quinta-feira, 24 de junho de 2010

ZADIG OU O DESTINO, UMA HISTÓRIA ORIENTAL - Voltaire.txt

ZADIG OU O DESTINO - Uma história oriental
Voltaire

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ZADIG OU O DESTINO Uma história oriental

Voltaire APRESENTAÇÃO

Voltaire (François-Marie Arouet) foi um dos grandes filósofos do
Iluminismo. Dentre as suas qualidades destaca-se a ironia, às vezes
gentil, em outras sarcástica e, não poucas vezes, profundamente
destrutiva. Suas obras dão sentido à velha máxima: "Ridendo Castigat
Mores" (com o riso castigam-se os costumes). Zadig não é diferente;
ironiza o poder, a organização política, a riqueza, o orgulho as
pretensões da burguesia, a riqueza, a inveja e muito mais. Vale hoje
como valeu em seu século. A edição é antiga, mantivemos a pontuação e
acentuação originais que os gramáticos resolveram alterar um dia.

Nélson Jahr Garcia

ZADIG OU O DESTINO I. O CAOLHO

No tempo do rei Moabdar havia em Babilônia um jovem chamado Zadig e cuja
boa índole se aprimorara pela educação. Embora moço e rico, sabia
moderar as paixões, não afetava nada; não pretendia ter sempre razão, e
costumava respeitar a fraqueza dos homens. Era de espantar que, com
tanto espírito, jamais procurasse meter a ridículo êsses diálogos tão
vagos, tão incoerentes, tão irrequietos, essas temerárias maledicências,
êsses juízos ignaros, essas grosseiras chocarrices, êsse vão palavrório,
a que se chamava conversação em Babilônia. Aprendera, no primeiro livro
de Zoroastro, que o amor-próprio é um balão cheio de vento, de onde
brotam tempestades quando se lhes dá uma alfinetada. Não se vangloriava,
principalmente, de desprezar as mulheres e subjugá-las. Era generoso;
não se arreceava de prestar serviços a ingratos, conforme êste grande
preceito de Zoroastro Quando comeres, dá de comer aos cães, ainda que te
mordam. Era o mais sábio possível, pois procurava viver com os sábios.
Instruído na ciência dos antigos caldeus, não ignorava os princípios
físicos da natureza, tais como se conheciam então e, quanto à
metafísica, sabia dessa matéria o que sempre se soube em tôdas as
épocas, isto é, pouquíssima coisa. Estava firmemente convicto de que o
ano se compunha de trezentos e sessenta e cinco dias e um quarto, mau
grado a nova filosofia do seu tempo, e de que o sol ficava no centro do

mundo; e quando os principais magos, com insultuosa arrogância, lhe
diziam que demonstrava, assim, maus sentimentos e que só um inimigo do
Estado poderia acreditar que o sol girasse sôbre si mesmo e o ano
tivesse doze meses - Zadig calava sem cólera e sem desprêzo. Com grandes
riquezas, e por conseguinte com amigos, de boa saúde, agradável
aparência, espírito justo e moderado, e um coração sincero e nobre,
julgou que podia ser feliz. Ia desposar Semira, cujo nascimento e
fortuna a tornavam o primeiro partido de Babilônia. Dedicava-lhe um
firme e virtuoso afeto e Semira o amava com paixão. Não tardava o feliz
momento que os ia unir, quando, passeando os dois pelas proximidades de
uma das portas de Babilônia, viram encaminhar-se a seu encontro alguns
homens armados de sabres e frechas. Eram os satélites do jovem Orcan,
sobrinho de um ministro, e a quem os cortesãos do tio haviam feito
acreditar que tudo lhe era permitido. Não tinha nenhuma das graças ou
virtudes de Zadig; mas, julgando valer muito mais, exasperava-se por não
ser o predileto. Tal ciúme, que só a vaidade inspirava, o convencera de
que amava loucamente a Semira. E queria raptá-la. Os asseclas
lançaram-se a ela e, na sua brutalidade, chegaram a feri-la, derramando
o sangue daquela criatura cuja vista seria capaz de enternecer os tigres
do monte Imaús. Ela feria os céus com seus lamentos. "Ó meu caro espôso!
- bradava. - Arrancam-me àquele a quem adoro!" Não se preocupava com o
próprio perigo; pensava apenas no seu Zadig, o qual, ao mesmo tempo, a
defendia com tôdas as

fôrças que empresta a coragem e o amor. Sòmente com o auxílio de dois
escravos, pôs os homens em fuga, carregando-a, desfalecida e
ensangüentada, para a casa de seus pais. Logo que Semira voltou a si,
deu com os olhos no seu salvador, e disse-lhe: "Ó Zadig! antes eu te
amava como a meu espôso; mas agora amo-te como àquele a quem devo a
honra e a vida". Nunca houve coração mais comovido que o de Semira.
Nunca uns lábios encantadores exprimiram mais tocantes sentimentos, com
essas ardentes palavras inspiradas na maior gratidão e nos transportes
do justificado amor. Seus ferimentos eram leves; ficou logo boa. Zadig
fôra atingido mais gravemente; uma frechada perto de um ôlho
produzira-lhe profundo ferimento. Semira só pedia aos deuses a cura de
seu amado. Seus olhos, noite e dia, estavam banhados de lágrimas:
esperava o momento em que os de Zadig pudessem gozar de seus olhares;
mas um abscesso, que se formou na vista afetada, deu causa às maiores
apreensões. Mandaram chamar em Mênfis o grande médico Hermes, que chegou
com numeroso séquito, visitou o enfêrmo, e declarou que êste perderia a
vista; predisse até o dia e hora em que deveria suceder o nefasto
acidente. "Se fosse o ôlho direito - disse êle - eu poderia curá-lo; mas
as feridas na vista esquerda, são incuráveis".. Tôda Babilônia,
lamentando o destino de - Zadig, admirou a profundeza da ciência de
Hermes. Dois dias depois, o abscesso resolveu-se por si mesmo; Zadig
ficou completamente são. Hermes escreveu então um livro, em que lhe
provou que não deveria ter sarado.

Zadig não o leu; mas, logo que pôde sair, aprestou- se para visitar
aquela em que fazia consistir tôda a sua felicidade e só pela qual
desejava conservar os dois olhos. Fazia três dias que Semira se achava
no campo. Soube, em caminho, que essa bela dama, depois de declarar,
abertamente a sua invencível aversão aos caolhos, desposara Orcan
naquela mesma noite. A essa nova, Zadig perdeu os sentidos; a dor o
levou à beira do túmulo; por muito tempo esteve doente; mas enfim a
razão venceu o sofrimento, e a própria atrocidade do que experimentava
serviu para o consolar. Já que sofri - disse êle - tão cruel capricho de
uma moça da Côrte, devo agora procurar uma burguesa. Escolheu Azora, a
mais recatada donzela e a de família da cidade; desposou-a, e viveu com
ela um mês os encantos da mais doce união. Apenas lhe notava certa
leviandade e demasiado pendor para achar que eram exatamente os jovens
mais bonitos que tinham mais espírito e virtudes.

II. O NARIZ

Um dia Azora voltou de um passeio muito encolerizada e com grandes
exclamações. - - Que tens, minha querida espôsa? Quem te pôs nesse
estado? - Ah! ficarias como eu, se visses o que acabo de presenciar. Fui
confortar a viúva Cosru, que há dois dias edificou um túmulo para seu
jovem espôso, junto ao arroio que banha as redondezas. Na sua aflição,
prometera aos deuses que ficaria junto do

túmulo enquanto lhe corressem ao lado as águas do arroio. - Pois então!
Eis aí uma estimável mulher, que amava; verdadeiramente a seu marido! -
Ah! se soubesses em que se ocupava ela quando a fui visitar! - Em que,
minha bela Azora? - Ela estava mandando desviar o arroio. E Azora
alongou-se em tais - invectivas, explodiu criminações tão violentas, que
não agradou em nada a Zadig tamanha ostentação de virtude. Tinha este um
amigo chamado Cador que era um daqueles jovens a quem sua mulher
atribuía mais probidade e mérito que aos outros: confiou-lhe os seus
pensamentos e assegurou-se, como podia, da sua fidelidade, dando-lhe um
valioso presente. Azora, que passara dois dias no campo em casa de uma
amiga, regressou no terceiro dia. Criados em pranto anunciaram-lhe que o
marido morrera sùbitamente naquela noite e que, não ousando levar-lhe
essa infausta notícia, acabavam de sepultá-lo no túmulo de seus pais, ao
fundo do jardim. Ela chorou, arrancou os cabelos, e jurou morrer. À
noite, Cador pediu-lhe licença para lhe falar, e choraram ambos. No dia
seguinte, choraram menos, e jantaram juntos. Cador confessou que o amigo
lhe deixara a maior parte de sua fortuna, e deu a entender que a maior
ventura, para êle, seria compartilhá-la com Azora. A dama chorou,
irritou- se, voltou às boas; a ceia foi mais longa que o jantar;
falaram-se com mais confiança: Azora fêz o elogio do defunto; mas
confessou que Zadig tivera em vida alguns defeitos de que Cador era
isento. Durante a ceia, Cador queixou-se de uma violenta

pontada no baço; a dama, inquieta e solícita, mandou trazer tôdas as
essências com que se perfumava, a fim de ver se alguma não seria boa
para aquilo; lamentou muito que o grande Hermes já não estivesse em
Babilônia; dignou-se até a tocar no ponto onde Cador sentia dores tão
agudas. - E tens muito seguido êsses cruéis ataques? - perguntou-lhe,
cheia de compaixão. - Levam-me às vêzes à beira do túmulo, e só há um
remédio que me dá alívio: é aplicar no local o nariz de um homem
falecido na véspera. - Estranho remédio! - espantou-se Azora. - Não mais
estranho - respondeu Cador - que os saquinhos do senhor Arnoult contra
apoplexia. - A esta razão, juntamente com os extraordinários méritos do
jovem, rendeu-se afinal a dama. "Em todo caso - disse ela consigo, -
quando meu marido, na ponte de Tchinavar, passar do mundo de ontem para
o mundo de amanhã, será que o anjo Asrael deixará de lhe dar passagem,
só porque êle vai ter o nariz um pouco mais curto na segunda vida do que
na primeira?" Tomou, pois, uma navalha; foi ao túmulo do espôso regou-o
de lágrimas, e aproximou-se para cortar o nariz a Zadig, que encontrou
estendido na tumba. Zadig ergueu-se, defendendo o nariz com uma das mãos
e detendo a navalha com a outra. - Senhora, disse êle, não clame tanto
assim contra a viúva Cosru: o projeto de me cortar o nariz vale bem o de
desviar um arroio.

III. O CÃO E O CAVALO

Zadig reconheceu que o primeiro mês do casamento é mesmo, como está
escrito no Zenda, a lua de mel, e que o segundo é a lua de fel. Viu-se
dentro em pouco obrigado a repudiar Azora, que se tornara dificílima de
trato, e buscou refúgio no estudo da natureza. "Ninguém pode ser mais
feliz - dizia êle - do que um filósofo que lê nesse grande livro
colocado por Deus ante nossos olhos. É dono das verdades que descobre;
alimenta e eleva a alma; vive tranqüilo; nada teme dos homens, e a sua
extremosa mulher não lhe vem cortar o nariz". Penetrado dessas idéias,
retirou-se para uma casa, de campo à margem do Eufrates. Ali, não se
preocupava êle era calcular quantas polegadas de água corriam por
segundo sob os arcos de uma ponte, ou se caía mais uma linha cúbica de
chuva no mês do rato do que no mês do carneiro. Não planejava fabricar
seda com teias de aranha, nem porcelana com cacos de garrafa; ma
dedicou-se principalmente ao estuoe dos animais e das plantas,
adquirindo em breve uma agudeza que lhe desvendava mil diferenças onde
os outros não viam que uniformidade. Ora, estando um dia a passear pelas
proximidades de um bosque, acorreu-lhe ao encontro um eunuco da rainha,
seguido de vários oficiais que demonstravam a maior inquietação e
vagavam de um lado para outro, como pessoas desorientadas que houvessem
perdido a maior preciosidade dêste mundo. - Jovem - disse-lhe o primeiro
eunuco, - não viste o

cão da rainha? - É uma cadela, e não um cão respondeu Zadig
discretamente. - Tens razão - tornou o primeiro eunuco. - É caçadeira, e
por sinal que muito pequena - acrescentou Zadig. - Deu cria há pouco;
manqueja da pata dianteira esquerda e tem orelhas muito compridas. -
Viste-a, então? - perguntou o primeiro eunuco, esbaforido - Não -
respondeu Zadig, - nunca a vi na minha vida nem nunca soube se a rainha
tinha ou não uma cadela. Ao mesmo tempo, por um ordinário capricho da
sorte, sucedeu escapar-se das mãos de um palafreneiro o mais belo
exemplar das cavalariças do rei, extraviando-se nos campos de Babilônia.
O monteiro-mor e todos os outros oficiais corriam à sua procura com mais
inquietação do que o primeiro eunuco em busca da cadela. O monteiro-mor
dirigiu- se a Zadig e perguntou-lhe se não vira acaso o cavalo do rei. É
- respondeu Zadig - o cavalo de melhor galope; tem cinco pés de altura e
os cascos pequenos; a cauda mede três pés e meio de comprimento; o freio
é de ouro de vinte e três quilates; e as ferraduras de prata de onze
denários. - Que direção tomou êle? onde está? - perguntou o
monteiro-mor. - Não o vi - respondeu Zadig, - nem nunca ouvi falar nêle.
O monteiro-mor e o primeiro eunuco não tiveram mais dúvidas de que Zadig
houvesse roubado o cavalo do rei e a cadela da rainha; levaram-no

perante a assembléia do grande desterham, que o condenou ao knut e a
passar o resto da vida na Sibéria. Mal se encerrara o julgamento, foram
encontrados o cavalo e a cadela. Viram-se os juízes na dolorosa
obrigação de reformar sua sentença; mas condenaram Zadig a desembolsar
quatrocentas onças de ouro, por haver dito que não vira o que tinha
visto. Primeiro foi preciso pagar a multa; depois concederam-lhe licença
para se defender perante o conselho do grande desterham. Zadig falou nos
seguintes têrmos: "Estrelas de justiça, abismos de ciência, espelhos da
verdade, vós que tendes o pêso do chumbo, a dureza do ferro o fulgor do
diamante e tanta afinidade com o ouro! Já que me é dado falar perante
essa augusta assembléia, juro-vos por Orosmade que jamais vi a
respeitável cadela da rainha, nem o sagrado cavalo do rei dos reis. Eis
o que me aconteceu. Passeava eu pelas cercanias do bosque onde vim a
encontrar o venerável eunuco e o ilustríssimo monteiro-mor, quando vi na
areia as pegadas de um animal. Descobri fàcilmente que eram as de um
pequeno cão. Sulcos leves e longos, impressos nos montículos de areia,
por entre os traços das patas, revelaram-me que se tratava de uma cadela
cujas têtas estavam pendentes, e que portanto não fazia muito que dera
cria. Outras marcas em sentido diferente, que sempre se mostravam no
solo ao lado das patas dianteiras, denotavam que o animal tinha orelhas
muito compridas; e, como notei que o chão era sempre menos amolgado por
uma das patas do que pelas três outras, compreendi que a cadela de nossa


augusta rainha manquejava um pouco, se assim me ouso exprimir Quanto ao
cavalo do rei dos reis, seja-vos cientificado que, passeando eu pelos
caminhos do referido bosque, divisei marcas de ferraduras que se achavam
tôdas a igual distância. "Eis aqui - considerei - um cavalo que tem um
galope perfeito". A poeira dos troncos, num estreito caminho de sete pés
de largura, fôra levemente removida à esquerda e à direita, a três pés e
meio do centro da estrada. "Esse cavalo - disse eu comigo - tem uma
cauda de três pés e meio, a qual, movendo-se para um lado e outro,
varreu assim a poeira dos troncos". Vi debaixo das árvores, que formavam
um dossel de cinco pés de altura, algumas fôlhas recém-tombadas e
concluí que o cavalo lhes tocara com a cabeça e que tinha, portanto,
cinco pés de altura. Quanto ao freio, deve ser de ouro de vinte e três
quilates: pois êle lhe esfregou a parte externa contra certa pedra que
eu identifiquei como uma pedra de toque. E, enfim, pelas marcas que as
ferraduras deixaram em pedras de outra espécie, descobri eu que era
prata de onze denários". Todos os juízes pasmaram do profundo e sutil
discernimento de Zadig, o que logo chegou aos ouvidos do rei e da
rainha. Só se falava em Zadig nas antecâmaras, na câmara e no gabinete;
e, embora vários magos opinassem que o deviam queimar como feiticeiro,
ordenou o rei que lhe restituissem as quatrocentas onças de ouro a que
fôra multado. O escrivão, os meirinhos, os procuradores, compareceram em
grande pompa à presença de Zadig, para lhe entregar as suas

quatrocentas onças; apenas retiveram trezentas e noventa e oito para as
custas do processo, e os seus ajudantes reclamaram gratificação. Zadig
compreendeu como era às vêzes perigoso ser demasiado sábio, e jurou
consigo que, na próxima ocasião, nada diria do que acaso houvesse
testemunhado. Essa oportunidade não se fêz esperar. Um prisioneiro de
Estado, que fugira, passou pelas janelas de sua casa. Zadig,
interrogado, nada respondeu; mas provaram-lhe que êle olhara pela
janela. Foi multado, por êsse crime, em quinhentas onças de ouro, e êle
agradeceu a indulgência dos juízes, segundo o costume de Babilônia.
"Como é lamentável, meu Deus, - dizia êle consigo, - ir a gente passear
num bosque por onde passaram a cadela da rainha e o cavalo do rei! Que
perigoso chegar à janela! E que difícil ser feliz nesta vida?"

IV. O INVEJOSO

Zadig procurou consôlo, na filosofia e na amizade, dos males que lhe
causara a sorte. Possuía, num arrabalde de Babilônia, uma casa arranjada
com excelente gôsto, onde acolhia tôdas as artes e divertimentos dignos
de um homem de bem. De manhã, franqueava a biblioteca a todos os sábios;
e a mesa, de noite, à gente de boa companhia. Mas logo viu como são
perigosos os primeiros. Explodiu entre êles uma grande querela acêrca da
lei de Zoroastro que proibia comer grifo. - Como proibir carne de grifo
- diziam uns, - se êsse

animal não existe? - Tem de existir - diziam outros, - visto que
Zoroastro não quer que o comam. Zadig procurou harmonizá-los, dizendo: -
Se houver grifos, não os devemos comer; se não os houver, muito menos os
comeremos; e assim, de qualquer modo, obedecemos todos a Zoroastro. Um
sábio, que compusera treze volumes sôbre os grifos e que, além disso,
era grande teurgista, apressou-se em ir acusar Zadig perante um
arquimago chamado Yebor, o mais tolo dos caldeus e, portanto, o mais
fanático. Êsse homem seria capaz de mandar empalar Zadig para maior
glória do sol, recitando depois o breviário de Zoroastro no tom mais
satisfeito do mundo. O amigo Cador (um amigo vale mais que cem
sacerdotes) foi procurar o velho Yebor e disse-lhe: - Viva o sol e os
grifos! guardai-vos de punir Zadig: é um santo; êle tem grifos no
terreiro e não os come; e o seu acusador é um herege que ousa sustentar
que os coelhos têm a pata fendida e não são imundos. - Pois bem - disse
Yebor, balançando a calva, - cumpre empalar Zadig por ter pensado mal
dos grifos, e o outro por ter falado mal dos coelhos. Cador contornou a
questão por intermédio de uma dama de honor a quem fizera um filho e que
gozava de muito crédito junto ao colégio dos magos. Ninguém foi
empalado, motivo pelo qual muitos doutores começaram a murmurar,
vaticinando a decadência da Babilônia. "Do que depende a felicidade! -
exclamou Zadig. - Tudo me persegue neste mundo até os sêres que não
existem".

Amaldiçoou os sábios, e dali por diante só procurou viver em boa
companhia . Reunia em casa os homens mais distintos da Babilônia e as
damas mais amáveis; oferecia delicadas ceias, muita vez precedidas de
concertos animadas por encantadoras conversações de que soubera banir o
empenho de mostrar espírito, que é a mais certa maneira de não o ter e
de estragar a sociedade mais brilhante. Nem a escolha dos amigos, nem a
dos pratos, era ditada pela vaidade: pois em tudo preferia o ser ao
parecer; e com isso atraíra a verdadeira consideração, à qual não
aspirava. Defronte à sua casa morava Arimaze, personagem cuja mesquinha
alma se lhe via pintada na grosseira fisionomia. Vivia corroído de fel e
inchado de orgulho; e, para cúmulo, era um aborrecido "espirituoso". Não
tendo jamais alcançado sucesso na sociedade, vingava-se falando mal
dela. Opulento como era, tinha dificuldade em reunir alguns aduladores
nos seus salões. Importunava-o o rumor dos carros que paravam à noite
diante da casa de Zadig, e ainda mais o irritava o rumor de seus
louvores. Ia algumas vêzes visitar Zadig e sentava-se à mesa sem ser
convidado: corrompia então tôda a alegria da sociedade, como dizem que
as harpias envenenam a carne em que tocam. Aconteceu-lhe uma vez
oferecer uma festa a certa dama que, em vez de aceitá-la, foi cear em
casa de Zadig. Doutra feita, estando ambos em palácio, abordaram um
ministro, que convidou Zadig para cear, sem estender o convite a
Arimaze. Os mais implacáveis ódios não têm comumente raízes mais

importantes. Êsse homem, a quem chamavam o Invejoso, planejou perder
Zadig, porque a êste chamavam o Feliz. A oportunidade de fazer mal
depara-se cem vêzes por dia, e a de fazer bem uma vez por ano, diz
Zoroastro. O Invejoso foi ter com Zadig, que passeava no jardim em
companhia de dois amigos e uma dama, a quem muita vez dizia coisas
galantes, sem maior intenção que lhes dizer. Conversavam sôbre a guerra
que o rei acabava de ganhar ao príncipe de Hircânia, seu vassalo. Zadig,
que se assinalara, pela coragem, nessa curta guerra, louvava muito o rei
e ainda mais a dama. Tomou as suas tabuinhas, e escreveu quatro versos
de improviso, dando-os a ler à sua bela companheira. Os amigos pediram
que lhos lesse; mas a modéstia o impediu, ou antes, um bem compreendido
amor-próprio. Sabia que versos improvisados só prestam para aquela em
cuja honra são compostos: quebrou em duas a tabuinha onde acabava de
escrever e lançou as duas metades numa moita de rosas onde em vão os
outros as procuraram Como principiasse a garoar entraram em casa. O
invejoso, tendo ficado no jardim tanto procurou que encontrou uma das
metades. Fôra rompida de tal modo que cada metade de linha formava
sentido e até mesmo um verso de menor medida; mas, por um acaso ainda
mais estranho, o conjunto dêsses quatro pequenos versos também
completava um sentido que continha as mais terríveis injúrias contra o
rei. Lia- se, pois: Pelo crime brutal Venceu o soberano,

Na paz universal É o único tirano. O invejoso sentiu-se feliz pela
primeira vez na vida. Tinha entre as mãos com que perder a um homem
virtuoso a digno. Cheio de cruel alegria, fêz chegar ao rei aquela
sátira escrita por mão de Zadig; puseram-no em prisão, a êle, aos seus
dois amigos e à dama. Em breve foi concluído o processo sem que se
dignassem inquiri-lo. Quando foi ouvir a sentença, encontrou de passagem
o invejoso, o qual lhe disse que os seus versos não valiam nada. Zadig
não tinha pretensões a bom poeta; mas exasperava-se de ser condenado por
crime de lesa- majestade e ver que retinham em prisão uma bela dama e
dois amigos, por causa de um atentado que êle não cometera. Não lhe
permitiram que falasse, porque as suas tábuas falavam o bastante. Tal
era a lei de Babilônia. Mandaram-no, pois, ao suplício, através de uma
multidão de curiosos, nenhum dos quais ousava lamentá-lo, e que se
precipitavam para examinar-lhe o rosto e ver se êle morria de boa cara.
Apenas seus parentes estavam aflitos, pois não herdavam nada. Três
quartos de seus bens eram confiscados em proveito do rei, e o último
quarto em proveito do invejoso. Enquanto êle se preparava para a morte,
o papagaio do rei voou do seu balcão e foi pousar no jardim de Zadig,
sôbre uma moita de rosas. De uma árvore vizinha, tombara ali um pêssego,
sacudido pelo vento, indo aplastar-se contra um pedaço de tábua de
escrever, a que ficara colado. O pássaro carregou o pêssego e a
tabuinha, depondo-os sôbre os joelho do monarca. O príncipe, curioso,
leu no

fragmento umas palavras que não formavam sentido e que pareciam finais
de versos. Ele amava a poesia, e sempre há algum recurso com príncipes
que gostam de versos: a aventura do papagaio deu- lhe que pensar. A
rainha, que se lembrava do que vinha escrito na tábua de Zadig, mandou
buscá-la. Confrontaram os dois pedaços, que se ajustavam perfeitamente
surgiram tão os versos tais quais Zadig os escrevera: Pelo crime brutal
era assolada a terra. Venceu o soberano, e libertos nos vimos. Na paz
universal sòmente o amor faz guerra: É o único tirano a quem não
resistimos. O rei ordenou em seguida que trouxessem Zadig à sua presença
e retirassem da prisão seus dois amigos e a bela dama. Zadig lançou-se
de rosto contra o solo aos pés do rei e da rainha: pediu-lhes
humildemente perdão de haver feito maus versos; falou com tanta graça,
espírito e razão que o rei e a rainha manifestaram desejo de tornar a
vê-lo. Voltou, e agradou ainda mais. Deram-lhe todos os bens do invejoso
que o acusara injustamente, mas Zadig lhos restituiu, e o invejoso só se
comoveu com o prazer de não perder seus haveres. Dia a dia aumentava a
estima do rei. Convidava Zadig para tôdas as suas festas e consultava-o
em todos os seus negócios. A rainha começou então a olhá-lo com uma
complacência que podia tornar-se perigosa para si mesma, para o rei seu
augusto espôso, para Zadig e para o reino. Zadig principiava a crer que
não é nada difícil ser feliz.

V. OS GENEROSOS

Chegou a época de uma grande festa que se celebrava de cinco em cinco
anos. Era costume em Babilônia proclamar solenemente, ao cabo de cinco
anos, qual o cidadão que havia praticado a ação mais generosa. Os
grandes e os magos serviam de juízes. O primeiro sátrapa, que regia a
cidade, expunha as mais belas ações que haviam ocorrido sob o seu
govêrno. Procedia-se à votação; o rei pronunciava a sentença. Dos quatro
cantos da terra, vinha gente assistir a essa solenidade. O vencedor
recebia das mãos do monarca uma taça de ouro guarnecida de pedrarias, e
o rei lhe dizia estas palavras: Recebei êste prêmio da generosidade, e
queiram os deuses conceder-me muitos súbditos que se assemelhem a vós!
Chegado o memorável dia, sentou o rei no seu trono, cercado dos grandes,
dos magos e dos deputados de tôdas as nações que compareciam a essa
justa, onde a glória não era conquistada com a rapidez dos cavalos, nem
com a fôrça física, mas tão sòmente com a virtude. O primeiro sátrapa
relatou em voz alta as ações que podiam fazer jus à inestimável
recompensa. Não falou da magnanimidade com que Zadig devolvera a fortuna
ao invejoso: não era ação que merecesse concorrer ao prêmio. Apresentou
primeiro um juiz que, tendo feito um cidadão perder considerável
processo devido a um

equívoco de que não lhe cabia responsabilidade alguma, lhe dera no
entanto todos os seus bens, que eram do valor do que o outro havia
perdido. Depois um jovem que, loucamente enamorado da moça com quem ia
casar, não hesitara em cedê-la a um amigo prestes a expirar de amor por
ela; e ainda concorrera com o dote. E finalmente um soldado que, na
guerra de Hircânia, dera ainda maior exemplo de generosidade. Soldados
inimigos procuravam raptar- lhe a sua querida, que êle defendia
valentemente, quando lhe vieram dizer que outros hircanianos, a alguns
passos dali, se apoderavam de sua mãe: deixou, em lágrimas, a bem-amada
e correu a livrar a mãe; voltou em seguida para aquela a quem amava, e
encontrou-a moribunda. Quis matar-se; a mãe lhe fêz ver que êle era o
seu único arrimo, e o soldado teve a coragem de suportar a vida As
simpatias dos juízes inclinavam-se para êsse soldado, quando o rei tomou
a palavra e disse: - Sua ação e a dos outros são belas; mas não me
espantam; todavia o que ontem fêz Zadig me deixou verdadeiramente
admirado. Há poucos dias, privara eu de minha graça a meu ministro e
favorito Coreb. Queixava-me dêle com violência, e todos os cortesãos me
asseguravam que fôra demasiado brando; cada qual se empenhava em dizer o
pior possível de Coreb. Perguntei a Zadig o que pensava, e êle ousou
falar bem do desvalido. Confesso que vi, nas nossas histórias, exemplos
de quem indenizasse um êrro com a própria fortuna, quem cedesse a noiva,
ou preferisse a mãe ao objeto de seu amor; mas nunca li que um cortesão

haja falado vantajosamente de um ministro em desgraça, contra o qual
ainda estivesse encolerizado o soberano. Concedo vinte mil moedas de
ouro a cada um cujas generosas ações acabam de ser relatadas; mas
entrego a taça a Zadig. - Sire - disse êste, - é Vossa Majestade quem
merece a taça, pois foi quem praticou a ação mais inaudita: sendo rei,
não vos indignastes por haver vosso escravo contrariado as vossas
paixões. Admiraram ao rei e a Zadig. O que cedera seus bens, o que
casara a noiva com o amigo, o que preferira a salvação da mãe à da
mulher a quem amava, receberam os presentes do monarca; tiveram seu nome
escrito no livro dos generosos. Zadig ganhou a taça. O rei adquiriu a
reputação de bom príncipe, que não conservou por muito tempo. Tal dia
foi comemorado com festas mais longas do que o previa a lei, e ainda é
lembrado em tôda a Ásia. Zadig dizia: "Eis-me enfim feliz!" Mas
enganava-se.

VI. O MINISTRO

Perdera o rei seu primeiro ministro. Escolheu Zadig para substituí-lo.
Tôdas as belas damas de Babilônia aplaudiram a escolha, pois desde a
fundação do império não houvera um ministro tão jovem. Todos os
cortesãos ficaram descontentes; o invejoso chegou a escarrar sangue, e
seu nariz aumentou prodigiosamente. Depois de agradecer ao rei e à
rainha, Zadig foi também agradecer ao

papagaio: - Belo pássaro, foste tu quem me salvou a vida e quem me fêz
primeiro ministro: a cadela e o cavalo de suas Majestades me haviam
feito bastante mal, mas tu me fizeste bem. Eis do que depende o destino
dos homens! Mas - acrescentou êle, - tão estranha felicidade talvez se
acabe dentro em breve. - Sim - respondeu o papagaio. O que não deixou de
impressionar a Zadig. No entanto, como era bom físico e não acreditasse
que os papagaios tivessem o dom da profecia, logo se tranqüilizou e
pôs-se a exercer o ministério da melhor forma possível. Fêz pesar sôbre
todos o sagrado poder das leis, e a ninguém fêz sentir o pêso de sua
própria dignidade. Não interferiu nos votos do divã, e cada vizir podia
ter sua opinião sem lhe cair no desagrado. Quando julgava uma causa, não
era êle quem julgava, era a lei, mas, quando esta era demasiado severa,
sabia- a temperar, e, se não havia leis sôbre a matéria, a sua eqüidade
as criava tais que poderiam ser tomadas pelas do próprio Zoroastro. Foi
dêle que herdaram as nações êste grande princípio: antes arriscar-se a
salvar um culpado que condenar um inocente. Acreditava que as leis eram
feitas para socorrer os cidadãos, tanto quanto para os intimidar. Seu
principal talento consistia em deslindar a verdade, que todos os homens
procuram obscurecer. Logo nos primeiros dias de sua administração, pôs à
prova êsse inestimável dom. Morrera na Índia um famoso negociante de
Babilônia; constituíra herdeiros seus dois filhos varões, em partes
iguais,

depois que houvessem casado a irmã, e deixava ainda trinta mil moedas de
ouro àquele dentre dois filhos que ficasse provado ter-lhe mais amor. O
velho erigiu-lhe um túmulo, o segundo aumentou com uma parte da própria
herança o dote da irmã. "É o mais velho diziam todos - o que mais ama a
seu pai; o mais moço mais amor à irmã; é ao mais velho que pertencem as
trinta mil moedas". Zadig mandou chamar a ambos separadamente. Disse ao
mais velho: - Teu pai não morreu; curou-se de sua doença e está de
regresso a Babilônia. - Louvado seja Deus - respondeu o jovem. - Mas eis
aí um túmulo que me custou bastante caro! Zadig disse em seguida a mesma
coisa ao mais moço. - Louvado seja Deus - respondeu êste. - Vou devolver
a meu pai tudo o que tenho; mas desejaria que êle deixasse com minha
irmã o que lhe dei por dote. - Não devolverás nada - disse Zadig e terás
as trinta mil moedas: és tu que tens mais amor a teu pai. Uma jovem
muito rica prometera casamento a dois magos e, depois de haver recebido,
por alguns meses, doutrinação de um e outro, viu-se em estado de
gravidez. Ambos queriam desposá-la. Tomarei para marido - declarou ela -
aquêle que me pôs em condições de dar um cidadão ao Império. - Fui eu
que fiz essa boa obra - disse um. - Fui eu que tive essa vantagem -
afiançou o outro. - Pois bem - concluiu ela, - reconhecerei como pai da
criança aquêle que lhe puder dar melhor

educação. Nasceu-lhe um menino. Cada um dos magos quer encarregar-se da
sua educação. A causa é levada perante Zadig, que manda chamar os dois
litigantes. - Que ensinarás a teu pupilo? - pergunta êle ao primeiro. -
Ensinar-lhe-ei - diz o doutor - as oito partes da oração, e dialética,
astrologia, demonomania, e o que vêm a ser a substância e o acidente, o
abstrato e o concreto, as mônadas e a harmonia preestabelecida. - Eu -
diz o segundo - procurarei torná-lo justo e digno de ter amigos. Zadig
pronunciou-se: - Sejas ou não pai da criança, desposarás a sua mãe

VII. DEMANDAS E AUDIÉNCIAS

Assim mostrava êle todos os dias a sutileza de seu gênio e a bondade de
sua alma; admiravam-no e, no entanto, o amavam. Passava pelo mais
afortunado dos homens; todo o Império estava cheio de seu nome; tôdas as
mulheres o traziam de ôlho; todos os cidadãos lhe celebravam a justiça;
tinham-no os sábios como um oráculo; os próprios sacerdotes confessavam
que êle sabia mais que o velho arquimago Yebor. Longe se estava agora de
o processar por causa de grifos; só se acreditava no que lhe parecia
crível.

Havia em Babilônia uma grande querela que, tendo começado há coisa de
mil e quinhentos anos, ainda dividia o Império em duas seitas
irreconciliáveis: pretendia uma que jamais se deveria entrar no templo
de Mitra a não ser com o pé esquerdo; abominava a outra tal costume, e
só entrava com o pé direito. Estava o universo com os olhos pregados nos
dois pés, e tôda a cidade agitada e suspensa. Zadig entrou no templo
saltando de pés juntos, e em seguida provou, numa eloqüente oração, que
ao Deus do céu e da terra, que não faz exceção de pessoa, tanto lhe
importa a perna esquerda como a perna direita. O invejoso e a mulher
acharam que no seu discurso não havia figuras suficientes, nem que
fizera devidamente dançar os montes e as colinas. "É sêco e sem
inspiração - diziam. Não se lhe vê nem o mar fugir, nem tombarem as
estrêlas, nem o sol fundir- se como cêra; falta-lhe o bom estilo
oriental". Zadig contentava-se em ter o estilo da razão. Todo o mundo
concordou com êle, não porque estivesse no bom caminho, não porque fôsse
razoável, ou amável, mas porque era o primeiro vizir. Com igual
felicidade se resolveu o grande processo entre os magos brancos e os
magos negros. Sustentavam os brancos que era uma impiedade voltar-se,
quando se orava a Deus, para o Levante; asseguravam os negros que Deus
tinha horror às preces dos homens que se voltavam para o Poente. Zadig
ordenou que cada qual se voltasse para onde bem lhe parecesse. Achou
meio de expedir, pela manhã, os negócios particulares e os gerais;
destinava o resto do dia ao

embelezamento de Babilônia; mandava representar tragédias que faziam
chorar e comédias que faziam rir, o que de há muito passara de moda, mas
a que o seu discernimento dera novo crédito. Não pretendia saber mais
que os artistas; recompensava-os com benefícios e distinções, e não se
enciumava em segrêdo com o seu talento. À noite, divertia muito ao rei,
e principalmente à rainha. Dizia o rei: "o grande ministro!", e a
rainha: "o amável ministro!" e ambos acrescentavam: "Que pena se o
tivessem enforcado!" Jamais um homem na sua posição foi obrigado a
conceder tantas audiências às damas. A maioria vinha falar-lhe de
complicações que não tinham, para arranjarem alguma com êle. A mulher do
invejoso foi das primeiras que se apresentaram; jurou-lhe por Mitra,
pelo Zend-Avesta, e pelo fogo sagrado, que fôra contra o procedimento do
marido; confiou-lhe depois que êste era um ciumento, um brutal; deu-lhe
a entender que os deuses o puniam recusando-lhe os preciosos efeitos
dêsse fogo sagrado só pelo qual é o homem semelhante aos imortais;
acabou por deixar cair a liga; Zadig apanhou-a com a ordinária polidez,
mas não a prendeu ao joelho da dama; e essa pequena falta, se o era, foi
causa dos mais tremendos infortúnios. Zadig não pensou mais no caso, e a
mulher do invejoso pensou muito. Outras damas se apresentavam todos os
dias. Rezam os anais secretos de Babilônia que êle sucumbiu uma vez, mas
muito se espantou de o fazer sem volúpia e enlaçar a amante
distraìdamente. Aquela a quem dera, quase sem o

notar, testemunhos da sua proteção, era uma camareira da rainha
Astartéia. Essa terna babilônia dizia consigo mesma, para se consolar:
"Que de negócios não terá êsse homem na cabeça, para que sempre ande
pensando nêles, até quando pratica o amor!" No instante em que muitas
pessoas não dizem patavina e outras só pronunciam palavras sagradas,
Zadig exclamara de súbito: "A rainha!" Julgou a babilônia que êle afinal
voltara a si num bom momento e que lhe dizia: "Minha rainha!" Mas Zadig,
sempre absorto, pronunciou o nome de Astartéia. A dama que, naquelas
felizes circunstâncias, interpretava tudo em proveito seu, imaginou que
aquilo queria dizer: "Tu és mais linda que a rainha Astartéia!" Saiu do
serralho de Zadig cheia de belos presentes. Foi contar a aventura à
invejosa, que era sua íntima amiga; esta se sentiu cruelmente ofendida
com a preferência. Êle nem se dignou - disse ela - prender-me esta liga,
que eu aliás - não quis mais usar. - - Oh! Imagina! - disse a feliz à
invejosa. - Essas tuas ligas são idênticas às da rainha! São feitas pela
mesma costureira?" A invejosa ficou absorta em cismas, nada respondeu e
foi consultar seu marido, o invejoso. No entanto, Zadig se dava conta de
suas continuas distrações durante as audiências e julgamentos; não sabia
a que atribuí-las: era êsse o seu único cuidado. Teve um sonho:
parecia-lhe estar deitado a princípio sôbre ervas sêcas, entre as quais
algumas espinhosas, que o incomodavam, e que depois repousava
brandamente num leito de rosas, de onde saia uma serpente que o feria no
coração com

sua língua aguda e peçonhenta. "Ai! - dizia êle, - bem sei que estive
por muito tempo deitado naquelas ervas sêcas e espinhentas e agora me
acho num leito de rosas; mas que significará a serpente ?"

VIII. O CIÚME

A desgraça de Zadig originou-se da própria ventura, e principalmente de
seu mérito. Avistava-se todos os dias com o rei e Astartéia, sua augusta
espôsa. O encanto da conversação do primeiro ministro era redobrado por
êsse desejo de agradar que está para o espírito como o ornamento para a
beleza; sua juventude e graça causaram insensivelmente em Astartéia uma
impressão de que esta a princípio não se apercebeu. Sua paixão crescia
no seio da inocência. Astartéia entregava-se sem escrúpulo e sem temor
ao prazer de ver e escutar a um homem tão caro a seu espôso e ao Estado;
não cessava de o elogiar perante o rei; falava dêle às damas de
companhia, que ainda acrescentavam os louvores; tudo concorria para lhe
aprofundar no coração a frecha que ela não sentia. Fazia presentes a
Zadig, nos quais entrava mais galanteria do que supunha; julgava não lhe
falar senão como rainha satisfeita de seus serviços, e suas expressões
eram, algumas vêzes, as de uma mulher sensível. Astartéia era muito mais
bonita do que aquela Semira que tanto odiava aos caolhos, e do que
aquela outra mulher que quisera cortar o nariz ao

espôso. A familiaridade de Astartéia, suas ternas frases, de que
começava a corar, seus olhares, queria desviar, e que se fixavam nos
dêle, acenderam no coração de Zadig uma flama que o espantou. Lutou;
pediu socorro à filosofia, que sempre lhe valera; mas só lhe obteve
luzes, não recebendo em troca nenhum alívio. O dever, a gratidão, a
soberana majestade violada, apresentavam-se-lhe aos olhos como deuses
vindicativos; lutava e triunfava; mas essa vitória que era preciso
renovar a todo momento, custava- lhe gemidos e lágrimas. Não mais ousava
falar à rainha com aquela doce liberdade que tais encantos tivera para
ambos; seus olhos cobriam-se de uma nuvem; suas palavras eram
constrangidas e incoerentes; baixava as pálpebras; e quando, sem querer,
o seu olhar se voltava para Astartéia, encontrava o da rainha turbado de
lágrimas, de onde partiam raios; pareciam dizer um ao outro: "Nós nos
adoramos, e temos mêdo do amor; ardemos os dois num fogo que
condenamos." Zadig retirava-se desvairado da sua presença, com um pêso
no coração, que não mais podia suportar; na violência da sua agitação,
não pôde evitar que o amigo Cador lhe descobrisse o segrêdo, como um
homem que, tendo agüentado por muito tempo uma dor profunda, deixa enfim
revelar-se o seu mal, por um grito que lhe arranca um acesso mais agudo
e pelo suor que poreja a fronte. - Já desvendei - lhe disse Cador - os
sentimentos que a ti mesmo procuravas ocultar; as paixões têm sinais que
não enganam. Por aí verás, meu caro Zadig, já que eu li no teu coração,
se o próprio rei

não irá descobrir um sentimento que o ofende. Não tem êle outro defeito
senão o de ser o mais ciumento dos homens. Resistes à tua paixão com
mais fôrça do que a rainha combate a sua, porque és filósofo e porque és
Zadig. Astartéia é mulher; deixa falar seus olhares com tanto maior
imprudência por ainda não se julgar culpada. Infelizmente tranqüilizada
pela sua inocência, negligencia as aparências necessárias. Tremerei por
ela enquanto não tiver nada que se censurar. Se estivessem ambos em
cumplicidade, saberiam enganar todos os olhos: uma paixão nascente e
combatida logo se revela; um amor satisfeito sabe ocultar-se. Zadig
fremiu à idéia de trair o rei seu benfeitor; e nunca foi tão fiel ao
príncipe como quando se viu culpado para com êle de um crime
involuntário. Contudo, tantas vêzes pronunciava a rainha o nome de
Zadig, tal rubor lhe cobria a fronte ao dizê-lo; ora se mostrava tão
animada, ora tão interdita, quando lhe falava em presença do rei; caía
em tão profundas cismas depois que Zadig se retirava, que o rei se
sentiu inquieto. Acreditou tudo o que via, e imaginou tudo o não via.
Observou principalmente que as babuchas de sua mulher eram azuis, e que
as babuchas de Zadig eram azuis, que as fitas da touca de sua mulher
eram amarelas, e que o barrete de Zadig era amarelo: indícios terríveis
para um príncipe suscetível. No seu espírito envenenado,
transformaram-se as suspeitas em certezas. Os escravos dos reis e das
rainhas são outros tantos espias de seus corações. Descobriram logo que
Astartéia amava e que Moabdar sentia ciúmes.

O invejoso fêz a invejosa enviar ao rei a sua liga, que se assemelhava à
da rainha. Por cúmulo da desgraça, essa liga era azul, O monarca não
pensou senão na maneira de vingar-se. Resolveu uma noite mandar
envenenar a rainha, e enforcar Zadig ao raiar do dia. A ordem foi
transmitida a um impiedoso eunuco, executor das suas vinganças.
Achava-se então na câmara do rei um anãozinho que era mudo, mas não
surdo. Toleravam-no sempre em tóda parte: era testemunha de tudo o que
se passava de mais secreto, como um animal doméstico. Êsse pequeno mudo
era muito devotado à rainha e a Zadig. Ouviu, com tanta surprêsa quanto
horror, a sentença de morte. Mas como prevenir essa terrível ordem, que
dentro em poucas horas seria executada? Escrever, não sabia; mas
aprendera a desenhar e fazia retratos com muita parecença. Passou uma
parte da noite a rabiscar o que desejaria dizer à rainha. O desenho
representava o rei furioso, a um canto do quadro; um cordão azul e um
vaso sôbre uma mesa, com ligas azuis e fitas amarelas; a rainha, no meio
do quadro, expirante entre os braços de suas mulheres, e Zadig
estrangulado a seus pés. O horizonte representava um sol nascente, para
indicar que a horrível execução se efetuaria aos primeiros raios da
aurora. Logo que terminou o trabalho, correu a uma camareira de
Astartéia, despertou-a, e deu-lhe a entender que era preciso levar
imediatamente o quadro à rainha. Em meio à noite, batem à porta de
Zadig; acordam- no; entregam-lhe um bilhete da rainha; pensa que está
sonhando; abre o papel com mão tremente.

Qual não foi a sua surprêsa, e quem lhe poderia exprimir a consternação
e desespêro, ao ler as seguintes palavras: "Foge imediatamente, senão te
arrancam a vida. Foge, Zadig, ordeno-te em nome do nosso amor e das
minhas fitas amarelas. Eu não era culpada; mas sinto que vou morrer
criminosa." Zadig mal teve fôrças de falar. Mandou chamar Cador e, sem
nada lhe dizer, mostrou-lhe o bilhete. Cador forçou-o a obedecer e a
tomar logo o caminho de Mênfis. "Se te atreves a ir falar com a rainha,
apressas a sua morte; se falares ao rei, da mesma forma prejudicarás a
rainha. Encarrego-me do seu destino; segue o teu. Espalharei o boato de
que partiste para a Índia Em breve me encontrarei contigo e te
comunicarei o que houver sucedido em Babilônia". Cador, no mesmo
instante, mandou trazer dois dromedários dos mais rápidos a uma porta
secreta do palácio; fêz com que Zadig montasse tendo até de ampará-lo,
pois parecia prestes a entregar a alma. Um só criado o acompanhou; em
breve Cador, transido de espanto e angústia, perdeu de vista o amigo. O
ilustre fugitivo, chegando ao alto de uma colina de onde se avistava
Babilônia, volveu o olhar para o palácio da rainha, e desfaleceu; só
recuperou os sentidos para derramar lágrimas e desejar a morte. Enfim,
depois, de se haver ocupado do deplorável destino da mais amável entre
as mulheres e a primeira rainha do mundo, voltou o pensamento para si
mesmo e exclamou: "Que coisa é então a vida humana? De que me serviste,
ó virtude? Duas mulheres me enganaram indignamente; a terceira,

que não é culpada, e mais bela que as outras, vai perder a vida. Todo o
bem que pratiquei foi sempre para mim uma fonte de maldições, e só fui
elevado ao cúmulo da grandeza para tombar no mais horrível precipício do
infortúnio. Se eu tivesse sido mau como tantos outros, seria hoje feliz
como êles". Acabrunhado por essas funestas reflexões, cobertos os olhos
pelo véu da dor, a palidez da morte nas faces, e a alma abismada no mais
sombrio desespêro, se guia êle a caminho do Egito.

IX. A MULHER BATIDA

Zadig orientava-se pelas estrêlas. A constelação de Orion e o brilhante
astro de Sírio guiavam-no para o pólo de Canope. Admirava êsses vastos
globos de luz que não parecem a nossos olhos mais que fracas centelhas,
ao passo que a terra, que em verdade é apenas um imperceptível ponto na
natureza, afigura-se à nossa cupidez uma coisa tão grande e tão nobre.
Via então os homens tais como são na realidade: insetos a se
entredevorarem num pequeno átomo de lama. Essa imagem verdadeira parecia
aniquilar suas desventuras, retraçando-lhe o nada da sua existência e a
de Babilônia. Sua alma arrebatava-se até o infinito e contemplava,
liberta dos sentidos, a imutável ordem do universo. Mas quando, em
seguida, de volta a si mesmo e penetrando de novo em seu coração,
pensava em Astartéia sacrificada por sua causa, o universo desaparecia a
seus olhos, e êle apenas via, em

tôda a natureza, Astartéia moribunda e Zadig desgraçado. Enquanto se
entregava a êsse fluxo e refluxo de sublime filosofia e dor
acabrunhante, ia avançando pelas fronteiras do Egito; e já seu fiel
criado se achava na primeira localidade,em busca de alojamento. Enquanto
isso, Zadig passeava pelos jardins dos arredores. Senão quando avistou,
não longe estrada real, uma mulher que gritava por socorro e um homem
furioso que a perseguia. Já o homem a alcançava e ela, caída,
enlaçava-lhe os joelhos. O homem enchia-a de pancadas e censuras. Pela
violência do egípcio e pelos reiterados perdões que lhe pedia a dama,
viu Zadig que êle era ciumento e ela infiel. Mas, depois de atentar
naquela mulher, que era de impressionante beleza e até se assemelhava um
pouco à infeliz Astartéia, sentiu-se tomado de compaixão por ela e
aversão ao egípcio. "Acode-me! - bradou ela a Zadig, entre soluços. -
Arranca-me das mãos do mais bárbaro dos homens, salva-me a vida!" A
êsses clamores, Zadig lançou-se entre ela e aquêle bárbaro. Tinha algum
conhecimento da língua egípcia, e assim lhe falou: - Se tens alguma
humanidade, conjuro-te a respeitar a beleza e a fraqueza. Podes assim
ultrajar uma obra-prima da Criação, que jaz a teus pés e só tem por
defesa as lágrimas? - Ah! Ah! - exclamou o possesso. Com que então
também a amas? É de ti que tenho de vingar-me. Dizendo tais palavras,
deixa a dama, que segurava pelos cabelos, e, empunhando a lança, tenta
matar o estrangeiro. Êste, que não perdera o sangue frio,

evitou fàcilmente o golpe de um furioso. Segurou a lança perto da ponta.
Quer um retirá-la, o outro arrancá-la. A lança parte-se. O egípcio puxa
da espada; Zadig também. Atacam-se. Lança êste cem golpes precipitados,
apara-os aquêle com destreza. A dama, sentada na relva, reajusta os
cabelos e olha-os. O egípcio era o mais robusto, Zadig o mais ágiL
Batia-se o último como um homem cuja cabeça conduzia o braço, e o
primeiro como um arrebatado, cuja cólera cega lhe guiava ao acaso os
movimentos. Zadig desarma-o. E como o egípcio, mais furioso, procura
arremeter contra êle, Zadig segura-o, domina-o, fá-lo cair e,
apontando-lhe a espada contra o peito, oferece poupar-lhe a vida. O
egípcio, fora de si, arranca o punhal e fere Zadig no mesmo instante em
que o vencedor lhe perdoava. Zadig, indignado, lhe mergulha a espada no
peito; O egípcio lança um grito horrível e morre, debatendo-se. Zadig
avança então para a dama e lhe diz respeitosamente: - Foi êle que me
obrigou a matá-lo; estais vingada, e livre do homem mais violento que já
vi na minha vida. Que quereis agora de mim, senhora? - Que morras,
celerado, que morras; mataste o meu amor; eu quisera estraçalhar-te o
coração. - Na verdade, senhora que tínheis um esquisito amor; êle vos
batia com tôda a fôrça e queria tirar- me a vida, por me haverdes pedido
socorro. - Quisera que êle me batesse ainda - tornou a dama, aos gritos.
- Eu bem que o merecia, pois lhe dei motivos para ciúmes. Quem dera que
êle me batesse e que tu estivesses no seu lugar!

Zadig, mais surprêso e encolerizado do que nunca estivera em sua vida,
retrucou: - Senhora, com tôda a vossa beleza, merecíeis que eu vos
batesse por minha vez, tão incoerente sois; mas não me darei a êsse
trabalho. Dito isto, montou no camelo e dirigiu-se para a cidade. Mal
dera alguns passos, volta-se ao estrépito que faziam quatro correios de
Babilônia. Vinham a tôda brida. Um dêles, ao ver a mulher, exclamou: "É
ela mesma; assemelha-se à descrição que nos fizeram". Sem dar atenção ao
morto, apoderaram-se logo da dama, a qual não cessava de gritar para
Zadig: "Socorrei-me outra vez, generoso estrangeiro! Perdoai-me por me
haver queixado de vós. Socorrei-me, que serei vossa até o túmulo". A
Zadig, passara-lhe todo e qualquer desejo de se bater por ela.
"Arranja-te com outros - respondeu-lhe, a mim é que não me pegas mais!"
Aliás, estava ferido, perdia sangue e necessitava socorro; e a vista dos
quatro babilônios, provàvelmente enviados pelo rei Moabdar, enchia-o de
inquietação. Avança às pressas para a aldeia, sem atinar por que motivo
vinham quatro correios de Babilônia apoderar-se daquela egípcia, mas
ainda muito mais espantado com o caráter da referida dama.

X. A ESCRAVIDÃO

Ao entrar na cidade egípcia, viu-se cercado pelo povo.

- Eis o que raptou a bela Missuf bradavam - e o que acaba de assassinar
Cletófis! - Senhores disse êle, - Deus me livre de raptar algum dia a
vossa bela Missuf! É demasiado caprichosa. E, quanto a Cletófis, não o
matei: apenas me defendi contra êle. Queria matar-me, porque lhe pedi
com tôda a humildade que poupasse a bela Missuf, a quem batia
impiedosamente. Sou um estrangeiro que vem procurar asilo no Egito; e
não teria cabimento que, vindo solicitar vossa proteção, começasse por
me apoderar de uma mulher e por assassinar um homem. Os egípcios eram
então justos e humanos. O povo conduziu Zadig à prefeitura. Começaram
por lhe tratar do ferimento, e em seguida o interrogaram, a êle e ao
criado separadamente, a fim de saber a verdade. Reconheceu-se que Zadig
não era um assassino; mas sendo culpado de ter vertido sangue humano, a
lei o condenava à escravidão. Os seus dois camelos foram vendidos em
proveito da comuna, repartido entre os habitantes todo o ouro que
trouxera, e sua pessoa exposta em hasta pública, bem como o seu
companheiro de viagem. Um mercador árabe, chamado Setoc, arrematou-o;
mas o criado, mais resistente à fadiga, foi vendido muito mais caro que
o patrão. Nem faziam comparação entre os dois Zadig ficou, como escravo,
subordinado a seu serviçal; ligaram um ao outro por uma cadeia prêsa aos
tornozelos e, nesse estado, acompanharam ambos o seu senhor. Zadig, pelo
caminho, consolava o criado e exortava-o à paciência; mas, segundo o seu
costume, fazia

reflexões sôbre a vida humana: "Vejo - dizia-lhe - que os males do meu
destino se expandem sôbre o teu. Até agora, tudo me saiu muito estranho,
na verdade. Multaram-me por causa de um grifo; mandaram-me a suplício
por ter feito versos em louvor do rei; estive prestes a ser estrangulado
porque a rainha tinha fitas amarelas; e eis-me agora escravizado contigo
porque um brutamontes deu uma sova na amante. Mas não percamos a
coragem; tudo isso, decerto, acabará; afinal de contas, os mercadores
árabes têm de possuir escravos; e por que não seria eu um escravo como
qualquer outro, visto que sou um homem como qualquer outro? Êsse
mercador não pode ser impiedoso, pois terá de tratar bem a seus
escravos, se quiser aproveitá-los". Assim falava êle, mas, no fundo do
coração, estava preocupado com a sorte da rainha de Babilônia. Setoc, o
mercador, partiu, dois dias depois, para a Arábia deserta, com os
escravos e camelos. Sua tribo habitava para as bandas do deserto de
Horeb, e a viagem foi longa e penosa. Setoc, no caminho, fazia mais caso
do criado que do patrão, pois o primeiro sabia lidar melhor com os
camelos, e tôdas as pequenas regalias foram para êle. Um camelo morreu a
dois dias de Horeb; dividiram- lhe a carga pelos escravos; Zadig ganhou
o seu quinhão. Setoc pôs-se a rir ao ver todos os escravos marcharem
curvados. Zadig tomou a liberdade de explicar-lhe a razão, e fêz-lhe
conhecer as leis do equilíbrio. O mercador, espantado, começou a olhá-
lo de outra maneira. Zadig, vendo que lhe excitava

a curiosidade, redobrou-a ensinando-lhe muitas coisas que não eram
estranhas a seu comércio: o pêso específico doa metais e dos gêneros em
volume igual; as propriedades de vários animais úteis; os meios de
tornar úteis os que não o eram; em suma, afigurou-se-lhe um verdadeiro
sábio. Setoc o preferiu a seu camarada, a quem tanto estimara. Tratou-o
bem, e não teve de que se arrepender. Chegado à sua tribo, Setoc
reclamou duzentas onças de prata a um hebreu a quem as emprestara em
presença de duas testemunhas; mas estas haviam morrido, e o hebreu disso
se aproveitara para ficar com o dinheiro do mercador, dando graças a
Deus por lhe haver proporcionado ensejo de enganar a um árabe. Setoc
confiou a dificuldade a Zadig, que se tornara seu conselheiro. - Em que
local emprestou suas quinhentas onças a êsse infiel? - perguntou-lhe
Zadig. - Sôbre uma larga pedra que se acha ao pé do monte Horeb. - Qual
é o caráter de seu devedor? - O de um legítimo velhaco. - Mas o que lhe
pergunto é se é um homem vivo ou fleugmático, atilado ou imprudente. -
De todos os maus pagadores, é o mais vivo que eu conheço. - Pois bem! -
insistiu Zadig. - Permita que pleiteie sua causa perante o juiz. Com
efeito, citou o hebreu ao tribunal, e assim falou ao juiz: - Almofada do
trono da eqüidade, venho reclamar a êsse homem em nome de meu senhor,
quinhentas

onças de prata, que êle não quer devolver. - Há testemunhas? - Não,
morreram; mas existe uma larga pedra sôbre a qual foi contado o
dinheiro; e, se aprouver a Vossa Grandeza mandar trazê-la, espero que
ela preste testemunho; aqui ficaremos, o israelita e eu, à espera de que
chegue essa pedra; mandarei buscá-la por conta de Setoc, meu senhor. -
Muito bem - concordou o juiz. E pôs-se a despachar outros assuntos. - E
então? - disse êle a Zadig no fim da audiência. - Ainda não chegou a sua
pedra? O hebreu retrucou a rir: - Poderia Vossa Grandeza ficar aqui até
amanhã, que a pedra ainda não chegaria; está a mais de seis milhas de
distância e seria preciso uns quinze homens para transportá-la. - Estais
vendo?! - exclamou Zadig. - Bem disse eu que a pedra prestaria
testemunho; já que êsse homem sabe onde está a pedra, confessa, pois,
que foi sôbre ela que se contou o dinheiro. O hebreu, interdito, viu-se
logo obrigado a confessar tudo. O juiz ordenou que fôsse êle atado à
pedra, sem beber nem comer, até devolver as quinhentas onças, que foram
pagas sem demora. O escravo Zadig e a pedra alcançaram grande fama em
tôda a Arábia.

XI. A PIRA

Setoc, encantado, fêz do escravo seu amigo íntimo.

Tal como o rei de Babilônia, não podia passar sem êle, e Zadig
felicitava-se de que Setoc não tivesse mulher. Reconhecia no seu amo um
natural pendor para o bem, muita retidão e bom senso. Doeu-lhe comprovar
que êste adorava o exército celeste, isto é, o sol, a lua e as estrêlas,
conforme o antigo costume árabe. E a isso se referia às vêzes muito
discretamente. Afinal lhe disse que eram corpos como os outros e que não
mereciam as suas homenagens, mais que uma árvore ou um rochedo
quaisquer. - Mas - retrucava Setoc, - trata-se de sêres eternos de que
auferimos todos os benefícios; animam a natureza; regulam as estações; e
estão aliás tão longe de nós que é impossível deixar de venerá-los. -
Mais benefícios respondeu Zadig - recebe o senhor das águas do Mar
Vermelho, que lhe transportam as mercadorias para a Índia. Por que não
há de ser êle tão antigo como as estrêlas? E se o caso é adorar o que se
acha afastado, devia então o amo adorar a terra dos gangáridas, que fica
nos limites do mundo. - Não - dizia Setoc, - as estrêlas são muito
brilhantes para que eu não as adore. Quando anoiteceu, Zadig acendeu
inúmeras velas na tenda onde devia cear com Setoc, e logo que êste
apareceu, lançou-se ao pé daquelas ceras alumiadas, e exclamou: "Eternas
e brilhantes luzes, sêde-me propícias para sempre." Dito isto, sentou-
se à mesa sem olhar para Setoc. - Que fazes? - perguntou Setoc,
espantado. - Faço como o meu amo; adoro essas luzes e negligencio aquêle
que é senhor delas, e meu

senhor também. Setoc compreendeu o profundo sentido dêsse apólogo.
Penetrou-lhe na alma a sabedoria de seu escravo; não mais prodigalizou
incenso às criaturas, e adorou o Ser eterno que as fêz. Havia então na
Arábia um terrível costume, originário' da Cítia e que, estabelecido na
Índia pelos brâmanes, ameaçava invadir todo o Oriente. Quando morria um
homem casado e a sua amada espôsa desejava ser santa, fazia-se ela
queimar em público, sôbre o corpo do marido. Era uma festa solene a que
se chamava a pira da viuvez. A tribo em que houvesse mais mulheres
queimadas era a mais considerada de tôdas. Ora, tendo morrido um homem
da tribo de Setoc, sua viúva, chamada Almona, que era muito devota, fêz
saber o dia e hora em que se lançaria às chamas, ao som de tambores e
trombetas. Zadig observou a Setoc o quanto era contrário ao bem do
gênero humano êsse horrível costume de deixar que se queimassem, todos
os dias, viúvas moças que poderiam dar filhos ao Estado, ou pelo menos
criar os seus; e fêz-lhe ver que deveria, se possível, abolir tão
bárbaro costume - Há mais de mil anos ponderou Setor que as mulheres têm
o direito de queimar-se. Qual de nós ousaria mu dar uma lei que o tempo
consagrou? Haverá coisa mais respeitável do que um antigo abuso? - A
razão é mais antiga - retrucou Zadig. - Dirija-se aos chefes das tribos,
e eu vou ter com a viúva. Fêz-se apresentar a ela; e, depois de se lhe
haver insinuado no espírito com louvores à sua beleza, e

ter-lhe dito como era lastimável entregar ao fogo tamanhos encantos,
ainda lhe encareceu a constância e a coragem. - Decerto amava
prodigiosamente a seu marido, não? - Eu? Qual nada! - respondeu a dama.
- Era um bruto, um ciumento, um homem insuportável; mas estou firmemente
resolvida a lançar-me às chamas. - Mas com certeza deve ser delicioso
ser queimada viva... - Oh! até arrepia a natureza - disse a dama. Mas
tem-se de passar por isso. Eu sou devota; e perderia a reputação, e todo
o mundo riria de mim se eu não me queimasse. Zadig, tendo-lhe
demonstrado que ela se queimava por causa dos outros e por vaidade,
falou-lhe longamente, de modo a fazer-lhe amar um pouco a vida e
chegando até a lhe inspirar alguma benevolência por aquêle que assim lhe
falava. - Que faria, enfim, a senhora, se lhe passasse essa vaidade de
ser queimada? 109 - Ah! - retrucou a dama - Acho que lhe pediria que se
casasse comigo. Muito preocupado ainda estava Zadig com Astartéia para
que se deixasse impressionar com essa declaração; mas foi logo ao
encontro dos chefes de tribo, contou-lhes o que se passava e lhes
aconselhou que baixassem uma lei que só permitiria a uma viúva ir para a
fogueira depois de haver falado durante uma hora, a sós, com um homem
jovem. E desde êsse tempo, nenhuma viúva árabe se lançou às chamas.
Assim se deveu a Zadig o ser abolido, em um dia, tão cruel costume, que
vinha

durando há séculos. Era, pois, o benfeitor da Arábia.

XII. A CEIA

Setoc, que não podia separar-se daquele homem em quem habitava a
sabedoria, levou-o à grande feira de Bassorá, a que deviam comparecer os
maiores negociantes do mundo habitável. Foi para Zadig um confôrto
espiritual ver congregados no mesmo local tantos homens das mais
diversas regiões. Parecia-lhe que o universo era uma grande família que
se reunia em Bassorá. Encontrou-se à mesa, logo ao segundo dia, com um
egípcio, um gangárida, um habitante de Catai, um grego, um celta, e
vários outros estrangeiros que, nas suas freqüentes viagens ao gôlfo
arábico, haviam aprendido o suficiente de árabe para se fazerem
compreender. O egípcio parecia bastante encolerizado. - Que abominável
terra! - exclamou êle. - Recusam- me aqui mil onças de ouro sôbre o
melhor artigo do mundo. - Como! Que artigo é êsse? - indagou Setoc. - O
corpo de minha tia - respondeu o egípcio. - Era a mais brava mulher de
todo o Egito. Acompanhava- me sempre; morreu em viagem; mandei fazer
dela uma das mais belas múmias que já tivemos; na minha terra eu
conseguiria empenhá-la por quanto quisesse. É estranho que aqui não me
queiram emprestar ao menos mil onças de ouro sôbre um

artigo tão sólido. Enquanto assim se exasperava, dispunha-se a servir-se
de uma excelente galinha cozida, quando o indiano, segurando-lhe a mão,
exclamou, alarmado: - Oh! que vai fazer? - Comer essa galinha - disse o
homem da múmia. - Oh! não faça isto! Suponha-se que a alma de sua tia se
haja encarnado nessa galinha, e o senhor certamente não vai expor-se a
devorar a senhora sua tia! Ah, cozinhar galinhas é um ultraje à
natureza. - Ora, não me venha com essa história de naturezas e galinhas!
retrucou o irascível egípcio. - Nós adoramos a um boi, e nem por isso
deixamos de os comer. - Adoram a um boi? Será possível?! - estranhou o
homem do Ganges. - Nada mais possível; há cento e trinta e cinco mil
anos que assim fazemos; e ninguém entre nós achou nada que objetar. -
Ah! cento e trinta e cinco mil anos é exagêro! - protestou o hindu. - Há
apenas oitenta mil anos que a Índia é povoada e sem dúvida alguma somos
o povo mais antigo do mundo; e Brama nos proibiu de comer bois muito
antes que os senhores se lembrassem de os pôr nos altares e no espêto. -
Belo animal êsse Brama para se comparar a Ápis! Que diabo fêz êle que se
aproveitasse? - Foi êle quem ensinou os homens a ler e escrever, e a êle
é que deve o mundo a invenção do xadrez - respondeu o brâmane. - Pois
estão muito enganados - aparteou um caldeu

vizinho. - É ao peixe Oanes que devemos tamanhos benefícios, e só a êle
é justo rendermos homenagem. Todo o mundo lhes dirá que era um ser
divino, que tinha uma cauda dourada, uma bela cabeça de homem, e que
todos os dias saía das águas para vir pregar em terra - durante três
horas. Teve vários filhos, que foram reis, como todos sabem. Tenho em
casa a sua imagem, que venero, como é devido. Pode-se comer quanto boi
se queira; mas é sem dúvida uma grande impiedade cozinhar peixe; aliás,
os senhores todos são de origem muito pouco nobre e muito recente. A
nação egípcia conta apenas cento e trinta e cinco mil anos, e os hindus
só se vangloriam de oitenta mil, ao passo que nós temos almanaques de
quatro mil séculos. Renunciem a tais loucuras, e eu darei a cada um dos
senhores uma bela imagem de Oanes, O homem de Cambalu tomou então a
palavra: - Respeito muito os egípcios, os caldeus, os gregos, os celtas,
Brama, o boi Ápis, o belo peixe Oanes; mas talvez o Li, ou o Tien , como
queiram chamar- lhe, valha tanto como os bois e peixes. Nada direi de
meu país; é tão grande como o Egito, a Caldéia e a, Índia reunidos. De
antigüidade não discuto, pois basta ser feliz, e é bem pouca coisa ser
antigo; mas, se fôssemos falar de almanaques, diria que tôda a Ásia
copia os nossos, e os tínhamos excelentes antes que soubessem aritmética
na Caldéia. - Uns grandes ignorantes é o que os senhores são - exclamou
o grego. - Será que não sabem que o caos é o pai de tudo, e que a forma
e a matéria puseram o mundo no estado em que se acha?

Esse grego falou por muito tempo; mas foi interrompido afinal pelo
celta, que, tendo bebido à larga enquanto discutiam, julgou-se então
mais sábio que todos os outros e disse, praguejando, que, além de
Teutath e do agárico de carvalho, nada mais havia digno de menção neste
mundo; que êle tinha sempre um agárico no bôlso; que os citas, seus
antepassados, foram os únicos homens de bem que jamais existiram sôbre a
face da terra, que algumas vêzes, na verdade, tinham comido homens, mas
isso não impedia que se tributasse o máximo respeito à sua nação; e que,
enfim, se alguém falasse mal de Teutath, teria de haver-se com êle. A
discussão acalorou-se e Setoc viu o momento em que o sangue correria
pela mesa. Zadig, que se mantivera em silêncio durante tôda a disputa,
afinal se ergueu: dirigiu-se primeiro ao celta, que era o mais furioso;
disse-lhe que êle tinha razão, e pediu-lhe o agárico; gabou ao grego a
sua eloqüência e acalmou os ânimos exaltados. Poucas palavras disse ao
homem de Catai, pois fôra êste o mais sensato de todos. Em seguida lhes
disse: - Iam os meus caros amigos brigar por coisa nenhuma, pois afinal
são todos da mesma opinião. A estas palavras, levantou-se um protesto
geral - Não é verdade - disse êle ao celta - que o senhor não adora a
êsse agárico, mas àquele que fêz o agárico e o carvalho? - Sem dúvida
respondeu o celta. - E o senhor - disse ao egípcio - não venera, sob a
aparência de certo boi, àquele que nos deu os bois? - Sim - concordou o
egípcio.

- O peixe Oanes - continuou êle - deve ceder ante àquele que fêz o mar e
os peixes. - De acôrdo - disse o caldeu. - O natural da Índia
acrescentou - e o de Catai, reconhecem, como os senhores, um primeiro
principio; não compreendo lá muito bem as coisas admiráveis que disse o
grego, mas estou certo de que êle também admite um Ser superior. de que
dependem a forma e a matéria ' •• 112 O grego, a quem admiravam, disse
que Zadig lhe apreendera muito bem o pensamento. - Todos são, pois, da
mesma opinião - concluiu Zadig - e não há motivos para disputas. E todos
o abraçaram. Setoc, depois de haver vendido bastante caro as
mercadorias, reconduziu o amigo Zadig à sua tribo. Ao chegar, soube êste
que o haviam processado durante a sua ausência e que seria queimado a
fogo lento.

XIII. AS ENTREVISTAS

Enquanto se achava em Bassorá, os sacerdotes das estrêlas tinham
resolvido puni-lo. A êstes pertenciam de direito as pedrarias e adereços
das viúvas a quem condenavam à fogueira; não era demais que mandassem
queimar Zadig pela peça que lhes pregara. Acusaram-no, pois, de
alimentar sentimentos errôneos para com o exército celeste; depuseram
contra êle e juraram que o tinham ouvido dizer que as estrêlas não se
punham no mar.

Essa horrenda blasfêmia fêz estremecer os juízes; estiveram a ponto de
rasgar as vestes, ao ouvir essas ímpias palavras, e sem dúvida o teriam
feito se Zadig tivesse com que lhas pagar. Mas, no auge da dor,
contentaram-se em condená-lo a ser queimado a fogo lento. Setoc,
desesperado, empregou em vão tôda a sua influência para salvar o amigo;
foi logo obrigado a calar-se. A jovem viúva Almona, que tomara bastante
gôsto à vida e que devia isso a Zadig, resolveu livrá-lo da fogueira,
cujo absurdo êle a fizera reconhecer. Remoeu consigo êsse projeto, sem o
comunicar a ninguém.Zadig devia ser executado no dia seguinte; ela
dispunha apenas da noite para o salvar. Eis o que fêz, como mulher
caridosa e prudente. Perfumou-se, realçou sua beleza com os mais ricos e
galantes atavios, e foi solicitar uma audiência secreta ao chefe dos
sacerdotes das estrêlas. Quando se viu em presença do venerável ancião,
falou-lhe nos seguintes têrmos: - Filho primogênito da grande ursa,
irmão do touro, primo do grande cão (eram os títulos do pontífice), aqui
venho confiar-vos meus escrúpulos. Estou com muito mêdo de haver
cometido um enorme pecado, não me queimando na pira de meu querido
espôso. Com efeito, que tinha eu a conservar? Uma carne perecível, e que
já se vai fanando... Ao dizer tais palavras, retirou das longas mangas
de sêda os seus braços nus, admiráveis de contôrno e deslumbrantes de
brancura. - Vêde - disse ela - o pouco que isto vale. O pontífice achou,
no íntimo do coração, que aquilo valia muito. Disseram-no os seus olhos,
e sua bôca

o confirmou: jurou que nunca, em sua vida, vira uns braços mais lindos.
- Ai! - suspirou a viúva os braços pode ser que estejam menos mal que o
resto; mas haveis de confessar que o colo não era digno de meu aprêço.
Deixou ver então o seio mais encantador que já formara a natureza. Um
botão de rosa sôbre um pomo de marfim nada seria, em comparação, e os
cordeiros recém-saídos do lavadoiro pareceriam de um amarelo sujo.
Aquêles seios, seus grandes olhos negros que enlanguesciam, brilhando
suavemente num carinhoso ardor, suas faces animadas da mais bela púrpura
misturada ao branco do mais puro leite, o seu nariz, que não era como a
tôrre do monte Líbano, os seus lábios, que eram como escrínios de coral,
encerrando as mais belas pérolas do mar da Arábia, tudo isso convenceu
ao velho de que tinha vinte anos. Fêz-lhe, gaguejando, uma declaração
amorosa. Almona, vendo-o inflamado, pediu-lhe o perdão de Zadig. - Ah!
minha bela dama - disse êle, - ainda que eu lhe concedesse o perdão,
minha indulgência de nada serviria; é preciso que seja assinado por três
outros confrades meus. - Assinai, assim mesmo - insistiu Almona. - Com
muito gôsto - disse o sacerdote, - sob a condição de que seus favores
sejam o prêmio de minha facilidade. - Muita honra me concedeis - disse
Almona. - Dignai-vos vir a meu quarto depois que o sol se puser, e logo
que a brilhante estrêla Sheat erguer- se no horizonte. E então me
encontrareis num sofá côr-de-rosa, e podereis dispor de vossa serva como

bem quiserdes. Ela então retirou-se, levando consigo a assinatura, e
deixando o velho cheio de amor e desconfiança de suas próprias fôrças.
Empregou êle o resto do dia em banhar-se; bebeu um licor composto de
canela de Ceilão e preciosas especiarias de Tidor e Ternate, e esperou
com impaciência que aparecesse a estréia Sheat. Enquanto isto, a bela
Almona foi procurar o segundo pontifice. Ëste lhe assegurou que o sol, a
lua, e todos os luzeiros do firmamento não passavam de fogos fátuos em
comparação com os seus encantos. Almona lhe pediu a mesma graça, e
propuseram-lhe o mesmo preço. Ela deixou-se vencer, e marcou encontro
com o segundo pontífice ao erguer da estréia Algenib. Dali, dirigiu-se à
casa do terceiro e do quarto sacerdote, sempre recebendo uma assinatura
e marcando encontro de estrêla em estrêla. Mandou então pedir aos juízes
que comparecessem à sua residência, para um assunto importante. Ali
chegados, mostrou-lhes os quatro nomes e disse- lhes por que preço
haviam os sacerdotes vendido o perdão de Zadig. Cada um dêstes chegou à
hora aprazada, e cada qual se espantou de ali encontrar os seus
confrades, e mais os juízes, perante os quais ficou patenteada a sua
vergonha. Zadig foi salvo. Quanto a Setoc, ficou tão encantado com a
habilidade de Almona que casou com ela. Zadig partiu, após se haver
lançado aos pés da sua bela salvadora. Setoc e êle separaram-se em
pranto, jurando eterna amizade e prometendo-se que o primeiro dos dois
que conseguisse uma grande

fortuna o participaria ao outro. Zadig se dirigiu para as bandas da
Síria, sempre com o pensamento na infeliz Astartéia, e refletindo na
sorte que se obstinava em o escarnecer e perseguir. "Meu Deus! - dizia
êle consigo. - Quatrocentas onças de ouro por causa da passagem de uma
cadela! condenado à decapitação por quatro maus versos em louvor do rei!
quase estrangulado porque a rainha tinha babuchas da côr do meu barrete!
reduzido à escravidão por haver socorrido uma mulher a quem espancavam!
e prestes a ser queimada por ter salvo a vida de tôdas as viúvas
árabes!"

XIV. O SALTEADOR

Chegado às fronteiras que separam a Arábia Pétrea da Síria e quando
passava por um castelo bastante fortificado, saíram dêste uns árabes de
arma em punho, que o cercavam, gritando "Tudo o que você tem nos
pertence; e sua pessoa pertence a nosso chefe". Zadig, como resposta,
puxou da espada; seu criado, que tinha coragem, fêz o mesmo. Estenderam
mortos os primeiros árabes que se atreveram a lhes pôr a mão; o número
redobrou; êles não se assustaram com isso resolveram morrer lutando.
Viam-se dois homens a defender-se contra uma multidão; tal combate não
poderia durar muito tempo. O senhor do castelo, por nome Arbogad, que
assistia de uma janela aos prodígios de coragem que praticava encheu-se
de estima por êle. Desceu

às pressas e veio em pessoa afastar seu pessoal e livrar os dois
viajantes. "Tudo o que passa pelas minhas terras é meu - dizia êle - mas
você me parece tão bom sujeito, que o dispenso da lei comum". Fê-lo
entrar no castelo, dando ordens para que o tratassem bem, e, à noite,
fêz questão de cear em companhia do seu hóspede. O senhor do castelo era
um dêsses árabes a que chamam ladrões; mas às vêzes, em meio a uma
multidão de más ações, sucedia-lhe praticar algumas boas; roubava com
furiosa rapacidade, e sabia dar liberalmente. Intrépido na ação,
bastante tratável em sociedade, intemperante na mesa, alegre na pândega,
e sobretudo cheio de franqueza, muito se agradou de Zadig. A
conversação, que se animou, prolongou o repasto. Disse êle enfim a seu
hóspede: - Aconselho-o a alistar-se com minha gente; é o que pode fazer
de melhor; êste ofício, afinal de contas, não é mau; e poderá um dia
chegar ao que eu sou. - Permite-me perguntar-lhe - disse Zadig - desde
quando exerce essa nobre profissão? - Desde rapazinho replicou o senhor.
- Servia eu de criado a um árabe muito esperto; e essa situação me era
insuportável. Desesperava-me ver que em tôda a terra que pertence
igualmente aos homens, não me houvesse o destino reservado a parte a que
tinha direito. Confiei minhas penas a um velho árabe, que me disse: "Não
desesperes, meu filho: era uma vez um grão de areia que se lamentava de
ser um átomo ignorado no deserto; ao cabo de

alguns anos tornou-se diamante, e é agora o mais belo ornamento da coroa
do rei das Índias". Tais palavras me causaram profunda impressão: eu era
o grão de areia, resolvi tornar-me diamante. Comecei roubando dois
cavalos; depois associei a mim alguns camaradas; fiquei em condições de
roubar pequenas caravanas; e assim fiz cessar pouco a pouco a
desproporção que a princípio havia entre mim e os outros homens. Tive a
minha parte nos bens dêste mundo; e fui até sobejamente indenizado:
alcancei grande consideração; tornei- me senhor bandoleiro, adquiri êste
castelo por direito de conquista. O sátrapa da Síria quis desapossar-me;
mas eu já era bastante rico para não temer o que quer que fôsse: dei
dinheiro ao sátrapa, conservando assim êste castelo, e aumentei os meus
domínios; êle nomeou-me tesoureiro dos impostos que a Arábia Pétrea
pagava ao rei dos reis. Desempenhei o meu cargo de recebedor desdenhando
o de pagador. O grande desterham de Babilônia mandou para aqui, em nome
do rei Moabdar, um pequeno sátrapa, para que me fizesse estrangular.
Êsse homem chegou com a sua ordem: eu estava inteirado de tudo; mandei
estrangular na sua presença os quatro personagens que trouxera consigo
para apertarem o laço; feito o que, perguntei-lhe o quanto lhe poderia
render a incumbência de estrangular-me. Respondeu-me que seus honorários
poderiam montar a trezentas moedas de ouro. Dei-lhe claramente a
entender que comigo poderia ganhar muito mais. Fi-lo subsalteador; é
hoje um de meus melhores oficiais

e dos mais ricos. Palavra que o amigo há de vencer como êle. Para
roubar, acredite, nunca esteve melhor a temporada, depois que Moabdar
foi morto e tudo é confusão em Babilônia. Morto, Moabdar?! exclamou
Zadig. - E que é feito da rainha Astartéia? - Não sei - respondeu
Arbogad. - Só o que sei é que Moabdar enlouqueceu, que o mataram, que
Babilônia é um pandemônio que todo o império está assolado, que ainda há
belos golpes a dar e que eu, da minha parte, os dei admiráveis. - Mas e
a rainha? - insistiu Zadig. - Por favor, não sabe mesmo nada da sorte da
rainha? - Falaram-me de um príncipe da Hircânia; ela está provàvelmente
entre as suas concubinas, se é que não foi morta no tumulto; mas estou
mais interessado pelos saques que por novidades. Apoderei-me de várias
mulheres em minhas excursões; não conservo nenhuma; vendo-as caro quando
são belas, sem me importar o que sejam. Ninguém compra posições: uma
rainha feia não seria arrematada. Talvez eu tenha vendido a rainha
Astartéia, talvez ela esteja morta; mas pouco se me dá, e acho que isso
não o deve preocupar mais do que a mim. Assim falando, bebia tão
valentemente e confundia de tal modo tôdas as idéias, que Zadig não pôde
obter nenhum esclarecimento. Permanecia interdito, aniquilado, imóvel.
Arbogad não parava de beber, inventava histórias, repetia
incessantemente que era o mais feliz de todos os homens, exortando Zadig
a se tornar tão feliz quanto êle. Afinal, levemente amodorrado pelos

vapores do vinho, foi dormir um sossegado sono. Zadig passou a noite na
mais violenta agitação. "Como! - exclamava êle. - O rei enlouqueceu! Foi
assassinado! Não posso deixar de o lamentar. O império está devastado, e
êsse ladrão é feliz. O fortuna! ô destino! Um ladrão é feliz, e o que de
mais amável fêz a natureza pereceu talvez de um modo horrível, ou vive
num estado pior que a morte, O Astartéia! que é feito de ti?" Logo ao
raiar do dia, interrogou todos aquêles que encontrava pelo castelo; mas
todos estavam ocupados, ninguém lhe respondia; tinham feito novas
conquistas durante a noite e repartiam os despojos. Só o que pôde obter,
naquela tumultuosa confusão, foi permissão de partir. Aproveitou-a sem
demora, mais absorto do que nunca em seus dolorosos pensamentos. Zadig
marchava inquieto, agitado, a pensar na infeliz Astartéia, no rei da
Babilônia, no seu fiel Cador, no feliz ladrão Arbogad, naquela mulher
tão caprichosa que os babilônios haviam detido nos confins do Egito;
enfim, em todos os contratempos e infortúnios que experimentara.

XV. O PESCADOR

A algumas léguas do castelo de Arbogad, achou-se à margem de um ribeiro,
sempre a deplorar seu destino e considerando-se o modêlo da desgraça.
Viu um pescador reclinado à margem, segurando frouxamente a rêde, que
parecia abandonar, e

erguendo os olhos para o céu. Sou sem dúvida o mais infeliz de todos os
homens - clamava o pescador. - Fui, por consenso geral, o mais famoso
mercador de queijo em tôda Babilônia, e fiquei arruinado. Tinha a mais
linda mulher que um homem jamais possuiu, e ela traiu-me. Restava-me uma
modesta casa, que foi pilhada e destruída. Refugiei-me numa choça, tendo
a pesca como único recurso, e não apanho nenhum peixe. ó minha rêde, não
mais te lançarei, eu é que devo lançar-me à água. Dizendo tais palavras,
ergue-se e avança, na atitude de um homem que se fôsse arremessar e dar
cabo da vida. - Como! - dizia consigo Zadig. - Há então outros - mais
infelizes do que eu?! - O ardor de salvar a vida ao homem foi tão rápido
quanto esta reflexão. Acorre, detém-no, interroga-o com um ar comovido e
animador. A gente acha que é menos infeliz quando não o é sòzinho. Mas
isso, segundo Zoroastro, não significa maldade; é uma necessidade,
apenas. Sentimo-nos atraídos então para um infeliz, como para um
semelhante nosso. A alegria de um homem venturoso nos seria um insulto;
mas dois desgraçados são como dois frágeis arbustos que, apoiando-se um
no outro, se fortalecem contra a tempestade. - Por que sucumbes às tuas
desditas? - perguntou - Zadig ao pescador. - É que não lhes vejo remédio
- retrucou o outro - Fui o homem mais considerado da aldeia de Derlback,
e fabricava, com o auxílio de minha espôsa, os melhores queijos de todo
o império. A

rainha Astartéia e o famoso ministro Zadig os apreciavam loucamente.
Tinha-lhes fornecido seiscentos queijos. Fui um dia a Babilônia receber
o pagamento; soube, de chegada, que a rainha e Zadig haviam
desaparecido. Corri à casa do senhor Zadig, a quem jamais vira; ali
encontrei os arqueiros do grande desterham, que, munidos de um édito
real, saqueavam-na legalmente e com tôda a ordem. Voei às cozinhas da
rainha; alguns dos despenseiros me disseram que ela morrera; outros que
estava prêsa; outros que fugira; mas todos me asseguravam que não me
seriam pagos os meus queijos. Em companhia de minha mulher, fui falar
com o senhor Orcan, que era um de meus fregueses, e lhe pedimos proteção
em nossa desgraça; êle a concedeu à minha mulher, e recusou-a a mim. Era
ela mais branca que os seus queijos, que começaram minha desgraça; e o
esplendor da púrpura de Tiro não era mais brilhante que o carmim que
animava aquela brancura. Foi o que fêz com que Orcan a detivesse e me
escorraçasse da sua casa. Escrevi à minha querida espôsa uma carta
desesperada. - Ah! sim - disse ela ao portador, - sei quem é êsse homem
que me escreve, já ouvi falar nêle: dizem que fabrica excelentes
queijos; tragam-me alguns e não se esqueçam de lhos pagar. Na minha
desgraça, decidi recorrer à justiça. Restavam-me seis onças de ouro:
tive de dar duas ao legista que consultei, duas ao advogado que se
encarregou do meu caso, duas ao secretário do primeiro juiz. Depois de
tudo isso, meu processo ainda não fôra encetado, e eu já tinha
dispendido

mais dinheiro do que valiam os meus queijos e a minha mulher. Voltei à
minha aldeia, na intenção de vender a casa para conseguir minha mulher.
Minha casa valia umas sessenta onças de ouro; mas sabiam-me pobre e
necessitado de dinheiro. O primeiro a quem me dirigi ofereceu-me trinta
onças, o segundo vinte, e o terceiro dez. Estava prestes a liquidar
tudo, tão cego me achava, quando um príncipe da Hircânia veio a
Babilônia e assolou tudo na sua passagem. Minha casa foi primeiro
saqueada e depois reduzida a cinzas. Tendo assim perdido o meu dinheiro,
a minha mulher e a minha casa, retirei-me para esta região onde o senhor
me vê. Procurei viver do oficio de pescador: os peixes zombam de mim,
como os homens. Não apanho nenhum, morro de fome; e, se não fôsse a sua
intervenção, augusto consolador iria afogar-me no rio A narrativa acima,
o pescador não a fêz sem interrupção, pois a todo momento Zadig,
comovido e arrebatado, dizia-lhe: - Como! Não sabes nada do destino da
rainha? - Não, meu senhor, mas sei que a rainha e Zadig não me pagaram
os meus queijos, que me roubaram a minha mulher, e que estou
desesperado. - Creio - disse Zadig que não perderás todo o teu dinheiro.
Ouvi falar dêsse Zadig; é um sujeito honesto e, se voltar a Babilônia,
como pretende, há de pagar-te mais do que te deve; mas quanto à tua
mulher, que não é honesta, aconselho-te que não procures recuperá-la.
Vai a Babilônia; lá estarei antes de ti, porque ando a cavalo e tu a pé.
Dirige-

te ao ilustre Cador; dize-lhe que encontraste o seu amigo; espera-me na
casa dêle. Anda, vai; talvez não sejas sempre desditado. Ó possante
Orosmade - continuou êle - tu que te serves de mim para consolar êsse
homem, de quem te servirás para consolar-me? Assim falando entregava ao
pescador metade de todo o dinheiro que trouxera da Arábia, e o pescador,
confuso e maravilhado, lhe beijava os pés e dizia-lhe: - És o meu anjo
salvador. Enquanto isto, Zadig continuava a pedir informações e
desfazia-se em lágrimas. - Como! - exclamou o pescador. - Tu que
praticas o bem, serás assim tão desgraçado? - Cem vêzes mais desgraçado
do que tu - respondia Zadig. - Mas como pode ser - estranhava o homem -
que aquêle que dá seja mais digno de lástima do que aquêle que recebe? -
É que a tua maior desgraça - tornou Zadig - era a necessidade; e, quanto
a mim, sou desgraçado pelo coração. - Será que Orcan te roubou a mulher?
- indagou o pescador. Esta frase lembrou a Zadig tôdas as suas
aventuras: rememorava a lista de seus infortúnios, desde a cadela da
rainha até a chegada ao castelo do ladrão Arbogad. - Ah! - disse êle. -
Orcan merece punição. Mas em geral é essa gente que o destino favorece.
Em todo caso, vai ter com Cador, e espera-me. Separaram-se; pôs-se o
pescador a andar abençoando o seu destino e Zadig a correr,

amaldiçoando o seu.

XVI. O BASILISCO

Chegando a uma bela campina, viu inúmeras mulheres que procuravam
afanosamente qualquer coisa. Tomou a liberdade de aproximar-se de uma
delas e perguntar-lhe se não poderia ter a honra de auxiliá-las. - Não
faça isto - respondeu-lhe a síria. O que nós procuramos só pode ser
tocado por mulheres. - Eis uma coisa bastante estranha - retrucou Zadig.
- Não seria indiscrição perguntar-lhe que coisa é essa em que só as
mulheres podem tocar? - É um basílisco - disse ela. - Um basilisco
senhora? Mas por que motivo procuram um basilisco? É para o nosso senhor
e amo Ogul, cujo castelo se avista à margem dêste rio, ao fundo do
prado. Somos as suas humildes escravas; o senhor Ogul está doente; o
médico prescreveu-lhe um basilisco cozido em água de rosas, e como é um
animal muito raro, que só se deixa apanhar por mulheres, o senhor Ogul
prometeu escolher, para espôsa bem amada, aquela dentre nós que lhe
levasse um basilisco: deixe-me procurar, por favor, pois bem vê que me
sairia muito caro se as minhas companheiras me precedessem. Zadig deixou
aquela e as outras sírias em busca do seu basilisco e continuava a
passear pela campina. Chegando à margem de um arroio, ali encontrou

outra dama sentada na relva e que não procurava nada. Seu talhe parecia
majestoso, mas o rosto achava-se coberto por um véu. Estava inclinada
para o arroio, e brotavam-lhe do peito profundos suspiros. Tinha na mão
uma varinha, com que traçava caracteres na fina areia da margem. Zadig
teve curiosidade de ver o que escrevia aquela mulher. Aproximou-se; viu
a letra Z, depois um A; ficou espantado. Depois apareceu um D; êle
estremeceu. Jamais houve surprêsa igual à sua quando viu as duas últimas
letras de seu nome. Permaneceu algum tempo imóvel; e afinal, rompendo o
silêncio com voz entrecortada: - O generosa dama! perdoai que um
estrangeiro, um infeliz, ouse perguntar-vos por que espantosa aventura
vejo aqui o nome de Zadig escrito por vossa mão divina. A essa voz, a
essas palavras, a dama ergueu o véu com mão trêmula, fitou Zadig, lançou
um grito de ternura, de surprêsa e de alegria e, sucumbindo aos diversos
sentimentos que lhe assaltavam ao mesmo tempo a alma, tombou desmaiada
entre seus braços. Era a própria Astartéia, era a rainha de Babilônia,
era aquela a quem Zadig adorava, e a quem se inculpava de adorar; era
aquela a quem tanto havia chorado e por cujo destino tanto receava.
Viu-se, um momento, privado do uso dos sentidos; e quando fitou os olhos
nos de Astartéia, que se abriam com um langor mesclado de confusão e
ternura: - Ó potências divinas! exclamou, - que regeis o destino dos
frágeis humanos, então me devolveis Astartéia? Em que tempo, em que
lugar, em que estado a revejo!

Lançou-se de joelhos ante Astartéia, tocando com a fronte a poeira de
seus pés. A rainha de Babilônia o ergue, e o faz sentar a seu lado, à
margem daquele arroio; enxugava por várias vêzes os olhos, cujas
lágrimas continuavam sempre a rolar. Encetava, vinte vêzes, frases que
os gemidos interrompiam; interrogava-o sôbre o acaso que os reunia e lhe
sustava a resposta com outras perguntas. Iniciava a narrativa de seus
males, e queria saber os de Zadig. Tendo ambos enfim apaziguado um pouco
o tumulto interior, contou-lhe Zadig em poucas palavras por que
aventuras se encontrava naquele prado. - Mas como, ó infeliz e
respeitável rainha, vos encontro eu neste remoto lugar, vestida de
escrava, e acompanhada de outras mulheres escravas que procuram um
basilisco, para o cozinhar em água de rosas, por prescrição médica? -
Enquanto elas procuram o basilisco - disse a bela Astartéia, - vou
contar-te o que sofri e tudo o que perdôo ao Céu desde que tornei a
ver-te. Sabes que o rei meu marido não levou a bem que fôsses o mais
amável dos homens; e, por êsse motivo, decidiu, uma noite, mandar
estrangular-te e, a mim, envenenar-me. Sabes como o Céu permitiu que o
meu pequeno mudo me avisasse da ordem de Sua Sublime Majestade. O fiel
Cador, logo que te obrigou a que me obedecesses e partisses, ousou
penetrar alta noite em meus aposentos, por uma passagem secreta.
Raptou-me e conduziu-me para o templo de Orosmade, onde o mago, seu
irmão, me encerrou numa estátua colossal cuja base toca os alicerces do
templo e cuja cabeça atinge a

abóbada. Ali fiquei como sepultada, mas atendida pelo mago, e não me
faltava nenhuma coisa necessária. Ao raiar do dia, o boticário de Sua
Majestade entrou no meu quarto, com uma poção de jusquiana, ópio,
cicuta, eléboro negro e acônito; e um outro oficial foi à tua casa com
um laço de sêda azul. Não encontraram ninguém. Cador, para me melhor
enganar o rei, fingiu vir acusar-nos a ambos. Disse que havias tomado o
caminho da Índia e eu o de Mënfis: enviaram satélites no encalço de nós
dois. Os correios que me procuravam não me conheciam, pois eu nunca
havia mostrado o meu rosto senão a ti, em presença o por ordem de meu
espôso. Correram em minha busca, fiados no retrato que lhes haviam
traçado da minha pessoa. Encontraram na fronteira do Egito uma mulher do
mesmo corpo que eu, e que talvez tivesse mais encanto. Estava
desamparada, errante. Não duvidaram que fôsse a rainha de Babilônia, e
conduziram-na a Moabdar. Diante de tal engano, o rei entrou em violenta
cólera; mas depois, considerando de mais perto a referida mulher,
achou-a bastante linda, e consolou- se. Chamava-se Missuf. Disseram-no,
depois, que êsse nome significa, em língua egípcia, a bela caprichosa.
Era-o, de fato; mas tinha tanta arte quanto capricho. Agradou a Moabdar.
Subjugou-a a ponto de fazer com que fôsse declarada sua espôsa. Seu
caráter, então, manifestou-se livremente; entregou-se, sem peias, a
tôdas as loucuras da imaginação. Quis obrigar o chefe dos magos, que era
velho e gotoso, a dançar diante dela; e, ante a recusa do mago, fêz-lhe
violenta

perseguição. Mandou o grande escudeiro fazer-lhe uma torta de confeitos.
Por mais que o homem alegasse que não era doceiro, foi obrigado a
fabricar a torta; e, como a tivesse deixado queimar- se, despacharam-no
sumàriamente. Deu o cargo de grande escudeiro ao seu anão, e o de
chanceler a um pajem. Foi assim que governou Babilônia. Todos lamentavam
a minha falta. O rei, que fôra bastante justo até o momento em que
resolveu envenenar- me e estrangular-te, parecia ter afogado as suas
virtudes no prodigioso amor que dedicava à bela caprichosa. Compareceu
ao templo no grande dia do fogo sagrado. Vi-o implorar os deuses, por
Missuf, ao pé da estátua onde me achava encerrada. Elevei a voz;
gritei-lhe: Os deuses recusam os votos de um rei que se transformou em
tirano e que quis matar uma mulher sensata para desposar uma louca. Tão
confuso ficou Moabdar ao ouvir tais palavras, que sua mente se
perturbou. O oráculo que eu proferira e a tirania de Missuf bastavam
para lhe fazer perder o juízo. Enlouqueceu em poucos dias. Sua loucura,
que se afigurou um castigo do céu, foi o sinal da revolta. Ergueram-se
em armas. Babilônia, por tanto tempo mergulhada em ociosa moleza, foi
teatro de terrível guerra civil. Retiraram- me do interior de minha
estátua e puseram-me à frente de um partido. Cador correu a Mênfis para
te reconduzir a Babilônia. O príncipe de Hircânia, cientificado dessas
funestas novas, voltou com o seu exército para formar um terceiro
partido na Caldéia. Atacou o rei, que correu a seu encontro com a sua
extravagante egípcia. Moabdar morreu

varado de golpes. Missuf tombou nas mãos do vencedor. Quis a desgraça
que eu também fôsse aprisionada pelas hostes hircanianas e que me
conduzissem perante o príncipe ao mesmo tempo em que lhe levavam Missuf.
Ficarás sem dúvida lisonjeado de saber que o príncipe me achou mais bela
que a egípcia; mas hás de arreliar-te ao saber que êle me destinou ao
seu serralho. Disse-me peremptòriamente que, mal terminasse uma
expedição que ia executar, viria ter comigo. Imagina qual não foi a
minha dor! Meus laços com Moabdar estavam rompidos, eu poderia pertencer
a Zadig; e caía nas mãos daquele bárbaro. Respondi-lhe com tôda a
altivez que comportavam a minha posição e os meus sentimentos. Sempre
ouvira dizer que o Céu concedia às pessoas de minha qualidade uma
espécie de grandeza que, com uma palavra ou um olhar, compeliam ao mais
profundo respeito os temerários que ousavam infringi-lo. Falei como
rainha; mas fui tratada como aia. O hircaniano, sem ao menos se dignar
dirigir-me a palavra, disse ao eunuco negro que eu era uma impertinente,
mas que me achava linda. Ordenou-me que cuidasse de mim e me submetesse
ao regime das favoritas, a fim de me suavizar a cútis e me tornar mais
digna de seus favores, no dia era que lhe aprouvesse honrar-me com êles.
Disse-lhe que me mataria; replicou a rir que ninguém se matava por isso,
que estava acostumado a tais cenas, e deixou-me como um homem que
acabasse de meter um papagaio no seu terreiro. Que situação para a
primeira rainha do universo e, direi mais, para um coração que

pertencia a Zadig! A estas palavras, Zadig lançou-se aos joelhos de
Astartéia e banhou-os de lágrimas. Astartéia ergueu-o carinhosamente, e
assim continuou: Via-me em poder de um bárbaro, e como rival de uma
louca, com quem me achava encerrada. Contou-me a sua aventura no Egito.
Pelos traços com que te pintava, pelo tempo, polo dromedário que
montavas, por tôdas as circunstâncias, compreendi que fôra Zadig quem
combatera por ela. Não duvidei que estivesses em Mênfis, e resolvi
partir para lá. - Bela Missuf - disse-lhe então, - és muito mais
sedutora do que eu, e saberás divertir o príncipe de Hircânia. Facilita
a minha fuga, e reinarás sòzinha; e assim farás a minha felicidade, ao
mesmo tempo que te desembaraças de uma rival. Missuf combinou comigo os
preparativos da fuga. Parti, pois, secretamente, com uma escrava
egípcia. Estava perto da Arábia, quando um famoso salteador, chamado
Arbogad, me raptou, vendeu-me a mercadores que me trouxeram a êste
castelo, de propriedade do senhor Ogul. Este me adquiriu sem saber quem
eu era. É um homem voluptuoso, que só procura passar bem e que acredita
que Deus o pôs no mundo para banquetear-se. É de uma gordura excessiva,
que sempre parece a ponto de sufocá-lo. Seu médico, que pouca fé lhe
merece quando êle, Ogul, digere bem, governa-o despòticamente quando
apanha uma indigestão. Persuadiu-o que o curaria com uni basilisco
cozido em água de rosas, O senhor Ogul prometeu a mão de espôso à
escrava sua que lhe conseguisse um

basilisco. Bem vês que eu as deixo se esforçarem à vontade por merecerem
tal honra, e nunca tive menos desejo de encontrar êsse basilisco do que
depois que o Céu permitiu que eu tornasse a ver-te. Astartéia e Zadig
disseram-se, então, tudo o que sentimentos longamente retidos, tudo o
que as suas desditas e amores podiam inspirar aos corações mais nobres e
mais apaixonados; e os gênios que presidem o amor levaram suas palavras
até a esfera de Vênus. As mulheres se recolheram sem haver encontrado
coisa alguma. Zadig fêz-se apresentar a Ogul e falou-lhe nos seguintes
têrmos: - Que a saúde imortal baixe do Céu para tomar a seu cuidado
todos os vossos dias! Sou médico; acorri ao saber de vossa doença, e vos
trouxe um basilisco cozido em água de rosas. Não que eu pretenda
desposar-vos. Só vos peço a liberdade de uma jovem escrava de Babilônia
que tendes há alguns dias em vosso poder; e consinto em ficar como
escravo no seu lugar, se não tiver a ventura de curar o magnífico senhor
Ogul. A proposta foi aceita. Astartéia partiu para Babilônia - com o
criado de Zadig, prometendo enviar-lhe continuamente um correio, a fim
de o trazer a par de tudo o que se passasse. A despedida foi tão terna
como o reencontro. O momento em que nos tornamos a encontrar e o momento
em que nos separamos são as duas maiores épocas da vida, como diz o
grande livro do Zenda. Zadig amava a rainha tanto quanto lho jurava, e a
rainha amava a Zadig mais do que lho dizia. Entrementes, assim falou
Zadig a Ogul:

- Senhor, o meu basilisco não é de comer, tôda a sua virtude deve
penetrar em vós pelos poros. Coloquei-o num pequeno odre bem inflado e
recoberto de fina pele: é preciso que arremesseis êsse odre com tôda a
fôrça e que eu vo-lo rebata inúmeras vêzes; e, em poucos dias de regime
vereis o que pode a minha arte. Ogul, logo no primeiro dia, sentiu-se
sem respiração e julgou morrer de fadiga. No segundo, cansou-se menos e
dormiu melhor. Em oito dias, recuperou toda a fôrça, saúde leveza e
alegria de seus verdes anos. - Jogastes bola e fostes sóbrio - disse-lhe
Zadig. - Sabei, senhor, que não há basilisco na natureza, que sempre nos
damos bem com sobriedade e exercício e que a arte de combinar a
intemperança com a saúde é uma arte tão quimérica quanto a pedra
filosofal, a astrologia judiciária e a teologia dos magos. O primeiro
médico de Ogul, reconhecendo o quanto aquêle homem era perigoso para a
medicina, uniu- se com o boticário do corpo para mandar Zadig procurar
basiliscos no outro mundo. Assim, depois de ter sido sempre castigado
por haver procedido direito, estava na iminência de perecer por haver
curado um senhor glutão. Convidaram-no para uma excelente ceia. Deveria
ser envenenado no segundo prato; mas recebeu um recado da bela Astartéia
durante o primeiro. Retirou-se da mesa e partiu. 'Quando somos amados
por uma bela mulher - disse o grande Zoroastro, - sempre nos livramos de
dificuldades neste mundo."

XVII. OS COMBATES

A rainha foi recebida em Babilônia com o entusiasmo que sempre inspira
uma bela e infeliz princesa. Babilônia parecia agora mais tranqüila. O
príncipe de Hircânia fôra morto em combate. Os babilônios, vencedores,
declaravam que Astartéia desposaria aquêle a quem escolhessem para
soberano. Não queriam que a mais alta posição do mundo, que seria a de
marido de Astartéia e de rei da Babilônia, dependesse de intrigas e
cabalas. Juravam reconhecer como rei ao mais valente e mais sábio. A
algumas léguas da cidade, preparavam uma grande pista cercada de
anfiteatros magnificamente ornamentados. Os combatentes deviam
comparecer armados de ponto em branco. Cada qual devia ter, por detrás
dos anfiteatros, um apartamento separado onde não deveriam ser vistos
por ninguém. Haveria quatro jogos preliminares. Aquêles que tivessem a
felicidade de vencer quatro cavaleiros deveriam combater em seguida uns
contra os outros; de maneira que aquêle que restasse por último senhor
do campo seria proclamado campeão dos jogos. Devia voltar quatro dias
depois, com as mesmas armas, e decifrar os enigmas propostos pelos
magos. Se não os resolvesse, não seria rei, e recomeçariam as justas,
até que se encontrasse um homem que fôsse vencedor nas duas competições;
pois queriam exclusivamente para rei o mais corajoso e o mais sábio. A
rainha, durante todo

êsse tempo, deveria ser estritamente guardada: apenas lhe era permitido
assistir aos espetáculos coberta com um véu; mas não lhe era concedido
falar com nenhum dos pretendentes, a fim de que não houvesse favor nem
injustiça. Eis o que a rainha fazia saber a seu enamorado, esperando que
êste demonstrasse, por ela, mais valor e espírito do que ninguém. Zadig
partiu, rogou a Vênus que lhe fortalecesse a coragem e esclarecesse o
espírito. Chegou à margem do Eufrates na véspera do grande dia.
Inscreveu sua divisa entre as dos competidores, ocultando o rosto e o
nome, como o ordenava a lei, e foi repousar no apartamento que lhe
coubera por sorte. Seu amigo Cador, que voltara a Babilônia depois de o
haver procurado inùtilmente pelo Egito, mandou levar-lhe aos aposentos
uma armadura completa que lhe enviava a rainha. Mandou-lhe também o mais
belo cavalo da Pérsia. Zadig reconheceu o dedo de Astartéia em tais
presentes, nos quais sua coragem e amor cobraram novas fôrças e
esperanças. No dia seguinte, alojada a rainha sob um dossel de
pedrarias, e cheios os anfiteatros de tôdas as damas e tôdas as ordens
de Babilônia, penetraram no circo os lidadores. Cada qual foi depor sua
divisa aos pés do grande mago. Tiraram à sorte as divisas; a de Zadig
foi a última. O primeiro que avançou era um senhor muito rico, chamado
Itobad, vaidoso em demasia, pouco corajoso, muito inábil, e falto de
espírito. Seus familiares haviam-no convencido de que um homem como êle
devia ser rei, e Itobad lhes replicara: "Um homem como eu deve reinar".
De modo que o haviam armado a

preceito. Trazia uma armadura de ouro com esmaltes verdes, um penacho
verde, uma lança ornada de fitas verdes. Viu-se logo, pela maneira como
Itobad governava o cavalo, que não éra a um homem como êle que o Céu
reservara o cetro de Babilônia. O primeiro cavaleiro que o acometeu fêz-
lhe perder os estribos; o segundo derribou-o sôbre a anca do cavalo, com
as duas pernas para o ar e os braços estendidos. Itobad rergueu-se, mas
tão desajeitadamente, que todo o anfiteatro se pôs a rir. Um terceiro
não se dignou servir-se da lança; mas, hábil manobra, pegou-o pela perna
direita, e fazendo-o dar meia volta, derribou-o na arena; os escudeiros
dos jogos acorreram, a rir, e recolocaram-no sôbre a sela. O quarto
combatente toma-o da perna esquerda e o faz tombar pelo outro lado.
Conduziram-no, abaixo de vaias, para o seu alojamento, onde devia passar
a noite, segundo a lei; caminhando a custo, dizia "Que aventura para um
homem como eu!" Os outros cavaleiros tiveram melhor desempenho. Houve
alguns que venceram dois cavaleiros sucessivamente; chegaram a três.
Apenas o príncipe Otame venceu quatro. Afinal chegou a vez de Zadig;
êste desmontou a quatro cavaleiros, com a maior graça possível. Viu-se,
pois que a competição se resumiria a Otame e Zadig. O primeiro usava
armas azuis e ouro, com um penacho das mesmas côres; as Zadig eram
brancas. Todos os votos se dividiam entre o cavaleiro azul e o cavaleiro
branco. A rainha, com o com o coração a palpitar, rezava pela côr
branca. Os dois campeões fizeram passes e voltas com

tanta agilidade, trocaram tão belos golpes de lança, tão firmes estavam
nos estribos, que todos, menos a rainha, desejavam que houvesse dois
reis em Babilônia. Enfim, cansados ambos cavalos e rôtas as duas lanças,
Zadig usou de um expediente, Passa por trás do príncipe azul, salta-lhe
à garupa, toma-o pela cintura, lança-o por terra, monta na sela em seu
lugar e caracoleia em tôrno de Otame estendido na arena. Todo anfiteatro
brada: "Vitória ao cavaleiro branco!" Otame indignado, ergue-se, puxa da
espada; Zadig apeia, de sabre em punho. Ei-los ambos na arena,
empenhados em novo combate, em que vencem alternadamente a agilidade e a
fôrça. As plumas dos capacetes, os pregos dos braçais, as malhas das
armaduras saltam ao longe, sob mil golpes precipitados. Golpeiam de
ponta e de fio, à direita, à esquerda, na cabeça, peito; recuam,
avançam, medem-se, chocam-se, enlaçam enroscam-se como serpentes,
atracam-se como leões; a todo instante saltam chispas dos golpes
mùtuamente vibrados. Enfim Zadig, refazendo-se um momento, estaca, faz
finta, derruba Otame, desarma-o. E Otame exclama: "Ó cavaleiro branco!
és tu que deves reinar em Babilônia". A rainha estava no auge da
alegria. Conduziram o cavaleiro azul o cavaleiro branco a seus
respectivos alojamentos, bem a todos os outros, conforme a lei. Mudos
vieram servi-los e trazer-lhes alimento. Logo se vê que foi o pequeno
mudo da rainha quem atendeu a Zadig. Em seguida, deixaram-nos dormir a
sós até o dia seguinte de manhã, quando o vencedor devia levar sua
divisa ao grande mago, para conferí-la dar-se a conhecer.

Zadig dormiu bem, apesar de enamorado, tão exausto se achava. Itobad que
pousava no alojamento próximo, não pregou ôlho Ergueu-se durante a noite
penetrou no quarto do vizinho, tomou as armas, brancas de Zadig,
juntamente com a sua divisa, e pôs sua armadura verde no lugar da do
outro. Ao amanhecer, compareceu orgulhosamente perante o grande mago,
declarando que um homem como êle era o vencedor. Ninguém o esperava; mas
foi proclamado como tal enquanto Zadig ainda dormia. Astartéia,
surprêsa, e com o dezespêro no coração, regressou a Babilônia. Já estava
quase vazio o anfiteatro quando Zadig despertou. Procurou as suas armas,
e só encontrou aquela armadura verde. Viu-se obrigado a usá-la, pois não
tinha mais nada junto a si. Atônito e indignado, veste-a com furor e
avança, em tal equipagem. Todos os que ainda se achavam no teatro e no
circo receberam-no com assuadas. Rodeavam-no; insultavam-no em cara.
Jamais homem algum experimentou tão humilhantes mortificações. Perdeu
então a paciência; dispersou a golpes de sabre o populacho que ousava
ultrajá-lo; mas não sabia que partido tomar. Não podia avistar-se com a
rainha; não podia reclamar a armadura branca que esta lhe enviara: seria
comprometê-la. Assim, enquanto se achava ela abismada na dor, estava
Zadig cheio de furor e inquietação. Passeava êle às margens do Eufrates,
persuadido de que a sua estrêla o destinava a ser irremissivelmente
infeliz, e repassando no espírito tôdas as suas desgraças, desde a
aventura da mulher que odiava os caolhos

até a da sua armadura. "Eis em que deu - dizia êle consigo - ter-me
acordado tarde; se houvesse dormido menos, seria rei de Babilônia e
possuiria Astartéia. As ciências, o caráter, a coragem; só serviram,
pois, para meu infortúnio."Escapou-lhe enfim murmurar contra a
Providência, e foi tentado a crer que tudo era governado por um destino
cruel que oprimia os bons e fazia prosperarem os cavaleiros verdes. Um
de seus pesares era carregar aquela armadura verde que lhe atraíra
tamanho escárnio. Vendeu-a barato a um comerciante que passava e
comprou-lhe uma túnica e carapuça. Nessa indumentária, passeava à margem
do Eufrates, cheio de desespêro, e acusando em segrêdo a Providência,
que não deixava de o perseguir.

XVIII. O EREMITA

Assim caminhando, encontrou um eremita, cuja venerável barba branca lhe
tombava até a cintura. Tinha na mão um livro que lia atentamente. Zadig
parou e fêz-lhe uma profunda reverência. O eremita saudou-o com um ar
tão nobre e tão bondoso, que Zadig teve curiosidade de conversar com
êle. Perguntou-lhe que livro lia. - É o livro dos destinos - disse o
eremita.- Quer ler um pouco? Pôs o livro nas mãos de Zadig que, embora
versado em várias línguas, não pôde decifrar-lhe uma única letra. Isso
ainda mais lhe aumentou a curiosidade.

- Pareces bastante aborrecido - disse-lhe o ancião. - Motivos não me
faltam! - exclamou Zadig. - Se me permites que te acompanhe - tornou o
velho, - talvez eu te possa ser útil: tenho às vêzes derramado
sentimentos de consolação na alma dos infelizes. Zadig sentiu-se tomado
de respeito ante o ar, as barbas e o livro do eremita. Achou-lhe
superiores luzes na conversação. Falava o eremita do destino, da
justiça, da moral do soberano bem, da fraqueza humana, das virtudes e
dos vícios, com tão viva e tocante eloqüência, que Zadig sentiu-se
atraído para êle por invencível encanto. Pediu-lhe com insistência que
não o deixasse até chegarem a Babilônia. - O mesmo favor te peço -
disse-lhe o velho. - Jura, por Orosmade, que não te separarás de mim,
por mais estranhos que te pareçam os meus atos. Zadig jurou, e partiram
juntos. Chegaram os dois viajantes a um soberbo castelo. O eremita pediu
hospitalidade para si e para o jovem que o acompanhava. O porteiro, que
se poderia tomar por um grão-senhor, os introduziu com uma espécie de
desdenhosa complacência. Foram apresentados ao criado-mor, que lhes
mostrou os magníficos apartamentos do amo. Permitiram-lhes que sentassem
à extremidade da mesa dêste, sem que o senhor do castelo se dignasse
honrá-los com um olhar, durante a ceia; mas foram servidos, como os
outros, com refinamento e profusão. Fizeram com que se lavassem em uma
bacia de ouro, guarnecida de esmeraldas e rubis. Levaram-nos a deitar-se
em um

belo apartamento, e no dia seguinte um criado entregou a cada qual uma
moeda de ouro; após o que, foram despedidos. - O dono da casa - disse
Zadig em caminho - parece-me um homem generoso, embora um pouco altivo;
exerce nobremente a hospitalidade. Dizendo tais palavras, percebeu que
uma espécie de bôlsa muito grande que usava o eremita parecia distendida
e inflada viu ali a bacia de ouro guarnecida de pedrarias, que êste
havia furtado. Não ousou dizer coisa alguma; mas sentia-se tomado da
estranha surprêsa. Pelo meio-dia, o eremita apresentou-se à poria de uma
casa muito pequena onde morava um rico avarento; pediu hospitalidade por
algumas horas. Um velho criado mal vestido recebeu-o rudemente e fêz
entrar o eremita e Zadig na estrebaria, onde lhes serviram algumas
azeitonas podres, pão duro e cerveja estragada. O eremita bebeu e comeu
com um ar tão contente como na véspera. Depois, dirigindo-se ao velho
criado, que os observava para ver se não roubavam nada e os instava a
partirem, deu-lhe as duas moedas de ouro que recebera de manhã e
agradeceu-lhe muito as suas atenções. - Peço-lhe acrescentou - que me
leve à presença de seu amo. O criado, atônito, introduziu os dois
viajantes. - Magnífico senhor - disse o eremita, não posso deixar de
agradecer-vos humildemente a nobre maneira como nos recebestes:
dignai-vos aceitar esta bacia de ouro como modesto penhor de minha
gratidão. O avarento quase caiu para trás. Sem lhe dar tempo

para que voltasse a si do assombro, o eremita partiu às pressas com o
seu jovem companheiro. - Senhor, que vejo eu? - diz-lhe Zadig. - Não vos
pareceis em nada com os outros homens, roubais uma bacia de ouro
guarnecida de pedrarias a um senhor que vos recebe magnificamente e a
presenteais a um avarento que vos trata com indignidade. - Meu filho -
respondeu o velho, - êsse homem magnífico, que só recebe os estranhos
por vaidade e para fazê-los admirar suas riquezas, se tornará mais
sensato; - o avarento aprenderá a praticar a hospitalidade: não te
espantes de nada, e segue- me. Zadig não sabia ainda se tratava com o
mais louco ou o mais sábio dos homens; mas o eremita falava com tanta
autoridade que Zadig, ligado aliás pelo juramento, não pôde deixar de
segui-lo. Chegaram de noite a uma casa de aspecto agradável mas simples,
onde nada denunciava prodigalidade ou avareza. O dono era um filósofo
retirado do mundo, que cultivava em paz a sabedoria e a virtude, e que
no entanto não se aborrecia. Aprouvera-lhe construir aquêle retiro, onde
recebia os visitantes com uma nobreza que nada tinha de ostentação. Foi
em pessoa ao encontro dos dois viajantes, a quem primeiro fêz repousar
num cômodo apartamento. Algum tempo depois veio convidá-los para uma
refeição sadia e variada, durante a qual se referiu discretamente às
últimas revoluções de Babilônia. Pareceu sinceramente devotado à rainha
e mostrou-se desejoso de que Zadig tivesse comparecido ao

torneio para disputar a coroa. "Mas os homens - acrescentou - não
merecem um rei como Zadig". Êste enrubescia e sentia redobrarem seus
sofrimentos. Convieram, na conversação, em que as coisas dêste mundo não
marchavam sempre ao agrado dos mais sensatos. O eremita sustentava que
não se conheciam os caminhos da Providência, e que os homens faziam mal
em julgar um todo de que só percebiam a mais ínfima parte. Falaram em
seguida sôbre as paixões. - Ah! como são funestas! dizia Zadig. - São
como os ventos que enfunam as velas do barco - retrucou o eremita: -
submergem-no às vêzes; mas, sem o seu auxílio, o barco não poderia
vogar. A bílis nos torna coléricos e doentes; mas, sem a bílis, não
poderíamos viver. Tudo é perigoso neste mundo, e tudo é necessário.
Falou-se do prazer, e o eremita provou que é um presente da divindade:
"Pois - disse êle o homem não pode dar a si próprio nem sensações nem
idéias, recebe tudo; a dor e o prazer lhe vêm de fora, como a sua
existência." Zadig admirava-se de como um homem que fizera coisas tão
extravagantes podia raciocinar tão bem. Enfim, depois de uma palestra
tão instrutiva quão agradável, o proprietário conduziu os hóspedes ao
quarto, bendizendo o Céu por lhe haver enviado dois homens tão sábios e
virtuosos. Ofereceu-lhes dinheiro de um modo natural e nobre que não
podia melindrar. O eremita recusou-o e despediu-se, dizendo que partiria
para Babilônia antes do raiar do dia. A separação foi comovente; Zadig,
sobretudo, sentia-se cheio de estima e simpatia por

aquêle homem tão amável. Quando o eremita e êle se viram a sós no
apartamento, fizeram por muito tempo o elogio de seu hospedeiro. O
velho, alta madrugada, despertou Zadig. - Temos de partir - disse êle. -
Mas, enquanto todos ainda estão dormindo, quero deixar a êsse homem um
testemunho de minha estima e afeição. Dizendo tais palavras, tomou um
archote e ateou fogo à casa. Zadig, horrorizado, pôs-se aos gritos, e
quis impedi-lo de cometer tão revoltante ação. O eremita arrastava-o com
uma fôrça superior; a casa estava em chamas. Quando já se achava
bastante longe com o companheiro, o velho pôs-se a contemplar
tranqüilamente o incêndio. "Graças a Deus! - disse êle. - Eis a casa do
nosso querido hospedeiro completamente destruída! Que homem feliz!" A
estas palavras, Zadig viu-se tentado, a um tempo, a romper em
gargalhadas, a encher de injúrias o venerável ancião a bater-lhe, e a
fugir, mas não fêz nada disso e, sempre dominado pela ascendência do
eremita, seguiu-o, a contragosto, até a próxima pousada. Era em casa de
uma viúva caritativa e virtuosa que tinha um sobrinho de catorze anos,
cheio de atrativos e que era a sua única esperança. Fêz, o melhor
possível, as honras da casa. Na manhã seguinte, ordenou ao sobrinho que
acompanhasse os viajantes até uma ponte que, estando meio arruinada, se
tornara de passagem perigosa. O jovem, solícito, marchava à frente
dêles. Ao chegarem à ponte, disse-lhe o eremita:

- Vem cá, devo dar uma amostra de gratidão à tua tia. Toma-o então pelos
cabelos e arremessa-o ao rio. O menino tomba, reaparece um instante à
tona dágua, e é engolido pela torrente. - O monstro! ó celerado! -
bradou Zadig. - Tu me havias prometido mais paciência - disse-lhe o
eremita, interrompendo-o. - Pois fica sabendo que, debaixo das ruínas
dessa casa que a Providência incendiou, o proprietário encontrou um
tesouro imenso; e é bom que saibas que êsse jovem, a quem a Providência
torceu o pescoço, teria assassinado a sua tia dentro em um ano, e a ti
daqui a dois anos. - Quem te disse tal coisa, bárbaro? gritou Zadig. -
E, mesmo que houvesses lido êsse acontecimento no teu livro dos
destinos, acaso te será permitido afogar uma criança que não te fêz mal
nenhum? Enquanto assim falava, Zadig percebeu que o velho já não tinha
barba, que o seu rosto adquiria os traços da juventude. Desapareceu-lhe
o hábito de eremita; quatro belas asas recobriam um corpo majestoso e
resplandecente de luz. - O enviado do Céu! ó anjo divino! exclamou
Zadig, prosternando-se. - Desceste então do empíreo para ensinar um
frágil mortal a submeter-se às ordens eternas? - Os homens - disse o
anjo Jesrad - julgam tudo sem nada conhecer: eras tu, dentre todos os
homens, quem mais merecia ser esclarecido. Zadig pediu permissão para
falar. - Desconfio de mim próprio - disse êle, mas ousarei pedir-te que
me esclareças uma dúvida: não seria melhor corrigir êsse menino, e
torná-lo virtuoso, em

vez de afogá-lo Se êle tivesse sido virtuoso, e vivido - tornou Jesrad,
- a seu destino seria o de ser assassinado com a mulher que deveria
desposar, e com o filho que deveriam ter - Como! - exclamou Zadig. - É
então necessário que haja crimes e males, e que os males tombem sôbre as
pessoas de bem? - Os maus - respondeu Jesrad - são sempre infelizes:
servem para experimentar um pequeno número de justos espalhados sôbre a
terra, e não há mal de que não provenha um bem. - Mas - disse Zadig - e
se só houvesse bem, e nenhum mal? - Então - replicou Jesrad - êste mundo
seria outro; o encadeamento dos fatos obedeceria a uma outra ordem de
sabedoria; e essa outra ordem, que seria perfeita, só pode existir na
morada eterna do Ser Supremo, de quem o mal não pode aproximar-se. Criou
Êle milhões de mundos, nenhum dos quais se pode assemelhar ao outro.
Essa imensa variedade é um atributo de seu poder imenso. Não há nem duas
fôlhas de árvore na terra, nem dois globos nos campos infinitos do céu,
que sejam semelhantes; e tudo o que vês sôbre o pequeno átomo em que
nasceste devia estar no seu lugar e no seu tempo fixo, conforme as
ordens imutáveis daquele que tudo abrange. Os homens pensam que êsse
menino que acaba de perecer caiu no rio por acaso: tudo é prova, ou
punição, ou recompensa, ou providência. Lembra-te daquele pescador que
se julgava o mais infeliz dos homens. Orosmade te enviou para lhe mudar
o destino. Frágil mortal, cessa de arguir

contra aquilo que cumpre adorar. - Mas - disse Zadig... E, enquanto
dizia mas, já o anjo alçava o vôo para a - décima esfera. Zadig, de
joelhos, adorou a Providência, e submeteu-se. O anjo gritou-lhe das
alturas: - Segue para Babilônia.

XIX. OS ENIGMAS

Zadig, fora de si, e como um homem a cujos pés houvesse tombado um raio,
caminhava ao acaso. Entrou em Babilônia no dia em que aquêles com quem
combatera se achavam já reunidos no vestíbulo do palácio, para decifrar
os enigmas e responder às perguntas do grande mago. Todos cavaleiros
tinham chegado, exceto o da armadura verde. Logo que Zadig apareceu na
cidade, o povo se reuniu em tôrno dêle; os olhos não se saciavam de o
ver, as bocas de o abençoar, os corações de desejar-lhe o império. O
invejoso o viu passar, estremeceu e desviou-se; o povo o levou até o
local da assembléia. A rainha, a quem haviam comunicado a sua vinda,
sentia-se agitada de temores e esperanças; a inquietação a devorava: não
podia compreender nem como Zadig estava sem armas, nem como Itobad
trazia a armadura branca. Á vista de Zadig, elevou-se um confuso
murmúrio. Estavam surpresos e encantados de tornar a vê-lo; mas só aos
cavaleiros que haviam combatido era permitido ingresso na assembléia. -
Combati como qualquer outro - declarou êle. - Mas

alguém está usando aqui as minhas armas; e, enquanto aguardo a honra de
o provar, peço licença para apresentar-me no concurso de enigmas.
Puseram a proposta em votação: tão arraigada estava nos espíritos a sua
reputação de probidade, que ninguém hesitou em admiti-lo. O grande mago
propõe primeiro a seguinte questão: - Qual é, de tôdas as coisas do
mundo, a mais longa e a mais curta, a mais rápida e a mais lenta, a mais
divisível e a mais extensa, a mais negligenciada e a mais
irreparávelmente lamentada, que devora tudo o que é pequeno e que
vivifica tudo o que é grande? Cabia a Itobad falar. Respondeu que um
homem como êle nada entendia de enigmas e que lhe bastava ter batido os
adversários a lançaços. Disseram uns que a chave do enigma era a
fortuna, outros a terra, outros a luz. Zadig disse que era o tempo.
"Nada é mais longo - acrescentou êle, - pois que é a medida da
eternidade; nada é mais curto, pois que falta a todos os nossos
projetos; nada mais lento para quem espera; nada mais rápido para quem
desfruta a vida; estende-se, em grandeza, até o infinito; divide-se, até
o infinito, em pequenez; todos os homens o negligenciam, todos lhe
lamentam a perda; nada se faz sem êle, faz esquecer tudo o que é indigno
da posteridade, e imortaliza as grandes coisas". A assembléia deu razão
a Zadig. Perguntaram em seguida: "Qual é a coisa que se recebe sem
agradecer, que se desfruta sem saber como, que damos aos outros quando
não sabemos onde é que estamos, e que perdemos sem o

perceber?" Cada qual deu a sua explicação. Apenas Zadig adivinhou que se
tratava da vida. Resolveu todos os outros enigmas com igual facilidade.
Itobad dizia sempre que nada era mais fácil e que êle também o
descobriria, se se tivesse dado ao trabalho. Propuseram questões sôbre a
justiça, o soberano bem, a arte de reinar. As respostas de Zadig foram
julgadas as mais sólidas. "É pena - diziam - que tão bom espírito seja
tão mau cavaleiro". - Ilustres senhores - declara Zadig, - tive a honra
de vencer na liça. É a mim que pertence a armadura branca. O senhor
Itobad apoderou-se dela durante o meu sono: com certeza julgou que lhe
sentaria mais que a verde... Estou disposto a provar perante todos, com
esta túnica e esta espada, contra tôda essa armadura branca que êle me
tomou, que fui eu que tive a honra de vencer o bravo Otame. Itobad
aceitou o desafio com a maior confiança. Não duvidava que, estando de
capacete, couraça e braçais, fàcilmente venceria a um galã de camisola e
barrete de dormir. Zadig puxou da espada, saudando a rainha, que o
contemplava cheia de alegria e temor, Itobad puxou a sua, sem saudar
ninguém. Avançou para Zadig como homem que nada tivesse a temer. Estava
prestes a lhe fender a cabeça. Zadig soube aparar o golpe, opondo o que
se chama o forte da espada ao fraco do adversário, de modo que a espada
de Itobad se rompeu. Então Zadig enlaçando o inimigo, derrubou-o por
terra; e, colocando a ponta da espada na frincha da couraça, disse-lhe:
"Deixa-me desarmar-te, ou eu te mato". Itobad, sempre surprêso das
desgraças que

aconteciam a um homem como êle, deixou que Zadig lhe tirasse
tranqüilamente o magnífico capacete, a soberba couraça, os belos
braçais, os brilhantes coxotes. Zadig os vestiu e, assim equipado,
correu a lançar-se aos joelhos de Astartéia. Cador provou fàcilmente que
a armadura pertencia :a Zadig. Foi proclamado rei por assentimento de
todos, e sobretudo de Astartéia, que, após tantas adversidades, gozava
da doçura de ver o seu enamorado digno, perante o universo, de ser seu
espôso. Itobad foi fazer-se chamar de senhor em sua casa. Zadig foi rei,
e rei feliz. Tinha presente ao espírito o que lhe dissera o anjo Jesrad.
Lembrava-se até do grão de areia convertido em diamante. A rainha e êle
adoraram a Providência Zadig deixou a bela caprichosa, Missuf, correr
mundo. Mandou chamar o salteador Arbogad, a quem confiou um honroso
pôsto no exército, com a promessa de elevá-lo às mais altas dignidades
se se comportasse como legítimo guerreiro, e de o enforcar se se
entregasse às atividades de salteador. Setoc foi chamado dos confins da
Arábia, com a bela Almona, para dirigir o comércio babilônio. Cador
obteve a posição e estima que mereciam seus serviços; era o amigo do
rei; e êste foi o único monarca da terra que teve um amigo. O pequeno
mudo não ficou no esquecimento. O pescador ganhou uma bela casa. Orcan
foi condenado a pagar-lhe uma grande soma e a devolver-lhe a mulher; mas
o pescador, que ganhara juízo só ficou com o dinheiro. Nem a bela Semira
se consolava de haver

acreditado que Zadig era caolho, nem Azora cessava de chorar por lhe
haver querido cortar o nariz. Zadig abrandou o pesar de ambas com uns
bons presentes. O invejoso morreu de raiva e de vexame. O império gozou
da paz, da glória e da abundância; foi o mais belo século da terra: era
esta governada pela justiça e o amor. Bendiziam a Zadig, e Zadig
bendizia ao Céu.

XX. A DANÇA

Setoc devia ir para assuntos comerciais, à ilha de Serendib; mas o
primeiro mês de seu casamento, que é, como se sabe, a lua de mel, não
lhe permitia deixar a espôsa, nem supor que jamais pudesse deixá-la:
pediu a Zadig que fizesse a viagem em seu lugar. "Ai! - suspirava êste.
- Devo ainda colocar maior distância entre mim e a bela Astartéia?! Mas
estou na obrigação de servir a meus benfeitores". Assim disse, chorou e
partiu. Não demorou muito em Serendib sem que fôsse considerado um homem
extraordinário. Tornou-se árbitro. de tôdas as questões entre os
negociantes, amigo dos sábios e conselheiro do pequeno número de pessoas
que ouvem conselhos. O rei manifestou desejos de o ver e ouvir.
Reconheceu logo o valor de Zadig; confiou na sua sabedoria e fêz dêle
seu amigo. A familiaridade e estima do rei fizeram-no tremer. Dia e
noite recordava os males que lhe haviam acarretado as boas graças de
Moabdar. "Se agrado ao rei - pensava êle, não estarei perdido?"

Não podia, contudo, furtar-se às gentilezas da Sua Majestade: pois
cumpre confessar que Nabussan, rei de Serendib, filho de Nussanab, filho
de Nabassun, filho de Sanbusná, era um dos melhores príncipes da Ásia e
que, quando se lhe falava, tornava-se difícil deixar de amá-lo. Êsse bom
príncipe era sempre louvado, enganado e roubado; esforçavam-se, à
porfia, a ver quem mais lhe pilhava os tesouros. O recebedor geral da
ilha de Serendib dava o exemplo, seguido fielmente pelos outros. O rei
sabia-o: por várias vêzes mudara de tesoureiro; mas não pudera mudar o
costume estabelecido de dividir os proventos do rei em duas partes, a
menor das quais cabia sempre à Sua Majestade, e a maior aos
administradores. O rei Nabussan confiou seus cuidados ao sábio Zadig. -
Tu que sabes tão belas coisas - disse-lhe êle, - não saberias
encontrar-me um tesoureiro que não roube? - Sem dúvida - respondeu
Zadig. - Sei um meio infalível de conseguir-lhe um homem de mãos limpas.
O rei, encantado, perguntou-lhe, abraçando-o, como deveria proceder. - É
só fazer dançar todos aquêles que se candidatem à dignidade de
tesoureiro, e aquêle que dançar com mais leveza será infalivelmente o
homem mais honrado. - Estás zombando - disse o rei. - Eis um modo
bastante esquisito de escolher um tesoureiro... Como? Julgas então que
aquêle que fizer melhor um entrechat será o financista mais probo e mais
hábil?

- Não garanto que seja o mais hábil - retrucou Zadig, - mas asseguro que
será indubitàvelmente o mais honesto. Falava Zadig com tamanha segurança
que o rei o julgou possuidor de algum segrêdo sobrenatural para
reconhecer os financistas. - Não me agrada o sobrenatural - disse Zadig,
- sempre detestei as pessoas e livros mágicos: se Vossa Majestade
deixar-me fazer a prova que lhe proponho, há de convencer-se de que o
meu segrêdo é a coisa mais simples e mais fácil dêste mundo. Nabussan,
rei de Serendib, ficou muito mais espantado de ouvir que êsse segrêdo
era simples do que se lho houvessem apresentado como um milagre. - Está
bem - disse êle, - fase como bem entenderes. - Deixe o caso comigo -
tornou Zadig - e Vossa Majestade ganhará com essa experiência muito mais
do que supõe. No mesmo dia mandou afixar que todos os pretendentes ao
cargo de recebedor-mor dos dinheiros de Sua Graciosa Majestade Nabussan,
filho de Mussanab, deveriam apresentar-se, vestidos de sêda leve, a 1a.
da lua do crocodilo, na antecâmara do rei. Ali compareceram, em número
de sessenta e quatro. Tinham reunido rabequistas num salão vizinho; tudo
achava pronto para o bailado; mas a porta dêsse salão estava fechada, e,
para ali entrar, era preciso passar por uma pequena galeria bastante
escura. Um guarda vinha buscar e introduzir cada candidato, um após
outro

naquela passagem, onde o deixava sòzinho alguns minutos. O rei, que
estava a par de tudo, expusera todos os seus tesouros na referida
galeria. Depois que todos os pretendentes chegaram ao salão, Sua
Majestade lhes ordenou que dançassem. Jamais se dançou tão pesadamente e
com menos graça; tinham todos a cabeça baixa, o busto encolhido, as mãos
coladas ao corpo. "Que velhacos!" - dizia Zadig em voz baixa. Um só
dentre êles dançava com agilidade, de cabeça alta, olhar seguro, braços
estendidos, corpo direito e jarretes firmes; "Ah! que homem honrado! que
excelente homem!" - dizia Zadig. O rei abraçou aquêle bom dançarino,
proclamou-o tesoureiro, e todos os outros foram punidos e multados com a
maior justiça do mundo: pois cada qual, durante o tempo em que estivera
na galeria, atulhara os bolsos e mal podia andar. Muito vexado se sentiu
o rei com a natureza humana pelo fato de haver, entre aquêles sessenta e
quatro dançarimos, sessenta e três gatunos. A galeria escura foi chamada
o corredor da tentação Se fôsse na Pérsia, teriam empalado aquêles
sessenta e três senhores; em outros países, formariam um tribunal de
justiça que consumiria nas custas do processo o triplo do dinheiro
roubado e que nada reporia nos cofres do rei; em outro reino, os
sessenta e três se justificariam plenamente e fariam cair em descrédito
aquêle dançarino tão leviano: em Serendib, apenas foram condenados a
aumentar o tesouro público, pois Nabussan era muito indulgente Era
também muito reconhecido: deu a Zadig uma quantia mais considerável do
que qualquer

tesoureiro jamais roubara a el-rei seu senhor. Zadig se utilizou da soma
para enviar correios a Babilônia, que deviam informá-lo do destino de
Astartéia. A voz tremeu-lhe ao dar essa ordem, o sangue lhe fluiu para o
coração, seus olhos cobriram-se de trevas, a alma esteve a ponto de
abandoná-lo. O mensageiro partiu, Zadig o viu embarcar; entrou no
palácio, sem ver ninguém, como se estivesse em seu quarto, e
pronunciando a palavra amor. - Ah! o amor - disse o rei, - é
precisamente do que trata; adivinhaste a minha pena. És um grande homem!
Espero que me ensines a descobrir uma mulher acima de qualquer suspeita,
como me fizeste encontrar um tesoureiro desinteressado. Zadig, voltando
a si, prometeu servi-lo no amor como em finanças, embora a coisa lhe
parecesse ainda mais difícil.

XXI. OS OLHOS AZUIS

- O corpo e o coração... - começou o rei. A estas palavras, o babilônio
não pôde deixar de interrompê-lo: - Como lhe sou grato por não haver Sua
Majestade dito o espírito e o coração! pois só se ouvem estas palavras
nas conversações de Babilônia; não se vê mais que livros a respeito do
coração e do espírito, escritos por pessoas que não têm nem uma coisa
nem outra; mas tenha a bondade de prosseguir, Sire. - Nabussan assim
continuou:

- O corpo e o coração estão, em mim, destinados a amar; a primeira
dessas duas potências tem todos os motivos para se achar satisfeita.
Tenho aqui cem mulheres a meu serviço, tôdas belas, complacentas,
solícitas, voluptuosas até, ou que o fingem ser comigo. Quanto a meu
coração, já não é tão feliz. Por demais tenho visto que agradam muito o
rei de Serendib e pouco se importam com Nabussan. Não que eu julgue
infiéis as minhas mulheres; mas desejaria encontrar uma alma que fôsse
minha; daria por êsse tesouro as cem belezas cujos encantos possuo: vê
se podes, dentre as cem sultanas, achar-me uma de quem eu possa ter
certeza de ser amado. Zadig respondeu como no caso dos financistas: -
Deixe tudo a meu cuidado, Sire; mas permita primeiro que eu disponha do
que Vossa Majestade expôs na galeria da tentação; dar-lhe-ei conta de
tudo e não perderá coisa alguma. O rei deixou-o como senhor absoluto.
Zadig escolheu em Serendib trinta e três pequenos corcundas dos mais
feios que pôde achar, trinta e três pajens dos mais belos, e trinta e
três bonzos dos mais eloqüentes e dos mais robustos. Concedeu a todos
plena liberdade de entrarem nas celas das sultanas. Cada corcundinha
ficou com quatro mil moedas de ouro a seu dispor, e logo no primeiro dia
todos êles foram felizes. Os pajens, que nada tinham a dar senão a sua
própria pessoa, só triunfaram ao fim de dois ou três dias. Os bonzos
tiveram um pouco mais de trabalho; mas afinal trinta e três devotas se
renderam a êles. O rei, por gelosias que davam para tôdas as celas, viu

tôdas essas provas, e maravilhou-se. De suas cem mulheres, noventa e
nove sucumbiram às suas próprias vistas. Restava apenas uma jovem,
bastante novinha, de quem Sua Majestade jamais se aproximara.
Enviaram-lhe um, dois, três corcundas, que lhe ofereceram até vinte mil
moedas; ela foi incorruptível, e não pôde deixar de rir de que aquêles
corcundas julgassem que o dinheiro os tornaria mais bem feitos de corpo.
Apresentaram- lhe os dois pajens mais belos; ela disse que achava o rei
ainda mais belo. Largaram-lhe o mais eloqüente dos bonzos, e em seguida
o mais intrépido; ela achou o primeiro um papagaio e não se dignou nem
mesmo a suspeitar o mérito do segundo. "O coração é tudo - dizia ela. -
Nunca cederei, nem ao ouro de um corcunda, nem às graças de um jovem,
nem às seduções de um bonzo; amarei ùnicamente a Nabussan, filho de
Nussanab, e esperarei que êle se digne amar-me". O rei sentiu-se
transportado de alegria, de espanto e de ternura. Recolheu todo o
dinheiro que causara o sucesso dos corcundas e presenteou-o à bela
Falide; era êsse o nome da jovem criatura. Deu-lhe o seu coração: ela
bem o merecia. Jamais foi tão viçosa a flor da juventude, jamais tiveram
tal sedução os encantos da formosura. Que ela não sabia fazer direito a
reverência, é coisa que a verdade histórica não permite calar; mas
dançava como as fadas, falava como as sereias e cantava como as graças:
era cheia de prendas e virtudes. Nabussan, amado, adorou-a; mas Falide
tinha olhos azuis, e foi isso a fonte das maiores desgraças.

Havia uma antiga lei que proibia aos reis amarem uma dessas mulheres que
os gregos depois chamaram de boópis. Fazia mais de cinco mil anos que o
chefe dos bonzos tinha estabelecido essa lei; fôra com o intuito de se
apoderar da amante do primeiro rei da ilha de Serendib que êsse primeiro
bonzo introduzira o anátema dos olhos azuis na Constituição do Estado.
Tôdas as ordens do império vieram apresentar advertências ao rei.
Dizia-se pùblicamente que eram chegados os últimos dias do reino, que a
abominação atingira o auge, que tôda a natureza se achava ameaçada de
uma catástrofe; que, numa palavra, Nabussan, filho de Nussanab, amava
dois grandes olhos azuis. Os corcundas, os financistas, os bonzos e as
morenas encheram o reino com suas queixas. Os povos selvagens que
habitam o norte de Serendib aproveitaram-se do descontentamento geral.
Fizeram irrupção nos Estados do bom Nabussan. Êste pediu auxílio
financeiro aos súditos; os bonzos, que possuíam metade das rendas do
Estado, contentaram-se em erguer as mãos ao céu e recusaram-se a
metê-las no cofre para ajudar ao rei. Fizeram belas preces com música, e
deixaram o Estado à mercê dos bárbaros. - - Ó meu caro Zadig, será que
ainda me tirarás dêste horrível embaraço? - exclamou dolorosamente
Nabussan. - De bom grado - respondeu Zadig. - Vossa Majestade terá dos
bonzos todo o dinheiro que quiser. Deixe desguarnecidas as terras onde
êles têm os seus castelos, e defenda ùnicamente os de Vossa Majestade.

Nabussan assim fêz; os bonzos vieram lançar-se aos pés do rei e
implorar-lhe assistência. O rei respondeu-lhes com uma bela canção, cuja
letra era uma prece pela conservação de suas terras. Os bonzos afinal
deram dinheiro e o rei acabou a guerra com felicidade. Dêste modo Zadig,
com os seus sábios e oportunos conselhos, e pelos grandes serviços que
prestava, atraíra a irreconciliável inimizade dos homens mais poderosos
do Estado. Os bonzos e as morenas juraram a sua perda; os financistas e
os corcundas não mais o pouparam; tornaram-no suspeito ao bom Nabussan.
Os serviços prestados ficam muita vez na antecâmara, e as suspeitas
entram no gabinete, segundo a sentença de Zoroastro: eram todos os dias
novas acusações; a primeira é repelida, a segunda roça a pele, a
terceira fere, a quarta mata. Zadig, intimidado, já que tratara dos
negócios de seu amigo Setoc e lhe salvara o dinheiro, não pensou mais
senão em partir da ilha, e resolveu ir em pessoa saber notícias de
Astartéia. - "Pois - pensava êle - se fico em Serendib, os bonzos me
farão empalar; mas aonde ir? Serei escravizado no Egito, queimado,
segundo tôdas as aparências, na Arábia, estrangulado em Babilônia. Mas
preciso saber o que é feito de Astartéia: partamos, e vejamos o que me
reserva o meu triste destino.

FIM

É com as pedras que me atiram que construo o meu castelo...
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A mensagem está pronta para ser enviada com os anexos de ficheiro ou ligação que se seguem:
ZADIG OU O DESTINO, UMA HISTÓRIA ORIENTAL - Voltaire.txt

Nota: Para proteger de vírus de computador, os programas de correio de electrónico podem impedir o envio e a recepção de certos tipos de anexos de ficheiros. Verifique as definições de segurança de correio electrónico para determinar como são manipulados os anexos.

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