CÍRCULO DO LIVRO S.A. Caixa postal 7413
São Paulo, Brasil
Edição integral Título do original: "Shogun"
Copyright -James Clavell
Tradução de Manoel Paulo Ferreira
Capa de Aldo Ricchiero Filho
Licença editorial para o Círculo do Livro
por cortesia da Editorial Nórdica Ltda.
É proibida a venda a quem não pertença ao Círculo
Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado em oficinas próprias
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CAPITULO 38
Acompanhado de Naga, Blackthorne arrastava-se desconsoladamente colina abaixo, na direção das duas figuras sentadas
sobre futons no centro do anel de guardas. Para além dos guardas
estavam os contrafortes das montanhas que se elevavam para um
céu coberto de nuvens. O dia estava sufocante. Sua cabeça doía
devido à tristeza dos últimos dias, devido à preocupação com
Mariko, e devido a fazer muito tempo que só podia conversar em
japonês. Agora a reconhecia e parte da sua infelicidade desapareceu.
Fora muitas vezes à casa de Omi ver Mariko ou se informar
sobre ela. Os samurais o fizeram sempre dar meia-volta, polida
mas firmemente. Omi lhe dissera como tomodashi, amigo, que
ela estava bem. - Não se preocupe, Anjin-san. Compreende? -
Sim - dissera ele, compreendendo apenas que não podia vê-Ia.
Então fora chamado por Toranaga e quisera lhe dizer muita
coisa, mas por causa da sua falta de palavras falhara em fazer
outra coisa que não irritá-lo. Fujiko fora ver Mariko várias vezes.
Quando voltava sempre dizia que Mariko estava bem, acrescentando o inevitável "Shinpai suruna, Anjin-san. Wakarimasu? Não
se preocupe, compreende?"
Com Buntaro fora como se nada houvesse jamais acontecido.
Esboçavam saudações corteses quando se encontravam durante o
dia. Além de usar ocasionalmente a casa de banho, Buntaro era
como qualquer outro samurai em Anjiro, nem amistoso nem
inamistoso.
Do amanhecer ao pôr-do-sol Blackthorne fora acossado pelo
treinamento acelerado. Tivera que eliminar a própria frustração
enquanto tentava ensinar e se esforçava por aprender a língua.
Ao crepúsculo estava sempre extenuado. Acalorado, transpirando
e encharcado de chuva. E sozinho. Nunca se sentira tão só, tão
consciente de não pertencer àquele mundo estranho.
Então houvera o horror que começara três dias atrás. Fora
um longo dia úmido. Ao pôr-do-sol ele cavalgara exausto para
casa e imediatamente sentira que havia algum problema permeando pela casa. Fujiko o saudara nervosamente.
- Nan desu ka?
Ela respondera em voz baixa, longamente, de olhos baixos.
- Wakarimasen. Nan desu ka? - perguntou ele de novo,
impaciente, a fadiga deixando-o irritável.
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Ela o chamara com um gesto para o jardim. Apontou para
os beirais do telhado, mas a armação lhe pareceu sólida o bastante. Mais palavras e sinais, e finalmente lhe ficara claro que ela
estava apontando para o local onde ele pendurara o faisão.
- Oh, esqueci disso! Watashi. . . - Mas não conseguiu se
lembrar de como dizer, então se limitou a dar de ombros, exausto.
- Wakarimasu. Nan desu kiji ka? Compreendo. Que tal o faisão?
Os criados o espiavam de portas e janelas, visivelmente petrificados. Ela falou de novo. Ele se concentrou, mas as suas palavras não fizeram sentido algum.
- Wakarimasen, Fujiko-san. Não compreendo.
Ela tomou fôlego profundamente, depois, trêmula, imitou
alguém removendo o faisão, levando-o embora e enterrando-o.
- Ahhhh! Wakarimasu, Fujiko-san. Wakarimasu! Estava ficando estragado? - perguntou. Como não sabia as palavras em
japonês, apertou o nariz e fez como se estivesse sentindo mau
cheiro.
- Hai, hai, Anjin-san. Dozo gomen nasal, goinen nasai.
- Ela emitiu o som de moscas e, com as mãos, pintou o quadro
de uma nuvem zumbindo.
- Ah so desu! Wakarimasu. - Em outra ocasião ele se teria
desculpado e, se conhecesse as palavras, teria dito: sinto muito
pelo inconveniente. Em vez disso sacudiu os ombros, aliviou a dor
nas costas, e resmungou: - Shigata ga nai - querendo apenas
mergulhar no êxtase do banho e da massagem, a única alegria que
tornava a vida possível. - Que vá para o inferno - disse em
inglês, voltando-se. - Se eu tivesse estado aqui durante o dia,
teria notado isso. Que vá para o inferno!
- Dozo, Anjin-san?
- Shigata ga nai - repetiu mais alto.
- Ah so desu, arigato goziemashita.
- Tare toru desu ka? Quem o pegou?
- Ueki-ya.
- Oh, aquele velho sodomita! - Ueki-ya, o jardineiro, o
velho gentil e sem dentes que cuidava das plantas com as mãos
amorosas e embelezava o jardim. - Yoi. Morte kuru Ueki-ya. Ótimo, vá buscá-lo.
Fujiko meneou a cabeça. Seu rosto se tornara branco
como giz.
- Ueki-ya shinda desu, shinda desu! - sussurrou ela.
- Ueki-ya ga shindato? Donoyoni? Doshité? Doshité shindanoda? Como? Por quê? Como ele morreu?
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A mão dela apontou para o lugar onde o faisão estivera e
falou muitas palavras gentis e incompreensíveis. Depois imitou o
corte de uma espada.
- Jesus Cristo! Deus! Você condenou aquele velho à morte
por causa de um maldito faisão fedorento?
Imediatamente todos os criados se precipitaram para o jardim
e caíram de joelhos. Colocaram a cabeça no pó e se imobilizaram,
até os filhos do cozinheiro.
- Que diabos está acontecendo? - Blackthorne estava quase
encolerizado.
Fujiko esperou estoicamente até que estivessem todos lá, então também se ajoelhou e se curvou, como samurai, não como
camponesa. - Gomen nasai, dozo gomen na.. .
- Sífilis nos seus gomen nasai! Que direito tinha você de
fazer isso? Hein? - e começou a cobri-la de impropérios, odiosamente. - Por que, em nome de Cristo, não me perguntou
antes? Hein?
Ele lutou para recobrar o controle, cônscio de que todos os
seus criados sabiam que legalmente ele podia retalhar Fujiko e
todos eles em pedaços ali no jardim por terem lhe causado tanto
dissabor, ou por nenhuma razão em absoluto, e que nem o
próprio Toranaga poderia interferir no modo como ele conduzia
a sua casa.
Viu que uma das crianças tremia de terror e pânico. - Jesus
Cristo do paraíso, dê-me forças. . . - Agarrou-se a um dos pilares
para se firmar. - A culpa não é sua - exclamou, a voz estrangulada, sem perceber que não estava falando japonês. - É dela!
É você! Sua cadela assassina!
Fujiko levantou os olhos lentamente. Viu o dedo acusador
e o ódio no rosto dele. Sussurrou uma ordem à criada, Nigatsu.
Nigatsu balançou a cabeça e começou a suplicar.
- Iina!
A criada saiu correndo.- Voltou com a espada mortífera,
lágrimas escorrendo-lhe pela face. Fujiko pegou a espada e estendeu-a a Blackthorne com as duas mãos. Falou e, embora ele não
conhecesse todas as palavras, sabia o que ela estava dizendo.
- Sou responsável, por favor, tire-me a vida porque eu o desagradei.
- IYÉ! - Ele agarrou a espada e atirou-a longe. - Acha
que isso vai trazer Ueki-ya de volta à vida?
Então, de repente, percebeu o que tinha feito e o que estava
fazendo agora. - Oh, Jesus...
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Foi embora. Em desespero dirigiu-se para o penhasco acima
da aldeia, perto do santuário que ficava ao lado do velho cipreste,
e chorou.
Chorou porque um homem morrera desnecessariamente e
porque sabia agora que fora ele quem o assassinara. - Senhor
Deus, perdoe-me. Sou o responsável, não Fujiko. Eu o matei.
Ordenei que ninguém tocasse no faisão além de mim. Pergunteilhe se todos haviam compreendido e ela disse que sim. Dei a
ordem com seriedade zombeteira, mas isso não importa agora.
Eu dei as ordens, conhecendo a lei deles e sabendo qual era o
costume. O velho desrespeitou a minha ordem estúpida, então o
que mais Fujiko-san podia fazer? Sou eu quem deve ser acusado.
Com o tempo as lágrimas foram se esgotando. Era noite
alta quando ele retornou a casa.
Fujiko o esperava como sempre, mas sozinha. A espada
estava atravessada no colo dela. Ofereceu-a a ele. - Dozo ...
dozo, Anjin-san.
- Iyé - disse ele, pegando a espada do modo como se
devia pegar uma espada. - Iyé, Fujiko-san. Shigata ga nai, neh?
Karma, neh? - Tocou-a com a mão como desculpas. Sabia que
ela tivera que suportar o pior pela estupidez dele.
As lágrimas dela jorraram. - Arigato, arigato go-goziemashita, Anjin-san - disse ela entrecortadamente. - Gomen nasal ...
O coração dele enterneceu-se.
Sim, pensou Blackthorne com grande tristeza, sim, mas isso
não o desculpa nem elimina a humilhação dela, ou traz Ueki-ya
de volta à vida.. Você deve ser acusado. Devia ter pensado
melhor ...
- Anjin-san! - disse Naga.
- Sim? Sim, Naga-san? - Ele se arrancou do seu remorso
e olhou para o jovem que caminhava ao seu lado. - Desculpe,
o que disse?
- Eu disse que esperava ser seu amigo.
- Ah, obrigado.
- Sim, e talvez o senhor... - Houve uma confusão de
palavras que Blackthorne não compreendeu.
- Por favor?
- Ensinar, neh? Compreende "ensinar"? Ensinar sobre o
mundo?
- Ah, sim, desculpe. Ensinar o quê, por favor?
- Sobre terras estrangeiras... terras lá de fora. O mundo, neh?
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- Ah, compreendo agora. Sim, tentar.
Estavam perto dos guardas agora. - Começar amanhã,
Anjin-san. Amigos, neh?
- Sim, Naga-san. Tentar.
- Ótimo. - Muito satisfeito, Naga assentiu. Quando chegaram junto aos samurais, Naga ordenou-lhes que saíssem do
caminho, fazendo sinal a Blackthorne que prosseguisse sozinho.
Ele obedeceu, sentindo-se muito só no círculo de homens.
- Ohayo, Toranaga-sama. Ohayo, Mariko-san - disse, juntando-se a eles.
- Ohayo, Anjin-san. Dozo suwaru. Bom dia, Anjin-san, por
favor, sente-se.
Mariko sorriu-lhe. - Ohayo, Anjin-san. Ikaga desu ka?
-- Yoi, domo. - Blackthorne retribuiu-lhe o olhar, muito
contente de que ela estivesse ali. - A sua presença enche-me de
alegria, de grande alegria - disse em latim.
- E a sua a mim ... é muito bom vê-lo. Mas há uma
sombra no senhor. Por quê?
- Nan ia? - perguntou Toranaga.
Ela lhe contou o que fora dito. Toranaga grunhiu, depois
falou.
- Meu amo diz que o senhor parece preocupado, Anjin-san.
Devo concordar com ele. Ele pergunta o que o está perturbando.
- Não é nada. Domo, Toranaga-sama. Nani-mo. Não é
nada.
- Nan ia? - perguntou Toranaga diretamènte. - Nan ia?
Obedientemente Blackthorne respondeu de imediato: Ueki-ya - disse. - Hai, Ueki-ya.
- Ah so desu! - Toranaga falou longamente a Mariko.
- Meu amo diz que não há necessidade de se preocupar
com o Velho Jardineiro. Ele me pede que lhe diga que oficialmente está tudo resolvido. O Velho Jardineiro compreendeu perfeitamente o que estava fazendo.
- Eu não compreendo.
- Sim, seria muito difícil para o senhor, mas, veja, Anjinsan, o faisão estava apodrecendo ao sol. As moscas estavam
enxameando terrivelmente. A sua saúde, a saúde da sua consorte
e a de toda a sua casa estavam sendo ameaçadas. Além disso,
sinto muito, tinha havido algumas queixas muito cautelosas e particulares do criado-chefe de Omi-san, e de outros. Uma das nossas
regras mais importantes é que o indivíduo não pode nunca perturbar a wa, a harmonia, do grupo, lembra-se? Por isso alguma
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coisa tinha que ser feita. Veja, a decomposição, o mau cheiro da
decomposição, é revoltante para nós. É o pior odor do mundo
para nós, sinto muito. Tentei lhe dizer, mas... bem, é uma das
coisas que nos deixam a todos um pouco malucos. O seu criadochefe ...
-- Por que alguém não me procurou imediatamente? Por
que alguém simplesmente não me disse? - perguntou Blackthorne. -- O faisão não tinha importância alguma para mim.
- O que havia a dizer? O senhor tinha dado ordens. É o
cabeça da sua casa. Eles não conheciam os seus costumes nem o
que fazer, senão isso, procure entender o dilema de acordo com
os nossos costumes. - Ela falou um instante a Toranaga, explicando o que Blackthorne dissera, depois voltou-se para ele de
novo. - Isso o está afligindo? Quer que eu continue?
- Sim, por favor, Mariko-san.
- Tem certeza?
- Sim.
- Bem, então, o seu criado-chefe, o Pequeno Cozinheiro
Dentuço, convocou uma reunião dos seus criados, Anjin-san.
Mura, o chefe da aldeia, foi convidado a participar oficialmente.
Decidiu-se que os etas da aldeia não podiam ser solicitados a
levá-lo embora. Tratava-se apenas de um problema doméstico.
Um dos criados tinha que pegá-lo e enterrá-lo, apesar de o senhor
ter dado ordens absolutas de não mexerem no faisão. Obviamente
a sua consorte era forçada pelo dever a providenciar que suas
ordens fossem obedecidas. O Velho Jardineiro pediu para ter
permissão de levá-lo embora. Ultimamente ele vinha vivendo e
dormindo com grande sofrimento por causa do abdome, e achava
muito fatigante ajoelhar-se, carpir e plantar, e não ,nseguia
fazer esse trabalho de modo satisfatório para si mesmo. O Terceiro Cozinheiro Assistente também se ofereceu, dizendo que era
muito jovem e estúpido, e que tinha certeza de que a vida não
contava nada diante de um assunto tão grave. Finalmen:a o Velho
Jardineiro recebeu a honra. Realmente foi uma. grande honra,
Anjin-san. Com grande solenidade, todos se curvaram para ele,
que retribuiu a reverência, e alegremente levou a coisa embora e
enterrou-a para grande alívio de todos.
"Quando voltou, dirigiu-se diretamente a Fujiko-san e disselhe o que fizera, que desobedecera à sua lei, neh? Ela lhe agradeceu por remover o perigo, depois dissê-lhe que esperasse. Procurou-me para pedir conselho e perguntou-me o que devia fazer.
O assunto fora resolvido formalmente, portanto teria que ser
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tratado formalmente. Eu lhe disse que não sabia, Anjin-san.
Perguntei a Buntaro-san, mas ele também não sabia. Era complicado, por sua causa. Então ele perguntou ao Senhor Toranaga.
O Senhor Toranaga viu a sua consorte pessoalmente." Mariko
voltou-se para Toranaga e contou-lhe em que ponto da história
se encontrava, conforme ele solicitara.
Toranaga falou rapidamente. Blackthorne observava-os, a
mulher tão pequena, amável e atenta, o homem compacto, pétreo,
o sash apertado em torno da grande cintura. Toranaga não falava
com as mãos como muitos faziam, mas mantinha-as imóveis, a
esquerda apoiada na coxa, a outra sempre no punho da espada.
- Hai, Toranaga-sarna. Hai. - Mariko olhou para Blackthorne e continuou. - Nosso amo pede-me que lhe explique,
sinto muito, que se o senhor fosse japonês não teria havido
dificuldade, Anjin-san. O Velho Jardineiro simplesmente teria se
dirigido ao cemitério para receber sua libertação. Mas, por favor,
perdoe-me, o senhor é um estrangeiro, embora o Senhor Toranaga o tenha feito hatamoto, um dos seus vassalos pessoais, e
era uma questão de decidir se o senhor era legalmente samurai
ou não. Fico honrada em lhe dizer que ele estabeleceu que o
senhor é samurai e tem direitos de samurai. Portanto foi tudo
resolvido imediatamente e simplificado. Um crime tinha sido
cometido. Suas ordens tinham sido deliberadamente desobedecidas. A lei é clara. Não há opção. - Ela estava séria agora.
- Mas o Senhor Toranaga conhece a sua suscetibilidade a matanças, então, para poupar-lhe o sofrimento, ordenou pessoalmente a um de seus samurais que enviasse o Velho Jardineiro
para o Vazio.
- Por que alguém não me perguntou antes? Aquele faisão
não significava nada para mim.
- O faisão não tem nada a ver, Anjin-san explicou ela.
- O senhor é o cabeça da casa. A lei diz que nenhum membro
da sua casa pode desobedecer-lhe. O Velho Jardineiro deliberadamente infringiu a lei. O mundo todo cairia em pedaços se
as pessoas fossem autorizadas a desconsiderar a lei. O seu ...
Toranaga interrompeu e falou com ela. Ela ouviu, respondeu
a algumas perguntas, depois ele lhe fez sinal que continuasse.
- Hai. O Senhor Toranaga quer que eu lhe assegure que
providenciou pessoalmente para que o Velho Jardineiro tivesse
a morte rápida, indolor e honrada que merecia. Até emprestou
ao samurai a sua própria espada, que é muito afiada. E devo
dizer-lhe que o Velho Jardineiro ficou muito orgulhoso de, em
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seus dias de outono, ser capaz de ajudar a sua casa, Anjin-san,
orgulhoso por ter ajudado a estabelecer o seu status de samurai
diante de todos. Acima de tudo ficou orgulhoso com a honra que
lhe foi prestada. Os executores públicos não foram utilizados,
Anjin-san. O Senhor Toranaga quer que eu deixe isso bem claro
para o senhor.
- Obrigado, Mariko-san. Obrigado por deixar claro. -
Blackthorne voltou-se para Toranaga, curvou-se muito corretamente. - Domo, Toranaga-sama, domo arigato. Wakarimasu.
Domo.
Toranaga retribuiu a mesura adequadamente. - Yoi, Anjinsan. Shinpai suru monojanai, neh? Shigata ga nai, neh? Ótimo.
Agora não se preocupe, hein? O que poderia fazer, hein?
- Nani-mo. Nada.
Blackthorne respondeu às perguntas que Toranaga lhe fez
sobre o treinamento dos mosquetes, mas nada do que disseram o
atingiu. Sua mente vacilava sob o impacto do que lhe haviam
informado. Ele insultara Fujiko diante de todos os criados e ofendera a confiança da criadagem, quando Fujiko fizera apenas o
que era certo e o mesmo fizeram os criados.
Fujiko era irrepreensível. São todos irrepreensíveis. Menos eu.
Não posso desfazer o que foi feito. Nem a Ueki-ya nem a
ela. Ou a eles.
Como posso viver com essa vergonha?
Sentou-se de pernas cruzadas diante de Toranaga, a leve
brisa do mar batendo-lhe no quimono, espadas ao sash. Entorpecido, ouvia e respondia e nada tinha importância. A guerra se
aproxima, dizia ela. Quando? perguntava ele. Muito em breve,
dizia ela, portanto o senhor deve partir comigo imediatamente,
deve acompanhar-me parte do trajeto, Anjin-san, porque vou para
Osaka, mas o senhor vai seguir para Yedo, por terra, a fim de
preparar o seu navio para a guerra ...
Repentinamente o silêncio foi colossal.
Então a terra começou a tremer.
Blackthorne sentiu os pulmões prestes a explodir, e cada
fibra do seu ser gritando em pânico. Tentou se levantar, mas
não conseguiu, e viu que todos os guardas estavam igualmente
indefesos. Toranaga e Mariko desesperadamente se agarravam
ao chão com as mãos e pés. O estrondo retumbante, catastrófico,
vinha da terra e do céu. Rodeou-os, crescendo sempre mais, até
seus tímpanos estarem prestes a se fender. Eles se tornaram parte
do delírio. Por um instante o troar cessou, o abalo continuando.
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Ele sentiu o vômito elevando-se, sua mente incrédula guinchando
que aquilo era terra, onde era firme e seguro, não o mar, onde
o mundo balançava a cada momento. Cuspiu para limpar o gosto
repugnante na boca, agarrando-se à terra trêmula, com ânsias de
vômitos cada vez mais fortes.
Uma avalanche de rocha começou a despencar da montanha
ao norte, inundando o vale com o estrondo e aumentando o tumulto. Parte do acampamento dos samurais desapareceu. Blackthorne tateou o chão com as mãos e joelhos, Toranaga e Mariko
fazendo o mesmo. Ouviu a si mesmo gritando, mas nenhum som
pareceu sair dos seus lábios ou dos deles.
O tremor parou.
A terra estava firme de novo, firme como sempre estivera,
firme como sempre deveria estar. As mãos e joelhos dele, e o
corpo, tremiam descontroladamente. Ele tentou imobilizá-los e
recuperar o fôlego.
Então novamente a terra se pôs a rugir. O segundo abalo
começou. Foi mais violento. A terra rasgou-se na extremidade
do altiplano. A fenda escancarou-se na direção deles a uma
velocidade inacreditável, passou a cinco passos de distância, e
seguiu em frente. Os olhos incrédulos de Blackthorne viram
Toranaga e Mariko cambaleando à beira da fissura onde deveria
haver chão sólido. Como que num pesadelo, ele viu Toranaga,
mais próximo da goela, começar a perder o equilíbrio. Saiu do
seu estupor, deu um pulo para a frente. Sua mão direita agarrou
o sash de Toranaga, a terra tremendo como uma folha ao vento.
A fenda tinha vinte passos de profundidade e dez de largura
o tresandava a morte. Lama e rochas se precipitavam para o
fundo, arrastando Toranaga e ele consigo. Blackthorne lutou para
se agarrar com pés e mãos, aflito por ajudar Toranaga, quase
puxado para baixo, para o abismo. Ainda parcialmente atordoado, Toranaga cravou os artelhos na face da parede e, meio
arrastado meio carregado por Blackthorne, arrancou-se para fora.
Ambos caíram deitados ofegantes. em segurança.
Nesse momento houve outro abalo.
A terra fendeu-se de novo. Mariko gritou. Tentou se arrastar
para fora do caminho, mas essa nova racha engoliu-a. Desesperado
Blackthorne rastejou até a borda, os abalos subseqüentes fazendo-o perder o equilíbrio. Na beirada, olhou para baixo. Ela tiritava
sobre uma saliência alguns pés abaixo enquanto o chão balançava
o o céu parecia vir abaixo. O abismo tinha trinta pés de profundidade, dez de largura. A borda desintegrou-se sob os pés dele.
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Ele se deixou deslizar, lama e pedras quase o cegando, e agarrou
Mariko, puxando-a para a segurança de outra saliência. Juntos
lutaram para se equilibrar. Um novo choque. A saliência cedeu
quase totalmente e eles se viram perdidos. Então a mão de ferro
de Toranaga agarrou-o pelo sash, detendo-lhes o escorregão para
o inferno.
- Pelo amor de Cristo... - gritou Blackthorne, os braços
quase arrancados das articulações enquanto segurava Mariko e
lutava com os pés e a mão livre à procura de pontos de apoio.
Toranaga o manteve firme até se encontrarem numa estreita
saliência de novo, depois o sash se rompeu. A pausa de um momento no tremor deu tempo a Blackthorne de trazer Mariko
para a saliência, detritos chovendo sobre eles. Toranaga saltou
para a segurança, gritando-lhe que se apressasse. O abismo soltou
um lamento e começou a se fechar, Blackthorne e Mariko ainda
no fundo de sua goela. Toranaga já não podia ajudar. O terror de
Blackthorne emprestou-lhe uma força inumana e de algum modo
ele conseguiu arrancar Mariko do túmulo e empurrá-la para cima.
Toranaga agarrou-a pelo pulso e içou-a para a borda. Blackthorne
arrastou-se atrás dela, mas cambaleou para trás quando parte de
sua parede desabou. A parede oposta rangia aproximando-se.
Lama e pedras despencavam dela. Por um instante ele pensou
estar liquidado, mas conseguiu rastejar às apalpadelas para fora
da sua sepultura. Deitou-se na borda que estremecia, os pulmões
tragando ar, incapaz de rastejar para fora, as pernas dentro
da fenda. A brecha estava se fechando. E parou - com uma
boca de seis passos e oito de profundidade.
O ribombar cessou totalmente. A terra firmou-se. Fez-se silêncio.
De quatro, indefesos, eles esperaram que o horror recomeçasse. Blackthorne começou a se levantar, o suor pingando.
- Iyé - Toranaga fez-lhe sinal que ficasse no chão, seu
rosto uma sujeira só, um corte cruel na têmpora, no ponto onde
sua cabeça se chocara com uma rocha.
Estavam todos resfolegando, o peito arfando, bile na boca.
Os guardas estavam se recobrando. Alguns começaram a correr
na direção de Toranaga.
- Iyé! - gritou ele. - Mate! Esperem!
Obedeceram e se puseram de quatro novamente. A espera
pareceu se prolongar para sempre. Então um pássaro piou numa
árvore e lançou-se ao ar, guinchando. Outro pássaro o seguiu.
Blackthorne sacudiu a cabeça para limpar o suor dos olhos. Viu
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suas unhas quebradas, as pontas dos dedos sangrando, agarrando
os tufos de grama. Então, na grama, uma formiga se moveu. E
outra e outra. Começaram a cata de alimento.
Ainda assustado, ele se sentou sobre os calcanhares. -
Quando estará seguro?
Mariko não respondeu. Estava hipnotizada pela fenda no
chão. Ele se arrastou para junto dela. - Está se sentindo bem?
- Sim... sim - disse ela, sem fôlego. Tinha o rosto
borrado de lama. O quimono estava rasgado e imundo. Perdera
as duas sandálias e um tabi. E a sombrinha. Ele a ajudou a se
afastar da borda, ainda aturdida.
Depois olhou para Toranaga. - Ikaga desu ka?
Toranaga não tinha condições de falar, o peito opresso, os
braços e as pernas cobertos de escoriações. Apontou. A fenda
que quase o engolira agora não era mais que uma vala no solo.
Ao norte a vala abria-se numa ribanceira novamente, mas não
tão larga quanto fora, nem tão profunda.
Blackthorne sacudiu os ombros. - Karma.
Toranaga arrotou sonoramente, depois pigarreou, cuspiu e
arrotou de novo. Isso ajudou a voz a sair e uma torrente de
insultos derramou-se por sobre a vala, seus dedos ásperos apontando para ela. Embora Blackthorne não conseguisse compreender todas as palavras, Toranaga estava claramente dizendo conforme um japonês o faria: - A sífilis no karma, a sífilis no terremoto, a sífilis na vala! Perdi as minhas espadas e a sífilis nisso!
Blackthorne explodiu numa gargalhada, consumido pelo alívio de estar vivo e pela estupidez de tudo aquilo. Um instante,
e Toranaga riu também, e sua hilaridade contagiou Mariko.
Toranaga pôs-se de pé. Cautelosamente. Depois, aquecido
pela alegria de viver, começou a fazer micagens para a vala, ridicularizando a si mesmo e ao abalo. Parou, fez sinal a Blackthorne que se juntasse a ele e se pôs de pernas abertas sobre a
vala; abriu a tanga e, ainda dominado pelo riso, disse a Blackthorne que fizesse o mesmo. Blackthorne obedeceu e os dois
homens tentaram urinar na vala. Mas não saiu nada, nem uma
gota. Tentaram intensamente, o que lhes aumentou o riso e os
bloqueou ainda mais. Finalmente tiveram êxito e Blackthorne sentou-se para recobrar forças, reclinando-se e apoiando-se nas mãos.
Quando se recuperou um pouco, voltou-se para Mariko. - O
terremoto terminou definitivamente, Mariko-san?
- Até o próximo abalo, sim. - Ela continuou a limpar a
lama das mãos e do quimono.
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- É sempre assim?
- Não. Às vezes é bem leve. Às vezes há uma série de
abalos após um bastão de tempo ou um dia, ou meio bastão ou
meio dia. Às vezes há apenas um abalo - nunca se sabe, Anjinsan. Terminou até que comece de novo. Karma, neh?
Os guardas os observaram sem se mover, esperando pela
ordem de Toranaga. Ao norte havia incêndio assolando a rústica
coberta do acampamento. Samurais combatiam o fogo e escavavam as rochas da avalanche para encontrar os soterrados. A leste,
Yabu, Omi e Buntaro encontravam-se com outros guardas ao lado
da extremidade oposta da fenda, intactos com exceção de algumas
contusões, também à espera de serem chamados. Igurashi desaparecera. A terra o tragara.
Blackthorne deixou-se devanear. Seu autodesdém desaparecera e ele se sentiu totalmente sereno e inteiro. Agora sua mente
demorava-se orgulhosamente no fato de ele ser samurai, e em ir
para Yedo, no seu navio, na guerra, no Navio Negro, e de novo
na sua condição de samurai. Deu uma olhada em Toranaga e teria
gostado de lhe fazer muitas perguntas, mas notou que o daimio
estava perdido em seus próprios pensamentos, e sabia que seria
descortês perturbá-lo. Há muito tempo, pensou ele contente, e
olhou para Mariko. Estava arrumando o cabelo e o rosto, por
isso ele desviou o olhar. Deitou-se de comprido e olhou para o
céu, sentindo a terra cálida às costas, esperando pacientemente.
Toranaga falou, sério agora. - Domo, Anjin-san, neh? Domo.
- Dozo, Toranaga-sama. Nani-mo. Hombun, neh? Por favor, Toranaga-sama, não foi nada. Dever.
Então, sem saber muitas palavras e querendo ser preciso,
disse: - Mariko-san, quer explicar por mim? Acho que compreendo agora o que a senhora e o Senhor Toranaga querem
dizer com karma e a estupidez de se preocupar com o que é.
Muita coisa parece mais clara. Não sei por quê, talvez seja porque
nunca me senti tão aterrorizado, talvez isso me tenha limpado a
cabeça, mas parece que estou pensando mais claro. É... bem,
como o Velho Jardineiro. Sim, a culpa foi toda minha e sinto
muitíssimo, realmente, mas aquilo foi um engano, não foi uma
escolha deliberada de minha parte. É. Portanto nada pode ser feito
a respeito. Há um momento atrás estávamos todos quase perdidos.
Portanto toda aquela preocupação e mágoa foi um desperdício,
não foi? Karma. Sim, sei o que é karma agora. Compreende?
- Sim. - E traduziu para Toranaga. - Ele disse: "Ótimo,
Anjin-san. Karma é o começo do conhecimento. Depois é a pa668
ciência. A paciência é muito importante. Os fortes são os pacientes, Anjin-san. Paciência quer dizer conter a própria inclinação
para as sete emoções: ódio, adoração, alegria, ansiedade, cólera,
pesar, medo. Se você não dá passagem aos sete, você é paciente,
depois você logo compreenderá todo tipo de coisas e estará em
harmonia com a Eternidade".
- Acredita nisso, Mariko-san?
- Sim. Muitíssimo. Tento, também, ser paciente, mas é
difícil.
- Concordo. Isso também é wa, harmonia, a sua "tranqüilidade", neh?
- Sim.
- Diga a ele que lhe agradeço realmente pelo que fez ao
Velho Jardineiro. Antes eu não agradeci, não de coração. Digalhe isso.
- Não é preciso, Anjin-san. Ele já sabia que o senhor ia
apenas ser polido.
- Como sabia?
- Eu lhe disse que ele é o homem mais sábio do mundo.
Ele sorriu.
- Aí está - disse ela -, a sua idade desapareceu de novo.
- E acrescentou em latim: - O senhor é o senhor mesmo de
novo, e melhor do que antes!
- Mas a senhora é linda, como sempre.
Os olhos dela animaram-se e ela os desviou de Toranaga.
Blackthorne viu isso e notou-lhe a cautela. Pôs-se de pé e olhou
dentro da fenda recortada. Cuidadosamente saltou dentro dela e
desapareceu.
Mariko levantou-se com dificuldade, momentaneamente temerosa, mas Blackthorne logo voltou à superfície. Nas mãos trazia a espada de Fujiko. Estava embainhada, embora coberta de
lama e arranhada. A espada curta desaparecera.
Ajoelhou-se diante de Toranaga e ofereceu a espada do modo
como uma espada devia ser oferecida. - Dozo, Toranaga-sama
- disse simplesmente. - Kara samurai ni samurai, neh? Por
favor, Senhor Toranaga, de um samurai para o outro, hein?
- Domo, Anjin-san. - O senhor do Kwanto aceitou a espada e enfiou-a no sash. Depois sorriu, inclinou-se para a frente,
e deu um tapinha no ombro de Blackthorne. - Tomo, neh?
Amigo, hein?
- Domo. Blackthorne olhou a distância. Seu sorriso extinguiu-se. Uma nuvem de fumaça erguia-se por sobre a elevação,
669
acima de onde a aldeia devia estar. Imediatamente perguntou a
Toranaga se podia partir, para se certificar de que Fujiko estava bem.
- Ele diz que sim, Anjin-san. E devemos vê-lo ao pôr-do-sol
na fortaleza, para a refeição noturna. Há algumas coisas que ele
deseja discutir com o senhor.
Blackthorne voltou à aldeia. Estava devastada, o curso da
estrada estava irreconhecível, a superfície despedaçada. Mas os
botes estavam ilesos. Muitos incêndios ainda ardiam. Aldeãos carregavam baldes de areia e de água. Ele dobrou a esquina. A casa
de Omi oscilava como bêbada no seu lado da colina. A sua era
uma ruína fumegante.
CAPÍTULO 39
Fujiko se ferira. Nigatsu, a criada, estava morta. O primeiro
abalo fizera desabar os pilares centrais da casa, espalhando as
brasas do fogo da cozinha, Fujiko e Nigatsu tinham sido atingidas
por uma das vigas caídas e as chamas transformaram Nigatsu
numa tocha. Fujiko fora arrancada de sob a trave. Um dos filhos
do cozinheiro também fora morto, mas o resto dos criados sofrera apenas escoriações e alguns membros torcidos. Ficaram todos
exultantes ao descobrir que Blackthorne estava vivo e incólume.
Fujiko estava deitada sobre um futon poupado às chamas,
perto da cerca do jardim intacta, semiconsciente. Quando também
ela viu que Blackthorne estava incólume, quase chorou. - Agradeço a Buda que o senhor não esteja ferido, Anjin-san - disse
debilmente.,
Ainda parcialmente em choque, tentou se levantar mas ele
ordenou que não se movesse. As pernas e a base das costas dela
estavam com sérias queimaduras. Um médico já a estava tratando,
enrolando bandagens embebidas de chá e outras ervas em torno
dos membros para aliviá-los. Blackthorne dissimulou a preocupação e esperou até que o médico tivesse acabado, então, em particular, disse: - Fujiko-san, yoi ka? A Senhora Fujiko ficará bem?
O doutor encolheu os ombros. - Hai. - Seus lábios repuxaram-se em cima dos dentes protuberantes de novo. - Karma,
neh?
670
- Hai. - Blackthorne vira morrer marujos queimados em
quantidade suficiente para saber que qualquer queimadura séria
era perigosa, a ferida aberta quase sempre arruinando em poucos
dias e nada podendo impedir a infecção de se alastrar. - Não
quero que ela morra.
- Dozo?
Repetiu em japonês e o médico meneou a cabeça e disse que
a senhora certamente ficaria bem. Era jovem e forte.
- Shigata ga nai - disse o médico, e ordenou às criadas que
mantivessem as bandagens úmidas, deu a Blackthorne ervas para as
suas próprias esfoladuras, disse que voltaria logo, depois subiu às
pressas a colina em direção à casa danificada de Omi lá em cima.
Blackthorne manteve-se ao portão principal da sua casa, que
permanecera intacta. As setas de Buntaro ainda estavam cravadas
no batente esquerdo. Distraidamente, tocou uma delas. Karma que
ela tenha se queimado, pensou tristemente.
Voltou para junto de Fujiko e ordenou a uma criada que
trouxesse chá. Ajudou-a a beber e segurou-lhe a mão até que
adormecesse, ou parecesse dormir. Os criados estavam salvando
tudo o que podiam, trabalhando rapidamente, ajudados por alguns
aldeãos. Sabiam que as chuvas logo chegariam. Quatro homens
tentavam erguer um abrigo provisório.
- Dozo, Anjin-san. - O cozinheiro lhe oferecia chá fresco,
tentando não demonstrar o sofrimento. A garotinha era a sua filha
favorita.
- Domo - retrucou Blackthorne. - Sumimasen. Sinto
muito.
- Arigato, Anjin-san. Karma, neh?
Blackthorne assentiu, aceitou o chá e fingiu não notar o
pesar do cozinheiro, para não envergonhá-lo. Mais tarde um samurai subiu a colina trazendo um recado de Toranaga de que
Blackthorne e Fujiko deviam dormir na fortaleza até a casa ser
reconstruída. Chegaram dois palanquins. Blackthorne ergueu-a
suavemente, colocou-a num deles e enviou-a com algumas criadas.
Dispensou o seu palanquim, dizendo a ela que a seguiria logo.
A chuva começou, mas ele não prestou atenção. Sentou-se
sobre uma pedra do jardim que lhe dera tanto prazer. Agora era
um campo devastado. A pequena ponte estava quebrada, o lago
destruído, e o riacho desaparecera.
- Não tem importância - disse ele a ninguém. - As rochas não estão mortas.
Ueki-ya lhe dissera que um jardim deve ser formado em
671
ac
Tc
va
na
des
estr
botf
rege
de
uma
torno das suas rochas, que sem elas um jardim está vazio, me
mente um lugar de crescimento. mas Ueki-ya a PI
Uma das pedras era denteada e comum,
lhasse longa e intensamente para
tara de modo tal que se se o reflexo
ao crepúsculo, o brilho ever oda uma de mon t n
cristal enterrado nela, podia-se com vales indolentes, lagos profundos e, a distância, um horizo
verdejante, a noite formando-se láo Dou-lhe o nome de UekiBlackthorne tocou a rocha. - ue s
ixou satisfeito e ele sabia q
sarna - disse ele. Isso o de velho estivessel saiba e d ssecsed Bla kthornete b
talvez o
ee esteja morto, ora. Os xintoístas acreditam que qua
kami se encontre aqui ag
morrem tornam-se um kami .. .
- O que é um kami, Mariko-sa i ri
l como um espírito
- Kami é inexplicável, Anjn-sanj não é, é como uma alma, mas não pessoa é. T senhor deve s
tancial de uma coisa ou de uma P os a morte, mas
que um ser humano se torna um kaou uma pintura, são k
árvore, uma rocha ou uma planta,
igualmente Os ktmica e visitam venerados, Terra adosoDeusess x
ou a
entre o céu a
xam, tudo ao mesmo tempo.
- E Xintó? O que é Xintó?
sinto muito. É como
- Ah, isso também e inexplicável, mas não é. No , religião, de Xinto o C ninho do Kaminmil a osn
, mente chamávamos
para distingui-lo do Butsudo, o Caminho de Buda. japoneses, a. Mas em
indefinível, Xin teologiac nemdivindade, fé o
i hora não possua nem
é um culto n
é a nossa justificação para a exs é tência. acredita sinceramente
de mitos e lendas nas quais ningum credita
hora todo mundo venere totalmente. Uma pessoa é xintoís
mesmo modo como nasceu japonesa.
- A senhora também é xintoísta ... assim como
- Oh, sim, muito, naturalmente ...
Blackthorne tocou a pedra de novo.
Ueki-ya, por favor, fique no meu jardim.
Depois, sem se importar elo vales uViçosos, coulagoosere
rem-no pela pedra, passando p
horizonte verdejante, a escuridão formando-se lá.
Seus ouvidos lhe disseram que voltasse. Levantou os olhos.
mi o observava, pacientemente acocorado. Ainda chovia e Omi
tava usando uma capa de palha de arroz, e um largo chapéu
nico de bambu. O cabelo fora lavado recentemente.
- Karma, Anjin-san - disse ele, apontando para as ruínas
megantes.
- Hai. Ikaga desu
sto. ,
- Yoi. - Omi apontou para a sua casa. - Watakushi no
ya wa hakaisarete imasen ostukai ni narimasen-ka? Minha casa
banho não foi danificada. Importa-se em usá-la?
- Ah so desu! Domo, Omi-san, hai, domo. - Agradecido,
ackthorne acompanhou Omi pelo caminho sinuoso, dirigindo-se
ra o pátio da casa dele. Os criados e alguns artesãos da aldeia,
a supervisão de Mura, já estavam martelando e serrando e
arando. Os pilares centrais já tinham sido recolocados no lugar
telhado estava quase reparado.
Por meio de sinais e palavras simples, e muita paciência,
i explicou que seus criados haviam conseguido extinguir as
mas em tempo. Dentro de um ou dois dias, disse ele a Blackrne, a casa estaria em pé novamente, tão boa como antes, porto não havia nada com que se preocupar. A sua levará mais
po, uma semana, Anjin-san. Não se preocupe, Fujiko-san é
a excelente administradora. Combinará todos os custos com
ra e sua casa ficará melhor do que nunca. Ela se queimou,
dizer. Bem, isso acontece às vezes, mas não se preocupe,
sos médicos são bons especialistas em queimaduras, têm que
neh? Sim, Anjin-san, foi um terremoto sério, mas não muito.
oecampos de arroz quase não foram tocados e o sistema de
ação, tão essencial, permaneceu incólume. E os barcos não se
aficaram, e isso é muito importante também. Apenas cento e
uenta e quatro samurais foram mortos pela avalanche, o que
é muito, neh? Quanto à aldeia, uma semana e o senhor mal
rã que houve um abalo. Cinco camponeses foram mortos e
mas crianças - nada! Anjiro teve muita sorte, neh? Ouvi
que o senhor arrancou Toranaga-sama da morte. Somos-lhe
gratos, Anjin-san. Muito. Se o perdêssemos... o Senhor
naga disse que aceitava a sua espada - o senhor tem sorte,
e uma grande honra. Sim. O seu karma é forte, muito rico.
agradeço-lhe muitíssimo. Ouça, conversaremos mais depois que
o senhor tiver tomado banho. Estou contente por ser seu
o.
ka? - Blackthorne enxugou a chuva do
CAP
abalo
brasa,,,
por u
numa
do co.
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F
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xaram-se
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670
672
673
Omi chamou as criadas de banho. - Isogi! Rápido!
As criadas escoltaram Blackthorne até a casa de banho, que
se erguia dentro de um minúsculo bosque de bordos e se unia à
casa principal por um caminho sinuoso, em condições normais
coberto por um telhado. Era muito mais suntuosa do que a sua.
Uma parede estava seriamente rachada, mas já havia aldeãos a
rebocá-la. O telhado estava firme, embora faltassem algumas telhas e a chuva vazasse aqui e ali, mas isso não tinha importância.
Blackthorne despiu-se e se sentou no minúsculo assento. As
criadas o esfregaram e o ensaboaram à chuva. Quando estava
limpo, entrou na casa e mergulhou no banho fumegante. Todos
os seus problemas se dissiparam.
Fujiko vai ficar boa. Sou um homem de sorte. Foi sorte eu
estar lá para puxar Toranaga, sorte ter salvado Mariko, e sorte
que ele estivesse lá para nos puxar para fora.
A mágica de Suwo revigorou-o como de hábito. Mais tarde
ele deixou-o cuidar-lhe das escoriações e cortes, e vestiu a tanga
limpa e o quimono e os tabis que tinham sido trazidos para ele,
e saiu. A chuva parara.
Um abrigo provisório fora erguido num canto do jardim.
Tinha um caprichoso soalho elevado e estava mobiliado com
futons limpos e um pequeno vaso com um arranjo de flores. Omi
o esperava com uma velha sem dentes, de rosto duro.
- Por favor, sente-se, Anjin-san - disse Omi.
- Obrigado, e obrigado pela roupa - respondeu ele em
japonês vacilante.
- Por favor, esqueça isso. Aceitaria chá? Ou saque?
- Chá - decidiu Blackthorne, pensando que era melhor
conservar as idéias claras para a entrevista com Toranaga. -
Obrigado.
- Esta é minha mãe - disse Omi com formalidade, claramente a idolatrando.
Blackthorne curvou-se. A velha sorriu com afetação.
- A honra é minha, Anjin-san - disse ela.
- Obrigado, mas sou eu quem fica honrado. - Blackthorne repetiu automaticamente a sucessão de cortesias formais
que Mariko lhe ensinara.
- Anjin-san, sentimos muito ver sua casa em chamas.
- O que se poderia fazer? Foi karma, neh?
- Sim, karma. - A velha desviou o olhar e carregou o
sobrolho. - Depressa! O Anjin-san deseja o seu chá quente!
A garota em pé ao lado da criada que carregava a bandeja
674
deixou Blackthorne sem fôlego. Então se lembrou dela. Não fora
aquela garota que vira com Omi, na primeira vez, quando atravessava a praça da aldeia a caminho da galera?
- Esta é minha esposa - disse Omi sucintamente.
- Estou honrado - disse Blackthorne, enquanto ela tomava
seu lugar, ajoelhava-se e se curvava.
- O senhor deve perdoar-lhe a lentidão - disse a mãe de
Omi. - O chá está quente o suficiente para o senhor?
- Obrigado, está muito bom. - Blackthorne notara que a
velha não usara o nome da esposa conforme devia. Mas não se
surpreendeu, porque Mariko já lhe falara sobre a posição dominante da sogra de uma garota na sociedade japonesa.
- Graças a Deus que o mesmo não acontece na Europa
- dissera-lhe ele.
- A sogra de uma esposa não erra. Afinal de contas, Anjinsan, os pais escolhem a esposa em primeiro lugar, e que pai escolheria sem antes consultar a própria esposa? Claro, a nora tem
que obedecer, e o filho sempre faz o que a mãe e o pai desejam.
- Sempre?
- Sempre.
- Que acontece se o filho se recusa?
- Isso não é possível. Todo mundo tem que obedecer ao
cabeça da casa. O primeiro dever de um filho é para com os pais.
Naturalmente. Os filhos recebem tudo das mães: vida, alimento,
ternura, proteção. Ela os socorre a vida toda. Portanto, é claro
que um filho deva atender aos desejos de sua mãe. A nora ... tem
que obedecer. É dever dela.
- Conosco não acontece o mesmo.
- É difícil ser uma boa nora, muito difícil. Tem-se apenas
que esperar viver o bastante para se ter filhos e se tornar uma
a gente mesma.
- E a sua sogra?
- Ah, morreu, Anjin-san. Morreu há muitos anos. Nunca
a conheci. O Senhor Hiro-matsu, na sua sabedoria, nunca tomou
outra esposa.
- Buntaro-san é o único filho?
- Sim. Meu marido tem cinco irmãs vivas, mas não tem
irmãos. - Ela brincara: - De certo modo somos aparentados
agora, Anjin-san. Fujiko é sobrinha do meu marido. O que há?
- Estou surpreso de que a senhora nunca me tenha dito,
é tudo.
- Bem, é complicado, Anjin-san. - Então Mariko expli675
cara que Fujiko na realidade era uma filha adotiva de Numara
Akinori, que se casara com a irmã mais nova de Buntaro, e que
o verdadeiro pai de Fujiko era um neto do ditador Goroda pela
sua oitava consorte, que Fujiko fora adotada por Numata ainda
recém-nascida a unia ordem do táicum, porque o táicum desejava laços mais estreitos entre os descendentes de Hiro-matsu e
Goroda ...
- O quê?
Mariko rira, dizendo-lhe que sim, os relacionamentos de família no Japão eram muito complicados porque a adoção era normal, os casais trocavam-se filhos e filhas com freqüência, e se
divorciavam, casavam-se de novo, casavam-se entre si o tempo
todo. Com tantas consortes legais e a facilidade do divórcio -
particularmente se por uma ordem de um suserano -, todas as
famílias logo se tornavam inacreditavelmente entrelaçadas.
- Deslindar com precisão os elos de família do Senhor
Toranaga levaria dias, Anjin-san. Pense apenas na complicação:
atualmente ele tem sete consortes oficiais vivas, que lhe deram
cinco filhos e três filhas. Algumas consortes eram viúvas ou já
tinham sido casadas, com outros filhos e filhas - alguns desses
Toranaga adotou, outros não. No Japão não se pergunta se uma
pessoa é adotada ou natural. Na verdade, o que importa? A
herança depende sempre do cabeça da casa, portanto, adotado ou
não, cdá na mesma, neh? Até a mãe de Toranaga era divorciada.
Mais tarde tornou a se casar e teve três filhos e duas filhas do
segundo marido, todos, agora, casados! O filho mais velho do segundo casamento é Zakati, senhor de Shinano.
Blackthorne ponderara sobre isso. Depois dissera: - O divórcio não é possível para nós. Não é possível.
- Assim nos dizem os santos padres. Sinto muito, mas isso
não é muito sensato, Anjin-san. Os enganos acontecem, as pessoas
mudam, isso é karma, reli? Por que um homem deveria suportar
uma esposa abominável, ou uma esposa um homem abominável?
É tolice ficar amarrado para sempre, homem ou mulher, neh?
- Sim.
- Nisso somos muito sábios e os santos padres não. Essa
foi uma das duas grandes razões pelas quais o táicum não abraçou o cristianismo, essa tolice sobre o divórcio. E o sexto mandamento, "Não matarás". O padre-inspetor foi até Roma solicitar
dispensa para o Japão com relação ao divórcio. Mas Sua Santidade, o papa, na sua sabedoria, negou. Se Sua Santidade tivesse
consentido, acredito que o táicum se teria convertido, os daimios
676
estariam seguindo a verdadeira fé agora, e o país seria cristão. O
aspecto de "matar" não teria tido importância, porque na realidade ninguém presta atenção alguma a isso, os cristãos menos que
todos. Uma concessão tão pequena portanto, neh?
- Sim - dissera Blackthorne. Como o divórcio parecia razoável! Por que era um pecado mortal lá em casa, atacado por
cada padre da cristandade, católico ou protestante, em nome de
Deus?
- Como era a esposa de Toranaga? perguntara, querendo fazê-la continuar falando. A maior parte do tempo ela evitara
o tema de Toranaga e a história de sua família, e era importante
para Blackthorne saber tudo.
Uma sombra atravessara o rosto de Mariko. - Morreu. Era
a segunda esposa dele e morreu há uns dez ou onze anos. Era
filha do padrasto do táicum. O Senhor Toranaga nunca teve êxito
com as esposas, Anjin-san.
- Por quê?
- Oh, a segunda era velha, cansada, avarenta, idolatrando
o ouro, embora fingisse o contrário, como o irmão, o próprio
táicum. Estúpida e de mau temperamento. Foi um casamento político, naturalmente. Tive que ser uma das suas damas de companhia durante um tempo. Nada lhe agradava, e nenhum dos jovens ou homens conseguia desatar o nó no seu Pavilhão Dourado.
- O quê?
- O seu Portão de Jade, Anjin-san. Com a Cabeça de Tartaruga - a Seta Aquecida. Não compreende? A ... coisa dela.
- Oh! Compreendo. Sim.
Ninguém conseguia desatar-lhe o nó... satisfazê-la.
- Nem Toranaga?
- Ele nunca "travesseirou" com ela, Anjin-san - dissera
ela, completamente chocada. - Claro, depois do casamento ele
não tinha mais nada que ver com ela, além de dar-lhe um castelo,
assistentes e as chaves da sua casa do tesouro. Por que deveria
ter? Ela era muito velha, fora casada duas vezes antes, mas o
irmão, o táicum, dissolvera os casamentos. Uma mulher muito
desagradável. Todos ficaram muito aliviados quando ela foi para
o Grande Vazio, até o táicum, e todas as suas noras e todas as
consortes de Toranaga secretamente queimaram incenso com grande alegria.
- E a primeira esposa de Toranaga?
- Ah, a Senhora Tachibana. Esse foi outro casamento político. O Senhor Toranaga tinha dezoito anos. ela quinze. Cresceu
677
para ser uma mulher terrível. Há vinte anos Toranaga condenou-a
à morte porque descobriu que ela estava secretamente tramando
o assassinato do suserano deles, o ditador Goroda, a quem ela
odiava. Meu pai sempre me dizia que achava que todos eles tiveram sorte em conservar a cabeça - ele, Toranaga, Nakamura,
e todos os generais -, porque Goroda era inclemente, implacável, e particularmente desconfiado dos que lhe eram mais chegados. Aquela mulher poderia tê-los arruinado a todos, por mais
inocentes que fossem. Devido a sua conspiração contra o Senhor
Goroda, o seu único filho, Nobunaga, também foi condenado à
morte, Anjin-san. Ela matou o próprio filho. Pense nisso, tão
triste, tão terrível. Pobre Nobunaga, era o filho favorito de Toranaga e seu herdeiro oficial, bravo, um general totalmente leal. Era
inocente, mas ela o envolveu na trama. Tinha só dezenove anos
quando Toranaga lhe ordenou que cometesse seppuku.
- Toranaga matou o próprio filho? E a esposa?
- Sim, ordenou-lhes que fizessem isso, mas não teve escolha, Anjin-san. Se não tivesse feito isso, o Senhor Goroda, acertadamente, teria presumido que Toranaga fazia parte da conspiração e lhe teria ordenado instantaneamente que cortasse o ventre.
Oh, sim, Toranaga teve sorte de escapar à cólera de Goroda e foi
sábio em mandá-la matar-se rapidamente. Quando ela morreu, sua
nora e todas as consortes de Toranaga ficaram em êxtase. O filho
dela tivera que mandar a primeira esposa de volta para casa, em
desgraça, por ordem dela, devido a algum descuido imaginário
- depois de lhe gerar dois filhos. A garota cometeu seppuku -
eu lhe disse, Anjin-san, que as senhoras cometem seppuku cortando a garganta e não o estômago, como os homens? -, mas
morreu agradecida, contente por se libertar de uma vida de lágrimas, exatamente como a próxima esposa orava pela morte, já que
sua vida foi tornada igualmente miserável pela sogra...
Agora, olhando para a sogra de Midori, o chá escorrendolhe pelo queixo, Blackthorne sabia que aquela velha bruxa tinha
poder de vida ou morte, divórcio ou degradação sobre Midori,
desde que o marido, o cabeça da casa, concordasse. E, decidissem
eles o que decidissem, Omi obedeceria. Que terrível, disse-se ele.
Midori tinha toda a graça e juventude que a velha não tinha,
o rosto oval, o cabelo abundante. Era mais bonita do que Mariko,
mas sem o ardor e a força da outra, flexível como uma samambaia e frágil como uma teia de aranha.
- Onde está a comida? Naturalmente o Anjin-san deve estar
com fome - disse a velha.
678
- Oh, sinto muito - replicou Midori imediatamente. - Vá
buscar - disse ela à criada. - Depressa! Sinto muito, Anjin-san!
- Sinto muito, Anjin-san - disse a velha.
- Por favor, não se desculpe disse Blackthorne a Midori,
e imediatamente percebeu que isso fora um erro. As boas maneiras decretavam que ele devia dirigir-se apenas à sogra, particularmente se ela tivesse uma má reputação. - Sinto muito - disse
ele. - Eu não fome. Esta noite eu comer devo com o Senhor
Toranaga.
- Ale so desu! Ouvimos dizer que o senhor lhe salvou a
vida. O senhor deve saber como lhe estamos gratos, nós, todos os
seus vassalos! - disse a velha.
- Foi dever. Não fiz nada.
- O senhor fez tudo, Anjin-san. Omi-san e o Senhor Yabu
apreciam o seu ato tanto quanto todos nós.
Blackthorne viu a velha olhar de relance para o filho. Gostaria de poder sondá-la, sua cadela velha, pensou ele. Será que
você é tão má quanto a outra, Tachibana?
- Mãe disse Orni , sou feliz por ter o Anjin-san como
amigo.
- Todos nós somos felizes -- disse ela.
- Não, sou eu quem se sente feliz - replicou Blackthorne.
- Eu afortunado ter amigos como família de Kasigi Omi-san.
- Estamos todos mentindo, pensou Blackthorne, mas não sei por
que vocês mentem. Eu minto por autoproteção e porque é hábito.
Mas nunca me esqueci ... Espere um instante. Com toda a honestidade, isso não foi karma? Você não teria feito o que Omi fez?
Isso foi há muito tempo, numa vida anterior, neh? Não tem mais
sentido agora.
Um grupo de cavaleiros subiu a colina com estrépito, Naga
à frente. Desmontou e avançou pelo jardim. Todos os aldeãos
pararam de trabalhar e puseram-se de joelhos. Ele lhes fez sinal
que continuassem.
Sinto muito perturbá-lo, Omi-san, mas o Senhor Toranaga me mandou.
- Por favor. não está me incomodando. Por favor, junte-se
a nós - disse Orni. Imediatamente Midori cedeu a sua almofada,
curvando-se profundamente. - Aceita chá, ou saque, Naga-sama?
Naga sentou-se. -- Nada, obrigado. Não estou com sede.
Omi insistiu polidamente, passando pelo interminável e necessário ritual, embora fosse óbvio que Naga estava com pressa.
- Como está o Senhor Toranaga?
679
- Muito hem. Anjin-san, o senhor nos prestou um grande
serviço. Sim. Agradeço-lhe pessoalmente.
- Foi dever, Naga-san. Mas fiz pouco. O Senhor Toranaga
puxou-me da ... puxou-me da terra também.
- Sim. Mas isso foi depois. Agradeço-lhe muitíssimo.
- Naga-san, há algo que eu possa fazer pelo Senhor Toranaga? - perguntou Omi, já que a etiqueta finalmente lhe autorizava ir ao ponto.
- Ele gostaria de vê-lo após a refeição noturna. Haverá
uma reunião de todos os oficiais.
- Ficarei honrado.
- Anjin-san, deve vir comigo agora, se lhe aprouver.
- Naturalmente. A honra é minha.
Mais mesuras e saudações e depois Blackthorne estava sobre
um cavalo, descendo a colina a trote. Quando a falange de samurais atingiu a praça, Naga puxou as rédeas.
- Anjin-san!
- Hai?
- Agradeço-lhe de todo o coração por haver salvado o
Senhor Toranaga. Permita-me ser seu amigo... e algumas
palavras que Blackthorne não assimilou.
- Desculpe, não compreendo. "Karite iru"?
- Ah, desculpe, "Karite iru": um homem karite iru coisas
a nutro, como "dívida". O senhor entende "dívida"?
"Dever" surgiu na cabeça de Blackthorne. -- Ah so desu!
Wakarunasu.
- Ótimo. Disse apenas que lhe devo uma vida.
- Era o meu dever, neh?
-- Sim. Ainda assim, devo-lhe uma vida.
- Toranaga-sama diz que toda a pólvora de canhão e a
munição foram postos de volta no seu navio, Anjin-san, aqui em
Anjiro, antes de partir para Yedo. Ele pergunta quanto tempo o
senhor levaria para se preparar para zarpar.
--- Isso depende do estado do navio, se os homens o querenaram e cuidaram dele, se o mastro foi substituído, e assim por
diante. O Senhor Toranaga sabe como se encontra o navio?
-- O navio parece em ordem, diz ele, mas não é um marujo,
por isso não poderia ter certeza. Não subiu a bordo desde que o
navio foi rebocado para a enseada de Yedo, quando deu instruções para que cuidassem dele. Presumindo-se que o navio esteja
680
em condições, neh, ele pergunta quanto tempo o senhor levaria
para se preparar para a guerra.
O coração de Blackthorne perdeu uma batida. - Contra
quem combatemos, Mariko-san?
- Ele pergunta contra quem o senhor gostaria de combater.
- Contra o Navio Negro deste ano - respondeu Blackthorne imediatamente, tomando uma decisão repentina, esperando desesperadamente que aquele fosse o momento correto para
expor diante de Toranaga o plano que elaborara secretamente ao
longo dos dias. Estava especulando com o fato de que ter salvo
a vida de Toranaga naquela manhã talvez lhe desse um privilégio
especial que o ajudaria a superar os obstáculos.
Mariko foi dominada pela surpresa. - O quê?
- O Navio Negro. Diga ao Senhor Toranaga que tudo o
que ele tem a fazer é dar-me as suas cartas de corso. Farei o
resto. Com o meu navio e unia ajudazinha... dividimos a carga,
toda a seda e o dinheiro.
Ela riu. Toranaga não.
- Meu arpo... diz que isso seria um imperdoável ato de
guerra contra uma nação amiga. Os portugueses são essenciais
para o Japão.
- Sim, são... no momento. Mas acredito que sejam inimigos dele tanto quanto meus, e seja qual for o serviço que
ofereçam, podemos fazer melhor. A um custo menor.
- Ele diz que talvez. Mas não acredita que a China faça
comércio com o senhor. Nem os ingleses nem os neerlandeses
estão maciçamente na Ásia ainda, e necessitamos das sedas agora
o de um fornecimento contínuo.
- Ele tem razão, claro. Mas num ou dois anos isso mudará
o ele terá a prova. Por isso, eis outra sugestão. Já estou em guerra
com os portugueses. Além do limite de três milhas, as águas são
internacionais. Legalmente. com as minhas atuais cartas de corso,
posso tomar o navio e, na qualidade de presa, posso levá-lo para
qualquer porto e vendê-lo, assim como a carga. Com o meu navio
o uma tripulação, será fácil. Em poucas semanas ou meses, eu
poderia entregar o Navio Negro e tudo o que contém em Yedo.
Eu poderia vendê-lo em Yedo. Metade do valor será o seu ... a
taxa de porto.
- Ele diz que o que acontece no mar entre o senhor e os
seus inimigos é de pouco interesse para ele. O mar pertence a
todos. Mas esta terra é nossa, e aqui nossas leis governam e não
podem ser infringidas.
681
- Sim, - Blackthorne sabia que seu curso era perigoso,
mas sua intuição lhe dizia que o momento era perfeito e que
Toranaga morderia a isca. E Mariko. - Foi só uma sugestão.
Ele me perguntou contra quem eu gostaria de combater. Por
favor, desculpe-me, mas às vezes é bom planejar para qualquer
eventualidade. Nisso acredito que os interesses do Senhor Toranaga são os meus.
Mariko traduziu. Toranaga grunhiu e falou brevemente.
- O Senhor Toranaga dá valor a sugestões sensatas, Anjinsan, como a sua idéia sobre a marinha, mas isto é ridículo. Ainda
que os interesses de ambos fossem os mesmos, coisa que não são,
como o senhor poderia, com nove homens, atacar um vaso tão
imenso com quase mil pessoas a bordo?
- Eu não faria isso. Preciso de uma nova tripulação,
Mariko-san. Oitenta ou noventa homens, marujos e atiradores
treinados. Encontro-os em Nagasaki, em navios portugueses. -
Blackthorne fingiu não notar que ela tomou fôlego, nem o modo
como o leque parou. - Deve haver alguns franceses, um inglês
ou dois se eu tiver sorte, alguns alemães e holandeses, serão renegados na maioria, ou gente que foi levada à força para bordo.
Eu necessitaria de um salvo-conduto para Nagasaki, alguma proteção, e um pouco de prata ou ouro. Há sempre marinheiros em
frotas inimigas que se engajarão por dinheiro vivo e uma parte
do dinheiro da presa.
- Meu amo diz que qualquer comandante que confie em
tal imundície num ataque seria louco.
- Concordo - disse Blackthorne , mas preciso de uma
tripulação para zarpar.
- Ele pergunta se seria possível treinar samurais e nossos
marujos para serem atiradores e marinheiros.
- Facilmente. Com tempo. Mas isso poderia levar meses.
Com certeza estariam prontos no próximo ano. Não haveria chance de ir contra o Navio Negro deste ano.
- O Senhor Toranaga diz: "Não planejo atacar o Navio
Negro dos portugueses, neste ano ou no próximo. Não são meus
inimigos e não estou em guerra com eles".
- Eu sei. Mas eu estou em guerra com eles. Por favor,
desculpe-me. Naturalmente isto é apenas uma discussão, mas precisarei ter alguns homens para zarpar, para estar ao serviço do
Senhor Toranaga se ele desejar.
Estavam sentados nos aposentos privados de Toranaga, que
davam para o jardim. A fortaleza mal fora tocada pelo terremo682
to. A noite estava úmida e sem ar, e a fumaça que vinha das
espirais de incenso subia preguiçosamente para expulsar os mosquitos.
- Meu amo quer saber estava dizendo Maüko - se o
senhor, caso tivesse o seu navio agora, e os poucos membros da
tripulação que chegaram com o senhor, iria a Nagasaki para encontrar esses homens suplementares que solicita.
- Não. Isso seria perigoso demais. Eu estaria tão insuficientemente tripulado, que os portugueses me capturariam. Seria
muito melhor conseguir os homens primeiro, trazê-los para águas
domésticas, para Yedo, neh? Uma vez que eu esteja com a tripulação completa, o inimigo não tem nada nestes mares com que
consiga me tocar.
- Ele não acha que o senhor e noventa homens pudessem
tomar o Navio Negro.
- Posso velejar melhor que ele e afundá-lo com o Erasmas.
Naturalmente, Mariko-san. sei que tudo isso são conjecturas, mas
se eu fosse autorizado a atacar o meu inimigo, no momento
em que tivesse uma tripulação, navegaria imediatamente para
Nagasaki. Se o Navio Negro já estivesse atracado, eu mostraria
as minhas bandeiras de guerra e o bloquearia no mar. Eu o deixaria terminar o comércio e aí, quando o vento estivesse propício
para a viagem para casa, fingiria precisar de suprimentos e o
deixaria sair do porto. Depois o capturaria a algumas léguas, porque temos mais velocidade e meus canhões fariam o resto. Uma
vez que ele tenha arriado suas bandeiras, eu ponho uma tripulação a bordo e trago-o para Yedo. Ele deve ter mais de trezentas,
quase quatrocentas toneladas de ouro a bordo.
- Mas por que o capitão do Navio Negro não afundaria
o navio uma vez que o senhor o tivesse derrotado, se o derrotar,
antes que o senhor possa ir a bordo?
- Geralmente... Blackthorne ia dizer: "Geralmente a
tripulação se amotina se o capitão é um fanático, mas nunca conheci nenhum tão louco. Na maioria das vezes faz-se um acordo
com o capitão: poupa-se a vida dele, dá-sê-lhe uma pequena parte
da carga e transporte até o porto mais próximo. Mas desta vez
terei que lidar com Rodrigues e eu o conheço e sei o que ele
fará". Mas pensou melhor nisso e decidiu não revelar todo o
plano. É melhor deixar os métodos bárbaros aos bárbaros, disse
a si mesmo. - Geralmente o navio derrotado capitula, Marikosan. É uni costume, um dos nossos costumes de guerra no mar,
poupar a perda desnecessária de vidas.
683
- O Senhor Toranaga diz, sinto muito, Anjin-san, que isso
é um costume repulsivo. Se ele tivesse navios, não haveria rendição. - Mariko tomou um gole de chá, depois continuou: E
se o navio não estiver no porto?
- Aí eu corro as rotas marítimas para capturá-lo a algumas
léguas, em águas internacionais. Será mais fácil pegá-lo pesado
de carga e chafurdando, mas mais difícil de trazer para Yedo.
Quando se espera que atraque?
-- Meu amo não sabe. Talvez dentro de trinta dias, diz ele.
O navio virá mais cedo este ano.
Blackthorne sabia que estava muito perto da presa, muito
perto. - Então é bloqueá-lo e torná-lo no fim da estação. - Ela
traduziu e Blackthorne pensou ver um desapontamento momentâneo perpassar o rosto de Toranaga. Fez uma pausa, como se
estivesse considerando alternativas, e disse: Se estivéssemos
na Europa, haveria outro modo. Poderíamos navegar à noite e
torná-lo à força. Um ataque de surpresa.
Toranaga apertou com força o punho da espada.
- Ele pergunta se o senhor ousaria atacar os seus inimigos
na nossa terra.
Os lábios de Blackthorne estavam secos. - Não. Claro que
isto ainda é uma suposição, mas se existisse um estado de guerra
entre ele e os portugueses, e o Senhor Toranaga os quisesse prejudicar, seria esse o modo de fazê-lo. Se eu tivesse duzentos ou
trezentos combatentes bem disciplinados, uma boa tripulação e o
Erasmus, seria fácil emparelhar com o Navio Negro e abordá-lo,
arrastá-lo para o largo. Ele poderia escolher a época do ataque
de surpresa... se estivéssemos na Europa.
Houve um longo silêncio.
- O Senhor Toranaga diz que isto não é a Europa e que
não existe, nem jamais existirá, um estado de guerra entre ele e
os portugueses.
- Claro. Um último ponto, Mariko-san: Nagasaki não está
sob controle do Senhor Toranaga, está?
- Não, Anjin-san. O Senhor Harima é dono do porto e de
toda a região.
- Mas na prática não são os jesuítas que controlam o porto
e todo o comércio? -- Blackthorne reparou na relutância dela
em traduzir, mas pressionou-a mais ainda. - Não é essa a honto,
Mariko-san? E o Senhor Harima não é católico? A maior parte
de Kyushu não é católica? E por conseguinte os jesuítas, em
certa medida, não controlam a ilha toda?
- O cristianismo é uma religião. Os daimios controlam suas
terras, Anjin-san - disse Mariko por si mesma.
- Mas fui informado de que Nagasaki na realidade é solo
português. Fui informado de que eles agem como se o fosse. O
pai do Senhor Harima não vendeu a terra aos jesuítas?
A voz de Mariko excitou-se. - Sim. Mas o táicum tomou-a
de volta. Nenhum estrangeiro tem autorização para possuir terra
aqui, agora.
- Mas o táicum não permitiu que seus editos caducassem,
de modo que hoje nada acontece lá sem a aprovação dos jesuítas?
Os jesuítas não controlam toda a navegação em Nagasaki, e todo
o comércio? Não negociam todo o comércio para vocês e não
agem como intermediários?
- O senhor está muito bem informado sobre Nagasaki,
Anjin-san - disse ela enfaticamente.
- Talvez o Senhor Toranaga devesse tomar do inimigo o
controle do porto. Talvez.. .
- Eles são seus inimigos, Anjin-san, não nossos - disse
ela, mordendo a isca finalmente. - Os jesuítas são.. .
- Nan ja?
Ela se voltou para Toranaga desculpando-se, e explicou o que
fora dito entre eles. Quando terminou ele falou severamente, uma
reprimenda evidente. -- Hai - disse ela várias vezes, e curvou-se,
disciplinada.
- O Senhor Toranaga me lembra - disse ela - de que
as minhas opiniões não têm valor e que um intérprete deve apenas
interpretar, neh? Por favor, desculpe-me.
Em outra oportunidade Blackthorne se teria desculpado por
ter-lhe armado uma cilada. Agora isso não lhe ocorreu. Mas como
atingira o alvo, riu e disse: - Hai, kawaii Tsukkuko-sama! Sim,
linda Senhora Intérprete!
Mariko sorriu atravessado, furiosa consigo mesma por ter
caído na armadilha, a mente em conflito com suas lealdades divididas.
Yoi, Anjin-san - disse Toranaga, mais uma vez cordial.
Mariko-san kawaii desu yori! Tsukku-san anamsu ka nori
masen, neh? E Mariko-san é muito mais bonita do que o velho
Sr. Tsukku, não é, e também muito mais perfumada?
Toranaga riu. - Hai.
Mariko corou e serviu chá, um pouco abrandada. Depois
Toranaga falou. Seriamente.
- Nosso amo pergunta por que o senhor está fazendo tan684
i
685
tas perguntas - ou tantas afirmações - sobre o Senhor Harima
e Nagasaki.
- Só para mostrar que o porto de Nagasaki de fato é controlado por estrangeiros. Pelos portugueses. E pela minha lei,
tenho o direito legal de atacar o inimigo em qualquer lugar.
- Mas isto não é "qualquer lugar", diz ele. Esta é a Terra
dos Deuses e tal ataque é impensável.
- Concordo inteiramente. Mas se o Senhor Harima se tornasse hostil, ou os jesuítas que comandam os portugueses se
tornassem hostis, seria esse o modo de atingi-los.
- O Senhor Toranaga diz que nem ele nem qualquer daimio
jamais permitiria um ataque de qualquer nação estrangeira contra
outra em solo japonês, ou que elas matassem qualquer um dos
nossos. Contra inimigos do imperador, o caso é diferente. Quanto
a conseguir combatentes e uma tripulação, seria fácil um homem
conseguir qualquer quantidade desde que falasse japonês. Há
muitos wakos em Kyushu.
- Wakos, Mariko-san?
- Oh, desculpe. Chamamos os corsários de "wakos", Anjinsan. Costumavam ter muitos covis em torno de Kyushu, mas
foram destruídos, na maioria, pelo táicum. Infelizmente ainda se
podem encontrar sobreviventes. Os wakos aterrorizaram as costas
da China durante séculos. Foi por causa deles que a China fechou
seus portos para nós. - Explicou a Toranaga o que fora dito.
Ele falou de novo, mais enfaticamente. - Ele diz que nunca
permitirá, planejará ou lhe permitirá realizar um ataque por terra,
embora fosse correto que o senhor pilhasse o inimigo da sua rainha em alto-mar. Ele repete que isto não é qualquer lugar. Esta
é a Terra dos Deuses. O senhor deve ser paciente, conforme ele
lhe disse.
- Sim. Pretendo tentar ser paciente à maneira dele. Só
quero atingir o inimigo porque eles são o inimigo. Acredito de
todo o coração que são inimigos dele também.
- O Senhor Toranaga diz que os portugueses lhe dizem que
o senhor é o inimigo. dele, e Tsukku-san e o padre-inspetor têm
certeza absoluta disso.
- Se eu fosse capaz de capturar o Navio Negro no mar e
trazê-lo como presa legal para Yedo, sob a bandeira da Inglaterra,
teria autorização para vendê-lo e tudo o que contém, em Yedo,
de acordo com o nosso costume?
- O Senhor Toranaga diz que isso depende.
686
- Se a guerra vier, posso ser autorizado a atacar o inimigo,
o inimigo do Senhor Toranaga, da melhor maneira que eu puder?
- Ele diz que esse é o dever de um hatamoto. Um hatamoto, naturalmente, está sob as ordens pessoais dele o tempo
todo. Meu amo deseja que eu deixe claro que as coisas no Japão
nunca serão resolvidas por outro método que não seja o japonês.
- Sim. Compreendo perfeitamente. Com a devida humildade, eu gostaria de assinalar que quanto mais eu souber sobre os
problemas dele, mais eu poderei ajudar.
- Ele diz que o dever de um hatamoto é sempre ajudar seu
senhor, Anjin-san. Diz que devo responder a quaisquer perguntas
razoáveis que o senhor queira me fazer mais tarde.
- Obrigado. Posso perguntar-lhe se ele gostaria de ter uma
marinha? Conforme sugeri na galera?
- Ele já disse que gostaria de ter uma marinha, uma marinha moderna, Anjin-san, manejada pelos seus próprios homens.
Que daimio não gostaria?
- Então consideremos isto: se eu tivesse sorte o bastante
para tomar o navio inimigo, eu o levaria a Yedo para ser reparado
e para avaliar a presa. Depois baldearia a minha metade do butim
para o Erasmus e venderia o Navio Negro aos portugueses, ou
o ofereceria a Toranaga-sama como presente, ou o queimaria, o
que ele desejasse. Aí eu voltaria para casa. Dentro de um ano
retornaria e traria quatro belonaves, como um presente da rainha
da Inglaterra ao Senhor Toranaga.
- Ele pergunta onde estaria o seu lucro nisso.
- A honto é que sobraria muito para mim, Mariko-san,
depois que os navios fossem pagos, dado por Sua Majestade.
Depois eu gostaria de levar um dos conselheiros dele mais dignos
de confiança, como embaixador junto à minha rainha. Um tratado
de amizade entre os nossos países poderia ser do interesse dele.
- O Senhor Toranaga diz que isso seria muita generosidade
da sua rainha. Ele pergunta, porém, no caso de tal coisa miraculosamente acontecer e o senhor voltar com os novos navios,
quem treinaria os marinheiros, os samurais e os capitães para
equipá-los.
- Inicialmente eu mesmo, se isso lhe aprouvesse. Eu ficaria
honrado, depois outros poderiam se seguir.
- Ele pergunta o que é "inicialmente".
- Dois anos.
Toranaga sorriu fugazmente.
- Nosso amo diz que dois anos não seria "inicialmente"
687
suficiente. Entretanto, acrescenta, é tudo uma ilusão. Ele não está
em guerra com os portugueses nem com o Senhor Hirama de
Nagasaki. Repete que o que o senhor fizer fora de águas japonesas, no seu próprio navio, com a sua própria tripulação, é o
seu karma. - Mariko parecia perturbada. - Fora das nossas
águas o senhor é estrangeiro, diz ele. Mas aqui é samurai.
- Sim. Sei da honra que ele me concedeu. Posso perguntar
como um samurai consegue dinheiro emprestado, Mariko-san?
- De um prestamista, Anjin-san. Onde mais? De um imundo mercador prestamista. - Traduziu para Toranaga. - Por
que o senhor precisaria de dinheiro?
- Existem prestamistas em Yedo?
- Oh, sim. Os prestamistas estão por toda parte, neh? Não
ocorre o mesmo no seu país? Pergunte à sua consorte, Anjin-san,
talvez ela possa ajudá-lo. Isso faz parte do dever dela.
- A senhora disse que partimos para Yedo amanhã?
- Sim, amanhã.
- Infelizmente Fujiko-san não será capaz de viajar amanhã.
Mariko conversou com Toranaga.
- O Senhor Toranaga diz que a mandará de galera, quando
o navio partir. Ele pergunta por que o senhor precisa de dinheiro
emprestado.
- Terei que arrumar uma nova tripulação, Mariko-san, para
zarpar a qualquer parte, a fim de servir o Senhor Toranaga, caso
ele o deseje. Isso é permitido?
- Uma tripulação de Nagasaki?
- Sim.
- Ele lhe dará uma resposta quando o senhor chegar a
Yedo.
- Domo, Toranaga-sarna. Mariko-san, quando eu chegar a
Yedo, para onde vou? Haverá alguém para me orientar?
- Oh, o senhor não deve jamais se preocupar com coisas
assim, Anjin-san. É um hatamnoto do Senhor Toranaga.
Houve uma batida na porta interna.
- Entre.
Naga abriu a shoji e curvou-se. - Desculpe-me, Pai, mas o
senhor queria ser avisado do momento em que todos os oficiais
estivessem presentes.
- Obrigado, estarei lá dentro em pouco. -- Toranaga pensou um instante, depois fez sinal a Blackthorne, amistosamente.
- Anjin-san, vá com Naga-san. Ele lhe mostrará o seu lugar.
Obrigado pelas suas opiniões.
688
- Sim, senhor. Obrigado por ter escutado. Obrigado pelas
suas palavras. Sim. Tento arduamente ser paciente e perfeito.
- Obrigado, Anjin-san. - Toranaga observou-o se curvar
o se afastar. Quando ficaram a sós, voltou-se para Mariko: -
Bem, o que pensa?
- Duas coisas, senhor. Primeiro, o ódio dele pelos jesuítas
é incomensurável, superando até a aversão que tem pelos portugueses, portanto ele é um flagelo que o senhor pode usar contra
qualquer um deles ou contra ambos, se o desejar. Sabemos que
ele é corajoso, portanto rechaçaria arrojadamente qualquer ataque
vindo do mar. Segundo, o objetivo dele ainda é dinheiro. Em sua
defesa, pelo que aprendi, devo dizer que o dinheiro é o único
meio real de que os bárbaros dispõem para tornar duradouro o
poder. Compram terras e posição - até a rainha é uma mercadora, que "vende" terra aos seus lordes, e compra navios e terras,
provavelmente. Eles não são muito diferentes de nós, senhor,
exceto nisso. E também no fato de não compreenderem o poder,
nem que a guerra é a vida e a vida é a morte.
- Os jesuítas são meus inimigos?
- Não acredito nisso.
- Os portugueses?
- Acredito que estejam interessados apenas em lucros, terra
o a difusão da palavra de Deus.
- Os cristãos são meus inimigos?
- Não, senhor. Embora alguns dos seus inimigos possam
ser cristãos - católicos ou protestantes.
- Ah, acha que o Anjin-san é meu inimigo?
- Não, senhor. Não. Acredito que ele o honra e, com o
tempo, se tornará um vassalo autêntico.
- Quanto aos nossos cristãos? Quem é inimigo?
- Os senhores Harima, Kiyama, Onoshi, e qualquer outro
samurai que se volte contra o senhor.
Toranaga riu. - Sim, mas os padres os controlam, conforme
o Anjin-san insinua?
- Não creio.
- Esses três vão se colocar contra mim?
- Não sei, senhor. No passado foram tanto hostis quanto
amistosos em relação ao senhor. Mas se se puserem do lado de
Ishido, será muito mau.
- Concordo. Sim. Você é uma conselheira de valor. É difícil para você, sendo cristã católica, ser amiga de um inimigo,
ouvir idéias inimigas.
689
- Sim, senhor.
- Ele a pegou numa armadilha, neh?
- Sim. Mas na verdade ele tinha o direito. Eu não estava
fazendo o que o senhor ordenara. Estava me colocando entre os
pensamentos dele e o senhor. Por favor, aceite as minhas desculpas.
- Continuará a ser difícil. Talvez até mais.
- Sim, senhor. Mas é melhor conhecer os dois lados da
moeda. Muito do que ele disse comprovou-se verdadeiro. Por
exemplo, sobre o mundo sendo dividido por espanhóis e portugueses, sobre os padres contrabandeando armas, por mais impossível de crer que seja. Não deve nunca recear pela minha lealdade,
senhor. Por mais grave que se torne a situação, sempre cumprirei
o meu dever para com o senhor.
- Obrigado. Bem, foi muito interessante o que o Anjin-san
disse, neh? Interessante, mas absurdo. Sim, obrigado, Mariko-san,
você é uma conselheira valiosa. Devo ordenar que você se divorcie
de Buntaro?
- Senhor?
- Bem?
Oh, ser livre. cantou o espírito dela. Oh, minha Nossa Senhora, ser livre!
Lembre-se de quem você é, Mariko, lembre-se do que é. E
lembre-se de que "amor" é uma palavra bárbara.
Toranaga a observava em meio ao grande silêncio. Mosquitos vindos de fora vagavam até as espirais de incenso para disparar imediatamente para a segurança. Sim, ponderou ele, ela é
um falcão. Mas contra que presa eu a lanço?
- Não, senhor - disse Mariko, finalmente. -- Obrigada,
senhor, mas não.
- O Anjin-san é um homem estranho, neh? Tem a cabeça
cheia de sonhos. Ridículo considerar a idéia de atacar os nossos
amigos portugueses, ou o Navio Negro deles. Absurdo acreditar
no que ele fala sobre quatro navios, ou vinte.
Mariko hesitou. - Se ele diz que uma marinha é possível,
senhor, então acredito que seja.
- Não concordo - disse Toranaga enfaticamente. - Mas
você tem razão em que ele serve de equilíbrio contra os outros,
ele e o seu navio de combate. Que curioso - mas que esclarecedor! É como disse Omi: no momento necessitamos dos bárbaros, para aprender com eles. E ainda há muito o que aprender,
particularmente com ele, neh?
690
- Sim.
- É tempo de abrir o império, Mariko-san. Ishido o fechará
tão apertado quanto uma ostra. Se eu fosse presidente dos regentes novamente, faria tratados com qualquer nação, desde que
amistosa. Enviaria homens para aprender com as outras nações,
sim. e enviaria embaixadores. A rainha deste homem seria um
bom começo. Para uma rainha talvez eu devesse enviar uma
embaixadora, se ela fosse inteligente o bastante.
- Ela teria que ser muito inteligente e muito forte, senhor.
- Sim. Seria uma viagem perigosa.
- Todas as viagens são perigosas, senhor - disse Mariko.
- Sim. - Novamente Toranaga se desviou sem avisar:
- Se o Anjin-san partisse com o seu navio carregado de ouro,
será que retornaria? Ele mesmo?
Após um longo tempo, ela disse: - Não sei.
Toranaga resolveu não pressioná-la agora. - Obrigado,
Mariko-san disse numa dispensa cordial. Quero que esteja
presente à reunião, para traduzir ao Anjin-san o que eu disser.
- Tudo, senhor?
- Sim. E esta noite, quando for à casa de chá para comprar
o contrato de Kiku, leve o Anjin-san com você. Diga à consorte
dele que tome as providências. Ele necessita de uma recompensa, neh?
- Hai.
Quando ela se encontrava junto à shoji, Toranaga disse:
- Uma vez que a questão entre mim e Ishido esteja resolvida,
ordenarei que você se divorcie.
A mão dela se crispou sobre a tela. Assentiu ligeiramente
em agradecimento. Mas não olhou para trás. A porta fechou-se.
Toranaga observou a fumaça um instante, depois se levantou, encaminhou-se para o jardim, até a latrina, e se acocorou. Quando
terminou e usou o papel, ouviu um criado puxar o recipiente de
sob o buraco para substituí-lo por outro limpo. Os mosquitos zumbiam e ele os afastou distraidamente. Estava pensando em falcões
e gaviões, sabendo que até os maiores falcões cometem erros,
como Ishido, e Kiri, e Mariko, e Omi, e até o Anjin-san.
Os cento e cinqüenta oficiais estavam alinhados em fileiras,
Yabu, Omi e Buntaro à frente. Mariko estava ajoelhada perto de
Blackthorne, ao lado. Toranaga marchou sala adentro com a sua
691
guarda pessoal, e sentou-se sobre a almofada solitária, encarando-os.
Agradeceu-lhes a mesura, depois informou-os resumidamente
sobre a essência do despacho e expôs diante deles, pela primeira
vez publicamente, seu plano de batalha definitivo. Novamente
omitiu a parte que se relacionava com as secretas e cuidadosamente planejadas insurreições, e também o fato de que o ataque
tomaria a estrada nordeste e não a estrada costeira de sudeste.
E, para aclamação geral - pois todos os seus guerreiros ficaram
contentes de que finalmente a incerteza chegasse ao fim -, disselhes que quando as chuvas cessassem ele pronunciaria as palavras em código "Céu Carmesim", o que os lançaria ao ataque.
- Nesse meio tempo, espero que Ishido ilegalmente reúna um
novo conselho de regentes. Espero ser falsamente impedido. Espero que a guerra seja declarada contra mim, contra a lei. - Inclinou-se para a frente, o punho esquerdo caracteristicamente
apoiado na coxa, o outro apertado à espada.
- Ouçam. Eu apóio o testamento do táicum e reconheço
meu sobrinho Yaemon como kwampaku e herdeiro do táicum.
Não desejo outras honras. Mas se for atacado por traidores, devo
me defender. Se traidores iludirem Sua Alteza Imperial e tentarem assumir o poder, é meu dever defender o imperador e banir
o mal. Neh?
Um troar de aprovação saudou o comentário. Gritos de batalha de "Kasigi" e "Toranaga" se derramaram pela sala, para
ecoarem por toda a fortaleza.
- O regimento de ataque será preparado para embarcar
dentro de cinco dias em galeras com destino a Yedo, Toda Buntaro-san comandando, Kasigi Omi-san como segundo em comando. O Senhor Kasigi Yabu, por favor, mobilizará Izu e ordenará
que seis mil homens se postem nas passagens da fronteira, para
o caso de o traidor Ikawa Jikkyu atacar o sul para cortar as nossas
linhas de comunicação. Quando as chuvas cessarem, Ishido atacará o Kwanto :. .
Omi, Yabu e Buntaro silenciosamente concordaram com a
sabedoria de Toranaga em omitir a informação sobre a decisão
daquela tarde de deslanchar o ataque na estação chuvosa, imediatamente.
Isso causará um impacto, disse-se Omi, os intestinos se contorcendo ante o pensamento de combater sob a chuva através das
montanhas de Shinano.
692
- Nossos atiradores romperão caminho à força dissera
Yabu entusiasticamente aquela tarde.
- Sim - concordara Omi, não confiando no plano mas
não tendo alternativa para oferecer. É loucura, disse a si mesmo,
embora estivesse encantado com a promoção a segundo em comando. Não compreendo como Toranaga pode conceber que haja
qualquer chance de êxito na estrada nordeste.
Não há chance alguma, disse-se ele novamente, e semicerrou
os ouvidos à estimulante exortação de Toranaga, a fim de se
permitir concentrar-se mais uma vez no problema da sua vingança. Certamente o ataque em Shinano dará a você dezenas de
oportunidades para manipular Yabu na linha de frente, sem risco
para você mesmo. Guerra, qualquer guerra lhe será vantajosa,
desde que não seja perdida...
Então ouviu Toranaga dizer: Hoje quase fui morto. Ho ie
o Anjin-san arrancou-me cia terra. Esta é a segunda vez, talvez até
a terceira, que ele me salva a vida. Minha vida não é nada em
relação ao futuro do meu clã, e quem pode dizer se eu teria
vivido ou morrido sem a ajuda dele? Mas, embora seja hushido
que vassalos nunca devem esperar recompensa por qualquer serviço, é dever de um suserano conceder favores de tempos em
tempos.
Entre a aclamação geral, Toranaga disse: Anjin-san, sente-se aqui! Mariko-san, você também.
Ciumenta mente Omi observou o homem altaneiro se erguer
e se ajoelhar no ponto que Toranaga indicara, ao seu lado, e não
houve um homem na sala que não desejasse ter tido ele próprio
a boa fortuna de fazer o que o bárbaro fizera.
- Ao Anjin-san é concedido um feudo próximo a aldeia
pesqueira de Yokohama. ao sul de Yedo, no valor de dois mil
kokus anuais, e direito de recrutar duzentos assistentes samurais.
direitos absolutos de samurai e haturnoto da casa de Yoshi Toranaga-noh-Chikitada-Minowara. Além disso, receberá dez cavalos,
vinte quimonos, junto com equipamento de batalha completo para
os seus vassalos. E o posto de almirante-chefe e piloto do Kwanto.
- Toranaga esperou até que Mariko tivesse traduzido, depois
chamou: - Naga-san!
Obedientemente Naga trouxe a Toranaga o pacote embrulhado em seda. Toranaga atirou longe o envoltório. Havia duas
espadas, uma curta, a outra, a espada mortífera. -- Notando
que a terra engolira as minhas espadas e que eu estava desarmado,
o Anjin-san desceu novamente ao abismo para buscar as suas e
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me dar. Anjin-san, dou-lhe estas em troca. Foram feitas pelo
mestre artesão, Yori-ya. Lembre-se, a espada é a alma do samurai. Se ele a esquece, ou a perde, nunca será perdoado.
Para aclamação ainda maior, e inveja individual igualmente
maior, Blackthorne pegou as espadas, curvou-se corretamente, e
colocou-as no sash, curvando-se novamente em seguida.
- Obrigado, Toranaga-sama. Concede-me muita honra.
Obrigado.
Começou a se afastar, mas Toranaga mandou-o ficar. -
Não, sente-se aqui, ao meu lado, Anjin-san. - Toranaga olhou
de novo para o rosto militante e fanático dos seus oficiais.
Imbecis! Tinha ele vontade de gritar. Não compreendem
que a guerra, tanto agora como depois das chuvas, só seria
desastrosa? Qualquer guerra com Ishido-Ochiba-Yaemon e seus
atuais aliados terminaria em massacre de todos os meus aliados,
todos vocês, e aniquilação de mim e de toda a minha linhagem?
Não compreendem que não tenho chance senão aguardando, e
esperando que Ishido se estrangule?
Mas, em vez disso, incitou-os ainda mais, pois era essencial
desconcertar o inimigo.
- Ouçam, samurais: logo serão capazes de provar o seu
valor, homem a homem, como os nossos antepassados fizeram.
Destruirei Ishido e todos os seus traidores, e o primeiro será
Ikawa Jikkyu. Por isso dôo todas as terras dele, as duas províncias de Suruga e Totomi, no valor de trezentos mil kokus, ao
meu fiel vassalo Kasigi Yabu, e, em Izu, confirmo-o, e à sua
descendência, como governantes.
Uma estrondosa aclamação. Yabu ficou rubro de júbilo.
Omi martelava o chão, gritando de modo igualmente exultante. Agora a sua presa era ilimitada, pois por costume o herdeiro
de Yabu herdaria todas as suas terras.
Então seus olhos se fixaram no Anjin-san, que aplaudia
vigorosamente. Por que não deixar o Anjin-san fazê-lo por você,
perguntou-se ele, e riu alto ante o pensamento imbecil. Buntaro
inclinou-se para ele e deu-lhe um tapinha no ombro, amavelmente interpretando mal a risada como felicidade por Yabu.
- Logo você terá o feudo que merece, neh? - gritou por sobre
o tumulto. - Você também merece reconhecimento. Suas idéias
e conselhos são valiosos.
- Obrigado, Buntaro-san.
- Não se preocupe. Podemos atravessar quaisquer montanhas.
- Sim. - Buntaro era um feroz general de batalha e Omi
sabia que estavam bem combinados: Omi, o audacioso estrategista, Buntaro, o destemido líder de ataque.
Se há alguém que pode nos fazer atravessar as montanhas,
é ele.
Houve uma outra explosão de alegria quando Toranaga ordenou que trouxessem saquê, encerrando a reunião formal.
Omi tomou seu saquê e observou Blackthorne esvaziar outro
cálice, seu quimono em ordem, as espadas corretas, Mariko ainda
falando. Você mudou muitíssimo, Anjin-san, desde aquele primeiro
dia, pensou ele satisfeito. Ainda tem muitas das suas idéias estranhas, mas está quase se tornando civilizado ...
- O que há, Omi-san?
- Nada... nada, Buntaro-san...
- Você está com o ar que teria se um eta lhe tivesse esfregado as nádegas no rosto!
- Não é nada disso... em absoluto! Iiiiiih, é exatamente
9 oposto. Tive o começo de uma idéia. Beba! Ei, Flor de Pêssego,
traga mais saquê, o meu Senhor Buntaro está com o cálice vazio!
- Tenho instruções de indagar se Kiku-san estaria livre
esta noite - disse Mariko.
- Oh, sinto muito, Senhora Toda, mas não estou certa -
disse cordialmente Gyoko, a Mama-san. - Posso perguntar se
o honrado cliente solicitaria a Senhora Kiku para a noite toda
ou parte dela, ou talvez até amanhã, se ela já não estiver comprometida?
A Mama-san era unia mulher alta, elegante, no começo dos
cinqüenta, com um sorriso adorável. Mas bebia saquê demais,
seu coração era um ábaco, e o nariz podia sentir o cheiro de uma
única moeda de prata a cinqüenta ris de distância.
As duas mulheres encontravam-se numa sala de oito esteiras,
contíguas aos aposentos privados de Toranaga. Fora destinada
a Mariko e dava para um pequeno jardim, fechado pelo primeiro
dos muros internos de defesa. Chovia novamente e os pingos
faziam archotes faiscar.
CAPÍTULO 40
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695
- Isso seria um assunto que caberia ao cliente decidir -
disse Mariko delicadamente. - Talvez se pudesse fazer um acordo agora que abrangesse qualquer eventualidade.
- Sinto muito, por favor, desculpe-me por eu não saber
da disponibilidade dela imediatamente. Ela é muito procurada,
Senhora Toda. Estou certa de que compreende.
- Oh, sim, claro. Somos realmente muito afortunados de
ter uma dama da sua qualidade aqui em Anjiro. - Mariko acentuara o "Anjiro". Mandara chamar Gyoko ao invés de ir visitá-la,
como poderia ter feito. E quando a mulher chegara, tarde o
suficiente para ser distinta, mas não o suficiente para ser rude,
Mariko ficara contente com a oportunidade de terçar armas com
uma adversária tão à sua altura.
- A casa de chá ficou muito danificada? - perguntou.
- Não, felizmente, com exceção de alguma louça de valor
e roupas, embora vá custar uma pequena fortuna para reparar o
telhado e pôr ordem no jardim. É sempre tão dispendioso conseguir que as coisas sejam feitas rapidamente, não acha?
- Sim. É muito cansativo. Em Yedo, em Mishima, ou mesmo nesta aldeia.
- É tão importante ter arredores tranqüilos, neh? O cliente
nos honraria, talvez, na casa de chá? Ou desejaria que Kiku-san
o visitasse aqui, se ela estiver disponível?
Mariko franziu os lábios, pensando. - Na casa de chá.
- Ah, so desu! - O verdadeiro nome de Mama-san era
Heiko-ichi, Primeira Filha do Construtor de Muros. Seu pai e
seu avô tinham sido especialistas na construção de muros de
jardim. Durante muitos anos ela fora cortesã em Mishima, a
capital de Izu, atingindo a categoria de segunda classe. Mas os
deuses lhe sorriram e, com presentes do seu protetor, associados
a um astuto senso de negócios, juntara dinheiro suficiente para
comprar o próprio contrato a bom tempo e assim tornar-se uma
empresária de damas, com uma casa de chá própria, quando
deixara de ser procurada pelo corpo excelente e o espírito atrevido com que os deuses a haviam dotado. Agora se chamava
Gyoko-san, Senhora Sorte. Aos catorze anos, ainda cortesã iniciante, recebera o nome de Tsukaiko - Senhora Encantadora
de Cobras. Sua proprietária lhe explicara que aquela parte especial
do homem podia ser comparada a uma cobra, que cobras davam
sorte, e que se ela conseguisse se tornar uma encantadora de
cobras, nesse sentido, teria um êxito imenso. Além disso o nome
696
faria os clientes rir, e o riso era essencial naquele negócio. Gyoko
nunca se esquecera da advertência sobre o riso.
- Saquê, Gyoko-san?
-- Sim, obrigada, Senhora Toda, obrigada.
A criada serviu. Depois Mariko dispensou-a.
Beberam silenciosamente um momento. Mariko tornou a encher os cálices.
- Que louça adorável. Tão elegante - disse Gyoko.
-- É muito pobre. Sinto muito que tenhamos que usá-la.
- Se eu conseguisse deixá-la disponível, cinco kobans seriam
uma soma aceitável? - Um koban era uma moeda de ouro que
pesava dezoito gramas. Equivalia a três kokus de arroz.
- Desculpe, talvez eu não me tenha feito clara. Não desejava comprar toda a casa de chá de Mishima, apenas os serviços
da dama por uma noite.
Gyoko riu. - Ah, Senhora Toda, sua reputação é bem
merecida. Mas posso assinalar que Kiku-san é de primeira categoria? A corporação concedeu-lhe essa honra no ano passado.
- Estou certa de que a classificação é merecida. Mas isso
foi em Mishima. Mesmo em Kyoto... mas é claro que a senhora
estava fazendo pilhéria, desculpe.
Gyoko engoliu a vulgaridade que lhe estava na ponta da
língua e sorriu benevolamente. - Infelizmente eu teria que reembolsar os clientes que, se bem me lembro, já reservaram. Pobre
criança, quatro dos seus quimonos ficaram arruinados quando a
água extinguiu as chamas. Tempos difíceis se aproximam, senhora.
Tenho certeza de que compreende. Cinco não seria irrazoável.
- Claro que não. Cinco seria justo em Kyoto, para uma
semana de orgia, com duas damas de primeira classe. Mas os
tempos não são normais e é preciso fazer economias. Meio
koban. Saquê, Gyoko-san?
- Obrigada, obrigada. O saque é muito bom, a qualidade
é excelente, excelente. Só mais um, por favor, depois tenho que
ir. Se Kiku-san não estiver livre esta noite, ficaria encantada em
combinar com uma das outras damas. Akeko, talvez. Ou talvez
outro dia seria satisfatório? Depois de amanhã, talvez?
Mariko não respondeu por um instante. Cinco kobans era
um ultraje - tanto quanto se pagaria por uma famosa cortesã
de primeira classe em Yedo. Meio koban seria mais que razoável
para Kiku. Mariko conhecia os preços das cortesãs porque Buntaro as usava de tempos em tempos, chegara até a comprar o
contrato de uma, e ela tivera que pagar as contas, as quais, como
697
era natural e correto, tinham-lhe sido encaminhadas. Seus olhos
avaliaram Gyoko. A mulher sorvia seu saquê calmamente, a mão
firme.
- Talvez - disse Mariko. - Mas não creio, nem outra
dama nem outra noite... Não, se não puder combinar para esta
noite, receio que depois de amanhã seria tarde demais, sinto
muito. E quanto a uma outra dama. .. - Mariko sorriu e deu
de ombros.
Gyoko pousou o cálice tristemente. - Ouvi dizer, realmente,
que os nossos gloriosos samurais estão de partida. Que pena! As
noites são tão agradáveis aqui. Em Mishima não se tem a brisa
do mar como aqui. Também sentirei muito partir daqui.
- Talvez um koban. Se este acordo for satisfatório, depois
eu gostaria de discutir quanto custaria o contrato dela.
- O contrato dela!
- Sim. Saque?
- Sim, obrigada. Contrato... o contrato dela? Bem, isso é
outra coisa. Cinco mil kokus.
- Impossível!
- Sim - concordou Gyoko -, mas Kiku-san é como se
fosse minha filha. É minha filha, mais do que a minha própria
filha. Eduquei-a desde os seis anos de idade. É a dama do Mundo
do Salgueiro mais completa de toda Izu. Oh, eu sei, em Yedo a
senhora encontraria damas formidáveis, mais espirituosas, mais
mundanas, mas isso só porque Kiku-san não teve a boa fortuna
de cruzar com a mesma qualidade de pessoas. Mas mesmo agora,
nenhuma se equipara em canto e no samisen. Juro por todos os
deuses. Dê-lhe um ano em Yedo, com o protetor certo e as fontes
de conhecimento, e ela competirá satisfatoriamente com qualquer
cortesã do império. Cinco mil kokus é uma soma pequena por
uma flor como ela. - A perspiração porejava na testa da mulher.
- A senhora deve me desculpar, mas nunca considerei antes a
venda do contrato dela. Mal tem dezoito anos, é imaculada. Na
realidade penso que jamais poderei vender-lhe o contrato, mesmo
pelo preço mencionado. Não, acho que terei que reconsiderar,
sinto muito. Talvez pudéssemos discutir isso amanhã. Perder Kiku-san? Minha pequena Kiku-chan? - Lágrimas juntaram-se nos
cantos dos olhos da mulher e Mariko pensou: essas lágrimas são
tão autênticas, Gyoko, quanto o fato de você nunca ter-se entregado a um Pilão Magnífico.
- Sinto muito. Shigata ga nai, neh? - disse cortesmente,
e deixou a mulher lamentar-se e chorar, enchendo-lhe continua698
mente o cálice. Quanto será que o contrato vale realmente? perguntava a si mesma. Quinhentos kokus seria fantasticamente mais
do que justo. Depende da ansiedade do homem, que neste caso
não está ansioso. Certamente o Senhor Toranaga não está. Para
quem estará comprando? Omi? Provavelmente. Mas por que Toranaga ordenou que o Anjin-san viesse aqui?
- Concorda, Anjin-san? - perguntara-lhe com um riso
nervoso, por sobre a turbulência dos oficiais embriagados.
- Está dizendo que o Senhor Toranaga arranjou uma dama
para mim? Como parte da minha recompensa?
- Sim. Kiku-san. Dificilmente o senhor poderia recusar.
Eu ... recebi ordem de interpretar.
- Ordem?
- Oh, ficarei feliz em interpretar para o senhor. Mas,
Anjin-san, o senhor de fato não pode recusar. Seria terrivelmente
descortês, depois de tantas honras, neh? - Ela lhe sorrira, desafiando-o, orgulhosa e encantada com a inacreditável generosidade
de Toranaga. - Por favor. Nunca estive numa casa de chá ...
adoraria ver a mim mesma conversando com uma autêntica dama
do Mundo do Salgueiro.
- O quê?
- Oh, elas são chamadas assim porque se supõe que sejam
tão graciosas quanto salgueiros. Às vezes é Mundo Flutuante,
porque são comparadas a lírios flutuando num lago. Vamos,
Anjin-san, concorde, por favor.
- E Buntaro-sarna?
- Oh, ele sabe que devo fazer os arranjos para o senhor.
O Senhor Toranaga lhe disse. É tudo muito difícil, naturalmente.
Recebi ordem. O senhor também! - Depois dissera em latim,
muito contente de que mais ninguém em Anjiro falasse a língua:
- Há uma outra razão que lhe direi mais tarde.
- Ah ... diga agora.
- Mais tarde. Mas concorde, com prazer. Porque eu estou
pedindo.
- A senhora... como posso lhe recusar?
- Mas com prazer. Tem que ser com prazer. Prometa!
- Com riso. Prometo que tentarei. Não lhe prometo nada
além de que tentarei fazer o melhor.
Depois ela o deixara se preparar.
- Oh, fico perturbada com o simples pensamento de vender
o contrato da minha beldade - estava gemendo Gyoko. - Sim,
obrigada, só mais um pouco de saquê. Depois realmente tenho
699
que ir embora. - Esvaziou o cálice e estendeu-o debilmente
para ser enchido de novo. - Digamos dois kobans para esta
noite... uma prova do meu desejo de agradar a uma senhora de
tanto mérito?
- Um. Se isso for combinado, talvez possamos falar mais
sobre o contrato, esta noite, na casa de chá. Sinto muito por ser
precipitada, mas o tempo, a senhora compreende. . . - Mariko
acenou vagamente na direção da sala de conferência. - Negócios
de Estado... o Senhor Toranaga... o futuro do reino... a
senhora compreende, Gyoko-san.
- Oh, sim, Senhora Toda, naturalmente. - Gyoko começou a se levantar. - Estamos de acordo em um kohan e meio
para a noite. Ótimo, então isso está ...
- Um.
-- Oh ko, senhora, o meio koban é um mero símbolo e
nem merece discussão - lamuriou-se Gyoko, agradecendo aos
deuses pela sua sagacidade e mantendo a angústia fingida no
rosto. Um koban e meio seria paga tripla. Mas, mais do que o
dinheiro, aquilo era, finalmente, o primeiro convite vindo da
aristocracia autêntica de todo o Japão, coisa de que vinha atrás
há muito tempo, pela qual ela de bom grado aconselharia Kiku-san
a fazer tudo por nada, duas vezes. - Por todos os deuses,
Senhora Toda, coloco-mc à sua mercê, um kohan e meio. Por
favor, pense nas minhas outras crianças, que têm que ser vestidas
e treinadas e alimentadas durante anos, que não se tornam tão
inestimáveis como Kiku-san, mas que têm que ser nutridas
como ela.
- Um koban, de ouro, amanhã. Neh?
Gyoko ergueu o frasco de porcelana e encheu dois cálices.
Ofereceu um a Mariko, bebeu o outro, e tornou a encher o seu
imediatamente. - Um - disse ela, a voz abafada.
- Obrigada, é muito gentil e atenciosa. Sim, os tempos estão
difíceis. - Mariko sorveu o seu vinho afetadamente. - O Anjinsan e eu estaremos na casa de chá dentro em breve.
- Hein? O-que-foi-que-disse?
- Que o Anjin-san e eu logo estaremos na casa de chá.
Vou interpretar para ele.
- O bárbaro? - exclamou Kiku, boquiaberta.
- O bárbaro. E estará aqui a qualquer momento, a menos
que o detenhamos... com ela, a hárpia mais cruel e avarenta
700
que já conheci, que renasça como prostituta de décima quinta
categoria!
Apesar do seu temor, Kiku riu francamente. - Oh, Mamasan, por favor, não se aflija! Ela parece uma senhora tão adorável,
e um koban inteiro... a senhora realmente fez um negócio
maravilhoso! Ora, ora, temos muito tempo. Primeiro um pouco
de saque para dissipar o seu azedume. Ako, rápida como um
beija-flor!
Ako desapareceu.
- Sim, o cliente é o Anjin-san. - Gyoko quase sufocou de
novo.
Kiku abanou-a e Hana, a pequena aprendiz, abanou-a e
segurou-lhe ervas aromáticas junto ao nariz. - Pensei que ela
estivesse negociando para o Senhor Buntaro... ou o próprio
Senhor Toranaga. Claro que quando ela disse que era o Anjin-san
eu perguntei por que a consorte dele mesma, a Senhora Fujiko,
não negociou, conforme a educação correta determina, mas tudo
o que ela disse foi que a senhora está seriamente doente, com
queimaduras, e ela recebeu ordem do próprio Senhor Toranaga
de conversar comigo.
- Oh! Oh, como eu seria afortunada de servir ao senhor!
- Você o fará, criança, fará se nós planejarmos. Mas o
bárbaro! O que pensarão todos os seus outros clientes? O que
dirão? Claro que deixei a coisa em suspenso, dizendo à Senhora
Toda que não sabia se você estava livre, portanto você ainda
pode recusá-lo se quiser, sem ofensa.
- O que os outros clientes podem dizer? O Senhor Toranaga
ordenou isso. Não há nada a fazer, neh? - Kiku dissimulou a
própria apreensão.
- Oh, você pode recusar facilmente. Mas tem que ser rápida, Kiku-chan. Oh ko, eu devia ter sido mais esperta... devia.
- Não se preocupe, Gyoko-sama. Tudo dará çerto. Mas
temos que pensar com clareza. É um grande risco, neh?
- Sim. Enorme.
- Nunca poderemos voltar atrás se aceitarmos.
- Sim. Eu sei.
- Aconselhe-me.
- Não posso, Kiku-chan. Sinto que fui pega numa armadilha por kamis. A decisão deve ser sua.
Kiku avaliou todos os horrores. Depois avaliou as vantagens.
- Vamos arriscar. Vamos aceitá-lo. Afinal de contas, é samurai,
e hatainoto, e o vassalo favorito do Senhor Toranaga. Não se
701
esqueça do que disse o adivinho: que eu a ajudaria a ficar rica
o famosa para sempre. Rezo para poder fazer isso, para poder
retribuir-lhe todas as gentilezas.
Gyoko acariciou o adorável cabelo de Kiku. - Oh, criança,
você é tão boa, obrigada, obrigada. Sim, acho que é sábia.
Concordo. Deixemos que ele nos visite. - Beliscou-lhe a maçã
do rosto afetuosamente. - Você sempre foi a minha favorita!
Mas eu teria pedido o dobro pelo almirante bárbaro, se soubesse.
- Mas conseguimos o dobro, Mama-san.
- Deveríamos receber o triplo!
Kiku deu um tapinha na mão de Gyoko. - Não se preocupe... este é o começo da sua boa fortuna.
- Sim, e é verdade que o Anjin-san não é nenhum bárbaro
comum, mas um samurai e hatamoto. A Senhora Toda contou-me
que ele recebeu um feudo de dois mil kokus, foi feito almirante
de todos os navios de Toranaga, e toma banho como uma pessoa
civilizada e não fede mais. . .
Ako chegou sem fôlego e serviu o vinho sem derramar uma
gota. Quatro cálices desapareceram em rápida sucessão. Gyoko
começou a se sentir melhor. - Esta noite tem que ser perfeita.
Sim. Se o Senhor Toranaga ordenou, claro que tem que ser. Ele
não ordenaria pessoalmente se não fosse importante para ele
pessoalmente, neh? E o Anjin-san é realmente como um daimio.
Dois mil kokus anuais... por todos os kafnis, devíamos mesmo
ter uma sorte tão boa! Kiku-san, ouça! - Chegou mais perto, e
o mesmo fez Ako, toda olhos. - Perguntei à Senhora Toda,
vendo que ela falava a infame linguagem deles, se conhecia
alguns dos estranhos costumes ou modos deles, histórias, danças,
posições, canções, instrumentos ou estimulantes que o Anjin-san
preferiria.
- Ah, isso seria muito útil, muito - disse Kiku, assustada
o desejando ter tido a prudência de recusar.
- Ela não me disse nada! Fala a língua deles mas não
conhece nada sobre os hábitos de "travesseiro". Perguntei-lhe se
já lhe havia perguntado alguma vez e ela disse que sim, mas
com resultados desastrosos. - Gyoko relatou o ocorrido no
Castelo de Osaka. - Você pode imaginar como isso deve ter
sido embaraçoso!
- Pelo menos sabemos que não devemos sugerir meninos ...
já é alguma coisa.
- Além disso, há apenas a criada da casa!
- Ternos tempo para mandar buscar a criada?
702
- Fui lá eu mesma. Direto à fortaleza. Nem um mês de
salário abriu a boca da garota, carunchinho estúpido!
- Ela é apresentável?
- Oh, sim, para uma criada amadora e destreinada. Tudo
o que disse foi que o amo era viril e não era pesado, que
"travesseirava" abundantemente, na posição mais comum. E que
era generosamente dotado.
- Isso não ajuda muito, Mama-san.
- Eu sei. Talvez oo melhor a fazer seja ter tudo preparado,
só para o caso de ser necessário. Tudo.
- Sim. Simplesmente terei que ser mais cautelosa. É muito
importante que saia tudo perfeito. Será muito difícil - se não
impossível - entretê-lo corretamente se eu não conversar com ele.
- A Senhora Toda disse que interpretaria.
- Ah, que gentileza da parte dela. Isso ajudará enormemente, embora não seja a mesma coisa, claro.
- É verdade, é verdade. Mais saque, Alço ... graciosamente, criança, sirva graciosamente. Mas Kiku-san, você é uma
cortesã de primeira classe. Improvise. O almirante bárbaro salvou
a vida do Senhor Toranaga hoje, e senta-se à sombra dele.
Nosso futuro depende de você! Sei que conseguirá lindamente.
Ako!
- Sim, ama!
- Certifique-se de que os futons estejam perfeitos, que tudo
esteja perfeito. Veja que as flores... não. Eu mesma cuidarei
das flores! E o Cozinheiro, onde está o Cozinheiro? - Deu um
tapinha no joelho de Kiku. - Use o quimono dourado, com
o verde por baixo. Temos que impressionar muito a Senhora
Toda esta noite. - Saiu correndo para começar a pôr a casa em
ordem, todas as damas, criadas. aprendizes e empregados apressados limpando e ajudando, muito orgulhosos da boa fortuna
que tocara a sua casa.
Quando tudo ficou arrumado, o horário das outras garotas
reajustado, Gyoko foi para o seu quarto e deitou-se um instante
para recuperar as forças. Ainda não havia falado a Kiku sobre
a oferta do contrato.
Vou esperar e ver, pensou. Se conseguir fazer o acordo
que pretendo, então talvez eu deixe a minha adorável Kiku partir.
Mas nunca antes de saber com quem. Fico contente por ter tido
a antevisão de deixar isso claro à Senhora Toda antes de vir
embora. Por que está chorando, sua velha tola? Está bêbada de
703
novo? Ponha os miolos a funcionar! De que lhe serve a infelicidade?
- Hana-chan!
- Sim, Mãe-sama? - A criança veio correndo a ela. Seis
anos recém-completados, grandes olhos castanhos, e um cabelo
longo, encantador. Usava um quimono novo, de seda escarlate.
Gyoko a comprara há dois dias, por intermédio de Mura e do
vendedor de crianças local.
- O que acha do seu novo nome, criança?
- Oh, gosto muitíssimo, muitíssimo. Estou honrada, Mãesarna!
O nome significava "Pequena Flor" - assim como Kiku
significava "Crisântemo" -, e Gyoko o dera a ela no primeiro dia.
- Sou sua mãe agora - dissera-lhe, gentilmente mas com
firmeza, ao pagar o preço e tomar posse da menina, maravilhada
de que tanta beleza potencial pudesse surgir de uma pescadora
tão grosseira como a rotunda mulher Tarasaki. Após quatro
dias de barganha intensa, pagara um koban pelos serviços da
criança até a idade de vinte anos, o suficiente para alimentar a
família Tamasaki durante dois anos. - Vá buscar um pouco de
chá, depois o meu pente e algumas folhas de chá aromático para
me tirar o saque do cérebro.
- Sim, Mãe-sama. - Saiu na disparada cegamente, sem
fôlego, ávida por agradar, e colidiu com as saias de Kiku, leves
como teia, na soleira da porta.
- Oh, oh, oh, descuuuuuulpe...
- Deve tomar cuidado, Hana-chan.
- Desculpe, desculpe, Irmã Mais Velha. . . - Hana-chan
estava quase em lágrimas.
- Por que está triste, Pequena Flor? Pronto, pronto - disse
Kiku, secando-lhe as lágrimas ternamente. - Nesta casa eliminamos a tristeza. Lembre-se, nós do Mundo do Salgueiro nunca
precisamos de tristeza, criança, pois que bem faria isso? A tristeza
nunca agrada. Nosso dever é agradar e ser alegres. Corra, criança,
mas gentilmente, gentilmente, seja graciosa. -- Kiku voltou-se e
se mostrou à mulher mais velha, com um sorriso radiante. - Isto
lhe agrada, Ama-san?
Blackthorne olhou para ela e murmurou: - Aleluia!
- Esta é Kiku-san - disse Mariko formalmente, exultante
com a reação dele.
704
A garota entrou no aposento com um roçar de seda, ajoelhou-se, curvou-se e disse alguma coisa que Blackthorne não
entendeu.
- Ela diz que o senhor é bem-vindo, que honra esta casa.
Domo - disse ele.
Do itashimnashité. Saque, Anjin-san? - disse Kiku.
- Hai, domo.
Blackthorne observou-lhe as mãos perfeitas buscar o frasco
com .precisão, certificar-se de que a temperatura estava correta,
depois encher o cálice que ele ergueu para ela, conforme Mariko
lhe mostrara, com mais graça do que ele imaginara possível.
- Promete que se comportará como um japonês, de verdade? - perguntara Mariko quando saíram da fortaleza, ela no
palanquim, ele caminhando ao lado, descendo o caminho que
coleava até a aldeia e a praça que ficava de frente para o mar.
Carregadores de archotes avançavam à frente e atrás deles. Dez
samurais os acompanhavam, como guarda de honra.
- Tentarei, sim - disse Blackthorne. -- O que devo fazer?
- A primeira coisa que deve fazer é esquecer o que o
senhor tem que fazer e simplesmente se lembrar de que esta noite
é dedicada apenas ao seu prazer.
Este foi o melhor dia da minha vida, pensava ele. E esta
noite... que tal esta noite? Estava excitado com o desafio e determinado a tentar ser japonês, apreciar tudo e não ficar embaraçado.
- Quanto ... quanto é que a noite ... bem ... vai custar?
- perguntara.
- Isso é muito
não-japonês, Anjin-san - censurou-o ela.
- O que é que tem a ver? Fujiko-san concordou que o trato era
satisfatório.
Ele vira Fujiko antes de sair. O médico a visitara e trocara
as bandagens e lhe dera remédios de ervas. Estava orgulhosa das
honras e do feudo e havia tagarelado muito, não demonstrando
dor, contente por ele estar indo à casa de chá - claro, Mariko-san
a consultara e tudo fora arranjado, como Mariko-san era boa!
Que pena que ela tivesse aquelas queimaduras e não tivesse podido
fazer os arranjos pessoalmente. Ele tocara a mão de Fujiko antes
de sair, gostando dela. Ela lhe agradecera, desculpara-se de novo,
e se despedira, esperando que ele tivesse uma noite maravilhosa.
Gyoko e as criadas esperavam cerimoniosamente ao portão
da casa de chá para saudá-lo.
- Esta é Gyoko-san, a Mama-san aqui.
- Muito honrada, Anjin-san, muito honrada.
705
- Mama-san? Quer dizer "mamãe"? "Mãe"'? É o mesmo que
em inglês, Mariko-san. "Mama"... "momuny"... "mother".
- Oh! É quase a mesma coisa, mas desculpe, "mcuna-san"
só quer dizer "madrasta" ou "parente adotivo", Anjin-san. "Mãe"
é "haha-san" ou "oba-san".
Num instante Gyoko se desculpou e se afastou às pressas.
Blackthorne sorriu para Mariko. Ela estivera como uma criança,
olhando tudo de olhos arregalados. - Oh, Anjin-san, sempre
desejei ver o lado de dentro de um destes lugares. Os homens
têm tanta sorte! Não é lindo? Não é maravilhoso, mesmo numa
aldeia minúscula? Gyoko-san deve ter mandado mestres artesãos
reformar tudo completamente! Olhe a qualidade das madeiras
e... oh, é tão gentil de me permitir estar com o senhor. Nunca
terei outra oportunidade... olhe as flores... que arranjo extraordinário... e, oh, olhe o jardim...
Blackthorne estava muito contente e muito pesaroso de haver
uma criada na sala, e a porta shoji aberta, pois mesmo ali, numa
casa de chá, seria impensável e letal para Mariko ficar sozinha
com ele numa sala.
- A senhora é linda - disse em latim.
- O senhor também. O rosto dela dançava. Estou
muito orgulhosa do senhor, almirante dos navios. E Fujiko também... oh, estava tão orgulhosa que mal conseguia permanecer
imóvel!
-- As queimaduras parecem graves.
- Não tenha receio. Os médicos têm muita prática e ela
é jovem, forte e confiante. Esta noite nada de preocupações .. .
apenas coisas mágicas.
- A senhora é mágica para mim.
Ela agitou o leque, serviu o vinho e não disse nada. Ele
a observou, depois sorriram juntos. - Como há outros aqui e
as línguas se movem, devemos continuar sendo cautelosos. Mas,
oh, estou tão feliz pelo senhor.
- Qual era a outra razão? A senhora disse que havia outra
razão para querer que eu viesse aqui esta noite.
.- Ah, sim, a outra razão. - O mesmo perfume pairava
densamente em torno dele. - É um antigo costume nosso, Anjinsan. Quando uma senhora que pertence a outra pessoa se interessa
por outro homem, e deseja dar-lhe alguma coisa significativa que
é proibido dar, então providencia para que outra lhe tome o lugar
- um presente -, a cortesã mais perfeita que ela puder pagar.
706
- A senhora disse "quando uma senhora se interessa por
alguém". Quer dizer, "ama"?
- Sim. Mas só esta noite.
- Por que esta noite, Mariko-san, por que não antes?
- Esta é uma noite mágica e os kainis caminham conosco.
Eu o desejo.
Então Kiku apareceu à soleira da porta. Aleluia! - E ele
recebeu boas-vindas e foi servido de saque.
- Como digo que a dama é particularmente bonita?
Mariko lhe disse e ele repetiu as palavras. A garota riu alegremente, aceitou o cumprimento, e retribuiu.
- Kiku-san pergunta se o senhor gostaria de que ela cantasse
ou dançasse para o senhor.
- Qual é a sua preferência? perguntou ele em latim.
- Esta dama está aqui apenas para o seu prazer, samurai,
não para o meu.
- E a senhora? Também está aqui para o meu prazer?
- Sim, de certo modo... num sentido muito particular.
- Então, por favor, peça-lhe que cante.
Kiku bateu palmas gentilmente e Ako trouxe o samisen. Era
comprido, de formato semelhante ao de uma guitarra, e de três
cordas. Ako colocou-o em posição no chão e deu o plectro de
marfim a Kiku.
- Senhora Toda - disse Kiku -, por favor, diga ao nosso
honrado hóspede que primeiro cantarei A canção da libélula.
- Kiku-san, eu ficaria honrada se esta noite, aqui, você me
chamasse de Mariko-san.
- É muito gentil comigo, senhora. Por favor, desculpe-me.
Possivelmente eu não conseguiria ser tão descortês.
- Por favor.
- Farei isso, se lhe apraz, embora. . - Seu sorriso foi
adorável. - Obrigada, Mariko-sarna.
Feriu o acorde. Desde o momento em que os hóspedes atravessaram o portão, entrando no mundo dela, todos os seus sentidos tinham-se aguçado. Observara-os secretamente enquanto estavam com Gyoko-san e enquanto estiveram sozinhos, procurando
qualquer indício de como agradá-lo ou como impressionar a
Senhora Toda.
Não estava preparada para o que logo se tornou óbvio: o
Anjin-san desejava a Senhora Toda, embora o dissimulasse tão
bem quanto qualquer pessoa civilizada. Isso, em si, não era de
surpreender, pois a Senhora Toda era muito bonita, completa e,
707
o mais importante, era a única que podia conversar com ele. O que
a assombrou foi que teve certeza de que a Senhora Toda o desejava igualmente, se não mais.
O samurai bárbaro e a senhora samurai, filha patrícia do
assassino Akechi Jinsai, esposa do Senhor Buntaro! Iüih! Pobre
homem, pobre mulher. Muito triste. Com certeza isso vai terminar
em tragédia.
Kiku sentiu-se prestes a irromper em lágrimas ao pensar na
tristeza da vida, na injustiça. Oh, como desejaria ser samurai e
não camponesa, de modo a poder até me tornar consorte de
Omi-sama, não apenas um brinquedo temporário. De bom grado
daria a minha esperança de renascer em troca disso.
Afaste a tristeza. Dê prazer, é esse o seu dever.
Seus dedos feriram um segundo acorde, um acorde cheio de
melancolia. Então notou que embora Mariko estivesse encantada
com a sua música, o Anjin-san não estava.
Por quê? Kiku sabia que não era por causa do seu modo
de tocar, pois tinha certeza de que tocava quase perfeitamente.
Talento como o seu era concedido a poucas.
Um terceiro acorde, mais bonito, experimentalmente. Não
há dúvida, disse-se ela impaciente, isto não lhe agrada. Deixou
que o acorde se extinguisse e começou a cantar sem acompanhamento, sua voz elevando-se com as repentinas mudanças de ritmo
que se levava anos para aprender. Novamente Mariko ficou fascinada, ele não, então imediatamente Kiku parou. - Esta noite
não é para música nem canto -o anunciou. - Esta noite é para
felicidade. Mariko-san, como digo "por favor" na língua dele?
- "Por favor".
- Por favor, Anjin-san, esta noite devemos apenas rir, neh?
- Domo, Kiku-san. Hai.
- É difícil entreter sem palavras, mas não impossível, neh?
Ah, já sei! - Pôs-se em pé e começou a fazer pantomimas
cômicas - daimio, kaga, pescador, falcoeiro, um samurai pomposo, até um velho fazendeiro coletando um balde cheio -, e
as fez tão bem e tão humoristicamente que logo Mariko e Blackthorne estavam rindo e aplaudindo. Então ela ergueu a mão.
Brejeiramente começou a mostrar através de mímica um homem
urinando, segurando-se ou achando falta de alguma coisa, agarrando, procurando o insignificante ou maravilhado com o inacreditável, em todos os estágios de sua vida, começando primeiro
como uma criança molhando a cama e berrando, depois um
rapaz apressado, outro tendo que se deter, outro com tamanho,
708
outro com pequenez ao ponto de "onde foi parar", e finalmente
um homem muito velho gemendo de êxtase simplesmente por ser
capaz de urinar.
Kiku curvou-se ao aplauso e tomou um gole de chá, secando
com tapinhas a leve perspiração da testa. Notou que ele estava
contraindo os ombros e as costas. Oh, por favor, senhor! -
disse em português, e se ajoelhou atrás dele e começou a massagear-lhe a nuca.
Seus dedos experientes imediatamente encontraram os pontos
de prazer. - Oh, Deus, isso é... hei... bem aí!
Ela fez conforme ele pedia. - Seu pescoço logo estará
melhor. Está sentado há muito tempo, Anjin-san!
- Isso é muito bom, Kiku-san. Faz Suwo quase mau!
- Ah, obrigada, Mariko-san, os ombros do Anjin-san são
tão vastos, e a senhora me ajudaria? Cuide do ombro esquerdo,
enquanto eu me ocupo do direito, sim? Desculpe, mas as minhas
mãos não são suficientemente fortes.
Mariko permitiu-se ser persuadida e fez o que ela pedira.
Kiku ocultou o próprio sorriso ao senti-lo retesar-se sob os dedos
de Mariko, e ficou muito satisfeita com as suas improvisações.
Agora o cliente estava sendo satisfeito através do seu talento e
conhecimento, e manobrado como devia ser.
Está melhor, Anjin-san?
Bem, muito bem, obrigado.
Oh, não há de quê. O prazer é meu. Mas a Senhora
Toda é muito mais hábil do que eu. Kiku podia sentir a
atração entre eles. embora tentassem escondê-la. -- Agora um
pouco de comida, talvez. - Veio imediatamente.
- Para o senhor, Anjin-san - disse orgulhosamente. O
prato continha um pequeno faisão, cortado em pedaços minúsculos
assados sobre brasas, com um molho doce de soja. Ela serviu.
- Está delicioso, delicioso - disse ele. E estava.
- Mariko-san?
- Obrigada. - Mariko pegou um pedaço simbólico, que
não comeu.
Kiku segurou uni fragmento nos pauzinhos e mastigou-o corri
prazer.
- Está bom, neh?
- Não, Kiku-san, está ótimo! Ótimo!
- Por favor, Anjin-san, coma mais. - Ela pegou uni segundo bocado. - Há muito.
709
- Obrigado. Por favor. Como foi... como isto? - Apontou para o espesso molho marrom.
Mariko traduziu. - Kiku diz que é açúcar com soja e um
pouco de gengibre. Perguntou se o senhor tem açúcar e soja no
seu país.
- Açúcar de beterraba sim, soja, não, Kiku-san.
- Oh! Como pode alguém viver sem soja? - Kiku tornouse solene. - Por favor, diga ao Anjin-san que temos açúcar aqui
há mil anos. O monge budista Ganjin trouxe-o da China. Todas
as nossas melhores coisas vieram da China, Anjin-san. O chá chegou a nós há cerca de quinhentos anos. O monge budista Eisai
trouxe sementes e plantou-as na província de Chikuzen, onde
nasci. Também trouxe o zen-budismo.
Mariko traduziu com igual formalidade, então Kiku soltou
uma gargalhada. - Oh, desculpe, Mariko-sarna, mas os dois pareciam tão graves. Eu só estava fingindo solenidade em relação ao
chá... como se tivesse importância! Era só para diverti-los.
Observaram Blackthorne terminar o faisão. - Bom - disse
ele. - Muito bom. Por favor, agradeça a Gyoko-san.
- Ela ficará honrada. - Kiku serviu mais saquê para os
dois. Depois, sabendo que era tempo, disse inocentemente: -
Posso perguntar o que aconteceu hoje durante o terremoto? Ouvi
dizer que o Anjin-san salvou a vida do Senhor Toranaga. Consideraria uma honra saber em primeira mão.
Acomodou-se pacientemente, deixando Blackthorne e Mariko
apreciar o relato, juntando um "oh" ou "que aconteceu depois?",
ou servindo saquê, nunca interrompendo, sendo a ouvinte perfeita.
Quando terminaram, Kiku maravilhou-se com a bravura deles
e com a boa fortuna do Senhor Toranaga. Conversaram algum
tempo, depois Blackthorne levantou-se e a criada recebeu ordem
de mostrar-lhe o caminho.
Mariko rompeu o silêncio. - Você nunca tinha comido carne
antes, tinha, Kiku-san?
- É meu dever fazer tudo o que posso para agradá-lo,
só por algum tempo, neh?
- Eu não sabia como uma dama podia ser perfeita. Compreendo agora por que tem sempre que haver um Mundo Flutuante, um Mundo do Salgueiro, e como os homens têm sorte,
como sou inadequada.
- Oh, não tive a intenção, Mariko-sama, nunca. E não é
a nossa intenção. Estamos aqui apenas para agradar, por um
momento fugaz.
710
- Sim. Eu só quis dizer que a admirava muito. Gostaria
que fosse minha irmã.
Kiku curvou-se. - Eu não seria digna dessa honra. - Havia
cordialidade entre elas. - Este é um lugar muito secreto e todo
o mundo merece confiança, não há olhos à espreita. A sala de
prazer no jardim é muito escura, se alguém a desejar escura. E a
escuridão guarda todos os segredos.
- O único modo de guardar um segredo é estar sozinha e
sussurrá-lo dentro de um poço vazio ao meio-dia, neh? - disse
Mariko despreocupadamente, precisando de tempo para se decidir.
- Entre irmãs não há necessidade de poços. Dispensarei a
minha criança até o amanhecer. Nossa sala de prazer é um lugar
muito privado.
Lá você deve ficar sozinha com ele.
Sempre posso ficar sozinha, sempre.
É muito gentil comigo, Kiku-chan, muito atenciosa.
É uma noite mágica. neh? E muito especial.
Noites mágicas terminam cedo demais, Irmãzinha. Noites
mágicas são para as crianças, neh? Não sou uma criança.
- Quem sabe o que acontece numa noite mágica? A escuridão encerra tudo.
Mariko meneou a cabeça. triste, c tocou-a ternamente. -Sim. Mas para cio, se a noite contivesse você, seria tudo.
Kiku fez uma pausa. Depois disse. - Sou um presente para
o Anjin-san? Ele não pediu por mim pessoalmente?
- Se a tivesse visto, como poderia nao pedir? Sinceramente,
é uma honra para ele que você o tenha recebido. Compreendo
isso agora.
- Mas ele me viu unia vez, Mariko-san. Eu estava com
Omi-san quando ele passou a caminho do navio para ir para
Osaka, na primeira vez.
- Oh, mas o Anjin-san disse que viu Midori-san com
Omi-san. Era você? Ao lado do palanquim?
- Sim, na praça. Oh. sim, era eu, Mariko-san, não a senhora
esposa de Orni-sarna. Ele me disse " konaichi wa". Mas, claro, ele
não se lembraria. Como poderia? Foi durante a sua vida anterior, neh?
- Oh, ele se lembra dela, a bela garota com a sombrinha
verde. Disse que era a garota mais bela que já vira. Falou-me dela
muitas vezes. - Mariko estudou-a mais de perto. - Sim, Kiku711
san, você poderia facilmente ser confundida com ela num dia
como aquele, sob a sombrinha.
Kiku serviu saquê e Mariko ficou fascinada pela sua elegância inconsciente. -- Minha sombrinha era verde-mar - disse
Kiku, muito satisfeita de que ele se lembrasse.
- Como era o Anjin-san então? Muito diferente? A Noite
dos Gritos deve ter sido terrível.
- Sim, sim, foi. E ele era mais velho então, a pele do
rosto repuxada... Mas ficamos sérias demais, Irmã Mais Velha.
Ah, não sabe como me sinto honrada em ser autorizada a chamáIa assim. Esta é uma noite de prazer apenas. Nada de seriedade
mais, neh?
- Sim. Concordo. Por favor, perdoe-me.
- Agora, passando a assuntos mais práticos, a senhora me
daria alguns conselhos?
- Pois não - disse Mariko, igualmente amistosa.
- Quanto a "travesseiro", as pessoas do país dele preferem
algum instrumento ou posição de que a senhora esteja a par?
Desculpe por perguntar, mas talvez a senhora pudesse me orientar.
Mariko precisou de todo o seu treinamento para permanecer
impassível. - Não, não que eu saiba. O Anjin-san é muito suscetível a qualquer coisa que tenha a ver com "travesseiro".
- Ele poderia ser interrogado de algum modo indireto?
- Não creio que você possa fazer perguntas a um estrangeiro assim. Com certeza não ao Anjin-san. E, sinto muito, não
sei quais são os instrumentos, exceto, claro, o harigata.
Ah! - Novamente a intuição de Kiku a guiou e ela perguntou com naturalidade. - A senhora gostaria de vê-los? Eu
poderia mostrá-los, talvez com ele lá, então não seria preciso
perguntar-lhe. Poderíamos ver pelas reações dele.
Mariko hesitou, sua curiosidade turvando-lhe a capacidade
de julgamento. - Se pudesse ser feito com humor.. .
Ouviram Blackthorne aproximando-se. Kiku deu-lhe boasvindas e serviu vinho. Mariko tomou o seu, contente por não
estar mais sozinha, embaraçadamente certa de que Kiku podia
ler-lhe os pensamentos.
Tagarelaram, jogaram alguns jogos e, quando Kiku julgou
que chegara o momento certo, perguntou-lhes se não gostariam
de ver o jardim e as salas de prazer.
Saíram para a noite. O jardim faiscava à luz dos archotes
onde as gotas de chuva ainda escorriam. O caminho coleava ao
lado de um lago minúsculo e uma gorgolejante queda-d'água.
712
Na extremidade do caminho ficava a pequena casa isolada no
centro do bosque de bambu. Erguia-se sobre solo tratado e tinha
quatro degraus até a varanda que a rodeava. Tudo na construção
de dois cômodos era de bom gosto e caro. As melhores madeiras,
a melhor carpintaria, os melhores tatamis, as melhores almofadas
de seda, os mais elegantes reposteiros no takonoma.
- É encantador, Kiku-san - disse Mariko.
- A casa de chá em Mishima é muito mais bonita, Marikosan. Por favor, ponha-se à vontade, Anjin-san! Por favor, isto
lhe agrada, Anjin-san?
- Sim, muitíssimo.
Kiku viu que ele ainda estava inebriado pela noite e pelo
saquê, mas totalmente consciente de Mariko. Estava muito tentada
a se levantar, entrar para a sala onde os futons estavam desdobrados, sair para a varanda de novo e ir embora. Mas se o fizesse
sabia que estaria violando a lei. Mais que isso, sentia que tal
atitude seria irresponsável, pois sabia que no íntimo Mariko estava
pronta e já quase ultrapassara qualquer preocupação.
Não, pensou, não devo empurrá-la para uma indiscrição
trágica, por mais valiosa que pudesse ser para o meu futuro.
Ofereci, mas Mariko-san se impôs recusar. Prudentemente. Serão
amantes? Não sei. Isso é o karma deles.
Ela se inclinou para a frente e riu, com ar de cúmplice.
- Ouça, Irmã Mais Velha, por favor, diga ao Anjin-san que
há alguns instrumentos de "travesseiro" aqui. Ele os tem no seu
país?
- Diz que não, Kiku-san. Lamenta mas nunca ouviu falar
de nenhum.
- Oh! Ele não se divertiria em vê-los? Estão na sala ao
lado, posso ir buscá-los. São realmente muito excitantes.
- Gostaria de vê-!os, Anjin-san? Ela diz que são realmente
muito engraçados. - Mariko mudou deliberadamente a palavra.
- Por que não? -- disse Biackthorne, a garganta apertada,
todo o seu ser carregado com a consciência do perfume e feminilidade delas. -- Vocês... vocês usam instrumentos para 'travesseirar"? - perguntou.
- Kiku-san diz que às vezes sim. Diz, e isso é verdade,
que é nosso costume sempre tentar prolongar o momento das
Nuvens e Chuva, pois acreditamos que por esse breve instante
nós, mortais, tornamo-nos uni com os deuses. - Mariko observava-o. - Por isso é muito importante fazê-lo durar tanto quanto
possível, neh? Quase um dever, neh?
713
- Sim.
- Sim. Ela diz que tornar-se um com os deuses é muito
essencial. É uma boa crença e bem possível, não acha? A sensação de Aguaceiro é tão extraterrena e divina. Não é? Portanto
qualquer meio de se igualar aos deuses tanto tempo quanto possível é nosso dever, neh?
- Sim. Oh, sim.
- Aceitaria um pouco de saque? Anjin-san?
- Obrigado.
Ela se abanou. Isso sobre Aguaceiro e Nuvens e Chuva ou
Fogo e Torrente, como chamamos às vezes, é muito japonês,
Anjin-san. É muito importante ser japonês em coisas de "travesseiro", neh?
Para seu alívio, ele sorriu e se curvou para ela como um
palaciano. - Sim. Muito. Sou japonês, Mariko-san. Honto!
Kiku voltou com a caixa revestida de seda. Abriu-a e tirou
uni substancial pênis em tamanho natural, feito de marfim, e
outro feito de material mais suave, elástico, que Blackthorne
nunca vira antes. Negligentemente, colocou-os de lado.
- Isso, naturalmente, são harigatas comuns, Anjin-san -
disse Mariko desinteressada, de olhos grudados nos outros objetos.
- Isso é um fato? - disse Blackthorne, sem saber o que
dizer. - Mãe de Deus!
- Mas é só um harigata comum, Anjin-san. Com certeza
as suas mulheres os têm!
- Certamente que não! Não, não têm - exclamou ele,
tentando se lembrar do humor.
Mariko não podia acreditar. Explicou a Kiku, que ficou
igualmente surpresa. Kiku falou longamente, Mariko concordando.
- Kiku-san diz que isso é muito estranho. Devo concordar,
Anjin-san. Aqui quase todas as garotas usam um harigata para
se aliviar, sem pensar duas vezes. De que outro modo uma garota
pode permanecer saudável quando tem restrições onde o homem
não tem? Tem certeza, Anjin-san? Não está arreliando?
- Não... eu, eu, tenho certeza de que as nossas mulheres
não os têm. Isso seria... Jesus, isso... bem, não, nós... elas ...
não os têm.
- Sem eles a vida deve ser muito difícil. Temos um ditado
que diz que um harigata é como um homem, mas melhor, porque
é exatamente como a melhor parte dele, sem as partes piores.
Neh? E também é melhor porque nem todos os homens são ...
têm uma suficiência. como os harigatas têm. Além disso, são devo714
tados, Anjin-san, e nunca se cansam da gente, como um homem
se cansaria. E podem ser tão ásperos ou macios... Anjin-san,
o senhor prometeu, lembra-se? Com humor!
- Tem razão! - Blackthorne sorriu. - Por Deus, a senhora tem razão. Por favor, desculpe-me. - Pegou o harigata
e o estudou de perto, assobiando desafinado. Depois levantou-o.
- Estava dizendo, Professora-san? Pode ser áspero?
- Sim - disse ela alegremente. - Pode ser tão áspero ou
liso como se desejar, e os harigatas muito particularmente têm
muito mais resistência do que qualquer homem e nunca se esgotam!
- Oh, esse é um detalhe e tanto!
- Sim. Não se esqueça de que nem toda mulher tem a sorte
de pertencer a um homem viril. Sem um objeto destes para ajudar
a libertar paixões comuns e necessidades normais, uma mulher
comum logo se tornaria envenenada de corpo, e isso certamente
muito em breve lhe destruiria a harmonia, ferindo a ela e aos
que a rodeassem. As mulheres não têm a liberdade que os homens
têm, em maior ou menor grau, e com razão, neh? O mundo
pertence aos homens, e com razão, neh?
- Sim. - Ele sorriu. - E não.
- Lastimo pelas suas mulheres, sinto muito. Devem ser
iguais a nós. Quando voltar, o senhor deve instruí-Ias, Anjin-san.
Ah, sim, diga à sua rainha, ela compreenderá. Somos muito sensatas em assuntos de "travesseiro".
- Mencionarei isso a Sua Majestade. - Blackthorne pôs o
harigata de lado com uma relutância fingida. - E depois?
Kiku retirou da caixa quatro contas redondas e grandes de
jade branco, presas a intervalos num forte fio de seda. Mariko
ouviu atentamente a explicação de Kiku, os olhos maiores do
que nunca, o leque esvoaçando, e olhou para as contas maravilhada, quando Kiku concluiu. - Ah so desu! Bem, Anjin-san
- começou com firmeza -, isto é chamado konomi-shinju.
Pérolas de Prazer, e tanto o homem quanto a mulher podem
usá-las. Saque, Anjin-san?
- Obrigado.
- Sim. Tanto a dama quanto o homem podem usá-las.
As contas são cuidadosamente colocadas na passagem de trás e
depois, no momento das Nuvens e Chuva, puxadas lentamente,
uma a uma.
- O quê?
- Sim. Mariko pousou as contas na almofada à frente
715
dele. - A Senhora Kiku diz que a sintonia é muito importante
e que sempre ... não sei como o senhor diria, ah, sim, sempre
se deve usar uma pomada oleosa... por conforto, Anjin-san.
- Ela levantou os olhos para ele e acrescentou: - Ela também
diz que as Pérolas de Prazer podem ser encontradas em muitos.
tamanhos e que, se usadas corretamente, podem causar um resultado realmente muito considerável.
Ele riu ruidosamente e exclamou em inglês: -- Aposto um
barril de dobrões contra uma moeda de bosta de porco que se
pode acreditar nisso!
- Desculpe, não compreendi, Anjin-san.
Quando conseguiu falar, ele disse em português: - Aposto
uma montanha de ouro contra uma folha de grama, Mariko-san,
que o resultado deve ser realmente muito considerável! - Apanhou as contas e as examinou, assobiando sem notar. - Pérolas
de Prazer, hein? - Pouco depois, pousou-as no chão. -- O
que mais?
Kiku estava satisfeita de sua experiência estar tendo êxito.
E mostrou-lhe um himitsu-kawa, a Pele Secreta. - É um anel
de prazer, Anjin-san, que o homem usa para se manter ereto
quando está exaurido. Com isto Kiku-san diz que o homem pode
gratificar a mulher após ter passado o seu apogeu, ou o seu
desejo ter esmorecido. - Mariko observou-o. - Neh?
- Absolutamente. - Blackthorne sorriu. - O Senhor me
proteja tanto de uma coisa quanto da outra, e de não ser gratificante. Por favor, peça a Kiku-san para me comprar três... só
para o caso de serem necessários!
Depois mostraram-lhe os hiro-gumbi, o Equipamento do
Cansado, talos secos e finos de uma planta que, quando encharcados e envoltos em torno da Parte Sem Par, faziam-na inchar
e parecer forte. Depois havia todo tipo de estimulantes - para
excitar ou aumentar a excitação -, e todo tipo de pomada -- para
umedecer, para avolumar, para reforçar.
- Nunca para enfraquecer? - perguntou ele, para maior
hilaridade.
- Oh, não, Anjin-san. Isso seria despropositado! .
Depois Kiku lhes mostrou outros anéis para o homem, de
marfim, elástico ou seda, com nódulos, cerdas, fitas, penduricalhos e apêndices de todo tipo, feitos de marfim, crina de cavalo, grãos ou até de sinos minúsculos.
- Kiku-san diz que quase qualquer um destes objetos deixará voluptuosa a mais acanhada das damas.
716
Oh, Deus, como eu gostaria de ver você voluptuosa, pensou
ele. - Mas isto é só para homens, neh? - perguntou.
- Quanto mais excitada esteja a dama. maior é o gozo do
homem, neh? - disse Mariko. - Claro, dar prazer à mulher é
igualmente uni dever do homem, não é, e com um destes objetos,
se ele infelizmente for pequeno, fraco, ou velho ou cansado, ainda
poderá satisfazê-la com honra.
- A senhora os usou, Mariko-san?
- Não, Anjin-san, nunca os tinha visto antes. Essas coisas... as esposas não são para o prazer, mas para engravidar e
para tomar conta da casa e do lar.
-- As esposas nao esperam ser satisfeitas?
- Não. Isso não seria usual. Isso é para as damas do
Mundo do Salgueiro. Mariko abanou-se e explicou a Kiku o
que fora dito. - Ela diz que com certeza acontece o mesmo no
seu mundo, não? Que é dever do homem satisfazer a mulher,
assim como é dever dela satisfazê-lo.
- Por favor, diga-lhe que sinto muito mas não acontece
o mesmo, apenas exatamente o contrário.
- Ela diz que isso é muito mau. Saque?
- Por favor, diga-lhe que somos ensinados a nos envergonhar do nosso corpo, de "travesseiro", da nudez e... e todo tipo
de estupidez. Foi só depois de ter chegado aqui que entendi isso.
Agora que estou um pouco civilizado, sei melhor.
Mariko traduziu. Ele esvaziou seu cálice. Foi enchido imediatamente por Kiku, que se inclinou para a frente e segurou a
longa manga com a mão esquerda, de modo que não tocasse a
mesinha laqueada enquanto ela servia com a direita.
- Domo.
- Do itashi,nashité, Anjin-san.
-- Kiku-san diz que devemos nos sentir honrados de que
o senhor diga coisas assim. Eu concordo, Anjin-san. Fiquei muito
orgulhosa do senhor hoje. Mas com certeza não é tão mau quanto
o senhor diz.
- É pior. É difícil compreender, quanto mais explicar, se
vocês nunca estiveram lá nem foram criadas lá. Veja... na verdade. . . - Blackthorne viu-as a observá-lo, esperando pacientemente, tão atraentes e limpas, o aposento tão austero, despojado,
tranqüilo. Imediatamente sua mente começou a contrastá-lo com
o cálido e amistoso mau cheiro do seu lar inglês, palha sobre o
chão de terra, fumaça da lareira aberta de tijolos erguendo-se
para o buraco no telhado - em toda a sua aldeia só havia três
717
das novas lareiras com chaminés, apenas para os muito abastados.
Dois pequenos dormitórios e depois a grande e desarrumada sala
do chalé, para comer, viver, cozinhar e conversar. Entrava-se de
botas no chalé, no verão ou no inverno, a lama despercebida, a
bosta despercebida, e sentava-se numa cadeira ou banco, a mesa
de carvalho atravancada como a sala, três ou quatro cães e as
duas crianças - seu filho e a menina do falecido irmão, Arthur
- subindo e caindo e brincando numa balbúrdia só, Felicity
cozinhando, seu vestido comprido arrastando pelas palhas e pela
sujeira, a empregada fungando e atrapalhando o caminho e Mary,
a viúva de Arthur, tossindo no cômodo contíguo que ele construíra para ela, às portas da morte como sempre, mas não morrendo nunca.
Felicity. Querida Felicity. Um banho por mês, talvez, e no
verão, muito em particular, na banheira de cobre, mas lavando o
rosto, as mãos e os pés todos os dias, sempre escondida até o
pescoço e os punhos, envolta em camadas de lãs pesadas o ano
todo, que não eram lavadas durante meses ou anos, cheirando
forte como todo mundo, infestada de piolhos como todo mundo,
coçando-se como todo mundo.
E todas as outras crenças e superstições estúpidas, que a
limpeza podia matar, janelas abertas podiam matar, água podia
matar e estimular a gripe ou trazer a peste, que piolhos, pulgas,
moscas, sujeira e doença eram punições de Deus para os pecados
na terra.
Pulgas, moscas e palha trocada a cada primavera, mas todo
dia na igreja e duas vezes aos domingos, para ouvir a Palavra
martelada nos ouvidos.
Nascida em pecado, vivendo em vergonha, preocupada com
o Demônio, condenada ao inferno, orando pela salvação e pelo
perdão, Felicity tão devota e cheia de temor pelo Senhor e de
terror pelo Diabo, desesperada pelo paraíso. Depois indo para
casa para comer. Um pernil no espeto, e caso um pedaço caísse
no chão era apanhado, espanado e comido, isso se os cães não
o agarrassem primeiro, mas os ossos eram atirados a eles de
qualquer modo. Restos jogados ao chão para serem varridos,
talvez, e talvez atirados na rua. Dormindo a maior parte das
vezes com as roupas usadas de dia e coçando-se como um cão
satisfeito, sempre se coçando. Velha tão jovem, e feia tão jovem,
o morrendo tão jovem. Felicity. Agora com vinte e nove anos,
grisalha, com poucos dentes, velha, murcha.
-- Antes do tempo, pobre mulher. Meu Deus, que desneces718
sário! - gritou ele, enraivecido. - Que maldito e fedorento
desperdício!
- Nan desu ka, Anjin-san? - disseram ambas as mulheres
no mesmo fôlego, seu contentamento esvanecido.
- Desculpem... foi só que... vocês são todos tão limpos
e nós somos imundos, e é um desperdício tão grande, milhões
incontáveis, eu também, toda a minha vida... e só porque não
somos mais bem informados! Jesus Cristo, que desperdício! São
os padres... são os educados e os educadores, os padres são
donos de todas as escolas, responsáveis por todo o ensino, sempre
em nome de Deus, imundície em nome de Deus ... Essa é a
verdade!
- Oh, sim, naturalmente - disse Mariko apaziguadora,
tocada pelo sofrimento dele. - Por favor, não se preocupe com
isso agora, Anjin-san. Deixe para amanhã...
Kiku ostentou um sorriso, mas estava furiosa consigo mesma. Você devia ter sido mais cuidadosa, disse a si mesma. Estúpida, estúpida, estúpida! Mariko-san preveniu-a! Agora você permitiu que a noite se arruinasse, e a mágica se foi, foi, foi!
De fato a pesada, quase tangível sexualidade que os tocara
a todos desaparecera. Talvez esteja igualmente bem, pensou ela.
Pelo menos Mariko e o Anjin-san estão protegidos por mais
uma noite.
Pobre homem, pobre senhora. Tão triste. Ela os observou
conversando, depois sentiu uma mudança do tom entre eles.
- Agora devo deixá-los - disse Mariko em latim.
- Vamos partir juntos.
- Rogo-lhe que fique. Pela sua honra e a dela. E a minha,
Anjin-san.
- Não quero esse seu presente. Quero a senhora.
- Eu sou sua, acredite, Anjin-san. Por favor, fique, imploro-lhe, e saiba que esta noite eu sou sua.
Ele não insistiu para que ela ficasse.
Depois que ela se foi, ele se deitou, passou o braço por sob
a cabeça e contemplou a noite pela janela. A chuva respingava
nas telhas, o vento soprava acariciante do mar.
Kiku estava ajoelhada imóvel diante dele. Tinha as pernas
rígidas. Também teria gostado de se deitar, mas não desejava
alterar-lhe o ânimo com o menor movimento. Você não está cansada. Suas pernas não estão doendo, disse-se ela. Ouça a chuva
719
e pense em coisas agradáveis. Pense em Omi-san e na casa de
chá em Mishima, e que você está viva, que o terremoto de ontem
foi apenas mais um terremoto. Pense em Toranaga-sama e o
preço inicial inacreditavelmente extravagante que Gyoko-san ousou pedir pelo seu contrato. O adivinho estava certo, é sua boa
fortuna fazê-la rica para além dos sonhos. E se essa parte é verdade, porque não o resto todo? Que um dia você se casará com
um samurai a quem honrará, e terá um filho dele, que você
viverá e morrerá em idade avançada, fazendo parte da família
dele, rica e honrada, e que, milagre dos milagres, seu filho
crescerá em condição igual - samurai - à dos filhos dele.
Kiku começou a se animar com o seu futuro maravilhoso,
inacreditável. Depois de algum tempo, Blackthorne espreguiçouse voluptuosamente, com um agradável cansaço. Viu-a e sorriu.
- Nan desu ka, Anjin-san?
Ele meneou a cabeça gentilmente, levantou-se e abriu a
shoji para o aposento contíguo. Não havia nenhuma criada ajoelhada junto aos futons sob o mosquiteiro. Ele e Kiku estavam
sozinhos na magnífica casinha. Dirigiu-se para o quarto de dormir e começou a tirar o quimono. Ela se apressou a ajudá-lo.
Ele despiu-se completamente, depois vestiu o quimono de dormir,
de seda leve, que ela lhe segurou. Kiku abriu o mosquiteiro e
ele se deitou.
Depois Kiku também se trocou. Ele a viu tirar o obi, o
primeiro quimono, o segundo, de um verde mais claro e barra
escarlate, e finalmente a combinação. Vestiu o quimono de dormir, cor de pêssego, depois removeu a elaborada peruca formal e
soltou o cabelo. Era preto-azulado, belíssimo e muito comprido.
Ajoelhou-se do lado de fora do mosquiteiro. - Dozo, Anjin-san?
- Domo - disse ele.
- Domo arigato goziemashita - sussurrou ela.
Ela deslizou por sob o mosquiteiro e deitou-se ao lado dele.
As velas e lâmpadas de óleo ardiam brilhantemente. Ele ficou
contente de que houvesse luz, porque ela era muito bonita.
Sua necessidade desesperadora desaparecera, embora a dor
continuasse. Não a desejo, Kiku-san, pensou. Se você fosse Mariko, seria a mesma coisa. Ainda que você fosse a mulher mais
bela que eu já tivesse visto, mais até do que Midori-san, que achei
mais bela do que uma deusa. Não a desejo. Mais tarde, talvez,
mas agora não, sinto muito.
A mão dela esticou-se e tocou-o. - Dozo?
720
- Iyé - disse ele gentilmente, meneando a cabeça. Segurou-lhe a mão, depois deslizou um braço por sob os seus ombros.
Obedientemente ela se aninhou contra ele, compreendendo de
imediato. Seu perfume combinava com a fragrância dos lençóis
e futons. Tão limpa, pensou ele, tudo tão inacreditavelmente
limpo.
o que foi que Rodrigues disse? "O Japão é o paraíso na
terra, Inglês, se você souber para onde olhar", ou "Isto é o
paraíso, Inglês". Não me lembro. Só sei que não é lá, do outro
lado do mar, onde pensei que fosse. Não é lá.
o paraíso na terra é aqui.
CAPITULO 41
o mensageiro desceu a galope a estrada na escuridão, em
direção à aldeia adormecida. O céu estava matizado pelo amanhecer e os barcos de pesca noturna que estiveram lançando as
redes perto dos bancos de areia vinham regressando. O mensageiro cavalgara sem descanso desde Mishima, através dos desfiladeiros e estradas ruins, requisitando cavalos descansados em todos
os lugares onde pôde.
o cavalo martelou pelas ruas da aldeia - observado, agora,
por olhos escondidos -, através da praça e subindo o caminho
para a fortaleza. Seu estandarte ostentava o emblema de Toranaga
e ele conhecia a senha atual. Não obstante, foi detido e identificado quatro vezes antes de ser autorizado a entrar e ter uma
audiência com o oficial do turno.
- Despachos urgentes de Mishima. Naga-san, mandados
pelo Senhor Hiro-matsu!
Naga pegou o rolo e correu para dentro. Ante a shoji pesadamente guardada, parou. -- Pai?
- Sim?
Naga correu a porta e esperou. A espada de Toranaga deslizou de volta para a bainha. Um dos guardas trouxe uma lâmpada de óleo.
Toranaga sentou-se sob o mosquiteiro e rompeu o lacre. Duas
semanas antes ordenara que Hiro-matsu, com um regimento de
elite, se dirigisse secretamente para Mishima, a cidade-castelo na
721
estrada Tokaido que guardava a entrada para o caminho que levava através das montanhas até as cidades de Atami e Odawara,
na costa leste de Izu. Atami era o portão de ingresso para
Odawara, ao norte. Odawara era a chave da defesa do Kwanto
inteiro.
Hiro-matsu escrevia:
"Senhor, seu meio irmão, Zataki, senhor de Shinano, chegou
aqui hoje, vindo de Osaka, pedindo um salvo-conduto para vê-]o
em Anjiro. Viaja formalmente com cem samurais e carregadores,
sob o emblema do `novo' conselho de regentes. Lamento informar-lhe que as notícias da Senhora Kiritsubo são corretas. Zataki
tornou-se traidor e está abertamente alardeando a sua aliança com
Ishido. O que ela não sabia é que Zataki agora é regente no lugar
do Senhor Sugiyama. Ele me mostrou sua designação oficial, corretamente assinada por Ishido, Kiyama, Onoshi e Ito. Pedir-lhe
que a mostrasse era tudo o que eu podia fazer para conter meus
homens diante da arrogância dele e obedecer às suas ordens de
deixar passar qualquer mensageiro de Ishido. Quis matar esse comedor de bosta pessoalmente. Viajando com ele vai o padre bárbaro, Tsukku-san, que chegou por mar ao porto de Numazu,
proveniente de Nagasaki. Ele pediu permissão para visitá-lo, então
despachei-o com o mesmo grupo. Mandei duzentos dos meus
homens para escoltá-los. Chegarão a Anjiro dentro de dois dias.
Quando o senhor retorna a Yedo? Os espiões dizem que Jikkyu
está se mobilizando secretamente e chegam notícias de Yedo de
que os clãs do nordeste estão prontos para atacar com Ishido,
agora que Shinano de Zataki está contra o senhor. Rogo-lhe que
deixe Anjiro imediatamente - retire-se por mar. Deixe Zataki
segui-lo até Yedo, onde podemos lidar com ele adequadamente".
Toranaga socou o punho contra o chão.
- Naga-san. Traga Buntaro-san, Yabu-san e Omi-san imediatamente.
Chegaram todos rapidamente. Toranaga leu-lhes a mensagem.
- É melhor cancelarmos totalmente o treinamento. Mandem o
Regimento de Mosquetes, todos os homens, para as montanhas.
Não queremos nenhuma falha de segurança agora.
- Por favor, desculpe-me, senhor - disse Omi -, mas
poderia considerar a interceptação do grupo sobre as montanhas.
Digamos em Yokosé. Convide o Senhor Zataki - Omi escolheu
o título cuidadosamente - para experimentar as águas de uma
722
das nascentes das redondezas, mas faça a reunião em Yokosé.
Então, depois de ele ter entregado a mensagem, ele e todos os
seus homens podem ser escoltados até a fronteira, ou destruidos,
como o senhor desejar.
- Não conheço Yokosé.
- É linda - disse Yabu com ares de importância -, quase
no centro de Izu, senhor, num vale entre as montanhas. Fica ao
lado do rio Kano. O Kano corre de norte, conseqüentemente através de Mishima e Numato, até o mar, neh? Yokosé fica numa
encruzilhada de estradas que levam de norte a sul e de leste a
oeste. Sim. Yokosé seria um bom lugar para encontrá-lo, senhor.
A nascente Shuzenji fica perto - muito quente, muito boa -,
uma das nossas melhores. O senhor deve visitá-la, senhor. Acho
que Omi-san fez uma boa sugestão.
- Poderíamos defendê-la com facilidade?
- Sim, senhor - disse Omi rapidamente. - Há uma ponte.
O terreno cai abruptamente das montanhas. Quaisquer atacantes
teriam que combater numa estrada coleante. As duas passagens
podem ser defendidas com poucos homens. O senhor nunca sofreria uma emboscada. Temos homens mais que suficientes para
defendê-lo e massacrar dez vezes o número deles - se necessário.
- Nós os massacraremos aconteça o que acontecer, neh?
- disse Buntaro, com desprezo. -- Mas melhor lá do que aqui.
Senhor, por favor, deixe-me tornar o lugar seguro. Quinhentos
arqueiros, nenhum mosqueteiro, todos a cavalo. Junto com os
homens que meu pai enviou, teremos mais que o suficiente.
Toranaga conferiu a data no despacho. - Atingirão a encruzilhada quando?
Yabu olhou para Omi pedindo confirmação. - Esta noite,
o mais tardar?
- Sim. Talvez não antes do amanhecer de amanhã.
- Buntaro-san, parta imediatamente - disse Toranaga. -
Detenha-os em Yokosé, mas mantenha-os do outro lado do rio.
Partirei ao amanhecer, amanhã, com outros cem homens. Devemos estar lá pelo meio-dia. Yabu-san, encarregue-se do nosso
Regimento de Mosquetes por enquanto e guarde a nossa retirada.
Ponha-o em emboscada do outro lado da estrada Heikawa, de
modo que, se necessário, possamos nos retirar com a sua ajuda.
Buntaro começou a se retirar, mas parou quando Yabu disse,
apreensivo: - Como pode haver traição, senhor? Eles só têm
cem homens.
- Espero traição. O Senhor Zataki não colocaria a própria
723
cabeça nas minhas mãos sem um plano, pois, é claro, eu lhe
tirarei a cabeça se puder - disse Toranaga. - Sem ele para
liderar os seus fanáticos, teremos uma chance muito maior de
atravessar as montanhas do seu feudo. Mas por que será que está
arriscando tudo? Por quê?
Tentativamente, Omi disse: - Ele não poderia estar pronto
para trocar de aliado novamente?
Todos sabiam da antiga rivalidade que existia entre os meio
irmãos. Uma rivalidade amistosa até agora.
- Não, não ele. Nunca confiei nele antes. Algum de vocês
o faria agora?
Eles menearam a cabeça.
- Certamente não há nada para perturbá-lo, senhor - disse
Yabu. - O Senhor Zataki é um regente, sim, mas é apenas um
mensageiro, neh?
Imbecil, queria gritar Toranaga, você não compreende nada?
- Logo saberemos. Buntaro, vá imediatamente.
- Sim, senhor. Escolherei cuidadosamente o lugar para a
reunião, mas não o deixe se aproximar além de dez passos. Estive
com ele na Coréia. É rápido demais com a espada.
- Sim.
Buntaro saiu às pressas. Yabu disse: - Talvez Zataki possa
ser tentado a trair Ishido. Uma recompensa talvez? Qual será a
isca para ele? Mesmo sem a sua liderança, as montanhas de
Shinano são cruéis.
- A isca é óbvia - disse Toranaga. - O Kwanto. Não é
isso o que ele quer, o que sempre quis? Não é isso o que querem
todos os meus inimigos? Não é isso o que o próprio Ishido quer?
Não lhe responderam. Não havia necessidade.
- Que Buda nos ajude - disse Toranaga gravemente. - A
paz do táicum terminou. A guerra está começando.
Os ouvidos de Blackthorne, treinados no mar, tinham percebido a urgência nos cascos aproximando-se e sussurraram-lhe perigo. Ele acordara imediatamente, pronto para atacar ou recuar,
todos os sentidos aguçados. Os cascos passaram, depois subiram
a colina em direção à fortaleza, para morrer de novo.
Ele esperou. Não ouviu som de escolta seguindo. Provavelmente um mensageiro sozinho, pensou. De onde? É a guerra, já?
O alvorecer estava iminente. Agora Blackthorne podia ver
uma pequena parte do céu. Estava nublado e carregado de chuva,
724
o ar quente com um travo de sal, elevando o mosquiteiro de tempos em tempos. Um mosquito zumbia fracamente do lado de fora.
Ele se sentiu muito satisfeito por estar dentro, seguro no momento. Goze da segurança e da tranqüilidade enquanto duram, disse
a si mesmo.
Kiku dormia ao seu lado, enrolada como um gatinho. Com o
cabelo em desalinho, parecia-lhe ainda mais bela. Cuidadosamente
ele relaxou de novo na maciez dos acolchoados sobre o chão de
tatami.
Isto é muito melhor do que uma cama. Melhor do que qualquer beliche - meu Deus, muito melhor! Mas logo estarei de
novo a bordo, neh? Logo cairemos em cima do Navio Negro e
o tomaremos, neh? Acho que Toranaga concordou embora não
tenha dito isso abertamente. Simplesmente não concordou à moda
japonesa? "Nada poderá jamais ser resolvido no Japão senão por
métodos japoneses." Sim, acredito que isso seja verdade.
Gostaria de estar mais bem informado. Ele não disse a
Mariko que traduzisse tudo e explicasse sobre os seus problemas
políticos? Gostaria de ter dinheiro para comprar a minha nova
tripulação. Ele não me deu dois mil kokus?
Pedi duzentos ou trezentos corsários. Ele não me deu duzentos samurais com todo o poder e dignidade de que necessito? Eles
me obedecerão? Claro. Ele me fez samurai e hatamoto. Portanto
obedecerão até a morte e eu os levarei para bordo do Erasmus,
serão o meu destacamento de abordagem e eu comandarei o
ataque.
Estou com uma sorte inacreditável! Tenho tudo o que quero.
Exceto Mariko. Mas tenho até a ela. Tenho seu espírito secreto
o o seu amor. E possuí o seu corpo na noite passada, a noite mágica que nunca existiu. Amamos sem amar. Faz muita diferença?
Não há amor entre mim e Kiku, apenas um desejo que floresceu. Foi formidável para mim. Espero que o tenha sido igualmente para ela. Tentei ser japonês integralmente e cumprir o
meu dever, satisfazê-la corno ela me satisfez.
Ele se lembrou de como usara um anel de prazer. Sentira-se
muito desajeitado e constrangido e se voltara de costas para colocá-lo, petrificado ante a idéia de que sua força desapareceria.
Mas não desapareceu. E depois, quando o anel estava no lugar,
eles haviam "travesseirado" novamente. O corpo dela estremecia
o se contorcia, e a vibração o elevara a u n plano mais premente
do que ele jamais conhecera.
725
Depois, quando conseguiu respirar de novo, começou a rir
e ela sussurrara: - Por que ri? - e ele respondera: Não sei,
só sei que você me fez feliz.
Nunca tinha rido nesse momento, nunca. Tornou tudo perfeito. Não amo Kiku-san - eu a estimo. Amo Mariko-san sem
reservas e gosto completamente de Fujiko-san.
Você dormiria com Fujiko-san? Não. Pelo menos, acho que
não poderia.
Seu dever não é esse? Se você aceita os privilégios de samurai e exige que os outros o tratem totalmente como samurai,
com tudo o que isso significa, deve aceitar as responsabilidades e
deveres, neh? É apenas justo, neh? E honroso, neh? É seu dever
dar um filho a Fujiko.
E Felicity. O que ela diria disso?
E quando você partir, como fica Fujiko-san, e como fica
Mariko-san? Você realmente voltará para cá, abandonando o título de cavaleiro e as honras até maiores que certamente lhe serão
concedidas, desde que retorne carregado de riquezas? Você navegará para os abismos hostis mais uma vez, para se arrebentar
através do horror enregelante do estreito de Magalhães, suportar
tempestade e mar e escorbuto e motim por outros seiscentos e
noventa e oito dias para fazer um segundo desembarque aqui?
Para levar esta vida de novo?
Decida!
Então se lembrou do que Mariko lhe dissera sobre compartimentos da mente: - Seja japonês, Anjin-san, o senhor tem que
fazer isso, para sobreviver. Faça o que fazemos, renda-se ao ritmo
do karma francamente. Alegre-se com as forças que estão além
do seu controle. Coloque todas as coisas nos seus compartimentos
separados e entregue-se à wa, a harmonia da vida. Entregue-se,
Anjin-san, karma é karma, neh?
Sim. Decidirei quando chegar o momento.
Primeiro tenho que arranjar uma tripulação. Depois capturo
o Navio Negro. Em seguida navego meio caminho em torno do
mundo até a Inglaterra. Então compro e equipo os navios de
guerra. E depois decidirei. Karma é karma.
Kiku mexeu-se, depois se enterrou mais fundo nos acolchoados, aconchegando-se mais a ele. Blackthorne sentiu-lhe o calor
através dos quimonos de seda. E inflamou-se.
- Anjin-chan murmurou ela, ainda adormecida.
- Hai?
726
Não a despertou. Contentou-se em embalá-la e descansar,
arrebatado pela serenidade que a entrega áo karma lhe dera. Mas
antes de adormecer, abençoou Mariko por ter-lhe ensinado.
- Sim, Omi-san, certamente -- disse Gyoko. - Vou buscar
o Anjin-san imediatamente. Por favor, desculpe-me. Ako, venha
comigo.
Gioko mandou Ako buscar chá, depois apressou-se jardim
adentro, perguntando-se que notícias vitais o mensageiro noturno
a galope teria trazido, pois também ela ouvira o tropel. E por que
Omi está tão estranho hoje? perguntou-se ela. Por que tão frio,
áspero e perigoso? E por que veio pessoalmente, para uma tarefa
tão baixa? Por que não enviou um samurai qualquer?
Ah, quem sabe? Omi é um homem. Como se pode compreendê-los, particularmente os samurais? Mas alguma coisa está errada, terrivelmente errada. Será que o mensageiro trouxe uma declaração de guerra? Suponho que sim. Se é a guerra, então é a
guerra, e a guerra nunca prejudicou o nosso negócio. Daimios e
samurais ainda precisarão de entretenimento, como sempre -
mais até, em guerra -, e na guerra o dinheiro tem menos valor
do que nunca para eles. Bom, bom, bom. Ela sorriu consigo mesma. Lembra-se da guerra, quarenta e muitos anos atrás, quando
você tinha dezessete anos e era a menina dos olhos de Mishima?
Lembra-se de todo o riso, "travesseiro' e noites de orgulho que
se fundiram naqueles dias? Lembra-se de como serviu o Velho
Baldy em pessoa, o pai de Yabu, o velho e bondoso cavalheiro
que cozinhava criminosos como o filho faz agora? Lembra-se de
como você teve que dar duro para deixá-lo flexível - ao contrário do filho! Gyoko soltou uma risadinha. "Travessei ramos"
três dias e três noites, depois ele se tornou meu protetor por um
ano inteiro. Bons tempos - um bom homem. Oh, como "travesseirávamos"!
Guerra ou paz, nao importa! Shigata ga nai? Há o suficiente
investido com os prestamistas e os comerciantes de arroz, um
pouco aqui, um pouco ali. Depois há a fábrica de saque em
Odawara, a casa de chá em Mishima está prosperando, e hoje o
Senhor Toranaga vai comprar o contrato de Kiku!
Sim, tempos interessantes à frente, e como a noite anterior
fora fantasticamente interessante! Kiku estivera brilhante, a explosão do Anjin-san aflitiva. E depois, quando a Senhora Toda
os deixara, o talento de Kiku tornara tudo perfeito e a noite
727
bem-aventurada. Ah, homens e mulheres. Tão previsíveis. Especialmente os homens. Bebês, sempre. Tolos, difíceis, terríveis, petulantes, flexíveis, horríveis - maravilhosos mais raramente -,
mas todos nascidos com aquela saliência única, incrivelmente compensadora, que nós no negócio chamamos de Raiz de Jade, Cabeça de Tartaruga, Bico de Yang, Seta Aquecida, Intrometido do
Macho, ou simplesmente Pedaço de Carne.
Que insultante! E no entanto tão adequado!
Gyoko casquinou e perguntou a si mesma pela décima milésima vez: por todos os deuses, vivos, mortos e ainda por nascer,
o que faríamos neste mundo sem o Pedaço de Carne?
Ela correu de novo, seus passos audíveis apenas o bastante
para anunciar a sua presença. Subiu os degraus de cedro polido.
Sua batida foi experiente.
- Anjin-san... Anjin-san, desculpe, mas o Senhor Toranaga mandou buscá-lo. O senhor deve se dirigir à fortaleza imediatamente.
- O quê? O que foi que disse?
Ela repetiu em linguagem mais simples.
- Ah! Compreender! Está bem... eu lá depressa - ela
ouviu-o dizer, com seu sotaque engraçado.
- Sinto muito, por favor, desculpe-me. Kiku-san?
- Sim, Mama-san? - Num instante a shoji se abriu. Kiku
sorriu para ela, apertando o quimono junto ao corpo, o cabelo
lindamente desarranjado. - Bom dia, Mama-san, teve bons sonhos?
-- Sim, sim, obrigada. Sinto muito perturbá-la, Kiku-san,
gostaria de um pouco de chá fresco?
- Oh! - O sorriso de Kiku desapareceu. Aquela era a
frase em código que Gyoko podia usar livremente diante de qualquer cliente, para dizer a Kiku que seu cliente mais especial,
Omi-san, estava na casa de chá. Desse modo Kiku sempre podia
terminar mais depressa a sua história, ou canção, ou dança, e ir
ao encontro de Omi-san, se quisesse. Kiku "travesseirava" com
muito poucos, embora entretivesse a muitos - se pagassem o
preço. Muito, muito poucos podiam pagar todos os serviços dela.
- O que é? - perguntou Gyoko, atenta.
- Nada, Mama-san. Anjin-san - chamou Kiku alegremente -, desculpe, gostaria de tomar um chá?
- Sim, por favor.
- Estará aqui imediatamente - disse Gyoko. - Ako!
Depressa, criança!
728
- Sim, ama. - Ako entrou com a bandeja de chá e duas
xícaras, e serviu. Gyoko se afastou, novamente se desculpando
por incomodá-los. Kiku deu a xícara a Blackthorne pessoalmente.
Ele bebeu, sedento, depois ela o ajudou a se vestir. Ako estendeu
um quimono limpo para ela. Kiku estava muito atenciosa, mas
consumida pela idéia de que logo teria que acompanhar o Anjinsan até o lado de fora do portão e curvar-se para ele em despedida. Fazia parte das boas maneiras. Mais que isso, era um privilégio seu, e dever. Apenas as cortesãs de primeira classe eram
autorizadas a ultrapassar a soleira para conferir aquela honra
rara; todas as outras tinham que ficar dentro do pátio. Era impensável que ela não terminasse a noite como era esperado -
isso seria um terrível insulto ao hóspede -, e no entanto ...
Pela primeira vez na vida, Kiku não estava com vontade de
se curvar para um convidado em despedida diante de outro convidado.
Não posso, não com o Anjin-san diante de Omi-san.
Por quê? perguntou a si mesma. É por que o Anjin-san é
bárbaro e você está envergonhada de que todo mundo saiba que
você foi possuída por um bárbaro? Não. Toda Anjiro já sabe e
um homem é como qualquer outro, a maior parte do tempo. Este
homem é samurai, hatamoto, e almirante dos navios do Senhor
Toranaga! Não, não é nada disso.
O que é então?
E porque descobri durante a noite que estava envergonhada
pelo que Omi-san fez a ele. Assim como nós todos devíamos estar.
Omi-san nunca lhe devia ter feito aquilo. O Anjin-san está marcado a ferro e os meus dedos pareciam sentir a marca através da
seda do quimono. Estou ardendo de vergonha por ele, um bom
homem, a quem nunca devia ter sido feito aquilo.
Estou desonrada?
Não, claro que não, só estou envergonhada diante dele. E
envergonhada diante de Omi-san por estar envergonhada.
Então, nos ermos da sua mente, ouviu Mama-san dizendo de
novo: - Criança, criança, deixe ao homem as coisas de homens.
O riso é o nosso lenitivo contra eles, e contra o mundo, os deuses
e até a velhice.
- Kiku-san?
- Sim, Anjin-san?
- Agora eu vou.
- Sim. Vamos juntos - disse ela.
729
Ele pegou-lhe suavemente o rosto nas mãos ásperas e beijou-a. - Obrigado. Não palavras suficientes para agradecer.
- Sou eu quem deve agradecer. Por favor, permita-me agradecer-lhe, Anjin-san. Vamos agora.
Deixou que Ako lhe desse os últimos retoques no cabelo, que
ela deixou pendendo frouxamente, amarrou o sash do quimono
limpo, e saiu com ele.
Kiku caminhava ao seu lado, conforme era privilégio seu, e
não alguns passos atrás, como uma esposa, consorte, filha ou
criada era obrigada a fazer. Ele pôs a mão no ombro dela momentaneamente e isso foi desagradável para ela, pois não se encontravam na privacidade de um quarto. Então teve um súbito e
horrível pressentimento de que ele ia beijá-la em público - o
que Mariko mencionara como costume bárbaro -, ao portão.
Oh, Buda, não deixe acontecer, pensou, quase desmaiando de
susto.
As espadas dele estavam na sala de recepção. Por costume,
todas as armas eram deixadas sob guarda, fora dos quartos de
prazer, para evitar discussões letais entre clientes, e também para
impedir qualquer dama de pôr fim à vida. Nem todas as damas
do Mundo do Salgueiro eram felizes ou afortunadas.
Blackthorne pôs as espadas no sash. Kiku curvou-se e fê-lo
passar à varanda, onde ele calçou as sandálias, Gyoko e outros
reunidos para se despedir dele, um hóspede honrado. Além do
portão estava a praça da aldeia e o mar. Muitos samurais estavam
lá, andando em círculos, a esmo, Buntaro entre eles. Kiku não
podia ver Omi, embora tivesse certeza de que ele estava observando de algum lugar.
O Anjin-san parecia imensamente alto, ela muito pequena ao
seu lado. Agora estavam atravessando o pátio. Ambos viram Omi
ao mesmo tempo. Estava em pé perto do portão.
Blackthorne parou. - Bom dia, Omi-san - disse como um
amigo, e curvou-se como uni amigo, sem saber que Omi e Kiku
eram mais que amigos. Como poderia saber? pensou ela. Ninguém
lhe disse, por que deveriam dizer-lhe? E o que importa isso, de
qualquer modo?
- Bom dia, Anjin-san. - A voz de Omi estava amistosa
também, mas ele o viu curvar-se apenas com a polidez suficiente.
Depois os seus olhos de azeviche voltaram-se para ela de novo,
que se curvou, com um sorriso perfeito. - Bom dia, Omi-san.
Esta casa está honrada.
- Obrigado, Kiku-san. Obrigado.
730
Ela sentiu-lhe o olhar perscrutador, mas fingiu não notar,
mantendo os olhos afetadamente baixos. Gyoko e as criadas e
cortesãs que estavam livres observavam da varanda.
- Eu vou fortaleza, Omi-san - disse Blackthorne. - Está
tudo bem?
- Sim. O Senhor Toranaga mandou chamá-lo.
= Ir agora. Esperar vê-lo em breve.
- Sim.
Kiku levantou os olhos num relance. Omi ainda a fitava.
Ela sorriu o seu melhor sorriso e olhou para o Anjin-san. Este
observava Omi intensamente; então, sentindo os olhos dela, voltou-se e correspondeu ao sorriso. A ela o sorriso pareceu constrangido. - Sinto muito, Kiku-san, Omi-san, devo ir agora. - Ele
se curvou para Omi. Foi correspondido. Atravessou o portão. Ela
o seguiu, quase sem respirar. O movimento parou na praça. No
silêncio, ela o viu se voltar e por um terrível momento sentiu que
ele ia abraçá-la. Mas para seu enorme alívio, ele não fez isso, e
apenas permaneceu ali, esperando como uma pessoa civilizada
esperaria.
Ela se curvou com toda a ternura que pôde reunir, o olhar
de Omi cravado nela.
- Obrigada, Anjin-san disse, e sorriu para ele apenas.
Um suspiro atravessou a praça. - Obrigada. - Depois acrescentou o tradicional: - Por favor, visite-nos de novo. Contarei os
momentos até que nos vejamos de novo.
Ele se curvou com a medida exata de negligência, e partiu
a passos largos arrogantemente, como qualquer samurai de qualidade o faria. Depois, porque ele a tratara muito corretamente,
o para pagar a Omi pela frieza desnecessária na mesura, ao invés
de voltar para dentro de casa imediatamente, permaneceu onde
estava, olhando o Anjin-san, para honrá-lo ainda mais. Esperou
até que ele estivesse na última esquina. Viu-o olhar para trás.
Acenar. Ela se curvou bem profundamente, agora encantada com
a atenção na praça, fingindo não notá-la. E apenas quando ele
realmente desapareceu foi que caminhou de volta. Com orgulho
o grande elegância. E até que o portão se fechasse, todos os
homens a olharam, nutrindo-se daquela beleza, invejosos do Anjinsan, que devia ser muito homem para que ela esperasse daquele
modo.
- Você está muito bonita - disse Omi.
- Gostaria que isso fosse verdade - disse ela com um
731
sorriso contido. - Aceitaria um pouco de chá, Omi-sama? Ou
comida?
- Com você, sim.
Gyoko juntou-se a eles untuosamente. - Por favor, desculpe-me os maus modos, Omi-sama. Coma conosco, por favor.
Já tomou a sua primeira refeição?
- Não... ainda não, mas não estou com fome. - Omi
olhou Kiku de relance. - Você ainda não comeu?
Gyoko interrompeu expansivamente: - Permita-nos trazerlhe alguma coisa que não seria inadequado demais, Omi-sama.
Kiku-san, quando se tiver trocado junte-se a nós, neh?
- Naturalmente. Por favor, desculpe-me, Omi-sama, por
aparecer assim. Sinto muito. - A garota saiu correndo, fingindo
uma felicidade que não sentia, Ako a reboque.
Omi disse abruptamente: - Eu gostaria de estar com ela
esta noite, para comer e me entreter.
- Naturalmente, Omi-sama - replicou Gyoko com uma
profunda mesura, sabendo que ela não estaria livre. - O senhor
honra a minha casa e nos concede muita honra. Kiku-san é muito
afortunada de que o senhor a distinga com o seu favor.
- Três mil kokus? - Toranaga estava escandalizado.
- Sim, senhor - disse Mariko. Estavam na varanda particular da fortaleza. A chuva já começara de novo, mas não
abrandara o calor do dia. Ela se sentia desatenta, muito cansada,
e ansiando pelo frescor do outono. - Sinto muito, mas não consegui negociar de modo que a mulher reduzisse mais o preço.
Conversei quase até o amanhecer. Sinto muito, senhor, mas ordenou-me que concluísse um acordo na noite passada.
- Mas três mil, Mariko-san! Isso é usura! - Na realidade
Toranaga estava contente por ter outro problema que lhe desviasse
a mente da preocupação que o atormentava. O padre cristão
Tsukku-san viajando com Zataki, o regente pretensioso, não pressagiava nada além de complicação. Ele examinara cada via de
escapada, cada estrada de retirada e ataque que cada homem poderia imaginar, e a resposta fora sempre a mesma: se Ishido se
mover rapidamente, estou perdido. Tenho que arranjar tempo.
Mas como?
Se eu fosse Ishido, começaria agora, antes que as chuvas
cessassem.
732
Colocaria os homens em posição, exatamente como o táicum
e eu fizemos para destruir os Beppu. O mesmo plano vencerá
sempre - é tão simples! Ishido não pode ser tão estúpido para
não ver que o único meio real de defender o Kwanto é possuir
Osaka, e todas as terras entre Yedo e Osaka. Enquanto Osaka
for inamistosa, o Kwanto estará em perigo. O táicum sabia disso,
por que outro motivo me deu o Kwanto? Sem Kiyama, Onoshi e
os padres bárbaros.. .
Com um esforço, Toranaga colocou o amanhã dentro do seu
compartimento e se concentrou totalmente naquela impossível
quantia em dinheiro. - Três mil kokus está fora de questão!
- Concordo, senhor. O senhor está certo. A culpa é inteiramente minha. Achei que até quinhentos seria excessivo, mas a
mulher Gyoko não desceu mais o preço. Há uma concessão,
porém.
- Qual?
- Gyoko implorou a honra de reduzir o preço para dois
mil e quinhentos kokus se o senhor lhe conceder a honra de
concordar em vê-Ia em particular por um bastão de tempo.
- Uma Mama-san desistiria de quinhentos kokus só para
falar comigo?
- Sim, senhor.
- Por quê? - perguntou ele, desconfiado.
- Ela me contou a razão, senhor, mas humildemente suplicou pela autorização de poder explicar-lhe pessoalmente. Acredito que a proposta dela lhe seria interessante, senhor. E quinhentos kokus... seria uma economia. Estou horrorizada por não ter
conseguido fazer um acordo melhor, ainda que Kiku-san seja de
primeira classe e mereça absolutamente esse status. Sei que lhe
falhei.
- Concordo - disse Toranaga acidamente. - Mesmo mil
seria demais. Isto é Izu, não Kyoto!
- Tem toda a razão, senhor. Eu disse à mulher que o preço
era tão ridículo, que possivelmente nem eu mesma conseguiria
concordar com ele, embora o senhor me tivesse dado ordens diretas de concluir o negócio à noite passada. Espero que o senhor
perdoe a minha desobediência, mas eu disse que primeiro consultaria a Senhora Kasigi, a mãe de Omi-san, que é a dama mais
velha aqui, antes que o acordo fosse confirmado.
Toranaga iluminou-se, suas outras preocupações esquecidas.
- Ah, então está arranjado, mas não está?
- Sim, senhor. Não foi nada decidido até que eu possa me
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consultar com a Senhora Kasigi. Eu disse que daria uma resposta
ao meio-dia de hoje. Por favor, perdoe a minha desobediência.
- Você devia ter concluído o negócio, conforme ordenei!
- Toranaga estava secretamente encantado com que Mariko tivesse inteligentemente dado a ele a oportunidade de concordar ou
discordar sem qualquer perda de dignidade. Teria sido impensável
que ele, pessoalmente, relutasse por uma mera questão de dinheiro. Mas oh ko, três mil kokus... - Você diz que o contrato da
garota vale o suficiente, em arroz, para alimentar mil famílias
durante três anos?
- Vale cada grão de arroz, para o homem certo.
Toranaga olhou-a, perspicaz. - Oh? Conte-me sobre ela e
sobre o que aconteceu.
Ela lhe contou tudo - exceto seu sentimento pelo Anjin-san
e a profundidade do dele por ela. Ou sobre a oferta que Kiku
lhe fizera.
- Bom. Sim, muito bom. Isso foi inteligente. Sim - disse
Toranaga. - Ele deve ter-lhe agradado muitíssimo, para que ela
ficasse ao portão como ficou, na primeira vez. - A maior parte
de Anjiro estivera à espera daquele momento, para ver como os
dois agiriam, o bárbaro e a Senhora Salgueiro de primeira classe.
- Sim.
- Os três kokus investidos valeram bem a pena para ele.
Sua fama agora correrá à sua frente.
- Sim - concordou Mariko, muito orgulhosa com o sucesso de Blackthorne. - Ela é uma dama excepcional, senhor.
Toranaga estava intrigado com a confiança de Mariko no
seu acordo. Mas quinhéntos kokus pelo contrato teria sido mais
justo. Quinhentos kokus era mais do que a maioria das Mama-sans
conseguia ganhar a vida inteira, portanto, para que uma delas
sequer considerasse a possibilidade de desistir de quinhentos...
- Vale cada grão, você diz? Mal posso acreditar nisso.
- Para o homem certo, senhor. Acredito que sim. Mas não
saberia julgar quem seria o homem certo.
Houve uma batida na shoji.
- Sim?
- O Anjin-san está ao portão principal, senhor.
- Traga-o aqui.
- Sim, senhor.
Toranaga abanou-se. Estivera observando Mariko dissimuladamente e vira a luz momentânea no seu rosto. Deliberadamente
não a prevenira de que mandara chamá-lo.
734
O que fazer? Tudo o que foi planejado ainda se aplica. Mas
agora preciso de Buntaro, do Anjin-san e de Omi-san mais do
que nunca. E de Mariko, muitíssimo.
- Bom dia, Toranaga-sama.
Ele retribuiu a mesura de Blackthorne e notou-lhe o súbito
calor quando o homem viu Mariko. Houve saudações e réplicas
formais, depois ele disse: - Mariko-san, diga-lhe que vai partir
comigo ao amanhecer. Você também. Você continuará até Osaka.
Um calafrio percorreu-a. - Sim, senhor.
- Eu vou Osaka, Toranaga-sama? - perguntou Blackthorne.
- Não, Anjin-san. Mariko-san, diga-lhe que vou à nascente
Shuzenji por um dia ou dois. Vocês dois me acompanharão até
lá. Você continuará para Osaka. Ele viajará com você até a fronteira, depois seguirá para Yedo sozinho.
Observou-os atentamente enquanto Blackthorne falava com
ela, rápida e urgentemente.
- Desculpe-me, Toranaga-sama, mas o Anjin-san humildemente pergunta se poderia me tomar emprestada por mais alguns
dias. Ele diz, por favor, desculpe-me, que a minha presença com
ele aceleraria grandemente o assunto do seu navio. Depois, se
lhe aprouvesse, ele tomaria imediatamente um dos seus navios
costeiros e me levaria a Osaka, seguindo sozinho para Nagasaki.
Ele sugere que isso poderia poupar tempo.
- Ainda não decidi nada sobre o navio. Ou sobre uma tripulação. Ele pode não precisar ir a Nagasaki. Deixe isso bem
claro. Não, nada está decidido. Mas considerarei a solicitação a
seu respeito. Você terá a minha decisão amanhã. Pode ir agora...
Oh, sim, por último, Mariko-san, diga-lhe que quero a genealogia
dele. Ele pode escrever e você traduzirá, ratificando-lhe a correção.
- Sim, senhor. O senhor deseja isso imediatamente?
- Não. Quando ele chegar a Yedo haverá tempo suficiente.
Mariko explicou a Blackthorne.
- Por que ele quer isso? - perguntou ele.
Mariko encarou-o. - Naturalmente todos os samurais têm
que ter seus nascimentos e mortes registrados, Anjin-san, assim
como seus feudos e concessões de terras. De que outro modo um
suserano pode manter tudo avaliado? Não acontece o mesmo no
seu país? Aqui, por lei, todos os nossos cidadãos constam de registros oficiais, até os etas: nascimentos, mortes, casamentos. Cada
735
vila, aldeia ou rua de cidade tem o seu pergaminho oficial. De
que outro modo se pode ter certeza de onde e a quem se pertence?
- Nós não escrevemos isso. Nem sempre. E não oficialmente. Todo mundo é registrado? Todo mundo?
- Oh, sim, até os etas, Anjin-san. É importante, neh? Assim
ninguém finge ser o que não é, malfeitores podem ser apanhados
com mais facilidade, e homens e mulheres ou parentes não podem
trapacear em casamentos, neh?
Blackthorne pôs isso de lado para consideração posterior e
jogou outra carta no jogo que iniciara com Toranaga, o que,
esperava ele, levaria à morte do Navio Negro.
Mariko ouviu atentamente, interrogou-o um momento, depois voltou-se para Toranaga. - Senhor, o Anjin-san lhe agradece pelo seu favor e os seus muitos presentes. Pergunta se o
senhor o honraria escolhendo os duzentos vassalos para ele. Diz
que a sua orientação nisso valeria qualquer coisa.
- Vale mil kokus? - perguntou Toranaga imediatamente.
Viu a surpresa dela e a do Anjin-san. Estou contente de que você
ainda seja transparente, Anjin-san, apesar de toda a sua aparencia
de civilização, pensou ele. Se eu fosse um jogador, apostaria que
não era essa a sua idéia - pedir a minha orientação.
- Hai - ouviu Blackthorne dizer com firmeza.
- Bom - retrucou ele, incisivo. - Já que o Anjin-san é
tão generoso, aceitarei o seu oferecimento. Mil kokus. Isso ajudará outros samurais necessitados. Diga-lhe que os seus homens
o estarão esperando em Yedo. Vejo-o ao amanhecer, amanhã,
Anjin-san.
- Sim. Obrigado, Toranaga-sama.
- Mariko-san, consulte-se com a Senhora Kasigi imediatamente. Já que você aprovou a quantia, imagino que ela concordará com o seu arranjo, por mais hediondo que pareça, embora
eu suponha que ela precisará de tempo até o amanhecer para dar
a uma soma tão ridícula sua consideração plena. Mande algum
criado ordenar à mulher Gyoko que esteja aqui ao crepúsculo.
Ela pode trazer a cortesã consigo. Kiku-san pode cantar enquanto
conversamos, neh?
Dispensou-os, encantado com o fato de ter poupado mil e
quinhentos kokus. As pessoas são tão extravagantes, pensou benevolamente.
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- Isso me deixará o suficiente para conseguir uma tripulação? - perguntou Blackthorne.
- Oh, sim, Anjin-san. Mas ele ainda não concordou com
que o senhor vá a Nagasaki - disse Mariko. - Quinhentos
kokus seria mais que suficiente para viver durante um ano, e os
outros quinhentos lhe darão cerca de cento e oitenta kobans em
ouro, para contratar marujos. É uma grande quantia de dinheiro.
Fujiko ergueu-se penosamente e falou com Mariko.
- Sua consorte diz que o senhor não devia se preocupar,
Anjin-san. Ela pode lhe dar cartas de crédito a certos prestamistas, que lhe adiantarão tudo de que o senhor necessitar. Ela
arranjará tudo.
- Sim, mas não tenho que pagar a todos os meus assistentes? Como pago por uma casa, Fujiko-san, minha criadagem?
Mariko estava chocada. - Por favor, desculpe, mas isso naturalmente não é preocupação sua. A sua consorte lhe disse que
se encarregará de tudo. Ela...
Fujiko interrompeu e as duas mulheres conversaram um instante.
- Ah so desu, Fujiko-san! - Mariko voltou-se para Blackthorne. - Ela diz que o senhor não deve perder tempo pensando
nisso. Roga-lhe, por favor, que gaste o seu tempo preocupando-se
apenas com os problemas do Senhor Toranaga. Ela tem dinheiro
seu, que pode sacar, caso seja necessário.
Blackthorne pestanejou. - Ela me emprestará o seu próprio
dinheiro?
- Oh, não, Anjin-san, claro que o dará ao senhor, se necessitar, Anjin-san. Não se esqueça de que os seus problemas são
só por este ano - explicou Mariko. - No próximo ano o senhor
estará rico. Quanto aos seus assistentes, por um ano eles receberão
dois kokus cada um. Não se esqueça de que Toranaga-sama está
dando ao senhor todas as armas e cavalos deles, e que dois kokus
é suficiente para alimentá-los, aos seus cavalos e famílias. E não
se esqueça, também, de que deu ao Senhor Toranaga metade da
sua renda de um ano para garantir que eles seriam escolhidos por
ele pessoalmente. Isso é uma honra tremenda, Anjin-san.
- Acha?
- Certamente. Fujiko-san concorda inteiramente. O senhor
foi muito astuto ao pensar nisso.
- Obrigado. - Blackthorne permitiu que um pouco do seu
prazer se mostrasse. Você está recuperando os miolos, e está começando a pensar como eles, disse a si mesmo alegremente. Sim,
737
foi inteligente cooptar Toranaga. Agora você terá os melhores
homens possíveis, e sozinho nunca teria conseguido isso. O que
são mil kokus contra o Navio Negro? Portanto, mais uma das
coisas que Mariko disse é verdade: que uma das fraquezas de
Toranaga é ser sovina. Claro, não o disse tão diretamente, disse
apenas que Toranaga fez toda a sua inacreditável riqueza aumentar mais do que a de qualquer daimio do reino. Esse indício, junto
com as suas próprias observações - que a roupa de Toranaga
era tão simples quanto a sua comida, e o seu estilo de vida pouco
diferente do de um samurai comum -, havia-lhe dado outra
chave para desvendar Toranaga.
Graças a Deus por Mariko e por Frei Domingo!
A memória de Blackthorne levou-o de volta à cela e ele
pensou em como estivera próximo da morte, então, e em como
estava próximo da morte agora, mesmo com todas as suas honrarias. O que Toranaga dá, pode tomar de volta. Você acha que
ele é seu amigo, mas se ele assassinaria uma esposa e mataria um
filho favorito, como você pode dar valor à amizade dele ou à
sua vida? Não dou, disse Blackthorne a si mesmo, renovando o
seu compromisso. Isso é karma. Não posso fazer nada em relação
ao karma, e vivi próximo da morte a vida toda, portanto não há
nada de novo. Rendo-me ao karfna em toda a sua beleza. Aceito
o karma em toda a sua majestade. Confio em que o karma me
fará atravessar os próximos seis meses. Depois, por esta altura no
próximo ano, estarei atravessando de vento em popa o passo de
Magalhães, a caminho de Londres, fora do alcance dele...
Fujiko estava falando. Ele a observou. As bandagens ainda
estavam manchadas. Ela estava penosamente deitada sobre os
futons, uma criada a abaná-la.
- Ela arranjará tudo para o senhor até o amanhecer, Anjinsan - disse Mariko. - Sua consorte sugere que o senhor leve
dois cavalos e um cavalo de bagagem. Um criado homem e uma
criada ...
- Um criado homem será suficiente.
- Sinto muito, mas a criada deve ir para servi-lo. E, naturalmente, um cozinheiro e um ajudante de cozinheiro.
- Não haverá cozinhas que nós... eu possa usar?
- Oh, sim. Mas o senhor ainda tem que ter os seus próprios
cozinheiros, Anjin-san. O senhor é um hatamoto.
Ele sabia que não havia sentido em argumentar. - Deixarei
tudo por sua conta.
- Oh, isso é sábio de sua parte, Anjin-san, muito sábio.
738
Agora devo ir fazer as malas, por favor, desculpe-me. - Mariko
partiu alegremente. Não haviam conversado muito, só o suficiente, em latim, para que ambos soubessem que, embora a noite
mágica nunca tivesse ocorrido e, como a outra noite, não devesse
nunca ser discutida, ambas viveriam na imaginação deles para
sempre.
- Fiquei tão orgulhosa quando soube que ela permaneceu
ao portão por tanto tempo! A sua dignidade é imensa agora,
Anjin-san.
- Por um instante quase esqueci o que a senhora me tinha
dito. Involuntariamente cheguei à distância de um fio de cabelo
de beijá-la em público.
- Oh ko, Anjin-san, isso teria sido terrível!
- Oh ko, a senhora tem razão! Não fosse pela senhora, eu
estaria desonrado ... um verme contorcendo-se no pó.
- Em vez disso, é famoso e a sua proeza indubitável. O
senhor apreciou algum daqueles objetos curiosos?
- Ah, linda senhora, na minha terra temos um antigo costume: um homem não discute os hábitos íntimos de uma dama
com outra.
- Temos o mesmo costume. Mas perguntei se foi apreciado,
não usado. Sim, temos o mesmo costume. Estou contente de que
a noite tenha sido a seu gosto. - O sorriso dela era acolhedor.
- Ser japonês no Japão é sábio, neh?
- Não posso lhe agradecer o suficiente por me haver ensinado, por me haver orientado, por me ter aberto os olhos -
disse ele. - Por. . . - Ele ia dizer "me amar", mas acrescentou:
- por ser.
- Não fiz nada. O senhor é o senhor mesmo.
- Agradeço-lhe, por tudo... e pelo seu presente.
- Estou contente de que o seu prazer tenha sido grande.
- Estou triste de que o seu prazer tenha sido nenhum.
Estou muito contente de que a senhora também tenha recebido
ordem de ir à nascente. Mas por que Osaka?
- Oh, não recebi ordem de ir para Osaka. O Senhor Toranaga me autorizou a ir. Temos propriedades e assuntos de família
que devem ser tratados. Além disso, meu filho se encontra lá
agora. Depois, também, posso levar mensagens particulares para
Kiritsubo-san e a Senhora Sazuko.
- Não é perigoso? Lembre-se das suas palavras: a guerra
se aproxima e Ishido é o inimigo. O Senhor Toranaga não disse
o mesmo?
739
- Sim. Mas ainda não há guerra, Anjin-san. E samurais
não combatem contra mulheres, a menos que as mulheres os
ataquem.
- Mas a senhora? E a ponte em Osaka, do outro lado do
fosso? A senhora não me seguiu para enganar Ishido? Ele me
teria matado. E lembre-se da sua espada na luta no navio.
- Ah, aquilo foi só para proteger a vida do meu suserano,
e a minha vida, quando esteve ameaçada. Era meu dever, Anjinsan, nada mais que isso. Não há risco para mim. Fui dama de
companhia da Senhora Yodoko, a viúva do táicum, até da Senhora Ochiba, mãe do herdeiro. Tenho a honra de ser amiga
delas. Estou absolutamente segura. É por isso que Toranaga-sama
me autoriza a ir. Mas para o senhor em Osaka não há segurança,
por causa da fuga do Senhor Toranaga, e do que foi feito ao
Senhor Ishido. Portanto o senhor não deve nunca aportar lá.
Nagasaki lhe será segura.
- Então ele concordou com a minha ida?
- Não. Ainda não. Mas quando o fizer, será seguro. Ele
tem poder em Nagasaki.
Ele queria perguntar "maior do que o dos jesuítas?", mas
apenas disse: - Rezo para que o Senhor Toranaga ordene que
a senhora vá de navio para Osaka. - Viu-a tremer ligeiramente.
- O que a perturba?
- Nada, exceto... exceto que o mar não me agrada.
- Ele ordenará assim mesmo?
- Não sei. Mas. . . - ela se transformou de novo na arreliadora travessa e disse em português: - mas, pela sua saúde,
devíamos levar Kiku-san conosco, neh? Esta noite o senhor vai
de novo à Câmara Rubro-Escarlate dela?
Ele riu com ela. - Seria ótimo, embora. . . - Parou, lembrando-se com súbita clareza do olhar de Omi. - Sabe, Marikosan, quando eu estava ao portão, tenho certeza de que vi Omi-san
olhando para ela de um modo muito especial, como um amante olharia. Um amante ciumento. Eu não sabia que eles eram
amantes.
- Consta-me que ele é um dos clientes dela, um cliente
favorecido, sim. Mas por que isso o preocuparia?
- Porque foi um olhar muito particular. Muito especial.
- Ele não tem direito especial sobre ela, Anjin-san. Ela é
uma cortesã de primeira classe. É livre para aceitar ou rejeitar
quem lhe apraza.
740
- Se estivéssemos na Europa e eu "travesseirasse" com a
garota dele... compreende, Mariko-san?
- Acho que sim, Anjin-san, mas por que isso o preocuparia? Não está na Europa, Anjin-san, ele não tem nenhum direito
formal sobre ela. Se ela quer aceitá-lo e a ele, ou mesmo rejeitar
o senhor ou a ele, o que isso tem a ver com qualquer coisa?
- Eu diria que ele é amante dela, no nosso sentido da palavra. Isso tem tudo a ver, neh?
- Mas o que tem isso a ver com a profissão dela, ou com
"travesseiro"?
Ele acabou por agradecer-lhe de novo e deixou a questão
parar nesse ponto. Mas sua cabeça e seu coração diziam-lhe que
estivesse alerta. Não é tão simples quanto você pensa, Marikosan, mesmo aqui. Omi acredita que Kiku é mais que especial,
mesmo que ela não sinta o mesmo. Gostaria de ter sabido que
ele era amante dela. Prefiro ter Omi como amigo a tê-lo como
inimigo. Mariko poderia estar certa de novo? Que "travesseiro"
não tem nada a ver com amor, para eles?
Deus me ajude, estou muito confuso. Agora, um oriental; na
maior parte, um ocidental. Tenho que agir como eles e pensar
como eles para continuar vivo. E muito daquilo em que eles acreditam é tão melhor do que o nosso modo de pensar, que é tentador
querer tornar-me um deles totalmente, e ainda assim... o lar é
lá, do outro lado do mar, onde nasceram meus ancestrais, onde
vive a minha família, Felicity, Tudor e Elizabeth. Neh?
- Anjin-san?
-- Sim, Fujiko-san?
- Por favor, não se preocupe com dinheiro. Não posso
suportar vê-lo preocupado. Sinto tanto não poder ir a Yedo com
o senhor.
- Logo ver em Yedo, neh?
- Sim. O médico diz que estou me curando depressa e a
mãe de Omi concorda.
- Quando médico aqui?
- Ao pôr-do-sol. Sinto muito não
amanhã. Por favor, desculpe-me.
Ele se perguntou de novo sobre o seu dever para com a
consorte. Depois devolveu esse pensamento ao seu compartimento
quando um outro se precipitou para a frente. Examinou essa idéia
e achou-a excelente. E urgente. - Eu vou agora, volto logo.
Você descansa... compreende?
741
poder ir com o senhor
- Sim. Por favor, desculpe-me por não me levantar, e
por ... sinto muito.
Ele a deixou e foi para o seu quarto. Pegou uma pistola do
esconderijo, examinou a escorva, e enfiou-a por sob o quimono.
Depois caminhou sozinho até a casa de Omi. Omi não estava.
Midori deu-lhe as boas-vindas e ofereceu-lhe chá, que ele polidamente recusou. Midori estava com seu bebê de dois anos nos
braços. Disse que sentia muito, mas Omi voltaria logo. O Anjinsan gostaria de esperar? Ela parecia pouco à vontade, embora
polida e atenciosa. Novamente ele recusou e agradeceu, dizendo
que voltaria mais tarde, depois desceu para a sua casa.
Aldeãos já haviam limpado o chão, preparando para reconstruir tudo. Nada fora poupado ao incêndio, exceto utensílios de
cozinha. Fujiko não lhe contaria o custo da reconstrução. Era
muito barato, dissera. Por favor, não se preocupe.
- Karma, Anjin-sama - disse um dos aldeãos.
- Sim.
- O que se poderia fazer? Não se preocupe, sua casa logo
estará pronta ... melhor do que antes.
Blackthorne viu Omi subindo a colina, tenso e rígido. Foi
ao seu encontro. Quando Omi o viu, pareceu perder parte da
fúria. - Ah, Anjin-san - disse cordialmente. - Ouvi dizer que
vai partir com Toranaga-sama ao amanhecer. Muito bom, podemos cavalgar juntos.
Apesar da aparente amistosidade de Omi, Blackthorne manteve-se em guarda.
- Ouça, Omi-san, agora eu vou lá. - Apontou na direção
do altiplano. - Por favor, o senhor vai comigo, sim?
- Não há treinamento hoje.
- Compreender. Por favor, ir comigo, sim?
Omi viu que a mão de Blackthorne estava no punho da espada mortífera, ao modo característico, preparando-a. Depois seus
olhos agudos notaram o volume sob o sash e ele entendeu imediatamente, pela forma parcialmente delineada, que era uma pistola escondida. - Um homem que tem autorização de usar as
duas espadas deveria ser capaz de utilizá-las, não apenas usá-las,
neh? - disse, a voz fraca.
- Por favor? Não compreendo.
Omi repetiu, mais simplesmente.
- Ah, compreendo. Sim. Melhor.
- Sim. O Senhor Yabu disse - agora que o senhor é totalmente samurai - que devia começar a aprender mais do que
742
consideramos correto. Como agir como assistente num seppuku,
por exemplo - e mesmo como se preparar para o seu próprio
seppuku, conforme somos todos obrigados a aprender. Sim, Anjinsan, o senhor devia aprender a usar as espadas. É muito necessário para um samurai saber como usar e honrar sua espada, neh?
Blackthorne não compreendeu metade das palavras. Mas
sabia o que Omi estava dizendo. Pelo menos, corrigiu-se ele,
apreensivo, sei o que ele está dizendo na superfície.
- Sim. Verdade. Importante - disse ele. - Por favor, um
dia o senhor ensinar... desculpe, o senhor ensina, talvez? Por
favor? Eu honrado.
- Sim, gostaria de ensinar-lhe, Anjin-san.
Os pêlos de Blackthorne se eriçaram ante a ameaça implícita
na voz de Omi. Atenção, censurou-se ele. Não comece a imaginar
coisas. - Obrigado. Agora caminhar lá, por favor? Pouco tempo.
O senhor vai com? Sim?
- Muito bem, Anjin-san. Mas iremos a cavalo. Volto num
instante. - Omi afastou-se colina acima, entrando no seu próprio
pátio.
Blackthorne ordenou a um criado que selasse o seu cavalo
e montou desajeitadamente pelo lado direito, conforme o costume
no Japão e na China. Não penso que haveria muito futuro em
deixá-lo me ensinar esgrima, disse a si mesmo, a mão direita
apalpando a pistola escondida, o agradável calor da arma tranqüilizando-o. Sua confiança esvaneceu-se quando Omi reapareceu.
Com ele vinham quatro samurais montados.
Juntos tomaram a estrada destruída a meio galope, em direção ao altiplano. Passaram por muitas companhias de samurais
em equipamento de marcha completo, armados, comandados pelos
seus oficiais, galhardetes de lança esvoaçando. Quando alcançaram o cume, viram que todo o Regimento de Mosquetes estava
fora do acampamento, em ordem de marcha, cada homem em pé
ao lado do seu cavalo armado, um comboio de bagagem na retaguarda, Yabu, Naga e os oficiais na vanguarda. A chuva começou
a cair pesadamente.
- Todas as tropas vão? - perguntou Blackthorne, perturbado, e puxou as rédeas do seu cavalo.
- Sim.
- Vão nascente com Toranaga-sama, Omi-san?
- Não sei.
O sentido de sobrevivência de Blackthorne preveniu-o para
não fazer mais perguntas. Mas uma tinha que ser feita. - E
743
Buntaro-sarna? - perguntou com indiferença. - Ele conosco
amanhã, Omi-san?
- Não. Ele já foi. Esta manhã ele estava na praça quando
você saiu da casa de chá. Não o viu, perto da casa de chá?
Blackthorne não conseguiu ler nada de aparente no rosto
de Omi.
- Não. Não ver, sinto muito. Ele ir nascente também?
- Acho que sim. Não tenho certeza. - A chuva gotejava
do chapéu cônico de Omi, amarrado sob o queixo. Seus olhos
estavam quase escondidos. - Agora por que quis que eu viesse
aqui com você?
- Mostrar lugar, como eu digo. - Antes que Omi pudesse
dizer qualquer coisa mais, Blackthorne esporeou o cavalo. Com
o seu acurado sentido marítimo, tomou posições precisas de memória e se dirigiu rapidamente para o ponto exato sobre a fenda.
Desmontou e chamou Omi com um gesto. - Por favor.
- O que é, hein? - A voz de Omi estava afiada.
- Por favor, aqui, Omi-san. Sozinho.
Omi afastou os guardas com um aceno e avançou até estar
sobranceiro a Blackthorne. - Nan desu ka? - perguntou, sua
mão aparentemente apertando a espada.
- Este lugar Toranaga-sama... - Blackthorne não conseguia pensar nas palavras, então explicou parcialmente com as
mãos. - Compreende?
- Aqui você o arrancou da terra, neh? E daí?
Blackthorne olhou para ele, depois deliberadamente para a
espada dele, depois encarou-o de novo, sem dizer mais nada.
Enxugou a chuva do rosto.
- Nan desu ka? - repetiu Omi, mais irritado.
Blackthorne ainda não respondeu. Omi olhou para a fenda
e novamente para o rosto de Blackthorne. Então seus olhos se
iluminaram. - Ah so desu! Wakarimasu! - Omi pensou um
momento, depois chamou um dos guardas. - Traga Mura aqui
imediatamente. Com vinte homens e pás!
O samurai se afastou a galope. Omi mandou os outros de
volta à aldeia, depois desmontou e parou ao lado de Blackthorne.
- Sim, Anjin-san, foi uma excelente idéia. Uma boa idéia.
- Idéia? Que idéia? - perguntou Blackthorne com inocência. - Só mostrar lugar... pensar o senhor querer conhecer
lugar, neh? Sinto muito... não compreendo.
- Toranaga-sama perdeu as espadas aqui - disse Omi.
744
- As espadas são muito valiosas. Ele ficará feliz em recuperá-las.
Muito feliz, neh?
- Ah so! Não minha idéia, Omi-san - disse Blackthorne.
- Omi-san idéia.
- Claro. Obrigado, Anjin-san. O senhor é um bom amigo
o sua mente é rápida. Eu devia ter pensado nisso sozinho. Sim,
o senhor é um bom amigo e todos nós precisaremos de amigos nos
próximos meses. A guerra está conosco agora, queiramos ou não.
- Por favor? Sinto muito. Não compreendo, falar depressa
demais. Por favor, desculpe.
- Contente de sermos amigos ... o senhor e eu. Compreende?
- Hai. O senhor diz guerra? Guerra agora?
- Logo. O que podemos fazer? Nada. Não se preocupe.
Toranaga-sama dominará Ishido e os traidores. Essa é a verdade,
compreende? Não se preocupe, neh?
- Compreender. Eu vou agora, minha casa. Está bem?
- Sim. Vejo-o ao amanhecer. Novamente obrigado.
Blackthorne assentiu. Mas não foi embora. - Ela é bonita, neh?
- O quê?
- Kiku-san. - As pernas de Blackthorne estavam ligeiramente separadas e ele estava pronto para saltar para trás e sacar
a pistola, apontar e atirar. Lembrava-se com clareza absoluta da
inacreditável rapidez com que Omi decapitara o primeiro aldeão,
muito tempo atrás, e se preparou do melhor modo que pôde.
Raciocinou que sua única segurança estava em precipitar o assunto de Kiku. Omi nunca o faria. Omi consideraria impensável essa
falta de educação. E, muito envergonhado com a própria fraqueza, Omi trancaria esse ciúme muito não-japonês num compartimento secreto. Como era estranho e vergonhoso, esse ciúme apodreceria até que, quando menos se esperasse, Omi explodisse cega
o ferozmente.
- Kiku-san? - disse Omi.
- Hai. - Blackthorne podia ver que Omi estava petrificado. Ainda assim, ficou contente de ter escolhido o momento e
o lugar. - Ela é bonita, neh?
- Bonita?
- Hai.
A chuva aumentou. As pesadas gotas respingavam na lama.
Os cavalos arrepiavam desconfortavelmente. Os dois homens estavam encharcados, mas a chuva era quente.
745
- Sim - disse Omi. - Kiku-san é muito bonita - e pronunciou uma torrente de palavras que Blackthorne não assimilou.
- Não palavras suficientes agora, Omi-san... não suficientes para falar claro agora - disse Blackthorne. - Mais tarde,
sim. Não agora. Compreende?
Omi não pareceu ter ouvido. Depois disse: - Há muito
tempo, Anjin-san, muito tempo para falar sobre ela, e sobre o
senhor, eu e karma. Mas concordo, este não é o momento, neh?
- Acho compreender. Sim. Ontem não saber Omi-san e
Kiku-san bons amigos - disse ele, forçando o ataque.
- Ela não é minha propriedade.
- Não saber o senhor e ela muito amigos. Agora...
- Agora vá embora. O assunto está encerrado. A mulher
não é nada. Nada.
Obstinado, Blackthorne continuou onde estava. - Próxima
vez eu...
-- Esta conversa está encerrada! Não ouviu? Acabada!
- Iyé! Iyé, por Deus!
A mão de Omi foi para a sua espada. Blackthorne saltou
dois passos para trás sem perceber. Mas Omi não sacou a arma
e Blackthorne não puxou a espada. Os dois homens se prepararam, embora nenhum dos dois quisesse começar.
- O que quer dizer, Anjin-san?
- Próxima vez, primeiro eu pergunto... sobre Kiku-san.
Se Omi-san dizer sim... sim. Se não... não! Compreende? Amigo para amigo, neh?
Omi relaxou ligeiramente a mão sobre a espada. - Repito:
ela não é minha propriedade. Obrigado por me ter mostrado este
lugar, Anjin-san. Adeus.
- Amigo?
- Claro. - Omi dirigiu-se para o cavalo de Blackthorne e
segurou as rédeas. Blackthorne saltou para a sela.
Olhou para Omi. Se pudesse sair ileso, sabia que teria estourado a cabeça do samurai agora. Seria o rumo mais seguro.
- Adeus, Omi-san, e obrigado.
- Adeus, Anjin-san. - Omi observou Blackthorne se afastando e não voltou as costas até que ele estivesse sobre a elevação. Marcou o lugar exato na fenda com algumas pedras e depois,
perturbado, acocorou-se para esperar, esquecido do dilúvio.
Logo chegaram Mura e os camponeses, salpicados de lama.
- Toranaga-sama caiu no abismo exatamente neste ponto,
746
Mura. As suas espadas estão enterradas aqui. Traga-as a mim ao
crepúsculo.
- Sim, Omi-sarna.
- Se você tivesse miolos, se estivesse interessado em mim,
seu suserano, já teria feito isso.
- Por favor, desculpe a minha estupidez.
Omi foi embora. Os homens o observaram brevemente, depois se espalharam num círculo em torno das pedras, e começaram a cavar.
Mura baixou a voz. - Uo, você irá com o comboio de
bagagem.
- Sim, Mura-san. Mas como?
- Vou oferecê-lo ao Anjin-san. Ele não vai notar diferença
alguma.
- Mas a consorte dele, oh ko, vai - sussurrou Uo.
- Ela não vai com ele. Ouvi dizer que as queimaduras são
graves. Ela irá de navio para Yedo mais tarde. Você sabe o que
fazer?
- Procurar o santo padre em particular, responder a todas
as perguntas.
- Sim. - Mura descontraiu-se e começou a conversar normalmente. - Você pode ir com o Anjin-san, Uo, ele pagará bem.
Faça-se útil, mas não demais, ou ele o levará até Yedo.
Uo riu. - Ei, ouvi dizer que Yedo é tão rica que todo
mundo mija em potes de prata, até os etas. E as mulheres têm a
pele como espuma do mar, sem pêlos púbicos.
- É verdade, Mura-san? - perguntou outro aldeão. - Elas
não têm pelinhos?
- Yedo era só uma fedorenta aldeiazinha de pesca, nada
de tão bom quanto Anjiro, quando estive lá a primeira vez -
contou-lhes Mura, sem parar de cavar. - Isso foi com Toranagasama, quando estávamos todos dando caça aos Beppu. Cortamos
mais de três mil cabeças. Quanto aos pêlos, todas as garotas que
conheci os tinham, menos uma da Coréia, mas ela disse que os
arrancara, um a um.
- O que algumas mulheres não fariam para nos atrair, hein?
- disse alguém.
- Sim. Mas eu gostaria de ver isso - disse Ninjin desdentadamente. - Sim, gostaria de ver um Portão de Jade sem um
bosque.
- Eu apostaria um barco carregado de peixe contra um
747
balde de merda como dói arrancar todos aqueles pêlos. - Uo
assobiou.
- Quando eu for um kami, vou morar no Pavilhão do
Paraíso de Kiku-san! Dizem que ela nasceu perfumada e sem
pêlos!
Em meio à risada, Uo perguntou: - Fez alguma diferença,
Mura-san, atacar o Portão de Jade sem o bosque?
- Foi o mais próximo que eu já consegui chegar. Iiiiih!
Cheguei mais perto e mais fundo do que nunca, e isso é importante, neh? Por isso sei que é sempre melhor que a garota tire o
bosque, embora algumas sejam supersticiosas com relação a isso
e outras se queixem da coceira. Fica mais perto para a gente, e
muito mais para ela... e chegar perto faz toda a diferença, neh?
- Eles riram e se abraçaram sobre a escavação. O buraco crescia
sob a chuva.
- Aposto como o Anjin-san chegou mais perto a noite passada, para que ela ficasse ao portão daquele jeito! Iüih, o que eu
não daria para ter sido ele. - Uo enxugou o suor da testa. Como
todos os demais, usava apenas uma tanga e um chapéu cônico
de bambu, e estava descalço.
- Iiiiih! Eu estava lá, Uo, na praça, e vi tudo. Vi o sorriso
dela e o senti descer até a minha Fruta e os meus artelhos.
- Sim - disse outro. - Tenho que admitir que só o sorriso
dela me deixou duro como um remo.
- Mas não tão grande quanto o do Anjin-san, hein, Murasan? - casquinou Uo. - Vamos, conte-nos a história de novo.
Alegremente Mura aquiesceu e contou sobre a primeira noite
e a casa de banho. A história melhorara à medida que fora sendo
repetida, mas nenhum deles se importava.
- Oh, ser tão imenso! - Uo fez de conta que carregava
uma gigantesca ereção à sua frente, e riu tanto que escorregou
na lama.
- Quem teria imaginado que o bárbaro estrangeiro sairia do
buraco para o paraíso? - Mura curvou-se sobre a sua pá um
instante, recobrando fôlego. - Eu nunca teria acreditado...
como uma lenda antiga. Karma, neh?
- Talvez ele tenha sido um de nós, numa vida anterior, e
tenha voltado com a mesma mente mas uma pele diferente.
Ninjin assentiu. - Isso é possível. Deve ser... porque, pelo
que disse o santo padre, eu pensei que ele estaria ardendo na
fornalha do Diabo há muito tempo. O padre não disse que rogaria uma praga especial nele? Eu o ouvi invocar a vingança do
748
grande kami Jesus sobre o Anjin-san e, oh ko, até eu fiquei muito
assustado. - Persignou-se e os outros mal notaram isso. - Mas
Jesus Cristo, Nossa Senhora, Deus punem seus inimigos muito
estranhamente, se é que vocês querem saber a minha opinião.
- Bem - disse Uo -, eu não sou cristão, como vocês bem
sabem, mas, sinto muito, parece-me que o Anjin-san é um bom
homem, por favor, desculpem-me, e melhor do que o padre cristão, que fedia, praguejava e assustava todo mundo. E ele tem sido
bom conosco, neh? Trata bem a sua gente... alguns dizem que
ele é amigo do Senhor Toranaga, deve ser com todas as honrarias, neh? E não se esqueçam de que Kiku-san o honrou com o seu
Rego de Ouro.
- É de ouro, sim. Ouvi dizer que a noite lhe custou cinco
kobans!
- Quinze kokus por uma noite? - exclamou Ninjin. -
Iiiiiih, que sorte o Anjin-san tem! Tem um kami ótimo para um
inimigo de Deus Pai, Filho, e Nossa Senhora.
- Ele pagou um koban, três kokus - disse Mura. - Mas
se vocês acham que isso é muito. .. - Parou e olhou em torno
com ar de conspiração, para se certificar de que não havia ouvidos clandestinos, embora soubesse, é claro, que com aquela chuva
não haveria nenhum -- e mesmo que houvesse, que importava?
Todos pararam e se aproximaram. - Sim, Mura-san?
- Simplesmente ouvi dizer que ela vai ser consorte do Senhor Toranaga. Ele comprou o contrato dela esta manhã. Três
mil kokus.
Era uma cifra assustadora, mais do que a aldeia inteira ganhava com peixe e arroz em vinte anos. O respeito por Kiku
aumentou, se é que isso era possível. E pelo Anjin-san, que fora
portanto o último homem na terra a desfrutar dela como cortesã
de primeira classe.
- Iiiiih! - resmungou Uo, falando com dificuldade. -
Tanto dinheiro... não sei se quero vomitar, mijar ou peidar.
- Não faça nenhuma das três coisas - disse Mura laconicamente. - Cave. Vamos encontrar as espadas.
Obedeceram, cada um perdido nos próprios pensamentos.
Inexoravelmente o buraco se aprofundava.
Logo Ninjin, ardendo de preocupação, não conseguiu mais
se conter e parou de cavar. - Mura-san, por favor, desculpe-me,
mas o que decidiu sobre as novas taxas? - perguntou. Os outros
pararam.
749
Mura continuou cavando no seu ritmo metódico, esfalfante.
- O que há para decidir? Yabu-sama diz paguem, nós pagamos, neh?
- Mas Toranaga-sama reduziu os nossos impostos para quatro partes sobre dez e ele é o nosso suserano agora.
- Verdade. Mas o Senhor Yabu recebeu Izu de volta, e
Suruga e Totomi junto, e se tornou governador de novo, portanto
quem é o nosso suserano?
- Toranaga-sama. Certamente, Mura-san, Tora...
- Você vai se queixar para ele, Ninjin? Hein? Acorde,
Yabu-sama é governador como sempre foi. Nada mudou. E se ele
sobe os impostos, pagamos mais impostos. Está acabado!
- Mas isso vai levar todos os nossos estoques de inverno.
Tudo. - A voz de Ninjin era um lamento enraivecido, mas todos
eles sabiam da verdade do que ele dissera. - Mesmo com o arroz
que roubamos ...
- O arroz que poupamos! - sibilou Uo, corrigindo-o.
- Mesmo com isso, não haverá o suficiente para durar todo
o inverno. Teremos que vender um bote ou dois.
- Não venderemos bote algum - disse Mura. Espetou a
pá na lama e enxugou o suor de sobre os olhos, reamarrou o cordão do chapéu com mais firmeza. Depois começou a cavar de
novo. - Trabalhe, Ninjin. Isso lhe desviará a mente do amanhã.
- Como agüentamos o inverno, Mura-san?
- Ainda temos que atravessar o verão.
- Sim - concordou Ninjin amargamente. - Pagamos mais
de dois anos de impostos adiantados e ainda não é suficiente.
- Karma, Ninjin - disse Uo.
- A guerra se aproxima. Talvez tenhamos um novo senhor
que seja mais justo, neh? - disse outro.
- Não pode ser pior... ninguém poderia ser pior.
- Não apostem nisso - disse Mura a todos. - Vocês estão
vivos... mas podem estar totalmente mortos rapidamente e então
não haverá mais Regos de Ouro, com ou sem bosque. - Sua pá
atingiu a rocha e ele parou. - Dê-me uma mão, Uo, amigo velho.
Juntos tiraram a rocha à força da lama. Um cochichou ansiosamente: - Mura-san, e se o santo padre perguntar sobre as
armas?
- Contê-lhe. E diga-lhe que estamos prontos... que Anjiro
está pronta.
750
CAPITULO 42
Chegaram a Yokosé pelo meio-dia. Buntaro já havia interceptado Zataki na noite anterior e, conforme ordenara Toranaga,
dera-lhe as boas-vindas com grande formalidade. - Pedi-lhe que
acampasse fora da aldeia, ao norte, senhor, até que o local de
encontro pudesse ser preparado - disse Buntaro. - A reunião
formal ocorrerá aqui esta tarde, se lhe aprouver - acrescentou,
inexpressivo. - Achei que a hora do Bode seria auspiciosa.
- Bom.
- Ele queria encontrá-lo esta noite, mas eu rejeitei isso.
Dissê-lhe que o senhor ficaria "honrado" em encontrá-lo hoje
ou amanhã, como ele quisesse, mas não após escurecer.
Toranaga grunhiu uma aprovação, mas continuou montado
no seu cavalo coberto de suor. Usava um peitoral de armas, elmo,
e uma leve armadura de bambu, assim como a sua escolta, igualmente esgotada pela viagem. Novamente olhou em torno com
cuidado. A clareira fora muito bem escolhida, sem possibilidade
alguma de emboscada. Não havia árvores ou casas nas proximidades, que pudessem ocultar arqueiros ou mosqueteiros. A leste
da aldeia o terreno era plano e um pouco mais alto. Norte, oeste
e sul estavam guardados pela aldeia e pela ponte de madeira que
se estendia sobre o rio de curso rápido. Ali na garganta a água
redemoinhava, o leito infestado de rochas. A leste, atrás dele e dos
cavaleiros exaustos e transpirando, o caminho subia abruptamente
o passo até o cume enevoado, a cinco ris de distância. Montanhas
erguiam-se acima de tudo ao redor, muitas vulcânicas, a maioria
com os picos nas nuvens. No centro da clareira, um estrado de
doze esteiras fora especialmente erguido sobre colunas baixas.
Cobria-o um alto dossel de junco. Os artesãos não pareciam ter
tido pressa. Duas almofadas de brocado estavam colocadas uma
diante da outra sobre os tatamis.
- Tenho homens ali, ali e ali - continuou Buntaro, apontando com o arco para todos os penhascos que davam para o
vale. - O senhor pode vê-los a muitas ris em todas as direções,
senhor. Boas posições de defesa - a ponte e a aldeia inteira
estão cobertas. A leste a sua retirada está garantida por mais
homens. É claro que a aldeia está bem vigiada por sentinelas, e
deixei uma "guarda de honra" de cem homens no acampamento dele.
- O Senhor Zataki está lá agora?
751
- Não, senhor. Escolhi uma hospedaria para ele e seus escudeiros nos arredores da aldeia, a norte, digna da posição dele,
o convidei-o a desfrutar dos banhos lá mesmo. A hospedaria é
isolada e está protegida. Sugeri que o senhor iria à nascente Shuzenji amanhã e ele seria seu convidado. - Buntaro indicou
uma hospedaria de um andar na extremidade da clareira, que
dava para a melhor vista, perto de uma fonte pequena que
efervescia da rocha num banho natural. - Aquela hospedaria é
sua, senhor. - Em frente da estalagem, estava um grupo de
homens, todos ajoelhados, de cabeça bem baixa, curvados imóveis na direção deles. - São o chefe e os anciãos da aldeia. Eu
não sabia se o senhor iria querer vê-los imediatamente.
- Mais tarde. - O cavalo de Toranaga relinchou, cansado,
o sacudiu a cabeça, os freios retinindo. Ele o afagou e, agora totalmente satisfeito com a segurança, fez sinal a seus homens e
desmontou. Um dos samurais de Buntaro segurou-lhe as rédeas
- o samurai, como Buntaro e todos eles, de armadura, armado
para combate, e de prontidão.
Toranaga espreguiçou-se e fez flexões para relaxar os músculos com cãibras das costas e das pernas. Viera na dianteira
desde Anjiro em marcha forçada, parando apenas para trocar as
montarias. O resto do comboio de bagagem, sob o comando de
Omi - palanquins e carregadores -, ainda estava bem longe,
enfileirado na estrada que descia do cume. A estrada de Anjiro
serpeava ao longo da costa, depois se ramificava. Eles haviam
tomado o caminho oeste, para o interior, e subido resolutamente
através de florestas luxuriantes com caça abundante, o monte
Omura à direita, os picos da cordilheira vulcânica Amagi à esquerda, elevando-se quase a cinco mil pés. A cavalgada o havia
alegrado - finalmente um pouco de ação! Parte da jornada
fora através de uma região tão boa para falcoar, que ele se
prometeu que um dia caçaria por toda Izu.
- Bom. Sim, muito bom - disse ele por sobre o alarido
dos seus homens desmontando e tagarelando e se separando.
- Você agiu bem.
- Se me quiser honrar, senhor, rogo-lhe que me permita
destruir o Senhor Zataki e seus homens imediatamente.
- Ele o insultou?
- Não... pelo contrário, seus modos foram dignos de um
cortesão, mas a bandeira sob a qual ele viaja é uma traição contra
o senhor.
752
- Paciência. Quantas vezes tenho que lhe dizer? - disse
Toranaga, sem grosseria.
- Tenho medo sempre, senhor - replicou Buntaro, asperamente. - Por favor, desculpe-me.
- Você costumava ser amigo dele.
- Ele costumava ser seu aliado.
- Ele lhe salvou a vida em Odawara.
- Estávamos do mesmo lado em Odawara - disse Buntaro
gelidamente, depois explodiu: - Como ele pode lhe fazer isso,
senhor? Seu próprio irmão! O senhor não o favoreceu. não lutou
do mesmo lado que ele, a vida toda?
- As pessoas mudam. -- Toranaga concentrou toda a atenção no estrado. Delicadas cortinas de seda tinham sido penduradas às vigas sobre a plataforma como decoração. Borlas ornamentais de brocado, combinando com as almofadas, formavam
um friso agradável, e dos quatro pilares dos cantos pendiam borlas
maiores. - Está rico demais e dá ao encontro importância excessiva - disse ele. - Deixe-o mais simples. Remova as cortinas,
todas as borlas e almofadas, devolva-as aos mercadores, e se eles
não derem o dinheiro de volta ao mestre quarteleiro, diga-lhe
que as venda. Providencie quatro almofadas, não duas, simples,
de palha.
- Sim, senhor.
O olhar de Toranaga deu com a fonte e ele se aproximou
de lá. A água, fumegante e sulfurosa, chiava quando ele se
aproximou de uma fenda nas rochas. Seu corpo doía por um
banho. - E o cristão? - perguntou.
- Senhor?
- Tsukku-san, o padre cristão?
- Oh, ele! Está em algum lugar na aldeia, mas do outro
lado da ponte. Está proibido de vir a este lado sem a sua permissão. Por quê? É importante? Ele disse alguma coisa sobre
como ficaria honrado em vê-lo, quando fosse conveniente. O senhor o quer aqui agora?
- Ele está sozinho?
Buntaro fez um muxoxo. - Não. Tem uma escolta de vinte
acólitos, todos tonsurados como ele. Todos homens de Kyushu,
senhor, todos bem-nascidos e todos samurais. Todos bem montados, mas sem armas. Mandei revistá-los completamente.
- E ele?
- Claro que a ele também, mais que a qualquer outro.
Havia quatro pombos-correio na sua bagagem. Confisquei-os.
753
- Bom. Destrua-os ... Algum imbecil fez isso por engano,
sinto muito, neh?
- Compreendo. Quer que eu mande buscá-lo agora?
- Mais tarde. Vê-lo-ei mais tarde.
Buntaro franziu o cenho. - Foi errado revistá-lo?
Toranaga meneou a cabeça e distraidamente olhou para trás,
para o cume da montanha, perdido 'em pensamento. Depois disse:
- Mande um par de homens em quem possamos confiar vigiar
o Regimento de Mosquetes.
- Já fiz isso, senhor. - O rosto de Buntaro acendeu-se com
uma satisfação austera. - E a guarda pessoal do Senhor Yabu
contém alguns dos nossos ouvidos e olhos. Ele não vai poder
peidar sem que o senhor saiba, se for esse o seu desejo.
- Bom. - A cabeça do comboio de bagagem, ainda bem
distante, contornou uma curva no caminho sinuoso. Toranaga
podia ver os três palanquins, Omi cavalgando na liderança, conforme o ordenado, o Anjin-san ao seu lado, também cavalgando
com desembaraço.
Toranaga deu-lhes as costas. - Trouxe sua esposa comigo.
- Sim, senhor.
- Ela está me pedindo permissão para ir a Osaka.
Buntaro encarou-o, mas não disse nada. Depois olhou de
soslaio para as figuras discerníveis.
- Dei-lhe a minha aprovação... desde que, naturalmente,
você também aprove.
- Tudo o que o senhor aprovar, eu aprovarei - disse
Buntaro.
- Posso permitir-lhe que vá por terra, de Mishima, ou que
acompanhe o Anjin-san até Yedo, e vá de lá para Osaka, por
mar. O Anjin-san concordou em ser responsável por ela... se
você aprovar.
- Seria mais seguro por mar - Buntaro estava ardendo
por dentro.
- Tudo depende da mensagem do Senhor Zataki. Se Ishido
declarou formalmente guerra contra mim, então é claro que devo
proibi-lo. Senão, sua esposa pode seguir amanhã ou depois de
amanhã, se você aprovar.
- Concordo com qualquer coisa que o senhor decida.
- Esta tarde transfira os seus deveres a Naga-san. É um
bom momento para você e sua esposa fazerem as pazes.
- Por favor, desculpe-me, senhor. Devo ficar com os meus
754
homens. Imploro-lhe que me deixe com os meus homens. Até
que o senhor esteja longe, em segurança.
- Esta noite você transferirá seus deveres ao meu filho.
Você e sua esposa se reunirão a mim à refeição noturna. Ficarão
na hospedaria. Farão as pazes.
Buntaro olhava fixamente para o chão. Depois disse, ainda
mais rígido: - Sim, senhor.
- Ordeno-lhe que tente fazer as pazes - disse Toranaga.
Pretendia acrescentar "uma paz honrosa é melhor do que a guerra,
neh?" Mas isso não era verdade, poderia ter dado início a uma
discussão filosófica, e ele estava cansado e não queria discussões,
apenas um banho e repouso. - Agora vá buscar o chefe da
aldeia!
O cabeça e os anciãos da aldeia caíram uns sobre os outros
na sua pressa de se curvar diante dele, dando-lhe as boas-vindas
do modo mais extravagante. Toranaga dissê-lhes bruscamente
que a conta que apresentariam ao seu mestre quarteleiro quando
ele partisse naturalmente seria justa e razoável. - Neh?
- Hai - disseram em coro humildemente, abençoando os
deuses pela inesperada boa fortuna e pelos gordos lucros que
aquela visita inevitavelmente lhes traria. Com muitas mesuras e
cumprimentos mais, dizendo de como estavam orgulhosos e honrados de poderem servir ao maior daimio do império, o chefe da
aldeia, um velho alegre, conduziu-o até a hospedaria.
Toranaga inspecionou-a completamente por entre multidões
de mesuras, criadas sorridentes de todas as idades, a nata da
aldeia. Havia dez aposentos em torno de um jardim indefinível,
com uma pequena casa de chá no centro, cozinhas nos fundos
e, a oeste, aninhada nas rochas, uma grande casa de banho alimentada pelas fontes naturais. A hospedaria inteira era rodeada
por uma cerca caprichada - um caminho coberto levava ao
banho - e fácil de defender.
- Não necessito da hospedaria inteira, Buntaro-san - disse
ele, novamente em pé na varanda. - Três aposentos serão suficientes: um para mim, um para o Anjin-san e um para as mulheres. Fique você com um quarto. Não há necessidade de pagar
pelo resto.
- O meu mestre quarteleiro diz que fez um negócio muito
bom pela hospedaria inteira, senhor, dia a dia, melhor do que
metade do preço, e ainda está fora de estação. Aprovei o custo,
por causa da sua segurança.
- Muito bem - concordou Toranaga relutante. - Mas
755
quero ver a conta antes de partirmos. Não há necessidade de
desperdiçar dinheiro. É melhor encher os quartos com guardas,
quatro em cada aposento.
- Sim, senhor. - Buntaro já havia decidido fazer isso.
Observou Toranaga afastar-se a passos largos com dois guardacostas, rodeado pelas quatro criadas mais bonitas, indo para o
seu quarto na ala leste. Que mulheres? perguntou-se ele, sombriamente. Que mulheres precisavam do quarto? Fujiko? Não importa,
pensou, cansado, logo saberei.
Uma criada passou alvoroçada. Sorriu-lhe, alegre, e ele retribuiu mecanicamente. Era jovem, bonita, tinha uma pele macia,
e ele dormira com ela na noite anterior. Mas a união não lhe
dera prazer, e embora ela fosse hábil, animada e bem treinada,
a luxúria dele desaparecera - ele nunca sentira desejo por ela.
Finalmente, por causa das boas maneiras fingira atingir o auge,
assim como ela fingira, para deixá-lo logo depois.
Ainda meditando saiu do pátio, para apreciar a estrada.
Por que Osaka?
À hora do Bode, as sentinelas da ponte se afastaram para o
lado. O cortejo começou a passar. Primeiro vinham batedores
portando bandeiras decoradas com o todo-poderoso emblema dos
regentes, depois o rico palanquim, e finalmente mais guardas.
Aldeãos se curvaram, todos de joelhos. Tanta riqueza e
pompa os deixava secretamente curiosos. Precavidamente o chefe
da aldeia perguntara se devia reunir toda a sua gente para honrar
a ocasião. Toranaga mandara uma mensagem dizendo que todos
os que não estivessem trabalhando poderiam assistir, com a permissão dos respectivos amos. Então o chefe, com cautela ainda
maior, selecionara uma delegação que incluía velhos e jovens
obedientes, exatamente o suficiente para fazer uma demonstração
- embora todos os adultos tivessem gostado de estar presentes
mas não o suficiente para ir contra as ordens do grande
daimio. Todos os que podiam estavam assistindo às escondidas,
por trás de janelas e portas.
Saigawa Zataki, senhor de Shinano, era mais alto do que
Toranaga, e cinco anos mais jovem, com a mesma largura de
ombros e nariz proeminente. Mas tinha o estômago chato, a barba
curta, preta e densa, os olhos meras fendas no rosto. Embora parecesse haver uma fantástica semelhança entre os meios irmãos
quando estavam longe, agora que estavam juntos eram absoluta756
mente diferentes. O quimono de Zataki era luxuoso, a armadura
cintilante e cerimonial, as espadas bem usadas.
- Bem-vindo, irmão - Toranaga avançou do estrado e se
curvou. Estava usando o mais simples dos quimonos e sandálias
de palha de soldado. E as espadas. - Por favor, desculpe-me por
recebê-lo assim informalmente, mas vim tão depressa quanto
pude.
- Por favor, desculpe-me por incomodá-lo. Está com boa
aparência, irmão. Muito boa. - Zataki desceu do palanquim e
retribuiu a reverência dando início às intermináveis e meticulosas
formalidades do cerimonial que agora dirigia a ambos.
- Por favor, tome esta almofada, Senhor Zataki.
- Por favor, desculpe-me, eu ficaria honrado se o senhor
se sentasse primeiro, Senhor Toranaga.
- É muito gentil. Mas, por favor, honre-me sentando-se
primeiro.
Continuaram com o jogo que já haviam jogado tantas vezes,
um com o outro e com os amigos e inimigos, ascendendo a
escada do poder, apreciando as regras que governavam cada
movimento e cada frase, que protegiam a honra individual de cada
um, de modo que nenhum deles pudesse cometer um engano, se
comprometer ou comprometer a missão.
Finalmente sentaram-se um diante do outro sobre as almofadas, à distância de duas espadas um do outro. Buntaro postou-se
atrás à esquerda de Toranaga. O principal assistente de Zataki,
um velho samurai grisalho, também se pôs atrás, à esquerda do
amo. Em torno do estrado, a vinte passos, estavam samurais de
Toranaga, sentados em fileiras, todos deliberadamente ainda vestidos com os trajes de viagem, mas com as armas em perfeitas
condições. Omi estava sentado no chão à extremidade do estrado,
Naga no lado oposto. Os homens de Zataki estavam vestidos
formalmente, e ricamente, as capas imensas e com ombros em
forma de asas presas com fivelas de prata. Mas estavam igualmente bem armados. Acomodaram-se, também a vinte passos de
distância.
Mariko serviu o chá cerimonial e houve uma conversa formal
e inócua entre os dois irmãos. No momento correto, Mariko
curvou-se e saiu, Buntaro doloridamente consciente da presença
dela e imensamente orgulhoso da sua graça e beleza. Depois,
cedo demais, Zataki disse bruscamente: - Trouxe ordens do
conselho de regentes.
Um silêncio repentino caiu sobre a área. Todos, até os seus
757
homens, ficaram agastados com a falta de modos de Zataki,
com o modo insolente como dissera "ordens" e não "mensagem",
e com a sua falha não esperando que Toranaga perguntasse "Como
posso ser-lhe útil?", conforme exigia o cerimonial.
Naga disparou os olhos do braço da espada de Zataki para
o pai. Viu o rubor no pescoço de Toranaga, o que era sinal
infalível de uma explosão iminente. Mas o seu rosto continuou
tranqüilo, e Naga ficou atônito quando ouviu a resposta controlada: - Desculpe, o senhor tem ordens? Para quem, Irmão?
Certamente tem uma mensagem?
Zataki sacou com violência dois pequenos rolos da manga.
A mão de Buntaro quase disparou para a espada à espera ante
a rapidez inesperada, pois o ritual exigia que todos os movimentos
fossem lentos e calculados. Toranaga não se movera.
Zataki rompeu o selo do primeiro rolo e leu numa voz alta,
insensível: - "Por ordem do conselho de regentes, em nome do
Imperador Go-Nijo, o Filho do Céu: saudamos nosso ilustre
vassalo Yoshi-noh-Minowara e convidamo-lo a prestar obediência
diante de nós em Osaka, incontinenti, e convidamo-lo a informar
o nosso ilustre embaixador, o regente Senhor Saigawa Zataki, se
o nosso convite é aceito ou recusado - incontinenti".
Levantou os olhos e, em voz igualmente alta, continuou:
- Está assinado por todos os regentes e selado com o Grande
Selo do reino. - Com arrogância, colocou o rolo diante dele.
Toranaga fez sinal a Buntaro, que avançou, curvou-se profundamente para Zataki, pegou o rolo, voltou-se para Toranaga, curvouse de novo. Toranaga aceitou o rolo e fez sinal a Buntaro que
voltasse a seu lugar.
Toranaga estudou o rolo interminavelmente.
- Todas as assinaturas são autênticas - disse Zataki. -
O senhor aceita ou recusa?
Numa voz controlada, de modo que apenas os que estavam
no estrado e Omi e Naga pudessem ouvi-lo, Toranaga disse:
- Por que eu não lhe tiro a cabeça pelas maneiras abomináveis?
- Porque sou filho de minha mãe - replicou Zataki.
- Isso não o protegerá se continuar assim.
- Então ela morrerá antes do tempo.
- O quê?
- A senhora nossa mãe encontra-se em Takato. - Takato
era a inexpugnável fortaleza e capital de Shinano, a província
de Zataki. - Lamento que o corpo dela tenha que permanecer lá
para sempre.
758
- Blefe! Você a honra tanto quanto eu.
- Pelo espírito imortal dela, Irmão, por mais que a honre,
detesto ainda mais o que você está fazendo ao reino.
- Não viso a mais território e...
- Você visa a destruir a sucessão.
- Está errado de novo, e sempre protegerei o meu sobrinho
de traidores.
- Você visa à queda do herdeiro. É nisso que acredito e por
isso resolvi continuar vivo e fechar Shinano e a estrada nordeste
contra você, custe o que custar, e continuarei a fazer isso até que
o Kwanto esteja em mãos amistosas, custe o que custar.
- Nas suas mãos, Irmão?
- Quaisquer mãos seguras, o que exclui as suas, Irmão.
- Confia em Ishido?
- Não confio em ninguém, voce me ensinou isso. Ishido
é Ishido, mas a lealdade dele é inquestionável. Até você admitirá isso.
- Admitirei que Ishido está tentando me destruir e dividir
o reino, que usurpou o poder e que está infringindo o testamento
do táicum.
- Mas você tramou com o Senhor Sugiyama para aniquilar
o conselho de regentes. Neh?
A veia da testa de Zataki latejava como um verme preto.
- O que você pode dizer? Um dos conselheiros dele admitiu a
traição: que você conspirou com Sugiyama para que ele aceitasse
o Senhor Ito no seu lugar, depois renunciasse na véspera da
primeira reunião e fugisse à noite, e assim lançasse o reino em
confusão. Ouvi a confissão... Irmão.
- Você foi um dos assassinos?
Zataki corou. - Ronins fanáticos mataram Sugiyama, não
eu, nem qualquer dos homens de Ishido!
- Curioso que você tenha tomado o lugar dele como regente
tão depressa, neh?
- Não. Minha linhagem é tão antiga quanto a sua. Mas não
ordenei essa morte, nem Ishido. Ele jurou isso pela sua honra de
samurai. Eu também. Os ronins mataram Sugiyama, mas ele
merecia morrer.
- Por tortura, desonrado numa cela imunda, seus filhos e
consortes esquartejados diante dele?
- Isso é um boato espalhado por descontentes infames,
talvez pelos seus espiões, para desacreditar o Senhor Ishido e,
através dele, a Senhora Ochiba e o herdeiro. Não há prova disso.
759
- Olhe os corpos deles.
- Os ronins incendiaram a casa. Não há corpos.
- Muito conveniente, neh? Como é que você pode ser tão
crédulo? Você não é um camponês estúpido!
- Recuso-me a sentar aqui e ouvir esse lixo. Dê-me a sua
resposta agora. E então ou me tire a cabeça, e ela morre, ou
deixe-me ir. - Zataki inclinou-se para a frente. - Poucos momentos depois de a minha cabeça ter rolado dos ombros, dez pomboscorreio estarão voando para o norte, em direção a Takato. Tenho
homens de confiança ao norte, leste e oeste, a um dia de marcha
daqui, fora do seu alcance, e se eles falharem, há mais homens
em segurança do outro lado das suas fronteiras. Se você me tirar
a cabeça, mandar me assassinar ou se eu morrer em Izu - seja
qual for a razão -, ela também morrerá. Agora, ou você me
corta a cabeça ou vamos terminar a entrega dos rolos e parto
imediatamente de Izu. Escolha!
- Ishido assassinou o Senhor Sugiyama. Oportunamente lhe
darei a prova. Isso é importante, neh? Só preciso de um pouco ...
- Você não tem mais tempo! "Incontinenti", diz a mensagem.
Claro que se você se recusar a obedecer, ótimo, assim será feito.
Olhe - Zataki colocou o segundo rolo sobre os tatamis -, aqui
está o seu impedimento formal e a ordem para cometer seppuku,
que você tratará com desprezo igual - que Buda o perdoe! Agora
está tudo feito. Partirei imediatamente, e na próxima vez que
nos virmos será num campo de batalha, e por Buda, antes do
pôr-do-sol desse dia, prometi a mim mesmo que verei a sua
cabeça na ponta de um chuço.
Toranaga mantinha os olhos fixos no adversário. - O Senhor
Sugiyama era seu amigo e meu. Companheiro nosso, um samurai
tão honrado quanto jamais existiu. A verdade sobre a morte dele
deveria ser de importância para você.
- A sua tem mais importância, Irmão.
- Ishido o sugou como um bebê faminto na teta da mãe.
Zataki voltou-se para o seu conselheiro. - Pela sua honra
de samurai, eu postei homens e qual é a mensagem?
O velho samurai, grisalho e digno, chefe dos confidentes
de Zataki, e bem conhecido de Toranaga como homem honrado,
sentia-se aborrecido e envergonhado pela ruidosa demonstração
de ódio, assim como todos os que ouviam. - Sinto muito,
senhor - disse ele, num sussurro sufocado, curvando-se para
Toranaga -, mas meu amo, naturalmente, está dizendo a verdade.
Como se poderia questionar isso? E, por favor, desculpe-me, mas
760
é meu dever, com toda a honra e humildade, assinalar-lhes que ...
essa falta de polidez tão surpreendente e vergonhosa, entre os
senhores, não é digna da sua posição nem da solenidade desta
ocasião. Se os seus vassalos... se pudessem ter ouvido... duvido
que qualquer um dos senhores pudesse tê-los contido. Esqueceram-se do seu dever como samurais e do seu dever para com os
seus homens. Por favor, desculpem-me - ele se curvou para os
dois -, mas isto tinha que ser dito. - E acrescentou: - Todas
as mensagens foram idênticas, Senhor Toranaga, e sob o selo
oficial do Senhor Zataki: "Matem a senhora minha mãe imediatamente".
- Como posso provar que não estou tentando destruir o
herdeiro? - perguntou Toranaga ao irmão.
- Abdique imediatamente de todos os seus títulos e poder
em favor do seu filho e herdeiro, o Senhor Sudara, e cometa
seppuku hoje. Então eu e os meus homens, até o último, apoiaremos Sudara como senhor do Kwanto.
- Considerarei o que você disse.
- Hein?
- Considerarei o que você disse - repetiu Toranaga com
mais firmeza. - Encontramo-nos amanhã à mesma hora, se lhe
aprouver.
O rosto de Zataki contorceu-se. - Isso é mais um dos seus
truques? O que há para justificar outro encontro?
- O que você disse e isto - Toranaga levantou o rolo
que tinha na mão. - Dar-lhe-ei a minha resposta amanhã.
- Buntaro-san! - Zataki apontou o segundo rolo. - Por
favor, dê isto ao seu amo.
- Não! - A voz de Toranaga repercutiu em torno da
clareira. Depois, com grande cerimônia, acrescentou alto: - Fico
formalmente honrado em aceitar a mensagem do conselho e submeterei a minha resposta ao seu ilustre embaixador, meu irmão,
o senhor de Shinano, amanhã a esta hora.
Zataki encarou-o desconfiado. - Que possível resp.. .
- Por favor, desculpe-me, senhor -- interrompeu o velho
samurai baixinho, com uma dignidade grave, novamente mantendo a conversa em particular -, sinto muito, mas o Senhor
Toranaga está perfeitamente correto em sugerir isso. É uma escolha solene que o senhor lhe deu, uma escolha que não está
contida nos pergaminhos. É justo e honrado que se dê a ele o
tempo que solicita.
Zataki pegou o segundo pergaminho e o empurrou de volta
761
à manga. - Muito bem. Concordo. Senhor Toranaga, por favor,
desculpe-me os maus modos. Por último, por favor, diga-me onde
está Kasigi Yabu. Tenho um pergaminho para ele. Só um, no
caso dele.
- Eu o mandarei ao senhor.
O falcão fechou as asas e caiu a mil pés no céu vespertino,
chocando-se contra o pombo em fuga com uma explosão de
penas, depois segurou-o nas garras e carregou-o para o solo,
novamente caindo como uma pedra. Então, a poucos pés do chão,
soltou a presa agora morta, freou furiosamente e pousou perfeitamente. - Ic-ic-ic-ic-iiicc! - guinchou a ave, arrepiando as
penas do pescoço com orgulho, as garras dilacerando a cabeça
do pombo no seu êxtase da conquista.
Toranaga, com Naga como escudeiro, saiu a galope. O daimio
deslizou da sela. Gentilmente chamou a ave de volta ao punho.
Obediente, ela subiu para a luva. Imediatamente foi recompensada
com um pedaço de carne de uma presa anterior. Ele lhe colocou
o capuz, apertando as correias com os dentes. Naga pegou o
pombo e o colocou na sacola de caça cheia pela metade que
pendia da sela do seu pai, depois se voltou e chamou com gestos
os batedores e guardas afastados.
Toranaga montou novamente, o falcão confortavelmente na
sua luva, seguro pelos delgados pioses de couro. Ele levantou os
olhos para o céu, avaliando a claridade que ainda havia.
No fim da tarde, o sol aparecera, e agora, no vale, o dia
morrendo rapidamente, o sol de há muito oculto pelo pico ocidental, estava frio e agradável. As nuvens estavam tomando rumo
norte, empurradas pelo vento dominante, flutuando sobre os picos
das montanhas e ocultando muitos. Aquela altitude, o ar era
limpo e suave.
- Devemos ter um bom dia amanhã, Naga-san. Sem nuvens, imagino. Acho que caçarei assim que amanhecer.
- Sim, Pai. - Naga o observava, perplexo, com medo de
fazer perguntas como sempre, mas querendo saber tudo. Não
conseguia entender como o pai podia estar tão despreocupado
depois de uma reunião tão hedionda. Despedir-se de Zataki com
a cerimônia devida, depois, imediatamente, convocar seus gaviões,
batedores e guardas e levá-los para as colinas ondulantes além
da floresta, parecia a Naga uma extraordinária demonstração de
autocontrole. O simples fato de pensar em Zataki fazia a pele de
762
Naga arrepiar-se, e ele sabia que o velho conselheiro tinha razão:
se um décimo da conversa tivesse sido ouvido, os samurais teriam
saltado para defender a honra dos respectivos senhores. Não
fosse pela ameaça que pendia sobre a cabeça da sua venerada
avó, Naga teria se atirado a Zataki pessoalmente. Acho que é por
isso que meu pai é o que é, e está onde está, pensou ele ...
Seus olhos perceberam cavaleiros surgindo da floresta abaixo
e galopando na direção deles sobre os contrafortes ondulantes.
Além do verde escuro da floresta, o rio era uma faixa negra
enroscando-se. As luzes nas hospedarias piscavam como vagalumes. - Pai!
- Hein? Ah, sim, estou vendo agora. Quem são?
- Yabu-san, Omi-san e... oito guardas.
- Seus olhos são melhores do que os meus. Ah, sim, agora
os reconheço.
Sem pensar, Naga disse: - Eu não teria deixado Yabu-san
ir sozinho ao encontro do Senhor Zataki sem. .. - Parou e
gaguejou: - Por favor, desculpe-me.
- Por que não teria mandado Yabu-san sozinho?
Naga se amaldiçoou por abrir a boca e estremeceu sob o
olhar fixo de Toranaga. - Por favor, desculpe-me, mas porque
eu nunca saberia que acordo secreto eles teriam feito. Ele poderia
fazer isso, Pai, facilmente. Eu os teria mantido separados... por
favor, desculpe-me. Não confio nele.
- Se Yabu-san e Zataki-san planejam traição pelas minhas
costas, eles o farão, mande eu uma testemunha ou não. Algumas
vezes é mais prudente dar linha extra à vítima ... é assim que se
pega um peixe, neh?
- Sim, por favor, desculpe-me.
Toranaga percebeu que o filho não havia compreendido,
nunca compreenderia, seria sempre meramente um falcão para
ser lançado contra um inimigo, veloz, voraz e mortalmente.
- Fico contente de que você compreenda, meu filho -
disse para encorajá-lo, conhecendo-lhe as boas qualidades e valorizando-as. - Você é um bom filho - acrescentou,
sinceramente.
- Obrigado, Pai - disse Naga, cheio de orgulho com o
raro elogio. - Só espero que o senhor me perdoe minhas tolices
e me ensine a servi-lo melhor.
- Você não é tolo - disse Toranaga, quase acrescentando
"Yabu é que é". Quanto menos gente souber, melhor, e não é
necessário esforçar a sua mente. Você é tão jovem ... meu filho
763
falando
mais novo, não fosse o seu meio irmão, Tadateru. Quantos anos
ele tem? Ah, sete, sim, deve estar com sete.
Observou um momento os cavaleiros que se aproximavam.
- Como está sua mãe, Naga?
- Como sempre, a mulher mais feliz do mundo. Só me
deixa vê-Ia uma vez por ano. O senhor não pode convencê-la
a mudar?
- Não - disse Toranaga. - Ela nunca mudará.
Toranaga sempre se animava quando pensava em ChanoTsuboné, sua oitava consorte oficial e mãe de Naga. Riu consigo
mesmo ao se lembrar do humor grosseiro dela, suas faces com
covinhas, o traseiro insolente, o modo como ondulava e o entusiasmo com que "travesseirava".
Fora a viúva de um fazendeiro das proximidades de Yedo,
que o atraíra vinte anos atrás. Ficara com ele três anos, depois
pedira permissão para retornar à terra. Ele lhe permitira ir-se.
Agora vivia numa boa fazenda perto do lugar onde nascera -
gorda e contente, uma monja budista, honrada por todos e sem
obrigação para com ninguém. De vez em quando ia vê-Ia e então
riam muito juntos, sem motivo, amigos.
- Ah, é uma boa mulher - disse Toranaga.
Yabu e Omi chegaram e desmontaram. A dez passos, pararam e se curvaram.
- Ele me deu um pergaminho - disse Yabu, enraivecido,
brandindo-o. - "...Convidamo-lo a deixar Izu imediatamente e
rumar para Osaka hoje, e apresentar-se no Castelo de Osaka
para uma audiência, ou todas as suas terras ficam confiscadas e o
senhor, conseqüentemente, declarado fora da lei." - Amarrotou
o rolo na mão e atirou-o ao chão. - "Hoje"!
- Então o senhor deve partir imediatamente - disse Toranaga, repentinamente muito bem-humorado ante a truculência e
estupidez de Yabu.
- Senhor, imploro-lhe - começou Omi apressadamente, caindo de joelhos -, o Senhor Yabu é seu vassalo devotado e
imploro-lhe humildemente que não escarneça dele. Perdoe-me por
ser tão rude, mas o Senhor Zataki... Perdoe-me por ser tão rude.
- Yabu-san, desculpe a observação, por favor, tinha a intén
ção de ser cordial - disse Toranaga, amaldiçoando o seu lapso.
- Devemos todos ter senso de humor ante essas mensagens, neh?
- Chamou o falcoeiro, deu-lhe a ave do punho, e dispensou a
ele e aos batedores. Depois afastou todos os samurais do raio
764
de audição, exceto Naga, acocorou-se e os mandou fazer o mesmo.
- Talvez fosse melhor me contar o que aconteceu.
- Quase não há nada a contar - disse Yabu. - Fui vê-lo.
Recebeu-me com o mínimo absoluto de cortesia. Primeiro houve
"saudações" do Senhor Ishido e um convite brusco para me aliar
secretamente a ele, planejar o seu assassinato imediato, e matar
cada samurai de Toranaga em Izu. Naturalmente me recusei a
ouvir, e imediatamente - imediatamente -, sem qualquer cortesia, ele me estendeu isto! - Os dedos dele apontaram beligerantemente na direção do pergaminho. - Se a sua ordem direta
não o estivesse protegendo, eu o teria feito em pedaços na hora!
Solicito-lhe que anule essa ordem. Não posso viver com essa
vergonha. Tenho que me vingar!
- Isso foi tudo o que aconteceu?
- Não é o suficiente?
Toranaga passou por cima da rudeza de Yabu e olhou carrancudo para Omi. - Você merece ser censurado, neh? Por que
não teve a inteligência de proteger melhor o seu senhor? Supõe-se
que você seja um conselheiro. Deveria ter sido o escudo dele.
Deveria ter levado o Senhor Zataki a falar às claras tentando
descobrir o que Ishido tem em mente, qual era o suborno, que
planos eles têm. Supõe-se que você seja um conselheiro de valor.
Teve uma oportunidade perfeita e desperdiçou-a como um simplório inexperiente!
Omi baixou a cabeça. - Por favor, desculpe-me, senhor.
- Eu poderia desculpá-lo, mas não vejo por que o Senhor
Yabu deva fazer isso. Agora tem que agir, de um modo ou
de outro.
- O quê? - disse Yabu.
- Por que outro motivo acha que fiz o que fiz? Para
adiar... naturalmente, para adiar - disse Toranaga.
- Mas um dia? Que valor tem um dia? - perguntou Yabu.
- Quem sabe? Um dia para nós é um dia a menos para o
inimigo. - Os olhos de Toranaga relampejaram de volta a Omi.
- A mensagem de Ishido foi verbal ou por escrito?
Foi Yabu quem respondeu. - Verbal, é claro.
Toranaga mantinha o olhar penetrante fixo em Omi. Você falhou no seu dever para com o seu senhor e para comigo.
- Por favor, desculpe ...
- O que foi que você disse exatamente?
Omi não respondeu.
765
- Esqueceu-se da sua educação, também? O que foi que
disse?
- Nada, senhor. Não disse nada.
- O quê?
- Ele não disse nada a Zataki porque não estava presente -
rugiu Yabu. - Zataki pediu para falar comigo sozinho.
- Oh? - Toranaga ocultou o contentamento por Yabu
ter tido que admitir o que ele já supunha, e que parte da verdade
agora estava às claras. - Por favor, desculpe-me, Omi-san.
Naturalmente presumi que você tivesse estado presente.
- O erro foi meu, senhor. Deveria ter insistido. O senhor
tem razão, falhei em proteger o meu senhor - disse Omi. - Eu
deveria ter sido mais enérgico. Por favor, desculpe-me. Yabusama, por favor, desculpe-me.
Antes que Yabu pudesse responder, Toranaga disse: - É claro que você está perdoado, Omi-san. Se o seu senhor rejeitou a sua
companhia, isso é privilégio dele. O senhor rejeitou, Yabu-sarna?
- Sim... sim, mas não achei que tivesse importância. O
senhor acha que eu ...
- Bem, o dano está feito agora. O que planeja fazer?
- Naturalmente ignorar a mensagem, senhor. - Yabu estava inquieto. - O senhor acha que eu poderia ter evitado
pegá-la?
- É claro. Poderia ter negociado com ele por um dia.
Talvez mais. Semanas até - acrescentou Toranaga, revolvendo a
faca mais fundo na ferida, maliciosamente deliciado com o fato
de a própria estupidez de Yabu tê-lo atirado ao anzol, e nem
um pouco preocupado com a traição para a qual Yabu indubitavelmente fora atraído, bajulado, lisonjeado, ou ameaçado. Sinto muito, mas está comprometido. Não tem importância, é
como o senhor diz: "Quanto mais depressa todo mundo escolher
posições, melhor". - Levantou-se. - Não há necessidade de
voltar ao regimento esta noite. Vocês dois juntem-se a mim à
refeição noturna. Providenciarei um entretenimento. - Para todo
mundo, disse a si mesmo, com muita satisfação.
Os hábeis dedos de Kiku feriram um acorde, o plectro seguro
com firmeza. Depois ela começou a cantar e a pureza da sua voz
encheu a noite silenciosa. Estavam sentados no grande aposento
que se abria para a varanda e o jardim, fascinados pelo extraordinário efeito que ela causava sob os archotes bruxuleantes, os fios
de ouro do seu quimono captando a luz quando ela se curvava
sobre o samisen.
Toranaga correu os olhos em torno momentaneamente. A um
lado seu, Mariko estava sentada entre Blackthorne e Buntaro. Do
outro, Omi e Yabu, lado a lado. O lugar de honra ainda estava
vazio. Zataki fora convidado, mas naturalmente lamentara ter que
declinar do convite, por estar mal de saúde, embora tivesse sido
visto galopando pelas colinas a nordeste, e agora estivesse "travesseirando" com o seu vigor lendário. Naga e guardas escolhidos
com muito cuidado estavam por toda parte. Gyoko vagava em
algum lugar na obscuridade. Kiku-san estava ajoelhada na varanda de frente para eles, de costas para o jardim - minúscula,
sozinha e esplêndida.
Mariko tinha razão, pensou Toranaga. A cortesã vale o dinheiro. Seu espírito estava fascinado por ela, sua preocupação
com Zataki abrandada. Mando chamá-la de novo esta noite ou
durmo sozinho? Sua virilidade levantou-se quando se lembrou da
noite anterior.
- Então, Gyoko-san, deseja ver-me? - perguntara em seus
aposentos particulares da fortaleza.
- Sim, senhor.
Ele acendera o bastão de incenso. - Por favor, prossiga.
Gyoko se curvara, mas ele mal tinha olhos para ela. Era a
primeira vez que via Kiku de perto. A proximidade realçava-lhe
os traços magníficos, ainda não marcados pelos rigores da sua
profissão. - Por favor, toque um pouco de música enquanto
conversamos - dissera, surpreso de que Gyoko estivesse preparada para conversar na frente dela.
Kiku obedecera imediatamente, mas a música não fora nada
como a desta noite. Fora calmante, um acompanhamento para o
negócio que estava sendo tratado. Esta noite era para excitar, para
admirar, e para prometer.
- Senhor - começara Gyoko formalmente -, primeiro
possa eu humildemente agradecer-lhe a honra que me faz, à
minha pobre casa, e a Kiku-san, a primeira das minhas damas do
Mundo do Salgueiro. O preço que pedi pelo contrato é insolente,
eu sei, impossível, tenho certeza, não decidido até o amanhecer
de amanhã, quando a Senhora Kasigi e a Senhora Toda, na sua
sabedoria, decidirão. Se se tratasse de um assunto seu, o senhor
teria decidido há muito tempo, pois o que significa o desprezível
dinheiro para qualquer samurai, ainda mais para o maior daimio
do mundo?
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Gyoko fizera uma pausa para efeito. Ele não mordera a
isca, mas movera o leque ligeiramente, o que podia ser interpretado como irritação com a expansividade dela, aceitação do
cumprimento, ou uma absoluta rejeição do preço solicitado, dependendo da disposição dela. Ambos sabiam com muita clareza
quem é que realmente aprovava a quantia.
- O que é o dinheiro? Nada além de um meio de comunicação - continuara ela -, assim como a música de Kiku-san. O
que, de fato, nós, do Mundo do Salgueiro, fazemos senão comunicar e entreter, iluminar a alma do homem, aliviar-lhe o fardo.. .
- Toranaga reprimira uma resposta cáustica, lembrando-se de que
a mulher comprara um bastão de tempo por quinhentos kokus,
e quinhentos kokus mereciam uma audição atenta. Por isso deixou-a continuar e ouviu com um ouvido, deixando o outro gozar
da música perfeita que o atingia no âmago do ser, afagando-o até
uma sensação de euforia. Então fora rudemente arrastado de volta
ao mundo da realidade, por alguma coisa que Gyoko dissera.
- O quê?
- Eu estava meramente sugerindo que o senhor devia tomar
o Mundo do Salgueiro sob a sua proteção e mudar o curso da
história.
- Como?
- Fazendo o que sempre fez, senhor, interessando-se pelo
futuro do império inteiro, antes de se interessar pelo seu.
Ele deixou o ridículo exagero passar e disse a si mesmo que
fechasse os ouvidos à música - que ele caíra na primeira armadilha dizendo a Gyoko que trouxesse a garota, na segunda deixando-se regalar com a beleza e o perfume dela, e na terceira permitindo-lhe tocar sedutoramente enquanto a ama falava.
- O Mundo do Salgueiro? O que há com o Mundo do
Salgueiro?
- Duas coisas, senhor. Primeiro, atualmente o Mundo do
Salgueiro está misturado com o mundo real, para prejuízo de
ambos. Segundo, as nossas damas não podem, realmente, atingir
a perfeição que todo homem tem o direito de esperar.
- Oh? - O perfume de Kiku, um perfume que ele nunca
conhecera antes, chegou-lhe numa lufada. Fora escolhido à perfeição. Involuntariamente olhou para ela. Encontrou um meio sorriso, para ele apenas. Languidamente ela baixou os olhos e seus
dedos feriram as cordas, enquanto ele os sentia em si mesmo
intimamente.
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Tentou se concentrar. - Desculpe, Gyoko-san. Estava dizendo?
- Por favor, desculpe-me por não ser clara, senhor. Primeiro: o Mundo do Salgueiro devia ser separado do mundo real.
Minha casa de chá em Mishima fica numa rua ao sul da cidade,
enquanto outras se espalham por toda a cidade. Acontece o mesmo em Kyoto e Nara, e por todo o império. Até em Yedo. Mas
pensei que Yedo poderia estabelecer o padrão do mundo.
- Como? - Seu coração perdeu uma batida quando um
acorde perfeito se encaixou.
- Todos os outros ofícios, sabiamente, têm ruas só para si,
áreas para si. Nós deveríamos ser autorizados a ter o nosso próprio lugar, senhor. Yedo é uma cidade nova; o senhor poderia
considerar a possibilidade de reservar um setor especial para o
seu Mundo do Salgueiro. Traga todas as casas de chá para dentro
dos muros dessa área e proíba qualquer casa de chá, ainda que
modesta, do lado de fora.
Agora a mente dele se concentrou totalmente, pois ali estava
uma idéia imensa. Era tão boa, que ele se censurou por não tê-la
pensado por si mesmo. Todas as casas de chá e todas as cortesãs
dentro de uma cerca e, em conseqüência, extraordinariamente fáceis de policiar, de observar, e de taxar, e todos os clientes igualmente fáceis de policiar, de observar e de espionar. A simplicidade
estonteou-o. Ele também sabia da poderosa influência exercida
pelas damas de primeira classe.
Mas seu rosto não traiu nada do seu entusiasmo. - Que vantagem há nisso, Gyoko-san?
- Teríamos a nossa própria corporação, senhor, com toda
a proteção que uma corporação implica, uma corporação real num
lugar, não algo espalhado, por assim dizer, uma corporação a que
todos obedeceriam ...
- Deveriam obedecer?
- Sim, senhor. Deveriam obedecer, pelo bem de todos. A
corporação seria responsável por que os preços fossem justos e
que os padrões fossem mantidos. Por que, em poucos anos, uma
dama de segunda classe em Yedo se igualaria a uma de Kyoto, e
assim por diante? Se o esquema tivesse valor em Yedo, por que
não em cada cidade do seu domínio?
- Mas os proprietários que estivessem dentro da cerca dominariam tudo. São monopolistas, neh? Podem estipular preços
de entrada extorsivos, neh, podem trancar as portas a muitos que
têm um direito igual de trabalhar no Mundo do Salgueiro, neh?
769
Toranaga secamente. - Então
sugestão, neh?
- Sim, senhor.
facilmente dar ordens
uma corporação num
área, naturalmente,
impostos.
- Ah, sim, os
coletar os impostos.
- Sim, poderia ser assim, senhor. E acontecerá em alguns
lugares, e em algumas épocas. Mas leis estritas podem facilmente
ser feitas para garantir a justiça, e pareceria que o bem supera o
mal, para nós e para os nossos honrados clientes e fregueses. Segundo: damas do ...
- Vamos concluir o seu primeiro ponto, Gyoko-san - disse
isso é um aspecto contra
impostos! Certamente seria muito mais fácil
Esse é um ponto muito bom a seu favor.
Os olhos de Gyoko estavam no bastão de incenso. Mais da
metade já desaparecera. - O senhor, na sua sabedoria, poderia
decretar que o nosso Mundo do Salgueiro fosse o único, no mundo todo, a nunca ser taxado. Nunca, nunca, nunca. - Ela levantou os olhos para ele, olhos sem malícia. - Afinal, senhor, nosso
mundo também não é chamado de "Mundo Flutuante", não é a
beleza a nossa única oferenda, não é a juventude uma grande
parte da beleza? Uma coisa tão fugaz e efêmera como a juventude não é uma dádiva dos deuses, e sagrada? Dentre todos os
homens, o senhor deve saber como a juventude é rara e fugaz,
como a mulher o é.
A música morreu. Os olhos dele foram atraídos para Kikusan. Ela o observava atentamente, uma pequena ruga no cenho.
- Sim - disse ele honestamente. - Sei quão fugaz pode
ser. - Tomou um gole de chá. - Considerarei o que você disse.
Segundo?
- Segundo - Gyoko reuniu seus dotes. - Segundo e último. O senhor poderia colocar o seu carimbo no Mundo do Salgueiro para sempre. Considere algumas das nossas damas, Kikusan, por exemplo. Estuda canto, dança e sainisen desde os seis
anos de idade. Cada momento em que esteve acordada ela passou
trabalhando muito arduamente para aperfeiçoar a sua arte. Reconhecidamente se tornou uma dama de primeira classe, conforme
merece o seu talento ímpar. Mas sempre é uma cortesã e alguns
clientes esperam desfrutar dela no "travesseiro" assim como através da sua arte. Creio que se deviam criar duas categorias de
damas. Primeiro, cortesãs como sempre: divertidas, felizes, físi770
cas. Segundo, uma nova classe, talvez a palavra "gueixa" as descrevesse: "pessoas de arte", pessoas dedicadas exclusivamente à arte.
Não se esperaria que "travesseirar" fizesse parte do seu dever.
Seriam unicamente artistas, dançarinas, cantoras, musicistas -
especialistas - e assim se dedicariam exclusivamente a essa profissão. As gueixas entretêm a mente e o espírito dos homens com
sua beleza, graça e talento. As cortesãs satisfazem o corpo com
a beleza, graça e igual talento.
Novamente ele foi dominado pela simplicidade e as possibilidades de longo alcance da idéia. - Como se selecionaria uma
gueixa?
- Pela aptidão. Na puberdade o seu proprietário decidiria
o futuro dela. E a corporação poderia aprovar, ou rejeitar, a
aprendiz, neh?
- É uma idéia extraordinária, Gyoko-san.
A mulher curvou-se e estremeceu. - Por favor, desculpe o
meu fôlego, senhor, mas desse modo, quando a beleza se fana e
o corpo engrossa, a garota ainda pode ter um futuro excelente
o um valor real. Não terá que descer a estrada por onde, hoje,
todas as cortesãs devem viajar. Rogo pelas artistas que existem
entre elas, Kiku-san, por exemplo. Solicito-lhe que conceda às
poucas favoritas um futuro e a posição que merecem na terra.
Aprender a cantar, a dançar e a tocar exige prática e prática
durante anos. O "travesseiro" necessita de juventude e não há
afrodisíaco como a juventude. Neh?
- Não. - Toranaga observou. - As gueixas não poderiam
"travesseirar"?
- Isso não faria parte do dever de uma gueixa, fosse qual
fosse o dinheiro oferecido. As gueixas nunca seriam obrigadas a
"travesseirar", senhor. Se uma desejasse "travesseirar" com um
homem em particular, isso seria problema particular seu - ou
talvez devesse ser combinado, com a permissão da sua ama, um
preço tão elevado quanto o homem pudesse pagar. O dever de
uma cortesã seria "travesseirar" com talento; as gueixas e as
aprendizes de gueixas seriam intocáveis. Por favor, desculpe-me
por falar tanto. - Gyoko curvou-se e Kiku curvou-se. Restava
uma fração mínima de incenso.
Toranaga fez-lhe perguntas por duas vezes o tempo concedido, satisfeito com a oportunidade de aprender sobre o mundo
delas, sondando-lhe as idéias, as esperanças e os receios. O que
aprendeu excitou-o. Reservou a informação para uso posterior,
depois mandou Kiku-san para o jardim. - Esta noite, Gyoko771
a sua
É possível. Mas qualquer daimio poderia
em contrário. E teria que lidar apenas com
lugar. O senhor não teria problema. Cada
seria responsável pela paz da área. E pelos
san, eu gostaria que ela ficasse, se lhe aprouver, até o amanhecer... se estiver livre. Quer perguntar-lhe, por favor? Naturalmente entendo que ela possa estar cansada agora. Afinal de
contas, tocou tão soberbamente, por tanto tempo, que eu compreenderei totalmente. Mas talvez ela considerasse a idéia. Eu
ficaria agradecido se pudesse perguntar-lhe.
- Naturalmente, senhor, mas sei que ela ficaria honrada
com o seu convite. É nosso dever servir de todo modo que pudermos, neh?
- Sim. Mas ela, conforme você acertadamente assinalou,
é muito especial. Compreenderei totalmente se ela estiver cansada
demais. Por favor, perguntê-lhe. - Deu a Gyoko um saquinho
de couro contendo dez kobans lamentando a ostentação, mas sabendo que a sua posição a exigia. - Talvez isto a compense por
uma noite tão exaustiva, e seja um pequeno símbolo do meu
agradecimento pelas suas idéias.
- É nosso dever servir, senhor - disse Gyoko. Ele a viu
tentando impedir os dedos de contar através do couro macio, e
falhar. - Obrigada, senhor. Por favor, desculpe-me, eu perguntarei a ela. - Então, estranha e inesperadamente, lágrimas encheram-lhe os olhos. - Por favor, aceite os agradecimentos de uma
mulher velha e vulgar pela sua cortesia e por tê-la escutado. É só
que, por todo o prazer que damos, nossa única recompensa é um
rio de lágrimas. Na verdade, senhor, é difícil explicar como uma
mulher se sente... por favor, desculpe-me ...
- Ouça, Gyoko-san, compreendo. Não se preocupe. Considerarei tudo o que você disse. Oh, sim, vocês duas partirão comigo pouco depois do amanhecer. Alguns dias nas montanhas
farão uma agradável mudança. Imagino que o preço do contrato
será aprovado, neh?
Gyoko curvou-se agradecida, depois enxugou as lágrimas e
disse com firmeza: - Posso, então, perguntar o nome da honrada
pessoa para quem o contrato dela será comprado?
- Yoshi Toranaga-noh-Minowara.
Agora, sob a noite de Yokosé, o ar docemente frio, a música
e a voz de Kiku-san possuindo a mente e o coração de todos,
Toranaga deixou a própria mente devanear. Lembrou-se da cintilação de orgulho que inundara o rosto de Gyoko e admirou-se de
novo com a desnorteante credulidade das pessoas. Que desconcertante que até as pessoas mais inteligentes e astutas freqüentemente vissem apenas o que queriam ver, e raramente olhassem
para além da mais delgada das fachadas. Ou que ignorassem a
772
realidade, rejeitando-a como uma fachada. E depois, quando o
seu mundo inteiro caísse em pedaços e essas pessoas estivessem
de joelhos rasgando o ventre ou cortando o pescoço, ou atiradas
ao mundo indiferente, arrancassem os cabelos, ou rasgassem as
roupas ou lamentassem o kar,na, acusando deuses ou kamis ou a
sorte, ou o senhor, o marido, o vassalo - qualquer coisa ou
qualquer pessoa -, mas nunca a si mesmas.
Muito estranho.
Olhou para os seus convidados e viu que ainda estavam
observando a garota, fechados em seus segredos, a mente expandida pelo talento dela - todos menos o Anjin-san, que estava
impaciente e buliçoso. Não tem importância, Anjin-san, pensou
Toranaga divertido, é apenas a sua falta de civilização. Sim, não
importa, isso virá com o tempo, e ainda assim isso não tem
importância, desde que você obedeça. No momento preciso da
sua suscetibilidade, da sua cólera e da sua violência.
Sim, vocês estão todos aqui. Você, Omi e Yabu, Naga, Buntaro, e você, Mariko, e Kiku-san, e até Gyoko, todos os meus
gaviões e falcões de Izu, todos treinados e muito preparados.
Todos aqui, menos um: o padre cristão. E logo chegará a sua
vez, Tsukku-san. Ou a minha.
O Padre Martim Alvito, da Companhia de Jesus, estava furioso. Bem quando sabia que devia estar se preparando para seu
encontro com Toranaga, para o qual precisaria de todos os seus
talentos, era defrontado com aquela nova abominação que não
podia esperar. - O que você tem a dizer em sua defesa? - vociferou contra o amedrontado acólito japonês, abjetamente ajoelhado à sua frente. Os outros irmãos erguiam-se em torno do
pequeno aposento, em semicírculo.
- Por favor, perdoe-me, padre. Pequei - gaguejou o homem em completa aflição. - Por favor, perdoe.. .
- Repito: perdoar cabe a Deus todo-poderoso, na sua sabedoria, não a mim. Você cometeu um pecado mortal. Quebrou o
seu voto sagrado. Bem?
A resposta veio quase inaudível. - Sinto muito, padre. - O
homem era magro e frágil. Seu nome de batismo era José e ele
tinha trinta anos. Os acólitos seus companheiros, todos irmãos
da Companhia, iam dos dezoito aos quarenta anos. Eram todos
tonsurados, e de nobre origem samurai de províncias de Kyushu,
773
favorecidos em gastar oito anos indo até lá e voltando se, depois
de todo o nosso aprendizado, as nossas orações, as nossas pregações e a nossa espera, nem um de nós foi ordenado, embora
isso tenha sido prometido. Eu tinha doze anos quando parti.
Julião tinha onz ...
- Proíbo-o de continuar falando! Ordeno-lhe que pare. -
Depois, em meio ao terrível silêncio, Alvito olhou para os outros,
que se alinhavam ao longo das paredes, olhando e ouvindo atentamente. - Vocês todos serão ordenados, em tempo. Mas você,
José, diante de Deus, você será...
- Diante de Deus - irrompeu José -, no tempo de quem?
- No tempo de Deus! - bradou Alvito, pasmado com a
rebelião aberta, seu fervor exaltado. - Ponha-se-de-joelhos!
O Irmão José tentou fazê-lo baixar os olhos, mas não conseguiu, depois, perdendo o ânimo, suspirou, caiu de joelhos e
curvou a cabeça.
- Deus tenha piedade de você. Você se confessou culpado
de hediondo pecado mortal, culpado de quebrar o seu voto sagrado de castidade, o seu voto sagrado de obediência aos seus
superiores. E culpado de insolência inacreditável. Como ousa
questionar as nossas ordens gerais ou a política da Igreja? Você
colocou em risco a sua alma imortal. Você é uma desgraça para
o seu Deus, a sua Companhia, a sua Igreja, a sua família e os
seus amigos. Seu caso é tão sério que terá de ser tratado pelo
padre-inspetor em pessoa. Até lá você não comungará, não se
confessará, nem ouvirá confissão, nem tomará parte em qualquer
serviço. . . - Os ombros de José começaram a tremer com a
agonia do remorso que o possuía. - Como penitência inicial,
você fica proibido de falar, receberá apenas arroz e água durante
trinta dias, passará cada noite nos próximos trinta dias de joelhos,
em oração à Nossa Senhora por perdão para os seus terríveis
pecados, e depois será chicoteado. Trinta chicotadas. Tire a
sotaina.
Os ombros pararam de tremer. José levantou os olhos. -
Aceito tudo o que o senhor ordenou, padre - disse ele -, e
peço desculpas de todo o coração, com toda a minha alma. Imploro-lhe o seu perdão, assim como implorarei o perdão dele para
sempre. Mas não serei açoitado como um criminoso comum.
- Você-será-chicoteado!
- Por favor, desculpe-me, padre - disse José. - Em nome
da abençoada Nossa Senhora, não é a dor. A dor não é nada
para mim, a morte não é nada para mim. Que eu esteja danado
776
e vá arder no fogo do inferno por toda a eternidade pode ser o
meu karma, e eu suportarei. Mas sou samurai. Sou da família do
Senhor Harima.
- Seu orgulho me enoja. Não é pela dor que você deve
ser punido, mas para eliminar esse seu orgulho repugnante. Criminoso comum? Onde está a humilhação? Nosso Senhor Jesus
Cristo suportou mortificação. E morreu com criminosos comuns.
- Sim. Esse é o nosso principal problema aqui, padre.
- O quê?
- Por favor, desculpe-me a franqueza, padre, mas se o rei
dos reis não tivesse morrido como um criminoso comum na cruz,
os samurais poderiam aceitar...
- Pare!
-- ...o cristianismo com mais facilidade. A Companhia é
sábia em evitar de pregar o Cristo crucificado corno as outras
ordens...
Como um anjo vingador, Alvito ergueu a cruz como um
escudo à sua frente. - Em nome de Deus, cale-se e obedeça
ou-será-excomungado! Peguem-no e dispam-no!
Os outros voltaram à vida e avançaram, mas José pôs-se de
pé num salto. Uma faca apareceu-lhe nas mãos, puxada de sob
o hábito. Pôs-se de costas para a parede. Todos pararam. Menos
o Irmão Miguel. Este avançou lenta e calmamente, a mão estendida. - Por favor, dê-me a faca, irmão - disse gentilmente.
- Não. Por favor, desculpe-me.
- Então reze por mim, irmão, assim como eu rezo por você. - Tranqüilamente Miguel avançou para a arma.
José recuou alguns passos, depois se preparou para um golpe
mortal. - Perdoe-me, Miguel.
Miguel continuou a se aproximar.
- Miguel, pare! Deixe-o em paz - comandou Alvito.
Miguel obedeceu, a algumas polegadas da lâmina suspensa
no ar.
Então Alvito disse, pálido: - Deus tenha piedade de você,
José. Você está excomungado. Satã tomou posse da sua alma na
terra, assim como a possuirá depois da morte.
- Renuncio ao Deus cristão! Sou japonês... sou xintoísta.
Minha alma é minha agora. Não tenho medo - gritou José. -
Sim, nós temos orgulho, ao contrário dos bárbaros. Somos japoneses, não somos bárbaros. Nem os nossos camponeses são bárbaros.
777
Gravemente Alvito fez o sinal-da-cruz como proteção para
todos eles e destemidamente deu as costas à faca. - Oremos
juntos, irmãos. Satã está entre nós.
Os outros também se voltaram, muito tristes, alguns ainda
chocados. Apenas Miguel permaneceu onde estava, olhando para
José. José arrancou o seu rosário e a cruz. Estava prestes a atirálos ao chão, mas Miguel estendeu-lhe a mão de novo. - Por
favor, irmão, por favor, dê isso a mim... é um presente tão
simples - disse.
José o olhou um longo momento, depois deu-lhe. - Por
favor desculpe-me.
- Rezarei por você - disse Miguel.
- Você não ouviu? Renunciei a Deus!
- Rezarei a Deus para que não renuncie a você, Uruganoh-Tadamasa-san.
- Perdoe-me, irmão - disse José. Enfiou a faca no sash,
abriu a porta com um repelão, e caminhou às cegas pelo corredor, rumo à varanda. As pessoas o olhavam curiosas, entre elas
Uo, o pescador, que esperava pacientemente e à sombra. José
cruzou o pátio e se dirigiu para o portão. Um samurai surgiu em
seu caminho.
- Alto!
José parou.
- Aonde vai, por favor?
- Desculpe, por favor, desculpe-me, eu ... eu não sei.
- Sirvo ao Senhor Toranaga. Sinto muito, não pude deixar
de ouvir o que aconteceu lá. A hospedaria inteira deve ter
ouvido. Uma chocante falta de educação... chocante para o
seu líder, gritar assim e perturbar a paz. E para você também.
Estou a serviço aqui, acho que é melhor que você veja o oficial
do meu turno.
- Acho... obrigado, irei pelo outro caminho. Por
desculpe ...
- Você não vai a parte alguma, sinto muito. Vai ver o meu
oficial.
- O quê? Oh... sim. Sim, desculpe, naturalmente. - José
tentou fazer o cérebro funcionar.
- Bom. Obrigado. - O samurai voltou-se quando outro
samurai se aproximou, vindo da ponte, e saudou.
- Devo levar o Tsukku-san ao Senhor Toranaga.
- Bom. Você é esperado.
778
CAPÍTULO 43
Toranaga observou o padre alto aproximando-se através da
clareira, a luz bruxuleante dos archotes fazendo o rosto enxuto
mais severo do que o habitual, acima do negrume da barba. O
hábito budista do padre era laranja e elegante, e um rosário e
uma cruz pendiam-lhe da cintura.
A dez passos de distância, Alvito parou, ajoelhou-se e curvou-se respeitosamente, dando início às formalidades costumeiras.
Toranaga estava sentado sozinho sobre o estrado, guardas
num semicírculo à sua volta, mas a distância. Apenas Blackthorne
estava perto, indolentemente recostado à plataforma, conforme
lhe fora ordenado, os olhos cravados no padre. Alvito não pareceu notá-lo.
- É bom vê-lo, senhor - disse o padre, quando foi polido
fazer isso.
- Vê-lo, também, Tsukku-san. - Toranaga fez sinal ao
padre que se pusesse confortável sobre a almofada que fora colocada sobre o tatami, no chão, diante da plataforma. - Faz muito
tempo desde que o vi pela última vez.
- Sim, senhor, há muito o que contar. - Alvito estava
profundamente consciente de que a almofada estava sobre a terra
e não sobre o estrado. Além disso, estava agudamente consciente
das espadas de samurai que Blackthorne agora usava tão perto
de Toranaga e do modo negligente como se portava. - Trago
uma mensagem confidencial do meu superior, o padre-inspetor,
que o saúda com deferência.
- Obrigado. Mas primeiro fale-me de você.
- Ah, senhor disse Alvito, sabendo que Toranaga era
perspicaz demais para não ter notado o remorso que o atormentava, por mais que ele tivesse tentado dissimular. - Esta noite
estou consciente demais dos meus próprios fracassos. Esta noite
eu gostaria de poder renunciar aos meus deveres terrenos e ir
para um retiro orar, implorar pelo favor de Deus. - Ele se sentia
envergonhado pela própria falta de humildade. Embora o pecado
de José tivesse sido terrível, Alvito agira com ódio, raiva e estupidez. Era culpa sua que uma alma tivesse sido proscrita, se perdesse para sempre. - Nosso Senhor uma vez disse: "Por favor,
Pai, afasta de mim esse cálice". Mas mesmo ele teve que reter o
cálice. Nós, no mundo, temos que tentar seguir-lhe os passos do
779
favor,
melhor modo que pudermos. Por favor, desculpe-me por permitir
que o meu problema se mostre.
- Qual foi o seu cálice, amigo velho?
Alvito contou-lhe. Sabia que não havia motivo para esconder
os fatos, pois naturalmente Toranaga os ouviria muito em breve,
se já não os conhecesse, e era muito melhor ouvir a verdade do
que uma versão deturpada. - É tristíssimo perder um irmão,
terrível fazer um proscrito, por mais terrível que tenha sido o
crime. Eu deveria ter sido mais paciente. A culpa foi minha.
- Onde está ele agora?
- Não sei, senhor.
Toranaga chamou um guarda. - Encontre o cristão renegado, e traga-o a mim ao meio-dia de amanhã. - O samurai
afastou-se correndo.
- Rogo piedade para ele, senhor - disse Alvito rapidamente, falando com sinceridade. Mas sabia que qualquer coisa
que dissesse faria pouco para dissuadir Toranaga de uma trilha
já escolhida. Novamente teve vontade de que a Companhia tivesse
o seu próprio braço secular, capacitado a deter e punir os apóstatas, como por toda parte no resto do mundo. Recomendara
reiteradamente que isso fosse criado, mas a idéia fora sempre rejeitada, ali no Japão, e também em Roma, pelo geral da ordem.
Mas sem o braço secular, pensou ele cansado, nunca seremos
capazes de exercer uma disciplina real sobre nossos irmãos e o
nosso rebanho.
- Por que não há padres japoneses ordenados na sua Companhia, Tsukku-san?
- Porque, senhor, nem uni dos nossos acólitos está, ainda,
suficientemente bem treinado. Por exemplo, o latim é uma necessidade absoluta, porque a nossa ordem exige que qualquer
irmão viaje para qualquer lugar do mundo a qualquer momento,
e infelizmente é uma língua muito difícil de aprender. Nenhum
está treinado ainda, ou pronto.
Alvito acreditava nisso com todo o coração. Também era
implacavelmente contra um clero jesuíta japonês ordenado, em
oposição ao padre-inspetor. - Eminência - sempre dissera ele
-, suplico-lhe, não se deixe enganar pela aparência modesta e
decorosa deles. Por baixo são características em que não se pode
confiar, e o orgulho e a condição de japoneses sempre dominarão
no final. Nunca serão servos autênticos da Companhia, ou soldados de confiança de Sua Santidade, o vigário de Cristo na terra,
obedientes a ele apenas. Nunca.
780
Alvito relanceou o olhar momentaneamente para Blackthorne, depois olhou de novo para Toranaga, que disse: - Mas
dois ou três desses padres aprendizes falam latim, neh, e português? É verdade o que o homem disse, neh? Por que eles não
foram escolhidos?
- Sinto muito, mas o geral da nossa Companhia não os
considera suficientemente preparados. Talvez a trágica queda de
José seja um exemplo.
- É sério quebrar um juramento solene - disse Toranaga.
Lembrou-se do ano em que os três meninos haviam zarpado de
Nagasaki, num Navio Negro, para serem festejados na corte do
rei espanhol e na corte do sumo-sacerdote dos cristãos, o mesmo
ano em que Goroda fora assassinado. Nove anos depois regressaram, o tempo todo cuidadosamente controlados. Tinham partido
como ingênuos e jovens cristãos fanáticos, e regressado igualmente
tacanhos e quase tão mal informados como quando partiram. Desperdício estúpido, pensou Toranaga, desperdício de uma oportunidade incrível, de que Goroda se recusou a tirar vantagem, por
mais que tenha sido aconselhado a fazer isso.
-- Não, Tora-san, precisamos dos cristãos contra os budistas
- dissera Goroda. - Muitos sacerdotes e monges budistas são
soldados, neh? A maioria deles. Os cristãos não, neh? Deixemos
o Padre Gigante ter os três jovens que ele quer, são apenas cabeças ocas de Kyushu, neh? Digo-lhe que estimule os cristãos. Não
me perturbe com um plano de dez anos, mas queime cada mosteiro budista ao alcance. Budistas são como moscas sobre carniça,
e os cristãos nada além de um saco de peidos.
Agora não são, pensou Toranaga com irritação crescente.
Agora são vespões.
- Sim - disse alto. - É muito sério quebrar um juramento, gritar e perturbar a harmonia de uma hospedaria.
- Por favor, desculpe-me, senhor, e perdoe-me por mencionar os meus problemas. Obrigado por ter ouvido. Como sempre, o seu interesse me faz sentir melhor. Posso ser autorizado
a saudar o piloto?
Toranaga assentiu.
- Devo cumprimentá-lo, piloto -- disse Alvito em português. -- Suas espadas lhe assentam bem.
- Obrigado, padre, estou aprendendo a usá-las - replicou
Blackthorne. - Mas, sinto dizer, não sou muito bom com elas
ainda. Continuarei usando pistolas, alfanjes ou canhões, quando
tiver que combater.
781
- Rezo para que o senhor nunca mais precise combater,
piloto, e que seus olhos se abram para a infinita mercê de Deus.
- Os meus estão abertos. Os seus é que estão enevoados.
- Pela salvação da sua alma, piloto, conserve os olhos
abertos, e a mente também. Talvez o senhor possa se enganar.
Ainda assim, devo agradecer-lhe por haver salvado a vida do
Senhor Toranaga.
- Quem lhe contou isso?
Alvito não respondeu. Voltou-se para Toranaga.
- O que foi dito? - perguntou Toranaga, rompendo o
silêncio.
Alvito contou-lhe, acrescentando: - Embora ele seja o inimigo da minha fé e um pirata, estou contente de que o tenha
salvado, senhor. Deus se move por caminhos misteriosos. O senhor o honrou grandemente fazendo-o samurai.
- Ele também é hatamoto. - Toranaga ficou satisfeito com
a fugaz surpresa do padre. - Trouxe o dicionário?
- Sim, senhor, com vários dos mapas que o senhor queria,
mostrando algumas das bases portuguesas desde Goa. O livro se
encontra na minha bagagem. Posso mandar alguém buscá-lo, ou
posso dá-lo pessoalmente a ele mais tarde?
- De-o a ele mais tarde. Esta noite, ou amanhã. Também
trouxe o relatório?
- Sobre as supostas armas que se acredita tenhamos trazido
de Macau? O padre-inspetor o está preparando, senhor.
- E as quantidades de mercenários japoneses utilizados em
cada uma das suas novas bases?
- O padre-inspetor solicitou um relatório atualizado sobre
todos eles, senhor, que lhe entregará assim que estejam completos.
- Bom. Agora conte-me como soube da minha salvação.
- Dificilmente acontece alguma coisa a Toranaga-noh-Minowara que não se torne assunto de boato e lenda. Vindo de
Mishima, ouvimos dizer que o senhor quase tinha sido engolido
por um terremoto, mas que o Bárbaro Dourado o havia puxado
para fora. Além disso, que o senhor havia feito o mesmo por
ele e por uma dama ... presumo que seja a Senhora Mariko?
Toranaga assentiu brevemente. - Sim. Ela está aqui em
Yokosé. - Pensou um momento, depois disse: - Amanhã ela
gostaria de se confessar, de acordo com os seus costumes. Mas
apenas as coisas que sejam não-políticas. Eu imaginaria que isso
exclui tudo o que se refira a mim, e aos meus vários hatamotos,
neh? Também expliquei isso a ela.
782
Alvito curvou-se, compreendendo. - Com a sua permissão,
eu poderia dizer missa para todos os cristãos aqui, senhor? Seria
muito discreta, naturalmente. Amanhã?
- Considerarei isso. - Toranaga continuou a falar sobre
assuntos inconseqüentes algum tempo, depois disse: - Tem uma
mensagem para mim? Do seu padre-chefe?
- Com humildade, senhor, rogo para lhe dizer que é uma
mensagem particular.
Toranaga fingiu pensar nisso, embora tivesse determinado
com exatidão como o encontro se processaria e já tivesse dado ao
Anjin-san instruções específicas de como agir e o que dizer. -
Muito bem. - Voltou-se para Blackthorne: - Anjin-san, pode
ir agora, conversaremos mais tarde.
- Sim, senhor - retrucou Blackthorne. - Desculpe, o
Navio Negro. Chegar Nagasaki?
- Ah, sim, obrigado - replicou Toranaga, satisfeito que
a pergunta de Anjin-san não tivesse soado ensaiada. - Bem,
Tsukku-san, ele já atracou?
Alvito ficou desconcertado com o japonês de Blackthorne e
grandemente perturbado com a questão. - Sim, senhor. Atracou
há catorze dias.
- Ah, catorze? - -disse Toranaga. - Compreende, Anjinsan?
- Sim. Obrigado.
- Bom. Mais alguma coisa você pode perguntar ao Tsukkusan mais tarde, neh?
- Sim, senhor. Por favor, com licença. - Blackthorne levantou-se, curvou-se e saiu calmamente.
Toranaga observou-o afastando-se. - Um homem muito
interessante... para um pirata. Agora, me conte primeiro sobre
o Navio Negro.
- Chegou em segurança, senhor, com a maior carga de
seda que jamais existiu. - Alvito tentou soar entusiasmado. -
O acordo feito entre os senhores Harima, Kiyama, Onoshi e o
senhor está em vigor. Por esta época, no próximo ano, o seu
tesouro estará mais rico com dezenas de milhares de kobans. A
qualidade das sedas é a melhor, senhor. Trouxe uma cópia da
declaração para o seu mestre quarteleiro. O Capitão-Mor Ferreira envia-lhe os seus respeitos, esperando vê-lo pessoalmente
em breve. Foi essa a razão do meu atraso em vir vê-lo. O inspetor
geral me mandou às pressas de Osaka a Nagasaki, para providenciar que tudo fosse perfeito. Exatamente quando eu estava
783
saindo de Nagasaki, ouvimos dizer que o senhor partira de Yedo,
rumando para Izu, por isso vim para cá tão rápido quanto possível, de navio até o Porto Nimazu, com um dos nossos cúteres
mais velozes, depois por terra. Em Mishima, encontrei o Senhor
Zataki e pedi permissão para juntar-me a ele.
- Seu navio ainda está em Nimazu?
- Sim, senhor. Vai esperar por mim lá.
- Bom. - Por um momento Toranaga se perguntou se mandaria ou não Mariko para Osaka naquele navio, depois resolveu
tratar do assunto mais tarde. - Por favor, dê a declaração ao
mestre quarteleiro esta noite.
- Sim, senhor.
- E o acordo sobre a carga deste ano está selado?
- Sim. Absolutamente.
- Bom. Agora a outra parte. A parte importante.
As mãos de Alvito ficaram secas. - Nem o Senhor Kiyama
nem o Senhor Onoshi concordarão em desertar o General Ishido.
Sinto muito. Não concordarão em se colocar sob a sua bandeira
agora, apesar da nossa sugestão mais intensa.
A voz de Toranaga tornou-se baixa e cruel. - Já lhe assinalei que exijo mais que sugestões!
- Sinto muito trazer más notícias quanto a esta parte, senhor, mas nenhum deles concordaria em mudar de idéias publicamente a ...
- Ah, publicamente, você diz? E em particular... secretamente?
- Em particular eles ficaram tão inflexíveis quanto pub...
- Você conversou com eles separadamente ou juntos?
- Naturalmente juntos e em separado, muito confidencialmente, mas nada do que sugerimos.. .
- Você apenas "sugeriu" um rumo de ação? Por que não
lhes deu ordens?
- É como o padre-inspetor disse, senhor, não podemos dar
ordens a qualquer daimio ou a qualquer...
Ah, mas você pode dar ordens a um dos seus irmãos,
seu coração batia acelerado agora, porque o Senhor Harima, que
legalmente possuía Nagasaki, lhes contara em particular que toda
a sua imensa riqueza e influência iriam para o lado de Ishido. -
Por favor, desculpe-me, senhor, mas não faço regras divinas,
assim como o senhor não fez o código do bushido, o Caminho
do Guerreiro. Nós, nós temos que nos sujeitar ao que ...
- Você baniu um pobre imbecil por uni ato natural como
"travesseirar", mas quando dois dos seus convertidos se comportam de modo antinatural, sim, até traiçoeiramente, quando eu
busco o seu auxílio, o seu auxílio urgente, e sou seu amigo, você
faz apenas "sugestões". Você compreende a seriedade disso, neh?
- Sinto muito, senhor. Por favor, desculpe-me, mas ...
- Talvez eu não o desculpe, Tsukku-san. Foi dito antes:
agora todo mundo tem que escolher um lado - disse Toranaga.
- Claro que estamos do seu lado, senhor. Mas não podemos ordenar ao Senhor Kiyama ou ao Senhor Onoshi que façam
qualquer coisa...
- Felizmente eu posso dar ordens ao meu cristão.
- Senhor?
- Posso ordenar e o Anjin-san estará livre. Com o navio
dele. Com os canhões dele.
- Tenha cuidado com ele, senhor. O piloto é diabolicamente inteligente, mas é um herege, um pirata e não deve merecer conf...
- Aqui o Anjin-san é samurai e hatamoto. Ao mar talvez
seja um pirata. Se é um pirata, imagino que atrairá muitos outros
corsários e wakos a si, muitos deles. O que um estrangeiro faz em
mar aberto é problema dele, neh? Nossa política foi sempre essa.
Neh?
Alvito conservou-se em silêncio e tentou fazer o cérebro funcionar. Ninguém planejara que o inglês se tornaria tão próximo
de Toranaga.
- Esses dois daimios cristãos não farão compromisso algum,
nem mesmo um compromisso secreto?
- Não, senhor. Tentamos at...
- Nenhuma concessão, nenhuma?
- Não, senhor.. .
- Nenhum trato, nenhum acordo, nenhum compromisso,
nada?
- Não, senhor. Tentamos todos os induzimentos e toda
persuasão. Por favor, acredite-me. - Alvito sabia que estava na
armadilha e parte do seu desespero se mostrou. - Se fosse eu,
785
neh?
Sim, senhor.
Você ameaçou torná-los proscritos também?
Não, senhor.
Por quê?
Porque não cometeram pecado mortal - disse Alvito
com firmeza, conforme havia combinado com Dell'Aqua, mas o
784
sim, eu os ameaçaria com excomunhão, embora fosse uma falsa
ameaça porque eu nunca a concretizaria, não a menos que eles
cometessem um pecado mortal e não confessassem ou se arrependessem e submetessem. Mas uma ameaça por causa de um
ganho temporal seria um grande erro de minha parte, senhor,
um pecado mortal. Eu arriscaria a danação eterna.
- Está dizendo que, se eles pecassem contra o seu credo,
você os baniria?
- Sim. Mas não estou sugerindo que isso poderia ser usado
para trazê-los para o seu lado, senhor. Por favor, desculpe-me,
mas eles... eles estão totalmente contra o senhor no momento.
Sinto muito, mas essa é a verdade. Ambos deixaram isso muito
claro, juntos e em particular. Diante de Deus, rezo para que eles
mudem de idéia. Nós, o padre-inspetor e eu, demos ao senhor a
nossa palavra de que tentaríamos, diante de Deus. Cumprimos a
nossa promessa. Diante de Deus, falhamos.
- Então perderei - disse Toranaga. - Você sabe disso,
não sabe? Se eles continuarem aliados a Ishido, todos os daimios
cristãos se colocarão do lado deles. Então tenho que perder. Vinte
samurais contra cada um dos meus, neh?
- Sim.
- Qual é o plano deles? Quando me atacarão?
- Não sei, senhor.
- Se soubesse me contaria?
- Sim... sim, contaria.
Duvido, pensou Toranaga, e desviou o olhar para a noite, o
fardo da preocupação quase a esmagá-lo. Será que afinal de
contas terá que ser Céu Carmesim, perguntou a si mesmo, desamparado. O estúpido e fadado ao fracasso ataque a Kyoto?
Odiava a gaiola vergonhosa dentro da qual se encontrava.
Como o táicum e Goroda antes dele, tinha que tolerar os padres
cristãos, porque eram tão inseparáveis dos mercadores portugueses quanto as moscas dos cavalos, exercendo um absoluto poder
temporal e espiritual sobre o seu obstinado rebanho. Sem os padres não havia comércio. Sua boa vontade como negociadores e
intermediários na operação do Navio Negro era vital, porque
falavam a língua e contavam com a confiança de ambos os lados,
e, se alguma vez os padres viessem a ser completamente proibidos
no império, todos os bárbaros obedientemente partiriam, para
nunca mais voltar. Toranaga se lembrava da vez em que o táicum
tentara. se livrar dos padres e ao mesmo tempo encorajar o co786
mércio. Durante dois anos não houvera Navio Negro. Os espiões
relataram como o chefe gigante dos padres, postado como uma
aranha negra venenosa em Macau, ordenara que não houvesse
mais comércio como represália aos editos de expulsão do táicum,
sabendo que o táicum acabaria se humilhando. No terceiro ano
ele se curvara ao inevitável e convidara os padres a voltar, fazendo vista grossa aos seus próprios editos e à traição e rebelião
que os padres haviam patrocinado. Não há escapatória dessa realidade, pensou Toranaga. Nenhuma. Não acredito no que diz o
Anjin-san - que o comércio é tão essencial para os bárbaros
quanto é para nós, que a sua cobiça os fará comerciar, não importa o que façamos aos padres. O risco é grande demais para
fazer uma experiência e não há tempo e eu não tenho o poder.
Experimentamos uma vez e falhamos. Quem sabe? Talvez os
padres pudessem esperar dez anos; são inclementes o suficiente.
Se os padres ordenarem que não haja comércio, creio que não
haverá. Não poderíamos esperar dez anos. Nem cinco. E se
expulsarmos todos os bárbaros, deve levar vinte anos para que o
bárbaro inglês preencha a lacuna, se é que o Anjin-san está falando a verdade integral e se - e esse é um "se" imenso - os
chineses concordassem em comerciar com eles, contra os bárbaros
meridionais. Não acredito que os chineses mudassem seu padrão.
Nunca fizeram isso. Vinte anos é tempo demais. Dez anos é
tempo demais.
Não há escapatória dessa realidade. Ou da pior realidade de
todas, o espectro que secretamente petrificava Goroda e o táicum
e agora está empinando a cabeça asquerosa de novo: que os
fanáticos e destemidos padres cristãos, se pressionados demais,
colocariam toda a sua influência, o poder de comércio, o poder
marítimo, por trás de um dos grandes dáimios cristãos. Depois,
engendrariam uma força de invasão vestida de ferro, conquistadores igualmente fanáticos, armados com os mosquetes mais modernos para apoiar esse daimio cristão - como quase fizeram
na última vez. Por si mesmos, qualquer número de bárbaros invasores e seus padres não são ameaça contra as nossas esmagadoras
forças conjuntas. Nós esmagamos as hordas de Kublai-cã e podemos lidar com qualquer invasor. Mas aliados a um dos nossos,
um grande daimio cristão com exércitos de samurais, e havendo
guerras civis por todo o reino, isso poderia, finalmente, dar a
esse daimio o poder absoluto sobre todos nós.
Kiyama ou Onoshi? É óbvio, agora, que tem que ser o esquema do padre. O momento é perfeito. Mas que daimio?
787
Ambos, inicialmente, ajudados por Harima de Nagasaki. Mas
quem portará a bandeira final? Kiyama - porque Onoshi, o
leproso, não vai durar muito nesta terra e porque a óbvia recompensa a Onoshi por apoiar seu odiado inimigo e rival, Kiyama,
seria uma garantida, indolor e eterna vida no paraíso cristão, com
um assento permanente à direita do Deus cristão.
Entre si, agora, eles têm quatrocentos mil samurais. Sua base
é Kyushu e essa ilha está a salvo do meu alcance. Juntos, aqueles
dois poderiam subjugar facilmente a ilha inteira, e depois teriam
tropas ilimitadas, provisões ilimitadas, todos os navios necessários
a uma invasão, toda a seda, e Nagasaki. No país inteiro há, talvez, outros quinhentos ou seiscentos mil cristãos. Desses, mais da
metade - os convertidos pelos jesuítas - são samurais, todos
lindamente misturados às forças de todos os daimios, uma vasta
rede de traidores em potencial, espiões ou assassinos - caso os
padres assim ordenassem. E por que não o fariam? Conseguiriam
aquilo que desejam acima da própria vida: poder absoluto sobre
todas as nossas almas, conseqüentemente sobre toda esta Terra
dos Deuses - herdar a nossa terra e tudo o que ela contém -,
exatamente conforme o Anjin-san explicou que já aconteceu cinqüenta vezes nesse Novo Mundo deles ... Convertem um rei,
depois o usam contra a sua própria gente, até que o país inteiro
seja engolido.
o tão fácil para eles, esse minúsculo bando de padres bárbaros, conquistar-nos. Quantos deles existem no Japão? Cinqüenta
ou sessenta? Mas têm o poder. E acreditam. Estão preparados para
morrer de bom grado pelas próprias crenças, com orgulho e
bravura, com o nome do seu Deus nos lábios. Vimos isso em
Nagasaki quando a experiência do táicurn provou ser um erro
desastroso. Nenhum dos padres abjurou, dezenas de milhares
testemunharam as mortes na fogueira, dezenas de milhares foram
convertidos, e esse "martírio" deu à religião cristã um prestígio
imenso, de que os padres cristãos, desde então, vêm se nutrindo.
A mim, os padres falharam, mas isso não os dissuade do seu
curso implacável. Isso é realidade, também.
Portanto é Kiyama.
o plano já estará estabelecido, com Ishido, que é um simplório, e a Senhora Ochiba e Yaemon também? Harima já aderiu
a eles secretamente? Devo atirar o Anjin-san contra o Navio Negro e Nagasaki imediatamente?
o que devo fazer?
788
Nada além do habitual. Ser paciente, procurar a harmonia,
pôr de lado todas as preocupações sobre Eu ou Você, Vida ou
Morte, Alívio ou Pós-Vida, Agora ou Depois, e pôr em funcionamento um novo plano. Que plano? queria ele gritar em desespero. Não há um sequer!
- Entristece-me que aqueles dois fiquem com o verdadeiro
inimigo.
- Juro que tentamos, senhor - Alvito o observava compadecidamente, vendo-lhe a opressão do espírito.
- Sim. Acredito nisso. Acredito que você e o padre-inspetor
mantiveram a sua promessa solene, por isso manterei a minha.
Podem começar a construir o seu templo em Yedo imediatamente. O terreno já foi designado. Não posso proibir os padres,
os outros, cabeludos, de entrar no império, mas pelo menos posso
torná-los indesejados nos meus domínios. Os novos bárbaros serão
igualmente indesejados, se jamais chegarem. Quanto ao Anjinsan... - Toranaga encolheu os ombros. - Mas quanto tempo
isto tudo ... bem, é karma, neh?
Alvito estava agradecendo a Deus com todo o fervor pela
sua mercê e favor, com a inesperada moratória. - Obrigado,
senhor - disse, quase incapaz de falar. - Sei que o senhor não
se arrependerá. Rezo para que os seus inimigos se dispersem
como cisco e que o senhor possa colher as recompensas do paraíso.
- Sinto muito pelas minhas palavras ásperas. Foram ditas
pela cólera. Há tanto. .. - Toranaga levantou-se pesadamente.
- Você tem a minha permissão para dizer o seu serviço amanhã,
amigo velho.
- Obrigado, senhor - disse Alvito, curvando-se profundamente, com pena do homem normalmente majestoso. - Obrigado de todo o coração. Que a Divindade o abençoe e o acolha
na sua guarda.
Toranaga arrastou-se para a hospedaria, seus guardas seguindo-o - Naga-san!
- Sim, Pai - disse o jovem, acorrendo.
- Onde está a Senhora Mariko?
- Lá, senhor, com Buntaro-san. - Naga apontou para a
pequena casa de chá iluminada com lanternas, dentro do cercado
no jardim, os vultos indistintos lá dentro. - Devo interromper a
cha-no-yu? - Uma cha-no-yu era uma cerimônia do chá formal,
extremamente ritualizada. 789
- Não. Nunca se deve interferir nisso. Onde estão Omi e
Yabu-san?
- Na hospedaria deles, senhor. - Naga indicou a construção baixa que se esparramava do outro lado do rio, perto da
ribanceira oposta.
- Quem escolheu aquela?
- Eu, senhor. Por favor, desculpe-me, o senhor me pediu
que encontrasse uma hospedaria para eles do outro lado da ponte.
Compreendi mal?
- O Anjin-san?
- Está no seu quarto, senhor. Está esperando para o caso
de o senhor querer vê-lo.
Novamente Toranaga meneou a cabeça. - Vê-lo-ei amanhã. - Após uma pausa, disse na mesma voz distraída: - Vou
tomar um banho agora. Depois não quero ser incomodado até o
amanhecer, exceto...
Naga esperava apreensivo, observando o pai fitar o vazio,
grandemente desconcertado pela atitude dele. - Sente-se bem,
Pai?
- O quê? Oh, sim ... sim, estou bem. Por quê?
- Nada... Por favor, desculpe-me. Ainda quer caçar ao
amanhecer?
- Caçar? Ah, sim, é uma boa idéia. Obrigado por sugeri-Ia,
sim, isso seria muito bom. Providencie. Bem. Boa noite ... Ah,
sim, o Tsukku-san tem a minha permissão para dizer uma missa
particular amanhã. Todos os cristãos podem comparecer. Você
também.
- Senhor?
- No primeiro dia do Ano Novo você se tornará cristão.
- Eu!?
- Sim. De livre e espontânea vontade. Diga isso ao Tsukkusan em particular.
- Senhor?
Toranaga caiu em cima dele. - Ficou surdo? Já não compreende a coisa mais simples?
- Por favor, desculpe-me. Sim, Pai, compreendo.
- Bom. - Toranaga voltou à sua atitude distraída, depois
se afastou, a guarda pessoal a reboque. Todos os samurais se
curvaram rigidamente, mas ele não os notou.
Um oficial se aproximou de Naga, igualmente apreensivo.
- O que há com o nosso senhor?
- Não sei, Yoshinawa-san. - Naga olhou para a clareira.
790
Alvito estava acabando de sair, rumando para a ponte, um único
samurai a escoltá-lo. - Deve ter alguma coisa a ver com ele.
- Nunca vi o Senhor Toranaga caminhar tão pesadamente.
Nunca. Dizem... dizem que o padre bárbaro é mágico, um
bruxo. Deve ser, para falar a nossa língua tão bem, neh? Ele
poderia ter posto um encantamento no nosso senhor?
- Não. Nunca. Não no meu pai.
- Os bárbaros também fazem a minha espinha tremer, Naga-san. Ouviu falar sobre a briga... Tsukku-san e seu bando
berrando e discutindo como etas sem educação?
- Sim. Repugnante. Tenho certeza de que aquele homem
deve ter destruído a harmonia do meu pai.
- Se me pedir, uma seta na garganta daquele padre pouparia o nosso amo de muitos problemas.
- Sim.
- Talvez devêssemos falar a Buntaro-san sobre o Senhor
Toranaga? É o nosso oficial superior.
- Concordo ... mas mais tarde. Meu pai disse claramente
que eu não devia interromper a cha-no-yu. Esperarei até que
termine.
Na paz e silêncio da pequena casa, Buntaro abriu com toda
a delicadeza a pequena caixa de chá de louça, da dinastia T'ang,
e, com cuidado igual, pegou acolher de bambu, iniciando a parte
final da cerimônia. Habilmente tirou com a colher a quantidade
exata de pó verde e colocou-o na xícara de porcelana sem asa.
Um antigo caldeirão de ferro fundido cantava sobre o braseiro.
Com a mesma graça tranqüila, Buntaro verteu a água borbulhante na xícara, recolocou o caldeirão no tripé, depois gentilmente bateu o pó e a água com o batedor de bambu para misturar perfeitamente.
Juntou uma colherada de água fria, curvou-se para Mariko,
ajoelhada à sua frente, e ofereceu a xícara. Ela se curvou e a
pegou com requinte igual, admirando o líquido verde, e tomou
três goles, descansou, depois sorveu de novo, terminando-o. Devolveu a xícara. Ele repetiu a simetria do preparo formal do
chá e novamente lhe ofereceu. Ela lhe pediu que provasse o chá
ele mesmo, conforme era esperado dela. Ele sorveu, depois mais
uma vez, e terminou. Depois ele preparou uma terceira xícara,
e uma quarta. A quinta foi polidamente recusada.
Com grande cuidado, ritualmente, ele lavou e enxugou a
791
xícara, usando um pano de algodão exclusivo, e colocou os objetos em seus lugares. Curvou-se para ela e ela para ele. A chano-yu estava terminada.
Buntaro sentia-se contente por ter feito o melhor possível e
por haver agora, pelo menos no momento, paz entre eles. Naquela
tarde não houvera paz alguma.
Ele fora ao encontro do palanquim dela. Imediatamente,
como sempre, sentira-se vulgar e tosco em contraste com a frágil
perfeição da mulher - como um dos aipos peludos, selvagens,
desprezados e bárbaros, que habitaram o país um dia, mas que
agora tinham sido expulsos para o extremo-norte, para o outro
lado dos estreitos, para a ilha inexplorada de Hokkaido. Todas
as suas bem pensadas palavras o abandonaram e ele canhestramente a convidara à cha-no-yu, acrescentando: - Faz anos que
nós... Nunca lhe ofereci uma, mas esta noite será conveniente.
- Depois deixara escapar, sem ter a intenção de dizê-lo, sabendo
que era estúpido, deselegante e um erro imenso: - O Senhor
Toranaga disse que era tempo que conversássemos.
- Mas o senhor acha que não?
Apesar da sua determinação, ele corou e sua voz soou rascante. - Eu gostaria de que houvesse harmonia entre nós, sim,
o mais. Não mudei, neh?
- Naturalmente, senhor, por que deveria mudar? Se existe
alguma falha, não cabe ao senhor mudar, mas a mim. E se existe
alguma falha, é por minha causa, por favor, desculpe-me.
- Eu a desculparei - dissera ele, lá ao lado do palanquim,
profundamente consciente de que estavam sendo observados, entre
outros pelo Anjin-san e por Omi. Ela era tão amável, minúscula
o singular, seu cabelo penteado para o alto, seus olhos baixos
aparentemente tão modestos, e no entanto, para ele, agora, cheia
do mesmo gelo negro que sempre o lançava a uma fúria cega,
impotente, fazendo-o querer matar e gritar e mutilar e esmagar
o comportar-se do modo como um samurai nunca deveria se
comportar.
- Reservei a casa de chá para esta noite - dissê-lhe ele.
- Para esta noite, após a refeição noturna. Recebemos ordem
de fazer a refeição noturna com o Senhor Toranaga. Eu ficaria
honrado se você aceitasse o meu convite para depois.
- Sou eu quem fica honrada. - Ela se curvou e esperou
com os mesmos olhos baixos, e ele teve vontade de socá-la no
chão até a morte, depois mergulhar a faca em cruz no próprio
ventre e deixar a dor eterna limpar-lhe o tormento da alma.
792
Ele a viu levantar os olhos na sua direção, perspicaz.
- Havia mais alguma coisa, senhor? - perguntou, muito
suavemente.
O suor escorria pelas costas e pelas coxas dele, manchandolhe o quimono, o peito doendo, assim como a cabeça. - Você
vai... você vai ficar na hospedaria esta noite. - Depois
se afastou e tomou cuidadosas disposições para o comboio de
bagagem inteiro. Assim que pôde, passou seus deveres a Naga e
se afastou com uma truculência simulada, em direção da margem
do rio. Quando ficou sozinho, mergulhou nu na torrente, sem se
preocupar com a própria segurança, e lutou com o rio até a cabeça clarear e a dor martelante desaparecer.
Deitara-se na margem, recompondo-se. Agora que ela aceitara, ele tinha que começar. Havia pouco tempo. Reunira as
forças e caminhara de volta ao tosco portão do jardim que ficava
dentro do jardim principal e permanecera ali algum tempo, repensando seu plano. Naquela noite queria que tudo fosse perfeito.
Obviamente a cabana era imperfeita, assim como o jardim - uma
grosseira tentativa provinciana de uma verdadeira casa de chá.
Não importa, pensou ele, agora completamente absorto na sua
tarefa, terá que servir. A noite ocultará muitas falhas e as luzes
terão que criar a forma que falta.
Os criados já haviam trazido as coisas que ele ordenara mais
cedo - tatamis, lâmpadas de cerâmica a óleo, e utensílios de
limpeza -, as melhores de Yokosé, tudo muito novo, mas modesto, discreto e despretensioso.
Ele tirou o quimono, pousou as espadas, e começou a limpar.
Primeiro a minúscula sala de recepção, a cozinha e a varanda.
Depois o caminho sinuoso e as lajes assentadas no musgo, e finalmente as rochas e o jardim em torno. Ele lavou, varreu, escovou
até que tudo estivesse imaculado, rebaixando-se à humilhação
do trabalho manual que era o início da cha-no-yu, onde se exigia
que o anfitrião sozinho deixasse tudo impecável. A primeira perfeição era a limpeza absoluta.
Pelo crepúsculo havia acabado a maior parte dos preparativos. Depois tomara um banho meticuloso, suportara a refeição
noturna e o canto. Assim que pôde, trocara-se de novo, vestindo
roupas mais escuras, e voltara correndo para o jardim. Trancara
o portão. Primeiro colocara o pavio nas lâmpadas de óleo. Depois, cuidadosamente, borrifara água nas lajes e nas árvores -
que agora estavam salpicadas aqui e ali com uma luz bruxuleante -, até que o minúsculo jardim se transformasse num
793
mundo de fadas de gotas de orvalho dançando ao calor da brisa
de verão. Reposicionara algumas lanternas. Finalmente satisfeito,
destrancara o portão e se dirigira para o vestíbulo. Os pedaços
de carvão cuidadosamente selecionados, que tinham sido meticulosamente colocados numa pirâmide sobre areia branca, ardiam
corretamente. As flores pareciam corretas no takonoina. Mais
uma vez ele limpara os utensílios já impecáveis. O caldeirão começara a cantar e ele se sentira satisfeito com o som que era
enriquecido pelos pedacinhos de ferro que colocara tão diligentemente na base.
Ouviu os passos dela nas lajes, o som de suas mãos mergulhando ritualmente na cisterna de água fresca do rio e sendo
secas. Três passos suaves subindo a varanda. Mais dois até a
soleira acortinada. Até ela tinha que se curvar para atravessar a
minúscula porta, construída deliberadamente pequena para deixar humilde todo mundo. Numa cha-no-yu todos eram iguais,
anfitrião e convidado, o mais alto daimio e o mais simples samurai. Até um camponês, se fosse convidado.
Primeiro ela estudou o arranjo de flores do marido. Ele
escolhera um único botão de rosa branca selvagem, pingara uma
única pérola de água sobre a folha verde, e colocara-o sobre pedras vermelhas. O outono se aproxima, estava ele sugerindo com
a flor, falando através da flor, não chore pelo outono, a época
de morrer, quando a terra começa a dormir; desfrute do tempo
de começar de novo e experimente o frio glorioso do ar outonal
nesta noite de verão... logo a lágrima desaparecerá, e a rosa,
apenas as pedras permanecerão - logo você e eu desapareceremos, e apenas as pedras permanecerão.
Ele a observou, esquecido de si, agora mergulhado no transe próximo que um mestre de chá às vezes tinha a boa fortuna de
experimentar, completamente em harmonia com o ambiente que
o cercava. Ela se curvou para a flor em homenagem, aproximouse e ajoelhou-se diante dele. O seu quimono era marrom-escuro,
um fio de ouro queimado nas costuras realçando-lhe a coluna
branca do colo e o' rosto; o obi era do mais escuro dos verdes,
combinando com o sobquimono; o cabelo simples, natural, sem
adornos.
- Seja bem-vinda - disse ele com uma mesura, começando o ritual.
- A honra é minha - replicou ela, aceitando o seu papel. Ele serviu o minúsculo repasto numa imaculada bandeja de
laca, os pauzinhos colocados num lado, as fatias de peixe sobre
794
o arroz que ele preparara, e para completar o efeito algumas
flores campestres que ele encontrara perto da margem do rio,
distribuídas num desarranjo perfeito. Quando ela terminou de
comer e Buntaro, por sua vez, terminou de comer, ele ergueu a
bandeja, cada movimento formalizado - para ser observado,
avaliado, recordado - e levou-a através da porta baixa para a
cozinha.
Então, sozinha, em repouso, Mariko olhou o fogo criticamente, as brasas numa montanha incandescente, sobre o mar de
areia branca embaixo do tripé, seus ouvidos ouvindo o som
sibilante do fogo, fundindo-se ao suspirar do caldeirão que chiava
levemente e, da cozinha que não era visível, a sibilação de pano
sobre a porcelana e água limpando o que já estava limpo. Depois seus olhos passearam pelas vigas entrelaçadas, pelos bambus
e juncos que formavam o telhado. As sombras lançadas pelas
poucas lâmpadas que ele colocara aparentemente ao acaso tornavam o pequeno grande, o insignificante raro, e o conjunto uma
harmonia perfeita. Depois de ter visto tudo e avaliado a própria
alma, Mariko voltou para o jardim, para a bacia rasa que, ao
longo de eras, a natureza formara na rocha. Mais uma vez purificou as mãos e a boca com a água fria, fresca, enxugando-as
numa nova toalha.
Quando ela se acomodara de novo em seu lugar, ele disse:
- Talvez agora pudéssemos tomar chá?
- A honra seria minha. Mas, por favor, não se dê a tanto
incômodo por minha causa.
- A honra é minha. Você é minha convidada.
Então ele a servira. E agora era o término.
Em meio ao silêncio, Mariko não se moveu um instante.
Permaneceu na sua tranqüilidade, não querendo ainda reconhecer
o fim nem perturbar a paz que a rodeava. Mas sentiu o vigor
crescente nos olhos dele. A cha-no-yu estava encerrada. Agora a
vida devia começar de novo.
- O senhor o fez perfeitamente - sussurrou ela, sua tristeza dominando-a. Uma lágrima deslizou-lhe dos olhos, e a sua
queda arrancou o coração de Buntaro ao peito.
- Não... não. Por favor, desculpe-me ... você é perfeita... foi comum - disse ele, desconcertado com um aplauso
tão inesperado.
- Foi a melhor que jamais vi - disse ela, tocada pela total
honestidade na voz dele.
795
- Não. Não, por favor, desculpe-me, se foi belo, foi por
sua causa, Mariko-san. Foi apenas belo - você a tornou melhor.
- Para mim foi impecável. Tudo. Que triste que outros,
mais dignos do que eu, também não pudessem tê-la presenciado!
- Seus olhos reluziam à luz piscante.
- Você a presenciou. Isso é tudo. Era apenas para você.
Outros não teriam compreendido.
Ela agora sentiu as lágrimas quentes nas faces. Normalmente
se teria envergonhado delas, mas agora não a incomodaram. -
Obrigada, como posso agradecer-lhe?
Ele pegou um galho de timo selvagem e, de dedos trêmulos,
inclinou-se para a frente e gentilmente apanhou uma de suas
lágrimas. Silenciosamente baixou os olhos para a lágrima e o
raminho sumiu em contraste com o seu punho imenso. - O meu
trabalho ... qualquer trabalho ... é inadequado diante da beleza
disto. Obrigado.
Observou a lágrima na folha. Um pedaço de carvão tombou da montanha e, sem pensar, ele pegou as tenazes e recolocou-o. Algumas centelhas dançaram no ar, do topo da montanha,
que se transformou num vulcão em erupção.
Ambos devanearam numa doce melancolia, reunidos pela
simplicidade da lágrima única, contentes, juntos no silêncio, reunidos pela humildade, sabendo que o que fora dado fora retribuído em pureza.
Mais tarde ele disse: - Se o nosso dever não o proibisse,
eu lhe pediria que se juntasse a mim na morte. Agora.
- Eu iria com o senhor. Contente - respondeu ela de
imediato. - Vamos para a morte. Agora.
- Não podemos. Nosso dever é para com o Senhor Toranaga.
Ela tirou o estilete do obi e reverentemente colocou-o sobre
o tatami. - Então, por favor, permita-me preparar o caminho.
- Não. Isso seria falhar com o nosso dever.
- O que tem que ser, será. O senhor e eu não podemos
decidir.
- Sim. Mas não podemos ir antes do nosso amo. Nem você
nem eu. Ele necessita de cada vassalo digno de confiança por um
pouco mais. Por favor, desculpe-me, devo proibi-lo.
- Eu ficaria satisfeita em ir esta noite. Estou preparada.
Mais do que isso, desejo totalmente ir para o além. Sim. Minha
alma está transbordando de alegria. - Um sorriso hesitante.
796
- Por favor, desculpe-me por ser egoísta. O senhor está perfeitamente certo sobre o nosso dever.
A lâmina afiada cintilava à luz das lâmpadas. Eles a observaram, perdidos em contemplação. Então ele quebrou o encanto.
-- Por que Osaka, Mariko-san?
- Há coisas a serem feitas lá que apenas eu posso fazer.
O cenho dele aprofundou-se enquanto observava a luz de
um pavio gotejante bater na lágrima e se refratar num bilhão
de cores.
- Que coisas?
- Coisas que dizem respeito ao futuro da nossa casa e que
devem ser feitas por mim.
- Nesse caso você deve ir. - Olhou-a inquisitivo. - Mas
você sozinha?
- Sim. Desejo me certificar de que todos os arranjos de
família estão perfeitos entre nós e o Senhor Kiyama para o casamento de Saruji. Dinheiro, dote, terras, e assim por diante. Há o
feudo aumentado dele a formalizar. O Senhor Hiro-matsu e o
Senhor Toranaga exigem que isso seja feito. Eu sou a responsável
pela casa.
- Sim - disse ele lentamente -, é seu dever. - Seus olhos
encontraram os dela. - Se o Senhor Toranaga diz que você pode
ir, então vá, mas não é provável que você tenha permissão para
ficar lá. Ainda assim ... deve voltar rapidamente. Muito rapidamente. Seria imprudente ficar em Osaka um momento além do
necessário.
- Sim.
- Por mar seria mais rápido do que por terra. Mas você
sempre detestou o mar.
- Ainda detesto.
- Você tem que estar lá logo?
- Não creio que meio mês ou um mês fizesse diferença.
Talvez, não sei. Só sinto que devo ir imediatamente.
- Então deixaremos o momento e o assunto da ida ao Senhor Toranaga, se ele permitir que você vá. Com o Senhor Zataki
aqui, e os dois pergaminhos, isso só pode significar a guerra. Ir
será perigoso demais.
- Sim. Obrigada.
Contente de que aquilo estivesse terminado, ele olhou em
torno na pequena sala, satisfeito, sem se preocupar agora com o
fato de que sua feia corpulência dominava o espaço, cada uma
das suas coxas mais vasta do que a cintura dela, seus braços mais
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grossos do que o pescoço dela. - Esta sala foi excelente, melhor
do que me atrevi a esperar. Gostei de estar aqui. Fui lembrado
de novo de que um corpo não é nada além de uma cabana na
selva. Obrigado a você por ter estado aqui. Estou muito contente
de que tenha vindo a Yokosé, Mariko-san. Não fosse por sua
causa, eu nunca teria dado uma cha-no-yu aqui e nunca me teria
sentido tão unificado com a eternidade.
Ela hesitou, depois cautelosamente pegou a caixa de chá
T'ang. Era um pote simples, com tampa, sem ornamentos. O esmalte laranja-amarronzado estava gasto, deixando uma borda desigual de porcelana nua na base, dramatizando a importância do
oleiro e sua relutância em dissimular a simplicidade do seu material. Buntaro a comprara de Sen-Nakada, o mais famoso mestre
de chá que jamais existira, por vinte mil kokus. - É tão bonita
- murmurou ela, apreciando-lhe o toque. - Tão perfeita para a
cerimônia.
- Sim.
- O senhor foi realmente um mestre esta noite, Buntarosan. Deu-me muita felicidade. - A sua voz era baixa e intensa,
e ela se inclinou um pouco para a frente. - Tudo foi perfeito
para mini, o jardim e como o senhor usou talento para superar
as falhas com luz e sombra. E isto - tocou novamente a caixa
de chá. - Tudo perfeito, até o símbolo que o senhor escreveu
na toalha, ai, afeição. Para mim, esta noite, afeição foi a palavra
perfeita. - Novamente as lágrimas lhe escorreram pelas faces..
- Por favor, desculpe-me - disse, enxugando-as.
Ele se curvou, embaraçado com tal elogio. Para dissimular,
começou a envolver a caixa nos abafadores de seda. Quando terminou, colocou-a noutra caixa e pousou-a cuidadosamente diante
dela. - Mariko-san, se a nossa casa tem problemas de dinheiro,
pegue isto. Venda.
- Nunca! - Era a única posse, além das espadas e do
arco, que ele prezava na vida. - Isso seria a última coisa que eu
venderia.
- Por favor, desculpe-me, mas se pagar aos meus vassalos
é um problema, pegue isto.
- Há o suficiente para todos eles, com cuidado. E as melhores armas e os melhores cavalos. Nisso nossa casa é forte. Não,
Buntaro-san, a T'ang é sua.
- Não nos resta muito tempo. A quem eu deveria legá-la?
Saruji?
Ela olhou para as brasas e o fogo consumindo o vulcão,
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humilhando-o. - Não. Não até que ele seja um mestre de chá
digno, igual ao pai. Aconselho-o a deixar a T'ang ao Senhor Toranaga, que a merece, e pedir a ele que, antes de morrer, julgue se o
nosso filho merecerá recebê-la.
- E se o Senhor Toranaga perder e morrer antes do inverno, como estou certo de que perderá?
- O quê?
- Aqui, em particular, posso lhe dizer calmamente essa verdade, sem fingimento. Não é uma parte importante da cha-no-yu
não se fingir? Sim, ele vai perder, a menos que consiga Kiyama
e Onoshi - e Zataki.
- Nesse caso, determine no seu testamento que a T'ang
deve ser enviada com um cortejo a Sua Alteza Imperial, solicitando-lhe que a aceite. Certamente a T'ang merece a divindade.
- Sim. Essa seria a escolha perfeita. - Ele estudou a faca,
depois acrescentou tristemente: - Ah, Mariko-san, não há nada
a se fazer pelo Senhor Toranaga. Seu karma está escrito. Ele vence
ou perde. E se vencer ou perder, haverá uma grande matança.
- Sim.
Meditativo, ele desviou os olhos da faca e contemplou o
ramo de timo selvagem, a lágrima ainda pura. Mais tarde, disse:
- Se ele perder, antes que eu morra, ou que seja morto, eu ou
um dos meus homens matará o Anjin-san.
O rosto dela ficou etéreo contra a escuridão. A brisa suave
moveu-lhe alguns fios de cabelo, fazendo-a parecer-se ainda mais
com uma estátua.
- Por favor, desculpe-me, posso perguntar por quê?
- Ele é perigoso demais para continuar vivo. Seu conhecimento, suas idéias, que ouvi até de quinta mão... Ele infectará
o reino, até o Senhor Yaemon. O Senhor Toranaga já está sob o
encantamento dele, neh?
- O Senhor Toranaga aprecia o conhecimento dele -
disse ela.
- No momento em que o Senhor Toranaga morrer será a
ordem para a morte do Anjin-san. Mas espero que os olhos do
nosso senhor se abram antes disso. - A lâmpada gotejante crepitou e extinguiu-se. Ele deu uma olhada nela. - Você está sob
o encantamento.
- É um homem fascinante. Mas sua mente é tão diferente
da nossa ... seus valores ... sim, tão diferente em tantos sentidos,
que às vezes é quase impossível compreendê-lo. Uma vez tentei
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explicar uma cha-no-yu a ele, mas isso estava além da sua capacidade de compreensão.
- Deve ser terrível ter nascido bárbaro... terrível - disse
Buntaro.
- Sim.
Os olhos dele caíram sobre a lâmina do estilete. - Algumas
pessoas pensam que o Anjin-san foi japonês numa vida anterior.
Não é como os outros bárbaros e... tenta arduamente falar e
agir como um de nós, embora falhe, neh?
- Gostaria que o senhor o tivesse visto quase cometer
seppuku, Buntaro-san... foi extraordinário. Vi a morte visitá-lo,
ser afastada pela mão de Omi. Se ele foi japonês anteriormente,
isso explicaria muitas coisas. O Senhor Toranaga o considera
muito valioso para nós agora.
- E tempo que você pare de treiná-lo e se torne japonesa
de novo.
- Senhor?
- Acho que o Senhor Toranaga está sob o encantamento
dele. E você também.
- Por favor, desculpe-me, mas não acho que eu esteja.
- Aquela noite em Anjiro, aquela que acabou mal, naquela
noite senti que você estava do lado dele, contra mim. Claro que
foi um mau pensamento, mas senti isso.
O olhar dela afastou-se da lâmina. Olhou para ele firmemente
e não respondeu. Outra lâmpada crepitou rapidamente e extinguiu-se. Agora só restava uma na sala.
- Sim, eu o odiei naquela noite - continuou Buntaro, na
mesma voz calma -, e quis vê-lo morto, assim como a você e a
Fujiko-san. Meu arco cochichava comigo, como faz algumas vezes,
pedindo uma morte. E quando, na manhã seguinte, eu o vi descendo a colina com aquelas covardes pistolazinhas nas mãos, minhas setas imploraram para beber-lhe o sangue. Mas eu pus de
lado a idéia de matá-lo e me humilhei, odiando minha falta de
educação mais do que a ele, envergonhado pela minha falta
de educação e pelo saqué. - Seu cansaço mostrava-se agora.
- Muitas vergonhas a suportar, você e eu. Neh?
- Sim.
- Não quer que eu o mate?
- Deve fazer aquilo que sabe ser o seu dever - disse ela.
- Assim como eu sempre farei o meti.
- Ficamos na hospedaria esta noite - disse ele.
- Sim.
800
Então, como ela fora uma convidada perfeita e a cha-no-yu
a melhor que ele jamais realizara, ele mudou de idéia e deu-lhe
tempo e paz em medida igual à que recebera dela. - Vá para a
hospedaria. Durma - disse. Sua mão pegou o estilete e estendeu-o a ela. - Quando os bordos estiverem despidos de folhas,
ou quando você regressar de Osaka, começaremos. Como marido
e mulher.
- Sim. Obrigada.
-- Concorda espontaneamente, Mariko-san?
- Sim. Obrigada.
- Diante do seu Deus?
- Sim. Diante de Deus.
Mariko curvou-se e aceitou a faca, recolocou-a no esconderijo, curvou-se de novo e partiu.
Seus passos morreram a distância. Buntaro baixou os olhos
para o raminho ainda no seu punho, a lágrima ainda presa a uma
folha minúscula. Seus dedos tremeram ao, gentilmente, pousar o
galho sobre a última brasa. As folhas de um verde puro começaram a se contorcer e a se carbonizar. A lágrima desapareceu
com um silvo.
Então, em silêncio, ele começou a chorar com raiva, subitamente certo, no mais íntimo do seu ser, de que ela o traíra com
o Anjin-san.
Blackthorne viu-a sair do jardim e atravessar o pátio bem
iluminado. Susteve o fôlego ante a brancura da sua beleza. O
amanhecer estava se insinuando no céu oriental.
- Alô, Mariko-san.
- Oh ... alô, Anjin-san! O senhor... desculpe, o senhor
me assustou ... não o tinha visto. Levantou-se cedo.
- Não. Gomen nasal, estou na hora. - Ele sorriu e apontou para a manhã, que não estava muito distante. - É um hábito
que adquiri ao mar, acordar pouco antes do amanhecer, em bom
tempo para subir ao convés e medir o sol. - Seu sorriso ampliou-se. - Foi a senhora que acordou cedo!
- Eu não havia percebido que era... que a noite já se
fora. - Samurais estavam postados aos portões e soleiras, observando curiosos, Naga entre eles. A voz dela tornou-se quase imperceptível ao passar para o latim. - Vigie os seus olhos, rogolhe. Até a escuridão da noite contém arautos da destruição.
- Peço perdão.
801
Jurei ao táicum que nunca seria o primeiro a romper a paz, e não
serei, ainda que o país esteja dominado pelo mal. Aceito o convite. Aceito-o hoje.
Agastado, cada samurai estava tentando adivinhar o que
aquela inacreditável meia-volta significaria. Estavam todos doloridamente certos de que muitos, se não todos, seriam forçados a
se tornar ronins, com tudo o que isso significava - perda de
honra, de renda, de família, de futuro.
Buntaro sabia que acompanharia Toranaga na sua última
viagem e lhe compartilharia o destino - morte com toda a família, de todas as gerações. Ishido era seu inimigo demais para
perdoar, e de qualquer modo, quem quereria continuar vivo quando seu próprio senhor desistia da verdadeira luta de um modo tão
covarde? Karma, pensou Buntaro, cáustico. Buda me dê forças!
Agora estou comprometido em tirar a vida de Mariko e a do
nosso filho, antes de tirar a minha. Quando? Quando meu dever
estiver cumprido e nosso senhor tiver segura e honradamente partido para o Vazio. Ele precisará de um assistente fiel, neh? Foi-se
tudo, como folhas de outono, todo o futuro e o presente, Céu
Carmesim e o destino. Está igualmente bem, neh? Agora o Senhor Yaemon herdará, com certeza. O Senhor Toranaga deve
estar secretamente tentado, no mais íntimo do seu coração, a
tomar o poder, por mais que o negue. Talvez o táicum volte à
vida por intermédio do filho e, oportunamente, combateremos
com a China de novo e desta vez venceremos, para nos erguer
ao topo do mundo, como é nosso dever divino. Sim, a Senhora
Ochiba e Yaemon não nos venderão na próxima vez, como Ishido
e seus covardes seguidores fizeram na última...
Naga estava desconcertado. Nada de Céu Carmesim? Nada
de guerra honrosa? Nada de luta até a morte nas montanhas de
Shinano ou nas planícies de Kyoto? Nada de morte honrosa em
batalha, heroicamente defendendo o estandarte do pai, nada de
pilhas de inimigos mortos, em cima dos quais se escarranchar
num último momento de glória, ou numa vitória divina? Nada de
ataque, mesmo com as vis armas de fogo? Nada disso - apenas
um seppuku, provavelmente às pressas, sem pompa, cerimônia ou
honra, e sua cabeça espetada num chuço, exposta ao escárnio do
populacho. Apenas uma morte e o fim da linhagem Yoshi. Pois
naturalmente cada um deles morreria, o pai, todos os irmãos,
irmãs, primos, sobrinhos e sobrinhas, e tias e tios. Seus olhos se
fixaram em Zataki. O sangue começou a inundar-lhe o cérebro.
Omi observava Toranaga com olhos semicerrados, o ódio a
804
devorá-lo. Nosso amo enlouqueceu, pensou. Como pode ser tão
estúpido? Temos cem mil homens e o Regimento de Mosquetes
e mais cinqüenta mil em torno de Osaka! Céu Carmesim é mil
vezes melhor do que uma solitária sepultura fedorenta!
Sua mão pesava sobre o punho da espada e, num momento
de enlevo, ele se imaginou pulando para a frente para decapitar
Toranaga, estender a cabeça do suserano ao regente Zataki e assim
pôr termo à charada desprezível. Depois morrer pela própria mão
com honra, ali. diante de todos. Pois que sentido havia em viver
agora? Agora Kiku estava fora do seu alcance, seu contrato comprado e possuído por Toranaga, que os traíra a todos. Na noite
passada seu corpo ficara em chamas enquanto ela cantava e ele
sabia que a canção, secretamente, se destinava a ele, e só a ele.
Ardor não reconhecido ele e ela. Espere: por que não uni
suicídio conjunto? Morrer lindamente juntos, estar juntos por toda
a eternidade. Oh, que maravilhoso seria isso! Fundir nossas almas
na morte, como um testemunho sem fim da nossa adoração à
vida. Mas primeiro o traidor Toranaga, neh?
Com um esforço, Omi se arrastou de volta da beira do precipício.
Tudo deu errado, pensou. Não existe paz na minha casa,
sempre raiva e discussão, e Midori sempre cm lágrimas. Minha
vingança contra Yabu é remota agora. Não houve acordo secreto
com Zataki, com ou sem Yabu, negociado durante horas na noite
passada. Nenhum acordo de espécie alguma. Nada certo. Mesmo
quando Mura encontrou as espadas, estavam ambas tão mutiladas
pela força da terra, que sei que Toranaga me odiou por té-las
mostrado a ele. E agora, finalmente, isto esta covarde e traidora rendição!
É quase como se eu estivesse enfeitiçado num mau encantamento. Lançado pelo Anjin-san? Talvez. Mas está tudo perdido do mesmo jeito. Nada de espadas, vinganças, via secreta de
fuga, Kiku, o futuro. Espere. Existe uni futuro com ela. A morte
é um futuro, e passado e presente, e será muito limpo e simples.. .
- Está desistindo? O senhor não vai combater? - berrou
Yabu, consciente de que a sua morte e a da sua linhagem estav,:;>>
garantidas agora.
- Aceito o convite do conselho --- replicou Toranaga.
Como o senhor aceitará o convite do conselho!
-- Não farei.. .
Omi saiu do devaneio com presença de espírito suficiente
para saber que tinha que interromper Yabu e protegê-lo da morte
\t)5
I
vez vinte anos. Com isto logo estarei falando tão bem quanto o
senhor. Uma vez que possa fazer isso, poderei ensinar a outros.
Esta é a chave do Japão, neh? A língua é a chave de qualquer
lugar estrangeiro, neh? Dentro de seis meses serei capaz de conversar diretamente com Toranaga-sama.
- Sim, talvez seja. Se tiver seis meses.
- O que significa isso?
- Nada mais além do que o senhor já sabe. O Senhor Toranaga estará morto bem antes que se passem seis meses.
- Por quê? Que novidades o senhor lhe trouxe? Desde que
conversou com o senhor ele ficou como um touro, com metade
da garganta dilacerada. O que foi que lhe disse, hein?
- Minha mensagem era particular, de Sua Eminência ao
Senhor Toranaga. Sinto muito, sou meramente um mensageiro.
Mas o General Ishido controla Osaka, como o senhor certamente
sabe, e quando Toranaga-sama for a Osaka, estará tudo acabado
para ele. E para você.
Blackthorne sentiu o gelo na medula. - Por que eu?
- Não se pode escapar ao seu destino, piloto. Ajudou Toranaga contra Ishido. Esqueceu? Colocou as mãos violentamente
em cima de Ishido. Comandou a arremetida para fora da enseada
de Osaka. Sinto muito, mas ser capaz de falar japonês, ou as suas
espadas ou o status de samurai não o ajudarão em absoluto. Talvez seja pior agora, sendo o senhor samurai. Agora receberá
ordem de cometer seppuku e se recusar. . . - Alvito acrescentou
na mesma voz gentil: - Eu lhe disse antes que eles são um povo
simples.
- Nós, ingleses, também somos um povo simples - disse
ele, com não pouca bravata. - Quando estamos mortos, estamos
mortos, mas antes disso depositamos nossa confiança em Deus e
mantemos a nossa pólvora seca. Restam-me alguns truques, não
receie.
- Oh, não tenho receio, piloto. Não receio nada, nem o
senhor nem a sua heresia, nem as suas armas. Estão amarradas...
assim como o senhor.
- Isso é karma, está nas mãos de Deus, chame como quiser
- dissê-lhe Blackthorne, aturdido. - Mas por Deus, recuperarei
o meu navio e então, em alguns anos, comandarei uma esquadra
de navios ingleses até aqui, e vou mandá-los todos para o inferno,
para fora da Ásia.
Alvito falou novamente, com a sua calma imensa e enervante. - Isso está nas mãos de Deus, piloto. Mas os dados estão
812
lançados e nada do que o senhor diz acontecerá. Nada. - Alvito
o olhara como se ele já estivesse morto. - Que Deus tenha piedade do senhor, pois como Deus é o meu juiz, piloto, creio que
o senhor nunca deixará estas ilhas.
Blackthorne estremeceu, lembrando-se da convicção total
com que Alvito dissera isso.
- Está com frio, Anjin-san?
Mariko estava em pé à sua frente na varanda, agora, sacudindo o guarda-chuva. - Oh, desculpe, não, não estou com frio...
só estava devaneando. - Olhou para o passo. A coluna toda
desaparecera nas nuvens. A chuva diminuíra um pouco e se tornara branda e suave. Alguns aldeãos e criados vinham chapinhando nas poças, em direção da casa. O átrio estava vazio, o jardim
alagado. Lanternas a óleo acesas estavam aparecendo por toda a
aldeia. Já não havia sentinelas junto ao portão, nem dos dois
lados da ponte. Um grande vazio parecia dominar o lusco-fusco.
- É muito mais bonito à noite, não e? - disse ela.
- Sim -- replicou ele, totalmente consciente de que estavam sozinhos, e a salvo, se fossem cuidadosos e se ela quisesse
como ele queria.
Uma criada veio e pegou-lhe o guarda-chuva, trazendo tabis
secos. Ajoelhou-se e começou a enxugar os pés de Mariko com
uma toalha.
- Amanhã, ao amanhecer, começaremos a nossa jornada,
Anjin-san.
- Quanto tempo levaremos?
- Alguns dias, Anjin-san. O Senhor Toranaga disse... -
Mariko desviou o olhar quando Gyoko surgiu obsequiosamente
de dentro da hospedaria. - O Senhor Toranaga me disse que
havia muito tempo.
Gyoko curvou-se profundamente. - Boa noite, Senhora
Toda, por favor, desculpe-me por interrompê-la.
- Como vai, Gyoko-san?
- Muito bem, obrigada, embora quisesse que essa chuva
parasse. Não gosto dessa umidade. Mas depois, quando as chuvas
cessarem, teremos o calor e isso é muito pior, neh? Mas o outono
não está longe... Ah, temos sorte em ter um outono para esperar, e uma primavera celestial, neh?
Mariko não respondeu. A criada amarrou-lhe os tabis e se
levantou. - Obrigada - disse Mariko, dispensando-a. Então,
Gyoko-san? Há alguma coisa que eu possa fazer pela senhora?
- Kiku-san perguntou se a senhora gostaria que ela a
813
servisse no jantar, ou que dançasse ou cantasse esta noite. O Senhor Toranaga deixou-lhe instruções para entretê-la, se a senhora
quisesse.
- Sim, ele me disse, Gyoko-san. Seria muito bom, mas talvez não esta noite. Temos que partir ao amanhecer e estou muito
cansada. Haverá outras noites, neh? Por favor, peça-lhe as minhas
desculpas, e, oh, sim, diga-lhe que estou encantada em ter a companhia de vocês duas na estrada. - Toranaga ordenara a Mariko
que levasse as duas mulheres consigo, e ela lhe agradecera, satisfeita de tê-las como acompanhantes formais.
- A senhora é muito gentil - disse Gyoko, com mel na
língua. - Mas a honra é nossa. Ainda vamos para Yedo?
- Sim. Naturalmente. Por quê?
- Por nada, Senhora Toda. Mas, nesse caso, talvez pudéssemos parar em Mishima por um ou dois dias? Kiku-san gostaria
de reunir algumas roupas. Não se sente adequadamente vestida
para o Senhor Toranaga, e ouvi dizer que o verão de Yedo é
muito mormacento e cheio de mosquitos. Temos que ir buscar o
guarda-roupa dela, por pior que seja.
- Sim. Naturalmente. As duas terão tempo mais que o suficiente.
Gyoko não olhou para Blackthorne, embora estivessem ambas
muito conscientes da presença dele. - É... é trágico o que aconteceu ao nosso amo, neh?
- Karma - respondeu Mariko calmamente. E acrescentou
com uma suave malignidade feminina: - Mas nada mudou,
Gyoko-san. A senhora será paga no dia em que chegarmos, em
prata, conforme diz o contrato.
- Oh, desculpe - disse a mulher mais velha, fingindo estar
chocada. - Desculpe, Senhora Toda, mas dinheiro? Isso estava
muito distante da minha mente. Nunca! Só estava preocupada
com o futuro do nosso amo.
- Ele é senhor do próprio futuro - disse Mariko afavel mente, já não acreditando nisso. - Mas o seu futuro é bom, não
é, aconteça o que acontecer? Está rica agora. Todos os seus pro
blemas materiais terminaram. Logo a senhora será uma potência
em Yedo, com a sua nova corporação de cortesãs, seja quem for
que governe o Kwanto. Logo será a maior de todas as Mama
sans, e aconteça o que acontecer, bem, Kiku-san ainda é a sua
protegida e a sua juventude não foi tocada, nem o seu karma, neh?
- Minha única preocupação é com o Senhor Toranaga -
respondeu Gyoko, com uma gravidade experiente, o ânus con
814
traindo-se com o pensamento de dois mil e quinhentos kokits tão
perto da sua caixa-forte. - Se há algum meio por que eu possa
ajudá-lo, eu ...
- Que generoso de sua parte, Gyoko-san! Falarei a ele do
seu oferecimento. Sim, mil kokus do preço ajudariam muitíssimo.
Aceito em nome dele.
Gyoko agitou o leque, pôs um sorriso gracioso no rosto, e
a custo conseguiu não se pôr a gemer alto pela sua imbecilidade
de cair numa armadilha como uma novata intoxicada de saque.
- Oh, não, Senhora Toda, como o dinheiro poderia ajudar um
protetor tão generoso? Não, evidentemente o dinheiro não é ajuda
para ele - balbuciou, tentando se recuperar. - Não, dinheiro
não é ajuda. Melhor uma informação ou um serviço ou ...
- Por favor, desculpe-me, mas que informação?
- Nenhuma, nenhuma no momento. Só usei isso como uma
figura de linguagem, sinto muito. Mas dinheiro...
- Ah, desculpe, sim. Bem, falarei a ele sobre a sua oferta.
E sobre a sua generosidade. Em nome dele, obrigada.
Gyoko curvou-se, sendo dispensada, e correu de volta para
dentro da hospedaria.
Mariko soltou uma risadinha entrecortada.
- De que está rindo, Mariko-san?
Ela lhe contou o que fora dito. - As Mama-sans devem ser
a mesma coisa no mundo todo. Ela só está preocupada com o
seu dinheiro.
- O Senhor Toranaga pagará apesar de. . . - Blackthornc
parou. Mariko esperou, com ar inocente. Depois, sob o olhar
dela, ele continuou: O Padre Alvito disse que quando o Senhor
Toranaga for a Osaka, estará liquidado.
- Oh, sim. Sim, Anjin-san, isso é totalmente verdadeiro -
disse Mariko, com uma vivacidade que não sentia. Depois colocou Toranaga e Osaka nos respectivos compartimentos e ficou
tranqüila de novo. - Mas Osaka está a muitas léguas de distância
e a incontáveis bastões de tempo no futuro, e até lá, quando o
que tem que ser é, Ishido não sabe, o bom padre não sabe realmente, nós não sabemos, ninguém sabe o que realmente vai acontecer. Neh? Exceto o Senhor Deus. Mas ele não nos dirá, dirá?
Até, talvez, que já tenha passado. Neh?
- Hai! - Ele riu com ela. - Ah, a senhora é tão sábia.
- Obrigada. Tenho uma sugestão, Anjin-san. Durante a viagem, vamos esquecer todos os problemas externos. Todos eles.
- É bom vê-]a - disse ele em latim.
815
- Digo o mesmo. Um cuidado extraordinário diante das
duas mulheres durante a viagem é muito necessário, neh?
Pode contar com isso, senhora.
Conto. Na verdade conto muitíssimo.
Agora estamos quase sozinhos, neh? A senhora e eu.
Sim. Mas o que foi não é, nem nunca aconteceu.
E verdade. Sim. A senhora tem razão de novo. E é linda.
Um samurai avançou pelo portão e a saudou. Era um homem
de meia-idade, de cabelo grisalho, rosto marcado de varíola, e
caminhava coxeando levemente. - Por favor, desculpe-me, Senhora Toda, mas partiremos ao amanhecer, neh?
- Sim, Yoshinaka-san. Mas não tem importância se nos
atrasarmos até o meio-dia, se o senhor quiser. Temos muito tempo.
- Sim. Se a senhora prefere, partimos ao meio-dia. Boa
noite, Anjin-san. Por favor, permita-me que me apresente. Sou
Akira Yoshinaka, capitão da sua escolta.
- Boa noite, capitão.
Yoshinaka voltou-se para Mariko. - Sou responsável pela
senhora e por ele, por isso, por favor, diga-lhe que ordenei que
dois homens durmam no quarto dele à noite, como guardas pessoais. Além disso, haverá dez sentinelas em serviço a noite toda.
Estarão o tempo todo à sua volta. Tenho cem homens no total.
- Muito bem, capitão. Mas, desculpe, seria melhor não
postar nenhum homem no quarto do Anjin-san. Eles têm o costume, muito sério, aliás, de dormirem sozinhos, ou sozinhos com
uma dama. Minha criada provavelmente ficará com ele, portanto
estará protegido. Por favor, mantenha os guardas por perto, mas
não demais, assim ele não ficará perturbado.
Yoshinaka coçou a cabeça e franziu o cenho. - Muito bem,
senhora. Sim, concordo com isso, embora o meu jeito seja mais
sensato. Então, desculpe, por favor, peça-lhe que, nas próximas
noites, não dê as caminhadas dele. Até que cheguemos a Yedo
eu sou o responsável, e quando sou responsável por pessoas muito
importantes, fico muito nervoso. - Curvou-se rigidamente e se
afastou.
- O capitão pediu que o senhor não caminhe por aí sozinho
durante a nossa viagem. Se se levantar à noite, leve sempre um
samurai consigo, Anjin-san. Ele disse que isso o ajudaria.
- Está bem. Sim, farei isso. - Blackthorne observou-o
afastando-se.
"O que mais ele disse? Ouvi alguma coisa sobre dormir?
Não consegui compreendê-lo muito. .. " Ele parou. Kiku vinha
816
saindo. Estava usando um roupão de banho com uma toalha decorosamente envolta em torno do cabelo. Descalça, saracoteando
na direção da casa de banho alimentada pela nascente quente,
fez-lhes uma meia mesura, e acenou alegremente. Eles retribuíram
à saudação.
Blackthorne admirou suas longas pernas e o modo ondulante
do caminhar até que ela desaparecesse. Sentiu os olhos de Mariko
a observá-lo atentamente, e voltou-se para ela. - Não - disse
suavemente, e meneou a cabeça.
Ela riu. - Pensei que poderia ser difícil... poderia ser
desconfortável para o senhor tê-la apenas como companheira de
viagem, depois de um "travesseiro" tão especial.
- Desconfortável, não. Pelo contrário, muito agradável. Tenho lembranças muito agradáveis. Estou contente de que ela pertença ao Senhor Toranaga agora. Isso torna tudo fácil, para ela
e para mim. E para todos. - Ia acrescentar "todo mundo, menos
Omi", mas pensou melhor e disse: - Afinal de contas, para mim
ela foi apenas um presente glorioso e muito especial. Nada mais.
Neh?
- Ela foi um presente, sim.
Ele teve vontade de tocar Mariko. Mas não o fez. Em vez
disso, voltou-se e contemplou o desfiladeiro, sem ter certeza do
que lera por trás dos olhos dela. A noite obscurecia o passo agora.
E as nuvens. A água pingava delicadamente do telhado. - O que
mais o capitão disse?
- Nada de importância, Anjin-san.
CAPITULO 45
A viagem até Mishima levou nove dias, e todas as noites,
durante parte da noite, eles estiveram juntos. Secretamente. Involuntariamente Yoshinaka os ajudava. A cada hospedaria, com toda
a naturalidade, escolhia quartos contíguos para todos eles. - Espero que não faça objeção, senhora, mas isto facilitará muito a
segurança - dizia sempre, e Mariko concordava e tomava o
quarto central, com Kiku e Gyoko de um lado, Blackthorne do
outro. Depois, no escuro da noite, ela deixava a sua criada,
Chimmoko, e ia ao encontro dele. Com quartos contíguos, mais
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o vozerio habitual, os sons noturnos, a cantoria e a pândega de
outros viajantes, com seus enxames de criadas sempre presentes
o ansiosas por agradar, as alertas sentinelas guardando o exterior
não tinham como perceber nada. Apenas Chimmoko estava a par
do segredo.
Mariko tinha consciência de que Gyoko, Kiku e todas as
mulheres do grupo acabariam sabendo. Mas isso não a preocupava. Era samurai e elas não. A sua palavra pesaria contra a delas,
a menos que fosse surpreendida em flagrante, e nenhum samurai,
nem mesmo Yoshinaka, normalmente abriria a sua porta à noite,
sem ser convidado. Pelo que constava a todos, Blackthorne compartilhava o leito com Chimmoko, ou uma das criadas da hospedaria. Não era assunto de ninguém, só dele. Então, apenas uma
mulher podia traí-la, e se ela fosse traída, a delatora e todas as
mulheres do grupo morreriam de uma morte ainda mais vulgar e
prolongada do que a dela, por uma traição tão repugnante. Depois, além disso, se ela desejasse, antes que atingissem Mishima
ou Yedo, todas sabiam que ela podia mandar matá-las, conforme
o seu capricho, pela mais ligeira das indiscrições, real ou alegada.
Mariko tinha certeza de que Toranaga não se oporia a essas mortes. Certamente não à de Gyoko e, bem no íntimo, Mariko tinha
certeza de que ele não objetaria nem à de Kiku. Dois mil e quinhentos kokus podiam comprar muitas cortesãs de primeira classe.
Por isso se sentia segura quanto às mulheres. Mas não quanto a Blackthorne, por mais que o amasse agora. Ele não era japonês. Não fora educado desde o nascimento para construir as
cercas internas e impenetráveis atrás das quais se esconder. Seu
rosto, seu comportamento ou seu orgulho o trairiam. Ela não
tinha medo por si mesma. Apenas por ele.
- Finalmente sei o que significa amor - murmurou ela na
primeira noite. E como não lutava mais contra o furioso assalto
do amor, mas se entregara à sua irresistibilidade, o seu terror pela
segurança dele a consumia. - Eu o amo, por isso temo por você
- sussurrou, abraçada a ele, usando o latim, a língua dos amantes.
- Eu a amo. Oh, como a amo.
- Eu o destruí, meu amor. Estamos condenados agora. Destruí-o ... essa é a verdade.
- Não, Mariko, de algum modo acontecerá alguma coisa
que fará tudo dar certo.
- Eu não deveria ter começado. A culpa é minha.
- Não se preocupe, peço-lhe. Karma é karma.
Finalmente ela fingiu ser persuadida e fundiu-se aos braços
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dele. Mas tinha certeza de que ele seria a sua própria nemesis.
Por si mesma não tinha medo.
As noites foram jubilosas. Ternas. Cada uma melhor do que
a anterior. Os dias foram fáceis para ela, difíceis para ele. Ele
estava constantemente em guarda, determinado, por causa dela,
a não cometer nenhum engano. - Não haverá engano - disse
ela enquanto cavalgavam juntos, seguramente afastados dos outros, agora mantendo uma simulação de absoluta confiança após
o lapso da primeira noite. - Você é forte. É samurai e não haverá
engano - disse em latim.
E quando chegarmos a Yedo?
Deixe Yedo se preocupar com Yedo. Eu o amo.
Sim. Eu também a amo.
Então por que está tão triste?
- Triste, não, senhora. É só que o si encio e doloroso. Eu
gostaria de gritar o meu amor do topo das montanhas.
Deliciavam-se com a sua privacidade e com a certeza de que
ainda estavam a salvo de olhos curiosos.
- O que acontecerá a eles, Gyoko-san? - perguntou Kiku
suavemente no palanquim, no primeiro dia de viagem.
- Desastre, Kiku-san. Não há esperança para o futuro deles.
Ele dissimula bem, mas ela... ! A adoração que sente é gritante.
Olhe para ela! Parece uma jovenzinha! Oh, como é tola!
Mas é tão bela, neh? Que sorte ser tão completa, neh?
Sim, mas ainda assim eu não gostaria que a morte deles
recaísse sobre mais ninguém.
O que Yoshinaka fará quando os descobrir? - perguntou
Kiku.
Talvez não descubra. Rezo para isso. Os homens são muito tolos e estúpidos. Não conseguem ver as coisas mais simples
sobre as mulheres, graças a Buda, abençoado o seu nome. Oremos
para que eles não sejam descobertos até que tenhamos concluído
o nosso negócio em Yedo. Oremos para que não nos considerem
responsáveis. Oh, sim! E esta tarde, quando pararmos, vamos procurar o santuário mais próximo e acender dez bastões de incenso.
Por todos os deuses, vou até doar a um templo para todos os
deuses três kokus anuais, durante dez anos, se escaparmos e se
eu conseguir o meu dinheiro.
- Mas eles são tão lindos juntos, neh? Nunca tinha visto
uma mulher desabrochar tanto.
- Sim, mas ela vai murchar como uma camélia quebrada
quando for acusada diante de Buntaro-san. O karma deles é o
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karma deles, e não há nada que possamos fazer por eles. Ou pelo
Senhor Toranaga - ou mesmo por Omi-san. Não chore, criança.
- Pobre Omi-san.
Omi os havia alcançado no terceiro dia. Ficara na hospedaria
deles, e após a refeição noturna falara em particular com Kiku,
pedindo-lhe formalmente que se juntasse a ele por toda a eternidade.
- De boa vontade, Omi-san, de boa vontade - respondera
ela imediatamente, permitindo-se chorar, pois gostava muitíssimo
dele. - Mas o meu dever para com o Senhor Toranaga, que me
favoreceu, e para com Gyoko-san, que me formou, me proíbe isso.
- Mas o Senhor Toranaga perdeu os seus direitos sobre
você. Ele se rendeu. Está liquidado.
- Mas o contrato não, Omi-san, por mais que eu deseje isso.
O contrato dele é legal, um compromisso. Por favor, desculpe-me,
devo recusar...
- Não responda agora, Kiku-san. Pense. Por favor, eu lhe
peço. Dê-me a sua resposta amanhã - dissera ele, e se fora.
Mas a lacrimosa resposta fora a mesma. - Não posso ser
tão egoísta, Omi-san. Por favor, perdoe-me. Meu dever para com
o Senhor Toranaga, para com Gyoko-san ... não posso, por mais
que o deseje. Por favor, perdoe-me.
Ele argumentara. Houvera mais lágrimas. Juraram adoração
perpétua e depois ela o mandara embora, com uma promessa:
- Se o contrato se romper, ou o Senhor Toranaga morrer e eu
ficar livre, farei qualquer coisa que o senhor queira, obedecerei
a qualquer ordem sua. -- E então ele deixara a hospedaria e
seguira na frente para Mishima, cheio de pressentimentos, e ela
secara as lágrimas e retocara a maquilagem. Gyoko a cumprimentara: - Você é tão sábia, criança. Oh, como eu gostaria de que
a Senhora Toda tivesse metade da sua sabedoria.
Yoshinaka os levava vagarosamente de hospedaria em hospedaria ao longo do curso do rio Kano, que coleava para o norte,
rumo ao mar, conformando-se com os atrasos que sempre pareciam acontecer, não se preocupando com o tempo. Toranaga lhe
dissera reservadamente que não era preciso se apressar. - Preferiria que eles chegassem mais tarde do que cedo, Yoshinaka-san.
Compreende?
- Sim, senhor - respondera ele. Agora abençoava seu kami
guardião por lhe dar um intervalo. Em Mishima, com o Senhor
Hiro-matsu - ou em Yedo, com o Senhor Toranaga -, ele teria
que fazer o seu relatório obrigatório, oral e por escrito. Então
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teria que decidir se contaria o que pensava, não o que fora tão
cuidadoso em não ver. Iiiiiih, dizia a si mesmo atônito, com certeza estou enganado. A Senhora Toda? Ela e outro, homem, e
ainda por cima o bárbaro!
O seu dever não é ver? perguntou a si mesmo. Obter provas.
Surpreendê-los por trás de portas fechadas, deitados juntos. Você
será condenado por cumplicidade se não fizer isso, neh? Seria
muito fácil, embora eles sejam muito cuidadosos.
Sim, mas apenas um imbecil levaria informações assim, pensou ele. Não é melhor fazer o papel de estúpido e rezar para que
ninguém os traia e assim não traia a você? A vida dela terminou,
estamos todos condenados, então o que importa? Desvie os olhos.
Deixe-os ao karma deles. Que importância tem isso?
Com toda a alma o samurai sabia que tinha muitíssima importância.
- Ah, bom dia, Mariko-san. Que lindo dia - disse o Padre
Alvito, caminhando até eles. Estavam fora da hospedaria, prontos
para iniciar a jornada do dia. Ele fez o sinal-da-cruz sobre ela.
- Que Deus a abençoe e a mantenha em suas mãos para sempre.
- Obrigada, padre.
- Bom dia, piloto. Como está hoje?
- Bem, obrigado. E o senhor?
O grupo deles e os jesuítas haviam se encontrado durante
a marcha. Algumas vezes tinham ficado na mesma hospedaria.
Outras, viajaram juntos.
- Gostaria de que eu cavalgasse com o senhor esta manhã,
piloto? Eu ficaria feliz em continuar as aulas de japonês, se estiver disposto.
- Obrigado. Sim, eu gostaria.
No primeiro dia, Alvito se oferecera para tentar ensinar a
língua a Blackthorne.
- Em troca de quê? - perguntara Blackthorne, cauteloso.
- De nada. Ajudar-me-ia a passar o tempo, e para lhe dizer
a verdade, no momento me sinto entristecido com a vida e velho.
Também, talvez, para me desculpar pelas minhas palavras ásperas.
- Não espero desculpas de sua parte. O senhor tem o seu
jeito, eu o meu. Não podemos nunca nos encontrar.
- Talvez... mas durante a nossa viagem poderíamos com821
partilhar coisas, neh? Somos viajantes da mesma estrada. Gostaria
de ajudá-lo.
- Por quê?
- O conhecimento pertence a Deus. Não a um homem.
Gostaria de ajudá-lo com um presente... nada em troca.
- Obrigado, mas não confio no senhor.
- Então, se insiste, em troca fale-me sobre o seu mundo,
sobre o que viu e onde esteve. Qualquer coisa que queira, mas
apenas o que quiser. A verdade. Realmente, eu ficaria fascinado
e seria uma troca justa. Vim para o Japão com treze ou catorze
anos, e não vi nada do mundo. Poderíamos até combinar uma
trégua para a viagem, se o senhor desejar.
- Mas sem religiões, política ou doutrinas papais?
- Sou o que sou, piloto, mas tentarei.
Então começaram a trocar conhecimento cautelosamente.
Para Blackthorne parecia uma troca injusta. A erudição de Alvito
era enorme, ele era um professor exemplar, enquanto Blackthorne
achava que relatava apenas coisas que qualquer piloto saberia.
- Mas isso não é verdade - dissera Alvito. - O senhor é um
piloto único, fez coisas inacreditáveis. Um entre meia dúzia na
terra, neh?
Gradualmente uma trégua aconteceu de fato entre eles, e isso
agradou a Mariko.
- Isso é amizade, Anjin-san, ou o começo dela - disse ela.
- Não. Amizade, não. Desconfio dele tanto quanto sempre, assim como ele de mim. Somos inimigos perpétuos. Não esqueci nada, nem ele. Isto é uma trégua, temporária, provavelmente
para uma finalidade especial que ele nunca revelaria se eu perguntasse. Eu o compreendo e não há mal nisso, desde que eu não
descuide da minha guarda.
Enquanto ele passava o tempo com Alvito, Mariko cavalgava indolentemente com Kiku e Gyoko e conversava sobre "travesseiro" e sobre modos de agradar aos homens e sobre o Mundo
do Salgueiro. Em troca falava-lhes sobre o mundo, compartilhando o que presenciara, participara ou aprendera sobre o ditador
Goroda, o táicum e até o Senhor Toranaga, contando-lhes histórias criteriosas sobre os grandes que nenhum plebeu jamais conheceria.
Poucas léguas ao sul de Mishima, o rio se insinuava para
oeste, para tombar placidamente na costa e no grande porto de
Numazu, e eles abandonaram a região barrancosa e seguiram
pelas férteis e chatas planícies onde se cultivava o arroz, ao longo
da larga e movimentada estrada que rumava para o norte. Havia
muitos riachos e afluentes a vadear. Alguns eram rasos. Outros
profundos e muito largos, e eles tinham que atravessá-los em
batelões impelidos a varas. Mas o mais comum era serem vadeados sobre os ombros de carregadores, dos muitos que estavam
sempre posicionados por perto com essa finalidade específica, tagarelando e se oferecendo para esse privilégio.
Aquele era o sétimo dia desde Yokosé. A estrada se bifurcava e ali o Padre Alvito disse que tinha que deixá-los. Tomaria
a direção oeste, para retornar ao seu navio por um dia ou pouco
mais, mas os alcançaria e se juntaria a eles de novo na estrada de
Mishima a Yedo, se isso fosse permitido. - Naturalmente são
ambos bem-vindos, se quiserem vir comigo.
- Obrigado, mas, sinto muito, há coisas que devo fazer em
Mishima - disse Mariko.
- Anjin-san? Se a Senhora Mariko vai estar ocupada, o
senhor seria bem-vindo sozinho. O nosso cozinheiro é muito bom,
o vinho é excelente. Como Deus é o meu juiz, o senhor estaria
seguro, e livre para ir e vir como quisesse. Rodrigues está a bordo.
Mariko viu que Blackthorne queria deixá-la. Como pode ele?
perguntou a si mesma com uma grande tristeza. Como pode querer me deixar quando o tempo é tão curto? - Por favor, vá,
Anjin-san - disse ela. - Seria ótimo para o senhor... e bom
ver o Rodrigues, neh?
Mas Blackthorne não foi, apesar do muito que queria. Não
confiava no padre. Nem por Rodrigues ele colocaria a cabeça
naquela armadilha. Agradeceu a Alvito e os dois ficaram a observá-lo se afastar.
- Vamos parar agora, Anjin-san - disse Mariko, embora
mal fosse meio-dia. - Não há pressa, neh?
- Excelente. Sim, eu gostaria.
- O padre é um bom homem, mas fiquei contente de que
tenha ido embora.
- Eu também. Mas ele não é um bom homem. É um padre.
Ela ficou perplexa com a veemência dele. - Oh, desculpe,
Anjin-san, desculpe-me por dizer.. .
- Não é importante, Mariko-chan. Eu lhe disse... nada
foi esquecido. Ele estará sempre atrás da minha pele. - Blackthorne foi ao encontro do Capitão Yoshinaka.
Desconcertada, ela olhou para a estrada ocidental.
Os cavalos da comitiva do Padre Alvito moviam-se por entre
os outros viajantes sem pressa. Alguns passantes curvavam-se para
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o pequeno cortejo, alguns se ajoelhavam, muitos ficavam
sos, muitos carrancudos. Mas todos, polidamente, saíam
minho. Exceto qualquer samurai. Quando encontrava um s
ainda que de importância ínfima, o Padre Alvito se movi
a esquerda ou para a direita, e seus acólitos o acompan
Ele estava contente por deixar Mariko e Blackthorn
tente com o intervalo. Tinha despachos urgentes a env
padre-inspetor, que não pudera mandar porque os seus p
correio tinham sido destruídos em Yokosé. Havia tantos
mas a resolver: Toranaga, Uo, o pescador, Mariko, e o pi
José, que continuava a seguir-lhe os passos.
- O que ele está fazendo ali, Capitão Yoshinaka? -
mara ele no primeiro dia, ao notar José entre os guardas,
um quimono militar e, desajeitadamente, espadas.
- O Senhor Toranaga ordenou-me que o levasse para
ma, Tsukku-san. Lá devo entregá-lo ao Senhor Hiro-mats
sinto muito, a vista dele o ofende?
- Não... não - dissera ele, de modo não convi
- Ah, está olhando para as espadas dele? Não há
para se preocupar. São apenas punhos, não têm lâminas.
ordens do Senhor Toranaga. Parece que o homem foi m
para a sua ordem tão jovem, que não está claro se ele d
não usar espadas de verdade, por mais direito que tenha
Ias e por mais que as queira. Parece que ele se juntou
ordem ainda criança, Tsukku-san. Ainda assim, naturalmen
podemos ter um samurai sem espadas, neh? Uraga-noh-Ta
certamente é um samurai, embora tenha sido um padre
durante vinte anos. Nosso amo prudentemente fez essa
dação.
- O que vai acontecer a ele?
- Devo entregá-lo ao Senhor Hiro-matsu. Talvez
mandado de volta ao tio para ser julgado, talvez fique c
Só obedeço a ordens, Tsukku-san.
O Padre Alvito fora falar com José, mas Yoshinaka o
polidamente. - Sinto muito, mas o meu amo também o
que ele fosse deixado sozinho. Longe de todo mundo. Pa
mente de cristãos. Até que o Senhor Harima faça um julg
disse o meu amo. Uraga-san é vassalo do Senhor Harim
O Senhor Harima também é cristão. Neh? O Senhor Toran
que um daimio cristão deve lidar com um renegado crist"
nal de contas, o Senhor Harima é tio dele e líder da cas
ele quem o colocou sob a sua custódia.
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mbora fosse proibido, Alvito tentara de novo, naquela noite,
rsar em particular com José, para lhe pedir que se retratasse
sacrilégio e se ajoelhasse em penitência diante do padreor, mas o jovem friamente se afastara, sem ouvir, e depois
o José era sempre mandado bem à frente.
e algum modo, Santa Mãe de Deus, temos que trazê-lo de
à mercê de Deus, pensou Alvito angustiado. O que posso
Talvez o padre-inspetor saiba como lidar com José. Sim, e
o que fazer quanto à inacreditável decisão de Toranaga de
meter, o que, nas reuniões secretas, eles haviam descartado
uma impossibilidade. - Não, isso é totalmente contra o
o de Toranaga - dissera Dell'Aqua. - Ele irá à guerra.
o as chuvas cessarem, talvez antes, se conseguir que Zataki
diga e traia Ishido. Minha previsão é que ele esperará tanto
o puder e tentará forçar Ishido a fazer o primeiro movi- o seu jogo de espera habitual. Aconteça o que aconteKiyama e Onoshi apoiarem Ishido e Osaka, o Kwanto será
do e Toranaga destruído.
E Kiyama e Onoshi? Manterão a inimizade enterrada,
em comum?
Sim. Estão totalmente convencidos de que uma vitória de
aga seria o dobre de morte para a Santa Igreja. Agora que
a vai se pôr do lado de Ishido, receio que Toranaga seja
lusão perdida.
uerra civil de novo, pensou Alvito. Irmão contra irmão,
ntra filho, aldeia contra aldeia. Anjiro pronta para se rearmada com mosquetes roubados, assim cochichou Uo, o
or. E as outras notícias assustadoras: um Regimento de
etes secreto quase pronto! Uma unidade de cavalaria moem estilo europeu, com mais de dois mil mosquetes, adaptática de guerra japonesa. Oh, Nossa Senhora, proteja os
amaldiçoe aquele herege ...
ue lástima que Blackthorne tenha a mente deformada. Poser um valioso aliado. Eu nunca teria pensado nisso, mas
ade. É inacreditavelmente bem informado sobre as peculias do mar e do mundo. Bravo e astuto, honesto dentro da
esia, franco e sem malícias. Nunca precisa que lhe digam
a coisa duas vezes, sua memória é surpreendente. Ensinouito sobre o mundo. E sobre si mesmo. É errado isso? per-se Alvito tristemente enquanto se voltava para acenar a
o uma última vez. É errado aprender sobre o seu inimigo
I I
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o pequeno cortejo, alguns se ajoelhavam, muitos ficavam curiosos, muitos carrancudos. Mas todos, polidamente, saíam do caminho. Exceto qualquer samurai. Quando encontrava um samurai,
ainda que de importância ínfima, o Padre Alvito se movia para
a esquerda ou para a direita, e seus acólitos o acompanhavam.
Ele estava contente por deixar Mariko e Blackthorne, contente com o intervalo. Tinha despachos urgentes a enviar ao
padre-inspetor, que não pudera mandar porque os seus pomboscorreio tinham sido destruídos em Yokosé. Havia tantos problemas a resolver: Toranaga, Uo, o pescador, Mariko, e o pirata. E
José, que continuava a seguir-lhe os passos.
- O que ele está fazendo ali, Capitão Yoshinaka? - exclamara ele no primeiro dia, ao notar José entre os guardas, usando
um quimono militar e, desajeitadamente, espadas.
- O Senhor Toranaga ordenou-me que o levasse para Mishima, Tsukku-san. Lá devo entregá-lo ao Senhor Hiro-matsu. Oh,
sinto muito, a vista dele o ofende?
- Não... não - dissera ele, de modo não convincente.
- Ah, está olhando para as espadas dele? Não há razão
para se preocupar. São apenas punhos, não têm lâminas. Foram
ordens do Senhor Toranaga. Parece que o homem foi mandado
para a sua ordem tão jovem, que não está claro se ele deve ou
não usar espadas de verdade, por mais direito que tenha de usálas e por mais que as queira. Parece que ele se juntou à sua
ordem ainda criança, Tsukku-san. Ainda assim, naturalmente, não
podemos ter um samurai sem espadas, neh? Uraga-noh-Tadamasa
certamente é um samurai, embora tenha sido um padre bárbaro
durante vinte anos. Nosso amo prudentemente fez essa acomodação.
- O que vai acontecer a ele?
- Devo entregá-lo ao Senhor Hiro-matsu. Talvez ele seja
mandado de volta ao tio para ser julgado, talvez fique conosco.
Só obedeço a ordens, Tsukku-san.
O Padre Alvito fora falar com José, mas Yoshinaka o detivera
polidamente. - Sinto muito, mas o meu amo também ordenou
que ele fosse deixado sozinho. Longe de todo mundo. Particularmente de cristãos. Até que o Senhor Harima faça um julgamento,
disse o meu amo. Uraga-san é vassalo do Senhor Harima, neh?
O Senhor Harima também é cristão. Neh? O Senhor Toranaga diz
que um daimio cristão deve lidar com um renegado cristão. Afinal de contas, o Senhor Harima é tio dele e líder da casa, e foi
ele quem o colocou sob a sua custódia.
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Embora fosse proibido, Alvito tentara de novo, naquela noite,
conversar em particular com José, para lhe pedir que se retratasse
do seu sacrilégio e se ajoelhasse em penitência diante do padreinspetor, mas o jovem friamente se afastara, sem ouvir, e depois
daquilo José era sempre mandado bem à frente.
De algum modo, Santa Mãe de Deus, temos que trazê-lo de
volta à mercê de Deus, pensou Alvito angustiado. O que posso
fazer? Talvez o padre-inspetor saiba como lidar com José. Sim, e
saberá o que fazer quanto à inacreditável decisão de Toranaga de
se submeter, o que, nas reuniões secretas, eles haviam descartado
como uma impossibilidade. - Não, isso é totalmente contra o
caráter de Toranaga - dissera Dell'Aqua. - Ele irá à guerra.
Quando as chuvas cessarem, talvez antes, se conseguir que Zataki
se desdiga e traia Ishido. Minha previsão é que ele esperará tanto
quanto puder e tentará forçar Ishido a fazer o primeiro movimento - o seu jogo de espera habitual. Aconteça o que acontecer, se Kiyama e Onoshi apoiarem Ishido e Osaka, o Kwanto será
arrasado e Toranaga destruído.
- E Kiyama e Onoshi? Manterão a inimizade enterrada,
pelo bem comum?
- Sim. Estão totalmente convencidos de que uma vitória de
Toranaga seria o dobre de morte para a Santa Igreja. Agora que
Harima vai se pôr do lado de Ishido, receio que Toranaga seja
uma ilusão perdida.
Guerra civil de novo, pensou Alvito. Irmão contra irmão,
pai contra filho, aldeia contra aldeia. Anjiro pronta para se revoltar, armada com mosquetes roubados, assim cochichou Uo, o
pescador. E as outras notícias assustadoras: um Regimento de
Mosquetes secreto quase pronto! Uma unidade de cavalaria moderna, em estilo europeu, com mais de dois mil mosquetes, adaptado à tática de guerra japonesa. Oh, Nossa Senhora, proteja os
fiéis e amaldiçoe aquele herege ...
Que lástima que Blackthorne tenha a mente deformada. Poderia ser um valioso aliado. Eu nunca teria pensado nisso, mas
é verdade. É inacreditavelmente bem informado sobre as peculiaridades do mar e do mundo. Bravo e astuto, honesto dentro da
sua heresia, franco e sem malícias. Nunca precisa que lhe digam
alguma coisa duas vezes, sua memória é surpreendente. Ensinoume muito sobre o mundo. E sobre si mesmo. É errado isso? perguntou-se Alvito tristemente enquanto se voltava para acenar a
Mariko uma última vez. É errado aprender sobre o seu inimigo
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e, em troca, ensinar? Não. Errado é fazer vista grossa a um
pecado mortal.
Três dias após a partida de Yokosé, a observação do Irmão
Miguel o abalara.
- Acredita que são amantes?
- O que é Deus senão amor? Não é essa a palavra do
Senhor Jesus? - retrucara Miguel. - Só mencionei que os vi
se tocando com os olhos e isso foi muito bonito de ver. Quanto
ao corpo deles, não sei, padre, e na verdade não me importa.
Suas almas se tocam e eu pareço mais consciente de Deus por
causa disso.
- Você deve estar enganado. Ela nunca faria isso! É contra toda a sua formação, contra a sua lei e a lei de Deus. Ela é
uma cristã devota. Sabe que o adultério é um pecado hediondo.
- Sim, isso é o que ensinamos. Mas o casamento dela foi
xintoísta, não foi consagrado diante do Senhor nosso Deus. É
adultério ainda assim?
- Você também questiona a Palavra? Está contaminado pela
heresia de José?
- Não, padre, por favor, desculpe-me, a Palavra nunca.
Apenas o que o homem fez dela.
A partir dali ele os observara mais de perto. Evidentemente
o homem e a mulher gostavam grandemente um do outro. Por
que não gostariam? Nada de errado nisso! Constantemente juntos, cada um aprendendo com o outro, a mulher com ordem de
pôr de lado a própria religião, o homem sem nenhuma, ou somente uma pátina da heresia luterana, como Dell'Aqua disse que
era verdadeiro para todos os ingleses. Ambos pessoas fortes, vitais,
embora díspares.
À confissão ela não dissera nada. Ele não a pressionara. Os
olhos dela não lhe disseram nada e disseram tudo, mas não havia
nada de real para julgar. Ele podia ouvir a si mesmo explicando
a Dell'Aqua: "Miguel deve ter-se enganado, Eminência". "Mas
ela realmente cometeu adultério? Houve alguma prova?" "Nenhuma."
Alvito freou e se voltou momentaneamente. Viu-a em pé
sobre a leve elevação, o piloto conversando com Yoshinaka, a
velha madama e a prostituta pintada reclinadas no palanquim.
Estava atormentado pelo zelo fanático que sentia manar de dentro de si. Pela primeira vez ousou perguntar, ainda que a si
mesmo: você se prostituiu com o piloto, Mariko-san? O herege
danou a sua alma por toda a eternidade? Você, que foi escolhida
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em vida para ser uma freira e provavelmente a nossa primeira
abadessa nativa? Está vivendo em pecado hediondo, inconfesso,
profanada, ocultando o seu sacrilégio do seu confessor, e assim
conspurcada diante de Deus? Viu-a acenar. Desta vez ele não
retribuiu e deu as costas, cravou as esporas nos flancos do cavalo,
'e disparou.
Naquela noite o sono deles foi perturbado.
- O que é, meu amor?
- Nada, Mariko-chan. Durma de novo.
Mas ela não dormiu. Nem ele. Muito antes de ter que fazer
isso, ela deslizou de volta ao seu quarto, e ele se levantou e sentou no pátio, estudando no dicionário à luz de velas até o amanhecer. Quando o sol surgiu e o dia esquentou, suas preocupações
noturnas se dissiparam e eles continuaram a jornada pacificamente. Logo atingiram a grande via principal, a Tokaido, a leste de
Mishima, e os viajantes se tornaram mais numerosos. A grande
maioria estava, como sempre, a pé, os pertences às costas. Havia
alguns cavalos de carga na estrada e nenhuma carruagem.
- Oh, carruagem... uma coisa com rodas, neh? Não são
utilizadas no Japão, Anjin-san. Nossas estradas são íngremes demais e sempre entrecortadas por rios e riachos. As rodas também
estragariam a superfície das estradas, por isso são proibidas para
todo mundo, exceto o imperador, e ele viaja apenas algumas ris
cerimoniais em Kyoto, sobre uma estrada especial. Não necessitamos de rodas. Como se pode atravessar um rio ou um riacho
com veículos? - e há muitos, muitíssimos a vadear. Há, talvez,
sessenta riachos para cruzar entre este ponto e Yedo, Anjin-san.
Quantos já tivemos que atravessar? Dúzias, neh? Não, todos nós
andamos ou cavalgamos. Claro que cavalos e palanquins, particularmente, são permitidos apenas para pessoas importantes, daimios e samurais, e ainda assim nem para todos os samurais.
- O quê? Mesmo se se tem dinheiro não se pode alugar um?
- Não, a menos que se seja da classe correta, Anjin-san.
Isso é muito sábio, não acha? Os médicos e os muito velhos
podem viajar a cavalo ou de palanquim, ou os muito doentes, se
tiverem permissão escrita concedida pelo seu suserano. Palanquins
ou cavalos não seriam certos para camponeses e plebeus, Anjinsan. Isso poderia ensinar-lhes hábitos preguiçosos, neh? É muito
mais saudável, para eles, caminhar.
- Além disso, conserva-os no seu lugar. Neh?
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- Oh, sim. Mas isso tudo contribui para a paz, a ordem e
a wa. Apenas mercadores têm dinheiro para desperdiçar, e o que
são eles senão parasitas que não criam nada, não cultivam nada,
não fazem nada senão se nutrir do trabalho alheio? Definitivamente eles todos devem caminhar, neh? Nisso somos muito sábios.
- Nunca tinha visto tanta gente em movimento - disse
Blackthorne.
- Oh, isso não é nada. Espere até que cheguemos perto de
Yedo. Adoramos viajar, Anjin-san, mas raramente sozinhos. Gostamos de viajar em grupos.
Mas as multidões não lhes impediam o avanço. O emblema
de Toranaga que seus estandartes exibiam, a posição pessoal de
Toda Mariko, e a brusca eficiência de Akira Yoshinaka e os
batedores que mandara à frente para anunciar quem os seguia,
garantiam os melhores aposentos particulares a cada noite, em
cada hospedaria, e uma passagem ininterrupta. Todos os outros
viajantes e samurais rapidamente se punham de lado e se curvavam profundamente, esperando até que tivessem passado.
- Eles todos têm que parar e se ajoelhar assim para todo
mundo?
- Oh, não, Anjin-san. Apenas para daimios e pessoas importantes. E para a maioria dos samurais... sim, isso seria uma
prática muito sábia para qualquer plebeu. É polido agir assim,
Anjin-san, e necessário, neh? A menos que as pessoas comuns
respeitem os samurais e a si mesmas, como pode a lei ser preservada e o reino ser governado? Depois, vale o mesmo para todos.
Nós paramos e nos curvamos e cedemos passagem ao mensageiro
imperial, não? Todo mundo deve ser polido, neh? Daimios menos
importantes têm que desmontar e se curvar para daimios mais importantes. O ritual governa a nossa vida, mas o reino é obediente.
- Digamos que dois daimios iguais se encontrem?
Então ambos desmontariam e se curvariam igualmente,
e seguiriam seus caminhos.
- Digamos que o Senhor Toranaga e o General Ishido se
encontrassem?
Mariko passou delicadamente para o latim. - Quem são eles,
Anjin-san? Esses nomes eu não conheço, não entre mim e você.
- Tem razão. Por favor, desculpe-me.
- Ouça, meu amor, vamos fazer a promessa de que, se
Nossa Senhora nos sorrir e escaparmos de Mishima, apenas em
Yedo, na Primeira Ponte, apenas quando formos completamente
obrigados a isso, deixaremos o nosso mundo particular. Por favor?
828
- Que perigo especial existe em Mishima?
- Lá o nosso capitão deve apresentar um relatório ao Senhor Hiro-matsu. Lá eu devo vê-lo, também. Ele é um homem
sábio, muito vigilante. Seria fácil nós nos trairmos.
- Temos sido cautelosos. Vamos pedir a Deus que os seus
temores sejam infundados.
- Por mim mesma não me preocupo, apenas por você.
- E eu por você.
- Então prometemos, um ao outro, continuar dentro do
nosso mundo particular?
- Sim. Vamos fingir que é o mundo real... o nosso próprio mundo.
- Lá está Mishima, Anjin-san. - Mariko apontou para o
outro lado do último riacho.
A espraiada cidade-castelo que abrigava perto de sessenta
mil pessoas estava em grande parte obscurecida pela neblina baixa
da manhã. Apenas o topo de algumas casas e o castelo de pedra
eram distinguíveis. Além havia montanhas que desciam para o
mar ocidental. Longe, a noroeste, estava a glória do monte Fuji.
A norte e a leste, a cordilheira invadia o céu. - E agora?
- Agora Yoshinaka foi tentar encontrar a hospedaria mais
habitável dentro de dez ris. Ficaremos lá dois dias. Levarei no
mínimo isso para concluir o meu negócio. Gyoko e Kiku-san nos
deixarão depois.
- E depois?
- Depois continuamos. O que o seu sentido de tempo lhe
diz sobre Mishima?
- Que é amistosa e segura replicou ele. - Depois de
Mishima, será o quê?
Ela apontou para nordeste, não convencida. - Então iremos
naquela direção. Há um caminho que vai caracolando através das
montanhas até Hakoné. É a parte mais exaustiva de toda a estrada Tokaido. Depois a estrada desce até a cidade de Odawara,
que é muito maior do que Mishima, Anjin-san. Fica no litoral.
De lá até Yedo é só uma questão de tempo.
- Quanto tempo?
- Não o bastante.
- Está errada, meu amor, sinto muito - disse ele. - Há
todo o tempo do mundo.
829
CAPÍTULO 46
O General Toda Hiro-matsu aceitou o despacho particular
que Mariko lhe estendeu. Quebrou os selos de Toranaga. O pergaminho relatava brevemente o que acontecera em Yokosé, confirmava a decisão de Toranaga de se submeter, ordenava a Hiromatsu que defendesse a fronteira e as passagens para o Kwanto
contra qualquer intruso até que ele chegasse (mas para despachar
qualquer mensageiro de Ishido ou proveniente de leste), e continha instruções sobre o cristão renegado e sobre o Anjin-san.
Com ar cansado o velho soldado leu a mensagem uma segunda
vez. - Agora conte-me tudo que viu em Yokosé, ou ouviu, que
se relacione ao Senhor Toranaga.
Mariko obedeceu.
- Agora conte-me o que você pensa que aconteceu.
Novamente ela obedeceu.
- O que ocorreu na cha-no-yu entre você e meu filho?
Ela lhe contou tudo exatamente como acontecera.
- Meu filho disse que o nosso amo perderia? Antes do
segundo encontro com o Senhor Zataki?
- Sim, senhor.
- Tem certeza?
- Oh, sim, senhor.
Houve um longo silêncio na sala que ficava bem alta no
torreão do castelo, que dominava a cidade. Hiro-mátsu pôs-se de
pé e dirigiu-se para a seteira na espessa parede de pedra, as costas e os joelhos doendo, a espada frouxa nas mãos. - Não
entendo.
- Senhor?
- Nem a meu filho, nem a nosso amo. Podemos esmagar
quaisquer exércitos que Ishido lance em campo. E quanto à decisão de se submeter...
Ela brincou com o leque, observando o céu noturno, estrelado e agradável.
Hiro-matsu estudou-a. - Você está com ótima aparência,
Mariko-san, mais jovem do que nunca. Qual é o seu segredo?
- Não tenho segredo algum, senhor - respondeu ela, sua
garganta repentinamente seca. Pensou que sua fala se fragmentaria, mas o momento passou e o velho desviou novamente os
olhos astutos para a cidade lá embaixo.
- Agora conte-me o que aconteceu desde que você saiu de
830
Osaka. Tudo o que você viu, ouviu, ou de que participou -
disse ele.
A noite ia alta quando ela concluiu. Relatou tudo claramente, exceto a extensão da sua intimidade com o Anjin-san. Mesmo
nisso foi cuidadosa em não ocultar a estima que sentia por ele,
o respeito pela sua inteligência e bravura. Ou a admiração de
Toranaga pelo seu valor.
Por algum tempo Hiro-matsu continuou a andar de um lado
para o outro, o movimento abrandando-lhe a dor. Tudo se encaixava com o relatório de Yoshinaka e o de Omi - até a tirada
de Zataki antes de esse daimio abalar para Shinano. Agora ele
compreendia muitas coisas que não estavam claras, e tinha informação suficiente para tomar uma decisão calculada. Parte do que
ela relatou desgostou-o. Parte fê-lo odiar ainda mais o filho; conseguia entender-lhe os motivos, mas isso não fazia diferença. O
resto do que ela disse forçou-o a ressentir-se com o bárbaro e
algumas vezes a admirá-lo. - Você o viu puxar o nosso senhor
para a segurança?
- Sim. O Senhor Toranaga estaria morto agora, senhor,
não fosse ele. Tenho absoluta certeza. Ele salvou o nosso amo
três vezes: escapando do Castelo de Osaka, a bordo da galera, na
enseada de Osaka, e absolutamente no terremoto. Vi as espadas
que Omi-san tirou da escavação. Estavam retorcidas como massa
1 de talharim e inutilizadas.
- Acha que o Anjin-san realmente pretendia cometer
seppuku?
- Sim. Pelo Senhor Deus dos cristãos, acredito que ele
assumiu esse compromisso. Apenas Omi-san o impediu. E, senhor,
acredito totalmente que ele seja digno de ser samurai, digno de
ser hatamoto.
- Não pedi essa opinião.
- Por favor, desculpe-me, senhor, na verdade não pediu.
Mas o senhor estava com a pergunta na ponta da língua.
- Tornou-se leitora de pensamento, assim como treinadora
de bárbaro?
- Oh, não, por favor, desculpe-me, senhor, claro que não
- disse ela, na sua voz mais delicada. - Meramente respondi
ao líder do meu clã com o melhor da minha paupérrima habilidade. Os interesses do nosso amo estão em primeiro lugar na minha cabeça. Os seus vêm em segundo apenas em relação aos dele.
- Vêm?
831
-834
Não há necessidade de fazer isso, disse Hiro-matsu para a
noite, ainda enraivecido. Não há necessidade de fazer isso enquanto eu estiver vivo, nem de se submeter humilhado. Sou general-chefe. É meu dever proteger a honra e a casa do meu amo,
até dele mesmo. Portanto agora decido eu:
Ouça, senhor, por favor, desculpe-me, mas desta vez desobedeço. Com orgulho. Desta vez eu o traio. Agora vou cooptar
o seu filho e herdeiro, o Senhor Sudara, e a esposa dele, a Senhora Genjiko, e juntos ordenaremos Céu Carmesim quando as
chuvas cessarem, e então a guerra começará. E até que morra o
último homem no Kwanto, enfrentando o inimigo, vou mantê-lo
em segurança no castelo de Yedo, diga o senhor o que disser,
custe o que custar.
Gyoko estava encantada de estar novamente em casa, em
Mishima, entre as suas garotas e os razões e contas de transporte,
seus débitos a receber, hipotecas e notas promissórias.
- Agiu muito bem - disse ao seu contador-chefe.
O mirrado homenzinho balbuciou um agradecimento e se
afastou coxeando. Ele se voltou com violência para o cozinheirochefe. - Treze chogins de prata, duzentos morones de cobre pela
comida de uma semana?
- Oh, por favor, desculpe-me, ama, mas os rumores de
guerra fizeram os preços ir voando para o céu - disse o homem
gordo truculentamente. - Tudo. Peixe, arroz e verduras - até
o molho de soja dobrou de preço do mês passado para cá, e o
saquê é pior. Trabalhar, trabalhar, trabalhar, naquela cozinha
quente, sem ar, que com certeza precisa ser melhorada. Caro!
Ah! Em uma semana servi cento e setenta e dois convidados, alimentei dez cortesãs, onze famintas aprendizes de cortesã, quatro
cozinheiros, dezesseis criadas, e catorze criados. Por favor, desculpe-me, ama, sinto muito, mas a minha avó está muito doente,
por isso preciso pedir dez dias de folga para...
Gyoko arrancou os cabelos só o suficiente para ser enfática,
mas não o suficiente para prejudicar a própria aparência, e dispensou-o dizendo que estava arruinada, arruinada, que teria que
fechar a mais famosa casa de chá de Mishima sem um cozinheirochefe tão perfeito e que seria tudo por culpa dele - culpa dele
que ela tivesse que atirar na neve todas as suas devotadas garotas,
o fiéis mas infelizes auxiliares. - Não se esqueça de que o inyerno se aproxima - lamuriou-se ela a título de salva de despedida.
Depois, contente, sozinha, calculou lucros e perdas, e os
lucros foram o dobro do que ela esperava. O saquê que tomou
teve um gosto melhor do que nunca, e se o preço dos alimentos
estava subindo, o mesmo acontecia com o custo do saquê. Imediatamente escreveu ao filho em Odawara, onde se localizava a
fábrica de saquê deles, dizendo-lhe que dobrasse a produção.
Depois deu ouvidos às inevitáveis brigas de criadas, despediu três,
contratou mais quatro, mandou chamar a agente de cortesãs, e fez
generosas ofertas pelos contratos de sete cortesãs que admirava.
- E quando gostaria de que as honradas damas chegassem,
Gyoko-san? - sorriu a velha, de modo afetado, a sua própria
comissão considerável.
- Imediatamente. Imediatamente. Vamos, mexa-se.
Depois convocou o carpinteiro e fez planos para a ampliação
da casa de chá, para os quartos extras para as damas extras.
- Finalmente o lugar na Sexta Rua está à venda, ama. Quer
que eu feche negócio agora?
Por meses ela esperara pela locação daquela esquina em particular. Mas agora meneou a cabeça e mandou-o embora com
instruções para optar pela compra de quatro hectares de terreno
em estado natural na colina, ao norte da cidade. - Mas não faça
tudo sozinho. Use intermediários. Não seja ganancioso. E não
quero que corra por aí que estou comprando para mim.
- Mas quatro hectares? Isso é.. .
- No mínimo quatro, talvez cinco, nos próximos cinco
meses. Mas apenas opções, compreendeu? Devem todos ser colocados em nome destas pessoas.
Estendeu a lista de prepostos seguros e o tocou para fora,
vendo mentalmente a cidade murada dentro de uma cidade já
florescendo. Riu consigo mesma, de alegria.
Em seguida cada cortesã foi chamada e a cada uma Gyokosan repreendeu, elogiou, tratou aos berros ou juntou-se no
choro. Algumas foram promovidas, algumas rebaixadas, os preços de "travesseiro" aumentados ou diminuídos. Depois, no meio
de tudo, Omi foi anunciado.
-- Sinto muito, mas Kiku-san não está bem - dissê-lhe ela.
- Nada sério! Apenas a mudança de clima, pobre criança.
- Insisto em vê-Ia.
- Sinto muito, Omi-san, mas certamente o senhor não insiste. Kiku-san pertence ao nosso suserano, neh?
835
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- Sei a quem ela pertence - gritou Omi. - Quer formai para o chá, no dia seguinte, às oito
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sinto muito, ela não está bem. Esta noite... ou talvez m a Perfume, pó maquilagem e pentea
de... ou amanhã... o que posso fazer, Omi-san? Se el gado de seda leve. Em seguida, no momento filho perfeito, seu
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bem o bastante, talvez eu pudesse mandar-lhe um recado o chegou. Tinha dezoito anos, um estudante, senhor me dissesse onde está hospedado... ai empobrecido. Chamava-se Inarì.
Ele disse, sabendo que não havia o que pudesse f Oh, como você é adorável ... corri para
abalou furioso, querendo estraçalhar Mishima inteira. ema chegou - disse ele sem fôlego. - Fez uma viagem
Gyoko pensou em Omi. Depois mandou chamar Kiku vel. Estou tão feliz em dar-lhe as boas-vindas! Obrigado,
tou-lhe o programa que arranjara para as suas duas noit do pelos presentes ... a espada é perfeita, e o quimono!
Mishima. - Talvez possamos p
persuadir a nossa Senhora mo a senhora é boa ara mim.
protelar quatro ou cinco noites, criança. Conheço meia du
pessoas aqui que pagariam um resgate de pai para que v da dignidade entretivesse em festas particulares. Ah! Agora que o grand
mio a comprou, ninguém pode tocá-la, nunca mais, então Translúcido não tem a compleição do do Anjin-san, mas o
pode cantar, dançar e fazer mímica e será a nossa pri e falta em tamanho você certamente compensa com um
gueixa! cataclísmico.
- E o pobre Omi-san, ama? Nunca o ouvi tão mal- Por que ri? - perguntou ele, sonolento.
rado antes, sinto muito que tenha gritado com a senhora. Porque você me faz feliz - suspirou ela, encantada por
- Ah! O que é um grito ou dois quando finalmente o a grande fortuna de ter sido educada. Tagarelou com facimos com daimios e os mais ricos do rico arroz e corretor , elogiou-o com extravagância e afagou-o até que pegasse
seda. Esta noite direi a Omi-san onde você estará na últim no, suas mãos e sua voz realizando tudo o que era necesem que cantar, mas direi cedo demais, assim ele terá que es por volição própria advinda do longo hábito. Tinha a mente
Arranjarei um aposento por perto. Enquanto isso ele terá longe. Pensava em Mariko e no seu amante, repensando as
saque... e Akiko para servi-lo. Não vai fazer mal algum c a luas. Até onde ousaria pressionar Mariko. Ou a quem
uma ou duas canções tristes para ele depois - ainda não t a entregá-los, ou ameaçá-la com essa possível entrega, sucerteza sobre Toranaga-sama, neh? Não recebemos um pagante e claro: Toranaga, Buntaro ou quem? padre cristão.
to à vista, e ainda há um saldo a receber ria algum lucro nisso. Ou o Senhor Kiyama a - certamente
- Por favor, desculpe-me, mas Choko não seria uma uer escândalo envolvendo a grande Senhora Toda com o
teia de que ele a apreciaria mais. iyama. Essa ameaça a tornaria flexível à minha vontade?
- Sim, criança. Mas Akiko é forte e muito experi ao devo fazer nada - há mais lucro nisso, de algum modo?
Quando esse tipo de loucura se apossa dos homens, eles te Coitada de Mariko. Uma senhora tão adorável! A oo Caramba,
a ser rudes. Mais do que você imaginaria. Até Omi-san. e a daria uma cortesã sensacional! Coitado do npn-san
quero Choko ferida. Akiko gosta do perigo e precisa de um p
de violência para ter um bom desempenho. Ela saberá ti ambém.
ferrão da Bela Barra dele. Apresse-se agora, seu quimono Como posso usar destruidos?
bonito e os melhores perfumes... que deixe de ser segredo e os dois suam Gyoko expulsou Kiku delicadamente e mais uma vez s Seja cuidadosa Gyoko repreendeu-se ela. Não resta muito
sou à administração de sua casa. Depois, tudo feito - a
Mama-sans
fluentes de Mishima, a fim de discutirem um assunto de
prazer num banho assim que o
~
~m, sou, disse ela a si mesma, embora o negasse resolutaentretivesse Logo estava deitada ao lado
suada por e
causa
langorosa. Ah, I nari , pensou
ela inebriada, o seu
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melhor esse segredo, mais lucrativamente
o para resolver sobre isso, ou sobre os outros segredos: sobre
.
lha melhor? E mais bonita, mais jovem e mais meiga. Tenhro arruinaria a chance do filho dela de se casar com a neta
.
,
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837
- Sei a quem ela pertence - gritou Omi. - Quero vê-Ia,
isso é tudo.
- Oh, sinto muito, claro, o senhor tem todo o direito de
gritar e blasfemar, sinto muito, por favor, desculpe-me. Mas,
sinto muito, ela não está bem. Esta noite... ou talvez mais tarde... ou amanhã... o que posso fazer, Omi-san? Se ela ficar
bem o bastante, talvez eu pudesse mandar-lhe um recado, se o
senhor me dissesse onde está hospedado ...
Ele disse, sabendo que não havia o que pudesse fazer, e
abalou furioso, querendo estraçalhar Mishima inteira.
Gyoko pensou em Omi. Depois mandou chamar Kiku e contou-lhe o programa que arranjara para as suas duas noites em
Mishima. - Talvez possamos persuadir a nossa Senhora Toda a
protelar quatro ou cinco noites, criança. Conheço meia dúzia de
pessoas aqui que pagariam um resgate de pai para que você as
entretivesse em festas particulares. Ah! Agora que o grande daimio a comprou, ninguém pode tocá-la, nunca mais, então você
pode cantar, dançar e fazer mímica e será a nossa primeira
gueixa!
- E o pobre Omi-san, ama? Nunca o ouvi tão mal-humorado antes, sinto muito que tenha gritado com a senhora.
- Ah! O que é um grito ou dois quando finalmente privamos com daimios e os mais ricos do rico arroz e corretores de
seda. Esta noite direi a Omi-san onde você estará na última vez
em que cantar, mas direi cedo demais, assim ele terá que esperar.
Arranjarei um aposento por perto. Enquanto isso ele terá muito
saque... e Akiko para servi-lo. Não vai fazer mal algum cantar
uma ou duas canções tristes para ele depois - ainda não temos
certeza sobre Toranaga-sama, neh? Não recebemos um pagamento à vista, e ainda há um saldo a receber.
- Por favor, desculpe-me, mas Choko não seria uma escolha melhor? É mais bonita, mais jovem e mais meiga. Tenho certeza de que ele a apreciaria mais.
- Sim, criança. Mas Akiko é forte e muito experiente.
Quando esse tipo de loucura se apossa dos homens, eles tendem
a ser rudes. Mais do que você imaginaria. Até Omi-san. Não
quero Choko ferida. Akiko gosta do perigo e precisa de um pouco
de violência para ter um bom desempenho. Ela saberá tirar o
ferrão da Bela Barra dele. Apresse-se agora, seu quimono mais
bonito e os melhores perfumes.. .
Gyoko expulsou Kiku delicadamente e mais uma vez se atirou à administração de sua casa. Depois, tudo feito - até o
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convite formal para o chá, no dia seguinte, às oito Mama-sans
mais influentes de Mishima, a fim de discutirem um assunto de
grande importância -, ela mergulhou com prazer num banho
perfeito. Ahhhhhhh! No momento perfeito, uma massagem
perfeita. Perfume, pó, maquilagem e penteado. Agora um quimono folgado de seda leve. Em seguida, no momento perfeito, seu
favorito chegou. Tinha dezoito anos, um estudante, filho de um
samurai empobrecido. Chamava-se Inari.
- Oh, como você é adorável... corri para cá assim que o
seu poema chegou - disse ele sem fôlego. - Fez uma viagem
agradável? Estou tão feliz em dar-lhe as boas-vindas! Obrigado,
obrigado pelos presentes... a espada é perfeita, e o quimono!
Oh, como a senhora é boa para mim!
Sim, sou, disse ela a si mesma, embora o negasse resolutamente por causa da dignidade dele. Logo estava deitada ao lado
dele, suada e langorosa. Ah, Inari, pensou ela inebriada, o seu
Pilão Translúcido não tem a compleição do do Anjin-san, mas o
que lhe falta em tamanho você certamente compensa com um
vigor cataclísmico.
- Por que ri? - perguntou ele, sonolento.
- Porque você me faz feliz - suspirou ela, encantada por
ter tido a grande fortuna de ter sido educada. Tagarelou com facilidade, elogiou-o com extravagância e afagou-o até que pegasse
no sono, suas mãos e sua voz realizando tudo o que era necessário por volição própria, advinda do longo hábito. Tinha a mente
bem longe. Pensava em Mariko e no seu amante, repensando as
alternativas. Até onde ousaria pressionar Mariko? Ou a quem
deveria entregá-los, ou ameaçá-la com essa possível entrega, sutilmente é claro: Toranaga, Buntaro ou quem? O padre cristão?
Haveria algum lucro nisso? Ou o Senhor Kiyama - certamente
qualquer escândalo envolvendo a grande Senhora Toda com o
bárbaro arruinaria a chance do filho dela de se casar com a neta
de Kiyama. Essa ameaça a tornaria flexível à minha vontade?
Ou não devo fazer nada - há mais lucro nisso, de algum modo?
Coitada de Mariko. Uma senhora tão adorável! Caramba,
mas ela daria uma cortesã sensacional! Coitado do Anjin-san.
Caramba, mas ele é esperto - eu poderia fazer uma fortuna com
ele também.
Como posso usar melhor esse segredo, mais lucrativamente,
antes que deixe de ser segredo e os dois sejam destruídos?
Seja cuidadosa, Gyoko, repreendeu-se ela. Não resta muito
tempo para resolver sobre isso, ou sobre os outros segredos: sobre
837
os mosquetes e armas escondidos pelos camponeses em Anjiro,
por exemplo, ou sobre o novo Regimento de Mosquetes - seus
efetivos, oficiais, organização e quantidade de armas. Ou sobre
Toranaga, que na última noite em Yokosé "travesseirou" com
Kiku alegremente, usando um ritmo clássico de "seis rasos e
cinco fundos" com o vigor de um homem de trinta anos, e depois
dormiu como um bebê até o amanhecer. Esse não é o padrão de
um homem perturbado por preocupações, neh?
o quanto à agonia do padre tonsurado, virgem, que, nu e
de joelhos, primeiro rezou ao seu intolerante Deus cristão, implorando perdão pelo pecado que estava prestes a cometer com a
garota, e o outro pecado, um pecado de verdade, que ele cometera em Osaka - estranhas coisas secretas do "confessionário",
que lhe foram sussurradas por um leproso, depois traiçoeiramente
passadas por ele ao Senhor Harima. O que Toranaga faria com
isso? Interminavelmente pondo para fora o que fora sussurrado,
passado adiante, e depois a oração com os olhos bem fechados
- antes que o pobre imbecil se esparramasse em cima da garota
sem habilidade alguma e, depois, saísse correndo como uma abominável criatura da noite. Tanto ódio, sofrimento e vergonha
entrelaçados.
o quanto ao segundo cozinheiro de Omi, o qual cochichara
a uma criada a qual cochichara ao amante o qual cochichara a
Akiko que tinha ouvido às ocultas Omi e a mãe tramando a morte
de Kasigi Yabu, seu suserano? Ah! Se isso viesse a público, seria
como lançar um gato entre todos os pombos Kasigi! Assim como
o oferecimento secreto de Omi e Yabu a Zataki, se soprado aos
ouvidos de Toranaga - ou as palavras que Zataki resmungou
no sono que a sua parceira de "travesseiro" memorizou e me vendeu no dia seguinte por um chogin de prata inteiro, palavras que
sugeriam que o General Ishido e a Senhora Ochiba comem juntos, dormem juntos, e que o próprio Zataki ouvira-os grunhindo
e gemendo e gritando enquanto Yang atravessava Yin. Gyoko
sorriu consigo mesma, satisfeita. Chocante, neh, pessoas em posições tão elevadas!
o o outro fato estranho de que, no momento das Nuvens e
Chuva, e alguns momentos antes, o Senhor Zataki inconscientemente chamara a parceira de "Ochiba". Curioso, neh?
Será que o oh-tão-necessário-de-ambos-os-lados Zataki mudaria a canção se Toranaga lhe oferecesse Ochiba como isca?
Gyoko casquinou consigo mesma, animada com todos os adoráveis segredos, todos muito valiosos nos ouvidos certos, que homens
838
haviam derramado junto com o Sumo do Prazer. - Ele mudaria
- murmurou confiante. - Oh, sim.
O quê?
- Nada, nada, Inari-chan. Dormiu bem?
- O quê?
Ela sorriu e deixou-o mergulhar no sono de novo. Depois,
quando ele estava pronto, tocou-o com a mão e os lábios para o
prazer dele. E para o seu.
- Onde está o Inglês agora, padre?
- Não sei exatamente, Rodrigues. Ainda. Deve estar numa
das hospedarias ao sul de Mishima. Deixei um criado para descobrir qual. - Alvito juntou o resto do molho com uma casca de
pão fresco.
- Quando saberá?
- Amanhã, sem falta.
- Que va, eu gostaria de vê-lo de novo. Ele está bem? -
perguntou Rodrigues.
- Sim. - O sino do navio soou seis vezes. Três da tarde.
- Ele contou ao senhor o que lhe aconteceu desde que
partiu de Osaka?
- Sei de alguns trechos. Por ele e por outros. É uma longa
história e há muito a contar. Primeiro lidarei com os meus despachos, depois conversaremos.
Rodrigues encostou-se na cadeira, na pequena cabina de
popa. - Bom. Isso seria muito bom. - Viu os traços agudos
do jesuíta, os penetrantes olhos castanhos salpicados de amarelo.
Olhos de gato. - Ouça, padre - disse ele -, o Inglês salvou
o meu navio e a minha vida. Claro que é inimigo, claro que é
herege, mas é um piloto, um dos melhores que já existiram. Não
é errado respeitar um inimigo, ou mesmo gostar dele.
- Jesus perdoou a seus inimigos, mas eles ainda o crucificaram. - Calmamente Alvito retribuiu o olhar fixo do piloto.
- Mas eu também gosto dele. Pelo menos, compreendo-o melhor.
Vamos deixá-lo por enquanto.
Rodrigues assentiu, concordando. Notou que o prato do
padre estava vazio, então esticou-se por sobre a mesa e colocoulhe a travessa mais perto. - Pronto, padre, coma mais um
pouco de frango. Pão?
- Obrigado. Sim, comerei. Não tinha percebido como estava faminto. - O padre agradecidamente arrancou outra perna,
839
egou mais salva, cebola e pão, depois cobriu tudo com o fim
o espesso molho.
- Vinho?
- Sim, obrigado.
- Onde está o resto da sua gente, padre?
- Deixei-os numa hospedaria perto do ancoradouro.
Rodrigues olhou pelas vigias que davam para Nimazu, os
ancoradouros e o porto, bem a estibordo, a embocadura do Kano,
onde a água era mais escura do que o resto do mar. Muitos barcos de pesca iam e vinham. - Esse criado que deixou lá, padre... pode confiar nele? Tem certeza de que os encontrará?
- Oh, sim. Eles certamente não vão sair de lá por dois dias
no mínimo. - Alvito já decidira não mencionar o que ele, ou
mais corretamente, lembrou-se, o que o Irmão Miguel suspeitava,
por isso apenas acrescentou: - Não se esqueça de que eles estão
viajando formalmente. Com a posição de Toda Mariko e as bandeiras de Toranaga, viajam com toda a formalidade. Todo mundo, em quatro léguas, saberia sobre eles e onde estão hospedados.
Rodrigues riu. - O Inglês viajando formalmente? Quem
teria acreditado nisso? Como um daimio sifilítico?
- Isso não é nem a metade, piloto. Toranaga tornou-o samurai e hatamoto.
- O quê?
- Agora o Piloto-Mor Blackthorne usa as duas espadas.
Com as pistolas. E é confidente de Toranaga, em certa medida,
e seu protegido.
- O Inglês?
- Sim. - Alvito deixou o silêncio pairar na cabina e voltou
a comer.
- Sabe o porquê disso? - perguntou Rodrigues.
- Sim, em parte. Tudo a seu tempo, piloto.
- Conte-me apenas o porquê. Rapidamente. Os detalhes
mais tarde, por favor.
- O Anjin-san salvou a vida de Toranaga pela terceira vez.
Duas durante a fuga de Osaka, a última em Izu, durante um terremoto. - Alvito atacou vigorosamente a carne da coxa. Um filete
de sumo correu-lhe pela barba negra.
Rodrigues esperou, mas o padre não disse mais nada. Pensativamente seus olhos caíram no cálice que segurava entre as mãos.
A superfície do vinho vermelho-escuro refletiu a luz. Após uma
longa pausa, disse: - Não seria bom para nós aquele Inglês
incrível perto de Toranaga. Não em absoluto. Não ele. Hein?
840
- Concordo.
- Ainda assim, gostaria de vê-lo. - O padre não disse nada.
Rodrigues deixou-o limpar o prato em silêncio, depois ofereceu
mais, agora já não sentindo alegria alguma. O resto da carcaça e
a última asa foram aceitos, e outro cálice de vinho. Depois, para
terminar, um pouco de excelente conhaque francês, que o padre
pegou num armário.
- Rodrigues, gostaria de tomar um copo?
- Obrigado. - O marujo observou Alvito verter o líquido
amarronzado no copo de cristal. Todo o vinho e o conhaque tinham vindo do estoque particular do padre-inspetor, como um
presente de despedida ao seu amigo jesuíta.
- Naturalmente, Rodrigues, você ficará à vontade para
compartilhá-lo com o padre - dissera Dell'Aqua. - Vá com
Deus, que ele vele por você e o leve com segurança a bom porto
e para casa de novo.
- Obrigado, Eminência.
Sim, obrigado, Eminência, mas nada de malditos agradecimentos, disse-se Rodrigues causticamente, nada de agradecimentos
por conseguir que o meu capitão-mor me mandasse vir para bordo
deste barco de porcos sob o comando deste jesuíta e longe dos
braços da minha Gracia, pobre querida. Nossa Senhora, a vida é
tão curta, curta demais e traiçoeira demais para. desperdiçá-la
sendo acompanhante de padres fedorentos, até de Alvito, que é
mais homem do que qualquer outro e, por causa disso, mais perigoso. Nossa Senhora, ajude-me!
- Oh! Você já vai, Rod-san? Vai tão cedo? Oh, que pena.. .
- Volto logo, minha querida.
- Oh, que pena... sentimos falta, o pequenino e eu.
Por um momento ele considerara a possibilidade de levá-la
para bordo do Santa Filipa, mas imediatamente pusera de lado o
pensamento, sabendo que seria perigoso para ela, para ele e para
o navio. - Sinto muito, volto logo.
- Nós esperamos, Rod-san. Por favor, desculpe minha tristeza, sinto muito.
Sempre o português hesitante e com sotaque pesado que ela
tentava tão arduamente falar, insistindo em ser chamada pelo
nome de batismo, Gracia, e não por Nyan-nyan, de som tão
agradável, que significava Gatinho e lhe assentava tão bem e de
que ele gostava mais ainda.
Ele zarpara de Nagasaki, detestando partir, amaldiçoando todos os padres e capitães-mor, querendo que o verão terminasse
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e o outono chegasse, de modo que ele pudesse levantar ferros
com o Navio Negro, os porões carregados, rumar para casa finalmente, rico e independente. Mas depois o quê? A perpétua pergunta o assoberbava. E ela - e a criança? Nossa Senhora,.ajudeme a responder isso com paz.
- Uma excelente refeição, Rodrigues - disse Alvito, brincando com uma migalha de pão na toalha. - Obrigado.
- Bom. - Rodrigues estava sério agora. - Qual é o seu
plano, padre? Devemos... - Ele parou no meio da frase e olhou
para fora. Depois, descontente, levantou-se da mesa, coxeou doloridamente até uma vigia do lado da terra e perscrutou o exterior.
- O que é, Rodrigues?
- Pensei ter sentido a maré mudar. Só quis verificar o nosso
espaço de manobras. - Abriu mais a vigia e se inclinou para fora,
mas ainda não conseguiu ver a âncora de proa. - Com licença
um instante, padre.
Subiu ao convés. A água lambia a corrente da âncora que
mergulhava angulosa na água lamacenta. Nenhum movimento.
Então apareceu um fio de esteira e o navio começou a se mover
em segurança, para tomar sua nova posição com a maré vazante.
Ele examinou a posição, depois as vigias. Estava tudo perfeito,
nenhum outro navio por perto. A tarde estava excelente, a neblina
dissipada há muito tempo. Estavam a uma amarra mais ou menos
da praia, afastados o suficiente para impedir uma abordagem súbita, e bem longe das rotas que levavam aos atracadouros.
O navio era uma lorcha, um casco japonês adaptado às velas
e cordame portugueses modernos: veloz, de dois mastros, e equipado como uma corveta. Tinha quatro canhões a meia-nau, dois
pequenos morteiros de proa e dois de popa. Chamava-se Santa
Filipa e carregava uma tripulação de trinta marujos.
Seus olhos foram para a cidade e para as colinas além. -
Pesaro!
- Sim, senhor?
- Prepare a chalupa. Vamos a terra antes do crepúsculo.
- Bom. Estará pronto. Quando volta?
- Ao amanhecer.
- Melhor ainda! Comandarei o grupo de desembarque -
dez homens.
- Nada disso, Pesaro. É kinjiru! Minha Nossa Senhora, o
seu cérebro está podre? - Rodrigues se escarranchou no tombadilho e se inclinou sobre a amurada.
- Não está certo que todos devam sofrer - disse o con842
tramestre, Pesaro. - Comandarei o grupo e prometo que não
haverá problema. Estamos engaiolados há duas semanas já.
- As autoridades do porto daqui disseram kinjiru, sinto
muito, mas sempre é o maldito kinjiru! Lembra? Isto não é Nagasaki!
- Sim, pelo sangue de Jesus Cristo, e que ele tenha piedade!
- O homem atarracado carregou o sobrolho. - Foi só um
japona que foi retalhado.
- Um morto retalhado, dois esfaqueados gravemente, muitos feridos, e uma garota ferida antes que os samurais interrompessem a arruaça. Preveni vocês todos antes de descerem a terra:
"Nimazu não é Nagasaki, portanto comportem-se!" Minha Nossa
Senhora! Tivemos sorte em dar o fora com apenas um marujo
morto. Eles estariam dentro da lei se quisessem picar vocês cinco
em pedaços.
- Lei deles, piloto, não nossa. Malditos macacos! Foi só
uma rixa de bordel.
- Sim, mas os seus homens começaram, as autoridades puseram o meu navio de quarentena, e vocês estão todos marcados.
Você inclusive! - Rodrigues mudou a perna de posição para
diminuir a dor. - Seja paciente, Pesaro. À hora que o padre voltar, zarparemos.
- Ao amanhecer? Isso é uma ordem?
- Não, ainda não. Só prepare a chalupa. Gomez virá comigo.
- Deixe-me ir também, hein? Por favor, piloto. Estou doente de morte de estar enfiado neste maldito balde.
- Não. E é melhor não ir a terra esta noite. Nem você nem
qualquer outro.
- E se o senhor não voltar ao amanhecer?
- Você apodrece aqui, ancorado, até que eu volte. Está
claro?
A carranca do contramestre aprofundou-se. Ele hesitou, depois recuou. - Sim, sim, está claro, por Deus.
- Bom. - Rodrigues desceu.
Alvito estava adormecido, mas despertou no momento em
que o piloto abriu a porta da cabina. - Ah, está tudo bem? -
perguntou, satisfeito agora, de mente e corpo.
- Sim. Foi só o turno. - Rodrigues tomou uns goles de
vinho, para tirar o gosto horrível da boca. Era sempre assim depois
de um quase-motim. Se Pesaro não tivesse cedido imediatamente,
mais uma vez Rodrigues teria tido que estourar a cara de um
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homem ou colocá-lo a ferros ou ordenar cinqüenta chicotadas ou
mergulhar o homem abaixo da quilha, ou pôr em prática qualquer uma da centena de obscenidades essenciais, pela lei do mar,
para se manter a disciplina. Sem disciplina qualquer navio estaria
perdido. - Qual é o plano agora, padre? Zarpamos ao amanhecer?
- Como estão os pombos-correio?
- Em boa saúde. Ainda temos seis: quatro Nagasaki, dois
Osaka.
O padre verificou o ângulo do sol. Quatro ou cinco horas até
o crepúsculo. Muito tempo para soltar as aves com a primeira
mensagem codificada que ele planejara há muito tempo: "Toranaga rende-se às ordens dos regentes. Vou primeiro a Yedo, depois
a Osaka. Acompanharei Toranaga a Osaka. Ele diz que ainda
podemos construir a catedral em Yedo. Despachos pormenorizados com Rodrigues".
- Quer dizer ao tratador, por favor, para preparar dois
Nagasaki e um Osaka imediatamente? - disse Alvito. - Depois
conversaremos. Não vou voltar com você. Estou indo para Yedo
por terra. Vai me tomar a maior parte da noite e do dia de
amanhã escrever um despacho detalhado, que você levará ao
padre-inspetor, entregando às mãos dele apenas. Você zarpará
assim que eu tiver terminado?
- Está bem. Se for muito perto do crepúsculo, esperarei até
o amanhecer. Há bancos de areia e areias movediças por dez
léguas.
Alvito assentiu. As doze horas extras não fariam diferença.
Sabia que teria sido muitíssimo melhor se ele tivesse podido mandar as notícias de Yokosé, Deus amaldiçoe o demônio pagão que
destruiu os meus pombos lá! Tenha paciência, disse a si mesmo.
Para que a pressa? Isso não é uma regra vital da nossa ordem?
Paciência. Quem espera sempre alcança. Quem espera e quem
trabalha. O que importam doze horas, ou mesmo oito dias? Não
mudarão o curso da história. Os dados foram lançados em Yokosé.
- Vai viajar com o Inglês? - estava perguntando Rodrigues. - Como antes?
- Sim. De Yedo voltarei para Osaka. Acompanharei Toranaga. Gostaria de que você parasse em Osaka com uma cópia do
meu despacho, para o caso de o padre-inspetor estar lá ou ter
partido de Nagasaki antes que você chegue lá e esteja a caminho.
Você pode entregá-lo ao Padre Soldi, secretário dele... apenas
a ele.
844
- Está bem. Ficarei contente em partir. Somos odiados
aqui._ Com a mercê de Deus, podemos mudar tudo isso, Rodrigues. Com a boa graça de Deus, converteremos todos os pagãos
aqui.
- Amém a isso. Sim. - O homem alto moveu a perna, o
latejamento momentaneamente abrandado. Olhou fixamente pela
janela. Depois se levantou, impaciente. - Vou eu mesmo buscar
os pombos. Escreva a sua mensagem, depois conversaremos. Sobre
o Inglês. - Subiu ao convés e selecionou as aves nos cestos.
Quando retornou, o padre já usara a pena especial, aguçada com
uma agulha, e a tinta para inscrever a mesma mensagem em código nas minúsculas tiras de papel. Alvito encheu os minúsculos
cilindros, lacrou-os, e soltou os pássaros. Os três fizeram um círculo no ar, depois rumaram para oeste, ao sol da tarde.
- Conversaremos aqui ou lá embaixo?
- Aqui. É mais fresco. - Rodrigues apontou o centro do
tombadilho, fora do raio de audição.
Alvito sentou-se numa cadeira-de-mar. - Primeiro sobre
Toranaga.
Contou brevemente ao piloto o que acontecera em Yokosé,
omitindo o incidente com o Irmão José e a sua suspeita sobre
Mariko e Blackthorne. Rodrigues ficou tão assombrado com a
rendição quanto ele ficara. - Nada de guerra? É um milagre!
Agora estamos realmente seguros, o nosso Navio Negro está seguro, a Igreja está rica, estamos ricos... graças a Deus, aos
santos e a Nossa Senhora! Essa é a melhor notícia que o senhor
poderia ter trazido, padre. Estamos seguros!
- Se Deus quiser. Uma coisa que Toranaga disse me perturbou. Colocou deste jeito: "Posso ordenar e o meu cristão
estará livre - o Anjin-san. Com seu navio, e com seus canhões".
O imenso bom humor de Rodrigues sumiu. - O Erasmus
ainda está em Yedo? Ainda está sob o controle de Toranaga?
- Sim. Seria grave se o Inglês fosse solto?
- Grave? Aquele navio nos mandaria para o inferno se
apanhasse o nosso Navio Negro entre aqui e Macau com ele a
bordo, armado, com metade de uma tripulação decente. Temos
apenas a pequena fragata para intervir e ela não é páreo para o
Erasmus! Nem nós. Ele poderia dançar em torno de nós e teríamos que arriar as nossas bandeiras.
- Tem certeza?
- Sim. Diante de Deus... o Erasmus seria um assassino.
845
- Furioso, Rodrigues fechou um punho. - Mas espere um momento ... o Inglês disse que chegou aqui com apenas doze homens, e nem todos marujos, muitos deles mercadores e a maioria
doente. Esses poucos não conseguiriam manejar o navio. O único
lugar onde ele poderia conseguir uma tripulação seria Nagasaki
- ou Macau. Poderia conseguir o suficiente em Nagasaki! Há
os que... é melhor que seja mantido longe de lá, e de Macau!
- Digamos que ele tivesse uma tripulação nativa?
- Quer dizer, alguns dos degoladores de Toranaga? Ou
wakos? Quer dizer, se Toranaga se rendeu, todos os seus homens
se tornam ronins, neh? Se o Inglês tivesse tempo suficiente poderia
treiná-los. Facilmente. Jesus Cristo... por favor, desculpe-me,
padre, mas se o Inglês conseguisse samurais ou wakos... Não
podemos arriscar isso - ele é bom demais. Todos vimos isso em
Osaka! Ele solto nessa maldita Ásia com uma tripulação de
samurais...
Alvito observava-o, ainda mais preocupado agora. - Acho
que é melhor eu enviar outra mensagem ao padre-inspetor. Ele
deve ser informado, se é urgente assim. Ele saberá o que fazer.
- Eu sei o que fazer! - O punho de Rodrigues esmagou-se
contra a amurada. Pôs-se de pé e deu as costas. - Ouça, padre,
escute a minha confissão: na primeira noite, quando ele se encontrava ao meu lado e na galera, ao mar, quando estávamos indo
de Anjiro, meu coração me disse que o matasse, e depois de
novo durante a tempestade. Jesus me ajude, foi a hora em que o
mandei para a frente e deliberadamente dei uma guinada sem
preveni-lo, ele sem um salva-vidas, para assassiná-lo, mas o Inglês
não caiu ao mar como qualquer outro teria caído. Achei que aquilo era a mão de Deus, e tive certeza disso quando, mais tarde, ele
me salvou o navio, e depois quando o navio estava salvo e a
onda me pegou e eu estava me afogando, meu último pensamento
foi que aquilo também era punição de Deus pela minha tentativa
de assassinato. Não se faz isso a um piloto - ele nunca faria isso
a mim! Mereci daquela vez e depois, quando me descobri vivo e
ele se inclinando em cima de mim, ajudando-me a beber, fiquei
tão envergonhado e novamente implorei o perdão de Deus e fiz
um juramento sagrado de tentar retribuir-lhe isso. Minha Nossa
Senhora! - exclamou ele atormentado. - Aquele homem me
salvou embora soubesse que eu tentei matá-lo. Vi isso nos olhos
dele. Salvou-me e me ajudou a viver e agora tenho que matá-lo.
- Por quê?
- O capitão-mor estava certo: Deus nos ajude se o Inglês
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zarpar no Erasmus, armado, com metade de uma tripulação
decente.
Blackthorne e Mariko dormiam na paz noturna da sua casinha, no conjunto de casinhas que constituía a Hospedaria das
Camélias, que ficava na Nona Rua Sul. Havia três aposentos em
cada casa. Mariko tomara um para si e Chimmoko, Blackthorne
outro, e o terceiro, que dava para a porta da frente e a varanda,
fora deixado vazio, para estar, comer, e conversar.
- Acha que isto é seguro? - perguntara Blackthorne ansioso. - Não ter Yoshinaka, ou mais criadas ou guardas dormindo aqui?
- Não, Anjin-san. Na realidade nada é seguro. Mas será
agradável ficarmos sozinhos. 'Esta hospedaria é considerada a
mais bonita e famosa de Izu. É bonita, neh?
E era. Cada casa minúscula erguia-se sobre pilares elegantes,
tinha varandas circundantes e quatro degraus, feitos das melhores
madeiras, tudo polido e brilhando. Ficavam todas separadas cinqüenta passos da vizinha e cercadas por jardins bem tratados dentro do jardim maior por trás dos altos muros de bambu. Havia
riachos, tanques de lírios, quedas-d'água, árvores floridas em
abundância, com perfumes diurnos e perfumes noturnos, um aroma
doce e voluptuoso. Caminhos de pedra, limpos, cobertos com delicados telhados, levavam aos banhos centrais, frio, quente e muito quente, alimentados por fontes naturais. Lanternas multicoloridas, criados e criadas felizes, e nunca uma palavra áspera para
perturbar os sinos das árvores, a água borbulhando e os pássaros
cantando nos aviários.
- Naturalmente pedi duas casas, Anjin-san, uma para o senhor e uma para mim. Infelizmente, apenas uma estava disponível,
sinto muito. Mas Yoshinaka-san não ficou descontente. Pelo contrário, ficou aliviado pois assim não terá que dividir os seus homens. Postou sentinelas em cada caminho, portanto estamos totalmente seguros e não podemos ser incomodados como em outros
lugares. Por que deveríamos ser incomodados? O que poderia estar
errado com um quarto aqui, outro ali, e Chimmoko para partilhar
o seu leito?
- Nada. Nunca vi um lugar tão bonito. Como a senhora é
inteligente, e como é bela.
- Ah, como é gentil comigo, Anjin-san. Primeiro tome um
banho, depois a refeição da noite e muito saque.
847
Bom. Muito bom.
Ponha de lado seu dicionário, Anjin-san, por favor.
Mas a senhora está sempre me encorajando.
Se largar o livro um instante... eu conto-lhe um segredo.
- Qual?
- Convidei Yoshinaka-san para comer conosco. E algumas
senhoras. Para nos entreter.
- Ah!
Sim. Depois que eu o deixar, o senhor escolherá uma, neh?
Mas isso poderia perturbar-lhe o sono, sinto muito.
- Prometo que dormirei pesadamente, meu amor. Falando
sério, uma mudança poderia ser bom para você.
- Sim, mas no próximo ano, não agora.
- Seja sério.
- Eu sou.
- Ah, então, nesse caso, se por acaso você polidamente mudar de idéia e mandá-la embora cedo - depois que Yoshinakasan tenha partido com a sua acompanhante -, ah, quem sabe o
que o kami da noite poderia encontrar para você então?
- O quê?
- Fui fazer compras hoje.
- Oh? E o que comprou?
- Ah!
Ela havia comprado um sortimento dos acessórios de "travesseiro" que Kiku lhes mostrara, e muito mais tarde, quando Yoshinaka partira e Chimmoko vigiava na varanda, ela os ofereceu a
ele com uma profunda mesura. Meio jocosamente, ele aceitou com
igual formalidade, e juntos escolheram um anel de prazer.
- Isso parece que pica muito, Anjin-san, neh? Tem certeza
de que não se importa?
- Não, não se você não se importa, mas pare de rir ou vai
estragar tudo. Apague as velas.
- Oh, não, por favor, quero olhar.
- Pelo amor de Deus, pare de rir, Mariko!
- Mas você também está rindo!
- Não interessa, apague a luz ou... Pronto, agora olhe o
que você fez.
- Oh!
- Pare de rir! Não é bom pôr a cabeça sobre os futons...
Depois, mais tarde, problemas.
- Mariko...
- Sim, meu amor?
- Não consigo encontrá-lo.
- Oh! Deixe-me ajudá-lo.
- Ah, está tudo bem. Eu estava deitado em cima.
- Oh! Você tem... tem certeza de que não se importa?
- Não, mas é um pouco, bem, toda esta conversa e ter que
esperar, não é uma coisa que levante exatamente, é?
- Oh, eu não me importo. A culpa foi minha, por rir. Oh,
Anjin-san, amo-o muito, por favor, desculpe-me.
- Está desculpada.
Adoro tocar você.
Nunca conheci nada como o seu toque.
O que está fazendo, Anjin-san?
Colocando isto.
Está difícil?
Sim. Pare de rir!
Oh, sinto muito, talvez você ...
Pare de rir!
= Por favor, perdoe-me ...
Depois ela pegou no sono na hora, totalmente extenuada. Ele
não. Para ele fora bom, mas não perfeito. Ficara preocupado
demais com ela. Resolvera que aquela vez seria para o prazer
dela, não o seu. Sim, isto foi para ela, pensou, amando-a. Mas
uma coisa foi perfeita: sei que realmente a satisfiz. Por uma vez.
Estou absolutamente certo.
Dormiu. Algum tempo mais tarde o som de vozes e discussão
e, misturado a isso, o som de português, começou a se infiltrar
pelo seu sono leve. Por um momento pensou estar sonhando,
depois reconheceu a voz: - Rodrigues!
Mariko murmurou, ainda mergulhada no sono.
Ao som de passos no caminho, ele se pôs de joelhos em
pânico controlado. Ergueu-a como se fosse uma boneca, dirigiu-se
para a shoji, e parou exatamente quando a porta foi aberta por
fora. Era Chimmoko. A criada estava de cabeça baixa, os olhos
discretamente fechados. Ele passou às pressas por ela, com Mariko
nos braços, e deitou-a gentilmente sobre os seus próprios acolchoados, ainda meio adormecida, e correu silenciosamente para o
seu quarto de novo, sentindo um suor gelado embora a noite
estivesse quente. Enfiou um quimono às apalpadelas e rumou às
pressas para a varanda. Yoshinaka atingira o segundo degrau.
- Nan desu ka, Yoshinaka-san?
- Gomen nasai, Anjin-san - disse Yoshinaka. Apontou
para os archotes no portão da hospedaria, acrescentando muitas
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palavras que Blackthorne não entendeu. Mas a essência do que
disse era que aquele homem lá, o bárbaro, quer vê-lo e eu lhe
disse que esperasse e ele disse que não esperaria, agindo como um
daimio, coisa que ele não é, e tentou entrar à força, o que eu
impedi. Disse que era seu amigo. É?
- Ei, Inglês! Sou eu, Vasco Rodrigues!
- Ei, Rodrigues! - gritou Blackthorne, feliz. - Já vou.
Hai, Yoshinaka-san. Kare wa watashi no ichi yujin desu. Ele é
meu amigo.
- Ah so desu!
- Hai. Domo.
Blackthorne desceu correndo os degraus para se dirigir ao
portão. Atrás ouviu a voz de Mariko. - Nan ja, Chimmoko? - e
um sussurro, e depois ela chamou com autoridade: - Yoshinaka-san!
- Hai, Toda-sama!
Blackthorne correu os olhos em torno. O samurai subiu os
degraus e tomou a direção do quarto de Mariko. A porta dela
estava fechada. Chimmoko erguia-se do lado de fora. Seus lençóis
amarrotados estavam, agora, perto da porta, onde devia dormir
sempre, corretamente, caso a ama não a desejasse no quarto consigo. Yoshinaka curvou-se para a porta e começou a relatar.
Blackthorne seguiu pelo caminho com alegria crescente, descalço,
os olhos no português, um largo sorriso de boas-vindas, a luz dos
archotes dançando nos brincos e na fivela do vistoso chapéu dele.
- Ei, Rodrigues! É ótimo vê-lo. Como vai a perna? Como
me achou?
- Nossa Senhora, você cresceu, Inglês, está mais cheio?
Sim, bem, saudável e agindo como um maldito daimio! - Rodrigues deu-lhe um abraço de urso e ele retribuiu.
- Como vai a perna?
- Dói como merda, mas funciona, e achei você perguntando
onde estava o grande Anjin-san - o grande bárbaro bandido e
bastardo, de olhos azuis!
Riram juntos, trocando obscenidades, sem se preocupar com
os samurais e criados que os rodeavam. Num instante Blackthorne mandou uma criada buscar saque e levou Rodrigues para a
varanda. Ambos andavam com a ginga de marinheiro, a mão
direita de Rodrigues, por hábito, no punho do florete, o outro
polegar enganchado no cinto largo, perto da pistola. Blackthorne
era algumas polegadas mais alto mas o português tinha ombros
ainda mais largos e um peito que parecia um barril.
850
Yoshinaka esperava na varanda.
- Domo arigato, Yoshinaka-san - disse Blackthorne, agradecendo de novo ao samurai, e apontou uma das almofadas a
Rodrigues. - Vamos conversar aqui.
Rodrigues pôs um pé nos degraus, mas parou quando Yoshinaka se moveu para a sua frente, apontando para o florete e a
pistola, e estendeu a mão esquerda, palma para cima. - Dozo!
O português franziu o cenho. - Iyé, samurai-sarna, domo
ari.. .
- Dozo!
- Iyé, samurai-sarna, iyé! - repetiu Rodrigues mais ríspido.
Watashi yujin Anjin-san, neh?
Blackthorne deu um passo à frente, ainda surpreso com o
inesperado da confrontação. - Yoshinaka-san, shigata ga nai,
neh? - disse com um sorriso. - Rodrigues yujin wata.. .
- Gomen nasai, Anjin-san. Kinjiru! - Yoshinaka vociferou
uma ordem. Imediatamente samurais avançaram, rodeando Rodrigues ameaçadoramente, e novamente ele estendeu a mão. -
Dozo!
- Esses putos de merda são melindrosos, Inglês - disse
Rodrigues através de um sorriso arreganhado. - Mande-os sossegar, hein? Nunca tive que entregar as minhas armas antes.
- Não, Rodrigues! - disse ele rapidamente, sentindo a
iminente decisão do amigo, depois a Yoshinaka: - Domo, gomen nasai, Rodrigues yujin, watash...
- Gomen nasai, Anjin-san. Kinjiru. - Depois, asperamente,
para o português: - Ima!
- Iyé! Wakarimasu ka! - rosnou Rodrigues.
Blackthorne rapidamente postou-se entre eles. - Ei, Rodrigues, o que importa isso, neh? Deixe Yoshinaka-san ficar com elas.
Não tem nada a ver com você ou comigo. É por causa da senhora,
Toda Mariko-sama. Ela está lá dentro. Você sabe como eles são
melindrosos sobre armas perto de daimios ou das esposas deles.
Discutiremos a noite toda, você sabe como eles são, hein? Que
diferença faz?
O português forçou um sorriso. - Claro. Por que não?
Hai, shigata ga nai, samurai-sama. So desu?
Curvou-se como um cortesão sem sinceridade, soltou o florete e a bainha do gancho, tirou a pistola jo cinto e estendeu
a eles. Yoshinaka fez sinal a um samurai, que pegou as armas e
correu para o portão, onde as colocou no chão e ficou de guarda.
Rodrigues começou a subir os degraus, mas de novo Yoshinaka
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polida e firmemente pediu-lhe que parasse. Outros samurais se
aproximaram para revistá-lo. Furioso, Rodrigues saltou para trás.
- IYÉ! Kinjiru, por Deus! Que...
Os samurais caíram-lhe em cima, seguraram-lhe os braços
com força, e revistaram-no completamente. Encontraram duas facas no alto das botas, outra amarrada no antebraço esquerdo,
duas pequenas pistolas - uma escondida no forro do casaco,
outra sob a camisa - e um pequeno frasco de estanho ao quadril.
Blackthorne examinou as pistolas. Estavam ambas engatilhadas. - A outra também estava engatilhada?
- Sim. Claro. Esta terra é hostil, não notou, Inglês? Digalhes que me larguem!
- Esse não é o modo habitual de visitar um amigo à noite.
Neh?
- Estou lhe dizendo que esta terra é hostil. Estou sempre
armado assim. Você não, normalmente? Minha Nossa Senhora,
diga a esses bastardos que me deixem em paz.
- Isso é tudo? Tudo?
- Claro. Diga-lhes que me deixem em paz, Inglês!
Blackthorne entregou as pistolas a um samurai e deu um
passo à frente. Seus dedos tatearam cuidadosamente a face interna
do largo cinto de couro de Rodrigues. Um estilete escorregou
de sua bainha secreta, muito fino, muito maleável, feito do melhor
aço de Damasco. Yoshinaka praguejou contra os samurais que
haviam feito a vistoria. Eles se desculparam, mas Blackthorne só
olhava para Rodrigues.
- Mais alguma coisa? - perguntou, o estilete solto na mão.
Rodrigues sustentou-lhe o olhar, impassível.
- Eu digo a eles onde olhar... e como olhar, Rodrigues.
Como um espanhol faria... alguns deles. Hein?
- Me cago en la leche, che cabrón!
- Que va, leche! Depressa! - Nenhuma resposta. Blackthorne avançou com a faca. - Dozo, Yoshinaka-san. Watash...
Rodrigues disse, rouco: - Na fita do meu chapéu -, e
Blackthorne parou.
- Bom - disse ele, e estendeu a mão para o chapéu de
aba larga.
- Você os ensinaria, não ensinaria?
- Você não?
- Tenha cuidado com a pluma, Inglês, eu aprecio muito
isso.
A fita era larga e rígida, a pluma vistosa como o chapéu.
Dentro da fita estava um delgado estilete, menor, especialmente
desenhado, o aço excelente moldando-se com facilidade à curva.
Yoshinaka vociferou outra violenta reprimenda aos samurais.
- Diante de Deus, isso é tudo, Rodrigues?
- Nossa Senhora, eu lhe disse!
- Jure.
Rodrigues aquiesceu.
- Yoshinaka-san, ima ichi-ban. Domo - disse Blackthorne.
Ele está em ordem agora. Obrigado.
Yoshinaka deu a ordem. Seus homens soltaram o português.
Rodrigues esfregou os membros para abrandar a dor. - Posso
me sentar, Inglês?
- Sim.
Rodrigues enxugou o suor com um lenço vermelho, depois
pegou o frasco de estanho e se sentou de pernas cruzadas sobre
uma das almofadas. Yoshinaka permaneceu por perto, na varanda. Todos os samurais, menos quatro, voltaram a seus postos.
- Por que eles são tão melindrosos? Por que você é tão melindroso, Inglês? Nunca tive que entregar as minhas armas antes.
Sou um assassino?
- Eu lhe perguntei se aquilo eram todas as armas e você
mentiu.
- Eu não estava ouvindo. Nossa Senhora! Você... me trataría como um criminoso comum? - disse Rodrigues com azedume. - Ei, o que importa, Inglês, o que importa qualquer coisa?
A noite está estraga ... Ei, mas espere, Inglês! Por que se deveria
permitir que alguma coisa estragasse uma grande noite? Eu
perdôo a eles. E a você, Inglês. Você estava certo e eu errado.
Peço desculpas. É bom revê-lo. - Desenroscou a tampa e ofereceu o frasco. - Tome... tome um pouco de um conhaque
excelente.
- Você primeiro.
O rosto de Rodrigues ficou pálido. - Nossa Senhora... você acha que eu trago veneno?
- Não. Você bebe primeiro.
Rodrigues bebeu.
- Mais!
O português obedeceu, depois enxugou a boca com as costas
da mão. Blackthorne aceitou o frasco. - À saúde! - Entornou-o
e fingiu engolir, secretamente mantendo a língua sobre a abertura
para impedir a bebida de lhe entrar na boca, por mais que tivesse
vontade de beber. - Ah! - disse. - Estava bom. Tome!
853
852
Fique com ele, Inglês. É um presente.
Do bom padre? Ou de você?
De mim.
Diante de Deus?
- Deus, a Virgem, você e o seu "diante de Deus"! - disse
Rodrigues. - É um presente meu e do padre! Ele é dono de toda
a bebida a bordo do Santa Filipa, mas a Eminência disse que eu
podia compartilhá-la e o frasco é um de uma dúzia a bordo. É um
presente. Onde está a sua educação?
Blackthorne fingiu beber de novo e ofereceu-o de volta. -
Tome, beba mais.
Rodrigues sentiu a bebida chegar-lhe aos artelhos e ficou
contente, depois de aceitar o frasco cheio de Alvito, de tê-lo secretamente esvaziado, lavado cuidadosamente e enchido com conhaque da sua própria garrafa. Minha Nossa Senhora, perdoe-me,
orou, perdoe-me por duvidar do santo padre. Oh, Nossa Senhora,
Deus, e Jesus, pelo amor de Deus, venham de novo à terra e
mudem este mundo onde às vezes não ousamos confiar nem nos
padres.
- Qual é o problema?
- Nada, Inglês. Só estava pensando que este mundo é nojento, quando não se pode mais confiar em ninguém. Vim como
amigo e agora há um buraco no mundo.
- Veio mesmo?
- Sim.
- Armado desse jeito?
- Estou sempre armado desse jeito. É por isso que estou
vivo. Saúde! - O homenzarrão ergueu o frasco tristemente e
bebeu de novo. - Mijo no mundo, mijo em tudo.
- Está dizendo que mija em mim?
- Inglês, este sou eu, Vasco Rodrigues, piloto da Marinha
portuguesa, não um samurai degenerado. Troquei muitos insultos
com você, todos em amizade. Esta noite vim ver o meu amigo e
agora não tenho amigo. É muito triste.
- Sim.
- Eu não deveria estar triste, mas estou. Ser seu amigo me
complicou a vida extraordinariamente. - Rodrigues levantou-se,
descontraiu as costas, depois se sentou de novo. - Detesto sentar
nestas malditas almofadas! As cadeiras são para mim. A bordo.
Bem, saúde, Inglês!
- Quando você deu aquela guinada e eu fiquei a meia-nau,
foi para me atirar ao mar. Não foi?
854
- Sim - respondeu Rodrigues imediatamente. Pôs-se de
pé. - Sim. Fico contente de que você tenha perguntado, pois isso
está na minha consciência terrivelmente. Fico contente de me
desculpar em vida, pois não poderia me forçar a confessar a
você. Sim, Inglês. Não peço perdão, compreensão, nada. Mas fico
contente em confessar essa vergonha na sua cara.
- Acha que eu faria isso a você?
- Não. Mas se o momento chegasse. . . Nunca se sabe até
o momento de julgamento da gente mesma.
- Veio aqui para me matar?
- Não. Acho que não. Acho que não era isso o que estava
em primeiro lugar na minha cabeça, embora para a minha gente
o o meu país nós ambos saibamos que seria melhor que você
estivesse morto. É muito triste, mas é verdade. Como a vida é
tola, hein, Inglês?
- Não o quero morto, piloto. Só o seu Navio Negro.
- Ouça, Inglês - disse Rodrigues, sem raiva. - Se nos
encontrarmos ao mar, você no seu navio, armado, eu no meu,
cuidado com a sua vida. Isso é tudo o que posso lhe prometer,
apenas isso. Achei que seria possível lhe dizer isso como amigo,
o ainda sou seu amigo. Exceto quanto a um encontro ao mar,
estou em dívida com você para sempre. À saúde!
- Espero capturar o seu Navio Negro ao mar. À saúde,
piloto!
Rodrigues partiu em silêncio. Yoshinaka e os samurais o seguiram. Ao portão o português reuniu as armas. Logo foi engolido
pela noite.
Yoshinaka esperou até que as sentinelas se dispersassem.
Quando ficou satisfeito de que estava tudo seguro, dirigiu-se coxeando para os seus aposentos. Blackthorne sentou-se de novo
numa das almofadas e pouco depois a criada que ele mandara
buscar saque surgiu com a bandeja. Serviu-lhe um cálice e teria
ficado para servi-lo, mas ele a dispensou. Agora estava sozinho.
Os sons da noite rodearam-no de novo, o murmurar da quedad'água e os movimentos das aves noturnas. Estava tudo como
antes, mas tudo mudara.
Tristemente ele esticou o braço para reencher o cálice, mas
ouviu um roçar de seda e a mão de Mariko segurou o frasco. Ela
o serviu, e outro cálice para si mesma.
- Domo, Mariko-san.
- Do itashimashité, Anjin-san. - Ela se acomodou sobre
a outra almofada. Beberam o vinho quente.
855
- Ele ia matá-lo, neh?
- Não sei, não com certeza.
- O que significava aquilo: procurar como um espanhol?
- Alguns deles despem os prisioneiros e depois investigam
em lugares íntimos. E não com gentileza. Chamam a isso de procurar con significa, com significado. Algumas vezes usam facas.
- Oh. - Ela tomou um gole e ouviu a água entre as pedras.
- Acontece o mesmo aqui, Anjin-san. Às vezes. É por isso que
nunca é prudente ser capturado. Se se é capturado, fica-se tão
completamente desonrado, que qualquer coisa que o captor faça...
É melhor não ser capturado. Neh?
Ele contemplou as lanternas movendo-se à brisa fresca e
suave. - Yoshinaka tinha razão, eu estava errado. A busca era
necessária. A idéia foi sua, neh? Você disse a Yoshinaka que o
revistasse?
- Por favor, desculpe-me, Anjin-san, espero que isso não
lhe tenha criado algum embaraço. Foi só porque eu estava com
medo por sua causa.
- Agradeço-lhe - disse ele, em latim de novo, embora lamentasse que tivesse havido uma busca. Sem a vistoria ele ainda
teria um amigo. Talvez, admoestou-se ele.
- Não há de quê - disse ela. - Mas era apenas o meu
dever.
Mariko estava usando um quimono de noite e um sobrequimono azul, o cabelo trançado frouxamente, caindo-lhe até a cintura. Olhou para o portão, que se podia ver por entre as árvores.
- Você foi muito esperto quanto à bebida, Anjin-san. Quase
me belisquei de raiva por ter esquecido de prevenir Yoshinaka
sobre isso. Você foi muito astuto em fazê-lo beber duas vezes.
Usa-se muito o veneno nos seus países?
- Algumas vezes. Algumas pessoas usam. É um método
infame.
Sim, mas muito eficaz. Aqui também acontece.
Terrível, não, não se poder confiar em ninguém?
- Oh, não, Anjin-san, sinto muito - respondeu ela. -
Essa é apenas uma das regras mais importantes da vida - nada
mais, nada menos.
856
Livro quatro
CAPITULO 47
o Erasmus resplendia ao sol alto do meio-dia, ao lado do
ancoradouro de Yedo.
- Jesus Deus no paraíso, Mariko, olhe só! Já viu alguma
coisa como ele? Olhe que linhas!
o navio estava além das paliçadas fechadas, circundantes,
a uns cem passos de distância, atracado ao cais com cordas novas.
A área toda estava pesadamente guardada, havia mais samurais
no convés, e os sinais por toda parte diziam que a área era proibida, exceto com a permissão do Senhor Toranaga.
o Erasmus fora recentemente pintado e pichado, os conveses
estavam imaculados, o casco calafetado e o cordame reparado.
Até o mastro de proa, que fora arrebatado pela tempestade, fora
substituído pelo último dos sobressalentes que o navio carregava
no porão, e colocado num ângulo perfeito. Todas as cordas estavam caprichosamente enroladas, todos os canhões brilhando sob
uma camada protetora de óleo, por trás das portinholas. E o
esfarrapado Leão da Inglaterra tremulava orgulhosamente acima
de tudo.
- Ó de bordo! - gritou ele alegremente de fora das barreiras, mas não houve resposta. Uma das sentinelas lhe disse que
não havia bárbaros a bordo hoje.
- Shigata ga nai - disse Blackthorne. - Domo. - Sofreou
a impaciência crescente por ir a bordo imediatamente e sorriu
para Mariko. - É como se ele tivesse acabado de sair de uma
reforma no estaleiro de Portsmouth, Mariko-san. Olhe os canhões
- os rapazes devem ter trabalhado como cães. É lindo, neh? Não
posso esperar para ver Baccus e Vinck e os outros. Nunca pensei
que o encontraria desse jeito. Jesus Cristo, parece tão bonito, neh?
Mariko observava a ele e não ao navio. Sabia que agora fora
esquecida. E substituída.
859
Não importa, disse a si mesma. Nossa viagem terminou.
Naquela manhã haviam chegado ao último dos postos de
controle nos arredores de Yedo. Mais uma vez seus papéis de
viagem foram examinados. Mais uma vez foram polidamente autorizados a passar, mas dessa vez uma nova guarda de honra os
esperava.
- Vão nos levar até o castelo, Anjin-san. O senhor ficará
lá, e esta noite devemos nos encontrar com o Senhor Toranaga.
- Bom, então há muito tempo. Olhe, Mariko-san, o cais
não está a mais de uma milha da praia, neh? Meu navio está lá
em algum lugar. Quer perguntar ao Capitão Yoshinaka se podemos ir lá, por favor?
- Ele diz que sente muito mas não tem instruções para
fazer isso, Anjin-san. Tem que nos levar ao castelo.
- Por favor, diga-lhe... talvez seja melhor que eu tente.
Taicho-san! Okashira, sukoshi no aida watakushi wa ikitai no desu.
Watakushi no funega asoko ni arimasu. Capitão, quero ir até lá
um instante. Meu navio está lá.
- Iyé, Anjin-san, gomen nasai. Ima...
Mariko ouvira aprovadora e divertida enquanto Blackthorne
discutia cortesmente e insistia com firmeza, e depois, relutante,
Yoshinaka os permitira fazer um desvio, mas só por um momento,
neh? e só porque o Anjin-san alegou o status de hatamoto, o que
lhe dava certos direitos inalienáveis, e assinalara que um exame
rápido era importante para o Senhor Toranaga, que isso certamente pouparia ao senhor deles um tempo imensamente valioso
o era vital para o seu encontro à noite. Sim, o Anjin-san pode
olhar um instante, mas, sinto muito, naturalmente é proibido
subir ao navio sem papéis assinados pessoalmente pelo Senhor
Toranaga, e deve ser apenas por um momento porque somos
esperados, sinto muito.
- Domo, Taicho-san - dissera Blackthorne expansivamente, muito satisfeito com a sua compreensão aumentada dos meios
corretos de persuadir e com o seu domínio crescente da língua.
A noite e grande parte do dia anterior eles haviam passado
numa hospedaria a mais ou menos duas ris ao sul, Yoshinaka permitindo-lhes perder tempo como antes.
Oh, foi uma noite tão adorável, pensou ela.
Houvera tantos dias e noites adoráveis. Tudo perfeito, exceto
o primeiro dia depois de partirem de Mishima, quando o Padre
Tsukku-san os alcançara de novo e a precária trégua entre os
dois homens se rompera furiosamente. A discussão fora repen860
tina, violenta, alimentada pelo incidente com Rodrigues e por
excesso de conhaque. Ameaças, contra-ameaças e imprecações e
depois o Padre Alvito disparara para Yedo na frente, deixando
desastre no seu rastro, a alegria da viagem arruinada.
- Não devemos deixar que isso aconteça, Anjin-san.
- Mas aquele homem não tinha o direito...
- Oh, sim, concordo. E naturalmente você tem razão. Mas,
por favor, se deixar esse incidente destruir a sua harmonia, estará
perdido, e eu também. Por favor, imploro-lhe que seja japonês.
Afaste esse incidente - isso é tudo o que ele é, um incidente
entre dez mil. Não deve permitir que ele destroce a sua harmonia.
Afaste-o para um compartimento.
- Como? Como posso fazer isso? Olhe as minhas mãos.
Estou tão furioso que não posso impedi-las de tremer!
- Olhe para esta rocha, Anjin-san. Ouça-a crescendo.
- O quê?
- Ouça a rocha crescer, Anjin-san. Concentre a mente nisso, na harmonia da rocha. Ouça o kami da rocha. Ouça o meu
amor, pela salvação da sua vida. E da minha.
Ele tentara e conseguira um pouco, e no dia seguinte, amigos
de novo, amantes de novo, em paz novamente, ela continuou a
ensinar, tentando moldá-lo - sem que ele soubesse que estava
sendo moldado - à Cerca Óctupla, construindo paredes interiores
o defesas que eram o único caminho que o levaria à harmonia.
E à sobrevivência.
- Estou contente de que o padre tenha ido embora e não
vá voltar, Anjin-san.
- Sim.
- Teria sido melhor se não tivesse havido discussão alguma.
Tenho medo por você.
- Nada está diferente. Ele sempre foi meu inimigo, sempre
será. Karma é karma. Mas não se esqueça de que não existe nada
além de nós. Ainda não. Nem ele nem ninguém. Não até Yedo.
Neh?
- Sim. Você é muito sábio. E tem razão de novo. Estou
muito feliz de estar com você ...
A estrada de Mishima deixou as terras planas rapidamente
o se retorceu montanha acima até o passo de Hakoné. Descansaram ali durante dois dias no alto das montanhas, alegres e contentes, o monte Fuji glorioso ao nascer do sol e ao crepúsculo,
o cume obscurecido por uma grinalda de nuvens.
- A montanha é sempre assim?
861
- Sim, Anjin-san, quase sempre encoberta. Mas isso faz a
vista de Fuji-san, clara e limpa, tão mais admirável, neh? Pode-se
subir até o topo, se se quiser.
- Vamos fazer isso agora!
- Não agora, Anjin-san. Um dia. Temos que deixar alguma
coisa para o futuro, neh? Escalaremos o Fuji-san no outono..
Houve sempre hospedarias bonitas e privadas ao longo das
planícies do Kwanto. E sempre rios e riachos e regatos para cruzar,
o mar à direita agora. Sua expedição coleara em direção norte
ao longo da movimentada e alvoroçada Tokaido, através da maior
tigela de arroz do império. As lisas planícies de aluvião eram
ricas em água, cada polegada cultivada. O ar era quente e úmido
agora, denso com o cheiro de esterco humano que os fazendeiros
regavam com água e punham a conchadas sobre as plantas com
todo o amor e carinho.
- O arroz nos dá alimento para comer, Anjin-san, tatamis
para dormir, sandálias com que andar, roupas para nos proteger
da chuva e do frio, sapé para manter as nossas casas aquecidas,
papel para escrever. Sem arroz não podemos existir.
- Mas o mau cheiro, Mariko-san!
- Esse é um preço pequeno a pagar por tanta generosidade,
neh? Faça apenas o que fazemos, abra os olhos, os ouvidos e a
mente. Ouça o vento e a chuva, os insetos e os pássaros, escute as
plantas crescendo, e, mentalmente, veja as suas gerações seguindo
até o fim dos tempos. Se fizer isso, Anjin-san, logo estará aspirando
apenas o encanto da vida. Exige prática. .. mas o senhor se torna
muito japonês, neh?
- Ah, obrigado, senhora! Mas devo confessar que estou
começando a gostar de arroz. Sim. Certamente prefiro arroz e
batatas e, quer saber de outra coisa? Não sinto falta de carne
como sentia. Isso não é estranho? Não sinto tanta fome quanto
antes.
- Eu sinto mais fome do que nunca.
- Ah, eu estava falando de comida.
- Ah, eu também ...
A três dias do passo de Hakoné, o período mensal dela começara e ela pedira a ele que tomasse uma das criadas da hospedaria. - Seria prudente, Anjin-san.
- Prefiro não fazer isso, sinto muito.
- Por favor, eu lhe peço. É uma salvaguarda. Uma discrição.
862
- Já que você me pede, então sim. Mas amanhã, não esta
noite. Esta noite vamos dormir em paz.
Sim, pensou Mariko, naquela noite dormimos pacificamente
e o amanhecer seguinte foi tão fascinante, que eu me sentei na
varanda com Chimmoko e assisti ao nascimento de mais um dia.
- Ah, bom dia, Senhora Toda - dissera Gyoko, curvandose, à sua espera na entrada do jardim. - Um deslumbrante
amanhecer, neh?
- Sim, lindo.
- Por favor, posso interrompê-la? Poderia lhe falar em
particular... a sós? Sobre um assunto de negócios.
- Naturalmente. - Mariko deixara a varanda, não desejando perturbar o sono do Anjin-san. Mandara Chimmoko buscar
chá e ordenara que se colocassem mantas sobre o gramado, perto
da pequena queda-d'água.
Quando foi correto começar e elas ficaram sozinhas, Gyoko
disse: - Estive considerando de que modo eu poderia ser de
mais valia para Toranaga-sama.
- Os mil kokus seriam mais que generosos.
- Três segredos poderiam ser mais.
- Um, talvez, Gyoko-san, se fosse o segredo correto.
- O Anjin-san é um bom homem, neh? O futuro dele deve
ser ajudado também, neh?
- O Anjin-san tem o seu próprio karma - replicara ela,
sabendo que chegara o momento de negociar, perguntando-se o
que devia conceder, se é que ousaria conceder alguma coisa. -
Estávamos falando sobre o Senhor Toranaga, neh? Ou um dos
segredos é sobre o Anjin-san?
- Oh, não, senhora. É como a senhora diz. O Anjin-san tem
o seu próprio karma, assim como estou certa de que ele tem seus
próprios segredos. Só me ocorreu que o Anjin-san é um dos
vassalos favoritos do Senhor Toranaga, portanto qualquer proteção que o nosso senhor tenha em certo sentido ajuda a seus vassalos, neh?
- Concordo. Naturalmente é dever dos vassalos transmitir
qualquer informação que pudesse ajudar o seu senhor.
- É verdade, senhora, muito verdade. Ah, é uma honra tão
grande para mim servi-la. Honto. Posso dizer-lhe de como fiquei
honrada em ser autorizada a viajar com a senhora, conversar
com a senhora, comer e rir com a senhora, e ocasionalmente agir
como uma modesta conselheira, por menos à altura que eu seja,
pelo que peço desculpas. E finalmente dizer que a sua sabedoria
863
é tão grande quanto a sua beleza, e a sua bravura tão vasta quanto
a sua posição.
- Ah, Gyoko-san, por favor, desculpe-me, a senhora é
muito gentil, muito atenciosa. Sou apenas a esposa de um dos
generais do meu senhor. Estava dizendo? Quatro segredos?
- Três, senhora. Eu estava me perguntando se a senhora
intercederia junto ao Senhor Toranaga por mim. Seria impensável
que eu sussurrasse diretamente a ele o que sei ser verdadeiro.
Seria muita falta de educação, porque eu não saberia as palavras
certas a escolher, ou como colocar a informação diante dele, e
em qualquer caso, num assunto de qualquer importância, o nosso
costume de usar um intermediário é tão melhor, neh?
- Kiku-san não seria melhor escolha? Não tenho como
saber quando serei chamada ou dentro de quanto tempo terei uma
audiência com ele, ou mesmo se ele estaria interessado em ouvir
qualquer coisa que eu pudesse ter para lhe dizer.
- Por favor, desculpe-me, senhora, mas a senhora seria
extraordinariamente melhor. Poderia julgar o valor da informação, ela não. A senhora possui o ouvido, ela, outras coisas.
- Não sou conselheira, Gyoko-san. Nem avaliadora.
- Eu diria que eles valem mil kokus.
- So desu ka?
Gyoko certificou-se perfeitamente de que ninguém estava
ouvindo, depois contou a Mariko o que o padre cristão renegado
murmurara que o Senhor Onoshi lhe havia sussurrado ao confessionário, e que ele relatara ao tio, o Senhor Harima; depois o que
o segundo cozinheiro de Omi ouvira da conspiração de Omi e
sua mãe contra Yabu; e por último, tudo o que sabia sobre Zataki,
sua aparente luxúria pela Senhora Ochiba, e sobre Ishido e a
Senhora Ochiba.
Mariko ouvira atentamente sem fazer comentário - embora
romper o sigilo do confessionário a chocasse grandemente -, a
mente dançando ante o enxame de possibilidades que aquelas
informações desvendavam. Depois interrogou mais uma vez Gyoko
com cuidado, para ter certeza de que entendera claramente o que
lhe estava sendo dito e gravá-lo completamente na própria memória.
Quando ficou satisfeita, achando que sabia tudo o que Gyoko
estava preparada para divulgar no momento - pois, obviamente,
uma negociante tão astuta sempre conservaria muito de reserva
-, mandou buscar chá.
864
Serviu pessoalmente a xícara de Gyoko, e tomaram o chá
com gravidade afetada. Ambas cautelosas, ambas confiantes.
- Não tenho meio de saber quão valiosa é essa informação,
Gyoko-san.
- Naturalmente, Mariko-sama.
- Imagino que essa informação - e os mil kokus - agradariam grandemente ao Senhor Toranaga.
Gyoko engoliu a obscenidade que lhe relampejou por trás dos
lábios. Esperara uma redução substancial no lance inicial. -
Desculpe, mas o dinheiro não tem significado para tal daimio,
embora seja uma herança para uma camponesa como eu - mil
kokus me tornam uma ancestral, neh? Sempre se deve saber o que
se é, Senhora Toda. Neh? - Seu tom de voz tinha farpas.
- Sim. É bom saber o que a senhora é, e quem é, Gyokosan. Esse é um dos raros dons que a mulher tem sobre o homem.
Uma mulher sempre sabe. Felizmente eu sei o que sou. Oh, sim,
muito. Por favor, vá ao ponto.
Gyoko não vacilou sob a ameaça, mas revidou o ataque com
uma concisão descortês correspondente. - O ponto é que ambas
conhecemos a vida e compreendemos a morte, e ambas acreditamos que o tratamento no inferno e em qualquer outro lugar
depende de dinheiro.
- Acreditamos?
- Sim. Sinto muito, acho que mil kokus é demais.
- A morte é preferível?
- Já escrevi o meu poema de morte, senhora:
"Quando eu morrer,
não me queimem,
nao me enterrem,
simplesmente atirem meu corpo num campo
para cevar algum cão de barriga vazia".
- Isso poderia ser providenciado. Facilmente.
- Sim. Mas tenho ouvidos aguçados e uma língua segura,
o que poderia ser mais importante.
Mariko serviu mais chá. Para si mesma. - Desculpe, tem
mesmo?
- Oh, sim, muito. Por favor, desculpe-me, mas não é ostentação dizer que fui bem treinada, senhora, nisso e em muitas
outras coisas. Não tenho medo de morrer. Escrevi o meu testamento, e detalhei instruções aos meus parentes para o caso de
865
uma morte repentina. Fiz as pazes com os deuses há muito tempo,
e quarenta dias depois de morrer sei que renascerei. Se não renascer - a mulher deu de ombros -, então serei um kami. - O
leque dela estava parado. - Portanto posso me permitir aspirar
à lua, neh? Por favor, desculpe-me por mencionar isto, mas sou
como a senhora: não temo nada. Mas, ao contrário da senhora
nesta vida, não tenho nada a perder.
- Tanta conversa sobre coisas más, Gyoko-san, numa manhã tão agradável. Está agradável, neh? - Mariko preparou-se
para cravar as presas. - Eu preferiria muitíssimo vê-Ia viva, vivendo até uma velhice honrada, um dos sustentáculos da sua nova
corporação. Ah, essa foi uma idéia de muita sensibilidade. Muito
boa, Gyoko-san.
- Obrigada, senhora. Eu igualmente gostaria de vê-Ia segura e feliz e prosperando do modo como a senhora quisesse.
Com todos os brinquedos e honras de que necessitasse.
- Brinquedos? - repetiu Mariko, perigosa agora.
Gyoko era como um cão de faro treinado. - Sou apenas
uma camponesa, senhora, por isso não saberia que honras a senhora desejaria, que brinquedos a agradariam. Nem ao seu filho.
Sem que nenhuma das duas notasse, o delgado cabo de
madeira do leque de Mariko quebrou-se entre os seus dedos. A
brisa morrera. Agora o ar quente e úmido pairava sobre o jardim
que dava para um mar sem ondas. Moscas enxamearam e pousaram e enxamearam de novo.
- De que... que honras ou brinquedos a senhora gostaria?
Para si mesma? - Mariko encarou-a com uma fascinação malévola, claramente consciente agora de que precisava destruí-la ou
seu filho pereceria.
- Nada para mim mesma. O Senhor Toranaga concedeume honras e riquezas para além dos meus sonhos. Mas para o
meu filho? Ah, sim, ele poderia ter uma mão que o auxiliasse.
- Que ajuda?
- Duas espadas.
- Impossível.
- Eu sei, senhora. Sinto muito. Tão fácil de conceder e no
entanto tão impossível. A guerra se aproxima. Muitos serão necessários para combater.
- Não haverá guerra agora. O Senhor Toranaga irá a
Osaka.
- Duas espadas. Não é pedir demais.
- Isso é impossível. Sinto muito, não cabe a mim dar isso.
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- Sinto muito, mas não pedi que a senhora concedesse
coisa alguma. Mas essa é a única coisa que me agradaria. Sim.
Nada mais. - Um fio de suor escorreu do rosto ao colo de
Gyoko. - Eu gostaria de oferecer ao Senhor Toranaga quinhentos kokus do preço do contrato, como símbolo da minha estima
nestes tempos difíceis. Os outros quinhentos irão para o meu filho.
Um samurai necessita de um legado, neh?
- Está condenando seu filho à morte. Todos os samurais
Toranaga morrerão ou se tornarão ronins muito em breve.
- Karma. Meu filho já tem filhos, senhora. Eles contarão
aos próprios filhos que um dia fomos samurais. Isso é tudo o que
importa, neh?
- Não cabe a mim dar isso.
- É verdade. Sinto muito. Mas isso é tudo o que me satisfaria.
Irritado, Toranaga meneou a cabeça. - A informação dela
é interessante, talvez, mas não vale que eu lhe faça o filho
samurai.
- Ela parece ser uma vassala leal, senhor - replicou Mariko. - Disse que ficaria honrada se o senhor deduzisse mais
quinhentos kokus do preço do contrato para alguns samurais necessitados.
- Isso não é generosidade. Não, em absoluto. É meramente
culpa pelo preço extorsivo que pediu originalmente.
- Talvez valha a pena considerar, senhor. A idéia dela
sobre a corporação, sobre as gueixas e as novas classes de cortesãs terá efeitos de longo alcance, neh? Talvez não houvesse mal
algum.
- Não concordo. Não. Por que deveria ela ser recompensada? Não há razão para conceder-lhe essa honra. Ridículo! Ela
certamente não lhe pediu isso, pediu?
- Teria sido mais que um pouco impertinente da parte dela
fazer isso, senhor. Fiz a sugestão porque acredito que ela poderia
lhe ser muito valiosa.
- É melhor que ela seja mais valiosa. Os segredos provavelmente também são mentiras. Atualmente ela não tem nada além
de mentiras. - Toranaga tocou um sininho e um escudeiro apareceu imediatamente à porta oposta.
- Senhor?
- Onde está a cortesã Kiku?
867
- Nos seus aposentos, senhor.
- A mulher Gyoko está com ela?
- Sim, senhor.
- Ponha as duas para fora do castelo. Imediatamente! Mande-as de volta para... Não, aloje-as numa hospedaria, numa hospedaria de terceira classe, e diga-lhes que esperem lá até que eu
mande chamá-Ias. - Quando o homem sumiu, Toranaga disse
irritado: - Nojento! Alcoviteiros querendo ser samurais? Camponeses imundos, não conhecem mais o seu lugar?
Mariko observou-o sentado sobre a almofada, o leque agitando-se irregularmente. Estava chocada com a mudança nele.
Abatimento, irritação e rabugice onde antes houvera sempre uma
animada confiança. Ouvira os segredos com interesse, mas não
com a animação que ela esperara. Pobre homem, pensou ela com
pena, desistiu. De que lhe serve qualquer informação? Talvez ele
seja sábio em pôr de lado as coisas do mundo e se preparar para
o desconhecido. Seria melhor que você também fizesse isso, pensou ela, morrendo internamente um pouquinho mais. Sim, mas
você não pode, ainda não, de algum modo você tem que proteger
o seu filho.
Estavam no sexto andar do alto torreão fortificado e as janelas davam para a cidade inteira, abrangendo três pontos cardeais. O pôr-do-sol estava escuro aquela noite, um filete de lua
baixo no horizonte, o ar úmido e sufocante, embora ali, quase
cem pés acima das muralhas do castelo, o aposento apanhasse
cada sopro de vento. A sala era baixa e fortificada, e tomava
metade do andar inteiro, com outras salas adiante.
Toranaga pegou o despacho que Hiro-matsu lhe enviara
por Mariko e leu-o de novo. Ela notou que a mão dele tremia.
- Para que ele quer vir a Yedo? - Com impaciência,
Toranaga atirou o pergaminho para um lado.
- Não sei, senhor, sinto muito. Só me pediu que lhe entregasse esse despacho.
- Você conversou com o renegado cristão?
- Não, senhor. Yoshinaka-san disse que o senhor tinha
dado ordens para que ninguém fizesse isso.
- Como esteve Yoshinaka durante a viagem?
- Muito capaz, senhor - disse ela, pacientemente respondendo à pergunta pela segunda vez. - Muito eficiente. Protegeu-nos muito bem e trouxe-nos exatamente no prazo.
- Por que o Padre Tsukku-san não voltou com vocês o
caminho todo?
868
- Na estrada de Mishima, senhor, ele e o Anjin-san discutiram - dissê-lhe Mariko, não sabendo o que o Padre Alvito
já poderia ter contado a Toranaga, se, de fato, Toranaga já tivesse
mandado chamá-lo. - O padre resolveu continuar a viagem sozinho.
- Sobre o que foi a discussão?
- Parcialmente sobre mim, minha alma, senhor. Na maior
parte por causa da inimizade religiosa deles e por causa da guerra
entre seus governantes.
- Quem começou?
- Os dois são igualmente responsáveis. Começou por causa
de um frasco de bebida. - Mariko contou-lhe o que se passara
com Rodrigues, depois continuou: - O Tsukku-san havia trazido uma segunda garrafa consigo, desejando, conforme disse,
interceder por Rodrigues-san, mas o Anjin-san disse, chocante e
abruptamente, que não queria nenhuma "bebida papista", preferia
saquê, e que não confiava em padres. O... o santo padre enfureceu-se, foi abrupto de modo igualmente chocante, dizendo que
nunca lidara com veneno, nunca o faria, e nunca poderia desculpar uma coisa dessas.
- Ah, veneno? Eles usam veneno como arma?
- O Anjin-san me disse que alguns deles sim, senhor. Isso
levou a palavras mais violentas e depois se puseram a se agredir
mutuamente sobre religião, a minha alma, católicos e protestantes... Saí para procurar Yoshinaka-san tão rápido quanto pude,
e ele interrompeu a discussão.
- Os bárbaros só causam problema. Os cristãos só causam
problema. Neh?
Ela não lhe respondeu. A petulância dele a perturbava. Não
era nada do seu feitio e parecia não haver razão para tal colapso
do seu lendário autocontrole. Talvez o choque de ser derrotado
seja demais para ele, pensou ela. Sem ele estamos todos liquidados, meu filho está liquidado, e o Kwanto logo estará em outras
mãos. A melancolia de Toranaga a estava contagiando. Ela notara
nas ruas e no castelo a mortalha que parecia pairar sobre a cidade inteira - uma cidade que era famosa pela sua alegria,
impudente bom humor, e encanto com a vida.
- Nasci no ano em que os primeiros cristãos chegaram e
desde então eles não pararam de atormentar o país - disse Toranaga. - Durante cinqüenta e oito anos, nada além de problemas.
Neh?
869
- Sinto muito que eles o tenham ofendido, senhor. Há mais
alguma coisa? Com a sua perm.. .
- Sente-se. Ainda não terminei. - Toranaga tocou o sino
de novo. A porta se abriu. - Mande Buntaro-san entrar.
Buntaro avançou. De cara fechada, ajoelhou-se e curvou-se.
Ela se curvou para ele estarrecida, pois ele não fizera menção de
tê-la notado.
Pouco antes Buntaro encontrara o seu cortejo ao portão do
castelo. Após uma breve saudação, dissera-lhe que devia se apresentar ao Senhor Toranaga imediatamente. O Anjin-san seria chamado mais tarde.
- Buntaro-san, pediu para me ver na presença de sua esposa o mais cedo possível?
- Sim, senhor.
- O que deseja?
- Humildemente peço-lhe permissão para cortar a cabeça
do Anjin-san - disse Buntaro.
- Por quê?
- Por favor, desculpe-me, mas eu... eu não gosto do modo
como ele olha para a minha mulher. Eu queria... queria dizer
isso diante dela, pela primeira vez, na sua frente. Além disso, ele
me insultou em Anjiro e não posso mais viver com essa vergonha.
Toranaga deu uma olhada em Mariko, que parecia ter congelado no tempo. - Acusa-a de encorajá-lo?
- Eu. .. eu peço permissão para tirar-lhe a cabeça.
- Acusa-a de encorajá-lo? Responda à pergunta!
- Por favor, desculpe-me, senhor, mas se eu achasse isso,
seria forçado pelo dever a tirar a cabeça dela imediatamente -
respondeu Buntaro como uma pedra, de olhos nos tatamis. - O
bárbaro é uma constante irritação à minha harmonia. Acredito
que ele seja um aborrecimento ao senhor. Deixe-me tirar-lhe a
cabeça, peço-lhe. - Levantou os olhos, as pesadas mandíbulas
por barbear, os olhos profundamente ensombrecidos. - Ou deixeme tomar minha esposa agora e esta noite iremos antes do senhor... para preparar o caminho.
- O que diz a isso, Mariko-san?
- Ele é meu marido. Qualquer coisa que decida é o que
eu farei - a menos que o senhor decida em contrário. Esse é o
meu dever.
Toranaga olhou do homem para a mulher. Depois sua voz
se endureceu, e por um instante foi como o Toranaga de antigamente. - Mariko-san, você partirá dentro de três dias para
870
Osaka. Vai preparar esse caminho para mim e me esperará lá.
Buntaro-san, você me acompanhará como comandante da minha
escolta quando eu partir. Depois de ter agido como meu auxiliar,
você ou um dos seus homens pode fazer o mesmo com o Anjinsan - com ou sem a aprovação dele.
Buntaro pigarreou. - Senhor, por favor, ordene Céu...
- Cale-se! Não sabe se comportar? Já lhe disse não três
vezes! Na próxima vez em que tiver a impertinência de oferecer
um conselho indesejável, você rasgará o ventre num monturo de
Yedo!
A cabeça de Buntaro tocou os tatamis. - Peço desculpas,
senhor. Peço desculpas pela minha impertinência.
Mariko ficou igualmente estarrecida com a falta de educação
de Toranaga, a vergonhosa explosão, e também se curvou profundamente para ocultar o próprio embaraço. Pouco depois Toranaga disse: - Por favor, desculpem-me o mau humor. Seu pedido
está concedido, Buntaro-san, mas só depois de ter agido como
meu assistente.
- Obrigado, senhor. Por favor, desculpe-me por tê-lo
ofendido.
- Ordenei que vocês fizessem as pazes. Fizeram?
Buntaro assentiu secamente. Mariko também.
- Bom. Mariko-san, você voltará com o Anjin-san esta
noite, à hora do Cão. Pode ir agora.
Ela se curvou e saiu.
Toranaga encarou Buntaro. -- Bem? Vocé a acusa?
- É ... é impensável que ela me traísse, senhor - respondeu Buntaro sombriamente.
- Concordo. - Toranaga afastou uma mosca com o leque,
parecendo muito cansado. - Bem, você terá a cabeça do Anjinsan dentro em breve. Preciso que ela esteja sobre os ombros dele
um pouco mais.
- Obrigado, senhor. Desculpe-me de novo por tê-lo irritado.
- Estes tempos são irritantes. Tempos abomináveis. - Toranaga inclinou-se para a frente. - Ouça, quero que você vá a
Mishima imediatamente para render seu pai por alguns dias. Ele
pede permissão para vir aqui consultar-se comigo. Não sei o
que... De qualquer modo, preciso ter alguém em Mishima em
quem eu possa confiar. Parta por favor ao amanhecer, mas via
Takato.
- Senhor? - Buntaro viu que Toranaga conservava a calma
871
apenas com um enorme esforço, e apesar da própria vontade a
voz tremia.
- Tenho uma mensagem particular para minha mãe em
Takato. Você não deve dizer a ninguém que irá lá. Mas assim
que estiver longe da cidade, rume para o norte.
- Compreendo.
- O Senhor Zataki pode impedi-lo de entregar a mensagem,
pode tentar impedir. Você deve entregá-la apenas nas mãos dela.
Compreendeu? Apenas a ela. Pegue vinte homens e parta a galope. Mandarei um pombo-correio para pedir um salvo-conduto
a ele.
- Sua mensagem será oral ou escrita, senhor?
- Escrita.
- E se eu não conseguir entregá-la?
- Tem que entregá-la, claro que tem. É por isso que estou
escolhendo você! Mas... se for traído como eu fui... se for
traído, destrua-a antes de se suicidar. No momento em que eu
receber essa má notícia, a cabeça do Anjin-san lhe rolará dos
ombros. E se... e Mariko-san? E a sua esposa, se alguma coisa
der errado?
- Por favor, mate-a, senhor, antes de
honrado se. .. Ela merece um assistente digno.
- Ela não morrerá desonrosamente, você tem a minha promessa. Providenciarei isso. Pessoalmente. Agora, por favor, volte
ao amanhecer para levar a mensagem. Não me falhe. Apenas nas
mãos de minha mãe.
Buntaro agradeceu-lhe de novo e saiu, envergonhado pela
demonstração de medo de Toranaga.
Sozinho agora, Toranaga puxou um lenço e enxugou o suor
do rosto. Seus dedos tremiam. Tentou controlá-los, mas não conseguiu. Exigira-ihe toda a força continuar se comportando como
o simplório estúpido, esconder a desmedida excitação com os
segredos, os quais, fantasticamente, prometiam a longamente ansiada prorrogação.
- Uma prorrogação possível, apenas possível... se for verdade - disse ele alto, quase incapaz de pensar, a surpreendentemente bem-vinda informação de Gyoko que Mariko trouxera
ainda a lhe guinchar no cérebro.
Ochiba, exultava ele. .. então essa hárpia é a isca para trazer o meu irmão aos trambolhões do seu ninho na montanha.
Meu irmão quer Ochiba. Mas agora é igualmente óbvio que ele
quer mais do que ela, e mais do que apenas o Kwanto. Quer
872
o reino. Ele detesta Ishido, tern aversão aos cristãos, e agora está
doente de ciúme devido à notória luxúria de Ishido por Ochiba.
Por isso ele vai se desavir com Ishido, Kiyama e Onoshi. Porque
o que o meu traiçoeiro irmão realmente deseja e tornar-se xógum.
E Minowara, com toda a linhagem necessária, toda a ambição,
mas não o mandato. Nem o Kwanto. Primeiro tem que conseguir
o Kwanto, para depois conseguir o resto.
Toranaga esfregou as mãos de alegria ante as maravilhosas
possibilidades novas que esse conhecimento recente lhe dava contra o irmão.
E Onoshi, o leproso! Uma gota de mel no ouvido de Kiyama
no momento exato, pensou ele, o teor da traição do renegado
alterado um pouco, melhorado modestamente, e Kiyama poderia
reunir suas legiões e imediatamente cair a ferro e fogo em cima
de Onoshi, "Gyoko tem toda a certeza, senhor. O Irmão José disse
que o Senhor Onoshi sussurrou no confessionário que havia feito
um acordo secreto com Ishido contra um daimio cristão amigo,
e queria absolvição. O acordo solenemente combinava que, em
troca de apoio agora, Ishido prometia que, no dia em que o senhor estiver morto, esse cristão amigo seria impedido por traição
e convidado a partir para o Vazio; no mesmo dia, à força se
necessário, o filho e herdeiro de Onoshi herdaria todas as terras.
O nome do cristão não foi pronunciado, senhor."
Kiyama ou I-larima de Nagasaki? perguntou-se Toranaga.
Não tem importância. Para mim deve ser Kiyama.
Levantou-se trêmulo, apesar do seu júbilo, dirigiu-se a uma
das janelas e apoiou-se pesadamente ao peitoril de madeira. Esquadrinhou a lua e o céu além. As estrelas estavam baças. Nuvens
de chuva se formavam.
- Buda, todos os deuses, quaisquer deuses, deixem meu
irmão morder a isca - e façam os cochichos daquela mulher
serem verdadeiros!
Nenhuma estrela cadente apareceu para mostrar que os deuses haviam tomado conhecimento da mensagem. Nenhum vento
surgiu, nenhuma nuvem súbita obscureceu a lua crescente. Mesmo
que tivesse havido um sinal celeste, ele o teria ignorado como
coincidência.
Seja paciente. Considere apenas os fatos. Sente-se e pense,
disse a si mesmo.
Sabia que o esforço estava começando
era vital que nenhum dos seus íntimos ou
873
morrer.
Eu ficaria
a
agir sobre ele, mas
vassalos - portanto
nenhum da legião de imbecis de lingua frouxa ou espiões em
Yedo - suspeitasse um instante que ele estava apenas fingindo
capitulação e representando o papel de um homem derrotado.
Em Yokosé ele percebera de irnediato que aceitar o segundo pergaminho do irmão era o seu dobre de morte. Resolvera que a sua
única e minúscula chance de sobrevivência era convencer a todo
mundo, até a si mesmo, que aceitara totalmente a derrota, embora na realidade isso fosse uma dissimulação para ganhar tempo,
continuando o esquema que usara a vida toda, de negociação,
adiamento, e aparente retirada, sempre esperando pacientemente
até que uma fenda na armadura aparecesse acima de uma jugular,
depois cravando a faca violentamente, sem hesitação.
Desde Yokosé ele esperava, ao longo de dias e noites de
vigília solitária, cada dia mais difícil de suportar. Nada de caça
ou riso, nada de conspiração, planejamento, natação, gracejos,
dança ou canto nas peças no que o encantaram a vida toda. Apenas o mesmo papel solitário, o mais difícil da sua vida: melancolia, rendição, indecisão, aparente desamparo, com semi-inanição
auto-imposta.
Para ajudar a passar o tempo, continuara a burilar o Legado.
Tratava-se de uma série de instruções secretas particulares aos
seus sucessores, que ele vinha formulando ao longo dos anos,
sobre o melhor modo de governar depois dele. Sudara já havia
jurado conformar-se ao Legado, assim como cada herdeiro seria
solicitado a fazer. Desse modo o futuro do clã estaria garantido
- pode ser garantido, lembrou-se Toranaga enquanto trocava
uma palavra ou acrescentava uma frase ou elinrinava um parágrafo, desde que eu escape desta armadilha atual.
O Legado começava assim: "O dever do senhor de uma província é dar paz e segurança ao povo e não consiste em fazer
resplandecer os seus ancestrais ou trabalhar para a prosperidade
dos seus descendentes..."
Uma das máximas era: "Lembre-se de que a fortuna e o
infortúnio devem ser deixados ao céu e à lei natural. Não devem
ser comprados por oração ou qualquer ardil astucioso a ser pensado por qualquer homem ou santo por atribuição própria".
Toranaga eliminou "...ou santo por atribuição própria" e
mudou a frase de modo a terminar em "...por qualquer homem
que seja".
Normalmente ele apreciaria esforçar a mente para escrever
clara e sucintamente, mas durante os longos dias e noites fora-lhe
874
necessária toda a autodisciplina para continuar a desempenhar
esse papel tão estranho.
O fato de ter tido êxito lhe agradava, mas o desanimava.
Como as pessoas podiam ser tão ingênuas?
Agradeça aos deuses por elas o serem - respondeu a si
mesmo pela milionésima vez. Aceitando a "derrota" você evitou
a guerra duas vezes. Ainda está encurralado, mas agora, finalmente, a sua paciência trouxe a recompensa e você tem uma nova
chance.
Talvez você tenha uma chance, corrigiu-se ele. A menos que
os segredos sejam falsos e dados por um inimigo para emaranhar
você ainda mais.
O peito começou a doer, ele se sentiu fraco e com vertigem,
então sentou e respirou fundo, conforme seus professores zen lhe
haviam ensinado anos atrás. "Dez fundos, dez lentos, dez fundos,
dez lentos, envie a mente para o Vazio. Não há passado nem
futuro, calor nem frio, dor nem alegria - do nada, para o
nada..."
Logo começou a pensar- com clareza de novo. Então dirigiu-se para a sua mesa e começou a escrever. Pediu à mãe que
agisse como intermediária entre ele e o meio irmão, e apresentasse uma oferta para o futuro do clã. Primeiro solicitava ao
irmão que considerasse um casamento com a Senhora Ochiba:
.claro que seria impensável que cu fizesse isso, irmão. Muitos
daimios ficariam enfurecidos com a minha `ambição exagerada'.
Mas tal ligação com você consolidaria a paz do reino, e confirmaria a sucessão de Yaemon - ninguém duvida da sua lealdade,
embora alguns, erroneamente, duvidem da minha. Você certamente poderia encontrar uma esposa mais conveniente, mas ela
dificilmente conseguiria encontrar um marido melhor. Uma vez
que os traidores de Sua Alteza Imperial sejam eliminados, e eu
reassuma o meu legítimo lugar de presidente do conselho de regentes, convidarei o Filho do Céu a exigir o casamento, se você
concordar em assumir tal encargo. Sinceramente penso que esse
sacrifício é o único meio de podermos ambos assegurar a sucessão
e cumprir o juramento que fizemos ao táicum. Em segundo lugar,
ficam-lhe oferecidos todos os domínios dos traidores cristãos
Kiyama e Onoshi, que atualmente conspiram, com os padres bárbaros, uma guerra traiçoeira contra todos os daimios não-cristãos,
apoiados por uma invasão de bárbaros armados com mosquetes,
como fizeram antes contra o nosso suserano, o táicum. Depois,
ficam-lhe oferecidas todas as terras de quaisquer outros cristãos
875
de Kyushu que se alinhem ao lado do traidor Ishido contra mim
na batalha final. (Você soube que esse camponês arrivista teve a
impertinência de fazer saber que, assim que eu estiver morto e ele
governar os regentes, planeja dissolver o conselho e se casar com
a mãe do herdeiro?)
"Em troca do citado acima, apenas isto, irmão: um tratado
de aliança secreto agora, passagem garantida para os meus exércitos através das montanhas de Shinano, um ataque conjunto sob
o meu comando a Ishido no momento e do modo que eu escolher. Por último, como medida da minha confiança, mandarei
imediatamente o meu filho Sudara, sua esposa, a Senhora Genjiko, e os filhos deles, inclusive o meu único neto, a você em
Takato... "
Isto não é obra de um homem derrotado, disse-se Toranaga
ao lacrar o pergaminho. Zataki notará imediatamente. Sim, mas
agora a armadilha está montada. Shinano está atravessada no meu
único caminho, e Zataki é a chave inicial aos planos de Osaka.
Será verdade que Zataki deseja Ochiba? Arrisco tanto sobre
os supostos sussurros de uma criada de pernas arreganhadas e um
homem grunhindo. Gyoko poderia estar mentindo em vantagem
própria, aquela sanguessuga impertinente! Samurai? Então essa é
a verdadeira chave para lhe destrancar todos os segredos.
Ela deve ter prova de Mariko com o Anjin-san. Por que
outro motivo Mariko me faria uma solicitação assim? Toda Mariko e o bárbaro! O bárbaro e Buntaro! Iüüh, a vida é estranhá.
Outra pontada no coração alquebrou-o. Após um momento,
escreveu a mensagem para o pombo-correio e subiu com dificuldade os degraus até o pombal. Cuidadosamente selecionou um
pombo Takato num dos muitos cestos e introduziu o minúsculo
cilindro. Depois pôs o pombo sobre o poleiro na caixa aberta que
permitiria à ave levantar vôo à primeira luz.
A mensagem pedia à mãe que solicitasse passagem em segurança para Buntaro, que levava um importante despacho para
ela e para Zataki. E assinou-a, como à oferta, "Yoshi Toranaganoh-Minowara", ostentando o título pela primeira vez na vida.
- Voe no rumo correto, avezinha - disse ele, acariciando-a
com uma pena quebrada. - Você carrega uma herança de dez
mil anos.
Mais uma vez seus olhos foram para a cidade lá embaixo.
Uma ínfima faixa de luz aparecia no horizonte a oeste. Junto aos
embarcadouros, viu os minúsculos archotes que rodeavam o navio
bárbaro.
876
L á está outra chave, pensou ele, e começou a repensar os
três segredos. Sabia que alguma coisa lhe escapara.
-- Gostaria que Kiri estivesse aqui - disse à noite.
Mariko estava ajoelhada diante do seu espelho de metal polido. Desviou o olhar do rosto. Nas suas mãos estava a adaga,
captando a luz bruxuleante. - Eu deveria usá-la - disse, cheia
de pesar. Seus olhos buscaram Nossa Senhora e a Criança no
nicho ao lado do belo ramo de flores, e se encheram de lágrimas.
- Sei que suicídio é pecado mortal, mas o que posso fazer?
Como posso viver com esta vergonha? E melhor que eu o faça
antes de ser traída.
O quarto estava silencioso como a casa. Era a casa da família, construída dentro do anel mais interno de defesa, atrás do
largo fosso em torno do castelo, onde apenas os hatamotos favoritos e dignos de confiança tinham autorização de morar. Rodeando a casa havia um jardim cercado de bambu e atravessado
por um minúsculo riacho desviado da abundância de águas que
rodeavam o castelo. Ela ouviu passos. O portão da frente rangeu
e houve o sem de criados acorrendo para saudar o amo. Rapidamente ela enfiou a faca no obi e enxugou as lágrimas. Logo
houve mais passos e ela abriu a porta, curvando-se polidamente.
Mal-humorado, Buntaro dissê-lhe que Toranaga mudara de
idéia novamente, que agora lhe ordenara que fosse temporariamente para Mishima. - Partirei ao amanhecer. Quis desejar-lhe
uma viagem segura. .. - Parou e observou-a, atento. - Por que
está chorando?
- Desculpe-me, senhor. E só porque sou uma mulher e a
vida me parece muito difícil. E por causa de Toranaga-sarna.
- Ele é um junco quebrado. Envergonho-me de dizer. Terrível, mas foi isso o que ele se tornou. Devíamos ir à guerra.
Muito melhor ir à guerra do que saber que o único futuro que
tenho é ver a cara imunda de Ishido rindo do meu karma!
- Sim, sinto muito. Gostaria que houvesse alguma coisa
que eu pudesse fazer para ajudar. O senhor tomaria saque ou chá?
Buntaro voltou-se e berrou a um criado que esperava no
corredor. - Traga saque! Depressa!
Entrou no quarto. Mariko fechou a porta. Ele parou junto
da janela, olhando para os muros do castelo e o torreão além.
- Por favor, não se preocupe, senhor - disse ela apaziguadora. - O banho está pronto e mandei chamar a sua favorita.
877
Ele manteve os olhos no torreão, alterado. Depois disse:
- Ele deveria renunciar em favor do Senhor Sudara, se não tem
mais estômago para a liderança. O Senhor Sudara é filho dele e
herdeiro legal, neh? Neh?
- Sim, senhor.
- Sim. Ou, melhor ainda, ele devia fazer conforme Zataki
sugeriu. Cometer sepukku. Aí teríamos Zataki e seus exércitos
lutando conosco. Com eles e os mosquetes, poderíamos esmagar
o inimigo até Kyoto, sei que poderíamos. Ainda que falhássemos,
seria melhor que desistir como imundos e covardes comedores de
alho! Nosso amo perdeu todos os seus direitos. Neh? NEH?
- Voltou-se bruscamente para ela.
- Por favor, desculpe-me... não cabe a mim dizer isso.
Ele é nosso suserano.
Buntaro deu-lhe as costas de novo, meditando, fitando o
torreão. Luzes tremulavam em todos os níveis. Particularmente
no sexto. - Minha sugestão ao conselho dele é convidá-lo a partir, e se ele não fizer isso... ajudá-lo. Há precedentes suficientes!
Há muitos que compartilham da minha opinião, mas não o Senhor
Sudara, ainda não. Talvez o faça secretamente, quem sabe, quem
sabe o que ele realmente pensa? Quando você encontrar a esposa
dele, quando encontrar a Senhora Genjiko, converse com ela,
convença-a. Depois ela o convencerá - ela o traz pelo nariz,
neh? Vocês são amigas, ela a ouvirá. Convença-a.
Penso que isso seria muito grave, senhor. É traição.
Ordeno-lhe que converse com ela!
Obedecerei.
Sim, obedecerá a uma ordem, não? - vociferou ele.
- Obedecer? Por que você é sempre tão fria e amarga? Hem?
- Ele agarrou o espelho e o colocou com um repelão à frente
dela. - Olhe-se!
- Por favor, desculpe se o desagrado, senhor. - A voz
dela foi firme e ela desviou o olhar do espelho para encará-lo.
- Não desejo enfurecê-lo.
Ele a observou um instante, depois repentinamente arremessou o espelho de volta à mesa laqueada. - Eu não a acusei. Se
eu achasse isso eu. .. eu não hesitaria.
Mariko ouviu-se revidar, de modo imperdoável. - Não hesitaria em fazer o quê? Matar-me, senhor? Ou deixar-me viver para
me envergonhar mais?
- Não a acusei, apenas a ele! - berrou Buntaro.
878
- Mas eu o acuso! - guinchou ela de volta. - E o senhor
me acusou!
- Cale a boca!
- Envergonhou-me na frente do nosso senhor! Acusou-me
e não cumprirá o seu dever! Tem medo! O senhor é um covarde!
Um imundo covarde e comedor de alho!
A espada dele voou para fora da bainha e ela exultou com
o fato de finalmente ter ousado levá-lo além dos limites.
Mas a espada continuou assestada no ar. - Eu. .. eu tenho
a sua... tenho a sua promessa diante do seu... seu Deus, em
Osaka. Antes de... de irmos para a morte... tenho a sua promessa e eu... eu exijo que você a cumpra!
A ardilosa risada dela foi estridente e malévola. - Oh, sim,
poderoso senhor. Serei sua almofada só mais uma vez, mas a sua
acolhida será seca, amarga e rançosa!
Ele golpeou cegamente com a força de duas mãos uma coluna a um canto e a lâmina quase cortou em duas a trave de
madeira com a espessura de um pé. Ele puxou com violência,
mas a espada resistiu. Alucinado, ele a torceu, lutando por soltá-la,
até que a lâmina se partiu. Com uma última imprecação, ele atirou o cabo quebrado através da frágil parede e dirigiu-se cambaleante para a porta. O trêmulo criado erguia-se ali com a bandeja e o saque. Buntaro mandou a bandeja pelos ares com um
murro. Imediatamente o criado se ajoelhou, encostou a cabeça ao
chão, e se imobilizou.
Buntaro apoiou-se ao esqueleto da porta destroçada. - Espere... espere até Osaka.
Arrastou-se para fora da casa.
Mariko permaneceu imóvel durante algum tempo, aparentemente em transe. Depois a cor começou a voltar-lhe ao rosto.
Seus olhos tornaram a enxergar. Silenciosamente voltou ao espelho. Estudou o próprio reflexo um instante. Depois, absolutamente calma, acabou de se maquilar.
Blackthorne subiu correndo, de dois em dois degraus, seu
guarda consigo. Encontravam-se na escada principal, dentro do
torreão, e ele se sentia contente por não estar estorvado pelas
espadas. Entregara-as formalmente no pátio aos primeiros guardas, que também o haviam revistado polida mas completamente.
Archotes iluminavam a escada e os patamares. No quarto pata879
mar parou, quase explodindo de animação contida, e chamou:
- Mariko-san, a senhora está bem?
- Sim, sim. Estou ótima, obrigada, Anjin-san.
Ele começou a subir de novo, sentindo-se leve e muito forte,
até atingir o último patamar no sexto andar. Aquele andar estava
pesadamente guardado como todos os outros. Seu samurai de
escolta aproximou-se dos outros agrupados junto à última porta
fortificada com ferro e curvou-se. Retribuíram-lhe a reverência e
fizeram sinal a Blackthorne que esperasse.
Todo o trabalho em ferro e madeira no castelo inteiro era
excelente. Ali no torreão, todas as janelas, embora delicadas e
elevadas, também serviam de posições para arqueiros, e havia
pesados postigos cobertos de ferro, prontos para se fecharem para
maior proteção.
Mariko contornou o último ângulo da escada facilmente defendível e os alcançou.
- Está bem? - perguntou ele.
- Oh, sim, obrigada - respondeu ela, ligeiramente sem
fôlego. Mas ainda possuía a mesma curiosa serenidade e desinteresse que ele notara imediatamente quando a encontrara no
pátio, mas que nunca vira antes.
Não tem importância, pensou ele confiantemente, é só o
castelo e Toranaga e Buntaro e o fato de estar aqui em Yedo.
Sei o que fazer agora.
Desde que vira o Erasmus, fora dominado por uma imensa
alegria. Na realidade nunca esperara encontrar o seu navio tão
perfeito, tão limpo, cuidado e pronto. Quase não há motivo para
ficar em Yedo agora, pensara ele. Vou só dar uma olhada rápida
lá embaixo, para examinar os porões, um mergulho para examinar a quilha, depois as armas, a sala de pólvora, munição e velas.
Durante a viagem para Yedo ele planejara como usar seda grossa
ou tecido de algodão para fazer velas; Mariko lhe dissera que
não existia lona no Japão. É tratar de utilizar as velas disponíveis,
casquinou ele, e quaisquer outros sobressalentes de que necessitemos, depois zarpar para Nagasaki, como um dardo relâmpago.
- Anjin-san! - O samurai estava de volta.
- Hai?
- Dozo.
A porta fortificada girou nos gonzos silenciosamente. Toranaga estava sentado na outra extremidade da sala quadrada, sobre
um elevado forrado de tatamis. Sozinho.
880
Blackthorne ajoelhou-se e se curvou profundamente, as mãos
estendidas no chão. - Konbanwa, Toranaga-sarna. Ikaga desu ka?
- Okagesana de genki desu. Anata wa?
Toranaga parecia mais velho e sem viço, e muito mais magro
do que antes. Shigata ga nai, disse Blackthorne a si mesmo. O
karma de Toranaga não vai afetar o Erasmus - o navio será o
seu salvador, por Deus.
Respondeu às perguntas-padrão de Toranaga num japonês
simples de boa pronúncia, usando uma técnica simplificada que
desenvolvera com a ajuda de Alvito. Toranaga cumprimentou-o
pelo progresso e começou a falar mais depressa.
Blackthorne usou uma das frases de reserva que havia elaborado com Alvito e Mariko: - Por favor, desculpe-me, senhor,
como o meu japonês não é bom, poderia falar mais devagar e
usar palavras simples, assim como eu tenho que usar palavras
simples? Por favor, desculpe-me por lhe causar tanto incômodo.
Está bem. Sim, certamente. Diga-me, o que achou de
Yokosé?
Blackthorne respondeu, acompanhando-o, as respostas vacilantes, o vocabulário ainda muito limitado, até que Toranaga fez
uma pergunta cujas palavras-chave ele perdeu inteiramente. -
Dozo? Gomen nasal, Toranaga-sarna - disse desculpando-se.
- Wakarimasen.
Toranaga repetiu numa linguagem mais simples. Blackthorne
olhou para Mariko. - Sinto muito, Mariko-san, o que é "sonkei
su beki umi"?
- "Em condição de navegar", Anjin-san.
- Ah! Domo. - Blackthorne voltou-se. O daimio perguntara
se ele poderia se certificar rapidamente de que o navio estava em
total condição de navegar, e quanto tempo isso levaria. Ele respondeu: - Sim, fácil. Meio dia, senhor.
Toranaga pensou um instante, depois dissê-lhe que fizesse
isso no dia seguinte e se apresentasse a ele à tarde, durante a hora
do Bode. - Wakarimasu?
- Hai.
- Então você poderá ver os seus homens - acrescentou
7 3ranaga.
- Senhor?
- Os seus vassalos. Mandei chamá-lo para lhe dizer que
amanhã você terá os seus vassalos.
- Ah, desculpe, compreendi. Vassalos samurais. Duzentos
homens.
881
- Sim. Boa noite, Anjin-san. Vê-lo-ei amanhã.
- Por favor, desculpe-me, senhor, posso respeitosamente
perguntar três coisas?
- O quê?
- Primeiro: possível ver minha tripulação agora, por favor?
Poupar tempo, neh? Por favor.
Toranaga concordou e deu uma ordem curta a um dos samurais para que guiasse Blackthorne. - Leve uma guarda de
dez homens. Leve o Anjin-san lá e traga-o de volta ao castelo.
- Sim, senhor.
- Depois, Anjin-san?
- Por favor, possível conversar sozinho? Pouco tempo. Por
favor, desculpe minha rudeza. - Blackthorne tentou não demonstrar a ansiedade quando Toranaga perguntou a Mariko do que
se tratava. Ela respondeu sinceramente que só sabia que o Anjinsan tinha alguma coisa particular a dizer, mas que não perguntara
o que era.
- Tem certeza de que estará correto que eu peça a ele,
Mariko-san? - dissera Blackthorne quando começaram a subir
os degraus.
- Oh, sim. Desde que o senhor espere até ele terminar.
Mas esteja certo de saber exatamente o que vai dizer, Anjin-san.
Ele está... ele não está tão paciente quanto normalmente é.
- Ela não perguntara o que ele queria perguntar, e ele não dissera nada.
- Muito bem, Anjin-san - disse Toranaga. - Por favor,
espere lá fora, Mariko-san. - Ela se curvou e saiu. - Sim?
- Sinto muito ouvir Senhor Harima de Nagasaki agora
inimigo.
Toranaga se surpreendeu, pois ficara sabendo do compromisso público de Harima com Ishido apenas quando chegara a
Yedo. - Onde obteve essa informação?
- Por favor?
Toranaga repetiu a pergunta mais devagar.
- Ah! Compreendo. Ouvi sobre Senhor Harima em Hakoné.
Gyoko-san nos diz. Gyoko-san ouvir em Mishima.
- Essa mulher é bem informada. Talvez bem informada
demais.
Senhor?
Nada. Continue. O que há com o Senhor Harima?
Senhor, posso respeitosamente dizer: meu navio, grande
arma contra Navio Negro, neh? Se eu tomo Navio Negro bem
882
rápido - padres muito zangados porque não dinheiro cristão
aqui - não dinheiro também português outras terras. Ano passado não Navio Negro aqui, por isso não dinheiro, neh? Se agora
tomar Navio Negro rápido, muito rápido, e também próximo ano,
todos padres grande medo. Essa é a verdade, senhor. Penso padres
devem ceder se se ameaçar. Padres deste jeito para Toranagasama! - Blackthorne fechou a mão como quem agarra, para ser
mais claro.
Toranaga ouvira atentamente, observando-lhe os lábios, assim
como ele fazia o mesmo. - Estou acompanhando, mas para quê,
Anjin-San?
- Senhor?
Toranaga adotou o mesmo esquema de usar poucas palavras:
- Para obter o quê? Pegar o quê? Conseguir o quê?
- Senhor Onoshi, Senhor Kiyama e Senhor Harima.
- Então você quer interferir na nossa política, como os
padres? Também acha que sabe como nos governar, Anjin-san?
- Sinto muito, por favor, desculpe, não compreendo.
- Não tem importância. - Toranaga pensou um longo
tempo, depois disse: - Os padres dizem que não têm poder para
dar ordens aos daimios cristãos.
- Não verdade, senhor, por favor, desculpe. Dinheiro grande poder sobre padres. É a verdade, senhor. Se não Navio Negro
este ano, e no próximo ano também não Navio Negro, ruína.
Muito, muito mau para padres. É a verdade, senhor. Dinheiro é
poder. Por favor, considere: com Céu Carmesim ao mesmo tempo
ou antes, eu ataco Nagasaki. Nagasaki inimigo agora, neh? Tomo
Navio Negro e ataco rotas marítimas entre Kyushu e Honshu.
Talvez ameaça suficiente para transformar inimigo em amigo?
- Não. Os padres pararão o comércio. Não estou em guerra
com os padres nem com Nagasaki. Oü com ninguém. Vou a
Osaka. Não haverá Céu Carmesim. Wakarimasu?
- Hai. - Blackthorne não se perturbou. Sabia que agora
Toranaga compreendia claramente que essa possível tática certamente esvaziaria uma larga proporção das forças de KiyamaOnoshi-Harima, todas baseadas em Kyushu. E o Erasmus certamente poderia destroçar qualquer transferência de tropa marítima
em larga escala, daquela ilha para a ilha principal. Tenha paciência, advertiu a si mesmo. Deixe Toranaga pensar no assunto.
Talvez seja como Mariko diz: há um longo tempo entre aqui e
Osaka, e quem sabe o que pode acontecer? Prepare-se para o
melhor, mas não tema o pior.
883
- Anjin-san, por que não dizer isso diante de Mariko-san?
Ela diria aos padres? Você acha que sim?
- Não, senhor. Só querer tentar falar direto. Guerra não
assunto de mulher. Um último pedido, Toranaga-sarna. - Blackthorne se lançou no rumo que escolhéra. - Costume hatamoto
pedir favores, às vezes. Por favor, desculpe, senhor, posso respeitosamente dizer agora possível pedido?
O Jeque de Toranaga parou. - Que favor?
- Sei divórcio fácil se senhor diz. Peço Toda Mariko-sarna
esposa. - Toranaga ficou pasmado e Blackthorne receou ter ido
longe demais. - Por favor, desculpe a minha rudeza - acrescentou.
Toranaga recuperou-se rapidamente. - Mariko-san concorda?
- Não, Toranaga-sarna. Segredo meu. Nunca dizer a ela,
a ninguém. Segredo meu apenas. Não dizer a Toda Mariko-san.
Nunca. Kinjiru, neh? Mas sei raiva entre marido e mulher. Divórcio fácil no Japão. Esse meu segredo apenas. Pedir Senhor
Torangga apenas. Muito secreto. Nunca Mariko-san. Por favor,
desculpe se o ofendi.
- Isso é uma solicitação presunçosa para um estrangeiro.
Inaudita! Como você é um hatamoto, o dever me obriga a considerá-la, embora você fique proibido de mencioná-la sob quaisquer
circunstâncias, a ela ou ao marido. Está claro?
- Por favor? - perguntou Blackthorne, sem compreender
nada, quase incapaz de pensar.
- Pedido e pensamento muito maus, Anjin-san. Compreende?
- Sim, senhor, sinto mui...
- Como Anjin-san é hatamoto, não estou zangado. Considerarei, compreende?
- Sim, acho que sim. Obrigado. Por favor, desculpe o meu
mau japonês, sinto muito.
- Não fale a ela, Anjin-san, sobre divórcio. Mariko-san
nem Buntaro-san. Kinjiru, wakarimasu?
- Sim, senhor. Compreendo. Apenas segredo senhor e eu.
Segredo. Obrigado. Por favor desculpe minha rudeza e obrigado
pela sua paciência. - Blackthorne curvou-se perfeitamente e,
quase como num sonho, saiu. A porta fechou-se atrás dele. No
corredor todos o olhavam de modo esquisito.
Quis compartilhar a sua vitória com Mariko. Mas ficou ini884
bido pela serenidade distraída dela e a presença dos guardas.
- Desculpe tê-la feito esperar - foi tudo o que disse.
-- O prazer foi meu - respondeu ela, de modo igualmente
inócuo.
Começaram a descer a escada. Depois, após um lance de
degraus, ela disse: - O seu modo simples de falar é estranho,
mas absolutamente compreensível, Anjin-san.
- Fiquei perdido muitas vezes. Saber que a senhora estava
lá ajudou-me tremendamente.
- Eu não fiz nada.
Continuaram em silêncio, Mariko ligeiramente atrás dele,
conforme o costume correto. A cada andar passavam por um
cordão de samurais, depois, contornando uma espiral na escada,
a cauda do quimono dela prendeu-se cias grades e ela pisou em
falso. Ele a segurou, ajudando-a a se firmar, e o súbito toque
íntimo agradou aos dois. - Obrigada - disse ela, aturdida, enquanto ele a soltava. Seguiram em frente, muito mais próximos
do que já tinham estado aquela noite.
Fora, no adro iluminado de archotes, havia samurais por
toda parte. Mais uma vez seus passes foram examinados e depois
foram escoltados pelos carregadores de tochas através do portão
principal do torreão, ao longo de uma passagem que se enroscava
em labirinto, por entre altos muros de pedra com ameias, até o
portão seguinte que levava ao fosso e à ponte de madeira. Ao
todo havia sete anéis de fossos dentro do conjunto do castelo.
Alguns artificiais, alguns adaptados dos riachos e rios que abundavam. Enquanto rumavam para o portão principal, o portão sul,
Mariko disse a ele que, quando a fortaleza estivesse concluída,
dentro de dois anos, abrigaria cem mil samurais e vinte mil cavalos, com todas as provisões necessárias para um ano.
- Então será a maior do mundo - disse Blackthorne.
- Esse era o plano do Senhor Toranaga. - A voz dela
estava grave. - Shigata ga nai, neh? - Finalmente atingiram
a última ponte. - Daqui, Anjin-san, pode ver que o castelo é o
centro de Yedo, neh? O centro de um entrelaçamento de ruas
que se dispõem em ângulos para formar a cidade. Há dez anos
havia apenas uma pequena aldeia de pescadores aqui. Agora,
quem sabe. Trezentos mil? Duzentos? Quatrocentos? O Senhor
Toranaga ainda não contou a sua gente. Mas estão todos aqui
apenas com uma finalidade: servir o castelo que protege o porto
e as planícies que alimentam os exércitos.
- Nada mais? - perguntou ele.
885
- Nada.
Não há necessidade de se preocupar, Mariko, nem de parecer
tão solene, pensou ele alegremente. Resolvi tudo isso. Toranaga
me concederá todas as minhas solicitações.
Do outro lado da Ichi-bashi iluminada por archotes - a
Primeira Ponte -, que levava à cidade propriamente dita, ela
parou. - Devo deixá-lo agora, Anjin-san.
- Quando posso vê-la?
- Amanhã. A hora do Bode. Esperarei no adro.
- Não posso vê-la esta noite? Se eu voltar cedo?
- Não, sinto muito, por favor, desculpe-me. Esta noite não.
- Depois se curvou formalmente: - Konbanwa, Anjin-san.
Ele se curvou. Como um samurai. Observou-a voltando pela
ponte, alguns dos carregadores de archotes indo com ela, insetos
esvoaçando em torno dos archotes enfiados em recipientes presos
a postes. Logo ela foi engolida pela multidão e pela noite.
Então, sentindo crescer a própria animação, deu as costas
ao castelo e se pôs em marcha atrás do guia.
CAPITULO 48
- Os bárbaros moram ali, Anjin-san - disse o samurai,
apontando à frente.
Pouco à vontade, Blackthorne semicerrou os olhos na escuridão, o ar irrespirável e sufocante. - Onde? Aquela casa? Ali?
- Sim. Está certo, sinto muito. O senhor está vendo?
Havia outra série de cabanas e vielas a cem passos à frente,
além da faixa nua de terreno pantanoso e, dominando-as, uma
casa grande, vagamente delineada contra o céu de azeviche.
Blackthorne olhou em torno um momento para tomar posições aproximadas, usando o leque contra os insetos noturnos.
Logo depois de terem passado a Primeira Ponte ele se vira perdido no labirinto.
O caminho levava através de inúmeras ruas e ruelas, inicialmente em direção à praia, seguindo para leste algum tempo, sobre
pontes maiores e menores, depois novamente para o norte, acompanhando a margem de outro regato que serpeava através dos
arredores da cidade. A medida que se distanciavam do castelo,
886
mais sórdidas se tornavam as ruas, mais pobres as construções.
As pessoas eram mais obsequiosas e menos reflexos de luz vinham
de trás das shojis. Yedo era uma massa que se espraiava horizontalmente e parecia a Blackthorne ter sido construída de vilas separadas meramente por ruas e riachos.
Ali na extremidade sul-oriental da cidade, o terreno era totalmente pantanoso e o caminho se desmanchava em podridão
sob os pés. Durante algum tempo o mau cheiro fora se adensando perceptivelmente, um miasma de algas marinhas, fezes e
lama estagnada, e pairando sobre isso um odor agridoce que ele
não conseguia identificar, mas que parecia familiar.
- Fede como Billingsgate em maré baixa - resmungou ele,
matando outro inseto que lhe pousara no rosto. Sentia o corpo
todo pegajoso de suor.
Então ouviu um débil trechinho de um alegre canto marítimo
em holandês e todo o seu desconforto foi esquecido. - Será que
é Vinck?
Exultante, acelerou o passo na direção do som, com carregadores a lhe iluminar cuidadosamente o caminho e samurais
seguindo-o.
Agora, mais próximo, viu que a construção de um andar era
parte japonesa, parte européia. Erguia-se sobre pilares e era rodeada de uma alta e tosca cerca de bambu, aparentemente prestes
a ruir, muito mais nova do que as cabanas que se amontoavam
por perto. Não havia portão na cerca, apenas um buraco. O telhado era de sapé, a porta da frente sólida, as paredes de madeira
rústica, e as janelas cobertas com venezianas em estilo holandês.
Aqui e ali havia salpicos de luz vinda das fendas. O canto e a
troça aumentaram, mas ele ainda não conseguia reconhecer as
vozes. As lajes por trás da cerca levavam direto aos degraus da
varanda, através de um jardim maltratado. Amarrado com cordas ao portão, um curto mastro de bandeira. Ele parou e o contemplou. Do mastro pendia indiferentemente uma bandeira holandesa, mole e provisória, e o pulso dele se acelerou ao vê-la.
A porta da frente estava escancarada. Um raio de luz jorrava
para a varanda. Baccus van Nekk, bêbado, cambaleou até a borda
do terraço, olhos semicerrados, puxou o codpiece para o lado, e
urinou num jato alto e curvo.
- Ahhhhh - murmurou ele, num êxtase suspiroso. - Nada
como uma mijada.
- Não é mesmo? - disse Blackthorne, do portão. - Por
que você não usa um balde?
887
- Hem? - Van Nekk piscou, míope, para a escuridão, na
direção de Blackthorne, que se erguia com os samurais sob os
archotes. - Jesus Deus do paraíso! - Ele segurou as partes com
um grunhido e se curvou desajeitadamente só da cintura para
cima. - Gomen nasal, samurai-sarna. ichiban gomen nasal a
todos os macacos-sarnas. - Ele se endireitou, forçou um sorriso,
e murmurou meio consigo mesmo: - Estou mais bêbado do que
imaginei. Pensei que o bastardo filho de uma puta estivesse falando holandês! Gomen nasal, neh? - disse de novo, voltando vacilante para dentro da casa, coçando-se e ajeitando o codpiece às
apalpadelas.
- Ei, Baccus, não sabe fazer coisa melhor do que emporcalhar o próprio ninho?
- O quê? - Van Nekk deu meia-volta abruptamente e olhou
para os archotes, desesperadamente tentando enxergar com clareza. - Piloto? - disse, a voz estrangulada. - É o senhor,
piloto? Deus amaldiçoe os meus olhos, não consigo enxergar. Piloto, pelo amor de Deus, é o senhor?
Blackthorne riu. O velho amigo parecia tão despido ali, tão
imbecil, o pênis pendurado para fora. - Sim, sou eu! - Depois,
para os samurais que observavam com desdém mal dissimulado:
-- Matte kurasai. Esperem por mim, por favor.
- Hai, Anjin-san.
Blackthorne avançou e agora, à luz, pôde ver o lixo espalhado
por toda parte no jardim. Com repugnância, tirou os tamancos e
subiu correndo os degraus. - Alô, Baccus, está mais gordo do
que quando partimos de Rotterdam, neh? - Bateu-lhe cordialmente nos ombros.
- Senhor Jesus Cristo, é o senhor mesmo?
- Sim, claro que sou' eu.
- Nós o tínhamos dado por morto há muito tempo. - Van
Nekk estendeu a mão e tocou Blackthorne para se certificar de
que não estava sonhando. - Senhor Jesus, minhas preces foram
atendidas. Piloto, o que lhe aconteceu, de onde está vindo? É
um milagre! É o senhor mesmo?
- Sim. Agora, por favor, ponha o cod no lugar e vamos
entrar - disse Blackthorne, consciente dos seus samurais.
- O quê? Oh! Desculpe, eu... - Van Nekk obedeceu às
pressas e lágrimas começaram a lhe escorrer pelas faces. - Oh,
Jesus, piloto... pensei que os demônios do gim estivessem me
pregando uma peça de novo. Vamos entrar, mas deixe-me anunciá-lo, hem?
888
Tomou a dianteira, oscilando um pouco, muito da sua embriaguez já evaporada com a alegria. Blackthorne o seguiu. Van
Nekk segurou a porta para que ele passasse, depois gritou por
sobre a cantoria roufenha: - Rapazes! Olhem o que o Papai
Noel nos trouxe! - Bateu a porta atrás de Blackthorne, para
aumentar o efeito.
O silêncio foi instantâneo.
Foi preciso um momento para que os olhos de Blackthorne
se acomodassem à luz. O ar fétido quase o sufocou. Viu todos
eles a olhá-lo embasbacados como se ele fosse um espectro maligno. Então o encanto se rompeu e houve gritos de boas-vindas
e alegria e todo mundo se pôs a abraçá-lo e esmurrá-lo nas costas, todos falando ao mesmo tempo. - Piloto, de onde veio -
Tome um drinque - Cristo, é possível - Mijo no meu chapéu,
é ótimo vê-lo - Já o tínhamos dado por morto - Não, estamos
bem, pelo menos razoavelmente bem - Levante-se da cadeira,
sua prostituta, o piloto-sarna deve se sentar na melhor cadeira -
Ei, grogue, neh, depressa, maldição, depressa! Deus amaldiçoe
os meus olhos, saia do meu caminho, quero apertar a mão dele...
Finalmente Vinck gritou: - Um de cada vez, rapazes!
Dêem-lhe uma chance! Dêem a cadeira ao piloto e um drinque,
pelo amor de Deus! Sim, pensei que ele fosse samurai também .. .
Alguém empurrou um copo de madeira para a mão de
Blackthorne. Ele se sentou na raquítica cadeira e todos ergueram
os copos e a enxurrada de perguntas começou de novo.
Blackthorne olhou em torno. A sala estava mobiliada com
bancos, algumas cadeiras toscas e mesas, e iluminada par velas
e lâmpadas a óleo. No chão imundo, um imenso barril de saqué.
Uma das mesas estava coberta de pratos sujos, com um pernil
parcialmente assado e cheio de moscas.
Seis mulheres em andrajos encolhiam-se de joelhos, curvando-se para ele, encostadas à parede.
Seus homens, todos sorridentes, esperavam que ele começasse: Sonk, o cozinheiro; Johann Vinck, imediato de contramestre e atirador-chefe; Salamon, o mudo; Croocq, o menino; Ginsel,
o veleiro; Baccus van Nekk, mercador-chefe e tesoureiro, e finalmente Jan Roper, o outro mercador, que estava sentado longe
dos outros, com o mesmo sorriso sombrio no rosto magro e tenso.
- Onde está o capitão-mor? - perguntou Blackthorne.
- Morreu, piloto, morreu. .. - responderam seis vozes,
uma sobrepondo-se à outra, confundindo o relato até que Blackthorne levantasse a mão. - Baccus?
889
- Ele morreu, piloto. Não chegou a sair do buraco. Lembra-se de que ele estava doente, hem? Depois que levaram o
senhor embora, bem, naquela noite nós o ouvimos sufocando na
escuridão. Não foi, rapazes?
Um coro de "sins" e Van Nekk acrescentou: - Eu estava
sentado ao lado dele, piloto. Ele estava tentando chegar até a
água, mas não havia água, e ele tinha falta de ar e gemia. Não
tenho muita certeza sobre a hora, estávamos todos com medo
da morte, mas ele acabou se asfixiando e depois, bem, ouvimos o
estertor da morte. Foi péssimo, piloto.
- Foi terrível, sim - acrescentou Jan Roper. - Mas foi
castigo de Deus.
Blackthorne olhou de um a um. - Alguém o acertou?
Pará dar-lhe sossego?
- Não... não, oh, não - respondeu Van Nekk. -- Ele
simplesmente rebentou. Foi deixado no poço com o outro, o
japona, lembra-se dele, o que tentou se afogar no balde de mijo?
Depois o Senhor Omi mandou tirarem o corpo de Spillbergen de
lá e eles o queimaram. Mas aquele outro pobre sodomita foi
deixado lá embaixo. O Senhor Omi simplesmente lhe deu uma
faca, ele rasgou a barriga e taparam o poço. Lembra-se dele,
piloto?
- Sim. E Maetsukker?
- E melhor que você conte isso, Vinck.
- O pequeno Cara de Rato apodreceu, piloto - começou
Vinck, e os outros começaram a gritar detalhes e contar a história
até que Vinck berrou: - Baccus pediu a mim, por Cristo! Vocês
todos terão a sua vez!
As vozes morreram e Sonk disse, solícito: - Conte, Johann. - Piloto, foi o braço dele que começou a apodrecer. Ele se
cortou na luta, lembra-se da luta em que o senhor ficou sem
sentidos? Jesus Cristo, parece que foi há tanto tempo! De qualquer
modo, o braço dele supurou. Sangrei-o no dia seguinte no outro,
aí ele começou a ficar preto. Eu lhe disse que seria melhor que eu
o lancetasse ou o braço todo teria que ser tirado, dissê-lhe dúzias
de vezes, todos nós dissemos, mas ele não concordou. No quinto
dia o ferimento estava cheirando mal. Nós o seguramos e eu
amputei a maior parte da gangrena mas não adiantou nada. Eu
sabia que não ia adiantar, mas alguns de nós achamos que valia
a pena tentar. Esse médico amarelo bastardo veio algumas vezes,
mas também não pôde fazer nada. Cara de Rato durou um dia
890
ou dois, mas a gangrena estava profunda demais e ele delirou um
bocado. Tivemos que amarrá-lo perto do fim.
- Foi isso mesmo, piloto - disse Sonk, coçando-se confortavelmente. -- Tivemos que amarrá-lo.
- O que aconteceu ao corpo dele? - perguntou Blackthorne.
- Levaram-no para o alto da colina e queimaram-no, também. Queríamos dar a ele e ao capitão-mor um funeral cristão
apropriado, mas não nos deixaram. Simplesmente os queimaram.
Um silêncio invadiu a sala. - O senhor não tocou no seu
drinque, piloto!
Blackthorne levou-o aos lábios e provou. O copo estava
imundo e ele quase vomitou. A bebida pura queimou-lhe a garganta. O mau cheiro de corpos sem banho e rançosos e de roupa
não lavada quase o derrubava.
- Que tal o grogue. piloto? - perguntou Van Nekk.
- Ótimo, ótimo.
- Contê-lhe, Baccus, vamos!
- Ei! Fiz um alambique, piloto. - Van Nekk estava muito
orgulhoso e os outros também sorriam. - Fazemos bebidas aos
barris, agora. Arroz, frutas e água, deixamos fermentar, esperamos uma semana mais ou menos, depois, com a ajuda de uma
pequena mágica... - O homem redondo riu e se coçou, feliz.
- Claro que seria melhor conservá-lo um ano ou mais para
amadurecer, mas nós o tomamos mais depressa. .. - Suas palavras se arrastaram. - Não está gostando?
- Oh, desculpe, está ótimo... ótimo. - Blackthorne viu
piolhos no ralo cabelo de Van Nekk.
- E o senhor, piloto? - disse Jan Roper desafiador. -
Está ótimo, não está? O que conta?
Outra enxurrada de perguntas, que morreu quando Vinck
gritou: - Dêem-lhe uma chance! - Então o homem com rosto
coriáceo exclamou: - Cristo, quando o vi em pé à porta, pensei
que fosse um dos macacos, verdade... verdade! - Outro coro
de anuência e Van Nekk interrompeu: - Ele tem razão. Malditos
quimonos imbecis... está parecendo uma mulher, piloto, ou um
desses meios homens! Frescos malditos, hem? Muitos japonas são
frescos, por Deus! Um andou dando em cima de Croocq... -
Houve muita gritaria e troça obscena, depois Van Nekk continuou: - O senhor vai querer suas roupas adequadas, piloto.
Ouça, trouxemos a sua roupa para cá. Viemos para Yedo no
Erasmus. Rebocaram-no para cá e pudemos trazer nossas roupas
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I
r
q
a
u
e
p
Ji
P
ci
88
para terra, e mais ainda. Trouxemos a sua, deixaram-nos f
isso, guardá-la para o senhor. Trouxemos uma mala, toda
roupa de mar. Sonk, vá buscar, hem?
- Claro, mas mais tarde, hem, Baccus? Não quero per
nada.
- Está bem.
O fino sorriso de Jan Roper estava se repuxando. - Es
das e quimonos.., como um autêntico pagão! Talvez o sei
agora prefira os modos pagãos, piloto?
- A roupa é fresca, melhor do que a nossa - respon
Blackthorne, embaraçado. - Eu tinha esquecido que estava
tido de modo diferente. Aconteceram muitas coisas. Esta ro
era a única que eu tinha, de modo que me acostumei a usa
Nunca pensei muito sobre ela. Certamente é mais confortá
- Essas espadas são de verdade?
- Sim, claro, por quê?
- Não temos permissão para usar armas. Quaisquer arm
- disse Jan Roper, carrancudo. - Por que o senhor tem? Ex
mente como qualquer samurai pagão?
Blackthorne riu brevemente. - Você não mudou, Jan Ro
não é? Mais santarrão do que nunca? Bem, tudo a seu tempo c
relação às minhas espadas, mas primeiro a melhor notícia
todas. Ouçam, dentro de um mês ou pouco mais estaremos
mar de novo.
- Jesus, está falando sério, piloto? - disse Vinck.
- Sim.
Houve uma grande explosão de alegria e outra enxurr
de perguntas e respostas. - Eu disse que nós iríamos em
- Eu disse que Deus estava do nosso lado! Deixem-no falar
deixem o piloto falar... - Finalmente Blackthorne levan
a mão.
Apontou para as mulheres, que continuavam de joelh
imóveis, mais humildes agora, sob a atenção dele. - Quem
elas?
Sonk riu. - As nossas zinhas, piloto. Nossas prostitutas
baratas, Jesus Cristo, mal custam um caracol por semana. Te
uma casa cheia delas na porta ao lado, e há muitas mais
aldeia.
- São agitadas como arminhos - intrometeu-se Crooc
Sonk disse: - Ele tem razão, piloto. Claro que são atarraca
e arqueadas, mas têm muito vigor e não têm sífilis. Quer u
892
piloto? Temos os nossos próprios beliches, não somos como os
macacos, temos todos os nossos beliches e quartos.
. .
- Experimente a Mary Bunda Grande, piloto, é perfeita
para o senhor - disse Croocq.
A voz de Jan Roper sobrepôs-se: - O piloto não quer
nenhuma das nossas meretrizes. Ele tem as dele, hem, piloto?
Os rostos reluziram. - É verdade, piloto? Conseguiu mulheres? Ei, conte-nos, hem? Essas macacas são as melhores que
jamais existiram, hem?
- Fale-nos das suas zinhas, piloto! - Sonk coçou os piolhos de novo.
- Há muito que contar - disse Blackthorne. - Mas devia
ser em particular. Quanto menos ouvidos, melhor, neh? Mandem
as mulheres embora, aí podemos conversar em particular.
Vinck brandiu um polegar para elas. - Dêem o fora, hai?
As mulheres se curvaram, mastigaram agradecimentos e pedidos de desculpas e saíram apressadas, fechando a porta silenciosamente.
- Primeiro sobre o navio. É inacreditável. Quero lhes agradecer e cumprimentá-los, pelo trabalho todo. Quando chegarmos
m casa, vou insistir para que vocês recebam partes triplicadas
o prêmio em dinheiro por todo esse trabalho e vai haver um
rêmio para além de... - Viu os homens se entreolharem emaraçados. - O que é que há?
Constrangido, Van Nekk disse: - Não fomos nós, piloto.
oram os homens do Rei Toranaga. Eles é que fizeram. Vinck
hes mostrou como, mas nós não fizemos nada.
- O quê?
- Não nos deixaram voltar a bordo depois da primeira
ez. Nenhum de nós esteve a bordo com exceção de Vinck, que
ai até lá uma vez a cada dez dias mais ou menos. Não fizemos
ada.
- Ele é o único - disse Sonk. - Johann lhes mostrou.
- Mas como você conversa com eles, Johann?
Um dos samurais fala português e conversamos nessa
nigua, o suficiente para que um compreenda o outro. Esse samuan, que se chama Sato-sarna, ficou encarregado quando chegamos
qui. Perguntou quais de nós eram oficiais ou marinheiros. bisemos que era Ginsel, mas ele é principalmente atirador, eu e
nk que...
Que é o pior cozinheiro de bosta que...
Cale essa boca maldita, Croocq!
893
para terra, e mais ainda. Trouxemos a sua, deixaram-nos fazer
isso, guardá-la para o senhor. Trouxemos uma mala, toda sua
roupa de mar. Sonk, vá buscar, hem?
- Claro, mas mais tarde, hem, Baccus? Não quero perder
nada.
- Está bem.
O fino sorriso de Jan Roper estava se repuxando. - Espadas e quimonos... como um autêntico pagão! Talvez o senhor
agora prefira os modos pagãos, piloto?
- A roupa é fresca, melhor do que a nossa - respondeu
Blackthorne, embaraçado. - Eu tinha esquecido que estava vestido de modo diferente. Aconteceram muitas coisas. Esta roupa
era a única que eu tinha, de modo que me acostumei a usá-la.
Nunca pensei muito sobre ela. Certamente é mais confortável.
- Essas espadas são de verdade?
- Sim, claro, por quê?
- Não temos permissão para usar armas. Quaisquer armas!
- disse Jan Roper, carrancudo. - Por que o senhor tem? Exatamente como qualquer samurai pagão?
Blackthorne riu brevemente. - Você não mudou, Jan Roper,
não e? Mais santarrão do que nunca? Bem, tudo a seu tempo com
relação às minhas espadas, mas primeiro a melhor notícia de
todas. Ouçam, dentro de um mês ou pouco mais estaremos ao
mar de novo.
- Jesus, está falando sério, piloto? - disse Vinck.
- Sim.
Houve uma grande explosão de alegria e outra enxurrada
de perguntas e respostas. - Eu disse que nós iríamos embora
- Eu disse que Deus estava do nosso lado! Deixem-no falar -
deixem o piloto falar... - Finalmente Blackthorne levantou
a mão.
Apontou para as mulheres, que continuavam de joelhos,
imóveis, mais humildes agora, sob a atenção dele. - Quem são
elas?
Sonk riu. - As nossas zinhas, piloto. Nossas prostitutas, e
baratas, Jesus Cristo, mal custam um caracol por semana. Temos
uma casa cheia delas na porta ao lado, e há muitas mais na
aldeia.
- São agitadas como arminhos - intrometeu-se Croocq, e
Sonk disse: - Ele tem razão, piloto. Claro que são atarracadas
e arqueadas, mas têm muito vigor e não têm sífilis. Quer uma,
892
piloto? Temos os nossos próprios beliches, não somos como os
macacos, temos todos os nossos beliches e quartos.
. .
- Experimente a Mary Bunda Grande, piloto, é perfeita
para o senhor - disse Croocq.
A voz de Jan Roper sobrepôs-se: - O piloto não quer
nenhuma das nossas meretrizes. Ele tem as dele, hem, piloto?
Os rostos reluziram. - É verdade, piloto? Conseguiu mulheres? Ei, conte-nos, hem? Essas macacas são as melhores que
jamais existiram, hem?
- Fale-nos das suas zinhas, piloto! - Sonk coçou os piolhos de novo.
- Há muito que contar - disse Blackthorre. - Mas devia
ser em particular. Quanto menos ouvidos, melhor, neh? Mandem
as mulheres embora, aí podemos conversar em particular.
Vinck brandiu um polegar para elas. - Dêem o fora, hai?
As mulheres se curvaram, mastigaram agradecimentos e pedidos de desculpas e saíram apressadas, fechando a porta silenciosamente.
- Primeiro sobre o navio. i. inacreditável. Quero lhes agradecer e cumprimentá-los, pelo trabalho todo. Quando chegarmos
em casa, vou insistir para que vocês recebam partes triplicadas
do prêmio em dinheiro por todo esse trabalho e vai haver um
prêmio para além de... - Viu os homens se entreolharem embaraçados. - O que é que há?
Constrangido, Van Nekk disse: - Não fomos nós, piloto.
Foram os homens do Rei Toranaga. Eles é que fizeram. Vinck
lhes mostrou como, mas nós não fizemos nada.
- O quê?
- Não nos deixaram voltar a bordo depois da primeira
vez. Nenhum de nós esteve a bordo com exceção de Vinck, que
vai até lá uma vez a cada dez dias mais ou menos. Não fizemos
nada.
- Ele é o único - disse Sonk. - Johann lhes mostrou.
- Mas como você conversa com eles, Johann?
- Um dos samurais fala português e conversamos nessa
língua, o suficiente para que um compreenda o outro. Esse samurai, que se chama Sato-sarna, ficou encarregado quando chegamos
aqui. Perguntou quais de nós eram oficiais ou marinheiros. Dissemos que era Ginsel, mas ele é principalmente atirador, eu e
Sonk que...
-- Que é o pior cozinheiro de bosta que...
- Cale essa boca maldita, Croocq!
893
- Merda, você não sabe cozinhar em terra, que dirá a
bordo, por Deus!
- Por favor, façam silêncio, vocês dois! - disse Blackthorne. - Continue, Johann.
Vinck continuou: - Sato-sarna me perguntou o que havia
de errado no navio e eu lhe disse que ele precisava ser querenado,
raspado e todo consertado. Bem, eu lhe contei tudo o que sabia e
eles puseram mãos à obra. Eles o querenaram perfeitamente e
limparam os porões, esfregando-os como se fossem a privada de
um príncipe - os chefes eram samurais e outros macacos trabalhavam como demônios, centenas de sodomitas. Merda, piloto,
o senhor nunca viu trabalhadores como eles!
- Isso é verdade - disse Sonk. - Como demônios!
- Fiz tudo do melhor modo que pude e... Jesus, piloto,
acha mesmo que podemos dar o fora?
- Sim, se formos pacientes e se.
. .
- Se Deus quiser, piloto. Só então.
- Sim. Talvez você tenha razão - respondeu Blackthorne,
pensando: e daí que Roper seja um fanático? Preciso dele ... de
todos eles. E da ajuda de Deus. - Sim. Precisamos da ajuda
de Deus - disse, e voltou-se para Vinck: - Como está a quilha?
- Limpa e firme, piloto. Eles a deixaram melhor do que
eu imaginei. Esses bastardos são tão espertos quanto quaisquer
carpinteiros, construtores navais e cordoeiros da Holanda toda.
O cordame está perfeito... tudo.
- Velas?
- Eles fizeram um conjunto de seda, dura como lona. Com
um jogo sobressalente. Tiraram as nossas e as copiaram exatamente, piloto. Os canhões estão tão perfeitos quanto possível -
todos de volta a bordo, e há pólvora e munição em quantidade.
O navio está pronto para zarpar, esta noite, se for necessário.
Claro que ele não esteve no mar, por isso não sabemos sobre as
velas até enfrentarmos um vendaval, mas eu apostaria a minha
vida como as costuras estão tão apertadas quanto quando ele
foi lançado ao Zuider Zee pela primeira vez - melhor até,
porque os costados já estão experimentados agora, graças a Deus!
- Vinck fez uma pausa para tomar fôlego. - Quando zarpamos?
- Dentro de um mês. Mais ou menos.
Eles se cutucaram sorrindo de júbilo, e brindaram sonoramente ao piloto e ao navio.
- E quanto à navegação inimiga? Há alguma por aqui? E
presas, piloto? - perguntou Ginsel.
894
- Muitas... para além dos seus sonhos. Estamos todos
ricos.
Outro grito de alegria. - Já era tempo.
- Ricos, hem? Vou comprar um castelo para mim.
- Senhor Deus todo-poderoso, quando eu chegar a casa...
- Ricos! Urra para o piloto!
- Muitos papistas para matar? Bom - disse Jan Roper
brandamente. - Muito bom.
- Qual é o plano, piloto? - perguntou Van Nekk, e todos
pararam de falar.
- Falo disso num minuto. Vocês têm guardas? Podem circular livremente, quando têm vontade? Com que freqüência...
- Podemos ir a qualquer lugar na área da aldeia - disse
Vinck calmamente -, talvez numa distância de meia légua ao
redor. Mas não podemos ir a Yedo e não...
- Não podemos atravessar a ponte - interrompeu Sonk.
- Contê-lhe sobre a ponte, Johann!
- Oh, pelo amor de Deus, eu já estava chegando à ponte,
Sonk. Pelo amor de Deus, pare de interromper. Piloto, há uma
ponte a cerca de meia légua a sudoeste. Há muitos avisos nela.
Só podemos ir até lá. Não podemos ir além. "Kinjiru", por Deus,
dizem os samurais. Compreende "kinjiru", piloto?
Blackthorne assentiu e não disse nada.
- A parte isso, podemos ir aonde quisermos. Mas só até as
paliçadas. Há paliçadas em toda a volta, a uma meia légua de
distância. Senhor Deus... vocês conseguem acreditar, voltar para
casa em breve!
- Contê-lhe sobre o médico, hem, e sobre o .. .
- Os samurais mandam um médico de vez em quando, piloto, e temos que tirar a roupa e ele nos examina.
. .
- Sim. Ter um bastardo macaco e pagão olhando para a
gente, nu assim, é o suficiente para fazer um homem cagar.
- Com exceção disso, piloto, eles não nos incomodam, a
não ser.
. .
- Ei, não se esqueça de que o médico nos deu umas ervas
imundas em pó, um "char", que devíamos pôr de infusão em água
quente, mas jogamos tudo fora. Quando adoecemos, o bom Johann
nos faz uma sangria e ficamos curados.
- Sim - disse Sonk. - Jogamos o "char" fora.
- A não ser isso, com exceção do.. .
- Afora isso temos sorte aqui, piloto, não é como no começo.
895
- Ele tem razão. No começo...
- Contê-lhe sobre as inspeções, Baccus!
- Eu estava chegando a isso, pelo amor de Deus, tenham
paciência, dêem uma chance a alguém. Como posso contar alguma coisa com vocês todos tagarelando? Sirvam-me um drinque!
- disse Van Nekk, e continuou: - A cada dez diás alguns samurais vêm aqui, nós nos alinhamos lá fora e eles nos contam. Depois nos dão sacos de arroz e dinheiro, dinheiro de cobre. É o
suficiente para tudo, piloto. Trocamos arroz por carne e outras
coisas - frutas ou seja o que for. Há de tudo e as mulheres fazem
tudo o que queremos. Primeiro nós...
- Mas não foi assim no começo. Contê-lhe sobre isso,
Baccus!
Van Nekk sentou-se no chão. - Deus me de forças!
- Está se sentindo mal, pobre rapaz? - perguntou Sonk,
solicitamente. - É melhor não beber mais ou vai ficar com os
demônios de novo, hem? Ele fica com os demônios, piloto, uma
vez por semana. Nós todos também.
- Você vai ficar quieto enquanto eu falo com o piloto?
- Quem, eu? Eu não disse nada. Não o estou interrompendo. Tome, tome o seu drinque!
- Obrigado, Sonk. Bem, piloto, primeiro eles nos colocaram
numa casa a oeste da cidade.
. .
- Ficava lá embaixo, perto dos campos.
- Maldição, então conte você a história, Johann!
- Está bem. Cristo, piloto, foi terrível. Nada de bóia ou
bebida e essas malditas casas de papel, é como morar num campo
- um homem não pode dar uma mijada ou enfiar o dedo no
nariz, nada sem que alguém esteja olhando, hem? Sim, e o barulho
mais leve faz os vizinhos caírem em cirna da gente, e samurais
na varanda, e quem quer esses bastardos por perto, hem? Ficavam brandindo as malditas espadas contra a gente, gritando e
chamando, dizendo-nos que ficássemos quietos. Bem, uma noite
alguém derrubou uma vela e os macacos caíram todos em cima
da gente! Jesus Deus, o senhor devia tê-los ouvido. Vieram fervilhando com baldes de água, doidos, sibilando e curvando-se e
praguejando... Foi só uma parede sifilítica que se queimou...
Centenas deles se lançaram sobre a casa como baratas. Bastardos!
O senhor...
- Acabe logo com isso!
- Você quer contar?
896
- Continue, Johann, não preste atenção nele. É só um cozinheiro cheio de merda.
- O quê?
- Oh, cale a boca! Pelo amor de Deus! - Van Nekk retomou a narrativa mais uma vez. - No dia seguinte, piloto, tocaram-nos de lá e nos puseram ern outra casa da área do embarcadouro. Era igualmente ruim. Depois, algumas semanas mais tarde,
Johann topou com este lugar. Era o único de nós, naquela época,
que tinha autorização para sair, por causa do navio. Iam buscá-lo
diariamente e levavam-no de volta ao pôr-do-sol. Ele estava pescando - estamos a apenas algumas centenas de jardas do... É
melhor que você conte, Johann.
Blackthorne sentiu uma coceira na perna nua e esfregou-a
sem pensar. A irritação piorou. Então viu a protuberância sarapintada de uma picada de pulga, enquanto Vinck continuava orgulhosamente. - É como Baccus disse, piloto. Perguntei a Sato-sarna
se podíamos nos mudar e ele disse sim, por que não. Eles geralmente me deixavam pescar com um dos pequenos botes deles,
para passar o tempo. Foi o meu nariz que me trouxe aqui, piloto.
O velho nariz conduziu-me: sangue!
- Um matadouro! - disse Blackthorne. - Um matadouro
e um curtume! Isto é... - Ele parou e empalideceu.
- O que foi? O que há?
- Isto é uma aldeia eta? Jesus Cristo, essa gente é eta?
- O que há de errado com os "eters"? -- perguntou Van
Nekk. - Claro que são "eters".
Blackthorne afastou os mosquitos que infestavam o ar, a
pele arrepiando-se. - Malditos insetos... são detestáveis, não
são? Há um curtume aqui, não há?
- Sim. Algumas ruas acima, por quê?
- Nada. Não reconheci o cheiro, só isso.
- O que há com os "eters"?
- Eu. .. eu não percebi, que estúpido fui. Se tivesse visto
um dos homens, eu o teria reconhecido pelo cabelo curto. Com as
mulheres nunca se sabe. Desculpem. Continue a história, Vinck.
- Bem, então eles disseram.á de errado, piloto? O que há com os "eters"?
- É só que os japoneses acham que eles são diferentes. São
os executores, trabalham com peles e lidam com cadáveres. -
Sentiu os olhos deles, de Jan Roper em particular. - Os etas
trabalham as peles - disse ele, tentando conservar a voz indi897
ferente -, e matam todos os cavalos velhos e bois e lidam com
corpos mortos.
- Mas o que há de errado nisso, piloto? O senhor pessoalmente enterrou uma dúzia, amortalhou-os, lavou-os - todos nós
fizemos isso, hem? Nós abatemos os animais que comemos, sempre
fizemos isso. Ginsel foi carrasco... O que há de errado nisso
tudo?
- Nada - disse Blackthorne, sabendo que era verdade,
embora se sentisse embaraçado ainda assim.
Vinck bufou. - Os "eters" são os melhores pagãos que
vimos aqui. Mais parecidos conosco do que os outros bastardos.
Temos muita sorte de estar aqui, piloto, carne fresca não é problema, nem sebo - eles não nos causam problema.
- E isso mesmo. Se o senhor tivesse morado com "eters",
piloto...
- Jesus Cristo, o piloto teve que morar com os outros
bastardos o tempo todo! Ele não conheceu nada melhor. Que tal
irmos buscar a Mary Bunda Grande, Sonk?
- Ou a Rabo Rápido?
- Merda, ela não, não essa prostituta velha. O piloto vai
querer uma especial. Vamos pedir à Mama-san...
- Aposto como ele está morto de fome, com vontade de
comer uma bóia de verdade! Ei, Sonk, corte um pedaço de carne
para ele.
- Tome mais um pouco de grogue...
Em meio ao tumulto feliz, Van Nekk deu uns Capinhas nos
ombros de Blackthorne. - Está em casa, amigo velho. Agora que
voltou, nossas preces foram atendidas e está tudo bem no mundo.
Está em casa, amigo velho. Ouça, fique com o meu beliche.
Insisto.
. .
Alegremente Blackthorne acenou uma última vez. Houve um
grito de resposta vindo da escuridão do outro lado da pontezinha.
Então virou as costas, a forçada amabilidade evaporada, e dobrou
a esquina, a guarda samurai de dez homens a rodeá-lo.
No caminho de volta ao castelo, sua mente esteve num turbilhão. Não havia nada de errado com os etas, e havia tudo de
errado com eles, aqueles lá são a minha tripulação, minha própria
gente, e os etas são pagãos e estrangeiros e inimigos.. .
Ruas e vielas e pontes passaram como um borrão. Então ele
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notou que estava com a mão por dentro do quimono, coçando-se,
e parou.
- Aqueles malditos imundos... - Desenrolou o sash,
arrancou o quimono encharcado e, como se ele estivesse contaminado, atirou-o numa vala.
- Dozo, nan desu ka, Anjin-san? - perguntou um dos samurais.
- Nani mo! Nada, por Deus! - Blackthorne continuou a
caminhar, carregando as espadas.
- Ah! Eta! Wakarimasu! Gomen nasal! - Os samurais tagarelaram entre si, mas ele não lhes prestou atenção.
Assim e melhor, pensou ele com um alívio imenso, sem perceber que estava quase nu, sentindo apenas que a pele parara de
coçar agora que tirara o quimono infestado de pulgas.
Jesus Deus, eu adoraria um banho bem agora!
Contara suas aventuras à tripulação, mas não que era samurai
e hatamoto, ou que era um dos protegidos de Toranaga, ou sobre
Fujiko. Ou Mariko. E não lhes contara que iam aportar à força
em Nagasaki e tomar o Navio Negro de assalto, ou que ele estaria
à testa dos samurais. Isso pode vir mais tarde, pensou cansado.
E o resto todo.
Eu poderia falar a eles sobre Mariko-san?
Seus tamancos de madeira soavam ruidosos contra os sarrafos
de madeira da Primeira Ponte. Sentinelas samurais, também semidespidas, e indolentemente recostadas até o virem, curvaram-se
polidamente enquanto ele passava, observando-o atentamente, porque aquele era o bárbaro incrível que, surpreendentemente, fora
favorecido pelo Senhor Toranaga, a quem Toranaga, inacreditavelmente, concedera a honra, jamais concedida antes a um bárbaro,
de hatamoto e samurai.
Ao portão principal sul do castelo, outro guia esperava por
ele. Escoltaram-no aos seus aposentos, dentro da fortificação interna. Fora-lhe designado um quarto numa das casas de hóspedes,
fortificadas mas atraentes, porém polidamente ele recusou dirigirse imediatamente para lá. - Primeiro banho, por favor - disse
aos samurais.
- Ah, compreendo. Isso é muito atencioso de sua parte. A
casa de banho fica nesta direção, Anjin-san. Sim, a noite está
quente, neh? E ouvi dizer que o senhor esteve lá embaixo, com
os imundos. Os outros hóspedes da casa apreciarão a sua consideração. Agradéço-lhe em nome deles.
Blackthorne não compreendeu todas as palavras, mas captou
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o sentido. "Imundos." Isso descreve a minha gente e a mim -
nós, não eles, pobres coitados.
- Boa noite, Anjin-san - disse o chefe dos criados de
banho. Era um homem de meia-idade, imenso, com um vasto
ventre e um grande bíceps. Uma criada acabara de despertá-lo
para avisar que outro cliente retardatário estava chegando. Ele
bateu palmas. Criadas de banho apareceram. Blackthorne seguiuas para a sala onde elas o limparam, ensaboaram e esfregaram,
o ele as fez repetir tudo uma segunda vez. Em seguida dirigiu-se
para o banho de imersão, entrou na água escaldante e entregou-se
ao abraço relaxante do calor.
Depois, mãos fortes o ajudaram a sair e lhe untaram a pele
com óleo perfumado, descontraindo-lhe músculos e pescoço, depois levaram-no para uma sala de repouso e lhe deram um quimono de algodão, lavado e fresco. Com um longo e profundo
suspiro de prazer, ele se deitou.
- Dozo gomen nasci, chá, Anjin-san?
- Hai. Domo.
O chá chegou. Ele disse à criada que ficaria ali naquela noite,
não iria para os seus aposentos. Depois, sozinho e em paz, tomou
o chá, sentindo-o purificá-lo, "... ervas `char' de aparência irnunda...", pensou com desagrado.
- Tenha paciência, não deixe que isso lhe perturbe a harmonia - disse alto. - Eles são apenas pobres ignorantes imbecis,
que não conhecem coisa melhor. Você já foi a mesma coisa um
dia. Não tem importância, agora você pode mostrar a eles, neh?
Tirou-os da cabeça e estendeu a mão para pegar o dicionário.
Mas naquela noite, pela primeira vez desde que se vira na posse
do livro, pousou-o descuidadamente ao lado e soprou a vela. Estou
cansado demais, disse a si mesmo. Mas não cansado demais para
responder a uma questão simples, disse a sua mente: eles são
realmente imbecis ignorantes, ou 'é você que está se fazendo de
tolo? Responderei a isso mais tarde, quando for o momento.
Agora a resposta não tem importância. Agora só sei que não os
quero perto de mim.
Virou-se, colocou o problema de lado, e adormeceu.
Despertou revigorado. Um quimono limpo, uma tanga e taóis
estavam preparados para ele. As bainhas das suas espadas tinham
sido polidas. Vestiu-se rapidamente. Fora da casa, os samurais
esperavam, acocorados. Levantaram-se e se curvaram.
900
- Somos a sua guarda hoje, Anjin-san.
- Obrigado. Ir navio agora?
- Sim. Aqui está o seu passe.
- Bom. Obrigado. Posso perguntar o seu nome, por favor?
- Musashi Mitsutoki.
- Obrigado, Musashi-san. Ir agora?
Desceram para os embarcadouros. O Erasmus estava firmemente atracado a três braças sobre um leito arenoso. Os porões
tinham um cheiro agradável. Ele mergulhou e nadou por sob a
quilha. A alga grudada era mínima e havia muito pouca craca.
O leme estava intacto. No paiol, que estava seco e impecável,
encontrou uma pederneira e ateou uma fagulha a um minúsculo
monte de pólvora. Ardeu instantaneamente, em perfeitas condições.
Subindo ao topo do mastro de proa, procurou vestigios de
rachas. Não havia nenhum, ali ou na subida ou ao redor de qualquer um dos mastros que examinou. Muitas das curdas, adriças
o ovéns estavam atados incorretamente, mas para mudar isso
bastaria meio turno apenas.
Mais uma vez no tornbadilho, permitiu-se um grande sorriso.
- Você está tão perfeito quanto... quanto o quê? - Não conseguiu pensar num "quê" suficientemente grande, por isso apenas
riu e desceu novamente. Na sua cabina, sentiu-se estranho. E
muito só. Suas espadas estavam sobre o beliche. Tocou-as, depois
tirou a Vendedor de óleo da bainha. O acabamento era perfeito
o a ponta perfeita. Olhar para a espada deu-lhe prazer, pois era
realmente uma obra de arte. Mas uma obra de arte mortífera,
pensou como sempre, virando-a à luz.
Quantas mortes você causou na sua vida de duzentos anos?
Quantas mais causará, antes que você mesmo morra? Será que
algumas espadas têm vida própria mesmo, conforme diz Mariko?
Mariko. O que será dela?
Então viu no aço o reflexo do seu baú e isso tirou-o da sua
súbita melancolia.
Embainhou a Vendedor de Óleo, evitando cuidadosamente
tocar a lâmina, pois o costume dizia que até um simples toque
podia empanar tal perfeição.
Encostando-se ao beliche, seus olhos deram com o baú vazio.
- E os portulanos? e os instrumentos de navegação? -
perguntou à sua imagem na lâmpada de cobre que fora escrupulosamente polida, como tudo mais. Ele se viu responder: - Você
901
compra tudo em Nagasaki, junto com a sua tripulação. E pega
Rodrigues. Sim. Você o pega antes do ataque. Neh?
Observou o próprio sorriso alargar-se. - Você tem muita
certeza de que Toranaga o deixará ir, não tem?
- Sim - respondeu com total confiança. - Vá ele ou não
a Osaka, conseguirei o que quero. E conseguirei Mariko também.
Satisfeito, enfiou as espadas no sash, subiu de volta ao convés
e esperou até que as portas fossem lacradas de novo.
Quando retornou ao castelo, ainda não era meio-dia, então
se dirigiu para os seus aposentos para comer. Comeu arroz e dois
pratos de peixe que tinham sido grelhados na brasa com soja, pelo
seu próprio cozinheiro, conforme ele ensinara ao homem. Um
pequeno frasco de saque, depois chá.
- Anjin-san?
- Hai?
A shoji se abriu. Fujiko sorriu timidamente e curvou-se.
CAPÍTULO 49
- Eu tinha esquecido de você - disse ele em inglês. -
Fiquei com medo que tivesse morrido.
- Dozo goziemashita, Anjin-san, nan desu ka?
- Nani ¡no, Fujiko-san - disse ele, envergonhado consigo
mesmo. - Gomen nasal. Hai. Gomen nasci. Ma-suware odoroita
honro ni mata aete ureshi. Por favor, desculpe-me... uma surpresa, neh? Bom vê-la. Por favor, sente-se...
- Domo arigato goziemashita - disse ela, e falou-lhe, na
sua voz fina e alta, de como estava contente em vê-lo, de como
o japonês dele melhorara, de como ele estava com boa aparência,
e de como ela estava felicíssima de se encontrar ali.
Ele a observou ajoelhar-se desajeitadamente sobre a almofada em frente a ele. - Pernas... - Procurou a palavra "queimadura", mas não conseguiu se lembrar, então disse: - Pernas
fogo machucou. Mal?
- Não. Sinto muito. Mas ainda dói um pouco para sentar
- disse Fujiko, concentrando-se, observando-lhe os lábios. -
Pernas doem, sinto muito.
- Por favor, mostre-me.
902
Sinto muito, por favor, Anjin-san. Não quero perturbá-lo.
O senhor tem outros problemas. Eu...
- Não compreendo. Depressa demais, desculpe.
- Ah, sinto muito. Pernas estão bem. Não há problema -
suplicou ela.
- Problema. Você é consorte, neh? Não vergonha. Mostre
agora!
Obedientemente ela se levantou. Estava visivelmente desconfortável, mas assim que se pôs ereta começou a desatar as faixas
do obi.
- Por favor, chame a criada - ordenou ele.
Ela obedeceu. Imediatamente a shoji se descerrou e uma
mulher que ele não reconheceu se apressou para ajudá-la.
- Qual é o seu nome? - perguntou ele bruscamente, como
devia fazer um samurai.
- Oh, por favor, desculpe-me, senhor, sinto muito. Meu
nome é Hana-ichi.
Ele grunhiu um assentimento. Senhorita Primeiro Botão, finalmente um belo nome! Todas as criadas, por costume, chamavam-se Senhorita Escova ou Sifão ou Peixe ou Segunda Vassoura
ou Quarta ou Estrela ou Árvore ou Ramo, e assim por diante.
Hana-ichi era de meia-idade e estava muito preocupada. Aposto como é uma agregada de família, disse ele a si mesmo. Talvez
uma vassala do falecido marido de Fujiko. Marido! Tinha esquecido dele também, e da criança que foi assassinada - assim como
o marido foi assassinado pelo demônio Toranaga, que não é um
demônio, mas um daimio, e um bom, talvez um grande líder.
Sim. Provavelmente o marido mereceu a sorte que teve, se é
verdade o que soubemos, neh? Mas não a criança, pensou ele. Não
há desculpa para isso.
Fujiko deixou que o seu quimono verde estampado caísse de
lado frouxamente. Seus dedos tremiam quando desatou o delgado
sash de seda do quimono interno, amarelo, que também deixou
cair. Sua pele era clara e a parte dos seios que ele conseguiu ver
por entre as dobras de seda mostrava-os chatos e pequenos. Hanaichi ajoelhou-se e desamarrou os cordões da combinação que ia
da cintura ao chão, para que a ama pudesse tirá-la.
- Iyé - ordenou ele. Aproximou-se e ergueu a barra. As
queimaduras começavam na barriga das pernas. - Gomen nasci
- disse ele.
Ela permaneceu imóvel. Uma lágrima de suor escorreu-lhe
pelo rosto, manchando a maquilagem. Ele levantou mais a saia.
903
A pele estava queimada por toda a área da barriga das pernas,
mas parecia estar cicatrizando perfeitamente. O tecido já se formara e não havia infecção, nem supuração, apenas um pouco de
sangue limpo onde o tecido novo se rompera nas costas dos
joelhos, quando ela se ajoelhara.
Ele moveu-lhe os quimonos para o lado e afrouxou a faixa
de cintura da combinação. As queimaduras terminavam no alto
da perna, contornavam-lhe as nádegas onde a trave a imobilizara
e protegera, depois começavam de novo na base das costas. Uma
bandagem de queimadura, com meio palmo de largura, rodeavalhe a cintura. A cicatriz já estava se acomodando em rugas permanentes. De aparência feia, mas sarando perfeitamente.
- Médico muito bom. O melhor que já vi! - Ele deixou
os quimonos dela caírem. - O melhor, Fujiko-san! As cicatrizes,
que importância têm, neh? Nenhuma. Vi muitos ferimentos de
fogo, compreende? Querer ver depois, certeza estar boa ou não
boa. Médico muito bom. Buda vela Fujiko-san. - Pousou-lhe as
mãos sobre os ombros e olhou-a nos olhos. - Não se preocupe
agora. Shigata ga nai, neh? Compreende?
As lágrimas dela escorreram. -- Por favor, desculpe-me,
Anjin-san. Estou tão embaraçada. Por favor, desculpe a minha
estupidez por estar lá, apanhada como uma eta estúpida. Eu deveria estar com o senhor, guardando-o, não enfiada com os criados
na casa. Não havia nada para mim na casa, nada, nenhuma razão
para estar na cas.. .
Ele a deixou falar embora não compreendesse quase nada
do que dizia, abraçando-a compadecido. Tenho que descobrir o
que foi que o médico usou, pensou excitado. É a cura melhor e
mais rápida que já vi. Cada mestre de cada um dos navios de Sua
Majestade devia conhecer esse segredo - sim, e na verdade, cada
capitão de cada navio da Europa. Espere um instante, cada mestre não pagaria guinéus de ouro por esse segredo? Você poderia
fazer uma fortuna! Sim. Mas não desse modo, disse-se ele, nunca.
Nunca com o sofrimento de um marinheiro.
Ela tem sorte de que tenha sido só na barriga das pernas
e nas costas, e não na face. Olhou-lhe o rosto. Continuava tão
quadrado e chato como sempre, os dentes exatamente tão pontudos, mas o calor que lhe emanava dos olhos compensava a feiúra.
Deu-lhe outro abraço. - Agora. Não chore. Ordem!
Mandou a criada ir buscar chá e saque e muitas almofadas e
ajudou-a a se reclinar sobre elas, por mais embaraçada que ela,
904
no começo, se sentisse em obedecer. - Como posso lhe agradecer?
- disse ela.
- Não agradecimentos. Retribuo - Blackthorne pensou um
instante, mas não conseguiu se lembrar das palavras japonesas
para "favor" ou "lembrar", então pegou o dicionário e procurou-as
ali. - "Favor: o-negai"... "lembrar: omoi dasu". Hai, mondoso
o-negai! Omi desu ka? Retribuir favor. Lembra-se? - Levantou
os punhos, imitando pistolas e apontando-as. - Omi-san, lembra-se?
- Oh, claro - exclamoil ela. Depois, maravilhada, pediu
para olhar o livro. Nunca vira escrita romana antes, e a coluna
de palavras japonesas passadas para o latim e o português e viceversa não tinham significado para ela, mas logo captou a finalidade
daquilo. - É um livro com todas as nossas... desculpe. Livro de
palavras, neh?
- Hai.
- "Hombun"? - perguntou ela.
Ele lhe mostrou como encontrar a palavra em latim e em
português. - "Hombun: dever." - E acrescentou em japonês:
- Compreendo dever. Dever de samurai, neh?
- Hai. - Ela bateu palmas como se lhe tivessem mostrado
um brinquedo mágico. Mas é mágica, não é? pensou ele, um
presente de Deus. Isto desvenda a mente dela e a de Toranaga,
e logo estarei falando perfeitamente.
Ela lhe deu outras palavras e ele as disse em inglês ou em
latim ou em português, sempre compreendendo as palavras que
ela escolhia e sempre as encontrando. O dicionário não falhava
nunca.
Ele olhou uma palavra. - Majutsu desu, neh? É mágica,
não é?
- Sim, Anjin-san. O livro é mágica. - Ela tomou um gole
de chá. - Agora posso conversar com o senhor. Realmente
conversar.
- Um pouco. Só devagar, compreende?
- Sim. Por favor, tenha paciência comigo. Por favor, desculpe-me.
O imenso sino do torreão tocou a hora do Bode e os templos
em Yedo ecoaram a mudança da hora.
- Eu vou agora. Vou Senhor Toranaga. - Colocou o livro
na manga.
- Esperarei aqui, por favor, se puder.
- Onde está alojada?
905
Ela apontou. - Oh, ali, meu quarto fica ao lado. Por favor,
desculpe a minha indelicadeza.
- Devagar. Fale devagar. Fale com simplicidade!
Ela repetiu devagar, com mais desculpas. - Bom - disse
ele. - Bom. Vejo-a mais tarde.
Ela começou a se levantar, mas ele meneou a cabeça e saiu
para o pátio. O dia estava nublado agora, o ar sufocante. Guardas
o esperavam. Logo se encontrou no adro do torreão. Mariko
estava lá, mais delgada do que nunca, mais etérea, o rosto de
alabastro sob o guarda-sol amarelo-ouro. Usava um quimono
marrom-escuro, barrado de verde.
- Ohayo, Anjin-san. Ikaga desu ka? - perguntou ela,
curvando-se formalmente.
Ele lhe disse que estava ótimo, mantendo alegremente o hábito dos dois de falar em japonês o mais que pudessem, passando
para o português só quando ele se cansava ou quando desejavam
ser mais reservados.
- Você... - disse ele cautelosamente, em latim, enquanto
subiam as escadas do torreão.
- Você - ecoou Mariko, e passou imediatamente para o
português com a mesma gravidade da noite anterior. - Sinto
muito, por favor, nada de latim hoje, Anjin-san, hoje o latim não
assenta bem. Não pode servir à finalidade para a qual foi feito, neh?
- Quando posso lhe falar?
- Isso é muito difícil, sinto muito. Tenho deveres.
. .
- Não há nada de errado, há?
- Oh, não - replicou ela. - Por favor, desculpe-me, o
que poderia estar errado? Nada está errado.
Subiram outro lanço em silêncio. No andar seguinte, os passes foram examinados como sempre, guardas à frente e atrás
deles. A chuva começou a cair pesadamente e isso diminuiu a
umidade.
- Vai chover durante horas - disse ele.
- Sim. Mas sem as chuvas não há arroz. Logo cessarão,
dentro de duas ou três semanas, então ficará quente e úmido até
o outono. - Ela olhou pelas janelas para o aguaceiro cerrado.
- Vai gostar do outono, Anjin-san.
- Sim. - Ele observava o Erasmus, muito distante, lá embaixo ao lado do embarcadouro. Então a chuva obscureceu o
navio e ele subiu mais um trecho.
- Depois de falarmos com o Senhor Toranaga, teremos que
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esperar até que essa chuva passe. Talvez houvesse um lugar onde
pudéssemos conversar?
- Isso poderia ser difícil - disse ela vagamente, coisa que
ele estranhou. Normalmente ela era decisiva e executava as polidas "sugestões" dele como ordens que normalmente seriam consideradas. - Por favor, desculpe-me, Anjin-san, mas as coisas são
difíceis para mim no momento, e tenho muito o que fazer. -
Parou momentaneamente e passou o guarda-sol para a outra mão,
segurando a barra da saia. - Como foi a noite passada? Como
estavam os seus amigos, a sua tripulação?
- Ótimos. Esteve tudo ótimo - disse ele.
- Mas não "ótimo"? - perguntou ela.
- Ótimo... mas muito estranho. - Ele a encarou. - A
senhora percebe tudo, não?
- Não, Anjin-san. Mas o senhor não os mencionou e vem
pensando enormemente neles nesta última semana. Não sou mágica. Sinto muito.
Após uma pausa, ele disse: - Tem certeza de que está bem?
Não há problema com Buntaro-san, há?
Ele nunca falara de Buntaro com ela ou sequer the mencionara o nome desde Yokosé. Por acordo, aquele espectro nunca
era invocado por nenhum deles desde o primeiro momento. - E
o meu único pedido, Anjin-san - sussurrara eta na primeira
noite. - Aconteça o que acontecer durante a nossa viagem, para
Mishima ou, se Nossa Senhora quiser, para Yedo, isto não tem
nada a ver com mais ninguém além de nós, neh? Entre nós, nada
do que realmente e deve ser mencionado. Neh? Nada. Por favor?
- Concordo. Juro.
- E eu faço o mesmo. Afinal, a nossa viagem termina na
Primeira Ponte de Yedo.
- Não.
- Tem que haver um término, meu amor. Na Primeira
Ponte a nossa viagem acaba. Por favor, ou morrerei de aflição
com o medo pelo senhor e o perigo em que o coloquei.
. .
Na manhã anterior, ele parara ao limiar da Primeira Ponte,
um peso súbito no espírito, apesar da sua alegria com o Erasmus.
- Devemos atravessar a ponte agora, Anjin-san - dissera ela.
- Sim. Mas é só uma ponte. Uma dentre muitas. Venha,
Mariko-san. Caminhe ao meu lado através desta ponte. Ao meu
lado, por favor. Vamos caminhar juntos - depois, em latim: - e
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imagine que está sendo carregada e que vamos de mãos dadas
para um começo.
Ela descera do palanquim e andara ao lado dele até atingirem
o outro lado. Ali subira de novo à liteira acortinada e os dois
seguiram pela leve elevação. Buntaro esperava ao portão do.
castelo.
Blackthorne lembrou-se de como orara para que um relâmpago caísse do céu.
- Não há problema com ele, há? - perguntou de novo,
quando atingiram o último patamar.
Ela meneou a cabeça.
- Navio muito rápido, Anjin-san? -- disse Toranaga. -
Nao engano?
- Não engano, senhor. Navio perfeito.
- Quantos homens extras... quantos homens mais quer
para o navio... - Toranaga relanceou o olhar para Mariko. -
Por favor, perguntê-lhe de quantos homens mais ele necessitará
para navegar adequadamente. Quero ter certeza absoluta de que
ele compreende o que quero saber.
- O Anjin-san diz que precisaria de um mínimo de trinta
marujos e vinte atiradores. Sua tripulação original era de cento
o sete homens, incluindo cozinheiros e mercadores. Para navegar
o combater nestas águas, o complemento de duzentos samurais
seria suficiente.
- E ele acredita que os outros homens de que necessita
poderiam ser contratados em Nagasaki?
- Sim, senhor.
- Eu certamente não confiaria em mercenários - disse
Toranaga com desagrado.
- Por favor, desculpe-me, senhor, quer que eu traduza isso?
- O quê? Oh, não, isso não tem importância.
Toranaga levantou-se, ainda fingindo rabugice, e olhou a
chuva pelas janelas. A cidade inteira estava obscurecida pelo aguaceiro. Que chova durante meses, pensou ele. Que todos os deuses
façam a chuva durar até o Ano Novo. Quando Buntaro encontrará meu irmão? - Diga ao Anjin-san que lhe darei seus vassalos
amanhã. Hoje está terrível. Essa chuva vai continuar o dia todo.
Não faz sentido se ensopar.
- Sim, senhor - ouviu-a dizer, e sorriu ironicamente consigo mesmo. Nunca, em toda a sua vida, o tempo o impedira de
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fazer coisa alguma. Isso certamente deve convencê-la, e a quaisquer outros céticos, de que mudei definitivamente para pior, pensou ele, sabendo que ainda não podia se desviar do rumo escolhido. - Amanhã ou depois de amanhã, que diferença faz? Digalhe que, quando eu estiver pronto, mandarei chamá-lo. Até lá, ele
deve ficar dentro do castelo.
Ouviu-a passar as ordens para o Anjin-san.
- Sim, Senhor Toranaga, compreendo - respondeu Blackthorne por si mesmo. - Mas posso respeitosamente perguntar: é
possível ir a Nagasaki depressa? Penso é importante. Sinto muito.
- Decidirei isso mais tarde - disse Toranaga bruscamente,
sem simplificar para ele. Fez-lhe sinal que saísse. - Até logo,
Anjin-san. Decidirei o seu futuro em breve. - Viu que o homem
queria insistir, mas polidamente não o fez. Bom, pensou, pelo
menos está aprendendo boas maneiras! - Diga ao Anjin-san que
ele não precisa esperá-la, Mariko-san. Até logo, Anjin-san.
Mariko fez conforme o ordenado. Toranaga voltou-se para
contemplar a cidade e o temporal. Ouviu o som da chuva. A porta
fechou-se atrás do Anjin-san. - Sobre o que foi a discussão? -
perguntou Toranaga, sem olhar para ela.
- Senhor?
Os ouvidos dele, cuidadosamente aguçados, captaram o débil
tremor na voz dela.
- Claro que entre Buntaro e você, ou você teve alguma
outra discussão que me interesse? - acrescentou ele com um
sarcasmo mordaz, precisando precipitar o assunto. - Com o
Anjin-san, talvez, ou com os meus inimigos cristãos, ou com o
Tsukku-san?
- Não, senhor. Por favor, desculpe-me. Começou como
sempre, como a rnaioria das discussões, senhor, entre marido e
mulher. Realmente por causa de nada. Então, de repente, como
sempre, o passado todo vem à tona e infecta o homem e a mulher
se. .. se eles estiverem mal-humorados.
- E você estava mal-humorada?
- Sim. Por favor, desculpe-me. Provoquei meu marido impiedosamente. A culpa foi inteiramente minha. Lamento, senhor,
que nestes tempos ruins, sinto muito, as pessoas digam coisas
irrefletidas.
- Vamos, depressa, que coisas irrefletidas?
Ela estava como uma corça encurralada. Seu rosto estava
branco como giz. Sabia que os espiões já lhe deviam ter cochichado o que fora gritado no silêncio da casa deles.
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Contou-lhe tudo o que fora dito da melhor maneira que
conseguiu se lembrar. E acrescentou: - Acredito que as palavras
do meu marido tenham sido ditas devido à cólera desenfreada
que provoquei. Ele é leal, sei que é. Se alguém deve ser punido
sou eu, senhor. Realmente provoquei a loucura.
Toranaga sentou-se de novo sobre a almofada, as costas rijas,
o rosto granítico. - O que disse a Senhora Genjiko?
- Não falei com ela, senhor.
- Mas pretende fazer isso, neh? ou pretendia?
- Não, senhor. Com a sua permissão, pretendo partir imediatamente para Osaka.
- Você partirá quando eu disser e não antes disso, e traição
é uma besta abominável onde quer que seja descoberta!
Ela se curvou ante o açoite da língua dele. - Sim, senhor.
Por favor, perdoe-me. A culpa é minha.
Ele tocou um sininho. A porta se abriu. Naga apareceu. -
Sim, senhor?
- Ordene que o Senhor Sudara venha aqui imediatamente,
com a Senhora Genjiko.
- Sim, senhor. - Naga voltou-se.
- Espere! Depois convoque o meu conselho, Yabu e todos... e todos os generais mais velhos. Devem estar aqui à meianoite. E esvazie este andar. Todos os guardas! Você volta com
Sudara!
- Sim, senhor. - Pálido, Naga fechou a porta atrás de si.
Toranaga ouviu homens descendo as escadas com estrépito.
Dirigiu-se para a porta e abriu-a. O corredor estava vazio. Bateu
a porta e trancou-a. Pegou outro sino e tocou-o. Uma porta
interna na outra extremidade do aposento se abriu. Era uma porta
que mal se notava, tão inteligentemente se fundia ao revestimento
de madeira da sala. Uma mulher de meia-idade, atarracada, surgiu
por ali. Usava um hábito encapuzado de monja budista. - Sim,
grande senhor?
- Chá, por favor, Chano-chan - disse ele. A porta se
fechou. Os olhos de Toranaga voltaram para Mariko. - Então
você acha que ele é leal?
- Eu sei disso, senhor. Por favor, perdoe-me, a culpa foi
minha, não dele - disse ela, desesperada por agradar. - Eu o
provoquei.
- Sim, provocou. Repugnante. Terrível. Imperdoável! -
Toranaga pegou um lenço de papel e enxugou a fronte. - Mas
oportuno.
910
- Senhor?
- Se você não o tivesse provocado, talvez eu nunca viesse
a saber de qualquer traição. E se ele tivesse dito tudo isso sem
provocação, teria havido apenas uma linha de ação. Sendo como
é - continuou ele -, você me dá uma alternativa.
- Senhor?
Ele não respondeu. Estava pensando. Gostaria que Hiromatsu estivesse aqui, então haveria pelo menos um homem em
quem eu poderia confiar completamente. - E quanto a você?
Quanto à sua lealdade?
- Por favor, senhor, deve saber que a tem.
Ele não respondeu. A expressão de seus olhos era inexorável.
A porta interna se abriu e Chano, a monja, entrou confiantemente na sala sem bater, uma bandeja nas mãos. - Aqui está,
grande senhor, estava pronto para o senhor. - Ajoelhou-se como
uma camponesa, suas mãos ásperas como as de uma camponesa,
mas sua autoconfiança era enorme e seu contentamento interior
óbvio. - Que Buda o abençoe com a sua paz. - Depois se
voltou para Mariko, curvou-se como uma camponesa se curvaria,
e se sentou confortavelmente. - Talvez me honrasse servindome, senhora. A senhora o fará lindamente, sem derramar, neh?
- Seus olhos cintilavam com um deleite particular.
- Com prazer, Oku-san - disse Mariko, dando-lhe o título
religioso de "madre", dissimulando a própria surpresa. Nunca vira
antes a mãe de Naga. Conhecia a maioria das outras damas oficiais
de Toranaga, vira-as em cerimônias oficiais, mas dava-se apenas
com Kiritsubo e a Senhora Sazuko.
- Chano-chan - disse Toranaga -, esta é a Senhora Toda
Mariko-noh-Buntaro.
- Ah, so desu, sinto muito, pensei que fosse uma das honradas damas do meu grande senhor. Por favor, desculpe-me,
Senhora Toda, que as bênçãos de Buda estejam com a senhora.
- Obrigada - disse Mariko. Ofereceu a xícara a Toranaga.
Ele aceitou e bebeu.
- Sirva Chano-chan e a si mesma - disse ele.
- Sinto muito, para mim não, grande senhor, com a sua
permissão. Meus dentes de trás estão amolecidos de tanto chá e
o balde fica longe demais destes velhos ossos.
- O exercício lhe faria bem - disse Toranaga, contente de
tê-la mandado buscar quando retornara a Yedo.
- Sim, grande senhor. Tem razão, como sempre. - Chano
911
voltou sua atenção cordial a Mariko. - Então a senhora é a filha
do Senhor Akechi Jinsai?
A xícara de Mariko hesitou no ar. - Sim. Por favor, desculpe-me...
- Oh, não há nada de que se desculpar, criança. - Chano
riu gentilmente, e seu estômago balançou para cima e para baixo.
- Eu só a identifiquei pelo nome, por favor, desculpe-me, mas
a última vez que a vi foi no seu casamento.
- Oh?
- Oh, sim, eu a vi no seu casamento, mas a senhora não
me viu. Eu espiei por detrás de uma divisória. Sim, a senhora
e todos os grandes, o ditador, e Nakamura, o futuro táicum, e
todos os nobres. Oh, eu era tímida demais para me misturar
àquela companhia. Mas aquele foi um bom tempo para mim. O
melhor da minha vida. Foi o segundo ano em que o meu grande
senhor me favoreceu e eu estava pesada, com criança, embora
continuasse sendo a camponesa que sempre fui. - Seus olhos se
enrugaram e ela acrescentou: - A senhora mudou muito pouco,
desde aqueles dias, continua sendo uma das escolhidas de Buda.
- Ah, gostaria que isso fosse verdade, Oku-san.
- É verdade. Sabia que foi uma das escolhidas de Buda?
- Não fui, Oku-san, por mais que gostasse de ser.
-- Ela é cristã -- disse Toranaga.
- Ah, cristã... o que importa para uma mulher, ser cristã
ou budista, grande senhor? Não muito às vezes, embora algum
deus seja necessário para uma mulher. - Chano soltou uma
risadinha alegre. - Nós, mulheres, precisamos de um deus, grande
senhor, para nos ajudar a lidar com os homens, neh?
- E nós, homens, precisamos de paciência, de uma paciência divina, para lidar com as mulheres, neh?
A mulher riu, e isso aqueceu a sala inteira e, por um instante,
abrandou parte dos pressentimentos de Mariko. - Sim, grande
senhor - continuou Chano -, e tudo por causa de um Pavilhão
Celestial que não tem futuro, tem pouco calor e uma capacidade
do inferno.
Toranaga grunhiu: - O que diz a isso, Mariko-san?
- A sabedoria da Senhora Chano excede a sua juventude
- disse Mariko.
- Ah, senhora, diz belas coisas a uma velha tola - disse a
monja. - Lembro-me tão bem da senhora. O seu quimono era
azul com as garças estampadas mais adoráveis que já vi. Prateadas. - Seus olhos voltaram-se para Toranaga. - Bem, grande
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senhor, só quis me sentar um instante. Por favor, com licença
agora.
- Ainda há tempo. Fique onde está.
- Sim, grande senhor - disse Chano, pesadamente pondose em pé -, eu obedeceria como sempre, mas a natureza chama.
Por isso, por favor, seja gentil com uma velha camponesa, eu
odiaria envergonhá-1o. É tempo de ir. Está tudo pronto, há comida e saque para quando desejar, grande senhor.
- Obrigado.
A porta fechou-se sem ruído atrás dela. Mariko esperou até
que a xícara de Toranaga se esvaziasse, e encheu-a de novo.
- No que está pensando?
- Estava esperando, senhor.
- O quê, Mariko-san?
- Senhor, sou hatamoto. Nunca lhe pedi um favor antes.
Gostaria de lhe pedir um favor como hato.. .
- Não quero que você peça favor algum como hataynoto
- disse Toranaga.
- Então um desejo de vida.
- Não sou um marido para conceder isso.
- As vezes um vassalo pode pedir ao susera.. .
- Sim, às vezes, mas não agora! Agora você vai calar a
boca sobre qualquer desejo de vida ou favor ou solicitação ou
seja o que for. - Um desejo de vida era um favor que, por costume antigo, uma esposa podia pedir ao marido, um filho ao pai
- e ocasionalmente um marido à esposa -, sem perda de dignidade, sob a condição de que, se o desejo fosse concedido, a
pessoa concordava em nunca mais pedir outro favor na vida. Por
costume, não se podiam fazer quaisquer perguntas sobre o favor,
nem ele devia ser mencionado novamente.
Houve uma batida polida à porta.
- Destranque-a - disse Toranaga.
Ela obedeceu. Sudara entrou, seguido da esposa, a Senhora
Genjiko, e Naga.
- Naga-san, desça ao segundo pavimento abaixo deste e
impeça qualquer pessoa de vir aqui sem as minhas ordens.
Naga saiu com grande gravidade e arrogância.
- Mariko-san, feche a porta e sente-se ali. - Toranaga
apontou um lugar ligeiramente diante dele, encarando os outros.
- Ordenei que viessem ambos aqui porque há assuntos de
familia particulares e urgentes a discutir.
Os olhos de Sudara involuntariamente se dirigiram para
913
Mariko, depois voltaram a fitar o pai. Os da Senhora Genjiko
não piscaram.
Toranaga disse asperamente: - Ela está aqui, meu filho,
por duas razões: a primeira é porque quero que esteja aqui e a
segunda é porque quero que esteja aqui!
- Sim, Pai - respondeu Sudara, envergonhado com a descortesia do pai a todos eles. - Posso, por favor, perguntar-lhe
por que o ofendi?
- Há alguma razão pela qual eu deveria estar ofendido?
- Não, senhor, a menos que o meu zelo pela sua segurança
o a minha relutância em permitir-lhe que parta desta terra sejam
causa de ofensa.
- E quanto a traição? Ouvi dizer que você está ousando
assumir o meu lugar como cabeça do nosso clã!
Sudara empalideceu. A Senhora Genjiko igualmente. - Nunca fiz isso, nem por palavras nem por atos. Nem qualquer membro da minha família ou alguém na minha presença.
- Isso é verdade, senhor - disse a Senhora Genjiko, com
a mesma intensidade. Sudara era um homem orgulhoso, esbelto,
com olhos frios e estreitos, e lábios frios que nunca sorriam.
Tinha vinte e quatro anos, era um excelente general, e o segundo
dos cinco filhos vivos de Toranaga. Adorava os próprios filhos,
não tinha consortes e era devotado à esposa.
Genjiko era baixa, três anos mais velha que o marido, e
rechonchuda devido aos quatro filhos que já lhe dera. Mas tinha
as mesmas costas retas e todo o orgulho da irmã, Ochiba, uma
inclemente preocupação com a proteção da própria prole, junto
com a mesma ferocidade latente herdada do avô, Goroda.
- Quem quer que tenha acusado meu marido é mentiroso
- disse ela.
- Mariko-san - disse Toranaga -, diga à Senhora Genjiko
o que o seu marido lhe ordenou que dissesse!
- Meu Senhor Buntaro pediu-me, ordenou-me, que a convencesse de que chegou o momento de o Senhor Sudara assumir
o poder, de que outros no conselho compartilham da opinião de
meu marido, e que, se o nosso Senhor Toranaga não quisesse
ceder o poder, deveria... deveria ser tomado à força.
- Nunca nenhum de nós nutriu esse pensamento, Pai
disse Sudara. - Somos leais e nunca cons...
- Se eu lhe desse o poder, o que você faria? - perguntou
Toranaga.
Genjiko respondeu imediatamente: - Como pode o Senhor
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Sudara saber, quando jamais considerou essa pecaminosa possibilidade? Sinto muito, senhor, mas para ele é impossível responder, porque isso nunca lhe esteve na mente. Como poderia estar?
E quanto a Buntaro-san, obviamente os kamis tomaram posse dele.
- Buntaro alegou que outros compartilham da sua opinião.
Quem? - perguntou Sudara, malignamente. - Diga-me
quem e eles morrerão dentro de minutos.
Diga-me você quem!
Não conheço nenhum, senhor, ou lhe teria relatado.
Não os teria matado antes?
A sua primeira lei é ter paciência, a segunda é ter paciência. Sempre segui suas ordens. Eu teria esperado e relatado.
Se o ofendi, ordene que eu cometa seppuku. Não mereço a sua
cólera, senhor; não cometi traição alguma. Não posso suportar a
sua cólera.
A Senhora Genjiko acorreu. - Sim, senhor. Por favor, com
licença, mas humildemente concordo com meu marido. Ele está
inocente, assim como toda a nossa gente. Somos fiéis... tudo
o que temos é seu, tudo o que somos foi o senhor que fez, tudo o que ordenar faremos.
- Ótimo! São vassalos leais, não são? Obedientes? Sempre
obedecem a ordens?
- Sim, senhor.
- Bom. Então vá e mate os seus filhos. Já.
Sudara desviou os olhos do pai e fitou a esposa.
A cabeça dela moveu-se levemente, em aquiescência.
Sudara curvou-se para Toranaga. Sua mão apertou o punho
da espada e ele se levantou. Fechou silenciosamente a porta atrás
de si. Houve um grande silêncio no seu rastro. Genjiko olhou
uma vez para Mariko, depois cravou os olhos no chão.
Sinos tocaram a metade da hora do Bode. O ar na sala parecia se adensar. A chuva parou brevemente, depois começou de
novo, mais pesada do que antes.
Pouco depois de os sinos indicarem a hora seguinte, houve
uma batida.
- Sim?
A porta se abriu. Naga disse: - Por favor, com licença,
senhor, meu irmão... o Senhor Sudara quer subir de novo.
- Deixe-o... e volte ao seu posto.
Sudara entrou, ajoelhou-se e curvou-se. Estava ensopado, o
cabelo emaranhado de chuva. Seus ombros tremiam levemente.
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- Meus... meus filhos estão... O senhor já tomou meus filhos,
senhor.
Genjiko oscilou e quase caiu para a frente. Mas dominou a,
fraqueza e encarou o marido. - O senhor... o senhor não os
matou?
Sudara meneou a cabeça e Toranaga disse com severidade:
- Os seus filhos estão nos meus aposentos, no andar abaixo.
Ordenei a Chano-san que fosse buscá-los depois que vocês recebessem a ordem de vir aqui. Preciso ter certeza sobre vocês dois.
Tempos infames exigem testes infames. - Tocou o sino.
- O senhor... o senhor retira a sua or... a sua ordem,
senhor? - perguntou Genjiko, desesperadamente tentando manter
uma fria dignidade.
- Sim. Minha ordem está retirada. Desta vez. Foi necessária para conhecer você. E o meu herdeiro.
- Obrigado, obrigado, senhor. - Sudara baixou a cabeça
humildemente.
A porta interna se abriu. - Chano-san, traga meus netos
aqui um instante - disse Toranaga.
Logo três mães adotivas em trajes escuros e a ama de leite
trouxeram as crianças. As meninas tinham quatro, três e dois anos,
o o filho recém-nascido, com algumas semanas, estava adormecido nos braços da ama. Todas as meninas usavam quimonos
escarlates com fitas escarlates no cabelo. As mães adotivas ajoelharam-se e curvaram-se para "Toranaga; suas pupilas imitaram-nas
com ar de importância e encostaram a cabeça aos tatamis - exceto a mais nova, cuja cabeça necessitou de uma ajuda gentil,
embora firme.
Toranaga retribuiu a mesura gravemente. Depois, cumprido
o dever, as crianças correram ao seu abraço - menos o menorzinho, que foi para os braços da mãe.
A meia-noite, Yabu atravessou empertigado o adro do torreão iluminado de archotes. O corpo de elite da guarda pessoal
de Toranaga se encontrava por toda parte. A lua estava indistinta
o nebulosa, e as estrelas quase invisíveis.
- Ah, Naga-san, qual é a razão disto tudo?
- Não sei, senhor, mas a ordem é que todos se dirijam à
câmara de conferência. Por favor, com licença, mas deve deixar
suas espadas comigo.
Yabu corou ante a inaudita quebra de etiqueta. - Você
916
está... - Mudou de idéia, sentindo a tensão enregelante do
jovem e o agitado nervosismo dos guardas próximos. - Por
ordem de quem, por favor, Naga-san?
- De meu pai, senhor. Sinto muito, o senhor pode não
comparecer à reunião, se, quiser, mas tenho que preveni-lo de que
a ordem é para o senhor se apresentar sem espadas e, sinto muito, é assim que vai ser. Por favor, desculpe-me, mas não tenho
escolha.
Yabu viu a pilha de espadas já ao abrigo da guarita ao lado
do imenso portão principal. Ponderou os riscos de uma recusa
e achou-os descomunais. Relutantemente, entregou suas armas.
Naga curvou-se polidamente, igualmente embaraçado ao aceitálas. Yabu entrou. A sala imensa tinha seteira, chão de pedras e
traves de madeira.
Logo estavam reunidos os cinqüenta generais mais velhos,
vinte e três conselheiros, e sete daimios amistosos de províncias
menores do norte. Estavam todos excitados e desconfortavelmente
impacientes.
- O que é isto tudo, afinal? - perguntou Yabu, carrancudo,
enquanto tomava o seu lugar.
Um general deu de ombros. - Provavelmente é por causa
da viagem para Osaka.
Outro olhou em torno esperançosamente: - Talvez seja uma
mudança de plano, neh? Ele vai ordenar Céu...
- Sinto muito, mas o senhor está com a cabeça nas nuvens.
Ele está decidido. Nosso senhor está decidido... l Osaka e nada
mais! Ei, Yabu-sarna, quando chegou aqui?
- Ontem. Fiquei enfiado numa imunda aldeiazinha de pesca
chamada Yokohama durante mais de duas semanas, ao sul daqui,
com as minhas tropas. O porto é ótimo, mas os percevejos! Mosquitos fedorentos e percevejos... nunca foram tão ruins em Izu.
- Está a par de todas as novidades?
- Quer dizer, de todas as más novidades? O deslocamento
ainda será dentro de seis dias, neh?
- Sim, terrível. Vergonhoso!
- É verdade, mas esta noite e pior -- disse outro general.
severamente. - Nunca estive sem espadas antes. Nunca.
- É um insulto -- disse Yabu deliberadamente. Todos os
que lhe estavam próximos o olharam.
- Concordo - retrucou o General Kiyoshio, quebrando o
silêncio. Serata Kiyoshio era o grisalho e rijo comandante do Sétimo Exército. - Nunca estive sem espadas em público antes.
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Faz-me sentir como um mercador fedorento! Acho... üüh, ordens são ordens, mas algumas não deviam ser dadas.
- Tem toda a razão - disse alguém. - O que o velho,
Punho de Aço teria feito se estivesse aqui?
- Teria rasgado o ventre antes de entregar as suas espadas!
Teria feito isso esta noite, no adro! - disse um jovem. Era Serata
Tomo, o filho mais velho do general, segundo em comando do
Quarto Exército. - Gostaria de que Punho de Aço estivesse aqui!
Poderia entender... teria aberto o ventre antes.
- Considerei isso. - O General Kiyoshio limpou a garganta asperamente. - Alguém tem que ser responsável. .. e cumprir
o seu dever! Alguém tem que assinalar que ser suserano significa
responsabilidade e dever!
- Sinto muito, mas é melhor o senhor ter cuidado com a
língua - advertiu Yabu.
- Para que serve uma língua na boca de um samurai se ele
é proibido de ser samurai?
- Para nada - resmungou Isamu, um velho conselheiro.
- Concordo. Melhor estar morto.
- Sinto muito, Isamu-san, mas esse é o nosso futuro imediato de qualquer modo - disse o jovem Serata Tomo. - Somos
pombos empalados para um certo falcão desonrado!
- Por favor, calem-se! - disse Yabu, dissimulando a própria satisfação. E acrescentou cuidadosamente: - Ele é o nosso
suserano e, até que o Senhor Sudara ou o conselho assuma declaradamente a responsabilidade, continua sendo o suserano e deve
ser obedecido. Neh?
O General Kiyoshio estudou-o, a mão inconscientemente tateando à procura do punho da espada. - O que foi que ouviu,
Yabu-sarna?
- Nada.
- Buntaro-san disse que... - começou o conselheiro.
O General Kiyoshio interrompeu: - Por favor, com licença,
Isamu-san, mas o que o General Buntaro disse ou o que não disse
não tem importância. O que Yabu-sarna disse é verdade. Um
suserano é um suserano. Ainda assim, um samurai tem direitos,
um vassalo tem direitos. Mesmo daimios. Neh?
Yabu retribuiu-lhe o olhar, calculando a profundidade daquele
convite. - Izu é província do Senhor Toranaga. Não sou mais
daimio de Izu, apenas a governo por ele. - Correu os olhos pela
sala enorme. - Estão todos aqui, neh?
- Menos o Senhor Noboru - disse um general, mencio918
nando o filho mais velho de Toranaga, que contava com aversão
generalizada.
- Sim. Mas dá na mesma e não tem importância, general,
a doença chinesa logo dará cabo dele e estaremos livres para sempre de seu humor péssimo - disse alguém.
- E do mau cheiro.
- Quando vai voltar?
- Quem sabe? Nem sabemos por que Toranaga-sana o
mandou para o norte. É melhor que fique lá, neh?
- Se o senhor tivesse essa doença, seria tão mal-humorado
quanto ele, neh?
- Sim, Yabu-san. Sim, seria. É uma pena que ele seja sifilítico, é um bom general. .. melhor do que o Peixe Frio - acrescentou o General Kiyoshio, usando o apelido particular de Sudara.
- Iüüh - assobiou o conselheiro. - Há demônios no ar
esta noite para fazê-lo tão descuidado com a língua. Ou será que
é o saque?
- Talvez seja a doença chinesa - respondeu o General
Kiyoshio com uma risada amarga.
- Buda me proteja disso! - disse Yabu. - Se ao menos
o Senhor Toranaga mudasse de idéia sobre Osaka!
Eu rasgaria o ventre se isso o convencesse - disse o
jovem.
Sem ofensa, meu filho, mas você está com a cabeça nas
nuvens. Ele nunca mudará.
Sim, Pai. Mas simplesmente não o compreendo.
- Vamos todos com ele? No mesmo contingente? - perguntou Yabu um instante depois.
Isamu, o velho conselheiro, disse: - Sim. Devemos ir como
escolta. Com dois mil homens com equipamento cerimonial completo e toda a pompa. Vamos levar trinta dias para chegar lá. Só
nos restam seis.
- Isso não é muito tempo. É, Yabu-sarna? - disse o General Kiyoshio.
Yabu não respondeu. Não havia necessidade. O general não
solicitava uma resposta. Mergulharam todos nos próprios pensamentos.
Uma porta lateral se abriu. Toranaga entrou. Sudara seguiu-o. Todos se curvaram rigidamente. Toranaga retribuiu e se
sentou à frente deles, Sudara, na qualidade de herdeiro presuntivo, ligeiramente à sua frente, também encarando os demais.
Naga entrou pela porta principal e fechou-a.
919
Apenas Toranaga usava espadas.
- Foi relatado que alguns dos senhores falam em traição,
pensam em traição e planejam traição - disse friamente. Ninguém respondeu ou se moveu. Lentamente, implacavelmente, Toranaga olhou rosto a rosto.
Ainda nenhum movimento. Então o General Kiyoshio falou:
- Posso respeitosamente perguntar, senhor, o que quer dizer com
"traição"?
- Todo questionamento de uma ordem, de uma decisão, de
uma posição de um suserano, em qualquer momento, é traição
- revidou Toranaga com violência.
As costas do general se enrijeceram. - Então sou culpado
de traição.
- Então saia e cometa seppuku imediatamente.
- Farei isso, senhor - disse o soldado orgulhosamente -,
mas antes reivindicarei o direito de livre expressão diante dos seus
leais vassalos, oficiais e cons...
- O senhor perdeu todos os seus direitos!
- Muito bem. Então reivindico-o como desejo de morte, na
qualidade de hatamoto, e em troca de vinte e oito anos de serviço leal!
- Exponha-o rapidamente.
- Farei isso, senhor - respondeu gelidamente o General
Kiyoshio. - Peço para dizer, primeiro: ir a Osaka e curvar-se
ao camponês Ishido é traição contra a sua honra, a honra do seu
clã, a honra dos seus fiéis vassalos, sua herança especial, e totalmente contra o bushido. Segundo: eu o acuso dessa traição e digo
que em conseqüência o senhor perdeu o seu direito de ser nosso
suserano. Terceiro: solicito que o senhor imediatamente abdique
em favor do Senhor Sudara e honrosamente parta desta vida...
ou raspe a cabeça e se retire para um mosteiro, o que preferir.
o general curvou-se rigidamente, depois sentou-se de cócoras. Todo mundo esperava, quase não respirando, agora que o
inacreditável se tornara uma realidade.
Abruptamente Toranaga sibilou: - O que está esperando?
o General Kiyoshio sustentou-lhe o olhar. - Nada, senhor.
Por favor, com licença. - O filho dele começou a se levantar.
- Não. Ordeno-lhe que fique aqui! - disse ele.
o general curvou-se uma última vez para Toranaga, levantou-se e saiu com imensa dignidade. Alguns se mexeram nervosamente e um burburinho percorreu a sala, mas a aspereza de
Toranaga dominou de novo: - Há mais alguém que admita trai920
ção? Mais alguém que ouse quebrar o bushido, mais alguém que
ouse acusar seu suserano de traição?
- Por favor, com licença, senhor - disse calmamente
Isamu, o velho conselheiro. - Mas lamento dizer que se o senhor
for a Osaka, será traição contra a sua herança.
- No dia em que eu for a Osaka você partirá desta terra.
o homem grisalho curvou-se polidamente. - Sim, senhor.
Toranaga os examinou. Sem piedade. Alguém mudou de
posição, apreensivo, e seus olhos saltaram para cima dele. O samurai, um guerreiro que anos antes perdera a vontade de combater e raspara a cabeça para se tornar monge budista e agora
era membro da administração civil de Toranaga, não disse nada,
quase definhando com o medo evidente que tentava desesperadamente ocultar.
- Do que está com medo, Numata-san?
- De nada, senhor - disse o homem, de olhos baixos.
- Bom. Então vá e cometa seppuku, porque é um mentiroso e o seu medo é um mau cheiro infeccioso.
o homem choramingou e saiu aos tropeçóes. O pavor dominava-os a todos agora. Toranaga observava. E esperava.
o ar tornou-se opressivo, o leve crepitar das chamas dos
archotes parecia estranhamente alto. Então, sabendo que era seu
dever e responsabilidade. Sudara voltou-se e curvou-se. - Por
favor, senhor, posso respeitosamente fazer uma declaração?
- Que declaração?
- Senhor, acredito que não haja mais... mais traição aqui,
e que não haverá mais trai.. .
- Não compartilho a sua opinião.
- Por favor, com licença, senhor, sabe que lhe obedecerei.
Todos obedeceremos. Visamos apenas ao melhor para o senhor.. .
- O melhor é a minha decisão. O que eu decido é melhor.
Desamparado, Sudara curvou-se em aquiescência e ficou em
silêncio. Toranaga não desviou os olhos dele. O olhar era impiedoso. - Você não é mais o meu herdeiro.
Sudara empalideceu. Então Toranaga esfacelou a tensão na
sala: - Eu sou o suserano aqui.
Esperou um momento, depois, em meio a um silêncio absoluto, levantou-se e arrogantemente marchou para fora da sala.
A porta fechou-se atrás dele. Um grande suspiro percorreu a
sala. Mãos buscaram punhos de espadas impotentemente. Mas
ninguém deixou o seu lugar.
- Esta.., esta manhã ouvi.. . ouvi do nosso comandante921
chefe - começou Sudara finalmente - que o Senhor Hiro-matsu
estará aqui dentro de poucos dias. Eu... conversarei com ele.
Fiquem em silêncio, tenham paciência, sejam leais ao nosso suserano. Vamos agora, e prestemos nossos respeitos ao General Serata
Kiyoshio.. .
Toranaga estava subindo as escadas, uma grande solidão
sobre ele, seus passos ecoando no vazio da torre. Perto do topo,
parou e se apoiou momentaneamente na parede, a respiração
pesada. A dor estava agarrando-lhe o peito de novo e ele tentou
abrandá-la esfregando. - E só falta de exercício - murmurou.
- E só isso, falta de exercício.
Continuou. Sabia que estava em grande perigo. Traição e
medo eram coisas perigosas, e ambas tinham que ser cauterizadas
sem piedade no momento em que aparecessem. Ainda assim,
nunca se podia ter certeza de que estavam erradicadas. O combate em que estava empenhado não era um jogo de criança. O
fraco tinha que ser alimento do forte, o forte títere do muito
forte. Se Sudara publicamente lhe reivindicasse o lugar, ele estaria
impotente para impedir. Até que Zataki respondesse, tinha que
esperar.
Toranaga fechou e trancou sua porta e caminhou para uma
janela. Embaixo, podia ver seus generais e conselheiros silenciosamente escoando para suas casas, fora dos muros do torreão.
Além dos muros do castelo, a cidade numa escuridão quase total.
Acima, a lua estava pálida e enevoada. Fazia uma noite tristonha,
sombria. E, parecia-lhe, a desgraça corria os céus.
CAPÍTULO 50
Blackthorne estava sentado sozinho ao sol da manhã, num
canto do jardim, fora da casa de hóspedes, devaneando, o dicionário na mão. Fazia um dia ótimo, sem nuvens - o primeiro em
muitas semanas -, e era o quinto dia desde a última vez que
vira Toranaga. Todo esse tempo estivera confinado ao castelo,
incapaz de ver Mariko, visitar seu navio ou sua tripulação, explorar a cidade, ou caçar ou cavalgar. Uma vez por dia ia nadar
num dos fossos com outros samurais, e para passar o tempo en922
sinou alguns a nadar e a mergulhar. Mas isso não tornava a espera
mais fácil.
- Sinto muito, Anjin-san, mas é a mesma coisa para todo
mundo - dissera Mariko na véspera, quando a encontrara por
acaso na sua seção do castelo. - Até o Senhor Hiro-matsu está
sendo mantido à espera. Faz dois dias que ele chegou e ainda
não viu o Senhor Toranaga. Ninguém viu.
- Mas isso é importante, Mariko-san. Pensei que ele tivesse
compreendido que cada dia é vital. Não há algum modo de eu
lhe enviar uma mensagem?
- Oh, sim, Anjin-san. Isso é simples. Simplesmente escreva.
Se me disser o que quer dizer, escreverei para o senhor. Todo
mundo tem que escrever para uma entrevista, são essas as ordens
atuais. Por favor, seja paciente, é tudo o que podemos fazer.
- Então, por favor, peça uma entrevista. Eu agradeceria.. .
- Isso não é problema, o prazer é meu.
- Onde a senhora esteve? Faz quatro dias que não a vejo.
- Por favor, desculpe-me, mas tive que fazer muitas coisas.
E... é um pouco difícil para mim, tantos preparativos.. .
- O que está acontecendo? Este castelo todo está como uma
colmeia prestes a levantar vôo há quase uma semana.
- Oh, sinto muito. Está tudo ótimo, Anjin-san.
- Está? Sinto muito, um general e um administrador cometem seppuku no adro do torreão. Isso é normal? O Senhor Toranaga se tranca na torre de marfim, mantendo as pessoas à espera
sem razão aparente... isso também é normal? EE o Senhor Hiromatsu?
- O Senhor Toranaga é o nosso senhor. Tudo o que ele
faz é certo.
- E a senhora, Mariko-san? Por que não a tenho visto?
- Por favor, desculpe-me, sinto muito, mas o Senhor Toranaga ordenou que eu o deixasse com os seus estudos. Estou visitando a sua consorte agora, Anjin-san. Não o senhor.
- Por que ele objetaria a isso?
- Meramente, suponho, para que o senhor seja obrigado a
falar a nossa língua. Foram só alguns dias, neh?
- Quando parte para Osaka?
- Não sei. Esperava partir há três dias, mas o Senhor Toranaga ainda não assinou o meu passe. Arranjei tudo, carregadores
e cavalos, e diariamente apresento os meus papéis de viagem ao
secretário dele, para que sejam assinados, mas são sempre devolvidos. "Apresente-os amanhã."
923
- Pensei que ia levá-la a Osaka por mar. Ele não disse que
eu devia levá-la por mar?
- Sim. Sim, disse, mas... bem, Anjin-san,
com o nosso suserano. Ele muda os planos.
- Ele sempre foi assim?
- Sim e não. Desde Yokosé
como dizer... melancolia, neh?...
ferente. Ele... sim, está diferente agora.
- Desde a Primeira Ponte a senhora está cheia de melancolia e muito diferente. Sim, está diferente agora.
- A Primeira Ponte foi um fim e um começo, Anjin-san,
nossa promessa. Neh?
- Sim. Por favor, desculpe-me.
Ela se curvara tristemente e partira, e depois, a uma distancia segura, sem se voltar, sussurrara em latim: - Você... - A
palavra pairou no corredor com o seu perfume.
A refeição noturna ele tentara interrogar
também não sabia nada de importante, ou não
que havia de errado no castelo.
- Dozo gomen nasal, Anjin-san.
Ele foi para a cama perturbado. Perturbado pela frustração
com os adiamentos e as noites sem Mariko. Era sempre ruim
saber que ela estava tão perto, que Buntaro estava fora da cidade,
e agora, por causa do "Você ... ", que o desejo dela continuava
tão intenso quanto o seu. Alguns dias atrás ele fora à casa dela,
sob o pretexto de que precisava de auxílio com o japonês. Os
guardas samurais lhe disseram: "Sinto muito, ela não está". Ele
lhes agradecera, depois caminhara à toa até o portão principal sul.
Dali podia enxergar o oceano. Como a terra era muito plana, não
conseguia ver nada além dos embarcadouros e dos cais, embora
pensasse poder distinguir os altos mastros do seu navio a distancia.
O oceano o chamava. Era o horizonte mais que o mar, a necessidade de um vento calmo soprando contra ele, olhos semi
cerrados contra a sua força, a língua sentindo-lhe o sal, o convés
topo dos mastros o cordame, as adriças esta sob a pressão das velas que, de vez em quando,
de alegria quando a brisa forte mudasse um
Erguer-se no seu tombadilho e ser árbitro, assim como, ali, Toranaga sozinho era árbitro.
Blackthorne levantou os olhos para a parte mais elevada do
torreão. O sol cintilava nas suas curvas simetricamente cobertas
de telhas. Ele nunca vira movimento ali, embora soubesse que
cada janela abaixo do último andar era guardada.
Gongos soaram a mudança da hora. Pela primeira vez sua
mente lhe disse que aquilo era a metade da hora do Cavalo, e
não oito badaladas do turno - pleno meio-dia.
Colocou o dicionário na manga, contente de ser a hora da
primeira refeição de verdade.
Naquele dia foi arroz, camarões grandes grelhados, sopa de
peixe e vegetais em conserva.
- Aceita mais um pouco, Anjin-san?
- Obrigado, Fujiko. Sim. Arroz, por favor. E um pouco
de peixe. Bom... muito. .. - Procurou a palavra "delicioso" e
disse-a várias vezes para memorizar. - Sim, delicioso, neh?
Fujiko ficou satisfeita. - Obrigada. Este peixe é do norte.
Agua mais fria ao norte, compreende? O nome é "kurima-ebi".
Ele repetiu o nome e guardou-o na memória. Quando terminou e as bandejas foram levadas, ela lhe serviu mais chá e
tirou um pacote da manga.
- Dinheiro, Anjin-san. - Mostrou-lhe as moedas de ouro.
- Cinqüenta kobans. Valem cento e cinqüenta kokus. O senhor
quer, neh? Para os marinheiros. Por favor, está compreendendo?
- Sim, obrigado.
- Não há de quê. Suficiente?
- Sim. Acho que sim. Onde conseguiu?
- O... - Fujiko procurou um meio simples de dizer.
- Eu vou importante homem Toranaga. Chefe. Como Mura,
neh? Não samurai... só prestamista. Assino meu nome pelo
senhor.
Ah, compreendo. Obrigado. Meu dinheiro? Meus kokus?
Oh, sim.
Esta casa. Comida. Criados. Quem paga?
Oh, eu pago. Do seu... dos kokus um ano.
E suficiente, por favor? Kokus suficientes?
Oh, sim. Sim, acredito que sim - disse ela.
Por que preocupação? Preocupação no rosto?
Oh, por favor, desculpe-me, Anjin-san. Não estou preocupada. Não preocupação...
Dor? Queimadura dor?
925
nunca se
sabe
ele tem estado cheio de...
sim, melancolia, e muito diea
Fujiko. Mas ela
podia explicar o
adernando, e no
lando e gemendo
dariam estalidos
ponto ou dois.
E era a liberdade mais que o
em qualquer direção, com qualquer
horizonte. A liberdade
de ir
924
tempo, conforme o capricho.
- Não dor. Veja. - Cuidadosamente Fujiko se levantou
das espessas almofadas que ele insistia que ela usasse. Ajoelhou-se
diretamente sobre os tatamis sem qualquer sinal de desconforto,
depois se sentou sobre os calcanhares e se acomodou. - Pronto,
tudo melhor.
- Iüüih, muito bom - disse ele, satisfeito por ela. - Mostrar, hem?
Ela se ergueu com cuidado, levantou a barra das saias e
permitiu-lhe que olhasse as costas das pernas. O tecido da cicatriz não se fendera e não havia supuração. - Muito bom - disse
ele. - Sim, logo como pele de bebê, neh?
- Obrigada, sim. Macia. Obrigada, Anjin-san.
Ele notou a leve mudança na voz dela, mas não comentou.
Naquela noite não a mandou embora.
O "travesseiro" foi satisfatório. Nada mais. Para ele não
houve crepúsculo ou alegre lassidão. Foi apenas um acasalamento. Tão errado, pensou ele, e no entanto não errado, neh?
Antes de deixá-lo, ela se ajoelhou, curvou-se novamente e
pousou as mãos sobre a testa dele. - Agradeço-lhe de todo o
coração. Por favor, durma agora, Anjin-san.
- Obrigado, Fujiko-san. Durmo mais tarde.
- Por favor, durma agora. É meu dever e me daria grande
prazer.
O toque da mão era quente e seco e não era agradável.
Ainda assim, ele fingiu adormecer. Ela o acariciou inabilmente,
embora com grande paciência. Depois, silenciosamente, voltou
para o seu quarto. Agora sozinho de novo, e contente por estar
sozinho, Blackthorne apoiou a cabeça nos braços e olhou na
escuridão.
Tomara uma decisão em relação a Fujiko durante a viagem
de Yokosé a Yedo.
- E o seu dever - dissera-lhe Mariko, deitada nos seus
braços.
- Acho que seria um erro, neh? Se ela engravidar, bem,
vou levar quatro anos para navegar até em casa e voltar, e Deus
sabe o que pode acontecer até lá.
Ele se lembrava de como Mariko tremera então.
- Oh, Anjin-san, isso é muito tempo.
- Três então. Mas você estará a bordo comigo. Vou levá-la
de volta com...
- A sua promessa, meu querido! Nada do que é, neh?
926
- Tem razão. Sim. Mas com Fujiko muitas coisas ruins
poderiam acontecer. Não acho que ela desejaria um filho meu.
- Você não sabe isso. Não o compreendo, Anjin-san. É o
seu dever. Ela sempre poderia evitar um filho, neh? Não esqueça,
ela é sua consorte. Na verdade, você lhe tira a dignidade se não
a convida para "travesseiras". Afinal de contas, o próprio Toranaga ordenou que ela fosse para a sua casa.
- Por que ele fez isso?
- Não sei. Não tem importância. Ordenou, por conseguinte
é o melhor para você e o melhor para ela. Foi bom, neh? Ela
tem cumprido seu dever do melhor modo que pode, neh? Por
favor, mas você não acha que devia cumprir seu dever?
- Chega de sermões! Ame-me e não fale mais.
- Como devo amá-lo? Ah, como Kiku-san me disse hoje?
- Como é isso?
- Assim.
- Isso é muito bom... muito bom.
- Oh, esqueci, acenda a lâmpada, por favor, Anjin-san.
Tenho uma coisa para lhe mostrar.
- Mais tarde, agora eu.. .
- Oh, por favor, desculpe-me, tem que ser agora. Comprei
para você. É um livro de "travesseiro". As figuras são muito
engraçadas.
- Não quero ver um livro de "travesseiro" agora.
- Mas, desculpe, Anjin-san, talvez uma das gravuras o excitasse. Como se pode aprender sobre "travesseiro" sem um livro
de "travesseiro"?
- Já estou excitado.
- Mas Kiku-san disse que é o melhor meio de escolher
posições. São quarenta e sete. Algumas parecem surpreendentes
e muito difíceis, mas ela disse que é importante tentar todas.. .
Por que está rindo?
- Você está rindo.., por que eu não deveria rir também?
- Mas eu estava rindo porque você também estava, e eu
senti o seu estômago balançando e você não vai deixar que eu
me levante. Por favor, deixe-me levantar, Anjin-san!
- Ah, mas você não pode ser tão rabugenta, Mariko, querida. Não há mulher no mundo que possa realmente ser tão rabugenta assim...
- Mas, Anjin-san, por favor, deve deixar que eu me levante. Quero lhe mostrar.
- Está bem. Se isso...
927
- Oh, não, Anjin-san, eu não queria - você não deve
- não pode só esticar a mão - por favor, ainda não - oh, por
favor, não se afaste - oh, como o amo assim.. .
Blackthorne lembrava-se daquela noite. Mariko excitou-o
mais do que Kiku, e Fujiko não era nada comparada às duas.
E Felicity?
Ah, Felicity, pensou ele, concentrando-se no seu grande
problema. Devo estar louco por amar Mariko, e Kiku. E no
entanto... a verdade sobre Felicity é que agora ela não pode se
comparar sequer com Fujiko. Fujiko é limpa. Pobre Felicity.
Nunca serei capaz de lhe dizer, mas a lembrança de nós dois no
cio como um par de arminhos sobre o feno ou sob cobertas rançosas faz a minha pele se arrepiar. Agora conheço coisa melhor.
Agora poderia ensiná-la, mas ela gostaria de aprender? E como
poderíamos nos limpar, permanecer limpos e viver limpos?
Meu lar é lixo amontoado sobre lixo, mas é lá que se encontra a minha mulher, é lá que estão meus filhos e é lá que eu sou.
- Não pense nesse lar, Anjin-san - dissera Mariko uma
vez, quando ele se deixara envolver pela névoa escura das lembranças. - O lar real é aqui, o outro está a dez milhões de vezes
dez milhões de bastôes de distância. Aqui é a realidade. O senhor
vai enlouquecer se tentar atingir a wa a partir de tais impossibilidades. Ouça, se o senhor quer paz deve aprender a tomar chá
de uma xícara vazia.
Ela lhe mostrara como. - O senhor pensa na realidade na
xícara, pensa que o chá está lá, a quente e verde-clara bebida
dos deuses. Se se concentrar intensamente... Oh, um professor
zen poderia lhe mostrar, Anjin-san. É muito difícil, mas muito
fácil. Como gostaria de ser inteligente o bastante para lhe mostrar, pois então todas as coisas do mundo podem ser suas, bastando pedi-las... até o presente mais inconquistável: a tranqüilidade perfeita.
Ele tentara muitas vezes, mas nunca conseguiu tomar a
bebida quando ela não estava lá.
- Não tem importância, Anjin-san. Leva muito tempo para
aprender, mas o senhor aprenderá, algum dia.
- A senhora consegue?
- Raramente. Apenas em momentos de grande tristeza ou
solidão. Mas o sabor do chá irreal parece dar um sentido à vida.
É difícil de explicar. Fiz uma ou duas vezes. As vezes se atinge
a wa com a simples tentativa.
Agora, deitado no escuro do castelo, o sono tão remoto, ele
928
acendeu- a vela com a pederneira e se concentrou na pequena
xícara de porcelana que Mariko lhe dera e que ele agora mantinha sempre ao lado da cama. Tentou durante uma hora. Mas
não conseguiu purificar a mente. Inevitavelmente os mesmos pensamentos se atropelavam: quero partir, quero ficar. Tenho medo
de voltar, tenho medo de permanecer aqui. Odeio a ambos e amo
a ambos. E depois há os "eters".
Se dependesse apenas de mim, eu não partiria, ainda não.
Mas há outros envolvidos e eles não são "eters" e eu assinei como
piloto: "Pelo Senhor Deus, prometo partir com a frota e, com a
graça de Deus, trazê-la para casa de novo". Quero Mariko. Quero
ver a terra que Toranaga me deu e preciso ficar aqui, para gozar
o fruto da minha grande sorte só mais um pouquinho. Sim. Mas
também há dever envolvido e isso transcende a tudo, neh?
Com o amanhecer, Blackthorne soube que, embora fingisse
ter adiado a decisão novamente, na realidade se decidira. Irrevogavelmente.
Que Deus me ajude, primeiro e último sou piloto.
Toranaga desenrolou a minúscula tira de papel que chegou
duas horas após o amanhecer. A mensagem de sua mãe dizia
simplesmente: "Seu irmão concorda, meu filho. A carta de confirmação dele partirá hoje, por mensageiro. A visita de cerimônia
do Senhor Sudara e família deve começar dentro de dez dias".
Toranaga sentou-se, fraco. Os pombos esvoaçaram nos poleiros, depois pousaram de novo. O sol da manhã filtrava-se no
pombal de modo agradável, embora nuvens de chuva estivessem
se formando. Reunindo as forças, ele desceu às pressas os degraus
para os aposentos abaixo, para começar.
- Naga-san!
- Sim, Pai?
- Mande Hiro-matsu aqui. Depois dele, o meu secretário!
- Sim, Pai.
O velho general veio calmamente. Suas juntas rangiam devido à subida e ele se curvou profundamente, a espada frouxa nas
mãos como sempre, o rosto mais feroz do que nunca, mais velho
do que nunca, e ainda mais resoluto.
- Seja bem-vindo, velho amigo.
- Obrigado, senhor. - Hiro-matsu levantou os olhos. -
Entristece-me ver as preocupações do mundo no seu rosto.
- E entristece a mim ver e ouvir tanta traição.
929
- Sim. Traição é uma coisa terrível.
Toranaga viu os firmes olhos velhos medindo-o. - Pode
falar à vontade.
- Alguma vez não fiz isso, senhor? - O velho estava grave.
- Por favor, desculpe por tê-lo feito esperar.
- Por favor, desculpe-me por perturbá-lo. Qual é o seu
desejo, senhor? Por favor, de-me a sua decisão sobre o futuro da
sua casa. E Osaka afinal... curvar-se àquele monte de esterco?
- Alguma vez você já me viu tomar alguma decisão final
sobre qualquer coisa?
Hiro-matsu franziu o cenho, depois pensativamente endireitou as costas para abrandar a dor nos ombros. - E por isso que
não consigo compreendê-lo agora. Não é próprio do senhor desistir.
- O reino não é mais importante do que o meu futuro?
- Não.
- Ishido e os outros regentes ainda são governantes legais,
de acordo com o testemunho do táicum.
- Sou vassalo de Yoshi Toranaga-noh-Minowara e não reconheço outro senhor.
- Bom. Depois de amanhã é o dia que escolhi para partir
para Osaka.
- Sim. Ouvi sobre isso.
- Você estará no comando da escolta, Buntaro será o segundo em comando.
O velho general suspirou. - Também sei disso, senhor. Mas
desde que voltei, senhor, conversei com seus conselheiros mais
velhos e gene...
- Sim. Eu sei. E qual é a opinião deles?
- Que o senhor não devia deixar Yedo. Que as suas ordens
deviam ser temporariamente anuladas.
- Por quem?
- Por mim. Por ordens minhas.
- E isso o que eles desejam? Ou é o que você decidiu?
Hiro-matsu pousou a espada no chão, mais perto de Toranaga, e agora, indefeso, olhou diretamente para ele. - Por favor,
desculpe-me, senhor, gostaria de lhe perguntar o que devo fazer.
Meu dever parece dizer-me que eu deveria tomar o comando e
impedi-lo de partir. Isso forçará Ishido a vir imediatamente contra nós. Sim, claro que perderemos, mas esse parece ser o único
caminho honroso.
- Mas estúpido, neh?
930
As sobrancelhas grisalhas do general se franziram. - Não.
Morremos em batalha, com honra. Recuperamos a wa. O Kwanto
torna-se um espólio de guerra, mas não veremos o novo amo
nesta vida. Shigata ga nai.
- Jamais gostei de gastar homens desnecessariamente. Nunca perdi uma batalha e não vejo razão para começar agora.
- Perder uma batalha não é desonra, senhor. A rendição
e honrosa?
- Estão todos de acordo quanto a essa traição?
- Senhor, por favor, desculpe-me, apenas pedi a alguns
indivíduos uma opinião militar. Não há traição ou conspiração.
- Ainda assim você deu ouvidos à traição.
- Por favor, desculpe-me, mas se eu concordar, na qualidade de seu comandante-chefe, então não se tornará traição, mas
política legal de Estado.
- Tomar decisões longe do suserano é traição.
- Senhor, há muitos precedentes de deposição de um suserano. O senhor fez isso, Goroda fez, o táicum - todos fizemos
isso e pior. Um vencedor nunca comete traição.
- Você resolveu me depor?
- Peço a sua ajuda para essa decisão.
- Você é a única pessoa em quem eu
confiar!
- Por todos os deuses, só desejo ser o seu vassalo mais
devotado. Sou apenas um soldado. Quero cumprir o meu dever
para com o senhor. Penso apenas no senhor. Mereço a sua confiança. Se isso ajuda, tire-me a cabeça. Se vai convencê-lo a lutar,
de bom grado lhe entrego a minha vida, o sangue do meu clã,
hoje, em público, em particular ou do modo como o senhor desejar - não foi isso o que o nosso amigo General Kiyoshio fez?
Sinto muito, mas não compreendo por que lhe devo permitir desperdiçar uma vida de esforço.
- Então você se recusa a obedecer às minhas ordens de
comandar a escolta que partirá para Osaka depois de amanhã?
Uma nuvem passou por sobre o sol e os dois homens olharam pelas janelas.
- Logo vai chover de novo - disse Toranaga.
- Sim. Houve chuva demais este ano, neh? As chuvas
devem cessar logo ou a colheita estará perdida.
Entreolharam-se.
- Bem?
Punho de Aço disse simplesmente: - Formalmente lhe per931
pensei que pudesse
gunto, senhor: ordena-me que o escolte de Yedo, depois de amanhã, para começar a viagem para Osaka?
- Já que o contrário parece ser o conselho de todos
meus conselheiros, aceitarei a opinião deles, e a sua, e adiarei a
minha partida.
Hiro-matsu estava totalmente despreparado para isso.
Hem? Não vai partir?
Toranaga riu, a máscara caiu, e ele se tornou de novo o
velho Toranaga. - Nunca pretendi ir a Osaka. Por que eu seria
tão estúpido?
- O quê?
- Meu acordo em Yokosé não foi mais que um truque para
ganhar tempo - disse Toranaga afavelmente. - Ishido mordeu
a isca. O imbecil me espera em Osaka dentro de poucas semanas.
Zataki também mordeu a isca. E você e todos os meus bravos
vassalos indignos de confiança também morderam a isca. Sem
concessão real de qualquer tipo, ganhei um mês e confundi Ishido
e seus imundos aliados. Ouvi dizer que já estão se engalfinhando
pelo Kwanto. Foi prometido a Kiyama, assim como a Zataki.
- O senhor nunca pretendeu ir? - Hiro-matsu balançou
a cabeça, então, quando a clareza da idéia repentinamente o atingiu, seu rosto fendeu-se num sorriso deliciado. - Foi tudo uma
manobra astuciosa?
- Claro. Ouça, todo mundo tinha que ser convencido, neh?
Zataki, todo mundo, até você! Ou os espiões teriam contado a
Ishido e ele se teria movido contra nós imediatamente e nenhuma
boa fortuna na terra ou deuses no céu poderiam ter impedido a
catástrofe.
- Isso é verdade... ah, senhor, perdoe-me, sou tão estúpido. Mereço perder a cabeça! Então foi tudo um absurdo, sempre absurdo. Mas.., mas e quanto ao General Kiyoshio?
- Ele disse que era culpado de traição. Não preciso de
generais traiçoeiros, apenas de vassalos obedientes.
- Mas por que atacar o Senhor Sudara? Por que retirar
dele o seu favor?
- Porque me agrada fazer isso - disse Toranaga asperamente.
- Sim. Por favor, desculpe-me. Isso é privilégio exclusivo
seu. Peço-lhe que me perdoe por ter duvidado do senhor.
- Por que eu deveria lhe perdoar por ser o que é, amigo
velho? Eu precisava que você fizesse o que fez e dissesse o
que disse. Agora preciso de você mais do que nunca. Preciso de
932
alguém em quem possa confiar. É por isso que estou lhe fazendo
a confidência. Isto tem que ficar em segredo entre nós.
- Oh, senhor, faz-me tão feliz.. .
- Sim - disse Toranaga. - É a única coisa de que tenho
medo.
- Senhor?
- Você é comandante-chefe. Só você pode neutralizar esse
motim estúpido que está sendo tramado enquanto aguardo. Confio em você e devo confiar. Meu filho não pode controlar os
meus generais, embora nunca viesse a demonstrar alegria com o
segredo, se o soubesse, mas o seu rosto é o portão da sua alma,
amigo velho.
- Então deixe-me tirar a vida depois de ter acomodado os
generais.
- Isso não é ajuda. Você deve manté-los unidos, à espera
da minha pretensa partida, neh? Simplesmente terá que vigiar o
seu rosto e o seu sono como nunca antes. Você é o único no
mundo que sabe - é o único em quem devo confiar, neh?
- Perdoe-me minha estupidez. Não falharei. Explique-me
o que devo fazer.
- Diga aos meus generais a verdade: que você me persuadiu a aceitar o seu conselho, que também é o deles, neh? Formalmente ordeno que a minha partida seja adiada por sete dias.
Depois adiarei de novo. Por doença, dessa vez. Você é o único
que sabe.
- E depois? Depois será Céu Carmesim?
- Não, conforme o planejado originalmente. Céu Carmesim
foi sempre um último plano, neh?
- Sim. E o Regimento de Mosquetes? Não poderia abrir
caminho através das montanhas?
- Parte do caminho. Mas não o caminho todo até Kyoto.
- Mande assassinar Zataki.
- Isso poderia ser possível. Mas Ishido e seus aliados ainda
sao invencíveis. - Toranaga revelou-lhe os argumentos de Omi,
Yabu, Igurashi e Buntaro, no dia do terremoto. - Naquela época
ordenei Céu Carmesim como outro ardil para confundir Ishido...
e também tive as partes certas da discussão cochichadas em ouvidos errados. Mas o fato é que a força de Ishido ainda é invencível.
- Como podemos dividi-la? E quanto a Kiyama e Onoshi?
- Não, esses dois estão implacavelmente contra mim. Todos os cristãos estarão contra mim, exceto o meu cristão, e logo
o colocarei, a ele e ao seu navio, em uso, um uso ótimo. Tempo é
os
933
o que mais preciso. Tenho aliados e amigos secretos por todo o
império, e se tivesse tempo... Cada dia que eu ganho enfraquece
mais Ishido. Esse é o meu plano de batalha. Cada dia de atraso
é importante. Ouça, depois das chuvas, Ishido virá contra o
Kwanto, numa manobra de tenazes, Ikawa Jikkyu avançando contra o sul, Zataki ao norte. Nós vamos deter Jikkyu em Mishima,
depois recuar até o passo Yokosé e Odawara, de onde fazemos
nossa resistência final. Ao norte reteremos Zataki nas montanhas
ao longo da estrada Hosho-kaido, em algum lugar perto de
Mikawa. O que Omi e Igurashi disseram é verdade: podemos
rechaçar o primeiro ataque e não deve haver outra grande invasão. Lutamos e esperamos atrás das nossas montanhas. Lutamos
e protelamos e esperamos e depois, quando a fruta estiver madura... Céu Carmesim.
- Iüüüh, que esse dia chegue logo!
- Ouça, amigo velho, só você pode controlar os meus generais. Com tempo e o Kwanto seguro, completamente seguro,
podemos vencer o primeiro ataque e então as alianças de Ishido
começarão a se romper. Uma vez que isso aconteça, o futuro de
Yaemon está garantido e o testamento do táicum, inviolável.
- Não tomará o poder sozinho, senhor?
- Pela última vez: "A lei pode subverter a razão, mas a
razão não pode subverter a lei, ou a nossa sociedade toda se rasgará como um tatami velho. A lei pode ser usada para confundir
a razão, a razão certamente não pode ser usada para subverter a
lei". O testamento do táicum é lei.
Hiro-matsu curvou-se em aceitação. - Muito bem, senhor.
Nunca mencionarei isso de novo. Por favor, desculpe-me. Agora... - Deixou seu sorriso mostrar-se. - Agora, o que devo
fazer?
- Finja que me convenceu a adiar. Simplesmente controle-os todos com o seu punho de aço.
- Quanto tempo devo manter o fingimento?
- Irão sei.
- Não confio em mim mesmo, senhor. Posso cometer um
engano, sem a intenção disso. Acho que posso manter a alegria
longe do rosto por alguns dias. Com a sua permissão, as minhas
"dores" devem se tornar sérias, e ficarei confinado ao leito, sem
visitas, neh?
-- Bom. Faça isso dentro de quatro dias. A partir de hoje,
demonstre que está sentindo dor. Não será difícil, neh?
- Não, senhor. Sinto muito. Fico contente de que a bata934
lha comece este ano. No próximo... posso não ser capaz de
ajudar.
- Absurdo. Mas será este ano se eu disser sim ou não.
Dentro de dezesseis dias partirei de Yedo para Osaka. Até lá
você terá dado a sua "aprovação relutante" e liderará a marcha.
Só você e eu sabemos que haverá adiamentos posteriores e que
bem antes de atingir as minhas fronteiras, voltarei a Yedo.
- Por favor, perdoe-me por ter duvidado do senhor. Não
fosse porque devo permanecer vivo para ajudar os seus planos,
eu não poderia viver com a minha vergonha.
- Não há de que se envergonhar, amigo velho. Se você não
tivesse sido convencido, Ishido e Zataki teriam percebido o
truque. Oh, a propósito, como estava Buntaro-san quando você
o viu?
- Perturbado, senhor. Será bom termos uma boa batalha
para ele lutar.
- Ele sugeriu me substituir como suserano?
- Se ele me dissesse isso, eu lhe teria arrancado a cabeça.
Imediatamente!
- Mandarei chamar você dentro de três dias. Peça para me
ver diariamente, mas eu recusarei até lá.
- Sim, senhor. - O velho general curvou-se humildemente. - Por favor, perdoe este velho tolo. Deu-me um sentido para
a vida novamente. Obrigado. - E saiu.
Toranaga tirou a pequena tira de papel da manga e releu a
mensagem da mãe com uma satisfação enorme. Com a estrada
nordeste possivelmente aberta e Ishido possivelmente traído lá, as
suas probabilidades melhoravam enormemente. Atirou a mensagem às chamas. O papel contorceu-se reduzindo-se a cinzas. Contente, ele desmanchou a cinza, transformando-a em pó. Agora,
quem deve ser o novo comandante-chefe? perguntou a si mesmo.
Ao meio-dia, Mariko atravessou o adro do torreão, por entre
as silenciosas fileiras de guardas, e entrou. O secretário de Toranaga a esperava numa das ante-salas do térreo. - Sinto muito
ter mandado chamá-la, Senhora Toda - disse ele sem prestar-lhe
atenção.
- O prazer foi meu, Kawanabi-san.
Kawanabi era um samurai velho, de traços severos, com a
cabeça raspada. Já fora sacerdote budista. Fazia anos, agora, que
lidava com toda a correspondência de Toranaga. Normalmente
935
era brilhante e entusiasmado. Naquele dia, como a maioria das
pessoas no castelo, estava grandemente inquieto. Estendeu a ela
um pequeno rolo de pergaminho. - Aqui estão os documentos
de viagem para Osaka, devidamente assinados. Deve partir amanhã e chegar lá o mais rápido possível.
- Obrigada. - A voz dela soou minúscula para ela mesma.
- O Senhor Toranaga diz que talvez tenha alguns despachos particulares para a senhora levar à Senhora Kiritsubo e à
Senhora Koto. Também para o Senhor General Ishido e a Senhora
Ochiba. Ser-lhe-ão entregues amanhã ao amanhecer se... sinto
muito, se estiverem prontos. Providenciarei para que lhe sejam
entregues.
- Obrigada.
Dentre uma quantidade de rolos empilhados com um esmero
pedante na escrivaninha baixa dele, Kawanabi selecionou um documento oficial. - Fui instruído para lhe entregar isto. É o
aumento do feudo do seu filho, conforme o prometido pelo Senhor Toranaga. Dez mil kokus anuais. Está datado do último dia
do mês passado e ... bem, aqui está.
Ela aceitou, leu e examinou os selos oficiais. Estava tudo
perfeito. Mas não lhe deu felicidade alguma. Ambos acreditavam
que era um papel vazio agora. Se a vida do seu filho fosse poupada, ele se tornaria ronin. - Obrigada. Por favor, agradeça ao
Senhor Toranaga pela honra que me confere. Posso ser autorizada a vê-lo antes de partir?
- Oh, sim. Quando sair daqui, a senhora é solicitada a se
dirigir ao navio bárbaro. É solicitada a esperá-lo lá.
- Devo... devo traduzir?
- Ele não disse. Eu presumiria que sim, Senhora Toda.
- O secretário examinou uma lista na sua mão. - O Capitão
Yoshinaka recebeu ordem de comandar a sua escolta até Osaka,
se lhe aprouver.
- Eu ficaria honrada em estar sob o comando dele novamente. Posso perguntar como vai o Senhor Toranaga?
- Parece bastante bem, mas para um homem ativo como
ele, engaiolar-se por dias a fio... O que posso dizer? - Espalmou as mãos, desamparado. - Sinto muito. Pelo menos hoje ele
viu o Senhor Hiro-matsu e concordou com um adiamento. Também concordou em tratar de outras coisas... os preços do arroz
devem ser estabilizados agora, para o caso de uma má colheita.
Mas aqui há tanto o que fazer... simplesmente não parece ele,
936
Senhora Toda. Os tempos são terríveis, neh? E terríveis os presságios: os adivinhos dizem que a colheita estará perdida este ano.
- Não acreditarei neles... até o tempo da colheita.
- Sábio, muito sábio. Mas não serão muitos de nós que
verão o tempo da colheita. Devo ir com ele para Osaka. -
Kawanabi estremeceu e se inclinou para frente nervosamente.
- Ouvi um boato de que a peste começou de novo entre Kyoto
e Osaka... varíola. Será que é outro sinal do céu de que os
deuses estão desviando o rosto de nós?
- Não é próprio do senhor acreditar em boatos ou em
sinais do céu, Kawanabi-san, ou passar boatos. Sabe o que o
Senhor Toranaga pensa disso.
- Sei. Sinto muito. Mas, bem... ninguém parece estar normal hoje em dia, neh?
- Talvez o boato não seja verdadeiro... rezo para que não
seja. - Ela afastou o pressentimento. - A nova data para a
partida já foi marcada?
- Tomei conhecimento de que o Senhor Hiro-matsu disse
que estava adiada por sete dias. Estou muito contente de que o
nosso comandante-chefe tenha retornado e muito contente de que
tenha convencido... gostaria de que a partida fosse cancelada
para sempre. É melhor combater do que ser desonrado lá, neh?
- Sim - concordou ela, sabendo que não havia mais sentido em fingir que esse não era o pressentimento na mente de
todo mundo. - Agora que o Senhor Hiro-matsu voltou, talvez o
nosso senhor veja que a rendição não é a melhor linha de conduta.
- Senhora, apenas para os seus ouvidos. O Senhor Hiromatsu... - Ele parou, levantou os olhos e pôs um sorriso no rosto.
Yabu estava entrando na saia, as espadas retinindo. - Ah, Senhor Kasigi Yabu, que prazer em vê-lo. - Curvou-se, Mariko
curvou-se, houve algumas amenidades e depois ele disse: - O
Senhor Toranaga o aguarda, senhor. Por favor, suba imediatamente.
- Bom. Para que ele me quer ver?
- Sinto muito, senhor, ele não me disse... só que queria
vê-lo.
- Como vai ele?
Kawanabi hesitou. - Não houve mudança, senhor.
- A partida... foi marcada uma nova data?
- Tomei conhecimento de que será dentro de sete dias.
- Talvez o Senhor Hiro-matsu consiga adiá-la ainda mais,
neh?
937
- Isso dependeria do nosso amo, senhor.
- Claro. - Yabu saiu.
- O senhor estava dizendo sobre o Senhor Hiro-matsu?
- Apenas para os seus ouvidos, senhora, já que Buntaro-san
não está aqui - sussurrou o secretário. - Quando o velho Punho
de Aço voltou do encontro com o Senhor Toranaga, teve que
repousar quase uma hora. Estava sentindo fortes dores, senhora.
- Oh! Seria terrível se alguma coisa lhe acontecesse agora!
- Sim. Sem ele, haveria uma revolta, neh? Esse adiamento
não resolve nada, não e? É apenas uma trégua. O verdadeiro
problema... tenho medo... tenho medo desde que o Senhor
Sudara agiu como assistente formal do General Kiyoshio, cada
vez que o nome do Senhor Sudara é mencionado o nosso senhor
fica furioso... Foi apenas o Senhor Hiro-matsu quem o convenceu a adiar e isso é a única coisa que... - Lágrimas começaram
a correr pelas faces do secretário. - O que está acontecendo,
senhora? Ele perdeu o controle, neh?
- Não - disse ela com firmeza, sem convicção. - Tenho
certeza de que tudo dará certo. Obrigado por me dizer. Tentarei
ver o Senhor Hiro-matsu antes de partir.
-- Vá com Deus, senhora.
Ela ficou surpresa. - Não sabia que o senhor era cristão,
Kawanabi-san.
- Não sou, senhora. Mas sei que isso é um costume seu.
Ela saiu para o sol, grandemente preocupada com Hiromatsu, ao mesmo tempo agradecendo a Deus o fato de a espera
ter terminado e no dia seguinte poder escapar. Dirigiu-se para o
palanquim e a escolta, que a esperavam.
- Ah, Senhora Toda - disse Gyoko, avançando das sombras, interceptando-a.
- Ah, bom dia, Gyoko-san, que prazer em vê-la. Espero
que esteja passando bem - disse ela cordialmente, um calafrio
repentino percorrendo-a.
- Nada bem, em absoluto, estou com medo, sinto muito.
E muito triste. Parece que não gozamos do favor do nosso senhor,
Kiku-san e eu. Desde que chegamos aqui, fomos confinadas a um
imundo hotel de terceira classe, onde eu não colocaria um prostituto de oitava classe.
- Oh, sinto muito. Tenho certeza de que deve ter havido
algum engano.
- Ah, sim, um engano. Certamente espero que sim, senhora. Finalmente, hoje, recebi permissão de vir ao castelo, fi938
nalmente há uma resposta à minha solicitação de ver o grande se nhor, finalmente permitem-me curvar-me diante do grande senhor
de novo, ainda hoje, mais tarde. - Gyoko sorriu-lhe, falsa. -
Ouvi dizer que a senhora também vinha ver o secretário do senhor,
então pensei esperar para saudá-la. Espero que não se importe.
- É um prazer vê-la, Gyoko-san. Eu a teria visitado, e a
Kiku-san, ou pedido que ambas viessem me visitar, mas infeliz
mente isso não foi possível.
- Sim. .. muito triste. Estes tempos são tristes. Difíceis
para os nobres. Difíceis para os camponeses. A pobre Kiku-san
está doente de preocupação de não contar mais com o favor do
nosso senhor.
- Estou certa de que ela está enganada, Gyoko-san. Ele.. .
o Senhor Toranaga tem muitos problemas urgentes, neh?
- É verdade... é verdade. Talvez pudéssemos tomar um
chá agora, Senhora Toda. Eu ficaria honrada em poder conversar
com a senhora um momento.
- Ah, sinto muito, mas recebi ordem de tratar de um
assunto oficial. Senão ficaria muito honrada.
- Ah, sim, a senhora tem que ir ao navio do Anjin-san
agora. Ah, esqueci, sinto muito. Como vai o Anjin-san?
- Acredito que esteja bem - disse Mariko, furiosa de que
Gyoko soubesse dos seus assuntos particulares. - Vi-o apenas
uma vez, e ainda assim só por alguns momentos, desde que chegamos.
- Um homem interessante. Sim, muito. É triste não ver os
amigos, neh?
As duas mulheres sorriam, falavam com voz polida e
despreocupada, ambas conscientes dos impacientes samurais que
observavam e ouviam.
- Ouvi dizer que o Anjin-san visitou os amigos, a tripulação. Como os encontrou?
- Ele não me disse nada, Gyoko-san. Como lhe falei, só o
vi um momento. Sinto muito, mas tenho que ir...
- É triste não ver os amigos. Talvez eu lhe pudesse falar
sobre eles. Por exemplo, que vivem numa aldeia eta.
- O quê?
- Sim. Parece que os amigos dele pediram permissão para
morar lá, preferindo a aldeia a áreas civilizadas. Curioso, neh?
Não são como o Anjin-san, que é diferente. Corre o boato de que
eles dizem que lá e mais como em casa para eles. .. a aldeia eta.
Curioso, neh?...
939
Mariko lembrou-se de como o Anjin-san estivera estranho
na escada naquele dia. Isso explica, pensou ela. Eta! Minha Nossa
Senhora, pobre homem. Como deve ter ficado envergonhado.
- Desculpe, Gyoko-san, o que foi que disse?
- Só que é curioso que o Anjin-san seja tão diferente dos
outros.
- Como são eles? A senhora os viu? Os outros?
- Não, senhora. Eu não iria lá. O que eu teria a ver com
eles? Ou com etas? Devo pensar nos meus clientes e na minha
Kiku-san. E no meu filho.
- Ah, sim, o seu filho.
O rosto de Gyoko se entristeceu sob o guarda-sol, mas os
olhos continuaram insensivelmente marrons como o quimono.
- Por favor, desculpe-me, mas suponho que a senhora nem tenha
idéia de por que estamos em desgraça com o Senhor Toranaga?
- Não. Tenho certeza de que a senhora está enganada.
O contrato foi firmado, neh? Conforme o combinado?
- Oh, sim, obrigada. Tenho uma carta de crédito junto a
um rico mercador de Mishima, pagável contra apresentação. Menos do que combinamos. Mas o dinheiro estava longe da minha
mente. O que é o dinheiro quando se perdeu o favor do protetor
- seja ele ou ela quem for? Neh?
- Tenho certeza de que a senhora conserva o favor dele.
- Ah, favores! Estava preocupada com o seu também, Senhora Toda.
- A senhora conta sempre com a minha boa vontade. E
amizade, Gyoko-san. Talvez possamos conversar uma outra vez,
realmente tenho que ir agora, sinto muito...
- Ah, sim, é muito gentil de sua parte. Eu gostaria muito.
Quando Mariko se voltou, Gyoko acrescentou no seu tom mais
adocicado: - Mas a senhora terá tempo? Parte amanhã, neh?
Para Osaka?
Mariko sentiu uma súbita farpa de gelo no peito, enquanto
a armadilha se fechava.
- Alguma coisa errada, senhora?
- Não.., não, Gyoko-san... Esta.., durante a hora do
Cão, esta noite... seria conveniente?
- É muito gentil, senhora. Oh, sim. Oh, sim, como vai ver
o nosso amo agora, antes de mim, a senhora intercederia por
nós? Precisamos de um favorzinho. Neh?
- Eu ficaria contente em fazer isso. - Mariko pensou um
940
instante. - Alguns favores podem ser pedidos, mas ainda assim
não serão concedidos.
Gyoko retesou-se ligeiramente. - Ah! A senhora já pediu
a ele o... pediu-lhe que nos favorecesse?
- Naturalmente... por que não o faria? - disse Mariko
com cuidado. - Kiku-san não é uma favorita? A senhora não é
uma vassala devotada? Não recebeu favores no passado?
- Minhas solicitações são sempre tão pequenas. Tudo o que
eu disse antes ainda se aplica, senhora. Talvez ainda mais.
- Sobre cães de barriga vazia?
- Sobre ouvidos aguçados e línguas seguras.
- Ah, sim. E segredos.
- Seria tão fácil me satisfazer. O favor do meu senhor -
e o da minha senhora - não é pedir demais, neh?
- Não. Se ocorrer uma oportunidade... Não posso prometer nada.
- Até a noite, senhora.
Curvaram-se uma para a outra e nenhum samurai desconfiou
de nada. Mariko subiu ao palanquim para mais mesuras, ocultando os tremores que a acometiam, e o cortejo pôs-se em marcha.
Gyoko ficou olhando para ela.
- Vocé, mulher - disse asperamente um jovem samurai,
ao passar. - O que está esperando? Vá tratar dos seus negócios.
- Ah! - disse Gyoko desdenhosamente para diversão dos
outros. - Mulher, é, jovenzinho? Se eu fosse procurar o seu
negócio, poderia ter muita dificuldade em encontrá-lo, hem, embora vocé ainda nem seja homem bastante para ter pelos!
Os outros riram. Com uma sacudidela de cabeça, ela se afastou sem medo.
- Alô - disse Blackthorne.
- Boa tarde, Anjin-san. Parece feliz!
- Obrigado. É a vista de uma dama tão adorável, neh?
- Ah, obrigada - respondeu Mariko. - Como está o
seu navio?
- De primeira classe. Gostaria de subir a bordo? Eu gostaria de mostrá-lo à senhora.
- Isso é permitido? Recebi ordem de vir aqui para encontrar o Senhor Toranaga.
- Sim. Estamos todos à espera dele agora. - Blackthorne
voltou-se e falou ao samurai mais velho no ancoradouro. 941
Capitão, levo a Senhora Toda lá. Mostrar navio. Quando o Senhora Toranaga chega, o senhor chama, neh?
- Como desejar, Anjin-san.
Blackthorne tomou a dianteira do molhe. Samurais guardavam as barreiras e a segurança estava mais cerrada do que nunca,
na praia e no convés. Primeiro ele foi ao tombadilho. - Isto é
meu, todo meu - disse com orgulho.
- Algum dos seus tripulantes está aqui?
- Não, nenhum. Hoje não, Mariko-san. - Mostrou tudo
tão depressa quanto pôde, depois guiou-a para baixo. - Esta é
a cabina principal. - As vigias da popa davam para a praia.
Ele fechou a porta. Agora estavam totalmente sozinhos.
- É a sua cabina? - perguntou ela.
Ele meneou a cabeça, observando-a. Ela foi para os braços
dele. Abraçou-a com força. - Oh, como senti saudades de
você...
- E eu também...
- Tenho muito para lhe dizer. E para lhe perguntar -
disse ele.
- Não tenho nada a dizer. Exceto que o amo de todo o
coração. - Ela estremeceu nos braços dele, tentando afastar o
terror de que Gyoko ou alguém os denunciasse. - Tenho muito
medo por você.
- Não tenha medo, Mariko, minha querida. Vai dar tudo
certo.
- Isso é o que digo a mim mesma. Mas hoje e impossível
aceitar que karma é a vontade de Deus.
- Você estava tão distante a última vez.
- Isto é Yedo, meu amor. E além da Primeira Ponte.
- Foi por causa de Buntaro-san. Não foi?
- Sim - disse ela simplesmente. - Isso e a decisão de
Toranaga de se render. É uma inutilidade tão desonrosa... Nunca pensei que diria isso em voz alta, mas tenho que dizer. Sinto
muito. - Ela se aninhou mais ainda à proteção dos ombros dele.
- Quando ele for para Osaka, você está liquidada, também?
- Sim. O clã Toda é poderoso e importante demais. Em
qualquer eventualidade, não me deixariam viva.
- Então deve vir comigo. Escaparemos. Nós...
- Sinto muito, mas não há escapatória.
- A menos que Toranaga autorize, neh?
- Por que ele deveria autorizar?
Rapidamente Blackthorne contou-lhe o que dissera a Tora942
naga, mas não que também a pedira. - Sei que posso forçar os
padres a trazer Kiyama ou Onoshi para o lado dele, se ele me
autorizar a tomar esse Navio Negro - concluiu excitadamente
-, e sei que posso fazer isso!
- Sim - disse ela, contente, pela salvação da Igreja, de
que ele fosse impedido pela decisão de Toranaga. Examinou novamente a lógica do plano dele e considerou-o sem falhas. -
Deve funcionar, Anjin-san. Agora que Harima é hostil, não haveria razão por que Toranaga-sarna não devesse ordenar um ataque,
se ele fosse combater e não render-se.
- Se o Senhor Kiyama ou o Senhor Onoshi, ou ambos, se
juntassem a ele, isso faria a balança pender para o lado dele?
- Sim - disse ela. - Com Zataki e tempo. - Ela já
havia explicado a importância estratégica do controle da estrada
norte por Zataki. - Mas Zataki está contra Toranaga-sarna.
- Ouça, posso estrangular os padres. Sinto muito, mas eles
são meus inimigos, embora sejam os seus padres. Posso dominá-los
em nome dele - no meu também. Você me ajudará a ajudá-lo?
Ela o encarou. - Como?
- Ajude-me a persuadi-lo a me dar a chance, e convença-o
a adiar a ida para Osaka.
Houve o ruído de cavalos e vozes que se erguiam no embarcadouro. Distraídos, eles se dirigiram às janelas. Os samurais
estavam puxando para o lado uma das barreiras. O Padre Alvito
esporeou a montaria e avançou para a clareira.
- O que ele quer? - resmungou Blackthorne, carrancudo.
Observaram o padre desmontar, puxar um rolo da manga e
entregá-lo ao samurai mais velho. O homem leu. Alvito olhou
o navio.
- Seja o que for, é oficial - disse ela com voz débil.
- Ouça, Mariko-san, não sou contra a Igreja. A Igreja não
é má, os padres é que são. E nem todos são maus. Alvito não é,
embora seja um fanático. Juro por Deus que acredito que os
jesuítas se curvarão ao Senhor Toranaga se eu tomar o Navio
Negro deles e ameaçar o do ano que vem, porque eles têm que
ter dinheiro - Portugal e Espanha têm que ter dinheiro. Toranaga e mais importante. Você me ajudará?
- Sim. Sim, eu o ajudarei, Anjin-san. Mas, por favor, desculpe-me, não posso trair a Igreja.
- Tudo o que peço é que converse com Toranaga, ou me
ajude a conversar com ele, se achar melhor.
Soou uma trompa distante. Olharam pelas janelas de novo.
943
Estavam todos de olhos fixos na direção oeste. A dianteira de
um cortejo de samurais em torno de uma liteira acortinada aproximava-se da direção do castelo.
A porta da cabina abriu-se. - Anjin-san, venha agora, por
favor - disse o samurai.
Blackthorne tomou a dianteira rumando para o convés e
para o embarcadouro. Seu aceno de cabeça foi friamente polido.
O padre foi igualmente glacial. Com Mariko, Alvito foi gentil.
- Alô, Mariko-san. Que prazer em vê-la.
- Obrigada, padre - disse ela, fazendo uma profunda
mesura.
- Que as bênçãos de Deus recaiam sobre a senhora. -
Fez o sinal-da-cruz sobre ela. - In nomine Patris et Filü et
Spiritui San cti.
- Obrigada, padre.
Alvito olhou de relance para Blackthorne. - Entáo, piloto?
Como está o seu navio?
- Tenho certeza de que o senhor já sabe.
- Sim, sei. - Alvito correu os olhos pelo Erasrnus; o rosto
tenso. - Que Deus o maldiga e a todos os que viajarem nele,
se for usado contra a fé e contra Portugal!
- Foi para isso que veio aqui? Para espalhar mais veneno?
- Não, piloto disse Alvito. - Pediram-me que viesse
aqui para encontrar o Senhor Toranaga. Acho a sua presença
tão desagradável quanto o senhor acha a minha.
- A sua presença não é desagradável, padre. Apenas o mal
que o senhor representa.
Alvito corou e Mariko disse rapidamente: - Por favor.
E mau discutir assim em público. Peço a ambos que sejam mais
circunspectos.
- Sim, por favor, desculpe-me, Mariko-san. Peço desculpas, Mariko-san. - O Padre Alvito voltou-se e olhou para a
liteira que vinha atravessando a barreira, a flâmula de Toranaga
esvoaçando, samurais uniformizados à frente e atrás, encerrando
um outro grupo esparso e heterogêneo de samurais.
O palanquim parou. As cortinas se descerraram. Yabu desceu. Todos ficaram atônitos. No entanto, curvaram-se. Yabu
retribuiu a saudação arrogantemente.
- Ah, Anjin-san - disse Yabu. - Como vai?
- Bem, obrigado, senhor. E o senhor?
- Bem, obrigado. O Senhor Toranaga está doente. Pediume que viesse em seu lugar. Compreende?
944
- Sim. Compreendo - retrucou Blackthorne, tentando dissimular o desapontamento com a ausência de Toranaga. - Sinto
muito Senhor Toranaga doente.
Yabu deu de ombros, cumprimentou Mariko com deferência,
fingiu não notar Alvito, e estudou o navio um instante. Estava
com um sorriso retorcido quando se voltou para Blackthorne.
- So desu, Anjin-san. Seu navio está diferente desde a última
vez que o vi, neh? Sim, o navio está diferente, o senhor está
diferente, tudo está diferente - até o nosso mundo está diferente! Neh?
- Sinto muito, não compreendo, senhor. Por favor, desculpe-me, mas suas palavras são muito rápidas. Como o meu.... -
Blackthorne começou a frase de reserva, mas Yabu interrompeu
guturalmente: - Mariko-san, por favor, traduza para mim.
Ela fez isso.
Blackthorne assentiu e disse lentamente: - Sim. Diferente,
Yabu-sarna.
- Sim, muito diferente. O senhor não
sim samurai, assim como o seu navio, neh?
Blackthorne viu o sorriso nos lábios grossos, a postura belicosa, e repentinamente foi projetado de volta a Anjiro, de volta
à praia, de joelhos, Croocq no caldeirão, os gritos de Pieterzoon
soando-lhe aos ouvidos, o mau cheiro do buraco nas narinas, e
sua mente gritava: Tão desnecessário tudo aquilo, todo o sofrimento, o terror, Pieterzoon, Spillbergen, Maetsukker, a cela, os
etas, e tudo por sua culpa!
- Está se sentindo bem, Anjin-san? - perguntou Mariko,
apreensiva com a expressão nos olhos dele.
- O quê? Oh... oh, sim. Sim, estou bem.
- O que há com ele? - disse Yabu.
Blackthorne meneou a cabeça, tentando aclarar as idéias e
apagar o ódio do rosto. - Sirito muito. Por favor, desculpe-me.
Eu... pão é nada. Cabeça ruim... não dormir. Sinto muito.
- Sustentou o olhar de Yabu, esperando ter dissimulado o seu
perigoso lapso. - Pena Toranaga-sarna doente... espero não
problema Yabu-sarna.
- Não, problema algum -- disse Yabu, mas pensando: problema, sim, você não passa de um problema, e só tive problemas
desde que você e o seu navio imundo chegaram às minhas
praias. Izu foi-se, minhas armas foram-se, a honra foi-se, e agora
minha cabeça está perdida por causa de um covarde. - Problema
algum, Anjin-san - disse muito cordialmente. - Toranaga-sarna
945
é mais bárbaro, e
pediu-me que lhe entregasse os seus vassalos, conforme ele prometeu. - Seus olhos deram com Alvito. - Ora, Tsukku-san!
Por que o senhor é inimigo de Toranaga-sarna?
- Não sou, Kasigi Yabu-sarna!
- Os seus daimios cristãos são, neh?
- Por favor, desculpe-me, senhor, mas somos apenas padres, não somos responsáveis pelas idéias políticas daqueles que
adoram a verdadeira fé, nem exercemos controle sobre os daimios que...
- A verdadeira fé na Terra dos Deuses é a xintoísta, junto
com o Tao, o caminho de Buda!
Alvito não respondeu. Yabu desdenhosamente lhe deu as
costas e berrou uma ordem. O grupo de samurais dispersos começou a se alinhar diante do navio. Nenhum deles estava armado.
Alguns tinham as mãos atadas.
Alvito avançou e curvou-se. - Talvez o senhor me de
licença, senhor. Eu devia ver o Senhor Toranaga. Como ele não
virá...
- O Senhor Toranaga queria o senhor aqui para servir de
intérprete entre ele e o Anjin-san - interrompeu-o Yabu com
maus modos deliberados, conforme Toranaga lhe dissera que
fizesse. - Sim, para servir de intérprete como apenas o senhor
pode fazer, falando direta e imediatamente, neh? Naturalmente
o senhor não tem objeções em fazer para mim o que o Senhor
Toranaga solicitou, antes de se ir?
- Não, claro que não, senhor.
- Bom. Mariko-san! O Senhor Toranaga pedê-lhe que veja
que as respostas do Anjin-san também sejam corretamente traduzidas.
Alvito corou, mas se conteve.
- Sim, senhor - disse Mariko, odiando Yabu.
Yabu berrou outra ordem. Dois samurais foram até a liteira
e voltaram com a caixa-forte do navio. - Tsukku-san, comece:
ouça, Anjin-san, em primeiro lugar, o Senhor Toranaga me pediu
que devolvesse isto. É propriedade sua, neh? Abram-na - ordenou aos samurais. AA caixa estava transbordando de moedas de
prata. - Está conforme foi tirado do seu navio.
- Obrigado. - Blackthorne mal podia acreditar nos próprios olhos, pois aquilo lhe dava poder para contratar a melhor
tripulação do mundo, sem promessas.
- Deve ser colocada na sala-forte do navio.
- Sim, naturalmente.
946
Yabu acenou para dois samurais a bordo. Então, para fúria
crescente de Alvito, que continuava com a tradução quase simultânea, Yabu disse: - Segundo: o Senhor Toranaga diz que o
senhor é livre para ir ou ficar. Quando estiver na nossa terra,
será samurai, hatamoto e governado pela lei samurai. Ao mar,
além das nossas costas, é como era antes de vir aqui, e governado
por leis bárbaras. É-lhe concedido o direito vitalício de atracar
em qualquer porto sob controle do Senhor Toranaga, sem vistoria
por parte das autoridades portuárias. Finalmente: estes duzentos
homens são vassalos seus. Ele me pediu que os entregasse formalmente, com armas, conforme o prometido.
- Posso partir quando e como quiser? - perguntou Blackthorne, incrédulo.
- Sim, Anjin-san, pode partir, conforme determinou o Senhor Toranaga.
Blackthorne fitou Mariko, mas ela lhe evitou os olhos, então
ele olhou de novo para Yabu. - Eu poderia partir amanhã?
- Sim, se quiser. Quanto a estes homens - acrescentou
Yabu -, são todos ronins. Todos das províncias do norte. Todos
concordaram em jurar lealdade eterna ao senhor e aos seus descendentes. São todos bons guerreiros. Nenhum deles cometeu
crime que pudesse ser provado. Todos se tornaram ronins porque
os respectivos suseranos foram assassinados, morreram ou foram
depostos. Muitos combateram em navios contra wakos. - Yabu
sorriu ao seu modo malévolo. - Alguns podem ter sido wakos,
compreende "wako"?
- Sim, senhor.
- Os que estão amarrados são provavelmente bandidos ou
wakos. Apresentaram-se como um grupo e se ofereceram voluntariamente para servi-lo sem medo, em troca de perdão por
quaisquer crimes passados. Juraram ao Senhor Noboru - que
selecionou todos estes homens por ordem do Senhor Toranaga
- que nunca cometeram crime algum contra o Senhor Toranaga
ou qualquer um dos samurais dele. O senhor pode aceitá-los
individualmente, ou como um grupo, ou recusá-los. Compreende?
- Posso recusar qualquer um deles?
- Por que faria isso? - perguntou Yabu. - O Senhor
Noboru os escolheu cuidadosamente.
- Claro, sinto muito - disse Blackthorne a Yabu, consciente do crescente mau humor do daimio. - Compreendo totalmente. Mas os que estão amarrados. .. o que acontece se eu os
recusar?
947
- A cabeça deles será cortada. Naturalmente. O que tem
isso a ver?
- Nada. Sinto muito.
- Siga-me. - Yabu dirigiu-se empertigado para a liteira.
Blackthorne deu uma olhada em Mariko. - Posso partir.
Ouviu só!
- Sim.
- Isso significa. É quase como um sonho. Ele disse .. .
- Anjin-san!
Obedientemente Blackthorne se apressou na direção de
Yabu. Agora a liteira servia de estrado. Um escrevente armara
uma mesa baixa, sobre a qual havia rolos de pergaminho. A
pouca distância, samurais vigiavam uma pilha de adagas e espadas
longas, lanças, escudos, machados, arcos e flechas, que alguns
carregadores estavam descarregando de cavalos. Yabu fez sinal
a Blackthorne que se sentasse ao seu lado, Alvito bem em frente
o Mariko do outro lado. O escrevente chamou nomes. Cada
homem se aproximou, curvou-se com formalidade, deu seu nome
o linhagem, jurou fidelidade, assinou o pergaminho que lhe correspondia, e selou com uma gota de sangue que o escrevente
ritualmente picou-lhe do dedo. Cada um se ajoelhou para Blackthorne uma última vez, depois se levantou e correu ao alfageme.
Primeiro recebeu a espada mortífera, depois a adaga. Cada um
aceitou as duas lâminas com reverência e examinou-as meticulosamente, expressando orgulho ante a sua qualidade, e enfiou-as
ao sash com uma alegria selvagem. Depois recebeu outras armas
o um escudo de guerra. Quando os homens tomaram seus novos
lugares, completamente armados agora, samurais de novo e não
mais roais, estavam mais fortes, mais eretos e pareciam ainda
mais ferozes.
Os ronins amarrados ficaram por último. Blackthorne insistiu
em cortar pessoalmente as amarras de cada um. Um a um juraram
fidelidade, conforme tinham feito todos os outros: - Pela minha honra de samurai, juro que os seus inimigos são os meus
inimigos, e total obediência.
Depois de ter jurado, cada homem foi apanhar suas armas.
Yabu chamou: - Uraga-noh-Tadamasa!
O homem avançou. Alvito ficou desconcertado. Uraga -
Irmão José - estivera despercebido entre os samurais agrupados
por perto. Estava desarmado e usava um quimono simples e
um chapéu de bambu. Yabu sorriu malicioso ante a agitação
de Alvito e voltou-se para Blackthorne. - Anjin-san. Este é
948
Uraga-noh-Tadamasa. Samurai, agora roam. Reconhece-o? Compreende "reconhecer"?
- Sim, compreendo. Sim, reconheço.
- Bom. Antes padre cristão, neh?
- Sim.
- Agora não. Compreende? Agora roam.
- Compreendo, Yabu-sarna.
Yabu observou Alvito. O padre olhava fixamente o apóstata,
que o encarava com ódio. - Ah, Tsukku-san, também o reconhece?
- Sim. Reconheço-o, senhor.
- Está pronto para traduzir de novo... ou perdeu a vontade para isso?
- Por favor, continue, senhor.
- Bom. - Yabu apontou para Uraga. - Ouça, Anjin-san,
o Senhor Toranaga lhe dá esteihomem, se o quiser. Ele antes
era padre cristão, um padre noviço. Agora não é. Agora abjurou
ao falso deus estrangeiro e reconverteu-se ã verdadeira fé xintoísta e... - Fez uma pausa, porque o padre parara de falar.
- Disse exatamente isso, Tsukku-san? Verdadeira fé xintoísta?
O padre não respondeu. Suspirou, depois traduziu exatamente, acrescentando: - É o que ele diz, Anjin-san, que Deus
o perdoe. - Mariko deixou passar sem comentário, odiando
Yabu ainda mais, prometendo a si mesma vingar-se dele num dia
muito breve.
Yabu observou-os, depois continuou: - Então Uraga-san
não é mais um cristão. Agora está preparado para servi-lo. Sabe
falar bárbaro e a língua particular dos padres, e foi um dos
quatro jovens samurais enviados para as suas terras. Até conheceu o cristão chefe de todos os cristãos, como eles dizem -
mas agora ele os odeia a todos, exatamente como o senhor.
neh? - Yabu observava Alvito, engodando-o, os olhos esvoaçando na direção de Mariko, que ouvia de modo igualmente
atento. - O senhor odeia os cristãos. Anjin-san, neh?
- A maioria dos católicos são meus inimigos, sim -. respondeu ele, completamente consciente de Mariko, que olhava
fixamente o vazio. - A Espanha e Portugal são inimigos do meu
país, sim.
- Os cristãos são nossos inimigos também. Hem, Tsukku-san?
- Não, senhor. E o cristianismo dá a chave para a vida
imortal.
949
- Dá mesmo, Uraga-san? - disse Yabu.
Uraga balançou a cabeça. Sua voz soou áspera. - Não
penso mais assim, senhor. Não.
- Diga ao Anjin-san.
- Senhor Anjin-san - disse Uraga, com uma pronúncia
pesada, mas as palavras portuguesas corretas e facilmente compreensíveis -, não acredito que o catolicismo seja a trava, perdão, a chave da imortalidade.
- Sim - disse Blackthorne. - Concordo.
- Bom - continuou Yabu. - Portanto o Senhor Toranaga oferecê-lhe este ronin, Anjin-san. É renegado, mas de boa
família samurai. Uraga jura, se for aceito, que será seu secretário,
tradutor, e fará qualquer coisa que o senhor queira. O senhor
terá que lhe dar as espadas. O que mais, Uraga? Diga-lhe.
- Senhor, por favor, desculpe-me. Primeiro... - Uraga
tirou o chapéu. Seu cabelo era restolho, a cabeça raspada ao
estilo samurai, mas ele ainda não tinha o rabo-de-cavalo. -
Primeiro, estou envergonhado de que o meu cabelo não esteja
correto e não tenho rabo-de-cavalo como um samurai deve ter.
Mas o cabelo crescerá e não sou menos samurai por isso. -
Recolocou o chapéu. Disse a Yabu o que havia dito, e os ronin
que estavam próximos e conseguiam escutar também ouviram
atentamente. - Segundo, por favor, desculpe-me enormemente,
mas não sei usar espadas... ou qualquer arma. Eu... eu nunca
fui treinado nelas. Mas aprenderei, acredite-me, aprenderei. Por
favor, desculpe a minha vergonha. Juro-lhe absoluta fidelidade e
peço que me aceite. .. - O suor lhe escorria pelo rosto e pelas
costas.
Blackthorne disse compadecidamente: - Shigata ga nai, neh?
Ukeru anata wa desu, Uraga-san. O que importa isso? Eu o
aceito, Uraga-san.
Uraga curvou-se, depois explicou a Yabu o que dissera.
Ninguém riu. Exceto Yabu. Mas a sua risada foi interrompida
pelo começo de uma altercação entre os últimos dois ronin
sobre a escolha das espadas remanescentes. - Vocês dois, calemse! - gritou ele.
Os dois giraram sobre os calcanhares e um vociferou: -
Você não é meu amo! Onde estão as suas maneiras? Diga
"por favor", ou cale a boca você!
Imediatamente Yabu se pôs de pé com um pulo e se precipitou sobre o ronin, espada em riste. Homens se dispersaram e o
ronin saiu na disparada. Perto do ancoradouro, o homem sacou
950
a espada com um puxão e abruptamente se voltou para o ataque,
com um diabólico grito de batalha. Imediatamente todos os seus
amigos arremeteram em seu socorro, espadas preparadas, e Yabu
foi encurralado. O homem atacou. Yabu evitou uma violenta
estocada, revidou, e errou, enquanto o grupo se lançava maciço
à matança. Tarde demais os samurais de Toranaga se precipitaram, sabendo que Yabu era um homem morto.
- Parem! - gritou Blackthorne em japonês. Todos ficaram
paralisados ante a potência da sua voz. - Vão lá! - Apontou
para o local onde os homens estavam alinhados antes. - Agora!
Ordem!
Por um instante todos os homens no ancoradouro permaneceram imóveis. Depois começaram
rompeu-se. Yabu lançou-se ao homem que o insultara. O ronin
saltou para trás, moveu-se para o lado, a espada levantada acima
da cabeça, nas duas mãos, esperando sem medo pelo próximo
ataque. Seus amigos hesitaram.
- Vão lá! Agora! Ordem!
Relutante mas obedientemente, o resto dos homens recuou
para fora do caminho, embainhando as espadas. Yabu e o homem
andavam lentamente em círculo.
- Você! - gritou Blackthorne. - Pare! Baixe a espada!
Ordeno!
O homem mantinha os olhos furiosos em Yabu, mas ouviu
a ordem e umedeceu os lábios. Simulou investir pela esquerda,
depois pela direita. Yabu recuou, e o homem deslizou para fora
do seu alcance, correu para perto de Blackthorne e colocou a
espada diante deste. - Obedeço, Anjin-san. Eu não o ataquei.
- Quando Yabu investiu, ele se desviou com um pulo e recuou
sem medo, mais veloz do que Yabu, mais jovem do que Yabu,
escarnecendo dele.
- Yabu-san - chamou Blackthorne. - Sinto muito... acho
foi engano, neh? Talvez...
Mas Yabu esguichou um jorro de palavras japonesas e atacou
o homem, que disparou de novo, sem medo.
Alvito agora estava friamente divertido. - Yabu-san disse
que não há engano, Anjin-san. Esse cabrán tem que morrer, diz
ele. Nenhum samurai poderia aceitar tal insulto!
Blackthorne sentia todos os olhos sobre si enquanto desesperadamente tentava decidir o que fazer. Observou Yabu se
aproximar cauteloso do homem. Bem à esquerda, um samurai de
Toranaga assestou o arco. O único ruído era o dos dois arque951
a se mover. O encanto
jando, correndo e gritando um para o outro. O ronin recuou,
depois se voltou e saiu correndo, em torno da clareira, ziguezagueando, dando voltas e pulos, o tempo todo mantendo um
fluxo gutural e sibilante de insultos.
- Ele está iludindo Yabu, Anjin-san - disse Alvito. -
Ele diz "Sou samurai... não mato homens desarmados como
você. .. você não é samurai, você é um camponês, esterco fedorento... ah, então é isso, você não é samurai, é eta, neh? Sua
mãe era eta, seu pai era eta e O jesuíta parou quando
Yabu soltou um urro de cólera e apontou para um dos homens
o gritou alguma coisa. - Yabu disse: "Você! Dê-lhe a espada!"
O ronin hesitou e olhou para Blackthorne.
Blackthorne pegou a espada. - Yabu-san, peço não lutar
- disse ele, desejando o outro morto. - Por favor, peço não
lutar.. .
- Dê-lhe a espada!
Um murmúrio encolerizado percorreu os homens de Blackthorne. Ele levantou a mão. - Silêncio! - Olhou para o seu
vassalo ronin. - Venha cá. Por favor! - O homem observou
Yabu, negaceou à direita, à esquerda, e a cada vez Yabu golpeou
com uma cólera desvairada, mas o homem conseguiu se esquivar
o correr para junto de Blackthorne. Desta vez Yabu não o seguiu.
Simplesmente esperou e observou, como um touro enlouquecido
preparando o ataque. O homem curvou-se para Blackthorne e
pegou a espada. Depois voltou-se para Yabu e, com um uivante
grito de batalha, se arremessou ao ataque. Espadas chocaram-se
o chocaram-se de novo. Agora os dois homens circulavam em
silêncio. Houve outra troca frenética, as espadas cantando. Então
Yabu tropeçou e o ronin arremeteu para a matança fácil. Mas
Yabu habilmente se desviou e investiu. As mãos do homem,
ainda agarrando a espada, foram decepadas. Por um momento
o ronin se manteve ali, uivando, os olhos fixos nos cotos, depois
Yabu cortou-lhe a cabeça.
Houve silêncio. Então um troar de aplausos envolveu Yabu.
O daimio golpeou uma vez o corpo que se contorcia. Então,
com a honra vingada, pegou a cabeça pelo topete, cuspiu cuidadosamente no rosto e atirou-a ao chão. Calmamente caminhou de
volta para junto de Blackthorne e curvou-se.
- Por favor, desculpe-me os maus modos, Anjin-san. Obrigado por ter dado a espada a ele - disse, em voz polida, Alvito
traduzindo. - Peço desculpas por haver gritado. Obrigado por
me permitir banhar a minha espada em sangue com honra. 952
Baixou os olhos para o legado que Toranaga lhe oferecera.
Cuidadosamente examinou-lhe a ponta. Ainda estava perfeita.
Desatou o sash de seda para limpar o sangue. - Nunca toque
uma lâmina com os dedos, Anjin-san, isso a arruinaria. Uma
lâmina deve sentir apenas seda, ou o corpo de um inimigo. -
Parou e levantou os olhos. - Posso polidamente sugerir que o
senhor permita aos seus vassalos testarem suas lâminas? Será
um bom presságio para eles.
Blackthorne voltou-se para Uraga. - Diga-lhes isso.
Quando Yabu retornou a casa, o dia estava quase findando.
Criados tiraram-lhe as roupas suadas, deram-lhe um quimono limpo e lhe calçaram tabis limpos. Yuriko, sua esposa, o esperava ao
frescor da varanda com chá e saque, escaldantes, do modo como
ele gostava.
- Saque, Yabu-san? - Yuriko era uma mulher alta e magra,
com cabelo raiado de cinza. Seu quimono escuro de pobre qualidade realçava-lhe agradavelmente a pele bonita.
- Obrigado, Yuriko-san. - Yabu tomou o vinho apreciando
a raspadela doce e áspera enquanto a bebida lhe descia pela
garganta ressecada.
- Foi tudo bem, ouvi dizer.
- Sim.
- Que impertinência daquele ronin!
- Ele me serviu bem, senhora, muito bem. Sinto-me ótimo
agora. Mergulhei em sangue a espada de Toranaga e a fiz realmente minha. - Yabu terminou o cálice e ela o encheu de novo.
Sua mão acariciou o punho da espada. - Mas a senhora teria
apreciado a luta. Ele era uma criança... caiu na primeira armadilha.
Ela o tocou ternamente. - Estou contente de que tenha
feito isso, marido.
- Obrigado, mas quase não me deu trabalho. - Yabu riu.
- A senhora devia ter visto o padre! Teria ficado encantada de
ver aquele bárbaro transpirando - cu nunca o tinha visto tão
zangado. Estava tão furioso que quase sufocava para se conter.
Canibal! São todos canibais. Pena que não haja meio de aniquilá-los antes de partirmos desta terra.
- Acha que o Anjin-san poderia fazer isso?
- Ele vai tentar. Com dez daqueles navios e dez dele, eu
poderia controlar os mares daqui até Kyushu. Com apenas ele
a
953
eu poderia prejudicar Kiyama, Onoshi e Harima, e esmagar
Jikkyu e conservar Izu! Só precisamos de um pouco de tempo
e logo cada daimio estará combatendo com o seu inimigo especial.
Izu estaria segura e seria minha de novo! Não compreendo por
que Toranaga vai deixar o Anjin-san partir. Outro desperdício
estúpido! - Fechou o punho e socou-o no tatami. A criada
sobressaltou-se mas não disse nada. Yuriko não fez o menor
movimento. Um sorriso esvoaçou-lhe pelo rosto.
- Como foi que o Anjin-san encarou sua liberdade, e seus
vassalos? - perguntou ela.
-- Ficou tão feliz que parecia um velho sonhando que
tinha um Yang com quatro pontas. Ele.., ah, sim... - Yabu
franziu o cenho, lembrando-se. - Mas houve uma coisa que ainda
não compreendo. Quando aqueles wakos me cercaram, eu era
um homem morto. Não há dúvida quanto a isso. Mas o Anjin-san
os deteve e me devolveu a vida. Não havia razão para que ele
fizesse isso, neh? Pouco antes, eu tinha visto o ódio escrito nele
inteiro. Tão ingênuo fingir outra coisa... como se eu confiasse nele.
- Ele lhe deu a vida?
- Oh, sim. Estranho, neh?
- Sim. Muitas coisas estranhas estão acontecendo, marido.
- Ela dispensou a criada, depois perguntou baixinho: - O que
Toranaga realmente queria?
Yabu inclinou-se para a frente e sussurrou: - Acho que ele
quer que eu me torne comandante-chefe.
- Por que ele faria isso? Punho de Aço está morrendo?
- perguntou Yuriko. - E o Senhor Sudara? Ou Buntaro? Ou
o Senhor Noboru?
- Quem sabe, senhora? Estão todos em desgraça, neh?
Toranaga muda de idéia com tanta freqüência, que ninguém pode
predizer o que ele fará agora. Primeiro me pediu que fosse em
seu lugar ao ancoradouro e detalhou como queria que cada coisa
fosse dita, depois falou sobre Hiro-matsu, de como ele estava
envelhecendo, e perguntou o que eu realmente pensava sobre o
Regimento de Mosquetes.
-- Ele poderia estar preparando Céu Carmesim de novo?
- Isso está sempre pronto. Mas ele perdeu a Fruta para
isso. Isso necessitará de liderança e habilidade. Antes ele a tinha,
agora não. Agora é uma sombra do Minowara que foi. Fiquei
chocado com a aparência dele. Sinto muito, cometi um erro.
Deveria ter ido com Ishido.
954
Penso que o senhor escolheu corretamente.
O quê?
- Primeiro tome o seu banho, depois acho que tenho
presente para o senhor.
- Que presente?
- O seu irmão Mizuno virá após a refeição noturna.
Isso é um presente? -- indignou-se Yabu. - O que eu
poderia querer com esse imbecil?
- Informação ou prudência especial, mesmo vinda de um
imbecil, pode ter valor igual à que vem de um conselheiro,
neh? Às vezes até mais.
- Que informação?
- Primeiro o seu banho. E comida. Precisará estar com a
cabeça fresca esta noite, Yabu-chan.
Yabu a teria pressionado, mas o banho o tentava e, na verdade, estava dominado por uma agradável lassidão que não sentia
há muitos dias. Parte dela devia-se à deferência de Toranaga
naquela manhã, parte à deferência geral dos últimos dias. Mas
a maior parte vinha da matança, a ondulação de alegria que
correra para o braço, para a cabeça. Ah, matar tão habilmente,
de homem para homem, diante de homens, isso é uma alegria
concedida a muito poucos, muito raramente. Rara o suficiente
para ser apreciada e saboreada.
Então deixou a esposa e entregou-se mais ainda à sua alegria. Permitiu que mãos lhe cuidassem do corpo e depois, refrescado e revigorado, dirigiu-se para um aposento com varanda.
Os últimos raios de crepúsculo adornavam o céu. A lua estava
baixa, crescente, e delgada. Ele comeu frugalmente, em silêncio.
Um pouco de sopa e vegetais em conserva.
A garota sorriu, convidativa. - Devo desdobrar os futoiis
agora, senhor?
Yabu balançou a cabeça. Mais tarde. Antes diga à
minha esposa que quero vê-la.
Yuriko chegou, usando um quimono asseado mas velho.
So desu ka?
- Seu irmão está esperando. Devemos vê-lo sozinho. Primeiro o senhor o ve, depois conversamos, o senhor e eu -
também a sós. Por favor, seja paciente, neh?
Kasigi Mizuno, irmão mais novo de Yabu e pai de Omi, era
um homem pequeno com olhos bulbosos, testa alta e cabelo ralo.
Suas espadas não pareciam lhe cair bem e ele mal sabia manejá-las. Mesmo com arco e flecha não era muito melhor.
955
um
Mizuno curvou-se e cumprimentou Yabu pela habilidade
daquela tarde, pois a notícia da façanha se espalhara rapidamente em torno do castelo, intensificando ainda mais a reputação
de Yabu como lutador. Depois, ansioso por agradar, foi ao ponto.
- Recebi uma carta em código hoje, do meu filho, senhor.
A Senhora Yuriko achou que seria melhor entregá-la ao senhor
pessoalmente. - Estendeu o pergaminho a Yabu, com a decodificação. A mensagem de Omi dizia: "Pai, por favor diga ao Senhor Yabu rapidamente e em particular, primeiro, que o Senhor
Buntaro veio a Mishima, secretamente via Takato. Um dos homens dele deixou isso escapar durante uma noite de bebedeira
que organizei em honra deles. Segundo: durante essa visita secreta
a Takato, que durou três dias, Buntaro viu o Senhor Zataki duas
vezes e a senhora mãe dele, três. Terceiro: antes de o Senhor
Hiro-matsu partir de Mishima, disse à sua nova consorte, a Senhora Oko, que não se preocupasse, porque `enquanto eu viver,
o Senhor Toranaga nunca deixará o Kwanto'. Quarto: que..."
Yabu levantou os olhos. - Como Omi pode saber o que
Punho de Aço disse privadamente à consorte? Não temos espiões
na casa dele.
- Agora temos, senhor. Por favor, continue a ler.
"Quarto: que Hiro-matsu está decidido a cometer traição,
se necessário, e confinará Toranaga em Yedo, se necessário, e
ordenará Céu Carmesim contra a recusa de Toranaga, com ou
sem o assentimento do Senhor Sudara, se necessário. Quinto:
que isto são verdades a que se pode dar crédito. A criada pessoal
da Senhora Oko é filha da mãe adotiva de minha esposa, e foi
introduzida no serviço da Senhora Oko aqui em Mishima quando,
lamentavelmente, a criada dela curiosamente contraiu uma indisposição devastadora. Sexto: Buntaro-san está como louco, meditabundo e furioso: hoje desafiou e massacrou um samurai de
propósito, amaldiçoando o nome do Anjin-san. Por último: espiões
relatam que Ikawa Jikkyu concentrou dez mil homens em Suruga,
prontos para se derramar pelas nossas fronteiras. Por favor, apresente ao Senhor Yabu as minhas saudações..." O resto da mensagem era inconseqüente.
- Jikkyu, hem!? Será que vou para a morte sem tomar
vingança desse demônio!?
- Por favor, seja paciente, senhor - disse Yuriko. - Digalhe, Mizuno-san.
- Senhor - começou o homenzinho -, durante meses
tentamos pôr em prática o seu plano, aquele que o senhor sugeriu
956
quando o bárbaro chegou. Lembra-se, com todas aquelas moedas
de prata, o senhor mencionou que cem ou até quinhentas, nas
mãos do cozinheiro certo, eliminariam Ikawa Jikkyu de uma vez
por todas. - Os olhos de Mizuno pareceram tornar-se ainda
mais anfíbios. - Parece que Mura, o cabeça de Anjiro, tem um
primo, o qual tem um primo, cujo irmão é o melhor cozinheiro
de Suruga. Ouvi dizer hoje que ele foi aceito na casa de Jikkyu.
Já recebeu duzentas por conta e o preço total é quinhe.. .
- Não temos esse dinheiro! Impossível! Como posso levantar quinhentas - estou tão endividado agora, que não posso
levantar nem cem!
- Por favor, desculpe-me, senhor. Sinto muito, mas o dinheiro já está separado. Nem todas as moedas do bárbaro continuaram na caixa-forte. Mil moedas extraviaram-se antes de o
dinheiro ser oficialmente contado. Sinto muito.
Yabu olhou-o apalermado. - Como?
- Parece que Omi-san recebeu ordem de fazer isso em seu
nome. O dinheiro foi trazido para cá secretamente, para a Senhora Yuriko, cuja permissão foi solicitada e concedida antes de
se correr o risco de contrariá-lo.
Yabu pensou sobre isso um longo tempo. - Quem ordenou?
- Eu. Depois de obter permissão.
- Obrigado, Mizuno-san. E obrigado, Yuriko-san. - Yabu
curvou-se para ambos. - Ora! Jikkyu, hem? Finalmente! - Bateu
calorosamente no ombro do irmão e o homenzinho foi quase
patético no seu prazer servil. - Agiu muito bem, irmão. Mandarlhe-ei alguns rolos de seda. Como vai a senhora sua esposa?
- Bem, senhor, muito bem. Pedê-lhe que aceite os seus
melhores votos.
- Vamos comer juntos. Bem... bom. Agora, quanto ao
resto do relatório. .. quais são os seus pontos de vista?
- Nada, senhor. Eu estaria mais interessado no que o senhor acha que significa.
- Primeiro... - Yabu parou ao captar o olhar da esposa,
advertindo-o, e mudou o que ia dizer. - Primeiro e último,
significa que Omi-san, seu filho, é leal e um excelente vassalo.
Se eu tivesse controle sobre o futuro, eu o promoveria - sim,
ele merece promoção, neh?
Mizuno ficou untuosamente encantado. Yabu foi paciente
com ele, tagarelando, cumprimentando-o de novo, e, tão logo a
polidez o permitiu, dispensou-o.
957
Yuriko mandou buscar chá. Quando ficaram absolutamente
a sós de novo, ele disse: - O que significa o resto?
O rosto dela refletia sua excitação agora: - Por favor,
desculpe-me, senhor, mas quero lhe dar uma nova idéia: Toranaga
está nos fazendo a todos de tolos e não tem intenção, nern nunca
teve, de ir a Osaka render-se.
- Absurdo!
- Deixe-me dar-lhe fatos... Oh, senhor, não sabe como é
feliz em ter o seu vassalo Omi e esse estúpido irmão que roubou
mil moedas. A prova da minha teoria poderia ser esta: Buntarosan, um íntimo de confiança, é enviado secretamente a Zataki.
Por quê? Obviamente para levar uma nova oferta. O que tentaria
Zataki? O Kwanto - apenas isso. Por isso a oferta é o Kwanto
- em troca de lealdade, desde que Toranaga seja novamente
presidente do conselho de regentes - um conselho novo com
um novo mandato. Ele poderia se permitir dar o Kwanto então,
neh? - Ela esperou, depois continuou meticulosamente: - Se
ele convence Zataki a trair Ishido, está a um quarto do caminho
até a capital, Kyoto. Como o pacto com o irmão pode ser consolidado? Reféns! Ouvi esta tarde que o Senhor Sudara, a Senhora
Genjiko, suas filhas e filho vão visitar a veneranda avó em
Takato, dentro de dez dias.
- Todos eles?
- Sim. Depois Toranaga devolve o navio ao Anjin-san, tão
bom quanto se estivesse novo, com todos os canhões e pólvora,
duzentos fanáticos e todo aquele dinheiro, certamente o suficiente
para contratar mais mercenários bárbaros, wakos de Nagasaki.
Por quê? Para permitir-lhe atacar e tomar o Navio Negro dos
bárbaros. Se não houver Navio Negro, não haverá dinheiro, e
haverá um problema imenso para os padres cristãos que controlam Kiyama, Onoshi e todos os traidores daimios cristãos.
- Toranaga nunca ousaria fazer isso! O táicum tentou e
falhou, e era todo-poderoso. Os bárbaros partirão furiosos. Nunca
comerciaremos de novo.
- Sim. Se nós o fizermos. Mas desta vez é bárbaro contra
bárbaro, neh? Não tem nada a ver conosco. E digamos que o
Anjin-san ataque Nagasaki e lhe ateie fogo. Harima não é hostil
agora, e Kiyamã e Onoshi e, por causa deles, a maioria dos
daimios de Kyushu? Digamos que o Anjin-san queime alguns dos
seus outros portos, pilhe a navegação deles, e ao mesmo tempo.
. .
- E ao mesmo tempo Toranaga desencadeie Céu Carmesim!
exclamou Yabu.
958
- Sim. Oh, sim - concordou Yuriko, exultante. - Isso
não explica Toranaga? Essa intriga não se ajusta a ele como a
própria pele? Não está fazendo o que sempre fez, apenas esperando como sempre, jogando para ganhar tempo como sempre,
um dia aqui, um dia ali, e logo um mês se passa e novamente ele
tem uma força esmagadora para arrasar toda oposição? Ele já
ganhou quase um mês desde que Zataki trouxe a convocação a
Yokosé.
Yabu podia ouvir o pulso explodindo-lhe nos ouvidos. -
Então estamos salvos?
- Não, mas não estamos perdidos. Acredito que não haverá
rendição. - Ela hesitou. - Mas todo mundo ficou desapontado.
Oh, ele é tão inteligente, neh? Todo mundo logrado como nós.
Até esta noite. Omi me deu as chaves. Todos nos esquecemos de
que Toranaga é um grande ator no, que pode usar o próprio
rosto como uma máscara, se necessário, neh?
Yabu tentou ordenar os pensamentos, mas não conseguia.
- Mas Ishido ainda tem o Japão inteiro contra nós!
- Sim. Menos Zataki. E deve haver outras alianças secretas.
Toranaga e o senhor podem defender as passagens até o momento certo.
- Ishido tem o Castelo de Osaka, o herdeiro e o tesouro
do táicum.
- Sim. Mas ficará escondido lá dentro. Alguém o trairá.
- O que devo fazer?
- O contrário de Toranaga. Deixe-o esperar, o senhor deve
apertar o passo.
- Como?
- O primeiro a fazer, senhor, é isto: Toranaga se esqueceu de
uma coisa que o senhor notou esta tarde. A fúria do Tsukku-san!
Por quê? Porque o Anjin-san ameaça o futuro dos cristãos, neh?
Por isso o senhor tem que colocar o Anjin-san sob a sua proteção
imediatamente, porque aqueles padres ou seus fantoches vão assassiná-lo dentro de horas. Depois: o Anjin-san necessita de que
o senhor o proteja e guie, que o ajude a conseguir a nova tripulação em Nagasaki. Sem o senhor e seus homens, ele fracassará.
Sem ele e o navio dele, os canhões e mais bárbaros, Nagasaki
não arderá, e isso tem que acontecer, ou Kiyama, Onoshi e
Harima, e os padres imundos não serão distraídos para temporariamente retirar seu apoio de Ishido. Nesse meio tempo, Toranaga,
agora miraculosamente apoiado por Zataki e seus fanáticos, com
o senhor comandando o Regimento de Mosquetes, atravessa os
959
desfiladeiros de Shinano, descendo para as planícies de Kyoto.
- Sim. Sim, tem razão, Yuriko-chan! Tem que ser assim.
Oh, a senhora é tão inteligente, tão sábia!
- A sabedoria e a sorte não são boas sem os meios de
pôr um plano em prática, senhor. Apenas o senhor pode fazer
isso - o senhor é o líder, o lutador, o general de batalha que
Toranaga deve ter. O senhor deve vê-lo esta noite.
- Não posso ir a Toranaga e dizer-lhe que vi por entre a
astúcia dele, neh?
- Não, mas o senhor lhe pedirá para ir com o Anjin-san,
dirá que tem que partir imediatamente. Podemos pensar numa
razão plausível.
- Mas se o Anjin-san atacar Nagasaki e o Navio Negro,
eles não vão parar de comerciar e partir?
- Sim. Possivelmente. Mas isso será no ano que vem. Pelo
ano que vem Toranaga será um regente, presidente dos regentes.
E o senhor o comandante-chefe dele.
Yabu caiu das nuvens. - Não - disse com firmeza. Assim que tiver o poder, ele me ordenará que cometa seppuku.
- Muito antes disso o senhor terá o Kwanto.
Os olhos dele piscaram. - Como?
- Toranaga na realidade nunca dará o Kwanto ao meio
irmão. Zataki é uma ameaça perpétua. É um homem selvagem,
cheio de orgulho, neh? Será muito difícil para Toranaga manobrar
Zataki no sentido de que ele peça a posição avançada na batalha.
Se Zataki não for morto... talvez uma bala ou seta extraviada?
Provavelmente uma bala. O senhor deve comandar o Regimento
de Mosquetes na batalha, senhor.
- Por que eu não seria atingido por uma bala extraviada,
igualmente?
- Talvez seja, senhor. Mas não é parente de Toranaga e
portanto não é ameaça ao poder dele. O senhor se tornará o seu
mais devoto vassalo. Ele precisa de generais de combate. O senhor merecerá o Kwanto, e esse deve ser o seu único objetivo.
Ele o dará ao senhor quando Ishido for traído, porque tomará
Osaka para si.
- Vassalo? Mas a senhora disse para esperar e logo eu... - Agora o aconselho a apoiá-lo com todas as forças. Não
seguir as ordens dele cegamente, como o velho Punho de Aço,
mas com inteligência. Não se esqueça, Yabu-chan, balas extravia
das são coisas que acontecem. Enquanto comandar o regimento,
o senhor poderá escolher, também.. . a qualquer momento, neh?
960
- Sim - disse ele, admirado coin ela.
- Lembre-se, Toranaga é digno de ser seguido. É Minowara,
Ishido é camponês. Ishido é o idiota. Posso ver isso agora. Ishido
deve estar forçando os portões de Odawara agora, com chuva ou
sem chuva. Omi-san não disse isso também, meses atrás? Odawara
não e insuficientemente equipada? Toranaga não está isolado?
Yabu martelou o punho no chão, encantado. - Então é a
guerra, afinal! Como a senhora é esperta de ver através dele! Ah,
então esteve fazendo o papel de raposa o tempo todo, neh?
- Sim - disse ela, enormemente satisfeita.
Mariko chegara à mesma surpreendente conclusão, embora
não a partir dos mesmos fatos. Toranaga deve estar fingindo,
jogando um jogo secreto, raciocinou ela. É a única explicação
possível para o seu comportamento inacreditável - dar ao Anjinsan o dinheiro, o navio, todos os canhóes e a liberdade na frente
do Tsukku-san. Agora o Anjin-san com certeza irá contra o Navio
Negro. Ele o tomará, e ameaçará o do próximo ano, e em conseqüência prejudicará a Santa Igreja e forçará os santos padres a
conpelirem Kiyama e Onoshi a traírem Ishido.. .
Mas por quê? Se isso for verdade, pensou ela, perplexa, e
Toranaga estiver considerando um plano de longo alcance assim,
então é claro que ele não pode ir a Osaka e se curvar diante de
Ishido, neh? Ele deve... Ah! E o adiamento de hoje que Hiromatsu convenceu Toranaga a fazer? Oh, minha Nossa Senhora
nas alturas, Toranaga nunca pretendeu se render! É tudo um
truque.
Por quê? Para ganhar tempo.
Para conseguir o quê? Esperar e tramar mil truques mais, e
não importa o quê, só que Toranaga é mais uma vez o que sempre foi: o todo-poderoso titeriteiro.
Quanto tempo até que a paciência de Ishido se esgote e ele
levante o estandarte de batalha e se mova contra nós? Um mês
- no máximo dois. Não mais do que isso. Então, pelo nono mês
deste quinto ano de Keicho, a batalha pelo Kwanto começa.
Mas o que Toranaga ganhou em dois meses? Não sei - só
sei que agora meu filho tem uma chance de herdar os seus dez
mil kokus, e de viver e ter filhos, e agora, talvez, a estirpe de
meu pai não desaparecerá da face da Terra.
Ela saboreou o seu conhecimento recém-descoberto, brincando com ele, examinando-o, considerando a sua lógica impecável.
961
Mas o que fazer até lá? perguntou-se ela. Nada além do que você
tem feito - e decidiu fazer. Neh?
- Ama?
- Sim, Chimmoko?
- Gyoko-san está aqui. Ela diz que tens um encontro.
- Ah, sim. Esqueci de lhe dizer. Primeiro aqueça o saque,
depois traga-o para cá, e depois ela.
Mariko refletiu sobre a tarde. Lembrou-se dos braços dele
ao seu redor, tão seguros, quentes e fortes. - Posso vê-la esta
noite? - perguntara ele cautelosamente, depois que Yabu e
Tsukku-san se tinham ido.
- Sim - dissera ela impulsivamente. - Sim, meu querido.
Oh, como sou feliz por você. Diga a Fujiko-san... peça-lhe que
me mande chamar depois da hora do Javali.
No silêncio da casa, sua garganta se contraiu. Tanta tolice e
risco.
Examinou a maquilagem e o penteado no espelho e tentou
se compor. Passos se aproximaram. A shoji se abriu. - Ah,
senhora - disse Gyoko, curvando-se profundamente. -- Que
gentil da sua parte me receber.
- Seja bem-vinda, Gyoko-san.
Tomaram saque, Chimmoko servindo-as.
- Que louça adorável, senhora. Tão bonita.
Tiveram algum tempo de conversação polida, depois Chimmoko foi mandada embora.
- Sinto muito, Gyoko-san, mas o nosso amo não foi esta
tarde. Não o vi, embora eu espere vê-lo antes de partir.
- Sim, ouvi dizer que Yabu-san foi ao embarcadouro no
lugar dele.
- Quando eu vir Toranaga-sarna, pedirei a ele mais uma
vez. Mas receio que sua resposta seja a mesma. - Mariko serviu
saque para ambas. - Sinto muito, ele não concederá o meu
pedido.
- Sim, acredito. A menos que haja uma grande pressão.
- Não há pressão que eu possa usar. Sinto muito.
- Sinto muito também, senhora.
Mariko pousou o cálice. - Então a senhora resolveu que
algumas línguas não são seguras.
- Se eu fosse cochichar segredos a seu respeito - disse
Gyoko asperamente -, diria isso na sua cara? Considera-me tão
ingênua?.
962
- Talvez seja melhor que a senhora vá embora, sinto muito.
Tenho muito o que fazer.
- Sim, senhora, eu também tenho! - replicou Gyoko, a
voz ríspida. - O Senhor Toranaga mc perguntou, na minha cara,
o que eu sabia sobre a senhora e o Anjin-san. Esta tarde. Eu lhe
disse que não existia nada entre os dois. Eu disse: "Oh, sim,
senhor, também ouvi os ahomináveis rumores, mas não há verdade neles. Juro pela cabeça do meu filho, senhor, e pelos filhos
dele. Se houvesse alguém para saber, com certeza seria eu. O
senhor pode crer que é tudo uma mentira maliciosa - tagarelice,
tagarelice invejosa, senhor..." Oh, sim, senhora, pode acreditar
que fiquei convenientemente chocada, minha atuação foi perfeita
e ele ficou convencido. Gyoko tragou o saqué, e acrescentou
amarga: - Agora estamos todos arruinados se ele conseguir
provas... o que não seria difícil de conseguir. Ne/i?
- Corno?
- Ponha o Anjin-san à prova... com métodos chineses.
Chimmoko - com métodos chineses. Eu. Kiku-san, Yoshinaka... sinto muito, até a senhora - com métodos chineses.
Mariko tomou fôlego profundamente. - Posso... posso lhe
perguntar... por que decidiu correr esse risco?
- Porque em certas situaçóes as mulheres devem se proteger mutuamente contra os homens. Porque na realidade cu nao
vi nada. Porque a senhora não me fez mal. Porque cu gosto da
senhora e do Anjin-san e acredito que ambos têm seus próprios
karmav. E porque prefiro tê-la viva e amiga a tc-la morta, e é
excitante vé-los fazer circular a chama da vida.
- Não acredito na senhora.
Gyoko riu suavemente. - Obrigada, senhora. - Controlada
agora, disse com completa sinceridade: - Muito bem, eu lhe
direi a razão real. Preciso da sua ajuda. Sim. Toranaga-sarna não
me concederá o pedido, mas talvez a senhora possa pensar num
jeito. A senhora é a única chance que jamais tive, que jamais terei
nesta vida, e não posso perdê-la levianamente. Pronto, agora sabe.
Por favor, humildemente lhe peço que me ajude com a minha
solicitação. - Colocou as duas mãos sobre os futons e se curvou
profundamente. - Por favor, desculpe a minha impertinência,
Senhora Toda, mas tudo o que tenho será posto ao seu dispor se
me ajudar. - Depois acomodou-se sobre os calcanhares, arrumou
as dobras do quimono, e terminou o saque.
Mariko tentou pensar direito. Sua intuição the dizia que
confiasse na mulher, mas sua mente ainda estava parcialmente
963
aturdida com a compreensão recente sobre Toranaga e com o
alívio por Gyoko não a ter denunciado, conforme esperara, por
isso resolveu por a decisão de lado, para consideração posterior.
- Sim, tentarei. A senhora tem que me dar tempo, por
favor.
- Posso lhe dar coisa melhor. Eis um fato: conhece os
Amida Tong? Os assassinos?
- O que há com eles?
- Lembra-se daquele no Castelo de Osaka, senhora? la atacar o Anjin-san mesmo, não Toranaga-sarna. O copeiro-chefe do
Senhor Kiyama deu dois mil kokus por aquele atentado.
- Kiyama? Mas por qué?
- Ele é cristão, neh? O Anjin-san era o inimigo até então,
neh? Se era naquela altura, o que não se dirá de agora? Agora
que o Anjin-san é samurai e está livre, com seu navio.
- Outro Amida? Aqui?
Gyoko sacudiu os ombros. - Quem sabe? Mas eu não daria
a tanga de um eta pela vida do Anjin-san se ele for descuidado
fora do castelo.
- Onde está ele agora?
- Nos seus aposentos, senhora. Vai visitá-lo logo, neh? Talvez fosse bom preveni-lo.
- A senhora parece saber de tudo o que acontece,
Gyoko-san!
-- Conservo os ouvidos abertos, senhora, e os olhos.
Mariko controlou a preocupação com Blackthorne. - Falou
isso a Toranaga-sarna?
- Oh, sim, falei. - Os cantos dos olhos de Gyoko se enrugaram enquanto ela sorvia o saque. - Na realidade, não acho
que ele tenha ficado surpreso. Interessante, não acha?
-- Talvez a senhora se tenha enganado.
- Talvez. Em Mishima ouvi um boato de que havia uma
trama para envenenar o Senhor Kiyama. Terrível, rich?
- Que trama?
Gyoko contou-lhe os detalhes.
- Impossível! Um daimio cristão nunca faria isso a outro!
Mariko encheu os cálices.
- Posso perguntar o que mais foi dito, pela senhora e
por ele?
- Em parte, senhora, a minha súplica para recuperar o
favor dele e sair"daquela hospedaria infestada de pulgas, e com
isso ele concordou. Agora devemos ter alojamentos adequados
964
dentro do castelo, perto do Anjin-san, numa das casas de hóspedes, e posso ir e vir como quiser. Ele pediu que Kiku-san o distraísse esta noite e isso é outra melhora, embora nada o vá tirar
daquela melancolia. Neh? - Gyoko observava Mariko especulativamente. Mariko mantinha o rosto inocente, e simplesmente
assentiu. A mulher suspirou e continuou. - Sim, ele está muito
triste. É uma pena. Parte de tempo foi gasto com os trés segredos.
Ele me pediu que repetisse o que eu sabia.
Ah, pensou Mariko, outra peça que se encaixa perfeitamente.
Ochiba? Então foi essa a isca para Zataki. E Toranaga também
tem um porrete sobre a cabeça de Omi, se necessário, e uma arma
a usar contra Onoshi com Harima, ou mesmo Kiyama.
- Está sorrindo, senhora?
Oh sim, queria Mariko dizer, desejando compartilhar o seu
júbilo com Gyoko. Como a sua informação deve ter sido valiosa
para o nosso amo, queria ela dizer a Gyoko. Agora ele deve
recompensá-la! A senhora mesma devia ser promovida a daimio!
E como Toranaga-sarna é fantástico: ouviu com tanto desinteresse aparente! Como ele é maravilhoso!
Mas Toda Mariko-noh-Buntaro apenas meneou a cabeça e
disse calmamente: - Sinto muito que a sua informação não o
tenha animado.
- Nada do que eu disse lhe melhorou o humor, que estava
sombrio e derrotado. Triste, neh?
- Sim, sinto muito.
- Sim. - Gyoko fungou. - Outra informação antes de
partir, para interessá-la, senhora, para cimentar a nossa amizade.
E muito possível que o Anjin-san seja muito fértil.
- O que?
- Kiku-san está grávida.
- Do Anjin-san?
- Sim. Ou do Senhor Toranaga. Possivelmente de Omi-san.
Todos estiveram dentro do período de tempo correto. Naturalmente ela tomou precauções depois de Omi-san, como sempre,
mas como a senhora sabe, nenhum método é perfeito, nada é
garantido sempre, os enganos acontecem, neh? Ela acha que esqueceu depois do Anjin-san-, mas não tem certeza. Foi no dia em
que o mensageiro chegou a Anjiro e na animação de partir para
Yokosé e da compra do contrato dela pelo Senhor Toranaga -
e compreensível, neh? Gyoko ergueu as mãos, grandemente
perturbada. - Depois do Senhor Toranaga, por sugestão minha,
965
ela fez o contrário. Também acendemos bastões de incenso, nós
duas, e rezamos por um menino.
Mariko estudou a estampa do seu leque. - Quem? Quem
a senhora acha que foi?
- Esse é o problema, senhora. Não sei. Eu ficaria grata
pelo seu conselho.
- Esse começo deve ser interrompido. Naturalmente.
há risco para ela.
- Concordo. infelizmente Kiku-san não concorda.
- O quê? Estou abismada, Gyoko-san! Claro que ela deve.
Ou o Senhor Toranaga deve ser informado. Afinal de contas,
aconteceu depois de ele...
- Talvez tenha acontecido, senhora.
- O Senhor Toranaga terá que ser informado. Por que
Kiku-san é tão desobediente e tola?
- Karma, senhora. Ela quer um filho.
- Filho de quem?
- Ela não dirá. Tudo o que disse foi que qualquer um dos
três tinha vantagens.
- Ela seria prudente em deixar esse ir-se e ter certeza na
próxima vez.
- Concordo. Pensei que a senhora devia saber para o
caso... Há muitos e muitos dias antes que qualquer coisa apareça ou antes que um aborto fosse risco para ela. Talvez mude
de idéia. Nisso não posso forçá-la. Não é mais propriedade minha,
embora, por enquanto, eu esteja tentando tomar conta dela. Seria
esplêndido se a criança fosse do Senhor Toranaga. Mas digamos
que tenha olhos azuis... Um último conselho, senhora: diga ao
Anjin-san que confie nesse Uraga-noh-Tadamasa apenas por enquanto, e nunca em Nagasaki. Nunca lá. A lealdade final desse
homem será sempre para o tio, o Senhor Harima.
- Como descobre essas coisas, Gyoko-san?
- Os homens precisam cochichar segredos, senhora. É isso
o que os faz diferentes de nós - precisam compartilhar segredos,
mas nós, mulheres, sé os revelamos para obter alguma vantagem.
Com um pouco de prata e um ouvido preparado - e eu tenho
os dois -, é tudo muito fácil. Sim. Os homens precisam compartilhar segredos. É por isso que lhes somos superiores e eles
estarão sempre em nosso poder.
966
Na escuridão, pouco antes do amanhecer, o rastrilho de um
portão lateral ergueu-se sem ruído e dez homens atravessaram
rapidamente a estreita ponte levadiça do fosso interno. A grade
de ferro fechou-se atrás deles. Na extremidade oposta da ponte,
as sentinelas alerta deliberadamente voltaram as costas e permitiram que os homens passassem ilesos. Todos usavam quimonos
escuros e chapéus cônicos, e seguravam com firmeza as espadas:
Naga, Yabu, Blackthorne, Uraga-noh-Tadamasa, e seis samurais.
Naga ia na dianteira, Yabu atrás dele, conduzindo-os certeiramente através de um labirinto de desvios laterais, escadas acima e
escadas abaixo, e por passagens pouco usadas. Quando topavam
com patrulhas ou sentinelas - sempre alerta -, Naga levantava
um símbolo de prata e o grupo era autorizado a passar, sem
estorvo e sem perguntas.
Por tortuosos caminhos secundários, Naga levou-os ao portão
principal sul, que era o único caminho sobre o primeiro grande
fosso do castelo. Ali uma companhia de samurais os aguardava.
Silenciosamente esses homens rodearam o grupo de Naga, protegendo-o, e juntos atravessaram a ponte às pressas. Sempre sem
serem interceptados. Prosseguiram, descendo a leve elevação que
levava à Primeira Ponte, mantendo-se tão próximos quanto possível das sombras deixadas pelos archotes que abundavam perto
do castelo. Uma vez do outro lado da Primeira Ponte, tomaram
a direção sul e desapareceram num labirinto de vielas, rumando
para o mar.
Exatamente junto ao cordão que cercava o atracadouro do
Erasmus, os samurais acompanhantes pararam e fizeram sinal aos
dez que avançassem, depois saudaram, deram meia-volta e se
fundiram na escuridão de novo.
Naga tomou a dianteira por entre as barreiras. Foram admitidos sobre o molhe sem comentários. Havia mais archotes e
guardas ali do que antes.
- Está tudo pronto? - perguntou Yabu, assumindo o comando agora.
- Sim, senhor - respondeu o samurai mais velho.
- Bom. Anjin-san, o senhor compreendeu?
- Sim, obrigado, Yabu-san.
- Bom. É melhor se apressar.
Blackthorne viu seus próprios samurais alinhados descuida967
Não
damente de um lado, e com um gesto mandou Uraga juntar-se a
eles conforme fora combinado previamente. Seus olhos percorreram o navio, examinando e reexaminando enquanto corria para
bordo e exultante se erguia no seu tombadilho. O céu ainda estava
escuro, sem sinal de alvorecer. Todos os sinais indicavam um
ótimo dia, com mares calmos.
Olhou para o embarcadouro, atrás, Yabu e Naga mergulhados numa conversa, Uraga explicando aos seus vassalos o que estava acontecendo. Então as barreiras se abriram de novo e Baccus
van Nekk e o resto da tripulação, todos obviamente apreensivos,
entraram aos tropeções na clareira, rodeados de guardas cáusticos.
Blackthorne dirigiu-se à amurada e gritou: - Ei! Subam a
bordo!
Quando o viram, seus homens pareceram menos receosos, e
começaram a correr, mas os guardas os cobriram de imprecações
e eles pararam.
- Uraga-san! - gritou Blackthorne. - Diga-lhes que deixem meus homens subir a bordo. Imediatamente. - Uraga obedeceu com vivacidade. Os samurais ouviram e se curvaram na
direção do navio, e soltaram a tripulação.
Vinck foi o primeiro a chegar, Baccus arrastando-se por
último. Os homens ainda estavam assustados, mas nenhum subiu
ao tombadilho, que era domínio exclusivo de Blackthorne.
Grande Jesus, piloto! - arquejou Baccus, por sobre o
tumulto de perguntas.
O que está acontecendo?
O que há de errado, piloto? - ecoou Vinck, com os
outros. - Cristo, estávamos dormindo, e de repente tudo explodiu, a porta se escancarou e os macacos estavam nos fazendo
marchar para cá...
Blackthorne ergueu a mão. - Ouçam! - Quando houve
silêncio, começou calmamente: - Vamos levar o Erasmus para
uma enseada segura do outro lado do...
- Não temos homens suficientes, piloto - exclamou Vinck,
ansioso. - Nunca...
- Ouça, Johann! Vamos ser rebocados. O outro navio estará aqui a qualquer momento. Ginsel, vá para a proa - você
indicará o rumo. Vinck, tome o leme, Jan Roper e Baccus, cuidem
da cabresteira de proa, Salamon e Croocq à popa. Sonk, desça e
verifique as nossas provisões. Providencie um pouco de grogue,
se conseguir encontrar. Mãos à obra!
968
- Espere um minuto, piloto! - disse Jan Roper. - Para
que toda a pressa? Aonde vamos e por quê?
Blackthorne sentiu uma onda de indignação por ser questionado, mas lembrou-se de que eles tinham o direito de saber, não
eram vassalos nem etas, mas a sua tripulação, seus companheiros
de bordo e, em alguns aspectos, quase sócios. - Este e o começo
da estação das tempestades. Que eles chamam de tai-funs, grandes
tempestades. Este atracadouro não é seguro. Do outro lado da
enseada, algumas léguas ao sul, fica o melhor e mais seguro
ancoradouro deles. É perto de uma aldeia chamada Yokohama.
O Erasmus estará seguro lá e poderá enfrentar qualquer tempestade. Agora mãos à obra!
Ninguém se moveu.
- Apenas algumas léguas, piloto? - disse Van Nekk.
- Sim.
-. Para quê, então? E, bem, para que a pressa?
- O Senhor Toranaga concordou em me deixar fazer isso
agora - respondeu Blackthorne, dizendo meia verdade. - Quanto mais depressa, melhor, pensei eu. Ele pode mudar de idéia
novamente, neh? Em Yokohama... - Desviou o olhar quando
Yabu subiu a bordo, com seus seis guardas. Os homens saíram
as pressas do seu caminho.
- Jesus - exclamou Vinck, a voz sufocada. - É ele! É o
bastardo que liquidou Pieterzoon!
Yabu aproximou-se do tombadilho, sorrindo largamente, sem
notar o terror que contaminou a tripulação ao reconhecê-lo. Apontou para o mar. - Anjin-san, olhe! Lá! Está tudo perfeito, neh?
Uma galera parecida com uma monstruosa lagarta marinha
movia-se silenciosamente na direção deles, saída da escuridão.
- Bom, Yabu-sarna! Quer subir aqui?
- Mais tarde, Anjin-san. - Yabu dirigiu-se para o topo da
escada de embarque.
Blackthorne voltou-se para os seus homens. - Tomem seus
lugares. Depressa. E cuidado com a língua. Falem apenas holandês - há um a bordo que compreende português! Conversarei
com vocês quando estivermos a caminho! Mexam-se!
Os homens se dispersaram, contentes por se afastarem da
presença de Yabu. Uraga e vinte dos samurais de Blackthorne
subiram a bordo. Os outros estavam se formando no molhe, para
embarcar na galera.
- Estes são seus guardas pessoais, se lhe aprouverem, senhor - disse Uraga.
969
- Meu nome é Anjin-san, não "senhor" - disse Blackthorne.
- Por favor, desculpe-me, Anjin-san. - Uraga começou a
subir os degraus.
- Pare! Fique embaixo! Ninguém jamais sobe ao tombadilho sem a minha permissão! Diga a eles.
- Sim, Anjin-san. Por favor, desculpe-me.
Blackthorne foi até o costado para observar a galera atracando, exatamente a oeste deles. - Ginsel! Vá a terra e observe-os
pegar as nossas espias! Veja que sejam presas adequadamente.
Parecem vivas agora!
Então, com o navio sob controle, Blackthorne examinou os
vinte homens. - Por que foram todos escolhidos do grupo amarrado, Uraga-san?
- Eles são um clã, sen... Anjin-san. Como irmãos, senhor.
Rogam a honra de defendê-lo.
- Anata wa - anata wa - anata wa Blackthorne apontou
dez homens ao acaso e ordenou que desembarcassem, para serem
substituídos por outros vassalos seus, também a serem selecionados por Uraga ao acaso. E disse a Uraga que deixasse claro que
todos os seus vassalos deviam ser como irmãos, ou podiam cometer seppuku imediatamente.
- Wakarimasu?
- Hai, Anjin-san. Gomen nasci.
Logo as espias de proa estavam a bordo da outra embarcação. Blackthorne inspecionou tudo, examinou o vento novamente,
usando todo o seu sentido marítimo, sabendo que, mesmo dentro
das águas benignas da vasta enseada de Yedo, a jornada poderia
ser perigosa se um temporal repentino começasse.
- Zarpar! - gritou. - Ima, capitão-san!
O outro capitão acenou e deixou a galera afastar-se do molhe. Naga estava a bordo da outra embarcação, apinhada com
samurais e o resto dos vassalos de Blackthorne. Yabu erguia-se
ao lado de Blackthorne no tombadilho do Erasmus. O navio adernou ligeiramente e um tremor percorreu-o quando foi tomado
pelo peso de uma corrente. Blackthorne e toda a tripulação ficaram cheios de júbilo, a excitação de estarem mais uma vez ao
mar sobrepujando as preocupações. Ginsel estava debruçado sobre
a minúscula plataforma de estibordo, atado a uma corda, indicando o rumo e avisando das braças. O atracadouro começou a ficar
distante.
970
Sim. Apenas meu dever.
Não, não dever. Em Anjiro, lembra-se daquele outro
homem, o marinheiro... lembra-se?
Sim, lembro-me.
Shigata ga nai, neh? Karma, neh? Aquilo foi antes de
samurai ou hatamoto... - Os olhos de Yabu cintilavam à luz
da lanterna. Ele tocou a espada de Blackthorne e falou suave e
claramente: - ...antes de Vendedor de óleo, neh? De samurai
para samurai, peço que esqueça tudo antes. Comece o novo. Esta
noite. Por favor? Compreende?
- Sim, compreendo.
- Precisa de mim, Anjin-san. Sem mim, nenhum wako bárbaro. Não pode consegui-los sozinho. Não em Nagasaki. Nunca.
Eu posso consegui-los, ajudá-lo a consegui-los. Agora lutamos do
mesmo lado. O lado de Toranaga. O mesmo lado. Sem mim, não
wako, compreende?
Blackthorne observou a galera à frente um instante, examinou o convés e seus marujos. Depois olhou para Yabu, - Sim,
compreendo.
- Compreende "ódio", a palavra "ódio"?
- Sim.
- O ódio vem do medo. Eu não o temo. O senhor precisa
não ter medo de mim. Nunca mais. Eu quero o que quero: os
seus novos navios aqui, o senhor aqui, capitão dos novos navios.
Posso ajudá-lo muitíssimo. Primeiro o Navio Negro... ah, sim,
Anjin-san - disse ele, vendo a alegria perpassar pelo rosto de
Blackthorne -, convencerei o Senhor Toranaga. O senhor sabe
que sou um lutador, neh? Comandarei o ataque. Tomarei o Navio
Negro para o senhor por terra. Juntos, o senhor e eu, somos mais
fortes do que um só. Neh?
- Sim. Possível conseguir mais homens? Mais do que os
meus duzentos?
- Se o senhor precisar de dois mil... cinco mil! Não se
- Ó de bordo à frente! Yukkuri sei! Devagar!
Hai, Anjin-san - foi o grito em resposta. Juntos os dois
navios dirigiram-se para fora da enseada, luzes de âncora ao topo
dos mastros.
- Bom, Anjin-san - disse Yabu. - Muito bom!
Yabu esperou até que estivessem bem ao largo, então chamou Blackthorne à parte. - Anjin-san - disse cautelosamente -, o senhor me salvou a vida ontem. Compreende? Detendo
aqueles ronins. Lembra-se?
971
preocupe, o senhor comanda o navio, eu comando o combate.
Concorda?
- Sim. Acordo justo. Obrigado. Concordo.
- Bom, muito bom, Anjin-san - disse Yabu satisfeito.
Sabia que aquela sociedade beneficiaria a ambos, por mais que o
bárbaro o odiasse. Novamente a lógica de Yuriko fora impecável.
Antes, naquela mesma noite, ele vira Toranaga e pedira permissão para ir imediatamente a Osaka para preparar o caminho
para ele. - Por favor, desculpe-me, mas considerei o assunto
muito urgente dissera Yabu deferentemente, conforme ele e a
esposa planejaram. - Afinal de contas, o senhor devia ter alguém
de posição lá para se certificar de que todos os arranjos estão
perfeitos. Ishido é um camponês e não entende de cerimônia, neh?
Os preparativos devem estar perfeitos ou o senhor não deve ir,
neh? Poderia levar semanas, neh?
Ele ficara encantado com a facilidade com que Toranaga
fora persuadido. - Depois também há o navio bárbaro, senhor.
E melhor colocá-lo em Yokohama imediatamente, para o caso de
tai-fun. Supervisionarei isso pessoalmente, com a sua permissão,
antes de ir. O Regimento de Mosquetes pode guardar o navio,
isso lhe dá alguma coisa para fazer. Depois prosseguirei diretamente para Osaka com a galera. Por mar seria melhor e mais
rápido, neh?
- Muito bem, sim, se acha que isso é prudente, Yabusan, faça. Mas leve Naga-san consigo. Deixe-o no comando em
Yokohama.
- Sim, senhor. - Depois Yabu contara a Toranaga sobre
a raiva do Tsukku-san e dissera que, se o Senhor Toranaga quisesse que o Anjin-san vivesse tempo suficiente para conseguir
homens em Nagasaki, para o caso de Toranaga desejar que o
navio se fizesse ao mar, então talvez isso devesse ser feito imediatamente, sem hesitação. - O padre ficou muito furioso. Acho
que furioso o bastante para lançar seus convertidos contra o
Anjin-san!
- Tem certeza?
- Oh, sim, senhor. Talvez eu devesse colocar o Anjin-San
sob a minha proteção no momento. - Depois, como se se tratasse
de um pensamento súbito, acrescentou: - O mais simples seria
levar o Anjin-san comigo. Posso dar inicio a preparativos em
Osaka, continuar até Nagasaki, conseguir os novos bárbaros, depois completar os preparativos no meu regresso.
- Faça o que achar melhor - dissera Toranaga. - Deixo
a seu critério, meu amigo. O que importa, neh? O que importa
qualquer coisa?
Yabu ficou feliz de, finalmente, poder agir. Apenas a presença de Naga não fora planejada, mas isso não tinha importância
e, na verdade, seria prudente tê-lo em Yokohama.
Yabu estava observando o Anjin-san - a postura alta, arrogante, os pés ligeiramente afastados, oscilando tranqüilamente
com o jogo da embarcação e o jogo das ondas, aparentemente
uma parte do navio, tão imenso, forte e diferente. Tão diferente
de quando estava em terra. Conscientemente Yabu começou a
assumir uma postura semelhante, imitando-o com cuidado.
- Quero mais do que o Kwanto, Yuriko-san - sussurrara
à esposa pouco antes de sair de casa. - Só mais uma coisa.
Quero o controle do mar. Quero ser almirante supremo. Investiremos toda a renda do Kwanto no plano de Omi de escoltar o
bárbaro ao pais dele, para comprar mais navios e trazê-los para
cá. Omi irá com ele, neh?
- Sim - dissera ela, igualmente feliz. - Podemos confiar nele.
O ancoradouro em Yedo estava deserto agora. Os últimos
guardas samurais estavam desaparecendo pelas vielas, retornando ao castelo. O Padre Alvito surgiu das sombras, com o
Irmão Miguel ao lado. Alvito olhou na direção do mar. - Que
Deus o amaldiçoe e a todos os que navegam nele.
- Menos um, padre. Um dos nossos navega no navio. E
Naga-san jurou que se tornará cristão no primeiro mês do próximo ano.
- Se houver um próximo ano para ele - disse Alvito,
sombrio. - Não sei sobre Naga, talvez fale a sério, talvez não.
Aquele navio vai nos destruir e não há nada que possamos fazer.
- Deus nos ajudará.
- Sim, mas enquanto isso somos soldados dele e temos que
ajudá-lo. O padre-inspetor deve ser prevenido imediatamente, e
o capitão-mor. Já encontrou um pombo-correio para Osaka?
- Não, padre, por dinheiro algum. Nem para Nagasaki.
Meses atrás Toranaga-sarna ordenou que todos os pombos fossem
colocados sob a sua guarda.
O abatimento de Alvito se acentuou. - Deve haver alguém
que tenha um! Pague o que for necessário. O herege vai nos prejudicar terrivelmente, Miguel.
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- Talvez não, padre.
- Por que eles estão levando o navio? Claro que por segurança, mas mais para colocá-lo fora do nosso alcance. Por que
Toranaga deu ao herege duzentos wakos e o seu dinheiro de
volta? Claro que para usá-lo como uma força de combate, e o
dinheiro é para comprar mais piratas atiradores e marujos. Por
que dar a liberdade a Blackthorne? Para nos destruir através do
Navio Negro. Deus nos ajude, Toranaga também nos abandonou!
- Nós o abandonamos, padre.
- Não há nada que possamos fazer para ajudá-lo! Tentamos
tudo com os daimios. Estamos indefesos.
- Talvez, se orássemos mais intensamente, Deus nos mostrasse um caminho.
- Eu rezo e rezo, mas... talvez Deus nos tenha abandonado, Miguel, com razão. Talvez não sejamos dignos da sua mercê.
Eu sei que não sou.
- Talvez o Anjin-san não encontre atiradores ou marujos.
Talvez nunca chegue a Nagasaki.
- A prata que ele tem comprará todos os homens de que
necessita. Até católicos - até portugueses. Os homens tolamente
pensam mais neste mundo do que no outro. Não vão abrir os
olhos. Vendem a alma facilmente demais, todos eles. Sim. Rezo
para que Blackthorne nao chegue nunca lá. Ou os emissários dele.
Não se esqueça, não há necessidade alguma de que ele vá até lá.
Os homens poderiam ser contratados e trazidos a ele. Venha,
vamos para casa agora. -- Desanimado, Alvito tomou a dianteira
na direção da missão jesuítica, que ficava a uma milha e pouco a
oeste, perto dos cais, atrás de um dos grandes depósitos que normalmente abrigavam as sedas e o arroz da estação, e formavam
parte do complexo comercial que os jesuítas dirigiam em nome
de comprador e vendedor.
Caminharam um pouco pela praia, então Alvito parou e
olhou para o mar de novo. A manhã estava rompendo. Ele não
conseguiu ver nada dos navios. - Que chance tem a nossa mensagem de ser entregue? - Na véspera Miguel descobrira que um
dos novos vassalos de Blackthorne era cristão. Quando, na noite
passada, correra a notícia, através da rede clandestina de Yedo,
de que alguma coisa ia acontecer com o Anjin-san e o seu
navio, Alvito rapidamente escrevera uma mensagem cifrada para
Dell'Aqua, dando todas as últimas notícias, e implorara ao homem
que a entregasse secretamente, se conseguisse atingir Osaka.
974
- A mensagem chegará - acrescentou o Irmão Miguel
calmamente. - O nosso homem sabe que navega com o inimigo.
- Que Deus olhe por ele e lhe de forças e amaldiçoe Uraga.
- Alvito olhou de soslaio para o homem mais jovem. - Por
quê? Por que ele se tornou apóstata?
- Ele lhe disse, padre - respondeu o Irmão Miguel. -
Queria ser padre, ordenado na nossa Companhia. Isso não era
pedir muito, para um orgulhoso servidor de Deus.
- Ele era orgulhoso demais, irmão. Deus, na sua sabedoria, tentou-o e encontrou-o desejando.
- Sim. Rezo para não ser encontrado desejando, quando
chegar a minha vez.
Alvito desviou da missão, tomando a direção do grande terreno que fora designado por Toranaga para a catedral que logo
se ergueria do chão para a glória de Deus. O jesuíta já conseguia
vê-la mentalmente, alta, majestosa embora delicada, dominando
a cidade, sinos incomparáveis trazidos de Macau ou Goa, ou até
de Portugal, tocando as mudanças de hora, as imensas portas
de bronze sempre escancaradas para a aristocracia fiel. Podia
sentir o odor do incenso e ouvir o som dos cánticos em latim.
Mas a guerra destruirá esse sonho, disse a si mesmo. A guerra
virá de novo para assolar este país, e será como nunca foi antes.
- Padre! - sussurrou o Irmão Miguel, chamando-lhe a
atenção.
Uma mulher estava à frente deles, olhando para as fundações
iniciais que já tinham sido marcadas e parcialmente escavadas.
A seu lado estavam duas criadas. Alvito esperou sem fazer ruído,
observando na meia-luz. A mulher estava velada e ricamente vestida. Então o Irmão Miguel se moveu ligeiramente. Seu pé tocou
uma pedra e a fez chocar-se ruidosamente contra uma pá de
ferro, invisível na escuridão. A mulher voltou-se, surpresa. Alvito
reconheceu-a.
- Mariko-san? Sou eu, o Padre Alvito.
- Padre? Oh, eu ia... eu estava mesmo indo vê-lo. Vou
partir brevemente, mas queria conversar com o senhor antes.
Alvito aproximou-se. - Estou contente em vê-la, Marikosan. Sim. Ouvi dizer que vai partir. Tentei vê-la diversas vezes,
mas, no momento, o castelo ainda me está proibido. - Sem
dizer palavra, Mariko baixou os olhos para as bases da catedral.
Alvito olhou para o Irmão Miguel, que também estava espantado
de que uma senhora de tanta importância estivesse tão insuficien975
temente acompanhada, vagando por ali tão cedo e sem ser anunciada
Veio aqui apenas para me ver, Mariko-san?
Sim. E para ver o navio partir.
O que posso fazer pela senhora?
- Gostaria de me confessar.
- Então que seja aqui - disse ele. - Que a sua confissão
seja a primeira neste lugar, embora o terreno mal esteja consagrado.
- Por favor, desculpe-me, mas o senhor poderia dizer missa
aqui, padre?
- Não há igreja ou altar ou paramentos ou eucaristia. Eu
poderia fazer isso na nossa capela se a senhora.. .
- Não poderíamos tomar chá numa xícara vazia, padre? Por
favor - pediu ela, numa voz minúscula. - Sinto muito por pedir,
padre. Há tão pouco tempo.
- Sim - concordou ele, compreendendo-a imediatamente.
Então caminhou para o ponto onde um dia, talvez, ficaria
o altar, dentro da nave magnífica, sob um teto em abóbada. Naquele dia o céu clareando era o teto, e os pássaros e o som da
rebentação, o coro majestoso. Começou a entoar a beleza solene
da missa e o Irmão Miguel ajudou, e juntos trouxeram o infinito
à terra.
Mas antes de oferecer o simulacro de sacramento, ele parou
e disse: - Agora devo ouvir a confissão, Maria. - Fez sinal ao
Irmão Miguel para que se afastasse, sentou-se sobre uma pedra,
dentro de um confessionário imaginário, e fechou os olhos. Ela .
se ajoelhou. - Diante de Deus.
. .
- Antes de começar, padre, quero pedir um favor.
- Meu ou de Deus, Maria?
- Peço um favor, diante de Deus.
- Qual é o favor?
- A vida do Anjin-san em troca de informação.
- A vida dele não é minha para que eu a de ou retire.
- Sim. Sinto muito, mas poderia ser divulgada uma ordem
entre todos os cristãos de que a vida dele não deve ser tirada
como sacrifício a Deus.
- O Anjin-san é o inimigo. Um terrível inimigo da nossa fé.
- Sim. Ainda assim, peço pela vida dele. Em troca... em
troca talvez eu possa ser de grande auxílio.
- Como?
- Meu favor está concedido, padre? Diante de Deus?
- Não posso conceder tal favor. Não cabe a mim dar ou
retirar. A senhora não pode negociar com Deus.
Mariko hesitou, ajoelhada sobre a terra dura diante dele.
Depois se curvou e começou a se levantar. - Muito bem. Então,
por favor, descu...
- Apresentarei a solicitação ao padre-inspetor - disse
Alvito.
- Isso não basta, padre, por favor, desculpe-me.
- Apresentarei o pedido a ele e lhe rogarei em nome de
Deus que o considere.
- Se o que eu lhe disser for muito valioso, o senhor, diante
de Deus, jurará que fará tudo o que estiver em seu poder, tudo
para socorrê-lo e protegê-lo, desde que não seja diretamente contra a Igreja?
- Sim. Se não for contra a Igreja.
- E, sinto muito, concorda em apresentar a minha solicitação ao padre-inspetor?
- Diante de Deus, sim.
- Obrigada, padre. Ouça, então... - Contou-lhe seu raciocínio sobre Toranaga e o embuste.
De repente tudo se encaixou no lugar para Alvito. - A
senhora tem razão, tem que ter razão! Deus me perdoe, como
pude ser tão estúpido?
- Por favor, ouça, padre, há mais fatos. - Cochichou-lhe
os segredos sobre Zataki e Onoshi.
- Isso não é possível!
- Também há os rumores de que o Senhor Onoshi planeja
envenenar o Senhor Kiyama.
- Impossível!
- Por favor, desculpe-me, é muito possível. Eles são inimigos de longa data.
- Quem lhe contou tudo isso, Maria?
- O boato é que Onoshi envenenará o Senhor Kiyama
durante a festa de São Bernardo, este ano - disse Mariko, cansada, deliberadamente não respondendo à pergunta. - O filho
de Onoshi será o novo senhor de todas as terras de Kiyama.
O General Ishido concordou com isso, desde que meu amo já
tenha partido para o Grande Vazio.
- Prova, Mariko-san? Onde está a prova?
- Sinto muito, não tenho nenhuma. Mas o Senhor Harima
está a par da informação.
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- Como a senhora sabe disso? Como Harima sabe? Diz
que ele faz parte da conspiração?
- Não, padre. Apenas parte do segredo.
- Impossível! Onoshi é fechado demais e esperto demais.
Se ele planejou isso, ninguém jamais saberia. A senhora deve
estar enganada. Quem lhe deu a informação?
Alvito deixou a mente correr sobre as possibilidades. Então:
- Uraga! Uraga era o confessor de Onoshi! Oh, mãe de Deus,
Uraga quebrou a santidade do confessionário e contou ao seu
suserano.
. .
- Talvez o segredo não seja verdadeiro, padre. Mas acredito que sim. Só Deus conhece a verdade, neh?
Mariko não levantara os véus e Alvito não podia ver nada
do rosto dela. Acima, o amanhecer estava se espalhando pelo
céu. Ele olhou para o mar. Agora conseguia divisar os dois navios
rumando para o sul, os remos da galera mergulhando em uníssono, o vento bom e o mar calmo. Seu peito doía e a cabeça ecoava
com a enormidade do que lhe fora revelado. Rezou por ajuda e
tentou separar os fatos da fantasia. No íntimo sabia que os segredos eram autênticos e o raciocínio dela impecável.
- A senhora está dizendo que o Senhor Toranaga vai superar Ishido... que ele vencerá?
- Não, padre. Ninguém vencerá, mas sem a sua ajuda o Senhor Toranaga perderá. O Senhor Zataki não merece confiança.
Será sempre uma grande ameaça ao meu senhor. Zataki saberá
disso e que todas as promessas de Toranaga são vazias, porque Toranaga deve tentar eliminá-lo no final. Se eu fosse Zataki, destruiria
Sudara, a Senhora Genjiko e os filhos deles no momento em
que se entregassem às minhas mãos, e imediatamente me moveria
contra as defesas setentrionais de Toranaga. Lançaria as minhas
legióes contra o norte, o que arrancaria Ishido, Ikawa Jikkyu e
todos os outros da sua estúpida letargia. Toranaga pode ser arrasado com muita facilidade, padre.
Alvito esperou um momento e disse: - Levante os véus,
Maria.
Viu que o rosto dela estava tenso. - Por que me disse
tudo isso?
- Para salvar a vida do Anjin-san.
- A senhora comete traição por ele, Maria? A senhora,
Toda Mariko-noh-Buntaro, filha do General Akechi Jinsai, comete traição por causa de um estrangeiro? Pede-me que acredite
nisso?
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- Não, desculpe, também... também para proteger a Igreja. Primeiro para proteger a Igreja, padre... não sei o que fazer.
Pensei que o senhor poderia... o Senhor Toranaga é a única
esperança da Igreja. Talvez de algum modo o senhor possa ajudálo... para proteger a Igreja, o Senhor Toranaga precisa de
ajuda agora, ele é um homem bom e sábio e a Igreja prosperará
com ele. Sei que Ishido é o verdadeiro inimigo.
- Muitos daimios cristãos acreditam que Toranaga destruirá
a Igreja e o herdeiro, se dominar Ishido e conseguir o poder.
- Talvez, mas duvido. Ele tratará a Igreja com justiça.
Sempre fez isso. Ishido é violentamente anticristão. Assim como
a Senhora Ochiba.
- Todos os grandes cristãos estão contra Toranaga.
- Ishido é um camponês. Toranaga-sarna é justo e sábio,
e quer o comércio.
- Tem que haver comércio, governe quem governar.
- O Senhor Toranaga sempre foi seu amigo, e se o senhor
for honesto com ele, ele sempre o será com o senhor. - Ela
apontou para as fundações. - Isto não é uma medida da justiça
dele? Deu esta terra voluntariamente - quando o senhor lhe
falhou e ele perdeu tudo, até a sua amizade.
- Talvez.
- Finalmente, padre, apenas Toranaga-sarna pode impedir
uma guerra perpétua, o senhor deve saber disso. Como mulher,
peço que não haja uma guerra para sempre.
- Sim, Maria. Ele é o único que poderia fazer isso, talvez.
Os olhos dele se desviaram dela. O Irmão Miguel estava
ajoelhado, perdido em oração, as duas criadas mais perto da
praia, esperando pacientemente. O jesuíta sentia-se oprimido, embora exaltado, exausto, embora cheio de vigor. - Estou contente
de que a senhora tenha vindo aqui e me contado isso. Agradeçolhe. Pela Igreja e por mim, um servo da Igreja. Farei tudo o que
combinei.
Ela curvou a cabeça e não disse nada.
- A senhora levará uma mensagem, Mariko-san? Para o
padre-inspetor?
- Sim. Sc ele estiver em Osaka.
- Uma mensagem particular?
- Sim.
- A mensagem é oral. A senhora lhe dirá tudo o que disse
e o que eu disse à senhora. Tudo.
- Muito bem.
979
- Tenho a sua promessa? Diante de Deus?
- O senhor não precisa dizer isso a mim, padre. Eu concordei.
Ele a olhou nos olhos, firme e forte. - Por favor, desculpeme, Maria. Agora vamos ouvir a sua confissão.
Ela desceu os véus de novo. - Por favor, desculpe-me,
padre, não sou digna sequer de me confessar.
-- Todo mundo é digno à vista de Deus.
- Menos eu. Não sou digna, padre.
- Deve confessar-se, Maria. Não posso prosseguir com a
sua missa. Deve apresentar-se diante de Deus purificada.
Ela se ajoelhou. - Perdoe-me, padre, pois pequei, mas só
posso confessar que não sou digna de me confessar - sussurrou
ela, a voz entrecortada.
Compadecido, o Padre Alvito pousou a mão levemente sobre
a cabeça dela. - Filha de Deus, deixe-me implorar o perdão
de Deus pelos seus pecados. Deixe-me, em seu nome, absolvê-la e
torná-la íntegra aos olhos dele. - Abençoou-a e depois continuou a missa, na catedral imaginária, sob o céu se abrindo .. .
o serviço mais real e mais belo que jamais houvera, para ele e
para ela.
O Erasmus estava ancorado na melhor enseada que Blackthorne jamais vira, longe o suficiente da praia para ter muito
espaço para a manobra e ao mesmo tempo próximo o bastante
para ter segurança. Seis braças de água clara sobre um forte
leito marítimo estavam abaixo e, com exceção da estreita garganta de entrada, montanhas a toda volta, o que manteria qualquer
frota protegida da cólera do oceano.
A viagem diurna de Yedo fora sem incidentes, embora cansativa. A galera estava atracada a um quebra-mar perto da aldeia
de pesca de Yokohama, e agora estavam sozinhos a bordo,
Blackthorne e todos os seus homens, tanto os holandeses quanto
os japoneses. Yabu e Naga estavam em terra inspecionando O
Regimento de Mosquetes, e antes de desembarcar haviam dito a
Blackthorne que se juntasse a eles logo. A oeste o sol estava baixo
no horizonte e o céu vermelho prometia que o dia seguinte seria
igualmente ótimo.
- Por que agora, Uraga-san? - estava Blackthorne perguntando do tombadilho, os olhos estriados de vermelho devido
à falta de sono. Ele acabara de ordenar que a tripulação e todo
980
mundo descesse para o convés inferior e Uraga pedira que adiasse
isso um momento para descobrir se havia algum cristão entre os
vassalos.
- Isso não pode esperar até amanhã?
- Não, senhor, sinto muito. - Uraga olhava-o diante de
todos os vassalos samurais reunidos, a tripulação holandesa amontoada num grupo nervoso perto do parapeito do tombadilho.
_- Por favor, desculpe-me, mas é muito importante que o senhor
descubra imediatamente. O senhor é o principal inimigo deles.
Portanto deve saber, pela sua proteção. Só desejo protegê-lo. Não
vai levar muito tempo, neh?
- Estão todos ao convés?
- Sim, senhor.
Blackthorne chegou mais perto do parapeito e gritou em japonês: - Alguém aqui é cristão? - Não houve resposta. - Ordeno
que qualquer cristão de um passo à frente. - Ninguém se moveu. Então se voltou para Uraga: - Escolha dez guardas de
convés, depois dispense-os.
- Com a sua permissão, Anjin-san. - De sob o quimono
Uraga tirou um pequeno ícone pintado que comprara em Yedo
e atirou-o de face para cima sobre o convés. Depois, deliberadamente, pisou sobre a imagem. Blackthorne e a tripulação ficaram
grandemente perturbados com a profanação. Menos Jan Roper.
- Por favor, mande cada vassalo fazer o mesmo - disse Uraga.
- Por quê?
- Conheço os cristãos. - Os olhos de Uraga estavam meio
ocultos pela aba do chapéu. - Por favor, senhor. E importante
que cada homem faça o mesmo. Agora, esta noite.
- Está bem - concordou Blackthorne, relutante.
Uraga voltou-se para os vassalos reunidos. - Por sugestão
minha, nosso amo solicita que cada um de nós faça isso.
Os samurais resmungaram entre si e um interrompeu: -
Já dissemos que não somos cristãos, neh? O que prova pisar na
figura de um deus bárbaro? Nada!
- Os cristãos são inimigos do nosso amo. Os cristãos são
traiçoeiros - mas cristãos são cristãos. Por favor, desculpem-me,
mas conheço os cristãos - para minha vergonha, eu abandonei
os nossos verdadeiros deuses. Sinto muito, mas acredito que isto
e necessário para a segurança do nosso amo.
Imediatamente um samurai na frente declarou: - Nesse
caso, não há nada mais a ser dito. - Avançou e pisou na figura.
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- Não adoro religião bárbara alguma! Vamos, vocês todos,
façam o que foi pedido!
Avançaram um a um. Blackthorne olhava, achando a cerimônia inútil.
Preocupado, Van Nekk disse: - Não parece direito.
Vinck olhou para o tombadilho: - Bastardos imbecis. Eles
nos cortariam o pescoço sem um pensamento sequer. Tem certeza
de que pode confiar neles, piloto?
- Sim.
- Nenhum católico jamais faria isso, hem, Johann? - disse
Ginsel. - Esse Uraga-san é esperto.
- Que diferença faz que esses pederastas sejam papistas
não, são todos samurais cheios de merda!
- Sim - disse Croocq.
- Ainda assim, não é direito fazer isso - repetiu Van
Nekk.
Os samurais continuaram a pisar sobre o ícone no convés
um a um, e moviam-se para grupos meio dispersos. Era uma
atividade tediosa e Blackthorne se arrependeu de ter concordado,
pois havia coisas mais importantes a fazer antes do crepúsculo.
Seus olhos fitaram a aldeia e os promontórios. Centenas de cabanas de sapé, do acampamento do Regimento de Mosquetes,
pontilhavam os contrafortes das montanhas. Tanto o que fazer,
pensou ele, ansioso por desembarcar, querendo ver a terra, ufano
com o feudo que Toranaga lhe dera, que continha Yokohama.
Senhor Deus nas alturas, disse a si mesmo, sou dono de uma
das maiores enseadas do mundo.
Abruptamente um homem desviou do ícone, sacou a espada
e saltou para Blackthorne. Uma dúzia de alarmados samurais se
lançaram corajosamente no caminho dele, protegendo o tombadilho enquanto Blackthorne girava rápido sobre os calcanhares,
uma pistola engatilhada e apontada. Outros se dispersaram, acotovelando-se, tropeçando, empurrando-se no alvoroço. O samurai
vacilou, berrando de raiva, depois mudou de direção e atacou
Uraga, que de algum modo conseguiu evitar o golpe. O homem
rodopiou quando outros samurais arremeteram contra ele, combateu ferozmente um instante, depois disparou para o lado e se
atirou na água.
Quatro samurais que sabiam nadar atiraram de lado as espa das mortíferas, colocaram as facas curtas na boca, e saltaram atrás
dele, o resto e os holandeses se amontoando contra a amurada.
Blackthorne lançou-se para a amurada. Não conseguiu ver
982
nada lá embaixo. Então divisou algumas sombras rodopiando
na água. Um homem veio à tona para respirar e mergulhou de
novo. Logo quatro cabeças surgiram à superfície. Entre elas um
cadáver, com uma faca no pescoço.
- Sinto muito, Anjin-san, foi a faca dele mesmo - gritou
um por sobre os urros de aplauso dos outros.
- Uraga-san, diga-lhes que o revistem e depois o deixem
aos peixes.
A busca não revelou nada. Quando estavam todos de volta
ao convés, Blackthorne apontou para o ícone mais uma vez.
- Todos os samurais, mais uma vez!
Foi obedecido instantaneamente e se certificou de que cada
homem passava pelo teste. Depois, por causa de Uraga, e como
cumprimento a ele, ordenou à tripulação que fizesse o mesmo.
Houve o inicio de um protesto.
- Vamos - falou Blackthorne, ríspido. - Depressa ou
meto o pé nas costas de vocês!
- Não é preciso falar assim, piloto - disse Van Nekk.
Não somos bastardos pagãos e fedorentos!
- Eles não são bastardos pagãos e fedorentos! São samurais, por Deus!
Eles o olharam fixamente. Raiva, junto com medo, encrespou
por entre eles. Van Nekk começou a dizer alguma coisa, mas
Ginsel intrometeu-se.
- Samurais são bastardos pagãos e eles - ou homens como
eles - assassinaram Pieterzoon, o nosso capitão-mor e Maetsukker!
- Sim, mas sem estes samurais nunca voltaremos para casa
- compreendeu?
Agora todos os samurais observavam. Agourentamente aproximaram-se mais de Blackthorne, a título de proteção. - Vamos
dar o caso por encerrado, hem? - disse Van Nekk. - Estamos
todos um pouco melindrosos e exaustos. Foi uma longa noite.
Não somos senhores de nós mesmos aqui, nenhum de nós. Nem
o piloto. O piloto sabe o que está fazendo, ele é o comandante,
e o capitão-mor agora.
- Sim, é. Mas não é direito que tome o lado deles contra
nós, e por Deus, ele não é um rei, somos iguais a ele - sibilou
Jan Roper. - Estar armado como eles e vestido como eles e
saber falar com os bastardos não o faz nosso rei. Temos direitos
e essa é a nossa lei e a lei dele, por Deus, embora seja inglês.
ou
983
Fez juramentos sagrados de respeitar as regras - não jurou,
piloto?
- Sim - disse Blackthorne. - É a nossa lei nos nossos
mares, onde somos senhores e em maioria. Agora não somos.
Por isso façam o que eu estou dizendo e depressa.
Resmungando, obedeceram.
- Sonk! Encontrou grogue?
- Não, senhor, nem uma maldita gota!
- Vou mandar trazer saque para bordo. - Depois, em
português, acrescentou: - Uraga-san, venha à praia comigo e
traga alguém para remar. Vocês quatro - disse em japonês,
apontando para os homens que haviam mergulhado -, vocês
quatro agora capitães. Compreendem? Tomem cinqüenta homens
cada um.
- Hai, Anjin-san.
- Qual é o seu nome? - perguntou a um deles, um homem
alto e quieto com uma cicatriz no rosto.
- Nawa Chisato, senhor.
- Você é o capitão hoje. O navio todo. Até eu voltar.
- Sim, senhor.
Blackthorne dirigiu-se para a escada de embarque. Um bote
estava amarrado lá embaixo.
Aonde vai, piloto? - perguntou Van Nekk ansioso.
A terra. Volto mais tarde.
Bom, vamos todos!
Por Deus, voltarei com ...
E eu. Vou...
Jesus Cristo, não me deixem...
Não! Vou sozinho!
Mas, pelo amor de Deus, e nós! - exclamou Van Nekk.
- O que vamos fazer, piloto? Não nos abandone, piloto. O que...
- Vocês simplesmente esperam! - disse Blackthorne. -
Providenciarei para que mandem comida e bebida a bordo.
Ginsel postou-se diante de Blackthorne. - Pensei que fôssemos voltar esta noite. Por que não vamos voltar esta noite?
- Quanto tempo vamos ficar aqui, piloto, e quanto tempo...
- Piloto, e Yedo? - perguntou Ginsel mais alto. - Quanto tempo vamos ficar aqui com esses malditos macacos?
- Sim, macacos, por Deus! - disse Sonk, alegre. - E o
nosso equipamento e a nossa gente?
- Sim, os nossos "eters", piloto? Nossa gente e nossas
garotas.
- Estarão lá amanhã. - Blackthorne controlou a aversão
que sentia. - Tenham paciência, voltarei assim que puder.
Baccus, você fica encarregado. - Voltou-se para descer.
- Vou junto - disse Jan Roper'truculentamente, seguindo-o. - Estamos numa enseada, portanto temos precedência e
quero algumas armas.
Blackthorne voltou-se para ele e uma dúzia de espadas deixaram as bainhas, prontas para matar Jan Roper. - Mais uma
palavra sua e você é um homem morto. - O mercador alto e
magro corou e parou. - Dobre a língua perto destes samurais
porque qualquer um deles lhe arrancará a cabeça antes que eu
possa detê-los por causa da sua maldita grosseria - sem falar
de outras coisas! Eles são suscetíveis, e perto de você eu também
estou ficando suscetível, e você terá armas quando precisar delas.
Compreendeu?
Jan Roper assentiu, mal-humorado, e recuou. Os samurais
ainda estavam ameaçadores, mas Blackthorne os acalmou e lhes
ordenou, sob pena de morte, que deixassem a tripulação em paz.
- Voltarei logo. - Desceu a escada e entrou no bote, seguido
de Uraga e outro samurai. Chisato, o capitão, aproximou-se de
Jan Roper, que estremeceu sob a ameaça, curvou-se e recuou.
Quando já estavam bem afastados do navio, Blackthorne
agradeceu a Uraga por capturar o traidor.
- Por favor, não agradeça. Foi apenas o meu dever.
Blackthorne disse em japonês, de modo que o outro homem
pudesse compreender: - Sim, dever. Mas os seus kokus mudam
agora. Agora não vinte, mas cem por ano.
Oh, senhor, obrigado. Não mereço. Eu estava apenas
cumprindo o meu dever e devo ...
- Fale devagar. Não compreendo.
Uraga pediu desculpas e disse mais lentamente.
Blackthorne elogiou-o de novo, depois acomodou-se mais
confortavelmente na popa do bote, sua exaustão dominando-o.
Forçou os olhos a continuarem abertos e olhou para o navio, lá
atrás, para se certificar de que estava hem posicionado. Van Nekk
e os outros estavam à amurada, e ele se arrependeu de tê-los
trazido a bordo. embora soubesse que não tivera opção. Sem eles
a viagem não teria sido segura.
Escória rebelde, pensou. Que diabo faço com eles? Todos os
meus vassalos sabem sobre a aldeia eta e todos eles são tão repulsivos quanto... Jesus Cristo, que mixórdia! Karma, neh?
Adormeceu. Quando o bote embicou na praia perto do mo985
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lhe, despertou. De imediato não conseguiu se lembrar de onde
estava. Sonhara que estava de volta ao castelo, nos braços de
Mariko, exatamente como na noite anterior.
Na noite anterior, estavam deitados, meio adormecidos depois de terem feito amor, Fujiko totalmente a par, Chimmoko
de guarda, quando Yabu e seus samurais esmurraram o batente
da porta. A noite começara de modo muito agradável. Fujiko
discretamente também convidara Kiku, e ele nunca a vira mais
bela e exuberante. Quando os sinos soaram a hora do Javali,
Mariko chegara pontualmente. Houvera muita alegria e saque,
mas logo Mariko quebrara o encanto.
- Sinto muito, mas está correndo grande perigo, Anjinsan. - Ela explicou e quando acrescentou o que Gyoko dissera
sobre não confiar em Uraga, tanto Kiku quanto Fujiko ficaram
igualmente perturbadas.
- Por favor, não se preocupem. Eu o vigiarei, não temam
- tranqüilizara-as ele.
Mariko continuara: Talvez o senhor também devesse
vigiar Yabu-sama, Anjin-san.
- O quê?
- Esta tarde vi o ódio no seu rosto. Ele também viu.
- Não tem importância - dissera ele. - Shigata ga
nai, neh?
- Não. Sinto muito, foi um engano. Por que o senhor
chamou os seus homens de volta quando Yabu-sama estava
cercado? Com certeza isso também foi um engano grave. Eles
o teriam rapidamente liquidado e seu inimigo estaria morto sem
risco para o senhor.
- Não teria sido direito, Mariko-san. Tantos homens contra um só. Não seria justo.
Mariko explicara a Fujiko e a Kiku o que ele dissera. -
Por favor, desculpe-me, Anjin-san, mas todas nós acreditamos que
esse é um modo de pensar muito perigoso e pedimos que renuncie
a ele. É totalmente errado e muito ingênuo. Por favor, desculpeme por ser tão brusca. Yabu-san o destruirá.
- Não. Ainda não. Ainda sou importante demais para ele.
E para Omi-san.
- Kiku-san disse: "Por favor, diga ao Anjin-san para tomar
cuidado com Yabu, e com esse Uraga. O Anjin-san pode achar
difícil avaliar `importância' aqui, neh?"
- Sim, concordo com Kiku-san - dissera Fujiko.
Mais tarde Kiku partira para ir distrair Toranaga. Então
986
Mariko rompera a paz na sala de novo. - Esta noite devo dizer
sayonara, Anjin-san. Parto ao amanhecer.
- Não, não há necessidade disso agora - dissera ele. -
Pode-ser tudo mudado agora. Eu a levarei a Osaka. Arranjarei
uma galera ou um navio costeiro. Em Nagasa.. .
- Não, Anjin-san. Sinto muito, devo partir conforme o ordenado. - O argumento mais persuasivo não conseguira demovê-la.
Ele sentira Fujiko a observá-lo em silêncio, o coração doendo
com a idéia da partida de Mariko. Olhara para Fujiko. Ela
pedira licença por um momento. Fechara a shoji atrás de si e
eles ficaram sozinhos, sabendo que Fujiko não voltaria, que estavam seguros por algum tempo. O amor foi urgente e violento.
Depois houve vozes e passos e tempo apenas suficiente para se
recomporem antes que Fujiko se juntasse a eles pela porta interna
e Yabu entrasse na sala, trazendo ordens de Toranaga para uma
partida imediata, secreta Yokohama, depois Osaka para
uma breve parada, Anjin-san, em frente até Nagasaki, de volta
a Osaka, e para casa! Mandei buscar a sua tripulação e que se
apresentasse ao navio.
Ele fora dominado pela excitação ante a vitória enviada pelo
céu. - Sim, Yabu-san. Mas Mariko-san... Mariko-san vai a
Osaka também, neh? Melhor conosco, mais rápido, mais seguro, neh?
- Impossível, sinto muito. Deve se apressar. Vamos! A maré
- compreende "maré", Anjin-san?
- Hai, Yabu-san. Mas Mariko-san vai a Osaka...
- Sinto muito, ela tem ordens, assim como nós temos
ordens. Mariko-san! Expliquê-lhe. Diga-lhe que se apresse.
Yabu fora inflexível, e tão tarde da noite era impossível ir
até Toranagaa pedir-lhe que anulasse a ordem. Não houvera tempo
ou privacidade para conversar mais com Mariko ou com Fujiko,
além de dizer os adeuses formais. Mas logo se encontrariam em
Osaka. - Muito em breve, Anjin-san - dissera Mariko.. .
- Senhor Deus, não me deixe perdê-la - disse Blackthorne,
as gaivotas grasnando acima da praia, seus gritos intensificandolhe a solidão.
- Perder a quem, senhor?
Blackthorne voltou à realidade. Apontou para o navio à distância. - Chamamos navios de "ela", pensamos em navios no
feminino, não no masculino. Wakarimasu ka?
- Hai.
Blackthorne ainda podia ver os vultos minúsculos da sua tri987
pulação e seu dilema insolúvel despontou mais uma vez. Você precisa tê-los a bordo, disse a si mesmo, e mais homens como eles.
E os novos também não vão se dar com os samurais, e serão
católicos igualmente, a maioria deles. Deus no paraíso, como
controlá-los todos? Mariko tinha razão. Perto dos católicos sou
um homem morto.
Até eu, Anjin-san - dissera ela na noite passada.
Não, Mariko-san. Você não.
Você disse que éramos inimigos, esta tarde.
Eu disse que a maioria dos católicos são meus inimigos.
Eles o matarão se puderem.
Sim. Mas você... nós vamos nos encontrar mesmo em
Osaka?
Sim. Eu o amo. Anjin-san, lembre-se, tenha cuidado com
Yabu-san ...
Estavam todos certos sobre Yabu, pensou Blackthorne, diga
ele o que disser, prometa o que prometer. Cometi um grave erro
chamando os meus homens de volta quando ele estava encurralado. Esse bastardo me cortará o pescoço assim que eu tenha
esgotado a minha utilidade, por mais que finja o contrário. E
no entanto Yabu também tem razão: preciso dele. Nunca entrarei
em Nagasaki, e sairei de novo, sem sua proteção. Ele com certeza
poderia ajudar a convencer Toranaga. Com ele comandando dois
mil fanáticos mais, poderíamos arrasar Nagasaki toda e talvez
até Macau.. .
Nossa Senhora! Sozinho estou indefeso.
Então se lembrou do que Gyoko dissera a Mariko sobre
Uraga, sobre não confiar nele. Gyoko errou sobre ele, pensou.
No que mais terá errado?
988
Livro cinco
CAPÍTULO 52
Mais uma vez nas apinhadas estradas costeiras de Osaka,
após a longa viagem de galera, Blackthorne sentiu de novo o
mesmo peso esmagador da cidade que sentira ao vê-Ia a primeira
vez. Grandes setores tinham sido devastados pelo tai-fun e algumas áreas ainda estavam enegrecidas pelo fogo, mas sua imensidade permanecia quase intacta e ainda dominada pelo castelo.
Mesmo daquela distância, mais de uma légua, ele podia ver o
colossal cinturão da primeira muralha, as ameias sobranceiras,
tudo diminuído pela pairante malignidade do torreão.
- Cristo - disse Vinck nervosamente, em pé ao lado dele
na proa -, parece impossível ser tão grande. Amsterdam seria
um cocozinho de mosca ao lado dela.
- Sim. A tempestade danificou a cidade, mas não seriamente. Nada poderia tocar o castelo.
O tai-f un açoitara violentamente de sudoeste duas semanas
atrás. Tinham tido sinais em profusão, com céu baixo, lufadas e
chuva, e haviam impelido a galera para uma enseada segura a
fim de esperar passar a tempestade. Esperaram cinco dias. Para
além da enseada, o oceano se encrespara e os ventos foram os
mais violentos e fortes que Blackthorne experimentara.
- Cristo - repetiu Vinck. - Gostaria que estivéssemos em
casa. Deveríamos estar em casa há um ano.
Blackthorne trouxera Vinck consigo de Yokohama e mandara os outros de volta a Yedo, deixando o Erasmus ancorado
em segurança e guardado sob o comando de Naga. A tripulação
ficara feliz em partir - assim como ele ficara feliz de ver o
último deles. Houvera mais contendas naquela noite e uma violenta
discussão sobre a prata do navio. O dinheiro era da companhia,
não dele. Van Nekk era o tesoureiro da expedição e mercadorchefe e, juntamente com o capitão-mor, tinha jurisdição legal
991
sobre ele. Depois de terem contado e recontado, e de se descobrir
que faltavam mil moedas, Van Nekk, apoiado por Jan Roper,
discutira sobre a quantia que Blackthorne poderia levar para
contratar novos homens.
- Está querendo demais, piloto! Terá que oferecer-lhes
menos!
- Jesus Cristo! Seja quanto for, temos que pagar. Preciso
de marujos e atiradores. - Esmurrara a mesa da grande cabina.
- De que outro modo vamos poder voltar para casa?
Finalmente acabara convencendo-os a deixá-lo levar o suficiente, e ficara aborrecido de que eles o tivessem feito perder
a calma com toda aquela rabularia.
No dia seguinte embarcara-os de volta a Yedo, um décimo
do tesouro dividido entre eles, o resto sob guarda no navio.
- Como sabemos que estará seguro aqui? - perguntou Jan
Roper, carrancudo.
- Fique e vigie-o você mesmo, então!
Mas nenhum deles quisera ficar a bordo. Vinck concordara
em ir com ele.
- Por que ele, piloto? - perguntara Van Nekk.
- Porque é um marinheiro e precisarei de ajuda.
Blackthorne ficara contente em ver o último deles. Uma vez
ao largo, começou a modificar Vinck segundo hábitos japoneses.
Vinck enfrentou isso estoicamente, confiando em Blackthorne,
tendo navegado anos demais com ele para não lhe conhecer a
fibra. - Piloto, pelo senhor eu tomarei banho e me lavarei todos
os dias, mas serei amaldiçoado diante de Deus antes de usar uma
dessas camisolas sifilíticas!
Dentro de dez dias Vinck estava alegremente indicando o
rumo, semidespido, o largo cinturão de couro sobre a pança, uma
adaga enfiada na bainha e presa às costas e uma das pistolas de
Blackthorne segura dentro da camisa esfarrapada, mas limpa.
- Não temos que ir ao castelo, temos, piloto?
- Não.
- Jesus Cristo ... eu prefiro mesmo ficar longe de lá.
O dia estava ótimo, o sol alto fazendo tremeluzir o mar
calmo. Os remadores ainda estavam fortes e disciplinados.
- Vinck, ali é que foi a emboscada!
- Jesus Cristo, olhe aqueles bancos de areia!
Blackthorne lhe contara sobre a dificuldade da sua fuga, os
sinais de fogo naqueles parapeitos, as pilhas de cadáveres na
praia, a fragata inimiga caindo-lhe em cima por barlavento.
992
- Ah, Anjin-san. - Yabu juntou-se a eles. - Bom, neh?
- Apontou para a devastação.
- Mau, Yabu-sama.
- É inimigo, neh?
- O povo não é inimigo. Apenas Ishido e samurais são
inimigos, neh?
- O castelo é inimigo - disse Yabu, refletindo seu desassossego e o de todos a bordo. - Aqui todos são inimigos.
Blackthorne observou Yabu mover-se para a proa, o vento
agitando-lhe o quimono sobre o torso rijo.
Vinck baixou a voz. - Quero matar esse bastardo, piloto.
- Sim. Também não me esqueci do velho Pieterzoon, não
se preocupe.
- Nem eu, Deus seja o meu juiz! É de espantar o modo
como o senhor fala a língua deles. O que foi que ele disse?
- Só estava sendo polido.
- Qual é o plano?
- Atracamos e esperamos. Ele vai desembarcar por um dia
ou dois e nós baixamos a cabeça e esperamos. Toranaga disse
que enviaria mensagens para os salvo-condutos de que necessitaríamos, mas ainda assim, vamos ficar a bordo. - Blackthorne
examinou as águas à procura de perigos, mas não descobriu
nada. No entanto, disse a Vinck: - É melhor calcular as braças
agora, só como precaução!
- Sim!
Por um instante Yabu observou Vinck indicando o rumo,
depois, meio a esmo, voltou para junto de Blackthorne. - Anjinsan, talvez fosse melhor o senhor tomar a galera e seguir até
Nagasaki. Não esperar, hein?
- Está bem - disse Blackthorne cordialmente, sem morder
a isca.
Yabu riu. - Gosto do senhor, Anjin-san! Mas, sinto muito,
sozinho morrerá logo. Nagasaki é muito ruim para o senhor!
- Osaka ruim, todo lugar ruim!
- Karma. - Yabu sorriu de novo. Blackthorne fingiu
compartilhar da piada.
Tinham tido variações da mesma conversa muitas vezes durante a viagem. Blackthorne aprendera muito sobre Yabu. Odiava-o ainda mais, desconfiava ainda mais, respeitava-o mais, e
sabia que seus karmas estavam interligados.
- Yabu-san tem razão, Anjin-san - dissera Uraga. - Ele
pode protegê-lo em Nagasaki, eu não.
993
- Por causa do seu tio, o Senhor Harima?
- Sim. Talvez eu já esteja declarado criminoso, neh? Meu
tio é cristão, embora eu o ache um cristão de arroz.
- O que é isso?
- Nagasaki é feudo dele. Nagasaki tem uma grande enseada
sobre a costa de Kyushu, mas não a melhor. Então ele rapidamente vê a luz, neh? Torna-se cristão e ordena que todos os seus
vassalos façam o mesmo. Ordenou-me que me tornasse cristão e
que fosse para a escola jesuítica, depois me mandou como um
dos enviados cristãos ao papa. Deu terra aos jesuítas e - como
o senhor diria - adula-os. Mas o coração dele é apenas japonês.
- Os jesuítas sabem o que você pensa?
- Sim, claro.
- Acreditam nessa história de cristãos de arroz?
- Eles não dizem a nós, convertidos deles, no que é que
realmente acreditam, Anjin-san. Nem a si mesmos na maioria
das vezes. São treinados para terem segredos, usá-los, acolhê-los,
mas nunca para revelá-los. Nisso são muito japoneses.
- É melhor que fique aqui em Osaka, Uraga-san.
- Por favor, desculpe-me, senhor, sou seu vassalo. Se o
senhor for a Nagasaki, eu irei.
Blackthorne sabia que Uraga estava se tornando um auxiliar
inestimável. O homem estava revelando muitos dos segredos dos
jesuítas: o como, porquê e quando das suas negociações comerciais, seus funcionamentos internos e inacreditáveis maquinações
internacionais. E era igualmente informativo sobre Harima e Kiyama e sobre como pensavam os daimios cristãos, e por que, provavelmente, permaneceriam do lado de Ishido. Deus, sei coisas
agora que não teriam preço em Londres, pensava ele, e ainda há
muito a aprender. Como posso passar a informação? Por exemplo, que o comércio da China com o Japão, só de seda, vale dez
milhões em ouro por ano, e que, bem agora, os jesuítas têm
um dos seus padres na corte do imperador da China em Pequim,
honrado com dignidade de corte, um confidente dos governantes,
falando chinês perfeitamente. Se ao menos eu pudesse mandar
uma carta... se ao menos tivesse um mensageiro.
Em troca de todo o conhecimento, Blackthorne começou a
ensinar Uraga sobre navegação, sobre o grande cisma religioso,
e sobre o parlamento. Também ensinou a ele e a Yabu como
disparar uma arma de fogo. Uraga é um bom homem, pensava
ele. Não há problema. Exceto a vergonha que ele tem pela falta
do rabo-de-cavalo de samurai. Isso crescerá logo.
994
Houve um grito de advertência do vigia de popa.
- Anjin-san! - O capitão japonês apontava para a frente,
para um elegante cúter, remado por vinte homens, que se aproximava por estibordo. No topo do mastro estava o emblema de
Ishido. Junto dele, o emblema do conselho de regentes, o mesmo
sob o qual Nebara Jozen e seus homens tinham viajado para
Anjiro, para a morte.
- Quem é? - perguntou Blackthorne, sentindo a tensão
por todo o navio, todos os olhos perscrutando a distância.
- Ainda não consigo enxergar, sinto muito - disse o capitão.
- Yabu-san?
Yabu sacudiu os ombros. - Um oficial.
Quando o cúter chegou mais perto, Blackthorne viu um
ancião sentado sob o dossel de popa, usando um traje cerimonial
enfeitado e o manto com asas. Não usava espadas. Ao seu redor
estavam os cinzentos de Ishido.
O mestre do tambor cessou a batida para permitir ao cúter
emparelhar. Homens acorreram para ajudar o oficial a subir a
bordo. Um piloto japonês pulou atrás dele e após numerosas
mesuras assumiu o comando formal da galera.
Yabu e o ancião também foram formais e meticulosos. Finalmente se sentaram sobre almofadas de nível desigual, o oficial
tomando a posição mais favorecida na popa. Samurais, cinzentos
e de Yabu, rodearam-nos, sentando-se de pernas cruzadas ou
ajoelhando-se no convés principal, em lugares ainda mais inferiores. - O conselho lhe dá as boas-vindas, Kasigi Yabu, em
nome de Sua Alteza Imperial - disse o homem. Era baixo e
atarracado, um tanto acabado, um conselheiro graduado de protocolo junto aos regentes, que também tinha posição na corte
imperial. Chamava-se Ogaki Takamoto, era um príncipe de sétimo grau, e sua função era agir como um dos intermediários entre
a corte de Sua Alteza Imperial, o Filho do Céu, e os regentes.
Seus dentes eram tingidos de preto, à maneira que todos os
cortesãos da corte imperial, por costume, haviam adotado há
séculos.
- Obrigado, Príncipe Ogaki. É um privilégio estar aqui em
nome do Senhor Toranaga - disse Yabu, enormemente impressionado com a honra que lhe estava sendo feita.
- Sim, estou certo de que é. Naturalmente o senhor está
em seu próprio nome também, neh? - disse Ogaki secamente.
- Naturalmente retrucou Yabu. - Quando chega o
995
Senhor Toranaga? Sinto muito, mas o tal-fun me atrasou cinco
dias e não recebo notícias desde que parti.
- Ah, sim, o tal-fun. Sim, o conselho ficou muito feliz ao
saber que a tempestade não o atingiu. - Ogaki tossiu. - Quanto
ao seu amo, lamento dizer-lhe que ainda nem chegou a Odawara.
Houve adiamentos intermináveis e algumas doenças. Lamentável, neh?
- Oh, sim, muito... nada sério, espero? perguntou Yabu
às pressas, imensamente contente por estar a par do segredo de
Toranaga.
- Não, afortunadamente -nada de sério. - Novamente a
tosse seca. - O Senhor Ishido tomou conhecimento de que o seu
amo chegará a Odawara amanhã.
Yabu ficou convenientemente surpreso. - Quando parti,
vinte e um dias atrás, estava tudo pronto para a sua partilla
imediata, então o Senhor Hiro-matsu adoeceu. Sei que o Senhor
Toranaga ficou gravemente preocupado, mas ansioso por dar início à sua viagem, assira como eu estou ansioso por começar os
preparativos para a sua chegada.
- Está tudo preparado - disse o homenzinho.
- Naturalmente o conselho não fará objeções se eu verificar
as providências, neh? - Yabu foi expansivo. - É essencial que
a cerimônia seja digna do conselho e da ocasião, neh?
- Digna de Sua Majestade Imperial, o Filho do Céu. A
convocação é dele agora.
- Naturalmente mas. . . - A sensação de bem-estar de
Yabu extinguiu-se. - O senhor que dizer... quer dizer que Sua
Alteza Imperial estará lá?
- O Exaltado concordou com a humilde solicitação dos
regentes de aceitar pessoalmente a obediência do novo conselho,
de todos os principais daimios, inclusive do Senhor Toranaga,
sua família e vassalos. Os conselheiros superiores de Sua Alteza
Imperial foram solicitados a escolher um dia auspicioso para
esse... esse ritual. O vigésimo segundo dia deste mês, neste
quinto ano da era Keicho.
Yabu ficou estupidificado. - Dentro de ... de dezenove
dias?
- Ao meio-dia. - Enfastiado, Ogaki tirou um lenço de
papel da manga e delicadamente assoou o nariz. - Por favor,
desculpe-me. Sim, ao meio-dia. Os presságios foram perfeitos. O
Senhor Toranaga foi informado por um mensageiro imperial há
catorze dias. Sua humilde e imediata aceitação chegou aos re996
gentes faz três dias. - Ogaki puxou um pequeno pergaminho.
- Aqui está o seu convite, Senhor Kasigi Yabu, para a cerimônia.
Yabu estremeceu ao ver o selo imperial com o crisântemo
de dezesseis pétalas, sabendo que ninguém, nem mesmo Toranaga,
poderia recusar tal convocação. Uma recusa seria insulto impensável à Divindade, uma rebelião declarada, e como toda a terra
pertencia ao imperador reinante, resultaria em perda imediata de
toda a terra, junto com o convite imperial para se cometer
seppuku no mesmo instante, emitido em seu nome pelos regentes,
também selado com o Grande Selo. Tal convite seria absoluto
e teria que ser obedecido.
Aflito, Yabu tentou recuperar a compostura.
- Desculpe, o senhor está indisposto? - perguntou Ogaki
solicitamente.
- Sinto muito - balbuciou Yabu , mas nunca, nem nos
meus sonhos mais desvairados... Ninguém poderia ter imaginado
que o Exaltado nos... nos honraria tanto, neh?
- Concordo, oh, sim. Extraordinário!
- Surpreendente... que Sua Alteza Imperial considere a...
possibilidade de sair de Kyoto e... e vir a Osaka.
- Concordo. Ainda assim, no vigésimo segundo dia, o Exaltado e a Insígnia imperial estarão aqui. - A Insígnia Imperial,
sem a qual nenhuma sucessão era válida, eram os Três Tesouros
Sagrados, considerados divinos, que todos acreditavam terem sido
trazidos à terra pelo deus Ninigi-no-Mikoto e passado por ele,
pessoalmente, ao seu neto, Jimmu Termo, o primeiro imperador
humano, e por este, pessoalmente, ao seu sucessor, até o detentor
atual, o Imperador Go-Nijo: a Espada Sagrada, a Jóia e o Espelho. A Espada Sagrada e a Jóia sempre viajavam formalmente
com o imperador, toda vez que ele tivesse que pernoitar fora do
palácio; o Espelho era conservado dentro do santuário interno no
grande relicário xintoísta de Ise. A Espada, o Espelho e a Jóia
pertenciam ao Filho do Céu. Eram símbolos divinos da autoridade legítima, da sua divindade, de que quando ele estava em
movimento, o trono divino movia-se com ele. E assim, de que
com ele ia todo o poder.
Com a voz áspera e baixa, Yabu disse: - É quase impossível acreditar que os preparativos para a chegada dele possam
ser feitos em tempo.
- Oh, o Senhor General Ishido, em nome dos regentes,
solicitou ao Exaltado no momento em que foi informado pelo
Senhor Zataki em Yokosé de que o Senhor Toranaga concor997
dara, de modo igualmente surpreendente, em vir a Osaka
curvar-se ao inevitável. Apenas a grande honra que o seu amo
concede aos regentes os prontificou a solicitar ao Filho do Céu
que agraciasse a ocasião com a Presença. - Novamente a tosse
seca. - Por favor, desculpe-me, o senhor me daria talvez a
sua aceitação formal por escrito, tão logo seja conveniente?
- Posso fazê-lo imediatamente? - perguntou Yabu, sentindo-se fraco.
- Estou certo de que os regentes apreciariam isso.
Debilmente Yabu mandou buscar material para escrever.
Dezenove martelava-lhe o cérebro. Dezenove dias! Toranaga pode
adiar apenas dezenove dias e então tem que estar aqui também.
Tempo suficiente para eu chegar a Nagasaki e voltar em segurança a Osaka, mas não o suficiente para desferir o ataque por
mar contra o Navio Negro e torná-lo, portanto tempo insuficiente
para pressionar Harima, Kiyama ou Onoshi, ou os padres cristãos, em conseqüência, tempo insuficiente para desencadear Céu
Carmesim, em conseqüência o esquema inteiro de Toranaga é
apenas outra ilusão ... oh, oh, oh!
Toranaga fracassou. Eu deveria ter sabido que ele fracassaria. A resposta ao meu dilema está clara: ou confio cegamente
em Toranaga para forçar passagem para fora desta rede e ajudo
o Anjin-san, conforme o planejado, a conseguir os homens e
tomar o Navio Negro ainda mais depressa, ou tenho que me
dirigir a Ishido e contar-lhe tudo o que sei e tentar negociar pela
minha vida e por Izu.
Qual?
Papel, pincel e tinta chegaram. Yabu pôs de lado a angústia
um momento e se concentrou em escrever de modo tão perfeito
e bonito quanto podia. Era impensável responder à Presença
com uma mente desordenada. Quando concluiu a aceitação, havia
tomado a decisão crítica: seguiria completamente o conselho de
Yuriko. Imediatamente o peso rolou de sobre a sua wa e ele se
sentiu grandemente purificado. Assinou com um floreio arrogante.
Como ser o melhor vassalo de Toranaga? Muita simples:
remova Ishido desta terra.
Como fazer isso e contar com tempo suficiente para escapar?
Então ouviu Ogaki dizer: - O senhor está convidado para
uma recepção formal, amanhã, oferecida pelo Senhor General
Ishido em honra do aniversário da Senhora Ochiba.
998
Ainda com trajes de viagem, Mariko abraçou Kiri primeiro,
depois a Senhora Sazuko, admirou o bebê, e abraçou Kiri de
novo. Criadas particulares se apressavam, alvoroçadas, ao redor
delas, trazendo chá e saquê, levando embora as bandejas, correndo
para dentro e para fora com almofadas e ervas aromáticas,
abrindo e fechando as shojis que davam para o jardim interno
naquela seção do Castelo de Osaka, abanando leques, tagarelando,
e também chorando.
Finalmente Kiri bateu palmas, dispensou as criadas, e dirigiu-se pesadamente para a sua almofada especial, dominada pela
excitação e felicidade. Estava muito corada. Rápidas, Mariko e a
Senhora Sazuko abanaram-na e serviram-na e só depois de três
xícaras grandes de saquê ela conseguiu recuperar o fôlego.
- Oh, assim está melhor - disse ela. - Sim, obrigada,
criança, sim, tomarei mais um pouco! Oh, Mariko-chan, você
está aqui de verdade?
- Sim, sim. De verdade, Kiri-san!
Sazuko, parecendo muito mais jovem do que os seus dezessete anos, disse: - Oh, estivemos tão preocupadas apenas com
rumores e ...
- Sim, nada além de rumores, Mariko-chan - interrompeu Kiri. - Oh, há tanta coisa que quero saber, sinto-me fraca.
- Pobre Kiri-san, tome, beba um pouco de saquê - disse
Sazuko solicitamente. - Talvez devesse afrouxar o obi e ...
- Estou perfeitamente bem agora! Por favor, não se incomode, criança. - Kiri galou e cruzou as mãos sobre o amplo
estômago. - Oh! Mariko-san, é tão bom ver um rosto amigo de
novo, vindo de fora do Castelo de Osaka.
- Sim - ecoou Sazuko, chegando mais perto de Mariko,
e disse num turbilhão: - Sempre que saímos pelo nosso portão,
cinzentos enxameiam à nossa volta como se fôssemos abelhas
rainhas. Não temos autorização de deixar o castelo, exceto com
permissão do conselho - nenhuma das senhoras, nem as do
Senhor Kiyama -, e o conselho quase nunca se reúne e eles só
falam por meias palavras, portanto nunca há permissão alguma,
e o médico ainda diz que não devo viajar por enquanto, mas
estou ótima e o bebê está ótimo e... Mas primeiro conte-nos .. .
Kiri interrompeu: - Antes diga-nos como vai nosso amo.
A garota riu, com a mesma vivacidade. - Eu ia perguntar
isso, Kiri-san!
Mariko respondeu conforme Toranaga ordenara: - Está
comprometido com a sua linha de ação, está confiante e con999
tente com a decisão que tomou. - Ela ensaiara muitas vezes
durante a viagem. Ainda assim, a força da tristeza que criou
quase a fez querer irromper com a verdade. - Sinto muito
-- disse.
- Oh! - Sazuko tentou não soar assustada.
Kiri se ajeitou, tomando uma posição mais confortável.
- Karma é karma, neh?
- Então... então não houve mudança... esperança alguma? - perguntou a garota.
Kiri deu-lhe tapinhas na mão. Acredite que karma é
karma, criança, e que o Senhor Toranaga é o maior e o mais
sábio homem vivo. Isso basta, o resto é ilusão. Mariko-chan, tem
mensagens para nós?
- Oh, desculpe. Sim, tome. - Mariko tirou os três pergaminhos da manga. - Dois para a senhora, Kiri-chan, um do
nosso amo e outro do Senhor Hiro-matsu. Este é para você,
Sazuko, do nosso senhor, mas ele me pediu que lhe dissesse que
está com saudades e quer ver o filho mais novo. Ele me fez
memorizar três coisas para lhe dizer. Ele sente muita saudade de
você e quer ver o filho mais novo. Ele sente muita saudade.. .
Lágrimas rolaram pelas faces da garota. Murmurou um pedido de desculpas e saiu correndo da sala, apertando o pergaminho nas mãos.
- Pobre criança. É muito duro para ela aqui. - Kiri não
rompeu os lacres dos seus pergaminhos. - Você sabe que Sua
Majestade Imperial estará presente?
- Sim. - Mariko foi igualmente grave. - Um mensageiro
do Senhor Toranaga me alcançou há uma semana. A mensagem
não dava detalhes além disso, e citava o dia em que ele chegará
aqui. Recebeu notícias dele?
- Diretamente não... nada de particular, já faz
Como está ele? Realmente?
- Confiante. - Ela tomou um gole de saquê. - Oh, posso
servi-la?
Obrigada.
Dezenove dias não é muito tempo, é, Kiri-chan?
É tempo suficiente para ir a Yedo e voltar se você se
apressar, tempo suficiente para viver uma vida, se você quiser,
mais que suficiente para realizar uma batalha ou perder um
império - tempo para um milhão de coisas, mas não o suficiente para comer todos os pratos raros e tomar todo o saquê ...
- Kiri sorriu levemente. - Eu certamente não vou fazer dieta
1000
nos próximos vinte dias. Estou... - Parou. - Oh, por favor,
desculpe-me... ouvir-me tagarelar e você ainda nem se trocou
ou tomou banho.
- Oh, por favor, não se preocupe. Não estou cansada.
- Mas deve estar. Vai ficar na sua casa?
- Sim. É lá que o passe do Senhor General Ishido me
permite ir. -- Mariko sorriu atravessado. - A acolhida dele
foi brilhante.
Kiri fez uma carranca. - Duvido de que ele fosse bemvindo mesmo no inferno.
- Oh? Sinto muito, o que foi agora?
-- Nada mais do que antes. Sei que ele ordenou que o
Senhor Sugiyama fosse torturado e assassinado, embora não tenha provas. Na semana passada uma das consortes do Senhor
Oda tentou safar-se com os filhos, disfarçada de varredora de
rua. As sentinelas atiraram neles "por engano".
- Que horror!
- Naturalmente, grandes "desculpas"! Ishido alega que a
segurança é tudo o que há de importante. Houve um atentado
forjado contra o herdeiro, é a desculpa dele.
- Por que as senhoras não partem abertamente?
- O conselho ordenou que esposas e famílias esperem pelos
maridos, que devem retornar para a cerimônia. O grande senhor
general sente "com grande gravidade a responsabilidade pela segurança delas para permitir-lhes vagar por aí". O castelo está
mais fechado do que uma ostra velha.
- Lá fora também, Kiri-san. Há muito mais barreiras na
Tokaido do que antes, e a segurança de Ishido está muito forte
dentro de cinqüenta ris. Patrulhas por toda parte.
- Todo mundo está com medo dele, menos nós e os nossos
poucos samurais, e não somos mais problema para ele do que
uma bolha no traseiro de um dragão.
- Até os nossos médicos?
- Eles também. Sim, ainda nos aconselham a não viajar,
mesmo que fosse permitido, coisa que não será nunca.
- A Senhora Sazuko está bem, o bebê está bem, Kiri-san?
- Sim, você pode ver por si mesma. E eu também estou.
- Kiri suspirou, o esforço mostrando-se agora, e Mariko notou
que havia mais cinza no cabelo dela agora do que antes. -
Nada mudou desde que escrevi para o Senhor Toranaga em
Anjiro. Somos reféns e continuaremos como reféns com todo o
resto até o Dia. Então haverá uma resolução.
1001
um mês.
- Agora que Sua Alteza Imperial vai chegar... isso torna
tudo conclusivo, neh?
- Sim. Parece que sim. Vá descansar, Mariko-chan, mas
coma conosco esta noite. Então poderemos conversar, neh? Oh,
a propósito, uma novidade para você. O seu famoso bárbaro
hatamoto - abençoado seja por ter salvado o nosso amo, ouvimos
falar sobre isso - atracou em segurança esta manhã com
Kasigi Yabu-san.
- Oh! Eu estava tão preocupada com eles. Partiram um
dia antes de mim, por mar. Fomos todos apanhados pelo tai-fun,
perto de Nagoya, mas para nós não foi muito sério. Eu estava
com medo que ao mar... Oh, isso é um alívio.. .
- Aqui não foi muito grave, exceto pelos incêndios. Milhares de casas arderam, mas não morreram mais de duas mil pessoas. Ouvimos dizer que a intensidade maior da tempestade
atingiu Kyushu, na costa leste, e parte de Shikoku. Dezenas de
milhares morreram. Ninguém sabe ainda a extensão total dos
danos.
- Mas a colheita? - perguntou Mariko rapidamente.
- Grande parte, aqui, foi destruída, campos atrás de campos. Os fazendeiros esperam que se recupere, mas quem sabe?
Se o Kwanto não for prejudicado durante a estação, o arroz de
lá pode ter que sustentar o império inteiro neste ano e no próximo.
- Seria muito melhor se o Senhor Toranaga controlasse
essa colheita e não Ishido. Neh?
- Sim. Mas, sinto muito, dezenove dias não é tempo suficiente para tomar posse de uma colheita, nem com todas as preces
do mundo.
Mariko terminou o seu saque. - Sim..
- Se o navio deles partiu um dia antes de você - disse
Kiri -, você deve ter se apressado.
- Achei melhor não perder tempo, Kiri-chan. Para mim
não é prazer viajar.
- E Buntaro-san? Está bem?
- Sim. Está encarregado de Mishima e da fronteira toda
no momento. Vi-o brevemente no caminho para cá. A senhora
sabe onde Kasigi Yabu-sama está alojado? Tenho uma mensagem
para ele.
- Numa das casas de hóspedes. Descobrirei em qual e lhe
mandarei um recado imediatamente. - Kiri aceitou mais vinho.
- Obrigada, Mariko-chan. Ouvi dizer que o Anjin-san continua
na galera.
1002
- Ele é um homem muito interessante, Kiri-san. Tornou-se
muito útil para o nosso amo.
- Ouvi dizer. Quero que você me conte tudo sobre ele,
o terremoto e todas as novidades. Oh, sim, haverá uma recepção
formal amanhã pelo aniversário da Senhora Ochiba, oferecida
pelo Senhor Ishido. Naturalmente você será convidada. Fui informada de que o Anjin-san também vai ser convidado. A Senhora
Ochiba quer ver como ele é. Você se lembra de que o herdeiro
o encontrou uma vez. Não foi a primeira vez que você o viu
também?
- Sim. Pobre homem, então tem que ser exibido, como uma
baleia cativa?
- Sim - disse Kiri, e acrescentou placidamente: - Como
todas nós. Somos todas cativas, Mariko-chan, gostemos disso
ou não.
Uraga desceu furtivamente a viela, às pressas, na direção da
praia, a noite escura, o céu claro e estrelado, o ar agradável.
Estava vestido com o hábito laranja de sacerdote budista, seu
inestimável chapéu, e sandálias baratas de palha. Atrás dele estavam os depósitos e a massa alta, quase européia, da missão
jesuítica. Dobrou uma esquina e apertou o passo. Havia poucas
pessoas nas proximidades. Uma companhia de cinzentos carregando archotes patrulhava a praia. Ele diminuiu a marcha ao
passar cortesmente por eles, embora com a arrogância de um
sacerdote. Os samurais mal o notaram.
Seguiu, certeiro, pela praia, passou por botes de pesca embicados na areia, os odores do mar e da praia densos na brisa
ligeira. A maré estava baixa. Dispersos pela baía e pelos bancos
de areia estavam pescadores noturnos, parecendo muitos vagalumes, caçando com lanças à luz de archotes. Duzentos passos
à frente ficavam os atracadouros e molhes, com muita craca
incrustada. Atracada a um deles estavam uma lorcha jesuítica,
as bandeiras de Portugal e da Companhia de Jesus esvoaçando,
archotes e mais cinzentos perto da enseada de embarque. Ele
mudou de direção para se esquivar ao navio, voltando alguns
quarteirões para dentro da cidade, depois tomou a Rua Dezenove,
virou por ruelas sinuosas, e saiu mais uma vez na rua que acompanhava os ancoradouros.
- Você! Alto!
A ordem veio da escuridão. Uraga parou, em pânico repen1003
tino. Cinzentos avançaram para a claridade e o cercaram.
Aonde vai, sacerdote?
- Ao leste da cidade - disse Uraga vacilante, a boca seca.
- Ao nosso santuário nicheren.
- Ah, é nicheren, neh?
Outro samurai disse asperamente: - Eu não sou desses.
Sou zen-budista, como o senhor general.
- Zen... ah, sim, zen é o melhor - disse outro. - Gostaria de poder entender isso. É difícil demais para minha velha
cabeça.
- Ele está suando um bocado para um sacerdote, não
está? Por que está suando?
- Está querendo dizer que sacerdotes não transpiram?
Alguns riram e alguém aproximou mais um archote.
-- Por que deveriam suar? - disse o homem, áspero. -
Tudo o que fazem é dormir o dia todo e "travesseirar" a noite
toda - monjas, meninos, cães, eles mesmos, qualquer coisa que
arranjem -, e o tempo todo se empanturrar com alimento pelo
qual não trabalharam. Sacerdotes são parasitas, como pulgas.
- Ei, deixe-o em paz, é apenas...
- Tire o chapéu, sacerdote.
Uraga empertigou-se. - Por quê? E por que insultar um
homem que serve a Buda? Buda não lhe está fazendo...
O samurai avançou, ameaçador. - Eu disse: tire o chapéu!
Uraga obedeceu. Sua cabeça fora recentemente raspada como
a de um sacerdote, e ele bendisse o karni, ou espírito ou dom
de Buda que fosse, que o induzira a tomar essa precaução a mais,
no caso de ser apanhado infringindo o toque de recolher. Todos
os samurais do Anjin-san tinham sido confinados na embarcação
pelas autoridades do porto, à espera de instruções superiores. -
Não há motivo para ter essas péssimas maneiras - enfureceu-se
ele com uma inconsciente autoridade de jesuíta. - Servir a Buda
é uma vida honrosa, e tornar-se sacerdote é honroso e deveria
ser a parte final da velhice de todo samurai. Ou você não sabe
nada sobre o bushido? Onde estão as suas boas maneiras?
- O quê? Você é samurai?
- Claro que sou samurai. De que outro modo ousaria
falar a um samurai sobre más maneiras? - Uraga colocou o
chapéu. - Seria melhor que você estivesse patrulhando do que
abordando e insultando sacerdotes inocentes! - Afastou-se com
arrogância, os joelhos moles.
1004
Os samurais o observaram algum tempo, depois um cuspiu.
- Sacerdotes!
--- Ele tinha razão - disse com acrimônia o samurai mais
velho. - Onde estão as suas maneiras?
- Sinto muito. Por favor, desculpe-me.
Uraga seguiu pela estrada, muito orgulhoso de si mesmo.
Mais perto da galera, acautelou-se de novo e esperou um instante
ao abrigo de uma construção. Depois, tomando ânimo, encaminhou-se para a área iluminada por archotes.
- Boa noite - disse polidamente aos cinzentos, à toa ao
lado da prancha de embarque, e acrescentou a bênção religiosa:
- Namu Amida Butsu. Em nome do Buda Amida.
-- Obrigado. Namu Amida Butsu. - Os cinzentos o deixaram
passar sem embaraços. Suas ordens eram que o bárbaro e todos
os samurais estavam proibidos de desembarcar, exceto Yabu e
sua guarda de honra. Ninguém dissera nada sobre o sacerdote
budista que viajava no navio.
Muito cansado agora, Uraga subiu ao convés principal.
- Uraga-san - chamou baixinho Blackthorne, do tombadilho. -- Aqui em cima.
Uraga semicerrou os olhos para se adaptar à escuridão. Viu
Blackthorne e sentiu o antigo e forte cheiro de corpo e teve
certeza de que a segunda sombra ali era o outro bárbaro, de
nome impronunciável, que também sabia falar português. Ele
quase se esquecera de como era estar longe do odor bárbaro,
que era parte da sua vida. O Anjin-san era o único que ele
conhecera que não tresandava, o que era uma razão pela qual
podia servi-lo.
- Ah, Anjin-san - sussurrou, e aproximou-se saudando
rapidamente os dez guardas que estavam dispersos em torno do
convés.
Esperou ao pé da escada até que Blackthorne lhe fizesse
sinal para subir ao tombadilho. - Foi muito ...
-- Espere - advertiu Blackthorne igualmente baixo, e apontou. - Olhe na praia. Ali, perto do depósito. Está vendo? Não,
um pouco ao norte... ali, vê agora? -- Uma sombra moveu-se
rapidamente, depois mergulhou na escuridão de novo.
- Quem era?
- Eu estive observando você desde que apareceu na estrada. Ele o vinha seguindo. Nunca o viu?
- Não senhor - respondeu Uraga, sentindo de novo o
pressentimento. - Não vi ninguém, não senti ninguém.
1005
- Ele não tinha espadas, portanto não era samurai. Um
jesuíta?
-- Não sei. Acho que não. Fui muito cuidadoso lá. Por
favor, desculpe-me por não tê-lo visto.
- Não tem importância. - Blackthorne olhou para Vinck.
- Desça agora, Johann. Terminarei este turno e o acordarei ao
amanhecer. Obrigado por esperar.
Vinck tocou o topete c desceu. O cheiro pegajoso partiu
com ele. - Eu estava ficando preocupado com você - disse
Blackthorne. -- O que aconteceu?
- O mensageiro de Yabu-sama foi lento, Anjin-san. Eis
o meu relatório: fui com Yabu-sama e esperei do lado de fora
do castelo do meio-dia até pouco depois de escurecer, quando ...
- O que ficou fazendo esse tempo todo? Exatamente?
- Exatamente, senhor? Escolhi um lugar tranqüilo perto
do mercado, dando para a Primeira Ponte, e coloquei a mente
em meditação - a prática jesuítica, Anjin-san, mas não sobre
Deus, só sobre o senhor e Yabu-sama e o seu futuro, senhor. -
Uraga sorriu. - Muitos passantes puseram moedas na minha
tigela de pedinte. Deixei meu corpo descansar e a mente vagar,
embora vigiasse a Primeira Ponte o tempo todo. O mensageiro
de Yabu-sama veio após o escurecer e fingiu rezar comigo até
ficarmos completamente sozinhos. Ele sussurrou isto: "Yabusama diz que ficará no castelo esta noite e que retornará amanhã
de manhã. Haverá uma função oficial no castelo amanhã à noite,
oferecida pelo General Ishido, para a qual o senhor será convidado. Finalmente o senhor deve considerar `setenta' ". - Uraga
o examinou, atento. - O samurai repetiu isso duas vezes, de modo
que presumo que seja um código particular, senhor.
Blackthorne assentiu mas não esclareceu que aquele era um
dos muitos sinais pré-combinados entre ele e Yabu. "Setenta"
significava que ele devia providenciar que o navio estivesse preparado para uma retirada imediata. Mas com todos os seus samurais, marujos e remadores confinados a bordo, o navio estava
pronto. E como todos estavam muito conscientes de que se encontravam em águas inimigas e todos muito perturbados, Blackthorne sabia que não exigiria esforço pôr o navio ao largo.
- Continue, Uraga-san.
- Isso foi tudo, exceto que eu devia lhe dizer que Toda
Mariko-san chegou hoje.
- Ah! Ela... Não foi muito rápida essa viagem por terra
de Yedo até aqui?
1006
- Sim, senhor. Na realidade, enquanto esperava, vi o destacamento dela cruzar a ponte. Foi durante a tarde, na metade
da hora do Bode. Os cavalos estavam cobertos de suor e lama,
e os carregadores muito cansados. Yoshinaka-san os comandava.
- Algum deles viu você?
- Não, senhor. Acho que não.
- Quantos eles eram?
- Cerca de duzentos samurais, com carregadores e cavalos
de bagagem. A escolta de cinzentos tinha duas vezes esse número.
Uni dos cavalos de bagagem tinha cestos de pombos-correio.
- Bom. E depois?
- Assim que pude, parti. Há uma casa de talharim perto
da missão, que muitos mercadores freqüentam, corretores de
seda e arroz, gente da missão. Eu... eu estive lá, comi e ouvi.
O padre-inspetor está de novo exercendo aqui. Muitos convertidos mais na área de Osaka. Foi concedida permissão para uma
missa enorme dentro de vinte dias, em honra dos senhores
Kiyama e Onoshi.
- Isso é importante?
- Sim, e surpreendente que um serviço assim seja permitido abertamente. É para celebrar a festa de São Bernardo. Vinte
dias é o dia, após a cerimônia de obediência diante do Exaltado.
Yabu contara a Blackthorne sobre o imperador por intermédio de Uraga. A notícia correra pelo navio inteiro, aumentando
a premonição de catástrofe de todo mundo.
- O que mais?
- No mercado ouvi muitos rumores. Muitos de mau agouro. Yodoko-sama, a viúva do táicum, está muito doente. Isso é
grave, Anjin-san, porque o conselho dela é sempre ouvido e
sempre razoável. Alguns dizem que o Senhor Toranaga já está
perto de Nagoya, outros dizem que ainda não atingiu Odawara,
por isso ninguém sabe no que acreditar. Todos concordam em
que a colheita será terrível este ano, aqui em Osaka, o que
significa que o Kwanto se torna muitíssimo mais importante.
A maioria das pessoas acha que a guerra civil começará assim
que o Senhor Toranaga estiver morto, quando os grandes daimios
começarão a combater entre si. O preço do ouro está muito alto
e os índices de juros subiram a setenta por cento.. .
- Isso é impossivelmente alto, você deve estar enganado.
Blackthorne se levantou, descontraiu as costas, depois se
debruçou cautelosamente à amurada. Polidamente Uraga e todos
1007
os samurais também se levantaram. Teria sido falta de boas
maneiras que eles continuassem sentados com e amo em pé.
- Por favor, desculpe-me, Anjin-san - disse Uraga -,
nunca é menos do que cinqüenta por cento, e geralmente de
sessenta e cinco a setenta, até oitenta. Há quase vinte anos, o
padre-inspetor solicitou a Sua Sant... solicitou ao papa que
nos permitisse... que permitisse à Sociedade emprestar a dez
por cento. Ele tinha razão ao afirmar que a sugestão - foi aprovada, Anjin-san - traria resplendor e muitos convertidos ao
cristianismo, pois, naturalmente, apenas os cristãos podiam conseguir empréstimos, sempre modestos. Não se pagam taxas assim
no seu país?
- Raramente. Isso é usura! Compreende "usura"?
- Compreendo a palavra, sim. Mas usura não começaria
para nós abaixo de cem por cento. Eu também ia lhe dizer que
o arroz está muito caro e que é um mau presságio - está o
dobro do que estava quando estive aqui há poucas semanas. A
terra está barata. Agora seria uma boa ocasião para comprar terra
aqui. Ou uma casa. Com o tai-f un e os incêndios, talvez dez mil
casas se tenham perdido e duas, três mil pessoas morrido. Isso é
tudo, Anjin-san.
- Isso é muito bom. Você agiu muito bem. Errou de
vocação!
- Senhor?
- Nada - disse Blackthorne, ainda sem saber até que ponto
podia arreliar Uraga. - Você fez muito bem.
- Obrigado, senhor.
Blackthorne pensou um instante, depois perguntou sobre a
comemoração do dia seguinte e Uraga aconselhou-o da melhor
maneira que pôde. Finalmente Uraga lhe contou como escapara
da patrulha.
- O seu cabelo o teria traído? - perguntou Blackthorne.
- Oh, sim. Seria o suficiente para que eles me levassem
consigo. - Uraga enxugou o suor da testa. - Sinto muito,
está quente, neh?
- Muito - concordou Blackthorne polidamente, e deixou
a mente classificar as informações. Olhou para o mar, inconscientemente examinando o céu, o mar e o vento. Estava tudo
ótimo e em ordem, os barcos de pesca complacentemente à deriva com a maré, por perto e afastados, um lanceiro na proa de
cada um, sob uma lanterna, espetando de tempos em tempos, e
1008
quase sempre trazendo na volta uma bela brema-do-mar, um
mugem ou um vermelho que se contorciam e agitavam na lança.
- Uma última coisa, senhor. Fui à missão... perto da
missão. Os guardas estavam muito alerta e eu nunca conseguiria
entrar... pelo menos, acho que não, a não ser que passasse ao
lado de um deles. Espiei algum tempo, mas antes de vir embora
vi entrar Chimmoko, a criada da Senhora Toda.
- Tem certeza?
- Sim. Havia outra criada com ela. Acho ...
- A Senhora Mariko? Disfarçada?
- Não, senhor. Tenho certeza de que não era... essa segunda criada era alta demais.
Blackthorne olhou o mar novamente e murmurou, meio consigo mesmo: - Qual é o significado disso?
- A Senhora Mariko é crist... é católica, neh? Conhece
muito bem o padre-inspetor. Foi ele quem a converteu. A Senhora Mariko é a dama mais importante, mais famosa do reino,
depois das três mais altas: a Senhora Ochiba, a Senhora Genjiko
e Yodoko-sarna, a esposa do táicum.
- Mariko-san poderia querer se confessar? Ou uma missa?
Ou uma consulta? Ela mandou Chimmoko para arranjar isso?
- Qualquer uma dessas coisas, Anjin-san, ou todas elas.
Todas as damas dos daimios, tanto dos amigos do senhor general quanto as dos que poderiam se opor a ele, estão confinadas
no castelo, neh? Uma vez lá dentro, ficam lá, como peixes num
aquário dourado, esperando para serem pescados.
- Basta! Chega de conversa agourenta.
- Sinto muito. Ainda assim, Anjin-san, acho que agora a
Senhora Toda não sairá mais. Até o décimo nono dia.
- Eu lhe disse que basta! Tomei conhecimento dos reféns
e de que há um último dia. - Estava silencioso no convés,
todas as vozes abafadas. A guarda descansava tranqüila, esperando pelo turno. A água batia molemente no casco e as cordas
rangiam agradavelmente.
Após um momento, Uraga disse: - Talvez Chimmoko
tenha levado um convite ... uma solicitação para que o padreinspetor vá vê-Ia. Ela estava realmente sob guarda quando cruzou
a Primeira Ponte. Certamente Toda Mariko-noh-Buntaro-nohJinsai esteve sob guarda desde o primeiro momento em que atravessou as fronteiras do Senhor Toranaga. Neh?
- Podemos saber se o padre-inspetor vai ao castelo?
- Sim. Isso é fácil.
1009
- Como saber o que é dito ... ou feito?
- Isso é muito difícil. Sinto muito, mas eles falariam português ou latim, neh? E quem fala essas duas línguas além de
mim e do senhor? Eu seria reconhecido por ambos. - Uraga
apontou para o castelo e a cidade. - Há muitos cristãos lá.
Qualquer um obteria grande favor eliminando o senhor, ou a
mim... neh?
Blackthorne não respondeu. Não era necessário resposta.
Estava vendo o torreão delineado contra as estrelas e lembrou-se
de Uraga falando-lhe do lendário e ilimitado tesouro que o torreão
protegia, o saque-arrecadação do império, do táicum. Mas agora
sua mente estava no que Toranaga poderia estar fazendo, pensando ou planejando, e -exatamente onde Mariko estava e qual
era a finalidade de ir a Nagasaki. - Então o senhor está dizendo
que o décimo nono dia é o último, um dia de morte, Yabu-san?
- repetira ele, quase nauseado com a informação de que a armadilha estava lançada sobre Toranaga. E portanto sobre ele
e o Erasmus.
- Shigata ga nai! Vamos rapidamente a Nagasaki e voltamos. Depressa, compreende? Apenas quatro dias para conseguir
homens. Depois voltamos.
- Mas por quê? Toranaga aqui, todos morrem, neh? -
dissera ele. Mas Yabu desembarcara, dizendo-lhe que partiriam
dois dias depois. Agitado, ele o observara afastando-se, desejando ter trazido o Erasmus e não a galera. Se tivesse o Eras mus,
sabia que de algum modo teria desviado de Osaka e rumado direto
para Nagasaki, ou ainda mais provavelmente, teria investido para
o horizonte a fim de encontrar alguma enseada de boa conformação e teria tirado tempo da eternidade para treinar seus vassalos a lidar com o navio.
Você é um imbecil, repreendeu-se ele. Com os poucos tripulantes que tem, você não teria conseguido atracá-lo aqui, quanto
mais encontrar essa enseada para esperar passar a tempestade do
demônio. Você já estaria morto.
- Não se preocupe, senhor. Karma - estava dizendo
Uraga.
- Sim. Karma. - Então Blackthorne ouviu perigo vindo
do mar, seu corpo se moveu antes que a mente o ordenasse, e
ele estava girando quando a seta passou zunindo, errando-o por
uma distância mínima para ir se fincar no tabique. Saltou para
Uraga para fazê-lo se abaixar quando outra seta da mesma
1010
saraivada sibilou na direção de Uraga, cravando-se na sua garganta. Os dois se encolheram em segurança sobre o convés,
Uraga guinchando e samurais gritando e perscrutando o mar por
sobre a amurada. Cinzentos da guarda na praia subiram a bordo.
Outra saraivada veio da noite, do mar, e todos se dispersaram
para se proteger. Blackthorne rastejou até a amurada, espreitou
através de um embornal e viu um barco de pesca próximo apagando o seu archote para sumir na escuridão. Todos os botes
estavam fazendo o mesmo, e numa fração de segundo ele viu
remadores. puxando freneticamente, a luz cintilando nas suas espadas e arcos.
O uivo de dor de Uraga transformou-se numa agonia balbuciante, enquanto os cinzentos se precipitavam para o tombadilho,
arcos preparados, o navio todo em tumulto agora. Vinck subiu
depressa ao convés, pistola pronta, correndo em ziguezague.
- Cristo, o que está acontecendo, o senhor está bem, piloto?
- Sim. Cuidado, eles estão em barcos de pesca! - Blackthorne escorregou para junto de Uraga, que estava segurando
a flecha, sangue vazando-lhe pelo nariz, boca e ouvidos.
- Jesus - arquejou Vinck.
Blackthorne agarrou a farpa da seta com a mão, colocou
a outra sobre a carne quente e pulsante, e puxou com toda a
força. A seta saiu habilmente, mas no seu rastro o sangue esguichou num jorro pulsante. Uraga começou a sufocar.
Agora cinzentos e samurais de Blackthorne os rodeavam.
Alguns haviam trazido escudos e protegiam Blackthorne, descuidados da própria segurança. Outros tremiam, embora o perigo
tivesse passado. Outros soltavam imprecações contra a noite,
disparando na noite, ordenando que os desaparecidos barcos do
pesca voltassem.
Blackthorne segurou Uraga nos braços, impotente, sabendo
que havia alguma coisa que ele devia fazer, mas não sabendo
o quê, sabendo que nada podia ser feito, o nauseante cheiro
adocicado da morte obstruindo-lhe as narinas, o cérebro berrando
como sempre "Jesus Cristo, graças a Deus não é o meu sangue,
não o meu, graças a Deus".
Viu os olhos de Uraga implorando, a boca movendo-se em
emitir som algum, o peito arfando, depois viu seus próprios dedos
moverem-se por si mesmos e fazerem o sinal-da-cruz diante dos
olhos, sentiu o corpo de Uraga estremecendo, palpitando, a boca
gritando sem som, fazendo-o lembrar-se dos peixes fisgados.
Uraga levou um tempo atroz para morrer.
1011
CAPITULO 53
Agora Blackthorne estava entrando no castelo com a sua
guarda de honra de vinte vassalos rodeada por uma escolta de
cinzentos com dez vezes esse número. Usava orgulhosamente um
uniforme novo, um quimono marrom com os cinco emblemas
de Toranaga e, pela primeira vez, um manto formal, com asas
imensas. Seu cabelo dourado e ondulado estava amarrado num
rabo esmerado. As espadas que Toranaga lhe dera sobressaíam
do sash corretamente. Os pés calçavam tabis novos e sandálias
com correias.
Havia cinzentos em abundância a cada intersecção, protegendo cada muralha, numa vasta demonstração da força de
Ishido, pois cada daimio, cada general e cada oficial samurai de
importância em Osaka fora convidado aquela noite ao Grande
Saguão que o táicum construíra dentro do anel interno de fortificações. O sol estava baixo e a noite se aproximava rapidamente.
É um azar terrível perder Uraga, estava pensando Blackthorne, ainda sem saber se o ataque fora contra Uraga ou contra
ele mesmo. Perdi a melhor fonte de conhecimento que poderia
ter tido.
- Ao meio-dia o senhor vai ao castelo, Anjin-san - dissera
Yabu aquela manhã, quando retornara à galera. - Os cinzentos
vêm buscá-lo. Compreende?
- Sim, Yabu-sarna.
- Completamente seguro agora. Sinto muito pelo ataque.
Shigata ga nai! Os cinzentos o levam a lugar seguro. Esta noite
o senhor fica no castelo. Na parte do castelo que é de Toranaga.
Amanhã vamos a Nagasaki.
- Temos permissão? - perguntara ele.
Yabu sacudira a cabeça, exasperado. - Fingimos ir a Mishima buscar o Senhor Hiro-matsu. Também o Senhor Sudara e
família. Compreende?
- Sim.
- Bom. Durma agora, Anjin-san. Não se preocupe com o
ataque. Agora todos os botes receberam ordem de se manter
longe daqui. Aqui, agora, é kinjiru.
- Compreendo. Por favor, desculpe-me, o que acontece
esta noite? Por que eu no castelo?
Yabu dera o seu sorriso retorcido e lhe dissera que ele seria
exibido, que Ishido estava curioso por vê-lo de novo. - Como
1012
hóspede o senhor estará seguro - e deixara a galera de
novo.
Blackthorne descera, deixando Vinck de guarda, mas, no
momento em que se encontrou profundamente adormecido, sentiu Vinck a sacudi-lo e correu para o convés de novo.
Uma pequena fragata portuguesa, de vinte canhões, vinha
entrando na enseada, o freio entre os dentes, adernando sob a
pressão do velame todo desfraldado.
- O bastardo está com pressa - disse Vinck, estremecendo.
- Tem que ser Rodrigues. Mais ninguém poderia entrar
na enseada a toda vela assim.
- Se eu fosse o senhor, piloto, daria o fora daqui com a
maré ou sem a maré. Jesus Cristo, estamos como mariposas numa
garrafa de grogue. Vamos embora.. .
- Vamos ficar! Não consegue enfiar isso na cabeça? Ficamos até sermos autorizados a partir. Ficamos até que Ishido diga
que podemos ir, mesmo que o papa e o rei da Espanha desembarquem aqui junto com a maldita Armada inteira!
Descera novamente, mas perdera o sono. Ao meio-dia, os
cinzentos chegaram. Pesadamente escoltado, foi com eles para
o castelo. Insinuaram-se através da cidade, passando pelo pátio
de execução, as cinco cruzes ainda lá, vultos ainda sendo amarrados e trazidos para baixo, cada cruz com os seus dois lanceiros,
a multidão assistindo. Ele revivera aquela agonia e o terror da
emboscada, e a sensação da mão sobre o punho da espada, o
quimono sobre a pele, seus próprios vassalos com ele não lhe
diminuíram o temor.
Os cinzentos o conduziram à parte de Toranaga no castelo,
que ele visitara na primeira vez, onde Kiritsubo, a Senhora Sazuko
e o filho dela ainda estavam abrigados, junto com o remanescente
dos samurais de Toranaga. Ali ele tomara um banho e encontrara as roupas novas que haviam sido estendidas para ele.
- A Senhora Mariko está aqui?
- Não, senhor, sinto muito - dissera-lhe a criada.
- Então onde posso encontrá-la, por favor? Tenho uma
mensagem urgente.
- Sinto muito, Anjin-san, não sei. Por favor, desculpe-me.
Nenhum dos criados o ajudou. Todos diziam: "Sinto muito,
não sei".
Ele se vestira, depois recorrera ao seu dicionário, para recorpalavras-chave de que precisaria, e preparara-se da melhor
1013
dar
maneira que pudera. Em seguida dirigira-se para o jardim, para
observar as rochas crescendo. Mas elas não cresciam nunca.
Agora estava atravessando o fosso interno. Havia archotes
por toda parte.
Pôs de lado a ansiedade e avançou pela ponte de madeira.
Havia outros convidados acompanhados de cinzentos a toda
volta, encaminhando-se na mesma direção. Ele podia senti-los a
observá-lo dissimuladamente.
Seus pés levaram-no por sob o último rastrilho e os seus
cinzentos o conduziram através do labirinto novamente até a
grande porta. Ali o deixaram. Assim como seus próprios homens.
Foram para um lado com outros samurais, para esperá-lo. Ele
avançou para a entrada iluminada de archotes.
Era uma sala imensa, de vigas altas e um teto dourado ornamentado. Colunas apaineladas de ouro sustentavam as vigas, que
eram feitas de madeira rara, polida e tratada, assim como os
reposteiros nas paredes. Quinhentos samurais e suas damas encontravam-se lá, usando todas as cores do arco-íris, seus perfumes
misturando-se com a fragrância de incenso que vinha das madeiras preciosas queimando em minúsculos braseiros de parede. Os
olhos de Blackthorne percorreram a multidão para encontrar
Mariko, ou Yabu, ou qualquer rosto amistoso. Mas não encontraram ninguém. A um lado estava uma fila de convidados que
esperavam para se curvar diante da plataforma elevada na extremidade oposta. O cortesão, Príncipe Ogaki Takamoto, estava em
pé ali. Blackthorne reconheceu Ishido - alto, magro e autocrático -, também ao lado da plataforma, e lembrou-se vividamente
da força ofuscante do golpe do homem no seu rosto, e depois
dos seus próprios dedos agarrados ao pescoço do homem.
Sobre a plataforma, sozinha, estava a Senhora Ochiba, confortavelmente sentada sobre uma almofada. Mesmo daquela distância, ele podia ver a rara riqueza do seu quimono, fios de ouro
sobre uma seda do azul-negro mais raro. "A Mais Alta", chamara-a Uraga com admiração, contando-lhe muita coisa sobre ela
e sua história durante a viagem.
Era delgada, quase infantil de compleição, com um brilho
luminoso na pele magnífica. Seus olhos negros eram grandes
sob as sobrancelhas arqueadas, pintadas, o cabelo penteado como
um elmo alado.
A procissão de convidados arrastou-se para a frente. Blackthorne erguia-se a um lado, num ponto inundado de luz, uma
cabeça mais alto do que os que lhe estavam próximos. Polida1014
mente deu um passo para o lado, para sair do caminho de alguns
convidados passando, e viu os olhos de Ochiba voltarem-se para
ele. Ishido também o estava olhando. Disseram alguma coisa entre
si e o leque dela moveu-se. Os olhos dos dois voltaram a pousar
sobre ele. Constrangido ele se dirigiu para uma parede, a fim
de se tornar menos proeminente, mas um cinzento barrou-lhe
o caminho. - Dozo - disse polidamente esse samurai, apontando para a fila.
- Hai, domo - disse Blackthorne, e lá se postou.
Os que estavam à frente se curvaram, e outros que vinham
atrás dele também. Ele retribuiu as mesuras. Logo toda conversa
se extinguiu. Todos o olhavam.
Embaraçados, homens e mulheres à sua frente na fila saíramlhe do caminho. Num instante não havia ninguém entre ele e a
plataforma. Momentaneamente ele se enrijeceu. Depois, sob silêncio completo, avançou.
Diante da plataforma, ajoelhou-se e curvou-se formalmente,
uma vez para ela, uma vez para Ishido, como vira outros fazerem. Levantou-se, petrificado com a possibilidade de suas espadas
caírem ou de ele escorregar e estar desgraçado, mas tudo correu
de modo satisfatório e ele começou a recuar.
- Por favor, espere, Anjin-san - disse ela.
Ele esperou. Sua luminosidade parecia ter aumentado, assim
como sua feminilidade. Ele sentiu a extraordinária sensualidade
que a rodeava, sena esforço consciente da parte dela.
- Diz-se que o senhor fala a nossa língua? - A voz dela
era inexplicavelmente pessoal.
- Por favor, desculpe-me, Alteza - começou Blackthorne,
usando sua já antiga frase de reserva, vacilando ligeiramente
devido ao nervosismo. - Sinto muito, mas tenho que usar palavras curtas e respeitosamente peço-lhe que use palavras muito
simples, de modo que eu possa ter a honra de compreendê-1a.
- Sabia que, sem dúvida alguma, sua vida podia facilmente depender das suas respostas. Toda a atenção na sala estava voltada
para eles agora. Então notou Yabu movendo-se cuidadosamente
através da massa, aproximando-se mais. - Possa eu respeitosamente cumprimentá-la pelo seu aniversário e orar para que a
senhora viva para gozar de mais mil.
- Dificilmente. se poderia dizer que essas palavras sejam
simples, Anjin-san - disse a Senhora Ochiba, muito impressionada.
1015
- Por favor, desculpe-me, Alteza. Aprendi a noite passada.
O modo correto de dizer, neh?
- Quem lhe ensinou isso?
- Uraga-noh-Tadamasa, meu vassalo.
Ela franziu o cenho, depois olhou para Ishido, que se inclinou para a frente e falou, rapidamente demais para que Blackthorne pudesse compreender alguma coisa além da palavra "setas".
- Ah, o padre cristão renegado que foi morto a noite
passada no seu navio?
- Alteza?
- O homem ... o samurai que foi morto, neh? A noite
passada no navio. Compreende?
- Ah, desculpe. Sim, ele. - Blackthorne olhou para Ishido,
depois para ela de novo. - Por favor, desculpe-me, Alteza, sua
permissão para saudar o senhor general?
- Sim, o senhor tem permissão.
- Boa noite, senhor general - disse Blackthorne com polidez estudada. - A última vez encontramos, eu muito terrível
louco. Sinto muito.
Ishido correspondeu à mesura superficialmente. - Sim, estava. E muito descortês. Espero que o senhor não enlouqueça
esta noite ou em qualquer outra noite.
- Muito louco aquela noite, por favor, desculpe-me.
- Essa loucura é habitual entre bárbaros, neh?
Tal grosseria pública com um convidado era muito séria. Os
olhos de Blackthorne relampejaram para a Senhora Ochiba um
instante e notaram surpresa nela também. Então arriscou.
- Ah, senhor general, tem toda a razão. Bárbaros sempre a
mesma loucura. Mas, sinto muito, agora sou samurai - hatamoto - isso grande, muita honra para mim. Não sou mais
bárbaro. - Ele usou a sua voz de tombadilho, potente mas não
gritada, e encheu os quatro cantos da sala. - Agora compreendo
maneiras de samurai, e um pouco de bushido. E wa. Não sou
mais bárbaro, por favor, desculpe-me. Neh? - Pronunciou a
última palavra como um desafio, sem medo. Sabia que os japoneses compreendiam a masculinidade e o orgulho e respeitavam-nos.
Ishido riu. - Ora, samurai Anjin-san - disse, jovial agora.
- Sim, aceito o seu pedido de desculpas. Os boatos sobre a sua
coragem são verdadeiros. Bom, muito bom. Também devo me
desculpar. Terrível que ronins imundos pudessem fazer uma coisa
assim, compreende? Atacar de noite?
1016
- Sim, compreendo, senhor. Muito ruim. Quatro homens
mortos. Um dos meus, três cinzentos.
- Ouça, ruim, muito ruim. Não se preocupe, Anjin-san.
Não mais. - Ishido correu os olhos pela sala atentamente. Todo
mundo o compreendeu com muita clareza. - Agora ordenei
guardas. Compreende? Guardas muito cuidadosos. Não mais ataques assassinos. Nenhum. O senhor está muito cuidadosamente
guardado agora. Completamente seguro no castelo.
- Obrigado. Desculpe o incômodo.
- Não há incômodo. O senhor importante, neh? O senhor
samurai. O senhor tem um lugar especial de samurai com o
Senhor Toranaga. Não esqueço. Não receie.
Blackthorne agradeceu a Ishido novamente e voltou-se para
a Senhora Ochiba. - Alteza, no meu país nós tem rainha ...
nós temos uma rainha. Por favor, desculpe o meu japonês ...
Sim, meu país governado por uma rainha. Na minha terra temos
o costume sempre dar a uma senhora um presente de aniversário.
Mesmo uma rainha. - Do bolso da manga tirou um botão de
camélia cor-de-rosa que cortara de uma árvore no jardim. Pousou-o diante dela, receando estar exagerando. - Por favor, desculpe-me se não for boas maneiras dar.
Ela olhou a flor. Quinhentas pessoas esperavam sem fôlego
para ver como ela responderia à ousadia e à galanteria do bárbaro - e à armadilha em que ele, talvez sem perceber, a colocara.
-- Não sou uma rainha, Anjin-san - disse ela lentamente.
- Apenas a mãe do herdeiro e viúva do senhor táicum. Não
posso aceitar o seu presente como uma rainha, pois não sou
rainha, nunca poderia ser rainha, não simulo ser rainha e não
desejo ser rainha. - Depois sorriu para a sala e disse a todos:
-- Mas como uma senhora no seu aniversário, talvez eu possa
ter a permissão de todos para aceitar o presente do Anjin-san?
A sala explodiu em aplausos. Blackthorne curvou-se e agradeceu-lhe, tendo compreendido apenas que o presente fora aceito.
Quando a multidão ficou em silêncio de novo, a Senhora Ochiba
exclamou: -- Mariko-san, o seu aluno é uma honra para a
senhora, neh?
Mariko estava vindo por entre os convidados, com um jovem
ao lado. Junto deles ele reconheceu Kiritsubo e a Senhora Sazuko.
Viu o jovem sorrir para uma garota e depois, embaraçado, alcançar Mariko. - Boa noite, Senhora Toda - disse Blackthorne,
1017
e acrescentou perigosamente em latim, inebriado pelo próprio
sucesso: - A noite está mais bela por causa da sua presença.
- Obrigada, Anjin-san - respondeu ela em japonês, as
faces colorindo-se. Dirigiu-se para a plataforma, mas o jovem
ficou dentro do círculo de assistentes. Mariko curvou-se para
Ochiba. - Fiz pouco, Ochiba-sama. Foi tudo trabalho do Anjinsan e do livro de palavras que os padres cristãos lhe deram.
- Ah, sim, o livro de palavras! - Ochiba fez Blackthorne
mostrá-lo a ela e, com a ajuda de Mariko, explicá-lo elaboradamente. Ficou fascinada. Assim como Ishido. - Precisamos providenciar cópias, senhor general. Por favor, ordenê-lhes que nos
dêem cem livros. Com eles, os nossos jovens poderiam aprender
bárbaro logo, neh?
- Sim. É uma boa idéia, senhora. Quanto mais depressa
tivermos nossos próprios intérpretes, melhor. - Ishido riu. -
Vamos deixar os cristãos quebrarem o seu próprio monopólio, neh?
Um samurai grisalho por volta dos sessenta anos, que se
encontrava à frente dos convidados, disse: - Os cristãos não
possuem monopólio, senhor general. Pedimos aos padres cristãos... na realidade insistimos em que eles sejam intérpretes e
negociadores porque são os únicos que sabem conversar com os
dois lados e merecem confiança dos dois lados. O Senhor Goroda
deu início ao costume, neh? E depois o táicum continuou.
- Naturalmente, Senhor Kiyama, não tive a intenção de
desrespeitar os daimios ou samurais que se tornaram cristãos.
Referi-me apenas ao monopólio dos padres cristãos - disse
Ishido. -- Seria melhor para nós se a nossa gente e não padres
estrangeiros - quaisquer padres, no que diz respeito ao assunto
- controlassem o nosso comércio com a China.
- Nunca houve um caso de fraude, senhor general -
disse Kiyama. - Os preços são justos, o comércio é fácil e
eficiente, e os padres controlam a sua gente. Sem os bárbaros
meridionais, não há seda, não há comércio com a China. Sem os
padres poderíamos ter muitos problemas. Muitíssimos, sinto muito. Por favor, desculpe-me por mencionar isso.
- Ah, Senhor Kiyama - disse a Senhora Ochiba. - Estou
certa de que o Senhor Ishido ficou honrado de o senhor o ter
corrigido, não é assim, senhor general? O que o conselho seria
sem as sugestões do Senhor Kiyama?
- Naturalmente - disse Ishido.
Kiyama curvou-se rigidamente, não descontente. Ochiba
1018
olhou para o jovem e agitou o leque. - E você, Saruji-san? Talvez
gostasse de aprender bárbaro?
O menino corou com o exame deles. Era esbelto e bonito, e
tentava arduamente aparentar mais idade que os seus quase quinze
anos. - Oh, espero não ter que fazer isso, Ochiha-sama, oh,
não... mas se for ordenado, tentarei. Sim, tentarei arduamente.
Eles riram com a sua ingenuidade. Mariko disse orgulhosamente em japonês: - Anjin-san, este é o meu filho, Saruji. -
Blackthorne estivera concentrado na conversa, a maior parte da
qual era rápida e vernacular demais para que ele compreendesse.
Mas ouvira "Kiyama" e um alarma soou. Curvou-se para Saruji
e a mesura foi formalmente retribuída. - Ele é um homem
muito vistoso, neh? Sorte ter um filho tão vistoso, Mariko-sama.
- Seus olhos disfarçadamente fitavam a mão direita do jovem.
Era permanentemente retorcida. Então se lembrou de que uma
vez Mariko dissera que o nascimento do filho fora prolongado
e difícil. Pobre rapaz, pensou ele. Como poderia usar uma espada? Desviou os olhos. Ninguém notara a direção do seu olhar,
exceto Saruji. Viu o embaraço e sofrimento no rosto do jovem.
- Sorte ter filho vistoso - disse a Mariko. - Mas com
certeza impossível, Mariko-sama, a senhora ter filho tão grande... não idade suficiente, neh?
- O senhor é sempre tão galante, Anjin-san? - disse
Ochiba. - Sempre diz coisas tão inteligentes?
- Por favor?
- Ah, sempre tão inteligente? Elogios? Compreende?
- Não, desculpe, por favor, sinto muito. - A cabeça de
Blackthorne estava doendo devido à concentração. Ainda assim,
quando Mariko lhe disse o que fora dito, respondeu com uma
gravidade zombeteira. - Ah, sinto muito, Mariko-sama. Se Saruji-san é realmente seu filho, por favor, diga à Senhora Ochiba
que eu não sabia que as senhoras aqui se casam com dez anos.
Ela traduziu. E acrescentou alguma coisa que os fez rir.
- O que foi que a senhora disse?
- Ah! - Mariko notou os malévolos olhos de Kiyama
sobre Blackthorne. - Por favor, desculpe-me, Senhor Kiyama,
posso apresentar-lhe o Anjin-san?
Polidamente Kiyama retribuiu a mesura muito correta de
Blackthorne. - Dizem que o senhor alega ser cristão.
- Por favor?
Kiyama não se dignou repetir, então Mariko traduziu.
1019
- Ah, desculpe, Senhor Kiyama - disse Blackthorne em
japonês. - Sim. Sou cristão... mas seita diferente.
- Sua seita não é bem-vinda nas minhas terras. Nem em
Nagasaki - ou Kyushu, eu imaginaria -, ou nas terras de
quaisquer daimios cristãos.
Mariko conservou o sorriso no lugar. Perguntava a si mesma
se Kiyama teria pessoalmente ordenado o assassino Amida, e
também o ataque da noite passada. Traduziu, suprimindo o gume
da descortesia de Kiyama, todo mundo na sala ouvindo atentamente.
- Não sou padre, senhor - disse Blackthorne, diretamente
a Kiyama. - Se eu na sua terra... só comércio. Nada de conversa de padre ou ensino. Respeitosamente peço comércio apenas.
- Não quero o seu comércio. Não o quero nas minhas
terras. O senhor está proibido de entrar nas minhas terras sob
pena de morte. Compreende?
- Sim, compreendo - disse Blackthorne. - Sinto muito.
- Ótimo. - Arrogante, Kiyama voltou-se para Ishido. -
Deveríamos excluir completamente do império esses bárbaros e
essa seita. Proporei isso ao conselho na próxima reunião. Devo
dizer abertamente que acho que o Senhor Toranaga foi desavisado
em tornar qualquer estrangeiro, particularmente este homem, samurai. É precedente muito perigoso.
- Isso com certeza não tem importância! Todos os erros
do atual senhor do Kwanto serão corrigidos muito em breve.
Neh?
- Todo mundo comete enganos, senhor general - disse
Kiyama, enfaticamente. - Apenas Deus é onividente e perfeito.
O único engano real que o Senhor Toranaga jamais cometeu foi
ter colocado os próprios interesses à frente dos do herdeiro.
- Sim - disse Ishido.
- Por favor, com licença - disse Mariko -, mas isso
não é verdade. Sinto muito, mas estão ambos enganados sobre o
meu amo.
Kiyama voltou-se para ela. Polidamente. - É perfeitamente
correto que a senhora tome essa posição, Mariko-san. Mas, por
favor, não vamos discutir isso esta noite. Então, senhor general,
onde se encontra o Senhor Toranaga agora? Quais são as suas
notícias mais recentes?
- Pelo pombo-correio de ontem, fui informado de que ele
estava em Mishima. Agora estou recebendo relatórios diários
sobre o seu progresso.
1020
- Bom. Então dentro de dois dias ele deixará suas fronteiras? - perguntou Kiyama.
- Sim. O Senhor Ikawa Jikkyu está pronto para lhe dar as
boas-vindas, conforme merece a sua posição.
- Bom. - Kiyama sorriu para Ochiba. Gostava muito
dela. - Neste dia, senhora, em honra da ocasião, talvez a senhora perguntasse ao herdeiro se ele permitiria que os regentes se
curvassem diante dele?
- O herdeiro ficaria honrado, senhor - respondeu ela, para
aplauso dos presentes. - E depois, talvez o senhor e todos aqui
fossem convidados dele para uma competição de poesia. Talvez
os regentes fossem os juízes?
Houve mais aplausos.
- Obrigado, mas, por favor, talvez a senhora, o Príncipe
Ogaki e algumas das damas fossem os juízes.
- Muito bem, se o senhor assim deseja.
- Agora, senhora, qual será o tema? E a primeira linha do
poema? - perguntou Kiyama, muito contente, pois era renomado
pela sua poesia assim como pela habilidade com a espada e ferocidade na guerra.
- Por favor, Mariko-san, a senhora responderia ao Senhor
Kiyama? - disse Ochiba, e novamente muitos ali lhe admiraram
a sagacidade - ela era uma poetisa medíocre, enquanto Mariko
era famosa.
Mariko ficou contente de que tivesse chegado o momento
de começar. Pensou um momento. Depois disse: -- Deveria ser
sobre hoje, Senhora Ochiba, e a primeira linha: "Num galho sem
folhas. .. "
Ochiba e todos eles a cumprimentaram pela escolha. Kiyama
estava cordial agora, e disse: - Excelente, mas teremos que ser
muito bons para competir com a senhorá, Mariko-san.
- Espero que me desculpe, senhor, mas não vou competir.
- Claro que vai! - riu Kiyama. - A senhora é uma das
melhores do reino! Não seria a mesma coisa se a senhora não
competisse.
- Sinto muito, senhor, por favor, desculpe-me, mas não
estarei aqui.
- Não compreendo.
- O que quer dizer, Mariko-san? -- disse Ochiba.
- Oh, por favor, desculpe-me, senhora - disse Mariko -,
mas deixo Osaka amanhã... com a Senhora Kiritsubo e a Senhora Sazuko.
1021
O sorriso de Ishido desapareceu. - Parte para onde?
- Ao encontro do nosso suserano, senhor.
- Ele... o Senhor Toranaga estará aqui dentro de poucos
dias, neh?
- Faz meses que a Senhora Sazuko não vê o marido, e o
meu Senhor Toranaga ainda não teve o prazer de conhecer o
filho mais novo. Naturalmente a Senhora Kiritsubo nos acompanhará. Também faz muito tempo que ele não vê a ama de suas
damas, neh?
- O Senhor Toranaga estará aqui tão em breve que ir ao
encontro dele é desnecessário.
- Mas eu considero necessário, senhor general.
- A senhora acabou de chegar - disse Ishido, incisivo -
e estivemos esperando com ansiedade pela sua companhia, Mariko-san. A Senhora Ochiba particularmente. Concordo com o
Senhor Kiyama, claro que a senhora deve competir.
- Sinto muito, mas não estarei aqui.
- Obviamente está cansada, senhora. Acabou de chegar.
Com certeza este não é o momento de discutir um assunto tão
particular. - Ishido voltou-se para Ochiba. - Talvez, Senhora
Ochiba, a senhora devesse saudar o remanescente dos convidados?
- Sim ... sim, naturalmente - disse Ochiba, desconcertada. Imediatamente a fila começou a se formar, obediente, e uma
conversação nervosa se iniciou, mas o silêncio tombou de novo
quando Mariko disse: - Obrigada, senhor general. Concordo,
mas isto não é um assunto particular e não há nada a discutir.
Partirei amanhã para prestar meus respeitos ao meu suserano com
as damas dele.
Ishido disse friamente: - A senhora está aqui por convite
pessoal do Filho do Céu, junto com as boas-vindas dos regentes.
Por favor, seja paciente. O seu senhor estará aqui muito em
breve.
- Concordo, senhor. Mas o convite de Sua Majestade Imperial é para o vigésimo segundo dia. Não me ordena - nem a
ninguém - que fique confinada em Osaka até lá. Ou ordena?
- Esquece-se da sua educação, Senhora Toda.
- Por favor, desculpe-me, era a última coisa que eu pretendia. Sinto muito, peço desculpas. - Mariko voltou-se para Ogaki,
o cortesão. - Senhor, o convite do Exaltado exige a minha presença aqui até que ele chegue?
O sorriso de Ogaki foi rijo. - O convite é para o vigési1022
mo segundo dia deste mês, senhora. Exige a sua presença para
esse dia.
- Obrigada, senhor. - Mariko curvou-se e encarou a plataforma de novo. - Exige a minha presença para esse dia, senhor
general. Não antes. Portanto partirei amanhã.
- Por favor, seja paciente, senhora. Os regentes deram-lhe
as boas-vindas e há muitos preparativos em que necessitarão da
sua assistência, para a chegada do Exaltado. Agora, Senhora
Ochi.. .
- Sinto muito, senhor, mas as ordens do meu suserano têm
precedência. Devo partir amanhã.
- A senhora não partirá amanhã e pedimos-lhe, não, solicitamos-lhe, Mariko-san, participar na competição da Senhora
Ochiba. Agora, Senhora...
- Então estou confinada aqui, contra a minha vontade?
- Mariko-san - disse Ochiba -, deixemos o assunto agora,
por favor?
- Sinto muito, Ochiba-sarna, mas sou uma pessoa simples.
Disse abertamente que tenho ordens do meu suserano. Se não
obedecer a elas, então devo saber por quê. Senhor general, estou
confinada aqui até o vigésimo segundo dia? Em caso afirmativo,
por ordem de quem?
- A senhora é uma hóspede de honra - disse Ishido cuidadosamente, desejando que ela se submetesse. -- Repito, senhora, seu senhor estará aqui muito em breve.
Mariko sentiu-lhe o poder e se esforçou para resistir a ele.
- Sim, mas, sinto muito, de novo pergunto respeitosamente:
estou confinada em Osaka pelos próximos dezoito dias e, em caso
afirmativo, por ordem de quem?
Ishido mantinha os olhos cravados nela. - Não, a senhora
não está confinada.
- Obrigada, senhor. Por favor, desculpe-me por falar tão
diretamente - disse Mariko. Muitas das damas na sala voltaramse para as suas vizinhas, e algumas cochicharam abertamente o
que todos os retidos em Osaka contra a própria vontade pensavam: - Se ela pode ir, eu também posso, neh? E você também,
neh? Vou amanhã... oh, que maravilha!
A voz de Ishido cortou a onda de sussurro. - Mas, Senhora
Toda, já que resolveu falar de modo tão presunçoso, sinto que é
meu dever pedir aos regentes uma rejeição formal - para o caso
de outros compartilharem do seu equívoco. - Sorriu melancolicamente em meio ao silêncio congelado. - Até lá a senhora se
1023
s
manterá preparada para responder às perguntas deles e receber a
disposição regulamentar.
- Eu ficaria honrada, senhor - disse Mariko -, mas meu
dever é para com o meu suserano.
- Naturalmente. Mas isso será por apenas alguns dias.
Sinto muito, senhor, mas meu dever é para com o meu
suserano para os próximos dias.
- A senhora se imbuirá de paciência, senhora. Não levará
mais que pouco tempo. O assunto está encerrado. Agora, Senhor
Ki...
- Sinto muito, mas não posso atrasar a minha partida por
pouco tempo.
Ishido berrou: -- Recusa-se a obedecer ao conselho de regentes?
-- Não, senhor - disse Mariko com orgulho. - Não, a
menos que eles violem o meu dever para com o meu suserano,
que é dever primordial de um samurai!
- A-senhora-se-preparará-para -encontrar -os-regentes -compaciência-filial!
- Sinto muito, tenho ordens do meu suserano de escoltar
suas damas ao encontro dele. Imediatamente. - Tirou um pergaminho da manga e estendeu-o a Ishido formalmente.
Ele o abriu com violência e o examinou. Depois levantou os
olhos e disse: - Ainda assim, a senhora esperará uma determinação dos regentes.
Mariko olhou esperançosa para Ochiba, mas ali havia apenas
gélida desaprovação. Voltou-se para Kiyama. Kiyama ficou igualmente silencioso, igualmente inabalável.
- Por favor, desculpe, senhor general, mas não há guerra
- começou ela. - Meu amo está obedecendo aos regentes, portanto pelos próximos dezoito.. .
- O assunto está encerrado!
- Este assunto estará encerrado, senhor general, quando o
senhor tiver a educação de me deixar concluir! Não sou uma
camponesa para ser pisoteada. Sou Toda Mariko-noh-Buntaronoh-Hiro-matsu, filha do Senhor Akechi Jinsai, minha linhagem
é Takashima e somos samurais há mil anos, e digo que nunca
serei cativa, refém ou confinada. Nos próximos dezoito dias e
até o dia, por ordem do Exaltado, sou livre para ir aonde quiser
- assim como todo mundo.
- Nosso ... nosso amo, o táicum, foi camponês uma vez.
Muitos ... muitos samurais são camponeses, foram camponeses.
1024
Cada daimio foi, no passado, camponês. Até o primeiro Takashima. Todo mundo foi camponês uma vez. Ouça atentamente:
a-senhora-esperará-pela-vontade-dos-regentes.
- Não. Sinto muito, meu primeiro dever é a obediência ao
meu suserano.
Enfurecido, Ishido começou a caminhar na direção dela.
Embora Blackthorne não tivesse compreendido quase nada
do que fora dito, sua mão direita deslizou despercebida para a
manga esquerda para preparar a faca de arremesso escondida.
Ishido parou diante dela. - A-senhora-.. .
Nesse momento houve um movimento à porta. Uma criada
em frente abriu caminho através da multidão e veio correndo
para Ochiba. - Por favor, desculpe-me, ama - choramingou
ela -, mas é Yodoko-sarna... ela pede que a senhora, ela está...
A senhora deve se apressar, o herdeiro já está lá ...
Preocupada, Ochiba olhou para Mariko e Ishido, depois para
os rostos que a fitavam. Fez meia mesura aos convidados e saiu
às pressas. Ishido hesitou. - Lidarei com a senhora mais tarde,
Mariko-san - disse, e seguiu Ochiba, seus passos pesados sobre
os tatamis.
No seu rastro, o sussurro começou a fluir e refluir de novo.
Sinos tocaram a mudança da hora.
Blackthorne aproximou-se de Mariko. - Mariko-san - perguntou -, o que está acontecendo?
Ela continuou a fitar a plataforma sem vê-Ia. Kiyama tirou
a mão apertada ao punho da espada e flexionou-a: - Mariko-san!
- Sim? Sim, senhor?
- Posso sugerir-lhe voltar para casa? Talvez eu tivesse permissão para conversar com a senhora mais tarde, digamos à hora
do Javali?
- Sim, sim, naturalmente. Por favor... por favor, desculpe-me, mas eu tinha que. .. - Suas palavras esmoreceram.
- Este é um dia de mau agouro, Mariko-san. Que Deus a
tome em sua guarda. - Kiyama deu-lhe as costas e dirigiu-se à
sala com autoridade: - Sugiro que retornemos às nossas casas
para esperar... esperar e orar para que o Infinito leve a Senhora
Yodoko rápida e tranqüilamente, e com honra, para a sua paz,
se o momento dela chegou. - Olhou para Saruji, que ainda estava pasmado. - Venha comigo. - Saiu. Saruji começou a segui-lo, não querendo deixar a mãe, mas impelido pela ordem e
intimidado pela atenção sobre ele.
Mariko fez uma meia mesura para a sala e começou a sair.
1025
Kiri passou a língua pelos lábios secos. A Senhora Sazuko estava
ao lado dela, tremulamente apreensiva. Kiri tomou a mão da
Senhora Sazuko e as duas mulheres acompanharam Mariko. Yabu
avançou com Blackthorne, atrás delas, muito consciente de que
eram os únicos samurais presentes usando o uniforme de Toranaga.
Do lado de fora, cinzentos os esperavam:
- Mas o que, em nome de todos os deuses, possuiu a senhora para que tomasse tal posição? Estúpido, neh? - enfureceu-se Yabu.
- Sinto muito - disse Mariko, ocultando a verdadeira
razão, desejando que Yabu a deixasse em paz, furiosa com as
maneiras odiosas dele. - Simplesmente aconteceu, senhor. Num
momento era uma comemoração de aniversário e depois... Não
sei. Por favor, desculpe-me, Yabu-sama. Por favor, desculpe-me,
Anjin-san.
Novamente Blackthorne começou a dizer alguma coisa, mas
mais uma vez Yabu o subjugou e ele se apoiou à janela, totalmente irritado, a cabeça latejando com o esforço de tentar compreender.
- Sinto muito, Yabu-sama - disse Mariko, e pensou: como
os homens são cansativos, precisam de que tudo seja explicado com
tantos detalhes. Não conseguem nem ver os pêlos nas próprias
pálpebras.
- A senhora desencadeou uma tempestade que nos engolirá
a todos! Estúpido, neh?
- Sim, mas não é certo que sejamos trancados e o Senhor
Toranaga realmente me deu ordem de.. .
- Essas ordens são loucas! A sua cabeça deve ter sido possuída por demônios! A senhora terá que pedir desculpas e recuar.
Agora a segurança será mais cerrada do que o buraco do eu de
um mosquito. Ishido certamente cancelará nossas permissões para
partir e a senhora arruinou tudo. - Olhou para Blackthorne.
- O que fazemos agora?
- Por favor?
Os três haviam acabado de chegar à principal sala de recepção na casa de Mariko, que ficava dentro do anel externo de
fortificações. Cinzentos haviam-nos escoltado até ali e muitos
mais do que o habitual estavam agora estacionados do lado de
fora do portão dela. Kiri e a Senhora Sazuko tinham ido para os
1026
seus próprios aposentos com outra guarda "de honra" de cinzentos, e Mariko prometera juntar-se a elas após o seu encontro com
Kiyama.
- Mas os guardas não a deixarão, Mariko-san - dissera
Sazuko, perturbada.
- Não se preocupe - dissera ela. - Nada mudou. Dentro
do castelo podemos nos mover livremente, embora com escoltas.
- Eles a impedirão! Oh, por que a senhora.. .
- Mariko-san tem razão, criança - disse Kiri, sem medo.
- Nada mudou. Vemo-nos em breve, Mariko-chan. - Depois
Kiri seguira para a sua ala no castelo, marrons fecharam o portão
fortificado e Mariko respirara de novo, vindo para sua casa com
Yabu e Blackthorne.
Agora estava se lembrando de como, no momento em que
estivera lá sozinha, carregando a bandeira sozinha, vira a mão
direita de Blackthorne preparando a faca de arremesso e de como
se sentira mais forte por causa disso. Sim, Anjin-san, pensou.
Você era o único com quem eu sabia que podia contar. Estava
lá quando precisei de você.
Seus olhos dirigiram-se para Yabu, sentado de pernas cruzadas à sua frente, rilhando os dentes. Que Yabu tivesse, em
público, tomado uma posição de apoio a ela, seguindo-a, surpreendera-a. Por causa desse apoio, e porque perder a calma com ele
não adiantaria nada, ela ignorou a sua truculenta insolência e começou a representar. - Por favor, desculpe a minha estupidez,
Yabu-sama - disse, numa voz penitente e embargada de lágrimas. - Claro que o senhor tem razão. Sinto muito, sou apenas
uma mulher estúpida.
- Concordo! É estupidez enfrentar Ishido no seu próprio
ninho, neh?
- Sim, sinto muito, por favor, desculpe-me. Posso oferecerlhe saquê ou chá? - Mariko bateu palmas. Imediatamente a porta
interna se abriu e Chimmoko apareceu, o cabelo em desalinho, o
rosto amedrontado e inchado de choro. - Traga chá e saquê
para os meus convidados. E comida. E faça-se apresentável! Como
se atreve a aparecer assim! O que está pensando que isto é, uma
cabana de camponeses? Envergonha-me diante do Senhor Kasigi!
Chimmoko saiu correndo, em lágrimas.
- Sinto muito, senhor. Por favor, desculpe a insolência dela.
- Eh, isso não tem importância, neh? E quanto a Ishido?
Iiiiih, senhora ... a sua alfinetada sobre "camponês" atingiu o
alvo, feriu o poderoso senhor general. A senhora tem um inimigo
1027
e tanto agora! Iiiiiih, isso arrancou-lhe as Frutas e espremeu-as
na frente de todo mundo!
- Oh, o senhor acha? Oh, por favor, desculpe-me, não tive
a intenção de insultar a ele.
- Eh, ele é um camponês, sempre foi, sempre será, e sempre odiou aqueles de nós que somos autênticos samurais.
- Oh, que inteligente de sua parte, senhor, saber isso. Oh,
obrigada por me dizer. - Mariko curvou-se e fez que secou uma
lágrima. - Posso por favor dizer que me sinto muito protegida
agora... a sua força... Não fosse o senhor, Senhor Kasigi, acho
que eu teria desmaiado.
- Estupidez atacar Ishido na frente de todo mundo -- disse
Yabu, ligeiramente apaziguado.
- Sim. Tem razão. É uma lástima que todos os nossos líderes não sejam tão fortes e inteligentes quanto o senhor, porque
então o Senhor Toranaga não se encontraria numa enrascada tão
grande.
- Concordo. Mas a senhora ainda nos enfiou numa latrina
até o nariz.
- Por favor, desculpe-me. Sim, a culpa é toda minha. -
Mariko fingiu conter as lágrimas bravamente. Baixou os olhos e
sussurrou: - Obrigada, senhor, por aceitar as minhas desculpas.
O senhor é muito generoso.
Yabu assentiu, considerando o elogio merecido, a servilidade
dela necessária, e a si próprio inigualável. Ela pediu desculpas
novamente, acalmou-o e bajulou-o. Logo ele estava complacente.
- Posso, por favor, explicar a minha estupidez ao Anjin-san?
Talvez ele possa sugerir um modo de... - Deixou as palavras
esmorecer, penitentemente.
- Sim. Muito bem.
Mariko curvou-se em agradecimentos reconhecidos, voltouse para Blackthorne e falou em português. - Por favor, escute,
Anjin-san, escute e não faça perguntas em português. Sinto muito,
mas primeiro tive que acalmar este baasterdo mal-humorado -
é assim que se diz? - Rapidamente contou-lhe o que fora dito e
por que Ochiba saíra às pressas.
- Isso é grave - disse ele, perscrutando-a com o olhar.
- Neh?
- Sim. O Senhor Yabu pede o seu conselho. O que deveria
ser feito para superar a confusão em que a minha estupidez colocou os senhores?
- Que estupidez? - Blackthorne observava-a e a inquieta1028
ção dela aumentou. Baixou os olhos para as esteiras. Ele falou
diretamente a Yabu. - Não sei ainda, senhor. Agora compreendo, agora penso.
- O que há para pensar? - retrucou Yabu, azedo. - Estamos trancados.
Mariko traduziu sem levantar os olhos.
- Isso é verdade, não é. Mariko-san? - disse Blackthorne.
- Isso sempre foi verdade.
- Sim, sinto muito.
Ele deu-lhes as costas para contemplar a noite. Havia archotes colocados em suportes nos muros de pedra que cercavam o
jardim da frente. A luz tremeluzia sobre as folhas e as plantas
que tinham sido aguadas apenas com essa finalidade. A oeste
ficava o portão de ferro, guardado por alguns marrons.
- Você - ela o ouviu dizer em latim, sem se voltar. - Preciso falar-lhe em particular.
- Você. Sim, e eu com você - respondeu ela, mantendo
o rosto desviado de Yabu, não confiando em si mesma. - Esta
noite o encontrarei. - Olhou para Yabu. - O Anjin-san concorda com o senhor, sobre a minha estupidez, sinto muito.
- Mas de que serve isso agora?
- Anjin-san - disse ela, a voz segura -, mais tarde, ainda
esta noite, vou ver Kiritsubo-san. Sei onde ficam os seus aposentos. Eu o encontrarei.
- Sim. Obrigado. - Ele continuava de costas para ela.
- Yabu-sama - disse ela humildemente -, esta noite vou
ver Kiritsubo-san. Ela é sábia, talvez tenha uma solução.
- Há apenas uma solução - disse Yabu com uma determinação que a envenenou, os olhos dele em fogo. - Amanhã
a senhora pedirá desculpas. E ficará.
Kiyama chegou pontualmente. Saruji vinha com ele e o coração dela pesou no peito. Quando se concluíram as saudações
formais, Kiyama disse gravemente: - Agora, por favor, explique
por quê, Mariko-chan.
- Não estamos em guerra, senhor. Não deveríamos estar
confinados, nem ser tratados como reféns, portanto posso ir-me
conforme me agradar.
- Não é preciso que se esteja em guerra para que se tenha
reféns. Você sabe disso. A Senhora Ochiba foi refém em Yedo
1029
contra a segurança do seu amo aqui e ninguém estava em guerra.
O Senhor Sudara e família são reféns com o irmão dele hoje, e
eles não estão em guerra. Neh?
Ela mantinha os olhos baixos.
- Há muitos aqui que são reféns contra a respeitosa obediência dos seus senhores ao conselho de regentes, os dirigentes
legais do reino. Isso é prudente. É um costume comum. Neh?
- Sim, senhor.
- Bom. Agora, por favor, conte-me a verdadeira razão.
- Senhor?
Kiyama disse com impaciência: - Não jogue comigo! Também não sou camponês! Quero saber por que você fez o que fez
esta noite.
Mariko ergueu os olhos. - Sinto muito, mas o senhor general simplesmente me aborreceu com a sua arrogancia, senhor.
Realmente tenho ordens. Não há mal em levar Kiri e a Senhora
Sazuko embora por alguns dias, ao encontro do nosso amo.
- Você sabe muito bem que isso é impossível. O Senhor
Toranaga deve saber disso igualmente bem.
- Sinto muito, mas meu amo deu-me ordens. Um samurai
não contesta as ordens do seu senhor.
- Sim. Mas eu as contesto porque são um absurdo. Seu
amo não lida com absurdos nem comete erros. Insisto em que
tenho igualmente o direito de questioná-la.
- Por favor, desculpe-me, senhor, não há nada a discutir.
- Mas há. Há Saruji a discutir. Além do fato de que a
conheço a vida toda, honrei-a a vida toda. Hiro-matsu é o meu
amigo vivo mais velho, seu pai foi um amigo querido e um honrado aliado meu, até os últimos catorze dias de sua vida.
- Um samurai não questiona as ordens de um suserano.
- Agora você pode fazer apenas de duas uma, Marikochan: pede desculpas e fica, ou tenta partir. Se tentar partir, será
detida.
- Sim. Compreendo.
- Você pedirá desculpas amanhã. Convocarei uma reunião
dos regentes e eles darão uma orientação sobre esse assunto todo.
Então você será autorizada a partir com Kiritsubo e a Senhora
Sazuko.
Por favor, desculpe-me, quanto tempo isso levará?
Não sei. Uns poucos dias.
Sinto muito, não tenho uns poucos dias, tenho ordem de
partir imediatamente.
1030
- Olhe para mim! - Ela obedeceu. - Eu, Kiyarna Ukonnoh-Odanaga, senhor de Higo, Satsuma e Osumi, regente do
Japão, da linhagem Fujimoto, daimio cristão chefe do Japão,
peço-lhe que fique.
- Sinto muito. Meu suserano me proíbe de ficar.
- Você não entende o que estou dizendo?
- Sim, senhor. Mas não tenho escolha, por favor, desculpe-me.
Ele apontou para o filho dela. - O acordo de casamento
entre minha neta e Saruji... Mal posso permitir que isso vá em
frente se você ficar em desgraça.
- Sim, sim, senhor - replicou Mariko, sofrimento nos
olhos. - Compreendo isso. - Viu o desespero no menino.
- Sinto muito, meu filho. Mas devo cumprir o meu dever.
Saruji começou a dizer alguma coisa, mas mudou de idéia
e depois, após um momento, disse: - Por favor, desculpe-me,
Mãe, mas... o seu dever para com o herdeiro não é mais importante do que o seu dever para com o Senhor Toranaga? O herdeiro é o nosso verdadeiro suserano, neh?
Ela pensou nisso. - Sim, meu filho. E não. O Senhor Toranaga tem jurisdição sobre mim, o herdeiro não.
- Então isso não significa que o Senhor Toranaga também
tem jurisdição sobre o herdeiro?
- Não, sinto muito.
- Por favor, desculpe-me, Mãe, não compreendo, mas parece-me que se o herdeiro dá uma ordem, ele deve prevalecer
sobre o nosso Senhor Toranaga.
Ela não respondeu.
- Responda a ele - vociferou Kiyama.
- O pensamento foi seu, meu filho? Ou alguém o colocou
na sua cabeça?
Saruji franziu o cenho, tentando se lembrar. - Nós... o
Senhor Kiyama e ... c a senhora dele ... nós discutimos. E o
padre-inspetor. Não me lembro. Acho que pensei nisso sozinho.
O padre-inspetor disse que eu estava certo, não disse, senhor?
- Ele disse que o herdeiro é mais importante do que o
Senhor Toranaga no reino. Legalmente. Por favor, responda a ele
diretamente, Mariko-san.
Mariko disse: - Se o herdeiro fosse um homem, maior de
idade, kwampaku, dirigente legal do reino como o táicum, pai
dele, era, então eu lhe obedeceria antes de ao Senhor Toranaga
1031
neste caso. Mas Yaemon é uma criança, de fato e legalmente,
portanto incapaz. Legalmente. Isso responde à sua pergunta?
- Mas... mas ele ainda é o herdeiro, neh? Os regentes
ouvem a ele ... O Senhor Toranaga o honra. O que ... o que
significa um ano, alguns anos, Mãe? Se a senhora não se desc...
Por favor, desculpe-me, tenho medo pela senhora. - A boca do
menino tremia.
Mariko teve vontade de abraçá-lo e protegê-lo. Mas não o
fez. - Eu não estou com medo, meu filho. Não temo nada neste
mundo. Temo apenas o julgamento de Deus - disse ela, voltando-se para Kiyama.
- Sim - disse Kiyama. - Sei disso. Que Nossa Senhora
a abençoe por isso. - Fez uma pausa. - Mariko-san, você pedirá desculpas publicamente ao senhor general?
- Sim, de bom grado, desde que ele publicamente retire
todas as tropas do meu caminho e dê a mim, à Senhora Kiritsubo
e à Senhora Sazuko permissão por escrito para partir amanhã.
- Você obedecerá a uma ordem dos regentes?
- Por favor, desculpe-me, senhor, neste assunto, não.
- Você respeitará um pedido deles?
- Por favor, desculpe-me, senhor, neste assunto, não.
- Você atenderá a um pedido do herdeiro e da Senhora
Ochiba?
- Por favor, desculpe-me, que pedido?
- Para visitá-los, para ficar com eles por alguns dias, enquanto resolvemos este assunto.
- Por favor, desculpe-me, senhor, mas o que há para se
resolver?
A contenção de Kiyama se rompeu e ele gritou: - O futuro
e a boa ordem do reino de um lado, o futuro da Madre Igreja
de outro, e você de outro! Está claro que o seu contato íntimo
com o bárbaro a contaminou e aturdiu o seu cérebro, como eu
sabia que faria!
Mariko não disse nada, simplesmente sustentou-lhe o olhar.
Com um esforço Kiyama recuperou o controle.
- Por favor, desculpe a ... a minha irritação. E minha
falta de educação - disse, rígido. - Minha única justificativa
é que estou gravemente preocupado. - Curvou-se com dignidade.
-- Peço desculpas.
- A culpa foi minha, senhor. Por favor, desculpe-me por
lhe destruir a harmonia e lhe causar um problema. Mas não tenho
alternativa.
1032
-- Seu filho deu-lhe uma, eu lhe dei diversas.
Ela não respondeu.
O ar na sala se tornara sufocante para todos eles, embora a
noite estivesse fria e uma brisa atiçasse os archotes.
- Está resolvida, então?
- Não tenho escolha, senhor.
- Muito bem, Mariko-san. Não há mais nada a se dizer.
Além de lhe repetir que lhe ordeno não forçar a questão, e pedirlhe isso.
Ela inclinou a cabeça.
- Saruji-san, por favor, espere por mim lá fora - ordenou
Kiyama.
O jovem estava perturbado, quase incapaz de falar. - Sim,
senhor. - Curvou-se para Mariko. - Por favor, com licença, Mãe.
- Que Deus o conserve em suas mãos por toda a eternidade.
- E à senhora.
- Amém - disse Kiyama.
- Boa noite, meu filho.
- Boa noite, Mãe.
Quando ficaram sozinhos, Kiyama disse: - O padre-inspetor
está muito preocupado.
- Comigo, senhor?
- Sim. E com a Santa Igreja - e o bárbaro. E com o navio
bárbaro. Primeiro fale-me sobre ele.
- Ele é um homem singular, muito forte e muito inteligente.
Ao mar é... ele pertence ao mar. Parece tornar-se parte de um
navio e do mar e, ao largo, não existe homem que se aproxime
dele em bravura e astúcia.
- Nem o Rodrigues-san?
- O Anjin-san superou-o duas vezes. Uma aqui e uma quando nos dirigíamos para Yedo. - Contou-lhe sobre a chegada de
Rodrigues à noite, durante a estada deles perto de Mishima, e
sobre as armas escondidas, e tudo o que acontecera. - Se os
navios deles fossem iguais, o Anjin-san venceria. Mesmo que não
fossem, acho que ele venceria.
- Fale-me sobre o navio dele.
Ela obedeceu.
- Fale-me sobre os vassalos dele.
Ela lhe contou, conforme acontecera.
- Por que o Senhor Toranaga lhe daria o navio, dinheiro,
vassalos e liberdade?
1033
- Meu amo nunca me revelou, senhor.
- Por favor, dê-me a sua opinião.
- A fim de lançar o Anjin-san contra seus inimigos - disse
Mariko de imediato, e acrescentou sem se desculpar: - Já que
me pergunta, neste caso os inimigos particulares do Anjin san são
os mesmos do meu senhor: os portugueses, os santos padres que
instigam os portugueses, e os senhores Harima, Onoshi, e o senhor
mesmo.
- Por que o Anjin-san nos consideraria seus inimigos especiais?
- Nagasaki, comércio, e o seu controle costeiro de Kyushu,
senhor. E porque o senhor é o daimio cristão chefe.
- A Igreja não é inimiga do Senhor Toranaga. Nem os
santos padres.
- Sinto muito, mas penso que o Senhor Toranaga acredita
que os santos padres apóiam o Senhor General Ishido, assim como
o senhor.
- Eu apóio o herdeiro. Estou contra o seu amo porque ele
não o apóia e porque arruinará a nossa Igreja.
- Desculpe, mas isso não é verdade, senhor, meu amo é
muito superior ao senhor general. O senhor combateu vinte vezes
mais como aliado dele do que contra ele, sabe que ele pode merecer confiança. Por que se alinhar com esse inimigo confesso?
O Senhor Toranaga sempre desejou o comércio e simplesmente
não é anticristão como o senhor general e a Senhora Ochiba.
- Por favor, desculpe-me, Mariko-san, mas diante de Deus
acredito que o Senhor Toranaga secretamente detesta a nossa fé
cristã, secretamente tem aversão à nossa Igreja, e secretamente
está empenhado em destruir a sucessão e aniquilar o herdeiro e
a Senhora Ochiba. O que o atrai é o xogunato - apenas isso!
Secretamente ele deseja ser xógum, trama para tornar-se xógum,
e tudo está apontado unicamente para esse fim.
- Diante de Deus, senhor, não acredito nisso.
- Eu sei... mas isso não lhe dá razão. - Observou-a um
momento, depois disse: - Conforme você mesma admitiu, esse
Anjin-san e o seu navio são perigosos para a Igreja, neh? O Rodrigues concorda com você que se o Anjin-san pegasse o Navio
Negro ao mar seria muito sério.
- Sim, também acredito nisso, senhor.
- Isso prejudicaria muitíssimo a nossa Madre Igreja, neh?
- Sim.
1034
- Mas ainda assim você não ajudará a Igreja contra esse
homem?
- Ele não é contra a Igreja, senhor, nem realmente contra
os padres, embora desconfie deles. Só é contra os inimigos da sua
rainha. E o Navio Negro é o seu objetivo - por lucro.
- Mas opõe-se à verdadeira fé e portanto é um herege.
Neli?
- Sim. Mas não creio que tudo o que os padres nos contaram seja verdadeiro. E muita coisa nunca nos foi revelada.
Tsukku-san admitiu muitas coisas. Meu suserano ordenou-me que
me tornasse confidente e amiga do Anjin-san, que lhe ensinasse
a nossa língua e costumes, que aprendesse com ele o que poderia
ser de valor para nós. Descobri ...
- Você quer dizer valioso para Toranaga. Neh?
- Senhor, a obediência a um suserano é o pináculo da vida
de um samurai. Não é obediência o que o senhor exige de todos
os seus vassalos?
- Sim. Mas heresia é terrível e parece que você se aliou
ao bárbaro contra a sua Igreja e está contaminada por ele. Rezo
para que Deus lhe abra os olhos, Mariko-san, antes que você
perca a sua própria salvação. Agora, por último, o padre-inspetor
disse que você tinha uma informação particular para mim.
- Senhor? - Aquilo era totalmente inesperado.
- Ele disse que havia uma mensagem de Tsukku-san alguns
dias atrás. Um mensageiro especial de Yedo. Você tem uma informação sobre... sobre os meus aliados.
- Pedi para ver o padre-inspetor amanhã de manhã.
- Sim. Ele me disse. Bem?
- Por favor, desculpe-me, depois que eu o tiver visto amanhã, eu ...
- Não amanhã, agora! O padre-inspetor disse que tinha
alguma coisa a ver com o Senhor Onoshi e interessava à Igreja, e
que você devia me contar imediatamente. Diante de Deus, foi
isso o que ele disse. Terão as coisas chegado a um ponto tão vil
que você não confiará nem em mim?
- Sinto muito. Fiz um acordo com o Tsukku-san. Ele me
pediu que falasse abertamente com o padre-inspetor, isso é tudo,
senhor.
- O padre-inspetor disse que você falasse comigo agora.
Mariko percebeu que não tinha alternativa. Os dados estavam lançados. Contou-lhe sobre a conspiração contra a sua vida.
1035
Tudo o que sabia. Ele, também, escarneceu do boato até que ela
lhe revelasse de onde procedia a informação.
-- O confessor dele? Ele?
- Sim. Sinto muito.
- Lamento que Uraga esteja morto - disse Kiyama, ainda
mais mortificado de que o ataque noturno contra o Anjin-san
tivesse sido um fiasco tão grande - como a emboscada anterior
- e agora tivesse matado o homem que podia provar que seu
inimigo Onoshi era um traidor. - Uraga arderá no inferno para
sempre por esse sacrilégio. É terrível o que ele fez. Merece excomunhão e as chamas do inferno, mas ainda assim prestou-me
um serviço revelando o segredo ... se for verdade. - Kiyama
olhou para ela, repentinamente um homem velho. - Não posso
acreditar que Onoshi faria isso. Ou que o Senhor Harima estivesse a par.
- Sim. O senhor poderia... poderia perguntar ao Senhor
Harima se é verdade?
- Sim, mas ele nunca revelaria uma coisa assim. Eu não
o faria, você sim? Muito triste, neh? Como são terríveis os caminhos do homem.
- Sim.
- Não vou acreditar, Mariko-san. Uraga está morto, portanto nunca poderemos obter provas. Tomarei precauções mas...
mas não posso crer.
-- Sim. Um pensamento, senhor. Não é muito estranho que
o senhor general coloque uma guarda em torno do Anjin-san?
- Por que estranho?
- Por que protegê-lo? Quando ele o detesta? Muito estranho, neh? Poderia ser que agora o senhor general também veja
o Anjin-san como uma possível arma contra os daimios cristãos?
- Não estou acompanhando o raciocínio.
- Se, Deus o livre, o senhor morrer, senhor, o Senhor
Onoshi torna-se supremo em Kyushu, neh? O que o senhor general poderia fazer para refrear Onoshi? Nada - exceto, talvez,
usar o Anjin-san.
- É possível - disse Kiyama lentamente.
- Há apenas uma razão para proteger o Anjin-san: usá-lo.
Onde? Apenas contra os portugueses - e assim os daimios cristãos de Kyushu. Neh?
- É possível.
- Creio que o Anjin-san é tão valioso para o senhor quanto
para Onoshi, Ishido ou o meu amo. Vivo. O conhecimento dele
1036
é enorme. Apenas o conhecimento pode nos proteger dos bárbaros, mesmo dos portugueses.
- Podemos esmagá-los - disse Kiyama com desdém -,
expulsá-los no momento em que quisermos. São mosquitos num
cavalo, mais nada.
- Se a Santa Madre Igreja vencer e o país todo se tornar
cristão, como rezamos para que ocorra, o que acontecerá? A
nossa lei sobreviverá? O bushido sobreviverá? Contra os mandamentos? Suponho que não, como em todos os lugares do mundo
católico, não quando os santos padres são supremos, não a menos
que estejamos preparados.
Ele não respondeu.
Em seguida ela disse: - Senhor, imploro-lhe, pergunte ao
Anjin-san o que aconteceu por toda parte no mundo.
- Não farei isso. Acho que ele a enfeitiçou, Mariko-san.
Acredito nos santos padres. Acho que o seu Anjin-san foi instruído por Satã, e imploro-lhe que perceba que a heresia dele já
a contaminou. Você usou "católico" três vezes referindo-se a cristão. Isso não sugere que você concorda com ele em que existam
duas fés, duas versões igualmente verdadeiras da verdadeira fé?
A sua ameaça desta noite não é uma faca no ventre do herdeiro?
E contra os interesses da Igreja? - Ele se levantou. - Obrigado
pela sua informação. Vá com Deus.
Mariko tirou da manga um pequeno e delgado rolo de papel
lacrado. - O Senhor Toranaga pediu-me que lhe entregasse isto.
Kiyama olhou para o selo intacto. - Você sabe o que contém, Mariko-san?
- Sim. Recebi ordem de destruí-lo e passar a mensagem
verbalmente se fosse interceptada.
Kiyama rompeu o lacre. A mensagem reiterava o desejo de
Toranaga de que houvesse paz entre eles, seu apoio total ao herdeiro e à sucessão, e dava brevemente a informação sobre Onoshi.
Terminava: "Não tenho provas sobre o Senhor Onoshi, mas
Uraga-noh-Tadamasa terá e, deliberadamente, foi colocado à sua
disposição em Osaka, para interrogá-lo caso o deseje. Contudo,
tenho provas de que Ishido também traiu o acordo secreto entre
o senhor e ele, de dar-lhe o Kwanto, e aos seus descendentes,
assim que eu estiver morto. O Kwanto foi secretamente prometido
ao meu irmão, Zataki, em troca de que este me traia, como já o
fez. Por favor, desculpe-me, velho camarada, mas o senhor também foi traído. Assim que eu estiver morto, o senhor e a sua
linhagem serão isolados e destruídos, assira como a Igreja cristã
1037
inteira. Imploro-lhe que reconsidere. Dentro em breve terá provas
da minha sinceridade".
Kiyama releu a mensagem e ela o observou conforme lhe fora
ordenado. - Observe-o muito cuidadosamente, Mariko-san -
dissera-lhe Toranaga. - Não tenho certeza do acordo dele com
Ishido sobre o Kwanto. Espiões relataram isso, mas não tenho
certeza. Você saberá pelo que ele fizer - ou não fizer -, se lhe
entregar a mensagem no momento correto.
Ela vira Kiyama reagir. Então isso também é verdade,
pensou.
O velho daimio levantou os olhos e disse inexpressivamente:
- E você é a prova da sinceridade dele, neh? O holocausto, o
cordeiro sacrifical?
- Não, senhor.
- Não acredito em você. E não acredito nele. A traição de
Onoshi, talvez. Mas o resto... o Senhor Toranaga está apenas
lidando com os seus velhos truques de misturar meias verdades
com mel e veneno. Receio que você é que tenha sido traída,
Mariko-san.
CAPITULO 54
- Partiremos ao meio-dia.
- Não, Mariko-san. - A Senhora Sazuko estava quase em
lágrimas.
- Sim - disse Kiri. - Sim, partiremos conforme você diz.
- Mas eles nos deterão - exclamou a garota. - É tudo
tão inútil.
- Não - dissê-lhe Mariko -, está enganada, Sazuko-chan,
é muito necessário.
- Mariko-san tem razão -- disse Kiri. - Temos ordens.
- Sugeriu alguns detalhes para a partida. - Poderíamos facilmente estar prontas ao amanhecer, se você quisesse.
- Meio-dia é a hora em que devemos partir. Foi o que ele
disse, Kiri-chan - retrucou Mariko.
- Precisaremos de muito poucas coisas, neh?
- Sim.
1038
- Pouquíssimas! - disse Sazuko. - Sinto muito, mas tudo
e tão tolo, eles nos deterão!
- Talvez não, criança - disse Kiri. - Mariko diz que eles
nos deixarão partir. O Senhor Toranaga também pensa isso. Portanto imagine que o farão. Vá descansar. Vamos, preciso conversar com Mariko-san.
A garota saiu, muito perturbada.
Kiri cruzou as mãos. - Sim, Mariko-san?
- Estou enviando uma mensagem cifrada por pombo-correio, contando ao Senhor Toranaga o que aconteceu esta noite.
Partirá à primeira luz da manhã. Os homens de Ishido certamente
tentarão destruir o restante dos meus pássaros amanhã se houver
problema, e não posso trazê-los para cá. Há alguma mensagem
que a senhora queira enviar imediatamente?
- Sim. Escreverei agora. O que acha que vai acontecer?
- O Senhor Toranaga tem certeza de que nos deixarão ir,
se eu for forte.
- Não concordo. E, por favor, desculpe-me, também não
acho que você tenha muita fé na tentativa.
- Está enganada. Oh, claro que podem nos deter amanhã,
e se fizerem isso haverá discussão e as ameaças mais terríveis,
mas tudo isso não vai significar nada. - Mariko riu. - Oh,
tantas ameaças, Kiri-san, e continuarão o dia todo e a noite toda.
Mas ao meio-dia do dia seguinte, teremos permissão de partir.
Kiri balançou a cabeça. - Se fôssemos autorizadas a escapar, cada refém em Osaka também partiria. Ishido ficará seriamente enfraquecido e perderá dignidade. Ele não pode se permitir isso.
- Sim. - Mariko estava muito satisfeita. - Ainda assim,
está encurralado.
Kiri observava-a. - Dentro de dezoito dias nosso amo estará
aqui, neh? Tem que estar aqui.
- Sim.
- Desculpe, mas então por que é tão importante que partamos imediatamente?
- Ele considera importante o suficiente, Kiri-san. O suficiente para ordenar isso.
- Ah, então ele tem um plano?
- Ele não tem sempre muitos planos?
- Uma vez que o Exaltado concordou em estar presente,
nosso amo está numa armadilha, neh?
- Sim.
1039
Kiri olhou para a shoji. Estava fechada. Inclinou-se para a
frente e disse baixinho: - Então por que ele me pediu que
pusesse secretamente essa idéia na cabeça da Senhora Ochiba?
A confiança de Mariko começou a se empanar. - Ele lhe
disse que fizesse isso?
- Sim. De Yokosé, depois de se encontrar com o Senhor
Zataki a primeira vez. Por que ele mesmo armou a armadilha?
- Não sei.
Kiri mordeu os lábios. - Gostaria de saber. Logo saberemos, mas acho que você não está me contando tudo o que sabe,
Mariko-chan.
Mariko começou a se eriçar, mas Kiri tocou-a, novamente
advertindo-lhe silêncio, e sussurrou: - A mensagem dele me
disse que confiasse completamente em você, portanto não vamos
dizer mais nada. Confio em você, Mariko-chan, mas isso não faz
a minha mente parar de funcionar. Neh?
- Por favor, desculpe-me.
- Tenho muito orgulho de você - disse Kiri em voz normal. - Sim, erguendo-se daquele jeito à frente
eles. Gostaria de ter a sua coragem.
- É fácil para mim. Nosso amo disse que devíamos partir.
- O que fazemos é muito perigoso, acho. Ainda assim,
como posso ajudar?
- Dê-me o seu apoio.
- Você já tem isso. Sempre teve.
- Ficarei aqui com a senhora até amanhecer, Kiri. Mas primeiro tenho que conversar com o Anjin-san.
- Sim. É melhor que eu vá com você.
As duas mulheres saíram dos apartamentos de Kiri, uma
escolta de marrons com elas, passando por outros marrons, que
se curvaram, visivelmente orgulhosíssimos de Mariko. Kiri conduziu-a corredores abaixo, atravessou a extensão da grande sala
de audiências, e o corredor adiante. Havia marrons de guarda ali,
e cinzentos. Quando viram Mariko, todos se curvaram, marrons e
cinzentos igualmente a honrando. Tanto Kiri quanto Mariko ficaram perplexas de encontrar cinzentos no seu domínio. Dissimularam a própria confusão e não disseram nada.
Kiri apontou uma porta.
- Anjin-san? - chamou Mariko.
- Hai? - A porta abriu-se. Blackthorne apareceu. Ao seu
lado, dentro do aposento, mais dois cinzentos. - Alô, Mariko-san.
1040
- Alô. - Mariko olhou para os cinzentos. - Tenho que
conversar com o Anjin-san em particular.
- Por favor, converse com ele, senhora - disse o capitão
dos cinzentos com grande deferência. - Infelizmente recebemos
ordem do Senhor Ishido pessoalmente, sob pena de morte imediata, de não deixá-lo sozinho.
Yoshinaka, oficial do turno daquela noite, avançou. - Desculpe-me, Senhora Toda, tive que concordar com estes vinte guardas para o Anjin-san. Foi uma solicitação pessoal do Senhor
Ishido. Sinto muito.
- Como o Senhor Ishido está apenas preocupado com a
segurança do Anjin-san, eles são bem-vindos - disse ela, nem
um pouco satisfeita.
- Ficarei responsável por ele enquanto a Senhora Toda
estiver com ele - disse Yoshinaka ao capitão dos cinzentos. - O
senhor pode esperar lá fora.
- Sinto muito - disse esse samurai com firmeza. - Eu e
meus homens não temos alternativa senão vigiá-lo com nossos
próprios olhos.
- Ficarei contente em permanecer aqui - disse Kiri. -
Naturalmente é necessário que alguém fique.
- Sinto muito, Kiritsubo-san, devemos estar presentes. Por
favor, desculpe-me, Senhora Toda - continuou o capitão, desconfortável -, mas nenhum de nós fala bárbaro.
- Ninguém sugeriu que os senhores seriam descorteses a
ponto de ouvir - disse Mariko, prestes a se enfurecer. - Mas
os costumes bárbaros são diferentes dos nossos.
- Obviamente os cinzentos devem obedecer ao seu senhor
- disse Yoshinaka. - A senhora foi totalmente correta esta noite
ao dizer que o primeiro dever de um samurai é para com o seu
suserano, Senhora Toda, e totalmente correta em enfatizar isso
em público.
- Perfeitamente correta, senhora - concordou o capitão
dos cinzentos, com a mesma demonstração de orgulho. - Não
há outra obrigação na vida de um samurai, neh?
- Obrigada - disse ela, reconfortada pelo respeito deles.
- Também devemos honrar os costumes do Anjin-san, se
pudermos, capitão - disse Yoshinaka. - Talvez eu tenha uma
solução. Por favor, siga-me. - Conduziu-os de volta à sala de
audiência. - Por favor, senhora, traga o Anjin-san e sentem-se
ali. - Apontou para o estrado distante. - Os guardas do Anjin-san
podem ficar junto às portas e cumprir seu dever para com o seu
de Ishido e todos
1041
suserano, nós cumprimos o nosso, e a senhora conversa como
deseja, de acordo com os costumes do Anjin-san. Neh?
Mariko explicou a Blackthorne o que Yoshinaka dissera, depois continuou, prudentemente em latim: - Eles não se afastarão
de você esta noite. Não temos alternativa, a menos que eu mande
matá-los imediatamente, se for isso o que você desejar.
- Minha vontade é conversar em particular com você -
retrucou Blackthorne. - Mas não ao custo de vidas. Agradeço-lhe
por me perguntar.
Mariko voltou-se para Yoshinaka. - Muito bem, obrigada,
Yoshinaka-san. Quer, por favor, mandar alguém providenciar
braseiros de incenso, para afastar os mosquitos?
- Naturalmente. Por favor, desculpe-me, senhora, há alguma notícia sobre a Senhora Yodoko?
- Não, Yoshinaka-san. Ouvimos dizer que ela ainda está
repousando, sem sofrimento. - Mariko sorriu para Blackthorne.
- Vamos sentar lá, Anjin-san?
Ele a seguiu. Kiri voltou aos seus aposentos e os cinzentos
se postaram junto às portas da sala de audiências.
O capitão dos cinzentos ficou perto de Yoshinaka, a alguns
passos dos outros. - Não gosto disso - sussurrou ele asperamente.
- A Senhora Toda vai puxar uma espada e matá-lo? Sem
ofensa, onde estão os seus miolos?
Yoshinaka afastou-se coxeando para examinar os outros postos. O capitão olhou para o estrado. Mariko e o Anjin-san estavam
sentados um diante do outro, bem iluminados por archotes. Ele
não conseguia ouvir o que estavam dizendo. Concentrou-se nos
lábios deles mas nem assim conseguiu entender, embora seus olhos
fossem muito bons e ele soubesse falar português. Suponho que
estejam falando a língua dos santos padres de novo, pensou. Língua hedionda, impossível de aprender.
E depois, que importância tem? Por que ela não deveria conversar com o herege em particular, se é isso o que quer? Nenhum dos dois vai durar muito tempo mais neste mundo. Muito
triste. Oh, bendita Nossa Senhora, tome-a sob a sua guarda eterna, pela sua bravura.
- Latim é mais seguro, Anjin-san. - O leque dela fez um
mosquito fugir zumbindo.
- Eles podem nos ouvir daqui?
1042
- Não, não creio, se mantivermos a voz baixa e conversarmos conforme você ensinou, com muito pouco movimento
da boca.
- Bom. O que ocorreu com Kiyama?
- Eu o amo.
- E eu a amo.
- Senti saudades.
- Eu também. Como podemos nos encontrar sozinhos?
- Esta noite não é possível. Amanhã à noite será, meu
amor. Tenho um plano.
- Amanhã? Mas e a sua partida?
- Amanhã eles podem me deter, Anjin-san - por favor,
não se preocupe. Depois de amanhã estaremos todos livres para
partir como desejarmos. Amanhã à noite, se eu for detida, estarei
com você.
- Como?
- Kiri me ajudará. Não me pergunte como, o quê ou por
quê. Será fácil.. .
Parou quando criadas trouxeram os pequenos braseiros. Logo
os fios espiralados de fumaça repeliram as criaturas da noite.
Quando se viram seguros de novo, conversaram sobre a viagem,
contentes apenas com o fato de estarem juntos, amando-se sem
se tocarem, sempre evitando falar em Toranaga e na importância
do dia seguinte. Então ele disse: - Ishido é meu inimigo. Por
que todos esses guardas estão à minha volta?
- Para protegê-lo. Mas também para vigiá-lo de perto.
Penso que Ishido também poderia desejar usá-lo contra o Navio
Negro e Nagasaki, o Senhor Kiyama e o Senhor Onoshi.
- Ah, sim, também pensei nisso.
Ela viu os olhos dele a esquadrinhá-la. - O que é, Anjin-san?
- Ao contrário do que crê Yabu, acho que você não é
estúpida, que tudo esta noite foi dito intencionalmente, deliberadamente planejado - por ordem de Toranaga.
Ela alisou uma ruga no seu quimono de brocado. - Ele me
deu ordens. Sim.
Blackthorne passou ao português. - Ele a traiu. Você é um
engodo. Sabe disso? É apenas uma isca para uma das armadilhas dele.
- Por que diz isso?
- Você é a isca. É óbvio, não é? Yabu é isca. Toranaga
mandou-nos todos para cá como um sacrifício.
1043
- Não, engana-se, Anjin-san. Sinto muito, mas está enganado.
Em latim ele disse: - Digo-lhe que é linda e a amo, mas
que é mentirosa.
- Ninguém nunca me disse isso antes.
- Você também disse que ninguém tinha dito "Eu a amo".
Ela baixou os olhos para o leque. - Vamos conversar sobre
outras coisas.
- O que Toranaga ganha sacrificando-nos?
Ela não respondeu.
- Mariko-san, tenho o direito de lhe perguntar. Não estou
com medo. Só quero saber o que ele ganha.
- Não sei.
- Você! Jure pelo seu amor e pelo seu Deus.
- Até você? - replicou ela amargamente em latim. -
Também você com os seus "jure por Deus" e perguntas, perguntas, perguntas?
- É a sua vida e a minha vida, e eu prezo a ambas. O que
ele ganha?
A voz dela soou mais alta. - Ouça, sim, eu escolhi o momento, sim, não sou uma mulher estúpida e.. .
- Tenha cuidado, Mariko-san, por favor, conserve a voz
baixa ou isso seria muito estúpido.
- Desculpe. Sim, foi feito intencionalmente e em público
como Toranaga desejava.
- Por quê?
- Porque Ishido é um camponês e tem que nos deixar partir. O desafio tinha que ser diante dos seus pares. A Senhora
Ochiba aprova que vamos ao encontro do Senhor Toranaga. Conversei com ela e ela não se opõe. Não há nada para perturbá-lo.
- Não gosto de vê-Ia inflamada. Ou venenosa. Ou malhumorada. Onde está a sua tranqüilidade? E onde estão as suas
maneiras? Talvez você devesse aprender a observar as pedras
crescendo. Neh?
A cólera de Mariko desapareceu e ela riu. - Ah! Você tem
razão. Por favor, desculpe-me. - Sentiu-se revigorada, ela mesma
de novo. - Oh, como o amo, e o honro, e fiquei orgulhosa de
você esta noite, quase o beijei, ali na frente deles, como é seu
costume.
- Nossa Senhora, isso os teria feito explodir, neh?
- Se eu estivesse sozinha com você, eu o beijaria até que
os seus gritos por piedade enchessem o universo.
1044
- Agradeço-lhe, senhora, mas está aí e eu aqui, e o mundo
se ergue entre nós.
- Ah, mas não existe mundo entre nós. Minha vida é plena
por sua causa.
Um momento depois ele disse: - E as ordens que Yabu lhe
deu? De pedir desculpas e ficar?
- Não podem ser obedecidas, sinto muito.
- Devido às ordens de Toranaga?
- Sim. Mas não pelas ordens dele, realmente. É a minha
vontade, também. Tudo isso foi sugestão minha a ele. Fui eu que
implorei para ser autorizada a vir aqui, meu querido. Diante de
Deus, é essa a verdade.
- O que acontecerá amanhã?
Ela lhe contou o que dissera a Kiri, acrescentando: - Tudo
vai sair melhor do que o planejado. Ishido já não é o seu protetor? Juro que não sei como o Senhor Toranaga pode ser tão
inteligente. Antes de eu partir ele me contou o que aconteceria,
o que poderia acontecer. Sabia que Yabu não tinha poder em
Kyushu. Apenas Ishido ou Kiyama podiam protegê-lo lá. Não
somos engodos. Estamos sob a proteção dele. Totalmente seguros.
- E os dezenove dias, dezoito agora? Toranaga tem que
estar aqui, neh?
Sim.
Então isso não e, como diz Ishido, um desperdício de
tempo?
Realmente não sei. Só sei que dezenove, dezoito ou mesmo três dias podem ser uma eternidade.
Ou amanhã?
Amanhã também. Ou o dia seguinte.
E se Ishido não a deixar partir amanhã?
Esta é a única chance que temos. Todos nós. Ishido tem
que ser humilhado.
Tem certeza?
Sim, diante de Deus, Anjin-san.
Blackthorne se arrancou de um pesadelo de novo, mas, no
momento em que se viu realmente desperto, o sonho desapareceu. Cinzentos o fitavam de olhos arregalados através do mosquiteiro à luz do amanhecer que despontava.
- Bom dia - dissê-lhes ele, odiando ser vigiado durante
o sono.
1045
Saiu de sob o mosquiteiro e dirigiu-se para o corredor, desceu as escadas, até atingir o toalete no jardim. Guardas, tanto marrons quanto cinzentos, acompanhavam-no. Ele mal os notava.
o amanhecer estava enevoado. A leste o céu já estava limpo
da cerração. O ar cheirava a sal, carregado de maresia. As moscas
já enxameavam. Vai fazer calor hoje, pensou ele.
Passos aproximaram-se. Através da abertura da porta, Blackthorne viu Chimmoko. Ela esperou pacientemente, tagarelando
com os guardas, e quando ele saiu, curvou-se e saudou-o.
- Onde Mariko-san? - perguntou ele.
- Com Kiritsubo-san, Anjin-san.
- Obrigado. Quando parte?
- Logo, senhor.
- Diga Mariko-san eu gostaria dizer bom-dia antes partir
- disse ele novamente, embora Mariko já tivesse prometido encontrá-lo antes de voltar para casa a fim de reunir seus pertences.
- Sim, Anjin-san.
Ele assentiu do modo adequado a um samurai e se dirigiu
para o banho. Não era costume tomar banho quente de manhã.
Mas todas as manhãs ele ia lá e derramava água fria pelo corpo
todo. - Iiiiih, Anjin-san - sempre diziam os seus guardas ou
observadores -, isso com certeza faz muito bem para a sua
saúde.
Vestiu-se e rumou para as ameias que davam para o adro
daquela ala do castelo. Estava usando um quimono marrom e
espadas, a pistola escondida no sash. Marrons de sentinela saudaram-no como a um deles, embora muito apreensivos pela presença dos cinzentos que o seguiam. Outros cinzentos amontoavam-se nas ameias opostas, olhando-os de cima, e fora do portão
deles.
- Muitos cinzentos, muito mais do que o habitual. Compreende, Anjin-san? - disse Yoshinaka, saindo para o balcão.
- Sim.
o capitão dos cinzentos aproximou-se. - Por favor, não
chegue muito perto da beirada, Anjin-san. Sinto muito.
o sol estava no horizonte. O seu calor causou uma sensação
agradável na pele de Blackthorne. Não havia nuvens no céu e a
brisa estava se extinguindo.
o capitão dos cinzentos apontou para a espada de Blackthorne. - Essa é a Vendedor de óleo, Anjin-san?
- Sim, capitão.
- Posso ter permissão de ver a lâmina?
1046
Blackthorne puxou a espada parcialmente da bainha. O costume decretava que uma espada não devia ser totalmente sacada
a menos que fosse para ser usada.
- Iiiiih, linda, neh? - disse o capitão. Os outros, marrons
e cinzentos, amontoaram-se ao redor, igualmente impressionados.
Blackthorne empurrou a espada de volta, não descontente.
- Honra usar Vendedor de óleo.
- Sabe usar uma espada, Anjin-san? - perguntou o capitão.
Não, capitão. Não como samurai. Mas aprendo.
- Ah, sim. Isso é muito bom.
No adro, dois andares abaixo, marrons treinavam, ainda na
sombra. Blackthorne observou-os. - Quantos samurais aqui,
Yoshinaka-san?
- Quatrocentos e três, Anjin-san, incluindo os duzentos que
vieram comigo.
- E lá fora?
- Cinzentos? - Yoshinaka riu. - Muitos... muitíssimos.
O capitão dos cinzentos mostrou os dentes com o sorriso.
- Quase cem mil. Compreende, Anjin-san, "cem mil"?
- Sim. Obrigado.
Todos olharam à distância quando uma coluna de carregadores, cavalos de carga e três palanquins contornaram a esquina
oposta, vindo sob guarda da extremidade do acesso. A avenida
ainda estava profundamente obscurecida entre os altos muros vigiados. Archotes ainda ardiam nos suportes de parede. Mesmo
àquela distância, eles podiam ver o nervosismo dos carregadores.
Os cinzentos do outro lado pareceram mais silenciosos e atentos,
o mesmo acontecendo com os marrons de guarda.
Os altos portões se abriram para dar passagem ao grupo, a
escolta de cinzentos ficando de fora com os camaradas, depois se
fecharam de novo. A grande barra de ferro retiniu de volta aos
grandes apoios cravados hem fundo nos muros de granito. Não
havia rastrilho guardando esse portão.
- Anjin-san - disse Yoshinaka -, por favor, desculpe-me.
Preciso ver se tudo está bem. Tudo pronto, neh?
- Espero aqui.
- Sim. - Yoshinaka afastou-se.
O capitão dos cinzentos foi até o parapeito e olhou para
baixo. Jesus Cristo, estava pensando Blackthorne, espero que ela
tenha razão. Toranaga também. Não falta muito agora, hein?
Avaliou a altura do sol e murmurou vagamente consigo mesmo
em português: - Não falta muito para partir.
1047
Inconscientemente o capitão grunhiu sua aquiescência e
Blackthorne percebeu que o homem o compreendia claramente
em português, era portanto católico e outro possível assassino.
Sua mente precipitou-se de volta à noite passada, e ele se lembrou
de que tudo o que dissera a Mariko fora em latim.
Foi mesmo? Mãe de Deus, e ela dizendo "... posso mandar
matá-los"? Foi em latim? Será que ele também fala latim, como
aquele outro capitão, o que foi morto durante a primeira fuga de
Osaka?
O sol reunia forças agora e Blackthorne desviou os olhos do
capitão. Se não me assassinou durante a noite, talvez nunca o
faça, pensou ele, colocando aquele católico num compartimento.
Viu Kiri sair para o adro abaixo. Supervisionava criadas
carregando cestos e baús até os cavalos de carga. Parecia minúscula, em pé nos degraus principais onde Sazuko fingira escorregar, colaborando para a fuga de Toranaga. Ao norte ficava o
agradável jardim e a minúscula casa rústica onde vira Mariko e
Yaemon, o herdeiro, pela primeira vez. Mentalmente acompanhou
o cortejo do meio-dia saindo do castelo, serpeando através do
labirinto, depois em segurança através dos bosques e descendo até
o mar. Rezou para que ela estivesse em segurança e todos estivessem seguros. Uma vez que elas tivessem partido, Yabu e ele
poderiam voltar à galera e zarpar.
Dali das ameias o mar parecia muito perto. Chamava-o. E o
horizonte.
- Konbanwa, Anjin-san.
- Mariko-san! - Ela estava tão radiante como sempre.
- Konbanwa - disse ele, depois em latim, com indiferença: -
Cuidado com este homem cinzento, ele compreende - continuando instantaneamente em português para dar tempo a ela de
se resguardar -, sim, não compreendo como pode estar tão bela
tendo dormido tão pouco. - Pegou-lhe o braço e colocou-a de
costas para o capitão, trazendo-a mais para perto do parapeito.
- Olhe, lá está Kiritsubo-san!
- Obrigada. Sim, sim, eu ... obrigada.
- Por que não acena a Kiritsubo-san?
Ela fez o que lhe era pedido e chamou o nome da outra.
Kiri os viu e retribuiu o aceno.
Após um momento, novamente descontraída e controlada,
Mariko disse: - Obrigada, Anjin-san. O senhor é inteligente e
muito sábio. - Cumprimentou o capitão casualmente e caminhou
1048
a esmo até uma saliência onde se sentou, depois de se certificar
de que estava limpa. - Vai fazer um dia excelente, neh?
- Sim. Como dormiu?
- Não dormi, Anjin-san. Kiri e eu tagarelamos o resto da
noite afora e eu vi o dia amanhecer. Adoro amanheceres. E o
senhor?
Meu descanso foi perturbado, mas...
Oh, sinto muito.
Estou bem agora, realmente. Vai partir agora?
Sim, mas voltarei ao meio-dia para buscar Kiri-san e a
Senhora Sazuko. - Desviou o rosto do capitão e disse em latim:
- Você. Lembra-se da Hospedaria das Flores?
- Certamente. Como poderia esquecer?
- Se houver um adiamento... esta noite será tão perfeita
quanto cheia de paz.
- Ah, gostaria de que isso fosse possível. Mas prefiro vê-Ia
em segurança a caminho.
Mariko continuou em português: - Agora tenho que ir,
Anjin-san. O senhor me dá licença?
- Acompanho-a até o portão.
- Não, por favor, olhe daqui. O senhor e o capitão podem
olhar daqui, neh?
- Naturalmente - disse Blackthorne no mesmo instante,
compreendendo. - Vá com Deus.
- Você também - retrucou ela em latim.
Ele ficou junto ao parapeito. Enquanto esperava, a luz do
sol incidiu sobre o adro, expulsando as sombras. Mariko apareceu
lá embaixo. Viu-a saudar Kiri e Yoshinaka e conversarem os três,
sem cinzentos inimigos por perto. Depois se curvaram. Ela levantou os olhos para ele, e acenou alegremente. Ele correspondeu.
Os portões foram puxados para os lados e, com Chimmoko alguns
discretos passos atrás, ela saiu, acompanhada pela sua escolta de
dez marrons. Os portões giraram nos gonzos mais uma vez. Por
um momento ele a perdeu de vista. Quando reapareceu, cinqüenta
cinzentos da multidão que se encontrava fora dos muros rodearam-na como outra guarda de honra. O cortejo marchou pela
avenida sem sol. Ele a observou até que ela dobrasse a última
esquina. Sem se voltar nem uma vez.
- Vou comer agora, capitão - disse ele.
- Sim, naturalmente, Anjin-san.
Blackthorne dirigiu-se para os seus aposentos e comeu arroz,
vegetais em conserva e pedacinhos de peixe cozido, seguidos de
1049
frutas de Kyushu - pequenas maçãs ácidas, abricós e ameixas
de polpa dura. Saboreou as frutas amargas e o chá.
- Mais, Anjin-san? - perguntou a criada.
- Não, obrigado. - Ofereceu frutas aos guardas, que aceitaram agradecidos, e quando terminaram ele voltou às ensolaradas ameias. Teria gostado de examinar a escorva de sua pistola
escondida, mas achou melhor não chamar atenção para a arma.
Examinara-a uma vez, durante a noite, da melhor maneira que
pudera, sob o mosquiteiro, sob o lençol. Mas, sem ver realmente,
não podia ter certeza quanto à bucha ou à pederneira.
Não há mais nada que você possa fazer, pensou. É um títere.
Seja paciente, Anjin-san, o seu turno termina ao meio-dia.
Avaliou a altura do sol. Deve ser o começo do período de
duas horas da Cobra. Depois da Cobra vem o Cavalo. No meio
da hora do Cavalo é pleno meio-dia.
Sinos nos templos por todo o castelo e a cidade badalaram
o início da Cobra e ele ficou contente com a própria exatidão.
Notou uma pedrinha no chão do parapeito. Foi até ela, pegou-a
o colocou-a cuidadosamente numa saliência de uma seteira ao sol,
depois recostou-se, apoiou os pés confortavelmente, e pôs-se a
contemplá-la.
Os cinzentos observavam cada movimento seu. O capitão
franziu o cenho. Depois de algum tempo, disse: - Anjin-san,
qual é o significado da pedra?
- Por favor?
- A pedra. Por que a pedra, Anjin-san?
- Ah! Observo a pedra crescer.
- Oh, desculpe. Compreendo. Por favor, perdoe-me por
tê-lo perturbado.
Blackthorne riu consigo mesmo e voltou a fixar o olhar na
pedra. - Cresça, sua bastarda - disse. Mas por mais que imprecasse, ordenasse ou bajulasse, ela não crescia.
Você realmente espera ver uma rocha crescer? perguntou-se.
Não, claro que não, mas isso passa o tempo e gera tranqüilidade.
Você não pode ter wa suficiente. Neh?
Iiiiiih, de onde virá o próximo ataque? Não há defesa contra
um assassino se o assassino estiver preparado para morrer. Há?
Rodrigues examinou a escorva de uns mosquetes que pegara
no cavalete ao lado do canhão de popa. Achou que a pederneira
estava usada, portanto perigosa. Sem uma palavra, jogou o mos1050
quete em cima do atirador. O homem mal teve tempo de agarrá-lo
antes que a coronha lhe atingisse o rosto.
- Nossa Senhora, senhor piloto - exclamou o homem -,
não há necessidade ...
- Ouça, seu bosta sem mãe, da próxima vez que eu encontrar alguma coisa errada num mosquete ou canhão durante o seu
turno, você vai levar cinqüenta chicotadas e perder a paga de três
meses. Contramestre!
- Sim, piloto? - Pesaro, o contramestre, aproximou mais
o seu corpanzil arfante e fez uma carranca para o jovem atirador.
- Pegue os dois turnos! Examine cada mosquete e canhão,
tudo. Só Deus sabe quanto vamos precisar deles.
- Providenciarei, piloto. - O contramestre voltou-se para
o atirador. - Vou mijar no seu grogue desta noite, Gomez, por
todo o trabalho extra, e é melhor que você o lamba com um
sorriso. Ponha-se ao trabalho!
Havia oito pequenos canhões a meia-nau no convés principal, quatro a bombordo, quatro a estibordo e um morteiro de
proa. O suficiente para rechaçar quaisquer piratas sem canhões,
mas não o suficiente para enfrentar um ataque. A pequena fragata tinha dois mastros e chamava-se Santa Luz.
Rodrigues esperou até que os tripulantes estivessem realizando suas tarefas, depois deu-lhes as costas e se debruçou na amurada. O castelo cintilava fracamente ao sol, a cor de estanho
envelhecido, exceto pelo torreão com seus muros brancos e azuis
o telhados dourados. Ele cuspiu na água e observou a saliva para
ver se chegava aos pilares do ancoradouro, como esperava, ou
se caía no mar. Caiu no mar. - Merda - murmurou para ninguém, desejando estar com a sua própria fragata, a Santa Maria,
sob o seu comando bem naquele momento. Maldito azar que ela
esteja em Macau bem quando precisamos dela.
- Qual é o problema, capitão-mor? - perguntara ele alguns
dias antes em Nagasaki, quando fora arrancado da sua cama quente, na sua casa que tinha vista para a cidade e a enseada.
- Tenho que ir a Osaka imediatamente - dissera Ferreira,
emplumado e arrogante como um galo de briga, mesmo àquela
hora matinal. - Chegou uma mensagem urgente de Dell'Aqua.
- Qual é o problema agora?
- Ele não disse, só que era vital para o futuro do Navio
Negro.
- Nossa Senhora, qual é a brincadeira de mau gosto que
estão tramando agora? O que é vital? Nosso navio está tão sólido
1051
quanto qualquer navio ao mar, o casco está limpo e o cordame
perfeito. O comércio vai melhor do que jamais imaginamos e
no prazo previsto, os macacos estão se comportando, o maldito
Harima está confiante e. . . - Parou quando a idéia lhe explodiu
na cabeça. - O Inglês! Ele zarpou?
- Não sei, mas se tiver zarpado ...
Rodrigues olhara boquiaberto para a entrada da grande enseada, como que esperando ver o Erasmus já a bloqueá-los, ostentando a odiada bandeira da Inglaterra, esperando ali como um
cão raivoso até o dia em que eles tivessem que se pôr ao largo,
dirigindo-se para Macau e depois para casa. - Jesus, mãe de
Deus e todos os santos, não deixem isso acontecer!
- Qual é o nosso meio mais rápido? Uma lorcha?
- A Santa Luz, capitão-mor. Podemos zarpar em menos de
uma hora. Ouça, o Inglês não pode fazer nada sem homens. Não
se esqueça...
- Minha Nossa Senhora, ouça você! Ele sabe falar a algaravia deles, eh? Por que não poderia usar macacos, eh? Há japonas piratas suficientes para lhe dar vinte vezes uma tripulação.
- Sim, mas não atiradores e marinheiros, como ele precisaria. Ele não teve tempo suficiente para treinar japonas. No ano
que vem talvez, mas não contra nós.
- Por que, em nome da Virgem e dos santos, os padres lhe
deram um dicionário eu nunca entenderei. Bastardos intrometidos! Deviam estar possuídos pelo Diabo! É quase como se o
Inglês fosse protegido pelo Diabo!
- Digo-lhe que ele é apenas esperto!
- Há muitos que estão aqui há vinte anos e não sabem
falar uma palavra da algaravia dos japonas, mas o Inglês sabe,
eh? Digo-lhe que ele entregou a alma a Satã e em troca é protegido por magia negra. De que outro modo você explicaria? Há
quantos anos você vem tentando falar a língua deles e você até
vive com uma japonesa? Leche, ele poderia facilmente usar piratas japonas.
- Não, capitão-mor, ele tem que conseguir homens aqui,
estamos à sua espera e o senhor já colocou todos os suspeitos a
ferros.
- Com vinte mil cruzados em prata e uma promessa sobre
o Navio Negro, ele pode contratar todos os homens de que necessita, inclusive os carcereiros e a maldita cela em torno deles.
Cabrón! Talvez consiga até comprar você também.
- Cuidado com a língua!
1052
- Você é o espanhol mais sem mãe e sem leite que existe,
Rodrigues! A culpa é sua que ele esteja vivo, você é responsável.
Deixou-o escapar duas vezes! - O capitão-mor postou-se diante
dele enfurecido. - Deveria tê-lo matado quando ele esteve em
seu poder.
- Talvez, mas isso é espuma na esteira da minha vida, já
ficou para trás - dissera Rodrigues asperamente. - Fui até lá
para matá-lo quando pude.
- Matou?
- Eu lhe disse vinte vezes. O senhor não tem ouvidos! Ou
é a bosta espanhola de sempre nas suas orelhas, assim como na
sua boca! - A mão dele se estendera para a pistola e o capitãomor sacara a espada, então a assustada garota japonesa se colocara entre eles. - Pro favoo, Rod-san, no raivas - no discusson,
pro favoo! Criston, pro favoo!
A cólera ofuscante se extinguira e Ferreira dissera: - Digolhe diante de Deus que o Inglês foi gerado pelo Demônio! Quase
o matei e você a mim, Rodrigues. Vejo claramente agora. Ele
colocou um feitiço em todos nós, particularmente em você!
Agora ao sol de Osaka, Rodrigues estendeu a mão até o
crucifixo que usava ao pescoço e rezou uma prece desesperada
para ser protegido de todos os feiticeiros e para sua alma imortal
ser conservada a salvo de Satã.
O capitão-mor não tem razão? Essa não é a única resposta?
raciocinou ele de novo, cheio de pressentimentos. A vida do Inglês
é encantada. Agora é íntimo do arquidiabo Toranaga, conseguiu
o seu navio de volta, o dinheiro de volta e wakos, a despeito de
tudo, e realmente fala como um deles e isso é impossível tão
depressa, mesmo com o dicionário, mas ele conseguiu o dicionário e uma ajuda inestimável. Jesus Deus e Nossa Senhora, tirem
o mau-olhado de cima de mim!
- Por que deu o dicionário ao Inglês, padre? - perguntara
ele a Alvito em Mishima. - Certamente deveria ter adiado isso.
- Sim, Rodrigues - confidenciara-lhe o Padre Alvito -,
o eu não precisava ter me desviado do meu caminho para ajudá-lo. Mas estou convencido de que existe uma chance de convertê-lo. Tenho certeza. Toranaga está liquidado agora... É apenas um homem e uma alma. Tenho que tentar salvá-lo.
Padres, pensou Rodrigues. Leche em todos os padres. Mas
não em Dell'Aqua e Alvito. Oh, minha Nossa Senhora, peço desculpas por todos os meus maus pensamentos sobre ele e o Padre
Alvito. Perdoe-me e destrua o Inglês de algum modo antes que
1053
eu o tenha sob as minhas vistas. Não desejo matá-lo por causa do
meu voto sagrado, embora, diante da Senhora, eu saiba que ele
deve morrer depressa.
O timoneiro em serviço virou a ampulheta e tocou oito badaladas. Era pleno meio-dia.
CAPITULO 55
Mariko caminhava pela avenida apinhada de gente e banhada
de sol, rumo aos portões na extremidade. Atrás dela vinha uma
guarda pessoal de dez marrons. Usava um quimono verde-claro,
luvas brancas e um chapéu de viagem verde-escuro, de aba larga,
atado sob o queixo por uma fita dourada. Protegia-se do sol com
uma sombrinha iridescente. Os portões abriram-se girando sobre
os gonzos e ficaram abertos.
Estava tudo muito calmo na avenida. Cinzentos alinhavam-se
de ambos os lados e em todas as ameias. Ela podia ver o Anjin-san
no parapeito da sua ala do castelo, Yabu ao lado dele e no pátio,
a coluna à espera, com Kiri e a Senhora Sazuko. Todos os marrons estavam cerimoniosamente no adro, sob o comando de
Yoshinaka, exceto vinte deles que se erguiam no parapeito com
Blackthorne e dois a cada janela que dava para o adro.
Ao contrário dos cinzentos, nenhum dos marrons usava armadura ou portava arcos. Suas únicas armas eram espadas.
Muitas mulheres, mulheres samurais, também observavam,
algumas das janelas de outras casas fortificadas que se alinhavam
ao longo da avenida, e outras de parapeitos. Outras, ainda, erguiam-se na avenida entre os cinzentos, algumas crianças alegremente vestidas com elas. Todas as mulheres carregavam sombrinhas, embora algumas portassem espadas, direito que tinham
caso desejassem.
Kiyama se encontrava próximo ao portão com meia centena
dos seus homens, não cinzentos.
- Bom dia, senhor - dissê-lhe Mariko, e curvou-se. Ele
retribuiu a reverência e ela atravessou a arcada.
- Alô, Kiri-chan, Sazuko-chan. Como estão bonitas! Está
tudo pronto?
- Sim - retrucaram elas, com falsa jovialidade.
1054
- Bom. - Mariko subiu ao seu palanquim aberto e sentouse, as costas eretas. - Yoshinaka-san! Por favor, em marcha.
Imediatamente o capitão deu um salto à frente e gritou as
ordens. Vinte marrons formaram-se numa vanguarda e se puseram
em marcha. Carregadores levantaram o palanquim sem cortinas de
Mariko e seguiram os marrons através do portão, o palanquim de
Kiri e o da Senhora Sazuko logo atrás, a jovem segurando o
bebê nos braços.
Quando o palanquim de Mariko surgiu à luz do sol do lado
de fora dos muros, um capitão de cinzentos avançou entre a
vanguarda e o palanquim, e postou-se diretamente no caminho
dela. A vanguarda parou abruptamente. O mesmo fizeram os
carregadores.
- Por favor, com licença - disse ele a Yoshinaka -,
posso ver os seus papéis?
- Sinto muito, capitão, mas não necessitamos de papéis
- respondeu Yoshinaka em meio a grande silêncio.
- Sinto muito, mas o Senhor General Ishido, governador
do castelo, capitão da guarda pessoal do herdeiro, com a aprovação dos regentes, instituiu ordens para o castelo todo, que têm
que ser executadas.
- Sou Toda Mariko-noh-Buntaro - disse Mariko formalmente -, e tenho ordem do meu suserano, Senhor Toranaga, de
escoltar suas damas ao seu encontro. Gentilmente deixe-nos
passar.
- Eu ficaria contente em fazer isso, senhora - disse o
samurai com orgulho, plantando os pés no chão -, mas sem
papéis o meu suserano diz que ninguém pode deixar o Castelo
de Osaka. Por favor, desculpe-me.
- Capitão, qual é o seu nome, por favor? - disse Mariko.
- Sumiyori Danzenji, senhora, capitão da Quarta Legião,
e a minha linhagem é tão antiga quanto a sua.
- Sinto muito, Capitão Sumiyori, mas se não sair do caminho, ordenarei que o matem.
- A senhora não passará sem papéis!
- Por favor, mate-o, Yoshinaka-san.
Yoshinaka avançou com um pulo sem hesitação, sua espada
um arco rodopiante, e atingiu o cinzento. A lâmina enterrou-se
funda no flanco do homem e foi arrancada instantaneamente, e
o segundo golpe, mais violento, decepou-lhe a cabeça, que rolou
no pó.
Yoshinaka limpou a lâmina e embainhou-a. - Avante! 1055
ordenou à vanguarda. - Depressa! - A vanguarda formou-se
de novo e, seus passos ecoando, pôs-se em movimento. Então,
vinda de nenhum lugar, uma flecha cravou-se no peito de Yoshinaka. O cortejo parou com uma guinada. Yoshinaka silenciosamente arrancou a haste, depois seus olhos se vitrificaram e ele
caiu de borco.
Um leve gemido escapou dos lábios de Kiri. Um sopro de
ar tocou as extremidades da fita muito leve de Mariko. Em algum
ponto na avenida os gritos de uma criança foram silenciados.
Todo mundo esperava, a respiração sustida.
- Miyai Kazuko-san - chamou Mariko. - Por favor,
assuma o comando.
Kazuko era jovem, alto e muito orgulhoso, bem barbeado,
com faces fundas, e avançou dos marrons agrupados perto de
Kiyama, que se erguia ao lado do portão. Passou a passos largos
pelas liteiras de Kiri e Sazuko, deteve-se ao lado da de Mariko e
curvou-se formalmente. - Sim, senhora. Obrigado.
- Vocês! - gritou aos homens à frente. - Movam-se!
- Tensos, alguns com medo, todos fora de si, eles obedeceram
e mais uma vez a procissão começou, Kazuko caminhando junto
da liteira de Mariko. Então, cem passos à frente deles, vinte
cinzentos se moveram das fileiras cerradas de samurais e se colocaram silenciosamente de atravessado na rua. Os vinte marrons
fecharam a brecha. Então alguém vacilou e a vanguarda foi parando aos poucos.
- Tirem-nos do caminho! - gritou Kazuko.
Imediatamente um marrom saltou à frente, os outros o seguiram, e a matança tornou-se rápida e cruel. Cada vez que um cinzento tombava, outro calmamente avançava do grupo à espera para
se unir aos companheiros no massacre. Foi sempre justo, sempre
equilibradamente equiparado, homem a homem, agora dezenove
contra quinze, agora oito contra oito, alguns cinzentos feridos
debatendo-se no pó, agora três marrons contra dois cinzentos,
outro cinzento que avançou, e logo estava um a um, o último
marrom, sujo de sangue e ferido, já vitorioso quatro duelos. O
último cinzento liquidou-o facilmente e postou-se sozinho entre
os corpos, olhando para Miyai Kazuko.
Todos os marrons estavam mortos. Quatro cinzentos jaziam
feridos, dezoito mortos.
Kazuko avançou, desembainhando a espada em meio ao
enorme silêncio.
1056
- Espere - disse Mariko. - Por favor, espere, Kazuko-san.
Ele parou, mas ficou de olhos no cinzento, ansioso por
lutar. Mariko desceu do palanquim e voltou até junto de Kiyama.
- Senhor Kiyama, formalmente lhe peço, por favor, que ordene
àqueles homens saírem do caminho.
- Sinto muito, Toda-sama, as ordens do castelo devem ser
obedecidas. As ordens são legais. Mas se a senhora desejar, convocarei uma reunião dos regentes e pedirei uma orientação.
- Sou samurai. Minhas ordens são claras, de acordo com
o bushido e santificadas pelo nosso código. Devem ser obedecidas
e têm prioridade legal sobre qualquer direito feito pelo homem.
A lei pode subverter a razão, mas a razão não pode subverter
a lei. Se eu não tiver permissão para obedecer, não poderei viver
com essa vergonha.
- Convocarei uma reunião imediata.
- Por favor, desculpe-me,- senhor, o que o senhor faz é
assunto seu. Eu estou preocupada apenas com as ordens do meu
senhor e com a minha vergonha. - Deu-lhe as costas e voltou
calmamente até a frente da coluna. - Kazuko-san! Ordeno-lhe
que por favor nos leve para fora do castelo!
Ele avançou. - Meu nome é Miyai Kazuko, capitão, da
família Serata, do Terceiro Exército do Senhor Toranaga. Por
favor, saia do caminho.
- Eu sou Biwa firo, capitão da guarnição do Senhor General Ishido. Minha vida não tem valor; ainda assim o senhor
não passará - disse o cinzento.
Com o repentino grito de batalha "Toranagaaaaa!", Kazuko
investiu contra o cinzento. As espadas retiniram à medida que
os golpes e contragolpes foram aparados. Os dois homens faziam
círculos. O cinzento era bom, muito bom, assim como Kazuko.
As espadas ressoavam no choque. Ninguém mais se movia.
Kazuko venceu, mas ficou gravemente ferido e ergueu-se
sobre o inimigo, oscilando sobre os pés, e com o braço bom brandiu a espada no ar, soltando o seu grito de guerra, regozijando-se
com a sua vitória: - Toranagaaaaa! - Não houve aplauso à
sua vitória. Todos sabiam que isso seria inadequado no ritual
que os envolvia agora.
Kazuko forçou um pé à frente, depois o outro, e cambaleando ordenou: - Sigam-me! - numa voz fragmentada.
Ninguém viu de onde vieram as setas, mas elas o massacraram. E o ânimo dos marrons mudou de fatalismo para fero1057
cidade ante o insulto ao valor de Kazuko. Ele já estava morrendo
rapidamente, e teria caído logo, sozinho, ainda cumprindo o seu
dever, ainda a liderá-los para fora do castelo. Outro oficial dos
marrons se precipitou com vinte homens para formar uma nova
vanguarda, e o resto amontoou-se em torno de Mariko, Kiri e a
Senhora Sazuko.
- Avante! - gritou, ríspido, o oficial.
Pôs-se em marcha e os vinte samurais o seguiram. Como
sonâmbulos, os carregadores levantaram os seus fardos e, trôpegos, se puseram em movimento, desviando-se dos cadáveres. Então,
cem passos à frente, mais vinte cinzentos com um oficial se
moveram silenciosamente das centenas que esperavam. Os carregadores pararam. A vanguarda acelerou o passo.
- Alto! - Os oficiais se curvaram brevemente um ao outro
e anunciaram cada um a sua linhagem.
- Por favor, saia do caminho.
- Por favor, mostre-me os seus papéis.
Desta vez os marrons arremeteram imediatamente com gritos
de "Toranagaaaaa!", que foram respondidos com "Yaemoooooonn!", e a carnificina teve início. E cada vez que um cinzento
tombou, outro avançou friamente, até que todos os marrons estivessem mortos. O último cinzento limpou sua lâmina e embainhou-a, barrando sozinho a passagem. Outro oficial avançou com
vinte marrons da companhia atrás das liteiras.
- Esperem - ordenou Mariko. Pálida, desceu do palanquim, pôs a sombrinha de lado, pegou a espada de Yoshinaka
no chão, desembainhou-a e começou a avançar sozinha.
- O senhor sabe quem eu sou. Por favor, saia do meu
caminho.
- Sou Kojima Harutomo, Sexta Legião, capitão. Por favor,
desculpe-me, a senhora não pode passar - disse o cinzento
com orgulho.
Ela arremeteu, mas o golpe foi aparado. O cinzento recuou
e ficou na defensiva, embora pudesse tê-la matado sem esforço.
Foi-se retirando lentamente avenida abaixo, ela o seguindo, mas
ele a fez se esforçar por cada passo. Hesitantemente a coluna
pôs-se em movimento atrás dela. Novamente ela tentou trazer o
cinzento à luta, cortando, golpeando, sempre atacando ferozmente, mas o samurai se esquivava, evitando-lhe os golpes, guardando-se, não atacando, deixando-a se exaurir. Mas fazia isso
gravemente, com dignidade, com toda a cortesia, concedendo-lhe
a honra que lhe era devida. Ela atacou de novo, mas ele aparou
1058
o assalto violento que teria dominado um espadachim inferior,
e recuou outro passo. A transpiração dela escorria. Um marrom
começou a avançar para ajudá-la, mas o seu oficial calmamente
ordenou-lhe que parasse, sabendo que ninguém podia interferir.
Samurais de ambos os lados esperavam o sinal, ansiando pela
ordem para matar.
Na multidão, uma criança escondeu os olhos nas saias da
mãe. Gentilmente ela a forçou a olhar e se ajoelhou. - Por
favor, olhe, meu filho - murmurou. - Você é samurai.
Mariko sabia que não agüentaria muito tempo mais. Estava
arquejando agora devido ao esforço e podia sentir a malevolência
que pairava ao seu redor. Então, à frente e em toda a volta,
cinzentos começaram a se afastar dos muros e o laço em torno
da coluna rapidamente se cerrou. Alguns cinzentos caminharam
para tentar cercar Mariko e ela parou de avançar, sabendo que
podia, com toda a facilidade, ser encurralada, desarmada e capturada, o que destruiria tudo imediatamente. Agora marrons
moveram-se para assisti-la e o resto tomou posições em torno das
liteiras. O ânimo na avenida era agourento agora, cada homem
comprometido, o odor adocicado de sangue nas narinas de cada
um. A coluna foi espremida junto do portão e Mariko viu como
seria fácil para os cinzentos separá-los se desejassem e deixá-los
impotentes no meio da rua.
- Esperem! - gritou ela. Todos pararam. Fez uma meia
mesura ao seu atacante, depois, cabeça erguida, deu-lhe as costas
e se dirigiu para Kiri. - Sinto... sinto muito, mas não é possível
lutar por entre estes homens, no momento - disse, o peito
arfando. - Nós... nós devemos voltar um instante. - O suor
escorria-lhe pelo rosto quando atravessou o alinhamento de
homens. Chegando junto de Kiyama, parou e curvou-se. - Esses
homens me impediram de cumprir o meu dever, de obedecer ao
meu suserano. Não posso viver com essa vergonha, senhor. Cometerei seppuku ao pôr-do-sol. Formalmente lhe peço que seja
meu assistente.
- Não. A senhora não fará isso.
Os olhos dela faiscaram e sua voz ressoou destemida: - A
menos que sejamos autorizados a obedecer ao nosso suserano,
conforme o nosso direito, cometerei seppuku ao pôr-do-sol.
Curvou-se e caminhou na direção do portão. Kiyama curvou-se para ela e seus homens fizeram o mesmo. Então todos os
que estavam na avenida e nas ameias e nas janelas, todos se
curvaram em homenagem. Mariko atravessou a arcada, passou
1059
pelo adro, cruzou o jardim. Seus passos a levaram à rústica casa
de chá isolada. Entrou e, uma vez sozinha, chorou silenciosamente
por todos os homens que haviam morrido.
CAPÍTULO 56
- Lindo, neh? - Yabu apontava para os mortos lá embaixo.
- Por favor? - perguntou Blackthorne.
- Foi um poema. Compreende "poema"?
- Compreendo a palavra, sim.
- Foi um poema, Anjin-san. Não vê?
Se Blackthorne soubesse as palavras, teria dito: - Não,
Yabu-san. Mas vi claramente pela primeira vez o que realmente
estava na cabeça dela, no momento em que deu a primeira ordem
e Yoshinaka matou o primeiro homem. Poema? Foi um ritual
extraordinário, sem sentido, corajoso e hediondo, onde a morte
é tão formalizada e inevitável quanto na Inquisição espanhola,
e todas as mortes meramente um prelúdio para a de Mariko.
Estão todos comprometidos agora, Yabu-san - você, eu, o
castelo, Kiri, Ochiba, Ishido, todo mundo -, tudo porque ela
decidiu fazer o que decidiu que era necessário. E quando decidiu?
Há muito tempo, neh? Ou, mais corretamente, Toranaga tomou
a decisão por ela.
- Sinto muito, Yabu-san, não palavras suficientes - disse ele.
Yabu mal o ouviu. Havia silêncio nas ameias e na avenida,
todos tão imóveis quanto estátuas. Então a avenida começou a
voltar à vida, vozes abafadas, movimentos contidos, o sol batendo,
à medida que cada um ia saindo do seu transe.
Yabu suspirou, cheio de melancolia. - Foi um poema, Anjin-san - disse novamente, e se afastou do parapeito.
Quando Mariko pegara a espada e avançara sozinha, Blackthorne tivera vontade de pular para a arena e saltar em cima do
seu atacante para protegê-la, arrancar a cabeça do cinzento antes
que ela fosse abatida. Mas, como todo mundo, não fizera nada.
Não porque tivesse medo. Já não tinha medo de morrer. A coragem dela mostrara-lhe a inutilidade daquele medo e ele chegara
1060
a um acordo consigo mesmo há muito tempo, naquela noite na
aldeia com a faca.
Eu pretendia enterrar a faca no coração aquela noite.
Desde então meu medo da morte foi eliminado, exatamente
como ela disse que seria. "Só vivendo à beira da morte o senhor
pode compreender a indescritível alegria da vida." Não me lembro de Omi detendo o golpe, só de me sentir renascer quando
acordei no amanhecer seguinte.
Seus olhos observaram os mortos, lá na avenida. Eu poderia
ter matado aquele cinzento para ela, pensou, e talvez outro, e
talvez vários, mas teria sempre havido outro e a minha morte
não teria feito a balança pender nem uma fração. Não tenho
medo de morrer, disse-se ele. Só estou estarrecido de que não
haja nada que eu possa fazer para protegê-la.
Alguns cinzentos recolhiam corpos agora, marrons e cinzentos tratados com igual dignidade. Outros cinzentos estavam se
dispersando, Kiyama e seus homens entre eles, mulheres, crianças
e criadas partindo também, seus pés levantando poeira na avenida.
Ele sentiu o acre e levemente fétido odor da morte, misturado
à brisa salgada, a mente eclipsada por ela, a coragem dela, o
indefinível calor que a sua destemida coragem lhe transmitira.
Levantou os olhos para o sol e mediu-o. Seis horas para o pôrdo-sol.
Dirigiu-se às escadas que levavam para baixo.
- Anjin-san? Aonde vai, por favor?
Ele se voltou, esquecido dos seus cinzentos. O capitão o
fitava.
- Ah, desculpe. Vou lá! - Apontou para o adro.
O capitão dos cinzentos pensou um instante, depois relutantemente concordou. - Está bem. Por favor, siga-me.
No adro Blackthorne sentiu a hostilidade dos marrons para
com os cinzentos. Yabu estava em pé junto aos portões, observando os homens voltarem. Kiri e a Senhora Sazuko abanavam-se,
uma ama de leite alimentava o bebê. Estavam sentadas sobre
mantas e almofadas colocadas às pressas à sombra, numa varanda. Os carregadores amontoavam-se a um lado, acocorados num
grupo cerrado e assustado em torno da bagagem e dos cavalos de
carga. Ele se encaminhou para o jardim mas os guardas menearam a cabeça. - Sinto muito, isto está fora de limites no momento, Anjin-san.
- Sim, claro - disse ele, voltando-se. A avenida estava se
esvaziando agora, embora ainda restassem quinhentos e tantos
1061
cinzentos, acocorados ou sentados de pernas cruzadas num largo
semicírculo, encarando os portões. O remanescente dos marrons
encaminhou-se com gravidade de volta à arcada.
- Fechem os portões e barrem-nos - ordenou Yabu.
- Por favor, desculpe-me, Yabu-san - disse o oficial -,
mas a Senhora Toda disse que deviam ser deixados abertos.
Devemos guardá-los contra todos os homens, mas devem permanecer abertos.
- Tem certeza?
O oficial se empertigou. Era um homem cuidadoso, ar resoluto, por volta dos trinta anos, com um queixo saliente, bigode
e barba. - Por favor, desculpe-me, mas é claro que tenho.
- Obrigado. Não tive a intenção de ofender, neh? O senhor
é o oficial superior aqui?
- A Senhora Toda honrou-me com a sua confiança, sim.
Naturalmente o senhor é superior a mim.
- Estou no comando, mas o senhor é o encarregado.
- Obrigado, Yabu-san, mas é a Senhora Toda quem comanda aqui. O senhor é um oficial superior. Eu ficaria honrado
em ser o segundo em relação ao senhor. Se o senhor permitir.
Yabu disse, maligno: - Está permitido, capitão. Sei muito
bem quem nos comanda aqui. Seu nome, por favor?
- Sumiyori Tabito.
- O primeiro cinzento também não era Sumiyori?
- Sim, Yabu-san. Era meu primo.
- Quando estiver pronto, Capitão Sumiyori, por favor convoque uma reunião de todos os oficiais.
- Certamente, senhor. Com a permissão dela.
Os dois homens desviaram o olhar quando uma senhora
surgiu claudicando no adro. Era idosa, samurai, e apoiava-se
penosamente numa bengala. Tinha o cabelo branco mas as costas
eretas. Dirigiu-se a Kiritsubo, a criada segurando uma sombrinha
acima dela.
- Ah, Kiritsubo-san - disse formalmente. - Sou Maeda
Etsu, mãe do Senhor Maeda, e compartilho das opiniões da
Senhora Toda. Com a permissão dela, eu gostaria de ter a honra
de esperar com ela.
- Por favor, sente-se, a senhora é bem-vinda - disse Kiri.
Uma criada trouxe outra almofada e as duas criadas ajudaram a
velha senhora a se sentar.
- Ah, assim está melhor... muito melhor - disse a Se1062
nhora Etsu, contendo um gemido de dor. - São as minhas
juntas, pioram a cada dia. Ah, isso é um alívio. Obrigada.
- Aceitaria um pouco de chá?
- Primeiro chá, depois saquê, Kiritsubo-san. Muito saquê.
Toda essa excitação dá sede, neh?
Outras mulheres samurais estavam se separando da multidão
que partia e voltando através das fileiras de cinzentos para a
sombra agradável. Algumas hesitaram, três mudaram de idéia,
mas logo havia catorze senhoras na varanda, duas das quais
haviam trazido crianças consigo.
- Por favor, com licença, sou Achiko, esposa de Kiyama
Nagasama, e também quero ir para casa - disse timidamente
uma jovem, segurando a mão do filhinho. - Quero voltar para
casa, para o meu marido. Posso pedir permissão para esperar
também, por favor?
- Mas o Senhor Kiyama ficará furioso, se a senhora se
juntar a nós.
- Oh, desculpe, Kiritsubo-san, mas o Avô mal me conhece.
Sou apenas a esposa de um neto muito secundário. Tenho certeza
de que ele não se importará e não vejo meu marido há meses
e também não me importo com o que digam. Nossa senhora
tem razão, neh?
- Toda a razão, Achiko-san - disse a velha Senhora Etsu,
firmemente assumindo o controle. - Claro que você é bemvinda, criança. Venha sentar-se ao meu lado. Qual é o nome do
seu filho? Você tem um belo menino.
As senhoras concordaram em coro e outro menino, de quatro
anos, balbuciou queixosamente: - Por favor, eu também sou
um belo menino, neh? - Alguém riu e logo todas a imitaram.
- Você é, sim - disse a Senhora Etsu, e riu de novo.
Kiri secou uma lágrima. - Pronto, assim é melhor, eu estava
ficando séria demais, neh? - Soltou uma risadinha. - Ah,
senhoras, fico muito honrada em saudá-las em nome dela. Devem
todas estar famintas, e a senhora tem toda a razão, Senhora Etsu,
tudo isto dá muita sede! - Mandou criadas buscarem comida e
bebida, e apresentou as senhoras que necessitavam de apresentação, admirando um belo quimono aqui ou uma sombrinha especial ali. Logo estavam todas tagarelando e felizes, remexendo-se
como muitos periquitos.
- Como um homem pode compreender as mulheres? -
disse Sumiyori inexpressivamente.
- Impossível! - concordou Yabu.
1063
- Num momento estão assustadas e em lágrimas, no momento seguinte... Quando vi a Senhora Mariko pegar a espada
de Yoshinaka, pensei que eu morreria orgulhosamente.
- Sim. Uma pena que o último cinzento fosse tão bom.
Eu gostaria de tê-la visto matando. Ela teria matado um homem
inferior.
Sumiyori esfregou a barba no ponto onde o suor secando
irritava a pele. - O que o senhor teria feito, se fosse ele?
- Eu a teria matado, depois atacado os marrons. Houve
sangue demais lá. Fiz o que pude para não massacrar todos os
cinzentos perto de mim no parapeito.
- É bom matar às vezes. Muito bom. Algumas vezes é
muito especial, e então é melhor do que uma mulher desejosa.
Houve uma gargalhada entre as senhoras, quando os dois
menininhos começaram a se pavonear de um lado para o outro
com ar de importância, seus quimonos escarlates dançando. -
É bom ter crianças aqui novamente. Agradeço aos deuses que
as minhas estejam em Yedo.
- Sim. - Yabu olhava as mulheres especulativamente.
- Eu estava me perguntando a mesma coisa - disse Sumiyori calmamente.
- Qual é a sua resposta?
- Só há uma agora. Se Ishido nos deixar partir, ótimo. Se
o seppuku da Senhora Mariko for desperdiçado, então... então
ajudaremos essas senhoras a ir para o Vazio e começaremos o
massacre. Elas não vão querer viver.
- Algumas talvez queiram - disse Yabu.
- O senhor pode decidir isso mais tarde, Yabu-san. Beneficiaria nosso amo que todas cometessem seppuku aqui. E as
crianças.
- Sim.
- Depois guarnecemos os muros e em seguida abrimos os
portões ao amanhecer. Combateremos até o meio-dia. Será o
bastante. Depois aqueles que sobrarem voltarão para dentro e
atearão fogo a esta parte do castelo. Se eu estiver vivo, ficaria
honrado se o senhor fosse o meu assistente.
- Naturalmente.
Sumiyori sorriu, malicioso. - Isto vai dilacerar o reino, neh?
Todas essas mortes e o seppuku dela. Vai se espalhar como fogo
- vai devorar Osaka, neh? Acha que isso atrasará o Exaltado?
Seria esse o plano do nosso amo?
- Não sei. Ouça, Sumiyori, vou voltar à minha casa por
1064
um momento. Vá me buscar assim que a senhora volte. - Aproximou-se do Anjin-san, sentado na escada principal. - Ouça,
Anjin-san - disse Yabu furtivamente -, talvez eu tenha um
plano. Secreto, neh? "Secreto", compreende?
- Sim. Compreendo. - Sinos tocaram a mudança de hora.
O tempo soou na cabeça de todos, o começo da hora do Macaco,
seis badaladas do turno da tarde, três da tarde. Muitos se voltaram
para o sol e, sem pensar, mediram-no.
Que plano? - perguntou Blackthorne.
- Conversamos mais tarde. Fique por perto. Não diga
nada, compreendeu?
- Sim.
Em silêncio Yabu encaminhou-se para o portão com dez
marrons. Vinte cinzentos se engataram à escolta e, juntos. desceram a avenida. A casa de hóspedes onde Yabu se alojava não
ficava longe da primeira esquina. Os cinzentos ficaram de fora
do portão. Yabu fez sinal aos marrons que esperassem no jardim
e entrou sozinho.
- É impossível, senhor general - disse Ochiba. - O senhor não pode deixar uma dama da posição dela cometer
seppuku. Sinto muito, mas o senhor foi encurralado.
- Concordo -- disse o Senhor Kiyama vigorosamente.
Com toda a humildade, senhora - disse Ishido -, qualquer coisa que eu diga ou deixe de dizer não importa a bosta de
um eta para ela. Ela já se decidiu, pelo menos Toranaga já.
Claro que ele está por trás disso -- disse Kiyama enquanto Ochiba recuava ante a grosseria de Ishido. - Sinto muito,
mas ele o superou em astúcia de novo. Ainda assim o senhor
não pode deixá-la cometer seppuku!
- Por quê?
- Por favor, desculpe, senhor general, devemos conservar
nossas vozes baixas - disse Ochiba. Estavam esperando na espaçosa antecâmara do quarto de doente da Senhora Yodoko nos
aposentos internos do torreão, no segundo andar. - Tenho certeza de que a culpa não foi sua e de que deve haver unia solução.
Calmamente Kiyama disse: - O senhor não pode deixá-la
continuar com o plano, senhor general, porque isso estimulará
cada dama no castelo.
Ishido cravou-lhe os olhos. - O senhor parece se esquecer
de que alguns foram abatidos por engano e isso não criou agita1065
ção alguma entre eles - exceto deter outras tentativas de escapada.
- Esse foi um engano terrível, senhor general - disse
Ochiba.
- Concordo. Mas estamos em guerra, Toranaga ainda não
está em nossas mãos, e até que ele esteja morto a senhora e o
herdeiro se encontram em perigo absoluto.
- Sinto muito, não estou preocupada comigo mesma, apenas com o meu filho - disse Ochiba. Eles todos têm que
estar de volta aqui dentro de dezoito dias. Aconselho-o a deixá-los
partir.
- Isso é um risco desnecessário. Sinto muito. Não temos
certeza se ela realmente fala a sério.
- Fala - dissê-lhe Kiyama com desdém, desprezando a
truculenta presença de Ishido nos opulentos e suntuosos aposentos
que o lembravam claramente do táicum, seu amigo e venerado
protetor. - Ela é samurai.
- Sim - disse Ochiba. - Sinto muito, mas concordo com
o Senhor Kiyama. Mariko-san fará o que diz. Depois há aquela
megera Etsu! Esses Maeda são um bando orgulhoso, neh?
Ishido aproximou-se da janela e olhou para fora. - No que
me concerne podem todos pegar fogo. A mulher Toda é cristã,
neh? O suicídio não é contra a sua religião? Um pecado especial?
- Sim, mas ela terá um assistente, portanto não será suicídio.
- E se não tiver?
- O quê?
- Digamos que ela fosse desarmada e não tivesse assistente?
- Como o senhor poderia fazer isso?
- Capturando-a. Confinando-a com criadas cuidadosamente
escolhidas até que Toranaga atravessasse as nossas fronteiras. -
Ishido sorriu. - Então ela poderá fazer o que quiser. Eu ficaria
encantado em ajudá-la.
- Como poderia capturá-la? - perguntou Kiyama. - Ela
sempre teria tempo para cometer seppuku, ou para usar a própria
faca.
- Talvez. Mas digamos que ela pudesse ser capturada, desarmada e confinada por alguns dias. Esses "alguns dias" não são
vitais? Não é por isso que ela está insistindo em ir hoje, antes
que Toranaga cruze as nossas fronteiras e se castre?
- Poderia ser feito? - perguntou a Senhora Ochiba.
- Possivelmente - disse Ishido.
1066
Kiyama ponderou sobre a idéia. - Dentro de dezoito dias
Toranaga deve estar aqui. Poderia protelar junto à fronteira por
mais quatro dias, no máximo. Ela teria que ser detida por uma
semana no máximo.
- Ou para sempre - disse Ochiba. - Toranaga vem
adiando tanto que às vezes penso que nunca chegará.
- Ele tem que vir até o vigésimo segundo dia - disse
Ishido. - Ah, senhora, a idéia foi brilhante, brilhante.
- Com certeza a idéia foi sua, senhor general? - A voz de
Ochiba era apaziguadora, embora estivesse muito cansada devido
à noite insone. - E quanto ao Senhor Sudara e minha irmã?
Estão com Toranaga agora?
- Não, senhora. Ainda não. Serão trazidos para cá por mar.
- Ela não deve ser tocada - disse Ochiba. - Nem seu
filho.
- Seu filho é herdeiro direto de Toranaga, que é herdeiro
dos Minowara. Meu dever para com o herdeiro, senhora, me
faz assinalar isso novamente.
- Minha irmã não deve ser tocada. Nem o seu filho.
- Como desejar, senhora.
- Senhor - disse ela a Kiyama -, quão boa cristã é
Mariko-san?
Pura - respondeu Kiyama na hora. A senhora se
refere a suicídio sendo pecado? Eu... eu acho que ela respeitaria
isso ou a sua alma eterna estaria perdida, senhora. Mas não
sei se..
Então há uma solução mais simples - disse Ishido sem
pensar. - Mande o sumo-sacerdote dos cristãos ordenar a ela
que pare de incomodar os dirigentes legais do império!
- Ele não tem poder para isso - disse Kiyama. E acrescentou, com a voz ainda mais cheia de farpas: - Isso é interferência política - coisa a que o senhor foi sempre severamente
contra, e com razão.
- Parece que os cristãos interferem apenas quando lhes
convém - disse Ishido. - Foi apenas uma sugestão.
A porta interna se abriu e um médico apareceu. Tinha o
rosto grave, a exaustão o envelhecia. - Sinto muito, senhora,
ela a está chamando.
- Está morrendo? - perguntou Ishido.
- Está perto da morte, senhor general, sim, mas quando,
não sei.
Ochiba atravessou às pressas o comprido aposento, cruzou
1067
a porta interna, seu quimono azul justo, as saias ondulando graciosamente. Os dois homens a observaram. A porta se fechou.
Por um momento os dois evitaram os olhos um do outro, depois
Kiyama disse: - Acha mesmo que a Senhora Toda poderia ser
capturada?
- Sim - disse Ishido, olhando para a porta.
Ochiba atravessou o aposento ainda mais opulento e se ajoelhou ao lado dos futons. Criadas e médicos rodeavam-nos. A luz
do sol filtrava-se pelas venezianas de bambu e deslizava pelos
entalhes dourados e vermelhos das vigas, colunas e portas. A
cama de Yodoko estava rodeada de biombos decorativos entalhados. Ela parecia adormecida, o rosto exangue emoldurado pelo
capuz de seu hábito budista, os pulsos magros, as veias nodosas,
e Ochiba pensou em como era triste envelhecer. A idade é tão
injusta para as mulheres. Não para os homens, apenas para as
mulheres. Os deuses me protejam da velhice, orou. Buda proteja
meu filho e o ponha em segurança no poder e me proteja apenas
enquanto eu for capaz de protegê-lo e ajudá-lo.
Pegou a mão de Yodoko, respeitando-a. - Senhora?
- O-chan? - sussurrou Yodoko, usando-lhe o apelido.
- Sim, senhora?
- Ah, como você está bonita, tão bonita, você sempre o foi.
- A mão se ergueu e acariciou o belo cabelo e Ochiba não se
ofendeu com o toque, pelo contrário, apreciou-o como sempre,
gostando imensamente dela. - Tão jovem e bela e perfumada.
Como o táicum teve sorte.
- Sente dor, senhora? Posso trazer-lhe alguma coisa?
- Nada... nada. Só queria conversar. - Os velhos olhos
estavam encovados mas não haviam perdido nada da sua astúcia.
- Mande os outros embora.
Ochiba fez-lhes sinal que saíssem e, quando ficaram as duas
sozinhas, disse: - Sim, senhora?
- Ouça, minha querida, faça o senhor general deixá-la ir.
- Ele não pode, senhora, ou todos os outros reféns partirão
e perderemos força. Todos os regentes concordam - disse
Ochiba.
- Regentes! - disse Yodoko com uma ponta de desprezo.
- Você concorda?
- Sim, senhora, e à noite passada a senhora disse que ela
não devia ir.
1068
- Agora você deve deixá-la ir ou outros a seguirão no
seppuku e você e nosso filho serão maculados por causa do
engano de Ishido.
- O senhor general é leal, senhora. Toranaga não, sinto
muito.
- Você pode confiar no Senhor Toranaga, não nele.
Ochiba meneou a cabeça. - Sinto muito, mas estou convencida de que Toranaga se empenha em tornar-se xógum e
destruirá nosso filho.
- Está enganada. Ele disse isso mil vezes. Outros daimios
estão tentando usá-lo pelas suas próprias ambições. Sempre fizeram isso. Toranaga era o favorito do táicum, Toranaga sempre
respeitou o herdeiro. Toranaga é Minowara. Não se deixe influenciar por Ishido, ou pelos regentes. Eles têm seus próprios karmas,
seus próprios segredos, O-chan. Por que não deixá-la partir? É
tudo tão simples. Proíba-lhe o mar, então ela sempre pode ser
atrasada em algum lugar dentro das nossas fronteiras. Ela ainda
está na rede do seu general, e Kiri e todas as outras, neh? Estará
rodeada de cinzentos. Pense como o táicum pensaria, ou como
Toranaga. Você e nosso filho estão sendo levados. . - As
palavras se arrastaram e suas pálpebras começaram a palpitar.
A velha senhora reuniu as forças remanescentes e continuou:
- Mariko-san nunca poderia objetar a guardas. Sei que ela
pretende fazer o que diz. Deixe-a ir.
- Claro que isso foi considerado, senhora - disse Ochiba,
a voz gentil e paciente -, mas fora do castelo Toranaga tem
grupos secretos de samurais, escondidos dentro e em torno de
Osaka, não sabemos quantos, e tem aliados - não temos certeza
de quem. Ela poderia escapar. Uma vez'que se vá, todas as outras
a seguiriam imediatamente e perderíamos uma grande segurança.
A senhora concordou, Yodoko-chan, não se lembra? Sinto muito,
mas eu lhe perguntei ontem à noite, não se lembra?
- Sim, lembro, criança - disse Yodoko, a mente devaneando. - Oh, como gostaria que o senhor táicum estivesse aqui
de novo para orientá-la. - A respiração da velha estava se tornando forçada.
- Posso dar-lhe um pouco de chá, ou saque?
- Chá, sim, por favor, um pouco de chá.
Ela ajudou-a a beber. - Obrigada, criança. -- A voz estava
mais débil agora, o esforço da conversa apressando a agonia.
- Ouça, criança, deve confiar em Toranaga. Case-se com ele,
negocie com ele pela sucessão.
1069
- Não, não - disse Ochiba, chocada.
- Yaemon poderia governar depois dele, e então o fruto do
seu novo casamento depois do nosso filho. Os filhos do nosso filho
jurarão honrosamente fidelidade eterna a essa nova linhagem
Toranaga.
- Toranaga sempre odiou o táicum. Sabe disso, senhora.
Toranaga é a fonte de todo o problema. Há anos, neh? Ele!
- E você? E o seu orgulho, criança?
- Ele é o inimigo, nosso inimigo.
- Você tem dois inimigos, criança. Seu orgulho e a necessidade de ter um homem que se compare ao nosso marido. Por
favor, seja paciente comigo, você é jovem, bela, fértil e merece
um marido. Toranaga é digno de você, você dele. Toranaga é a
única chance que Yaemon tem.
- Não, ele é o inimigo.
- Ele era o melhor amigo do nosso marido e seu mais
leal vassalo. Sim ... sem Toranaga ... você não vê ... foi a
ajuda de Toranaga... não percebe? Você poderia manobrar ...
manobrá-lo ...
- Sinto muito, mas eu o odeio, ele me enoja, Yodoko-chan.
- Muitas mulheres... O que eu estava dizendo? Ah, sim,
muitas mulheres se casam com homens que as enojam. Graças
a Buda eu nunca tive que sofrer isso. . . - A velha dama sorriu
brevemente. Depois suspirou. Foi um longo e sério suspiro, prolongou-se muito tempo, e Ochiba pensou que o fim tivesse chegado. Mas os olhos se abriram um pouco e uma voz minúscula
soou de novo. - Neh?
- Sim.
- Faça. Por favor?
- Pensarei nisso.
Os velhos dedos tentaram apertar. - Imploro-lhe, prometame que se casará com Toranaga e eu irei para Buda sabendo que
a linhagem do táicum viverá para sempre, como o nome dele ...
o nome dele viverá par...
As lágrimas correram livremente pela face de Ochiba enquanto ela acariciava a mão lânguida.
Pouco depois os olhos tremeram e a velha sussurrou: -
Você deve deixar Akechi Mariko partir. Não... não a deixe
tomar vingança contra nós pelo que o táicum fez... fez ao... ao
pai dela...
Ochiba foi pega desprevenida. - O quê?
Não houve resposta. Alguns instantes depois Yodoko come1070
çou a murmurar Querido Yaemon, alô, meu querido filho,
como ... você é um menino tão belo, mas tem muitos inimigos,
tão tolos, tão ... Você também não é apenas uma ilusão, não é...
Um espasmo torturava-a. Ochiba segurou-lhe a mão e acariciou-a. - Namu Amida Butsu - sussurrou em homenagem.
Houve outro espasmo, então a velha dama disse claramente:
- Perdoe-me, O-chan.
- Não há nada a perdoar, senhora.
- Há muito a perdoar... - A voz se tornou mais tênue,
e a luz começou a se esvair do seu rosto. - Ouça ... prom-prometa sobre... sobre Toranaga, Ochiba-sarna... importante .. .
por favor... pode confiar nele... - Os velhos olhos suplicavam, desejavam.
Ochiba não queria obedecer, embora soubesse que devia.
Sua mente estava perturbada pelo que fora dito sobre Akechi
Mariko, e ainda ressoava com as palavras do táicum, repetidas
dez mil vezes: - Pode confiar em Yodoko-sarna, O-chan. Ela é
a Sábia, nunca se esqueça disso. Ela tem razão a maior parte das
vezes e você pode sempre confiar nela com a própria vida, a vida
do meu filho e a minha ...
Ochiba cedeu. - Eu prom. . . - Parou abruptamente.
A luz de Yodoko-sarna bruxuleou uma última vez e extinguiu-se.
- Namu Amida Butsu. - Ochiba levou-lhe a mão aos
lábios, curvou-se, estendeu a mão de novo sobre a coberta e
fechou-lhe os olhos, pensando na morte do táicum, a única
outra morte que presenciara tão de perto. Daquela vez a Senhora
Yodoko fechara os olhos, como era privilégio de esposa, e fora
naquela mesma sala, Toranaga esperando do lado de fora, assim
como Ishido e Kiyama estavam agora, continuando a vigília que
se iniciara na véspera.
- Mas por que mandar chamar Toranaga, senhor? -
perguntara ela. - O senhor devia descansar.
- Descansarei quando estiver morto, O-chan - dissera o
táicum. - Preciso determinar a sucessão. Finalmente. Enquanto
tenho forças.
Então Toranaga chegara, forte, vital, transbordante de poder.
Os quatro ficaram sozinhos: Ochiba, Yodoko, Toranaga e Nakamura, o táicum, senhor do Japão, em seu leito de morte, todos
à espera das ordens que seriam obedecidas.
- Bem, Tora-san - dissera o táicum, recebendo-o com o
apelido que Goroda dera a Toranaga fazia muito tempo, os
1071
olhos fundos perscrutando do minúsculo e mirrado rosto simiesco,
cravado num corpo igualmente minúsculo, um corpo que tivera
a força do aço até poucos meses antes, quando a devastação
começara. - Estou morrendo. Do nada para o nada, mas você
estará vivo e meu filho, indefeso.
- Indefeso, não, senhor. Todos os daimios honrarão seu
filho como honram o senhor.
O táicum riu. - Sim, respeitarão. Hoje. Enquanto estou
vivo, ah, sim! Como posso garantir que Yaemon governará depois de mim?
- Designe um conselho de regentes, senhor.
- Regentes! - dissera o táicum com desdém. - Talvez
eu devesse tornar você meu herdeiro e deixá-lo julgar se Yaemon
é digno de segui-lo.
Eu não seria digno de fazer isso. Seu filho deve segui-lo.
- Sim, e os filhos de Goroda deveriam tê-lo seguido.
- Não. Eles romperam a paz.
- E você os destruiu por ordem minha.
- O senhor detinha o mandato do imperador. Eles se rebelaram contra o seu mandato legal, senhor. Dê-me as suas ordens
agora, e obedecerei.
- Foi por isso que o chamei aqui.
Depois o táicum dissera: - É uma coisa rara ter um filho
aos cinqüenta e sete anos e uma coisa abominável morrer aos
sessenta e três - se ele é o único filho e você não tem parentes
e é senhor do Japão. Neh?
- Sim -- dissera Toranaga.
- Talvez fosse melhor eu nunca ter tido um filho, assim
poderia passar o reino a você, conforme combinamos. Você tem
mais filhos do que um português tem piolhos.
- Karma.
O táicum rira e um fio de saliva, salpicada de sangue, escorrera-lhe da boca. Com grande cuidado, Yodoko limpara a saliva
e ele sorrira para a esposa. - Obrigado, Yo-chan, obrigado.
- Depois os olhos se voltaram para Ochiba e Ochiba sorrira,
mas os olhos não estavam sorridentes agora, apenas perscrutadores, inquisitivos, ponderando sobre a pergunta, a pergunta que
nunca ousara fazer, que ela tinha certeza estivera sempre na
mente dele: Yaemon é meu filho mesmo?
- Karma, O-chan. Neh? - dissera gentilmente, mas o
medo de Ochiba de que ele lhe perguntasse diretamente atormentara-a e lágrimas cintilaram-lhe nos olhos.
1072
- Não há necessidade de lágrimas, O-chan. A vida é apenas
um sonho dentro de um sonho - dissera o velho. Estivera um
momento cismando, depois perscrutara Toranaga de novo, e com
um repentino e inesperado calor, pelo qual era famoso, dissera:
- Iüih, amigo velho, que vida tivemos, neh? Todas as batalhas?
Lutando lado a lado - imbatíveis juntos. Fizemos o impossível,
neh? Juntos humilhamos os poderosos e cuspimos no rabo levantado deles, enquanto pediam mais. Nós... nós o fizemos, um
camponês e um Minowara! O velho casquinara. - Ouça, mais
alguns anos e eu teria esmagado os comedores de alho adequadamente. Depois, com legiões coreanas e as nossas legiões japonesas, uma arremetida violenta até Pequim e eu no Trono do
Dragão da China. Então eu lhe teria dado o Japão, que você
deseja, e teria tido o que desejo. - A voz era forte, desmentindo
a fragilidade interior. - Um camponês pode se aboletar no Trono
do Dragão com dignidade e honra - não é como aqui. Neh?
- A China e o Japão são diferentes, sim, senhor.
- Sim. Eles são sábios na China. Lá o primeiro de uma
dinastia é sempre um camponês ou o filho de um camponês, e o
trono é sempre tomado à força, com mãos ensangüentadas. Nada
de castelo hereditário lá - não é essa a força da China? -
Novamente a risada. - Força, mãos ensangüentadas e camponês
- isso sou eu. Neh?
- Sim. Mas o senhor também é samurai. O senhor mudou
as regras aqui. É o primeiro de uma dinastia.
- Sempre gostei de você, Tora-chan. O velho tomara
um gole de chá, contente. - Sim, imagine só, eu no Trono do
Dragão, imagine! Imperador da China, Yodoko imperatriz, e
depois dela Ochiba, a Bela, e depois de mim Yaemon, e a China
e o Japão unidos para sempre, como deveriam estar. Ah, teria sido
tão fácil! Depois, com as nossas legiões e as hordas chinesas eu
dispararia para noroeste e, como prostitutas de décima classe, os
impérios do mundo inteiro se deitariam arquejantes no pó, as
pernas arreganhadas para que nós pegássemos o que quiséssemos.
Somos imbatíveis - você e eu éramos imbatíveis -, os japoneses
são imbatíveis, claro que são conhecemos todo o sentido da
vida. Neh?
- Sim.
Os olhos cintilavam estranhamente. - O que será?
- Dever, disciplina e morte - respondera Toranaga.
Novamente uma risadinha, o velho aparentemente mais minúsculo do que nunca, mais mirrado do que nunca, e depois,
1073
num repente igual, pelo que também era famoso, toda a cordialidade o abandonara. - Os regentes? - perguntara, a voz maligna e firme. - A quem você escolheria?
- Os senhores Kiyama, Ishido, Onoshi, Toda Hiro-matsu
e Sugiyama.
O rosto do táicum se arreganhara num sorriso malicioso.
- Você é o homem mais esperto do império - depois de
mim! Explique a estas senhoras por que você escolheria esses
cinco.
- Porque todos se odeiam mutuamente, mas em conjunto
podem governar de modo eficaz e aniquilar toda oposição.
- Até você?
- Não, não a mim, senhor. - Depois Toranaga olhara
para Ochiba e falara diretamente a ela: - Para que Yaemon
herde o poder, a senhora tem que resistir mais nove anos. Para
isso, acima de tudo o mais, deve preservar a paz do táicum.
Escolho Kiyama porque é o daimio cristão chefe... um grande
general, e um vassalo muito leal. Depois, Sugiyama porque é o
daimio mais rico do país, sua família é antiga, detesta visceralmente os cristãos, e tem tudo a ganhar se Yaemon assumir o
poder. Onoshi, porque detesta Kiyama, contrabalança o poder
dele, também é cristão, mas um leproso que se agarra à vida,
viverá vinte anos e odeia todos os outros com uma violência
monstruosa, particularmente Ishido. Ishido, porque estará farejando conspirações, porque é camponês, detesta os samurais hereditários, e é violentamente contra os cristãos. Toda Hiro-matsu
porque é honesto, obediente e leal, tão constante quanto o sol
e tão abrupto quanto a melhor espada do melhor mestre espadeiro. Deveria ser o presidente do conselho.
- E você?
- Eu cometerei seppuku com meu filho mais velho, Noboru. Meu filho Sudara está casado com a irmã da Senhora
Ochiba, portanto não representa ameaça, nunca poderia ser uma
ameaça. Poderia herdar o Kwanto, se lhe aprouvesse, desde que
jure lealdade perpétua à sua casa.
Ninguém se surpreendera de que Toranaga se tivesse oferecido para fazer o que obviamente estava na mente do táicum,
pois Toranaga, dentre todos os daimios, era a única ameaça real.
Então Ochiba ouvira o marido dizer: - O-chan, qual é o seu
conselho?
- Tudo o que o Senhor Toranaga disse, senhor - respondera ela de imediato -, exceto que o senhor deve ordenar que
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minha irmã se divorcie de Sudara, o qual deve cometer seppuku.
O Senhor Noboru deve ser o herdeiro do Senhor Toranaga e
deve herdar as duas províncias de Musashi e Shimoosa, e o resto
do Kwanto deve ir para o seu herdeiro, Yaemon. Aconselho que
isso seja ordenado hoje.
- Yodoko-sama?
Para surpresa de Ochiba, Yodoko dissera: - Ah, Tokichi,
você sabe que o adoro com todo o coração, e a O-chan, e a
Yaemon como meu próprio filho. Digo que torne Toranaga o
único regente.
- O quê?
- Se lhe ordenar que morra, penso que você mata nosso
filho. Apenas o Senhor Toranaga tem habilidade suficiente, prestígio suficiente, astúcia suficiente para herdar agora. Coloque
Yaemon sob a custódia dele até que tenha idade. Ordene ao Senhor Toranaga que adote formalmente o nosso filho. Deixe Yaemon ser preparado pelo Senhor Toranaga e herdar depois de
Toranaga.
- Não, isso não deve ser feito - protestara Ochiba.
- O que diz a isso, Tora-san? - perguntou o táicum.
- Com humildade devo recusar, senhor. Não posso aceitar
isso e imploro-lhe que me autorize a cometer seppuku e parta
antes do senhor.
- Você será o único regente.
- Nunca me recusei a obedecer-lhe desde que fizemos o
nosso trato. Mas esta ordem eu recuso.
Ochiba lembrou-se de como tentara convencer o táicum a
deixar Toranaga se destruir, conforme sabia que o táicum já
decidira. Mas o táicum mudara de idéia e, finalmente, aceitara
parte do que Yodoko aconselhara, e fizera o compromisso de
que Toranaga seria um regente e presidente do conselho. Toranaga jurara fidelidade eterna a Yaemon, mas agora ainda estava
tecendo a trama que os enredava a todos, como a crise que Mariko
precipitara. - Sei que foi por ordem dele - murmurou Ochiba,
e agora a Senhora Yodoko queria que ela se submetesse totalmente a ele.
Casar com Toranaga? Buda me proteja dessa vergonha, de
ter que acolhê-lo e sentir-lhe o peso e sua vida esguichando
dentro de mim.
Vergonha?
Ochiba, qual é a verdade? perguntou-se ela. A verdade é
que você já o desejou uma vez - antes do táicum, neh? Mesmo
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durante, neh? Muitas vezes, no seu coração secreto. Neh? Yodoko, a Sábia, estava certa de novo quando disse que o orgulho
é seu inimigo, e quando falou da necessidade de um homem,
um marido. Por que não aceitar Ishido? Ele a respeita, deseja-a,
e vai vencer. Seria fácil de manobrar. Neh? Não, não aquele
porco grosseiro! Oh, eu sei dos rumores infames espalhados pelos
inimigos - despropósito infame! Juro que preferiria me deitar
com as minhas criadas e confiar num harigata por mais mil vidas
a abusar da memória do meu senhor com Ishido. Seja honesta,
Ochiba. Considere Toranaga. Na realidade você não o odeia só
porque talvez ele a tenha visto naquele dia de sonho?
Fora há mais de seis anos, em Kyushu, quando ela e suas
damas estavam falcoando com o táicum e Toranaga. O grupo estava disperso sobre uma área muito vasta e ela galopava atrás de um
dos seus falcões, separada dos outros. Encontrava-se nas colinas,
num bosque, e de repente topara com aquele camponês colhendo
amoras ao lado da trilha solitária. Seu primeiro e doentio filho
morrera há dois anos e não houvera mais agitações no seu
útero, embora tivesse tentado todas as posições, truques, dietas,
todas as superstições, poções, preces, aflita por satisfazer a obsessão do seu senhor por um herdeiro.
O encontro com o camponês fora muito repentino. Ele a
olhara apalermado como se ela fosse um karni e ela a ele porque
era a imagem do táicum, pequeno e simiesco, mas tinha juventude.
Sua mente gritara que ali estava o presente dos deuses pelo
qual orara, e desmontara, tomara a mão dele, entraram juntos
alguns passos no bosque, e ela fora como uma cadela no cio.
Tudo tivera uma qualidade de sonho, o desvario, a luxúria,
a rudeza, deitados sobre a terra, e mesmo hoje ela ainda sentia
o esguicho do seu líquido de fogo, sua respiração doce, suas
mãos a apertá-la maravilhosamente. Então sentira todo o peso
morto dele e abruptamente sua respiração se tornara pútrida e
tudo nele vil, exceto o líquido, por isso ela o empurrara. Ele
quisera mais, mas ela lhe batera, amaldiçoara-o, e lhe dissera que
agradecesse aos deuses que ela não o transformasse numa árvore
pela insolência, e o pobre imbecil supersticioso se encolhera de
joelhos, implorando-lhe perdão - claro que ela era um kami,
por que outro motivo uma beleza como aquela se contorceria
no pó por alguém como ele?
Enfraquecida ela subira para a sela e se afastara, entorpecida, o homem e a clareira logo perdidos, meio perguntando a
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si mesma se tudo não fora um sonho e o camponês um verdadeiro kami, rezando para que fosse um kami, sua essência dada
pelos deuses, para que fizesse outro filho para a glória do seu
senhor e a paz que ele merecia. Então, bem do outro lado do
bosque, Toranaga a esperava. Será que me viu? perguntara-se ela,
em pânico.
- Estava preocupado por sua causa, senhora - dissera ele.
- Eu ... eu estou perfeitamente bem, obrigada.
- Mas o seu quimono está todo rasgado... está com folhas nas costas e no cabelo...
-- Meu cavalo me derrubou ... não é nada. - Então o
desafiara para uma corrida até em casa, para provar que não
havia nada de errado, e disparara como o vento selvagem, as
costas ainda doendo por causa dos arbustos espinhosos, mas óleos
perfumados logo as aliviariam e, na mesma noite, ela dormira
com seu senhor e amo, e nove meses mais tarde dera à luz Yaemon, para eterna alegria dele. E dela.
- Claro que nosso marido é pai de Yaemon - disse Ochiba
com toda a certeza ao cadáver de Yodoko. - Ele gerou meus
dois filhos - o outro foi um sonho.
Por que se iludir? Não foi um sonho, pensou ela. Aconteceu.
Aquele homem não era um kami. Você se entregou a um camponês no chão para gerar um filho de que você precisava tão
desesperadamente quanto o táicum, para atá-lo a você. Ele teria
tomado outra consorte, neh?
E o seu primogênito?
- Karma - disse Ochiba, ignorando esse sofrimento latente
também.
- Beba isto, criança - dissera Yodoko quando ela tinha
dezesseis anos, um ano depois de ter-se tornado consorte formal
do táicum. E ela bebera o estranho e quente chá de ervas e se
sentira muito sonolenta, e na noite seguinte quando despertou
lembrava-se apenas de estranhos sonhos eróticos, cores bizarras
e uma misteriosa ausência de tempo. Yodoko estava lá quando
ela acordara, assim como quando adormecera, muito atenciosa, e
tão preocupada com a harmonia do seu senhor quanto ela mesma.
Nove meses mais tarde ela dera à luz, a primeira de todas as
mulheres do táicum a fazer isso. Mas a criança era doentia e
morreu logo.
Karma, pensou.
Nunca se dissera nada entre ela e Yodoko. Sobre o que
acontecera, ou que poderia ter acontecido durante aquele vasto
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e profundo sono. Nada, exceto o "Perdoe-me..." alguns minutos
antes, e o "Não há nada a perdoar".
A senhora é irreprochável, Yodoko-sama, e não ocorreu
nada, nenhum ato secreto, nada. E se ocorreu, descanse em paz,
agora o segredo jaz enterrado com a senhora. Seus olhos fitaram
o rosto vazio, tão frágil e patético agora, exatamente como o
táicum no fim, a pergunta dele também nunca formulada. Karma
que ele tenha morrido, pensou ela, sem emoção. Se tivesse vivido
mais dez anos, eu seria imperatriz da China, mas agora ... agora
estou sozinha.
- Estranho que tenha morrido antes que eu pudesse prometer, senhora - disse, o odor de incenso e o almíscar da morte
rodeando-a. - Eu teria prometido, mas a senhora morreu antes.
Será meu karma também? Obedeço a um pedido e a uma promessa não pronunciada? O que devo fazer?
Meu filho, meu filho, sinto-me tão desamparada.
Então se lembrou de uma coisa que a Sábia dissera: -
Pense como o táicum pensaria - ou como Toranaga pensaria.
Ochiba sentiu uma nova força percorrê-la. Sentou-se no silêncio e, friamente, começou a obedecer.
Em meio a um silêncio repentino, Chimmoko saiu dos pequenos portões para o jardim, dirigiu-se para Blackthorne e sorriu.
- Anjin-san, por favor, com licença, minha ama deseja vê-lo. Se
esperar um momento eu o acompanharei.
- Está bem. Obrigado. - Blackthorne levantou-se, ainda
mergulhado no seu devaneio e na acabrunhante sensação de perdição. As sombras estavam longas agora. Parte do adro já estava
sem sol. Os cinzentos prepararam-se para se mover com ele.
Chimmoko aproximou-se de Sumiyori. - Por favor, com
licença, capitão, mas a minha senhora pede que o senhor, por
favor, prepare tudo.
- Onde ela quer que seja feito?
A criada apontou para o espaço diante do arco. - Ali,
senhor.
Sumiyori ficou surpreso. - Vai ser em público? Não em
particular, com apenas algumas testemunhas? Ela vai fazer para
que todos vejam?
- Sim.
- Mas, bem ... se deve ser aqui ... o ... o .. e o assistente dela?
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- Ela acredita que o Senhor Kiyama a honrará.
- E se não o fizer?
- Não sei, capitão. Ela... ela não me disse. - Chimmoko
curvou-se e se dirigiu à varanda, para se curvar de novo. -
Kiritsubo-san, minha ama diz que retornará em breve.
- Ela está bem?
- Oh, sim - disse Chimmoko com orgulho.
Kiri e as outras estavam quietas agora. Quando ouviram o
que foi dito ao capitão, ficaram igualmente perturbadas. - Ela
sabe que há outras senhoras esperando para saudá-la?
- Oh, sim, Kiritsubo-san. Eu ... eu estava olhando, e disse
a ela. Disse que fica honrada com a presença dessas senhoras e
que lhes agradecerá pessoalmente em breve. Por favor, com
licença.
Todos viram-na voltar para os portões e chamar Blackthorne
com um gesto. Os cinzentos começaram a segui-lo, mas Chimmoko
meneou a cabeça e disse que sua ama não os havia convidado.
O capitão permitiu que Blackthorne partisse.
Do outro lado dos portões do jardim era como um mundo
diferente, verdejante e sereno, o sol batendo no topo das árvores,
pássaros chilreando e insetos à cata de alimento, o córrego caindo
suavemente no tanque de lírios. Mas ele não conseguiu dissipar
a própria tristeza.
Chimmoko parou e apontou para a pequena casa de chano-yu. Ele avançou sozinho. Descalçou as sandálias e subiu os
três degraus. Teve que se dobrar, pondo-se quase de joelhos,
para passar pela minúscula porta.
- Você - disse ela em latim.
- Você - respondeu ele.
Ela estava ajoelhada, encarando a porta, maquilada de pouco,
lábios carmesins, um penteado imaculado. um quimono azul-claro
barrado de verde, com um obi mais claro e uma fina fita verde
no cabelo.
- Você está linda.
- E você. - Um esboço de sorriso. - Sinto muito que
tenha sido necessário que você presenciasse.
- Era meu dever.
- Dever, não - disse ela. - Eu não esperava, nem planejei, tantas mortes.
- Karma. - Blackthorne arrancou-se do transe em que
encontrava e parou de falar em latim. - Você vinha planejando
tudo isto há muito tempo - o seu suicídio. Neh?
1079
se
- Minha vida nunca foi minha, Anjin-san. Sempre pertenceu ao meu suserano e, depois dele, ao meu amo. Essa é a
nossa lei.
- É uma péssima lei.
- Sim. E não. - Ela levantou os olhos das esteiras. - Você
vai discutir sobre coisas que não podem ser alteradas?
- Não. Por favor, desculpe-me.
- Eu o amo - disse ela, em latim.
- Sim. Sei disso agora. E eu a amo. Mas a morte é o seu
objetivo, Mariko-san.
- Engana-se, meu querido. A vida do meu amo é o meu
objetivo. E a sua vida. E sinceramente, Nossa Senhora me perdoe
ou me abençoe por isso, há momentos em que a sua vida é mais
importante.
- Não há escapatória agora. Para mais ninguém.
- Seja paciente. O sol ainda não se pôs.
- Não confio nesse sol, Mariko-san. - Ele estendeu a mão
e tocou-a. - Gomen nasal.
- Prometi-lhe que esta noite seria como na Hospedaria das
Flores. Seja paciente. Conheço Ishido, Ochiba e os outros.
- Que va com os outros - disse ele em português, seu
ânimo se alterando. - Você quer dizer que está se arriscando
porque Toranaga sabe o que está fazendo. Neh?
- Que va com o seu mau humor - retrucou ela gentilmente. - Este dia é curto demais.
- Desculpe. Você tem razão novamente. Hoje não há tempo
para maus humores. - Olhou-a. O rosto dela estava raiado com
a sombra lançada pelo sol através das ripas de bambu. As sombras subiram e desapareceram quando o sol mergulhou atrás de
uma ameia. - O que posso fazer para ajudá-la?
- Acredite que existe um amanhã.
Por um momento ele apreendeu um lampejo do terror dela.
Seus braços a rodearam e a espera deixou de ser terrível.
Passos se aproximaram.
- Sim, Chimmoko?
- É hora, ama.
- Está tudo pronto?
- Sim, ama.
- Espere-me junto do tanque de lírios. - Os passos se
afastaram, Mariko voltou-se para Blackthorne e beijou-o suavemente.
- Eu o amo - disse.
- Eu a amo.
Curvou-se para ele e atravessou a porta. Ele a seguiu.
Mariko parou ao lado do tanque de lírios, desatou o obi e
deixou-o cair.
Chimmoko ajudou-a a tirar o quimono azul. Por baixo
Mariko usava o quimono e o obi do branco mais brilhante que
Blackthorne jamais vira. Era um quimono de morte formal. Ela
desatou a fita verde do cabelo e colocou-a de lado. Depois, completamente de branco, pôs-se em movimento e não olhou para
Blackthorne.
Do outro lado do jardim, todos os marrons estavam postados
num quadro formal de três lados em torno dos oito tatamis que
tinham sido estendidos no centro da entrada principal. Yabu, Kiri
o o restante das senhoras estavam sentados numa linha no lugar
de honra, voltados para o sul. Na avenida os cinzentos também
estavam postados cerimoniosamente, e, misturados a eles, outros
samurais e mulheres samurais. A um sinal de Sumiyori, todos se
curvaram. Ela retribuiu-lhes a mesura. Quatro samurais deram
um passo à frente e estenderam uma manta carmesim sobre os
tatamis.
Mariko dirigiu-se a Kiritsubo e a saudou, assim como a
Sazuko e a todas as senhoras. Elas lhe retribuíram a reverência
o pronunciaram as saudações mais formais. Blackthorne esperava
junto aos portões. Viu-a se afastar das senhoras, ir para o quadro carmesim e se ajoelhar no centro, diante de uma minúscula
almofada branca. Sua mão direita sacou o estilete do obi branco
o colocou-o sobre a almofada à sua frente. Chimmoko avançou
e, ajoelhando-se também, ofereceu-lhe uma manta pequena e de
um branco puro, e um cordão. Mariko arrumou as saias do quimono com perfeição, a criada ajudando-a, depois amarrou a
manta em torno da cintura com o cordão. Blackthorne sabia que
aquilo era para impedir suas saias de serem manchadas de sangue
o desarrumadas pelos espasmos da morte.
Depois, serena e preparada, Mariko levantou os olhos para
o torreão do castelo. O sol ainda iluminava o último andar, reluzindo nas telhas douradas. Rapidamente a luz flamejante subia
pelo cone. E desapareceu.
Ela parecia minúscula, sentada ali imóvel, um salpico de
branco sobre o quadro carmesim.
1080
1081
A avenida já estava escura e criados acendiam archotes.
Quando acabaram, desapareceram tão rápida e silenciosamente
quanto haviam chegado.
Ela se inclinou para a frente, tocou a faca e endireitou-a.
Depois olhou fixamente mais uma vez através do portão para a
extremidade da avenida, que continuava tão imóvel e vazia quanto
sempre estivera. Olhou novamente para a faca.
- Kasigi Yabu-sama!
- Sim, Toda-sama?
- Parece que o Senhor Kiyama recusou-se a me assistir.
Por favor, eu ficaria honrada se o senhor fosse o meu assistente.
- A honra é minha - disse Yabu. Curvou-se, pôs-se de
pé e parou ao lado dela, à esquerda. Sua espada cantou ao deslizar para fora da bainha. Firmou os pés e levantou a espada com
as duas mãos. - Estou pronto, senhora - disse.
- Por favor, espere até que eu tenha feito o segundo corte.
Os olhos dela estavam na faca. Com a mão direita, fez o
sinal-da-cruz sobre o peito, depois se inclinou para a frente, pegou
a faca sem tremer e tocou-a com os lábios como que para testar
o aço polido. Depois mudou a posição da faca na mão e segurou-a firmemente sob o lado esquerdo do pescoço. Nesse momento
archotes contornaram a extremidade da avenida. Um cortejo se
aproximou. Ishido vinha à frente.
Ela não moveu a faca.
Yabu ainda estava como uma mola enrolada, concentrado
no alvo. - Senhora - disse -, espera ou continua? Quero ser
perfeito para a senhora.
Mariko forçou-se a voltar da beira do abismo. - Eu... nós
esperamos... nós... eu... - Sua mão baixou a faca. Estava
tremendo agora. De modo igualmente lento, Yabu descontraiu-se.
Sua espada sibilou de volta para dentro da bainha e ele enxugou
as mãos nos flancos.
Ishido surgiu ao portão. - Ainda não é o crepúsculo, senhora. O sol ainda está no horizonte. Está tão ansiosa por morrer?
- Não, senhor general. Apenas para obedecer ao meu senhor. . . - Apertou uma mão contra a outra para fazê-las parar
de tremer.
Um rolar surdo de cólera percorreu os marrons ante a arrogante rudeza de Ishido e Yabu preparou-se para pular em cima
dele, mas parou quando Ishido disse sonoramente: - A Senhora
Ochiba implorou aos regentes, em nome do herdeiro, que abris1082
sem uma exceção no seu caso. Concedemos a sua solicitação. Aqui
estão as licenças para a senhora partir ao amanhecer de amanhã
- disse Ishido, empurrando-as para as mãos de Sumiyori, que
estava próximo.
Senhor? - disse Mariko, não compreendendo, sua voz
um fio.
Está livre para partir. Ao amanhecer.
E ... e Kiritsubo-san e a Senhora Sazuko?
- Isso também não faz parte do seu "dever"? As licenças
delas estão aí também.
Mariko tentou se concentrar. - E... e o filho dela?
- Ele também, senhora. - A sarcástica risada de Ishido
ecoou. - E todos os seus homens.
Yabu gaguejou: - Todos têm salvo-condutos?
- Sim, Kasigi Yabu-san - disse Ishido. - O senhor é o
oficial superior, ueh? Por favor, vá imediatamente ao meu secretário. Ele está preenchendo todos os passes, embora eu não entenda por que hóspedes de honra desejem partir. Mal vale a
pena, por dezessete dias. Neh?
- E eu, senhor general? - perguntou debilmente a velha
Senhora Etsu, ousando testar a totalidade da vitória de Mariko,
o coração disparado e doendo. - Posso... posso, por favor,
partir também?
- Naturalmente, Senhora Maeda. Por que conservaríamos
qualquer pessoa aqui contra a vontade? Somos carcereiros? Claro
que não! Se a acolhida do herdeiro é tão ofensiva que a senhora
deseje partir, então parta, embora eu não compreenda como a
senhora pretende viajar quatrocentas ris até casa e outras quatrocentas de volta, dentro de dezessete dias.
- Por favor, desc... desculpe-me, a... a acolhida do herdeiro não é ofen ...
Ishido interrompeu gelidamente. - Se deseja partir, solicite
uma licença pelas vias normais. Levará um dia ou pouco mais,
mas nós a veremos em segurança a caminho. - Dirigiu-se aos
outros: - Quaisquer senhoras podem solicitar, qualquer samurai.
Eu disse antes: é estupidez partir por dezessete dias, é insultante
desconsiderar a acolhida do herdeiro, a acolhida da Senhora
Ochiba, e a acolhida dos regentes. . . - seu olhar implacável
voltou a se fixar em Mariko - ... ou pressioná-los com ameaças
de seppuku, o que, para uma senhora, deveria ser feito em particular e não como um arrogante espetáculo público. Neh? Não
1083
viso à morte de mulheres, apenas à dos inimigos do herdeiro, mas
se mulheres são abertamente inimigas dele, então eu logo cuspirei
em seus cadáveres também.
Ishido girou sobre os calcanhares, gritou uma ordem aos cinzentos, e se afastou. Imediatamente capitães ecoaram a ordem e
todos os cinzentos começaram a se formar e a mover-se dali,
exceto alguns, que permaneceram em honra aos marrons.
-- Senhora - disse Yabu, rouco, enxugando as mãos úmidas de novo, um gosto amargo de vômito na boca devido à inconclusão --, senhora, terminou agora. A senhora... ganhou.
A senhora venceu.
- Sim... sim disse ela. Suas mãos sem forças procuraram o nó do cordão branco. Chimmoko avançou, desfez os nós
e retirou a manta branca, depois se afastou do quadro carmesim. Todo mundo observava Mariko, esperando para ver se ela
conseguiria caminhar.
Mariko estava tentando se pôr de pé às apalpadelas. Não
conseguiu. Tentou uma segunda vez. Não conseguiu de novo.
Impulsivamente Kiri se moveu para ajudá-la, mas Yabu meneou
a cabeça e disse: - Não, é privilégio dela -- e Kiri se sentou
de novo, mal podendo respirar.
Blackthorne, ao lado dos portões, ainda num turbilhão que
a alegria sem limites da suspensão da sentença lhe causava, lembrou-se de como sua própria vontade estivera prostrada naquela
noite do seu quase-seppuku, quando tivera que se levantar como
homem e caminhar como homem, sem apoio, e se tornara samurai. E observou-a, desprezando a necessidade daquela coragem,
embora a compreendesse, até a honrasse.
Viu-lhe as mãos sobre o carmesim de novo, de novo ela fez
força e desta vez Mariko se pôs a prumo. Oscilou e quase caiu,
depois seus pés se moveram e lentamente ela cambaleou através
do carmesim e vacilou sem ajuda em direção à porta principal.
Blackthorne resolveu que ela já fizera o bastante, suportara o
bastante, provara o bastante, por isso avançou, segurou-a nos braços e ergueu-a bem no momento em que os sentidos a abandonaram.
Por um instante ergueu-se sozinho ali na arena, orgulhoso
por estar sozinho e por ter ele decidido. Ela jazia como uma
boneca quebrada nos seus braços. Então carregou-a para dentro
e ninguém se moveu ou barrou-lhe a passagem.
1084
CAPÍTULO 57
O ataque ao baluarte dos marrons começou no momento
mais escuro da noite, duas ou três horas antes do amanhecer.
A primeira onda de dez ninfas - os infames furtivos - veio dos
telhados das muralhas em frente, agora não guardadas por cinzentos. Atiraram ganchos enrolados em pano e presos à ponta de
cordas ao outro telhado e se penduraram sobre o abismo como
muitas aranhas. Usavam roupas pretas bem justas, tabis pretos e
máscaras pretas. Também estavam levemente armados com facas
presas a correntes e shurikens - farpas e discos de arremesso,
pequenos, em forma de estrela, aguçados como agulhas e com as
pontas envenenadas, do tamanho da palma da mão. Às costas
traziam mochilas a tiracolo e pequenos bastões finos.
Os ninfas eram mercenários. Eram artistas na ação furtiva,
especialistas no infamante - espionagem, infiltração e morte
repentina.
Os dez homens aterrissaram sem ruído. Enrolaram os arpéus,
quatro os engancharam de novo numa saliência e imediatamente
se lançaram para baixo, para uma varanda vinte pés abaixo. Assim
que a atingiram, de modo igualmente silencioso, seus companheiros
soltaram os arpéus, atiraram-nos para baixo, e se moveram por
sobre as telhas para se infiltrar em outra área.
Uma telha estalou sob o pé de um homem e todos eles se
imobilizaram. No adro, três andares e sessenta pés abaixo, Sumiyori interrompeu a ronda e olhou para cima. Seus olhos perscrutaram a escuridão. Esperou sem se mexer, a boca aberta um
nada para aguçar a audição, os olhos procurando lentamente.
O telhado dos ninfas estava envolto em escuridão, a lua tênue,
as estrelas nubladas no ar úmido e denso. Os homens continuaram
absolutamente imóveis, até a respiração controlada e imperceptível, aparentemente tão inanimados quanto as telhas sobre as quais
se erguiam.
Sumiyori fez outro circuito com os olhos e os ouvidos, depois
outro, e, ainda incerto, saiu do adro para ver com mais clareza.
Agora os quatro ninfas na varanda também se encontravam no
seu campo de visão, mas estavam tão imóveis quanto os outros
e ele também não os notou.
- Ei - chamou ele os guardas da entrada, as portas fortemente trancadas agora -, estão vendo alguma coisa, ouvindo
alguma coisa?
1085
- Não, capitão - disseram as sentinelas alerta. - As
telhas estão sempre estalando, mudando um pouco de posição.
Deve ser a umidade ou o calor.
- Vá até lá em cima e dê uma olhada - disse Sumiyori
a um deles. - Ou melhor, diga aos guardas do último andar que
dêem uma busca, só como prevenção.
O soldado saiu às pressas. Sumiyori levantou os olhos novamente, depois meio que encolheu os ombros e, tranqüilizado, continuou a patrulha. Os outros samurais voltaram a seus postos,
vigiando o lado exterior.
No alto do telhado e na varanda, os ninjas aguardavam nas
suas posições congeladas. Nem seus olhos se moviam. Eram treinados para permanecerem imóveis durante horas, se necessário
- o que representava apenas uma parte do seu treinamento perpétuo. Então o líder lhes fez um sinal e eles se moveram de novo
ao ataque. Seus arpéus e cordas levaram-nos silenciosamente a
outra varanda onde podiam se insinuar pelas estreitas janelas nas
paredes de granito. Abaixo desse último andar, todas as outras
janelas - posições de defesa para arqueiros - eram tão estreitas, que ninguém poderia entrar por fora. A outro sinal os dois
grupos entraram simultaneamente.
Os dois aposentos se encontravam mergulhados em escuridão, com dez marrons dormindo em linhas nítidas. Foram mortos
rapidamente e quase sem ruído, uma única estocada na garganta
de quase todos, os treinados sentidos dos atacantes levando-os
certeiramente aos alvos, e em poucos momentos o último dos
marrons estava se debatendo desesperadamente, seu grito de
advertência garroteado antes de começar. Depois, os quartos garantidos, as portas garantidas, o líder sacou uma pederneira e uma
isca, acendeu uma vela, protegeu-a cuidadosamente com a mão
e levou-a até a janela, de onde fez três sinais para a noite. Atrás
dele seus homens estavam se certificando pela segunda vez de que
todos os marrons estavam mortos. O líder repetiu os sinais, depois
se afastou da janela e gesticulou, falando com eles numa linguagem de sinais, com os dedos.
Imediatamente os atacantes desfizeram as mochilas e prepararam as armas de ataque - facas curtas, em forma de foicinhas,
com gume duplo, com uma corrente presa ao cabo, shurikens e
facas de arremesso. A uma outra ordem, homens selecionados
desembainharam os bastões curtos. Tratava-se de lanças e zarabatanas, extensíveis, que assumiam o comprimento total com uma
velocidade surpreendente. Assim que completou seus preparati1086
vos, cada homem se ajoelhou, acomodou-se encarando a porta e,
aparentemente sem esforço consciente, tornou-se totalmente imóvel. O último homem se aprontou. O líder soprou a vela.
Quando os sinos da cidade tocaram a metade da hora do
Tigre - quatro da manhã, uma hora antes do amanhecer -, a
segunda onda de ninjas se infiltrou. Vinte deles deslizaram silenciosamente de um grande aqueduto fora de uso que servira uma
vez aos córregos do jardim. Todos esses homens usavam espadas.
Como uma multidão de sombras, atropelaram-se tomando posição
entre moitas e arbustos, puseram-se imóveis e quase invisíveis.
Ao mesmo tempo outro grupo de vinte subiu do solo com cordas
o arpéus para atacar a ameia que dava para o adro e o jardim.
Havia dois marrons ali, cuidadosamente vigiando os telhados
vazios do outro lado da avenida. Quando um deles correu os
olhos em torno e viu os arpéus atrás deles, começou a apontar
como alarme. Seu companheiro abriu a boca para gritar um aviso
quando o primeiro ninja atingiu a seteira e atirou um shuriken
farpado rodopiando até o rosto e a boca desse samurai, estrangulando o grito de modo hediondo, e se lançou contra o outro
samurai, sua mão estendida transformada em arma letal, o polegar
o o indicador esticados, investindo contra a jugular. O impacto
paralisou o samurai, outro golpe violento quebrou-lhe a nuca com
um estalo seco, e o ninja saltou sobre o primeiro samurai agonizante, que se agarrava às farpas profundamente cravadas na sua
boca e no seu rosto, o veneno já atuando.
Com um último esforço supremo, o samurai moribundo
sacou a espada curta e atacou. O golpe feriu fundo e o ninja
arquejou, mas isso não lhe deteve a investida: sua mão atingiu
a garganta do marrom, quebrando a cabeça do homem para trás
o deslocando-lhe a coluna u¢rtebral. O samurai morreu em pé.
O ninja sangrava seriamente, mas não emitiu ruído algum e
ainda segurou o marrom morto, baixando-o cuidadosamente até
as lajes de pedra, e caindo de joelhos ao seu lado. Agora todos
os ninjas haviam subido pelas cordas e se erguiam no parapeito.
Desviaram-se do companheiro ferido até que o parapeito estivesse
garantido. O homem ferido ainda estava de joelhos ao lado dos
marrons mortos, apertando o flanco. O líder examinou o ferimento. O sangue escorria num fluxo constante. Ele balançou a cabeça
o falou com os dedos; o homem assentiu e se arrastou penosamente para um canto, o sangue deixando um rastro largo. Acomodou-se confortavelmente, apoiado ao muro, e puxou um
shuriken. Arranhou as costas de uma mão várias vezes com as
1087
farpas envenenadas, depois encontrou o estilete, pousou a ponta
da arma na base do pescoço e, com as duas mãos, com toda a
força, empurrou-a para cima.
O líder certificou-se de que o homem morrera, depois voltou
para a porta fortificada que levava para o interior. Abriu-a com
cautela. Nesse momento ouviram passos aproximando-se e imediatamente se fundiram à parede em posição de emboscada.
No corredor daquela ala, a oeste, Sumiyori aproximava-se
com os marrons. Deixou dois junto da porta do parapeito e, sem
parar, prosseguiu. Os dois reforços saíram para o parapeito quando Sumiyori dobrou a esquina adiante e desceu um lanço circular
de escada. Embaixo havia outro posto de controle, onde os dois
samurais cansados se curvaram e foram substituídos.
- Juntem-se aos outros e voltem aos seus aposentos. Serão
despertados ao amanhecer - disse Sumiyori.
- Sim, capitão.
Os dois samurais subiram`as escadas de novo, contentes por
não estarem mais em serviço. Sumiyori continuou, descendo para
o outro corredor e substituindo sentinelas. Finalmente parou junto
a uma porta e bateu, os últimos dois guardas consigo.
- Yabu-san?
- Sim? - A voz estava sonolenta.
- Desculpe, é a mudança da guarda.
- Ah, obrigado. Por favor, entre.
Sumiyori abriu a porta mas cautelosamente permaneceu à
soleira. Yabu estava com o cabelo desgrenhado, apoiado sobre
um cotovelo às cobertas, a outra mão na espada. Quando teve
certeza de que era mesmo Sumiyori, descontraiu-se e bocejou.
- Alguma novidade, capitão?
Sumiyori também se descontraiu e meneou a cabeça, entrou
e fechou a porta. O quarto era grande, arrumado, e havia outra
cama de futons convidativamente desdobrados. Janelas, que eram
fendas, davam para a avenida e a cidade, um declive abrupto
trinta pés abaixo. - Está tudo tranqüilo. Ela está dormindo
agora... pelo menos a criada, Chimmoko, disse que estava. -
Dirigiu-se para a escrivaninha baixa onde uma lâmpada a óleo
bruxuleava e se serviu de chá frio. Ao lado do bule estava o passe
deles, formalmente selado, que Yabu trouxera do escritório de
Ishido.
Yabu bocejou de novo e se espreguiçou voluptuosamente.
- O Anjin-san?
- Estava acordado na última vez que verifiquei. Foi à meia1088
noite. Pediu-me que não verificasse de novo até pouco antes do
amanhecer - alguma coisa sobre os seus hábitos. Não compreendi claramente tudo o que ele disse, mas não há perigo, há
uma segurança muito cerrada por toda parte, neh? Kiritsubo-san
e as outras senhoras estão silenciosas, embora ela, Kiritsubo, tenha
estado acordada a maior parte da noite.
Yabu levantou-se da cama. Estava usando apenas uma tanga.
- Fazendo o quê?
- Simplesmente sentada à janela, olhando para fora. Não
havia nada para ver. Sugeri que seria melhor que ela dormisse
um pouco. Agradeceu-me polidamente, concordou e continuou
onde estava. Mulheres, neh?
Yabu flexionou os ombros e cotovelos e coçou-se vigorosamente para fazer o sangue circular. Começou a se vestir. -- Ela
devia descansar. Tem um longo caminho a fazer hoje.
Sumiyori pousou a xícara. - Acho que é tudo um truque.
- O quê?
- Não acho que Ishido fale a sério.
- Temos autorizações assinadas. Aqui estão. Todos os
homens estão relacionados. Você verificou os nomes. Como ele
pode voltar atrás num compromisso público conosco ou com a
Senhora Toda? Impossível, neh?
Não sei. Perdão, Yabu-san, mas ainda acho que é um
truque.
Yabu amarrou o sash lentamente. - Que tipo de truque?
- Seremos emboscados.
- Fora do castelo?
Sumiyori assentiu. - Sim, é nisso que estou pensando.
- Ele não ousaria.
- Ousará. Vai nos emboscar ou nos atrasar. Não consigo
vê-lo deixando que ela se vá, ou a Senhora Sazuko ou o bebê.
Mesmo a velha Senhora Etsu e os outros.
- Não, você está enganado.
Sumiyori meneou a cabeça tristemente. - Acho que teria
sido melhor se ela se tivesse cravado a faca e o senhor a tivesse
degolado. Deste modo nada está resolvido.
Yabu pegou as espadas e enfiou-as no cinto. Sim, estava ele
pensando, concordo com você. Nada está resolvido e ela falhou
no seu dever. Você sabe disso, eu sei, e Ishido também. Vergonhoso! Se ela tivesse morrido, teríamos todos vivido para sempre.
Assim como é agora... ela voltou da beira da morte, desonrou
a nós e a si mesma. Shigata ga nai, neh? Mulher estúpida!
1089
Mas em voz alta disse: Acho que você está enganado.
Ela venceu Ishido. A Senhora Toda venceu. Ishido não se atreverá a nos emboscar. Vá dormir, eu o acordarei ao amanhecer.
Novamente Sumiyori meneou a cabeça. - Não, obrigado,
Yabu-san, acho que vou fazer a ronda de novo. - Aproximou-se
de uma janela e perscrutou o exterior. - Alguma coisa não está
certa.
- Está tudo excelente. Tome um pouco... espere um instante! O que foi isso? Você ouviu alguma coisa?
Yabu aproximou-se de Sumiyori e fingiu procurar na escuridão, ouvindo atentamente, e então, sem qualquer sinal de
advertência, sacou a espada curta e com o mesmo movimento
espontâneo e fulminante cravou a lâmina nas costas de Sumiyori,
tapando a boca do homem com a outra mão para impedi-lo de
gritar. O capitão morreu instantaneamente. Yabu segurou-o cuidadosamente com o braço esticado, e com uma força imensa, de
modo a não se manchar de sangue, carregou o corpo até os
futons, arranjando-o numa posição adormecida. Depois puxou a
espada e começou a limpá-la, furioso de que a intuição de Sumiyori tivesse forçado a morte não planejada. Ainda assim, pensou Yabu, não posso tê-lo rondando por aí agora.
Naquele mesmo dia, quando Yabu voltava do escritório de
Ishido com o salvo-conduto, fora abordado em particular por um
samurai que nunca vira antes.
- A sua cooperação é solicitada, Yabu-san.
- Para quê e por quem?
- Por alguém a quem o senhor fez um oferecimento ontem.
- Que oferecimento?
- Em troca de salvo-condutos para o senhor e o Anjin-san,
o senhor providenciaria que ela estivesse desarmada durante a
emboscada na sua viagem... Por favor, não toque na espada,
Yabu-san, há quatro arqueiros aguardando um sinal!
-- Como ousa me desafiar? Que emboscada? - blefara ele,
sentindo os joelhos fracos, pois não havia dúvida agora de que
o homem era intermediário de Ishido. Na véspera, à tarde, ele
fizera o oferecimento secreto por meio dos seus próprios intermediários, numa desesperada tentativa de poupar alguma coisa
ao naufrágio que Mariko causara aos seus planos para o Navio
Negro e o futuro. Na mesma hora soubera que era uma idéia
extravagante. Teria sido difícil, se não impossível, desarmá-la e
continuar vivo, conseqüentemente correndo perigo de ambos os
1090
lados, e quando Ishido, através de intermediários, rejeitara a idéia,
ele não se surpreendera.
- Não sei de nada sobre emboscada alguma - vociferara
ele, desejando que Yuriko estivesse ali para ajudá-lo a sair daquele pântano.
- Ainda assim, o senhor é convidado a participar de uma,
embora não do modo como o senhor planejou.
- Quem é o senhor?
- Em troca o senhor fica com Izu, o bárbaro e o navio
dele - assim que a cabeça do principal inimigo estiver no pó.
Desde que, é claro, ela seja capturada viva e o senhor permaneça
em Osaka até o dia e jure fidelidade.
- A cabeça de quem? dissera Yabu, tentando pôr o
cérebro a funcionar, entendendo apenas agora que Ishido usara
a sua solicitação para liberar os salvo-condutos meramente como
uma artimanha, de modo que o oferecimento secreto pudesse ser
feito em segurança e negociado.
- É sim ou não? - perguntara o samurai.
- Quem é o senhor e de que está falando? Ele estendera
o pergaminho. - Aqui está o salvo-conduto do Senhor Ishido.
Nem mesmo o senhor general pode cancelar isto depois do que
aconteceu.
- Isso é o que muitos dizem. Mas, sinto muito, os bois vão
cagar ouro em pó antes que o senhor ou qualquer pessoa seja
autorizada a insultar o Senhor Yaemon ... Por favor, tire a mão
da espada!
- Então tome cuidado com a língua!
- Naturalmente, desculpe. Concorda?
- Sou governador de Izu agora, e tenho Totomi e Suruga
prometidas - dissera Yabu, dando início ao trato. Sabia que embora estivesse encurralado, assim como Mariko, Ishido se encontrava igualmente encurralado, porque o dilema que Mariko precipitara ainda existia.
- Sim, é verdade - dissera o samurai. - Mas não tenho
autorização para negociar. Os termos são esses. É sim ou não?
Yabu terminou de limpar a espada e arrumou o lençol sobre
a figura aparentemente adormecida de Sumiyori. Depois enxugou
o suor do rosto e das mãos, conteve a raiva, soprou a lâmpada,
o abriu a porta. Os dois marrons esperavam alguns passos adiante
no corredor. Curvaram-se.
- Eu o acordarei ao amanhecer, Sumiyori-san - disse Yabu
à escuridão. Depois, a um dos samurais: - Você fique de guarda
1091
aqui. Ninguém deve entrar. Ninguém! Providencie para que o
capitão não seja perturbado, ele precisa descansar.
- Sim, senhor.
O samurai tomou seu novo posto e Yabu seguiu a passos
largos pelo corredor, acompanhado pelo outro guarda, subiu um
lanço da escada até a seção central principal daquele andar e
cruzou-a, rumando para a sala de audiência e os apartamentos
que ficavam na ala leste. Logo chegou ao corredor sem saída da
sala de audiência. Guardas curvaram-se e permitiram-lhe entrar.
Outro samurai abriu a porta para o corredor e o conjunto de
aposentos particulares. Yabu bateu à porta.
- Anjin-san? - disse baixinho.
Não houve resposta. Ele empurrou a shoji. O quarto estava
vazio, a shoji interna entreaberta. Ele franziu o cenho, depois fez
sinal ao acompanhante que esperasse e atravessou correndo o
quarto até o corredor interno fracamente iluminado. Chimmoko
interceptou-o, uma faca na mão. Sua cama em desordem estava
no corredor, junto à porta de um dos quartos.
- Oh, sinto muito, senhor, eu estava cochilando - disse,
baixando a faca. Mas não se moveu do caminho.
- Eu estava procurando o Anjin-san.
- Ele e a minha ama estão conversando, senhor, com
Kiritsubo-san e a Senhora Achiko.
- Por favor, diga-lhe que eu gostaria de vê-lo um momento.
- Certamente, senhor. - Polidamente Chimmoko apontou
o outro quarto para Yabu, esperou até que ele estivesse lá, e
fechou a shoji interna. O guarda no corredor principal observava
inquisitivamente.
Num instante a shoji se abriu de novo e Blackthorne entrou.
Estava vestido e portando a espada curta.
- Boa noite, Yabu-san - disse.
- Sinto muito incomodá-lo, Anjin-san. Só queria ver - ter
certeza de que estava tudo hem, compreende?
- Sim, obrigado. Não se preocupe.
- A Senhora Toda está bem? Não está doente?
- Está ótima agora. Muito cansada, mas ótima. Logo amanhece, neh?
Yabu assentiu. - Sim. Só quis ter certeza de que ia tudo
bem. Compreende?
- Sim. Esta tarde o senhor disse "plano", Yabu-san. Lembra-se? Por favor, que plano secreto?
- Não secreto, Anjin-san - disse Yabu, arrependendo-se
1092
de ter sido tão aberto. - O senhor compreendeu mal. Digamos
que apenas alguns devem saber do plano... muito difícil escapar
de Osaka, neh? Devemos escapar ou. . . - Yabu simulou passar
uma faca no pescoço. - Compreende?
- Sim. Mas agora temos passe, neh? Agora seguro sair de
Osaka. Neh?
- Sim. Partimos logo. De barco muito bom. Logo arranjaremos. homens em Nagasaki. Compreende?
- Sim.
Muito amistoso, Yabu foi embora. Blackthorne fechou a
porta atrás dele e voltou ao corredor interno, deixando a sua
porta interna entreaberta. Passou por Chimmoko e entrou no
outro quarto. Mariko estava apoiada em futons, parecendo mais
diminuta do que nunca, mais delicada e mais bela. Kiri estava
ajoelhada sobre uma almofada. Achiko estava adormecida, enrodilhada a um lado.
- O que ele queria, Anjin-san? - disse Mariko.
- Só ver se estávamos bem.
Mariko traduziu para Kiri.
- Kiri disse se o senhor lhe perguntou sobre o "plano"?
- Sim. Mas ele se esquivou à pergunta. Talvez tenha mudado de idéia. Não sei. Talvez eu me tenha enganado, mas pensei
que esta tarde ele tivesse alguma coisa planejada ou estivesse
planejando alguma coisa.
- Trair-nos?
- Claro. Mas não sei como.
Mariko sorriu-lhe. - Talvez o senhor se tenha enganado.
Estamos salvos agora.
A jovem Achiko murmurou no sono e eles a olharam. Ela
pedira para ficar com Mariko, assim como a velha Senhora Etsu,
que estava dormindo sonoramente num quarto contíguo. As outras senhoras haviam partido ao pôr-do-sol, dirigindo-se cada uma
à sua casa. Todas haviam enviado requisições formais de permissão para partida imediata. Já correra o rumor pelo castelo de que
perto de cento e cinco pessoas também se apresentariam no dia
seguinte. Kiyama mandara chamar Achiko, esposa do seu neto,
mas ela se recusara a se afastar de Mariko. Imediatamente o
daimio a repudiara e exigira a posse da criança. Ela entregara
o filho. Agora estava em meio a um pesadelo, mas passou e ela
dormiu pacificamente de novo.
Mariko olhou para Blackthorne. - É tão maravilhoso se
estar em paz, neh?
1093
- Sim - disse ele. Desde que ela acordara e se descobrira
viva e não morta, seu espírito se unira ao dele. Durante a primeira
hora tinham estado sozinhos, ela nos braços dele.
- Estou muito contente que você esteja viva, Mariko -
dissera ele em latim. - Vi-a morta.
- Pensei que estivesse. Ainda não consigo acreditar que
Ishido capitulou. Nunca, em vinte vidas... Oh, como amo os
seus braços ao meu redor, e a sua força.
- Eu estava pensando que esta tarde, a partir do primeiro
momento do desafio de Yoshinaka, não vi nada além da morte
- a sua, a minha, a de todos. Compreendi o seu plano, elaborado há muito tempo, neh?
- Sim. Desde o dia do terremoto, Anjin-san. Por favor,
perdoe-me, mas não quis... não quis assustá-lo. Fiquei com medo
que você não compreendesse. Sim, daquele dia em diante eu soube
que era o meu karma tirar os reféns de Osaka. Apenas eu podia
fazer isso para o Senhor Toranaga. E agora está feito. Mas a que
preço, neh? Nossa Senhora me perdoe.
Então Kiri chegara e eles tiveram que se sentar separados,
mas isso não fez diferença. Um sorriso, um olhar, uma palavra
lhes bastava.
Kiri aproximou-se das janelas. No mar havia salpicos de luz
dos barcos de pesca perto da costa. - Vai amanhecer logo -
disse ela.
- Sim - disse Mariko. - Vou me levantar agora.
- Daqui a pouco. Agora não, Mariko-sama - dissê-lhe
Kiri. - Por favor, descanse. Precisa recuperar forças.
- Gostaria que o Senhor Toranaga estivesse aqui.
- Sim.
A senhora preparou outra mensagem sobre... sobre a
nossa partida?
- Sim, Mariko-sama, outro pombo partirá ao amanhecer.
O Senhor Toranaga será informado da sua vitória hoje - disse
Kiri. - Ficará muito orgulhoso da senhora.
- Estou muito contente que ele tenha tido razão.
- Sim - disse Kiri. - Por favor, perdoe-me por duvidar
da senhora e dele.
- No íntimo também duvidei dele. Sinto muito.
Kiri voltou-se para a janela e olhou a cidade. Toranaga está
errado, queria ela gritar. Nunca sairemos de Osaka, por mais que
finjamos. É nosso karma ficar - karma dele perder.
1094
Na ala oeste, Yabu parou na sala de guarda. As sentinelas
de substituição estavam prontas. - Vou fazer uma inspeção
rápida.
- Sim, senhor.
- O resto de vocês espere por mim aqui. Você, venha
comigo.
Desceu a escada principal seguido de um único guarda. Ao
pé da escada, no vestíbulo principal, encontravam-se outros guardas, e, fora, o adro e o jardim. Uma olhada superficial mostrou
que estava tudo em ordem. Então ele voltou para dentro da fortaleza e, após um momento, mudou de direção. Para surpresa do
seu guarda, desceu a escada que levava aos aposentos dos criados. Os criados arrancaram-se do sono, colocando às pressas a
cabeça sobre as lajes. Yabu mal os notou. Continuou descendo
para as entranhas da fortaleza, ao longo de pouco usados corredores em arco, as paredes de pedra úmidas e mangradas, embora
estivesse tudo bem iluminado. Não havia guardas ali nos porões,
pois não havia nada a proteger. Logo começaram a subir de novo,
aproximando-se dos muros externos.
Yabu parou repentinamente. - O que foi isso?
O samurai marrom parou, ouviu, e morreu. Yabu limpou a
espada e puxou o corpo caído para um canto escuro, depois correu para uma pequena porta de ferro, pesadamente trancada com
barras, quase despercebida, cravada numa das paredes de que o
intermediário de Ishido lhe falara. Precisou usar de força para
levantar as barras enferrujadas. A última soltou-se retinindo. A
porta girou sobre os gonzos. Uma corrente de ar frio veio de
fora, depois uma lança tocou-lhe a garganta e parou bem a
tempo. Yabu nao se moveu, quase paralisado. Ninjas o fitavam
da escuridão total aléns da porta, armas assestadas.
Yabu ergueu uma mão trêmula e fez um sinal, conforme lhe
disseram que fizesse. -- Sou Kasigi Yabu - disse.
O líder quase invisível, encapuzado e vestido de preto, assentiu, mas manteve a lança pronta para o golpe. Fez sinal a Yabu.
Obedientemente o daimio recuou um passo. Então, muito cautelosamente o líder caminhou para o meio do corredor. Era alto
e forte, com grandes olhos chatos por trás da máscara. Viu o
marrom morto e com um estalido do pulso atirou a lança reluzindo no cadáver, depois puxou-a com a leve corrente presa à
extremidade da arma. Silenciosamente enrolou de novo a corrente, esperando, ouvidos atentos a qualquer perigo.
Finalmente satisfeito, fez um sinal à escuridão. Instantanea1095
mente vinte homens surgiram e arremeteram para o lanço de
escada, o caminho, de há muito esquecido, para os andares acima.
Esses homens carregavam instrumentos de assalto. Estavam armados com facas presas a correntes, espadas e shurikens. E no centro dos seus capuzes negros havia uma pinta vermelha.
O líder não os observou a subir, mas manteve os olhos em
Yabu e começou a contar com os dedos da mão esquerda. Um...
dois... três... Yabu sentia muitos homens a vigiá-lo da passagem além da porta. Não conseguia ver ninguém.
Os atacantes com a pinta vermelha subiram a escada dois a
dois, e no alto daquele lanço pararam. Uma porta barrava-lhes o
caminho. Esperaram um momento, depois, cautelosamente, tentaram abri-la. Estava trancada. Um homem com um instrumento
de assalto, uma curta barra de aço, curva a uma extremidade e
cinzelada à outra, avançou e arrombou-a. Do outro lado da porta
havia outra passagem e eles a tomaram em silêncio. Na esquina
seguinte, pararam. O primeiro homem perscrutou ao seu redor
atentamente, depois chamou os demais com um gesto para outro
corredor. Na extremidade oposta, uma réstia de luz brilhava através de um visor no pesado painelamento de madeira que cobria
a porta secreta. O homem encostou um olho ao visor. Viu a extensão da sala de audiência, dois marrons e dois cinzentos enfadonhamente de sentinela, guardando a porta do conjunto de aposentos. Olhou em torno, fez um sinal de cabeça aos outros. Um
dos homens ainda estava contando com os dedos, sincronizado
com a contagem do líder, dois andares abaixo. Os olhos de todos
acompanharam a contagem.
Embaixo, no porão, os dedos do líder continuavam no tempo,
assinalando os momentos, os olhos sempre cravados em Yabu.
Yabu observava e esperava, o odor do seu próprio suor de medo
pegando-lhe nas narinas. Os dedos pararam e o punho do líder
se fechou pontualmente. Apontou para o corredor. Yabu assentiu, voltou-se e refez o caminho por onde viera, caminhando lentamente. Atrás dele a contagem inexorável começou de novo.
Um ... dois ... três ...
Yabu sabia do risco terrível que estava correndo, mas não
tivera alternativa e amaldiçoou Mariko mais uma vez por forçá-lo
a tomar o lado de Ishido. Parte do trato era que ele teria que
abrir aquela porta secreta.
- O que há atrás da porta? - perguntara, desconfiado.
-- Amigos. O sinal é este e a senha é dizer o seu nome.
- Aí eles me matam, neh?
1096
- Não. O senhor é valioso demais, Yabu-san. O senhor
tem que providenciar para que haja proteção para a infiltração
deles ...
Ele concordara, mas nunca negociara com ninjas, os odiados
e temidos mercenários semilendários, que prestavam fidelidade
apenas às suas unidades familiares intimamente unidas e secretas,
que transmitiam seus segredos apenas para parentes de sangue -
como nadar vastas distâncias sob a água e escalar paredes quase
lisas, como se tornar invisível e permanecer um dia e uma noite
sem se mover, e como matar com as mãos, os pés ou quaisquer
armas, incluindo veneno, fogo e explosivos. Para um ninja, a
morte violenta por pagamento era a única finalidade da vida.
Yabu tentou manter o passo comedido à medida que se afastava do líder ninja pelo corredor, o peito ainda doendo do choque
de que a força de ataque fosse ninfa e não ronin. Ishido deve
estar louco, disse a si mesmo, todos os sentidos vacilando, esperando uma lança, uma seta ou um garrote a qualquer momento.
Agora se encontrava quase na esquina. Dobrou-a, a salvo mais
uma vez, deu às pernas e subiu as escadas aos saltos, três degraus
de cada vez. Ao topo, disparou pelo corredor em arcos, depois
dobrou a esquina que levava aos aposentos dos criados.
Os dedos do líder ainda assinalavam os momentos, depois a
contagem parou. Ele fez um sinal mais urgente à escuridão e disparou atrás de Yabu. Vinte ninjas o seguiram saindo da escuridão, e outros quinze tomaram posições de defesa às duas extremidades do corredor, para guardar aquela via de fuga que levava
por entre um labirinto de porões esquecidos e passagens que uniam
o castelo a um dos esconderijos secretos de Ishido sob o fosso, e
dali para a cidade.
Yabu corria velozmente agora, tropeçou no corredor, mal e
mal conseguiu manter o equilíbrio, e irrompeu pelos aposentos
dos criados, esparramando panelas, frigideiras, cabaças e pipas.
- Ninjaaaaas! - gritou, o que não fazia parte do acordo,
mas que era o seu ardil para se proteger, caso fosse traído. Histericamente os homens e mulheres se dispersaram, uniram-se ao
grito e tentaram sumir sob bancos e mesas enquanto ele continuava correndo, rumando para o outro lado, subindo outros degraus até um dos corredores principais para encontrar os primeiros
dos guardas marrons, que já haviam sacado as espadas.
- Toquem o alarma! - gritou Yabu. -- Ninjas... há
ninjas entre os criados!
Um samurai disparou para a escada principal, o segundo
1097
arremeteu bravamente para se postar sozinho no topo da escada
em caracol que levava para baixo, a espada em riste. Vendo-o,
os criados pararam, depois, gemendo de terror, amontoaram-se
cegamente nas pedras, os braços sobre a cabeça. Yabu correu
para a porta principal e atravessou-a, atingindo a escada. - Toquem o alarma! Estamos sendo atacados! - gritou conforme
combinara fazer, para provocar a manobra diversionista do lado
de fora, que cobriria o ataque principal através da porta secreta
da câmara de audiência, para raptar Mariko e levá-la embora às
pressas, antes que qualquer pessoa percebesse.
Os samurais junto aos portões e no adro giraram sobre os
calcanhares, não sabendo onde proteger, e nesse momento os
atacantes no jardim enxamearam para fora do esconderijo e subjugaram os marrons. Yabu recuou para o vestíbulo, enquanto
outros marrons desciam rapidamente da sala da guarda, a fim de
apoiar os homens lá fora.
Um capitão correu na sua direção. - O que está acontecendo?
- Ninjas, lá fora e entre os criados. Onde está Sumiyori?
- Não sei... no quarto dele.
Yabu saltou para a escada quando outros homens se precipitaram para baixo. Nesse momento o primeiro ninja vindo dos
porões investiu por entre os criados para o ataque. Shurikens farpados eliminaram o defensor solitário, lanças mataram os criados.
Num instante essa força de invasores se viu no corredor, gritando
e berrando violentamente para criar confusão, os marrons, fora
de si e movendo-se em círculos, sem saber de onde rebentaria o
ataque seguinte.
No último andar, os ninjas à espera haviam escancarado suas
portas ao primeiro alarma e caído em cima dos últimos marrons,
que desciam às pressas, matando-os. Com dardos envenenados e
shurikens, os ninjas repeliram-lhes o assalto furioso. Os marrons
foram rapidamente dominados, e os atacantes pularam por sobre
os cadáveres para atingir o corredor principal no andar de baixo.
Uma furiosa investida de reforços marrons foi rechaçada pelos
ninjas, que giravam as pesadas correntes e lançavam-nas contra
os samurais, estrangulando-os ou embaraçando-lhes as espadas,
para tornar mais fácil atingi-los com as facas de fio duplo.
Shurikens cortavam o ar e os marrons foram logo dizimados.
Alguns ninjas foram atingidos, mas rastejavam como animais
hidrófobos e paravam de atacar somente quando a morte os tomava completamente.
1098
No jardim a primeira arremetida dos reforços defensores foi
enfrentada com facilidade enquanto marrons se precipitavam pela
porta principal. Mas outra onda de marrons corajosamente organizou uma segunda investida e empurrou os invasores para trás
com a sua absoluta superioridade numérica. A uma ordem dada
aos gritos, os assaltantes recuaram, suas roupas negras fazendo
deles alvos difíceis. Exultantes os marrons correram no seu encalço, para uma emboscada, e foram aniquilados.
Os atacantes com a pinta vermelha ainda se encontravam à
espera do lado de fora da sala de audiência, seu líder com o olho
colado ao visor. Via os preocupados marrons e cinzentos de
Blackthorne, que guardavam a porta fortificada do corredor, ouvindo com ansiedade o holocausto que se elevava lá debaixo. A
porta se abriu e outros guardas, marrons e cinzentos, se aglomeraram na abertura e então, incapazes de agüentar a espera,
oficiais de ambos os grupos ordenaram a todos os homens que
saíssem da sala de audiência para tomar posições defensivas à
extremidade do corredor. Agora o caminho estava limpo, a porta
do corredor interno aberta, apenas o capitão dos cinzentos ao lado
dela, e também ele estava se afastando. O líder da pinta vermelha
viu uma mulher surgir apressada à soleira, o bárbaro alto com
ela, e reconheceu sua presa, outras mulheres reunindo-se atrás
dos dois:
Impaciente por completar a missão e assim aliviar a pressão
sobre os seus parentes embaixo, e açoitado pela ânsia de matar,
o líder vermelho deu o sinal e irrompeu pela porta.um instante
cedo demais.
Blackthorne viu-o vindo e automaticamente sacou a pistola
de sob o quimono e disparou. A cabeça do homem desapareceu,
momentaneamente detendo o ataque. Simultaneamente, o capitão
dos cinzentos se precipitou de volta e atacou com ferocidade,
descuidado da própria segurança. Abateu um ninja, então o bando
todo caiu em cima dele e o massacrou, mas esses poucos segundos deram tempo suficiente a Blackthorne para puxar Mariko
para a segurança e bater a porta. Desesperado, agarrou a barra
de ferro e colocou-a no lugar bem no momento em que os ninjas
se lançavam contra ela enquanto outros se desdobravam para
guardar a porta principal.
- Jesus Cristo! O que está...
- Ninjaaaaas! gritou Mariko enquanto Kiri, a Senhora
Sazuko, a Senhora Etsu, Chimmoko, Achiko e as outras criadas
1099
surgiam histericamente dos outros quartos, golpes martelando a
porta.
- Depressa, por aqui! - berrou Kiri por sobre o tumulto,
e disparou para o interior.
As mulheres a seguiram, aflitas, duas delas ajudando a velha
Senhora Etsu. Blackthorne viu a porta balançar sob os golpes
furiosos das alavancas de assalto. A madeira estava lascando.
Blackthorne voltou correndo ao seu quarto, para pegar o chifre
de pólvora e as espadas.
Na sala de audiência, os ninfas já haviam eliminado os seis
marrons e cinzentos junto à porta externa principal, e haviam
sobrepujado os demais no corredor abaixo. Mas haviam perdido
dois homens, dois se feriram antes que a luta estivesse terminada,
as portas externas fechadas e barradas e todo o setor garantido.
- Depressa - rosnou o novo líder da pinta vermelha. Os
homens com as alavancas não precisavam ser instados para tentar
demolir a porta. Por um momento o líder parou junto ao cadáver
do irmão, depois deu-lhe um pontapé furioso, sabendo que a impaciência do irmão destruíra o seu ataque de surpresa. Juntou-se
aos seus homens, que rodeavam a porta.
No corredor Blackthorne recarregou a arma rapidamente, a
porta rangendo sob as batidas. Primeiro a pólvora, socá-la cuidadosamente... um dos painéis da porta estalou... depois o tampão para apertar a carga, depois a bala e outro tampão... uma
das dobradiças da porta cedeu e a extremidade da alavanca atravessou ... depois, soprar cuidadosamente o pó da pederneira.
- Anjin-san! - gritou Mariko de algum lugar nos quartos.
- Depressa!
Mas Blackthorne não prestou atenção. Encaminhou-se para
a porta, pôs o bocal numa fenda lascada e puxou o gatilho. Do
outro lado da porta houve um berro e o assalto à porta cessou.
Ele recuou e começou a recarregar. Primeiro pólvora, socá-la
cuidadosamente... novamente a porta toda estremeceu quando
homens se lançaram contra ela com ombros, punhos e pés enfurecidos, e armas. . . depois o papel para apertar, a bala e outro
papel... a porta urrou, estremeceu e um dos ferrolhos pulou fora
e caiu no chão...
Kiri seguia às pressas por uma passagem interna, resfolegando, as outras meio que arrastando a Senhora Etsu consigo, Sazuko
chorando: - Para que isso, não há para onde ir mas Kiri
corria, enveredou, trôpega, por outro quarto, atravessou-o e puxou
para o lado uma parte da parede shoji. Havia uma porta de ferro
1100
fortificada escondida na parede de pedra atrás da shoji. Ela a
abriu. Os gonzos estavam bem oleados.
-- Isto... isto é o refúgio sec-secreto do meu amo - ofegou ela, e começou a entrar, mas parou. - Onde está Mariko?
Chimmoko voltou-se e saiu correndo.
No primeiro corredor, Blackthorne soprou cuidadosamente
o pó da pederneira e avançou de novo. A porta estava prestes a
desabar, mas ainda oferecia cobertura. Novamente ele puxou o
gatilho. Novamente um berro e um momento de trégua, depois
os golpes recomeçaram, outro ferrolho caiu e a porta inteira oscilou. Ele começou a recarregar.
- Anjin-san! - Mariko estava ali na outra extremidade do
assento, acenando-lhe freneticamente, então ele agarrou as armas
o correu na sua direção. Ela se voltou e disparou, guiando-o. A
porta despedaçou-se e os ninfas se lançaram atrás deles.
Mariko corria velozmente. Blackthorne nos seus calcanhares.
Ela atravessou um aposento, tropeçou nas saias e caiu. Ele a
agarrou e, juntos, arremeteram por outra sala. Chimmoko correu
ao seu encontro. - Depressa! - grinchou ela, esperando que
passassem. Seguiu-os um momento, depois, despercebida, voltou
o parou na passagem, a faca na mão.
Ninjas invadiram a sala com ímpeto. Chimmoko se atirou,
a faca estendida, contra o primeiro homem. Ele aparou o golpe
o atirou-a para o lado como um brinquedo, arremetendo atrás de
Blackthorne e Mariko. O último homem quebrou o pescoço de
Chimmoko com o pé e continuou correndo.
Mariko corria velozmente, mas não o suficiente, suas saias
atrapalhando-a, Blackthorne tentando ajudá-la. Cruzaram uma
sala, depois à direita, passando por outra, e ele viu a porta, Kiri
o Sazuko esperando aterrorizadas, Achiko e as criadas amparando
a velha senhora na sala atrás delas. Ele empurrou Mariko para
a segurança. Depois deu-lhe as costas, a pistola descarregada a
uma mão, a espada à outra, esperando Chimmoko. Como ela não
aparecesse imediatamente, ele começou a voltar, mas ouviu a
carga de ninjas se aproximando. Parou e entrou na sala com um
pulo assim que o primeiro ninfa apareceu. Bateu a porta, e lanças
o shurikens retiniram contra os ferrolhos antes que os atacantes
se lançassem contra a porta.
Entorpecido, agradeceu a Deus pela sua escapada e depois,
quando viu a força da porta e percebeu que as alavancas não
poderiam quebrá-la com facilidade e que por enquanto se encontravam seguros, agradeceu a Deus novamente. Tentando recupe1101
rar o fôlego, olhou em torno. Mariko estava de joelhos, arquejando. Havia seis criadas, Achiko, Kiri e Sazuko, e a velha
senhora, deitada, o rosto cinza, quase inconsciente. A sala era
pequena, com paredes de pedra, e havia outra porta lateral que
levava a uma pequena varanda no parapeito. Ele tateou até uma
janela e olhou para fora. Aquele canto da cornija projetava-se
sobre a avenida e o adro, e ele podia ouvir sons da batalha trazidos pelo vento, lá debaixo, berros e guinchos e alguns gritos
de batalha histéricos. Diversos cinzentos e samurais disponíveis
já estavam começando a se reunir na avenida e nas ameias opostas. Os portões embaixo estavam fechados contra eles e defendidos
por ninjas.
- Que diabo está acontecendo? - disse Blackthorne, o peito
doendo.
Ninguém lhe respondeu. Ele voltou, ajoelhou-se ao lado de
Mariko e sacudiu-a suavemente. - O que está acontecendo? -
Mas ela ainda não podia responder.
Yabu corria por um amplo corredor na ala oeste, em direção aos seus aposentos. Dobrou uma esquina e parou, derrapando. À frente um grande número de samurais estavam sendo
repelidos por um feroz contra-ataque de invasores, que se haviam
precipitado do último andar.
- O que está acontecendo? - gritou Yabu por sobre o
tumulto, pois não estavam previstos ninjas ali, só embaixo.
- Estão por toda parte arquejou um samurai. - Estes
vieram de cima ...
Yabu soltou uma imprecação, percebendo que fora logrado
e que não fora posto a par do plano de ataque integral. - Onde
está Sumiyori?
- Deve estar morto. Eles dominaram este setor, senhor.
O senhor teve sorte de escapar. Eles devem ter atacado pouco
depois de o senhor ter saído. Para que os ninjas estão atacando?
Uma enxurrada de gritos distraiu-os. Na extremidade oposta,
marrons desferiam outro contra-ataque a um canto, cobrindo samurais que lutavam com lanças. Os lanceiros rechaçaram os
ninjas, e os marrons se atiraram em perseguição. Mas uma nuvem
de shurikens envolveu essa onda de assalto e logo estavam todos
berrando e morrendo, bloqueando a passagem, o veneno provocando-lhes convulsões. Momentaneamente o restante dos marrons
recuou, para se reagrupar.
1102
Yabu, fora de perigo, gritou: - Tragam arqueiros! -
Homens saíram correndo para lhe obedecer.
- Para que é o ataque? Por que eles são tantos? - perguntou de novo o samurai, o sangue de um ferimento na face
escorrendo-lhe pelo rosto. Normalmente os detestados ninjas atacavam isoladamente ou em pequenos grupos, para desaparecerem
tão rapidamente quanto apareciam assim que a missão estivesse
cumprida.
- Não sei - disse Yabu, todo aquele setor do castelo em
rebuliço agora, os marrons ainda descoordenados, ainda desnorteados com a velocidade aterrorizadora do ataque.
- Se... se Toranaga-sama estivesse aqui, eu poderia compreender que Ishido tivesse ordenado um ataque repentino, mas...
mas por que agora? - disse o samurai. - Não há ninguém nem
nada... - Parou, entendendo de súbito. - A Senhora Toda!
Yabu tentou dominá-lo, mas o homem gritou: - Estão atrás
dela, Yabu-san! Têm que estar atrás da Senhora Toda! - Comandou uma investida para a ala leste. Yabu hesitou, depois o
seguiu.
Para atingir a ala leste, tinham que cruzar o andar central,
que os ninjas agora defendiam maciçamente. Havia samurais mortos por toda parte. Estimulados pelo conhecimento de que sua
reverenciada líder estava em perigo, a primeira carga impetuosa
rompeu o cordão. Mas esses homens foram abatidos rapidamente.
Agora mais dos seus companheiros haviam se unido aos gritos
de advertência e a notícia se espalhou rapidamente e os marrons
redobraram esforços. Yabu acorreu para dirigir a luta, permanecendo em segurança o mais que ousava. Um ninja abriu a sua
mochila, acendeu uma cabaça explosiva num archote de parede
e atirou-a sobre os marrons. Despedaçou-se contra a parede e
explodiu, espalhando fogo e fumaça, e imediatamente esse ninja
comandou um contra-ataque que pôs os marrons numa confusão
fumegante. Sob a coberta de fumaça, reforços ninjas surgiram do
andar inferior.
- Recuem e reagrupem-se! - gritou Yabu num dos corredores que davam início ao patamar principal, querendo protelar
o mais que ousasse, presumindo que Mariko já tivesse sido capturada e estivesse sendo carregada para o porão, esperando a
qualquer momento o toque de clarim que indicaria o sucesso e
ordenaria a todos os ninjas que cessassem o ataque e se retirassem. Então uma força de marrons vinda de cima se arremessou
num assalto suicida a uma escada e rompeu o cordão. Morreram,
1103
mas outros também desobedeceram a Yabu e investiram. Mais
bombas foram atiradas, ateando fogo aos reposteiros das paredes.
As chamas começaram a lamber as paredes, fagulhas inflamaram
os tatamis. Um súbito jato de fogo encurralou um ninja, transformando-o numa tocha humana uivante. Então o quimono de um
samurai também pegou fogo e ele se atirou sobre outro ninja,
para arderem juntos. Um samurai em chamas estava usando a
espada como um machado de batalha para abrir caminho por
entre os atacantes. Dez samurais o seguiram e, embora dois morressem e três caíssem mortalmente feridos, os demais desobstruíram a passagem e dispararam para a ala leste. Logo mais dez os
seguiram. Yabu comandou o ataque seguinte em segurança, enquanto os ninjas remanescentes faziam uma retirada ordeira para
o térreo e a sua rota de fuga embaixo. A batalha pela posse do
beco sem saída na ala leste começou.
Dentro do pequeno aposento, eles olhavam fixamente para
a porta. Podiam ouvir os atacantes raspando os gonzos e o chão.
Então houve um súbido martelar e uma voz áspera e abafada
lá fora.
Duas criadas começaram a soluçar.
- O que ele disse? -- perguntou Blackthorne.
Mariko passou a língua pelos lábios secos. - Disse... disse
que abríssemos a porta e nos rendêssemos ou ele... ele explodiria a porta.
- Eles podem fazer isso, Mariko-san?
- Não sei. Eles... eles podem usar pólvora, naturalmente,
e ... - A mão de Mariko foi para o sash e voltou vazia. - Onde
está a minha faca?
Todas as mulheres procuraram suas adagas. Kiri não tinha
a sua, nem Sazuko. Tampouco Achiko ou a Senhora Etsu. Blackthorne havia armado a pistola e tinha a espada longa. A curta
caíra na corrida desesperada para a segurança.
A voz abafada tornou-se mais encolerizada e mais insistente,
e todos os olhos no aposento se fixaram em Blackthorne. Mas
Mariko sabia que fora traída e que seu momento chegara.
- Ele disse que, se abrirmos a porta e nos rendermos, todos
estarão livres menos o senhor. - Mariko tirou uma mecha de
cabelo da frente dos olhos. - Disse que o querem como refém,
Anjin-san. Isso é tudo o que querem ...
1104
Blackthorne avançou para abrir a porta, mas Mariko lançou-se pateticamente em seu caminho.
- Não, Anjin-san, é um truque! - disse. - Sinto muito,
eles não querem o senhor, querem a mim! Não acredite neles, eu
não acredito neles.
Ele sorriu para ela, tocou-a rapidamente e estendeu a mão
para um ferrolho.
- Não é o senhor, sou eu... é um truque! Juro! Não acredite neles, por favor - disse ela, e agarrou-lhe a espada. Estava
fora da bainha pela metade quando ele percebeu o que ela estava
fazendo e segurou-lhe a mão.
- Não! - ordenou. -,Pare!
- Não me entregue às mãos deles! Não tenho faca! Por
favor, Anjin-san! - Tentou se libertar do aperto dele, mas ele
a levantou, tirou-a do caminho e colocou a mão sobre o ferrolho
superior. - Dozo - disse às outras, enquanto Mariko desesperadamente tentava detê-lo. Achiko avançou, suplicando a ela, e
Mariko tentou empurrá-la e gritou: - Por favor, Anjin-san, é
um truque... pelo amor de Deus!
A mão dele fez saltar o primeiro ferrolho, abrindo-o.
- Eles me querem viva - gritou Mariko desvairadamente.
- Não entende? Querem me capturar, não compreende? Querem-me viva e então será tudo por nada, amanhã Toranaga tem
que cruzar a fronteira, rogo-lhe, é um truque, diante de Deus...
Achiko tinha os braços em torno de Mariko, suplicando,
puxando-a, e fazia sinal a ele que abrisse a porta. - Isogi, isogi,
Anjin-san ...
Blackthorne abriu o ferrolho central.
- Pelo amor de Deus, não torne inútil todas as mortes!
Ajude-me! Lembre-se do seu voto!
Então a realidade do que ela estava dizendo o atingiu e, em
pânico, ele trancou de novo os ferrolhos. - Por que eles.. .
Um feroz martelamento na porta interrompeu-o, ferro retinindo sobre ferro, então a voz começou, num violento crescendo.
Todos os sons exteriores cessaram. As mulheres correram para a
parede oposta e se encolheram contra ela.
- Saia de perto da porta - gritou Mariko, correndo para
junto delas. - Ele vai explodi-la!
- Retarde-os, Mariko-san - disse Blackthorne, e saltou
para a porta lateral que levava para as ameias. - Nossos homens
logo estarão aqui. Mexa nos ferrolhos, diga que estão emperrados, qualquer coisa. - Ele puxou com força o ferrolho superior
1105
da porta lateral, mas encontrou-o enferrujado. Obedientemente
Mariko correu para a porta e simulou débeis tentativas de deslocar o ferrolho central, suplicando ao ninja do outro lado. Então
começou a chocalhar o ferrolho inferior. A voz tornou-se mais
insistente e Mariko redobrou suas súplicas chorosas. Blackthorne
esmagou a mão fechada contra a lingüeta de novo, mas ela não
se moveu. As mulheres olhavam, impotentes. Finalmente esse
trinco se abriu ruidosamente. Mariko tentou cobrir o som e Blackthorne atacou o último ferrolho. Suas mãos estavam esfoladas e
ensangüentadas agora. O líder ninja do lado de fora renovou a
advertência colérica. Em desespero, Blackthorne agarrou a espada
o usou o cabo como um porrete, sem se importar com o barulho
agora. Mariko abafou os sons da melhor maneira que pôde. O
ferrolho parecia soldado.
Do lado de fora da porta, o líder da pinta vermelha estava
quase louco de fúria. Aquele refúgio secreto era totalmente inesperado. As ordens que recebera do líder do clã eram para capturar Toda Mariko viva, certificar-se de que ela estava desarmada,
o entregá-la aos cinzentos que esperavam na extremidade do túnel
que saía dos porões. Sabia que o tempo estava se esgotando.
Podia ouvir a batalha devastadora no corredor, fora da sala de
audiência, e sabia, desgostoso, que já estariam a salvo lá embaixo,
a missão cumprida, não fosse aquele buraco de rato secreto e
aquele imbecil superansioso do irmão, que começara o ataque
prematuramente.
Karma ter um irmão assim!
Segurava uma lâmpada acesa na mão e estendera uma trilha
de pólvora até os barriletes que haviam trazido nas mochilas para
explodir a entrada secreta dos porões, a fim de assegurar a retirada. Mas estava num dilema. Explodir a porta era o único meio
de entrar. Mas a mulher Toda estava bem do outro lado da porta
o a explosão com certeza mataria todos os que estavam lá dentro
o arruinaria a sua missão, tornando inúteis todas as suas perdas.
Passos correram até ele. Era um dos seus homens. - Depressa!
- sussurrou o homem. - Não podemos agüentar muito tempo
mais! - E afastou-se correndo.
O líder vermelho decidiu-se. Acenou a seus homens que se
protegessem e gritou uma advertência através da porta: - Afastem-se! Vou explodir a porta! - Colocou a vela na trilha e deu
um pulo para a segurança. A pólvora crepitou, inflamou-se e
serpeou para os barriletes.
Blackthorne escancarou a porta lateral com um último em1106
purrão. O doce ar noturno invadiu a sala. As mulheres se precipitaram para a varanda. A velha Senhora Etsu caiu, ele a agarrou,
empurrou-a para fora, voltou-se para Mariko, mas ela se havia
encostado ao ferro e anunciou firmemente: - Eu, Toda Mariko,
protesto contra este ataque vergonhoso, e com a minha morte...
Ele saltou para cima dela, mas a explosão o atirou para o
lado enquanto a porta era arrancada das dobradiças, voava pela
sala e se chocava com estrondo à parede oposta. A detonação
derrubou Kiri e as outras fora, no parapeito, mas deixou-as ilesas.
A fumaça derramou-se pela sala, os ninjas seguindo-se instantaneamente. A porta de ferro chamuscada deslizou para um canto.
o líder da pinta vermelha estava de joelhos ao lado de
Mariko, enquanto outros se desdobravam cm leque, protegendo-o.
Viu de imediato que ela tinha muitas fraturas e estava morrendo
depressa. Karma, pensou, e pôs-se de pé com um pulo. Blackthorne jazia atordoado, um filete de sangue a escorrer-lhe dos
ouvidos e do nariz, tentando rastejar de volta à vida. A pistola,
retorcida e inútil, estava a um canto.
o líder deu um passo à frente e parou. Achiko moveu-se no
vão da porta.
o ninja olhou para ela, reconhecendo-a. Depois baixou os
olhos para Blackthorne, desprezando-o por causa da arma de fogo
o da covardia em atirar cegamente através da porta, matando um
de seus homens e ferindo outro. Olhou novamente para Achiko
o estendeu a mão para a faca. Ela atacou cegamente. A faca dele
atingiu-a no seio esquerdo. Estava morta quando caiu e ele, sem
raiva, retirou a faca do corpo que se contraía, efetuando a última
parte das ordens que recebera de cima - de Ishido, presumia
ele, embora isso não pudesse nunca ser provado -, que se falhassem e a Senhora Toda conseguisse se matar, ele devia deixá-la
intacta e não lhe cortar a cabeça; devia proteger o bárbaro e
deixar ilesas todas as outras mulheres, exceto Kiyama Achiko.
Ele não sabia por que recebera a ordem de matá-la, mas isso fora
ordenado e pago, portanto ela estava morta.
Fez sinal para a retirada. Um de seus homens pôs um chifre
curvo aos lábios e soprou um toque estridente, que ecoou pelo
castelo e através da noite. O líder fez um último exame em
Mariko. Um último exame na garota. E um último exame no
bárbaro, que ele gostaria muito que estivesse morto. Depois girou
sobre os calcanhares e comandou a retirada através dos quartos
o passagens até a sala de audiência. Ninjas estavam defendendo
a porta principal e esperaram até que todos os vermelhos esti1107
vessem na rota de fuga, depois atiraram mais bombas de fogo e
fumaça no corredor e arremeteram para a segurança. O líder dos
vermelhos deu-lhes cobertura. Esperou até que estivessem todos
seguros, depois espalhou punhados de estrepes quase imperceptíveis e mortíferos pelo chão - pequenas balas de metal pontudo,
cheias de veneno. Saiu na disparada quando marrons irromperam
por entre a fumaça na sala de audiência. Alguns lhe saíram no
encalço e outra falange arremeteu para o corredor. Seus perseguidores berraram quando as agulhas dos estrepes se enterraram nas
plantas dos pés e eles começaram a morrer.
Na pequena sala, o único som era o dos pulmões de Blackthorne lutando por respirar. No parapeito Kiri pôs-se de pé,
vacilante, o quimono rasgado e as mãos e os braços com escoriações. Entrou na sala, trôpega, viu Achiko e gritou, depois
cambaleou na direção de Mariko e caiu de joelhos ao seu lado.
Outra explosão em algum lugar no castelo sacudiu o pó ligeiramente, e houve mais gritos e berros distantes de "fogo". A fumaça
aumentou na sala. Sazuko e algumas das criadas puseram-se de
pé. Sazuko tinha escoriações no rosto e ombros, e estava com o
pulso quebrado. Viu Achiko, olhos e boca arregalados no terror
da morte, e soluçou.
Entorpecida, Kiri olhou para ela e fez sinal na direção de
Blackthorne. A jovem cambaleou na direção de Kiri e viu Mariko.
Começou a chorar. Depois conseguiu se controlar, aproximou-se
de Blackthorne e tentou ajudá-lo a se levantar. Criadas acorreram
para ajudá-la. Ele se apoiou nelas, fez força para se erguer, depois
oscilou e caiu, tossindo e vomitando, o sangue ainda a lhe escoar
dos ouvidos. Marrons irromperam na sala. Olharam em torno,
consternados.
Kiri continuava de joelhos ao lado de Mariko. Um samurai
ergueu-a. Outros se aglomeraram em torno. Afastaram-se quando
Yabu entrou, o rosto pálido. Quando viu que Blackthorne ainda
estava vivo, grande parte da ansiedade desapareceu.
- Tragam um médico! Depressa! - ordenou ele, e ajoelhou-se ao lado de Mariko. Ainda estava viva, mas extinguindo-se
rapidamente. O rosto mal fora tocado mas o corpo estava terrivelmente mutilado. Yabu tirou o quimono e cobriu-a até o
pescoço.
- Apressem o médico - disse, a voz rascante, depois se
aproximou de Blackthorne. Ajudou-o a se sentar contra a parede.
- Anjin-san! Anjin-san!
Blackthorne ainda estava em choque, os ouvidos ressoando,
1108
os olhos quase não enxergando, o rosto uma massa de contusões
e queimaduras de pólvora. Então seus olhos clarearam e viram
Yabu, a imagem se desfigurando, o cheiro de fumaça de pólvora
a sufocá-lo, e não sabia onde estava nem quem era, apenas que
estava a bordo, numa batalha, e seu navio fora atingido e precisava dele. Então viu Mariko e se lembrou.
Pôs-se de pé, oscilante, Yabu ajudando-o, e se aproximou
cambaleando.
Ela parecia em paz, adormecida. Ele se ajoelhou pesadatnente e afastou o quimono. Estendeu-o de novo. Seu pulso estava
quase imperceptível. Depois cessou.
Ele ficou olhando para ela, balançando, quase caindo, então
chegou um médico, que meneou a cabeça e disse alguma coisa,
mas Blackthorne não conseguiu ouvir ou compreender. Só sabia
que a morte a levara e que ele também estava morto.
Fez o sinal-da-cruz sobre ela e disse as palavras sagradas em
latim que eram necessárias para abençoá-la, e orou por ela, embora não lhe saísse som algum da boca. Os outros o observavam.
Quando terminou de fazer o que tinha que fazer, esforçou-se por
se levantar novamente e ficou ereto. Então sua cabeça pareceu
explodir numa luz vermelha e púrpura e ele desabou. Mãos gentis
o seguraram e ajudaram-no a se deitar no chão, deixando-o descansar.
- Está morto? - perguntou Yabu.
- Quase. Não sei como estão seus ouvidos, Yabu-sama -
disse o médico. - Ele pode estar sangrando por dentro.
- É melhor nos apressarmos - disse um samurai, nervoso -, tirem-nos daqui. O fogo pode se alastrar e ficaremos
encurralados.
- Sim - disse Yabu. Outro samurai chamou-o urgentemente do parapeito e ele foi até lá fora.
A velha Senhora Etsu estava deitada contra a ameia, amparada pela criada, o rosto cinéreo, os olhos reumosos. Fitou Yabu,
focalizando com dificuldade. - Kasigi Yabu-san?
- Sim, senhora.
- O senhor é o oficial superior aqui?
- Sim, senhora.
A velha senhora disse à criada: - Por favor, ajude-me a
me levantar.
- Mas a senhora devia esperar, o méd.. .
- Ajude-me a me levantar!
Samurais ali na varanda observaram-na erguer-se, apoiada
1109
pela criada. - Ouçam - disse ela, a voz rouca e frágil em meio
ao silêncio. - Eu, Maeda Etsu, esposa de Maeda Arinosi, senhor
de Nagato, Iwami e Aki, declaro que Toda Mariko-sama pôs fim
à vida para poupar-se de captura desonrosa por esses homens
hediondos e vergonhosos. Declaro que... que Kiyama Achiko
optou por atacar o ninja, preferindo perder a vida a correr o
risco da desonra de ser capturada... que não fosse a bravura do
samurai bárbaro a Senhora Toda teria sido capturada e desonrada, assim como todas nós, e nós, que estamos vivas, devemoslhes gratidão, assim como nossos senhores lhes devem gratidão por
nos proteger dessa vergonha... Acuso o Senhor General Ishido
de preparar esse ataque desonroso... e de trair o herdeiro e a
Senhora Ochiba. . . - A velha senhora cambaleou e quase caiu,
e a criada soluçou e segurou-a com mais firmeza. - E... e o
Senhor Ishido os traiu e ao conselho de regentes. Peço a todos
que prestem testemunho de que não posso mais viver com essa
vergonha...
- Não, não, ama - soluçou a criada. - Não a deixarei.. .
- Afaste-se! Kasigi Yabu-san, por favor, ajude-me. Vá embora, mulher!
Yabu aparou o peso da Senhora Etsu, que era desprezível,
e ordenou à criada que se afastasse. Ela obedeceu.
A senhora Etsu sentia muita dor e respirava pesadamente.
- Atesto a verdade disso com a minha própria morte - disse
mima voz tênue, e levantou os olhos para Yabu. - Eu ficaria
honrada se... se o senhor fosse o meu assistente. Por favor,
ajude-me até o parapeito.
- Não, senhora. Não há necessidade de morrer.
Ela desviou o rosto dos outros e sussurrou apenas para ele:
- Já estou morrendo, Yabu-sama. Estou sangrando por dentro
- alguma coisa se rompeu lá dentro - a explosão... Ajude-me
a cumprir o meu dever... Sou velha e inútil, e a dor tem sido
minha companheira de cama há vinte anos. Deixe a minha morte
também ajudar o nosso amo, neh? - Houve um lampejo nos
velhos olhos. - Neh?
Gentilmente ele a ergueu e parou orgulhosamente ao seu
lado na cornija, o adro muito lá embaixo. Ajudou-a a erguer-se.
Todos se curvaram para ela.
- Eu disse a verdade. Atesto isso com a minha morte -disse, em pé, sozinha, a voz trêmula. Depois fechou os olhos,
agradecida, e deixou-se tombar para a frente, para dar as boasvindas à morte.
1110
CAPITULO 58
Os regentes estavam reunidos no Grande Salão no segundo
andar do torreão. Ishido, Kiyama, Zataki, Ito e Onoshi. O sol do
amanhecer lançava sombras compridas e o odor de fogo ainda
pairava pesadamente no ar.
A Senhora Ochiba estava presente, também grandemente
perturbada.
- Sinto muito, senhor general, discordo - estava dizendo
Kiyama na sua voz irritadiça. - É impossível ignorar o seppuku
da Senhora Toda, a bravura da minha neta e o testemunho e a
morte formal da Senhora Maeda - junto com cento e quarenta
e sete homens de Toranaga mortos e aquela parte do castelo
quase arrasada! Simplesmente não pode ser ignorado.
- Concordo - disse Zataki. Chegara de Tarato na véspera,
de manhã, e quando soubera os detalhes da confrontação de
Mariko com Ishido ficara secretamente encantado. - Se ela
tivesse sido autorizada a partir ontem, conforme aconselhei, não
estaríamos nessa enrascada agora.
Não é tão sério quanto os senhores pensam. - A boca
de Ishido era uma linha compacta e Ochiba sentiu aversão por
ele naquele momento, repugnando-lhe que ele tivesse falhado
e os tivesse encerrado a todos naquela crise. - Os ninjas estavam
apenas atrás de saque - disse Ishido.
- O bárbaro é saque? - zombou Kiyama. - Organizariam
um ataque tão vasto por um bárbaro?
- Por que não? Poderiam pedir resgate por ele, neh? -
Ishido encarou o daimio, que estava ladeado por Ito Teruzumi e
Zataki. - Os cristãos em Nagasaki pagariam muito bem por ele,
morto ou vivo. Neh?
- É possível - concordou Zataki. - É assim que os bárbaros combatem.
- Está sugerindo, formalmente - disse Kiyama com firmeza -, que cristãos planejaram e pagaram por esse ataque
infame?
- Eu disse que era possível. E é possível.
- Sim. Mas não é provável - interveio Ishido, não querendo que o precário equilíbrio que existia entre os regentes
fosse destruido por uma discussão aberta agora. Ainda estava
muito irritado de que os espiões não o tivessem prevenido sobre
o esconderijo secreto de Toranaga, e ainda não compreendia
como pudera ser elaborado com tanto sigilo, sem nem um sopro
de rumor sobre ele. - Na minha opinião os ninjas estavam atrás
de saque.
- É muito sensato e muito correto - disse Ito com um
lampejo malicioso nos olhos. Era um homem pequeno, de meiaidade, resplendentemente adornado com espadas ornamentais, embora tivesse sido arrancado da cama como todos os demais. Estava maquilado como uma mulher e tinha os dentes escurecidos.
- Sim, senhor general. Mas talvez os ninjas não pretendessem
cobrar resgate por ele em Nagasaki, mas em Yedo, do Senhor
Toranaga. Ele não continua sendo lacaio dele?
O cenho de Ishido se ensombreceu à menção do nome. -
Concordo em que devemos gastar o nosso tempo discutindo sobre
o Senhor Toranaga e não sobre ninjas. Provavelmente ele ordenou o ataque, neh? É traiçoeiro o suficiente para fazer isso.
- Não, ele nunca usaria ninjas - disse Zataki. - Traição,
sim, mas não esse lixo. Mercadores fariam isso - ou bárbaros.
Mas não o Senhor Toranaga.
Kiyama observava Zataki, odiando-o. - Os nossos amigos
portugueses não poderiam instigar tal interferência nos nossos
assuntos. Nunca!
- O senhor acreditaria que eles e/ou os padres deles conspirariam com um dos daimios cristãos de Kyushu para combater
os não-cristãos - a guerra apoiada por uma invasão estrangeira?
- Quem? Diga-me. Tem provas?
- Ainda não, Senhor Kiyama. Mas os rumores correm e
um dia terei provas. - Zataki voltou-se para Ishido. - O que
podemos fazer em relação a esse ataque? Qual é a saída do
dilema? - perguntou, e olhou de relance para Ochiba. Ela observava Kiyama, depois sçus olhos moveram-se na direção de Ishido,
depois de volta a Kiyama, e ele nunca a tinha visto mais desejável.
- Todos concordamos - disse Kiyama - que é evidente
que o Senhor Toranaga tramou para que fôssemos enredados por
Toda Mariko-sama, por mais corajosa que ela tenha sido, por
mais impelida pelo dever e honrada, Deus tenha piedade dela.
Ito arrumou uma dobra nas saias do seu quimono impecável.
- Mas o senhor não concorda que seria um estratagema perfeito
para o Senhor Toranaga atacar seus próprios vassalos desse
modo? Oh, Senhor Zataki, sei que ele nunca usaria ninjas, mas
é esperto o bastante para levar os outros a tomar-lhe as idéias
e acreditar que são suas. Neh?
- Tudo é possível. Mas usar ninjas não seria característico
1112
dele. É inteligente demais para usá-los. Ou para levar alguém a
fazer isso. Não são dignos de confiança. E por que forçar Marikosama? Muito melhor esperar e nos deixar cometer o erro. Estávamos encurralados. Neh?
- Sim. Ainda estamos encurralados. - Kiyama olhou para
Ishido. -- E quem quer que tenha ordenado o ataque foi um
imbecil, e não nos prestou serviço algum.
- Talvez o senhor general esteja certo e não seja tão
sério quanto pensamos - disse Ito. - Mas é muito triste, uma
morte deselegante para ela, pobre senhora.
- Isso foi o karma dela, e não estamos encurralados. -
Ishido encarou Kiyama. - Foi muito afortunado que ela tivesse
aquela toca aferrolhada para onde correr, ou aquela ralé a teria
capturado.
- Mas não a capturaram, senhor general, e ela cometeu
uma forma de seppuku, e o mesmo fizeram os outros, e agora,
se não deixarmos todos se irem, haverá mais mortes de protesto
e não podemos nos permitir isso -- disse Kiyama.
- Não concordo. Todos devem ficar aqui - pelo menos
até que Toranaga-sama entre em nossos domínios.
Ito sorriu. - Esse será um dia memorável.
- Acha que ele não fará isso? - perguntou Zataki.
- O que penso não tem valor, Senhor Zataki. Logo saberemos o que ele vai fazer. Seja o que for, não faz diferença. Toranaga deve morrer, se é para o herdeiro herdar. - Ito olhou para
Ishido. - O bárbaro já morreu, senhor general?
Ishido balançou a cabeça e olhou Kiyama. - Seria azar que
ele morresse agora, ou que ficasse mutilado, um homem corajoso
assim, Neh?
-- Acho que ele é uma praga e quanto mais depressa morrer, melhor. O senhor esqueceu?
- Ele nos poderia ser útil. Concordo com o Senhor Zataki
- e com o senhor - em que Toranaga não é nenhum imbecil.
Tem que haver uma boa razão para Toranaga estimá-lo. Neh?
-- Sim, tem razão novamente -- disse Ito. - O Anjin-san
agiu bem para um bárbaro, não? Toranaga estava certo em fazelo samurai. - Olhou para Ochiba. - Quando ele lhe deu a flor,
senhora, considerei o gesto poético, digno de um cortesão.
Houve uma aquiescência geral.
- E a competição de poesia, senhora? - perguntou Ito.
- Deve ser cancelada, sinto muito - disse Ochiba.
- Sim - concordou Kiyama.
1113
- O senhor havia decidido participar? - perguntou ela.
- Não respondeu ele. - Mas agora eu poderia dizer:
Num ramo sem vida
A tempestade caiu...
Lágrimas de um verão escuro.
- Deixemos que isso seja o epitáfio dela. Ela era samurai
disse Ito calmamente. - Compartilho dessas lágrimas de
verão.
- Por mim - disse Ochiba -, eu preferiria um final diferente:
Num ramo sem vida
A neve ouviu...
Silêncio de inverno.
Mas concordo, Senhor Ito. Também acho que todos nós compartilharemos dessas lágrimas de verão escuro.
- Não, sinto muito, senhora, mas está enganada - disse
Ishido. - Haverá lágrimas, sim, mas serão Toranaga e seus
aliados quem as derramará. - Começou a conduzir a reunião
para um encerramento. - Darei início a um inquérito sobre o
ataque ninja imediatamente. Duvido que jamais descubramos
a verdade. Enquanto isso, por questão de segurança pessoal, todos
os passes serão lamentavelmente cancelados e todas as pessoas
lamentavelmente proibidas de partir até o vigésimo segundo dia.
- Não - disse Onoshi, o leproso, o último dos regentes,
do seu lugar solitário do outro lado da sala, onde se encontrava,
invisível, atrás das cortinas opacas da sua liteira. - Sinto muito,
mas isso é exatamente o que o senhor não pode fazer. Agora
deve deixar todos partirem. Todos.
- Por quê?
A voz de Onoshi era malévola e destemida. - Se não o
fizer, desonrará a senhora mais corajosa do reino, desonrará a
Senhora Kiyama Achiko e a Senhora Maeda. Deus tenha piedade
da alma delas. Quando esse ato infame for do conhecimento comum, só Deus, o pai, sabe que prejuízo causará ao herdeiro - e
a todos nós, se não formos cautelosos.
Ochiba sentiu um calafrio. Um ano atrás, quando Onoshi
viera prestar seus respeitos ao táicum moribundo, os guardas
haviam insistido para que as cortinas da liteira fossem abertas,
1114
para o caso de Onoshi ter armas ocultas, e ela vira o meio rosto
devastado - sem nariz, sem orelhas, coberto de crostas -, os
olhos fanáticos e candentes, o toco da mão esquerda e a direita,
boa, agarrada à espada curta.
A Senhora Ochiba rezou para que nem ela nem Yaemon jamais contraíssem lepra. Também ela queria que aquela reunião
se encerrasse, pois tinha que decidir agora o que fazer - o que
fazer em relação a Toranaga e o que fazer em relação a Ishido.
- Segundo - dizia Onoshi -, se o senhor usar esse ataque
infame como desculpa para reter qualquer pessoa aqui, estará
deixando implícito que nunca pretendeu permitir que partissem,
embora tenha dado a sua garantia solene por escrito. Terceiro:
o senhor...
Ishido interrompeu: - O conselho todo concordou em emitir os salvo-condutos!
- Desculpe, o conselho inteiro concordou quanto à sábia
sugestão da Senhora Ochiba de oferecer salvo-condutos, presumindo, com ela, que poucos tirariam partido da oportunidade de
partir, e ainda que o fizessem, que ocorreriam atrasos.
- Está sugerindo que as mulheres de Toranaga e Toda
Mariko não teriam partido e que outras não as teriam seguido?
- O que aconteceu a essas mulheres não desviaria o Senhor
Toranaga um nada do seu objetivo. Temos que nos preocupar
com os nossos aliados! Sem o ataque ninja e os três seppukus,
todo este absurdo teria abortado!
- Não concordo.
- Terceiro e último: se o senhor não deixar todos partirem, depois do que a Senhora Etsu disse publicamente, será
acusado pela maioria dos daimios de ordenar o ataque - embora
não publicamente - e todos correremos o risco defter a mesma
sorte, e então haverá muitas lágrimas.
- Não preciso contar com ninjas.
- Naturalmente - concordou Onoshi, a voz venenosa. -
Nem eu, ou qualquer pessoa aqui. Mas acho que é meu dever
lembrá-lo de que existem duzentos e sessenta e quatro daimios,
que a força do herdeiro repousa sobre a coalizão de talvez duzentos, e que o herdeiro não pode se permitir ter o senhor, seu
guia mais leal e comandante-chefe, supostamente culpado de tais
métodos vis e de uma ineficiência tão monstruosa, já que o ataque
falhou.
- Está dizendo que eu ordenei o ataque?
- Claro que não, desculpe. Simplesmente disse que o se1115
nhor será acusado de negligência se não deixar todo mundo
partir.
- Há alguém aqui que pense que eu ordenei o ataque?
-- Ninguém desafiou Ishido abertamente. Não havia provas. Corretamente, ele não os consultara e conversara apenas através de
vagas alusões, mesmo com Kiyama e Ochiba. Mas todos sabiam
o estavam todos igualmente furiosos de que ele tivesse tido a
estupidez de falhar - todos, menos Zataki. Ainda assim, Ishido
continuava sendo o senhor de Osaka, governador do tesouro do
táicum, portanto não podia ser tocado ou eliminado.
- Bom - disse Ishido com determinação. - Os ninfas
estavam atrás de saque. Votaremos sobre os salvo-condutos. Voto
que sejam cancelados.
- Discordo - disse Zataki.
- Sinto muito, também me oponho - disse Onoshi.
Ito corou com o escrutínio deles. - Tenho que concordar
com o Senhor Onoshi, ao mesmo tempo, bem... é tudo muito
difícil, neh?
Vote - disse Ishido com severidade.
Concordo com o senhor, senhor general.
Sinto muito, eu não - disse Kiyama.
- Bom - disse Onoshi. - Está resolvido, mas concordo,
senhor general, temos outros problemas urgentes. Temos que saber o que o Senhor Toranaga fará agora. Qual é a sua opinião?
Ishido sustentava o olhar de Kiyama, o rosto imóvel. Então
disse: - O que responde a isso?
Kiyama estava tentando eliminar da mente todos os seus
ódios, temores e preocupações para fazer uma escolha final -
Ishido ou Toranaga. Esta deve ser a hora. Lembrou-se vividamente de Mariko falando sobre a suposta traição de Ishido e a
suposta prova dessa traição que Toranaga teria, sobre o bárbaro
o seu navio - e sobre o que poderia acontecer ao herdeiro e à
Igreja se Toranaga dominasse o país e o que poderia acontecer
à lei deles se os santos padres dominassem a terra. E por sobre
isso tudo estava a angústia do padre-inspetor quanto ao herege
o seu navio, e o que aconteceria se o Navio Negro se perdesse,
o a convicção do capitão-mor, jurada por Deus, de que o Anjinsan fora gerado por Satã, Mariko enfeitiçada como Rodrigues
estava enfeitiçado. Pobre Mariko, pensou ele tristemente, morrer
assim depois de tanto sofrimento, sem absolvição, sem os últimos
ritos, sem um padre, passar toda a eternidade afastada da doce
1116
graça celestial de Deus. Nossa Senhora tenha piedade dela. Muitas
lágrimas de verão.
E Achiko? O líder ninja a escolheu ou foi apenas mais uma
morte? Como foi corajosa em atacar e não se encolher de medo,
pobre criança. Por que o bárbaro ainda está vivo? Por que o
ninja não o matou? Deveriam ter recebido ordem para fazer
isso, se esse ataque imundo foi concebido por Ishido, como naturalmente deve ter sido. Que vergonha para Ishido fracassar -
que repugnante fracassar. Ah, mas que coragem Mariko teve,
como foi inteligente em nos enredar na sua teia corajosa! E o
bárbaro.
Se eu fosse ele, nunca teria sido capaz de retardar os ninfas
com tanta coragem, ou de proteger Mariko da hedionda vergonha da captura - e Kiritsubo e Sazuko e a Senhora Etsu, sim,
o até Achiko. Não fosse ele e o refúgio secreto, a Senhora Mariko
teria sido capturada. E todos eles. É meu dever de samurai honrar
o Anjin-san como samurai. Neh?
Deus me perdoe, não fui até Mariko-chan para ser seu assistente, o que era meu dever cristão. O herege ajudou-a e ergueu-a,
assim como Jesus Cristo ajudou a outros e os ergueu, mas eu,
eu a abandonei. Quem é o cristão? Não sei. Ainda assim, ele
tem que morrer.
- E quanto a Toranaga, Senhor Kiyama? - repetiu Ishido.
-- E quanto ao inimigo?
- E quanto ao Kwanto? - perguntou Kiyama, observando-o.
- Quando Toranaga estiver destruído, proponho que o
Kwanto seja dado a um dos regentes.
- Que regente?
- O senhor - respondeu Ishido, brando, e acrescentou:
- ou talvez Zataki, senhor de Shinano. - Kiyama considerou
prudente a observação, pois Zataki era muitíssimo necessário
enquanto Toranaga estivesse vivo e Ishido já lhe dissera, um mês
antes, que Zataki solicitara o Kwanto como pagamento por se
opor a Toranaga. Juntos haviam combinado que Ishido prometeria
o Kwanto a ele, ambos sabendo que se trataria de uma promessa
vazia. Ambos haviam combinado que Zataki perderia a vida e a
sua província pela impertinência tão logo fosse conveniente.
- Naturalmente eu dificilmente seria a escolha certa para
tal honra - disse Kiyama, cuidadosamente calculando quem na
sala era a seu favor e quem era contra.
Onoshi tentou disfarçar sua desaprovação. - Essa decisão
1117
certamente é valiosa, digna de discussão, neh? Mas é para o futuro. O que o atual senhor do Kwanto vai fazer agora?
Ishido ainda estava olhando para Kiyama. - Bem?
Kiyama sentiu a hostilidade de Zataki, embora o rosto do
inimigo não demonstrasse nada. Dois contra mim, pensou, e Ochiba, mas ela não vota, Ito votara sempre com Ishido, portanto eu
venço - se Ishido estiver falando a sério. Estará? perguntou a
si mesmo, estudando o rosto à sua frente, sondando a verdade.
Então decidiu e disse abertamente o que concluíra. - O Senhor
Toranaga nunca virá a Osaka.
- Bom - disse Ishido. - Então está isolado, proscrito,
e o convite imperial para que ele cometa seppuku já está preparado para a assinatura do Exaltado. E esse é o fim de Toranaga
e da sua linhagem. Para sempre.
- Sim. Se o Filho do Céu vier a Osaka.
- O quê?
- Concordo com o Senhor Ito - continuou Kiyama, preferindo tê-lo como aliado a tê-lo como inimigo. - O Senhor
Toranaga é o mais manhoso dos homens. Acho que tem até
astúcia suficiente para impedir a chegada do Exaltado.
- Impossível!
- E se a visita for adiada? - perguntou Kiyama, subitamente apreciando o desconforto de Ishido, detestando-o por haver
falhado.
- O Filho do Céu estará aqui, conforme o planejado!
- E se o Filho do Céu não estiver?
- Digo-lhe que estará!
- E se não estiver?
- Como o Senhor Toranaga poderia fazer isso? - perguntou a Senhora Ochiba.
- Não sei. Mas se o Exaltado quisesse que sua visita fosse
adiada por um mês... não há nada que possamos fazer. O senhor
Toranaga não é um mestre na subversão? Eu não o considero
incapaz de nada - nem de influenciar o Filho do Céu.
Houve silêncio mortal na sala. A enormidade daquele pensamento, e suas repercussões, envolveu-os.
- Por favor, desculpem-me, mas... mas qual é a resposta?
- disse Ochiba, por todos eles.
- Guerra! - disse Kiyama. - Mobilizamo-nos hoje, secretamente. Esperamos até que a visita seja adiada, como será. Esse
será o nosso sinal de que Toranaga influenciou o Altíssimo. No
1118
mesmo dia marchamos contra o Kwanto, durante a estação das
chuvas.
Repentinamente o chão começou a tremer.
Primeiro o terremoto foi leve e durou apenas alguns momentos, mas fez as vigas estalarem.
Depois houve outro tremor. Mais forte. Uma fenda rasgou
uma parede de pedra e parou. Poeira desprendeu-se do teto.
Colunas, traves e telhas guincharam e telhas se soltaram de um
telhado e se lançaram no adro lá embaixo.
Ochiba sentiu-se tonta e nauseada, e se perguntou se era o
seu karma ser soterrada por entulho naquele dia. Agarrou-se ao
soalho tremendo e esperou, assim como todo mundo no castelo,
e a cidade e os navios na enseada, que o verdadeiro abalo começasse.
Mas não começou. O terremoto terminara. A vida recomeçou. A alegria de viver invadiu-os de novo, e seu riso ecoou
pelo castelo. Todos pareciam saber que desta vez - aquela hora,
aquele dia - o holocausto passara perto deles.
- Shigata ga nai - disse Ishido, ainda convulsionado. -
Neh?
- Sim - disse Ochiba gloriosamente.
- Vamos votar - disse Ishido, saboreando a própria existência. - Voto pela guerra!
- Eu também!
- Eu também!
- Eu também!
- Eu também!
Quando Blackthorne recuperou a consciência, soube que Mariko estava morta, e soube como ela morrera e por que morrera.
Estava deitado sobre futons, cinzentos guardando-o, um teto de
vigas no alto, a ofuscante luz do sol ferindo-lhe os olhos, o silêncio
estranho. O primeiro dos seus grandes temores se esvaneceu.
Posso ver.
O médico sorriu e disse alguma coisa, mas Blackthorne não
conseguiu ouvir. Começou a se levantar, mas uma dor ofuscante
disparou um ressoar violento nos seus ouvidos. O acre gosto de
pólvora ainda lhe estava na boca e o seu corpo inteiro doía.
Por um momento perdeu a consciência de novo, depois sentiu mãos gentis erguer-lhe a cabeça, encostar-lhe uma xícara aos
lábios, e o agridoce sabor do chá com cheiro de jasmim eliminou
1119
o gosto de pólvora. Forçou os olhos a se abrirem. Novamente
o médico disse alguma coisa, novamente não conseguiu ouvir, e
novamente o terror começou a brotar, mas ele o deteve, sua
mente lembrando-se da explosão, de vê-Ia morta e, antes de ela
morrer, de dar-lhe uma absolvição que não era qualificado para
dar. Deliberadamente afastou a lembrança e se concentrou na
outra explosão - a vez em que fora atirado ao mar depois de
o velho Alban Caradoc ter perdido as pernas. Daquela vez também tivera o mesmo ressoar nos ouvidos, a mesma dor, a mesma
ausência de som, mas sua audição voltara alguns dias depois.
Não há motivo para se preocupar, disse a si mesmo. Ainda não.
Podia ver a extensão das sombras do sol e a cor da luz. Amanheceu há pouco tempo, pensou, e novamente bendisse a Deus
por sua visão estar incólume.
Viu os lábios do médico moverem-se, mas nenhum som atravessou a turbulência ressoante.
Cuidadosamente apalpou o rosto, a boca e os maxilares. Não
havia dor ali, nem ferimentos. Depois o pescoço, braços e peito.
Nada de ferimentos. Depois desceu mais as mãos, sobre os rins,
a sua masculinidade. Mas não estava mutilado, como Alban
Caradoc fora, e agradeceu a Deus por não ter sido ferido ali e
deixado vivo para saber, como o pobre Alban Caradoc soubera.
Descansou um momento, a cabeça doendo de modo abominável. Depois apalpou as pernas e os pés. Tudo parecia em
ordem. Cautelosamente pousou as mãos sobre as orelhas e fez
pressão, depois abriu parcialmente a boca, engoliu e meio que
bocejou, para tentar clarear os ouvidos. Mas isso só aumentou
a dor.
Você esperará um dia e meio, ordenou a si mesmo, e dez
vezes esse tempo se for necessário, até lá você não terá medo.
o médico tocou-o, seus lábios movendo-se.
- Não consigo ouvir, sinto muito - disse Blackthorne calmamente, ouvindo as palavras apenas no cérebro.
o médico assentiu e falou novamente. Desta vez Blackthorne
leu nos lábios do homem: "Compreendo. Por favor, durma
agora".
Mas Blackthorne sabia que não dormiria. Tinha que planejar. Tinha que se levantar e deixar Osaka e ir a Nagasaki -
arranjar atiradores e marujos para tomar o Navio Negro. Não
havia mais nada em que pensar, mais nada de que se lembrar. Não
havia mais razão para brincar de ser samurai ou japonês. Agora
1120
estava livre, todas as dívidas e amizades canceladas. Porque ela
se fora.
Novamente levantou a cabeça e novamente sentiu a dor cegante. Dominou-a e se sentou. O quarto girou e ele vagamente
se lembrou de que em seus sonhos estivera de volta a Anjiro,
durante o terremoto, quando a terra se fendera e ele pulara lá
dentro para salvá-la e a Toranaga de serem tragados. Ainda
podia sentir a fria e pegajosa umidade, e aspirar o mau cheiro
da morte que vinha da fenda, Toranaga imenso, monstruoso e
rindo no seu sonho.
Forçou os olhos a verem. O quarto parou de girar e a náusea
passou. - Chá, doto - disse, o gosto de pólvora na boca de
novo. Mãos ajudaram-no a beber, depois ele estendeu os braços
e elas o ajudaram a se erguer. Sem elas teria caído. Seu corpo
era um grande ferimento, mas agora tinha certeza de que nada
se quebrara internamente, nem externamente, exceto os seus ouvidos, e que descanso, massagem e o tempo o curariam. Agradeceu novamente a Deus por não ter sobrevivido cego ou mutilado.
Os cinzentos ajudaram-no ase sentar de novo e ele se deitou um
momento. Não notou que o sol se moveu um quadrante do
momento em que se deitou até o momento em que abriu os
olhos.
Curioso, pensou, avaliando a sombra do sol, sem perceber
que dormira. Eu poderia ter jurado que amanhecera há pouco.
Meus olhos estão me pregando peças. Está perto do fim do turno
da manhã agora. Isso fê-lo lembrar-se de Alban Caradoc e suas
mãos se moveram pelo corpo mais uma vez, para certificá-lo de
que não sonhara que estava ileso.
Alguém tocou-o e ele levantou os olhos. Yabu estava a
observá-lo e falando.
- Sinto muito - disse Blackthorne lentamente. - Ainda
não consigo ouvir, Yabu-san. Logo estarei bem. Ouvidos doem,
compreende?
Viu Yabu assentir e franzir o cenho. Yabu e o médico conversaram e depois, com sinais, Yabu fez Blackthorne compreender
que logo voltaria e que Blackthorne descansasse até que ele o
fizesse. E saiu.
- Banho, por favor, e massagem - disse Blackthorne.
Mãos ergueram-no e levaram-no até lá. Ele dormiu sob os
dedos calmantes, o corpo mergulhado no êxtase do calor, a maciez e o aroma doce dos óleos que lhe foram esfregados na carne.
E o tempo todo sua mente planejou. Enquanto dormiu, os cin1121
zentos vieram, ergueram-lhe a maca e carregaram-na aos aposentos internos do torreão, mas ele não despertou, drogado pela
fadiga e pela poção curativa e sonífera.
- Ele estará seguro agora, senhora - disse Ishido.
- Contra Kiyama? - perguntou Ochiba.
- Contra todos os cristãos. - Ishido fez sinal aos guardas
que estivessem muito alerta e saiu do quarto para o corredor,
depois para o jardim inundado de sol.
- Foi por isso que a Senhora Achiko foi morta? Porque
era cristã?
Ishido ordenara isso para o caso de ela ser uma assassina
introduzida lá pelo avô Kiyama, a fim de matar Blackthorne.
- Não tenho idéia - disse.
Eles se agarram uns aos outros como abelhas numa
Como é que alguém pode acreditar no absurdo religioso
Não sei. Mas logo serão todos destruídos.
Como, senhor general? Como o senhor fará isso quando
tanta coisa depende da boa vontade deles?
- Promessas - até que Toranaga esteja morto. Aí eles
cairão uns sobre os outros. Dividimos e governamos. Não é isso
o que faz Toranaga, o que o senhor táicum fez? Kiyama quer
o Kwanto, neh? Pelo Kwanto ele obedecerá. Por isso foi-lhe
prometido, para um momento no futuro. Onoshi? Quem sabe
o que esse louco deseja... exceto cuspir na cabeça de Toranaga
o na de Kiyama antes de morrer?
- E se Kiyama descobrir a sua promessa a Onoshi - que
todas as terras de Kiyama serão dele -, ou que o senhor pretende manter sua promessa a Zataki e não a ele?
- Mentiras, senhora, espalhadas por inimigos. - Ishido
olhou para ela. - Onoshi quer a cabeça de Kiyama. Kiyama
quer o Kwanto. Assim como Zataki.
- E o senhor, senhor general? O que deseja?
- Primeiro o herdeiro em segurança aos quinze anos, depois governando o reino em segurança. E a senhora e ele seguros
o protegidos até lá. Nada mais.
- Nada?
- Não, senhora.
Mentiroso, pensou Ochiba. Colheu uma flor perfumada, aspirou-lhe o aroma e ofereceu-a a ele. - Adorável, neh?
- Sim, adorável - disse Ishido, pegando-a. - Obrigado.
1122
- O funeral de Yodoko-sama foi lindo. Merece ser cumprimentado, senhor general.
- Sinto muito que ela tenha morrido - disse Ishido polidamente. - O seu conselho era sempre valioso.
Andaram a esmo, em silêncio, um momento. - Elas já
partiram? Kiritsubo-san, a Senhora Sazuko e seu filho? - perguntou Ochiba.
- Não. Partirão amanhã. Depois do funeral da Senhora
Toda. Muitos partirão amanhã, o que é grave.
- Sinto muito, mas isso faz diferença? Agora que todos
concordamos em que Toranaga-sama não virá aqui?
- Acho que sim. Mas não é importante, não enquanto detivermos o Castelo de Osaka. Não, senhora, temos que ser pacientes, conforme Kiyama sugeriu. Esperaremos até o dia. Então marcharemos.
- Por que esperar? O senhor não pode marchar agora?
- Vai levar tempo reunir as nossas hostes.
- Quantos enfrentarão Toranaga?
- Trezentos mil homens. Pelo menos três vezes o número
de Toranaga.
- E a minha guarnição?
- Deixarei uma elite de oitenta mil dentro dos muros, e
mais cinqüenta mil nas passagens.
- E Zataki?
- Trairá Toranaga. No final ele o trairá.
- O senhor não acha curioso que o Senhor Sudara, minha
irmã e todos os filhos dela estejam visitando Takato?
- Não. Claro que Zataki fingiu algum acordo secreto com
o meio irmão. Mas é apenas um truque, nada mais. Ele o trairá.
- Ele deveria... ele tem o mesmo sangue corrompido disse ela com desagrado. - Mas eu ficaria muito aborrecida se
alguma coisa acontecesse à minha irmã ou a seus filhos.
- Nada acontecerá, senhora, tenho certeza.
- Se Zataki estava pronto a assassinar a própria mãe ...
neh? Tem certeza de que ele não o trairá?
- Não. Não no final. Porque odeia a Toranaga mais do
que a mim, senhora, e respeita a senhora e deseja o Kwanto
acima de tudo. - Ishido sorriu para os andares que se elevavam
acima dele. - Enquanto o castelo for nosso e o Kwanto existir
para ser oferecido, não há nada a temer.
- Esta manhã tive medo - disse ela, segurando uma flor
junto ao nariz, apreciando o perfume, desejando que ela extin1123
colmeia.
deles?
i
guisse o travo de medo que ainda perdurava. - Tive vontade
de sair correndo, mas aí me lembrei do adivinho.
- Heìn? Oh, ele. Tinha me esquecido - disse Ishido,
divertido mas sério. Era o adivinho, o emissário chinês, que
predissera que o táicum morreria no leito deixando um filho saudável para segui-lo, que Toranaga morreria pela espada na meiaidade, que Ishido morreria muito velho, como o general mais
famoso do reino, os pés firmes no solo. E que a Senhora Ochiba
terminaria seus dias no Castelo de Osaka, rodeada pelos maiores
nobres do império.
- Sim - repetiu Ishido. - Eu tinha me esquecido dele.
Toranaga é de meia-idade, neh?
- Sim. - Novamente Ochiba sentia a profundidade do
olhar dele, e foi como se seus rins se fundissem com o pensamento de um homem de verdade em cima dela, dentro dela,
abraçando-a, tomando-a, dando-lhe uma nova vida dentro dela.
Desta vez uma concepção honrosa, não como a última, quando
ela se perguntara horrorizada como seria a criança e como se
pareceria.
Que tola você é, Ochiba, disse a si mesma, enquanto perambulavam pelos caminhos perfumados e sombreados. Afaste esses
pesadelos imbecis - não passam disso. Você estava pensando
num homem.
De repente Ochiba teve vontade de que Toranaga estivesse
ali ao seu lado e não Ishido, que Toranaga fosse senhor do
Castelo de Osaka e senhor do tesouro do táicum, protetor do
herdeiro e general-chefe dos exércitos de oeste, e não Ishido.
Então não haveria problemas. Juntos eles possuiriam o reino, o
reino todo, e agora, hoje, neste momento, ela o chamaria para o
leito ou para uma clareira convidativa e amanhã ou no dia seguinte eles se casariam, e, acontecesse o que acontecesse no futuro,
hoje ela possuiria e seria possuída e estaria em paz.
Ponha os sonhos de lado, Ochiba, disse-se ela. Seja realista
como o táicum - ou como Toranaga.
- O que vai fazer com o Anjin-san? - perguntou.
Ishido riu. - Protegê-lo, deixá-lo tomar o Navio Negro
talvez, ou usá-lo como ameaça contra Kiyama e Onoshi, se for
necessário. Ambos o odeiam, neh? Oh, sim, ele é uma espada
na garganta deles - e na imunda Igreja deles.
- No jogo de xadrez entre o herdeiro e Toranaga, como
julgaria o valor do Anjin-san, senhor general? Um peão? Um
cavaleiro, talvez?
1124
- Ah, senhora, no Grande Jogo, meramente um peão -
disse Ishido imediatamente. - Mas no jogo do herdeiro contra
os cristãos, uma torre, facilmente uma torre, talvez duas.
- O senhor não acha que os jogos estão interligados?
- Sim, interligados, mas o Grande Jogo será decidido por
daimio contra daimio, samurai contra samurai, e espada contra
espada. Naturalmente, em ambos os jogos, a senhora é a rainha.
- Não, senhor general, por favor, desculpe-me, não uma
rainha - disse ela, contente de que ele percebesse isso. Depois,
por questão de segurança, mudou de assunto. - Corre o boato
de que o Anjin-san e Mariko-san "travesseiravam" juntos.
- Sim. Sim, também ouvi dizer. Deseja saber a verdade
sobre isso?
Ochiba meneou a cabeça. - Seria impensável que isso tivesse
acontecido.
Ishido observava-a atentamente. - A senhora acha que haveria algum valor em destruir a honra dela? Agora? E junto com
a dela, a de Buntaro-san?
- Não quis dizer nada, senhor general, nada disso. Só
estava me perguntando ... apenas uma tolice de mulher. Mas é
como o Senhor Kiyama disse esta manhã: lágrimas de um verão
escuro, triste, muito triste, neh?
- Eu preferi o seu poema, senhora. Prometo-lhe que o lado
de Toranaga terá as lágrimas.
- Quanto a Buntaro-san, talvez nem ele nem o Senhor
Hiro-matsu lutem pelo Senhor Toranaga na batalha.
- Isso é um fato?
- Não, senhor general, não um fato, mas uma possibilidade.
- Mas existe alguma coisa que a senhora possa fazer, talvez?
- Nada, senão pedir-lhes o apoio ao herdeiro - e o de
todos os generais de Toranaga, no momento em que a batalha
esteja resolvida.
- Está resolvida agora, um movimento de tenazes nortesul e o ataque final a Odawara.
- Sim, mas não de fato. Não até que exército enfrente
exército no campo de batalha. - Depois perguntou: - Desculpe,
mas o senhor tem certeza de que é prudente o herdeiro comandar
os exércitos?
- Eu comandarei os exércitos, mas o herdeiro deve estar
presente. Aí Toranaga não poderá vencer. Mesmo Toranaga jamais atacará o estandarte do herdeiro.
- Não seria mais seguro que o herdeiro ficasse aqui 1125
por causa de assassinos, de Amidas ... ? Não podemos pôr a vida
dele em risco. Toranaga tem um braço comprido, neh?
- Sim. Mas nem tanto, e o estandarte pessoal do herdeiro
torna o nosso lado legal e o de Toranaga ilegal. Conheço Toranaga. No final respeitará a lei. E apenas isso colocará a sua
cabeça na ponta de um chuço. Ele está morto, senhora. Assim
que estiver morto de fato, destruirei a Igreja cristã - toda ela.
Então a senhora e o herdeiro estarão seguros.
Ochiba levantou o olhar para ele, uma promessa não dita
nos olhos. - Rezarei pelo sucesso... e pelo seu regresso seguro.
o peito dele se apertou. Ele esperara muito tempo. - Obrigado, senhora, obrigado - disse, compreendendo-a. - Não lhe
falharei.
Ela se curvou e deu-lhe as costas. Que impertinência, estava
pensando. Como se eu fosse tomar um camponês por marido!
Agora, devo realmente descartar Toranaga?
Dell'Aqua estava ajoelhado em oração diante do altar nas
ruínas da pequena capela. A maior parte do telhado e de uma
parede estava desmoronada, mas o terremoto não danificara o
presbitério, e nada tocara o belo vidro colorido da janela, ou
a Nossa Senhora esculpida que era o seu orgulho.
o sol da tarde incidia através das vigas quebradas. Lá fora,
trabalhadores já estavam removendo entulho do jardim, consertando e conversando e, misturados à tagarelice deles, Dell'Aqua
podia ouvir os gritos das gaivotas vindos da praia e sentir um
travo na brisa, parte sal, parte fumaça, algas marinhas e pântanos. O odor transportou-o para casa, a sua quinta perto de
Nápoles, onde, misturados aos odores do mar, havia o perfume
dos limões e laranjas e o de pães frescos assando, e massa e alho
e abbacchio assando sobre brasas, e, na grande vila, a voz de sua
mãe, dos irmãos e irmãs e seus filhos, todos felizes, alegres e
vivos, aquecidos pelo sol dourado.
o minha Nossa Senhora, deixe-me voltar para casa em
breve, orou ele. Estou longe há muito tempo. De casa e do
Vaticano. Nossa Senhora, alivie-me do fardo. Perdoe-me, mas
estou farto de japoneses, Ishido, matança, peixe cru, Toranaga,
Kiyama, cristãos de arroz, tentar manter viva a sua Igreja. Dê-me
a sua força.
o proteja-nos dos bispos espanhóis. Os espanhóis não compreendem o Japão ou os japoneses. Eles destruirão o que come1126
çamos pela sua glória. E perdoe a sua serva, a Senhora Maria,
e tome-a sob a sua guarda. Vele por...
Ouviu alguém entrar na nave. Quando terminou as orações,
levantou-se e voltou-se.
- Desculpe interrompê-lo, Eminência - disse o Padre Soldi -, mas o senhor queria saber imediatamente. Há uma mensagem cifrada do Padre Alvito. De Mishima. O pombo acabou de
chegar.
- E?
- Ele só diz que verá Toranaga hoje. A noite passada foi
impossível porque Toranaga estava fora de Mishima, mas esperase que regresse ao meio-dia de hoje. A mensagem está datada
desta manhã.
Dell'Aqua tentou reprimir o desapontamento, depois olhou
as nuvens e o tempo, buscando confiança. A notícia do ataque
ninja e da morte de Mariko tinha sido enviada a Alvito ao amanhecer, a mesma mensagem por dois pombos, por questão de
segurança.
- As notícias logo estarão lá - disse Soldi.
- Sim. Sim, espero que sim.
Dell'Aqua saiu da capela, tomou o claustro e rumou para
os seus escritórios. Soldi, pequeno, um passarinho, tinha que se
apressar para acompanhar as grandes passadas do padre-inspetor.
- Há mais uma coisa de extrema importância, Eminência disse Soldi. - Nossos informantes relatam que pouco depois do
amanhecer os regentes votaram pela guerra.
Dell'Aqua parou. - Guerra?
- Parece que estão convencidos de que Toranaga nunca
virá a Osaka, ou o imperador. Por isso decidiram em conjunto ir
contra o Kwanto.
- Não há engano nisso?
- Não, Eminência. É a guerra. Kiyama acabou de mandar
um aviso pelo Irmão Miguel, que confirma a nossa fonte. Miguel
acabou de voltar do castelo. A votação foi unânime.
- Dentro de quanto tempo?
- No momento em que souberem com certeza que o imperador não virá aqui.
- A guerra não terminará nunca. Deus tenha piedade de
nós! E abençoe Mariko - pelo menos Kiyama e Onoshi foram
prevenidos da perfídia de Toranaga.
- E quanto a Onoshi, Eminência? E quanto à perfídia dele
contra Kiyama?
1127
- Não tenho provas disso, Soldi. É coisa forçada demais.
Não posso acreditar que Onoshi fizesse isso.
- Mas se fizer, Eminência?
- Neste exato momento não é possível, mesmo que tenha
sido planejado. Agora precisam um do outro.
- Até o falecimento do Senhor Toranaga...
- Você não precisa me lembrar da inimizade desses dois,
ou de que eles não têm escrúpulos; Deus perdoe a ambos.
- Pôs-se em movimento de novo.
Soldi alcançou-o. - Devo mandar essa informação ao Padre
Alvito?
- Não. Ainda não. Primeiro tenho que resolver o que fazer.
Toranaga ficará sabendo hem depressa, pelas suas próprias fontes. Deus tome esta terra sob a sua guarda e tenha piedade de
todos nós.
Soldi abriu a porta para o padre-inspetor. - O único outro
assunto de importância é que o conselho formalmente recusou
que ficássemos com o corpo da Senhora Mariko. Ela terá um
funeral cerimonial amanhã e não fomos convidados.
- Era de se esperar, mas é esplêndido que queiram honrá-la
assim. Mande algum dos nossos buscar uma parte das suas cinzas
- isso será permitido. As cinzas serão enterradas em solo santificado em Nagasaki. - Endireitou um quadro automaticamente
e sentou-se atrás da escrivaninha. - Direi um réquiem por ela
aqui - o réquiem completo, com toda a pompa e cerimônia que
pudermos, será quando os seus despojos forem formalmente enterrados. Ela será sepultada em solo de catedral, como uma filha
muito abençoada da Igreja. Providencie uma placa, contrate os
melhores artistas, calígrafos -- tudo deve ser perfeito. A abençoada coragem e auto-sacrifício dela serão um enorme encorajamento ao nosso rebanho. Muito importante, Soldi.
- E a neta de Kiyama, senhor? As autoridades nos deixarão ficar com o corpo. Ele insistiu.
- Ótimo. Então os seus despojos devem ser enviados para
Nagasaki imediatamente. Consultarei Kiyama sobre quão importante ele deseja que o funeral seja.
- O senhor realizará o serviço, Eminência?
- Sim, desde que seja possível que eu saia daqui.
- O Senhor Kiyama ficaria muito satisfeito com essa honra.
- Sim, mas devemos nos certificar de que as suas exéquias
não prejudiquem as da Senhora Maria. As de Maria são, politicamente, muitíssimo importantes.
1128
- Claro, Eminência. Compreendo perfeitarnente.
Dell'Aqua examinou o seu secretário. - Por que não confia
em Onoshi?
- Desculpe, Eminência, provavelmente porque ele é leproso
e me petrifica de terror. Peço desculpas.
Peça desculpas a ele, Soldi, ele não tem culpa pela doença
- disse Dell'Aqua. - Não temos provas da conspiração.
- As outras coisas que a senhora disse eram verdadeiras.
Por que não isso?
- Não temos provas. É tudo suposição.
- Sim, suposição.
Dell'Aqua moveu o frasco de água, observando a luz se refrangendo. Nas minhas orações, senti o cheiro de flores de
laranjeira e de pães frescos, e, oh, como gostaria de ir para casa.
Soldi suspirou. - Sonho com abhacchio, Eminência, e com
carne pizzaiola e um jarro de Lacrima Christi e... Deus me perdoe pelas fomes da fome! Logo poderemos ir para casa, Eminência. No próximo ano. Pelo próximo ano estará tudo acomodado
aqui.
- Nada estará acomodado aqui no próximo ano. Essa guerra nos atingirá. Prejudicará a Igreja e os fiéis terrivelmente.
- Não, Eminência. Kyushu será cristã vença quem vencer
disse Soldi confiantemente, querendo consolar o superior.
- Essa ilha pode esperar pelo bom tempo de Deus. Há mais que
o suficiente a fazer em Kyushu, Eminência, não há? Três milhões
de almas a converter, meio milhão de fiéis a quem atender. Depois há Nagasaki e o comércio. Eles precisam ter comércio.
Ishido e Toranaga vão se rasgar em pedaços. O que importa isso?
São ambos anticristãos, pagãos e assassinos.
- Sim. Mas infelizmente o que acontecer em Osaka e em
Yedo controlará Kyushu. O que fazer, o que fazer? - Dell'Aqua
pôs de lado a melancolia. - E o Inglês? Onde está agora?
- Ainda sob guarda no torreão.
- Deixe-me sozinho um pouco, amigo velho, preciso pensar.
Tenho que decidir o que fazer. Finalmente. A Igreja está em
grande perigo. - Dell'Aqua olhou pelas janelas para o adro.
Então viu o Frei Perez se aproximando.
Soldi foi para a porta a fim de interceptar o monge. - Não
- disse o padre-inspetor. - Eu o verei agora.
- Ah, Eminência, boa tarde - disse o Frei Perez, coçando-se sem perceber. -- Queria me ver?
- Sim. Por favor, traga a carta, Soldi.
1129
- Ouvi dizer que a sua capela foi destruída - disse o
monge.
- Danificada. Por favor, sente-se. - Dell'Aqua sentou-se
na sua cadeira de espaldar alto atrás da escrivaninha, o monge
à sua frente. - Ninguém se feriu, graças a Deus. Dentro de
alguns dias estará nova outra vez. E a sua missão?
- Intacta - disse o monge, com satisfação evidente. -
Houve incêndios em toda a nossa volta depois dos tremores e
muitos morreram, mas não fomos tocados. O olho de Deus vela
por nós. - Depois acrescentou, crítico: - Ouvi dizer que pagãos
estiveram assassinando pagãos a noite passada.
- Sim. Uma das nossas mais importantes convertidas, a
Senhora Maria, foi morta na escaramuça.
- Ah, sim. Também recebi relatórios. "Mate-o, Yoshinaka",
disse a Senhora Maria, e deu início à carnificina. Ouvi dizer que
ela até tentou matar alguns pessoalmente, antes de cometer suicídio.
Dell'Aqua corou. - O senhor não compreende nada sobre
os japoneses depois de todo esse tempo, e até fala um pouco da
língua deles.
- Compreendo heresia, estupidez, matança e interferência
política, e falo a língua pagã muito bem. Compreendo muita coisa
sobre esses pagãos.
- Mas não sobre boas maneiras.
- A palavra de Deus não exige boas maneiras. É a Palavra.
Oh, sim. Também compreendo sobre adultério. O que pensa sobre
adultério - e meretrizes, Eminência?
A porta abriu-se. Soldi estendeu a Dell'Aqua a carta do papa
e saiu.
o padre-inspetor passou o papel ao monge, saboreando a
própria vitória. - Isto é de Sua Santidade. Chegou ontem por
um mensageiro especial vindo de Macau.
o monge pegou a ordem papal e leu-a. Ordenava, com o
acordo formal do rei da Espanha, que todos os padres de todas
as ordens religiosas deviam, no futuro, viajar para o Japão apenas
via Lisboa, Goa e Macau; que todos estavam proibidos, sob pena
de excomunhão imediata, de ir diretamente de Manila para o
Japão; e, finalmente, que todos os padres que não jesuítas deviam
deixar o Japão imediatamente e dirigir-se para Manila, de onde
poderiam, se seus superiores assim o desejassem, regressar ao
Japão, mas somente via Lisboa, Goa e Macau.
o Frei Perez examinou com atenção o selo, a assinatura e
1130
a data, releu cuidadosamente a ordem, depois riu zombeteiro, e
atirou a carta sobre a mesa. - Não acredito nisso!
- É uma ordem de Sua Santidade o ...
- É mais uma heresia contra o rebanho de Deus, contra
nós e todos os mendicantes que levamos a Palavra aos pagãos.
Com esse ardil ficamos proibidos de vir ao Japão para sempre,
porque os portugueses, instigados por certas pessoas, vão tergiversar para sempre e nunca nos concederão passagem ou vistos.
Se isto for genuíno, serve apenas para provar o que vimos dizendo
há anos: os jesuítas podem corromper até o vigário de Cristo em
Roma!
Dell'Aqua se controlou. - O senhor recebeu ordem de partir. Ou será excomungado.
- As ameaças jesuíticas não têm significado, Eminência. O
senhor não fala com a língua de Deus, nunca falou, nunca falará.
Não são soldados de Cristo. Servem a um papa, a um homem,
Eminência. São políticos, homens da terra, homens do luxo com
suas sedas pagãs e terras e poder e riquezas e influência. O Senhor
Jesus Cristo veio ao mundo disfarçado de homem simples, que se
coçava, andava descalço e cheirava mal. Nunca partirei - nem
os meus irmãos!
Dell'Aqua nunca estivera tão furioso na vida. - O-senhorsairá-do-Japão!
- Diante de Deus, não sairei! Mas esta é a última vez que
venho aqui. Se no futuro o senhor me quiser ver, venha à nossa
santa missão, venha e sirva aos pobres, aos doentes e aos indesejados, como fez Cristo. Lavê-lhes os pés, como fez Cristo, e salve
a sua própria alma antes de ser tarde demais.
- O senhor recebeu ordem, sob pena de excomunhão, de
partir do Japão imediatamente.
- Ora vamos, Eminência, não estou excomungado e nunca
estarei. Claro que aceito o documento, a menos que tenha caducado. Vem datado de 16 de setembro de 1598, quase dois anos
atrás. Tem que ser verificado, é importante demais para ser aceito
imediatamente - e isso levará no mínimo quatro anos.
- Claro que não caducou!
- Engana-se. Como Deus é meu juiz, acredito que tenha
caducado. Dentro de poucas semanas, no máximo dentro de alguns
meses, teremos finalmente um arcebispo no Japão. Um bispo espanhol! As cartas que tenho de Manila relatam que a ordem real
é esperada a qualquer momento.
- Impossível! Isto é território português e nossa província!
1131
- Era português. Era jesuítico. Mas agora tudo mudou.
Com a ajuda dos nossos irmãos e a orientação divina, o rei da
Espanha derrotou o seu geral em Roma.
- Isso é um absurdo. Mentiras e boatos. Pela sua alma
imortal, obedeça às determinações do vigário de Cristo.
- Obedecerei. Escreverei a ele hoje mesmo, prometo-lhe.
Enquanto isso, aguardo um bispo espanhol, um vice-rei espanhol
e um novo capitão do Navio Negro - também espanhol! Isso
também deve fazer parte da ordem real. Também temos amigos
em altos postos e, finalmente, eles venceram os jesuítas, de uma
vez por todas! Fique com Deus, Eminência. - O Frei Perez levantou-se, abriu a porta e saiu.
Na antecâmara, Soldi observou-o partir, depois voltou correndo para a sala. Assustado pela cor de Dell'Aqua, correu para
o frasco de conhaque e serviu um pouco de bebida. - Eminência?
Dell'Aqua meneou a cabeça e continuou a fitar o vazio,
inexpressivo. Durante o ano anterior houvera inquietantes notícias
dos seus delegados na corte de Filipe da Espanha, em Madri, sobre
a crescente influência dos inimigos da Companhia.
- Não é verdade, Eminência. Os espanhóis não podem vir
aqui. Não pode ser verdade.
- Pode ser verdade, facilmente. Facilmente demais. -
Dell'Aqua tocou a ordem papal. - Este papa pode estar morto,
o nosso geral morto... até o rei da Espanha. Enquanto isso.. .
- Pôs-se de pé e ergueu-se em toda a sua altura. - Enquanto
isso nós nos prepararemos para o pior e rezaremos por ajuda,
faremos o melhor que pudermos. Mande o Irmão Miguel trazer
Kiyama aqui imediatamente.
- Sim, Eminência. Mas Kiyama nunca esteve aqui antes.
Seria pouco provável que viesse agora.
- Diga a Miguel que use quaisquer argumentos que julgar
necessários, mas deve trazer Kiyama aqui antes do crepúsculo.
Depois mande imediatamente a notícia sobre a guerra a Martim,
para ser passada a Toranaga o mais rápido possível. Escreva você
os detalhes, que quero mandar uma mensagem particular junto.
Depois, mande alguém trazer Ferreira aqui.
- Sim, Eminência. Mas quanto a Kiyama, com certeza Miguel não será capaz.. .
- Diga a Miguel que lhe ordene vir aqui, em nome de Deus,
se necessário! Somos soldados de Cristo, vamos à guerra - à
guerra de Deus! Depressa!
1132
CAPITULO 59
- Anjin-san?
Blackthorne ouviu seu nome no sonho. Vinha de muito longe, parecendo ecoar para sempre. - Hai? - respondeu.
Depois ouviu repetir o nome e uma mão o tocou, seus olhos
se abriram e se concentraram na meia-luz do amanhecer, sua
consciência fluiu de volta e ele se sentou ereto. O médico estava
novamente ajoelhado ao lado da sua cama. Kiritsubo e a Senhora
Ochiba erguiam-se ali perto, olhando-o atentamente. Havia cinzentos por toda parte na sala. Lanternas a óleo bruxuleavam validamente.
O médico falou-lhe de novo. O ressoar ainda lhe estava nos
ouvidos e a voz tênue, mas não havia erro agora. Podia ouvir de
novo. Involuntariamente suas mãos foram para os ouvidos e apertaram. Imediatamente a dor explodiu-lhe na cabeça e disparou
faixas e luzes coloridas e um latejar violento.
- Desculpe - murmurou ele, esperando que o sofrimento
diminuísse, querendo que diminuísse. - Desculpe, ouvidos doem,
neh? Mas eu ouço agora - compreende, doutor-san? Ouço agora
- um pouco. Desculpe, o que disse? - Prestou atenção aos
lábios do homem para se ajudar a ouvir.
- A Senhora Ochiba e Kiritsubo-sarna querem saber como
o senhor está.
- Ah! - Blackthorne olhou para elas. Notou que estavam
vestidas formalmente. Kiritsubo toda de branco, exceto por uma
fita verde no cabelo, o quimono de Ochiba verde-escuro, sem
estampado ou adornos, o longo xale branco de gaze. - Melhor,
obrigado. - Depois observou a claridade lá fora e percebeu que
era quase amanhecer e não crepúsculo. - Doutor-san, por favor,
dormi um dia e uma noite?
- Sim, Anjin-san. Um dia e uma noite. Deite-se de novo,
por favor. - O médico pegou o pulso de Blackthorne com seus
longos dedos e pressionou, ouvindo com as pontas dos dedos as
nove pulsações, três na superfície, três no meio e três profundas,
conforme a medicina chinesa ensinava desde tempos imemoriais.
Todos na sala esperavam pelo diagnóstico. O médico assentiu, satisfeito. - Parece tudo em ordem, Anjin-san. Nenhum
ferimento sério, compreende? Muita dor de cabeça, neh? -
Voltou-se e explicou com mais detalhes à Senhora Ochiba e a
Kiritsubo.
1133
- Anjin-san - disse Ochiba -, hoje é o funeral de Marikosama. Compreende "funeral"?
- Sim, senhora.
Bom. O funeral será pouco depois do amanhecer. É privilégio seu ir se quiser. Compreende?
- Sim. Acho que sim. Sim, por favor, também vou.
- Muito bem. - Ochiba falou com o médico, dizendo-lhe
que tratasse do paciente com todo o cuidado. Depois, com uma
polida reverência a Kiritsubo e um sorriso a Blackthorne, saiu.
Kiri esperou até que ela tivesse ido embora. - Está bem,
Anjin-san?
- Ouço mal, senhora. Sinto muito.
- Por favor, desculpe-me. Eu queria lhe dizer obrigada.
Compreende?
- Dever. Apenas dever. Falhei. Mariko-sama morta, neh?
Kiri curvou-se para ele em homenagem. - Não falhou. Oh,
não, não falhou. Obrigada, Anjin-san. Por ela, por mim e pelas
outras. Mais tarde falo mais. Obrigada. - E também foi embora.
Blackthorne apoiou-se e se pôs em pé. A dor de cabeça era
monstruosa, fazendo-o querer gritar. Forçou os lábios numa linha
apertada, o peito doendo muito, o estômago contorcendo-se. Num
instante a náusea passou, mas deixou um gosto repugnante na
boca. Moveu os pés para a frente e caminhou até a janela, apoiouse ao peitoril, esforçando-se para não vomitar. Esperou, depois
caminhou de um lado para o outro, mas isso não lhe eliminou a
dor de cabeça nem a náusea.
- Eu bem, obrigado disse, e sentou-se de novo.
- Tome, beba isto. Faz melhorar. Acomoda a hora. - O
médico tinha um sorriso bondoso. Blackthorne bebeu e teve ânsias. A beberagem cheirava a esterco envelhecido de aves e a algas,
misturados com folhas fermentando num dia quente de verão.
O gosto era pior ainda.
- Beba. Logo estará melhor, sinto muito.
Blackthorne teve ânsias de novo, mas forçou o líquido a
descer.
- Logo estará melhor, sinto muito.
Algumas criadas se aproximaram, pentearam-no e prenderam-lhe o cabelo. Um barbeiro barbeou-o. Trouxeram toalhas
quentes para o rosto e mãos, e ele se sentiu muito melhor. Mas
a dor de cabeça permanecia. Outras criadas ajudaram-no a vestir
o quimono formal e o manto com asas. Havia uma espada curta
1134
nova. - Presente, amo. Presente de Kiritsubo-sama - disse uma
criada.
Blackthorne aceitou-a e enfiou-a ao cinto, junto com a espada mortífera, a que Toranaga lhe dera, o cabo lascado e quase
quebrado no ponto onde ele golpeara o ferrolho. Lembrou-se de
Mariko em pé, de costas para a porta, depois de mais nada até
o momento em que ele se ajoelhara ao lado dela e a vira morrer.
Depois nada até agora.
- Desculpe, este é o torreão, neh? - perguntou ao capitão
dos cinzentos.
- Sim, Anjin-san. - O capitão curvou-se respeitosamente,
corpulento como um gorila, e igualmente perigoso.
- Por que estou aqui, por favor?
O capitão sorriu e respondeu polidamente: - O senhor
general ordenou.
- Mas por que aqui?
- Foram ordens do senhor general - disse o samurai.
- Por favor, desculpe, compreende?
- Sim, obrigado - disse Blackthorne, cansado.
Quando finalmente ficou pronto, sentiu-se péssimo. Um pouco de chá ajudou-o um momento, depois o enjôo subiu num
turbilhão e ele vomitou na tigela que uma criada segurou, o peito
o a cabeça trespassados por agulhas quentes e vermelhas a cada
espasmo.
- Sinto muito - disse o médico com paciência. - Tome,
por favor, beba.
Ele tomou mais da beberagem, mas não adiantou.
O amanhecer agora estava se espalhando pelo céu. Criadas
o chamaram com um sinal e o ajudaram a sair do amplo aposento, seus guardas na frente, os demais atrás. Desceram a escada
o saíram para o adro. Havia um palanquim à espera, com mais
guardas. Ele se acomodou, agradecido. A uma ordem do seu capitão de cinzentos, os carregadores pegaram as hastes e, rodeados
de guardas protetores, juntaram-se à procissão de liteiras e de
samurais e senhoras a pé que coleava através do labirinto para
fora do castelo. Estavam todos vestidos com esmero. Algumas
mulheres usavam quimonos escuros com fitas pretas no cabelo,
outras estavam todas de branco, exceto por uma fita de cor.
Blackthorne tinha consciência de estar sendo observado. Fingiu não notar isso e tentou manter as costas eretas e o rosto
despido de emoção, e orou para o enjôo não voltar e envergonhá-lo. A dor aumentou.
1135
O cortejo se insinuou por entre as muralhas do castelo, passou por milhares de samurais alinhados em filas silenciosas. Ninguém foi detido, nenhum documento solicitado. Sem parar, o
cortejo fúnebre atravessou posto de controle após posto de controle, sob rastrilhos e através dos cinco fossos. Uma vez do outro
lado do portão principal, fora das fortificações principais, ele
notou que os seus cinzentos se tornaram mais cautelosos, os olhos
vigiando todo mundo por perto, mantendo-se perto dele, protegendo-o muito cuidadosamente. Isso lhe diminuiu a ansiedade.
A procissão cruzou uma área desimpedida, atravessou uma ponte,
depois fez alto na praça ao lado da margem do rio.
Esse espaço tinha trezentos passos por quinhentos. No centro
havia um poço de quinze passos quadrados e cinco de profundidade, cheio de madeira. Sobre o poço havia um alto telhado de
esteiras, enfeitado com seda branca e rodeado de paredes de tela
de linho branco, pendendo de bambus, que apontavam exatamente para leste, norte, oeste e sul, um pequeno portão de madeira
no meio de cada parede.
- Os portões são para que a alma os atravesse, Anjin-san,
no seu vôo para o paraíso - dissera-lhe Mariko em Hakoné.
- Vamos nadar ou conversar sobre outras coisas. Coisas
felizes.
- Sim, claro, mas primeiro me deixe concluir, porque isto
é uma coisa muito feliz. O nosso funeral é muitíssimo importante
para nós, por isso você deve aprender a respeito dele, Anjin-san,
neh? Por favor?
- Está bem. Mas por que quatro portões? Por que não
apenas um?
- A alma deve ter uma escolha. Isso é sábio - oh, somos
muito sábios, neh? Eu já lhe disse hoje que o amo? - dissera ela
em latim. - Somos uma nação muito sábia em oferecer uma
escolha à alma. A maioria das almas escolhe o portão sul, Anjinsan. É o portão importante, onde há mesas com figos secos,
romãs frescas e outras frutas, rabanetes e outros vegetais, e folhas de arroz, se a estação for correta. E sempre uma tigela de
arroz fresco cozido, Anjin-san, isso é muito importante. Você
entende, a alma pode querer comer antes de partir.
- Se for eu, ponha um faisão assado ou...
- Sinto muito, nada de carne. Nem mesmo peixe. Somos
sérios sobre isso, Anjin-san. Além disso, sobre a mesa também
haverá um pequeno braseiro com carvões queimando agradavel1136
mente com madeiras preciosas e óleos, para que tudo tenha um
cheiro suave ...
Blackthorne sentiu os olhos se encherem de lágrimas.
- Quero que o meu funeral seja perto do amanhecer -
dissera ela sempre, com muita serenidade. - Amo o amanhecer.
E se também pudesse ser no outono ...
Minha pobre querida, pensou ele. Você sabia o tempo todo
que não haveria um outono.
Sua liteira parou num lugar de honra na fila dianteira, perto
do centro, e ele ficou próximo o suficiente para ver lágrimas sobre
as frutas borrifadas de água. Estava tudo ali, conforme ela dissera. Em torno alinhavam-se centenas de palanquins e na praça
se aglomeravam mil samurais e suas senhoras a pé, todos silenciosos e imóveis. Ele reconheceu Ishido e, ao seu lado, Ochiba.
Nenhum dos dois olhou para ele. Estavam sentados em liteiras
suntuosas e fitavam as paredes de linho branco que sussurravam
à brisa suave. Kiyama estava do outro lado de Ochiba, Zataki
perto, com Ito. A liteira fechada de Onoshi também estava lá.
Todos tinham destacamentos de guardas. Os samurais de Kiyama
usavam cruzes. E os de Onoshi.
Blackthorne olhou em torno, procurando Yabu, mas não
conseguiu encontrá-lo em parte alguma, nem qualquer marrom
ou rosto amistoso. Kiyama agora o fitava vitreamente e, quando
Blackthorne viu a expressão nos olhos dele, sentiu-se contente por
ter guardas. Entretanto, curvou-se polidamente. Mas o olhar de
Kiyama permaneceu inalterado e não deu mostras de ter notado
a polidez de Blackthorne. Dali a pouco Kiyama desviou os olhos
o Blackthorne respirou com mais facilidade.
O som de tambores e sinos e metal batendo em metal rasgou
o ar. Dissonante. Lancinante. Todos os olhos se dirigiram para a
entrada principal do castelo, de onde surgiu um palanquim coberto e adornado, carregado por oito sacerdotes xintoístas, um
sumo sacerdote sentado como um Buda grave. Outros sacerdotes
batiam em tambores de metal à frente e atrás da liteira, e depois
vinham duzentos sacerdotes budistas usando hábito laranja, mais
sacerdotes xintoístas vestidos de branco, e depois o esquife.
Era rico, coberto, todo branco. Ela estava vestida de branco
o sentada, a cabeça ligeiramente para a frente, o rosto maquilado,
o penteado meticuloso. Dez marrons carregavam o andor. Diante
do esquife dois noviços atiravam minúsculas pétalas de rosas de
papel, que o vento levava e espalhava, significando que a vida
era efêmera como uma flor; atrás deles dois sacerdotes arras1137
tavam duas lanças com a ponta para baixo, indicando que
ela era samurai e o dever, forte como as lâminas de aço. Depois
deles vinham quatro sacerdotes com archotes apagados. Saruji, o
filho, vinha em seguida, o rosto tão branco quanto o quimono.
Depois Kiritsubo e a Senhora Sazuko, ambas de branco, o cabelo
solto mas coberto de gaze verde. O cabelo da garota caía-lhe
abaixo da cintura, o de Kiri era mais longo. Depois havia um
espaço, e por último vinha o restante da guarnição de Toranaga.
Alguns marrons estavam feridos e muitos mancavam.
Blackthorne via apenas a ela. Parecia estar em oração e não
apresentava marca alguma. Ele se mantinha rígido, sabendo que
honra aquela cerimônia pública, com Ishido e Ochiba como testemunhas principais, representava para ela. Mas isso não lhe aliviava o sofrimento.
Por mais de uma hora, o sumo sacerdote entoou encantamentos e os tambores soaram. Depois, num silêncio repentino,
Saruji deu um passo à frente, pegou um archote apagado e foi a
cada um dos quatro portões, leste, norte, oeste e sul, para se
certificar de que não estavam obstruídos.
Blackthorne viu que o menino tremia e que estava de olhos
baixos quando voltou para junto do esquife. Então ergueu a corda
branca atada a ele e guiou os carregadores pelo portão sul. A
liteira toda foi cuidadosamente colocada sobre a madeira. Outro
encantamento solene, depois Saruji encostou o archote encharcado
de óleo nas brasas do braseiro. Ardeu imediatamente. Ele hesitou,
depois voltou novamente pelo portão sul, sozinho, e atirou o
archote na pira. A madeira impregnada de óleo pegou fogo. Rapidamente se tornou uma fornalha. Logo as chamas estavam com
dez pés de altura. Saruji foi forçado a recuar pelo calor, depois
pegou madeiras e óleos perfumados e atirou-os ao fogo. Agora
toda a área do poço era uma massa devastadora, pirogênica -
redemoinhando, crepitando, ávida.
Os pilares do telhado ruíram. Um suspiro percorreu os assistentes. Sacerdotes avançaram e puseram mais madeira na pira,
e as chamas se ergueram mais alto, a fumaça em grandes rolos.
Agora restavam apenas os quatro pequenos portões. Blackthorne
viu o calor chamuscá-los. Depois também arderam nas chamas.
Então Ishido, a principal testemunha, saiu do seu palanquim,
avançou e fez a oferenda ritual de madeira preciosa. Curvou-se
formalmente e se sentou de novo na sua liteira. A uma ordem
sua, os carregadores o ergueram e ele voltou ao castelo. Ochiba
seguiu-o. Outros começaram a partir.
1138
Saruji curvou-se para as chamas uma última vez.. Voltou-se
e caminhou até Blackthorne. Parou à sua frente e curvou-se.
- Obrigado, Anjin-san - disse. Depois se afastou com Kiri e a
Senhora Sazuko.
- Tudo acabado, Anjin-san - disse o capitão dos cinzentos
com um sorriso. - Os kamis seguros agora. Vamos ao castelo.
- Espere. Por favor.
- Sinto muito, ordens, neh? - disse o capitão, preocupado,
os outros guardas aproximando-se.
- Por favor, espere.
Sem se preocupar com a ansiedade deles, Blackthorne desceu
da liteira, a dor quase o cegando. Os samurais se espalharam,
dando-lhe cobertura. Ele caminhõu até a mesa, pegou alguns pedacinhos de madeira de cânfora e atirou-os na fornalha. Não
conseguia ver nada através da cortina de chamas.
- In nomine Patris et Filii et Spiritui Sancti - murmurou
ele numa bênção, e fez um pequeno sinal-da-cruz. Depois se voltou e se afastou do fogo.
Quando despertou, a cabeça estava muito melhor mas ele se
sentia esgotado, a dor surda ainda latejando atrás das têmporas
e na testa.
- Como se sente, Anjin-san? - disse o médico com o seu
sorriso dentuço, a voz ainda tênue. - Dormiu muito tempo.
Blackthorne ergueu-se sobre um cotovelo e fitou sonolentamente as sombras do sol. Devem ser quase cinco horas da tarde
agora, pensou. Dormi mais de seis horas. - Dormi o dia todo,
neh?
O médico sorriu. - Ontem o dia todo, a noite e a maior
parte de hoje. Compreende?
- Compreendo. Sim. - Blackthorne deitou-se, um brilho
de transpiração na pele. Bom, pensou. A melhor coisa que eu
poderia ter feito, não admira que me sinta melhor.
A sua cama de acolchoados macios estava rodeada por três
lados agora de requintados tabiques móveis, com pinturas de
paisagens campestres e marítimas, emolduradas com marfim. A
claridade vinha pelas janelas opostas e moscas enxameavam, o
quarto imenso, agradável e silencioso. Fora havia os sons do castelo, agora misturados ao trote de cavalos passando, rédeas retinindo, os cascos desferrados. A brisa leve trazia o aroma de
fumaça. Não sei se gostaria de ser queimado, pensou ele. Mas
1139
espere um minuto, não é melhor do que ser colocado numa caixa,
depois enterrado e depois os vermes... Pare com isso, ordenou
a si mesmo, sentindo-se ir à deriva numa espiral descendente.
Não há nada com que se preocupar, karma é karma, e quando
você estiver morto, estará morto, e não saberá de mais nada -
e qualquer coisa é melhor do que afogamento, a água enchendo
você, o seu corpo se tornando enlameado e pútrido, os caranguejos... Pare com isso!
- Beba, por favor. - O médico deu-lhe mais daquela beberagem repugnante. Ele teve ânsia de vômito, mas reteve-a no
estômago.
- Chá, por favor. - A criada serviu e ele agradeceu. Era
uma mulher de meia-idade e rosto redondo, fendas no lugar de
olhos e um fixo sorriso vazio. Depois de três xícaras sua boca
ficou suportável.
- Por favor, Anjin-san, como está ouvindo?
- A mesma coisa. Ainda longe... distância, compreende?
Muito distante.
- Compreendo. Comer, Anjin-san?
Uma pequena bandeja lhe foi servida com arroz, sopa e peixe
grelhado. O seu estômago estava nauseado, mas lembrou-se de
que praticamente não comia há dois dias, por isso se sentou e
se forçou a ingerir um pouco de arroz e a tomar a sopa de peixe.
Isso acomodou-lhe o estômago, então comeu mais e deu cabo de
tudo, usando os pauzinhos agora como extensões dos próprios
dedos, sem esforço consciente. - Obrigado. Faminto.
- Sim - disse o médico. Colocou uma bolsa de linho com
ervas sobre a mesa baixa ao lado da cama. - Faça chá com isto,
Anjin-san. Uma vez por dia até sarar. Compreende?
- Sim. Obrigado.
- Foi uma honra servi-lo. - O velho fez sinal à criada,
que levou embora a bandeja vazia, e depois de outra mesura seguiu-a e saiu pela mesma porta interna. Blackthorne ficou sozinho.
Deitou-se sobre os futons sentindo-se muito melhor.
- Eu só estava com fome - disse alto. Estava usando apenas uma tanga. Suas roupas formais estavam numa pilha desarrumada onde ele as deixara, e isso o surpreendeu, embora houvesse um quimono marrom limpo ao lado das suas espadas.
Deixou-se devanear, depois de repente sentiu uma presença estranha. Inquieto, sentou-se e correu os olhos ao redor. Depois pôs-se
de joelhos e olhou por sobre os biombos e antes de se dar conta
estava em pé, a cabeça se fendendo com o repentino movimento
1140
de pânico ao ver o jesuíta japonês tonsurado fitando-o, ajoelhado
imóvel ao lado da porta principal, um crucifixo e um rosário nas
mãos.
- Quem é você? - perguntou Blackthorne através da
sua dor.
- Sou o Irmão Miguel, senhor. - Os olhos escuros como
carvão não piscavam. Blackthorne afastou-se das divisórias e se
dirigiu para as suas espadas. - O que quer comigo?
- Mandaram-me perguntar como o senhor está - disse
Miguel calmamente, num português claro, embora com sotaque.
- Quem o mandou?
- O Senhor Kiyama.
Subitamente Blackthorne percebeu que estavam totalmente
sozinhos. - Onde estão os meus guardas?
- O senhor não tem guardas.
- Claro que tenho! Tenho vinte cinzentos. Onde estão os
meus cinzentos?
- Não havia nenhum quando cheguei, senhor. Sinto muito.
O senhor ainda estava dormindo. - Miguel apontou gravemente
para fora. - Talvez devesse perguntar àqueles samurais.
Blackthorne pegou a espada. - Por favor, saia de junto da
porta.
- Não estou armado, Anjin-san.
- Ainda assim, não se aproxime de mim. Padres me deixam
nervoso.
Obedientemente, Miguel pôs-se de pé e se afastou com a
mesma calma enervante. Do lado de fora dois cinzentos encostavam-se insolentes à balaustrada do patamar.
- Boa tarde - disse Blackthorne polidamente, sem reconhecer nenhum dos dois.
Ambos se curvaram. - Boa tarde, Anjin-san - retrucou um.
- Por favor, onde estão os meus guardas?
- Todos os guardas foram levados embora na hora da
Lebre esta manhã. Compreende "hora da Lebre"? Não somos os
seus guardas, Anjin-san. Este é o nosso posto habitual.
Blackthorne sentiu o suor gelado escorrer-lhe pelas costas.
-- Guardas levados embora - quem ordenou?
Os dois samurais riram. O alto disse: - Aqui, dentro do
torreão, Anjin-san, apenas o senhor general dá ordens - ou a
Senhora Ochiba. Como se sente agora?
- Melhor, obrigado.
O samurai mais alto chamou. Em poucos momentos um ofi1141
cial saiu de uma sala com quatro samurais. Era jovem e teso.
Quando viu Blackthorne seus olhos se iluminaram. - Ah, Anjinsan. Como se sente?
- Melhor, obrigado. Por favor, desculpe-me, mas onde estão os meus guardas?
- Recebi ordem de lhe dizer, quando acordasse, que o
senhor deve voltar ao seu navio. Aqui está o seu passe. - O
capitão tirou o papel da manga e deu-o a ele, apontando com
desdém para Miguel. - Esse sujeito será o seu guia.
Blackthorne tentou pôr a cabeça a funcionar, o cérebro gritando perigo. - Sim. Obrigado. Mas primeiro, por favor, devo
ver o Senhor Ishido. Muito importante.
- Sinto muito. Suas ordens são para voltar ao navio assim
que despertar. Compreende?
- Sim. Por favor, desculpe-me, mas é muito importante eu
ver o Senhor Ishido. Por favor, diga ao seu capitão. Agora. Devo
ver o Senhor Ishido antes de partir. Muito importante, sinto muito.
O samurai coçou as marcas de varíola no queixo. - Vou
perguntar. Por favor, vista-se. - Afastou-se a passos largos e com
ar de importância, para alívio de Blackthorne. Os quatro samurais
ficaram. Blackthorne voltou e se vestiu rapidamente. Eles o observavam. O padre esperava no corredor.
Seja paciente, disse-se ele. Não pense e não se preocupe.
É um engano. Nada mudou. Você continua tendo o poder que
sempre teve.
Colocou as duas espadas no sash e tomou o resto do chá.
Então viu o passe. O papel estava selado e coberto de caracteres.
Não há engano quanto a isto, pensou, o quimono limpo já a lhe
colar no corpo.
- Ei, Anjin-san - disse um dos samurais -, ouvi dizer
que o senhor matou cinco ninfas. Muito, muito bom, neh?
- Sinto muito, apenas dois. Talvez três. - Blackthorne
moveu a cabeça de um lado para o outro para aliviar a dor e a
vertigem.
- Ouvi dizer que foram mortos cinqüenta e sete ninjas e
cento e dezesseis marrons. É verdade?
- Não sei. Sinto muito.
O capitão voltou ao quarto. - Suas ordens são para o senhor
ir para o seu navio, Anjin-san. O padre é o seu guia.
- Sim. Obrigado. Mas primeiro, desculpe, devo ver a Senhora Ochiba. Muito, muito importante. Por favor, pergunte ao
seu ...
1142
O capitão virou-se para Miguel e falou guturalmente e muito
depressa. - Neh? - Miguel curvou-se, impassível, e voltou-se
para Blackthorne. - Sinto muito, senhor. Ele diz que o seu superior está perguntando ao superior, mas enquanto isso o senhor
deve partir imediatamente e seguir-me - para a galera.
- Ima! - acrescentou o capitão, com ênfase.
Blackthorne sabia que era um homem morto. Ouviu-se dizer:
- Obrigado, capitão. Onde estão os meus guardas, por favor?
- O senhor não tem guardas.
- Por favor, mande buscar no meu navio. Por favor traga
meus vassalos do ...
- Ordem ir navio agora! Compreende, neh? - As palavras
foram descorteses e muito conclusivas. - Ir ao navio! - acrescentou o capitão com um sorriso falso, esperando que Blackthorne
se curvasse primeiro.
Blackthorne notou isso e tudo se transformou em pesadelo,
tudo retardado e enevoado. Desesperado, sentiu vontade de enxugar o suor do rosto e curvar-se, mas teve certeza de que dificilmente o capitão retribuiria a mesura, talvez nem sequer polidamente e jamais como igual, e ele estaria envergonhado diante de
todos eles. Estava claro que fora traído e vendido ao inimigo
cristão, que Kiyama, Ishido e os padres faziam parte da traição,
e, fosse pela razão ou o preço que fosse, não havia nada agora
que ele pudesse fazer senão enxugar o suor, curvar-se e partir, e
eles estariam à sua espera.
Então sentiu Mariko ao seu lado e se lembrou do terror dela,
de tudo o que quisera dizer, tudo o que fizera, e tudo o que lhe
ensinara. Forçou a mão sobre o punho quebrado da espada e
truculentamente separou os pés, sabendo que o seu destino estava
decidido, seu karma fixado, e que, se tinha que morrer, preferia
morrer agora, com orgulho, a morrer mais tarde.
- Sou John Blackthorne, Anjin-san - disse, sua decisão
absoluta emprestando-lhe um poder estranho e uma rudeza perfeita. - General do navio do Senhor Toranaga. De todos os
navios. Samurai e hatamoto! Quem é o senhor?
O capitão corou. - Saigo Massakatsu de Kaga, capitão da
guarnição do Senhor Ishido.
- Sou hatamoto. O senhor é hatamoto? - perguntou Blackthorne, ainda mais rudemente, sem sequer tomar conhecimento
do nome do adversário, apenas vendo-o com uma clareza enorme,
irreal - vendo cada poro, cada pêlo da barba curta, cada salpico
1143
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de cor nos hostis olhos castanhos, cada pêlo nas costas da m
do homem que agarrava o punho da espada.
- Não, não hatamoto.
- O senhor é samurai... ou ronin? - A última palav
sibilou e Blackthorne sentiu homens atrás de si, mas não se pre
cupou. Estava apenas observando o capitão, esperando pelo gol
súbito e mortal que reuniria toda a hara-gei, toda a fonte intern
de energia, e preparou-se para retribuir o golpe com a mesm
força cegante, numa morte mútua e honrosa, e assim derrotar
inimigo.
Para seu espanto, viu os olhos do capitão mudarem, o home
se contrair e curvar-se, profunda e humildemente. O homem ma
teve-se curvo, apresentando-se indefeso. - Por favor... p
favor, desculpe a minha falta de maneiras. Eu ... eu fui roni
mas... mas o senhor general deu-me uma segunda chance. Po
favor, desculpe a minha falta de maneiras, Anjin-san. - A vo
estava entrecortada de vergonha.
Era tudo muito irreal e Blackthorne ainda estava pront
para investir, esperando para investir, esperando a morte e nã
a vitória. Olhou para os outros samurais. Como um único homem
curvaram-se e mantiveram-se curvados como o capitão, outorgan
do-lhe a vitória.
Após um momento Blackthorne curvou-se rigidamente. Ma
não como um igual. Eles se mantiveram curvados até que ele
voltasse e tomasse o corredor, Miguel seguindo-o, saindo para
escada principal, descendo os degraus até o adro. Agora na
sentia dor alguma. Estava invadido apenas por um ardor enorme
Cinzentos o observavam, e o grupo de samurais que o escoltou
e a Miguel, até o primeiro posto de controle manteve-se cuidado
samente fora do alcance da sua espada. Um homem foi enviad
à frente, às pressas.
No posto de controle seguinte, o novo oficial curvou-se poli
damente como um igual e ele retribuiu a reverência. O passe fo
examinado meticulosa mas corretamente. Outra escolta levou-o
ao posto seguinte, onde tudo se repetiu. Dali rumaram para
fosso interno, depois para o seguinte. Ninguém interferiu. Os sa
murais mal prestavam atenção nele.
Gradualmente ele foi notando que a cabeça quase não doía.
O suor secara. Soltou os dedos do punho da espada e flexionou-os
um momento. Parou junto a uma fonte num muro, bebeu e borrifou água na cabeça.
A escolta cinzenta parou e esperou polidamente, e o tempo
do ele tentava entender por que perdera o favor e a proteção
e Ishido e da Senhora Ochiba. Nada mudou, pensou, aflito. Leantou os olhos e viu Miguel a fitá-lo. - O que você quer?
- Nada, senhor - disse Miguel polidamente. Depois o
sto do padre se iluminou com um sorriso, cheio de cordialiade. - Ah, senhor, fez-me um grande serviço lá atrás, fazendo
quele cabrón de modos repugnantes beber a própria urina. Oh,
i ótimo de ver! - disse, e acrescentou em latim: - Agraeço-lhe.
- Não fiz nada por você - disse Blackthorne em portuues, não querendo falar em latim.
- Sim. Mas que a paz esteja com o senhor. Saiba que Deus
e move por caminhos misteriosos. Foi um serviço para todos os
omens. Aquele ronin foi envergonhado e mereceu. É uma coisa
epugnante insultar o bushido.
- Você também é samurai?
- Sim, senhor, tenho essa honra - disse Miguel. - Meu
ai é primo do Senhor Kiyama e meu clã é da província de Hizen,
m Kyushu. Como o senhor sabia que ele era ronin?
Blackthorne tentou se lembrar. - Não tenho certeza. Talvez
orque ele disse que era de Kaga e isso fica muito longe e
ariko ... a Senhora Toda disse que Kaga é no extremo norte.
ao sei ... não me lembro realmente do que disse.
O oficial da escolta aproximou-se. - Por favor, com licença,
njin-san, mas este sujeito o está perturbando?
- Não. Não, obrigado. - Blackthorne pôs-se em movimeno de novo. O passe foi verificado novamente, com cortesia, e eles
rosseguiram.
O sol estava baixo agora, mas ainda faltavam algumas horas
ara o escurecer, e diabinhos de poeira rodopiavam em espirais
músculas nas correntes de ar quente. Passaram por muitos esábulos, todos os cavalos com a cara para fora - lanças, chuços
selas prontas para partida imediata, samurais tratando dos caalos e limpando equipamento. Blackthorne ficou pasmado com
quantidade de animais.
- Quantos cavalos, capitão? - perguntou.
- Milhares, Anjin-san. Dez, vinte, trinta mil aqui e em
utros pontos do castelo.
Quando cruzavam o penúltimo fosso, Blackthorne chamou
iguel com um gesto. - Você está me levando à galera?
- Sim. Foi o que me disseram que fizesse, senhor.
- A nenhum outro lugar?
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Alguns marrons estavam fer
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viava o sofrimento.
Por mais de uma hora
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cada um dos quatro portõo
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Então Ishido, a princiavançou e fez a oferenda
formalmente e se sentou
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seguiu-o. Outros começara
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de cor nos hostis olhos castanhos, cada pêlo na
do homem que agarrava o punho da espada.
- Não, não hatamoto.
- O senhor é samurai... ou ronin? -
sibilou e Blackthorne sentiu homens atrás de si,
cupou. Estava apenas observando o capitão, esper
súbito e mortal que reuniria toda a hara-gei, toda
de energia, e preparou-se para retribuir o golpe
força cegante, numa morte mútua e honrosa, e
inimigo.
Para seu espanto, viu os olhos do capitão mu
se contrair e curvar-se, profunda e humildemente.
teve-se curvo, apresentando-se indefeso. - Po
favor, desculpe a minha falta de maneiras. Eu..
mas... mas o senhor general deu-me uma segun
favor, desculpe a minha falta de maneiras, Anjin
estava entrecortada de vergonha.
Era tudo muito irreal e Blackthorne ainda
para investir, esperando para investir, esperando
a vitória. Olhou para os outros samurais. Como um
curvaram-se e mantiveram-se curvados como o ca
do-lhe a vitória.
Após um momento Blackthorne curvou-se r
não como um igual. Eles se mantiveram curvados
voltasse e tomasse o corredor, Miguel seguindo-o,
escada principal, descendo os degraus até o ad
sentia dor alguma. Estava invadido apenas por um
Cinzentos o observavam, e o grupo de samurais
e a Miguel, até o primeiro posto de controle mant
samente fora do alcance da sua espada. Um bom
à frente, às pressas.
No posto de controle seguinte, o novo oficial
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ao posto seguinte, onde tudo se repetiu. Dali ru
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murais mal prestavam atenção nele.
Gradualmente ele foi notando que a cabeça q
O suor secara. Soltou os dedos do punho da espada
um momento. Parou junto a uma fonte num muro
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A escolta cinzenta parou e esperou polidame
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entender por que perdera o favor e a proteção
enhora Ochiba. Nada mudou, pensou, aflito. Lee viu Miguel a fitá-lo. - O que você quer?
senhor - disse Miguel polidamente. Depois o
se iluminou com um sorriso, cheio de cordialinhor, fez-me um grande serviço lá atrás, fazendo
e modos repugnantes beber a própria urina. Oh,
er! - disse, e acrescentou em latim: - Agra
z nada por você - disse Blackthorne em portundo falar em latim.
as que a paz esteja com o senhor. Saiba que Deus
minhos misteriosos. Foi um serviço para todos os
ronin foi envergonhado e mereceu. É uma coisa
Itar o bushido.
ambém é samurai?
nhor, tenho essa honra - disse Miguel. - Meu
Senhor Kiyama e meu clã é da província de Hizen,
mo o senhor sabia que ele era ronin?
e tentou se lembrar. - Não tenho certeza. Talvez
se que era de Kaga e isso fica muito longe e
enhora Toda disse que Kaga é no extremo norte.
o me lembro realmente do que disse.
a escolta aproximou-se. - Por favor, com licença,
este sujeito o está perturbando?
ao, obrigado. - Blackthorne pôs-se em movimenasse foi verificado novamente, com cortesia, e eles
va baixo agora, mas ainda faltavam algumas horas
er, e diabinhos de poeira rodopiavam em espirais
correntes de ar quente. Passaram por muitos esos cavalos com a cara para fora - lanças, chuços
para partida imediata, samurais tratando dos cado equipamento. Blackthorne ficou pasmado com
e animais.
os cavalos, capitão? - perguntou.
res, Anjin-san. Dez, vinte, trinta mil aqui e em
do castelo.
ruzavam o penúltimo fosso, Blackthorne chamou
gesto. - Você está me levando à galera?
oi o que me disseram que fizesse, senhor.
hum outro lugar?
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de cor nos hostis olhos castanhos, cada pêlo nas costas da mão
do homem que agarrava o punho da espada.
- Não, não hatamoto.
- O senhor é samurai... ou ronin? - A última palavra
sibilou e Blackthorne sentiu homens atrás de si, mas não se preocupou. Estava apenas observando o capitão, esperando pelo golpe
súbito e mortal que reuniria toda a hara-gei, toda a fonte interna
de energia, e preparou-se para retribuir o golpe com a mesma
força cegante, numa morte mútua e honrosa, e assim derrotar o
inimigo.
Para seu espanto, viu os olhos do capitão mudarem, o homem
se contrair e curvar-se, profunda e humildemente. O homem manteve-se curvo, apresentando-se indefeso. - Por favor... por
favor, desculpe a minha falta de maneiras. Eu ... eu fui ronin,
mas... mas o senhor general deu-me uma segunda chance. Por
favor, desculpe a minha falta de maneiras, Anjin-san. - A voz
estava entrecortada de vergonha.
Era tudo muito irreal e Blackthorne ainda estava pronto
para investir, esperando para investir, esperando a morte e não
a vitória. Olhou para os outros samurais. Como um único homem,
curvaram-se e mantiveram-se curvados como o capitão, outorgando-lhe a vitória.
Após um momento Blackthorne curvou-se rigidamente. Mas
não como um igual. Eles se mantiveram curvados até que ele se
voltasse e tomasse o corredor, Miguel seguindo-o, saindo para a
escada principal, descendo os degraus até o adro. Agora não
sentia dor alguma. Estava invadido apenas por um ardor enorme.
Cinzentos o observavam, e o grupo de samurais que o escoltou,
e a Miguel, até o primeiro posto de controle manteve-se cuidadosamente fora do alcance da sua espada. Um homem foi enviado
à frente, às pressas.
No posto de controle seguinte, o novo oficial curvou-se polidamente como um igual e ele retribuiu a reverência. O passe foi
examinado meticulosa mas corretamente. Outra escolta levou-os
ao posto seguinte, onde tudo se repetiu. Dali rumaram para o
fosso interno, depois para o seguinte. Ninguém interferiu. Os samurais mal prestavam atenção nele.
Gradualmente ele foi notando que a cabeça quase não doía.
O suor secara. Soltou os dedos do punho da espada e flexionou-os
um momento. Parou junto a uma fonte num muro, bebeu e borrifou água na cabeça.
A escolta cinzenta parou e esperou polidamente, e o tempo
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todo ele tentava entender por que perdera o favor e a proteção
de Ishido e da Senhora Ochiba. Nada mudou, pensou, aflito. Levantou os olhos e viu Miguel a fitá-lo. - O que você quer?
- Nada, senhor - disse Miguel polidamente. Depois o
rosto do padre se iluminou com um sorriso, cheio de cordialidade. - Ah, senhor, fez-me um grande serviço lá atrás, fazendo
aquele cabrón de modos repugnantes beber a própria urina. Oh,
foi ótimo de ver! - disse, e acrescentou em latim: - Agradeço-lhe.
- Não fiz nada por você - disse Blackthorne em português, não querendo falar em latim.
- Sim. Mas que a paz esteja com o senhor. Saiba que Deus
se move por caminhos misteriosos. Foi um serviço para todos os
homens. Aquele ronin foi envergonhado e mereceu. É uma coisa
repugnante insultar o bushido.
- Você também é samurai?
- Sim, senhor, tenho essa honra - disse Miguel. - Meu
pai é primo do Senhor Kiyama e meu clã é da província de Hizen,
em Kyushu. Como o senhor sabia que ele era ronin?
Blackthorne tentou se lembrar. - Não tenho certeza. Talvez
porque ele disse que era de Kaga e isso fica muito longe e
Mariko... a Senhora Toda disse que Kaga é no extremo norte.
Não sei... não me lembro realmente do que disse.
O oficial da escolta aproximou-se. - Por favor, com licença,
Anjin-san, mas este sujeito o está perturbando?
- Não. Não, obrigado. - Blackthorne pôs-se em movimento de novo. O passe foi verificado novamente, com cortesia, e eles
prosseguiram.
O sol estava baixo agora, mas ainda faltavam algumas horas
para o escurecer, e diabinhos de poeira rodopiavam em espirais
minúsculas nas correntes de ar quente. Passaram por muitos estábulos, todos os cavalos com a cara para fora - lanças, chuços
e selas prontas para partida imediata, samurais tratando dos cavalos e limpando equipamento. Blackthorne ficou pasmado com
a quantidade de animais.
- Quantos cavalos, capitão? - perguntou.
- Milhares, Anjin-san. Dez, vinte, trinta mil aqui e em
outros pontos do castelo.
Quando cruzavam o penúltimo fosso, Blackthorne chamou
Miguel com um gesto. - Você está me levando à galera?
- Sim. Foi o que me disseram que fizesse, senhor.
- A nenhum outro lugar?
1145
L
- Não, senhor.
- Quem lhe disse?
- O Senhor Kiyama. E o padre-inspetor, senhor.
- Ah, ele! Prefiro Anjin-san, não "senhor". .. padre.
- Por favor, desculpe-me, Anjin-san, mas não sou um padre. Não fui ordenado.
- Quando será?
- Quando Deus quiser - disse Miguel confiantemente.
- Onde está Yabu-san?
- Não sei, sinto muito.
- Você está apenas me levando ao meu navio, a nenhum
outro lugar?
- Sim, Anjin-san.
- E depois estou livre? Livre para ir aonde quiser?
- Disseram-me que lhe perguntasse como o senhor está, depois para guiá-lo até o navio, nada mais. Sou apenas um mensageiro, um guia.
- Diante de Deus?
- Sou apenas um guia, Anjin-san.
- Onde aprendeu a falar português tão bem? E latim?
- Fui um dos quatro... dos quatro acólitos enviados pelo
padre-inspetor a Roma. Tinha treze anos, Uraga-noh-Tadamasa,
doze.
- Ah! Agora me lembro. Uraga-san me disse que voce oi
um deles. Você era amigo dele. Soube que morreu?
- Sim. Fiquei doente ao ser informado.
- Foram cristãos que fizeram isso.
- Foram assassinos que fizeram isso, Anjin-san. Assassinos.
Serão julgados, esteja certo.
Após um momento, Blackthorne disse: - O que achou de
Roma?
- Detestei. Todos nós detestamos. Tudo, a comida, a sujeira, a feiúra. São todos etas lá - inacreditável! Levamos oito anos
para chegar lá e voltar, e, oh, como bendisse Nossa Senhora quando finalmente voltei.
- E a Igreja? Os padres?
- Detestáveis. Muitos deles disse Miguel calmamente.
- Fiquei chocado com seus costumes, amantes, ganancia, pompa,
hipocrisia e falta de educação - e seus dois critérios, um para
o rebanho, outro para os pastores. Foi tudo odioso ... e no entanto encontrei Deus entre alguns, Anjin-san. Muito estranho.
Encontrei a verdade, nas catedrais, nos claustros e entre os pa1146
dres. - Miguel olhou para ele com inocência, uma ternura irradiando dele. - Foi raro, Anjin-san, muito raramente encontrei
um vislumbre - isso é verdade. Mas realmente encontrei a verdade e Deus, e sei que o cristianismo é o único caminho para a
vida eterna... por favor, desculpe-me, o cristianismo católico.
- Você viu os autos-de-fé, a Inquisição, as celas, julgamentos de feitiçaria?
- Vi muitas coisas terríveis. Muito poucos homens são sábios - a maioria é de pecadores e muito mal ocorre na terra
em nome de Deus. Mas não é mal de Deus. Este mundo é um
vale de lágrimas e apenas uma preparação para a paz eterna.
- Orou em silêncio um momento, depois, revigorado, levantou
os olhos. - Até alguns hereges podem ser bons, neh?
- Talvez - replicou Blackthorne, gostando dele.
O último fosso e o último portão, o portão sul principal.
O último posto de controle, e o passe foi retido. Miguel atravessou o último rastrilho. Blackthorne seguiu-o. Fora do castelo, cem
samurais os esperavam. Homens de Kiyama. Viu-lhes os crucifixos, a hostilidade, e parou. Miguel não. O oficial fez sinal a
Blackthorne que continuasse. Ele obedeceu. Os samurais estreitaram-se atrás e à volta dele, encerrando-o no meio. Carregadores
o comerciantes naquela via principal dispersavam-se, curvavam-se
o rastejavam até que eles tivessem passado. Alguns erguiam cruzes patéticas e Miguel os abençoava, tomando a dianteira pela
ligeira vertente, passando pelo pátio funerário onde o buraco não
fumegava mais, cruzando a ponte e seguindo para a cidade, em
direção ao mar. Cinzentos e outros samurais vinham da cidade
por entre pedestres. Quando viram Miguel, fizeram uma carranca
o o teriam forçado a se afastar para o lado não fosse a massa de
samurais de Kiyama.
Blackthorne seguia Miguel. Já não sentia medo, embora continuasse desejando escapar. Mas não havia para onde correr, ou
onde se esconder. Em terra. Sua única segurança estava a bordo
do Erasmus, partindo para o largo, uma tripulação completa com
ele, com provisões e armas.
- O que vai acontecer na galera, irmão?
- Não sei, Anjin-san.
Agora estavam nas ruas da cidade, aproximando-se do mar.
Miguel dobrou uma esquina e saiu num mercado de peixe aberto.
Criadas bonitas, criadas gordas, velhas senhoras, jovens, homens,
compradores, vendedores e crianças, todos o olharam pasmados,
depois começaram a se curvar apressadamente. Blackthorne se1147
guiu os samurais por entre as barracas, cestos, tabuleiros de
bambu com todos os tipos de peixe, peixe rutilante de água, expostos com toda a limpeza - muitos nadando em tanques, pitus
e camarões, lagostas, caranguejos e lagostins. Limpo assim em
Londres, nunca, pensou ele, distraído, nem os peixes nem os vendedores. Então viu uma fileira de barracas de comida a um lado,
cada uma com um pequeno braseiro, e sentiu todo o perfume de
lagostins cozinhando.
- Jesus! - Sem pensar, mudou de direção. Imediatamente
os samurais lhe barraram o caminho. - Gomen nasai, kinjiru -
disse um deles.
- Iyé! - retrucou Blackthorne de modo igualmente áspero.
- Watashi tabetai desu, neh? Watashi Anjin-san, neh? Estou com
fome. Sou o Anjin-san!
Blackthorne começou a empurrá-los. O oficial apressou-se
para interceptá-lo. Rapidamente Miguel voltou atrás e falou, apaziguador, embora com autoridade, pedindo permissão que, relutantemente, foi concedida.
- Por favor, Anjin-san - disse ele -, o oficial diz que o
senhor pode comer se quiser. O que gostaria?
-- Um pouco disto, por favor. - Blackthorne apontou para
os camarões gigantes, sem cabeça e cortados ao longo do comprimento, a carne branca e rosada, as cascas torradas à perfeição.
- Um pouco disto. - Não conseguia arrancar os olhos deles.
- Por favor, diga ao oficial que não como há quase dois dias e
de repente fiquei esfomeado. Sinto muito.
O peixeiro era um velho com três dentes e uma pele coriácea, e usava apenas uma tanga. Estava inchado de orgulho de
que a sua barraca tivesse sido escolhida, e pegou os cinco melhores pitus com pauzinhos ágeis, estendeu-os com capricho sobre
uma bandeja de bambu e pôs outros a assar.
- Dozo, Anjin-san!
- Domo. - Blackthorne sentia o estômago roncando. Queria se empanturrar. Ao invés disso, pegou um com os pauzinhos
novos, mergulhou-o no molho e comeu com prazer. Estava delicioso.
- Irmão Miguel? - perguntou, oferecendo. Miguel pegou
um, mas apenas por educação. O oficial recusou, agradecendo.
Blackthorne terminou aquele prato e comeu mais dois. Poderia ter comido mais dois, mas resolveu não fazê-lo por uma
questão de boas maneiras e também porque não queria forçar o
estômago.
1148
- Domo - disse, pousando o prato com um polido arroto
obrigatório. - Bimi desu! Delicioso,
O homem sorriu, curvou-se, e os feirantes por perto curvaram-se, e então Blackthorne percebeu, para seu horror, que não
tinha dinheiro. Corou.
- O que foi? - perguntou Miguel.
- Eu, há, eu não tenho dinheiro algum comigo ... ou, há,
coisa alguma para dar ao homem. Eu ... você poderia me emprestar, por favor?
- Não tenho dinheiro, Anjin-san. Não carregamos dinheiro.
Houve um silêncio embaraçado. O vendedor sorria, esperando pacientemente. Então, com igual embaraço, Miguel voltou--se
para o oficial e pediu-lhe dinheiro em voz baixa. O oficial ficou
friamente furioso com Blackthorne. Falou bruscamente a um de
seus homens, que avançou e pagou generosamente ao feirante, para
ser agradecido profusamente, enquanto, róseo e transpirando, Miguel se voltava e se punha em marcha novamente. Blackthorne
alcançou-o. - Desculpe, mas isso... isso nunca me aconteceu!
É a primeira vez que compro qualquer coisa aqui. Nunca tive
dinheiro, por mais maluco que isso soe, e nunca pensei. . . Nunca
usei dinheiro. . .
- Por favor, esqueça, Anjin-san. Não foi nada.
- Por favor, diga ao oficial que lhe pagarei quando chegarmos ao navio.
Miguel fez o que lhe foi pedido. Caminharam em silêncio
algum tempo, Blackthorne tomando posições mentalmente. Na
extremidade da rua ficava a praia, o mar calmo e monótono sob
a luz do crepúsculo. Então ele viu onde estavam e apontou para
a esquerda, para uma rua larga que corria no sentido leste-oeste.
- Vamos por ali.
- Este caminho é mais rápido, Anjin-san.
- Sim, mas por aí temos que passar pela missão jesuítica
e pela lorcha portuguesa. Prefiro fazer um desvio e tomar o caminho comprido.
- Disseram-me que fosse por aqui.
- Vamos pelo outro caminho. - Blackthorne parou. O
oficial perguntou o que estava acontecendo e Miguel explicou.
O oficial apontou-lhe que continuasse - pelo caminho de Miguel.
Blackthorne ponderou os resultados de uma recusa. Seria
forçado, ou amarrado e carregado, ou arrastado. Nenhuma das
alternativas lhe convinha, então deu de ombros e foi em frente.
Deram na rua larga que margeava a praia. Meia ri à frente
1149
estavam os ancoradouros e depósitos jesuíticos, e cem passos
adiante, o navio português. Mais além, cerca de duzentos passos,
a sua galera, longe demais para que ele visse homens a bordo.
Blackthorne pegou uma pedra e atirou-a zunindo no mar.
- Vamos caminhar pela praia um pouco.
- Claro, Anjin-san. - Miguel desceu para a areia. Blackthorne caminhou pelos baixios, apreciando o frio do mar, o sussurrar da leve arrebentação.
- É uma hora excelente do dia, neh?
- Ah, Anjin-san - disse Miguel com uma súbita e aberta
amistosidade -, há muitas horas, Nossa Senhora me perdoe, em
que eu gostaria de não ser um sacerdote, mas apenas o filho de
meu pai, e esta é uma delas.
- Por quê?
- Eu gostaria de levá-lo em segredo, o senhor e o seu
estranho navio, de Yokohama para Hizen, para a nossa grande
enseada de Sasebo. Então lhe pediria para negociar comigo -
pedir-lhe-ia que me mostrasse e aos nossos capitães marítimos as
peculiaridades do seu navio e a sua técnica marítima. Em troca
lhe ofereceria os melhores professores do reino, professores de
bushido, cha-no-yu, hara-gei, ki, meditação zazen, arranjo de flores, e todos os conhecimentos especiais e únicos que possuímos.
- Eu gostaria disso. Por que não fazemos agora?
- Não é possível hoje. Mas o senhor já sabe muito e num
tempo muito curto, neh? Mariko-sama foi uma excelente professora. O senhor é um samurai digno. E tem uma qualidade que é
rara aqui: imprevisibilidade. O táicum a tinha, Toranaga-sama
também a tem. O senhor entende, geralmente somos pessoas muito
previsíveis.
- Você é?
- Sim.
- Então preveja um modo de eu escapar da armadilha onde
me encontro.
- Sinto muito, não existe, Anjin-san - disse Miguel.
- Não acredito. Como soube que o meu navio está em
Yokohama?
- É de conhecimento comum.
- É?
- Quase tudo a seu respeito - e o fato de ter defendido
o Senhor Toranaga, e a Senhora Maria, Senhora Toda - é bem
conhecido. E respeitado.
- Também não acredito nisso. - Blackthorne pegou outra
1150
pedra e atirou-a roçando as ondas. Prosseguiram, Blackthorne
cantando de boca fechada uma cantiga do mar, gostando muito
de Miguel. Logo o seu caminho foi bloqueado por um quebramar. Contornaram-no e subiram para a rua mais uma vez. O
depósito e a missão jesuítica eram altos, pairando contra o céu
avermelhado. Ele viu os irmãos leigos de hábito laranja guardando a entrada de pedra em arco, e sentiu-lhes a hostilidade. Mas
isso não o afetou. Sua cabeça começou a doer de novo.
Conforme esperava, Miguel rumou para os portões da missão. Ele se preparou, decidido a que teriam que deixá-lo inconsciente antes que ele entrasse e o forçassem a entregar as armas.
- Você só estava me guiando até a galera, hein?
- Sim, Anjin-san. - Para seu espanto, Miguel fez-lhe sinal
que parasse do lado de fora da entrada. - Nada mudou. Disseram-me que informasse ao padre-inspetor quando passássemos
por aqui. Sinto muito, mas o senhor terá que esperar um momento.
Pego desprevenido, Blackthorne observou-o atravessar sozinho os portões. Esperara que a missão fosse o término da jornada. Primeiro uma inquisição e um julgamento, com tortura,
depois entregue ao capitão-mor. Olhou para a lorcha, cem passos
à frente. Ferreira e Rodrigues estavam na popa, e marujos armados se apinhavam no convés principal. Passando o navio, a estrada do ancoradouro serpeava ligeiramente e ele mal podia ver
a sua galera. Homens o observavam das amuradas e ele pensou
reconhecer Yabu e Vinck entre eles, mas não conseguiu ter certeza. Parecia haver algumas mulheres a bordo também, mas não
sabia quem poderiam ser. Rodeando a galera havia cinzentos.
Muitos cinzentos.
Seus olhos voltaram a fitar Ferreira e Rodrigues. Estavam
ambos pesadamente armados. Assim como os marujos. Atiradores postavam-se indolentes por perto dos dois pequenos canhões
apontados para a praia, mas na realidade estavam encarregados
das armas. Reconheceu o grande vulto de Pesaro, o contramestre,
seguindo pelo passadiço com um grupo de homens. Seus olhos
seguiram-nos, e seu sangue gelou. Um alto queimadeiro estava
erguido sobre a terra amontoada na extremidade oposta do ancoradouro. Havia madeira empilhada em torno da base.
- Ah, capitão-piloto, como vai?
Dell'Aqua vinha vindo através dos portões, fazendo Miguel
parecer um anão ao seu lado. O padre-inspetor estava usando
um hábito jesuítico, sua altura imensa e a luxuriante barba cinza
1151
e branca dando-lhe a agourenta dignidade de um patriarca bíblico, um inquisidor em cada polegada, aparentemente benigno, pensou Blackthorne. Fitou os olhos castanhos, achando estranho ter
que levantar os olhos para qualquer homem, e mais estranho
ainda ver compaixão naqueles olhos. Mas sabia que não haveria
piedade atrás deles, e não esperava compaixão alguma. - Ah,
padre-inspetor, como vai? - replicou, os camarões agora pesando-lhe no estômago, enjoando-o.
- Vamos?
- Por que não?
Então a inquisição será a bordo, pensou Blackthorne, com
um medo desesperado, desejando ter pistolas ao cinto. Você seria
o primeiro a morrer, Eminência.
- Fique aqui, Miguel - disse Dell'Aqua. Depois olhou na
direção da fragata portuguesa. Seu rosto se endureceu e ele se
pôs em movimento.
Blackthorne hesitou. Miguel e os samurais o observavam
estranhamente.
- Sayonara, Anjin-san - disse Miguel. - Vá com Deus.
Blackthorne assentiu brevemente e começou a caminhar por
entre os samurais, esperando que lhe caíssem em cima para lhe
arrancar as espadas. Mas deixaram-no passar sem o molestar. Ele
parou e olhou para trás, o coração disparado.
Por um momento sentiu-se tentado a sacar a espada e atacar. Mas não havia escapatória daquele modo. Não lutariam com
ele. Muitos tinham lanças, portanto o acertariam e o desarmariam, ele seria amarrado e passado adiante. Não irei amarrado,
prometeu a si mesmo. Seu único caminho era para a frente e lá
suas espadas eram impotentes contra as armas de fogo. Investiria
contra as armas, mas simplesmente lhe mutilariam os joelhos e
ele seria amarrado ...
- Capitão Blackthorne, venha - chamou Dell'Aqua.
- Sim, só um instante, por favor. - Blackthorne chamou
Miguel com um gesto. - Ouça, irmão, lá na praia você disse
que eu era um samurai digno. Falou a sério?
- Sim, Anjin-san. Isso e todo o resto.
- Então peço-lhe um favor, como samurai - disse, calmamente mas com urgência.
- Que favor?
- Morrer como samurai.
- A sua morte não está nas minhas mãos. Está na mão de
Deus, Anjin-san.
1152
- Sim. Mas peço esse favor a você. - Blackthorne apontou
para o queimadeiro distante. - Aquilo não é jeito. É infame.
Perplexo, Miguel olhou na direção da lorcha. E viu o queimadeiro pela primeira vez. - Bendita mãe de Deus.. .
- Capitão Blackthorne, por favor, venha - chamou
Dell'Aqua de novo.
Com mais urgência, Blackthorne disse: - Explique ao oficial. Ele tem samurais suficientes aqui para insistir, neh? Explique a ele. Você esteve na Europa. Sabe como é lá. Não é pedir
demais, neh? Por favor, sou samurai. Um deles poderia ser o meu
assistente.
- Eu... eu pedirei. - Miguel voltou para junto do oficial
e começou a falar, baixo e urgentemente.
Blackthorne voltou-se e concentrou a atenção no navio.
Avançou. Dell'Aqua esperou até que ele estivesse ao seu lado,
então pôs-se em movimento de novo.
À frente, Blackthorne viu Ferreira deixar a popa, empertigado, descer o convés principal, pistolas ao cinto, florete do lado.
Rodrigues o observava, a mão direita na coronha de uma arma
de cano longo. Pesaro e dez marujos já estavam preparados no
quebra-mar, apoiados a mosquetes com baionetas. E a sombra
comprida do queimadeiro se esticava na direção de Blackthorne.
Oh, Deus, um par de pistolas, dez bons lobos-do-mar e um
canhão, pensou ele, quando a brecha se fechou inexoravelmente.
Oh, Deus, não me deixe ser envergonhado ...
- Boa noite, Eminência - disse Ferreira, os olhos vendo
apenas Blackthorne. - Então, Ingl...
- Boa noite, capitão-mor. - Dell'Aqua apontou encolerizado para o queimadeiro. - Aquilo é idéia sua?
- Sim, Eminência.
- Volte para o seu navio!
- Isto é uma decisão militar.
- Volte para o seu navio!
- Não! Pesaro! - Imediatamente o contramestre e o grupo
armado de baionetas pôs-se em guarda e avançou para Blackthorne. Ferreira sacou a pistola. - Então, Inglês, encontramo-nos
de novo.
- Isso é coisa que não me satisfaz em absoluto. - A espada de Blackthorne saiu da bainha. Segurou-a desajeitadamente
com as duas mãos, o punho quebrado machucando-o.
- Esta noite você ficará satisfeito no inferno - disse Ferreira, sombrio.
1153
- Se você tivesse um pouco de coragem, lutaria de homem
a homem. Mas você não é homem, é um covarde, um covarde
espanhol sem colhões.
- Desarmem-no! - ordenou Ferreira.
Imediatamente os dez homens avançaram, baionetas apontadas. Blackthorne recuou, mas foi cercado. Baionetas cutucaramlhe as pernas e ele golpeou um atacante, mas quando o homem
recuou, outro atacou por trás. Então Dell'Aqua voltou a si e
gritou: - Baixem as armas! Diante de Deus, ordeno que parem!
Os marujos ficaram confusos. Todos os mosquetes apontavam para Blackthorne, que se erguia indefeso, encurralado, espada
em riste.
- Voltem, todos vocês! - ordenou Dell'Aqua. - Voltem!
Diante de Deus, voltem! São animais?
- Quero esse homem! - disse Ferreira.
- Eu sei, e já lhe disse que não pode tê-lo! Ontem e hoje!
É surdo? Deus me dê paciência! Ordene que seus homens voltem
a bordo!
Ordeno-lhe que faça meia-volta e vá embora!
Ordena a mim?
Sim. Ordeno ao senhor! Sou capitão-mor, governador de
oficial-chefe de Portugal na Ásia, e esse homem é uma
ao Estado, à Igreja, ao Navio Negro e a Macau!
Diante de Deus, eu o excomungarei e a toda a sua tripulação se este homem for ferido. Estão ouvindo? - Dell'Aqua
girou para os mosqueteiros, que recuaram, atemorizados. Menos
Pesaro. Este permaneceu no lugar, desafiador, a pistola frouxa na
mão, esperando a ordem de Ferreira. - Subam naquele navio e
saiam do caminho!
- Está cometendo um erro - vociferou Ferreira. - Ele
é uma ameaça! Sou comandante militar na Ásia e digo que...
- Isto é assunto da Igreja, não milit.. .
Blackthorne estava perplexo, quase incapaz de pensar ou
enxergar, a cabeça novamente explodindo de dor. Tudo acontecera tão depressa, num momento protegido, no momento seguinte
não, num momento entregue à Inquisição, no momento seguinte
livre, para ser traído de novo e agora defendido pelo inquisidorchefe. Nada fazia sentido.
Ferreira estava gritando: - Advirto-o novamente! Como
Deus é o meu juiz, o senhor está cometendo um erro e informarei
Lisboa!
1154
- Enquanto isso ordene que seus homens voltem a bordo
ou eu o removo do posto de capitão-mor do Navio Negro!
- O senhor não tem poder para isso!
- A menos que ordene a seus homens que voltem a bordo
e que não toquem no Inglês, imediatamente, eu o declararei excomungado - e qualquer homem que sirva sob suas ordens, em
qualquer comando, excomungado, e amaldiçôo-o e a todos que o
servem, em nome de Deus!
- Por Nossa Senhora... - Ferreira parou. Não tinha
medo por si mesmo, mas agora o seu Navio Negro estava em
risco e ele sabia que a maior parte da sua tripulação o desertaria
se não obedecesse. Por um momento contemplou a possibilidade
de atirar no padre, mas isso não suprimiria a maldição. Por isso
cedeu. - Muito bem ... de volta a bordo, todos vocês!
Obedientemente os homens se dispersaram, contentes por se
afastarem da cólera do padre. Blackthorne continuava desnorteado, perguntando-se se a sua cabeça não lhe estaria pregando
uma peça. Então, em meio ao tumulto, o ódio de Pesaro explodiu. Fez pontaria. Dell'Aqua viu o movimento dissimulado e saltou para a frente a fim de proteger Blackthorne com o próprio
corpo. Pesaro puxou o gatilho, mas nesse momento foi varado
de setas, a pistola disparou inofensivamente, e ele desabou gritando.
Blackthorne girou sobre os calcanhares e viu seis arqueiros
de Kiyama, com outras setas prontas nos arcos. Junto deles, Miguel. O oficial falou asperamente. Pesaro soltou um último guincho, os membros contorcidos, e morreu.
Miguel tremia ao romper o silêncio. - O oficial diz que
sente muito, mas temeu pela vida do padre-inspetor. - Miguel
estava implorando a Deus que o perdoasse por ter dado o sinal
de ataque. Mas Pesaro tinha sido advertido, pensou ele. E é meu
dever providenciar para que as ordens do padre-inspetor sejam
obedecidas, que sua vida seja protegida, que assassinos sejam
destruidos e ninguém seja excomungado.
Dell'Aqua estava de joelhos ao lado do cadáver de Pesaro.
Fez o sinal-da-cruz e disse as palavras sagradas. Os portugueses
ao seu redor observavam os samurais, ansiando pela ordem de
matar os assassinos. O restante dos homens de Kiyama vinha
correndo do portão da missão, onde haviam ficado, e uma quantidade de cinzentos afluía da área da galera a fim de investigar.
Apesar da sua raiva quase cegante, Ferreira sabia que não poderia enfrentar um combate ali, agora. - Todos de volta a bordo!
Macau,
ameaça
1155
Tragam o corpo de Pesaro! - Carrancudo, o grupo começou a
obedecer.
Blackthorne baixou a espada, mas não a embainhou. Esperava, estupidificado, na expectativa de um truque, de ser capturado e arrastado para bordo.
No tombadilho Rodrigues disse calmamente: - Alerta para
repelir abordadores, mas com cuidado, por Deus! - Imediatamente homens deslizaram para posições de ação. - Protejam o
capitão-mor! Preparem a chalupa ...
Dell'Aqua levantou-se e voltou-se para Ferreira, que se erguia
arrogante no passadiço, preparado para defender o seu navio.
- O senhor é responsável pela morte deste homem! - sibilou
o padre-inspetor. - A sua ambição fanática e vingativa e.. .
- Antes que o senhor diga publicamente alguma coisa de
que possa se arrepender, Eminência, é melhor pensar com cuidado - interrompeu-o Ferreira. --- Curvei-me à sua ordem, mesmo
sabendo, diante de Deus, que o senhor estava cometendo um erro
terrível. O senhor me ouviu ordenar a meus homens que voltassem a bordo! Pesaro desobedeceu-lhe, não eu, e a verdade é que,
se alguém é responsável, é o senhor. O senhor impediu a ele e
a nós de cumprirmos o nosso dever. Esse Inglês é o inimigo! Foi
uma decisão militar, por Deus! Informarei Lisboa. - Seus olhos
certificaram-se da prontidão de combate do seu navio e dos samurais que se aproximavam.
Rodrigues movera-se para a ponte do convés principal. -
Capitão-mor, não posso zarpar com esse vento e essa maré.
- Prepare uma chalupa para nos rebocar se for necessário.
- Isso está sendo feito.
Ferreira gritou aos homens que carregavam Pesaro, dizendolhes que se apressassem. Logo estavam todos de volta a bordo.
Os canhões foram equipados, embora discretamente, e todo mundo tinha dois mosquetes por perto. À esquerda e à direita, samurais se aglomeravam no ancoradouro, mas não fizeram qualquer movimento declarado para interferir.
Ainda no cais, Ferreira disse peremptoriamente a Miguel:
- Diga-lhes que se dispersem! Não há problema aqui, não há
nada para eles fazerem. Houve um engano, um engano grave,
mas eles tiveram razão em atirar no contramestre. Diga-lhes que
se dispersem. - Odiou dizer isso e queria matá-los a todos, mas
quase podia farejar o perigo no ancoradouro, e não tinha alternativa agora senão recuar.
1156
Miguel fez o que lhe foi ordenado. Os oficiais não se moveram.
- É melhor ir embora, Eminência - disse Ferreira asperamente. - Mas isto não encerrou a questão. O senhor vai se
arrepender de tê-lo salvado!
Dell'Aqua também sentia a tensão prestes a explodir que os
rodeava. Mas isso não o afetava. Fez o sinal-da-cruz e disse uma
pequena bênção, depois deu as costas. - Vamos, piloto.
- Por que está me deixando ir? - perguntou Blackthorne,
a dor de cabeça atormentando-o, ainda não se atrevendo a acreditar.
- Vamos, piloto!
- Mas por que está me deixando ir? Não compreendo.
- Nem eu - disse Ferreira. - Eu também gostaria de
saber a verdadeira razão, Eminência. Ele não continua sendo uma
ameaça para nós e para a Igreja?
Dell'Aqua encarou-o. Sim, queria dizer, para apagar a arrogância daquele rosto casquilho à sua frente. Mas a ameaça é a
guerra imediata e como ganhar tempo para você e cinqüenta anos
de Navio Negro, e a quem escolher: Toranaga ou Ishido. Você
não entende nada dos nossos problemas, Ferreira, ou dos riscos
envolvidos, ou a delicadeza da nossa posição aqui, ou os perigos.
- Por favor, Senhor Kiyama, reconsidere. Sugiro que o
senhor escolha o Senhor Toranaga - dissera ele ao daimio na
véspera, usando Miguel como intérprete, não confiando no seu
próprio japonês, que era apenas razoável.
- Isso é uma imperdoável interferência nos negócios japoneses e está fora da sua jurisdição. Além disso, o bárbaro deve
morrer.
Dell'Aqua usara toda a sua habilidade diplomática, mas
Kiyama fora irredutível e se recusara a se comprometer ou a
mudar a sua posição. Então, naquela manhã, quando se dirigira
a Kiyama para lhe dizer que, graças à vontade de Deus, o Inglês
fora neutralizado, houvera um lampejo de esperança.
- Considerei o que o senhor disse - dissera-lhe Kiyama.
- Não vou me aliar a Toranaga. Deste momento até a batalha,
observarei os dois contendores com todo o cuidado. No momento
correto, escolherei. E agora consinto que o bárbaro se vá... não
por causa do que o senhor me disse, mas por causa da Senhora
Mariko, para honrá-la... e por que o Anjin-san é osamurai...
Ferreira ainda o olhava fixamente. - O Inglês não continua
sendo uma ameaça?
1157
- Faça uma viagem segura, capitão-mor, e adeus. Piloto,
vou levá-lo à sua galera... O senhor está bem?
- É que... a minha cabeça está... Acho que a explosão... O senhor realmente vai me deixar ir? Por quê?
- Porque a Senhora Maria, a Senhora Mariko, pediu-nos
que o protegêssemos. - Dell'Aqua pôs-se em marcha.
- Mas isso não é razão! O senhor não faria isso só porque
ela pediu!
- Concordo - disse Ferreira. Depois exclamou: - Eminência, por que não lhe diz a verdade toda?
Dell'Aqua não parou. Blackthorne começou a segui-lo, mas
não deu as costas ao navio, sempre aguardando traição. - Isso
não faz sentido. O senhor sabe que vou destruí-lo. Tomarei o seu
Navio Negro.
Ferreira riu com escárnio: - Com quê, Inglês? Você não
tem nenhum navio!
- O que quer dizer?
- Você não tem navio. Ele está destruído. Se não estivesse,
eu nunca o deixaria ir, fosse qual fosse a ameaça de Sua
Eminência.
- Não é verdade...
Através da névoa da cabeça, Blackthorne ouviu Ferreira repetir e rir mais alto, e acrescentar alguma coisa sobre um acidente e a mão de Deus e: o seu navio queimou até a medula,
portanto você nunca prejudicará o Pneu navio agora, embora
ainda seja herege e inimigo, e ainda seja uma ameaça à fé. Então
viu Rodrigues nitidamente, piedade no rosto, e os lábios soletraram: sim, é verdade, Inglês.
- Não é verdade, não pode ser verdade.
Então o padre inquisidor estava dizendo, de um milhão de
léguas de distância: - Recebi uma mensagem esta manhã do
Padre Alvito. Parece que um terremoto causou um macaréu, a
onda...
Mas Blackthorne não estava ouvindo. Sua mente estava gritando: o seu navio está destruído, você o abandonou, seu navio
está destruído, você não tem navio, não tem navio, não tem
navio...
- Não é verdade! Estão mentindo, o meu navio está numa enseada segura protegido por quatro mil homens. Está a salvo!
Alguém disse: - Mas não a salvo de Deus! - e depois o
inquisidor estava falando de novo: - O macaréu fez o seu navio
1158
adernar. Dizem que as lâmpadas a óleo no convés viraram e o
fogo se alastrou. O seu navio foi arrasado...
- Mentiras! E o vigia de convés? Sempre há um vigia de
convés! É impossível - gritou ele, mas sabia que de algum modo
o preço da sua vida fora o navio.
- Você está encalhado, Inglês - espicaçava-o Ferreira.
- Está perdido. Vai ficar aqui para sempre, nunca conseguirá
passagem num dos nossos navios. Você está encalhado para
sempre ...
Aquilo continuou, continuou, ele se sentia afogando-se, então
seus olhos clarearam. Ouviu o grito das gaivotas, sentiu o mau
cheiro da praia e viu Ferreira, viu o inimigo e soube que era tudo
uma mentira para enlouquecê-lo. Soube com certeza, e que os padres faziam parte da trama. - Deus os leve para o inferno! -
gritou, e investiu contra Ferreira, a espada em riste. Mas foi uma
investida apenas no seu sonho. Mãos agarraram-no com facilidade,
tiraram-lhe as espadas e puseram-no a caminhar entre dois cinzentos, por entre todos os outros, até ele estar no passadiço da
galera, onde lhe devolveram as espadas e o soltaram. Era-lhe
difícil ver ou ouvir, o cérebro quase não funcionando agora devido à dor, mas tinha certeza de que era tudo um truque para
enlouquecê-lo, e que conseguiriam se ele não fizesse um grande
esforço. Ajude-me, rezou ele, alguém me ajude, depois Yabu
estava ao seu lado, e Vinck, e seus vassalos, e ele não conseguia
distinguir as línguas. Guiaram-no para bordo, Kiri lá em algum
lugar e Sazuko, uma criança chorando nos braços de uma criada,
o remanescente da guarnição marrom aglomerada no convés, remadores e marujos.
Cheiro de suor, suor de medo. Yabu falava com ele. E Vinck.
Levou muito tempo para se concentrar. - Piloto, por que, em
nome de Cristo, eles o deixaram ir?
- Eu... eles. . . - Não conseguia dizer as palavras.
Então de algum modo encontrou-se no tombadilho e Yabu
estava ordenando ao capitão-mor que zarpasse antes que Ishido
mudasse de idéia quanto a deixá-los partir, e antes que os cinzentos no atracadouro mudassem de idéia quanto a permitir que
a galera partisse, dizendo ao capitão que rumasse a toda velocidade para Nagasaki. Kiri dizendo, sinto muito, Yabu-sama, por
favor, primeiro Yedo, devemos ir a Yedo.. .
Os remos da embarcação impeliram-na para longe do ancoradouro, contra a maré e contra o vento, e saiu para a correnteza,
gaivotas grasnando na sua esteira, e Blackthorne arrancando-se
1159
de algum modo do seu estupor para dizer de modo coerente:
- Não. Sinto muito. Ir Yokohama. Deve ir Yokohama.
- Primeiro conseguimos homens em Nagasaki, Anjin-san,
compreende? Importante. Primeiro os homens. Primeiro os homens! Tenho plano - disse Yabu.
- Não. Ir Yokohama. Meu navio... meu navio perigo.
- Que perigo? - perguntou Yabu.
- Cristãos dizem... dizem fogo!
- O quê!?
- Pelo amor de Cristo, piloto, qual é o problema? - gritou Vinck.
Blackthorne apontou tremulamente para a lorcha. -- Eles
me disseram que o Erasmus está perdido, Johann. Nosso navio
está perdido... incendiado. - Depois explodiu. - Ó Deus, que
seja tudo mentira!
1160
Livro seis
6
CAPÍTULO 60
Em pé, no raso, Blackthorne olhou para o esqueleto crestado
do seu navio, encalhado e adernado, à flor da leve arrebentação,
setenta jardas mar adentro, sem mastros, sem conveses, sem nada,
exceto a quilha e as costelas da caverna que se salientavam para
o céu.
- Os macacos tentaram abicá-lo - disse Vinck, sombrio.
- Não. A maré o trouxe para cá.
- Pelo amor de Cristo, por que dizer isso, piloto? Se se
tem um maldito incêndio e se se está perto de uma maldita praia,
abica-se o navio para combater o fogo! Jesus, até esses bastardos
de mijo sabem disso! - Vinck cuspiu na areia. - Macacos! O
senhor nunca deveria tê-lo deixado com eles! O que vamos fazer
agora? Como vamos voltar para casa? O senhor deveria tê-lo deixado em Yedo, a salvo, e a nós a salvo, com os nossos "eters".
A lamúria na voz de Vinck irritou Blackthorne. Tudo em
Vinck o irritava agora. Três vezes na semana anterior ele quase
dissera a seus vassalos que apunhalassem Vinck e o atirassem ao
mar, para se livrar da tortura quando os lamentos, queixumes e
acusações se tornaram excessivos. Mas conseguira sempre se conter e subira ao convés ou descera à cabina para procurar Yabu.
Perto de Yabu, Vinck não emitia som algum, ficava petrificado, e
com razão. A bordo fora fácil se conter. Ali, envergonhado ante
a nudez do seu navio, não era fácil.
- Talvez o tenham abicado, Johann - disse ele, com um
cansaço de morte.
- Pode apostar como esses bastardos comedores de esterco
o abicaram! Mas não apagaram o fogo, Deus os amaldiçoe a todos
com o inferno! Não deveria ter deixado japonas nele, esses macacos fedorentos...
Blackthorne cerrou os ouvidos e se concentrou na galera.
1163
Estava atracada a sotavento em relação ao embarcadouro, a algumas centenas de passos dele, perto da aldeia de Yokohama. As
cabanas do Regimento de Mosquetes ainda estavam dispersas pela
praia e pelos contrafortes das montanhas, homens treinando, correndo, uma mortalha de ansiedade sobre todos eles. O dia estava
quente e ensolarado, com um vento bom soprando. O nariz de
Blackthorne captou um rastro de perfume de mimosas. Podia ver
Kiri e a Senhora Sazuko conversando sob sombrinhas alaranjadas
na popa, e perguntou-se se o perfume viria de lá. Depois observou Yabu e Naga caminhando de um lado para o outro sobre o
ancoradouro, Naga falando e Yabu ouvindo, ambos muito tensos.
Viu-os olhar para ele. Sentiu-lhes o desassossego.
Quando a galera contornara o promontório duas horas
antes, Yabu dissera: - Por que olhar de mais perto, Anjin-san?
O navio está liquidado, neh? Tudo acabado. Vamos a Yedo! Preparar para a guerra. Não há tempo agora.
- Sinto muito, parar aqui. Tenho olhar de perto. Por favor.
- Vamos a Yedo! Navio destruído - liquidado. Neh?
- O senhor quer, o senhor vai. Eu nado.
- Espere. Navio destruído, neh?
- Sinto muito, por favor, pare. Pouco tempo. Depois Yedo.
Finalmente Yabu concordara, eles atracaram e Naga foralhes ao encontro. - Sinto muito, Anjin-san. Neh? - dissera
Naga, os olhos turvos pela falta de sono.
- Sim, sinto muito. Por favor, o que aconteceu?
- Desculpe, não sei. Não honto. Eu não estava aqui, compreende? Recebi ordem de ir a Mishima por alguns dias. Quando
voltei, os homens disseram do terremoto durante a noite -
tudo aconteceu à noite, compreende? Compreende "terremoto',
Anjin-san?
- Compreendo. Sim. Por favor, continue.
- Um pequeno terremoto. Durante a noite. Alguns homens
dizem que foi o macaréu, outros dizem que não, que foi apenas
um vagalhão, um vagalhão de tempestade. Houve uma tempestade naquela noite, neh? Um pequeno tai-fun. Compreende "taifun"?
- Sim.
- Ah, sinto muito. Noite muito escura. Dizem que o vagalhão veio. Dizem que as lâmpadas a óleo no convés se quebraram.
O navio pegou fogo, neh? Tudo queimou, depressa, muito.. .
- Mas os guardas, Naga-san? Onde os homens de convés?
1164
- Muito escuro. Fogo muito rápido, compreende? Sinto
muito. Shigata ga nai, neh? - acrescentou, esperançoso.
- Onde os homens de convés, Naga-san? Deixei guarda.
Neh?
- Quando voltei, um dia depois, senti muito, neh? Navio
liquidado, ainda ardendo ali nos baixios - perto da praia. Navio
liquidado. Reuni todos os homens do navio e toda a patrulha da
praia daquela noite. Pedi a eles que fizessem relatório. Ninguém
tem certeza do que aconteceu. - O rosto de Naga se ensombreceu. - Ordenei-lhes que salvassem, que trouxessem tudo o que
fosse possível, compreende? Está tudo no acampamento agora.
- Apontou para o planalto. - Sob guarda. Meus guardas. Depois condenei-os à morte e corri a Mishima, para relatar ao Senhor Toranaga.
- Todos eles? Todos à morte?
- Sim. Eles falharam no seu dever.
- O que disse o Senhor Toranaga?
- Muito zangado. Toda a razão de estar zangado, neh?
Ofereci seppuku. O Senhor Toranaga recusou permissão. Iiiiiih!
O Senhor Toranaga furioso, Anjin-san. - Naga fez um gesto
nervoso, abrangendo a praia. - O regimento inteiro em desgraça,
Anjin-san. Todo mundo. Todos os oficiais chefes aqui em desgraça, Anjin-san. Mandados para Mishima. Cinqüenta e oito
seppukus já.
Blackthorne pensara naquele número e tivera vontade de
berrar: cinco mil ou cinqüenta mil não podem reparar a perda
do meu navio! - Mau - disse a sua boca. - Sim, muito mau.
- Sim. Melhor ir para Yedo. Hoje. Guerra hoje, amanhã,
depois de amanhã. Sinto muito.
Depois Naga falara com veemência a Yabu alguns momentos, e Blackthorne, apalermado, odiando as palavras de som abominável, odiando Naga e Yabu e todos eles, mal conseguira
acompanhá-lo, embora visse crescer a apreensão de Yabu. Naga
voltara-se para ele de novo, com uma determinação embaraçada.
- Sinto muito, Anjin-san. Nada mais que eu pudesse fazer.
Honto, neh?
Blackthorne se forçara a assentir. - Honto. Domo, Nagasan. Shigata ga nai. - Pedira licença e os deixara para caminhar
até o seu navio, para ficar sozinho, já não confiando em si mesmo
para conter a fúria insana, sabendo que não havia nada que pudesse fazer, que jamais saberia mais nada sobre a verdade, que
os padres de algum modo haviam conseguido pagar, adular ou
1165
ameaçar alguém para cometer aquela profanação infame. Escapara de Yabu e Naga, caminhando lentamente e ereto, mas antes
que pudesse deixar o ancoradouro Vinck correra atrás dele e
implorara para não ser deixado para trás. Vendo o medo abjeto
e servil do homem, concordara e lhe permitira acompanhá-lo. Mas
fechara a mente a ele.
Então, de repente, seguindo pela praia, haviam topado com
horríveis restos de cabeças. Mais de cem, escondidas do ancoradouro pelas dunas e espetadas em lanças. Aves marinhas ergueram-se numa nuvem branca e guinchante quando eles se aproximaram, e pousaram para continuar pilhando e disputando depois
de eles terem passado depressa.
Agora, estudando o casco do seu navio, um pensamento o
obcecava: Mariko vira a verdade e a sussurrara a Kiyama ou aos
padres: "Sem o navio, o Anjin-san fica indefeso contra a Igreja.
Peço-lhes que o deixem vivo, matem-lhe apenas o navio..."
Podia ouvi-la dizendo isso. Ela tinha razão. Era uma solução
muito simples para o problema dos católicos. Sim. Mas qualquer
um deles poderia ter pensado a mesma coisa. E como passaram
pelos quatro mil homens? A quem subornaram? Como?
Não importa quem. Ou como. Eles venceram.
Deus me ajude, sem o meu navio estou morto. Não posso
ajudar Toranaga e a guerra o engolirá.
- Pobre navio - disse ele. - Perdoe-me ... tão triste
morrer de modo inútil assim. Depois de todas aquelas léguas.
- Hein? - disse Vinck.
- Nada - disse ele. - Pobre navio, perdoe-me. Não fui eu
que negociei com ela ou com qualquer pessoa. Pobre Mariko.
Perdoe a ela também.
- O que disse, piloto?
- Nada. Só estava pensando alto.
- O senhor disse alguma coisa. Eu ouvi, pelo amor de
Cristo!
- Pelo amor de Cristo, cale a boca!
- Hein? Cale a boca, é? Estamos abandonados com esses
comedores de bosta para o resto da vida! Hein?
- Sim!
- Temos que rastejar para esses malditos pagãos cabeças
de bosta pelo resto das nossas malditas vidas, e quanto tempo
será isso, quando tudo o que eles falam é guerra, guerra, guerra?
Hein?
- Sim.
1166
- Sim, é? - O corpo todo de Vinck tremia, e Blackthorne
se preparou. - A culpa é sua. O senhor disse que viéssemos ao
Japão, viemos, e quantos morreram vindo para cá? A culpa é sua!
- Sim. Sinto muito, você tem razão!
- Sente muito, piloto? Como vamos voltar para casa? Esse
é o seu maldito trabalho, levar-nos para casa! Como vai fazer
isso? Hein?
- Não sei. Outro dos nossos navios virá aqui, Johann. Só
temos que esperar outr...
- Esperar? Quanto tempo vamos esperar? Cinco anos de
bosta, vinte? Jesus Cristo, o senhor mesmo disse que todos esses
cabeças de merda estão em guerra agora! - A mente de Vinck
fragmentou-se. - Vão nos cortar a cabeça e espetá-la como aquelas ali e os pássaros nos comerão... - Um paroxismo de gargalhada insana sacudiu-o e ele enfiou a mão na camisa esfarrapada.
Blackthorne viu o bocal da pistola e teria sido fácil derrubar
Vinck no chão e tomar a arma, mas não fez nada para se defender. Vinck brandiu-lhe a pistola no rosto, dançando ao seu redor
com uma alegria disparatada, lunática. Blackthorne aguardou sem
medo, esperando a bala, depois Vinck saiu em disparada pela
praia, as gaivotas alçando vôo espavoridas, saindo-lhe do caminho
grasnando e gritando. Vinck correu uns cem ou mais passos desvairados, depois desabou, caindo de costas, as pernas ainda se
movendo, os braços gesticulando, proferindo obscenidades mudas.
Após um momento pôs-se de bruços com um último guincho, encarando Blackthorne, e se imobilizou. Houve um silêncio.
Quando Blackthorne chegou perto, a pistola estava apontada
para ele, os olhos fitando-o com um antagonismo demente, os
lábios repuxados sobre os dentes. Vinck estava morto.
Blackthorne fechou-lhe os olhos, pegou-o, atirou-o ao ombro
e voltou. Samurais vinham correndo na sua direção, Naga e Yabu
à frente:
- O que aconteceu, Anjin-san?
- Ele enlouqueceu.
- Está morto?
- Sim. Primeiro enterro, depois Yedo. Está bem?
- Hai.
Blackthorne mandou buscar uma pá, pediu-lhes que o deixassem sozinho um instante e enterrou Vinck acima da linha
d'água, numa elevação que dava para os destroços do navio.
Disse uma oração e plantou uma cruz sobre a sepultura, que moldou com dois pedaços de madeira flutuante. Foi muito fácil fazer
1167
o serviço fúnebre. Já o fizera um sem-número de vezes. Apenas
naquela viagem, mais de cem vezes para os seus tripulantes, desde
que partiram da Holanda. Os únicos sobreviventes agora eram
Baccus van Nekk e o rapaz Croocq; os outros tinham vindo de
outros navios - Salamon, o mudo; Jan Roper; Sonk, o cozinheiro; Ginsel, o veleiro. Cinco navios e quatrocentos e noventa
o seis homens. E agora Vinck. Todos mortos, menos nós sete.
E para quê?
Para circunavegar o globo? Para sermos os primeiros?
- Não sei - disse ao túmulo. - Mas isso não acontecerá
agora.
Fez tudo com esmero. - Sayonara, Johann. - Depois caminhou até o mar e nadou despido até o navio para se purificar.
Dissera a Naga e Yabu que aquilo era hábito da sua gente, depois
de sepultar um de seus homens em terra. O capitão tinha que
fazê-lo em particular, se não houvesse mais ninguém, e o mar era
o purificador diante do Deus deles, que era o Deus cristão, mas
não exatamente o mesmo Deus cristão dos jesuítas.
Pendurou-se a uma das costelas do navio e viu que já havia
craca grudando, areia acumulando-se na quilha, três braças abaixo.
Logo o mar reclamaria o navio e a embarcação desapareceria.
Olhou em torno, a esmo. Nada a salvar, disse a si mesmo, sem
esperar nada.
Nadou para a praia. Alguns de seus vassalos o esperavam
com roupas limpas. Vestiu-se, pôs as espadas no sash e caminhou
de volta. Perto do atracadouro, um dos seus vassalos apontou:
- Anjin-san!
Um pombo-correio, perseguido por um falcão, disparava freneticamente para a segurança do pombal na aldeia. O pombal
ficava no sótão da construção mais alta dos arredores, sobre uma
leve elevação. Com cem jardas a percorrer, o falcão em posição,
bem acima da presa, fechou as asas e mergulhou. A queda culminou com uma explosão de penas, mas imperfeita. O pombo
caiu arrulhando como se estivesse mortalmente ferido; então,
perto do chão, recuperou-se e disparou para casa. Arrastou-se
com dificuldade, por um buraco no viveiro, para a segurança, o
falcão guinchando de raiva alguns passos atrás, e todo mundo
exultou, menos Blackthorne. Nem a esperteza e a coragem do
pombo o tocaram. Nada mais o tocava.
- Bom, neh? - disse um dos seus vassalos, embaraçado
pela casmurrice do amo.
- Sim. -- Blackthorne voltou à galera. Yabu estava lá, com
1168
a Senhora Sazuko, Kiri e o capitão. Estava tudo pronto. - Yabusan. Ima Yedo ka? - pediu ele.
Mas Yabu não respondeu e ninguém o notou. Todos os olhos
se concentravam em Naga, que estava correndo na direção da
aldeia. Um tratador de pombos saiu da construção, indo ao seu
encontro. Naga quebrou o lacre e leu a tira de papel: "Galera e
todos a bordo em Yokohama até que eu chegue". Estava assinado: "Toranaga".
Os cavaleiros surgiram rapidamente sobre a borda da colina
ao sol matinal. Primeiro vinham os cinqüenta batedores e patrulheiros da vanguarda comandada por Buntaro. Depois os estandartes. Em seguida Toranaga. Depois dele o grosso da expedição
de guerra, sob o comando de Omi. Seguindo-os vinham o Padre
Alvito Tsukku-san e dez acólitos num grupo cerrado e, depois,
uma pequena retaguarda, no meio da qual caçadores com falcões
sobre as luvas, todos encapuzados, e um grande milhafre de olhos
amarelos. Todos os samurais estavam pesadamente armados, usando peitoral e armadura de combate.
Toranaga cavalgava com desenvoltura, o espírito mais leve
agora, um homem revigorado e mais forte, e estava contente por
se encontrar perto do fim da sua jornada. Fazia dois dias e meio
que ordenara a Naga que mantivesse a galera em Yokohama e
que partira de Mishima em marcha forçada. Tinham vindo muito
depressa, trocando os cavalos a cada vinte ris, mais ou menos.
Numa parada onde os cavalos não estavam disponíveis, o samurai
encarregado fora destituído, seu estipêndio dado a outro e ele
convidado a cometer seppuku ou a raspar a cabeça e tornar-se
sacerdote. O samurai escolheu a morte.
O idiota tinha sido advertido, pensou Toranaga, o Kwanto
inteiro mobilizado e em pé de guerra. Contudo, esse homem não
foi um desperdício total, disse a si mesmo. Pelo menos a notícia
desse exemplo vai percorrer toda a extensão dos meus domínios
e não haverá mais atrasos desnecessários.
Tanto que fazer ainda, pensou ele, a mente frenética com
fatos, planos e mais planos. Dentro de quatro dias será o dia, o
vigésimo segundo dia do oitavo mês, o mês da Contemplação da
Lua. Hoje, em Osaka, o cortesão Ogaki Takamoto formalmente
vai se dirigir a Ishido e anunciar que lamentavelmente a visita do
Filho do Céu a Osaka foi adiada por alguns dias devido a ele
estar mal de saúde.
1169
Fora tão fácil manipular o adiamento. Embora Ogaki fosse
um príncipe de sétimo grau e descendesse do Imperador GoShoko, o nonagésimo quinto da dinastia, estava empobrecido,
como todos os membros da corte imperial. A corte não possuía
renda própria. Apenas os samurais tinham renda e fazia já centenas de anos que a corte tinha que existir com um estipêndio
- sempre cuidadosamente controlado e parco - concedido pelo
xógum, kwampaku ou junta governante do momento. Então Toranaga humildemente e com toda a cautela atribuíra dez mil
kokus anuais a Ogaki, através de intermediários, para que ele
socorresse parentes necessitados conforme desejasse, dizendo com
a devida humildade que, sendo Minowara e portanto também
descendente de Go-Shoko, ficava encantado em ser útil e esperava que o Exaltado tomasse cuidado com a sua preciosa saúde
num clima tão traiçoeiro como o de Osaka, particularmente por
volta do vigésimo segundo dia.
Naturalmente não havia garantia de que Ogaki pudesse persuadir ou dissuadir o Exaltado, mas Toranaga supusera que os
conselheiros do Filho do Céu, ou o próprio Filho do Céu, dariam
as boas-vindas a uma desculpa para adiar - e, esperava ele,
finalmente cancelar - a visita. Apenas uma vez, em três séculos,
um imperador reinante deixara o seu santuário em Kyoto. Isso
fora há quatro anos, a um convite do táicum para contemplar as
flores de cerejeira perto do Castelo de Osaka, coincidindo com a
sua renúncia ao título de kwampaku em favor de Yaemon - e
assim, por implicação, colocando o selo imperial na sucessão.
Normalmente daimio algum teria ousado fazer tal oferecimento a qualquer membro da corte, porque isso insultava e usurpava a prerrogativa de um superior - nesse caso, o conselho de
regentes -, e imediatamente seria interpretado como traição,
como legalmente era. Mas Toranaga sabia que já fora acusado
de traição.
Amanhã, Ishido e seus aliados se moverão contra mim.
Quanto tempo mais ainda tenho? Onde deve ser a batalha? Em
Odawara? A vitória depende apenas do tempo e do lugar, e não
do número de homens. Eles vão me superar no mínimo em três
contra um. Não tem importância, pensou, Ishido vai sair do Castelo de Osaka! Mariko o forçou. No jogo de xadrez pelo poder,
sacrifiquei a minha rainha, mas Ishido perdeu duas torres.
Sim. No entanto você perdeu mais que uma rainha na última jogada. Perdeu um navio. Um peão pode se transformar numa
rainha - mas não num navio!
1170
Estavam descendo a colina num trote rápido, de chocalhar
os ossos. Lá embaixo estava o mar. Dobraram uma curva do
caminho e lá estava a aldeia de Yokohama, com os restos do
navio a pouca distância da praia. Toranaga podia ver o planalto
onde o Regimento de Mosquetes estava alinhado em posição de
revista de batalha, com seus cavalos e equipamentos, mosquetes
nos coldres, outros samurais igualmente bem armados formados
como uma guarda de honra mais perto da praia.
Nos arredores da aldeia, os aldeãos estavam ajoelhados em
fileiras precisas, esperando para homenageá-lo. Adiante deles estava a galera, os marinheiros esperando com o capitão. Em cada
lado do ancoradouro, havia barcos de pesca abicados em disposição meticulosa e Toranaga fez uma anotação mental para
admoestar Naga. Ordenara que o regimento estivesse pronto para
partida imediata, mas tirar pescadores ou camponeses da pesca
ou do trabalho nos campos era irresponsável.
Voltou-se na sela e chamou um samurai, ordenando-lhe que
dissesse a Buntaro que fosse na frente, ver se estava tudo seguro
e preparado. - Depois vá até a aldeia e dispense todos os aldeãos, mandando-os de volta ao trabalho, exceto o chefe da aldeia.
- Sim, senhor. - O homem cravou as esporas no cavalo
e se afastou a galope.
Agora Toranaga estava perto do planalto o suficiente para
distinguir rostos. O Anjin-san e Yabu, depois Kiri e a Senhora
Sazuko. Sua excitação aumentou.
Buntaro descia a trilha a galope, seu grande arco e as aljavas cheias às costas, meia dúzia de samurais bem atrás dele.
Saíram da trilha e surgiram no planalto. Imediatamente Buntaro
viu Blackthorne e seu rosto tornou-se ainda mais severo. Então
puxou as rédeas e olhou em torno, cauteloso. Um estrado coberto, com uma única almofada, estava colocado de frente para o
regimento. Ao lado, outro, menor e mais baixo. Kiri e a Senhora
Sazuko esperavam sob este último. Yabu, na qualidade de oficial
superior, estava à testa do regimento, Naga à sua direita, o Anjinsan à esquerda. Tudo parecia seguro, e Buntaro acenou ao grupo
principal que prosseguisse. A vanguarda chegou a trote, desmontou e se espalhou em torno do estrado, a título de proteção. Então
Toranaga cavalgou para dentro da arena. Naga levantou bem alto
o estandarte de batalha. Imediatamente quatro mil homens gritaram: - Toranagaaaaaa! - e se curvaram.
1171
i
Toranaga não tomou conhecimento da saudação. Em silêncio
absoluto, sondou o ambiente. Notou que Buntaro dissimuladamente observava o Anjin-san. Yabu usava a espada que ele lhe
dera, mas estava muito nervoso. A reverência do Anjin-san foi
correta e imóvel, o punho da sua espada quebrado. Kiri e a sua
consorte mais nova estavam ajoelhadas, as mãos estendidas sobre
os tatamis, o rosto modestamente inclinado. Os olhos de Toranaga
se abrandaram momentaneamente, depois fitaram o regimento,
com ar de desaprovação. Cada homem ainda estava curvado. Ele
não retribuiu a mesura, apenas assentiu secamente e sentiu o tremor que percorreu os samurais quando eles se endireitaram de
novo. Bom, pensou ele, desmontando com agilidade, contente de
que lhe temessem a vingança. Um samurai tomou os freios do
seu cavalo e levou o animal embora enquanto ele dava as costas
ao regimento e, suado como todos eles por causa da umidade, se
aproximava das duas damas. - Bem, Kiri-san, bem-vinda ao lar!
Ela se curvou de novo, jovialmente. - Obrigada, senhor.
Nunca pensei que teria o prazer de vê-lo novamente.
- Nem eu, senhora. - Toranaga deixou um lampejo da
sua felicidade se mostrar. Olhou para a garota. - Bem, Sazukosan? Onde está o meu filho?
- Com a ama-dê-leite, senhor - respondeu ela sem fôlego,
gozando do seu favor declarado.
- Por favor, mande alguém buscar o nosso filho imediatamente.
- Oh, por favor, senhor, com a sua permissão, posso trazê-lo pessoalmente?
- Sim, sim, se você quiser. - Toranaga sorriu e observou-a
se afastar um momento, gostando muito dela. Olhou novamente
para Kiri. - Está tudo bem com você? - perguntou, para os
ouvidos dela apenas.
- Sim, senhor. Oh, sim... e vê-]o tão forte enche-me de
alegria.
- Perdeu peso, Kiri-chan, e está mais jovem do que nunca.
- Ah, sinto muito, senhor, não é verdade. Mas obrigada,
obrigada.
Ele sorriu. - Seja o que for, então, assenta-lhe bem. Tragédia, solidão, estar abandonada... Estou contente de vê-Ia,
Kiri-chan.
- Obrigada, senhor. Estou muito feliz de que a obediência
e o sacrifício dela tenham destrancado Osaka. Ela ficaria enormemente satisfeita, senhor, de saber que teve êxito.
1172
- Primeiro tenho que lidar com essa canalha, depois conversaremos. Há muito de que falar, neh?
- Sim, oh, sim! - Os olhos dela cintilavam. - O Filho
do Céu será atrasado, neh?
- Isso seria prudente. Neh?
- Tenho uma mensagem particular da Senhora Ochiba.
- Ah? Bom! Mas isso terá que esperar. - Ele fez uma
pausa. - A Senhora Mariko morreu honrosamente? Por escolha
e não por acidente ou engano?
- Mariko-sarna escolheu a morte. Foi seppuku. Se ela não
tivesse feito o que fez, eles a teriam capturado. Oh, senhor, ela
foi maravilhosa durante todos aqueles dias ruins. Tão corajosa.
E o Anjin-san. Não fosse ele, ela teria sido capturada e envergonhada. Nós todas teríamos sido capturadas e envergonhadas.
- Ah, sim, os ninjas. - Toranaga bufou e seus olhos ficaram injetados, e ela estremeceu apesar de si mesma. - Ishido
tem muito por que responder, Kiri-chan. Por favor, desculpe-me.
- Dirigiu-se, arrogante, para o estrado e se sentou, severo e
ameaçador novamente. Seus guardas o rodearam.
- Omi-san!
- Sim, senhor? - Omi avançou e curvou-se, parecendo
mais velho do que antes, mais magro agora.
- Escolte a Senhora Kiritsubo até os seus aposentos, e certifique-se de que os meus estão adequados. Passarei a noite aqui.
Omi fez uma saudação e se afastou, e Toranaga ficou contente de ver que a súbita alteração de planos não produziu sequer
uma centelha nos olhos de Omi. Bom, pensou, Omi está aprendendo, ou seus espiões lhe informaram que secretamente ordenei
a Sudara e Hiro-matsu que viessem aqui, portanto não poderei
partir até amanhã.
Em seguida concentrou toda a atenção no regimento. A um
sinal seu, Yabu avançou e saudou-o. Toranaga retribuiu o cumprimento polidamente. - Bem, Yabu-san! Seja bem-vindo.
- Obrigado, senhor. Permita-me dizer-lhe como estou feliz
de que o senhor tenha evitado a traição de Ishido.
- Obrigado. E o senhor também. As coisas não se passaram bem em Osaka. Neh?
- Não. Minha harmonia está destruída, senhor. Tive a esperança de comandar a retirada de Osaka trazendo-lhe suas senhoras em segurança, seu filho, e também a Senhora Toda, o
Anjin-san, e marujos para o navio dele. Infelizmente, sinto muito,
fomos ambos traídos - aqui e lá.
1173
- Sim. - Toranaga olhou para o destroço a distância,
banhado pelo mar. A cólera faiscou-lhe no rosto e todos se prepararam para a explosão. Mas não houve explosão. - Karma
- disse ele. - Sim, karma, Yabu-san. O que se pode fazer contra os elementos? Nada. Negligência é outra coisa. Agora, quanto
a Osaka, quero ouvir tudo o que aconteceu, em detalhes, assim
que o regimento tiver sido dispensado e eu tiver tomado um
banho.
- Tenho um relatório por escrito para o senhor.
- Bom. Obrigado, mas primeiro prefiro que o senhor me
conte.
- É verdade que o Exaltado não irá a Osaka?
- O que o Exaltado decide depende do Exaltado.
,- O senhor deseja passar em revista o regimento antes que
eu o dispense? - perguntou Yabu formalmente.
- Por que eu deveria lhes conceder essa honra? O senhor
não sabe que eles estão em desgraça, apesar dos elementos?
- Sim, senhor. Desculpe. Terrível. - Yabu estava tentando, em vão, ler a mente de Toranaga. - Fiquei horrorizado ao
ser informado do que aconteceu. Parece quase impossível.
- Concordo. - O rosto de Toranaga se ensombreceu e ele
olhou para Naga e, atrás dele, para as fileiras cerradas. - Ainda
não consigo compreender como pôde ocorrer tal incompetência.
Eu precisava daquele navio!
Naga agitou-se. - Por favor, senhor, com licença, mas deseja que eu faça outra investigação?
- O que você pode fazer que já não tenha feito?
Não sei, senhor, nada, senhor, por favor, desculpe-me.
A sua investigação foi completa, neh?
Sim, senhor. Por favor, perdoe a minha estupidez.
A culpa não foi sua. Você não estava aqui. Nem ao
comando. - Impaciente, Toranaga voltou-se para Yabu. - É
curioso, até sinistro que a patrulha da praia, a patrulha do acampamento, a patrulha do convés e o comandante fossem todos
homens de Izu naquela noite - com exceção de alguns poucos
ronins do Anjin-san.
- Sim, senhor. Curioso, mas não sinistro, sinto muito. O
senhor foi perfeitamente correto em julgar os oficiais responsáveis, assim como Naga-san o foi ao punir os outros. Desculpe,
fiz minha própria investigação assim que cheguei, mas não tenho
outras informações, nada a acrescentar. Concordo que é karma
1174
- karma ajudado de algum modo por cristãos comedores de lixo.
Ainda assim, peço desculpas.
- Ah, está dizendo que foi sabotagem?
- Não há evidência, senhor, mas um macaréu e um simples
incêndio parecem uma explicação fácil demais. Com certeza qualquer incêndio teria sido apagado. Novamente peço desculpas.
- Aceito as suas desculpas, mas, por favor, diga-me como
substituo aquele navio. Preciso daquele navio!
Yabu podia sentir a acidez no estômago. - Sim, senhor.
Eu sei. Sinto muito, não pode ser substituído, mas o Anjin-san
nos disse durante a viagem que em breve outros navios de guerra
do país dele chegarão aqui.
- Em breve quando?
- Ele não sabe, senhor.
- Um ano? Dez anos? Mal e mal tenho dez anos.
- Sinto muito, eu gostaria de saber. Talvez o senhor devesse perguntar a ele.
Toranaga olhou diretamente para Blackthorne pela primeira
vez. O homem alto erguia-se sozinho, a luz do seu rosto desaparecida. - Anjin-san!
- Sim, senhor?
- Mau, neh? Muito mau. - Toranaga apontou para o
navio. - Neh?
- Sim, muito mau, senhor.
- Quando chegam outros navios?
- Meus navios, senhor?
- Sim.
- Quando... quando Buda disser.
- Esta noite conversaremos. Vá agora. Obrigado por Osaka.
Sim. Vá para a galera ou para a aldeia. Conversamos esta noite.
Compreende?
- Sim. Conversamos esta noite, sim, compreendo, senhor.
Obrigado. Esta noite quando, por favor?
- Mando-lhe um mensageiro. Obrigado por Osaka.
- Meu dever, neh? Mas fiz pouco. Toda Mariko-sarna deu
tudo. Tudo por Toranaga-sama.
- Sim. - Gravemente Toranaga retribuiu a reverência. O
Anjin-san começou a se afastar, mas parou. Toranaga olhou de
relance para a extremidade do planalto. Tsukku-san e seus acólitos haviam -acabado de surgir e estavam desmontando. Ele não
concedera uma entrevista ao padre em Mishima - embora lhe
tivesse mandado imediatamente uma mensagem sobre a destrui1175
dependência do resultado de Osaka e da chegada da galera a
Anjiro em segurança. Só então resolvera trazer o padre até ali,
para permitir que a confrontação ocorresse, no momento correto.
Blackthorne começou a se dirigir para o sacerdote.
- Não, Anjin-san. Mais tarde, não agora. Agora vá para
a aldeia! - ordenou ele.
- Mas, senhor! Aquele homem matou o meu navio! Ele é
o inimigo!
- Você irá para lá! - Toranaga apontou para a aldeia lá
embaixo. - Esperará lá, por favor. Esta noite conversaremos.
- Senhor, por favor, aquele homem...
- Não. Vá para a galera - disse Toranaga. - Vá agora,
por favor. - Isto é melhor do que domar um falcão, pensou ele
excitado, momentaneamente distraído, usando a própria vontade
para impelir Blackthorne. É melhor porque o Anjin-san é igualmente perigoso e imprevisível, sempre uma qualidade desconhecida, única, diferente de qualquer homem que eu tenha conhecido.
Com o canto dos olhos, notou que Buntaro se colocara no
caminho do Anjin-san, pronto e ansioso por forçar a obediência.
Que tolice, pensou Toranaga de passagem, e tão desnecessário.
Manteve os olhos cravados em Blackthorne. E dominou-o.
- Sim. Vou agora, Senhor Toranaga. Desculpe. Vou agora
- disse Blackthorne. Enxugou o suor do rosto e começou a se
afastar.
- Obrigado, Anjin-san - disse Toranaga. Não permitiu que
seu triunfo se mostrasse. Observou Blackthorne obedientemente
caminhar - violento, assassino, mas controlado agora pela vontade de Toranaga.
Então mudou de idéia. - Anjin-san! - chamou, decidindo
que era tempo de soltar os pioses e deixar o matador voar livremente. O teste final. - Ouça, vá até lá se quiser. Acho que é
melhor não matar o Tsukku-san. Mas se você quiser matá-lo,
mate. Melhor não matar. - Falou lenta e cuidadosamente, e
repetiu. - Wakarimasu ka?
- Hai.
Toranaga olhou dentro daqueles olhos inacreditavelmente
azuis, cheios de uma animosidade irracional, e se perguntou se
aquela ave selvagem, lançada contra a presa, mataria ou não,
apenas por capricho seu, e se retornaria ao punho sem comer.
- Wakarimasu ka?
- Hai.
1176
encaminhou-se a passos largos na direção norte. Rumo ao Tsukkusan. Buntaro saiu-lhe do caminho. Blackthorne não parecia notar
ninguém além dos padres. O dia pareceu tornar-se mais sufocante.
- Então, Yabu-san, o que ele vai fazer? - perguntou
Toranaga.
- Matar. Claro que o matará se puder pegá-lo. O padre
merece morrer, neh? Todos os padres cristãos merecem morrer,
neh? Todos os cristãos. Tenho certeza de que estavam por trás
da sabotagem - os padres e Kiyama, embora eu não possa
provar.
- Aposta a sua vida como ele matará o Tsukku-san?
- Não, senhor - disse Yabu rapidamente. - Não. Eu
não apostaria. Sinto muito. Ele é bárbaro, são ambos bárbaros.
- Naga-san?
- Se fosse eu, mataria o padre e todos eles, agora que o
senhor deu a sua permissão. Nunca conheci alguém que odiasse
tanto alguém, e tão abertamente. Nos últimos dois dias o Anjinsan tem estado como um demente, andando de um lado para o
outro, resmungando, olhando fixamente para os destroços do
navio, dormindo lá, enrodilhado na areia, quase não comendo ...
- Naga olhou para Blackthorne de novo. - Concordo que não
foi apenas a natureza que destruiu o navio. Sei que os padres,
de algum modo, estiveram por trás disso. Também não posso provar, mas de algum modo... Não acredito que tenha acontecido por causa da tempestade.
- Escolha!
- Ele explodirá. Olhe o modo como anda... Acho que
matará. Espero que mate.
- Buntaro-san?
Buntaro voltou-se, os pesados maxilares por barbear, as pernas musculosas plantadas no chão, os dedos no arco. - O senhor
o aconselhou a não matar o Tsukku-san, portanto o senhor não
deseja que o padre seja morto. Se o Anjin-san mata ou não
mata, não me importa, senhor. Só me preocupo com o que importa ao senhor. Posso detê-lo se ele começar a desobedecer-lhe?
Posso fazê-lo facilmente desta distância.
- Pode garantir que iria apenas feri-lo?
- Não, senhor.
Toranaga riu suavemente e quebrou o encanto. - O Anjinsan não o matará. Vai gritar e se enfurecer ou sibilar como uma
cobra e chocalhar a espada, e o Tsukku-san vai se inchar de
1177
zelo "sagrado', completamente sem medo, e sibilará de volta,
dizendo: "Foi um ato de Deus. Nunca toquei no seu navio!"
Então o Anjin-san o chamará de mentiroso e o Tsukku-san se
imbuirá de mais zelo e provavelmente o amaldiçoará e se odiarão
mutuamente por vinte vidas. Ninguém morrerá. Pelo menos
agora.
- Como sabe disso, Pai? - perguntou Naga.
- Não sei com certeza, meu filho. Mas é isso o que acho
que vai acontecer. É sempre importante dedicar tempo a estudar
os homens - os homens importantes. Amigos e inimigos. Compreendê-los. Observei a ambos. São ambos muito importantes
para mim. Neh, Yabu-san?
- Sim, senhor - disse Yabu, subitamente inquieto.
Naga deu uma olhada rápida em Blackthorne. O Anjin-san
ainda estava andando com a mesma marcha sem pressa, agora
a setenta passos do Tsukku-san, que esperava à frente dos seus
acólitos, a brisa movendo-lhes os hábitos alaranjados.
- Mas, Pai, nenhum dos dois é covarde, neh? Como podem
recuar agora, com honra?
- Ele não matará por três razões. Primeira, porque o Tsukku-san está desarmado e não revidará, nem com as mãos. É
contra o código deles matar um homem desarmado - é uma
desonra, um pecado contra o Deus cristão deles. Segunda,
porque é cristão. Terceira, porque resolvi que não era o momento.
- Por favor, desculpe-me, senhor - disse Buntaro -
posso compreender a terceira razão, até a primeira, mas a razão
real do ódio deles não é que ambos acreditam que o outro não
é cristão, mas mau, um adorador de Satã? Não é assim que eles
chamam?
- Sim, mas esse Deus Jesus deles ensinou-lhes ou supõe-se
que tenha ensinado que se deve perdoar a um inimigo. Isso é ser
cristão.
- É estupidez, neh? disse Naga. - Perdoar a um inimigo é estupidez.
- Concordo. - Toranaga olhou para Yabu. - É tolice
perdoar a um inimigo. Neh, Yabu-san?
- Sim - concordou Yabu.
Toranaga olhou na direção norte. As duas figuras estavam
muito próximas e agora, reservadamente, Toranaga estava amaldiçoando a própria impetuosidade. Ainda necessitava muitíssimo
de ambos, e não houvera necessidade de pôr em risco qualquer
1178
um deles. Soltara o Anjin-san por excitação pessoal, não para
matar, e lamentou a própria estupidez. Agora esperava, de respiração suspensa como todos os demais. Mas aconteceu conforme
ele predissera e o choque foi rápido, impetuoso e cheio de rancor,
mesmo daquela distância, e ele se abanou, enormemente aliviado.
Teria gostado muitíssimo de compreender o que fora dito na realidade, para saber se fora correto. Logo viram o Anjin-san se
afastar. Atrás dele, o Tsukku-san esfregou a testa com um lenço
de papel colorido.
- Iiiiih - exclamou Naga em admiração. Como podemos perder com o senhor no comando?
- Com toda a facilidade, meu filho, se esse for o meu
karmna. - Depois a sua disposição mudou. - Naga-san, ordene a
todos os samurais que chegaram de Osaka na galera que se dirijam aos meus aposentos.
Naga saiu apressado.
- Yabu-san, fico contente em dar-lhe as boas-vindas. Dispense o regimento. Depois da refeição noturna conversaremos.
Posso mandar buscá-lo?
- Naturalmente. Obrigado, senhor. - Yabu saudou e se foi.
Sozinho agora, com exceção dos guardas, que afastou para
longe do raio de audição, Toranaga estudou Buntaro. Buntaro
ficou desassossegado, como um cão ficaria, quando observado.
Quando não conseguiu mais suportar, disse: - Senhor?
Uma vez você pediu a morte dele, neh? Neh?
Sim ... sim, senhor.
Bem?
Ele... ele me insultou em Anjiro. Estou... ainda estou
envergonhado.
- Ordeno que essa vergonha seja ignorada.
- Então está ignorada, senhor. Mas ela me traiu com ele,
e isso não pode ser ignorado, não enquanto ele viver. Tenho
provas. Quero-o morto. Agora. Ele... por favor, o navio dele foise, que utilidade tem ele agora para o senhor? Peço-o como um
favor de vida.
- Que provas?
- Todo mundo sabe. No caminho de Yokosé. Conversei
com Yoshinaka. Todo mundo sabe - acrescentou Buntaro,
sombrio.
- Yoshinaka viu-os juntos? Acusou-a?
- Não. Mas o que disse... - Buntaro levantou os olhos,
1179
agoniado. - Eu sei, isso basta. Por favor, rogo como um favor
de vida. Nunca lhe pedi nada, neh?
- Preciso dele vivo. Não fosse ele, os ninfas a teriam capturado, envergonhado, e conseqüentemente envergonhado a você.
- Um desejo de vida - disse Buntaro. - Eu peço. O
navio dele está arruinado ... ele, ele fez o que o senhor queria.
Por favor.
- Tenho provas de que ele não o envergonhou com ela.
- Desculpe, que provas?
- Ouça. Isto é apenas para os seus ouvidos - conforme
combinei com ela. Ordenei a ela que se tornasse amiga dele.
Eram amigos, sim. O Anjin-san a adorava, mas nunca o envergonhou com ela, ou ela com ele. Em Anjiro, pouco depois do
terremoto, quando ela sugeriu pela primeira vez ir a Osaka libertar todos os reféns - desafiando Ishido publicamente e depois
forçando uma crise cometendo seppuku, fosse o que fosse que
ele tentasse fazer -, naquele dia eu dec...
- Foi planejado, então?
- É claro. Você nunca aprenderá? Naquele dia ordenei a
ela que se divorciasse de você.
- Senhor?
- Que se divorciasse. A palavra não está clara?
- Sim, mas. . .
- Que se divorciasse. Ela o punha demente há anos, voce
a tratava de modo abominável há anos. E o seu tratamento à
mãe adotiva e às damas dela? Eu lhe disse que precisava dela
para interpretar com o Anjin-san, no entanto você perdeu o
controle e espancou-a - a verdade é que quase a matou daquela
vez, neh? Neh?
- Sim... por favor, desculpe-me.
- Tinha chegado o momento de terminar esse casamento.
Ordenei que terminasse. Naquela altura.
- Ela pediu divórcio?
- Não. Eu decidi e ordenei. Mas a sua esposa implorou
que eu revogasse a ordem. Recusei. Então sua esposa disse que
cometeria seppuku imediatamente, sem a minha permissão, antes
de permitir que você fosse envergonhado desse modo. Ordeneilhe que obedecesse. Ela se recusou. - Toranaga continuou, encolerizado: - Sua esposa forçou-me, a mim, seu suserano, a retirar
uma ordem legal e fez-me concordar em tornar a minha ordem
absoluta apenas depois de Osaka - nós dois sabemos que Osaka
para ela significava morte. Está entendendo?
1180
- Sim... sim, entendo.
- Em Osaka, o Anjin-san salvou a honra dela e a honra
das minhas damas e do meu filho mais novo. Não fosse ele, elas
e todos os reféns em Osaka ainda estariam em Osaka, eu estaria
morto ou nas mãos de Ikawa Jikkyu, provavelmente a ferros como
um criminoso comum!
- Por favor, desculpe-me ... mas por que ela fez isso?
Odiava-me ... por que adiaria o divórcio? Por causa de Saruji?
- Pela sua honra. Ela compreendia o significado do dever.
A sua esposa estava tão preocupada com a sua honra - mesmo
depois da própria morte -, que parte do meu acordo foi que
isto seria um assunto particular, entre mim, ela e você. Ninguém
jamais saberia, nem o Anjin-san, o filho dela, ninguém - nem
mesmo o confessor cristão dela.
- O quê?
Toranaga explicou de novo. Afinal Buntaro compreendeu
com clareza e Toranaga dispensou-o. Então, finalmente sozinho
um momento, levantou-se e espreguiçou-se, exausto por todo o
trabalho que tivera desde que chegara. O sol ainda estava alto,
embora já fosse de tarde. Toranaga sentia muita sede. Aceitou
chá frio de um guarda-costas pessoal, depois desceu até a praia.
Despiu o quimono ensopado e nadou, sentindo o mar glorioso,
refrescante. Nadou embaixo da água, mas não ficou submerso
muito tempo, sabendo que seus guardas se preocupariam. Voltou
à tona e boiou de costas, olhando para o céu, reunindo forças
para a longa noite que tinha pela frente.
Ah, Mariko, pensou, que mulher extraordinária você é. Sim,
é, porque certamente viverá para sempre. Está com o seu Deus
cristão no seu paraíso cristão? Espero que não. Seria um terrível
desperdício. Espero que o seu espírito esteja apenas aguardando
os quarenta dias de Buda para renascer em algum lugar aqui.
Rezo para que o seu espírito venha para a minha família. Por
favor. Mas de novo como mulher - não como homem. Não
podemos nos permitir ter você como homem. Você é especial
demais para ser desperdiçada como homem.
Sorriu. Acontecera em Anjiro exatamente como ele contara
a Buntaro, embora ela nunca o tivesse forçado a rescindir suas
ordens. - Como poderia me forçar a fazer qualquer coisa que
eu não quisesse? - disse ao céu. Ela lhe pedira respeitosamente,
corretamente, que não tornasse público o divórcio senão depois
de Osaka. Mas, garantiu ele a si mesmo, ela certamente teria
cometido seppuku se eu lhe tivesse recusado. Ela teria insistido,
1181
neh? Claro que teria insistido, e isso arruinaria tudo. Concordando antes, simplesmente poupei-lhe a vergonha e uma discussão
desnecessárias, e a mim mesmo um problema desnecessário - e
mantendo o assunto em particular agora, como tenho certeza de
que ela gostaria que acontecesse, todos saem ganhando. Estou
contente de ter cedido, pensou ele benevolamente, depois riu
alto. Uma pequena onda quebrou sobre ele, que engoliu água e
engasgou.
- Está bem, senhor? - chamou seu guarda ansioso, nadando por perto.
- Sim. Claro que sim. - Toranaga tossiu de novo e cuspiu,
mantendo-se à tona com os pés, e pensou: isto lhe ensinará a
ser convencido. É o seu segundo erro hoje. Então viu o destroço
do navio. - Vamos, vou competir com você! - disse, chamando
um guarda.
Uma competição com Toranaga era uma competição. Uma
vez um de seus generais deliberadamente lhe permitira vencer,
esperando obter favor com isso. O engano custara tudo ao homem.
O guarda venceu. Toranaga cumprimentou-o, segurando-se
a uma das costelas da carcaça, e esperou que o fôlego se normalizasse, depois olhou em torno, sentindo uma enorme curiosidade.
Mergulhou e inspecionou a quilha do Erasmus. Quando se sentiu
satisfeito, nadou para a praia e retornou ao acampamento, refrescado e pronto.
Uma casa provisória fora instalada para ele numa boa posição sob um largo telhado de sapé, sustentado por resistentes
pilares de bambu. Paredes shojis e biombos tinham sido erguidos
sobre um soalho elevado, de madeira e tatamis. Já havia sentinelas
postadas, e aposentos para Kiri, Sazuko, criadas e cozinheiros,
unidos por um complexo de passagens simples, erguidos sobre
estacas provisórias.
Toranaga viu o filho pela primeira vez. Obviamente a Senhora Sazuko nunca teria sido impolida a ponto de levar a
criança até o planalto na mesma hora, temendo poder intrometerse em assuntos importantes - como teria feito realmente -,
ainda que ele lhe tivesse alegremente concedido a oportunidade.
Gostou muito da criança. - É um belo menino - gabou-se ele, segurando o bebê com uma confiança experiente. - E você
está mais jovem e atraente do que nunca, Sazuko. Precisamos
ter mais filhos imediatamente. A maternidade lhe assenta bem.
- Oh, senhor - disse ela. - Tive medo de nunca mais
1182
revê-lo, e de nunca poder lhe mostrar seu filho mais novo. Como
vai escapar da armadilha... os exércitos de Ishido ...
- Olhe que belo menino ele é! Na semana que vem construirei um santuário em homenagem a ele e o dotarei com ...
- Parou e dividiu ao meio a cifra que pensara inicialmente,
depois tirou mais metade com vinte kokus por ano.
- Oh, senhor, como é generoso!
O sorriso dela era sincero. - Sim - disse ele. - É o suficiente para que algum sacerdote miserável e parasita diga alguns
Namu Amida Butsu, neh?
- Oh, sim, senhor. O santuário será perto do castelo de
Yedo? Oh, não seria maravilhoso se desse para um rio ou um
riacho?
Ele concordou relutante, embora tal escolha fosse custar
mais do que ele queria gastar na extravagância. Mas o menino
é lindo, posso me permitir ser generoso este ano, pensou ele.
- Oh, obrigada, senhor... - A Senhora Sazuko parou.
Naga vinha correndo na direção do local onde eles estavam
sentados, numa varanda sombreada.
- Por favor, com licença, Pai, mas os seus samurais de
Osaka? Como deseja vê-los, individualmente ou todos juntos?
- Individualmente.
- Sim, senhor. O Padre Tsukku-san gostaria de vê-lo, quando fosse conveniente.
- Diga-lhe que mandarei chamá-lo assim que possível. -
Toranaga começou a conversar novamente com a consorte, mas,
polida e imediatamente, ela pediu licença para se retirar, sabendo
que ele desejava lidar com os samurais imediatamente. Ele lhe
pediu que ficasse, mas ela implorou para ser autorizada a se
retirar, e ele concordou.
Entrevistou os homens cuidadosamente, peneirando as histórias deles, chamando um samurai de volta ocasionalmente,
conferindo tudo. Pelo pôr-do-sol, sabia claramente o que acontecera, o que todos pensavam que tivesse acontecido. Então comeu,
ligeira e rapidamente, sua primeira refeição do dia, e chamou
Kiri, afastando todos os guardas do raio de audição.
- Primeiro conte-me o que você fez, o que viu, e o que
testemunhou, Kiri-chan.
A noite caiu antes que ele se sentisse satisfeito, embora
ela estivesse perfeitamente preparada.
- Iiiiih! - exclamou ele. - Isso foi uma coisa e tanto,
Kiri-chan.
1183
- Sim - replicou Kiri, as mãos cruzadas sobre o amplo
regaço. E acrescentou com grande ternura: - Todos os deuses,
grandes e pequenos, o estavam guardando, senhor, e a nós. Por
favor, perdoe-me por haver duvidado do resultado do senhor.
Os deuses estavam velando por nós.
- Parece que sim, realmente, parece muitíssimo. - Toranaga olhou a noite. As chamas dos archotes estavam sendo sopradas pela leve brisa marítima, que também afastava os insetos
noturnos e tornava a noite mais agradável. Uma bela lua flutuava
no céu, ele podia ver-lhe as marcas escuras na face e se perguntou, distraído, se o escuro era terra e o resto gelo e neve, e por
que a lua estava lá, e quem vivia lá. Oh, há tantas coisas que eu
gostaria de saber, pensou.
- Posso fazer-lhe uma pergunta, Tora-chan?
- Que pergunta, senhora?
- Por que Ishido nos deixou partir? Não precisaria ter
feito isso, neh? Se eu fosse ele, nunca o teria feito, nunca.
Por quê?
- Primeiro diga-me qual é a mensagem da Senhora Ochiba.
- A Senhora Ochiba disse: "Por favor, diga ao Senhor
Toranaga que eu respeitosamente gostaria que houvesse um
meio de as suas diferenças com o herdeiro serem resolvidas.
Como símbolo da afeição do herdeiro, eu gostaria de dizer a
Toranaga-sarna que o herdeiro disse muitas vezes que não deseja
comandar quaisquer exércitos contra o tio, o senhor do Kwa..."
- Ela disse isso!?
- Sim. Oh, sim.
- Certamente ela sabe - e Ishido - que se Yaemon
levantar o estandarte contra mim eu perco!
- Foi o que ela disse, senhor.
- Iiiiiih! - Toranaga cerrou o grande punho calejado e
socou-o sobre os tatamis. - Se isto for um oferecimento verdadeiro e não um truque, estou a meio caminho de Kyoto, e um
passo além.
- Sim - disse Kiri.
- Qual é o preço?
- Não sei. Ela não disse mais nada, senhor. A mensagem
era só isso, além de saudações à irmã.
- O que posso dar a Ochiba que ela já não tenha? Osaka
é dela, o tesouro é dela, para mim Yaemon sempre foi o herdeiro
do reino. Esta guerra é desnecessária. Aconteça o que acontecer,
1184
dentro de oito anos Yaemorr torna-se kwarnpaku e herda a terra,
esta terra. Não sobra nada para dar a ela.
- Talvez ela deseje um casamento?
Toranaga meneou a cabeça enfaticamente. - Não, ela não.
Aquela mulher nunca se casaria comigo.
- É a solução perfeita, senhor, para eia.
- Ela nunca a consideraria. Ochiba, minha esposa? Por
quatro vezes ela rogou ao táicum que me convidasse a partir para
o Vazio.
- Sim. Mas isso foi quando ele estava vivo.
- Farei qualquer coisa que consolide o reino, preserve a
paz e faça Yaemon kwainpaku. É isso o que ela deseja?
- Isso confirmaria a sucessão. É o que interessa a ela.
Novamente Toranaga contemplou a lua, mas agora sua mente
estava concentrada no quebra-cabeça, lembrando-se mais uma vez
do que a Senhora Yodoko dissera em Osaka. Como não conseguia antever nenhuma resposta imediata, colocou a questão de
lado para continuar com o presente, mais importante. - Acho
que ela está usando os seus truques de novo. Kiyama disse a você
que o navio bárbaro tinha sido sabotado?
- Não, senhor.
Toranaga franziu o cenho. - É de surpreender, porque ele
deve ter sabido na ocasião. Comuniquei ao Tsukku-san assim
que fui informado - ele enviou um pombo-correio imediatamente, embora isso só fosse confirmar o que eles já deviam estar
sabendo.
- A traição deles deveria ser punida, neh? Tanto os instigadores quanto os imbecis que a autorizaram.
- Com paciência eles terão a sua recompensa, Kiri-san.
Fui informado de que os padres cristãos alegam ter sido um
"ato de Deus".
- Que hipocrisia! Estupidez, neh?
- Sim. - Muito estúpido num sentido, pensou Toranaga,
não em outro. - Bem, obrigado, Kiri-san. Repito que estou
encantado que você esteja salva. Ficaremos aqui esta noite. Agora,
por favor, com licença. Mande buscar Yabu-san e, quando ele
chegar, traga chá e saque, e depois nos deixe a sós.
- Sim, senhor. Posso fazer uma pergunta agora?
- A mesma pergunta?
- Sim, senhor. Por que Ishido nos deixou partir?
1185
- A resposta, Kiri-chan, é que eu não sei. Ele cometeu
um engano.
Ela se curvou e saiu, contente.
A noite ia quase pela metade quando Yabu partiu. Toranaga
curvou-se em despedida, de igual para igual, e agradeceu-lhe
por tudo novamente. Convidara-o para o conselho de guerra
secreto do dia seguinte, confirmara-o como general do Regimento
de Mosquetes, confirmara-o por escrito no governo de Totomi
e Suruga, assim que estivessem conquistadas e garantidas.
- Agora o regimento é absolutamente vital, Yabu-san. O
senhor será o único responsável pela sua estratégia e treinamento.
Omi-san pode ser a ligação entre nós. Use o conhecimento do
Anjin-san - tudo. Neh?
- Sim, isso será perfeito, senhor. Posso humildemente agradecer-lhe?
- O senhor me fez um grande serviço trazendo as minhas
damas, o meu filho e o Anjin-san em segurança. Terrível o que
aconteceu ao navio - karma. Talvez um outro chegue logo. Boa
noite, meu amigo.
Toranaga tomou um gole de chá. Estava se sentindo muito
cansado agora.
- Naga-san?
- Senhor?
- Onde está o Anjin-san?
- Perto do navio com alguns dos seus vassalos.
- O que está fazendo lá?
- Apenas olhando. - Naga sentiu-se inquieto sob o olhar
penetrante do pai. - Desculpe, ele não deveria estar lá, senhor?
- O quê? Oh, não, isso não tem importância. Onde está o
Tsukku-san?
- Numa das casas de hóspedes, senhor.
- Você lhe disse que quer se tornar cristão no próximo ano?
- Sim, senhor.
- Bom. Vá buscá-lo.
Poucos momentos depois Toranaga viu o padre alto e esbelto
aproximar-se sob os archotes - o rosto tenso profundamente
sulcado, o cabelo preto tonsurado sem um salpico de cinza -, e
lembrou-se subitamente de Yokosé. - A paciência é muito importante, Tsukku-san. Neh?
- Sim, sempre. Mas por que disse isso, senhor?
1186
- Oh, eu estava pensando em Yokosé. Como tudo estava
diferente lá, há tão pouco tempo.
- Ah, sim. Deus se move por caminhos curiosos, sim,
senhor. Estou muito contente de que o senhor ainda esteja dentro
das suas fronteiras.
- Queria me ver? - perguntou Toranaga, abanando-se, secretamente invejando ao padre o estômago chato e o dom para
as línguas.
- Apenas para me desculpar pelo que aconteceu.
- O que disse o Anjin-san?
- Muitas palavras coléricas - e acusações de que eu queimei o navio dele.
- O senhor queimou?
- Não, senhor.
- Quem queimou?
- Foi um ato de Deus. Aconteceu uma tempestade e o
navio pegou fogo.
- Não foi um ato de Deus. O senhor diz que não contribuiu para isso, o senhor ou qualquer padre ou qualquer cristão?
-- Oh, contribuí, senhor. Rezei. Todos nós fizemos isso.
Diante de Deus, acredito que aquele navio era um instrumento
do Demônio, disse isso muitas vezes. Sei que sua opinião não
era essa e novamente lhe peçD perdão por me opor ao senhor
nesse assunto. Mas talvez esse ato de Deus tenha ajudado e não
atrapalhado.
- Oh? Como?
- O padre-inspetor não está mais perturbado, senhor. Agora
pode se concentrar nos senhores Kiyama e Onoshi.
- Já ouvi isso antes, Tsukku-san - disse Toranaga abruptamente. - Que ajuda prática o padre cristão chefe pode me dar?
- Senhor, deposite a sua fé em. . . - Alvito se conteve,
depois disse com sinceridade: - Por favor, desculpe-ene, senhor,
mas acho, de todo o coração, que se o senhor depositar sua fé
em Deus, ele o ajudará.
- Eu confio, mas mais em Toranaga. Entrementes sou
informado de que Ishido, Kiyama, Onoshi e Zataki reuniram suas
legiões. Ishido terá trezentos ou quatrocentos mil homens em
campo contra mim.
- O padre-inspetor está pondo em execução o seu acordo
com o senhor. Em Yokosé relatei fracasso, agora penso que
há esperança.
- Não posso usar esperança contra espadas.
1187
- Sim, mas Deus pode vencer contra quaisquer desigualdades.
- Sim. Se Deus existe, pode vencer contra quaisquer desigualdades. - A voz de Toranaga se aguçou ainda mais. - Que
esperança o senhor está concedendo?
- Não sei, de fato, senhor. Mas Ishido não virá contra
o senhor? Fora do Castelo de Osaka? Esse não é outro ato de
Deus?
- Não. Mas o senhor compreende a importância dessa
decisão?
- Oh, sim, muito claramente. Estou certo de que o padreinspetor também compreende isso.
-- Está dizendo que o trabalho dele é esse?
- Oh, não, senhor. Mas isso está acontecendo.
- Talvez Ishido mude de idéia, faça o Senhor Kiyama
comandante-chefe, esconda-se em Osaka e lance Kiyama e o
herdeiro contra mim?
- Não posso responder a isso, senhor. Mas se Ishido sair
de Osaka será um milagre. Neh?
- Está alegando, a sério, que esse é outro ato do seu Deus
cristão?
-- Não. Mas poderia ser. Creio que nada acontece sem o
seu conhecimento.
- Mesmo depois de mortos, pode ser que nunca venhamos
a saber sobre Deus. Então Toranaga acrescentou abruptamente:
- Ouvi dizer que o padre-inspetor partiu de Osaka - e ficou
contente de ver uma sombra cruzar o rosto de Tsukku-san. A
notícia chegara no dia em que ele partira de Mishima.
- Sim - disse o padre, a apreensão aumentada. - Ele
foi a Nagasaki, senhor.
- Para conduzir um funeral especial para Toda Marikosama?
- Sim. Ah, senhor, sabe tanto! Somos todos argila no torno
do oleiro que o senhor gira.
- Isso não é verdade. E não gosto de lisonja inútil. Esqueceu-se?
- Não, senhor, por favor, desculpe-me. Isso não teve a
intenção de ser lisonja. - Alvito pôs-se ainda mais em guarda,
quase sem forças. - Opõe-se ao serviço fúnebre, senhor?
-- A mim não interessa. Ela era uma pessoa muito especial
e seu exemplo merece ser honrado.
1188
- Sim, senhor. Obrigado. O padre-inspetor ficará muito
contente. Mas ele acha que isso tem muita importância.
- Claro. Porque ela era aninha vassala e cristã, o seu exemplo não passará despercebido - por outros cristãos. Ou por
aqueles que estão considerando a possibilidade de conversão.
Neh?
--- Eu diria que não passará despercebido. Por que passaria?
Pelo contrário, ela merece grande louvor pela sua auto-imolação.
- Dando a vida para que outros pudessem viver? - perguntou Toranaga criticamente, não mencionando seppukn ou
suicídio.
-- Sim.
Toranaga sorriu consigo mesmo, notando que Tsukku-san
não mencionara nem uma vez a outra garota, Kiyama Achiko,
sua bravura, morte ou funeral, também com grande pompa e
cerimônia. Endureceu a voz. - E o senhor não sabe de mais
ninguém que tenha ordenado ou auxiliado na sabotagem do meu
navio?
- Não, senhor. De outro modo que não através de orações,
não sei.
- Fui informado de que a construção da sua igreja em
Yedo está irado bem.
- Sim, senhor. Agradeço-lhe novamente.
-- Bem, Tsukku-san, espero que os esforços do sumo sacerdote dos cristãos gerem fruto logo. Preciso de mais do que
esperança e tenho uma excelente memória. Agora, por favor,
solicito os seus serviços como intérprete. -- Instantaneamente
sentiu o antagonismo do padre. - O senhor não tem nada a
temer.
- Oh, senhor, não tenho medo, por favor, desculpe-me, só
não quero estar perto dele.
Toranaga levantou-se. - Solicito-lhe que respeite o Anjinsan. Sua coragem é inquestionável e ele salvou a vida de Marikosama muitas vezes. Além disso, compreensivelmente, ele está quase
fora de si -- a perda do navio, neh?
-- Sim, sim. Sinto muito.
Toranaga tomou a dianteira em direção à praia. guardas coro
archotes iluminando o caminho. - Quando terei o relatório do
seu sumo sacerdote sobre o incidente do contrabando de arruas?
- Assim que ele obtiver todas as informações de Macau.
-- Por favor, peça-lhe que acelere as investigações.
- Sim, senhor.
1189
- Quem eram os daimios cristãos envolvidos?
- Não sei, sinto muito, nem se havia algum envolvido.
- É uma pena que o senhor não saiba, Tsukku-san. Isso
me pouparia muito tempo. Não são poucos os daimios que estariam interessados em saber a verdade a esse respeito.
Ah, Tsukku-san, pensou Toranaga, mas você sabe, e eu
poderia encostá-lo à parede agora e, enquanto você se contorcesse e se debatesse como uma cobra encurralada, eu lhe ordenaria que jurasse pelo seu Deus cristão, e aí, se você fizesse isso,
teria que dizer: Kiyama, Onoshi e provavelmente Harima. Mas o
momento não é oportuno. Ainda. Nem para que você saiba que
acredito que os seus cristãos não têm nada que ver com a sabotagens. Nem Kiyama, Harima ou mesmo Onoshi. De fato, tenho
certeza disso. Mas também não foi um ato de Deus. Foi um ato
de Toranaga.
Sim.
Mas por quê? você poderia perguntar.
Kiyama prudentemente recusou o oferecimento que Mariko
lhe entregou com a carta. Precisava ter provas da minha sinceridade. O que mais eu poderia dar além do navio - e o bárbaro
-, que aterrorizava vocês, cristãos? Eu esperava perder os dois,
embora só tivesse dado um. Hoje, em Osaka, intermediários meus
dirão a Kiyama e ao chefe dos seus padres que isso é um presente
espontâneo de mim para eles, uma prova da minha sinceridade:
que não me oponho à Igreja, apenas a Ishido. É uma prova, neh?
Sim, mas você pode confiar em Kiyama? perguntará você,
com toda a razão.
Não. Mas Kiyama é japonês em primeiro lugar, e cristão em
segundo. Você sempre se esquece disso. Kiyama compreenderá a
minha sinceridade. O presente do navio foi absoluto, assim como
o exemplo de Mariko e a bravura do Anjin-san.
o como sabotei o navio? você poderia querer saber.
o que lhe importa isso, Tsukku-san? Basta que eu o tenha
feito. E ninguém está a par, além de mim, alguns homens de
confiança, e o incendiário. Ele? Ishido usou ninfas, por que eu
não poderia? Mas contratei um homem e tive êxito. Ishido fracassou.
- Estupidez fracassar - disse alto.
- Senhor? - perguntou Alvito.
- Estupidez fracassar em conservar um segredo tão inflamável como o dos mosquetes contrabandeados - disse ele aspe1190
ramente - e incitar daimios cristãos à rebelião contra o seu
suserano, o táicum. Neh?
- Sim, senhor. Se isso for verdade.
- Oh, tenho certeza de que é, Tsukku-san. - Toranaga
deixou a conversa esmorecer, agora que o Tsukku-san estava
evidentemente agitado e pronto para ser um intérprete perfeito.
Estavam na praia agora e Toranaga ia na dianteira, a passos
seguros na semi-escuridão, pondo de lado o próprio cansaço. Ao
passarem pelas cabeças na praia, viu Tsukku-san se persignar
com medo e pensou: que estupidez ser tão supersticioso - e ter
medo de nada.
Os vassalos do Anjin-san já estavam de pé, curvando-se,
muito antes de ele chegar. O Anjin-san não. Ainda estava sentado,
contemplando o mar com ar inexpressivo.
- Anjin-san - chamou Toranaga gentilmente.
- Sim, senhor? - Blackthorne voltou do devaneio e se pôs
em pé. - Desculpe, quer conversar agora?
- Sim. Por favor. Trago Tsukku-san porque quero conversar com clareza. Compreende? Rápido e claro?
- Sim. - Toranaga viu a fixidez dos olhos do homem à
luz dos archotes e sua total exaustão. Olhou para Tsukku-san.
- Ele compreendeu o que eu disse? - Observou o padre falar,
o ouviu a língua que tinha o som do mal. O Anjin-san assentiu,
o olhar acusador não fraquejando nunca.
- Sim, senhor - disse o padre.
- Agora traduza para mim, por favor, Tsukku-san, como
antes. Tudo exato: ouça, Anjin-san, trouxe Tsukku-san a fim
de que possamos falar direta e rapidamente sem perder o sentido
de palavra alguma. É muito importante para mim, por isso peçolhe paciência. Acho que é melhor assim.
- Sim, senhor.
- Tsukku-san, primeiro jure diante do seu Deus cristão que
nada do que ele disser passará dos seus lábios aos ouvidos de
outra pessoa. Como num confessionário. Neh? Igualmente sagrado! Para mim e para ele.
- Mas, senhor, isto não é...
- Isso é o que o senhor fará. Agora. Ou retirarei todo o
meu apoio, para sempre, ao senhor e à sua Igreja.
- Muito bem, senhor. Concordo. Diante de Deus.
- Bom. Obrigado. Explique o trato a ele. - Alvito obedeceu, depois Toranaga acomodou-se sobre as dunas de areia e
1191
agitou o leque contra os insetos noturnos. Agora, por favor,
conte-me, Anjin-san, o que aconteceu em Osaka.
Blackthorne começou vacilante, mas aos poucos sua mente
começou a reviver tudo e logo as palavras fluíam e o Padre
Alvito tinha dificuldade em acompanhá-lo. Toranaga ouvia em
silêncio, nunca interrompendo o fluxo, apenas acrescentando um
encorajamento cauteloso quando necessário, o ouvinte perfeito.
Blackthorne terminou ao amanhecer. Nessa altura Toranaga
sabia tudo o que havia a contar -- tudo o que o Anjin-san estava
preparado para contar, corrigiu-se ele. O padre também sabia mas
Toranaga tinha certeza de que não havia nada no que fora dito
que os católicos ou Kiyama pudessem usar contra ele, contra
Mariko ou contra o Anjin-san, o qual, nessa altura, mal notava
o padre.
- Tem certeza de que o capitão-mor o teria colocado na
fogueira, Anjin-san? perguntou de novo.
- Oh, sim. Não fosse o jesuíta. Sou um herege aos olhos
dele - supõe-se que o fogo "limpe" a alma de um herege de
algum modo.
- Por que o padre-inspetor o salvou?
- Não sei. Tinha alguma coisa a ver com Mariko-santa.
Sem o meu navio não posso tocá-los. Oh, eles teriam pensado
nisso por si mesmos, mas talvez ela lhes tenha dado um indício
de como fazê-lo.
- Que indício? O que ela saberia sobre incendiar navios?
- Não sei. Ninjas entraram no castelo. Talvez os ninfas
pudessem se infiltrar entre os homens aqui. Meu navio foi sabotado. Ela viu o padre-inspetor no castelo no dia em que morreu.
Acho que disse a ele como incendiar o Erasfnus -o em troca da
minha vida. Mas não tenho vida sem o meu navio, senhor,
Nenhuma.
-- Está enganado, Anjin-san. Obrigado, Tsukku-san - disse
Toranaga, dispensando-o. -- Sim, agradeço-lhe o trabalho. Por
favor, vá descansar um pouco.
-- Sim, senhor. Obrigado. - Alvito hesitou. - Peço desculpas pelo capitão-mor. Os homens nascem em pecado, a maioria permanece em pecado, embora sejam cristãos.
-- Os cristãos nascem em pecado, nós não. Somos um povo
civilizado que compreende o que é realmente pecado, não camponeses iletrados que não conhecem coisa melhor. Ainda assim,
Tsukku-san, se eu fosse o seu capitão-mor, não teria deixado o
Anjin-san ir embora, tendo-o ao meu alcance. Foi uma decisão
1192
militar, uma boa decisão. Acho que ele viverá para lamentar não
ter insistido - e o mesmo fará o padre-inspetor.
- Quer que eu traduza isso, senhor?
- Isso foi para os seus ouvidos. Obrigado pelo seu auxílio. - Toranaga retribuiu as saudações do padre e mandou alguns
homens acompanharem-no de volta a casa, depois se voltou para
Blackthorne. - Anjin-san. Primeiro nadar.
- Senhor?
- Nadar! - Toranaga se despiu e entrou na água à luz
crescente. Blackthorne e os guardas o seguiram. Toranaga nadou
vigorosamente mar adentro, depois voltou e contornou o navio.
Blackthorne vinha atrás dele, revigorado pelo frio da água. Logo
Toranaga retornou à praia. Criadas tinham toalhas prontas, quimonos limpos, chá, saque e comida.
- Coma, Anjin-san.
- Desculpe, não tenho fome.
- Coma!
Blackthorne engoliu alguns bocados e vomitou. - Sinto
muito.
- Estupidez. E fraqueza. Fraco como um comedor de alho.
Não como um hatamoto. Neh?
- Senhor?
Toranaga repetiu. Brutalmente. Depois apontou para o navio,
sabendo que agora tinha toda a atenção de Blackthorne: -
Aquilo não é nada. Shigata ga nai. Sem importância. Ouça: Anjinsan é hatamoto, neh? Não comedor de alho. Compreende?
- Sim, sinto muito.
Toranaga chamou o guarda-costas com um aceno, e o homem
lhe estendeu um pergaminho lacrado. - Ouça, Anjin-san, antes
de partir de Yedo Mariko-sarna deu-me isto. Mariko-sama disse
que, se você vivesse depois de Osaka - se vivesse, compreende?
-, pediu-me que lhe desse isto.
Blackthorne pegou o pergaminho oferecido e, após um momento, rompeu o lacre.
- O que diz a mensagem, Anjin-san? - perguntou Toranaga.
Ela escrevera em latim: "Você. Eu o amo. Se isto for lido por
você, então terei morrido em Osaka e talvez, por minha causa,
seu navio esteja morto também. Eu talvez sacrifique essa parte
1193
I
muito estimada da sua vida por causa da minha fé, para salvaguardar a minha Igreja, mas mais para salvar a sua vida, que
para mim é mais preciosa do que tudo - até do que o interesse
do meu Senhor Toranaga. Eu talvez chegue a uma escolha, meu
amor: você ou o seu navio. Desculpe, mas escolho a vida para
você. Esse navio está condenado de todo modo - com ou sem
você. Entregarei o seu navio ao seu inimigo, de modo que
você possa viver. Esse navio não é nada. Construa outro. Isso
você pode fazer - você não aprendeu a ser um construtor de
navios, assim como um navegador de navios? Acredito que o
Senhor Toranaga lhe dará todos os artesãos, carpinteiros e ferreiros necessários - ele precisa de você e dos seus navios -,
e da minha fortuna pessoal leguei a você todo o dinheiro necessário. Construa outro navio e construa outra vida, meu amor.
Tome o Navio Negro do próximo ano, e viva para sempre.
Ouça, meu querido, a minha alma cristã reza para vê-lo de novo
num paraíso cristão - minha hara japonesa reza para que na
próxima vida eu seja tudo o que for necessário para dar-lhe
alegria e para estar com você esteja você onde estiver. Perdoe-me
- mas a sua vida é tudo o que importa. Eu o amo".
- O que diz a mensagem, Anjin-san?
- Desculpe, senhor. Mariko-sama diz que esse navio não
é necessário. Diz para construir um novo navio. Diz...
- Ah! É possível? É possível, Anjin-san?
Blackthorne viu o interesse cintilante do daimio. - Sim. Se
tiver. . . - Não conseguiu se lembrar da palavra "carpinteiro". - Se Toranaga-sama der homens, homens que fazem navio,
neh? Sim. Eu posso. - Na sua mente esse novo navio começou
a tomar forma. Menor, muito menor do que o Erasmus. Entre
noventa e cem toneladas seria tudo o que ele poderia dirigir,
pois nunca supervisionara ou projetara um navio completo antes,
embora Alban Caradoc o tivesse educado como construtor naval
e como piloto. Deus o abençoe, Alban, exultou ele. Sim, noventa
toneladas para começar. O Gondel Hind de Drake tinha mais
ou menos isso, e lembre-se do que ele agüentou! Posso pôr vinte
canhões a bordo e isso seria o suficiente para. . . - Jesus Cristo,
os canhões!
Saiu correndo e foi olhar os restos do navio, então viu
Toranaga e todos eles a fitá-lo e percebeu que estivera falando
em inglês. - Ah, desculpe, senhor. Pensar rápido demais. Armas
grandes - lá, no mar, neh? Preciso pegar depressa!
Toranaga falou com seus homens, depois encarou Black1194
thorne de novo. - Os samurais dizem que tudo o que estava no
navio está no acampamento. Algumas coisas retiradas do mar
aqui, na maré baixa, neh? Agora no acampamento. Por quê?
Blackthorne sentia-se em delírio. - Posso fazer navio. Se
tiver armas grandes, posso lutar inimigo. Toranaga-sama pode
conseguir pólvora?
- Sim. Quantos carpinteiros? Quantos são necessários?
- Quarenta carpinteiros, ferreiros, carvalho para os costados, o senhor tem carvalho aqui? Depois preciso de ferro, aço,
construirei uma forja e precisarei de um mestre. . . - Blackthorne percebeu que estava falando inglês novamente. - Desculpe.
Escrevo no papel. Cuidadosamente. E penso cuidadosamente. Por
favor, o senhor dá homens para ajudar?
- Todos os homens, todo o dinheiro. Já. Preciso do navio.
Já! Em quanto tempo você pode construí-lo?
- Seis meses a partir do dia em que aprontarmos a quilha.
- Oh, não mais depressa?
- Não, sinto muito.
- Depois conversamos mais, Anjin-san. O que mais Marikosarna diz?
- Pouco mais, senhor. Diz que dá dinheiro para ajudar
navio, dinheiro dela. Também diz que sente muito se ... se
ajuda meu inimigo a destruir navio.
- Que inimigo? Que meio de destruir navio?
- Não diz quem - ou como, senhor. Nada. claro. Só se
desculpa. Mariko-sama diz sayonara. Espera seppuku sirva Senhor
Toranaga.
- Ah, sim, serve enormemente, neh?
- Sim.
Toranaga sorriu para ele. - Contente tudo bem agora,
Anjin-san. Iüih, Mariko-sama tinha razão. Não se preocupe com
aquilo! - Toranaga apontou para o casco. - Construir navio
novo imediatamente. Um navio de combate, neh? Compreende?
- Compreendo muitíssimo.
Esse navio novo... poderia lutar com o Navio Negro?
Sim.
Ah! O Navio Negro do próximo ano?
Possível.
E a tripulação?
Por favor?
Marujos, atiradores?
1195
- Ah! Até o próximo ano posso treinar meus vassalos como
atiradores. Não marujos.
- Você pode ter a nata de todos os marujos de Nagasaki.
- Então no próximo ano possível. - Blackthorne sorriu
malicioso. - Próximo ano possível? Guerra? E a guerra?
Toranaga deu de ombros. - Guerra ou não... tentar assim
mesmo, neh? Essa é a sua presa - compreende "presa"? E nosso
segredo. Entre mim e você apenas, neh? O Navio Negro.
- Padres logo quebrarão o segredo.
- Talvez. Mas desta vez nada de macaréu ou tal-fun, meu
amigo. Você vigiará e eu vigiarei.
- Sim.
- Primeiro Navio Negro, depois ir para casa. Trazer-me
uma marinha. Compreende?
- Oh, sim.
- Se eu perder... karma. Se não, então tudo, Anjin-san.
Tudo conforme você disse. Tudo: Navio Negro, embaixador,
tratado, navios! Compreende?
- Sim. Oh, sim! Obrigado.
- Agradeça a Mariko-sarna. Sem ela. . . - Toranaga saudou-o calorosamente, pela primeira vez de igual para igual, e
se afastou com seus guardas. Os vassalos de Blackthorne se curvaram, totalmente impressionados com a honra concedida
ao amo.
Blackthorne observou Toranaga partir, exultante, depois viu
a comida. As criadas estavam começando a recolher as sobras.
- Esperem. Agora comida, por favor.
Comeu cuidadosamente, lentamente e com boas maneiras,
seus próprios homens brigando pelo privilégio de servi-lo, a mente
errando por todas as vastas possibilidades que Toranaga lhe abrira.
Você venceu, disse ele, querendo dançar uma hornpipe de alegria.
Mas não dançou. Releu a carta mais uma vez. E abençoou-a
novamente.
- Sigam-me - ordenou, e tomou a dianteira na direção do
acampamento, o cérebro já projetando o navio e as portinholas.
Jesus Deus do paraíso, ajude Toranaga a manter Ishido longe do
Kwanto e de Izu e, por favor, abençoe Mariko, esteja ela onde
estiver, e faça com que os canhões não estejam enferrujados
demais. Mariko tinha razão: o Erasmus estava condenado, com
ou sem mim. Ela me restituiu a vida. Posso construir outra vida
e outro navio. Noventa toneladas! Meu navio terá a proa em
ponta, será uma plataforma de batalha flutuante, tão lustroso
1196
quanto um galgo, de tipo melhor que o do Erasmus, o gurupés
sobressaindo arrogantemente e uma adorável figura de proa logo
embaixo, e o rosto será exatamente parecido com o dela, com
os seus adoráveis olhos oblíquos e as maçãs do rosto salientes.
O meu navio será... Jesus Deus, há uma tonelada de coisas
que posso aproveitar do Erasmus. Posso usar a parte da quilha,
algumas costelas - e haverá mil pregos, e o resto da quilha dará
guarnições e braços e tudo de que preciso ... se eu tiver tempo.
Sim. Meu navio será como ela, prometeu-se ele. Será berra
adaptado, uma miniatura, perfeito corno uma lâmina Yoshitomo,
e isso é a melhor coisa do mundo, e igualmente perigoso. No
ano que vem ele tomará uma presa com vinte vezes o seu peso,
como Mariko fez em Osaka, e expulsará o inimigo da Ásia. E
depois, no outro ano ou no seguinte, eu o levo para o Tâmisa,
para Londres, os porões cheios de ouro e os sete mares na sua
esteira. - O nome dele será 7'he Lady - disse ele alto.
CAPÍTULO 61
Duas manhãs depois, Toranaga estava examinando as cilhas
da sua sela. Habilmente fez o cavalo se ajoelhar, relaxando os
músculos do estômago, e apertou a correia mais dois foros.
Animal degenerado, pensou ele, desprezando os cavalos pelas
constantes manhas, traições e periculosidade mal-humorada. Este
sou eu, Yoshi Toranaga-noh-Chikitada-noh-Minowara, não uma
criança qualquer de cérebro confuso. Esperou um momento e
forçou o cavalo a se ajoelhar de novo. O cavalo grunhiu e sacudiu
o freio, e ele apertou as correias completamente.
- Bom, senhor! Muito bom - disse o mestre de caça com
admiração. Era um homem velho, enrugado, tão forte e curtido
quanto um barril de salmoura. - Muitos teriam ficado satisfeitos
da primeira vez.
- Aí a sela do cavaleiro teria escorregado e o idiota teria
sido atirado ao chão e suas costas talvez estivessem quebradas
ao meio-dia. Neh?
Os samurais riram. - Sim, e merecendo isso, senhor!
Em torno deles no estábulo estavam guardas e faicoeiros,
segurando falcões e gaviões encapuzados. Tetsu-ko, o peregrinus,
1197
estava no lugar de honra e, ao seu lado, menor, o único sem
capuz, Kogo, o milhafre, seus olhos dourados e inclementes inspecionando tudo.
Naga aproximou-se a cavalo. - Bom dia, Pai.
- Bom dia, meu filho. Onde está seu irmão?
- O Senhor Sudara está esperando no acampamento,
senhor.
- Bom - Toranaga sorriu para o jovem. Depois, porque
gostava dele, puxou-o a um lado. - Ouça, meu filho, em vez de
ir caçar, escreva as ordens de batalha para eu assinar quando
voltar esta noite.
- Oh, Pai - disse Naga, explodindo de orgulho com a
honra de formalmente aceitar o desafio lançado por Ishido, escrito pessoalmente por ele, pondo em execução a decisão, tomada
na véspera pelo conselho de guerra, de ordenar aos exércitos
que rumassem para os desfiladeiros. - Obrigado, obrigado.
- Depois: o Regimento de Mosquetes tem ordens de partir para Hakoné ao amanhecer de amanhã. Depois: o comboio de
bagagem chegará de Yedo esta tarde. Certifique-se de que esteja
tudo pronto.
- Sim, certamente. Dentro de quanto tempo iremos à
luta?
- Muito em breve. Na noite passada recebi notícias de que
Ishido e o herdeiro partiriam de Osaka para revistar os exércitos.
Portanto agora está resolvido.
- Por favor, perdoe-me por não poder voar até Osaka como
Tetsu-ko e matá-lo, e a Kiyama e a Onoshi, e resolver todo esse
problema sem ter que incomodá-lo.
-- Obrigado, meu filho. - Toranaga não se deu ao trabalho
de revelar a ele os monstruosos problemas que teriam que ser
solucionados antes que tais mortes pudessem tornar-se um fato.
Correu os olhos ao seu redor. Todos os falcoeiros estavam prontos. E os guardas. Chamou o mestre de caça para perto de si.
- Primeiro vou até o acampamento, depois tomaremos a estrada
costeira por quatro ris para o norte.
- Mas os batedores já se encontram nas colinas. . . - O
mestre de caça engoliu o resto da queixa e tentou se recompor.
- Por favor, desculpe a minha. ha, devo ter comido alguma
coisa estragada, senhor.
- É o que parece. Talvez você devesse passar a sua responsabilidade a outro. Talvez esteja com o raciocínio afetado, sinto
muito - disse Toranaga. Se eu não estivesse usando a caçada
1198
como um disfarce, teria substituído o mestre de caça. - Hein?
- Sim, sinto muito, senhor - disse o velho samurai. -
Permita-me perguntar, há, o senhor gostaria de caçar nas áreas
que escolheu a noite passada ou gostaria, ha, gostaria de caçar
ao longo da costa?
- Ao longo da costa.
- Certamente, senhor. Por favor, com licença, vou providenciar a alteração. - O homem saiu correndo. Toranaga manteve os olhos nele. É tempo de que ele se aposente, pensou sem
maldade. Então notou Omi aproximando-se dos estábulos com
um jovem samurai ao seu lado, que mancava muito, um cruel
ferimento de faca ainda lívido no rosto, resultado do combate
em Osaka.
- Ah, Omi-san! - Retribuiu-lhes a saudação. É esse o
sujeito?
- Sim, senhor.
Toranaga chamou os dois à parte e interrogou o samurai
habilmente. Fez isso por cortesia para com Omi, já tendo chegado
às mesmas conclusões quando conversara com o homem na primeira noite, assim como fora polido com o Anjin-san. perguntando o que continha a carta de Mariko, embora já soubesse o que
Mariko escrevera.
- Mas, por favor, coloque com as suas próprias palavras,
Mariko-san - dissera ele antes que ela partisse de Yedo para
Osaka.
-- Devo entregar o navio dele ao inimigo dele, senhor?
- Não, senhora dissera ele, enquanto os olhos dela se
enchiam de lágrimas. - Não. Repito: você vai sussurrar ao Tsukku-san os segredos que me contou, imediatamente aqui em Yedo,
depois ao sumo sacerdote e a Kiyama em Osaka, e dizer a todos
que sem o navio o Anjin-san nao é ameaça para eles. E escreverá
a carta ao Anjin-san conforme sugeri, agora.
- Eles destruirão o navio.
- Tentarão fazer isso. Claro que pensarão na mesma resposta por si mesmos, portanto, na realidade, você não estará revelando nada, neh?
- Pode proteger o navio dele, senhor?
- Será guardado por quatro mil samurais.
- Mas se tiverem êxito... o Anjin-san não vale nada sem
o navio. Rogo pela vida dele.
- Não é preciso, Mariko-san. Garanto-lhe que ele é valioso
para mim, com ou sem um navio. Prometo-lhe. Diga-lhe também,
1199
na carta, que, se o navio dele se perder, que por favor construa
outro.
-- O quê?
- Você me disse que ele pode fazer isso, neh? Tem certeza?
Se eu lhe der todos os carpinteiros e ferreiros?
- Oh, sim. Oh, como o senhor é inteligente! Oh, sim, ele
disse muitas vezes que é uni construtor de navios.. .
- Tem toda a certeza, Mariko-san?
- Sim, senhor.
- Bom.
- Então o senhor pensa que os padres cristãos terão êxito,
mesmo contra quatro mil homens?
- Sim. Sinto muito, mas os cristãos nunca deixarão o navio
intacto, ou a ele mesmo vivo, enquanto o navio estiver flutuando
e pronto para zarpar. E uma ameaça grande demais para eles.
Esse navio está condenado, portanto não há mal em entregá-lo
a eles. Mas você e eu sabemos e devemos saber que a única
esperança do Anjin-san é construir outro navio. Sou o único que
pode ajudá-lo a fazer isso. Resolva Osaka para mim e providenciarei para que ele construa o seu navio.
Eu disse a verdade a ela, pensou Toranaga ali no amanhecer
em Yokohama, por entre o odor de cavalos, excremento e suor,
seus ouvidos mal ouvindo agora o samurai ferido e Omi, todo o
seu ser entristecido por Mariko. A vida é tão triste, disse a si
mesmo, cansado dos homens, de Osaka, de jogos, que causavam
tanto sofrimento à existência, por maiores que fossem os prêmios
a atingir.
- Obrigado por me dizer, Kosami -- disse ele, quando o
samurai terminou. -- Agiu muito hem. Por favor, venha comigo.
Vocês dois.
Toranaga voltou para junto da sua égua e fê-la ajoelhar uma
última vez. Desta vez ela choramingou, mas ele não apertou
mais a cilha. - Cavalos são muito piores do que homens em
traição - disse, a ninguém em particular, e saltou para a sela
e saiu a galope, seguido de seus guardas, Omi, e Kosami.
No acampamento, parou. Buntaro estava lá, ao lado de Yabu,
Hiro-matsu e Sudara, este com um peregrinos no punho. Saudaram-.no. - Bom dia -- disse ele jovialmente, chamando Omi
com um gesto a participar da conversa, mas afastando todos os
demais. -- Está pronto, meu filho?
-- Sim, Pai -- disse Sudara. - Mandei alguns dos meus
12.00
homens para as montanhas, a fim de verificarem que os batedores
sejam perfeitos para o senhor.
- Obrigado, mas decidi caçar ao longo da costa.
Imediatamente Sudara chamou um dos guardas e mandou-o
a galope para trazer os homens de volta das colinas e conduzi-los
para a costa. - Sinto muito, senhor, eu deveria ter pensado nisso
e estar preparado. Por favor, desculpe-me.
- Sim. Então, Hiro-matsu, como vai o treinamento?
Hiro-matsu, a espada inevitavelmente frouxa nas mãos, fez
uma carranca. - Ainda acho que isso é desonroso e desnecessário. Logo seremos capazes de esquecê-lo. Mijaremos em cima
de Ishido sem este tipo de traição.
- Por favor, desculpe-me - disse Yabu -, mas sem estas
armas e esta estratégia, Hiro-matsu-san, perderemos. Esta é uma
guerra moderna, deste modo temos uma chance de vencer. -Olhou para Toranaga, que ainda não desmontara. - Fui informado durante a noite de que Jikkyu morreu.
- Tem certeza? - Toranaga fingiu surpresa. Obtivera a
informação secreta no dia em que partira de Mishima.
- Sim, senhor. Parece que ele esteve doente algum tempo.
Meu informante relata que ele morreu há dois dias -- disse
Yabu, regozijando-se abertamente. - O herdeiro é o filho dele,
Hik-,ju.
- Aquele jovenzinho enfatuado? - disse Buntaro, com
desdém.
- Sim. Concordo que ele não passa de um filhote. -
Yabu parecia várias polegadas mais alto do que o habitual.
Senhor, isso não abre a estrada meridional? Por que não atacar
pela estrada Tokaido imediatamente? Com a velha raposa morta,
Izu está segura agora, e Suruga e Totomi estão tão indefesas
quanto um atum encalhado. Neh?
Toranaga desmontou pensativo. - Bem? - perguntou a
Hiro-matsu calmamente.
O velho general respondeu imediatamente: - Se pudéssemos
dominar a estrada até o passo de Utsunoya e todas as pontes, e
chegar à vertente Tenryu rapidamente - com todas as nossas
comunicações garantidas -, retalharíamos o baixo-ventre de Ishido. Poderíamos conter Zataki nas montanhas, reforçar o ataque
pela Tokaido e investir contra Osaka. Seríamos invencíveis.
-- Enquanto o herdeiro comandar os exércitos de Ishido
- disse Sudara -, poderemos ser vencidos.
- Não concordo - disse Hiro-matsu.
1201
- Nem eu, sinto muito - disse Yabu.
- Mas eu concordo - disse Toranaga, tão inexpressivo e
grave quanto Sudara. Ainda não lhes falara sobre o possível
acordo de Zataki em trair Ishido quando o momento fosse oportuno. Por que deveria lhes dizer? pensou. Não é um fato ainda.
Mas como é que você propõe pôr em prática o seu acordo
solene com o seu meio irmão, casando-o com Ochiba se ele o
apoiar, e ao mesmo tempo casar você mesmo com Ochiba, se for
esse o preço dela? É uma pergunta razoável, disse-se ele. Mas é altamente improvável que Ochiba traia Ishido. Se o fizesse e esse
fosse o preço, a resposta seria simples: meu irmão teria que se
curvar ao inevitável.
Viu-os todos a olhá-lo. - O que é?
Houve um silêncio. Então Buntaro disse: - O que acontece,
senhor, quando nos opomos à bandeira do herdeiro?
Nenhum deles jamais formulara essa pergunta formalmente,
diretamente e publicamente. - Se isso acontecer, eu perco -
disse Toranaga. - Cometerei seppuku e aqueles que honram
o testamento do táicum e a inconteste herança legal do herdeiro
terão que se submeter com humildade, imediatamente, ao seu
perdão. Os que não o fizerem não terão honra. Neh?
Todos assentiram. Então ele se voltou para Yabu para concluir o negócio que estava à mão, e tornou-se cordial de novo.
- Entretanto, ainda não estamos nesse campo de batalha, portanto continuamos conforme planejamos. Sim, Yabu-sama, a estrada meridional é possível agora. De que morreu Jikkyu?
- De doença, senhor.
- Uma doença de quinhentos kokus?
Yabu riu, mas interiormente ficou furioso de que Toranaga
houvesse rompido a sua rede de segurança. - Sim - disse -,
eu presumiria que sim, senhor. Meu irmão lhe contou? - Toranaga assentiu e pediu-lhe que explicasse aos demais. Yabu aquiesceu, não descontente, pois era um estratagema inteligente, e contou-lhes como Mizuno, seu irmão, passara o dinheiro proveniente
do Anjin-san a um ajudante de cozinheiro que fora introduzido
na cozinha particular de Jikkyu.
- Barato, neh? - disse Yabu alegremente. - Quinhentos
kokus pela estrada meridional?
Hiro-matou disse rigidamente a Toranaga: - Por favor,
desculpe-me, mas acho essa história repugnante.
Toranaga sorriu. - Traição é uma arma de guerra, neh?
- Sim. Mas não de um samurai.
1202
Yabu indignou-se. - Sinto muito, Senhor Hiro-matsu, mas
presumo que o senhor não tenha tido a intenção de me insultar?
- Ele não teve a intenção. Teve, Hiro-matsu? - disse Toranaga.
- Não, senhor - replicou o velho general. - Por favor,
desculpe-me.
- Veneno, traição, deslealdade, assassinato sempre foram
armas de guerra, amigo velho - disse Toranaga. - Jikkyu era
um inimigo e um imbecil. Quinhentos kokus pela estrada meridional não é nada! Yabu-sama serviu-me bem. Aqui e em Osaka.
Neh, Yabu-san?
- Sempre tentei servi-lo com lealdade, senhor.
- Sim, então, por favor, explique por que matou o Capitão
Sumiyori antes do ataque ninja - disse Toranaga.
O rosto de Yabu não se alterou. Estava usando sua espada
Yoshitomo, a mão, como sempre, frouxa sobre o punho da arma.
- Quem diz isso? Quem me acusa disso, senhor?
Toranaga apontou para o grupo de marrons a quarenta passos de distância. - Aquele homem! Por favor, venha aqui,
Kosami-san. - O jovem samurai desmontou, avançou coxeando
e curvou-se.
Yabu cravou-lhe os olhos. - Quem é você, camarada?
- Sokura Kosami, da Décima Legião, designado para a
guarda pessoal da Senhora Kiritsubo em Osaka, senhor - disse
o jovem. - O senhor me pôs de guarda à porta dos seus aposentos - e de Sumiyori-san -, na noite do ataque ninja.
- Não me lembro de você. Atreve-se a dizer que matei
Sumiyori?
O jovem hesitou. Toranaga disse: Diga-lhe!
Kosami disse num fôlego: - Só tive tempo, senhor, antes
de os ninfas caírem em cima de nós, de abrir a porta e gritar
um aviso a Sumiyori-san, mas ele não se moveu. - Voltou-se
para Toranaga, estremecendo sob o olhar de todos eles. - Ele...
ele tinha sono leve, senhor, e foi só um momento depois de.. .
isso é tudo, senhor.
- Você entrou no quarto? Sacudiu-o? - pressionou Yabu.
- Não, senhor, oh, não, senhor, os ninfas chegaram tão
depressa, que recuamos imediatamente e contra-atacamos assim
que pudemos, foi como eu disse...
Yabu olhou para Toranaga. - Sumiyori-san estivera em
serviço durante dois dias. Estava exausto - todos nós estávamos.
O que isso prova? - perguntou a todos eles.
1203
- Nada - disse Toranaga, ainda cordial. - Mas mais
tarde, Kosami-san, você voltou ao quarto. Neh?
- Sim, senhor, Sumiyori-san ainda estava deitado nos futons
do jeito que eu o vira e ... e o quarto não estava em desordem,
em absoluto, senhor, e ele tinha sido esfaqueado, senhor, esfaqueado nas costas uma vez. Na hora pensei que tivessem sido os
ninfas e mais nada, até que Omi-san me interrogasse.
- Ah! - Yabu voltou os olhos para o sobrinho, toda a
sua hara centrada no seu traidor, medindo a distância entre eles.
- Então você o interrogou?
- Sim, senhor - replicou Omi. - O Senhor Toranaga
pediu-me que reexaminasse todas as histórias. Essa foi uma das
mais estranhas que achei que poderiam ser trazidas à atenção
do nosso amo.
- Uma das mais estranhas? Há outra?
- Seguindo as ordens do Senhor Toranaga, interroguei os
criados que sobreviveram ao ataque, senhor. Havia dois. Sinto
muito, mas ambos disseram que o senhor atravessou os aposentos
deles com um samurai e retornou pouco depois, sozinho, gritando:
"Ninjas"! Então eles ...
- Eles nos atacaram e mataram o infeliz com uma lança e
uma espada, e quase me abateram. Tive que recuar para dar o
alarma. - Yabu voltou-se para Toranaga, cuidadosamente pondo
os pés numa posição melhor para o ataque. - Já lhe tinha contado isso, senhor, tanto pessoalmente quanto no relatório escrito.
O que criados têm a ver comigo?
- Bem, Orni-san? - perguntou Toranaga.
- Sinto muito, Yabu-sama - disse Omi -, mas ambos o
viram abrir os ferrolhos de uma porta secreta no porão e ouviram-no dizer aos ninjas: "Sou Kasigi Yabu". Foi isso o que deu
tempo a eles de se esconderem e não serem massacrados.
A mão de Yabu moveu-se uma fração. Instantaneamente
Sudara saltou para a frente de Toranaga para protegê-lo e no
mesmo momento a espada de Hiro-matsu disparou na direção do
pescoço de Yabu.
- Pare! - ordenou Toranaga.
A espada de Hiro-matsu parou, seu controle miraculoso.
Yabu não fizera movimento algum. Encarou-os, depois riu, insolente. - Serei eu um ronin imundo que atacaria seu suserano?
Este é Kasigi Yabu, senhor de Izu, Suruga e Totomi. Neh? -
Olhou diretamente para Toranaga. - De que sou acusado, senhor? De ajudar ninjas? Ridículo! O que têm as fantasias de
1204
criados a ver comigo? São mentirosos! Assim como este sujeito,
que insinua uma coisa que não pode provar e eu não posso justificar!
- Não há provas, Yabu-sarna - disse Toranaga. - Concordo integralmente. Não há provas em absoluto.
- Yabu-sama, o senhor fez essas coisas? - perguntou
Hiro-matsu.
- Claro que não!
- Mas eu acho que fez - disse Toranaga -, portanto
todas as suas terras estão confiscadas. Por favor, rasgue o ventre
hoje. Antes do meio-dia.
A sentença era decisiva. Era o momento supremo para o
qual Yabu estivera preparado a vida toda.
Karma, pensou, o cérebro trabalhando a uma velocidade frenética. Não há nada que eu possa fazer, a ordem é legal, Toranaga é meu suserano, eles podem me tirar a cabeça ou posso
morrer com dignidade. De um jeito ou de outro estou morto.
Omi traiu-me, mas esse é o meu karma. Os criados deviam ter
sido todos mortos, conforme o plano, mas dois sobreviveram, e
esse é o meu karma. Seja digno, disse-se ele, reunindo coragem.
Pense com clareza e seja responsável.
- Senhor - começou ele, com uma demonstração de audácia -, primeiro, sou inocente desses crimes, Kosami está enganado, e os criados são mentirosos. Segundo, sou o melhor general
de batalha que o senhor tem. Imploro pela honra de comandar
o ataque pela Tokaido - ou o primeiro lugar na primeira batalha -, de modo que minha morte seja de uso direto.
- É uma boa sugestão, Yabu-san - disse Toranaga cordialmente -, e concordo sinceramente que o senhor é o melhor
general para o Regimento de Mosquetes, mas, sinto muito, não
confio no senhor. Por favor, rasgue o ventre antes do meio-dia.
Yabu controlou a fúria cegante e satisfez sua honra como
samurai e como líder do seu clã com a totalidade do seu autosacrifício. - Formalmente absolvo o meu sobrinho Kasigi Omisan de qualquer responsabilidade pela minha traição e formalmente o designo meu herdeiro.
Toranaga ficou tão surpreso quanto todos os demais.
- Muito bem - disse. - Sim, acho que isso é muito
sábio. Concordo.
- Izu é o feudo hereditário dos Kasigi. Lego-o a ele.
- Izu já não é seu para dá-lo. O senhor é meu vassalo, neh?
1205
Izu é uma das minhas províncias, a ser dada conforme eu
desejar, neh?
Yabu encolheu os ombros. - Lego-o a ele, ainda assim .. .
- Riu. - É um favor de vida. Neh?
- Pedir é justo. Sua solicitação está recusada. E, Yabusan, todas as suas últimas ordens estão sujeitas à minha aprovação. Buntaro-san, você será a testemunha formal. Agora, Yabusan, a quem deseja como assistente?
- Kasigi Omi-san.
Toranaga olhou para Omi. Omi curvou-se, o rosto sem cor.
- A honra será minha - disse.
- Bom. Então está tudo arranjado.
- E o ataque pela Tokaido? - disse Hiro-matsu.
- Estaremos mais seguros atrás das nossas montanhas. -
Jovialmente Toranaga retribuiu-lhes o cumprimento, montou, e
partiu a trote. Sudara fez um gesto polido de cabeça e seguiu-o.
Assim que Toranaga e Sudara se encontraram fora de alcance,
Buntaro e Hiro-matsu se descontraíram, mas Omi não, e nenhum
deles tirou os olhos do braço da espada de Yabu.
- Onde quer que seja, Yabu-sama? - perguntou Buntaro.
- Aqui, ali, na praia, ou num monte de bosta - para
mim é tudo a mesma coisa. Não preciso de vestes cerimoniais.
Mas, Omi-san, você não dará o golpe até que eu tenha feito dois
cortes.
- Sim, senhor.
- Com a sua permissão, Yabu-sama, também serei testemunha - disse Hiro-matsu.
- Por que não se preocupa com as suas hemorróidas?
O general indignou-se e disse a Buntaro: - Por favor, mande me chamar quando ele estiver pronto.
Yabu cuspiu. - Já estou pronto. O senhor está?
Hiro-matsu girou sobre os calcanhares.
Yabu pensou um momento, depois tirou a espada Yoshitomo,
embainhada, do sash. - Buntaro-san, talvez pudesse me fazer um
favor. Dê isto ao Anjin-san. - Ofereceu a espada, depois franziu
o cenho. - Pensando melhor, se não for incômodo, quer, por
favor, mandar chamá-lo, para que eu possa entregar-lhe pessoalmente?
- Certamente.
- E, por favor, traga aquele padre fedorento também, de
modo que eu possa conversar diretamente com o Anjin-san.
1206
- Bom. Que providências o senhor deseja que sejam tomadas?
- Só quero papel, tinta, um pincel para o meu testamento
e o meu poema de morte, e dois tatamis - não há razão para
eu machucar os joelhos ou me ajoelhar no pó, como um camponês
fedorento. Neh? - acrescentou Yabu, com bravata.
Buntaro dirigiu-se aos outros samurais, que mudavam de
posição de um pé para o outro, com uma excitação contida.
Negligentemente Yabu sentou-se de pernas cruzadas e esgaravatou
os dentes com um talo de grama. Omi acocorou-se perto, cautelosamente longe do alcance da espada.
-- Iiiiih! - disse Yabu -, estive tão perto do sucesso! -
Esticou as pernas e martelou-as contra a terra num repentino
acesso de raiva. - Iiiiiih, tão perto! Eh, karma, neh? Karmna!
- Depois riu sonoramente, pigarreou e cuspiu, orgulhoso de
ainda ter saliva na boca. - Isto em todos os deuses, vivos, mortos
ou que ainda vão nascer! Mas, Omi-san, morro feliz. Jikkyu está
morto e quando eu cruzar o último rio e o vir esperando lá,
rilhando os dentes, poderei cuspir-lhe no olho para sempre.
- Prestou um grande serviço ao Senhor Toranaga, senhor -
disse Omi, falando com sinceridade, embora o observasse como
um falcão. - O senhor tinha razão, e Punho de Aço e Sudara
estão errados. Poderíamos atacar imediatamente - as armas nos
farão atravessar.
- Aquele velho monte de esterco! Imbecil! - Yabu riu de
novo. - Você o viu ficar roxo quando eu mencionei as hemorróidas dele? Ah! Pensei que elas iam explodir naquela hora.
Samurai? Sou mais samurai do que ele! Vou mostrar a ele! Você
não dará o golpe até que eu lhe dê a ordem!
- Posso humildemente agradecer-lhe por me conceder essa
honra, e também por me fazer seu herdeiro? Formalmente juro
que a honra dos Kasigi estará segura nas minhas mãos.
- Se eu não pensasse isso, não teria sugerido. - Yabu
baixou a voz. - Você agiu certo me traindo a Toranaga. Eu teria
feito o mesmo se fosse você, embora seja tudo mentira. É a
desculpa de Toranaga. Ele sempre teve inveja das minhas proezas em combate, e da minha compreensão das armas de fogo
e do valor do navio. É tudo idéia minha.
- Sim, senhor, eu me lembro.
- Você salvará a família. É tão astuto quanto um rato
velho e sarnento. Conseguirá Izu de volta e mais - é tudo o
1207
que importa agora, e vai conservá-lo para os seus filhos. Você
compreende as armas. E Toranaga. Neh?
- Juro que tentarei, senhor.
Os olhos de Yabu deram com a mão de Omi sobre a espada,
notando-lhe a postura alertamente defensiva. - Acha que vou
atacá-lo?
- Sinto muito, claro que não, senhor.
- Fico contente de que você esteja em guarda. Meu pai
era como você. Sim, você é muito parecido com ele. -- Sem
fazer qualquer movimento brusco, colocou as duas espadas no
chão, fora de alcance. - Pronto! Agora estou indefeso. Há alguns
momentos queria vé-lo morto, mas agora não. Agora você não
precisa me temer.
- É sempre necessário temê-lo, senhor.
Yabu soltou uma risadinha e chupou outro talo de grama.
Depois atirou-o fora. - Ouça, Omi-san, estas são minhas ordens
como senhor dos Kasigi. Você levará meu filho para a sua casa
e o usará, como ele é digno de ser usado. Depois: encontre bons
maridos para a minha esposa e a minha consorte, e agradeça-lhes
profundamente por me terem servido tão bem. Quanto ao seu
pai, Mizuno: ordeno-lhe que cometa seppuku imediatamente.
- Posso solicitar para ele a alternativa de raspar a cabeça
e tornar-se monge?
- Não. Ele é imbecil demais, você nunca poderá confiar
nele - que atrevimento o dele, passar meus segredos a Toranaga!
- e estará sempre no seu caminho. Quanto à sua mãe . . . - Ele
arreganhou os dentes - ... fica ordenada a raspar a cabeça,
tornar-se monja, entrar num mosteiro fora de Izu e passar o
resto da vida dizendo orações pelo futuro dos Kasigi. Budista ou
xintoísta - prefiro xintoísta. Você concorda, xintoísta?
- Sim, senhor.
- Bom. Desse modo - acrescentou Yabu com um deleite
malicioso - ela parará de distraí-]o dos assuntos Kasigi com
seus lamentos constantes.
- Será feito.
- Bom. Ordeno-lhe que vingue as mentiras levantadas contra mim por Kosami e aqueles criados traiçoeiros. Cedo ou tarde,
não me importa, desde que você o faça antes de morrer.
- Obedecerei.
- Esqueci de alguma coisa?
Cuidadosamente Omi se certificou de que não estavam sendo
ouvidos. -- E quanto ao herdeiro? - perguntou com cautela. -
Quando o herdeiro estiver em campo contra nós, perderemos, neh?
- Pegue o Regimento de Mosquetes, abra caminho à força
e mate-o, diga Toranaga o que disser. Yaemon é o seu alvo
primordial.
A minha conclusão também era essa. Obrigado.
- Bom. Mas melhor do que esperar todo esse tempo é
colocar a cabeça dele a prêmio agora, secretamente, entre os
ninjas... ou os Amidas.
Como os encontro? - perguntou Omi, um tremor de voz.
A bruxa velha, Gyoko, a Mama-san, é uma das que sabem como.
- Ela?
- Sim. Mas cuidado com ela, e com os Amidas. Não os
use levianamente, Omi-san. Nunca a toque, sempre a proteja. Ela
sabe segredos demais e o pincel de escrita é um braço que se
alonga da sepultura. Foi consorte não oficial de meu pai durante
um ano... pode até ser que o filho dela seja meu meio irmão.
Eh, cuidado com ela, sabe segredos demais.
- Mas onde arrumo dinheiro?
- Isso é problema seu. Mas arrume. Em qualquer lugar,
de qualquer modo.
- Sim. Obrigado. Obedecerei.
Yabu aproximou-se mais. Imediatamente Omi se preparou,
desconfiado, a espada quase fora da bainha. Yabu sentiu-se
satisfeito de, mesmo indefeso, ainda ser um homem contra quem
se acautelar. -- Enterre este segredo muito profundamente. E
ouça, sobrinho, seja uni ótimo amigo do Anjin-san. Tente controlar a marinha que ele trará uni dia. Toranaga não compreende
o valor real do Anjin-san, mas está certo em ficar atrás das
montanhas. Isso dá a ele e a você tempo. Temos que sair da
terra e nos pormos ao largo - nossos tripulantes nos navios
deles -, com Kasigi no comando supremo. Os Kasigi devem
se pôr ao mar, para comandar o mar. Ordeno.
- Sim... oh, sim - disse Omi. - Confie em mim. Isso
acontecerá.
- Bom. Por último, jamais confie em Toranaga.
Orni disse com toda a sinceridade: -- Não confio, senhor.
Nunca confiei. E nunca confiarei.
- Bom. E quanto a esses imundos mentirosos, não se esqueça, trate deles. E de Kosami. - Yabu suspirou, em paz con1208
1209
sigo. - Agora por favor, com licença, preciso pensar no meu
poema de morte.
Omi levantou-se, recuou e, quando estava bem afastado,
curvou-se e se afastou mais vinte passos. Em meio à segurança
dos seus próprios guardas, sentou-se de novo e começou a esperar.
Toranaga e sua comitiva trotavam ao longo da estrada costeira que contornava a ampla baía, o mar chegando quase até a
estrada, do lado direito. Ali a terra era baixa e pantanosa, com
muitos charcos. Algumas ris ao norte a estrada se unia à Tokaido,
a artéria principal. Mais vinte ris ao norte ficava Yedo.
Toranaga tinha cem samurais consigo, dez falcoeiros e dez
aves sobre o punho enluvado dos falcoeiros. Sudara tinha vinte
guardas e três aves, e cavalgava como vanguarda.
- Sudara! - chamou Toranaga, como se fosse uma idéia
súbita. - Pare na próxima estalagem. Quero comer alguma
coisa!
Sudara acenou, dando a entender que ouvira, e prosseguiu
a galope. Quando Toranaga chegou, criadas curvavam-se e sorriam, o estalajadeiro fazendo mesuras com toda a sua gente.
Guardas cobriam o norte e o sul, e suas bandeiras estavam orgulhosamente plantadas.
- Bom dia, senhor, por favor, o que posso lhe servir para
comer? - perguntou o estalajadeiro. - Obrigado por honrar a
minha pobre hospedaria.
- Chá, e um pouco de talharim com soja, por favor.
- Sim, senhor.
A comida foi trazida numa bela tigela quase imediatamente,
cozida exatamente do modo como ele gostava, já que Sudara
prevenira o estalajadeiro. Sem cerimônia, Toranaga se acocorou
numa varanda e consumiu com prazer o prato simples, camponês,
e observou a estrada à frente. Outros hóspedes se curvaram e
foram tratar de seus próprios negócios, contentes, orgulhosos de
se encontrarem na mesma hospedaria que o grande daimio. Sudara
inspecionou os postos avançados, certificando-se de que estava
tudo perfeito. - Onde estão os batedores agora? - perguntou
ao mestre de caça.
- Alguns ao norte, alguns ao sul, e tenho homens extras nas
colinas ali. - O velho samurai apontou para o interior na direção
de Yokohama, infeliz e transpirando. Por favor, desculpe-me,
1210
mas o senhor tem alguma idéia de aonde nosso amo gostaria
de ir?
- Nenhuma, absolutamente. Mas não cometa mais enganos
hoje.
- Sim, senhor.
Sudara terminou sua ronda, depois apresentou-se a Toranaga.
- Está tudo satisfatório, senhor? Há alguma coisa que eu possa
fazer pelo senhor?
- Não, obrigado. - Toranaga terminou a tigela e tomou
o resto da sopa. Depois disse numa voz inexpressiva: Você
estava correto no que disse sobre o herdeiro.
- Por favor, desculpe-me, tive medo de talvez tê-lo ofendido, sem intenção.
- Você estava certo - por que eu ficaria ofendido? Quando o herdeiro se erguer contra mim, o que você fará?
- Obedecerei às suas ordens.
- Por favor, mande o meu secretário vir aqui e volte
com ele.
Sudara obedeceu. Kawanabi, o secretário - um ex-samurai
e ex-sacerdote -, que sempre viajava com Toranaga, chegou
rapidamente com a sua caixa de papéis de viagem, tintas, carimbos, e pincéis que se ajustavam no seu cesto de sela.
- Senhor?
- Escreva isto: "Eu, Yoshi Toranaga-noh-Minowara, reemposso meu filho Yoshi Sudara-noh-Minowara como meu herdeiro,
com todas as suas rendas e títulos restituídos".
Sudara curvou-se. - Obrigado, Pai - disse, a voz firme,
mas perguntando a si mesmo: por quê?
- Jure formalmente aceitar todos os meus preceitos, testamentos - e o Legado.
Sudara obedeceu. Toranaga esperou em silêncio até Kawanabi escrever a ordem, depois assinou e tornou-a legal com seu
carimbo, um pequeno pedaço quadrado de marfim com seu
nome esculpido a uma extremidade. Pressionou-o contra a tinta
escarlate quase sólida, depois na base do papel de arroz. A marca
saiu perfeita. - Obrigado, Kawanabi-san, ponha a data de ontem.
É tudo por enquanto.
- Por favor, desculpe, mas o senhor precisará de mais cinco
cópias, para tornar a sua sucessão inviolável: uma para o Senhor
Sudara, uma para o conselho de regentes, uma para a Casa de
Registros, uma para os seus fichários pessoais, e outra para os
arquivos.
1211
- Faça-as imediatamente. E dê-me uma cópia extra.
- Sim, senhor. - O secretário deixou-os. Toranaga olhou
para Sudara e estudou o rosto estreito, inexpressivo. Quando
fizera o anúncio deliberadamente repentino, Sudara não deixara
transparecer nada, nem no rosto nem nas mãos. Nenhum contentamento, gratidão, orgulho - nem mesmo surpresa, e isso o
entristeceu. Mas, pensou Toranaga, por que ficar triste, você tem
outros filhos que sorriem, riem, cometem erros, gritam, enfurecem-se, "travesseiram" e têm muitas mulheres. Filhos normais.
Este filho é para seguir você, para comandar depois que você
estiver morto, para manter os Minowara unidos e passar o Kwanto
e o poder a outros Minowara. Para ser gelado e calculista, como
você. Não, não como eu, disse-se ele com sinceridade. Eu posso
rir às vezes, ter compaixão às vezes, e gosto de peidar e "travesseirar", enfurecer-me, dançar, jogar xadrez, representar, e algumas
pessoas me alegram, como Naga, Kiri, Chano e o Anjin-san, e
gosto de caçar e vencer, vencer, vencer. Nada o alegra, Sudara,
sinto muito. Nada. Exceto a sua esposa, a Senhora Genjiko. A
Senhora Genjiko é o único elo fraco na sua corrente.
- Senhor? - perguntou Sudara.
- Eu estava tentando me lembrar de quando o vi rir pela
última vez.
- Deseja que eu ria, senhor?
Toranaga meneou a cabeça, sabendo que educara Sudara
para ser o filho perfeito para aquilo que tinha que ser feito.
- Quanto tempo você levaria para se certificar de que Jikkyu
está realmente morto?
- Antes de deixar o acampamento, enviei uma mensagem
cifrada de alta prioridade para Mishima, para o caso de o senhor
já não saber se isso era verdade ou não, Pai. Terei uma resposta
dentro de três dias.
Toranaga bendisse os deuses por ter tido conhecimento antecipado da conspiração contra Jikkyu através de Kasigi Mizuno, e
a notícia da morte desse inimigo. Por um momento reexaminou
seu plano e não conseguiu encontrar falha alguma nele. Então,
levemente nauseado, tomou a decisão. - Ordene aos Décimo
Primeiro, Décimo Sexto, Nonagésimo Quarto e Nonagésimo
Quinto regimentos, em Mishima, que se ponham em alerta imediatamente. Dentro de quatro dias lance-os pela Tokaido.
- Céu Carmesim? - perguntou Sudara, desconcertado. -
O senhor vai atacar?
- Sim. Não vou esperar que venham contra mim.
1212
- Então Jikkyu está morto?
- Sim.
- Bom - disse Sudara. - Posso sugerir-lhe que acrescente o Vigésimo e o Vigésimo Terceiro?
- Não. Dez mil homens devem ser suficientes - com surpresa. Ainda tenho que defender toda a minha fronteira, para
o caso de fracasso, ou de uma armadilha. E também há Zataki
a conter.
- Sim - disse Sudara.
- Quem deve comandar o ataque?
- O Senhor Hiro-matsu. É uma campanha perfeita para ele.
- Por quê?
- É direto, simples, conservador e dá ordens claras, Pai.
Será perfeito para essa campanha.
- Mas já não é conveniente como comandante-chefe?
- Sinto muito, Yabu-san tinha razão, as armas de fogo
mudaram o mundo. Punho de Aço está ultrapassado agora.
- Quem, então?
- Apenas o senhor. Até depois da batalha, aconselho-o a
não ter ninguém entre o senhor e a batalha.
- Considerarei isso - disse Toranaga. - Agora, vá a
Mishima. Você preparará tudo. A força de assalto de Hiro-matsu
terá vinte dias para atravessar o rio Tenryu e garantir a estrada
Tokaido.
- Por favor, desculpe-me, permita-me sugerir que o objetivo final deles seja um pouco adiante, o cume do Shiomi. Dê-lhes
trinta dias.
- Não. Se eu der essa ordem, alguns homens atingirão o
cume. Mas a maioria será morta e não será capaz de desferir o
contra-ataque, ou acossar o inimigo enquanto nossas forças se
retiram.
- Mas certamente o senhor enviará reforços imediatamente
nos calcanhares deles?
- Nosso ataque principal atravessa as montanhas de Zataki.
Isto é uma simulação. - Toranaga estava avaliando o filho com
todo o cuidado. Mas Sudara não revelou nada, nem surpresa, nem
aprovação, nem desaprovação.
- Ah. Desculpe. Por favor, desculpe-me, senhor.
- Com Yabu morto, quem deve comandar as armas de
fogo?
- Kasigi Omi.
- Por quê?
1213
- Ele as compreende. Mais que isso, ele é moderno, muito
corajoso, muito inteligente, muito paciente e também muito
perigoso, mais perigoso do que o tio. Aconselho-o, se o senhor
vencer e ele sobreviver, a encontrar alguma desculpa para mandálo para o Vazio.
- Se eu vencer?
- Céu Carmesim sempre foi um último plano. O senhor
disse isso cem vezes. Se formos batidos na Tokaido, Zataki descerá com tudo para as planícies. As armas não nos ajudarão
então. É um último plano. O senhor jamais gostou de últimos
planos.
- E o Anjin-san? O que aconselha a respeito dele?
- Concordo com Omi-san e com Naga-san. Ele deve ser
refreado. O resto dos homens dele não representam nada - são
etas e logo se devorarão entre si, portanto não são nada. Aconselho que todos os estrangeiros sejam contidos ou expulsos. São
uma praga - a ser tratada como tal.
- Então não haverá comércio de seda. Neh?
- Se o preço fosse esse, eu pagaria. Eles são uma praga.
- Mas precisamos ter seda e, para nos proteger, devemos
aprender sobre eles, aprender o que sabem, neh?
- Eles deveriam ser confinados em Nagasaki, sob guarda
muito cerrada, e seu número estritamente limitado. Ainda poderiam comerciar uma vez por ano. Dinheiro não é o motivo essencial deles? Não é o que diz o Anjin-san?
- Ah, então ele é útil?
- Sim. Muito. Ensinou-nos a sabedoria dos editos de expulsão. O Anjin-san é muito sábio, muito corajoso. Mas é um brinquedo. Ele o diverte, senhor, como Tetsu-ko, portanto é valioso,
embora continue sendo um brinquedo.
- Obrigado pelas suas opiniões. Assim que se desencadear
o ataque, você regressará a Yedo e esperará outras ordens. -
Disse-o deliberadamente. Zataki ainda detinha a Senhora Genjiko,
e o filho e três filhas do casal, como reféns na sua capital,
Takato. Por solicitação de Toranaga, Zataki concedera a Sudara
uma permissão de ausência, mas apenas por dez dias, e Sudara
solenemente concordara com o trato e com a volta nesse prazo.
Zataki era famoso pela sua rigidez quanto à honra. Legalmente
ele poderia, e o faria, aniquilar todos os reféns por causa desse
ponto de honra, independentemente de qualquer tratado ou acordo
aberto ou sigiloso. Tanto Toranaga quanto Sudara sabiam que
sem dúvida alguma Zataki faria isso se Sudara não retornasse
1214
conforme o prometido. Você esperará em Yedo por outras
ordens.
- Sim, senhor.
- Parta imediatamente para Mishima.
- Então poupará tempo se eu for por aqui. Sudara
apontou para o entroncamento à frente.
- Sim. Mando-lhe uma mensagem amanhã.
Sudara curvou-se, dirigiu-se para o seu cavalo e, com seus
vinte guardas, partiu.
Toranaga pegou a tigela e comeu um último bocado de talharim, agora frio. - Oh, senhor, sinto muito, deseja mais um
pouco? - disse a jovem criada sem fôlego, acorrendo. Tinha o
rosto redondo, não era bonita, mas esperta e atenta exatamente do jeito como ele gostava que fossem os seus criados e
criadas. - Não, obrigado. Como você se chama?
Yuki, senhor.
Diga ao seu amo que ele faz uni bom talharim, Yuki.
Sim, senhor, obrigada. Obrigada, senhor, por honrar a
nossa casa. Basta estalar os dedos para qualquer coisa que deseje
e o senhor a terá instantaneamente.
Ele piscou para ela, que riu, recolheu a bandeja e saiu apressada. Contendo a impaciência, ele examinou a curva distante na
estrada, depois os arredores. A hospedaria estava em boas condições, as passagens cobertas até o poço limpas e a terra varrida.
Fora, no pátio, e em toda a volta, seus homens esperavam pacientemente, mas ele detectou nervosismo no mestre de caça e resolveu que aquele dia seria o último de serviço ativo do homem.
Se Toranaga estivesse seriamente interessado na caçada em si,
teria dito a ele que voltasse a Yedo agora, dando-lhe unia generosa pensão, e designado outro para o seu lugar.
Essa é a diferença entre mim e Sudara, pensou ele sem
maldade. Sudara não hesitaria. Ordenaria ao homem que cometesse seppuku agora, o que pouparia a pensão e todo o incômodo
posterior, e aumentaria a perícia do substituto. Sim, meu filho,
conheço-o muito bem. Você é muito importante para mim.
E quanto à Senhora Genjiko e os filhos? perguntou-se ele,
trazendo à tona a questão vital. Se a Senhora Genjiko não fosse
irmã de Ochiba - e estimada como irmã favorita -, eu pesarosamente permitiria a Zataki eliminá-los a todos agora e assim
pouparia Sudara de um risco enorme no futuro, se eu morrer
cedo, porque eles são o seu único elo fraco. Mas felizmente
1215
Genjiko é irmã de Ochiba, portanto uma peça importante no
grande jogo, e não tenho que permitir que isso aconteça. Eu
deveria, mas não o farei. Desta vez tenho que arriscar. Portanto
me lembrarei de que Genjiko é valiosa em outros sentidos - é
tão afiada quanto uma espinha de tubarão, faz filhos ótimos, e
é fanaticamente implacável na defesa da prole, assim como Ochiba, com uma enorme diferença: Genjiko-san é leal primeiro a
mim, Ochiba primeiro ao herdeiro.
Então isso está resolvido. Antes do décimo dia, Sudara deve
estar de volta às mãos de Zataki. Uma extensão do prazo? Não,
isso poderia deixar Zataki ainda mais desconfiado do que já está,
o ele é o último homem que quero desconfiado agora. De que
modo Zataki reagirá?
Você foi sábio em designar Sudara. Se houver um futuro,
o futuro estará seguro nas mãos dele e de Genjiko, desde que
sigam o Legado à letra. E a decisão de reempossá-lo agora foi
correta e vai agradar a Ochiba.
Ele já escrevera a carta naquela manhã e a enviaria a ela
na mesma noite, com uma cópia da ordem. Sim, isso lhe removerá uma espinha de peixe da goela, que a estava fazendo sufocar
o que tinha sido deliberadamente cravada ali, há muito tempo,
com essa finalidade. É bom saber que Genjiko é um dos elos
fracos de Ochiba, talvez até o único. Qual é a fraqueza de
Genjiko? Nenhuma. Pelo menos ainda não descobri uma, mas se
houver, descobrirei.
Estava examinando seus falcões. Alguns estavam palrando,
outros se alisando com o bico, todos em boa forma, todos encapuzados, menos Kogo, os grandes olhos amarelos dardejando,
olhando tudo, tão interessado quanto ele próprio.
O que você diria, minha beleza, perguntou Toranaga à ave
em silêncio, o que você diria se eu lhe contasse que devo ser
impaciente e explodir e que o meu ataque principal será ao longo
da Tokaido, e não através das montanhas de Zataki, conforme
disse a Sudara? Você provavelmente diria: por quê? E eu responderia: porque confio em Zataki tanto quanto confio em eu mesmo
poder voar. E eu não posso voar em absoluto. Neh?
Então viu os olhos de Kogo mover-se rapidamente para a
estrada. Semicerrou os olhos para ver à distância e sorriu ao
distinguir os palanquins e os cavalos de bagagem que se aproximavam dobrando a curva.
1216
- Então, Fujiko-san? Como vai?
- Bem, obrigada, senhor, muito bem. - Ela se curvou de
novo e ele notou que ela não sentia dores nas cicatrizes da queimadura. Seus membros agora estavam tão flexíveis como sempre,
e havia um rubor agradável nas suas faces. - Posso perguntar
como está o Anjin-san? - disse ela. - Ouvi dizer que a viagem
de Osaka foi muito ruim, senhor.
- Ele está passando bem agora, com muito boa saúde.
- Oh, senhor, é a melhor notícia que poderia ter me dado.
- Bom. - Ele se voltou para o palanquim seguinte para
saudar Kiku, que sorriu alegremente e cumprimentou-o com
grande afeto, dizendo que estava muito feliz de vê-lo e que sentira muita falta sua. - Faz muito tempo, senhor.
- Sim, por favor, desculpe-me, sinto muito - disse ele,
excitado pela surpreendente beleza e alegria interior dela, apesar
das suas próprias ansiedades opressivas. - Estou muito satisfeito em vê-Ia. - Depois seus olhos foram para a última liteira.
- Ah, Gyoko-san, há quanto tempo - acrescentou, seco como
lenha.
- Obrigada, senhor, sim, renasci agora que estes velhos
olhos tiveram a honra de vê-lo novamente. - A reverência de
Gyoko, que estava cuidadosamente resplandecente, foi impecável,
e ele captou um lampejo mínimo de um sobquimono escarlate,
da seda mais cara. - Ah, como está forte, senhor, um gigante
entre os homens - entoou ela.
- Obrigado. Está com boa aparência, também.
Kiku bateu palmas ante o gracejo e todos riram com ela.
- Ouçam - disse ele, feliz por causa dela -, tomei providências
para que todas vocês fiquem aqui por enquanto. Agora, Fujikosan, por favor, venha comigo.
Tomou Fujiko à parte e, depois de lhe oferecer chá e de
tagarelarem sobre coisas sem importância, foi ao ponto. - Você
concordou com meio ano e eu concordei com meio ano. Sinto
muito, mas devo saber hoje se você mudará o acordo.
O rosto pequeno e quadrado perdeu o atrativo quando a
alegria se esvaneceu. A ponta da sua língua tocou os dentes
agudos um momento. - Como posso mudar o acordo, senhor?
- Muito fácil. Está terminado. Ordeno.
- Por favor, desculpe-me, senhor - disse Fujiko, a voz
sem modulação. - Eu não quis dizer isso. Fiz o acordo espontânea e solenemente diante de Buda, com o espírito do meu
falecido marido e do meu falecido filho. Não pode ser mudado.
1217
- Ordeno que seja.
- Sinto muito, senhor, por favor, desculpe-me, mas então
o bushido me desobriga de obediência ao senhor. O seu contrato
foi igualmente solene, e qualquer alteração tem que ser aceita
por ambas as partes, sem coerção.
- O Anjin-san lhe agrada?
Sou sua consorte. O necessário é que eu agrade a ele.
- Você poderia continuar vivendo com ele se o outro
acordo não existisse?
- A vida com ele é muito, muito difícil, senhor. Todas as
formalidades, a maioria das cortesias, todo tipo de costume que
torna a vida segura, digna, polida e suportável tem que ser
posto de lado, ou contornado, por isso a casa dele não é segura,
não tem wa, não há harmonia para mim. É quase impossível
fazer os criados compreender, ou eu mesma compreender... mas,
sim, eu poderia continuar 'a cumprir o meu dever para com ele.
- Peço-lhe que dê por encerrado o acordo.
- Meu primeiro dever é para com o senhor. Meu segundo
dever é para com o meu marido.
- Minha idéia, Fujiko-san, era que o Anjin-san se casasse
com você. Aí você não seria uma consorte.
- Um samurai não pode servir a dois senhores, nem uma
esposa a dois maridos. Meu dever é para com o meu falecido
marido. Por favor, desculpe-me, não posso mudar.
- Com paciência tudo muda. Logo o Anjin-san saberá
mais dos nossos hábitos e a casa dele também terá wa. Ele
aprendeu incrivelmente desde que...
- Oh, por favor, senhor, não me interprete mal, o Anjinsan é o homem mais extraordinário que já conheci e, oh, sim,
sei que a casa dele logo será uma casa de verdade, mas ... mas,
por favor, desculpe-me, devo cumprir o meu dever. Meu dever
é para com o meu marido, meu único marido... - Esforçou-se
por se controlar. - Deve ser, neh? Deve ser, senhor, ou então
toda... toda a vergonha, o sofrimento, a desonra perdem o
significado, neh? A morte dele, de meu filho, as espadas dele
quebradas e enterradas na aldeia eta... Sem dever para com
ele, todo o nosso bushido não é uma pilhéria imortal?
- Deve responder a uma pergunta, Fujiko-san: o seu dever
para com uma solicitação minha, seu suserano, e para com um
homem surpreendentemente corajoso que está se tornando um
de nós e é seu amo, e - acrescentou, acreditando reconhecer o
rubor no rosto dela - o seu dever para com o filho dele ainda
1218
não nascido, isso tudo não tem precedência sobre um dever
anterior?
- Eu... eu não estou carregando o filho dele, senhor.
- Tem certeza?
- Não, não tenho.
- Está atrasada?
- Sim... mas só um pouco e isso poderia ser...
Toranaga observava e esperava. Pacientemente. Ainda havia
muito a fazer antes que ele pudesse partir a galope e soltar
Tetsu-ko ou Kogo, e sentia-se ávido por esse prazer, mas isso
seria apenas para ele, portanto sem importância. Fujiko era
importante e ele prometera a si mesmo que pelo menos hoje
fingiria ter vencido a guerra, que tinha tempo, podia ser paciente
e resolver assuntos que era seu dever resolver. - Bem?
- Sinto muito, senhor, não.
- Então é não, Fujiko-san. Por favor, desculpe-me por ter
perguntado, mas era necessário. - Toranaga não estava nem
zangado nem satisfeito. A garota estava apenas fazendo o que
era honroso fazer, e ele soubera, desde o momento em que
concordara em fazer o trato com ela, que nunca haveria uma
alteração. É isso o que nos torna únicos na terra, pensou ele
com satisfação. Um trato com a morte é um trato santificado.
Curvou-se para eia formalmente. - Cumprimento-a pela sua
honra e senso de dever para com o seu marido, Usagi Fujiko -
disse ele, citando o nome que cessara de existir.
- Oh, obrigada, senhor - disse ela, ante a honra que ele
lhe fazia, as lágrimas escorrendo devido à total felicidade que a
invadia, sabendo que esse gesto simples limpava o estigma do
único marido que ela teria nesta vida.
- Ouça, Fujiko, vinte dias antes do último dia, você partirá
para Yedo - aconteça o que acontecer a mim. A sua morte deve
ocorrer durante a viagem e deve parecer acidental. Neh?
- Sim, sim, senhor.
- Isso será segredo nosso. Seu e meu apenas.
- Sim, senhor.
- Até lá você continuará como cabeça da casa dele.
- Sim, senhor.
- Agora, por favor, diga a Gyoko que venha aqui. Mandarei chamá-la de novo antes de partir. Tenho outras coisas a
discutir com você.
- Sim, senhor - Fujiko curvou-se profundamente e disse:
- Eu o abençôo por me libertar da vida. - Afastou-se.
1219
Curioso, pensou Toranaga, como as mulheres podem mudar
como camaleões - num momento feias, no outro atraentes, às
vezes até bonitas, embora na realidade não sejam.
-- Mandou me chamar, senhor?
- Sim, Gyoko-san. Que notícias tem para mim?
- De todo tipo, senhor - disse Gyoko, o rosto bem maquilado sem medo, um brilho nos olhos, mas as tripas se contorcendo.
Sabia que não era por coincidência que aquele encontro estava
ocorrendo, e seu instinto lhe dizia que Toranaga estava mais
perigoso do que o habitual. - As providências para a corporação
de cortesãs avançam satisfatoriamente, e as regras e regulamentos
estão sendo rascunhados para a sua aprovação. Há uma área
excelente ao norte da cidade que.. .
- A área que já escolhi fica perto da costa. O Yoshiwara.
Ela o cumprimentou pela escolha, gemendo por dentro. O
Yoshiwara - Brejo Vermelho - era atualmente um pântano,
infestado de mosquitos, e teria que ser drenado e recuperado,
antes de poder ser cercado e suportar uma construção. - Excelente, senhor. Depois: as regras e regulamentos para as gueixas
também estão sendo preparados para o seu exame.
- Bom. Faça-os breves e concisos. Que inscrição você colocará sobre a entrada do Yoshiwara?
- "A luxúria não se refreia - alguma coisa tem que ser
feita com relação a isso."
Ele riu, e ela sorriu, mas não se descontraiu, e acrescentou
séria: - Permita-me agradecer-lhe de novo em nome das gerações futuras, senhor.
- Não foi por você ou por elas que eu concordei - disse
Toranaga, e citou uma das suas notas no Legado: - "Os homens
virtuosos no decorrer da história sempre censuraram as casas de
tolerância ou lugares de `travesseiro', mas os homens não são
virtuosos, e se um líder banir as casas e o `travesseiro', será um
tolo, porque males maiores logo irromperão como uma peste de
furúnculos".
- Como é sábio, senhor.
- E quanto a colocar todos os lugares de "travesseiro" numa
única área, isso quer dizer que todos os não-virtuosos poderão
ser vigiados, taxados e controlados, todos ao mesmo tempo. Você
tem razão de novo, Gyoko-san, "a luxúria não se refreia". Logo
se deteriora. O que mais?
- Kiku-san recuperou a saúde, senhor. Perfeitamente.
1220
- Sim, eu vi. Ela está deliciosa! Desculpe... Yedo certamente é quente e rude no verão. Tem certeza de que ela está bem
agora?
- Sim, oh sim, mas ela sentiu saudades do senhor. Devemos
acompanhá-lo a Mishima?
- Que outros boatos você ouviu?
- Apenas que Ishido deixou o Castelo de Osaka. Os regentes formalmente declararam o senhor fora da lei - que impertinência, senhor.
- De que modo ele está planejando me atacar?
- Não sei, senhor - disse ela cautelosamente. - Mas
imagino que seja um ataque bifurcado, ao longo da Tokaido com
Ikawa Hikoju, partindo de Shinano, já que o Senhor Zataki tolamente se aliou ao Senhor Ishido contra o senhor. Mas atrás das
suas montanhas o senhor está seguro. Oh, sim, estou certa de
que o senhor viverá até uma idade bem avançada. Com a sua
permissão, senhor, vou transferir todos os meus negócios para
Yedo.
- Certamente. Enquanto isso, veja se consegue descobrir
onde será a investida principal.
- Tentarei, oh, sim, senhor. Estes são tempos terríveis,
senhor, quando irmão vai contra irmão, filho contra pai.
De olhos velados, Toranaga anotou mentalmente para aumentar a vigilância sobre Noboru, seu filho mais velho, cuja
fidelidade última era para com o táicum. - Sim - concordou.
- Tempos terríveis. Tempos de grandes mudanças. Algumas más,
outras boas. Você, por exemplo, está rica agora, e o seu filho,
por exemplo. Ele não está encarregado da sua fábrica de sagtiê
em Odawara?
- Sim, senhor. - Gyoko ficou cinza por baixo da maquilagem.
- Tem tido grandes lucros, neh?
- Ele com certeza é o melhor administrador de Odawara,
senhor.
- Assim ouvi dizer. Tenho um serviço para ele. O Anjinsan vai construir um novo navio. Estou providenciando todos os
artesãos e materiais, por isso quero o lado comercial tratado com
o maior cuidado.
Gyoko quase desmaiou de alívio. Presumira que Toranaga
ia destruí-los a todos antes de partir para a guerra, ou taxá-la de
modo exorbitante, porque descobrira que ela mentira sobre o
Anjin-san e a Senhora Toda, ou sobre o infeliz aborto de Kiku,
1221
que não fora por acaso, como ela relatara tão lacrimosamente
um mês atrás, mas por cuidadosa indução, por insistência, junto
com a submissa anuência de Kiku. - Oh ko, senhor, quando quer
meu filho em Yokohama? Ele garantirá que seja o navio mais
barato jamais construído.
- Não o quero barato. Quero que seja o melhor - pelo
preço mais razoável. Ele será supervisor e responsável, subordinado ao Anjin-san.
--- Senhor, tem a minha garantia, o meu futuro, as minhas
esperanças de futuro, de que será como o senhor deseja.
- Se o navio for construido perfeitamente, exatamente como
o Anjin-san quer, dentro de seis meses a contar do primeiro dia,
farei seu filho samurai.
Ela se curvou profundamente e por um momento não conseguiu falar. - Por favor, perdoe uma pobre imbecil, senhor.
Obrigada, obrigada.
- Ele tem que aprender tudo o que o Anjin-san sabe sobre
a construção do navio, de modo que se possam construir outros
depois que ele parta. Neh?
- Será feito.
- Depois: Kiku-san. Os seus talentos merecem um futuro
melhor do que apenas estar sozinha numa caixa, uma dentre
muitas mulheres.
Gyoko levantou os olhos, novamente esperando pelo pior.
- Vai vender o contrato dela, senhor?
- Não, ela não deveria ser cortesã novamente, ou mesmo
uma das suas gueixas. Deveria estar numa família, uma senhora
dentre poucas, muito poucas.
- Mas, senhor, se ela o vir, ainda que ocasionalmente,
como poderia ter uma vida melhor em outro lugar?
Ele permitiu que ela o cumprimentasse, retribuiu, estendendo
o cumprimento a Kiku, e disse: - Francamente, Gyoko-san,
estou gostando demais dela e não posso me permitir ser distraído.
Francamente ela é bonita demais para mim ... perfeita demais ...
Por favor, desculpe-me, mas este deve ser outro dos nossos
segredos.
- Concordo, senhor, claro, tudo o que desejar - disse
Gyoko fervorosamente, ignorando tudo o que fora dito como
mentiras, quebrando a cabeça à procura da verdadeira razão.
-- Se a pessoa pudesse ser alguém que Kiku pudesse admirar, eu
morreria contente.
1222
- Mas somente depois de ver o navio do Anjin-san navegando, no prazo de seis meses - disse ele secamente.
- Sim... oh, sim. - Gyoko moveu o leque, pois o sol
estava quente agora, o ar úmido e abafado, tentando sondar
por que Toranaga estava sendo generoso com elas duas, sabendo
que o preço seria pesado, muito pesado. - Kiku-san ficará muito
perturbada por deixar a sua casa.
- Sim, naturalmente. Acho que deveria haver alguma compensação pela obediência dela a mim, seu suserano. Deixe isso
comigo, e por enquanto não toque no assunto com ela.
- Sim, senhor. E quando deseja que meu filho esteja em
Yokohama?
Você será informada antes de eu partir.
Ela se curvou e se afastou a trote. Toranaga foi nadar um
pouco. Ao norte o céu estava muito escuro, e ele sabia que devia
estar chovendo pesadamente lá. Quando viu o pequeno grupo de
cavaleiros vindo da direção de Yokohama, retornou.
Omi desmontou e desembrulhou a cabeça. - O Senhor
Kasigi Yabu obedeceu, senhor, pouco antes do meio-dia. - A
cabeça fora recentemente lavada, o cabelo penteado, e estava
espetada na ponta de um pequeno pedestal, utilizado normalmente para esse exame.
Toranaga inspecionou um inimigo como já fizera dez mil
vezes na vida, perguntando-se, como sempre, como se pareceria
a sua própria cabeça depois da morte, examinada pelo seu
conquistador, e se demonstraria terror, agonia, raiva, horror, ou
tudo isso junto ou nada disso. Ou dignidade. A máscara de morte
de Yabu mostrava somente uma cólera frenética, os lábios repuxados para trás num desafio feroz. - Ele morreu bem?
- O melhor que já vi, senhor. O Senhor Hiro-matsu disse
o mesmo. Os dois cortes, depois um terceiro na garganta. Sem
auxílio e sem ruído - acrescentou Omi. - Aqui está o seu
testamento.
- Você decepou a cabeça com um único golpe?
- Sim, senhor. Pedi permissão ao Anjin-san para usar a
espada do Senhor Yabu.
--- A Yoshitomo? A que eu dei a Yabu? Ele a deu ao
Anjin-san?
- Sim, senhor. Eles conversaram por intermédio do Tsukku-san. Ele disse: "Anjin-san, dou-lhe isto para celebrar a sua
chegada a Anjiro e como um agradecimento pelo prazer que o
pequeno bárbaro me deu". Inicialmente o Anjin-san se recusou a
1223
aceitá-la, mas Yabu rogou-lhe que o fizesse e disse: "Nenhum
destes comedores de esterco merece uma lâmina assim". O Anjinsan acabou concordando.
Curioso, pensou Toranaga. Eu esperava que Yabu desse a
lâmina a Omi.
- Quais foram suas últimas instruções? - perguntou.
Omi contou-lhe. Exatamente. Se não estivessem todas escritas no testamento, que fora dado publicamente à testemunha
formal, Buntaro, Omi não as teria comunicado todas e, na realidade, teria inventado outras. Yabu tinha razão, pensou ele, furioso, lembrando-se de que devia ter sempre em mente que o
pincel de escrita era um braço que se alongava da sepultura.
- Para honrar a bravura da morte do seu tio, devo respeitar-lhe os desejos de morte. Todos eles, sem alteração, neh?
- disse Toranaga, testando-o.
- Sim, senhor.
- Yuki!
- Sim, senhor - disse a criada.
- Traga chá, por favor.
Ela saiu correndo, e Toranaga deixou a mente ponderar
sobre as últimas vontades de Yabu. Eram todas muito sábias.
Mizuno era um imbecil e totalmente no caminho de Omi. A mãe
era uma megera velha, irritante e untuosa, também no caminho
de Omi. - Muito bem, desde que você concorde, estão confirmadas. Todas elas. E também desejo aprovar os desejos de morte
de seu pai antes de se tornarem finais. Como recompensa pela
sua devoção, designo-o comandante do Regimento de Mosquetes.
- Obrigado, senhor, mas não mereço essa honra - disse
Omi exultante.
-- Naga será o segundo em comando. Depois: você fica
nomeado cabeça dos Kasigi e o seu novo feudo serão as terras
fronteiriças a Izu, de Atami, a leste, a Nimazu, a oeste, incluindo
a capital, Mishima, com a renda anual de trinta mil kokus.
- Sim, senhor, obrigado. Por favor... não sei como agradecer-lhe. Não sou digno dessas honras.
- Faça por sê-lo, Omi-sarna -- disse Toranaga afavelmente.
- Tome posse do castelo de Mishima imediatamente. Parta de
Yokohama hoje. Apresente-se ao Senhor Sudara em Mishima. O
Regimento de Mosquetes será enviado para Hakoné e estará lá
dentro de quatro dias. Depois, em particular, apenas para o seu
conhecimento: estou mandando o Anjin-san de volta a Anjiro.
1224
Ele construirá um novo navio lá. Você passará o seu feudo atual
a ele. Imediatamente.
-- Sim, senhor. Posso dar-lhe a minha casa?
- Sim, pode - disse Toranaga, embora, naturalmente, um
feudo contivesse tudo o que estivesse no local, casas, propriedade,
camponeses, pescadores, botes. Os dois homens olharam quando a risada gorjeante de Kiku veio ao ar. e viram-na no
pátio fazendo o jogo de atirar o leque com a criada, Suisen, cujo
contrato Toranaga também comprara como presente de consolo
pelo infeliz aborto de Kiku.
A adoração de Omi foi evidente - todos poderiam notáIa, por mais que tentasse ocultá-la, tão súbita e inesperada fora
a aparição dela. Então viram na olhar na direção deles. Um sorriso
adorável espalhou-se pelo rosto dela, que acenou alegremente.
Toranaga retribuiu e ela voltou ao jogo.
- É, bonita, neh?
Omi sentiu as orelhas queimando. - Sim.
Originalmente Toranaga comprara o contrato de Kiku para
separá-la de Omi, porque ela era uma das fraquezas de Orni e
claramente um prêmio, a ser dado ou recusado, até que Omi
tivesse declarado e provado sua real dedicação, e ajudado ou
não na eliminação de Yabu. E ele ajudara, miraculosamente, e
provara a si mesmo muitas vezes. Investigar os criados fora sugestão de Omi. Muitas, se não todas, das excelentes idéias de Yabu
provieram de Omi. Um mês atrás Omi havia desvendado os detalhes da conspiração a fim de assassinar Naga e os outros oficiais
marrons durante a batalha.
-- Não há engano nisso, Omi-san? - perguntara ele quando
Omi se apresentara secretamente a ele, em Mishima, enquanto ele
esperava o resultado do desafio de Mariko.
- Não, senhor. Kiwami Matano, do Terceiro Regimento
de Izu, está lá fora.
O oficial de Izu, um homem de meia-idade, bochechudo,
atarracado, revelara a conspiração toda, dando as senhas e explicando como funcionaria o esquema. - Eu não podia mais viver
com a vergonha desse conhecimento, senhor. O senhor é o nosso
suserano. Claro, para ser justo devo dizer que o plano era apenas
para o caso de ser necessário. Imaginei que isso significasse a
possibilidade de Yabu-sama resolver mudar de lado durante a
batalha. Sinto muito, o senhor era o alvo principal depois de
Naga-san. Depois o Senhor Sudara.
1225
- Quando foi dada a ordem para esse plano e quem está
a par dele?
- Pouco depois de o regimento ser formado. Cinqüenta e
quatro de nós sabemos, dei todos os nomes por escrito a Omisama. O plano, de codinome "Ameixeira", foi confirmado pessoalmente por Kasigi Yabu-sama antes de ele partir para Osaka a
última vez.
- Obrigado. Cumprimento-lhe a lealdade. Deve manter isso
em segredo até que eu lhe diga. Depois receberá um feudo no
valor de cinco mil kokus.
- Por favor, desculpe-me, não mereço nada, senhor. Imploro permissão para cometer seppuku, por ter guardado esse
segredo vergonhoso tanto tempo.
- A permissão é recusada. Será conforme eu ordenei.
- Por favor, desculpe-me, não mereço essa recompensa.
Pelo menos permita-me continuar como estou. Era o meu dever
e não merece recompensa. Na realidade eu deveria ser punido.
- Qual é a sua renda agora?
- Quatrocentos kokus, senhor. É suficiente.
- Considerarei o que você diz, Kiwami-san.
Depois que o oficial se fora, ele dissera: - O que prometeu
a ele, Omi-san?
- Nada, senhor. Ele me procurou espontaneamente ontem.
- Um homem honesto? Está me dizendo que ele é um
homem honesto?
- Não sei nada sobre isso, senhor. Mas ele me procurou
ontem, e eu corri para cá para lhe dizer.
- Então ele realmente será recompensado. Tal lealdade é
mais importante do que qualquer coisa, neh?
- Sim, senhor.
- Não diga nada sobre isso a ninguém.
Omi partira e Toranaga perguntara a si mesmo se Mizuno
e ele não teriam forjado a conspiração para desacreditar Yabu.
Imediatamente colocou seus espiões para descobrirem a verdade.
Mas a conspiração era autêntica, e a queima do navio fora uma
desculpa perfeita para eliminar os cinqüenta e três traidores,
todos os quais tinham sido colocados entre os guardas de Izu
naquela noite. Kiwami Matano fora mandado para o norte, com
um bom feudo, embora modesto.
- Com certeza esse Kiwami é o mais perigoso de todos
-. dissera a Sudara, o único a ser informado da trama.
- Sim. E será vigiado o resto da vida e nunca merecerá
1226
confiança. Mas geralmente o bem existe nas pessoas más e o
mal nas pessoas boas. Deve-se escolher o bem e eliminar o mal,
sem sacrificar o bom. Não há desperdício nos meus domínios
para ser jogado fora levianamente.
Sim, pensou Toranaga com grande satisfação, você certamente merece um premio, Omi.
- Ouça, Omi-san, a batalha começará em poucos dias.
Você me serviu lealmente. No último campo de batalha, após a
minha vitória, nomeá-lo-ei governador de Izu, e farei novamente
da linhagem Kasigi daimios hereditários.
- Sinto muito, senhor, por favor, desculpe-me, mas não
mereço essa honra - disse Omi.
- Você é jovem mas promete muito, mais do que a sua
idade deixaria supor. Seu avô era muito parecido com você, muito
inteligente, mas não tinha paciencia. - Novamente o som da
risada das senhoras, e Toranaga observou Kiku, tentando resolver
sobre ela, o plano original agora posto de lado.
- Posso perguntar-lhe o que quer dizer com "paciência",
senhor? - disse Omi, instintivamente sentindo que Toranaga
desejava que a pergunta fosse feita.
Toranaga ainda olhava para a garota, entusiasmado com
ela. - Paciência quer dizer conter-se. Existem sete emoções,
neh? Alegria, ira, ansiedade, adoração, pesar, medo e ódio. Se
um homem não cede a elas, é paciente. Eu não sou tão forte
quanto poderia ser, mas sou paciente. Compreende?
- Sim, senhor. Com toda a clareza.
- A paciência é muito necessária num líder.
- Sim.
- Aquela senhora, por exemplo. É uma distração para mim,
bela demais, perfeita demais para mim. Sou simples demais para
uma criatura tão rara. Por isso resolvi que ela pertence a outro
lugar.
- Mas, senhor, mesmo como uma das suas damas menores. . . - Omi pronunciou a cortesia que os dois homens sabiam
ser um fingimento, embora obrigatória, e o tempo todo rezava
como nunca rezara antes, sabendo o que era possível, sabendo que
nunca poderia pedir.
- Concordo totalmente - disse Toranaga. - Mas um
grande talento merece sacrifício. - Ainda a observava jogando
o leque, pegando o leque da criada de volta, sua alegria contagiante. Então a vista das duas mulheres foi obscurecida pelos
cavalos. Sinto muito, Kiku-san, pensou ele, mas tenho que passá1227
la adiante, instalá-la fora do meu alcance rapidamente. A verdade
é que realmente estou gostando demais de você, embora Gyoko
nunca acreditasse que eu lhe disse a verdade, nem Omi, nem
você mesma. - Kiku-san é digna de ter sua própria casa. Com
seu próprio marido.
-- Melhor ser consorte do samurai mais baixo do que esposa
de um fazendeiro ou mercador, por mais rico que seja.
- Não concordo.
Para Omi essas palavras encerraram o assunto. Karma, disse
a si mesmo, seu sofrimento dominando-o. Afaste a tristeza, imbecil. O seu suserano decidiu, portanto está encerrado. Midori
é uma esposa perfeita. Sua mãe vai se tornar monja, portanto
agora a sua casa terá harmonia.
Tanta tristeza hoje. E felicidade: futuro daimio de Izu;
comandante do regimento; o Anjin-san será mantido em Anjiro,
conseqüentemente o primeiro navio será construido em Izu -
no meu feudo. Ponha de lado a sua tristeza. A vida é toda feita
de tristeza. Kiku-san tem seu karma, eu o meu, Toranaga o dele,
e o meu Senhor Yahu mostra como é tolo preocupar-se sobre
isto, aquilo ou qualquer coisa.
Omi levantou os olhos para Toranaga, a mente clara, tudo
no respectivo compartimento: - Por favor, desculpe-me, senhor,
peço-lhe perdão. Eu não estava pensando com clareza.
Pode saudá-la se desejar, antes de partir.
- Obrigado, senhor. - Omi envolveu a cabeça de Yabu.
- Deseja que eu a enterre ou que a exiba?
- Espete-a numa lança, de frente para os destroços do
navio.
- Sim, senhor.
- Qual foi o poema de morte dele?
Omi disse:
- "O que são nuvens
Senão uma desculpa para o céu?
O que é a vida
Senão uma fuga da morte?"
Toranaga sorriu. Interessante disse.
Omi curvou-se, entregou a cabeça embrulhada a um de seus
homens e dirigiu-se por entre os cavalos e samurais até o pátio.
- Ah, senhora disse ele, com uma formalidade gentil.
- Estou muito satisfeito de vê-Ia bem e feliz.
1228
- Estou com meu senhor, Omi-san, e ele está forte e
contente. Como poderia eu estar senão feliz?
- Sayonara, senhora.
- Sayonara, Omi-san. - Ela se curvou, consciente agora
de um imenso caráter final que nunca percebera antes. Uma lágrima brotou e ela a secou e se curvou de novo, enquanto ele se
afastava.
Observou-lhe o andar firme e teria chorado alto, o coração
prestes a se romper, mas então, como sempre, ouviu na memória
as palavras tantas vezes pronunciadas, faladas gentilmente, faladas
sabiamente: "Por que chora, criança? Nós, do Mundo Flutuante,
vivemos apenas para o momento, dando todo o nosso tempo aos
prazeres das flores de cerejeira, da neve, das folhas de bordo,
do chamado de um grilo, da beleza da luz, minguando, crescendo
e renascendo, cantando nossas canções e tomando chá e saquê,
conhecendo perfumes e o toque das sedas, acariciando por prazer,
e devaneando, sempre devaneando. Ouça, criança, nunca fique
triste, sinta-se sempre vagando como um lírio na correnteza do rio
da vida. Como você tem sorte, Kiku-chan, você é uma princesa
do Ukiyo, do Mundo Flutuante, devaneie, viva o momento..."
Kiku secou uma segunda lágrima, uma última lágrima. Garota tola, chorando assim. Pare de chorar! ordenou a si mesma.
Você tem uma sorte inacreditável! É consorte do maior daimio,
embora seja uma consorte menor, não oficial, mas o que importa
isso? Os seus filhos nascerão samurais. Esse não é o presente
mais inacreditável do mundo? O adivinho não predisse essa boa
fortuna incrível, que era para não se acreditar nunca? Mas agora
é verdade, neh? Se você tem que chorar, há coisas mais importantes por que chorar. Sobre a semente crescendo no seu ventre,
que o chá de gosto esquisito tirou de você. Mas por que chorar
por isso? Ainda nem era uma criança, e quem era o pai? De
verdade?
- Não sei, não com certeza, Gyoko-san, sinto muito, mas
acho que é do meu senhor - dissera ela finalmente, desejando
muito um filho dele para concretizar a promessa de samurai.
- Mas digamos que a criança nasça com olhos azuis e a
pele clara? Poderia, neh? Conte os dias.
- Contei e recontei, oh, como contei!
- Então seja honesta consigo mesma. Sinto muito, mas o
futuro de nós duas depende agora de você. Tem muitos anos férteis pela frente. Está só com dezoito anos, criança, neh? É melhor
ter certeza, neh?
1229
Sim, pensou ela de novo, como a senhora é sábia, Gyoko-san,
o como eu fui tola, estava enfeitiçada. Era apenas um começo,
o como somos sensatos, nós, japoneses, em saber que uma criança
não é uma criança propriamente dita até trinta dias após o nascimento, quando o espírito se fixa firmemente no corpo e seu
.karma se torna inexorável. Oh, como tenho sorte, e quero um
filho, outro e outro e nunca uma filha. Coitadas das meninas!
Ó deuses, abençoem o adivinho e obrigada, obrigada pelo meu
karma, por eu ser favorecida pelo grande daimio, por meus filhos
serem samurais e, oh, por favor, façam-me digna de tanta maravilha...
- O que é, ama? - perguntou a pequena Suisen, amedrontada com a alegria que parecia brotar de Kiku.
Kiku suspirou, contente. - Eu estava pensando no adivinho,
no meu senhor, no meu karma, apenas devaneando, devaneando...
Avançou pelo pátio, protegendo-se com a sombrinha escarlate, à procura de Toranaga. Ele estava quase escondido pelos
cavalos e samurais e falcões no pátio, mas ela conseguiu vê-lo
ainda na varanda, tomando chá agora, Fujiko curvando-se à sua
frente de novo. Logo será a minha vez, pensou ela. Talvez esta
noite possamos começar uma nova criança. Oh, por favor .. .
Então, extremamente feliz, voltou ao jogo.
Fora dos portões, Omi montou e partiu a galope com seus
guardas, cada vez mais depressa, a velocidade revigorando-o, limpando-o, o pungente cheiro de suor do seu cavalo agradando-lhe.
Não se voltou para olhar para ela, porque não havia necessidade.
Sabia que abandonara toda a paixão da vida, e tudo o que
adorara, aos pés dela. Tinha certeza de que nunca conheceria a
paixão novamente, o êxtase de união espiritual que incandescia
homem e mulher. Mas isso não lhe desagradou. Pelo contrário,
pensou ele com uma claridade de gelo recém-descoberta, abençôo
Toranaga por me libertar dessa servidão. Agora nada me prende.
Nem pai nem mãe nem Kiku. Agora também posso ser paciente.
Tenho vinte e um anos, sou quase daimio de Izu, e tenho um
mundo a conquistar.
- Sim, senhor? - estava dizendo Fujiko.
- Você irá diretamente daqui para Anjiro. Resolvi trocar
o feudo do Anjin-san, Yokohama, por Anjiro. Vinte ris em cada
direção a partir da aldeia, com uma renda anual de quatro mil
kokus. Você ficará com a casa de Omi-san.
- Permita-me agradecer-lhe em nome dele, senhor. Sinto
muito, estou entendendo que ele ainda não sabe disso?
- Não. Vou dizer-lhe hoje. Ordenei-lhe que construísse
outro navio, Fujiko-san, para substituir o que se perdeu, e Anjiro
será um estaleiro perfeito, muito melhor que Yokohama. Combinei com a mulher Gyoko para que o filho mais velho dela seja
supervisor comercial para o Anjin-san, e todos os materiais e
artesãos serão pagos pela minha tesouraria. Você terá que ajudá-lo
a estabelecer alguma forma de administração.
- Oh ko, senhor - disse ela, imediatamente preocupada.
- O tempo que me sobra com o Anjin-san será tão curto.
- Sim. Terei que encontrar outra consorte para ele - ou
esposa. Neh?
Fujiko levantou os olhos, os olhos estreitando-se. E disse:
- Por favor, como posso ajudar?
- A quem sugere? - perguntou Toranaga. - Quero que
o Anjin-san esteja contente. Homens contentes trabalham melhor; neh?
- Sim. - Fujiko rebuscou na mente. Quem se compararia
a Mariko-san? Então sorriu. - Senhor, a atual esposa de Omi-san,
Midori-san. A mãe dele a odeia, conforme o senhor sabe, e quer
que Omi se divorcie - sinto muito, mas ela teve a surpreendente
falta de educação de dizer isso na minha frente. Midori-san é
uma senhora adorável e, oh, tão inteligente.
- Acha que Omi quer se divorciar? - Outra peça do quebra-cabeça que se encaixa no lugar.
- Oh, não, senhor, tenho certeza de que não. Que homem
realmente deseja obedecer à mãe? Mas essa é a nossa lei, por
isso ele deveria ter-se divorciado na primeira vez em que os pais
mencionaram isso, neh? Ainda que sua mãe tenha um temperamento péssimo, com certeza ela sabe o que é melhor para ele,
claro. Sinto muito, tenho que ser sincera, já que este assunto é
muito importante. Claro que não tenho a intenção de ofender,
senhor, mas o dever filial para com os pais é o sustentáculo da
nossa lei.
- Concordo - disse Toranaga, ponderando sobre essa nova
e feliz idéia. - O Anjin-san consideraria Midori-san uma boa
sugestão?
- Não, senhor, não se o senhor ordenar o casamento . .
mas, desculpe, não há necessidade de o senhor ordenar.
- Oh?
- O senhor talvez pudesse encontrar um meio de fazê-lo
1230
1231
pensar nisso por si. Isso certamente seria melhor. Com Omi-san,
claro, o senhor simplesmente ordena.
- Claro. Você aprovaria Midori-san?
- Oh, sim. Ela tem dezessete anos, seu filho é saudável,
ela é de boa linhagem samurai, portanto daria belos filhos ao
Anjin-san. Suponho que os pais de Omi insistirão para que Midori
entregue o filho a Omi-san, mas, se não o fizerem, o Anjin-san
poderia adotá-lo. Sei que o meu amo gosta dela, porque Marikosama contou-me que o arreliava com ela. Ela é de ótima linhagem
samurai, muito prudente, muito inteligente. Oh, sim, ele estaria
muito seguro com ela. Além disso seus pais estão mortos, portanto não haveria ressentimento por parte deles quanto ao casamento dela com um... com o Anjin-san.
Toranaga brincou com a idéia. Eu certamente tenho que
manter Omi desnorteado, disse a si mesmo. O jovem Omi pode
se tornar um estorvo ao meu lado com toda a facilidade. Bem,
não terei que fazer nada para que Midori se divorcie. O pai de
Omi certamente terá últimas vontades definidas antes de cometer
seppuku, e a esposa insistirá, com certeza, em que a última coisa
mais importante que ele faça neste mundo seja casar o filho corretamente. Então Midori estará divorciada dentro de poucos dias,
de qualquer modo. Sim, ela seria uma ótima esposa.
- Além dela, Fujiko-san, que tal Kiku, Kiku-san?
Fujiko olhou-o fixamente. - Oh, sinto muito, senhor, vai
abandoná-la?
- Talvez. Bem?
- Eu teria pensado que Kiku-san seria uma perfeita consorte não oficial, senhor. É brilhante e maravilhosa. Mas embora
eu entenda que ela seria uma distração enorme para um homem
comum, sinto muito, levaria anos até que o Anjin-san fosse capaz
de apreciar a qualidade rara do seu canto, da sua dança ou do
seu espírito. Como esposa? - perguntou ela, com a ênfase suficiente para indicar total desaprovação. - As damas do Mundo
do Salgueiro geralmente não são educadas do mesmo modo que...
que as outras, senhor. Seus talentos repousam em outra parte.
Ser responsável pelas finanças e os negócios da casa de um samurai é diferente do Mundo do Salgueiro.
- Ela poderia aprender?
Fujiko hesitou um longo momento. - O ideal para o Anjinsan seria Midori-san como esposa, Kiku-san como consorte.
- Elas poderiam aprender a viver com as, ha, atitudes
diferentes dele?
1232
- Midori-san é samurai, senhor. Seria dever dela. O senhor
lhe ordenaria. Kiku-san também.
- Mas não o Anjin-san?
- O senhor o conhece melhor do que eu. Mas em coisas
de "travesseiro", ha ... seria melhor que ele, bem, pensasse nisso
sozinho.
- Toda Mariko-sama teria dado uma esposa perfeita para
ele. Neh?
- Essa idéia é extraordinária, senhor - replicou Fujiko,
sem piscar. - Certamente ambos tinham um enorme respeito
mútuo.
- Sim - disse ele secamente. - Bem, obrigado, Fujikosan. Considerarei o que você disse. Ele estará em Anjiro dentro
de uns dez dias.
- Obrigada, senhor. Se eu puder sugerir, o porto de Ito
e a nascente de Yokosé deveriam ser incluídos no feudo do
Anjin-san.
- Por quê?
- Ito só para o caso de Anjiro não ser grande o bastante.
Talvez fossem necessárias carreiras maiores, para um navio tão
grande. Talvez estivessem disponíveis lá. Yokosé porq...
- Estão?
- Sim, senhor. E ...
- Você esteve lá?
- Não, senhor. Mas o Anjin-san se interessa pelo mar. O
senhor também. Era meu dever tentar aprender sobre navios e
navegação, e, quando fomos informados de que o navio do Anjinsan tinha pegado fogo, perguntei a mim mesma se seria possível
construir outro, e se fosse, onde e como. Izu é a escolha perfeita,
senhor. Será fácil manter os exércitos de Ishido a distância.
- E por que Yokosé?
- E Yokosé porque um hatamoto deve ter um lugar nas
montanhas, onde o senhor pudesse ser recebido no estilo que
tem o direito de esperar.
Toranaga observava-a atentamente. Fujiko parecia muito dócil e modesta, mas ele sabia que era tão inflexível quanto ele
mesmo, e nem um pouco pronta a ceder em nenhum dos dois
pontos, a menos que ele ordenasse. - Concordo. E considerarei
o que você disse sobre Midori-san e Kiku-san.
- Obrigada, senhor - disse ela com humildade, contente
por haver cumprido o dever para com o amo e saldado seu
I
1233
débito com Mariko. Ito pelas carreiras, e Yokosé porque Mariko
dissera que fora lá que o "amor" deles realmente começara.
- Tenho tanta sorte, Fujiko-chan - dissera-lhe Mariko em
Yedo. - Nossa viagem para cá trouxe-me mais alegria do que
eu tenho o direito de esperar em vinte vidas.
- Imploro-lhe que o proteja em Osaka, Mariko-san. Sinto
muito, ele não é como nós, não é civilizado como nós, pobre
homem. O nirvana dele é a vida e não a morte.
Isso ainda é verdade, pensou Fujiko novamente, abençoando
a memória de Mariko. Mariko salvara o Anjin-san, ninguém mais
- não o Deus cristão ou quaisquer deuses, não o próprio Anjinsan, nem mesmo Toranaga, ninguém -, apenas Mariko, sozinha.
Toda Mariko-noh-Akechi Jinsai o salvara.
Antes de morrer, vou erigir um santuário em Yokosé e
deixarei um legado para outro em Osaka e outro em Yedo.
Será um dos meus desejos de morte, Toranaga-sama, prometeu
ela a si mesma, olhando para ele pacientemente, animada pelas
outras coisas agradáveis que ainda havia por fazer em nome do
Anjin-san. Midori como esposa, certamente, nunca Kiku como
esposa, apenas como consorte e não necessariamente consortechefe, e o feudo aumentado até Shimoda, no extremo sul da
costa de Izu. - Deseja que eu parta imediatamente, senhor?
- Fique aqui esta noite, depois vá direto amanhã. Não
via Yokohama.
- Sim. Compreendo. Desculpe, posso tomar posse do novo
feudo do meu amo em seu nome - e de tudo o que contém -,
no momento em que eu chegar?
- Kawanabi-san lhe dará os documentos necessários antes
que você parta. Agora, por favor, mande Kiku-san a mim.
Fujiko curvou-se e saiu.
Toranaga grunhiu. Uma pena que essa mulher vá pôr fim
à vida. Ela é quase valiosa demais para se perder, e esperta
demais. Ito e Yokosé? Ito é compreensível. Por que Yokosé?
E o que mais ela tinha em mente?
. Viu Kiku atravessando o pátio banhado de sol, os pezinhos
em tabis brancos, quase dançando, tão doce e elegante com suas
sedas, a sombrinha carmesim, o desejo de cada homem à vista
dele. Ah, Kiku, pensou ele, não posso me permitir esse desejo,
desculpe-me. Não posso me permitir ter você nesta vida, sinto
muito. Você deveria ter continuado onde estava, no Mundo Flutuante, cortesã de primeira classe. Ou, até melhor, gueixa. Com
1234
que idéia ótima aquela velha megera me saiu! Então você estaria
segura, propriedade de muitos, a adorada de muitos, o ponto
central de suicídios trágicos e disputas violentas e encontros maravilhosos, adulada e temida, coberta de dinheiro, que você trataria
com desdém, uma lenda - enquanto a sua beleza durasse. Mas
agora? Agora não posso conservá-la, sinto muito. Qualquer samurai a quem eu a dê leva para a casa uma faca de dois gumes:
uma distração completa e a inveja de todos os outros homens.
Neh? Poucos concordariam em se casar com você, sinto muito,
mas essa é a verdade e este é um dia de verdades. Fujiko
tinha razão. Você não foi educada para dirigir a casa de um
samurai, sinto muito. Assim que a sua beleza se for... oh, a
sua voz durará, criança, e o seu espírito, mas logo você será
atirada ao monte de esterco do mundo. Sinto muito, mas isso
também é verdade. Outra verdade é que as mais altas damas do
Mundo Flutuante são conservadas no seu Mundo Flutuante para
dirigir outras casas quando a idade se abate sobre elas, mesmo
sobre as mais famosas, para chorar pelos amantes perdidos, pela
juventude perdida em barris de saque, aguado pelas suas lágrimas. As inferiores quando muito tornam-se esposas de um fazendeiro, um pescador, um mercador ou um rico vendedor ou artesão,
de cuja vida você nasceu - a flor rara e inesperada que aparece
na selva por nenhuma outra razão senão karma, para florescer
rapidamente e se extinguir rapidamente.
Tão triste, muito triste. Como lhe dou filhos samurais?
Conserve-a para o resto da vida, dissê-lhe o seu coração
secreto. Ela merece. Não se iluda como ilude aos outros. A
verdade é que você poderia conservá-la facilmente, tirando-lhe
um pouco, deixando-lhe muito, exatamente como à sua favorita,
Tetsu-ko, ou Kogo. Kiku não é exatamente como um falcão para
você? Apreciada, sim, única, sim, mas apenas um falcão que você
alimenta no punho, para lançar sobre uma presa e chamar de
volta com um engodo, para, após uma estação ou duas, soltar
a esmo e desaparecer para sempre? Não minta a si mesmo, isso
é fatal. Por que não conservá-la? Ela é apenas um falcão, embora
muito especial, de vôo muito alto, muito bela de ver, mas nada
mais, rara certamente, única certamente, e, oh, tão "travesseirável" ...
- Por que ri? Por que está tão feliz, senhor?
- Porque você é uma alegria de se ver.
1235
Blackthorne apoiou o próprio peso contra um dos três cabos
grossos que estavam presos à quilha do navio. - Hipparuuuuuuu!
- gritou - Puuuuuuuuuxem!
Havia cem samurais, só de tanga, puxando cada corda vigorosamente. Era de tarde agora, a maré estava baixa, e Blackthorne
esperava poder deslocar o resto do navio e trazê-lo para a praia,
para aproveitar tudo. Adaptara o primeiro plano quando descobrira, para júbilo seu, que todos os canhões tinham sido resgatados ao mar no dia seguinte ao holocausto e que estavam quase
tão perfeitos quanto no dia em que haviam deixado a fundição
perto de Chatham, no condado de Kent. Além disso quase mil
balas de canhão, correntes e muitas coisas de metal tinham sido
recuperadas. A maior parte estava retorcida e esfolada, mas ele
tinha o essencial de um navio, melhor do que sonhara possível.
- Maravilhoso, Naga-san! Maravilhoso! - cumprimentara-o ele ao descobrir toda a extensão do que fora poupado.
- Oh, obrigado, Anjin-san. Tentei arduamente, sinto muito.
- Não se lamente mais. Tudo bem agora!
Sim, regozijou-se ele. Agora The Lady pode ser um nadinha
mais comprida e um nadinha mais larga, mas ainda será um galgo,
para acabar com o inimigo.
Ah, Rodrigues, pensara ele sem rancor, estou contente de
que você esteja a salvo, este ano, e que haja outro homem para
afundar no ano que vem. Se Ferreira for capitão-mor de novo,
será um presente do céu, mas não vou contar com isso e estou
contente que você esteja indo embora. Devo-lhe a vida e você foi
um piloto formidável.
- Hipparuuuuuuuu! - gritou ele de novo, e os cabos estremeceram, o mar escorrendo deles como suor, mas o navio não
se moveu.
Desde aquele amanhecer na praia com Toranaga, a carta de
Mariko nas mãos, os canhões descobertos logo depois, os dias
deixaram de ter horas suficientes. Ele esboçara projetos iniciais,
fizera e refizera listas, mudara os planos e muito cuidadosamente
oferecera listas de homens e materiais necessários, não querendo
que houvesse erro algum. E quando o dia findava, ele trabalhava
no dicionário noite adentro, para aprender as novas palavras de
que precisaria para dizer aos artesãos o que desejava, para descobrir o que eles já tinham e o que já podiam fazer. Muitas vezes,
em desespero, tivera vontade de pedir ao padre que o ajudasse,
mas sabia que não havia ajuda ali agora, que sua inimizade estava
inexoravelmente fixada.
1236
Karma, disse-se ele sem mágoa, com pena do padre pelo seu
fanatismo ilegítimo.
- Hipparuuuuu!
Novamente os samurais fizeram força contra a garra da areia
e do mar, então começaram a entoar uma canção e puxaram em
uníssono. O casco moveu-se um nada, eles redobraram os esforços, então o resto do navio soltou-se com um estremecimento e
eles se esparramaram na areia. Levantaram-se, rindo, cumprimentando-se, e se agarraram às cordas de novo. Mas o navio estava
firme de novo.
Blackthorne mostrou-lhes como levar as cordas para um lado,
depois para outro, tentando soltar o navio para bombordo ou estibordo, mas estava tão fixo como se estivesse ancorado.
Terei que colocar bóias nele, depois a maré fará o trabalho e o erguerá - disse ele alto em inglês.
Dozo? - disse Naga, desorientado.
Ah, gomen nasal, Naga-san. - Por meio de sinais e
desenhos na areia, explicou, amaldiçoando a sua falta de palavras,
como fazer uma balsa e amarrá-la às costelas na maré baixa;
depois a maré alta faria flutuar o navio e eles poderiam puxá-lo
para a praia e abicá-lo. Na outra maré baixa seria fácil lidar
porque eles teriam colocado rolos onde apoiar o casco.
- Ah so desu! - disse Naga, impressionado. Quando explicou aos demais oficiais, eles também se admiraram muito, e os
vassalos de Blackthorne se envaideceram com a importância que
deduziram disso.
Blackthorne notou isso e apontou um dedo para um deles.
- Onde estão as suas maneiras?
- O quê? Oh, desculpe, senhor, por favor, desculpe-me por
tê-lo ofendido.
- Hoje desculparei, amanhã não. Nade até o navio - desarnarre esta corda. - O samurai ronin tremeu e rolou os olhos nas
órbitas. - Sinto muito, senhor, não sei nadar.
Fez-se silêncio na praia e Blackthorne sabia que estavam
todos esperando para ver o que aconteceria. Ficou furioso consigo mesmo, pois uma ordem era uma ordem e involuntariamente
ele dera uma sentença de morte que desta vez não era merecida.
Pensou um momento. - As ordens de Toranaga-sama todos os
homens aprender nadar. Neh? Todos os meus vassalos nadam
dentro de trinta dias. Melhor nadar em trinta dias. Você, na água
- a primeira aula agora.
Receoso, o samurai começou a entrar no mar, sabendo que
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era um homem morto. Blackthorne juntou-se a ele e, quando a
cabeça do homem afundou, puxou-o para cima, sem nenhuma
delicadeza, e fê-lo nadar, deixando-o submergir mas nunca perigosamente, até os destroços, o homem tossindo, tendo ânsias de
vômito e prosseguindo. Depois puxou-o de volta à praia e a vinte
jardas dos baixios empurrou-o para a frente. - Nade!
O homem fez isso como um gato semi-afogado. Nunca mais
ele se daria ares de importância na frente do amo. Os companheiros aplaudiram e os homens na praia rolaram de rir na areia, os
que sabiam nadar.
- Muito bom, Anjin-san - disse Naga. -- Muito sábio.
- Riu de novo, depois disse: - Por favor, mandei homens buscar bambu. Para balsa, neh? Amanhã tentar trazer tudo para cá.
- Obrigado.
- Puxar mais hoje?
- Não, não, obrigado. . . - Blackthorne parou e seus olhos
se turvaram. O Padre Alvito estava em pé sobre uma duna, observando-os. - Não, obrigado, Naga-san. Acaba tudo por aqui hoje.
Por favor, com licença um momento. - Foi pegar as roupas e
espadas, mas seus homens lhe trouxeram tudo rapidamente. Sem
pressa, vestiu-se e enfiou a espada no sash.
- Boa tarde - disse ele, aproximando-se de Alvito. O padre
parecia abatido, mas havia cordialidade no seu rosto, como houvera antes da violenta discussão nos arredores de Mishima. A cautela de Blackthorne aumentou.
- Ao senhor também, capitão-piloto. Vou partir esta manhã.
Só queria conversar um instante. Importa-se?
Não, em absoluto.
O que vai fazer, tentar fazer flutuar o casco?
Sim.
Receio que isso não vá ajudar.
Não tem importância. Vou tentar.
Realmente acredita que pode construir outro navio?
- Oh, sim - disse Blackthorne com paciência, perguntando-se o que Alvito teria em mente.
- Vai trazer o resto da sua tripulação para cá, para ajudá-lo?
- Não - disse Blackthorne após um momento. - É melhor
que fiquem em Yedo. Quando o navio estiver quase acabado...
há muito tempo para trazê-los para cá.
- Eles vivem com etas, não?
- Sim.
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- É essa a razão pela qual o senhor não os quer aqui?
- Uma delas.
- Não o censuro. Ouvi dizer que estão todos muito turbulentos e bêbados a maior parte do tempo. O senhor soube que, ao
que consta, há uma semana mais ou menos houve uma pequena
desordem entre eles e a casa se incendiou?
- Não. Alguém se feriu?
- Não. Mas só pela graça de Deus, Da próxima vez... Parece que um deles fez uma destilaria. É terrível o que a bebida
faz a um homem.
- Sim. É uma pena o que aconteceu à casa deles. Construirão outra.
Alvito assentiu e olhou de novo para as costelas banhadas
pelas ondas. - Eu queria lhe dizer, antes de partir, que sei o
que a perda de Mariko-san representa para o senhor. Fiquei extremamente entristecido com a sua história sobre Osaka, mas de
certo modo exaltado. Compreendo o que significou o sacrifício
dela... Ela lhe contou sobre o pai, toda aquela outra tragédia?
- Sim. Alguma coisa.
- Ah. Então o senhor também compreende. Conheci Ju-san
Kubo muito bem.
-- O quê? Refere-se a Akechi Jinsai?
- Oh, desculpe, sim. É esse o nome pelo qual ele é conhecido agora. Mariko-sama não lhe contou?
- Não.
- O táicum ironicamente o apelidou assim: Ju-san Kubo,
Xógum dos Treze Dias. A rebelião dele - ao condenar seus
homens ao grande seppuku - durou apenas treze dias. Era um
homem excelente, mas odiava-nos, não porque éramos cristãos,
mas porque éramos estrangeiros. Freqüentemente me perguntei se
Mariko não se tornou crista apenas para aprender os nossos procedimentos, a fim de nos destruir. Ele dizia freqüentemente que
eu tinha envenenado Goroda contra ele.
- Envenenou?
-- Não.
- Como era ele?
- Um homem baixo, calvo, muito orgulhoso, um excelente
general e um poeta de grande notoriedade. Muito triste terminar
daquele jeito, todos os Akechi. E agora a última deles. Pobre
Mariko... mas o que ela fez salvou Toranaga, se Deus assim o
desejar. - Os dedos de Alvito tocaram o rosário. Após um momento, disse: - Além disso, piloto, antes de partir quero me
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desculpar por... hem, estou contente que o padre-inspetor estivesse lá para salvá-lo.
- Desculpa-se pelo meu navio também?
- Não pelo Erasmnus, porque não tive nada a ver com isso.
Peço desculpas apenas por aqueles homens, Pesaro e o capitãomor. Estou contente que o seu navio tenha sido destruído.
- Shigata ga nai, padre. Logo terei outro.
- Que tipo de embarcação tentará construir?
- Uma que seja grande e forte o suficiente.
- Para atacar o Navio Negro?
- Para navegar de volta à Inglaterra e me defender de
qualquer um.
- Será um desperdício, todo esse esforço.
- Haverá outro "ato de Deus"?
- Sim. Ou sabotagem.
- Se houver e o meu navio falhar, construo outro, e se
esse falhar, outro. Vou construir um navio e quando voltar à
Inglaterra vou pedir, emprestar, comprar ou roubar um privateer
e então voltarei para cá.
- Sim. Eu sei. É por isso que nunca partirá. O senhor sabe
demais, Anjin-san. Dissê-lhe isso antes e digo de novo, mas sem
maldade. Realmente. É um bravo homem, um excelente adversário, digno de respeito, e eu o respeito, e deveria haver paz entre
nós. Vamos nos ver muito um ao outro ao longo dos anos - se
algum de nós sobreviver à guerra.
- Vamos nos ver?
- Sim. O senhor está muito bom em japonês. Logo será o
intérprete pessoal de Toranaga. Não deveríamos discutir, o senhor
e eu. Receio que nossos destinos estejam interligados. Mariko-san
também lhe disse isso? A mim disse.
- Não. Ela nunca disse. O que mais ela lhe disse?
- Rogou-me que fosse seu amigo, que o protegesse se pudesse. Anjin-san, não vim aqui para espicaçá-lo, ou para discutir,
mas para pedir paz antes de partir.
- Aonde vai?
- Primeiro a Nagasaki, de navio, saindo de Mishima. Há
negociações comerciais a concluir. Depois para onde quer que
Toranaga vá, onde quer que seja a batalha.
- Eles o deixarão comerciar livremente, apesar da guerra?
- Oh, sim. Eles precisam de nós, vença quem vencer. Com
certeza podemos ser razoáveis e fazer a paz, o senhor e eu. Peço
por causa de Mariko-sama.
1240
Blackthorne não disse nada por um instante. - Uma vez
tivemos uma trégua, porque ela quis. Ofereço-lhe isso. Uma trégua, não uma paz - desde que o senhor concorde em não chegar
a mais de cinqüenta milhas do ponto onde estiver o meu estaleiro.
- Concordo, piloto, claro que concordo, mas o senhor não
tem nada a recear de mim. Uma trégua, então, em memória dela.
- Alvito estendeu a mão. - Obrigado.
Blackthorne apertou a mão com firmeza. Então Alvito disse:
- O funeral dela será logo em Nagasaki. Deve ser na catedral.
O padre-inspetor dirá o serviço pessoalmente. Parte de suas cinzas serão sepultadas lá.
- Ela gostaria disso. - Blackthorne observou os destroços
do navio um momento, depois olhou de novo para Alvito. - Uma
coisa que eu ... eu não mencionei a Toranaga: pouco antes de
ela morrer eu a abençoei como um padre faria, e dei-lhe os últimos ritos do melhor modo que pude. Não havia mais ninguém
e ela era católica. Não creio que me tenha ouvido, não sei se
estava consciente. E repeti na cremação. Isso... isso seria a mesma coisa? Seria aceitável? Tentei fazê-lo diante de Deus, não o
meu, nem o seu, mas Deus.
- Não, Anjin-san. Somos ensinados que não seria a mesma
coisa. Mas dois dias antes de morrer ela pediu e recebeu absolvição do padre-inspetor, e foi santificada.
- Então ... então ela sabia o tempo todo que tinha que
morrer... acontecesse o que acontecesse, ela era um sacrifício.
- Sim, Deus a abençoe e estime!
- Obrigado por me dizer - disse Blackthorne. - Eu...
eu estive sempre preocupado que a minha intercessão não servisse,
embora eu ... Obrigado por me dizer.
- Sayonara, Anjin-san - disse Alvito, oferecendo a mão
de novo.
- Sayonara, Tsukku-san. Por favor, acenda uma vela para
ela... por mim.
-- Farei isso.
Blackthorne apertou a mão e ficou olhando o padre se afastar, alto e forte, um adversário digno. Seremos sempre inimigos,
pensou. Ambos sabemos disso, com trégua ou sem trégua. O que
você diria se soubesse do plano de Toranaga e do meu plano?
Nada além do que já ameaçou, neh? Bom. Compreendemos um
ao outro. Uma trégua não fará mal algum. Mas não vamos nos
ver tanto assim, Tsukku-san. Enquanto o meu navio estiver sendo
construído, tomarei o seu lugar como intérprete com Toranaga e
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os regentes, e logo você estará fora das negociações de comércio,
mesmo enquanto os navios portugueses ainda carregarem a seda.
E tudo isso também mudará. Minha frota será apenas o começo.
Em dez anos o Leão da Inglaterra dominará estes mares. Mas
primeiro The Lady, depois o resto.. .
Contente, Blackthorne voltou para junto de Naga e estabeleceu planos para o dia seguinte, depois subiu a vertente até a sua
casa temporária, perto da de Toranaga. Lá comeu arroz e peixe
cru desfiado que um dos seus cozinheiros preparara para ele, e
achou delicioso. Pegou um segundo prato e começou a rir.
- Senhor?
- Nada. - Mas mentalmente estava vendo Mariko e ouvindo-a dizer: - Oh, Anjin-san, um dia talvez até consigamos
que o senhor goste de peixe cru, e então o senhor estará a caminho do nirvana, o Lugar da Paz Perfeita.
Ah, Mariko, pensou ele, estou muito contente com a absolvição verdadeira. E agradeço-lhe.
Agradece o quê, Anjin-san? ouviu-a dizer.
A vida, Mariko, minha querida. Você.. .
Muitas vezes, durante o dia e a noite, ele conversava com
ela mentalmente, revivendo partes da vida deles juntos e contando-lhe sobre hoje, sentindo-lhe a presença muito próxima, sempre
tão próxima que uma ou duas vezes ele olhara por sobre o ombro,
esperando vê-Ia em pé, ali. Fiz isso esta manhã, Mariko, mas em
vez de você era Buntaro, com Tsukku-san ao lado, ambos me
fitando. Eu tinha a minha espada, mas ele estava com o grande
arco nas mãos. Iiiiih, meu amor, precisei de toda a minha coragem para me aproximar e cumprimentá-los formalmente. Você
estava assistindo? Teria tido orgulho de mim, tão calmo e samurai
o petrificado. Ele disse rigidamente, falando por intermédio do
Tsukku-san: - A Senhora Kiritsubo e a Senhora Sazuko me informaram de como o senhor protegeu a honra de minha esposa
o a delas. Como o senhor a salvou da vergonha. E a elas. Agradeço-lhe, Anjin-san. Por favor, desculpe-me pelo meu desprezível
desequilíbrio de antes. Peço desculpas e agradeço. - Então se
curvou para mim e foi embora, e eu tive muita vontade de que
você estivesse aqui - para saber que está tudo protegido e ninguém jamais saberá.
Muitas vezes Blackthorne olhara por sobre o ombro, esperando vê-Ia ali, mas ela nunca estava e nunca estaria, e isso não
o perturbava. Ela estava com ele para sempre, e ele sabia que a
amaria nos bons tempos e nos tempos trágicos, mesmo no inverno
1242
da sua vida. Ela estava sempre presente nos seus sonhos. E agora
esses sonhos eram bons, muito bons, e misturados com ela estavam esboços, planos, a escultura da figura de proa e velas e como
fazer a quilha e como construir o navio, e depois, que alegria, a
forma final de The Lady a toda vela, enfunada por um impetuoso
vento sudoeste, subindo canal acima, o freio entre os dentes, adriças rangendo, botalós estirados numa manobra de bombordo e
depois: "Todas as velas, ho! Joanetes, velas mestras, sobrejoanetes!" soltando-se das cordas, dando-lhe cada polegada, o canhoneio das velas com o navio tomando outra posição e "Conservem
o rumo!", cada partícula de lona respondendo ao seu grito, e
depois, finalmente, encorpada, uma dama de beleza inestimável
virando a bombordo perto de Beachy Head para Londres.. .
Toranaga subiu a elevação perto do acampamento, sua comitiva agrupada ao seu redor. Trazia Kogo sobre a luva, havia
caçado ao longo da costa e agora se dirigia para as colinas acima
da aldeia. Ainda restavam duas horas de sol e ele não queria desperdiçá-las, não sabendo quando teria tempo para caçar outra vez.
Hoje foi para mim, pensou ele. Amanhã irei à guerra, mas
hoje foi para pôr a minha casa em ordem, fingindo que o Kwanto
estava seguro e Izu estava seguro, e a minha sucessão - que
viverei para ver outro inverno e, na primavera, caçar por lazer.
Ah, hoje foi muito bom.
Matara duas vezes com Tetsu-ko e a ave voara como num
sonho, nunca estivera tão perfeita nem mesmo quando caçara com
Naga, perto de Anjiro - aquele belo mergulho, de não se esquecer nunca, para pegar aquele astuto galo velho. Hoje ela pegara
um grou com várias vezes o seu tamanho e voltara à isca perfeitamente. Um faisão fora apontado pelos cães e ele lançara o falcão para a posição circulante no ar. Depois o faisão fora abalado
o o eleva-se, sobe e cai começara, para durar para sempre, um
abate lindo. Novamente Tetsu-ko voltara à isca e se alimentara
sobre o punho orgulhosamente.
Agora ele estava à procura de uma lebre. Ocorrera-lhe que
o Anjin-san gostaria de carne. Assim, em vez de dar o dia por
encerrado, satisfeito, Toranaga decidira caçar comida. Apertou o
passo, não querendo falhar.
Seus batedores à dianteira passaram pelo acampamento, subiram a estrada coleante até o cume, e ele se sentia extremamente
contente com o dia que tivera.
1243
Seu olhar crítico varreu o acampamento, procurando perigos,
e não descobriu nenhum. Pôde ver homens em treinamento de
armas - todo o treinamento e tiroteio do regimento estava proibido enquanto Tsukku-san se encontrasse por perto -, e isso lhe
agradou. A um lado, cintilando ao sol, estavam os vinte canhões
que haviam sido salvos com tanto cuidado, e ele notou que Blackthorne estava sentado de pernas cruzadas no chão ali perto, concentrado sobre uma mesa baixa, sentado, agora, como qualquer
pessoa normal se sentaria. Adiante via os restos do navio, notou
que ainda não saíra do lugar, e perguntou-se como o Anjin-san
o traria para a praia, se não pudesse ser puxado.
Porque, Anjin-san, você o trará para a praia, disse-se Toranaga, com toda a certeza.
Oh, sim. E construirá o seu navio e eu o destruirei como
destruí o outro, ou o entregarei, outro bocado para os cristãos,
que são mais importantes para mim do que os seus navios, meu
amigo, sinto muito, e do que os outros navios esperando no seu
país. Seus compatriotas os trarão para mim, e o tratado com a
sua rainha. Não você. Preciso de você aqui.
Quando o momento for oportuno, Anjin-san, eu lhe contarei
por que tive que queimar o seu navio, e então você não se importará, porque outras coisas o estarão ocupando, e compreenderá
que o que eu lhe disse era verdade igualmente: era o seu navio
ou a sua vida. Escolhi a sua vida. Foi correto, neh? Então riremos
sobre o "ato de Deus", você e eu. Oh, foi fácil designar um turno
especial de homens de confiança a bordo, com instruções secretas
de espalhar pólvora com abundância na noite escolhida, depois
de dizer a Naga - no momento em que Omi sussurrara sobre a
conspiração de Yabu - que refizesse a escalação, de modo que
a patrulha da praia e o vigia de convés fossem apenas homens de
Izu, particularmente os cinqüenta e três traidores. Depois um
único ninja saído da escuridão com uma pederneira e o seu navio
se tornou uma tocha. Claro que nem Omi nem Naga jamais estiveram a par da sabotagem.
Sinto muito, mas foi muito necessário, Anjin-san. Salvei-lhe
a vida, que você desejava acima do seu navio. Cinqüenta vezes
ou mais já tive que considerar a possibilidade de entregar a sua
vida, mas até o momento consegui dar um jeito de evitar isso.
Espero continuar a fazê-lo. Por quê? Este é um dia para verdade,
neh? A resposta é que você me faz rir e eu preciso de um amigo.
Não me atrevo a fazer amigos entre a minha própria gente, ou
entre os portugueses. Sim, cochicharei isso num poço ao meio1244
dia, mas só quando tiver certeza de estar sozinho: preciso de nm
amigo. E também do seu conhecimento. Mariko-sarna estava certa
de novo. Antes de você partir, quero saber tudo o que você sabe.
Eu lhe disse que nós dois tínhamos muito tempo, você e eu.
Quero saber como navegar em torno da terra e compreender
como uma pequena ilha pode derrotar um império imenso. Talvez a resposta se aplicasse a nós e à China, neh? Oh, sim, o
táicum estava certo em algumas coisas.
Na primeira vez que o vi, eu disse: - Não há desculpa para
rebelião. - E você disse: Há uma: se se vence! Ah, Anjinsan, afeiçoei-me a você naquele momento. Concordo. Está tudo
certo se se vence.
Estupidez fracassar. imperdoável.
Você não fracassará, e estará seguro e feliz no seu grande
feudo de Anjiro, onde Mura, o pescador, o protegerá dos cristãos
e continuará a lhes fornecer informações falsas, conforme eu determine. Que ingenuidade do Tsukku-san acreditar que algum dos
meus homens, ainda que cristão, roubaria os seus portulanos e os
daria secretamente aos padres sem o meu conhecimento ou a
minha orientação. Ah, Mura, você tem sido fiel há trinta anos
ou mais, logo receberá a sua recompensa! O que diriam os padres
se soubessem que o seu verdadeiro nome é Akira Tonomoto, samurai - espião sob a minha orientação, assim como pescador,
chefe de aldeia e cristão! Eles peidariam pó, neh?
Por isso nao se preocupe, Anjin-san, eu estou me preocupando quanto ao seu futuro. Está em boas e fortes mãos e, ah, que
futuro planejei para você!
- Devo ser consorte do bárbaro? oh! oh! oh! - gemera
Kiku.
- Sim, dentro de um mês. Fujiko-san formalmente concordou. - Mais uma vez contara a verdade a Kiku e a Gyoko,
pacientemente. - E mil kokus por ano após o nascimento do
primeiro filho do Anjin-san.
-- Hein, mil... o que o senhor disse?
Ele repetira a promessa e acrescentara suavemente: - Afinal de contas, samurai é samurai, e duas espadas são duas espadas, e os filhos dele serão samurais. Ele é hatamoto, um dos meus
vassalos mais importantes, almirante de todos os meus navios, um
conselheiro pessoal íntimo - até um amigo. Neh?
Sinto muito, mas, senhor.. .
Primeiro você será consorte dele.
Desculpe. primeiro senhor?
1245
- Talvez você devesse ser sua esposa. Fujiko-san disse-me
que não deseja se casar, nunca mais, mas acho que ele deve se
casar. Por que não com você? Se você lhe agradar o suficiente, e
imagino que possa, e ainda, se o mantiver construindo o navio...
neh? Sim, acho que você deve ser esposa dele.
- Oh sim, oh sim, oh sim! - Ela atirara os braços em
torno do pescoço dele e o abençoara e pedira desculpas pela impulsiva falta de modos, interrompendo e não ouvindo com submissão, e o deixara, caminhando quatro passos acima do solo, quando
um momento atrás estivera prestes a se atirar do penhasco mais
próximo.
Ah, mulheres, pensou Toranaga, confuso e muito contente.
Agora ela tem tudo o que deseja, assim como Gyoko - se o
navio for construído em tempo, e será -, assim como os padres,
assim como ...
- Senhor! -- Um dos caçadores estava apontando para uma
moita ao lado da estrada. Ele freou e preparou Kogo, afrouxando
os pioses que prendiam a ave ao seu punho. - Já - ordenou
ele suavemente. Soltaram o cão.
A lebre irrompeu dos arbustos, correndo à procura de proteção, e nesse instante Toranaga soltou Kogo. Com batidas de
asas imensamente potentes, ela se lançou em perseguição, direto
como uma seta, passando à frente do animal em pânico. Adiante,
cem passos do outro lado da ondulação do terreno, havia um
matagal espinhoso, e a lebre disparou em ziguezague, a uma velocidade frenética, rumando para a segurança, Kogo fechando a
brecha, cortando as extremidades, investindo sempre mais perto,
a alguns pés do solo. Então postou-se acima da presa, atacou, a
lebre guinchou, levantou-se nas patas traseiras e voltou em disparada, Kogo ainda em perseguição, chiando de raiva porque
errara. A lebre rodopiou de novo numa arremetida final para um
abrigo e guinchou quando Kogo atacou outra vez, fincou firme
as garras no pescoço e na cabeça da lebre, e se agarrou sem medo,
fechando as asas, sem se importar com as frenéticas contorções e
volteios do animal, enquanto sem esforço o milhafre lhe quebrava
o pescoço. Um último guincho. Kogo largou a presa e lançou-se
ao ar por um instante, sacudiu as penas arrepiadas de volta ao
lugar com um estremecimento violento, depois pousou novamente
sobre o corpo quente, contorcendo-se, as garras mais uma vez no
aperto mortal. Então, e só então, soltou o seu guincho de vitória
e sibilou de prazer com a matança. Seus olhos fitavam Toranaga.
Toranaga aproximou-se a trote e desmontou, oferecendo o
1246
engodo. Obedientemente o milhafre abandonou a presa e então,
como Toranaga habilmente escondera o engodo, pousou sobre a
luva esticada. Os dedos do daimio seguraram os pioses e ele pôde
sentir o aperto das garras através do couro reforçado com aço do
indicador.
- Iiiiih, foi muito bem-feito, minha beleza - disse ele,
recompensando-a com um bocado, uma parte da orelha da lebre
que um batedor cortara para ele. - Pronto, empanturre-se com
isto, mas não demais - você ainda tem trabalho a fazer.
Sorrindo, o batedor levantou a lebre. - Amo! Deve ter três,
quatro vezes o peso dela. O melhor que vimos há semanas, neh?
- Sim. Mande-a para o acampamento, para o Anjin-san.
- Toranaga subiu à sela de novo e acenou aos outros que prosseguissem, a caça novamente.
Sim, o abate foi muito bem executado, mas não teve nada
da excitação do de um peregrinos. Um milhafre é apenas o que
é, uma ave de cozinheiro, um matador, nascido para matar toda
e qualquer coisa que se mova. É como você, Anjin-san, neh?
Sim, você é um gavião de asas curtas. Ah, mas Mariko era
um peregrinos. Lembrou-se dela muito claramente e sentiu uma
vontade imensa de que não tivesse sido necessário que ela fosse
a Osaka e para o Vazio. Mas era necessário, disse-se ele pacientemente. Os reféns tinham que ser libertados. Não os meus parentes, mas todos os outros. Agora tenho mais cinqüenta aliados
comprometidos secretamente. A sua coragem e a coragem e o
auto-sacrifício da Senhora Etsu trouxeram-nos e a todos os Maeda
para o meu lado, e, através deles, toda a costa ocidental. Ishido
tinha que ser atraído para fora do seu covil inexpugnável, os regentes divididos, e Ochiba e Kiyama trazidos, domados, ao meu
punho. Você fez tudo isso e mais: deu-me tempo. Apenas o
tempo monta armadilhas e produz engodos.
Ah, Mariko-chan, quem teria pensado que um nadinha
de mulher como você, filha de Ju-san Kubo, meu velho rival, o
arquitraidor Akechi Jinsai, poderia fazer tanto e descarregar uma
vingança tamanha, tão lindamente e com tanta dignidade, contra
o táicum, inimigo e assassino do seu pai. Um único mergulho
apavorante, como Tetsu-ko, e você matou todas as suas presas,
que são as minhas.
Muito triste que você não exista mais. Lealdade assim merece favor especial.
Toranaga estava no topo agora. Parou e chamou Tetsu-ko.
O falcoeiro tirou-lhe Kogo e Toranaga acariciou o peregrinos
1247
encapuzado sobre o punho uma última vez, depois removeu-lhe
o capuz e lançou-o ao céu. Observou-lhe a espiral ascendente,
sempre ascendente, procurando uma presa que ele não mais lhe
apontaria como isca. A liberdade de Tetsu-ko é o meu presente a
você, Mariko-san, disse ele ao espírito dela, observando o falcão
circular cada vez mais alto. Para honrar a sua lealdade a mim e a
sua devoção filial à nossa regra mais importante: que um filho respeitoso, ou filha, não pode descansar sob o mesmo céu enquanto
o assassino de seu pai estiver vivo.
- Ah, muito sábio, senhor - disse o falcoeiro.
- Hein?
- Soltar Tetsu-ko, libertá-la. Da última vez que o senhor
a soltou, pensei que ela nunca mais voltaria, mas não tinha certeza. Ah, senhor, é o maior falcoeiro do reino, o melhor, para
saber, para ter certeza de quando devolvê-la ao céu.
Toranaga permitiu-se fazer uma carranca. O falcoeiro empalideceu, sem compreender por quê, rapidamente ofereceu Kogo
de novo e recuou às pressas.
Sim, o momento de Tetsu-ko chegara, pensou Toranaga irritado, mas ainda assim foi um presente simbólico ao espírito de
Mariko e à qualidade da sua vingança.
Sim. Mas e quanto a todos os filhos de todos os homens que
você matou?
Ah, isso é diferente, aqueles mereceram morrer, todos eles,
respondeu ele a si mesmo. Assim, você sempre se acautela contra
quem avança até o raio de uma seta - isso é prudência normal.
A observação agradou a Toranaga e ele resolveu acrescentá-la ao
Legado.
Semicerrou os olhos para o céu mais uma vez e viu o falcão,
que já não era seu. Era uma criatura de imensa beleza lá em
cima, além de todas as cóleras, elevando-se sem esforço. Então
alguma força fora do alcance visual de Toranaga tomou-a, fê-la
girar para norte, e ela desapareceu.
- Ah, Tetsu-ko, obrigado. Faça muitas filhas - disse ele,
o voltou a atenção para a terra, aqui embaixo.
A aldeia era nítida ao sol se pondo, o Anjin-san ainda estava
à sua mesa, samurais treinando, fumaça elevando-se das cozinhas.
Do outro lado da baía, vinte ris mais ou menos, ficava Yedo.
Quarenta ris a sudoeste, Anjiro. Duzentas e noventa ris a oeste
Osaka, e trinta ris ao norte, depois de Osaka, Kyoto.
É lá que deve ser a batalha principal, pensou ele. Perto da
capital. Ao norte, contornando Gifu ou Ogaki ou Hashima, trans1248
versalmente sobre a Nakasendo, a Grande Estrada Norte. Talvez
onde a estrada dobra para o sul, para a capital, perto da pequena
aldeia de Sekigahara, nas montanhas. Em algum lugar lá. Oh, eu
estaria a salvo durante anos atrás das minhas montanhas, mas
esta é a chance pela qual esperei: a jugular de Ishido está desprotegida.
Minha investida principal será ao longo da estrada Norte e
não pela Tokaido, a estrada costeira, embora daqui até lá eu vá
fingir mudar de idéia cinqüenta vezes. Meu irmão cavalgará comigo. Oh, sim, acho que Zataki se convencerá de que Ishido o
traiu com Kiyama. Meu irmão não é tolo. E manterei meu voto
solene de dar-lhe Ochiba. Durante a batalha Kiyama mudará de
lado, acho que mudará de lado, e quando o fizer, se fizer, cairá
em cima do seu odiado rival, Onoshi. Esse será o sinal para as
armas de fogo atacarem, eu enrolarei os flancos dos exércitos
deles e vencerei. Oh, sim, vencerei - porque Ochiba, prudentemente, nunca deixará o herdeiro se pôr em campo contra mim.
Sabe que, se o fizesse, eu seria forçado a matá-lo, sinto muito.
Toranaga começou a sorrir secretamente. No momento em
que tiver vencido, darei a Kiyama todas as terras de Onoshi, e o
convidarei a designar Saruji seu herdeiro. No momento em que
eu for presidente do novo conselho de regentes, apresentaremos
a proposta de Zataki à Senhora Ochiba, que ficará tão enraivecida
com a impertinência dele que, para aplacar a primeira dama da
terra do herdeiro, os regentes lamentavelmente terão que convidar
meu irmão a partir para o Vazio. Quem deverá tomar o seu lugar
como regente? Kasigi Omi. Kiyama será a presa de Omi... sim,
isso é sábio, e muito fácil, porque com certeza, nessa altura,
Kiyama, senhor de todos os cristãos, estará ostentando a sua religião, que ainda é contra a nossa lei. Os editos de expulsão do
táicum ainda são legais, neh? Certamente Omi e os outros dirão:
- Voto para que os editos sejam invocados. - E uma vez que
Kiyama se tenha ido, nunca mais deverá haver um regente cristão, e pacientemente o nosso arrocho se reforçará sobre o estúpido mas perigoso dogma estrangeiro que é uma ameaça à Terra
dos Deuses, que sempre ameaçou a nossa wa... e que portanto
deve ser destruído. Nós, regentes, encorajaremos os compatriotas
do Anjin-san a tomar o comércio português. Tão logo seja possível, os regentes ordenarão que todo o comércio e todos os estrangeiros se confinem a Nagasaki, a uma parte minúscula de
Nagasaki, sob uma guarda muito séria. E fecharemos o país a
eles para sempre... a eles, às suas armas e aos seus venenos.
1249
Tantas coisas maravilhosas a fazer, depois que eu tiver vencido, se eu vencer, quando eu vencer. Somos um povo muito
previsível.
Será uma idade áurea. Ochiba e o herdeiro majestosamente
instalarão a corte em Osaka, e de vez em quando nós nos curvaremos diante deles e continuaremos a governar em seu nome, do
lado de fora do Castelo de Osaka. Dentro de três anos mais ou
menos, o Filho do Céu me convidará a dissolver o conselho e a
me tornar xógum pelo resto da minoridade do meu sobrinho. Os
regentes me pressionarão a aceitar e, relutantemente, aceitarei.
Depois de um ano ou dois, sem cerimônia, renunciarei em favor
de Sudara, conservarei o poder como sempre, e ficarei de olhos
firmes no Castelo de Osaka. Continuarei a esperar pacientemente
e um dia aqueles usurpadores lá dentro cometerão um engano e
desaparecerão, e de algum modo o Castelo de Osaka desaparecerá, apenas outro sonho dentro de um sonho, e o verdadeiro
prêmio do grande jogo que começou assim que eu pude pensar,
que se tornou possível no momento em que o táicum morreu, o
verdadeiro prêmio será conquistado: o xogunato.
É por isso que venho lutando e planejando a vida toda. Eu,
sozinho, sou o herdeiro do reino. Serei xógum. E darei início a
uma dinastia.
É tudo possível agora, por causa de Mariko-san e do bárbaro
estrangeiro, que veio do mar oriental.
Mariko-san, era seu karma morrer gloriosamente e viver para
sempre. Anjin-san, meu amigo, é seu karma não deixar nunca
esta terra. O meu é ser xógum.
Kogo, o milhafre, esvoaçou sobre o seu pulso e se acomodou,
observando-o. Toranaga sorriu para a ave. Não escolhi ser o que
sou. É o meu karma.
1250
Naquele ano, ao amanhecer do vigésimo primeiro dia do
décimo mês, o Mês sem Deuses, os exércitos principais se chocaram. Foi nas montanhas perto de Sekigahara, cortando a estrada
Norte, o tempo péssimo - neblina, depois granizo. Pelo fim da
tarde Toranaga havia vencido a batalha e o massacre começou.
Quarenta mil cabeças rolaram.
Três dias depois Ishido foi capturado vivo. Toranaga cordialmente lembrou-o da profecia e mandou-o a ferros para Osaka,
para exibição pública, ordenando aos etas que plantassem firmemente os pés do Senhor General Ishido na terra, deixando apenas
a cabeça do lado de fora, e que convidassem os passantes a serrar
o pescoço mais famoso do reino com uma serra de bambu. Ishido
durou três dias e morreu muito velho.
1251
O AUTOR E SUA OBRA
James Clavell. nasceu em Sydney, Austrália, em 1924, mas
educou-se na Inglaterra. Seguindo a tradição militar da família,
ingressou na Artilharia Real inglesa com apenas dezesseis anos e,
a serviço do Exército, passou quatro anos no Extremo Oriente
(Birmânia, Sri Lanka, judia, Malásia, Cingapura, Sumatra, Bornéu, Java) e depois na África.
Ao fim da guerra, Jalnes Clavell alcançava a patente de capitão e retomava os estudos na Universidade de Birmingham, que
freqüentou em 1946 e 1947. Trabalhou como vendedor em Londres, antes de ingressar como produtor de programas na British
Broadcasting Co. (BBC).
Entretanto, seu grande período de criação começa em 1953,
quando se transfere para os Estados Unidos, naturalizando-se cidadão americano. A partir de então, alterna expressivos trabalhos
tanto na literatura como no cinema, a tal ponto que se torna difícil classificá-lo separadamente numa ou noutra atividade.
Escreveu, para vários diretores, os roteiros dos filmes "A
mosca da cabeça branca" ("The fly", 1958), "Watusi" (1958),
"Fugindo do inferno" ("The great escape", 1963), "Inferno nos
céus" ("633 Squadron", 1964) e "O mundo marcha para o fim"
("Satan Bug", 1964), onde ficaram evidentes suas qualidades de
ficcionista e narrador. É também o caso do filme produzido em
1962 pela Columbia e dirigido por Bryan Forbes, com base em
seu romance "King rat" ("O rei de um inferno").
Firmando posição e renome no meio cinematográfico, James
Clavell escreveu, produziu e dirigiu cinco filmes, sendo o mais
conhecido "Ao mestre com carinho" ("To sir, with love"), protagonizado por Sidney Poitier.
Independentemente de sua atividade no cinema, consagrou-se
como grande escritor com "Tai-Pan", o romance do Oriente, que
também estava para ser filmado pela Metro, quando o projeto foi cancelado devido a uma crise na empresa. Esse livro foi citado durante muito tempo na lista dos best cellers do suplemento elogiadíssimo "Xógun", onde mais uma vez retorna ao canário oriental que tão bem conheceu.
final do livro.
1253
xógun volume II - James Clavell.txt
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