrou em 1929 enfiando o pé na porta do mercado de São Paulo.
Na primeira semana de janeiro estava nas bancas o Diário de S. Paulo, o "jor-
nal sério" que ele vinha preparando sigilosamente para os paulistas. Só no
lançamento, no dia 5 de janeiro, é que se tomou conhecimento do plano se-
creto que o próprio dono arquitetara: além do reparte destinado à venda
avulsa, mais 30 mil exemplares foram impressos e distribuídos gratuitamen-
te pelo correio a uma lista de pessoas residentes em todo o estado. A promo-
ção iria durar um mês. As listas dos destinatários vinham sendo obtidas dis-
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FERNANDO MORAIS
cretamente pelo próprio Chateaubriand nos meses anteriores: eram os mai-
lings de clientes de seus amigos industriais e empresários, associados de en-
tidades de classes, pequenos e médios comerciantes que faziam parte dos ca-
dastros das grandes indústrias paulistas. No dia seguinte, mais uma lista de
30 mil nomes era acrescentada à primeira. No dia 7 de janeiro o Diário de S.
Paulo tinha, além dos exemplares cujas manchetes eram apregoadas pelos
jornaleiros e donos de quiosques de rua, uma tiragem de 90 mil jornais cir-
culando por todo o estado. Cada um desses jornais distribuídos de graça tra-
zia impresso um cupom para que o leitor, ao final do primeiro mês de gra-
tuidade, fizesse sua assinatura - desta vez, naturalmente, paga do próprio
bolso.
Para dirigir o Diário de S. Paulo, Chateaubriand trouxe do Rio o jornalis-
ta potiguar Orlando Dantas, de 35 anos. Cosmopolita, familiarizado com a
imprensa norte-americana (ele vivera nos Estados Unidos no final dos anos
10 para fazer um curso na fábrica de máquinas de escrever Underwood),
Dantas trabalhara nos últimos meses como diretor de publicidade de O Jor-
nal, em substituição ao americano Fitz Gibbon, que retornara aos Eua. Mas
Orlando Dantas ficaria em São Paulo e no Diário por pouco tempo: um ano
depois, por divergências com Chateaubriand, ele deixaria o jornal para fun-
dar o seu próprio Diário de Noticias no Rio de Janeiro. No novo jornal paulis-
ta, seus dois lugares-tenentes eram Rubens do Amaral, transferido do Diário
da Noite, e José Jobim, também contratado no Rio de Janeiro.
O prato de resistência do número de estréia do Diário de S. Paulo foi uma
inacreditável entrevista concedida com exclusividade a Chateaubriand pela
maior glória nacional, o aviador Santos Dumont. Famoso não só por seu in-
vento, mas também pela aversão a jornalistas, o "pai da aviação" foi torren-
cial - e deu a Chateaubriand um furo jornalístico internacional: no final do
mês ele embarcaria para a Suíça para finalizar as experiências com seu novo
e revolucionário engenho, uma máquina que prometia ser tão espantosa
quanto o avião que o celebrizara mundialmente: o Transformador Marciano.
O delirante invento, detalhou Santos Dumont, consistia em um par de asas
a serem adaptadas aos ombros dos seres humanos. Através da eletroterapia,
o aparelho transmitiria energia suplementar aos músculos, o que permitiria
que o usuário subisse escarpas, ladeiras e montanhas sem nenhum esforço
físico adicional. Santos Dumont esclareceu que queria viajar logo para Saint-
Moritz, na Suíça, para aproveitar o final da neve - terreno mais apropriado
para experiências que, realizadas em superfície dura, poderiam causar da-
nos irreparáveis a seus pilotos de provas. Maravilhado com a "bomba" que
tinha nas mãos, Chateaubriand festejava antecipadamente o sucesso do apa-
relho: "Quem tiver amanhã nas omoplatas o Transformador Marciano", as-
segurou, "poderá galgar o Pão de Açúcar como se andasse na avenida Pau-
lista". Embora de grande impacto jornalístico, a entrevista não parecia ter
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
colhido o inventor brasileiro em seus melhores momentos. Santos Dumont
concluiu seu depoimento com outra afirmação surpreendente: ele descarta-
va com absoluta segurança que a aviação pudesse se transformar no melhor
meio de transporte para a ligação entre o Rio e a capital paulista.
Poucas semanas depois de lançado, o Diário de S. Paulo, aparentemente
contrariando os planos do dono de fazer dele um jornal sisudo, passaria a
publicar semanalmente, em página inteira, a Revista de antropofagia - Segun-
da dentição. A primeira versão (ou dentição) do órgão oficial dos modernis-
tas deixara de circular no começo do ano por falta de recursos. E, para sur-
presa de todos, iria receber amparo exatamente daquele que com tanta
veemência excomungara, anos antes, o nascimento do modernismo. A inclu-
são no jornal, aos domingos, da Revista de antropofagia, acabaria gerando uma
crise na redação. Às centenas, conservadores leitores do interior do estado
pediam o cancelamento de suas assinaturas, inconformados com o escárnio
produzido semanalmente pelos modernistas em um diário que se pretendia
sério. Em meio a carrancudos editoriais sobre a cafeicultura e a pecuária, o
leitor deparava com incompreensíveis slogans como "Leia Durkheim!", ou
com frases de Oswald de Andrade como "Tupy or not tupy, that is the ques-
tion", ou "Quatro séculos de carne de vaca, que horror!". Temeroso de que
o movimento antiantropofágico se disseminasse - e pudesse ameaçar a ti-
ragem do jornal -, Orlando Dantas ameaçou suprimir a página semanal.
Para espanto dos modernistas, foi Chateaubriand quem lhes assegurou abri-
go no jornal, dando ordens para que a página permanecesse. Chateaubriand
voltaria á surpreendê-los quando o mesmo Oswald de Andrade tentou falar
em um congresso de cafeicultores da Sociedade Rural Brasileira. Herdeiro,
pelo casamento com Tarsila, de um cafezal no interior de São Paulo, Oswald
se sentiu no direito de usar a palavra no encontro dos fazendeiros, mas só
conseguiu pronunciar a primeira meia dúzia de palavras: "Sou a voz de um
encalacrado", começou, "num congresso de encalacrados". Bastou isto para
que ele fosse arrancado do palco sob vaias - e a íntegra de seu discurso,
"Uma voz da lavoura", só seria conhecida no dia seguinte, publicada como
matéria paga no jornal Estado de S. Paulo. Chateaubriand não perdoou os mo-
dernistas pela ingratidão: quando precisavam de apoio, batiam às suas por-
tas. Mas, na hora de publicar um anúncio de página inteira, o escolhido era
"o jornal do Julinho" - dizia a Geraldo Ferraz, a quem acusava de ter "dor-
mido no ponto " e deixado escapar o anúncio. Quando Ferraz retrucou que
era um intelectual e que arranjar anúncios não era sua função, Chateau-
briand levou-o a um canto e esclareceu:
- Mas Geraldo, francamente: nós teríamos pago a você uma gorda co-
missão!
Assim como surpreendia ver encartada no Diário de S. Paulo a Revista de
antropofagia - Segunda dentição, os leitores ficavam intrigados com uma co-
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FERNANDO MORAIS
luna que surgiu no jornal intitulada "O ponto de vista do PRP". Não fazia
sentido para ninguém encontrar, em um diário escandalosamente getulista,
uma coluna sempre aberta ao Partido Republicano Paulista, que todos já sa-
biam que iria enfrentar o gaúcho nas eleições do ano seguinte. Aos que o
acusavam de estar fazendo "o jogo do pau de dois bicos" - isto é, colocan-
do um pé em cada canoa - Chateaubriand respondia candidamente que
aquilo "era coisa do Antoninho". Um dos líderes modernistas e efetivamen-
te ligado ao perrepista Júlio Prestes, o escritor Antônio de Alcântara Macha-
do tinha sido um dos defensores da publicação e manutenção do vade-mé-
cum antropofágico no Diário de S. Paulo. E, segundo Chateaubriand, era dele
a responsabilidade pela inexplicável permanência da quinta-coluna de Júlio
Prestes e do PRP no jornal.
Mas não era só no amparo aos modernistas que se podia identificar a
peculiar simpatia de Chateaubriand pelas artes. Logo que Cruzeiro se firmou
como a grande revista nacional - o que ocorreu poucos meses depois de seu
lançamento -, o dono deu ordens para que fosse instituído pelo semanário
um concurso de contos e novelas destinado a descobrir, nacionalmente, no-
vos talentos na literatura. O pífio prêmio em dinheiro que era oferecido ao
vencedor - cem mil-réis - era uma insignificância mesmo para os padrões
da época. Mas a verdadeira consagração dos dez primeiros classificados es-
taria em ver seus trabalhos publicados na revista, ilustrados pelos artistas
mais renomados da casa, todos laureados com medalhas de ouro em salões
europeus: Marques Júnior, Henrique Cavalleiro, Carlos Chambelland e Os-
valdo Teixeira.
Foi tão grande o interesse despertado pelo concurso (cujo júri era com-
posto "pela redação") que poucas semanas depois a revista foi obrigada a
mudar as regras e suspender a recepção de originais. Em tão escasso espaço
de tempo, mais de quatrocentos trabalhos tinham chegado à redação, "surgi-
dos tanto dos grandes centros de cultura como dos mais apagados recantos
da província". Incapaz de ler e julgar criteriosamente aquela maçaroca de
papel vinda de todo o país, Cruzeiro anunciou: "Somos obrigados a suspen-
der o registro da recepção dos contos para o julgamento final dos enviados
até esta data, de modo a não criar para os concorrentes uma situação de lon-
ga e modesta expectativa".
Entre os dez finalistas, chamavam a atenção dois nomes, não apenas
pela alta qualidade dos contos, mas também por serem autores muito jovens,
que pela primeira vez veriam um escrito seu publicado em letra de fôrma.
Um deles, que concorrera com o conto intitulado "Satânia", era um aluno de
dezoito anos do Colégio Militar do Rio de Janeiro que vivia em uma repúbli-
ca de estudantes da Tijuca. O outro tinha 21 anos e, como acontecia com a
maioria dos rapazes de sua geração, mudara-se do interior de Minas Gerais
para fazer o curso superior em Belo Horizonte, onde estudava medicina.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Como o regulamento não fazia objeções a isso, ele concorrera com três
contos, aos quais deu nomes bastante insólitos para um autor que viera do
sertão mineiro: "Kronos kai Anágke", "O mistério de Highmore Hall" e "Ca-
çadores de camurças". O aluno do Colégio Militar, autor de "Satânia" (e que
iria penar durante meses para arrancar os míseros cem mil-réis do caixa de
Chateaubriand), era o futuro general e historiador marxista Nelson Werneck
Sodré. O mineiro de Cordisburgo, que anos depois seria consagrado como
um dos maiores escritores da língua portuguesa, se chamava João Guima-
rães Rosa.
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12
Depois de sustentar por várias semanas que Chateaubriand tinha vendi-
do sua alma ao governador mineiro por 1500 dinheiros, foi com enorme de-
sapontamento que os editores do Diário Nacional leram o editorial do dia 15
de janeiro de 1929 do Diário de S. Paulo. Com uma penada de setenta linhas
assinadas, Chateaubriand jogou por terra a tese defendida com tanta vee-
mência pelos jornalistas que ele, terrível, chamava de "os pedês do Po" - um
jeito grosseiro de insultá-los com o diminutivo francês de "pederasta":
Outros estados da Federação, e não apenas São Paulo e Minas, também têm o
direito de aspirar à Presidência da República. Não fica bem ao respeito da igual-
dade que deve prevalecer entre todas as unidades federativas que duas delas se
arroguem o direito de dispor para os seus estadistas a cadeira do Catete. Desde
1894, só duas vezes, e por bambúrrio, é que os presidentes da República não saí-
ram de São Paulo e Minas.
Alguém poderia ter dúvidas, até aqui, do que ele queria dizer? Se tinha,
bastava chegar ao final do artigo para deixar de ter. Ali Chateaubriand ia ao
caroço da questão, e sem meias palavras deixava claro de onde deveria vir o
seu candidato à Presidência:
Vamos experimentar outros estados com os seus estadistas. Há entre eles al-
guns, como o Rio Grande, com uma tradição de escrúpulo administrativo, de
respeito pelos dinheiros públicos, de antifilhotismo que a República está muito
carecida de ver transplantada à órbita federal.
Era a primeira vez que alguém cometia a insolência de vir a público pro-
por o fim da chamada política do café-com-leite, que por quatro décadas,
como ele próprio assinalara, garantira aos estados de Minas Gerais e de São
Paulo um revezamento quase ininterrupto na chefia da nação, ignorando as
lideranças do resto do país. Nesse período, só duas exceções haviam quebra-
do a regra - em 1910, com o marechal gaúcho Hermes da Fonseca, e em
1918, com Epitácio Pessoa, seu conterrâneo de Umbuzeiro. Todos os demais
presidentes eram mineiros ou paulistas.
Equivocava-se também quem imaginasse que, ao defender a candidátu-
ra gaúcha, Chateaubriand estivesse, agora, traindo o governador mineiro
que o socorrera, em circunstâncias tão obscuras, com os tais 1500 contos. Na
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
realidade o artigo apenas tornava público, ainda que de forma dissimulada,
o resultado de uma conspiração em que Chateaubriand se metera pessoal-
mente meses antes, para convencer o governador Antônio Carlos a três gra-
ves decisões que iriam mudar o rumo da história do Brasil: primeiro, retirar
sua própria pré-candidatura à Presidência; segundo, rejeitar qualquer solu-
ção proposta pelo Palácio do Catete para dar continuidade à política do café-
com-leite; e, por fim, apoiar o nome de Getúlio Vargas como candidato de
oposição a Washington Luís. Obscurecido na maioria dos livros sobre a his-
tória da Revolução de 30, o papel desempenhado por Chateaubriand para
convencer Antônio Carlos - fato a que nem o próprio jornalista jamais se re-
feriria - só acabou merecendo um breve registro, décadas depois, perdido
em meio às memórias do então deputado federal e ex-vice-governador de
Vargas no Rio Grande, João Neves da Fontoura, um dos mais expressivos lí-
deres da Aliança Liberal, nome dado à coligação inicialmente composta por
gaúchos, mineiros e paraibanos.
Três semanas antes, o jornalista passara a noite de Natal de 1928 com o
governador Antônio Carlos no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte. O
que parecia ser apenas uma confraternização cristã foi de fato uma exausti-
va reunião de mais de quatro horas para tratar exclusivamente da sucessão
presidencial. Ao final da conversa o governador tinha aceito os três pontos
propostos por Chateaubriand. A importância do resultado daquela aparen-
te visita natalina teria sido coberta pelo pó da história oficial, não fosse o de-
poimento deixado por João Neves da Fontoura:
Foi Assis Chateaubriand um dos primeiros a entrar na conspiração política, e
com o vigor, a paixão e o dinamismo que sempre imprimiu a todas as suas cam-
panhas. Amigo de Antônio Carlos, teimava em mostrar-lhe que a vitória de Mi-
nas sobre o Catete dependia de que os insurretos arvorassem uma bandeira: a
candidatura gaúcha. Ele ainda não possuía a verdadeira frota de jornais em todo
o país, mas os multiplicava com o dom de sua prodigiosa ubiqüidade.
Em janeiro de 1929 Chateaubriand regressou de uma de suas constantes via-
gens a Belo Horizonte. Lá se entretivera a fundo com o sr. Antônio Carlos acer-
ca da sucessão do sr. Washington Luís. De volta, procurou os irmãos João e Fi-
lipe Daudt de Oliveira, pondo-os ao corrente da importante conversa, cujos
termos estava autorizado por Antônio Carlos a transmitir aos chefes gaúchos.
Em conseqüência, a pedido de Chateaubriand, João escreveu a Vargas em
meados de janeiro, relatando o teor da palestra entre Antônio Carlos e Chateau-
briand. Informava assim:1) que Antônio Carlos vetaria frontalmente a candida-
tura Júlio Prestes; 2) que não teria candidato mineiro; 3) que, como indicação do
Catete, aceitaria um rio-grandense; 4) que adotaria o nome de um líder gaúcho
para opor, em luta, a uma candidatura oficial paulista.
Aquela comunicação impressionou fundamente o espírito de Vargas.
O abusado editorial do Diário de S. Paulo, portanto, nada mais era que o
capítulo seguinte da conversa no Palácio da Liberdade, quando ficou acerta-
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FERNANDO MORAIS
do também que aquela seria a posição a ser defendida, a partir de então, pe-
los jornais de Chateaubriand. Sem que o nome do governador gaúcho tives-
se sido expressamente citado uma só vez, tudo apontava numa só direção:
em 1930 Washington Luís e Júlio Prestes iriam enfrentar Getúlio Vargas nas
urnas.
Passaram-se poucos dias do primeiro editorial sinalizando a orientação
pró-Vargas quando apareceu na sala de Chateaubriand em São Paulo um
"velho amigo" seu, homem de "sólidos recursos". O nome do personagem
iria para o túmulo com Chateaubriand, mas não a razão que o levara àquela
visita ao dono do Diário da Noite e do Diário de S. Paulo. O misterioso visitan-
te oferecia ao jornalista o que ele chamaria de "a mais voluptuosa proposta
que alguém jamais me fizera" : comprar seus dois jornais de São Paulo já en-
tão conhecidos apenas como "os Diários"), O Jornal e a revista Cruzeiro "por
uma fortuna que poucos homens neste país, individualmente, têm o privilé-
gio de possuir ". Em português fluente, o que o personagem propunha é que
Chateaubriand pusesse alguns milhares de contos de réis no bolso e tivesse
uma pacata e eterna aposentadoria na Europa - o que, além de todas essas
vantagens, o livraria dos aborrecimentos diários que só os donos de jornais
conhecem. Aos amigos a quem revelou a história, Chateaubriand disse que
ficou em dúvida "se enfiava uma peixeira nos miúdos daquele desinfeliz ou
se fazia uma boutade". Como esfaquear milionários (pelo menos no sentido
estrito da palavra) ainda não era sua especialidade, ele pegou o visitante
pelo braço e conversou delicadamente com ele, andando em passos lentos,
em direção ao janelão da sala, de onde se descortinava todo o vale do Anhan-
gabaú:
- Entendo a proposta que o senhor me faz não como um vulgar cala-
boca. Nem mesmo como um bom negócio comercial. O que o senhor me traz
é uma sugestão nietzschiana: qual de nós não sonha terminar seus dias nas
lombadas do Vesúvio, como propunha Nietzsche?
O visitante chegou a imaginar que o negócio ia sair, mas Chateaubriand
continuou:
- Todos, menos eu! Eu troco as fraldas das montanhas vesuvianas pela
praça do Patriarca! - dizia, escancarando os braços para o vale e indagan-
do ao milionário:
- O senhor acha possível comprar, ainda que pela fortuna que me ofe-
rece, o vale do Anhangabaú?
Ante a resposta negativa e assustada, continuou, apontando o indicador
para um ponto do vale:
- Para servir a interesses de indivíduos ou de clãs, o senhor faria uma
oferta, qualquer que seja, por aquele monumento de bronze ao maestro Car-
los Gomes?
Novo não, desta vez mais assustado. Chateaubriand prosseguia, agora
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
falando alto e gesticulando como se discursasse para uma platéia - mas
bem-humorado, deixando deliberadamente em dúvida se tudo aquilo não
seria pura ironia:
- Pois então diga aos seus amigos que o mandaram aqui que nossos
jornais são como o vale do Anhangabaú, a praça do Patriarca, o busto de
Carlos Gomes: são bens públicos, fora do comércio! É aí que reside a força
desses instrumentos de progresso moral e material da pátria brasileira que
são os nossos jornais. É aí que reside a mística invencível dos rapazes que fa-
zem O Jornal, a revista Cruzeiro e os Diários aqui em São Paulo.
Se leu o Diário da Noite e O Jornal dos dias seguintes, o suposto emissário
de Washington Luís e Júlio Prestes teve motivos de sobra para colocar em
dúvida a condição de "bens públicos " daqueles diários. Provavelmente amea-
çado por novas cobranças, Chateaubriand passou quatro dias seguidos azu-
crinando a vida do conde Matarazzo. Primeiro exigia que o Juizado de Meno-
res inspecionasse as fábricas do industrial italiano, "onde crianças trabalham
em regime de escravidão", ganhando quinhentos réis mensais por nove ho-
ras diárias de trabalho. "Quanta sordidez, quanta miséria moral", vergas-
tava, "não deverá existir no coração que assenta sua prosperidade nessa
ignóbil exploração do trabalho infantil." Os artigos seguintes acusavam o
magnata de praticar dumping no mercado açucareiro, em prejuízo da econo-
mia (e dos usineiros) de Pernambuco: "O sr. Matarazzo é um mero ganha-
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FERNANDO MORAIS
dor de dinheiro, que se rala tanto pela sorte da lavoura pernambucana quan-
to da do Marrocos, do Tibete ou da própria Itália".
A leitura dos editoriais assinados por ele quase sempre transmitia ao
leitor a impressão de estar vendo alguém girar indiscriminadamente uma
afiada navalha amarrada à ponta de um barbante. Com a mesma candência
usada para investir contra o maior industrial brasileiro, ele avançaria, dias
depois, sobre a madre superiora do Colégio Sion, em Laranjeiras, no Rio, que
decidira proibir a matrícula da menina Abigail Izquierdo Ferreira, de nove
anos, pelo pecado de ser filha do ator de teatro Procópio Ferreira - criança
que décadas depois, sob o pseudônimo de Bibi Ferreira, seria reconhecida
como uma das maiores atrizes brasileiras. "A tese da religiosa não é apenas
desumana, é anticristã", fustigava Chateaubriand. "Será que Jesus discrimi-
naria, entre essas garotinhas, as que são filhas de atores teatrais e as que são
filhas dos banqueiros da rua da Alfândega, ou dos industriais da tecelagem
da rua da Candelária?" Em meio à defesa da pequena Abigail, Chateau-
briand realizava uma verdadeira hipérbole literária para, de raspão, bater de
novo em seu alvo predileto, o conde Matarazzo: "O teatro, como qualquer
profissão, pode ser moral ou imoral. Tudo depende de quem a exerce. O sr.
Francisco Matarazzo, açambarcando gêneros de primeira necessidade para
vendê-los ao povo mediante preços exorbitantes, com lucros excessivos,
transforma o comércio, por exemplo, numa profissão imoral". E concluía
com uma dose de moralismo quase tão prande quanto a da madre superio-
ra: "Nada autoriza um colégio a repelir a matrícula a uma pequerrucha só
porque seus pais fazem vida de palco. E, se o ator Procópio Ferreira é um
boêmio, na sua arte, não seria um começo de arrependimento ele ter ido, em
pessoa, buscar um colégio de educação religiosa, para à sua sombra tutelar
deixar a filha pequenina?".
Mas tanto o conde, que ainda padeceria durante muito tempo na ponta
do lápis de Chateaubriand, quanto as freirinhas do Colégio Sion (que se
mantiveram irredutíveis e não aceitaram matricular Bibi Ferreira) acabariam
passando para segundo plano naquele ano de 1929. A intransigência de
Washington Luís em fazer seu sucessor levaria gaúchos e mineiros a supe-
rar suas divergências (tanto um como outro estado pretendiam que o cabe-
ça da chapa saísse de seu território) - e o namoro alcovitado por Chateau-
briand entre Antônio Carlos e Getúlio Vargas acabou selando o pacto entre
os dois que levaria à criação da Aliança Liberal. Como já havia confessado a
Chateaubriand no Natal do ano anterior, Antônio Carlos acabaria abrindo
mão publicamente de sua candidatura, permitindo que Vargas fosse o can-
didato a presidente. Consultado sobre como reagiria quando o Catete lhe pe-
disse apoio à chapa oficial, o governador João Pessoa, da Paraíba, respondeu
com uma única palavra, que se transformaria no lema da bandeira daquele
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
estado: "Nego". Era a senha de que mineiros e gaúchos tanto precisavam
para atrair a Paraiba para o movimento oposicionista que vinham arquite-
tando. Um ano antes do embate eleitoral as chapas já estavam montadas: in-
sistindo na política do café-com-leite, o PRP do presidente da República iria
lançar Júlio Prestes como candidato. Cumprindo a profecia que Chateau-
briand fizera quando Vargas assumiu o governo do Rio Grande do Sul, a
Aliança Liberal se preparava para lançar o próprio Vargas como candida-
to a presidente. Seu vice seria o autor do "Nego" - João Pessoa, governa-
dor da Paraíba, sobrinho do ex-presidente Epitácio Pessoa e, como este e
Chateaubriand, também um umbuzeirense.
Apesar de dezessete dos vinte estados brasileiros da época terem deci-
dido apoiar a chapa oficial, era patente o crescimento da Aliança Liberal.
Mas o sucesso dos comícios que a agremiação realizava pelos estados - car-
regando principalmente a bandeira da anistia aos punidos desde 1922 - de-
pendia de órgãos de imprensa que repercutissem a agitação política contra
o Catete. O movimento oposicionista já contava com a simpatia dos maiores
jornais do Rio e de São Paulo, mas Chateaubriand insistia em que isso não
era suficiente: mais que a mera aquiescência, era preciso jornais declarada-
mente militantes, que assumissem como sua a causa aliancista. E isso, garan-
tia, só quem podia dar era ele. Com essa conversa acabou arranjando meios
para, em menos de um ano, duplicar sua rede. Primeiro teve de superar a
enorme antipatia que alimentava por Osvaldo Aranha ("um incendiário per-
manentemente zangado") e convencê-lo da importância, para o movimento,
de que ele, Chateaubriand, assumisse a propriedade e modernizasse o letár-
gico Diário de Noticias, de Porto Alegre. Envolvente e astucioso, Chateau-
briand não apenas conseguiu contornar o azedume do gaúcho como os pri-
meiros cinqüenta contos dados a Leonardo Truda, dono do jornal (de um
total de quatrocentos contos que custara o Diário de Noticias), saíram do cai-
xa da Aliança Liberal e foram pagos pessoalmente por Osvaldo Aranha - o
mesmo que meses antes abortara o negócio, temendo que aquilo fosse uma
tentativa dos mineiros de pôr os pés no Rio Grande.
Mas Chateaubriand queria mais. Além de Cruzeiro e de O Jornal, a pra-
ça do Rio, ele sustentava, precisava de um diário que chegasse aos trabalha-
dores. Um jornal, como o Diário da Noite de São Paulo, voltado para as gran-
des massas populares. De novo a Aliança Liberal se encarregou de levantar
os recursos. E desta vez o responsável por "levar o pimpolho à pia batismal",
como escreveria Chateaubriand anos depois, foi João Neves da Fontoura.
Neves foi o encarregado de fazer com que uma imprecisa bolada de dinhei-
ro - teria sido algo entre trezentos e quatrocentos contos - chegasse às
mãos de Chateaubriand para que ele imediatamente colocasse nas ruas o
novo jornal carioca. Que, como o de São Paulo, foi batizado com o nome de
Diário da Noite.
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FERNANDO MORAIS
Agora faltava Minas. "Como fazer uma conspiração sem Minas?", inda-
gava Chateaubriand a cada chefe aliancista que encontrava. "E como cons-
pirar com Minas sem ter um grande jornal para defender essa conjura lá,
atrás daquelas montanhas?" Se a Aliança Liberal quisesse, o jornal estava
prontinho, e para comprá-lo só faltava um detalhe: dinheiro. Era o Estado de
Minas, que Pedro Aleixo, jovem professor de direito, montara um ano antes
em sociedade com dois amigos, e cujas dívidas o estavam levando à falência.
Os contatos entre Aleixo e Chateaubriand foram feitos pelo correspondente
do jornal mineiro no Rio, o modernista Milton Campos, que havia sido con-
tratado no ano anterior como redator de O Jornal. Somados o rombo de dívi-
das acumuladas, mais as máquinas e o pequeno prédio no centro de Belo
Horizonte, Pedro Aleixo e seus sócios queriam setecentos contos de réis para
entregar o jornal. Como estava instalado na capital do "Vaticano do crédito",
seria bem mais fácil conseguir recursos - fosse com os generosos banquei-
ros mineiros ou pela venda de ações a empresários locais. Nem era dinheiro
vivo que Chateaubriand precisava dos aliancistas, mas apenas a segurança
de que, em uma emergência, a campanha garantiria uma forma de pagar as
dívidas.
O sinal verde foi dado pessoalmente por Getúlio Vargas, ao final de
uma reunião da Aliança Liberal no Rio de Janeiro, e no dia seguinte Cha-
teaubriand embarcou no trem Vera Cruz para Belo Horizonte junto com Mil-
ton Campos. Arranjado o dinheiro, foi até a redação do jornal e ouviu a cho-
raminga generalizada: em um ano de funcionamento o jornal não pegara-
espantosamente, o veículo preferido dos mineiros era o Minas Gerais, o diá-
rio oficial publicado pelo governo do estado. As esperanças de arranjar
anúncios, então, já haviam sido abandonadas no meio do caminho. Todas as
tentativas de conseguir assinantes tinham sido em vão. Quando o último jor-
nalista acabou de falar, Chateaubriand deu um tapa na mesa: "Era isso mes-
mo que eu esperava: comprar um cemitério", exclamou, para assombro dos
mineiros que olhavam com desconfiança aquele homenzinho de terno de li-
nho branco, sapato bariri de duas cores e uma gravata que ia até quase o
joelho. Disse que para acabar com aquela pasmaceira ele ia transformar o Es-
tado de Minas num "curral de petiços" - pequenos cavalos, expressão que
incorporara do vocabulário gaúcho de Vargas.
Ali mesmo anunciou o nome dos cinco rapazes que escolhera para "de-
senterrar os fantasmas deste campo-santo": eram todos mineiros, todos ad-
vogados ou estudantes de direito e todos muito jovens. Décadas depois, um
deles se transformaria em um dos maiores advogados brasileiros, o outro se-
ria senador e ministro, dois seriam vice-presidentes da República e o quarto
se elegeria presidente do Brasil sem governar um só dia. Milton Campos-
o mais velho dos "petiços", então com 29 anos - seria o redator-chefe do jor-
nal, cargo que acumularia com a direção da sucursal mineira de O Jornal.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Para secretário de redação Chateaubriand convidou um estudante de direi-
to que lhe tinha sido recomendado pelo governador Antônio Carlos: Tancre-
do Neves, de dezenove anos. Como presidente da empresa, resolveu manter
o ex-dono do jornal, Pedro Aleixo, de 28 anos, que no ano anterior tinha sido
o vereador mais votado da capital mineira. O diretor seria o advogado Da-
rio de Almeida Magalhães, 21 anos, que já trabalhava no jornal desde a sua
fundação, um ano antes. Para o cargo de gerente, foi convidado um peque-
nino advogado de 28 anos, José Maria Alkmin, que acabara de deixar seu
emprego de repórter no diário oficial.
Antes que o entusiasmo aliancista esfriasse, Chateaubriand ainda ten-
tou abocanhar o Correio do Povo, também de Porto Alegre, mas de novo Os-
valdo Aranha - prevendo sabiamente que o crescimento do jornalista po-
deria trazer-lhes dores de cabeça - iria se interpor e impedir o negócio. Da
capital gaúcha ele passou um curto telegrama para João Neves da Fontoura,
no Rio, matando no nascedouro o que considerava "uma excessiva ganân-
cia" do jornalista - a inclusão do Correio no pequeno conglomerado, que já
era chamado de "consórcio": "Deputado João Neves - Hotel Glória - Rio
- Ontem avião Nyrba viajou Alexandre Alcaraz fim negociar com Chateau-
briand entrada Correio para consórcio. Precisas intervir evitando esta transa-
ção, inconveniente neste momento. Afetuosamente, Osvaldo Aranha". Mes-
mo já sendo dono de um poderoso arsenal de propaganda e opinião - seis
jornais diários e uma revista de circulação nacional -, Chateaubriand pre-
tendia voar ainda mais alto. E, sempre que possível, no vácuo do foguete em
que se transformara a Aliança Liberal. Antes que o ano de 1929 terminasse ele
contrataria a empresa paulista Oscar Flues & Cia. para importar dos Estados
Unidos cinco monumentais impressoras de rotogravura em quatro cores-
as primeiras que o Brasil veria - para rodar a revista Cruzeiro e imprimir su-
plementos coloridos de seus jornais do Rio, São Paulo e Minas Gerais.
A atividade jornalística não inibia sua aberta participação política. Re-
presentando a Paraíba (onde não punha os pés havia anos), em setembro ele
foi incluído entre os delegados à Convenção Nacional da Aliança Liberal que
iria sacramentar a chapa Getúlio Vargas-João Pessoa. E a militância em
uma organização de caráter frentista como a Aliança o sujeitava a um per-
manente exercício de tolerância com antigos adversários e inimigos. Assim
como havia sido escolhido convencional pela Paraíba, Pernambuco tinha no-
meado, entre outros, Joaquim Pimenta (seu concorrente na disputa pela ca-
deira de direito romano, em Recife) e seu arquiinimigo de 1911, o agora ma-
rechal Dantas Barreto. Realizada no Palácio Tiradentes, sede da Câmara
Federal, a convenção foi presidida pelo governador mineiro, recebido com
honras de chefe de Estado. Todos ali sabiam, afinal, que a Aliança só fora
possível graças ao desprendimento de Antônio Carlos, que abrira mão de
sua candidatura. Para introduzi-lo no plenário foi nomeada uma comissão
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FERNANDO MORAIS
de notáveis representando sete estados. Pela Paraíba o escolhido foi Cha-
teaubriand. Para seu desprazer, o representante de Pernambuco era Dantas
Barreto, e o de São Paulo, o advogado Marrey Júnior, membro da turma dos
"pedê do Po" que tanto o fustigavam nas páginàs do Diário Nacional.
O prestígio de que Chateaubriand desfrutava junto ao alto comando alian-
cista não era apenas um reconhecimento aos serviços prestados por seus jor-
nais e por Cruzeiro à causa da Aliança Liberal. Ele era efetivamente conside-
rado um dos membros do primeiro e mais fechado círculo da conspiração,
privilégio que muitas vezes torturava sua alma. Conviver com segredos e
não publicá-los no jornal era a negação absoluta daquilo que ele mais se or-
gulhava de ser: um repórter. Se tivesse conhecimento de que um emprega-
do seu agia como ele se via obrigado a agir, não pensaria duas vezes para bo-
tar o sujeito no olho da rua. Muitas vezes ele não resistia à tentação, e sua
metade jornalista falava mais alto que o Chateaubriand político.
Em agosto tinha sido assim. Semanas depois do chamado Pacto do Ho-
tel Glória, quando Vargas e Antônio Carlos chegaram a um acordo sobre a
candidatura do governador gaúcho, os senadores e deputados que se opu-
nham à candidatura Júlio Prestes se reuniram a fim de escolher uma comis-
são executiva para o movimento e deliberar sobre como a cisão seria torna-
da pública. Decidiu-se que o deputado João Neves da Fontoura, em nome de
todos, faria um pronunciamento na Câmara Federal. Famoso pela oratória
brilhante, João Neves nunca escrevia um discurso, falando sempre de impro-
viso. A gravidade daquela comunicação, no entanto, o obrigava a escolher,
medir, pesar e escrever previamente cada palavra a ser usada na tribuna. Ele
terminava de redigir à mão o discurso, sublinhando em vermelho as expres-
sões mais contundentes, quando Chateaubriand apareceu no seu quarto do
Hotel Glória, no Rio. Neves pediu que o jornalista desse uma olhada final
nos três últimos e mais fortes parágrafos do discurso. Sabendo que tinha um
furo nacional na mão, Chateaubriand decorou, uma por uma, cada palavra
dos três parágrafos. No dia seguinte, quando João Neves encerrava solene-
mente o discurso-bomba, o Diário de S. Paulo já circulava desde cedo com a
notícia que reproduzia, com rigorosa e surpreendente precisão, cada vírgu-
la e cada ponto de exclamação do final da fala do deputado gaúcho:
Direi, finalmente, senhor presidente, que, com as âncoras levantadas antes de
cortarmos as amarras que ainda nos prendem à paz política, na hora em que de-
mandamos o mar alto e revolto no qual as tempestades serão a colheita dos ven-
tos semeados, a tripulação exclama pela última vez: a bandeira que vamos içar
é flâmula de paz e não de guerra!
Marchamos para buscar nas últimas ramificações da vontade pública os im-
perativos da nação! Vencidos num pleito liso, reconheceremos com prazer a
nossa derrota; mas, vencedores, ninguém nos arrebatará o prêmio de tamanhos
sacrifícios, ninguém conseguirá esbulhar o país na sua escolha! Somos a maio-
ria hoje; seremos, talvez, a unanimidade amanhã.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
De qualquer forma, mesmo nos momentos inquietos da batalha cívica, não
nos esqueçamos, brasileiros, de que afinal somos todos irmãos!
O furo valeu-lhe o apelido de "Boca Rota", o boquirroto com quem se
deveria tomar mais cuidado, mas a repercussão e o impacto que o discurso
causou seriam maiores que a gravidade da inconfidência, afinal perdoada
pelos aliancistas. O que havia de importante era a advertência explicitada
por Neves em nome da Aliança Liberal: se houvesse fraude nas eleições, o
presidente e seu candidato podiam se preparar para a guerra. E guerra, pelo
menos para Chateaubriand, não era uma figura de retórica - ele achava que
õ movimento ia terminar em revolução. Além dele, Osvaldo Aranha, Virgí-
lio de Melo Franco e João Neves tinham as mesmas preocupações. Enquan-
to estes começavam a buscar contatos com os "tenentes" de 1922 e de 1924
que estivessem dispostos a se preparar para uma eventual resistência arma-
da, Chateaubriand não tinha mais dúvidas de que a crise desaguaria em
guerra civil. E para isso era preciso ter tropas regulares à mão. Sem consul-
tar ou pedir autorização a ninguém, como era do seu feitio, viajou outra vez
para Belo Horizonte para uma nova conversa reservada com o governador
Antônio Carlos no Palácio da Liberdade. Entrou no gabinete e foi direto ao
assunto:
- Devemos cuidar de nos organizar para a guerra civil, que cada dia
parece mais inevitável.
- E que medida você acha que devemos tomar? - indagou o governa-
dor mineiro.
- Testar a Força Pública mineira. Sentir o que ela vale e como deve ser
melhorada, se for necessária para emprego posterior. A primeira providên-
cia a tomar é conversarmos secretamente com o coronel Bertoldo Klinger,
um brilhantíssimo soldado, e, se ele aceitar, nomeá-lo comandante ad hoc da
polícia militar de Minas. Ele se encarregaria de deixar a tropa em estado de
semiprontidão, para qualquer eventualidade.
Klinger era um militar gaúcho que, embora acusado de ter simpatias pe-
los rebeldes de 1924, em São Paulo, acabaria sendo destacado para enfrentar,
sem sucesso, a Coluna Prestes no interior do Mato Grosso. Suas relações com
o jornalista vinham do período em que substituiu o general Sezefredo dos
Passos como titular da coluna de assuntos militares de O Jornal, que assina-
va como "Um observador militar " ou como "Comandante Nobre de Gus-
mão ". Entusiasmado, Chateaubriand parecia torcer para que a campanha
eleitoral terminasse em sangue:
- A operação tem que ser simultânea: quando o coronel Klinger arran-
car de Minas à frente das tropas da Força Pública, Vargas estará subindo de
Porto Alegre. Podemos tentar conseguir o apoio de Juarez Távora no Norte.
Mas mesmo sem os nortistas, mineiros e gaúchos marcharemos juntos con-
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FERNANDO MORAIS
tra o Distrito Federal. O governador pode se preparar, pois essa será a nos-
sa única alternativa.
Antônio Carlos concordou com as preocupações de Chateaubriand e
autorizou-o a intermediar um encontro secreto entre Klinger e dois dirigen-
tes da Aliança Liberal: Afrânio de Melo Franco e Osvaldo Aranha.
- Se é para ser secreto, governador, o melhor é marcarmos esse encon-
tro para o lugar menos suspeito do Brasil para uma conspiração militar: o es-
critório de um agiota amigo meu, o conde Modesto Leal.
Antônio Carlos achou a sugestão absurda e sugeriu que o contato fosse
feito no escritório de Afrânio na rua Buenos Aires, no centro do Rio. Os pla-
nos militares de Chateaubriand, entretanto, iriam tropeçar em enormes difi-
culdades. A começar do próprio Klinger, que ouviu pacientemente o convite
do jornalista e dos dois chefes da Aliança, e dias depois respondeu por meio
de carta que pediu que Chateaubriand entregasse a Aranha e Melo Franco.
Ele se recusava a participar da trama. Além de dizer que a milícia mineira
"não precisava de ninguém de fora" para treiná-la, Klinger desconfiava estar
sendo arrastado não para a preparação de uma eventual guerra civil, mas
para ajudar o grupo de aliancistas a organizar um golpe militar, independen-
temente e talvez até mesmo antes da realização das eleições de março de
1930. Bem ou mal, Bertoldo Klinger poderia ser substituído por outro militar,
mas um problema maior sepultaria no nascedouro a aventura planejada por
Chateaubriand. Antônio Carlos se deu conta de que não fazia sentido levar
adiante o plano sem a concordância expressa dos dois líderes máximos da
Aliança, que eram o candidato a presidente e seu vice. Ele próprio falaria
com Getúlio, mas antes pediu a Chateaubriand para sondar João Pessoa.
O governador da Paraíba foi convidado para um chá na Vila Norman-
da. Chateaubriand transmitiu-lhe sua convicção de que a campanha liberal
iria "terminar em um desfiladeiro subversivo":
- Vamos ganhar as eleições, mas essa gente vai nos passar a perna e
nos vencerá no bico de pena, na fraude, no voto roubado. Nós dois somos
paraibanos, somos umbuzeirenses e sabemos como se responde a isso: a
bala.
Segundo palavras do próprio dono da casa, João Pessoa "deu um pulo
de gato do sofá em que se encontrava" ao ouvir falar em subversão, tiros,
guerra civil. Com os olhos arregalados, rejeitou de pronto a proposta de mi-
litarização do movimento defendida por Chateaubriand:
- Prefiro ver o senhor Washington Luís ou o senhor Júlio Prestes pas-
sarem vinte anos no Palácio do Catete a jogar o povo numa guerra entre
irmãos.
Chateaubriand tentava interrompê-lo, mas não conseguia. João Pessoa
estava irredutível:
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
- O senhor Washington Luís está nos humilhando a todos, humilhou-
me pessoalmente ao degolar a bancada paraibana na Câmara Federal, mas
entre isto e pegar em armas vai uma distância enorme. Esse Getúlio Vargas
é quem deve estar enfiando essas idéias na cabeça de vocês. Outro dia, ao fi-
nal de uma reunião, espantou-se ao saber que eu não ando armado. Não
contem comigo, repito. Entrei nessa briga para derrotá-los no voto, não na
bala. E, se essa proposta progredir, eu abandono a candidatura.
Fracassada a tentativa militar, Chateaubriand transformou o espaço que
ocupava na primeira página de seus seis jornais em um paiol de provocação
a Washington Luís e a seu delfim, o governador Júlio Prestes. Aceitou de
bom grado que a cobertura política fosse orientada a distância pelo jurista
mineiro Francisco Campos, o "Chico Ciência ", eminência parda da campa-
nha aliancista, mas em sua coluna assinada escrevia o que lhe dava na telha.
Fazia artigo atrás de artigo em defesa da anistia a Prestes, que, como muitos
de seus camaradas, ainda estava exilado na Argentina. Qualquer deslize do
governo era pretexto para uma semana de acusações e críticas ao Catete.
Para bater em Washington Luís, até os comunistas, que Chateaubriand
via com temor e desconfiança, tornavam-se aliados. No dia em que a polícia
do Distrito Federal dissolveu a porretadas uma concentração organizada
pelo clandestino Partido Comunista a favor da Aliança Liberal no centro do
Rio, o presidente teve de engolir o editorial intitulado "O sertão da Cinelân-
dia". Nele Chateaubriand dizia ironicamente que não era "digno de um cabo
de guerra da valentia do presidente da República" o que a polícia tinha fei-
to na avenida Rio Branco: "Garantidos pela Constituição, que assegura a to-
dos os cidadãos o direito de pacificamente se reunirem sem armas, algumas
centenas de operários, homens e mulheres, congregaram-se na praça públi-
ca. O pau roncou com uma valentia que tanto teve de cobarde como de efi-
ciente. Foi assim que o absolutismo russo abriu as portas do império dos
tzares a Lenini" . Para Chateaubriand, no entanto, mais perigosa que o comu-
nismo era a "repressão irracional" realizada por ordens do presidente: "Pela
Constituição, os comunistas estão garantidos na propaganda pacífica dos
seus ideais. Todavia eles acham-se tolhidos pelo governo do exercício desse
direito. O comunismo no Rio de Janeiro é uma aspiração de meia dúzia de
iluminados. Não duvido da sinceridade desses líderes. Mas a perseguição
cria o martírio, e o martírio cria a dedicação, o fanatismo, a
lenda ".
Com o desenrolar da campanha aliancista, os artigos davam a impres-
são de terem sido escritos conforme o público que se quisesse atingir. Para
indispor Washington Luís com os militares, Chateaubriand passava dias
ampliando e repercutindo, em sua coluna, pequenos episódios que, a rigor,
não mereceriam mais que uma pequena nota política. Quando a polícia de
São Paulo prendeu para um interrogatório o tenente Djalma Dutra, ex-ofi-
cial da Coluna, por exemplo, seguidos artigos denunciaram o governo por
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FERNANDO MORAIS
tê-lo metido "num xadrez imundo e tirado suas vestes para que, inteiramen-
te nu, ele ficasse exposto à humilhação diante de outros presos, gatunos, de-
sordeiros e ébrios em cuja companhia se achava trancafiado". Aonde Chateau-
briand queria chegar? Moral da história: "A túnica de um oficial simboliza,
por assim dizer, a imagem da pátria. A afronta que a macula fere a própria
honra nacional". Uma pequena notícia (publicada por seus próprios jornais)
de que o também tenente prestista Siqueira Campos, "transformado em co-
ronel revolucionário", teria entrado na cidade mineira de Araguari coman-
dando mil homens da Força Pública mineira, a fim de invadir São Paulo, era
atribuída por Chateaubriand "ao ridículo sr. Washington Luís, que está
inundando o país de boatos revolucionários ". Nem seu amigo e ex-colabora-
dor em O Jornal, o general Sezefredo dos Passos, agora ministro da Guerra,
escapava do cutelo: "O general Sezefredo está deslumbrado com o presiden-
te só porque este nomeou-o ministro da Guerra. Quem nunca comeu mela-
do... O ministro não consegue ver a dignidade do Exército nem a honra do
Brasil; só enxerga o ventre faminto de escândalos da política pessoal do ab-
solutismo sem entranhas do sr. Washington Luís ".
Quando os agricultores de São Paulo reclamavam da situação econômi-
ca do país, com dois ou três telefonemas Chateaubriand arranjava munição
para infernizar o candidato oficial: "O pintinho Júlio Prestes, que o chante-
cler do Catete aquece sob suas asas (pois aquele não tem personalidade nem
vontade), abandonou São Paulo como um rebanho faminto, entregue à sua
própria sorte. Os fazendeiros erram pelas ruas da capital sem saber o que fa-
çam, porque ninguém pode voltar às suas propriedades com as mãos va-
zias, sem um tostão para pagar os colonos. São os desesperados do café, que
estão sendo tratados como mendigos pelo governo atual, que os arruinou".
De quem é a culpa pela situação franciscana dos cafeicultores paulistas? De
Júlio Prestes e de seu chefe, o presidente da República, "esse coveiro que en-
controu a libra a trinta contos e deixa-a a cinqüenta contos, quatro anos de-
pois". Se o afago tinha de ser dirigido não às "classes conservadoras ", mas à
patuléia, Chateaubriand assumia publicamente a co-autoria, junto com An-
tônio Carlos, João Neves e Lindolfo Collor, do capítulo da plataforma da Ali-
ança Liberal que propunha, pela primeira vez no Brasil, a criação de uma le-
gislação trabalhista - a "pedra angular do manifesto aliancista".
Os diretores e editores de suas publicações recebiam, simultaneamente,
ordens para que toda a rede fosse colocada à disposição da campanha elei-
toral aliancista. Já circulando com o O inicial, O Cruzeiro inundava páginas e
páginas com coberturas fotográficas de rigorosamente tudo o que fizesse a
dobradinha Getúlio Vargas-João Pessoa: para cada página dedicada à du-
pla Júlio Prestes-Vital Soares, Getúlio e João Pessoa recebiam sete, oito pá-
ginas repletas de fotografias. Até mesmo um desinteressante chá oferecido
por d. Darcy Vargas, mulher de Getúlio, às damas da sociedade gaúcha
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
recebia farta cobertura da revista. Depois de uma edição autoproclamada
como "histórica", quase inteiramente dedicada à publicação das fotos de
centenas de jovens de todo o país que disputariam as eliminatórias do con-
curso de Miss Brasil, O Cruzeiro viu sua tiragem subir para perto de 80 mil
exemplares semanais. Só havia uma forma de os partidários da candidatura
oficial aparecerem naquele que era o grande fenômeno editorial do país: pa-
gar, na boca do caixa da revista, anúncios promovendo os feitos do governa-
dor paulista. Como pagavam, os perrepistas eram tratados com a mesma
atenção dada a qualquer anunciante: algumas das ilustrações utilizadas pela
dupla Júlio Prestes-Vital Soares eram feitas e assinadas pelo melhor artista
da casa, o professor Carlos Chambelland.
O comportamento dos jornais diários não era diferente. Enquanto a ca-
ravana aliancista era invariavelmente recebida com "demonstrações extraor-
dinárias de regozijo público ", os comícios e concentrações organizados pe-
los partidários de Júlio Prestes redundavam sempre em "ruidoso fracasso".
Em São Paulo, a infração de uma mera portaria trabalhista municipal pelos
jornais governistas A Gazeta e Folha da Manhã (que ignoraram a decisão da
prefeitura de proibir a circulação de vespertinos aos domingos) era suficien-
te para que Oswaldo Chateaubriand abrisse uma campanha contra "as gaze-
tas sabidamente ligadas ao Catete que oferecem suas colunas à causa do sr.
Júlio Prestes". Um inesperado e hilariante reforço à Aliança Liberal seria
dado pelo humorista Aparício Torelly, o "Aporelly " - que depois de 1930
se autoconcederia o título de "Barão de Itararé". Dono desde 1926 do satíri-
co A Manha (uma brincadeira com o título do diário carioca A Manhã), Apo-
relly fechou seu jornal em 1929 e passou a publicá-lo todas as semanas como
encarte do Diário da Noite do Rio - que no final daquele ano já vendia mais
de 120 mil exemplares diários. Sob o lema "Quem não chora não mama", A
Manha atacava Júlio Prestes com a mais ferina das armas, o humor: "Para se
ter uma vaga idéia do fervor cívico que levantou por toda a parte o nome do
sr. Júlio Coluna Prestes, basta dizer que até os loucos do Juqueri não escapa-
ram à qualificação. Segundo fontes fidedignas, podemos asseverar que os
dementes foram fotografados em grupos, para fins eleitorais, e enviados ao
Comitê Sílvio de Campos pró-Júlio Prestes ".
As doses de humor da campanha, no entanto, ficariam restritas às in-
continências de Aporelly. No mês de fevereiro, a menos de trinta dias do
pleito, dois graves acontecimentos elevariam a temperatura política à incan-
descência. No dia 6 uma caravana oficial chefiada por Fernando Melo Viana
(vice-presidente da República e candidato a governador de Minas) fazia co-
mícios em Montes Claros, no norte mineiro. O grupo fazia parte da Concen-
tração Conservadora, nome sob o qual se organizaram, em Minas Gerais, os
partidários da candidatura Júlio Prestes. Ao passar em frente à casa de Ti-
burtina Alves, mulher do deputado estadual João Alves e fanática militante
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
da Aliança Liberal, a caravana foi atacada a tiros - supostamente por jagun-
ços a mando da mulher do deputado. Em meio ao tiroteio, a mirrada Tibur-
tina aproximou-se do vice-presidente da República e aplicou-lhe sucessivas
sapatadas",ferindo-o com violência no rosto e na cabeça. Para que a comiti-
va pudesse fugir - levando consigo quatro mortos e catorze feridos, entre
estes Melo Viana -, o trem precisou retornar de marcha a ré até Bocaiúva, a
cidade mais próxima. Pretendendo tirar proveito político do atentado e sob
a proteção de seus próprios capangas, Manuel Carvalho de Brito, presiden-
te da Concentração Conservadora, retornou no mesmo dia a Montes Claros,
tomou de assalto o telégrafo da cidade e passou a enviar mensagens ao go-
verno federal e aos jornais que o apoiavam, divulgando nacionalmente o in-
cidente. A situação acalmou-se no dia seguinte, com a chegada de forças fe-
derais à cidade. O episódio tinha tudo para morrer aí, mas quando a notícia
chegou a O Jornal, no Rio, Chateaubriand urrava pela redação, sacudindo o
telegrama no ar, como uma bandeira:
- Temos o que precisávamos! Dona Tiburtina é a Joana d'Arc da
Aliança Liberal! Vamos transformar essa mulher na Anita Garibaldi do vale
do São Francisco! Quero abrir fotos dela em todos os jornais. Quero uma fo-
tografia colorida de dona Tiburtina na capa de O Cruzeiro, de bacamarte na
mão !
Por maiores que fossem os desejos do jornalista, Tiburtina Alves era
apenas uma enfermeira gorducha que um dia, por mera casualidade, dera
uma surra de sapato no vice-presidente da República. A heroína que Cha-
teaubriand queria fabricar não existia. O herói do mês iria aparecer dali a al-
guns dias, milhares de quilômetros ao norte de Montes Claros, no interior da
Paraíba, e para desespero dos aliancistas estava do outro lado, aliado a Jú-
lio Prestes. Inconformado com a política anticoronelista e com os altos im-
postos cobrados pelo governador João Pessoa, o fazendeiro e "coronel" José
Pereira, da cidade de Princesa, a quatrocentos quilômetros da capital parai-
bana, armou 2 mil jagunços, assumiu o controle da cidade e decretou a ins-
talação da República de Princesa. A encrenca armada por José Pereira ainda
iria durar meses, mas o impacto de sua eclosão acabou minimizado por um
importante mas previsível fato político ocorrido no dia seguinte ao início de
sua aventura: a eleição para presidente da República.
A primeira edição do Diário da Noite de São Paulo do dia 1º foi rodada
logo depois do almoço e trazia uma manchete anódina, que não dizia abso-
lutamente nada: "A memorável batalha eleitoral de hoje". Quando a segun-
da edição foi impressa, no meio da tarde, as urnas ainda não tinham sido fe-
chadas. Mas sua manchete não deixava dúvidas de que os aliancistas, além
de admitir que tinham perdido as eleições, estavam se preparando para o
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FERNANDO MORAIS
confronto: "A fraude campeou livremente e graves violências perturbam, no
interior do estado, a ordem do pleito". Na terceira edição, noturna, uma
única palavra, em enormes tipos de caixa, repisava a denúncia da tarde:
"Fraude!".
Com pequenas diferenças, foi assim em todos os jornais de Chateau-
briand. Embora roubar no resultado de eleições fosse parte integrante da
vida política brasileira - algo tão normal naquele tempo quanto a própria
existência de eleições -, era a primeira vez que a fraude eleitoral virava
manchete de jornais, e era tratada como se fosse um crime. E, se efetivamen-
te foi por meio de fraude que Júlio Prestes venceu (o paulista recebeu 1,1 mi-
lhão de votos, contra 737 mil dados a Vargas), ela não parece ter acontecido
de um lado só. Só o roubo explicaria que no Rio Grande do Sul, por exem-
plo, Getúlio tivesse quase 300 mil votos, contra inacreditáveis 982 dados a
Júlio Prestes. O operário Minervino de Oliveira, candidato a presidente pelo
Pcs, recebeu uma votação insignificante. No primeiro editorial escrito após o
fechamento das urnas, Chateaubriand afirmou que como resultado da "pun-
ga imposta ao país" o que se tinha não era uma eleição, mas uma reeleição,
"tão profundos são os vínculos de subordinação da pessoa do sr. Júlio Pres-
tes à do atual chefe do Executivo ". Para que não pairassem dúvidas a respei-
to do que propunha, escreveu que o PRP tinha batido "os seus próprios recor-
des de fraude eleitoral" - deixando claro que o resultado era inaceitável: "A
Aliança Liberal praticaria um crime contra a nação brasileira se depusesse as
armas neste instante. Porque se não resistirmos agora, daqui a três anos nem
os espectros dos cemitérios quererão formar com os políticos brasileiros para
defender o povo contra o polvo do poder ilegítimo ". E encerrava declaran-
do guerra ao governo federal: "À Aliança toca um dever: impor o seu candi-
dato, com a mesma decisão que o presidente da República quer nos impor o
candidato de seus interesses domésticos". O resultado oficial da eleição ain-
da nem havia sido proclamado e a Revolução de 30 já estava começando.
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13
A mais célebre proeza de Amâncio dos Santos tinha sido grudar com
um prego, no tronco de uma árvore, a língua de um rapaz que andara falan-
do mal da honra de sua irmã. A façanha acontecera anos antes, quando ele
ainda morava no interior da Paraíba, mas essa e outras lendas que corriam
sobre sua ferocidade deslumbravam Chateaubriand - e foram decisivas
para que o jornalista o contratasse como guarda-costas. Além da alma, tam-
bém os braços de Amâncio pareciam duros como o aço. Para demonstrá-lo,
ele agachava-se, estendia-os como duas cadeiras e mandava que Fernandi-
nho se sentasse num deles e Gigil no outro. Para espanto geral, ficava de pé
e esticava os braços, como dois grossos caibros de pau, com cada menino
sentado de um lado. Se isso não fosse currículo suficiente, ele ainda tinha a
oferecer a pontaria certeira. "Com um 38 na mão seu Amâncio é um Átila,
não conheço ninguém igual", gabava-se Chateaubriand às gargalhadas
,
"mas sua especialidade são as surras de chicote."
Os serviços do ex-guarda do serviço de segurança da Estrada de Ferro
Central do Brasil tornaram-se necessários depois que Chateaubriand come-
çou a receber telefonemas anônimos com ameaças de morte. Por via das dú-
vidas, além da tranqüilizadora presença de Amâncio (que passou a andar 24
horas por dia grudado no patrão, silencioso e de chapéu desabado sobre os
olhos), o jornalista decidiu levar sempre à cintura um velho revólver calibre
38. Mas nem o revólver nem Amâncio impediriam a primeira reação aos ar-
tigos diários pregando a resistência da Aliança Liberal contra o resultado das
eleições. Dez dias depois da derrota de Vargas para Júlio Prestes, Chateau-
briand deixou a redação de O Jornal por volta da meia-noite e mandou o mo-
torista Benedito levá-lo para casa no enorme Cadillac preto que comprara
meses antes. Tanto a mulher como o filho dormiam no andar superior da
Vila Normanda. A única pessoa acordada na casa era o mordomo Henri Gal-
lon, a quem Chateaubriand pediu que lhe servisse uma caneca de caldo de
feijão e outra ao capanga, este sempre a um metro de distância. Vestiu o ca-
misolão, meteu a touca na cabeça e deitou-se na cama do quarto que ocupa-
va sempre, no andar térreo. Amâncio cochilava em um colchão atravessado
no corredor, fechando a entrada da porta do quarto - qualquer pessoa que
tentasse invadir o dormitório teria de passar sobre seu corpo. As quatro e
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FERNANDO MORAIS
meia da manhã, Chateaubriand foi acordado por Gallon: Afrânio de Melo
Franco acabara de telefonar comunicando que tinham colocado fogo no pré-
dio em construção da rua Treze de Maio. Correram todos para lá e viram que
os bombeiros tinham sido eficientes: o fogo não chegara a comprometer ne-
nhuma parte vital da obra, apenas queimara andaimes e destruíra paredes
recém-levantadas. O prejuízo maior seria o atraso de pelo menos seis meses
na inauguração do prédio, prevista inicialmente para o mês de maio.
As primeiras investigações da polícia tentaram atribuir a responsabili-
dade pelo incêndio ao descuido de algum operário, mas no artigo escrito na
manhã seguinte Chateaubriand insistia em que o fogo era obra de "mãos cri-
minosas ". Se o objetivo dos autores do atentado era intimidá-lo, o tiro saíra
pela culatra. "Queiram ou não queiram os incendiários autores da traição
que sofremos esta madrugada, a têmpera dos homens que fazem os nossos
jornais é de bronze ", escreveu, para terminar desafiador: "A adversidade
nos enrijece os músculos, nos adestra o pulso. Viver perigosamente, desa-
fiando cada dia a inveja dos fracos - só assim vale a pena subjugar a vida."
E nas semanas que se seguiram os artigos cresceram em agressividade. O ex-
presidente e agora senador Epitácio Pessoa concedeu uma explosiva entre-
vista ao Jornal do Commercio reforçando as denúncias de corrupção e fazendo
duras críticas a Washington Luís. Pessoa citava, como exemplo do escândalo
que tinha sido a apuração, o resultado das urnas em Osasco, nas imediações
da capital paulista: embora houvesse ali apenas 3 mil eleitores registrados,
Júlio Prestes recebera nada menos que 6 mil votos. Apesar de enciumado por
ter sido "furado" por uma entrevista de um amigo dada a um jornal concor-
rente, Chateaubriand não deixou de repercutir o fato em suas colunas - e
em um artigo de apenas 28 linhas destilou truculência ainda maior que a do
entrevistado:
[...] O sr. Epitácio Pessoa foi de uma infinita piedade. Piedade desse infeliz, des-
se desgraçado Washington Luís, que o senador paraibano reduziu a escombros,
a frangalhos, a farrapos, a cacos, a pó de traque e que, depois de roto, espatifa-
do, pisado, ralado, moído, esfarelado, o sr. Epitácio Pessoa sacode no meio da
rua e entrega à irrisão nacional como uma carcaça de primeiro magistrado a que
nenhum brasileiro, nenhum cidadão deve a mais pequenina sombra de estima,
quanto mais de respeito. O que resta do presidente da República é uma miserá-
vel massa de poeira.
Sempre insistindo na tese de que a vitória de Júlio Prestes nas urnas ti-
nha sido vergonhosamente roubada por ordem e sob a proteção de Washing-
ton Luís ("Só em São Paulo", afirmava, "falsificaram-se por ordem do gover-
no mais de 50 mil votos para o candidato do presidente "), Chateaubriand
tentava estimular os setores mais agressivos da Aliança Liberal a não aceitar
os resultados pacificamente. Para elevar ainda mais a temperatura política, o
imbróglio de José Pereira e seus jagunços prosseguia em Princesa, sem sinais
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visíveis de que o governo federal conseguisse (ou quisesse, já que os revolto-
sos se levantavam contra João Pessoa) pôr fim à revolta. Para responder às
acusações de que estava protegendo o levante do "coronel", Washington
Luís pôs em prática uma esperta jogada política: pediu autorização ao Con-
gresso para realizar intervenção federal não apenas na cidade sob controle de
Pereira, mas em todo o estado da Paraíba - era a forma legal de ter sob seu
punho um dos tripés da oposição ao governo federal, João Pessoa. Como o
Congresso negou a autorização pedida, o presidente reforçou os efetivos fe-
derais no estado e postou um navio de guerra no litoral paraibano.
Chateaubriand acusou Washington Luís, com as medidas que tomara,
de realizar uma intervenção branca na Paraíba, o que violava todas as leis do
país. "Os destacamentos federais foram dispostos", denunciou, "de forma a
dar proteção ostensiva, descarada e cínica aos cangaceiros de José Pereira."
O mesmo Exército "que quarenta anos atrás se recusara a perseguir escra-
vos, hoje foi transformado pela mais desbragada politicagem", provocava o
jornalista, "em guarda-costas dos Lampiões do Nordeste, da camorra de
Princesa". Para indignação de Chateaubriand, Antônio Carlos reagiu decla-
rando que aguardava "o desdobramento da atitude do presidente ", e Getú-
lio, ainda mais moderado, manifestou esperanças de que "o glorioso Exérci-
to não praticasse excessos". Chateaubriand investiu contra seus próprios
aliados, escrevendo que a nação esperava de ambos que apontassem o pre-
sidente como réu "por esse inominável delito", e não declarações "inocentes
e cândidas " como as que tinham feito: "Já que o presidente intervém nos
negócios internos da Paraíba para proteger o cangaço, o que se espera de ho-
mens como Vargas e Antônio Carlos é que peguem pela gola do casaco o au-
tor desse ato nefando e o denunciem ao Congresso por crime de responsabi-
lidade ". Ou seja, ele queria sangue.
Queria e sabia que em breve ia correr sangue. Sacramentado oficialmen-
te o resultado das urnas, no final de março gaúchos, mineiros e paraibanos
começaram a preparar a revolução. Antigos tenentes de 1922 e ex-oficiais da
Coluna Prestes seriam procurados por Osvaldo Aranha, João Neves e Afrâ-
nio de Melo Franco, e a conspiração caminhava secretamente, com tenentes
e prestistas à frente: a ação no Norte ficaria sob a responsabilidade de Juarez
Távora, no Sul sob o comando de João Alberto e em São Paulo os homens se-
riam Siqueira Campos e Djalma Dutra - todos egressos da Coluna. Getúlio,
Antônio Carlos e João Pessoa se cotizaram e conseguiram levantar 16 mil
contos (uma fortuna equivalente, sessenta anos depois, a aproximadamente
10 milhões de dólares), dinheiro usado por Aranha para mandar comprar ar-
mas clandestinamente na Tchecoslováquia. Entre os conjurados havia uma
unanimidade: o chefe do estado-maior revolucionário tinha de ser o capitão
Luís Carlos Prestes, exilado em Buenos Aires.
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FERNANDO MORAIS
Para enorme decepção de tenentes e aliancistas, porém, o "Cavaleiro da
Esperança" já tinha escolhido outro caminho. Prestes também queria uma
revolução - mas diferente da que estava sendo tramada por Vargas e cujos
objetivos, para ele, tinham sido fielmente traduzidos pela famosa frase do
governador Antônio Carlos: "Façamos a revolução, antes que o povo a faça".
Quando apareceu em sua casa em Buenos Aires o tenente Siqueira Campos,
um dos primeiros a sondá-lo sobre a conspiração que estava em curso no
Brasil, Prestes fez uma pergunta desconcertante a seu velho companheiro de
Coluna:
- Mas, Siqueira, você vai participar de uma revolução junto com Artur
Bernardes, Epitácio Pessoa, Borges de Medeiros, com essa cambada toda?
- Esses são os primeiros que eu fuzilo.
Prestes riu do que considerou uma ingenuidade romântica:
- Imagine! Eles o fuzilam primeiro, porque a força está com eles, não
com você.
Apesar das objeções que fazia à proposta aliancista, Prestes chegou a ter
dois encontros clandestinos com Getúlio, em Porto Alegre, para conversar
sobre o assunto. Mas foi de Osvaldo Aranha, que o visitou na capital argen-
tina, que ouviu o convite formal para assumir o comando militar da revolu-
ção. Mais do que isso, Aranha depositou na conta bancária dele em Buenos
Aires oitocentos contos de réis - exatos 86 mil dólares da época, um dinhei-
rão -, recursos destinados a cobrir as primeiras despesas militares.
Na verdade Prestes já vinha sendo cortejado fazia muito tempo por
agentes da Internacional Comunista, com sede em Moscou, para aderir for-
malmente ao marxismo. Em abril, finalmente, ele escreveu um caudaloso
manifesto de 150 linhas, em que expunha suas idéias sobre o Brasil, de uma
maneira geral, e particularmente sobre a revolução pregada em surdina pela
Aliança Liberal. Farto da divergência que cada dia mais o distanciava de
seus companheiros de luta - quase todos agora solidários com Vargas - e
preocupado em ser fiel a seus principais camaradas da Coluna, semanas de-
pois de escrever o documento ele convocou para uma reunião em Buenos
Aires aqueles em que mais confiava: Miguel Costa, João Alberto, Cordeiro
de Farias, Djalma Dutra e Siqueira Campos. Duro, Prestes disse que a deci-
são deles de apoiar Vargas o transformara em um "general sem soldados":
- A ruptura entre nós já é clara, mas eu quis ser leal a vocês até o fim.
Não publicaria nenhum documento no Brasil antes de dar conhecimento
dele a vocês.
Leu para eles, em seguida, o manifesto que, originalmente, pretendia
que fosse publicado no dia 5 de julho (aniversário das revoltas de 1922 e
1924), data que os acontecimentos políticos no Brasil se encarregariam de an-
tecipar. Todos tentaram demovê-lo da decisão, dizendo que afinal, depois de
tanta luta, tinha chegado a hora deles. "Tudo o que você diz nesse documen-
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to é verdade", disse um dos presentes, "mas isso é coisa de apóstolo, e ne-
nhum de nós nasceu para o apostolado." Prestes anunciou que nem adian-
tava mais conversar, porque a contagem regressiva havia começado: uma
cópia do documento já estava nas mãos do repórter Rafael Correa de Olivei-
ra, com autorização para publicá-lo em um dos jornais de Chateaubriand tão
logo ele desse conhecimento de sua íntegra àquele pequeno grupo que ago-
ra se reunia em Buenos Aires.
De novo a alma de repórter de Chateaubriand iria se sobrepor à sua me-
tade política. Embora o texto de Luís Carlos Prestes representasse o mais
duro golpe desferido contra a Aliança Liberal desde a derrota de 1º de mar-
ço, ele não teve dúvidas em autorizar sua publicação. Ninguém, nenhuma
revolução o convenceria a perder um furo daqueles. Por via das dúvidas, e
para evitar qualquer constrangimento, ele preferiu publicá-lo sem consultar
nenhum líder aliancista - só recomendou que os jornais ressalvassem que
o faziam apesar de discordar do seu conteúdo. No dia 29 de maio, metade
da primeira página dos dois Diário da Noite - tanto o do Rio como o de São
Paulo - era ocupada pelo documento, intitulado "O manifesto do chefe re-
volucionário ao povo brasileiro - O capitão Luís Carlos Prestes define a sua
atitude atual".
Nem seria necessário ler o documento até o final para conhecer seu sig-
nificado. Bastava ver quem eram seus destinatários, coisa que Prestes escla-
receu logo na abertura: aquelas linhas eram dirigidas "ao proletariado sofre-
dor das nossas cidades, aos trabalhadores oprimidos das fazendas e das
estâncias,à massa miserável do nosso sertão". A campanha que antecedera
as eleições de março nada mais era do que "a luta entre os interesses contrá-
rios de dúas correntes oligárquicas". Sovada do princípio ao fim, a Aliança
Liberal é acusada de silenciar após a perseguição política "de que foram ví-
timas as associações proletárias de todo o país". Até no Rio Grande, terra na-
tal e principal base política de Vargas, o mais ilustre de todos os aliancistas,
"em plena fase eleitoral foi iniciada a mais dura perseguição aos trabalhado-
res ". Prestes bate nos latifundiários, no "imperialismo anglo-americano", no
que se considerava a entrega das riquezas nacionais a grupos estrangeiros-
e deixa absolutamente claro que com os aliancistas de Vargas não tem con-
versa: "A revolução brasileira não pode ser feita com o programa anódino
da Aliança Liberal. Uma simples mudança de homens, um voto secreto, pro-
messas de liberdade eleitoral [...] nada resolvem". Apesar de ter ficado com
o dinheiro dos aliancistas, Prestes queria fazer não a revolução deles, mas
outra, que levasse a um governo "baseado nos conselhos de trabalhadores
da cidade e do campo, soldados e marinheiros". Em bom português, o que
Luís Carlos Prestes pregava era a revolução dos sovietes, como a que já ti-
nha dado certo do outro lado do mundo, em Moscou - para onde, aliás, ele
se mudaria meses depois, levando consigo a mãe e as quatro irmãs. A fór-
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FERNANDO MORAIS
mula encontrada por Chateaubriand para contrabalançar o estrago causado
pela publicação de um documento tão duro com a Aliança foi fazê-lo reper-
cutir negativamente. Além de escrever, ele próprio, vários artigos condenan-
do o conteúdo do manifesto ("um documento infeliz, em que o autor rompe
com tudo, com os companheiros e com os amigos "), mandou seus jornais ou-
virem, em todo o país, quem quer que tivesse algo a dizer contra Prestes, seu
manifesto e a exótica ideologia que ele acabara de desposar.
Se o rompimento público de Prestes representou um enorme transtorno
para a Aliança, uma tragédia passional ocorrida semanas depois iria revigo-
rar o movimento por todo o país, transformando-se no estopim de que os re-
volucionários tanto precisavam. Chateaubriand jantava com Antônio Carlos
em Belo Horizonte na noite de 26 de julho, um sábado, quando Austregési-
lo de Athayde ligou do Rio para comunicar-lhe a nova bomba: João Pessoa
fora assassinado com dois tiros horas antes em uma confeitaria de Recife. O
matador era João Dantas, um amigo de José Pereira.
Embora o assassino fosse ligado por laços familiares a inimigos de Pes-
soa, e apesar de sua amizade com o "coronel" de Princesa, ninguém tinha
dúvidas de que se tratava de um crime passional. Suspeitando que José Pe-
reira estivesse estocando armas clandestinamente na capital paraibana, a po-
lícia de joão Pessoa passou a varejar as casas de seus amigos. Ao invadir,
quatro dias antes do assassinato, o sobrado do jovem advogado João Dantas
- conhecido correligionário de José Pereira e inimigo declarado do gover-
nador -, os policiais encontraram material politicamente muito mais explo-
sivo do que balas e fuzis: pilhas de cartas de amor trocadas entre Dantas e
sua amante, a jovem e bela poetisa Anaíde Beiriz. Nelas estavam descritas,
com detalhadas minudências, as intimidades do casal em seus encontros
amorosos. Além das cartas, a polícia levou inúmeras fotografias dos dois
nus, em poses e situações eróticas. Ao noticiar a apreensão do material, o diá-
rio oficial da Paraíba, A União, anunciou que, embora o conteúdo das cartas
e fotografias fosse impublicável, tudo estava à disposição da população na
redação. Indignado com a invasão de sua casa e de sua intimidade, ao saber
que João Pessoa viajara a Recife, João Dantas não teve dúvidas: armou-se de
um revólver, invadiu a Confeitaria A Glória, onde o governador confrater-
nizava com amigos, e matou-o com dois tiros no peito.
Ao receber a notícia, Chateaubriand largou o prato pela metade e foi
para a redação do Estado de Minas, de onde coordenaria pessoalmente a co-
bertura do crime por seus veículos. Mesmo informado de todos os antece-
dentes do assassinato, ele pressentiu que a chama da revolução renasceria
daquele cadáver. Ligou para o Rio, orientou os editores sobre como tratar o
assunto, telegrafou para o Diário de Noticias de Porto Alegre e só então sen-
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tou-se à mesa de Dario de Almeida Magalhães para escrever seu artigo. Na
manhã seguinte, o Diário da Noite do Rio - o campeão de vendagens da pe-
quena rede, então com tiragem de quase 150 mil exemplares diários - es-
tampava a manchete escandalosa, em três linhas, que tinha sido ditada le-
tra por letra pelo dono na noite anterior, por telefone: "João PEssoa
ASSASSINADO! O criminoso: João Duarte Dantas. O responsável: o governo
federal".
Com pequenas diferenças de estilo, era esse o tom geral da cobertura
dos demais jornais. No artigo "Heroísmo e poltroneria", escrito em Belo Ho-
rizonte, Chateaubriand afirmava que "sem fibra para investir contra Minas
e o Rio Grande, o braço da poltroneria oficial abateu-se contra a Paraíba,
pensando em encontrar um adversário fraco e tímido, mas a bravura de João
Pessoapreparará uma surpresa terrível à covardia do sr. Washington Luís".
E, sem a menor cerimônia, acusava formalmente o governo federal pelo cri-
me: "João Pessoa foi abatido pelo braço de um sicário armado pelo governo
federal". Um telegrama interrompeu a impressão de O Cruzeiro em Buenos
Aires para que um redator embarcasse no vôo da Latécoère e enfiasse a no-
tícia do assassinato onde ela coubesse. Mudou-se a primeira página da revis-
ta, onde entrou um editorial condenando o crime, e no miolo ainda foi pos-
sível enxertar alguns parágrafos sobre "a consternação nacional provocada
pela tragédia" e uma profusão de fotos de João Pessoa ainda com vida, em
plena campanha de março.
Exatamente como Chateaubriand recomendava que se fizesse com as
metafóricas baleias que encalhavam em suas praias, a Aliança Liberal apro-
veitou até a última gota de sangue do cadáver de João Pessoa. Como não ti-
nha sentido encerrar o episódio com um modesto funeral provinciano, a pri-
meira decisão tomada foi a de que o corpo, embalsamado em Recife, seria
velado na Paraíba, transportado até o Rio (onde vivia a família do governa-
dor morto) para ser sepultado com todas as honras no cemitério São João Ba-
tista. Enquanto isso, o crime era manchete diária de todos os jornais de Cha-
teaubriand. O corpo ainda se encontrava em visitação pública na capital
paraibana - que na época tinha o mesmo nome do estado - quando circu-
lou, antecipada em alguns dias, a edição seguinte de O Cruzeiro. Em cinco
páginas encimadas apenas pelo título "Epílogo,de um drama político", sem
texto e com minúsculas legendas, a revista saiu com dez enormes fotogra-
fias de todos os ângulos do cadáver de João Pessoa ainda no necrotério de
Recife. Eram closes do peito furado pelas balas de Dantas, das mãos crispa-
das sobre o corpo, do cadáver na mesa de necropsia, coberto pela bandeira
nacional, do corpo já no caixão, cercado de flores. Na última fotografia, uma
multidão disputava "a honra de carregar o esquife '.
O corpo permaneceu dois dias embalsamado em Recife e, depois de de-
morado desfile pelas principais ruas da cidade, foi levado de trem para a Pa-
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FERNANDO MORAIS
raíba no dia 28. Na capital, para transpor as poucas centenas de metros que
separavam a estação de trem da matriz de Santo Antônio, onde o corpo se-
ria velado, a massa que carregava o caixão demorou quatro horas. Ali o ca-
dáver de João Pessoa permaneceu por mais dois dias. A previsão era de que,
na manhã do dia 31, seria embarcado de avião para o Rio e lá sepultado em
seguida. Foi quando alguém se deu conta de que o presidente eleito, Júlio
Prestes, estava para retornar ao Brasil, depois de longa turnê por Europa e
Estados Unidos. Por que poupá-lo do transtorno de ter de conviver, por um
dia que fosse, com o cadáver do homem de quem ele roubara a vitória nas
urnas? Se a volta estava prevista para acontecer entre os dias 4 e 5, por que
lhe dar de presente um desembarque depois do sepultamento de Pessoa?
Era preciso obrigá-lo a suportar, nem que fosse por 24 horas, aquele cadáver
; incômodo e insepulto. Não, o enterro só poderia acontecer depois que Júlio
Prestes pisasse em solo brasileiro. Portanto, nada de avião. O transporte do
corpo por navio seria mais solene - e mais demorado. Como escreveria no
Jornal do Brasil o jornalista Barbosa Lima Sobrinho, presidente da Associação
Brasileira de Imprensa da época, "nenhuma caravana política, de tantas que
percorreram o Brasil na campanha aliancista, pôde fazer pela causa o que esse
funeral vai conseguindo. João Pessoa vivo foi uma voz contra a Revolução,
mas João Pessoa morto foi o verdadeiro articulador do movimento revolu-
cionário ".
O vapor Rodrigues Alves, do Lloyd Brasileiro, atracou no porto de Cabe-
delo no dia 31 para receber o esquife de joão Pessoa e iniciar uma viagem de
sete dias até o Rio de Janeiro. Ainda faltavam três dias para chegar à capital
federal quando o Almirante Jaceguay (também do Lloyd e colocado à disposi-
ção de Júlio Prestes para sua viagem oficial ao exterior como presidente elei-
to) atracou no cais do Rio trazendo o ilustre passageiro e sua numerosa co-
mitiva. Na manhã seguinte, os seis jornais de ChateaubriaMd estampavam
um artigo curto, assinado pelo dono, mas de cortante crueldade. Intitulado
apenas "Júlio Prestes e João Pessoa", nele Chateaubriand estabelece uma
comparação entre os dois passageiros que naqueles dias desembarcavam no
Rio - tal qual haviam planejado os aliancistas:
O chefe do estado paraibano chega ao Rio exterminado pela política miserável
que o poder central estimula no Norte do Brasil desde que o sr. João Pessoa pra-
ticou o crime sem qualificativos de não aceitar a candidatura Júlio Prestes. Já o
outro passageiro, o sr. Júlio Prestes, regressa à capital da República depois de
uma excursão aos Estados Unidos e à Europa - onde, se não aliviou a sorte do
café, foi vitorioso no que diz respeito a jantares, almoços, piqueniques e outras
festas pantagruélicas.
O sr. Júlio Prestes chegou palmilhando as ruas da cidade com seus próprios
pés, mas chegou morto. E dentro da urna de madeira em que viaja o corpo de
João Pessoa palpita um grande coração. O governador da Paraíba chega ao Rio
vivo como nunca.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Estimulando deliberadamente um clima de comoção para esperar a che-
gada do corpo de João Pessoa, no dia seguinte Chateaubriand escreveria ou-
tro artigo, desta vez conclamando a população a acompanhar o corpo até o
cemitério. "Indigno, absolutamente indigno da cidadania brasileira ", ele ati-
çava, "será o homem válido que se deixar ficar em casa, no escritório ou na
repartição pública amanhã, por ocasião da chegada do corpo de João Pessoa
e da saída do esquife para o cemitério." Como um repórter comum, no dia 7
o jornalista resolveu sair no meio do povo que fora ao cais buscar o caixão.
Ao lado de estudantes e populares em prantos, ajoelhou-se com a multidão e
cantou o Hino Nacional. O que ele queria ali era recolher, em pessoa, as ima-
gens mais emocionantes para o artigo a ser escrito no fim do dia. Quem co-
nhecia o Chateaubriand cético, corrosivo e irônico não o identificava no cho-
roso texto publicado em primeira página por seus jornais, no dia seguinte:
Acabo de presenciar agora, tanto no cais como diante da catedral, cenas que me
deixaram os olhos rasos d'água e que me deram a certeza do que será capaz o
Brasil. Na praça fronteira à grande nave encontrei uma mulher do povo, que so-
luçava com uma criança de três anos pela mão. Perguntei-lhe de onde ela vinha
e o que fazia ali. Era do Engenho Novo. O movimento liberal a empolgara. Tra-
zia consigo um retrato, cortado de um jornal sujo, do bravo herói paraibano.
Desde as oito horas da manhã estava na cidade aquela humilde operária, empe-
nhada em que o filhinho contemplasse ao seu lado o rosto varonil do Presiden-
te-Soldado. E disse-me esta frase, sufocada em pranto: .
- Eu quero que ele se crie no exemplo deste homem!
Beijei-lhe as mãos toscas, soluçando também diante de tanta reserva admirá-
vel de espírito público. No cais Mauá deparei com dois pequenos colegiais que
choravam nervosamente. Um lia para o outro o esplêndido artigo do sr. Mace-
do Soares no Diário Carioca de hoje, e no olhar de ambos chamejava uma foguei-
ra de revolta e de indignação contra os covardes que mataram o extraordinário
Lidador.
Eu não poderia descer a esmiuçar todos os detalhes das cenas de puro enle-
vo cívico, de estupenda elevação patriótica, de surpreendente exaltação moral
que me devastaram os nervos, esta manhã, diante do esquife de João Pessoa. Ele
está ali, morto, na catedral, bem o vemos na hirta realidade que nos desola. Mas
seu coração palpita no mesmo ritmo heróico dessa massa imensa.
Chateaubriand e a Aliança Liberal tinham efetivamente conseguido
transformar o cadáver de João Pessoa em uma verdadeira "baleia encalhada
numa praia de famintos ". As últimas fatias daquele cetáceo político foram
devoradas em oito páginas na edição seguinte de O Cruzeiro - que, sob o tí-
tulo "O exaltador funeral do presidente da Paraíba", transformaram o enter-
ro da vítima de um crime passional em uma colossal apoteose política.
221
#
FERNANDO MORAIS
A alma de João Pessoa parecia afinal descansar em paz, mas Chateau-
briand soube por Osvaldo Aranha que a data da revolução tinha sido mar-
cada: o movimento iria eclodir simultaneamente no Rio Grande do Sul, na
Paraíba e em Minas Gerais no dia 26 de agosto, em homenagem ao trigési-
mo dia da morte do governador da Paraíba. Agosto chegou ao fim, porém,
e setembro começou sem que um tiro tivesse sido disparado. Aquela já era a
segunda vez que algum líder aliancista revelava a Chateaubriand uma nova
data para a revolução e nada acontecia. No final de agosto, o escritor baiano
Afrânio Peixoto comentou com Humberto de Campos que semanas antes
Chateaubriand lhe dera uma carona e, dentro do carro, fizera-lhe uma con-
fidência:
- Não diga nada a ninguém, mas dentro de quinze dias a revolução es-
tará vitoriosa no Brasil inteiro!
* Peixoto espantou-se por ter sido escolhido para depositário de um se-
gredo como aquele. Chateaubriand continuou:
- Mas não se assuste, porque você está fora de perigo. Na Bahia só vai
escapar você.
- Mas e os outros, serão fuzilados?
- Se não reagirem, serão poupados. Isto é, serão exilados em Clevelân-
dia ou Cucui, na selva amazônica.
O escritor não parecia levar aquela conversa a sério:
222
#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
- Mas isso é o fim! Eu tinha planos de ser deportado para Mato Gros-
so. Estou escrevendo um romance ambientado em Mato Grosso e minha mu-
lher não me deixa viajar para lá. Se eu for deportado para lá ela não tem
como me impedir.
Quando se queixava da tensão provocada por aquele marca-desmarca,
Chateaubriand ouvia sempre a mesma explicação - aquela era a fórmula
imaginada para despistar o inimigo e tentar detectar alguma infiltração no
movimento. Mas o que ocorria, de fato, é que os revolucionários chegaram à
conclusão de que seria uma temeridade permitir que ele, Chateaubriand,
fosse informado previamente da data real. As experiências anteriores, tanto
com o discurso de João Neves quanto no caso do manifesto de Prestes, eram
eloqüentes o bastante para alertá-los contra Chateaubriand. "Ele é um alia-
do leal", reconhecia Aranha, "mas é louco o suficiente para anunciar a revo-
lução em manchete em seus jornais com dois dias de antecedência, só pelo
prazer de "furar os concorrentes." Em meados de setembro, falando com ele
por telefone, Pedro Moura, diretor do Diário de Noticias de Porto Alegre, deu
a entender que a coisa estava por um fio:
- Venha logo para Porto Alegre, venha ver de perto o filme que os cau-
bóis do pampa vão desenrolar dentro de poucos dias.
No começo da noite ele passou na redação de O Jornal e escreveu seu ar-
tigo diário. Sob o irônico título de "A palavra de um conservador", elogiava
um discurso feito por Getúlio Vargas: "A parte política do pronunciamento
do sr. Getúlio Vargas é uma passagem tesa, altiva. Ela tem a virtude de con-
ferir ao sr. Washington Luís a iniciativa de todos os crimes - pelos quais os
amigos do presidente dizem que somente serão capazes de o responsabili-
zarem as índoles demagógicas deste país. Pois o autor é a negação do dema-
gogo, é um conservador obstinado - e suas palavras valem como a conde-
nação da história aos crimes monstruosos do sr. Washington Luís ". Saiu do
jornal às dez da noite e passou no Hotel Glória, onde ouviu uma estranha
história contada pelo deputado José Cardoso de Almeida, líder do governo
federal na Câmara. O parlamentar paulista disse ter recebido um recado de
um deputado mineiro, parente de um oficial da Força Pública de Minas, a
cujos ouvidos tinha chegado a notícia de que a revolução iria estourar no dia
seguinte, 3 de outubro, às cinco da tarde. Cardoso de Almeida contou que
correu ao palácio para transmitir a informação a Washington Luís:
- Às seis da tarde estive no Catete com o presidente e narrei-lhe o epi-
sódio. Ele riu muito e disse que eu estava vendo fantasmas, estava com
medo de sombras. Diante da reação do presidente, recusei-me a insistir no
assunto.
Duas horas depois, no entanto, continuou o deputado, Washington Luís
ligou para o hotel pedindo que ele fosse com urgência à estação de trens da
223
#
FERNANDO MORAIS
Central do Brasil para pedir a dois ou três companheiros de bancada que não
embarcassem para São Paulo, porque o Congresso seria convocado extraor-
dinariamente para discutir uma mensagem do Executivo propondo a im-
plantação do estado de sítio no Rio Grande do Sul: o presidente recebera a
confirmação de que um golpe de Estado, ou revolução, eclodiria na tarde se-
guinte em Porto Alegre.
Chateaubriand voltou como um desesperado para a redação do jornal.
Já era quase meia-noite, mas ele disparava telefonemas e telegramas para to-
dos os lados, sem conseguir encontrar seus amigos da liderança da Aliança
Liberal. Por fim localizou Filipe de Oliveira, que acabara de ler uma men-
sagem secreta assinada por Osvaldo Aranha e datada do dia 25 de setembro
confirmando tudo o que ouvira do conservador Cardoso de Almeida: a
revolução ia mesmo explodir no dia seguinte às cinco da tarde simultanea-
mente em Porto Alegre, Belo Horizonte e Paraíba. Deu um murro na
mesa, espantando Austregésilo de Athayde, que assistia a tudo de olhos
arregalados:
- Cachorros! Os cachorros da Aliança me enganaram! A revolução vai
rebentar amanhã à tarde em Porto Alegre! Eu aqui arriscando minha pele e
na hora H esses cornos me deixam de fora! Chame o Amâncio e o Benedito
imediatamente.
Mais alguns telefonemas e ele conseguiu acordar em casa o gerente da
empresa aérea Sindicato Condor, que tinha um vôo dali a pouco, às cinco e
meia da manhã, com destino à capital gaúcha. O funcionário foi até a cida-
de, abriu o escritório da companhia e emitiu um bilhete em nome de Cha-
teaubriand, no valor de setecentos mil-réis, que uma hora depois o motoris-
ta Benedito colocava sobre a mesa. Com a passagem garantida, conseguiu
uma milagrosamente rápida ligação telefônica para seu irmão Oswaldo, em
São Paulo. Temendo que houvesse escuta policial na ligação, procurava fa-
lar em código. Pediu que Oswaldo mandasse Ismael Ribeiro, gerente admi-
nistrativo dos Diários em São Paulo, esperá-lo no ancoradouro de aviões do
porto de Santos no começo da manhã, quando o hidroavião faria uma esca-
la na cidade para reabastecimento. Para desviar a atenção da polícia e do go-
verno, deu ordens para que O Jornal e o Diário da Noite do Rio noticiassem
que ele estaria presente à missa que seria rezada na manhã seguinte na cate-
dral metropolitana carioca, com a presença de todos os funcionários de suas
empresas, como abertura dos festejos de inauguração da nova sede da rua
Treze de Maio. Isso feito, voltou-se para Athayde:
- Caboclo, venha comigo. Eu tenho o sono muito pesado e posso não
ouvir o despertador. Você vai dormir comigo para garantir que às quatro e
meia da madrugada eu esteja de pé. Mande acordar o contador, peça para
ele retirar o dinheiro que houver do caixa do jornal e entregar ao Gallon, lá
224
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FERNANDO MORAIS
em casa. Preciso de tudo que tivermos em caixa, não sei quanto tempo vou
ficar fora.
Maria Henriqueta e Fernandinho, como de costume, dormiam em quar-
tos do pavimento superior. No dormitório de Chateaubriand, embaixo, ha-
via apenas uma cama de solteiro, que os dois tiveram que dividir. Chateau-
briand colocou o camisolão e a touca, e Athayde só tirou o paletó e a gravata
para deitar-se. Excitado com a agitação da noite, Amâncio decidiu não dor-
mir, apenas sentou-se sobre o colchão estendido contra a porta de entrada, o
38 vigilante na mão direita. Marcado por precaução para chamá-los às qua-
tro e quinze, o despertador seria dispensável, diria Athayde seis décadas de-
pois:
- Eu não consegui dormir nem um minuto. Um pouco por ansiedade e
muito porque, apesar daquela touca estranha, ele roncou como um filho da
puta.
Às cinco horas da chuvosa manhã daquela sexta-feira, 3 de outubro de
1930, Chateaubriand chegava au aeroporto do cais Pharoux, no centro do
Rio, acompanhado por Athayde, Amâncio e Benedito. Cumprindo as exi-
gências da legislação aeronáutica brasileira de então, subiu numa dessas ba-
lanças de açougue, enquanto um sonolento funcionário anotava em seu bi-
lhete: "Peso: 50 quilos". Como na quinta-feira fora o dia do pagamento
semanal dos salários dos jornalistas, o dinheiro disponível no cofre do jor-
nal, e que fora entregue a ele, era uma mixórdia insuficiente até para pagar
duas passagens aéreas de uma viagem como aquela: pouco mais de um con-
to de réis. Além do dinheiro, levava uma pequena valise de mão contendo
uma capa de chuva, um chapéu, uma camisa, uma cueca e objetos de higie-
ne pessoal. No bolso interno do paletó ia um maço de folhas de papel para
anotações, um lápis e uma lista de endereços e telefones de aliancistas do
Sul. Ao ver o revólver pendurado na sua cintura, um funcionário da Condor
aproximou-se discretamente dele e, sem falar nada, apontou o dedo para o
item b das "Condições gerais de voo", impressas atrás da passagem: assim
como não se podia fumar em nenhum momento do vôo, era expressamente
proibido portar arma de fogo dentro dos aviões da companhia. A contragos-
to, desabotoou o coldre e entregou o revólver ao inseparável Amâncio, que
não saía de perto. Às cinco e meia, pontualmente, Chateaubriand embarcou
no hidroavião Junkers G-24 da Condor, com destino ao tão esperado faroes-
te que estava começando nos pampas.
226
14
Chateaubriand viajou certo de que chegaria à capital gaúcha a tempo de
se juntar às tropas revolucionárias. Se era de oito horas a duração prevista
da viagem, incluídas as escalas em Santos e Florianópolis, às três e meia da
tarde o Junkers estaria pousando nas águas do rio Guaiba, no centro de Por-
to Alegre. Ele teria duas horas de folga, tempo mais que suficiente para lo-
calizar as lideranças da Aliança Liberal, alistar-se como voluntário e aderir à
luta armada. O vôo poderia atrasar até uma hora e meia, portanto, sem que
isso perturbasse seus planos.
O dia tinha nascido escuro, sob cerração baixa e úmida, trazendo uma
manhã horrorosa - circunstância que obrigava o experiente piloto alemão
Heinz Puetz a voar a pouco mais de cinqüenta metros de altitude. De den-
tro do avião, os nove passageiros que lotavam a minúscula cabine tinham a
impressãu de que a água do mar revolto chegava a respingar nos enormes
flutuadores pendurados sob a aeronave. Quando olhavam para cima só
viam o negrume do céu. Dos lados a situação não era melhor, com a linha do
horizonte coberta de bruma cor de chumbo. Para vencer o trajeto de pouco
mais de trezentos quilômetros que os separava de Santos (e que Chateau-
briand voara dezenas de vezes em menos de duas horas), gastaram quase
quatro longas e penosas horas. À medida que o aparelho aproximava-se do
cais, depois de pousar no litoral santista, Chateaubriand pôde divisar, de cha-
péu e terno escuro, a fiKura de seu gerente paulista, Ismael Ribeiro. Valendo-
se da amizade que fizera com o piloto Puetz nas longas horas de vôo, pediu
permissão para descer por alguns minutos e conversar com o empregado.
Enquanto os dois sussurravam - Chateaubriand de pé sobre um dos
flutuadores e Ribeiro no cais -, a cinco metros de distância, a bordo de uma
lancha com o motor desligado, dois policiais paulistas, fardados, tentavam
em vão ouvir o que o jornalista dizia. Chateaubriand percebeu o interesse
dos dois e falou ainda mais baixo. Ele recomendava a Ribeiro que entupisse
de bobinas de papel de jornal os porões do prédio do vale do Anhangabaú,
pois ninguém podia prever o que ia acontecer no país a partir das cinco e
meia da tarde:
- Além de estocar papel, recolha aos colchões e travesseiros todos os
fundos de que dispomos nos bancos. Não deixe nada em burras alheias.
227
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FERNANDO MORAIS
Além disso, diga ao Oswaldo para retransmitir a todos a ordem que já bai-
xei no Rio e em Minas: durante o curso da luta, que suponho será longa, que-
ro que se guarde absoluta moderação nos nossos diários.
Reabastecido, o avião decolou com destino a Florianópolis, mas não
chegou a avançar 150 quilômetros. O nevoeiro voltou a fechar quando se
aproximavam de Iguape, obrigando Puetz a pousar no estreito braço de mar
que separa a ilha Comprida do continente. Os quase cinqüenta quilômetros
seguintes foram vencidos com o avião "voando em degrau", com os flutua-
dores esquiando sobre as águas do canal. Irritado com o atraso, Chateau-
briand comentou com o passageiro que ia a seu lado, o industrial e engenhei-
ro Luís Betim Paes Leme:
- Esta merda tem três motores de 110 cavalos cada um e foi feita para
voar. No entanto, estamos aqui como passageiros de um canard glisseur, des-
lizando sobre a água. Em vez de voarmos a 180 quilômetros, patejamos à ve-
locidade de quarenta, cinqüenta quilômetros por hora. Isto não é uma aero-
nave, é um humilhante bacurau.
Pouco antes do meio-dia a neblina tinha descido até perto do lençol
d'água, impedindo o piloto de enxergar mais de cinco metros além do bico
do aparelho. Puetz desligou os motores e deixou o avião boiando em frente
à cidade paulista de Cananéia. Levantou-se com o mecânico e o co-piloto e
comunicou aos passageiros que não dava para continuar a viagem:
- Com essa cerração, mesmo deslizando a baixa velocidade sobre o ca-
nal, nós corremos o risco de sofrer um acidente grave. Voar, então, é absolu-
tamente impossível. Teremos que ficar aqui parados até o tempo melhorar.
Como não melhorou, o Junkers permaneceu ancorado no mesmo lugar
durante quatro horas - tempo em que os passageiros nada tiveram a fazer,
senão conversar e olhar centenas de vezes para os dois canhões coloniais
plantados na entrada de Cananéia, apontados para o mar. Dentro do apare-
lho, além do jornalista, aparentemente ninguém mais sabia que o país esta-
va na iminência de uma revolução armada. Para passar o tempo e não ter
que falar de política, Chateaubriand entabulou com Paes Leme uma intermi-
nável conversa sobre o papel do carvão na siderurgia brasileira. Só às três da
tarde (quando deveriam estar sobrevoando Porto Alegre) Puetz decidiu afi-
nal que era possível decolar. Mas deu aos passageiros - e sobretudo a Cha-
teaubriand - uma péssima notícia:
- As condições atmosféricas não nos permitem prosseguir até Porto
Alegre. Vamos avançar apenas mais setenta quilômetros. Em poucos minu-
tos estaremos em Paranaguá, no Paraná, onde dormiremos. Por cortesia, a
Condor providenciará hotel para todos e amanhã decolaremos com destino
à escala de Florianópolis.
Ele ia perder a revolução? Nem pensar! O avião precisava seguir até
Porto Alegre! Mas nem sapateado, nem ranger de dentes, nem ameaças de
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
processar a companhia aérea - nada convenceu o piloto a voar imediata-
mente para a capital gaúcha, como Chateaubriand exigia, ou pelo menos até
Florianópolis. O engenheiro Paes Leme cochichou no ouvido de Chateau-
briand:
- Eu estou viajando armado. Se o senhor tem algo tão importante a fa-
zer ainda hoje em Porto Alegre, tenho certeza de que, com um revólver no
peito, esse piloto decola e nos leva aonde quisermos.
Familiarizado com o caráter e a valentia de Puetz, Chateaubriand demo-
veu Paes Leme da tentativa de seqüestro. "Esse piloto é capaz de morrer,
mas não se sujeitará às suas exigências", advertiu Chateaubriand. Indiferen-
te aos gritos e protestos do jornalista, o fleumático alemão apenas lia, repeti-
das vezes, um parágrafo impresso no verso da passagem, onde as tais "con-
dições gerais de transporte" diziam expressamente: "No caso de interrupção
forçada da viagem ou de chegada com atraso, aos passageiros não assiste di-
reito de indenização alguma, nem sequer por despesas ou prejuízos causa-
dos pela não-continuação ou interrupção da viagem ou atraso na chegada".
"O que não tem remédio, remediado está", resmungou Chateaubriand
para o colega de viagem, "então vamos para Paranaguá." No porto para-
naense, os dois desceram juntos e, antes de seguirem até o hotel, resolveram
dar uma caminhada para espairecer. Andaram a passos lentos do cais dos hi-
droaviões até o dos navios. Na volta, cruzaram com grupos de trabalhado-
res, todos louros de olhos claros, com ar europeu, que saíam do trabalho.
Chateaubriand olhou o relógio e viu que eram cinco e meia da tarde. Que
mistério... Uma revolução estava explodindo em Porto Alegre naquele mo-
mento, a poucas centenas de quilômetros dali, e um porto da importância de
Paranaguá estava imerso na mais absoluta modorra, como se nada de anor-
mal ocorresse. Será que a revolução tinha fracassado? Ou teriam adiado
mais uma vez o dia de sua eclosão?
Antes de ir para o hotel, passaram por uma barbearia - "nas barbea-
rias sempre se sabe tudo o que está acontecendo", diria Chateaubriand de-
pois. Ambos fizeram a barba, mas ele não ouviu um murmúrio que fosse so-
bre a revolução. Intrigado, andou a pé com Paes Leme até o hotel. Cada qual
tomou um quarto, banharam-se e desceram para um jantar de grandes ca-
marões fritos. Até as onze da noite, quando subiu ao quarto para dormir, não
tivera qualquer notícia do Sul. "Terá Washington Luís esmagado a cabeça da
nossa hidra tão facilmente que nem notícias disso circularam? Ou será que o
movimento não estalou?", ele se perguntava em voz alta, sozinho, deitado
na cama. "Ou estalou, foi sufocado, e as comunicações de Porto Alegre com
o resto do país estão cortadas?" Foi mergulhado nesse cipoal de dúvidas sem
respostas que o jornalista - nu, sem touca ou camisolão, enrolado em man-
tas de lã - dormiu profundamente.
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FERNANDO MORAIS
Uma de suas características que Chateaubriand mais gostava de alar-
dear era a capacidade de dormir bem, mesmo nas circunstâncias mais adver-
sas. "O hábito da luta pela vida e dos embates revolucionários, desde o ver-
dor da juventude", ele comentava sempre, "forjaram em mim um caráter ao
qual nenhuma preucupação é capaz de tirar o sono." Assim, se às seis da ma-
nhã não tivesse sido acordado com golpes na porta, dados por Paes Leme,
provavelmente continuaria dormindo a sono solto. Abriu a janela e, tendo
ido dormir sob garoa fina e céu encoberto por nuvens, surpreendeu-se ao ver
um sol forte lambendo a cidade e cortando uma atmosfera límpida, cristali-
na. Às seis e meia da manhã Heinz Puetz aquecia os motores do avião para
levantar vôo. Tranqüilizou os passageiros: a escala em Florianópolis seria
muito rápida. E, com aquele céu luminoso, de lá até a capital gaúcha a via-
gem demandaria menos de duas horas.
Tão logo o avião pousou ao largo da ilha de Santa Catarina, onde fica
Florianópolis, um funcionário da Condor subiu a bordo com ar grave, tra-
zendo nas mãos um telegrama destinado a Puetz, transmitido da sede da
empresa, no Rio. Curioso, Chateaubriand esgueirou-se entre as valises depo-
sitadas no chão e tentou ler, sobre o ombro do piloto, o conteúdo da mensa-
gem. O telegrama estava escrito em alemão e ele só conseguiu ler uma frase:
em Porto Alegre". O telegrama nãu falava de revolução. Fazia apenas aque-
la breve e enigmática advertência para comunicar ao piloto que o voo para
a capital gaúcha estava cancelado. A viagem terminava em Florianópolis.
Chateaubriand não resistiu e revelou aos três tripulantes (e mais Paes Leme,
que entrara na cabine para ouvir a conversa) o segredo que havia guardado
até então: muito provavelmente uma revolução de caráter nacional tinha ex-
plodido às cinco e meia da tarde do dia anterior em Porto Alegre, Belo
Ho-
rizonte e Paraiba. Contou seu grau de envolvimento com a conspiração e
confessou que estava a caminho de Porto Alegre para se alistar como volun-
tário ao lado dos insurretos.
Ao ouvir aquela história, Paes Leme agarrou Chateaubriand pela man-
ga do paletó, desceu com ele até o cais e manifestou sua preocupação:
- O senhor está metido nisso até a raiz dos cabelos e nós estamos imo-
bilizados em Santa Catarina, um dos estados mais fortemente solidários com
Washington Luís. Qualquer soldadinho que souber de sua presença aqui vai
levá-lo imediatamente para a cadeia. Temos que tirá-lo daqui de qualquer
jeito. Quanto dinheiro o senhor carrega?
O industrial estranhou a resposta dada por aquele que era um dos jor-
nalistas mais poderosos do país. Chateaubriand enfiou a mão no bolso da
calça e tirou meia dúzia de cédulas amassadas:
- Um conto e quinhentos, se tanto. Mas por quê? Dinheiro não vale
nada se não temos quem nos transporte.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
O industrial estava animado:
- Doutor Assis, o telegrama cancela a viagem para Porto Alegre, mas
podemos tentar fazer o piloto voar até a praia de Torres, já no Rio Grande.
Lá o senhor estará a salvo.
Ele não tinha qualquer esperança:
- Desista, eu conheço o Puetz. Isso é alemão, treinado para receber e
cumprir ordens.
Paes Leme insistiu:
- O senhor já teve provas de que esse alemão é valente, mas quem ga-
rante que ele é incorruptível? Me dê seu um conto e quinhentos. Tenho vin-
te contos na minha pasta. Vou oferecer esse dinheiro ao piloto para ele levá-
lo até Torres. Daqui até lá são duzentos e poucos quilômetros; com esse
tempo, se ele quiser, faz esse trecho em pouco mais de uma hora - e sem
desobedecer o telegrama, que não fala em Torres, só fala em Porto Alegre.
Sem esperar a reação do outro, correu sobre o flutuador e entrou na ca-
bine. Segundos depois Chateaubriand ouvia os gritos de Puetz, descompon-
do Paes Leme em português e alemão com palavrões incompreensíveis e
empurrando-o, aos safanões, para fora do avião. O industrial - que no ca-
minho de volta ainda tivera tempo de pegar a pasta - desceu meio pertur-
bado com a cena que acabara de provocar. Desculpou-se com o alemão, que
continuava berrando da porta do avião, e levou Chateaubriand até um pe-
queno píer de ferro. Abriu a pasta, tirou dois maços de cédulas amarrados
com um elástico e estendeu-os em direção ao jornalista:
- Leve esses vinte contos, o senhor vai precisar. Quando nos virmos de
novo, o senhor me paga. E, se for preso, prepare-se: esse negócio de prisão
política é como lista de convidados para festas em embaixadas. Uma vez que
se entra nelas, nunca mais se sai. Nem mesmo depois de morto. Não se dei-
xe prender, senão toda vez que houver uma crise no país, não importa de
que lado o senhor estará: a polícia política, só por hábito, vai buscá-lo.
Luís Betim Paes Leme deixou de pé, no trapiche, um Assis Chateau-
briand atônito, com um maço de dinheiro em uma das mãos e uma mala na
outra. Caminhou em direção à ponte e sumiu nas ruas de Florianópolis.
Na hora que Chateaubriand comia os "olímpicos camarões fritos de Pa-
ranaguá" em companhia de Paes Leme, na noite anterior, Porto Alegre já es-
tava nas mãos dos rebeldes. Pontualmente, às cinco e meia da tarde,
confor-
me previa o bilhete secreto lido por Filipe de Oliveira, o próprio autor da
mensagem, Osvaldo Aranha, junto com o também conspirador José Antônio
Flores da Cunha e à frente de cinqüenta homens bem armados, tomou de as-
salto o quartel-general da 3' Região Militar, na capital gaúcha. Após horas de
intensa luta com tropas leais ao governo, era ocupado um segundo quartel,
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FERNANDO MORAIS
situado no morro do Menino Deus, onde estava depositado o maior arsenal
governista no Sul do país. Em Belo Horizonte não tinha sido muito diferen-
te: sob o fogo cerrado de civis e de tropas da Força Pública mineira (a mes-
ma que Chateaubriand havia sugerido deixar em prontidão), centenas de
soldados do 12º Regimento de Infantaria aderiram aos revolucionários, e as
forças oficiais acabaram se rendendo, com um saldo de dezesseis legalistas
mortos. Por um equívoco de comunicação, Juarez Távora só faria eclodir a
revolução no Norte no dia 4, quando tomou a mais importante guarnição fe-
deral da Paraíba, o 22º Batalhão de Infantaria. De novo governador de Per-
nambuco, o mesmo Estácio Coimbra que resistira ao lado de Chateaubriand
aos tiros de Dantas Barreto, dezenove anos antes, era obrigado, mais uma
vez, a abandonar Recife, acuado pelos rebeldes, e fugir para Salvador, onde
os legalistas do Norte e Nordeste pretendiam reaglutinar suas forças.
No Rio de Janeiro, sede do governo federal, a situação era menos tensa.
Apanhados de surpresa, os deputados federais discutiam temas banais na
tribuna do Palácio Tiradentes enquanto os gaúchos já estavam se levantan-
do em armas. Quando soube que Assis Chateaubriand havia embarcado em
direção ao Sul, Washington Luís mandou que expedissem uma ordem de
prisão contra ele, distribuída a todas as guarnições federais por onde ele pu-
desse passar. E, ao mesmo tempo, determinou que a polícia invadisse a sede
de O Jornal e apreendesse preventivamente a edição do dia 4 - medida des-
necessária, já que, seguindo as recomendações de moderação do dono, a úni-
ca notícia política publicada tinha sido uma breve nota enviada por agên-
cias internacionais dando conta de que Luís Carlos Prestes tinha sido preso
por algumas horas, no dia anterior, pela polícia de Buenos Aires. De olho em
O Jornal, onde prendeu Gabriel Bernardes (formalmente o presidente da em-
presa) e todos os jornalistas que se encontravam na redação, a polícia se des-
cuidou do Diário da Noite, que acabou noticiando a revolução em manchete
("Um movimento revolucionário em Minas e no Rio Grande do Sul") na edi-
ção do dia 4. Embora também anunciasse a eclosão do movimento, o conser-
vador A Ordem circulou sem ser molestado pela polícia, talvez por expressar
com clareza, na primeira página, sua opinião sobre o conflito:
Há, enfim, uma tentativa revolucionária em Minas e no Rio Grande do Sul. Será
o início da guerra de secessão anunciada desde o primeiro dia pelo sr. Afrânio
de Melo Franco? Não sabemos. Mas esse movimento chefiado pelos srs. Artur
Bernardes, Assis Chateaubriand, Antônio Carlos, Macedo Soares e Borges de
Medeiros constitui o maior escárnio até hoje lançado aos sentimentos de pudor
e de dignidade do povo brasileiro.
Toda a imprensa permaneceria censurada até o triunfo final da revolu-
ção, no dia 24. Só um leitor muito arguto conseguiria ver revolução nas en-
trelinhas da edição do dia 5 de O Jornal. Nela, apesar da censura, se
noticia-
va que na véspera, um sábado, a Câmara Federal aprovara a mensagem do
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
governo implantando o estado de sítio no Rio Grande do Sul, Distrito
Fede-
ral, Minas Gerais e Paraíba. Ignorando tudo isso, e sem saber sequer o que
havia acontecido de fato em Porto Alegre na tarde anterior, Chateaubriand
sentia-se em Florianópolis como um animal encantoado. Não tinha como
voltar ao Rio, o que seria um suicídio, e muito menos sabia como chegar em
Porto Alegre. Esta era, no entanto, a única saída, e o primeiro apoio teria de
ser conseguido ali mesmo, na capital catarinense. Embora não houvesse mui-
to risco de despertar suspeitas - Florianópolis não era uma cidade pequena
e pelo menos doze pessoas estranhas haviam desembarcado do Junkers -,
ele abriu a mala em cima de uma mureta, vestiu a capa e enfiou o chapéu na
cabeça. A primeira providência que lhe ocorreu foi procurar Nereu Ramos.
Jornalista, ex-deputado e membro de abastada família que dividia o coman-
do da política catarinense com os Konder Bornhausen, Ramos tinha se tor-
nado um aliancista fervoroso. Chateaubriand o conhecera no Rio meses
antes, durante o funeral de João Pessoa: no trajeto do caixão entre o cais do
porto e o cemitério São João Batista, Ramos fizera uma dúzia de comícios-re-
lâmpago, atiçando a população contra o governo federal.
Conseguiu um telefone na portaria do primeiro hotel que encontrou e
ligou para a casa de Nereu Ramos, um dos números que trazia em sua listi-
nha. Nada feito: alguém do outro lado da linha respondeu que o dono da
casa tinha embarcado quatro dias antes para Porto Alegre. Chateaubriand
lembrou-se de um nome a que Ramos se referira no Rio como sendo um dos
organizadores da Aliança Liberal em Santa Catarina: Henrique Rupp Jú-
nior, também jornalista e ex-deputado. Meia hora depois ele estava na casa
de Rupp, um tedesco troncudo, de meia-idade e cabelo escovinha. Desta vez
batera na porta certa: revelando-se grande admirador seu, Rupp tinha infor-
mações precisas sobre o que acontecia em Porto Alegre. Começou a conver-
sa aconselhando-o a tirar da cabeça a idéia de sair de Florianópolis, já que
não havia meios de se chegar a Porto Alegre pelos caminhos convencionais.
Ainda que conseguissem algum marinheiro maluco que se dispusesse a
transportá-lo, tentar sair pelo mar seria uma ingenuidade: o porto em que ele
desembarcara horas antes estava tomado por tropas do Exército. As estra-
das, tanto para o Sul quanto para o Paraná, haviam sido igualmente
bloqueadas por tropas pró-Washington Luís. Um dos últimos redutos de
lealdade aos legalistas, Santa Catarina era governada pelo recém-empossa-
do deputado Fúlvio Aducci, governista convicto - e que depois de iniciada
a revolução seria um dos últimos governadores estaduais a abandonar o
posto. Como não havia segurança no Paraná, Washington Luís transferira de
Curitiba para Florianópolis a sede da 5' Região Militar e nomeara para
comandá-la o general Nepomuceno Costa (o mesmo que havia sido punido
por impedir o tenente João Cabanas de discursar em Juiz de Fora, Mi-
nas Gerais). Os combates, garantia Rupp Júnior, eram iminentes: ele tinha
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FERNANDO MORAIS
notícias de que em poucas horas o estado seria invadido por três colunas re-
volucionárias vindas do Rio Grande do Sul, uma delas comandada pelo ca-
pitão Trifino Correia - antigo membro da Coluna que aderira à Aliança e
que, cinco anos depois, se juntaria de novo a Prestes na revolta comunista de
1935. A pior notícia ficou para o fim: Washington Luís descobrira que Cha-
teaubriand havia embarcado no vôo da Condor interrompido no meio do ca-
minho, e a ordem de prisão contra ele já havia chegado a Florianópolis.
Rupp se ofereceu para esconder o jornalista em um sítio de sua pro-
priedade, nas cercanias da capital, mas Chateaubriand recusou a oferta de
pronto:
- Eu entro no Rio Grande de qualquer jeito, seu Rupp. Nem que seja a
bala.
Vendo-o tão decidido, Rupp se rendeu:
- Então só há uma alternativa, doutor Assis: tu vais fazer um trajeto
três vezes mais longo e sem estradas. Vais ter que ir pela serra do Lava-Tudo
para atingir Vacaria, já no Rio Grande. Uma parte da viagem dá para fazer
de carro, e eu tenho gente para levar-te em segurança. Daí em diante não há
estradas, e tu terás que ir a cavalo. Eu te darei todos os contatos.
Debruçados sobre um mapa, riscaram a lápis o caminho a ser feito. De
Florianópolis ele seguiria de carro até Bom Retiro. De lá em diante o melhor
era seguir a cavalo pelo cocuruto da serra do Mar até Urubici, e daí, sempre
a cavalo, até São Joaquim. Se não conseguisse avançar até Urubici, tocaria de
Bom Retiro para Canoas, Urupema, Painel e Monte Alegre. Quando chegas-
se a São Joaquim, se a situação militar já estivesse mais favorável aos revo-
lucionários, os contatos que Rupp lhe daria na cidade arranjariam um carro
para levá-lo pela estradinha de terra até Vacaria. Nesta cidade gaúcha ele
estaria protegido pelas tropas do general Valdomiro Castilho de Lima, acan-
tonadas ali exatamente para proteger o nordeste do Rio Grande contra qual-
quer incursão do general Nepomuceno Costa. Estabelecido o trajeto, Cha-
teaubriand enfiou o mapa no bolso, certo de que ia partir em seguida. Rupp
não permitiu:
- Primeiro temos que tirá-lo da minha casa, que é muito visada. Vou
levar-te para a casa do Olívio Amorim, um coiteiro da minha confiança, e só
à noite é que tu vais colocar o pé na estrada.
Às onze da noite Rupp apareceu num carro sem capota trazendo as
duas filhas. Deixou uma delas na casa de Amorim e mandou que Chateau-
briand se preparasse para ocupar o lugar da moça no carro. Se Rupp estives-
se sendo seguido a distância, na escuridão da noite os espias veriam que ele
entrara e saíra da casa com duas pessoas - sem, portanto, esconder ou tirar
ninguém dali. Chateaubriand já se preparava para vestir de novo a capa e o
chapéu quando Rupp Júnior o interrompeu:
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
- Não, doutor Assis, eu trouxe uma vestimenta mais segura para essa
viagem. Aqui está.
Era uma batina negra. Ele viajaria disfarçado de padre. Uma das filhas
de Rupp ficou na casa e Chateaubriand ocupou seu lugar no carro conversí-
vel. Rodaram em círculos para se certificar de que não estavam sendo segui-
dos e só então pararam em um subúrbio de Florianópolis, onde dois auto-
móveis os esperavam num lugar ermo. No da frente, onde Chateaubriand
viajaria, estava apenas o chofer, desarmado. No de trás, que os seguiria para
protegê-los em caso de necessidade, três homens bem armados. Faltavam
quinze minutos para a meia -noite quando Rupp entregou-lhe três cartas: a
primeira era dirigida a Gerôncio Thibes, de Bom Retiro, que deveria provi-
denciar meios para que ele alcançasse Urubici e, dali, São Joaquim. A segun-
da era para os irmãos João e Antônio Palma, chefes aliancistas em São Joa-
quim. Caso eles não estivessem na cidade, havia ainda uma terceira carta
para o farmacêutico Hilário Braer, também conspirador aliancista. Não po-
deria haver problemas.
Com a batina sobre o terno e levando nas mãos apenas a capa e o cha-
péu, Chateaubriand embarcou no carro da frente com destino a Bom Retiro,
a pouco mais de cem quilômetros de distância, trecho que, segundo o moto-
rista, deveria ser transposto em três horas e meia, se não encontrassem difi-
culdades pelo caminho. Logo que alcançaram a estrada de terra começou a
chover. O lamaçal em que a pista de terra se transformara obrigou o moto-
rista do carro a parar e colocar correntes nas rodas para evitar derrapagens
ou, o que seria pior, que o carro atolasse e a viagem fosse interrompida no
meio. Os ocupantes do carro de segurança, que os seguia cinco quilômetros
atrás, foram obrigados a fazer o mesmo. A viagem prosseguiu sem obstácu-
los serra acima até perto das três horas da madrugada, quando, já perto de
Bom Retiro, os faróis iluminaram dois troncos atravessando a estrada de
ponta a ponta. Era um pequeno posto policial guardado por soldados gover-
nistas a cavalo, armados de fuzil. Chateaubriand gelou. O motorista queria
acelerar o fordeco sobre os troncos, garantindo que a cavalo os soldados
não
os alcançariam. Chateaubriand foi contra, mandou que ele parasse. Dois mi-
litares armados de pistolas se aproximaram do carro, ambos com lanternas
nas mãos. Iluminaram os rostos dos dois passageiros. Um sargento que tra-
zia um pedaço de papel nas mãos aproximou-se da janela de Chateaubriand
e iluminou o carro por dentro, como se procurasse um terceiro passageiro:
- Boa noite, padre. Recebemos esta mensagem pelo telégrafo de Floria-
nópolis mandando prender o jornalista Assis Chateaubriand. O senhor por
acaso cruzou com ele pelo caminho?
Chateaubriand percebeu que cada um dos demais soldados, montados
em cavalos, trazia uma lanterna na mão esquerda e um fuzil na direita, am-
bos apontados para o carro. Procurando disfarçar o sotaque nordestino, pe-
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FERNANDO MORAIS
diu para ver o telegrama e leu a transcrição manuscrita da mensagem telegrá-
fica: "Fugiu esta madrugada de Florianópolis, provavelmente vestido de mu-
lher, o jornalista Assis Chateaubriand. Deveis detê-lo e devolvê-lo a esta ca-
pital, na condução em que for encontrado. Marinho Lobo, chefe de polícia".
Então a polícia estava vigiando a casa de Olívio Amorim e imaginou
que ele fugira de saias. O motorista quis falar mas Chateaubriand cortou-lhe
a palavra, dirigindo-se ao sargento:
- Conheço ambos: tanto o delegado Marinho Lobo, que assina o tele-
grama, quanto o Chateaubriand que vocês procuram. Passamos por seu fu-
gitivo há mais ou menos uma hora, meu filho. Ele está vindo aí atrás com
mais duas pessoas, em outro carro. Dentro de alguns minutos deve estar
passando por aqui.
O sargento se alvoroçou, mandou que a barreira fosse levantada para o
carro passar e deu ordens para que os soldados apeassem dos cavalos e fi-
cassem em posição de tiro, aguardando o veículo que viria atrás. Livre da
barreira, Chateaubriand pediu ao motorista que aumentasse a velocidade.
Enquanto o carro avançava sobre a lama na estradinha estreita e sinuosa da
serra da Boa Vista, ele intrigava o motorista colocando metade do corpo para
fora e olhando para cima, como se quisesse ver alguma coisa no céu. Minu-
tos depois, quando passavam nas imediações de um lugarejo chamado Ro-
berto Schulz, deu ordens para que o carro parasse e esclareceu o mistério:
- Está vendo esses postes com um único fiu acompanhando a estrada?
Isso é o cabo do telégrafo. Temos que cortar esse fio. Você tem um alicate?
Tinha, mas o fio era muito alto e o poste de madeira, molhado pela chu-
va, estava escorregadio demais para que alguém conseguisse escalá-lo. Cha-
teaubriand aproximou-se de um dos postes e tentou sacudi-lo com as mãos.
Percebeu que o pedaço enterrado no chão já devia estar meio podre, mas não
o suficiente para que dois homens o derrubassem no muque. Decidido, or-
denou ao motorista :
- Vamos derrubar o poste com o carro. Dê pequenas batidas nele até
tombá-lo um pouco. Quando já estiver torto nós o deitamos no chão com as
mãos.
Não foi necessário. À segunda batida a madeira podre sob a terra cedeu
e o poste desabou no chão. Sob a luz dos faróis do carro, Chateaubriand
aproximou-se do fio e partiu-o com o alicate. Juntos, ele e o motorista atra-
vessaram o poste na estrada, pensando em atrasar um pouco mais quem
viesse atrás deles. Subiu no veículo de novo e pediu ao chofer para acele-
rar o carrinho:
- Agora podemos seguir. Com os fios cortados, daqui para a frente nin-
guém saberá que eu sou o falso padre que passou pela barreira. Toque adian-
te, que estamus chegando.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Bom Retiro não era então mais do que uma vilazinha com meia dúzia
de casas, um boteco, uma farmácia, uma hospedaria e uma igreja protestan-
te. Pararam na primeira casa e acordaram o dono, que apareceu de pijama,
lamparina numa das mãos e carabina na outra. Tranqüilizou-se ao ver o ho-
mem de batina que queria o endereço de Gerôncio Thibes. Era uma chácara
fora da cidade, localizada em poucos minutos. A carta de Rupp Júnior fun-
cionou como uma senha para Thibes colocar-se à disposição de Chateau-
briand. Apesar da hora, acordou a mulher e pediu que ela fizesse uma sopa
para os insólitos visitantes, enquanto planejava a continuação da viagem
com Chateaubriand. Apesar de ter a segurança de que as comunicações es-
tavam interrompidas, ele estava preocupado em ser visto disfarçado de pa-
dre: a ordem de prisão que vira na barreira poderia ter sido distribuída como
uma circular, para todo o estado. Tirou a batina, picou-a em pedaços e jogou
as tiras de pano na lareira que fora acesa por Thibes. E, temendo ser preso
com documentos que comprometessem tanto Rupp Júnior quanto os demais
destinatários das cartas, deu a estas o mesmo destino da batina: queimou-as
no meio da lenha da lareira.
Thibes explicou-lhe que o trajeto proposto por Rupp precisaria ser alte-
rado. A trilha entre Urubici e São Joaquim fora destruída pelas chuvas: se se-
guisse por ali, ficaria bloqueado, sem condições de prosseguir. Ele teria, por-
tanto, que fazer um caminho duas vezes mais longo para chegar a São Joaquim.
Embora os primeiros 25 quilômetros, que levavam a Canoas, pudessem ser
feitos de carro, Thibes achava muito arriscado viajar num carro que já havia
sido identificado pelos legalistas. O melhor era sair de Bom Retiro a cavalo.
De Canoas ele teria de seguir até Urupema, dormir lá (Thibes arranjaria um
guia para acompanhá-lo e fazer os contatos), seguir até Painel, atravessar o
rio e a serra do Lava-Tudo, e só então chegar a São Joaquim. O dono da casa
sugeriu que o jornalista dormisse um par de horas, enquanto ele providen-
ciava os cavalos e o guia que iria servir de batedor na viagem serra adentro.
Antes que o dia clareasse ele deveria abandonar Bom Retiro. Chateaubriand
roncou numa cama improvisada até as cinco e meia da manhã, quando foi
acordado pelo dono da casa. À sua frente estava André, "um polaco louro,
mas rústico como um bugre", ele escreveria depois, o rapazola que iria
acompanhá-lo dali em diante, até Urupema. O jornalista enfiou na cabeça o
chapéu de aba larga que ganhara do engenheiro Baldassini, construtor do
prédio novo do jornal, no Rio, e não pôde deixar de achar engraçado estar
ali, naquele fim de mundo, vestido com a elegante capa azul que tinha com-
prado na Burberry's, em Londres, e nunca usara antes. Os dois montaram e
segundos depois tinham sumido na escuridão.
A viagem, que parecia não terminar nunca, foi feita toda o tempo sob
chuva. Sem parar um instante sequer, os animais subiram a serra durante
nove horas seguidas. Chateaubriand já estava descadeirado pela montaria e
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FERNANDO MORAIS
com as pernas e as nádegas assadas pelo atrito com o arreio, quando, por
volta das duas da tarde - sempre debaixo de chuva e com o céu escuro -,
percebeu que a mata começou a ficar mais rala. De tempos em tempos sur-
giam algumas casinhas esparsas. Estavam afinal chegando a Urupema. An-
dré guiou-o com segurança até a fazenda onde deveriam pernoitar. Quando
puderam ver a casa, de longe, o rapaz ficou preocupado: na porta da frente
havia uma pequena aglomeração. Podia ser a presença do Exército. O me-
lhor era Chateaubriand permanecer no meio do mato, escondido. O guia ga-
lopou com o cavalo até a construção de madeira e voltou minutos depois
desolado:
- Tu não vai acreditar, doutor. É muita urucubaca, mas o Jango Matos,
que deveria coitar o senhor aqui em Urupema, morreu hoje de madrugada,
durante uma caçada. A espingarda disparou e o tiro matou-o na hora. O
povo está ali, velando o defunto.
Mas o "bugre polaco" tinha a saída: em Urupema havia outra pessoa de
confiança de Rupp Júnior, o fazendeiro Maneco Arruda, em cuja casa des-
montaram meia hora depois. Como André explicou a Arruda apenas que
Rupp Júnior pedira que o recém-falecido Jango Matos "recebesse a visita em
sua casa e providenciasse montaria para ele ir até São Joaquim", sem dar
qualquer explicação maior, Chateaubriand ficou com receio de falar dos mo-
tivos que o levavam à cada vez mais distante capital gaúcha. Macambúzio,
Maneco Arruda tampouco fez perguntas, mas pelo que conversaram foi pos-
sível perceber que se tratava de um admirador de Washington Luís. O me-
lhor era ficar de bico fechado.
Almoçaram fartamente a carne de caça que o fazendeiro lhes preparou,
e o dia ainda não escurecera quando os dois forasteiros desabaram sobre as
camas arrumadas às pressas numa casa de colonos vazia. Só aí, quando se
deitaram, é que Chateaubriand viu que André levava sob o enorme gibão de
lã dois revólveres carregados. Conforme haviam pedido, foram despertados
do sono profundo em que estavam mergulhados às quatro horas da manhã
seguinte pelo dono da casa. Fizeram uma rápida refeição e saíram de novo.
A chuva continuava com a mesma intensidade do dia anterior - nem um
aguaceiro nem uma garoa, mas "uma chuvinha criadeira", dissera André
numa das raras vezes em que abriu a boca. Os emplastros que a mulher de
Arruda tinha arrumado não aliviaram muito as dores causadas em Chateau-
briand pela cavalgada, e agora ele tinha a impressão de estar com a virilha
em carne viva.
Antes que o dia clareasse chegaram em Painel, onde terminava a via-
gem para André. Daquele lugarejo em diante seu novo guia seria Dinarte
Couto Arruda, fazendeiro e chefe do Partido Republicano de Rupp Júnior na
região. André retornou com os dois cavalos e Chateaubriand e Arruda toma-
ram animais novos, descansados. Pelo que o jornalista tinha ouvido André
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falar com o novo guia, este o acompanharia até Monte Alegre, última etapa
antes de chegar a São Joaquim. O trecho que ele teria de cumprir sozinho, no
final, era uma linha reta de duas léguas, coisa para fazer em menos de uma
hora.
São Joaquim era uma cidade com mais de três ruas, casas, comércio, e
sua fama de foco aliancista radical era tão grande que meses antes passara
por lá o tenente Siqueira Campos, em pessoa, para fazer contatos com o che-
fe local da Aliança - Juão Palma, destinatário da carta de Rupp que Chateau-
briand queimara em Bom Retiro. Tão forte era o fervor getulista de São Joa-
quim que ela acabaria disputando com Lajes a glória de ter sido a primeira
cidade de Santa Catarina a ser inteiramente controlada pelos revolucioná-
rios. E sem a ajuda de ninguém de fora. Depois da visita de Siqueira Cam-
pos, que lá estivera para "animar " os aliancistas, estes passaram a armaze-
nar armas secretamente. Quando chegou a notícia de que a revolução tinha
rebentado em Porto Alegre já havia mais de oitenta armas de fogo - Win-
chesters de caça, revólveres, pistolas e fuzis - depositadas nas mãos de Chi-
co Palma, terceiro dos irmãos responsáveis pela organização do movimento
em São Joaquim. Às quatro da madrugada do dia 4 alguém chegou com a
notícia de que a revolução tinha começado. Ao cercar o pequeno quartel lo-
cal - um alojamento de madeira com dez soldados comandados por um te-
nente -, uma centena de civis armados percebeu que não haveria luta: a tro-
pa tinha abandonado a cidade nas suas mãos. A autoridade máxima passou
a ser exercida pelo autoproclamado major Bibiano Rodrigues Lima, que logo
transformou aquela horda em um destacamento, distribuindo patentes de
"capitão revolucionário" e "tenente revolucionário " a seus homens de con-
fiança.
Assim, quando Chateaubriand chegou a Monte Alegre (de onde Dinar-
te Arruda retornou para Painel), São Joaquim estava sob o absoluto
contro-
le dos revolucionários. Embora outubro seja o mês da florada das milhares
de macieiras e pereiras da regiãu - o que dava a São Joaquim um festivo ar
europeu -, o tempo horroroso emprestava à cidade a que Chateaubriand
chegava uma atmosfera funesta. Desde que ele saíra de Florianópolis não pa-
rara de chover um minuto sequer, e a temperatura parecia caminhar em di-
reção oposta à dos ponteiros do relógio: quanto mais se aproximava do
meio-dia, mais escuro o tempo ia ficando. E os ponteiros do termômetro
também pareciam acompanhar a luz. Com a escuridão, a temperatura caía
cada vez mais, transformando a elegante capa Burberry's em um pedaço de
pano leve e incapaz de proteger o jornalista do frio insuportável.
Ao entrar em São Joaquim, Chateaubriand resolveu bater na primeira
porta amiga que lhe apareceu pela frente: a farmácia de Hilário Braer, o alian-
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FERNANDO MORAIS
cista para quem ele deveria trazer uma carta de Rupp - como a dos Palma,
também incinerada em Bom Retiro. Andando com as pernas abertas para
evitar que uma coxa encostasse na outra, o que provocava uma sensação
muito dolorosa, amarrou o cavalo num poste e apresentou-se ao farmacêu-
tico. Descreveu com detalhes as adversidades e provações que experimenta-
ra desde a decolagem do Junkers no Rio de Janeiro, quantos dias antes? Fez
as contas: apenas três dias, que mais pareciam três semanas de sofrimentos.
Falou de Rupp, da barreira de soldados na estrada, do corte do fio do telé-
grafo, das cartas para os Palma e para ele queimadas na casa de Gerôncio
Thibes, da morte inesperada de Jango Matos. O catarinense descendente de
alemães ouvia tudo aquilo tomado por mineira desconfiança. A história era
rocambolesca demais para ser verdadeira. Perguntou se ele tinha algum
documento que o identificasse - não, ele tinha perdido em algum desses lu-
gares o único documento que carregava. Bem, matutou o farmacêutico: o es-
tranho que esperasse ali no balcão por alguns instantes, enquanto ele ia lo-
calizar os irmãos Palma.
Minutos depois vieram os Palma. Os três. Mas trouxeram consigo o ma-
jor Bibiano, o capitão Fulano, os tenentes Beltrano e Sicrano. Todos armados
de fuzis e carabinas - e todos muito mal-encarados. Um tanto assustado
com a recepção hostil, Chateaubriand foi obrigado a repetir toda a história,
com riqueza de detalhes ainda maior. Desta vez não era um relato, mas um
interrogatório. A cada episódio, um mamute daqueles o interrompia: "Mas
quando foi isso?". "O senhor tem testemunhas do que está dizendo?" "Ah,
testemunha era um guia que voltou do meio do caminho?" "E o senhor só
sabe que ele se chamava André, nada mais?" A primeira providência toma-
da depois da ocupação da cidade pelo major Bibiano Lima - um paisano
sanguinário que vivia jurando vingança ao pai, morto em Lajes na
revolução
de 1893 - tinha sido montar um "pelotão de fuzilamento para os crimes de
espionagem e alta traição à revolução ". Seus olhos brilhavam à medida que
aquele estranho nanico repetia a inverossímil história. Seu pelotão de fuzila-
mento ia ser inaugurado naquele momento:
- Tu queres que nós acreditemos que tu és o Assis Chateaubriand,
dono dos jornais, membro da direção nacional da Aliança Liberal? O Assis
Chateaubriand em pessoa aqui em São Joaquim, logo hoje, e de surpresa? Se
não tivesses queimado essa batina imaginária e aparecesses aqui vestido
com ela, ias querer nos convencer de que eras o cardeal Leme, pois não? Pois
eu vou dizer quem tu és: tu és um espião a serviço de Washington Luís, de
Fúlvio Aducci, do general Nepomuceno Costa. E espião aqui nós passamos
em armas. Tu vais ser fuzilado por espionagem!
Às poucas vozes do grupo que preferiam esperar um pouco mais para
se certificar de que o suspeito era de fato um espião, Bibiano respondeu ris-
pidamente:
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
- O único defeito imperdoável em um revolucionário é a covardia! Eu
sou o chefe militar da cidade e quem se opuser ao fuzilamento será acusado
de covardia e cumplicidade. E será passado em armas junto com o espião!
Pálido de pavor e incrédulo diante do que testemunhava, Chateau-
briand começou a berrar:
- Os senhores enlouqueceram! Mandem um emissário a Florianópolis
procurar o doutor Rupp Júnior! Mandem alguém a Bom Retiro e perguntar
ao Gerôncio Thibes, ele me viu queimando as cartas e a batina na lareira de
sua casa! Isso que os senhores vão fazer é uma selvageria, vão fuzilar um
inocente! Eu sou um revolucionário, sou um camarada de vocês!
De nada valeram os protestos. Sem esperar voluntários, o major pôs-se
a selecionar os sete homens que iriam executar o espião. Chateaubriand con-
tinuava sem acreditar no que via: tantos anos de luta, tanta conspiração, e
depois de uma viagem absurda como a que fizera ele ia morrer como um ca-
chorro raivoso naquele inferno, a 1400 metros de altitude, sem ter como rea-
gir, sem ter a quem recorrer. Ia morrer pelas armas da revolução que ajuda-
ra a fazer.
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Os soldados que iam compor o pelotão de fuzilamento já estavam sen-
do selecionados pelo major para proceder à execução, quando um homem
de botas de cano alto, que se aproximara do grupo durante os protestos de
Chateaubriand, chamou o major Bibiano para confabular a distância, apa-
rentemente sensibilizado pelos argumentos do suposto espião. O homem co-
chichava no ouvido do major palavras inaudíveis para Chateaubriand. O
chefe revolucionário apenas escutava, às vezes arqueando as sobrancelhas,
sem dizer nada. Chateaubriand sentiu um enorme alívio quando o major as-
sentiu com a cabeça, como se dissesse "sim" - ele tinha o pressentimento de
que o sujeito das botas argumentava a seu favor, e acertara na mosca. Bibia-
no voltou ao muro onde Chateaubriand já se encostara para ser fuzilado,
desfez "provisoriamente" a formação do pelotão e anunciou ao espião:
- Tua execução foi adiada por uma hora. Até lá tu vais permanecer em
prisão domiciliar na pensão do Apolinário.
Chamou dois praças armados - como todos os demais militares, dois
civis que haviam recebido postos revolucionários - e ordenou que eles o le-
vassem algemado até a tal pensão, onde os soldados requisitaram um quar-
to para "instalar o detento". Apolinário, o dono da pensão, avisou aos três
que na casa dele ninguém entrava sem assinar o livro de registro de hóspe-
des - ainda que fosse um detento. E exigiu que Chateaubriand preenches-
se uma linha do enorme livro negro, com seu nome por extenso, profissão,
estado civil e assinatura. O que Chateaubriand não sabia é que toda a cena
havia sido combinada entre os revoltosos. E que, ao assinar o livro da pen-
são, estava começando a salvar a própria vida. O homem das botas de cano
alto avisara ao major Bibiano que havia na cidade um meio eficaz de se sa-
ber se aquele homem era mesmo Assis Chateaubriand ou um espião que se
fazia passar pelo jornalista: o garoto César Martorano, de dezenove anos, um
dos jovens que haviam recebido a patente de "tenente revolucionário", era o
representante de O Jornal em São Joaquim. Além de vender assinaturas, ele
costumava mandar notícias da cidade para o matutino carioca - em geral,
no inverno, as eternas notícias sobre a neve caindo na "cidade mais fria do
Brasil". César Martorano tinha uma carteira funcional assinada pelo verda-
deiro Chateaubriand. Então, sugerira o homem ao cochichar com Bibiano,
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
era preciso arranjar um jeito de fazer aquele suposto espião assinar em al-
gum pedaço de papel. Se a assinatura conferisse com a da carteira de Mar-
torano, ele seria libertado. Caso contrário, que montassem logo o pelotão,
passassem fogo no espia e acabassem com aquilo.
Enquanto Chateaubriand era levado para o quarto pelos dois rapazes, o
livro foi recolhido na portaria da pensão pelo próprio major, que o carregou
até a farmácia de Hilário Braer, onde o esperava César Martorano com sua
carteirinha na mão. Ela tinha duas assinaturas, e a primeira, do gerente, era
redonda e facilmente legível: "O. R. Dantas", de Orlando Ribeiro Dantas.
Mas a de Chateaubriand, como já alardeavam us curiosos em cujas mãos a
carteirinha circulava, era "ilegível e infalsificável": cerca de trinta garran-
chos verticais, paralelos e levemente inclinados para a direita. Autoritário,
Bibiano quis conferir ele mesmo as duas assinaturas. Colocou a carteirinha
sobre o livro de registros da pensão e não precisou olhar duas vezes para se
certificar. Voltou-se para o grupo de pessoas que se aglomerava na porta da
farmácia e anunciou, não sem certo constrangimento, mas tomando o cuida-
do de dividir a culpa com todos os presentes:
- Quase fuzilamos um inocente. O homem que está preso na pensão é
mesmo o doutor Assis Chateaubriand.
De cachorro louco o jornalista foi imediatamente promovido a personali-
dade da cidade e herói da revolução - honrarias que dividia com César Mar-
turano, "o menino que salvou a minha vida". Todas as autoridades da cidade
queriam vê-lo de perto, apalpá-lo, conversar com ele, festejá-lo. O juiz de di-
reito José Fonseca Nunes de Oliveira e o prefeito Boanerges Pereira de Medei-
ros disputavam o privilégio de oferecer-lhe o jantar e um quarto para dormir
aquela noite em suas casas. Acabaram comendo todos a seu lado na acanha-
da sa la de refeições da pensão do Apolinário, onde ele dormiu até a madru-
gada seguinte, quando seguiu viagem em direção ao Rio Grande do Sul.
Desta vez ele tinha como guias o próprio Marturano e Antônio Palma.
Apesar de medicado na noite anterior, as pernas e a virilha continuavam ar-
dendo como fogo. Mesmo assim tiveram de sair a cavalo em direção a Bom
Jesus, já no Rio Grande, de onde seria possível tomar um carro para Vacaria
e de lá tocar para Porto Alegre. A distância do próximo trajeto seria de apro-
ximadamente cem quilômetros, quase um terço do trecho percorrido de Flo-
rianópolis a São Joaquim. Apesar disso, a escarpada costa do Lava-Tudo iria
obrigar Chateaubriand a mais três dias em lombo de cavalo. Quando a noi-
te caiu, os três jantaram na fazenda do "coronel" Inácio Palma, pai dos três
revolucionários de São Joaquim. Cavalgaram até o meio da noite e dormi-
ram algumas horas na fazenda de Augusto Pires, às margens do rio Lava-
Tudo, que divide os municípios de São Joaquim e Lajes.
Saíram de novo com o dia escuro, levando agora incorporado ao grupo
o jovem Nico Pires, de 22 anos, filho do fazendeiro e conhecedor da região.
243
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Nico guiou-os até a parte mais estreita do rio (que em alguns lugares chega
a medir cem metros de largura), trecho que era também o mais encachoeira-
do, o que obrigou o rapaz a atravessar os viajantes um a um, num pequeno
barco a remo. Quando os três homens estavam em segurança na outra mar-
gem, levou os arreios dos animais dentro da canoa e só então atravessou os
cavalos a nado, cada qual com uma corda no pescoço. Tudo isso foi feito com
noite fechada, debaixo de chuva e sob a mais absoluta escuridão. Quando
Nico se preparava para retornar ao outro lado do rio, Chateaubriand cha-
mou-o, sacou do bolso da capa um maço de notas, tirou uma parte delas,
sem contar, e entregou ao rapaz.
Depois de um dia inteiro de cavalgada pela montanha que já começava
a acabar, dormiram a noite do dia 8 em Coxilha Rica, na fazenda de outro
"coronel", Belisário Ramos, à beira do rio Pelotas, caminho de Bom Jesus. O
dono da casa era pai de Aristiliano Ramos, vereador em Lajes e que naque-
le momento se encontrava em Porto Alegre, incorporado a uma das colunas
que sairiam da capital gaúcha em direção ao Rio de Janeiro. Quando o dia
amanheceu haviam atravessado o rio Pelotas, pisando finalmente em terri-
tório gaúcho. Chateaubriand festejou à sua maneira a entrada no Rio Gran-
de do Sul:
- Eu já tinha vencido o general Nepomuceno Costa no jornalismo,
quando noticiei sozinho a sua punição. Hoje venço-o militarmente, atraves-
sando incólume o território controlado por suas tropas.
Agora só tinham pela frente um pequeno trecho em terreno plano, a
poucos quilômetros de distância de Bom Jesus, onde chegaram à noite - tão
exaustos que comeram e caíram na cama. Na manhã seguinte Chateau-
briand despediu-se de Palma e Martorano, deixando com este, como um
amuleto, o amarrotado bilhete da Condor que, se ele se lembrasse de usar,
poderia tê-lo poupado do pânico de São Joaquim, pois ali estava escrito seu
nome, peso e horário de embarque no Rio de Janeiro, no dia 3 de outubro.
Em poucas horas chegou a Vacaria e encontrou a cidade sitiada por tropas
revolucionárias. Dirigiu-se ao quartel-general e encontrou o general Valdo-
miro Lima "quase sem material bélico, à frente de trinta ou quarenta oficiais
que tentavam enquadrar irregulares bisonhos que haviam se apresentado
como voluntários". Conseguiu um carro militar que o deixou na capital gaú-
cha no meio da tarde do dia 10 de outubro - uma semana depois de ter em-
barcado no avião da Condor no Rio de Janeiro.
Ao chegar em Porto Alegre, transformada em praça de guerra, Chateau-
briand foi direto para o QG revolucionário, onde só encontrou Osvaldo Ara-
nha, nomeado governador do Rio Grande do Sul: Getúlio Vargas e todo o
seu estado-maior tinham embarcado naquela manhã num trem militar para
o Paraná. Horas antes dele, outra composição tinha partido para o norte le-
vando 3 mil soldados da cavalaria. O destino das duas composições era o Rio
de Janeiro, mas provisoriamente Vargas iria acantonar suas tropas em Curi-
245
tiba e Ponta Grossa, antes de decidir como atravessar São Paulo, que prome-
tia resistir à invasão gaúcha.
Aranha tinha nas mãus dois telegramas. Um era datado do dia 7 e assi-
nado pelo irmão de Chateaubriand, Ganot, pedindo notícias do jornalista,
"visto constar ter sido preso sexta-feira em Florianópolis". O outro era diri-
gido ao próprio Chateaubriand e vinha da cidade de Sengés, no extremo
norte do Paraná, a centenas de metros da fronteira paulista: era do general
Miguel Costa, destacado por Vargas para organizar a invasão do território
paulista. Heitor Penteado, governador de São Paulo, havia prometido que as
tropas revolucionárias não passariam de Itararé, cidade a menos de cinco
quilômetros de Sengés. A invasão - e a batalha que ela implicaria - era
iminente, e no telegrama Miguel Costa convidava o jornalista a se incorpo-
rar a seu estado-maior.
Contra a vontade de Osvaldo Aranha, Chateaubriand decidiu que ia lu-
tar ao lado dos revolucionários. Em vão o governador provisório do Rio
Grande tentou demovê-lo de se envolver em combates. Aranha achava uma
rematada loucura um paisano sem experiência militar meter-se em uma ba-
talha que se anunciava feroz:
- Não vás, Chateaubriand, jornalista não tem que se bater. O lugar do
jornalista na guerra é na retaguarda, estimulando o moral das populações ci-
vis e dos combatentes.
246
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FERNANDO MORAIS
Era como se ele falasse a um surdo. Chateaubriand arranjou um carro,
foi até o posto mais próximo e alistou-se como voluntário. Enquanto um ca-
pitão preenchia um formulário com os dados que ele ditara, experimentou
vários tamanhos de uniforme, arranjou um que lhe servia, trocou o surrado
chapéu desabado por outro da brigada militar, de aba dura, e prendeu a pis-
tola Lugger na cintura. Ao assinar a ficha de alistamento, no lugar destina-
do a "patente pretendida" escreveu: "soldado raso ". Foi no mesmo carro até
a agência da Latécoère e, com o que lhe restava dos vinte contos ganhos de
Betim Paes Leme, comprou uma passagem para o único vôo reaberto pela
empresa: no dia seguinte embarcaria para Curitiba.
Aos poucos, nos contatos com Aranha e com outros oficiais que tinham
ficado na cidade, ia se inteirando do ocorrido na semana anterior. Cinco dias
antes, quando todo o estado já havia aderido à revolução, Vargas começou a
montar as colunas militares que subiriam para o norte. Miguel Costa seguiu
à frente de seus soldados para São Paulo, conquistou todas as cidades do Pa-
raná e de Santa Catarina por onde havia passado e agora estava estacionado
em Sengés. O destacamento comandado pelo tenente Alcides Etchegoyen,
promovido ao posto de coronel revolucionário, havia tomado todo o Paraná
e agora marchava sobre Santa Catarina. Atrás dele vinha outra coluna, che-
fiada por João Alberto, "varrendo" o terreno e consolidando as vitórias ob-
tidas pelos outros dois oficiais. A chamada "Divisão do Litoral", sob o co-
mando de Assis Brasil, subia pela costa a fim de cercar Florianópolis, ainda
sob o controle do general Nepomuceno Costa. O destino final de todas as co-
lunas - e do comboio que levava Getúlio e seu chefe do Estado-Maior Re-
volucionário, tenente-coronel Góis Monteiro - era o Rio de Janeiro. Debo-
chadamente, os gaúchos prometiam amarrar seus cavalos no obelisco da
Avenida Rio Branco, no centro do Distrito Federal- o que acabatriam fazen-
do, literalmente, três semanas depois.
Dezenas de navios mercantes fundeados no rio Guaíba, em Porto Ale-
gre, no dia 3, foram transformados em prisões flutuantes, onde se encontra-
vam centenas de oficiais do Exército, presos por se recusarem a aderir à re-
volução. Um dos presos o jornalista fez questão de visitár pessoalmente. Era
o general Cândido Rondon, que Miguel Costa encontrara ao passar pela ci-
dade de Marcelino Ramos, no interior do estado. Ao se recusar a aderir à re-
volução, Rondon foi no ato declarado "prisioneiro de guerra" por Costa,
mas sempre tratado com deferências especiais - tanto que era o único a me-
recer o privilégio de ficar em prisão domiciliar em Porto Alegre. Ao passar
pela rua da Praia com Osvaldo Aranha, Chateaubriand comentou que o Bra-
sil deveria se orgulhar daquela oficialidade encarcerada:
- Esta é a mais animadora perspectiva para o pós-revolução, Aranha.
Com um exemplo destes, o Brasil não corre o risco de novas irrupções mili-
tares. Só da guarnição de Porto Alegre foram presos mais de duzentos ofi-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
ciais! Ao contrário do que parece, isso não é covardia, é o coeficiente mais
animador de disciplina que o Exército poderia dar.
Debaixo de um aguaceiro que parecia não ter fim Chateaubriand che-
gou a Curitiba no dia seguinte, partindo de carro sem qualquer demora para
Ponta Grossa, onde chegou a tempo de receber o comboio que trazia Getú-
lio, Góis Monteiro, Flores da Cunha, João Neves da Fontoura, Maurício Car-
doso, Virgílio de Melo Franco e dezenas de oficiais. Ao se encontrarem, Var-
gas festejou a alegria de rever o amigo, fardado e de pistola na cinta, com o
melhor presente que Chateaubriand poderia pretender: ele teria ali, com ex-
clusividade, a primeira entrevista do chefe supremo da revolução. Como se
sabia que os jornais do Rio e de São Paulo estavam sob censura, combinaram
que a entrevista seria publicada apenas no Diário de Noticias de Porto Alegre.
A única exigência de Vargas, dadas as circunstâncias que estavam vivendo,
é que ele pudesse ler os originais antes da publicação - o que obrigou Cha-
teaubriand a tomar as notas num pedaço de papel e depois ditar os garran-
chos, legíveis apenas pelo autor, para um ordenança que os datilografou.
Getúlio começou a entrevista apelando aos voluntários gaúchos no sen-
tido de que mandassem "toda a cavalhada disponível no estado " para Pon-
ta Grossa, de modo a equipar as tropas que se preparavam para invadir São
Paulo. O número de soldados no Paraná era inferior aos cavalos disponíveis,
e ele acreditava que a cavalaria seria a arma mais eficiente na prometida to-
mada do território paulista: "Acentua aí nos teus escritos ", ditava Vargas,
"que o rio-grandense é um bom pelejador a pé, mas que pode ser ainda me-
lhor montado ". Para encerrar, pediu que o jornalista acrescentasse um pará-
grafo a mais:
- Anda, senta aí e escreve que até ontem agíamos em função de um
programa político. Mas a Aliança Liberal foi formada para se fazer a campa-
nha da sucessão. Hoje, entanto, estamos dentro de um segundo tempo, uma
insurreição armada. É uma coisa muito diferente. E podes salientar que a re-
volução terá que ser radical tanto nos princípios quanto na execução deles.
Depois de despachar pelo telégrafo militar a entrevista para Porto Ale-
gre (e que depois do triunfo da revolução seria publicada pelos outros jor-
nais), Chateaubriand retornou a Curitiba no dia 13, onde se apresentou
como voluntário ao capitão gaúcho Filipe Portinho. Quando lhe pergunta-
ram por que havia recusado convites de Miguel Costa e Góis Monteiro para
alistar-se em suas tropas e decidira apresentar-se a Portinho, ele respondeu:
- Vou retornar a Ponta Grossa para entrar em São Paulo de arma na
mão, junto com a tropa. E lá em Itararé vou precisar de alguma experiência
em caudilhagem. Foi por isso que troquei Góis e Miguel Costa pelo capitão
Portinho: é um caudilho legítimo, e é com ele que vou aprender caudi-
lhagem.
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FERNANDO MORAIS
Por mais de uma semana Chateaubriand permaneceu em Curitiba. Não
chegou a dar um tiro sequer, e acabou o tempo todo fazendo entrevistas e re-
colhendo impressões para os artigos e reportagens que só começariam a ser
publicados em seus jornais no dia 4 de novembro. No dia 22 retornou a Pon-
ta Grossa e de lá subiu mais 150 quilômetros em estrada de terra batida até
Sengés, para arrancar do general Góis Monteiro, que supervisionava as tro-
pas de Miguel Costa, também a primeira entrevista do chefe militar da revo-
lução - igualmente transmitida primeiro para o único de seus veículos a
salvo da censura, o Diário de Noticias.
No dia de 24 de outubro retornou com Góis Monteiro para Ponta Gros-
sa. Percebeu que o ataque a São Paulo seria desfechado em questão de horas
e, temendo que lhe escamoteassem informações, como acontecera no dia 3,
montou sua cama de campanha ao lado da cama de Góis Monteiro, no va-
gão-dormitório do trem, e não saiu mais de perto do general. À noite chegou
a notícia que transformaria em abstração a tão esperada "batalha de Itararé":
após rejeitar uma proposta de renúncia que lhe havia sido levada pelo car-
deal Sebastião Leme, o presidente Washington Luís fora deposto e preso por
uma junta militar chefiada pelo general Augusto Tasso Fragoso. O próprio
general assumira a chefia do governo provisório, tendo tirado da diretoria
de O Jornal dois de seus ministros: Gabriel Bernardes, nomeado ministro da
Justiça, e Afrânio de Melo Franco, ministro das Relações Exteriores. Para
surpresa dos revolucionários parados no trem em Ponta Grossa, a junta no-
meara interventor no estado de São Paulo o general Hastínfilo de Moura,
comandante da 2ª Região Militar e ferrenho defensor de Washington Luís.
Chateaubriand passou a noite acordado, saboreando o privilégio de teste-
munhar horas históricas para o futuro do país. Sentado numa beirada da
cama do general, não perdeu um instante sequer do decisivo bate-boca que
Góis Monteiro (sempre com um vigilante Getúlio Vargas a seu lado) trava-
va pelo telégrafo com o chefe da junta governativa no Rio - cujo comporta-
mento dava a entender que o general Fragoso nãu pretendia abandonar tão
facilmente a principal cadeira do Catete. Segundo Chateaubriand escreveria
depois, Getúlio parecia ser o único ali a não temer que alguém lhe roubasse
o poder. No meio da madrugada, bocejando, deu um tapinha nas costas do
jornalista:
- Não te assustes, que isto é apenas uma conversa entre militares.
Como sou um civil, vou dormir.
Sem pregar o olho um minuto, Chateaubriand continuava desperto às
sete da manhã quando Getúlio reapareceu no vagão de barba feita, bem-dis-
posto, trajando um impecável terno cáqui e rolando um enorme charuto ace-
so entre os dedos. Puxou assunto com Chateaubriand, com quem falou so-
bre a política exterior que imaginava para o governo revolucionário. Depois
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
de meia hora de conversa, sentindo o chefe revolucionário pouco amistoso
com os Estados Unidos, o jornalista pôs-se a declamar "as virtudes da ami-
zade americana em relação ao Brasil". Vargas ouviu-o com paciência antes
de comentar, como se quisesse encerrar a conversa:
- Chateaubriand, eu nunca te imaginei tão americanófilo...
Ele não se deu por vencido:
- Não é isso, doutor Getúlio, é que eu sou realista. Onde estaria nosso
café se não fosse o consumidor americano? Sem os Estados Unidos nós não
passamos de um espirro de gato.
Com a deposição e prisão de Washington Luís, desmoronou também o
ânimo de resistência dos paulistas - e a "batalha de Itararé" acabou nunca
acontecendo. O trem que estava parado ali havia vários dias pôs-se em mo-
vimento, desta vez levando novos passageiros. Além de Chateaubriand, em-
barcaram também João Alberto (que desceria em São Paulo para assumir o
controle do estado, com o cargo provisório de delegado militar revolucioná-
rio), Virgílio de Melo Franco, Maurício Cardoso e, representando o Partido
Democrático de São Paulo, Paulo Nogueira Filho. Junto com Washington
Luís caíra a censura à imprensa, e no dia 27 os jornais de Chateaubriand co-
meçavam a publicar artigos e reportagens sobre fatos fresquinhos, ocorridos
no dia anterior. Em cada lugarejo onde o trem parava ele descia, conversava
com oficiais, políticos e com gente do povo. Com o trem em movimento di-
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FERNANDO MORAIS
tava ao radiotelegrafista as notas que eram transmitidas a O Jornal e de lá re-
passadas aos outros jornais da rede.
Quando o trem por fim chegou em Itararé, o jornalista desceu para en-
trevistar os soldados de um batalhão de cavalaria de Uruguaiana, no interior
do Rio Grande do Sul. "Aquela rapaziada guapa, forte, alegre, bela nas suas
vestes suntuosas ", publicariam os jornais no dia seguinte, "parecia pronta
para um torneio em Sevilha, uma festa em Granada, jogos florais em Sala-
manca ou para as bodas de um amigo, menos para um entrevero entre ir-
mãos. Não tinham a menor gana de pelejar com os paulistas. Não carre-
gavam a menor dose de empáfia e estavam contentes por voltar a suas
'querências' sem as mãos tintas do sangue fratricida." Chateaubriand procu-
rava transmitir a seus leitores os detalhes e a atmosfera vividos ao longo da
viagem: "Este artigo eu lhes envio do vagão que conduz, da frente de bata-
lha até Itararé, em festas, o sr. João Neves da Fontoura e seu estado-maior.
Rendeu-se sem disparar um tiro a cidade que era a chave da resistência de
São Paulo - não direi de São Paulo, porque não era o estado que ia ser ata-
cado, mas da fortaleza chinesa do PRP. O general Flores da Cunha já havia efe-
tuado uma teimosa marcha de quatro dias, atravessando o rio Itararé, a fim
de colher, pelo flanco direito, a retaguarda paulista. Apenas uma hora antes
de ter início a grande ofensiva é que chegou às nossas linhas, pelo telégrafo,
a notícia da deposição do sr. Washington Luís. Evitou-se uma horrível carni-
ficina, que não poderia deixar de confranger os homens de sensibilidade".
No dia 29, o comboio passou por São Paulo, quando Getúlio nomeou
João Alberto seu delegado militar no estado. E só no dia 31, quase um mês
após a eclosão da revolução, é que o primeiro trem, que transportava as tro-
pas, despejou no Rio de Janeiro os 3 mil soldados gaúchos a cavalo - os tais
que amarrariam os animais no obelisco. Horas depois chegava a composição
com Vargas, que quatro dias depois assumiria definitivamente a chefia do
governo provisório. A foto dele descendo no Rio, fardado e cercado de mili-
tares, apareceria dias depois na capa de O Cruzeiro - a primeira a ser im-
pressa sem o tradicional desenho de um rosto feminino.
Nas semanas seguintes, O Cruzeiro e os jornais de Chateaubriand pare-
ciam diários oficiais dos revolucionários. Já a partir do dia 4 começaram a ser
desovados entrevistas, artigos e reportagens feitos no front durante o perío-
do da censura. Poucos dias depois da posse de Getúlio, O Jornal, o Diário da
Noite e a revista ofereceram um gigantesco churrasco aos 3 mil soldados gaú-
chos acampados na Quinta da Boa Vista, quando foram consumidos 1200 li-
tros de chope generosamente oferecidos pela Brahma. Representando Getú-
lio, o general Flores da Cunha aparecia, na farta cobertura jornalística,
circulando entre Chateaubriand, a poetisa Ana Amélia Carneiro de Mendon-
ça e Austregésilo de Athayde, todos circundados por centenas e centenas de
jovens soldados fardados e de lenços vermelhos amarrados ao pescoço. No
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
dia 18 de novembro, Chateaubriand publicou um extenso artigo intitulado
"Um monstro" - sendo que o monstro a que ele se referia era o novo chefe
do governo provisório. Irônico, ele chamava a atenção de seus leitores para
um novo Maquiavel que surgia no cenário nacional:
Floriano teria que aprender consigo o abc da astúcia. Bismarck seria seu discípu-
lo, a fim de desgastar os excessos de violência e de personalidade que tantas ve-
zes lhe comprometeram o êxito do jogo político. Ele é um misto de Lusbel e de
Arcanjo. Apaga uma labareda e acende outra. Construiu uma guerra civil com a
mesma imperturbável fleuma com que liquidou os remanescentes da outra, que
ainda havia em estado potencial nos pampas. Na sua escola de manha política e
de esperteza, aqueles que acreditamos os grandes mestres jubilados entrariam
para freqüentá-la nos bancos do jardim-de-infância. Antônio Carlos, Artur Ber-
nardes, Olegário Maciel, em quem podemos reconhecer as raposas mais astucio-
sas do nosso meio politico, seriam tenras criancinhas de peito diante desse mes-
tre prodigioso da arte de dissimular as suas paixões e os seus pensamentos.
[...) A não ser os pouquíssimos íntimos que o conheciam, todos - Washing-
ton Luís, Júlio Prestes -, todos, enfim, se iludiram quanto aos seus propósitos.
Quando 40 milhões de brasileiros (inclusive 3 milhões de gaúchos) esperavam
do sr. Getúlio Vargas uma suave adesão ao sr. Júlio Prestes, ele aparece com
uma revolução em grande, como o Brasil jamais vira outra de tais proporções,
para derrubar dezoito governadores e dois presidentes da República e subver-
ter o regime - tudo isto com um imprevisto irônico, que parece diabrura de Pe-
dro Malasartes. Um cidadão escandinavo meu amigo me disse, quando eu re-
gressei do Sul, que a figura humana do sr. Getúlio Vargas desafiava um Balzac.
Pela primeira vez alguém, menos de duas semanas após a posse de Var-
gas, cometia a ousadia de referir-se a seu governo como uma ditadura:
Sem dúvida, quando refletimos sobre o personagem que administra com um
doce sorriso a ditadura brasileira, e pensamos nas proezas homéricas que ele
perpetrou nesses últimos quinze meses, sentimo-nos diante de um cauchemar.
[...] O sorriso do presidente Vargas, e eu lho disse uma vez de viva voz, tem
qualquer coisa do indecifrável mongólico. É o sorriso enigmático, misterioso,
sutil e medido do oriental. O Rio Grande era, até aqui, uma floresta africana que
só produzia leões. O sr. Getúlio é a primeira raposa do pampa. É uma raposa
tão esperta que as uvas que andaram verdes para todos os papáveis das coxi-
lhas amadureceram como por encanto só para si. Maquiavel é pinto perto do sr.
Getúlio Vargas.
O primeiro reencontro formal dos dois desde a viagem de trem aconte-
ceria dias após a publicação do artigo. Eles se cruzaram por acaso na casa de
João Daudt de Oliveira, e Chateaubriand pediu-lhe o privilégio da primeira
entrevista depois de empossado. Junto com Getúlio estava sua filha e biblio-
tecária, Alzira, de dezesseis anos, que advertiu o jornalista:
- Doutor Assis, seus jornais têm se referido a mim como "a senhorinha
Getúlio Vargas ". Avise a seus empregados que isso vai acabar. Eu não sou
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
uma das "senhorinhas Getúlio Vargas". Meu nome é Alzira e é assim que eu
gostaria de ser tratada.
Indiferente ao mal-estar criado pela mocinha, Chateaubriand insistiu e
o presidente aceitou dar a entrevista. Dias depois, os seis jornais da cadeia
publicavam uma página inteira intitulada "A nova revolução", onde Vargas
explicitava, item por item, os dezessete pontos de sua plataforma de gover-
no. Depois de prometer "redimir o país da servidão econômica e financeira",
Getúlio fez, sem ouvir protestos do jornalista, uma exortação ao nacionalis-
mo - palavra em geral excomungada do dicionário de Chateaubriand. E,
para espanto de quem acompanhava as idéias deste, ele próprio se encarre-
garia, em um artigo publicado logo depois, de reforçar o bordão presiden-
cial. Como se pretendesse levar a revolução até os hábitos cotidianos de seus
leitores, Chateaubriand escreveu:
Usemos de preferência roupas de algodão. Vem aí o verão. Eliminemos os ter-
nos brancos de linho. Vamos nos vestir com brim de algodão e que os homens
ricos e abastados sejam os primeiros a lançar a moda. O Brasil produz artigos fi-
nos de algodão. Tem casimiras nacionais do Rio Grande, São Paulo e Rio. Que
todos os brasileiros não mandem fazer mais roupas senão de pano brasileiro, te-
cidos tanto quanto possível com matéria-prima do país. Se o saco de algodão
substitui o de juta, mesmo em inferioridade de condições, não tenhamos hesita-
ção: só se exporte café em sacos de algodão.
(...) O álcool-motor já é objeto de uso em todo o Nordeste e no interior de Mi-
nas. Ele é inferior à gasolina, bem o sabemos. Mas se a hora é de sacrifícios, fa-
çamo-lo o sucedâneo da gasolina, ou usemos esta misturada com aquele, con-
tanto que se diminua o peso da importação do combustível fora.
O auge da campanha seria a tingido com a divulgação, pelo Diário da
Noite do Rio, de fotos de Getúlio e de Lindolfo Collor envergando ternos de
brim nacional, dizia o jornal, "produzidos pela América Fabril e oferecidos
aos governantes por este jornal". Desnecessário dizer, a América Fabril era
um dos maiores anunciantes das empresas de Chateaubriand. Na onda na-
cionalista, até inocentes viagens turísticas ao exterior, segundo o jornalista,
eram manifestação de falta de patriotismo:
Que necessidade há, numa hora destas, de tantos brasileiros fazerem turismo no
estrangeiro? É ouro que exportamos para consumo lá fora, sem qualquer vanta-
gem consecutiva para o país. Vamos pedir aos brasileiros que costumam viajar
que reduzam ou suspendam, por enquanto, seus passeios ao exterior. Aos que
têm filhos lá fora, que os façam educar no país, nos colégios e nas academias
brasileiras.
O final do artigo parecia escrito por um dos "botocudos africanos" que
ele tanto combatia em seus jornais: "A defesa nacional nos exige atos de qua-
se heroísmo. Tenhamos a bravura de os praticar, sorrindo, com a fé na gran-
deza e na beleza moral da nossa terra". .
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FERNANDO MORAIS
Depois da entrevista com Getúlio, passou a mandar seus principais re-
pórteres ouvir, um por um, os ministros do novo governo. Ele se encarrega-
va de escolher o jornalista, de explicar-lhe como e o que deveria perguntar e
muitas vezes ia junto, para assistir à entrevista. Numa dessas ocasiões, cha-
mou o repórter Carlos Eiras e encarregou-o de fazer uma entrevista com Lin-
dolfo Collor, titular do recém-criado Ministério do Trabalho. Depois de pre-
parar o jornalista durante várias horas (Chateaubriand se orgulhava de ter
sido um dos autores, com Collor, do programa trabalhista da Aliança Libe-
ral), decidiu acompanhá-lo até o que chamava "o covil dos gaúchos" - o
Hotel Glória, onde Collor vivia. Quando entravam no saguão do hotel cru-
zaram com Alberto Boavista, dono do Banco Boavista. Chateaubriand pa-
rou-o e voltou-se para o repórter:
- Seu Eiras, mudei de idéia: quero que o senhor faça uma entrevista
aqui com o senhor Alberto Boavista.
O jornalista se surpreendeu:
- Mas, doutor Assis, tenho hora marcada com o ministro Collor daqui
a cinco minutos, não posso deixá-lo esperando.
Chateaubriand deu uma gargalhada:
- O ministro fica para depois, meu filho. Entreviste o senhor Boavista,
que é banqueiro, você não sabe?-E banqueiro é banqueiro, pois não?
Os afagos de Chateaubriand ao novo governo, entretanto, durariam
pouco. A primeira encrenca ele arranjou com um homem de confiança de
Getúlio, o interventor federal que o presidente nomeara para Pernambuco,
Carlos de Lima Cavalcanti, com quem, na juventude, ele tivera uma desa-
vença paroquial. Logo que soube da nomeação de seu desafeto para dirigir
um estado com o qual ele tinha ligações tão fortes, Chateaubriand publicou
um artigo intitulado "O mais covarde dos mendazes", onde dizia que nos úl-
timos quinze anos interrompera apenas duas vezes o seu desprezo por Ca-
valcanti "para caridosamente apertar a mão desse cidadão moralmente des-
classificado, cujos precedentes valem um monturo". Cavalcanti não teve
dúvidas: no dia seguinte assinou um ato demitindo o presidente do Tribu-
nal de Justiça do estado, desembargador Belarmino Gondim - que vinha a
ser irmão de Carmem Gondim e, portanto, tio do jornalista.
"Infame patife gabola", "covarde poltrão", "vilão" foram al-
guns dos insultos que Chateaubriand despejou sobre a cabeça do interven-
tor como resposta à demissão do tio. Quando todos imaginavam que Caval-
canti ia baixar a cabeça e assimilar o golpe, ele revidou com força redobrada.
Em nota distribuída à imprensa, anunciou que havia descoberto monumen-
tais falcatruas envolvendo os jornais de Chateaubriand e o governo deposto
de Estácio Coimbra, seu antecessor no cargo. Segundo o interventor, Chateau-
briand recebera, pessoalmente ou por intermédio de seus jornais, quase uma
centena de contos dos cofres pernambucanos para publicar noticiário favo-
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rável a Estácio Coimbra. Entre os vários documentos exibidos pelo interven-
tor, havia um que não deixava margem a dúvidas quanto à autenticidade da
denúncia. Era uma fatura de catorze contos, de 1929, onde estava escrito:
"Pagos a Assis Chateaubriand". De São Paulo seu irmão Oswaldo entrou na
briga, acusando Getúlio Vargas de ter entregue Pernambuco "a um entulho
humano". Chateaubriand continuou a guerra contra Cavalcanti, mas não
desmentiu a acusação. Ao contrário, afirmou com surpreendente candura
que aquilo não era imoral nem ilegal, mas uma prática comum, e que seus
jornais não eram os únicos a receber tais pagamentos. "Do governo de Per-
nambuco recebemos o que receberam os jornais do Rio e de São Paulo: a im-
portância da mensagem do governador do estado", admitiu em um artigo,
oferecendo detalhes da operação: "Algumas vezes essa mensagem era dada
na íntegra, outras vezes em tópicos. O pagamento feito a nós era feito igual-
mente ao Jornal do Commercio, ao Correio da Manhã, a O Globo, ao Estado de S.
Paulo e aos demais jornais que inseriam as mensagens". Ou seja, ele não ne-
gava que seus jornais recebiam dinheiro público para publicar noticiário fa-
vorável a um governo - apenas tentava se desculpar alegando que não era
o único a fazer isso. Nem apanhado com a boca na botija Chateaubriand per-
deu a verve. Para ele, a entrega do governo de Pernambuco a Lima Cavalcan-
ti era "um opróbrio de que jamais se livrará o governo do sr. Getúlio Vargas".
À exceção desta frase, o presidente da República tinha sido poupado
durante a troca de desaforos com o interventor de Pernambuco. Mas Getú-
lio não perdia por esperar. Mal o governo completara o primeiro mês de
vida, em dezembro, e Chateaubriand passou a bater sistematicamente na
mesma tecla: os excessos cometidos pelo governo nas prisões políticas e per-
seguições aos inimigos e adversários da revolução. Mais do que escrever so-
bre o assunto, chegou a cometer o atrevimento de ir às claras, em plena luz
do dia, à embaixada do Uruguai para visitar dois perseguidos que ali se en-
contravam protegidos, à espera de salvo-conduto para deixar o país rumo ao
exílio: Sebastião do Rego Barros e seu velho amigo e hospedeiro na infância,
o milionário José Pessoa de Queiroz.
No dia em que o governo nomeou os juízes do recém-criado Tribunal
Especial, destinado a julgar os "crimes qualificados" que infringiam a legis-
lação baixada pela revolução, Chateaubriand se arrepiou e pela primeira vez
divergiu frontalmente, não mais de um interventor, mas do próprio presi-
dente. Apresentando-se como "um obscuro professor de direito", disse cla-
ramente que não concordava com aquela "criação exótica que cheira a opres-
são, a vindita política e pessoal". Ao saber, dias depois, que os institutos
estaduais da Ordem dos Advogados do Brasil também haviam protestado
contra a criação de um tribunal de exceção para julgar crimes políticos, Cha-
teaubriand voltou à carga, pedindo "o imediato desaparecimento dessa ex-
crescência, desse aleijão".
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FERNANDO MORAIS
Ele, em O Jornal e no Diário da Noite, e o romancista Coelho Neto, no Jor-
nal do Brasil, passaram a ser dois cruzados da luta contra as arbitrariedades,
delações e prisões clandestinas. No meio desse torvelinho, Chateaubriand
foi procurado pelo seu antigo colaborador Humberto de Campos, que logo
depois do dia 3 de outubro escrevera um artigo em A Gazeta afirmando que
"a revolução está sendo feita pelos cavalos do Rio Grande e pelos porcos de
Minas Gerais ". Perseguido e impedido de trabalhar, Campos o procurava
em busca de ajuda. As versões de cada um deles para o mesmo episódio são
divergentes. O escritor deixou registrado em suas memórias que aguardava
a prisão "altivo e sereno, sem fugir à responsabilidade do que pensei e escre-
vi". Segundo Chateaubriand, porém, Humberto de Campos estava "entre
sarcástico, atormentado e aterrorizado ". Mais do que ser preso "ou ser mor-
to numa emboscada de gaúchos excitados ", escreveria o jornalista, "inquie-
tava-o o exílio, pela pobreza em que vivia". Chateaubriand não só interes-
sou-se pelo caso de Humberto de Campos, intercedendo por ele junto ao
novo ministro da Justiça, Osvaldo Aranha, como ainda desafiou o index da
revolução, oferecendo-lhe um emprego em O Jornal, a coluna diária "Notas
de um diarista".
A implicância de Chateaubriand sem dúvida não era pessoalmente con-
tra Getúlio Vargas. Seu medo residia nos "tenentes ", que ele imaginava es-
tarem arrastando o presidente e o governo para posições nacionalistas e es-
querdistas. "Esses meninos pensam que são estadistas", dizia para quem
quisesse ouvir, "mas ainda estão fedendo a mijo de cueiro." Toda noite, ao
deixar o jornal a caminho de sua casa em Copacabana, via o presidente da
República passeando pelas calçadas que cercavam o Palácio do Catete - e,
para sua irritação, sempre acompanhado de dois ou três "tenentes". Uma
noite ele não resistiu. Mandou o motorista parar o carro e caminhou até Var-
gas, a quem tratava insolentemente por "ditador ":
- Ditador, há semanas que eu passo aqui a estas horas e a cena é sem-
pre a mesma. Nem à noite o senhor larga seus tenentes?
Getúlio devolveu a provocação com uma resposta que deixou o jorna-
lista intrigado:
- Prefiro conviver com estes tenentes a ouvir os políticos da Aliança Li-
beral que me massacram o dia inteiro com os seus interesses e suas ques-
tiúnculas pessoais.
Aos mais íntimos Chateaubriand confessava seu verdadeiro temor: que
Vargas planejasse adiar para as calendas gregas a redemocratização do país
e, tão logo se sentisse forte em termos militares, permanecer indefinidamen-
te no poder como ditador. Para o jornalista, não era mera obra do acaso o
fato de não se falar expressamente em convocação de eleições em nenhum
dos dezessete itens do Programa de Reconstrução Nacional que o presiden-
te anunciara no dia de sua posse. Ali Vargas prometia uma vaga "reforma
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
do sistema eleitoral", depois da qual a nação seria "consultada sobre a esco-
lha de seus representantes ". Chateaubriand sabia que o presidente dedicava
olímpica indiferença a seus ataques a interventores ou até mesmo à defesa
de seus amigos presos pela revolução. Mas sabia também que estava mexen-
do em uma caixa de marimbondos ao tocar em dois temas proscritos do
vocabulário da maioria dos tenentes. Dois temas que, na sua opinião, eram
indissociáveis: a relação do governo federal com São Paulo e a redemocrati-
zação do país.
Mesmo certo de que estava provocando a ira de seus companheiros de
revolução, nos últimos dias de 1930 seus artigos foram quase todos dedica-
dos aos dois temas. Para Chateaubriand, a "tarefa transcendente " da revolu-
ção era levar o Brasil à normalidade constitucional, e para isso só havia, na
sua opinião, um caminho: "A pedra de toque para restituir à nação o gover-
no de si mesma só poderá ser a convocação de uma Assembléia Constituin-
te ". Chateaubriand mexia mais fundo na ferida ao chamar a atenção do pre-
sidente para "o erro inicial" praticado pela revolução em São Paulo - ter
dado ao mais poderoso estado da federação "um tratamento desconfiado".
Segundo o jornalista, Vargas errara ao submeter os paulistas ao "mais in-
quieto puro-sangue de todos os seus petiços", o tenente (agora coronel revo-
lucionário) João Alberto Lins de Barros. Como um profeta da guerra, Cha-
teaubriand alertava o presidente, com um ano e meio de antecedência, para
um tumor que começava a crescer e iria explodir em julho de 1932.
259
16
A revolução mal acabara de triunfar e a quantidade de artigos que Cha-
teaubriand tinha escrito desancando os tenentes e defendendo a convocação
da Constituinte era tão abundante que eles "dariam para encher uma ba-
nheira", segundo palavras do próprio autor. Para a maioria de seus leitores
devia ser difícil entender como o mesmo homem que era acusado de alugar
a opinião de seus jornais a um governador de Pernambuco (e que não nega-
ra a acusação) podia bater com tanta insistência em um governo forte como
o de Getúlio Vargas - e isso, aparentemente, sem nenhuma intenção subal-
terna. Nem mesmo seus piores inimigos conseguiam enxergar naquela pre-
gação alguma forma de chantagem, ou a defesa de interesses pessoais. Tudo
indicava que ele escrevia por convicção. E com um fôlego admirável: não ha-
via uma semana em que seus jornais não estampassem artigos insistindo no
mesmo cantochão - o problema não era Getúlio, mas os tenentes que o em-
purravam cada vez mais para a esquerda. Eles, sim, eram o grande obstácu-
lo à redemocratização do Brasil, que só viria quando a Constituinte fosse
convocada.
No começo do ano havia mais um jornal a reproduzir seus artigos: a
rede tinha crescido com o lançamento, em Belo Horizonte, do Diário da Tar-
de. Repetindo a fórmula que no Rio e em São Paulo fizera tanto sucesso, Belo
Horizonte, que já tinha um matutino "sério", o Estado de Minas, passava a ter
um vespertino "popular ", o Diário da Tarde. Como os dois jornais mineiros
trabalhassem com máquinas obsoletas, Chateaubriand mandou Dario de Al-
meida Magalhães arrematar em leilão, no Rio, as rotativas de O Pais, ferre-
nho adversário da Aliança Liberal e da revolução que fora empastelado e in-
cendiado por uma furiosa multidão logo após a vitória de outubro. Por 110
contos de réis os jornais de Belo Horizonte passaram a contar com equipa-
mento ágil e moderno.
E foi nessa época que, casualmente, nasceu o nome pelo qual a rede de
comunicações seria conhecida ao longo das décadas seguintes. No final de
1930 Chateaubriand escreveu um artigo para responder a uma pergunta que
segundo ele era feita insistentemente "pelos nossos amigos e por dezenas de
leitores que escrevem cartas às nossas redações": seus jornais estavam na
oposição ao governo Vargas? No artigo ele dizia que não, que os jornais não
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
tinham sido transformados em um partido de oposição. "Ocorre que habi-
tuamo-nos a falar alto", escreveu, "e, como não temos hábitos palacianos,
preferimos a tribuna dos nossos diários associados para debater os atos do
governo, com a sinceridade que o ditador já pediu aos jornalistas." Os sete
jornais e O Cruzeiro ganhavam naquele momento o apelido de "Diários As-
sociados", marca que meses depois se transformaria em nome oficial e regis-
trado do poderoso grupo de empresas.
Chateaubriand passou o ano afirmando que era necessário "desinfiltrar
o governo e as Forças Armadas dos venenos da rebelião tenentista e enrijá-
los de disciplina, fortalecê-los do sentimento de ordem ". Prevendo que teria
problemas com a censura, deu ordens para que os jornais e a revista manti-
vessem uma postura neutra e imparcial diante do governo, apenas notician-
do atos. Quem quisesse ter opinião que fizesse como ele: comprasse um jor-
nal. Nos Associados, só o dono emitia opiniões. Estendeu a orientação tam-
bém aos colunistas e colaboradores ao ler uma das "Notas de um diarista"
em que Humberto de Campos "entrevistava " um macaco para afirmar que
um governo que se preocupava com macacos, deixando o câmbio despencar,
estava condenado à morte. "É governo destinado a morrer de ridículo", con-
cluíra. Chateaubriand telefonou pessoalmente a Campos para dizer-lhe que
mais uma nota daquelas iria custar-lhe a prisão - e o mais prudente era ele
não se referir mais às figuras do governo na coluna.
Com o passar do tempo Chateaubriand começou a desconfiar que a
"doença de que padecem alguns tenentes " não era apenas um esquerdismo
juvenil, mas "comunismo puro, bruto ". Encomendou a Humberto de Cam-
pos um folheto anônimo, de quarenta páginas, intitulado "A mentira comu-
nista", que o escritor fez de bom grado. Era "uma exposição à altura de inte-
ligências primitivas", diria o autor, "feita em linguagem singela, para o
povo". O sucesso do panfleto, distribuído gratuita e clandestinamente por
ordem de Chateaubriand, fez com que ele encomendasse mais artigos anti-
comunistas ao escritor (sem fazer menção direta ao governo e aos tenentes),
que saíam em O Jornal e depois eram republicados nos sete jornais. Quando
João Alberto anunciou que iria permitir a legalização do Partido Comunista
em São Paulo, o mesmo Chateaubriand que no governo Washington Luís
defendera o direito de expressão dos comunistas passou a acusar o interven-
tor de "transformar São Paulo num laboratório de atividades políticas e so-
ciais soviéticas".
Seus temores de que o governo reagiria às críticas não eram infundados.
Primeiro, o chefe de polícia do Distrito Federal, Batista Luzardo, mandou
policiais à redação de O Jornal comunicar que os Diários Associados estavam
proibidos de "discutir qualquer ato do interventor em Pernambuco ". Como
aparentemente Lima Cavalcanti não era seu alvo preferencial, Chateau-
briand acatou a ordem em silêncio, mas semanas depois vinha outra: os jor-
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FERNANDO MORAIS
nais estavam proibidos de noticiar a entrevista exclusiva concedida no Rio
Grande do Sul a Austregésilo de Athayde por Borges de Medeiros, patriar-
ca da política gaúcha e fervoroso aliancista. A proibição se justificava, pela
ótica do governo: entre os pontos de um decálogo defendido por Medeiros,
havia um que falava expressamente na convocação de uma Constituinte. De
novo Chateaubriand achou mais prudente aceitar a censura, mas tornou-a
pública em seus artigos, afirmando que a ordem "foi um grave erro em que
incidiu o jovem e ardente ministro da Justiça, sr. Osvaldo Aranha ".
Por exclusão (e esperteza), decidiu que tudo o que não estava previa-
mente proibido era permitido. Assim, o governo era "a ditadura" e Getúlio
invariavelmente "o ditador e único responsável por ela". Atacou duramen-
te o recém-promovido general Góis Monteiro quando este, em uma frase in-
feliz mas profética, disse em São Paulo que o país "precisava de dez anos de
ditadura". Ao ler que um jornal governista insinuara que Antônio Carlos, já
ex-governador de Minas, era contrário à Constituinte, Chateaubriand man-
dou o Diário da Tarde fazer uma entrevista com o cacique mineiro para que
ele desmentisse a especulação - desmentido que o próprio dono do jornal
se encarregaria de reforçar em um artigo. "Dizer que o ilustre chefe liberal
mineiro está contra a Constituinte ", ironizou, "seria o mesmo que afirmar
que d. Sebastião Leme é ateu ou que o dr. Miguel Couto não acredita na me-
dicina." Ele passava semanas exaurindo os temas "tenentismo de esquerda"
e "ditadura", e de repente voltava a bater na mesma tecla: redemocratização,
só com a convocação da Constituinte. Criticava com dureza os setores mo-
derados que defendiam uma Constituinte precedida de minuciosa (e demo-
rada, claro) discussão sobre a prometida lei eleitoral - que seria baixada por
decreto, pois o Congresso Nacional havia sido dissolvido logo após a vitória
da revolução. Aos poucos, Chateaubriand percebeu que ele e os paulistas
não eram os únicos a clamar, "em meio a esse estéril deserto tenentista", pela
redemocratização do país. "Até alguns setores revolucionários já se confede-
raram para pedir à ditadura", escreveu, "a convocação da Constituinte como
uma das mais instantes, senão a mais instante necessidade nacional." Como
resposta à manifestação de Borges de Medeiros, Getúlio articulou os inter-
ventores para que se pronunciassem pela manutenção do status revolucio-
nário - ou seja, pela protelação da redemocratização. Chateaubriand res-
pondeu que, se o governo via com desconfiança a bandeira dos paulistas,
gaúchos como Borges de Medeiros eram insuspeitos para defender a Cons-
tituinte:
A atitude do Rio Grande teve o dom de sacudir a opinião nacional de norte a sul
do país. [...] Ao povo gaúcho sobra autoridade para se pronunciar pelo regres-
so do governo da nação aos quadros da legalidade. Foi o Rio Grande quem to-
mou a iniciativa de promover a revolução. Foi ele quem se dirigiu aos outros es-
tados liberais e convidou-os para fazerem juntos o movimento de outubro.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Encontra-se nas suas mãos o poder ditatorial supremo. Entre nove pastas minis-
teriais, nada menos que cinco, inclusive a polícia do Distrito Federal, são ocupa-
das por políticos rio-grandenses. As interventorias de Santa Catarina e do Mato
Grosso estão confiadas a gaúchos.
Se consultasse os seus interesses imediatos, o Rio Grande só poderia ser pelo
prolongamento do regime ditatorial. Ele vê sentado na cadeira do Catete um de
seus ilustres filhos. [...] Todo o Brasil poderia estar pedindo o fim da ditadura,
menos povo gaúcho, que nela enxerga o apogeu de seu prestígio político e de
sua glória marcial. O gesto, pois, do Rio Grande, obedece a imperativos morais
e conquistará o respeito mesmo das consciências medíocres.
Até O Cruzeiro, que apesar do enorme prestígio continuava sendo uma
revista dedicada aos faits divers, sem preocupações políticas, acabaria en-
trando na campanha pela redemocratização, com uma reportagem de duas
páginas cortadas pelo escandaloso título "Constituinte!". A crise política
que se avizinhava acabaria transformando a modorrenta revista dedicada à
família em um semanário ágil e politizado, que reservava suas primeiras e
mais nobres páginas à cobertura dos fatos políticos da semana. Tanto na re-
vista como nos jornais, porém, a fuzilaria inclemente dos artigos e edito-
riais - e agora também das reportagens - convivia sem problemas com
uma imparcial cobertura cotidiana dos atos do governo. Onde quer que Ge-
túlio Vargas fosse, havia sempre um fotógrafo dos Diários Associados de
plantão para registrar a cena: de uma insignificante visita a uma estação de
trens a viagens para fora do Distrito Federal, nada escapava dos seus repór-
teres e fotógrafos. Como se estivesse prevendo o rompimento político do
ministro do Trabalho com Vargas, Lindolfo Collor era quem merecia as
maiores atenções dos Associados. Se os artigos assinados por Chateau-
briand davam de fato a impressão de que seus jornais tinham se passado
para a oposição, a cobertura dos atos do governo, mais que correta, parecia
generosa demais. Não apenas do que o governo fazia, mas também das pa-
radas, desfiles e homenagens que recebia - como a sinfonia Exortação civi-
ca, composta especialmente por Villa-Lobos para o governo e entoada em
um estádio paulistano por um coral de nada menos de 12 mil estudantes de
escolas públicas.
No governo ou na oposição, não importava, as empresas de Chateau-
briand pareciam ir cada vez melhor de saúde. As únicas exceções tinham
sido alguns momentos de aperto vividos pelo Estado de Minas e pelo Diário
de S. Paulo. Em Belo Horizonte, o problema era a hipoteca do prédio local,
dado como garantia de pagamento do empréstimo contraído para a compra
do jornal. Neste caso bastou uma conversa de Chateaubriand com Clemen-
te Faria, dono do Banco da Lavoura e um dos "papas" do argentário Vatica-
no mineiro, e a dívida foi empurrada para quatro anos depois. Com o Diário
de S. Paulo a coisa foi mais grave. As conseqüências do crack da Bolsa de Va-
lores de Nova York sobre a economia paulista acabariam repercutindo num
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FERNANDO MORAIS
jornal que tinha seus alicerces plantados na indústria e na cafeicultura de
São Paulo. Um banqueiro a quem recorreu aconselhou-o "a agir como um
bom capitalista: se uma empresa está deficitária, venda-a - faça isto com o
Diário de S. Paulo". Ele arrepiou-se:
- Vender? Mas como é que o senhor quer que eu venda um jornal? O
senhor seria capaz de vender um filho deficitário? De mais a mais, meus jor-
nais são a minha gazua. Pergunte ao Meneghetti se ele vende a sua gazua...
[Ele se referia a Amleto Gino Meneghetti, o mais famoso ladrão de São Pau-
lo na época.]
Não fossem as mãos estendidas por Roberto Simonsen e o conde Sílvio
Penteado, e o socorro emprestado pela fartura em que viviam as empresas
irmãs de outros estados, e o Diário teria fechado suas portas em 1929.
Fora esses dois problemas, as demais empresas exibiam invejável robus-
tez. O Cruzeiro, que já vendia quase 80 mil exemplares semanais, nadava em
anúncios. O prestígio popular do Diário da Noite carioca era tão grande que
no Carnaval daquele ano o compositor Noel Rosa fizera um samba - e,
como era costume na época, dedicou-o não a uma personalidade, mas ao jor-
nal, levando pessoalmente à redação o manuscrito com a letra de "Com que
roupa?" (anos antes, Catulo da Paixão Cearense havia dedicado seu antoló-
gico "Luar do sertão" ao próprio Chateaubriand). Prestes a ser inaugurado,
o prédio de oito andares da rua Treze de Maio era tão grande que, mesmo
depois de ser ocupado pelas redações, administração e oficinas gráficas das
três publicações do Rio, sobraram andares inteiros, alugados para escritó-
rios. Os anúncios oferecendo salas no edifício recém-construído exaltavam
as modernidades que o conjunto oferecia: uma galeria no andar térreo per-
mitia acesso ao local tanto pela Treze de Maio como pela rua Senador Dan-
tas; todos os andares dispunham de bebedouros com água permanentemen-
te gelada; e quatro "rápidos e modernos elevadores, que funcionam dia e
noite e nos quais a segurança dos passageiros está garantida por luxuosas
portas pantográficas douradas".
Após terem sido os pioneiros na implantação, no Brasil, das impresso-
ras em rotogravura em cores (que permitiram que O Cruzeiro pudesse ser
impresso no Rio, com agilidade muito maior, e não mais em Buenos Aires),
os Associados já sonhavam com novas tecnologias. Aproveitando uma via-
gem de Austregésilo de Athayde aos Estados Unidos, Chateaubriand encar-
regou-o de assistir ao lançamento experimental, pela General Electric, do en-
genho que representaria uma revolução nas comunicações: uma máquina
denominada "telejornal", capaz de transmitir por ondas de rádio, a milhares
de quilômetros de distância, as imagens de uma fotografia ou de uma pági-
na de jornal. O próprio Chateaubriand, em pessoa, acabara de realizar para
O Jornal o que foi saudado como "a mais notável proeza jornalística da his-
tória da imprensa sul-americana": uma longa entrevista com o presidente
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Alcalá Zamora, da renascida República espanhola, utilizando-se do sistema
de radiotelefonia que estava sendo experimentado pelo recém-criado Telé-
grafo Nacional. Em outubro, os Associados patrocinariam outro prodígio da
ciência: a bordo de seu iate Ellectra, ancorado na costa britânica, Guglielmo
Marconi acenderia as luzes da monumental estátua do Cristo Redentor cons-
truída no morro do Corcovado, no Rio. Emitido do iate, o sinal elétrico seria
captado por uma estação receptora instalada em Dorchester, na Inglaterra, e
retransmitido para uma antena em Jacarepaguá, no Rio, de onde seriam ace-
sas as luzes do Corcovado. Encerrada a cerimônia, Marconi enviaria a Cha-
teaubriand um telegrama que todos os Associados reproduziriam com des-
taque:
Signore Assis Chateaubriand
Capo Diarios Associados
Rio de Janeiro
Invio a lei e ai Diarios Associados le mie piu sincere felicitazioni per la loro
importante ed elevata iniziativa destinata a far vibrare nello stesso istante il
pensiero di Roma centro del cristianesimo e della civilta latina ed il pensiero del
grande popolo brasiliano.
Guglielmo Marconi
Em meio a esse carnaval tecnológico, Chateaubriand anunciara em ju-
nho daquele 1931 a realização de um velho sonho: a incorporação aos Diá-
rios Associados, como sua nona publicação, do mais antigo jornal do conti-
nente, o Diário de Pernambuco, que aos 106 anos de vida era a mais influente
publicação de todo o Nordeste. O jornal onde ele dera seus primeiros passos
na profissão, e em cuja redação resistira, de arma na mão, à truculência de
Dantas Barreto, agora era seu. No artigo em que tornou pública a notícia de
que estava estendendo seus tentáculos ao Nordeste, Chateaubriand festeja-
va "a alegria de incorporar um jornal cuja contribuição para o êxito da revo-
lução, pelo desinteresse e pela espontaneidade, foi das mais valiosas". Se-
gundo ele, o jornal não estava sendo comprado, mas "federado" à sua rede
(o jornal estava de fato sendo comprado - o que Chateaubriand pretendia,
com a brincadeira, era dizer que a sua não era uma mera rede de jornais, mas
uma "federação"). Sim, sublinhava, "pensar que nós adquirimos pura e sim-
plesmente o Diário seria a mesma coisa que supor que pudéssemos comprar
a Faculdade de Direito do Recife ou o Convento de São Francisco". Mas tam-
bém deixava claro ao governo - e aos tenentes, sobretudo - que a linha
editorial do Diário de Pernambuco seria a mesma que vinha sendo seguida pe-
los outros sete jornais Associados e pela revista O Cruzeiro: "Federado aos
Associados, o Diário conservará intata sua autonomia para exercer o manda-
to que lhe outorgou o povo de Pernambuco. Onde quer que haja um erro a
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FERNANDO MORAIS
profligar, um abuso de autoridade a denunciar, ele jamais fugirá a esse
dever".
Na incontrolável expansão de seus veículos, dois meses depois Cha-
teaubriand inaugurava uma novidade, só 35 anos mais tarde imitada por ou-
tros jornais brasileiros - uma agência de notícias. Naquele ano só existiam
cinco agências no mundo, sendo três européias (Havas, Reuters e Wolff) e
duas norte-americanas (Associated Press e United Press). No Brasil, a única
experiência no gênero havia sido tentada na década de 1910 por Cásper Lí-
bero e Raul Pederneiras ao fundar a Agência Americana - iniciativa que
não prosperou e posteriormente seria desativada. Ao criar a Agência Meri-
dional, Chateaubriand profissionalizava o que já era feito amadoristicamen-
te entre suas empresas: a distribuição do material produzido por um jornal
para os demais veículos Associados. Aquilo que até então era um gentil in-
tercâmbio de artigos e reportagens tornou-se uma fonte de renda para o jor-
nal que produzisse o material. Além disso, meses depois a Meridional come-
çaria a ver dinheiro de fora, ao incorporar como clientes vários jornais de
outros estados, que pagavam para reproduzir o que saía nos Associados.
A guerrilha de palavras contra Vargas e seus tenentes prosseguia, mas
Chateaubriand sabia que estava lidando com adversários duros na queda.
Em setembro ele foi convidado pelo presidente para assistirem juntos, a bor-
do de um destróier, a exercícios da Marinha nas costas do Rio. Dias antes ti-
nha sido anunciado o novo interventor na Bahia: Juraci Magalhães. Chateau-
briand não resistiu à tentação de perguntar a Getúlio as razões da escolha
daquele nome:
- Ditador, por que o senhor nomeou interventor na Bahia o senhor Ju-
raci Magalhâes, um tenente, e, mais do que isso, um tenentista militante?
Vargas deixou claro que estava disposto a trocar chumbo com os adver-
sários:
- A nomeação desse "tenente tenentista" é a resposta que dou a vós to-
dos, pelo açodamento com que pedis a nova Constituição.
Com açodamento ou não, continuariam pedindo. Os raros momentos
de sossego que Vargas tinha era quando Chateaubriand largava o osso do te-
nentismo e da Constituinte para se dedicar, ainda que por poucos dias, a al-
gum outro assunto. Como aconteceu naquele final de ano, quando ele pas-
sou duas semanas na Amazônia em companhia de Lindolfo Collor, a convite
da Ford, para visitar a concessão de exploração de borracha que a empresa
americana recebera do governo - viagem que lhe custaria a acusação de ter
recebido 3 mil contos da Ford para defender o empreendimento em seus jor-
nais. Fora essas raras ausências mais demoradas, sua vida estava dividida
entre o Rio, São Paulo, Belo Horizonte e, menos amiúde, Porto Alegre.
Em uma dessas viagens a Minas, Chateaubriand testemunhou um estra-
nho fenômeno que o marcaria para o resto da vida. Como fazia sempre que
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
ia a Belo Horizonte, deixou a mala no hotel e dirigiu-se ao prédio onde fun-
cionavam os dois jornais. Reuniu-se com os diretores, conversou, deu ordens
e quando eram dez horas da noite retirou-se para o hotel. Como o motivo de
sua visita à cidade era uma elegante festa de grã-finos no Automóvel Clube
local, vestiu um fraque, tirou a cartola da caixa de papelão e sentou-se em
uma mesinha para escrever, sempre a lápis, o artigo que seria publicado no
dia seguinte em todos os seus jornais. Com a expansão da rede, em cada ci-
dade onde havia um jornal seu foi preciso arranjar um linotipista que conse-
guisse interpretar os garranchos do patrão a fim de compor em chumbo os
artigos que ele escrevia - e assim era também em Belo Horizonte. Juntou o
maço de papéis, tomou um táxi na porta do hotel e, a caminho da festa, dei-
xou o artigo na portaria do jornal para ser composto.
Já era alta madrugada quando voltou ao quarto de hotel. Ao tirar o pa-
letó do fraque, percebeu que um amontoado de folhas manuscritas - mais
ou menos um terço do artigo - tinha ficado no bolso interno da roupa. Irri-
tado, foi dormir certo de que no dia seguinte os jornais não publicariam seu
artigo.
Acordou cedo e pediu que um estafeta do hotel comprasse na banca
mais próxima um exemplar do Estado de Minas. Perplexo, percebeu que o arti-
go tinha sido publicado - e que alguém tinha cometido a ousadia de preen-
cher, por sua conta, o buraco que ficara no meio do texto. Vestiu-se e correu
para o jornal, onde chegou tomado de fúria. Berrava palavrões pela redação,
dizendo que um atrevimento como aquele era inadmissível. Ou o responsá-
vel aparecia ou ele demitia toda a direção. O cristo apareceu horas depois:
era José de Souza Fortes, um jovem franzino responsável pela revisão das
provas tipográficas de seus artigos, não importava onde tivessem sido escri-
tos. Quando o rapaz, aterrorizado, entrou na sala, Chateaubriand deu um
murro tão violento sobre a mesa que derrubou no chão várias xícaras de
café:
- O senhor é um filho da puta, um atrevido. Como é que o senhor se
arvora o direito de escrever um pedaço de artigo que seria assinado por
mim?
O jovem gaguejava:
- Mas doutor Assis, minha intenção...
- Intenção é a puta que o pariu! Nos meus jornais só eu posso ter in-
tenções!
- Mas doutor Assis, diariamente sou eu quem revisa seus artigos, eu
apreendi o seu jeito de escrever, seu estilo, suas idéias. Eu não fiz isso por
mal...
- Por bem ou por mal, o senhor pode arranjar outro emprego. Está des-
pedido.
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FERNANDO MORAIS
Estudante pobre de medicina, que dependia do salário para viver em
Belo Horizonte, no dia seguinte Fortes já estava empregado, mas agora como
vendedor de frutas no mercado municipal. E foi lá, atrás de uma banca de
laranjas, que ele foi localizado por Amarildo Bandeira de Melo, chefe da re-
visão dos Associados em Minas:
- Vamos voltar ao jornal que o doutor Assis quer falar com você.
- Não volto lá por dinheiro nenhum. Ele me insultou, me humilhou,
não tenho nada a conversar com esse nortista grosso. O que ele quer comi-
go: xingar minha mãe outra vez? Não volto, seu Amarildo. Prefiro vender
frutas ou ficar desempregado e voltar para Viçosa, mas aquele sujeito não
me vê mais.
Amarildo insistiu:
- Você tem que voltar. Ele quer lhe pedir desculpas pela cena de on-
tem. Pode voltar que o homem está manso.
Voltaram juntos à redação. Chateaubriand estava de suspensórios, com
as mangas da camisa arregaçadas. Na mão direita tinha o artigo já impresso
e na esquerda as folhas que havia esquecido no bolso do fraque. Com um
sorriso no rosto, abraçou o amedrontado revisor:
- Estou muito arrependido pelo que fiz com você ontem. Chamei-o
aqui para pedir-lhe desculpas, mas principalmente para mostrar-lhe uma
coisa inacreditável. Sente-se aqui, meu filho, e compare esses originais com
o trecho que o senhor completou.
José Fortes leu os rabiscos, sem entender quase nada do que estava es-
crito, e passou os olhos sobre os parágrafos que escrevera. Chateaubriand in-
terrompeu-o:
- Viu? O texto que o senhor escreveu é exatamente igual, palavra por
palavra, vírgula por vírgula, exatamente igual ao que eu tinha escrito.
O rapaz se explicava, constrangido:
- Mas foi isso que eu tentei explicar ao senhor ontem. Quem é obriga-
do a ler todos os dias os artigos de um mesmo autor acaba pegando o estilo
dele.
- Nada disso, meu filho, o senhor só pode ter psicografado meu texto.
Eu não tenho fé, não acredito em nada, mas sou obrigado a reconhecer que
o senhor deve ter capacidades mediúnicas fortíssimas. Quanto é que o se-
nhorganhava?
- No Estado de MinAs trezentos mil-réis por mês, e no Diário da Tarde
duzentos mil-réis.
- Pois então o senhor está readmitido com o salário dobrado. Vai ga-
nhar seiscentos mil-réis no Estado e quatrocentos mil no Diário da Tarde. Pode
ir embora, e aceite de novo minhas desculpas, seu Fortes. O senhor é um
bruxo.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Chateaubriand não imaginava, naquele dia, que os inexplicáveis pode-
res paranormais de Fortes o acompanhariam até a sepultura, muitos anos
depois.
Com a vida desorganizada pelos horários do jornal e pelas viagens, o
jornalista via muito pouco a mulher, Maria Henriqueta, e a única maneira de
não perder o contato com o filho Fernando eram os jantares que organizava
aos domingos na Vila Normanda, para os quais sempre convidava o afilha-
do Gigil. O reencontro dos dois meninos não tinha sido muito prazeroso
para Gigil - Fernando foi muito frio, muito seco. Mas esse gelo logo seria
dissolvido pelo bom humor do filho de Chateaubriand, que compartilhava
com o amigo as brincadeiras sobre o comportamento exótico do pai. Quem
visse um daqueles jantares de domingo podia dizer que tinha visto todos: Ar-
tur, o novo motorista, ia buscar Gigil às dez da noite, mesmo que todos sou-
bessem que Chateaubriand só chegaria para o jantar à meia-noite. Viesse so-
zinho ou com algum companheiro do jornal, invariavelmente ele chegava
cansado. Sentava-se à cabeceira da mesa, indicava o lugar da direita para Fer-
nando e o da esquerda para Gigil. Aí começava a mesma liturgia de sempre.
Virava a cabeça para o lado de Fernando e perguntava:
- Como vai sua mãe?
Voltava-se para Gigil e repetia a pergunta:
- Como vai sua mãe?
Virava de novo para Fernando:
- Como vão os estudos?
E para Gigil:
- Como vão os estudos?
Segundos depois, com o queixo caído sobre o peito, ele roncava alto, às
vezes antes mesmo que o jantar tivesse sido servido. Acordava sobressalta-
do minutos depois e dirigia-se ao que estivesse diante de seus olhos:
- Como vão os estudos?
Em algum momento do jantar soltava um ruidoso peido, assustava-se
com aquilo e repetia o gesto de cabeça:
- Desculpe, meu filhinho.
E para o outro:
- Desculpe, meu filhinho.
E muito dificilmente passava disso. Quando levava visitas e o assunto
começava a morrer, ele tinha uma piada sem graça, sempre a mesma: batia
com a mão na mesa, virava de costas na cadeira, apontava para uma tela do
Portinari, O enterro, pendurada na parede e perguntava à visita, pois os dois
garotos já conheciam a piada de cor:
- Quem aqui sabe o que é aquilo?
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FERNANDO MORAIS
Alguém naturalmente dizia:
- Um enterro...
Ele retrucava, sorridente:
- Nada disso! É uma natureza-morta!
Diante da perplexidade geral, vinha a piada:
- É uma natureza-morta. O que é mais morto do que um enterro?
Fernando e Gigil caíam na gargalhada, não por achar graça naquilo,
mas pelo fato de estarem ouvindo a mesma piada pela centésima vez. Quan-
do ele estava descansado, os meninos escutavam de novo as mesmas prele-
ções: que a educação tinha de começar no berço, que a disciplina e o rigor es-
partano deviam presidir as vidas deles, que era preciso ter coragem sempre,
quaisquer que fossem as circunstâncias. Às duas da manhã estava termina-
do o jantar. Ainda mais difícil era conseguir tempo para outros folguedos,
como as visitas ao cabaré Assyrio, instalado nos baixos do Teatro Municipal,
ao rendez-vous de madame France, em Botafogo, ou mesmo para usar a gar-
çonnière que dividia com Austregésilo de Athayde em Copacabana.
Todo o seu tempo e a sua energia estavam voltados mesmo para infer-
nizar a vida dos tenentes. Quando, no meio do ano, o ministro da Viação e
Obras Públicas José Américo de Almeida decidiu tornar caduco o decreto
que concedia autorização para Percival Farquhar explorar a siderurgia no
Brasil, os leitores se deram conta de que o nacionalismo de Chateaubriand
não ia além dos ternos de brim da América Fabril e dos sacos de algodão bra-
sileiro para exportar café. Ao tomar conhecimento da medida, ele rugiu em
defesa de seu amigo americano, acusando os tenentes de terem transforma-
do Vargas "num nacionalista truculento, inumano, ferocíssimo". Sonhou
com o dia em que o Brasil viesse a ser "uma nação de verdade ", para o dono
da Itabira Iron Ore ter "no mínimo uma estátua em Porto Velho, outra em
Belém do Pará, uma em Manaus e mais três em São Paulo, no Paraná e no
Rio Grande do Sul".
Em outro artigo arrolou, pela enésima vez, os benefícios que Farquhar
trouxera para o Brasil: como associado de Pierson e de Mackenzie, pusera
uma Light no Rio e outra em São Paulo, ambas produzindo 400 mil cavalos
de energia; estimulara a construção ou implantara ele próprio as ferrovias
do Rio Grande do Sul e do Paraná, a Sorocabana, a Paulista, a Mogiana, a
Southern São Paulo, a Madeira-Mamoré; colonizara o vale do rio do Peixe,
levando as pontas dos trilhos da São Paulo-Rio Grande até o sertão; tenta-
ra atrair a Swift para operar no Brasil, mas, como a empresa britânica não se
animasse, montara ele mesmo frigoríficos em Osasco e no Rio de Janeiro; im-
portara matrizes para apurar seus rebanhos de bovinos no Mato Grosso;
construíra os portos do Pará e de Rio Grande; levara Osvaldo Cruz para sa-
near Guajará-Mirim. Como se isso não bastasse, insistia o jornalista, "con-
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vencido de que o cartão de visitas de um país são os seus hotéis, e como o
Brasil de 1910 ainda era antropofágico, construiu o Grande Hotel do Guaru-
já e a Rotisserie Sportsman, em São Paulo, e fez vir os chefs de cuisine do Sa-
voy e do Carlton para ensinar os brasileiros "a comer como em terra civili-
zada e a tratar melhor os seus hóspedes". Segundo Chateaubriand, tanta
pujança teria feito a glória de qualquer homem nos Estados Unidos, "mas no
Brasil o sr. Farquhar é denegrido pela indigência mental dos nossos te-
nentes ".
Diante de tão incisiva louvação, Getúlio imaginou que Farquhar pode-
ria ser o antídoto contra a fúria de Chateaubriand. Chamou o jornalista ao
Palácio do Catete e pediu que ele fosse o intermediário de um convite para
que o industrial americano retornasse ao Brasil a fim de rediscutir o decreto
que fizera caducar seus projetos siderúrgicos. Desconfiado de que estava
sendo manipulado pelo presidente, pulou fora da incumbência:
- Primeiro, ditador, é preciso lembrar que diante da depressão mun-
dial será quase impossível a Farquhar levantar um dólar a mais para a Itabi-
ra. E depois, mesmo que houvesse dinheiro fácil pelo mundo, tenho a certe-
za de que seu governo, dominado como está pelo paroxismo nacionalista,
nunca negociaria com a Itabira dentro das fórmulas da livre empresa, como
fizeram com ele Epitácio Pessoa e Antônio Carlos.
Getúlio insistia em que Chateaubriand fosse o padrinho da viagem do
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FERNANDO MORAIS
industrial ao Brasil, mas o jornalista suspeitava que havia algo escondido
sob aquela mudança de comportamento tão inesperada:
- Eu sei aonde isso vai parar e não posso cometer tal crueldade com
um amigo como Percival Farquhar, ditador, mas o senhor tem quem possa
substituir-me nessa missão. Afrânio de Melo Franco, que é seu ministro do
Exterior, também advogou por muito tempo para a Brazilian Traction. Um
telegrama dele a Farquhar será suficiente para materializar seu desejo de tra-
tar diretamente com o homem da Itabira.
Quando desembarcou de um hidroavião da Panair no Rio de Janeiro,
em julho, convidado por Melo Franco em nome de Vargas, Farquhar foi sau-
dado pelos Diários Associados como se estivesse chegando "a alvorada do
nosso desenvolvimento industrial". Talvez por estar habituado a lidar com
os clássicos ditadores latino-americanos, o industrial chegou animado com a
perspectiva de solucionar definitivamente seus negócios no Brasil."Como
não havia um Congresso nacional que pudesse obstruir os atos do presiden-
te, nem jornais antiestrangeiros para fazer contra mim as campanhas de
1920", confessaria Farquhar vinte anos depois,"imaginei que Vargas e eu
decidiríamos secretamente a questão da Itabira, através da pura e simples
assinatura de um decreto." Se conhecia bem os ditadores tradicionais,o
construtor da Madeira-Mamoré parecia não ter levado a sério as advertên-
cias que Chateaubriand lhe fizera sobre os jovens militares que o jornalista
agora apelidara de "tenentes do diabo" (o apelido, que Chateaubriand já
usara como título de um de seus artigos, continha um deboche oculto: Te-
nentes do Diabo era o nome de um bloco carnavalesco do Rio de então).
Tudo correu como Chateaubriand temia. Vargas recebeu Farquhar no
palácio horas depois de ele ter descido no aeroporto, foi cavalheiro, falou
que estava disposto a atrair investimentos estrangeiros para o Brasil. Mas,
para surpresa do americano, não tocou no único motivo de sua viagem, o de-
creto tornando caduca a concessão. Isso era tema para ser discutido com os
ministros das áreas competentes. Ou seja, o presidente o jogava nos braços
dos tão temidos tenentes. Infrutíferas, as reuniões de Farquhar com minis-
tros e técnicos do governo não avançaram um milímetro em relação à situa-
ção anterior. Ao contrário, o Ministério da Viação ainda decidiu aplicar-lhe
uma multa prevista em decreto de 1928, que estabelecia que, se as obras da
siderúrgica não se iniciassem em novembro de 1930, a Itabira teria de pagar
ao governo 50 mil contos de réis mensais, durante doze meses. Como era ju-
lho e não havia obra alguma em Minas Gerais, Farquhar tomou o avião de
volta sem solucionar nada e ainda devendo ao governo brasileiro uma for-
tuna no valor de 300 mil contos de réis.
Para Chateaubriand, a desfeita do governo ao dono da Itabira era fruto
agora da "coloração cada vez mais bernardesca" - em alusão ao nacionalis-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
mo de Artur Bernardes - que o tenentismo assumia. Tudo aquilo, no seu en-
tender, significava claramente um rompimento com os princípios da Aliança
Liberal. "Depois que esses elementos militares empolgaram o poder, sob a
presidência Getúlio Vargas", atacou em um artigo, "passou a ser um pesa-
delo ser-se liberal. Se no tempo de Washington Luís era crime ser liberal,
agora é uma temeridade." O último embate de 1931 contra os tenentes-
que o jornalista não venceria, mas que ao menos adiaria sua derrota para três
anos depois - ocorreu quando os militares propuseram que o governo de-
cretasse a moratória da dívida externa. Defensor de uma política de sacri-
fícios internos para sanear as finanças do Brasil, e não de um calote nos cre-
dores internacionais, Chateaubriand sustentava que a suspensão, mesmo
temporária, do pagamento do serviço e da amortização dos débitos externos
era "obra do jacobinismo dos moços da esquerda revolucionária". E, quan-
do o banqueiro paulista e ministro da Fazenda José Maria Whitaker curvou-
se às pressões tenentistas e declarou que a proposta "talvez pudesse vir a ser
implementada", o jornalista publicou o artigo intitulado "O irreparável",
onde parecia estar entregando os pontos: "Os Diários Associados sempre
combateram a moratôria. Contra ela lutaram desde a primeira hora. Vendo
porém a rendição de seu mais impávido adversário, que era o ministro da
Fazenda, queremos crer que todos os sacrifícios foram feitos. Teremos caído,
mas caímos de pé ".
Para que não restassem dúvidas de que suas preocupações com Far-
quhar e com a moratória não o tinham afastado da luta pela redemocratiza-
ção do país, ele não resistiu à tentação de mandar o Diário da Noite provocar
Getúlio. Já que o presidente não fazia eleições, seu jornal iria fazê-las. Duran-
te semanas o Diário da Noite anunciou que estava realizando uma pesquisa
"em todas as camadas sociais do Rio de Janeiro ", a quem dirigia uma única
pergunta: "Qual o tipo ideal para ocupar a Presidência da República?". Ape-
sar de tão espalhafatosamente alardeada, o Diário da Noite teve de manter o
resultado da pesquisa em eterno segredo para seus leitores: antes que ele
fosse publicado, a mão pesada do chefe de polícia Batista Luzardo mandou
recolher todas as planilhas na redação, proibindo a publicação de uma síla-
ba que fosse sobre o assunto.
Assis Chateaubriand passou todo o primeiro semestre de 1932 jogando
gasolina na fogueira política que começava a crepitar em São Paulo. Afinan-
do a pontaria, deixou de atirar aleatoriamente nos tenentes e no tenentismo
para martelar o instrumento político da ação deles, o Clube Três de Outubro.
Criado no começo de 1931, o clube se transformara, com o correr dos meses,
ora em partido político dos tenentes, ora em seu braço armado. Sua mais re-
cente aparição política tinha sido nos últimos dias de 1931, ao lançar um ma-
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FERNANDO MORAIS
nifesto claramente anticonstitucionalista. No Rio Grande do Sul, dirigentes
do clube tentaram uma manobra acionária (semelhante à que fora urdida
por Artur Bernardes contra O Jornal em 1925) para tirar das mãus de Cha-
teaubriand o Diário de Noticias, inimigo declarado dos tenentes. O jornalista
foi obrigado a correr a Porto Alegre para "varrer da nossa casa a malta de fli-
busteiros que assaltara o jornal". Para vários historiadores, ser tenente e
membro do Clube Três de Outubro significava, no Brasil pós-revolução de
30, muito mais do que ser general ou ministro. Para Chateaubriand, no en-
tanto, tal como a Société des Jacobins, o feroz clube dos jacobinos da Revo-
lução Francesa, o Três de Outubro nada mais era que "a guarda sagrada do
tabernáculo, o oratório do que há de mais radical no tenentismo".
O jornalista farejava que, como reação ao excessivo poder dos tenentes,
algum movimento de alto teor explosivo estava engatinhando em São Pau-
lo. Primeiro manifestou essas preocupações ao interventor na Bahia, Juraci
Magalhães, insistindo em que a única maneira de evitar um confronto com
os paulistas era atender pelo menos à sua reivindicação básica: que o inter-
ventor federal em São Paulo fosse "civil e paulista". Ao comentar as mesmas
suspeitas com "o ditador ", viu Vargas reagir com tranqüilidade:
- Calma, Chateaubriand. Vou esperar a cobra paulista botar a cabeça
para fora, para poder esmagá-la...
Sem deixar de admirar o gênio político de Getúlio, Chateaubriand acre-
ditava que o presidente se perdia ao incorrer em dois erros palmares, que
poderiam custar-lhe o poder: humilhar São Paulo e manter sua base de apoio
não nos experientes políticos (gaúchos e mineiros, sobretudo), mas no es-
querdismo tenentista. "Ultimamente declarou-se guerra aos políticos brasi-
leiros ", repetia em público o que já havia escrito nos artigos. "Até um cego
vê que os mais graves problemas da revolução advêm da inexperiência po-
lítica de seus mais importantes dirigentes." O jornalista releu a entrevista
que ele próprio fizera com Vargas, ainda na caravana que avançava em di-
reção ao Rio, em outubro de 1930, e só então entendeu o significado da pro-
messa de que a revolução seria "radical no programa e nos métodos". Tudo
indicava que não haveria saída pacífica para aquele impasse.
De crítica em crítica, de artigo em artigo, Chateaubriand caminhava de-
pressa em direção à oposição. Vendo-o cada vez mais contra Vargas, um jor-
nal governista do Rio Grande do Sul resolveu provocá-lo, reproduzindo na
íntegra o laudatório artigo intitulado "Um monstro", escrito logo após o triun-
fo da revolução. Ele respondeu prontamente: "Hoje eu não escreveria 'Um
monstro' - e estou quase me dirigindo ao Rio Grande para renegar essa pá-
gina que me foi sugerida por dois dedos de prosa com o sr. Vargas ainda no
Paraná". Mas ele sabia que o epicentro do terremoto estava mesmo em São
Paulo. Em meados do ano anterior João Alberto se demitira do cargo de in-
terventor, abrindo a possibilidade de oferecer o lugar a um "civil e paulista",
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
como se reivindicava nas ruas. A escolha recaiu sobre um ex-funcionário de
Chateaubriand, Plínio Barreto, agora sucedendo o falecido Júlio Mesquita na
direção do Estado. Apesar de vir do jornal que mais claramente expressava
os interesses paulistas, Barreto não tinha o apoio do PD e do velho e oligár-
quico PRP, inimigos que haviam se juntado na FUP, a Frente Única Paulista,
para combater Getúlio. Para o lugar que Barreto não pôde aceitar, Vargas
acabaria nomeando o jurista e magistrado Laudo de Camargo, que, mesmo
não sendo da integral confiança da FUP, era "civil e paulista" - o que já re-
presentava alguma forma de concessão a São Paulo.
Os tigres tenentistas, porém, tinham provado o gosto de sangue e se re-
cusavam a voltar a ser vegetarianos. Apesar de ter passado pelo crivo deles,
Laudo de Camargo iria durar pouco como interventor. Poucos meses depois
ele também renunciaria, pressionado pelos tenentes, que o acusavam de
manter um Secretariado "vendido aos banqueiros internacionais". Com João
Alberto manipulando os cordéis a distância, Getúlio entregaria a intervento-
ria do estado ao coronel carioca Manuel Rabelo (nem civil nem paulista, por-
tanto), em uma flagrante derrota dos constitucionalistas para o tenentismo,
que recuperava o controle sobre São Paulo. Humilhados, os paulistas res-
ponderam com manifestações de rua e atos contra o governo. Surpreenden-
do todas as expectativas, as primeiras vozes a se levantar em solidariedade
a São Paulo viriam do ninho dos tenentes, o Rio Grande do Sul - e de três
dos mais expressivos condestáveis da revolução. Reunidos na chamada
Conferência de Cachoeira - uma alusão à cidade de Cachoeira do Sul, onde
se realizou -, o interventor Flores da Cunha e os chefes do Partido Republi-
cano Rio-Grandense, Borges de Medeiros, e do Partido Liberal, Raul Pilla,
enviaram à FUP uma moção de solidariedade, além de reafirmarem sua con-
vicção pró-redemocratização do Brasil.
Fiel à política pendular de "apagar uma labareda e acender outra",
como o qualificara Chateaubriand, o presidente tentaria compensar os pau-
listas com a nomeação de Maurício Cardoso para o Ministério da Justiça, no
lugar de Osvaldo Aranha. Em seu discurso de posse, no dia 22 de dezembro,
se ainda não falava em Constituinte, pelo menos Cardoso tomaria a iniciati-
va de defender a promulgação de uma legislação eleitoral - era a primeira
vez que alguém tão graduado tocava nesse tema, tabu para o governo revo-
lucionário. O Clube Três de Outubro deu o troco de imediato, respondendo
ao ministro com um duro manifesto contra qualquer forma de constitucio-
nalização do país - os chamados "outubristas " não abriam mão da manu-
tenção da "pureza" dos princípios revolucionários. Tão logo tomou conheci-
mento da moção de solidariedade a São Paulo, Chateaubriand embarcou
num avião para Porto Alegre para repercutir, como repórter, a reviravolta
que os gaúchos haviam provocado na política do governo federal. Publica-
das simultaneamente em todos os jornais Associados, as entrevistas feitas
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FERNANDO MORAIS
com Raul Pilla e, no dia seguinte, com Borges de Medeiros jogavam mais le-
nha na fogueira. Na primeira, o parlamentarista Pilla historiava "a gênese do
dissídio entre o Rio Grande do Sul e o governo" - que Chateaubriand, como
sempre, só chamava de "a ditadura". Já Borges de Medeiros resumia seus
objetivos em dois pontos centrais: primeiro, defendia uma "atitude gandhis-
ta" em relação a Vargas - ou seja, quem estivesse pela redemocratização
não podia aceitar cargos políticos ou administrativos no governo federal. Em
segundo lugar, exigia a fixação imediata de uma data para a Constituinte.
Animado com o eco gaúcho às suas reivindicações, o Partido Democrá-
tico de São Paulo - ferrenho adversário de Washington Luís e revolucioná-
rio de primeira hora - enviou vários membros de sua executiva ao Rio para
um encontro com Getúlio e Maurício Cardoso, em que protestaram contra o
"esbulho de São Paulo pelo tenentismo" e insistiram na velha demanda: o
interventor precisava ser civil e paulista. Como Vargas não desse nenhuma
resposta afirmativa, o PD rompeu formalmente com o governo - gesto que,
segundo Chateaubriand, "transformava a política brasileira num verdadeiro
pandemônio".
O rompimento do PD mostrou com clareza a Getúlio que não havia ou-
tra alternativa senão fazer concessões aos paulistas. No dia 24 de fevereiro,
quando se comemorava o aniversário da primeira Constituição republicana
brasileira, a de 1891, os paulistas tomaram a praça da Sé em ruidosa mani-
festação pró-democracia e pró-Constituinte. Maurício Cardoso conseguiu
convencer Vargas a assinar, naquele mesmo dia, o novo Código Eleitoral. A
violenta resposta dos tenentes à inadmissível concessão aos constitucionalis-
tas foi imediata. No dia seguinte mais de 150 homens ligados ao Clube Três
de Outubro invadiram-e empastelaram o Diário Carioca, de José Eduardo de
Macedo Soares, rigoroso defensor da redemocratização do país. Tanto Mau-
rício Cardoso quanto o chefe de polícia do Distrito Federal, Batista Luzardo,
tentaram abrir uma sindicância que de fato apurasse a autoria do atentado e
punisse os responsáveis. Eles estavam enfiando o bisturi no centro da ferida:
pressionado pelos tenentes, Getúlio desautorizou qualquer investigação
mais rigorosa. A tentativa de acobertar uma violência como aquela foi a gota
d'água que entornaria a dissidência gaúcha. O presidente ainda tentaria apa-
gar a labareda que ele próprio acendera, nomeando no dia 2 de março Pedro
de Toledo, civil e paulista, para o lugar do coronel Manuel Rabelo. Mas já era
tarde demais para conter a debandada: no dia 3, Batista Luzardo e os minis-
tros Maurício Cardoso e Lindolfo Collor pediam demissão. Junto com os
três, deixava também o governo João Neves da Fontoura, que, embora tives-
se sido convidado por Vargas, em outubro de 1930, a assumir a intervento-
ria do Rio Grande do Sul ou o Ministério da Justiça, aceitara apenas um car-
go de consultor jurídico do Banco do Brasil.
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CHATÓ, O REI DO BRASIL
A manifestação dos gaúchos animou a direção da FUP a enviar dois
emissários a Porto Alegre a fim de alinhavar o apoio do Sul à resistência que
já se organizava em São Paulo. Entre a posição moderada do interventor Flo-
res da Cunha e o radicalismo de Collor, Fontoura e Pilla, que já queriam
marcar a data para começar a luta armada contra o governo provisório, fi-
cou-se no meio-termo: a coligação formada pela FUP e pelos gaúchos enviou
a Getúlio um manifesto contendo sete exigências, que iam da punição exem-
plar dos autores do atentado contra o Diário Carioca até a convocação, ainda
em 1932, de uma Assembléia Nacional Constituinte. Tentando controlar a si-
tuação, Getúlio permaneceu em silêncio para, passados trinta dias (com o
devido assentimento dos "tenentes", interventores e comandantes milita-
res), anunciar, como iniciativa sua, a promulgação de um decreto que mar-
cava as eleições para um ano depois - maio de 1933.
Já não havia mais promessa de democratização, entretanto, que pudes-
se conter os paulistas. No dia 23 de maio, Cláudio Bueno Miragaia, Mário
Martins de Almeida, Dráusio Marcondes de Souza e Américo Camargo de
Andrade, que organizavam manifestações contra Vargas, foram mortos a ti-
ros no centro de São Paulo em um choque com defensores do governo fede-
ral. As iniciais de seus nomes - MMDC, de Miragaia, Martins, Dráusio e Ca-
margo - transformaram-se na sigla que denominaria a partir daquele dia a
sociedade secreta paulista que preparava a guerra contra Getúlio Vargas.
Chateaubriand viaja a São Paulo para cobrir a crise de perto, como repórter,
analista e militante. Encontra multidões pelas ruas pedindo o fim do gover-
no revolucionário e falando abertamente em separatismo. Grupos dão vivas
ao presidente deposto Washington Luís, naquele momento desfrutando de
confortável exílio nos Estados Unidos. O jornalista escreve da capital paulis-
ta um artigo que traduz o espírito reinante no estado: "Como venho acen-
tuando há dias, nunca se conversou tanto no Brasil, nunca se perdeu tanto
tempo em prosa - boa ou má, pouco importa, mas em pura prosa. É inútil
prolongar-se a estação lírica dos tenores e barítonos da ditadura. Afinal, o
país se fatigou dessa conversa fiada interminável".
Ao contrário de outubro de 1930, quando se metera de arma na mão no
movimento contra Washington Luís, na preparação da revolução paulista de
1932 Chateaubriand atuou mais como jornalista. O máximo a que chegava
sua militância era funcionar como pombo-correio de Lindolfo Collor, levan-
do correspondências do ex-ministro gaúcho para o interventor mineiro Ole-
gário Maciel, que Collor tinha esperanças de atrair para a causa constitucio-
nalista. Sua verdadeira contribuição aos rebeldes paulistas tinha sido colocar
os Associados escancaradamente a serviço da insurreição tramada em São
Paulo. Quando o Diário Carioca foi destruído pelo Clube Três de Outubro,
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FERNANDO MORAIS
Chateaubriand noticiou o atentado em manchete e com todo o destaque em
seus jornais, e determinou que O Cruzeiro fotografasse os escombros e entre-
vistasse os gráficos feridos pelos assaltantes. Como sinal de protesto contra
a violência que o governo federal se recusava a coibir, mandou todos os seus
veículos pararem por 24 horas. Além disso, colocou as máquinas instaladas
na rua Treze de Maio à disposição de Macedo Soares, para que o jornal em-
pastelado pudesse ser impresso lá até que seu funcionamento se normalizas-
se, o que acabou levando três meses. Em franca oposição a Getúlio, Lindol-
fo Collor assumiu uma das diretorias de O Jornal e passou a assinar artigos
diários, publicados em todos os órgãos Associados.
No Rio, quando não eram importunados pela censura de João Alberto
(que assumira a chefia de polícia), os jornais faziam oposição desde as char-
ges de Álvarus até os artigos de Chateaubriand, Collor e Austregésilo de
Athayde. Além de ocupar todos os espaços disponíveis nos jornais e na re-
vista, a guerra ao governo montada em torno de Chateaubriand ganhara
mais um espaço: o "Jornal falado dos Diários Associados", uma novidade
que Athayde trouxera dos Estados Unidos e que ocupava meia hora diária
na Rádio Educadora, das oito e meia às nove horas da noite. Em São Paulo,
o incontrolável irmão mais novo de Chateaubriand, Oswaldo, revelava uma
virulência sem precedentes ao atacar o governo. Em seus artigos, afirmava
que a revolução estava moribunda, e que a censura aos jornais representava
para ela "uma espécie de balão de oxigênio", que lhe assegurava "apenas
uma existência artificial". Os panfletos distribuídos clandestinamente nas
ruas pelos conspiradores paulistas eram publicados na íntegra, de graça, nos
dois jornais Associados locais, mesmo quando expressos em textos torren-
ciais, que chegavam a ocupar uma página inteira. A temperatura subia a ní-
veis insuportáveis.
Na madrugada de 10 de julho, Chateaubriand conversava com Austre-
gésilo de Athayde em O Jornal quando o ex-deputado paulista Machado
Coelho entrou sobressaltado redação adentro. Fiel seguidor de Washington
Luís, ele tinha sido obrigado a fugir do país logo depois da revolução, e re-
tornara havia pouco. Coelho trazia a notícia que todos esperavam: a revolu-
ção tinha estourado em São Paulo. Junto com a informação, uma advertên-
cia a Chateaubriand: amigos seus na polícia haviam lhe confidenciado que
João Alberto ia mandar prender o dono de O Jornal ainda naquela noite. Ele
estava ali para oferecer-lhe sua insuspeita casa de milionário como esconde-
rijo. Chateaubriand recusou a generosidade, certo de que havia exagero nas
preocupações de Coelho, mas acabou aceitando pelo menos o conselho de
que deveria deixar a redação. A edição do dia seguinte estava sendo impres-
sa, e pouco antes das duas da madrugada saíram os três, acompanhados de
Amâncio, para o casarão do paulista, na Zona Sul do Rio. Às cinco e meia da
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#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
manhã, depois de uma lauta ceia de peru, foie gras e vinho do Reno, Cha-
teaubriand seguiu para sua própria casa, em Copacabana.
Quando Gallon o acordou, às dez da manhã, com todos os matutinos e
as primeiras edições dos vespertinos do dia, o Diário da Noite já trazia a no-
tícia que gelou Chateaubriand: "Foi preso hoje pela manhã em sua residên-
cia o ex-deputado paulista José Machado Coelho de Castro, que foi recolhi-
do, juntamente com outros detidos, a bordo do navio Pedro I". Telefonou
para o jornal e soube que os policiais tinham estado lá para prendê-lo. Minu-
tos depois chegava seu amigo Mário de Oliveira, que também soubera da vi-
sita da polícia ao prédio da Treze de Maio e imaginava o perigo que Cha-
teaubriand corria. Por precaução, havia comprado um bom pacote de libras
esterlinas e uma passagem em nome do jornalista em um vapor italiano que
zarpava aquela noite para a Europa. Não havia alternativa: se quisesse sal-
var a pele, Chateaubriand teria de se exilar. Mesmo assustado com a agres-
sividade do governo, rejeitou a oferta com uma fanfarronice:
- Obrigado, Mário, mas só saio do país compelido. Tenho alguma ex-
periência para defender-me de arrotos de importância de governantes pas-
sageiros. Desde Pernambuco eu não tenho visto outra coisa senão governos
investindo contra jornais onde trabalhei ou que dirigi. Esses tenentinhos po-
dem até me tirar do Brasil, mas vai ter que ser à força. Volte ao jornal e avi-
se à direção que decidi entrar na clandestinidade.
279
17
Durante as três últimas semanas de julho de 1932, Chateaubriand vagou
pelo Rio, dormindo cada noite num lugar diferente. Mesmo sabendo que a
polícia dava batidas incertas, tentando apanhá-lo no prédio do jornal, ele não
resistia - e pelo menos uma vez por semana passava por lá. Antes, tomava
o cuidado de telefonar e pedir a algum diretor que circulasse pelas ruas Tre-
ze de Maio e Senador Dantas para ver se a polícia não estava de tocaia. Além
das visitas, telefonava todos os dias para a redação, pedindo notícias. E
es-
tas não poderiam ser piores. A censura sobre os seus jornais era quase total.
A exceção era São Paulo, ocupada militarmente pelos revolucionários que se
opunham a Vargas, onde o Diário da Noite e o Diário de S. Paulo estavam a sal-
vo do controle do governo e funcionavam quase que como órgãos de propa-
ganda da revolução. E em Minas Gerais, talvez por causa da camaradagem
existente entre os diretores dos Associados e o interventor Olegário Maciel,
a censura era mais branda - o que permitiu, pelo menos nas primeiras se-
manas do conflito, noticiar alguma coisa sobre o que se passava em São Pau-
lo, desde que, naturalmente, tanto o Estado de Minas quanto o Diário da Tar-
de publicassem também os comunicados oficiais do governo federal. No Rio
Grande do Sul, a pressão foi tão grande que Chateaubriand chegou a tentar
imprimir o Diário de Notícias nas cidades de Rivera, no Uruguai, ou Paso de
los Libres, na Argentina, de modo a escapar da censura. Como essa saída
acabou se revelando inviável, ele simplesmente deu ordens para que o jor-
nal fechasse as portas até que a situação política se normalizasse.
De seus diretores, o que ele sabia é que o irmão Oswaldo se transforma-
ra num incendiário, que além de insultar o governo permanentemente nas
páginas do Diário de S. Paulo e do Diário da Noite usava o porão da casa onde
vivia, na avenida São Luís, no centro da cidade, como depósito de armas e
munição para a guerra que já havia começado. "Ele parecia um pequeno
Deus carnívoro", diria Chateaubriand tempos depois, "clamando vingança,
pregando vingança contra a ditadura depravada que batia São Paulo." Os-
waldo conseguira convencer até seu outro irmão, o pacato Urbano Ganot, a
emprestar cômodos de sua casa na Vila Mariana, também em São Paulo,
para serem utilizados como depósito de material bélico. Austregésilo de
Athayde - que, ao contrário de Chateaubriand, tinha horror à idéia de dar
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
tiros - também aderira de corpo inteiro à luta, e no dia 10 estava em São
Paulo, onde se alistara como voluntário na frente norte da batalha, na região
de Campinas. Quanto a si próprio, Chateaubriand não sabia que destino to-
mar. Seu principal coiteiro no Rio passara a ser o médico paraibano Drault
Ernanny, que ele conhecera dois anos antes. Endocrinologista e dono de uma
farmácia no suburbano bairro do Lins, o médico aparecera na redação de O
Jornal como outros malucos que todos os dias batem às portas dos jornais
com idéias estapafúrdias. A dele era um método infalível para engordar-
impressionado que ficara com a notícia de que milhares de recrutas eram re-
cusados todo ano pelo Exército por falta de peso. Drault Ernanny ganhou
uma coluna no jornal e Chateaubriand ganhou um amigo para sempre.
Solteiro, Ernanny ofereceu-se para esconder o jornalista em sua casa da
rua Constante Jardim, em Santa Teresa. Apesar de clandestino, Chateau-
briand passava o dia no portão, flertando com as empregadinhas que via
num boteco de esquina, a poucos metros de seu esconderijo. Só se animava
a deixar a casa quando Ernanny estivesse junto - no caso de ser preso, al-
guém precisaria avisar o jornal. E quando o médico chegava ele logo propu-
nha uma pequena aventura:
- Olha lá, doutor Drault, que gaforinha fantástica daquela mulatinha
que acaba de chegar no bar. Vamos lá tomar uma cervejinha, vamos.
Quando o tédio da reclusão era demasiado, ele convencia seu protetor
a saírem para uma volta na baratinha Ford de dois lugares do dono da casa.
Numa dessas ocasiões os dois rodavam pela lagoa Rodrigo de Freitas, quan-
do Ernanny suspeitou que estavam sendo seguidos. Aumentou a velocida-
de e, ao passarem por uma casa com os portões abertos, na rua Sá Ferreira,
Chateaubriand gritou:
- Entre nesse portão, aqui é a casa do Chico Campos!
O amigo se espantou:
- Mas o senhor ficou maluco, doutor Assis? Francisco Campos é o mi-
nistro da Educação do governo provisório. Ele próprio vai nos dar voz de
prisão.
Chateaubriand não se amedrontou:
- Primeiro, o Chico é meu amigo. Além disso, ele já é quase ex-minis-
tro. Getúlio está desconfiado de que ele apóia os paulistas, vai demiti-lo
logo. Não sei se ele sabe disso, mas pode entrar assim mesmo.
O jornalista tinha razão: apesar de constrangido pela desconfortável
presença de um inimigo de seu governo em sua casa, Francisco Campos re-
cebeu-os com licores, abraços e uma conversa fiada que durou até tarde da
noite. Na saída o ministro advertiu-o:
- Chatô, você está provocando a sorte. O João Alberto já está descon-
fiado de que você está escondido para os lados de Santa Teresa.
281
#
FERNANDO MORAIS
À sua maneira, Chateaubriand sentiu-se na obrigação de transmitir a
Campos as informações que tinha sobre a sorte dele:
- Doutor Chico, quem tem que tomar cuidados com esse governo não
sou eu, é o senhor. Se João Alberto está desconfiado de que estou para os la-
dos de Santa Teresa, Getúlio está desconfiado de que o senhor está para os
lados de São Paulo. Se eu conheço bem o ditador, ele vai meter-lhe o pé na
bunda brevemente.
Ambos tinham razão. Tanto João Alberto tocaiava o jornalista quanto a
permanência de Chico Ciência no governo Vargas duraria apenas mais algu-
mas semanas. Chateaubriand despediu-se e, no caminho para casa, ao pas-
sarem pela rua Saint Roman, decidiu fazer outra visita, desta vez a Altivo
Dolabela Portela, um amigo que morava ali perto. Compadecida da sorte do
jornalista, a mulher de Portela, Alice, fez uma ceia especial para recebê-lo.
Chateaubriand resolveu telefonar para seu velho amigo Eugênio Gudin e
convidá-lo para o jantar. Gudin apareceu com seu irmão, o médico Maurício
Gudin, e a festança só terminou de madrugada, quando ele e Drault Er-
nanny retornaram a Santa Teresa.
Não era difícil perceber que seus dias de liberdade estavam contados.
Na véspera, os policiais de João Alberto tinham invadido o prédio dos Asso-
ciados e prendido o telefonista Amaro Abdon - uma das raras pessoas que
a qualquer hora do dia ou da noite sabia onde encontrar o patrão. Mesmo
sob ameaça de ser torturado, Abdon não abriu o bico. Sentindo-se um herói
por "ter salvo a vida do doutor Assis", o telefonista se transformaria no mais
relapso e insolente de todos os funcionários das empresas após aquele epi-
sódio.
Depois de passar mais alguns dias escondido, Chateaubriand se animou
a ir à Vila Normanda para buscar mudas de roupas. Foi de táxi, enquanto Er-
nanny estava trabalhando, e ao pisar na soleira do portão recebeu voz de pri-
são de um dos oito homens que - depois ele saberia - se revezavam ali ha-
via duas semanas, campanados à sua espera. Sem tentar qualquer violência
física, os policiais levaram-no até a Casa de Correção, na rua da Relação,
onde foi colocado sozinho em uma cela.
Passadas 24 horas, um homem que se identificou apenas como "major
Guerra" apareceu para comunicar-lhe que ele seria solto, mas sob condições:
- As ordens superiores que recebi são no sentido de libertá-lo, mas des-
de que o senhor concorde em ficar sob regime de prisão domiciliar. O gover-
no oferece como ménage sua própria casa aqui no Rio. Caso o senhor não
aceite a proposta, as instruções são para levá-lo para a sala da capela, aqui
ao lado, onde estão os demais presos políticos. E é bom que o senhor saiba:
da sala da capela provavelmente os presos só sairão para o exílio.
Ele aceitou sem discutir. Sua passagem tão curta pela prisão levaria os
demais presos - entre os quais o jornalista Júlio de Mesquita Filho - a sus-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
peitar de que ele havia feito algum acerto com Vargas em troca da liberda-
de, suposição que os próprios fatos se encarregariam de desmentir, semanas
depois. Outro grupo de policiais levou-o até a casa de Copacabana - de cuja
porta, inexplicavelmente, pareciam ter tirado os guardas. Pelo telefone, Cha-
teaubriand comunicou sua prisão e posterior libertação a Drault Ernanny e
aos diretores do jornal, pedindo a estes que a notícia fosse publicada em São
Paulo e onde mais não estivessem sendo importunados pela censura. De to-
dos com quem falou, recebeu a mesma recomendação: fugir do Rio e, se pos-
sível, do Brasil. O relaxamento de sua prisão devia ter sido obra de algum
amigo remanescente no governo - e ele tinha muitos -, mas aquilo não ia
durar muito. A luta em São Paulo se agravava, seus jornais paulistas esta-
vam cada vez mais agressivos contra Getúlio e se aquela situação progredis-
se ele acabaria preso para valer.
Da Vila Normanda ele comandava os jornais pelo telefone (que imagi-
nava sob censura) como se estivesse na redação. Ligou para Belo Horizonte
dando ordens para que fosse mandado para a frente sul, na boca do túnel si-
tuado na cidade de Passa Quatro, o repórter Rubem Braga, do Estado de Mi-
nas, cujo texto cuidadoso e cheio de estilo ele já elogiara publicamente algu-
mas vezes. A boca mineira do túnel estava tomada por tropas governistas.
Na outra ponta dele, já na cidade de Cruzeiro, em território paulista, esta-
vam as tropas insurretas de São Paulo. Para lá ordenou ao irmão Oswaldo
que fosse enviado o jornalista Arnon de Mello, e pediu que transmitissem
uma última ordem a Athayde, que lutava em Campinas: mesmo alistado e
dando tiros, ele não podia se esquecer de que era, antes de tudo, um jorna-
lista. E que, portanto, arranjasse meios de mandar noticiário regular para os
jornais de São Paulo sobre os acontecimentos da frente norte. "Diga ao Ca-
boclo que um dia essa guerra vai acabar ", insistiu com Oswaldo, "e se ele
quiser o emprego de volta vai ter que trabalhar todos os dias lá no front cam-
pineiro."
Em cada conversa telefônica Chateaubriand acumulava mais informa-
ções sobre o momento político para poder tomar alguma decisão quanto a
seu próprio destino. Do Estado de Minas ele recebera um violento manifesto
contra o governo, lançado dois dias antes por seu arquiinimigo Artur Ber-
nardes. No documento, o ex-presidente anunciava que tinha decidido ficar
ao lado dos paulistas:
Não me preocupam as conseqüências que me possam advir da franqueza com
que me dirijo à nação. Tampouco indago se ela pode ocasionar-me amanhã a
perda da liberdade ou da própria vida. Na minha idade, quando já se deu o má-
ximo do esforço pelo bem da pátria, é ainda uma felicidade possuir-se alguma
coisa que se lhe possa oferecer em momento de extrema gravidade como este.
Brasileiros! A nação não pode permanecer de cócoras! São Paulo encarna os an-
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FERNANDO MORAIS
seios do povo e os interesses supremos do país! Viva São Paulo! Viva o Brasil!
Viva a causa constitucional!
Viçosa, agosto de 1932
Artur Bernardes
Chateaubriand sabia que o ex-presidente havia viajado para Viçosa,
transformada em seu bunker na Zona da Mata mineira, ainda em meados de
abril, quando fervia a conspiração paulista. Bernardes fizera uma demorada
viagem de trem do Rio até sua cidade natal, acompanhado de mais de qui-
nhentos correligionários. Nas estações ferroviárias de cada cidade onde o
trem parava, manifestações de milhares de pessoas organizadas para recebê-
lo acabavam se transformando em comícios contra Getúlio e a favor da rede-
mocratização do país. Em uma de suas viagens a Minas, Chateaubriand foi
informado de que nos últimos três meses, previamente articulado com os
paulistas, Bernardes tinha acumulado um verdadeiro arsenal em sua fazen-
da nas imediações de Viçosa, de onde, dizia-se, pretendia sair à frente de
uma coluna em direção ao Espírito Santo tão logo São Paulo se levantasse
em armas. Ao tomar conhecimento da veemência do manifesto do ex-presi-
dente, o jornalista concluiu que teria de esquecer as velhas divergências com
aquele "esposo místico do nacionalismo" e arranjar um meio de partir ime-
diatamente para a Zona da Mata mineira.
O contato era Filipe Daudt de Oliveira, o mesmo que o ajudara como
pombo-correio anos antes, durante a amarração do "namoro" que ele alcovi-
tara entre Antônio Carlos e Getúlio Vargas na campanha eleitoral de 1930.
Como ele, Filipe também rompera com Vargas e agora montara no Rio uma
cabeça-de-ponte para os revoltosos paulistas. Muito ligado a Bernardes, ele
saberia o que fazer para Chateaubriand chegar a Minas clandestinamente.
Pediu que alguém trouxesse até sua casa-prisão o amigo, e contou que quem
conseguia, no Rio, os salvo-condutos falsos para passar pelas barreiras fede-
rais em direção a Minas era Clélia, a filha de Artur Bernardes, casada com o
jovem diplomata Carlos Alves de Souza. Graças aos documentos falsos ar-
ranjados por ela, revelou-lhe Filipe, dezenas e dezenas de civis, oficiais e alu-
nos da Escola Militar do Realengo, no Rio, tinham conseguido chegar incó-
lumes à Zona da Mata e aderir às forças que Bernardes organizava.
O jornalista precisou esperar algumas semanas, e só deixou o Rio quan-
do chegaram notícias seguras de que havia diminuído o rigor da fiscalização
e das barreiras no trajeto até Viçosa. Com um falso salvo-conduto (idêntico
aos que eram emitidos pela Polícia Central), documentos falsos e bilhetes de
viagem emitidos apenas em nome de "Francisco Bandeira" - sem os sobre-
nomes pelos quais era conhecido -, Chateaubriand acabou só embarcando
secretamente na noite do dia 6 de setembro, uma terça-feira, numa das cabi-
nes do noturno da Estrada de Ferro Leopoldina. Além da documentação for-
jada, Clélia Bernardes lhe dera contatos em todas as paradas e baldeações
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CHATÓ, O REI DO BRASIL
que teria de fazer quando o trem entrasse em território mineiro: na cidade
de Além Paraíba, a primeira de Minas onde o trem parava, um contato o pro-
curaria com uma caixa de ferramentas que deveria ser entregue ao pessoal
de Bernardes. Chateaubriand levaria em mãos dois documentos dirigidos ao
ex-presidente da República: um relatório da base de apoio no Rio, que colo-
cava à disposição dos revoltosos de Minas um fundo de 3 mil contos de réis,
e uma carta de João Neves da Fontoura, na qual o político gaúcho anuncia-
va sua adesão aos paulistas e à resistência que se organizava em Minas. Na
cidadezinha de São Geraldo, a meio caminho entre Visconde de Rio Branco
e Viçosa, quando parassem para que o vagão-dormitório fosse separado da
composição, ele seria procurado pelo "coronel" João do Calhau, chefe políti-
co local e aliado de Bernardes. A partir de então o "coronel" seria o respon-
sável por sua segurança até chegarem a Teixeiras, lugarejo situado poucos
quilômetros depois de Viçosa, de onde um carro os transportaria até Ara-
ponga, lugar da fazenda onde Bernardes mantinha centenas de homens ar-
mados.
Quando o trem estacionou para uma baldeação em Além Paraíba o con-
tato apareceu. Era um oficial da Polícia Militar à paisana que lhe dirigiu ape-
nas uma pergunta:
- Francisco Bandeira?
Chateaubriand confirmou com a cabeça e o homem informou que havia
embarcado como bagagem desacompanhada, no novo trem que os levaria a
partir dali, não apenas uma, como lhe haviam informado no Distrito Fede-
ral, mas 23 caixas de ferramentas seladas com a marca da Fundição Mineira
do Rio, a serem entregues ao sobrinho de Bernardes, Otávio, que comanda-
va os guerrilheiros acampados em Araponga. O jornalista entrou de novo no
trem, já de madrugada, e cochilou um par de horas no vagão-dormitório.
Despertou com as sacudidelas do trem parando na estação de Ubá. A enor-
me movimentação de policiais civis fazendo perguntas e exibindo armamen-
to pesado na plataforma não o animou a descer sequer para um cafezinho.
Baixou um pouco o vidro da janela da cabine e viu um delegado de polícia
exibindo aos passageiros que haviam descido "o equipamento que usamos
para fazer paulista falar ": era uma coleção de alicates ("para arrancar unhas
",
explicava o policial) e torniquetes de metal semelhantes a algemas ("para es-
premer pulsos, tornozelos e outras partes mais delicadas do corpo humano",
contava entre gargalhadas).
O trem voltou a partir e só parou com dia claro em Rio Branco, onde
uma numerosa barreira policial revistava e exigia salvo-condutos de todos
os passageiros que desciam à plataforma. Por cautela, Chateaubriand prefe-
riu ficar na cabine, cuidadosamente trancada por dentro. Por uma fresta da
cortina acompanhava a movimentação dos policiais no lado de fora. Sua es-
pinha gelou quando ouviu o que parecia ser o chefe dar ordens para que um
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FERNANDO MORAIS
negro forte, levando nas mãos uma carabina, "varejasse " o interior dos va-
gões para ver se "ainda tem gente dormindo lá dentro ". O homem entrou
pelo trem e o jornalista ouvia o barulho de suas passadas aproximando-se e
do movimento que fazia nas maçanetas ao abrir, uma por uma, as portas das
cabines recém-abandonadas pelos passageiros que haviam descido. Acabou
tentando abrir a porta da sua. Ele ficou em silêncio. O homem bateu três ve-
zes e perguntou:
- Tem alguém dormindo aí dentro?
Silêncio absoluto. Sentado na cama, Chateaubriand nem respirava. O
homem insistiu mais uma vez. Bateu e perguntou de novo:
- Tem alguém aí dentro?
Aparentemente imaginando que a cabine estivesse desocupada, desis-
tiu e prosseguiu abrindo portas pelo corredor estreito, ao final do qual sal-
tou para o vagão seguinte. O jornalista respirou aliviado, certo de que pelo
menos daquele estava livre. Minutos depois os passageiros reembarcavam e
a composição partia para São Geraldo, a meia hora dali, o ponto final da via-
gem de trem de Chateaubriand. Por sua janela descortinava-se uma manhã
radiosa, com o sol fazendo subir ao céu anil uma nuvem de vapor do orva-
lho que caíra durante a noite sobre as intermináveis plantações de fumo. O
trem diminuiu a velocidade ao chegar perto de um casario, até parar por
completo na minúscula estação de São Geraldo. Pela fresta da cortina que
voltara a fechar antes da parada total, ele viu uma cena que o amedrontou:
o homem que chefiava os policiais em Rio Branco descia de um carro, acom-
panhado do negro que fizera a varredura no interior do trem. Junto com eles
vinham mais dois policiais, todos armados de carabinas e com revólveres na
cintura. O negro olhou para todos os vagões, como se tentasse identificar um
deles, e apontou para o de Chateaubriand:
- Só pode estar neste aqui. Tenho certeza de que encontrei a tal cabine
fechada.
O jornalista suava frio, e numa fração de segundos percebeu o que acon-
tecia: o policial negro com certeza comentara com o superior que havia uma
cabine trancada no trem, e agora eles estavam ali para pegá-lo. Quando os
quatro bateram forte na sua porta, ele já estava composto, de gravata, pale-
tó e chapéu sobre a cabeça. Simulou naturalidade, na esperança de que os
documentos falsos garantissem sua passagem em paz. Foi o chefe dos poli-
ciais quem lhe dirigiu a palavra:
- Seu nome, documentos e salvo-conduto.
Ele enfiou a mão no bolso interno do paletó, calmamente, tirando o do-
cumento e o salvo-conduto que Clélia Bernardes lhe conseguira no Rio:
- Meu nome é Francisco Bandeira. Vou visitar um amigo que é profes-
sor em Viçosa.
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CHATÔ, O REI DO BRASIl
O policial olhou os documentos sem desconfiar da falsificação, mas deu
ordens para que ele os acompanhasse à plataforma, onde um grupo grande
de pessoas já se aglomerava. O interrogatório que prometia ser rápido foi
realizado ali mesmo, com todos em pé. Só o delegado perguntava:
- Por que o senhor se escondeu dentro da cabine, recusando-se a abrir
a porta para o investigador?
Ele continuava impávido, com um sorriso nos lábios:
- Me desculpe, doutor, mas eu não sei do que o senhor está falando. Se
foi de Ubá para cá, eu dormi o tempo todo. Tenho o sono pesado e se alguém
bateu à minha porta eu não ouvi. Não teria motivos para não abri-la, meus
documentos estão aí, meu salvo-conduto não está vencido.
O delegado parecia convencido de que aquela história era verdadeira
quando um jovem de trinta e poucos anos, vestido num terno de linho bran-
co, espichou o pescoço por cima do grupo, gritando:
- Doutor Assis Chateaubriand, o senhor? Preso, aqui neste fim de
mundo?
O homem - o ex-deputado estadual Celso Machado, aliancista e getu-
lista fanático e adversário político de Bernardes - abria caminho por entre
os capiaus que se juntavam para ouvir o interrogatório, falando em voz alta:
- Delegado Soares, esse aí é o Assis Chateaubriand, dono dos Diários
Associados, da revista O Cruzeiro e do Estado de Minas. Ele está com os pau-
listas carcomidos, está contra nós.
Pela segunda vez em um ano e meio suas aventuras como revolucioná-
rio chegavam ao fim sem que ele tivesse dado um único, um miserável tiro
que fosse. Quando a polícia começou a revistar sua cabine, o chefe do trem
comunicou ao delegado que o passageiro levava "quase meio carro" de ba-
gagem desacompanhada, que tinha sido embarcada em Além Paraíba. Exci-
tados, os investigadores foram até o vagão de carga e abriram um dos caixo-
tes de madeira, em cujo interior havia milhares de balas de fuzil. Outra caixa,
mais balas, e outra, e outra: o jornalista levava munição suficiente para uma
semana de guerra. Junto com as caixas, a polícia confiscou os dois documen-
tos destinados a Bernardes.
Algemado e posto no carro dos policiais, foi levado a Rio Branco, de
onde comunicaram sua prisão pelo telégrafo ao secretário do Interior e chefe
de polícia do estado de Minas, Gustavo Capanema. Chateaubriand ainda es-
tava viajando de carro entre Rio Branco e Juiz de Fora, onde seria entregue às
autoridades militares, e o telégrafo já espalhava por todo o Brasil a nota ofi-
cial assinada por Capanema festejando a prisão de alguém tão importante-
e com uma bagagem que não deixava dúvidas quanto às suas intenções na
Zona da Mata mineira. No mesmo carro em que o jornalista viajava, também
ia, preso e escoltado, o temido "coronel" João do Calhau - o tal que deveria
garantir sua chegada ao QG bernardista, em Araponga. Chateaubriand per-
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FERNANDO MORAIS
cebeu logo que, longe de ser o poderoso chefe político que imaginava, o pre-
so não passava de um jagunço ignorante e violento, que tinha sido seduzido
para o movimento não por razões políticas ou ideológicas, mas para realizar
o sonho de que seu estado natal, Minas Gerais, finalmente pudesse ter mar.
Na viagem ele contou que tinha entrado na revolução para comandar um ba-
talhão que invadiria o Espírito Santo, anexando esse estado a Minas GeraiS
"Se perdermos a guerra, doutor Assis", lamentava desconsolado, "vão por
água abaixo meus planos de avançar os alimite de Minas até o mar."
Chateaubriand dormiu uma noite a sono solto no quartel do Exército,
em Juiz de Fora, onde recebeu tratamento civilizado: o delegado encarrega-
do de sua guarda era Fabriciano de Brito, sobrinho do ex-deputado federal
mineiro Carvalho de Brito, que o jornalista ajudara a tirar da prisão em 1931,
logo depois da vitória getulista. No dia seguinte, enquanto aguardava a es-
colta especial que o levaria de volta ao Rio de Janeiro, Chateaubriand rece-
beu na cela um Estado de Minas e um jornal oficial do Estado, o Minas Gerais.
O seu jornal continuava dando em manchete de oito colunas o mesmo e mo-
nocórdio título que repetia todos os dias, desde 9 de julho, e que inexplica-
velmente passava intato pelos censores: "O movimento revolucionário con-
tra o governo ditatorial". Já o Minas Gerais parecia estar noticiando outro
movimento - o que para aquele era "revolucionário", para o jornal oficial
era "movimento reacionário dos paulistas". A edição do Estado de Minas tra-
zia, também na primeira página, a cobertura de sua prisão em Viçosa, trata-
da com cuidadosa neutralidade sob o título "Os acontecimentos da Zona da
Mata" (considerada pelo Minas Gerais uma "fracassada tentativa de sedi-
ção "). Ali Chateaubriand tomou conhecimento da versão oficial da polícia,
segundo a qual ele tinha sido preso "com nome falso" e portando "um arse-
nal de armas pesadas que se destinavam ao sr. Artur Bernardes ".
Só naquele momento, também, é que o jornalista soube que, logo após
prendê-lo, as forças do governo tinham avançado sobre a fazenda de Ára-
ponga. Depois de um combate que deixara mortos em ambos os lados, inva-
diram o lugar e prenderam Otávio Bernardes, sobrinho do ex-presidente e
um dos comandantes da revolta. O tio, dizia o noticiário, tinha conseguido
escapar, fugindo em direção à cidade de Ipanema. A gravidade da situação
na região (e a importância dos personagens envolvidos) obrigou Capanema
a enviar para lá o delegado Menelick de Carvalho, especialmente destacado
para chefiar as investigações em Viçosa e imediações. A íntegra da carta de
João Neves que Chateaubriand levava para Bernardes foi tornada pública,
dando-se destaque ao trecho em que o gaúcho confessava seu temor de que
o movimento paulista se encaminhasse "para dois rumos esboçados com
inescondível precisão: o separatismo e o prussianismo".
A nota oficial de Capanema (na verdade, cópia de um telegrama-circu-
lar que enviara a todos os prefeitos mineiros) engrossava a lista de crimes co-
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metidos por Chateaubriand, acrescentando alguns que efetivamente não
eram de sua autoria - ou que cometera, sim, mas dois anos antes, e a favor
de Getúlio. Além de "envolver-se em desordens junto com oficiais do Exér-
cito", o jornalista tinha sido o responsável "pelo corte de linhas de telégrafo
e telefone, logo reparadas". Em outro comunicado distribuído à imprensa,
Gustavo Capanema exibia como um troféu o telegrama que recebera do ge-
neral Góis Monteiro, naquele momento alçado ao posto revolucionário de
"comandante do Exército do Leste, ora chefiando a resistência militar em Re-
sende, no estado do Rio". Góis cumprimentava o governador Olegário Ma-
ciel e seu secretário do Interior por terem "esmagado a sedição na Zona da
Mata, reprimindo os mazorqueiros e conservando a ordem que tanto mere-
cem o povo mineiro e seu honrado governo ". Entre as saudações recebidas
por Capanema, o Minas Gerais reproduzia o telegrama em que Celso Macha-
do - o ex-deputado que identificara Chateaubriand em São Geraldo - con-
gratulava-se com o secretário "pelo completo fracasso do movimento sub-
versivo preparado para explodir nesta Zona da Mata ".
Levado de carro de volta ao Rio, o jornalista foi entregue ao capitão Dul-
cídio do Espírito Santo Cardoso, tenentista radical que substituía João Al-
berto na chefia de polícia do Distrito Federal enquanto o titular combatia
contra São Paulo. Para surpresa do detento, Cardoso mandou levar Cha-
teaubriand não para a Casa de Correção, na rua da Relação, onde se encon-
travam dezenas de presos políticos, mas para a Detenção, um presídio co-
mum que o obrigaria a conviver com criminosos e delinqüentes. Ali per-
maneceu por menos de uma semana, sem ouvir nenhuma acusação formal
contra si, nem qualquer notícia sobre o destino que teria. A direção dos As-
sociados mandava um motorista duas vezes por dia à prisão para levar-lhe
almoços e jantares especiais, comprados na Rotisserie Americana - repasto
que compartilhava fraternalmente com um ladrão que era seu companheiro
de cela durante o dia. Pelo portador da comida mandou avisar que só que-
ria receber visitas caso houvesse alguma notícia importante sobre sua situa-
ção política. Mas, nesse curto período, pelo menos duas vezes conseguiu que
o carcereiro Raimundo afrouxasse a vigilância, no começo da noite - quan-
do ficava sozinho dentro da cela -, para receber "visitas íntimas" de falenas
que Amâncio se encarregava de contrabandear como "irmãs do dr. Assis"
para dentro do presídio.
Certa manhã, Dulcídio Cardoso apareceu pela primeira vez na cela,
acompanhado de um fotógrafo que o encostou à parede e o fotografou "para
a identificação criminal", segundo lhe informaram. Horas depois o capitão
retornava trazendo um passaporte recém-emitido, ordenando que Chateau-
briand o assinasse. Sem outra alternativa, cumpriu a determinação do mili-
tar, para ouvir dele, logo em seguida:
289
#
FERNANDO MORAIS
- Com essa assinatura espontânea, o senhnr na prática está nos autori-
zando a providenciar sua deportação. Se o senhor se recusasse a assinar o
passaporte, a polícia não teria como embarcá-lo à força.
Ficou intrigado e extremamente apreensivo com a notícia - afinal, se-
gundo as informações vindas de fora, ninguém fora deportado até então,
nem mesmo presos políticos paulistas que estavam na Casa de Correção e
haviam se envolvido muito mais com o movimento. Será que as malditas
caixas de balas embarcadas em Além Paraíba iriam mandá-lo para fora do
país? Quis saber mais alguma coisa, mas Dulcídio Cardoso foi lacônico e
ameaçador:
- São ordens do capitão João Alberto, que veio do front exclusivamen-
te para cuidar do seu caso.
Cardoso voltou ao xadrez depois do almoço acompanhado de dois in-
vestigadores armados de pistolas, e comunicou-lhe a sentença que João Al-
berto tinha decretado para ele:
- O senhor tem duas horas para ir até sua casa e fazer uma mala de
roupas. Não pode telefonar nem comunicar-se com ninguém: qualquer ten-
tativa de quebrar essa incomunicabilidade será suficiente para que meus ho-
mens abram fogo. No final da tarde o senhor embarca para o exílio.
Na Vila Normanda, Chateaubriand ainda conseguiu driblar por segun-
dos a vigilância dos policiais para sussurrar a Henri Gallon:
290
#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
- Logo que eu sair, ligue para o Gabriel Bernardes no O Jornal e diga que
estou sendo deportado. Peça a ele para ir já para o cais e descobrir que na-
vio parte hoje para o estrangeiro. Diga que é para ele levar algum dinheiro,
que eu não tenho um níquel nos bolsos.
Retornou à Detenção e permaneceu incomunicável até as sete horas da
noite, quando Dulcídio Cardoso veio buscá-lo:
- Tenho ordens para mandar embarcá-lo num navio japonês que zar-
pa daqui a pouco para Tóquio. Este é o delegado Brandão, que vai chefiar a
escolta que o acompanhará até o porto. Ele já tem a passagem que compra-
mos para o senhor e seu passaporte. Sua estada aqui na Detenção acabou.
O navio em questão era o Hawczii Maru, um misto de carga e passagei-
ros de 20 mil toneladas, pertencente à Osaka S. K. Lines, da qual Chateau-
briand se lembrava de ter visto anúncios de página inteira em O Cruzeiro,
oferecendo cruzeiros turísticos pela Ásia. O Hawaii chegara ao Rio três dias
antes para descarregar fardos de algodão e recolher café em grão. E partiria
naquela noite para o Oriente, com escalas em Cidade do Cabo, Mosselbaai,
Port Elizabeth, East London e Durban, todas na África do Sul, subindo de-
pois a costa do oceano Índico, na África, com paradas previstas em Louren-
ço Marques (Moçambique), Mombaça (Quênia), Zanzibar e Cingapura para
dali navegar até Kobe (e não Tóquio, como Dulcídio Cardoso imaginava), no
Japão, onde a chegada estava prevista para o início de novembro - entre 45
e cinqüenta dias depois de ter saído do Rio.
Ao chegar ao cais, pôde ver que o navio a inda embarcava sacas de café.
Ao pé da escada que levava ao convés estava um pequeno grupo de homens,
entre os quais identificou Gabriel Bernardes, acompanhado de um amigo. O
diretor dos Associados entregou-lhe o único dinheiro estrangeiro que conse-
guiu arranjar em tão pouco tempo: cinqüenta libras esterlinas. Quando um
dos circunstantes, um brasileiro, se identificou como sendo gerente da Wil-
son Sons, empresa representante da O. S. K. Lines no Brasil, Chateaubriand
fez o primeiro protesto:
- Doutor Bernardes, o senhor foi ministro da Justiça. É bom que esteja
aqui para testemunhar a indecência que esse governo mofino está cometen-
do contra mim, com a cumplicidade da Wilson Sons.
O homem protestou:
- Desculpe, doutor Assis, mas ninguém nos disse que o senhor seria
embarcado contra a sua vontade. Nós simplesmente vendemos ao governo
um bilhete emitido em seu nome, nada mais. Só agora é que estou sabendo
que o senhor está sendo deportado.
Quando soube que até a Cidade do Cabo teria de viajar em terceira clas-
se, e só então ser transferido para uma vaga que seria aberta na primeira
classe, Chateaubriand fincou pé e dirigiu-se ao gerente da empresa de nave-
gação:
291
#
FERNANDO MORAIS
- Então o senhor corra até sua agência e mande trazer pelo menos uma
cama de primeira classe para mim. Além de me embarcarem à força ainda
querem que viaje numa enxovia? Nada disso, trate de arranjar a cama de pri-
meira imediatamente.
Colocado na diminuta cabine, ele foi logo se dirigindo - em um inglês
miserável - ao comissário de bordo Masaichi Yamada, encarregado de
atendê-lo:
- Quero um exemplar em inglês da Constituição japonesa. Sei que vo-
cês são obrigados a levar uma a bordo, e já que terei que ficar um mês e meio
aqui, quero aprender mais alguma coisa. E preciso de uma audiência ime-
diata com o capitão do navio.
Falando também em inglês, minutos depois o comissário retornava com
a Constituição e uma má notícia:
- O capitão Oisi não pode atendê-lo. Pede que o senhor declare por es-
crito o intuito de sua entrevista.
Chateaubriand apanhou um pedaço de papel sobre uma mesinha-de-
cabeceira e rabiscou, sempre com seus garranchos incompreensíveis:
Captain Hiroshi Oisi
Master of Hnwaii Mari
I am a lawyer and a journalist and I am being forced to board Hawaii Maru.
This fact creates a serious precedent in international law and will cause diplo-
matic complications to your company and your country. You are the only one
who can avoid this crime. I must speak to you immediately.
Rio de Janeiro, September 12,1932
Assis Chateaubriand
Ele folheava desesperadamente a Constituição japonesa em busca de al-
gum artigo que pudesse utilizar como argumento, mas o comissário voltou
depressa demais: preocupado com o conteúdo do bilhete, o capitão queria
recebê-lo imediatamente em sua cabine. Chateaubriand apertou o passo pe-
los corredores estreitos do navio, cujas máquinas já tinham sido postas em
funcionamento. Hirnshi Oisi alegou o mesmo que o homem da Wilson Sons:
ele não sabia de nada do que se passava, mas não queria se imiscuir em pro-
blemas internos dos militares brasileiros. A concessão máxima que poderia
fazer era permitir que o jornalista desembarcasse na primeira escala do Ha-
waii Maru, na Cidade do Cabo. Chateaubriand teve um acesso de fúria, e ten-
tava escolher as palavras corretas em inglês, para que não restasse dúvida do
que pretendia dizer:
- O que o senhor está dizendo é que decidiu converter seu navio em
prisão de um Estado que não o seu. Se permanecer em águas brasileiras co-
migo aqui dentro o senhor estará cometendo um crime. Se cruzar as águas
292
#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
internacionais, serão dois crimes. Crimes pelos quais o senhor terá que res-
ponder.
Surpreso com a veemência do jornalista, o capitão mandou chamar to-
dos os oficiais para deliberar sobre a confusão que estava se formando. An-
tes mesmo de ser convocado, o chefe da radiotelegrafia do navio, Yosakichi
Yamashita, entrou na cabine com a transcrição da mensagem que acabara de
receber da Capitania dos Portos, exigindo que o navio zarpasse de pronto.
Segundo as autoridades brasileiras, a hora prevista no plano de navegação
tinha se passado fazia muito, e o navio precisava partir. O capitão deu or-
dens em japonês para que o Hawaii Maru fosse colocado em movimento.
Quando o transatlântico começou a se mexer, apontando a proa para o mar,
Chateaubriand sapateou e rangeu os dentes de raiva, mas não perdeu as es-
peranças. Logo chegavam à cabine o primeiro oficial de bordo e os dois en-
genheiros, tendo o capitão dado ordens para que o chefe de rádio e o comis-
sário permanecessem ali. Falou alguma coisa com eles em japonês e virou-se
para Chateaubriand, em inglês:
- Este é o comando do Hawaii Maru. Repita para nós a história que o
senhor me contou.
O jornalista sabia que dispunha de pouco tempo - o navio já se movia
em direção à baía - e tinha de ser convincente. Sem se preucupar com a
fluência de seu inglês, fez um discurso inflamado para us perplexos
japoneses:
- Estou preso porque sou um democrata. Sou dono de uma rede de jor-
nais e revistas que não concorda com o governo deste país, um país que está
em plena guerra civil. Na cadeia, assinei um passaporte sob coação policial.
Nenhuma arma que a ditadura apontasse para mim me assustaria tanto
como a permanência de mais de cinquenta dias no mar, contra a minha von-
tade.
Hiroshi Oisi interrompeu-o:
- Mas senhor Chateaubriand, eu já lhe disse que na escala da Cidade
do Cabo eu autorizo seu desembarque. O senhor pode retornar a seu país em
poucos dias.
Ele retomou o embalo, brandindo o passaporte no ar:
- O ilustre capitão se engana. Veja que meu passaporte só tem visto
para o Japão. Eu não poderei baixar em nenhum dos portos em que seu na-
vio fará escalas. Lamento dizer que a partir deste momento o senhor é meu
carcereiro contra a minha vontade. Quero dizer aqui, para esta tripulação, o
que repetirei em meus jornais e na minha agência de notícias até o último
dos meus dias: se não me desembarcarem imediatamente, os senhores esta-
rão sendo cúmplices de um crime contra um amigo do Japão. Tenho quilos
de artigos defendendo a imigração japonesa para o Brasil, quando todos
eram contrários. Se não me desembarcarem, o império nipônico vai carregar
293
#
FERNANDO MORAIS
eternamente o opróbrio de ter se transformado na Sibéria de uma ditadura
criminosa.
O comandante pediu que ele interrompesse por um minuto o que já era
uma pregação, para que os oficiais pudessem confabular entre si - sempre
em japonês. Falaram em voz baixa, todos com expressão de pânico no rosto,
e deram-lhe de novo a palavra. Chateaubriand continuou, certo de que esta-
va sensibilizando os japoneses:
- O que está havendo contra mim não é um processo judicial, nem
mesmo um processo político. Sou vítima de uma vendeta pessoal. O capitão
João Alberto, que ora me submete a esta humilhação, nem capitão de ver-
dade é.
Já aos brados, passou a referir-se a João Alberto com terminologia que
seria incompreensível até para muitos brasileiros, quanto mais para um es-
pantado grupo de japoneses, chamando-o de "chefe de polícia bisonho", um
"letras gordas", "um tenentinho reiúno, esquerdista sem curso de estado-
maior e sem aperfeiçoamento na Missão Francesa":
- Só um rapaz ignorante como ele pode querer transformar o Japão na
Sibéria brasileira. Eu não estou pedindo para descer. Estou exigindo, em
nome da lei e do direito internacional, que os senhores me desembarquem
imediatamente.
Os japoneses perceberam que estavam metidos em uma grande encren-
ca. Puseram o jornalista em uma cabine contígua à do comandante para po-
derem conversar mais livremente - providência desnecessária, já que entre
si eles só falavam seu idioma. Trancado em uma salinha com dois sofás e
uma mesa, Chateaubriand folheava revistas japonesas enquanto, cada vez
mais ansioso, via as horas passarem. E o navio avançava mar adentro. Por
volta da uma hora da madrugada ele sentiu que o barulho dos motores di-
minuiu de intensidade até parar por completo. Foi quando um marinheiro
bateu à porta e pediu que ele o seguisse até a sala da torre de comando, onde
a tripulação estava reunida. Visivelmente tenso, o capitão Oisi leu para ele o
rádio que tinha mandado passar cinco minutos antes para a Capitania dos
Portos, pedindo autorização para retornar ao porto "e desembarcar o passa-
geiro Assis Chateaubriand, que viaja contra sua própria vontade, em con-
tradição com as leis navais internacionais ". O dia amanheceu sem que do
continente viesse qualquer notícia, boa ou má. Durante todo esse tempo Cha-
teaubriand permaneceu na sala do comandante, que não lhe dirigia a palavra.
Quando um taifeiro entrou trazendo uma bandeja com um bule, xícaras
de chá e torradas, o jornalista dirigiu-se ao capitão perguntando se não ha-
veria a hipótese de receber "algum queijinho europeu na cabine e, quem
sabe, um cálice de vinho do porto?". Havia, sim. O taifeiro voltou com uma
garrafa de porto e um queijo holandês, idêntico ao que na juventude de Cha-
teaubriand se importava muito em Pernambuco. Aliviado e de novo bem-
294
#
CHATÔ. O REI DO BRASIL
humorado, comentou o fato com o capitão, lembrando uma diferença: os
queijos que apareciam em Recife, redondos como aquele, eram de uma mar-
ca que trazia um camelo impresso no alto - expressão que, na falta de pa-
lavras mais precisas, ele traduziu como "a camrl on cocuruto, do you under-
stand, mastewÓisi?". Master Oisi não só parecia não ter entendido como dava
a impressão de que a única coisa que queria, naquela hora, era livrar-se da-
quele exótico e incômodo passageiro.
Às oito da manhã, chegou um rádio inesperado e ameaçador da Capita-
nia dos Portos, que dizia apenas: 1) o Hawaii Maru não tinha autorização
para retornar ao porto do Rio de Janeiro; 2) se o vapor não religasse os mo-
tores e deixasse imediatamente as águas brasileiras, a artilharia do Forte de
Copacabana tinha ordens para colocá-lo a pique. Assinado, capitão João
Al-
berto Lins de Barros, chefe de polícia do Distrito Federal.
295
18
Apesar de estar na alça de mira da artilharia do Forte de Copacabana,
plantado a poucas milhas do navio, o capitão Hiroshi Oisi não se intimidou.
Passou horas trocando por rádio comunicados com a Capitania dos Portos,
insistindo em que qualquer agressão brasileira ao Hawaii Maru seria enten-
dida como uma declaração de guerra ao Japão. Mas João Alberto e seus te-
nentes não estavam dispostos a recuar: se o navio não deixasse as águas ter-
ritoriais do país imediatamente, seria afundado - e a responsabilidade seria
do capitão. No meio da tarde chegou uma mensagem destinada a Chateau-
briand, vinda do rádio de O Jornal: "Assunto deportação fugiu mãos polícia.
Depois seu memorial dirigido capitão Oisi, embaixada chamou problema a
si. Agora quem tem caso nas mãos é o embaixador Tatsukn Chichita. Assi-
nado, Gabriel Bernardes".
O comandante do navio explicou ao jornalista que, diante da ameaça de
torpedeamento da embarcação, ele se comunicara por rádio com a embaixa-
da japonesa, transmitindo o bilhete inicial de Chateaubriand e transcreven-
do a inacreditável mensagem assinada por João Alberto. A solução do im-
passe saíra do âmbito do Exército e da polícia e estava sendo discutida
pessoalmente pelo embaixador Chichita com o Ministério das Relações Ex-
teriores do Brasil. Chateaubriand comentou com Oisi que conhecia o embai-
xador japonês, com quem disputara objetos de arte chineses em um leilão
promovido por uma igreja protestante inglesa do Rio de Janeiro.
Já fazia quase 24 horas que ele fora embarcado no navio quando um
grupo de diplomatas da embaixada japonesa, chefiados pelo ministro-conse-
lheiro Itiro Kondo, subiu a bordo do Hawaii Maru para tentar solucionar o
problema. A missão entrevistou Chateaubriand, que repetiu toda a arenga
que tinha recitado para o comandante do navio. Os diplomatas passaram
mais algumas horas na cabine de rádio conversando ora com a embaixada
do Japào, ora com o ministro Maurício Nabuco, encarregado pelo governo
brasileiro de resolver o problema. Sem que se soubesse disto a bordo, Nabu-
co defendia junto a João Alberto que a única solução possível era aceitar
Chateaubriand de volta, sob pena de o país infringir vários artigos do direi-
to internacional público. Depois de 27 horas de escaramuças radiotelegráfi-
cas - tempo em que o navio permaneceu boiando na baía, a trinta milhas
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#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
da costa brasileira, com os motores desligados -, o governo resolveu ceder:
o Hawaii Maru continuaria no lugar em que se encontrava e um rebocador da
Marinha iria até lá para trazer o preso para o continente. Chateaubriand ga-
nhara a parada. (Se o Hawaii Maru de fato estava a trinta milhas do Rio, como
consta do diário de bordo, o capitão não tinha mesmo motivos para obede-
cer a qualquer ordem vinda das autoridades brasileiras: naquela época a fai-
xa marítima que era legalmente considerada "águas territoriais do Brasil"
media apenas doze milhas.)
Levado à sala de Dulcídio Cardoso, Chateaubriand provocou o militar
com bom humor:
- Como o capitão pode ver, estou aqui novamente. Espero que enten-
da a minha volta como uma demonstração de amor ao senhor e à prisão que
dirige. Troquei férias prolongadas entre gueixas e crisântemos pela cadeia
fedorenta em que o senhor vai me encerrar.
O jornalista passou mais duas semanas na Detenção. Durante parte do
dia tomava sol no pátio interno, junto com centenas de presos comuns, e o
restante do tempo ficava na mesma cela de antes - novamente dividida, du-
rante o dia, com o ladrão que conhecera ao chegar de Minas. À generosa di-
visão da comida que os Associados mandavam entregar na cela, o preso
agradeceu com um presente inusitado: um luxuoso relógio Jaeger-Le
Coultre de ouro, do tipo patacão, que o ventanista confessou ter roubado
em uma mansão da Zona Sul. Chateaubriand aceitou sem qualquer cerimô-
nia e usaria o relógio durante muitos anos (sem nunca esconder sua origem),
até que o presenteasse ao amigo Antônio Sanchez Galdeano, o "rei do esta-
nho". Só no final de setembro, quando se travava em Campinas a última ba-
talha da fracassada Revolução Constitucionalista, é que as autoridades deci-
diram transferi-lo para a Casa de Correção, onde estavam dezenas de presos
políticos.
Tanto o noticiário sobre sua prisão como a tentativa de mandá-lo para o
Japão foram rigorosamente proibidos nos jornais Associados do Rio e na re-
vista O Cruzeiro. Em São Paulo, ao contrário, os dois jornais se esbaldaram
com esses acontecimentos. Como as notícias chegassem do Rio truncadas e
muitas vezes censuradas, tanto o Diário da Noite como o Diário de S. Paulo de-
ram equivocadamente que o patrão tinha sido deportado no Buenos Aires
Maru, corrigindo depois, também erradamente, para Saritos Maru - e mes-
mo depois que Chateaubriand estava em terra firme, enrolado em um cober-
tor vermelho na prisão, continuaram noticiando que ele se encontrava em
alto-mar, "rumo ao bárbaro exílio que a ditadura lhe impôs no Extremo
Oriente". À notícia da deportação, o furibundo Oswaldo Chateaubriand rea-
giu com um artigo à altura da violência, intitulado "Inteligências de rato", em
que traçava um retrato das perseguições de que os Associados eram vítimas:
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FERNANDO MORAIS
Conforme telegrama que ontem recebi do Rio, o sr. Assis Chateaubriand viaja a
estas horas a bordo do Buenos Aires Maru até o país dos crisântemos, destino que
lhe é imposto pela viagem forçada nesse barco nipônico. Houve por bem a dita-
dura dos tenentes (pois que o sr. Getúlio Vargas é um trapo) perpetrar essa
violência na pessoa do diretor d'O Jornal e do Diário de S. Paulo como castigo
pela atitude que assumira na direção dos Associados - e a seus companheiros,
como uma ameaça se lhe continuarem a obra. Mais uma vez os tenentes se afir-
mam como tipos de inteligência de rato, de que a nação já se fartou. A infâmia
desses alarves, deportando o sr. Assis Chateaubriand, há de servir no mínimo
para fortalecer a unidade espiritual e política dos Associados.
Foram arrolhados O Jornal e o Diário da Noite do Rio porque não quiseram ser-
vir a essa torva figura de celerado que é o sr. Getúlio Vargas; foi fechado espon-
taneamente o Diário de Noticias de Porto Alegre para não se cobrir de lodo aplau-
dindo a negra felonia do sr. Flores da Cunha; foram abafados o Estado de Minas
e o Diário da Tarde, de Belo Horizonte, porque se recusaram a favorecer as am-
bições desses dois sacripantas que são Gustavo Capanema e Virgilinho de Melo
Franco; continua perseguido em Recife o Diário de Pernambuco, que se obstina a
combater esse poltrão e gatuno que é o sr. Lima Cavalcanti. Só restava à polícia
do sr. João Alberto (que é a flor da malandrice dos tenentes) arredar do Brasil o
jornalista que oferecera combate em campo raso à ditadura que se corrompeu
na ambição, no tresvario da violência, nas sinuosidades da mentira, nos abismos
da degradação e no crime perverso e consciente contra os interesses da naciona-
lidade.
Os tenentes são apenas um episódio efêmero e degradante na vida política da
nação. E talvez fosse preciso mesmo que eles aparecessem, na sombra de seus
crimes, para que o Brasil renovasse suas energias e reafirmasse perante si mes-
mo na grandeza emocionante de seu idealismo e na fé intimorata dos seus des-
tinos. A paz dos pântanos recebê-los-á oportunamente no seu seio.
Se esbanjava adjetivos, Oswaldo Chateaubriand não exagerava ao fazer
o inventário da razia de Getúlio contra os Associados. Até mesmo o Estado
de Minas, que se equilibrava na tênue cordialidade mineira, acabaria acoco-
rado pela força da censura. O que no começo era "o movimento revolucio-
nário contra o governo ditatorial" passou aos poucos a ser chamado apenas
de "movimento armado" para, no final de setembro, virar "movimento sub-
versivo contra o governo provisório". Na revista O Cruzeiro não seria dife-
rente. Sem nunca ter deixado de dar o rotineiro caderno de dez páginas se-
manais dedicadas à luta em São Paulo, ela também foi revelando aos leitores
que aos poucos o garrote da censura ia se apertando. O título permanente da
cobertura mudou de repente de "O movimento revolucionário paulista"
para um prudente "O pronunciamento de São Paulo". Mesmo censurada, a
revista fazia cobertura exuberante e criativa. Além dos fotógrafos que man-
tinha em cada frente, a partir de agosto O Cruzeiro destacou o artista
plásti-
co Henrique Cavalleiro (o mesmo que ilustrara os finalistas do concurso de
contos) para percorrer os locais onde se davam os combates mais importan-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
tes e reproduzir, com elegantes bicos-de-pena, cenas de batalhas e retratos
de comandantes e soldados. A revista resistiria aos trancos até o final da
guerra, para no final do ano ser retirada de circulação por um mês, por pres-
são do governo.
A salvo de João Alberto e de seus censores, os dois jornais paulistas co-
briram a revolução de maneira exemplar. Uma idéia do repórter Arnon de
Mello faria o Diário da Noite multiplicar por quatro sua tiragem diária. Ao
realizar uma entrevista com Góis Monteiro, na região do túnel, ele pediu ao
general que dirigisse, por meio do jornal, um bilhete tranqüilizando seus fa-
miliares quanto à sua segurança. A mensagem manuscrita foi transformada
em clichê e estampada no jornal do dia seguinte. O repórter descobria ali um
inesgotável filão jornalístico: pedia a cada soldado que encontrava no front
que escrevesse cinco linhas para a mãe, o pai, a noiva ou os irmãos. Recolhia
uma montanha de papeizinhos e os reproduzia, um por um, na edição do
dia seguinte. Os mais emocionados, dramáticos ou poéticos eram separados
e editados como ilustração, sob a forma de clichês. Poucos dias depois de ini-
ciada a publicação dos bilhetes, os parentes dos combatentes também come-
çaram a escrever à redação, respondendo às mensagens que vinham do cam-
po de batalha. Com uma seção fixa intitulada "Correio da frente", que a cada
dia ganhava mais e mais páginas (e leitores), o Diário da Noite se transforma-
va, dessa maneira, no único meio de comunicação entre os soldados e seus
familiares.
No dia 12 de setembro, quando chegou à frente norte a notícia de que
Chateaubriand estava sendo embarcado para o Japão, Austregésilo de Athay-
de conseguiu transmitir um apelo emocionado à diretoria da Associação
Brasileira de Imprensa, no Rio, agora presidida por Herbert Moses (então di-
retor-tesoureiro de O Globo), exigindo que a entidade "envidasse todos os
esforços possíveis para impedir a consumação desse crime contra um asso-
ciado dessa instituição". Athayde tinha consciência de que a ABI estava "to-
mada por esquerdistas e tenentistas" que no fundo deviam "estar festejando
a deportação de Chateaubriand", mas nem por isso deixaria de enviar men-
sagens diárias para a associação. A julgar pelas atas das reuniões da ABI de
todo o período em que o jornalista esteve preso, os temores do Caboclo pro-
cediam. Uma única vez Moses fez gestões junto às autoridades policiais, por
meio de um curto telegrama: "Apelamos no sentido de evitar que o nosso co-
lega Assis Chateaubriand siga viagem num navio japonês, a cujo bordo já se
encontra". Ou seja, preferiu-se uma saída burocrática, em que a tentativa de
deportação era tratada como uma "viagem". Nas 23 reuniões ordinárias ou
extraordinárias da ABI realizadas durante a revolução paulista, emitiram-se
votos de pesar pelo falecimento de jornalistas, falou-se muito de novos asso-
ciados, de auxílio-funeral, de descontos em passagens de avião, e muito pou-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
co, quase nada, sobre as dezenas de jornalistas que entupiam as cadeias do
Rio de Janeiro.
Na chamada sala da capela, Chateaubriand media a derrota de São Pau-
lo pela quantidade e pela importância dos presos paulistas que iam chegan-
do. Aos poucos ele viu entrarem os ex-deputados federais Altino Arantes,
Ataliba Leonel e Manuel Vilaboim, o poeta Cassiano Ricardo, os jornalistas
Plínio Barreto, Cásper Líbero e Paulo Duarte, os irmãos e também jornalis-
tas Francisco e Júlio de Mesquita Filho e Ibrahim Nobre, que ficaria conheci-
do como "o tribuno da Revolução de 1932". Os dias se passavam, e como não
recebesse notícias do irmão, Chateubriand temeu que algum outubrista fa-
nático pudesse querer fazer justiça com as próprias mãos contra o jornalista
que fora tão insultuoso contra Getúlio Vargas e seus tenentes. Para seu alí-
vio, um dia acabaram entrando juntos na sala da capela Oswaldo e Austre-
gésilo de Athayde. No mês e meio que passou preso no Rio, Chateaubriand
manteve um comportamento singular: acometido do que chamava de "com-
plexo de encarcerado", recusava-se a receber visitas (exceção feita às femini-
nas, quando conseguia a cada vez mais rara complacência do carcereiro) e
pediu a Dulcídio Cardoso que lhe conseguisse uma enxada e o autorizasse a
plantar uma pequena horta de verduras nos fundos da prisão.
Com a capitulação formal de São Paulo, no dia 2 de outubro, a prisão
superlotou. Foi aí, com as informações vindas de fora, que ele teve noção do
estrago que Vargas e os tenentes tinham produzido nos seus jornais. Em Por-
to Alegre, o Diário de Noticias continuava fechado, sem perspectivas de rea-
brir tão cedo. Em Minas e Pernambuco, a censura tinha transformado o Es-
tado de Minas, o Diário da Tarde e o Diário de Pernambuco em meros boletins de
divulgação de comunicados oficiais do governo - que agora era "governo"
mesmo, pois a palavra "ditadura" tinha sido esvurmada à força de suas pá-
ginas. No Rio, a vendeta tinha sido completa. Não satisfeitos de retirar de
circulação os dois jornais e O Cruzeiro, um grupo paramilitar tinha saquea-
do a Vila Normanda. Na verdade o jornalista pouco se importou que tives-
sem levado dinheiro e prataria - mas ficou possesso ao saber que a pilha-
gem tinha subtraído as telas com que pretendia iniciar uma coleção para,
quando fosse possível, criar "um museu de arte antiga e moderna". De lá "a
cachorrada tenentista" tinha levado três Eliseu Visconti, dois Souza Pinto,
dois Batista da Costa e um Pedro Américo - quadros que Chateaubriand
passaria as décadas seguintes tentando localizar. Em São Paulo, a derrota
para as forças federais se refletiria de imediato em seus jornais: o Diário de S.
Paulo continuou circulando, mas sob censura rigorosa, e o Diário da Noite,
sem dúvida devido à virulência de Oswaldo Chateaubriand, acabou sendo
fechado por mais de dois meses.
No dia 4 de outubro, quando completava quarenta anos, Chateaubriand
recebeu por poucos minutos a visita de Dario de Almeida Magalhães. O di-
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rigente dos Associados de Minas transferira-se para o Rio para socorrer os
veículos locais, mais vitimados pela crise que os mineiros. Como presente de
aniversário, Magalhães levava a Chateaubriand uma dramática notícia: sua
mulher, Maria Henriqueta, queria o desquite. Ele devia saber que mais cedo
ou mais tarde aquilo acabaria acontecendo - pouco atencioso com a espo-
sa, mulherengo incontrolável, um péssimo marido enfim, era evidente que
seu casamento não seria eterno. Mas não podia imaginar que ia acabar da-
quele jeito: no dia de seu aniversário e dentro de uma prisão. Deprimido e
indignado com a decisão da mãe de seu filho, o jornalista reagiu com uma
única frase:
- Dê quinhentos contos de réis àquela vagabunda e nunca mais toque
nesse assunto comigo. Está dado o desquite.
Até os coqueiros da Vila Normanda sabiam que Maria Henriqueta Bar-
rozo do Amaral não era uma vagabunda - muito ao contrário -, mas não
era esse o problema que Dario tinha de enfrentar agora. Embora quinhentos
contos significassem uma infinitésima parte dos bens de Chateaubriand,
Magalhães simplesmente não sabia de onde tirar tanto dinheiro da noite
para o dia. Chateaubriand orientou-o:
- Dê 150 contos em dinheiro e mande passar para o nome dela um
apartamento que os Associados têm em São Paulo, que vale uns duzentos
contos. Os 150 contos restantes você diz que eu vou pagar a prestação, em
promissórias que o Amâncio depois traz aqui para eu assinar. E pegue um
recibo de tudo isso assinado pelo doutor Zózimo, pai dela. Com essa mulher
eu não quero mais nada.
Embora a partilha proposta por Chateaubriand fosse de uma injustiça
sem igual - legalmente os bens dele teriam de ser divididos em partes
iguais entre ambos -, "Maria Branquinha" não fez qualquer objeção a isso,
quando Almeida Magalhães lhe comunicou a decisão do marido. Ao mudar-
se da Vila Normanda, ela deixaria a Chateaubriand um bilhete seco: "Levo
daqui apenas o que tenho certeza que é meu". Como levara também o filho,
os desafetos do jornalista espalharam a mentira que dizia que ela escrevera
"Levo daqui apenas o que é meu - e o que não tenho certeza se é seu", uma
ferina insinuação de que Fernando poderia não ser filho de Chateáubriand.
Mas, quando foi à cadeia no dia 4 de outubro para levar-lhe a proposta
de separação, Dario de Almeida Magalhães ainda tinha outras más notícias
para transmitir-lhe: os paulistas seriam todos deportados nos próximos dias,
e com eles iriam para Lisboa o irmão Oswaldo e Austregésilo de Athayde.
Pela primeira vez, Chateaubriand temeu que seu império estivesse ruindo
de verdade. Com ele preso e o irmão no exílio, dificilmente alguém de fora
da família poderia tocar o que sobrasse do rapa tenentista. Os outros dois ir-
mãos, Urbano Ganot e Jorge, embora ocupassem cargos nas empresas, não
tinham a mesma vocação dele e de Oswaldo - fosse para dirigir jornais e re-
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vistas, fosse para enfrentar as guerras políticas inerentes à profissão naque-
le Brasil tão cinzento para eles.
Outra visita, dias depois, trazia uma oferta de "alguém influente no go-
verno". Desta vez o portador era Gabriel Bernardes, que, durante todo o
tempo em que o dono estivera na clandestinidade ou na cadeia, resistira com
valentia às investidas contra os jornais do Rio. O que "o governo" estava ofe-
recendo a Chateaubriand - sem que se esclarecesse exatamente de quem ti-
nha partido a iniciativa - era a única saída para salvar o que restava de seu
patrimônio: os jornais que estavam fechados permaneceriam assim até se-
gunda ordem; os que continuavam funcionando circulariam sob censura ri-
gorosa; a orientação política dos dois jornais mineiros seria dada por Virgí-
lio de Melo Franco - com o que Afonso Arinos de Melo Franco, irmão mais
novo de Virgílio, assumiria o lugar de Dario Magalhães na direção dos As-
sociados em Minas (Dario, por sua vez, passaria a ser o presidente do que
sobrasse das empresas do Rio). O preço da barganha nem era tão alto: ele te-
ria de se mudar do Distrito Federal e confinar-se em São Paulo, lá permane-
cendo até que o governo federal reassumisse o controle da situação política
- ou seja, até quando Getúlio bem entendesse. A proposta não fazia qual-
quer referência a O Jornal - "porque se tratava de área de influência direta
do capitão João Alberto, e só ele podia deliberar sobre o destino a ser dado
ao matutino". Chateaubriand. precisava resolver depressa. Aceitava já ou
nos próximos dias seria embarcado com seus colegas de xadrez nos três na-
vios que levariam os presos paulistas para o exílio. O jornalista pediu 24 ho-
ras de prazo para pensar e responder se aceitava.
No Rio, a única empresa que tinha sobrevivido razoavelmente incólume
era a Agência Meridional. Mas mesmo esta continuava à mercê dos tenentes.
Dias antes seu diretor, Jaime de Barros, fora intimado a comparecer ao gabi-
nete de João Alberto - que havia reassumido a chefia de polícia - para
"prestar esclarecimentos sobre noticiário distribuído pela agência". Barros já
imaginava o problema que o esperava. Na antevéspera uma tropa da cava-
laria dispersara a golpes de sabre uma manifestação de apoio aos paulistas
na esplanada do Castelo. A repressão fora coberta por repórteres da agência,
fartamente fotografada, e o noticiário distribuído aos ainda raros clientes da
Meridional. O jornalista foi colocado em uma sala, onde logo depois entrava
João Alberto com um pedaço de papel na mão - como previsto, uma cópia
do despacho distribuído aos jornais. Sem um cumprimento, o capitão ape-
nas perguntou:
- O senhor assume a responsabilidade pelo que está escrito aí?
Jaime de Barros passou os olhos pelo papel e confirmou:
- Inteiramente, capitão.
João Alberto reagiu mal:
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- Mas isso não é verdade, a polícia não carregou contra a multidão e
não dissolveu o comício.
O jornalista se ofereceu para ir até a redação da agência buscar as fotos
que comprovavam a violência policial. João Alberto percebeu que Barros
não se intimidara e passou a discorrer sobre a ineficácia do uso da violência
para reprimir a oposição. Ele próprio, sublinhou ameaçador, tinha em men-
te métodos mais eficientes que o uso de sua metralhadora para controlar co-
mícios... e jornais. A advertência não precisava ser mais explícita: Jaime de
Barros entendeu que o capitão estava preparando contra Chateaubriand al-
guma armadilha mais sutil que a prisão ou a deportação. Só muitos anos de-
pois é que Chateaubriand viria a saber que, embora tenha sido o executor da
ordem, João Alberto considerara sua tentativa de deportação "uma imbeci-
lidade" - pois acreditava que, organizando campanhas difamatórias contra
o governo no exterior, Chateaubriand se tornaria um adversário mais incô-
modo e nocivo do que permanecendo no Brasil. Quando os "outubristas "
mais radicais decretaram a deportação para o Japão, João Alberto expôs sua
posição diretamente a Getúlio:
- Presidente, é inútil deportar Chateaubriand, se ele continuar a borbu-
lhar suas idéias pelo mundo afora. Mesmo exilado ele continuará a fustigar
o governo. Vai editar um jornal qualquer no Japão, na Polônia ou na Tche-
coslováquia e de lá vai continuar mandando flechas envenenadas contra
nós.
Ante o silêncio indecifrável do presidente, o capitão concluiu com o que
imaginava ser a "solução final" para conter o incontrolável ex-aliado:
- A única maneira de silenciar Chateaubriand é privá-lo de redações,
linotipos, rotativas.
Quando fez a advertência a Jaime de Barros, na sede da Polícia Central,
João Alberto - devidamente autorizado pelo presidente - já tinha posto
sua estratégia em prática. O objetivo era tomar os jornais de Chateaubriand
(senão todos, pelo menos O Jornal, que era conhecido como "o órgão líder
dos Diários Associados", sloRan que trazia impresso no cabeçalho) sem a vio-
lência dos radicais do Clube Três de Outubro, mas sob uma aparência legal
e jurídica, tudo dentro das leis vigentes. Conhecendo a notória fama de mau
pagador de Chateaubriand, o chefe de polícia começou a fazer contatos ou
enviar emissários para procurar os principais banqueiros do Rio, de São
Paulo, de Minas e do Rio Grande do Sul. A oferta que o governo fazia era
tentadora: comprava as dívidas vencidas do jornalista por duas, três e, de-
pendendo do caso, até quatro vezes seu valor real. Com Chateaubriand, Os-
waldo e vários diretores presos, sem poder reagir, o plano parecia simples:
compradas em nome de algum testa-de-ferro, as dívidas vencidas seriam
executadas e a falência das empresas requerida. Sem disparar um tiro, sem
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quebrar uma linotipo, desmontava-se o pequeno e poderoso império com
um peteleco, como um castelo de cartas.
João Alberto só não contava com um obstáculo quase intransponível: se
o governo tinha medo das "flechas envenenadas " de Chateaubriand, os ban-
queiros tinham muito mais. Temendo as retaliações que inevitavelmente vi-
riam quando o jornalista voltasse a emergir (e isso acabaria acontecendo,
mais dia, menos dia), os banqueiros se fingiram de mortos. Entre enfrentar a
fúria tenentista e correr o risco, dali a alguns meses ou anos, de topar de
frente com Chateaubriand, nenhum deles teve dúvidas em optar pela pri-
meira alternativa. Em todas as portas em que João Alberto e seus homens ba-
teram, a resposta, com diferentes palavras, teve invariavelmente o mesmo
tom: "Dívidas de Chateaubriand? Não, nosso banco não tem negócios com
Chateaubriand".
A estratégia parecia ter naufragado, quando alguém descobriu que o
alvo estava em São Paulo, e não era nenhum banqueiro. A partir de 1911,
quando emigrara para o Brasil, o alemão Oscar Flues se tornara o maior im-
portador e fabricante de equipamentos gráficos do país. Tendo em seu ca-
dastro todos os grandes jornais e revistas brasileiros, a Oscar Flues & Cia.
tinha sido a responsável por quase todas as compras e importações de equi-
pamentos feitas pelos Associados desde a incorporação de O Jornal, em 1926.
A partir de então, Chateaubriand se tornara o maior cliente da empresa pau-
lista - que acabara abrindo um escritório no Rio, para atender à demanda
carioca. Difícil mesmo, o tempo ensinaria a Flues, era receber qualquer dívi-
da de Chateaubriand. Quando os emissários de João Alberto bateram às por-
tas do escritório instalado em um andar inteiro da rua Florêncio de Abreu,
no chamado "centro novo" da capital paulista, Flues tinha nada menos que
177 667$000 réis de dívidas já vencidas, contraídas por O Jornal e pelo Diá-
rio da Noite de São Paulo - uma bolada de dinheiro equivalente, em 1994, a
cerca de 1,3 milhão de dólares.
Nunca se soube com precisão se João Alberto chegou mesmo a ameaçar
o alemão para que vendesse a dívida (dizia-se, na época, que o governo ace-
nou com a possibilidade de devolvê-lo para Hagen Westf, na Alemanha, de
onde ele tinha vindo), nem se Flues sabia em que vespeiro estava se meten-
do, ou quanto teria custado a transação. Ou, até mesmo, se Flues não teria se
animado a fazer a operação apenas como uma forma de receber o que lhe de-
viam. O certo é que poucos dias depois de procurado pelos homens de João
Alberto (que se apresentavam como "emissários de um advogado do Rio de
Janeiro"), ele escrevia duas cartas registradas secas, sem prolegômenos, en-
dereçadas às empresas responsáveis pela publicação dos dois jornais - às
quais simplesmente comunicava "que na data de ontem fizemos a transfe-
rência de todos os nossos créditos contra essa empresa ao dr. José Soares Ma-
ciel Filho, ficando assim liquidadas as transações diretas entre nós e deven-
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do vossas senhorias se entenderem com o referido senhor, a quem cedemos
nossos direitos [...]. Atenciosamente, Oscar Flues '.
Maciel Filho, o homem escolhido por João Alberto para operar a rapina,
era um jovem de menos de trinta anos, advogado e filósofo (tinha sido alu-
no de filosofia de Benedetto Croce, na Itália), que em 1954 seria apontado
como o verdadeiro autor da carta-testamento deixada por Vargas ao suici-
dar-se. De posse dos créditos vencidos - no pacote adquirido a Flues havia
títulos com até 35 meses de atraso -, simplesmente levou-os a protesto em
um cartório do Rio. Mesmo que estivesse em liberdade, dificilmente Cha-
teaubriand teria aquela dinheirama na mão para liquidar as promissórias.
Com a direção dos Associados presa ou acuada pelo governo, aconteceu o
que João Alberto previa: na edição do dia 10 de dezembro de 1932 a Gazeta
dos Tribunais, uma espécie de diário oficial da Justiça, publicava a sentença
do juiz da 6ª Vara decretando a falência da empresa S.A. O Jornal, cujos bens
passavam automaticamente ao maior credor, Maciel Filho - ou seja, João
Alberto. Embora pudesse ter comportamento idêntico com relação à S.A.
Diário da Noite, de São Paulo (que se encontrava tão inadimplente quanto O
Jornal), o chefe de polícia não queria mais encrenca com os paulistas que ele
já tinha derrotado na guerra. Seu propósito era quebrar a espinha do "órgão
lider" dos Associados. No primeiro artigo tratando do assunto, escrito me-
ses depois, já com o país a caminho da liberdade, Chateaubriand diria que
"o capitão João Alberto se apropriou bravamente das nossas máquinas, na
inocente convicção de que um jornal se faz com peças de ferro e não com es-
tilhaços da alma. Foi engazopado. Vimos que ele não passou de um peque-
no tirano de subúrbio, fácil de contentar, porque deixando livres os jornalis-
tas arrebatava-lhes apenas prelos e linotipos".
Mas nem todo mundo fora "deixado livre" nos Associados, como o ar-
tigo insinuava. No dia que a falência de O Jornal foi decretada, Oswaldo Cha-
teaubriand e Austregésilo de Athayde já estavam degredados em Portugal.
Nem mesmo Chateaubriand podia dizer que estava em liberdade. Embora
tivesse o direito de ir e vir, os rigorosos limites impostos a ele eram os da ci-
dade de São Paulo, oferecida pelo governo como ménage para seu confina-
mento. Na capital paulista, ele vivia em um amplo apartamento num prédio
de três pavimentos da rua Senador Feijó, quase na esquina do largo São
Francisco, no pedaço menos nobre do centro de São Paulo. Separado da mu-
lher - o que fazia pouca diferença para seu dia-a-dia -, levara consigo o ca-
sal de mordomos franceses e apenas o que conseguira recuperar do butim da
casa do Rio: três ou quatro telas de Cândido Portinari (que aparentemente
não despertaram a cobiça dos saqueadores), um cachorro policial, suas rou-
pas, alguns livros e o velho bombardino que o acompanhava desde os saraus
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da infância em Recife. Ele vivia no apartamento térreo, e no superior mora-
va com a família seu irmão Urbano Ganot. Desse endereço forçado a única
lembrança que ele guardou foi a de uma gafieira infernal, instalada do outro
lado da casa, que tocava música estridente até o dia clarear. Com o confina-
mento forçado em São Paulo, emprestou a majestosa Vila Normanda do Rio
para que Dario de Almeida Magalhães lá se instalasse com a família.
Levado quase à estaca zero, geograficamente confinado e, além do mais,
abandonado pela mulher, com seus melhores amigos presos ou exilados,
tendo tido seu principal jornal tomado à força e os outros à beira da falência
ou de portas fechadas, equivocava-se quem supunha que ele estava morto.
A primeira demonstração disso foi o aparecimento, nos tribunais do Rio de
Janeiro, de um recurso assinado por Chateaubriand e por Gabriel Bernardes,
tentando anular a sentença que decretara a falência do jornal e permitira que
Maciel tomasse tudo o que existia no número 35 da rua Treze de Maio (má-
quinas, móveis, equipamento e inclusive o prédio - só se salvando a Agên-
cia Meridional, que por mero acaso tinha sido registrada como uma empre-
sa de cujo capital O Jornal não participava). O recurso se baseava em uma
filigrana técnica: os dois alegavam que o parque gráfico não podia ser toma-
do por Maciel, pois as máquinas tinham sido compradas com reserva de do-
mínio - e assim, até que fossem integralmente pagas, pertenciam aos fabri-
cantes, não aos credores. Quem respondeu ao recurso, em nome da parte
contrária, foi o próprio Maciel Filho - cujo enorme memorial assinado, ocu-
pando em letra miúda uma página inteira da Gazeta dos Tribunais, revelava
que ele também não era flor que se cheirasse.
Tratando a representação de Chateaubriand e Bernardes de "um amon-
toado de chicanas e alicantinas baratas ", José Soares Maciel Filho aproveitou
a ocasião para expor à opinião pública as tripas de uma administração abso-
lutamente irresponsável, a dos Associados. Como se borrifasse pitadas de
sal nas feridas ainda abertas de Chateaubriand, ele foi arrolando, uma a
uma, as mazelas que encontrara no jornal que acabava de tungar. Segundo
suas próprias palavras, exibir o que havia nos arquivos dos Associados era
"colocar à mostra toda a podridão e estourar um postema que corrói a vida
nacional". Em síntese, Maciel acusava os Associados de ter desviado para as
empresas catorze contos de réis da Caixa Beneficente dos Operários; de de-
ver cinqüenta contos de réis de salários atrasados aos quase setecentos grá-
ficos das empresas, exatamente os funcionários mais modestos de toda a hie-
rarquia interna; de nunca ter recolhido, depois de outubro de 1930, um só
vintém de qualquer imposto, fosse ele municipal, estadual ou federal. Ma-
ciel descobriu mais: que desde 1929 as empresas não mantinham sequer es-
crita contábil regular; que o antigo prédio de O Jornal, na rua Rodrigo Silva,
continuava hipotecado ao conde Modesto Leal, com máquinas e tudo, por
5 mil contos; que a nova gráfica, que Chateaubriand alegava encontrar-se
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sob reserva de domínio (equipamento que, Maciel garantia, agora lhe per-
tencia), tinha também sido penhorada à Caixa Econômica Federal por 8 mil
contos, embora tudo isso rendesse, em uma contabilidade suspeita, apenas
catorze contos de réis por mês.
Temendo que Chateaubriand pudesse retrucar que sob uma ditadura a
Justiça não tinha garantias para julgar com independência uma causa políti-
ca como aquela, Maciel tomou a iniciativa de enfrentar o assunto, na conclu-
são de sua interminável arenga:
Sem garantias está o comércio, assaltado por empresas de chantagem como as
dos Diários Associados. Sem garantias está a indústria, saqueada pela fome sem
fim dos Chateaubriand. Sem garantias está o operariado, furtado nos dinhei-
ros de sua caixa beneficente. Sem garantias estão os jornalistas que trabalham
durante meses sem receber seus vencimentos numa empresa falida, sem escrita,
sem bens, sem honra. Sem garantias estão os homens públicos de nossa pátria,
atassalhados por essa escória sempre que não lhe abrem us cofres. Sem
garan-
tias está o requerente, que, reclamando direitos líquidos e certos, consagrados
pela nossa legislação, se vê obrigado a lutar para que a lei ceja cumprida.
[...] Quando for aberta a falência da S.A. O Jornal verá vossa excelência de
onde vinham os recursos que alimentavam a campanha contra a pátria. Bancos
estrangeiros que tinham em sua carteira milhares de contos de duplicatas da
S.A. O Jornal abriram contas correntes sem garantias para essa empresa. Com-
panhias fornecedoras de papel guardavam em suas carteiras centenas de contos
de crédito, entregando a matéria-prima onde se imprimiam as injúrias ao nosso
Exército. Bancos nacionais ligados a empresas poderosas colocavam fundos
para a campanha contra a honestidade administrativa do governo. E,
enquanto
isso, us operários gemiam, torturados pela fome. As leis de amparo ao
proleta-
riado não entravam em vigor nos jornais porque o ex-ministro do Trabalho era
tanbém associado aos Diários.
Com ou sem garantias, a Justiça ignorou o recurso de Chateaubriand e
manteve com Maciel Filho a posse de todos os bens existentes no prédio da
Treze de Maio. Animado com a vitória, o testa-de-ferro de João Alberto ain-
da mandaria reproduzir como matéria paga no Jornal do Commercio o memo-
rial da Gazeta dos Tribunais. Sem ter um único jornal no Rio para responder,
a Chateaubriand restou a humilhação de ter de pagar do próprio bolso um
modestíssimo "A pedidos" no mesmo Jornal do Commercio, onde tentava
ironizar o homem que lhe tomara os jornais, insinuando que "o vibrante ar-
tigo publicado ontem na seção ineditorial desta folha, escrito por José Soares
Maciel Filho", tinha sido assinado, "evidentemente por um pseudôni-
mo". Maciel ignorou a alfinetada com olímpica indiferença e, cercado de po-
liciais, tomou posse imediatamente de seu jornal.
No dia 14 de janeiro de 1933 as máquinas da Treze de Maio voltariam
a funcionar para colocar nas ruas não mais o provocativo O Jornal, mas A
Nação, um diário semi-oficial a serviço de Getúlio, de João Alberto e do te-
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nentismo. Vacinando-se contra qualquer tentativa de boicote por parte dos
gráficos, Maciel nomeou diretor de todas as antigas oficinas dos Associados
o linotipista Henrique Stepple Júnior, diretor da urtl - União dos Trabalha-
dores em Livros e Jornais (uma espécie de sindicato dos gráficos da época),
que dias antes tinha sido demitido de O Jornal por ordem de Chateaubriand,
"por cumplicidade com os autores do esbulho". No primeiro dia de funcio-
namento, o novo dono da empresa anunciou também que estava desembol-
sando 49 contos de réis, pagos na boca do caixa para colocar em dia os salá-
rios dos 689 linotipistas, revisores e impressores que nos últimos meses não
tinham visto a cor do dinheiro de Chateaubriand.
Nem a prisão, o exílio do irmão e dos amigos, a separação da mulher, o
confinamento em São Paulo, a derrota na Justiça - nada disso tinha conse-
guido fazê-lo esmorecer. No dia seguinte à sua libertação, ainda no Rio, ele
já tinha conseguido dez contos de réis com Mário de Oliveira para ajudar um
dos exilados. Em uma carta que conseguiu fazer chegar às mãos de Lindol-
fo Collor, na Argentina, Chateaubriand contou ao ex-ministro do Trabalho
que aquele dinheiro era parte de uma "subscrição" que ele estava levantan-
do entre os amigos (e que esperava chegar aos quarenta ou cinqüenta con-
tos) para financiar uma viagem de Collor à fronteira do Paraguai com a Bo-
lívia a fim de que ele pudesse realizar reportagens sobre a Guerra do Chaco.
Em que veículo publicaria o material era um problema para se resolver de-
pois. Na carta ele esclareceu quem tinham sido os misteriosos intermediá-
rios que haviam conseguido sua libertação, após 41 dias de xadrez, em troca
das concessões a Vargas: eram os capitães Dulcídio Cardoso e Floriano Pei-
xoto Nunes. Bem-humorado, dizia que, por não ter obedecido com polidez
à ordem de "marchar para continentes exóticos", passara catorze dias na De-
tenção "nas companhias encantadoras de 'Broca Branca ', 'Tangará', 'Mole-
que 5', 'Sete Zorras' e 'Moleque 30', que me transformaram em um perito em
crimes ". Ao se despedir, pedia a solidariedade do amigo para movimentar-
se entre os exilados e denunciar o golpe contra o Diário de S. Paulo, que ele
imaginava iminente. "Vê o que podes coordenar aí", terminava, "para evitar
a catástrofe."
A catástrofe, na realidade, já havia se abatido sobre suas publicações. A
tiragem da festejada O Cruzeiro; que no ano anterior chegara perto dos 100
mil exemplares semanais, caíra para pouco mais de 20 mil. Na tentativa de
revigorar a revista, Chateaubriand chamou o jornalista Accioly Neto para
ser secretário de redação, o advogado Martinho Luna de Alencar para che-
fiar a seção de contabilidade e seu primo Leão Gondim de Oliveira, trazido
de Recife, ficou encarregado de cuidar dos projetos gráficos. Antes mesmo
de a revista dar os primeiros sinais de recuperação, conseguiu vender ao
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Banco Noroeste, de São Paulo, um contrato de receita antecipada de publici-
dade no valor de setecentos contos. Mantendo a velha política de salvar as
empresas em dificuldades com os lucros das que iam melhor, com esse di-
nheiro pôs de pé de novo o Diário de Noticias, de Porto Alegre. Apesar da mi-
séria franciscana em que suas empresas se encontravam, obteve outro con-
trato futuro de anúncios, no valor de cinqüenta contos, e mandou todo o
dinheiro para os exilados da Argentina e de Lisboa.
Fiel ao lema que repetia sempre - segundo o qual "dinheiro é como
curinga em baralho, só vem para quem já tem" -, decidiu que a melhor ma-
neira de sair do buraco era fazer a rede de comunicações voltar a crescer.
Sem ter um tostão no bolso, no caixa das empresas ou nas contas bancárias,
procurou o presidente da General Electric do Brasil, Iman Greenwood, e
anunciou que os Associados iam entrar no ramo da radiodifusão. Para per-
plexidade do executivo americano, encomendou a produção, na fábrica da
empresa nos Estados Unidos, de uma estação de rádio de dez quilowatts de
potência. Como no Brasil não havia uma única estação de rádio que tivesse
transmissores de mais de um quilowatt, coisa que na América do Sul só exis-
tia na Argentina, Greenwood quis saber como Chateaubriand, na penúria
em que se encontrava, pretendia pagar equipamento tão sofisticado. O jor-
nalista não teve dúvidas:
- Com um contrato de publicidade de 10 mil dólares que a General
Electric fará com O Cruzeiro, mais um de 8 mil dólares que o senhor conse-
guirá para mim nas redes de lojas que vendem seus produtos, estará garan-
tido o dinheiro para a entrada do equipamento. Como um transmissor des-
se porte levará alguns meses para ser fabricado, na época da instalação da
rádio uma boa parte dele estará paga. As prestações seguintes eu pagarei
com a publicidade que vamos conseguir com a própria rádio.
Se o presidente da GE se espantou com a equação, surpresa maior teve o
próprio Chateaubriand ao ouvir que dá parte dele o negócio estava fechado
- apesar de ser, para a época, uma cifra substantiva, bastaria consultar a
matriz em Nova York para bater o martelo. Animado com a receptividade
que sua proposta teve, correu atrás do velho amigo Samuél Ribeiro, que, em-
bora fosse presidente da Caixa Econômica Federal (de onde não poderia
mais sair um centil para Chateaubriand), se dispôs a fazer uma parceria com
Guilherme Guinle e levantar algum dinheiro para o projeto da rádio. Além
dele, o jornalista ainda conseguiu promessas de ajuda financeira do milioná-
rio comendador José Martinelli e, surpreendentemente, do mesmo conde
Francisco Matarazzo que ele tanto azucrinara.
A dois meses das eleições para a Constituinte (apesar da guerra paulis-
ta, Getúlio decidira cumprir o calendário eleitoral proposto no ano anterior),
a vida do país e a de Chateaubriand pareciam entrar vagarosamente nos ei-
xos. Em fevereiro daquele 1933 o dono dos Associados resolveu testar o ri-
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gor da censura sobre os jornais de São Paulo, que aos poucos também reto-
mavam a rotina anterior a 9 de julho de 1932. Como um piloto de avião que
abandona um céu azul para embrenhar o aparelho em uma rota de nuvens
negras, o jornalista procurava mais uma sarna para se coçar, ao mexer em
um tema que se transformara num verdadeiro tabu para o governo Vargas.
Embora nenhum jornal tivesse se atrevido a tratar do assunto em suas pági-
nas, a conversa política que fervilhava em todos os cantos da cidade era uma
só: a anistia. Sensível ao que acontecia em São Paulo, o governo deixou va-
zar informalmente a notícia de que os exilados que requeressem por escrito
autorização para retornar ao Brasil teriam seus processos revistos e, depen-
dendo da gravidade dos crimes de que eram acusados, poderiam receber
salvo-conduto para se repatriar.
Querendo saber até que ponto Getúlio estava mesmo disposto a ceder,
no final de fevereiro Chateaubriand escreveu um artigo sobre o assunto, cri-
ticando a exigência do requerimento para que qualquer exilado pudesse ten-
tar retornar à pátria - pré-requisito que considerava uma humilhação a
mais contra São Paulo. "Não está certo o governo ditatorial se procura fazer
depender a volta do exilado de um requerimento dirigido ao chefe do gover-
no provisório ou ao ministro da Justiça pedindo o seu regresso ao Brasil", es-
creveu. "A generosidade é o apanágio dos que têm consciência de sua força
e de sua autoridade. Quando um governo se dispõe a usar medidas de bran-
dura para com o seu adversário vencido no choque das armas, se ele não se
serve dessa cordura com tato e com perfeita superioridade de alma, perde
todos os efeitos que procurou tirar de sua política apaziguadora." Prudente-
mente, assinou com o estranho nome de "Visconde de Castellomelhor ".
Como o artigo passou inexplicavelmente incólume pelos censores, Cha-
teaubriand repetiu a dose no dia seguinte, batendo no mesmo tema e assi-
nando de novo com o exótico pseudônimo. Mais uma vez o texto saiu im-
presso tal qual tinha sido escrito. Para o jornalista, aquele era um indiscutível
sinal verde que Vargas lhe enviava, autorizando-o a escrever livremente so-
bre o assunto. Animado, no terceiro dia pegou um maço de papéis e atacou
outra vez a questão:
Não se esqueça o ditador de que se houve no Brasil um homem aclamado como
símbolo da oliveira da paz, entre 1929 e 1930, esse homem foi o sr. Getúlio Var-
gas. Se eu fosse o chefe do governo provisório não discutia mais com quem quer
que fosse a questão da anistia: mandava um substancial navio do Lóide a Por-
tugal e outro ao rio da Prata, e nesses dois portos marcaria rendez-vous com os
exilados políticos brasileiros dispersos pelos dois mundos, o velho e o novo.
Não mandaria o navio avançar até nenhum porto frances, porque o exilado que
foi para a França é um exilado mais ou menos abastado. Uma vez recolhidos a
bordo os nossos compatriotas que hoje vivem fora do Brasil, eu passaria a exa-
minar a situação dos civis e militares demitidos ou reformados ou que foram
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#
FERNANDO MORAIS
postos para fora da Marinha e do Exército. Admitiria a volta do maior número.
E assim procederia às eleições, no Brasil, com vida nova.
Deu ao artigo o título de "A anistia", mandou colocá-lo no local mais
nobre do jornal, o alto esquerdo da primeira página, lançou mão da velha
ousadia e assinou com seu próprio nome, certo de que já não precisava mais
esconder-se sob o "Visconde de Castellomelhor ". Desta vez, entretanto, Cha-
teaubriand se equivocara com relação às intenções do "símbolo da oliveira
da paz". O Diário de S. Paulo começou a circular às quatro e meia da madru-
gada e às seis horas da manhã Henri Gallon atendeu às batidas na porta do
apartamento na rua Senador Feijó. Eram oito homens à paisana, armados de
revólveres, um deles trazendo nas mãos o jornal recém-saído das rotativas.
Mandaram acordar Chateaubriand, e quando ele surgiu à porta o homem dn
jornal anunciou:
- Por ordem do general Valdomiro de Lima, interventor em São Pau-
lo, o senhor está preso. Queira nos acompanhar.
312
19
Chateaubriand foi levado incomunicável ao presídio político do bairro
do Paraíso, em São Paulo. Sem trocar de roupa nem tomar banho, trancado
sozinho numa cela com porta de ferro e grades protegendo a pequena e alta
janela, só três dias depois é que seria libertado. O carcereiro que lhe abriu a
porta da cela - a maior autoridade com quem teve oportunidade de falar
durante aqueles dias - disse apenas que "os homens lá dos Campos Elí-
sios", bairro onde ficava o palácio do interventor, tinham um recado para ele:
- Mandaram dizer que, toda vez que o senhor se meter a besta, volta
para cá.
Chateaubriand continuaria a agir como se ignorasse a capacidade de re-
pressão do governo - fosse para censurar seus jornais, fosse para prendê-lo
tantas vezes quantas entendesse necessário. O que o intrigava era a solidão
da luta que mantinha contra a ditadura e o tenentismo, o silêncio e a omis-
são das verdadeiras vítimas do nacionalismo e do esquerdismo daquela gen-
te: os industriais, os empresários. No seu entendimento, até o interventor
Valdomiro de Lima, um militar de alta patente, acabava desempenhando
um papel mais significativo contra os tenentes do que "a burguesia" - sus-
peitas que talvez procedessem, pois meses depois Lima seria afastado da in-
terventoria, tendo seu substituto mandado prender pessoas ligadas a ele. A
insubmissão do interventor às ordens vindas do Distrito Federal ficaria cla-
ra na irônica resposta de Chateaubriand a uma carta que recebera do exila-
do Lindolfo Collor no começo de 1933:
Reinado de Valdomiro I,17 de janeiro de 1933.
Meu Caro Collor:
Muito e muito obrigado por suas palavras e pelas promessas de colaboração
com os Diários Associados na luta contra a ditadura. Não quero desmerecer da
sua valia, mas não creio que os homens aos quais você se refere ouçam as pala-
vras de um vencido que se encontra no exílio.
Há dois meses e meio lutamos contra a polícia do capitão João Alberto intei-
ramente sós. A burguesia nos deixou no inteiro desamparo, sem embargo da de-
claração explícita do chefe de polícia de que o embate que travava era menor
contra mim do que "contra os elementos conservadores encerrados nas nossas
empresas, além de destruir ", disse-me ele, "as chamadas classes conservadoras
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#
FERNANDO MORAIS
que tu representas em seus diários". E acrescentou: "Gozo o pânico de que elas
estão possuídas, desejando preservar tua organização, mas sem coragem de en-
frentar-me, sequer secretamente". Somos obrigados a reconhecer que o janota
que dirige a polícia tinha carradas de razão. A burguesia toda ela se encolheu,
enquanto o capitão covarde mói os Associados com uma desenvoltura lampio-
neira.
Aqui me encontro hoje no oásis que é São Paulo. Valdomiro cuspiu todos os
tenentes joão-albertistas das posiçôes em que eles se escoravam dentro da forta-
leza paulista, e realiza um governo de aproximação com a opinião pública da
terra que lhe mandaram ocupar. Aqui cheguei prófugo, tendo fugido do Rio ga-
rantido pelo generoso mecenas que é o Dulcídio Cardoso. Desembarquei na
hora em que o Valdomiro acertava o ajuste de contas com o tenentismo. Você
não faz idéia do que está sendo a decisão do governador militar de São Paulo
nesta grande liquidação do saldo militarista.
Sou sozinho na imprensa de São Paulo a contestá-los, e acredito que já mobi-
lizei uma corrente de opinião tão ponderada com os Associados que hoje Val-
domiro já se afigura como um salvador destas plagas. Cumpre, meu caro Col-
lor, lutar-se aqui, aceitando todas as alianças contra os tenentes. O Valdomiro é
de um carinho maior que o do Andrada a nosso respeito. Você não faz idéia do
escriba governamental que sou hoje aqui. E da liberdade que gozo! E das inso-
lências que faço ao capitão João Alberto! E do que me rio das sucessivas ordens
de prisão que ele manda contra mim e que o Valdomiro não obedece. Isso aqui
é uma moenda, onde se reduz tenente a bagaço. O pessoal do capitão me
ameaça todo dia de morte, há complôs, o diabo. E desejam que, malgrado tudo
isso, eu ainda venha a perder O Jornal lá no Rio.
Mande o teu artigo, que inseriremos nos Associados vivos. Em Minas, Per-
nambuco, São Paulo e Porto Alegre podemos publicá-lo. Saudades a d. Hermí-
nia e às meninas. O amigo de sempre,
A. Chateaubriand
Por ordem de João Alberto ou de quem quer que fosse, ser preso acaba-
ria se tornando uma rotina para Chateaubriand durante o ano de 1933. Se-
manas depois de passar os três dias na prisão do Paraíso ele resolveu ir ao
Rio. Como estava confinado em São Paulo, qualquer movimentação sua para
fora dos limites da capital necessitava da prévia autorização de Valdomiro
de Lima - este, afinal, tinha sido o trato para poupá-lo do degredo na Ar-
gentina ou em Portugal. Apesar de ter aceito os termos do acordo, o jorna-
lista considerava uma humilhação não estar condenado a pena alguma, nem
mesmo sendo processado, e ter de pedir permissão a um general para circu-
lar dentro de seu próprio país. Chamou o contínuo Edmundo Monteiro-
um magricela de calças curtas que começara a trabalhar meses antes na re-
dação dos Diários - e deu ordens para que ele comprasse uma passagem
para o Rio no Cruzeiro do Sul, o trem expresso que ligava São Paulo à capi-
tal da República. Embarcou à noite e na manhã seguinte, quando descia na
estação da Central do Brasil, no Rio, encontrou à sua espera um Dario de
Al-
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FERNANDO MORAIS
meida Magalhães preocupado: a polícia política já tinha passado nos Asso-
ciados à sua procura. Quer dizer: ou ele estava sendo seguido, ou seus tele-
fones estavam sob escuta, ou havia espiões da polícia nas redações. "O mais
provável, doutor Dario ", ele acrescentou, bem-humorado, "é que sejam as
três coisas. Para esses assuntos, esta é uma ditadura competente."
Temendo por sua sorte, Dario achou melhor não irem para a redação
(tomado por João Alberto o prédio da Treze de Maio, os Associados tinham
voltado ao endereço antigo, na rua Rodrigo Silva), que certamente estava vi-
giada, e muito menos para o casarão da avenida Atlântica. Arranjaram a
casa de um industrial amigo nas imediações das matas da Tijuca, onde Cha-
teaubriand passou quatro dias oculto. Nesse período, escreveu seus artigos
diários e os enviou ao jornal por um portador, com a recomendação expres-
sa de que na abertura do texto não fosse cumprida a tradição de constar a
procedência.
Após passar cinco dias escondido no Rio, e depois de previamente in-
formado de que não havia qualquer acusação nova contra ele, resolveu se
entregar ao novo chefe de polícia do Distrito Federal, o capitão Filinto Mül-
ler (João Alberto deixara o posto e se mudara para Recife, com os olhos vol-
tados à sua futura candidatura a uma cadeira na Constituinte do ano seguin-
te pelo estado de Pernambuco), ex-participante da Coluna Prestes, da qual
fora expulso para, anos depois, aderir à Revolução de 30. Depois de ser fo-
tografado, identificado e de ter deixado mais uma vez suas impressões digi-
tais numa ficha de papelão, foi levado para uma cela onde permaneceu pou-
cas horas. À noite, o próprio Filinto veio soltá-lo, sem esconder que estava
ali para matar a curiosidade de conhecer de perto o jornalista que seus cole-
gas de governo diziam "ter o diabo no corpo". Um homem enorme, de bigo-
dinho fino, gravata-borboleta, o irônico Filinto disse que Chateaubriand lhe
oferecia a oportunidade de fazer "o que mais aprecio como chefe de polícia:
colocar alguém em liberdade". No caso, liberdade em termos - Filinto
Mul-
ler destacara dois homens para escoltar o jornalista no Cruzeiro do Sul até
São Paulo, de onde, insistia, Chateaubriand não deveria arredar pé sem sal-
vo-conduto expedido pelo general-interventor. Seu inconformismo por ter
de pedir licença para sair de São Paulo - coisa que ele jamais se sujeitou a
fazer - o levava a pequenos deboches com o interventor. No alto de todas
as cartas que escrevia aos amigos (tanto os que estavam no governo ou na
oposição, no Brasil ou no exílio), em vez de "São Paulo, [...]" ele punha, como
fizera na carta a Collor, "Reino de Valdomiro I, [...]". E antes de postá-las no
correio ou entregá-las aos portadores, passava pela banca onde estava o cen-
sor de plantão e, provocativo, exibia o cabeçalho ao constrangido funcioná-
rio do governo. No mais, tinha mesmo que se submeter às exigências do
acordo.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Em maio de 1933, eleita a Constituinte que seria empossada no fim do
ano, Chateaubriand recebeu em São Paulo a visita de Antônio Carlos. O ex-
governador mineiro trazia um convite de Getúlio Vargas para que o jorna-
lista fosse ao Rio para uma conversa - não era nada de especial, apenas uma
conversa para quebrar o gelo que já durava um ano entre os dois. Chateau-
briand foi categórico:
- Diga ao ditador que vou com muita honra, mas recuso-me a pedir
permissão ao general Valdomiro para viajar. Vargas que cuide disso.
Antônio Carlos informou que o interventor estava avisado do encontro e
os dois partiram no dia seguinte para o Distrito Federal. No gabinete do pre-
sidente, no Palácio do Catete, Chateaubriand abriu os braços ao ver Vargas:
- Ditador! É uma alegria revê-lo. Só agora posso agradecer as gentis fé-
rias que o senhor me ofereceu no império nipônico e que eu, impolidamen-
te, recusei.
Sem responder à provocação, um Getúlio risonho e bem-humorado re-
cebeu-o como se nada de grave tivesse acontecido entre os dois. Numa alu-
são pouco sutil às dificuldades que o governo encontrara para comprar as
dívidas de O Jornal, o presidente deu o troco:
- Tu és invencível, Chateaubriand.
- Por que, ditador?
- Porque tens a teu lado os maiores banqueiros deste país. Sei mais de
tua vida do que tu pensas. Mas sei que tu também sabes muito de mim. Quan-
do chegar à velhice, gostaria que tu escrevesses a minha biografia.
Embora Antônio Carlos o tivesse advertido de que aquele seria um en-
contro para falar apenas de amenidades, Chateaubriand insistiu em condu-
zir a conversa para o lado político, para a revolução paulista. Quis saber do
presidente as razões do governo para mandar João Alberto tomar-lhe O Jor-
nal, e o presidente reagiu com uma risada solta:
- O problema é que tu tens muitos inimigos dentro e fora do governo,
Chateaubriand. Posso dar dinheiro a João Alberto para fundar jornais, pos-
so alimentar à tripa forra os jornais que nos apóiam, e ninguém se importa.
Mas se é um favor para ti, vêm todos em cima de mim. É o diabo! Não pos-
so fazer nada, nada por ti.
- Sei que há muito de velhacaria de sua parte no que o senhor está di-
zendo, ditador, mas há muito de verdade também. Os Diários Associados
são objeto de um ciúme nacional. É como se nós fôssemos uma mulher bo-
nita, de quem todos têm ciúmes.
Quando o assunto voltou à revolução paulista, Getúlio disse a Chateau-
briand que iria revelar-lhe, em segredo absoluto ("guarda-o para minha bio-
grafia", brincou), um episódio ocorrido durante a revolução de julho do ano
anterior - uma confissão que, vinte anos depois, poderia ser lida como um
gesto premonitório do que seria o destino de Vargas:
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FERNANDO MORAIS
- Uma tarde, no auge da luta, um ajudante-de-ordens veio comunicar-
me que no Ministério da Guerra havia um grupo de generais desejosos de
falar-me. Que queriam aqueles oficiais de mim?, indaguei. Queriam pedir-
me que renunciasse para evitar o derramamento de sangue num Exército di-
vidido. Mandei que viessem em duas horas.
Na sala mergulhada em silêncio absoluto, Vargas fez uma pausa teatral,
voltou a acender o charuto que se apagara e apontou o dedo para uma por-
ta do gabinete:
- Dirigi-me àquela salinha, sentei-me e, à Balmaceda, redigi meu testa-
mento político. Escrito o que eu tinha a dizer à nação, peguei dois revólve-
res e pus um em cada bolso do paletó. Chamei o oficial que me fizera a co-
municação e disse-lhe que assim que os generais chegassem ele deveria
introduzi-los no gabinete presidencial. Eles não vieram.
A referência à história do presidente chileno José Manuel Balmaceda,
que em 1891 se suicidara depois de derrotado politicamente, caiu como um
raio sobre um Chateaubriand de olhos arregalados, excitado pelo impacto
do que acabara de ouvir:
- Mas o que o senhor pretendia fazer com esses revólveres? E quem
eram esses generais?
Vargas deu uma gargalhada:
- Não sei dizer-te, neste momento, o que faria com as armas. Quanto
aos generais, nunca me interessei em saber quem eles eram. Parece-me até
que depois promovi alguns deles.
Foi o presidente quem tomou a iniciativa de mudar de assunto e ir en-
cerrando o encontro que já se estendia por quase uma hora. De pé, brincou
com Chateaubriand:
- Chamei-o aqui porque vocês dos Associados me fazem muita falta.
O jornalista gargalhava diante do chefe do governo que fechara e toma-
ra seus jornais, que o confinara em São Paulo e que semanas antes o tinha
posto mais uma vez na cadeia:
- Pois é, ditador, desde que paramos de publicar seus retratos, nossas
vendagens têm sido um desastre. Estou ansioso por poder tirar sua fotogra-
fia da gaveta, quero voltar a vender jornais e revistas às dúzias.
Como a autorização verbal do presidente para que ele deixasse São Pau-
lo não tinha prazo determinado, Chateaubriand permaneceu no Rio por
mais três semanas, de onde escrevia seus artigos diários, tomando sempre o
cuidado de não registrar o nome da cidade na abertura dos textos. No pri-
meiro deles, que a censura deixou passar, contou a razão de sua ausência do
Distrito Federal, e mentiu quanto ao tempo que permaneceria na capital:
Depois de quatro meses e meio de exílio nesse querido Portugal que é São Pau-
lo, eis-me restituído, por três dias apenas, ao Rio de Janeiro. A princípio manda-
ram-me para o Extremo Oriente, que era uma espécie de Ponto Euxino da dita-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
dura brasileira. Graças a um pequenino oficial da marinha mercante japonesa,
voltei do Japão sem ter ali praticamente chegado. Foi quando me gratificaram
com um ótimo exílio nacional.
No último artigo escrito no Rio, pela primeira (e raríssima) vez ele trata
de assuntos familiares na sua coluna, ao referir-se ao filho Fernando, que
deixara de ver fazia quase um ano:
Acabo de despedir-me do meu filho, a quem não via, a bem dizer, desde julho,
quando arrebentou a revolução paulista e eu a ela me incorporava. A prisão, a
perspectiva da luta em Minas, a evasão dentro do Rio e depois a partida, em de-
zembro último, para São Paulo, tudo dele me separara.
Na inocência de seus verdes anos, perguntou-me, à hora da despedida,
porque eu me ausentava de novo do Rio:
- É sempre São Paulo que te leva daqui do Rio? - foi a sua interrogação.
- Mas, se a revolução já terminou, por que continuas longe de mim?
Tive de lhe explicar que em São Paulo, hoje, se joga a sorte da nacionalidade.
A geração de 1933 responde pela unidade brasileira contra a invasão separa-
tista.
Durante essa curta passagem pelo Rio, Chateaubriand descobriu que Fi-
linto Müller tinha destacado um censor que se encarregava exclusivamente
de seus artigos. Era o jornalista e médico recém-formado Álvaro Vieira (que
depois da redemocratização viria a ser médico dos Associados), ex-repórter
do jornal popular A Batalha, de propriedade de um bicheiro, e que fazia um
"bico " trabalhando para a polícia como censor - isto embora acumulasse
também a função de secretário político da célula do Partido Comunista no
bairro de São Cristóvão. Depois de composto por Umberto Porta, o artigo su-
bia sob a forma de prova tipográfica para Vieira, que consultava a lista de as-
suntos proibidos recebida diariamente da polícia antes de ir para o jornal.
Quando Chateaubriand escrevia sobre algum tema incluído no index, Vieira
cortava os trechos inconvenientes ou simplesmente proibia a publicação do
artigo inteiro. O material cortado era guardado e entregue no dia seguinte ao
delegado do Dops na 4ª Delegacia Especial. Era comum Chateaubriand pro-
curar Vieira, depois de vê-lo mutilar um texto seu, e tentar convencê-lo a re-
considerar a proibição. A conversa era sempre a mesma:
- Doutor Álvaro, o senhor é jornalista, não pode cometer uma barbari-
dade dessas. Isso aqui é um furo, uma informação que ninguém mais tem.
Deixe passar pelo menos este parágrafo.
Diante da inflexibilidade do censor, tentava jogar sujo:
- Se o senhor permitir que este artigo saia publicado, eu lhe dou um
emprego de redator com o salário duas vezes maior que o da polícia. Um em-
prego eterno, o senhor jamais será demitido dos Associados.
Ali Vieira não era jornalista, mas policial:
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FERNANDO MORAIS
- Doutor Assis, nessa base o senhor não consegue nada de mim. Se o
senhor quiser me dar um emprego no seu jornal depois que a censura aca-
bar, eu aceito de bom grado. Mas essa troca que o senhor está propondo eu
não posso aceitar.
Irritado, Chateaubriand saía berrando alto o suficiente para que o cen-
sor ouvisse:
- Esse filho da puta só podia ser comunista. Só queimando o rabo dele
com um maçarico!
Apesar das dificuldades com a censura, o encontro com Getúlio tinha
revigorado suas forças para remontar a rede. No começo daquele ano ele de-
cidira dar outra finalidade ao dinheiro que arranjara com Samuel Ribeiro e
Martinelli a pretexto de importar os transmissores de rádio: comprou a re-
vista A Cigarra, um semanário feminino ilustrado que havia sido fundado
em 1914, circulando apenas no eixo Rio-São Paulo, e conseguira angariar
pouco prestígio entre seu público-alvo, as mulheres e os intelectuais. Entre-
gou a direção da nova publicação ao poeta paulista Menotti del Picchia e
transformou-a em uma revista de circulação nacional.
De volta a São Paulo, em julho, confiante na atmosfera afetuosa do en-
contro que tivera com Getúlio, autorizou Menotti del Picchia a publicar na
revista uma reportagem festiva sobre o primeiro aniversário da revolução
constitucionalista, que se comemorava naquela semana. Se traduziu o clima
ameno da conversa com o presidente como um nihil obstat para seus atrevi-
mentos jornalísticos, Chateaubriand conhecia Getúlio Vargas muito pouco
- e seu governo menos ainda. No mesmo dia em que foi impressa, A Cigarra
foi recolhida das bancas, proibida de circular, e a polícia prendeu seu dono,
o diretor e o gerente, Laio Martins. Ao receber voz de prisão, o sangue ita-
liano de Menotti del Picchia ferveu. Fez um discurso em altos brados contra
a ditadura, contra Getúlio, contra os tenentes - e teve de ser levado à força
para o presídio do Paraíso. Já habituado ao que chamava de "turismo carce-
rário ", Chateaubriand foi conduzido sem protestos para outra prisão, situa-
da no bairro da Liberdade, no centro da capital paulista.
Apesar do regime de incomunicabilidade a que estava submetido, con-
seguiu convencer um carcereiro, em troca de um emprego nos Associados, a
contrabandear até a redação do Diário da Noite um artigo de elogios à políti-
ca externa do secretário de Estado norte-americano Cordell Hull, que escre-
vera a lápis em quatro guardanapos de papel. A mesma censura que tinha
sido tão dura com A Cigarra deixou passar o artigo intitulado "Moinhos de
vento ", de novo assinado por "Visconde de Castellomelhor ". Na abertura,
em vez de colocar o tradicional "São Paulo, 8 de julho ", ele escreveu "Oco do
mundo, 8 de julho" - certo de que aquilo poderia ser lido também como "o
cu do mundo ", identificando pelo menos para os leitores mais atentos, o lu-
gar onde ele se encontrava. .Ao receber o Diário na cela, no dia seguinte, sor-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
rateiramente levado pelo policial que subornara, viu que o artigo passara
sem que a censura mexesse em uma vírgula - e muito menos na assinatura
ou no "oco do mundo". Certo de que o carcereiro não entenderia sua letra
,
animou-se a mandar o artigo intitulado "Filipe de Oliveira e a revolução
paulista" , assinado com seu próprio nome e com a identificação precisa do
lugar em que se encontrava, sem recorrer a metáforas. Homenagem ao ami-
go que falecera em fevereiro daquele ano, quando dirigia o Diário de Pernam-
buco, o artigo era claríssimo quanto à sua condição de preso político:
São Paulo - Presídio da Liberdade, 9 de julho de 1933 - Escrevo estas linhas
descosidas sobre Filipe de Oliveira a 9 de julho, na prisão da Liberdade. Não
posso deixar de reconhecer tanta gentileza da ditadura. Concedeu-me a graça
de um ameno porão, onde devo comemorar a vitória da Revolução Constitu-
cionalista. As prisões políticas de São Paulo designam-se por nomes amáveis.
Chamam-se uma, a Liberdade, e outra, o Paraíso.
Estou recolhido ao presídio da Liberdade e, por ironia do destino, quando o
delegado de Ordem Política e Social (homem civilizado, diga-se entre parênte-
ses) perguntou ao chefe da censura por ordem de quem eu marchava para a "Li-
berdade ", o bruto respondeu secamente: "Por ordem dos Campos Elísios".
Assim é, pois, que me encontro na "Liberdade" por ordem dos "Campos Elí-
sios". É um sortimento completo de urbanidade, ornamentado com galas do céu
e com o festão mais garrido da vida, que é a liberdade. Comemoro São Paulo,
Filipe e o 9 de Julho de uma maneira perfeitamente cívica e elísia.
Nada feito. Inteiramente vetado, o artigo só sairia publicado (com a ad-
vertência de que havia sido escrito naquela data e circunstâncias) muitos
meses depois, no aniversário da morte de Filipe, quando o país vivia de
novo sob a democracia e a censura havia sido abolida. Curiosamente, nos
seis dias seguintes em que esteve preso, diariamente o carcereiro levava ao
Diário um novo artigo do "Visconde de Castellomelhor ", que passava pelos
censores sem qualquer problema, pois não fazia menção, no alto, à proce-
dência. Debochado, tão logo foi colocado em liberdade Chateaubriand escre-
veu um artigo agradecendo a colaboração de "Castellomelhor" :
Volto agora a ocupar a seção de que tão criteriosamente se desempenhou, du-
rante a minha curta ausência, o meu venerando amigo Visconde de Castellome-
lhor. Apresento a esse fidalgo paulista todas as escusas pela situação subalterna
em que ele voluntariamente se coloca, toda vez que me afasto de São Paulo e do
círculo de amigos a quem me ligam tantos laços de coração e de amizade. Não
é o Visconde de Castellomelhor apenas um escritor probo, sensato, de boa lei e
do mais rijo cerne bandeirante. Ele é ainda de uma modéstia sem par. Desde o
dia em que cheguei a São Paulo, há sete meses, consagrou-se à tarefa da substi-
tuição temporária do autor desta coluna [...). Diz o Visconde que não deseja ser
mais do que um primeiro suplente do redator do Diário.
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FERNANDO MORAIS
Muito tempo depois o jornalista Rubem Braga ficaria intrigado com a
presença na redação de um funcionário que chegava todos os dias à mesma
hora, deixava seu paletó pendurado na cadeira, lia jornais, saía e voltava no
final da tarde para retirar o paletó e ir embora, sem jamais escrever uma só
linha. Apesar de nunca fazer nada, o misterioso personagem estava religio-
samente às sextas-feiras na fila do caixa para receber o salário semanal-
mais alto do que o da maioria do pessoal da redação. Curioso, Braga não re-
sistiu e acabou perguntando ao sujeito o que era exatamente que ele fazia no
jornal. A resposta não poderia ser mais honesta:
- Nada. Eu não faço nada aqui, só recebo meu salário. Eu sou o carce-
reiro que vinha trazer os artigos do doutor Assis quando ele estava preso na
Liberdade.
Foi nessa época de censura rigorosa que Chateaubriand inventou um
personagem fictício para assinar as notas em que ele baixava demais o nível,
agredindo os adversários com vulgaridade e virulência tão grande que até
ele próprio se constrangia de assinar com seu verdadeiro nome. Era o "Ma-
caco Elétrico", inspirado no apelido depreciativo de um telefonista negro e
( desdentado da redação paulista. O personagem (que às vezes incluía a qua-
lificação "Antiliberal e católico" depois do nome) ficaria tão conhecido que
Chateaubriand decidiu continuar usando-o mesmo depois do fim da censu-
ra, toda vez que a agressão era baixa demais.
De qualquer forma, antes que o ano terminasse ele ainda desfrutaria
mais alguns dias de "turismo carcerário" por causa de seus escritos insolen-
tes. Uma vez mais Chateaubriand seria preso pela polícia de Filinto
Müller,
quando repetiu a proeza anterior de deixar São Paulo rumo ao Rio sem sub-
meter-se à liturgia de pedir autorização ao interventor. Apanhado na casa de
um amigo, passou dois dias na 4- Delegacia Auxiliar (onde funcionava o De-
partamento de Ordem Política). Meses depois seria levado a purgar mais
uma semana no presídio do Paraíso, em São Paulo, por causa de artigos
ofensivos ao governo que, embora submetidos à censura, tinham sido publi-
cados por descuido. Desta vez, até que a polícia conseguisse pôr as mãos
nele, Chateaubriand passou uma semana escondido no haras do conde Síl-
vio Penteado, nas imediações de Osasco. Certo de que a polícia tinha esque-
cido a ofensa, tentou voltar à redação - e foi preso na porta do jornal.
Apesar de empenhado em pôr de pé de novo suas empresas, equilibran-
do-se entre os tenentes e a falta de dinheiro, ele conseguia arranjar tempo em
seu confinamento paulista para iniciativas que nada tinham a ver com seus
negócios, mas demonstravam seu interesse insaciável, onívoro e multiface-
tado. No início do ano ele se juntara a Roberto Simonsen e a José de Alcân-
tara Machado para fundar a Escola de Sociologia e Política do Estado de São
Paulo. O problema principal era dinheiro, e, embora Simonsen tivesse tira-
do de seu próprio bolso 170 contos de réis para doar à instituição que nas-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
cia, esses recursos ainda eram insuficientes. Quando foi convocado, Chateau-
briand pôs sua alavanca para funcionar: em menos de um mês tinha toma-
do mais de cem contos, divididos em cotas doadas pelos condes Sílvio Pen-
teado e Modesto Leal, por Samuel Ribeiro e por Guilherme Guinle. Até
PercivaL Farquhar autorizou suas empresas no Brasil a entrar com dez con-
tos de réis. Em alguns casos, arranjar os recursos não foi tarefa fácil. Para
convencer o conde Modesto Leal - que vivia de emprestar dinheiro a juros
- a doar vinte contos, ele teve de pedir a Virgílio de Melo Franco que expli-
casse ao miliardário lusitano o que significava a palavra "sociologia" e teve
de inventar, por sua própria conta, uma sinuosa história sobre a importân-
cia da sociologia na luta contra o comunismo. Os jornalistas Cásper Líbero,
Otaviano Alves de Lima e Júlio de Mesquita Filho (respectivamente em
nome da Gazeta, da Folha da Manhã e do Estado) entraram com mais quinze
contos. Quando a escola foi afinal fundada, em maio de 1933, embora Cha-
teaubriand fosse um de seus grandes animadores e fizesse parte de seu pri-
meiro conselho, de seu bolso mesmo só tinham saído minguados cinco con-
tos de réis.
Uma tarde Chateaubriand chegava ao jornal para trabalhar e, ao tomar
o elevador do velho prédio dos Associados no vale do Anhangabaú, fica hip-
notizado pela beleza de uma mocinha, ainda adolescente, que era levada
pela mão por outra mulher, bem mais velha, que parecia ser sua mãe ou avó.
Sobe até sua sala de trabalho sem desgrudar o olho da menina, e imediata-
mente mobiliza a todos para saber em que andar as duas tinham descido e o
que tinham ido fazer no seu jornal. Minutos depois chegava a informação
completa. A mulher mais velha era Cláudia Montenegro, galega que viera de
Buenos Aires para cantar zarzuelas e operetas espanholas em boates de se-
gunda categoria em São Paulo. A menina cuja beleza o deixara embriagado
era Cora Acuna, de quinze anos, neta de Cláudia e atriz iniciante que já fize-
ra sucesso em dois filmes nacionais, O caçador de esmeraldas e Coisas nossas. A
avó tinha ido ao jornal para agradecer a cobertura que a seção de espetácu-
los tinha dado para uma apresentação sua num teatro de São Paulo.
Chateaubriand parecia tomado pelo demônio. Colocou repórteres na
rua para descobrir, com a maior urgência, onde a menina morava. Tanto
Cláudia como sua irmã Maria Montenegro (e a filha desta, Zulema) viviam
com a órfã Cora numa modestíssima pensão na rua Santa Ifigênia, do outro
lado do centro da cidade. Aos 41 anos, pouco importava a Chateaubriand
que sua idade fosse suficiente para ser pái (alguns anos mais e poderia ser
até avô) da menina que o enfeitiçara. Mandou comprar uma enorme e carís-
sima corbelha de orquídeas, que remeteu com um delicado cartão para a
pensão onde viviam as Montenegro, a pretexto de colocar as páginas dos As-
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FERNANDO MORAIS
sociados paulistas à disposição da tãu jovem atriz. Mais um dia e chegava à
portaria da pensão - certamente pela primeira vez em toda a história da-
quela humilde casa de cômodos - um funcionário dos Associados com uma
caixa de champanhe francesa Cristal endereçada à moça.
Menos de dois dias depois de Chateaubriand ter visto Cora pela primei-
ra vez, na noite seguinte seu reluzente Dupont de bancos giratórios deixou
sem fala os hóspedes da pensão ao recolher avó e neta para um jantar à luz
de velas com o jornalista no elegante restaurante instalado nos altos da loja
inglesa Mappin & Webb. No Rio, sem que ninguém lhe tivesse revelado
nada, Dario de Almeida Magalhães desconfiou que alguma coisa deveria es-
tar se passando entre o patrão e aquela adolescente - tal era a quantidade
de ordens para dar, com todo destaque, fotos e notícias da quase desconhe-
cida atriz Cora - ou Corita, como era conhecida - Acuna. Como as notí-
cias eram transmitidas por telefone, muitas vezes o nome dela sairia grafa-
do nos jornais do Rio como Cora "Cunha".
Nada disso, porém, tinha qualquer importância. A única coisa que im-
portava é que Corita estava correspondendo à louca paixão de que Cha-
teaubriand tinha sido tomado. Depois de ter obtido - sabe-se lá como-
autorização da avó para saírem sozinhos à noite, os dois começaram a vi-
ver um tórrido romance. Semanas depois de conhecer Corita, Chateau-
briand alugou um casarão de três andares na avenida Brigadeiro Luís An-
tônio, no elegante Jardim Paulista, onde passou a viver com a menina-
que naturalmente carregou consigo o que o jornalista chamava de "o con-
sulado espanhol": a avó, a tia-avó e a filha desta, Zulema. Para os inimigos
de Chateaubriand, o que tinha havido não era a consumação de uma pai-
xão, mas uma operação comercial, pela qual o jornalista tinha "comprado"
a neta da avó.
Fosse pela diferença de idade, fosse pela deslumbrante beleza da nova
mulher, Chateaubriand alimentava por Corita um ciúme patológico. Quan-
do não estava em casa ou em companhia da avó, Corita era forçada a ir para
os Associados, e lá passava as tardes plantada na sala e sob o olhar vigilan-
te do marido. Numa dessas ocasiões o repórter Rubem Braga foi chamado à
sala do patrão. Entrou e deparou com aquela mulher fascinante sentada num
sofá. De cabeça baixa, Chateaubriand escrevia com sofreguidão, a lápis, o ar-
tigo do dia seguinte, aparentemente sem se dar conta de que o repórter esta-
va à sua frente. De pé, o discreto Braga arriscava um rabo de olho para a
beldade, naturalmente sem saber de quem se tratava. Sem erguer a cabeça,
Chateaubriand acabou com a festa platônica do repórter:
- Pode desistir, seu Braga, pode desistir. Isto é mulher cara, não é mu-
lher pro seu salário, não...
Ao sair da sala Rubem Braga deu telefonemas, fez algumas investiga-
ções, juntou fatos e descobriu que, indiretamente e sem sabê-lo, tinha contri-
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FERNANDO MORAIS
buído para a concretização do romance do patrão com a linda mocinha que
acabara de conhecer. Semanas antes ele tinha sido encarregado por Chateau-
briand de fazer uma reportagem elogiando um condomínio residencial que
estava sendo construído nos arredores de São Paulo pelo dono da Casa Go-
dinho, tradicional importadora de bebidas e alimentos. Só então é que en-
tendeu que, em mais um dos incontáveis atropelos à ética jornalística que
Chateaubriand cometeria, a reportagem encomendada pelo patrão era o pa-
gamento não de uma, mas de mais de vinte caixas de champanhe francesa
despachadas pela Casa Godinho para a pensão de Corita como parte da cor-
te que o jornalista lhe fazia.
Por incompetência da polícia, ou porque a iminência da instalação da
Constituinte obrigasse a ditadura a afrouxar um pouco seus cordéis, a ver-
dade é que, naquele ano de 1933, Chateaubriand ainda faria uma viagem
ao Rio - sem pedir salvo-conduto a ninguém, e desta vez sem ser impor-
tunado. Na capital federal foi convidado para um almoço solene na casa
de Drault Ernanny, que começava a se transformar em um próspero in-
dustrial. O amigo médico tinha acabado de montar uma sociedade com
Alfredo Dolabella Portella e um grupo de industriais alemães, recém-che-
gados da Europa a bordo do dirigível de Zeppelin, para juntos implanta-
rem uma fábrica de cimento na Paraíba. Para o almoço que festejava a
montagem da sociedade tinham sido convidados também, além dos ale-
mães e de Chateaubriand, o industrial paulista Horácio Lafer e o interven-
tor na Paraíba, Gratuliano de Brito. Presidindo o encontro, à cabeceira da
mesa, a matriar ca mineira Lídia Chagas, avó de Míriam, a mulher com
quem Ernanny acabara de se casar. A certa altura do almoço um criado
avisa a Chateaubriand que alguém o chamava ao telefone. O jornalista se
levanta, passa alguns instantes no aparelho e retorna à mesa com ar de
desdém:
- Não era nada de especial. Apenas me informam que esse velho idio-
ta, esse senil infeliz que era interventor em Minas, Olegário Maciel, acaba
de morrer. Já vai tarde, já estava devendo sua alma a Deus fazia muito
tempo.
Usar aquelas palavras para se referir a um morto (ainda que o morto o
tivesse colocado na cadeia meses antes) causou enorme mal-estar entre os
convivas. Para tentar dissolver o gelo, Chateaubriand vira-se para a ocupan-
te da cabeceira da mesa:
- Dona Lídia, a uma dama com todo esse aplomb, com tanta energia,
não será deselegante perguntar a idade, não?
Era a oportunidade que Lídia Chagas esperava para se vingar:
- Eu sou vinte dias mais velha que o Olegário Maciel..
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Ele não perdeu a graça. Levantou-se, beijou-lhe as mãos e gargalhou:
- Só mesmo uma grande dama como a senhora sabe esperar a hora cer-
ta para dar o tiro.
Chateaubriand não sabia, mas a morte que dera origem àquela gafe se-
ria também, indiretamente, a responsável pela definitiva normalização de
seus negócios. O sucessor natural de Olegário Maciel na interventoria minei-
ra, com amplo apoio dos tenentes e do ministro Osvaldo Aranha, era Virgí-
lio de Melo Franco - o avalista do acordo feito entre Chateaubriand e o go-
verno, por meio do qual o jornalista, apesar de perder O Jornal, escapou do
exílio. Virgílio era o responsável junto a Vargas não só pelo cumprimento do
acordo, por parte de Chateaubriand, mas também pela orientação política
dos Associados mineiros, entregues a seu irmão Afonso Arinos. Mas as se-
manas foram se passando e nada de Vargas nomeá-lo. O interventor interi-
no, Gustavo Capanema, acabou virando candidato efetivo ao cargo, o que
gerou um impasse: se Getúlio mantivesse Capanema, bateria de frente com
os tenentes. Se convidasse Virgílio para o posto, reforçaria demais as preten-
sões presidenciais de Osvaldo Aranha, de olho nas eleições que inevitavel-
mente seriam feitas em 1938. No meio da disputa surda, Getúlio surpreende
a todos e tira do bolso do colete o nome de um obscuro tertius para o Palá-
cio da Liberdade: o advogado Benedito Valadares, ex-prefeito da pequena
Pará de Minas, no interior do estado. A nomeação desabou como uma bom-
ba sobre o meio político, mas seus estilhaços se concentrariam sobre a famí-
lia Melo Franco.
Indignado com o que julgava uma desconsideração de Vargas com o ir-
mão e com a família, o caçula dos Melo Franco, Afonso Arinos, escreveu um
duríssimo artigo contra o governo para publicar no Estado de Minas - no
qual afirmava que só havia um caminho tanto para o pai, Afrânio de Melo
Franco, ministro das Relações Exteriores, quanto para Osvaldo Aranha (mi-
nistro da Fazenda e defensor da nomeação de Virgílio): deixar o governo
imediatamente. O que parecia ter sido uma jogada de mestre de Getúlio co-
meçava a se desenhar como uma crise de bom tamanho. De São Paulo, Cha-
teaubriand farejou que ali estava a ponta do novelo que Poderia trazer-lhe
de volta O Jornal. Soube, por telefone, do teor do artigo de Afonso Arinos
(antes mesmo que ele fosse composto nas oficinas de Belo Horizonte), mas
ficou constrangido de pedir ao autor para lê-lo antes da publicação. Entre-
tanto, como sabia que a Agência Meridional era a primeira a receber os arti-
gos para redistribuí-los entre os outros órgãos Associados, Chateaubriand
telefonou para o Rio e pediu que Jaime de Barros lesse para ele a cópia re-
cém-chegada de Belo Horizonte. Mais uma vez ia valer o seu surrado refrão:
quem quisesse ter opinião que comprasse um jornal. Nos Associados só o
dono tinha opinião. Ao final da leitura, disse apenas duas palavras:
- Está proibido.
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FERNANDO MORAIS
O diretor da Meridional não entendeu:
- Mas, proibido como, doutor Assis? A censura ainda não leu o artigo,
ele não pode estar proibido.
- Proibido por mim, seu Jaime. Proibido por mim. Pode avisar ao Afon-
so Arinos em Belo Horizonte que o artigo foi proibido por mim.
Fazendo ligações telefônicas como um alucinado, Chateaubriand conse-
guiu mobilizar, no Rio, além de alguns ministros amigos, o ex-sogro Zózimo
Barrozo do Amaral (que, com suas boas relações com o governo, tinha con-
seguido manter aberto durante todo o tempo o Diário da Noite carioca) e seus
diretores Gabriel Bernardes e Dario de Almeida Magalhães. De Belo Hori-
zonte alguém acabara de ligar dizendo que, ao ouvir a ordem de censura
dada pelo patrão, Afonso Arinos teve um rompante e pediu demissão do
cargo de diretor dos Associados mineiros. No Rio, tanto Osvaldo Aranha
quanto Afrânio de Melo Franco também tinham se demitido do ministério
em protesto contra a nomeação de Valadares (depois Aranha voltaria atrás,
mas Afrânio não retornaria ao governo). Chateaubriand revelou a Barrozo
do Amaral, Bernardes e Magalhães uma idéia fixa que o perseguia: ele que-
ria aproveitar aquele torvelinho político para recuperar O Jornal. Como ma-
nifestação de espírito desarmado, mandou comunicar em seguida ao presi-
dente que proibira o artigo ofensivo mesmo sabendo que aquilo iria custar a
saída de Afonso Arinos nos jornais. O portador da notícia disse mais a Ge-
túlio: Chateaubriand entendia que o rompimento dos Melo Franco com o go-
verno provisório tornava sem efeito o acordo político celebrado entre os As-
sociados e o presidente. Se os avalistas do armistício tinham rompido com o
governo, o acordo estava automaticamente desfeito, e voltava tudo a ser
como era antes. Ou seja, o que o jornalista esperava agora, como um gesto
de Vargas, era que ele mandasse João Alberto fechar o espúrio A Nação e de-
volver-lhe O Jornal, com máquinas, prédio e tudo o mais que lhe fora tirado.
Como fazer isso? O governo que se entendesse com seu testa-de-ferro José
Soares Maciel Filho.
Com a abertura política a caminho, Getúlio achou que aquele poderia
ser um passo interessante no processo de degelo, e mandou fazer a Chateau-
briand uma contraproposta com quatro pontos:
1) O Jornal seria autorizado a voltar a circular, mas teria de ser impres-
so nas velhas oficinas da rua Rodrigo Silva. A Nação continuaria existindo,
sempre sob a orientação de João Alberto, e a questão da propriedade da grá-
fica seria decidida pela Justiça, onde corria um processo de reintegração de
posse dos equipamentos, movido por Chateaubriand.
2) O diretor de O Jornal teria que ser Zózimo Barrozo do Amaral, e não
o próprio Chateaubriand.
3) A aceitação daquele compromisso teria de ser feita por escrito, assi-
nada por Barrozo do Amaral ou por Gabriel Bernardes, em documento que
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
ficaria depositado nas mãos de um advogado neutro (o nome sugerido pelo
governo era o de Alberto Faria Filho). As ações do jornal, que naquele mo-
mento pertenciam a Maciel Filho, voltariam às mãos de Chateaubriand, mas
ficariam caucionadas ao documento em que se celebrava o novo acordo.
4) Se Chateaubriand concordasse com aquelas condições, seu confina-
mento em São Paulo chegaria ao fim, e ele poderia mudar-se para onde bem
entendesse - inclusive o Rio.
Ao ouvir de Gabriel Bernardes os termos da proposta, em São Paulo,
Chateaubriand gargalhava:
- Doutor Bernardes, esse acordo não salva só O Jornal. Estamos recu-
perando também os Associados de Minas, que Virgílio Melo Franco estava
se preparando para devorar. Eu já havia me aliado ao Virgílio contra o dita-
dor, agora eu me alio a esse satanás que é Getúlio Vargas contra o Virgílio.
No dia em que eu escrever a história dos Diários Associados, terei que man-
dar sata nás baixar à terra para contar os acordos que fiz com ele para sobre-
viver. Pode assinar o protocolo, doutor Bernardes, que nós estamos salvos!
Para terminar, fez uma afirmação que surpreendeu Bernardes:
- Avise ao ditador que ele não está me fazendo nenhum favor, apenas
devolvendo o que é meu e foi roubado. E diga também que eu não quero pri-
vilégios: meu confinamento em São Paulo termina quando ele anistiar todos
os presos políticos e permitir que os exilados voltem.
Ao chegar ao casarão da Brigadeiro Luís Antônio à noite, entusiasmado
com a notícia de que estava começando a retomar seus jornais, Chateau-
briand foi recebido por Corita com outra grande novidade: naquele dia ela
descobrira que estava grávida.
b 329
20
Ninguém jamais ouviu uma palavra de Chateaubriand contra a decisão
de Corita de ter o filho. Nem a favor - o que já significava um enorme pro-
gresso para alguém como ele, célebre pela aversão pública que alimentava
pela sagrada instituição chamada família. Quem quer que convivesse por al-
gumas semanas com o jornalista, certamente teria a oportunidade de ouvi-lo
pronunciar uma de suas frases prediletas sobre o trinômio lar-esposa-fi-
lhos: "Aníbal só chegou até o Norte da Europa com sua tropa de elefantes
porque não tinha uma prole agarrada à barra de seu paletó"; ou "Você acha
que se Cristo tivesse mulher e filhos conseguiria criar uma religião que já
dura quase dois milênios ?" ou ainda: "Se Colombo fosse pai de onze filhos,
a América estaria até hoje entregue a botocudos, sioux e astecas - jamais te-
ríamos sido descobertos". "César não conquistaria a Gália se tivesse que le-
var mudança... Você já imaginou alguém ajudando filho por filho a atraves-
sar o Rubicão?" "Família é uma instituição belíssima", arrematava sempre,
"desde que em forma de retrato, pendurada na parede." Assim, foi sem ne-
nhuma manifestação visível de amor ou de desgosto que ele recebeu, no dia
11 de abril de 1934, a notícia de que Corita tinha dado à luz, em casa, uma
linda menina, a quem deram o nome de Teresa. Como a conservadora legis-
lação da época impunha intermináveis obstáculos ao reconhecimento de fi-
lhos nascidos fora dos casamentos formais - e eles não eram casados -, a
garotinha foi registrada apenas como "Teresa Acunha, filha de Cora Acu-
nha" (assim mesmo, com o sobrenome aportuguesado pelo escrivão) e com
um espaço em branco no lugar destinado ao nome do pai.
Logo que Teresa nasceu, a família mudou-se para uma casa na rua Ca-
nadá, no igualmente elegante Jardim América - sempre arrastando consigo
o "consulado espanhol", agora acrescido da presença de Artez, um andaluz
que se casara com Zulema, tia de Corita. Mas também ali eles acabariam per-
manecendo por pouco tempo: com a decretação da anistia, Chateaubriand
decidiu afinal retornar ao Rio de Janeiro. Para não ter de pedir de volta a Vila
Normanda, emprestada a Dario de Almeida Magalhães, primeiro a família
morou em um apartamento do edifício Netúnia, na esquina da avenida Nos-
sa Senhora de Copacabana com a rua República do Peru (que na época se
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
chamava rua Nove de Julho), e depois mudou-se para uma casa que Osval-
do Aranha alugou a Chateaubriand na Urca. Como quase sempre acontecia
na vida do jornalista, logo apareceu um agregado para viver com eles na
casa nova: desta vez era seu primo recém-importado de Recife, Leão Gon-
dim de Oliveira, que ele pusera como diretor de O Cruzeiro.
A situação das empresas começava a se acomodar, mas ainda havia pro-
blemas jurídicos a serem resolvidos em conseqüência da encrenca em que
Oscar Flues metera os Diários Associados. Em novembro do ano anterior,
como resultado do acordo político entre Getúlio e Chateaubriand, O Jornal
fora relançado com enorme estardalhaço, com anúncios de página inteira em
O Cruzeiro e páginas e mais páginas de cartas e telegramas de saudações pelo
"fim do esbulho " a que tinham sido submetidos. Só em meados do ano o juiz
Burle de Figueiredo concederia a Chateaubriand o mandado de reintegração
de posse - mas, ainda assim, apenas das máquinas. Maciel Filho (ou João
Alberto, ou quem quer que estivesse por trás dele) conseguiu que o luxuoso
prédio, que Chateaubriand construíra com tanta dedicação, permanecesse
como sua propriedade, como ressarcimento do que pagara pelos créditos
comprados a Flues. Uma interminável quizília jurídica ainda capengaria du-
rante onze anos pela burocracia forense até que os Associados conseguís-
sem, em 1945, reaver definitivamente o prédio da Treze de Maio.
Mas a garantia de que pelo menos a maquinaria voltaria a pertencer-
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FERNANDO MORAIS
lhes animou os verdadeiros donos a realizar o sonho que alimentavam ha-
via dois anos, desde meados de 1932: acertar as contas com Oscar Flues.
Apesar de terem ficado um ano privados de O Jornal e mais dois sem o mo-
derno equipamento confiscado, nem Chateaubriand nem seu buliçoso irmão
Oswaldo guardavam rancor maior de Getúlio, do capitão João Alberto ou
mesmo de Maciel Filho - este, então, era considerado por eles como um re-
les pau-mandado, um amarra-cachorro que apenas cumpria ordens supe-
riores. O desprezo não impedia os Associados de se referir ao capitão como
" esse estelionatário, falcatrueiro, flibusteiro, rei do pé-de-cabra e da gazua
que se chama João Alberto", nem de continuar sustentando polêmicas com
Maciel Filho. Mas o ódio armazenado e amadurecido minuto a minuto, dia-
a-dia, durante o exílio de Oswaldo e as prisões e a clandestinidade de Cha-
teaubriand, este estava reservado para Oscar Flues. Para os irmãos Chateau-
briand, Getúlio e João Alberto tinham feito um jogo político - sujo ou
limpo, não importava muito, mas estavam movidos por idéias. Até Maciel,
bem ou mal, servia a uma causa - fim que, de alguma maneira, acabaria por
absolvê-lo quando chegasse o dia do juízo final que Chateaubriand e Oswal-
do estavam se preparando para decretar. Mas Flues, não. O alemão fizera
um negócio pelo negócio, vendera a alma ao diabo apenas em troca do di-
nheiro de João Alberto. Por trás de seu gesto não havia um dedo de idealis-
mo, de interesse maior, mas apenas e exclusivamente o dinheiro, nada mais.
E gente como aquela não merecia perdão. Oscar Flues precisava ser castiga-
do de maneira exemplar, para que tal comportamento não se repetisse.
Se era assim que pensavam os irmãos Chateaubriand, a recíproca não
era a mesma. O negócio que dera origem a tanto ódio já tinha evaporado da
cabeça do industrial. Para Flues, agora posto em plácido sossego em São
Paulo, a venda das dívidas dos Associados a José Soares Maciel Filho tinha
sido apenas mais um dentre centenas de negócios no ramo da importação e
venda de máquinas gráficas. A venda dos créditos vencidos a Maciel Filho,
na realidade, apenas o livrara - claro, com algum ágio -, de um péssimo
negócio feito com os Chateaubriand. Quando surgiram os homens do gover-
no para fazer o primeiro contato em nome de Maciel, a única coisa que pas-
sou pela cabeça de Flues foi ver-se livre daquele amontoado de dívidas de
clientes que eram sabidamente maus pagadores, dívidas que ele havia per-
dido a esperança de receber. Para o industrial, negócios não eram contra ou
a favor de ninguém, eram apenas negócios, nada mais. Aceitar a oferta que
lhe faziam significava apenas ver-se livre de um mau negócio. Tanto assim
que ele jamais se preocupou em tomar qualquer precaução, seja com relação
a Oswaldo, que vivia em São Paulo, seja com Chateaubriand.
Mas conhecendo, como conhecia, a índole e os maus bofes dos irmãos
paraibanos, se lesse uma edição de julho de 1934 do Diário da Noite do Rio de
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
janeiro (muito provavelmente impressa em rotativas importadas e vendidas
por ele), o industrial Oscar Flues teria motivos para se acautelar. Ali, ao no-
ticiar a expectativa em torno da decisão do juiz Burle de Figueiredo com re-
lação à ação de reintegração de posse das máquinas, o jornal historiava todo
o processo, e pela primeira vez Flues aparecia como cúmplice do "esbulho "
de O Jornal:
Valendo-se das circunstâncias eventualmente desfavoráveis em que se encon-
trava o matutino carioca, vencido com os paulistas no movimento constitucio-
nalista, com os seus diretores presos e ameaçados de desterro, associaram-se,
para assaltar as oficinas do órgão-chefe dos Diários Associados, o então chefe de
polícia do Distrito Federal e Oscar Flues - este seduzido pelo dinheiro com que
lhe acenavam, e aquele pela aspiração de possuir um jornal seu, que fosse o ba-
luarte de suas hoje fracassadas aspirações políticas. Usando de testas-de-ferro,
agentes serviçais dos mal-embuçados autores da trama, conseguiram os assal-
tantes um sucesso efêmero nas suas maquinações. Apoderaram-se, servindo-se
até da Polícia Militar, das oficinas de O Jornal, onde começou a ser impresso o
matutino A Nação, de propriedade e direção do capitão João Alberto.
Para bom entendedor, aquele parágrafo bastava. Mas Chateaubriand
deu ordens para que Oswaldo deixasse bem claras as intenções deles: o dono
dos Associados não pretendia fazer nada às escondidas, e queria tornar pú-
blico que "aplicaria um corretivo" no alemão. Rico e bem-posto na vida, vi-
vendo em um casarão no bairro de Santa Cecília, presidente da Câmara de
Comércio Brasil-Alemanha, membro da recém-fundada FIESP, a Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo, e do Rotary Club de São Paulo, Os-
car Flues não dera maior importância ao negócio feito em 1932 com Maciel
Filho - o que o levaria a pensar que dele também já houvessem se esqueci-
do os irmãos Chateaubriand. Foi por isso que se assustou ao ler, na edição
de 4 de agosto de 1934 do Diário da Noite e do Diário de S. Paulo, um longo ar-
tigo de Oswaldo Chateaubriand intitulado "Um monturo que não é nosso".
O texto de Oswaldo, eivado, entre outras coisas, de traços de anti-semitismo,
publicado a pretexto de responder a um editorial de A Nação, dava o molde
do tratamento que os dois irmãos, a partir daquele episódio, dedicariam em
seus jornais a todos os inimigos e desafetos:
Não estava nos meus cálculos remexer ainda uma vez no tremedal d'A Nação. O
que era necessário era que se dissesse à luz do dia quem são os porcos que a di-
rigem. Ontem A Nação se apresenta como vítima, o capitão João Alberto como
uma espécie de lord protector, Maciel como uma pomba e o hebreu Oscar Flues
como um náufrago da própria generosidade, que se salvou por milagre nos des-
troços de outubro de 32. Vamos desempachar o caminho, com os recursos da
disciplina e do método, para que se veja afinal, nesse barulhento frigir de ovos,
quem tem roupa na mochila.
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FERNANDO MORAIS
Em 1928 Oscar Flues me aparecia na gerência do Diário da Noite propondo-
se a negociar com essa empresa. Eu não o conhecia, de nome nem de vista. Des-
cobri-lhe na fisionomia traços semitas dissimulados, mas acabei fechando com
ele a compra de seis máquinas Intertype, que foram pagas e hoje pertencem ao
Diário da Noite. Nessas não puderam avançar João Alberto, Maciel e Oscar
Flues. Em 1929, quando O Jornal pretendeu adquirir uma rotativa e estava em
entendimentos com a Graphika, de Berlim, Oscar Flues foi ao Rio, encroou na
gerência de O Jornal, por esse tempo ao meu cargo, grudou-se como uma ostra,
instalou-se no mesmo hotel em que eu me encontrava e não nos largou, como
uma pulga em sítios incômodos, até o dia em que se consumou o negócio da ro-
tativa. Devo dizer que ao sr. Assis Chateaubriand a pessoa do sr. Oscar Flues
sempre inspirou, em todos os tempos, uma instintiva repugnância. O diretor de
O Jornal via nas fuças desse rufião como que uma espécie de secreta advertên-
cia que ele não sabia de onde vinha, mas que depois se verificou que era proce-
dente. Estávamos, sem saber, às voltas com um molambo humano, a quem a po-
lícia alemã já havia imposto muitas vezes os castigos ultrajantes aos que se
dedicam ao ofício da cafetinagem.
Feito o contrato, recebia Oscar Flues 2 mil libras de entrada, devendo receber
outro tanto quando as máquinas chegassem ao Rio de Janeiro. Embolsou por
esse tempo outra prestação, recebeu, como era do negócio, máquinas usadas de
O Jornal e meteu nas algibeiras, enfim, até outubro de 1932, e por conta desse
contrato, uma cifra que não se distancia muito de mil contos de réis. Ainda nes-
se mesmo mês de outubro, quando Oscar Flues já havia clandestinamente ven-
dido as máquinas de O Jornal a João Alberto, recebia do sr. Assis Chateaubriand
a soma de vinte contos de réis, dinheiro que estava ele conseqüentemente rou-
bando, com o mesmo ar que alugava na sua terra uma hora de prazer de uma
de suas desgraçadas que formavam o seu lúgubre rebanho.
[...] Vamos arrematar esta suave confabulação com mais algumas linhas sobre
Oscar Flues, a fim de que outros incautos não venham a cair nas malhas desse
salteador de estrada. Somente depois desse assalto que ele perpetrou contra os
proprietários de O Jornal, de parceria com o capitão João Alberto e Maciel, é que
eu vim a saber, pelo depoimento de dois alemães, destituídos de qualquer idéia
facciosa, quem é o chefe da firma Oscar Flues & Cia. Praticava na Alemanha,
quando moço e solteiro, nada menos que o ofício da cafetinagem. Perseguido te-
nazmente pela polícia alemã, rolando pelas cadeias como um bagaço podre, re-
solveu esse monturo humano eleger o Brasil, que tem recebido tanta vasa de ou-
tras terras, para teatro de seus delitos, embora de outro gênero. Contam esses
mesmos alemães, sobre cujo nome estou no dever de silenciar, que a ficha poli-
cial de Oscar Flues desaparecera na revolução de 18, entre chamas criminosas,
no meio das de outros milhares de facínoras.
Cripto-judeu, com 200% de sangue semita, negou a raça e brada em todos os
cantos que é nazista. Cáften com tradição policial, e gatuno por imperativos da
própria natureza, foi dessa esterqueira que se serviu a escória do outubrismo
para fundar um jornal que é apenas um charco. Não se suponha, entretanto, que
Oscar Flues recolherá em doce paz o prêmio da vilania.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Oswaldo Chateaubriand encerra seu petardo sem deixar dúvidas de
que a família pretendia mesmo "exemplar " o industrial que se atrevera a en-
frentá-los:
Uma noite, à moda do Nordeste, reunimo-nos eu e meus três irmãos para exa-
minar o caso de Oscar Flues. Coube a exposição ao diretor de O Jornal, que
era a vítima imediata do atentado. E juramos e resolvemos nós quatro liquidar
a chicote, por via de surras científicas, aplicadas com os rigores do método, a in-
fâmia desse ladrão. Serão tantas tundas quantas bastem, que virão a seu tempo,
até que se devolva à Alemanha, ou pelo menos que se expurgue do Rio e de São
Paulo esse lixo que não é nosso. É a forma primitiva de justiça que vive no co-
ração de todo nordestino e a única compatível com determinadas misérias.
Aterrorizado com o tom do artigo e com as ameaças nele contidas,
Flues recorreu ao consulado alemão para que pedisse proteção à polícia-
que, pelo menos no papel, lhe foi assegurada pelo delegado Cristiano Alten-
felder. Além disso, escreveu uma carta a Armando de Arruda Pereira, presi-
dente do Rotary Club de São Paulo, solicitando-lhe que destacasse "uma co-
missão de sócios para examinar a contabilidade de Oscar Flues & Cia.".
Longe de pretender se imiscuir naquela encrenca, o Rotary fugiu pela tan-
gente, alegando que se tratava "de assunto de natureza privada, que escapa
às nossas finalidades e atribuições". Quem logo saiu em defesa de Flues foi
josé Soares Maciel Filho. Em um artigo de tons tão racistas quanto o de Os-
waldo, publicado em A Nação, ele insistiu em que os Associados estavam
usando desde 1930 máquinas no valor de quinhentos contos de réis, pelas
quais haviam pago apenas cinqüenta:
O que o sr. Oswaldo Chateaubriand chama de miséria é cobrar o que ele deve.
Depois disso não é necessário mais perguntar por que em São Paulo se tem hor-
ror aos nordestinos. Não precisa dizer mais nada para justificar a irritação do
povo paulista contra seus irmãos do Norte. O paulista não sai de São Paulo a
não ser para o Rio ou para a Europa. Conhece, portanto, os seus irmãos brasilei-
ros, pelas amostras que lá chegam. Compete, portanto, ao Nordeste, policiar sua
emigração.
Ainda assombrado com o que lera a seu próprio respeito, não restou a
Oscar Flues senão usar a mesma arma de Oswaldo Chateaubriand, a palavra
escrita. Comprou meia página do jornal O Estado de S. Paulo do dia 7 de agos-
to, onde publicou um extenso e polido relatório sob o título "Oscar Flues, à
praça e aos seus amigos". Sem recorrer à linguagem ou às agressões de que
fora vítima, Flues faz um inventário de todos os seus negócios com os Asso-
ciados para resumir: que entre prestações não pagas ou atrasadas, Chateau-
briand lhe devia, em outubro de 1932, alguma coisa equivalente a 1 milhão
de dólares, quase quatro vezes o capital de sua empresa; que os atrasos che-
garam a 23 meses, e durante todo esse período ele tentou, em vão, receber
pelo menos parte da dívida dos jornais; que estranhava que em 1932 Oswal-
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FERNANDO MORAIS
do Chateaubriand não tivesse vindo a público tratar do assunto e só agora,
passados dois anos, é que se decidia a abrir a campanha contra ele; que no
período os Associados tinham usado, a custo zero, equipamentos no valor
de 3 mil contos de réis; que tinha solicitado ao Rotary Club uma auditoria
em sua contabilidade, para comprovar a veracidade do que dizia; que esta-
va estabelecido em São Paulo desde 1911, provavelmente "há mais tempo
que o sr. Oswaldo Chateaubriand". O memorial de Flues concluía com uma
breve referência às ameaças que Oswaldo lhe fizera:
Noticia finalmente o sr. Chateaubriand que serei agredido, por ele e seus três ir-
mãos. Asseguro que me defenderei o melhor que possa. De nada me arreceio. A
minha consciência está tranqüila, e o público já tem elementos para julgar o pro-
cedimento de todos nós e decidir essa contenda. Não voltarei ao assunto.
São Paulo, 5 de agosto de 1934
Oscar Flues
Se Flues não voltaria ao assunto, Oswaldo Chateaubriand voltou, para
responder com virulência ainda maior ao anúncio do industrial e renovar as
ameaças:
Estranha esse prostituto semita que em novembro de 32, época da gatunice que
ora se comenta, eu não houvesse vindo a público examinar e debater esse nefan-
do atentado dos detritos do outubrismo. Finge que não se lembra o ratazana que
exatamente em novembro eu me encontrava deportado (e me afirmam que a pe-
dido dele a João Alberto) e foragido o sr. Assis Chateaubriand, que por um triz
não seguiu rumo ao Japão, atropelado pela polícia carioca, até que conseguiu
bater com os costados em São Paulo, onde o garantiu generosamente o interven-
tor Valdomiro contra a sanha do trio João Alberto, Maciel e Oscar Flues. Consi-
dere-se ainda que comigo estavam exilados mais oito companheiros dos
Diários Associados e tudo isso para que, garantidos pela polícia, campeassem li-
vremente no Rio de Janeiro, à tripa forra, os dois mastins que João Alberto aca-
bava de incorporar à glória sinistra do outubrismo.
O quadro atualmente é este: o capitão João Alberto proprietário de um jornal
que não lhe custou uma hora de trabalho ou um pingo de suor; Maciel batendo
carteira em nome dos brios de São Paulo; e o judeu Oscar Flues, de pança farta
e pêlo liso, com os bolsos cheios de um dinheiro que ele roubou, mas que não o
gozará impunemente. Cínico, apela para o Rotary Club, como se estivesse na fi-
nalidade desse grêmio acolher almas como essas de macquerot, expelidas do fun-
do das podridões humanas.
Meditamos o bastante e chegamos à conclusão de que nenhuma lei humana
ou divina daria guarida à veleidade desse larápio. Teremos que mandar escová-
lo devidamente, pois seria escandaloso e anticristão termos contato direto com
esse porco, até que ele vomite boa parte da fortuna que nos roubou ou desinfe-
te o Brasil. Devo, a propósito, acrescentar que, antes de deliberarmos a coça nes-
se israelita oportunista do nazismo, recorremos aos meios suasórios para efeito
de um justo reembolso. Emperrou. Sua alma, sua palma. E por isso mesmo o
pau lhe cantará no lombo.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Aparentemente temeroso de parecer anti-semita demais, Oswaldo ain-
da se lembraria de colocar um post-scriptum no artigo, que na verdade aca-
bou soando como uma dose adicional de preconceito. "Quando me refiro à
qualidade de israelita de Oscar Flues não tenho em vista depreciar a raça",
escreveu ao final, "mas apenas acentuar que seu safadismo chegou ao pon-
to de negar o próprio sangue." O recurso ao preconceito se somava à pouca
preocupação com os fatos, inclusive quanto ao passado de Flues: além do in-
verossímil "depoimento de dois alemães", era muito pouco provável que al-
guém com menos de vinte anos (idade que Flues tinha quando deixou a Ale-
manha) pudesse ser o rufião tão perigoso e "perseguido tenazmente pela
polícia alemã" que Oswaldo pintara no jornal.
Mas nem isso deveria surpreender. Se era um leitor freqüente dos Asso-
ciados, Flues devia saber que vinha se tornando um hábito dos irmãos Cha-
teaubriand, em meio às polêmicas com seus adversários, não medir palavras
para ofender e insultar a vítima. E, quando as informações sobre o infeliz
chegavam ao fim, eles recorriam à imaginação, à mentira pura e simples. Um
episódio assim tinha ocorrido meses antes, quando Rubem Braga ainda tra-
balhava nos jornais de Minas Gerais. Irreverente e anticlerical, em plena Sex-
ta-Feira da Paixão Braga escrevera um artigo considerado desrespeitoso à fi-
gura de Nossa Senhora de Lourdes, a padroeira de Belo Horizonte. A Igreja
mineira, que tinha planos de criar um jornal para combater os Associados lo-
cais (o que acabaria acontecendo em 1935, com o lançamento de O Diário,
que ficou conhecido como "Diário católico"), entendeu que a provocação fei-
ta por Braga era o pretexto de que precisava para abrir guerra contra Cha-
teaubriand. O arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, d. Antônio dos
Santos Cabral, tomou a briga a peito, pessoalmente. Deu ordens para que to-
dos os padres, até nas mais remotas paróquias do sertão mineiro, dedicas-
sem suas prédicas e sermões dominicais ao trabalho de demolição do Estado
de Minas e do Diário da Tarde. A orientação era uma só: um bom católico não
podia ler jornais que faltavam com o respeito à Virgem Maria. Mineiro e co-
nhecedor das tradições conservadoras de seu estado, Dario de Almeida Ma-
galhães procurou Chateaubriand para fazê-lo ver que, se não fosse contido a
tempo, d. Cabral podia causar um estrago de proporções consideráveis en-
tre os leitores, assinantes e anunciantes dos jornais. O que ele propunha era
um acordo que amansasse o bispo - por exemplo, transferir Rubem Braga
para o Rio ou para São Paulo. Chateaubriand discordou, disse que seria uma
humilhação submeter-se àquele "padre desaforado". Dario quase desabou
ao ouvir o patrão, sapateando e vociferando, propor a sua solução para o
conflito:
- Se esse filho da puta continuar com essa conversa fiada, vou escrever
um artigo nos jornais dizendo que sei a história dele. Vou dizer que ele es-
tuprou a própria irmã.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Chateaubriand não conhecia d. Antônio dos Santos Cabral e não sabia
sequer se ele tinha irmãs, mas Magalhães conhecia Chateaubriand muito
bem e sabia que, se não fosse contido a tempo, ele sem nenhuma dúvida te-
ria cumprido a ameaça - e o bispo que se arranjasse para desmenti-lo. Para
felicidade geral acabaria prevalecendo a mineiríssima prudência de Maga-
lhães: depois de envolver o Itamaraty e o núncio apostólico Enrico Gasparri
(que aparentemente se convenceram de que por trás da ira santa do bispo es-
tava oculto um projeto jornalístico), os Associados ofereceram como desa-
gravo a d. Cabral a cabeça de Rubem Braga, para quem não poderia ter ha-
vido solução melhor. Há muito tempo querendo deixar Belo Horizonte, o
jornalista capixaba transferiu-se de bom grado para o Diário da Noite, em São
Paulo.
Se com o prelado mineiro foi possível chegar a um acordo antes que a
situação se agravasse, no episódio de Flues não havia suficiente habilidade
mineira para conter os irmãos paraibanos. Na cabeça deles, a vingança tinha
de ser exemplar. Para Assis Chateaubriand, a áspera polêmica que o irmão
mantinha em São Paulo com o homem que entregara a cabeça deles a João
Alberto era "conversa mole que já está na hora de acabar ". No final de agos-
to, ele comentou com pelo menos quatro amigos - Austregésilo de Athay-
de, Drault Ernanny, Dario de Almeida Magalhães e o novo contador dos As-
sociados no Rio, Martinho Luna de Alencar - que resolvera "não sujar as
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
mãos para resolver o desaguisado com Flues'. Aquilo era serviço para
Amâncio, que ele já tinha despachado para São Paulo "com instruções pre-
cisas para atuar como um verdadeiro paraibano". Chateaubriand tranqüili-
zou os que temiam as conseqüências do ato de um pistoleiro como Amâncio,
que cumpria as ordens do patrão sem refletir:
- Não se preocupem, que não mandei matar ninguém. Nós não esta-
mos tratando com um porco? E Oswaldo não disse que na Alemanha ele era
dado à profissão da cafetinagem?
Diante de olhares estarrecidos, revelou a sentença que tinha decretado
para o industrial alemão:
- Pois então eu mandei Amâncio fazer o que na Paraíba se faz com por-
co fodedor: apenas dei o nome, o endereço e mandei capar o bruto. Capar a
tiros, que nem Amâncio merecia sujar as mãos com aquele desinfeliz.
Disciplinado, Amâncio dos Santos tomou o trem para São Paulo, hospe-
dou-se em uma pensão vagabunda nas imediações da Estação Sorocabana e,
durante três dias, acampanou sua presa para ver a que horas ele saía de casa,
a que horas voltava, se andava com capangas. Para sua surpresa o homem
andava sozinho, guiando seu próprio carro, saía e voltava para casa religio-
samente nos mesmos horários. Confiante na pontualidade alemã, às sete da
noite de 27 de agosto o jagunço postou-se em um desvão de uma das elegan-
tes casas da rua Dona Veridiana, no então elegante bairro de Santa Cecília,
na região central de São Paulo, e ficou à espreita. Nos últimos dias ele já ti-
nha rodado pelas imediações e planejado tudo. Nem precisava, mas por se-
gurança ia disparar dois tiros. Depois, era subir calmamente um pedaço da
rua; entrar na Marquês de Itu, descer uma das ruazinhas que iam dar na ave-
nida São João e pronto, ninguém mais poria as mãos nele. De terno preto, en-
terrou o chapéu um pouco mais na cabeça - gesto desnecessário, pois já era
noite fechada e ninguém o conhecia naquela cidade triste e gelada - e segu-
rou dentro do bolso direito do paletó o revólver calibre 32. Na Paraíba di-
riam que ele estava usando arma de atirar em compadre, mas agora era pre-
ferível mesmo o 32, um revolverzinho maneiro, de pouco barulho e mais
adequado ao serviço em que a recomendação era não fazer estrago demais.
Era acertar onde mandaram acertar e estava liquidada a fatura.
Durante os quinze minutos em que permaneceu ali não chegaram a pas-
sar nem cinco pessoas na rua. A Dona Veridiana era uma rua só de casas, sem
comércio, e mesmo o movimento de carros parecia ser, àquela hora, apenas
o dos moradores do quarteirão. Poucos minutos antes das sete e meia um
carro veio se aproximando da casa número 57, que Amâncio controlava com
olho de bicho. O veículo chegou tão perto que o pistoleiro pôde ver a chapa
- P-12-877. Quando as rodas da frente subiram na calçada e o motorista
apertou a buzina duas vezes, diante do portão fechado, ele desceu calma-
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FERNANDO MORAIS
mente. Passou pelo estreito vão entre o pára-choque do carro e o portão de
ferro, aproximou-se da janela e perguntou ao motorista, um homem louro,
de terno e gravata, de uns cinqüenta anos de idade:
- O senhor é Oscar Flues?
O motorista respondeu:
- Sim. O que é que o senhor deseja?
Amâncio tirou o revólver do bolso para enfiá-lo entre as pernas do ho-
mem, mas este deu-lhe um safanão para, em seguida, tentar proteger o ros-
to. Cobriu-o com as mãos e jogou o corpo para a direita, como se pretendes-
se enfiar a cabeça e o tronco no vão sob o painel à frente do banco vazio a
seu lado. Ao ver as nádegas de Flues expostas, Amâncio pensou que era sor-
te demais que ele expusesse exatamente a região que queria atingir, e ani-
mou-se a aterrorizar o sujeito com um grito:
- Você vai morrer, seu filho da puta!
Do lugar onde se encontrava não dava muito para fazer pontaria, mas a
curta distância o ajudava e Amâncio disparou os dois planejados tiros nos
fundilhos das calças do industrial, que reagiu com um gemido forte. A par-
tir daí, tudo pareceu acontecer em frações de segundos. O atirador ainda es-
tava guardando o revólver no bolso quando o portão se abriu e apareceu
uma mocinha loura de avental (era Gerda Wanger, a copeira da casa) e logo
atrás dela, atraído pelos tiros e pelo grito, Hans Gert Oscar Flues, o filho de
Flues. Descontrolado, o carro começou a descer sem freios para dentro do
jardim, raspando o pára-lamas no portão. Hans Gert, um rapagão de deze-
nove anos, ainda tentou alcançar Amâncio, que entrava na rua Marquês de
Itu, mas acabou voltando no meio do caminho para socorrer o pai e frear o
carro que deslizava vagarosamente em direção a um desnível do terreno,
dentro do jardim da casa. Amâncio já tinha sido engolido pela escuridão da
noite. Meia hora depois o médico legista Lafaiete Godinho, do Hospital Ale-
mão, no bairro do Paraíso, anunciava que o industrial não corria risco de
vida e distribuía aos excitados repórteres que se aglomeravam à porta do
pronto-socorro o laudo da extensão do atentado sofrido por Oscar Flues:
O paciente apresenta ferimentos de certa gravidade produzidos por projétil de
arma de fogo na região perineal, a saber:
a) um ferimento pérfuro-contuso, de forma irregularmente circular, de cinco
milímetros de diâmetro, de bordas deprimidas e contundidas, representando o
orifício de entrada de um projétil de arma de fogo (bala), situado na região pe-
rineal, à esquerda da linha mediana;
b) outra lesão idêntica, de forma irregularmente circular, de seis milímetros,
em seu maior diâmetro, de bordas contundidas, representando o orifício de saí-
da desse projétil, a dois centímetros para diante e para a direita, situado na mes-
ma região;
c) finalmente outra lesão idêntica, com os mesmos caracteres, forma e dimen-
são referidos na alínea a), representando outro orifício de entrada, situado tam-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
bém na região perineal, à direita da linha mediana, e que foi alojar-se em local
inacessível à apalpação.
O inquérito em torno ao fato correrá pela Delegacia de Segurançá Pessoal,
que se encarregará das demais diligências para o seu completo esclarecimento.
Um repórter mais curioso quis traduzir para os seus leitores o que era
exatamente a tal "região perineal" a que o laudo se referia. O médico escla-
receu:
- Períneo é aquela pequena extensão que separa o ânus da bolsa escro-
tal. Do saco, entende?
Com infalível pontaria o jagunço Amâncio dos Santos (àquela altura já
a bordo do trem Cruzeiro do Sul) tinha cumprido com precisão as instru-
ções do patrão. Na manhã seguinte, ao desembarcar na gare d. Pedro, no
Rio, ele viu, sem qualquer emoção, como sempre, que todos os jornais noti-
ciavam "o misterioso atentado" ocorrido no começo da noite anterior em São
Paulo. Todos os diários descreviam com detalhes o depoimento de Flues e o
lugar onde os tiros tinham entrado. A maioria deles levantava suspeitas so-
bre os irmãos Chateaubriand como supostos mandantes do crime, mas a no-
tícia virou um prato cheio mesmo foi para A Nação, o jornal de Maciel Filho.
Sobre uma foto de Assis Chateaubriand na primeira página, a manchete de
oito colunas parecia gritar: "Os irmãos Chateaubriand mandam matar, em
São Paulo, o sr. Oscar Flues ". Com invejável sem-cerimônia, a Agência Me-
ridional distribuiu para todos os órgãos Associados e para seus outros clien-
tes a cobertura do atentado, feita em São Paulo pelos Diários - da qual, na-
turalmente, não constava qualquer referência à acusação em que Flues
insistia, em seu depoimento à polícia: os mandantes do crime tinham sido os
irmãos Chateaubriand. Além do noticiário, no dia seguinte todos os Asso-
ciados iam trazer, no alto da primeira página, um curto artigo assinado por
Assis Chateaubriand sobre o episódio, intitulado "Far-west de quintal"-
um debochado exercício de caradurismo:
Leio nos jornais do Rio que o conhecido escroque internacional Oscar Flues dis-
sera aí em São Paulo que eu o ameaçara no Rio de Janeiro. Declaro aqui, humil-
demente, que não ameacei esse ladrão, com quem tenho contas definitivas a
ajustar, e que ajustarei assim que haja posto em ordem a minha vida, que ele,
em parceria com outros escroques nacionais, desorganizou em 1932.
Pus efetivamente Oscar Flues e um outro seu sócio ambos para fora do restau-
rante Hime, onde almoçavam, porque não posso consentir que patifes de tão bai-
xo coturno comam onde eu me sento. Todos dois voaram como diabos espritados.
Há dois anos, com evangélica paciência, tenho esperado que Oscar Flues pa-
gue aos acionistas de O Jornal a parte que ele roubou, de súcia com outros ve-
lhacos. Ele tem teimado em guardar para si toda a presa de sua jornada de cor-
so contra O Jornal, na convicção pueril de que o tempo aplacará nosso pacato
ajuste de contas. Está enganado. Os órfãos, os menores, as viúvas (e no corpo de
acionistas e credores de O Jornal há de tudo isso) que Oscar Flues assaltou, à
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FERNANDO MORAIS
sombra de nossa prisão e de nosso desterro, durante e depois da revolução de
32, não ficarão roubados, impunemente, por esse gatuno de gravata.
E ele esteja certo de que aqui no Rio, onde espero defrontá-lo, o nosso caso
pessoal não se decidirá num ridículo far-west de quintal, com escaramuças inó-
cuas, pelos traseiros. Será coisa da mais pura e romântica tonalidade sertaneja e
nordestina.
Já lhe dei a generosa porta de saída para o seu crime. Ele recusou-a, não de-
volvendo o produto do assalto. Sua alma, sua palma.
Através das agências internacionais, a notícia chegou imediatamente ao
exterior. Na Alemanha, em todos os jornais onde foi publicada Chateau-
briand aparecia como o mandante do crime. Nenhum, naturalmente, fazia
qualquer referência à venda dos créditos a João Alberto. O Berliner Brsen
Zeitung, diário da Bolsa de Valores de Berlim, noticiou que o atentado tinha
sido motivado "porque o sr. Chateaubriand quis se ver livre do credor incô-
modo " e que a esperada impunidade se transformava "num crime contra o
crédito do Brasil, pois o mandante saiu impune e, ao invés de pagar suas dí-
vidas, ameaçou o credor estrangeiro". Chateaubriand iria parar também nas
páginas do prestigioso Frankfirter Zeitung - que publicou que o jornalista
dera ordens para que o crime fosse praticado porque "suas empresas ha-
viam recebido máquinas da Alemanha através de Flues, que foram confisca-
das porque o importador não recebera o pagamento". Pilhas de cartas e te-
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legramas de solidariedade chegavam à casa do industrial. De Leipzig a
direção da empresa Vomag-Betriebs, fabricante das impressoras que tinham
sido a raiz de todo o problema, escreveu lamentando o atentado. O consula-
do geral da Alemanha solidarizou-se com Flues, garantindo a ele "que a co-
lônia alemã considera uma questão de honra fazer tudo o que estiver a seu
alcance para que o responsável pelo crime seja punido ". O Conselho da Câ-
mara de Comércio Brasil-Alemanha convocou uma sessão especial para so-
lidarizar-se com seu presidente e tirou uma dura declaração, "cujos termos
foram comunicados à sua seção carioca, à Liga das Associações Alemãs, ao
consulado geral e ao partido".
Que partido? Uma semana antes de sofrer o atentado, da mesma forma
que pedira proteção à polícia, Flues havia feito um ofício relatando suas
apreensões ao Landesgruppen Brasilien do Nationalsozialistische Deutsche
Arbeiterpartei. O homem em quem Oswaldo Chateaubriand identificara
"traços semitas" e que garantira ser "um hebreu com 200% de sangue semi-
ta" batera nas portas da seção brasileira do Partido Nazista Alemão, no po-
der desde 1933 em Berlim. Dias após os tiros, herr Spanaus, diretor da sucur-
sal brasileira do partido, manifestava seu protesto pelo crime cometido
contra Flues. Em carta dirigida à Câmara de Comércio, Spanaus se dizia "in-
dignado pelo atentado" e exprimia "o especial interesse" do governo alemão
pela elucidação do caso, que a seção brasileira do Partido Nazista já se en-
carregara de relatar à sua Auslands Organisation - a Seção do Exterior, si-
tuada em Hamburgo. A carta em defesa do suposto cidadão judeu termina-
va, naturalmente, com um vistoso "Heil Hitler!".
A repercussão do atentado a Oscar Flues levou João Alberto a pedir ao
serviço secreto da polícia paulista um informe sobre o episódio. Não fosse a
ausência de estilo, o documento preparado por um certo "agente Nunes"
,
sob a chancela de "confidencial", se assemelharia a uma das hilariantes pe-
ças escritas pelos Chateaubriand sobre algum inimigo:
Assis Chateaubriand - Diretor dos Diários Associados - O questionado, cujo
nome deveria ser Assis de Souza, pois é filho do padre Alberto de Souza, que
foi vigário de Campina Grande, estado da Paraíba, nasceu nesse estado, tendo
vindo para cá há muitos anos. É irmão de Oswaldo Chateaubriand, que também
é filho desse mesmo padre. Nas rodas jornalísticas é visto como um cancro, pois
é o indivíduo mais asqueroso que o sol cobre. Jornalista inteligente ele o é, mas
sua pena escreve as maiores infâmias, as maiores baixezas que se tem visto.
Tudo faz pelo interesse; onde há dinheiro, ali está o filho do padre Alberto, e
quando não pode estar, porque é um só, manda seu irmão Oswaldo, que tam-
bém não fica muito a desejar. A política brasileira é o que ele explora mais, haja
vista o que escreveu em 1930 sobre o ex-interventor João Alberto e o que escre-
ve agora desse mesmo homem.
Analisar esse jornalista é até perder tempo, pois é, dentre os mais indignos, o
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FERNANDO MORAIS
maior. Todos os qualificativos são insuficientes para qualificá-lo à altura. Indi-
víduo sem brio, sem caráter, sem dignidade, sem honra, sem pudor, sem escrú-
pulos. E ainda por cima mandante de crime - assassino, pode-se dizer. Aí acla-
reia um fato público e notório: o atentado contra o comerciante Oscar Flues, que
a imprensa toda noticia. O "ilustre " jornalista, pelo seu jornal Diário de S. Paulo,
em artigos de sua autoria, ameaçou com uma sova o titular da firma desta
praça "Oscar Flues & Cia." por causa de negócio havido entre essa firma e a S.A.
O Jornal, do Rio de Janeiro, questão também conhecida por todos. Flues se de-
fendeu com dignidade e educação, também pela imprensa, das infâmias que
Chateaubriand lhe atirava. Vai daí, Chateaubriand ficou como uma fera e cada
vez mais atacava o sr. Flues pelas colunas dos Diários Associados, acontecendo
o que houve: mandou matar o sr. Flues. Mas as balas não atingiram regiões mor-
tais e o sr. Flues se encontra em tratamento no Hospital Alemão. O capanga de
Chateaubriand conseguiu fugir. Agora cabe à polícia elucidar tudo e ela já está
agindo. Aguardamos o inquérito que corre na Delegacia de Segurança Pessoal a
cargo do dr. Durval Villalva. Será que no relatório haverá referências ao pron-
tuário de Assis Chateaubriand e seus irmãos? Oxalá que o Gabinete de Investi-
gações ainda tenha em seus arquivos o precioso prontuário desse indivíduo
(será que Chateaubriand não mandou roubá-lo no arquivo do ci, como assim fi-
zeram com outros por ocasião do movimento de 30?). O melhor de tudo é espe-
rar. Esperemos.
O inacreditável agente Nunes esperaria até as calendas gregas. Se de
fato tentou, o responsável pelo inquérito não conseguiu apurar rigorosa-
mente nada contra Chateaubriand ou Oswaldo - que jamais foram ouvidos,
apesar de formalmente acusados por Flues -, e muito menos contra Amân-
cio, de quem, aliás, ninguém ouvira sequer falar. Semanas depois, quando a
polícia desistiu das investigações e arquivou o inquérito, Assis Chateau-
briand já estava às voltas com outro industrial, também imigrante europeu,
mas infinitamente mais poderoso que Oscar Flues: desta vez o jornalista ia
bater de frente com o conde Francisco Matarazzo.
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21
Quando completou oitenta anos de idade, em março de 1934, o conde
Francisco Matarazzo era, de longe, o homem mais rico do Brasil. Habituados
ao tratamento rude que ele normalmente recebia dos Diários Associados,
fruto das incontáveis pendengas por atrasos nos pagamentos de aluguéis, foi
de perplexidade a reação dos leitores do Diário de S. Paulo ao ver o caderno
especial que o jornal imprimiu, inteiramente dedicado a comemorar a data.
Chateaubriand tinha mandado fazer uma cobertura sui generis: convidou
cada um dos oitenta maiores empresários brasileiros, de todos os estados, a
fazer um artigo analisando a história e a importância do império Matarazzo
para a economia do país. Para cada ano de vida do conde, um artigo diferen-
te. Abrindo a edição, uma reportagem feita e assinada pelo próprio Cha-
teaubriand, denominada "O estado Matarazzo", na qual o autor exaltava o
fato de que, somadas, as indústrias do conde produziam riquezas que só
perdiam, no Brasil, para o produto bruto do estado de São Paulo, ultrapas-
sando de longe Minas Gerais, o Distrito Federal e o Rio Grande do Sul. A ad-
miração era tanta que ele não parecia estar escrevendo sobre um adversário
ou muito menos um empresário do Brasil, mas sobre um Mackenzie, um
Farquhar:
O conde Matarazzo é um exemplo, um altíssimo exemplo para a mocidade do
Brasil. Aos oitenta anos de idade esse octogenário trabalha catorze horas e meia
por dia! Levanta-se às quatro e meia da madrugada; às cinco e meia visita e fis-
caliza o trabalho da primeira fábrica e é o último a se retirar do escritório, às oito
horas da noite, com o porteiro.
Nada ali fazia crer que o jornalista estava se referindo ao mesmo perso-
nagem que meses antes ele qualificara de um aproveitador "da deplorável
inconsciência do nosso trabalhador ", o capitão de empresas que continuava
"na pré-história da indústria". O novo Matarazzo agora não era mais o em-
presário pré-colombiano, mas um paradigma de modernidade digno de ser
seguido pelas novas gerações:
Que modelo não é o conde Matarazzo para um país onde encontramos, em vá-
rias rodas de moços ricos, no meio desses bonifrates cretinizados, o preconceito
imbecil da antiga nobreza continental da Europa, de que no trabalho não se en-
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FERNANDO MORAIS
contra a dignidade do fidalgo! Trabalhando como um mouro aos oitenta anos,
o conde Matarazzo toma para si a dívida goethiana: para o repouso lhe basta a
eternidade.
Para levantar dados para sua reportagem-elogio, Chateaubriand tinha
passado dois dias visitando as fábricas de Matarazzo e ficara um dia inteiro
em companhia do conde em sua chácara do então distante bairro do Belen-
zinho ("a magnífica estância onde o conde tem por hábito passar as suas ra-
ras horas de lazer "). O material renderia outro panegírico, fartamente ilus-
trado com fotografias e publicado em O Cruzeiro. Ali se podia ver um enternecido
Chateaubriand, de chapéu e sapatos bicolores (sob as vistas desconfiadas de
um conde de bengala e polainas), carregando carneirinhos suíços e admirando
cabras da Patagônia e burros da Sardenha.
Se o conde era o mesmo velho e conservador Francisco Matarazzo de
sempre, e se Chateaubriand também não tinha passado por nenhum proces-
so de beatificação, o que é que tinha mudado tanto em tão pouco tempo que
justificasse a surpreendente metamorfose no comportamento do jornalista?
O que mudava - e escondia a brusca virada no tratamento que os Associa-
dos davam agora a Matarazzo - era a cidade de São Paulo. A transforma-
ção urbanística da cidade, a cargo do engenheiro Prestes Maia, começara na
administração Pires do Rio e prosseguia a todo vapor com o prefeito Fábio
Prado. Grandes avenidas eram abertas e o centro comercial mudava-se da
parte velha da cidade, em torno dos bancos, para o remodelado vale do
Anhangabaú, que tinha sido construído no começo do século.
Mesmo impermeável a mudanças, Matarazzo acabara cedendo às pres-
sões do filho e herdeiro Francisco Matarazzo Jr. - conhecido como o "con-
de Jr." ou apenas "conde Chiquinho" -, que defendia a transferência da
sede administrativa do império dos velhos escritórios da rua Direita para o
novo Anhangabaú. Pensou-se primeiro em comprar o prédio da Mappin
Stores, em frente ao Teatro Municipal, mas a área nobre ficava do outro lado
do viaduto do Chá - exatamente no lugar onde estavam instalados os Diá-
rios Associados de São Paulo. Quando o manhoso Chateaubriand soube que
o prefeito Fábio Prado havia cedido uma nesga de terreno a mais, ao lado do
prédio dos jornais, para que os Matarazzo derrubassem o edifício velho e le-
vantassem ali um monumental arranha-céu para suas empresas, decidiu pôr
em prática a estratégia de reaproximação com o industrial. Embora pagasse
(quando pagava, claro) uma ninharia de aluguel pelo Palacete Conde Prates
- era esse o nome do prédio -, o jornalista tinha em mãos um contrato que
só venceria dali a três anos. E o conde Jr. queria começar as obras imediata-
mente. Para isso, Chateaubriand teria de deixar o prédio.
Imaginando ter azeitado a vaidade do velho conde com as homenagens
prestadas em seu aniversário, Chateaubriand usou Fábio Prado como inter-
mediário de sua proposta: como o contrato estava em vigor, e uma mudan-
348
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
ça de endereço representaria um transtorno muito grande para os jornais (as
rotativas, impressoras e demais equipamentos precisariam ser desmontados
e reinstalados na futura sede), ele considerava justo que os Matarazzo pagas-
sem aos Associados uma indenização. De quanto? Embora o valor dos alu-
guéis dos três anos seguintes, somado, não chegasse a cem contos de réis,
Chateaubriand queria 850 contos de indenização para devolver o Conde Pra-
tes a seus legítimos donos. Indignado - e estimulado pelo filho, que não ti-
nha qualquer simpatia pelo jornalista -, o conde Francisco Matarazzo man-
dou dizer que se recusava sequer a discutir o que considerava "uma
extorsão". O "não" de Matarazzo foi a palavra-chave para reacender todos
os velhos preconceitos de Chateaubriand contra o industrial. Já que não pa-
gava a justa indenização pelo planejado despejo, ele que esperasse vencer o
contrato de três anos - isso se a Justiça não concedesse prorrogações aos As-
sociados.
Era como se o caderno especial do octogésimo aniversário e a reporta-
gem em O Cruzeiro tivessem sido apagados com borracha. A hostilidade
crescia a cada artigo, cada provocação que Chateaubriand publicava em seus
jornais. Empertigado em seus 34 anos, cabelos glostorados e com um esnobe
monóculo no olho direito, embora nascido em São Paulo o conde Chiquinho
tinha sangue italiano em abundância nas veias. Farto das agressões que a fa-
mília sofria nos Diários Associados, mandou avisar a Chateaubriand que se
a campanha prosseguisse ele ia "resolver a questão à moda napolitana: pé no
peito e navalha na garganta". Sem saber da ameaça, Fábio Prado decidiu
promover um encontro conciliatório entre os dois, em parte testemunhado
pelo jornalista Paulo Duarte (o mesmo que fulminava Chateaubriand nas pá-
ginas do Diário Nacional, do extinto Partido Democrático), chefe de gabinete
do prefeito. Ao se defrontarem, o conde Jr. repetiu a ameaça:
- Já lhe avisaram que se essa sujeira continuar terei que adotar méto-
dos napolitanos para pôr fim a essa campanha?
Chateaubriand não se amedrontou. E diante do prefeito e de Paulo
Duarte, deu o troco:
- Responderei com métodos paraibanos. A diferença é que em Catolé
do Rocha não usamos navalha, mas peixeira. E, em vez de cortar a gargan-
ta, cortamos mais embaixo, em partes mais sensíveis.
Certamente pensando no atentado a Oscar Flues, reforçou a intimi-
dação:
- O conde sabe que eu não estou brincando.
Acalmados os ânimos, Chiquinho fez a contraproposta da família: os
Matarazzo aceitavam pagar 220 contos de réis a título de indenização, desde
que os Associados se comprometessem a entregar o prédio para a demoliçáo
em quatro meses. Sabendo com quem estavam tratando, impunham mais
uma exigência: a indenização só seria paga depois que o prédio estivesse de-
349
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FERNANDO MORAIS
socupado. Ofendido com a desconfiança, Chateaubriand recusou a propos-
ta. Ele conhecia o motivo da urgência dos Matarazzo: as indústrias tinham
trazido da Itália o arquiteto Marcello Piacentini, um dos preferidos de Mus-
solini, que já havia projetado para o lugar um majestoso edifício de treze an-
dares, revestido de mármore travertino e com três entradas: uma pelo vale
do Anhangabaú, uma pelo viaduto do Chá e uma terceira pela rua Líbero Ba-
daró. Se eles tinham pressa, decidiu o jornalista, que melhorassem a oferta.
A intransigência de Chateaubriand só fez azedar ainda mais a relação
com os empresários. Convencido de que o jornalista não arredava pé de sua
posição, o conde Chiquinho fez outra ameaça: se os jornais não deixassem o
prédio em quatro meses, ele ia mandar uma brigada de operários iniciar a
demolição com os inquilinos lá dentro. O desmonte começaria com o deste-
lhamento do edifício. Dias depois de ouvir essa notícia, Chateaubriand jan-
tava com amigos no elegante restaurante do Hotel Esplanada, atrás do Tea-
tro Municipal, quando viu Matarazzo e o filho entrarem e sentarem-se no
lado oposto do salão. Levantou-se da mesa e sacudiu o guardanapo no ar,
aos gritos:
- Seus condes! Seus condes!
Os Matarazzo tentaram fingir que não era com eles, mas não teve jeito
- a única maneira de acabar com o vexame era voltar os olhos para aquele
nordestino louco. Chateaubriand gritava:
- Seus condes, os senhores me enviaram um recado: se eu não abando-
nar um prédio onde estou legalmente, vão mandar operários destelharem os
Diários Associados. Eu aceito o desafio: vocês tiram as telhas do Palacete
Prates e no dia seguinte eu pessoalmente vou chefiar um pelotão de jagun-
ços da Paraíba para destelhar a Villa Matarazzo, onde os senhores moram,
na avenida Paulista. Vamos ver na cabeça de quem vai chover primeiro!
Foi Fábio Prado, com a ajuda do presidente da Caixa, Samuel Ribeiro,
quem equacionou a solução - mas não a paz, que essa não viria jamais-
entre Chateaubriand e os Matarazzo. Descobriu que estava à venda por 380
contos um pequeno sobrado comercial construído num terreno de 580 me-
tros quadrados, situado no número 230 da rua Sete de Abril, do outro lado
do viaduto do Chá. Ali os dois jornais poderiam se instalar provisoriamen-
te. Ao lado do imóvel estava à venda outro, edificado em um terreno de mais
trezentos metros, onde funcionava a boate L'Auberge. A operação proposta
pelo prefeito - que tinha enorme interesse em ver o palácio de mármore de
Piacentini rapidamente ocupando o lugar do velho treme-treme onde fun-
cionavam os jornais - era complicada: Chateaubriand receberia os 220 con-
tos do conde e poria mais sessenta contos de seu próprio bolso. Samuel Ri-
beiro autorizaria a Caixa a fazer um contrato de publicidade de cinqüenta
contos com os Associados e ele, Fábio Prado, arrancaria dos condes outro
contrato de cinqüenta contos de publicidade com os jornais. Tudo somado,
350
CHATÔ, O REI DO BRASIL
chegariam ao valor do terreno. Quando a situação melhorasse, Chateau-
briand poderia comprar o terreno da boate e, aos poucos, construir ali a sede
definitiva de seus jornais em São Paulo. Enquanto fazia as contas num peda-
ço de papel, o jornalista lembrou-se de algo:
- Esses brutos detestam a publicidade. Mas o laboratório deles está
lançando um perfume, chamado Chimene, e vão ter que anunciar. Por aí o
negócio avança. Mas deixe-me ver se essa proposta é benéfica a meus jor-
nais.
Multiplicou, subtraiu, embolou os pedaços de papel e se levantou:
- Temos dois problemas. O primeiro é que o conde só me paga a inde-
nização depois que eu desocupar o prédio.
O prefeito interrompeu-o:
- Esse obstáculo está superado. Falei ao conde que eu lhe adianto os
220 contos de réis. E passo eu a ser credor dele. Quando você deixar o pré-
dio, ele me reembolsa.
Ao perceber que o interesse dos Matarazzo os estava compelindo a ce-
der, Chateaubriand deu o bote mortal:
- É, mas para devolver o Palacete Prates antes de vencer meu contrato
o conde vai ter que comprar o terreno da L'Auberge e transferir a escritura
para o nome dos Associados. Senão, nada feito.
Apesar de contrafeitos, os Matarazzo aceitaram pagar o preço exigido
para sair daquela sinuca. Embora no documento que assinou em novembro
de 1934 o jornalista se comprometesse a entregar o prédio em três meses, só
em julho de 1935 é que os Diários Associados iriam mudar de endereço.
Com um terreno medindo ao todo 850 metros quadrados, Chateaubriand
chamou o arquiteto Jacques Pilon e encomendou-lhe o projeto do edifício
novo. Ele tinha apenas três exigências a fazer: queria a fachada do mesmo
mármore travertino que os Matarazzo iriam usar no prédio que começavam
a construir; se a sede das indústrias dos condes ia ser de treze andares, a dos
Associados teria quinze. E, por fim, queria que em um dos andares do edifí-
cio fossem especialmente projetados dois mezaninos, de quinhentos metros
quadrados cada um: quando o prédio estivesse pronto, ele ia instalar ali um
museu de arte antiga e moderna. Apesar de tudo o que tinha recebido para
deixar o prédio, Chateaubriand sairia daquela refrega convencido de que ti-
nha sido "esfolado" pela família dos condes. Estes não perderiam por espe-
rar, como se veria anos depois.
Com o passar do tempo, as peças da desengonçada e semidestruída en-
grenagem dos Diários Associados iam de novo entrando nos eixos. Os anún-
cios do supercontrato feito com a General Electric pingavam religiosamente
nas páginas de O Cruzeiro, e como a água acaba correndo mesmo é para o
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FERNANDO MORAIS
mar, anúncio puxava anúncio. Os jornais e as duas revistas foram incluídas
em uma gigantesca campanha de propaganda de uma indústria de alimen-
tos norte-americana para lançar aqui o produto que se tornaria a coqueluche
do Brasil dos anos 30: o pó achocolatado Toddy. Tamanha era a novidade
que os primeiros anúncios tiveram de ser didáticos, explicando aos leitores
como e em que circunstâncias se deveria tomar Toddy. Em seguida veio a
publicidade feita por dezenas e dezenas de médicos brasileiros, que assina-
vam atestados comprovando a eficiência do produto como nutriente de alto
valor alimentício. Na avalanche de modernidades importadas dos Estados
Unidos e da Europa, as páginas dos Associados se enchiam de anúncios de
Modess ("o fim das anti-higiênicas toalhinhas ", ou "agora os incômodos das
senhoras não constituirão nunca a origem de perturbações") ou ainda de um
bloco de papel que iria revolucionar a vida dos brasileiros: o cheque bancá-
rio ("o documento que você carrega no bolso e que permite retiradas sem
aviso prévio" ).
De origem nacional ou estrangeira, não importava, o dinheiro que vol-
tava a jorrar nos cofres dos Associados possibilitou a retomada da moderni-
zação das empresas. De novo e por duas vezes pioneiro, Chateaubriand pri-
meiro importou dos Estados Unidos, por 120 mil dólares de então, uma
Multicolor, a mais moderna rotativa de que se tinha notícia, e da qual os do-
nos de jornais no Brasil só tinham ouvido falar (passados vinte anos, no iní-
cio da década de 50, só duas empresas, além de O Cruzeiro, estariam traba-
lhando com aquele equipamento - o jornal O Globo e a Lythographica
Ypiranga, de São Paulo). Além da máquina, os Associados foram os primei-
ros a comprar os serviços fotográficos da Wide World Photo, da França.
Com uma imprensa habituada a esperar semanas para que uma fotografia
do exterior chegasse ao Brasil, Chateaubriand festejava a compra dos revo-
lucionários serviços de transmissão de imagens como a última maravilha do
jornalismo moderno: "Três dias após um acontecimento em qualquer conti-
nente, seja um crime, um desastre, a posse de um ministro, uma festa, uma
greve, dados os recursos de aparelhagem e a rapidez das comunicações, in-
clusive a telefoto, estamparemos o flagrante".
Se estava se tornando tecnicamente moderno, o jornalismo praticado
em meados dos anos 30, além do descompromisso com a ética em muitos
sentidos, ainda recendia a um enorme provincianismo. A mesma O Cruzeiro
que usava serviços e máquinas que eram a última moda no mundo desen-
volvido ainda dava, em página inteira, melosos poemas de Antônio Sanchez
Larragoiti ou de sua mulher, a bela Rosalina Coelho Lisboa (poemas que já
eram ilustrados por Alceu Pena, que se celebrizaria nas décadas seguintes
como o autor da seção "Garotas", da revista). Está certo que, independente-
mente da qualidade literária, os poemas de Larragoiti ou Rosalina - esta
uma poetisa reconhecida, e não uma diletante eventual - tinham uma razão
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
especial para receber tanto destaque em O Cruzeiro: ele era o dono da com-
panhia de seguros Sul-América, um dos maiores anunciantes dos Associa-
dos. Mais do que ninguém, no entanto, Chateaubriand sabia que bom jorna-
lismo não se fazia com "pedaços de ferro", como ele já dissera, mas com
gente. "(
Ao convidar o competente e moderno Dario de Almeida Magalhães
para acumular a diretoria geral dos Diários Associados, em todo o Brasil, e
a presidência de O Cruzeiro, Chateaubriand começava a dar uma nova cara
a seus jornais e revistas. É nessa época que começam a aparecer nos Asso-
ciados personagens que anos depois seriam reconhecidos como alguns dos
maiores nomes da literatura ou do jornalismo brasileiros, como os escritores
Manuel Bandeira, Gustavo Barroso, Graça Aranha, Viriato Correia e os jor-
nalistas David Nasser, Edmar Morel, Alex Viany e, pouco tempo depois,
Millôr Fernandes, Carlos Castello Branco e Frederico Chateaubriand - o
"Freddy", filho de Oswaldo Chateaubriand e um dos grandes responsáveis
pela transformação de O Cruzeiro em uma das mais importantes revistas do
Brasil neste século. Curiosamente, o talentoso e controvertido Nasser, que fi-
caria célebre como um dos maiores repórteres de sua época, iria estrear em
O Cruzeiro assinando "uma reportagem de David Nasser " - mas que na
verdade não passava de um típico texto de "cozinha" sobre Lawrence da
Arábia, produzido com material de arquivos e de bibliotecas. Da mesma for-
ma que os repórteres e redatores, os artistas contratados pelos Associados
com a ascensão de Dario de Almeida Magalhães seriam consagrados pelo
tempo entre os melhores do país, como Cândido Portinari, Aldo Bonadei,
Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Ismael Neri. Para dirigir O Jornal no lugar de
Gabriel Bernardes, que acabara de falecer, Dario chamou Austregésilo de
Athayde, e para o Diário da Noite carioca iria Vítor do Espírito Santo.
Ganhava-se de um lado, perdia-se de outro. Se conseguiu, por intermé-
dio de Dario, atrair jovens talentos que despontavam no país, Chateau-
briand não faria grande esforço para segurar nos Associados um dos melho-
res deles, Rubem Braga. Transferido de São Paulo, Braga trabalhava na
redação de O Jornal e escrevia uma crônica diária no Diário da Noite. Sem as-
sunto, um dia ele leu uma pequena notícia de que a Igreja espanhola estava
liderando uma campanha para assegurar às mulheres o direito ao voto-
prática que só no ano anterior também o Brasil inaugurara. O jornalista re-
solveu tirar dali sua crônica, e escreveu que aquela era uma jogada oportu-
nista da Igreja, já que a maioria das mulheres espanholas eram católicas e a
proposta visava, na verdade, angariar votos para os candidatos apoiados
pela Igreja. Anticlerical, Rubem Braga acrescentou que se o projeto fosse
aprovado ia representar um atraso político, pois a conservadora Igreja espa-
nhola "não passava de uma pinóia". Estava montada a crise: o diretor de re-
dação Vítor do Espírito Santo veio comunicar-lhe que Chateaubriand tinha
recebido uma carta indignada do respeitado intelectual católico Alceu Amo-
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FERNANDO MORAIS
roso Lima - o Tristão de Ataíde - com um ultimato: se Braga não fosse de-
mitido, ele retiraria a coluna de O Jornal.
Fruto do acordo que fizera com o cardeal Sebastiãu Leme quando com-
prou O Jornal, na "Coluna do Centro", supervisionada por Amoroso Lima
,
revezavam-se como seus autores os mais ilustres membros do Centro Dom
Vital, organização da direita cristã criada em 1922 por Jackson de Figueire-
do. Depois da morte de seu fundador, Alceu Amoroso Lima passara a ser a
mais célebre estrela do grupo de intelectuais cristãos conservadores. Pelo tí-
tulo com que fora batizada e por ser publicada bem no centro da página do
jornal, a coluna tentava passar a impressão de ser um espaço de reflexão po-
liticamente de centro, embora fosse uma das mais reacionárias seções da im-
prensa de então. A presença da "Coluna do Centro" representava para Cha-
teaubriand uma espécie de tratado de paz que garantia aos Associados a
permanente indulgência da hierarquia nacional da Igreja. Sabendo da im-
portância que o patrão atribuía às boas relações com d. Sebastião Leme, Ví-
tor do Espírito Santo advertiu Braga para se preparar, pois vinha trovoada
sobre sua cabeça. Chamado à sala do dono do jornal, ele enfrentou um
Assis Chateaubriand furioso:
- Seu Braga, o senhor está querendo arruinar o meu jornal. Como é que
o senhor escreve uma crônica completamente idiota como essa?
Tranqüilo, Braga ainda tentou se defender:
354
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
- Mas doutor Assis, o senhor é dono do jornal, pode ler antes de publi-
car tudo o que eu escrevo. E pode cortar o que não gostar...
Preocupado com a ameaça de Amoroso Lima, Chateaubriand estava
particularmente mal-educado:
- E eu lá tenho tempo de ler porcaria? Veja aqui a carta do doutor Al-
ceu. O que é que eu faço agora? Vou brigar com o cardeal Leme por sua
causa?
Ele passou os olhos sobre o papel e só teve tempo de ver um trecho em
que Alceu Amoroso Lima dizia que não poderia continuar publicando a
"Coluna do Centro " no mesmo jornal que "abrigava um desatinado como
esse sr. Rubem Braga". O cronista sabia que estava metido em confusão sé-
ria. Meses antes testemunhara outra crise provocada pelo mesmo Amoroso
Lima - que caminharia vagarosamente em direção a posições mais demo-
cráticas até se tornar, nos anos 60 e 70, um dos mais renitentes adversários
da ditadura militar de 1964. Mas ele ainda era o conservador intransigente
quando Ribeiro Couto escreveu uma suave crônica sobre santa Teresinha do
Menino de Jesus (que depois desenvolveria e transformaria em livro) para O
Cruzeiro, que o diretor da revista, Lincoln Nery, encarregou o artista Santa
Rosa, empregado da casa, de ilustrar. O respeitoso desenho mostrava a san-
ta com rosas nas mãos, sem nada que pudesse ferir a fé do mais empederni-
do carola. Ao ver a revista, porém, Amoroso Lima estrilou: era um absurdo
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FERNANDO MORAIS
inadmissível permitir que um notório comunista como Santa Rosa ilustrasse
um escrito sobre santa Teresinha. E, ao expor sua indignação a Chateau-
briand, o diretor do Centro Dom Vital foi além: uma revista democrática
como O Cruzeiro, que entrava em milhares de lares espalhados pelo Brasil,
não podia sustentar um comunista. Santa Rosa tinha de ser demitido.
No caso da santa, a exigência de Amoroso Lima parecia tão absurda que
Chateaubriand fincou pé e manteve o emprego do artista. Mas agora, com
Rubem Braga, tudo indicava que a coisa ia ser diferente. Mal-humorado com
aquela arenga toda, Rubem perdeu a paciência, saiu da sala de Chateau-
briand batendo portas e pediu demissão. Dario de Almeida Magalhães ain-
da tentou demovê-lo da idéia, sugerindo que mudasse apenas de órgão, per-
manecendo nos Associados, com um argumento irrefutável:
- Você é louco de brigar com o Chateaubriand, Braga. Jornalista brasi-
leiro não pode viver aqui se brigar com o Chateaubriand. Ou muda de pro-
fissão ou muda de país.
Braga estava decidido:
- De profissão eu não posso mudar, que não sei fazer outra coisa. Do
país também não posso sair, porque não tenho dinheiro. E, como eu já esta-
va cheio do Chateaubríand, vou me mudar de estado. Vou para Recife, fazer
o jornal da aNl..
Ao decidir deixar dois dos principais jornais do país para dirigir a des-
conhecida Folha do Povo, da seção pernambucana da Aliança Nacional Liber-
tadora, Rubem Braga queria também sentir o gostinho de trabalhar em uma
organização política que vinha sendo combatida com ferocidade por Cha-
teaubriand. Desde que surgiram, em janeiro de 1935, as primeiras notícias de
que lideranças civis e militares se organizavam numa espécie de partido po-
lítico, Chateaubriand pôs-se em guarda. E foi preciso pouco tempo para que
ele farejasse, por trás da organização que logo se transformava num formi-
dável movimento de massas, a mão peluda do esquerdismo. Suas suspeitas
se confirmaram em março, quando o estudante de direito Carlos Lacerda
(que anos depois seria seu empregado) propôs, no ato de lançamento públi-
co da aNL, o nome de Luís Carlos Prestes para presidente de honra da orga-
nização.
Com uma frequência que só encontrava paralelo na campanha que mo-
vera contra Vargas e o tenentismo, depois da Revolução de 30, Chateau-
briand dedicaria quase todo o seu tempo e seu espaço nos jornais a flagelar
"Prestes e seus sequazes". Seu principal temor residia na perigosa aliança
que enxergava, em torno da aNL, entre líderes civis, oficiais das Forças Ar-
madas e, controlando-os a distância, os temidos comunistas. Para aterrorizar
a classe média que cada dia mais parecia simpatizar com o crescente movi-
mento, acenava com o risco para onde apontava "essa desordem que tomou
conta do país": provocando os brios conservadores, os aliancistas acabariam
derrotados pelos integralistas, que também se organizavam, o que desagua-
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CHATÔ. O REI DO BRASIL
ria inevitavelmente em uma ditadura fascista. Se, ao contrário, triunfassem
os aliancistas, o resultado seria ainda pior, na sua opinião: dominado pelos
comunistas, o movimento em breve levaria o Brasil "a uma desumana dita-
dura coletivista, de caráter soviético". Embora nunca tivesse defendido cla-
ramente o fascismo Chateaubriand não escondia sua simpatia pelo movi-
mento integralista. Em pelo menos um artigo chegou a afirmar que, "mesmo
divergindo dos pontos cardeais da ideologia integralista, encontro na arran-
cada de sua mocidade um emocionante ponto de contato com o programa
dos Diários Associados: a unidade política e espiritual do Brasil". Doutra fei-
ta, apanhado no meio de um tiroteio entre a polícia paulista e uma manifes-
tação de camisas-verdes (era assim que os integralistas do líder fascista Plí-
nio Salgado se vestiam), "saltei do automóvel e meti-me no meio das
formações de milicianos que desciam a avenida Brigadeiro Luís Antônio,
com a bandeira brasileira tremulando no punho de alguns rapazes, imanta-
do que eu estava por aquele espetáculo de fé em nossa unidade, pela certe-
za da indestrutibilidade do Brasil". Nem mesmo o chefe mundial do fascis-
mo, o ditador italiano Benito Mussolini - cujos artigos freqüentavam com
regularidade as páginas dos Associados -, escaparia de sua admiração.
Chateaubriand não se cansava de contar que, quando viveu na Europa, teve
a oportunidade de ver de perto "um belo espetáculo de anarquia coletiva"
- uma greve na fábrica de um amigo de Milão. Como moral daquela histó-
ria, repetia sempre:
- Afinal veio Mussolini e a ordem foi restabelecida na península.
Quando os adversários insinuavam que ele estava se transfigurando em
um legítimo fascista, respondia que nenhuma das duas ideologias, nem a de
esquerda nem a de direita, servia ao Brasil. "Encontrei hoje dois fanáticos
das duas correntes: o integralista invectivava o imperialismo japonês, que
pretende ajudar-nos financeiramente a resolver o problema do algodão; o
outro, comunista, difamava o imperialismo inglês que nos deu portos, estra-
das de ferro, tramways, companhias de eletricidade e de telefone", escreveu
ele, para concluir: "A renovação que é pregada pelos dois credos se proces-
sa dentro do método da propaganda que, se vingar amanhã, deixará o Bra-
sil de tanga, reduzido à condição de uma miserável cubata hotentote. Tanto
o Partido Integralista quanto a Aliança Libertadora são soluções extremas
para o problema político do Brasil. Esta se coloca na extrema-esquerda,
aquele na extrema-direita. Um se encharca de Moscou, o outro de Berlim e
Roma".
Receoso de ser confundido com um defensor do fascismo italiano ou do
nazismo alemão, pedia dissimuladamente um endurecimento do regime
contra os excessos que enxergava em quase tudo. Inclusive no recém-nasci-
do cinema nacional. Ao ver num dos cinemas do Rio um documentário so-
bre Pernambuco, no qual, naturalmente, se faziam referências à miséria que
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FERNANDO MORAIS
campeava em Recife, não hesitou em sugerir para os outros a mesma violên-
cia de que tão pouco tempo antes fora vítima - a censura. "O governo está
no dever de não consentir que o Brasil seja apresentado através de mocam-
bos, mulatas e pretos, como se estes fixassem a totalidade da nossa fisiono-
mia." Se não era fascista nem nazista, Chateaubriand era um racista? Antes
que alguém o acusasse, ele respondia no mesmo artigo, com palavras pouco
mais comedidas do que as que usava nas conversas com os amigos: "Não
sou contra o negro nem contra o mulato. Jamais cesso de dizer que O Jornal
é produto de um ágil mulato, de nariz chato, e que tem um talento apolíneo,
o meu amigo dr. Renato Toledo Lopes. Mas como sou um pacificador, em
matéria de cor, não desejo nos filmes o predomínio exclusivo do pigmento
do ilustre antigo piloto do nosso diário".
O que ele não conseguia entender ou admitir era como "essa burguesia
imbecil" ia se juntar, nas hostes da Aliança Nacional Libertadora, "aos lobos
que depois de amanhã vão comer todas as suas ovelhas, uma por uma". Em-
bora a defendesse com unhas e dentes em seus jornais (e jamais deixasse de
mamar em suas generosas tetas), Chateaubriand alimentava profundo e pú-
blico desprezo pelo que chamava de "burguesia" - os industriais, comer-
ciantes, banqueiros e fazendeiros em cujas portas, mais dia menos dia, ele
acabava batendo. "A burguesia brasileira não sabe viver e, o que é pior, não
sabe nem morrer ", ele escreveu mais de uma vez. "Não sabe viver porque
dissipa seus bens consigo própria, sem saber o significado da palavra mece-
nato, sem se preocupar sequer com o destino do vizinho que mora na casa
em frente. E não sabe morrer porque no último suspiro lega aos filhos exata-
mente esses mesmos e lamentáveis padrões." Nada mais natural, portanto,
que ele rangesse os dentes ao ler os nomes dos integrantes da alta direção da
ANl - quase todos egressos da chamada "burguesia imbecil" -, que mere-
ceu dele o artigo intitulado "Guarda-chuva, bengala e bengalinha":
Anos atrás os comunistas brasileiros chamavam-se Otáviu Brandão, Minervino
de Oliveira, Astrojildo Pereira. Eram rudes trabalhadores, acostumados ao ven-
to e ao frio, gente que não pagava impostos urbanos ou territoriais. Em 1935
nossos comunistas são uma luzida falange de grandes proprietários que se dão
ao esporte do salto no abismo. O dr. Caio Prado Júnior, o capitão Cascardo, o
dr. Mangabeira, o capitão Trifino Correia são todos, sem exceção, proprietários
mais ou menos abastados de imóveis urbanos ou agrícolas.
Pela primeira vez entre nós o comunista deixa de ser uma esfinge que nin-
guém sabe onde vai buscar os recursos de que vive. Mangabeira pai mora com
Mangabeira filho em um solar onde caberiam dez famílias operárias. Mas, os
dois têm em casa apenas servos que lhes preparam quitutes baianos. O terrível
Mangabinha aconselha nos seus manifestos que se divida a terra de toda a gen-
te, que se despojem os fazendeiros, que se caloteiem os credores
externos. Mas
quando essa política de espoliação chegar às beiras das sobrelojas de seu monu-
mento de cimento armado na rua Paissandu, ele exclamará sobressaltado:-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Alto lá, não sou comunista! Posso ter arranha-céus de quinze andares porque o
meu comunismo é para uso externo. Aqui em família somos todos pela grande
propriedade imóvel.
Seu alvo preferido, no entanto, era o capitão Luís Carlos Prestes. A cada
declaração do chefe comunista da ANL, Chateaubriand respondia com um ar-
tigo debochado. Ironizando os longos textos distribuídos por Prestes, o jor-
nalista dizia que quem se sentisse mal do fígado não precisaria mais ir às
fontes sulfurosas da cidade de Lindóia: "Basta ler a prosa do capitão Prestes,
que é de desopilar; faz-se a estação de cura sem sair de casa". Espantado com
a exagerada pontuação dos manifestos de Prestes, Chateaubriand dizia que
ele deixara de ser "o capitão-do-mato" para se transformar "em uma senti-
nela perdida no meio de uma selva de pontos de exclamação". Mais um ma-
nifésto, mais uma implicância com a gramática: "Prestes adjetiva copiosa-
mente e lança ao acaso seus célebres pontos de exclamação. Na falta de
idéias gerais, na ausência de aptidão doutrinadora, o bravo capitão manipu-
la os sinais primários do alfabeto. Estamos às voltas com um movimento bo-
tocudo, na expressão legítima da palavra". Até então ninguém se levantara
em defesa da ANL ou de seu chefe contra as agressões feitas por Chateau-
briand. Bastou, entretanto, ele escrever que "tanto a ANL quanto o comunis-
mo brasileiro são coisas de humoristas malucos, de gente détraqué ", para Ru-
bem Braga dar-lhe o troco que guardava desde a briga com Amoroso Lima.
De Recife, Braga enviou um artigo para A Manha, de Aparício Torelly (já au-
tonomeado "Barão de Itararé" e com seu jornal circulando independente-
mente dos Associados), defendendo Prestes e os demais aliancistas. Conhe-
cendo os humores do ex-patrão, tratou-o todo o tempo pelo apelido que
Prestes, do exílio em que se encontrava, pusera no dono dos Associados:
"Chateaubriand, o Nauseabundo". Ao ler o texto no pasquim humorístico, o
jornalista espumava dentro da redação de O Jornal:
- Eu sempre disse que esse filho da puta era comunista! É assim que
ele agradece as incontáveis vezes que tirei dinheiro do meu bolso para ele
curar suas gonorréias!
Mesmo depois de fechada por decreto do governo, no mês de julho
(com ruidosos aplausos de Chateaubriand), a agora clandestina Aliança Na-
cional Libertadora continuou em plena atividade. Numa chuvosa tarde de
domingo, Chateaubriand encontrou-se na avenida Rio Branco com o inter-
ventor mineiro Benedito Valadares, que, acometido de dor de dente, rodava
pelo centro da cidade à procura de um dentista. Enquanto andavam juntos,
o dirigente mineiro, que já construíra reputação de grande habilidade políti-
ca, expôs ao jornalista as suas preocupações com a desenvoltura de que os
comunistas e seus seguidores desfrutavam, "diante do silêncio cúmplice ou
amedrontado" dos políticos tradicionais. Para Valadares, tal comportamen-
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FERNANDO MORAIS
to iria levar as Forças Armadas a tomar a peito a repressão à ANL, em um pe-
rigoso processo de marginalização dos políticos:
- Não importa se o movimento vai rebentar ou não nos quartéis, mas
desse jeito as forças militares é que tomarão a iniciativa da defesa do regime.
Ou nós, políticos civis, agimos já, com espírito de união nacional, ou perde-
remos o leme do barco. Pense no que estou dizendo.
Não se sabe se aconselhado pelo interventor mineiro, semanas depois
Vargas mandava sua filha e secretária Alzira procurar Chateaubriand. Ela
comunicou-lhe que o presidente queria que Chateaubriand organizasse uma
reunião de grandes empresários - umas quinze ou vinte pessoas - para
ouvir de Getúlio uma exposição sobre a gravidade do momento político,
com a ameaça de uma convulsão social provocada pela clandestina ANL, que
atuava com enorme desenvoltura inclusive dentro dos quartéis. "O patrão
quer que você junte seus tubarões", disse-lhe a irônica Alzira, "para uma
conversa grave sobre a tempestade que se avizinha." Chateaubriand propôs
que o encontro fosse realizado na casa do conde Modesto Leal. Depois de
consultar o pai sobre o local sugerido, Alzira voltou com sinal vermelho:
- Na casa do Modesto Leal o patrão acha demais. Ele disse que é para
você arranjar alguém mais liberal.
O encontro acabou acontecendo em um almoço organizado pelo jorna-
lista na casa de Guilherme Guinle. Segundo o relato brevíssimo que Cha-
teaubriand fez da reunião, Getúlio apenas os advertiu de que uma invasão
russa do Brasil estava sendo planejada para dali a algumas semanas, e nada
mais. O depoimento de Alzira Vargas dá conta de que o que houve no almo-
ço promovido por Chateaubriand (ao qual ela esteve presente) foi "um en-
frentamento entre o presidente e os tubarões". Interessado no apoio dos em-
presários para as mudanças trabalhistas em curso - que na opinião de
Getúlio seriam o mais eficiente antídoto contra o extremismo comunista -,
"o que o presidente ouviu deu-lhe náuseas". Os homens que controlavam
parcela expressiva da economia do país não tinham qualquer contribuição,
qualquer idéia a oferecer - só tinham queixas a fazer sobre o despropósito
das leis trabalhistas e sobre o rigor dos fiscais do Ministério do Trabalho. "O
anfitrião, por cortesia ou por não concordar com eles, manteve-se calado",
contaria Alzira muitos anos depois. "Vargas desinteressou-se da conversa e
despediu-se pouco depois. No automóvel, de volta, depois de um longo e
penoso silêncio, mastigando as palavras, disse ao ajudante-de-ordens que o
acompanhava, o capitão-tenente Ernani do Amaral Peixoto: 'Eu estou ten-
tando salvar esses burgueses burros e eles não entenderam'."
Chateaubriand ainda faria outra tentativa - esta menos enriquecedora
do seu currículo - de ajudar Getúlio a enfrentar a maré montante. Pouco an-
tes de 27 de novembro, quando explodiria em três quartéis do Rio a frustra-
da revolta chefiada por Prestes, a chamada Intentona Comunista, o jornalista
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
encontrou-se com Pedro Ernesto, interventor no Distrito Federal. Tenentista
ferrenho e dirigente do Clube Três de Outubro, Pedro Ernesto não escondia
as simpatias com que via o crescimento da ANL, mas na conversa com Cha-
teaubriand economizava prudentemente as opiniões sobre o momento polí-
tico. O jornalista provocou-o revelando informações sobre a suspeita que o
governo já tinha de que havia estrangeiros no país comandando a agitação:
- Os aliancistas falam muito em consciência proletária, não é? Meu
caro interventor: para haver consciência proletária será preciso primeiro ter-
mos uma consciência burguesa no Brasil, para que aquela se oponha a esta.
Pedro Ernesto só olhava. Chateaubriand prosseguia, caudaloso:
- Vamos ver se há consciência proletária. Na hora que os mujiques que
Moscou mandou para cá derem a ordem de iniciar a guerra, você vai contar
nos dedos o número de células civis que se levantarão ao lado do capitão
Prestes.
Provocado, Pedro Ernesto reagiu com um discurso emocionado a favor
da Aliança Nacional Libertadora e de Prestes, para encerrá-lo com uma fra-
se de efeito:
- As massas estão com Luís Carlos Prestes. Você verá como elas vão se
levantar a uma ordem dele.
Chateaubriand ficou impressionado com o aparente envolvimento de
seu interlocutor com os comunistas - afinal, aquele era Pedro Ernesto, te-
nentista, homem de confiança do presidente, interventor no Distrito Federal.
Dias depois desse encontro, Vargas de novo convocaria o jornalista ao Cate-
te para pedir-lhe que publicasse um artigo no La NAción, comentando a visita
oficial que o presidente brasileiro fizera à Argentina. Encerrada a pauta do
encontro, Getúlio segurou-o para conversar, fazendo-lhe uma pergunta vaga:
- E aí, Chateaubriand, o que há de novo?
Desde que Vargas fora eleito em 1934 (indiretamente, pela Constituin-
te) presidente constitucional do Brasil, o jornalista substituíra, em seus arti-
gos, o tratamento de "ditador " que conferia a Getúlio por outro - "ex-dita-
dor " -, mas pessoalmente dirigia-se a ele como "presidente". A resposta a
uma pergunta genérica foi tão grave e séria que até o impassível Getúlio ar-
regalou os olhos:
- Presidente, o que há de novo é que Pedro Ernesto assumiu a chefia
do movimento comunista que está para estourar.
O olhar de Vargas parecia ainda mais incrédulo:
- Mas Chateaubriand, que provas me dás da participação do prefeito
na campanha subversiva em curso?
O jornalista tinha na ponta da língua o que entendia por "chefiar o mo-
vimento comunista" :
- Ele entregou o Teatro São Pedro à Aliança Libertadora para que ela
o transformasse em foco da pregação vermelha.
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FERNANDO MORAIS
Vargas parecia preocupado, mas ainda desconfiava dos exageros de
Chateaubriand :
- E o que mais?
- Há dias ele disse a mim que, a um sinal de Prestes, as massas se le-
vantarão contra o governo.
O ministro da Fazenda, Souza Costa, que assistia à conversa, começou
a ficar constrangido com aquela história. Olhava para Chateaubriand e batia
no relógio, chamando-lhe a atenção para o tempo da audiência, que se esgo-
tara. O jornalista, aparentemente preocupado em não parecer um delator,
quis esclarecer o sentido de suas palavras:
- Presidente, não pense que estou aqui fazendo um libelo contra Pedro
Ernesto. Estou advertindo-o, porque o senhor pode livrar seu interventor no
Distrito Federal de ser vítima de um atentado por parte de oficiais mais exal-
tados, devido às ligações ostensivas dele com as esquerdas agressivas. Na
minha opinião, Pedro Ernesto já é um homem ao mar.
Não obstante o ceticismo com que o presidente ouvia aquelas denún-
cias, pelo menos em uma coisa Chateaubriand tinha razão: Pedro Ernesto es-
tava envolvido até a raiz dos cabelos com os revoltosos. Além de arranjar di-
nheiro para ajudar a financiar a máquina revolucionária que o Partido
Comunista montara no Rio, depois do fracasso da revolta comunista (que
Chateaubriand batizaria de "intentona", nome adotado para sempre pela di-
reita para referir-se ao movimento) o interventor ainda tentaria conseguir
um "aparelho" clandestino para esconder os fugitivos Luís Carlos Prestes e
Olga Benario. E se ele já era "um homem ao mar", como o jornalista dizia te-
mer, não seria pelas mãos das "esquerdas agressivas" que o interventor su-
biria na prancha do navio: na onda repressiva chefiada por Filinto Müller
após a frustrada revolta, até Pedro Ernesto, destituído do cargo, iria parar na
cadeia.
Uma tarde, em meio a uma roda de jornalistas, ao ver uma foto de pre-
sos políticos sendo levados para um navio-prisão, Chateaubriand comentou
com Astrojildo Pereira (um dos fundadores do PC, que tinha sido expulso
do partido e não participara da revolta):
- O senhor acha que estes sujeitos com essas caras de idiotas tinham
condições de governar o país?
Eram seus desafetos, mas Astrojildo não deixou a grosseria passar em
branco:
- Doutor Assis, todo derrotado tem cara de idiota.
A maré de prisões que cobriu o país só causou um pequeno susto em
Chateaubriand: uma noite ele chegou a O Jornal para escrever seu artigo e
soube que o linotipista Umberto Porta tinha sido preso sob suspeita de fazer
parte de uma base de gráficos do Pc. Irritado, sem encontrar alguém que pu-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
desse ler seus garranchos e transformá-los em composição tipográfica, tele-
fonou para Filinto Müller:
- Ou o senhor liberta o Umberto ou os Associados vão denunciar a re-
pressão política nas edições de amanhã.
Porta voltou a trabalhar na mesma noite. Apesar de tudo o que fez con-
tra os aliancistas, comunistas e seus seguidores, Chateaubriand lamentaria,
meses depois, ter tido "uma participação muito tímida na denúncia daque-
les tarados". A razão disso, segundo suas próprias palavras, é que ele esta-
va ' com o pensamento fixo no projeto que iniciara um ano e meio antes,
durante a conversa com o homem da ANL, e que só se concretizaria dois me-
ses antes da revolta de novembro de 1935: a entrada dos Associados na era
do rádio.
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22
Por um desses misteriosos e inexplicáveis artifícios contábeis dos Asso-
ciados, a Tupi foi projetada para ser implantada em São Paulo, sua matriz ju-
rídica ficava na capital paulista, mas na hora de instalar a rádio propriamen-
te dita Chateaubriand decidiu-se pelo Rio de Janeiro. A caótica administração
dos Associados tinha drenado para a compra de equipamentos e pagamen-
tos de dívidas dos jornais e revistas grande parte dos recursos que Chateau-
briand arrancara de Iman Greenwood, da General Electric, para montar a
primeira estação de rádio do grupo. Assim, para que o sonho se realizasse
foi preciso pagar juros ao conde Modesto Leal e ainda avançar mais uma vez
sobre Abrahão e Samuel Ribeiro, sobre os Martinelli, os Penteado, os Guin-
le. Muito a contragosto, até o conde Matarazzo acabaria se incorporando ao
grupo que Chateaubriand denominava, em seus artigos, de "os novos reis de
Espanha, patrocinadores da aventura em que se meteram esses modestos
Colombos do século xx que sãu os rapazes dos Associados". Graças a esses
milionários, quando Guglielmo Marconi (especialmente convidado por Cha-
teaubriand para a inauguraçãu) apertou o botão que punha no ar a primeira
rádio Associada, a "Tupi, o Cacique do Ar", era a segunda estação mais po-
derosa do continente, só perdendo, em potência, para a Rádio Farroupilha,
inaugurada semanas antes em Porto Alegre pelos filhos do general Flores da
Cunha. Em seguida ao gesto de Marconi, o éter foi invadido de norte a sul
do Brasil pelos acordes produzidos pelo orfeão regido pelo maestro Heitor
Villa-Lobos.
Mas, menos de dois anos depois, Chateaubriand voltava a vestir casaca
e cartola para a festança de lançamento de sua segunda rádio, a Tupi de São
Paulo. Ao batizar também ela com um nome indígena, Chateaubriand ini-
ciaria uma interminável série de "Tamoios", "Potis" e "Tupãs", fruto de sua
paixão pelos índios brasileiros, até apelidar toda a rede de "taba Associada".
E o recorde que ele não tinha conseguido superar no Rio seria quebrado em
São Paulo: ao ser inaugurada, em 1937, ostentando três estúdios e um enor-
me auditório, a Tupi paulista era a rádio mais potente da América Latina,
com 26 quilowatts em seu transmissor, superior até à dos gaúchos. Além
dessa capacidade de broadcasting, que lhe permitia ser ouvida em ondas cur-
tas mesmo fora do país, o que dava prestígio a uma estação, no nascimento
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
do rádio no Brasil, eram os shows de grandes artistas, transmitidos ao vivo,
diretamente dos estúdios. Só que grandes artistas custavam dinheiro, e as
despesas para instalar duas rádios tão potentes em tão pouco tempo tinham
raspado o fundo dos cofres Associados. Foi então que Chateaubriand suge-
riu a Joaquim Rolla, dono do Cassino da Urca, no Rio, e a Alberto Bianchi,
dos cassinos Atlântico e do Guarujá, no litoral paulista, um negócio que se-
ria bom para todos: as duas rádios Tupi dividiriam com cada uma das casas
de espetáculos o custo do cachê de todo artista estrangeiro que viesse ao Bra-
sil - e em troca disso o músico, além de abrilhantar as noitadas no cassino
que o convidara, faria shows nas duas estações. Só assim foi possível à Tupi
apresentar a seus ouvintes astros do prestígio de Josephine Baker, Agustín
Lara, Martha Eggert, Pedro Vargas, Dajos Bella e Lucienne Boyer.
Como o rádio ainda era uma atividade que engatinhava no Brasil (a pri-
meira estação só tinha sido inaugurada em 1923, no Rio de Janeiro), era na-
tural que os anunciantes e patrocinadores também fossem reticentes em co-
locar seu dinheiro em algo que parecia muito aventureiro e tão impalpável
- ao contrário dos jornais e revistas, em que eles estavam habituados a ver
o anúncio impresso. Tanto era assim que até para levar para as rádios Tupi
uma artista como Carmen Miranda, com todo o prestígio internacional de
que desfrutava, foi difícil arranjar patrocinador - "a não ser alguns amigos
que, por simples deferência pessoal conosco, se dispunham a fazê-lo, diria
Chateaubriand. Ainda assim, o jornalista não faria menção ao fato de que
um dos mais fortes patrocinadores das apresentações da "Pequena Notável"
era o Laboratório Licor de Cacau Xavier, empresa que o próprio Chateau-
briand comprara meses antes. O contrato feito entre Carmen e a Tupi cario-
ca exigia que ela se apresentasse em dois shows semanais, de quinze minu-
tos cada um. Por ser quem era, tinha o privilégio de poder fazer espetáculos
fora do Rio (desde que não fosse em outra estação de rádio, obviamente).
Seu salário mensal, de cinco contos de réis (equivalentes, em 1994, a pouco
mais de 2400 dólares), foi considerado tão absurdamente alto que mereceu
um indignado editorial da Revista da Semana:
Cinco contos por mês? Adivinhamos perfeitamente a admiração dos leitores.
Então uma cantora de sambas no Brasil ganha cinco contos mensais? Cinco con-
tos para se colocar diante de um microfone, durante duas ou três horas, e can-
tar uma dessas músicas simples, fáceis, populares, inventadas pelos malandros
dos morros? Pois é, leitor amigo, cinco contos! Há por aí muito cantor de coisas
clássicas, com vários anos de estudos em conservatórios, com diplomas visto-
sos, com todos os incidentes e acidentes de um curso dificílimo, que não ganha
a terça parte desse ordenado, que vive de outras coisas, que luta desesperada-
mente pela vida.
O rádio trouxe essa inovação e, sobretudo, essa revelação: o samba, a canção,
o tango, o fox, a modinha têm um valor novo, imenso, desconcertante. Engraça-
do, não é?
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FERNANDO MORAIS
Em uma charge da revista satírica O Malho, dois personagens comenta-
vam a contratação da cantora:
"- Sim, senhor! Ninguém esperava que a Carmen Miranda, depois de
cinco anos, deixasse a rádio Mayrink Veiga por uma questão de maior sa-
lário !
- Ora essa, meu amigo! A Tupi abafou as saudades de Carmen Miran-
da com um conto de réis por mês para cada ano que ela passou na Mayrink
Veiga. Você não acha que não há saudade que resista a semelhante argu-
mento?"
Consigo Carmen levou também sua irmã Aurora Miranda para as emis-
soras Associadas (com um salário de 1,8 conto de réis por mês, mas igual-
mente contratada com exclusividade). Entre os artistas nativos começava a
concorrência: as cantoras Gessy Barbosa e Cristina Maristany, a pianista Ca-
rolina Cardoso de Menezes eram contratadas dos Associados? Então não po-
diam cantar na Nacional, na Mayrink Veiga, na Educadora. Em pouco tem-
po as duas Tupi aproveitavam o fato de pertencer a um só dono para, a custo
menor, ter em seu cast astros como Araci de Almeida, as Irmãs Vidal, Carlos
Galhardo, Alvarenga e Ranchinho e até um mulato magrelo que acabara de
chegar da Bahia com um violão debaixo do braço e que encantara Chateau-
briand, chamado Dorival Caymmi.
Muita gente se perguntava se Chateaubriand (assim como o conde Er-
nesto Pereira Carneiro, que no ano da instalação da Tupi do Rio implantara
a sua Rádio Jornal do Brasil) não estaria cavando a sepultura de seus jornais
e revistas, ao entrar num negócio que parecia tornar-se concorrente da im-
prensa escrita. Ele respondia com absoluta tranqüilidade:
- Sou um homem da imprensa de papel e estou convencido de que a
idéia que forma opinião tem que estar impressa em letra de fôrma. O rádio
pode ser mais abrangente, e certamente é mais subversivo que o jornal, mas
o que mexe com o tutano do freguês é o jornal. Nem a revista, mas o jornal
diário.
Essa certeza o acompanharia para o resto da vida, e nem mesmo a tele-
visão, décadas depois, iria fazê-lo mudar de opinião. Montar duas das mais
poderosas estações de rádio do continente certamente era uma iniciativa
compatível com a sua profissão de comunicador, mas na paixão pela im-
prensa escrita ele não conseguia ver aquilo senão como um negócio a mais.
Um negócio como tantos outros em que vinha se metendo naquele final dos
anos 30. Ele chegara até a ser dono por poucas horas do Banco do Comércio,
em 1927. Mas os bancos ainda não eram grandes anunciantes, no Brasil da
primeira metade do século, e isto já era suficiente para torná-los uma ativi-
dade sem interesse para ele. Segundo a ótica de Chateaubriand, era bom o
negócio que anunciava muito. (As únicas exceções a esse singular catecismo
terão sido as fazendas que ele compraria ao longo da vida, movido por
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
um forte sentimento de ligação com a terra, para instalar nelas centros de
pesquisas de desenvolvimento de irrigação artificial, cafés finos, algodão de
fibra longa e, já nos anos 60, inseminação artificial para melhoria do rebanho
bovino de corte. Comprada em 1938 por 300 mil dólares da época - 750 con-
tos -, a pri eira delas, a Fazenda Queluz, no município paulista de Capi-
vari, estaria produzindo, anos depois,18 mil arrobas anuais de algodão de
fibra longa, o que faria seu valor multiplicar-se seis vezes.)
Mas as fazendas eram o que ele chamava de seu "hobby de mandioquei-
ro". Convencido de que bom negócio era o que anunciava muito, Chateau-
briand tentaria comprar, em meados dos anos 30, um dos grandes anunciantes
de seus jornais - o Parc Royal, a maior e mais importante loja de departamen-
tos do Rio (um "magazine", como se dizia na época), instalado em um impo-
nente prédio na rua Ramalho Ortigão, entre o largo de São Francisco e a rua
Sete de Setembro, no centro da cidade. O volume de publicidade gerado pela
loja era tal que ele ofereceu à família Ortigão, proprietária do negócio, nada me-
nos que 6 mil contos de réis à vista - proposta que foi recusada pelos donos.
Com a mesma convicção, em 1937 Chateaubriand comprou, por 2200
contos, o Laboratório Licor de Cacau Xavier, de São Paulo. Instalado na rua
do Glicério e especializado em produtos farmacêuticos populares, o labora-
tório produzia, entre dezenas de mezinhas e xaropes (além do fortificante
que lhe dera o nome), o Conhaque de Alcatrão Xavier, o Elixir Xavier (apre-
sentado como infalível contra uma doença comum na época, a sífilis) e as Pí-
lulas Xavier, que prometiam curar a ancilostomíase, ou "amarelão", a doen-
ça que mais matava brasileiros nos anos 30. Tempos depois ele arremataria
em hasta pública o espólio dos proprietários de outro de seus grandes anun-
ciantes, o Guaraná Espumante - e com isso se tornaria dono também das
ainda pouco conhecidas Indústrias de Chocolates Lacta. Depois seria a vez
de comprar os Laboratórios Ipiranga, da família Ribeiro Branco, e de incor-
porar o Laboratório Gaby, que trouxe consigo dois sucessos de venda da
época (e portanto grandes anunciantes): o pó-de-arroz Joli e a água-de-colô-
nia Gilca. Cada um desses produtos continuaria anunciando (agora com fre-
qüência muito maior) na rede de jornais e revistas; com esse incremento de
publicidade, as vendas naturalmente subiam, aumentando os lucros e per-
mitindo que anunciassem ainda mais; anunciando mais, vendiam mais... e
por aí ia a bola-de-neve que, na verdade, era o único ponto de interesse de
Chateaubriand naquele cipoal de empresas limitadas e sociedades anônimas
que ele fazia pouquíssima questão de conhecer. A única coisa que importa-
va era que aquelas empresas continuassem dando lucros para que ele pudes-
se comprar mais jornais.
Para atingir esses objetivos ele não via obstáculos. Pouco tempo depois
de adquirir o Laboratório Licor de Cacau Xavier, descobriu que os maiores
concorrentes do Elixir Xavier e das Pílulas Xavier eram respectivamente as
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FERNANDO MORAIS
Pílulas Vitalizantes e o Cálcio Glicosado, ambos fabricados pelo mesmo La-
boratório Lomba, do Rio de Janeiro. Chateaubriand fez uma, duas, três ofer-
tas para comprar a indústria concorrente, mas foram todas rejeitadas pelo
dono, Ernani Lomba, que não estava interessado em deixar o rendoso ramo.
Foi aí que começaram a aparecer as reportagens no Diário da Noite do Rio.
Ninguém nunca soube se os fatos efetivamente aconteceram - até porque
todo o processo de produção das reportagens era controlado por Assis Cha-
teaubriand em pessoa. Fraudados (como Ernani Lomba sustentaria na Justi-
ça), ou verdadeiros (como assegurava diariamente o escandaloso Diário da
Noite do Rio), o certo é que os casos de envenenamento provocados pelos re-
médios fabricados por Lomba começaram a surgir como cogumelos da terra.
A primeira vítima teria sido um "técnico em química" chamado Arindal
Duque Estrada, que "teve a morte mais violenta" devido à ingestão dos re-
médios produzidos por Lomba. Forçado pelo jornal, o médico Miguelote
Vianna, diretor do Departamento de Saúde Pública do Estado do Rio, con-
vocou o farmacêutico responsável pelas fórmulas de Lomba para prestar es-
clarecimentos na sua repartição. Quando o caso de Arindal parecia começar
a esfriar, uma nova manchete, em letras enormes: "Tomou a injeção e caiu
desmaiada!". Que injeção? Naturalmente aquilo que o Diário da Noite já ha-
via apelidado de "ampolas mortíferas" dos Laboratórios Lomba. No dia se-
guinte, nova vítima, que passara "três meses entre a vida e a morte, com fe-
bre de quarenta graus!" (assim mesmo, com os pontos de exclamação tão
criticados por Chateaubriand). Daí em diante virou um dominó: assim como
o "garoto Melchior ", que "morreu após ingerir Pílulas Vitalizantes", os ca-
sos se multiplicavam ao ponto de em uma única semana terem sido denun-
ciadas sete incidências de envenenamento por injeções de Cálcio Glicosado.
Como nos melhores contos do realismo mágico, embora o Rio de Janeiro pa-
recesse estar tomado por uma verdadeira epidemia de envenenamentos, e
como por milagre só o Diário da Noite se interessava pelo palpitante assunto
- que não despertaria a atenção nem mesmo da equipe de O Jornal. Inexpli-
cavelmente, os supostos mortos nunca iam parar nos necrotérios, nem os
doentes por causa dos remédios em qualquer hospital. Quando Ernani Lomba
(quase levado à loucura, segundo depoimentos de alguns de seus gerentes
de vendas da época) decidiu entrar na Justiça contra Chateaubriand, o estra-
go produzido em suas vendas tinha sido tão grande que não havia sentença
que pudesse compensá-lo - no fim da campanha, os Laboratórios Lomba
não tinham falido, mas estavam no chão. Em algum momento deve ter ocor-
rido a Lomba que certamente teria sido melhor aceitar a oferta e ter vendido
sua empresa ao dono do Diário da Noite.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Limpo ou sujo, todo jogo em que Chateaubriand se metia tinha um úni-
co objetivo: investir nos jornais e revistas, fazer crescer cada vez mais a ca-
deia. Antes que os anos 30 chegassem ao fim ele já tinha incorporado aos
Diários Associados o Correio do Ceará, de Fortaleza, o Jornal de Alagoas, em
Maceió, o Estado da Bahia, de Salvador, e começava a ampliar a rede para as
grandes cidades do interior dos estados, comprando ou montando jornais
em Juiz de Fora, Minas Gerais, Itajaí e Joinville, em Santa Catarina, e crian-
do o terceiro diário paulista em Santos. A verdadeira obstinação em ter em
seus jornais o que de mais moderno havia no mercado fez com que Cha-
teaubriand mandasse Dario de Almeida Magalhães aos Estados Unidos para
comprar uma nova maravilha, ainda mais avançada que a Multicolor adqui-
rida anteriormente: uma rotativa Hoe, capaz de imprimir em poucas horas
300 mil exemplares de um caderno de oito páginas inteiramente em quatro
cores. O plano era passar a rodar nessa máquina, além da recém-lançada re-
vista Detetive, de contos policiais, O Cruzeiro e um suplemento dominical que
fosse encartado em todos os diários da rede Associada. E mais: tão logo fosse
possível, Chateaubriand queria colocar no mercado uma revista em quadri-
nhos para crianças, cujo título - O Guri - ele já tinha registrado em seu
nome.
Como representante dos Diários Associados, Magalhães teve nos Esta-
dos Unidos o tratamento de embaixador de um país: foi recebido por auto-
ridades federais, fez palestras na Universidade de Columbia, deu entrevis-
tas na Nec e sua foto apareceu no The New York Times apresentada como
sendo de um "Brazilian magnate". Quando voltou ao Brasil, Magalhães foi
homenageado com um banquete de boas-vindas de quinhentos talheres or-
ganizado por Chateaubriand no Jockey Club. O escritor José Lins do Rego
foi o orador oficial do encontro, encerrado por Chateaubriand com elogios
que ele só destinava a banqueiros e grandes industriais. "Do Rio Grande do
Sul ao Ceará, uma rede de jornais, revistas e estações de rádio recebe a pala-
vra de ordem da inteligência e do braço de Dario de Almeida Magalhâes",
disse ele em seu discurso. "Somos uma engrenagem que marcha quase sem
fricção nem maiores atritos, e à testa dela se vê um jovem capitão mineiro
que prolonga até o Rio as virtudes do apostolado espiritual de sua gente."
Pela sétima maravilha da engenharia gráfica, Dario pagou nos Estados
Unidos 100 mil dólares da época (algo como 800 mil dólares de 1944), fican-
do os 100 mil restantes para serem pagos em dois anos. A máquina chegou
ao Rio semanas depois, trazida por um engenheiro cubano encarregado pela
fábrica Hoe de supervisionar sua instalação - e de colher de Chateaubriand
os avais nas promissórias emitidas por Dario para cobrir a dívida. Aparafu-
sar a impressora no chão e colocá-la para fazer testes não representou maio-
res problemas. Difícil, Magalhães se lembraria décadas depois, foi fazer Cha-
teaubriand assinar os papagaios. O cubano deixou com ele uma pasta repleta
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FERNANDO MORAIS
de notas promissórias, para que ele avalizasse as emissões assinadas por Ma-
galhães, mas as semanas se passavam e nada de conseguir reavê-la - com
os papéis assinados, obviamente. O homem da Hoe começou a dar plantões
na redação, nos restaurantes que ele freqüentava, nos clubes, nas oficinas
dos Associados, implorando por suas assinaturas. Ele escapava sempre, com
a mesma conversa expressa num confuso espanhol:
- Ahora no, senor. Ahora no tengo tiempo, no tengo tiempo!
Um dia, ameaçado de ver a máquina arrancada do chão se as promissó-
rias não lhe fossem entregues assinadas, Chateaubriand saiu-se com uma
resposta inacreditável:
- Senor, ya le dice que no tengo tiempo para esas cosas. Pero hay acá
un
muchacho que hace uma assinatura igualita a la mia. Usted puede pegar los avales
cun él.
No dia em que, afinal, recebeu as promissórias devidamente avalizadas,
o cubano procurou Dario Magalhães apavorado com a possibilidade de es-
tar levando para os Estados Unidos papéis que não valessem nada, avaliza-
dos não por Chateaubriand, mas pelo "muchacho que le imita la firma".
Ao lado do desenvolvimento tecnológico, os jornais adquiriam impor-
tância também do ponto de vista editorial. Além das grandes reportagens,
que já começavam a determinar a feição que a revista teria nas décadas se-
guintes, O Cruzriro publicava todas as semanas um conto do que havia de
melhor entre os jovens literatos brasileiros. Nas suas páginas se revezavam,
entre outros, romancistas como Mário de Andrade, Jorge Amado, Érico Ve-
ríssimo, poetas como Augusto Frederico Schmidt e até nomes que desponta-
vam do jornalismo para a ficção, como Joel Silveira. Ao lado de tanto talen-
to, entretanto, era possível sentir na revista o cheiro das matérias pagas-
eram "reportagens" de duas, três, quatro páginas sobre a Light, sobre a Usi-
na Santa Terezinha de Açúcar, em Pernambuco, sobre os modernos escritó-
rios da fábrica de charutos Suerdieck, na Bahia, sobre a importância de Ube-
raba na economia de Minas Gerais (escrita por Wady Nassif, prefeito da
cidade), ou até, em três páginas, uma profusão de fotos sobre a eficiência e
os bons serviços de uma certa Drogaria Alexandre.
Como se não fosse ele o dono daquela publicação, com freqüência Cha-
teaubriand publicava artigos em que açoitava o baixo nível da imprensa bra-
sileira. E, como se não fossem de sua autoria os textos sobre Oscar Flues e os
Matarazzo, transcrevia trechos de uma reportagem publicada na revista bri-
tânica Niiteteen Century que era um verdadeiro libelo "contra o gênero de jor-
nalismo que leva certa imprensa a preocupações bastardas em torno de casos
pessoais de gente da sociedade". Para Chateaubriand, o jornalismo que se fa-
zia no Brasil era o pior exemplo daquilo que era condenado na Inglaterra:
Os jornais dão a impressão de folhas de couve escritas para verdureiros, estiva-
dores, copeiros e malandros de morros. Perdemos um jogo de futebol na Euro-
pa. Coisa comezinha, ordinária entre homens de esporte. Aqui se imprimiram
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
frases torpes, difamações abomináveis contra juízes, como se as associações in-
ternacionais de esportes, na Europa, fossem constituídas de zelosos cidadãos do
grupo eqüestre de Lampião.
Sua insuperável idiossincrasia, porém, era contra o ponto de exclamação:
O ponto de exclamação se tornou, nos vespertinos e matutinos sensacionalistas
cariocas, o ponto final obrigatório de qualquer manchete. Se um repórter quer
dizer que chegou ao porto o Astúrias, ele escreve em manchete de oito colunas:
"Chegou o Astúrias!". Desce o presidente de Petrópolis a fim de presidir uma
reunião do ministério. Fato ordinário da atividade administrativa do país. Logo
os vespertinos anunciam: "No Rio o sr. Getúlio Vargas!".
O enorme e frágil telhado de vidro que os vespertinos Associados exi-
biam (tanto no Rio como em São Paulo e Minas), no entanto, tirava autoridade
de Chateaubriand para ditar regras de ética jornalística em suas colunas.
Campeão das manchetes escandalosas que o patrão detestava, o Diário da
Noite carioca superaria a si próprio quando se anunciou que o papa Pio XI es-
tava acometido de gangrena em um dos pés, moléstia que acabaria por
matá-lo meses depois. Carlos Eiras, o secretário do jornal, célebre pela capa-
cidade de resumir uma notícia em um número cada vez menor de palavras,
não teve dúvidas em lascar na primeira página do Diário da Noite (em oito
colunas, letras garrafais e com ponto de exclamação, como se escarnecesse
de Chateaubriand) aquele que durante muitos anos seria considerado pelos
jornalistas brasileiros como um modelo de síntese e de sensacionalismo:
"PODRE O PÉ DO PAPA!".
No dia da homenagem a Dario de Almeida Magalhães, ao dizer que os
Associados eram uma engrenagem que marchava quase sem fricção nem
atritos, Chateaubriand estava querendo dizer exatamente o oposto. Somados
às dificuldades criadas pela desorganização cada vez maior das empresas, a
personalidade forte e o gênio difícil do dono não admitiam meio-termo-
ou a pessoa se sujeitava à sua opinião, a seus caprichos, ou ia embora. O pri-
meiro atrito entre Chateaubriand e seu homem de confiança absoluta - o
mesmo Dario a quem ele dirigira as palavras elogiosas no Jockey Club-
acontecera em 1937, e não por razões administrativas, mas por causa do
comportamento que o dono dos Associados tivera em relação ao golpe de
Estado dado pelo próprio Getúlio e que iria desaguar no Estado Novo, de-
cretado em novembro.
Como a Constituinte de 1934 tinha marcado eleições presidenciais para
3 de janeiro de 1938 - e deixado expresso que Getúlio não poderia candida-
tar-se à reeleição -, no começo de 1937 o país fervilhava com a possibilida-
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FERNANDO MORAIS
de, pela primeira vez desde 1930, de escolher seu presidente pelo voto secre-
to. Em pelo menos dois depoimentos de décadas depois, o ex-ministro José
Américo de Almeida revelaria que a primeira pessoa a tentar convencê-lo a
sair candidato a presidente foi Assis Chateaubriand. O paraibano Almeida
resistiu à idéia até que o dono dos Associados procurou-o em João Pessoa
para levar-lhe argumentos convincentes: tinha percorrido o Norte e o Nor-
deste e por onde passava ouvia sempre a mesma conversa, José Américo era
o único candidato "autêntico", só ele seria capaz de reabilitar os princípios
da Revolução de 30. Além do anunciado apoio dos nortistas e nordestinos,
Chateaubriand estimulou-o ainda mais como portador de uma mensagem
vinda do extremo Sul: o general Flores da Cunha também entendia que só a
candidatura de José Américo seria capaz de reunir todas as forças políticas
do país - exceção feita ao Partido Constitucionalista, de São Paulo, que pre-
parava o nome do governador paulista Armando de Sales Oliveira para a
disputa. Tanto o jornalista insistiu que José Américo acabaria cedendo. Mais
do que isso, o ex-ministro fez de Chateaubriand seu emissário para procurar
Armando de Sales Oliveira e tentar demovê-lo da sua candidatura :
- Procure o Armando em meu nome e diga a ele o que você me disse,
que minha vitória é fora de dúvidas. Eleito presidente, nomearei o Arman-
do ministro da Fazenda, oficialmente, mas oficiosamente ele será o meu pri-
meiro-ministro. Quem irá administrar é ele, e minha missão será a de buscar
um ambiente político calmo para executarmos o programa de governo que
o Brasil reclama.
Chateaubriand fez questão que o encontro com José Américo fosse re-
gistrado por um fotógrafo da Agência Meridional e publicado em todos os
seus jornais. Seguiu para São Paulo, onde teve um demorado encontro com
Armando de Sales Oliveira. Entrou defendendo a candidatura de José Amé-
rico e, por razões que nunca ficaram muito claras, saiu como um dos coman-
dantes da campanha do paulista à Presidência da República.
Mesmo tendo ficado público - em seus próprios jornais - que dias an-
tes era um defensor do nome de José Américo, seu envolvimento com a can-
didatura de Armando Sales seria ainda maior e mais intenso du que o empe-
nho que tivera na campanha da Aliança Liberal, em 1930. Lançado
oficialmente pelo interventor mineiro Benedito Valadares, José Américo pas-
sou a encarnar uma candidatura ambígua: ao mesmo tempo que não tinha
autorização formal ou licença de Getúlio (o que tirava dele o rótulo de "can-
didato oficial"), era apoiado por interventores da confiança do presidente,
como Valadares. E, para aumentar ainda mais a confusão na cabeça dos elei-
tores, fora escolhido como o candidato das esquerdas - as mesmas que ha-
viam formado a Aliança Nacional Libertadora e tinham sido esmagadas por
Getúlio e Filinto Müller dois anos antes.
372
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Com sua rede de jornais substancialmente ampliada em 1937 (o que, se-
gundo os adversários de Chateaubriand, explicava a súbita adesão dele à
candidatura paulista), os Diários Associados jogaram todo o seu peso e seu
prestígio na campanha de Armando Sales. O jornalista percorreu todo o
Norte e o nordeste em campanha pelo candidato, e pela primeira vez na
vida experimentou seus dotes de orador político, subindo em palanques e
pregando a plataforma da União Democrática Brasileira, nome dado à coli-
gação que os apoiava. Chateaubriand pediu a Dario Magalhães que se mu-
dasse com a família para o Copacabana Palace Hotel, para que Armando Sa-
les, enquanto permanecesse no Rio, pudesse morar na Vila Normanda. Na
guerra eleitoral, José Eduardo de Macedo Soares, que apoiava José Américo,
fez um artigo no Diário Carioca dizendo que o candidato paulista, "hospeda-
do na casa do sr. Assis Chateaubriand, passa o tempo respirando aquele ar
de hipoteca que a Vila Normanda exala". Na torrente de artigos que Cha-
teaubriand publicava religiosamente todos os dias em defesa da candidatu-
ra, Armando Sales era "o profeta", "o demoníaco", "o imperial", "o homem
com quem poderemos até cair, mas tombaremos como em 1932", "o único
nome capaz de criar no Brasil o clima de união sagrada que foi despedaça-
do em 1932". Além da cobertura da Agência Meridional, repórteres e fotó-
grafos de O Cruzeiro acompanhavam a caravana pelo país, para na semana
seguinte encher páginas e páginas da revista com fotos de comícios e con-
centrações populares.
Com o passar do tempo, os artigos de Chateaubriand não se destinavam
apenas a fazer a propaganda de Armando Sales, mas se concentraram na
desmoralização de José Américo, apresentado como "o homem que está con-
seguindo reorganizar novamente a família moscovita no Brasil", o líder da
candidatura que "reaglutina os jovens oficiais iscados pela mística soviética
do capitão Prestes":
José Américo. Só José Américo. Exclusivamente José Américo. É este o nome
que pede a Aliança Nacional Libertadora. Não é outro o nome que reclama Mos-
cou pelas irradiações de sua emissora, onde vemos debruçada a mulher de Otá-
vio Brandão, a exortar que as mulheres daqui abracem, contra o imperialismo
de Vargas, a causa zé-americana. O sr. José Américo não é só o candidato dos
pobres. O campeão das favelas é também o eleito, o preferido das aleluias e al-
víssaras de Moscou.
Os outland da ANL perderam os dois pais dedicados que os conduziam. A fa-
mília ficou órfã depois que Prestes e Berger [codinome do alemão Arthur Ewert,
que participara da revolta comunista de 1935] foram postos em prisão: José
Américo perfilhou-a para, na companhia dessa filharada brava, tomar a ofensi-
va de candidato das massas de 1937.
Mas aparentemente o que ele consegue é ser um andrógino de existência her-
mafrodita entre a esquerda e a direita - isto é, entre o PRP dos grandes fazen-
373
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FERNANDO MORAIS
deiros do café e a solidariedade da ANL, com João Mangabeira, Cascardo, Sissón
e Maurício Lacerda [políticos e militares que haviam participado da ANL].
Para Chateaubriand, uma vez que era impossível "soldar os lingotes da
democracia e do marxismo", o mesmo José Américo que ele animara a se
candidatar a presidente agora saía do campo da política para entrar no da
psiquiatria. "Ele é do tipo paranóico místico, paranóico messiânico, deliran-
te e intolerante (e a intolerância é uma manifestação psíquica comum na pa-
ranóia), convicto de que é depositário de um destino que só ele poderá desem-
penhar." Ora louco, ora candidato das esquerdas, ora "candidato oficial",
Chateaubriand fulminava José Américo, mas tomava o cuidado de preservar
aquele que, aparentemente, era o verdadeiro patrono de sua candidatura, o
presidente da República. E, se não estava com José Américo, com quem es-
tava Getúlio naquela ruidosa campanha eleitoral que iria escolher seu suces-
sor?
Getúlio estava onde sempre esteve - isto é, com Getúlio. Enquanto os
candidatos passaram o ano se engalfinhando pelos jornais, ele fechou-se em
absoluto mutismo. Agora preparava o bote. No dia 8 de novembro escreveu
uma carta de três páginas ao velho amigo Osvaldo Aranha, então embaixa-
dor do Brasil nos Estados Unidos, para adverti-lo de que, "diante de tão pe-
noso estado de coisas, havia de surgir a qualquer momento uma reação". A
reação que o próprio presidente engendraria surgiu dois dias depois, quan-
do ele mesmo anunciou que a Câmara e o Senado haviam sido dissolvidos,
as eleições canceladas e uma nova Constituição autoritária, chamada "Pola-
ca" por seus críticos, tinha sido promulgada. Para reafirmar que o presiden-
te não falava só por sua própria conta, o ministro da Guerra, general Eurico
Dutra, divulgou uma proclamação ao Exército, cujo fecho não deixava dúvi-
das: "Cumpre-me, neste momento de incertezas, salvaguardar a nossa pá-
tria, fiel a estes postulados - obediência, disciplina, trabalho, instrução, se-
renidade, abnegação, renúncia, patriotismo". O país estava de novo sob uma
ditadura.
Quem se informasse sobre a situação política nacional pela coluna de
Chateaubriand, no entanto, levaria muitos dias para saber da existência do
golpe. De repente, e sem nenhuma explicação, a partir de 10 de novembro
Chateaubriand parou de falar de política. Se no dia 9 ele debochava do can-
didato oficial, chamando-o de "pirarucu de aquário", no dia seguinte o jor-
nalista gastou nove laudas de texto para falar da importância do Instituto
Agronômico de Campinas. No dia 11 dissertou sobre o preço do café nos
mercados de Nova York e Londres. No dia 12 defendeu a doutrina Monroe.
No dia 13 falou sobre a pujança econômica de São Paulo. No dia 14, cinco
laudas sobre a "deseuropeização" da Turquia promovida por Mustafá Ke-
mal. A cada dia o artigo de Chateaubriand voava para mais longe da crise
brasileira: no dia 15 ele festejou a perspectiva de uma "concórdia política"
374
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
entre a Europa e a Ásia; dia 16 comentou a matéria de capa do Times Weekly
sobre a deportação de Haj Amim Effendi Al Hussein, o mufti de Jerusalém,
e defendeu o Mandato britânico na Terra Santa. E por aí foi: falou da produ-
ção de ouro na Rodésia e na Costa do Ouro, dos cafés finos de Medellín e de
Manisales, da decadência econômica européia. Só no fim do mês Chateau-
briand pousaria de novo no Rio. E voltou elogiando o governo que enfiara
seu candidato Armando de Sales Oliveira no navio Lipari, deportando-o
para Lisboa. Mas, como sabia fazer nessas ocasiões, escreveu com enorme
ambigüidade. Ao pé do artigo intitulado "O fim dos partidos" (no qual de-
fendia a extinção dos partidos políticos pelo golpe), Chateaubriand mandou
publicar, como se fosse um descuido gráfico, um claro indício de que seus
escritos estavam mais uma vez sendo submetidos a censura. Em tipografia
diferente da utilizada no artigo, saiu publicado: "Visto. Assinado, Negrão de
Lima". Francisco Negrão de Lima, ex-chefe de propaganda da campanha de
José Américo, acabara de ser nomeado chefe de gabinete de Francisco Cam-
pos, o ministro da Justiça encarregado de censurar e reprimir em nome da
nova ordem.
Com impressionante rapidez e fidelidade nunca vista, Chateaubriand
aderiu de corpo e alma ao Estado Novo. Para ele, depois de experimentar o
sufrágio universal, o voto secreto, o livre pluripartidarismo e a temporarie-
dade obrigatória do mandato presidencial, o Brasil concluíra que se dera
muito mal com "essas mezinhas". Sem deixar muito claro se pretendia elo-
giar o novo regime e seu chefe, ou se estava se valendo de finíssima, quase
imperceptível ironia, saudava o fato de que "todas as transformações que te-
mos visto de regimes liberais e parlamentares em forças orgânicas fundadas
na autoridade" tinham sido conduzidas por paisanos: "Afora Kemal Ata-
turk, são todos civis. Mussolini é civil. Hitler é outro civil, como civil é Sala-
zar. No Brasil, o golpe que nos arrebatou da desordem liberal democrática
para a disciplina autoritária tem à frente um paisano, com todas as qualida-
des eminentes do chefe". Tomando como exemplo não apenas os conduto-
res dos regimes mais autoritários vigentes sobre o planeta, Chateaubriand
exaltava e apontava como um modelo em boa hora seguido pelo Brasil a ine-
xistência de liberdade partidária nos países que passara a admirar: "Na Itá-
lia, a lei concede o direito de existência apenas ao Partido Fascista, que é con-
siderado 'un organo dello Stato'. Na Alemanha, desde 1934 foi interditado o
funcionamento de qualquer partido fora do Nacional-Socialista", para, de
novo, concluir com o modelo português: "Como na Alemanha e na Itália, em
Portugal a União Nacional é outrossim o partido único". Como se não sou-
besse que o Congresso tinha sido extinto pelo Estado Novo, festejava o fato
de uma das mais autoritárias constituições da história do Brasil ser "de uma
sabedoria indiscutível" no tocante à atividade legislativa: "Nela, ao Parla-
mento é apenas conferida a faculdade de dispor sobre a substância, os prin-
375
FERNANDO MORAIS
cípios e os delineamentos genéricos ". Para o jornalista, entretanto, nada dis-
so teria sido possível não fosse uma nova qualidade que ele descobria no
presidente - o autoritarismo de Vargas, que de "ditador " e "ex-ditador" ti-
nha sido promovido nos artigos de Chateaubriand a "Chefe", sempre com c
maiúsculo:
Nada será mais errôneo do que dizer-se que o sr. Getúlio Vargas era até ontem
um liberal. O que o nosso Chefe tem de liberal são as maneiras, são as formas
exteriores de ação. Psicologicamente, não há, nunca houve autoritário mais te-
naz e mais constante. A função de grande sentinela do novo regime lhe cabe em
toda plenitude, até porque hoje ele é o Chefe Nacional, como Mussolini é o Duce
e Hitler é o Fuehrer.
Dos artigos de Chateaubriand emanava tamanha e tão convicta louva-
ção das virtudes da ditadura recém-implantada que o governo decidiu que
a oficial Agência Nacional passaria a distribuí-los em seu serviço gratuito
despachado diariamente para jornais de todo o país. Além de sair em todos
os Diários Associados, os elogios do jornalista ao novo regime ganhavam as
páginas de centenas e centenas de outros jornais. Entusiasmado, Agamenon
Magalhães, recém-nomeado interventor em Pernambuco, telegrafa a Cha-
teaubriand para festejar a notícia: "Agência Nacional tomou iniciativa distri-
buição artigos, que estão sendo publicados mais de mil jornais pelo Brasil
adentro. Diários Associados, criação diabólica do cérebro e do braço nordes-
tino, devem divulgá-los como se fossem casca do mesmo pão. O Estado
Novo é a grande emoção de Pernambuco". Tanta gentileza mereceria reci-
procidade dos Associados: Chateaubriand deu ordens para que as duas rá-
dios Tupi abrissem um programa semanal de doutrinação da população se-
gundo os princípios do Estado Novo, cujo conteúdo ficaria a cargo de
palestrantes indicados pelo governo. Com objetivos idênticos, o Diário da
Noite de São Paulo abriu uma coluna permanente e entregou-a à Comissão
de Doutrina e Divulgação do Departamento Nacional de Propaganda (que
meses depois se transformaria no temido DIP - Departamento de Imprensa
e Propaganda). O Cruzeiro não fugia ao modelo e se transformara num veí-
culo de propaganda do Estado Novo.
Mesmo sabendo que o patrão sempre fora um conservador, Dario de
Almeida Magalhães, fiel às suas convicções democráticas, manifestou a Cha-
teaubriand sua insatisfação com a guinada pró-ditadura que os jornais, O
Cruzeiro e as rádios tinham dado. Na resposta de Chateaubriand nasceria a
primeira discordância política entre os dois, que acabaria desbordando pou-
cos anos depois:
- Os homens públicos passam, seu Dario, mas os jornais são perma-
nentes. Nós vamos ter que atravessar esse túnel juntos. Vamos ter que apoiar
o Estado Novo para que os nossos jornais possam sobreviver.
376
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Ironicamente, ele que se tornara um cruzado da defesa das virtudes do
fascismo acabaria escapando por um triz de ter O Jornal empastelado pelos
fascistas nativos, os integralistas ou camisas-verdes - ou "galinhas-verdes"
,
como tinham sido jocosamente apelidados. Por alguma razão que nunca fi-
caria muito clara (a única justificativa seria a posição dos Associados exage-
radamente pró-Getúlio, presidente que os integralistas combatiam e que ten-
tariam derrubar de armas na mão, em 1938), Amâncio descobriu um velhote
"galinha verde" grudando num poste um cartaz convocando uma manifes-
tação dos integralistas contra O Jornal. O capanga de Chateaubriand agarrou
o velho pela gola e levou-o à redação do jornal, onde, sob a ameaça do pis-
toleiro de ser atirado pela janela do prédio, confessou que após a manifesta-
ção estava prevista a invasão e o empastelamento do jornal. Não fosse a in-
tervenção do coronel Euclides Figueiredo (que fora companheiro de jornada
de Chateaubriand em 1930 e 1932), que armado e à frente de um grupo de
oficiais ocupou a entrada de O Jornal, este sem dúvida padeceria do mesmo
destino que teve o Diário Carioca nas mãos dos fanáticos do Clube Três de
Outubro.
Com a ida de Armando de Sales Oliveira para o exílio em Portugal, Cha-
teaubriand voltou a viver no casarão da avenida Atlântica, levando junto
todo o farrancho espanhol e mais o primo Leão Gondim, que por sua vez ti-
nha incorporado à família seu meio-irmão João Gondim, para quem Cha-
teaubriand também arranjara um emprego nos Associados. O programa pre-
dileto de Corita e da filha Teresa, já com cinco anos de idade, eram os banhos
de mar diários na praia de Copacabana (bastava atravessar a estreita aveni-
da Atlântica e já se estava na areia). Freqüentemente o motorista Artur tra-
zia Gigil, então com quinze anos, para acompanhá-las, e Teresa acabaria se
afeiçoando mais ao afilhado do pai do que ao próprio irmão, Fernando.
Gigil morava nessa época com os pais e a irmã Jeanne na rua Capitão
Salomão, em Botafogo - uma rua em que conviviam, separados por poucos
metros, casas de luxo e cortiços, caminhões de aluguel, bicheiros, açougues
e quitandas. Gigil morava em uma das boas casas da rua, mas para chegar
até ela, quando ia buscar ou levar o afilhado, Chateaubriand tinha de ultra-
passar, muito a contragosto, o trecho menos nobre. Quando algum figurão
os acompanhava dentro do carro, ele tentava evitar o constrangimento de re-
velar que o afilhado morava num lugar tão feio, gritando para o motorista:
- Seu Artur! Não! Por aí não! Vamos pelo lado da casa do doutor An-
tônio Carlos Ribeiro de Andrada!
Para salvar as aparências, obrigava o afilhado a fingir que morava na
outra ponta da rua, nas imediações da casa de Antônio Carlos. Gigil (que pa-
recia não se importar com as manias do padrinho) acabaria se aproximando
377
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FERNANDO MORAIS
também de Corita, que um dia evitou que o garoto morresse afogado. Era
um domingo, dia em que Chateaubriand também costumava tomar banho
de mar com a família e o afilhado. O jornalista atravessava a avenida Atlân-
tica de chapéu e, embora a poucos metros dele estivesse sempre o onipresen-
te Amâncio, levava um revólver escondido na toalha. Quando precisava en-
trar na água, tirava o chapéu (onde escondia o revólver), punha chumaços
de algodão nos ouvidos e enfiava uma touca de borracha na cabeça. Nesse
dia um homem gordo que nadava com uma bóia, a poucos metros da areia,
chamou as crianças para brincar. A certa altura a bóia virou e, sem que se
percebesse, Gigil começou a se afogar. Apavorada, Corita entrou no mar e,
com a ajuda de alguns banhistas (pois Chateaubriand via tudo aquilo a dis-
tância, inexplicavelmente impassível), tirou o menino para fora e sacudiu-o
de cabeça para baixo, para expelir a água que tinha bebido. Graças à madri-
nha torta, além de sobreviver ele ainda foi levado à Mesbla (que na época
ainda se chamava Mestre Blardier) para ganhar de Chateaubriand uma bici-
cleta alemã Korkoran, novinha em folha.
Já adolescente, Gigil aprendia piano fazia três anos com a professora
Luba Yanesse d'Alessandrowska, e após as aulas tinha de repassar as lições
de casa com Jeanne. Uma tarde ele percebeu alguma inquietação na irmã,
mas não podia imaginar o que estava por vir. A moça acabou tomando a ini-
ciativa de desabafar com o rapazinho:
- Gigil, você já está crescido, eu pensei muito e achei que estava na
hora de revelar-lhe coisas importantes a nosso respeito. O casal que você
imagina que sejam seu pai e sua mãe na verdade são seus avós maternos. E
eu não sou sua irmã mais velha, como sempre lhe dissemos. Eu sou sua mãe.
E Assis Chateaubriand, que você conhece como o "padrinho Assis", também
não é seu padrinho: ele é o seu pai.
Se aquele enorme Bliitner em que ele fazia os deveres de casa tivesse de-
sabado do céu sobre a sua cabeça, o impacto não teria sido tão grande para
o jovem Gilbert François René Allard, o Gigil, que ainda iria penar bastante
até se transformar em Gilberto Chateaubriand.
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23
A novela de Gilberto - que ainda era Gilbert - começou muitos meses
antes do seu nascimento, quando a jovem Jeanne descobriu que estava grá-
vida de Chateaubriand. No conservador Brasil de 1924, uma moça ficar grávi-
da antes da celebração do casamento era uma barbaridade, uma heresia to-
tal, familiar e social. Indiferente a isto, o pai da futura criança não revelava
qualquer sinal de que pretendesse cumprir o que, para os rígidos padrões da
época, era uma indiscutível obrigação - casar-se com a moça. As semanas
se passavam e dona Angeline Marie se preocupava cada vez mais com a
reação que teria o marido, igualmente conservador, ao saber que a filha es-
perava um bebê de um homem que não pensava em casar-se com ela. E a so-
lução quem concebeu foi ela mesma, a mãe de Jeanne: a filha seria mandada
para a França, onde teria o bebê, desde que Chateaubriand se comprometes-
se formalmente a casar quando a moça retornasse ao Brasil, já com a criança
nascida. O jornalista aceitou o compromisso: foi a um cartório com Jeanne,
para mandar correr os proclamas matrimoniais previstos no Código Civil, e
escreveu, por exigência de Angeline, uma carta dirigida ao futuro sogro,
monsieur Hyppolyte Allard (carta que permaneceria nas mãos da mãe de
Jeanne), na qual se comprometia a assumir suas responsabilidades. Redigi-
da a mão, em francês, a carta era na verdade um minúsculo bilhete, tão ile-
gível quanto os originais de seus artigos jornalísticos:
Caro sr. Allard
Eu estou absolutamente decidido a me casar com Jeanne no dia 4 de feve-
reiro.
Meus negócios me absorvem tanto que eu não consigo encontrar um mo-
mento para ir visitá-lo.
Queira me desculpar.
Aceite minhas melhores amizades.
A. Chateaubriand
Logo depois de nascer, em Paris, em maio de 1925, Gilbert contraiu uma
pneumonia dupla, o que atrasou os planos da mãe de retornar ao Brasil após
o parto. Com o prolongamento da doença e a lenta recuperação do bebê,
os dois só viajariam para o Rio em meados de 1926. E, nem que quisesse,
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
o Chateaubriand que eles encontraram na volta poderia cumprir a promes-
sa que tinha feito ao quase futuro sogro: durante a ausência de Jeanne ele se
casara oficialmente com Maria Henriqueta Barrozo do Amaral. O que de
mais objetivo Jeanne recebeu do pai de seu filho foi uma vaga carta em que,
a certa altura, ele dizia que "o homem não é nada, senão uma folha seca ao
sabor do vento, que não pode dirigir seu destino segundo sua própria von-
tade". Pelo menos o jornalista assegurava à antiga namorada que "nada do
que aconteceu me desobrigará de dar ao nosso adorável Gigil um futuro ga-
rantido e tranqüilo...". Sobre a decisão de assumir a paternidade do menino,
nem uma linha. Chateaubriand não queria nem ouvir falar nesse assunto.
Diante de situação tão difícil, os avós preferiram, já que o pai não o fazia, as-
sumir a paternidade do bebê - criando a montagem cênica com a qual ele
conviveria até a adolescência: o verdadeiro pai lhe seria apresentado como
padrinho, a mãe como irmã mais velha e os avós como seus pais.
A primeira e embaçada lembrança que Gilbert guardou do pai - que
ainda era seu "padrinho " - é de uma visita que os dois fizeram juntos à
gare D. Pedro, na Estação da Central do Brasil, para receber uma banda mi-
litar (que ele vagamente se lembra de ter vindo de algum lugar como Blume-
nau) convidada por Chateaubriand para tocar em uma cerimônia qualquer
no Rio. As outras recordações mostram o jornalista levando-o uma vez por
mês, junto com outras pessoas, para almoçar na Rotisserie Americana, na
rua do Ouvidor, que era o grande restaurante da moda. Só depois é que
vieram os convites para remar com ele no double sculler suíço ou na piroga
canadense no Clube Guanabara, os encontros com Fernando na Vila Nor-
manda, os cochilos durante o jantar, os peidos ruidosos, a mesma piada de
sempre sobre a tela de Portinari. Também de uma dessas ocasiões é a lem-
brança da irritação do padrinho com um amigo (que depois Gilberto viria a
saber que se tratava do escritor José Lins do Rego) chamando a atenção dele
por causa das condições em que o garoto vivia:
- Chateaubriand, você precisa botar esse menino num apartamento em
Copacabana com a mãe.
Uma ou outra imagem vaga e nada mais. Passado o impacto da incrível
informação que a mãe lhe dera, ele aguardou que o pai tocasse no assunto.
A espera durou mais de um ano sem que Chateaubriand abrisse a boca para
falar daquilo. E muito provavelmente duraria até a eternidade, se não ocor-
resse algo fora do controle deles, da mãe ou de quem quer que fosse: a Se-
gunda Guerra Mundial. Nascido e registrado na França, Gilbert era, obvia-
mente, cidadão francês. Só tinha como documento a certidão de nascimento
francesa - na qual, como no caso de sua irmã Teresa, o lugar destinado ao
nome do pai aparecia em branco. Do documento constava apenas que ele era
filho "de Jeanne Paulette Marguerite Allard, quil a reconnue". A guerra ganha-
va proporções cada vez maiores, e o governo do marechal Pétain já tinha ini-
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#
FERNANDO MORAIS
ciado o recrutamento, em todo o mundo, dos cidadãos franceses de mais de
dezesseis anos - exatamente a idade de Gilbert.
Hyppolyte Allard tinha trabalhado durante longos anos na Bienfaisan-
ce, sociedade dedicada a auxiliar cidadãos franceses em dificuldades em
qualquer parte do mundo - e foi por intermédio daquela organização que
ele soube que em questão de semanas Gilbert seria convocado pela embaixa-
da francesa e embarcado imediatamente para o front. A única solução para
legalmente evitar sua incorporação às tropas do regime colaboracionista de
Vichy estava nas mãos de Chateaubriand: se o pai concordasse em reconhe-
cê-lo como filho ele poderia requerer a cidadania brasileira e escapar de ir
para a guerra. Mas Chateaubriand, segundo Gilbert ouvia os avós dizerem,
permanecia irredutível em sua decisão de não assumir a paternidade do ra-
paz. Cansado de ver a mãe ter crises nervosas e chorar de ansiedade, à espe-
ra da fatal convocação, ele encheu-se de coragem e resolveu enfrentar Cha-
teaubriand. Foi até O Jornal e abriu o jogo:
- Eu já sei que o senhor é o meu pai. Para evitar a convocação para lu-
tar na Europa eu terei que fazer o meu serviço militar aqui. Mas para isso te-
nho que optar pela nacionalidade brasileira, e só posso fazer a opção se com-
provar que sou filho de brasileiro.
Para espanto de Gilbert, Chateaubriand não só não se surpreendeu com
a conversa como deixou claro que não estava disposto a reconhecê-lo como
filho. Apesar de estar sendo agente de uma monstruosidade, o pai não mo-
via um dedo, estendendo por meses e meses a agonia da mãe, dos avós e do
próprio filho. A notícia correu entre os amigos do jornalista, que faziam pres-
são para que cedesse, mas ele permanecia impassível. Todas as vezes que
Dario de Almeida Magalhães tentava convencê-lo a fazer o reconhecimento,
Chateaubriand reagia com cinco pedras na mão, alegando que o Gilbert não
era seu filho (embora cada dia mais ele se assemelhasse fisicamente ao pai),
que ele tinha tido uma rápida aventura com Jeanne, que o pai verdadeiro era
"um judeu argelino" - numa referência à remota ascendência judaica do fi-
lho, por parte da mãe:
- Não o reconheço, seu Dario. Não o reconheço nem por piedade, por-
que ele não é meu filho, é filho de um judeu argelino.
Só quando o prazo estava por um fio - o avô apurou, na França, que a
convocação seria enviada à embaixada francesa no Brasil em poucos dias-
é que Chateaubriand por fim entregou os pontos. Chamou ao jornal o minis-
tro do Trabalho Marcondes Filho, para servir como testemunha, mandou vir
o filho, convocou um tabelião e lá mesmo, na sua mesa de trabalho, autori-
zou que se fizesse o ato de reconhecimento. A duras penas Gilbert, bisneto
de uma judia, escapara de lutar ao lado dos nazistas de Hitler.
O que contentou grego acabaria descontentando troiano. Embora já de-
vesse saber que o coleguinha dos passeios e jantares era seu meio-irmão
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
(essa era a suspeita de Gilbert), Fernando não podia imaginar que o pai, que
ele conhecia tão bem, fosse ser compelido a reconhecê-lo oficialmente. Se já
tinha de disputar com o primo Freddy (filho de Oswaldo que aparentemen-
te tinha a preferência e a simpatia de Chateaubriand) a condição de delfim,
herdeiro e sucessor do pai, agora aparecia mais um Chateaubriand para se
interpor em seu caminho. Com o reconhecimento da paternidade, nascia um
surdo processo de hostilidade, que perduraria a vida inteira, de Fernando
com relação a Gilberto - agora, sim, já registra do como cidadão brasileiro
com o aristocrático nome de Gilberto Francisco Renato Allard Chateaubriand
Bandeira de Melo.
Meses depois de tomar conhecimento de sua verdadeira identidade, ao
passar os olhos em um exemplar do Diário da Noite, Gilberto ficaria intriga-
do com um "A pedidos" misturado a pequenos anúncios e notícias policiais,
assinado por "A. Raposo Tavares". O único Raposo Tavares de que ele tinha
ouvido falar era o bandeirante luso-brasileiro, com cujo nome, aliás, seu pai
batizara o avião monomotor que havia comprado pouco tempo antes para
suas viagens e para uso dos repórteres dos Associados. Não foi a estranha
assinatura, porém, o que mais o impressionou naquilo, mas a raivosa verri-
na contida no texto contra um certo Clito Bockel, o tempo todo tratado por
"cáften", "rufião" e "escroque". A indagação final publicada na nota é que
era, essa sim, intrigante. "E o que é que teria ido procurar o sr. Clito Bnckel
no número 304 da avenida Atlântica?", perguntava o misterioso Raposo Ta-
vares. "Jóias ou carne branca?" Gilberto sabia muito bem que no número 304
da avenida Atlântica ficava a Vila Normanda, a casa em que seu pai morava
com Corita, e não precisou fazer muitas perguntas à mãe para sa ber que "A.
Raposo Tavares" (assim como o "Macaco Elétrico") era um pseudônimo que
o pai usava quando não queria (ou não podia, temendo algum processo ju-
dicial) assinar as agressões mais violentas contra seus inimigos. Quanto a
Clito Bockel, a vítima de tantos insultos, este era o protagonista central de
uma aventura passional que já se desenrolava havia algum tempo.
Os poucos anos de convivência com Chateaubriand foram suficientes
para Corita perceber que, além de marido pouco atencioso, ele era dado a
conquistas amorosas - apesar de sentir por ela um ciúme patológico. Por
ordem de Chateaubriand, durante todo o tempo em que o casal viveu junto,
Leão Gondim e seu meio-irmão João eram os acompanhantes oficiais de Co-
rita. Acompanhantes e informantes de tudo o que ela fizesse, falasse ou sim-
plesmente olhasse na ausência do marido. Além dos dois, os motoristas, co-
peiros, empregados e capangas eram vigias em tempo integral do
comportamento da mulher. Cansada de viver com um marido ausente e mu-
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FERNANDO MORAIS
lherengo, e policiada por todos, um dia ela deu ao jornalista claras indica-
ções de que aquele casamento já estava nas vascas, nos estertores:
- Olha, Chateaubriand, minha paciência está chegando ao fim. Uma
mulher para conviver com você ou o enfrenta de igual para igual, taco a taco,
ou então tem que se conformar em ser seu burro de cangalha, tem que
agüentar tudo isso calada. E eu não estou disposta a ser nem uma coisa nem
outra.
Teresa se lembra que o ciúme de Chateaubriand infundia verdadeiro
pânico na mãe. Quando Corita a levava, em companhia de Fernando, a pas-
sear nos parques de diversões, não faltavam rapazes que, tentando flertar
com aquela mulher linda, se ofereciam para pagar ingressos para o garoto.
Aterrorizada, Corita advertia o menino:
- Fernando, se o seu pai aparece aqui ele nos mata! Não aceite ingres-
sos pagos por esses rapazes! Eu vou contar isso ao seu pai!
Apesar de temer os humores do violento marido nordestino, muitas ve-
zes, quando ia a restaurantes ou a espetáculos em companhia de Leão ou
João Gondim, Corita desaparecia por longo tempo sem que o acompanhan-
te conseguisse identificar onde tinha ido ou com quem estivera falando. E
pelo menos uma vez Teresa, passeando na avenida Princesa Isabel com a
mãe no Packard conversível com que Chateaubriand a presenteara, viu em-
parelhar ao lado do carro um veículo guiado por um jovem louro muito bo-
nito, com quem Corita trocava olhares e meia dúzia de palavras dissimula-
das e carinhosas. Apesar de garotinha, Teresa devia saber o risco que todos
corriam ali, e só décadas depois é que interpretaria as caretas que fazia para
o rapaz do outro carro como uma forma de espantá-lo antes que o pai apa-
recesse por ali inesperadamente e flagrasse aquele arrufo. O louro com ares
de galã de cinema era Clito Bockel, trinta anos, jovem e próspero dono da
Costa Pereira & Bockel, uma das maiores incorporadoras de prédios da Zona
Sul do Rio de Janeiro de então. Desfeito seu primeiro casamento, o "Diabo
Louro", como Bockel era conhecido entre as mulheres da cidade, estava
mantendo um romance secreto com Corita havia algum tempo.
Uma das muitas sentinelas que Chateaubriand deixava permanente-
mente de olho na mulher acabou descobrindo coisas que chegaram aos ou-
vidos do patrão. Desconfiado de que Bockel estivesse freqüentando sua casa
clandestinamente para encontrar-se com Corita, Chateaubriand decidiu si-
mular uma viagem de trem a São Paulo. Repetindo um ritual que estava se
transformando em praxe em todas as suas viagens (por mais próximo que
fosse o destino e ainda que de curta duração), uma enorme e luzida comiti-
va foi acompanhá-lo no embarque. Quando era uma viagem mais demora-
da, além dos puxa-sacos de sempre apareciam figurões como os industriais
Wolf Klabin e Spitzman Jordan, o médico (e agora banqueiro) Drault Er-
nanny, os irmãos empresários Ricardo e Adriano Seabra, como se aquilo fos-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
se um bota-fora para a eternidade. E os diretores dos Associados se encarre-
gavam de que no destino houvesse outra comissão de igual peso para rece-
bê-lo. Para que a encenação fosse completa, ele exigiu que naquela noite fos-
sem todos, Corita inclusive. Na hora certa despediu-se de cada um e entrou
no expresso, que arrancou para São Paulo. Previamente combinado com
Alencastro Guimarães (chefe de gabinete do ministro da Viação, responsá-
vel pela administração da Estrada de Ferro Central do Brasil), entretanto, da-
quela vez o trem não tocou direto para a capital paulista, sem escalas. Após
rodar mais ou menos durante meia hora, a composição parou numa peque-
nina estação de subúrbio do Rio, onde Chateaubriand desembarcou - e
onde já o esperavam seus carros, secretários, choferes e guarda-costas. Mon-
tou no velho Cadillac negro e tocou para a Vila Normanda. Chegou tarde. O
belo amante de sua mulher havia passado lá antes - e levado Corita embo-
ra. Suspeitando que o romance poderia ser descoberto a qualquer momento
por Chateaubriand, Corita e Bockel vinham planejando a fuga há algum
tempo, esperando apenas uma viagem do jornalista para que o casarão de
Copacabana fosse definitivamente abandonado.
E Ao ser informado pelos mordomos de que, além de Corita e de todo o
"consulado espanhol" que vivia no terceiro andar da casa, o "Diabo Louro "
levara também sua filha, Teresa, então com sete anos, Chateaubriand teve
um ataque de fúria. Mandou que Amâncio fosse até a casa de Bockel:
- Primeiro dê um tiro no meio dos olhos daquele filho da puta. Eu as-
sumo a responsabilidade. Depois o senhor dê uma surra de cinto em dona
Corita, mas surra para valer, para deixá-la no chão. Aí pegue Teresoca e tra-
ga-a de volta para cá. Minha filha não vai viver na companhia daquele
rufião.
Nada feito. Fechada e inteiramente vazia, na casa não havia nem som-
bra de Bockel, de Corita, da menina ou de quem quer que fosse. Xingando
todos os palavrões que sabia, a única maneira que Chateaubriand encontrou
para desabafar o ódio foi escrever o "A pedidos" que o espantado Gilberto
leria no Diário da Noite do dia seguinte. Com boas relações no governo e na
polícia, Chateaubriand precisou de poucos dias para descobrir que estavam
todos escondidos em um sítio que fora emprestado a Bockel, em Jacarepa-
guá. E decidiu que naquela mesma noite ele iria pegar a filha de volta, nem
que fosse preciso matar Bockel e Corita. Mandou que Amâncio arranjasse dez
homens "dispostos a tudo". No final da tarde a tropa de jagunços já o espe-
rava no salão da Vila Normanda, de onde partiram todos, em companhia de
Chateaubriand, para a redação dos Associados. Com duas armas penduradas
no cinto, ele chamou seu primo Leão e o redator-chefe do Diário da Noite, Ví-
tor do Espírito Santo, e entregou um revólver a cada um deles:
- Vocês vêm conosco. Vamos buscar Teresoca.
O austero Vítor do Espírito Santo recuou, indignado com o convite:
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
- Doutor Assis, eu sou jornalista, não sou gângster.
Ele deixou a sala com um insulto:
- Então você fica, cagão. Leão, vamos embora.
Quando viu os cinco carros se aproximando da casa do sítio com as lu-
zes apagadas, Corita se apavorou. Maria Montenegro, que certamente não
sabia com quem estava tratando, ainda tentou acalmá-la:
- Pero Corita, si es el padre, como tu imaginas, él tiene el derecho de ver a la
nena. . .
Antes que ela acabasse de pronunciar a frase, começou o tiroteio contra
a casa. As pessoas se jogaram ao chão, em meio a uma crise de choro e de
tremores do andaluz Artez. Segundos depois os tiros pararam. Uma voz que
parecia ser a de Leão Gondim gritou do lado de fora:
- Somos mais de dez homens armados e vamos entrar na casa para pe-
gar a menina! Não queremos ferir ninguém, mas quem reagir leva bala!
A casa foi invadida pelo bando, com Chateaubriand, Leão e Amâncio à
frente, todos de armas nas mãos. Ninguém teve coragem de se aproximar
deles. Artez batia o queixo num canto, com as pernas tremendo. Segurando
o revólver com uma mão, Chateaubriand pegou Teresa no colo e colocou-a
no banco traseiro do Cadillac, entre ele e Amâncio. No banco da frente en-
trou Leão Gondim. Vestida num robe de seda japonesa, Corita pegou o Pa-
ckard que estava parado do lado de fora da casa e ainda tentou seguir a ner-
vosa caravana, mas foi dissuadida por mais tiros, disparados contra seu
carro. O bando arrancou em alta velocidade e minutos depois os carros esta-
cionavam na pista da Ponta do Calabouço, onde depois seria construído o
aeroporto Santos Dumont. Lá já os esperava, com o motor ligado, o avião Ra-
poso Tavares, de Chateaubriand. Debaixo de forte tempestade, o aparelho
decolou levando, além do piloto, Chateaubriand, Leão e, assustada num
canto, sem entender direito o que estava acontecendo, a pequena Teresa.
Duas horas e meia depois o monomotor pousava em São Paulo, onde já ha-
via mais dois carros à espera. Chateaubriand entrou em um deles com Tere-
sa e Leão e ordenou ao motorista:
- Toca para a casa do Rizzini!
Quando chegaram à casa do diretor dos Associados Carlos Rizzini, no
bairro do Pacaembu, Chateaubriand achou que seria muito arriscado Teresa
passar aquela noite ali (se Bockel era louco o suficiente para manter um ro-
mance secreto com a mulher do jornalista, seria bem capaz de tentar seqües-
trar a garota em São Paulo). Decidiu-se que pelo menos aquela noite ela dor-
miria na casa da empregada dos Rizzini, num bairro afastado da cidade.
Corita não ia entregar os pontos com facilidade. Na manhã seguinte, ela
entrou com uma petição junto à 4ª Vara de Órfãos e Sucessões, no Rio, soli-
citando ao juiz que intimasse Chateaubriand a indicar "o local onde se en-
contra sua filha menor, Teresa, a fim de que possa a requerente visitá-la e as-
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FERNANDO MORAIS
sisti-la como lhe compete, na qualidade de mãe". Um dia depois, um oficial
de Justiça entregava na casa de Rizzini a ordem do juiz para que a menina
fosse levada de volta ao Rio. Começava ali uma guerra judicial em torno da
posse de Teresa. Legalmente Chateaubriand não era o pai (afinal, da certidão
de nascimento da menina constava apenas o "Teresa Acunha, filha de Cora
Acunha"), não a havia reconhecido, não tinha qualquer vínculo com ela. For-
malmente não poderia nem ser considerado parte interessada naquele pro-
cesso que se iniciava. De volta ao Rio com a filha, mas sem jamais pensar em
entregá-la à mãe e a Bockel, Chateaubriand vai à Vara de Órfãos e Suces-
sões conversar com o autor do despacho. Era Elmano Cruz, jovem juiz, de
grande coragem pessoal, que substituía o titular da vara - coincidentemen-
te um amigo de Chateaubriand, o jurista Nelson Hungria, que se encontra-
va em férias no interior de Minas. Chateaubriand invade a sala do juiz aos
berros:
- O senhor sabe quem sou eu?
- Acho que o senhor é o jornalista Assis Chateaubriand, se não me en-
gano.
- Sou eu mesmo. O senhor deu um despacho no caso de minha filha
Teresa, que é menor, atribuindo a guarda dela a uma senhora de péssimos
antecedentes morais...
Cruz nem deixou o jornalista acabar de falar:
- Ponha-se daqui para fora! Não admito discussão a respeito da deci-
são. Dei o despacho porque acho que a filha deve ficar com a mãe.
- Não precisa me dar aulas, seu Elmano! Eu sou professor de direito!
O juiz não baixou a crista:
- O senhor pode ser professor do que for, mas o juiz sou eu! Posso até
agir por amizade, pelo coração, mas contra a lei ninguém me obrigará a fa-
zer nada!
O curto encontro terminou com Chateaubriand partindo o cristal da
mesa com um murro:
- Eu posso não ter o direito, seu juizinho de merda, mas tenho algo
mais importante: tenho razão! Sua carreira terminou hoje, aqui, agora. E o
senhor vai me ter como inimigo pelo resto da sua vida! Se o senhor está pen-
sando que vai ser desembargador, juiz do tribunal, pode tirar o cavalo da
chuva. Sua carreira acaba hoje! E saiba que seu despacho vai ser anulado, seu
juiz de merda!
Deixou a sala aos galopes para não ser preso por desacato à autoridade,
e tocou de novo para a Ponta do Calabouço. Com Teresa sob a guarda efeti-
va de Leão Gondim e de meia dúzia de jagunços, Chateaubriand toma o Ra-
poso Tavares, que pousa horas depois em Belo Horizonte. O carro do Estado
de Minas que o esperava na pista leva-o até a cidade de Porto Novo do
Cunha, no interior de Minas, onde o jornalista pega o juiz Nelson Hungria,
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CHATÓ, O REI DO BRASIL
obrigado a interromper suas férias inesperadamente. O carro toca de volta
a Belo Horizonte, os dois embarcam no Raposo Tavares para o Rio e an-
tes que o dia terminasse Hungria já tinha reassumido a 4á Vara e anulado o
despacho de Elmano. A sentença que substituiu a anterior seria publicada no
Diário da Justiça do dia seguinte:
Destituição de pátrio poder.
Requerente: Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo.
Requerida: Cora Acuna.
Menor: Teresa.
Tendo ouvido, juntamente,com o doutor curador de órfãos, a menor Teresa,
e verificado a igualdade de seu intenso apego quer à mãe, quer ao pai, resolvi
que a mesma não deve ser submetida ao imerecido castigo de se ver privada por
longo tempo da presença de qualquer de seus pais. Tomei, por isso, a deliberação
de que fique depositada em minha própria casa, onde poderá ser visitada, diariamente,
na parte da manhã, pela mãe e, na parte da tarde, pelo pai. Creio que assim fica asse-
gurado o interesse da menor, enquanto este Juízo não profira sua decisão defi-
nitiva. Intime-se.
Nelson Hungria Hoffbauer
Juiz de Direito da 4ª Vara de Órfãos e Sucessões
Na verdade, Chateaubriand nunca pretendeu ter, de fato, a guarda da
filha. Avesso à idéia de ter uma família como a de todo mundo, ele não se
imaginava criando, sozinho, uma garota de sete anos de idade. Para ele, não
podia haver decisão mais salomônica (e mais cômoda) do que a tomada pelo
juiz: a menina podia não ficar com ele, mas o que não suportava era a idéia
de que Teresa pudesse viver com Corita e Bockel, pelos quais se tomara de
ódio irracional. Decidido que Bockel não poria mais os olhos em sua filha, e
que a mãe teria de cumprir à risca a sentença judicial, a partir da decisão de
Hungria o jornalista pagou capangas que davam plantão permanente na
porta da casa do juiz, para se certificar de que a mãe não tiraria Teresa de
casa (seu medo era que Corita a levasse para ver Bockel) e não a visitaria fora
do horário prescrito. Quanto a si próprio, enquanto recursos e mais recursos,
de ambas as partes, se amontoavam nos tribunais, ele cumpria o despacho
como bem entendesse. Embora estivesse expresso nele que suas visitas te-
riam que acontecer "na parte da tarde", quase sempre chegava à casa de
Hungria altas horas da noite, depois que deixava a redação, e dava ordens a
quem encontrasse:
- Quero ver Teresoca. Se ela estiver dormindo, pode acordá-la.
O jornalista desfrutava, à sua extravagante maneira, a primeira vitória
sobre Corita e Bockel, mas a guerra entre eles mal começara.
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FERNANDO MORAIS
Com freqüência cada vez maior Chateaubriand tirava Teresa de casa
para acompanhálo na mania que agora tomava todo o seu tempo e arreba-
tava o país: os batismos dos aviões doados à campanha que ele inventara,
denominada "Dê Asas à Juventude". A campanha dos Associados promove-
ria a doação, ao longo de uma década, de um número impreciso de aviões
(as cifras variam, conforme a fonte, entre 2 mil e 3 mil aparelhos) para trei-
namento de pilotos civis em aeroclubes que se multiplicavam por centenas
de cidades do interior de todo o país. Quando a Mesbla começou a importar
aviões, e com a instalação no Brasil das três primeiras fábricas de monomo-
tores - os "teco-tecos" -, a velha paixão de Chateaubriand por aviões
incendiou-o. Mais do que um mero meio de transporte, ele via o avião filo-
soficamente, como "um libertador que arrebata-nos das miseráveis contin-
gências terrenas para fazer-nos viver o que é eterno. Sua velocidade parece
indicar uma contradição com a paisagem repousante e tranqüila em que nos
envolve. Dentro de um volívolo desses, capturamos nosso próprio eu, e na
sua companhia saímos em um estirão voluptuoso pelo universo afora, tal a
beatitude em que nos dissolve um vôo pelo espaço".
Ainda em 1938 ele organizou um raid de 21 aparelhos do Rio até a cida-
de de Campos, no interior do estado. Com vários repórteres cobrindo os pre-
parativos, entrevistando pilotos, e mais uma equipe recebendo a esquadri-
lha na cidade fluminense, a viagem renderia páginas e páginas nos jornais e
revistas Associados. O sucesso da iniciativa o animaria a repeti-la mais duas
vezes, e sempre com um número cada vez maior de aviões envolvidos: na
segunda, viajaram até a usina de açúcar Tamoio, na cidade paulista de Ara-
raquara, e na terceira foi-se ainda mais longe, a Guatapará, também no inte-
rior paulista. Assim como havia repórteres especializados em economia, em
política, em esportes, os Associados passaram a ter um setorista de aviação,
escolhido pessoalmente pelo dono: o jovem cearense Edmar Morel, que ga-
nhara fama meses antes com uma série de reportagens na Amazônia sobre o
coronel inglês Percy Fawcett, desaparecido misteriosamente quando investi-
gava a existência da tal civilização branca que a selva brasileira esconderia
- assunto que havia sido levantado em 1924 por O Jornal.
A aventura seguinte seria mais arriscada: Chateaubriand planejava or-
ganizar uma expedição aérea de nada menos que sessenta aviões do Rio a
Porto Seguro, na Bahia, para ali festejarem o aniversário do descobrimento
do Brasil. Estaria tudo muito bem se não fosse por um problema: Porto Se-
guro não tinha aeroporto. Acionado pelo jornalista, Getúlio Vargas entusias-
mou-se com a viagem, e sessenta dias depois o aeroporto estava pronto.
Com uma escala para reabastecimento em Vitória e outra em Caravelas, no
litoral baiano, os aviões por fim desceram em Porto Seguro. A modesta pre-
feitura local teve de mandar fazer às pressas trinta privadas públicas e arran-
jar 140 camas com o Exército para acomodar os pilotos, radiotelegrafistas e
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
mecânicos. Logo que os aparelhos pousaram, o vigário da cidade, um negro,
anunciou que havia preparado uma surpresa para Chateaubriand e os mais
de cem pilotos e acompanhantes que tinham feito parte do raid: iria oficiar
uma missa no mesmo local em que frei Henrique de Coimbra havia rezado
a primeira missa brasileira, em maio de 1500. Ao ouvir aquilo, Chateau-
briand chamou Edmar Morel a um canto:
- Seu Morel, demita esse preto da minha festa. Um preto rezar a nossa
missa? De modo algum! Dê um jeito de chamar com urgência o bispo de
Ilhéus, que é ariano. Em missa de branco eu atuo até como coroinha, seu Mo-
rel, mas missa rezada por padre preto vai nos trazer uma urucubaca sem ta-
manho. A missa e os convidados tiveram de esperar a chegada do bispo de
Ilhéus, d. Eduardo José, que, por ser branco, afastava os preconceituosos te-
mores de Chateaubriand de que o padre iria "trazer má sorte aos aviadores".
Os raids eletrizavam de tal forma a opinião pública que, quando os As-
sociados decidiram organizar uma "jornada aérea" internacional, com desti-
no a Montevidéu, no Uruguai, os jornais O Globo e A Noite não tiveram ou-
tra alternativa senão entrar como co-patrocinadores daquela maluquice de
Chateaubriand. Antes de partir, os pilotos ("nossos intrépidos navegadores
aéreos", como a imprensa os tratava) foram recebidos no Palácio do Catete
pelo presidente Getúlio Vargas, e seus 25 "pássaros metálicos que rasgarão
os céus do Prata" foram abençoados pelo cardeal Sebastião Leme, na Ponta
do Calabouço. Em cada cidade onde escalavam havia uma festa com banda
de música, discursos e homenagens aos "novos aventureiros do ar ". Antes
de pousar em Montevidéu, os 25 aviões (entre eles o Raposo Tavares, o
Beechcraft dos Associados) fizeram evoluções em cima do Prata, sobre cujas
águas despejaram chuvas de pétalas de rosas.
Quando voltou de Montevidéu, Chateaubriand, que por alguma razão
nunca se interessou, ele próprio, em aprender a pilotar aviões, decidiu que
estava na hora de formar uma geração de pilotos civis no Brasil. Quando re-
velou sua idéia ao maior entusiasta da aviação no governo, o gaúcho Joa-
quim Pedro Salgado Filho (ex-ministro do Trabalho, ele acabara de ser no-
meado por Getúlio, apesar de ser civil, titular do recém-criado Ministério da
Aeronáutica), este não pareceu tão animado com a idéia. "Para formar pilo-
tos é preciso muita coisa, Chateaubriand ", reagiu o ministro com pouco en-
tusiasmo, "mas acima de tudo é preciso ter aviões, e nós não temos." O jor-
nalista tinha a solução, a mesma com que resolvia todos os seus problemas
empresariais:
- Nós não temos aviões, Salgado, mas a burguesia tem dinheiro. Nós
vamos tomar muito dinheiro dela e transformá-lo em aviões. Banqueiros, co-
merciantes, industriais e cafeicultores vão ensinar nossos meninos a voar.
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FERNANDO MORAIS
A receita que ele tinha na cabeça era simplíssima: pedia-se a um milio-
nário (ou a um grupo deles) que doasse um avião de treinamento. Os Asso-
ciados se encarregariam de cobrir o doador de elogios (e reportagens, e fo-
tos) e cada avião seria batizado com o nome de um vulto ilustre - que
poderia ser o pai, a mãe ou um antepassado qualquer do mecenas que tives-
se pago a conta do aparelho. Cada batismo seria uma cerimônia pública, com
champanhe, banda de música, discursos - e mais a garantia da cobertura do
ato por todos os órgãos Associados. O rico que se recusasse a contribuir en-
trava para a temida lista negra dos inimigos de Chateaubriand. Às gargalha-
das, ele festejava antecipadamente o sucesso do empreendimento:
- Não há vaidade humana que resista a tanto confete, Salgado. Só não
dará aviões para nós quem for teso, estiver morrendo de fome. Vai ter gente
que vai vender a casa para comprar um monomotor para a nossa campanha.
Dito e feito. No dia 22 de março de 1941 o aeroporto da Ponta do Cala-
bouço se engalanava para o batismo solene do primeiro avião, o Regente Fei-
jó, um Piper Cub doado por Samuel Ribeiro para o aeroclube de Pelotas, no
interior do Rio Grande do Sul. A cobertura da festa foi tão feérica que no dia
seguinte aparecia o segundo avião: o pernambucano Othon Linch Bezerra de
Melo doava o Duque de Caxias, um monomotor de três lugares, que seria
destinado ao aeroclube de Caxias do Sul, também no Rio Grande. Mais fes-
ta, mais artigos incensando o doador e no terceiro dia o industrial Manuel
Ferreira Guimarães, presidente da Associação Comercial do Rio, enviava vo-
luntariamente a Chateaubriand o cheque para pagar à Mesbla a fatura do Ti-
radentes, que seria entregue ao aeroclube de São José do Rio Preto, no esta-
do de São Paulo. E assim foram sendo batizados o Júlio Mesquita, o Capitão
O'Reilly, o Guia Lopes, o Antônio Mostardeiro Filho. Quem visse uma ceri-
mônia de entrega de avião poderia dizer que tinha visto todas: com os por-
tões do Calabouço abertos ao público e aos convidados, o doador fazia um
discurso. Depois falava um representante da família do homenageado com
o nome do avião. Aí era a vez de falar o ministro Salgado Filho, sem cuja pre-
sença a cerimônia não se realizaria. Por último falava Chateaubriand, cujas
palavras sairiam no dia seguinte em todos os órgãos Associados sob a forma
de artigo. Para encerrar a cerimônia, o padrinho ou a madrinha (que não pre-
cisava ser obrigatoriamente o doador ou alguém ligado a ele) jogava cham-
panhe na hélice do aparelho, e garçons engravatados serviam a bebida em
taças aos presentes. Quando estava de bom humor, Chateaubriand tomava
a bandeja de um dos garçons, dobrava o guardanapo sobre o braço esquerdo
e se encarregava, ele mesmo, de servir a primeira rodada de champanhe aos
convidados mais ilustres. Em maio, sessenta dias depois de batizado o Regen-
te Feijó, o jornalista iria ao Palácio do Catete convidar o presidente da Repú-
blica para batizar o Getúlio Vargas, o centésimo avião doado à campanha.
394
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Simultaneamente às festas nos aeroportos - pois os batismos não acon-
teciam apenas no Calabouço, mas se multiplicavam por todo o país -, Cha-
teaubriand continuava travando a batalha judicial pela posse da filha. Os
meses se passavam e a única segurança que ele tinha era a solidariedade de
Nelson Hungria, que resistia a todos os recursos interpostos pela mãe. En-
quanto o despacho de Hungria estivesse em vigor ele tinha a garantia de que
Teresa não seria levada por Corita e Bockel, mas aquela era uma situação
precária, que não poderia durar para sempre. Como tinha sido Corita, e não
ele, a reconhecer e registrar a filha, a legislação em vigor não dava margens
a dúvidas. O artigo 16 do decreto-lei 3200 (que dispunha sobre a organiza-
ção e proteção da família) era cristalino: "O pátrio poder será exercido por
quem primeiro reconheceu o filho, salvo destituição dos casos previstos em
lei". Com boa vontade, muito esforço e uma certa dose de sorte, o máximo
que Chateaubriand poderia conseguir seria que Corita fosse destituída do
pátrio poder sobre Teresa (e este era o objetivo da guerra judicial em que ele
se metera). Mas, mesmo que fosse vitorioso, isto não significaria qualquer
chance de passar ele a ter o pátrio poder, uma vez que, como não a registra-
ra, oficialmente não era nada de sua filha.
O que preocupava Corita é que, ao entrar numa disputa, mesmo que
fosse na Justiça, Chateaubriand não tinha meias medidas. Ela própria fora
testemunha disso no caso de Oscar Flues. Nem depois de ter mandado o ca-
panga castrar o industrial a tiros o jornalista se deu por vingado ou satisfei-
to. Entrou com uma ação na Justiça para receber o que imaginava ser a inde-
nização que o industrial lhe devia pela perda da posse, por um ano, de O
Jornal. Três anos depois de levar duas balas nos escrotos, Flues acabou acei-
tando um inacreditável acordo proposto pelos advogados, pelo qual ele pa-
garia a Chateaubriand duzentos contos de réis de indenização - dinheiro
que, por exigência do jornalista, deveria ter a seguinte destinação:
cinqüen-
ta contos iriam para as obras sociais do Hospital Alemão (o mesmo que sal-
vara a vida do industrial); cem contos seriam depositados na conta da Colô-
nia de Férias para Crianças Pobres de Santos; vinte contos, para a Casa do
Jornalista, da Associação Paulista de Imprensa; dez contos, para a Compa-
nhia de Caridade Reverendo Padre Venâncio, do Rio de Janeiro; cinco con-
tos, para a Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte; cinco contos, para
o sr. Antônio Prudente, da Associação Paulista de Combate ao Câncer; cin-
co contos, para o Instituto Dom Bosco, na Paraíba; os cinco contos finais se-
riam depositados na conta do sr. Francisco Martins dos Santos, residente à
rua Conselheiro Nébias, 687, na cidade de Santos, destinados a "pagar a im-
pressão da obra monumental intitulada A.história de Santos, com o fim de be-
neficiar o ensino e incentivar o estudo da história pátria". Uma das cláusu-
las do acordo estabelecia que o industrial teria de deixar expresso que
aquelas não eram doações dele, Flues, mas dos Diários Associados.
395
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FERNANDO MORAIS
Mas Corita não era Oscar Flues, e não parecia disposta a entregar os
pontos. Além de atulhar o tribunal com recursos e petições, ela sabia que
aquele era um processo político, e resolveu atacar também por este lado. Sua
causa atraiu a mais barulhenta e temida mulher brasileira, a feminista Berta
Lutz, que resolveu comprar sua briga. Zoóloga e feminista respeitada inter-
nacionalmente, Berta tinha sido deputada à Assembléia Nacional Consti-
tuinte de 1934. Como o argumento central de Chateaubriand para cassar-lhe
o pátrio poder era a sua "conduta moral reprovável", Corita conseguiu que
Berta organizasse um comitê liderado por ela própria e composto por mais
dez mulheres para testemunhar a respeito de sua retidão moral e apelar a
Nelson Hungria para que voltasse atrás em sua sentença. A resposta do juiz
não poderia ser mais desanimadora. Embora convocasse as mulheres a de-
por no processo (ainda que de forma um tanto ameaçadora), seu despacho
era uma sucessão de pitos em Corita e seu advogado, deixando claro de que
lado Hungria estava, naquela briga:
[...) O advogado da peticionária consome mais de seis meses coligindo docu-
mentos e mais um mês inteiro elaborando "monografias" de vinte folhas datilo-
grafadas de um lado e do outro, vem com tudo isso para dentro dos autos e, a
seguir, fica de relógio em punho, a protestar que o Ministério Público e o advo-
gado da parte adversa estão retendo os autos por mais de 24 horas, com desres-
peito ao Código de Processo Civil!
Tenho a longanimidade de permitir a continuidade do processo e sou atormen-
tado com sucessivas petições da parte favorecida, a protestar por "dá cá aquela
palha", a suscitar questiúnculas e até a pretender que este Juízo intervenha junto
à empresa da revista Cruzeiro para que não continue atribuindo ao dr. Assis Cha-
teaubriand a paternidade da menor Teresa! É de esgotar a paciência de um san-
to! Não voltarei à quaestio juris, já decidida nos meus despachos anteriores.
Atenderei apenas à questão de fato, sobre a qual há novos elementos a consi-
derar: uma série de atestados e cartas, firmados por senhoras da mais alta dis-
tinção. São categóricos em seus elogios, mas são muito incertos em matéria de
menção de fatos. É indispensável que essas senhoras venham a Juízo, sob com-
promisso legal. Marco prazo de dez dias para as senhoras deporem. Não terei
dúvidas em deferir intimação judicial caso não queiram comparecer indepen-
dentemente dessa intimação. Darei afinal minha terceira decisão, que, seja qual
for, não permitirá a renovação da controvérsia. Intime-se.
N. Hungria
Certa de que, apesar de ter a proteção da lei, não conseguiria nada pe-
los tortuosos caminhos da Justiça, Corita insistia em transformar aquele num
caso político, um caso que, na sua opinião, não interessava apenas a ela, pois
tinha virado um problema social. No dia 25 de junho fez publicar um "A pe-
didos" no Jornal do Commercio - um manifesto assinado por "Mater Doloro-
sa". Aquela era uma disputa, dizia o documento, que interessava "de perto
a todas as senhoras, a todas as mães, à sociedade em geral", porque revela-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
va "como uma filha de apenas sete anos" era "retirada da companhia da
mãe". Com todos os personagens tratados apenas pelas iniciais de seus no-
mes, o documento não apenas denunciava Chateaubriand (chamado de "o
dr. C.") por ter tirado ilegalmente a menina da mãe, mas insistia em que ele
conseguira " que a infeliz criança fosse posta sob a tutela de cidadão que é da
privança e amizade do mesmo dr. C.". Num segundo anúncio, este assinado
por "Crucem Lacrimosa", Corita batia diretamente em Chateaubriand, mas
sempre tomando o cuidado de não citar seu nome:
Faz cerca de oito anos, em São Paulo, um certo homem seduziu uma menina
que tinha então apenas quinze anos de idade. E, ao cabo de meses, a desventu-
rada menina deu à luz uma filha, tendo sido mãe antes de completar dezesseis
anos de idade! Esse homem era, já desde então, e é ainda, civilmente casado.
Vivendo vida moralmente desregrada e à-toa, tal homem tanto se esgotou e
aventalhou que se constituiu presa de mórbido ciúme, de mais em mais acen-
tuado e grave porque, tão rápido se via aquele homem fisicamente depreciar-se,
quão mais bela se mostrava dia a dia a criatura a quem infelicitara, menina ain-
da. O ciúme patológico transforma em ódio repulsivo o sentimento que era de
adesão física: e vai daí ter aquele homem, simultaneamente, expulso de seu
"brilhant chateau" sua companheira e raptado a filha dela, que tem apenas sete
anos de idade.
A seguir, ninguém se admire!, tal homem recorreu ao Judiciário e, apesar de ter
se confessado civilmente casado e, conseqüentemente e por isto mesmo, não
ter qualidade legal para, em Juízo, nem representar a filha que lhe é adulterina,
nem promover litígios sobre a posse da menor, conseguiu ele sentença judiciá-
ria que pôs a menina sob a tutela de um seu amigo. Ficou assim inclusive san-
cionado o rapto da menor, ao invês de ter sido punido. E mais: tudo isso esse
homem conseguiu com depoimentos de criados seus, depoimentos esses que o
próprio juiz reconheceu na sentença com a eiva de grande parcela de mentira e
de maldade.
Crucem Lacrimosa
Aquela era mais uma tarefa para A Raposo Tavares. Na edição notur-
na do Diário da Noite do mesmo dia saía um "A pedidos " subscrito não pelo
jornalista, mas por seu heterônimo bandeirante, encimado por um enorme
título de três linhas: "A audácia de um cáften, Clito Bockel, da firma Costa
Pereira & Bockel Ltda., mandando agredir juízes porque estão salvando me-
nores do contato abjeto desse rufião". Escrita em termos muito parecidos
com os textos do massacre contra Flues, a nota era de arrepiar:
Está no Jornal do Commercio de hoje uma publicação escrita por um velhote pito-
resquíssimo, verdadeiro macaco de foro. Chama-se Mário Bulhão Pato e faz pipi
nas calças. Ele alega que uma moça está privada da posse de sua filha, pela in-
tervenção arbitrária da Justiça carioca. Não é essa precisamente a verdade. Essa
moça vive publicamente com um cáften, o qual exerce tal profissão desde os de-
zessete anos de idade. Chama-se Clito Bockel. É profissional conhecido do leno-
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FERNANDO MORAIS
cínio. E tem ficha na polícia. Viveu Clito Bockel sustentado durante treze anos
pela mulher Lídia, amante de um homem riquíssimo, o qual a mantinha para
que Bockel, por intermédio dela, lhe extorquisse o dinheiro que tem na Costa
Pereira.
Clito Bockel sustenta a Costa Pereira com dinheiro roubado de infelizes que
ele explora. Está explorando uma pobre argentina, a tal "Mater Dolorosa
" da
publicação de hoje. É um imbecil tão chapado que confessou a duas pessoas de
bem sua abjeta co-participação no assalto da inocente. Amanhã prosseguiremos
com outros detalhes que mostram não o rastro, mas a cara torpe do cáften em
toda essa ignomínia.
A. Raposo Tavares
Cumprindo a promessa, no dia 26 o A. Raposo Tavares voltava à carga
na primeira edição do Diário da Noite. Nunca se esquecendo de chamar a
atenção para o nome da empresa de Bockel, que de raspão também era des-
moralizada pela campanha, Chateaubriand titulou pessoalmente o "A pedi-
dos", escrito algumas oitavas abaixo do anterior: "Clito Bockel, de Costa Pe-
reira & Bockel Ltda., e as protérvias de um escroque contra a Justiça do
Brasil".
Quem lê os "A pedidos" do Jornal do Commercio está vendo a campanha que Cli-
to Bockel, explorador de mulheres, está mandando fazer ali, servindo-se de um
velhote obsceno, Mário Bulhão Pato, contra a Justiça do Rio de Janeiro. O que
essa Justiça praticou de horrível foi somente isto: dar a uma criancinha de inte-
ligência privilegiada o clima de decência e de moralidade em que ela deveria vi-
ver. A sua família materna é um grupo parasitário. Ninguém ali tem profissão,
e todos vivem a existência dos chupins. A mãe, aos catorze anos, já vivia teúda e
manteúda com o capitalista Lara, de São Paulo. Era uma menina já deflorada
e, ao que parece, não pelo capitalista. Clito Bockel, seu atual amante, é um ru-
fião casado. Vive de mulheres há catorze anos. A confissão de que ele tem a mãe
da menor a serviço de sua profissão está em atos que foram rigorosamente con-
trolados pela Justiça, inclusive pela atitude da mulher legítima do cáften, expul-
sando-o do lar.
A publicação do Jornal do Commercio contém uma miséria contra o juiz da 4
Vara. Ele não nomeou tutor especial da menor pessoa conhecida do pai desta.
Ao contrário, recusou quatro nomes que o pai lhe levou. O pai da menor só uma
vez na vida se encontrara, e isto casualmente, com o tutor de sua filha.
Como entregar a jóia de vida, o botão em flor que é a criança objeto desse plei-
to, a almas chafurdadas em tanta lama e tanto pus?
A. Raposo Tavares
Na manhã seguinte, sexta-feira, 27 de junho, Chateaubriand já acordou
com a atenção voltada para outro assunto: a cerimônia de batismo do Au-
gusto Severo, o avião que tinha sido doado à campanha "Dê Asas à Juven-
tude " pela seguradora Cia. Segurança Industrial, de Guilherme Guinle e An-
tônio Prado Jr. Marcada para as dez horas da manhã na Ponta do Calabouço,
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FERNANDO MORAIS
aquela seria uma festa especial para Chateaubriand, pois a madrinha era sua
eterna paixão, Iolanda Penteado, que tinha construído e dado de presente a
Leme, no interior de São Paulo (cidade onde ela tinha sua fazenda e que iria
receber o aparelho), não apenas o prédio do aeroclube, mas também a pista
de pouso para os treinamentos. Chateaubriand passou às nove da manhã na
redação e viu que sua orientação tinha sido obedecida à risca: toda a meta-
de superior da última página de O Jornal daquele dia era dedicada a convo-
car a população e as autoridades para o evento, saudado em título de oito
colunas como "mais uma bela festa aviatória na manhã de hoje". Antônio
Carlos Vieira Christo, secretário de Dario de Almeida Magalhães, viu quan-
do o jornalista passou na sala do seu chefe e convidou-o para irem juntos à
cerimônia. Como Dario recusasse o convite ele acabou arrastando para o Ca-
labouço Austregésilo de Athayde e Olímpio Guilherme, redator do jornal
que tinha sido ator e diretor de cinema em Hollywood e vivera um roman-
ce com a intelectual comunista Patrícia Galvão, a "Pagu", de São Paulo-
um bonitão que era célebre entre as mulheres como "o homem que tem os
mais belos dentes do Brasil".
Quando chegou ao aeroporto, estavam lá o ministro da Aeronáutica,
Salgado Filho, a madrinha Iolanda, os doadores do avião, o príncipe herdei-
ro da Coroa brasileira, d. João de Orléans e Bragança (que era piloto naval),
o jornalista francês Jacques Epstein, exilado no Brasil, um grupo de jovens
oficiais da Aeronáutica reunidos em torno do tenente-coronel Márcio de
Souza e Melo, o padre aviador Geraldo da Silva e Souza (que pilotaria o Au-
gusto Severo até Leme) e vários fotógrafos e repórteres dos Associados. Cha-
teaubriand mandou que Amâncio se afastasse do grupo e ficasse tomando
conta de um garoto desacompanhado que ele convidara para a festa, Paulo
Nonato, filho do juiz e consultor geral da República Orozimbo Nonato. Até
a metade a cerimônia não foi em nada diferente das dezenas que já tinham
acontecido naquele mesmo lugar. Primeiro falou alguém em nome dos doa-
dores; depois foi a vez da madrinha Iolanda Penteado; depois do ministro,
Chateaubriand encerrou a sessão de discursos: "Desejo em primeiro lugar
expressar nosso agradecimento pela presença do ministro da Aeronáutica
nesta festa e pela galanteria da senhora Iolanda Penteado, que veio ungir dos
santos óleos de sua espiritualidade o batismo do novo aparelho...". Nem seu
discurso deixaria de ser uma repetição de tantos outros que fizera em oca-
siões idênticas.
Feito o batismo, apareceram os garçons com o champanhe. Chateau-
briand tomou das mãos de um deles a bandeja, dobrou o guardanapo sobre
o braço esquerdo e saiu servindo os convidados que se encontravam à sua
volta. Uma taça para a madrinha, uma para o ministro, uma para cada um
dos doadores presentes. Aproximou-se do grupo de oficiais da Aeronáutica,
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CHATÕ, O REI DO BRASIL
todos fardados, e com uma mesura ofereceu-lhes uma taça. Um deles, alto e
louro, tomou uma taça nas mãos e perguntou-lhe delicadamente:
- O senhor sabe quem sou eu?
Ele respondeu com um sorriso:
-- Não;não sei. Quem é o senhor?
O jovem oficial respondeu de cara fechada:
- Eu sou o tenente Paulo Bockel, seu filho da puta! Sou irmão do Clito
Bockel!
Nem acabou de falar e, num gesto instantâneo que sem dúvida ensaia-
ra, com mão esquerda jogou a taça de champanhe nos olhos do jornalista e
com a direita aplicou-lhe violento murro no olho esquerdo. Apesar de sua
resistência de remador, Chateaubriand percebeu instintivamente que o ho-
mem que o agredia era pelo menos vinte centímetros maior que ele. Largou
a bandeja com garrafa e taças no ar, enfiou a mão na cintura e tirou o revól-
ver, que já saiu do coldre disparando. Com um olho obscurecido pelo san-
gue que jorrava de sua sobrancelha e o outro ardendo e semifechado pelo
champanhe, viu que duas balas tinham atravessado a batina do padre. De-
sabou no chão atirando mais uma, duas, três vezes. Ao ver um vulto avan-
çar sobre seu corpo ainda caído, mirou na cabeça. Chateaubriand disparou e
viu a bala entrar na boca do agressor. Os guarda-costas de Salgado Filho car-
regaram o jornalista para o banco de trás do carro do ministro e arrancaram
em disparada. A festa de batismo do Augusto Severo estava terminada.
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24
Ainda não eram onze horas da manhã quando o jornalista francês Jac-
ques Epstein entrou esbaforido pela redação dos Associados e escancarou
aos gritos a porta da sala de Dario de Almeida Magalhães:
- Chateaubriand a tué Olimpio Guilherme! Chateaubriand a tué Olimpio
Guilherme !
Naquele mesmo instante Chateaubriand estava chegando ao consultó-
rio de Drault Ernanny, amparado pelos seguranças do ministro Salgado Fi-
lho, assustado e com o rosto coberto de sangue:
- Doutor Drault, parece que eu matei Olímpio Guilherme e que arran-
quei o saco de um padre com dois tiros! O padre eu nem conheço, doutor
Drault, mas eu achei que estava atirando no filho da puta do irmão do
Bo-
ckel e fui acertar logo na cara de Olímpio Guilherme, o homem mais bonito
do Brasil?
A célebre pontaria ruim de Chateaubriand não fizera tanto estrago as-
sim. Quando Epstein chegou ao jornal com a notícia de que Chateaubriand
havia assassinado Olímpio Guilherme, Dario de Almeida Magalhães procu-
rou se informar sobre a tragédia. Mas, ao chegar ao hospital em que o ator e
jornalista tinha sido internado, soube que ele escapara por verdadeiro mila-
gre. Chateaubriand disparara ao todo seis tiros. O vulto que se aproxima-
ra dele não era o de Paulo Bockel, como imaginara na confusão, mas o de
Olímpio Guilherme (também alto e forte como o agressor), que se abaixara
para socorrê-lo. A bala de calibre 38, disparada quase à queima-roupa, ar-
rancou-lhe os dentes e foi alojar-se na garganta, a poucos milímetros da me-
dula. Ele já tinha sido operado e estava fora de perigo. As outras duas balas,
que Chateaubriand temia que tivessem "arrancado o saco" do padre-piloto
Geraldo da Silva e Souza, na verdade passaram entre as pernas do religioso,
apenas perfurando sua batina. A quarta bala, localizada depois pelo inqué-
rito feito pela Aeronáutica, perdera-se no ar e fora alojar-se na parede do
fundo de um hangar. Como Olímpio Guilherme não sofreria nenhuma se-
qüela mais grave, o único prejuízo maior provocado pelos tiros tinha sido a
constrangedora revelação de que "os mais belos dentes do Brasil" eram pos-
tiços, feitos em Hollywood. Do consultório de Ernanny, Chateaubriand li-
gou para o jornal para se informar sobre a notícia de que teria assassinado o
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
redator de seu jornal. Ao saber que ele estava vivo, quis saber como tinha fi-
cado "a cara mais bonita do Brasil":
- Mas doutor Dario, eu estraguei muito o nosso Olímpio? Estou arra-
sado! Será que destruí os dentes dele?
- Quanto a isso o senhor pode se tranqüilizar, doutor Assis. Acabamos
de descobrir que eram dentes falsos, iguais aos de qualquer velhinho.
No começo da tarde o redator Aurélio Buarque de Holanda passaria em
frente à sala de Chateaubriand e veria o dono do jornal lá dentro, de suspen-
sórios, apoiado sobre um arquivo, já escrevendo seu artigo do dia seguinte,
como se nada de anormal tivesse acontecido. Viu o olho dele roxo, coberto
de bandagens, e quis saber o que tinha ocorrido. Chateaubriand já estava tra-
tando o incidente com naturalidade:
- Não se preocupe, seu Aurélio, não foi nada. Uma briguinha de rua,
nada mais.
À noite o empresário Osvaldo Rizzo, um dos diretores da Segurança In-
dustrial (que doara o Augusto Severo para o aeroclube de Leme), oferecia
um jantar à alta sociedade do Rio na sua elegante Vila Rizzo, ao lado do Gá-
vea Golf Club. A notícia do tiroteio no aeroporto havia circulado (falava-se
que Olímpio Guilherme tinha morrido, ou estava à morte) e os convidados
se surpreenderam quando Chateaubriand entrou no salão sorridente, vesti-
do de smoking e com o olho esquerdo coberto por uma venda preta de pira-
ta. Sua presença fez com que dezenas de casais se retirassem imediatamente
da casa, em sinal de protesto contra a violência dos artigos dos últimos dias
e dos tiros daquela manhã.
Num claro sinal de que interessava ao governo deixar vazar para o pú-
blico o incidente do Calabouço, apesar de censurada a notícia saiu com des-
taque em pelo menos três jornais do Rio - transformando-se no grande es-
cândalo da cidade no dia seguinte. No tradicional e requintado Colégio
Aldridge, na praia de Botafogo - uma instituição em que os alunos eram
educados dentro de rígidos padrões britânicos -, o dono, mr. Aldridge, su-
geriu a Jeanne Allard que Gilberto tivesse férias extraordinárias para ser
poupado diante dos coleguinhas daquele escândalo de que o pai tinha sido
o protagonista principal. A saída foi inventar que ele estava com os pul-
mões fracos e teria de ser submetido a um tratamento: lá foi Gilberto para
Friburgo, onde ficou um mês, submetido a uma superalimentação tão forte
que retornou à escola com não se lembra quantos quilos a mais.
Os jornais Associados trataram o batismo do avião como se nada de
anormal tivesse acontecido. Convocado a depor no Inquérito Policial Militar
aberto pela Aeronáutica (o local onde o tiroteio aconteceu era área militar),
Chateaubriand recusou-se a comparecer e enviou ao oficial encarregado do
IPM apenas um memorando de uma lauda, datilografado e assinado:
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Em setembro de 1940 o depoente viu-se constrangido a fazer sair de sua residên-
cia Cora Acuna, com quem vivia desde 1933, por comprovada irregularidade de
conduta da mesma. Soube que ela, havia mais de dois anos, tinha por amante
Clito Barbosa Bockel. O fato ficou sobejamente constatado nas peças de justifi-
cação que o depoente ofereceu, na 4á Vara de Órfãos, a fim de impedir que a fi-
lha que tivera com Cora Acuna continuasse a viver na ambiência viciada da
mãe, tia e avó, gente de costumes desregrados e de condição inferior, e do pró-
prio amante da mãe, rufião calejado na profissão desde os dezessete anos. O juiz
e o curador de órfãos verificaram que Clito Bockel vivia de fato àquele tempo
com as duas, a esposa legítima e, em mancebia, com Cora Acuna.
Clito Bockel, só para citar um fato, chegou a procurar o dr. João Firmino Cor-
reia de Araújo, amigo pessoal do depoente, a fim de pedir-lhe que obtivesse o
apoio do capitão João Alberto na luta que ele travava para arrebatar Teresa, não
ao seu pai, mas à tutela de um homem de bem, do eminente jurisconsulto e sua
dedicadíssima esposa, com quem ela vive atualmente.
No dia 27 do mês findo, achando-se o depoente em frente aos srs. Osvaldo
Rizzo e Clóvis Morais, na porta do hangar do Aeroporto Santos Dumont, após
a cerimônia de batismo do avião Augusto Severo, viu que um moço alto, lou-
ro, vestido de aviador, perguntava-lhe se não o conhecia. Respondeu que não.
O interpelante declinou o nome de Paulo Bockel e o depoente declarou simples-
mente isto: que estava às suas ordens. Encontrou-se, então, atacado inopina-
damente por três agressores, Paulo Bockel inclusive, que lhe vibraram socos pe-
las costas e pelo lado esquerdo do rosto, onde dois dos que o atacavam deveriam
haver se postado. Foi-lhe jogada também uma taça de champanhe nos olhos.
Diante da superioridade e cobardia dos agressores, o depoente reagiu, usan-
do de uma arma que trazia. Sacou-a e defendeu-se como pôde, tendo tido a in-
felicidade de ferir seu companheiro Olímpio Guilherme, o qual se interpôs en-
tre ele e os agressores, justo quando o depoente os visava. Não lhe foi possível
distinguir o dr. Olímpio Guilherme, o qual avançara pelo lado esquerdo, dado
o golpe que recebera na vista, desse mesmo lado. Não lhe tocaram mais os ata-
cantes, desde que verificaram a decisão do depoente de defender-se. Uma vez
revidados, os três guardaram cautelosa distância, só avançando quando viram
abater o dr. Olímpio Guilherme. Chegados a cinco metros de distância, o de-
poente pô-los novamente em fuga, atirando-lhes contra as pernas, que eram
desde o começo da reação a arma inteligentemente usada pelos agressores. Re-
velaram-se verdadeiros acrobatas, até que infiltraram dois por entre os aviões
do hangar, devidamente postos em fuga.
O depoente não se utilizou de toda a carga que trazia, porque não é de seus
hábitos, nem dos costumes do sertão paraibano, caçar fugitivos.
Assis Chateaubriand
Apesar das lesões corporais em Olímpio Guilherme e da tentativa de
homicídio contra Paulo Bockel, o inquérito morreu sem que Chateaubriand
fosse molestado. Mas o tiroteio jurídico pela posse de Teresa prosseguia,
agora agravado pela violência ocorrida no batismo do Augusto Severo. Cer-
cada de bons advogados, Corita tentava todos os recursos possíveis para
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FERNANDO MORAIS
reaver a filha. Desta vez exigia que Chateaubriand fizesse na Justiça uma
"retratação de paternidade" - ou seja, uma vez que ele se recusara a regis-
trá-la ou mesmo a reconhecê-la formalmente como filha, não havia qualquer
prova de que fosse de fato o pai da criança. Como a ciência de então não ha-
via descoberto o infalível método de identificação genética por meio do DNa,
era a palavra de um contra a de outro. De novo ela bateu no paredão que
Chateaubriand montara. Nelson Hungria respondeu à petição falando gros-
so contra a mãe de Teresa. Lembrou que, embora o batismo da menina não
tivesse valor jurídico, durante aquela cerimônia religiosa os dois tinham
comparecido e se apresentado como "pai e mãe" da garota; que a insinuação
de que a paternidade de Chateaubriand era uma ilusão provava "a levian-
dade e o inescrúpulo " da reclamante; e se, por hipótese, aquilo fosse verda-
de, tratava-se de uma confissão, por parte de Corita, "de que já se entregava
a amores vadios" enquanto vivia com o jornalista. Hungria terminava baten-
do pesado:
D. Cora é mulher de costumes levianos e censuráveis. É incontestável que, após
sua ligação ilícita com o dr. Chateaubriand, d. Cora passou a outros amores não
menos ilícitos que, como é notório, acarretaram o desmantelo de outro lar e até
já foram motivo de escandalosa e cruenta cena de violência. Sem ter recursos pe-
cuniários próprios, d. Cora leva vida de luxo, que lhe é evidentemente custeada
pela bolsa do novo amante. Esta é que é a verdade dos fatos. Mantenho, pois, o
despacho.
Pintada como uma devassa que efetivamente não era, todos os recursos
de Corita tinham a mesma resposta: não. Mas os advogados de Chateau-
briand e seus amigos juízes o advertiam de que aquela situação não prospe-
raria por muito tempo. Tanto o despacho inicial de Hungria como todos os
que se seguiram eram provisórios, até que a Justiça se manifestasse sobre o
mérito da questão central: a destituição de Corita como detentora do pátrio
poder - e da guarda, conseqüentemente - de Teresa. E ainda que Corita
perdesse, tratava-se de uma questão entre ela, Teresa e a Justiça, já que Cha-
teaubriand, legalmente, nenhum direito teria de interferir na disputa. Além
de todos esses argumentos contra si, o jornalista foi alertado para mais um
por Adauto Lúcio Cardoso, seu advogado: Corita tinha razão ao afirmar que
ele continuava casado. O que acontecera entre ele e Maria Henriqueta em
1930 tinha sido uma separação de corpos, mas o desquite nunca tinha sido
formalizado. "Mas eu posso tentar me desquitar de d. Maria Henriqueta",
ele tentou argumentar, "ela não tem motivos para não me dar o desquite."
Cardoso desanimou-o: desquitar-se de nada adiantaria. No caso de Gilberto
o reconhecimento tinha sido possível porque ele fora concebido quando
Chateaubriand ainda era solteiro. Teresa, ao contrário, era o que a lei chama-
va de "filho havido pelo cônjuge fora do matrimônio" (pois ele ainda era ofi-
cialmente casado com Henriqueta quando a filha nasceu), não sendo, por-
406
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
tanto, passível de reconhecimento por parte do pai. Ele teve mais um de seus
ataques de sapateado e ranger de dentes com um argumento que arrancou
gargalhadas de seus advogados:
- Lei, lei! Será que toda merda de lei neste país foi feita para me preju-
dicar? Se é assim, se a lei é contra mim, então, meus senhores, vamos ter que
mudar a lei!
Indiferente aos risos que provocou nos seus defensores, Chateaubriand
ficou obcecado por aquela idéia: se para impedir que Teresa caísse nas mãos
de Corita e Bockel era preciso mudar a legislação brasileira, então era isto
que ia acontecer. Sempre por meio de intermediários, passou a fazer cuida-
dosas sondagens junto ao presidente Getúlio Vargas para ver como ele rea-
giria à possibilidade de haver alguma alteração na legislação federal que tra-
tava do direito de família. A reação de Getúlio, mesmo que se tratasse de
mera sondagem, era sempre a pior possível. Era voz corrente no governo
que "direito de família, no Brasil, é área de competência da Igreja" - da con-
servadora Igreja do cardeal Leme. E se havia alguém com quem Getúlio de-
cididamente não queria encrenca era com a Igreja - uma das raras institui-
ções brasileiras que não estavam sob a rígida tutela do Estado Novo. A in-
transigência do presidente de nem sequer tratar daquele assunto não fez
Chateaubriand esmorecer.
Foi por meio de um misterioso expediente que ele tomou conhecimen-
to de uma dessas reações negativas de Getúlio à sua idéia inacreditável de
mudar as leis do Brasil só para que pudesse ter o pátrio poder sobre a filha.
Chateaubriand mantinha em segredo um dispositivo - que nunca revelou
a ninguém - através do qual alguns dos guarda-costas de Vargas envia-
vam-lhe relatórios regulares sobre conversas entreouvidas no gabinete pre-
sidencial. Nunca se soube exatamente se a origem desse canal privilegiado
estava no suborno dos guarda-costas ou se alguém de escalão superior era
chantageado pelo jornalista - ou, simplesmente, se se tratava apenas de
uma troca de favores entre ele e a pessoa que lhe passava os informes (é pro-
vável que os seguranças ganhassem por serviço prestado, pois cada informa-
ção vinha acompanhada do nome do responsável). A verdade é que vários
desses documentos puderam ser localizados nos diversos lugares por onde
se espalhou, depois da morte de Chateaubriand, a papelada que ele acumu-
lara em vida. Às vezes eles continham informações absolutamente pueris,
mas tudo o que se passava no gabinete presidencial que pudesse interessar
ao jornalista era incluído. E foi por um desses resumos que Chateaubriand
soube que Getúlio não via com bons olhos sua estapafúrdia idéia. Como em
todos os outros, o conteúdo era seco - indicava apenas o nome do infor-
mante e ia direto ao assunto:
Dr. Assis,
para seu governo:
407
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FERNANDO MORAIS
Informe do guarda-costas Mauro (informe nº 400)
O general Pinto, chefe da Casa Militar, conversando com o dr. Vergara, disse
que a briga do dr. Assis Chateaubriand com o sr. Agamenon Magalhães foi cau-
sada por culpa exclusiva do dr. Getúlio:
- Ele é o responsável.
O dr. Vergara quis saber:
- Por quê?
- Porque no começo o dr. Getúlio apoiou o Chateaubriand. Depois, passou
a apoiar o Agamenon.
Informações do guarda-costas Alcides (informe nº 215)
No Salão Manoelino o dr. Andrade Queiroz entrou para falar com o dr. Ge-
túlio, enquanto eu guardava a porta. Ouvi que falava sua excelência, mas não
pude captar as palavras. O dr. Getúlio respondeu secamente, visivelmente mal-
humorado:
- Eu não posso fazer um decreto de aspecto exclusivamente pessoal para re-
solver problemas familiares do dr. Assis Chateaubriand.
O dr. Andrade Queiroz ponderou sobre a pessoa do dr. Assis Chateaubriand.
O dr. Getúlio respondeu:
- Sei que é difícil governar sem ele, mesmo com a imprensa sob controle,
mas vale a pena esperar um pouco.
O dr. Andrade Queiroz saiu e vieram ao seu encontro os drs. Vergara e Quei-
roz Lima com a pergunta:
- Que foi que o homem resolveu?
Ante a resposta negativa, comentaram sobre a necessidade de insistir.
Vergara era Luís Vergara, que por dez anos ocupou o posto de chefe da
Secretaria da Presidência da República (em cujo lugar seria criada depois a
Casa Civil); Queiroz Lima dividia com Alzira Vargas, filha de Getúlio, o car-
go de auxiliar de gabinete do presidente; e Alberto de Andrade Queiroz-
jornalista e escritor gaúcho, oficial de gabinete e um dos redatores dos dis-
cursos do presidente - era um dos muitos emissários que Chateaubriand
havia enviado para tentar convencer Vargas a mudar a legislação brasileira.
(O anódino informe do "guarda-costas Mauro" continha pelo menos um
equívoco: Chateaubriand rompera com Agamenon Magalhães quando este,
por puro capricho, em 1938, valendo-se de seus poderes de interventor em
Pernambuco, mudara para Chã de Carpina o nome dado pelo pai do jorna-
lista à Floresta dos Leões, que já era uma cidade de verdade.)
Tamanha era a obstinação de Getúlio em se recusar a atender o pedido
que Chateaubriand já cogitava outra alternativa que não a modificação da le-
gislação, quando num sábado, 26 de setembro, recebe na redação de O Jornal
um telefonema de um de seus aliados no gabinete do presidente:
408
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
- Compre o Diário Oficial da União de hoje e você vai ter uma surpresa.
Ele não acreditou no que tinha diante dos seus olhos. Na segunda pági-
na do jornal lá estava o decreto-lei, tal qual fora pedido tantas e tantas vezes
a Getúlio:
Decreto-lei n 4737, de 24 de setembro de 1942
Dispõe sobre o reconhecimento dos filhos naturais
O Presidente da República, usando das atribuições que lhe confere o artigo
180 da Constituição, decreta:
Art.1º - O filho havido pelo cônjuge fora do matrimônio pode, depois do
desquite, ser reconhecido ou demandar que se declare sua filiação.
Art. 2º - O presente decreto-lei entra em vigor na data da sua publicação, re-
vogadas as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1942,121º da Independência, 54º da Repú-
blica.
Getúlio Vargas
Chateaubriand dava pulos de alegria dentro de sua sala, com a folha de
jornal na mão. Chamou o advogado para transmitir-lhe a boa nova e dar
uma ordem:
- Procure Maria Henriqueta com toda urgência e trate de fazer esse
desquite logo. Dê tudo o que ela exigir mas arranje esse desquite.
Apesar de todo o seu prestígio, Chateaubriand ainda teria de enfrentar
a sossegada e intransponível burocracia forense brasileira. Primeiro para
conseguir fazer correr e homologar o desquite com Maria Henriqueta (que
não pediu nada além do que já havia recebido). A homologação acabou sen-
do publicada apenas no dia 13 de novembro, quase dois meses depois do re-
querimento. O dono dos Associados teve de percorrer de novo todo o labi-
rinto de cartórios, selos, requerimentos, prazos e escaninhos do processo de
reconhecimento da filha - para só então poder exibir aos amigos, como um
troféu de caça, a nova certidão de nascimento de Teresa, onde constava "Pai:
Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo; mãe: Cora Acuna".
Mas aquilo era só o começo. O decreto-lei fora feito apenas com a finalidade
de permitir que um pai desquitado pudesse reconhecer um filho tido fora do
casamento, mas não dava a Chateaubriand nenhum direito adicional sobre
Teresa além dos que Corita já tinha. Entre ele e a filha continuava em vigor
o pétreo, maldito artigo 16 da lei 3200, que estabelecia que o pátrio poder só
poderia ser exercido "por quem primeiro reconheceu o filho" - o que, no
caso, referia-se a Corita. Mas ela não perdia por esperar. Passados os quatro
meses que Chateaubriand gastou para se desquitar e reconhecer a filha, o
Diário Oficial estampava o inacreditável decreto-lei de Getúlio feito sob en-
comenda e sob medida para o jornalista, e que entraria para a história do Ju-
diciário brasileiro com o nome de Lei Teresoca:
409
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FERNANDO MORAIS
Decreto-lei nº 5213, de 21 de janeiro de 1943
Modifica o art.16 da lei sobre a organização e proteção da família
O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180
da Constituição, decreta:
Art.1" - O art.16 do decreto-lei n=' 3200, de 19 de abril de 1941, passa a vigo-
rar com a seguinte redação:
Art.16 - O filho natural, enquanto menor, ficará sob o poder do progenitor
que o reconheceu e, se ambos o reconheceram, sob o do pai, salvo se o juiz en-
tender doutro modo, no interesse do menor.
Art. 2" - O presente decreto-lei entrará em vigor na data de sua publicação,
revogadas as disposições em contrário.
Rio de Janeiru, 21 de janeiro de 1943,122" da Independência e 55" da Repú-
blica.
Getúlio Vargas
Protegido pela Lei Teresoca, o jornalista requereu e obteve imediata-
mente o pátrio poder e a guarda de Teresa, e ao mesmo tempo conseguiu
que a Justiça determinasse um tutor permanente para ela, o seu amigo e juiz
Orozimbo Nonato, em cuja casa ela viveria até completar dezoito anos. Cha-
teaubriand se dava por satisfeito por ter conseguido que o presidente da Re-
pública mudasse as leis do país para atender a um capricho seu? Ainda não.
Segundo alardeava a todos, "agora que o inimigo está morto, resta apenas
remover o cadáver". Montado na garupa da onda de xenofobia que varreu
o Brasil do Estado Novo, ele tentou, em vão, conseguir a expulsão de Corita
do país como "estrangeira indesejável". Sob este terrível rótulo, o governo
havia deportado dezenas de imigrantes e militantes políticos perseguidos
em seus países, entre os quais ficariam célebres os casos da romena Genny
Gleizer e da alemã Olga Benario, ambas judias (esta última grávida, esperan-
do um filho de Luís Carlos Prestes), ambas entregues à polícia nazista. No
ano anterior, antes que fosse publicado o primeiro decreto de Vargas, Cha-
teaubriand tentara com o entãu chefe de polícia Filinto Müller a expulsão de
Corita. Müller recusou-se a atender o pedido, segundo Chateaubriand "por
ser casado com uma estrangeira e por suas afinidades ideológicas com o na-
zista Clito Bockel". (Mais de uma vez o jornalista David Nasser confessaria
ao advogado Leonardo Alkmin, então casado com Teresoca, que sua famo-
sa série de reportagens, transformada no livro Falta alguém em Nuremberg,
um libelo contra Filinto Müller, fora escrita por encomenda de Chateau-
briand, como vingança pela recusa do chefe de polícia a deportar Corita.)
Corita ficou muito assustada quando soube que Chateaubriand estava
tentando sua expulsão. Além de temer o incontrolável poder que o pai de
sua filha revelara ao conseguir de Getúlio a escandalosa Lei Teresoca, ela
nunca tinha se preocupado em naturalizar-se brasileira - era cidadã argen-
tina e, portanto, vulnerável à autoritária legislação brasileira em vigor. Dura
410
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
na queda, porém, Corita resolveu apelar a quem detinha efetivamente o po-
der: o presidente da República. Aconselhada por amigos, decidiu não solici-
tar audiência e abordou Getúlio Vargas em uma de suas tradicionais cami-
nhadas noturnas, cercado de guarda-costas, entre o Catete e o Palácio
Guanabara. O presidente ouviu em silêncio a mulher a quem ele privara da
companhia da filha e ao final disse apenas:
- Procure minha oficial de gabinete, dona Alzira Vargas, que ela resol-
ve esse problema para a senhora.
Além da ordem do presidente, Alzira Vargas receberia um pedido adi-
cional para receber Corita, vindo de Filinto Müller, que já não era mais che-
fe de polícia do Distrito Federal. Corita aparece no Palácio do Catete acom-
panhada do advogado e levando uma montanha de papéis. Fumando muito,
Alzira ouvia admirada o apelo daquela mulherzinha miúda e tenaz que se
atrevia a enfrentar, sozinha, um dos homens mais poderosos do Brasil.
Quando Corita terminou ela perguntou:
- Escute aqui: você tem uma certidão de nascimento provando que a
menina é brasileira e é sua filha?
- Tenho.
- Nessa certidão consta que o pai é brasileiro?
- Sim, senhora.
- Então você não tem com que se preocupar, minha senhora. Você está
garantida pela lei brasileira. Nós não estamos em guerra com a Argentina e
você não cometeu crime nenhum. Então pode ir embora que eu garanto: nem
Chateaubriand nem ninguém vai expulsá-la do país.
Ao saber da audiência (certamente por seus informantes), Chateau-
briand foi ao palácio tirar satisfações com Alzira:
- Eu vim aqui dizer à senhora para não se meter nesse meu problema
familiar. Minha botina está pronta para chutar qualquer canela que se intro-
meta nesse assunto, inclusive a sua.
A filha do presidente não fez caso da ameaça:
- Estou me importando pouco com sua botina, doutor Assis. Está de-
cidido que a moça está em situação legal e vai permanecer no país.
Furioso, Chateaubriand passaria anos sem dirigir a palavra a Alzira,
responsável pela frustração de seu plano diabólico: Corita permaneceria
para sempre no Brasil.
Ninguém pôde jamais identificar, com segurança, que razões teriam le-
vado o todo-poderoso presidente Getúlio Vargas a curvar-se a uma exigên-
cia de Chateaubriand e baixar a Lei Teresoca. Todas as pessoas que privaram
da intimidade do jornalista, entretanto, foram unânimes em apontar para a
mesma suspeita: ao promover uma enormidade jurídica como aquela, Getú-
411
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FERNANDO MORAIS
lio pagava ao dono dos Associados um favor que este lhe fizera em março
de 1942 - demitir seu amigo e principal colaborador Dario de Almeida Ma-
galhães, um inimigo declarado do Estado Novo que a cada dia ganhava mais
força e poder dentro das empresas, das quais era presidente.
Na ótica dos Associados, o preço pago por Getúlio estava à altura da
perda que representava a saída de Dario. Além de jornalista moderno e di-
nâmico, ele era uma espécie de garantia aos credores (sobretudo os fornece-
dores de papel jornal, todo importado) de que as contas seriam pagas. Toda
sexta-feira Dario distribuía a eles cheques - seus, pessoais, e não das empre-
sas, que nem sempre eram aceitos - para garantir o fornecimento dos pró-
ximos dias. Embora não tivesse patrimônio nem bens, tinha prestígio, sua
palavra era a garantia de que os cheques seriam honrados. No dia em que,
depois de muitos meses de esforço, Dario conseguiu milagrosamente zerar
os débitos dos Associados com os importadores de papel, estes se juntaram
e ofereceram-lhe um banquete no Cassino da Urca para festejar o que consi-
deravam uma data épica: houve um dia em sua história em que os Diários
Associados não deviam nada a nenhum fornecedor de papel.
Quase meio século depois, Dario, em longa carta ao jornalista Carlos
Castello Branco, discordaria da expressão "demissão", utilizada dias antes
na "Coluna do Castello", no Jornal do Brasil, esclarecendo que ele próprio pe-
dira para sair por divergências com Chateaubriand. Ocorre que Castello, em
pessoa, estava na redação do Estado de Minas, em Belo Horizonte, no dia
em que ouviu da boca do próprio patrão a notícia de que o presidente dos
Associados estava deixando as empresas:
Uma noite, em 1942, entre meia-noite e uma hora da manhã, Chateaubriand
apareceu lá no jornal e sentou-se na redação. Ele tinha demitido o Dario de Al-
meida Magalhães. O Dario, que tinha ido fazer uma operação na Clínica Santa
Inês, em Belo Horizonte, era diretor geral dos Diários Associados e, em espe-
cial, diretor do EstAdo de Minas. Então havia uma grande curiosidade em Minas
sobre a saída dele, todos queriam saber qual era a razão. Nós nos reunimos em
torno de Chateaubriand e alguém perguntou:
- Doutor Assis, por que que o senhor demitiu o Dario de Almeida Maga-
lhães?
Ele disse:
- Meu filho, por duas razões. A primeira é que ele tinha feito um plano para
tomar conta dos Diários Associados, mas falhou um ponto do programa dele. É
que antes que o meu avião caísse eu descobri o plano e botei ele para fora. A ou-
tra é que ele estava com o rei na barriga, era um homem muito arrogante. Ele
dava festas para a sociedade do Rio de Janeiro com o meu dinheiro e não me
convidava.
Aquela coisa foi uma surpresa para nós, porque embora fosse muito jovem
ainda - muito posudo, muito bonito -, ao contrário do Chateaubriand ele era
um homem muito severo, no que diz respeito aos costumes.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Não seria a única vez que ele usaria a expressão "com o rei na barriga"
para justificar a demissão do amigo. Ao ver que se haviam passado várias
semanas sem Dario aparecer na redação dos Associados, o repórter Edmar
Morel (o dos aviões) perguntou a Chateaubriand o que tinha acontecido com
o diretor das empresas. Como resposta ouviu uma gargalhada e a seguinte
frase:
- Meu filho, tive que fazer uma cesariana nesse sujeito, para
tirar-lhe o
rei da barriga.
Além desses, dois indícios apontam como mais provável a hipótese de
que Dario foi de fato demitido. Primeiro, os termos de sua última carta diri-
gida a Chateaubriand. Nela, Magalhães diz inicialmente que tomou conhe-
cimento "de sua atitude com relação à minha permanência nos Diários As-
sociados". Mais adiante, continua: "Você alinhavou quatro ou cinco fatos ou
episódios que revelam a minha divergência pessoal com você e denunciam
meu distanciamento ou a minha reserva em face da atual orientação dos
Diários Associados". Essas divergências se tornariam públicas meses depois:
enquanto Chateaubriand continuava um fiel aliado de Getúlio, Magalhães
seria um dos signatários do Manifesto dos Mineiros, a primeira manifesta-
ção civil e desarmada de repúdio ao Estado Novo.
Outro ingrediente a reforçar a suspeita de que Dario tinha sido demiti-
do foi o fato de que ele, ao deixar os Associados, levou como indenização a
considerável bolada de quinhentos contos de réis. Indignado de ainda ter de
pagar a alguém com quem tinha brigado, Chateaubriand vingou-se à sua
maneira. No dia em que o dinheiro foi depositado na conta do ex-diretor, ele
mandou publicar um classificado-gigante no Diário da Noite, anunciando aos
necessitados do Rio de Janeiro que, tendo recebido uma fortuna como heran-
ça, o advogado Dario de Almeida Magalhães iria distribuir o dinheiro para
os pobres no dia seguinte, de mão em mão, a todos os que aparecessem à
porta de sua casa - cujos endereço e telefone iam publicados no pé do anún-
cio. Na manhã seguinte, chocada ao ver a porta de sua confortável casa na
Zona Sul do Rio tomada por hordas de miseráveis, d. Elsa, mulher de Dario,
não viu outra solução: colou um aviso no portão dizendo que seu marido ti-
nha pedido a um amigo para fazer em seu nome a distribuição do dinheiro
- a pessoa que deveria ser procurada era o dr. Assis Chateaubriand, na sede
dos Diários Associados. Como se respondesse à molecagem com um tapa de
luva de pelica, o grave Dario de Almeida Magalhães iria a um tabelião do
Rio, poucos dias depois, para espontaneamente devolver a Chateaubriand,
uma por uma, todas as ações que possuía de dezesseis empresas do antigo
patrão (entre laboratórios, rádios, jornais e revistas) e a propriedade dos tí-
tulos de várias publicações Associadas, que tinham sido registrados em seu
nome.
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FERNANDO MORAIS
O gesto cavalheiresco não apagaria o ódio de que Chateaubriand se to-
mara pelo antigo diretor. Embora fosse igualmente amigo de ambos, quan-
do Arnon de Mello soube da demissão enviou ao dono dos Associados uma
carta elegante e amistosa, na qual anunciava que pedia demissão das empre-
sas "por não estar de acordo com a maneira como foi tratado um amigo tão
fiel de tantos anos". Austregésilo de Athayde foi o escolhido para ser o por-
tador da carta. Ao entrar na sala de Chateaubriand com o envelope na mão
e comentar por alto o conteúdo dele, viu o patrão se enfurecer:
- Ah, então quer dizer que o Arnon está contra mim e do lado desse fi-
lho da puta? Pois me dê isso aqui!
Pegou o envelope com a ponta dos dedos, como se levasse alguma coi-
sa podre, caminhou até a privada, jogou o envelope lá dentro, sem sequer
abri-lo, e apertou a descarga. Além do diretor, os Associados perdiam um re-
pórter do primeiro time, que resolveu deixar a profissão para ficar rico como
corretor e incorporador de imóveis.
Demitido por imposição de Getúlio ou demissionário por sua própria
iniciativa, a verdade é que, embora estivesse se privando de uma das figuras
mais marcantes de toda a sua história, os Associados não perderam o emba-
lo com a saída de Dario de Almeida Magalhães. Ao contrário: apesar de ter
se dedicado quase em tempo integral, e de maneira obsessiva, à campanha
contra Corita e Bockel, Chateaubriand não perdera de vista seus negócios
durante todo aquele tempo. Nos primeiros anos da década de 40, os Asso-
ciados podiam até não pagar em dia suas contas e os salários de todos os em-
pregados, mas estavam transformados em uma rede dona de um poder defi-
nitivamente de meter medo nos inimigos: já eram vinte jornais, cinco revistas
(entre elas a sonhada O Guri, para crianças), oito estações de rádio, uma edi-
tora de livros (a Edições O Cruzeiro) e a Sirta, empresa encarregada de agen-
ciar e distribuir publicidade entre os órgãos das empresas (cuja direção ge-
ral Chateaubriand confiou a seu ex-office-boy Edmundo Monteiro). Cada his-
tória da compra ou incorporação desses veículos tem por trás uma novela,
um empréstimo não saldado, uma pilha de promissórias com vencimento
para as calendas gregas. Quando soube que uma estação de rádio estava à
venda em Belo Horizonte, Chateaubriand telefonou para o diretor regional
dos Associados, Gregoriano Canedo, e deu ordens expressas:
- Canedo, eu soube hoje que a Rádio Mineira está à venda. Veja quan-
to estão querendo por ela, faça uma oferta, pechinche, tente abaixar o preço,
mas pode fechar o negócio.
Algumas semanas depois, de passagem por Belo Horizonte, quis visitar
as instalações da nova Associada, e surpreendeu-se quando Canedo o infor-
mou de que a rádio ainda não tinha sido comprada:
- Doutor Assis, o senhor me autorizou a comprar, mas não mandou o
dinheiro. . .
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Ele levou um susto:
- Dinheiro? Mas que dinheiro, seu Canedo? Comprar com dinheiro
qualquer português compra. A competência, seu Canedo, está em comprar
sem dinheiro.
Dias depois a Mineira era incorporada ao império Associado. Compra-
da com dinheiro, claro. Ao chamar a atenção de seu diretor, Chateaubriand
na realidade resumia, com uma frase de efeito, métodos que para ele eram
absolutamente convencionais, e que aliás tinham sido usados uma vez mais
meses antes. João Calmon (um jovem remador do Club Guanabara que o
dono dos Associados transformara em jornalista, contratara e despachara
para dirigir o Correio do Ceará, de Fortaleza) telegrafara de Manaus dizendo
que o Jornal do Comércio local estava à venda por 650 contos. Chateaubriand
respondeu: "Avise dono que pagamos quinhentos contos. Recursos já garan-
tidos ". Quando veio a resposta afirmativa do proprietário do jornal, ele tele-
fonou para o jovem industrial Francisco "Baby" Pignatari, fabricante dos
aviões Paulistinha que ele comprava às dúzias (sempre com dinheiro alheio)
para a campanha da aviação:
- Seu Baby, preciso de quinhentos contos de réis "emprestados". Sem
juros e sem nenhum compromisso com prazos para pagamento. Pode ser?
Claro que podia. Minutos depois um contínuo chegava à rua Sete de
Abril com um cheque de quinhentos contos de réis - dinheiro que, o pró-
prio Chateaubriand confessaria depois, jamais seria pago. Além de Manaus,
os Associados tinham decidido estender seus tentáculos para todo o Norte.
Saindo de São Luís do Maranhão, onde incorporou dois diários aus Asso-
ciados, João Calmon (que tinha se transformado numa espécie de "compra-
dor profissional") foi para Belém (mais dois jornais) até bater em Porto Velho,
capital do então território de Guaporé, onde surgiu, como uma bandeira de
alpinista no cume de um pico, o Alto Madeira. Com as rádios não seria dife-
rente. Agora eram Associadas a Difusora de São Paulo, a Mineira e a Guara-
ni, em Belo Horizonte, a Sociedade da Bahia, em Salvador, a Educadora do
Brasil, no Rio, e até a Farroupilha de Porto Alegre. Isso sem falar nas duas
Tupi, as pioneiras do Rio e de São Paulo, que também revelavam saúde in-
vejável. Em cada uma destas haviam sido instalados três modernos estúdios
e um auditório, decorados com gigantescos painéis pintados especialmente
por Cândido Portinari (no Rio Chateaubriand "emprestou" a Portinari, de
quem se tornava cada dia mais amigo, o capanga Amâncio dos Santos para
posar como o índio de um dos painéis).
Os grandes investimentos, porém, acabavam sendo feitos era mesmo
em material humano. Onde aparecesse um talento, um bom repórter, um re-
dator de estilo elegante, Chateaubriand mandava buscar. Quando decidiu
que a rádio Tupi do Rio deveria contratar a coqueluche da época, o compo-
sitor e locutor Ari Barroso, recebeu uma má notícia: Ari tinha um contrato
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FERNANDO MORAIS
milionário com a Rádio Cruzeiro do Sul, onde ganhava dois contos de réis
por mês (quase a metade dos cinco contos de Carmen Miranda que haviam
provocado tanto alvoroço). Para deixar a estação antes do fim do prazo, ele
teria de pagar uma multa de setenta contos. Chateaubriand não discutiu: a
Tupi que pagasse a multa e oferecesse a Ari um salário igual ao de Carmen
Miranda - cinco contos de réis por mês. Ari Barroso chefiava programas de
auditório, irradiava jogos, apresentava artistas e ainda arranjava tempo para
escrever colunas regulares em O Jornal e no Diário da Noite. Além da espeta-
cular contratação de Ari, a Tupi carioca entrava no novo e promissor negó-
cio da radionovela com o lançamento do melodrama "Pecado de amor ", es-
trelado pelo jovem radioator Paulo Gracindo.
Mesmo diante de tanto sucesso, Chateaubriand não conseguia ver o rá-
dio senão como um negócio. Sua libido profissional continuava voltada era
para a grande paixão, a imprensa escrita. Os grandes intelectuais fugidos do
nazi-fascismo que tinham vindo bater no Brasil tinham emprego garantido
nos Associados. Assim como o judeu austríaco Otto Maria Carpeaux passou
a redator regular de O Cruzeiro, o escritor francês Georges Bernanos só pôde
manter sua numerosa família no interior de Minas Gerais graças ao empre-
go como colaborador permanente de O Jornal. O magnetismo que a figura do
refugiado político exercia sobre Chateaubriand era tal que ele não fazia dis-
tinção entre exilados de esquerda ou de direita, e não perguntava qual era a
ideologia do regime ou de quem fugia dele. Da mesma forma que dera gua-
rida a Carpeaux e Bernanos, receberia de bom grado Henri Kaufmann,
ex-funcionário do governo colaboracionista de Vichy, na França. Foi assim
também, pela simples condição de exilados, que bateriam às portas de O Jor-
nal fugitivos de regimes vigentes em países vizinhos do Brasil, como o para-
guaio Justo Pastor Benítez, ex-ministro da Educação do presidente Higino
Morínigo, ou Gastón Bernardo, deportado da Argentina pelo ditador José
Félix Uriburu. Diagramador versátil, foi Bernardo quem introduziu no Bra-
sil os títulos com letras contadas, que davam maior beleza visual aos jornais
(até então as manchetes e títulos de reportagens eram escritos ao gosto do
jornalista - cabia ao diagramador colocá-los na página tal como tinham sido
escritos e qualquer que fosse o tamanho que tivessem). Se os jornais brasilei-
ros de fato ficaram mais bonitos e mais legíveis depois de Gastón Bernardo,
não é menos verdade que sua novidade se transformaria na dor de cabeça
não só dos redatores de O Jornal, mas de todas as gerações de copidesques a
partir de então. Além de desenhar jornais, às vezes Bernardo se aventurava
a fazer alguns títulos, mesmo tendo pouquíssima familiaridade com a lín-
gua. Quando Prestes foi preso, logo após a revolta comunista de 1935, foi
preciso suspender a impressão já iniciada de O Jornal e jogar fora os exem-
plares rodados. O argentino tinha decidido redigir a manchete do jornal, e a
melhor que encontrou foi "Arrestado Prestes" - excelente para o La Nación,
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
onde ele trabalhava antes, mas incompreensível para os leitores brasileiros.
Mas quem iria deixar seu nome na história de O Cruzeiro era um francês que
estava no Brasil espontaneamente, sem ter fugido de lugar nenhum: o fotó-
grafo Jean Manzon.
Ex-repórter fotográfico da revista Paris-Match e do Paris Soir, o maior
vespertino que havia em Paris, quando estourou a guerra Manzon foi con-
vocado e virou membro do Serviço Fotográfico e Cinematográfico da Ma-
rinha francesa. Como fotógrafo, ele participou da campanha da Noruega,
estava no Norte da França na invasão nazista da Holanda, acompanhou a
retirada de Dunquerque. Quando os nazistas tomaram a França, manda-
ram-no para o porto de Brest - ali Manzon cobriu a evacuação da esqua-
dra do Atlântico e saiu no último navio que deixou o porto francês. Des-
mobilizado, em Londres foi trabalhar no serviço cinematográfico de guer-
ra inglês, cujo diretor de cinema e documentários era o brasileiro Alberto
Cavalcanti, que já vivia na Inglaterra havia 25 anos, junto com a mãe. Foi
ele quem sugeriu a Manzon, em 1942, a viagem para o Brasil, então um
país neutro no conflito, de onde poderia voltar à França, que era o que ele
desejava.
A relação de Manzon com o Brasil, porém, foi de amor à primeira vista.
Ele tinha vontade de beijar as pessoas na rua. Alberto Cavalcanti o havia re-
comendado à poetisa e jornalista Adalgisa Nery, que era casada com Louri-
val Fontes, homem forte de Getúlio e diretor do DIP. Convidado a montar o
departamento de fotografia e cinema do DIP - e já amigo de gente como os
jornalistas Antonio Callado e Egídio Squeff, e de escritores como Clarice Lis-
pector e Lúcio Cardoso -, Manzon logo percebeu que não sairia mais do
Brasil. E foi na boemia carioca que ele conheceu o homem que ia mudar seu
destino: Freddy, filho de Oswaldo e sobrinho de Chateaubriand. Como os
dois filhos homens de Chateaubriand, Gilberto e Fernando, além de serem
mais jovens, pareciam não se interessar pelo jornalismo, Freddy transfor-
mou-se na esperança do dono dos Associados. Ocupando agora a função de
diretor de O Cruzeiro, o jovem jornalista iria dar os primeiros passos para
que ela viesse em breve a se tornar a revista de maior vendagem do Brasil,
em todos os tempos.
Ao primeiro contato com aquele aventureiro francês, Freddy percebeu
que estava diante de um repórter nato, e convidou-o a deixar o DIP e ir para
O Cruzeiro. Manzon topava, mas o salário que ele pedia era tão alto que só o
tio dono podia decidir. Chateaubriand quis conhecer o fotógrafo, e, ao entrar
naquela sala desarrumada, Manzon, que havia coberto tantas guerras, fica
surpreendido pela inesperada visão do que está sobre a mesa do jornalista:
417
#
FERNANDO MORAIS
um cinturão recheado de balas e com dois revólveres carregados. Chateau-
briand repara no olhar dele e comenta:
- Tenho muitos inimigos. Em certas horas só posso contar comigo mes-
mo para me defender.
Sem rodeios, emenda com uma pergunta que o francês não esperava tão
cedo:
- Quanto é que o senhor ganha no DIP?
- Dois contos de réis.
- Meu Deus, é uma fortuna! Só o governo mesmo pode pagar um sa-
lário desses!
Manzon não queria conversa fiada:
- Muito bem. Então nosso encontro está encerrado. Passe bem.
- Ora, não fique bravo. É que O Cruzeiro precisa de alguém com sua ex-
periência, é uma revista muito feia, precisa vender mais...
- Pois bem. Seu sobrinho Freddy me disse que o senhor quer que eu
transforme e levante a revista. Isso vai lhe custar quatro contos de réis por
mês.
- O senhor deve estar louco, quer a minha ruína. Mas, como eu tam-
bém não bato bem da cabeça, aceito experimentar, por amor a O Cruzeiro.
Sabendo que estava pagando um salário milionário ao fotógrafo, assus-
tou-o com uma exagerada frase de efeito:
- Trate de conseguir resultados rapidamente, senão é a falência, seu
Manzon.
Minutos depois, folheando ao lado de Freddy uma coleção de números
antigos de O Cruzeiro, o sofisticado fotógrafo habituado à qualidade e ao re-
quinte de Paris-Match se espanta: aquilo não é uma revista, mais parece um
catálogo, uma galeria de retratos parados, idênticos. Além disso, provavel-
mente para parecer uma publicação rica, imagina ele, dezenas de fotos mi-
núsculas são estampadas uma ao lado da outra, como se fossem uma cole-
ção de selos. Tudo isso sobre um papel tão ruim que, mesmo com máquinas
de boa qualidade, para aquele europeu habituado ao requintado papel
cuchê de Paris-Match a impressão sugeria que as fotos fossem manchas de
tinta (o que levaria Millôr Fernandes a dizer debochadamente, anos depois,
que aquela parecia "uma revista impressa com cocô"). O francês estava de-
sanimando quando Freddy fez-lhe um desafio:
- Manzon, a partir de hoje a capa da revista e mais dez páginas inter-
nas são responsabilidade sua. Eu lhe dou carta branca para trabalhar, você
faz o que quiser.
O francês topou, mas queria introduzir no Brasil um hábito da impren-
sa de reportagens européia: a dobradinha repórter-fotógrafo. Um só escre-
via, o outro só se preocupava em fotografar. E ele já tinha uma sugestão de
nome para fazer dupla com ele: um repórter do jornal O Globo que Manzon,
418
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
ainda no DIP, conhecera na Amazônia. O repórter já tinha tido uma passagem
rápida pelos Associados, mas não saíra brigado: seu nome era David Nasser.
Melhor negociador de salários que o perdulário Chateaubriand, Freddy se
propôs a tirar David de O Globo, onde ele ganhava dois contos de réis, ofe-
recendo-lhe apenas um conto e duzentos por mês. Mas com a promessa da
capa, das dez páginas semanais e de algo que valia tanto quanto um bom sa-
lário: suas reportagens seriam assinadas com seu nome estampado bem
grande, logo abaixo do título. David aceitou o convite.
Semanas depois, Manzon está amarrado a uma espécie de gaiola impro-
visada, do lado de fora da fuselagem de um Fockwolfe 160 da FAB que voa a
180 quilômetros por hora sobre a serra do Roncador, na fronteira do Mato
Grosso com o Pará, em plena selva amazônica. Seus olhos estão protegidos
do vento por óculos de motociclista e o barulho dos dois motores do avião é
amortecido por bolotas de algodão nos ouvidos. No comando da cabine está
Antônio Basílio, piloto particular do presidente Vargas, e a seu lado, de lá-
pis e bloco de papel na mão, o repórter David Nasser. Os três estão há horas
sobrevoando a região do rio das Mortes à procura de uma aldeia de índios
selvagens que Basílio garantia ter visto de relance em um de seus vôos por
ali. Os dois jornalistas estão quase desistindo, quando Basílio põe a cabeça
para fora da janela e grita forte para Manzon:
- Viu? Lá está a aldeia.
Manzon só conseguia ver uma mancha vermelha entre a folhagem den-
sa das árvores. Faz sinal com o dedo para Basílio circular em vôos rasantes
sobre o lugar. Na primeira passagem o coração do francês bate forte ao ver
vinte ocas alinhadas em semicírculo. Basílio dá uma embicada para o chão e
Manzon vê aparecer em seu visor a primeira figura de um índio nu. Em se-
guida mais outro e mais outro, e eles não parecem se assustar com o apare-
lho que faz vôos rasantes. Estiram seus arcos e uma nuvem de flechas passa
a centímetros do rosto do fotógrafo, que está a ponto de perder o fôlego de
tanta emoção. Nova embicada e a ponta de uma das asas bate no teto de uma
das ocas, desmontando-a. A cada novo vôo rasante os índios começam a ati-
rar mais flechas, e também tacapes, em direção ao avião. Manzon aperta o
disparador de sua máquina desesperadamente, até sentir cãibra no indica-
dor e no polegar. De repente, em plena embicada para baixo, o avião todo
sacode: uma borduna "magistralmente lançada por um índio", diria Man-
zon, atinge a cauda do bimotor, provocando um rombo de vinte centímetros
no leme. Rindo do perigo e do pânico sob o qual o fotógrafo se encontrava,
Basílio percebe que está na hora de ir embora.
O impacto do material colhido pelos dois jornalistas foi tão grande que,
em vez das dez páginas prometidas por Freddy, a reportagem "Enfrentando
os chavantes" (assim mesmo, com ch, e não com o correto x) ganhou dezoi-
to páginas inteiras de O Cruzeiro, com fotos jamais vistas de selvagens ata-
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FERNANDO MORAIS
cando a flechadas e golpes de borduna, a poucos metros de distância, um
avião. A revista esgotou nas bancas e os exemplares eram disputados no
câmbio negro. Para Antonio Callado, um dos pioneiros das viagens de bran-
cos à Amazônia, "aquela reportagem significou, no sentido cabal do termo,
a descoberta do índio brasileiro". Para O Cruzeiro, ali estava a marca regis-
trada que a acompanharia pelo resto de sua existência - a de uma revista
de grandes reportagens. E, para os milhares e milhares de leitores, nascia
quase um slogan que eles se habituariam a aguardar com ansiedade, todas as
semanas, pelos quinze anos seguintes: "Texto de David Nasser, fotos de Jean
Manzon".
420
25
O estrondoso sucesso da reportagem de Manzon e Nasser animou Cha-
teaubriand a investir de novo na Amazônia, o mundo inóspito cujos segre-
dos tinham atiçado tanto o interesse dos leitores. Na cabeça dele, o mistério
do desaparecimento do coronel e explorador britânico Percy Fawcett era um
bom assunto, que só poderia ser desvendado por um bom repórter. Ele já co-
nhecia bem o trabalho de Edmar Morel, o pequenino cearense que o acom-
panhara nos raids aéreos, e que agora estava de novo sob os refletores. Mo-
rel fizera para O Jornal uma reportagem que comoveu a população do Rio.
Em virtude da guerra, a cada dia os brasileiros abriam os jornais e desco-
briam que um novo produto estava racionado. Primeiro fora a gasolina, o
que obrigou os proprietários de automóveis a usar, em seu lugar, o gasogê-
nio - aparelho que transforma o carvão em gás combustível. Depois foi a
vez da carne, do açúcar, do leite. Cada família tinha uma cota semanal de
cada produto, mas mesmo assim as filas para conseguir comprá-los transfor-
maram-se em flagelo diário para todos, sobretudo os pobres. Em meio a es-
ses tormentos, Morel descobriu que no Jockey Club Brasileiro a égua puro-
sangue Farpa era alimentada diariamente com quatro litros de leite puro. A
reportagem intitulada "Farpa não entra na fila" causou tamanha revolta que
no dia em que foi publicada populares saíram às ruas quebrando armazéns
e leiterias que se suspeitava estarem fazendo câmbio negro de leite. Morel
era o homem para descobrir o paradeiro de Fawcett.
Depois de conversar com indianistas e fazer várias entrevistas com a
maior autoridade na área, o general Cândido Rondon, ele estava pronto para
partir. Quando foi se despedir de Chateaubriand, reclamou que o dinheiro
que o jornal lhe havia adiantado para a viagem era curto demais. Entusias-
mado, o patrão resolveu o problema à sua moda: enfiou a mão nos bolsos,
recolheu todo o dinheiro que tinha, fez um pacote com aquela maçaroca e
entregou-o ao repórter:
- Toma, seu Morel. Pelo menos de mim o senhor não pode se queixar.
O faro de Chateaubriand não falhara. Semanas depois Morel voltou
com um furo de reportagem internacional: localizara a aldeia dos calapalos,
entre o rio das Mortes e o Kuluene, e conseguira registrar, em um velho gra-
vador Geloso, a confissão do cacique Izarari, que assassinara Fawcett - a
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FERNANDO MORAIS
quem o selvagem se referia como Mingalese, uma corruptela do "mim in-
glês", que era como o coronel se apresentava ao aproximar-se dos índios.
Além do impacto das reportagens, distribuídas para a imprensa internacio-
nal, as gravações das entrevistas com os calapalos foram vendidas pelos As-
sociados para uma gravadora, que os editou em um disco "distribuído em
todo o mundo". Quando retornava ao Rio, o carro em que Morel viajava en-
tre duas cidades do Pará capotou, quebrando-lhe um braço e uma perna.
Chateaubriand achou que o acidente era um presente do céu que Morel re-
cebia: chamou as rádios e pôs os jornais Associados para entrevistar o aci-
dentado, transformado por uma mera batida de automóvel no "herói da
Amazônia". Foi pessoalmente visitar Morel em casa, e invadiu seu quarto la-
mentando que as conseqüências do acidente tivessem sido apenas um braço
e uma perna quebradas:
- Seu Morel, o senhor perdeu uma grande oportunidade de morrer! Já
imaginou seu caixão saindo da sede dos Associados levado pelo major
McCrimmon, da Light, pelo barão de Saavedra, dono do Banco Boavista,
pelo Peixoto de Castro, presidente da Loteria Federal, e pelo Geraldo Seabra,
o maior exportador de tecidos do Brasil? Seria a glória, seu Morel! Até Getú-
lio ia querer agarrar uma alça do seu caixão!
O prêmio atribuído a Morel pelo feito (além de ter sido informalmente
promovido a repórter especial, que só cobria grandes assuntos) foi colocá-lo
em uma função singular, nunca vista antes na imprensa brasileira: ser "seto-
rista" do gabinete do patrão - assim como em toda a imprensa havia jorna-
listas que só se dedicavam a esportes, política ou polícia, ele se encarregaria
de acompanhar os passos e os feitos do dono dos Associados. É que Cha-
teaubriand, com seu prestígio e as incontáveis atividades que exercia, além
de jornalista era indiscutivelmente uma fonte permanente de notícias e de
fatos de interesse jornalístico. Essa constatação levou os editores dos dois
jornais cariocas e de O Cruzeiro a manter permanentemente um repórter de
peso acompanhando seu dia-a-dia.
No começo dos anos 40 as grandes vedetes do jornalismo brasileiro,
concentradas, em sua maioria, no Rio de Janeiro, ou trabalhavam nos Diá-
rios Associados ou num modesto mas influente semanário chamado Diretri-
zes. O principal atrativo que Diretrizes oferecia aos profissionais era o fato de
ser uma publicação moderna, dinâmica, inteligente e liberal, que se opunha
ao situacionismo político em meio a um oceano de unanimidades pró-Esta-
do Novo. Para os conservadores Associados, os jornalistas iam atraídos pela
fama com que o império lhes acenava. Além disso, quase sempre contrata-
dos a peso de ouro, apesar das dificuldades econômicas que a guerra impu-
nha a todas as empresas (e as de Chateaubriand não eram exceção). Quando
uma estrela do jornalismo brigava com Chateaubriand, limpava suas gave-
tas e ia bater em Diretrizes. Quando alguém despontava como grande talen-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
to em Diretrizes, lá estava um olheiro de Chateaubriand oferecendo um salá-
rio duas, três vezes mais alto, para que mudasse de emprego. Lançada no
Rio, em 1938, pelo jovem jornalista paulista Samuel Wainer, sob a forma de
revista mensal, Diretrizes obteve tal sucesso de público que, no começo dos
anos 40, Wainer decidiu transformá-la em jornal semanal. Lá trabalhavam
Osório Borba, Otávio Malta, Jorge Amado (que havia sido colaborador de O
Cruzeiro), Alvaro Moreyra, Francisco de Assis Barbosa e Rubem Braga, que
só permaneceu na Folha do Povo enquanto durou a aventura da Aliança Na-
cional Libertadora.
Leitor assíduo e admirador de Diretrizes, Chateaubriand havia se encan-
tado meses antes com uma jocosa e irônica reportagem que lera no semaná-
rio sobre os grã-finos paulistas. Quis saber quem era o autor - o sergipano
Joel Silveira, que também já havia feito crônicas para O Cruzeiro - e pediu
a Virgílio Melo Franco que o convidasse para trabalhar em O Jornal. A ofer-
ta era tentadora, mas prevaleceu o idealismo de Silveira:
- Não vou, doutor Virgílio. Estou bem aqui e não quero trabalhar em
uma empresa como os Associados, que não têm e nunca tiveram bandeira.
Uma empresa que, ao contrário de Diretrizes, é a favor de tudo.
Passa-se algum tempo e o repórter é mandado a São Paulo para realizar
uma entrevista com Monteiro Lobato. Sob um título retirado de uma frase
do entrevistado ("O governo deve sair do povo, como a fumaça da foguei-
ra"), a entrevista desancava o caráter autoritário do Estado Novo e reclama-
va a imediata redemocratização do país. O resultado não podia ser diferen-
te: Diretrizes foi fechada pelo governo, Samuel Wainer foi obrigado a
esconder-se na embaixada do Chile e Joel Silveira exilou-se na sua cidade na-
tal, Lagarto, no interior de Sergipe, "onde nem Lampião nem o DIP conse-
guiam entrar ". Chateaubriand chama de novo Virgílio Melo Franco e insiste
que quer a todo custo o passe do autor da reportagem:
- Como o senhor vai fazer não me importa, doutor Virgílio, mas eu
quero essa víbora aqui nos Associados.
Ao voltar ao Rio, o desempregado Silveira ligou para a casa de Virgílio
para lhe pedir três contos emprestados. Ele respondeu-lhe:
- Venha para cá que tem gente querendo falar com você.
Tocaram para os Associados, onde Virgílio apresentou-o a Chateau-
briand:
- Doutor Assis, está aqui a víbora que o senhor quer contratar.
Ele levantou-se da mesa e cumprimentou Joel:
- Seu Silveira, o senhor é um dos homens mais perigosos deste país,
tem que vir trabalhar conosco. Diga quanto é que o senhor quer ganhar e vá
se entender com o doutor Lacerda lá embaixo, na Agência Meridional.
O "doutor Lacerda" a quem ele se referia era o jornalista Carlos Lacer-
da, uma de suas mais fulgurantes conquistas para os Associados. Chateau-
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FERNANDO MORAIS
briand ouvira falar dele em 1935, quando o ainda estudante de direito namo-
rava os comunistas e lançara o nome de Prestes como presidente de honra
da ntvt. Rompido em 1939 com os marxistas, passou a escrever em Diretrizes
- e foi ali que voltaria a chamar a atenção de Chateaubriand. Lacerda aca-
bara de publicar no semanário um manifesto denominado "Declaração de
princípios", a favor dos Aliados e subscrito, entre outros, por Samuel Wai-
ner, Hermes Lima, Rubem Braga, Graciliano Ramos, Astrojildo Pereira e
Moacir Werneck de Castro. Ao perguntar o que Lacerda fazia, Chateau-
briand soube que ele trabalhava na Ada, uma agência de propaganda que,
entre outras atividades, era a responsável pela manutenção da boa imagem
dos cassinos junto à imprensa carioca. Ao receber do dono dos Associados a
tentadora proposta de ganhar quatro contos de réis por mês (mais um conto
de ajuda de custo) para dirigir e reorganizar a Agência Meridional, Lacerda
fez uma única exigência. Embora nunca tivesse trabalhado com Chateaubri-
and, conhecia a fama do futuro patrão e queria deixar claro que não levaria
desaforo para casa:
- Aceito o salário e o cargo, doutor Assis, mas com uma condição,
como se fosse uma cláusula oficiosa do meu contrato de trabalho: o senhor
não pode me chamar de filho da puta.
Apesar dos maus bofes de Chateaubriand, os talentos acabavam dando
com os costados nos Associados. Só depois que Freddy assumiu a direção de
O Cruzeiro é que os leitores e os jornalistas perceberam como aquela revista,
mesmo sendo a mais importante do Brasil, tinha sido tão inexpressiva até
então. A capacidade de aglutinação de Freddy - que não escrevia bem, não
fotografava, não diagramava, mas sabia montar equipes e descobrir talentos
como ninguém - operou uma metamorfose sem paralelo na revista. Foi
Freddy, por exemplo, quem descobriu a faísca do gênio num garoto que
desde 1938 trabalhava na redação colando letras. Quando não tinha o que fa-
zer, o menino matava o tempo fazendo o que Freddy chamava de "rabiscar
bonequinhos" em restos de papel. Um dia faltou uma reportagem de duas
páginas na hora do fechamento da revista e ele resolveu, irresponsavelmen-
te, recorrer ao menino:
- Ô seu sacaninha! Você não gosta de desenhar? Então encha essas
duas páginas aí com o que você quiser, enquanto nós vamos almoçar.
Quando voltou do almoço Freddy se espantou ao ver as duas páginas
(que o garoto batizara de "Poste escrito") cobertas por desenhos de um hu-
mor surpreendentemente criativo para alguém que tinha pouco mais de ca-
torze anos. Estava nascendo Emanuel Vão Gogo, pseudônimo sob o qual
logo depois Millôr Fernandes criaria uma das marcas permanentes da histó-
ria da revista, a seção humorística "O pif-paf". Nos primeiros números do
"Pif-paf" Millôr fazia apenas o texto, ficando as ilustrações a cargo de Péri-
cles (autor de outro personagem que permaneceria nas páginas de O Cruzei-
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FERNANDO MORAIS
ro até depois da morte do autor: "O Amigo da Onça"). Junto com Millôr co-
meçavam a aparecer nas páginas do semanário, além dos grandes repórte-
res, nomes do calibre de Nelson Rodrigues, Lúcio Cardoso, Rachel de Quei-
roz, Alex Viany, Franklin de Oliveira - sem contar os já consagrados, como
Gilberto Freyre e José Lins do Rego. Nelson Rodrigues, que vinha do enor-
me sucesso de sua peça Vestido de noiva, registrou em suas memórias a satis-
fação de se incorporar à equipe de O Cruzeiro:
Três ou quatro dias depois da estréia, o telefone me chama no Globo. Era David
Nasser:
- Nelson, o Freddy Chateaubriand quer falar contigo.
Ainda perguntei:
- Sobre o quê?
E David:
- Só conversando.
Havia um restaurante na rua Rodrigo Silva. Podíamos almoçar lá, no dia se-
guinte. E assim se fez. Almocei com Freddy Chateaubriand, David, Millôr Fer-
nandes e Geraldo de Freitas. Freddy chamou-me para trabalhar nos Diários As-
sociados. Dava-me um ordenado muito maior; e oferecia-me a direção de duas
revistas: Detetive e O Guri. Comendo meu bom bife, que o Freddy ia pagar, sen-
ti que por trás do convite estava Vestido de noiva, e estava o berro de José César
Borba chamando o autor, o autor. E, ali, passando a manteiga no pão, eu era o
autor.
Roberto Marinho deixou-me ir e ainda me deu, a título de indenização ami-
ga, dez contos. Quando entrei na antiga redação de O Cruzeiro, a revista come-
çava sua formidável ascensão. Mais tarde eu diria que a equipe daquele tempo
era uma geração tão brilhante como fora, em Portugal, a dos Vencidos da Vida.
Lá estavam David Nasser, Millôr Fernandes, Franklin de Oliveira, Hélio Fer-
nandes, Geraldo de Freitas, todos reunidos sob a fraterna, a inteligentíssima au-
toridade de Freddy Chateaubriand.
Assim como Nelson trabalhava na redação de O Cruzeiro e simultanea-
mente dirigia Detetive e O Guri (ou como Carlos Lacerda, que acumulava a
direção da Meridional e de O Jornal), era comum nos Associados que alguém
escrevesse - quase sempre pelo mesmo salário - em mais de uma publica-
ção das empresas. Aproveitando o clima criado pela guerra, por exemplo,
David Nasser revelou-se um ficcionista de primeira ao publicar no Diário da
Noite (na época impresso num horroroso papel verde-claro, por causa do ra-
cionamento) um folhetim-thriller diário, intitulado "Gisele, a espiã nua que
abalou Paris". A personagem principal era uma belíssima e sensual espiã da
Resistência francesa que dormia com um oficial nazista diferente a cada noi-
te para arrebatar-lhe segredos militares e passá-los aos maquis. Como nun-
ca tinha estado em Paris, David fazia uma entrevista diária com Manzon
para escolher e descrever com detalhes o local da capital francesa onde se
passaria o episódio do dia. A série fazia a tiragem do jornal crescer a olhos
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
vistos, e nada de Nasser ver o salário adicional que lhe tinham prometido
pelo trabalho. Reclamou diretamente com Chateaubriand uma, duas, três
vezes, e ao perceber que não iam mesmo pagar-lhe nada a mais, decidiu en-
cerrar a série. Na véspera de publicar o último capítulo, foi à sala do patrão:
- Doutor Assis, o senhor deve ter visto como terminou o episódio
de hoje de "Gisele": sua identidade foi descoberta pelos alemães, que deci-
diram fuzilá-la. Gisele já está encostada em um muro e vai ser passada em
armas no capítulo de amanhã, quando termina a série. Chega de trabalhar
de graça.
Chateaubriand quase caiu da cadeira:
- Você enlouqueceu, turco ordinário? A série é o maior sucesso do jor-
nal, não pode terminar. Gisele não pode morrer! Quanto é que o Diário da
Noite lhe deve em atrasados?
- Sete contos e quinhentos.
O patrão abriu o talão de cheques, preencheu um no valor reclamado e
entregou-o a Nasser:
- Vá trabalhar.
Agora David Nasser tinha outro problema:
- Doutor Assis, posso criar outro personagem, mas Gisele não dá mais.
Se ela não morrer eu me desmoralizo como autor. A última palavra do capí-
tulo publicado hoje é exatamente a ordem de "fogo!" dada por um oficial na-
zista. Na edição de amanhã ela já aparecerá morta.
Chateaubriand não se conformou:
- Se Gisele aparecer morta amanhã, o senhor acorda desempregado
depois de amanhã. O senhor trate de avisar a esse oficial nazista que acaba
de chegar uma ordem de Goering, diretamente de Berlim, mandando sus-
pender o fuzilamento.
Além dos folhetins de David Nasser (graças a Chateaubriand, Gisele so-
breviveu), e do noticiário que ocupava a maior parte das páginas dos jornais,
a guerra começava a se transformar num transtorno cada vez maior para a
imprensa brasileira. O conflito vinha submetendo o Brasil ao racionamento
de quase tudo - e os jornais e revistas, inteiramente dependentes do papel
jornal importado, não seriam exceção. A dieta de papel os emagrecia a olhos
vistos. Só na primeira semana da guerra o preço subira 40%. O maior produ-
tor mundial, a Finlândia, fora invadida. Com o bloqueio naval imposto à Eu-
ropa pela Alemanha, o transporte marítimo tornava-se cada vez mais arris-
cado (com o agravamento da guerra, dezenas de navios com destino à
América Latina haviam sido afundados) e os mercados escandinavos esta-
vam fechados aos consumidores. A alternativa era importar papel do Cana-
dá, mas, como seus 3 milhões de toneladas anuais eram insuficientes para
atender à demanda mundial, os preços tornaram-se proibitivos. No Brasil
427
FERNANDO MORAIS
até o Diário Oficial, inteiramente custeado pelo governo, teve que reduzir sua
tiragem e o número de páginas para adaptar-se à crise.
Preocupado com o prolongamento indefinido do conflito, logo no co-
meço da guerra Getúlio entendeu que o Brasil precisava se preparar para ser
auto-suficiente em pelo menos duas áreas estratégicas: aço e papel de im-
prensa. A produção de aço ele queria que fosse estatal, e determinou que co-
meçasse a ser planejada a instalação da Companhia Siderúrgica Nacional,
que seria inaugurada em 1941 em Volta Redonda (RJ), sob a presidência de
Guilherme Guinle. Quanto à fabricação de papel, essa poderia ser entregue
à iniciativa privada. Na cabeça do presidente, só havia uma pessoa no Brasil
em condições de aceitar aquele desafio. Era o homem que desde 1930 o ad-
vertia para a necessidade da produção nacional de papel de imprensa, para
o país prevenir-se contra os riscos de escassez como a que o mundo vivera
durante a Primeira Guerra Mundial: Assis Chateaubriand.
Em 1940, Getúlio chamou o jornalista ao palácio e expôs o que, para
qualquer empresário, seria uma proposta irrecusável:
- Preciso que seja construída imediatamente uma fábrica de papel de
imprensa com capacidade para, no menor prazo possível, abastecer o mer-
cado nacional. Tu fostes o escolhido para tocar esse empreendimento. Para
importar os equipamentos o governo te dará os dólares subsidiados e o Ban-
co do Brasil se encarregará de fazer-te os empréstimos necessários para a for-
mação do capital. Precisamos da fábrica por toda a lei.
A reação de Chateaubriand surpreendeu-o:
- Presidente, meu negócio é imprimir papel, não fabricar. Não é uma
atividade que me interesse.
Getúlio insistiu, mas, como o jornalista permanecia irredutível, pediu
que ele indicasse alguém em condições de assumir o lugar. Chateaubriand
falou que no Brasil só havia três grupos industriais com alguma experiência
na área: Lunardelli, que já tinha a indústria Pomílio; os Matarazzo, que fa-
bricavam papelão; e a Klabin & Irmãos, que desde o começo do século pro-
duzia celulose no Sul do Brasil:
- Se é um empreendimento com as dimensões que o senhor imagina,
só os primos Wolf Klabin e Horácio Lafer terão condições de cumprir os pra-
zos estabelecidos. Além de serem os únicos a fazer pesquisas na área, eles já
têm 6 milhões de pés de araucária plantados na fazenda Monte Alegre, no
vale do Tibagi, no Paraná.
Getúlio sorriu:
- Então a fábrica será deles. Traga essa klabinzada aqui no Guanabara ;
amanhã.
No dia seguinte Wolf Klabin e Horácio Lafer foram ao Palácio do Cate-
te conversar com Vargas, mas também eles tinham restrições ao projeto.
Consideravam um risco muito grande implantar, em plena guerra, um em
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
preendimento daquele porte, que exigia equipamentos totalmente importa-
dos (a cautela se revelaria procedente: o navio que meses depois trazia o
primeiro carregamento de máquinas importadas da Skoda, na Tchecoslová-
quia, foi posto a pique por torpedeiros alemães, e a segunda remessa teve de
viajar escoltada por ordem do Departamento de Estado americano). Diante
da insistência de Getúlio (e das facilidades oferecidas pelo governo), entre-
tanto, Klabin e Lafer bateram o martelo e se comprometeram a iniciar ime-
diatamente o empreendimento, que cinco anos depois produziria as primei-
ras bobinas de papel jornal fabricadas no Brasil. Fechado o negócio, Getúlio
despediu-se dos dois industriais e pediu que Chateaubriand permanecesse
no gabinete:
- Tenho um caso pessoal a tratar contigo. Meu filho mais moço, Getu-
linho, fará o serviço militar daqui a nove meses. Ele é químico industrial e eu
desejaria que ele fizesse o Exército em São Paulo e, nesse período, que fosse
aproveitado em alguma fábrica paulista que opere na sua especialidade.
Não quero que ele receba nada como ordenado. Quero apenas ambientá-lo
no meio fabril de São Paulo. Se ele gostar, ao final do serviço militar ficará
por lá, aí, sim, profissionalmente.
Chateaubriand sugeriu que a fábrica fosse a Nitroquímica, do próprio
Lafer, para a qual o filho do presidente acabaria se transferindo. (Mas onde
trabalharia pouco tempo como profissional: pouco mais de um ano depois,
uma poliomielite mataria Getulinho de neurite infecciosa em São Paulo.) Se-
manas depois daquele encontro, Chateaubriand irritou-se ao saber que, na
constituição societária da fábrica de papel, Getúlio tinha exigido que os Kla-
bin-Lafer abrissem 20% do capital para o grupo Monteiro Aranha. Se era
para dar participação a amigos do presidente, Getúlio não precisaria ter re-
corrido a ele, e poderia escolher os sócios de sua própria cabeça. Pediu nova
audiência a Vargas para tirar satisfações e só então entendeu que a decisão
ocultava a eterna política pendular de Getúlio, de colocar um pé em cada ca-
noa. Em plena guerra, ele entregava 80% do gigantesco empreendimento a
dois judeus. E, embora o presidente não tivesse dito isto com todas as letras,
Chateaubriand saiu do palácio convencido de que por trás da exigência de
abrir os 20% restantes aos Monteiro Aranha estavam as boas relações que os
sócios minoritários mantinham com o governo nazista alemão. Qualquer
que fosse o desfecho da Segunda Guerra, Getúlio teria aliados dos dois lados
(coincidentemente, quinze anos depois, quando os alemães instalaram no
Brasil a fábrica de automóveis Volkswagen, os mesmos Monteiro Aranha se-
riam convidados a entrar com uma participação de idênticos 20% no capital
da empresa).
Não apenas por causa do racionamento de papel, a Segunda Guerra
Mundial ocupava a atenção de Chateaubriand em tempo integral. Os Asso-
ciados já haviam mandado os repórteres Murilo Marroquim e Barreto Leite
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FERNANDO MORAIS
Filho respectivamente para a Europa e para a Tunísia como correspondentes
de guerra, e tinham cedido ao Ministério da Aeronáutica, para operar no ser-
viço de patrulhamento da costa brasileira, não só o Raposo Tavares, mas tam-
bém o segundo avião do grupo, batizado com o sugestivo nome de Jagunço.
De admirador confesso dos regimes de Mussolini e Hitler, Chateaubriand se
transfiguraria em um aliadófilo radical - a ponto de pedir, em artigos pu-
blicados nos Associados, que, terminada a guerra, as tropas e bases militares
norte-americanas instaladas no Nordeste permanecessem indefinidamente
no Brasil, como enclaves estrangeiros em território nacional. Tais opiniões
provocaram pasmo no restante da imprensa, que o acusava de "querer en-
tregar a terra de seus maiores aos americanos". Um jornal chegou a pedir
que ele fosse levado a conselho de guerra, acusado de alta traição à pátria.
Além de manter os dois correspondentes no campo de batalha, os Asso-
ciados haviam reabilitado desde o começo da guerra a antiga coluna sema-
nal de análise militar, que voltara a ser assinada apenas por "Um observa-
dor militar " - agora dedicada exclusivamente à interpretação do conflito
mundial. Poucas pessoas sabiam que seu autor estava preso desde 1932,
cumprindo pena em uma cela vizinha à de Luís Carlos Prestes, no presídio
do morro de Santo Antônio: era o coronel Euclides Figueiredo. Valendo-se
de sua condição de advogado, seu filho Guilherme Figueiredo (que também
era crítico teatral de O Jornal) ia todas as quintas-feiras visitar o pai e pega-
va o artigo, escrito em letras microscópicas em um pequenino pedaço de pa-
pel, que o rapaz enfiava dentro do salto do sapato, levava para casa, datilo-
grafava e entregava na redação. Aquele, segundo Guilherme, era um
segredo do qual só compartilhavam o pai, ele, a mãe (que às vezes também
funcionava como pombo-correio) e Chateaubriand. Nem o irmão mais
moço, João (que viria a ser presidente da República durante a ditadura mili-
tar de 1964), tinha conhecimento de que "Um observador militar " era o pai,
que estava preso pelo Estado Novo. No dia seguinte à libertação do coronel
Euclides, Chateaubriand foi visitá-lo em sua casa com um inusitado convite:
- Euclides, vosmecê fala francês e alemão, não é? Então vai ser corres-
pondente dos Associados no front russo.
Figueiredo aceitou, mas Getúlio não. Quando soube da notícia, chamou
Chateaubriand mais uma vez ao Catete:
- Esse não pode. É meu inimigo e não vai ser correspondente de guer-
ra, não. E, se fosse, muito provavelmente iria usar teu jornal para fazer pro-
paganda contra o Estado Novo.
Chateaubriand achava que dois correspondentes era muito pouco para
dar uma cobertura mais minuciosa da guerra. Com o veto a Euclides Figuei-
redo, convidou Edmar Morel para embarcar para a Europa. Novo veto, des-
ta vez do general Eurico Dutra, ministro da Guerra, que acusava o repórter
de ser "ligado ao Partido Comunista". Só dois anos depois, em 1944, é que
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
ele afinal se decidiria pelo nome de Joel Silveira, que acompanharia a cam-
panha dos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira na Itália.
Muito antes disso, no entanto, a radical conversão de Chateaubriand à
causa aliada fizera dele um ferrenho defensor da entrada do Brasil na
guerra. O ex-germanófilo ficou furioso quando, em 1941, Getúlio Vargas en-
viou um telegrama de cumprimentos a Hitler pela passagem do aniversário
do chefe nazista, desejando, em nome do governo e do povo brasileiro, "vo-
tos por sua felicidade pessoal e pela prosperidade da nação alemã". Escre-
veu e viu serem censurados (desde a implantação do Estado Novo a censu-
ra voltara a ser uma prática permanente do governo) pelo menos três artigos
considerando excessivo o tempo - quase dois meses - que o governo leva-
ra para romper relações com o Eixo depois do bombardeio de Pearl Harbor
pelos japoneses. Um desses artigos ele ficou sem saber se tinha sido censu-
rado por razões políticas ou morais - nele, Chateaubriand afirmava que
Vargas sofria de frigidez sexual, "pois deita-se na cama continental com
Roosevelt, mas não rebola, é apático".
Mesmo depois de declarar guerra à Alemanha e à Itália, em agosto de
1942, o governo brasileiro não dava qualquer sinal de que estivesse dispos-
to a participar de verdade da guerra, enviando tropas para lutar ao lado dos
Aliados. Chateaubriand achou que era chegada a hora de pôr em prática um
plano lunático que alimentava havia muito tempo, com a mais absoluta se-
riedade: como Vargas não se animava a mandar tropas regulares para a Eu-
ropa, ele próprio organizaria uma Legião Latino-Americana, composta de
voluntários brasileiros, argentinos, uruguaios e paraguaios, para lutar ao
lado dos Aliados. A primeira pessoa que procurou para, confidencialmente,
revelar seu plano, foi o ministro da Aeronáutica, Salgado Filho, seu amigo e
companheiro permanente de batismos de aviões:
- Salgado, primeiro tivemos Pearl Harbor e o Brasil enfiou o rabo en-
tre as pernas, nada de guerra. Agora já temos várias dezenas de cadáveres
de brasileiros vitimados por torpedos nazistas disparados contra navios
mercantes nossos e neste governo ninguém quer nem ouvir falar em luta ar-
mada. O Estado Novo não quer saber de entrar para valer na guerra, e Ge-
túlio muito menos. Estamos mergulhados no lodo. Não somos mais um
povo, mas uma charneca. Estamos transformados num magote de sapos aco-
vardados.
Como Salgado Filho não parecesse achar a idéia tão absurda depois do
discurso inflamado o jornalista expôs seu plano mirabolante: havia feito con-
tatos na Argentina e no Uruguai e em poucas semanas seria possível arreba-
nhar os 6 mil voluntários (Chateaubriand de fato viajara no Raposo Tavares
aos dois países vizinhos, a pretexto de "fazer entrevistas " com os presiden-
tes Ramíres, da Argentina, e Amézaga, do Uruguai). Para evitar problemas
com o governo brasileiro, ele negociara a possibilidade de que a legião fosse
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
treinada em Cuba ou no Uruguai, com armamento americano e sob o co-
mando de oficiais brasileiros:
- Tenho 1 milhão de dólares garantidos, mas é insuficiente. Para adqui-
rir as armas e manter a tropa vai ser preciso muito mais do que isso.
Salgado ponderou que Chateaubriand poderia até organizar a legião de
voluntários sem o apoio, ou mesmo contra a vontade do Estado Novo, mas
que obrigatoriamente teria de submeter seu plano ao governo norte-ameri-
cano. Do encontro com o ministro da Aeronáutica ele partiu em busca de Be-
rendt Friele, que representava no Brasil o milionário Nelson Rockefeller,
coordenador de Assuntos Interamericanos do governo Roosevelt. Repetiu
toda a cantilena a Friele, pedindo-lhe que transmitisse o plano a Rockefeller
e pedisse luz verde para prosseguir. Semanas depois ele saberia que os ame-
ricanos - que viam o ambíguo governo de Getúlio com enorme desconfian-
ça - não achavam seu plano tão desmiolado assim. Da parte de Rockefeller
não havia objeções (e seria possível até arranjar recursos para financiar a le-
gião), mas tudo iria, depender da opinião de Claude Adams, homem de con-
fiança do general George Marshall e que tinha sido nomeado adido militar
norte-americano no Brasil.
Chateaubriand voltou a Salgado Filho, contou-lhe os progressos que ha-
via feito e juntos decidiram que, ao procurar Claude Adams, seria bom que
tivessem o nome do brasileiro que treinaria e chefiaria a tropa. Os oficiais co-
gitados eram Eduardo Gomes, Nelson de Mello, Carneiro de Mendonça e
Cordeiro de Farias. O escolhido acabou sendo o coronel do Exército Osval-
do Cordeiro de Farias, que acabara de deixar o cargo de interventor no Rio
Grande do Sul. Em pelo menos cinco artigos que escreveria ao longo da vida
(publicados em 1943,1945,1964,1965 e 1967), e que nunca foram desmenti-
dos, Chateaubriand afirma que Cordeiro não só não se surpreendeu com a
idéia, mas apenas fazia duas exigências para avançar nas negociações: pri-
meiro, que o general Adams fosse ouvido. Depois, Chateaubriand precisaria
descobrir uma fórmula para comunicar sua decisão formalmente ao general
Dutra, ministro da Guerra - como oficial da ativa, bastaria que Cordeiro se
mudasse para Cuba (ou para o Uruguai) com o objetivo de treinar os volun-
tários para se tornar automaticamente um desertor e ser expulso das fileiras
do Exército:
- Cumprido este pré-requisito, você está autorizado a levar meu nome
seja ao general Adams, seja ao presidente Getúlio.
Berendt Friele marcou o encontro entre Chateaubriand e o adido militar
norte-americano no restaurante português A Minhota, na rua São José, no
centro do Rio de Janeiro. Impassível, o general Claude Adams ouviu o dis-
curso que o jornalista sabia de cor, tantas as vezes que o repetira:
- Nem os oficiais nem os civis que estão à frente da idéia da legião são
homens de fantasia, general. Cada um de nós tem um currículo de pelo me-
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FERNANDO MORAIS
nos dois anos de insurgência. Sabemos que as estradas e os corredores da
história não se freqüentam sem sangue. Já temos, para as despesas gerais,
1 milhão de dólares, mas precisamos da garantia de que os Estados Unidos
se dispõem a armar a legião, a responsabilizar-se pela manutenção da tropa
e a pagar o soldo dos oficiais.
Adams tampouco se surpreendeu com o projeto da legião. Autorizou
Chateaubriand a continuar fazendo contatos "com as devidas cautelas"
,
mas, como todos os outros interlocutores, insistiu na formalidade de que
Dutra fosse ouvido. Ele, por sua vez, iria consultar o Estado-Maior das For-
ças Armadas de seu país para saber como proceder. Chateaubriand viu que
não restava outra alternativa senão procurar o ministro da Guerra do Brasil,
que o jornalista considerava "um sonso". Dutra ouviu em silêncio e ao final
jogou um balde de água fria naquele sonho:
- Mandarei prender todo e qualquer oficial do Exército que aderir a
essa falange que os Diários Associados querem montar.
Chateaubriand ainda tentou argumentar que, para não criar problemas
diplomáticos para o Brasil, o treinamento teria lugar fora das fronteiras na-
cionais, e que o aliciamento não seria promovido pelos oficiais, mas não
adiantou nada. O general não saía do lugar:
- Qualquer oficial, seja ele quem for, que aderir a essa tropa paisana
será preso no ato. E quero dizer ao senhor que o assunto não está nas minhas
mãos. O presidente Vargas aguarda uma urgente visita do senhor para tra-
tar desse problema.
O encontro com o presidente aconteceu no Palácio Rio Negro, em Petró-
polis, na última semana de fevereiro de 1943 (Chateaubriand se lembraria da
data com alguma precisão porque sabia que o encontro ocorrera poucos dias
após a morte de Getulinho). Vargas falou por alguns minutos do filho mor-
to, agradeceu a Chateaubriand as gentilezas que o jornalista lhe fizera em
São Paulo, mas logo encerrou o assunto. Foi até sua mesa, pegou uma pasta
de capa dura, de cor verde, e estendeu-a ao visitante:
- É para leres. Aí está a história da tua guerra.
Lá dentro estavam informes do serviço secreto, cópias de telegramas, in-
formes do setor militar da embaixada americana. Só então Chateaubriand se
deu conta de que desde o início Getúlio vinha acompanhando cada passo de
seu plano. Ao terminar a leitura dos documentos o presidente ofereceu-lhe
outro papel para ler, advertindo-o de que aquele era secreto. Era o memorando
do general Dutra propondo a instituição da Força Expedicionária Brasileira.
Uma semana após aquele encontro, no dia 3 de março de 1943 Getúlio anun-
ciava ao país que aprovara o memorando do ministro do Exército, criando
oficialmente a FEB, que meses depois embarcaria para lutar na Itália ao lado
dos Aliados. E quem estaria entre os seus principais oficiais? O mesmo coro-
nel Cordeiro de Farias da Legião Latino-Americana de Chateaubriand.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Se frustrou o sonho de organizar um exército irregular para lutar na Eu-
ropa, a guerra iria propiciar ao jornalista a oportunidade de tentar realizar
um grande negócio. Meses antes do embarque das tropas brasileiras para a
Itália, em 1944, o governo brasileiro, em guerra com a Alemanha e a Itália,
baixou um decreto expropriando todos os bens dos chamados "súditos do
Eixo". Ou seja, toda empresa instalada no Brasil cujo controle estivesse nas
mãos de capitais italianos, alemães ou japoneses passava a pertencer ao Es-
tado brasileiro - mais especificamente, ao Banco do Brasil. Cumpridas as
formalidades legais da expropriação, o banco passou a realizar leilões públi-
cus das empresas, cujo filé mignon era a Indústria Química e Farmacêutica
Schering, que disputava com a Bayer (também alemã) a primazia de ser o
maior laboratório do mundo. Destino idêntico coubera à gigantesca filial
norte-americana da Schering, igualmente expropriada e leiloada. Proprietá-
rio de meia dúzia de pequenos laboratórios, Chateaubriand se interessou
pelo negócio, mas sabia que não dispunha de recursos suficientes sequer
para cobrir o lance inicial, calculado em 1 milhão de dólares (que seriam
equivalentes, em 1994, a perto de 10 milhões de dólares). Juntando tudo o
que podia, o máximo a que chegou foi 250 mil, um quarto do preço-base da
empresa a ser leiloada e dinheiro insuficiente até para fazer o depósito legal
no caso remotíssimo de vencer o leilão (o Banco do Brasil exigia que o arre-
matante fizesse um depósito imediato de 300 mil).
Obcecado com a idéia de virar dono da poderosa Schering, bateu de
novo nas sólidas portas do Vaticano mineiro do crédito: propôs uma asso-
ciação a Clemente Faria, dono do antigo Banco da Lavoura (hoje Banco
Real), por meio da qual ele e o banco comprariam a empresa meio a meio. Se
tudo desse certo, depois de depositado o sinal, e já falando como "um dos
donos da Schering ", ele não teria dificuldades para alavancar o restante do
dinheiro necessário. O que tornava a propriedade do laboratório um negó-
cio tão tentador, além de seu porte, era um acordo que havia sido firmado
entre a Schering do Brasil e a norte-americana (acordo que não caducara com
as expropriações de ambas), segundo o qual a filial brasileira, contra o paga-
mento de uma taxa anual de 200 mil dólares, tinha acesso a todas as pesqui-
sas feitas pela americana (e só no ano anterior a Schering dos Estados Uni-
dos investira entre 50 e 60 milhões de dólares em pesquisa). Além disso, o
laboratório era o grande detentor da tecnologia da recém-lançada sulfa, pri-
meiro remédio capaz de enfrentar com eficiência as doenças provocadas por
estreptococos (além de ser dona de um dos mais populares analgésicos bra-
sileiros de então, os comprimidos Veramon).
O negócio interessava ao banqueiro Faria. Este mandou ao Rio o jovem
médico Francisco Rodrigues de Oliveira (que abandonara a profissão e o
consultório dedicado à cura de doenças venéreas no qual era sócio do tam-
bém médico Juscelino Kubitschek e que lhe valera o apelido de "Chiquinho
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FERNANDO MORAIS
Gonorréia"), agora transformado em diretor do banco. O banco aceitava fi-
car com apenas cerca de 20% do laboratório e se dispunha, portanto, a hon-
rar 50 mil dólares no dia do leilão. Chateaubriand achava que a partilha era
satisfatória, mas queria mais: queria que o banco lhe emprestasse o dinheiro
que faltava para integralizar o valor total do negócio. Supondo que a Sche-
ring alcançasse um valor em torno de 1,25 milhão de dólares, ele precisaria
ter a garantia de um empréstimo de pelo menos 1 milhão. Além de ser um
negociador duro, Chiquinho tinha um defeito particular: fumava sem parar
os mais fedorentos cigarros de palha que Chateaubriand já tinha visto. Irri-
tado com aquela negociação que não tinha fim, o jornalista usou como pre-
texto o cheiro do cigarrinho do mineiro para anunciar que desistia de fazer
negócio com o Banco da Lavoura:
- Olha, doutor Chiquinho, fumaça de tabaco eu só agüento do presi-
dente da República. Nossa negociação está encerrada. Diga ao doutor Cle-
mente que ele fica com os 20% e que eu vou fazer vida por aí. Vou arranjar
meu dinheiro com um banqueiro mais perfumado.
Saiu do encontro e foi atrás de Pedro Correia e Castro, superintendente
do Banco Lar Brasileiro (filial brasileira do Chase Manhattan Bank), a quem
pediu 1 milhão de dólares emprestados. Consultado na sede do banco, em
Nova York, o empréstimo foi aprovado pelo próprio dono, David Rockefel-
ler. Duas semanas depois, disputando com a Schering americana (que pre-
tendia incorporar a brasileira a seu patrimônio), Chateaubriand tornava-se
dono de 80% do capital da Schering, que lhe havia custado 1,3 milhão de dó-
lares. Cavalheiro, ofereceu a presidência da empresa a Clemente Faria, a di-
retoria industrial a Francisco Rodrigues de Oliveira, convidou o desempre-
gado coronel Euclides Figueiredo para ser membro do conselho deliberativo
e ele próprio, que detestava ler balanços e participar de assembléias de acio-
nistas, acabou ficando como um modesto diretor-secretário.
Além de trazer bons negócios, a guerra serviria também de pretexto
para que Chateaubriand voltasse a bater com insistência naquele que elege-
ra como seu inimigo permanente: o conde Francisco Matarazzo Júnior, que
com a morte do pai tornara-se o grande capitão das indústrias da família.
Aparentemente interessado em amansar a fera que tanto o azucrinara antes,
o "conde Chiquinho" chegara a doar um avião para a campanha Dê Asas à
Juventude - gesto que Chateaubriand considerou de uma avareza sem pa-
ralelo, pois esperava que viessem pelo menos cinco aparelhos. "O homem
mais rico do Brasil, com toda a fortuna que amealhou, doa um modesto mo-
nomotor", escreveu ele em um artigo. "Se fôssemos depender de uma bur-
guesia atrasada como essa, nossa mocidade não aprenderia a pilotar nem pa-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
pagaios de linha. Também, o que esperar de um império que nunca fez um
donativo sequer a um instituto de pesquisa?"
Com a entrada do Brasil na guerra, o espírito de xenofobia se espalhara
como uma epidemia pelo país. Quem tivesse remotas ligações com italianos,
alemães e japoneses era visto, em princípio, como suspeito, como um inimi-
go em potencial. Empurrado pelo clima reinante, Chateaubriand só se refe-
ria a Matarazzo como "o ítalo-brasileiro" que dera uma fortuna para L'Ope-
ra Nazionale Balila, a organização das crianças fascistas criada por
Mussolini. Assim como o dono, nos artigos do jornalista as indústrias Mata-
razzo deixavam de ser nacionais para também se tornar "ítalo-brasileiras ", e
portanto passíveis de algum tipo de punição por essa condição.
Chateaubriand passou a defender com veemência que era uma injusti-
ça do governo expropriar indistintamente empresas controladas por "súdi-
tos do Eixo" e não fazer o mesmo com os Matarazzo, "sabidamente compro-
metidos com o Fascismo e, mais ainda, com o próprio Duce, com Mussoliní
".
Ao descobrir que na Junta Comercial cada uma das Indústrias Reunidas
F. Matarazzo constava como valendo apenas um cruzeiro (a moeda brasilei-
ra mudara de "mil-réis " para "cruzeiro"), deu um jeito de arranjar todos os
balanços e publicou um artigo propondo ao presidente Getúlio Vargas que
adotasse aqueles números na hora de leiloar ao público o maior império in-
dustrial brasileiro: "Tenho aqui em meu poder os balanços do ano findo des-
sas grandes organizações manufatureiras. Lá estão as 286 unidades fabris do
grupo Matarazzo inscritas por apenas 286 cruzeiros. O Estado, se quiser, po-
derá encampar e socializar, por essa soma, todo o parque Matarazzo". E
quando descobriu que o conde estava remetendo para o exterior cerca de 2
milhões de dólares para montar uma indústria de raiom na Colômbia ("en-
quanto aqui estamos à míngua de capitais"), fez uma insinuação pouco su-
til: "Por crimes muito menos graves, capitães de empresa fascistas estão sen-
do pendurados pelo pescoço nas portas das fábricas, na Itália, sem que essa
vendeta seja considerada delito de maior gravidade ".
O que Chateaubriand parecia querer sugerir como punição para o con-
de acabaria virando notícia, mas tendo como protagonista um parente de
Francisco Matarazzo residente na Itália. No final de 1943, quando o Brasil se
emocionava com a convocação dos pracinhas que iriam lutar na Europa, os
jornais Associados pareciam festejar o telegrama enviado da Europa por
uma agência internacional e publicado com destaque pelo Diário da Noite de
São Paulo. O secretário nacional do partido fascista, Andrea Hippolito, con-
cunhado do conde Matarazzo (as mulheres dos dois eram irmãs), que tinha
vivido no Brasil e se mudara para a Itália para assumir aquele posto, fora lin-
chado pelo povo numa praça de Milãu, tendo tido morte imediata:
Com a quéda de Benito Mussolini, ruiu por terra toda a organização fascista
que há mais de vinte anos amordaçava a culta nação mediterrânea. Escancara-
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FERNANDO MORAIS
ram-se as masmorras, abriram-se os presídios e o povo italiano, de novo senhor
dos seus destinos, principiou a fazer justiça com as próprias mãos, punindo os
responsáveis pelos crimes cometidos durante vinte anos de cativeiro ignomi-
nioso. A polícia italiana, desde o momento em que o Duce foi apeado do po-
der, tem sido impotente para sufocar as rebeliões que explodem em Milão, Tu-
rim, Florença e até mesmo em Roma. Telegrama procedente da fronteira
suíço-italiana veiculou a morte, ocorrida em circunstâncias trágicas, do dr. An-
drea Hippolito, chefe fascista de Milão, morto durante tumultos verificados na-
quela grande cidade peninsular. Secretário federal em Milão, o sr. Andrea Hip-
polito era o líder fascista da grande cidade italiana. Sua morte repercutiu em
São Paulo, pois o sr. Andrea era, como se sabe, cunhado do conde Chiquinho
Matarazzo.
A mansão dos Matarazzo, na avenida Paulista, encheu-se de amigos e
parentes que foram levar os pêsames pelo falecimento do parente vitimado
por morte tão estúpida. De Porto Alegre embarcou para São Paulo monse-
nhor Costábile Hippolito, tio do morto, especialmente para oficiar a missa
em intenção da alma do finado chefe fascista. Com os meios de comunicação
obstruídos pela guerra, meses depois o conde Francisco Matarazzo Júnior
quase perderia a fala ao abrir á porta de sua casa e dar de cara com Andrea
Hippolito, o cunhado morto por uma multidão enfurecida em Milão. E só
então os Matarazzo entenderam tudo: a notícia do linchamento divulgada
pelos Associados era falsa - tinha sido redigida e publicada por ordem ex-
pressa de Assis Chateaubriand.
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26
Embora tivesse conhecido os principais países da Europa quando tinha
menos de trinta anos de idade, Chateaubriand só veio a pôr os pés nos Esta-
dos Unidos pela primeira vez em julho de 1944, aos 51 anos, numa viagem
que marcaria o início de uma frenética carreira de globe-trotter. Lá ele recebe-
ria um tratamento jamais concedido sequer a ministros brasileiros. Hospeda-
do em Washington na Blair House, casa de protocolo do governo americano
destinada a chefes de Estados estrangeiros, logo no primeiro dia ele encon-
trou uma mensagem que o surpreendeu: embora não tivesse solicitado au-
diência, ficou sabendo que o secretário de Estado Cordell Hull o esperava às
nove horas do dia seguinte para um café da manhã. Tomado de admiração
por aquele exótico latino-americano, Hull convidou Chateaubriand a acom-
panhá-lo na viagem que faria à cidade de Buffalo - vôo em que ele aprovei-
taria para entrevistar, com exclusividade, o secretário americano. Depois de
realizar por conta própria uma turnê por três ou quatro cidades da costa oes-
te, ele embarcou com destino a Nova York, onde foi recebido pelo prefeito
Fiorello la Guardia. Segundo nota publicada pelo The New York Times, à saí-
da do encontro o jornalista - apresentado como "o poderoso editor de 26
jornais, cinco revistas e dezesseis estações de rádio no Brasil" - declarou
que havia convidado La Guardia para presidir um simpósio sobre jornalis-
mo no Brasil, mas que o prefeito havia recusado o convite alegando que "seu
tempo era curto demais para manter limpas as ruas de Nova York". No ar-
tigo que enviou aos Associados com suas primeiras impressões sobre Nova
York, publicado depois da entrevista com Hull, em vez de uma enfadonha
análise a respeito da cidade, Chateaubriand revelava sua alma de repórter:
Faz algum tempo alguém me chamava a atenção para o aumento vertiginoso
dos preços dos restaurantes e das lojas do Rio e de São Paulo. Come-se e veste-
çe na capital argentina pela metade do preço do Rio de Janeiro. Poiç saibam que
não há em Nova York, Washington, Kansas City, Chicago ou Baltimore um res-
taurante da classe do Mappin, em São Paulo, ou do Aljan, do Rio, onde não se
coma por 25% menos do que nessas casas de pasto brasileiras. Devo dizer que
meus cálculos de comparação se baseiam no dólar de vinte cruzeiros. Mesmo
nos restaurantes de luxo a consumação está longe dos preços cobrados em res-
taurantes de igual categoria do Rio. No restaurante Colony, o mais grã-fino de
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FERNANDO MORAIS
Nova York, onde já fui meia dúzia de vezes, paguei um terço menos do que des-
penderia no Bife de Ouro de Copacabana.
Um par de sapatos de couro adquire-se aqui em Nova York por dez a doze
dólares, da melhor marca. O último par que adquiri na Casa Guarany, em São
Paulo, há cinco meses, custou a barbaridade de quinhentos cruzeiros - ou seja,
mais do dobro do preço. Precisava fazer um segundo e desisti, mandando pôr
meia-sola em dois sapatões velhos e meio cambados que tinha no Rio de Janei-
ro. Antes de sair de São Paulo soube que a Guarany e outros sapateiros de sua
classe estavam cobrando seiscentos cruzeiros por um par de sapatos, isto é, três
vezes o preço americano em dólares. Vale a pena a um paulista "smart" tomar
encomenda de quinze pares de sapatos, pagar uma viagem de ida e volta a
Nova York e abastecer o mercado local de sapatões americanos.
Ao final de um encontro com Arthur Hayes Sulzberger, o publisher do
The New York Times convidou-o a dar uma entrevista coletiva à imprensa
americana na redação do jornal, na tarde seguinte. A importância do visitan-
te podia ser medida pela presença de alguns dos mais importantes órgãos da
imprensa americana: além de um repórter do próprio Times, compareceram
representantes do The Wall Streét Journal, do Washington Post, do Herald Tri-
bune, do Sun e do New York Daily News. Dois dias depois, o próprio New York
Times estamparia a entrevista em duas colunas, na seção internacional, inti-
tulada com o tema que dominou a conversa de Chateaubriand com os jorna-
listas: "Brasileiro exige bases militares comuns para as Américas" - ou seja,
apesar de chamado de "traidor da pátria", ele continuava defendendo a en-
trega aos Estados Unidos, depois da guerra, das bases militares instaladas no
Nordeste brasileiro. Na véspera da viagem de volta (após estadia de mais de
um mês), Chateaubriand foi homenageado por um almoço com personalida-
des da vida política e intelectual norte-americana no Knickebocker Club, or-
ganizado por Nelson Rockefeller - a quem ele saudou em russo, no discur-
so de agradecimento, chamando-o o tempo todo de "tovarisch Nelson"
(camarada Nelson). Antes de retornar ao Rio o jornalista ainda faria um des-
vio até Toronto, no Canadá, apenas para depositar flores no túmulo de seu
velho benfeitor, sir Alexander Mackenzie, o antigo presidente da Light no
Brasil. Algumas semanas depois da volta reuniu em São Paulo um grupo de
empresários, liderados por Walter Belian, da Cervejaria Antarctica, e Baby
Pignatari, para pedir-lhes apoio para uma nova aventura:
- Estou boquiaberto com o que me foi mostrado em Nova York por Da-
vid Sarnoff, o boss da NBC: a televisão, a oitava maravilha do mundo. Num
estúdio fechado um conjunto de câmara tocava um trecho de La Bohème, de
Puccini. A cinqüenta metros dali, em outra sala, através de um aparelho, eu
pude ver e ouvir com perfeição a execução da ópera. Eu os reuni aqui para
comunicar que, terminada a guerra, vou importar aquela tecnologia e insta-
lar uma estação de televisão no Brasil. Queria que suas indústrias fossem se
preparando, porque vocês vão ser os privilegiados que dividirão comigo as
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
glórias de trazer esse invento revolucionário para cá. Os nossos inimigos que
se preparem: se só com rádios e jornais os Associados já tiram o sono deles,
imaginem quando tivermos na mão um instrumento mágico como a te-
levisão!
De que inimigos ele falava? Dos de sempre. Os inesquecíveis Mataraz-
zo. Agora, além de todos os motivos que tinha antes para infernizar a vida
dos nobres milionários, Chateaubriand acrescentara mais um: sem nenhum
indício concreto, mas apenas imaginando uma vingança por tudo o que fize-
ra contra eles (sobretudo a falsa notícia do linchamento de Andrea Hippoli-
to), o jornalista cismou que tinha partido dos Matarazzo uma intriga que cir-
culava de boca em boca entre seus inimigos. A notícia dizia que, por trás da
campanha Dê Asas para a Juventude, estava escondida uma mina de ouro
de Chateaubriand: em cada avião doado ele estaria recebendo das fábricas
(ou das empresas importadoras, no caso de aparelhos estrangeiros) uma co-
missão que variava entre 10% e 20% sobre o valor pago. Até aquele ano ha-
viam sido doados seiscentos aparelhos (para se ter uma idéia da dimensão
desse número, basta lembrar que, na mesma época, a Inglaterra dispunha de
apenas quinhentos aviões de treinamento de pilotos civis), cujo custo unitá-
rio médio, entre nacionais e importados, girava em torno de 7,5 mil dólares.
Isso significava que Chateaubriand estava sob suspeita (sempre pelas costas,
que poucos tinham coragem de acusá-lo abertamente) de ter embolsado uma
cifra que variava entre 450 mil e 900 mil dólares.
Ele próprio devia saber que, na verdade, aquela história tinha vindo a
público meses antes, em meados de 1944. Em meio a uma barulhenta polê-
mica com o dono dos Associados, Agamenon Ma galhães, então interventor
em Pernambuco, insinuara em artigo publicado na Folha da Manhã, de Reci-
fe, que Chateaubriand tirava proveito material da campanha. Amigo de am-
bos e tentando apaziguá-los, o jornalista Barbosa Lima Sobrinho (na época
presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool) escreveu uma carta a Agame-
non na qual fez referências explícitas ao assunto:
[...] A campanha da aviação é considerada nas altas esferas como uma grande
realização, de indiscutível utilidade. Criou mentalidade favorável à aviação em
todo o Brasil e chegou ao ponto de alarmar a Argentina, que a considerou como
uma vantagem obtida pelos brasileiros no domínio da preparação aérea. Não ig-
nora você que o presidente deu a essa campanha todo o prestígio que lhe podia
dar, nem o Salgado faria o que fez sem conhecer a opinião do presidente. Pode-
se admitir - e talvez não haja dúvidas a esse respeito - que o Chateaubriand
tenha tirado proveito da campanha. Bastaria de fato uma comissão de 10% a
20% sobre os preços de venda, para que tivéssemos aí alguns milhares de con-
tos, além da vantagem decorrente dos contatos com os governantes e com os ca-
pitalistas que doavam os aviões.
Mas de que modo discutir esses aspectos sem de qualquer maneira atingir o
governo que a apoiou e prestigiou decididamente? E qualquer crítica a esse res-
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FERNANDO MORAIS
peito não deveria antes ser encaminhada ao próprio presidente, como informa-
ção confidencial, antes de vir para a imprensa? Você não é apenas um jornalis-
ta. Você é o interventor de um estado, o representante desse mesmo governo
que deu publicamente toda a sua solidariedade à campanha da aviação. [...]
Entre os dirigentes do Estado Novo a circulação daquelas notícias não
parecia preocupar apenas a Barbosa Lima Sobrinho. Uma investigação reser-
vada, encomendada pelo Catete ao serviço secreto do governo do estado de
São Paulo, resultou em um informe confidencial (que só viria à luz meio sé-
culo depois, com a abertura dos arquivos da polícia política paulista) que re-
forçava as mesmas suspeitas:
Informe Reservado
'r
Nos meios ligados ao Aero Clube de São Paulo é corrente a voz de que o sr.
Assis Chateaubriand, diretor dos Diários Associados e promotor da Campanha
da Aviação Civil, mancomunou-se com os estabelecimentos comerciais Mesbla
no sentido de locupletar-se com os dinheiros obtidos através de doadores de
aviões para os diversos aeroclubes do país.
Segundo se afirma, muitos dos aviões doados por particulares nunca chega-
ram a seus destinos porque, na realidade, nunca existiram. Assim é que no Ae-
roporto Santos Dumont, no Rio, havia um pintor especialmente encarregado de
raspar os nomes dos a viões já batizados e pintar novos nomes em aviões a se-
rem novamente batizados, sendo que num só dia um avião foi batizado cinco
vezes, todas elas com novos padrinhos e nomes diferentes.
Conta-se que o prefeito de um município paulista (Lorena), também presi-
dente do aeroclube local, indo ao Rio, quis receber o avião que se destinava a
seu aeroclube e que havia sido batizado no dia anterior, com grande solenida-
de. Ao dirigir-se a quem de direito, nesse sentido, ficou pasmo ao saber que o
dito avião já havia sido batizado com outro nome e oferecido a um outro aero-
clube, que por sinal também não o recebeu. Conta-se, outrossim, que o sr. Sa-
muel Ribeiro, diretor da Caixa Econômica, doador de dez aviões para a campa-
nha, suspendeu suas doações quando soube das irregularidades verificadas e
das atitudes desonestas do sr. Assis Chateaubriand. Diz-se ainda que a Mesbla
jamais importou do estrangeiro (todos os aviões doados foram adquiridos des-
sa firma) sequer a quinta parte dos aviões doados, e que esse estabelecimento
comercial obteve a metade dos lucros do sr. Chateaubriand nessa campanha.
Finalmente comenta-se que as autoridades policiais ou aeronáuticas nenhu-
ma atitude enérgica tomaram contra os fraudadores apontados, limitando-se a
aconselharem o sr. Chateaubriand a encerrar a campanha que tão bons frutos
lhe trouxera.
Ao bisbilhotar a constituição social das empresas Associadas na Junta
Comercial, tentando encontrar algum indício de fraude que pudesse dar
margem a investigações sobre negócios escusos de Chateaubriand, outro
agente secreto parecia entregar os pontos diante de tamanho emaranhado:
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FERNANDO MORAIS
O Jornal é uma sociedade anônima. O Diário da Noite é uma sociedade anônima
da qual O Jornal é o maior acionista. O Diário da Noite é o maior acionista do
Diário de São Paulo. O Laboratório Xavier é uma sociedade anônima da qual
o Diário da Noite é o maior acionista. O Chocolate Lacta é uma sociedade anôni-
ma da qual o Diário da Noite é o maior acionista. A Agência Meridional é uma
sociedade anônima da qual o Chocolate Lacta é o maior acionista. A Rádio Tupi
é uma sociedade anônima, da qual a Rádio Tupã é a maior acionista. A Rádio
Tupã é uma sociedade anônima da qual O Jornal é o maior acionista. E assim for-
mam um círculo vicioso, sendo uma empresa amparada pela outra, formando
um verdadeiro castelo de cartas. Basta, portanto, que uma dessas empresas tom-
be, para que todas as outras também caiam.
Além de basear-se em uma sucessão de "conta-se", "comenta-se", "diz-
se", "é voz corrente", o informe policial sobre a campanha padecia de outras
fragilidades: como prometer um avião para uma cidade, convidar o prefeito
para recebê-lo (ou o padre, como aconteceu no fatídico batismo do Augusto
Severo), alardear a doação pela imprensa e pelo rádio e depois não entregar
o aparelho? Os jornais que faziam oposição a Chateaubriand - e eram
muitos - nunca noticiaram o caso de um aeroclube que tivesse deixado de
receber o aparelho depois de uma cerimônia de batismo. E, supondo que essa
versão fosse verdadeira (e que Chateaubriand de fato recebesse comissão
por avião comprado), por que razão exagerar o número de aparelhos doados?
Não havia, no entanto, nem uma vírgula que comprovasse que a boataria
teria de fato saído do casarão da avenida Paulista (aparentemente a única
culpa que cabia ao conde tinha sido dar ao dono dos Associados um apelido
que este odiava tanto quanto "o Nauseabundo": para Matarazzo, ele passa-
ria a ser para sempre "o Lazarento"). Chateaubriand, no entanto, meteu na
cabeça que por trás daquela infâmia estavam os Matarazzo, e isso bastava
para que voltasse à carga contra eles, com força redobrada.
Os Associados agora tinham equipes de repórteres destacados perma-
nentemente para descobrir e divulgar os "esbulhos do conde", como dizia o
jornalista. Durante o primeiro semestre de 1945, todos os dias, sem uma úni-
ca exceção, o Diário da Noite ou o Diário de São Paulo brindavam seus leitores
com uma novidade sobre o "fidalgo do sebo" (uma provocação sobre o fato
de os Matarazzo terem iniciado sua fortuna com o comércio de banha de
porco). E agora o que saía em São Paulo contra o conde era obrigatoriamen-
te reproduzido em todos os outros Associados já espalhados por todo o Bra-
sil (o jornalista Carlos Castelo Branco, que assumira a secretaria de redação
de O Jornal, se lembraria, décadas depois, das recomendações expressas fei-
tas por Chateaubriand à direção do jornal carioca, e que valia para todos os
demais: "Pode não haver espaço para publicar meu artigo, mas não há de
faltar papel para as verrinas contra o conde"). Um dia era a demissão de
quatrocentos miseráveis operários, alguns deles doentes e com mais de dez
anos de casa". No outro era a acusação de que as indústrias Matarazzo fa-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
ziam dumping com o preço da aguarrás, em prejuízo das indústrias da famí-
lia Ermírio de Moraes ("Digam a esse ladrão que devolva o dinheiro que está
roubando ", teria declarado Ermírio de Moraes ao Diário da Noite). Depois era
uma ação que corria nos tribunais, movida pelos irmãos que pretendiam co-
locar o conde para fora das empresas. Ou então era a "Gestapo de Chiqui-
nho" que impedia a manifestação de operários nas IRFM. Qualquer queixa
trabalhista (e devia haver muitas, já que as indústrias empregavam mais de
30 mil operários) se transformava em matéria de página inteira, acompanha-
da de fotos da casa do "miserável sexagenário que veio de Pinhal para tra-
balhar nas IRFM e foi despedido pelo conde ". Até no banco dos réus do Tri-
bunal de Segurança Nacional o conde acabaria sentando (pelo menos nas
páginas dos Associados), acusado por "pecuaristas e lavradores roubados
pelas IRFM". Cada reportagem, por menor que fosse, mereceria no dia se-
guinte um comentário assinado por Chateaubriand - ou, dependendo do
calão, pelo "Macaco Elétrico" ou por "A. Raposo Tavares ".
Se o corriqueiro dia-a-dia das indústrias proporcionava tanta munição
para a guerra de guerrilha que os Associados moviam contra o conde, com
o passar do tempo ele próprio iria oferecer a Chateaubriand os dois pratos
principais que alimentariam as campanhas. Seu primeiro erro foi achar que
a única maneira de enfrentar Chateaubriand era usar a mesma arma que ele,
a imprensa. Aconselhado por amigos a montar um jornal para dar o troco
com chumbo de igual qualidade, Matarazzo decidiu comprar um já existen-
te. Foi assim que, em meados de 1945, a praça de São Paulo ficou sabendo
que o conde tinha "adquirido de Otaviano Alves de Lima o controle acioná-
rio" da Folha da Manhã, que editava também a Folha da Noite - e que, a par-
tir dos anos 60, mudaria de nome para Folha de S. Paulo. Na verdade, Mata-
razzo comprou apenas um terço do capital, e uma vez que a lei o impedia,
enquanto brasileiro naturalizado, de ser proprietário de jornais, colocou
para representá-lo Clóvis Medeiros Queiroga (a quem chamava de "Brasilei-
ro"). Os outros dois terços foram parar nas mãos do jornalista José Nabanti-
no Ramos e do cafeicultor Alcides Ribeiro Meireles. Para entrar no negócio
tanto Nabantino (que representava seus irmãos, João Batista e Luís) quanto
Meireles recorreram a empréstimos no Banco do Estado de São Paulo. Di-
nheiro mesmo, de verdade, só o conde tinha.
Com o prestígio de ter enfrentado o Estado Novo (que o submetera a in-
tervenção em 1940), o jornal O Estado de S. Paulo dominava confortavelmen-
te o primeiro lugar em vendagem. O objetivo do conde, ao comprar a Folha
(ou "as Folhas", como eram chamadas, pois eram duas), era enfrentar Cha-
teaubriand e disputar com os dois Associados o segundo lugar em São Pau-
lo. Para dirigir o jornal recém-adquírido ele mandou chamar em Bolonha, na
Itália, o precoce e talentoso Giannino Carta, editor de Il Secolo Decimononno
(na época, o jornal local mais importante). Seduzido pelo astronômico salá-
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FERNANDO MORAIS
rio de 10 mil cruzeiros que o conde lhe oferecera (o dobro do que ganhava
Carlos Lacerda para dirigir a Agência Meridional e O Jornal), Carta mudou-
se para São Paulo. Com ele vieram sua mulher, Clara, e os dois filhos, Luís e
Mino, que décadas depois estariam entre os mais importantes jornalistas do
Brasil. Se acertou ao escolher o editor, o noviço Francisco Matarazzo Júnior,
mais afeito a disputar mercados na área industrial, cometeu seu primeiro
erro quando tomou a decisão de enfrentar a concorrência Associada como se
estivesse dirigindo uma de suas fábricas de sabão. Chamou Nabantino Ra-
mos a seu gabinete (onde só ele ficava sentado, enquanto as visitas perma-
neciam o tempo todo de pé) e ordenou:
- Seu José, sabe como vamos destruir o lazarento do Chateaubriand?
Arrebentando os jornais dele. A partir de amanhã o senhor reduz o preço
das Folhas à metade.
A emenda escangalhou o soneto. Só quando a Folha da Manhã e a Folha
da Noite apareceram nas bancas a Cr$ 0,30 (em vez dos Cr$ 0,50 cobrados por
todos os outros jornais) é que o conde percebeu que, além de um Chateau-
briand atacado de fúria, ele tinha contra si toda a imprensa do estado. O Diá-
rio da Noite garantia que os jornais tinham sido comprados "com saldo de di-
nheiro fascista e nazista em poder do conde". Acusando-o de tentar fazer
com a imprensa "o que costuma fazer com cebola, toucinho, carne-seca,
bão, sapólio e macarrão", um grupo de jornalistas do recém-fundado Sindi-
cato dos Jornalistas de São Paulo pediu seu enquadramento na Lei de Cri-
mes contra a Economia Popular. Chateaubriand, por sua vez, deixou de lado
os pseudônimos e assinou ele próprio artigos dignos do "Macaco Elétrico"
ou de "A. Raposo Tavares":
[...] Para ferir os Diários Associados, o magnata das Indústrias Reunidas F. Ma-
tarazzo declarou guerra a todo o jornalismo de São Paulo. Transferiu a revan-
che do plano individual para o coletivo. Sua estupidez, que é tão crassa e notó-
ria, arrastou esse formidável movimento de opinião pública que desde ontem se
ergue contra o incorrigível manipulador de dumpings para o aniquilamento dos
competidores que ousam não temê-lo.
[...] Não há necessidade de afobação. A imprensa decente dos paulistas pode
dormir sossegada se o adversário que ela tem pela frente é o sr. Francisco Ma-
tarazzo Júnior. Não há nada mais fácil que destruir um pobre homem desta
marca, em cuja cabeça podemos encontrar chouriço, abóbora, cominho, cebola,
o que quiserem, menos o nobre fósforo.
[...] O preço pelo qual o sr. Matarazzo está entregando a sua Folha de Couve
não paga nem o papel em que ela é impressa. Nossa reação agora é simples e
elementar: pegar pela gola do casaco o velhaco prevaricador e sentá-lo pacifica-
mente no banco dos réus. É ao Tribunal de Segurança que compete julgá-lo pelo
dumping com que está ameaçando a imprensa livre de São Paulo. A lei penal foi
violada pelo sr. Matarazzo e seus testas-de-ferro das duas Folhas de Couve. É com
a admirável lei, que o desembargador Nelson Hungria elaborou e que o sr. Ge-
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túlio Vargas em boa hora promulgou, que a unanimidade dos jornalistas de São
Paulo irá defender-se das patadinhas do cágado dos charcos do Tamanduateí.
Desta vez o sr. Matarazzo caiu de quatro. Para acordar às portas da cadeia.
Em outro artigo, Chateaubriand afirmava que a prisão seria a pena mais
benevolente que se poderia aplicar no industrial. E, se antes apenas insinua-
ra, desta vez ele sugeria abertamente que o justiçamento popular era a puni-
ção mais apropriada para o dono do maior império industrial do Brasil:
A imprensa internacional se farta em anunciar que agora mesmo, na Europa,
dezenas e dezenas de Chiquinhos acabaram pendurados nos postes por se te-
rem tornado, durante a guerra, réus da quarta parte dos crimes que o chefe das
IRFM vem cometendo contra leis que garantem níveis de preços razoáveis. Se mi-
rar o destino que tiveram seus equivalentes europeus, o Chiquinho de cá have-
rá de entender que hoje a cadeia deve ser o único lugar onde ele poderá se sen-
tir seguro.
Além do recrudescimento da campanha dos Associados contra ele e
suas empresas (à qual, ainda que com linguagem menos grosseira, os demais
jornais aderiram), as decisões do atrabiliário Matarazzo iriam trazer-lhe pro-
blemas no front interno, entre seus sócios nas Folhas. Embora não detivesse o
controle da empresa, como era o único que tinha dinheiro para sustentar
aquela aventura, o industrial ditava ordens no jornal autoritariamente, sem
consultar os dois outros sócios: fora assim quando decidiu mudar a sede da
rua do Carmo para um velho prédio nos baixos do viaduto Santa Ifigênia
(que anos depois ele cederia a Samuel Wainer para instalar a sede da Ultima
Hora paulista), quando chamou Giannino Carta e, claro, quando decidiu re-
duzir o preço dos jornais.
No caso dos preços, só semanas depois é que ele descobriu que cada
centavo que tinha sido reduzido no preço de capa dos jornais estava sendo
debitado por Nabantino em sua conta. Ou seja, a exótica estratégia que ele
imaginara para destruir os Associados estava sendo custeada apenas com
dinheiro seu, sem ser compartilhada pelos outros dois sócios. Por isto, e por
perceber que o tiro estava saindo pela culatra, a aventura do jornal pela me-
tade do preço durou muito pouco. Mas seus problemas, não. Embora anos
depois fosse reconhecida por todos a competência profissional de Nabanti-
no na modernização das Folhas, o autoritário Matarazzo chamou-o a seu ga-
binete para comunicar-lhe (um sentado e o outro de pé, como sempre) o con-
vite feito a Giannino:
- Seu José, o senhor é um grande advogado, mas não é jornalista. O se-
nhor vai ser o chefe do contencioso das minhas indústrias. Lá para o jornal
eu já chamei um italiano que entende disso, o Giannino Carta.
Em meados de 1945 (logo que surgiram os primeiros rumores de que os
Matarazzo estavam comprando as Folhas), o conde tinha oferecido a Cha-
teaubriand outro prato cheio: o casamento de sua filha Filly com o jovem mi-
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FERNANDO MORAIS
lionário carioca João Lage. Logo apelidadas pela imprensa, sem muita ima-
ginação, de "o casamento do século", as bodas de Filly (esnobe apelido de
Filomena) e Lage movimentaram a alta sociedade do circuito São Paulo-
Rio-Buenos Aires -Roma. Um mês antes da cerimônia propriamente dita,
as colunas sociais já não tinham espaço para outros assuntos, dedicando-se
a especular quem seria e quem não seria convidado para a festa. Ou, com
exatidão, para as festas, pois várias recepções seriam oferecidas nos dias an-
teriores ao casamento. Centenas de convidados viriam de Buenos Aires,
onde um ramo da família tinha negócios, e da Itália, terra dos Matarazzo. Ex-
citados, os colunistas exageravam que um contêiner-frigorífico seria embar-
cado da Argentina trazendo carne congelada de veado e de javali para os
jantares. Noticiaram também que na Maison Cartier, em Paris, os pais da
noiva teriam mandado esculpir algumas centenas de grãos de café em ouro
maciço, com as letras "J", do noivo, e "F", da noiva, e a data do matrimônio.
Cada convidado seria mimoseado com uma jóia daquelas, como lembrança
do acontecimento. Os jornais se referiam à casa dos Matarazzo como "o pa-
lácio encantado da avenida Paulista", e, à medida que se aproximava a tão
esperada semana do casamento, as modistas chiques do Rio e de São Paulo
foram deixando de aceitar encomendas.
Realizada em um mundo que tentava renascer da miséria e do raciona-
mento decorrentes da guerra, a anunciada festança deixou Chateaubriand
endemoninhado: caído do céu quando começava o affair Folha da Manhã, o
casamento parecia ter sido planejado sob medida para pôr à prova o talento
e a capacidade de demolição de seus melhores repórteres. O primeiro nome
que lhe veio à cabeça foi, obviamente, o de Joel Silveira. Além de aquele ser
um desafio não para um jornalista qualquer, mas para uma víbora, Joel ain-
da contava com a vantagem da familiaridade que tinha com muitos dos pro-
tagonistas do evento, adquirida quando escreveu para Diretrizes a reporta-
gem "Grã-finos em São Paulo" - a tal que despertara o interesse do dono
dos Associados por seu talento. Além disso, o repórter conhecera o noivo
quando este servia como pracinha junto às tropas brasileiras em Porreta-Ter-
me, no Norte da Itália. Ainda assim, Chateaubriand entendeu que o conde
merecia mais bala, e de calibre grosso. Depois de decidir que Joel Silveira fi-
caria responsável pela cobertura da festa (ou de quantas de fato aconteces-
sem) para os jornais diários, deu ordens para que a dupla David Nasser-
Jean Manzon se mudasse de malas e bagagens para São Paulo com uma
semana de antecedência, a fim de traçar, para O Cruzeiro, uma detalhada des-
crição da história e do dia-a-dia do pai e da família da noiva.
Tão mordaz mas menos sensacionalista que a cobertura que Joel Silvei-
ra iria fazer da festa, a reportagem de Nasser e Manzon foi publicada em O
Cruzeiro dias antes do casamento. Reforçando as diferenças entre a vida dos
Matarazzo e a das pessoas comuns, Nasser escreveu seu texto como se fosse
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
um cicerone que conduzisse um homem comum pobre pela mão para conhe-
cer aquele mundo de fausto e riqueza: "Certos varões e damas dessa casta
privilegiada são pessoas simples, de hábitos vulgares, que vos recebem sor-
rindo, qualquer que seja o vosso título. Não acontecerá isto, entretanto, se
baterdes à porta de um castelo de cores sombrias, à avenida Paulista, onde
vive os seus raros minutos de repouso o conde papal Francisco Matarazzo
Filho. Vinde conosco, homem da rua". Cáustico, o texto levava o leitor a um
tour onde eram descritas com detalhes as casas, as fazendas e o luxo em que
viviam os Matarazzo.
Se a reportagem de O Cruzeiro foi considerada de extremo mau gosto
pelos colunistas sociais, um verdadeiro desmancha-prazeres, eles não imagi-
navam o que estava por vir. Na manhã que se seguiu ao último dos bailes,
Joel Silveira apareceu tresnoitado na redação dos Associados de São Paulo e
sentou-se à máquina para produzir seu veneno. Embora não conseguisse um
convite para entrar na festa e ver tudo com os próprios olhos, Silveira arran-
jou três informantes, encarregados de observar e anotar cada detalhe do que
aconteceria dentro dos muros do casarão. E foi através dessas informações
que ele escreveu "A 1002 noite da avenida Paulista":
[...] Um balanço honesto, pacientemente colecionado durante a semana doura-
da, nos diz, então, que antes, e à margem do casamento, mas a ele ligado, hou-
ve o seguinte: 26 jantares em residências particulares; oito recepções; dezesseis
ceias no Jequiti e sete no Roof, não falando de uma série de pequenos inciden-
tes mundanos: cocktails, chás com torradas, encontros fortuitos, coisas assim. So-
mem-se a isto os tremendos quarenta dias que antecederam o enlace, com aque-
le desespero aflito tomando conta de cavalheiros e de senhoras, com as mil
consultas a alfaiates, chapeleiros, modistas etc., e a uma conclusão lógica se che-
gará: a de que nunca, em nenhum tempo, a elegância nacional viveu instantes
tão absolutos.
[...] A "mais bela festa do Brasil", ela propriamente dita, durou precisamente
dois dias, três noites e três madrugadas. Começou precisamente no sábado, 8, às
nove e meia da noite, quando foram realizadas as bodas civis, com apenas dez
convidados, a gente mais eleita. [...] Depois da cerimônia foi o baile. À meia-noi-
te os noivos dançaram a primeira valsa. "O conde tinha um sorriso de pomba
nos lábios", informou um cronista. O palácio resplandecia, mil luzes, mil refle-
xos, as fontes luminosas. Lá fora, o povaréu, anônimo e friorento, se acumulan-
do paciente no sereno. Depois, as Silfides. Gentis e airosas, as bailarinas do Mu-
nicipal, sob o compasso de uma orquestra de cem figurantes, amaciaram e
encantaram os privilegiados corações presentes com a música chopiniana.
[...] Houve um intervalo nos festejos, entre a primeira fase da dança e o come-
ço do ballet, para que o conde, irresistivelmente pródigo, distribuísse entre os
convidados ricos cotillons. Peguei num deles: uma caneta-tinteiro de ouro com o
nome do agraciado gravado - aquilo não devia ter custado menos de 4 mil cru-
zeiros. Oitocentos convidados, oitocentos cotillons.
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FERNANDO MORAIS
[...) O casamento religioso foi na segunda-feira (o domingo constituiu uma
meia-trégua, com uma pequena recepção e outro baile à noite), e de uma certa
maneira seu brilhantismo, com a igreja toda ornamentada, deixou na sombra os
festejos com que os paulistas, naqueles dias, costumam agraciar o Imaculado
Coração de Maria. [...] Quando, depois de tudo acabado, os noivos seguiram, na
terça-feira, para a sua lua-de-mel, e o dr. Franchini Neto, exausto, recolheu-se à
sua residência (ele foi o mestre-de-cerimônias de todo o esplendor, para o que,
dizem, recebeu 30 mil cruzeiros), o conde havia despendido pouco mais de 6
milhões de cruzeiros. Não falando, é lógico, nas dádivas especiais com que ofer-
tou sua filha e seu genro. Somente um colar de pedras, tremeluzindo no colo de
dona Filly, custou 3 milhões e 500 mil cruzeiros.
A festa de Chateaubriand, porém, ainda não tinha acabado. Quando
Joel Silveira retirava da máquina e depositava sobre a mesa as últimas lau-
das de sua reportagem, a providência divina fez entrar na redação do jornal
Olívia Figueira Ramos, uma senhora modestamente vestida que bateu na
primeira mesa que encontrou, a do repórter Maurício Loureiro Gama. Inibi-
da, ela se dirigiu ao jornalista em voz baixa:
- Leio todos os dias notícias do casamento da filha do conde, e pensei
que os senhores poderiam publicar uma notinha qualquer sobre o casamen-
to da minha filha, que se realiza hoje.
Loureiro falou por minutos com a visitante (que tinha sido atraída ao
jornal pela abundância de noticiário publicado nos dias anteriores sobre as
festas de Matarazzo), ao final dos quais berrou para o outro lado da redação:
- Joel! Joel! Olha só a maravilha que me apareceu aqui: uma operária
vai se casar hoje com um torneiro-mecânico, e os dois trabalham na fábrica
do Matarazzo!
No meio da tarde os dois repórteres, acompanhados de dois fotógrafos,
surpreendiam os moradores da modesta rua sem calçamento do bairro de
São Miguel Paulista, na miserável Zona Leste de São Paulo, para cobrir o ca-
samento de Nadir Ramos com José Tedeschi. Depois da cerimônia religiosa,
realizada em uma igrejinha do bairro, começou o que mais interessava aos
jornalistas: a festa. Sobre a mesa da casa da noiva havia pão, goiabada, re-
fresco de laranja e algumas garrafas de cerveja e de guaraná. Enquanto os fo-
tógrafos disparavam suas máquinas e Joel Silveira entrevistava os noivos,
Loureiro Gama tomou o carro de reportagem e saiu à procura de uma loja
de ferragens. Voltou minutos depois com o seu presente para os noivos: um
canivete, dado com a condição de que eles posassem para fotos gravando, no
tronco de uma árvore da rua, o tradicional coração trespassado por uma fle-
cha e com as iniciais de Nadir e José. O aparato dos Associados acompanhou
os noivos no trem de subúrbio que os levou até o centro da cidade (eles iam
passar os três dias de lua-de-mel em São Paulo mesmo), e os fotógrafos se
deliciaram ao imortalizar o casal na Estação da Luz inteiramente vazia, car-
regando nas mãos suas malinhas de papelão.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Ao ser informado no Rio da descoberta do casamento dos empregados
do conde, Chateaubriand pulava de satisfação e bufava ao telefone:
- Vocês têm que dar para o casamento dos operários o mesmo espaço
que derem para o casamento da filha do conde! Se as bodas de dona Filly re-
ceberem duas páginas, quero duas páginas para os operários!
No dia seguinte o Diário da Noite estampava duas páginas inteiras, face
a face: na da esquerda, a 1002 noite de Filly e João Lage. Na da direita, o ca-
samento de Nadir e José em São Miguel. Joel, naturalmente, não deixaria de
chamar a atenção dos leitores para o fato de que a festança da página esquer-
da tinha sido paga com o trabalho dos noivos da página direita.
Mas aquela ainda não era a vitória final de Chateaubriand sobre o con-
de Matarazzo. As autoritárias decisões que ele vinha tomando nas Folhas
sem ouvir os sócios acabariam por fazer com que estes perdessem o interes-
se em continuar no mesmo barco que o milionário. Poucos meses depois, o
conde abandonaria seu tão ruidoso projeto de enfrentar Chateaubriand com
armas iguais às do adversário. Encantado com o Brasil, Giannino Carta (que
nem chegou a trabalhar de fato nas Folhas, mas recebeu a multa prevista para
o caso de o projeto não dar certo) resolveu ficar por aqui. Pouco tempo de-
pois do naufrágio da aventura de Matarazzo, ele seria convidado por Cha-
teaubriand para publicar diariamente no Diário de São Paulo uma página in-
teira escrita em italiano - com artigos, reportagens e análises políticas-
dedicada à enorme colônia italiana que vivia em São Paulo (Mino Carta, ain-
da garoto, ficava fascinado com a presença em sua casa de um Chateau-
briand sempre cercado de capangas armados e sempre vestido de branco-
terno branco, chapéu branco, camisa branca, gravatas enormes e sapatos do
tipo "bariri", marrons e brancos). A permanência nos Associados, tanto de
Giannino Carta quanto da página escrita em italiano, entretanto, durou pou-
co: meses depois ele receberia, por intermédio de Paulo Duarte, um convite
de Júlio de Mesquita Filho para dirigir a redação de O Estado de S. Paulo.
Vencido o conde, Chateaubriand se voltaria para o assunto que eletriza-
va o Brasil: a redemocratização. O Estado Novo começara a balançar em fe-
vereiro de 1945, pelas mãos de Carlos Lacerda, que saíra dos Associados.
Um incidente banal no dia-a-dia de um jornal, ocorrido em novembro de
1944, acabou por levá-lo a demitir-se tanto da Meridional quanto de O Jor-
nal. Chateaubriand encomendara a ele uma entrevista com Fernando Costa,
interventor no estado de São Paulo. David Nasser, encarregado por Lacerda
de fazer o trabalho, publicou a entrevista descrevendo o interventor (que o
recebera de pijama) como "um fazendeiro feliz". E transcreveu, entre outras
coisas, uma declaração de Fernando Costa sugerindo que o Brasil devia pa-
rar de plantar café, "um produto sem valor nutricional e tão dispensável
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FERNANDO MORAIS
como a música, o luar ou os charutos". Apesar de fútil, a entrevista provoca-
ra queda nos preços do café, e Getúlio telefonou para Chateaubriand exigin-
do uma retratação de O Jornal (onde a entrevista fora publicada, no Rio) e a
repreensão do responsável. Quase simultaneamente a esse incidente, a Me-
ridional distribuíra uma notícia pequena e igualmente desimportante, redi-
gida pelo próprio Lacerda, dando conta do descontentamento da Associação
Comercial do Rio com o Imposto de Consumo (que décadas depois se trans-
formaria no ICMS). Para mal dos pecados de Lacerda, logo após a queixa de
Vargas, a direção da Associação Comercial procuraria Chateaubriand para
desmentir a nota escrita pelo diretor da agência (e o DIP pressionava a reda-
ção para que a retificação saísse incontinenti).
O dono dos Associados cumpriu à risca a vontade do presidente. Fez
uma dura admoestação telefônica a Lacerda (a quem ele chamava sempre,
respeitosamente, de "dr. Carlos " ou "dr. Lacerda"), dizendo que a entrevis-
ta com Fernando Costa era "desrespeitosa" e a notícia sobre o imposto
"mentirosa" - e exigindo que tanto uma como outra fossem desmentidas
espontaneamente pela agência e pelo jornal. Irritado por não ter tido a opor-
tunidade, ao telefone, de se explicar, Lacerda escreveu uma carta a Chateau-
briand. Nela, manifestou a opinião de que a entrevista com o interventor
"pareceu-me pitoresca, mas amistosa", e que Nasser era um jornalista sério
e responsável. Quanto à notícia que ele próprio redigira, tinha como base
uma fonte sua: a própria Associação Comercial. No final da carta, pediu de-
missão dos Associados (Chateaubriand não parece ter feito muito esforço
para demovê-lo, pois na resposta a Lacerda lamentava sua decisão mas não
sugeria que ele voltasse atrás).
Desempregado, Lacerda passou a trabalhar como free-lancer para jornais
cariocas. E foi nessa condição que pediu a José Américo de Almeida (ex-mi-
nistro de Vargas e um dos frustrados candidatos a presidente em 1937) uma
entrevista sobre a situação política nacional. O que tinha sido combinado é
que a entrevista seria publicada no Diário Carioca, mas ao ler o conteúdo ex-
plosivo das palavras de Almeida (que bradava por democracia e exigia elei-
ções imediatas para presidente), a direção do jornal, temendo a ação do DIP,
recusou-se a publicá-la. O jornalista e o entrevistado decidiram distribuí-la a
vários jornais (os Associados, com quem Lacerda acabara de brigar, foram
excluídos), imaginando que seria mais difícil para o governo punir coletiva-
mente todos os diários que a publicassem. Na verdade, apenas o Correio da
Manhã cumpriu o acertado, e no dia 22 de fevereiro trouxe a entrevista. O cli-
ma de desobediência ao governo parecia transbordar: ainda sob o impacto
da publicação, viu-se, no dia seguinte, a mesma entrevista reproduzida por
O Globo. Em São Paulo, intelectuais de todo o Brasil reunidos no I Congres-
so de Escritores faziam coro às palavras de José Américo, exigindo imediata
convocação de eleições e fim da censura a livros e jornais. Farejando a ago-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
nia do governo, Chateaubriand distribuiu uma ordem a todos os órgãos As-
sociados: em suas rádios e jornais as instruções da censura deveriam ser
pura e simplesmente ignoradas.
Em Belo Horizonte era Carlos Castelo Branco quem estava na chefia do
Estado de Minas quando o próprio Chateaubriand telefonou para o diretor
Gregoriano Canedo:
- Canedo, dispense o censor. De hoje em diante não tem mais censura
no jornal.
Amigo do prefeito Juscelino Kubitschek (que, além de patrono de gene-
rosas dotações de verbas oficiais ao jornal, era politicamente ligado a Getú-
lio), Canedo entrou em pânico com a ordem que recebera. Chamou Castelo
e passou o abacaxi adiante:
- Castelo, o Chateaubriand mandou dispensar o censor, não rece-
ber mais ordens dele. Eu vou embora para casa, você se vira por aí com o
Ataliba.
Fazia tantos anos que Ataliba, o censor, dava plantão ali, que ele se sen-
tia parte integrante da redação. Chegava todas as noites de terno branco e
chapéu panamá, pendurava o paletó na cadeira e ia recebendo as pilhas de
laudas datilografadas das mãos de Castelo. Com o tempo estabeleceu crité-
rios pessoais do que podia ou não podia ser publicado (a palavra democra-
cia, por exemplo, só poderia sair em títulos quando estivesse entre aspas, e
desde que fosse parte integrante de discursos de Churchill ou de Roosevelt).
Naquele dia ele chegou como se nada tivesse acontecido, pendurou o paletó
e pediu a Castelo o primeiro pacote de trabalho para ler. O rápido diálogo
entre os dois ficou célebre, para as gerações de jornalistas que vieram depois,
como um presságio da ação de ditaduras sobre a liberdade de imprensa.
Castelo transmitiu com bom humor a ordem de Chateaubriand ao censor:
- Não, Ataliba, hoje você não vai ler o jornal aqui. Se você quiser ler o
Estado de Minas vai ter que comprá-lo na banca amanhã de manhã.
Ataliba se levantou, pegou o paletó e deixou no ar uma frase profética:
- Já entendi tudo, eu vou-me embora. Mas não tem importância, um
dia eu volto.
Mas o Brasil ainda não havia se livrado dos atalibas. No mesmo dia, no
Rio de Janeiro, como o censor de plantão não conseguisse fazê-lo, o major
Amilcar Dutra de Menezes, diretor do DIP, teve de ir pessoalmente à Rádio
Tupi a fim de proibir a transmissão de uma entrevista gravada com o ex-
chanceler Osvaldo Aranha, que também falava em democracia, eleições, fim
da censura. Um clima de anarquia começava a desorganizar o metódico tra-
balho dos censores. Embora proibida no Rio, a entrevista de Aranha foi re-
produzida pelo Diário da Noite de São Paulo, contra a determinação do cen-
sor, sem que o jornal fosse punido. Animados com o feito do Diário da Noite,
os radialistas da Tupi paulista decidiram pôr no ar a gravação com a entre-
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FERNANDO MORAIS
vista de Aranha. Dutra de Menezes deu ordens ao DIP de São Paulo para ti-
rar a rádio do ar e lacrar os transmissores, mas ao chegar à estação os poli-
ciais encarregados de cumprir a determinação encontraram barricadas ar-
madas por Homero Silva e Cassiano Gabus Mendes, diretores da Tupi,e
dezenas de funcionários armados de porretes: A rádio continuou funcionan-
do - e a "sensacional façanha" foi a manchete do Diário da Noite do dia se-
guinte: "Tupiniquins do Sumaré comeram a língua e a autoridade do DIP".
Tamanho deboche parecia antecipar a agonia da ditadura.
Getúlio percebeu que se não tomasse a iniciativa política perderia o con-
trole da situação. Baixou ainda em fevereiro um ato institucional estabele-
cendo que em sessenta dias seria marcada a data das eleições presidenciais
(que acabaram sendo convocadas para 2 de dezembro daquele ano). No
meio do turbilhão, o presidente chamou Chateaubriand para "uma conver-
sa em profundidade " no Palácio Rio Negro. Segundo o jornalista, Vargas fa-
lou durante mais de duas horas seguidas para concluir com o anúncio da de-
cisão que acabara de tomar e com um pedido: ia candidatar-se a presidente
nas eleições de dezembro e queria os Diários Associados a seu lado. Cha-
teaubriand respondeu que a "família Associada" jamais o perdoaria se ele se
aliasse ao presidente que acabara de nomear ministro da Justiça um de seus
mais recentes e ferozes inimigos, o ex-interventor em Pernambuco Agame-
non Magalhães (no dia da nomeação ele fizera um artigo considerando-a
"uma irresponsabilidade do presidente"). E foi adiante, dramático:
- Se eu ficar com o senhor e com Agamenon, estarei traindo o sangue
que ainda corre dentro do Diário de Pernambuco, fechado por ordens dele.
Além de ter o compromisso de honra de combatê-lo, os Associados já se
comprometeram, por meu intermédio, com o candidato lançado por José
Américo na entrevista a Carlos Lacerda: nós vamos marchar com o brigadei-
ro Eduardo Gomes para a Presidência.
Nas palavras de Chateaubriand, o encontro terminou assim:
A essa altura Vargas silenciou. Não articulou mais uma palavra tentando levar-
me para o seu lado. E somente disse:
- Eu não pensava em ser candidato a uma presidência constitucional, demo-
crática. Queria apenas, terminada a guerra, ajudar-vos a arranjarem um bom
candidato à minha sucessão e voltar para casa. Mas o Osvaldo [Aranha] e o Ju-
raci [Magalhães], numa reunião, tiveram a pretensão de vetar meu nome para a
Presidência, ainda que ele saia das urnas em um pleito de sufrágio universal.
Por isso é que decidi candidatar-me. E sou candidato.
Confesso-lhes que tive pena de Vargas quando ele perdeu toda a combativi-
dade ao saber do apoio dos Associados a outro candidato, ali claramente defi-
nido. Encontrei esta saída. Disse-lhe:
- Presidente, o fato de adotarmos a fórmula Eduardo Gomes não quer dizer
que o senhor encontre fechadas as nossas tribunas à propaganda de sua candi-
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datura. Veja logo um chefe de propaganda e mande-o conversar comigo. Algu-
ma coisa se fará. "
Vargas ficou muito mais satisfeito do que eu pensava. Sugeri-lhe alguns slo-
gans populares e nosso encontro, de quase três horas, terminou em perfeita cor-
dialidade. Ao sair, ele acrescentou:
- Amanhã mesmo terás no Rio o meu chefe de propáganda.
Com efeito, às seis horas da tarde o sr. Coelho de Souza entrava pela redação
de O Jornal adentro, revestido desse posto. O resto é outra história.
(De novo mais jornalista que político, Chateaubriand não resistiu à tentação
de tornar público, em um artigo, o teor do encontro com Getúlio. Quando o
presidente desmentiu que tivesse tratado de qualquer daqueles temas com o
dono dos Associados, Chateaubriand deixou-o em má situação: invocou o
testemunho de deputado gaúcho José Pereira Coelho de Souza, que assistira
à conversa no palácio.)
Se a promessa de eleições em dezembro não conseguiu pacificar inteira-
mente o país, outras medidas tomadas sucessivamente pelo governo acalma-
riam o ímpeto dos oposicionistas que ressurgia por toda parte após a entre-
vista de José Américo de Almeida: em abril foi decretada a anistia e logo em
seguida começaram a se constituir os novos partidos políticos com vistas ao
pleito do final do ano. Getúlio parecia ter desistido de sua candidatura, que
Chateaubriand dizia ter caído "como um pau podre na floresta". Aparente-
mente farejando que Vargas estava nos estertores, passou a atacá-lo todos os
dias. "A candidatura do caudilho morreu pela própria incapacidade de seu
autor ", escreveu em um artigo, "que viveu sete anos fechado numa estufa,
cercado de adulões, confundindo o DIP com a imprensa e os cortesãos da
'Hora do Brasil' com a opinião pública." Os dois recém-fundados partidos
governistas, Partido Social Democrático (PsD) e Partido Trabalhista Brasilei-
ro (PTB), tinham apresentado como candidato à Presidência o ministro da
Guerra, general Eurico Gaspar Dutra. Reunidos à sombra da União Demo-
crática Nacional (UDN), os oposicionistas lançaram o brigadeiro Eduardo Go-
mes - a quem Chateaubriand dizia estar apoiando.
Embora tivesse sido convidado por Benedito Valadares para disputar
uma cadeira de senador pelo PsD de Minas Gerais (convite que recusou), o
jornalista de fato não só colocou os Associados para trabalhar pelo brigadei-
ro Eduardo Gomes (que recebeu farta cobertura jornalística de O Cruzeiro,
dos jornais e das rádios, nos quais seus anúncios eram publicados de graça),
como chegou a envolver-se pessoalmente na campanha, viajando com o can-
didato a alguns estados e até participando de comícios. Como o resultado
das eleições era imprevisível, ele fazia, no entanto, um jogo ambíguo: tomou
a cautela de não deixar sair na sua rede uma única palavra contra a candida-
tura de Dutra. Quem quisesse combater a candidatura oficial por meio dos
Associados poderia fazê-lo, desde que assumisse a responsabilidade. Muitas
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FERNANDO MORAIS
vezes, por exemplo, Chateaubriand abriu os microfones da Tupi e da Ta-
moio para que Carlos Lacerda (com quem se reconciliara e que também
apoiava o brigadeiro) fustigasse o general Dutra. Lacerda insistia sempre na
mesma tecla: em nome dos soldados brasileiros mortos na Itália, não se po-
dia votar no candidato que representava a ditadura que ainda sobrevivia,
que ele comparava ao nazi-fascismo derrotado na Europa. Para Lacerda, vo-
tar em Dutra era "votar no fantasma de Adolf Hitler ". O curioso é que Cha-
teaubriand não via essa ambigüidade entre as duas candidaturas como uma
traição ou uma deslealdade a Eduardo Gomes, e assumia isso, como o fez em
artigo publicado poucas semanas antes do pleito: "Durante a presente cam-
panha presidencial, o candidato com quem mais convivi não foi o meu,
aquele a quem deliberadamente deliberara apoiar. Estive maior número de
vezes com o nosso adversário, com o candidato das chamadas forças majo-
ritárias, do que com o brigadeiro Eduardo Gomes".
Mas, se não tocava em Dutra, o jornalista não dava descanso ao supos-
to patrono da candidatura do general, o presidente Vargas. A campanha dos
Associados tornou-se particularmente dura a partir de meados de 1945,
quando Getúlio decidiu baixar o decreto-lei 7666, a chamada Lei Malaia.
Apelidada pejorativamente com esse nome por causa das feições asiáticas de
seu autor, o ministro da Justiça Agamenon Magalhães (tratado pelos adver-
sários como "o Malaio"), a Lei Malaia pretendia, dizia o governo, proteger a
economia e as empresas brasileiras contra a ação dos grandes trustes, nacio-
nais e estrangeiros. Chateaubriand, entretanto, tinha outra interpretação:
achava que havia sido feita sob encomenda para destruir os Associados, pois
proibia que empresas jornalísticas de um mesmo dono pudessem ser acio-
nistas de outras do mesmo ramo, ou que se fundissem entre si, ou se organi-
zassem em associação ou agrupamento sob um só controle. Ou seja, a lei im-
pedia tudo aquilo que os Associados faziam. Em uma transmissão de rádio,
durante a campanha do brigadeiro Eduardo Gomes, um bem-humorado
Chateaubriand resumiu sua opinião sobre a lei, que vinha sendo combatida
com vigor por todos os órgãos Associados:
Não pensem que a Lei Malaia é uma lei de Agamenon Magalhães. É uma lei de
Getúlio, Agamenon é apenas seu instrumento. Creio que nunca se fez no Brasil
uma legislação com tal ferocidade, com o objetivo exclusivo de exterminar uma
organização que somos nós, os Diários Associados. Ao nos defendermos dela,
onde arranjaremos tempo para nos organizarmos, arrumarmos dinheiro, com-
prarmos máquinas? Mas há muitos anos nossa vida tem sido essa: defender nos-
so patrimônio. Aos pedaços, mas salvar de qualquer maneira. Só tenho tempo,
na verdade, de andar com uma garrucha no bolso e nas mãos um bacamarte e
uma lata de Formicida Tatu para dar aos nossos inimigos. Damos Formicida
Tatu, sim. Matamos alguns, mas se eles não tivessem morrido, não sei onde es-
taríamos. Nesses últimos anos, minha vida foi estar de carabina na porta dos
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Associados para defender este patrimônio. E acho que se eu não fosse paraiba-
no, e do sertão, esse gaúcho já tinha me comido.
O gaúcho a que ele se referia - o presidente Getúlio Vargas - ainda
tentaria uma última manobra para permanecer no poder, escorado no cha-
mado "movimento queremista" (expressão originária da palavra de ordem
"Queremos Getúlio!"). Ao encher praças e estádios pedindo "Constituinte
com Getúlio", os queremistas transmitiam aos apreensivos militares a sus-
peita de que algum golpe estava sendo tramado para assegurar a permanên-
cia do presidente no poder. Forçado pelos ministros militares, no final de ou-
tubro o chefe de polícia do Distrito Federal (de novo o capitão João Alberto)
mandou dissolver uma enorme manifestação queremista no centro do Rio.
Descontente com o gesto do subalterno, no dia 29 de outubro Getúlio deci-
diu substituir João Alberto por seu irmão Benjamin Vargas. Foi a gota
d'água. No mesmo dia o presidente agendou às sete da noite um pedido de
audiência rotineira com o general Góis Monteiro, que ocupara o Ministério
da Guerra no lugar do candidato Dutra. Segundo escreveu Chateaubriand,
"Getúlio estava inocente, em estado de querubim, sem saber que Góis leva-
va sob o capote um copo de formicida. O ministro da Guerra estava pronto
para fazer uma boa lingüiça com as tripas e os miúdos de seu interlocutor".
Previamente articulado com os outros ministros militares, e depois de ouvir
os dois candidatos à Presidência, Góis Monteiro comunicou ao presidente
que ele estava deposto.
Os Associados deram um banho de cobertura nos concorrentes. Edmar
Morel cobriu a queda de Getúlio de dentro de um dos tanques que marcha-
ram sobre o Palácio Guanabara, juntamente com outro repórter, Neiva Mo-
reira, um jovem maranhense que o substituíra tanto na cobertura da campa-
nha da aviação como no gabinete do patrão. Farejando alguma coisa no ar,
Jean Manzon decidira ir para o palácio. O fotógrafo se encontrava junto com
dezenas de jornalistas que faziam seu rotineiro plantão numa das ante-salas
do Guanabara quando o general Góis Monteiro chegou para a audiência
com o presidente. A certa altura o major Amílcar Dutra de Menezes apare-
ceu em uma das portas e fez um sinal para que Manzon - e só ele - entras-
se (os dois cultivavam grande amizade, nascida nos tempos em que Mene-
zes fora chefe de Manzon no DIP). Para raiva e ciúme dos outros repórteres e
fotógrafos, o francês atravessou sozinho o cordão de isolamento e, fechada a
porta da sala onde entrara, empalideceu de emoção com a notícia que Mene-
zes lhe deu:
- Venha fotografar o fim do Estado Novo. O presidente acaba de ser
deposto pelos militares.
Os dois cruzam salas e mais salas até que Manzon depara com Getúlio,
já ex-presidente, sentado à sua mesa, com os cotovelos abertos e o tronco in-
clinado para a frente. Segundo palavras do fotógrafo (que só o via através da
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FERNANDO MOIRAIS
objetiva, pois já entrou disparando a máquina), "Vargas tem o jeito de um
homem cansado, mas atrás de seus óculos de metal seu olhar ainda está
muito vivo e frio - ele parece um animal prestes a atacar ou a defender-se
com vigor" . Ao vê-lo, no entanto, Getúlio reage com monotonia:
- Ah, então aqui está o artista que veio fazer meu último retrato antes
da queda, não?
Apesar de embaraçado, Manzon continua apertando o obturador da câ-
mera. O entra-e-sai de gente é muito grande. Só às nove da noite o presiden-
te deposto parece que vai deixar o gabinete. Agora dá ao fotógrafo a impres-
são de estar relaxado e bem-humorado como nunca. Fumando um enorme
charuto, abraça cordialmente João Alberto e, sorridente ("como se estivesse
fazendo a coisa mais natural do mundo", descreveria Manzon depois),
anuncia aos presentes:
- Está tudo terminado. Vou embora. Podemos ir todos dormir.
Com os bolsos do paletó repletos de filmes, Manzon disparou para a re-
dação de O Cruzeiro. Enquanto os filmes eram revelados, como ainda não es-
crevesse fluentemente em português ele descreveu para Freddy Chateau-
briand, em minúcias, tudo o que tivera a sorte de testemunhar nas duas
horas que passara no gabinete - as últimas horas de Vargas como presiden-
te. A gráfica foi avisada para interromper a impressão do número daquela
semana da revista e, ainda de madrugada, nele foram enxertadas nove pági-
nas repletas de fotos e informações, intituladas "A queda de Vargas" - que
o sobrinho de Chateaubriand, com espírito profissional, assinou não o tradi-
cional "Fotos de Jean Manzon", mas "Reportagem fotográfica de Jean Man-
zon - Texto de Freddy". Na manhã seguinte os milhares de leitores que
acorreram às bancas viram o prodígio de uma revista semanal sair um dia
após a deposição do presidente contendo material que nenhum jornal diário
tinha - nem mesmo os Associados.
Apesar de ter tratado Getúlio Vargas com desprezo e agressividade
quando percebeu que o presidente estava no ocaso do poder, Chateaubriand
sabia que ele, mesmo deposto"continuava sendo notícia, e notícia importan-
te. Menos de uma semana depois da queda de Getúlio, decidiu despachar
para o município de São Borja, no interior do Rio Grande do Sul (onde Var-
gas se auto-exilara), exatamente o repórter Edmar Morel, que cobrira a de-
posição dentro de um dos tanques que cercaram o Palácio Guanabara. Via-
jando no Raposo Tavares, Morel tentou primeiro localizar o ex-presidente na
Fazenda Itu e, como não o encontrasse lá, voou até a Fazenda Santos Reis. O
avião pousou e o repórter, acompanhado do fotógrafo Francisco Carrion (do
Associado A Razão, da cidade gaúcha de Santa Maria), aproximou-se da sede
da fazenda. Na varanda só se encontravam os parentes mais próximos, pro-
tegidos por capangas armados e chefiados pelo temido Gregório Fortunato,
ex-chefe da guarda pessoal de Vargas. Mais que fria, a atmosfera reinante ali
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
era de muita agressividade. Quando Morel anunciou que os dois eram dos
Diários Associados, Gregório fez cara feia e comentou com Maneco, filho de
Getúlio, em voz alta o suficiente para que os jornalistas ouvissem:
- Que acinte... Depois de tudo o que fizeram, ainda têm a cara-dura de
aparecer aqui. Com essa gente só na metralhadora Thompson mesmo...
O fotógrafo Carrion se aterrorizou e retornou ao avião. O pequenino
Morel permaneceu firme, esperando para saber se o ex-presidente o recebe-
ria. Minutos depois Getúlio apareceu na porta vestindo bombachas, botas de
cano alto, fumando um charuto e trazendo nas mãos, ostensivamente, a edi-
ção de O Jornal com a reportagem feita por Morel sobre sua deposição. Sem
cumprimentá-lo, Getúlio pergunta:
- De que jornal tu és?
- Sou dos Diários Associados, doutor Getúlio.
- Não tem entrevista. Volta ao Rio e diz ao Chateaubriand que isto
aqui é uma casa de família.
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Chateaubriand estava em Londres quando recebeu o telegrama com a
notícia de que o presidente eleito, Eurico Dutra, tinha anunciado o nome do
novo ministro da Educação: Dario de Almeida Magalhães.
A idéia da imprevista visita à Inglaterra nascera dias antes, quando ele
se encontrava em Nova York para receber, juntamente com os jornalistas
Tom Wallace (norte-americano, dono do The Loúisville Times, do estado de
Kentucky) e Luís Teófilo Nunes (venezuelano e proprietário do El Universal,
de Caracas), o prêmio Maria Moors Cabot,concedido anualmente pela Uni-
versidade de Columbia a comunicadores que tivessem dado reconhecida
contribuição ao jornalismo. Chateaubriand foi apresentado pelo The New
York Times (que publicou uma foto sua de beca e capelo) como "o milionário
dono de 28 jornais, treze rádios, três revistas e uma agência de propaganda,
uma espécie de Hearst brasileiro" (numa referência ao célebre William Ran-
dolph Hearst, o magnata norte-americano dono de famosa cadeia de jornais
que havia inspirado o filme Cidadão Kane, de Orson Welles). Junto com o jor-
nalista haviam viajado seu primo Leão Gondim de Oliveira e a mulher com
quem este se casara pouco tempo antes, Lily Whitaker, filha do poderoso
banqueiro paulista José Maria Whitaker - casamento que fora alcovitado
pelo dono dos Associados. Este ofereceria à noiva um singular presente de
casamento: a presidência de O Cruzeiro.
Chateaubriand ficou mais impressionado com a rigorosa liturgia impos-
ta aos premiados pela Universidade de Columbia do que com o prêmio pro-
priamente dito. Poucos dias antes da cerimônia, recebeu em seu hotel a visi-
ta de um alfaiate encarregado de tirar suas medidas para costurar a beca que
usaria e de um chapeleiro, que lhe mediu a cabeça para fabricar especial-
mente para ele o capelo acadêmico. Até a cor da gravata que deveria usar no
dia da entrega do prêmio havia sido recomendada de antemão em carta as-
sinada por Carl Ackerman, diretor da Faculdade de Jornalismo de Colum-
bia. Terminadas as festividades da premiação, Chateaubriand aproveitou a
viagem para ir à sede da Hoe Company, fabricante de equipamentos gráficos,
instalada em Nova York. Ao final da visita ele deixava na Hoe a encomenda
de oito rotativas em cores e doze impressoras Multicolor para O Cruzeiro. To-
tal da compra, 800 mil dólares de então (equivalentes a aproximadamente
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7 milhões de dólares de 1994). Para fechar o negócio, a direção da Hoe exigi-
ra que ele pagasse no ato, em cheque à vista, nada menos que 80 mil dóla-
res. E, além disso, ele escreveria depois, a direção da Hoe deixou claro que
as máquinas só seriam entregues contra o pagamento total do restante, "para
evitar novamente a excessiva tolerância de cavalheiros que a empresa tivera
conosco anos antes", sem dúvida referindo-se às dificuldades que o técnico
cubano tivera para receber seus avais nas promissórias da compra que Da-
rio fizera no final dos anos 30 na mesma Hoe. Ao retornar ao Brasil, Cha-
teaubriand tomaria emprestados os 720 mil dólares que faltavam ao Banco
da Lavoura de Minas Gerais, "o único banco deste país que tem peito para
nos emprestar tanto dinheiro sem nenhuma garantia em troca".
De Nova York, o jornalista e o casal Whitaker Gondim foram a Londres
para três semanas de visitas aos principais jornais ingleses. Embora Gastão
Nothman, funcionário da embaixada brasileira, tivesse marcado, além de
uma visita ao jornal The Times, encontros dele com os lordes Beaverbrook,
Camerose e Rothermere (os chamados "barões da Fleet Street", a rua dos jor-
nais na capital britânica), só o primeiro compromisso pôde ser cumprido.
Após dois dias percorrendo a redação, as oficinas e a administração do The
Times, Chateaubriand encontrou na portaria do hotel Claridge's o longo te-
legrama em que Austregésilo de Athayde contava que o presidente Dutra
havia anunciado que Dario de Almeida Magalhães seria empossado como o
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FERNANDO MORAIS
novo ministro da Educação do Brasil. Colérico, desmarcou todas as visitas e
compromissos assumidos para as semanas seguintes, fechou as malas e em-
barcou para Roma a fim de tomar o primeiro avião da Panair em direção ao
Brasil. Ao final de uma viagem de quase trinta horas (muitas delas perdidas
em intermináveis escalas em Lisboa e Dacar), chegou ao Rio sem paciência
sequer para ir até a redação do jornal: sentou-se junto ao primeiro telefone
que encontrou no aeroporto, mas precisou esperar quase uma hora para que
o presidente da República por fim o atendesse. Ele estava furioso e foi dire-
to ao assunto:
- Seu Dutra, eu recebi um telegrama informando que o senhor vai no-
mear Dario de Almeida Magalhães para o Ministério da Educação. O senhor
sabe que ele é meu inimigo pessoal e inimigo declarado dos Diários Asso-
ciados. Sou obrigado a lhe dizer que considero essa nomeação uma afronta,
uma bofetada na cara dos Diários Associados, que nunca dirigiram ao se-
nhor uma palavra menos elogiosa.
Dutra tentou fazer ver a Chateaubriand que o anúncio da nomeação já
havia sido feito e que o ato estava assinado e pronto para ser publicado no
Diário Oficial. E mais: Dario tinha aceito o convite e estava até montando a
equipe com que iria trabalhar no ministério. O jornalista não arredava pé:
- Sei, seu Dutra, sei. O senhor foi eleito e tem todo o direito de no-
mear quem quiser para o seu governo. Mas eu também tenho o direito de
dar ordens para que todos os meus jornais, rádios e revistas passem amanhã
mesmo para a oposição se esse sujeito tomar posse.
Correu para a redação de O Jornal e não fez segredo do telefonema. A
todos com quem falava, repetia a mesma frase:
- Dutra é quem decide. Se mantiver a nomeação desse filho da puta, os
Associados estarão na oposição amanhã.
No final da tarde chegava ao jornal a notícia inacreditável: o rígido pre-
sidente Dutra decidira voltar atrás e Dario não seria nomeado ministro. Para
o lugar foi indicado Ernesto de Souza Campos, até que, meses depois, em
virtude de um acordo de Dutra com a UDN, o posto fosse ocupado definiti-
vamente pelo baiano Clemente Mariani. Constrangido, Dutra pediu a Artur
Bernardes, presidente do Partido Republicano (Dario era secretário-geral do
PR, no qual ingressara meses antes, depois de tomar parte na fundação da
UDN), que comunicasse a desnomeação ao quase-ministro. Desapontado com
o que considerava inadmissível - que tanto Dutra como Bernardes se cur-
vassem a um capricho pessoal de Chateaubriand -, Dario entregou o cargo
de secretário-geral, desfiliou-se do partido e, em carta dirigida a Artur Ber-
nardes, anunciou que estava abandonando a política para sempre.
Embora jamais Bernardes tornasse públicos os termos da correspondên-
cia de Dario, várias pessoas foram dizer a Chateaubriand que a carta era um
amontoado de insultos contra ele. Nada indica que isto fosse verdade (além
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
do discreto ex-presidente da República, só teve acesso ao documento Antô-
nio Carlos Vieira Christo, secretário de Bernardes, que nunca o revelou a
ninguém), mas isto pouco importava. O mero boato foi suficiente para que o
jornalista, não satisfeito por tê-lo submetido a tamanha humilhação, voltas-
se à carga contra Dario. No dia seguinte, o Diário da Noite do Rio tornaria a
publicar um anúncio muito parecido com o que saíra depois do pagamento
da indenização dos Associados a Dario, em 1942:
Odr. Dario de Almeida Magalhães deliberou fazer voto de pobreza.
O antigo deputado federal por Minas Gerais Dario de Almeida Magalhães re-
solveu distribuir para as Santas Casas de Misericórdia do país, orfanatos, cre-
ches, colégios, confrarias e irmandades a importância de 6 milhões de cruzeiros,
que é a quanto monta o seu patrimônio individual, seguindo os mesmos
métodos do conhecido filantropo português comendador Paulo Felisberto da
Fonseca.
O dr. Dario de Almeida Magalhães está pronto a receber a visita pessoal [sic]
das entidades interessadas no recebimento de seus donativos em sua residência,
à avenida Atlântica, nº 430, telefone 47-3014, Edifício Himalaia.
Só mesmo a raiva inexplicável que Chateaubriand alimentava por Da-
rio explicaria o ultimato que impôs a Dutra. Apesar da ambigüidade com
que se comportaram durante a campanha eleitoral, os Associados tinham
com o novo presidente relações mais que amistosas. Dutra, por exemplo,
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FERNANDO MORAIS
concedera a Chateaubriand o privilégio de ser o primeiro jornalista a entre-
vistá-lo depois de empossado (o que rendeu um artigo-entrevista de página
inteira, trabalho que o jornalista, por molecagem, assinou como "repórter do
jornal Alto Madeira", o menor e mais inexpressivo de todos os seus diários,
sediado no então território federal de Guaporé). Mas os antológicos ódios de
Chateaubriand pareciam estar sempre acima dos acordos políticos, das alian-
ças e até das mais sólidas amizades do jornalista.
Um dos exemplos disso aconteceria mais ou menos na mesma época do
episódio ocorrido com Dario. Chateaubriand tinha verdadeira veneração
por Rafael Correia de Oliveira. Além de jornalista competente e respeitado
(ele tinha sido o autor das séries de entrevistas com Luís Carlos Prestes du-
rante a Coluna), Rafael, neto do conselheiro João Alfredo, era seu primo em
segundo grau. Secretário de redação e articulista de O Jornal, ele cometeu a
imprudência de publicar um artigo duríssimo de crítica à política econômi-
ca do ministro da Fazenda de Dutra, Pedro Luís Correia e Castro. Sem saber
ou sem se importar com isso), Rafael estava enfiando sua caneta em um ves-
peiro: Correia e Castro era nada menos que superintendente do Banco Lar
Brasileiro (o mesmo que tantas vezes socorrera os apuros financeiros dos As-
sociados) e diretor licenciado da Sul-América de Seguros (um dos cinco
maiores anunciantes de O Cruzeiro e do próprio O Jornal). Apesar de o autor
do artigo ser um de seus mais antigos amigos, ao lado de quem na adoles-
cência trabalhara em vários jornais, em Recife, e de ser alguém absolutamen-
te fiel aos Associados, aos quais dera tanto prestígio, Chateaubriand não
pensou duas vezes: entre o amigo e o banqueiro, ficou com o banqueiro. De-
mitiu Rafael dos Associados, o que animou Correia e Castro a abrir contra
ele um processo judicial por calúnia.
Tanto a repentina e injustificável demissão quanto o processo movido
pelo ministro Correia e Castro causaram tal impacto entre os jornalistas do
Rio que Osório Borba, então no Diário de Noticias, resolveu encabeçar um
abaixo-assinado de solidariedade a Rafael Correia de Oliveira, documento
que seria entregue num grande almoço de desagravo que lhe seria oferecido
na Associação Brasileira de Imprensa. O dono dos Associados meteu na ca-
beça (ou teria sido convencido disso pela poetisa Rosalina Coelho Lisboa,
mulher de Antônio Sanchez Larragoiti, o dono da Sul-América) que aquelas
não eram apenas manifestações de apoio a Rafael, mas atos de hostilidade a
ele, Chateaubriand. Na véspera da entrega ele conseguiu uma cópia do do-
cumento, com todas as assinaturas, e no dia seguinte mandou um fotógrafo
à ABI para registrar, uma por uma, todas as presenças. Um dia depois come-
çava a caça às bruxas: sentindo-se pessoalmente agredido pela iniciativa,
Chateaubriand decretou que quem tivesse assinado (ou participado do al-
moço, ou de alguma maneira se solidarizado com seu ex-funcionário) entra-
ria na sua lista negra - estaria à mercê das agressões dos Associados, nos
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CHATÔ. O REI DO BRASIL
quais, naturalmente, nenhum deles poria jamais os pés. E foi chamando um
por um os signatários do manifesto para que se explicassem, naquilo que Ed-
mar Morel e Carlos Castelo Branco qualificaram de "um festival de pusilani-
midade ". Otávio Mangabeira mandou um secretário ir prestar esclarecimen-
tos, mas Chateaubriand não aceitou:
- Não falo com preposto. Tem que vir pessoalmente se explicar ou está
fodido comigo!
Lá foi Mangabeira em pessoa salvar sua pele. José Lins do Rego disse
que havia sido enganado na sua boa-fé e assinara sem saber que se tratava
de uma manifestação contra o dono dos Diários Associados. Passados pou-
cos dias, chegou a vez de Morel. Chateaubriand deu-lhe um beijo na testa e
lascou:
- Meu filho, sei que você assinou esse documento e compareceu a esse
almoço ludibriado por esses filhos da puta que querem destruir os Diários
Associados e a mim...
Morel interrompeu-o:
- Não, doutor Assis. Eu assinei o manifesto e fui ao almoço sabendo
que era um desagravo ao Rafael, que não era nada contra o senhor. E acho
que a imprensa deve tanto a ele que não deveríamos ter feito só um almoço.
Ele merece um monumento em homenagem a seu talento de repórter.
Chateaubriand se enfureceu:
- Só se for um monumento com os pés enterrados na merda da City, a
companhia de esgotos do Rio. Mas com você eu não vou brigar. Converse
com o Leão.
Morel encontrou um Leão Gondim ainda mais iracundo que o patrão,
de dedo em riste, falando aos gritos. Quis saber se ele estava falando como
amigo ou como diretor dos Associados. Gondim não baixou o tom:
- Estou falando como o que sou: seu superior, diretor dos Diários As-
sociados!
O pequenino cearense não baixou a crista e devolveu um tom abaixo:
- Então você enfia seu cargo e sua superioridade no cu que aqui eu não
trabalho mais.
Bateu a porta e nunca mais pôs os pés nos Associados. Arranjou um em-
prego no comunista Semanário e semanas depois estava em Moscou, como
repórter filiado ao PCB. A indigestão política provocada pelo almoço, porém,
ainda não tinha causado todas as baixas. O fotógrafo que cobriu o almoço
contou a Chateaubriand que, embora não tivesse estado presente nem assi-
nado o manifesto, Alceu Amoroso Lima tinha enviado de Petrópolis um te-
legrama solidarizando-se com Rafael. Mas o aristocrático Amoroso Lima
não era alguém que se convocasse para dar explicações. Chateaubriand cha-
mou Carlos Castelo Branco (que se mudara de Minas para ser editor de po-
lítica de O Jornal) e ordenou:
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FERNANDO MORAIS
- O doutor Alceu, se quiser, que venha espontaneamente me explicar
a razão desse telegrama. Enquanto ele não aparecer aqui para se desculpar,
o senhor jogue numa gaveta os artigos dele. Não sai uma linha de sua auto-
ria no meu jornal enquanto ele não se explicar.
Castelo tentou demovê-lo daquele absurdo:
- Mas, doutor Assis, o doutor Alceu é um homem respeitabilíssimo,
quase uma instituição. E ele é o colaborador número um, o mais antigo de O
Jornal.
Nada feito:
- Doutor Castelo, se não quiser enfiar na gaveta o senhor ponha os ar-
tigos dele onde achar melhor, desde que não seja nas páginas do meu jornal.
Ou ele se desculpa ou não publica mais nada aqui.
Passaram-se algumas semanas e Amoroso Lima, sem saber que estava
entrando em uma das mais temidas listas negras do país, continuou envian-
do seus artigos - que nunca saíam. Castelo evitava seus telefonemas de in-
dagações, não respondia a seus bilhetes até que, angustiado com aquela si-
tuação, pediu socorro a Otto Lara Resende. Um dos editores do Suplemento
Cultural de O Jornal (junto com Moacir Werneck de Castro, Vinicius de Mo-
raes, José Guilherme Mendes, Hélio Pellegrino e Otto Maria Carpeaux), Otto
era amigo pessoal de Amoroso Lima e poderia dar-lhe conhecimento da si-
tuação de constrangimento em que Castelo se encontrava. Ao ouvir de Otto
o relato da conversa de Chateaubriand com Castelo Branco, Alceu não pen-
sou duas vezes para pedir demissão de O Jornal e em seguida transferir sua
coluna para o Diário de Noticias. Só então se soube que, apesar de todo o seu
prestígio, os Associados pagavam-lhe miseráveis cinqüenta cruzeiros por ar-
tigo (o equivalente a vinte dólares em 1994) - dinheiro que, por não recla-
mar, ele não recebia fazia dezessete anos.
Mesmo sabendo que por mera rabugice perdera com Amoroso Lima e
Edmar Morel dois de seus melhores profissionais, Chateaubriand não pare-
cia fazer caso disto. Uma semana depois do rumoroso almoço a Rafael Cor-
reia de Oliveira ele não seria capaz sequer de se lembrar daquilo. Continua-
va comprando jornais, batizando seus aviões e escrevendo artigos e mais
artigos. Além do conde Matarazzo, agora arranjara mais um alvo para suas
flechas envenenadas - o jornal O Estado de S. Paulo e seu dono, Júlio de
Mesquita Filho. As relações entre o dono do Estadão e o dos Associados ti-
nham começado a azedar na cadeia, em 1932, e se esboroaram de vez quan-
do o primeiro foi mandado para o exílio, no Estado Novo, enquanto o outro
não só permanecia aqui como se tornara um dos mais ferrenhos defensores
da ditadura implantada por Getúlio Vargas. O tempo se encarregaria de
acentuar mais e mais a distância entre o estilo austero e recatado de Mesqui-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
ta e o comportamento histriônico, debochado e muitas vezes pouquíssimo
ético de Chateaubriand. Quando o Estado, apesar de conservador e antico-
munista, manifestou-se contra a cassação do registro do Partido Comunista,
Chateaubriand produziu uma enxurrada de artigos insistindo em que o jor-
nal da família Mesquita tinha se tornado um "agente a serviço de Moscou e
de Luís Carlos Prestes no Brasil":
[...] Sob todos os ângulos em que se projeta a reação brasileira contra os comu-
nistas, O Estado de S. Paulo se apresenta como o impertérrito e angelical advoga-
do desse partido. Um de seus diretores foi até dizer pelo microfone, com tocan-
te candura, que tem um adorável rebento, o qual se chama Luís Carlos em
homenagem ao celerado chefe dos bolcheviques caboclos [Chateaubriand se re-
feria a Júlio de Mesquita Filho e a seu filho Luís Carlos, já falecido]. Não se pode
ser mais terno. Essa afirmação contém muita coisa como sensibilidade pela
pes-
soa do condutor de uma agremiação, a qual, no fim das contas, é responsável
por atos abomináveis contra a vida de bons brasileiros e a paz e a ordem desta
terra.
[...) Ontem O Estado, que é um velho Conselheiro Acácio, exortava piamente
os comunistas a que, "por amor à pátria (!) e por amor à sua ideologia (!), se abs-
tivessem de agitações". Não é uma delícia de estupidez? Pedir a um partido em
cuja cartilha do Abc está inscrita a revolução que deixe de agitar não é a mais
santa das imbecilidades? Mas a debilidade mental do Estado não pára nesse
pano de amostra. Considerando o Brasil à mercê dos energúmenos de Moscou,
escreve este outro trecho de ouro: "Do juízo e da prudência dos comunistas é
que depende, doravante, a sorte da democracia". Nossa sorte é que caducos des-
se calibre escreveram e gritaram em vão. Pedir juízo e patriotismo a bichos sa-
nhudos como são os comunistas é o mesmo que chegar ao zôo do Jardim da
Aclimação e dizer a um javali: "Senhor javali, amanse, fique bonzinho, senhor
javali, que a paz deste zôo só depende do amigo".
[...] Recordam-se os leitores de um editorial de O Estado de S. Paulo que dizia:
"O capital estrangeiro é nocivo ao Brasil. Mas, porque ainda não pudemos dis-
pensá-lo, vamos ver a melhor forma de nos defender dos seus golpes". Vamos
levar meses, mas haveremos de doutrinar os rapazes do Estado, cegos pelo jaco-
binismo, pelas vaidades e pelas limitações de inteligência, gente que se recusa a
enxergar a realidade brasileira.
Para Chateaubriand, a submissão de O Estado de S. Paulo aos interesses
soviéticos (que, evidentemente, só má-fé ou miopia política poderiam enxer-
gar) tinha um único responsável: o próprio dono do jornal, Júlio de Mesqui-
ta Filho, contra o qual ele rugia:
Tal passividade ante os métodos soviéticos de desmoralização sistemática da
união do Brasil com os Estados Unidos só poderia nascer da notória debilidade
mental do sr. Júlio de Mesquita Filho, cuja mente não daria para acender um pa-
vio de vela de sebo, tão sensível é a ausência de fósforo na cabeça desse plumi-
tivo flustro.
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FERNANDO MORAIS
Como os Mesquita reagissem com soberba e quatrocentona indiferença
aos ataques, Chateaubriand ainda tentaria provocar Mesquita Filho com
"Macacos Elétricos" e "Raposos Tavares". Embora alguns amigos do dono
do Estado, indignados, chegassem a lhe sugerir que comprasse uma arma e
acabasse com aquilo à bala ("a única linguagem que Chateaubriand enten-
de", um deles chegou a dizer), ele sempre respondeu com eloqüente silên-
cio. Quando alguém perguntava a Chateaubriand como ele explicava tama-
nho rancor contra o filho de alguém que, como Júlio Mesquita, tanto o
ajudara a se estabelecer no Sul, ele respondia com linguagem áspera:
- Uma coisa é Júlio Mesquita, outra coisa é Júlio de Mesquita Filho. O
problema dos Mesquita é que eles acham que a inteligência é como a sífilis,
que passa de pai para filho.
Fosse Júlio de Mesquita Filho, fosse o conde Matarazzo, apesar do tom
corrosivo e tantas vezes desrespeito que usava para tratar inimigos ou ad-
versários eventuais, em conversas com os amigos Chateaubriand dava a im-
pressão de que atiçava aqueles sóbrios senhores mais pelo espírito de debo-
che e de molecagem do que por verdadeiras e profundas convicções
filosóficas. Alguns desses amigos chegavam a ver nesse exótico comporta-
mento de Chateaubriand uma resposta à maneira preconceituosa com que a
emproada elite do Sul tratava o migrante nordestino (condição de que se or-
gulhava e que alardeava sempre que podia).
De qualquer forma, sua excentricidade e seu poder cada dia maior fa-
ziam com que o perfil de Chateaubriand começasse a despertar curiosidade
além das fronteiras do Brasil. Em fins de 1946, alertada para o personagem
pela premiação na Universidade de Columbia, a revista de negócios norte-
americana The Inter-American destacou a repórter Eileen Mackenzie para es-
crever um perfil de Chateaubriand. A reportagem de quatro páginas, intitu-
lada "Front-page fireball" ("Turbilhão na primeira página"), apresentava o
dono dos Associados como "o pequenino Hearst brasileiro, um homem que
tem faro para a notícia, inclinação para mexer em casas de marimbondos e
um dedo em quase todas as grandes negociatas do Brasil".
O texto relata o papel de O Jornal na divulgação da Coluna Prestes, a
participação de Chateaubriand na Revolução de 30, sua briga com Getúlio
em 32, o episódio do Havaii Maru, o reatamento com o presidente em 1933,
o "caso Oscar Flues ", a campanha da aviação (aqui a repórter afirma que
"ele próprio admite ter recebido comissões sobre a venda dos aviões "), os ti-
ros no aeroporto e a edição da Lei Teresoca, as mulheres, a montagem do im-
pério de comunicações e a guerra contra Matarazzo para concluir que, "sem
ser um idealista, é anticomunista e antinazista e, de um modo geral, favorá-
vel aos Estàdos Unidos e às grandes empresas ". Ao final da reportagem, The
Inter-American publica um hilariante glossário do tipo how to say it, para en-
sinar a seus leitores como pronunciar os principais nomes citados na maté-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
ria. Assim, Assis Chateaubriand vira "Ahez Shah-tow-bree-ahn '; Getúlio
Vargas é "Zhet-tool-yoh Vahr-gahs"; Diario a Noite é "De-ah-ree-o dah Noy-
tee"; O Cruzeiro é "Oo Kroo-zay-ro"; paraibano é "pah-rah-ee-bah-noh", e
Teresoca vira "Teh-reh-zoh-kah".
A naturalidade com que Chateaubriand começava a se movimentar no
cenário internacional e a insistência com que a imprensa estrangeira passara
a tratá-lo de "Hearst brasileiro" ou de "Kane sul-americano" iriam repercu-
tir dentro do Brasil. Em seu primeiro aniversário, o jornal esquerdista Tribu-
na Popular o saudaria com um artigo de Moacir Werneck de Castro, intitula-
do "Um Cidadão Kane sem grandeza":
[...] Vinte e seis jornais e uma cadeia de emissoras disseminam diariamente atra-
vés do país as palavras de ordem do jornalista e homem de negócios. Seus arti-
gos são datados de toda parte, desde o cassino do Guarujá, que faz - ou fazia
- ampla publicidade em suas revistas, até o avião Raposo Tavares, a cujo bor-
do ele se desloca para estranhos lugares, onde geralmente há uma fábrica im-
portante e um industrial incauto. Tanta atividade mereceu há pouco o prêmio
de jornalismo da famosa Universidade de Columbia, de Nova York.
[...] Mas esse Cruzado da Reação tem a sua campanha marcada demais pelo
interesse do dinheiro. Na realidade não quer cruzada, quer cruzeiros, milhões
de cruzeiros. E descobriu que a maneira mais fácil de tomar dinheiro do bur-
guês ignorante é assustá-lo com o fantasma sempre rendoso do comunismo.
Quanto ao burguês sabido, este sorri das trampolinagens do Chatô, sempre o
mesmo. O amigo da marquesa de Salamanca e defensor perpétuo do general
Franco atingiu uma tal fama de integridade que ao ver um artigo seu o leitor
imediatamente se pergunta: "Quem estará pagando?". Mesmo quando posa de
altruísta para a posteridade, nas suas campanhas nacionais não é difícil perce-
ber onde está o golpe. Assim, por exemplo, se publica uma fotografia de operá-
rios famintos em São Paulo, é porque, como consta na legenda, trata-se de ope-
rários do conde Francisco Matarazzo, que se tornou seu desafeto.
[...] Houve tempo em que se notava certa flama em seus artigos. Mas não há
vibração e élan profissional que resistam a uma vida de falcatruas e negociatas.
O artigo, quando deixa de ser uma pregação, mesmo errada, para se transfor-
mar em picareta de cavação vulgar, perde automaticamente a autoridade e a as-
cendência sobre o espírito do leitor. O jornalista Chatô não é só um velho nas
concepções caducas e apodrecidas que representa: é também um canastrão do
jornalismo, um chato cujos truques de falsa vivacidade, cujas imagens de ín-
dios e bichos da selva são a máscara da perfeita mediocridade.
Dados os descontos do esquerdismo do jovem jornalista Werneck de
Castro, alguns episódios do dia-a-dia efetivamente lhe davam razão nas crí-
ticas que ele fazia a Chateaubriand. E disso o francês Jean Manzon fora tes-
temunha poucas semanas antes. Manzon se espantava com o fato de que,
num país conservador como o Brasil de 1946, nunca saísse na imprensa uma
única linha de crítica aos cassinos. Desconfiado do silêncio cúmplice e pro-
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FERNANDO MORAIS
tetor que cercava as casas de jogo, decidiu romper o cerco por conta própria.
Como era terminantemente proibido entrar nos salões dos cassinos com má-
quinas fotográficas, Manzon realiza uma típica aventura do repórter de an-
tigamente: descobre uma fenda na clarabóia que cobre a mesa central de jogo
do Cassino Atlântico, em Copacabana, e à noite escála o telhado do prédio
vizinho até chegar no ponto que havia localizado na noite anterior, em uma
visita ao salão. Faz uma verdadeira ginástica para chegar ao topo da cúpula,
mas fica realizado: dali é possível fotografar o cassino de todos os ângulos.
De bruços, arma sua Rolleyflex e passa horas escolhendo as melhores cenas:
no meio das colunas de mármore falso está o que há de mais fino da alta so-
ciedade do Rio, cercando as mesas que se espalham pelo salão como peque-
nos gramados verdes. Quando termina a última chapa ele enfia os filmes na
camisa e volta para a redação.
Dias depois o francês avaliou o material que tinha nas mãos. As fotos
eram de excelente qualidade (era a primeira vez que um jornalista fotografa-
va um cassino brasileiro em pleno funcionamento) e os textos-legendas, escri-
tos com a ajuda de Nasser, falavam do luxo, das fortunas que o jogo drenava,
do fenômeno econômico e social em que os cassinos haviam se transformado
no Brasil. Ou seja, aquela estava longe de ser uma reportagem a favor do jogo,
que era legal no país. Orgulhoso de seu feito, Manzon levou o material para
Chateaubriand ver. Ele olha as fotos uma por uma, lentamente, se detém em
algumas delas, passa os olhos sobre o texto e ao final estende o pacote ao an-
sioso autor:
- Gostou, doutor Assis?
- Formidável. Uma das mais belas performances jornalísticas que já vi.
- Então damos esta semana?
- Evidentemente, seu Manzon, não existe a menor chance de o senhor
publicar isso na minha revista. O dono do cassino é meu amigo. Todas as
grandes casas de jogos do Brasil anunciam nos Associados. Eu preciso deles
para pagar o seu salário. Essa matéria é um escândalo, eles ficariam mortal-
mente feridos comigo se eu a publicasse.
Pouco habituado a um não, Manzon insiste:
- Esta reportagem exigiu várias semanas de trabalho. Ela vai apaixo-
nar os leitores. Se o senhor não quer publicá-la em O Cruzeiro, quero sua au-
torização para vendê-la a algum diário, que não concorra com a revista.
Chateaubriand aceita:
- Não posso impedi-lo, o trabalho é seu, foi feito fora do expediente.
Mas o senhor não tem consciência do incrível poder que está enfrentando.
Bem, mas faça o que o senhor quiser.
Amigo de Roberto Marinho, Manzon consegue vender o material para
O Globo por 50 mil cruzeiros - o equivalente a dez meses de salário de um
diretor de jornal bem pago. Só que passam-se um dia, dois, três, uma sema-
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na e nada de a reportagem ser publicada. Mais uma semana e Manzon vai
cobrar de Marinho, desconfiado de que ele, pelas mesmas razões que Cha-
teaubriand alegara para vetar, tivesse comprado o material para engavetá-
lo. Quando diz isso ao jovem dono de O Globo, ele responde com secura:
- Se o senhor não confia no que eu lhe disse, suas fotos e seu texto es-
tão à sua disposição, podemos cancelar o negócio. Mas o que o senhor me
vendeu foi um pacote de dinamite. Já não é jogo, é política. O presidente Du-
tra está a par do assunto. É preciso escolher o melhor momento para publi-
car seu material, e quem decide isso sou eu, que sou o dono do jornal, e não
o senhor. Como o senhor é um sujeito simpático, aceito esquecer essas sus-
peitas levianas que levantou contra mim. Tenha paciência e confie em mim.
Alguns meses se passaram e Manzon quase se esquecera do assunto
quando, ao comprar O Globo de 28 de abril, identificou suas fotos ocupando
grande parte da primeira página. Em volta de uma mesa de bacará era pos-
sível identificar alguns rostos famosos da política e dos negócios. No alto da
página, uma chamada: "Estas são as primeiras fotos de uma série sensacio-
nal, realizada pelo famoso repórter Jean Manzon, o primeiro a fotografar os
índios xavantes. Desta vez sua objetiva mergulhou para você no centro de
uma floresta virgem e ainda mais misteriosa: a do inferno do jogo, onde for-
tunas escandalosas afundam e renascem diariamente ". A série dura seis dias
seguidos, com enorme repercussão. No dia 5 de maio, dois dias depois de
publicada a última reportagem, o trabalho de Manzon é coroado com chave
de ouro: o presidente Dutra baixa um decreto proibindo o jogo em todo o
Brasil.
Se de fato, como denunciara o cáustico Moacir Werneck, muitas vezes
os interesses de Chateaubriand trombavam com o bom jornalismo que se
procurava fazer nas redações, seria impreciso generalizar e assegurar que
essa era uma norma nos Associados. Sobretudo na revista O Cruzeiro: se
numa ponta estava Assis Chateaubriand, na outra estava Freddy Chateau-
briand, que além de jornalista talentoso era um homem íntegro, que guarda-
va prudente distância das histórias obscuras que tanto se contavam sobre os
negócios do tio magnata. A revista vivia dias de glória. Resultado de todas
s crises vividas pelo dono (e outras, provocadas pela penúria da guerra), a
vendagem de O Cruzeiro desabara para pouco mais de 20 mil exemplares
quando Freddy foi chamado por Chateaubriand para ressuscitá-la. E agora,
em um país com pouco mais de 40 milhões de habitantes (e uma taxa de
analfabetismo que passava dos 30%), estava vendendo quase 200 mil exem-
plares por semana. Na sua redação era possível ver desde jovens talentos,
como Hélio Fernandes (irmão mais jovem que Millôr levaria para a revista e
que poucos meses depois seria um de seus diretores), Luís Carlos Barreto e
Jorge Ferreira, até nomes experientes como o recém-contratado Samuel Wai-
ner e Carlos Lacerda (que apesar da briga com Chateaubriand não resistiria
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
à tentação de voltar aos Associados como colaborador regular da revista).
Em um exemplar daquele ano de 1946, colhido ao acaso, é possível medir o
dinamismo de O Cruzeiro: na mesma semana em que Wainer enviava repor-
tagens especiais de Caracas sobre a exploração de petróleo em território ve-
nezuelano, Carlos Lacerda escrevia de Paris sobre o bairro de Montmartre, e
a dupla Nasser-Manzon mandava do Cairo matérias sobre arqueologia no
Egito.
A revista era aberta pela seção "Sete dias", uma saborosa crônica de
Franklin de Oliveira, e fechada por Rachel de Queiroz com a sua "Última pá-
gina", mas o principal atrativo para os leitores eram mesmo as grandes re-
portagens - que quase sempre produziam grande repercussão. O Cruzeiro
ainda publicava o material produzido por Nasser e Manzon no Egito, por
exemplo, e a dupla já se encontrava no Brasil realizando um perfil de uma
das mais pândegas figuras da política brasileira, o deputado Barreto Pinto.
Jornalista obscuro que fizera carreira na política, Barreto Pinto era dono de
um rendoso cartório quando se elegeu deputado federal pelo Prs do Distri-
to Federal em 1945 (foi de sua autoria a emenda que propôs a cassação do
registro do Partido Comunista). A pretexto de escrever sua biografia para O
Cruzeiro, Nasser e Manzon conseguiram convencê-lo a posar para uma foto-
grafia (publicada em página inteira) vestindo apenas casaca e cuecas. O es-
cândalo ocasionado pela foto redundou em um processo na Câmara Federal
que terminaria, pela primeira vez na história do Brasil, com a cassação de
um mandato por quebra de decoro parlamentar. O processo contra Barreto
Pinto ainda estava em tramitação na Câmara e a revista estava nas ruas com
uma dramática série de treze reportagens da dobradinha Nasser - Manzon,
a célebre "Falta alguém em Nuremberg ", nas quais eram revelados detalhes
das atrocidades praticadas contra presos políticos (de esquerda e de direita)
por ordem de Filinto Müller durante o Estado Novo. Já tenente-coronel da
reserva e senador eleito pelo PsD de Mato Grosso, Filinto Müller conseguiria
escapar incólume da CPI dos Atos Delituosos da Ditadura, criada no Con-
gresso como conseqüência das reportagens de O Cruzeiro.
Na mesma proporção do prestígio adquirido pela revista, o império se
espalhava pelo Brasil afora. Já eram quase trinta jornais, as revistas, a edito-
ra de livros, a agência de notícias e quinze estações de rádio. Quando a Tupi
do Rio comprou um transmissor de 50 quilowatts de potência, Chateau-
briand festejou o feito contratando de uma só penada quase todo o cast da
Rádio Nacional, a começar do diretor Gilberto de Andrade, que arrastou
consigo estrelas como Almirante, Paulo Gracindo, Paulo Tapajós e Aroldo
Barbosa. Em idêntica medida crescia a fama de negocista de Chateaubriand.
Um dia ele chamou à sua sala o repórter Neiva Moreira, seu "setorista" par-
ticular, para sugerir-lhe uma série de reportagens:
473
#
FERNANDO MORAIS
- Olha aqui, seu Neiva, é o senhor que gosta desse negócio de xenofo-
bia, não? Então temos aqui um prato cheio. Os trustes internacionais estão
desnacionalizando a indústria do vidro plano no Brasil. Quero uma série de
quatro reportagens entregando essas empresas.
Neiva pesquisou, entrevistou gente, levantou denúncias e, quando o
material estava pronto, O Jornal anunciou que naquele dia iniciaria a série de
quatro matérias sobre o assunto. Saíram a primeira e a segunda, tendo am-
bas merecido a manchete do jornal. Quando a terceira estava para ser publi-
cada, o repórter ouviu na redação alguém dizer que Chateaubriand já havia
"acertado tudo" com os tais trustes. Suas suspeitas se confirmaram quando
o patrão o chamou para dizer que ele podia encerrar a série ali mesmo, pelo
meio. O maranhense ficou preocupado, contou que corriam boatos de que os
Associados tinham recebido dinheiro das indústrias estrangeiras para aca-
bar com as denúncias:
- Doutor Assis, eu não gostaria que dissessem por aí que eu entrei no
dinheiro do truste do vidro plano.
Chateaubriand arranjou uma solução salomônica:
- Então, ficamos no meio-termo, meu filho. O senhor funde as duas úl-
timas reportagens em uma só, não precisa mais dar em manchete e ninguém
terá motivos para caluniá-lo, seu Neiva.
O alvo tanto podia ser o vidro plano fabricado por um poderoso truste
internacional como poderia nascer da singela observação de uma caixa de
fósforos. Anos antes, o Diário da Noite de São Paulo dera em sua última edi-
ção uma surpreendente manchete: "Fósforos sobem de 20 para 30 centa-
vos!". O aumento do preço da caixa de fósforos ter merecido a manchete de
um jornal coincidia com uma constatação de Chateaubriand: por alguma ra-
zão inexplicável, os fabricantes de fósforos anunciavam em quase toda a im-
prensa, menos nos Associados. Ele, que não fumava, mandou um contínuo
ir ao bar mais próximo e comprar um maço contendo dez caixinhas de fós-
foros. Desembrulhou-o e leu no rótulo de cada caixinha a mesma informa-
ção: "Contém 50 palitos". Abriu a primeira caixa, contou e viu que só havia
37 palitos. Contou os da segunda: 38 palitos; da terceira, 40 palitos; da quar-
ta, 45 palitos. Minutos depois concluía que nenhuma das caixas continha os
cinqüenta palitos anunciados. Chamou um redator do jornal e mandou com-
prar dez maços - ou seja, cem caixinhas, e logo depois mais dez e ainda
mais dez maços. Convocou todo mundo que estivesse disponível na redação
para contar os palitos de cada caixa - do dono dos Associados, passando
pelo redator-chefe, até os contínuos e telefonistas, ficaram todos de cabeça
baixa sobre as mesas, contando palitos de fósforos e registrando os totais em
pedaços de papel. Já era de madrugada quando, ao final da misteriosa esta-
tística, todos se puseram a fazer contas. Só então Chateaubriand anunciou o
tortuoso raciocínio que ia por sua cabeça:
474
#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
- Pelas nossas contas, são consumidos anualmente em São Paulo 18 bi-
lhões de palitos de fósforos. Se cada caixinha contivesse mesmo os cinqüen-
ta palitos que o rótulo anuncia, a indústria estaria vendendo 360 milhões de
caixas por ano. Mas como esses larápios colocam, em média, apenas quaren-
ta palitos em cada caixa, na verdade eles vendem, pelos mesmos trinta cen-
tavos a unidade, 450 milhões de caixas de fósforos por ano. Ou seja: a indús-
tria que se recusa a anunciar nos Associados está roubando o povo paulista
em 90 milhões de caixas de fósforos todo ano. Multipliquem isso pelos trin-
ta centavos e verão que são 27 milhões de cruzeiros - dinheiro suficiente
para montar um jornal, meus amigos!
No dia seguinte o jornal voltava à carga com a denúncia. No outro dia
mais uma reportagem (esta dizia que "uma linha formada pelos palitos de
fósforos subtraídos ao povo daria para fazer quatro vezes a volta da Terra").
A série prosseguiu até que, como no caso dos vidros planos, foi interrompi-
da inesperadamente. Semanas depois começavam a aparecer, também nos
Associados, anúncios dos fabricantes de fósforos. E daquela madrugada alu-
cinada uma marca ficaria gravada nas caixas de fósforos brasileiras: em vez
de "Contém 50 palitos", elas passaram a anunciar prudentemente em seus
rótulos: "Média: 45 palitos".
A leitura atenta do Diário da Noite revelaria história certamente seme-
lhante a essa, mas tendo como alvo outro produto. Ainda em fase de implan-
tação no Brasil, onde acabava de ser lançada, a Coca-Cola não anunciava nos
Associados. Até que o Diário da Noite passou a divulgar seguidas reporta-
gens contendo "análises bacteriológicas realizadas por respeitados institutos
de pesquisas " cujos resultados "condenavam" o refrigerante. Bastou apare-
cerem os primeiros anúncios de Coca-Cola no Diário da Noite para as tais
análises sumirem como que por milagre, dando lugar a reportagens que res-
saltavam o fato de aquela ser "uma bebida agradável a todos, porque só em-
prega o puríssimo açúcar brasileiro". Alguma nova encrenca com o departa-
mento de propaganda da Coca-Cola pode ter surgido muitos anos depois:
em junho de 1957 o Diário da Noite voltaria a repetir o título e a notícia da
"contaminação" do produto ("Condenada pelo Instituto Adolfo Lutz - No-
civa à saúde da população a Coca-Cola"). De novo, no dia seguinte o jornal
já não tocava mais no assunto.
Com o batismo coletivo de doze aviões, ocorrido numa tarde de julho
de 1946 no Campo de Marte, em São Paulo, a campanha Dê Asas para a Ju-
ventude (agora pomposamente denominada Campanha Nacional de Avia-
ção) podia ostentar números surpreendentes. Segundo dados divulgados
naquele dia pelo Ministério da Aeronáutica, dos 963 aparelhos de recreio ou
de treinamento existentes no Brasil, nada menos que oitocentos tinham sido
475
#
FERNANDO MORAIS
doados pela campanha de Chateaubriand. O número se tornava ainda mais
expressivo, sublinhou um dos oradores da cerimônia, se se considerasse que
em 1940, quando a campanha fora lançada, a frota brasileira daquelas aero-
naves não chegava a 160 unidades. O mesmo acontecia com o número de pi-
lotos civis formados no período: até aquela data tinham recebido brevê do
ministério exatos 5753 pilotos - dos quais cerca de 5 mil tinham aprendido
a pilotar em aviões doados à campanha (em 1940 só havia no Brasil 318 pi-
lotos civis e 147 das chamadas "aeronaves mercantes ", ou comerciais).
Simultaneamente à campanha da aviação, o jornalista tinha lançado ou-
tra dois anos antes: a Campanha Nacional da Criança. Usando métodos
idênticos aos utilizados para os aviões - doações seguidas de "batismos" e
inaugurações, sempre com ampla cobertura dos Associados -, Chateau-
briand pretendia fazer com que fossem construídos mil postos de atendi-
mento à infância carente em todo o país. (Embora os dados oficiais registrem
que 480 postos foram construídos, dentro dos próprios Associados há quem
afirme que eles não chegaram a uma centena.)
As duas campanhas prosseguiam, mas na realidade Chateaubriand já
estava perseguindo outra obsessão: obter doadores para construir e montar
no Brasil "uma das maiores galerias de arte do mundo". O projeto da gale-
ria (provavelmente inspirado na nomenclatura das similares que vira nos
Estados Unidos e na Inglaterra, ele nunca falava em "museu", mas sempre
em "galeria") estava pronto e acabado em sua cabeça. O prédio novo dos
Diários Associados de São Paulo, quase terminado, tinha um andar inteiro
destinado à instalação da galeria e algumas obras de arte haviam sido adqui-
ridas. Mas para ele ainda faltava o principal: alguém que pudesse orientar a
montagem da galeria, ajudá-lo a escolher os quadros e dedicar-se em tempo
integral ao ambicioso projeto.
O homem de quem ele precisava apareceu ainda em 1946. Chateau-
briand fora ao saguão do prédio do Ministério da Educação, no Rio, para ver
uma mostra de 54 telas de pintura italiana do século xIII ao século xvIII que
haviam sido trazidas ao Brasil para ser vendidas por seu proprietário, o mar-
chand e jornalista italiano Pietro Maria Bardi, de 46 anos. Dono do Studio
d'Arte Palma, de Roma, Bardi passara pelo Brasil em 1936, durante uma es-
cala do navio em que viajava para Buenos Aires. Agora ele retornava com o
propósito de vender os quadros, viagem que aproveitava para fazer a lua-
de-mel com a arquiteta Lina Bo, com quem se casara pouco antes. O italiano
viera de Roma com a indicação do crítico brasileiro Mário da Silva Brito de
que um jornalista excêntrico pretendia montar a tal galeria. Quando, na ex-
posição do Rio, soube que aquele sujeito baixinho, já meio gorducho e todo
vestido de branco era o dottore Chateaubriand, pediu a outro crítico brasilei-
ro Quirino Campofiorito que fizesse a apresentação. Como não falasse por-
tuguês, Bardi ficou feliz ao saber que o dottore arranhava alguma coisa de ita-
476
#
FERNANDO MORAIS
liano. Bastou meia hora de conversa para que o surpreendente Chateau-
briand atirasse a proposta à queima-roupa: por que Bardi não ficava no Bra-
sil e assumia a direção geral da galeria? O italiano entendeu por que diziam
que se tratava de um homem exótico. Ele mal o conhecera e já o convidava
para mudar-se de país e dirigir um projeto megalomaníaco. Bardi pediu
tempo para pensar. Já no dia seguinte, porém, Chateaubriand batia em seu
quarto de hotel não com um convite, mas com uma imposição, como se o ou-
tro fosse seu empregado:
- Domani noi andiamo a São Paulo.
Mas por que São Paulo?, quis saber Bardi. Chateaubriand explicou que
uma galeria como a que ele imaginava tinha de estar instalada onde estives-
se o dinheiro - e no Brasil o dinheiro estava em São Paulo:
- Perché a São Paulo c'é il café!
O dono dos Associados contou que a nova sede de seus jornais na capi-
tal paulista estava prestes a ser inaugurada e todo o seu primeiro andar po-
deria abrigar a galeria:
- Acho bom o senhor levar sua mulher junto, porque, já que ela é ar-
quiteta, ficará responsável pelo projeto de utilização desse andar.
Bardi ainda tentou dizer que, embora tivesse visitado muitos museus
em sua vida, nada entendia de museologia - não sabia onde começar e
como terminar um museu -, mas Chateaubriand permaneceu irredutível:
- Mi confido di lei.
Como resistir àquele homenzinho elétrico que um dia depois de conhe-
cê-lo dizia com toda a convicção que confiava nele? No dia seguinte o Jagun-
ço decolava do Rio levando Lina, Pietro Bardi e Assis Chateaubriand com
destino à maior e mais polêmica aventura das artes brasileiras: a criação do
Museu de Arte de São Paulo.
478
28
A primeira decepção de Pietro Bardi, até então estimulado pelo entu-
siasmo de Chateaubriand, aconteceu antes mesmo de o Jagunço pousar em
São Paulo. Certo de que o jornalista fosse proprietário de um grande acervo
de obras de arte para inaugurar a tal galeria, foi com surpresa que ouviu que
estava embarcando praticamente no marco zero daquele empreendimento.
Durante o vôo Chateaubriand contou-lhe que sua coleção, apesar de crite-
riosa, numericamente mal dava para decorar uma casa: tudo se resumia a al-
gumas telas de Cândido Portinari, meia dúzia de obras adquiridas da poeti-
sa Beatriz Renal para ajudar a Resistência francesa (entre as quais a única
que se destacava era um óleo do surrealista Max Ernst) e dois Canaletto pe-
los quais pagara, meses antes, 300 mil cruzeiros. A esse modesto conjunto
acabavam de ser incorporadas as seis telas que ele comprara por 950 mil cru-
zeiros (50 mil dólares da época, cerca de 400 mil dólares de 1994) do próprio
Bardi, no Rio: um Jacopo del Sellaio, um Francesco Botticini, um Giampetri-
no, um Nicolo Aluno, um Adeodato Orlandi e um Tiepolo. Como delicade-
za, Bardi ainda presenteara Chateaubriand com uma pintura sobre madeira
(a Ádoração dos Reis Magos, de autoria de Maestro del Bambino Vispo). Aqui-
lo era tudo.
Ao chegar a São Paulo foram direto para a rua Sete de Abril, no Centro,
futura sede dos Diários Associados, onde Bardi recebeu outra ducha de água
fria: o prédio ainda estava em obras, e o mezanino reservado para a planeja-
da galeria - que o italiano preferia chamar de "museu" - não passava de
uma inacabada laje de concreto, sob a qual imprudentemente funcionava um
grupo de teatro dirigido pelo pintor Aldo Bonadei e pelo futuro cineasta
Nelson Pereira dos Santos. Segurando uma lanterna a pilha, Chateaubriand
estendeu a mão em meio a pedreiros e mestres-de-obras, como se entregas-
se o universo ao surpreso casal:
- Toma, senhora Bardi: aqui a senhora vai projetar a galeria de arte an-
tiga e moderna que seu marido vai montar para nós.
Saíram de lá para almoçar no sobrado de três andares que o jornalista
comprara um ano antes na rua Bela Cintra, no Jardim América, para suas
permanências cada vez mais freqüentes em São Paulo - e para onde trans-
ferira da Vila Normanda o casal Thérèse e Henri Gallon. Temeroso de que o
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#
FERNANDO MORAIS
italiano pudesse desanimar diante da insignificância de sua coleção e do es-
tágio em que se encontrava a obra da Sete de Abril, Chateaubriand falava
compulsivamente sobre seus planos:
- As obras que vão encher nossa galeria não estão no hemisfério sul,
seu Bardi. Nós temos que passar como dois hunos sobre a Europa devasta-
da pela guerra comprando quadros. A nobreza e a burguesia européias es-
tão quebradas, seu Bardi, quebradas! Se corrermos, vamos comprar o que há
de melhor entre os séculos XIII e XVII a preço de banana!
A firme convicção de que havia tesouros na Europa à espera de quem
tivesse dinheiro na mão nascera da observação do cotidiano de franceses e
ingleses, um ano antes. Chateaubriand fizera uma viagem de poucos dias à
Alemanha, França e Inglaterra e voltara impressionado com o estrago e a pe-
núria produzidos pela Segunda Guerra Mundial. Quando desceu do trem
em Paris, vindo da Alemanha"não havia táxis nas ruas para levá-lo até o ele-
gante hotel Plaza Athénée e, para não carregar as malas, teve de se conten-
tar em atravessar a cidade a bordo de um velho fiacre puxado por um cava-
lo magro. Quando perguntou ao cocheiro se não havia mais táxis em Paris,
o homem respondeu:
- Táxis há muitos. O que não há é gasolina. E nem vai haver enquanto
não for votado o Plano Marshall.
Ele se referia ao plano ainda em discussão no Congresso norte-america-
no, por meio do qual os Estados Unidos destinariam 13 bilhões de dólares
de salvadora ajuda econômica à Europa arrasada pela guerra (que em 1994
equivaleriam a 90 bilhões de dólares). Em sua primeira manhã em Londres,
dias depois, pediu no restaurante do refinado hotel Claridge's um prato de
ovos com bacon. O garçom riu:
- Ovos nós temos. Bacon, não.
O jornalista estrilou:
- Como não têm bacon? Está aqui no cardápio. A porção está cara, sete
pence, mas eu pago.
O funcionário deu uma resposta muito parecida com a do cocheiro pa-
risiense:
- Há bacon no cardápio, mas não na cozinha. O senhor não lê jornais?
A estrela de Hollywood Loretta Young encerrou sua viagem de turismo à In-
glaterra porque não tínhamos ovos com bacon para servi-la. Se não havia
para a atriz de Ramona, por que haveria para o senhor? O quilo de bacon im-
portado da Dinamarca está custando quinze libras. A esse preço, só vamos
ver bacon depois do Plano Marshall.
Se Paris não tinha táxis para transportar turistas e se não havia um pe-
daço de toucinho defumado na Inglaterra nem para Loretta Young, refletia
Chateaubriand em voz alta com Bardi, então quem chegasse à Europa com
dinheiro no bolso "produziria uma devastação nas coleções das famílias
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#
CHATÔ, O REI DO BRASIL
quebradas pela guerra". Mas, tanto o cocheiro francês quanto o garçom lon-
drino tinham razão: era preciso correr, porque depois que o Plano Marshall
fosse implantado a situação sem dúvida seria outra. Sim, Bardi concordava,
mas de onde tirar tanto dinheiro?
- Do café, seu Bardi, do café paulista. Por isso é que decidi fazer nossa
galeria aqui em São Paulo, terra do café e do dinheiro. Eu obriguei essa bur-
guesada a doar quase mil aviões para formar pilotos. O senhor verá do que,
juntos, seremos capazes em nome da arte.
Bardi nem bem se instalara direito em São Paulo, semanas depois, e
Chateaubriand voava com destino a Roma para a primeira surtida. Orienta-
do pelo italiano sobre onde e como fazer as primeiras aquisições ("associei-
me a um aventureiro italiano que é mais louco do que eu", alardeava o jor-
nalista), conseguiu arrancar 3 milhões de cruzeiros da fazendeira Sinhá
Junqueira, de Ribeirão Preto, do cafeicultor Geremia Lunardelli (de quem se
dizia ser "o maior plantador de café do mundo") e do industrial Francisco
"Baby" Pignatari, e não teve dificuldades para obter do presidente Dutra au-
torização para trocar os cruzeiros por dólares - quase 160 mil dólares (equi-
valentes a 1,1 milhão de dólares de 1994). Quinze dias depois, em fervilhan-
te festa a rigor no casarão da família Jafet, na avenida Brasil, ele "apresentava
à sociedade paulista" o produto das primeiras doações para a galeria - que
agora já era chamada por todos de Museu de Arte de São Paulo: dois Tinto-
retto, um Botticelli, um Murillo, um Francesco Francia e um Ma gnasco adqui-
ridos em Roma. A "burguesada" que se preparasse, que aquilo não ia ter fim.
No meio da festa Iolanda Penteado disse a Chateaubriand que queria
apresentar-lhe um amigo - um homem risonho, de meia-idade, que esten-
deu a mão cordialmente ao jornalista:
- Dottore, o senhor não vai ficar impressionado de estar apertando a
mão de uma alma penada?
Diante do espanto de Chateaubriand, o homem respondeu bem-humo-
rado:
- Porque durante a guerra o senhor me matou por linchamento em ple-
na praça do Duomo, em Milão. Eu sou Andrea Hippolito, o morto.
Chateaubriand deu uma gargalhada:
- Ah, as notícias. Elas vão até as nuvens, e quando voltam à terra nin-
guém as entende direito. Mas não se ofenda, seu Andrea. Saiba que, como o
senhor, eu também fui um grande admirador de Mussolini e da doutrina fas-
cista.
Nos anos que se seguiram, a alta sociedade do Rio e de São Paulo iria se
cansar de freqüentar as requintadas festas de Chateaubriand - mas ia pagar
caro. Para montar o MASP ele começou usando métodos quase iguais aos ado-
tados para a campanha dos aviões: primeiro era preciso caçar um milionário
(ou um grupo deles) para doar o dinheiro que pagaria uma determinada
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FERNANDO MORAIS
obra de arte a ser adquirida na Europa. A primeira festa era realizada ainda
na pista de pouso, aos pés da escada do avião que trouxesse a obra (ou,
quando ela vinha de navio, no próprio cais do porto, em meio aos estivado-
res): o quadro era desencaixotado ali mesmo, servia-se champanhe e alguém
encerrava a cerimônia com o discurso de praxe. Depois, duas festanças, com
todos os convidados vestidos a rigor, a fim de apresentar a obra às socieda-
des do Rio e de São Paulo. Tudo, naturalmente, com farta cobertura dos ór-
gãos Associados.
Bardi e Lina ainda estavam isolando e preparando a área a ser ocupada
na rua Sete de Abril (o museu seria instalado no prédio antes que os Asso-
ciados se mudassem para lá) quando as festas começaram: na casa do jorna-
lista Roberto Marinho, no Rio, foi apresentado o Retrato de Zborowski, de Mo-
digliani, doado pelo presidente da Confederação Nacional da Indústria,
Euvaldo Lodi. O casal Marcos e Ana Amélia Carneiro de Mendonça deu a
festa para o batismo do Nero Scipião, de Cézanne, doado pelo velho amigo
Drault Ernanny (que agora, além do Banco do Distrito Federal, era dono de
uma empresa petrolífera). Com a presença do presidente Dutra e da perfu-
mista Helena Rubinstein, abriram-se os salões da reitoria da Universidade
do Brasil para que Chateaubriand exibisse de uma só vez o Cardeal Cristófo-
ro Madrum de Ticiano, doado pelo dono da indústria de tecidos Bangu,
Guilherme da Silveira, e O grande eleitor da Saxônia, de Cranach, e Claude Re-
noir, de Renoir, doados em conjunto pelo fazendeiro Antônio de Moura An-
drade e pelo deputado Machado Coelho. As apresentações podiam ser na
mansão de um ricaço, em uma universidade ou em um ginásio público para
normalistas, como aconteceu em São Paulo quando o governador do estado,
Ademar de Barros (que acabara de comprar a Lacta de Chateaubriand),
doou o Ecce homo, de Tintoretto. No apinhado auditório do Colégio Caetano
de Campos, d. Leonor, mulher de Ademar, descerrou o cetim que cobria a
tela para que os alunos ouvissem o discurso do jornalista:
- Pequeninos: Jacopo Tintoretto foi um fragmento de Prometeu, com
energia cósmica bastante para submeter à soberania de sua palheta veraz
aventura, tragédia, drama e legenda venezianos. No trópico Tintoretto seria
um personagem da selva, um báquico da jungle, de tal modo é delirante sua
imaginação, de tal sorte é desordenado o poder de seus instintos selvagens.
Para comprar a tela Retrato do conde-duque de Olivares ele organizou o
que apelidou de "Sindicato Velásquez": uma "associação espontânea" for-
mada pelas mulheres do conde Rodolfo Crespi, do banqueiro Walther Mo-
reira Salles, de Modesto Leal (o conde que lhe emprestava dinheiro a juros)
e do arquiteto Jacques Pillon, a quem ele entregara a empreitada de cons-
truir o prédio da Sete de Abril. Cada uma delas entrou com 200 mil cruzei-
ros, um pouco mais de 10 mil dólares de então. Quando os 44 mil dólares
(cerca de 310 mil dólares de 1994) chegaram às mãos de Leary Knoedler,
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
dono da Galeria Knoedler, de Londres, o Velásquez embarcou para o Brasil
para ser festejado duas vezes em jantares black-tie: primeiro na casa de Iolan-
da Penteado e Cicillo Matarazzo, em São Paulo, depois na do senador Artur
Bernardes Filho, no Rio. Três dias depois, em um almoço oferecido pela As-
sociação Comercial de São Paulo, foram apresentadas a escultura Meditação,
de Rodin, e a tela Fernando VII, de Goya (só esta custara 75 mil dólares de en-
tão em Nova York), ambas doadas por Geremia Lunardelli ao museu.
No dia em que chegou ao Brasil a mais célebre de todas as obras adqui-
ridas até então pelo museu, o Auto-retrato com barba nascente, de Rembrandt
(sobre cuja autenticidade, mais tarde, pesariam sérias suspeitas), foi organi-
zada na casa do empresário carioca Pedro Brando uma festa memorável.
Além do presidente Dutra, estavam presentes os embaixadores da Inglater-
ra, do Canadá, da França, da Espanha, de Portugal e da Argentina, os prín-
cipes herdeiros da Coroa brasileira e o que havia de mais fino no soçaite do
eixo Rio-São Paulo - com destaque especial, nessa noite, para os exporta-
dores de café da poderosa Associação Comercial de Santos, doadores do
quadro. Diante dessa seleta platéia Chateaubriand faria um discurso tão sin-
cero quanto polêmico (publicado no dia seguinte em todos os órgãos Asso-
ciados sob a forma de artigo), no qual resumia a filosofia de seus métodos de
arrecadação de fundos para o museu:
[...] O gosto pelas coisas belas não é um privilégio das elites. Também o povo as-
pira, instintiva e obscuramente, às emoções do encontro com um Rembrandt,
um Velásquez, um Goya, um Greco, um Botticelli, um Tintoretto.
De onde, entretanto, tirar recursos para levar a arte ao povo? Formulam-se
queixas contra a família voraz dos tubarões, mas conosco eles têm sido dóceis e
flexíveis. Talvez porque lhes falemos pedagogicamente de seus deveres coleti-
vos, eles costumam ouvir-nos. Acentuamos os riscos que corre sua estirpe numa
era que é o século dos assalariados e dos monopólios estatais. E eles sabem que,
na verdade, o que fazem conosco são seguros de vida.
Estamos fornecendo salva-vidas à nossa burguesia. A Campanha da Aviação,
a Campanha da Criança, o Museu de Arte e outros programas que temos na in-
cubadeira, meus senhores e minhas senhoras, são os itinerários salvadores de
vossas fortunas [...].
Ao contrário de intimidá-lo, o riso constrangido da maioria dos presen-
tes animou-o a mergulhar mais fundo. Depois de discorrer longamente so-
bre o Rembrandt ali exposto e sobre as virtudes dos doadores, Chateau-
briand encerrou sua fala com franqueza desconcertante:
[...] Aprendi com o banqueiro Correia e Castro, aqui presente, e adotei como mi-
nha uma técnica de indiscutível eficiência para reeducar a burguesia: anunciar
para breve o fim do mundo burguês, que sucumbirá aos ataques soviéticos.
Apresento, contudo, a única hipótese de salvação, que é o fortalecimento das cé-
lulas burguesas. Uma das formas de fortalecê-las é doar Renoirs, Cézannes e
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FERNANDO MORAIS
Grecos ao Museu de Arte. O que significa que enfrentar os bolcheviques pode
custar a cada um dos senhores modestos 50 mil dólares.
Não se passava uma semana sem que a carteira de câmbio do Banco do
Brasil emitisse uma ordem de pagamento remetendo pequenas fortunas
para a Europa ou para galeristas de Nova York com o objetivo de saldar dí-
vidas originárias da aquisição de obras. Um dia eram 20 milhões de francos
para pagar a Alfred Daber, em Paris, pela venda da Banhista, de Renoir.
Noutro era uma remessa para Leary Knoedler, em Londres: 50 mil dólares
pelo Retrato de Henri, de Toulouse-Lautrec. Mais alguns dias e lá iam mais
200 mil dólares para Knoedler "em pagamento de um quadro de Frans
Hals". Aquele carnaval de dinheiro remetido para o exterior era pessoal-
mente autorizado pelo presidente da República por liberalidade, mas Cha-
teaubriand foi advertido pelos ministros da Fazenda do período (sucessiva-
mente Pedro Correia e Castro e Guilherme da Silveira) para o risco que
representava fazer remessas tão vultosas sem que fossem regularmente con-
tabilizadas e declaradas ao imposto de renda. Eram recursos cuja origem a
receita tinha de registrar e, se fosse o caso, taxar.
Até então as doações eram recebidas informalmente dos doadores pelos
Diários Associados (muitas vezes em dinheiro vivo, entregue a Chateau-
briand em pacotes) e remetidas em nome da cadeia para o exterior, pois o
museu ainda não tinha personalidade jurídica registrada em cartórios ou na
junta comercial. Mas nem todo o dinheiro que entrava nos Associados era
contabilizado. Para se precaver (e para proteger os doadores de qualquer in-
vestida do imposto de renda), Chateaubriand, obcecado com a idéia de en-
riquecer o acervo, inventou uma fórmula que acabaria por transformar o
MASP num sangradouro de recursos dos Associados: em vez de simplesmen-
te doar dinheiro para a compra de quadros, os grandes empresários passa-
riam a fazer contratos de publicidade com os jornais, as rádios e as revistas,
cuja receita entrava formalmente nos cofres Associados mas era imediata-
mente remetida para os galeristas dos Estados Unidos e, sobretudo, da Eu-
ropa. Ou seja: o dinheiro originário de parte considerável dos anúncios que
apareciam nos Associados não era utilizado para pagar salários e equipa-
mentos das rádios, dos jornais e das revistas, mas reapareciam nas festas sob
a forma de Van Dyck, Goya e Cézanne. Com isso, a maioria dos doadores,
na realidade, trocava os dólares que estavam financiando a montagem do
museu por espaço publicitário nos veículos da cadeia de comunicação-
para grande preocupação do tesoureiro geral das empresas, Martinho Luna
de Alencar. Alguns poucos doadores não pediam um centímetro (ou, no
caso das rádios, um segundo) de publicidade pelas doações, entre os quais
estavam os banqueiros Amador Aguiar, Drault Ernanny, Clemente Faria e
Walther Moreira Salles, os industriais Guilherme Guinle, "Baby " Pignatari,
os irmãos Klabin e os fazendeiros Sinhá Junqueira e Geremia Lunardelli.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
E mais: como no Brasil dos anos 40 os jornalistas não eram obrigados
por lei a declarar imposto de renda (assim como tinham direito a 50% de
desconto em passagens aéreas e em casas de diversões públicas, inexplicável
privilégio que perdurou até o golpe militar de 1964), Chateaubriand conce-
beu outro mecanismo para burlar o fisco: passou a "cobrar de cada jornal
associado remuneração exorbitante pela publicação dos artigos que escrevia
diariamente. Com isto, tinha como justificar a origem das verdadeiras fortu-
nas que remetia como pessoa física para o exterior, para pagamento das
obras de arte, sem ter de prestar contas ao fisco. Toda essa ginástica contábil
podia proteger tanto as empresas quanto os doadores do longo braço do im-
posto de renda, mas gerava enorme desorganização, uma vez que as remes-
sas de divisas para o exterior eram feitas ora diretamente pelos anunciantes,
ora pelos Associados (ou por seu dono), ora pelas empresas dos doadores-
confusão que costumava ser aumentada pela caótica vida financeira do jor-
nalista ou por uma particularidade: como nem sempre suas assinaturas nos
cheques conferiam com os originais que ele havia deixado nas contas bancá-
rias abertas no exterior, não era incomum, depois de um quadro ter sido en-
tregue, um banco estrangeiro devolver aos vendedores de quadros (e estes a
Chateaubriand) cheques carimbados com um "assinatura desconhecida".
Seja como for, quando foi inaugurado pela primeira vez (porque have-
ria uma segunda inauguração, três anos depois), no dia 2 de outubro de
1947, o Museu de Arte ainda transmitia a impressão de desorganização e im-
proviso - para chegar ao mezanino, o ministro da Educação Clemente Ma-
riani, que representava o presidente Dutra, teve de subir por uma escada de
madeira, dessas usadas por pedreiros. Se a aparência era precária, porém, o
recém-nascido MASP revelava saúde invejável no que importava, que era o
acervo: nos poucos meses decorridos entre o primeiro encontro de Chateau-
briand com Bardi e a singela inauguração, mais de 5 milhões de dólares de
então (cerca de 35 milhões de dólares de 1994) haviam sido torrados na mon-
tagem daquela que já era, de longe, a mais importante coleção brasileira de
"arte antiga e moderna", como seu criador preferia chamá-la.
Entre a primeira e a segunda inauguração (esta foi solene, com o prédio
pronto e tomado pelos Diários Associados e com o museu ocupando, além
da área original, mais um salão de mil metros quadrados), ocorrida em julho
de 1950, a imprensa internacional havia publicado dezenas de pequenas no-
tícias sobre aquele exótico homenzinho que peregrinava pela Europa com
burras entupidas de dinheiro à cata das mais valiosas obras de arte. Mas fo-
ram duas extensas reportagens - uma do Corriere della Sera e outra da L'Eu-
ropeo, respectivamente o jornal e a revista mais importantes da Itália na
época - publicadas sobre Chateaubriand que, sem dúvida, deram as contri-
buições mais significativas no processo de montagem do acervo do MASP.
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O Corriere começava reproduzindo uma história que Chateaubriand
adorava repetir em rodas sociais elegantes. Segundo contava, em suas veias
corria uma mistura de sangue normando e português, herança de um tata-
ravô caeté que havia devorado alguns invasores franceses e um bispo portu-
guês séculos antes, no Nordeste brasileiro (dependendo da roda, o jornalis-
ta mudava a versão e contava que seu sangue era meio judeu, pois a vítima
do canibalismo de seu ancestral teria sido não um bispo, mas um rabino por-
tuguês que tentava instalar uma sinagoga em Recife). Chateaubriand era re-
tratado como "uma das personalidades mais complexas de seu país, um sin-
gular fenômeno de vitalidade. [...] Um homem de estatura um pouco inferior
à média, cabelos começando a ficar grisalhos, Assis Chateaubriand é tão po-
pular junto aos 6 milhões de habitantes de São Paulo como temido por sua
elite econômica e financeira". E ao descrever um jantar "do qual participa-
vam os mais elevados expoentes da indústria e do comércio brasileiros ", o
jornal revelava os métodos de Chateaubriand para arrecadar fundos para o
museu de arte:
No final do jantar e dos discursos oficiais, Assis, que esteve, curiosa exceção, o
tempo todo quieto e sentado, levantou-se e pediu a palavra. O proprietário da
maior cadeia sul-americana de jornais foi breve, explícito e violento, manifestan-
do ainda uma vez a personalidade que, além de lhe trazer novos amigos,
trou-
xe-lhe também muitos inimigos:
- Senhores: nós falamos, fazemos excelentes negócios e ganhamos muito di-
nheiro. Muito bem. Mas só isto não basta. O Museu de Arte de São Paulo preci-
sa de novas aquisições. Um museu não é uma coisa que se faça e depois se dei-
xe dormir. Até agora gastamos 7 milhões de dólares nele. Mas é preciso mais
dinheiro, é preciso continuar a obra. Assim, você (e disse um nome) vai dar-me
3 milhões de cruzeiros. Você (disse outro nome, apontando o dedo para o peito
de um senhor), me dá dez, você me dá cinco, você sete...
Diante do silêncio e do espanto generalizado, continuou a apontar o dedo
para o peito de vários comensais, que, já acostumados às suas maneiras bruscas
e explícitas, sorriam ligeiramente:
- No total teremos aqui mais meio milhão de dólares para pagar um Ticia-
no que me foi oferecido em Nova York.
Depois, para maior clareza, sempre em meio a um silêncio geral, repetiu, sem
errar uma só cifra, a soma que cada um devia depositar para o museu. Fez com
que um por um anotasse a sua quantia em um pedaço de papel, que colocou no
bolso. Depois, com seu andar descuidado, batendo nas costas de cada um com
a mão, foi embora.
No dia seguinte Chateaubriand, tendo recebido o dinheiro, regularmente de-
positado antes do prazo estabelecido de 24 horas, partiu para Nova York. Três
dias depois voltava com um Magnasco debaixo do braço. No aeroporto espera-
vam-no alguns membros do governo, muitos amigos e uma massa de curiosos.
Chateaubriand levantou bem alto o quadro, para mostrar a todos, dizendo que
o Ticiano que deveria ter comprado era falso. Sob os aplausos de todos, subiu
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no carro. Durante todo o dia passeou com o Magnasco embaixo do braço, levan-
do o quadro para que os amigos o vissem, contando umas cem vezes a história
de sua compra. Às onze horas da noite foi ao museu, fez acordar os vigias e as-
sistiu pessoalmente à colocação do quadro na parede. Depois disso, satisfeito,
foi dormir.
Na reportagem de L'Europeo, intitulada "A opinião pública brasileira se
chama Assis Chateaubriand", o dono dos Associados aparece como um ho-
mem nascido no Norte do Brasil, o que significa para nós, italianos, nascer
no Sul". O jornalista é apresentado exageradamente como "um bandeirante
do século xx", um obstinado que persegue três objetivos na vida: a campa-
nha nacional da aviação, a luta contra a mortalidade infantil e a batalha pela
criação de uma cultura brasileira:
A terceira ambição de Chatô é a de educar seus compatriotas para a beleza. An-
tes mesmo que fosse concluído o belíssimo edifício dos Diários, um colosso de
mármore de quinze andares no centro de São Paulo, Chatô dava ordens aos seus
engenheiros para acabar o segundo andar. "Não posso esperar mais", dizia,
"preciso de um museu." [...) O museu Chateaubriand é o mais sintético do mun-
do. Ao lado de El Greco, Rembrandt, Goya, Tintoretto, Cranach, Piero di Cosi-
mo, Jacopo del Sellaio, nos mesmos salões podem ser admirados um estupendo
Renoir, vários Cézannes, Degas, Manet e assim por diante, até os modernistas
italianos Morandi e Modigliani e os atrevidos Chagall, Utrillo, Léger e os repre-
sentantes da pintura modernista brasileira como Segall, Tarsila e Portinari.
O programa de aquisições para este ano prevê uma soma equivalente a 15 mi-
lhões de dólares.
Como se pode intuir, o museu está bem longe de um fúnebre mausoléu da
arte. É um centro vital de cultura. Numa das vitrines, por exemplo, alinham-
se alguns objetos como uma raiz, uma lamparina e até uma Olivetti último
modelo.
As duas reportagens produziram um efeito surpreendente. Pilhas de
cartas, quase sempre acompanhadas de fotografias e de atestados de auten-
ticidade, pousavam sobre as mesas de Chateaubriand e de Bardi nos Asso-
ciados e no museu. De Lugano, na Suíça, alguém oferecia um Rafael. De
Londres, um industrial pedia que o jornalista fizesse uma oferta para uma
tela de Corot, e um joalheiro falido oferecia um Renoir por 12 mil libras. Em
poucas semanas tinham sido remetidas 148 cartas da Itália, da França, da
Alemanha, da Inglaterra, da Espanha, da Suécia, da Holanda, da Áustria e
da Suíça com ofertas de quadros - um retrato fiel do estrago causado pela
guerra nas grandes fortunas. Eram comerciantes, industriais e fazendeiros
oferecendo telas de Rouault a 9 mil dólares, Bra que a 11 mil dólares, Picasso
a 14 mil dólares, Matisse a 13 mil dólares, Maillol a 16 mil dólares. A corres-
pondência trazia também insólitos pedidos vindos de todas as partes. De
Gênova, na Itália, o médico Mario Ghidetti solicitava 32 mil liras para mon-
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tar o laboratório científico do hospital psiquiátrico da cidade. O piloto apo-
sentado da Primeira Guerra Mundial Arnaldo Orfei escrevia de Elisabethvil-
le, no Congo Belga, no coração da África, pedindo a doação de 500 mil fran-
cos belgas "para reiniciar a vida". De Friuli, na Itália, Elena Podrecca,
"desempregada faz dois anos", pedia 20 mil liras para sobreviver. De Tries-
te, também na Itália, o professor Augusto Cernigoj pedia a ajuda de Cha-
teaubriand para localizar, "em algum ponto da América do Sul", seu irmão
mais novo, Carlo Cernigoj. André Dubonnet, dono da fábrica do conhecido
vermute que levava seu sobrenome, escreveu de Paris oferecendo ao perso-
nagem de L'Europeo sociedade em sua indústria de bebidas.
Nos últimos anos da década de 40 Chateaubriand não conseguia ficar
um mês inteiro no Brasil. Quase sempre acompanhado por Bardi - encarre-
gado de ajudá-lo a escolher as obras a serem adquiridas e de se certificar da
autenticidade delas -, viajava incansavelmente para todos os cantos da Eu-
ropa em busca de seus tesouros. Foi nesse período que um dos maiores co-
lecionadores e marchands de então, Georges Wildenstein, dono de uma das
mais conceituadas galerias do mundo, quis conhecer "o extrovertido jorna-
lista brasileiro de quem a imprensa tanto fala". Wildenstein ficou maravilha-
do ao ouvir aquele homenzinho dizer que queria fazer no Brasil "um museu
igual ao Louvre". Habituado a distinguir um novo-rico de um obstinado,
Wildenstein comentou com o filho, Daniel: "Este é um homem extraordiná-
rio, um gênio. Não tenho dúvidas de que conseguirá o que quiser" . E foi por
intermédio de Wildenstein que Chateaubriand ficou sabendo que a galeria
Leary Knoedler tinha posto à venda duas esculturas da série As Bailarinas, de
Degas. Viajaram a Londres para ver de perto as obras e na casa do marchand
inglês descobriram que havia não duas, mas mais de cinqüenta bailarinas de
Degas à venda. Depois de examinarem uma por uma, Daniel Wildenstein,
que viajara junto com o jornalista à Inglaterra, perguntou a um Chateau-
briand maravilhado:
- Qual delas o senhor vai querer levar? A maior, a menor? A de saiote?
Chateaubriand quis saber de Knoedler quanto custava todo o lote e ou-
viu: 45 mil dólares. Para espanto de todos os que assistiam à cena, ordenou
ao colecionador:
- Pode embrulhar todas, que eu vou levar a coleção inteira.
No discurso de apresentação das peças à alta sociedade paulista (depois
reproduzido nos jornais sob a forma de artigo), Chateaubriand sustentou
que o conjunto de esculturas tinha custado não 45 mil, mas 55 mil dólares-
afinal, este era o valor que ele tinha arrancado do doador, o empresário
Al-
berto Alves Filho, dono do Mappin. E foi por intermédio do mesmo Leary
Knoedler que o jornalista soube que a casa londrina Christie's iria organizar
um leilão de arte, naquele mês de junho de 1949, entre cujas peças se encon-
trava um pequeno óleo pintado pelo ex-primeiro-ministro Winston Chur-
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chill (então líder da oposição ao governo trabalhista), o Blue sitting room. Ad-
mirador confesso do líder conservador britânico (a quem já dedicara deze-
nas de artigos), Chateaubriand havia tentado trazê-lo ao Brasil meses antes.
Depois de uma preocupada e reservada troca de correspondência entre a
embaixada da Grã-Bretanha no Brasil e o Foreign Office, os diplomatas bri-
tânicos desconfiaram que embora Chateaubriand estivesse declarando que
o motivo da viagem era pedir a Churchill que fizesse discursos "proclaman-
do as vantagens da livre empresa", na verdade o que o jornalista planejava
era "tirar vantagens políticas" da viagem. "Quer nos parecer que o verdadei-
ro objetivo do sr. Chateaubriand", dizia uma correspondência da embaixa-
da à Chancelaria britânica, "é usar o sr. Churchill como uma vara para cutu-
car e bater no sr. Ademar de Barros, suposto candidato a presidente da
República, cuja proposta de ganhar o apoio dos descamisados o levou a ser
taxado de socialista por seus opositores. Certamente seria indesejável que
o sr. Churchill fosse usado como uma ferramenta pelo sr. Chateau-
briand". A decisão final viria em um curto telegrama endereçado ao embai-
xador britânico no Rio: "O sr. Churchill informa que não será, repito, não será
possível aceitar o convite para visitar o Brasil. Até que o governo brasileiro
seja informado disto, esta informação deve ser tratada confidencialmente".
Frustrado por não ter podido conhecer pessoalmente seu ídolo inglês,
Chateaubriand animou-se quando soube que uma tela dele seria leiloada
pela Christie's. Arrecadou 20 mil dólares com um pequeno grupo de doado-
res e embarcou para Londres levando em sua companhia Nehemias Gueiros,
o advogado dos Associados. No dia do leilão (cuja renda seria destinada a
obras da Associação Cristã de Moços britânica) instalou-se em uma suíte do
Claridge's, encheu os bolsos de Gueiros de libras e mandou-o à
Christie's.
Do quarto do hotel, pelo telefone, ia orientando o advogado sobre como fa-
zer os lances. Quando o preço chegou a setecentas libras, mandou Gueiros
oferecer novecentas. De um canto do salão levantou-se o homem que vinha
disputando com eles, lance por lance, a posse do quadro. Era o ator de cine-
ma norte-americano Robert Montgomery, que agora oferecia mil libras. Au-
torizado por Chateaubriand, Gueiros subiu para 1100. Montgomery ofere-
ceu 1200. Embora Bardi o tivesse advertido de que não deveria fazer lances
acima de seiscentas libras (segundo ele, o quadro não tinha maior significa-
do artístico, valendo mais pela curiosidade de ter sido pintado por Winston
Churchill), o jornalista estava decidido a arrematar a tela, e mandou Nehe-
mias Gueiros oferecer 1300 libras. O norte-americano recuou e o leiloeiro ba-
teu o martelo: o Blue sitting room passava a pertencer ao acervo do MASP por
5200 dólares, o dobro do que de fato valia. O jornalista saiu do hotel corren-
do e ainda chegou à Christie's a tempo de usar os 15 mil dólares que ha-
viam sobrado para arrematar dois quadros de Kokoschka e uma escultura
de flenry Moore.
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No final da tarde seguinte, Chateaubriand, Gueiros e o embaixador bra-
sileiro Moniz de Aragão tomaram um carro e foram até a casa de campo de
Churchill, que queria conhecer o brasileiro que comprara seu quadro. Ele os
recebeu de macacão azul no jardim e espantou-se ao saber o valor que o qua-
dro tinha alcançado:
- Mas o senhor perdeu o juízo, doutor Chateaubriand. Nenhum qua-
dro meu vale mais que cem libras...
O jornalista levava nas mãos uma valise de couro e, depois de um chá e
alguns minutos de conversa, anunciou ao ex-premiê sua mais recente malu-
quice. Ia sagrá-lo Cavaleiro da Ordem do Jagunço, que acabara de criar es-
pecialmente para que o primeiro condecorado fosse o líder britãnico. Chur-
chill deixou desconcertado o embaixador Moniz de Aragão, obrigado a
traduzir para um inglês mais compreensível que o de Chateaubriand o sig-
nificado da palavra "jagunço". O líder conservador pareceu achar graça
quando Chateaubriand pediu que ele se apoiasse sobre um dos joelhos para
ser condecorado. O jornalista tirou da malinha um chapéu de cangaceiro,
que colocou sobre a cabeça do agraciado, e cobriu seus ombros com um mal-
cheiroso gibão de vaqueiro nordestino, de couro cru. Pediu que Gueiros co-
locasse sobre o ombro de Churchill um punhal paraibano de cabo de osso e
passou a pronunciar em português, com toda a solenidade, as palavras con-
tidas no diploma de pergaminho que também saíra da misteriosa mala:
- Winston Churchill: em nome de Chico Campos, do suave sertão das
Gerais, grão-mestre da Ordem, e de Antônio Balbino, senhor do Rio Grande
no sertão duro da Bahia, eu vos armo comendador da mais valorosa jerar-
quia do Nordeste do Brasil, a Ordem do Jagunço.
Diante de um Churchill assombrado com a cena que acabara de prota-
gonizar, Chateaubriand e Gueiros recolheram a vestimenta e o punhal, po-
saram para os fotógrafos das agências de notícias que aguardavam no jar-
dim e retornaram a Londres para comemorar as novas aquisições com uma
festança regada a champanhe e mulheres.
A febril atividade de organização do MASP, que consumia grande parte
do tempo de Chateaubriand, em nenhum momento impediu-o de dedicar-se
à sua preocupação mais permanente, a política. Em 1948, quando Getúlio
ainda amargava a obscuridade de um mandato de senador obtido nas elei-
ções de três anos antes, ele profetizava, em um artigo intitulado "O novo
show", a volta de Vargas à Presidência, para a qual seus jornais iriam contri-
buir significativamente. "O programa traçado pelo caudilho de Santos Reis
obedece a dois tempos", escreveu Chateaubriand no dia 11 de setembro de
1948, referindo-se a Vargas. "Primeiro, alcançar o Catete pelo sufrágio uni-
versal, se necessário por uma rebelião de massas. Empalmado o governo,
restabelecer a democracia autoritária, nas linhas do Estado Novo." Mas os
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Diários Associados só iriam se aproximar do "caudilho de Santos Reis"
muitos meses depois.
Quando começou a despontar a campanha presidencial de 1950, ainda
no ano de 1949, a cadeia de Chateaubriand conseguiu o prodígio de apoiar
todos os candidatos. Com o desenrolar da disputa, entretanto, quem lesse os
jornais Associados pressentiria que pela primeira vez o faro político de Cha-
teaubriand parecia não funcionar bem: quando decidiu concentrar sua força
em um dos candidatos, ele optou justamente por aquele que tinha sido lan-
çado para perder - ou apenas para, sem sabê-lo, guardar o lugar para que
o próprio Vargas, na hora certa, se lançasse -, o deputado federal mineiro
Cristiano Machado. Lançado pelo rs para ser abandonado no meio do ca-
minho, o nome de Machado, associado ao episódio, daria origem a um neo-
logismo na política brasileira - o verbo cristianizar, ou seja, lançar um can-
didato de propósito para que perdesse a eleição.
O retorno triunfal de Vargas acabaria acontecendo pelas páginas dos
Associados, em um episódio até hoje obscuro. Quando Samuel Wainer, ain-
da em 1947, vendeu a Diretrizes para João Alberto (eleito vereador à Câma-
ra Municipal do Distrito Federal), Chateaubriand chamou-o para trabalhar
como repórter de O Jornal. Wainer acabara de retornar de uma viagem de
dois anos pela Europa, onde realizara reportagens de grande sucesso como
enviado especial ao tribunal de Nuremberg, que julgou os crimes de guerra
nazistas, e pelo recém-criado Estado de Israel. Embora a perspectiva de tra-
balhar para Chateaubriand "lhe repugnasse", segundo suas próprias pala-
vras, a sedução de experimentar o cotidiano de um jornal diário, coisa que
Wainer nunca fizera em sua carreira, sobretudo no caso de um veículo dos
poderosos Diários Associados, no qual ganharia o astronômico salário de 20
mil cruzeiros mensais, acabou por convencê-lo a aceitar. Contratado por O
Jornal, ele passou dois anos cobrindo diversas áreas, mas quase sempre con-
centrava-se nos temas que diziam respeito à questão petrolífera (a polêmica
de então era sobre se havia ou não petróleo no subsolo brasileiro). Nesse pe-
ríodo, embora fosse um ex-tuberculoso, enfrentou um rigoroso inverno eu-
ropeu para realizar reportagens sobre um brasileiro preso na França sob a
acusação de assassinato. No final de fevereiro de 1949, Wainer foi chamado
por Chateaubriand para uma missão em território brasileiro: uma reporta-
gem especial no interior do Rio Grande do Sul.
Em suas memórias, Samuel relata que Chateaubriand o enviara ao Rio
Grande para realizar uma série de reportagens que combatessem a tendên-
cia dos agricultores gaúchos de privilegiar a cultura de trigo (posição que o
dono dos Associados de fato defendia). Já no Sul ele teria, por iniciativa pró-
pria, decidido entrevistar Getúlio Vargas, que se fechara como um ermitão
em sua fazenda de São Borja - encontro do qual nasceria a antológica repor-
tagem que mudou os rumos da política brasileira. Wainer conhecia pouco o
ex-presidente, com quem cruzara algumas vezes nos corredores do Senado,
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em busca de notícias para a coluna diária "Por detrás da cortina", que assi-
nava em O Jornal. A versão de que fazer a entrevista tinha sido decisão sua
e não uma ordem de Chateaubriand, no entanto, é contestada por todos os
seus colegas da direção dos Associados na época - Carlos Castelo Branco,
Austregésilo de Athayde e Freddy Chateaubriand, entre outros - que sus-
tentam que o patrão o enviou ao Sul com a missão específica de entrevistar
Vargas. A tal reportagem sobre o trigo teria sido, segundo esses depoimen-
tos, um mero pretexto para justificar a viagem do repórter ao Rio Grande do
Sul. Só quatro anos depois, quando estava irremediavelmente rompido com
Wainer, é que Chateaubriand publicou, no artigo "Uma história mal conta-
da", sua versão daquele episódio, que não seria desmentida nem por Sa-
muel nem por Getúlio Vargas:
Terminada a refrega política de 1950 a família Vargas, toda ela (com exceção de
Benjamin Vargas e do comandante Amaral Peixoto), entendeu que o responsá-
vel por tudo o que seu chefe recebera de nós como publicidade de seu nome e
de sua candidatura, a partir de 1947, fora obra exclusiva do repórter Wainer. E
sobre a cabeça do repórter Wainer derramaram-se todas as graças, todos os fa-
vores da cornucópia governamental. Nenhum de nós apareceu cobrando ao sr.
Getúlio Vargas fosse o que fosse. O repórter dos Associados apresentou a sua
conta de serviço e foi regiamente pago.
Está vivo o sr. Getúlio Vargas. Ele dirá se minto. Foi ele, a princípio, quem se
recusou a receber o sr. Wainer. Por sua vez o sr. Wainer temeu enfrentar o sr.
Getúlio Vargas, quando o designamos para a tarefa de acompanhar o ex-presi-
dente em seus movimentos no Sul. A prevenção de Vargas era porque o sr. Wai-
ner tinha a fama de comunista, havendo sido, como tal, acossado pela polícia do
Estado Novo. Foi Salgado Filho quem, a nosso pedido, desarmou o sr. Getúlio
Vargas, até fazê-lo receber em sua fazenda o emissário dos Diários Associados.
Nada fez o repórter Samuel Wainer que não fosse de iniciativa da organização
onde trabalhava. Todos os passos que deu resultavam de ordens emanadas do
sr. Carlos Rizzini ou do sr. Oswaldo Chateaubriand, que eram os dois diretores
gerais do Rio e de São Paulo.
Feita espontaneamente ou encomendada por Chateaubriand, o que im-
porta é que a reportagem realizada na terça-feira do Carnaval de 1949 aca-
bou se transformando no mais importante fato político da época, tendo re-
percutido até em órgãos importantes da imprensa internacional, como o
jornal The New York Times e a revista Time. Em meio à longa entrevista, Wai-
ner perguntou a Getúlio se ele tinha planos de voltar à cena política nacio-
nal. A resposta amanheceria estampada no dia seguinte, em letras garrafais,
na primeira página de O Jornal e dos demais órgãos Associados: "Sim, eu
voltarei. Não como líder político, mas como líder de massas". Pelas mãos de
Samuel Wainer e pelas páginas do mesmo O Jornal que ajudara a derrubá-lo,
Getúlio Vargas começava a longa caminhada que o levaria de volta à Presi-
dência da República.
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Chateaubriand entrou nos anos 50 dividido entre a campanha presiden-
cial, a consolidação do Museu de Arte de São Paulo e a realização do velho
sonho de implantar no Brasil a quarta estação de televisão do mundo (e a
primeira da América Latina). Quando circulou a notícia de que o Brasil ia en-
trar na era da tv, o projeto, na realidade, já estava muito avançado. Era uma
tarde de fevereiro de 1949 e o jovem radioator Walter Forster matava o tem-
po jogando uma partida de peteca no pátio da Rádio Difusora de São Paulo,
no Alto do Sumaré, em companhia dos radialistas Cassiano Gabus Mendes
e Dermival Costa Lima. Sobre o muro que dava para a rua podiam se ver as
cabeças de algumas mocinhas - eram as fãs dos galãs da rádio que passa-
vam várias horas do dia ali, à espera de um sorriso ou de um autógrafo. No
meio do jogo, a quadra improvisada é invadida por Assis Chateaubriand de
terno preto de lã e chapéu gelot na cabeça, acompanhado de um grupo de ho-
mens, todos de paletó e gravata, trazendo nas mãos pedaços de papel, tre-
nas e diagramas. Empurrando os jogadores de peteca com o ombro, Cha-
teaubriand tira do bolso do paletó um pedaço de giz e vai riscando o chão e
dando ordens em voz alta ao homem que estendia a trena sobre o cimento:
- Aqui vai ser o estúdio A. Agora espiche a trena para o lado de lá, ali
vai ser o estúdio B. Veja se confere com o mapa.
Walter Forster se aproxima cautelosamente do patrão e pergunta:
- Mas, doutor Assis, o senhor está pretendendo acabar com o nosso
campinho de peteca?
Sem se levantar por completo, ele apenas ergue os olhos com desdém:
- Vocês vão jogar peteca no diabo que os carregue: aqui vão ser os es-
túdios da tv Tupi.
O dono dos Diários Associados (que já eram conhecidos como Diários e
Emissoras Associados) tinha acabado de chegar dos Estados Unidos, onde
entregara a Meade Brunnet e David Sarnoff, diretores da
Rca Victor, os 500
mil dólares que representavam a primeira prestação de uma compra total de
trinta toneladas de equipamentos no valor de 5
milhões de dólares. Fecha-
dos os contratos e assinados os papéis nos escritórios da empresa em Nova
York, Sarnoff convidou Chateaubriand a embarcarem num avião para uma
visita à fábrica da rca em Burbank, na Califórnia, onde "uma surpresa espe-
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cial" aguardava o brasileiro. Depois de atravessarem os Estados Unidos de
costa a costa, foram todos para o hotel e na manhã seguinte tomaram um
carro com destino à fábrica. Lá o jornalista foi conduzido a um pequeno au-
ditório acarpetado onde só havia meia dúzia de poltronas e um grande mo-
nitor de televisão. A um sinal de Sarnoff as luzes se apagaram e o monitor
passou a transmitir imagens de uma banda de jazz - em cores! Chateau-
briand não podia acreditar no que via:
- O que é isso, senhor Sarnoff? Que bruxaria é essa?
O americano explicou-lhe que não havia mágica nenhuma, aquela era
uma experiência que vinha sendo desenvolvida fazia algum tempo pela em-
presa: a transmissão de tv em cores. Para espanto de todos os que se encon-
travam no diminuto auditório, Chateaubriand abriu a pasta que carregava,
tirou de dentro dela as cópias dos contratos que assinara na véspera e pi-
cou-os, maço por maço, em pedacinhos, enquanto gritava em seu inglês com
sotaque paraibano:
- Não pense que só porque eu venho de um país atrasado o senhor vai
me vender equipamento obsoleto, senhor Sarnoff! Só aceito fazer negócio
com a Victor se levar transmissores de televisão em cores para o Brasil.
A surpreendente reação do jornalista brasileiro à exibição experimental
custou a David Sarnoff o trabalho de ter de mandar rebater todos os contra-
tos e de explicar a Chateaubriand que mesmo nos Estados Unidos as pesqui-
sas ainda iriam levar alguns anos até que a televisão em cores fosse acessível
ao público (de fato, as primeiras transmissões regulares da Tv colorida nos
Estados Unidos só ocorreriam dali a dezessete anos, em 1966).
A agitação da montagem da televisão tomou conta dos Diários Asso-
ciados em São Paulo, cidade em que Chateaubriand decidira instalar o pri-
meiro canal brasileiro. Quando venciam os contratos de trabalho, nas emisso-
ras Associadas, os funcionários encontravam nos instrumentos de renovação
uma cláusula nova segundo a qual o empregado se obrigava "a prestar ser-
viços, em sua especialidade, em rádio e televisão ". Convidado para ser o di-
retor técnico do projeto, Mário Alderighi chamou Jorge Edo para ser seu
assistente (ambos eram técnicos especializados na montagem de transmisso-
res de rádio) e logo os dois embarcaram para Burbank para adquirir as pri-
meiras noções sobre o equipamento que estava sendo fabricado pela Rca
Victor. Para diretor artístico, Chateaubriand chamou o baiano Dermival
Costa Lima, que ocupava cargo idêntico nas rádios Tupi e Difusora de São
Paulo. Costa Lima provocou alvoroço quando anunciou que seu principal
assistente ia ser Cassiano Gabus Mendes, um menino que ainda não havia
completado vinte anos. Precoce, apesar do ciúme que o convite provocou,
sabia-se que Cassiano era pau-para-toda-obra na Rádio Tupi: escrevia e di-
rigia peças de radioteatro, era sonoplasta, irradiava futebol, produzia pro-
gramas de auditório. Além disso, talvez fosse um dos poucos ali que tinha
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FERNANDO MORAIS
alguma familiaridade com imagens em movimento, fruto da colaboração que
emprestara ao pai, Otávio Gabus Mendes, falecido quatro anos antes e que
fora o roteirista do filme Ganga bruta, do cineasta Humberto Mauro, e dirigi-
ra Mulher e Onde a terra acaba (à exceção de Ganga bruta, todos filmes mudos).
A inexperiência de Cassiano Gabus Mendes não era uma exceção entre
os responsáveis pela implantação da televisão no Brasil: salvo um ou outro
que tivera algum convívio superficial com o incipiente cinema brasileiro,
eram todos egressos do rádio. E tampouco havia de onde copiar um modelo
de sucesso, pois naquele ano só três canais de televisão funcionavam no mun-
do: um na Inglaterra, um na França e um nos Estados Unidos. Por ser o úni-
co canal comercial dos três, o norte-americano, da Nbc (associada à rcaVic-
tor), era o que mais se aproximava do que se pretendia fazer no Brasil.
Enquanto Alderighi e Edo permaneciam nos Estados Unidos, Costa
Lima e Cassiano, com base apenas na experiência do rádio, iam realizando
os ensaios do que deveriam ser os primeiros programas de televisão. Nas se-
manas que antecederam a inauguração da emissora, ocorrida no dia 18 de
setembro de 1950, a excitação e a ansiedade tomavam conta de todos. Como
os ensaios eram realizados sem os equipamentos, era impossível saber se
aquilo ia ou não dar certo. Para complicar ainda mais, Chateaubriand exigiu
que fossem transmitidas para um circuito fechado de televisão as cerimô-
nias de inauguração formal do Museu de Arte de São Paulo e do Edifício
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Guilherme Guinle, nome da sede dos Associados na rua Sete de Abril, a se
realizarem no dia 5 de julho. Na data marcada, um monitor foi instalado no
amplo saguão do edifício e outro ao ar livre, na esquina das ruas Sete de
Abril e Bráulio Gomes, a poucas dezenas de metros de distância. A presen-
ça do presidente Dutra, de artistas de rádio e de dezenas de políticos e em-
presários superlotou os salões do museu. Na falta de cadeiras para todos,
Chateaubriand sugeriu que os convidados se sentassem no chão "como ín-
dios tupis ", no que foi imediatamente atendido por um dos mais ilustres de-
les, o milionário norte-americano Nelson Rockefeller, presidente do Museu
de Arte Moderna de Nova York. A única câmera instalada no local transmi-
tia tudo para as centenas e centenas de populares que se espremiam no sa-
guão térreo e diante do monitor instalado no meio da rua. Ao fim dos dis-
cursos de praxe, houve uma apresentação do mais festejado artista latino de
Hollywood na época, o frade-cantor mexicano José de Guadalupe Mojica, de
54 anos, que cantou o grande sucesso do momento, o seu bolero "Besamé '.
O sucesso da pré-estréia não diminuiu a tensão existente no prédio do
Alto do Sumaré. Primeiro, porque na apresentação experimental Chateau-
briand estava diante da câmera, e portanto não poderia flagrar qualquer erro
cometido durante a transmissão. E também por aquela ter sido uma ativida-
de rápida, de pouco mais de meia hora. No dia 18 de setembro a função iria
começar às cinco da tarde, com a transmissão da cerimônia de bênção e ba-
tismo das câmeras e dos estúdios, e prosseguiria com esquetes intermitentes
até se encerrar, às nove da noite, com um grandioso show. Naturalmente
tudo seria ao vivo, pois a primeira fita de vídeo só apareceria quase duas dé-
cadas depois. Para a festa da inauguração oficial, Chateaubriand já havia re-
servado um salão no Jockey Club, onde seria instalado um monitor para que
seus duzentos convidados especiais (entre eles David Sarnoff, presidente da
Rca Victor-Nec) pudessem assistir, durante um banquete, à primeira apre-
sentação regular daquela que era chamada, por um vício herdado do rádio,
pelo complicado prefixo de PrzF-3-tv Tupi (e que logo se transformaria ape-
nas em "canal 3").
A expectativa geral era estimulada por páginas e páginas de reporta-
gens do Diário da Noite e do Diário de S. Paulo, que destacavam os menores
detalhes daquela aventura. Como parte das festividades pré-inauguração, as
chamadas "classes produtoras " (banqueiros, comerciantes, industriais e fa-
zendeiros de São Paulo e do Rio) ofereceram um banquete no restaurante do
Mappin para homenagear Chateaubriand pela implantação da televisão no
Brasil. Antes que os pratos fossem servidos, o jornalista pediu a palavra e
anunciou que iria "intervir diretamente na festa, modificando o sentido da
homenagem": deu ordens para que a cozinha servisse guaraná e sanduíches
de pão com mortadela a todos os convidados (entre os quais estavam alguns
dos homens mais ricos do Brasil) e decidiu que as principais iguarias do jan-
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FERNANDO MORAIS
tar, depois de leiloadas entre os presentes, seriam levadas nas caminhonetes
de distribuição dos Diários até o Alto do Sumaré, "para alimentar o time As-
sociado que está lá, trabalhando pelo progresso das comunicações no Bra-
sil". A renda do leilão seria destinada à compra de obras de arte para o MASP.
Assim, um coelho assado foi arrematado pelo conde Sílvio Álvares Pentea-
do por 17 mil cruzeiros; um peru, por Geremia Lunardelli, por 35 mil cruzei-
ros; um cabrito, por Drault Ernanny, por 35 mil cruzeiros. A diretoria do Sin-
dicato da Indústria Têxtil pagou por um leitão 50 mil cruzeiros - cem vezes
mais do que o prato valeria em um bom restaurante. No final da noite a equi-
pe que trabalhava na instalação da Tupi se fartava com o banquete nas me-
sas do Romeu, um modesto restaurante ao lado do prédio do Sumaré. E,
como os lances iniciais do "leilão" tinham sido estabelecidos por Chateau-
briand, o MASP enfiava em seus cofres perto de 200 mil cruzeiros (cerca de 10
mil dólares de então, ou 58 mil dólares de 1994, o dobro do que fora pago
meses antes pela tela de Churchill).
Um mês antes do dia D, o engenheiro norte-americano Walther Ober-
müller, diretor da rec-tv, veio ao Brasil para supervisionar a inauguração e
as primeiras semanas de funcionamento da Tupi. Logo ao chegar, a respos-
ta que recebeu à pergunta feita a Alderighi e a Costa Lima quase o fez tomar
o avião de volta para Nova York. O americano queria saber "quantos milha-
res de receptores tinham sido vendidos pelo comércio à população de São
Paulo". Os dois diretores da Tupi se entreolharam e responderam quase em
coro:
Nenhum.
Atônito com a notícia, Obermüller pediu uma reunião com Chateau-
briand, para advertir o dono dos Associados:
- Doutor Assis, o senhor está investindo 5 milhões de dólares na tv
Tupi, e sabe quantas pessoas vão assistir à sua programação a partir do dia
18? Zero. Sim: zero, ninguém. Além dos que estão expostos em meia dúzia
de vitrinas, não há aparelhos instalados na casa de ninguém, em todo o es-
tado.
Chateaubriand disse para ele não esquentar a cabeça com aquilo, que no
Brasil tudo tinha solução. Telefonou ao dono de uma grande empresa de im-
portação e exportação e pediu-lhe que trouxesse por avião, dos Estados Uni-
dos, duzentos aparelhos de tv, de modo que chegassem a São Paulo três dias
depois. O homem explicou que não era tão simples: por causa da morosa bu-
rocracia do Ministério da Fazenda, um processo de importação (mesmo que
fosse agilizado por ordem do presidente da República, como Chateaubriand
sugeria) iria consumir pelo menos dois meses até que os televisores fossem
postos no aeroporto de Congonhas. Chateaubriand não se assustou:
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- Então traga de contrabando. Eu me responsabilizo. O primeiro recep-
tor que desembarcar eu mando entregar no Palácio do Catete, como presen-
te meu para o presidente Dutra.
O plano deu certo, mas esteve por um fio. Metade dos aparelhos já es-
tava nas vitrinas das lojas (a outra metade Chateaubriand comprou para dar
de presente a personalidades e empresários que estavam financiando a im-
plantação da televisão) quando o repórter policial Edmundo Rossi, do Diá-
rio da Noite, descobriu que a polícia estava investigando uma denúncia: cen-
tenas de aparelhos de tv tinham sido contrabandeados para São Paulo por
uma certa Alstan Ltda. Sem saber que seu patrão estava por trás da opera-
ção, o jornalista deu a notícia com destaque (e com certo exagero: segundo
ele, o contrabando seria de 10 mil televisores). Foi um deus-nos-acuda: Ed-
mundo Monteiro, então diretor do Diário da Noite, precisou ir à Associação
Comercial tranqüilizar os donos dos grandes magazines da capital, que,
para ajudar aos Diários Associados, estavam correndo o risco de ser enqua-
drados como receptadores de contrabando. O Diário da Noite não tocou mais
no assunto.
Também por recomendação de Obermiiller a programação inaugural
foi sensivelmente enxugada: a transmissão da bênção e do batismo foi redu-
zida e seu início adiado das cinco horas da tarde para as sete da noite. Insta-
ladas as duas antenas transmissoras (uma no teto do prédio do Banco do Es-
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FERNANDO MORAIS
tado de São Paulo, no centro da cidade, e outra no próprio "Palácio do Rá-
dio", como era conhecido o edifício do Sumaré), estava tudo pronto para a
inauguração. Por fim chegara o dia tão esperado. A primeira parte do pro-
grama correu conforme o planejado, às cinco da tarde: nos estúdios do Su-
maré se aglomeravam Chateaubriand, David Sarnoff, políticos, empresários
e, os mais ansiosos de todos, técnicos e artistas que iam realizar a primeira
transmissão, às oito da noite. Primeiro falou David Sarnoff: "A televisão dá
asas à imaginação, e eu prevejo o dia em que ela nos permitirá percorrer com
os olhos toda a Terra, de cidade em cidade, de nação em nação". Em seu dis-
curso, Chateaubriand anunciou que "no cocuruto do Banco do Estado tinha
sido instalada a antena que ia levar pioneiramente aos lares paulistas o mais
subversivo de todos os veículos de comunicação do século, a televisão". Fez
um agradecimento especial "ao alto espírito público e ao caráter beneméri-
to" das diretorias, ali presentes, das quatro empresas que haviam contribuí-
do com dinheiro para o empreendimento, sob a forma de contratos futuros
de publicidade: a Moinho Santista, a Sul-América de Seguros, a Cervejaria
Antarctica e a Laminação Nacional de Metais. Escolhida para ser a madrinha
da estação, a poetisa Rosalina Coelho Lisboa Larragoiti declamou um poe-
ma de sua autoria, o bispo-auxiliar de São Paulo, d. Paulo Rolim Loureiro,
benzeu as instalações e estava terminada a primeira parte da festa. O mais
difícil estava por começar.
Às sete em ponto, como tinha sido marcado, o salão do restaurante do
Jockey Club fervilhava de gente. Em pontos estratégicos da cidade foram
instalados 22 receptores nas vitrinas das dezessete lojas revendedoras de te-
levisores, em quatro bares e no saguão dos Diários Associados, na rua Sete
de Abril. No estúdio também estava tudo preparado: as três câmeras que
iam transmitir o primeiro programa estavam prontas, e no chão as marca-
ções com giz indicavam onde cada artista deveria se colocar. Longe do alcan-
ce das lentes, espalhavam-se por todos os cantos as "dálias " - pedaços de
cartolina com os lembretes das falas de cada um dos apresentadores e can-
tores. Suando nas mãos, Walter Forster esperava a luz vermelha da câmera
se acender para pronunciar uma breve mensagem:
- Está no ar a PRF-3-Tv Tupi de São Paulo, a primeira estação de televi-
são da América Latina.
Para desespero generalizado, aconteceu o que ninguém poderia imagi-
nar: uma das câmeras pifou. Não é verdadeira a versão de que o defeito te-
nha sido provocado por uma garrafa de champanhe quebrada na câmera por
Chateaubriand durante a cerimônia da tarde - até porque não houve batis-
mo com champanhe. A suspeita que reinava entre os técnicos era a de que a
água benta espargida sobre as câmeras por d. Paulo Rolim Loureiro tivesse
molhado e danificado alguma válvula. Mas, qualquer que fosse a causa, nin-
guém conseguia localizar o defeito. E tudo tinha sido ensaiado centenas de
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
vezes para ser transmitido por três câmeras, não duas. Quando se tentou co-
locar a estação no ar só com duas câmeras, descobriu-se que as três tinham
sido conectadas para funcionar em conjunto: com uma delas fora do ar, as
outras duas não funcionavam. A cada cinco minutos Irani, o secretário de
Chateaubrian, telefonava do Jockey Club para alguém no estúdio:
- O que está havendo? O doutor Assis está puto da vida!
Informado do inesperado defeito, Chateaubriand foi enchendo o tempo
com discursos e mais discursos, enquanto Irani insistia a cada cinco minutos
com um novo e repetitivo telefonema:
- O que é que está havendo aí? O doutor Assis está puto, vai botar todo
mundo na rua!
A atmosfera no estúdio era de tragédia. Walther Obermiiller subiu em
um caixote e decidiu:
- Está cancelada a inauguração. Mesmo que as duas câmeras funcio-
nem, vai ser um caos. Eu sou o responsável pela transmissão e determino
que a transmissão seja adiada.
Cassiano Gabus Mendes simplesmente ignorou o que o norte-america-
no ordenava. Chamou Alderighi e Jorge Edo, deu ordens para que fosse fei-
to um novo link que pusesse para funcionar as câmeras boas, pegou um mi-
crofone e anunciou:
- Pessoal! Esqueçam tudo o que foi ensaiado nos últimos meses. Não
vale mais nada daquilo. Vocês vão fazendo o que eu for mandando e o pro-
grama vai para o ar agora.
Dermival Costa Lima tomou o microfone e reforçou suas palavras:
- O programa vai para o ar com duas câmeras, com uma câmera ou
sem câmera nenhuma. A partir deste momento a responsabilidade por tudo
o que acontecer aqui é minha e do Cassiano.
Obermizller ficou indignado:
- O que vocês estão fazendo seria inadmissível nos Estados Unidos.
Nenhum câmera, nenhum diretor de tv, ninguém assumiria a responsabili-
dade de colocar no ar uma estação nessas condições. Eu não tenho mais nada
a ver com o que acontecer aqui. Se vocês querem colocar a estação no ar, fa-
çam-no por sua conta e risco. Eu vou para o meu hotel, onde há um recep-
tor. Vou assistir à tragédia de camarote.
Com uma hora e meia de atraso e depois de tentar dominar a tensão es-
vaziando uma garrafa de uísque, o que Obermiiller viu na tela de seu televi-
sor, ao contrário da tragédia que previra, foi um programa correto do come-
ço ao fim. Improvisado e irresponsável, é certo, mas impecável. Ao final de
duas horas de programação, só um especialista familiarizado com o funcio-
namento de um canal de tv (e não havia ninguém assim no Brasil) poderia
perceber que apenas duas, e não três câmeras, haviam focalizado Walter
Forster, a rumbeira cubana Rayito de Sol e seu acompanhante bongozeiro, a
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FERNANDO MORAIS
orquestra de Georges Henri e tantas outras atrações. A noitada foi encerra-
da com os acordes da "Canção da tv". Escalada para cantá-la, Hebe Camar-
go ficou inesperadamente rouca e foi substituída nesse número por Lolita
Rodrigues e Vilma Bentivegna, que entoaram os versos do hino composto
pelo poeta Guilherme de Almeida especialmente para festejar a novidade:
Vingou, como tudo vinga
No teu chão, Piratininga,
A cruz que Anchieta plantou:
Pois dir-se-á que ela hoje acena
Por uma altissima antena
Em que o Cruzeiro poisou.
E te dá, num amuleto,
O vermelho, o branco o preto
Das contas do teu colar.
E te mostra, num espelho,
O preto, o branco o vermelho
Das penas do teu cocar.
Trocando as pernas por causa do uísque e emocionado com "a geniali-
dade desses brasileiros malucos", Obermüller retornou ao Sumaré na hora
em que Chateaubriand chegava do Jockey Club para cumprimentar a equi-
pe. Ao ver a multidão de técnicos, artistas e curiosos que tinham acompa-
nhado, de dentro do estúdio e sob grande tensão, toda a transmissão, o ame-
ricano comentou com Cassiano Gabus Mendes a conclusão a que tinha
chegado:
- Quando vocês forem escrever a história da televisão no Brasil vão ter
que dizer que no dia da estréia certamente havia mais gente atrás das câme-
ras do que diante dos receptores.
Os dois primeiros televisores que recebeu, dos duzentos contrabandea-
dos, Chateaubriand deu de presente, respectivamente, a Vera Faria, sua se-
cretária particular em São Paulo, e ao presidente Dutra. O de Dutra só ser-
viu, durante um ano, como insólita peça de decoração de seu gabinete: a tv
Tupi do Rio só seria inaugurada em 1951 e o alcance da imagem da Tupi
paulista chegava no máximo a cem quilômetros da capital, abrangendo pou-
cas outras cidades, como Campinas e Santos. Era apenas um agradecimento
simbólico aos favores que o jornalista recebera do governo federal no proces-
so de implantação da PrtF-3. E Vera fora objeto de tal privilégio por ser uma
peça-chave na vida pessoal de Chateaubriand, que nos últimos anos fixara
residência em São Paulo.
Quatro anos antes, o dono dos Associados ganhara de presente de Wolf
Klabin e Horácio Lafer um terreno de mil metros quadrados no número 550
da rua Polônia, no Jardim Europa. Com dinheiro tomado emprestado no
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Banco Lar Brasileiro, de Correia e Castro ("a juros crespos que tento deses-
peradamente transformar em fundo perdido", confessaria candidamente o
jornalista em um artigo), mandara construir ali uma réplica de um solar edi-
ficado em São Luís do Maranhão em 1873. Terminada a obra em 1949, o
dono mandou pintar o casarão de amarelo forte e colocou no muro de entra-
da uma placa de azulejo português com os dizeres "Casa Amarela - Reci-
fe ". Não eram só o terreno e a construção que tinham caído do céu: o pesa-
do mobiliário de jacarandá fora presenteado pelo conde Modesto Leal, as
cinco mudas de jequitibá dos jardins foram doadas por "Baby" Pignatari, os
dez pés de café plantados por Geremia Lunardelli. Até o cachorro da casa ti-
nha sido um presente do fazendeiro Joaquim Bento Alves de Lima.
Depois de se mudar para lá em companhia de Thérèse e Henri Gallon,
Chateaubriand não mais poria "De São Paulo" no alto de seus artigos escri-
tos na capital paulista, mas "Da Casa Amarela", seu novo bunker. Vera Faria,
a secretária que se orgulharia de ter sido "a dona do primeiro aparelho de
televisão do Brasil", não controlava apenas os gastos cotidianos da Casa
Amarela, mas todos os detalhes da vida pessoal de Chateaubriand. Era ela
quem comprava suas roupas, objetos de uso pessoal e seus pequeninos sa-
patos. Estes, aliás, antes de serem usados pelo dono, tinham de passar uma
semana sendo "amaciados" nos pés da secretária (que andava com eles pe-
los corredores dos Associados) ou nos do contínuo português Antônio Mon-
teiro ou ainda do segundo secretário, Edgar Naline, os três únicos na reda-
ção que, como o patrão, calçavam número 36.
E era também de Vera Faria a complicada responsabilidade de contro-
lar e mapear, quando ele estava em São Paulo (o jornalista continuava man-
tendo a Vila Normanda como seu ponto de permanência no Rio), a agitada
vida afetiva de Chateaubriand. Para um homem de quase sessenta anos, o
jornalista tinha uma atividade sexual intensíssima. Aterrorizado pela amea-
ça de um dia ficar impotente, desde que fizera quarenta anos Chateaubriand
se tornara um consumidor obsessivo de remédios. Carregava para onde fos-
se um vidrinho do velho xarope Famel (que lhe tinha sido recomendado ain-
da nos anos 10 por José Veríssimo), tomava injeções regulares do antigripal
Ozonil e doses diárias de um certo Lysopyoformine-C, receitado para esti-
mular as defesas orgânicas. E levava na mala ou mantinha nas gavetas de
suas mesas estoques de ampolas de Testoviron 25 mg, que acreditava ser um
infalível estimulante das funções sexuais. Quando estava no Rio, quase to-
das as noites seu secretário carioca Irani chamava pelo telefone o farmacêu-
tico libanês Ezequiel Bechara, dono da Farmácia Mauá, que ficava nas ime-
diações dos Associados, para aplicar a injeção. Muitas vezes Chateaubriand
nem parava de trabalhar para receber a fisgada. Punha-se a escrever de pé
sobre um arquivo, abaixava as calças e continuava com seus garranchos en-
quanto Bechara fazia a aplicação. Em São Paulo, as injeções eram dadas por
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FERNANDO MORAIS
Vera ou por qualquer farmacêutico que estivesse à mão em alguma das dro-
garias da rua Sete de Abril.
Segundo contam todos os amigos ou empregados que privaram de sua
intimidade, Chateaubriand era dono de um apetite sexual incontrolável, mas
pouco seletivo. Quando ainda vivia no Rio, tinha a mania de oferecer caro-
na em seus carros de luxo a desconhecidos passageiros que encontrava nos
pontos de ônibus. Mandava o motorista parar o carro no meio do trajeto, pu-
nha a cabeça para fora da janela e perguntava:
- Quem vai para tal destino?
Havia sempre dois ou três que se ofereciam, espantados, para entrar no
carro. Freqüentemente era ali que arranjava companhia feminina para aque-
la noite. Assim, suas aventuras tanto podiam acontecer com a miss Brasil do
ano, com uma milionária casada, com uma candidata a estrela do rádio que
ele obrigava O Cruzeiro a cortejar com inexplicáveis reportagens, ou com
uma modesta doméstica que apanhava nas caronas em filas de ônibus. Du-
rante muito tempo, por exemplo, Chateaubriand manteve uma aventura
com Glória, uma chapeleira que conhecera na portaria do Palace, um dos ho-
téis dos Guinle, no Rio. Era uma mulher feia, gorda e desajeitada, que apa-
rentemente não despertaria o interesse de um homem freqüentemente visto
em companhia de algumas das mais belas mulheres do país. Mas, para es-
panto dos amigos, tornou-se comum ver Chateaubriand interromper no
meio a redação de um artigo em O Jornal, tarde da noite, deixar linotipistas
e revisores de plantão e mandar o motorista pegar a mulher em seu velho
Rolls-Royce no hotel e levá-la à Vila Normanda ou à garçonnière que manti-
nha em Copacabana, aonde ia encontrá-la por algumas horas. Quando al-
guém perguntava a razão daquele romance tão extravagante ele respondia
com um sorriso malicioso:
- Eu é que sei do que dona Glória é capaz numa cama...
Em São Paulo ele tinha não uma, mas duas garçonnières nos arredores do
prédio do jornal: uma na rua Ana Cintra, e outra na rua Marquês de Itu. Vera
se espantava com a vitalidade do chefe. Às vezes ele chegava do aeroporto
acompanhado de uma mulher e simplesmente avisava que ia "para a Mar-
quês de Itu". Quando Vera lhe confidenciava que já havia "uma senhorita"
aguardando-o na sala de espera, ele dizia:
- Dê a ela as chaves do apartamento da Ana Cintra e mande-a esperar lá.
Saía com a primeira, voltava para a redação, escrevia o artigo, tomava a
injeção de Testoviron e partia para uma segunda aventura na mesma noite.
Quando descobria encantos especiais em uma mulher, era pródigo em pre-
sentes, quase sempre insólitos. Quando assumiu a direção geral dos Asso-
ciados, João Calmon teve que acabar se acostumando a pagar as contas mais
extravagantes, como conseqüência das conquistas do patrão: tanto podia ser
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uma fatura da Maison Cartier, de Paris (uma vez Calmon recebeu da elegan-
te joalheria uma conta de 108 mil dólares, preço de uma jóia dada por Cha-
teaubriand a uma desconhecida com quem dormira uma noite), ou notas de
despacho da Panair da remessa de caixas de mangas sem caroço de Itamara-
cá, em Pernambuco, para uma princesa européia que tentava seduzir.
Em outra ocasião ele decidiu que a jovem e atraente cantora Dóris Mon-
teiro, do cast da Tupi, tinha que ser eleita a Rainha do Rádio daquele ano. A
campeã era escolhida anualmente através de um popularíssimo e já tradi-
cional concurso promovido pela Revista do Rádiu e pela ABR - Associação
Brasileira de Rádios. Cada leitor recortava o cupom-voto que era impresso
na revista, colocava o nome de sua favorita e o enviava para a associação. A
cantora que recebesse o maior número de votos era coroada em uma concor-
rida festa a Rainha do Rádio (com coroa de verdade, cetro, capa de arminho
e a tradicional faixa de lantejoulas), ficando para a segunda e a terceira colo-
cadas os títulos de princesas. Mas até a véspera da apuração final os votos
que Dóris tinha recebido só seriam suficientes, na melhor das hipóteses, para
atribuir-lhe um modesto terceiro lugar. Quando soube que o prazo chegava
ao fim, Chateaubriand chamou o tesoureiro Martinho Luna de Alencar e pe-
diu-lhe que arranjasse imediatamente 5 milhões de cruzeiros. Os bancos já
estavam fechados, o caixa dos Associados não dispunha daquela quantia, e
a solução foi arranjar a cifra com um grande magazine do centro da cidade,
tradicional anunciante de O Jornal. Quando apareceu com o dinheiro, Alen-
car recebeu uma ordem:
- Mande comprar tudo em Revista do Rádio e ponha o pessoal da reda-
ção para preencher os cupons com o nome de dona Dóris. E tem que ser já,
porque as urnas fecham à meia-noite.
O paciente tesoureiro fez ver ao patrão que embora nãu representassem
nenhuma fortuna, 5 milhões de cruzeiros (60 mil dólares da época, cerca de
300 mil dólares de 1994) eram suficientes para comprar um milhão de exem-
plares da Revista do Rádio, que custava 5 cruzeiros. Ou seja, mais do que a ti-
ragem de cinco edições completas da revista. Além disso, para que Dóris al-
cançasse as duas concorrentes que estavam à sua frente (a favorita Bárbara
Martins, que já acumulara mais de 160 mil votos, e Julinha Silva, que vinha
em segundo lugar com 70 mil) seria preciso, até o fim do dia, preencher e re-
cortar mais de cem mil cupons, um por um - uma tarefa irrealizável àque-
la altura do concurso. Como um menino mimado e voluntarioso, Chateau-
briand parecia ter solução para tudo:
- Então o senhor leve esse dinheiro ao Manuel Barcelos, da ABR, e ao
Anselmo Domingos, da Revista do Rádio, e diga que eu compro todo o enca-
lhe da revista acumulado desde que começou o concurso deste ano. E não
precisa mandar ninguém preencher nenhum cupon: diga que aqueles votos
devem ser considerados para dona Dóris.
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FERNANDO MORAIS
Semanas depois o dono dos Associados, trajando um amarrotado terno
de linho branco, chegava vitorioso ao Baile do Rádio para ver de perto a co-
roação de sua candidata: em uma virada fulminante, nos últimos minutos do
concurso Dóris Monteiro tinha sido eleita a Rainha do Rádio com 875 605 vo-
tos, contra 161 mil dados a Bárbara Martins (que teve que se contentar com
o título de princesa) e 76 mil a Julinha Silva.
Depois que terminou o turbulento casamento com Corita, só se soube de
um envolvimento afetivo de Chateaubriand mais persistente - com a mu-
lher que talvez tenha sido a mais duradoura de todas as suas paixões. O ro-
mance do jornalista com Aimée de Heeren sobreviveria com altos e baixos
até o último dia de sua vida. Depois de se separar de seu primeiro marido,
o criador da Fundação Getúlio Vargas Luís Simões Lopes, a elegante para-
naense Aimée Sotto Mayor Sá se casaria com um milionário norte-america-
no de origem escandinava. Ao morrer, o segundo marido legaria a ela, além
do sobrenome, uma grande cadeia de lojas de conveniência nos Estados Uni-
dos. Em meados dos anos 50, apenas para satisfazer-lhe um capricho (Aimée
se queixava do desconforto de ter que enfrentar filas insuportáveis nos aero-
portos internacionais), Chateaubriand conseguiu que o presidente Juscelino
Kubitschek a nomeasse consulesa honorária do Brasil no balneário turístico
de Biarritz, na Côte d'Argent, no sudoeste da França, onde ela tinha uma
casa de veraneio, apenas para desfrutar de um passaporte diplomático.
Ao menor baque, a paixão por Aimée deixava o jornalista mergulhado
em melancolia. Certa vez, depois de uma noite de arrufos, Chateaubriand foi
buscá-la em seu apartamento no Copacabana Palace Hotel para o que plane-
java ser um almoço de reconciliação. Na portaria ele soube que "madame De
Heeren" tinha acabado de fechar as malas e embarcado para Paris. Incrédu-
lo, ele tomou o elevador e invadiu o quarto que ela ocupara. Encontrou a
cama desfeita e saiu à procura de um bilhete, uma mensagem, uma carta de
despedida. Nada. Foi até o banheiro e encontrou no bidê um pedaço, ainda
molhado, do sabonete que ela usara em sua higiene íntima antes de partir.
Sem ter o que levar de lembrança de Aimée, pegou aquele fetiche e enfiou
no bolso. Durante um bom tempo - até que os dois fizessem as pazes, me-
ses depois - os poucos amigos a quem ele contara a história, penalizados,
viam-no tirar o caquinho de sabonete seco do bolso do paletó, em meio a
uma reunião, e levá-lo dissimuladamente ao nariz para aspirar o que resta-
va ali do aroma do corpo da mulher amada.
A presença constante das mulheres não só em seu cotidiano, mas tam-
bém em seu imaginário, costumava criar-lhe situações de constrangimento,
como a ocorrida no final dos anos 40, quando Herschell Johnson foi nomea-
do embaixador dos Estados Unidos no Brasil. A alta sociedade do Rio de Ja-
neiro decidiu oferecer-lhe um jantar no Salão Rosa do Copacabana Palace
Hotel (homenagem que se estendia também a Maurício Nabuco, nomeado
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FERNANDO MORAIS
semanas antes embaixador do Brasil nos EUA), e Chateaubriand foi escalado
para fazer o discurso de saudação ao diplomata estrangeiro, recém-chegado.
Uma tentadora jovem norte-americana que trabalhava como intérprete aga-
chou-se ao lado da cadeira de Johnson para verter o discurso do jornalista
para o inglês, deixando aparecer pelo decote um generoso par de seios. Cha-
teaubriand passou todo o tempo do discurso com os olhos grudados no colo
da moça, visão que deve tê-lo inspirado a encerrar sua fala com uma frase
espantosa:
- Para encerrar, embaixador, quero dizer-lhe que o senhor vai amar
este país. Clima delicioso, praias lindas, sol o ano inteiro, frutas inigualáveis,
música belíssima. Mas o senhor vai gostar mesmo é das mulheres. Dengosas
e carinhosas, para gente como o senhor apresentam uma vantagem a mais:
elas se entregam com muita facilidade aos americanos. O fato de ser ameri-
cano significa meio caminho andado para que as brasileiras se entreguem
com muito gosto ao visitante.
Diante da surpresa e do mal-estar generalizados que aquilo provocou, o
dono do Correio da Manhã, Paulo Bittencourt, que fumava seu cachimbo do
outro lado da mesa, gritou para o embaixador Maurício Nabuco, sentado ao
lado do diplomata americano:
- Ô Nabuco! Explica para o embaixador Johnson que o Chateaubriand
está falando apenas em nome de sua própria mãe!
Se com as mulheres ia tudo bem, o mesmo não se podia dizer da rela-
ção dele com os filhos. Com estes, seu temperamento variava dos raros ges-
tos carinhosos aos freqüentes rompimentos. Por qualquer desavença, algo
comum entre pais e filhos, era capaz de ficar meses e até anos seguidos sem
trocar uma palavra com um filho. Os dois filhos homens já eram adultos
(formado em engenharia pela Universidade do Brasil em 1950, Fernando re-
ceberia a tv Tupi do Rio para dirigir em 1951; Gilberto, que fizera parte, em
1948, da primeira turma do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações
Exteriores, tornou-se diplomata), mas nem isso os pouparia dos imprevisí-
veis humores do pai, que acabariam vitimando, e com maior gravidade,
também a adolescente Teresa. Dentro dos limites do drama familiar que vi-
via, as relações da menina com o pai eram muito boas. Desde que a Lei Te-
resoca fora promulgada e que ela se mudara para a casa de Antonieta e Oro-
zimbo Nonato, Chateaubriand fazia da filha personagem permanente nos
batismos de aviões, inaugurações de prédios e apresentações de quadros do
museu. Poucas pessoas terão aparecido mais que ela nas páginas de O Cru-
zeiro desse período. Quando completou dezesseis anos, Teresa recebeu do
pai, de presente, um Cadillac conversível, de bancos giratórios - que já veio
com o motorista incluído.
Mas o rompimento se avizinhava. Na noite de Natal de 1949, Teresa foi
levada com as colegas do Colégio Santa Marcelina para assistir à Missa do
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CHATÕ, O REI DO BRASIL
Galo na capela do outeiro da Glória. No meio da celebração, Chateaubriand
aparece vestido de smoking, pronto para ir a um banquete, e entra na igreja
na hora em que o coro entoava no altar a música "Noite feliz". Acena para a
filha, sentada com as colegas nos primeiros bancos, mete-se entre os espan-
tados cantores do coral, tira do bolso um pedacinho de papel e, completa-
mente desafinado e sem perder o sotaque nordestino, vai lendo a letra e can-
tando "Froliche Nacht", a versão em alemão da música "Noite feliz". Um
incontrolável ataque de riso acomete todas as meninas, o que obriga a dire-
tora da escola a tirá-las da igreja a puxões de orelhas. Minutos depois, um
sorridente Chateaubriand procura a filha do lado de fora para entregar-lhe
seu presente de Natal: uma viagem a vários países da Europa, para onde a
garota embarcaria semanas depois, em companhia de algumas amigas e de
Antonieta Nonato.
Permanentemente ciceroneada por diplomatas brasileiros onde quer
que se encontrasse, como se estivesse realizando uma viagem oficial, Teresa
escreveu carinhosas cartas diárias de Veneza, de Paris e de Roma ao pai - e
em quase todas se queixou de que ele não se dava ao trabalho de responder
a nenhuma delas. A garota iria esperar eternamente pelas respostas: um mis-
terioso alcagüete contou a Chateaubriand que a filha aproveitara a viagem
para se encontrar na Europa com Corita e Clito Bockel e fazer secretamente
em companhia deles uma viagem de ida e volta a Nova York a bordo do lu-
xuoso transatlântico Queen Mary. Ao ter conhecimento da aventura, que con-
siderou uma traição indesculpável, o jornalista rompeu relações com a filha
- para só reatá-las mais de dez anos depois, quando Teresa já estava casa-
da com Leonardo Alkmin, filho do político mineiro José Maria Alkmin.
A ciclotímica e muitas vezes doentia relação de Chateaubriand com os
filhos cruzaria fronteiras. Passados muitos anos, Gilberto Chateaubriand, já
adulto, seria procurado para dar um depoimento para o psiquiatra norte-
americano Mortimer Feinberger sobre sua relação com o pai. O trabalho de
Feinberger que usaria Chateaubriand como case history intitulava-se "Terato-
logia das relações familiares " - ou seja, o estudo das monstruosidades pra-
ticadas no ínterior de uma família.
Apesar da repugnância que dizia sentir por Chateaubriand, Samuel
Wainer acabou passando três anos nos Associados - período em que as re-
lações entre os dois, se não chegaram a ser íntimas, sempre foram reciproca-
mente amistosas. Quando reapareceu a tuberculose do repórter, em 1949,
Chateaubriand não apenas determinou que os Associados arcassem com a
conta do sanatório como continuou pagando regularmente seu salário du-
rante o internamento (Samuel, no entanto, deixaria registrado, muitos anos
depois, que nunca considerou o gesto como qualquer demonstração de ge-
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CHATÔ. O REI DO BRASIL
nerosidade). Com freqüência o patrão elogiava em seus artigos as reporta-
gens de Wainer, e nos arquivos do dono dos Associados ficaram bilhetes
igualmente fraternos que ele recebia daquele que se transformara em seu re-
porter de maior sucesso. Responsável pelo lançamento público da candida-
tura de Vargas a presidente, Wainer seria destacado por Chateaubriand para
acompanhar o candidato durante a campanha eleitoral. A presença do re-
pórter todo o tempo ao lado de Getúlio preocupava o general Góis Montei-
ro. Eleito senador pelo PsD de Alagoas e reconciliado com o ex-presidente
que ajudara a derrubar (e que, reeleito, o nomearia chefe do Estado-Maior
das Forças Armadas), Góis Monteiro desconfiava que Chateaubriand havia
instruído Wainer para agir não apenas como repórter, mas como um espião
dos Associados na campanha - suspeita que Wainer desmentiria repetidas
vezes. O grupo que cercava Vargas temia, igualmente, que Chateaubriand
usasse o repórter para fazer jogo duplo - desconfiança que seria reforçada
por um diálogo ocorrido entre Wainer e o patrão, testemunhado pelo artista
plástico Augusto Rodrigues, então ilustrador de O Cruzeiro. Ao entrar, certa
tarde, no elevador do prédio dos Associados, Rodrigues ouviu Chateau-
briand dirigir-se a Wainer:
- Seu Wainer, sua cobertura está favorável demais a Getúlio Vargas. O
senhor tem certeza de que ele vai ganhar?
O repórter estava entusiasmado:
- Não tenha dúvidas, doutor Assis. Pelos comícios que tenho acompa-
nhado, tenho absoluta certeza de que estamos assistindo à volta de Getúlio.
Esteja certo de que ele vai governar o país de novo.
- Já que o senhor está tão entusiasmado, continue. Pode dar total co-
bertura a Vargas, que eu mando o Murilo Marroquim acender uma fogueira
para queimá-lo. O senhor faz a campanha de Getúlio e eu mando o Marro-
quim sustentar a oposição a ele. Assim estaremos bem com qualquer lado
que ganhar.
Só uma vez, no mês de março de 1950, Wainer abandonou a cobertura
da campanha de Getúlio. Foi para atender a uma ordem de Chateaubriand
de entrevistar o governador de São Paulo, Ademar de Barros, que iria anun-
ciar a retirada de sua candidatura a presidente para apoiar Vargas. A entre-
vista foi feita no avião de Ademar e publicada escandalosamente nos jornais
Associados como "uma bomba a 3 mil metros de altitude". Segundo Wainer
deixou registrado em suas memórias, Chateaubriand cobrou do governador
paulista 300 mil cruzeiros pela entrevista, 20% dos quais ficaram para Samu-
el. "Chateaubriand não gostou daquilo, porque não gostava de dar dinheiro
a redator", contou Wainer, "mas com os meus sessenta contos eu comprei
um apartamento na Avenida Atlântica e dei para minha ex-mulher." Embo-
ra o repórter considerasse a sua comissão "dinheiro pra burro", o valor total
que teria sido pago por Ademar representava menos de um terço do milhão
de cruzeiros que os Associados estavam recebendo só para apoiar, em São
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FERNANDO MORAIS
Paulo, a campanha de Lucas Garcez, candidato lançado por Ademar à sua
sucessão no governo do estado.
As urnas provaram que a razão estava com Samuel Wainer, e não com
Chateaubriand. Getúlio foi eleito presidente com larga margem de votos e
retribuiu à altura o apoio que recebera do repórter dos Associados: sua pri-
meira entrevista ao ser eleito foi dada com exclusividade a Samuel Wainer.
Ela receberia o melhor tratamento que uma reportagem poderia merecer nas
empresas de Chateaubriand: dias depois Getúlio seria, mais uma vez, capa
de O Cruzeiro (as duas outras tinham sido na Revolução de 30 e quando de
sua deposição, em 1945).
Este foi o último trabalho de Wainer nos Associados. Sua intimidade
com o presidente eleito era tal que, para conseguir um encontro com Getú-
lio, Chateaubriand teve de se submeter à humilhação de pedir a interme-
diação do empregado. Antes de se dirigirem à casa onde Vargas os espera-
va, o patrão propôs que os dois se encontrassem na Vila Normanda para
uma conversa a sós. Samuel Wainer foi para Copacabana confiante em que
receberia a única retribuição à altura do trabalho que fizera com Getúlio, da
primeira entrevista no Sul até a vitoriosa campanha eleitoral: estava certo de
que Chateaubriand o convidaria para assumir a direção geral dos Associa-
dos. O patrão propôs que conversassem no quarto, enquanto se vestia para
o encontro, e foi ele quem tomou a iniciativa de entrar no assunto:
- Seu Wainer, o senhor tem automóvel?
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FERNANDO MORAIS
- Não, eu nem sei dirigir.
- Mas um homem como o senhor precisa de um automóvel. Vou man-
dar-lhe um.
- Eu agradeço, doutor Assis, mas prefiro que o senhor me dê dinheiro
e eu mesmo compro o carro.
- Então está bem. Se é assim, depois que Getúlio tomar posse eu no-
meio o senhor diretor da Bayer.
- Mas doutor Assis, eu quero é continuar sendo jornalista, e não dire-
tor de laboratório. Além do mais, a Bayer não é sua, ela foi desapropriada
durante a guerra e pertence ao governo. O senhor é dono é da Schering...
- Não se preocupe. Assim que eu fizer as pazes com Getúlio, tomare-
mos conta da Bayer.
Profundamente frustrado por não ter ouvido uma sílaba sobre o sonha-
do convite, Wainer respondeu apenas com um seco "discutiremos isso de-
pois " e saiu para caminhar pela rua enquanto Chateaubriand terminava de
se vestir. O que passou por sua cabeça naquele momento está no depoimen-
to que deixou para suas memórias, publicadas postumamente:
Saí e fiquei andando sozinho na avenida Atlântica, pensando: "Que grande fi-
lho da puta!". Eu estava esperando que ele me oferecesse o cargo de superinten-
dente geral dos Associados, eu queria ser o grande jornalista. Eu tinha feito umá
campanha única na história da imprensa brasileira, tinha ido buscar um homem
expatriado no fim do mundo e tinha voltado com ele ao poder; poder de que
Chateaubriand iria se beneficiar como ninguém, e ele, em vez de me oferecer
uma compensação em salário, quis me dar um automóvel, um presente, uma
gorjeta. Em vez de me convidar para ser o superintendente geral dos Diários As-
sociados, ele me ofereceu uma diretoria da Bayer. Nesse dia eu disse: eu não
vou mais ficar com ele.
Só muitos anos depois, ao rememorar aquela caminhada à beira-mar, é
que Samuel Wainer se daria conta de que naquele momento começara a nas-
cer o jornal Última Hora.
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FERNANDO MORAIS
tem poderes para resolver. Você tem que considerar que agora o Brasil vive
uma democracia, não há mais condições de se conseguir novas leis Tereso-
cas, como antes.
Não parecia que Drault Ernanny conhecia o jornalista fazia mais de
duas décadas. Chateaubriand estava decidido, a qualquer custo, a entrar
para aquele que considerava "um clube fechado, de homens maduros":
- Preciso lhe dizer mais uma coisa, seu Drault: eu ficaria imensamente
feliz se pudesse ser senador pelo nosso estado natal, a Paraíba.
O outro insistia: não havia nada a fazer, nem adiantaria procurar Getú-
lio ou quem quer que fosse. Aquilo era uma rematada loucura. "A menos.. "
ia começando Drault Ernanny, quando Chateaubriand saltou da poltrona:
- A menos que o quê? Diga, homem!
- Não, eu estava apenas pensando alto: a menos que algum senador re-
nuncie a seu mandato, e seja imitado nessa decisão por seu suplente. Aí con-
vocam-se eleições suplementares. Mas isso me parece impossível, e ainda as-
sim você teria que obter legenda em algum partido, se apresentar como
candidato e ganhar as eleições. Ou seja, Chateaubriand, ser senador agora é
um sonho remoto demais, depende de muitas variáveis sobre as quais ne-
nhum de nós tem controle. Acho melhor você tirar essa idéia da cabeça.
Ao contrário de desanimá-lo, a conversa de Drault pareceu restituir-lhe
as energias:
- É preciso que um senador e seu suplente renunciem? Então está re-
solvido. Pode escrever que em seis meses tenho minha cadeira no Senado.
Diante da insistência do jornalista, Drault Ernanny acabou, muito a con-
tragosto, levando o problema para o presidente da República. Vargas em-
purrou o abacaxi para a frente e mandou-o procurar o governador do estado
do Rio, Ernâni do Amaral Peixoto, casado com sua filha Alzira e presidente
nacional do PsD. Exatamente como Chateaubriand previra, antes do final do
ano o "problema" estava solucionado: convidado a assumir uma cadeira no
Tribunal de Contas da União, o senador Vergniaud Wanderley, do PSD da
Paraíba, aceitara renunciar a seu mandato. Também em troca de uma pre-
benda, o suplente Antônio Pereira Diniz repetiu o gesto do titular e renun-
ciou. Declarado vago o cargo, o Tribunal Superior Eleitoral não teve outra al-
ternativa senão convocar eleições suplementares para o dia 9 de março do
ano seguinte para a escolha do novo senador.
A dupla barganha causou enorme desolação entre os políticos paraiba-
nos, sobretudo na chamada "ala esquerda" do Psd, liderada pelo jovem e
combativo deputado federal José Joffily. Mas não havia nada a fazer: toda a
articulação fora comandada pessoalmente por Amaral Peixoto, com a
anuência do presidente da República. Para o semanário esquerdista Jornal de
Debates, do Rio, a forma como se tentava abrir uma vaga no Senado para o
dono dos Associados era "a prova mais cabal de que a figura sórdida, asque-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
rosa e repugnante do sr. Assis Chateaubriand contaminou todo o governo".
Mas mesmo arquitetada de maneira tão herética, a candidatura do jornalis-
ta iria receber o primeiro elogio, surpreendentemente, de um crítico feroz de
todos os atos do governo e do Psd, o belicoso Carlos Lacerda. Dono do seu
próprio jornal, a Tribuna da Imprensa, Lacerda saudou Chateaubriand como
alguém "em quem Nietzsche, que foi um dos autores da sua mocidade, dei-
xou marcas mais profundas do que geralmente se chega a perceber":
Esse publicista que sabe Mallarmé de cor - com a prodigiosa memória que me
povoa de lembranças a perpétua inquietação - e pode recitar Baudelaire da
praça Mauá a Copacabana, às três da manhã, depois de escrever sobre o talen-
to peregrino e as virtudes inefáveis de um sórdido traficante desta e de outras
praças, é - com perdão do lugar-comum - uma força da natureza. Poucos ho-
mens representariam o brasileiro em suas qualidades e defeitos, numa exposi-
çãu psicológica, tão bem quanto Assis Chateaubriand.
[...] Senador, posto que sempre recusou qualquer outro mandato político,
creio que ele encara essa ascensão, agora, com aquela coqueterie, com que Marco-
ni aceitou a senatoria na Itália. Senador, ele certamente não deixará de o ser por
jornalista e sim, jornalista, há de carregar aos ombros a senatoria como um far-
do a mais - esse infatigável estivador de idéias e de obras.
Quase todos pareciam ter se esquecido de que a candidatura nascera de
uma vergonhosa barganha. Em sua prestigiada coluna "Sete dias", em O
Cruzeiro, o respeitado Franklin de Oliveira escreveu que "a escolha do nome
do sr. Assis Chateaubriand indica, evidentemente, uma sensível e saudável
evolução da seleção de valores. Mostra agora a brava Paraíba ao Brasil a ne-
cessidade em que nos encontramos de recrutar homens representativos onde
quer que eles se encontrem, substituindo com esse método valorativo a sim-
ples escolha feita nas bases estritas da vida partidária. A candidatura
do sr.
Assis Chateaubriand significa a vitória de uma nova mentalidade cívica".
Até o reverenciado Vítor do Espírito Santo, um dos muitos que haviam dei-
xado os Associados às turras com o patrão, acabaria por tirar-lhe o chapéu
em sua coluna "Nota carioca", do Diário de Noticias:
Desta vez as resistências foram vencidas. O sr. Assis Chateaubriand resolveu
aceitar o convite e vai ser apresentado ao eleitorado paraibano. Sou um homem
que não tem relações pessoais com o sr. Assis Chateaubriand. Tenho mesmo as
mais graves e justificadas queixas desse meu antigo chefe. Mas por estarmos de
relações rotas deverei negar-lhe o valor inconteste? Pode o diretor dos Diários
Associados ter inúmeros e graves defeitos, mas não se lhe podem negar quali-
dades inigualáveis, seja como homem de talento, seja como empreendedor e
construtor sem paralelo na atualidade brasileira. Eu tenho autoridade para dizê-
lo, uma vez que rompi há bastante tempo, e com carradas de razão, minhas re-
lações com esse grande filho de Umbuzeiro.
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FERNANDO MORAIS
Em busca de um companheiro "que tivesse fundos suficientes para pa-
gar as contas da campanha", Chateaubriand acabou convencendo o próprio
Drault Ernanny, paraibano como ele e milionário, a ser seu suplente e com-
panheiro de chapa. Drault separou 800 mil cruzeiros para as despesas, di-
nheiro que pediu ao banco que mandasse em várias malas, trocado em no-
tas de cinco e dez cruzeiros: familiarizado com a política de seu estado na-
tal, ele sabia que os gastos com uma campanha eleitoral no interior da Paraí-
ba se resumiam basicamente à distribuição de dinheiro vivo aos bandos de
populares que seguiam o candidato nas caminhadas pelas ruas. Quando
Chateaubriand mandou seu secretário Irani providenciar a papelada para o
registro da candidatura, descobriu-se que ele não tinha - e nunca tinha tido
- título de eleitor. Ou seja, o jornalista mais importante do país simples-
mente nunca se dera ao trabalho de votar em nenhuma das eleições ocorri-
das desde 1910, quando completara dezoito anos.
Para dispor de meios de comunicação que atingissem todo o estado, ele
mandou instalar um transmissor mais potente na sua Rádio Borborema, e
como o jornal Associado local, O Norte, tinha pouca penetração (o jornal
mais lido no estado era o também Associado Diário de Pernambuco), transfe-
riu de Recife para a capital paraibana o repórter político Nertan Macedo, que
ficaria encarregado exclusivamente de cobrir a campanha para o jornal
per-
nambucano. Realizada no dia 30 de janeiro a convenção que sacramentou a
candidatura da dobradinha, Chateaubriand permaneceu em João Pessoa so-
mente as horas necessárias para ouvir o resultado, fazer um discurso e em-
barcar no Raposo Tavares de volta para o Sul. Drault Ernanny mudou-se
para João Pessoa e, tão logo a candidatura foi homologada pelo tribunal,
pôs-se a marcar comícios, anunciando em todos eles a presença do cabeça da
chapa, que era aguardado com grande expectativa - salvo a curta viagem
do dia da convenção, desde que se mudara para Recife, quarenta anos antes,
Chateaubriand retornava raríssimas vezes à Paraíba.
Aquela acabaria sendo uma campanha tão bizarra quanto o candidato.
Estava tudo preparado para o primeiro comício, no dia 20 de janeiro, quan-
do Chateaubriand telegrafou a seu suplente avisando que não poderia estar
presente: iria viajar naquela noite para Paris em companhia de Pietro Bardi,
para comprar mais uma partida de quadros para o Masp. Tampouco pôde ir
ao segundo comício, marcado para dali a dez dias, pois ia ser o orador de
uma homenagem no Rio a um grupo de jornalistas suíços. No dia do tercei-
ro comício ele estava em Campos do Jordão (sp) inaugurando um posto de
puericultura doado pelo industrial Nagib Jafet à Campanha da Criança. No
quarto estava em Adamantina, também no interior de São Paulo, inauguran-
do outro posto, doado pelo Banco Brasileiro de Descontos. Como Drault
começasse a estrilar, reclamando que as eleições se aproximavam e a campa-
nha não começava por falta de candidato, Chateaubriand propôs o que
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imaginava ser uma solução intermediária: ele faria o lançamento de sua can-
didatura em São Paulo, no Clube dos 21, uma associação de fazendeiros e in-
dustriais, e mandaria a cópia de seu discurso para ser publicado nos jornais
Associados da Paraíba e de Pernambuco. E assim foi que, diante do gover-
nador Lucas Garcez, de seus secretários e do poeta Menotti del Picchia, ele
se lançou oficialmente candidato a senador a quase 3 mil quilômetros de dis-
tância de seus eleitores:
Estou grandemente honrado em fazer meu primeiro discurso de candidato à se-
natoria pela Paraíba em São Paulo, no Clube dos 21, ao lado do governador Gar-
cez e de seus secretários. Consideram-me os paulistas um seu delegado políti-
co, e eu só tenho que me honrar dessa preferência. Dispondo-se a absorver um
senador paraibano, como acusam os paulistas a profundeza e a lealdade dos
seus sentimentos brasileiros! Como São Paulo é bem o Brasil homogêneo, na fi-
delidade de seu juramento aos vínculos essenciais que nos unem.
Além da inadmissível ausência do candidato, outro problema preocu-
pava Drault: indignadas com a troca de favores que dera origem à candida-
tura de Chateaubriand, as oposições haviam lançado o petebista João Lelis
para disputar o cargo vago. E a notícia que corria na Paraíba era a de que o
verdadeiro patrono da candidatura de Lelis era o conde Matarazzo, que em
busca de um ajuste de contas com o jornalista oferecera ao adversário deste
nada menos que 2 milhões de cruzeiros, uma bolada quase três vezes maior
do que os gastos que estavam sendo feitos por Drault. Diante da pressão de
seu companheiro de chapa, e sem mais desculpas para cabular os comícios,
quando faltavam menos de quinze dias para o pleito Chateaubriand fez três
viagens à Paraíba.
Havia sempre uma multidão aguardando o avião na pista de pouso. Os
populares e chefes políticos locais esperavam de pé sobre a grama, e à fren-
te deles eram colocadas duas cadeiras: uma para o governador José Améri-
co de Almeida e outra para o repórter Nertan Macedo. O avião pousava e en-
tão repetia-se um ritual grotesco: Chateaubriand descia, escondia-se mal e
mal atrás do aparelho e urinava ali mesmo, na frente de todos. Sem lavar as
mãos, oferecia o primeiro cumprimento a um repugnado José Américo, con-
tinuava cumprimentando homens e mulheres com as mesmas mãos sujas, e
estava pronto para o primeiro de uma sucessão de comícios. Dois passos
atrás vinha Irani, com uma sacola entupida de cédulas de cinco e dez cruzei-
ros que ia distribuindo às crianças e aos pedintes.
Antes de se dirigir aos palanques, passava na casa do chefe político da
primeira cidade onde haveria comício para vestir sobre o terno a roupa ofi-
cial de campanha, que lhe emprestava um ar de samurai da caatinga: gibão
de couro cru (como o que usara para condecorar Churchíll) coberto por um co-
lete do mesmo material, calças de vaqueiro e chapéu de cangaceiro. Uma ca-
rabina calibre 44 "papo amarelo" que lhe tinha sido ofertada por um prefei-
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FERNANDO MORAIS
to passou a ser parte integrante da extravagante indumentária. Contrastan-
do com o vestuário, seus discursos para aquela gente simples que ia aos co-
mícios atrás de dinheiro (ou porque recebera ordens do "coronel" local) pa-
reciam dirigidos a economistas ou cientistas políticos. Em Piancó ele falou
sobre "a cooperação internacional e a estratégia do Brasil em face do proble-
ma da defesa do Atlântico Meridional". Em Alagoa Grande (onde doou à
prefeitura uma gleba de quarenta hectares, um trator, um arado e um cami-
nhão), embora a platéia fosse composta de plantadores de algodão, fez uma
veemente defesa da necessidade do ajuste do câmbio para beneficiar os ca-
feicultores paulistas. Em Cajazeiras ele obrigou duas mil pessoas a permane-
cerem de pé e atônitas durante uma hora e quarenta minutos ouvindo uma
improvisada e interminável explanação sobre a revolução agrária na Ingla-
terra:
Cabras machos de Cajazeiras: desde a promulgação dos Corn Laws, em 1846,
prevalecem entre os ingleses os rumos manufatureiros. A descoberta da máqui-
na a vapor assinala o começo da revolução industrial. com um solo hulheiro de
reservas descomunais para as necessidades da época, os ingleses caminham
para o liberalismo econômico em face da agricultura. O que os estadistas da City
desejavam era a ampliação dos mercados externos para o escoamento da produ-
ção manufatureira.
Enquanto ele bebericava um copo d'água, alguém puxava palmas;no
que era acompanhado pela multidão. O candidato prosseguia impávido:
A marcha acelerada da revolução industrial, a partir da década de 70, leva a
agricultura do Reino Unido a pesados sacrifícios. Sua área se contrai de tal
modo que entre aquele ano e o de 1939 a vimos reduzir-se, em setenta anos, de
11 milhões de acres para 6 milhões. Com o ouro recebido dos produtos indus-
triais, dos fretes da marinha mercante, dos seguros marítimos e dos juros de in-
vestimentos de capitais no exterior, paga a Inglaterra um déficit de 300 a 400 mi-
lhões de libras entre sua exportação e a importação. Era dos gêneros
alimentícios produzidos no exterior que o inglês alimentava uma parte conside-
rável de sua população.
Mais um gole d'água, mais uma salva de palmas e ele retomava o em-
balo, brandindo no ar a carabina quando pretendia ressaltar alguma cifra da
recessão britânica:
Mas, em 1929 ocorreu a depressão. Viu-se o governo britânico compelido à que-
bra do padrão-ouro. Escasseavam-lhe divisas para continuar a receber de fora
os produtos agrícolas com que cobrir seu déficit de bens de consumo interno.
Dez anos depois, entre 1939 e 1950, a fixação dos preços se fez em fases compen-
sadoras para a agricultura. Sua renda aumentou consideravelmente de 59 mi-
lhões de libras em 1939 para 239 milhões em 1950. No mesmo período, o consu-
mo de fertilizantes aumentou expressivamente. De 60 mil toneladas de
nitrogênio, passaram a consumir 190 mil; de 165 mil toneladas de Pz05 saltaram
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
para 427 mil toneladas em 1950; de 75 mil toneladas de KO, pularam para 226
mil toneladas!
Decididamente, era a primeira vez na vida que aquela gente participa-
va de um comício assim, com um candidato que "falava difícil" do começo
ao fim. O sono já ameaçava a massa quando ele anunciou finalmente que es-
tava para concluir:
Vede o que passaram os britânicos, cabras paraibanos, e chegareis à
conclusão
de que sois os homens mais felizes do mundo. Porque sonhais e não tendes jugo.
Mas para o sonho ser rico é preciso que ele não contenha apenas promessas, mas
também gordura, proteína. Convido-vos a dominar a nossa terra, dela arrancan-
do a messe de riquezas peculiares a um solo tropical. Aqui estou e aqui estarei
sempre, para ajudar-vos a trabalhar nessa direção. Muito obrigado, cabras ma-
chos de Cajazeiras!
Mas a campanha só atingiria as culminâncias na terceira e última via-
gem de Chateaubriand à Paraíba. Na véspera de sua chegada a João Pessoa,
desembarcaram de um avião originário de São Paulo caixotes e mais caixo-
tes enormes, que foram levados para a casa de Drault. O segredo sobre o
conteúdo daqueles volumes deixou a cidade sob um clima de enorme exci-
tação. O que haveria ali? Comida para distribuir para os flagelados, diziam
uns. Dinheiro, muito dinheiro, garantia a oposição. O mistério começou a se
desfazer na noite seguinte, quando cinco aparelhos de televisão foram
colo-
cados em pontos estratégicos da cidade e uma câmera foi instalada diante do
palanque onde Chateaubriand faria seu discurso de despedida da campa-
nha. Às oito horas da noite, as fortes luzes dos refletores colocados em fren-
te ao palanque se acenderam e, quando Chateaubriand - pela primeira vez
na campanha envergando um elegante terno preto no lugar da armadura de
couro cru - começou a falar, o milagre se deu: João Pessoa era a terceira ci-
dade do Brasil a ver a televisão funcionando. Extasiados, alguns populares
saíam às carreiras da frente dos receptores e iam até o palanque para se cer-
tificar de que aquilo era verdade: o homem que aparecia na tela estava mes-
mo falando na praça principal. Para não obrigar a platéia do comício a só ver
o candidato em carne e osso, e oferecer também a ela o privilégio de ver o
prodígio chamado televisão, um monitor foi colocado ao lado do microfone,
no palanque. Assim, quem estava na praça via dois Chateaubriand: o de ver-
dade, que resfolegava ao microfone, e o que aparecia no televisor a poucos
centímetros de distância do primeiro. O candidato encerrou seu último dis-
curso com uma frase profética e sincera:
- Paraibanos! Obrigado pela cadeira que me ides conceder. Prometo-
vos tudo, menos ficar sentado nela. Recebo-a a fim de partir para altas cava-
larias em busca de aventuras.
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FERNANDO MORAIS
Apesar das ausências do candidato e de seus discursos incompreensí-
veis, as urnas revelaram que Chateaubriand tinha dado um verdadeiro pas-
seio nos adversários: ao todo ele havia recebido quase 80 mil votos (cerca de
70% dos votos válidos), contra 15 mil dados a João Lelis, que perdeu até para
os votos brancos.
Um mês e meio depois, no dia 24 de abril, Chateaubriand era empossa-
do senador. Seu discurso de posse se resumiu a uma curta frase de vinte pa-
lavras. Uma frase que seus pares se habituariam a ouvir e que era uma espé-
cie de anúncio - tal qual prometera no último comício, na Paraíba - de
como ele pretendia exercer seu mandato:
- Senhor presidente: devendo ausentar-me do país por mais de uma
semana faço a devida comunicação a este augusto corpo.
Horas depois de assumir a cadeira de senador que custara ao presiden-
te da República uma delicada operação política, Chateaubriand a trocava
pela poltrona de um Constellation da Air France, com destino a Paris. Ain-
da fiel à última frase de seu discurso em João Pessoa, ele já se encontrava em
altas cavalarias, em busca de uma ruidosa aventura em Corbeville, nos arre-
dores da capital francesa.
Entre aquele dia 24 de abril de 1952 e 25 de janeiro de 1954, quando se
encerrou seu mandato de senador, Chateaubriand usou a tribuna 127 vezes.
Ou seja, se forem descontados os períodos de recesso do Senado e as inúme-
ras viagens que fez ao exterior nesse período, o balanço revela um parlamen-
tar prolífico: quando estava no Senado, raramente deixava de falar. E se fa-
lava sobre os assuntos mais variados, na maioria das vezes ele ocupava a
tribuna para tratar de problemas ligados à economia brasileira. Em pouco
menos de dois anos de mandato, Chateaubriand fez sessenta discursos sobre
esse tema - dos quais dezoito para combater o monopólio estatal do petró-
leo (que o governo, apesar de sua oposição e contra o seu voto, acabaria im-
plantando naquela legislatura) e quinze para defender os cafeicultores. A
política externa vinha em segundo lugar como objeto de seu interesse: ao
todo ele pronunciou 29 discursos que discorreram sobre assuntos que iam
da democracia na Índia ao fornecimento de armas pela União Soviética à
Guatemala de Jacobo Arbenz, do resultado das eleições na Alemanha ao
acordo comercial entre a Argentina e o Paraguai.
Mas o horizonte de seus interesses parlamentares costumava dar ines-
perados saltos de 180 graus. Um dia o jornalista Otto Lara Resende, então
analista político do Correio da Manhã, cruzou com Chateaubriand no corre-
dor do Senado e comentou com ele que era vergonhoso ver a imundície dos
banheiros de uma casa tão importante como aquela. O senador pela Paraíba
quis ver de perto o motivo de queixa de Otto, que se prontificou a mostrar-
lhe o estado das privadas, e, maliciosamente, sugeriu que ele se manifestas-
se sobre o assunto na tribuna - sem jamais imaginar que seria levado a sé-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
rio. Ao se iniciar o expediente, Otto não acreditou quando ouviu Chateau-
briand inflamado, esbravejando ao microfone que uma nação que não tinha
latrinas limpas não podia ter democracia - para terminar com um discurso
apocalíptico, pedindo a implantação de "um governo autoritário, que limpe
a latrina em que se transformou o Brasil". A crônica política da época regis-
tra também que era comum Chateaubriand ser visto roncando alto em uma
das cadeiras do plenário, com o queixo enfiado no peito, para subitamente
se levantar, de um salto, e apartear o nacionalista Kerginaldo Cavalcanti, do
PsP do Rio Grande do Norte, um ferrenho defensor da criação da Petrobrás.
O mais freqüente, no entanto, era ele não estar no Brasil. A viagem rea-
lizada horas depois da posse foi a primeira de uma seqüência que culmina-
ria, quatro meses depois, com a realização do grande escândalo social da-
quele ano, o célebre baile do castelo de Corbeville, nas cercanias de Paris.
Segundo suas próprias palavras, fazia muitas décadas que Chateaubriand
"suspirava por fazer uma apresentação assim na Europa". Seu plano era
"apresentar à alta sociedade do Velho Mundo o Brasil verdadeiro, o Brasil
que somos nós: um Brasil de mestiços autênticos, mulatos inzoneiros, índios
e negros a promover a vasta experiência de cruzamentos que empreende-
mos no trópico, em vez do falsificado Brasil branco, de catálogos de grã-fi-
nos que, parvenus e snobs, tentam impingir filauciosamente ao mundo. A
oportunidade surgiu quando o costureiro francês Jacques Fath propôs que
os Diários Associados organizassem em seu castelo parisiense uma festa de
arromba para promover na Europa o algodão brasileiro. Co-patrocinada por
Joaquim Guilherme da Silveira, dono da fábrica de tecidos Bangu, o baile,
como o jornalista preferia chamá-lo, ficou marcado para o dia 3 de agosto,
em pleno verão francês.
Chateaubriand embarcou uma semana antes, carregando para acolitá-lo
o jornalista José Guilherme Mendes, de O Cruzeiro. Como uma equipe dos
Associados e da Tecidos Bangu se encontrava na capital parisiense fazia um
mês, reservando hotéis e cuidando dos preparativos para a festa, ele apro-
veitou os dias de folga para visitar um colecionador que, segundo o jornalis-
ta Germain Bazin, conservador-chefe do Museu do Louvre, queria vender
obras para O MASP. Levou um Manet, um Corot, um Renoir, e deixou de lado,
apesar do preço acessível, a Dama com a rosa, um nu de Picasso provocante-
mente erótico. À saída do estúdio do marchand, José Guilherme quis saber a
razão da recusa do Picasso, e Chateaubriand respondeu com crua sin-
ceridade:
- Seu Zé Guilherme, se eu exponho um quadro com uma mulher exi-
bindo uma xoxotona daquele tamanho, aqueles quatrocentões atrasados lá
de São Paulo nunca mais me darão um tostão para comprar quadros. Se eu
compro aquela tela eles tocam fogo no meu museu!
527
FERNANDO MORAIS
Às nove da noite do dia 3 de agosto um espetáculo de fogos de artifício
iluminou a multidão de 3 mil pessoas que lotavam os jardins do castelo. Só
para levar os cem convidados brasileiros, Chateaubriand fretara dois Cons-
tellation da Panair, sem contar o vôo especial que transportara orquestras,
músicos, cantores, sambistas e frevistas. Terminados os rojões, o maestro Se-
verino Araújo saiu do camarim armado atrás do castelo e invadiu os jardins
regendo a Orquestra Tabajara, da tv Tupi, que tocava um frevo pernambu-
cano. Atrás deles vinham os cantores Elizeth Cardoso, Ademilde Fonseca,
Zé Gonzaga, Jamelão e "Pato Branco" (um sanfoneiro albino que se fazia
passar pelo músico Sivuca, que não pudera comparecer, e cuja presença na
festa tinha sido exigida pelo dono dos Associados). Atrás deles, vinte passis-
tas baianas bailavam e abriam passagem para que pudessem sair de dentro
do castelo quatro negros de tanga, carregando uma liteira coberta onde vi-
nha instalada, vestida à la Debret, a esfuziante Aimée de Heeren. Depois
dessa ouverture triunfal, vinte cavalos saíram em disparada dos fundos do
castelo, cada um deles montado por um convidado ilustre (francês ou brasi-
leiro) vestido de cangaceiro e carregando uma mulher na garupa, também
vestida a caráter. A cavalhada foi aberta pelo antropólogo Arbusse Bastide
fantasiado de Lampião, levando na garupa a manequim Danuza Leão vesti-
da de Maria Bonita, e fechada por Chateaubriand sobre um alazão e vestido
"com uma cópia da fatiota de couro cru que meus antepassados usavam
para capar bode no vale do Piancó". Na traseira do cavalo do jornalista ia a
costureira internacional Elza Schiaparelli - que semanas antes, em visita ao
Brasil, recebera a Ordem do Jagunço e que a imprensa parisiense descreveu
como "delirantemente fantasiada de periquita do Guaíba". Vestindo um su-
mário cache-sexe, de peruca de índio e cocar sobre a cabeça, o costureiro e an-
fitrião Jacques Fath pegou o microfone e anunciou que "a grande festa do
Brasil estava começando".
Sobre o tablado de madeira, e ao som da Orquestra Tabajara, fotógrafos
dos Associados, de agências internacionais e dos jornais e revistas franceses
retratavam o cineasta Orson Welles meio embriagado tentando dançar xaxa-
do com a atriz Ginger Rogers ao lado do ator Jean-Louis Barrault, que en-
saiava passos de cururu com a estrela Claudette Colbert. Do outro lado do
jardim, sob uma barraca, o comediante Danny Kaye comia acarajés com Pau-
lette Godard. Para Chateaubriand, no entanto, aquelas não eram as vedetes
mais importantes da festa que só terminaria no dia seguinte, ao raiar do sol.
Seu grande tento tinha sido conseguir levar para Corbeville duas austeras
senhoras discretamente vestidas a rigor, que, sentadas em uma mesa na bei-
ra da pista, pareciam sentir enorme desconforto por estar naquele ambiente
pagão: eram Darcy Vargas, mulher do presidente da República, e sua filha
Alzira. Fartamente fotografada, a presença delas naquela que ficou conheci-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
da pela oposição como "a bacanal de Corbeville" iria se transformar, 24 ho-
ras depois, em uma extraordinária dor de cabeça para Getúlio Vargas.
A inquieta Tribuna da Imprensa de Carlos Lacerda não ia perder um pra-
to cheio como aquele. Sob a manchete "205 mil dólares numa festa em Pa-
ris", frases curtas resumiam o noticiário enviado pelas agências interna-
cionais:
Cachaça e champanhe para 76 brasileiros levados em aviões fretados/Eston-
teantes os vestidos das senhoras Darcy Vargas e Alzira Vargas do Amaral Pei-
xoto/Celebridades do cinema e do teatro acotovelam-se no ritmo alucinante do
castelo do costureiro Jacques Fath/ "Uma completa loucura", diz um convidado
deliciado/Dança nupcial dos índios de Mato Grosso/Não deixe de ler os por-
menores da orgia promovida por um grupo de brasileiros, tendo à frente o sr.
Guilherme da Silveira, acusado no inquérito do Banco do Brasil.
Também na primeira página e ao lado do noticiário, a Tribuna publica-
va o duro editorial intitulado "Afronta":
Cada qual desce do bonde como quer. Mas, realmente, os telegramas que hoje
descrevem a farra em Paris, com a indulgente presença da mulher do presiden-
te da República e de sua encantadora filha, ultrapassam todas as medidas e
constituem uma afronta às dificuldades com que luta o povo francês e à desgra-
ça que aflige o povo brasileiro. "O pai dos pobres" [o jornal se referia ao nome
com que o presidente Vargas era popularmente conhecido) nào é capaz de ex-
plicar com que dólares foram custeados esses aviões especiais, essas cabaças e
inúbias, esses pássaros tropicais, essa revoada de aventureiros e aventureiras
que transportaram a Paris para participar da dispendiosíssima bagunça no cas-
telo de um novo-rico. Quem forneceu o câmbio? Foi câmbio oficial ou câmbio
negro? Isso é que merece um inquérito. Vejamos se alguém tem coragem de per-
guntar, frontalmente, ao chefe do governo, quem autorizou a exportação desses
dólares.
O mesmo Lacerda que meses antes exaltara as qualidades do candidato
a senador agora assinaria um artigo intitulado "Perchance you wonder at this
show (Montesquieu responde a Chateaubriand)", no qual acusava o dono
dos Associados de tentar tomar a história de assalto. "Não podendo, por um
alto feito, entrar para a história, ele se contenta em entrar para o anedotário",
escreveu Lacerda. "Para que construiu o sr. Chateaubriand o seu império?
Esse poderoso treme diante do poder. Não o enfrenta. Procura diverti-lo. Esse
jornalista tem horror ao jornal." De São Paulo, os Mesquita também não per-
deriam a oportunidade de pegar, de uma marretada só, tanto seu velho ini-
migo Getúlio Vargas quanto Assis Chateaubriand. Não se passou uma se-
mana e o austero O Estado de S. Paulo caiu sobre o baile de Corbeville com o
editorial "Decomposição" :
Foi com estupefação que os franceses - tão familiarizados, entretanto, com
toda a sorte de exotismos - contemplaram a orgia em que se converteu a "Fes-
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FERNANDO MORAIS
ta do Seridó", caracterizada pelo destempero de costumes ali apresentado como
o que de mais fino e puro existe nos lares brasileiros. [...] O pior é que esses in-
conscientes, aventureiros de variada origem, sem raízes nos meios da tradição
do país, ali se intitularam representantes da sociedade brasileira, sem atentarem
para o insulto que, com uma bacanal de repercussão mundial, estavam lançan-
do à face de uma sociedade como a nossa, tão ciosa dos seus costumes, pauta-
dos nos ditames da mais severa moralidade.
Nas páginas do mesmo Estado, o primo-irmão Rafael Correia de Olivei-
ra acusava Chateaubriand de ter atraído a primeira-dama e sua filha para
aquele "bródio infernal" apenas para satisfazer a "solicitações mórbidas de
uma senilidade precoce, que o desarticula apalhaçadamente em auras pro-
gressivas ". Ao ver o nome do autor do artigo "O Brasil não pode ficar nú ",
Chateaubriand respondeu dias depois, ainda da Europa: "O que escreveu O
Estado é a invencionice de tipos que a Paraíba expeliu do seu seio, segundo
os métodos notórios da nossa lei, com surras sucessivas de rabo de tatu e
peia de couro cru".
Em O Cruzeiro, o baile de Corbeville receberia nada menos que 68 pági-
nas de cobertura, distribuídas em quatro sucessivas edições. E foi em uma co-
luna da revista que se levantou a única e solitária voz em defesa de Chateau-
briand, a do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Em seu artigo
"Reclamo do Brasil" (a palavra "reclamo" era usada aí como sinônimo de
"propaganda"), Freyre criticava os "pudores patrióticos" e os "escrúpulos
cristãos" dos moralistas que atacavam o jornalista por levar à Europa "o fre-
vo e outros tropicalismos brasileiros". Segundo ele, se o barão do Rio Branco
estivesse vivo, faria o mesmo que Chateaubriand fizera: "Rio Branco tinha
um pouco do gênio do reclamo - o reclamo do Brasil - que hoje aparece
encarnado de modo vivíssimo no sr. Assis Chateaubriand. Ele compreendia
que um país novo, desconhecido e ignorado como o Brasil não pode, ou não
deve, dar-se ao luxo de ser um país de gente elegantemente discreta e cinzen-
ta, como os britânicos ou ingleses do tempo da rainha Vitória".
Para a maioria da população, o que ficaria da festa não seriam as maté-
rias escandalosas da Tribuna da Imprensa, um jornal de tiragem modestíssi-
ma, nem o severo editorial perdido nas páginas de opinião do Estado. Para o
grande público, no final das contas, valia a versão dada por O Cruzeiro, que
era de longe a publicação com o maior número de leitores do país, pois já
vendia 370 mil exemplares por semana.
Decidida a explorar até a exaustão o rico veio da grande reportagem, a
revista mantinha permanentemente equipes de repórteres e fotógrafos espa-
lhadas pelos mais remotos pontos do planeta. Em uma única semana daque-
le ano de 1952 era possível ler reportagens enviadas de Helsinque, na Finlân-
dia, por João Martins; de Denver, nos Estados Unidos, por Luciano Carneiro;
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FERNANDO MORAIS
de Farminton, também nos Eua, por David Nasser; dos confins da África,
por Pierre Verger; de Paris, por José Medeiros; de Araguari, no interior de
Minas, por Eugênio Silva; do Equador, por José Amádio; do Alto Xingu, In-
dalécio Wanderley e Ubiratan de Lemos escreviam que estavam se aproxi-
mando do lugar onde jaziam os ossos do coronel Percy Fawcett; em Buenos
Aires, Jorge Ferreira apurava um segredo ocultado dos argentinos que, se
confirmado, levaria a revista a publicar um furo internacional: havia suspei-
tas de que Evita Perón vivia seus últimos dias, devastada por um câncer ge-
neralizado.
Jorge Ferreira tinha ido à capital argentina junto com o fotógrafo Nico-
lau Leite para cobrir mais um raid aéreo organizado por Chateaubriand. Eles
tinham viajado de carona com o patrão no Raposo Tavares e, durante a re-
cepção oferecida pelo presidente Juan Domingo Perón aos pilotos, a primei-
ra-dama aparecera por alguns minutos. Jorge Ferreira, que a havia visto me-
ses antes, durante uma viagem à Argentina, ficou impressionado com a
aparência física da "mãe dos descamisados": magra, pálida, com a pele res-
secada e os cabelos ralos, nem de longe ela lembrava ao repórter a mulher
bonita, viçosa e altiva que ele vira menos de um ano antes. Eva Perón pare-
cia uma figura empalhada, sem vida. Quando o avião de Chateaubriand re-
tornou ao Brasil, os dois jornalistas inventaram um pretexto para permane-
cer mais alguns dias em Buenos Aires. Depois de semanas de investigação,
Jorge Ferreira e Nicolau Leite conseguiram juntar as informações: fazia me-
ses que estava vivendo em Buenos Aires o cancerologista Genrges Pack, de
Nova York, que já realizara três cirurgias para extrair da mulher mais impor-
tante da Argentina sucessivamente o útero, os ovários e parte dos intestinos,
devorados por um câncer que aparecera no baço e agora se generalizava por
todo o organismo.
De posse das informações, os dois embarcaram de volta para o Brasil.
Na semana seguinte, O Cruzeiro dava um banho na imprensa internacional
ao publicar, em sete páginas, a reportagem "Os últimos dias de Eva Perón".
Na primeira e na última páginas, duas fotos de Evita feitas furtivamente por
Nicolau na recepção aos pilotos (na qual a presença de fotógrafos tinha sido
proibida): com os olhos fundos e cercados de olheiras roxas, as maçãs do ros-
to estufadas, ela era apresentada como "uma máscara da tragédia - enfer-
ma, sem qualquer esperança, Evita está com a vida por um fio". Reproduzi-
da por todas as agências de notícias, a reportagem explodiria em Buenos
Aires e repicària no mesmo dia no Palácio do Catete, sob a forma de uma
grave crise diplomática entre o Brasil e a Argentina. Um portador entregou
ao presidente Getúlio Vargas a carta manuscrita que o embaixador do Brasil
na Argentina, Batista Luzardo, redigira naquela mesma manhã:
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Buenos Aires,19/5/52 - Confidencial - Urgente
Meu caro presidente:
Ao regressar hoje de São Pedro [...] encontrei no aeroporto o ministro Glau-
co, que me avisou estar o ministro das Relações Exteriores, dr. Remorino, à mi-
nha espera, pois tinha urgência em me falar. Fui diretamente à Chancelaria e lá,
de fato, avistei-me com o ministro. Encontrei-o com um vasto
"dossier" da revis-
ta O Cruzeiro. Fez-me, a seguir, um vasto relato do profundo desgosto que o úl-
timo número havia produzido ao presidente Perón. Deu-me ainda a ler a corres-
pondência enviada a propósito pelo embaixador Cooke [embaixador da
Argentina no Brasil], onde descreve o encontro dele com o João Neves [minis-
tro das Relações Exteriores do Brasil) no Itamaraty.
De tudo isso resultou, meu caro presidente, a manifestação mais positiva [sic)
de protesto e grande ressentimento pela maneira infaustosa do Brasil tratar o
governo do general Perón - sobretudo a figura da sra. Eva Perón, de maneira
tão cruel e desumana.
Estou certo que muito atenuaria o péssimo efeito causado por essa publica-
ção se você me autorizasse urgentemente a manifestar o repúdio seu e do gover-
no brasileiro a esse ataque ignominioso. Escrevo-lhe muito às carreiras para
aproveitar a ida do dr. Salvador, que segue neste instante, e aguardo suas notí-
cias com urgência.
Um grande abraço do seu amigo sempre às ordens,
Batista Luzardo
Getúlio percebeu que aquilo podia afetar as relações entre o Brasil e a
Argentina e tratou de jogar água na fervura. Telefonou para Chateaubriand
pedindo alguma forma de reparação - embora não houvesse rigorosamen-
te nada a reparar - e mandou Lourival Fontes, chefe do Gabinete Civil, pre-
parar uma resposta oficial que permitisse a Luzardo se desculpar com o go-
verno argentino. Chateaubriand enxertou em um de seus artigos uma crítica
vaga ao excesso de liberdade de que desfrutavam "os reizinhos de O Cruzei-
ro", e Fontes preparou um ofício formal para Vargas enviar ao embaixador
Luzardo:
Rio de Janeiro, 21 de maio de 1952
Prezado amigo embaixador Batista Luzardo:
Recebi a sua carta, que li com interesse e a cujos tópicos dei toda a atenção.
Como já deve ser do seu conhecimento, suscitou intensa indignação neste país
uma reportagem em torno da excelentíssima senhora Eva Perón, publicada em
uma revista desta capital, e que fugiu às normas mais comezinhas da ética jor-
nalística e do bom gosto, referindo-se aos padecimentos daquela ilustre dama
em termos deprimentes para os foros da nossa imprensa.
Associei-me de todo coração à repulsa levantada em todos os setores da opi-
nião pública brasileira, onde a revolta provocada foi tão enérgica e inequívoca
que o próprio diretor da empresa jornalística a que pertencia o órgão em ques-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
tão fez publicar, em um de seus jornais, uma nota em que dava uma plena sa-
tisfação à justa indignação.
Lamentei profundamente esse incidente; mas confortou-me a unanimidade e
a energia da reação de nossa opinião pública, em sua simpatia e profunda comi-
seração pelos sofrimentos da senhora Eva Perón, por cuja saúde faço pessoal-
mente os votos mais sinceros.
O habilíssimo Getúlio Vargas sabia que se ele, o presidente da Repúbli-
ca, assinasse aquela carta, estaria dando ao assunto uma importância que ele
ainda não tinha (afinal, não fora Perón quem lhe escrevera para protestar).
Devolveu a minuta a Lourival Fontes, com um despacho a lápis sobre o tex-
to datilografado: "A carta é para ser respondida por você. O J. N. [ele se re-
feria ao ministro João Neves da Fontoura] já manifestou sua repulsa pelo
fato. O Luzardo parece estar fazendo disto uma questão diplomática. V.".
No texto, o presidente sublinhava, com uma interrogação, a palavra "comi-
seração" - de fato émpregada inadequadamente e retirada da versão defi-
nitiva, que acabou sendo assinada mesmo por Lourival Fontes. Com o ofício
na mão, em Buenos Aires, Luzardo tratou de livrar o governo de qualquer
responsabilidade pela reportagem, no que foi imitado por João Neves, que
apresentou ao embaixador Cooke um pedido formal de desculpas pelo inci-
dente.
Dias depois Chateaubriand chamou Jorge Ferreira à sua sala. Colocou
sob seus olhos o recorte com o artigo em que ele falava dos "reizinhos" da
revista e perguntou:
- Viu a vergonha que o senhor me obrigou a passar, seu Jorge?
O repórter nem pestanejou:
- O que o senhor faria no meu lugar, doutor Assis?
- Eva Perón está desenganada mesmo?
- Tenho certeza absoluta de que ela está com câncer, e assumo toda a
responsabilidade pela reportagem.
- Então eu, no seu lugar, faria o mesmo. Mas o senhor, no meu lugar,
também faria o que eu fiz.
No dia 26 de julho, passados dois meses do furo de O Cruzeiro, Eva Pe-
rón morria de câncer generalizado, aos 33 anos. E, antes que o ano terminas-
se, outro defunto famoso iria propiciar a grande virada na história da ven-
dagem da revista. No dia 27 de setembro, um sábado, o país seria tomado de
intensa comoção pela notícia que as rádios começavam a divulgar: um lu-
xuoso automóvel Buick fora abalroado por um caminhão nas imediações da
cidade de Taubaté, na rodovia São Paulo-Rio, e se incendiara logo depois
do choque. De dentro do carro a polícia retirara os restos carbonizados de
Francisco Alves, de 54 anos, o cantor mais popular do Brasil, que havia gra-
vado mais de quinhentos discos desde o início de sua carreira, em 1919. So-
mado ao talento de sua equipe, desta vez O Cruzeiro iria contar com um gol-
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FERNANDO MORAIS
pe de sorte: além de parceiro de "Chico Viola", como o artista era conheci-
do, David Nasser era amigo pessoal do morto e trabalhava havia algum tem-
po em sua biografia.
A revista cobriu a morte de Francisco Alves como se fosse a do presi-
dente da República: uma equipe foi mandada para o local do acidente, que
foi reconstituído para as fotografias com três veículos idênticos aos que ha-
viam provocado o desastre. Outra dupla repórter-fotógrafo produziu um
cruel perfil do dentista Felipe Abussanam, cujo carro, em uma manobra in-
feliz, fora o causador da tragédia. Dezenas de jornalistas da revista acompa-
nharam o transporte dos restos mortais do cantor até o Rio, o velório (com
centenas de desmaios de fãs) e o enterro, que levou, até chegar ao cemitério,
três horas para cruzar a multidão que enchia as ruas da cidade. Bem ou mal,
porém, qualquer outra publicação poderia fazer uma cobertura como aque-
la. O que ninguém tinha era David Nasser, que conhecia detalhes do coti-
diano e da intimidade do morto e de seus últimos dias de vida.
Publicado em uma série de cinco edições que totalizou 45 páginas da re-
vista sob o nome de "As memórias de Chico Alves", o material que Nasser
armazenava para escrever a biografia do cantor causou grande impacto en-
tre os leitores. Mas aquilo era apenas o começo. Quando Perpétua Guerra,
primeira mulher de Francisco Alves (de quem ele se separara para viver com
Célia Zenatti), apresentou à imprensa um casal de adolescentes como sendo
filhos dela com o morto - e portanto herdeiros da fortuna que ele deixara
-, David Nasser soltou a primeira bomba: comprovou, por meio de depoi-
mentos que tomara de Francisco Alves e do médico que o atendia, Américo
Caparica, que o cantor era estéril. Passadas algumas semanas, o assunto pa-
recia destinado a morrer quando Nasser voltou à carga com outra inconfi-
dência: Francisco Alves já não vivia mais com a segunda mulher, mas com
Iraci Alves, uma jovem que tinha idade para ser sua filha, com a qual plane-
java casar-se ainda naquele ano. Fartamente fotografada de luto, chorando
sobre o túmulo do amante, ou em casa, relendo as cartas de amor que ele lhe
enviara, Iraci rendeu mais uma série de reportagens para O Cruzeiro.
As memórias de Francisco Alves, as revelações sobre sua esterilidade e
a divulgação da identidade secreta da namorada Iraci tiveram o efeito de um
furacão sobre a vendagem da revista, que em dois meses pulou dos 370 mil
exemplares semanais para 550 mil - um verdadeiro prodígio para um país
que tinha uma população de apenas 50 milhões de habitantes, dos quais 15
milhões não sabiam ler. Naquele final de ano, Chateaubriand se gabava do
fenômeno em que O Cruzeiro se transformara: a revista tinha quase dez ve-
zes mais leitores do que a soma dos telespectadores de suas duas estações de
televisão.
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Assis Chateaubriand acabara de pedir ao Senado uma nova licença para
se ausentar do país, pois naquela mesma noite tomaria um avião com desti-
no a Nova York para outra de suas incontáveis peregrinações à meca das
obras de arte raras, a Galeria Wildenstein. Ao chegar em casa para fechar as
malas, soube que o presidente Getúlio Vargas o convocava com urgência ao
Palácio Guanabara, e imaginou tratar-se de algum assunto de rotina do
Senado. Mas Getúlio o chamava para comunicar-lhe - notícia que recebeu
emocionado, como reconheceria depois - que iria realizar um velho sonho
seu de menino, o de conhecer de perto o rei da Inglaterra. No caso, a rainha:
o presidente acabara de assinar o decreto nomeando Chateaubriand mem-
bro da delegação que iria representar o Brasil nas cerimônias de coroação da
futura rainha da Inglaterra, Elizabeth ii, cujo pai, o rei Jorge vi, falecera um
ano antes, em 1952. Embora a maioria dos países estivesse enviando à
Inglaterra comitivas enormes (a do Canadá teria 220 membros), Getúlio esta-
va sob fogo cerrado da imprensa, que entre outras coisas acusava o governo
de fazer gastos excessivos e desnecessários, e decidira por uma missão fran-
ciscana, composta de apenas três membros. Iriam o chefe do Estado-Maior
das Forças Armadas, marechal Mascarenhas de Morais, que chefiaria a dele-
gação, o almirante-de-esquadra Raul de San Thiago Dantas (pai do jornalista
e político Francisco Clementino de San Thiago Dantas) e Assis Chateaubriand.
A escolha de Mascarenhas de Morais se justificava: como comandante da
Força Expedicionária Brasileira que lutara na Itália, ele adquirira no Brasil o
respeito e o prestígio popular de um verdadeiro herói. Também por medida
de economia, cada membro só poderia levar um assistente - e o jornalista
decidiu que o seu seria o filho Gilberto, diplomata em início de carreira e que
tinha alguma familiaridade com "toda a prosopopéia protocolar que certa-
mente vamos enfrentar".
Logo que Getúlio lhe comunicou que ele faria parte da delegação,
Chateaubriand simulou um gesto de modéstia:
- Mas, presidente, o senhor pode imaginar o que será um camponês da
Paraíba numa missão especial na Corte de Saint James? Dificilmente nós,
paraibanos, seríamos vencidos em um concurso de rusticidade, de falta de
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FERNANDO MORAIS
polidez. Numa missão como essa, as gafes saltarão pela estrada qual cúgume-
los do chão!
Com ou sem gafes, antes mesmo de sair nos Associados, a notícia de sua
presença na delegação apareceria na mais famosa de todas as colunas so-
ciais, a "Elsa's Comment", assinada por Elsa Maxwell no New York Journal:
Um homenzinho acaba de estar em Nova York, vindo do Brasil. Seu nome é
Assis Chateaubriand - o mais alegre, o mais vivo, o mais fantástico homem
que já conheci. Grandes olhos castanhos, cabelos ficando grisalhos, ele pratica-
mente não fala inglês mas é mais borbulhante que uma garrafa de gasosa.
Chateaubriand é o verdadeiro rei de São Paulo.
Chateau, como eu o chamo, acaba de ser indicado pelo presidente Vargas
como embaixador extraordinário do Brasil à coroação da rainha Elizabeth no
próximo mês. Ele passou por Nova York por apenas três dias e eu almocei com
ele no Pavillon. Chegou e saiu como um furacão, seguido por um grande nú-
mero de mulheres, todas falando português.
Ao retornar ao Brasil, Chateaubriand encontrou um ofício do embaixa-
dor Bolitreau Fragoso, chefe do Cerimonial da Presidência da República,
encaminhando o minucioso programa estabelecido pelos ingleses para as
festividades da coroação. Ao ler, com enorme frustração, que só os chefes de
delegações iam ter o privilégio de cumprimentar pessoalmente a rainha, ele
se pôs a imaginar uma forma de quebrar aquela norma do protocolo. Não
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
precisou de muito tempo para chegar à solução: um presente! Se levasse um
presente pessoal para ela, a rainha não teria como não recebê-lo. Da idéia à
execução foi um passo: dois dias depois, sem que nenhum deles tivesse sido
consultado, O Jornal publicava a relação dos oito felizardos que Chateau-
briand nomeara para se cotizarem no pagamento do presente que seria ofe-
recido a sua majestade britânica - um conjunto de colar e brincos de águas-
marinhas e brilhantes que ele havia encomendado à mais requintada oficina
de lapidação do Brasil, a ourivesaria da casa Mappin & Webb. Os escolhidos
para ratear entre si os 2,5 milhões de cruzeiros que a jóia ia custar (62 mil
dólares de então, cerca de 300 mil dólares de 1994) foram o governador de
Minas, Juscelino Kubitschek, o deputado Euvaldo Lodi, presidente da
Confederação Nacional da Indústria, Horácio Lafer, o industrial mineiro
Antônio Ferreira Guimarães, o cafeicultor paulista Fúlvio Morganti, George
Wigle, presidente da St. John Del Rey Mining Co., Harold Fleming, do
Moinho Inglês, e Wolf Klabin.
No dia 17 de maio de 1953, duas semanas antes da data marcada para a
coroação, a pequena delegação embarcou no aeroporto do Galeão com des-
tino a Paris, secretariada pelo coronel Antônio Henrique de Morais, aju-
dante-de-ordens do marechal Mascarenhas de Morais, e por Gilberto
Chateaubriand. Este, seguindo ordens expressas do pai (que temia que a jóia
pudesse ser roubada ou se extraviasse no trajeto até Londres), pediu à avó
que costurasse o colar e os brincos - dez águas-marinhas de 120 quilates e
647 brilhantes, que pesavam trezentos gramas - no forro de seu sobretudo
de lã. Ia ser uma viagem inesquecível. Depois de uma hora de vôo, o ma-
rechal pediu a Gilberto que trocassem de lugar para que ele pudesse con-
versar um pouco com Chateaubriand. Passados dez minutos, Gilberto
percebe uma altercação entre os dois, que discutiam em voz alta. O marechal
se levanta, de cara fechada, retornando a seu lugar. Quando Gilberto se
senta de novo ao lado do pai, encontra-o de dedos crispados nos braços da
poltrona, rangendo os dentes e falando em voz suficientemente alta para ser
ouvido pelos outros passageiros - e pelo marechal:
- Meu filho, esse homem é um pobre-diabo! Um pobre-diabo!
O filho se espanta, constrangido:
- Mas por que, papai? O marechal é um homem tão sério, tão edu-
cado...
- Eu fiz ver a esse imbecil que ele quer submeter o Brasil a uma ridicu-
laria, ao absurdo internacional de trazer de volta os despojos dos soldados
brasileiros que morreram na Segunda Guerra Mundial e que estão sepulta-
dos no cemitério de Pistóia, na Itália!
Fazia algum tempo que Chateaubriand vinha combatendo com dureza,
em discursos no Senado e em artigos em seus jornais, a proposta do Exército
de trasladar para o Brasil os restos mortais dos pracinhas brasileiros mortos
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FERNANDO MORAIS
em combate na Europa. Quando tocou no assunto com o marechal, no avião,
a conversa azedou. Indiferente aos olhares espantados dos demais pas-
sageiros, Chateaubriand continuava bradando:
-Pistóia foi o único território que os brasileiros conquistaram na
Europa. Agora esse marechal vem me dizer que as famílias têm o direito de
cultuar os ossinhos de seus filhos! Esses restos têm de ficar na Itália como
uma afirmação do Brasil na luta pela liberdade. Montar um ossuário para
eles aqui no Brasil é uma rematada idiotice! Eu me recuso a continuar falan-
do com um pobre-diabo como esse marechal.
Passadas mais algumas horas de vôo, o marechal, tentando contornar a
situação de constrangimento criada por Chateaubriand, chama Gilberto e
pede para ver o presente que será oferecido à rainha. O filho vai até o assen-
to do jornalista e pede permissão para mostrar as jóias ao chefe da delegação.
Chateaubriand volta a sapatear e a falar alto:
-Não mostre! Não mostre! Ele não vai ver colar nenhum! Quando
chegarmos a Londres, você vai direto à Mappin & Webb guardar o colar e os
brincos no cofre. O marechal não vai ver nada. E se ele nos criar algum pro-
blema eu mando O Cruzeiro levantar de novo aquela história misteriosa da
morte do filho dele.
Até Gilberto, que conhecia bem o pai, ficou estarrecido com o que ouvia:
Chateaubriand ameaçava desencavar o rumoroso crime de que fora vítima o
filho de Mascarenhas de Morais, o capitão Roberto, morto a tiros suposta-
mente pela própria esposa, Helbe. Desconcertado, tentava acalmar o pai, to-
mado de ódio pelo militar:
- Mas, papai, uma coisa nada tem a ver com a outra, não fale uma coisa
dessas...
- Falo e faço. Se ele me encher nessa viagem, mando o Leão levantar
aquele escândalo de novo.
Chateaubriand e o marechal deixaram de se falar. Depois que todos
foram instalados no Grosvenor House Hotel, em Londres, o jornalista tomou
conhecimento, decepcionado, de que não fora o único a ter a brilhante idéia
de oferecer um presente à rainha: sessenta outras delegações tinham feito o
mesmo. Entre as lembranças levadas a Londres para sua majestade con-
tavam-se extravagâncias como um elefante ofertado por um marajá, cava-
los puros-sangues presenteados por xeques e emires e até uma égua prenhe
transportada de avião por um príncipe do golfo Pérsico. Seu desaponta-
mento não acabava aí: como membro da delegação oficial, ele teria direito a
assistir à cerimônia de coroação, na Abadia de Westminster, e a participar da
recepção no Palácio de Buckingham, mas não manteria qualquer contato
com a rainha. Só mesmo os chefes das delegações teriam oportunidade de
cumprimentá-la em Buckingham. O rigoroso protocolo parecia escrito para
castigá-lo: embora não tivesse podido até então sequer pôr os olhos sobre o
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
colar e os brincos, o marechal Mascarenhas de Morais seria também o encar-
regado de entregar o presente, e mesmo assim a um representante de
Elizabeth II. Refeito de tão infaustas notícias, Chateaubriand confidenciou a
Gastão Nothman, funcionário da embaixada brasileira:
- Não tem importância. Ela não me recebe agora, mas ainda vai ter de
me receber algum dia. Pode escrever isso, seu Nothman.
No dia seguinte à chegada a Londres, Chateaubriand mandou Gilberto
ir ao aeroporto de Croydon receber Aimée de Heeren, que vinha de sua casa
em Biarritz para também assistir às festas da coroação. Ela carregava consi-
go o pai, Genésio, uma dama de companhia e uma verdadeira montanha de
malas que encheram um carro. À noite surgiu o primeiro problema com os
novos agregados: Chateaubriand tinha reservado uma mesa para que todos
jantassem no restaurante Mirabelle, mas na hora marcada Genésio não apa-
receu. Acabaram indo sem ele e quando retornaram ao hotel ainda não havia
notícias do pai de Aimée. Recorreram a Gastão Nothman, telefonaram a de-
legacias de polícia, hospitais e necrotérios, e nada. Passaram a noite em claro
(a Scotland Yard tinha sido acionada pela embaixada e poderia dar notícias
a qualquer momento), e só na hora do almoço do dia seguinte é que Genésio
apareceu: sem falar uma sílaba de inglês, ele entrara por engano na casa de
um milionário que esperava um estrangeiro que viria para a coroação e aca-
bara dormindo lá mesmo.
Na véspera da data marcada para a coroação, Chateaubriand tirou do
guarda-roupa de seu quarto um enorme pacote que trouxera do Brasil junto
com sua bagagem - com o qual se preocupara quase tanto quanto com as
jóias da rainha. Colocou-o no porta-malas de um carro da embaixada (onde
conseguira rolos de arame, alicates e uma longa escada de madeira) e saiu
para a rua acompanhado de dois funcionários da legação brasileira. Percor-
reu a Oxford Street e a Regent Street, ruas por onde passaria o cortejo real,
no caminho entre o Palácio de Buckingham e a Abadia de Westminster, e a
certa altura mandou o motorista parar o carro. Abriu o porta-malas, desfez
a embalagem e tirou de lá a primeira de seis faixas de pano, idênticas às
usadas em comícios e campanhas eleitorais, que ele mandara pintar espe-
cialmente para a festa - aquele sim era seu presente pessoal e anônimo para
a rainha. Com a ajuda dos funcionários, amarrou a ponta da primeira faixa
no alto de um poste, estendeu-a sobre a rua e prendeu a outra ponta com
arame num poste da calçada oposta, de tal forma que ela ficasse atravessada
sobre a rua, no alto, exibindo os dizeres em português, incompreensíveis
para os passantes que assistiam à cena insólita: "Nosso Senhor do Bonfim
guarde a rainha". Entrou no carro, tocou mais um pouco e amarrou a segun-
da faixa: "Nossa Senhora da Aparecida guarde a rainha". Mais algumas cen-
tenas de metros e outra faixa era colocada: "Santa Teresinha do Menino Jesus
guarde a rainha". Seguindo o roteiro que seria percorrido na manhã seguinte
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FERNANDO MORAIS
pela carruagem real, Chateaubriand parou mais três vezes e amarrou mais
três faixas, sempre cercado por curiosos que indagavam o significado daque-
la exótica homenagem. O jornalista respondia a todos, solícito:
- São santos brasileiríssimos. É a saudação que o Brasil faz à rainha dos
anglicanos que vai ser coroada amanhã.
Por fim chegou o 2 de junho, dia da coroação e do maior problema que
Chateaubriand iria enfrentar naquela agitada temporada: acometido de uma
infecção na próstata, ele era obrigado a urinar a cada meia hora (Paulo
Albuquerque, seu médico do Rio, chegara a aconselhá-lo a desistir da aven-
tura londrina, pois se sabia que a cerimônia da coroação duraria cinco horas
sem interrupções). Mas o jornalista já havia planejado em segredo a solução:
vestiu um grosso sobretudo sobre a casaca, e com uma gilete abriu dois ta-
Ihos nos forros dos bolsos do casaco de lã. Pediu ao bar do hotel duas gar-
rafas vazias de Coca-Cola e enfiou cada uma num bolso do capote. Às oito
da manhã, conforme mandava o protocolo, dirigiu-se à Abadia de West-
minster. Com todos os chefes e subchefes de delegações devidamente insta-
lados em seus lugares, finalmente Elizabeth Ii apareceu na porta principal da
nave. Sob os olhares de presidentes, primeiros-ministros, príncipes, reis e
rainhas que se puseram de pé, ela atravessou em passos lentos, quase imper-
ceptíveis, a extensão que separava a porta principal do trono instalado no
fundo da abadia. A cinco metros de distância daquela que, minutos depois,
seria a soberana de oito nações, 65 protetorados e de uma população de 600
milhões de brancos, negros e amarelos que compunham um quinto dos habi-
tantes do planeta, Chateaubriand enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo,
desabotoou a braguilha, tirou o pênis para fora e urinou aliviado, tomando
o cuidado de não errar a pontaria ao mirar no minúsculo gargalo da garrafa
vazia de Coca-Cola.
Quando Elizabeth II se colocou de costas para o espaldar do trono e pos-
tou-se de frente para o homem que iria coroá-la - Geoffrey Francis Fischer,
primaz da Inglaterra e arcebispo de Canterbury -, Chateaubriand já havia
enchido quase meia garrafa. Só às onze e meia da manhã (nessa hora toda a
primeira garrafa tinha sido completamente abastecida) é que o arcebispo ini-
ciou o ritual: segurou no ar, sobre a cabeça da futura rainha, a coroa de santo
Eduardo, e virou-se sucessivamente para o norte, o sul, o leste e o oeste,
como se estivesse se dirigindo aos povos da Comunidade Britânica espalha-
dos por todos os quadrantes do planeta, e indagou:
- Senhores: eu vos apresento a rainha Elizabeth II, a vossa rainha incon-
testável. Por isso pergunto a vós todos que aqui viestes: estais dispostos a
render-lhe homenagem e prestar-lhe vossos serviços?
Chateaubriand aproveitou o som dos clarins e das gaitas de foles que
enchiam a abadia para repetir pela décima vez a operação: abriu a braguilha,
tirou de novo o pênis para fora, cuidadosamente, e inaugurou a segunda
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
garrafa despejando nela um curto e reconfortante jato de urina. Os repre-
sentantes de todas as colonias e protetorados ali presentes responderam em
coro à pergunta do arcebispo de Canterbury:
- Deus salve a rainha Elizabeth!
A liturgia durou as exatas cinco horas previstas pelo protocolo. Quando
a cerimônia chegou ao fim, Chateaubriand esgueirou-se por entre a multi-
dão de chefes de Estado que caminhavam em direção contrária, rumo à
porta de saída, foi até um dos banheiros da abadia e depositou no chão as
duas salvadoras garrafas.
No dia seguinte haveria o garden-party em Buckingham. As delegações
se espalhariam pelos vários salões do palácio, mas à sala do trono só teriam
acesso os chefes das missões. Em vão Chateaubriand mexeu céus e terras
para conseguir um convite que permitisse a Aimée acompanhá-lo à re-
cepção. Um de seus intermediários contou-lhe a razão das dificuldades: cir-
culava a notícia de que ela mantivera um romance público com um primo da
rainha e por isso fora incluída na lista negra da Família Real. Quando soube
disso, o jornalista decidiu que a namorada entraria junto com ele de qual-
quer maneira no palácio. Na hora da festa, simplesmente colocou-a a seu
lado, no banco de trás do Rolls-Royce da embaixada brasileira, com Gilberto
no banco dianteiro, ao lado do motorista. Como um menino travesso que
desejasse um troféu, ou um comprovante da traquinagem, mandou que o
repórter e fotógrafo Luciano Carneiro (um dos enviados de O Cruzeiro para
a cobertura da coroação) se aboletasse com sua câmera Rolleiflex no porta-
malas do carro. Talvez por imaginar que ninguém jamais tentaria entrar sem
convite na festa da coroação da rainha, o porteiro apenas recolheu as cre-
denciais com o motorista e deixou o carro passar sem importunar a elegante
penetra que se encontrava no banco traseiro, guardada por aqueles dois
homens de casaca e cartola. Passada a portaria, quando os três desceram do
carro e se preparavam para cruzar os portais de pedra de Buckingham,
Chateaubriand abriu o porta-malas e mandou que Luciano Carneiro regis-
trasse sua façanha, fotografando-o junto com Aimée e Gilberto à porta do
palácio - fotografia que, naturalmente, O Cruzeiro publicaria na semana
seguinte. Ele tinha conseguido impor a presença de Aimée à fechada corte
britânica.
O festival de comemorações ainda não tinha acabado. No dia 4, Winston
Churchill (que era de novo primeiro-ministro da Inglaterra) oferecia aos
membros das delegações uma recepção no Bleinheim Castle, a meia hora de
Londres. Sentindo-se íntimo do anfitrião que condecorara com o primeiro
título da Ordem do Jagunço, Chateaubriand não podia perder a oportu-
nidade de "por em dia a conversa" com o líder britânico, como planejava.
Nos jardins do castelo, colocou-se ao lado de Gilberto na fila de cumpri-
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FERNANDO MORAIS
mentos e, quando chegou sua vez, ele se dirigiu a Churchill com seu inglês
ininteligível:
- I am mister Chateaubriand, from Brazil. Do you remember me, of course,
mister prime minister?
O primeiro-ministro britânico respondeu sorridente, mas com um cum-
primento formal:
- Nice to see you, mister Chateaubriand.
O jornalista percebeu que Churchill não o reconhecia e insistiu:
-I am Assis Chateaubriand, from Brazil, who bought your painting Blue
Sitting Room. Don't remember me?
Era como se estivesse falando para uma parede de pedra. A fila de cum-
primentos começava a se aglomerar atrás deles e Chateaubriand insistia,
virando-se para Gilberto e reclamando em português, já bastante irritado:
- Meu filho, esse sujeito está gagá, está caduco! Como é que um ho-
mem gagá pode dirigir a Inglaterra? Quando chegar ao Brasil vou mandar O
Cruzeiro fazer uma reportagem revelando que Churchill está gagá!
Desapontado, ele ainda insistiu mais uma vez:
- Mister Churchill,I am Assis Chateaubriand, who bought your painting and
decorated you with the Order of Jagunço. Don't remember me?
Como o primeiro-ministro permanecesse como uma vitrola, apenas sor-
rindo e repetindo aquele "nice to see you", Chateaubriand saiu dali humilhado
e furioso, prometendo ao filho "acabar com a carreira desse velho caduco":
- Estou arrependido até de ter comprado aquela bobagem daquele
quadro dele. Todo mundo sabe que como arte aquilo é uma droga!
Encerradas as festividades, o jornalista decidiu que ainda permaneceria
mais algumas semanas na Inglaterra com Aimée e despachou Gilberto para o
Brasil, insistindo em que este voltasse de navio - a passagem dele já estava
comprada para o Uruguay Star. Só quando chegou ao Rio, dias depois, é que
o filho entendeu por que Chateaubriand fizera tanta questão de sua presença
na delegação brasileira: ao desembarcar, Gilberto foi chamado a conferir a
"bagagem desacompanhada" que tinha sido despachada em seu nome sem
que ele soubesse. Eram caixas e mais caixas, do tamanho de salas, contendo
equipamentos eletrônicos para as duas tv Tupi, que o jornalista havia com-
prado na Marconi Wireless, na Europa, e não tinha quem trouxesse para o
Brasil. Entre os volumes, Gilberto encontrou um singular suvenir que
Chateaubriand decidira trazer para o Brasil: a cadeira em que assistira à
coroação, revestida de veludo e ostentando atrás do espaldar, em letras me-
tálicas douradas, a inscrição "E. R. II" (de Elizabeth Regina II).
Se para Gilberto a coroação terminava de forma tão melancólica, para
Chateaubriand o destino ainda reservava mais uma surpresa. No dia 17 de
junho ele embarcou em Londres no Constellation prefixo PP-PDA da Panair
com destino a São Paulo. O avião fez uma escala em Lisboa, outra em Dacar
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
e a terceira em Recife. Quando se preparava para pousar no aeroporto de
Congonhas, na capital paulista, na tarde do dia 18, o aparelho explodiu num
barranco, matando a tripulação e todos os passageiros. Em meio aos corpos
carbonizados e irreconhecíveis, os bombeiros identificaram a bagagem do
dono dos Associados: Chateaubriand tinha morrido no desastre. Junto com
ele falecera também, entre outros dezessete passageiros, Adibe Buzaid, mu-
lher do advogado Alfredo Buzaid, catedrático da Faculdade de Direito da usP.
O Diário de S. Paulo e o Diário da Noite começaram a preparar um robus-
to necrológio, de várias páginas, que seria publicado no dia seguinte por
todos os órgãos Associados. A ironia de que ele tivesse morrido tal qual pre-
vira - "não morrerei numa cama, vou explodir no ar, dentro de um avião",
ele não se cansava de repetir - fez com que o capítulo "aviões" de sua vida
merecesse uma página especial. Nela se destacava o fato de que Chateau-
briand tinha sido um dos primeiros brasileiros a voar em um aparelho daque-
les, no remoto ano de 1913; fora também o primeiro homem de imprensa a
equipar suas empresas não com um, mas com dois aviões para reportagens;
ao lado de Paulo Sampaio, dono da Panair, tinha sido o primeiro brasileiro (e
um dos primeiros civis do mundo), em 1950, a voar num avião de passageiros
a jato, o Comet inglês; ao entregar oitenta aviões ao presidente Getúlio Var-
gas, um ano antes de sua morte, a campanha da aviação havia superado o
total de mil aparelhos doados para treinamento de pilotos civis. A automá-
tica ligação que se fazia entre sua pessoa e a aviação era tal que, meses an-
tes, a companhia aérea holandesa KLM havia publicado um anúncio de página
inteira com sua foto na revista americana Time - cujo texto terminava afir-
mando que "Chatô é um aristocrata do Quarto Poder... que voa e aprova
a KLM".
O império Associado já se preparava para as despedidas de seu sobera-
no quando, antes que o dia terminasse, Chateaubriand apareceu são e salvo
na redação dos Diários, em São Paulo. Não se tratava de uma ressurreição.
Ele aproveitara a parada do avião em Recife para um encontro com o
governador Etelvino Lins (que mandara um oficial da Polícia Militar per-
nambucana buscá-lo de carro no aeroporto) e não voltara a embarcar no
Constellation. O objetivo de Etelvino era pedir o apoio dos Associados para
a nascente candidatura do governador mineiro Juscelino Kubitschek a pre-
sidente da República, dali a um ano e meio ("Tirei-o do avião para fazermos
Juscelino presidente", dissera-lhe o governador de Pernambuco). Animado
com a conversa, o jornalista se esqueceu de que se encontrava em uma escala
técnica e perdeu o avião, só embarcando para São Paulo horas mais tarde,
em um vôo doméstico. Em vez do necrológio, os Associados publicariam no
dia 19 um artigo do quase-morto que começava com um agradecimento ao
futuro presidente da República: "O governador Juscelino salvou-me a vida.
Tenho a obrigação, a partir desta data, de tê-lo eternamente como meu amo
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
e senhor". Ao lado do artigo, o jornal publicava o telegrama enviado por
Etelvino Lins, que reclamava o mérito para si: "Deus o coloque sempre a
serviço das boas causas, são os votos de quem acaba de assumir tão grande
responsabilidade perante o país, salvando-lhe a vida. Abraços, Etelvino".
No trecho entre Lisboa e Dacar, ainda a bordo do Constellation que se
espatifaria no aeroporto de Congonhas, Chateaubriand teve sua atenção
atraída por uma curta notícia sobre o Brasil publicada pela revista Time
daquela semana, intitulada "Imprensa em julgamento". Em menos de trinta
linhas, a nota resumia um começo de incêndio que em pouco tempo iria se
transformar em uma guerra de proporções nacionais contra o maior sucesso
da imprensa brasileira dos últimos anos, o jornal Última Hora, de Samuel
Wainer. Segundo a notícia da Time, o jornal Tribuna da Imprensa, de Carlos
Lacerda, descobrira que a Última Hora tinha sido montada quase que inte-
gralmente com dinheiro fornecido pelo Banco do Brasil, que agora ameaça-
va cobrar a dívida.
A crise que merecera espaço na imprensa dos Estados Unidos começara
numa madrugada dos primeiros dias de junho. Carlos Castelo Branco, que
deixara o posto de chefe da seção de política de O Jornal para ser editor-geral
da Tribuna, chegara à redação para preparar a edição do dia seguinte do jor-
nal. Em meio a um amontoado de reportagens e artigos que tinham sido
deixados de lado pelos editores, encontrou uma entrevista feita pelo repórter
Natalício Norberto com o ex-deputado Herófilo Azambuja, na qual este afir-
mava que tinha sido nomeado pelo Banco do Brasil interventor na empresa
Érica, editora da Última Hora. O entrevistado contava também que o banco
financiara quase tudo na montagem do jornal de Samuel Wainer, da compra
do prédio e das máquinas até as aquisições regulares de papel. Azambuja
revelava que fora nomeado para iniciar um processo de cobrança do débito,
que até então não tinha sido pago por Wainer.
Sem grande estardalhaço, como era de seu estilo, Castelo Branco reco-
lheu a reportagem e mandou buscar a pasta de fotos de Samuel Wainer no
arquivo. Escolheu uma fotografia em que o dono de Última Hora aparecia de
blak-tie, sentado sobre uma mesa, com um copo de uísque na mão. Chamou
o diagramador, mandou abrir a foto em metade da primeira página, sentou-
se à máquina e datilografou a manchete principal: "Esbanjavam dinheiro do
Banco do Brasil". No interior do jornal, mandou publicar a íntegra da entre-
vista feita por Natalício Norberto. Foi até a mesa de Aluísio Alves, diretor
de redação da Tribuna, e submeteu a ele a prova da primeira página. Alves se
esquivou:
- Ísso é uma loucura, não pode sair.
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FERNANDO MORAIS
Recorreram a Medeiros Lima, diretor do jornal, que concordou com
Alves: era uma denúncia grave demais, baseada em uma reportagem de um
estreante e não deveria ser publicada. Castelo fincou pé:
- Eu só não publico se a ordem vier do Lacerda. Vamos chamá-lo à
redação.
Minutos depois o dono estava no jornal. Ouviu as opiniões dos três, sen-
tou-se, leu cuidadosamente a entrevista, viu a primeira página e jogou-a
sobre uma mesa, decidido:
- Castelo, rode o jornal com a entrevista do jeito que está.
O país começava a pegar fogo. Última Hora tentou responder com uma
edição extra, afirmando que Azambuja tinha estado no jornal, sim, mas um
ano antes e como mero auditor do Banco do Brasil. Mas a tempestade já esta-
va armada. Uma semana depois, o acuado Samuel Wainer daria o troco a
Lacerda. Conseguiu tirar da Tribuna e contratar para trabalhar em seu jornal
o mesmo Natalício Norberto, que emergiria em Última Hora nãu como jorna-
lista, mas como entrevistado: em um longo depoimento, o pivô do "escânda-
lo" praticamente desmentiu o que fora publicado pela Tribuna. Disse que a
entrevista tinha sido feita por telefone e que do outro lado da linha poderia
estar "um interlocutor desconhecido e não identificado"; que o título que ele
fizera fora mudado por Castelo Branco; que a redação do jornal tinha enxer-
tado em seu trabalho informações que não se lembrava de ter escrito. "Não
quero continuar encarando meus colegas com sentimento de vergonha ou
inferioridade", concluiu. Sua retratação iria parar na manchete de Última
Hora do dia seguinte: "Desmascarada pelo próprio repórter a Tribuna da
Imprensa".
Quando Chateaubriand retornou ao Brasil, Lacerda se debatia desespe-
radamente para ampliar a repercussão do filão que descobrira. Além de seu
próprio e modesto jornal, ele contava apenas com o apoio de Roberto
Marinho, que colocara us microfones da sua Rádio Globo à disposição da
campanha contra Wainer, e da voz de meia dúzia de deputados udenistas na
Câmara Federal, entre os quais se destacavam o cearense Armando Falcão e
o mineiro Bilac Pinto. O sucesso indiscutível de Última Hora vinha se trans-
formando de pequena dor de cabeça em uma ameaça em potencial aos inte-
resses do dono dos Associados. Um ano depois de lançado no Rio, o jornal
punha nas ruas de São Paulo, com igual impacto, uma edição paulista-
financiada pelo conde Francisco Matarazzo Júnior, que, além de dinheiro
vivo, cedeu a Wainer o prédio sob o viaduto Santa Ifigênia para onde tinha
pretendido, nos anos 40, transferir a sede da Folha da Manhã. Além de pla-
nejar instalar, ainda em 1953, uma estação de rádio, Wainer lançara no Rio e
em São Paulo, também com enorme aceitação popular, o semanário ilustrado
Flan. Para montar o começo do que sonhava transformar em uma grande
rede, ele levantara um total de 64 milhões de cruzeiros (1,6 milhão de dólares
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
de então, aproximadamente 8 milhões de dólares de 1994) - metade tomada
como empréstimo ao Banco do Brasil e a outra metade obtida com três
grandes capitães de empresas: o banqueiro Walther Moreira Salles e os indus-
triais Ricardo Jafet (que era também presidente do Banco do Brasil) e Euvaldo
Lodi, presidente da Confederação Nacional da Indústria. Para Chateau-
briand, o objetivo a longo prazo de toda aquela movimentação era um só:
destruir os Diários Associados. A devastação que a Última Hora produzia
sobre o Diário da Noite do Rio era visível por qualquer leigo - e ele sabia onde
aquilo podia parar. Era preciso matar no ovo a serpente chamada Samuel
Wainer.
Sua primeira decisão nesse sentido foi destacar o melhor repórter da
cadeia, David Nasser, para se juntar em tempo integral a Lacerda e a Ar-
mando Falcão (que lhe parecia o deputado mais interessado na destruição de
Última Hora). Para Samuel Wainer, a escolha de Chateaubriand não podia ter
sido pior. Além de Nasser ser um jornalista experiente, com um faro singular
para a investigação de casos intrincados, o dono de Última Hora temia que ele
tivesse um motivo a mais para destruí-lo: o ciúme. Afinal, fora Wainer, com
a famosa entrevista com Getúlio, que o destronara do papel de principal
repórter dos Associados. Depois de atribuir a David Nasser a tarefa de
"reduzir a pó tanto Wainer como seu jornal infecto", Chateaubriand deu o
golpe de misericórdia: suas duas estações de televisão, no Rio e em São Paulo,
deveriam ser colocadas à disposição de Lacerda para que ele popularizasse a
campanha contra Wainer.
Para Lacerda, Wainer e os empréstimos feitos pelo Banco do Brasil à
Última Hora eram apenas o pretexto de que precisava para atingir seu ver-
dadeiro alvo, Getúlio Vargas. A Chateaubriand importava pouco que o go-
verno tivesse ou não emprestado dinheiro a quem quer que fosse: o que ele
não podia era permitir o crescimento incontrolável de um concorrente pe-
rigoso, cujos primeiros passos eram idênticos aos que ele dera nos anos 20 e
30. E Samuel Wainer, por sua vez, a avaliar pelo julgamento que fez de
Chateaubriand nas gravações que deixou para serem transformadas em livro
depois de sua morte, parecia farejar quais os objetivos de um e de outro na-
quela guerra de que ele era a primeira vítima:
[...] Chateaubriand é que foi meu grande adversário, não Carlos Lacerda. Foi
Chateaubriand quem trouxe a tv brasileira para o primeiro plano da influência
política, ao abri-la para o Lacerda na campanha contra mim e a Última Hora.
Lacerda foi um auxiliar acidental, que ficava na cena de frente.
[...] Quando acordava um velho banqueiro como o José Maria Whitaker, de
São Paulo, e o levava até o inferno da Amazônia pa ra batizar um avião, no
fundo o Chateaubriand estava se vingando. Ele estava provando à mais alta
burguesia que era ele quem comandava o espetáculo.
[...] Quando ele criou aquela Ordem do Jagunço, eu vi gente da mais alta
responsabilidade se expor ao ridículo de botar um chapéu de cangaceiro e tirar
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FERNANDO MORAIS
uma foto só para sair na primeira página. Chateaubriand fez isso com Winston
Churchill, o homem que salvou o mundo!
[...] Nunca perdoei a revista Veja por chamar-me de "Cidadão Kane". O ver-
dadeiro "Cidadão Kane" foi Assis Chateaubriand.
O que Samuel Wainer aparentemente não sabia, quando começou a fuzi-
laria contra a Última Hora, é que o pecado de que era acusado (tomar dinheiro
do Banco do Brasil para montar ou sustentar meios de comunicação) era algo
tão comum na maior parte da imprensa brasileira quanto imprimir e vender
jornais. Enquanto a Última Hora era colocada no pelourinho por ter tomado
26 milhões de cruzeiros emprestados ao banco oficial, a Carteira de Crédito
Geral do mesmo Banco do Brasil registrava um débito de 50,4 milhões de
Roberto Marinho (proprietário do jornal O Globo e de uma estação de rádio),
ao passo que os Diários Associados deviam ao Banco do Brasil a soma colos-
sal de 113,6 milhões (quase 3 milhões de dólares da época, ou 14 milhões de
dólares de 1994). Nem mesmo a imaculada Tribuna da Imprensa poderia exibir
castidade naquele caso: mais modesto, até o jornal de Lacerda tinha pen-
durado no Banco do Brasil um "papagaio" de valor equivalente a 100 mil
dólares da época.
Tratava-se, portanto, de um problema de escala, não de princípios. La-
cerda passou por cima destes e, com acesso aos dois canais de televisão,
avançou sobre Wainer. O dono da Tribuna nunca tinha usado a televisão em
sua vida, mas em uma viagem que fizera aos Estados Unidos dois anos antes
ficara fascinado com a capacidade de comunicação do programa de maior
sucesso na televisão americana, o "Life is worth living", apresentado pelo
bispo-auxiliar de Nova York, Fulton Sheen. Anticomunista ferrenho, o bispo
Sheen magnetizava os telespectadores com sua pregação semanal na tevê-
e fazia isso valendo-se apenas de sua oratória, de um quadro-negro e de
alguns gráficos desenhados em cartolinas. Apesar de nervoso e assustado
com as luzes dos refletores e com cãmeras que nunca havia enfrentado antes,
Lacerda precisou de poucos dias para se tornar um sucesso de audiência tão
grande que Chateaubriand deu ordens para que a direção da Tupi aumen-
tasse os cinco minutos diários iniciais que lhe tinham sido concedidos. Como
o bispo Fulton Sheen, colocou um quadro-negro atrás da mesa em que se sen-
tava e ainda inovou, deixando a seu lado um telefone à disposição dos teles-
pectadores que quisessem fazer perguntas. Num dos primeiros dias da cam-
panha no Rio (ele se revezava fazendo apresentações na capital do país e em
São Paulo), um telespectador ligou querendo saber o que é que a população
tinha a ver com aquela briga comercial entre jornais. Certamente lembrando-
se das apresentações do bispo Sheen, Lacerda contou em suas memórias que
aproveitou aquela pergunta providencial para chegar aonde queria: em Ge-
túlio Vargas:
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Eu aí fui para o quadro-negro, tracei assim um sol e uma porção de satélites. Lá
embaixo eu fiz um satélite pequenininho e escrevi Última Hora, e disse: "Estou
aqui, daqui eu vou passar aqui". O outro satélite era o Banco do Brasil. "Daqui
vou passar para aqui", e apontei para o sol e escrevi "Getúlio Vargas". Quer
dizer: graficamente os ouvintes tiveram a impressão de que aquilo tinha um
alcance muito maior do que pensavam no começo.
Diante da repercussão das aparições de Lacerda, Chateaubriand aumen-
tou para meia hora o tempo de suas apresentações e mandou que aparelhos
de televisão fossem instalados em pontos estratégicos do Rio e de São Paulo
para que também o homem da rua pudesse acompanhar o lento esquarteja-
mento da Última Hora e de seu dono. Mas o pior ainda estava por vir. No dia
12 de julho de 1953, os mais importantes jornais de Chateaubriand publi-
cavam uma mesma manchete, fruto de uma pista que Da vid Nasser, com a
ajuda de Armando Falcão e Carlos Lacerda, vinha perseguindo fazia vários
dias: "Wainer não nasceu no Brasil". Nasser conseguira pescar nos arquivos
do Ministério da Educação um documento do Colégio Pedro II, do Rio, onde
Wainer estudara. No tal papel o irmão mais velho deste, Artur, revelava que
o jornalista havia nascido em Edenitz, uma aldeia da Bessa rábia - parte da
Transilvânia transformada em território da União Soviética depois da Se-
gunda Guerra Mundial. Em seu livro póstumo Minha razão de viver, Wainer
descreve o abalo que a notícia produziu:
[...] Compreendi de imediato que a manobra teria um impacto fortíssimo.
Primeiro porque eu sempre estivera na vanguarda das campanhas nacionalistas
- o nacionalismo talvez fosse a principal bandeira da Última Hora, e ficaria difí-
cil sustentar tal postura na condição de estrangeiro. Depois porque a denúncia
suscitaria uma complicada questão legal, já que, segundo a Constituição, tanto
estrangeiros quanto brasileiros naturalizados não podem ser donos de jornal.
Pressenti que a denúncia poderia semear o pânico na redação: e se me tomassem
a Última Hora?, certamente se perguntaria o meu pessoal. Preparei-me para a luta
consciente de que, desta vez, eu estaria francamente na defensiva.
[...] Li o jornal
de Chateaubriand. Ali se afirmava, em letras garrafais, que eu não era brasileiro.
Ao ser intimado a depor sobre aquela acusação em um distrito policial
situado na zona de meretrício do Rio, e depois de ver o pai ser submetido em
São Paulo a humilhações em outra delegacia de polícia, pelas mesmas
razões, Samuel sentiu que deixara de contar com o apoio do Palácio do
Catete, que até então nunca lhe faltara. Para agravar ainda mais sua situação,
seu irmão José, tentando tirá-lo daquela enrascada, conseguiu desenterrar
no Ministério do Trabalho um documento que atestava que sua família
havia chegado ao Brasil em 1905 (e não em 1915, como afirmava o papel
descoberto por Nasser) - oito anos, portanto, antes de seu nascimento. Ape-
sar de aconselhado a guardar a cópia do novo documento para usá-la no
momento mais apropriado, Wainer foi pressionado pela redação a publicá-
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FERNANDO MORAIS
la e o fez ruidosamente, dando-a como manchete de Última Hora do dia
seguinte: "Chega ao fim a grande chantagem". Foi uma vitória que só durou
48 horas. Nasser, Lacerda e Falcão foram até o arquivo do Ministério do
Trabalho onde a cópia fora feita, localizaram o original e, depois de um
exame grafológico sumário, comprovaram que o irmão de Wainer havia
rasurado o documento: onde estava escrito 1920 ele escrevera 1905.
O inferno de Wainer, no entanto, ainda não chegara ao fim. Foi dele a
desastrada iniciativa de sugerir au governo que apoiasse a instalação de uma
Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara Federal para apurar as relações
do Banco do Brasil com a imprensa. O jornalista imaginava que a maioria go-
vernista permitiria que a CPI, controlada por deputados da situação, investi-
gasse as dívidas que ele suspeitava que também seus algozes tivessem con-
traído no Banco do Brasil. O resultado da manobra pode ser medido por
suas próprias palavras:
Foi meu grande erro. Primeiro eu deveria ter percebido que a maioria governista
no Congresso era fictícia - muitos deputados não hesitaram em atraiçoar o pre-
sidente. Segundo, mesmo parlamentares francamente getulistas não tinham
maior simpatia por mim; faltavam-lhes, portanto, motivos para defender-me.
Mais grave ainda, só depois constatei que, quando propus a formação da CPI,
Lacerda estava perdendo fôlego. Talvez prosseguisse na campanha, movido por
seu ódio inesgotável, mas o certo é que começava a faltar-lhe combustível.
Lacerda entendeu imediatamente que a CPI lhe forneceria o palco ideal para o
show de falso moralismo que sempre soube encenar.
Acuado por todos os lados e obrigado a transferir o controle da Última
Hora para Luís Fernando "Baby" Bocaiúva Cunha, um de seus diretores, Sa-
muel teria sua mais amarga surpresa ao saber que Getúlio dera ordens ao
Banco do Brasil para executar toda a dívida do jornal em oito dias. Durante
toda a crise, os Associados reforçavam as aparições de Lacerda na televisão
com reportagens de Nasser nos jornais do Rio e de São Paulo (refeitas e pu-
blicadas com estardalhaço toda semana em O Cruzeiro) e com artigos diários
de Chateaubriand, que cresciam em virulência a cada dia que se passava e
que batiam insistentemente na mesma tecla: o plano de Samuel Wainer era
destruir os Diários Associados a médio prazo, a mando de Getúlio. Quando
o dono da Última Hora parecia estar fora de combate, ele escreveu um artigo
intitulado "Agora, evacuemos este cadáver", no qual parecia chegar ao
paroxismo no ódio a seu ex-repórter:
O que aí resta é uma carniça. Que o sol e us vermes a comam. Morto, Samuel
Wainer quer envenenar com o seu cadáver o tecido social da nação. Como?
Tentando fazer-se passar por vítima perante as massas. Vamos reduzir
o assun-
to Última Hora ao que ele é: a liquidação de um trapaceiro bisonho, sem talento
para exercer a sua arte. Ele não merece as proporções garrafais que insistem em
atribuir-lhe alguns jornais. O magnífico Carlos Lacerda que entre em merecidas
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FERNANDO MORAIS
férias por seu maravilhoso labor. E o ministro da Justiça que evacue
o cadáver de
Wainer.
Assombrado com o que lera em O Jornal, Otto Lara Resende achou que
era preciso tentar amansar Chateaubriand. Amigo de Wainer, ele era muito
respeitado pelo dono dos Associados, com quem mantinha relações amis-
tosas. Otto procurou-o em seu gabinete no Senado e entrou cuidadosamente
no assunto:
- Doutor Assis, eu li seu artigo de hoje no jornal e gostaria de fazer algu-
mas considerações.
Chateaubriand só ouvia, desconfiado. Mesmo sabendo que "quando
entrava numa briga ele não tinha qualquer inibição de ordem moral", Otto
prosseguia, procurando "mexer no ego dele, que era enorme, e fazê-lo desis-
tir daquela campanha":
- Doutor Assis, a águia não pode descer ao galinheiro. O senhor tem
tantas causas nobres para combater e no entanto está descendo muito, está
entrando no campo da mesquinharia. Um general como o senhor não pode
usar metralhadora para matar galinha...
Sentado na sua cadeira de senador, ele cortou a frase do interlocutor pela
metade:
- Seu Otto, essa sua argumentação é tão cretina quanto o patife que o
senhor veio aqui defender. Não toque mais nesse assunto comigo.
A bola-de-neve que inadvertidamente Natalício Norberto começara a
rolar iria adquirir, um ano depois, proporções absolutamente incontroláveis.
Decidido a transformar a oposição a Getúlio numa questão de vida ou morte,
na madrugada do dia 5 de agosto de 1954 Lacerda acabaria sendo vítima de
um atentado à porta de seu apartamento à rua Toneleros, em Copacabana,
quando o major da Aeronáutica Rubens Florentino Vaz, que acompanhava
o dono da Tribuna, perdeu a vida, vítima de tiros disparados por pisto-
leiros. Um Inquérito Policial Militar instalado na Base Aérea do Aeroporto
do Galeão (que a imprensa apelidou de "República do Galeão") comprova-
ria que o mandante do crime tinha sido Gregório Fortunato, o chefe da guar-
da pessoal de Vargas. Na última semana de agosto, as Forças Armadas
exigiram que Getúlio se licenciasse da Presidência para que as responsabi-
lidades pelo chamado "mar de lama" pudessem ser apuradas a salvo de
pressões oficiais.
Às cinco e meia da fria madrugada de 24 de agosto, o repórter Arlindo
Silva, de O Cruzeiro, chegou ao Palácio do Catete, destacado pela revista para
cobrir o final da reunião ministerial que se iniciara no dia anterior e que
varara a noite. Era a primeira vez que o jornalista entrava no palácio presi-
dencial, e ao chegar viu que a reunião estava terminando. Quando Lourival
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Fontes, chefe da Casa Civil, começou a encher o porta-malas do carro com
caixas de papéis retirados de suas gavetas, Arlindo Silva entendeu que
Getúlio tinha optado por se submeter ao pedido de licença imposto pelos mi-
litares. Com o fim da reunião ministerial todos os repórteres foram embora.
Ao ver ninhos e metralhadoras e trincheiras de sacos de areia atrás das fi-
gueiras dos jardins do palácio, Arlindo decidiu permanecer por ali, temendo
que quando o dia clareasse o acesso à imprensa pudesse ser proibido - por
segurança, o melhor era ficar de uma vez do lado de dentro do Catete. Às seis
da manhã, viu a mulher do presidente, Darcy Vargas, aparecer numa janela,
de óculos escuros, chorando e sendo consolada por parentes. O repórter ficou
zanzando pelos jardins e pelo saguão principal do palácio sem ter o que fazer,
até que, pouco depois das oito e meia da manhã, viu sair da ala residencial
o diretor do DasP (Departamento Administrativo do Serviço Público), Arí-
sio Viana, em estado de desespero, procurando uma telefonista de plantão e
gritando:
- Chamem o pronto-socorro, que é um ferimento grave.
Não conseguindo linha telefônica para ligar para fora, Viana deu um
murro na mesa e falou:
- Como é que deixaram esse homem sozinho, meu Deus?
Ele pedia que alguém tentasse usar os telefones oficiais (que o repórter
percebeu que também não funcionavam direito) para chamar um médico e
andava de um lado para o outro, atônito. Arlindo Silva resolveu agir por
conta própria: caminhou até um telefone da Light, nas imediações, ligou para
o pronto-socorro municipal da praça Mauá e pediu uma ambulância com
urgência no Palácio do Catete "para um caso de ferimento grave - ele ima-
ginava que algum familiar de Getúlio tivesse sofrido um acidente. Três minu-
tos depois chegava a ambulância com a sirene ligada e estacionava diante de
uma porta interna, por onde entraram um médico e dois enfermeiros. Os três
tomaram o elevador privativo que levava ao segundo andar, onde o presi-
dente dormia. Passaram-se alguns instantes e o médico desceu, transtornado,
e comentou com o repórter:
- Não há mais remédio. O presidente está morto.
Getúlio Vargas tinha acabado de dar um tiro no coração. Arlindo Silva
correu novamente ao telefone e ligou para a redação de O Cruzeiro pedindo
um fotógrafo. Minutos depois, chegava ao Catete um batalhão deles, forma-
do por Mário de Moraes, Indalécio Wanderley, Antônio Rudge, Keffel Filho,
Badaró Braga, Jorge Audi, João Martins e José Medeiros. Pouco mais de 24
horas depois do suicídio, O Cruzeiro estava nas bancas com doze páginas
especiais sobre a morte do presidente, enxertadas de última hora na edição
que estava sendo impressa. Fechando a reportagem, a revista publicou uma
foto impressionante, de página inteira: um close do rosto de Getúlio morto,
ainda na cama em que se matara, com um lenço segurando o queixo, onde
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FERNANDO MORAIS
se podia ver uma pequena gota de sangue ressecado no canto esquerdo da
boca. A paciência e o instinto jornalístico de Arlindo Silva aumentariam em
50% a tiragem da revista, levando-a para 720 mil exemplares vendidos em
banca - patamar em que O Cruzeiro permaneceria por muitos meses, uma
regularidade cujo recorde jamais seria quebrado na imprensa brasileira por
qualquer outra publicação do gênero.
A comoção que o suicídio de Vargas produziu no Brasil bateu às portas
dos Associados sob a forma de pânico. Chegara a hora de dar o troco à vi-
rulência com que o presidente morto havia sido tratado pelos jornais da
cadeia e ao "contubérnio entre Lacerda e Chateaubriand", como gritavam
pelas ruas oradores trepados em capotas de automóveis. Faixas e palavras de
ordem de passeatas de sindicalistas e estudantes pediam "morte a Lacerda e
Chateaubriand" pelas ruas das capitais. Carros de reportagem e de distribui-
ção de O Jornal e do Diário da Noite, no Rio, eram apedrejados, virados de
rodas para cima e incendiados pelas turbas. Em Porto Alegre, depois de ape-
drejar o consulado americano, a agência do Citibank, a sede local da Coca-
Cola e até a Boite Americana, as hordas populares invadiram os prédios onde
funcionavam os veículos Associados (as rádios Farroupilha e Gaúcha e o
Diário de Noticias) e transformaram em pó o que viram pela frente. Diante de
uma polícia impassível, depois de atirar pelas janelas máquinas de escrever,
teletipos e todos os móveis que encontraram, os populares desceram de novo
à rua e incendiaram completamente os dois prédios. Dos Diários Associados
na capital gaúcha só restou intacta a torre de transmissão da Farroupilha, que
as chamas não conseguiram destruir. Ao todo, o prejuízo seria calculado em
50 milhões de cruzeiros (1 milhão de dólares de então, 5 milhões de dólares
de 1994).
Ainda na manhã do dia 24, ao chegar à redação de O Jornal e ser infor-
mado do suicídio do homem a quem acompanhava fazia um quarto de século
- e a quem devia boa parte de seu patrimônio e seu mandato de senador -,
Chateaubriand teve uma reação surpreendente para os que, à sua volta, espe-
ravam uma frase de efeito. Muito sério, o dono dos Associados disse apenas:
- Vou candidatar-me à vaga dele na Academia Brasileira de Letras.
Nos dias que se seguiram à morte de Getúlio, Chateaubriand publicaria
uma sucessão de artigos analisando o último gesto do presidente, traçando
seu perfil e falando de suas relações com ele desde o remoto ano de 1927:
Getúlio trocou a vida pela morte. Assim agindo, pode não ter andado certo, no
conceito deste ou daquele, mas foi heróico, foi civicamente altivo, foi estetica-
mente belo - e moralmente generoso, pelo menos com os que o procuraram
para dividir com ele o patrimônio de sangue que carregavam. Os inertes, os
afônicos, os mudos, os surdos, os que não trouxeram nenhuma mensagem a este
planeta, podem morrer na cama. Mas esta abjeção não aconteceria com Vargas,
que representava um fragmento de aluvião na safra, no solo estêril que viera
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
palmilhar. Suicidando-se, como Balmaceda e como Hitler, ele próprio decidiu o
resultado da peleja em que estava empenhado.
[...) Minha vida sentimental com Vargas, se não foi, à Machado de Assis, "um
dramalhão cozido a facadas", resultou sempre numa comédia trabalhada a
canivetada Não pensem que escapei incólume aos copiosos banhos turcos em
que ele cozinhava os companheiros. Vargas tinha a volúpia de enganar, daí as
pequenas misérias conjugais de nossa longa existência em comum.
[...] Vargas foi o último senhor de escravos deste país. Tinha uma casa-grande
e uma senzala onde juntava seus pretos, os pretos de estimação: Góis Monteiro,
Osvaldo Aranha, João Neves, Juraci Magalhães, Alexandre Marcondes, Bene-
dito Valadares, Batista Luzardo, Gustavo Capanema, e por que me excluir? Po-
diam seus pretos zangar-se com ele, mas Vargas nunca despediu, para sempre,
um só deles. Ele tinha saudade dos seus pretos e os pretos dele.
[...] No fundo Getúlio Vargas gostava de mim porque eu era um canalha igual
a ele - que sabia que eu manobrava com ele quase sempre com o propósito de
enganá-lo, como ele enganava a mim.
Antes que o ano terminasse, Chateaubriand cumpria a promessa feita
logo que teve notícia da morte de Vargas: por 31 votos a três (dois dados
respectivamente a Renato de Mendonça e Petrarca Maranhão, e um em bran-
co), ele se tornava titular da cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras, cujo
patrono é Tomás Antônio Gonzaga e na qual até três meses antes se sentava
o falecido presidente da República. À exceção dos Diários Associados, que
saudaram a eleição do dono como "uma contribuição da agilidade do jorna-
lismo à mais importante casa de letras do Brasil", a presença de Chateau-
briand na ABL conseguiu desagradar indistintamente a todos, da esquerda à
direita. O implacável Barão de Itararé dedicaria ao fato uma página inteira de
A Manha, onde Chateaubriand era apresentado como "Assaz Chatobrião, o
homem que vai transformar a Academia no quartel-general de um movi-
mento subversivo cujo objetivo é utilizar as belas letras para fins menos lite-
rários e mais práticos". Segundo o editor de A Manha para dar cabo de sua
missão Chateaubriand "bate-se por uma série de reivindicações, que podem
ser resumidas nos seguintes pontos :
1) Uniformização das letras, criando-se um tipo de literato "standard"
(Standard Oil, naturalmente).
2) Transformação das belas letras em belas letras de banco.
3) Reforma física da fisionomia da Academia, com modificações de fachada,
modernização de seu mobiliário e ampliação da lotação do recinto.
4) A Casa de Machado de Assis passará a se chamar simplesmente Casa de
Assis. Sem Machado, mas de Picareta.
5) As velhas poltronas serão substituídas por bancos simbólicos - banqui-
nhos ou tamboretes -, que darão ao ambiente um caráter tipicamente finan-
ceiro.
6) A Casa de Assis desenvolverá ao máximo a indústria do livro, com folhas
picotadas, para que o escritor possa apor em cada folha seu apreciado autógrafo.
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FERNANDO MORAIS
Esses livros (livros de cheques) serão de real valor, de fundo sólido, ou simples-
mente obras de ficção e aventuras (cheques sem fundos).
7) Dado o grande número de banqueiros com fumaças de intelectuais (Mário
Brant, Gabriel Corte Imperial, Marino Machado, Ovídio de Abreu. etc.), é pensa-
mento de Assis propor o aumento do número de acadêmicos para cem, dos quais
quarenta ficarão sentados e sessenta em pé, como nos ônibus.
Do outro extremo, o jornalista católico ultraconservador Gustavo Corção
(que depois da mudança de Alceu Amoroso Lima para os Estados Unidos o
substituíra na direção do Centro Dom Vital) publicaria na Tribuna da Imprensa
o artigo "Tirem dali o Machado de Assis ". Depois de lembrar o baile de Corbe-
ville e a manobra para que Chateaubriand pudesse se eleger senador, Corção
escreveu que passara dias antes na avenida Presidente Wilson (onde fica a sede
da Academia) e, diante "de um prédio amarelo-sujo, agora mais sujo que ama-
relo", ouviu uma estátua de bronze gritar:
Tirem-me daqui! Derretam-me. Antes ser vaso, colher, caçarola... Ah, se
fizessem sino. . .
Era a estátua de Machado de Assis, patrono da ABL, cujo "apelo" Corção
subscrevia em sua coluna: "E, se é preciso explicar, explico: tirem dali a está-
tua, porque doravante a Casa de Machado de Assis é a casa de Mãe Joana.
Tirem dali o bronze e o nome do autor de Brás Cubas, porque o nome do mais
fino dos brasileiros é incompatível com a presença do mais grosso dos par-
venus".
Impávido, Chateaubriand não deu a menor atenção a tais ataques. Na-
quele final de 1954, ele estava preocupado era com a manutenção de seu man-
dato de senador, que se encerrava dali a algumas semanas. Em outubro have-
ria eleições para renovar dois terços do Senado e ele decidiu candidatar-se à
reeleição. Prevendo sua derrota, o ex-governador Ademar de Barros, de São
Paulo, oferecera-lhe uma legenda pelo seu Partido Social Progressista
(PSP),
pelo qual garantia a eleição por São Paulo. Confiante em sua própria força (e
no fato de que, afinal, haveria duas vagas em disputa também na Paraíba), o
jornalista acabou decidindo sair candidato por seu próprio estado.
Desta vez, no entanto, as coisas foram diferentes. Chateaubriand tinha
contra si, em primeiro lugar, a ojeriza notória que a anônima figura do eleitor
lhe despertava. Considerando o clientelismo uma atividade desprezível da
política, nunca atendera a um único eleitor no Senado, jamais fizera um favor
pessoal a quem quer que fosse, não arranjava empregos ou sinecuras para
ninguém. E, além de tudo isso, em seus dois anos de mandato não pusera os
pés na Paraíba uma única vez.Para enfrentá-lo nas urnas, a UDN lançava agora
dois pesos-pesados: o ex-interventor, ex-governador e deputado federal Arge-
miro de Figueiredo e o rico empresário João Arruda, dono de uma grande
indústria têxtil local.
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Apesar de acuado, Chateaubriand preferiu permanecer em São Paulo fa-
zendo a campanha de seu amigo Horácio Lafer a deputado federal. Repetindo
o comportamento de 1952, na única viagem que fez à Paraíba foi a poucas
cidades e continuou remando contra a maré: mesmo acusado de "entreguista"
pelos adversários, carregava no carro um caixote de latas de querosene da
Esso, no qual subia para fazer os comícios. "Tenho aqui a meus pés, ajudando
a minha campanha eleitoral", dizia ele pelo interior afora, "o apoio decidido
da Standard Oil." Seus discursos continuavam incompreensíveis. Na cidade-
zinha de Esperança, por exemplo, disse que, embora estivessem sob a legenda
"da reacionária UDN", seus dois adversários eram agentes do Comintern - a
Internacional Comunista, com sede em Moscou, que já havia sido extinta. Em
Currais Novos, não fez exatamente um discurso para os vaqueiros que o
ouviam, mas uma acadêmica reflexão sobre o pensador suíço Jean-jacques
Rousseau ("Vós tendes uma semelhança com o Contrato social de Rousseau",
gritou de cima do caixote. "Possuís o governo da 'segunda natureza', segun-
do a vossa natureza, segundo a nossa natureza. Nascestes livres e viveis livres
debaixo desses couros, dentro destas caatingas, das quais insistis em conti-
nuar mandões"). Só na manhã seguinte é que o candidato se daria conta de
que, sem perceber, atravessara a divisa da Paraíba: Currais Novos fica no
Estado do Rio Grande do Norte. Enquanto isso, Argemiro de Figueiredo
prometia água, escolas, estradas, e João Arruda distribuía dinheiro. Quando
faltavam poucos dias para as eleições, a UDN desenterrou e distribuiu, aos mi-
lhares, um velho artigo em que Chateaubriand propunha a anexação da Pa-
raiba a Pernambuco como única saída para o desenvolvimento do estado. Foi
a gota d'água. Embora não chegasse a ser vergonhoso para alguém tão ex-
travagante, o resultado das urnas confirmou o que Ademar previra: João
Arruda foi o mais votado, com 110 mil votos, seguido por Argemiro de Fi-
gueiredo, que recebeu 109 mil votos. Mesmo com surpreendentes 103 mil
votos, Chateaubriand estava fora do Senado.
Uma única vez alguém o ouviu queixar-se da derrota. Ao perguntar-lhe
como interpretava o resultado das eleições, o jornalista Nertan Macedo rece-
beu uma frase seca como resposta:
- Eu não podia mesmo ser escolhido senador por uma gente cretina,
ingrata e atrasada como aquela.
Sua obstinação agora estava voltada exclusivamente para um objetivo: o
que fazer para voltar ao Senado. A primeira porta em que bateu foi a do mi-
nistro da Fazenda que impusera ao presidente Café Filho (vice-presidente de
Vargas, Café assumira o governo depois do suicídio), seu velho amigo
Eugênio Gudin. Avesso à política, Gudin nada podia fazer. O jornalista resol-
veu recorrer a Juscelino Kubitschek, governador de Minas e candidato em
potencial às eleições de outubro do ano seguinte, 1955, à Presidência da
República pelo PsD. Ele reagiu como Getúlio no caso da Paraíba, passando o
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FERNANDO MORAIS
problema para diante: mandou Chateaubriand procurar Tancredo Neves,
antigo secretário de redação no Estado de Minas nos anos 30, ex-ministro da
Justiça de Getúlio e agora o coordenador político da campanha de Kubitschek
à Presidência. Tancredo ouviu-o pacientemente e tentou fazê-lo ver que
daquela vez não havia saída: o desgaste político sofrido pelo PSD com a bar-
ganha para que ele se elegesse senador pela Paraíba em 1952 fora muito
grande, e em um período de eleições presidenciais como aquele não valia a
pena correr riscos. Chateaubriand deu um ultimato: ou o PSD arranjava uma
vaga de senador para ele ou os Diários Associados não assumiriam qualquer
compromisso com a candidatura do partido à Presidência da República. E
mais: ele já tinha feito um levantamento, estado por estado, e, por exclusão,
escolhera o lugar mais apropriado para repetir a "operação Paraíba":
- Doutor Tancredo, desta vez é nas costas do Maranhão que nós vamos
cravar o nosso punhal.
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32
No dia 18 de novembro de 1954, Tancredo Neves desembarcou de um
avião da Nacional no aeroporto de Tirirical, em São Luís, pronto para cravar
o punhal de Chateaubriand nas costelas do PSD do Maranhão. Acompanhado
do senador Vitorino Freire, chefe inconteste da política local, e do vice-go-
vernador Renato Archer, Tancredo viajara para tentar quebrar as resistên-
cias à fórmula que levava no bolso para atender aos desejos do dono dos Diá-
rios Associados - uma operação idêntica à que tinha sido posta em prática
com tanto sucesso na Paraíba em 1952: em resumo, tanto o senador Antônio
Baima quanto seu suplente Newton Belo (eleitos em 1950 para um mandato
que se estenderia até 1958) teriam de renunciar para que o TRE convocasse
novas eleições. Aí restava ao PSD demonstrar força e eleger Chateaubriand
para a vaga aberta.
Ao escolher o estado em que pretendia arrancar um novo mandato de
senador, Chateaubriand não pousara casualmente o dedo sobre o mapa do
Maranhão. Aquela, ele sabia, era uma cidadela onde o invencível PSD reina-
va a salvo de qualquer ameaça. O "vitorinismo", nome com que era conhe-
cida a majoritária corrente que seguia Vitorino Freire, havia dado provas
mais que suficientes de que era imbatível nas urnas, qualquer que fosse o
candidato. "Se Vitorino quiser", dizia-se pelas esquinas de São Luís, "pega
um cachorro sem dono nas ruas da cidade e faz dele vereador ou deputado."
Se elegia um vira-lata, o jornalista imaginou, não teria problemas para fazê-
lo senador.
Tanto Vitorino quanto o governador Eugênio de Barros, no entanto, te-
miam, como ocorrera a princípio a Tancredo, que a manobra pudesse redun-
dar em um desgaste muito grande para o partido, a poucos meses de uma
eleição presidencial. Não era justo, eles alegavam, que o Psd maranhense pa-
gasse um preço tão alto pela virtude de ser eleitoralmente invencível. Tan-
credo argumentou que era exatamente a candidatura de Juscelino que esta-
va em jogo - o apoio dos Diários Associados era uma peça indispensável à
eleição -, e depois de candentes apelos em nome da solidariedade partidá-
ria acabou dobrando a liderança do PSD. Restava um problema: o que seria
oferecido a Baima e Belo em troca da renúncia? Com Café Filho na Presidên-
cia não havia, como no episódio da Paraíba, cargos federais que pudessem
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FERNANDO MORAIS
ser distribuídos. Mas também para aquele problema Tancredo tinha a solu-
ção: além de suplente de senador, Newton Belo era deputado federal - e
portanto podia simplesmente assumir sua cadeira na Câmara. Seu destino
estava resolvido. Quanto a Baima, Chateaubriand havia se comprometido a
nomeá-lo diretor dos laboratórios Schering (além disso, segundo o que foi
noticiado pela imprensa, o senador exigiu um documento que lhe asseguras-
se o direito de receber todos os subsídios pagos pelo Senado até que o man-
dato chegasse ao fim). Para fechar com chave de ouro a negociação, Tancre-
do ainda anunciou em nome de Kubitschek que, eleito presidente, este
nomearia o governador Eugênio de Barros ministro da Agricultura (promes-
sa que acabou não sendo cumprida).
Selado e sacramentado o acordo, tudo indicava que a "operação Paraí-
ba" iria se repetir sem transtornos, quando surgiu um problema que não ti-
nha sido previsto por Vitorino, Chateaubriand e muito menos pelo mineirís-
simo Tancredo Neves: o Maranhão decidira resistir à barganha política. A
primeira reação aconteceria dentro do próprio PSD: os deputados estaduais
Raimundo Bogéa e Nunes Freire (que no regime militar viria a ser governa-
dor nomeado do estado) e o suplente de deputado federal José Sarney (futu-
ro presidente da República) lideraram um grupo que se desligou imediata-
mente do partido e se filiou à UDN. Ato contínuo, juntaram-se em aliança
com um grupo do PSP local, composto pelo deputado federal Clodomir Mil-
let e por três jornalistas maranhenses que viviam no Rio: Odilo Costa Filho,
Franklin de Oliveira e Neiva Moreira (estes dois dos Diários Associados).
Neiva se candidatara a deputado federal pelo PSP nas eleições de outubro de
1954, obtendo a primeira suplência de sua chapa. Estava formado o "Comi-
tê de Resistência", que logo receberia a adesão de todos os partidos oposi-
cionistas locais, inclusive o proscrito Partido Comunista, e que passaria a ser
conhecido como as "Oposições Coligadas".
A primeira reação de Chateaubriand foi instantânea: ao ler O Jornal do
dia seguinte à montagem daquela frente de oposição, Neiva Moreira soube,
por uma notinha publicada num canto de página, que tinha sido demitido
do emprego "por incompatibilidade moral com o programa e a vida dos
Diários Associados". Apesar do prestígio de sua coluna "Sete dias" em O
Cruzeiro, Franklin de Oliveira teria destino idêntico. Solidário, Clodomir Mil-
let licenciou-se de seu mandato de deputado federal para que Neiva pudes-
se assumir uma cadeira no Congresso, de onde enfrentaria Chateaubriand
com maior repercussão e se tornaria uma espécie de porta-voz nacional da
resistência à eleição de seu ex-patrão.
Decididas a lançar um candidato para enfrentar Chateaubriand nas ur-
nas, as "Oposições Coligadas" saíram em busca de um nome que pudesse
combater de igual para igual o dono dos Associados. A primeira escolha re-
caiu sobre a condessa Maurina Dunshee de Abranches Pereira Carneiro, ma-
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ranhense e viúva do conde Ernesto Pereira Carneiro. Avessa à política par-
tidária, no entanto, a austera proprietária do Jornal do Brasil nem chegou a co-
gitar da hipótese de disputar uma eleição (e muito menos contra Chateau-
briand). A notoriedade que a Aeronáutica tinha adquirido com os episódios
que culminaram com o suicídio de Getúlio levou as "Oposições Coligadas",
na falta de alternativa melhor, a optar pelo tenente-coronel aviador Arman-
do Serra de Menezes, maranhense e comandante da zona aérea que compre-
endia todo o Norte do país. Para seu suplente foi escolhido aquele que os
oposicionistas entendiam ser "um nome nacional" (expressão que se trans-
formaria em slogan) - o do jornalista Franklin de Oliveira.
Desta vez, ao contrário do que ocorrera na Paraíba em 1952, a grita con-
tra a manobra para eleger Chateaubriand não se restringiria ao estado do
Maranhão. Empossado deputado, Neiva Moreira somava minutos consegui-
dos com líderes de partidos anti-PSD e conseguia passar boa parte da tarde
na tribuna, insistindo sempre no mesmo e exagerado tema: se o governo não
impedisse aquela manobra, o Maranhão iria se transformar "na Sarajevo
brasileira" - numa referência à cidade iugoslava onde tinha ocorrido o
assassinato do arquiduque Ferdinando, herdeiro do trono do Império aus-
tro-húngaro, estopim da Primeira Guerra Mundial. Mobilizados por Odilo
Costa Filho (a quem o dono dos Associados só se referia como "o Vaca Ato-
lada") e Franklin de Oliveira, inimigos de Chateaubriand surgiam em todas
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FERNANDO MORAIS
as redações. A cobertura da "negociata maranhense" era garantida em O Es-
tado de S. Paulo por Rafael Correa de Oliveira e por Joel Silveira (que também
deixara os Associados brigado) no Diário de Noticias. Na Última Hora, a luta
contra Chateaubriand dispensava padrinhos: depois da campanha do ano
anterior, todos no jornal o odiavam. Acuado pelos repórteres, o renunciante
Antônio Baima era obrigado a dar explicações à imprensa onde quer que
aparecesse. "Juro pela minha honra, pela memória do meu pai, por tudo o
quanto há de mais sagrado, que não recebi um centavo por minha renúncia",
choramingava diante dos repórteres. "Meu partido resolveu conceder uma
oportunidade ao senhor Assis Chateaubriand e escolheram-me para abrir
a vaga. Cumpri ordens do PsD, nada mais." Os jornalistas insistiam: e o pro-
metido emprego na Schering? "Não é verdade", ele respondia. "Não fui
convidado a dirigir empresa nenhuma. Voltarei ao meu escritório de enge-
nharia e deixarei a política." (Baima mentia. Chateaubriand esperaria pas-
sar alguns meses, e quando o "caso do Maranhão" saiu do noticiário o
ex-senador maranhense foi contratado como vice-presidente não da Sche-
ring, mas do Laboratório Licor de Cacau Xavier, também de propriedade do
jornalista.)
Chateaubriand decidira não responder a nenhuma das críticas da im-
prensa até que apareceu na Última Hora um artigo intitulado "Arranjos polí-
ticos", assinado pela escritora e jornalista Adalgisa Néri (que tinha sido ca-
sada com o pintor Ismael Néri e, em segundas núpcias, com o ex-chefe da
Casa Civil de Vargas, Lourival Fontes, de quem já se separara). Nas páginas
de Última Hora a colunista dava a sua versão sobre o preço da barganha fei-
ta "para que o nosso piloto das milhas aéreas vá pousar no Palácio Monroe ".
Segundo ela, Baima recebera de Chateaubriand e de Vitorino Freire, "o Deus
dos Exércitos do Maranhão", um bom emprego, um ótimo apartamento
"com ar-refrigerado" e "um ou dois Cadillacs". Ao ler aquilo, o dono dos
Associados rabiscou dez linhas em um pedaço de papel, chamou o redator
Maurício Waitsman e mandou publicar como um "A pedidos" na primeira
página do Diário da Noite. Embora sem ser citada nominalmente, Adalgisa
Néri era chamada de "cinqüentona devassa, infiel ao corpo, à alma e à de-
cência conjugal", que tinha sido mobilizada "para esse piquenique de carnes
de vacas desnutridas ". A nota concluía com mais agressão: "Essa infeliz tem
o nosso perdão. É que o tempo já a tendo rifado dos festins de Vênus, ela tei-
ma em ficar nos cartazes, para que, quando dela não se use (por imprestável
para o amor), pelo menos dela se fale". Desta vez o torpedo não seria assina-
do pelo "Macaco Elétrico" nem por "A. Raposo Tavares", mas por "d. Cho-
chota Pestana" (assim mesmo, com ch no lugar do x). No dia seguinte o jor-
nalista assinaria em todos os jornais Associados, com o próprio nome, o
artigo "Uma matrona tarada". Agora Chateaubriand confirmava, para quem,
não entendera o pequeno anúncio, que era mesmo contra Adalgisa (que, em-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
bora não tivesse chegado aos cinqüenta anos, era chamada de "vulgar sexa-
genária") a verrina publicada no Diário da Noite por "d. Chochota Pestana":
Quem calunia sem ter provas deve ser um tarado. Foi o que fez miseravelmen-
te a vulgar sexagenária que inventou, em sua malvadez de virago, que arquite-
tou em sua crueldade de degenerada, que urdiu na sua frieza de alma, desnuda
de um filão de bondade humana, mentiras para difamar os senadores Vitorino
Freire e Antônio Baima. Em sua fantasia depravada, a sórdida alcoveta escreveu
apenas isto: que Cadillacs e apartamentos foram mobilizados por mim para
comprar uma vaga de senador pelo Maranhão.
É a imundície comunista, é a torpeza dos brasileiros assalariados de Moscou
que a miserável foi buscar para lançar contra os homens públicos do Maranhão
e contra o redator desta coluna. Seria contra ela o "A pedidos" que d. Chochota
Pestana trouxe ao nosso balcão há dias? Nenhum de nós acredita. Porque tam-
bém aquilo seria demais para cretina tão parva, para difamadora tão reles.
Até então calado, Chateaubriand resolveu começar a bater. Publicou ar-
tigos contra Neiva Moreira e mandou os Associados reproduzirem com des-
taque, nos jornais do Rio e do Maranhão, o artigo "Paraíba, sim senhor
", pu-
blicado em 1952 em O Cruzeiro, no qual Franklin de Oliveira (agora seu
oposicionista ferrenho) se desmanchava em elogios ao patrão quando da
candidatura deste na Paraíba. E tratou de mobilizar apoios a seu nome. O
primeiro viria, mais uma vez, de Gilberto Freyre. Entrevistado em Gara-
nhuns, no interior de Pernambuco, o sociólogo não só defendia a candidatu-
ra pelo Maranhão como ainda reivindicava o privilégio para seu estado na-
tal. "Era a Pernambuco que cabia essa iniciativa que tanto relevo vai dar ao
Maranhão", disse ele aos repórteres. "Afinal, se nasceu na Paraiba, foi em
Pernambuco que Chateaubriand fez sua formação intelectual." O candidato
Juscelino Kubitschek também sairia em defesa do jornalista, afirmando que,
com a decisão de lançar a candidatura de Chateaubriand, "meu partido não
somente homenageia a figura de um grande brasileiro, como também pres-
ta mais um serviço ao país, pelo brilho de suas atividades e por sua inteli-
gência abrangente". Trechos de uma carta do escritor maranhense Josué
Montello ao dono dos Associados foram distribuídos como notícia a todos
os clientes da Agência Meridional: "Aqui vai meu aplauso maranhense. Há
na sua inquietude criadora uma reserva estupenda de benefícios para minha
terra". Na Câmara Federal, para enfrentar a artilharia montada por Neiva
Moreira, o dono dos Associados iria ter como permanente defensora de sua
candidatura a vigilância do deputado Armando Falcão, seu ex-companheiro
da guerra contra Samuel Wainer.
Pelo menos uma das suspeitas levantadas no artigo escrito por Cha-
teaubriand contra Adalgisa Néri era procedente: os comunistas estavam, de
fato, se mobilizando para impedir a concretização de seus planos no Mara-
nhão. O Imparcial e o Pacotilha/O GloNo, órgãos Associados locais, denuncia-
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FERNANDO MORAIS
ram com enorme destaque que, para reforçar a modesta base comunista ma-
ranhense (chefiada pela aguerrida Maria Aragão), a direção do PCB despa-
chara para São Luís o ex-vereador Aristides Saldanha, do Rio, e, da Paraíba,
os militantes José Gomes, Messias Leite e Plauto Andrade. Os jornais de
Chateaubriand exageravam o noticiário, anunciando que a capital estava
"infestada de agentes vermelhos a soldo de Moscou, enviados pelo Partido
Comunista para apoiar a candidatura do coronel Armando Serra e incen-
diar o estado".
O dono dos Associados ainda teria de transpor uma barreira judicial
montada por seus adversários que quase fez a candidatura naufragar. Quan-
do faltavam duas semanas para a eleição, as "Oposições Coligadas" entra-
ram com um requerimento junto ao Tribunal Regional Eleitoral do Mara-
nhão pedindo a impugnação da chapa do PSD (que tinha como suplente o
nome de expressão meramente regional do desembargador Públio de Melo).
A alegação era a de que Chateaubriand não enviara entre a documentação
exigida a sua folha corrida policial. No dia 7 de março, o TRE decidiu aceitar
o recurso das Oposições e cancelou o registro da candidatura. Chateau-
briand reagiu com fúria. Escreveu o artigo intitulado "Uma vara de porcos-
do-mato" (e ordenou que ele fosse publicado com todo o destaque em seus
jornais de São Luís), no qual analisava a decisão dos juízes do tribunal elei-
toral maranhense:
Trata-se de uma cavalada de alto calibre [...] que só podia passar pela cabeça de
capadócios. A oposição maranhense está morta. É um cadáver que anda por aí,
boiando. Ela pensa vencer por passes de mágica, com as injeções de cafeína que
está recebendo de quatro juízes desalmados, cujas barbas sujas e cujo bodum
africano o Superior Tribunal irá lavar com creolina e sapóleo. Estes
são uma ré-
cua de tarados, destituídos de sombra de asseio moral. São carroças de lixo da
alma e do coração, e na sua canalhice supõem que do arbítrio de sua vontade e
do agravo de sua maioria não existe apelação. Pois enganaram-se, como vão ver.
O gosto da vitória das "Oposições Coligadas" só pôde ser saboreado
por cinco dias. Quando faltava uma semana para o pleito, o Tribunal Supe-
rior Eleitoral acatou o mandado de segurança impetrado por Chateaubriand,
anulando a decisão tomada pelo TRE maranhense e mandando registrar a
candidatura. Alguns dias antes da eleição, marcada para 20 de março, che-
gou a São Luís um dirigente da União Nacional dos Estudantes filiado ao Pc,
levando uma informação preciosa, originária do sindicato dos gráficos cario-
cas: estava sendo impressa nas oficinas Associadas, no Rio, uma edição es-
pecial da revista O Cruzeiro, produzida para circular exclusivamente no Ma-
ranhão como propaganda eleitoral. O reparte, que seria enviado a São Luís
no dia seguinte, trazia Chateaubriand na capa e dentro era recheado por
uma reportagem de dezenas de páginas, escritas por David Nasser, sobre a
vida e as virtudes do candidato a senador pelo PSD. Dias depois, um telegra-
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ma passou em São Luis com detalhes sobre o vôo e a hora da entrega das
revistas na capital maranhense. A ala jovem das "Oposições Coligadas " se
mobilizou para botar as mãos no material antes que ele chegasse a seus des-
tinatários
Quando o avião da Nacional pousou no aeroporto de Tirirical, no come-
ço da noite, os funcionários da companhia aérea encontraram um grupo de
jovens que se apresentaram como funcionários dos Associados locais encar-
regados de retirar a enorme encomenda. Eles tinham ido ao aeroporto a bor-
do de dois minúsculos carros Hillman ingleses, e se espantaram ao ver o ta-
manho da carga a ser desembarcada: eram 60 mil exemplares, volume que
só um caminhão seria capaz de transportar (a versão adotada pelos Diários
Associados diz que o reparte de O Cruzeiro destinado ao Maranhão não che-
gava a 4 mil revistas). Liderados pelo estudante de Direito Luís Telles, os ra-
pazes que estavam no aeroporto eram, na realidade, militantes das "Oposi-
ções Coligadas" que planejavam seqüestrar a edição da revista. Diante da
impossibilidade de transportar aquela montanha de papel nos dois carri-
nhos, voltaram a São Luís. Pediram socorro a José Sarney, que em meia
hora conseguiu emprestado um caminhão para que pudessem retornar a Ti-
rirical. (Revelando uma ingenuidade juvenil, ao saber do problema do trans-
porte o coronel Menezes prontificou-se a requisitar alguns veículos militares
à base aérea local - no que foi prontamente demovido pelos jovens.) Já era
noite quando o caminhão arranjado por Sarney terminava a primeira das
seis viagens necessárias para retirar todas as revistas do aeroporto - o que
reforça a versão de que a tiragem era de fato de 60 mil, e não apenas de 4 mil
exemplares, como noticiaram os Associados. Às onze horas da noite, um ga-
lão de gasolina foi esvaziado sobre a montanha de revistas, em uma praia
deserta de São Luís, e Luís Telles acendeu a fogueira em que aqueles jovens
imaginavam estar incinerando a candidatura de Chateaubriand.
O roubo das revistas fez com que o pleito transcorresse sob grande ten-
são, garantido por tropas federais do Exército e da Aeronáutica. O candida-
to do PSD só apareceu em São Luís no dia das eleições - nem campanha, co-
mo na Paraíba, ele se dispusera a fazer desta vez. Sua única deferência para
com o eleitorado maranhense foi mandar Jorge Edo instalar na capital, al-
guns dias antes da eleição, o mesmo circuito fechado de tv que tanto suces-
so fizera em João Pessoa dois anos antes, e que agora exibia shows com Kei-
la Vidigal e Luís Gonzaga, apresentados por um dos mais famosos locutores
da época, Carlos Frias. Apesar desse olímpico desprezo, a única coisa que as
"Oposições Coligadas" conseguiram queimar de verdade foi a edição de
O Cruzeiro: Chateaubriand esmagou seu concorrente, o coronel Menezes, e
venceu as eleições com 70% dos 200 mil votos maranhenses. Dias depois das
apurações, os jovens seguidores de Menezes ainda fariam uma última ação:
assaltaram de madrugada os arquivos do TRE, de onde furtaram urnas con-
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tendo centenas e centenas de votos dados a Chateaubriand - todos preen-
chidos com a mesma letra. Mesmo sendo uma indiscutível prova de que as
eleições tinham sido fraudadas, o gesto só valeu para atrasar em noventa
dias a diplomação do vencedor: no dia 4 de julho, Chateaubriand tomava
posse como representante do Maranhão no Senado.
Quando soube que toda a força dos Diários Associados ia ser jogada na
campanha de Juscelino Kubitschek, Ademar de Barros, também candidato à
Presidência, ainda tentou demover Chateaubriand da idéia com um argu-
mento que considerava irrecusável - convidou-o para ser o seu candidato à
Vice-Presidência:
- Venha, Chateaubriand, que juntos nós dois somos imbatíveis. Depois
de ganhar as eleições nós vamos rasgar a barriga do Brasil para ver o que
tem dentro!
O original convite era tentador, mas Chateaubriand já estava compro-
metido com Juscelino, com quem tinha um débito a quitar - a cadeira de se-
nador pelo Maranhão. Para os Diários Associados, apoiar um candidato sig-
nificava ampliar a força política da organização, caso ele fosse eleito, mas era
também a garantia de uma considerável fonte de renda. O "apoio" se tradu-
zia pela publicação de anúncios pagos pelo candidato (e os veículos não re-
cusavam publicidade de ninguém, nem mesmo dos adversários) mais a ga-
rantia da cobertura jornalística da campanha - pela qual o candidato
também tinha de pagar. Ou seja: além de uma opção política, o que se fazia
era também um bom negócio (anos depois Chateaubriand revelaria que
Kubitschek terminou sua campanha eleitoral com uma dívida de 100 mi-
lhões de cruzeiros com os Associados -1,3 milhão de dólares da época, 6,6
milhões de dólares de 1994 - entre publicidade e "cobertura jornalística e
editorial"). No caso de Chateaubriand, o apoio era sui generis: apesar de com-
prometido com a candidatura do governador mineiro a ponto de transfor-
mar os Associados em uma rede de boletins oficiais da campanha, na tribuna
do Senado ele ridicularizava a principal meta de JK, a promessa de mudan-
ça da capital do país para o Centro-Oeste brasileiro, dizendo que "aqui-
lo era conversa de político que não tem nada de mais útil para colocar na
cabeça" :
- Já que está mesmo decidido a tirar a capital do Rio de Janeiro, o can-
didato Juscelino Kubitschek podia mudá-la para a Baixada Fluminense.
Aquilo é muito melhor, muito mais cosmopolita e civilizado que o sertão
goiano.
Tendo João Goulart como vice, o governador mineiro venceu as elei-
ções do dia 3 de outubro de 1955. Com pouco mais de 3 milhões de votos
(36% do total), ele derrotou Juarez Távora (que teve 30% dos votos), Ademar
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
de Barros(26%) e Plínio Salgado(8%). Como na época a legislação permitia
que se votasse separadamente nos candidatos a presidente e a vice, João
Goulart acabaria tendo meio milhão de votos a mais que o cabeça da chapa.
O fato de Juscelino não ter obtido a maioria absoluta dos votos animou seto-
res das Forças Armadas, a partir de um discurso do coronel Jurandir Bizar-
ria Mamede, a iniciar um movimento golpista para tentar impedir sua pos-
se (isto embora a Constituição não fizesse qualquer menção à necessidade de
maioria absoluta para que o mais votado fosse empossado).
Chateaubriand colocou os Associados a favor da posse de Juscelino e
contra os golpistas e sua extravagante tese da "maioria absoluta". O que o
jornalista só revelaria muito tempo depois é que tanto o apoio "dado" à
campanha quanto o reforço naquela hora decisiva iam custar mais caro que
o mandato de senador: Kubitschek teve de se comprometer a nomeá-lo em-
baixador do Brasil na Inglaterra. O acordo foi selado. E o golpe acabaria
sendo abortado na madrugada de 11 de novembro sem necessidade do
apoio Associado, graças à intervenção do ministro demissionário da Guer-
ra, general Henrique Lott. No dia 31 de janeiro de 1956, Juscelino assumia a
Presidência da República.
Para surpresa de Chateaubriand, o novo presidente tomou posse, come-
çou a governar e nunca mais tocou na promessa da embaixada. Toda vez
que o jornalista tentava encaixar o assunto no meio de um encontro, Jusceli-
no desconversava e acabava escapulindo. O dono dos Associados sabia que
bastaria ameaçar colocar seus veículos na oposição para que a nomeação
saísse, mas naquele momento ele estava interessado em manter boas rela-
ções com o governo, de quem dependia para a expansão de sua rede de es-
tações de televisão (no ano anterior ele inaugurara a terceira Tv Associada, a
Itacolomi, de Belo Horizonte). Antes de brigar com Juscelino ele precisava
obter do governo mais concessões de canais - e para isso dedicava espe-
cial atenção ao responsável pela área, o general Olímpio Mourão Filho, pre-
sidente da Comissão Técnica de Rádio do Ministério da Viação e Obras Pú-
blicas (repartição que anos depois mudaria de nome, passando a se chamar
Departamento Nacional de Telecomunicações - Dentel). Durante o namoro
com Mourão, Chateaubriand convidou-o para compartilhar (junto com
Herrmann Gohn, embaixador da Áustria no Brasil, e Archie Dollar, diretor
da RCA Victor) um de seus mais recentes hobbies: as viagens à Amazônia. Sua
paixão pelos mistérios da selva que começava a ser colonizada era tal que
meses antes ele não se furtara a emprestar o avião Jagunço para que o jorna-
lista Antonio Callado, mesmo trabalhando no concorrente Correio da Manhã,
pudesse viajar ao Xingu em busca da chave do mistério que a cada três me-
ses mobilizava os Associados: o desaparecimento do coronel inglês Percy
Fawcett (para acompanhar Callado, Chateaubriand destacou um assessor
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FERNANDO MORAIS
que, ironicamente, duas décadas depois viria a ser o último dono e o covei-
ro de O Cruzeiro: o jornalista Alexandre von Baumgarten).
Em 1951, Chateaubriand havia promovido, com ampla cobertura de O
Cruzeiro, o casamento da índia calapalo Diacuí com o branco Ayres Câmara
da Cunha, funcionário do Serviço de Proteção ao Índio (SRI). Mesmo adver-
tido por sertanistas de que o ato era uma violência cultural contra a índia,
que jamais se habituaria a viver numa cidade grande, o jornalista insistiu: le-
vou Diacuí para o Rio, batizou-a e organizou o casamento - do qual ele se-
ria o padrinho - na igreja da Candelária, para onde os noivos foram leva-
dos em companhia de Chateaubriand em um Cadillac conversível. O tempo
provou que os sertanistas tinham razão: retirada do ambiente e dos costu-
mes de sua tribo, meses depois Diacuí morreria de parto em uma materni-
dade do Rio de Janeiro. Anos depois, em 1954, Chateaubriand se ofereceria
ao prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, para abrir o desfile comemorativo
das festividades do Iv Centenário da capital paulista. Logo depois que a banda
da Polícia Militar acabou de tocar o Hino Nacional, ele saiu dos camarins im-
provisados, à frente das tropas que iriam desfilar, e tomou o microfone:
- Estou aqui como descendente direto dos índios que devoraram o bis-
po Sardinha na foz do rio Coruripe. Trago para abrir a vossa comemoração,
caros paulistas, dois irmãozinhos peles-vermelhas recém-chegados da selva.
Pode começar a festa, seu prefeito!
Dito isso, o jornalista atravessou a pé todo o vale do Anhangabaú - sob
os olhares incrédulos de 100 mil pessoas que não conseguiam entender o que
fazia ali aquele homem de terno preto, levando pelas mãos dois indiozinhos
vestidos só de calção: eram os pequenos caiapós Arutsavi e Tofut, que ele
mandara o repórter Jorge Ferreira buscar de avião em uma aldeia junto à ca-
choeira Von Martius, nos confins da Amazônia. Animado pelos aplausos,
quando chegou ao fim da caminhada, nas imediações da avenida São João,
ele resolveu refazer todo o trajeto de volta. Alguém alertou-o de que as tro-
pas já tinham começado a marchar na outra ponta do vale, mas ele não se in-
comodou:
- Não faz mal, nós voltaremos na contramão.
Decorridos alguns anos do insólito desfile, a mania pelos índios conti-
nuava: agora a caravana (que além de Mourão Filho e dos dois estrangeiros
era composta pelos irmãos Vilas Boas e por um grupo de repórteres e fotó-
grafos dos Associados) iria passar uma semana acampada em uma aldeia
txucarramãe, às margens do rio das Mortes, para receber oficialmente o que
Chateaubriand jurava ser a ossada do inglês Percy Fawcett. No primeiro dia,
um índio esquivou-se pelo mato, chegou até o acampamento dos brancos e,
apesar do olhar vigilante de Amâncio, roubou o paletó de Chateaubriand ,
com tudo o que havia nos bolsos. O jornalista ficou possesso, queria que o
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autor do furto fosse identificado e punido. Foi preciso Orlando Vilas Boas
explicar que aquele ato não era um delito, nem pelas leis do país, que consi-
deravam os índios inimputáveis, nem pelas leis da tribo: o índio estava que-
rendo propor uma troca - e, portanto, o jornalista podia pedir-lhe algum
objeto para substituir o paletó desaparecido. Ele propôs a barganha: no lu-
gar da sua roupa de branco, ele queria uma roupa de índio. E recebeu um
cocar e uma tanga de penas, com os quais andava nos primeiros dias de ex-
cursão. Desajeitado com aquela indumentária, acabou abandonando-a e pas-
sou a circular o tempo todo nu em pêlo, calçando apenas chinelos - condi-
ção em que pediu para ser fotografado ao lado de um guerreiro txucarramãe,
também despido, e do general Mourão, este trajando apenas cuecas.
Quando todos retornaram ao Rio de Janeiro, Chateaubriand deu ordens
para que sua foto nu fosse publicada sem qualquer tarja em O Cruzeiro. A
edição estava sendo rodada quando um dos primeiros exemplares caiu nas
mãos da pudica presidente da empresa, Lily Whitaker Gondim de Oliveira.
Indignada com o que acabara de ver, mandou suspender a impressão e reti-
rar aquela foto "indecente". Quando lhe disseram que eram ordens de
Chateaubriand, ela fincou pé: daquele jeito a revista não saía. Minutos de-
pois, aparecia em sua sala, nervoso, o próprio dono dos Associados:
- Vai publicar a fotografia, sim, dona Lily: a revista é minha e nela im-
primo o que eu quiser.
Ela não recuou:
- Então mande tirar meu nome do alto do expediente, pois acabo de
me demitir da presidência de O Cruzeiro.
No fim, chegou-se a uma solução salomônica: a foto continuava na re-
vista, mas na chapa de impressão alguém teve de riscar com um prego o se-
xo de Chateaubriand - em cujo lugar, depois de rodada a edição, aparecia
apenas uma nuvem escura. A única concessão de Lily Gondim foi permitir
que o sexo do índio aparecesse sem censura. Este problema estava resolvido,
mas e o suposto esqueleto de Fawcett? Uma caixa com ele foi levada para o
apartamento do diplomata Hugo Gouthier, onde um legista o remontou, os-
so por osso, sobre a senhorial mesa de jantar da casa. Fartamente fotografado
por O Cruzeiro e O Jornal, o esqueleto permaneceu sobre a mesa por vários
dias, até que se decidisse que fim dar a ele (a religiosa cozinheira mineira de
Gouthier pediria demissão do emprego ao dar com os olhos sobre aquela ce-
na macabra, supondo que o patrão estivesse se dedicando à magia negra).
Chateaubriand se vangloriava de finalmente ter esclarecido o mistério de dé-
cadas que cercava o desaparecimento de Fawcett, quando alguém descobriu
um dentista do Rio com quem o explorador britânico se consultara antes de
se embrenhar selva adentro. Chamado à casa de Gouthier, o dentista exami-
nou detalhadamente a arcada do esqueleto, sob a luz dos flashes dos fotó-
grafos, comparando-a com as fichas de Fawcett que tinha nas mãos. Ao final
577
#
FERNANDO MORAIS
do exame, chamou Chateaubriand e Gouthier à cozinha da casa e decretou
o fim da aventura:
- Lamento informar aos senhores que esses restos não são do coronel
Fawcett. O exame da arcada dentária comprova o que digo.
Chateaubriand deu um pulo para a frente e avançou de dedo em riste
sobre o dentista:
- Se o senhor abrir a boca uma única vez para repetir o que acabou de
dizer, os Associados arrebentam com a sua carreira! Ponho o Diário da Noite
para fazer uma campanha acusando-o de charlatanismo e exercício ilegal da
profissão! Seu trabalho está encerrado, o senhor pode sair aqui pelos fundos,
saia pela porta da cozinha que é melhor.
Retornou à sala e, para assombro de Hugu Gouthier, anunciou aos re-
pórteres:
- O dentista já se retirou. Mas antes de sair confirmou as nossas sus-
peitas: estamos mesmo diante dos restos mortais do coronel Percy Fawcett.
O mistério chegou ao fim.
Chateaubriand de fato devia acreditar que o dentista estava equivocado,
porque no dia seguinte mandou encaixotar os ossos e os enviou à Inglater-
ra. Lá, bastou uma sumária medição das tibias do esqueleto pela Sociedade
de Antropologia de Londres para ficar claro que aqueles não eram mesmo
os despojos de Fawcett - um homem muito mais alto que o morto desco-
berto por Chateaubriand na mata amazônica. A caixa foi devolvida à embai-
xada brasileira, onde passou muitos anos transformada em um problema di-
plomático: pelas leis britânicas aquilo era um cadáver como qualquer outro,
e devia ser sepultado. Mas para o sepultamento era indispensável o atesta-
do de óbito, que naturalmente ninguém tinha. Passados muitos anos os os-
sos retornaram ao Brasil - onde permanecem até hoje em um depósito da
Fundação Nacional do Índio (Funai), no estado de Mato Grosso, à espera de
que alguém os reclame.
O tempo passava e Juscelino ia empurrando Chateaubriand com a bar-
riga, na esperança de que, no turbilhão em que vivia, ele acabasse se esque-
cendo da promessa de ser embaixador em Londres. Confiante nesta hipóte-
se, em fevereiro de 1956, um mês depois de assumir o governo, o presidente
deu ordens ao ministro das Relações Exteriores, José Carlos de Macedo Soa-
res, para informar ao entãu embaixador em Londres, Samuel de Souza Leão
Gracie, que tinha decidido mantê-lo no cargo. Em um telegrama de três li-
nhas, Macedo Soares imaginou estar rifando o sonho de Chateaubriand. Em
outubro, porém, o jornalista resolveu cobrar de Kubitschek a promessa de
campanha. Hábil, Juscelino disse que "faltava resolver uns problemas da
nossa embaixada em Londres", mudou de assunto e acabou convidando o
580
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
dono dos Associados para acompanhá-lo a um lugar menos nobre que a Cor-
te de Saint James. O presidente queria que Chateaubriand fosse junto com
ele no dia seguinte encerrar a vi Festa Nacional do Trigo no Rio Grande do
Sul. Chateaubriand estava achando aquilo um aborrecimento, mas se ani-
mou quando JK disse que gostaria que o senador pelo Maranhão fizesse, em
seu lugar, o discurso no banquete de encerramento da festa que se realizaria
na cidade gaúcha de Erechim. Era chegada a hora de o presidente receber o
troco por toda aquela enrolação com a questão da embaixada. Juscelino ig-
norava que Chateaubriand era um dos mais radicais inimigos da triticultura
- em vários discursos no Senado e em artigos publicados nos Associados,
ele defendia que o Brasil importasse trigo da Argentina, destinando à ovino-
cultura as áreas dedicadas à principal cultura gaúcha da época.
No dia seguinte partiram os dois para o Sul, a bordo do Dc-3 presiden-
cial. Tudo transcorreu muito bem até que chegou a hora do discurso final,
durante o churrasco oferecido aos visitantes no Seminário Nossa Senhora de
Fátima, em Erechim. Diante do presidente da República, do vice João Gou-
lart, do ministro da Agricultura Mário Meneghetti, do governador gaúcho Il-
do Meneghetti, de Tancredo Neves, do bispo diocesano d. Cláudio Colling e
de presidentes de associações de plantadores de trigo de todo o Sul do país,
Chateaubriand recebeu de Kubitschek a delegação para falar em seu nome.
Um visível embaraço tomou conta das autoridades que compunham a mesa
- sobretudo o presidente da República - quando o jornalista abriu a boca
e pronunciou a primeira frase de seu discurso:
- Minhas senhoras e meus senhores: vou trair Juscelino, mas prometo
que não trairei a verdade.
Era só o começo. Inflamado e falando de improviso, Chateaubriand fez
um libelo contra a triticultura - atividade que era a fonte de renda e o mo-
tivo da presença de rigorosamente todos os que superlotavam o auditório.
Indiferente ao mal-estar, ele prosseguiu:
Ó gaúchos, como gosto quando ousais. E é hora de ousar, concordando comigo
em que o trigo hoje dá-se de graça, é um cereal abastardado. O trigo nunca pas-
sou de um acidente na vida economica do Brasil e do Rio Grande. Possuís solos
demasiado ricos para desvalorizá-los com uma cultura pobre como a triticultu-
ra, hoje em regime de superprodução em todo o mundo.
Alguém puxou-lhe discretamente a manga do paletó, as pessoas não pa-
ravam de se mexer nas cadeiras, o presidente da República tinha o rosto ver-
melho, mas ele não parava:
A generalizada acidez de vossas terras impede qualquer cultura racional e eco-
nÔmica do trigo, que é um cereal de terras doces. Gaúchos! Um povo de vosso
ritmo de trabalho, de vossa energia no tratar da terra, merece algo de muito
mais compensador do que o trigo. Nos cadernos da prateleira da minha farma-
copéia tenho receitas e medicinas únicas para o vosso engrandecimento econo-
581
#
FERNANDO MORAIS
mico. De que vos falo? Do capim. Capim para quê? Para dar de comer a ovelhas.
Tanto podeis optar pelo nosso angolinha, ou capim de terra, que no ano passa-
do deu 1 bilhão e 600 milhões de dólares à economia australiana, quanto pelo
Parágrass. Quando vos tornares plantadores de capim e criadores de ovelhas,
o que auguro para esta terra é um futuro dez vezes maior do que este presente
humilde e pequeno de lavradores de trigo.
A estupefação era generalizada, mas ele ainda não tinha terminado.
Certo de que se interrompesse o discurso por um instante, ainda que fosse
só para beber água, sua palavra seria cassada, Chateaubriand - que parecia
estar com o diabo no corpo - falou sem parar até concluir, com um sorriso
moleque no rosto:
Gaúchos! O que vos quero dar é algo semelhante au que o café foi para São Pau-
lo. Algo que vos permita importar automóveis por 60 ou 70 mil cruzeiros, em
lugar de comprardes, ao preço que vos pagam pelo trigo, por 500 ou 600 mil cru-
zeiros. Abandonai definitivamente o trigo! Plantai capim, dai de comer a ove-
lhas, enchei vossas burras de dinheiro - tereis dinheiro mais que suficiente pa-
ra importar carros, champanhe e mulheres francesas para o vosso deleite! Muito
obrigado, gaúchos!
Nenhuma vaia, nenhuma palma, só espanto. D. Cláudio Colling levan-
tou-se e saiu da sala sem se despedir de ninguém, antes mesmo que o mes-
tre-de-cerimônias tomasse o microfone e anunciasse que a cerimônia estava
encerrada. Só naquele momento é que Juscelino percebeu a armadilha em
que havia caído e entendeu, com clareza meridiana, que precisava nomear
Chateaubriand com urgência para a embaixada do Brasil em Londres. Se não
por outras razões, pelo menos para mantê-lo a distância e se poupar de ou-
tra afronta como aquela. A nomeação só acabaria saindo no Diário Oficial no
começo de 1957, meses depois do vexame de Erechim. Mas, quando saiu,
Chateaubriand, metido em uma magnífica complicação financeira, não po-
dia assumir. Ele precisava arranjar com urgência 2 milhões de dólares (apro-
ximadamente 10 milhões de dólares de 1994), sob pena de perder mais da
metade da coleção do MASP.
Tudo começara três anos antes, com as insistentes insinuações de que o
museu estava comprando na Europa obras falsas como se fossem autênticas.
As dúvidas eram levantadas quase sempre por dois críticos: Mário Pedrosa,
do Jornal do Brasil, e Ciro Mendes, de O Estado de S. Paulo. (De tal forma a bir-
ra do Estado com Chateaubriand se transferira para o museu que, quando o
presidente Dutra esteve em São Paulo para participar da inauguração do
museu, o jornal dos Mesquita publicou apenas uma notinha em corpo seis
com as seguintes palavras: "Esteve ontem em São Paulo o presidente Dutra,
que almoçou na casa dos Prado"). Da mera suspeita, com o passar do tempo
o Estado logo partiria para acusações frontais, começando por afirmar cate-
goricamente que a magnífica tela O conde-duque de Olivares, de Velásquez ,
582
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era um quadro falso. Bardi tentaria resolver a pendenga com o Estado à sua
maneira. Ao se encontrar com o crítico Ciro Mendes em uma cerimônia pú-
blica, avançou sobre o jornalista e o esmurrou várias vezes. Mendes reagiu
com palavras, procurando ferir Bardi onde mais doía - em seu passado
político:
- Fascista! O senhor não passa de um fascista!
Ao Jornal do Brasil Chateaubriand acabaria respondendo com uma de
suas flechas envenenadas, publicada no Diário da Noite carioca, na qual não
poupava sequer a memória do conde Ernesto Pereira Carneiro:
A campanha contra o Museu de Arte de Sãu Paulo, feita pelo Jornal do
Brasil, cor-
responde a uma sórdida vindita de politiqueiros do Maranhão. A condessa Pe-
reira Carneiro está servindo de gato morto ao Vaca Atolada Odilo Costa Filho.
Toda essa campanha sórdida e miserável tem origem na derrota que os sena-
dores Vitorino Freire e Assis Chateaubriand infligiram ao Vaca Atolada em to-
das as tentativas feitas pelo meliante de se apossar do Maranhão. Entrando ago-
ra para o Jornal do Brasil, Vaca Atolada empreitou o conhecido comunista Mário
Pedrosa para difamar o Museu de Arte de São Paulo e seus quadros.
Em tudo isso, o que admira é o papel de gato morto que está fazendo a con-
dessa Pereira Carneiro. [...] Não temos impaciência em dar o troco à pitoresca
matrona, viúva do velhote mais frascário e divertido da rua Dionísio
Cerqueira.
A história do segundo casamento do Caradura vale um folhetim, e ele será es-
crito, porque a "outra" ainda vivia. É nisso que anda o busílis. Este
Macaco Elé-
583
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FERNANDO MORAIS
trico é veraz e preciso, tomem tento com ele. Porque é elétrico e saltitante, não
quer dizer que brinque com a verdade.
E a verdade há de aparecer, porque se a hora é de escavações goyescas, terá
de ser também de escavações carneirescas.
Macaco Elétrico
Bardi, no entanto, sabia que nem os sopapos no crítico paulista nem o
"Macaco Elétrico" poriam fim às suspeitas sobre a autenticidade dos qua-
dros. A única maneira de resolver aquela questão de uma vez por todas era
submeter as obras do museu à expertise dos mais renomados críticos euro-
peus e norte-americanos - e isso só seria possível realizando uma turnê do
acervo do MASP pelo mundo. Devidamente autorizado pelo patrão, Bardi se
pôs em campo, e meses depois estava embarcando para Paris vários contei-
neres com uma seleção do que havia de melhor no Museu de Arte. Quando
soube que a exposição, montada no Musée de l'Orangerie, ao lado do Lou-
vre, ia ser inaugurada pelo presidente da França, Vincent Auriol, Bardi ain-
da tentou fazer com que Chateaubriand chegasse à capital francesa para a
cerimônia, mas o dono dos Associados só viajou três dias depois.
Levando a tiracolo o repórter e fotógrafo Luís Carlos Barreto, de O Cru-
zeiro, encarregado de registrar o sucesso da mostra, Chateaubriand desem-
barcou em Paris com uma bagagem singular: cinco cachos de banana-da-ter-
ra e duas caixas de milho verde. A carga tropical chamava a atenção das
pessoas no caminho do aeroporto até o Hotel Plaza Athénée (o porta-malas
do Cadillac da embaixada brasileira que foi buscá-los no aeroporto teve de
ir com a tampa aberta, por onde se espalhavam pelas ruas, ao longo do tra-
jeto, bananas e espigas de milho). Ao chegar ao hotel, Chateaubriand man-
dou entregar o milho e as bananas no chique restaurante Maxim's, onde à
noite ele ofereceria um jantar à alta sociedade e aos críticos franceses. Só no
começo da madrugada, ao final do banquete, é que Barreto entendeu a razão
daquilo: o patrão tinha conseguido um cozinheiro nordestino em Paris para
fazer a sobremesa - banana frita com canela em pó e canjica de milho ver-
de. Assim que terminaram de servir os pratos quentes, Chateaubriand pediu
a palavra para proclamar, em francês, as qualidades da cozinha de sua terra
aos espantados grã-finos:
- Mandei fazer uma sobremesa especial para vocês verem como é insí-
pida essa pâtisserie francesa. Depois do que acontecerá hoje, vocês jamais
quererão provar crepes. Vamos colonizar a França com canjica e banana fri-
ta. Que entrem os garçons para essa experiência civilizatória!
A sugestão de Bardi dera resultado. Submetido ao crivo da crítica fran-
cesa, o acervo do museu sobreviveu incólume. O sucesso da exposição em
Paris acabou gerando convites para que á mostra fosse exposta em outros
países - e da França os quadros foram levados a museus da Bélgica, Itália,
Holanda, Suíça e Inglaterra, em um périplo que terminaria com chave de ou-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
ro, nos primeiros dias de 1957, no Metropolitan Museum de Nova York.
Quando as obras estavam para ser embarcadas para os Estados Unidos, a re-
vista Time, estimulada pelo êxito alcançado na Europa, saudou a ida da mos-
tra para Nova York com uma reportagem-perfil de Chateaubriand intitula-
da "O sr. obin Hood", onde o jornalista, tratado com intimidade por
"Chatô", era chamado de "o furacão humano", "o pirata da Paraíba", "o ho-
mem que rouba Cézannes dos ricos para dar aos pobres". Em um artigo pu-
blicado em seus jornais, o dono dos Associados reclamou do "excesso de ur-
tiga, veneno e pimenta" com que a revista norte-americana o havia tratado:
Que o meu retrato seja pendurado na galeria dos flibusteiros da Paraíba e da
Normandia é duro, mas é passável. Pagamos um alto preço pelos pecados de
nossos antepassados. Mas que a galeria dos doadores, dos mecenas da nossa ca-
sa seja deformada, como aparece no Time, contra tamanha injustiça me apresso
a tomar do bacamarte da Imaculada para fuzilar o satânico semanário e seus ce-
lerados redatores e repórteres. Não há mais selvagem e mais errôneo julgamen-
to do que dizer-se que aqueles que nos doaram tamanhas e tão maravilhosas
obras-primas o fizeram com medo da pena dos escribas dos Diários Associados.
Seria horrível montar um elenco de autênticas obras-primas baseado na chanta-
gem ou na ameaça de chantagem.
A reportagem da Time, contudo, era apenas o começo dos aborrecimen-
tos que ele iria enfrentar em seguida. As obras haviam saído de Londres e já
estavam instaladas em várias salas do Metropolitan Museum of Art, em No-
va York, quando, uma semana antes da inauguração (Chateaubriand estava
pronto para embarcar a fim de estar presente ao banquete de abertura da
mostra), o então embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Ernâni do Ama-
ral Peixoto, telefonou de Washington para transmitir-lhe uma péssima notí-
cia. O cônsul brasileiro em Nova York recebera uma intimação judicial, diri-
gida a Chateaubriand, na qual a Justiça americana ameaçava lacrar as salas
onde estavam as obras do MASP, no Metropolitan, e seqüestrar todo o acervo
se o jornalista não pagasse imediatamente uma dívida vencida de 2 011850
dólares ao banco Guaranty Trust Company of New York. João Calmon esta-
va ao seu lado na sala quando ele recebeu o telefonema e assustou-se com a
reação de Chateaubriand:
- Seu Calmon, parece que é desta vez que eu terei que dar um tiro nos
miolos.
585
33
O negócio com o Guaranty começara dois anos antes, em 1955. Obceca-
do com o projeto de fazer do MASP um dos maiores museus do mundo, Cha-
teaubriand perdera o senso de medida e deixara acumular com a galeria do
marchand Georges Wildenstein uma dívida de quase 4 milhões de dólares
(cerca de 20 milhões de dólares de 1994). Uma forte amizade nascera entre
os dois, mas negócios eram negócios. Chegou um momento em que Wil-
denstein foi obrigado a dar um ultimato a Chateaubriand: ou ele pagava o
que devia ou teria de devolver os quadros. O jornalista sabia que, para Wil-
denstein, o melhor seria que ele não pagasse: com a economia européia se re-
compondo, os quadros ameaçados valiam pelo menos vinte vezes mais que
a dívida - e haveria filas de compradores interessados neles.
Desesperado, Chateaubriand retornou ao Brasil de chapéu na mão. Ar-
rancou 500 mil dólares de empréstimo no banco de Walther Moreira Salles,
vendeu contratos antecipados de propaganda, organizou consórcios de
doadores, bateu às portas de "Baby" Pignatari, de Geremia Lunardelli, de Si-
nhá Junqueira - mas, quando somou todo o dinheiro levantado, viu que o
total não chegava a 1 milhão de dólares. Menos de 25% do que devia. Vol-
tou aos Estados Unidos e "amansou" Wildenstein com o que tinha consegui-
do arrecadar ("Tive que matar a fome daquele leão com uns cabritinhos para
que ele não comesse meus bois", ele escreveu depois). O galerista, entretan-
to, exigia alguma garantia de que o restante - 3 011 850 dólares - seria
pago, ainda que em prestações. A solução encontrada foi Chateaubriand as-
sinar com o Guaranty um contrato pelo qual este passaria a ser o interve-
niente da dívida, que seria paga ao banco em doze parcelas trimestrais e con-
secutivas de 250 mil dólares cada uma, de forma que a última delas (na qual
seriam incluídos os juros e a pequena diferença de 11850 dólares) venceria
no mês de março de 1959. Como garantia da transação, o banco exigiu que
Chateaubriand oferecesse o óbvio - isto é, os quadros do museu.
Foi necessário pouco tempo para que a direção do Guaranty descobris-
se o que a maioria dos banqueiros brasileiros estava cansada de saber: pagar
dívidas no prazo acertado não era bem a especialidade de Chateaubriand.
Quando venceu a primeira parcela, ele pagou apenas 100 mil dólares, liqui-
dando os 150 mil restantes com um mês e meio de atraso. As três seguintes
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CHATÕ, O REI DO BRASIL
foram pagas em dia, mas para isso foi necessário sacrificar duramente os co-
fres dos Diários Associados. É que, além do museu, o jornalista se metera em
duas outras aventuras: primeiro comprara por 60 milhões de francos o Cha-
teau D'Eu, o castelo que tinha pertencido à princesa Isabel, na cidade de Eu,
na Normandia, para lá instalar a Fundação D. Pedro ii - uma instituição que
ele sonhava criar para oferecer bolsas a estudantes brasileiros que se dispu-
sessem a produzir teses acadêmicas sobre a história do Brasil. E estava em
via de adquirir, em Florença, na Itália, a Villa Benivieni (que pertencia ao es-
pólio do industrial Alexander Mackenzie), onde funcionaria a sede italiana
da tal Fundação D. Pedro II. E foi também nesse período de vacas magras
que Chateaubriand resolveu lançar a edição internacional de O Cruzeiro em
castelhano. Criada com a intenção de enfrentar a revista americana Life,
em
pouco tempo O Cruzeiro internacional tornou-se uma publicação de enorme
sucesso de público, chegando a vender 300 mil exemplares semanais, de
Cuba à Argentina. Mas anúncios mesmo, que era o que interessava, as gran-
des agências de propaganda estrangeiras só veiculavam na Life. O Cruzeiro
precisava se contentar basicamente com um ou outro produto brasileiro que,
mais por política de boas relações do que por qualquer outra razão, acabava
anunciando também na edição internacional. Ou seja, esta também se trans-
formara em um novo sorvedouro do dinheiro gerado pelos demais órgãos
da rede. A tudo isso se somava mais uma atividade não jornalística dos As-
sociados que, embora não drenasse recursos de tanta monta, acabava signi-
ficando mais despesas no final do mês: anos antes Chateaubriand decidira
criar junto com o publicitário Rodolfo Lima Martensen, anexa ao MASP, a Es-
cola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), para cujos cursos os Asso-
ciados distribuíam bolsas de estudos por todo o Brasil.
Não havia empresa que agüentasse tanta gastança. Em maio de 1956,
João Calmon e Edmundo Monteiro (os responsáveis pela administração de
quase todo o conglomerado Associado) escreveram uma dramática carta ao
patrão, manifestando sua apreensão pela sangria de recursos que o museu e
as demais atividades de Chateaubriand representavam para o império. Esta-
va em curso um processo de autocanibalismo que, segundo eles, em breve
levaria as empresas à insolvência:
Dr. Assis:
[...] Nossa situação financeira, que já era péssima, agrava-se extraordinaria-
mente com o tremendo ônus representado pelo pagamento de contribuições
atrasadas aos Institutos de Aposentadoria e Pensões [a Previdência Social da
época] e de parte da primeira prestação do contrato referente à compra de qua-
dros para o Museu de Arte de São Paulo.
Como deixarmos de pagar aos institutos, depois do generoso acordo para o
pagamento do nosso débito em 96 prestações mensais? Entre Rio e São Paulo o
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FERNANDO MORAIS
nosso compromisso mensal com esses órgãos de previdência social girará em
torno de 2 milhões de cruzeiros.
[...] O sistema de desconto de contratos de publicidade, sem qualquer prévia
indagação sobre a capacidade ou incapacidade da empresa de suportar novos
desvios de sua receita normal, está tornando nossas empresas inadministráveis.
Todo nosso tempo disponível é tomado [...] pela busca aflita de recursos financei-
ros pelo menos para o pagamento dos salários e do papel. Há que apaziguar os
credores indóceis, dar-lhes desculpas e pedir-lhes novo prazo e mais paciência.
Nos últimos meses, para fazer face ao pagamento da prestação de 500 mil dó-
lares do museu, foram nossas organizações oneradas em 20 milhões de cruzei-
ros. No decorrer deste ano, teremos de enfrentar mais três prestações de 250 mil
dólares cada. Mesmo com o dólar a 45 cruzeiros, esse compromisso se elevará a
cerca de 35 milhões de cruzeiros. As nossas receitas de publicidade, já profun-
damente desfalcadas por contratos dos Diários Associados no total de mais de
60 milhões de cruzeiros, não suportarão mais essa sangria.
Já sugerimos, em relatórios e palestras, a venda imediata de imóveis, fazen-
das ou laboratórios - inclusive a venda da Schering. Talvez esse ponto de vis-
ta resulte de excesso de pessimismo, dirá o senhor. Mas então aponte-nos, com
um de seus lampejos de gênio, outra saída, que escapa inteiramente à nossa li-
mitada compreensão.
Creia na velha amizade e na admiração de
João Calmon e Edmundo Monteiro
Mas aquilo não era tudo. Em uma reunião pessoal com o patrão, Cal-
mon e Monteiro apelaram cautelosamente no sentido de que, em nome das
normas elementares da organização, ele pusesse fim ao hábito de passar nos
caixas das empresas (Chateaubriand costumava fazer isso em qualquer cida-
de onde houvesse um órgão Associado) e recolher indiscriminadamente
todo o dinheiro disponível, sem nenhuma contabilização, sem assinar um só
papel. Pegava e ia embora. Humilde como uma criança, o dono dos Asso-
ciados reconheceu que seus diretores estavam certos, e se comprometeu a
nunca mais repetir o rapa. Uma semana depois, um diretor de O Jornal man-
da retirar dinheiro no caixa para pagar duplicatas e ouve, espantado, a notí-
cia de que Chateaubriand havia passado antes por lá, levando para uma
viagem que faria a Paris naquela noite toda a féria existente. Um diretor cor-
re até o Senado, onde ele discursava, para reclamar que daquele jeito era im-
possível administrar as empresas. Chateaubriand se espanta:
- Mas eu fiz exatamente como me mandaram. Há um documento ofi-
cial lá com o caixa, não fiz nada sem contabilização.
Ao retornar à tesouraria dos Associados o diretor encontra um pedaci-
nho de papel onde estava escrito a lápis: "Levei tudo. Assinado, Assis Cha-
teaubriand ".
Quanto ao lampejo de gênio reclamado por Calmon e Monteiro, Cha-
teaubriand, claro, tinha a saída: não pagar ao Guaranty as parcelas que fal-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
tavam - exatos 201 1850 dólares - e esperar para ver no que dava. O ban-
co aguardou pacientemente a oportunidade certa para dar o bote, e ela aca-
bou aparecendo como por milagre, materializada no acervo do MASP ali mes-
mo, em Nova York, a poucos quilômetros da Madison Avenue, onde ficava
a sede do Guaranty.
Ao receber a notícia da ameaça de seqüestro dos quadros cuja aquisição
havia custado tanto esforço, Chateaubriand parecia ter enlouquecido. Ele sa-
bia que desta vez não havia salva-vidas ou burgueses suficientes para liqui-
dar uma dívida tão alta. Uma dinheirama como aquela só seria possível con-
seguir em um lugar: no governo. Correu para o Palácio do Catete e esperou
até o fim da tarde para que o presidente Juscelino Kubitschek pudesse rece-
bê-lo. Expôs atabalhoadamente a situação ao chefe do governo, mas este não
parecia animado a resolver o problema. O jornalista insistiu, implorou, ex-
plicou que suas empresas não tinham a menor condição de pagar aquilo à
vista, mas se o governo lhe arranjasse o dinheiro e lhe desse um prazo, quem
sabe ele poderia ir liquidando a dívida aos poucos. Kubitschek permanecia
irredutível: se arranjasse os recursos pedidos por Chateaubriand, a impren-
sa e a oposição iriam cair-lhe em cima. O jornalista apelou pateticamente:
- Eu juro que não há nada escuso por trás do que lhe peço. Se eu esti-
vesse interessado num bom negócio, poderia vender agora, por telefone,
toda aquela coleção por um preço vinte vezes superior a essa dívida, paga-
va ao banco e enfiava uma fortuna no bolso. Se eu não tivesse espírito públi-
co fazia isso - e não precisava pedir autorização a ninguém: fui eu quem
comprou todos aqueles quadros, um por um.
Juscelino não arredava pé: não havia mágica que fizesse aparecer 2 mi-
lhões de dólares do nada, de uma hora para a outra. Quando tudo parecia
perdido, Chateaubriand abriu o paletó, tirou uma faca do tipo peixeira que
trazia presa à cintura e anunciou dramaticamente:
- Então não me resta outra alternativa senão me suicidar aqui dentro
do seu gabinete, Juscelino. Você se encarregará de explicar ao Brasil que che-
guei a esse gesto extremo para tentar salvar um patrimônio cultural que não
é meu, mas dos brasileiros.
Mesmo vendo que a cena não passava de um gesto teatral, o presidente
sabia que estava diante de um homem imprevisível, e preferiu não arriscar:
- Um momento, Chateaubriand! Não vá fazer uma loucura aqui den-
tro. Espere um pouco, vamos falar com o Alkmin.
José Maria Alkmin foi alcançado na saída do seu gabinete de ministro
da Fazenda pelo telefonema. Ele e o presidente falaram por alguns minutos,
e ao final Juscelino parecia aliviado por ter conseguido empurrar o proble-
ma para um subordinado:
- Vá até o apartamento do Alkmin que ele vai ver o que é possível fazer.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Aquele decididamente não parecia ser o dia de sorte de Chateaubriand.
Quando entrava no prédio da esquina da rua Buarque de Macedo com a
praia do Flamengo, deixando dentro do Cadillac preto o motorista Artur e
um capanga que cobria uma folga de Amâncio, o jornalista foi visto por um
pequeno grupo de estudantes que se dirigiam à sede da UNE, a meia quadra
de distância do apartamento do ministro da Fazenda. A conversa com
Alkmin durou pouco mais de meia hora e foi inconclusa: o ministro pediu
que ele aparecesse na manhã seguinte em seu gabinete para ver que solução
se poderia arrumar para o caso. Quando ele se preparava para sair, Alkmin
chegou à janela e se assustou com o que viu na rua. Seu filho Leonardo des-
ceu para descobrir que movimentação era aquela na porta do prédio, e ao
voltar tinha más notícias para o jornalista:
- Doutor Assis, é uma manifestação de estudantes da UNE contra o se-
nhor.
Os estudantes que viram Chateaubriand entrar no prédio tinham ido
até a sede da UNE e pintado cartazes com frases ofensivas ao jornalista. Um
velho caixão de defunto guardado na sede da entidade (e que já havia "en-
terrado" vários políticos) foi carregado pelas alças até a porta da casa de Alk-
min. O ministro não gostou daquilo ("a imprensa vai dizer que esse negócio
é contra mim", queixou-se) e sugeriu a Chateaubriand que não aceitasse pro-
vocações e saísse pela porta dos fundos. O jornalista parecia espumar:
- Zé Maria, eu jamais saí de qualquer lugar pela porta dos fundos. Vou
sair por onde entrei: pela frente. Tem gente me protegendo, e se um desses
comunistas canalhas tentar qualquer coisa, mando abrir fogo.
Mandou chamar o guarda-costas, desceu com ele pelo elevador da fren-
te, com o chapéu gelot enterrado na cabeça, e cruzou a porta disposto a en-
frentar os manifestantes. Ao pisar no primeiro degrau da escada que dava
para a rua, viu um fotógrafo de jornal apontando a objetiva da máquina em
sua direção (era um jornalista do Diário de Noticias que, avisado pelos estu-
dantes, estava ali para cobrir o protesto). Quando viu a máquina, Chateau-
briand se enfureceu e deu ordens ao capanga:
- Mete fogo! Mete fogo naquele filho da puta!
O guarda-costas desabotoou o paletó (nesse instante um flash disparou),
tirou o revólver da cintura e fez três disparos para cima. O fotógrafo correu,
a manifestação se desfez, mas a foto de Chateaubriand ordenando o dispa-
ro, de dedo em riste, estaria no dia seguinte na primeira página do Diário de
Noticias e seria escolhida a "foto da quinzena" na revista de direita Maquis,
dirigida pelo jornalista Amaral Neto.
A segunda conversa que Chateaubriand teve com Alkmin, no dia se-
guinte, foi no Palácio do Catete, sob as vistas de Juscelino. Menos por temer
que ele de fato se suicidasse, mais pelo medo que os Associados infligiam a
todos (e, no fundo, por acreditar sinceramente que a causa era justa), foi o
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FERNANDO MORAIS
próprio presidente da República quem arranjou a solução para remediar o
desespero do jornalista. Passados muitos anos, JK datilografaria pessoalmen-
te e entregaria a Josué Montello duas folhas de papel, até hoje inéditas, para
registrar sua versão do episódio:
[...] Percebi num relance que privar o Brasil daquele tesouro seria desservi-lo e
alienar uma coisa que jamais poderíamos de novo conseguir. O mercado de
quadros se tornava cada vez mais valorizado e aquilo que se tinha obtido por 20
mil dólares já valeria às vezes 1 milhão de dólares.
Compreendi imediatamente a necessidade imperiosa de reter para o Brasil a
coleção de Chateaubriand, mas, pressionado por todo lado, por uma luta po-
lítica sem tréguas, com os adversários liderados pela brilhante figura de Carlos
Lacerda, qualquer dinheiro que eu desse ao Chateaubriand, embora sob um
justíssimo motivo, criaria pretexto para terríveis ataques ao governo. Pus-me a
pensar e cheguei à conclusão de que só constituindo uma fundação, com pau-
listas de quatrocentos anos, eu lograria êxito no propósito que me animava.
Teria, porém, de forçar Chateaubriand a doar toda a coleção à fundação e a esta
o governo emprestaria dinheiro para o pagamento da hipoteca à Galeria Wil-
denstein.
[...] A operação foi realizada com a colaboração da Caixa Econômica. Salva-
mos assim, para o país, uma coleção que é orgulho, que é um patrimônio que
hoje seria impossível formar.
[...] Anos depois, quando me encontrava em Nova York exilado, o presiden-
te da Galeria Wildenstein [...] declarou-me o seguinte: " O homem que me deu o
maior prejuízo na vida foi o senhor. Aquela coleção que o Chateaubriand hipo-
tecou nas minhas mãos por 3 milhões de dólares vale hoje 80 milhões de dóla-
res e eu sei que foi o senhor que descobriu os recursos com os quais foi feita aqui
a liquidação da hipoteca realizada pelo jornalista brasileiro".
Compreendi então a pressa com que ele ameaçava Chateaubriand de execu-
tar a hipoteca, não fosse paga no vencimento.
Apesar de Chateaubriand ter cumprido a exigência de Juscelino (a tal
fundação que ele imaginara acabou sendo criada com o nome de Associação
Museu de Arte de São Paulo, sem ligações com os Diários Associados), isto
não poupou o presidente de sofrer violento tiroteio da imprensa oposicionis-
ta. Alguém da Caixa Econômica passou para a revista Maquis uma cópia do
contrato de empréstimo, que logo chegaria às mãos da Tribuna da Imprensa e
do Diário de Noticias. "Documento inédito prova: Alkmin entregou 100 mi-
lhões de cruzeiros ao ladrão Chatô", foi o título dado à denúncia pela revis-
ta de Amaral Neto. A imprensa dizia que o dinheiro "dado de presente" pela
Caixa Econômica ao jornalista seria suficiente para construir 350 casas pró-
prias para trabalhadores, e criticava o fato de o governo ter vendido a Cha-
teaubriand dólares a 45 cruzeiros, quando a moeda norte-americana era co-
tada a 67 cruzeiros para a importação de filmes para raios X de hospitais
públicos e a setenta cruzeiros para a importação de tratores e sementes para
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FERNANDO MORAIS
a lavoura. Se tivessem tido acesso ao documento pelo qual o Banco do Bra-
sil remeteu os 2 milhões de dólares para liquidar toda a dívida com o Gua-
ranty, porém, os jornalistas descobririam que os dólares tinham sido vendi-
dos a Chateaubriand não a 70, 67 ou 45 cruzeiros, mas a modestíssimos 18,82
cruzeiros, quatro vezes menos que a cotação do mercado na época. (Chateau-
briand, naturalmente, não pagou um único centavo da monumental dívida
que assumiu com a Caixa Econômica Federal. Só catorze anos depois, quan-
do ele já estava morto, é que Jarbas Passarinho, então ministro da Educação
do governo do general Emílio Garrastazu Médici, decidiu liquidar o débito
do MASP usando recursos de uma certa "verba cultural" proveniente da Lo-
teria Federal. Passarinho se tornaria, em troca da gentileza, o dono do único
título de sócio benemérito concedido pela diretoria do museu).
Apesar de o pesadelo do MASP ter chegado ao fim, o jornalista ainda não
podia realizar seu sonho e assumir a embaixada para a qual fora nomeado.
Agora ele sofria uma queixa-crime no Supremo Tribunal Federal pelos cri-
mes de calúnia, injúria, difamação e extorsão, movida pelo industrial José
Ermírio de Moraes. Para assumir o cargo de embaixador ele teria de renun-
ciar ao mandato de senador e, com isto, perderia a protetora imunidade par-
lamentar que o colocava a salvo de uma condenação pelo STF.
A ruidosa briga entre Ermírio e Chateaubriand começara quando este
ainda tentava levantar recursos para liquidar parte da dívida do museu com
o Guaranty. Ao retornar de uma de suas viagens a Nova York, ele apelou a
Lucas Lopes, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômi-
co (BNDE), para intermediar junto ao grupo Votorantim um pedido de contri-
buição de 1 milhão de cruzeiros para a coleta que ele fazia (nem era tanto di-
nheiro - cerca de 14 mil dólares da época, ou 70 mil dólares de 1994). Como
contrapartida, o jornalista se dispunha a deduzir a doação do patrocínio que
a Votorantim já fazia do programa "O céu é o limite", na Tv Tupi. A escolha
de Lopes para intermediário não era casual: a empresa de Ermírio estava le-
vantando um empréstimo de 400 milhões de cruzeiros junto ao BNDE, o que
deixava o presidente deste, imaginava Chateaubriand, em uma posição pri-
vilegiada para fazer o pedido. Ainda que meio a contragosto ("Eu achava
que havia outras áreas mais necessitadas ", diria Moraes meses depois), o in-
dustrial aceitou doar o milhão pedido - bastava Chateaubriand pegar o di-
nheiro com Miguel Dias, diretor da empresa. Na hora do acerto, quando este
fez menção a 1 milhão de cruzeiros, Chateaubriand se eriçou:
- Como 1 milhão? Eu falei 10 milhões! Pode voltar e dizer ao Ermírio
que são 10 milhões de cruzeiros ou nada!
Nos dias que se seguiram, Chateaubriand insistiu em falar pessoalmen-
te ou por telefone com o dono da Votorantim, mas nunca conseguia passar
da barreira de assessores e diretores da empresa. Sua curta paciência chegou
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
logo ao fim e ele mandou por um funcionário (e depois por intermédio do
próprio Lucas Lopes) "o último recádo" a José Ermírio de Moraes:
- Ele pode pegar o milhão dele e limpar o rabo. Ou me dá 10 milhões
ou eu arrebento a Votorantim.
Ao tomar conhecimento da insolência, o industrial - que também não
estava para brincadeiras - achou que estava colocando um ponto final na-
quela história:
- Então digam ao Chateaubriand que ele não vai ter nem 10 milhões,
nem 1 milhão, nem dinheiro algum. Isto aqui é uma empresa, não é a Santa
Casa de Misericórdia.
As boas relações entre Chateaubriand e os Moraes remontavam às pri-
meiras décadas do século, quando o império industrial ainda era dirigido
pelo sogro de Ermírio, o comendador Pereira Inácio. Em 1942, durante a
campanha da aviação, Ermírio de Moraes chegara a doar o monomotor Vis-
conde de Moraes ao aeroclube de João Pessoa, na Paraíba. A fraternidade do
passado, no entanto, passava a valer zero para o jornalista. Dias depois ele
mostrava as unhas em uma pequena nota publicada junto ao noticiário eco-
nômico dos jornais Associados do Rio e de São Paulo:
A Cia. Votorantim, depois de ter levantado às pressas 320 milhões no
Banco do
Brasil, quer mais 450 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômi-
co. Ontem, em rodas do Ministério da Fazenda, a Votorantim era considerada
uma firma inflacionária, curta de capitais próprios e ambiciosa de crédito dos
bancos oficiais.
Passam-se mais alguns dias e Chateaubriand volta ao ataque, desta vez
mandando publicar uma reportagem vaga e sem informações concretas, afir-
mando que era "difícil a situação financeira do grupo de José Ermírio de Mo-
raes". Segundo o noticiário, o que causava apreensão nos meios economicos
eram as dívidas da empresa: "A apenas um fornecedor, o grupo deve mais
de 130 bilhões de cruzeiros". Mais um dia e aparece nos jornais um anúncio
assinado por Ermírio, no qual ele esclarece que, num encontro casual, Lucas
Lopes mencionara que Chateaubriand desejava uma entrevista "com a in-
tenção de solicitar a cooperação das empresas por mim presididas na cam-
panha de aquisição de quadros para o Museu de Arte de São Paulo". Além
disso, a FIESP e a Federação do Comércio divulgaram notas oficiais, se solida-
rizando com o industrial. Ficava claro que, ao contrário da maioria dos em-
presários, Moraes estava decidido a resistir às investidas do jornalista. Cer-
tamente ele não imaginava o que estava por vir.
Naquela mesma noite os telespectadores da Tv Tupi de São Paulo se sur-
preenderam quando a telenovela que estava no ar (e que ainda era conheci-
da como "teleteatro") foi interrompida pela aparição na tela, no meio dos
atores, da figura do dono dos Associados, em pessoa. Durante meia hora
Chateaubriand falou de improviso. Chamou a Fiesp de "legião de sapateiros"
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FERNANDO MORAIS
e a diretoria da Federação do Comércio de "fazedores de crochê", e se dis-
pôs a revelar as causas de sua briga com "o pau-de-arara que se transformou
em nababo asiático". Sua versão não falava em museu, quadros ou doações.
Ermírio estava reagindo, disse o jornalista, porque fora ele quem convence-
ra o Ministério da Fazenda a não permitir um aumento de 25% no preço do
alumínio:
Manifestei-me contra esse golpe, procurando impedir a manobra da Votoran-
tim. O que representa o alumínio para o pobre? Antes de tudo, os seus utensí-
lios de cozinha. Depois temos toda a classe de tubos de pasta dentifrícia e remé-
dios, cujas novas embalagens são de alumínio, como também as tampinhas dos
frascos de penicilina. O aumento pedido pela Votorantim significaria um au-
mento de 25% desses produtos no consumo.
Isso era tudo? Não, prosseguiu Chateaubriand, de pé diante das câme-
ras da televisão:
Tinha a Votorantim um programa no canal 3 de Sãu Paulo. Pretendeu a televi-
são Associada daqui pô-lo no Riu. Foram tentadas, debalde, várias oportunida-
des para encontrar o sr. Moraes ou seus filhos. Todos, porém, como acontece
com os parvenus, são pessoas de acesso difícil. Trancam-se no escritório. Não há
como vê-los. Por isso foi o programa vendido a Helena Rubinstein.
Estomagou-se o sr. Moraes, e a Votorantim tentou uma perfeita vilania. Man-
dou registrar o programa "O céu é o limite ", da Tv Tupi paulista, como sendo
dela. Conhecendo o caráter pérfido do sr. Moraes, eu próprio, em pessoa, já ha-
via mandado inscrevê-lo na Propriedade Industrial, no Rio. Queria a Votoran-
tim abocanhar o nome universal que, com diferentes denominações, corre mun-
do por várias estações de televisão.
Sobre o pedido de 1 milhão de cruzeiros, logo aumentado para 10 mi-
lhões, nem uma sílaba. Disto se encarregaria o próprio Ermírio de Moraes:
em duas entrevistas ao Diário de Noticias do Rio, ele contou em detalhes as
causas da briga com Chateaubriand, deixando claro que estava sendo vítima
de uma tentativa de chantagem e de extorsão. O troco viria dois ou três dias
depois, de novo diante das câmeras da Tv Tupi, em um aranzel de quarenta
minutos de duração que, como o anterior, seria reproduzido no dia seguin-
te em todos os jornais Associados, sob a forma de artigo assinado. Agora não
havia mais como não falar do dinheiro:
Afinal de contas, quem é o sr. José Ermírio de Moraes? Antes de tudo, um im-
postor e um embusteiro que se inculca de engenheiro sem ter disto diploma.
Chantagem? Chantagem existe quando há propósito de extorsãu de dinheiro.
No nosso caso, o que se queria era transformar uma ordem de publicidade já
concedida num contrato a longo termo, dois anos, para facilitar a vida financei-
ra de um aparelho de cultura como o Museu de Arte de São Paulo.
Como teve o presidente da Votorantim a leviandade de tratar o assunto pela
forma nada séria com que o fez, organizou-se contra ele, como na Europa se fa-
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CHATÕ, O REI DO BRASIL
zia no século passado aos piratas berbéricos, uma expedição punitiva. Qual o
objetivo dessa expedição? Castigá-lo, degradá-lo, atemorizá-lo para educá-lo e
obrigá lo a viver no meio das pessoas de bem, com as leis da dignidade.
O nosso trabalho de auditório continuará ativo. Breve fornecerei dados mais
fracos: minúcias da vida do sr. Moraes no terreno fiscal.
Deixem os industriais de São Paulo o paquiderme avir-se sozinho conosco. O
sr. Moraes é um pirata que deu na costa de São Paulo. Usurpou todo o patrimô-
nio do comendador Pereira Inácio e dos filhos. Mas o nosso tempo, num caso de
interesse público, nós não lhe permitimos que usurpasse. Eis por que ao flibus-
teiro berbérico dirigimos esta expedição punitiva e corretiva. Vão vê-lo depois
desta operação de amaciamento, como ele nos irá sair cordato e tratável!
A virulência da linguagem do jornalista acabaria estimulando inespera-
das manifestações de solidariedade a Ermírio de Moraes. Da tribuna do Con-
gresso, o agora deputado federal Carlos Lacerda advertiu Chateaubriand de
que não era só o industrial, "mas muitos os que não lhe têm medo algum" e
insinuou que até o Exército deveria se ocupar do caso: "No dia em que o ge-
neral Lott virar os tanques para o lugar certo, um fenômeno como o senhor
Chateaubriand já não será mais possível". Além da FIEsP, organizações estu-
dantis de vários estados se manifestavam contra o jornalista e a favor de Mo-
raes, o que levaria o dono dos Associados a denunciar "o contubérnio exis-
tente entre os apandilhados de Moscou e os ratos de sentina da FIESP, como
Antônio Devisate e Nadir Figueiredo". Em um artigo chamado "Schaden-
freud", Chateaubriand explicou a razão e o sentido daquele título em ale-
mão, que, segundo ele, era a palavra que mais se adequava ao dono da Vo-
torantim:
Esta palavra significa isto: o degenerado que resolve ser malvado por nada e
para nada, o tarado que faz o mal gratuitamente, sem outro objetivo que não
seja demonstrar que é uma peste. Será atroz pensar-se que existem produtos da
espécie humana dessa natureza. Mas eles existem. E outro não é o macacão de
1,85 cm da Votorantim. Estou batendo de pau no rabo de um mono desavergo-
nhado.
Esgotados todos os insultos que poderia atirar contra o desafeto, Cha-
teaubriand avançou com uma história inimaginável contra a honra não de
Ermírio, mas de sua mãe. Em um artigo intitulado "Um vira-lata quer ser
totó de luxo da avenida Paulista", afirmou com todas as letras que o indus-
trial, nascido em Pernambuco, era filho bastardo de Antônio Silvino, o temi-
do cangaceiro que aterrorizara o Nordeste na década de 20:
Antônio Silvino, cujo verdadeiro nome era Manuel Batista de Moraes, gerou nas
matas de Pernambuco um rebento espúrio da pior marca. Esse indivíduo inva-
diu a família do comendador Pereira Inácio e lhe arrebatou a filha única. Tendo
entrado na família do velho industrial português, achou pouco
tomar-lhe a filha
e um lugar na diretoria da Votorantim. Entrou a cobiçar o patrimônio do sogro
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FERNANDO MORAIS
e dos cunhados. Um dia os Pereira Inácio acordaram e estavam todos sem Vo-
torantim, sem Votoran, sem nada do que era o colossal edifício da Votorantim.
O filho bastardo de Antônio Silvino, José Ermírio de Moraes, lhes abocanhara o
negócio. O velho vivia praticamente em cárcere privado, e os filhos despojados
das posições do grande grupo industrial. José Ermírio saqueara, em benefício
próprio, o condado do sogro.
Se para ele era o ponto final da polêmica, a família Moraes achou que o
jornalista passara da conta. Contratou os advogados Sobral Pinto e Adauto
Lúcio Cardoso e abriu contra ele uma queixa-crime - que, por envolver um
senador, teria de ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal.
Os diplomatas do Foreign Office gelaram quando começou a circular a
notícia de que o jornalista Assis Chateaubriand poderia ser nomeado embai-
xador do Brasil em Londres. Ainda no final de 1956, quando a informação
não passava de um rumor no corpo diplomático, no Rio, o embaixador bri-
tânico no Brasil, Geoffrey Harrison, enviou um telegrama a Londres dizen-
do que ele "obviamente não é a pessoa mais indicada para ser o embaixador
brasileiro em Londres - e há sérias objeções quanto ao fato de que um aven-
tureiro do seu tipo acabe sendo indicado como gratificação a seus caprichos
pessoais e devido a compromissos eleitorais assumidos pelo presidente
Kubitschek". Como Juscelino havia insinuado em um jantar "com um sorri-
so irônico nos lábios", dizia o telegrama, que talvez Chateaubriand não con-
seguisse ficar mais que três meses no posto, Harrison manifestava sua apre-
ensão: "É claro que nós não teríamos como recusar seu nome, se ele for
proposto, mas uma indicação por um período tão curto certamente iria sig-
nificar desprezo pela Corte de Saint James. Tenho esperanças de que ele não
seja indicado, uma vez que está mais interessado em aparecer e obter publi-
cidade pessoal para si mesmo do que para o Brasil".
Embora a nomeação para o cargo de embaixador já tivesse sido publica-
da no Diário Oficial, com a abertura do processo criminal por José Ermírio de
Moraes (pelo qual o jornalista corria o risco de ser condenado se deixasse o
Senado e perdesse as imunidades parlamentares), Chateaubriand tentou
convencer Juscelino no sentido de que, em vez de embaixador, ele fosse in-
dicado apenas chefe de missão diplomática em Londres - cargo inexistente
na carreira diplomática brasileira. A notícia chegou aos ouvidos dos ingle-
ses. Pressionado por Londres para tentar evitar a nomeação (a Chancelaria
britânica deixava claro que seria inaceitável receber o jornalista com o título
de chefe de missão), Harrison respondeu que a indicação de Chateaubriand
estava fora de controle do Ministério das Relações Exteriores do Brasil: "O
ministério é fortemente contrário à indicação do senador, e há pouco surgiu
um rumor de que o ministro das Relações Exteriores ameaçara renunciar. O
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problema, em última análise, será resolvido entre o senador e o presidente.
Preocupados com a perspectiva de ter alguém tão polêmico como represen-
tante de um país na Inglaterra, o Foreign Office pediu a Harrison que tentas-
se descobrir as razões que levariam Chateaubriand a querer ser embaixador
em Londres e que enviasse algumas linhas sobre a personalidade dele. A res-
posta seguiu dias depois, por meio de um telegrama confidencial:
Suspeito que seu fracasso em ser recebido pela rainha à época da coroação, para
ofertar o famoso colar para o qual arrecadou fundos contribuindo ele próprio
com grande soma, tornou-se uma obsessão. Um dos objetivos declarados de sua
vida é o de ser recebido, de qualquer maneira, por sua majestade. De qualquer
maneira, todos aqui concordam que ele é genuinamente pró-britânico. Tudo isto
ficou muito evidente uma noite em que ele sentou-se ao lado de minha esposa
em um jantar, no decorrer do qual ele jamais parou de falar - numa mescla de
inglês e francês rudimentares.
Seu estado civil é uma confusão - mas, de um modo geral, não muito mais
que o de vários outros brasileiros proeminentes. Creio que em algum lugar ele
tem uma esposa da qual está separado. Aqui se comentava que ele iria se casar
em Paris com uma mulher de origem brasileira, mas como a moça em questão
acabou casando-se com outro, se assumir a embaixada ele aparecerá em Lon-
dres desacompanhado. De uma coisa, porém, não há dúvidas: ele é uma perso-
nalidade extremamente dinâmica.
Mesmo sem saber se Chateaubriand de fato continuava interessado em
assumir a embaixada (ele havia deixado claro que, enquanto o processo de
Ermírio estivesse tramitando, não renunciaria a seu mandato de senador),o
governo brasileiro acabou solicitando à Inglaterra o agrément. No meio da
papelada produzida pela liturgia burocrática britânica nesses casos, o De-
partamento de Protocolo (responsável por aconselhar a rainha a conceder ou
não o agrément) deixou registrado o mal-estar causado pela indicação feita
por Juscelino: "Tentamos dissuadir o governo brasileiro de fazer esta solici-
tação, visto que o sr. Chateaubriand é uma personalidade altamente contro-
versa e longe de ser popular. Sua conduta costuma ser desconcertante. No
entanto, não há dúvidas de que ele é um amigo sincero deste país, e seria im-
possível nos recusarmos a recomendar o agrément sem o risco de prejudicar
gravemente as relações anglo-brasileiras. Assim sendo, recomendo que o sr.
Chateaubriand seja recebido como embaixador do Brasil junto à Corte de
Saint James. Assinado, H. Hanke . Obrigado a dar um parecer antes de fa-
zer subir o pedido à decisão final, o chefe de gabinete do recêm-empossado
primeiro-ministro Harold MacMillan colocou um despacho manuscrito ao
pé do documento.'Com nenhum entusiasmo e muitas (e silenciosas) restri-
ções, eu concordo. A. Reading". Junto à papelada, foi anexado um breve per-
fil do pretendente ao posto, no qual Chateaubriand era descrito como um
homem de "interesses praticamente gerais", que tinha como características
predominantes "um vigor infatigável e forte ambição pessoal". No item
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FERNANDO MORAIS
"idiomas que fala", a embaixada britânica no Brasil colocou: "Comunica
ção rápida, porém ininteligível, em inglês e francês". Apesar de tudo isto
a rainha concedeu o agrémcnt ao jornalista. Agora ia começar outro calvá-
rio para os diplomatas britânicos: ele ia mesmo assumir? E, se ia, quando
isto ocorreria?
A repercussão da nomeação na imprensa oposicionista não poderia ser
pior. "Enfim, um ladrão na corte da Inglaterra", "Um gângster vai represen-
tar o Brasil na corte da Inglaterra" e "Chatô está com medo de ser embaixa-
dor" eram alguns dos títulos e manchetes publicados pelos jornais e revistas
- e que eram remetidos incontinenti a Londres pela embaixada britânica no
Brasil. Chateaubriand não parecia nem um pouco incomodado com as críti-
cas que recebia. Estava mais interessado em defender, na tribuna e em seus
artigos diários, uma esdrúxula tese: ao exigir que um senador renunciasse ao
mandato para assumir o posto de embaixador, o Legislativo estaria "inva-
dindo área de competência do Executivo e subvertendo o equilíbrio entre os
poderes". Como esta não encontrasse qualquer respaldo, tentou outra saída,
ainda mais estapafúrdia: ele não teria de renunciar, pois, como jornalista,
não ia ser um diplomata convencional, escreveu, "mas uma espécie de em-
baixador-repórter, um embaixador de secos e molhados". Tudo isso era re-
metido a Londres pelo embaixador britânico, e a seu maçudo dossiê seria
agregado o artigo em que ele reconhecia que a nomeação era uma velha pro-
messa de campanha - e que era ele mesmo quem tinha pedido o posto ao
futuro presidente:
Desejo que os brasileiros saibam que não foi o governo quem me convidou para
a missão que vou ter em Londres, na cabeça do Império. Fui eu quem, desde
1953, admitindo a hipótese de o governador Kubitschek vir a ser o presidente
da República, lhe pedi que me reservasse a embaixada de Londres, caso pudes-
se merecer a confiança para exercê-la. Ele disse que sim, e que tão logo o embai-
xador Souza Leão se aposentasse, faria o expediente necessário junto ao Foreign
Office para saber se eu era ali persona grata, a fim de poder ser nomeado pelo
governo federal.
Quando soube que tramitava pelo Congresso um projeto de lei estabe-
lecendo que os embaixadores (assim como o prefeito do Distrito Federal) te-
riam de ser submetidos a uma sabatina pelos senadores, antes de ver seus
nomes aprovados para exercer aqueles cargos, Chateaubriand logo saiu em
campo contra a proposta. Fez discursos e escreveu artigos sustentando que
o projeto precisava ser rejeitado, pois, além de se tratar de "mais uma inge-
rência indevida do Legislativo em uma prerrogativa do Executivo", em am-
bos os casos os ocupantes daqueles cargos eram demissíveis ad nutum pelo
chefe do Executivo, sem que fosse necessário o Parlamento se manifestar. O
recurso não surtiu resultado: o projeto foi aprovado a tempo de obrigá-lo a
se submeter à sabatina - da qual saiu aprovado por 35 votos a onze ("as mi-
600
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nhas onze bolas pretas", ironizou em um artigo, como se estivesse pleitean-
do a admissão em um clube de grã-finos).
Os ingleses imaginavam que, concedido o agrément e aprovado o nome
pelo Senado, nada mais restava para que Chateaubriand assumisse seu pos-
to em Londres. Mas estavam equivocados. "Sob nenhuma hipótese", afir-
mou da tribuna, "abrirei mão espontaneamente das responsabilidades
que me conferiu o voto do povo maranhense." Traduzido para o português,
isto significava que, enquanto o Supremo não decidisse que destino daria à
queixa-crime de Ermírio de Moraes, ele não abriria mão das imunidades que
a cadeira de senador lhe assegurava. Enquanto ele não se decidia, a impren-
sa continuava batendo na mesma tecla: Juscelino nomeara um homem des-
qualificado para ser embaixador do Brasil em Londres. Uma reportagem in-
titulada "Chatô, o rei da chantagem", publicada por Maquis, foi reproduzida
sob a forma de matéria paga em todos os jornais não Associados da grande
imprensa (Chateaubriand suspeitava que os anúncios haviam sido pagos
pela Votorantim). Ali estavam relacionados dezenove "crimes" que haviam
sido praticados pelo jornalista. Além de desenterrar os tiros contra o irmão
de Bockel, o atentado a Oscar Flues, as circunstâncias das duas eleições para
o Senado, a campanha contra o laboratório Lomba, as guerras contra os Ma-
tarazzo, Dario Magalhães e Ermírio de Moraes, a reportagem o acusava até
de "ter começado na vida do crime roubando merenda dos primos menores,
601
coRrE aA
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FERNANDO MORAIS
quando era garoto na Paraíba". Nem mesmo a campanha de levantamento
de fundos para a Coluna Prestes escaparia: segundo Maquis, Chateaubriand
só entregara o dinheiro da subscrição pública feita por O Jornal para ajudar
a Coluna porque Prestes "ameaçara denunciá-lo ao país como ladrão".
Tão logo o Senado aprovou seu nome, a revista Time voltou a focalizá-
lo, agora com uma irônica reportagem intitulada "Chatô, rumo a Londres",
na qual um parágrafo dizia respeito a seus planos para a nova missão:
As intenções de Chatô quanto às suas funções no posto londrino são precisas.
"Dentro de poucos anos o Império Britânico estará arruinado", declarou ele na
semana passada. "Os ingleses não mais estarìam aptos a exportar maquinário e
produtos manufaturados. Não terão condições de importar produtos tropicais e
subtropicais. Nosso país poderá suprir essas deficiências nos dois sentidos. Mas
para chegarmos a esse ponto, antes teremos provavelmente de dar explicações
àqueles empertigados banqueiros da City", concluiu.
Os ingleses ficavam arrepiados com o que liam (no caso da Time, o tele-
grama que Harrison recebeu de seus superiores em Londres dizia apenas:
"Não podemos acreditar que o sr. Chateaubriand possa ter feito os comen-
tários a ele atribuídos no terceiro parágrafo da reportagem da revista ameri-
cana"). Como se tudo isso não bastasse, os meses se passavam e Chateau-
briand não dava o menor sinal de que pretendesse assumir a embaixada-
fato que a diplomacia inglesa entendia como uma descortesia, já que, desde
outubro do ano anterior, com a aposentadoria do embaixador Souza Leão,
ela estava entregue a um substituto provisório, o ministro-conselheiro Antô-
nio Borges Leal Castelo Branco. Em junho, o embaixador britânico enviou
um telegrama à sua Chancelaria com dúvidas quanto à data da posse - e
até se haveria posse mesmo:
Em uma festa, uma ou duas noites atrás, Chateaubriand me contou (não pela
primeira vez!) que dentro de dez dias estaria partindo para Londres. Eu lhe dis-
se que a rainha irá para a Escócia em agosto e que depois disso não haveria, até
outubro, outra oportunidade para ele apresentar suas credenciais. Suspeito que
ele ficaria muito satisfeito se puder permanecer por aqui por mais dois ou três
meses. Muitas pessoas começam a duvidar se ele de fato irá assumir o posto.
[...] Ontem à tarde ele apareceu inesperadamente na embaixada para uma xí-
cara de chá. Depois de conversar sobre vários assuntos, chegou ao ponto: ele
queria que eu lhe contasse o que se comentava em Londres sobre sua atitude de
ainda não haver assumido o posto. Respondi que não ouvira nada diretamente,
mas que a embaixada estava vaga desde outubro. Disse-lhe francamente que
pensava que já estava na hora de assumir seu posto.
Mais um mes se passou e o jornalista não dava sinais de que pretendes-
se partir para Londres. Só em julho é que Harrison entendeu (e comunicou
ao Foreign Office) o que o prendia ao Brasil: o processo movido por José Er-
602
#
CHATÔ. O REI DO BRASIL
mírio de Moraes e a determinação de não perder as imunidades parlamen-
tares. Em resposta ao longo relatório que enviou à Inglaterra, o embaixador
recebeu um curto e preocupado telegrama:
Tudo isso é muito constrangedor, embora até o momento eu não tenha visto
qualquer referência a esse caso na imprensa inglesa. Todas essas insinuações a
respeito do tipo de pessoa que é o sr. Chateaubriand nos deixam perplexos ao
imaginar o que advirá quando ele se encontrar à solta em Londres... se é que al-
gum dia ele virá!
Como os diplomatas temiam, a rainha acabou embarcando para suas fé-
rias de verão na Escócia sem que Chateaubriand tivesse desembarcado em
Londres para apresentar suas credenciais. Nesse meio tempo um relatório
percorria os corredores da burocracia do Ministério das Relações Exteriores
da Inglaterra:
Quanto mais se lê sobre o sr. Chateaubriand, pior é a impressào que se forma a seu
respeito como futuro embaixador do Brasil em Londres. Sir Harrison comentou
em julho que pressionaria o sr. Chateaubriand para "tomar uma decisão antes
que a rainha retorne a Londres". Esperamos que nosso embaixador não insista
nessa tática, pois preferíamos que o sr. Chateaubriand abandonasse suas ambi-
ções diplomáticas por sua própria vontade, sem ficar com a impressão, caso não
venha, de nos haver desapontado.
Recentemente, em um almoço [...], sir Arthur Evans [chefe do Departamento
de Protocolo] elogiou muito o encarregado de negócios do Brasil, sr. Castelo
Branco, mas fez ver a ele a singularidade de o Brasil estar por tanto tempo sem
representação a nível de embaixada em Londres. Em conversa com o primeiro-
secretário da Embaixada do Brasil, expliquei que sir Evans nãu falava em nome
do Ministério das Relações Exteriores. Não desejamos que o governo brasileiro
pense que o atraso do sr. Chateaubriand em assumir o seu posto seja um cons-
trangimento para nós.
Parece certo que o sr. Chateaubriand não quer ou não pode vir. Sem dúvida,
o presidente brasileiro conseguirá encontrar um meio de salvar as aparências.
Creio que podemos oferecer ao sr. Chateaubriand mais um mês de prazo, du-
rante o qual sir G. Harrison terá oportunidade de falar com ele. De certo modo,
deixar o posto de embaixador vago por tanto tempo é uma atitude um tanto
descortês por parte dos brasileiros, mas do ponto de vista prático não faz mui-
ta diferença.
Apesar da desconsideração e do transtorno que aquela situação repre-
sentava para os ingleses, pelo menos as aparências estavam salvas: até então
a bisbilhoteira e sensacionalista imprensa britânica ainda não tinha sido aler-
tada para o problema. Mas até esse consolo chegaria ao fim. Nos últimos dias
de setembro circulou nos meios políticos, diplomáticos e financeiros a influ-
ente Newsletter semanal Foreign Report, publicada pela revista The Economist,
trazendo em toda a sua última página um desconcertante artigo intitulado
"O embaixador ausente". Claro, a publicação se referia a Chateaubriand,
603
#
FERNANDO MORAIS
e chamava a atenção dos leitores para "o silêncio constrangido que, no Rio e
em Londres, paira sobre o novo embaixador do Brasil na Inglaterra". A news-
letter resumia em três pontos as razões que o impediam de assumir a embai-
xada:1) Chateaubriand estava sendo processado por calúnia e chantagem; 2)
como senador, ele tinha imunidades que o protegiam do processo; 3) pelas
leis brasileiras, para assumir a embaixada ele teria de renunciar ao mandato
de senador e, com isso, perderia a imunidade parlamentar, sendo quase cer-
ta sua condenação. Segundo a Forein Report, a única saída visível era Cha-
teaubriand tentar obter um acordo extrajudicial com Ermírio de Moraes para
que este retirasse o processo - que a revista qualificava como "o maior re-
vés que o jornalista sofreu em sua vigorosa e bem-sucedida carreira".
A circunstância da nomeação de Chateaubriand para a embaixada atri-
buíra à queixa-crime de Ermírio, porém, a condição de um trunfo do qual o
industrial não abriria mão por nenhuma lei - era bobagem, portanto, pen-
sar em acordo extrajudicial com ele. O que de fato acabaria funcionando se-
ria, mais uma vez, o desmedido poder político de Chateaubriand: em mea-
dos de outubro, o Supremo Tribunal Federal decidiria que, nos ataques a
Ermírio, o jornalista não ferira nenhuma disposição constitucional - e, por-
tanto, o STF se declarava incompetente para julgar a matéria, arquivando a
queixa-crime. Com aquela decisão, o Supremo antecipava em um ano e meio
o destino natural da ação penal, que por falta de providências do tribunal
acabaria prescrevendo em junho de 1959. Não se sabe se para alívio ou de-
sespero dos britânicos, em setembro de 1957 Chateaubriand estava final-
mente em condições de assumir a embaixada do Brasil em Londres.
Ele, no entanto, continuava sustentando solitariamente a descabida tese
de que não havia incompatibilidade alguma em ocupar simultaneamente os
dois cargos - tanto assim que acabou embarcando para Londres sem dar
qualquer satisfação ao Senado, o que obrigaria a Mesa daquela Casa a decla-
rar seu mandato extinto, dando posse ao suplente sem que Chateaubriand ti-
vesse renunciado. Ainda assim, o jornalista só viajou para Londres no dia 15
de novembro, e uma semana depois foi chamado a Buckingham para en-
saiar a cerimônia de entrega de credenciais à rainha. No informe preparado
pelo Foreign Office para a soberana com informações básicas sobre o novo
embaixador, uma particularidade tinha sido destacada: "Seu inglês é fluen-
te, mas praticamente ininteligível; seu francês é bastante bom". No artigo
que escreveu, dias depois, Chateaubriand contou que, como sir Guy Salis-
bury Jones, encarregado pelo palácio de dirigir os ensaios, insistisse em fa-
lar apenas inglês, os dois tiveram de recorrer à mímica para se entender.
Por fim chegou o dia 22 de novembro, data marcada para a tão espera-
da cerimônia. A excentricidade de Chateaubriand já havia chegado a todas
as redações londrinas (logo ao chegar ele dera uma entrevista à BBC e, entre
outras revelações extravagantes, repetira a história de que seu tataravô cani-
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FERNANDO MORAIS
bal havia comido um bispo português), o que fez com que um batalhão de
fotógrafos se postasse à porta da residência do embaixador para registrar
sua saída em direção ao palácio. Chateaubriand não os desapontou: quando
chegou a carruagem real que deveria transportá-lo até Buckingham, ele, ves-
tido de fraque e cartola, quebrou o protocolo e convidou os quatro espanta-
dos cocheiros para se aquecerem brindando com ele a dose of Brazilian brandy
- uma legítima cachaça de alambique pernambucana. Enquanto os cochei-
ros bebericavam em cálices de cristal, o jornalista recolheu cubos de açúcar
de um pires e levou-os à rua, na palma da mão, "para alimentar também os
cavalos de sua majestade".
A audiência de entrega de credenciais acabou durando o dobro dos oito
minutos rigorosamente previstos pelo protocolo. Na sala contígua ao salão
em que a rainha e Chateaubriand se encontravam, sir Guy Salisbury e os oito
funcionários da embaixada brasileira que acompanhavam o jornalista se es-
pantaram quando ouviram risadas da discretíssima rainha da Inglaterra. Ela
se encantava ao ouvir aquele homenzinho, em um inglês tosco, relembrar
que não tinha tido a oportunidade de apertar a sua mão na coroação e que
não estava ali como embaixador, "mas como um repórter, um enviado espe-
cial de Juscelino à Corte de Saint James". A risada tinha sido provocada por
uma declaração surpreendente de Chateaubriand: ·
- Juscelino me pediu que transmitisse uma mensagem à soberana do
Império Britânico: se vossa majestade não agendar imediatamente uma via-
gem para conhecer de perto seus 50 milhões de súditos brasileiros, ele re-
nuncia a seu mandato de presidente do Brasil.
Para desconforto dos diplomatas do Foreign Office, à saída ele conce-
deu nova entrevista aos jornalistas que o esperavam na porta do palácio, ofe-
recendo floreados detalhes de cada instante de seu encontro com a rainha-
inclusive da incrível mensagem de Kubitschek, que ele inventara na hora.
Uma semana depois de assumir o posto, Chateaubriand decidiu fazer,
em companhia de Hugo Gouthier, então embaixador em Bruxelas, uma via-
gem oficial à Polônia. Em Varsóvia, convidado a dar uma entrevista à rádio
estatal, perguntou ao jornalista que o entrevistava se aquela transmissão es-
tava sendo feita ao vivo. Ao receber a resposta afirmativa, ele se pôs a fazer,
em francês, um duríssimo discurso contra o comunismo, exaltando as virtu-
des da democracia que só o capitalismo oferecia. Desesperados, os funcioná-
rios da rádio puseram-se a desligar os fios de seu microfone, mas ele prosse-
guiu do mesmo jeito, e durante meia hora falou para ninguém contra a
União Soviética "e seus satélites totalitários e antidemocráticos". Gouthier
precisou se desdobrar para evitar que aquilo se transformasse em um inci-
dente diplomático.
Não fazia quinze dias que apresentara credenciais à rainha e Chateau-
briand já estava almoçando no Minas Tênis Clube, em Belo Horizonte, de-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
fendendo junto aos banqueiros mineiros o aumento do limite de crédito para
financiamentos à agricultura. Ao entregar a embaixada, poucos dias após as-
sumir o posto, ao ministro-conselheiro Castelo Branco, o jornalista iniciava
um hábito que iria marcar toda a sua passagem por Londres: o de permane-
cer mais tempo cuidando de seus negócios no Brasil do que à frente da mis-
são brasileira na Inglaterra.
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34
Ao assumir a embaixada do Brasil em Londres, Chateaubriand encon-
trou estacionado na garagem um régio presente, dado por seu amigo indus-
trial "Baby" Pignatari: uma limusine Rolls-Royce zero quilômetro, prateada,
que, além de exibir em seu interior um elegante bar de prata lavrada, vinha
equipada com algo que era uma novidade até para os londrinos - um re-
ceptor de televisão portátil. Por pura molecagem, o embaixador conseguiu
licenciar o carro com a chapa BRA-1, sigla que tanto podia identificar o país
de origem do dono quanto provocar risos nas ruas, pois em inglês a palavra
bra quer dizer "sutiã". Apesar de guarnecido com apetrechos tão singulares,
o luxuoso carro seria de utilidade relativa para o dono: além de a embaixa-
da ter sua própria frota de automóveis, o embaixador não tinha planos de
passar muito tempo na Inglaterra.
Ignorando olimpicamente as rígidas normas impostas pelo Itamaraty
para as viagens de seus embaixadores, as contas do tempo que Chateau-
briand efetivamente passou em Londres, durante os dois anos em que foi
embaixador, se forem feitas com precisão, poderiam ser lidas como uma ma-
nifestação de desapreço pelo país em que ele representava o Brasil. O jorna-
lista tomou posse no mês de novembro, poucos dias depois viajou à Polônia,
passou mais um dia em Londres, embarcou para o Brasil e por aqui ficou até
o final de janeiro. Depois de passar um mês na capital britânica viajou para
Roma, de lá retornou ao Brasil e só no dia 26 de março voltou à Inglaterra.
Permaneceu apenas três dias, até tomar outro avião de volta ao Brasil, onde
participou, no Sul de Minas, de uma homenagem ao ex-presidente da Repú-
blica Venceslau Brás. Até o final de 1958, ele ainda viajaria seis vezes ao Bra-
sil (algumas delas para permanecer em São Paulo e no Rio por mais de dois
meses), uma vez à Tchecoslováquia e outra à Suíça. Durante o ano de 1959,
ele conseguiria ser ainda mais ausente da embaixada, tendo viajado catorze
vezes ao Brasil, duas aos Estados Unidos, uma à Tchecoslováquia e uma ao
Paraguai.
Sem tomar conhecimento do ritual interno do Itamaraty, ele ia e vinha
quando lhe apetecia, e nem sequer se dava ao
trabalho de comunicar à Chan-
celaria, no Rio, que estava se ausentando da embaixada: simplesmente trans-
feria o expediente ao ministro-conselheiro Castelo Branco e sumia. Durante
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
sua permanência em Londres, continuava a escrever os artigos diários para
os jornais Associados. Quando as colunas de assuntos diplomáticos dos jor-
nais londrinos começaram a fazer comentários sobre suas demoradas ausên-
cias do posto, ele respondia (em artigos publicados só no Brasil, mas siste-
maticamente remetidos a Londres pela embaixada britânica no Rio) que
errados estavam os outros diplomatas estrangeiros em permanecer "planta-
dos em Londres, à espera de fatos que se recusam a acontecer ". Em um des-
ses artigos, estranhou que os embaixadores estrangeiros na Inglaterra viajas-
sem tão pouco: "Isso é o que deduzo de minhas experiências com o London
Airport. Todas as vezes que ali passo, vindo ou volvendo do continente ou
do Brasil, nunca encontro nenhum dos meus colegas de missão. Serei, de
fato, uma figura assim tão singular na família dos diplomatas acreditados no
Reino Unido?".
Suas permanências em Londres, se não chegavam a criar os embaraços
tão temidos pelo serviço diplomático britânico, deixavam sempre a marca
do pitoresco. O jornalista que conseguisse uma entrevista com ele sabia que
tinha assunto garantido no dia seguinte. Quando foi convidado a fazer uma
palestra no Allied Circle Club de Londres, o repórter do Evening Standard
destacado para cobrir o evento assegurou, ao abrir seu artigo no dia seguin-
te, que jamais ouvira "embaixador algum fazer discurso tão extraordinário
- ele fala como se fosse a encarnação das pinturas surrealistas de Salvador
Dalí ". O que encantara tanto o repórter? O de sempre: Chateaubriand dessa
vez apresentou-se garantindo que seu sobrenome não era uma homenagem
aos bifes que aparecem nos cardápios de restaurantes, mas que parte de seu
sangue vinha de "uma linhagem de piratas da Normandia" e parte de anti-
gos peles-vermelhas do Brasil. No meio do discurso apontou para um vetus-
to casal de nobres que se encontrava na platéia e afirmou:
- Ali está lord Harewood, que é Lascelles de nascimento. Ele é da oita-
va ou da nona geração da princesa Pocahonta, uma índia que veio para a In-
glaterra no século XVII.
Ao final do encontro o repórter indagou de lord Harewood se aquela
história era verdadeira. "Ele me disse que jamais ouvira falar naquilo", es-
creveu o jornalista do Standard, para concluir: "Não encontrei ninguém
naquele auditório que houvesse compreendido uma só palavra de seu dis-
curso". Quando não desconcertava os ingleses, Chateaubriand costumava
deixar em maus lençóis os brasileiros que passavam por Londres. Juscelino
Kubitschek registrou em suas memórias o relato de sua filha Márcia do acon-
tecido durante uma peça de teatro a que comparecera em Londres, acompa-
nhada de sua mãe, d. Sarah, da duquesa de Kent e de Chateaubriand:
[...] No teatro ele sentou-se entre a duquesa e mamãe e, quando o espetáculo ia
pelo meio, começou a dormir. Não dormia simplesmente, mas ressonava alto,
chamando a atenção de todos. Mamãe, preocupada, tentou acordá-lo, sacudin-
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FERNANDO MORAIS
do-o pelo braço, sem que a duquesa o percebesse. Chateaubriand roncou, então,
com mais força, o que provocou esta observação da duquesa: "Já estamos habi-
tuados com as excentricidades do embaixador. Ele é um homem encantador".
De outra feita, Chateaubriand ligou para Paris pedindo que o banquei-
ro Walther Moreira Salles, que se encontrava na capital francesa, fosse almo-
çar com ele, pois tinha "um assunto da maior importância" para tratarem.
Moreira Salles desembarcou em Londres e foi direto para a embaixada, onde
uma multidão de grã-finos aguardava o anfitrião para um almoço em home-
nagem a Raymond Cartier, diretor da revista francesa Paris Match. Com mui-
to atraso, Chateaubriand acabou chegando, e, como o número de convida-
dos fosse maior que o de assentos, mandou que espalhassem cadeiras pela
sala, informalmente. Ao final do almoço, fez mais um discurso incompreen-
sível, e quando Moreira Salles se aproximou dele para saber qual era o as-
sunto tão importante que tinham a tratar, o embaixador respondeu:
- Falamos disso à noite, venha jantar comigo.
À noite o banqueiro brasileiro retornou à embaixada e cobrou de novo
a conversa. Chateaubriand disse que falariam durante a refeição. Apertou
uma campainha e deu ordens ao mordomo para servisse o jantar. O empre-
gado se espantou:
- Mas, embaixador, hoje não haverá jantar. O senhor mandou dispen-
sar o pessoal da cozinha depois do almoço.
Ele não se atrapalhou:
- Bem, Walther, então vamos ao restaurante Mirabelle, aqui perto da
embaixada. Tomamos uma cerveja, comemos um sanduíche e aí conver-
samos.
Quando os dois saíam, apareceram na porta dois casais vestidos formal-
mente - os homens de casaca e as mulheres de vestidos longos -, que che-
gavam para jantar. Ao vê-los, o embaixador acenava com o dedo negativa-
mente, desculpando-se em seu inglês pele-vermelha:
- No dinner tonight... No dinner tonight... Cartier came for lunch. Sorry, but
no dinner, no dinner tonight. We are all going to the restaurant... Come on?
Moreira Salles (que percebera que os casais tinham sido convidados
para um jantar de que Chateaubriand se esquecera) alertou o amigo, em por-
tuguês, que se tratava de gente muito formal para ser levada a um restauran-
te. Mas a embaixada já tinha dispensado os motoristas e os visitantes tinham
dado ordens ao seu para retornar bem mais tarde - ou seja, estavam todos
a pé. Não havia outra alternativa senão irem mesmo ao Mirabelle. Ex-diplo-
mata, Walther Moreira Salles se sentiu constrangido ao ver que Chateau-
briand não fizera reserva de mesas, que tiveram de ser arranjadas às pressas,
e nem se lembrara de apresentá-lo aos convivas. Para agravar ainda mais a
situação, bastou que todos se sentassem para o embaixador brasileiro enfiar
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
o queixo no peito e roncar alto. Moreira Salles dirigia-se a ele em voz um
pouco mais alta, Chateaubriand acordava, dizia duas ou três palavras e dor-
mia de novo. Ciscou alguma coisa do jantar, dormiu mais um pouco, pediu
a sobremesa e antes que ela fosse servida ele já estava dormindo novamen-
te. Uma das mulheres sugeriu que fossem todos embora. Chamaram um
táxi, que deixou os dois brasileiros na porta da embaixada e seguiu com os
convidados. Quando se preparavam para subir para seus quartos, Chateau-
briand virou-se para Moreira Salles:
- Walther, quem eram esses seus amigos?
Ele, naturalmente, nunca os vira antes - e só no dia seguinte é que sou-
be que um dos homens era lord Jowitt, que tinha sido ministro da Justiça do
governo de Clement Atlee. Quanto ao assunto tão importante, que motivara
sua tumultuada viagem a Londres, Moreira Salles jamais saberia do que se
tratava, pois Chateaubriand nunca conseguiu se lembrar por que o convida-
ra a Londres.
Só as festas que Chateaubriand ofereceu na embaixada ficaram mais cé-
lebres que as gafes cometidas durante sua ruidosa passagem pela Inglaterra.
Decidido a não se curvar aos costumes impostos pelo inflexível protocolo
britânico, o embaixador fez de suas recepções diplomáticas um espetáculo
para o qual os convites eram disputados entre o corpo diplomático estran-
geiro. A primeira providência que tomava quando ia dar uma festa era man-
dar retirar todos os móveis da embaixada, deixando apenas os tapetes per-
sas espalhados pelo chão - eventualmente uma ou duas redes nordestinas
eram esticadas num canto de sala. Todos os convidados, portanto, se senta-
vam no chão. Mas o especial era o cardápio: as mais picantes, apimentadas
e extravagantes comidas do Nordeste eram servidas acompanhadas de ca-
chaça pernambucana da melhor qualidade. Como sobremesa, pés-de-mole-
que, doces de jaca-mole e munguzá. Podia-se ver, nos rega-bofes oferecidos
por Chateaubriand (e fartamente cobertos pelos colunistas sociais), condes e
barões brindando com a bailarina Margot Fonteyn ou com o armador grego
Stavros Niarchos, freqüentadores assíduos da embaixada, em taças de cris-
tal repletas de refresco de cajarana.
De todo o período que passou à frente da embaixada brasileira em Lon-
dres, o único registro de trabalho efetivamente diplomático realizado por
Chateaubriand quase resulta em rumoroso problema nas relações entre o
Brasil e Portugal - além de ter sido, bem ao estilo do jornalista, uma inex-
plicável exorbitância de suas funções. No começo de 1959, em uma de suas
inumeráveis escalas no aeroporto de Lisboa, a caminho de Londres, Cha-
teaubriand testemunhou, casualmente, um telefonema recebido pelo embai-
xador do Brasil em Portugal, Álvaro Lins. Na chamada de urgência, Lins
fora informado de que o general da reserva português Humberto Delgado,
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FERNANDO MORAIS
um dos líderes da oposição à ditadura salazarista, acabara de entrar na em-
baixada do Brasil em Lisboa solicitando asilo político.
A decisão imediata de Lins de conceder o asilo gerou um começo de cri-
se diplomática entre os dois países, pois o governo de Antonio de Oliveira
Salazar se recusava a permitir que Delgado deixasse Portugal para embarcar
com destino ao Brasil. O impasse se prolongava por semanas, sem solução à
vista, quando Chateaubriand, sem consultar quem quer que fosse, desem-
barcou em Lisboa, e ali passou dez dias fazendo por conta própria contatos
oficiais com autoridades portuguesas e tentando pressionar Lins para que o
militar fosse posto porta afora da embaixada. Não satisfeito com as inopina-
das gestões que fazia em Lisboa, Chateaubriand - um salazarista declarado
- abandonou temporariamente suas atividades em Londres e passou as
semanas seguintes no circuito Rio-Lisboa-Rio tentando convencer o pre-
sidente Juscelino a desautorizar o embaixador Álvaro Lins e retirar a conces-
são de asilo que já havia sido dada. Apesar dos ingentes esforços do
jornalis-
ta - e da má vontade do governo Kubitschek, que a todo custo tentou evitar
um conflito com Portugal -, o asilo acabou sendo concedido. Indignado
com a liberalidade que o presidente permitira a Chateaubriand e com a pu-
silanimidade do Itamaraty, Álvaro Lins não só deixaria a embaixada e o ser-
viço diplomáticu como romperia relações com Juscelino. E o empenho de
Chateaubriand em defender a ditadura portuguesa seria recompensado
anos depois por Salazar, que daria seu nome a uma avenida em Portugal.
No final de 1959, Chateaubriand conseguiu o prodígio de estar rompi-
do com os três filhos. Com Gilberto ele já não falava fazia muitos anos. Bri-
gara com Fernando quando mandou João Calmon demiti-lo da direção do
Diário de Pernambuco, e sobre Teresa ainda pairava o ódio bíblico que remon-
tava à viagem que ela fizera às escondidas com Corita e Bockel aos Estados
Unidos. A ferida que o separava da filha seria reaberta a partir de 1952 quan-
do ela, ao completar a maioridade, decidiu viver com a mãe e com Clito Bo-
ckel. Ninguém sabe dizer se a raiz da inusitada decisão que o jornalista to-
maria em setembro de 1959 estava nessa relação patológica com os filhos ou
se, como a marquesa de Pompadour, Chateaubriand profetizava para depois
de sua morte o dilúvio de seu império. E havia até, entre seus amigos, os que
imaginavam que ele, temendo que a morte pudesse estar se avizinhando, re-
solvera solucionar, em vida, os inevitáveis problemas da sucessão nos Asso-
ciados.
Fosse movido por premonições, por ódios ou pelo inexplicável prazer
maníaco de ver sua obra desmoronar após sua morte, a verdade é que'na
manhã de 21 de setembro de 1959 Assis Chateaubriand convocou a impren-
sa (a sua e a concorrente) para uma entrevista coletiva no 20º Cartório de São
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Paulo, do qual era tabelião-titular o poeta Menotti del Picchia, para anun-
ciar uma bomba: por meio de uma escritura pública que lavrava naquele
momento, ele decidira doar a 22 de seus empregados 49% da propriedade de
seu império de comunicações, constituído por quarenta jornais e revistas
,
mais de vinte estações de rádio, quase uma dezena de estações de televisão,
uma agência de notícias e uma empresa de propaganda. Por mais que conhe-
cessem o caráter imprevisível de Chateaubriand, os jornalistas e convidados
que ouviram a cansativa leitura das 27 páginas da escritura pública de doa-
ção tinham motivos de sobra para se atordoar. Era a primeira vez que se ou-
via falar de alguém doar a seus empregados a metade de um patrimônio tão
monumental. O paralelo mais próximo que encontravam para comparar o
poderio dos Associados era a cadeia do magnata norte-americano William
Randolph Hearst, e mesmo assim esta ainda ficava, proporcional e numeri-
camente, muitos furos abaixo do verdadeiro Estado montado por Chateau-
briand: no auge de seu prestígio, no final dos anos 30, Hearst (que fora o ins-
pirador do personagem "Cidadão Kane", de Orson Welles) era dono de 25
diários e onze semanários espalhados por dezenove cidades dos Estados
Unidos. Na escritura lida por Menotti del Picchia, Chateaubriand deixou la-
vrado que "escolheu entre os seus colaboradores e auxiliares 22 deles [...], os
quais, no desempenho de suas funções, revelaram maior dedicação ao traba-
lho e o mais alto espírito de compreensão daqueles ideais, a fim de premiá-los,
fazendo-os depositários diretos de sua confiança". Eram elogios pro forma.
Dias antes, quando finalmente encerrou a lista dos escolhidos, Chateau-
briand brandiu no ar com uma gargalhada a folha de papel contendo os no-
mes, exibindo-a ao advogado Vicente Rao (que juntamente com Hélio Dias
de Moura e Alexandre Marcondes Filho tinha sido o criador da estrutura do
agora chamado "Condomínio Associado "):
- Veja a lista dos condôminos que serão donos dos Associados, seu
Rao: tirando um ou dois, metade poderia ser egressa de um manicômio e
metade de uma penitenciária.
Entre os nomes mais conhecidos ele premiara seus filhos Fernando e
Gilberto (Teresa, ainda sem direito ao sursis familiar, ficara de fora), seu ir-
mão Oswaldo Chateaubriand, Austregésilo de Athayde, Edmundo Montei-
ro, João Calmon, Leão Gondim e Martinho de Luna Alencar. Como um so-
berano que distribuísse capitanias, os catorze restantes foram escolhidos por
critérios geográficos, de forma que cada região do país tivesse um comu-
nheiro representando-a no Condomínio. O emaranhado de cláusulas, artigos
e parágrafos daquele instrumento sui generis, que não encontrava paralelo na
legislação brasileira, começava por determinar que a propriedade dos 49%
era vitalícia, mas não hereditária: quando do falecimento ou da renúncia de
um condômino, os 21 remanescentes tinham de escolher entre os funcioná-
rios o substituto (sempre respeitando os critérios de "dedicação ao trabalho
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FERNANDO MORAIS
e fidelidade aos ideais Associados"). Os familiares do morto receberiam,
pelo prazo de cinco anos, os eventuais proventos das ações a que o condô-
mino fizera jus.
O primeiro resultado concreto da criação do Condomínio foi a revolta
dos filhos, que se consideraram esbulhados em sua parte legítima do patri-
mônio paterno. Mas com Chateaubriand vivo a lei lhe garantia o direito de
fazer de seus bens o que melhor lhe aprouvesse. Gilberto aceitou participar
para "lutar do lado de dentro" - abrindo contra o que considerava um
monstrengo jurídico uma guerra nos tribunais que duraria 35 anos e da qual
,
em 1994, sairia derrotado no Superior Tribunal de Justiça. Na época da cons-
tituição do Condomínio, Gilberto ainda tentou, em vão, atrair para a sua po-
sição o irmão Fernando, que, mais radical, nem quis conversa: renunciou à
escolha e foi substituído por Renato Dias Filho.
Visto de fora, o Condomínio Associado transmitia a impressão de um
transatlântico navegando a pleno vapor. Nos meses que antecederam sua
constituição tinham sido incorporados ao grupo o vetusto Jornal do Commer-
cio do Rio (cuja aquisição transformava os Associados nos proprietários dos
três mais antigos diários da América Latina: o próprio Jornal do Commercio, o
Diário de Pernambuco e o Monitor Campista, da cidade fluminense de Cam-
pos), a Rádio Club Goiânia e a Folha de Goiás. Além disso, e representando,
investimentos altíssimos, Chateaubriand se preparava para instalar um ca-
nal de televisão em Brasília, um em Salvador, um em Recife e um quarto em
São Paulo (a Tv Cultura, canal que tinha sido adquirido do industrial Cândi-
do Fontoura). Na futura capital da República estava em fase de implantação,
para ser lançado junto com a inauguração de Brasília, o Correio Braziliense. E
quase simultaneamente ao anúncio da criação do Condomínio, o governa-
dor gaúcho Leonel Brizola inaugurara, em Porto Alegre, mais um canal As-
sociado, a Tv Piratini.
Quem mergulhasse um pouco na contabilidade daquele mundo de em-
presas, entretanto, teria uma visão mais nítida de que o complexo que Cha-
teaubriand decidira compartilhar com 22 empregados era também um navio
com enormes rombos no casco. Vistos de dentro, os Diários Associados per-
mitiam a suspeita de que, conscientemente ou não, o que Chateaubriand re-
partia não era o faustoso reino de outrora, mas um descomunal gigante
plantado sobre pés de barro. O primeiro sintoma de que os problemas ti-
nham sensibilizado até o inatingível jornalista havia ocorrido um ano antes,
quando ele dera ordens, pela primeira vez em 35 anos como empresário de
comunicações, para que um de seus veículos fosse vendido: a Rádio Taman-
daré, de Recife. Além dela, os Associados eram proprietários, na mesma ci-
dade, da Rádio Club de Pernambuco - e ambas eram deficitárias. A muito
custo seu filho Fernando, que ainda dirigia seus negócios em Pernambuco,
conseguiu demovê-lo da idéia - mas o fato de que a iniciativa da venda ti-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
vesse partido dele (que sempre repetia preferir "vender um filho a vender
um veículo") era indicador de que os problemas se agravavam.
Três meses antes de anunciar a doação de metade de seu patrimônio a
empregados, Chateaubriand recebera outra carta alarmante de João Calmon,
revelando que, só na área sob sua responsabilidade, as dívidas dos Associa-
dos montavam a 140 milhões de cruzeiros - 700 mil dólares de então, cerca
de 3 milhões de dólares de 1994. Ou seja, um terço do débito com o Guaranty
que o levara a pensar em "estourar os miolos " poucos anos antes. Mas o pe-
sadelo era ainda maior, advertia Calmon. Havia a dívida colossal com a Pre-
vidência Social que, apesar das sucessivas cobranças, não tinha sido paga:
[...] para completar esse quadro sombrio, há ainda o gravíssimo problema dos
jornais do Rio com os Institutos de Previdência Social. Qualquer novo adiamen-
to poderá provocar uma catastrófica cobrança executiva. A fim de evitar a ven-
da em hasta pública das rotativas de O Jornal, teremos de pagar depois de ama-
nhã, em juízo, cerca de 2 milhões de cruzeiros. Há ainda cerca de dez ações
executivas dos institutos em andamento contra O Jornal e o Diário da Noite. Em
outubro do ano passado, o senhor pediu aos institutos um compasso de espera
até janeiro do corrente ano. Estamos em fins de junho, já decorreram mais de
seis meses e nada foi feito. Sangrados pelos compromissos das construções em
Brasília, os institutos se vêm forçados a assediar seus devedores em atraso. Co-
mo nossas dívidas têm quinze anos de idade, somos as vítimas mais visadas. Te-
nho a consciência tranqüila, porque sou até impertinente com as minhas fre-
qüentes observações sobre o perigo que representa o nosso débito com os
institutos - ver relatórios de 11 e 30 de agosto e de 15 de dezembro de 1955, de
10 de outubro de 1957 e de 1 de dezembro de 1958, todos encaminhados ao se-
nhor em caráter rigorosamente confidencial. Até agora não foi possível, apesar
de todos os nossos esforços, a regularização de nossa situação no Banco do Brasil.
O acordo combinado com o sr. Sebastião Paes de Almeida [presidente do
BB] não
foi aprovado pela diretoria do Banco. É outro pesadelo que me intranqüiliza.
Aguardando o seu pronunciamento, subscrevo-me, cordialmente,
João Calmon
A situação chegava a um ponto tão crítico que, meses antes, Chateau-
briand fora inesperadamente obrigado a recorrer aos bancos a fim de impe-
dir que a Vila Normanda fosse arrestada pela Justiça como pagamento de dí-
vidas dos Associados com a Previdência Social. E, como se tudo isso não
fosse suficiente, a Tv Tupi de São Paulo, que até então reinava soberana co-
mo campeoníssima de audiência (o que, traduzido em miúdos, significava
dinheiro em caixa), fora desbancada pela Tv Record, canal 7, de Paulo Ma-
chado de Carvalho, que em alguns momentos da programação alcançava o
dobro dos telespectadores da Tupi. Além do mais, a obsessão de Chateau-
briand de querer "federalizar" os Associados, dividindo-os em capitanias
autônomas (que, nas horas de aperto, socorriam umas às outras), caminha-
va na direção oposta do que, já no ano seguinte, seria a tendência mundial
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FERNANDO MORAIS
da televisão. Com o surgimento, em 1959, do videoteipe, que começaria a ser
utilizado em larga escala em 1960, o destino natural da televisão era a forma-
ção de networks, as redes com programação centralizada e retransmitida por
fitas - exatamente o contrário do que o jornalista fazia com os canais que ia
inaugurando aos borbotões, cada um deles com uma direção, uma política,
uma programação própria.
A crise não pouparia sequer o até então inexpugnável caixa de O Cru-
zeiro. Aos poucos, as grandes vedetes do jornalismo iam deixando a casa. De-
pois de muitas brigas, Freddy Chateaubriand, que fora a alma da grande vi-
rada da revista, mudara-se para O Jornal e deste para Minas Gerais, onde
fora trabalhar com o pai, Oswaldo, então responsável pela área mineira dos
Associados. Num acesso de indignação, Jean Manzon pedira demissão de-
pois de receber uma descompostura de Leão Gondim por ter feito "gastos
excessivos" com corridas de táxi em Paris, quando realizava um furo inter-
nacional: entrevistar Hjalmar Schacht, o gênio alemão das finanças que, a
serviço de Hitler, reduzira a pó a astronômica inflação da Alemanha no
começo da década de 30. Manzon trocara a revista por Manchete, publicação
semanal criada por Adolfo Bloch para colar nos calcanhares da concorrente
Associada. Em O Cruzeiro, as grandes reportagens iam aos poucos dando lu-
gar a matérias pagas, cada vez mais freqüentes e mais visíveis. Tudo isso se
refletia na vendagem, que depois de bater perto dos 800 mil exemplares se-
manais caíra para pouco mais da metade (com o passar do tempo, a queda
na vendagem seria tal que a revista deixou de publicar, como fazia desde a
fundação, a tiragem semanal). Além de suas próprias dificuldades, O Cruzeiro
também era obrigada a pagar as contas de sua congênere latino-americana,
ainda circulando apesar de decididamente esquecida pelas agências interna-
cionais de publicidade. Na ausência dos estrangeiros, O Cruzeiro internacio-
nal acabava convencendo as agências brasileiras a colocarem nela anúncios
de produtos brasileiros mesmo. Redigida em uma tosca mistura de portu-
guês e castelhano, a publicidade oferecia aos leitores cubanos, argentinos e
venezuelanos produtos só encontráveis no comércio do Rio e de São Paulo.
Um hispano-americano que quisesse consumir um vidro do cosmético Leite
de Rosas, por exemplo, recebia, no pé do anúncio, recomendações sobre co-
mo fazê-lo: "Pida informes en los Laboratorios Leite de Rosas Ltda. RuA Ana Nery,
321, Rio de Janeiro, Brasil". Dois meses depois da instituição do Condomínio,
Chateaubriand sofreu um grande choque emocional: a morte, em Belo Hori-
zonte, de seu irmão Oswaldo, consumido por um câncer. Muito mais do que
a morte do outro irmão, Ganot, ocorrida anos antes na cidade de Tanabi, no
interior de São Paulo, a de Oswaldo parece tê-lo deixado extremamente aba-
lado. No dia do enterro, na capital mineira, os amigos de muitas décadas pu-
deram ver, pela primeira vez, lágrimas brotarem de seus olhos. Muito emo-
cionado, no cemitério Chateaubriand cortou a fila de amigos e bajuladores
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(o enorme prestígio de Oswaldo em Minas advinha do fato de ele dirigir a
mais poderosa organização de comunicação do estado) inscritos para discur-
sar à beira do túmulo, falou durante cinco minutos sobre o irmão, bateu a
mão sobre a tampa do caixão e ordenou que a cerimônia chegasse ao fim:
- Podem baixar o bruto.
Veio o Ano-Novo, a cerimônia em Brasília, a discussão com os policiais
na porta do Palácio da Alvorada, o retorno mal-humorado para o Rio. E, na
madrugada de 26 para 27 de fevereiro, a maldita trombose. Nenhum dos
neurologistas do batalhão destacado para atendê-lo podia afirmar, com se-
gurança, que algum fator externo - como a morte do irmão ou o agrava-
mento da crise financeira dos Associados, por exemplo - tivesse sido a cau-
sa do choque circulatório que o acometeu. Além de os recursos da medicina
serem, em 1960, infinitamente mais pobres do que os que surgiriam nas dé-
cadas seguintes, não era incomum que pessoas física e emocionalmente sa-
dias fossem vitimadas por tromboses cerebrais.
A única certeza que se tinha, no dia 27 de fevereiro de 1960, é que Cha-
teaubriand não ia sobreviver. Ele entrou em delírio, comeu pedaços do bis-
po Sardinha junto com a filha Teresa, flagrou o defunto do general Dantas
Barreto brindando com Dwight Eisenhower, se viu sozinho e descalço na
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caatinga, tentando curar a gagueira, e afinal fechou os olhos, certo de que en-
trava na eternidade. Estava tudo pronto para o funeral, mas o sábado de
Carnaval passou e ele não morreu. Não morreu no sábado, nem no domin-
go, na segunda, na terça, nem na quarta-feira de Cinzas. E, para espanto de
todos, no domingo seguinte, oito dias depois da trombose, Chateaubriand
saiu do coma e abriu os olhos. Não mexia os braços nem as pernas, não mo-
via a cabeça, mas tinha os olhos bem abertos, como se tentasse entender o
que estava acontecendo à sua volta. A equipe médica foi chamada às pres-
sas pela enfermeira Emília, que o atendia quando ele despertou, e constatou
que suas funções vitais haviam recuperado a normalidade: os batimentos
cardíacos, a pressão, a respiração, tudo respondia satisfatoriamente aos tes-
tes. Mas Chateaubriand não se mexia nem pronunciava uma sílaba.
Foi por mera casualidade que a enfermeira Emília Belchior Araúna,
uma pernambucana de 22 anos, morena, de cabelos negros e lisos, foi esco-
lhida para atender o jornalista, no dia seguinte à trombose. Escalada para
dar plantão durante o Carnaval, coube a ela, a princípio, realizar um traba-
lho corriqueiro, prescrito para pacientes naquelas circunstâncias: além de fa-
zer sua higiene corporal e renovar os frascos do soro que o alimentava, ela
tinha de mudar o corpo dele de posição a cada três horas, para evitar a forma-
ção de escaras - crostas que surgem na pele mantida durante muito tempo
numa só posição, e que acabam por provocar a mortificação dos tecidos.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL.
O que nem os neurologistas Abrahão Ackerman e Paulo Niemeyer, che-
fes da equipe que atendia Chateaubriand, nem qualquer outro médico da
Clínica Dr. Eiras sabiam é que Emília, menina pobre do interior de Pernam-
buco, tinha uma irmã surda-muda, chamada Idalina. E que, com paciência,
carinho e metodos rudimentares, conseguira alfabetizar a irmã deficiente.
Com o passar do tempo ela chegaria a entender - através de um processo
que só depois descobriria se chamar leitura labial - tudo o que a irmã dizia.
Com a autorização do clínico João Proni, e sem fazer qualquer alarde, Emí-
lia resolveu tentar entender o que queria dizer o olhar daquele homenzinho
pelo qual se afeiçoara em tão pouco tempo. Sozinha com Chateaubriand no
quarto do "Chalé Olinda", o pavilhão da clínica onde estava internado, Emí-
lia fez a primeira pergunta:
- O senhor está me ouvindo, está entendendo o que eu estou dizendo?
Se a resposta for "sim", feche os dois olhos.
O jornalista cerrou os olhos por alguns segundos, reabrindo-os em se-
guida. Eufórica, a enfermeira pegou duas folhas de papel e em uma delas es-
creveu bem grande a letra A e na outra a letra B. Levantou ambas diante do
rosto de Chateaubriand e fez nova tentativa:
- Agora eu vou lhe fazer outra pergunta. Se a resposta for "sim", o se-
nhor fecha os olhos novamente. Se for "não", mantenha os olhos abertos. Va-
mos lá: na minha mão direita está a letra A. Na minha mão esquerda está a
letra B. Sim ou não?
Desta vez ele fechou os olhos com força, como se quisesse reiterar a cer-
teza de que estava entendendo aonde a moça queria chegar. Emília correu
até o almoxarifado do pavilhão, pegou uma pilha de folhas de papel em
branco e em cada uma delas escreveu, bem grande, uma letra do alfabeto.
Grudou-as em ordem com pedaços de esparadrapo na parede em frente à
cama onde o jornalista permanecia imóvel, pegou uma régua e explicou a ele
qual seria a próxima lição:
- Eu vou colocar a régua por alguns segundos sobre cada uma destas
letras. O senhor vai formar as palavras do que estiver querendo me dizer fe-
chando os dois olhos na hora que eu parar a régua sobre a letra escolhida. A
folha em branco é para os espaços entre uma palavra e outra. O senhor quer
tentar? Se quer, feche os dois olhos. Se não quiser continuar, mantenha-os
abertos.
Chateaubriand fechou os dois olhos, e pela primeira vez Emília perce-
beu que além dos olhos sua boca também tinha algum movimento: ele po-
dia sorrir. Foi mais de uma hora de trabalho. Quando ele fechava os olhos,
ela anotava em um caderno a letra onde a régua tinha parado. Ao final de
um enorme esforço, Chateaubriand conseguira completar uma frase inteira.
Usando de um eufemismo, ele deixava claro que tinha noção da profundida-
de da tragédia que se abatera sobre si, paralisando completamente seu cor-
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FERNANDO MORAIS
po, mas deixando a mente intacta. Letra por letra, espaço por espaço, lá es-
tava escrito no caderno de Emília: "Já entendi tudo: o edifício pegou fogo, só
sobrou a biblioteca". Mal acabara de comemorar com os médicos o progres-
so que tinha conseguido com aquele que já se transformara em seu paciente
predileto, Emília arrancaria outra manifestação da vontade de Chateau-
briand - e desta vez era uma ordem. Mais uma hora de soletração e a en-
fermeira exibia a toda a equipe a exigência que o doente acabara de fazer:
"Enquanto não me restabelecer, não permitam visitas femininas. Não quero
que nenhuma mulher me veja neste estado, nem quero que ninguém tenha
piedade de mim".
Embora os jornais Associados noticiassem diariamente "o franco resta-
belecimento" de Chateaubriand, durante os cinco meses em que ele ficou in-
ternado na Clínica Dr. Eiras seu estado de saúde não apresentou qualquer
progresso. Sua única forma de comunicação com o mundo eram os letreiros
de Emília permanentemente grudados na parede. Em junho, Ackerman, o
chefe da equipe, viajou aos Estados Unidos para um congresso médico e, ao
retornar, Chateaubriand deu ordens - sempre por intermédio do alfabeto
de Emília - para que fosse feita uma festa na clínica para recebê-lo. A ban-
da de Altamiro Carrilho, da Rádio Tupi, tocou dobrados nos jardins do hos-
pital à chegada do neurologista. Um grupo de médicos e enfermeiros conse-
guiu carregar Chateaubriand até a janela do quarto onde estava internado
para cumprimentá-lo a distância - saudação que se resumiu a um sorriso.
A foto do jornalista na sacada do quarto, apesar de visivelmente amparado
por quatro pessoas, foi publicada em O Cruzeiro como sendo uma demons-
tração de que ele se encontrava "em impressionante fase de recuperação, é o
pajé de novo no comando da taba". O cartunista Ziraldo espalhou por todos
os corredores da clínica cartazes com caricaturas de médicos e enfermeiros e
votos de boas-vindas a Ackerman. Chateaubriand pediu para ver os dese-
nhos e, impressionado com o humor do artista, pediu a Emília que chamas-
se o autor. Quando Ziraldo entrou no quarto, o dono dos Associados sole-
trou através do abecedário alguma coisa que a enfermeira traduziu:
- Doutor Assis disse que você é muito talentoso e pergunta se você não
quer trabalhar na revista O Cruzeiro.
Ziraldo deu uma gargalhada:
- Diga ao doutor Assis que eu fico muito honrado com o convite, mas
explique a ele que eu já trabalho em O Cruzeiro há dez anos.
Ainda assim, Chateaubriand queria agradecer a gentileza: mandou
Emília colocar no bolso de Ziraldo um envelope contendo 30 mil cruzeiros
- o equivalente a três meses de salário de cartunista na revista.
Durante várias semanas o fonoaudiólogo Pedro Bloch freqüentou dia-
riamente o quarto do jornalista buscando, em vão, algum tratamento que
transformasse os raros gorgolejos que saíam de sua garganta em algo inteli-
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FERNANDO MORAIS
gível. Discretamente, entretanto, a enfermeira Emília vinha tentando supe-
rar aquela disfunção com seus métodos primitivos. Chateaubriand só conse-
guia fazer movimentos quase imperceptíveis com o maxilar e com a língua,
produzindo um som apagado, rouco, que se tornava um pouco mais agudo
nos momentos em que ele se irritava. Aos poucos, a enfermeira percebeu
que, embora a garganta não produzisse ruídos compreensíveis, os lábios fa-
ziam um esforço enorme para soletrar palavras. Com o correr dos meses
aquela moça simples estava obtendo resultados que nem o maior fonoau-
diólogo brasileiro conseguira. Com paciência, ela pedia que ele insistisse em
pronunciar a palavra desejada. Fixava-se no movimento dos lábios e per-
guntava, repetindo o que achava ser a expressão ou frase do doente: "É isto
que o senhor está querendo dizer?". Se não fosse, não fazia mal, ela o obri-
gava a repetir o esforço até confirmar. O método, apesar de primitivo, come-
çava a dar certo.
Chateaubriand se afeiçoou de tal forma a Emília que nos dias de folga
da enfermeira ele se deprimia, se alimentava mal e tratava os demais mem-
bros da equipe médica com péssimo humor. Até que por fim propôs que a
enfermeira, que era solteira, se mudasse para um quarto contíguo ao seu.
Emília ganhava 15 mil cruzeiros de salário e recebeu do jornalista a oferta de
45 mil cruzeiros mensais (225 dólares de então, cerca de 1100 dólares de
1994) para se dedicar em tempo integral a ele. Uma semana depois, a enfer-
meira já fazia parte da vida do jornalista.
Em setembro, cinco meses depois de ter tido a trombose, Chateaubriand
recebeu alta médica: finalmente poderia deixar a clínica e retornar à Vila
Normanda. O segundo andar da casa foi transformado em um pequeno hos-
pital: ao lado de um balão de oxigênio foi instalada uma cama hospitalar, so-
bre a qual construiu-se um trapézio de barras móveis. No andar térreo foi
ca-
vada uma pequena piscina interna, aquecida, para os exercícios motores
submersos. Todas as manhãs ele era visitado pela fisioterapeuta escocesa
Edith McConnell, residente no Rio, que tentava recuperar um único movi-
mento que fosse de suas pernas e braços. Nessa época Emília já não precisa-
va recorrer com tanta freqüência ao abecedário pregado na parede: agacha-
da ao lado do rosto de Chateaubriand ela conseguia entender, cada dia com
clareza maior, os sons que ele produzia e que, para a maioria das pessoas,
não passavam de grunhidos desesperados. Além de sua intérprete perma-
nente (a enfermeira mudou-se para a Vila Normanda, onde o secretário Ira-
ni Costa também passou a morar quase permanentemente), Emília se torna-
ra sua confidente. Aos poucos foi se familiarizando com nomes de grandes
pintores, de jornais, de seus amigos e inimigos. De manhã, o jornalista era le-
vado em uma cadeira de rodas para a varanda da Vila Normanda, de frente
para o mar, e sobre uma pequena tabuleta de madeira eram colocados jornais
e revistas que ele lia com a ajuda de um enfermeiro que passava as páginas.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Foi Emília quem o convenceu a começar a receber as amigas que, às de-
zenas, pediam para visitá-lo. "Doutor Assis, o senhor não está doente por-
que quer", insistia a enfermeira, "e essas suas amigas gostam do senhor
como o senhor era e como o senhor é. Elas ficam muito tristes quando apa-
recem aqui para visitá-lo e são obrigadas a ir embora sem vê-lo." Ele acabou
cedendo. Aos poucos foi recebendo Iolanda Penteado, Maria da Penha Ca-
rioba, Julieta Paranhos do Rio Branco, Lili Lowenstein - e com o tempo per-
deu o pudor de ser visto naquele estado. A vergonha não vinha apenas do
fato de estar quase mudo e imobilizado, mas do corpo que se encurvava para
a frente, das mãos que embutiam para dentro, como garras de uma ave de
rapina, e da baba que Emília era obrigada a enxugar permanentemente no
canto da boca. Um dia Irani, responsável pela filtragem dos que podiam e
não podiam estar com o chefe, consultou-o sobre um pedido de visita. O go-
vernador da Guanabara, Carlos Lacerda, com quem Chateaubriand estava
brigado, queria vê-lo. Emília traduziu sua resposta:
- Do jeito que estou, posso morrer de uma hora para a outra. E não
quero ir para a cova em pecado. Com Lacerda, não quero conversa!
Apesar da total invalidez física - uma tragédia para qualquer ser huma-
no, mas que adquiria dimensões ainda maiores em um homem terrivelmen-
te irrequieto como ele fora durante toda a vida -, Chateaubriand continua-
va sendo o todo-poderoso cuja mão tinha de ser beijada por quem quisesse
merecer os favores do seu império. Foi assim que sucessivamente foram ba-
ter às portas da Vila Normanda os três candidatos às eleições presidenciais
que se avizinhavam - o general Lott, Jânio Quadros e Ademar de Barros.
Os três foram recebidos pelo jornalista, mas cruzaram nos jardins do casarão
da avenida Atlântica com deputados, diplomatas e industriais que no máxi-
mo conseguiam deixar seus nomes nas listas de visitantes reproduzidas pe-
los jornais Associados todos os dias - sempre acompanhadas de falsas no-
tícias sobre a "franca recuperação" de Chateaubriand.
Pelo que Emília Araúna pôde deduzir, de pedaços de conversas com o
jornalista, ele tinha esperanças, ao sair do coma, de em poucos meses poder
andar de novo, ainda que amparado em muletas, e de em breve voltar tam-
bém a falar normalmente. Mas o tempo passava e o único progresso obtido,
de verdade, nem era seu, mas da enfermeira que fazia um esforço sobre-hu-
mano para entender e traduzir os sons que ele entaramelava. Tanto Emília
quanto os médicos temiam que a ausência de progresso o fizesse perder por
completo o vigor e a energia espirituais que sempre foram a principal mar-
ca de sua personalidade - e que isso o fosse matando aos poucos. Foi mer-
gulhada nessas preucupações que a equipe da Vila Normanda festejou como
um renascimento a notícia dada por Chateaubriand à enfermeira e ao médi-
co João Proni nos primeiros dias de setembro de 1960:
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FERNANDO MORAIS
- Vou voltar a escrever meus artigos diários nos Associados. Arranjem
lápis e papel para anotar, porque quero começar a ditar agora o artigo de
amanhã.
Como se habituara a fazer durante décadas e décadas de produção diá-
ria de artigos - e ao contrário da maioria dos jornalistas -, ditou primeiro
o título: "Compromisso de sangue". Ele estava indignado com o que lera nos
últimos dias em jornais e revistas brasileiros e estrangeiros: a Organização
dos Estados Americanos, reunida em San José da Costa Rica, decidira não
impor qualquer sanção à Cuba de Fidel Castro por sua aproximação cada
vez maior com a União Soviética (só um ano e meio depois, em janeiro de
1962, em Punta del Este, no Uruguai, é que a OEA acabaria por excluir Cuba
do sistema interamericano). Verdadeira exegese da política de guerra fria
dos Estados Unidos, o artigo vergastava os diplomatas americanos, acusan-
do-os de terem "perdido a maioridade" na reunião de San José. A alegria de
ver o dono dos Associados de novo ativo - apesar de mutilado, ele voltava
a lembrar o velho e furioso Chateaubriand - transformou em nada o peno-
so sacrifício que foi para Emília e Proni passar algumas horas para entender
cada uma das 928 palavras do artigo. Intercaladas por reticências, gemidos,
roncos e acessos de ansiedade e impaciência do jornalista, elas acabaram
chegando ao fim. Exausta, Emília limpou o fio de baba que escorria de um
canto da boca dele, que sorriu com uma provocação:
- Deu trabalho? Então podem se preparar, que agora todos os dias vai
ser assim. . .
Um datilógrafo dos Associados apareceu com uma máquina para pas-
sar a limpo o artigo que tinha sido vertido por Emília e anotado por Proni.
O texto foi lido para Chateaubriand, que mudou apenas uma ou outra pala-
vra e, rindo, vaticinou:
- A esquerda vai odiar!
Não era para menos. Como o título insinuava, Chateaubriand propunha
que o mesmo sangue derramado na Europa em defesa da democracia tinha
de ser vertido novamente, agora para livrar a América do "perigo cubano":
[...] O que era preciso na Costa Rica era tomar partido tranqüilamente entre uma
quadrilha de malfeitores e a grande democracia a quem o mundo deve todos os
privilégios que usufrui no campo do direito e da justiça. Nem Hitler chegou aos
atos de rapinagem que Fidel Castro atingiu. A nossa pobre e infeliz América La-
tina só tem uma força de defesa: os Estados Unidos. Deixem eles de policiar as
estradas internacionais que os russos tentam obstruir, e o hemisfério latino-ame-
ricano não passará de um satélite do imperialismo moscovita.
O Brasil lutou nos campos de batalha da Itália pelo mundo democrático. Não
podemos admitir neutralidade entre um criminoso vulgar como Fidel Castro e
uma nação de homens livres como a América do Norte.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Ninguém que lesse aquele artigo teria dúvidas de que Chateaubriand,
embora tetraplégico, estava intelectualmente curado. Tratar os cubanos de
"uma quadrilha de malfeitores", chamar o líder cubano Fidel Castro de "cri-
minoso vulgar" e dizer que "nem Hitler chegou a seus atos de rapinagem"
era Chateaubriand em estado puro. O artigo fez grande sucesso. Nem tanto
pelo conteúdo, não muito diferente do tratamento geral dado pela imprensa
a Cuba, mas, fruto de uma orquestração promovida pelos diretores dos As-
sociados (afinal, era a primeira manifestação vital de Chateaubriand depois
da trombose), ele foi lido em tribunas de câmaras e assembléias legislativas
e recebeu votos de louvor de deputados e senadores. A partir daquele dia,
entre o banho de sol da manhã, sob os coqueiros do jardim da Vila Nor-
manda, e a fisioterapia da sra. McConnell, Emília e um funcionário enviado
pelos Associados se submetiam a uma, duas ou três horas de gratificante
tortura: entender, traduzir, pôr no papel, reler, corrigir e enviar a O Jornal o
texto do dia.
Além da produção diária de artigos, a enfermeira percebeu outro sinto-
ma de vida no novo patrão: a vaidade. Agora, toda vez que estava para re-
ceber a visita de alguma mulher - mesmo que fosse uma das decrépitas
condessas quatrocentonas cuja amizade e fortuna ele cultivava em São Pau-
lo -, Chateaubriand exigia tratamento especial de Emília: mandava que ela
o vestisse de terno e gravata de seda pura, escovasse seus dentes e depois os
pulverizasse com desudorante bucal e caprichasse especialmente no cabelo,
que tinha de ser penteado, partido de lado e depois escovado. Obrigada a
permanecer durante as visitas para traduzir o que ele dizia, a princípio Emí-
lia percebeu que se tratava apenas de encontros entre velhos amigos, nada
mais. Ainda que algum dia tivesse havido algo entre Chateaubriand e uma
daquelas mulheres, os efeitos da trombose, aparentemente, tinham sepulta-
do para sempre o que quer que o ligasse a qualquer uma delas.
Um dia, a enfermeira estranhou que, ao receber a visita de uma mulher
da alta sociedade paulista, Chateaubriand desse ordens para ela se retirar do
quarto por alguns minutos, que ele queria ficar a sós com a amiga. Deixou a
porta do quarto entreaberta, e, enquanto caminhava pelos corredores e
adiantava algum serviço, Emilia ficou intrigada: o que poderia tê-lo levado
àquele gesto? A mulher certamente não entenderia uma centésima parte do
que ele falava. Que intimidade ele poderia estar pretendendo com a amiga?
Nada que dissesse respeito a sexo, naturalmente: primeiro porque o jornalis-
ta não conseguia mover um dedo sequer. E, além de sua própria experiência
como enfermeira de outras vítimas de trombose, os neurologistas que trata-
vam de Chateaubriand já a haviam advertido para o fato de que a tetraplegia
o deixara absolutamente incapaz em termos sexuais. A doença tinha tornado
realidade seu velho pesadelo: ficar impotente. Dois anos antes da trombose, ao
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operar-se da próstata, Chateaubriand pilheriara com os amigos, dizendo que
levaria para a sala de cirurgia um revólver com duas balas:
- Se eu sair broxa daquele hospital, meto uma bala na cara do médico
Paulo Albuquerque e guardo a segunda para enfiar na minha própria cabeça.
Agora, à exceção dos momentos em que estivesse com a bexiga cheia, ao
despertar - quando podia haver a ocorrência de priapismo -, nem mesmo
uma ereção normal ele poderia experimentar. Diante de tudo isso, Emília se
tranqüilizou: a intimidade pedida por ele não passaria de um olhar mais en-
ternecido. Mas, apesar de todas as certezas da ciência, Emília continuava
com a pulga atrás da orelha com a história da vaidade. Ele não se importa-
va em receber de pijamas até o presidente da República, mas exigia uma es-
tica completa quando se tratava de visita feminina. E agora os pedidos para
ficar a sós com várias delas estavam se amiudando.
Dois ou três meses depois de terem se mudado para a Vila Normanda,
a enfermeira sentiu que era hora de cuidar de sua própria vaidade: desde
que começara a tratar de Chateaubriand, ela não fora uma só vez a um cabe-
leireiro, a uma manicure, não saíra para flertar com algum rapaz na praia.
Um sábado, ela deixou de plantão Raquel e Marlene, suas duas enfermeiras-
assistentes, pediu ao secretário Irani que supervisionasse o funcionamento
da casa e resolveu tirar uma folga. Saiu de manhã, foi ao salão de beleza, al
moçou em um restaurante à beira-mar, caminhou pela Cinelândia e quando
eram cinco horas da tarde resolveu retornar a Copacabana.
Au se aproximar da Vila Normanda, percebeu que algo de anormal
acontecera. Irani e as duas enfermeiras estavam no portão de entrada olhan-
do para os lados, visivelmente ansiosos por sua chegada. Emília apressou o
passo, quase correndo, e quis saber o que havia. Os três tentavam falar ao
mesmo tempo:
- Chegou de São Paulo a mulher de um empresário e subiu para o
quarto do doutor Assis. Faz uma hora que os dois estão lá, com a porta tran-
cada por dentro. Nós não sabemos o que fazer.
Emília largou a bolsa na primeira poltrona que encontrou e subiu as es-
cadas saltando degraus. Quando alcançou o corredor que dava para o quar-
to de Chateaubriand, ainda teve tempo de ver a visitante entrando sorratei-
ramente no banheiro de hóspedes, nua, enrolada apenas em uma toalha de
banho - era uma mulher bonita e elegante, de meia-idade, que já estivera
algumas vezes no Rio visitando-o. No momento em que a outra trancava a
porta do banheiro, Emília entrou no quarto de Chateaubriand, com o cora-
ção aos solavancos.
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A enfermeira abriu a porta e sentiu o ar do quarto tomado pelo incon-
fundível cheiro de sexo. Deitado sobre uma cama desfeita, o Chateaubriand
que ela deixara horas antes penteado e arrumado tinha os cabelos desgre-
nhados e o rosto vermelho, afogueado. Pela primeira vez desde que o jorna-
lista saíra do coma, Emília via em seu rosto um riso luminoso, infantil e meio
envergonhado, como um menino que tivesse sido apanhado em uma traves-
sura. Suspeitando do que pudesse ter acontecido entre Chateaubriand e a vi-
sitante, que naquele momento se vestia às pressas no banheiro, ela temia que
a emoção pudesse trazer complicações ao paciente: tirou-lhe a pressão e a
temperatura - estavam normais -, tomou-lhe o pulso e registrou num pe-
daço de papel os batimentos cardíacos excessivamente altos. Preocupada, te-
lefonou para os médicos. Ackerman, Proni e Monti apareceram minutos de-
pois, submeteram o sempre sorridente jornalista a um exame sumário e
tranqüilizaram Emília: mesmo sem saber o que se passara entre ele e a mu-
lher, a aventura não trouxera nenhuma conseqüência para seu estado de
saúde. Os médicos explicaram à enfermeira que provavelmente a visitante
(que já tinha saído discretamente da casa e ido embora) permitira que ele
praticasse com ela alguma coisa próxima de uma sessão de sexo oral, extra-
vagância máxima a que um doente naquelas circunstâncias poderia almejar.
E aquilo, fosse o que fosse, não significava problemas para seu tratamento
nem trazia qualquer efeito prejudicial às suas condições de saúde. O médico
João Proni comentou com Emília que, ao contrário das preocupações dela,
"sentir-se ainda um macho paraibano" só podia fazer bem a alguém como
Chateaubriand, cuja recuperação era cada vez mais remota.
O doente e a enfermeira estabeleceram uma espécie de linguagem cifra-
da para que fosse possível a repetição de visitas furtivas como aquelas. Ira-
ni o avisava que determinada mulher queria visitá-lo e ele apenas pedia a
Emília que "fosse ao cinema" - era o código para que pudesse viver alguns
momentos que lembrassem, ainda que remotamente, os tempos de intensa
atividade sexual.
Chateaubriand permaneceu todo o restante do ano de 1960 na Vila Nor-
manda. Embora nunca abandonasse por completo as esperanças de poder
voltar a falar e a andar, só um ano depois da trombose é que ele se resignou
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FERNANDO MORAIS
a pedir demissão do posto de embaixador na Inglaterra. Já nos últimos dias
de seu mandato (Jânio Quadros fora eleito presidente da República em outu-
bro e tomaria posse no dia 31 de janeiro de 1961), Juscelino escreveu-lhe uma
carta carinhosa, aceitando o pedido de demissão e agradecendo-lhe "por ter
cumprido esse dever com extraordinário brilho, exemplar dedicação e gran-
de amor aos interesses nacionais".
Em abril de 1961, a equipe chegou à conclusão de que a ciência médica
brasileira havia esgotado todos os seus recursos na tentativa de conseguir al-
gum progresso com Chateaubriand. Era hora de buscar socorro em centros
mais desenvolvidos. Por sugestão de Abrahão Ackerman, decidiu-se levá-lo
para um tratamento no afamado Medical Center of Rehabilitation da Uni-
versidade de Nova York. Dirigido pelo médico Howard Rusk, o centro ad-
quirira prestígio como um dos mais avançados hospitais de reabilitação físi-
ca do mundo depois de ter implantado um programa para recuperação de
soldados da Força Aérea e do Exército dos Estados Unidos feridos durante a
Segunda Guerra Mundial. No final do mês, Chateaubriand foi embarcado
para Nova York, acompanhado por um grande séquito de diretores dos As-
sociados, mais Irani e Emília - esta, depois de consagrada em um artigo pu-
blicado por David Nasser em duas páginas de O Cruzeiro, intitulado "Emí-
lia, o anjo da noite", já era considerada parte integrante da família do doente.
Na bagagem, Chateaubriand exigiu que fossem incluídos dois passarinhos:
um canoro curió do Norte de Minas e um corrupião amestrado, negro e de
peito avermelhado, que passava os dias fora da gaiola, caminhando na cama
sobre o corpo inerte do jornalista.
Devidamente instalado no hospital americano, apenas Emília permane-
ceu todo o tempo por lá. Irani ia, passava alguns dias, voltava e depois re-
tornava. Os diretores dos Associados se revezavam em viagens freqüentes a
Nova York, mas quem acabou ocupando o lugar de "chefe da casa civil", res-
ponsável por todas as providências durante a permanência do jornalista no
hospital, foi César Yázigi, gerente comercial dos Associados, fluente em in-
glês (e que depois montaria no Brasil a rede de cursos de idiomas que leva-
ria seu sobrenome). Embora a diária do hospital, o pagamento aos médicos
,
fisioterapeutas e aos dois enfermeiros-assistentes contratados para auxiliar
Emília (os porto-riquenhos Eva e Le Roy) mais as despesas de hotéis e ali-
mentação de toda a equipe custassem a pequena fortuna de 22 mil dólares
por mês (aproximadamente 100 mil dólares de 1994), Chateaubriand perma-
neceu oito meses internado no centro de reabilitação, conhecido apenas
como Clínica Rusk.
Durante todo esse tempo, a rotina do tratamento não se alterou: às seis
horas da manhã uma equipe médica, eventualmente chefiada pelo dr. Rusk
em pessoa, vinha tirar-lhe a pressão e a temperatura e medir-lhe os batimen-
tos cardíacos. Em seguida ele era levado de maca para um ginásio de espor-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
tes em outro andar do prédio. Deitado sobre uma cama ergométrica, Cha-
teaubriand era massageado por uma fisioterapeuta e depois seus braços e
pernas eram sucessivamente presos a correias de couro ligadas a equipa-
mentos mecânicos: durante quinze minutos uma perna era movimentada ar-
tificialmente, depois mais quinze minutos na outra e quinze em cada braço.
Terminados os exercícios, uma grua em cuja ponta estava presa uma cadei-
ra equipada com cinto de segurança o mergulhava em uma piscina aqueci-
da onde dois enfermeiros movimentavam suas pernas, braços e pescoço,
como se ele estivesse nadando. Ao final da natação, os dois enfermeiros o se-
guravam por debaixo dos braços e o estimulavam a tentar andar sob a água.
Uma hora depois, sentavam-no na cadeirinha, o guincho o retirava da pisci-
na, depositava-o em uma cadeira de rodas de plástico, e então ele era con-
duzido para o banho diário. Como acontecia desde que ficara doente, sua
urina era recolhida por uma comadre; para defecar, era preciso que, sentado
na privada, um ou dois enfermeiros massageassem seu ventre. A alimenta-
ção era quase sempre uma massa pastosa, moída em um liquidificador-
mas com freqüência Chateaubriand pedia um bife de filé, que mastigava in-
terminavelmente até extrair todo o suco da carne e cuspir fora o que restava.
À tarde ele passava os olhos sobre o calhamaço de jornais Associados
que chegavam por um malote especial da Pan-American, via os jornais e
revistas norte-americanos e só então se punha a ditar para Emília seu arti-
go - que continuava a escrever todos os dias, sem uma única exceção. Seu
quarto se tornou ponto de passagem obrigatória de toda autoridade ou
empresário de prestígio no Brasil que aparecesse por Nova York. As dele-
gações de parlamentares e diplomatas brasileiros que regularmente iam
aos Estados Unidos para assistir a sessões da oNu se sentiam na obrigação
de ir em romaria à Clínica Rusk. Muitos o faziam por sincera amizade ao
jornalista, mas a maioria sabia que a visita podia garantir uma menção no
artigo do dia seguinte, publicado em jornais espalhados por todo o Brasil
- aos mais íntimos ele pedia que lhe levassem do Brasil sempre a mesma
e incômoda encomenda: um pudim de leite condensado. Por intermédio de
Nelson Rockefeller - outra visita freqüente ao hospital -, Chateaubriand
tornou-se amigo do cardeal Francis Joseph Spellman, ferrenho anticomu-
nista então arcebispo de Nova York. Uma tarde, o cardeal Spellman apare-
ceu na clínica levando para visitá-lo um velho conhecido do jornalista, o
cardeal de Milão, Giovanni Montini (que dois anos depois seria eleito o
papa Paulo VI). Chateaubriand o conhecera anos antes, quando Montini
oficiara o casamento da nobre Giovanna Borghese, de quem o brasileiro
fora padrinho. Outro figurão com quem o jornalista cruzava todas as ma-
nhãs, durante as sessões de fisioterapia, era Joseph Patrick Kennedy, pai
do presidente dos Estados Unidos, também internado na Clínica Rusk para
tentar se curar de uma hemiplegia.
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FERNANDO MORAIS
Para matar o tempo, Chateaubriand escrevia com freqüência às seções
de cartas dos jornais comentando artigos e reportagens. Quando o presiden-
te Jânio Quadros renunciou, no mês de agosto, ele enviou à redação do The
New York Times uma caudalosa e enfurecida carta - publicada na íntegra
pelo jornal com a observação de que o autor era um magnata da imprensa
brasileira e ex-embaixador na Inglaterra. Nela, Chateaubriand censurava
duramente o jornal por atribuir a renúncia a pressões das Forças Armadas
brasileiras, posição que considerava "no mínimo superficial".
Embora o jornalista nunca tivesse abandonado a esperança de se curar
( "enquanto não conseguir reabilitar-me" , ou "quando voltar a caminhar nor-
malmente", costumava escrever), depois de seis meses de intermináveis
sessões de ginástica, um único, modesto progresso tinha sido alcançado pe-
los médicos da Clínica Rusk: ele continuava tão afásico como quando chega-
ra e não conseguia dar um só passo, mas seu antebraço esquerdo, desde que
repousado sobre algum objeto, podia fazer um curtíssimo movimento - coi-
sa de poucos centímetros - no sentido horizontal. E os exercícios tinham
conseguido recuperar também um leve movimento do dedo indicador da
mão esquerda. No dia em que percebeu isto, os olhos de Chateaubriand bri-
lharam como se ele estivesse curado. Chamou Emília e ordenou:
- Trate de me arranjar uma máquina de escrever especial, que eu acho
que já posso datilografar pessoalmente meus artigos.
Um técnico da IBM foi chamado e semanas depois a engenhoca estava
funcionando: o teclado de uma máquina de escrever elétrica foi adaptado
para tornar-se ultra-sensível, de forma que o menor toque acionava a tecla.
Para manter o braço suspenso na altura do teclado, criou-se um sistema de
correias e roldanas, que sairiam de trás da cadeira de rodas, se estenderiam
como um varal sobre a cabeça de Chateaubriand e terminariam em uma has-
te, de onde pendia uma munhequeira de couro, na qual repousaria seu pul-
so esquerdo. Movendo suavemente o antebraço esquerdo para os dois lados
ele conseguiria parar o único dedo útil sobre a tecla e, ao pressioná-la leve-
mente, digitaria a letra desejada. Teoricamente, o problema estava resolvido,
mas fazer a máquina dar resultados concretos foi um inferno. Quase sem ne-
nhum controle motor, o que aconteceu nos primeiros dias é que seu indica-
dor pressionava com força excessiva a tecla, fazendo com que a letra escolhi-
da se repetisse dezenas de vezes na folha de papel. Todos já tinham chegado
à conclusão de que o invento não levaria a nada, mas Chateaubriand estava
decidido a não depender mais de ninguém pelo menos para realizar uma
das raras atividades que lhe dava efetivo prazer: escrever. Sentado na cadei-
ra de rodas ele tentou uma, duas, dez, cem vezes, até conseguir. Sua primei-
ra produção literária foi um minúsculo e quase ininteligível bilhete dirigido
à amiga Maria da Penha Mizller Carioba, de São Paulo. Ele, que passara toda
a vida escrevendo a lápis, vivia a ironia de, já velho, ter de procurar com a
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FERNANDO MORAIS
atenção de um iniciante o lugar de cada letra no teclado de uma máquina de
escrever. Mas o esforço valia a pena: agora ele podia escrever seus artigos li-
vre da humilhação de ter de passar horas tartamudeando pedaços de pala-
vras para a paciente Emília. É verdade que antes de serem transmitidos para
as oficinas de seus jornais, no Brasil, os escritos precisavam ser rigorosamen-
te revistos e corrigidos - mas para isso ele tinha empregados. Afinal, os gar-
ranchos que ele produzira diariamente ao longo de mais de meio século tam-
bém precisavam ser praticamente traduzidos por linotipistas especialmente
escolhidos para isso. A reconquista da liberdade de voltar a escrever pes-
soalmente os artigos foi vista como tamanha manifestação de obstinação
que, por sugestão dos médicos do hospital, Chateaubriand acabou virando
uma reportagem do Herald Tribune - ilustrada por uma enorme foto dele
em pleno trabalho.
Apesar dos progressos obtidos, no entanto, o jornalista não parecia
muito animado. A qualquer pretexto utilizava os artigos para se referir com
melancolia a seu estado de saúde. Mais de uma vez afirmou que se sentia um
"encarcerado" na clínica de Nova York - e até a morte, palavra que detes-
tava, passaria a ser um personagem muito presente em seus escritos. "Sou
um indivíduo familiarizado com a idéia da morte, e habituei-me, muito
moço, a tratá-la como um interveniente de rotina", escreveu um dia. "Essa é,
a razão pela qual o fim de um amigo ou de uma pessoa da família entra em
meu inventário como alguma coisa inevitável." Não havia nenhuma razão
objetiva para que ele estivesse mais ou menos deprimido do que quando
chegara aos Estados Unidos, nem para que pudesse temer a proximidade de
seu fim. O que o acabrunhava era perceber, a cada dia que se passava, que,
à exceção dos imperceptíveis movimentos do antebraço e do dedo indicador,
nada mais mudara em seu estado geral. Uma manhã, aproveitando uma
consulta dirigida pelo próprio Howard Rusk - com quem ele se comunica-
va por uma ponte dupla, falando para Emília, que vertia suas palavras para
Eva ou Le Roy, que por sua vez as traduziam para o médico em inglês -,
tomou coragem e fez a pergunta fatal, a dúvida que estava atravessada
na sua garganta desde o dia em que pusera os pés pela primeira vez naque-
la clínica:
- Doutor Rusk, algum dia eu vou poder andar novamente, ainda que
amparado em muletas?
O cientista americano foi de uma sinceridade cruel:
- Não, doutor Assis. O senhor nunca mais vai andar. Nem com o auxí-
lio de aparelhos.
Dada de maneira tão seca, a resposta deixou-o mergulhado em profun-
da prostração. Quando Rusk deixou o quarto ele dirigiu-se a Emília:
- Telefone ao Calmon e avise que vamos voltar ao Brasil no primeiro
avião. E avise-o para preparar a Casa Amarela. Quero ser sepultado em São
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Paulo e não tenho planos de me transformar em um defunto ambulante. Se
é para terminar meus dias lá, vamos de uma vez fixar residência definitiva-
mente em São Paulo.
O artigo do dia 27 de dezembro de 1961 já trazia no alto: "Casa Amare-
la São Paulo. Mal se instalara de novo no Brasil, entretanto, ele logo perce-
beu que o começo de incêndio dos Associados denunciado por Calmon dois
anos antes havia se transformado em labaredas que lavravam por todos os
lados. Mas, como sempre, era abissal a distância entre as aparências e a es-
sência. Para quem via de fora, o império exibia saúde invejável: desde que
fora vitimado pela trombose, tinham sido colocadas no ar nada menos que
doze novas estações de televisão: a Tv Brasília, no novo Distrito Federal, a
Tv
Tupi-Difusora, em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, a Tv Ma-
riano Procópio, em Juiz de Fora, Minas Gerais, a Tv Rádio Clube de Recife, a
Tv Cultura de São Paulo, a Tv Itapoã, em Salvador, a Tv Ceará, em Fortaleza,
a Tv Paraná, em Curitiba (o Paraná seria aquinhoado com mais um canal, a
Tv Coroados, em Londrina), a Tv Marajoara, em Belém, a Tv Rádio Clube de
Goiânia, em Goiás, e a Tv Vitória, na capital capixaba. "Onde houver um re-
ceptor de Tv, há sempre presente a imagem de um canal Associado" era o
slogan repetido em todas as programações. A Editora O Cruzeiro pusera nas
bancas a revista Pererê, criada por Ziraldo, anunciada como "a primeira re-
vista de histórias em quadrinhos colorida inteiramente feita no Brasil". Num
esforço para recuperar o espaço (e os leitores perdidos), O Cruzeiro anuncia-
va que ia enviar para a cobertura da Copa do Mundo, no Chile, "a mais com-
petente e numerosa equipe de jornalistas da imprensa brasileira": Jorge
Audi, Henri Ballot, Ronaldo Moraes, George Torok, Luís Carlos Barreto e
Mário de Moraes.
Mas, se de um lado a revista tentava demonstrar que estava viva, do ou-
tro os leitores percebiam que O Cruzeiro murchava. Uma cerimônia social ab-
solutamente desimportante do ponto de vista jornalístico, como o casamen-
to de Sérgio Lacerda filho de Carlos Lacerda com Maria Clara Mariani filha
do banqueiro Clemente Mariani, chegou a merecer a reportagem de capa de
um de seus números. O indiscreto Ademar de Barros, candidato ao governo
do estado de São Paulo, deixara vazar, em uma entrevista a O Globo, que pa-
gara à revista 1,5 milhão de cruzeiros (4 mil dólares de então, 16 mil dólares
de 1994) pela publicação de uma laudatória reportagem a seu respeito em
uma das edições anteriores. Até a fatalidade parecia contribuir para o incên-
dio: nos primeiros dias de 1962, suicida-se o humorista e cartunista Péricles
de Andrade Maranhão, criador de "O Amigo da Onça", uma das seções de
maior sucesso da revista. Poucos dias depois as vacas magras pareciam che-
gar aos diários. No final de fevereiro, Chateaubriand era obrigado, pela pri-
meira vez em toda a história dos Associados, a mandar fechar um jornal:
premido por dívidas monumentais, saía de circulação o Diário da Noite do
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FERNANDO MORAIS
Rio, um jornal que em várias ocasiões batera recordes de vendagem e que ti-
nha ao morrer, entre outros, colaboradores como Nelson Rodrigues, Antô-
nio Maria e Sérgio Porto, o "Stanislaw Ponte Preta".
Não eram menores os problemas familiares de Chateaubriand, que aca-
bariam batendo às portas do Condomínio Associado. Depois de quase dez
anos de quizílias, ele fizera as pazes com a filha Teresa. O azedume da rela-
ção entre ela e o pai era tal que, quando seu namorado Leonardo - filho de
José Maria Alkmin, um dos grandes amigos de Chateaubriand - procurou
o futuro sogro para pedir a mão da moça em casamento, o jornalista reagiu
com uma resposta desconcertante:
- Não sei por que o senhor vem me procurar para tratar desse assun-
to. Não sei quem é essa moça, não a conheço, não posso dar palpite sobre o
casamento de alguém cuja existência ignoro. Só posso entender sua vinda
aqui se o senhor estiver querendo casar-se comigo.
Mesmo sem a autorização, os dois se casaram. O nascimento do primei-
ro neto, um garoto, amoleceu o coração de Chateaubriand, já doente, e aos
poucos a relação entre pai e filha se recompôs definitivamente. Com Fernan-
do não fora muito diferente. As sucessivas demissões dele de cargos impor-
tantes nos Associados, sempre determinadas pelo pai, somadas à decisão de
não fazer parte do Condomínio Associado, pareciam ter envenenado para
sempre o relacionamento entre os dois. De novo seria um casamento (o se-
gundo de Fernando, com Betty Mennily, ex-mulher do locutor Luís Jatobá)
e o nascimento do filho deles, Fernando Henrique, que acabariam se trans-
formando na chave para o reatamento. Restava o severo e inflexível Gilber-
to. Depois de um período de bonança, o acúmulo de pequenas desavenças
fez com que o pai rompesse novamente com ele - e desta vez parecia ser
para sempre.
Mas a pacificação com dois dos três filhos não se refletiria no Condomí-
nio. Fernando e Gilberto se engalfinharam em brigas públicas respectiva-
mente com João Calmon e Leão Gondim de Oliveira. Por intermédio de
anúncios pagos em jornais do Rio e de São Paulo (jornais não ligados aos As-
sociados, claro), Fernando atribuía a Calmon o desbaratamento do legado do
pai (Freddy Chateaubriand, que concordava com ele, dizia que João Calmon
estava "destelhando a casa") por meio de uma administração incompetente.
Gilberto, por sua vez, acusava Leão Gondim de tentar vender, em benefício
próprio, um dos mais valiosos bens dos Associados, a Schering, que nem
sequer fora incluída no patrimônio do Condomínio. Como retaliação, Cha-
teaubriand destituiu Gilberto sumariamente da presidência do Correio Brazi-
liense e nomeou para substituí-lo o genro, Leonardo Alkmin. De tão escanda-
losa, a briga dos dois irmãos contra os prepostos do pai acabaria aparecendo
em página inteira na revista Time, em uma reportagem intitulada "Império
dividido":
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CHATÓ, O REI DO BRASIL
[...] A batalha é decorrente do profundo abismo que Chatô, ao longo de sua fre-
nética vida particular, cavou entre si próprio e seus filhos. [...] O pai providen-
ciou para que os filhos recebessem educação esmerada e para que nada lhes fal-
tasse porém dedicou-lhes muito pouco do seu tempo. Após uma de suas
frequentes discussões com o pai, Gilberto fraturou umá perna esquiando. Quan-
do Chatô enviou-lhe um cheque de quinhentos dólares com votos de pronto res-
tabelecimento, Gilberto devolveu-o acompanhado de um amargo telegrama:
"Não quero dinheiro, quero um pai".
A enfermidade de Chatô pôs fim à harmonia. Seu filho Fernando entrou com
uma ação na Justiça contra o Condomínio, alegando que este, por abranger mais
da metade da fortuna da família, era ilegal segundo a lei brasileira de proteção
de heranças. Gilberto fez suas próprias reclamações. Em uma tentativa de impe-
dir a concretização dos planos dos executivos, recusou-se a assinar um docu-
mento que atestava a sanidade mental do pai.
Quanto a Chatô, todas as manhãs é conduzido à piscina de sua casa em São
Paulo para exercitar as pernas a fim de evitar a atrofia muscular. A seguir é le-
vado de volta a seu quarto e escorado na cama, onde seu braço é atado a um sis-
tema de roldanas. O restante do dia labuta em uma máquina de escrever elétri-
ca, redigindo vagarosa e penosamente o artigo assinado, ainda publicado
diariamente em seus jornais em todo o país. Esse é o último vestígio de seu po-
der sobre seu império fragmentado.
Além de fragmentado, o império cambaleava. Ao mesmo tempo que fe-
chava o Diário da Noite, inaugurava a Rádio Gurupi, em São Luis do Mara-
nhão, atingindo, com ela, a assombrosa cifra de 85 veículos, entre jornais, rá-
dios e estações de televisão. A muito custo conseguia atrair para as páginas
de O Cruzeiro o talento de Otto Lara Resende, mas perdia um de seus mais
antigos e constantes colaboradores, o excepcional humorista Millôr Fernan-
des. Guardadas as diferenças, Millôr, como Manzon, deixaria a revista após
um episódio inexplicável. Anos antes, ele apresentara na Tv Tupi, ilustrada
com seus próprios desenhos, a "Verdadeira história do Paraíso", uma bem-
humorada e herética versão da criação do mundo. Um dia, Ziraldo encon-
trou os originais na gaveta de Millôr e sugeriu que o material fosse publica-
do em O Cruzeiro. Mesmo já tendo sido transmitida pela televisão, Millôr não
acreditava que a história passasse pelo crivo da revista. Como Ziraldo insis-
tisse, ele pediu que a solicitação fosse feita por escrito. Como em um processo
surrealista, quatro diretores assinaram o pedido para que Millôr, empregado
da casa, publicasse "A verdadeira história do Paraiso" em O Cruzeiro.
O material - dez páginas de revista - adormeceu durante alguns me-
ses na gaveta de alguém. Um dia, Millôr participava de uma festa em Portu-
gal quando foi interpelado pelo cantor Juca Chaves:
- Você viu o que O Cruzeiro desta semana publicou a seu respeito? Es-
tão te esculhambando.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Na ausência do autor, alguém na redação decidira mandar imprimir,
em cores, as dez sacrílegas páginas que jaziam havia tanto tempo no fundo
de alguma gaveta . Como se fosse possível a alguém contrabandear e fazer
publicar, à socapa, dez páginas em qualquer revista, a direção de O Cruzei-
ro, pressionada pela Igreja e pela ala mais conservadora da própria empresa
(liderada por sua presidente, a mesma Lily Gondim que censurara a nudez
de Chateaubriand) publicou na semana seguinte, em metade da primeira
página, um editorial intitulado "Explicação" e assinado por "A direção" ( se-
gundo Millôr, a peça teria sido redigida pelo ultraconservador Adirson de
Barros). Ali se tentava transmitir ao leitor que teria havido, da parte do au-
tor, uma desonesta quebra de confiança:
Confiamos na honestidade intelectual de quem há mais de uma década [na ver-
dade Millôr trabalhava em O Cruzeiro fazia um quarto de século] assumiu co-
nosco e com os leitores de O Cruzeiro o compromisso de criar um humor inteli-
gente e sadio. Confiamos e erramos. [...] Não cabe aqui, propriamente, um
pedido de desculpas. Isso seria fácil, mas de nada adiantaria. Estaremos mais vi-
gilantes, principalmente sobre a seção que provocou os justos protestos de nos-
sos leitores: "O Pif-Paf".
A vigilância seria desnecessária. De posse da prudente carta que solici-
tava a publicação da história, Millôr deixou a revista e ainda conseguiu re-
ceber, na Justiça, uma indenização equivalente a cinqüenta salários - di-
nheiro que só veio parar no seu bolso quatro anos depois, reduzido pela
inflação a menos de 10% daquilo a que efetivamente tinha direito.
Para tornar ainda mais penosa sua situação financeira, o organismo bi-
fronte formado pelos Diários Associados/Condomínio Associado (nunca se
sabia exatamente onde começava um e onde terminava o outro) tinha agora
de se defrontar com uma agravante à qual estava pouquíssimo habituado,
desde a fundação de O Jornal, quatro décadas antes: transformados em uma
trincheira de combate ao governo de João Goulart (que sucedera Jânio, após
a renúncia deste), os veículos de Chateaubriand viram secar, da noite para o
dia, as sempre generosas tetas e os favores do Banco do Brasil, do Ministério
da Fazenda e dos institutos de previdência.
Em janeiro de 1963, Chateaubriand foi levado a Santa Teresa, no Espíri-
to Santo, para assistir a um encontro de diretores e gerentes dos Associados
de Minas, do Rio e de São Paulo. A pretexto de encerrar a convenção, o go-
vernador de Minas, José de Magalhães Pinto, apareceu lá de surpresa, mas
seu objetivo era outro: atrair o dono da maior rede de comunicação do país
para o embrião de conspiração que começava a se organizar contra o gover-
no Goulart. Os olhos de Chateaubriand brilharam, e ele pediu a Emília Araú-
na que traduzisse para Ma galhães Pinto sua opinião a respeito da conjura:
- Nossos rapazes estão dispostos a aceitar seu quinhão de responsabi-
lidades no entrevero que se aproxima. O que vamos ter em breve é o que os
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FERNANDO MORAIS
espanhóis chamam de lttcha callejera. Pode estar certo de que mobilizo a arti-
lharia Associada para enfrentar o presidente e sua guarda escarlate.
Ainda muito discretamente, o golpe estava em marcha. Semanas de-
pois, Chateaubriand receberia na Casa Amarela a visita dos generais Olím-
pio Mourão Filho (o mesmo com quem ele posara nu para a fotografia às
margens do rio Xingu), em vias de assumir o comando da 4ª Região Militar,
em Minas Gerais, e Nelson de Melo, que acabara de deixar o Ministério da
Guerra após o plebiscito que fizera o país retornar ao regime presidencialis-
ta, devolvendo plenos poderes ao presidente Goulart. O objetivo dos dois
militares era um só: pedir o apoio dos Associados "para conter os desatinos
da turba comunista que cerca o presidente", segundo Melo, e particularmen-
te, pedia Mourão, "para combater frontalmente o presidente e seu cunhado
esquerdista, o deputado Leonel Brizola".
Imediatamente Chateaubriand deu ordens para que João Calmon se
preparasse para ajudar na organização e, no momento oportuno, colocar to-
das as rádios Associadas à disposição da "Cadeia da Democracia" que esta-
va sendo planejada pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), or-
ganização que investira cerca de 5 milhões de dólares no financiamento de
campanhas de deputados anticomunistas nas eleições de 1962. O IBDA (que
seria fechado por decreto do governo antes mesmo do golpe militar de 1964)
tinha planos de montar uma cadeia de pelo menos cem estações de rádio até
o final do ano para propagar idéias contra o governo Goulart e enfrentar
com as mesmas armas a pregação política irradiada em vários estados do
Brasil pelo deputado Brizola em defesa das chamadas "reformas de base".
Na outra ponta da conspiração, Chateaubriand destacou Edmundo Montei-
ro para representar os Diários Associados junto ao Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais (IPEs). Criado por empresários do Rio e de São Paulo no ano
anterior, o IPEs tinha como objetivos defender a iniciativa privada e as liber-
dades democráticas "ameaçadas pelo plano de socialização do Brasil do go-
verno Goulart". Além das afinidades ideológicas, uma razão a mais levaria
os Associados a se tornar parceiros do IPES: embora o instituto fosse voltado
para ações exclusivamente políticas, Chateaubriand conseguiria arrancar al-
gum dinheiro dele para financiar projetos culturais da sua quase ociosa Fun-
dação D. Pedro II, instalada no Chateau D'Eu, na França.
Uma boa conspiração parecia ser o que o jornalista precisava para exer-
citar sua artilharia verbal. No decorrer do ano de 1963, poucos foram os ho-
mens da equipe do presidente João Goulart que escaparam de suas flechas
envenenadas. Celso Furtado, superintendente da Sudene, era um "teórico
perdido em abstrações marxistas e imposturas nacionalistas, fruto de suas li-
gações com o bolchevismo internacional". Além de criticá-lo, Chateaubriand
açoitava também "a burguesia nordestina, com os ossos quebrados e as car-
nes chupadas", por aceitar sem reação "essa contradança com o diabo coxo
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
da Sudene". Quando um alto funcionário do governo, tentando fazer com
ele política de boa vizinhança, sugeriu seu nome para receber a Ordem do
Cruzeiro do Sul (a mais alta condecoração brasileira), o dono dos Associados
recusou a gentileza, perguntando em um artigo: "Diante da nossa Ordem do
Jagunço, tão ciosa de seu prestígio, o que vale a Ordem do Cruzeiro do Sul,
distribuída pelo sr. Jânio Quadros aos bandoleiros e assassinos de Fidel Cas-
tro?". [O jornalista se referia ao fato de que o ex-presidente da República ha-
via condecorado o comandante guerrilheiro Ernesto Che Guevara com a
mesma medalha que agora lhe era oferecida.]
Nos artigos de Chateaubriand, o governador Miguel Arraes, de Per-
nambuco, era o "canastrão, ignorante, presumido, fátuo - um comuno-pe-
leguista que com seu bodum castrista está praticando em Pernambuco a des-
moralização das Forças Armadas". Na sua cabeça, o lugar-tenente de Arraes
era "o sicário Gregório Bezerra, que a pretexto de implantar uma reforma
agrária se transformou num dos chefes da alvorada de sangue, com as dra-
gonas de um general da Sierra Maestra que querem criar no Brasil". Refor-
ma agrária? Os comunistas que visitassem as fazendas Associadas Rio Cor-
rente e Queluz, no estado de São Paulo, para ali aprenderem o beabá da
produtividade no campo. A Almino Afonso, ministro do Trabalho de Gou-
lart, Chateaubriand dedicava solene desprezo. "Numa terra mediocremente
politizada ele não seria mais que subdelegado de polícia de Capão
Bonito ."
Quando o deputado federal paulista e democrata-cristão Paulo de Tarso
Santos (que tinha sido o autor do pedido de instalação de uma CPI para in-
vestigar as atividades do iPss) deixou o Ministério da Educação, o jornalista,
então no Rio Grande do Sul, festejou impiedosamente a demissão, com um
artigo intitulado por uma única palavra, "Cão":
Chegou ao Rio Grande a auspiciosa notícia. Mas não se sabe quem enxotou o
ministro da Educação [...], um indivíduo que no fundo não é comunista, traba-
lhista, carreirista, nem nada. O sr. Tarso não passa de um canalha, de um cafa-
jeste, de um à-toa da sarjeta ou do chiqueiro dos porcos. Aqui no Sul existe uma
lagoa dos Patos. Fora preciso descobrir outra, a dos porcos, para nela enterrar o
focinho do mais vil dos brasileiros que surgiu nos derradeiros tempos para aju-
dar a ruína de sua pátria. Se eu tivesse saúde teria juntado um piquete de mu-
lheres para jogar fora do ministério esse saltimbanco execrável [...] alugado a Fi-
del Castro.
Se Chateaubriand atirava a esmo no primeiro janguista que aparecesse
na alça de mira de sua IBM adaptada, David Nasser, que agora, além de prin-
cipal redator de O Cruzeiro, era diretor da revista (e tinha sido indicado pelo
patrão para ingressar no Condomínio, na vaga aberta pelo falecimento do
jornalista paraense Frederico Barata), tinha pontaria mais seletiva: o alvo em
que ele mais insistentemente batia era o deputado Leonel Brizola. Desde o
começo do ano David vinha dedicando a página dupla com que abria a re-
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FERNANDO MORAIS
vista a fustigar o ex-governador gaúcho - agora eleito pelo estado da Gua-
nabara o deputado mais votado de toda a história do país, com 269 mil
vo-
tos. Cansado de bater no esquerdismo brizolista (o que, na verdade, era
que fazia a maioria da grande imprensa), Nasser passou a atirar contra Bri-
zola uma acusação que até então nem mesmo seus piores inimigos jamais lhe
tinham feito: a de corrupção. Mesmo sem apresentar provas muito consis-
tentes, David Nasser acusava Brizola de ter comprado pelo dobro do preço,
quando era governador do Rio Grande Sul, uma usina hidrelétrica polonesa
(curiosamente, Nasser se indignava mais pela compra ter sido feita na Cor-
tina de Ferro do que pelo preço alto); de ter construído a preço superfatura-
do a chamada estrada das Missões, no interior do estado; e, por fim, de ter
feito desaparecer misteriosamente nada menos que trezentos automóveis
oficiais que serviam a repartições públicas estaduais. Além dos artigos sema-
nais publicados em O Cruzeiro, David Nasser moía Brizola diariamente nos
cinco minutos do programa "Diário de um repórter", que era transmitido
por doze estações de televisão e todas as emissoras de rádio Associadas.
Aquilo não podia terminar de outro jeito: nos últimos dias do ano, ao se
encontrar casualmente com David Nasser no balcão da Varig, no aeroporto
do Galeão, Brizola acabou por submeter o jornalista a uma vigorosa sessão
de sopapos. Os jornais Associados noticiaram a briga como sendo um atenta-
do em que Brizola, "protegido por doze capangas, agrediu Nasser à traição,
pelas costas, quando o grande e intimorato lutador da imprensa, inteiramen-
te descuidado, assinava sua passagem num guichê". Além de fartíssima co-
bertura pelos jornais, rádios e tevês Associados, e das incontáveis manifesta-
ções de solidariedade de todos os que estavam envolvidos na conspiração
anti-Goulart, do patrão ele receberia o seguinte telegrama: "Viva, oh machão
Associado. Seu negócio é roxo mesmo. Abraços, Chateaubriand". Como Bri-
zola era conhecido entre seus correligionários como o "Centauro dos Pam-
pas", o artigo de Nasser em O Cruzeiro da semana seguinte era intitulado "O
coice do pangaré", e terminava prevendo profeticamente o que aconteceria
no Brasil meses depois:
Não sou um homem de bravatas, nem herói de picadeiro. Sou apenas um pro-
fissional de imprensa que não recua. Um pouco distraído, talvez, como um tou-
reiro destreinado que desse as costas, inadvertidamente, a um animal perigoso.
Isto não vai acontecer mais.
Volto a repetir: vocês (dirigia-se às forças de esquerda) estão em pânico. A
hora final se aproxima para os profetas da revolução. Não tarda o momento em
que um furacão de civismo varra este país. Até então, suportemos estoicamen-
te as agressões pelas costas e esperemos, com paciência franciscana, que o vene-
no democrático dê cabo dos ratos. Dê cabo de você.
Para que isso aconteça, eu darei minha própria vida. Se Kennedy, que era
Kennedy, não pôde evitar a bala de um louco de Dallas - como poderia eu es
capar ao coice de um pangaré de Carazinho? São acidentes do trabalho.
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Quanto a Chateaubriand, até em seu férreo anticomunismo o jornalista
conseguia ser original. Dois meses antes, o presidente João Goulart convida-
ra para vir ao Brasil, em viagem oficial, o presidente da Iugoslávia, Josip
Broz Tito. A notícia alvoroçou os membros da conspiração que se armava
contra o governo brasileiro. Carlos Lacerda, governador da Guanabara, co-
municou ao Itamaraty que, se Tito fosse ao Rio, ele não tomaria conhecimen-
to oficial da viagem do presidente iugoslavo. D. Fernando Lombardi, núncio
apostólico do Brasil, anunciou que tiraria férias durante a presença do visi-
tante no Brasil. Ademar de Barros, governador de São Paulo, se recusaria a
recebê-lo em seu estado como hóspede oficial. D. Jaime Câmara, arcebispo
do Riu de Janeiro, declarou à imprensa que era "inconcebível a presença no
Brasil de um representante do totalitarismo e do comunismo". A Liga das
Senhoras Católicas de São Paulo organizou uma manifestação à porta do
consulado da Iugoslávia, agitando bandeirolas negras como sinal de luto
pela anunciada presença do visitante na capital paulista. Praticamente sem
exceção, os jornais da grande imprensa faziam coro às manifestações de hos-
tilidade a Tito. Como Jango anunciasse que iria condecorar o visitante com
a Ordem do Cruzeiro do Sul, o Diário de S. Paulo publicou um indignado edi-
torial de protesto:
Queremos fixar nossa posição face ao ditador da Iugoslávia, que logo mais es-
tará desembarcando no Brasil. É lamentável, profundamente lamentável, que o
governo brasileiro se disponha a oferecer a essa alta expressão do totalitarismo
a suprema condecoraçãu da Ordem do Cruzeiro do Sul. Por quê? Que fez ele,
em qualquer plano, para merecer essa honraria? Albert Sabin a recebeu recente-
mente. Alguém poderá comparar os serviços inestimáveis do cientista à huma-
nidade com a ferocidade desse ditador?
Na época funcionava em São Paulo o tablóide diário A Nação, de pro-
priedade do empresário Wallace Simonsen e dirigido por Nabor Cayres de
Brito, ex-editor dos Diários Associados e irmão de Nelson Cayres de Brito,
um dos médicos que atendiam Chateaubriand. Entre os editores de A Nação
estavam os irmãos Cláudio e Fúlvio Abramo, e, na reportagem, trabalhava o
jovem jornalista Paulo Canabrava. A Nação, que vinha defendendo solitaria-
mente o convite de Goulart a Tito, resolveu buscar um aliado para remar con-
tra a maré. Canabrava se espantou quando Nabor o destacou para tentar
arrancar algumas declarações pró-Tito não de um líder esquerdista, mas do
pétreo anticomunista Assis Chateaubriand.
Cumprindo ordens, mas sem nenhuma esperança de ter êxito na em-
preitada, Canabrava foi até a Casa Amarela e pediu à guarda de ferro que
protegia Chateaubriand que transmitisse ao dono dos Associados o pedido
de entrevista. Um assessor subiu ao quarto do jornalista, no segundo andar,
e - aparentemente sem ter se dirigido ao patrão - voltou com a resposta:
negativo, ele não dava entrevistas. Canabrava insistiu e pediu ao funcionário
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FERNANDO MORAIS
que pelo menos lévasse um bilhete seu a Chateaubriand, onde dizia que ele
era o único brasileiro com independência para assumir uma posição como
aquela - e que, como formador de tantas gerações de jornalistas, não podia
deixar um reporter voltar à redação de mãos abanando. A entrevista estava
garantida, e foi um sucesso: com o auxílio de Emília, ele desancou a impren-
sa que protestava contra a visita como "gente que ainda não saiu das selvas":
- Tito vai chegar ao Brasil como chegou Pedro Álvares Cabral: vai en-
contrar Júlio de Mesquita Filho e Ademar de Barros trepados em árvores,
como dois selvagens...
Para quem queria apenas uma declaração de apoio à viagem do chefe
iugoslavo, Canabrava encontrara uma mina de ouro. Mais do que simples-
mente declarar-se solidário com o presidente Goulart e com o visitante, Cha-
teaubriand se dispunha a fazer o papel de anfitrião que Ademar recusava:
- Se o governador não quiser receber o marechal Tito no Palácio do Go-
verno, eu abro as portas da Casa Amarela e o recebo oficialmente, com todas
as honras de chefe de Estado.
Além da esperada reportagem, a manchete de A Nação do dia seguinte
estava garantida. Entusiasmado com a polêmica, Chateaubriand passou a es-
crever todos os dias sobre aquele que já tinha se transformado no "caso Tito :
[...] A incrível boçalidade desse movimento anti-Tito mostra mais uma vez que
somos uma pátria de marroeiros, de indivíduos chucros, de cascas-grossas irre-
cuperáveis. O marechal Tito é um comunista peculiar, um evolucionista, um
bolchevista ocidentalizado, cismático, autor do gesto mais atrevido que um lí-
der do campo socialista poderia ter contra o bloco do comunismo. Na Iugoslá-
via a luta religiosa é uma página do passado. Os padres fazem o culto, os semi-
nários funcionam, os mosteiros de frades e freiras dispõem de dez a quinze hec-
tares de terra própria.
[...] Os jornalistas brasileiros, sem exceção, não enxergam no governante iu-
goslavo mais do que uma carniça a devorar. Digo todos porque nem os Diários
Associados se afastaram dessa direção. O editorial que Tito inspirou ao Estado
de Minas, um almocreve faria coisa mais politicamente policiada. A força de
Tito, ao contrário do dilema shakespeariano to be or not to be, consiste em ser e
não ser de Moscou. Sua força está em ser não só tolerado, mas mimado pelo co-
ração da União Soviética, coração que ama e, ao mesmo tempo, engana e apu-
nhala. Minhas amigas da Liga das Senhoras Católicas e o governador Ademar
de Barros pareciam da família antropofágica, entendiam comê-lo vivo. Os leito-
sres haverão de se perguntar por que, numa emergência dessas, instituiu-se que
o presidente Tito recebesse a nossa hospedagem aqui na rua Polonia. Pois foi
principalmente porque o convite representava um desafio ao risco.
Tito veio ao Brasil, acabou nem passando por São Paulo - onde a úni-
ca recepção "oficial" que o esperava seria oferecida por Chateaubriand na
Casa Amarela. Como agradecimento pela gentileza que não chegou a des-
frutar, o chefe de Estado iugoslavo deu de presente ao jornalista uma caixa
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
de charutos de prata, com uma cordial dedicatória gravada na tampa. Antes
que Tito partisse o jornalista ainda escreveu outro artigo sobre a polêmica,
intitulado "Dois marginais":
Nossos governantes entendem tanto de política externa como entendiam os ta-
puias e tupinambás. Ademar de Barros e Júlio de Mesquita Filho são límpidos
marginais em relação ao drama internacional. Vemo-los em 1500, de tanga, tre-
pados nas árvores, à espera de que frei Henrique de Coimbra reze a primeira
missa. Ignoram que a Iugoslávia é um país altamente ocidentalizado. Querem
provas? Mais de 80,% do volume de seu comércio exterior independem inteira-
mente da Rússia. Só os Estados Unidos emprestaram ao governo do marechal
Tito 2,5 bilhões. E o presidente Kennedy se prepara para recebê-lo.
Prefiro que nossas colaboradoras católicas não adotem a linha bugre e tímida
do governador Ademar de Barros, que fugiu espavorido para a selva, levando
de cambulhada Júlio de Mesquita Filho. Ignoram, um e outro, o evangelho da
paz universal que prega e sustenta o apóstolo branco do Adriático.
Apesar do vigor com que se metia em polêmicas como o "caso Tito"
,
por duas vezes a morte andara rondando as portas da Casa Amarela. A pri-
meira delas aconteceu um ano e meio antes, em uma madrugada de julho de
1962. Emília foi despertada no quarto em que dormia, contíguo ao de Cha-
teaubriand, pelo apavorado Décio, enfermeiro-assistente:
- Acorda, Emília! Acorda, que eu acho que o doutor Assis morreu! Pus
o estetoscópio nele e não escutei nada. Tirei a pressão e nada também!
A enfermeira saltou da cama de camisola, sob um frio intenso, enrolou-
se em um penhoar e correu até o quarto do patrão. Colocou o estetoscópio
sobre o coração dele e não conseguiu ouvir nada. Enrolou o aparelho de me-
dir a pressão em seu braço, bombeou ar rapidamente e ficou impressionada
com o que viu no manômetro: o ponteiro parecia solto, ia de zero a zero, sem
parar em ponto algum.
Rápida, mas sem se apavorar, mandou Décio chamar em suas casas os
doutores Cássio Ravaglia e Antônio de Barros Ulhoa Cintra - dois dos mé-
dicos que o assistiam em São Paulo - e começou ela própria a tomar provi-
dências urgentes: preparou uma injeção de dez gramas de coramina e inje-
tou-a na veia do braço do jornalista. Nada. Assustada com o risco de que ele
estivesse mesmo agonizante, pegou uma garrafa de álcool, entornou-a sobre
o peito do doente, sentou-se sobre a barriga dele e, enquanto fazia as massa-
gens com álcool, pressionava seus pulmões com o peso do corpo. Nada. Fez
respiração boca-a-boca, voltou às massagens e pressões e só então ouviu um
som rouco saindo de dentro de seus pulmões, como se ele estivesse saindo
de um processo de sufocação. Nesse momento, Ulhoa Cintra entrou no quar-
to. Ela tentou tranqüilizar o médico:
- Graças a Deus ele não morreu, doutor. Continua vivo, mas está mui-
to mal.
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FERNANDO MORAIS
O clínico assustou-se com o suor abundante do paciente quase sem pul-
so e sem pressão. Tirou da mala uma injeção recém-lançada de adrenalina, e
à medida que a a plicava, vagarosamente, Chateaubriand foi se reanimando.
Abriu os olhos, ainda zonzo, e gaguejou, sempre por intermédio de Emília:
- Já estou melhor. Quem é o senhor?
- Sou o Ulhoa Cintra, seu médico.
- Já sei: neto do barão de Jaguara. Obrigado por salvar minha vida,
barão.
A queda de pressão era fruto de uma gripe que logo evoluíra para uma
broncopneumonia - que em um paciente com aquele quadro de saúde po-
deria ser fatal. Foram necessárias duas semanas para que ele se recuperasse
por completo. Mas crise semelhante o levaria meses depois, em abril de 1963,
ao Stoke Mandeville Hospital, em Aylesbury, perto de Londres. Assim como
a Clínica Rusk, de Nova York, o Stoke Mandeville também fora criado para
tratamento de hemiplégicos - sobretudo pilotos da RAF - feridos na Segun-
da Guerra Mundial. E, como acontecera na Clínica Rusk, no caso de Cha-
teaubriand os resultados foram nulos. Menos de dois meses depois ele esta-
ria de volta a São Paulo, tão entrevado como quando partira.
Transformada em residência permanente de Chateaubriand, a Casa
Amarela precisou ser adaptada. Um elevador foi instalado para levar o dono
em cadeira de rodas para o segundo andar, e na antiga sala de estar foi cons-
truída uma piscina interna, aquecida, para a fisioterapia diária - tratamen-
to que, como todos tentados até então, não trouxe qualquer progresso para
a recuperação do jornalista. Na beira da piscina, uma empilhadeira indus-
trial foi adaptada e transformada em uma grua como a existente na Clínica
Rusk, em cuja ponta havia a mesma cadeirinha na qual o jornalista era sen-
tado diariamente para ser colocado dentro da água. Ao final das ginásticas,
o guincho descia até a cadeira dentro da piscina e ele era içado para fora.
Chateaubriand conseguira contratar e trazer dos Estados Unidos, para viver
na casa da rua Polônia, a jovem e vistosa fisioterapeuta norte-americana
Edith Engelen, funcionária da Clínica Rusk, que passara a ser a supervisora
de suas ginásticas e massagens. Toda a infra-estrutura da casa - médicos,
enfermeiros, massagistas, mordomos, cozinheiras, copeiras, guardas, moto-
ristas e tudo o que essa equipe custava em alimentos e lavanderia - signifi-
cava um gasto médio mensal de 500 mil cruzeiros, uma fortuna então (em-
bora sua conversão em dólares da época, devido à inflação já em disparada,
só representasse algo como novecentos dólares, ou 3800 dólares de 1994, o
que em absoluto espelha o significado de manter uma casa de alto luxo como ,
a de Chateaubriand). As retiradas de dinheiro eram feitas pelo motorista
Paulo Bruno Figueiredo todas as semanas no caixa dos Diários Associados,
contra a apresentação de um vale assinado pela governanta Guilhermina
Amato.
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FERNANDO MORAIS
Sob a supervisão do naturalista capixaba Alfredo Ruschi, de quem Cha-
teaubriand ficara amigo ainda nos anos 50, o jardim da Casa Amarela foi cer-
cado por uma gigantesca gaiola, que tomava toda a fachada do imóvel, do
chão ao telhado, feita de fina tela de arame, onde passaram a ser criadas cen-
tenas de beija-flores. "Esse viveiro é o passaporte da delicadeza", dizia Cha-
teaubriand, "que ameniza a passagem dos paulistas civilizados que chegam
da rua para visitar um rude jagunço nordestino." E, com a conspiração para
o golpe militar que se avizinhava, era cada dia maior o número de paulistas
e brasileiros em geral - mais ou menos civilizados - que cruzavam os jar-
dins do casarão da rua Polônia. Aos poucos, a Casa Amarela se transforma-
va num ponto obrigatório de encontro de civis e militares ostensivamente
empenhados na derrubada do presidente João Goulart. A qualquer pretexto,
o jornalista oferecia almoços e jantares - para os quais eram invariavelmen-
te convidadas altas patentes militares envolvidas no golpe - nos quais o
assunto principal era sempre a estaca que se cravava cada vez mais fundo no
coração do regime e que, entre 31 de março e 1º de abril de 1964, iria exorci-
zar a todos do lobisomem que aterrorizava aqueles convivas: o fantasma dos
"comuno-pelego-petebistas", como a grande imprensa costumava tratar os
apoiadores de Goulart. Também infalível era a sobremesa desses ágapes:
discursos escritos por Chateaubriand vergastando João Goulart "e a
camari-
lha vermelha que o cerca", cada dia lidos por um personagem diferente. Ser
escolhido para ler nessas cerimônias um discurso de Chateaubriand era uma
honraria que às vezes cabia a seu principal executivo, Juão Calmon (agora
eleito deputado federal), às vezes à enfermeira Emília Araúna, a um dos pró-
prios convidados ou, ainda, a um nome escolhido dentre os mais destacados
speakers ou atores do cast Associado: um dia era Paulo Cabral de Araújo, ex-
locutor da Rádio Clube do Ceará e agora diretor de O Jornal, outro dia era o
teleator Lima Duarte - um dos preferidos de Chateaubriand.
Desde que começara a conspirar contra Jango, nos primeiros meses de
1963, até a eclosão do golpe, em abril de 1964, foram raros os artigos escritos
por Chateaubriand que não tratassem de política nacional. Quando não es-
tava açoitando a reforma agrária, a UNE, o Comando Geral dos Trabalhado-
res (CGT) ou o poder dos sindicatos, o jornalista costumava dedicar-se a cân-
didas reminiscências da infância, da adolescência ou do período em que
vivera na Europa, na virada dos anos 10. Às vezes exagerava, ao afirmar que
aos dezoito anos já usava guarda-costas ("Por uma questão de hábito, sem-
pre andei com capangas. Uso escolta desde 1910"), outras dedicava-se a con-
tar sua convivência de meio século ("um verdadeiro caso de amor ") com um
octogenário que ele chamava de "mobiliário sentimental da Casa Amarela":
seu eterno mordomo Henri Gallon. Da família, quase nunca falava. E quan-
do o fazia era para revelar, sem qualquer cerimônia, a cruel relação que mes-
mo depois de doente continuava a manter com os filhos - chegando, inclu-
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sive, a renegar publicamente a indiscutível paternidade de Gilberto (que,
ironia do destino, cada dia se parecia mais fisicamente com o pai):
João Calmon só me desobedeceu duas vezes - a primeira e a segunda foram
quando mandei demitir meu único filho varão da direção do Diário de Pernam-
buco, que ele ali colocara. A terceira ordem de demissão do diretor rebelde ele
não ousaria deixar de executá-la: estava em jogo a disciplina. [...] Para mostrar
a secura da minha alma, basta dizer que torci o pescoço da minha filha e do fi-
lho varão que possuo. O outro, adotei-o; não tem uma gota do meu sangue.
Não era a família, entretanto, o que o preocupava. O Chateaubriand dos
primeiros meses de 1964 estava empenhado em uma verdadeira cruzada
para "salvar a ordem capitalista ameaçada pela corja vermelha que ocupa o
Palácio do Planalto". Com seu único dedo funcional, passava o dia na IBM
disparando petardos para todos os lados. Nem os amigos a quem ele devia
tantos favores como Juscelino Kubitschek, agora senador pelo estado de
Goiás, escapavam. Quando a convenção nacional do PsD o escolheu candida-
to à sucessão de Goulart, nas eleições marcadas para o ano seguinte, o jorna-
lista fuzilou-o como "um agente de Marx e Lenin, urrando como um boi va-
dio para o curral reformista". Para Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil de
Goulart, Chateaubriand também reservava adjetivos pesados: "Não é um fa-
nático; menos um neurótico; jamais um histérico: ele é simplesmente um ve-
lhaco que resolveu ganhar a vida fazendo canais de exploração através des-
te fraco presidente para operar as esquerdas e trazer as massas aos seus
planos infernais". Preocupado com a atuação de Arraes, "o Mefistófeles do
Nordeste", perguntava indignado: "E onde anda o IV Exército, que nada
faz?". Quando o governo decretou o regime de cinco horas de trabalho diá-
rio para os jornalistas, Chateaubriand esperneou contra "a determinação
obscena", afirmando que "o verdadeiro homem de imprensa, que palpita
dentro de seu ofício, como os repórteres Tico-Tico, Carlos Spera e Nelson
Gatto, não pode se sujeitar ao relógio, porque a notícia não acontece com
hora marcada". Aproveitou para protestar contra a inflação, revelando que
a folha de pagamento dos Associados de São Paulo saltara de 80 milhões de
cruzeiros em dezembro de 1963 para 200 milhões em janeiro de 1964 (de
138 mil para 346 mil dólares de então).
No dia de 13 de março, quando o presidente João Goulart realizava o cé-
lebre "comício das reformas" no Rio de Janeiro, Chateaubriand oferecia na
Casa Amarela um grande almoço ao banqueiro Amador Aguiar, dono do
Bradesco - na verdade, apenas mais um pretexto para juntar os conspira-
dores. Como aperitivo, o jornalista pediu a Lima Duarte, "o único locutor da
Tupi com voz de barítono verdiano ", que lesse seu discurso do dia - uma
verdadeira conclamação ao levante popular -, que, como todos os anterio-
res, seria publicado no dia seguinte como artigo nos jornais Associados:
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(...] Só temos uma mensagem para mandar aos inimigos da paz pública. Será
irmos para as ruas, como já fizeram os homens e as mulheres de Minas Gerais,
chuçar as hordas marxistas que o governo arregimenta e comanda, de acordo
com os planos do comuno-nacionalismo. A montagem levantada contra a livre
empresa e que pede cobertura para a marcha contra a Constituição tenta levar o
Exército e as massas a ocuparem São Paulo e o Brasil, em nome de doutrinas e
métodos que são o oposto de tudo o que se edificou nesta terra. Somos nós que
vamos assumir a ofensiva. Nós é que vamos defender a nação espoliada por car-
reiristas e aventureiros, candidatos a uma ditadura das esquerdas.
Dias depois do comício, o governador Magalhães Pinto apareceu na
Casa Amarela levando nas mãos a cópia de um manifesto à nação que pre-
tendia que fosse assinado por todos os governadores contra o governo - ar-
ticulação que, naturalmente, não chegou a progredir. Em uma reunião sole-
ne - da qual participava, entre outros, a pudica Lily Whitaker Gondim,
presidente de O Cruzeiro -, Magalhães contou que fizera contatos com os
governadores Nei Braga, do Paraná, Petrônio Portela, do Piauí, Seixas Dória,
de Sergipe, e até com Miguel Arraes, de Pernambuco. Antes de avançar em
seu plano, o governador mineiro queria ouvir a opinião de Chateaubriand
sobre os termos do documento. Alguém leu o manifesto e Magalhães quis
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saber o que Chateaubriand achava dele. Com a voz quase inaudível de sem-
pre, o jornalista desculpou-se, dizendo que estava meio afônico, com pouco
fôlego, e pediu a um enfermeiro que fizesse pressão sobre seu esôfago para
que a voz saísse melhor. Com um sorriso maroto nos lábios, em vez de qual-
quer palavra ele soltou um sonoro peido, e, diante do olhar atônito de todos,
declarou, risonho:
- Essa é a única resposta que posso dar a um manifesto que tem a as-
sinatura de Seixas Dória e de Miguel Arraes.
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Chateaubriand nunca revelou a ninguém se foi o medo da morte ou a
articulação para o golpe militar de 1964 que o levou, aos poucos, a reatar re-
lações com alguns de seus mais encarniçados desafetos. Fosse por não que-
rer morrer rompido com eles, fosse pela necessidade de ampliar as alianças
dos Associados para derrubar o governo Goulart, a realidade é que com o
tempo ele foi refazendo amizades que ao longo da vida tomara a iniciativa
de destroçar com incontrolável e sempre pública ferocidade. Primeiro foi em
1963, com Dario de Almeida Magalhães. Quando ficou pronto o prédio novo
dos Associados em Belo Horizonte, o jornalista mandou emissários ao Rio
para saber se Dario permitia que o edifício que ia ser inaugurado fosse bati-
zado com seu nome. Os laços que durante tantos anos ligaram o jornalista
carioca a ele pareciam ser mais fortes que o rancor provocado pelas moleca-
gens que Chateaubriand lhe fizera: Dario não apenas aceitou a homenagem
como foi pessoalmente a Minas participar das cerimônias ao lado do antigo
patrão e amigo.
As reconciliações eram sempre uma iniciativa de Chateaubriand.. De-
pois de Dariu de Almeida Magalhães foi a vez de José Ermírio de Moraes: o
jornalista pediu a Edmundo Monteiro e a Horácio Lafer que propusessem
um armistício ao dono da Votorantim. Para tudo ele arranjava um pretexto
festivo: dessa vez, Chateaubriand montou um batismo conjunto de um mo-
numento a Antônio Raposo Tavares que seria doado à cidade de Beja, em
Portugal. Ao rever depois de tantos anos o inimigo que insultara publica-
mente, o jornalista emocionou os presentes ao beijar-lhe a mão, num pedido
de desculpas:
- Nós dois somos descendentes de cangaceiros nordestinos, doutor Er-
mírio, não podemos morrer brigados...
Às vésperas do golpe militar de 1964, ele resolveu fazer as pazes com Jú-
liu de Mesquita Filho. Por intermédio de Luís Carlos, filho mais novo de
Mesquita, e do então jovem deputado Roberto de Abreu Sodré, muito liga-
do ao dono do Estado, Chateaubriand levantou a bandeira branca que poria
fim à beligerância que os separava desde a Revolução de 32. Mais que uma
mera reconciliação, ele queria homenagear Mesquita com a maior manifes-
tação de respeito que, no seu entender, alguém podia merecer: a Ordem do
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Jagunço. O severo dono do Estado aceitava o reatamento, mas declinava do
convite para receber a condecoração (era mesmo difícil imaginar o taciturno,
hierático Mesquita protagonizando a cômica cerimônia, na qual teria de en-
vergar um gibão de couro e um chapéu de cangaceiro para receber aquilo
que era chamado de "a mais importante honraria dos jagunços de Catolé do
Rocha").
Aceitas de parte a parte as condições, marcou-se a data para a pacifica-
ção, um dia especial:19 de março de 1964, horas depois da Marcha da Famí-
lia com Deus pela Liberdade. O ato serviria também para festejar o sucesso
da gigantesca manifestação pública organizada pela Igreja e por entidades
de mulheres paulistas contra "a comunização do governo João Goulart. Jú-
lio de Mesquita Filho apareceu na Casa Amarela acompanhado dos filhos
Luís Carlos e Ruy - o mais velho deles, Júlio Neto, recusou-se a participar
da festa: ainda estavam vivas em sua memória as campanhas feitas contra o
pai por Chateaubriand, que na sua opinião "havia ultrapassado todos os li-
mites da decência". Carlos Lacerda viajou do Rio especialmente para assis-
tir ao ato que punha fim a tantos anos de hostilidades, e levou consigo o
vice-governador Rafael de Almeida Magalhães (filho de Dario) e seu próprio
filho, Sérgio. Diante da pequena multidão que lotava a casa, onde se podiam
ver, entre outros, os deputados Armando Falcão, Herbert Levy, Roberto So-
dré, Camilo Aschcar e o banqueiro Gastão Vidigal, Chateaubriand saiu do
elevador em cadeira de rodas vestido a caráter, de calça e gibão de couro cru
e chapéu de cangaceiro. Pediu a Paulo Cabral que lesse o discurso que aca-
bara de escrever, onde historiou os vários momentos em que sua vida se cru-
zara com a da família Lacerda. Desmanchou-se em elogios a Júlio Mesquita,
que tanto o ajudara a se instalar no Sul, e ao filho ali presente - e ao final
afirmou, ele próprio (sempre com o socorro de Emília, que também usava
um chapéu nordestino), que a homenagem originalmente destinada a Mes-
quita seria prestada a Carlos Lacerda. O governador da Guanabara não viu
outra alternativa senão vestir também a roupa e o chapéu de couro cru e re-
ceber no ombro, dados por Carlos Rizzini, os três golpes de peixeira que o
ungiam como cavaleiro da Ordem do Jagunço.
No dia 30 de março de 1964, véspera do golpe, o governador Ademar
de Barros fez uma visita reservada a Chateaubriand, testemunhada por uns
poucos assessores e pela intérprete Emília. Com seu jeito desabrido de falar,
Ademar estava ali para prevenir o jornalista dos riscos que todos corriam:
- Doutor Assis, nos próximos dias vai chover merda. A revolução já
está nas ruas, e nada garante que nós vamos sair vencedores. Se não triun-
farmos, seremos fritados como pastel de chinês. Vim aqui para propor que o
senhor, preventivamente, deixe o país ou pelo menos passe os próximos dias
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CHATÔ. O REI DO BRASIL
escondido em um lugar mais seguro. Se tudo dér certo, dentro de uma se-
mana o senhor retorna.
O jornalista pareceu indignado com a proposta de fuga, e encerrou a
conversa com uma frase dramática:
-Ademar, nós vamos vencer. Mas, se perdermos, quem é que vai que-
rer prender um morto-vivo como eu? Vou esperar o desfecho sentado na mi-
nha cadeira de rodas, aqui na trincheira da Casa Amarela.
Eles venceram. O golpe, que em pouco tempo iria mergulhar o país em
uma ditadura militar, transformou a cara do Brasil, mas não mudou Cha-
teaubriand. Os primeiros meses após a implantação do regime militar foram
de aberta lua-de-mel entre os Diários Associados e a nova ordem. Em seus
artigos, Chateaubriand garantia que agora o Brasil tinha "um De Gaulle sen-
tado no Palácio do Planalto", referindo-se ao marechal Castelo Branco, pri-
meiro presidente da República após a derrubada de Goulart. Em copiosas
declarações de amor aos militares, surpreendeu até os diretores de suas em-
presas ao apoiar a cassação do mandato e a suspensão dos direitos políticos
de seu velho amigo Juscelino Kubitschek. Como se chutasse o caixão de um
defunto, o jornalista escreveu que o ex-presidente havia se atirado "desabo-
tinadamente nos braços do castrismo", e que, "depois de chegar ao paroxis-
mo de adulação às correntes extremadas do esquerdismo, Juscelino hoje de-
veria enfrentar era um pelotão de fuzilamento, em vez desse macio decreto
de cassação".
Além de apoiar os atos autoritários do regime, os Associados montaram
uma campanha nacional, intitulada "Dê ouro para o bem do Brasil", desti-
nada a angariar doações da população para "recompor o lastro do Tesouro
Nacional, devorado pela matilha vermelha". Urnas foram colocadas nas se-
des dos jornais, rádios e televisões Associados de todo o país, e quem desse
uma peça de ouro - uma jóia, um relógio ou mesmo uma obturação dentá-
ria em desuso - recebia em troca uma aliança de alumínio que tornava o
doador um membro da "Legião Democrática". Nos cartazes colados ao lado
das urnas podiam-se ler os deveres dos legionários da democracia: ' Lutar
pela consolidação da Revolução Democrática; combater intransigentemente
o comunismo; respeitar as leis e as autoridades constituídas; preservar a
honra e a moral da família, da pátria, e as tradições religiosas do Brasil". Em-
bora os adversários de Chateaubriand (agora, na sua maioria, os derrotados
pelo golpe militar) insinuassem que parte do ouro recolhido poderia estar
sendo desviado, a verdade é que os Associados entregaram efetivamente ao
governo o equivalente a 3,8 bilhões de cruzeiros arrecadados em todo o país
- aproximadamente 3 milhões de dólares de 1964 ou 12,5 milhões de dóla-
res de 1994.
O romance entre Chateaubriand e os militares, entretanto, não chegou a
durar nem quatro meses. Quem conhecesse o caráter do jornalista não deve-
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FERNANDO MORAIS
ria se surpreender com seu comportamento: aquela não era a primeira nem
a segunda vez que ele se empenhava pessoalmente em levar um grupo ao
poder para em seguida passar à oposição. A primeira e discreta manifesta-
ção de seu desacordo com o novo governo veio a público em um artigo pu-
blicado em agosto de 1964. Curiosamente, nele Chateaubriand acusava de
implantar no país uma política estatizante um dos mais férreos defensores
do privatismo e da economia de mercado, o então ministro do Planejamen-
to, Roberto Campos: "Ninguém contesta que o sr. Campos faça concessões
ao estatismo, mas nós as achamos perigosas. Desgraçadamente, uma respei-
tável ala das Forças Armadas ainda participa do horrendo jacobinismo me-
xicano e peronista que anda por aí". Quando circulou a notícia de que o go-
verno pretendia construir uma fábrica estatal de papel de imprensa no
Paraná, Chateaubriand afirmou que só um bêbado seria capaz de tal desati-
no, e bateu duro diretamente no marechal-presidente com uma provocação:
"Será o presidente Castelo Branco um bêbado?".
Embora não rompesse formalmente com o governo, o jornalista, aparen-
temente seguro de que os militares não teriam coragem de pôr na cadeia um
homem que não falava nem conseguia se mexer, se tornava cada dia mais
desafiador. Em mais uma de suas inexplicáveis atitudes, havia alguns meses
que ele vinha cortejando os diplomatas da embaixada da União Soviética no
Brasil. Em janeiro daquele ano, no auge do furor anticomunista dos conspi-
radores - que ele fazia ecoar em seus artigos -, Chateaubriand oferecera
um grande banquete ao embaixador soviético no Brasil, Andrei Fomin, oca-
sião em que convidou o ex-ministro da Fazenda San Thiago Dantas para
condecorar o diplomata, em seu nome, com a Ordem do Jagunço. No dia do
jantar, mandou hastear ao lado da bandeira brasileira, na porta da Casa
Amarela - que ficava a poucos quarteirões de distância da residência do ge-
neral comandante do II Exército -, a bandeira vermelha da uRSS, com a foi-
ce e o martelo bordados em amarelo. Quando Fomin chegou, a banda da
Guarda Civil de São Paulo, requisitada pelo anfitrião, executou os acordes
da Internacional, o hino dos comunistas. O anticomunismo dos novos donos
do poder não parecia assustar o jornalista: mesmo depois do golpe, ele con-
tinuou recebendo festivamente em sua casa representantes da missão sovié-
tica (quando não era Fomin, em seu lugar vinha o secretário da embaixada,
Serguei Kasimiroff, tratado com igual deferência). Cada almoço ou jantar era
seguido de um discurso em defesa das relações Brasil-uRSS, invariavelmente
publicado nos Associados como artigo no dia seguinte.
A única e pertinaz limitação à sua febril atividade política era, natural-
mente, o eterno problema da saúde. Desde que sofrera a trombose, em feve-
reiro de 1960, seu estado geral não tinha experimentado qualquer avanço.
Ao contrário: a broncopneumonia contraída no inverno de 1962 viera cumu-
lá-lo de novas dificuldades respiratórias, que se traduziam em uma incapa-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
cidade cada vez maior de se comunicar com o mundo exterior. Em junho de
1964, Chateaubriand fez outra tentativa de recuperação recorrendo às areias
monazíticas da cidade capixaba de Guarapari. Como nada de novo aconte-
cesse em seu organismo, uma semana depois, impaciente, ele estava de vol-
ta a São Paulo. No mês seguinte, foi aconselhado pelos médicos a se socor-
rer das águas sulfurosas de Araxá, em Minas Gerais. Ali ele passou dois
meses instalado com seu séquito em vários apartamentos do Grande Hotel,
onde recebeu duas vezes a visita cordial de Andrei Fomin (que abastecia sua
despensa com latas e mais latas de finíssimo caviar russo). E antes de partir
determinou, para curiosidade de muitos dos diretores dos Associados, que
fosse incluída na "delegação" que o acompanharia a Minas Gerais uma das
empregadas domésticas que trabalhava fazia pouco tempo na Casa Amare-
la, a arrumadeira Maria Helena.
Ainda em São Paulo, as insistentes solicitações de Chateaubriand para
que Maria Helena o visitasse no quarto deixaram na governanta Guilhermi-
na e nos demais empregados a suspeita de que a moça estivesse fazendo
algo mais que simplesmente arrumar os aposentos do patrão. À fiel Emília
ele acabou confessando que os dois andavam mesmo "furunfando, neolo-
gismo que criou, nas conversas com a enfermeira, para superar a timidez e
referir-se à prática do ato sexual - ou que sinônimo tivesse o que ele conse-
guia fazer com uma mulher no estado em que se encontrava, segredo jamais
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FERNANDO MORAIS
revelado a quem quer que fosse. Emília suspeitava que suas relações sexuais
se resumissem ao sexo oral recíproco. A obsessão com o sexo, que o perse-
guiria até os últimos dias de vida, às vezes trazia desconforto para todos os
que conviviam com o jornalista. Um dia, a terapeuta norte-americana Edith
Engelen procurou Emília e pediu que fosse emitida imediatamente uma pas-
sagem de volta para os Estados Unidos: ela estava se demitindo. Assustada,
Emília quis saber o que acontecera e só depois de muita insistência a moça
contou: Chateaubriand a tinha convidado para "furunfar " com ele. Delica-
damente, Edith explicou que não queria e não podia, que não era aquele o
papel dela naquela casa, que não era para aquilo que tinha sido contratada.
Indignado com a recusa, o patrão, por vingança, mandou um dos emprega-
dos soltar dentro da piscina térmica (na qual Edith nadava diariamente, an-
tes de iniciar os exercícios com o jornalista) meia dúzia de patos criados no
quintal da casa. Quando chegou naquela manhã para fazer seu aquecimen-
to, a estrangeira encontrou a piscina cheia de patos - e a água imunda, co-
berta de fezes das aves. Não houve apelo que a convencesse a permanecer
no Brasil. Edith Engelen exigiu os pagamentos a que tinha direito e retornou
dias depois para Nova York.
Em Araxá, Emília começou a desconfiar de que Chateaubriand estivesse
se apaixonando por Maria Helena. Passou a chamá-la de "minha noiva" e in-
sistia em "furunfar " todos os dias. Quando a moça deixava o quarto e Emí-
lia ia tirar a pressão do patrão, via que o barômetro estava nas alturas. Um
dia, o jornalista comentou com a enfermeira que estava mesmo "namoran-
do" Maria Helena. Emília advertiu-o de que ela era noiva, o que o deixou in-
dignado:
- Você está com ciúme. Se fosse noiva ela já teria me contado e eu a te-
ria mandado romper com o noivo.
A intimidade com o patrão - que na cabeça dela estava mesmo se
transformando em namoro - fez com que Maria Helena, uma moça sim-
ples, sem qualquer instrução, começasse a se sentir com autoridade sobre to-
dos os outros empregados, inclusive Emília. Foi aí que o "romance" termi-
nou. Emília não teve dúvidas em abrir uma das cartas que chegavam para
ela, vindas da Bahia, e exibi-la para Chateaubriand:
- Olha aqui: ela está fazendo o senhor de bobo. Olha a carta do noivo
dela, que acaba de chegar da Bahia. O senhor quer conhecer seu rival? Pois
ele mandou uma foto, aqui está.
Ao ler a carta e ver a fotografia do jovem recruta do Exército que Emí-
lia lhe mostrava, o jornalista foi tomado de ódio:
- Demita essa filha da puta hoje mesmo! Ela me mentiu, disse que era
solteira e desimpedida. Ela me mentiu esse tempo todo só para me tomar di-
nheiro. Pague uma passagem de ônibus para ela ir para São Paulo imediata-
mente. Não quero mais ver a cara dessa filha da puta!
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Com ou sem Maria Helena, a temporada em Araxá trouxe o mesmo re-
sultado para o restabelecimento do jornalista que as viagens a Nova York,
Londres e Guarapari: nada, absolutamente nada. Pela primeira vez, desde
que fora abatido pela doença, Chateaubriand revelava sinais de desânimo:
nesse período, ele, um grande festeiro, só aceitou participar de uma cerimô-
nia mais importante: o lançamento, pela fábrica gaúcha de bebidas Dreher,
de um novo tipo de vinho tinto, intitulado, em sua homenagem, Velho Ca-
pitão. No mais, preferia ficar em casa ciscando o teclado da máquina para es-
crever seus artigos. Ele podia estar desanimado, mas não desesperançado:
dois meses depois de retornar da estação de águas em Minas, embarcou de
novo para a Inglaterra - sempre acompanhado de enorme entourage -, a
fim de se internar outra vez no Stoke Mandeville Hospital, em Aylesbury,
onde acabavam de ser instalados equipamentos mais modernos para testes
e exercícios não apenas fisioterapêuticos, mas neurológicos. Ali ele passaria
os três meses seguintes. Em um bilhete para a filha Teresa, que se encontra-
va em férias na Espanha com Leonardo e os dois filhos (além do primeiro,
Jorge Leonardo, o casal tivera mais um menino, Sérgio Leonardo), Chateau-
briand se queixava do regime de exercícios que lhe era imposto:
[...] O programa de recuperação aqui é muito apertado. Começa às nove da ma-
nhã e só acaba às cinco e meia da tarde. O trabalho no hospital é muito bem di-
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FERNANDO MORAIS
vidido. Todo o tratamento é o da neurologia convencional, mas há muita novi-
dade no sistema inglês, comparado com o americano.
Fizemos uma festa muito bonita para celebrar, no dia 1º, o quadragésimo ani-
versário de nossa entrada em O Jornal.
Emília manda beijos e vocês recebam abraços do pai que não os esquece e aos
meninos.
Assis Chateaubriand
O tempo livre ele aproveitava para ler os jornais que recebia do Brasil e
deliciar-se com uma novidade: a agência de notícias britânica Reuters man-
dou instalar em seu quarto de hospital, como cortesia a um grande cliente,
um terminal de teletipo para o qual era enviada uma cópia de todo o servi-
ço noticioso despachado para Londres de sua sucursal brasileira. Além de
ler jornais e telegramas e continuar a escrever seus artigos diários, Chateau-
briand matava o tempo conversando com seu vizinho de quarto Roberto
Árias, político panamenho casado com a bailarina Margot Fonteyn, que era
neta de uma brasileira nascida no Maranhão (o Fonteyn de seu sobrenome
nada mais era que a corruptela britânica do brasileiro Fontes). Árias sofrera
um atentado a tiros durante uma campanha política no Panamá e, com uma
bala encravada na coluna vertebral, também havia ficado tetraplégico. Como
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
o jornalista brasileiro, estava em Aylesbury em busca de alguma possibili-
dade de recuperação motora.
Ao ler em um jornal local que em poucos dias seria aberto o Royal Show
da Associação Britânica de Criadores de Gado Hereford, Chateaubriand pe-
diu permissão ao médico alemão Heinz Guttmann, diretor clínico do hospi-
tal, para ir até Warwickshire, perto de Londres, onde se realizaria a exposi-
ção. A muito custo, o médico autorizou a viagem, mas exigiu estar presente,
ao lado de Chateaubriand, para evitar alguma extravagância do irrequieto
paciente. O jornalista telegrafou ao Brasil e pediu que João Calmon embar-
casse para a Inglaterra levando dinheiro, que ele tinha planos de arrematar
em leilão os primeiros exemplares de reprodutores Hereford a pôr as patas
no Brasil.
Nas vésperas-da curta viagem ao interior, Chateaubriand se arrependeu
por não ter trazido do Brasil sua roupa de vaqueiro, com a qual preferia par-
ticipar da feira pecuária. Entrou como um dos muitos compradores comuns
e saiu como notícia no The Birmingham Post: por 32 mil libras, o jornalista,
sempre assessorado por Calmon, arrematou seis reprodutores premiados-
três touros e três novilhos - para desenvolver em sua fazenda Chambá, no
Rio Grande do Sul, uma técnica praticamente desconhecida no Brasil, a inse-
minação artificial (o primeiro bezerro nascido das matrizes importadas, me-
ses depois, receberia de Chateaubriand o nome de Kruelino - uma singular
homenagem ao general Amaury Kruel, ex-ministro da Guerra de João Gou-
lart e então comandante do II Exército). Para festejar a compra, decidiu orga-
nizar um legítimo churrasco gaúcho em Londres. Desejoso de que estives-
sem todos vestidos a caráter, pediu que Ibanor Tartarotti, diretor dos Asso-
ciados no Rio Grande do Sul (que também se encontrava na Inglaterra), en-
viasse roupas típicas para todos: bombachas, ponchos, chapéus, facas de
ponta - e espetos para os churrascos. Temendo que se estivesse preparan-
do um baile a fantasia, a direção do Hotel Savoy, onde a equipe Associada
estava hospedada, não permitiu que o churrasco fosse organizado em seu
salão de banquetes. A alternativa foi fazê-lo na própria embaixada brasilei-
ra. Chateaubriand apareceu de bombachas, botas sanfonadas, chapéu pam-
peiro e poncho. No meio da festa, o neurologista Guttmann comentou que o
jornalista estava tão imponente em sua roupa de gaúcho que merecia uma
foto especial: ele acabou posando "de pé" para a câmera, ladeado por
Guttmann e Calmon (este também envergando um poncho gaúcho). No ar-
tigo que escreveria aquele dia, Chateaubriand comentou o episódio, reve-
lando que o milagre que fizera um tetraplégico ficar de pé era a enfermeira
Emília, que, agachada às suas costas, mantinha-o equilibrado:
Movia-me a pura vaidade. Sentia-me soberbo dentro daquela pala, com aquele
lenço vermelho no pescoço, botas, esporas, chapéu de abas largas, barbicacho
passado, cuia e faca de ponta. Na hora da fotografia, Emília Araúna colocou-se
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
por detrás de mim e pôs a mão no meu back. Ergui o tronco, teso, para fazer a
única fotografia de pé que tenho desde que perdi a balance, em janeiro de 1960.
A estada na Inglaterra acabou só rendendo a compra dos seis reprodu-
tores. Nem mesmo os sofisticados tratamentos a que fora submetido no Sto-
ke Mandeville trouxeram qualquer conseqüência positiva. No dia 26 de no-
vembro, Chateaubriand estava a bordo de um avião da Panair com destino
ao Brasil, onde permaneceria pouquíssimos dias. Obstinado com a idéia de
que em algum lugar haveria alguém que o fizesse voltar a andar e a falar no-
vamente, na primeira semana de dezembro ele retornava ao Medical Center
of Rehabilitation de Nova York, onde se começava a utilizar uma nova téc-
nica, com base na oxigenoterapia, para tratamento de doentes como ele.
Nada feito. Conformado com a idéia de que a doença o transformara num ci-
gano erradio, ele estava disposto a ir aonde fosse preciso em busca da cura,
mas esta ainda não nascera da tal oxigenoterapia nova-iorquina: em feverei-
ro de 1965, após sessenta dias de árduos exercícios nos Estados Unidos, Cha-
teaubriand voava de novo de volta para São Paulo - tão silente e inválido
como cinco anos antes, quando fora atingido pela dupla trombose cerebral.
Menos de um mês depois de instalado na Casa Amarela, ele voltaria a
dar demonstrações de que não estava disposto a dar apoio incondicional aos
militares que ajudara a colocar no poder. Em março houve eleições para es-
colher o prefeito da capital paulista e delas saiu vencedor o brigadeiro Faria
Lima, com o apoio explícito de Jânio Quadros, que tivera seus direitos polí-
ticos suspensos pelo regime militar. Chateaubriand entendeu que a vitória
de Faria Lima (especialmente devido ao apoio de Jânio) significava uma ad-
vertência de São Paulo ao governo federal e "às pragas que o infestam: o bu-
rocrata, o tecnocrata e o amadorismo administrativo ". Apesar de andar às
turras com o marechal Castelo Branco, Chateaubriand aceitou o convite de
Magalhães Pinto para assistir au lado do presidente o desfile que seria orga-
nizado em Belo Horizonte para festejar o primeiro aniversário do governo
militar (que oficialmente era comemorado no dia 31 de março). Durante a ce-
rimônia, Magalhães Pinto baixou um decreto concedendo a Chateaubriand
o título de coronel honorário da Polícia Militar de Minas. O que mais agra-
dou ao jornalista não foi tanto a honraria da patente militar que recebia, mas
o quepe e o uniforme de coronel - de brim cáqui, como o de toda a corpu-
ração - que ele passaria a usar como roupa de gala em todos os atos sole-
nes a que compareceria a partir de então.
No meio do ano surgiria uma nova esperança de cura. O agora amigo
íntimo Andrei Fomin, embaixador soviético, depois de enviar a Moscou uma
cópia de todo o histórico médico de Chateaubriand, sugeriu que ele fizesse
uma viagem à União Soviética para mais uma tentativa de recuperação no
Instituto de Pesquisas Neurológicas de Moscou. Quando soube que o amigo
estava planejando viajar à meca dos comunistas, o prudentíssimo José Maria
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FERNANDO MORAIS
Alkmin (agora vice-presidente da República do governo militar) aconse-
lhou-o a desistir da idéia, que poderia soar como uma provocação aos seto-
res mais radicais das Forças Armadas. Indiferente aos temores de Alkmin,
Chateaubriand decidiu que a concessão máxima que poderia fazer era dar à
viagem um "caráter cultural", transformando-a em uma turnê da Fundação
D. Pedro II. No dia 21 de julho, ele se preparava para embarcar em um vôo
da KLM com destino a Amsterdam, de onde partiria para a capital soviética.
Desta vez a delegação era composta por Aimée de Heeren (vice-presidente
da fundação), pelo médico Nelson Cayres de Brito, pelo jornalista Odorico
Tavares, por Emília (que levava como seu assistente o enfermeiro Honorato
Cândido de Oliveira) e por seu motorista em São Paulo, Paulo Bruno Figuei-
redo (cuja única tarefa na viagem seria empurrar a cadeira de rodas do pa-
trão). O vôo sairia à noite, e por volta das dez horas da manhã chegou uma
trágica notícia de Belo Horizonte: Geraldo Teixeira da Costa, o "Gegê", dire-
tor geral dos Associados em Minas, de 53 anos, acabava de ser morto na por-
ta de sua mansão, no bairro da Serra, com seis tiros de cartucheira, dados
pelo pai da adolescente Maria da Silva, de quinze anos, uma favelada que
havia sido seduzida pelo jornalista quando trabalhava na sua casa como do-
méstica. Entre os membros da delegação havia uma unanimidade: Chateau-
briand deveria adiar a viagem para comparecer ao enterro do amigo. Afinal
de contas, Teixeira da Costa não era um empregado comum, e a maior pro-
va disso é que tinha sido incluído entre os 22 donatários do Condomínio As-
sociado e fora eleito membro da Comissão Plenária. De Minas já haviam avi-
sado que iam estar presentes ao funeral o governador Magalhães Pinto, o
general Carlos Luís Guedes (comandante militar de Minas Gerais), o prefei-
to de Belo Horizonte e todas as demais autoridades do estado. O jornalista
nem quis cogitar da idéia de permanecer no Brasil, dizendo apenas para
Emília:
- Morreu, morreu. Minha presença lá não vai ressuscitá-lo, então va-
mos embora hoje mesmo.
O máximo que podia fazer, naquelas condições, era redigir às pressas (a
máquina especial tinha sido embarcada para o Rio a fim de ser levada na via-
gem à URSS) o artigo intitulado "Um magistrado", certamente o mais curto
que escreveu em toda a sua vida:
Rio, Vila Normanda, 21 de julho
O baque do corpo de Geraldo Teixeira da Costa foi como se tivesse caído no
chão Pedro Lessa, Rafael Magalhães, Edmundo Lins, Tito Fulgêncio ou Mendes
Pimentel. Era. como eles, um magistrado. Os Diários Associados foram seu fó-
rum. Como a sua nobre figura engrandecia a nossa oficina! Minas Gerais perdeu
um dos maiores juízes que tem tido em todos os tempos.
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FERNANDO MORAIS
A estada na União Soviética durou três semanas. Ao chegar a Moscou e
ser instalado na suíte presidencial do Hotel Mockba, Chateaubriand comen-
tou com Emília:
- Com esta pobreza, em Goiânia este seria considerado um hotel de se-
gunda classe.
O jornalista deu entrevistas ao jornal Pravda, assistiu a apresentações do
Balé Bolshoi, esteve no Museu Hermitage e na Academia de Ciências da
URSS, foi ao túmulo de Lenin, conheceu de perto as obras de arte da expedi-
ção do barão Langsdorff ao Brasil. Cada visita rendia um, dois, três artigos
diários, que eram transmitidos a seus jornais no Brasil. Quanto à verdadeira
razão de tão longa viagem - a tentativa de recuperação da tetraplegia -, os
médicos soviéticos fizeram o que puderam. Todas as manhãs, Chateau-
briand era levado ao Instituto de Pesquisas Neurológicas. Eletrodos ligados
a seus braços, pernas, mãos e cabeça terminavam em monitores de vídeo,
onde sinais gráficos surgiam a cada movimento que um médico fazia em um
de seus membros. Quinze dias depois de ter sido submetido a todas as bate-
rias de exames disponíveis, os cientistas chamaram o jornalista e o médico
Nelson Cayres de Brito e desfizeram qualquer esperança: a viagem tinha
sido inútil. Não havia em toda a União Soviética qualquer tratamento que
acrescentasse um milímetro ao que fora tentado nos EUA e na Inglaterra -
ou mesmo ao que vinha sendo prescrito ao paciente por seus médicos brasi-
leiros. No dia 16 de agosto, ele estava novamente assinando artigos na Casa
Amarela.
Desde que, ao partir para a URSS, Chateaubriand recebera a notícia da
morte de "Gegê" em Belo Horizonte, sua incurável índole de fauno estava
mordida por uma inconfessável curiosidade: que mistérios íntimos poderia
ocultar a tal Maria da Silva para levar um pai de família como Geraldo Tei-
xeira da Costa a correr o risco de morrer com seis cartuchos no peito? Só ha-
via uma maneira de descobrir: conhecendo a moça. Discretamente, ele cha-
mou o jornalista Aderbal Figueiredo, um dos editores do Diário da Noite,e
deu ordens:
- Tome um avião, vá a Belo Horizonte e dê um jeito de trazer essa Ma-
ria da Silva para passar uns dias aqui na Casa Amarela.
Mulata, pouco mais que uma menina, a mais velha de uma família de
treze irmãos, filha do pedreiro e lavador de carros João Honorato da Silva -
que, para segurança de Chateaubriand, já tinha sido preso pela polícia mi-
neira -, Maria não deve ter entendido direito o que acontecia quando foi re-
tirada de seu casebre na favela do Vai-quem-quer, num subúrbio de Belo
Horizonte, e levada de avião para passar férias na luxuosa Casa Amarela,
em São Paulo. Chateaubriand, aparentemente, não descobriu que segredos
tinham levado Geraldo Teixeira da Costa a terminar seus dias estirado no
banco de seu automóvel Mercedes-Benz com seis tiros de carabina Boito: de-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
pois de passar algumas semanas sujeitando a menina a sessões de "furunfa-
gem" que ela própria revelava aos empregados da casa), mandou, decepcio-
nado, que Maria fosse transportada de volta para Belo Horizonte:
- Não posso entender o que o Gegê viu nessa moça que justificasse tan-
to risco.
Depois da infrutífera tentativa soviética, Chateaubriand teria poucos
meses de sossego. No final de setembro fez uma curta viagem de recreio a
Washington para o batismo do retrato do almirante Nelson, pintado por
Graham Sutherland. A apresentação foi feita em um banquete promovido
pelo governador de Nova York, Nelson Rockefeller, e no meio da multidão
de políticos e grã-finos vestidos de black-tie Chateaubriand se destacava, or-
gulhoso, usando o quepe e trajando a sua insólita farda cáqui de coronel da
PM mineira. Dez dias depois de voltar ao Brasil, a saúde do jornalista sofre-
ria o mais forte abalo desde a trombose: levado com urgência para o centro
de tratamento intensivo do hospital da Beneficência Portuguesa no meio de
um ataque de asfixia que ameaçava matá-lo, descobriu-se que ele tinha sido
vitimado por um gravíssimo distúrbio coronariano. Além de paralítico e afá-
sico, agora se tornara também um cardíaco.
Chateaubriand emergiu da cardiopatia (que o mantivera internado por
duas semanas na Beneficência Portuguesa) em meio a um tiroteio que se
transformaria em um dos mais rumorosos episódios da história da televisão
brasileira: o "caso Time-Life". Tudo começara casualmente em junho da-
quele ano de 1965, quando a polícia política do governador Carlos Lacerda
prendeu no Rio de Janeiro um cubano que se supunha estivesse secretamen-
te no Brasil a serviço do governo de Fidel Castro. Interrogado pelo
DOPS ca-
rioca, o cubano revelou que Lacerda tinha posto a mão em uma presa muito
mais importante que um mero subversivo, como se imaginava a princípio:
tratava-se de Alberto Hernandez Catá, filho de um ex-embaixador cubano
no Brasil, que, longe de ser um agente castrista, estava no Rio a serviço do
poderoso Time-Life Incorporation para executar um contrato com a recém-
fundada Tv Globo, de propriedade do jornalista Roberto Marinho - confor-
me Lacerda fez constar do relatório que enviou ao ministro da Justiça, Mem
de Sá:
[...] Em depoimento tomado por autoridade policial qualificada, e
sem que, em
nenhum momento, permanecesse recolhido a xadrez, tendo permanecido
em cartório durante três horas apenas, o sr. Alberto Hernandez Catá esclareceu
não ter qualquer ligação com o Partido Comunista de Cuba, de onde saiu há
tempo, sem maior sofrimento ou privação. Entretanto, para nosso estarrecimen-
to, revelou a existência de "contrato" entre a Tv Globo, do grupo Roberto Mari-
nho, e a firma americana Time-Life Broadcasting Inc., com sede em Nova
York. Tal convênio, declarou o depoente, abrange assistência técnica para "ins-
talações eletrônicas, técnica financeira e comercial". Disse, ainda, ser sua espe-
cialidade, na Tv, a parte de "coordenação, administração, organização de pro-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
gramas e promoções comerciais ",para tanto não tendo vínculo trabalhista com
a Tv Globo, mas sim como empregado do Time-Life. Esclareceu que recebe
mais de 20 mil dólares anuais do Time-Life Inc., em Nova York, e aqui recebe,
também da empresa americana, a sua ajuda de custo.
Então presidente do Sindicato dos Proprietários de Empresas de Radio-
difusão do Estado da Guanabara (e também deputado federal), João Cal-
mon, que se notabilizara no combate a Leonel Brizola antes do golpe de 64,
percebeu que um cavalo selado tinha parado à porta de sua casa, e não hesi-
tou em montar rapidamente nele. Primeiro tentou obter de Roberto Marinho
uma cópia do contrato com o grupo Time--Life, temendo que o documento
ferisse o artigo 160 da Constituição, que vedava a estrangeiros a proprieda-
de - ou a participação acionária em - empresas jornalísticas e de radiodi-
fusão. Não conseguindo, resolveu transformar a questão num caso de viola-
ção da soberania brasileira. Tal foi o alarde feito por Calmon em cima do
tema, ocupando várias vezes a cadeia de televisões Associadas, que o depu-
tado Eurico de Oliveira, do PRP da Guanabara, decidiu requerer ao Congres-
so a constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as
denúncias. Em pouco tempo ficou-se sabendo que de fato a Tv Globo manti-
nha não um, mas dois contratos com o grupo Time-Life, em um dos quais
os norte-americanos tinham participação de 49%. Nos meses seguintes, a im-
prensa brasileira não falaria de outra coisa.
Quando decidiu desembarcar naquela briga, Chateaubriand avisou que
vinha de peixeira na mão, "para um combate de vida ou morte". Em ne-
nhum outro momento de sua prolífica carreira de articulista ele dedicou tan-
tos artigos a um único tema: ao todo foram cinqüenta textos exclusivamente
sobre o "caso Time-Life" - sem contar outros tantos, nos quais, tratando
de outro assunto, ele abria um parágrafo ou um parêntese para atacar Rober-
to Marinho. A ação de Calmon obteve imediatamente a adesão dos paulis-
tas. Em um "Manifesto à nação", os donos dos treze jornais de São Paulo
conclamavam o Conselho de Segurança Nacional e o Conselho Nacional de
Telecomunicações a agirem para coibir os contratos. Na Câmara dos Depu-
tados, a CPI fora instalada, e à medida que avançava, um número passou a
ser adotado oficialmente pela imprensa como sendo a cifra total que o gru-
po Time-Life tinha repassado a Roberto Marinho, em parcelas, nos três
anos anteriores: 5 milhões de dólares - o equivalente, em 1994, a pouco
mais de 20 milhões de dólares.
Para provar que não era uma raposa lamentando que as uvas estives-
sem verdes, Chateaubriand revelou, em um artigo, que poucos anos antes os
Associados haviam recusado proposta semelhante: por 1 milhão de dólares,
que chegariam ao Brasil sob a forma de publicidade, uma rede de televisão
americana que ele não identificou se dispôs a contribuir para que os
Asso-
ciados iniciassem "uma ofensiva contra os competidores internos". O inter-
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FERNANDO MORAIS
locutor, dizia o artigo, "era um conhecedor dos métodos da Tv, em seu país,
para pôr o pé em Estados subdesenvolvidos". Segundo o jornalista, a oferta
foi recusada por razões éticas: os Associados não podiam aceitar dinheiro es-
trangeiro para demolir a concorrência se dois dirigentes de sua cadeia (ele se
referia a João Calmon e Edmundo Monteiro) eram também diretores de as-
sociações patronais de rádio e televisão no Rio de Janeiro e em São Paulo-
o que, conforme sua versão, tornava a negociação impossível.
A história não parece ter acontecido exatamente assim. Embora todos os
registros indiquem que efetivamente foram os Associados os líderes da cam-
panha contra o acordo Tv Globo/Time-Life, há mais de uma versão para o
episódio relatado por Chateaubriand. Em surpreendente revelação, Edmun-
do Monteiro assegura que, pouquíssimo tempo antes da investida de Cal-
mon contra a Tv Globo, ele próprio pedira autorização a Chateaubriand para
tentar nos Estados Unidos uma parceria semelhante à que mais tarde os
Associados viriam a condenar no caso da Globo:
Eu defendi a tese, com a aprovação de Chateaubriand, de nos ligarmos a uma
organização americana, que seria a ABC, a American Bruad.casting
Corporation.
Tanto que fui aos Estados Unidos tratar disso. Porque eu sabia que o segredo do
sucesso da Globo era técnica e dinheiro. Como nós não tínhamos dinheiro ne-
nhum, não poderíamos ter a técnica, que era uma decorrência do primeiro. Foi
o que fez o Roberto Marinho. O Chateaubriand aceitou a tese e me disse:
- Edmundo, isso fica entre nós. Você vai aos Estados Unidos fazer contatos
com a ABC.
[...] O Chatô tinha me pedido reserva. Claro, você não vai confessar o crime.
Se nós íamos burlar a Constituiçãu, não era para bater caixa sobre isso. Então eu
fui. mas, quando eu chego de volta ao Brasil, sou obrigado a quebrar um pau
desgraçado, porque o "seu" João Calmon já tinha ido à televisão fazer uma
agressão ao Roberto Marinho. [...] Cheguei e disse ao Chatô:
- Assim não pode! Isso é velhacaria! Amanhã vão dizer que eu estou que-
rendo burlar as leis do país e que o "seu" Calmon é contra. Isso está sendo fei-
to dentro da sua casa, assim não dá, né, Chatô?
Ele tentou contemporizar, dizendo que quis impedir, mas que o Calmon era
muito vaidoso. Eu insisti:
- Acontece que o senhor é o dono. Então ao senhor compete decidir. Se o se-
nhor quiser, basta chamar o Calmon e fechar a língua dele dentro da boca.
Aí sai O Cruzeiro daquela semana e o David Nasser manda mais um pau. Fui
ao Chatô e disse:
- Não vamos brincar mais. A ABC que fique com o dinheiro dela, o Roberto
Marinho que fique com o do Time-Life. Mas saiba que essa gente vai acabar
com os Diários Associados.
[...] Minha tese era muito pouco pragmática, um tanto ou quanto velhaca, mas
não tinha saída, nós tínhamos que tomar dinheiro estrangeiro. [...] Mas eu não
podia querer me associar ao capital estrangeiro e ao mesmo tempo agredir o ca-
pital estrangeiro. Enquanto eu eçtava lá, tentando amarrar alguma associação, o
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
Calmon estava indo para a tribuna e para a televisão soltar os cachorros - con-
tra, naturalmente, o meu ponto de vista.
Igualmente polêmica é a versão dada por Gilberto Chateaubriand. Ela
não colide com a de Edmundo Monteiro, mas assegura que, antes de avançar
contra Roberto Marinho, denunciando sua ligação com o grupo Time-Life,
o próprio João Calmon tinha estado nos Estados Unidos "para tentar exata-
mente o mesmo" com a ABC ou com a CBS:
Isso ocorreu em 1960 e eu sei porque estava junto com ele. O padrinho da
ope-
ração seria o Nelson Rockefeller. Marcamos um encontro com ele no Rainbow
Restaurant e na hora do encontro quem apareceu foi o Berendt Friele, seu secre-
tário, dando uma desculpa qualquer para a ausência do Nelson. O Calmon ficou
indignado com aquilo e abandonou o almoço. Mas a tentativa foi feita. Se o Ed-
mundo tentou o mesmo em 1964 ou 1965, ele estava apenas insistindo em algo
que já havia sido tentado quatro anos antes pelo Calmon. Os Associados tinham
contratado uma empresa de auditoria chamada Klein and Saks, que havia insi-
nuado como uma saída para a crise a associação com algu.ma empresa estrangei-
ra. Estive com o Calmon junto com o Mead Brunnet, dirigente da RCA Victor, e
depois disso é que fomos para o tal almoço frustrado com o Rockefeller.
Ressalte-se que se tratava dos dois homens - Calmon e Monteiro - que
enfeixavam nas mãos o maior volume de poder da cadeia Associada, autori-
dade que tinha sido decuplicada com a invalidez de Chateaubriand. De qual-
quer forma, estivessem ou não cuspindo no prato em que haviam tentado
comer, na guerra santa que moveram contra Marinho, João Calmon e Cha-
teaubriand optaram por caminhos diferentes. O primeiro concentrou-se no
tema da desnacionalização dos meios de comunicação e na violação das leis
do Brasil. Privatista declarado, Calmon chegou ao extremo de afirmar, na tri-
buna da Câmara dos Deputados, que preferia ver a televisão brasileira esta-
tizada a tê-la submetida a Henry Luce, o boss do grupo Time-Life.
Em seus artigos, Chateaubriand também insistiu na tese de que o
Time-Life pretendia implantar no Brasil um "neocolonialismo cultural"
por meio do controle dos meios de comunicação, mas o alvo central de seus
disparos era outro. Segundo ele, o que "a quadrilha formada por Luce, Ma-
rinho e pelo governo federal" pretendia era promover uma "chuva de dóla-
res" sobre o dono da Globo a fim de destruir a concorrência na área da tele-
visão. Em vez de atirar a esmo, mirou com pontaria certeira em alguns
nomes. O ministro do Planejamento, Roberto Campos (que o jornalista asse-
gurava tratar-se de "uma autoridade que há quatro anos, desde que era em-
baixador do Brasil em Washinton, advogava a entrega dos veículos de co-
municação brasileiros ao sindicato Luce"), passou a ser "o fundador do
neocolonialismo brasileiro, o Tartufo do Pantanal [Campos nasceu no esta-
do de Mato Grosso) que está por trás desse bote traiçoeiro". Chateaubriand
suspeitava que, por trás da "advocacia" que Campos fazia para Marinho, es-
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FERNANDO MORAIS
tava o jogo político da sucessão presidencial e, mais do que isso, o sonho do
ministro do Planejamento de ocupar a Presidência depois de Castelo Branco:
Ele soltou estrangeiros às dúzias para fazer concorrência ao produtor nacional.
O criador dessa máquina de opressão exclama agora:
- Estão vendo? Não podem mesmo resistir à concorrência estrangeira.
Porco! Não se acredita que uma nação, triturada por um energúmeno desses,
ainda tolere que o vendilhão do rádio e da televisão venha deitar regras na casa
que incendiou e ajudou a saquear. O corretor de todas essas manobras é mesmo
o sr. Roberto Campos, que está feito com o Pentágono e com Wall Street. O Pen-
tágono se recusa a admitir Costa e Silva [ministro da Guerra que era candidato
e acabaria sendo o sucessor de Castelo Branco na Presidência] por sua linha na-
cionalista. Prefere manter Castelo Branco. A linguagem do sr. Roberto Campos
ao Pentágono e a Wall Street é:
- Não podendo ser o marechal Castelo Branco, ele me indicará.
A campanha presidencial brasileira escapou das mãos dos nossos compatrio-
tas para ficar com os agentes do protetorado de Wall Street e do Pentágono.
Quando seu velho amigo Eugênio Gudin escreveu um artigo defenden-
do Campos, Chateaubriand deixou de lado os laços que os uniam por tantas
décadas:
Eugênio Gudin já completou oitenta anos, entretanto achou ontem um meio de
sacrificar o grande nome que conseguiu entre os seus contemporâneos. Elogia o
sr. Roberto Campos [...] membro de um governo de masturbadores, como se
esse canalha merecesse de seus concidadãos outra atitude que não um valente
esforço para sentá-lo no banco de sórdido vendilhão do governo. O ministro
despudorado foi interrogado por um locutor sobre a natureza dos suprimentos
[ele se referia aos tais 5 milhões de dólares da associação
Time-Life/Tv Globo]
para a extinção da Tv e do rádio competitivos no Brasil. O mais cínico dos polí-
ticos brasileiros disse ao microfone:
- São iguais aos das outras estações brasileiras.
Cafajeste! Os contratos do Time-Life são para extirpar toda telecomunicação
nacional em nossa terra. [...] O patife Roberto Campos é um casca de ferida. Vive
de aluguéis de luxo.
Ao depor na cPI, Roberto Marinho revelou aos deputados que nada ha-
via de secreto em sua associação com o grupo norte-americano, e para com-
provar sua afirmação contou que, tão logo se iniciaram as negociações, ele
comunicou o fato, por carta, ao presidente da República e a quatro de seus
ministros. Isso bastou para que Chateaubriand incluísse Castelo Branco no
rol dos "cúmplices do crime de esquartejamento" da televisão brasileira. Ao
afrontar pessoalmente o presidente da República, o jornalista ainda devia ter
na mente a mesma convicção que manifestara a Ademar de Barros poucos
dias antes do golpe ("Quem vai prender um morto-vivo como eu?"). Como
a maioria dos brasileiros, Chateaubriand sabia que, feitas por qualquer ou-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
tra pessoa, ofensas muito mais leves ao todo-poderoso Castelo Branco da-
riam cadeia na certa.
Mas a dose mais letal de seu veneno estava guardada para o homem
que tinha se transformado no centro da estrepitosa campanha: o dono da Tv
Globo, Roberto Marinho. A este foram dedicados pelo menos dez artigos,
quase todos eivados de ofensas pessoais. Como já fizera anteriormente em
polêmicas com outros adversários, o passional Chateaubriand descambava
para o racismo ao referir-se invariavelmente a Roberto Marinho - um ho-
mem de pele morena - como "cafuzo", "crioulo" e "mameluco":
Os fatos se resumem, em poucas palavras, a um crioulo alugado e regiamente
pago para destruir o rádio e a televisão como instituição nacional, a fim de, em
seu lugar, entronizar-se o similar estrangeiro.
[...] Em seus processos mafiosos, o chefe do grupo Time-Life encontra-se,
aqui, acusado de empreitar cafuzos indígenas para uma cruzada de morte con-
tra duas formas de fazer opinião no Brasil, o rádio e a Tv.
[...] O presidente Castelo Branco deixou apodrecer essa imundície de
O Globo
a ponto de ela contaminar-lhe de pus a pessoa e de lama o governo. Ele está no
dever de cancelar o canal de O Globo, bem como fazer um sumário processo cri-
minal do sr. Roberto Marinho, despachando-o para Fernando de Noronha, com
a cabeça raspada. Assim se faz, em Caiena, com os criminosos de crimes co-
muns.
Marinho é o capanga de um calabrês, alugado que foi para arruinar o rá-
dio e a televisão no Brasil, em proveito de um grupo financeiro de fora. O capi-
tal do sr. Luce agiu aqui comprando, às escâncaras, um africano de trezentos
anos de senzala.
[...] O diretor de O Globo é um débil mental sem remédio. Custa a crer que, a
um quase irresponsável, o sr. Luce haja entregue as parcelas exageradas de dó-
lares que os boletins do Banco Central registram. É fora de dúvida que um ho-
mem de negócios da dureza do sr. Luce nunca iria pegar 6 milhões de dólares
dele para entregar, quase tudo adiantado, a um homem de cor da América do
Sul. O sr. Luce é republicano, e sabemos do preconceito da sociedade onde ele
vive contra o colored people.
Temendo ser tachado de xenófobo - a pior acusação que se lhe podia
fazer -, Chateaubriand esclarecia que "jamais sairia de casa para defender
o porco nacionalismo que nos arrasa faz meio século", e explicava que sua
única preocupação era ver "uma nação independente há um século e meio
acordar toda semana sob a ameaça de ser conquistada, quando até Zanzibar,
a pátria de origem do nosso colega dr. Roberto Marinho, já se tornou inde-
pendente". A certa altura dos ataques, Roberto Campos passou a ser o "Ro-
berto Americano" e Roberto Marinho o "Roberto Africano" :
Se estivéssemos em um país nosso, e não em um protetorado do Time-Life do
sr. Roberto Campos, bastaria o apito que levei à boca, há seis meses, para que a
polícia entrasse em ação levando para as colônias penitenciárias, de cabeça ras-
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FERNANDO MORAIS
pada e blusãu azul-marinho, os dois Robertos: o Roberto Africano e o Roberto
Americano, do submundo de Chicago.
Alguém que tivesse tido o hábito de ler, ao longo das últimas décadas,
os milhares de artigos de Chateaubriand certamente se perguntaria: por que
tanta fúria partia exatamente do mais antigo e notório defensor do mercado,
da livre concorrência e da internacionalização da economia brasileira? A
ponta da resposta talvez estivesse em mais um de seus artigos, este escrito
no começo de 1966, quando a Editora Abril lançou a revista mensal Realida-
de, cujos primeiros números indicavam que ela vinha para ocupar o espaço
deixado por O Cruzeiro. Ao ler duas reportagens publicadas na revista (uma
sobre a hostil receptividade da população da República Dominicana às tru-
pas brasileiras que faziam parte da força de paz da ONU enviada àquele país
do Caribe, outra sobre o exílio de João Goulart e de Brizola no Uruguai, am-
bas de autoria do jornalista Luís Fernando Mercadante), Chateaubriand de-
dicou a elas um artigo em que afirmava que, meses antes, os Associados ha-
viam sondado as autoridades militares sobre a conveniência de se fazer, em
O Cruzeiro, exatamente as duas reportagens publicadas por Realidade. "Que
não se metesse O Cruzeiro em tal aventura, fomos advertidos", escreveu o
jornalista, para deduzir: "Combater a colaboração militar do Brasil ao conti-
nente e reviver Jango e Brizola em nosso país é um privilégio de Civita", re-
sumiu Chateaubriand, referindo-se ao proprietário da Editora Abril, Victór
Civita. Para o dono dos Associados, ao publicar duas reportagens que te-
riam "tremenda repercussão entre as esquerdas brasileiras", a revista estava
dissimulando suas origens e verdadeiras intenções. Que conclusão tirar de
tudo isso? Ele próprio respondia: "Civita é um apátrida, está no Brasil para
ganhar dinheiro, e não passa de outro tentáculo de Time-Life".
O mesmo leitor atento identificaria no comportamento de Chateau-
briand o reaparecimento de outra velha idéia fixa: o acordo da Tv Globo com
o Time-Life não era apenas uma tentativa de desnacionalizar as comuni-
cações no Brasil, mas parte integrante de uma monumental conspiração.
Uma conjura que já havia sido tentada em vão por vários governos com um
só objetivo: a destruição dos Diários Associados. Dessa vez se juntavam à Tv
Globo, o governo militar (senão por que estariam protegendo Roberto Mari-
nho, e por que teriam proibido em O Cruzeiro reportagens que saíam sem
censura em Realidade?), um grande conglomerado norte-americano de comu-
nicações, o poderoso ministro Roberto Campos e até os grandes anunciantes
internacionais. Ou Chateaubriand delirava ou, de fato, o mundo se juntara
para reduzir a pó a cadeia que ele levara quase meio século para edificar-
segundo se podia deduzir de seus próprios artigos:
Não se surpreendam se eu lhes disser que uma das figuras sinistras do grupo
atacante é a Esso, a Standard Oil. Ela age como a flor da linha inimiga, como
guarda-costas do imperialismo do sr. Luce. Aqui dentro, outro aliado da pandi-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
lha internacional é o sr. Samuel Wainer. A maior das vergonhas da Revolução
foi ter deixado abertas as portas a esse almocreve, para que o bufarinheiro con-
tinue a negociar com as duas pátrias.
Ele estará sozinho na ajuda oferecida ao sr. Luce e a Calabar? Não, há um ter-
ceiro apátrida na resistência ao inquérito que o governo deve encetar. É o sr.
Bloch. O Brasil fez uma revolução para se libertar da opressão das esquerdas.
Onde estava o sr. Bloch? Com todos os governos que vendiam o Brasil a Fidel
Castro.
Se passava pela cabeça de alguém que ele estava paranóico, ao juntar no
mesmo saco o governo militar, Samuel Wainer, Adolfo Bloch, Henry Luce e
Roberto Marinho, Chateaubriand dava números para provar que, além de-
les, um novo e poderoso satã se associara ao grupo para destruí-lo - a Esso:
Dispondo do poder discricionário do maior sistema de revistas ilustradas do
mundo, facílimo é ao sindicato Time-Life pressionar, de Nova York, as agên-
cias de anúncios. Para quê? A fim de que, no Brasil, uma programação sistemá-
tica seja atribuída àqueles veículos que seu grupo edita.
[...] No período ante-revolucionário, O Cruzeiro tinha uma surpreendente cir-
culação paga. Pois bem. Antes de estalar o 31 de março, 70% de sua publicida-
de norte-americana, de firmas daqui, fora arrebatada pelos jornais ilustrados do
grupo Time-Life.
[...] Este é o papel abominável da Esso Standard. Ela era nossa cliente de Tv
aqui [em São Paulo] e de rádio em Porto Alegre. As suas ordens [de publicida-
de] em São Paulo se renovavam há quinze anos. A Tupi ganhou a preferência
numa competição de preços, aberta na praça pela Esso Standard. Contra a tra-
dição comercial, a Esso Standard, em 24 horas, tirou as ordens que tinha conos-
co. Só a colossal influência do sr. Luce poderia induzir a Esso brasileira a alterar
o jogo de publicidade que tinha conosco.
Chateaubriand se referia, no caso da Tv Tupi, à mudança do mais tradi-
cional noticioso brasileiro, o "Repórter Esso ", da estação Associada para a
Globo (em seu lugar, na Tupi, tentou-se em vão manter o prestígio do tele-
jornal com o lançamento do "Repórter Ultragás"). Alguém queria mais pro-
vas de que o alvo da conspiração eram os Associados? Bastava ver os artis-
tas que a Globo, "molhada pela chuva de dólares", tirava da Tv Tupi,
seduzindo-os com salários astronômicos:
Para que a pirataria dos gângsteres de Henry Luce quer entrar no Brasil para es-
traçalhar-lhe o rádio e a televisão? Que vão oferecer em vez dos números brasi-
leiros do cast local? Trazem a Filarmônica de Boston? Ou de Viena? Têm o gê-
nio artístico de sir Kenneth Clark para inspirar-lhe as conferências suntuosas,
que são o orgulho da BBC? Não. Nada disso faz parte do programa de Time-
Life. O seu carnê só compreende Chacrinha a 80 milhões e Dercy Gonçalves a 40
milhões por mês.
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FERNANDO MORAIS
E, se a algum leitor ocorresse que ele estava naquela tourada em defesa
de interesses mesquinhos, Chateaubriand lembrava que, com a criação do
Condomínio Associado, ele dera uma prova cabal de que jamais considera-
ra seus rádios, jornais e televisões como bens pessoais ou de família (em
1962, ele fizera um testamento legando aos 22 condôminos os 51% restantes
do controle acionário - assim, depois de sua morte, o Condomínio seria
proprietário da totalidade dos Diários Associados). "Meu filho Fernando
não é membro do Condomínio Associado", ele reiterava, "e minha filha Te-
resa também não faz parte desse consórcio."
No começo de 1967, quando faltavam quinze dias para transferir o go-
verno para o marechal Costa e Silva, o ainda presidente Castelo Branco bai-
xou o decreto-lei n= 236, que parecia redigido de encomenda para confirmar
as suspeitas de Chateaubriand de que de fato tudo não passara de uma con-
jura para destruí-lo. No artigo 12 do decreto, Castelo limitou a cinco o núme-
ro de estações de televisão que poderiam pertencer a um mesmo grupo pri-
vado (três estações regionais e duas nacionais). Naquela data começava a
desmoronar a rede Associada de televisão, cujo prestígio e poder seriam
ocupados, anos depois, exatamente pela Rede Globo de Televisão. Assis
Chateaubriand perdia a sua primeira grande batalha. Que talvez fosse a úl-
tima de sua vida.
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O império começou a morrer antes de Assis Chateaubriand. Desde o fi-
nal do governo Juscelino, passados sete anos, portanto, não entrava um cei-
til de dinheiro público, seja nos Diários Associados, seja na trapizonga de
dezenas de empresas, fazendas e organizações que compunham o conglo-
merado. Ainda no tempo de João Goulart, David Nasser, então diretor de
O Cruzeiro, escreveu uma carta ao chefe dizendo que preferia "não fazer con-
cessões à dignidade" e optar "pelo direito de lutar contra os que querem so-
vietizar o Brasil". Além das dificuldades políticas, a concorrência crescia ver-
tiginosamente, tanto na área da imprensa escrita quanto na de rádio e
televisão, tornando cada vez mais rarefeito o bolo de publicidade antes dis-
putado por um número restrito de veículos. Quando estava ativo, Chateau-
briand amedrontava os credores oficiais com sua agressiva presença, ou aca-
bava sempre inventando espertezas e arranjando meios de empurrar as
dívidas com a barriga. Mesmo inválido, ele ainda fazia tentativas de impor
seu estilo. No fragor da briga com Roberto Marinho, e já meio rompido com
o governo Castelo Branco, ressentindo-se da queda da publicidade das gran-
des multinacionais em seus veículos, ele pediu aos dirigentes das filiais de
empresas de publicidade norte-americanas no Brasil que convidassem seus
principais clientes para um almoço na sede dos Associados de São Paulo. À
sobremesa, sentado em sua cadeira de rodas na cabeceira da mesa, ele mur-
mura algumas palavras que Emília traduz para os quase cem convidados:
- Estou precisando de dinheiro. Chamei vocês aqui para que autori-
zem hoje uma programaçãu extra de anúncios nos nossos veículos.
O mal-estar é generalizado. Um dos empresários ensaia uma desculpa:
- Doutor Assis, nós vamos reunir nossos especialistas em midia para
ver o que é possível fazer. .
Ele se enfurece na cadeira e resmunga em voz alta uma frase que a enfer-
meira retransmite aos convidados:
- Não chamei ninguém aqui para pedir nenhum favor, mas para exigir
que vocês sejam equânimes com nossas empresas. Hoje à tarde um diretor
nosso vai ligar para cada um dos senhores para saber de quanto foi a pro-
gramação. O almoço está encerrado.
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FERNANDO MORAIS
O almoço não surtiu resultados significativos. Aquele não era mais o
Chateaubriand que infligia pânico aos poderosos - e isso valia também
para a fila de credores oficiais que se acumúlava fazia décadas. As execuções
de dívidas com instituições públicas (sobretudo a eterna Previdência Social)
começaram a pipocar. Só a revista O Cruzeiro acumulava a cada ano um pre-
juízo de 340 milhões de cruzeiros (200 mil dólares da época, cerca de 820 mil
dólares de 1994). Não foi necessária nenhuma ginástica contábil para se che-
gar à conclusão de que a saída era começar a torrar parte do próprio pa-
trimônio para tapar o rombo. A investida óbvia recaiu sobre a poderosa
Schering, que João Calmon foi encarregado de vender à sua congênere nor-
te-americana por 2 milhões de dólares, pouco mais de 8 milhões de dólares
de 1994 (Calmon alega que não havia alternativa: o contrato de fornecimen-
to de tecnologia pela Schering americana estava se esgotando e esta se recu-
sava a renová-lo. Segundo ele, era vender ou ficar com uma sucata nas
mãos). Mas os prudentes compradores dos Estados Unidos queriam a con-
cordância de pelo menos um dos três filhos para que o negócio se realizas-
se. A recusa de Gilberto a assinar o atestado de sanidade do pai a que se re-
ferira a reportagem da revista Time, anos antes, tinha acontecido na ocasião
em que tentara impedir a venda da Schering. "Não sou médico, não estou
qualificado a atestar sobre a saúde de ninguém" foi a resposta dele aos dire-
tores dos Associados. Agora, no entanto, Chateaubriand estava reconciliado
com Teresa, e a exigência da Schering americana pôde ser atendida. Quando
Joaquim Pinto Nazário, diretor do Diário da Noite de São Paulo, quis saber as
razões que o teriam levado a vender uma empresa tão rentável, Chateau-
briand respondeu :
- Eu não vendi a Schering, eu a queimei na divina fogueira Associada.
"Queimar" era certamente o verbo mais apropriado para aquela opera-
ção. Canalizados para socorrer O Cruzeiro (cuja edição internacional fechara
as portas por falta de anúncios), em menos de noventa dias os vultosos re-
cursos obtidos na venda na indústria farmacêutica foram pulverizados pelas
dívidas. Como os problemas financeiros persistissem, em 1966 Chateau-
briand foi aconselhado por alguns de seus diretores a pensar na possibili-
dade da venda de outra propriedade importante, mesmo considerando "a
natureza afetiva dela". Não era preciso explicar mais: falava-se da Vila Nor-
manda, na avenida Atlântica.
Percebendo que aos poucos fugiam das mãos dos legítimos herdeiros
não só as empresas que constituíam o Condomínio, mas também fatia ex-
pressiva do patrimônio que compunha a chamada "legítima" (a parte dos
bens reservados por lei aos herdeiros, da qual o proprietário não pode dis-
por livremente), o incansável Gilberto conseguiu convencer a Justiça do Rio
de que se tratava de uma vingança paterna contra dois dos filhos (ele e Fer-
nando) e obteve a suspensão do alvará que autorizava Chateaubriand a ven-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
der o casarão. O pai respondeu à sua moda, publicando em todos os jornais
Associados um artigo assinado de apenas dez linhas, sob o título "Um negó-
cio de capadócios " :
Não será possível que a Justiça, no caso trivial da transferência de um imóvel,
fique à mercê de manobras de um embusteiro descarado. O juiz D'Almo Silva,
da 2ª Vara da Família, na Guanabara, não se pode deixar intimidar por interven-
ções inconfessáveis, num caso que só comporta fazer o que se lhe pede - que é
a aplicação da lei. Gilberto Allard Gabizon não é parte legítima na hipótese. Não
possui uma gota do sangue que alega, em virtude de um ato de generosidade
que o meliante não soube compreender. [...]
Gilberto ainda tentou buscar o apoio do meio-irmão para obstruir o ne-
gócio, mas Fernando na época estava mais preocupado em pesquisar mine-
rais atômicos no Centro-Oeste brasileiro e não se meteu na demanda. A me-
dida legal foi derrubada e o único resultado concreto da ação foi atrasar por
um ano a alienação da casa - que acabou sendo vendida em 1967 para o
grupo Veplan-Sisal por 1,9 bilhão de cruzeiros novos (a moeda brasileira
mudara de nome mais uma vez), cerca de 700 mil dólares de então, ou 3 mi-
lhões de dólares de 1994. Demolida, a Vila Normanda daria lugar a um pré-
dio de apartamentos - que da elegante mansão só herdou o nome na facha-
da do edifício. O dominó, no entanto, não terminava aí: transferido para
Fernando, o Laboratório Licor de Cacau Xavier também foi vendido, desti-
no igual ao que seria dado à Tv Cultura, canal 2, de São Paulo. Neste caso
houve uma particularidade. O comprador era o governo estadual (que a
transformou em estação cultural e educativa), e os diretores dos Associados
conseguiram enfiar no contrato de venda uma cláusula marota: para evitar
que um novo concorrente viesse a disputar o minguado mercado publicitá-
rio, exigiram que, nas mãos do estado, o canal 2 jamais exibisse anúncios.
Salva do incêndio, também em 1967 a Casa Amarela seria doada por Cha-
teaubriand a Teresa, que só viria a se desfazer do imóvel quatro anos após a
morte do pai.
O dono dos Associados podia ter perdido o vigor para enfrentar credo-
res, mas não para exercer com ímpeto cada vez maior a tirania que insistia
em impor ao filho Gilberto. Anos antes - quando os dois ainda viviam em
paz -, Chateaubriand lhe dera de presente uma tela de Portinari, o Cavalo
empinado, que decorava a ante-sala de seu gabinete na redação de O Jornal,
no prédio da rua Sacadura Cabral. Certo de que o quadro lhe pertencia, o fi-
lho não se apressou em levá-lo para casa. Mas, quando as relações entre os
dois pareciam ter azedado para sempre, chegou a Gilberto um recado urgen-
te: se não quisesse perder a tela, que tratasse de retirá-la imediatamente do
prédio dos Associados, pois Chateaubriand, arrependido ou esquecido, de-
cidira dá-la de presente à filha Teresa - que recebera ordens para
levar o
quadro no dia seguinte. Tomado de cólera ao saber que o filho tinha tirado
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FERNANDO MORAIS
o Cavalo da parede de seu escritório, Chateaubriand soltou o primeiro "Ma-
caco Elétrico". Aparentemente, era só uma advertência, na esperança de que
a obra fosse devolvida, porque não fazia qualquer alusão ao nome de Gilber-
to. O anúncio dizia apenas que a tela tinha sido roubada da casa "do sr. Cha-
teaubriand" e pedia sua devolução. Aquilo se repetiu em todos os jornais
Associados por algumas semanas, e, como não surtisse nenhum efeito (Gil-
berto decididamente não estava disposto a devolver o quadro que era seu),
Chateaubriand disparou a segunda versão, intitulada "Ladrão de cavalo"-
desta vez citando nominalmente "o ladrão argelino Gilbert Allard Gabizon".
Nem assim o Portinari voltou.
Diante do insucesso das intimidações impressas, o pai apelou para o rá-
dio e a televisão: deu ordens para que todas as emissoras Associadas incluís-
sem em seus informativos uma terceira versão. Agora, em vez de dar qual-
quer nome, Chateaubriand mandou divulgar que se descobrira que o ladrão
da tela era "um diplomata brasileiro". Além de não ter o Cavalo empinado de
volta, o dono dos Associados acabava de comprar uma enorme encrenca
com o governo - que ainda era o mesmo governo do marechal Castelo Bran-
co que ele tanto atacara. Ferida em seus brios, a corporação do Itamaraty en-
trou em cena: afinal, se não dava o nome do "diplomata ladrão", Chateau-
briand estava submetendo à suspeita todos os milhares de funcionários do
Ministério das Relações Exteriores. O secretário-geral do Itamaraty, Pio Cor-
reia, mandou uma luzidia delegação de diplomatas, chefiada pelo embaixa-
dor Antonio Azeredo da Silveira, visitar oficialmente o jornalista em sua
casa, em São Paulo, para dele obter o nome do larápio que se escondia ano-
nimamente no ministério. Temendo que o jornalista, irresponsavelmente,
não tivesse qualquer cerimônia em declinar o nome do filho (o que permiti-
ria a Gilberto interditar o pai judicialmente), o advogado Nehemias Gueiros
correu a São Paulo e conseguiu impedir que a delegação se avistasse com
Chateaubriand, a pretexto de que seu estado de saúde não permitia visitas.
O Itamaraty não recuou. Na impossibilidade de obter a informação, re-
quereu ao Ministério da Justiça que determinasse ao comandante Euclides
Quandt de Oliveira, presidente do Contel - Conselho Nacional de Teleco-
municações -, a abertura de um processo contra as rádios e tevês Associa-
das. O governo concluiu por um duríssimo e desproporcional castigo: man-
dou retirar do ar por 24 horas tanto as duas Tvs Tupi quanto as demais
estações Associadas que haviam retransmitido a notícia. Indignado com o
que considerou uma arbitrariedade, o deputado João Calmon - que se en-
contrava no auge do prestígio adquirido na guerra contra os acordos da Tv
Globo com o grupo Time-Life - telefonou ao ministro da Justiça, Carlos
Medeiros Silva, exigindo a reconsideração da medida. Diante da negativa do
ministro, Calmon teria invocado sua condição de "revolucionário de primei-
ra hora" para tentar reverter a suspensão. Mas o diretor dos Associados não
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
estava falando com um ministro qualquer, e sim com um representante da
linha dura do regime, o homem que redigira pessoalmente o Ato Institucio-
nal nº 1, instrumento que "legalizava" todas as perseguições, punições, cas-
sações de mandatos e de direitos políticos que se seguiram ao golpe de 1964.
Para piorar a situação, Medeiros tinha sido, até assumir o ministério (e vol-
taria a sê-lo depois), advogado de ninguém menos que Gilberto Chateau-
briand. O ministro foi duro na resposta a Calmon:
- O senhor é revolucionário de primeira hora? Pois eu também sou;
com a diferença de que posso cassar o seu mandato.
Nem a punição foi revista, nem o Cavalo empinado voltou. Tampouco
Chateaubriand se deu por vencido na guerra contra o filho. Em março de
1967, assumiu o governo o marechal Arthur da Costa e Silva, abertamente
apoiado pelos Associados, e por quem o jornalista fizera campanha ostensi-
va, contra o grupo liderado por Castelo Branco. Para o cargo de ministro das
Relações Exteriores - portanto o superior máximo de Gilberto na hierarquia
diplomática - foi nomeado o amigo de Chateaubriand e ex-governador de
Minas Magalhães Pinto. Pelo menos duas vezes, em brigas anteriores, o jor-
nalista tentara obstruir a carreira do filho. Quando Gilberto servia na embai-
xada brasileira em Paris, no governo Kubitschek, o pai pressionou o chance-
ler Macedo Soares a fim de que este o transferisse para a remota Taipé,
capital de Formosa, ou pelo menos o removesse de volta ao Rio - ou seja,
Chateaubriand queria de qualquer maneira tirar o filho "do circuito", como
se diz no jargão diplomático. Como se tratava de um funcionário de carrei-
ra, Gilberto permaneceu onde estava. Passaram-se alguns anos e, quando
Francisco Negrão de Lima assumiu o Ministério, o jornalista voltou à carga
com mais crueldade: tentou obter a transferência do filho para Caracas, na
Venezuela, considerada então uma das cidades de custo de vida mais caro
no mundo - lugar ideal para "falir" ou "quebrar" um diplomata.
Frustrado nas duas tentativas, em 1967 Chateaubriand viu renascerem
suas esperanças de vingança: além de ter um amigo na Chancelaria, o país
vivia sob um regime ditatorial, no qual um ministro podia, a seu próprio ar-
bítrio, fazer e desfazer da carreira de um funcionário como Gilberto. Este
sentia de perto a coerção do pai sobre o Itamaraty para que seu nome entras-
se em uma das dezenas de listas de cassações e aposentadorias compulsórias
que aterrorizavam os ministérios, e chegou a ter nas mãos a cópia de um ina-
creditável telex que Chateaubriand enviou a Magalhães Pinto. Não trouxes-
se embutida a inexplicável crueldade de um pai contra o próprio filho, o tex-
to do telegrama - ditado pessoalmente pelo jornalista para Emília e Irani-
só poderia ser lido como uma peça humorística:
Telex para Magalhães Pinto
Ouvi dizer Gilberto Bandeira Melo vg meu filho adotivo vg deseja trabalhar
seu gabinete pt Trata-se de um perfeito scroc pt Rouba minha casa há sete anos
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FERNANDO MORAIS
pt Nunca foi meu filho de sangue pt Mandei-o reconhecer por piedade sua mãe
vg nada mais pt
Tentou em Nova York extorquir de mim venda da Schering para lhe dar 200
mil contos pt Ordenei fosse expulso do hospital pt Agora roubou no meu gabi-
nete do jornal um Portinari que eu havia dado ao Museu de Porto Alegre pt
Peço evitar este miserável que é um cínico ignóbil pt Roubou toda minha rou-
pa de sair no Rio e em Londres: duas casacas vg três smokings e doze ternos da-
dos a mim por Spitzman Jordan e Antonio Galdeano pt Igualmente furtou meus
dois relógios Patek Philip dados por Oswaldo Costa e minha mãe pt
Há uma diferença entre Fernando e Gilberto e ela é esta: Fernando é um por-
co espinho vg Gilberto é um porco somente pt Faço questão este telex seja en-
tregue no banco ou ao Magalhães Pinto pt Guardar cópia pt
Assis Chateaubriand
A vingança tantas vezes pedida por Chateaubriand nunca chegou a se
consumar. (O filho, na verdade, nunca pretendera "trabalhar no gabinete"
do chanceler, como o telex indicava. E tanto as casacas quanto os smokings
"roubados" apareceriam intactos, anos depois, no rol do espólio do jorna-
lista, leiloado após sua morte.) Mas, vendo as garras do arbítrio se aproxima-
rem cada vez mais do posto funcional que ocupava, Gilberto acabou, tempos
depois, optando por se antecipar e pedir demissão do Itamaraty, abando-
nando espontaneamente a vida diplomática.
Se a doença de fato minava sua resistência a olhos vistos, Chateau-
briand, como se podia ver pelo comportamento com Gilberto, não perdera a
impulsividade para as "teratologias familiares" a que se referira o psiquiatra
americano. Nem o ânimo para as duas únicas atividades que continuavam
consumindo suas energias como se ele estivesse são: o museu e a política.
Aliás, não era mais "o", mas os museus. Uma de suas últimas iniciativas ti-
nha sido a criação de museus regionais, espécie de filhotes do MASP espalha-
dos por todo o país e dedicados exclusivamente à arte brasileira. Já haviam
sido fundados os de Olinda, em Pernambuco, Campina Grande, na Paraíba,
Feira de Santana, na Bahia, Araxá e Belo Horizonte, em Minas, e Porto Ale-
gre, no Rio Grande do Sul. Mais dois estavam em via de ser criados, em Na-
tal, no Rio Grande do Norte, e em São Luís, no Maranhão. Quanto ao MASP,
Chateaubriand não diminuiu o ritmo de investimentos nem mesmo na era
pós-Juscelino, quando as execuções diárias de dívidas faziam os diretores
Associados arrancar os cabelos. Entre um dos lotes adquiridos para o museu
estava uma obra, comprada à mesma Galeria Wildenstein, que se tornaria o
centro de uma polêmica entre Gilberto e Bardi que duraria até após a morte
do criador do MASP.
Tratava-se da tela José e a mulher de Putifar, de Gauguin, cuja compra Gil-
berto ajudara a intermediar ainda em 1961, época em que suas relações com
o pai andavam em alta. Trazida da Áustria, onde se encontrava exposta em
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
uma galeria, Chateaubriand exigiu para a entronização da obra a pompa
destinada às grandes aquisições: convidou para madrinha a bela princesa Ira
de Furstemberg, recém-casada com "Baby" Pignatari. À cerimônia de incor-
poração do Gauguin ao acervo do MASP, fartamente coberta em reportagem
publicada na edição de 11 de março de 1961 de O Cruzeiro, estiveram presen-
tes, além da madrinha, Horácio Lafer, Menotti del Picchia, o industrial Cân-
dido Fontoura e o senador Auro de Moura Andrade.
Passados alguns anos da morte de Chateaubriand, Gilberto vê em Nova
York, na revista Look, uma reportagem intitulada "As cem obras-primas de
Georges Wildenstein". Folheia a revista e depara, assombrado, com uma fo-
tografia de Daniel Wildenstein, filho do marchand, sentado em uma poltrona
e encimado por algumas da tal centena de obras-primas da família - entre
as quais se encontrava a razão de seu espanto: exatamente o José e a mulher
de Putifar. Estava criado um dos mais controvertidos casos da história do
MASP, para o qual existem três versões diferentes: Gilberto assegura que Bardi
"vendeu de novo o quadro a Wildenstein por 600 mil dólares". Tanto Pietro
Maria Bardi como Edmundo Monteiro (este era formalmente o presidente
do museu) sustentam que, por não ter sido pago, o Gauguin foi simplesmen-
te devolvido à coleção de Wildenstein. O marchand que teria vendido a obra,
por sua vez, oferece uma terceira versão, informando que o quadro "veio ao
Brasil apenas para ser submetido ao "approval" de Chateaubriand, que já es-
tava doente, e foi levado de volta a Nova York". De toda a polêmica, que se
transformou em um bate-boca público, a única verdade é que o quadro foi
de fato "apresentado à sociedade" como sendo propriedade do MASP. E que
hoje faz parte da coleção da família Wildenstein. Um processo aberto pelo
Serviço do Patrimônio Histórico Nacional - Sphan -, anos depois, ressalta,
de forma conclusiva: "Nenhuma peça mais do MASP, hoje patrimônio cultu-
ral nacional, apesar do caráter privado da instituição, poderá ter sua expor-
tação autorizada pelo Conselho Federal de Cultura".
Assim como gastou suas últimas energias com o museu, só a morte tira-
ria de Chateaubriand o entusiasmo pela movimentação dos cordéis do po-
der político. No período em que Castelo Branco era o presidente da Repúbli-
ca, seus artigos diários eram um espelho das divergências que cada dia mais
o separavam do chefe do governo militar. Sem nunca ter sido punido ou se-
quer importunado pelo que escrevia (a única exceção tinha sido a suspensão
imposta à Tv Tupi), Chateaubriand tratava com insolência um presidente
que enfeixava em suas mãos poderes suficientes para prejudicar enorme-
mente os Associados e seu chefe. No calor da disputa militar pela sucessão
presidencial, o jornalista apimentou o destempero nas críticas que fazia ao
presidente, a quem os áulicos saudavam como "um intelectual" entre seus
colegas de farda:
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FERNANDO MORAIS
Já se constatou o que ocorreu no caso da escolha de Castelo Branco para presi-
dente, em abril de 1964. Ele não era o homem de inteligência que se supunha.
Houve um trágico erro de cabeça. A sua estava longe de ter miolos de um inte-
lectual, do homem de doutrina que se imaginava.
Era apenas um erudito, isto é, o que devora livros, armazena conhecimentos,
acumula estoques de fatos, entesoura cabedais literários e científicos, vive com
os olhos em cima dos livros, lendo sem cessar. Mas para digerir coisa nenhuma.
Engole erudição até ficar empanzinado, o ventre timpânico, a morrer indigesto.
Um dia, o presidente mandou chamar Edmundo Monteiro a Brasília
para uma audiência sobre "o problema Chateaubriand". Monteiro comuni-
cou a convocação ao chefe, que reagiu com bom humor:
- Pode ir. O Castelo vai pedir penico.
Não pediu. O presidente queria, ao contrário, advertir o dono dos Asso-
ciados de que ele, na questão sucessória, estava se imiscuindo em um assun-
to estritamente militar. Por intermédio de Monteiro, mandou uma mensa-
gem a Chateaubriand:
- Transmita a Chateaubriand o meu pensamento. Ele está colocando os
Diários Associados a serviço da campanha do general Costa e Silva. Vocês
não podem ser mais amigos do Costa e Silva do que eu. Sou colega dele há
longos anos e tenho por ele muita estima. Mas ele é um despreparado, não
pode ser presidente da República. Eleito, ele será uma desgraça para o Bra-
sil, será o fim da revolução.
Chateaubriand não fez caso da advertência e continuou escrevendo a fa-
vor da candidatura do ministro da Guerra. Passam-se algumas semanas e ele
recebe, dessa vez por intermédio de um general amigo comum dele e de
Castelo, um novo e mais explícito recado do presidente: ele podia ser quem
fosse, mas não deveria continuar publicando desaforos contra um governo
que tinha imenso poder. Em resumo, Castelo queria lembrar a Chateau-
briand que mesmo para um revolucionário, ainda que inválido, a paciência
dos militares tinha limites. A resposta do jornalista foi curta:
- Diga ao presidente para não vir com conversa. Para dar ordens den-
tro dos Associados tem que assumir nossa folha de pagamento.
Sua insistência em influir na luta sucessória acabaria transformando-o
em pivô de uma crise militar de bom tamanho. O general Justino Alves Bas-
tos, comandante do III Exército (sediado em Porto Alegre), tinha ambições de
se candidatar, pelo voto indireto da Assembléia Legislativa estadual, ao go-
verno do estado do Rio Grande do Sul. Mas para isso teria de derrubar um
obstáculo legal criado pelos próprios militares: a Lei de Inelegibilidades exi-
gia candidatos com domicílio eleitoral no estado em que fossem disputar
eleições - e o título eleitoral de Justino estava registrado em Pernambuco,
onde ele servira antes como comandante do IV Exército. Situação semelhan-
te viviam seus colegas generais Amaury Kruel, que pretendia disputar o go-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
verno de São Paulo (onde chefiava o II Exército), e Antônio Carlos Murici,
sucessor de Justino no comando do IV Exército, interessado em participar das
eleições pernambucanas. Castelo Branco fazia firme objeção não só à candi-
datura de Justino, mas também às dos outros dois generais-de-exército.
Quando iam acesas as divergências intestinas de Justino com o presi-
dente da República, Chateaubriand resolveu organizar um grande churras-
co na sua fazenda Chambá, no Rio Grande, a pretexto de ' batizar ' Kruelino
,
o terneiro Hereford nascido das matrizes importadas da Inglaterra. Perito
em conspirações, o dono dos Associados fez com que o centro das atenções
de todos os jornalistas presentes fosse não o bezerro, mas seus dois convida-
dos de honra: o general Justino Alves Bastos e seu colega de luta contra a exi-
gência do domicílio eleitoral, general Amaury Kruel. Batizado Kruelino (em
cuja cabeça o general Kruel, padrinho, derramou uma garrafa de champa-
nhe), ao final do churrasco Chateaubriand pediu que fosse dada a palavra ao
general Justino. Seu discurso foi uma bomba. Pela primeira vez, desde 1 de
abril de 1964, um oficial da sua patente e ocupando um posto da importân-
cia do comando do III Exército se referia claramente ao governo militar como
uma ditadura. Depois de classificar como "uma monstruosidade essa histó-
ria de domicílio eleitoral", o general encerrou suas palavras com dureza:
O pobre nunca foi tão pobre depois que inventaram esse plano de recuperação
econômica, feito pelo talentoso mato-grossense Roberto Campos, mas que só
tem feito todo mundo reclamar das dificuldades.
Concluo com um apelo especial à imprensa no sentido de que lute para que
a trajetória do Brasil não seja interrompida e não seja principalmente uma traje-
tória no sentido contrário, que, depois de nos afastar do perigo da esquerda, in-
cline-se para os perigos da direita, para a ditadura, para o domínio de uma pes-
soa sobre as demais, para o domínio das piores idéias sobre as melhores.
Entendam-me como quiserem, mas esta é a linguagem franca que nunca sabe-
rei deixar de usar. Antes perderei a fala, antes me transformarei em um surdo-
mudo, mas não sei falar o que não seja a verdade.
Ibanor Tartarotti, diretor dos Associados no Rio Grande do Sul, pegou
a fita onde mandara gravar a fala do general e, consciente do teor explosivo
do projétil que tinha nas mãos, encarregou um repórter de levar a gravação
até a Rádio Farroupilha, em Porto Alegre, para ser distribuída entre os de-
mais veículos Associados. Logo após a partida do carro de reportagem,
decolou da fazenda Chambá um helicóptero que tinha transportado para o
churrasco alguns oficiais da Aeronáutica. Minutos depois, o aparelho pousa-
va no meio da estrada que levava a Porto Alegre, interrompendo a passagem
do veículo Associado. De dentro da aeronave desceu um oficial, que se iden-
tificou como "coronel Assis, do Centro de Informações da Aeronáutica",
prendeu o jornalista e confiscou a fita, que antes de o dia terminar já estava
nas mãos do presidente Castelo Branco, em Brasília. Conforme previra em
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seu discurso, Justino perdeu a fala. A fala e o emprego: no dia seguinte ele
estava demitido do comando e para seu lugar Castelo nomeava o general
Orlando Geisel.
Chateaubriand continuou batendo em Castelo Branco. No dia 15 de
março de 1967, quando este transferia a faixa presidencial para Costa e Sil-
va, o jornalista escreveu um curto artigo, intitulado "Administrador de ce-
mitérios" :
O epitáfio do marechal Castelo Branco deve ser curto. Aliás, sendo o defunto
grosso e feio, o tamanho deveria mesmo ser pequeno. [...] O novo governo rece-
be o país da mão do outro, que exauriu o mercado interno e pôs em fuga o exter-
no, um governo que infligiu à sua gente os piores vexames sem contudo defen-
der a moeda, cada vez mais aviltada. O saldo que se apresenta é este: ele é um
soldado bisonho, que parte com sua turma de coveiros. O alto sexagenário po-
derá ficar resumido num singelo título, mais ou menos assim: administrador de
cemitérios.
Josué Montello registra em um de seus livros de memórias que a primei-
ra aparição pública de Castelo depois de deixar a Presidência foi em uma
reunião na casa do acadêmico Silva Mello, o velho amigo de Chateaubriand.
Em meio ao jantar, o anfitrião começa a "falar de corda em casa de enforca-
do", anotou Montello, ao discorrer com calorosos elogios sobre os artigos do
dono dos Associados. Castelo ouvia, esfarelando migalhas de pão entre os
dedos, e, quando Silva Melo fez uma pausa, o ex-presidente comentou:
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CHATÓ, O REI DO BRASIL
- Eu o leio sempre. Principalmente quando me agride e injuria. Prefi-
ro lê-lo à noite, antes de dormir. É uma boa hora para ler as descompostu-
ras. Leio-as, recorto-as e durmo. Durmo até de manhã.
Se Castelo tratava o jornalista com indiferença, o sentimento não era re-
cíproco. No dia 18 de julho de 1967, quando o avião Jagunço pousou no ae-
roporto de Congonhas, em São Paulo, trazendo da cidade de Mococa Chate-
aubriand e o ex-ministro da Agricultura de João Goulart, Renato Costa Lima,
o dono dos Associados chamou Emília a um canto, como se segredasse algu-
ma coisa: ele queria que a enfermeira convidasse os amigos para uma festa
que decidira realizar naquela mesma noite na Casa Amarela, para comemo-
rar uma notícia ouvida no rá dio do avião. Ao chegar à rua Polônia, no come-
ço da noite, um dos convidados (o médico Cássio Ravaglia) imaginou que o
jornalista estava celebrando algum progresso na recuperação de sua saúde.
A casa estava cheia, e a cada visita que chegava Chateaubriand mandava
abrir mais uma garrafa do caríssimo champanhe Moet & Chandon Magnum
(que ele guardava apenas para ocasiões muito especiais) e propunha um
novo brinde. Ravaglia quis saber de seu paciente o que exatamente se feste-
java, e ouviu, incrédulo, o jornalista contar qual a boa notícia que o rádio do
avião divulgara:
- Estamos comemorando a morte do marechal Castelo Branco, cujo
avião se espatifou hoje nos céus do Nordeste.
Desde que sua saúde sofrera os dois abalos mais graves depois da trúm-
bose, a broncopneumonia e a cardiopatia, Chateaubriand recebeu rigorosa
orientação dos médicos para reduzir ao mínimo suas saídas da Casa Amare-
la. Uma dessas viagens foi para participar das festas que marcaram a sanção,
pelo governador do Paraná, Paulo Pimentel, do projeto de lei que dava a
uma cidade do interior do estado o nome de Assis Chateaubriand. Fora es-
sas ausências cada vez mais raras, sua vida se resumia a uma cansativa roti-
na: acordar de manhã, ler os jornais, fazer fisioterapia na piscina aquecida,
escrever o artigo diário, almoçar as papinhas que os enfermeiros lhe prepa-
ravam e punham em sua boca, garfada por garfada, se sujeitar a algumas
sessões de ginástica nas barras colocadas sobre a cama hospitalar e nada
mais. Ao ver se esvaírem por completo as esperanças de que algum dia pu-
desse voltar a andar e falar normalmente, ele foi também perdendo aos pou-
cos a energia, o viço e a inquietação que milagrosamente tinham sobrevivi-
do até mesmo à trombose. Com o passar do tempo começou a dividir com
seus milhares de anonimos leitores o estado de desânimo que o abatia.
Quando o fôlego ou a paciência eram insuficientes para escrever um artigo
até o fim, ele ciscava as teclas da máquina por um ou dois parágrafos e pa-
rava por ali mesmo. Encerrava abruptamente o texto com uma observação
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FERNANDO MORAIS
entre parênteses, que exigia que fosse composta e publicada nos jornais:
"continua no próximo dia". Como se tivesse perdido o acanhamento de re-
conhecer que estava entrevado, passou a incluir nos artigos pequenas consi-
derações sobre o esforço que representava para ele escrever todos os dias:
"Nas precárias condições com que luto com meus membros superiores, o
problema de escrever é mais complicado do que acreditará o leitor. A neces-
sidade de alargar a extensão da máquina depende mais das imposições do
mal do que da vontade obstinada do rabiscador". Quando era objeto de al-
guma homenagem a que, por recomendação médica, não podia comparecer,
ele não tinha mais constrangimento em abrir seu discurso-artigo com a con-
fissão da sua incapacidade: "Estas são as palavras que eu diria, se pudes-
se... '. Um dia, Evaldo Inojosa, presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool
,
organizou um banquete em sua homenagem no Jockey Club de São Paulo.
Impedido de comparecer, escreveu no discurso de agradecimento (que seria
lido pelo ator Lima Duarte e publicado como artigo no dia seguinte) um pa-
rágrafo que dava a medida da prostração em que a doença o deixara:
A maior surpresa que tenho nestes últimos sete anos e meio é quando recebo
uma lembrança, um chamado ao convívio de meus semelhantes. Sou um mor-
to-vivo desde os derradeiros dias de janeiro de 1960 [embora a trombose o tives-
se abatido no final de fevereiro, por alguma inexplicável razão ele sempre se re-
feria a ela como se tivesse ocorrido no mês de janeiro). Praticamente removido
do concerto dos contemporâneos, vivo pela graça providencial dos doutores
amigos que me assistem em duas cidades.
O aparecimento em um ato destes, com a saída violenta de casa, é como se
fosse o milagre de uma aparição, de tal modo me encontro engolfado num mun-
do de silêncio e distância das outras criaturas da nossa espécie...
A pelo menos duas pessoas da sua intimidade - Edmundo Monteiro e
Elisabeth Banas, mulher do jornalista Geraldo Banas - ele falou claramente
em suicídio, usando sempre a mesma expressão:
- O que torna o meu sofrimento mais trágico é não ter forças sequer
para me suicidar. É não ter mãos suficientes para jogar veneno na boca ou
estourar os miolos com um tiro. E os meus melhores amigos insistem em que
eu viva, fazem todo o esforço para que eu viva. Neste estado, mas vivo.
Mas a constatação de que Chateaubriand perdera para sempre a espe-
rança na medicina e na ciência convencionais aconteceu quando de repente,
em 1967, ele decidiu começar a recorrer a bruxos curandeiros, pais-de-san-
to e charlatães baratos. Apesar de ser sabidamente incréu, um ateu sem a
mais ínfima convicção religiosa, trocou as assinaturas de revistas científicas
que vinham da Europa e dos Estados Unidos com notícias sobre as últimas
conquistas da neurologia pelo primeiro vigarista que alguém recomendasse.
Apesar das instruções dos médicos de que só deveria se locomover da Casa
Amarela em casos excepcionais, o jornalista viajou ao Rio para se consultar
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
num pobre subúrbio carioca com uma mãe-de-santo conhecida como "d. Ca-
cilda, 'cavalo' do seu Sete, o rei da Lira" ("cavalo", na linguagem da umban-
da, é a pessoa que incorpora o espírito do "guia", em geral a alma de alguém
falecido) as sessões de d. Cacilda não passavam de reuniões em que Cha-
teaubriand de cadeira de rodas, permanecia no centro de um círculo em que
as pessoas bebiam cachaça no gargalo de uma mesma garrafa e fumavam
charutos como se estivessem em transe. Vigilantes, Emília e o motorista Pau-
lo Figueiredo cuidavam para que a garrafa e os charutos nem passassem per-
to do jornalista. Ao final de duas ou três sessões, Chateaubriand desistiu do
terreiro.
Durante sua permanência no Rio, ele soube de milagres que estavam
sendo operados na Inglaterra por um certo "dr. Khalin", especializado na
cura de paralíticos, a quem até alguns membros da Família Real teriam re-
corrido. Apesar das objeções de Ackerman e de sua equipe, Chateaubriand
mandou João Calmon a Londres para averiguar de perto a eficiência do novo
curandeiro. O diretor geral dos Associados viajou à Inglaterra e de lá enviou,
por malote, para o chefe um dossiê com reportagens publicadas em jornais
britânicos sobre Khalin. Junto com o material, Calmon escreveu uma carta a
Chateaubriand advertindo-o de que todas as pessoas sérias consultadas em
Londres sobre o homem tinham sido unânimes: tratava-se apenas de mais
um charlatão que jamais curaria quem quer que fosse, e ainda menos uma
pessoa afetada por uma dupla trombose cerebral. Surpreso, dias depois da
remessa Calmon recebeu um curto telegrama do patrão: ' Embarque Kha-
lin '. Com a passagem de avião e a hospedagem no Copacabana Palace pa-
gas pelos Diários Associados, Khalin passou duas semanas no Rio. Seu "se-
gredo" era uma beberagem feita à base de um pó extraído do fígado de feto
de carneiro - que, apesar de não resultar em nenhuma alteração no estado
de saúde de Chateaubriand, custou aos combalidos cofres Associados mais
5 mil dólares (cerca de 20 mil dólares de 1994), que era o preço de suas con-
sultas em domicílio.
Apesar da ineficácia da modesta d. Cacilda ou do sofisticado "dr. Kha-
lin" (que só se comunicava com Chateaubriand em alemão), o jornalista
parecia ainda ter esperanças de que as forças do além o fariam recuperar-se
de alguma forma. Ainda no Rio, Chateaubriand acabou batendo na porta de
"Nero de Cavalcanti" - seu nome vinha do imperador romano, cujo espíri-
to dizia receber e o sobrenome só indicava o modesto bairro da periferia do
Rio onde vivia. "Nero" era apenas o ex-policial Lourival de Freitas - um ho-
mem esquálido, de faces encovadas e olhos fundos -, que alardeava ter po-
deres para receber não apenas o espirito do homem que incendiou Roma,
mas também o do imperador Petrônio, de Átila, de Messalina ou de entida-
des nacionais, como o "caboclo Tocantins " ou o "caboclo Serra Negra. Mis-
turando pólvora, éter e sangue de galinha, "Nero " aparecera na imprensa
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FERNANDO MORAIS
posando em fotografias ao lado de ilustres pacientes que teria curado, como
o juiz de direito Anselmo de Sá Ribeiro e o almirante Rubens Cerejo, coman-
dante do Corpo de Fuzileiros Navais.
O tratamento com "Nero" foi mais demorado que os anteriores. Duran-
te as sessões, ele se vestia com uma capa negra de forro vermelho, dava pas-
ses, fazia misturas, mas não escapava dos olhares precavidos de Emília, Pau-
lo e Irani toda vez que se aproximava de Chateaubriand com giletes ou
agulhas de tricô nas mãos. Como o jornalista tivesse de retornar a São Pau-
lo, exigiu que "Nero" se transferisse para a Casa Amarela com toda a sua
trupe por mais algumas semanas. Naturalmente que também nada daquilo
deu qualquer resultado, mas Chateaubriand poderia ter sido poupado da
palhaçada se tivesse se lembrado de duas reportagens publicadas em maio
de 1958 em O Cruzeiro. Nelas, o repórter Ubiratan de Lemos e os fotógrafos
Jorge Audi e Walter Luiz desmentiam a imprensa sensacionalista do Rio,
comprovando que Lourival de Freitas era apenas mais um malandro que vi-
via da exploração da boa-fé alheia.
Na noite de 4 de outubro de 1967, Chateaubriand consentiu, pela segun-
da vez em sua vida, que se festejasse seu aniversário - a primeira fora em
1913, aos 21 anos, quando a data coincidiu com sua posse no cargo de reda-
tor-chefe do Estado de Pernambuco. Agora, ao completar 75 anos, ele talvez es-
tivesse pressentindo que viveria seus últimos momentos felizes. Organizada
de surpresa pelos empregados da Casa Amarela, só estes e mais os enfermei-
ros de plantão participaram da comemoração. A única exceção era Paulo Ca-
bral, a quem Chateaubriand pediu que lesse um discurso de agradecimento
que ele escrevera pouco antes - e que, como todos os outros, também seria
publicado nos jornais como artigo no dia seguinte. Apesar dos brindes de
champanhe e do bolo com velinhas, a atmosfera indicava que todos pare-
ciam prever que aquele seria o último aniversário do patrão.
Era verdade. Nos últimos meses de 1967 as condições de saúde dele fo-
ram se deteriorando a olhos vistos. As dificuldades respiratórias se acentua-
vam, os surtos de hipertensão surgiam com mais freqüência. Uma grave cri-
se de insuficiência respiratôria fez com que os médicos o internassem às
pressas no Hospital Santa Catarina, na avenida Paulista. Quando todos ima-
ginavam que se tratava do fim, Chateaubriand despertou, pediu que levas-
sem sua máquina de escrever ao hospital e redigiu um longo artigo intitula-
do "Velho São Paulo cansado de guerra", uma homenagem ao amigo
Manoelito Ornellas, que naquele dia lançava o livro Um bandeirante de Tosca-
nA, dedicado ao industrial Pedro Morganti. Dois dias depois, ele estava de
novo na Casa Amarela - combalido pela recaída, mas sentado à frente da
IBM e produzindo o infalível artigo diário.
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CHATÓ, O REI DO BRASIL
Nos primeiros dias de 1968, Chateaubriand mandou chamar em Belo
Horizonte o clínico José de Souza Fortes, chefe do Departamento Médico dos
Associados de Minas e ex-secretário municipal da Saúde da capital mineira.
Espírita, Fortes era o revisor que nos anos 30 havia literalmente psicografa-
do metade de um artigo do patrão - perdendo por isso e logo em seguida
recuperando o emprego no Diário da Tarde. A presença de Fortes (que pare-
cia acreditar mais no espiritismo que na medicina), devidamente instalado
em um dos quartos da Casa Amarela, deu a todos - equipe médica e enfer-
meiros - a certeza de que o jornalista estava jogando todas as suas esperan-
ças de cura nas forças do desconhecido, do além. Todas as noites, antes de
dormir, Fortes fazia Chateaubriand repetir com ele, durante meia hora, "a
milenar invocação do arcanjo Miguel", uma longa oração que misturava in-
glês e português para "atrair as legiões da luz":
I am, I am, Iam
Eu sou, eu sou, eu sou a Divina Presença que vibra em mim eternamente.
Miguel Arcanjo e legiões de luz, em nome de Deus todo-poderoso, em nome
da Virgem mãe de Jesus e em nome de Jesus, invoco vossa falange em nome de
milhares de anjos e de arcanjos de armaduras de ouro e espadas chamejantes de
chama azul curadora e protetora e peço que se manifeste, por meu intermédio,
com a rapidez do relâmpago [...]
Além das rezas, Fortes "interpretava" os sonhos do jornalista e transmi-
tia a ele mensagens vindas do outro mundo com notícias sobre sua saúde.
Não se sabe se influenciado ou não pelo médico mineiro, um dia Chateau-
briand anunciou que viajaria ao interior de Minas para se consultar com o
médium "Zé Arigó ", residente na cidade histórica de Congonhas do Campo.
Por maiores que fossem as objeções colocadas pela equipe médica, ele esta-
va decidido a tentar a sorte com o homem que realizava cirurgias com facas
de cozinha depois de receber "o espírito" de um falecido médico alemão co-
nhecido como "dr. Fritz". Era a segunda vez que recorria ao célebre mé-
dium. Três anos antes, Chateaubriand obrigara Edmundo Monteiro a mon-
tar uma operação clandestina para transportar Arigó de Minas até São Paulo
escondido dos médicos que o assistiam. Fretou-se um pequeno avião da em-
presa Líder e o encarregado de ir a Minas Gerais buscar o paranormal foi o
repórter Saulo Gomes, que já o havia entrevistado para a Tv Tupi, quando o
médium fora preso por exercer ilegalmente a medicina. A viagem se asseme-
lharia a uma ação guerrilheira. O aviãozinho chegou de madrugada no aero-
porto de Congonhas, Zé Arigó Foi hospedado às escondidas na casa do milio-
nário industrial Camilo Ansarah, na avenida Brasil, no Jardim América. Du-
rante o dia, Chateaubriand era levado para lá, sem que os médicos soubes-
sem, para se consultar. Embora não tivesse tentado qualquer intervenção ci-
rúrgica no jornalista, ao fim de três dias de conversa Arigó receitou, em um
pedaço de papel qualquer, os remédios que, assegurava, iriam curar o pa-
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FERNANDO MORAIS
ciente. Temeroso do que aquilo pudesse significar para a saúde do patrão,
Edmundo Monteiro se sentiu na obrigação de tomar cuidados especiais, e
conversou com o jornalista sobre o assunto:
- Chatô, enquanto eram rezas do doutor Fritz em alemão eu entendi
que não tinha importância. Mas tomar esses remédios dele, não. O senhor não
pode trocar os melhores médicos do mundo por um curandeiro ignorante.
Ele ficou louco:
- Eu não estou pedindo para comprar os remédios, estou mandando!
Eu quero sair desta cama, você não percebe? Se precisar comer merda para
sair desta cama, pode trazer que eu como!
- Mas como é que vou fazer com seus médicos?
- Mande os meus médicos à puta que os pariu!
Antes de mandar aviar a receita, Monteiro tomou a precaução de sub-
metê-la ao médico Cássio Ravaglia. Eram medicamentos clássicos, conven-
cionais e superados, a maioria deles recomendada para arteriosclerose. Ra-
vaglia quebrou o segredo e falou com Chateaubriand com bom humor:
- Doutor Assis, se o Arigó estivesse utilizando métodos sobrenaturais
para curá-lo eu teria que aceitar caladinho, porque não entendo disso. Mas
por esta receita eu vejo que ele está entrando na nossa área, e entrando mal.
Os remédios que ele receitou para o senhor são superados, acho que o se-
nhor não devia pôr muita fé nisso. Tomar esses remédios não lhe fará ne-
nhum mal, mas asseguro que também não vai lhe trazer qualquer progresso.
Os remédios foram comprados, mas por ordem de Edmundo Montei-
ro foram mantidos apenas os frascos novos: as pílulas que vieram dentro
deles foram trocadas pela medicação que o jornalista vinha tomando nor-
malmente.
No dia 12 de janeiro de 1968, Chateaubriand transferiu-se com seu en-
tourage para Congonhas do Campo. Além dele, foram para Minas a enfer-
meira Emília, o motorista Paulo Bruno, Irani, duas amigas - Hilda Decoster
e Helena Lundgren, a herdeira da rede de lojas Casas Pernambucanas - e,
naturalmente, o médico espírita José de Souza Fortes. A máquina de escre-
ver foi na mudança, e foi de lá que ele assinou os artigos nos dias seguintes.
O grupo passou uma semana acompanhando-o nas consultas diárias com
Arigó, e, ao contrário do que ocorrera com os outros curandeiros, as conse-
qüências não poderiam ter sido mais graves. Diante do impassível dr. Fortes
- e pára desespero de Emília, que a certa altura ameaçou chamar o neuro-
logista Ackerman para por um fim àquilo -, Chateaubriand foi retirado de
sua rigorosa dieta médica e passou a se alimentar de comida comum. Rece-
beu aplicações de injeções (que depois se soube serem de singela vitamina
B 12), e ainda teve de ingerir, com enorme risco para seus pulmões, garrafa-
das de beberagens preparadas pelo médium, sempre tomado pelo "espírito
do dr. Fritz". Temendo que Emília pudesse interromper o "tratamento", Ari-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
gó passou a proibir a presença dela durante as consultas. Mas foi mesmo a
enfermeira quem encerrou o tratamento, no dia em que o patrão voltou de
uma das sessões com o rosto completamente esfolado. Sob a inspiração do
"dr. Fritz ", Arigó tinha mandado dois homens colocarem Chateaubriand de
pé, segurando-o por debaixo dos braços. Enquanto o jornalista se equilibra-
va sobre a sola dos sapatos, trêmulo, o médium gritou com forte sotaque
alemão:
- Doutor Assis, hoje o senhor vai andar! Larga!
Ele se esborrachou de cara no chão.
No dia 21 de janeiro, Chateaubriand voltou para São Paulo estropiado.
Dois dias depois era novamente internado no Hospital Santa Catarina. Lá ele
foi instalado no apartamento número 212, uma suíte com um quarto anexo
e uma sala para os médicos. O quarto dava para uma pequena sacada sobre
a avenida Paulista, e da cama onde estava deitado ele só podia ver, quando
abria os olhos, o perfil da imagem de Santa Catarina que ornamentava a en-
trada do hospital, recoberta pelo mesmo pedrisco que revestia a fachada do
prédio. O grave problema pulmonar que o acometera fora sanado com uma
punção - de seu único pulmão bom foram retirados primeiro um litro, de-
pois mais dois litros e meio de água enquistada na pleura. Na manhã seguin-
te, ele pediu que lhe trouxessem a máquina para escrever o artigo - que,
como todos os anteriores, era submetido à jornalista Margarida Izar para a
revisão dos incontáveis erros de datilografia. Revisto, o artigo foi lido para
Chateaubriand, que o liberou para publicação. O esforço para sentar-se à
frente da IBM era tanto que no dia seguinte ele abandonou a máquina-
quando quisesse escrever, teria de voltar a ditar os artigos, como no começo
da doença. Alquebrado, Chateaubriand passou provavelmente um dos mais
largos espaços de tempo sem escrever desde que se tornara jornalista - de-
zoito dias. Quando sentiu que recobrara alguma energia, ditou um artigo
elogiando a ação do ministro do Interior, Albuquerque Lima, na Amazônia,
mas abriu-o falando da doença:
Lendo jornais de São Paulo e do Rio, no quarto de hospital em que estou desde
o dia 23 de janeiro, sinto que me seria mais fácil bater à máquina, em minha casa
da rua Polônia, do que ditar, como faço agora, o meu entusiasmo por um em-
preendimento que demonstra a dimensão do pensamento de Costa e Silva e dos
ministros do Interior, das Comunicações e de Minas e Energia [...]
Os artigos vão ficando cada vez menos freqüentes, não é todo dia que
ele tem disposição ou pulmões suficientes para balbuciar centenas de pala-
vras. Em meados de fevereiro, a morte voltou a rondar seu quarto: uma ines-
perada asfixia, provocada por novo acúmulo de líquido na pleura, obriga os
médicos a recorrer a uma traqueostomia. Mas havia um problema: se fosse
submetido a anestesia, os pulmões não teriam força suficiente para manter o
organismo funcionando, e um ataque de insuficiência respiratória poderia
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FERNANDO MORAIS
ser fatal. A incisão na traquéia precisaria ser feita a seco, sem anestesia, e
imediatamente. Quando o bisturi do cirurgião começou a entrar na fina ca-
mada de carne que revestia a traquéia, o hospital inteiro ouviu o urro de dor
que ele emitiu. Feita a incisão, quando os médicos começaram a introduzir a
canaleta metálica - o bird - que permitiria a passagem de ar para o pul-
mão, Emilia viu que lágrimas de dor escorriam dos olhos de Chateaubriand,
molhando as beiradas do travesseiro. Mas ainda não seria daquela vez que
ele ia morrer. Quando voltou a abrir os olhos, viu à sua frente a figura de
d. Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, de quem era amigo mas de
cujas posições políticas, consideradas "esquerdizantes", sempre discordara
publicamente. A saída do hospital, d. Hélder falou aos jornalistas em um
tom que soava a extrema-unção:
- De Chateaubriand se pode dizer o melhor e o pior. Haverá quem
diga horrores pensando nele, mas como não recordar as campanhas memo-
ráveis que ele empreendeu? Dentro do maquiavélico, do chantagista, do cí-
nico, o Pai saberá encontrar a criança, o poeta. Deus saberá julgá-lo.
Como se estivesse se vingando das palavras do religioso, que nem che-
gara a ouvir, Chateaubriand publicaria no dia seguinte um artigo curto e
duro sobre ele, intitulado "A inquietação do padre":
Vejo o arcebispo de Olinda e Recife como a ovelha da madre Igreja que mais e
mais se afasta de seu redil. Não está cumprindo a missão de servo de Deus, un-
gido pelos princípios da eternidade espiritual de sua fé. Açoitado pelas paixões
humanas, precipita-se em fúria, sem pouso, sem paz, num apostolado que seria
o da Nova Igreja do Nordeste. D. Hélder se faz, sem ter a mesma envergadura
de pensamento, um Carlos Lacerda de saias.
O movimento de visitas na ante-sala do quarto 211, para onde fora
transferido a fim de não ser perturbado pelo excessivo ruído da avenida
Paulista, é incessante. São governadores de quase todos os estados, minis-
tros, embaixadores, mulheres, amigos, empregados, condôminos que pas-
sam uma, duas, três vezes ao dia para receber notícias do homenzinho que
do outro lado da parede se esforça para não morrer. No dia 20 de março,
Chateaubriand pede a IBM de volta. Quase sem forças, senta-se e escreve um
pequeno artigo registrando sua alegria por saber que, dali a três meses, se-
ria inaugurado o Museu Regional de Natal, no Rio Grande do Norte. Avisa
a Margarida Izar e a Emília que a máquina podia ser levada definitivamen-
te para a rua Polônia, pois aquele era seu último artigo:
. - Não vou escrever nem ditar mais nada. Acabou.
Amigos e parentes começam a chegar de todos os pontos. Os três filhos
são avisados pelos médicos de que o pai pode estar vivendo seus últimos
momentos. Mas ele ainda resiste. Isa Chateaubriand Sessler, sua sobrinha
que reside nos Estados Unidos, chega com o pneumologista Edward Bergo-
wisky, da Clínica Rusk, de Nova York, mas não há mais nada a fazer. Aimée
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de Heeren vem de Paris sem saber se ainda o encontrará com vida. Na noi-
te de 3 de abril, Chateaubriand pede que o médico José de Souza Fortes vá
ao Rio no dia seguinte como portador de seu voto para a eleição do membro
da cadeira número 2 da Academia Brasileira de Letras, vaga com a morte
de Guimarães Rosa. Disputam a indicação Mário Palmério, Celso Cunha
e Antônio Olinto, e seu voto vai para o mineiro Palmério, que se elege com
23 votos, no terceiro escrutínio. Chateaubriand passa todo o dia 4 de olhos
semicerrados, alimentado por soro em uma veia e recebendo transfusão
permanente de sangue na do outro braço. Às 21h30 deste 4 de abril de 1968
ele morre de colapso cardíaco.
Ao receber a notícia, o governador de São Paulo, Abreu Sodré, decreta
luto oficial de três dias em todo o estado e determina que no dia seguinte não
haverá aulas nas escolas e as repartições públicas não funcionarão. O prefei-
to Faria Lima baixa outro decreto, dando o nome de Assis Chateaubriand ao
MASP. Embalsamado, o corpo vai ser velado até o dia 6 no saguão do prédio
dos Diários Associados, na rua Sete de Abril. Do Rio chega o fardão da Aca-
demia Brasileira de Letras com que ele será sepultado, mas logo se percebe
que aquela roupa, feita para um Chateaubriand de dez anos antes, não cabia
mais no corpo do morto. Caminhando pelas imediações do necrotério do
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FERNANDO MORAIS
hospital, o experiente repórter policial Orlando Criscuolo quer ajudar a re-
solver o problema:
- Isso é assim mesmo. Acontece muito com os mortos que chegam ao
Instituto Médico Legal. A solução é uma só: rasgar a costura das costas do
paletó.
Alguém achou de péssimo gosto sugerir que ele fosse sepultado com um
paletó rasgado - e mais ainda comparar os restos mortais de Chateaubriand
aos cadáveres de indigentes e bandidos com que Criscuolo estava habituado
a lidar diariamente. Mas o repórter insiste - e acabaria sendo dele a solução:
- É sempre assim. Em geral, os familiares do morto também reclamam,
mas acabam aceitando quando se lembram de que ninguém vai perceber: em
geral, o morto não se levanta mais do caixão.
Poucas horas depois de ser transportado para a rua Sete de Abril, o cor-
po começa a ser visitado por uma fila que parecia interminável. Durante três
dias, a guarda de honra de cadetes da Polícia Militar paulista dá passagem a
gente que vem de todos os cantos: de anônimos populares, movidos apenas
pela curiosidade mórbida de ver o rosto do morto que engarrafara o trânsi-
to do centro da cidade, até o vice-presidente da República, Pedro Aleixo (que
representava o presidente Costa e Silva). Desfilam pelo saguão e se amon-
toam em rodinhas; para conversas sussurradas, ministros, ex-presidentes,
embaixadores, jornalistas, artistas, e mulheres e mais mulheres. O sempre co-
medido New York Times publica, no dia 6, um necrológio de meia página, in-
titulado "Morre Chateaubriand, o brasileiro que construiu um império".
Na manhã seguinte à morte, apesar de uma multidão lotar o salão do
Edifício Guilherme Guinle, um silêncio respeitoso toma o ambiente. Até
mesmo os sempre ruidosos repórteres (dos Associados e de todos os demais
jornais concorrentes) procuram falar baixo ao buscar com as autoridades
presentes uma frase sobre o morto ilustre. O único ruído que se ouve é um
surdo murmúrio de vozes. De repente, o silêncio é quebrado pelo estridente
barulho de uma martelada. Em seguida outra, e mais outra e mais outra. To-
dos os olhares convergem para a parede de pé-direito de dois andares onde
a cabeceira do caixão tinha sido encostada. Em uma enorme escada de pe-
dreiro está trepado o diretor do MASP, Pietro Maria Bardi, que continua ba-
tendo pregos na parede - se cair dali ele desabará em cima do morto. Indi-
ferente ao escândalo que provoca, Bardi desce degrau por degrau e chama
alguns operários para pendurar, acima do caixão, três monumentais telas do
museu. No centro da parede, bem em cima da cabeça do morto, vai a Banhis-
ta com o cão grifo, de Renoir, um nu de pouco menos de dois metros de altu-
ra: expondo generosos seios descobertos, a banhista cobre levemente o sexo
com a mão esquerda, tendo na direita o manto que se espalha sobre o chão,
onde o cão está deitado. À esquerda e um pouco mais abaixo da Banhista,
Bardi manda os operários pendurarem um quadro de Ticiano, Retrato do car-
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CHATÔ, O REI DO BRASIL
deal Cristóforo Madruzzo - o organizador do Concílio de Trento -, e do ou-
tro lado, na mesma altura deste, também com quase dois metros de altura,
outro purpurado: é o esplendoroso retrato de corpo inteiro de d. Juan Antô-
nio Litrente, secretário da Inquisição espanhola, pintado por Goya. Nin-
guém mais presta atenção ao morto, senão à movimentação de Bardi, dando
ordens para mover este quadro um pouco para cá, aquele um pouco para lá.
O contraste dos retratos de dois cardeais cercando uma exuberante mulher
nua, sobre a cabeça de um morto, é chocante. É o adeus de Pietro Maria Bar-
di ao amigo de duas décadas e meia de "aventuras e pirataria". Indignado,
um dos diretores dos Diários Associados - um dos "minimaiorais ", como
Bardi se referia a eles - se aproxima do diretor do museu, e lhe tenta pas-
sar uma descompostura:
- Com efeito, professor Bardi! Isto aqui é a câmara-ardente de Assis
Chateaubriand, estamos diante das maiores autoridades deste país, e o se-
nhor me coloca dois religiosos ladeando uma mulher despida? Durante um
velório? Isto é um escândalo, vamos tirar esses quadros daí já!
Bardi abre os braços e responde, também na frente de todos, com fran-
queza desconcertante:
- Mas dottore, esta é a minha última homenagem a Assis Chateau-
briand, vero? Nesta parede estão as três coisas que ele mais amou na vida: o
poder, a arte e mulher pelada.
CHATÔ:
O REI DO BRASIL
FERNANDO MORAIS
EPÍLOGO
· Tanto Maria Henriqueta Barrozo do Amaral quanto seu filho Fernan-
do Chateaubriand já faleceram.
· Jeanne Allard vive no Rio de Janeiro.
· Cora Acuna vive no Rio de Janeiro, casada com Clito Bockel.
· Teresa Chateaubriand Alkmin vive no Rio de Janeiro, casada com
Leonardo Alkmin.
· Gilberto Chateaubriand, um dos maiores colecionadores de arte do
Brasil, vive no Rio de Janeiro e em Porto Ferreira, no interior do estado de
São Paulo, onde administra a Fazenda Rio Corrente.
· Só em seus próprios jornais, Assis Chateaubriand publicou, entre 1924
e 1968,11870 artigos assinados.
· O Condomínio Acionário das Emissoras e Diários Associados é, em
seu conjunto, o sexto maior grupo de comunicações do Brasil. É formado
atualmente por quinze jornais, quinze emissoras de rádio e cinco de tele-
visão (estas repetidoras da Rede Manchete ou do Grupo ser), distribuídos
por catorze cidades de onze estados brasileiros. Cinco de seus diários (o Es-
tado de Minas, de Belo Horizonte, o Diário de Natal e O Poti, de Natal, o Diário
da Borborema, de Campina Grande, e o Correio Braziliense, de Brasília) são
líderes em suas respectivas praças. Além de jornais, rádios e tevês, o
Condomínio é proprietário de uma agência de notícias, uma produtora de
vídeo, uma empresa de informática e uma fazenda no interior de Minas
Gerais. Ao todo, emprega cerca de 6 mil pessoas. O Condomínio continua
funcionando, como planejou seu criador, como uma "federação empresa-
rial" descentralizada. Em julho de 1994, seu presidente era o jornalista Paulo
Cabral de Araújo.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço muito especialmente a Teresa Chateaubriand Alkmin e a Gilberto
Chateaubriand pela paciência, confiança e pela sinceridade que dedicaram a
meu trabalho.
Agradeço aos jornalistas e pesquisadores Afonso Borges, Andréa Licht de
Moraes, Antero Meirelles, Antonio Sérgio Ribeiro, Bebel Prates, Duda Hamilton,
Cássia Fragata, Denise Mendes, Lúcia Hadad, Marcos Cirano, Marina Moraes,
Mário Magalhães, Maya Santana, Moacir Pereira, Oduvaldo Batista, Paula
Schmitt, Sérgio Crês, Sérgio Henrique Sá Leitão e Sissi Dikstejn, sem cuja ajuda
nas pesquisas e nas entrevistas este livro não teria sido possível.
Agradeço a Pinky Wainer, a John W. F. Dulles e a Regina Echeverría e
Hamilton de Almeida Filho (em memória), pela generosa cessão de trechos
essenciais e inéditos de livros que estavam produzindo - respectivamente as
memórias de Samuel Wainer, a biografia de Carlos Lacerda e a história da famí-
lia Ermíriu de Moraes.
Agradeço aos entrevistados cujos nomes estão relacionados a seguir - par-
ticularmente aos amigos e familiares de Assis Chateaubriand pela generosa ces-
são de parte do material iconográfico que ilustra este livro.
Agradeço às equipes do croc da Fundação Getúlio Vargas, Acervo
Fotográfico do Jornal Estndo de Minos, do Acervo Histórico do Jornal O Estado de
S. Paulo, do Arquivo do Jornn! do Commercio, do jornal O Imparcinl, de Sãn Luís,
Maranhão, do Arquivo Público do Estado de São Paulo, do Arquivo Edgard
Leuenroth da Unicamp, do Mitsui O. S. K. Lines Ltd. Central Archives, da
Biblioteca dn Senado Federal, da Biblioteca Pública Municipal de São Paulo
Mário de Andrade, da Cinemateca Brasileira, do Projeto Portinari, do Museu da
Imagem e do Som (sr), da Biblioteca e Arquivo do Museu de Arte de São Paulo
Assis Chateaubriand - tnsi, do Arquivo Nacional, da Fundação Casa de José
Américo, do British Foreign Office Public Records e a Abel Cardoso Júnior,
Adylla Rocha Rabelo, Ady Siqueira de Noronha, Almerinda Freitas de Carvalho,
Álvaro Moya, Ana Lúcia Correa da Silva, Ana Maria de Castro, Ana Paula
Quadros, Antonio Candido de Mello e Souza, Antonio Pedro Tota, Benedito
Buzar, Beth Loeb, Bia Albuquerque, Carlos Augusto Calil, Carlos Freitas, Carlos
Eduardo Correa da Fonseca, Carlos Nascimento, Carlos Rangel, Carlos Roberto
Viana, Célia Valente, Celso Lafer, Claudio Marcondes, Cosette Alves,
D'Allembert Jaccoud, Danilo Gomes, Devanir Barbosa Paes, Eduardo Maga-
699
#
I* LItNANPU MOI7AlS
lhàes, Eduardo Matarazzo Suplicy, Elio Gaspari, Elisa Braga, Elisabeth Me-
dugno, Erasmo de Freitas Nuzzi, Eric Nepomuceno, Eugênia Gorini Esmeraldo,
Eurico Andrade, Fábio Magalhães, Fernando Sabino, Fernando Soares de Ca-
margo, Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, Francesc Petit, Francisco Mattos,
Francisco Vidal Luna, Frei Betto, Gilberto Mansur, Ginconda Jaccoud, Gláucia
Regina Altieri, Glauco Carneiro, Hélio de Almeida, Hélio Bacha, Hélio Dias de
Moura, Humberto Mesquita, Ivani di Grazia Costa, Ivoncy loschpe, Ivonete da
Silva, J. Toledo, Jamile Piazenski, Jean-Pierre Manzon, João Baptista Lino Neto,
Jorge Yunes, José Antnnio Botezelli Pelão, José Maria Rabelo, )osé Nêumanne
Pinto, José Paulo da Silva Telles, Josélio Gondim, Josimar Melo, Josué Montello,
Leonor Amãrante, Luís Fernando Mercadante, Luís Forte, Luís Gallon, Luís
Milanese, Manuel Alceu Afonso Ferreira, Marcella de Soùzà Bockel, Márcia
Siqueira Costa, Marcos Jorge, Maria Zélia Galvào de Almeida, Marina Maluf,
Mário César de Carvalho, Marisilda Valente, Mestre Ruland, Michel Cecílio,
Nilson Moulín, Norton Rapesta, Odin Andrade, Pedro ]ack Kapeller, Rafael
Messias, Raimundo Buzar, Regastein Rocha; Reinaldo Moráis; Ricardo
Maranhão, Ricardo Ohtake, Romeu Tuma, Salomão Schwartzman, Silvana
Chapchap Costa, Silvana Ribeiro dos Santos, Sérgio Telaròlli, Severo Gomes (em
memória), Suetomi Igawa, Teresa Quintella, Túta Magalhães., Susana Camargo,
Valandro Keating, Vera Mesquita Ulbricht, Vládimir Sácchetta e Wagner
Homem.
Agradeço a Moacir Werneck de Castro e a Ricardo A. Setti pelá rigorosa lei-
tura dos originais e pelas incontáveis contribuições que deram para melhorá-los.
Por último, mas não menos importante, agradeço aos reitores Carlos Vogt e
José Martins Filho, da Unicamp, à Sharp do Brasil, e a Luiz Schwarcz, da Com-
panhia das Letras.
Este livro só foi possível graças a bolsas concedidas ao autor pelo Programa
do Artista Residente, da Universidade de Campinas (Unicamp), e pelas Orga-
nizações Mappin. As pesquisas e entrevistas foram armazenadas e o texto pro-
cessado em um microcomputador da Itautec Informática.
700
#
PERSONAGENS ENTREVISTADOS
/
- Aderbal Figueiredo
- Aimée de Heeren
- Alberto André
- Alfredo Machado
- Álvaro Vieira
- Alzira Vargas do Amaral Peixoto
- Amaral Neto
- Amauri Ribeiro
- Andrea Ippolito
- Angelo Regato
- Antonio Callado
- Antonio Carlos Vieira Christo
- Antonio de Barros Ulhoa Cintra
- Antunio Sanchez Galdeano
- Armando de Oliveira
- Armando Figueiredo
- Augusto Rodrigues
- Áurea Rizzini
- Aurélio Chateaubriand
- Aurélin Ferreira Guimarães
- Austregésilo de Athayde
- Barbosa Lima Sobrinho
- Barboza Ezequiel Bichara
- Benedito Ribeiro
- Betty Chateaubriand
- Bibi Ferreira
- Calazans Fernandes
- Camilo Teixeira da Costa
- Carlos Alves de Souza .
- Carlos Castelo Branco
- Carlos Escobar Filho
- Carlos de Freitas
- Carlns Gaspar
- Cassiano Gabus Mendes
- Cássio Ravaglia
- Celso Testa
- César Martorano
- Cilda Chateaubriand
- Cláudio Candiota
- Cláudio Vilas Boas
- Correia de Araújo
- Dario de Almeida Magalhães
- Dermival Costa Lima
- Dias Menezes
- Drault Ernanny
- Edmar Morel
- Edmundo Blundi
- Edmundo Monteiro
- Elisabeth Banas
- Emanuel Lobo
- Emília Araúna
- Enio Rochenbach
- Entalhador Batista
- Epitácio Soares
- Ernani do Amaral Peixoto
- Eugênio Silva
- Ewaldo Dantas Ferreira
- Fernando de Barros
- Fernando Severino
- Franklin de Oliveíra
- Freddy Chateaubriand
- Frederico Renato Mottola
- Freitas Nobre
- Genival Tourinho
- Gilberto Chateaubriand
- Guffredo Silva Telles
- Guilherme Figueiredo
- Guilhermina Amato
701
#
Ff RNANDO MORAIS
- Hans Gert Oscar Flues
- Hélder Martins de Moraes
- Helena Lundgren
- Hélio Fernandes
- Henrique de Morais Natividade
- Hilda Carvalho
- Hindenburgo Pereira Diniz
- Honorato Cândido de Oliveira
- Hugn Gouthier
- Humberto Gargiulo
- Ibanor Tartarotti
- Ibrahim Sued
- Israel Klabin
- Jânio Quadros
- Jean Manzon
- João Calmon
- Jnào de Scatimburgo
- Juàu Gundim
- João Í'runi
- Joaquim de Matos Gurgel
- Joaquim Mendnnça
- Joaquim Monteiro de Carvalhu
- Joaquim Pinto Nazário
- Joel Silveira
- Jorge Ferreira
- José Albertn Gueirus
- Jnsé Ayres Mnnteiro
- José Chamilete
- José de Snuza Fortes
- Jusé Ermírio de Moraes Filho
- José Guilherme Mendes
- José Maia
- José Maria Hnmem de Montes
- José Medeiros
- Jnsé Moreira da Fonte
- José Pires Sabóia
-José Sarney
- Júlin de Mesquita Neto
- Juraci Magro
- Juraci Montenegro Magalhães
- Liliana Dubois
- Lina Bo Bardi
- Lennardo Alkmin
- Lucídin Castelo Branco
- Lúcio Meira
- Luís Carlos Barreto
- Luís Carlos Lisboa
- Luís Carlos Prestes
- Luís Gallon
- Luís Hossaka
- Luís Telles
- Manuel Gomes Maranhão
- Lily Whitaker Gnndim de Oliveira
- Maria da Penha Miiller Carioba
- Maria Portinari
- Mário de Moraes
- Mário Leão Ramos
- Marizia Pnrtinari
- Martinho de Luna Alencar
- Maurício Loureiro Gama
- Mauro Salles
- Millnr Fernandes
- Milton Senna
- Mino Carta
- Moacir Werneck de Castro
- Moziul Moreira Lima
- Murilo Antunes Alves
- Napoleão de Carvalho
- Nabor Cayres de Brito
- Neiva Moreira
- Nelbe Chateaubriand
- Nelson Werneck Sodré
- Nertan Macedo
- Nilo Neme
- Odete da Silva Costa
- Olavo Drummond
- Orlando Marques da Silva
- Orlando Vilas Boas
- Otávio Frias de Oliveira
- Otto Lara Rrsende
- Paulo Albuquerque
- Paulo Bruno Figueiredo
- Pauln Cabral de Araújo
- Paulo Canabrava Filho
- Paulo Niemeyer
- Pauln Nonato
- Paulo Sampaio
- Pedro Aguinaldo Fulgêncio
702
#
f HATÔ, O REI DO BRASIL
- Pietro Maria Bardi
- Rafael de Almeida Magalhães
- Raimundo Bogéa
- Rachel de Queiroz
- Reginaldo Te116
- Régis Cardoso
- Reimy Hunda
- Renato Castelo Branco
- Roberto de Abreu Sodré
- Roberto Marinho
- Rodolfo Lima Martensen
- Rodrigo de Andrade Médicis
- Rubem Braga
- Rubens Furtado
- Salviano Nogueira
- Saulo Gomes
- Say Marques
- Sebastião Garcia de Aguiar
- Segundo Brasileiro dos Reis
- Silvia Bandeira de Melo
- Teresa Chateaubriand Alkmin
- Vera Faria
- Vicente Nicolela
- Walter Clark
- Walter Durst
- Walter Forster
- Walther Mnreira Salles
- Wilson Frade
703
#
BIBLIOGRAFIA
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O REI DO BRASIL
PROJETO GRÁFICO
HÉLIO DE ALMEIDA
COMPANHIA DAS LETRAS
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<foto>
Com o marechal Castelo Branco
<foto>
Com o marechal Cândido Rondon
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Com Getúlio Vargas
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Com Juscelino Kubitschek
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Com Vittorio Emanuele, ex-rei da Itália
<foto>
Com Walther Moreira Salles (à esquerda)
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Com dom Hélder Câmara
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Com Júlío Mesquita Filho
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Com o presidente Eurico Dutra
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Com Winston Churchill
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Com Nelson Rockefeller
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Com Francisco "Baby" Pignatari
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Com José Maria Alkmin
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Com Leonel Brizola
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Com o ministro Salgado Filho
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Com Carlos Lacerda
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Com Tancredo Neves e Benedito Valadares
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Com José Américo de Almeida
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Com Juraci Magalhães
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Com Ulysses Guimarães
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Com Plinio Salgado
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Com Grremio Lunardelli
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Com Jânio Quadros e Faria Lima
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Com o presidente Café Filho
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Com o presidente João Goulart (à esquerda)
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<foto>
Com José Maria Whitaker
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Cum David Rockfeller
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Com Cordeiro de Farias
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Com o governador Antonio Balbino
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Com Antonio Carlos Ribeiro de Andrada
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Com o coronel Vernon Walters
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Com Jusé Ermirio de Morais (à esquerda)
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Com Ademar de Barros
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Xatô, o rei do Brasil - Fernando Morais.txt
Nota: Para proteger de vírus de computador, os programas de correio de electrónico podem impedir o envio e a recepção de certos tipos de anexos de ficheiros. Verifique as definições de segurança de correio electrónico para determinar como são manipulados os anexos.
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