terça-feira, 26 de outubro de 2010

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Vozes Do Passado

Nora Roberts

Contracapa
Numa tarde quente de Julho, um operário que trabalhava num estaleiro de construção em Antietam Creek golpeia com a enxada um determinado ponto do solo - e atinge
um crânio humano com cerca de 5000 anos. A descoberta suscita curiosidade e,
como não podia deixar de ser, alguma controvérsia. E irá também mudar de forma imprevisível a vida de uma mulher...
A arqueóloga Callie Dunbrook sabe, é claro, imensas coisas a respeito do passado.
Mas é o seu próprio passado que irá agora ser escrutinado e posto em causa. Escolhida por razões de competência para dirigir a estação arqueológica de Antietam Creek,
ela vai aí enfrentar vários perigos já que a sombra da morte e do infortúnio parece planar sobre aquele local, que muitos aliás dizem estar amaldiçoado. Pouco a
pouco,
redescobre uma paixão que pressente ser também perigosa ao ter de colaborar, nesse seu novo trabalho, com Jake Graystone, o irritante mas irresistível ex-marido.
E quando finalmente uma estranha mulher a aborda, afirmando conhecer um segredo a respeito da sua infância, há questões surpreendentes e inquietantes relativas à
sua própria identidade que não podem ser ignoradas.
À medida que procura respostas para todas as suas dúvidas,
Callie irá descobrir que alguns enganos e algumas mágoas se não deixam facilmente sepultar. E que há quem esteja disposto a tudo para que a verdade nunca seja descoberta.
Vozes do Passado

Nora Roberts
Vozes do Passado

Nora Roberts
Tradução de Fátima Gaspar
ULISSEIA
Título original: Birthright Copyright 2003 by Nora Roberts
Todos os direitos reservados para a língua portuguesa excepto Brasil por Editora Ulisseia, Lda.
Av. António Augusto de Aguiar, 148 - 1.°
1050-021 Lisboa Tel. 21 3801100
Fotografia da capa: (c) Masterfile/Casa da Imagem
Composição: Fotocompográfica, Lda.
Impresso em Abril de 2006 por Tilgráfia - Sociedade Gráfica, SÁ
Dep. legal n.° 290 826/06
Digitalização e correcção

Fátima Tomás

Para a minha querida Kayla, a nova luz da minha vida. Como é impossível contar todos os meus desejos para ti, vou desejar-te apenas amor. Tudo o que é mágico e tudo
o que é real, tudo o que é importante, é dele que nasce.
E aquele que dá um presente a uma criança Faz soar de alegria os sinos na rua do Céu, aquele que dá um lar a uma criança Constrói palácios no Reino celeste, E aquela
que dá à luz uma criança Traz Cristo Redentor uma vez mais à Terra.
JOHN MASEFIELD
Conhece-te a ti mesmo.
INSCRITO NO TEMPLO DE APOLO, EM DELFOS
Prólogo

12 de Dezembro de 1974
Douglas Edward Cullen tinha de ir à casa de banho. Os nervos, a excitação e a coca-cola que bebera ao almoço comido no McDonald's como recompensa por se ter portado
bem enquanto a mamã fazia as compras combinaram-se para encher a sua bexiga de três anos até parecer que ia rebentar.
Dançava, numa tortura subtil, saltitando nas pontas dos seus Keds vermelhos.
Tinha o coração a bater com tanta força que pensou que se não gritasse muito alto nem corresse o mais depressa que podia iria explodir.
Adorava quando as coisas explodiam na televisão.
Mas a mamã dissera-lhe que ele tinha de portar-se bem. Quando os meninos não se portavam bem, o Pai Natal punha carvão nas suas meias em vez de presentes. Ele não
sabia bem o que era carvão, mas sabia que queria brinquedos. Por isso, gritou e correu apenas em pensamento, como o papá lhe ensinara a fazer quando era muito, muito
importante ficar quieto.
O grande homem de neve a seu lado sorria e era ainda mais gordo do que a Tia Lucy. Douglas não sabia o que comiam os homens de neve, mas este devia comer muito.
O nariz vermelho e brilhante de Rudolph, a sua rena favorita, piscou até os olhos de Douglas ficarem cegos. Tentou distrair-se a contar os pontos vermelhos que nadavam
diante dos seus olhos, como o Conde costumava contar na Rua Sésamo.
Um, dois, três! Três pontos vermelhos! Ah, ah, ah, ah, ah!
Mas aquilo fê-lo sentir-se um bocadinho enjoado.
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No centro comercial havia muito barulho, as rajadas da música de Natal que faziam aumentar a sua impaciência, os gritos das outras crianças, o choro dos bebés.
E ninguém sabia mais do que ele sobre choro de bebés, agora que tinha uma irmãzinha. Quando os bebés choravam, devíamos pegar neles ao colo e andar de cá para lá
com eles, a cantar canções, ou sentarmo-nos com eles na cadeira de baloiço, a dar-lhes palmadinhas nas costas até eles arrotarem.
Os bebés podiam arrotar muito alto e ninguém os obrigava a pedir desculpa. Idiota, é porque os bebés não sabem falar!
Mas a Jessica não estava a chorar, agora. Estava a dormir no carrinho e parecia uma boneca, com o seu vestido vermelho com folhos brancos.
Era isso que a avó chamava à Jessica: a sua bonequinha. Mas às vezes a Jessica chorava e chorava, e a cara dela ficava toda vermelha e franzida. Nada conseguia fazê-la
parar, nem as canções de embalar na cadeira de baloiço. Nessa altura, Douglas não achava que ela se parecesse com uma boneca. Parecia má e zangada. Quando isso acontecia,
a mamã ficava demasiado cansada para brincar com ele. Nunca estava demasiado cansada para brincar com ele antes de a Jessica ter ido parar à barriga dela.
Às vezes não gostava de ter uma irmãzinha que chorava e fazia cocó nas fraldas e deixava a mamã demasiado cansada para brincar.
Mas a maior parte das vezes não se importava. Gostava de olhar para ela e ver a maneira como ela mexia as pernas. E quando ela lhe agarrava o dedo, com muita força,
tinha vontade de rir.
A avó dizia que ele tinha de proteger a Jessica, porque é isso que fazem os irmãos mais velhos. Tinha ficado tão preocupado com isso que chegara a esgueirar-se para
dormir no chão, ao lado do berço dela, para o caso de os monstros que viviam no armário virem comê-la durante a noite.
Mas de manhã acordara na sua cama, por isso talvez tivesse apenas sonhado que tinha ido protegê-la.
A fila ia avançando lentamente e Douglas lançou um olhar um tanto inquieto aos duendes sorridentes que dançavam em volta da oficina do Pai Natal. Pareciam um bocadinho
maus e zangados, como a Jessica quando chorava muito alto.
Se a Jessica não acordasse, não ia sentar-se ao colo do Pai Natal. Era estúpido a Jessie estar toda aperaltada para se sentar ao colo do Pai Natal, porque não sabia
pedir desculpa quando arrotava e não sabia dizer ao Pai Natal o que queria para o Natal.
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Mas ele sabia. Já tinha três anos e meio. Já era um menino crescido. Era o que toda a gente dizia.
A mamã pôs-se de cócoras e falou com ele baixinho. Quando lhe perguntou se queria ir à casa de banho, ele abanou a cabeça. Ela tinha aquele ar cansado e ele teve
medo que se fossem à casa de banho não voltassem à fila para ver o Pai Natal.
Ela apertou-lhe a mão, sorriu e prometeu que já não faltava muito.
Ele queria um Hot Wheels e um G. I. Joe e uma garagem Fisher-Price e uns carros Matchbox e um grande bulldozer amarelo, como o que o seu amigo Mitch recebera no
aniversário.
A Jessica era demasiado nova para brincar com brinquedos a valer. Só recebia coisas de raparigas, como vestidos esquisitos e animais fofos. As raparigas eram um
bocado idiotas, mas as raparigas pequenas eram ainda mais idiotas.
Mas ele ia falar da Jessica ao Pai Natal, para ele não se esquecer de trazer coisas para ela quando descesse pela chaminé da casa deles.
A mamã estava a falar com alguém, mas ele não estava a ouvir. A conversa dos adultos não lhe interessava. Especialmente quando a fila avançou, as pessoas mexeram-se
e ele viu o Pai Natal.
Era grande. Pareceu a Douglas, na primeira onda de medo, que o Pai Natal não era tão grande como nos desenhos animados ou nas imagens dos livros de histórias.
Estava sentado no seu trono, diante da sua oficina. Havia muitos duendes e renas e bonecos de neve. Tudo se mexia: as cabeças e os braços. Grandes, grandes sorrisos.
A barba do Pai Natal era muito comprida. Mal se conseguia ver-lhe a cara. E quando ele soltou um grande e sonoro oh oh oh, o som esmagou a bexiga de Douglas como
uns dedos muito maus.
As luzes piscavam, um bebé chorava, numa lamúria, os duendes sorriam.
Ele já era um menino crescido, já era um menino crescido. Não tinha medo do Pai Natal.
A mamã puxou-o docemente pela mão, disse-lhe para avançar. Vai sentar-te no colo do Pai Natal. Ela também sorria.
Ele deu um passo em frente, depois outro, com umas pernas que começaram a tremer-lhe. E o Pai Natal pegou-lhe ao colo.
Feliz Natal! Portaste-te bem?
O terror atingiu o coração de Douglas como um machado. Os duendes aproximavam-se, o nariz vermelho de Rudolph brilhava. O homem de neve virou a sua cabeça enorme
e redonda e olhou para ele com ar terrível.

O homem grande de fato vermelho segurou-o bem e olhou para ele com uns olhos muito pequeninos.
Aos gritos, lutando para libertar-se, Douglas caiu do colo do Pai Natal e bateu com força no chão. E molhou as calças.
As pessoas avançaram para ele, as vozes flutuando por cima dele, por isso tudo o que conseguiu fazer foi enrolar-se e chorar baixinho.
E depois estava ali a mamã, a aconchegá-lo, a dizer-lhe que estava tudo bem. Um pouco nervosa e com mil cuidados, porque ele tinha batido com o nariz e estava a
sangrar.
Deu-lhe um beijo, abraçou-o e não ralhou com ele por ter molhado as calças. Ainda sentia dificuldade em respirar quando se abandonou contra ela.
Ela deu-lhe um grande abraço e pegou-lhe ao colo para ele poder encostar a cara ao ombro dela.
Ainda a falar baixinho para acalmá-lo, virou-se.
E começou a gritar. E começou a gemer.
Agarrado a ela com força, Douglas olhou para baixo. E viu que o carrinho da Jessica estava vazio.
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Primeira Parte

A CAMADA SUPERFICIAL
Andemos por onde quisermos, na superfície das coisas, os homens estiveram lá antes de nós
HENRY DAVID THOREAU
Um

O Projecto de Antietam Creek terminou abruptamente quando a lâmina da retroescavadora de Billy Younger desenterrou o primeiro crânio.
Foi uma surpresa desagradável para o próprio Billy, encolhido na cabina da sua máquina, suando e praguejando ao calor cruel e violento de Julho. A sua mulher opusera-se
firmemente à subdivisão proposta e dera-lhe o seu habitual sermão naquela manhã, enquanto ele tentava comer os seus ovos estrelados e a sua salsicha a acompanhar.
Pela parte que lhe tocava, Billy estava-se absolutamente nas tintas para a subdivisão. Um emprego era um emprego e Dolan pagava bem. Quase o suficiente para compensar
as constantes sacanices de Missy.
Com tanta chatice não tinha tomado o pequeno-almoço e um homem precisava de um bom pequeno-almoço quando ia esfolar o couro no trabalho durante o resto do dia.
E o que ele conseguira engolir antes de Missy lhe ter tirado o apetite estava-lhe atravessado na garganta, a ferver - pensou ele rancoroso - na porcaria daquele
calor.
Pegou nos comandos, com a satisfação de saber que a sua máquina nunca iria chatear-lhe a cabeça por tentar fazer o seu trabalho. Nada agradava mais a Billy, mesmo
preso no maldito calor sufocante de Julho, do que enterrar aquela lâmina no solo e senti-la revolver a terra bem fundo.
Mas trazer à superfície, juntamente com o solo rico e profundo, um crânio sujo, de órbitas vazias, a olhar para ele de soslaio naquela rajada de calor no pino do
Verão, foi suficiente para fazer Billy, com os seus 105 quilos, gritar como uma rapariga e saltar da máquina ligeiro como um bailarino.
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Os seus colegas de trabalho haviam de gozar com ele sem dó nem piedade, até ele ser forçado a esmurrar o nariz do seu melhor amigo para recuperar a sua masculinidade.
Mas naquela tarde de Julho correu pelo campo com a mesma velocidade e determinação, e quase com a mesma agilidade que tinha no campo de futebol nos seus tempos de
liceu.
Quando recuperou o fôlego e conseguiu voltar a pensar com coerência, contou ao seu capataz, e o seu capataz contou a Ronald Dolan.
Quando o xerife chegou, vários outros ossos tinham sido desenterrados por trabalhadores curiosos. Mandaram chamar o médico, e uma equipa do noticiário local chegou
para entrevistar Billy, Dolan e quem quer que ajudasse a preencher o serviço noticioso da noite.
A notícia espalhou-se. Falava-se em homicídio, valas comuns, assassinos em série. Explorava-se avidamente a situação, por isso quando o exame terminou e ficou determinado
que os ossos eram muito antigos algumas pessoas não tiveram a certeza se ficaram satisfeitas ou desapontadas.
Mas para Dolan, que já lutara contra petições, protestos e mandados para transformar os primitivos 200 hectares de terreno pantanoso e floresta num empreendimento
imobiliário, a idade dos ossos não importava.
A sua mera existência já era chatice suficiente.
E quando dois dias depois, Lana Champbell, a advogada da cidade, cruzou as pernas e lhe lançou um sorriso presunçoso, Dolan quase não conseguiu conter-se em lhe
dar um soco na cara bonita.
- Vai achar a ordem do tribunal muito simples e directa - disse-lhe ela, sem desfazer o sorriso. A sua voz fora uma das que mais se tinham levantado contra o empreendimento.
Naquele momento tinha motivos para sorrir.
- Não precisa de uma ordem do tribunal. Parei de trabalhar. Estou a colaborar com a polícia e a comissão de planeamento.
- Vamos pensar nisto apenas como uma medida adicional de segurança. A comissão de planeamento da região deu-lhe sessenta dias para fazer um relatório e para convencê-la
de que o seu empreendimento deve continuar.
- Conheço os pormenores, querida. Há quarenta e seis anos que o Dolan constrói casas nesta região.
Chamou-lhe "querida" para a aborrecer. Como ambos sabiam disso, Lana limitou-se a sorrir:
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- A Sociedade Histórica e de Preservação contratou-me. Estou a fazer o meu trabalho. Os membros dos departamentos de arqueologia e antropologia da Faculdade da Universidade
de Maryland vêm visitar o local. Como agente de ligação, estou a pedir-lhe que os autorize a colher e a analisar amostras.
- Advogada, agente de ligação. - Dolan, um homem bem constituído, com um rosto rosado de irlandês, recostou-se na sua cadeira, diante da sua secretária. O sarcasmo
desprendia-se-lhe da voz. - É uma senhora ocupada.
Prendeu os dedos nos suspensórios. Usava sempre suspensórios vermelhos por cima de uma camisa azul. Fazia parte do uniforme, era assim que via as coisas. Fazia parte
daquilo que o tornava um dos homens comuns, membro da classe trabalhadora que fizera da sua cidade e da sua região aquilo que eram.
Qualquer que fosse o saldo da sua conta, e ele sabia-o até ao último tostão, não precisava de roupas finas para dar nas vistas.
Continuava a guiar uma pickup. Fabricada na América.
Nascera e crescera em Woodsboro, ao contrário da bela advogada da cidade. E não precisava dela, nem de ninguém, para dizer-lhe aquilo de que a sua comunidade precisava.
O facto era que ele sabia, melhor do que muitas das pessoas da comunidade, o que era melhor para Woodsboro.
Era um homem que olhava para o futuro e tratava do seu próprio futuro.
- Somos ambos pessoas ocupadas, por isso vou directa ao assunto. - Lana estava absolutamente certa de que estava prestes a tirar aquele sorriso condescendente do
rosto de Dolan. - Só pode continuar com o seu empreendimento depois de o local ser examinado e limpo pela administração regional. E para isso é necessário colher
amostras. Quaisquer artefactos escavados não serão de utilidade para si. Ambos sabemos que nesta questão a cooperação é o melhor para resolver os seus problemas.
- Não os vejo como problemas. - Abriu as mãos grandes, de trabalhador. - As pessoas precisam de casas. A comunidade precisa de empregos. O empreendimento Antietam
Creek oferece ambas as coisas. Chama-se a isto progresso.
- Trinta casas novas. Mais trânsito nas estradas, que não estão preparadas para isso, escolas já sobrelotadas, perda de características rurais e dos espaços abertos.
A "querida" não esboçara ainda qualquer tom de irritação, mas não conseguiu deixar cair a velha questão. Inspirou profundamente e soltou o ar devagar.
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- A comunidade lutou contra isso. É a chamada qualidade de vida. Mas essa é outra questão - disse ela, antes de ele conseguir retorquir. - Até os ossos serem submetidos
a testes e datados, está impedido de continuar. - Bateu com o dedo na ordem do tribunal.
- Os empreendimentos Dolan hão-de querer acelerar o processo. Vão querer pagar os testes. Datação por carbono.
- Pagar...
Pois, pensou ela, quem é que está a ganhar, afinal?
- Você é o dono da propriedade. Você é o dono dos artefactos.
- Ela fizera o trabalho de casa. - Sabe que vamos lutar contra a construção, enterrá-lo em ordens do tribunal e citações até isto estar resolvido. Pague os dois
dólares, Sr. Dolan - acrescentou, enquanto se levantava. - Os seus advogados vão dar-lhe o mesmo conselho.
Lana esperou que ele fechasse a porta do escritório atrás dela antes de deixar o sorriso espalhar-se-lhe pelo rosto. Apressou-se a sair, inspirou profundamente o
ar denso de Verão enquanto olhava para um lado e para o outro da rua principal de Woodsboro.
Controlou-se para não dançar de felicidade, o que seria demasiado inconveniente, mas quase desceu o passeio aos saltinhos, como se tivesse dez anos. Aquela era agora
a sua cidade. A sua comunidade. A sua casa. E era-o desde que se mudara de Baltimore para ali, dois anos antes.
Era uma boa cidade, mergulhada em tradição e em história, alimentada por mexericos, protegida do crescimento urbano caótico pela distância e pelas sombras gigantescas
das montanhas de Blue Ridge.
Vir para Woodsboro fora um grande salto no escuro para uma rapariga nascida e criada na cidade. Mas não conseguia suportar as recordações de Baltimore, depois de
ter perdido o marido. A morte de Steve deixara-a de rastos. Levara quase seis meses a levantar-se, a soltar-se da névoa de dor e a encarar a vida.
E a vida era exigente, pensou Lana. Sentia a falta de Steve. Ainda havia um buraco dentro dela, no lugar dele. Mas tinha que continuar a respirar, a funcionar. E
havia Tyler. O seu bebé. O seu rapaz. O seu tesouro.
Não podia trazer-lhe o pai de volta, mas podia dar-lhe a melhor infância possível.
Tinha espaço para correr e um cão para correr com ele. Vizinhos e amigos, e uma mãe que faria tudo para mantê-lo seguro e feliz.
Olhou para o relógio enquanto caminhava. Era o dia de Ty ir a casa do seu amigo Brock, depois da pré-escola. Telefonaria à mãe de
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Brock, Jo, dali a uma hora. Só para certificar-se de que tudo estava bem.
Parou no cruzamento, aguardou o sinal. O trânsito rodava lentamente, como era suposto nas pequenas cidades.
Não tinha ar de quem vivia numa cidade pequena. O seu guarda-roupa fora escolhido para se adequar à imagem de uma advogada em ascensão numa firma urbana importante.
Podia ter pendurado a placa com o seu nome num lugarejo com menos de quatro mil habitantes, mas isso não significava que não pudesse continuar a vestir-se para vencer.
Trazia um fato de Verão, em linho azul enrugado. O corte clássico complementava a sua constituição delicada e o seu próprio sentido de elegância. O cabelo era um
vaivém de louro cor do sol, que emoldurava um rosto jovem e bonito. Tinha olhos azuis, redondos, que eram muitas vezes tomados por ingénuos, um nariz que arrebitava
na ponta e uma boca com uma curva profunda.
Entrou na Treasured Pages e olhou, radiante, para o homem atrás do balcão. E, finalmente, fez a sua dança de vitória.
Roger Grogan tirou os óculos de leitura e ergueu as sobrancelhas fartas e prateadas. Tinha setenta e sete anos bem cuidados e vigorosos, e o seu rosto lembrava a
Lana o de um duende astuto e engenhoso.
Usava uma camisa branca, de manga curta, e o cabelo, uma bela mistura de prata e branco, explodia em tufos indomados.
- Pareces muito segura de ti. - A voz dele soou como gravilha a cair por um tubo de aço. - Deves ter visto o Ron Dolan.
- Acabo de vir de lá. - Permitiu-se mais uma pirueta antes de se encostar ao balcão. - Devias ter ido comigo, Roger. Só para ver a cara dele.
- És muito dura com ele. - Roger tocou com a ponta do dedo no nariz de Lana. - Ele só está a fazer o que acha que está certo.
Como Lana se limitasse a inclinar a cabeça e a olhar suavemente, Roger riu.
- Não disse que concordava com ele. O rapaz tem a cabeça dura, como o velhote dele tinha. Não tem sensibilidade para ver que se uma comunidade está tão dividida
sobre qualquer coisa é preciso repensar o assunto.
- Vai repensar agora - prometeu Lana. - Os testes e a datação daqueles ossos vão causar-lhe um bom atraso. E se tivermos sorte, hão-de ser suficientemente antigos
para atrair muitas atenções - atenções a nível nacional. Podemos adiar o empreendimento durante meses. Talvez anos.
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- Ele é tão cabeça dura como tu. Já conseguiste detê-lo durante meses.
- Ele diz que é progresso - resmungou ela.
- Não é o único a pensar assim.
- Único ou não, está enganado. Não se pode plantar casas como se planta um campo de milho. As nossas projecções mostram...
Roger levantou uma mão:
- A discursar perante o júri, senhora advogada.
- Pois. - Soltou um suspiro. - Depois dos testes arqueológicos, logo veremos o que temos. Não posso esperar. Entretanto, quanto mais adiado for o empreendimento,
mais o Dolan perde. E mais tempo temos para arranjar dinheiro. Talvez ele reconsidere e venda a terra à Sociedade de Preservação de Woodsboro.
Ela puxou o cabelo para trás:
- Porque não me deixa convidá-lo para almoçar? Podemos celebrar a vitória de hoje.
- Porque não deixas que um tipo jovem e bem-parecido te convide para almoçar?
- Porque o meu coração é seu, Roger, desde a primeira vez que o vi. - Não estava longe da verdade. - Para dizer a verdade, para o diabo com o almoço. Vamos fugir
juntos para Aruba.
Isso fê-lo rir entredentes, e quase o fez corar. Tinha perdido a mulher no mesmo ano em que Lana perdera o marido. Perguntava-se muitas vezes se isso contribuíra
para a relação que se desenvolvera tão rapidamente entre eles.
Ele admirava o espírito perspicaz de Lana, a sua veia teimosa, a sua devoção absoluta ao filho. Ele tinha uma neta mais ou menos da idade dela, pensou. Algures.
- Isso havia de pôr a cidade em alvoroço, não? O maior acontecimento desde que o padre metodista foi apanhado a brincar com o director do coro. Mas a verdade é que
tenho livros para catalogar. Não tenho tempo para almoços nem para ilhas tropicais.
- Não sabia que tinha recebido material novo. É este?
Como ele confirmasse com um aceno de cabeça, ela virou o livro cuidadosamente.
Roger negociava em livros raros e esta loja minúscula era uma pequena catedral para eles. Cheirava sempre a cabedal velho e a papel velho e ao Old Spice que ele
espalhara na pele durante sessenta anos.
Um alfarrabista não era o género de coisa que se esperasse numa cidade rural com dois semáforos. Lana sabia que o grosso da clientela, tal como os livros, vinham
de bem mais longe.
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- É lindo. - Passou um dedo pela lombada de couro. - De onde veio?
- De uma propriedade em Chicago. - Os seus ouvidos captaram um som vindo das traseiras da loja. - Mas veio com uma coisa ainda mais valiosa.
Esperou, ouviu abrir-se a porta entre a loja e as escadas para a zona de habitação, no segundo andar. Lana viu a satisfação iluminar-lhe o rosto e virou-se.
Tinha um rosto de vales profundos e montanhas fortes. O cabelo era castanho muito escuro, com reflexos dourados. Do género, imaginou ela, que fica prateado e branco
com a idade. Uma massa desse cabelo desgrenhado chegava-lhe ao colarinho da camisa.
Os olhos eram profundos, castanhos escuros, e de momento pareciam um tanto rudes. Tal como a boca. Era um rosto, pensou Lana, que espelhava intelecto e vontade.
Inteligente e teimoso, foi a sua primeira análise. Mas talvez, admitiu, fosse pelo facto de Roger ter descrito tantas vezes o seu neto dessa maneira.
Por outro lado, o facto de parecer ter acabado de cair da cama e ter-se enfiado num par de jeans velho acrescentava sensualidade à mistura.
Sentiu uma agitação agradável que havia muito não sentia.
- Doug. - Havia orgulho, satisfação e amor naquela palavra. -Já me tinha perguntado quando irias descer. Vieste em boa hora, afinal. Esta é a Lana. Já te falei da
nossa Lana. Lana Campbell, o meu neto, Doug Cullen.
- Muito prazer. - Ela estendeu-lhe a mão. - Não nos cruzámos em nenhuma das vezes em que veio a casa, desde que me mudei para Woodsboro.
Ele apertou-lhe a mão enquanto lhe observava o rosto.
- É a advogada.
- Culpada. Passei por aqui para contar ao Roger as últimas sobre o empreendimento do Dolan. E para assediá-lo. Há quanto tempo está na cidade?
- Não sei bem.
Homem de poucas palavras, pensou, e voltou a tentar:
- Viaja muito, a comprar e a vender alfarrábios. Deve ser fascinante.
- Eu gosto.
Roger encarregou-se de preencher a desconfortável pausa:
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- Não sei o que faria sem o Doug. Já não posso andar por aí como costumava. Ele também tem queda para o negócio. Uma queda natural. Já estaria reformado e morto
de tédio, se ele não tivesse tomado conta do assunto.
- Deve ser uma satisfação para ambos, partilhar um interesse e um negócio de família.
Como Douglas parecia aborrecido com a conversa, Lana virou-se para o avô:
- Bem, Roger, como voltou a dar-me tampa, o melhor é eu voltar ao trabalho. Vemo-nos na reunião de amanhã à noite?
- Lá estarei.
- Prazer em conhecê-lo, Doug.
- Sim. Até à próxima.
Quando a porta se fechou atrás dela, Roger soltou um suspiro, como o vapor de uma chaleira:
- Até à próxima? É o melhor que consegues quando falas com uma mulher bonita? Dás cabo de mim, rapaz.
- Não há café. Lá em cima. Não há café. Não consigo pensar. Tenho sorte em conseguir dizer umas frases declarativas simples.
- Há uma cafeteira no quarto das traseiras - disse Roger, enfadado. - Aquela rapariga é inteligente, bonita, interessante e - acrescentou, enquanto Douglas passava
por detrás do balcão e pela porta
- está disponível.
- Não ando à procura de uma mulher. - O cheiro a café inebriou-lhe os sentidos e quase o fez chorar de comoção. Encheu uma chávena, queimou a língua ao primeiro
gole e soube, uma vez mais, que o mundo iria ficar bem.
Bebeu outro gole, enquanto olhava para trás, para o avô:
- Bela figura, para Woodsboro.
- Pensei que não estavas a olhar.
Agora sorria, e o seu rosto passou de irritadiço a agradável:
- Olhar. Ver. São coisas diferentes.
- Ela tem presença, não precisa de pavonear-se.
- Não quis ofender. - Douglas estava divertido com o tom melindrado do avô. - Não sabia que ela era tua namorada.
- Se eu tivesse a tua idade, diabos me levem se não seria!
- Avô! - Animado pelo café, Doug pôs o braço por cima dos ombros de Roger. - A idade não quer dizer nada. Eu cá acho que devias ir em frente. Importas-te que eu
beba isto lá em cima? Preciso de me lavar, tenho de sair para ir ver a mãe.
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- Pois, pois, está bem. - Roger dispensou-o com um aceno da mão. - Vemo-nos por aí - resmungou, enquanto Doug se encaminhava para as traseiras. - Uma lástima.
Callie Dunbrook bebeu o que restava da sua Diet Pepsi, enquanto enfrentava o trânsito de Baltimore. Via agora que tinha marcado a sua partida de Filadélfia - onde
iria supostamente tirar uma sabática de três meses - para uma hora pouco conveniente.
Mas quando o telefonema chegara, a pedir uma consulta, não pensara no tempo de viagem, nem na hora de ponta. Nem na insanidade total da circular de Baltimore às
quatro e cinquenta, numa quarta-feira à tarde.
Agora não podia voltar atrás.
Por isso, tocou a buzina com força e fez o seu velho e adorado Land Rover meter-se num espaço mais adequado a um brinquedo Tonka. Os pensamentos menos agradáveis
do automobilista que ela obrigou a travar não a preocuparam minimamente.
Estava fora de campo havia sete semanas. Só de pensar na hipótese de voltar ficava tão agitada como o seu todo-o-terreno.
Conhecia Leo Greenbaum o suficiente para reconhecer a excitação refreada na sua voz. O suficiente para saber que ele não era homem para pedir-lhe que fosse até Baltimore
para olhar para uns ossos, a não ser que esses ossos fossem muito interessantes.
Como só ouvira falar na descoberta em Maryland naquele dia de manhã, teve o pressentimento de que ninguém esperava que eles fossem particularmente interessantes.
Deus sabia como ela precisava de outro projecto. Sentia-se entediada e vazia a escrever artigos para jornais da especialidade, a fazer conferências, a ler artigos
que outros, da mesma área do que ela, tinham escrito para os mesmos jornais. Para Callie, a arqueologia não eram salas de aula nem artigos para publicação. Para
Callie, a arqueologia era cavar, medir, derreter ao sol, afogar-se à chuva, afundar-se na lama e ser comida viva pelos insectos.
Para ela, isso era o céu.
Quando a estação de rádio que ela tinha sintonizado passou para o serviço noticioso, mudou para um CD. Ouvir alguém falar não era maneira de enfrentar um trânsito
tenebroso. Ouvir rock agressivo, sim.
Os Metallica soaram abruptamente, melhorando instantaneamente a sua disposição.
Tamborilou com os dedos no volante, depois agarrou-o e fez mais uma ultrapassagem apertada. Os olhos, de um castanho dourado profundo, brilhavam através dos óculos
de sol.
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Usava o cabelo comprido porque era mais fácil prendê-lo ou atá-lo num carrapito debaixo de um chapéu - como estava agora - do que ter de preocupar-se em cortá-lo
e arranjá-lo. Tinha também vaidade saudável suficiente para saber que o louro cor de mel lhe ficava bem.
Tinha os olhos rasgados, as sobrancelhas sobre eles quase direitas. À medida que se fora aproximando dos trinta, o rosto amadurecera e passara de engraçado a atraente.
Quando sorria, surgiam três covinhas. Uma em cada face bronzeada e a terceira logo acima do canto direito da boca.
O queixo gentil, ligeiramente curvo, não revelava aquilo a que o seu ex-marido costumava chamar teimosia empedernida.
Mas afinal ela podia dizer o mesmo sobre ele. E dizia, sempre que tinha oportunidade.
Pisou o travão e virou para um parque de estacionamento, quase sem reduzir a velocidade.
A Leonard G. Greenbaum e Associados estava sediada numa caixa de aço de três andares, que não tinha, na perspectiva de Callie, qualquer valor estético. Mas os laboratórios
e os seus técnicos estavam entre os melhores do país.
Estacionou na área de visitantes e pulou para o calor terrível e nebuloso. Os pés começaram a transpirar-lhe dentro das suas Wolverines antes de ela ter conseguido
chegar à entrada do edifício.
A recepcionista olhou para cima e viu uma mulher com um corpo compacto e atlético, um chapéu de palha feio e uns óculos de sol horríveis, com aros de metal.
- A Dr.a Dunbrook para o Dr. Greenbaum.
- Assine, por favor.
Entregou a Callie um cartão de visitante:
- Terceiro andar.
Callie olhou para o relógio e apressou o passo em direcção aos elevadores. Estava apenas quarenta e cinco minutos atrasada em relação ao que planeara. Mas o hambúrguer
que engolira pelo caminho estava a esgotar-se rapidamente.
Perguntou-se se conseguiria aliciar Leo para uma refeição.
Subiu até ao terceiro andar e encontrou outra recepcionista. Desta vez foi-lhe pedido que esperasse.
Esperar era uma coisa que sabia fazer. Está bem, concordou Callie enquanto se deixava cair numa cadeira. Uma coisa que sabia fazer melhor agora do que antes. Usava
e abusava da sua reserva de paciência
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no trabalho. Que podia fazer se não sobrava muita para usar noutras áreas?
Só podia trabalhar com aquilo que tinha.
Mas Leo não a fez esperar durante muito tempo.
Tinha uma maneira de andar apressada. Lembrava sempre a Callie a forma como um cão galês se mexia: pernas rápidas, atarracadas, que corriam demasiado depressa para
o resto do corpo. Era palmo e meio mais baixo do que Callie e usava o cabelo farto e comprido, cor de avelã, bem alisado para trás, e não tinha vergonha de dizer
que o pintava. O seu rosto estava marcado pelo tempo, tisnado pelo sol, era comprido, com olhos castanhos permanentemente semicerrados atrás dos óculos quadrados,
sem armação.
Usava, como habitualmente, calças largas castanhas e uma camisa de algodão amarrotada. De todos os bolsos espreitavam papéis.
Dirigiu-se a Callie e deu-lhe um beijo: era o único homem conhecido, com o qual não tinha uma relação profunda, a quem Callie permitia isso.
- Estás com bom ar, lourinha.
- Tu também não estás mal.
- Que tal a viagem?
- Horrível. Faz com que valha a pena, Leo.
- Oh, acho que vou fazer. Como está a família? - perguntou ele, enquanto a conduzia pelo caminho de onde ele próprio viera.
- Óptima. A mãe e o pai saíram de Dodge por umas semanas. Estão no Maine, a fugir ao calor. Como está a Clara?
Leo abanou a cabeça quando pensou na sua mulher.
- Passou a dedicar-se à cerâmica. Estou à espera de um vaso horrível para o Natal.
- E os miúdos?
- O Ben brinca com acções e títulos e a Melissa anda às voltas com a maternidade e a odontologia. Como é que um velho escavador como eu criou uns filhos tão normais?
- Saem à Clara - disse-lhe Callie, enquanto ele lhe abria a porta e fazia um gesto que a convidava a entrar.
Embora ela estivesse à espera que ele a levasse para um dos laboratórios, viu-se no seu escritório ensolarado e bem equipado.
-Já me tinha esquecido do belo canto que tens aqui, Leo. Não ficas em pulgas para voltares a escavar?
- Bem, às vezes. Quando isso acontece, durmo uma sesta e a vontade desaparece. Mas desta vez... dá uma olhadela a isto.
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Deu a volta à secretária e destrancou uma das gavetas. Tirou de lá um fragmento de osso, dentro de um saco selado.
Callie pegou no saco e, prendendo os óculos no V do decote da camisa, examinou o osso que estava lá dentro.
- Parece um bocado de uma tíbia. Tendo em conta o tamanho e a densidade, possivelmente de uma mulher jovem. Muito bem preservado.
- Que idade dirias que tem, assim à primeira vista?
- Foi encontrado a oeste de Maryland, verdade? Perto de um riacho. Não gosto de adivinhas. Tens amostras do solo, um relatório estratigráfico?
- Uma aposta. Vá lá, lourinha, atira.
- Bolas! - Franziu o sobrolho enquanto virava o saco na mão. Queria sentir o osso com os dedos. Começou a bater o pé ao seu ritmo interno. - Não conheço o terreno.
Olhando para ele, sem dados de testes, diria trezentos a quinhentos anos. Pode ser mais antigo, depende dos depósitos de sedimentos, do aluvião.
Virou o osso mais uma vez e os seus instintos começaram a agitar-se.
- É anterior à guerra civil. Não é de um jovem soldado rebelde.
- É anterior à guerra civil - concordou Leo. - Em cerca de cinco mil anos.
Quando Callie levantou a cabeça, ele sorria para ela como louco.
- Relatório da datação radiocarbónica - disse ele, entregando-lhe um ficheiro.
Callie folheou as páginas, notou que Leo fizera o teste duas vezes, em três amostras diferentes colhidas no local.
Quando voltou a levantar a cabeça, tinha o mesmo sorriso louco do que ele.
- Com a breca! - disse ela.
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Dois

Callie perdeu-se no caminho para Woodsboro. Pedira indicações a Leo, mas quando olhara para o mapa vira um atalho. Deveria ser um atalho. Qualquer pessoa lógica
veria naquilo um atalho, o que, em sua opinião, era exactamente o que o cartógrafo pretendia.
Vinha de longa data o seu diferendo com os autores de mapas.
Não se importava de estar perdida. Afinal, não era costume estar perdida durante muito tempo. E o desvio fê-la ficar a conhecer a área.
Os montes irregulares, ondulantes, de um verde gritante de Verão, derramavam-se nos campos vastos e abundantes de colheitas. Protuberâncias de rocha prateada irrompiam
do verde como nós de dedos retorcidos e falanges encrespadas.
Isto fê-la pensar nos agricultores antigos, a arar a terra com ferramentas primitivas, abrindo sulcos na terra rochosa para cultivar o seu alimento. Para construir
o seu lugar.
O homem que conduzia o seu John Deere por aqueles campos tinha uma dívida para com eles.
E não devia pensar nisso enquanto lavrava e plantava e colhia. Por isso, ela e outros como ela pensariam por ele.
Era um bom sítio para trabalhar, pensou.
Os montes altos estavam forrados com o verde da floresta que subia em direcção a um céu azul vítreo. Os cumes caíam abruptamente em direcção ao vale; o vale erguia-se
em direcção aos cumes, conferindo à terra textura, sombras e amplitude. O sol brilhava sobre o milho crescido quase até à cintura, banhando de dourado o verde, e
oferecia a um jovem rebento de castanheiro um belo espaço para se estender. Casas antigas feitas com pedras da zona, ou as suas réplicas modernas com vigas de madeira
ou tijolo ou vinil, erguiam-se nas encostas ou em apartamentos com bastante espaço livre entre si.
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As vacas refastelavam-se indolentemente ao calor, em prados fechados por arame ou cercas de madeira.
Os campos davam lugar a florestas de árvores dicotiledóneas, emaranhadas com sumagres e mimosas, e depois a montanha levava a melhor, com as suas saliências rochosas.
A estrada volteava para seguir o serpentear do ribeiro, e por cima da cabeça as árvores arqueavam-se, transformando a estrada num túnel sombrio que, de um dos lados,
descia até à água e, do outro, ia subindo num muro irregular de calcário e granito.
Andou dezasseis quilómetros sem passar por outro carro.
Divisou mais casas para lá das árvores, e outras que estavam tão perto da estrada que ela pensou que se alguém viesse à porta ela podia estender o braço e apertar-lhe
a mão.
Os jardins de Verão sobressaíam na paisagem, manchas e salpicos luminosos de cor, mais carregada nas margaridas amarelas de olho negro e nos lírios riscados.
Viu uma cobra, da grossura do seu pulso, deslizar pelo asfalto. Depois foi a vez de um gato, laranja-abóbora, esgueirar-se por entre os arbustos à beira da estrada.
Tamborilando com os dedos no volante ao ritmo da Dave Matthews Band, especulou sobre o resultado do possível encontro do felino com o réptil.
Apostou no gato.
Fez uma curva e viu uma mulher à beira da estrada, a tirar a sua correspondência de uma caixa de correio cinzenta, baça. Embora mal olhasse para o Rover, a mulher
ergueu a mão naquilo que Callie presumiu que fosse um cumprimento distraído e habitual.
Respondeu ao aceno e foi cantando com Dave enquanto seguia, por entre o sol e as sombras, a montanha-russa do percurso. Quando a estrada voltou a alargar, Callie
passou, a voar, pela ondulação da terra lavrada, por um motel de estrada, algumas casas espalhadas, com as montanhas erguidas à sua frente.
As casas iam aumentando em número e diminuindo de tamanho à medida que se ia aproximando da cidade de Woodsboro.
Abrandou, parou num dos dois semáforos que a cidade ostentava e notou com satisfação que um dos negócios aninhado próximo da esquina de Main e Mountain Laurel era
uma pizzaria. Na outra esquina ficava uma loja de bebidas.
É bom saber, pensou, enquanto começava a avançar ao sinal verde.
Recordando as direcções que Leo lhe dera, virou em Main e seguiu para oeste.
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As estruturas ao longo do caminho principal eram simples e velhas. De tijolo, madeira ou pedra, aninhavam-se confortavelmente umas contra as outras, fronteadas por
alpendres ou varandas iluminados pelo sol. Os candeeiros públicos eram antigos, parecidos com os das carruagens, e os passeios eram de tijolo. Flores em vasos pendiam
de beirais, postes e parapeitos.
As bandeiras não ondulavam ao vento. Bandeiras americanas e outras, decorativas, que as pessoas gostam de hastear para anunciar festas comemorativas e feriados.
O tráfego pedestre era tão escasso e errante como o automóvel. Exactamente como devia ser em Main Street, EUA, pensou Callie.
Viu um café, uma loja de hardware, uma pequena biblioteca e uma livraria ainda mais pequena, várias igrejas, alguns bancos, bem como uma série de profissionais que
anunciavam os seus serviços em pequenos letreiros discretos.
Quando chegou ao segundo semáforo tinha o extremo oeste da cidade gravado na memória.
Seguiu pela direita quando a estrada se bifurcou e seguiu o seu percurso sinuoso. A floresta aproximava-se de novo. Densa, sombria, secreta.
Chegou a um cume, com as montanhas a encher a paisagem. E ali estava!
Encostou à berma da estrada, junto ao letreiro que anunciava
CASAS EM ANTIETAM CREEK
Um empreendimento Dolan e Filho
Pegando na máquina fotográfica e lançando uma pequena mochila sobre o ombro, Callie saiu. Apreciou a paisagem ampla, observando o terreno.
Havia uma enorme extensão de terras baixas e, a avaliar pelo solo revolvido na escavação, bastante pantanosas. As árvores - carvalhos seculares, choupos gigantes,
restos de acácias - alinhavam-se em direcção a oeste e a sul e amontoavam-se à volta do ribeiro, como se o defendessem de intrusos.
Parte do local estava delimitado por cordas, e ali o ribeiro alargava-se, formando um lago de dimensões consideráveis.
No pequeno esboço que Leo lhe desenhara, estava assinalado como Simon's Hole.
Perguntou-se quem teria sido Simon e por que motivo o lago tinha o seu nome.
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Do outro lado da estrada havia uma extensão de terra cultivada, alguns anexos onde eram visíveis as marcas do tempo, uma velha casa de pedra e máquinas com ar sujo.
Vislumbrou um cão grande e castanho deitado num recorte de sombra. Quando notou o olhar dela, mexeu-se um pouco para bater duas vezes com a cauda na terra.
- Não, não te levantes - disse-lhe ela. - Está demasiado calor para boas educações.
O ar zumbia num silêncio estival, feito de calor, insectos e solidão.
Pegou na máquina fotográfica e tirou uma série de fotografias, e preparava-se para saltar a vedação quando ouviu, através da quietude, o som de um carro que se aproximava.
Era outro jipe. Um daqueles pequenos, elegantes e, na opinião de Callie, um pouco "Barbie", que tinham vindo substituir a station wagon nos subúrbios. Este era vermelho
vivo e estava tão limpo como um modelo num stand de exposições.
A mulher que saiu do veículo impressionou-a igualmente. Barbie, um pouco ostentosa e tão aprumada como um modelo num stand de exposições.
Com o seu cabelo louro e brilhante, as calças e o top leves e amarelos, parecia um raio de sol.
- Dr.a Dunbrook? - Lana ensaiou um sorriso.
- Correcto. Campbell?
- Sim, Lana Campbell. - Agora estendeu-lhe também a mão e apertou a de Callie entusiasticamente. - Estou tão satisfeita por conhecê-la. Desculpe o meu atraso. Tive
um contratempo por causa do meu filho.
- Não há problema. Acabei de chegar.
- Estamos tão satisfeitos por termos alguém com a sua reputação e a sua experiência interessado nisto. E não - disse ela quando as sobrancelhas de Callie se ergueram
-, nunca tinha ouvido falar de si antes de tudo isto ter começado. Não sei nada sobre estes assuntos, mas estou a aprender. Aprendo depressa.
Lana olhou para trás, para a zona delimitada por cordas:
- Quando nós ouvimos dizer que os ossos tinham milhares de anos...
- "Nós", é a organização para a preservação que representa?
- Sim. Esta zona do país tem algumas áreas de importância histórica significativa. Guerra Civil, Revolucionários, Americanos nativos.
- Afastou uma madeixa de cabelo com a ponta do dedo e Callie reparou
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no brilho da aliança de Lana. - A Sociedade Histórica e a Sociedade de Preservação e alguns moradores de Woodsboro e das áreas circundantes uniram-se para protestar
contra este empreendimento. Os problemas potenciais provocados por mais vinte e cinco ou trinta casas e, presumivelmente, mais cinquenta carros, mais cinquenta crianças
para irem à escola, o... Callie levantou a mão:
- Não tem de convencer-me de nada. A política urbana não é o meu terreno. Estou aqui para fazer uma inspecção preliminar ao local, com autorização de Dolan - acrescentou.
- Até agora, tem-se mostrado perfeitamente cooperante.
- Não vai continuar por muito tempo. - Lana apertou os lábios.
- Quer levar avante este empreendimento. - Já enterrou muito dinheiro nele e já tem contratos para três das casas.
- Isso também não é problema meu. Mas passará a ser, se ele tentar impedir o nosso trabalho. - Callie saltou a vedação com destreza e olhou para trás. - Talvez seja
melhor esperar aí. O terreno está lamacento ali em cima. Vai estragar os sapatos.
Lana hesitou, depois olhou para as suas sandálias preferidas. Saltou a vedação.
- Pode dizer-me alguma coisa sobre o processo? O que vai fazer?
- Neste momento vou dar uma vista de olhos, tirar fotografias, colher algumas amostras. Uma vez mais, com autorização do dono. Lançou um olhar a Lana. - Dolan sabe
que está aqui?
- Não. Não iria gostar de saber. - Lana ia avançando cautelosamente por entre a lama, ao mesmo tempo que tentava acompanhar o passo de Callie. - Atribuiu uma data
aos ossos - continuou.
- Hã-hã. Meu Deus, quantas pessoas andaram a espezinhar este lugar? Olhe para esta porcaria. - Aborrecida, Callie baixou-se para apanhar um maço de tabaco vazio.
Meteu-o no bolso.
Quando se aproximou mais do lago, as botas afundaram-se ligeiramente na lama macia.
- Terras de aluvião - disse, quase como se falasse consigo própria. - Há milhares de anos que são inundadas. Os sedimentos vão sendo depositados camada por camada.
Acocorou-se e espreitou para um buraco enlameado. As pegadas que o calcavam de um lado ao outro fizeram-na abanar a cabeça:
- Como se fosse o raio de um local turístico.
Tirou fotografias e depois entregou distraidamente a máquina a Lana:
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- Vamos precisar de fazer alguns testes ao solo, uma estratografia...
- É o nome que se dá ao estudo dos estratos, as camadas de depósitos no solo. Tenho andado a estudar - acrescentou Lana.
- Ainda bem para si. Seja como for, não há razão para não vermos o que temos aqui. - Callie tirou da mochila uma pequena colher de pedreiro e saltou para o buraco
com um metro e meio de profundidade.
Começou a cavar, lentamente, metodicamente, enquanto Lana permanecia lá em cima, a sacudir os mosquitos e a perguntar-se o que devia fazer.
Estava à espera de uma mulher mais velha, alguém com o rosto marcado pelo tempo, dedicada, e cheia de histórias fascinantes. Alguém que lhe oferecesse apoio ilimitado.
Em vez disso, tinha uma mulher jovem e atraente, que parecia desprendida, até mesmo cínica, quanto à batalha que se travava naquele lugar.
- Hum... É assim que costumam ficar a descoberto os locais de interesse? Por acaso?
- Hã-hã. A descoberta acidental é uma forma. As causas naturais, digamos... um terramoto, são outra. Ou pesquisas, fotografia aérea, detecções abaixo da superfície.
Há muitas formas científicas de detectar um local de interesse. Mas o acaso é tão bom como qualquer outro.
- Então isto não é assim tão fora do comum... Callie fez uma pausa, suficiente para olhar para cima:
- Se está à espera de gerar interesse suficiente para manter o empreendedor mau à distância, o método de localização não significa nada. Quanto mais expandirmos
a civilização, quanto mais cidades construirmos, mais frequentemente encontramos restos de outras civilizações debaixo dos nossos pés.
- Mas se o local em si for de interesse científico, de alguma coisa há-de servir.
- Provavelmente. - Callie voltou a cavar lenta e cuidadosamente.
- Não vai trazer uma equipa? Da minha conversa com o Dr. Greenbaum depreendi...
- As equipas custam dinheiro, o que implica subsídios, o que implica papelada. Isso é com o Leo. Por agora, Dolan está a pagar a observação preliminar e o trabalho
de laboratório. - Não se deu ao trabalho de olhar para cima. - Acha que ele vai desembolsar para uma equipa inteira, equipamento, alojamento, custos de laboratório
para uma escavação formal?
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- Não. - Lana soltou um suspiro. - Não, não acho. Não iria servir os seus interesses. Temos alguns fundos e estamos a trabalhar para conseguir mais.
Acabei de atravessar parte da sua cidade, Sr.a Campbell. Acho
que nunca conseguirão mais do que o suficiente para trazer uns estudantes com pás e blocos.
A irritação fez Lana franzir o sobrolho:
Pensei que alguém com a sua profissão havia de querer, até
mesmo ansiar por concentrar tempo e energia numa coisa como esta, trabalhar o mais possível para evitar que isto seja destruído.
Não disse que não quero. Dê-me a máquina fotográfica.
Agora impaciente, Lana aproximou-se e sentiu as sandálias deslizarem e afundarem-se na lama:
- Só estou a pedir-lhe que... Meu Deus, isso é outro osso? É...?
- Um fémur adulto - disse Callie, sem deixar transparecer na voz a excitação que lhe agitava o sangue. Pegou na máquina fotográfica e tirou fotografias de vários
ângulos.
- Vai levá-lo para o laboratório?
- Não. Vai ficar. Se o tirar deste meio húmido, seca. Preciso de recipientes adequados, antes de escavar os ossos. Mas vou levar isto. Delicadamente, Callie retirou
da parede de lama uma pedra achatada e pontiaguda. - Ajude-me a sair.
Estremecendo um pouco, Lana baixou-se e agarrou a mão suja de Callie.
- O que é isso?
- Uma ponta de arpão. - Voltou a acocorar-se, tirou um saco da mochila e selou e etiquetou a pedra. - Há apenas alguns dias, não sabia nada sobre esta área. Nada
sobre a história geológica. Mas também aprendo depressa.
Limpou as mãos às calças e endireitou-se.
- Riólito. Abundava nestas montanhas. E isto... - Virou a pedra que tinha na mão, dentro do saco - Isto parece-me riólito. Talvez isto fosse um acampamento... Um
acampamento neolítico. Talvez fosse mais do que isso. As pessoas daquela época começaram a sedentarizar-se, a cultivar a terra, a domesticar animais.
Se estivesse sozinha e fechasse os olhos, conseguiria imaginá-lo.
- Não eram tão nómadas como se pensava. O que posso dizer-lhe, Sr.a Campbell, com base neste exame superficial, é que tem aqui uma coisa muito atraente.
- Suficientemente atraente para um subsídio, uma equipa, uma escavação formal?
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- Sem dúvida. - Por detrás das suas lentes cor de chá, o olhar de Callie perscrutou o terreno. Estava a começar a fazer uma cartografia mental. - Ninguém vai escavar
fundações para casas neste lugar durante muito tempo. Têm meios de comunicação locais?
A luz começou a brilhar nos olhos de Lana:
- Um pequeno semanário em Woodsboro. Um diário em Hagerstown. Também há um network affiliate em Hagerstown. Já estão a fazer a cobertura da história.
- Vamos dar-lhes mais, e depois passar à escala nacional. - Callie observou o rosto de Lana enquanto metia o saco fechado na mochila. Sim, bonita como um raio de
sol, pensou. E inteligente, também. - Aposto que causa uma bela impressão na televisão.
- Claro - disse Lana, com um sorriso. - E você?
- De arrasar. - Callie voltou a observar o local e começou a imaginar. A planear. - O Dolan não sabe, mas o empreendimento dele foi lixado há cinco mil anos.
- Ele vai lutar.
- Ele vai perder, Sr.a Campbell. Lana voltou a erguer a mão:
- Chame-me Lana. Quando quer falar à imprensa, Doutora?
- Callie. - Pressionou os lábios um contra o outro e reflectiu.
- Deixe-me combinar com o Leo, encontrar um sítio para ficar. Que tal é o motel à saída da cidade?
- Aceitável.
-Já fiquei em sítios muito piores do que o aceitável. Para já, serve. Muito bem, deixe-me tratar de algumas coisas fundamentais. Tem um número para onde possa ligar-lhe?
- O meu telemóvel. - Lana tirou um cartão da mala e escreveu nele o número. - A qualquer hora do dia ou da noite.
- A que horas é o noticiário da noite?
- Cinco e trinta.
Callie olhou para o relógio, pensativa:
- Deve dar tempo. Se eu conseguir arranjar as coisas, entro em contacto por volta das três.
Começou a encaminhar-se para o carro. Lana fez um esforço para acompanhá-la:
- Estaria disposta a falar numa reunião, na cidade?
- Deixe isso para o Leo. Ele é melhor do que eu com as pessoas.
- Callie, vamos ser sexistas.
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- Claro. - Callie encostou-se à vedação por um instante. - Os
homens são uns porcos, cujas ideias e cuja acção são inteiramente ditadas pelo pénis.
Bem, disso não há dúvida, mas neste caso o que eu quero dizer é que as pessoas vão ficar muito mais intrigadas e interessadas numa mulher arqueóloga, jovem e atraente,
do que num homem de meia-idade, que trabalha num laboratório.
E é exactamente por esse motivo que vou falar com a equipa de televisão. - Callie saltou a vedação. - E não vamos subestimar o Leo. Ele já escavava quando você e
eu chuchávamos no dedo. Tem uma paixão que mexe com as pessoas.
- E virá de Baltimore?
Callie voltou a olhar para o terreno. Bela planície, o encanto do ribeiro e o brilho do lago. A floresta verde e misteriosa. Sim, conseguia compreender o que levava
as pessoas a querer construir casas ali, morar perto das casas e da água.
Suspeitava que já o tinham feito antes. Milhares de anos antes.
Mas desta vez teriam de procurar noutro lado.
- Não poderia deixar de vir. Às três - voltou a dizer e meteu-se no Rover.
Quando arrancou, já ia com o telemóvel na mão, a ligar para Leo.
- Leo. - Mudou o telefone para a outra mão, para poder ligar o ar condicionado. - Encontrámos ouro.
- É a tua opinião científica?
- Um fémur e uma ponta de arpão caíram-me praticamente no colo. E isto num buraco qualquer, feito por equipamento pesado, e onde as pessoas têm andado de um lado
para o outro como se fosse a Disneylândia. Precisamos de segurança, uma equipa, equipamento, e precisamos de dinheiro. Precisamos dele o mais depressa possível.
-Já accionei a alavanca dos fundos. Pega nuns estudantes da Universidade de Maryland.
- Finalistas ou não?
- Ainda se vai ver. A universidade quer gente de primeira no estudo de alguns dos artefactos. E eu estou a tratar dos contactos com o Museu de História Natural.
Algo me diz que há aqui coisa, lourinha, mas é preciso bem mais do que dois ou três ossos e uma ponta de arpão para continuar.
- E vais ter mais. É um achado, Leo. Sinto isso. E as condições do solo? Meu Deus, não podiam ser muito melhores. Podemos ter alguns atritos com esse tal Dolan.
A rapariga advogada tem a certeza disso. Politiquices de uma cidade pequena. Vamos precisar de armas fortes
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para conseguir a colaboração dele. A Campbell quer convocar uma reunião dos representantes da cidade.
Callie olhou ansiosamente para a pizzaria antes de virar para sair da cidade e rumar ao motel:
- Deixei isso para ti.
- Quando?
- Quanto mais cedo, melhor. Quero marcar uma entrevista com a televisão local, esta tarde.
- É cedo para os media, Callie. Estamos apenas a arranjar munições. Não queres divulgar a história antes de termos delineado uma estratégia.
- Leo, estamos a meio do Verão. Temos apenas alguns meses antes de arrumarmos as botas por causa do Inverno. A exposição através dos media pressiona o Dolan. Ele
não vai afastar-se de deixar-nos trabalhar, recusa-se a doar os achados e pressiona para retomar a construção do seu empreendimento, revela-se um idiota ganancioso
sem respeito pela ciência ou pela história.
Entrou no parque de estacionamento do motel, estacionou e, voltando a mudar o telefone para a outra mão, pegou na mochila.
- Não tens muito para lhes dizer.
- Posso fazer com que pouco pareça muito - disse ela, enquanto saía do carro e se dirigia às traseiras do Rover para tirar a mochila do porta-bagagens.
Atirando-a para cima do ombro, tirou também a caixa do seu violoncelo.
- Confia em mim e arranja-me uma equipa. Aceito os estudantes e uso-os como pau para toda a obra até descobrir de que fibra são feitos.
Abriu a porta da entrada do motel e dirigiu-se à recepção.
- Preciso de um quarto. A maior cama que tiver, no sítio mais sossegado. Arranja-me a Rosie - disse ela para o telefone. - E o Nick Long, se ele estiver disponível.
- Pegou num cartão de crédito e colocou-o em cima do balcão. - Podem abancar no motel logo à saída da cidade. Eu estou agora a fazer o check in.
- Que motel?
- Sei lá, que diabo! Como é que se chama este lugar? - perguntou Callie à recepcionista.
- Hummingbird Inn.
- Verdade? Que engraçado! Hummingbird Inn, na estrada para Maryland, quilómetro trinta e quatro. Arranja-me mãos, olhos e costas,
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Leo. Vou começar a cavar para os testes logo de manhã. Depois volto a ligar-te.
Desligou e meteu o telefone no bolso.
Têm serviço de quartos? - perguntou à recepcionista.
A mulher parecia uma bonequinha velha e cheirava fortemente a
alfazema:
Não, querida. Mas o nosso restaurante está aberto das seis da manhã às dez da noite, todos os dias da semana. Temos o melhor pequeno-almoço que poderia comer fora
da cozinha da sua mãe.
Se conhecesse a minha mãe - disse Callie soltando uma gargalhada -, saberia que isso não significa grande coisa. Acha que há uma empregada de mesa ou algum ajudante
que queira ganhar dez dólares extra para me trazer ao quarto um hambúrguer com batatas fritas e uma Diet Pepsie Bem passado, o hambúrguer. Tenho trabalho urgente
para fazer.
- Os dez dólares faziam jeito à minha neta. Vou tratar disso. Pegou na nota de dez dólares e entregou a Callie uma chave atada a um porta-chaves enorme, de plástico.
- Pu-la lá atrás, quarto seiscentos e três. Tem uma cama larga e é bastante sossegado. Provavelmente o tal hambúrguer vai demorar uma meia hora.
- Agradecida.
- Menina... humm... - A mulher semicerrou os olhos, tentando ler a assinatura rabiscada no registo de entrada. - Dunbock.
- Dunbrook.
- Dunbrook. É música?
- Não. Ganho a vida a escavar a terra. Toco isto - sacudiu o grande estojo preto - para descontrair. Diga à sua neta para não se esquecer do ketchup.
Às quatro horas, envergando umas calças limpas, verde-azeitona, e uma camisa caqui, o cabelo comprido acabado de lavar e apanhado num rabo de cavalo, Callie voltou
a dirigir-se ao local dos achados.
Estudara as suas notas e enviara uma cópia a Leo, por e-mail. No regresso, passara pelos correios para lhe enviar por express-mail o rolo fotográfico por revelar.
Pusera uns brincos pequenos, de prata, com um símbolo celta, e passara dez intensos minutos a maquilhar-se.
A equipa de filmagens já estava a preparar-se para a emissão. Callie notou que Lara Campbell também lá estava, segurando pela mão um rapaz de cabelos muito claros
com uma ferida no joelho, o queixo sujo e um rosto angelical onde se lia "sarilhos".
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Dolan, de camisa azul e suspensórios vermelhos - a sua imagem de marca -, estava ao lado do letreiro da sua empresa e falava já com uma mulher que Callie adivinhou
ser a repórter.
Partiu do princípio que ele era Ronald Dolan, porque não tinha um ar satisfeito.
No momento em que avistou Callie, interrompeu a conversa e marchou na sua direcção.
- O seu nome é Dunbrook?
- Dr.a Callie Dunbrook. - Ofereceu-lhe um sorriso aberto. Callie conhecera alguns homens que se derretiam quando ela usava o seu sorriso aberto. Dolan parecia ser
imune.
- Que diabo se passa aqui? - Apontou-lhe um dedo ao peito mas, felizmente para ele, não chegou a tocar-lhe.
- A televisão local pediu uma entrevista. Eu tento sempre colaborar, Sr. Dolan - ainda a sorrir, tocou-lhe no braço como se fossem compatriotas -, o senhor tem muita
sorte. As comunidades arqueológica e antropológica nunca vão esquecer o seu nome. Darão aulas sobre o seu sítio arqueológico durante gerações. Tenho aqui uma cópia
do meu relatório preliminar.
Mostrou-lhe um dossiê.
- Terei o maior prazer em explicar-lhe qualquer coisa que não compreenda. Sei que uma parte é muito técnica. Já foi contactado por algum representante do Museu de
História Natural no Smithsonian?
- O quê? - Olhou para o relatório como se ela estivesse a estender-lhe uma cobra viva. - O quê?
- Gostava de lhe apertar a mão. - Pegou na mão dele e sacudiu-a para cima e para baixo. - E obrigado pelo seu contributo nesta descoberta incrível!
- Ora, ouça bem...
- Assim que puder, adoraria levá-lo, à sua mulher e à sua família a jantar. - Manteve o sorriso, intensificou-o até com um bater de pestanas, subjugando-o. - Mas
acho que vou estar muito ocupada nas próximas semanas. Dá-me licença? Gostava de acabar com isto rapidamente.
Levou uma mão ao coração.
- Falar para as câmaras deixa-me sempre um pouco nervosa. Rematou a mentira com um riso breve e sufocado. - Se tiver alguma pergunta, qualquer que seja, sobre esse
relatório ou sobre os que se lhe seguirem, por favor contacte-me, ou ao Dr. Greenbaum. Vou passar a maior parte do meu tempo aqui mesmo, no local dos achados. Não
será difícil encontrar-me.
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Ele voltou a resmungar, mas ela apressou-se a afastar-se para ir ter Com a equipa de filmagens.
Astuta - murmurou Lana. - Muito astuta.
Obrigado. - Acocorou-se e observou o rapazinho. - Olá! És o repórter?
Não. - Riu baixinho e os seus olhos verdes, cor de musgo, brilharam de satisfação. - Vai aparecer na televisão. A minha mãe disse que eu podia ver.
Tyler, esta é a Dr.a Dunbrook. É uma cientista que estuda coisas
muito, muito antigas.
Ossos e coisas assim - declarou Tyler. - Como o Indiana Jones. Porque é que não tem um chicote como ele?
- Esqueci-me dele no motel.
- Está bem. Alguma vez viu um dinossauro?
Callie percebeu que ele estava a misturar os filmes e piscou-lhe o olho.
- Claro que vi! Ossos de dinossauro. Mas não são a minha especialidade. Gosto de ossos humanos. - Apertou-lhe um pouco o braço. - Aposto que tens bons ossos. Pede
à mãe que te traga até cá e eu deixo-te escavar. Talvez encontres alguns.
- Verdade? Posso? Posso mesmo - Delirante, dançava com os seus Nike enquanto puxava a mão de Lana. - Por favor?
- Se a Dr.a Dunbrook diz que não há problema. É muito simpático da sua parte - disse a Callie.
- Gosto de miúdos - disse Callie, levantando-se. - Ainda não aprenderam a desperdiçar oportunidades. Bom, vamos lá a acabar com isto. - Passou-lhe a mão pelo cabelo
dourado como o sol. - Até logo, Ty-Rex.
Suzanne Cullen resolveu experimentar uma receita nova. A sua cozinha tinha tanto de laboratório científico como de refúgio caseiro. Primeiro, cozinhava porque gostava
e também porque era uma coisa que as donas de casa faziam. Rira muitas vezes quando as pessoas lhe diziam que devia abrir uma pastelaria.
Era esposa e mãe, não uma mulher de negócios. Nunca aspirara a uma carreira fora de casa.
Depois, passara a cozinhar para fugir à sua própria dor. Para ter alguma coisa com que ocupar o espírito que não fosse a sua culpa, a sua infelicidade e os seus
medos.
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Afundara-se em massa de bolinhos, em coberturas de tartes e em bolos. E acabara por achar aquilo uma terapia mais eficaz do que todos os conselhos, todas as orações,
todas as apresentações em público.
Quando a sua vida, o seu casamento, o seu mundo se desmoronavam continuamente, cozinhar fora uma constante. Subitamente, quisera mais. Precisara de mais.
A Cozinha de Suzanne nascera num espaço vulgar, insípido até, numa casinha simples, a pouca distância da casa onde ela própria crescera. Começara por vender para
os mercados locais, e fazia tudo sozinha: comprava, planeava, cozinhava, embalava e fazia a distribuição.
Em cinco anos, a procura fora suficiente para ela contratar ajuda, comprar uma carrinha e levar os seus produtos a toda a região.
Em dez, expandira-se a nível nacional.
Embora já não fosse ela a cozinhar, e a embalagem, a distribuição e a publicidade fossem feitas por várias secções da sua empresa, Suzanne continuava a gostar de
passar tempo na sua cozinha, a criar novas receitas.
Vivia numa casa grande, aninhada numa colina e protegida da estrada por um bosque. E vivia sozinha.
A sua cozinha era enorme e ensolarada, com metros e metros de bancadas pintadas num ousado tom de azul, quatro fornos profissionais e duas despensas implacavelmente
organizadas. As portas abriam-se para um pátio de xisto e vários jardins temáticos, quando sentia necessidade de ar fresco. Havia um sofá confortável e um cadeirão
estofado, junto a uma janela de sacada fechada, se quisesse aninhar-se, e um centro computorizado totalmente equipado, se precisasse de anotar uma receita ou de
procurar alguma que já tivesse nos seus ficheiros.
Era a divisão mais espaçosa de toda a casa, e Suzanne podia passar um dia inteiro de felicidade sem ter de sair dela.
Aos cinquenta e dois anos de idade era uma mulher rica, que poderia viver em qualquer parte do mundo e fazer tudo o que desejasse. E ela desejava cozinhar e viver
na comunidade onde nascera.
Embora tivesse escolhido para companhia o ecrã plasma e não a música, cantarolava enquanto batia ovos e natas numa tigela.
Quando ouviu o genérico do noticiário das cinco e meia, fez uma pausa suficientemente longa para saborear um copo de vinho. Provou o recheio que estava a misturar,
fechou os olhos e apreciou o sabor que se lhe enrolava na língua.
Acrescentou uma colher de baunilha. Mexeu, provou, aprovou. E anotou meticulosamente no seu bloco o ingrediente acrescentado.
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Ouviu falar em Woodsboro na televisão e, pegando no copo de vinho, virou-se para ver.
Viu a imagem da rua principal e sorriu quando vislumbrou a loja do pai. Viu outra imagem, das montanhas e dos campos fora da cidade enquanto a repórter falava sobre
a comunidade histórica.
Movida pelo interesse, certa de que a reportagem iria centrar-se na descoberta recente próximo de Antietam Creek, aproximou-se do aparelho. E acenou com a cabeça,
sabendo como o seu pai iria ficar satisfeito por a repórter falar da importância do achado, da emoção e das expectativas do mundo da ciência diante do que poderia
vir a ser ali desenterrado.
Bebericou o vinho, pensando em telefonar ao pai assim que a reportagem acabasse, e ouviu distraidamente alguém apresentar a Dr.a Callie Dunbrook.
Quando o rosto de Callie encheu o ecrã, Suzanne piscou os olhos e ficou a olhar para a imagem fixamente. Sentiu a garganta a arder, enquanto se aproximava ainda
mais do ecrã.
O coração batia-lhe descompassadamente, dolorosamente, contra as costelas, enquanto ela mergulhava nos olhos de âmbar escuro sob as sobrancelhas direitas. Sentiu
a pele a escaldar, e depois fria, e a respiração instável.
Abanou a cabeça. Tudo dentro dela zumbia como um enxame de vespas. Não conseguiu ouvir mais nada, ficou em estado de choque, a observar a boca que se mexia, revelando
os dentes superiores ligeiramente salientes.
E quando a boca sorriu, rápida, luminosa, fazendo surgir três covinhas no rosto, o copo soltou-se dos dedos trémulos de Suzanne, estilhaçando-se no chão, aos seus
pés.
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Três

Suzanne estava sentada na sala da casa onde crescera. Os candeeiros que ela ajudara a mãe a escolher, talvez dez anos antes, estavam pousados sobre os panos de crochet
que a avó fizera antes de ela nascer.
O sofá era novo. Quase tivera de ameaçar o pai para conseguir que ele substituísse o velho. As carpetes tinham sido tiradas e ficariam arrumadas durante o Verão,
e umas cortinas leves e transparentes substituíam os reposteiros de Inverno. Eram rotinas domésticas que a mãe sempre fizera, todas as estações, e que o pai continuava
a fazer simplesmente porque se tratava de rotinas.
Santo Deus, como sentia a falta da mãe!
Tinha as mãos fechadas, pousadas no colo, e pressionava com força os nós contra a barriga, como se protegesse a criança que um dia guardara no seu ventre.
Tinha o rosto pálido, inerte, sem cor. Era como se tivesse esgotado toda a sua energia e todas as suas forças a reunir a família. Agora era uma sonâmbula, movendo-se
entre o passado e o presente.
Douglas estava sentado na borda de uma poltrona mais velha do que ele. Observava a mãe pelo canto do olho. Estava imóvel como uma pedra e parecia tão longe dele
como a lua.
Sentia o estômago tão apertado como as mãos da mãe.
O ar cheirava ao tabaco do cachimbo que o avô fumava depois do jantar. Um aroma morno que ali ondulava permanentemente. Misturava-se com o odor melancólico do stresse
da mãe.
Tinha um cheiro, uma forma, uma essência que era tensão e medo e culpa e que voltou a atirá-lo para os seus dias desamparados de criança, quando aquela nuvem melancólica
perpassava tudo.
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O avô segurava o comando do televisor com uma mão e mantinha a outra no ombro de Suzanne, como que a segurá-la no lugar.
- Não quis deixar de ver a reportagem - disse Roger, e depois pigarreou para clarear a garganta. - Assim que a Lana me contou, pedi ao Doug que corresse até cá e
pusesse o vídeo a gravar. Ainda não vi.
Fizera chá. A sua mulher fazia sempre chá, na doença e nos maus momentos. A imagem do bule branco com os seus pequenos botões de rosa reconfortava-o, tal como os
paninhos de crochet e as cortinas transparentes de Verão.
- O Doug viu.
- Sim, vi. Rebobinei a fita.
- Bem...
- Vamos ver, paizinho. - A voz de Suzanne soou desafinada, e sob a mão do pai o seu corpo voltou à vida e estremeceu. - Vamos ver agora.
- Mãe, vai ficar perturbada por causa...
- Vamos ver. - Virou a cabeça, olhou para o filho com os olhos vermelhos e um pouco agitados. - Vejam.
Roger começou a passar a gravação. A mão pousada no ombro de Suzanne apertou-o.
- Vamos fazer avançar a fita... aqui. - Recuperada a energia, Suzanne pegara no comando e mexia desajeitadamente nos botões. Fez a gravação passar a uma velocidade
normal quando o rosto de Callie surgiu no ecrã. - Olhem para ela. Meu Deus! Oh, meu Deus!
- Meu bom Jesus - murmurou Roger. Como uma oração.
- Está a ver? - Suzanne cravou os dedos na perna dele, mas não desviou a atenção do ecrã. Não conseguia. - Está a ver? É a Jessica. É a minha Jessie!
- Mãe! - A dor apertou o coração de Douglas quando ela o disse. A minha Jessie. - Parece, mas... Meu Deus, aquela advogada, avô. Lana. É tão parecida com a Jessie
como esta mulher. Mãe, não pode
ter a certeza.
- Posso, sim - disse, abruptamente. - Olhem para ela. Olhem! -- Agarrou no comando e fixou a imagem quando Callie sorriu.
- Tem os olhos do pai. Tem os olhos do Jay: a mesma cor, a mesma forma. E as minhas covinhas. Três covinhas, como eu. Como a mãe tinha. Paizinho...
- Há uma grande semelhança. - Roger sentiu uma fraqueza percorrê-lo quando o disse. - O tom da pele, a forma do rosto. Aqueles
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traços. - Qualquer coisa lhe subia pela garganta, entre o pânico e a esperança. - O último esboço...
-- Eu tenho-o. - Suzanne levantou-se de um salto, pegou na pasta que trouxera consigo e tirou de lá uma imagem projectada em computador. - A Jessica, com vinte e
cinco anos.
Agora Douglas levantou-se também.
- pensei que tinhas deixado de mandar fazer isso. Pensei que tinhas deixado de mandá-los fazer.
Nunca deixei. - As lágrimas queriam soltar-se, mas ela obrigou-as a recuar, com a mesma força de vontade que a mantivera de pé todos os dias dos últimos vinte e
nove anos. - Deixei de falar contigo sobre o assunto porque isso te perturbava. Mas nunca deixei de procurar. Nunca deixei de acreditar. Olha para a tua irmã. -
Meteu-lhe a imagem nas mãos. - Olha para ela - exigiu, e voltou-se de novo para a televisão.
- Mãe. Por amor de Deus! - Segurou a fotografia, enquanto sentia regressar a dor que fizera recuar com uma força de vontade tão forte como a da sua mãe. Sentia-se
impotente. Sentia-se doente.
- Há uma certa semelhança - prosseguiu ele. - Olhos castanhos, cabelo louro. - Ao contrário da sua mãe, não conseguia viver de esperança. A esperança destruía-o.
- Para quantas outras raparigas, quantas outras mulheres, olhou e viu a Jessica? Não aguento voltar a vê-la passar por tudo isto. Não sabe nada sobre ela. Que idade
tem, de onde vem.
- Vou descobrir. - Recuperou a fotografia e voltou a colocá-la na pasta, com as mãos outra vez firmes. - Se não aguentas, fica fora disto. Como o teu pai.
Sabia que era cruel, descarregar num filho a necessidade desesperada sentida pelo outro. Sabia que era errado afastar o seu filho e apertar contra o peito o fantasma
da sua filha. Mas, ou ele ajudava, ou se afastava. Para Suzanne não havia meio termo na procura de Jessica.
- Vou fazer uma busca através do computador. - A voz de Douglas era fria e calma. - Vou trazer-lhe toda a informação que conseguir.
- Obrigado.
- Vou usar o portátil que tenho na loja. É rápido. Mando-lhe o que encontrar.
- Vou contigo.
- Não. - Sabia dar bofetadas tão rápidas e tão fortes como ela. - Não sou capaz de falar consigo quando está assim. Ninguém é. Vou ficar melhor sozinho.
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Saiu sem proferir mais nenhuma palavra. Roger soltou um longo suspiro.
- Suzanne, ele só está preocupado contigo.
- Ninguém tem de estar preocupado comigo. O apoio sabe bem, mas a preocupação não me ajuda. Aquela é a minha filha. Sei que é.
- Talvez seja. - Roger levantou-se, passou as mãos pelos braços de Suzanne, para cima e para baixo. - E o Doug é teu filho. Não o pressiones, querida. Não percas
um filho a tentar encontrar outro.
- Ele não quer acreditar. E eu preciso de acreditar. - Olhou para o rosto de Callie, no ecrã - Preciso.
Tinha então a idade certa, pensou Doug enquanto analisava a informação resultante das suas pesquisas. O facto de a data de nascimento dela ter uma semana de diferença
da de Jessica não era conclusivo.
A mãe veria isso como prova e ignoraria os outros dados.
Adivinhava o estilo de vida a partir dos dados objectivos. Classe média-alta suburbana. Filha única de Elliot e Vivian Dunbrook, Filadélfia. A Sr.a Dunbrook, ex-Vivian
Humphries, fora segundo violino na Orquestra Sinfónica de Boston antes de ter casado. Ela, o marido e a filha tinham-se mudado para Filadélfia, onde Elliot Dunbrook
aceitara o cargo de cirurgião residente.
Isso significava dinheiro, classe, apreço pelas artes e pela ciência.
Crescera rodeada de privilégios, fora a primeira do seu curso em Carnegie Mellon, fizera o mestrado e, mais recentemente, o doutoramento.
Prosseguira a sua carreira em arqueologia enquanto ia prosseguindo os estudos. Casara aos vinte e seis anos e divorciara-se cerca de dois anos depois. Não tinha
filhos.
Fazia parte da Leonard G. Greenbaum e Associados, da Sociedade do Paleolítico, dos departamentos de arqueologia de várias universidades.
Escrevera diversos artigos bem recebidos. Douglas imprimiu aquilo a que teve acesso, para poder analisar depois. Mas à primeira vista definiu-a como dedicada, provavelmente
brilhante e capaz de concentrar a sua energia e a sua força.
Era difícil ver nela o bebé que lhe dava pontapés nas pernas e lhe puxava o cabelo.
O que via era uma mulher que tinha sido criada por uns pais ricos e respeitados. Dificilmente reconheceria nela o que quer que fosse que
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tivesse a ver com um bebé. Mas ele sabia que a mãe não veria isso. Veria a data de nascimento e nada mais.
Tal como acontecera inúmeras vezes, antes.
Às vezes, quando permitia isso a si próprio, perguntava-se o que tería dissolvido a sua família. Teria sido o momento em que Jessica desaparecera? Ou teria sido
a determinação obsessiva e desequilibrada de voltar a encontrá-la?
Ou teria sido o momento em que ele próprio compreendera este simples facto: ao tentar aproximar-se de um filho, a sua mãe perdera outro.
Ao que parecia, nenhum deles conseguira viver com isso.
Faria o que pudesse, como fizera vezes sem conta anteriormente. Anexou os ficheiros e enviou-os à mãe por e-mail.
Depois, desligou o computador, desligou os seus pensamentos. E enterrou-se num livro.
Não havia nada como o início de uma escavação, esse momento em que tudo é possível e não há limite para o potencial da descoberta. Calie tinha consigo alguns estudantes
de rosto fresco, de quem esperava mais ajuda do que problemas. Neste momento, eram mão-de-obra não paga, que chegara juntamente com um pequeno subsídio da universidade.
Aproveitaria o que pudesse.
Teria Rose Jordan como geóloga, uma mulher que respeitava e de quem gostava. Tinha o laboratório de Leo, e o próprio Leo como consultor. Quando tivesse Nick Long
como antropólogo, estaria na mó de cima.
Trabalhava com os estudantes, a recolher amostras, e já escolhera como ponto de referência o carvalho no extremo noroeste do lago.
Com ele como referência fixa, iriam começar a medir a localização vertical e horizontal de tudo o que estivesse no local das escavações.
Completara o plano da superfície do local na noite anterior, e começara a estabelecer as suas divisões de um metro quadrado cada.
Hoje começariam a estender as cordas para marcar as divisões.
Depois, chegaria a diversão.
Uma frente fria fizera baixar a humidade e as temperaturas até um nível quase tolerável. Trouxera também chuva na noite anterior, que ensopara o solo, tornando-o
macio. Já tinha as botas enterradas até ao tornozelo, as mãos imundas, e cheirava a suor e ao óleo de eucalipto que usava para afastar os insectos.
Para Callie, era difícil encontrar melhor.
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Olhou para cima ao ouvir o som de uma buzina, e desta vez a interrupção fê-la encostar-se à sua pá e sorrir. Sabia que Leo não iria conseguir ficar afastado durante
muito tempo.
- Continuem - disse aos estudantes. - Cavem devagar, peneirem cuidadosamente. Documentem tudo.
Foi ao encontro de Leo.
- Estamos a encontrar fragmentos em todas as amostras - disse-lhe ela. - A minha teoria é que estamos na zona de fabrico de utensílios de pedra. - Fez um gesto na
direcção do local onde os dois estudantes continuavam a cavar e a peneirar o solo. - A Rosie vai verificar os fragmentos de riólito. Noutros tempos ficavam ali sentados,
a afiar a rocha até terem pontas de setas, de arpões, ferramentas. Se escavarmos um pouco mais fundo vamos encontrar exemplos.
- Ela chega esta tarde.
- Óptimo.
- Como estão os estudantes a sair-se?
- Nada mal. A rapariga, a Sonya, tem potencial. O Bob tem jeito e força de vontade. E é honesto. Muito, muito honesto. - Encolheu os ombros. - Vamos fazer uso disso
daqui a pouco. Vou dizer-te uma coisa. Sempre que viro costas, aparece alguém a querer saber qualquer coisa. Vou encarregar o Bob das relações comunitárias.
Olhou para trás.
- Tem aquela cara fresca de Howdy Doody. Vão adorá-la. Vamos deixá-lo dar aos visitantes uma bela palestra sobre o que andamos a fazer, de que andamos à procura,
como andamos à procura. Não posso parar de dez em dez minutos para ser simpática com os habitantes locais.
- Eu faço isso por ti, hoje.
- Óptimo. Eu vou estender as cordas. Tenho o plano da superfície feito, se quiseres dar uma vista de olhos. Podes dar-me uma ajuda a marcar as zonas, quando não
estiveres a cumprir as tuas obrigações pedagógicas.
Olhou para o seu velho Timex e depois apontou para a lista que já fizera e que estava presa ao seu bloco de notas.
- Leo, vou precisar de recipientes. Não quero começar a tirar ossos do solo e vê-los desfazerem-se em pó assim que os tirar da lama. Preciso de equipamento. Preciso
de nitrogénio e de gelo seco. Preciso de mais ferramentas. Mais peneiras, mais colheres de pedreiro, mais pás de lixo, baldes. Preciso de mais mãos.
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Vais ter tudo isso - prometeu ele. - O grande Estado de Marvland concedeu-te o teu primeiro subsídio para o projecto de Antietarn Creek.
Verdade? - Segurou-o pelos ombros, enquanto a satisfação a invadia. - Verdade? Leo, tu és o meu único e verdadeiro amor. Beijou-o ruidosamente na boca.
Por falar nisso. - Ele deu-lhe umas palmadinhas nas mãos sujas e recuou. Ela estava demasiado delirante para reparar que ele estava a arranjar uma distância segura
entre ambos.
- Vamos ter de falar sobre outro elemento-chave da equipa. Entretanto, quero que te lembres que somos todos profissionais e que o que estamos a fazer aqui pode ter
um impacto enorme. Antes de terminarmos, este projecto pode envolver cientistas de todo o mundo. O que é importante não são os indivíduos, mas sim a descoberta.
- Não sei o que estás a dizer Leo, mas não me agrada o rumo que a conversa está a tomar.
- Callie... - Pigarreou para clarear a garganta. - O significado antropológico desta descoberta é tão importante como o arqueológico. Por isso, tu e o responsável
pela parte antropológica vão ter de trabalhar em parceria na chefia do projecto.
- Bem, por amor de Deus, Leo, o que é que eu sou afinal, uma diva? Pegou na garrafa de água que tinha presa no cinto e bebeu.
- Não tenho qualquer problema em partilhar a autoridade com o Nick. Pedi que ele viesse porque sei que trabalhamos bem juntos.
- Sim, bem... - Leo calou-se ao ouvir o ruído de um motor aproximar-se. E esforçou-se por esboçar um sorriso quando viu quem chegava. - Nem sempre se pode ter o
que se quer.
Primeiro, sentiu-se tomada pelo choque quando viu o pesado jipe pintado de um preto demoníaco, seguido da velha pickup com a sua mistura horrível de vermelho desbotado,
azul ferrugem e cinzento primário, com uma roulote branca, suja, cheia de riscos e mossas.
Pintado na parte lateral da roulote via-se um doberman a rosnar e o nome DIGGER.
Foi abalada por um conjunto de emoções, demasiadas emoções, demasiado misturadas, demasiado intensas. Sentiu a garganta sufocar, o estômago revolver-se, o coração
apunhalado.
- Callie... antes de dizeres seja o que for...
- Não vais fazer isto. - Teve de engolir em seco. -Já está feito.
- Oh, Leo, não. Raios, pedi o Nick.
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- Ele não está disponível. Está na América do Sul. O projecto precisa do melhor, Callie. E o Graystone é o melhor. - Leo quase tropeçou ao dar um passo atrás, quando
ela avançou para ele. - Tu sabes disso. Questões pessoais à parte, sabes que ele é o melhor. E o Digger também. Associar o teu nome ao dele foi meio caminho andado
para o subsídio. Espero que ajas com profissionalismo.
Ela mostrou os dentes a Leo.
- Nem sempre se pode ter tudo o que se quer - devolveu-lhe.
Callie viu-o saltar do jipe. Jacob Graystone, com o seu metro e oitenta. Trazia o seu velho chapéu castanho, a aba e a copa deformadas por tantos anos de uso. Por
baixo dele, o seu cabelo preto e liso, despontava como setas. Uma T-shirt branca estava entalada no cinto das Levi's gastas. E o corpo dentro delas era de primeira
qualidade.
Ossos compridos, músculos compridos, tudo coberto por uma pele bronzeada que era resultado do trabalho ao ar livre e de um quarto da sua herança que era Apache.
Virou-se, e embora usasse óculos escuros ela sabia que os seus olhos eram uma mistura, bastante bonita, de cinza e verde.
Ostentou um sorriso: arrogante, presunçoso, sarcástico. Condizia com ele na perfeição, pensou ela. Tinha um rosto demasiado bonito, sempre pensara isso. Mais ossos
compridos, suficientemente afiados para cortar diamantes, o nariz direito, o maxilar firme, com uma ligeira cicatriz a atravessá-lo na diagonal.
Sentiu o pulso acelerado e as têmporas a latejar. Tentando parecer descontraída, passou uma mão pelo fio que trazia ao pescoço, assegurando-se de que estava por
dentro da camisa.
- Isto é um murro no estômago, Leo.
- Sei que não é a situação ideal para ti, mas...
- Há quanto tempo sabias que ele vinha? - perguntou Callie. Desta vez foi Leo que engoliu em seco:
- Há uns dias. Queria dizer-te cara a cara. Pensei que ele só chegasse amanhã. Precisamos dele, Callie. O projecto precisa dele.
- Vai-te lixar, Leo. - Arqueou os ombros como um jogador de boxe, antes do encontro decisivo. - Vai-te lixar.
Até o andar era presunçoso, pensou ela, naquele gingar horroroso de cowboy. Sempre a irritara até à medula.
O seu companheiro saiu da roulote. Stanley Digger Forbes. Setenta quilos de fealdade.
Callie resistiu à vontade de rosnar. Em vez disso, pôs as mãos nas ancas e esperou que os homens chegassem junto dela.
- Graystone. - Inclinou a cabeça.
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Dunbrook. - As sobrancelhas ergueram-se, entre a parte superior dos óculos de sol e a aba do chapéu. A sua voz era um arrastar lânguido e morno de palavras, que
traziam imagens de desertos e pradarias. - Agora é Dr.a Dunbrook, não é?
- É.
- Parabéns.
Ela desviou deliberadamente o olhar. Mas quando os seus olhos pousaram em Digger, os seus lábios apertaram-se. Sorria como uma hiena, o seu rosto de avelã achatada
iluminado por um par de olhos pretos mal-assombrados e pelo cintilar do seu dente de ouro.
Usava uma argola de ouro na orelha esquerda e uma cauda de ratazana loura e suja pendia sob o vermelho vivo do lenço atado em volta da cabeça.
- Olá, Dig, bem-vindo a bordo.
- Callie, estás com bom aspecto. Mais bonita.
- Obrigado. Tu não.
Ele lançou-lhe o habitual riso que fazia lembrar o grito de um mocho.
- A rapariga com aquelas pernas? - Apontou o queixo para os estudantes. - É legal?
Apesar do seu aspecto, Digger era conhecido por ser mais rápido a contabilizar jovens interessadas na arqueologia do que um batedor de baseball a contabilizar pontos.
- Nada de marcações às estudantes, Digger.
Ele limitou-se a dirigir-se lentamente para a zona das escavações.
- Muito bem, vamos lá definir as regras básicas - começou Callie.
- Não há momento social? - interrompeu Jake. - Nada de conversas triviais? Nada de "que raio andaste a fazer desde a última vez que nos vimos, Jake?"
- Não me interessa o que andaste a fazer. O Leo acha que precisamos de ti para o projecto. - E mais tarde ela pensaria em algumas formas de matar Leo. - Eu não concordo.
Mas estás aqui e não vale a pena perdermos tempo com conversa fiada sobre os velhos tempos.
- O Digger tem razão. Estás com bom aspecto.
- Para o Digger, qualquer coisa com seios tem bom aspecto.
- Não há dúvida. - Mas ela estava realmente com bom aspecto. Só de vê-la sentia-se como que abalado por uma tempestade. Sentia o cheiro a eucalipto que se desprendia
dela. Sempre que lhe cheirava a eucalipto não conseguia evitar imaginar o bonito rosto dela.
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Usava o mesmo relógio esquisito, e uns bonitos brincos de prata. A gola aberta deixava ver a linha do pescoço, onde a pele estava humedecida pela transpiração.
A boca era quase perfeita, e sem pintura. Ela nunca se maquilhava quando andava a escavar. Mas passava sempre um creme no rosto de manhã e à noite, fossem quais
fossem as condições em que estivesse instalada.
Tal como arranjava sempre um cantinho aconchegado, fossem quais fossem essas condições. Uma vela de cheiro, o seu violoncelo, comida reconfortante, um bom sabonete
e um bom champô, com um leve aroma a rosmaninho.
Jake imaginou que continuasse a ser assim.
Dez meses, pensou, desde que a vira pela última vez. E o seu rosto nunca lhe saíra do pensamento, todos os dias e todas as noites. Fizesse ele o que fizesse para
o apagar.
- Constava que estavas de licença sabática. - Disse-o naturalmente, sem nenhum sinal que deixasse transparecer os seus pensamentos.
- Estava, mas agora já não. Estás aqui para coordenar e para dirigir os aspectos antropológicos do projecto conhecido por Antietam Creek.
Desviou o olhar, como se observasse o local. A verdade é que lhe era difícil estar cara a cara com ele. Saber que ambos estavam a medir-se um ao outro. A recordar-se
um do outro. - Temos aqui o que creio ser um núcleo neolítico. Os testes de radiocarbono feitos aos ossos humanos já retirados do sítio das escavações determinaram
uma idade de cinco mil trezentos e setenta e cinco anos, com uma margem de erro de cem anos. O riólito...
- Eu li os relatórios, Callie. O teu é bem interessante. - Olhou em volta, como que a avaliar o local. - Porque não há segurança?
- Estou a tratar disso.
- Óptimo. Enquanto tratas disso, o Digger pode instalar-se aqui. Vou buscar a minha mochila, e depois podes mostrar-me o sítio. Vamos ao trabalho.
Ela respirou fundo quando ele se afastou na direcção do jipe. Contou até dez.
- Vou matar-te por causa disto, Leo. Vou matar-te bem morto.
- Vocês já trabalharam juntos. Fizeram dos melhores trabalhos da vossa vida, vocês os dois, juntos.
- Quero o Nick. Assim que ele estiver disponível, quero o Nick.
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- Callie...
- Não fales comigo Leo. Não me digas nada agora. - Rangeu os dentes, endireitou-se e preparou-se para oferecer ao seu ex-marido uma visita guiada ao local.
De facto, tinham trabalhado bem juntos. E isso, pensou Callie enquanto tomava um duche para limpar a sujidade do dia, era mais uma coisa que a chateava. Desafiavam-se
um ao outro, profissionalmente, e de certa forma esse desafio forçava-os a complementarem-se entre si.
Sempre assim fora.
Adorava o espírito dele, ainda que estivesse dentro da cabeça mais dura contra a qual investira a sua. O espírito dele era tão fluido, tão flexível, tão aberto a
possibilidades. E conseguia, fizera-o já, concentrar-se no mais ínfimo pormenor, trabalhá-lo, retocá-lo, até brilhar
como ouro.
O problema é que também se desafiavam pessoalmente. E durante algum tempo... durante algum tempo, pensou, tinham-se complementado.
Mas durante a maior parte do tempo tinham lutado como dois cães raivosos.
Quando não estavam a lutar, estavam na cama. Quando não estavam a lutar, nem na cama, nem a trabalhar num projecto comum... estavam a tolher os movimentos um do
outro.
Fora ridículo terem casado. Via isso claramente, agora. O que parecera romântico, excitante e sensual em fugir como dois adolescentes loucos transformara-se em dura
realidade. E o casamento tornara-se um campo de batalha, com cada um deles a traçar fronteiras que o outro não podia atravessar, sob pena de pagar com a própria
vida.
Claro que as fronteiras dele eram absurdas, enquanto as dela eram racionais. Mas nada disso era relevante.
Lembrava-se de que não conseguiam tirar as mãos um do outro. E o corpo dela ainda recordava, dolorosamente, o toque dessas mãos.
Só que aparentemente as mãos de Jacob Graystone não eram particularmente selectivas quanto aos sítios por onde passavam. Filho da mãe.
A morena do Colorado fora a gota de água. Verónica, bem servida de peito, com voz de bebé. Cabra.
E quando o confrontara com as suas conclusões, quando o acusara, de forma simples e directa, de ser um filho da mãe mentiroso, ele
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não tivera a decência - não tivera tomates, corrigiu ela, sentindo a fúria aumentar - de confirmar nem de negar.
Que lhe chamara ele? Ah, sim. Comprimiu os lábios ao ouvir a agressão das palavras dele na sua cabeça.
Mulher infantil, inibida, histérica.
Nunca tivera a certeza sobre que parte da frase a deixara mais chateada, mas tinha deixado de ver e de ouvir. O resto da discussão era uma enorme massa desfocada
e fervente. Tudo o que recordava com clareza era de ter exigido o divórcio: a primeira coisa sensata que fizera desde que lhe pusera os olhos em cima. E de ter exigido
que ele saísse do projecto, ou então sairia ela.
E ele, tinha lutado por ela? Não, que diabo! Pedira o perdão dela, garantira o seu amor e a sua fidelidade? Nem pensar!
Fora-se embora. E com isso - ah, ah, que coincidência -, a morena do peito avantajado também.
Ainda fumegante de recordações, Callie saiu do duche e pegou numa das toalhas finas e minúsculas que o motel pusera ao seu dispor. Depois, fechou a mão sobre o anel
que usava num fio pendurado ao pescoço.
Tirara a aliança - arrancara-a, recordou - assim que recebera os papéis do divórcio para assinar. Estivera quase a atirá-la ao Rio Platte, onde estava a trabalhar.
Mas não conseguira. Não conseguira livrar-se dela como dissera a si própria que ia livrar-se de Jacob.
Ele era o único erro da sua vida.
Disse a si mesma que usava o anel para se lembrar de não voltar a errar.
Tirou o fio e atirou-o para cima da cómoda. Se ele o visse, pensaria que ela nunca o esquecera. Ou qualquer outra coisa do género.
Não ia continuar a pensar nele. Ia trabalhar com ele, mas isso não significava que passasse um só minuto do seu tempo livre a pensar nele.
Jacob Graystone fora um erro pessoal, uma falha pessoal. E depois, seguira em frente.
E não havia dúvidas de que ele também. O seu pequeno mundo era suficientemente incestuoso para ela ter ouvido que ele retomara rapidamente o esquema de saídas do
homem solteiro e só, perito no estilo horizontal.
Arqueólogas ricas e amadoras, era esse o seu estilo preferido, pensou ela enquanto vestia uns jeans lavados. Arqueólogas ricas, amadoras,
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com seios grandes e cérebros vazios. Alguém que fizesse boa figura pendurada do braço dele e o fizesse sentir intelectualmente superior.
Era isso que ele queria.
- Quero que ele se lixe - resmungou, já vestida com uns jeans e uma camisa.
Ia ver se a Rosie queria comer qualquer coisa e não ia voltar a pensar em Graystone.
Abriu a porta e quase esbarrou na mulher que estava do lado de fora.
- Desculpe. - Callie meteu a chave do quarto no bolso. - Posso ajudá-la em alguma coisa?
Suzanne sentiu a garganta secar-se-lhe. As lágrimas ameaçaram soltar-se quando olhou para o rosto de Callie. Forçou um sorriso e agarrou a pasta que trazia como
se fosse uma filha adorada.
E era, de certa forma.
- Não queria assustá-la - disse Callie, enquanto a mulher continuava a olhar para ela. - Está à procura de alguém?
- Sim. Sim, estou à procura de alguém. Você... preciso de falar consigo. É terrivelmente importante.
- Comigo? - Callie mudou de posição, de forma a bloquear a porta. Pareceu-lhe que a mulher estava um pouco transtornada.
- Desculpe, não a conheço.
- Não, não me conhece. O meu nome é Suzanne Cullen. É muito importante que eu fale consigo. Em particular. Será que posso entrar por uns minutos?
- Sr.a Cullen, se isto é sobre a escavação, apareça durante o dia. Um de nós terá todo o prazer em explicar-lhe o projecto. Mas neste momento não é conveniente.
Tenho uma pessoa à minha espera.
- Se pudesse dar-me cinco minutos, veria como isto é importante. Para ambas. Por favor. Cinco minutos.
Havia uma tal urgência na voz da mulher que Callie deu um passo atrás.
- Cinco minutos. - Mas deixou a porta aberta. - Em que posso ajudá-la?
- Era para não ter vindo esta noite. Ia esperar até... - Quase voltara a contratar um detective. Chegara a pegar no telefone para isso. Para ficar sentada, à espera
que os factos fossem verificados. - Já perdi muito tempo. Tanto tempo!
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- Ouça, é melhor sentar-se. Não parece estar muito bem. A verdade, pensou Callie, é que a mulher parecia suficientemente frágil para se desfazer em pedaços. - Tenho
água engarrafada.
- Obrigado. - Suzanne sentou-se na beira da cama. Queria manter a lucidez, manter-se calma. Queria abraçar a sua menina e mantê-la abraçada até fazer desaparecer
três décadas.
Pegou na garrafa que Callie lhe oferecia. Bebeu um gole. Tentou manter-se firme.
- Preciso de fazer-lhe uma pergunta. É muito pessoal, e muito importante. - Respirou fundo. - Foi adoptada?
- O quê? - Com um som que era em parte choque e em parte riso, Callie abanou a cabeça. Não. Mas que raio de pergunta é essa? Quem é você?
- Tem a certeza? Tem a certeza absoluta?
- Claro que tenho. Por Deus, minha senhora. Ouça...
- A 12 de Dezembro de 1974, a minha filha Jessica foi roubada do seu carrinho de bebé, no centro comercial de Hagerstown.
Falava calmamente, agora. Ao longo dos anos, fizera inúmeros discursos sobre crianças desaparecidas e partilhara o seu próprio sofrimento.
- Fui lá para levar o meu filho Douglas, o irmão dela, com três anos, a ver o Pai Natal. Distraí-me por um instante. Um instante. Foi o suficiente. Desapareceu.
Procurámos por toda a parte. A polícia, o FBI, a família, os amigos, a comunidade. Organizações para crianças desaparecidas. Tinha apenas três meses. Nunca a encontrámos.
Vai fazer vinte e nove anos no dia oito de Setembro.
- Lamento. - O aborrecimento deu lugar à simpatia. - Lamento muito. - Não consigo imaginar o que deve ter passado. E a sua família. Se por acaso acha que eu possa
ser essa filha, também lamento, mas não sou.
- Preciso de lhe mostrar uma coisa. - Embora mal conseguisse respirar, abriu cuidadosamente a pasta. - Esta é uma fotografia minha quando tinha mais ou menos a sua
idade. Não se importa de olhar para ela, por favor?
Com relutância, Callie pegou na fotografia. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha ao observar o rosto.
- Há uma semelhança. Esse tipo de coisas acontece, Sr.a Cullen. Uma herança genética semelhante, ou mistura de genes. Diz-se que toda a gente tem um duplo. É porque
é, em boa parte, verdade.
- Vê as covinhas? Três? - Suzanne passou os dedos trémulos pelas suas. - Também as tem.
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- E também tenho pais. Nasci em Boston, a 11 de Setembro de
1974. Tenho uma certidão de nascimento.
- A minha mãe. - Suzanne tirou outra fotografia da pasta. - Esta também foi tirada quando ela tinha à volta de trinta anos. Talvez uns anos mais nova, o meu pai
não tem certeza. Veja como é parecida com ela. E, e o meu marido.
Suzanne tirou outra fotografia.
- Os olhos dele. Tem os olhos dele... a forma, a cor. Até as sobrancelhas. Escuras e direitas. Quando você... quando a Jessica nasceu, eu disse que os olhos dela
iam ser como os do Jay. E estavam a tomar aquela cor de âmbar quando ela, quando nós... Oh, meu Deus. Quando a vi na televisão, tive a certeza. Tive a certeza.
O coração de Callie galopava como um cavalo selvagem dentro do peito, e as palmas das mãos começaram a transpirar-lhe.
- Sr.a Cullen, não sou sua filha. A minha mãe tem olhos castanhos. Temos praticamente o mesmo peso e a mesma estatura. Sei quem são os meus pais, conheço a história
da minha família. Sei quem sou e de onde venho. Desculpe. Não posso dizer nada que a faça sentir melhor. Não posso fazer nada para ajudá-la.
- Pergunte-lhes - implorou Suzanne. - Olhe-os nos olhos e pergunte-lhes. Se não fizer isso, como pode ter a certeza? Se não fizer isso, vou a Filadélfia e eu própria
lhes pergunto. Porque sei que é a minha filha.
- Quero que se vá embora. - Callie aproximou-se da porta. Sentiu os joelhos começarem a tremer-lhe. - Quero que se vá embora agora.
Deixando as fotografias em cima da cama, Suzanne levantou-se.
- Nasceu às quatro e trinta e cinco da manhã, no Hospital de Washington County, em Hagerstown, Maryland. Demos-lhe o nome de Jessica Lynn.
Tirou da mala outra fotografia e pousou-a em cima da cama.
- É uma cópia da fotografia tirada pouco depois de ter nascido. Os hospitais fazem isso para oferecer às famílias. Já viu alguma fotografia sua antes de ter três
meses?
Fez uma pequena pausa e depois encaminhou-se para a porta. Atreveu-se a roçar a sua mão na de Callie.
- Pergunte-lhes. A minha morada e o meu número de telefone estão nas fotografias. Pergunte-lhes - repetiu, e apressou-se a sair.
A tremer, Callie fechou a porta e encostou-se a ela.
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Era de loucos. A mulher estava triste e iludida. E louca. O facto de ter perdido a filha devia ter-lhe afectado o cérebro, ou algo parecido. E quem poderia censurá-la?
Provavelmente via a filha em todos os rostos que lhe pareciam ter qualquer semelhança remota.
Mais do que remota, murmurou Callie para si própria enquanto observava as fotografias em cima da cama. Uma semelhança forte, quase fantástica.
Não significava nada. Era uma loucura pensar de forma diferente.
Os seus pais não eram ladrões de bebés, por amor de Deus! Eram pessoas amáveis, carinhosas, interessantes. Do tipo de quem sentiria apenas compaixão por alguém como
Suzanne Cullen.
A semelhança, a idade, não passavam de coincidências.
Pergunte-lhes.
Como se perguntava uma coisa daquelas aos próprios pais? Ouve, mãe, por acaso não foste ao centro comercial no Natal de setenta e quatro? Levaste um bebé juntamente
com os presentes de última hora?
- Meu Deus. - Fez pressão com a mão na barriga, que sentia às voltas. - Oh, meu Deus!
Quando ouviu bater à porta, virou-se e abriu-a de repente: -Já lhe disse que não sou... Que diabo queres?
- Vai uma cerveja? - Jake fez tilintar as duas garrafas que trazia agarradas pelo gargalo. - Tréguas?
- Não quero cerveja e não há razão para tréguas. Não estou suficientemente interessada para brigar contigo, por isso as tréguas são descabidas.
- Nem parece teu, recusar uma cerveja de graça ao fim do dia.
- Tens razão. - Pegou numa e depois deu um pontapé na porta. Ter-se-ia fechado agradavelmente na cara dele, mas ele sempre fora rápido.
- Então? Só estou a tentar ser simpático.
- Vai ser simpático para outra pessoa. És um artista nisso.
- Ah, parece-me haver aí interesse suficiente para brigares comigo.
- Vai-te tramar, Graystone. Não estou com disposição. - Virou-lhe as costas e reparou na aliança em cima da cómoda. Merda. Perfeito. Aproximou-se furtivamente, pôs-lhe
uma mão em cima e escondeu o fio na mão fechada.
- A Callie Dunbrook que todos conhecemos e amamos está sempre disposta à luta. - Deu alguns passos vagarosos na direcção da cama, enquanto ela metia a aliança e
o fio no bolso. - O que é isto? A ver fotografias de família?
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Ela virou-se e ficou pálida como gelo:
- Porque dizes isso?
- Porque estão em cima da cama. Quem é esta? A tua avó? Nunca a conheci, pois não? Mas também não dedicámos muito tempo a ficar íntimos das nossas respectivas famílias.
- Não é a minha avó. - Arrancou-lhe a fotografia da mão. - Vai-te embora.
- Espera aí. - Bateu-lhe suavemente com os nós dos dedos na face, um velho hábito que lhe fez sentir as lágrimas queimarem-lhe a garganta. - Que se passa?
- O que se passa é que gostava de ter a porcaria de alguma privacidade.
- Querida, conheço essa cara. Não estás chateada comigo, estás perturbada. Conta-me o que se passa.
Apetecia-lhe fazê-lo. Tirar a tampa e deixar que tudo transbordasse.
- Não tens nada com isso. Não fazes parte da minha vida. Não preciso de ti.
Os olhos dele gelaram, endureceram:
- Nunca precisaste. Vou sair-te da frente. É coisa de que tenho prática.
Encaminhou-se para a porta. Olhou para a caixa do violoncelo, no canto, para a vela de sândalo que ardia em cima da cómoda, para o portátil em cima da cama e para
o pacote de Oreos recheadas, ao lado do telefone.
- A mesma Callie de sempre - murmurou.
-Jake? - Aproximou-se dele, quase conseguia tocar-lhe. Quase cedeu à vontade de lhe pôr a mão no braço e puxá-lo para trás.
- Obrigado pela cerveja - disse ela, e fechou a porta devagar.
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Quatro

Sentia-se uma ladra. Pouco importava que tivesse a chave da porta da frente, que conhecesse todos os sons e todos os cheiros da vizinhança, todos os cantos e todos
os armários da grande casa de tijolo em Mount Holly.
Estava a entrar furtivamente às duas da manhã.
Callie não conseguira sossegar depois da visita de Suzanne Cullen. Não conseguira comer, nem dormir, nem concentrar-se no trabalho.
E percebera que iria enlouquecer se ficasse ali, num quarto de motel melancólico, obcecada com o bebé perdido por uma estranha.
O que não significava que acreditasse que fosse esse bebé. Nem por um momento.
Mas era uma cientista, uma investigadora, e sabia que até ter respostas se agarraria ao puzzle como uma lapa, até a imagem ficar clara.
Leo não estava satisfeita com ela, pensou, enquanto tomava a estrada que conduzia à casa dos pais, nos subúrbios. Vociferara e lamentara-se e fizera perguntas para
as quais ela não tinha resposta, quando ela lhe telefonara a dizer que ia tirar folga no dia seguinte.
Mas ela tinha de ir.
Ao longo da estrada entre Maryland e Filadélfia convencera-se de que estava a fazer a única coisa lógica. Mesmo que isso significasse entrar na casa dos seus pais
quando eles estavam fora, e mesmo que significasse revistar os papéis deles, em busca de alguma prova daquilo que sabia.
O seu nome era Callie Ann Dunbrook.
A vizinhança elegante estava sossegada como uma igreja. Embora fechasse a porta do carro delicadamente, o som ecoou como um tiro e fez um cão dos vizinhos começar
a ladrar.
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A casa estava completamente às escuras, à excepção de um fraco clarão visível da janela da salinha da mãe, no segundo andar. Os pais deviam ter accionado o sistema
de segurança, que mudava a hora e a localização das luzes que se acendiam e apagavam, enquanto eles estavam no Maine.
Deviam ter pedido que não fosse feita a distribuição de jornais e de correio, e informado os vizinhos de que iriam estar ausentes.
Eram, pensou Callie enquanto atravessava o caminho de lajes até ao grande alpendre da frente, pessoas sensíveis e responsáveis.
Gostavam de jogar golfe e de dar grandes jantares. Gostavam da companhia um do outro e riam das mesmas piadas.
O pai gostava de se entreter no jardim e de mimar as suas rosas e os seus tomates. A mãe tocava violino e coleccionava relógios antigos. Ele trabalhava quatro dias
por mês gratuitamente numa clínica. Ela dava aulas de música a crianças desfavorecidas.
Estavam casados havia trinta e oito anos, e embora discutissem e brigassem ocasionalmente, continuavam a passear de mão dada.
Sabia que a mãe transferia para o pai as decisões mais importantes e a maioria das menos importantes. Era uma característica que enlouquecia Callie, que via nela
uma enorme subserviência que fomentava a dependência e a fraqueza.
Envergonhava-se muitas vezes de si própria por considerar a mãe fraca e por achar o pai um pouco presunçoso ao fomentar essa dependência.
De facto, o pai dava à mãe uma mesada. Não lhe davam esse nome, claro. Despesas domésticas. Mas para Callie eram a mesma coisa.
Mas se estas eram as maiores falhas que ela conseguia achar nos pais, dificilmente fariam deles raptores de bebés.
Sentindo-se idiota, culpada e ridiculamente nervosa, Callie entrou em casa, acendeu as luzes do hall e depois introduziu o código do alarme de segurança.
Por um instante, limitou-se a ficar ali, a absorver aquela sensação. Não se lembrava da última vez que estivera sozinha em casa. Certamente antes de se ter mudado
para o seu primeiro apartamento.
Sentiu um vago cheiro a óleo de limpeza Murpby, o que lhe disse que Sarah, empregada de limpeza já de longa data, estivera ali nos últimos dias. Havia também um
cheiro a rosas, forte e doce, do potpourrí favorito da mãe.
Viu flores frescas, num elegante arranjo estival, sobre a mesa comprida, no vão da escada. A mãe devia ter dito a Sarah para tratar disso,
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pensou Callie. Devia ter-lhe dito que a casa gostava de flores, estivesse habitada ou não.
Atravessou o xadrez de mosaicos de basalto e começou a subir a escada.
Parou à porta do seu quarto. O quarto da sua infância. Passara por numerosas encarnações, das birras de criança que eram a sua primeira recordação daquele espaço
- e que era resultado da visão da mãe -, passando pelas cores assombrosas em que insistira quando começara a ter ideias próprias, até à caverna de desordem onde
guardara as suas colecções de fósseis e de garrafas velhas, de ossos de animais e de tudo o mais que conseguisse desencantar.
Agora era um espaço elegante onde podia receber hóspedes. Paredes verde-pálido e cortinas brancas transparentes, uma colcha antiga sobre uma cama de dossel. E toda
uma série de pequenos objectos que a mãe trazia de investidas às compras com as amigas.
À excepção das férias, das vezes em que dormira em casa de amigas, dos acampamentos de Verão e das noites de Verão em que armava uma tenda no quintal das traseiras,
sempre dormira naquele quarto até ter ido para a Universidade.
Fazia, afinal, parte dela em qualquer das fases por que passara.
Avançou ao longo do amplo hall, até ao escritório do pai. Hesitou, estremecendo um pouco quando olhou para a sua bela secretária de mogno antigo, com a superfície
original, não corrompida, o mata-borrão fresco no seu estojo de pele vermelho-escuro, o conjunto de secretária em prata, a excentricidade encantadora de um tinteiro
antigo com aparos.
A cadeira de secretária era da mesma pele de excelente qualidade, e Callie imaginou o pai ali, a estudar um catálogo de jardinagem ou uma revista médica. Os seus
óculos escorregar-lhe-iam pelo nariz, e o seu cabelo, de ouro pálido raiado de prata, cair-lhe-ia sobre a testa larga.
Nesta altura do ano, usaria um pólo e umas calças de algodão, e teria um ar bem cuidado. Estaria a ouvir música: clássica, provavelmente. De facto, o seu primeiro
encontro formal com a rapariga que viera a ser sua mulher tivera lugar num concerto.
Callie viera muitas vezes a este escritório: saltava para um dos dois confortáveis cadeirões de pele e interrompia o pai com novidades, queixas, perguntas. Quando
ele estava realmente muito ocupado, lançava-lhe um olhar longo e frio por cima dos óculos, o que fazia com que ela voltasse a sair tão furtivamente como entrara.
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Mas fora quase sempre bem recebida.
Agora, sentia-se uma intrusa. Ordenou a si própria que não pensasse nisso. Iria fazer o que ali tinha vindo fazer, e pronto. Afinal de contas, eram documentos dela.
Aproximou-se do primeiro dos armários de madeira. Tudo o que precisava de encontrar estava nesta divisão da casa, tinha a certeza. Era o pai que tratava das finanças,
dos registos, do arquivo de documentos.
Abriu a gaveta de cima e começou a procurar.
Uma hora depois, desceu a escada para fazer café. Já que ali estava, assaltou a despensa e desencantou um pacote de batatas fritas com baixo teor de sal. Lamentável,
pensou, enquanto transportava a pequena refeição consigo, até ao andar de cima. Para quê viver mais tempo se para isso se tinha de comer cartão?
Fez uma pausa de dez minutos, sentada à secretária. À velocidade a que estava a progredir, não ia levar tanto tempo como pensara. Os ficheiros do pai estavam meticulosamente
organizados. Já estaria quase a acabar se não tivesse demorado tanto com os seus registos escolares.
Revisitar o seu passado era uma coisa irresistível. Os registos escolares trouxeram-lhe à memória os amigos que tivera, as escavações que organizara nos quintais
das traseiras, quando andava na escola primária. O seu amigo Donny Riggs ouvira das boas por causa dos buracos que faziam no jardim da mãe dele.
Recordou o seu primeiro beijo a sério. Não fora o Donny, mas o Joe Terrento, a sua paixão dos treze anos. Ele usava um blusão de cabedal preto e botas Redwing. Aos
treze anos parecera-lhe bastante sensual e perigoso. A última vez que soubera dele, ouvira dizer que era professor de Biologia no Liceu de St. Bernadette, em Cherry
Hill, tinha dois filhos e era presidente do Rotary Clube local.
Havia a sua melhor amiga e vizinha, Natalie Carmichael. Eram como irmãs, partilhavam todos os segredos. Depois, viera a Faculdade, e após mais ou menos um ano em
que tentaram manter o contacto, os seus caminhos acabaram por separar-se.
Como a ideia estava a deixá-la triste, voltou a levantar-se e começou a procurar no segundo móvel.
Tal como os registos escolares, os registos médicos estavam minuciosamente organizados. Passou os dedos pela pasta com o nome da mãe, pela pasta com o nome do pai,
e tirou a sua.
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Pensou que era precisamente por ali que devia ter começado, e certa de que a prova simples que procurava estaria ali voltou a sentar-se. Abriu a pasta.
Viu as vacinas que tomara em criança, os raios X e os relatórios de quando partira o braço aos dez anos, por ter caído de uma árvore. Ali estava a sua tonsilectomia,
de Junho de 1983. O dedo deslocado que arranjara ao tentar forçar um passe num jogo de basquetebol, quando tinha dezasseis anos.
Tirou mais batatas fritas enquanto continuava a folhear os papéis. O pai até guardara as coisas básicas dos seus check-ups anuais que realizara até ter saído de
casa. Santo Deus, até guardara os do ginecologista!
- Pai - murmurou. - Isto é muito fase anal.
Passou os papéis todos, um por um. Quando chegou ao fim, voltou ao princípio e recomeçou a ver todos os papéis. Mas não encontrou registos hospitalares do seu nascimento.
Nada que se referisse a exames pediátricos feitos nos três primeiros meses da sua vida.
Não significava nada. Passou a mão fechada por entre os seios, ao sentir a respiração começar a acelerar. O pai arrumou-os noutro lado qualquer. Um ficheiro só de
bebé. Ou então deixou-os junto aos registos da mãe.
Sim, era isso. Guardara no mesmo sítio a documentação da gravidez da mãe e os primeiros registos da filha. Como se fechasse um círculo.
Para provar a si própria que não estava preocupada, deitou mais café na chávena e bebeu um gole antes de se levantar para repor a sua pasta no sítio e tirar a da
mãe.
Não conseguia, não ia sentir-se culpada por andar a vasculhar papéis que não lhe pertenciam. Era só para pôr uma pedra naquele assunto. Folheou os papéis, tentando
localizar dados-chave sem se deter no que considerava serem assuntos pessoais da mãe.
Encontrou os registos e o tratamento referentes ao aborto que tivera em Agosto de 1969. Callie estava ao corrente desse e também do que se lhe seguira, no Outono
de 1971.
A mãe contara-lhe que a tinham deixado devastada e que a tinham conduzido a uma depressão. E o quanto significara para ela ter, finalmente, uma menina saudável.
E ali estava, notou Callie estremecendo de alívio, ali estava a terceira gravidez. O ginecologista-obstetra, perante o diagnóstico de problemas
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a nível da cervical que tinham causado os abortos anteriores, prescrevera medicação e repouso absoluto durante o primeiro trimestre.
A gravidez fora seguida pelo Dr. Henry Simpson. Chegara a ficar internada no hospital durante dois dias, ao sétimo mês de gravidez, devido a problemas de hipertensão
e também de desidratação, na sequência dos contínuos enjoos matinais.
Mas fora tratada e fora-lhe dada alta.
E, para confusão de Callie, era ali que terminava toda a documentação sobre a gravidez. O registo seguinte era de quase um ano depois, e dizia respeito a um tornozelo
torcido.
Começou a folhear os papéis mais rapidamente, certa de que encontraria o resto dos documentos misturado noutro sítio.
Mas não. Não encontrou nada. Era como se a gravidez da mãe tivesse parado no sétimo mês.
Sentiu um rolo no estômago quando voltou a levantar-se para regressar ao armário com os ficheiros. Abriu a gaveta seguinte, em busca de mais registos médicos. E
como não encontrou nenhuma pasta que fosse ao encontro do que procurava, acocorou-se e começou a abrir a gaveta de baixo.
Estava trancada.
Por um instante deixou-se ficar exactamente como estava, acocorada diante do armário de madeira polida, com uma mão no puxador de metal reluzente. Depois levantou-se,
e recusando-se o luxo de pensar, revistou a secretária do pai, à procura da chave.
Como não a encontrou, pegou no corta-papel, ajoelhou-se diante da gaveta e arrombou a fechadura.
Lá dentro encontrou uma caixa de lata, comprida, também fechada à chave. Levou-a até à secretária e sentou-se. Durante um longo momento, deixou-se simplesmente ficar
a ali, a olhar para ela e a desejar que desaparecesse.
Podia voltar a pô-la de onde a tirara e fingir que não existia. O que quer que estivesse lá dentro era algo que o pai se dera a algum trabalho para manter em privado.
Que direito tinha ela de violar essa privacidade?
E, no entanto, não era isso que ela fazia todos os dias? Violava a privacidade dos mortos, de estranhos, porque o conhecimento e a descoberta eram mais sagrados
do que os segredos que possuíam.
Como podia ela desenterrar, testar, examinar, manipular os ossos de estranhos e não abrir uma caixa que podia muito bem conter segredos que envolviam a sua própria
vida?
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- Desculpem - disse em voz alta, e atacou a fechadura com o corta-papel.
Levantou a tampa e começou.
Não existira um terceiro aborto. Nem nascera nenhuma criança viva. Callie forçou-se a ler o documento, como se fosse o relatório de uma escavação, enviado por um
laboratório. Na primeira semana do oitavo mês da sua gravidez, o feto de Vivian Dunbrook morrera no útero. O trabalho de parto foi induzido, e ela deu à luz uma
filha, nada-morta, a 29 de Junho de 1974.
Diagnóstico: hipertensão provocada pela gravidez, o que resultou numa gravidez falhada.
O defeito cervical que induzira os abortos, a hipertensão extremamente elevada que resultara na morte do feto, tornavam perigosa nova gravidez.
Menos de duas semanas depois, uma histerectomia, recomendada devido a danos cervicais, tornou-a impossível.
A paciente foi submetida a tratamento por depressão.
A 16 de Dezembro de 1974, adoptaram uma menina, a quem deram o nome de Callie Ann. Uma adopção privada, notou Callie como que entorpecida, conseguida através de
um advogado. Cobrara dez mil dólares de honorários. Além disso, mais duzentos e cinquenta mil dólares tinham sido pagos, através dele, à mãe biológica, cujo nome
não era referido.
A criança - de certo modo ajudava pensar nela como a criança
- foi observada pelo Dr. Peter O'Malley, um pediatra de Boston, e declarada saudável.
O próximo exame era um exame de rotina realizado aos seis meses pela Dr.a Marilyn Vermer, em Filadélfia, que continuara a ser a pediatra da criança até esta ter
atingido a idade de doze anos.
- Quando me recusei a continuar a ir a uma médica de crianças
- murmurou Callie, e notou, com alguma surpresa, que uma lágrima caía sobre os papéis que segurava.
- Meu Deus, oh meu Deus!
Doía-lhe o estômago, o que a forçou a dobrar-se para a frente e a apertar a zona, controlando a respiração até a dor desaparecer.
Não podia ser realidade. Não podia ser verdade! Como podiam duas pessoas que nunca lhe tinham mentido pelas coisas mais insignificantes ter vivido uma mentira durante
todos estes anos?
Não era possível!
Mas quando fez um esforço para se levantar e se obrigou a ler os documentos outra vez, viu que não era apenas possível. Era real.
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- Que raio queres dizer com "tirou o dia de folga" - Jake empurrou o chapéu para trás e fulminou Leo com o olhar. - Estamos numa fase crucial de reconhecimento do
local e ela tira o raio de um dia de folga?
- Disse que tinha surgido uma coisa.
- E que raio terá surgido que seja mais importante do que fazer o que lhe compete?
- Ela não disse. Podes chatear-te o quanto quiseres. Comigo, com a Callie, mas ambos sabemos que isto não parece dela. Ambos sabemos que já trabalhou doente, exausta,
ferida.
- Pois, pois. E é mesmo dela escapar a este projecto porque está passada por eu fazer parte dele.
- Não, não é. - Sentindo aumentar a irritação, Leo deu um passo em frente. A diferença de estatura impediu-o de chegar à cara de Jake, mas compensou esse facto espetando
um dedo no peito de Jake. - E sabes perfeitamente que ela não joga esse tipo de jogo. Sejam quais forem os problemas que ela tenha contigo, ou comigo por te ter
trazido até aqui, consegue lidar com eles. Não vai deixar que interfiram no projecto. É demasiado profissional e demasiado cabeça dura para isso.
- Está bem, está bem. - Jake meteu as mãos nos bolsos e ficou a olhar para o campo que tinham começado a segmentar. Fora a preocupação a deixar que a fúria tomasse
conta dele. - Passava-se qualquer coisa com ela, ontem à noite.
Ele soubera isso, vira isso, mas em vez de a ter convencido a contar-lhe o que se passava tinha-a deixado enxotá-lo, levado pelo orgulho e pela ira.
É difícil perder velhos hábitos.
- Que raio estás a dizer?
- Passei pelo quarto dela. Ela estava perturbada. Demorei uns minutos a perceber que não tinha nada que ver comigo. Gosto de dizer a mim próprio que tudo o que se
passa com a Callie tem a ver comigo. Ela não quis falar sobre o assunto. Mas tinha umas fotografias em cima da cama. Pareceram-me fotos de família.
O que ele sabia sobre a família dela cabia numa pá de entulho.
- Achas que ela te dizia se se passasse alguma coisa com a família dela?
Leo coçou parte de trás do pescoço:
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- Acho que sim. Ela disse apenas que tinha uns assuntos pessoais que não podiam esperar. Que se pudesse, voltava antes do fim do dia, se não, estaria aqui amanhã.
- Anda com algum tipo?
- Graystone...
Baixou a voz. Este tipo de assunto era sempre solo fértil para mexericos.
- Vá lá, Leo. Ela anda com alguém?
- Como diabo queres que saiba? Ela não me conta a sua vida amorosa!
- A Clara havia de conseguir saber - ocorreu a Jake. - Ninguém consegue resistir às perguntas da Clara, quando lhe cheira a qualquer novidade. E a Clara havia de
dizer-te.
- Na opinião da Clara, a Callie ainda devia estar casada contigo.
- É? A tua mulher é esperta. Alguma vez ela disse alguma coisa sobre mim?
Leo lançou-lhe um olhar inexpressivo:
- A Clara e eu falamos de ti todos os dias ao jantar.
- A Callie! Credo, Leo, pára de me chatear os tomates.
- Não posso repetir o que a Callie me disse sobre ti. Não uso esse tipo de linguagem.
- Que engraçado. - Desviou o olhar na direcção do lago, os olhos protegidos pelos óculos escuros. - Seja o que for que ela tenha dito, seja o que for que ela pense,
vai ter de começar a fazer alguns ajustes. Se está com algum problema, vou conseguir que ela mo diga.
- Se o raio da tua preocupação é tão grande, se estás tão interessado, porque raio é que te divorciaste?
Jake encolheu os ombros.
- É uma boa pergunta, Leo. É o raio de uma boa pergunta. Quando eu descobrir, vais ser o segundo ou o terceiro a saber. Entretanto, o melhor é lançarmo-nos ao trabalho,
com arqueóloga ou não.
Tinha-se apaixonado por ela, e apaixonado bem, a primeira vez que a vira, admitiu Jake. Com um estalar de dedos, a sua vida fora dividida entre antes e depois de
Callie Dunbrook.
Fora horrível e irritante. Ela fora horrível e irritante.
Ele tinha trinta anos, descomprometidos - a não ser que se contasse o Digger - e tencionava ficar assim. Adorava o seu trabalho. Adorava mulheres. E quando um homem
conseguia combinar as duas coisas, bem, a vida não poderia ser mais perfeita.
69
Não dava confiança a ninguém, e claro que não tinha qualquer intenção de dar confiança a uma arqueologazinha com boas curvas e ar de má.
Santo Deus, como ele adorava aquele ar de má que ela tinha.
O sexo era quase tão tempestuoso e fascinante como as suas discussões. Mas não resolvera o problema dele. Quanto mais a tinha, mais queria. Ela dera-lhe o seu corpo,
a sua companhia, o desafio da sua mente sempre em oposição à dele. Mas nunca lhe dera a única coisa que talvez o fizesse assentar.
A sua confiança. Nunca confiara nele. Nem para ficar ao lado dela, nem para repartir momentos difíceis com ela. E claro que não confiara na sua fidelidade.
Durante meses, depois de ela lhe ter dado com os pés, consolara-se a si próprio dizendo que fora a notória falta de confiança de Callie que estragara tudo. Tal como
se agarrara, durante meses, à convicção de que ela viria atrás dele, a rastejar.
Estúpido, admitia agora. Callie nunca rastejava. Era uma coisa que tinham inquestionavelmente em comum. A medida que o tempo foi passando, começou a ver que talvez,
eventualmente, possivelmente, não tinha lidado com tudo tão bem como podia. Como devia.
Isso não retirava a culpa a Callie - era exactamente a ela que cabia a culpa -, mas abria a porta a nova aproximação.
Havia uma corrente que continuava a passar por eles, reconheceu. Não havia dúvidas sobre isso. E se o projecto Antietam lhe oferecia acesso a essa corrente, ele
usá-lo-ia.
Usaria tudo o que pudesse ajudá-lo a recuperá-la.
E fosse o que fosse que estivesse a perturbá-la, bem, ela dir-lhe-ia. Ia deixar que ele a ajudasse. Nem que ele tivesse de amarrá-la e arrancar-lhe a confissão à
força.
Callie não esperava dormir, mas quando a manhã nasceu estava enrolada em cima da cama, no seu antigo quarto. Estava abraçada a uma almofada, como sempre fizera desde
a sua infância quando estava doente ou infeliz.
O cansaço físico e emocional tinham-se sobreposto à dor de cabeça e à náusea. Acordara quatro horas depois, ao ouvir o som da porta da frente a fechar-se e alguém
chamar pelo seu nome.
Por um momento, voltou a ser criança, metida na cama num sábado de manhã até ouvir a mãe chamá-la. Havia Cherios para o pequeno-almoço, com morangos frescos cortados
numa tigela e açúcar extra, que ela acrescentava quando a mãe não estava a olhar.
70
Rebolou na cama. As dores no corpo, a dor de cabeça persistente, o peso extremo que se lhe instalara no peito recordaram-lhe que já não era uma rapariguinha, cuja
maior preocupação era adoçar os seus cereais.
Era uma mulher adulta. E não sabia de quem era filha.
Lentamente, pousou os pés no chão, depois sentou-se na borda da cama, com a cabeça entre as mãos.
- Callie! - Um tom de pura satisfação animou a voz de Vivian, enquanto esta se apressava a entrar em casa. - Querida, não fazíamos ideia de que estavas em casa.
Fiquei tão surpreendida por ver o teu carro lá fora!
Deu a Callie um abraço rápido e depois passou-lhe uma mão pelo cabelo:
- Quando chegaste?
- Ontem à noite. - Não levantou a cabeça. Não estava preparada para olhar para o rosto da mãe. - Pensei que tu e o pai estavam no Maine.
- E estávamos. Mas decidimos regressar a casa hoje, e não no domingo. O teu pai estava a ficar obcecado com o jardim, e vai passar todo o dia de segunda-feira no
hospital. Querida... - Vivian pôs a mão sob o queixo de Callie e levantou-o. - Que se passa? Não te sentes bem?
- Só estou um bocado tonta. - Os olhos da sua mãe eram castanhos, pensou Callie. Mas não eram como os seus. Os da mãe eram mais escuros, mais profundos, e ficavam
muito bem com a pele rosada e lisa, o cabelo encaracolado e macio, com a textura e a cor de uma marta loura. - O pai está aqui?
- Sim, claro. Está a dar uma vista de olhos aos tomateiros, antes de trazer para dentro o resto da bagagem. Queridinha, estás terrivelmente pálida.
- Preciso de falar consigo. Convosco.
Não estou preparada. Não estou preparada, não estou preparada, gritava o seu pensamento, mas Callie pôs-se de pé:
- Podes pedir ao pai que entre? Só vou lavar a cara.
- Callie, estás a assustar-me.
- Por favor. Dá-me só um minuto para pôr água na cara. Já desço.
Sem dar a Vivian hipótese de discussão, saiu do quarto e entrou na casa de banho do outro lado do hall.
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Encostou-se ao lavatório e começou a respirar lenta e profundamente, porque sentia o estômago apertar-se-lhe outra vez. Abriu a água fria, o mais frio que conseguiu
suportar, e molhou a cara.
Não olhou para o espelho. Também não estava preparada para isso.
Quando saiu e começou a descer a escada, Vivian estava na entrada, agarrada à mão do marido.
Vejam como ele é alto, pensou Callie. Alto, elegante e bonito. E como têm um ar perfeito, juntos. O Dr. Ellie Dunbrook e a sua linda Vivian.
Tinham-lhe mentido, todos os dias da sua vida.
- Callie. Deixaste a tua mãe muito nervosa. - Ellie foi ao encontro de Callie, envolveu-a nos braços e deu-lhe um abraço enorme e apertado. - O que se passa com
a minha menina? - perguntou ele, com as lágrimas a queimarem-lhe os olhos.
- Não pensei que regressassem hoje. - Libertou-se do abraço.
- Pensei que ia ter mais tempo para pensar no que dizer. Mas afinal não tenho. Precisamos de entrar e de nos sentarmos.
- Callie, estás com algum problema?
Ela olhou para o rosto do pai, para o rosto dele, e viu apenas amor e preocupação.
- Não sei o que sou - disse ela simplesmente, e atravessou o hall, entrando na sala.
O espaço perfeito, pensou, para pessoas com gosto e com maneiras. Antiguidades, cuidadosamente escolhidas, cuidadosamente mantidas. Cadeiras confortáveis, nas cores
profundas de que ambos gostavam. O encanto da folk art nas paredes, a elegância dos cristais antigos.
Fotografias de família sobre a lareira, que lhe fizeram doer o coração.
- Preciso de perguntar-vos...
Não, não podia fazer isto com as costas viradas para eles. Fosse o que fosse que tivesse descoberto, fosse o que fosse que viesse a descobrir, eles mereciam que
falasse com eles a olhá-los directamente no rosto. Virou-se, respirou fundo.
- Preciso de perguntar-vos porque nunca me disseram que fui adoptada.
Vivian soltou um som estrangulado, como se tivesse levado um murro forte na garganta. Os lábios tremeram-lhe.
- Callie, onde foste...
- Por favor, não neguem. Por favor, não façam isso. - Mal conseguiu articular as palavras. - Desculpem, mas vi os arquivos. -
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Olhou para o pai. - Arrombei a gaveta que estava fechada à chave e a caixa que estava lá dentro. Vi os registos médicos, os documentos da adopção.
- Elliot.
- Senta-te, Vivian. Senta-te. - Amparou-a até uma cadeira, fê-la sentar-se. - Não consegui destruí-los. - Passou a mão pelo rosto da mulher, como se ela fosse uma
criança assustada. - Não estava certo.
- E esteve certo esconderem-me os factos relacionados com o meu nascimento? - perguntou Callie.
Os ombros de Elliot estavam curvados:
- Para nós, não era importante.
- Não era...
- Não culpes o teu pai. - Vivian estendeu a mão para agarrar a de Eliot. - Ele fez isso por mim - disse ela a Callie. - Eu obriguei-o a prometer. Obriguei-o a jurar.
Precisava...
Começou a chorar, lágrimas lentas rolavam-lhe pelo rosto.
- Não me odeies, Callie. Meu Deus, não me odeies por causa disto. Foste o meu bebé no momento em que te puseram nos meus braços. Nada mais me importava.
- Em substituição do bebé que perdeste?
- Callie. - Ellie deu um passo em frente. - Não sejas cruel.
- Cruel? - Quem era este homem que olhava para ela com olhos tristes e zangados? Quem era o pai dela? - Consegues falar-me de crueldade, depois do que fizeram?
- E o que foi que fizemos? - retorquiu ele. - Não te contámos. Porque é que isso é tão importante? A tua mãe, a tua mãe precisou da ilusão. Estava devastada, inconsolável.
Nunca conseguiria dar à luz uma criança. Quando surgiu a oportunidade de te adoptarmos, de termos uma filha, agarrámo-la. Amámos-te, amamos-te, não porque és como
se fosses nossa, mas porque és nossa.
- Não consegui enfrentar a perda daquele bebé - conseguiu Vivian dizer. - Não consegui, depois de ter abortado duas vezes, depois de ter feito tudo o que me foi
possível para assegurar que o bebé nascia saudável. Não consegui suportar a ideia de que as pessoas olhassem para ti e te vissem como uma substituta. Mudámo-nos
para aqui, para começarmos tudo de novo. Só nós os três. E deixei tudo aquilo para trás. Isso não muda quem tu és. Não muda quem nós somos, nem o quanto te amamos.
- Pagaram por um bebé arranjado no mercado negro. Ficaram com uma criança roubada a outra família, e isso não muda nada?
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- O que é que estás a dizer? - O rosto de Elliot tingiu-se de fúria. - Isso é pura maldade. Maldade. Não merecemos que nos digas isso.
- Pagaram duzentos e cinquenta mil dólares.
- É verdade. Tratou-se de uma adopção privada, e o dinheiro abre portas. Pode não ser justo em relação aos casais que não podem pagar, mas não é crime. Concordámos
com essa quantia, concordámos que a mãe biológica devia ser compensada. Ficares aí a acusar-nos de te termos comprado, de te termos roubado, denigre tudo o que alguma
vez tivemos como família.
- Não perguntam porque vim até aqui, porque andei a mexer nos vossos documentos, porque vasculhei os vossos papéis privados?
Elliot passou a mão pelos cabelos e depois sentou-se:
- Não consigo pensar em tudo. Por amor de Deus, Callie, esperas lógica e razão quando nos atiras com tudo isto, assim de repente?
- A noite passada, uma mulher foi ter comigo ao quarto. Tinha visto no noticiário a reportagem sobre o meu actual projecto. Disse que eu era filha dela.
- Tu és minha filha! - disse Vivian, em tom baixo e firme. - És minha filha.
- Ela disse - prosseguiu Callie - que a 12 de Dezembro de
1974 a bebé dela lhe foi roubada. Num centro comercial em Hagerstown, Maryland. Mostrou-me fotografias dela quando tinha a minha idade, e da mãe dela, também com
a minha idade. A semelhança é muito forte. A cor da pele, a forma do rosto. As malditas três covinhas. Disse-lhe que não podia ser eu. Disse-lhe que não fui adoptada.
Mas fui.
- Isso não pode ter nada a ver connosco! - Elliot friccionou a zona do coração. - É uma loucura!
- Ela está enganada. - Vivian abanava a cabeça, devagar. Para trás e para a frente, para trás e para a frente. - Está terrivelmente enganada.
- Claro que está. - Elliot voltou a pegar-lhe na mão. - Claro que está. Contratámos um advogado - disse ele a Callie. - Um advogado de renome, especializado em adopções
privadas. Foi-nos recomendado pelo obstetra da tua mãe. Acelerámos o processo de adopção, sim, mas foi tudo. Nunca teríamos nada a ver com raptos de crianças. Não
podes acreditar numa coisa dessas!
Callie olhou para ele, para a mãe, que olhava para ela com os olhos marejados de lágrimas.
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- Não, não - disse ela, e sentiu-se um pouco mais aliviada. - Não, não acredito nisso. Portanto, vamos falar sobre o que fizeram exactamente.
Primeiro, aproximou-se da cadeira da mãe e acocorou-se.
- Mãezinha.
Afagava a mão de Vivian e repetia:
- Mãezinha.
Com um soluço abafado, Vivian inclinou-se para a frente e abraçou Callie.
75
Cinco

Callie fez café, tanto por necessidade, como para dar aos pais tempo para se recomporem. Eram pais dela. Isso não mudara.
O sentimento de raiva e de traição estavam a desaparecer. Como poderia persistir, diante do rosto devastado da mãe e do sofrimento do pai?
Mas, embora conseguisse afastar a dor, não conseguia afastar a necessidade de compreender, de ter respostas que conseguisse articular até entender tudo.
Por mais que os amasse, precisava de saber.
Levou o café até à sala e viu que os pais estavam agora sentados juntos no sofá, de mãos firmemente entrelaçadas.
Unidos, pensou. Como sempre, estavam unidos.
- Não sei se alguma vez conseguirás perdoar-me - começou Vivian.
- Acho que não estão a compreender. - Callie serviu o café. Essa simples tarefa deu-lhe qualquer coisa para fazer com as mãos, manteve-lhe o olhar focado na cafeteira
e na chávena. - Tenho de conhecer os factos. Só conseguirei entender tudo quando conseguir fazer encaixar todas as peças. Somos uma família. Nada vai mudar isso,
mas tenho de conhecer os factos.
- Sempre foste uma rapariga lógica - respondeu Elliot. - Magoámos-te.
- Não vamos preocupar-nos com isso agora. - Em vez de procurar uma cadeira, Callie sentou-se no chão, de pernas cruzadas, do outro lado da mesa. - Primeiro, preciso
de compreender... a adopção. Acharam que isso vos tornava, me tornava... nos tornava menos válidos?
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- Uma família é sempre um milagre, seja qual for a forma como é constituída - respondeu Elliot. - Tu foste o nosso milagre.
- Mas vocês esconderam-no.
- A culpa foi minha. - Vivian voltou a pestanejar com os olhos cheios de lágrimas. - A culpa foi minha.
- Não há culpa - disse Callie. - Só quero que me contem.
- Queríamos um filho. - Os dedos de Vivian apertaram os de Elliot. -- Queríamos tanto um filho! Quando tive o primeiro aborto, foi terrível. Não consigo explicar-te.
A sensação de perda e de dor e de pânico. De... fracasso. O meu médico disse que podíamos voltar a tentar, mas que eu devia ter... devia ter dificuldade em levar
a gravidez até ao fim. Qualquer gravidez futura teria de ser seguida com todo o cuidado. E, mesmo assim, voltei a abortar. Fiquei... Senti-me... desfeita.
Callie pegou numa chávena e deu-a à mãe:
- Eu sei. Compreendo.
- Receitaram-me um anti-depressivo, para me ajudar. - Conseguiu esboçar um sorriso pálido e húmido. - O Elliot afastou-me dos comprimidos. Em vez disso, procurou
manter-me ocupada. A procurar antiguidades, a ir ao teatro. Passávamos os fins-de-semana no campo, quando ele conseguia. - Levou ao rosto a mão entrelaçada na dele.
- Foi ele que me tirou do buraco.
- Ela achava que a culpa era dela, que era ela que tinha provocado aquilo.
- Fumei muita erva na Faculdade.
Callie piscou os olhos, e depois sentiu que algo inesperado lhe crescia na garganta. Era riso.
- Mãe, sua malandra!
- Bem, fumei. - Vivian limpou as lágrimas e conseguiu até fazer um sorriso trémulo aflorar-lhe os lábios. - E experimentei LSD uma vez, e em duas ocasiões dormi
com pessoas que nunca mais voltei a ver.
- Ora muito bem, isso explica tudo. Sua mulher perdida. Tens erva cá em casa, agora?
- Não! Claro que não!
- Bem, nesse caso vamos ter de passar sem ela. - Callie inclinou-se sobre a mesa e pousou a mão no joelho da mãe. - Com que então eras uma galdéria danada por erva.
Já entendi.
- Estás a tentar tornar as coisas mais fáceis para mim. - Respirando de forma irregular, Vivian deitou a cabeça no ombro de Elliot.
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- Ela é tão parecida contigo. Forte, como tu. Eu quis voltar a tentar. O Elliot queria esperar um pouco mais, mas eu estava decidida. Não queria ouvir ninguém. Estava
obcecada, acho eu. Discutimos por causa disso.
- Estava preocupado com a saúde da tua mãe. Física. Emocional.
- Sugeriu uma adopção. Trouxe-me informação sobre o assunto. Mas eu não quis ouvi-lo. Via as mulheres grávidas, com bebés. Achava que era um direito meu, a minha
função. As minhas amigas estavam a ter filhos. Porque é que elas conseguiam e nós não? Elas sentiam pena de mim, e isso tornava as coisas piores.
- Não conseguia vê-la tão infeliz. Tão perdida. Não conseguia.
- Fiquei grávida outra vez. Estava tão feliz! Enjoada, como das outras vezes. Ficava terrivelmente enjoada, e depois fiquei desidratada. Mas tive cuidado. Quando
eles me aconselharam repouso absoluto, meti-me na cama. Desta vez, cheguei ao fim do primeiro trimestre, e tudo parecia estar a correr bem. Sentia o bebé mexer-se.
Lembras-te, Elliot?
- Sim, lembro.
- Comprei roupas de bebé. Comecei a decorar o quarto. Li uma montanha de livros sobre gravidez, parto, cuidados a ter nos primeiros meses. Tive problemas de tensão,
suficientemente graves para uma breve hospitalização. Mas tudo parecia bem, até...
- Fomos fazer um exame - continuou Elliot. - O feto estava sem batimentos cardíacos. Os testes mostraram que o feto estava morto.
- Eu não acreditei. Não quis acreditar. Mas deixei de sentir os pontapés do bebé. Continuei a ler os livros, continuei a fazer planos. Não deixava o Elliot tocar
no assunto, ficava furiosa se ele insistia. Não o deixei dizer a ninguém.
- Induzimos o trabalho de parto.
- Era uma menina - disse Vivian, calmamente. - Nasceu morta. Tão bonita, tão pequenina. Peguei-lhe, e por um instante disse a mim própria que ela estava apenas a
dormir. Mas sabia que não estava, e quando a levaram fiquei desfeita. Tomei comprimidos para ultrapassar a situação. Eu... oh, meu Deus, roubei algumas receitas
ao teu pai e tomei Alivan e Seconal. Passava os dias envolta em nevoeiro, passava as noites como um cadáver. Pensei em arranjar coragem para tomá-los todos de uma
vez e desaparecer.
- Mãe.
- Ela estava num estado de depressão profunda. A criança que nasceu morta, a histerectomia. A perda, não só de mais uma criança, mas da esperança de poder conceber
outra.
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Que idade tinha ela?, pensou Callie. Vinte e seis? Tão nova para enfrentar uma perda daquelas!
- Lamento, mãe.
- As pessoas mandaram flores - continuou Vivian. - Detestei que fizessem isso. Fechei-me no quarto do bebé, dobrei e redobrei os cobertores, as roupinhas que tinha
comprado. Demos-lhe o nome de Alice. Eu não quis ir ao cemitério. Não deixei o Elliot levar o berço. Enquanto eu não fosse até ao túmulo dela, enquanto eu continuasse
a dobrar os cobertores e as roupinhas dela, ela não desaparecia.
- Tive medo. Dessa vez tive realmente medo - admitiu Elliot.
- Quando percebi que ela andava a tomar drogas para além do que lhe tinha sido prescrito, fiquei aterrorizado. Senti-me impotente, incapaz de chegar até ela. Fazê-la
deixar de tomar medicamentos não ia atingir a raiz do problema. Falei com o obstetra dela. E ele falou na possibilidade de adopção.
- Eu continuei a não querer ouvir - acrescentou Vivian. - Mas o Elliot fez-me sentar e apresentou-me a questão em termos médicos. Tratamento de choque, poder-se-ia
dizer. Não haveria outra gravidez. Já não havia essa opção. Podíamos continuar a vida, só nós dois. Amava-me e podíamos ter uma boa vida. Se queríamos um filho,
estava na altura de explorar outras formas de o termos. Recordou-me que éramos jovens. Tínhamos uma boa situação financeira. Éramos pessoas inteligentes e carinhosas,
que poderiam oferecer um lar de amor e segurança. Eu queria um filho ou queria apenas estar grávida? Se queria um filho, podíamos ter um filho. E eu queria um filho.
- Fomos a uma agência... a várias - acrescentou Elliot. - Havia listas de espera. Quanto mais longa era a lista, mais difícil era para a Vivian.
- Tornou-se a minha nova obsessão. - Vivian suspirou. - Voltei a pintar o quarto. Dei o berço e comprei outro. Dei tudo o que tinha comprado para a Alice, para que
a nova criança, quando chegasse, tivesse as suas próprias coisas. Fiquei à espera. Algures, havia uma criança que era minha, íamos apenas esperar até que nos encontrássemos.
E cada atraso era como uma nova perda.
- Ela estava outra vez radiante, de esperança. E eu não conseguia suportar a ideia de ver desaparecer aquela felicidade, de ver a tristeza voltar a tomar conta dela.
Falei nisso a Simpson, o obstetra dela. Contei-lhe como era frustrante e doloroso para nós quando nos diziam que podiam passar anos. Ele deu-me o nome de um advogado
que tratava de adopções privadas. Directamente com a mãe biológica.
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- Marcus Carlyle - disse Callie, lembrando-se do nome que lera nos documentos.
- Sim. - Mais calma, agora, Vivian bebeu alguns goles do seu café. - Ele foi maravilhoso. Apoiou-nos imenso. E, acima de tudo, deu-nos muito mais esperança do que
as agências. Os honorários eram muito altos, mas isso era um pequeno preço a pagar. Disse-nos que tinha uma cliente que não podia criar a sua filha recém-nascida.
Ia falar-lhe de nós, dar-lhe todas as informações sobre o tipo de pessoas que éramos, até sobre os nossos bens. Se ela estivesse de acordo, poderíamos ficar com
a criança.
- Porquê vocês? - perguntou Callie.
- Ele disse-nos que éramos o tipo de pessoas que ela procurava. Estáveis, com uma situação financeira segura, bem-educados, sem filhos. Disse que ela queria acabar
os estudos, ir para a faculdade, começar uma nova vida. Tinha contraído dívidas para tentar sustentar a filha, sozinha. Precisava de pagá-las e precisava de saber
que a sua filha ia ter a melhor vida possível com uns pais que iriam amá-la. - Vivian encolheu os ombros. - Disse-nos que diria qualquer coisa dentro de algumas
semanas.
- Tentámos não ficar demasiado entusiasmados, com demasiada esperança - explicou Elliot. - Mas parecia coisa do destino.
- Oito dias depois, ele telefonou às quatro e meia da tarde. - Vivian pousou o café, em que mal tocara. - Lembro-me perfeitamente. Estava a tocar Vivaldi no violino,
tentando deixar-me ir com a música, e o telefone tocou. E eu soube. Sei que isto pode parecer ridículo. Mas soube. E quando atendi ele disse "Parabéns, Sr.a Dunbrook.
É uma menina." Desfiz-me em lágrimas e soluços ao telefone. Ele foi tão paciente comigo, ficou tão genuinamente feliz por mim. Disse que eram momentos como aquele
que faziam com que o trabalho dele valesse a pena.
- Nunca conheceram a mãe biológica.
- Não. - Elliot abanou a cabeça. - Na altura, não se fazia esse tipo de coisa. Não houve qualquer troca de nomes. As únicas informações dadas tinham a ver com a
história médica e hereditária. Fomos ao escritório dele no dia seguinte. Estava lá uma enfermeira, contigo ao colo. Estavas a dormir. Tínhamos combinado que só assinaríamos
os documentos e pagaríamos o restante dinheiro quando te víssemos e te aceitássemos.
- Foste minha assim que te vi, Callie - disse Vivian. - Naquele instante. Ela pôs-te nos meus braços e tu tornaste-te a minha bebé.
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Não eras uma substituta, não estavas no lugar de ninguém. Eras minha. Obriguei o Elliot a prometer que nunca voltaríamos a mencionar a adopção, que nunca voltaríamos
a falar nela, que nunca te diríamos nem falaríamos nisso com ninguém. Porque eras o nosso bebé.
- E não nos pareceu sequer importante - disse Elliot. - Tinhas apenas três meses. Não podias perceber. E era fundamental para o estado de espírito da Vivian. Precisava
de afastar de vez toda a dor e toda a decepção, íamos levar o nosso bebé para casa. E isso era tudo o que importava.
- Mas, a família... - começou Callie.
- Estava tão preocupada com ela como eu próprio - respondeu Elliot. - E ficou tão entusiasmada contigo como nós, completamente apaixonada. Encerrámos o assunto.
Depois, mudámo-nos para aqui; era mais fácil. Um novo lugar, novas pessoas. Ninguém sabia, portanto para quê falar no assunto? Ainda assim, guardei a documentação,
os papéis, embora a Vivian me tivesse pedido que me visse livre deles. Não me pareceu certo fazer isso. Fechei-os à chave, como fechámos à chave tudo o que aconteceu
antes de te termos trazido para casa.
- Callie. - Recomposta, Vivian estendeu-lhe a mão. - Essa mulher, a que... Não sabes se está envolvida no assunto. É uma loucura. O Sr. Carlyle era um advogado conhecido.
Não teríamos lidado com ninguém em quem não confiássemos absolutamente. Foi o meu próprio obstetra que o recomendou. Eram - são - homens compassivos, éticos. É difícil
imaginá-los envolvidos numa história de mercado negro de bebés.
- Sabes o que é uma coincidência, mãe? É quando o destino quebra uma fechadura para podermos abrir uma porta. A bebé desta mulher foi roubada a 12 de Dezembro. Três
dias depois, o vosso advogado telefona e diz que tem uma bebé para vocês. No dia seguinte, assinam os papéis, passam os cheques e trazem-me para casa.
- Não sabes se a bebé dela foi roubada - insistiu Vivian.
- Não, mas isso é fácil de verificar. Tenho que fazer isto. A maneira como os meus pais me educaram faz com que me seja impossível agir de outra forma.
- Se o rapto se confirmar - o coração de Elliot estremeceu, quando ele falou -, há testes que podem ser feitos para determinar se... se existe uma relação biológica.
- Eu sei. Darei esse passo, se for necessário.
- Posso apressar o processo, para teres os resultados mais rapidamente.
82
- Obrigada.
- O que farás se... - Vivian não conseguiu acabar a frase.
- Não sei. - Calie suspirou. - Não sei. Logo se verá. Tu és a minha mãe. Nada pode mudar isso. Pai, preciso de levar os papéis. Preciso de começar a falar com todos
os envolvidos. O Dr. Simpson, Carlyle. Sabem o nome da enfermeira que me levou ao escritório dele?
- Não. - Elliot abanou a cabeça. - Que me lembre, não. Posso localizar o Simpson. É mais fácil para mim do que para ti. Vou fazer uns telefonemas.
- Diz-me, assim que descobrires. Tens o número do meu telemóvel e vou deixar-te o número do meu motel em Maryland.
- Vais-te embora? - perguntou Vivian. - Oh, Callie, não podes ficar?
- Não posso. Desculpem. Adoro-vos. Seja o que for que venhamos a descobrir, vou continuar a amar-vos. Mas há uma mulher em grande sofrimento por ter perdido a filha.
Merece algumas respostas.
Doug não se lembrava da última vez em que se sentira tão zangado. Não conseguia falar com a mãe, já desistira. Era como bater com a cabeça no muro de ferro que era
a vontade dela.
O avô também não o ajudava. Realidade, razão, recordações de dezenas de desilusões do passado faziam com que nenhum deles se movesse um centímetro.
E saber que a mãe fora ter com essa tal Callie Dunbrook! Na verdade, fora ter com ela ao quarto do motel onde ela estava instalada. Com fotografias de família e
tudo. Humilhando-se, reabrindo feridas antigas, arrastando uma estranha para uma tragédia pessoal de família.
Pela forma como as coisas funcionavam em Woodsboro, não ia demorar muito até a história da família Cullen ser desenterrada, examinada e discutida vezes sem conta.
Ele próprio ia ter com Callie Dunbrook. Para lhe pedir que não falasse a ninguém na visita que a mãe lhe fizera. Ainda não era demasiado tarde para isso. Para pedir
desculpa por isso.
Assegurou-se que não ia ter com ela para poder observá-la melhor. Pela parte que lhe tocava, a Jessica desaparecera. Desaparecera havia muito tempo, e por muito
que quisessem, procurassem ou esperassem nada iria trazê-la de volta.
E se voltasse, de que serviria? Já não era a Jessica. Se ainda estivesse viva, seria uma pessoa diferente, uma mulher adulta, com vida própria, que nada tinha a
ver com a bebé que tinham perdido.
83
Qualquer que fosse o desfecho, só iria trazer mais sofrimento à mãe. Mas nada que ele dissesse ou fizesse conseguia convencê-la disso. A Jessica era o seu Santo
Graal, a procura da sua vida.
Estacionou na berma, junto à vedação que delimitava o terreno da construção.
Lembrava-se deste lugar: a terra macia dos campos, os caminhos misteriosos pelo bosque. Costumava nadar em Simon's Hole. Numa noite de luar fora nadar nu com a Laurie
Worrel, e quase a convencera a perder a virgindade na água escura e fresca.
Agora, o terreno estava cheio de buracos, montes de lama e cordas estendidas por toda a parte.
Nunca compreenderia por que razão as pessoas não conseguiam deixar-se ficar quietas e em paz.
Quando saiu do carro e se encaminhou para a vedação, um homem baixo, com a roupa cheia de lama, afastou-se do grupo e foi ao seu encontro.
- Como vão as coisas? - disse Doug, por não lhe ocorrer dizer mais nada.
- Muito bem. Está interessado no projecto? - perguntou-lhe Doug.
- Bem...
- Provavelmente, parece tudo um bocado confuso, agora, mas de facto trata-se dos primeiros dias de uma escavação arqueológica bastante organizada. As primeiras recolhas
deram-nos artefactos que datámos da época neolítica. Ossos humanos quase com seis mil anos foram descobertos por um trabalhador que operava uma escavadora, na preparação
da construção de um empreendimento imobiliário...
- Sim, eu sei. Dolan. Eu... vi a reportagem nas notícias - acrescentou Doug enquanto deitava um olhar às pessoas por cima do ombro de Leo. - Julguei que isto fosse
dirigido por uma tal Callie Dunbrook.
- A Dr.a Dunbrook é a arqueóloga-chefe do projecto de Antietam Creek, e o Dr. Graystone é o antropólogo-chefe. Estamos a segmentar a área - continuou Leo, fazendo
gestos que apontavam para a zona atrás de si -, a medir tudo em metros quadrados. A cada metro vai ser atribuído um número de referência. A documentação é um dos
passos fundamentais. À medida que escavamos, destruímos o local. Se documentarmos cada um dos segmentos, com fotografias e em papel, mantemos a sua integridade.
- Hum-hum. - Doug estava-se nas tintas para a escavação. - A Dr.a Dunbrook está aí?
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- Receio bem que não. Mas se tiver alguma pergunta, asseguro-lhe que tanto eu como o Dr. Graystone podemos responder-lhe.
Doug virou-se para trás e percebeu o olhar. Credo, pensou, o tipo estava a pensar que ele era um tarado qualquer que tinha aparecido por ali para tentar engatar
uma mulher que tinha visto na televisão. Cuidadosamente, mudou de abordagem:
- A única coisa que sei sobre estes assuntos foi o que vi no Indiana Jones. Não é nada como eu estava à espera.
- Não é tão dramático. Não há nazis, nem cenas de perseguição. Mas pode ser igualmente entusiasmante.
Doug percebeu que não podia limitar-se a dar meia volta e ir-se embora. Esperava-se que fizesse perguntas. E, Deus o ajudasse, tinha que arranjar conversa.
- Mas então, qual é o objectivo? Quero dizer, o que é que ficam a saber ao olhar para ossos velhos?
- Quem eram eles. Quem fomos nós. Porque viveram aqui, como viviam. Quanto mais soubermos sobre o passado, melhor nos compreendemos a nós próprios.
Quanto a Doug, o passado estava para trás, o futuro vinha depois. O que interessava era hoje.
- Acho que não tenho muito em comum com... como era? Um homem com seis mil anos.
- Ele comeu e dormiu, fez amor e envelheceu. Esteve doente, sentiu calor e frio. - Leo tirou os óculos e começou a limpá-los à camisa. - Pensou. E ao pensar progrediu,
dando aos que vieram depois dele um caminho a seguir. Sem ele, não estaríamos aqui.
- Entendo - cedeu Doug. - Seja como for, só vim dar uma vista de olhos. Costumava brincar nestes bosques, quando era criança. Ia nadar para Simon's Hole no Verão,
sempre que podia.
- Porque lhe chamam Simon's Hole?
- O quê? Ah! - Doug voltou a olhar para Leo. - A história é que um miúdo qualquer chamado Simon se afogou ali, há umas centenas de anos. Assombra os bosques, diz
quem acredita nesse tipo de coisas.
Apertando os lábios um contra o outro, Leo voltou a pôr os óculos:
- Quem era ele?
Doug encolheu os ombros:
- Não sei. Um miúdo qualquer.
- Aí está a diferença. Preciso de saber. Quem foi o Simon, quantos anos tinha? Que andava ele a fazer aqui? Isso interessa-me. Quando
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se afogou aqui, mudou algumas vidas. A perda de alguém, em especial a de uma criança, muda vidas.
Doug sentiu uma dor surda apertar-lhe o estômago:
- É. Tem razão. Bem, não lhe tomo mais tempo. Obrigado pela atenção.
- Volte quando quiser. Gostamos do interesse da comunidade.
Ainda bem que ela não estava lá, disse Doug a si próprio enquanto regressava ao carro. Que poderia ele ter-lhe dito que não piorasse ainda mais as coisas?
Outro carro estacionou atrás do dele. Porcaria de atracção turística, pensou Doug com azedume. Ninguém deixava nada em paz. Lana saiu e acenou-lhe jovialmente.
- Olá! A dar uma vista de olhos à última tentativa de Woodsboro aceder à fama?
Lembrou-se dela. Tinha um rosto que não se esquecia facilmente.
- É só um monte de buracos no chão. Não sei porque é melhor do que as casas do Dolan.
- Vou começar a enumerar as razões. - O cabelo dela esvoaçava na brisa. Ela deixou-o voar e pôs as mãos nos quadris, enquanto olhava para o local das escavações.
- Já começámos a receber alguma atenção a nível nacional. A suficiente para o Dolan não encher isto de betão nos tempos mais próximos. Se é que isso vai acontecer
alguma vez. - Hummm. - Apertou os lábios. - Não vejo a Callie.
- Conhece-a?
- Sim, já nos encontrámos.
- Visitou o sítio?
- Não.
Ela mexeu-se ligeiramente e inclinou a cabeça:
- É naturalmente antipático, ou não gostou de mim assim que me viu?
- Naturalmente antipático, acho eu.
- Bem, sempre é um alívio.
Lana deu um passo em direcção ao campo de escavações e, resmungando entredentes, Doug tocou-lhe no braço. Não era antipático, assegurou-se. Reservado era diferente
de antipático. Mas era mal-educado, e o avô gostava muito dela.
- Ouça, desculpe. Ando com a cabeça noutro sítio.
- Vê-se. - Deu mais um passo e depois virou-se de repente.
- Passa-se alguma coisa com o Roger? Eu saberia se...
- Ele está bem. Está muito bem. Sente qualquer coisa por ele, não sente?
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- Uma grande coisa. Sou louca por ele. Ele contou-lhe como nos conhecemos?
- Não.
Ela fez uma pausa e depois riu-se.
- Está bem. Não fique chateado. Eu conto-lhe. Passei pela livraria alguns dias depois de me ter mudado para aqui. Estava a instalar o meu escritório, deixava o meu
filho na creche e não conseguia articular duas ideias. Por isso, fui dar um passeio e acabei na loja do seu avô. Ele perguntou-me o que podia fazer por mim. E eu
desfiz-me em lágrimas. E fiquei ali, a soluçar histericamente. Ele deu a volta ao balcão, pôs os braços à minha volta e deixou-me chorar no ombro dele. Uma estranha
que estava a ter um colapso emocional na sua loja. Desde esse dia que estou apaixonada por ele.
- É mesmo dele. Sempre foi bom com quem perdeu o rumo. Doug hesitou. - Sem ofensa.
- Não me ofendi. Não estava sem rumo. Sabia onde estava, como ali tinha chegado e para onde precisava de ir. Mas naquele momento era tudo tão enorme, tão pesado,
tão terrível! E o Roger amparou-me e deu-me força. Quando eu tentei desculpar-me, pôs o letreiro "Fechado" na porta e levou-me para as traseiras da loja. Fez chá
e deixou que lhe contasse tudo o que estava a sentir. Coisas que nem eu própria sabia que sentia e nunca conseguira contar a ninguém. Não há nada no mundo que eu
não fizesse pelo Roger.
Voltou a fazer uma pausa.
- Até casava consigo, coisa de que ele gostaria bastante. Por isso, tenha cuidado.
- Credo! - Instintivamente, deu um passo atrás. - Que devo responder a isso?
- Podia convidar-me para jantar. Era agradável fazermos uma ou duas refeições juntos, antes de começarmos a planear o casamento.
- O olhar no rosto dele era tão perfeito, tão impagável, tão completamente cheio de horror masculino, que ela riu até lhe doerem as costelas.
- Calma, Doug. Não comecei a comprar o enxoval. Ainda. Só pensei que seria justo dizer-lhe, se é que ainda não percebeu, que o Roger tem esta fantasia sobre nós
os dois. Adora-nos, por isso acha que somos perfeitos um para o outro.
Ele reflectiu:
- Nada do que eu possa dizer neste ponto pode ser a coisa certa. Por isso, vou ficar calado.
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- E eu também. E quero dar uma vista de olhos rápida aos progressos antes de regressar ao escritório. - Começou a encaminhar-se para a vedação, mas olhou para trás
com um sorriso reluzente.
- Porque não se encontra comigo esta noite, para irmos jantar? Na velha estalagem de Antietam. Sete horas?
- Acho que não...
- Com medo?
- Claro que não, não estou com medo. Só que...
- Sete horas. Pago eu.
Ele fez tilintar as chaves do carro, que tinha no bolso, e franziu o sobrolho:
- É sempre assim tão insistente?
- Sim - respondeu ela. - Sim, sou.
Momentos depois de Lana regressar ao escritório, Callie entrou. Ignorando a recepcionista que estava à secretária da entrada, Callie dirigiu-se directamente ao escritório
de Lana.
- Preciso de falar consigo.
- Claro. Lisa? Adie a chamada que lhe pedi até eu terminar de falar com a Dr.a Dunbrook. Entre, Callie. Sente-se. Quer uma bebida fresca?
- Não. Não, obrigado. - Fechou a porta atrás de si.
O escritório era pequeno, bonito, bem arrumado, feminino como uma sala de visitas.
A janela atrás da pequena secretária dava para um parque. O que disse a Callie que, por pior que estivesse o mercado imobiliário numa cidadezinha como aquela, Lana
Campbell tinha dinheiro suficiente para um sítio de primeira e bom gosto para decorá-lo de forma moderna.
Mas não lhe disse se Lana era uma boa advogada.
- Onde estudou? - perguntou Callie. Lana sentou-se, recostou-se na cadeira.
- Estudei no Estado do Michigan. Passei para a Universidade de Maryland, depois de ter conhecido o meu marido. Ele era de lá. Foi lá que me licenciei, tal como ele.
- Porque se mudou para aqui?
- Isto é um inquérito pessoal ou profissional?
- Profissional.
- Muito bem. Trabalhei para uma firma em Baltimore. Tive um filho. Perdi o meu marido. Depois de ter conseguido voltar a pensar direito,
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decidi estabelecer-me numa área onde pudesse exercer a profissão com menos pressão e criar o meu filho da forma como o pai dele e eu tínhamos planeado. Quis que
ele tivesse uma casa com um jardim, e uma mãe que não fosse obrigada a passar dez horas por dia no escritório e a trabalhar mais duas quando chegasse a casa. Parece-lhe
bem?
- Sim, sim. - Callie foi até à janela. - Se eu a contratar, tudo o que discutirmos será confidencial.
- Claro. - Só de estar ali, pensou Lana, a mulher irradiava ondas de energia. Perguntou-se se não seria esgotante mover-se num circuito com esse tipo de vibrações.
Lana abriu uma gaveta e tirou lá de dentro um bloco novo em folha.
- Quer me contrate, quer não, tudo o que me disser aqui é confidencial. Por isso, porque não me diz, para podermos decidir?
- Ando à procura de um advogado.
- Parece que já encontrou uma.
- Não, outro advogado. Marcus Carlyle. Exerceu em Boston entre
1968 e 1979. - Conseguira saber isso pelo telefone. Ligara do telemóvel durante a viagem de regresso.
- E depois de 79?
- Fechou o escritório. É tudo quanto sei. Sei também que pelo menos parte da sua prática consistia em conseguir adopções privadas.
Tirou um dossiê da mala, folheou-o e pousou os papéis da sua adopção na secretária de Lana.
- Quero que verifique isto, também.
Lana tomou nota dos nomes e levantou a cabeça:
- Estou a ver. Está a tentar encontrar os seus pais biológicos?
- Não.
- Callie, se quer que eu a ajude, vai ter de confiar em mim. Posso começar a procurar Carlyle. Posso, com a sua autorização escrita, tentar pesquisar alguns dos
registos de adopções feitas nos anos setenta e dar-lhe algumas respostas sobre a sua família biológica. Posso fazer ambas as coisas sem outra informação a não ser
aquela que já me deu. Mas posso fazê-las mais rapidamente e melhor se me der mais.
- Não estou preparada para lhe dar mais. Ainda não. Gostaria que descobrisse o que pudesse sobre Carlyle. Que o localizasse, se possível. E que descobrisse o que
pudesse sobre o processo que conduziu a esta adopção. Eu própria tenho umas investigações a fazer noutras áreas. Quando tivermos respostas, veremos se precisarei
de levar isto mais longe. Quer que lhe adiante algum dinheiro?
- Sim. Vamos começar com quinhentos.
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Com a ideia de comprar algumas coisas na loja de hardware, Jake meteu para Woodsboro. Ao longo do dia, já tentara várias vezes contactar Callie pelo telemóvel.
Mas como sabia que qualquer conversa terminaria provavelmente em discussão, poupou a si próprio a dor de cabeça.
Se ela não estivesse de volta ao campo na manhã seguinte, iria pedir-lhe satisfações. Fazê-la ficar furiosa era uma maneira garantida de desenterrar fosse o que
fosse que se passasse com ela.
Quando viu o Rover dela parado diante da biblioteca local, foi até lá. Estacionou em cima do pára-choques dela, para o caso de ela decidir fugir dele, e depois saiu
e começou a andar lentamente pelo passeio, subindo em seguida os degraus de cimento até ao velho edifício de pedra.
Na recepção estava uma mulher já de alguma idade. Ele tinha muito jeito para as mulheres com alguma idade e, munindo-se do seu charme, encostou-se ao balcão.
- Boa tarde, minha senhora. Não quero incomodá-la, mas vi o carro da minha sócia aqui em frente. O meu nome é Jacob Graystone, do projecto Antietam Creek.
- É um dos cientistas! Prometi ao meu neto levá-lo até lá assim que puder, para ver o que vocês andam a fazer. Estamos muito excitados com tudo isto.
- E nós também. Quantos anos tem o seu neto?
- Tem dez.
- Venha ter comigo quando for visitar o campo arqueológico. Faço-vos uma visita guiada.
- É muito simpático da sua parte.
- O nosso trabalho é documentar, mas é também educar. Pode dizer-me se a Dr.a Dunbrook entrou? Callie Dunbrook. Uma loura muito bonita, mais ou menos desta altura.
Ele pousou-lhe a mão no ombro quando ela acenou afirmativamente com a cabeça.
- Não vêm aqui muitas caras que eu não reconheça imediatamente. Claro, está na sala de pesquisa, ali atrás.
- Obrigado. - Piscou-lhe o olho e afastou-se.
Tanto quanto se apercebia, a biblioteca estava vazia, exceptuando a presença da senhora idosa, dele próprio e de Callie, que ele viu que estava a manusear uma microficha,
sentada a uma mesa.
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Tinha as pernas cruzadas em cima da cadeira, o que lhe indicou que ela estava ali havia pelo menos vinte minutos. Acabava sempre sentada assim quando trabalhava
a uma secretária durante mais de vinte minutos.
Aproximou-se dela pelas costas e começou a ler por cima do ombro dela.
Os dedos da mão esquerda de Callie tamborilavam levemente na mesa, outro sinal de que ela estava ali havia já algum tempo.
- Porque estás a vasculhar jornais locais de há trinta anos?
Ela quase caiu da cadeira, e levantou-se com rapidez e ímpeto suficientes para lhe bater com a cabeça no queixo.
- Raios! - disseram em uníssono.
- Que diabo estás a fazer, a espiar-me desta maneira? - perguntou ela.
- Que diabo estás tu a fazer, que não vens trabalhar? - Mexeu-se e segurou-lhe a mão antes de ela conseguir desligar a máquina.
- Que interesse tens tu num rapto que aconteceu em 1974?
- Sai daqui, Graystone.
- Cullen. - Manteve a mão dela firmemente segura pela sua e continuou a ler. - Jay e Suzanne Cullen. Suzanne Cullen... havia qualquer coisa de familiar naquele nome.
- Jessica Lynn Cullen, de três meses de idade, foi levada do seu carrinho, ontem, no centro comercial de Hagerstown - leu ele. - Meu Deus! Há gente para tudo, não
há? Voltaram a encontrá-la?
- Não quero falar contigo.
- É pena, porque sabes que não vou largar-te enquanto não me disseres porque é que este assunto te perturba tanto. Estás à beira das lágrimas, Callie, e não choras
com facilidade.
- Só estou cansada. - Esfregou os olhos, como uma criança.
- Só estou horrivelmente cansada.
- Está bem. - Pôs-lhe as mãos nos ombros, massajando-os para aliviar a tensão. Percebeu que não teria de fazê-la zangar. Ainda bem, porque também não iria ter coragem
para isso.
Se estava a esforçar-se para reter as lágrimas, é porque não seria necessário um grande esforço para fazê-la falar. E, no entanto, Jake não sentiu coragem para explorar
essa fraqueza.
- Anda, levo-te de volta ao motel. Podes tirar uma folga.
- Não quero ir para o motel. Ainda não. Meu Deus. Meu Deus! Preciso de uma bebida.
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- Está bem. Deixamos o teu carro no motel e depois vamos tomar um copo.
- Porque queres ser simpático comigo, Graystone? Nem sequer gostamos um do outro!
- Uma coisa de cada vez, querida. Anda. Vamos à procura de um bar.
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Seis O Refúgio da Montanha Azul era uma estalagem acolhedora, fora da estrada principal, a
vários quilómetros do centro da cidade. Servia aquilo que a ementa de uma só página designava por COMIDAS e BEBIDAS.
Havia três mesas com canapés, alinhadas ao longo de uma das paredes, e meia dúzia de mesas com cadeiras desdobráveis, agrupadas no centro da sala como se alguém
as tivesse empurrado para ali e se tivesse esquecido delas.
O bar estava enegrecido pelo tempo, e o chão era de linóleo bege salpicado de cinzento. A única empregada era jovem e magra como um pássaro. Travis Tritt cantava
na juke box.
Alguns homens, que Callie pensou que deviam ser habitantes locais, estavam sentados no bar, a tomar uma cerveja depois do trabalho. Pelas botas, os bonés com o mesmo
nome gravado e as T-shirts suadas, Callie achou que deviam ser operários. Talvez fizessem parte da equipa de construção de Dolan.
Viraram as cabeças quando Callie e Jake entraram, e ela notou que não foram particularmente discretos a tirar-lhe as medidas.
Sentou-se num dos canapés e perguntou-se de imediato porque tinha vindo. Estaria melhor estendida na cama do quarto do motel, a tentar dormir.
- Não sei o que estou a fazer aqui. - Olhou para Jake, com olhos de ver. Mas não conseguiu ler nada nele. Esse fora sempre um dos problemas, pensou. Nunca tinha
realmente a certeza do que ele estava a pensar. - Que diabo é isto?
- Comida e bebida. - Passou-lhe a ementa. - E só coisas de que tu gostas.
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Ela olhou para a ementa. Tudo o que não era frito não fazia parte das COMIDAS.
- Só quero uma cerveja.
- Nunca te vi recusar comida, especialmente cheia de gordura. Percorreu a ementa com o dedo e depois pousou-a na mesa quando a empregada se aproximou. - Dois hambúrgueres,
deixe ver, com batatas fritas, e duas cervejas de pressão.
Callie começou a protestar, mas depois encolheu os ombros e voltou a remoer os seus pensamentos.
E isso deixou-o preocupado. Se não ia sarnar-lhe o juízo por ele ter tomado uma decisão - qualquer decisão - sozinho, estava mesmo mal.
Não parecia propriamente cansada, ele já a vira cansada em várias ocasiões. Parecia esgotada. Apeteceu-lhe pegar-lhe na mão, fechá-la na dele e dizer-lhe que o que
quer que fosse que a preocupasse haviam de arranjar maneira de resolver as coisas.
E com isso conseguiria, sem sombra de dúvida, ver a sua mão cortada pelo pulso.
Por isso, inclinou-se para ela:
- Este lugar faz-te lembrar alguma coisa?
Callie mexeu-se um pouco no assento e olhou em volta. Travis Tritt fora substituído por Faith Hill. Os tipos no bar emborcavam cervejas e lançavam-lhes olhares beligerantes.
O ar cheirava à gordura depositada no fundo de uma fritadeira quando já não havia memória da última vez que o óleo fora mudado.
- Não.
- Vá lá. Aquele buraco em Espanha, quando estávamos a escavar em El Aculadero.
- O quê? Estás parvo? Este lugar não é nada parecido. Lá estava a tocar uma porcaria de música e havia moscas por todo o lado. O empregado era um tipo com cento
e cinquenta quilos, com o cabelo até ao rabo e sem dentes da frente.
- Sim, mas tomámos lá uma cerveja. Como estamos a fazer aqui. Ela atirou-lhe um olhar seco:
- E onde foi que não tomámos uma cerveja?
- Bebemos vinho em Veneto, o que é completamente diferente. Isto arrancou-lhe uma gargalhada:
- O quê? Lembras-te de todas as bebidas alcoólicas que conseguimos consumir?
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- Havias de ficar admirada com tudo aquilo de que me lembro.
- O riso desatara-lhe o nó que tinha no estômago. - Lembro-me de
te destapares completamente à noite e de insistires em dormir ao meio da cama. E que o roçar de um pé te fazia ronronar como um gatinho.
Ela não disse nada, e entretanto serviram-lhes as cervejas. Só respondeu depois do primeiro gole fresco:
- Também me lembro de vomitares as tripas depois de teres comido uns camarões estragados em Moçambique.
- Sempre foste loucamente romântica, Cal.
- Pois. - Pegou no copo e bebeu um pouco mais. - Não há maior verdade. - Ele estava a tentar animá-la. E ela não percebia porque estaria ele a dar-se a esse trabalho.
- Porque é que não estás a chatear-me o juízo por eu não ter aparecido nas escavações hoje? - Lá chegaremos. Só queria uma cerveja, antes. - Sorriu para ela. - Queres
que comece a chatear-te o juízo agora, ou esperamos até comermos?
-Tive de fazer uma coisa. Não podia esperar. E como não és meu patrão, não tens autoridade para me moeres a cabeça quando eu preciso de tirar o dia. Estou tão empenhada
neste projecto como tu.
Mais, porque cheguei cá primeiro.
Ele afastou-se um pouco para trás quando a empregada trouxe os hambúrgueres.
- Uau! Acho que essa foi forte.
- Ora, vai-te lixar, Graystone. Não tenho que... - Interrompeu-se quando os homens que estavam no bar se aproximaram da mesa.
- Vocês não estão com os idiotas que andam a cavar em Simon's
Hole?
Jake apertou o frasco da mostarda sobre o seu hambúrguer:
- É verdade. De facto, somos os idiotas-chefe. Em que podemos
ajudar-vos?
- Podem desandar daqui, parar de chatear por causa de um monte de ossos velhos e essas merdas e de impedir que homens decentes ganhem a vida.
Jake passou a mostarda a Calie, e esta mediu os homens de alto a baixo enquanto a usava no seu hambúrguer. O que tinha falado era gordo, mas era bem constituído.
Devia ser forte como um tanque.
O O outro tinha uma expressão nos olhos induzida pelo álcool.
- Ouça... - Callie pousou a mostarda e abriu o ketchup. - Vou ter de pedir-lhe que modere a linguagem. Aqui o meu sócio é muito sensível.
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- Ai sim? Pois diga-lhe que se vá lixar.
- Na verdade, até já lhe disse isso, e não me senti nada mal. Mas isso não interessa. Então - prosseguiu ela em tom de conversa amena -, vocês trabalham para o Dolan?
- Sim. E não precisamos que um punhado de estranhos chegue aqui e venha dizer-nos o que havemos de fazer.
- Nesse aspecto não estamos de acordo. -Jake pôs sal nas batatas fritas e passou o saleiro a Callie.
O tom agradável, os gestos normais davam a impressão de um homem que nem estava minimanente interessado numa briga, nem preparado para ela.
Callie sabia que quem quer que acreditasse nessa impressão corria os seus riscos.
Jake deitou pimenta no hambúrguer e ajeitou a parte superior do pãozinho.
- Como é improvável que algum de vocês perceba o que quer que seja de investigação arqueológica ou de estudos antropológicos, ou de qualquer campo que lhes esteja
associado, como a dendrocronologia ou a estratigrafia, estamos aqui para tratar disso. E com muito gosto. Queres mais uma cerveja? - perguntou ele a Callie.
- Sim, obrigado.
- Se acha que atirar-nos com palavras de vinte dólares vai impedir-nos de vos correr da cidade a pontapé, é melhor pensar duas vezes. Idiota.
Jake limitou-se a suspirar, mas Callie reconheceu o brilho gelado que lhe perpassava o olhar.
Os tipos tinham hipótese, pensou Callie, enquanto Jake achasse preferível comer em paz do que divertir-se numa rixa de bar.
- Acho que pensam que como somos doutores idiotas palavras de vinte dólares é tudo o que temos para espalhar por aí. - Encolheu os ombros e pegou numa batata frita.
- Mas o que é verdade é que aqui a minha sócia é cinturão negro em karaté e é má como as cobras. E eu sei isso melhor do que ninguém. É minha mulher.
- Ex-mulher - corrigiu Callie. - Mas ele tem razão. Sou ma como as cobras.
- Qual deles queres? - perguntou-lhe Jake.
- Quero o grande. - Olhou para os homens com um sorriso amplo e satisfeito.
- Está bem, mas vê lá se te conténs - avisou-a Jake. - Da última vez, aquele mexicano grande? Ficou cinco dias em coma. Não queremos que isso volte a acontecer.
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- Ora, tu é que partiste o maxilar àquele tipo e lhe deslocaste a retina. Em Oklahoma.
- Não pensei que um cowboy se fosse abaixo tão depressa. -Jake afastou o prato. - Importam-se que tratemos disto lá fora? Detesto ter de desembolsar para pagar estragos
cada vez que tratamos de uns tipos num bar.
Posicionaram-se e arregaçaram as mangas:
-Já lhes dissemos, não lutamos com frangotes nem com raparigas.
- Como queiram. - Jake fez sinal à empregada. - Pode trazer-nos mais duas cervejas? - Pegou no hambúrguer e começou a comê-lo com ar deliciado, enquanto os homens,
remoendo insultos, se encaminhavam para a porta. - Eu bem te disse que isto era como aquele sítio em Espanha.
- Não lhes liguem. - A empregada pousou as cervejas na mesa e pegou nas garrafas vazias. - O Austin e o Jimmy são estúpidos, mas são inofensivos.
- Não há problema - disse Jake.
- A maioria das pessoas esta só curiosa acerca do que se passa em Simon's Hole. Mas há algumas que têm um problema. O Dolan contratou mais gente e foram despedidos
quando o trabalho parou. E as pessoas podem ficar irritadas quando lhes metem a mão no bolso. Os hambúrgueres estão bons?
- Estão óptimos, obrigada - disse Callie.
- Chamem-me se precisarem de alguma coisa. E não se preocupem com o Austin e o Jimmy. Aquilo foi principalmente a cerveja a falar.
- Quando a cerveja fala demais - disse Jake quando a empregada os deixou sozinhos - pode ser um problema. O Digger acampou no terreno, mas talvez seja melhor pensar
em acrescentar alguma segurança.
- Assim precisamos de mais gente. Vou falar com o Leo. Ia passar lá pelo terreno depois de... Ia passar lá pelo terreno para ver o que fizeram hoje.
- Fizemos o mapa do terreno e gravámos as segmentações no computador. Começámos a remover o estrato superficial.
Ao ouvi-lo, Callie estremeceu. Queria ter estado lá quando a equipa removesse a camada superior do solo:
- Puseste os miúdos a peneirar?
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- Sim. Enviei o relatório de hoje para o teu computador. Podemos falar nisso agora, mas depois vais lê-lo. Callie, diz-me o que se passa. Diz-me por que é que em
vez de estares no terreno das escavações estavas numa biblioteca a ler acerca de um rapto que aconteceu em 1974. O ano em que tu nasceste.
- Não vim aqui falar sobre isso. Vim beber uma cerveja.
- Muito bem, então falo eu. Vou ao teu quarto ontem à noite e há fotografias em cima da tua cama. Tu estás perturbada. Dizes que não são fotografias de família,
mas há uma forte semelhança. Hoje desapareces e vou dar contigo a vasculhar os arquivos do jornal local sobre o rapto de uma bebé que tem a mesma idade do que tu.
O que te leva a pensar que podes ter sido essa bebé?
Ela não disse nada, pôs os cotovelos em cima da mesa e enterrou a cabeça nas mãos. Sabia que ele ia juntar dois e dois. Era dar-lhe uma mão cheia de pormenores e
ele transformava-os numa imagem coesa em menos tempo do que aquele que a maioria das pessoas precisaria para resolver as suas palavras cruzadas diárias.
E sabia que ia dizer-lhe. No momento em que ele a encontrara na biblioteca, ela soube que ele seria a única pessoa a quem poderia contar.
Só que não estava preparada para analisar porquê.
- Suzanne Cullen veio ao meu quarto - começou Callie. E contou-lhe tudo.
Ele não interrompeu, nem tirou os olhos do rosto dela.
Conhecia tão bem as expressões daquele rosto! Nem sempre conseguia decifrar a causa delas, mas conhecia-as bem. Estava ainda a lidar com o choque, e juntamente com
o choque havia a culpa.
- Portanto... vão ter de ser feitos testes - concluiu. - Para verificar a identidade. Mas, bem, a ciência está cheia de suposições. Especialmente a nossa área. E
tendo em conta os actuais dados e acontecimentos, é razoável supor que Suzanne Cullen esteja certa.
- Precisas de localizar o advogado, o médico, quem quer que tenha estado envolvido na adopção e na entrega da criança.
Olhou para ele. Percebeu que aquela era uma razão sólida pela qual ela podia contar-lhe. Ele nunca a sobrecarregaria com o fardo da compaixão nem com o do insulto.
Compreendia que para ultrapassar a situação ela precisava de agir.
-Já comecei a fazer isso. O meu pai está a tentar localizar o obstetra. Quanto ao advogado, não consegui chegar a conclusão nenhuma, por isso contratei um para investigar
aqui. Lana Campbell. É ela que representa as pessoas a favor da preservação do sítio arqueológico.
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Conheci-a um destes dias. Parece-me uma pessoa inteligente e metódica e alguém que não desiste facilmente. Acho que se pode dizer que preciso de começar a remover
a camada superficial para poder descobrir o que está por baixo de tudo isto.
- O advogado sabia, de certeza.
- Sim. - Os lábios de Callie comprimiram-se. - Com certeza.
- Então, é o teu ponto de partida. Tudo começa nele. Quero ajudar-te.
- Porquê?
- Ambos somos bons a resolver enigmas, querida. E juntos somos do melhor que há por aí.
- Isso não responde à pergunta.
- Sempre foi difícil deixares escapar qualquer coisa. - Afastou o prato, estendeu o braço e pegou-lhe na mão. Os dedos dele apertaram-lha quando ela tentou libertar-se.
- Não sejas tão comichosa. Credo, Dunbrook, passei as mãos por todos os centímetros do teu corpo e ficas toda irritada só porque te toquei nos dedos.
- Não fiquei irritada e os dedos são meus.
- Achas que deixaste de interessar-me só porque te passaste comigo?
- Não me passei contigo - disse ela, furiosa. - Tu...
- Vamos deixar isso para outro dia.
- Sabes uma das coisas em ti que me deixavam fora de mim?
- Tenho uma lista num banco de dados.
- A maneira como me interrompes quando sabes que eu tenho razão.
- Vou acrescentar essa. Ocorre-me que fomos muita coisa um para o outro, mas nunca fomos amigos. Gostava de tentar, é só isso.
Se ele lhe tivesse dito que decidira deixar a ciência para passar a vender produtos da Avon de porta em porta, não teria ficado mais surpreendida:
- Queres que sejamos amigos?
- Estou a oferecer-me para ser teu amigo, sua cabeça dura. Quero ajudar-te a descobrir o que aconteceu.
- Chamar-me cabeça dura não é muito simpático.
- É mais simpático do que a alternativa que me veio à ideia.
- Está bem, ganhaste. Há muita porcaria entre nós, Jake.
- Talvez um destes dias chafurdemos nela. Mas agora temos duas prioridades. - Passou o polegar pelos nós dos dedos dela. Era mais forte do que ele. - A escavação
e o teu enigma. Quanto à primeira,
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não temos outra hipótese senão trabalharmos juntos. Porque não fazer o mesmo quanto à segunda?
- Vamos chatear-nos.
- Vamos sempre chatear-nos, seja como for.
- É verdade, não há dúvida de que é verdade. - Isso perturbava-a menos do que o desejo que sentia de entrelaçar os dedos nos dele. - Obrigado, Jake. Sinceramente.
Agora, larga a minha mão. Estou a começar a sentir-me uma idiota.
Ele soltou-a e tirou a carteira do bolso.
- Podemos voltar ao teu quarto. Faço-te uma massagem nos pés.
- Esses dias acabaram, Jake.
- É pena. Sempre gostei dos teus pés.
Pagou a conta e manteve as mãos nos bolsos enquanto saíam.
Callie fechou os olhos devido à luminosidade que a surpreendeu. Parecia que estavam dentro do bar há horas. Mas ainda faltava muito para anoitecer, pensou. Teria
tempo de ir até ao sítio das escavações e dar uma olhadela, se conseguisse arranjar energia.
Tirou os óculos e franziu os lábios quando Jake tirou um pedaço de papel do pára-brisas.
- Voltem para Baltimore, ou vão ver - leu Jake. Amarrotou o bilhete e atirou-o para dentro do carro. - Acho que vou até lá acima ver se está tudo bem com o Digger.
- Vamos lá acima ver se está tudo bem com o Digger.
- Muito bem. - Jake entrou e esperou que Callie deslizasse até ao assento ao seu lado. - Ontem à noite, ouvi-te - comentou ele.
- Estou mesmo no quarto ao lado e as paredes são finas.
- Então vou ter de ter cuidado quando convidar o Austin e o Jimmy para uma festa.
- Vês como és atenciosa, agora que somos amigos?
Ela riu e nesse momento ele inclinou-se e colou os lábios aos dela.
Por um instante, Callie ficou completamente chocada. Como podia todo aquele fogo persistir ainda? Como? E no meio do choque sentiu o desejo urgente de se enrolar
a ele e arder.
Antes de conseguir fazê-lo, já ele recuava e rodava a chave na ignição.
- Cinto - disse ele em tom casual.
Ela cerrou os dentes, mais furiosa com ela do que com ele. Pôs o cinto enquanto ele recuava.
- Guarda as tuas mãos e a tua boca para ti, Graystone, ou esta amizade não vai durar muito tempo.
100
- Ainda gosto do teu sabor. - Deu a volta e saiu do parque de estacionamento. - É difícil perceber porquê, depois... Espera, espera aí. - Bateu com a mão no volante.
- Por falar em sabor. Suzanne Cullen. A Cozinha da Suzanne?
- Ha?
- Eu sabia que já tinha ouvido o nome em qualquer lado. Meu Deus, Cal. A Cozinha da Suzanne.
- Bolinhos? Aqueles espantosos bolinhos de chocolate?
- Brownies com nozes. - Soltou um ligeiro som de satisfação.
- Espera... estou a pensar numa coisa.
- A Cozinha da Suzanne é da Suzanne Cullen.
- Uma grande história. Sabes, fazia os bolinhos na sua casa, no campo. Vendia as tartes e os bolos nas feiras. Começou um pequeno negócio e depois bum!, um tesouro
nacional.
- A Cozinha da Suzanne - repetiu Callie. - Filho da mãe.
- Isso pode explicar a tua obsessão genética por açúcar.
- Muito engraçado. - Mas o que sentia no fundo da garganta não era humor. - Tenho de encontrar-me com ela, Jake. Tenho de dizer-lhe que temos que fazer testes. Não
sei como hei-de falar com ela.
Ele tocou-lhe na mão, mas manteve o contacto apenas por breves instantes:
- Hás-de arranjar uma maneira.
- Ela tem um filho. Acho que também tenho de arranjar uma maneira de falar com ele.
Doug estava a tentar arranjar uma maneira de lidar com Lana Campbell.
Ela já estava sentada à mesa quando ele chegou ao restaurante, e bebericava um copo de vinho branco. Trazia um vestido de Verão macio, fino, simples - e não um dos
fatos desinteressantes que ele lhe conhecia.
Sorriu quando ele se sentou diante dela, e depois inclinou a cabeça como ele já a vira fazer enquanto reflectia sobre alguma coisa. Ou alguém.
- Não tinha a certeza se viria.
- Se não viesse, o meu avô deserdava-me.
- Somos tão maus, a conspirar contra si desta maneira. Quer tomar alguma coisa?
- O que é isso que está a beber?
101
- Isto? - Ergueu o copo à luz da vela que havia entre eles. - Um chardonnay da Califórnia muito aceitável, amanteigado mas não muito carregado, com um bouquet delicioso
e boa fibra.
Os olhos dela sorriram quando ela bebeu mais um gole:
- É suficientemente pomposo para si?
- Mais ou menos. Vou provar. - Deixou que ela pedisse um copo para ele, e uma garrafa de água com gás. - Muito bem, porque é que andam a conspirar contra mim?
- O Roger porque o ama, tem orgulho em si e preocupa-se consigo. Teve uma vida boa com a sua avó e acha que você só conseguirá ter uma boa vida quando encontrar
a mulher que está destinada a partilhar essa vida consigo.
- E essa mulher é você.
- E, neste momento, essa mulher sou eu - concordou ela.
- Porque ele me ama também. E preocupa-se com o facto de eu estar sozinha, a criar uma criança sem um pai. É um homem à moda antiga, na melhor acepção do termo.
- Isso explica a posição dele. E a sua?
Ela demorou algum tempo a responder. Sempre gostara da arte da sedução e deixou o seu olhar percorrer-lhe o rosto:
- Pensei que gostaria de jantar fora com um homem atraente. E você foi o eleito.
- Quando é que apresentei a minha candidatura? - perguntou ele, fazendo-a rir.
- Vou ser franca consigo, Doug. Não tenho saído muito desde que o meu marido morreu. Mas gosto de pessoas, de companhia, de conversar. Sinceramente, acho que o Roger
não precisa de preocupar-se com nenhum de nós, mas isso não significa que não possamos fazê-lo feliz tomando uma refeição juntos e apreciando a companhia e a conversa.
Abriu a sua ementa:
- E aqui a comida é óptima.
A empregada trouxe a bebida dele e, num monólogo animado, informou-os sobre as especialidades da noite, antes de voltar a afastar-se para lhes dar tempo para se
decidirem.
- De que é que ele morreu?
Ela fez uma curta pausa, que foi, no entanto, suficientemente longa para Doug ver a dor perpassá-la.
- Foi morto. Num assalto a uma loja de conveniência. Já era tarde, mas saiu porque o Ty estava agitado e ninguém conseguia dormir.
Ainda doía. E ela sabia que nunca iria deixar de doer. Mas já não receava que a recordação a fizesse sucumbir.
102
- Apeteceu-me gelado. Steve correu até ao 7-Eleven para comprar. Eles entraram no momento em que ele se dirigia ao balcão para pagar.
- Lamento.
- Eu também. Foi uma coisa sem sentido. Não havia muito dinheiro que pudessem levar, e nem Steve nem o empregado fizeram o que quer que fosse para resistir ou para
intervir. E foi horrível. Num instante a minha vida era uma coisa e no instante seguinte era outra, completamente diferente.
- Sim, sei o que é isso.
- Sabe? - Antes que ele pudesse responder, ela estendeu o braço sobre a mesa e tocou-lhe na mão. - Desculpe. Esqueci-me. A sua irmã. Suponho que isso nos dá algo
traumático em comum. Talvez tenhamos outros aspectos em comum, mais animados. Eu gosto de livros. Mas acho que não os trato com cuidado, de tal modo que bibliófilos
como você e Roger ficariam arrepiados.
Era mais forte do que parecia, pensou ele. Suficientemente forte para voltar a colar os cacos depois de desfeitos. Respeitando isso, esforçou-se um pouco mais para
cumprir a sua parte no encontro daquela noite.
- Encaracola os cantos das páginas?
- Por favor, nem mesmo eu chegaria a tanto. Mas estrago lombadas. Entorno café em cima das páginas. E uma vez deixei cair um romance da Elizabeth Berg na banheira.
Acho que era a primeira edição.
- É óbvio que esta relação está condenada. Então, porque não fazemos o pedido?
- E afinal - começou ela depois de o terem feito -, lê mesmo ou só compra e vende?
- Não se trata de mercadoria, são livros. Não valeria a pena estar no negócio dos livros se não os valorizasse pelo que são.
- Imagino que haja um certo número de livreiros que não os valorizam. Sei que o Roger adora ler. Mas por acaso eu estava na loja quando ele abriu uma encomenda sua
e encontrou lá dentro a primeira edição de Moby Dick. Tocou naquele livro com tanta ternura como se fosse uma amante. Não se teria enrolado na sua cadeira preferida
para lê-lo, nem com uma pistola apontada à cabeça.
- É para isso que serve uma boa reedição em livro de bolso. Ela inclinou a cabeça e ele notou o brilho das pequenas pedras coloridas que ela trazia nas orelhas:
- É a descoberta? A caça ao tesouro?
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- Em parte.
Ela esperou um instante.
- Bem, não há dúvida de que és mesmo um fala-barato. Já chega de falarmos sobre si. Não vai perguntar-me porque me tornei advogada?
- Sabe qual é o problema quando se faz uma pergunta à maioria das pessoas?
Ela sorriu sobre o rebordo do seu copo de vinho:
- Elas respondem.
- Lá está você. Mas já que aqui estamos vou perguntar: porque se tornou advogada?
- Gosto de argumentar. - Pegou no garfo, pois entretanto fora servido o primeiro prato.
- É só isso? Gosta de argumentar. Não vai explicar-se melhor?
- Hummm... Neste momento não. E da próxima vez que me fizer uma pergunta, vou pensar que é porque está mesmo interessado na resposta. O que gosta de fazer, além
de ler e andar à caça de livros?
- Isso ocupa-me a maior parte do tempo.
Se falar com ele ia ser como arrancar dentes, era melhor munir-se de um alicate, pensou ela.
- Deve gostar de viajar.
- Tem os seus momentos.
- Tais como?
Ele olhou para ela, e o seu rosto espelhava uma tal frustração que ela riu:
- Sou implacável. Também pode desistir e falar-me de si. Vamos ver... Toca algum instrumento musical? Interessa-se por desporto? Acha que Lee Harvey Oswald agiu
sozinho?
- Não. Sim. Não tenho opinião formada.
- Apanhei-o. - Agitou o garfo. - Sorriu.
- Não sorri nada!
- Sorriu, sim. E está a sorrir outra vez. Um belo sorriso, de resto. Dói?
- Um pouco. Estou destreinado.
Ela pegou no vinho e soltou uma gargalhada:
- Aposto que conseguimos resolver isso.
Doug divertiu-se mais do que esperava. Claro que, uma vez que ele fora ao jantar só para o avô deixar de chateá-lo, isso não era dizer muito.
104
Mas, para ser honesto, gostara da companhia dela. Era... intrigante, pensou, quando saíram do restaurante. Era uma mulher inteligente e interessante, suficientemente
forte para ter enfrentado um golpe pessoal terrível e construído uma vida cheia.
Não podia deixar de admirar isso, já que nesse campo ele não se saíra tão bem.
A juntar a isso, era agradável olhar para ela. Deus sabia que olhar para ela, ouvi-la, deixar-se levar por ela o distraíra da sua situação familiar durante algumas
horas.
- Diverti-me muito. - Quando chegaram junto do carro dela, Lana tirou as chaves de uma bolsa do tamanho de um selo. - Gostaria de repetir. - Atirou o cabelo para
trás e fixou os olhos azuis em Doug. - Da próxima vez, é você a convidar - disse ela. Depois, pôs-se em bicos de pés e beijou-o.
Ele também não estava à espera daquilo. Um beijo na face não o teria surpreendido. Até um breve encontro de lábios lhe teria parecido de acordo com a personalidade
dela.
Mas isto era um convite quente, húmido. Uma intimidade sedutora capaz de fazer um homem tombar de um precipício do qual não fazia ideia que estava suspenso.
Os dedos dele afloraram-lhe os cabelos, a língua dela dançou suavemente sobre a dele, e o corpo dela colou-se ao dele, num encaixe perfeito. Ele saboreou o vinho
que tinham partilhado e o chocolate que tinham pedido para sobremesa. As notas suaves do perfume dela inebriaram-lhe a mente. Ouviu o ranger de pneus na gravilha
quando alguém entrou ou saiu do parque de estacionamento. E o suspiro suave que ela soltou.
Depois, ela desprendeu-se e deixou-lhe a cabeça à roda.
- Boa-noite, Doug.
Meteu-se no carro e, pela janela fechada, lançou-lhe um olhar prolongado e sensual antes de sair do parque, afastando-se.
Doug demorou quase um minuto a conseguir voltar a juntar duas ideias coerentes.
- Meu Deus - murmurou, aproximando-se do seu carro, devagar. - Meu Deus, avôzinho, em que é que me meteste?
105
Sete

Callie resolveu trabalhar o local das escavações horizontal e verticalmente. Isto
daria à equipa a possibilidade de descobrir e estudar os períodos em que fora habitado e as relações entre artefactos e ecofactos que descobrissem, e simultaneamente
verificar as alterações de período para período, num segmento diferente das escavações.
Precisava do método horizontal, se queria verificar e provar que o local fora em tempos um aglomerado neolítico.
Admitiu para si própria que, para isso, precisava também de Jake. Um antropólogo com o seu conhecimento e as suas capacidades era capaz de identificar e analisar
os artefactos e ecofactos do ponto de vista cultural. Melhor ainda, podia formular - e formularia - teorias, deixando-lhe mais tempo para os ossos.
Digger estava já a trabalhar na parcela que lhe competia, as mãos tão delicadas como as de um cirurgião enquanto revolviam delicadamente o solo com sondas dentais
e pequenas escovas. Usava headphones sobre o seu lenço colorido, e Callie sabia que a música devia estar aos berros. Apesar disso, a sua concentração no trabalho
era absoluta.
Rosie estava na parcela seguinte, a sua pele cor de café com leite gotejava de suor. O seu cabelo era uma fonte de embriaguez contida.
Os dois estudantes acarretavam baldes de entulho proveniente da área que estava a ser escavada. Leo e Jake tiravam fotografias. Callie escolheu o extremo mais distante
da primeira grelha, o mais próximo do lago.
Iam precisar de um fotógrafo para o projecto, pensou ela. Um assistente. Mais mãos para escavar. Mais especialistas.
Ainda estavam nos primeiros dias, mas na ideia de Callie nunca era demasiado cedo para constituir uma equipa forte.
107
Havia demasiadas coisas na sua cabeça. Precisava de concentrar-se, e a melhor maneira de o fazer que conhecia era manter-se o mais afastada possível do grupo. Para
pensar apenas no trabalho, num quadrado específico.
À medida que ia trabalhando, passava o entulho do seu quadrado para uma pá, para ser peneirado. De vez em quando parava, para documentar uma nova camada através
do uso da máquina fotográfica e da sua folha de registos.
Enquanto as melgas zuniam e os mosquitos se aglomeravam à sua volta, ela mantinha-se concentrada no que estava a fazer, metodicamente, quase centímetro a centímetro.
Quando descobria um osso, continuava a registar, a escovar a terra, a deitá-la no balde. O suor escorria-lhe pela cara, pelas costas. A certa altura fez uma pausa
apenas para despir a camisa, continuando depois a trabalhar como se estivesse mergulhada num contentor de líquido.
Depois, sentou-se nos calcanhares, levantou a cabeça e olhou para o campo.
Como se ela tivesse falado, Jake interrompeu também o seu trabalho e virou-se para ela. Embora nenhum deles dissesse uma palavra, ele começou a atravessar o campo.
Depois parou, olhou para baixo e acocorou-se ao lado dela.
Nas profundezas do solo pantanoso, os ossos jaziam quase perfeitamente articulados do esterno ao crânio. Iria continuar a escavar o resto.
Os achados contavam uma história sem palavras. O esqueleto maior com o mais pequeno a seu lado, aninhado na curva do cotovelo.
- Enterraram-nos juntos - acabou Callie por dizer. - Pelo tamanho dos restos mortais, a criança morreu à nascença ou pouco depois. À mãe aconteceu provavelmente
a mesma coisa. O laboratório deve conseguir confirmar isso. Enterraram-nos juntos - repetiu. - A intimidade disto excede o nível tribal. Tem a ver com família.
- O Leo tem de ver isto. Vamos precisar de escavar o que falta destes esqueletos. E o resto deste segmento. Se fazia parte da sua cultura enterrar assim os mortos,
estes dois não estão sozinhos.
- Não. - Era exactamente isso que ela sentia. - Não estão sozinhos. Isto é um cemitério.
Ter-se-iam amado?, perguntou-se. O laço ter-se-ia estabelecido tão depressa, entre mãe e bebé, bebé e mãe? Suzanne tê-la-ia segurado assim momentos depois de ela
ter respirado sozinha pela primeira
108
vez? Perto dela, em segurança, enquanto as dores do parto se desvaneciam?
O que fica gravado quando se está dentro do útero, e naqueles primeiros momentos de vida? Ficariam essas imagens impressas na mente para sempre?
E não fora também isso que acontecera com a sua mãe? Os mesmos laços quando Vivian Dunbrook estendera os braços para pegar, para abraçar junto a si e em segurança
a filha que tanto desejara?
O que era uma filha senão amor? E ali estava a prova de que o amor podia durar milhares de anos.
Porque havia isso de deixá-la tão terrivelmente triste?
- Vamos precisar de consultar um americano nativo. - Jake pousou uma mão no ombro dela quando se ajoelharam sobre o túmulo.
- Vou fazer os telefonemas.
Ela sacudiu o ombro para afastar a mão.
- Trata disso. Mas isto precisa de sair daqui - disse ela antes de ele conseguir falar. - Rituais e sensibilidades à parte, expu-los ao ar. Precisam de ser tratados
e preservados, ou vão secar e desfazer-se.
Jake olhou para o céu ao ouvir o ribombar de um trovão.
- Nada vai secar hoje. A tempestade vai desabar. - Ignorando a resistência dela, fê-la pôr-se de pé. - Vamos documentar isto antes que desabe.
Passou o polegar pelo corte recente nas costas da mão dela:
- Não estejas triste. Afastou-se dele deliberadamente.
- É uma descoberta-chave.
- E toca especialmente fundo, neste momento.
- A questão não é essa. - Não podia deixar que fosse. Baixou-se para pegar na sua máquina fotográfica e começar a fotografar.
Ela já se afastara dele e o único som que se ouvia era o clique do obturador. Jake ordenou a si próprio que fosse paciente.
- Vou fazer os telefonemas.
- Não vou deixar que ela e o filho se desfaçam enquanto tu conferencias com os índios. É melhor que te despaches, Graystone - ordenou ela, e foi buscar Leo.
A descoberta, feita por Digger, de uma armação de veado e de um osso tornado oco, que parecia ter sido usado como uma espécie de apito, foi suplantada pela dos esqueletos.
Mas com eles, e as lascas, as pontas de arpão que Rosie desenterrou, Callie começou a formar uma imagem mental do núcleo.
109
A tempestade desabou, como Jake previra. Isso deu-lhe espaço para se meter no quarto do motel e fazer um esboço do povoado. A zona onde eram fabricadas as ferramentas,
as cabanas, o cemitério. Se estivesse certa, encontrariam o lixo da cozinha algures entre as áreas D-25 e E-12.
Precisava de mais mãos e só esperava que as descobertas de hoje fizessem aparecer algumas.
Quando o telefone tocou, atendeu um tanto distraidamente. No momento em que ouviu a voz do pai, o foco da sua atenção mudou radicalmente.
- Não tinha a certeza se te apanharia a esta hora, mas pensei em tentar ligar para aí antes de experimentar o telemóvel.
- Fomos apanhados por uma tempestade - disse-lhe ela. - Estou à volta com a papelada.
- Queria dizer-te que localizei Henry Simpson. Está reformado, vive na Virgínia. Eu... tive uma conversa breve com ele. Querida, não sabia ao certo o que querias
que eu lhe dissesse. Disse-lhe que estavas interessada em saber um pouco mais sobre os teus pais biológicos. Espero que não tenha feito mal.
- Parece-me o mais simples.
- Ele não soube dizer-me muito. Acha que Marcus Carlyle se mudou. Parece não saber para onde nem quando, mas... hummm... disse-me que ia ver se conseguia descobrir.
- Obrigado. Sei que isto não é fácil para ti, nem para a mãe. Ah, se eu decidir falar com o Dr. Simpson, provavelmente vou pedir-lhe que volte a falar com ele, que
lhe forneça informações mais específicas.
- Como quiseres. Callie, essa mulher, Suzanne Cullen... o que tencionas dizer-lhe?
- Não sei. Não posso deixar as coisas como estão, pai. - Voltou a pensar nos ossos. Mãe e filho. - Nunca conseguiria viver com isso.
Seguiu-se uma longa pausa e um ligeiro suspiro.
- Não, acho que não conseguirias. Estamos aqui se precisares... de alguma coisa.
- Sempre estiveram.
Não ia conseguir voltar ao trabalho, pensou depois de desligar. Nem ia conseguir suportar ficar encaixotada no quarto. Olhou para o violoncelo. Mas havia alturas,
pensou, em que a música não acalmava o animal selvagem.
A única maneira de avançar era dar o passo seguinte.
Telefonou a Suzanne.
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As direcções eram pormenorizadas e exactas. Isso disse a Callie que Suzanne conseguia ser controlada e organizada, quando era necessário. Calculava que sim, pensou
enquanto seguia pelo longo caminho de gravilha, por entre as árvores. Não chegaria a ter uma empresa de dimensões nacionais, criada a partir do nada, se fosse agitada
e dispersa como parecera na visita que fizera a Callie, no quarto do motel.
Era também óbvio, considerou Callie, que ela gostava de manter a sua privacidade. Mantivera as raízes no lugar onde nascera, mas enterrara-as em terreno recatado.
A casa em si evidenciava bom gosto, segurança financeira e gosto por espaços amplos. Era de madeira cor de mel, de linhas contemporâneas, com dois grandes terraços
e muita relva. Muitas plantas também, notou Callie, todas elas viçosas e bem cuidadas, com aquilo que pareciam ser alpondras ou caminhos de pedra, serpenteando por
entre grandes carvalhos ou zonas de relva irrepreensivelmente aparada.
Tratava-se, na opinião de Callie, de uma boa maneira de analisar uma pessoa, este estudo do local por ela escolhido para habitar. Imaginou que Jake concordaria.
A forma e o lugar onde um indivíduo decidiu viver diziam muito sobre a personalidade desse indivíduo, as suas origens e a sua cultura.
Enquanto estacionava atrás de um SUV de modelo recente, Callie tentou lembrar-se do que Suzanne trazia vestido quando fora ao motel. A escolha do vestuário, dos
acessórios, do estilo, eram outros sinais do tipo e da categoria da pessoa.
Mas não conseguia lembrar-se com clareza.
Embora a trovoada tivesse passado, a chuva continuava a cair. Callie saiu do carro e chegou ao alpendre da frente a pingar.
A porta abriu-se de imediato.
Trazia vestidas umas calças pretas muito elegantes e uma blusa de bom corte, verde-água. A maquilhagem parecia recente e o cabelo estava cuidadosamente penteado.
Estava descalça.
A seu lado, um grande labrador preto, cuja cauda batia na parede como um metrónomo feliz.
- Por favor... entre, saia da chuva. A Sadie é inofensiva, mas posso levá-la daqui, se quiser.
- Não, deixe-a estar. - Callie estendeu a mão, deixou o cão cheirá-la, e depois lambê-la, antes de acariciar o pêlo entre as orelhas de Sadie. - Belo cão.
111
- Tem três anos e é um bocado rebelde. Mas é uma óptima companhia. Gosto de viver aqui, mas sinto-me mais segura com a Sadie dentro de casa ou à solta na propriedade.
Claro que é tão meiga que se limitaria a lamber um ladrão até à morte se... Desculpe, estou a tagarelar.
- Não faz mal.
Callie sentiu-se um pouco embaraçada, e continuou a afagar a cabeça do cão enquanto Suzanne olhava para ela.
- Precisamos de falar.
- Sim, claro. Fiz café. - Suzanne fez um gesto na direcção da sala. - Ainda bem que telefonou. Eu não sabia ao certo o que fazer a seguir. - Parou junto do sofá
e virou-se. - Continuo a não saber.
- Os meus pais. - Callie precisava de começar por ali, para estabelecer a sua lealdade. E, no entanto, sentiu-se miseravelmente desleal quando se sentou na atraente
sala de Suzanne, com o grande e dócil cão caindo pesadamente aos seus pés, com ar de adoração.
- Falou com eles.
- Sim, falei. Fui adoptada em Dezembro de 1974. Foi uma adopção privada. Os meus pais são pessoas muito decentes, respeitadoras da lei, adoráveis, Sr.a Cullen...
- Por favor. - Não iria deixar que as mãos lhe tremessem. Decidida, pegou na cafeteira e deitou o café nas chávenas sem deixar cair uma gota. - Não me chame isso.
Podia, pode pelo menos chamar-me Suzanne?
Por agora, pensou. Só por agora.
- Foi uma adopção privada - continuou Callie. - Contrataram um advogado, a conselho do obstetra da minha mãe. Ele arranjou-lhes uma menina muito rapidamente e por
uma quantia bastante substancial. Deu-lhes alguma informação básica sobre a mãe biológica.
- Disse-me que não era adoptada - interrompeu Suzanne.
- Não sabia que era.
- Eles tiveram as suas razões para não me dizerem. Razões que só a eles dizem respeito. Qualquer que seja a situação em que nos encontremos, tem de entender desde
já que eles não fizeram nada de mal.
Mas as mãos tremeram-lhe um pouco.
- Gosta muito deles.
- Gosto. Tem de entender isso, também. Se eu fui a criança que lhe roubaram...
- Sabe que é. -Jessica. Minha Jessie. Tudo dentro de si chorava.
- Posso teorizar, mas não posso saber. Há testes que podemos fazer para determinar a origem biológica.
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Suzanne inspirou profundamente. Sentia a pele tão quente que os ossos poderiam derreter:
- E quer fazê-los?
- Precisamos de saber. Merece saber. Vou fazer o que puder para encontrar as respostas. Não sei se posso dar-lhe mais do que isso. Lamento. - O coração de Callie
começou a bater descompassadamente quando as lágrimas afloraram aos olhos de Suzanne. - Isto é difícil para todos. Mas mesmo que eu tenha sido essa criança, ela
não é quem eu sou agora.
- Eu faço os testes. - Também havia lágrimas na sua voz, turvando-a. Encobrindo as palavras. - E o Jay, o seu... o meu ex-marido. Vou contactá-lo. Ele vai fazê-los.
Quanto tempo até sabermos? De forma conclusiva?
- O meu pai é médico. Vai acelerar o processo.
- Como posso saber se ele não vai interferir nos resultados? O primeiro sinal de irritação assomou ao rosto de Callie.
- Porque ele é quem é. Neste aspecto, terá de confiar em mim ou não vale a pena irmos mais longe. Tenho a informação aqui. - Tirou um pedaço de papel da mala e colocou-o
na mesa, ao lado do tabuleiro com o café e os bolinhos. - Isto explica o que precisam de fazer, para onde enviar as amostras de sangue. Se tiverem alguma dúvida
sobre o procedimento, o vosso médico deverá poder dar-vos as respostas.
- Não consigo pensar. Parece que não consigo pensar. - Lutava contra as lágrimas, porque lhe nublavam a visão. Aquela era a sua filha. Tinha que ver a sua filha.
- A vida mudou naquele momento em que te virei as costas, enquanto dormias no teu carrinho. Um minuto
- disse Suzanne, o mais calmamente que conseguiu. - Talvez dois. Não mais do que isso. E a minha vida mudou. A tua também. Quero uma oportunidade para recuperar
um pouco disso, saber quem tu és, partilhar contigo uma parte desses anos perdidos.
- Tudo o que posso dar-lhe agora são respostas. Como, porquê e, espero, quem. Nada disso pode compensar o que lhe aconteceu. Nada disso pode fazer com que as coisas
voltem atrás e que eu volte a ser a sua filha.
Isto estava errado, pensou Suzanne. Desesperadamente, amargamente. Encontrar a sua filha só para ouvir essa filha falar naquele tom frio e distante. Ver a sua filha
estudá-la como se fossem estranhas.
- Se é isso que sente, porque veio? Podia ter-me ignorado, ou insistido em não ter sido adoptada.
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- Não fui ensinada a mentir, nem a ignorar a dor dos outros. O que aconteceu não foi culpa sua. Não foi culpa minha, não foi culpa dos meus pais. Mas alguém é culpado.
Alguém mudou o rumo das coisas, e muito provavelmente mudou-o por dinheiro. Também quero respostas.
- É desconcertantemente franca e honesta. Imaginei muitas vezes como seria voltar a vê-la, falar consigo. Nada do que imaginei era assim.
- Procura ou espera um tipo de reunião que não posso dar-lhe, um tipo de laço que não sinto.
Todas as cicatrizes do seu coração reabriram e ficaram em carne viva.
- E o que sente?
- Desculpe, Mrs. Cullen... Suzanne - corrigiu, e desejou conseguir aproximar-se. Desejou conseguir ultrapassar as suas próprias barreiras e aproximar-se. - Lamento
por si e pela sua família. E pela minha. Sinto-me um pouco abalada com tudo isto. Uma parte de mim queria que nunca me tivesse visto nas notícias, porque no momento
em que viu voltou a mudar a minha vida. E agora não sei onde isto vai levar.
- Nunca faria nada para magoá-la.
- Gostava de conseguir dizer o mesmo, mas receio que quase tudo o que faça vá magoá-la.
- Talvez pudesse dizer-me alguma coisa sobre si. Alguma coisa que tenha feito ou gostasse de fazer. Qualquer coisa.
- Hoje encontrei uns ossos. - Quando Suzanne piscou os olhos, surpreendida, Callie conseguiu esboçar um sorriso e tirou um bolinho. - A escavação - prosseguiu. -
Acho que se trata de um povoado. Um povoado neolítico junto ao leito do ribeiro, perto das montanhas, onde uma tribo construiu casas, criou filhos, caçou, começou
a trabalhar a terra. Hoje encontrei provas que acho que vão começar a confirmar essa teoria. Se for um grande povoado, como espero que seja, podemos andar a escavar
durante vários anos.
- Ah. Bem, o Ronald Dolan vai ter um ataque por causa disso.
- Provavelmente. Mas não vai servir-lhe de nada. Vamos ter uma atenção considerável, por parte dos meios de comunicação, da comunidade científica. O Dolan vai ter
que aceitar que o seu empreendimento está votado ao fracasso.
- Se um dia destes eu aparecer no local das escavações, mostra-me o que estão a fazer?
114.
- Claro. Foi você que fez estes? - Levantou o bolinho meio comido.
- Sim. Gosta? Dou-lhe uma caixa para levar. Eu...
- São óptimos. - Era uma espécie de aproximação, pensou Callie. A melhor de que era capaz, naquele momento. - O meu... sócio
- acabou por concluir, decidindo que era a melhor maneira de descrever Jake. - Reconheceu o seu nome. A Cozinha da Suzanne? Há anos que ando a engolir os seus bolos.
- Verdade? - As lágrimas ameaçaram voltar a soltar-se, mas ela reteve-as. Em vez delas, surgiu nos seus olhos alguma satisfação.
- Fico feliz por saber isso. É muito amável.
- Não, não sou. Sou teimosa, irrito-me com facilidade, sou egoísta, de ideias fixas, e raramente simpática. Só que não penso nisso.
- Foi muito amável comigo, e uma parte de si deve... Só agora percebi. Uma parte de si deve estar zangada comigo.
- Não sei. Ainda não descobri.
- E é cuidadosa com os seus sentimentos. - Como Callie franzisse o sobrolho, Suzanne rearranjou nervosamente os bolinhos no prato. - Quero dizer, parece-me que não
mostra os seus sentimentos facilmente. O Douglas é assim. Mesmo quando era um rapazinho, era cuidadoso. Pensava tanto! Percebe o que quero dizer? Quase podíamos
ver o seu pensamento a reflectir. Mas, o que pretende dizer com isso, exactamente?
Riu, pegou num bolinho, voltou a pousá-lo.
- Há tantas coisas que quero dizer-lhe. Tanto que... Tenho uma coisa para si.
- Suzanne...
- Não é bem um presente. - Levantou-se, aproximou-se de uma mesinha de apoio e pegou numa caixa. - São cartas. Escrevi-lhe uma carta por ano, no dia do seu aniversário.
Ajudou-me a suportar a situação.
- Mas ainda não tem a certeza se foi a mim que as escreveu.
- Ambas sabemos que foi. - Voltou a sentar-se e pousou a caixa no colo de Callie. - Significaria muito para mim se as aceitasse. Não precisa de lê-las, mas acho
que vai lê-las. É curiosa, ou não faria o que faz. Por isso está decidida a investigar, bem, a investigar isto.
- Muito bem. Ouça, tenho de trabalhar - começou Callie a dizer, e levantou-se.
- Há ainda tantas coisas que eu... - No momento em que Suzanne se pôs de pé, Sadie soltou um latido de alegria e correu para a porta.
115
A porta abriu-se e Doug entrou.
- Não é possível! - Com um riso exasperado, afastou os mais de trinta quilos de alegria canina quando Sadie lhe saltou para cima.
- Não tínhamos já falado sobre isto? Que tal mostrar um pouco de orgulho e...
Calou-se quando olhou para a sala.
Mil coisas atravessaram-lhe a mente, o coração, cruzaram-lhe o rosto antes de empalidecer.
- Doug. - Suzanne levou a mão ao pescoço e abotoou o último botão da blusa. - Não estava à tua espera. Esta é... oh, meu Deus!
- Callie. - Embora desejasse escapar à súbita tensão eléctrica que invadiu a sala, meteu a caixa debaixo do braço. - Callie Dunbrook.
- Sim, eu sei. Desculpe. - Desviou o olhar para a mãe. - Devia ter telefonado.
- Não. Não sejas tonto, Doug.
- Eu já estava de saída. Eu... depois digo qualquer coisa - disse Callie a Suzanne.
- Acompanho-a à saída.
- Deixe estar. - Callie manteve os olhos pousados no rosto de Doug enquanto se encaminhava para a porta. E embora o seu coração batesse com força, manteve a compostura
quando passou por ele e abriu a porta.
Correu para o carro, abriu a porta e atirou a caixa para cima do assento.
- Porque veio aqui?
Afastou o cabelo molhado dos olhos e quando se virou viu Doug a seu lado, à chuva. Envolvia-o a mesma tensão eléctrica, quase visível. Ficou à espera de ver a chuva
rechinar ao tocar-lhe na pele.
- Não queria chateá-lo. Nem sequer o conheço.
- Neste momento, a minha mãe está num estado de espírito difícil. Não precisa que venha aumentar as dificuldades passando por cá para tomar café e bolinhos.
- Está bem, ouça. Se eu quiser passar por cá para tomar café e bolinhos, o mundo é livre. Mas acontece que não foi por isso que vim. Não quero perturbar a sua mãe.
Não quero armar qualquer confusão na vossa vida. Mas todos precisamos de algumas respostas.
- E para quê?
- Precisamente para obtermos respostas.
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- Todos os anos, desde que a Cozinha da Suzanne passou a ter uma dimensão nacional, tem aparecido alguém a dizer que é a filha que ela perdeu há muito tempo. O seu
trabalho depende de subsídios e donativos, não é verdade?
Ela levantou o queixo, deu um passo em frente até as suas botas ficarem encostadas às biqueiras dos sapatos dele e disse-lhe cara a cara:
- Vá-se lixar.
- Não vou permitir que ninguém a magoe. Nunca mais.
- E isso faz de si o bom filho?
- Seu irmão é que não me faz!
- Bem, que alívio. Deixe-me lembrar-lhe, Doug, que foi ela que veio ter comigo. Apareceu do nada, e agora a minha vida está virada do avesso. Ontem, deixei os meus
pais num estado emocional miserável. Tenho de ir tirar sangue e fazer testes e lidar com uma coisa da qual não estava minimamente à espera. E não estou nada contente
com isso, por isso não me chateie!
- Ela não significa nada para si.
- Isso também não é culpa minha. - Mas a culpa tinha peso.
- Nem dela. Se está preocupado com a sua herança, descanse. Não quero o dinheiro dela. Olhe, estou com uma disposição lastimosa por estar há vinte minutos a vê-la
tentar não se descontrolar. Se quer que descarregue a minha má disposição em cima de si, terei muito gosto. Se não, tenho coisas melhores para fazer do que ficar
à chuva, a discutir consigo.
Callie rodou nos calcanhares, saltou para dentro do Rover e bateu a porta com força.
Se ter um irmão significava aquilo, pensou ela, mal resistindo a passar-lhe com o carro por cima dos pés, tinha tido muita sorte nos primeiros vinte e oito anos
da sua vida.
Quando chegou ao motel, a sua má disposição atingira o auge. Quando abriu a porta, o telemóvel e o telefone do quarto tocaram em simultâneo.
Tirou o telemóvel da mala:
- Dunbrook, espere.
Deitou a mão ao telefone do quarto:
- Dunbrook, o que foi?
- Bem, não é preciso morder-me - disse-lhe Lana. - Só telefonei para fazer um rápido ponto da situação. Mas se vai começar a rosnar-me, vou aumentar os meus honorários.
- Desculpe. O que tem para me dizer?
- Preferia falar consigo pessoalmente. Pode vir até cá?

- Acabei de chegar ao quarto. Estou um bocado "rota".
- Vou eu aí. Dê-me meia hora.
- Pode só...
- Não. Meia hora - disse ela, e desligou.
- Merda! - Callie pousou o auscultador com brusquidão e preparava-se para voltar a pegar no telemóvel quando alguém bateu à porta.
- Óptimo, maravilhoso. - Escancarou a porta e olhou para Jake.
- Será que ninguém tem mais que fazer do que chatear-me?
Deu meia volta e afastou-se dele, e encostou o telemóvel ao ouvido:
- Sim?
- Estava a perguntar-me onde estarias. - A voz de Jake soou em estereofonia, ao ouvido e nas costas dela. Callie virou-se e viu-o encostado ao batente da porta,
com o telemóvel encostado ao ouvido, a chuva a bater-lhe nas costas. - Eu estava no restaurante e pensei em falar de algumas novidades. Não atendeste aqui, por isso
tentei o telemóvel.
- Porque diabo continuas a falar comigo ao telefone, se já estás aqui?
- E tu?
Callie lançou um longo olhar de sofrimento ao tecto e atirou o telemóvel para cima da cama:
- Que novidades?
Ele entrou e fechou a porta. E quando ele começou a andar na direcção dela, ela estendeu a mão como um polícia de trânsito num cruzamento. Conhecia aquele brilho
nos olhos dele:
- Hã-hã.
- Estás toda molhada. Sabes que fico louco quando estás toda molhada.
- Vais sentir-te realmente louco quando eu te der com este candeeiro. Afasta-te, Graystone. Não estou com disposição para brincadeiras.
- Estás com ar de quem precisa de uma boa brincadeira.
- Isso é um eufemismo estúpido, e porque é que os homens acham sempre que uma mulher está mal disposta porque precisa de sexo?
- A esperança é eterna - sugeriu ele, e ficou satisfeito ao ver o humor aflorar-lhe os olhos, embora brevemente.
- Que queres, além de sexo?
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- Além de sexo nada parece ter interesse, mas... - Interrompeu-se, atirou-se para cima da cama dela e cruzou os pés. - Acabei de vir do centro de coscuvilhice local.
A Frieda, a empregada de mesa, diz-me que o Dolan já soube da descoberta de hoje. Ficou que nem uma bala: expressão repetida por ela e usada pelo sobrinho, que por
acaso trabalha para o Dolan e estava lá quando ele soube das novidades.
Era interessante ouvir falar de um drama que não fosse o seu, mas encolheu os ombros:
- E então?
- Então, ameaça levar-nos a tribunal. Alega que estamos a inventar tudo, que estamos feitos com os partidários da preservação e que tudo isto é uma maquinação para
darmos cabo do empreendimento dele. Tens aqui alguma cerveja?
- Não, não tenho aqui nenhuma cerveja. Ele pode ameaçar e vociferar o que quiser. Os ossos estão lá.
- Corre também outro rumor...
- Estás cheio deles, não estás?
- Dizem que este sítio está amaldiçoado. Sabes, os túmulos antigos profanados por cientistas loucos.
Divertida agora, pegou numa Bic e tocou no pavio da sua vela de viagem:
- Outra vez a história das múmias?
- É outra variante. Estamos a libertar forças e poderes antigos, que estão para além da nossa compreensão e blá-blá-blá. - Ele seguiu-a com os olhos quando ela foi
à casa de banho buscar uma toalha, que usou para secar o cabelo enquanto se movimentava freneticamente pelo quarto. - Esta, de acordo com a Frieda, tem algumas pernas
para andar. Sabes como as pessoas têm sempre uma certa avidez por estas merdas.
- Então temos um campo amaldiçoado, um construtor passado e precisamos da consultoria de um americano nativo, que vai supervisionar o nosso trabalho.
Tirou uma camisa lavada do armário e, para profundo desapontamento de Jake, entrou na casa de banho para despir a molhada e vestir a seca:
- Ainda estamos com falta de mão-de-obra e o campo vai estar transformado num buraco lamacento, amanhã, por causa desta chuva.
Inclinou a cabeça, tentando divisar um pouco da sua nudez no espelho. Um homem tinha direito a pequenos prazeres:
- E é tudo.
Ela voltou a entrar no quarto e pegou numa garrafa de água. Começou a andar de um lado para o outro, nervosamente.
119
Ninguém, pensou Jake, podia acusar Callie Dunbrook de ser uma mulher tranquila.
- Bem vistas as coisas, o balanço é positivo - decidiu ela, e sorriu. - Adoro este trabalho.
- Onde foste?
O sorriso desvaneceu-se instantaneamente.
- Assuntos pessoais.
Ele tocou com o dedo do pé na caixa de sapatos aos pés da cama.
- Andaste a comprar sapatos? Andas a pôr-te bonita para mim, Dunbrook?
- Não fui às compras. - Pegou na caixa e depois, com um suspiro, pousou-a em cima da cómoda. - São cartas. A Suzanne Cullen escreveu-as à filha, todos os anos, no
dia do aniversário dela. Meu Deus, Jake, meu Deus! Se visses a cara dela quando fui vê-la, falar com ela! Toda aquela carência, e eu não sei o que hei-de fazer com
ela.
- Podia ter ido contigo. Ela abanou a cabeça:
-Já é suficientemente difícil sem juntar ninguém à mistura. Mas foi mesmo isso que aconteceu quando eu já estava de saída. O filho chegou e não está satisfeito com
nada disto. Falou comigo como se eu tivesse empurrado o meu próprio carrinho para desaparecer há todos estes anos atrás e estragar-lhe a vida. Ficámos à chuva, a
rosnar um ao outro como dois imbecis. Chegou a acusar-me de estar atrás do dinheiro dela.
- Quanto tempo vai ficar hospitalizado?
O comentário fê-la sentir-se ligeiramente melhor. Levantou a cabeça e os seus olhos encontraram-se com os dele, no espelho.
- Tens irmãos, não tens? Um irmão e uma irmã. Também brigam pelos vossos pais como cães a brigar por um osso?
- Brigamos, é tudo - disse ele. - É a natureza da relação. Rivalidade, competição, ninharias. É uma coisa tribal, como a união contra quem vem de fora. Posso dar
um pontapé no rabo ao meu irmão, mas se outra pessoa tentar fazê-lo dou a esta pessoa com o dobro da força. E se alguma coisa acontecesse à minha irmã mais nova,
acho que enlouquecia.
- Eu fui a irmã mais nova dele durante três meses. Que tipo de laço é esse?
- Visceral, Cal. Instintivo. É sangue e osso. A acrescentar a isso, ele é o rapaz, o mais velho, e provavelmente foi-lhe dito que ele tinha de tomar conta de ti.
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Ele aproximou-se dela, para partilhar a água.
- Deve ter sabido isso, instintivamente uma vez mais, talvez se tenha indignado com isso, talvez tenha tomado essa tarefa a peito, mas a verbalização feita por outros
parentes terá trazido a confirmação dos seus instintos. Tu eras a indefesa, a fraca, e ele devia proteger-te. - Fez uma pausa, bebeu um gole e devolveu-lhe a garrafa.
- Não conseguiu. Agora é um homem, e como filho único penso que terá transferido o objecto desse seu dever para a mãe. Tu és uma estranha e, ao mesmo tempo, a filha
perdida. Ele está no inferno de uma terapia de regressão.
- Até parece que estás a tomar o partido dele.
- Estou apenas a articular as teorias básicas. Mas se vieres até aqui, te enroscares em mim e pedires que lhe vá dar uma tareia, posso pensar nisso.
A pancada na porta fê-la apontar o polegar na direcção dela:
- Rua!
Mas quando Callie foi abrir, Jake limitou-se a entrelaçar os dedos atrás da nuca, e instalou-se.
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Oito -

Lana sacudiu o guarda-chuva e apressou-se a entrar no quarto do motel. Pareceu a Callie que ela não apanhara uma única gota de chuva. Havia qualquer coisa de estranho
numa mulher que não se molhava numa tempestade.
- Está horrível, lá fora - começou Lana. - Mal se pode... ah! Inclinou a cabeça quando viu Jake estendido na cama. - Desculpe, não sabia que tinha companhia.
- Ele não é companhia, é um aborrecimento que está a ver se é capaz de transformar-se numa mó. Jacob Graystone, Lana Campbell.
- Sim, conhecemo-nos noutro dia, quando apareci no local das escavações. Prazer em voltar a vê-lo, Dr. Graystone.
-Jake - corrigiu ele. - Como vai?
- Bem, obrigado. - Mó ou não, parecia muito à vontade. - Ouça, Callie, se vim em má altura podemos marcar encontro para amanhã.
- É uma altura tão boa como qualquer outra. Descontando o facto de estarmos um bocado apertados aqui - acrescentou, lançando a Jake um olhar significativo.
- Há muito espaço. - Bateu com a mão na cama, a seu lado.
- Na verdade, o que tenho a falar com a Callie pertence à esfera da privacidade.
- Não há problema - disse-lhe ele. - Somos casados.
- Divorciados. - Callie deu-lhe uma palmada no pé. - Se descobriu alguma coisa, pode falar diante do idiota. Ele está a par de tudo.
- O que significa que, nesta altura, sabe mais do que eu. Bem Lana olhou em volta e decidiu arriscar a pequena cadeira junto à porta.- Tenho algumas informações
sobre Marcus Carlyle. De facto, exerceu direito em Boston no período de tempo que me indicou.
123
Anteriormente exerceu em Chicago, durante catorze anos, e depois em Houston, durante treze. A seguir a Boston, onde ficou cerca de dez anos, mudou-se para Seattle,
onde exerceu mais sete anos.
- O tipo é viajado - comentou Jake.
- Sim. Fechou o escritório em 1986. E depois disso não consegui descobrir mais nada, para já. Posso continuar a procurar, ou posso contratar um investigador que
esteja livre, já que eu não estou, para se deslocar a Seattle, Boston, Chicago, Houston, e colher mais informações na fonte. Vai custar-lhe consideravelmente mais.
Antes de decidir - continuou Lana, antes de Callie poder falar -, precisa de saber que mais descobri.
- A trabalhar a esta velocidade não vai ganhar os quinhentos dólares.
- Oh, acho que vou. - Lana abriu a pasta e tirou lá de dentro os documentos da adopção de Callie. - Fiz uma cópia para os meus ficheiros. Fiz também uma verificação
básica. Esses papéis nunca foram metidos.
- Que quer dizer, nunca foram metidos?
- Quero dizer que nunca houve adopção. Não houve qualquer procedimento legal em nenhum tribunal de Boston ou Massachusetts relacionado com este assunto. Não há qualquer
registo, em lugar nenhum, de que Elliot e Vivian Dunbrook adoptaram uma criança nesta data, em qualquer data anterior ou em qualquer data subsequente à destes documentos.
- Que raio quer isso dizer?
- Quer dizer que Marcus Carlyle não meteu o pedido ao tribunal. O número do caso que figura na petição e na decisão final é falso. Não existe. A assinatura do juiz
e o selo do tribunal são provavelmente falsos, também. Como este juiz morreu em 1986, não posso verificar isso. Mas posso seguir os passos que foram dados. O que
aqui tem, Callie, são documentos forjados no escritório de advocacia de Carlyle e que nunca saíram desse escritório. A adopção não se realizou.
Tudo o que conseguia fazer era olhar fixamente para os papéis, para os nomes dos seus pais:
- Isto não faz sentido.
- Talvez fizesse mais sentido para mim se me dissesse porque me contratou para encontrar este advogado.
Jake levantou-se, agarrou Callie pelos ombros e levou-a até à cama:
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- Senta-te, querida.
Jake acocorou-se, esfregando-lhe as mãos nas coxas:
- Queres que eu lhe diga?
Callie conseguiu acenar afirmativamente com a cabeça.
Ele sabia, pensou ela, alinhar os factos, explicá-los claramente, concisamente. A mente dele funcionava dessa forma - clara e concisa -, por isso conseguia deixar
de lado detalhes irrelevantes e ir directo ao cerne do assunto. Era quase como ouvir uma sinopse de um acontecimento que nada tinha a ver com ela.
O que, supôs, era precisamente a intenção dele.
Enquanto ele falava, Callie levantou-se, foi à casa de banho e tirou aspirina do seu estojo de viagem. Tomou três e depois deixou-se ficar junto do lavatório, a
observar o seu rosto no espelho.
Alguma vez foste o que pensavas que eras?, pensou. Quem pensavas realmente que eras? O que quer que fosse, quem quer que fosse, nenhum documento legal podia mudar
isso.
Nada nem ninguém podia alterar quem era, a não ser ela própria. Enquanto se agarrasse a isso, estaria bem. Conseguiria aguentar.
Quando voltou a entrar no quarto, Lana estava ocupada a tomar notas num dos seus blocos amarelos de advogada.
Lana levantou os olhos:
- Callie, tenho de fazer-lhe uma pergunta fundamental, e preciso que deixe de lado as suas emoções antes de responder. É possível que Elliot e Vivian Dunbrook tenham
estado de alguma forma envolvidos no rapto?
- A minha mãe sente-se culpada se não devolver um livro à biblioteca dentro do prazo. - Meu Deus, estava cansada, pensou Callie. Se Jake a convidasse agora a deitar-se
ao lado dele, nem olharia para trás. - O amor do meu pai por ela fê-lo concordar em manter a minha adopção apenas entre eles. A sua integridade fê-lo manter a documentação
guardada no cofre. Não tiveram nada a ver com o assunto. Não podem ter tido. E, além disso, vi as caras deles quando lhes falei de Suzanne Cullen. São tão vítimas
como ela.
Como tu és, pensou Lana, mas assentiu com a cabeça. A bebé Cullen, voltou a pensar. A irmã de Douglas Cullen. Neta de Roger. Quantas mais vidas iriam ser ainda afectadas?
- Não os conhece - prosseguiu Callie -, por isso não está convencida. Pode verificar a informação que Jake acabou de dar-lhe. Pode investigá-los, se achar que é
caso disso. Mas não quero que desperdice tempo a olhar para eles, quando podia passá-lo a descobrir esse filho da mãe.
125
Atirou os papéis para cima da cama.
- Não se limitava a roubar bebés, também os vendia. De certeza que não fui a única. Tinha um sistema montado e escolheu como alvo casais desesperados, sem filhos,
para ganhar dinheiro.
- Concordo consigo, mas vamos ter de provar isso.
- Contrate o investigador.
- Isso vai aumentar consideravelmente as despesas.
- Dê início ao processo. Eu aviso-a quando tiver que parar de abrir os cordões à bolsa.
- Está bem. Vou tratar disso esta noite. Conheço uma pessoa que costumava trabalhar para a firma onde o meu marido estava, em Baltimore. Se não estiver disponível,
há-de recomendar-me alguém. Callie, os Cullen sabem?
- Fui falar com a Suzanne, hoje. Vamos fazer testes, para confirmar.
Lana voltou a tomar notas no seu bloco e depois pousou a caneta em cima dele.
- Acho que devo dizer-lhe. Tenho uma relação pessoal com Roger Grogan. O pai de Suzanne Cullen - explicou, quando o rosto de Callie revelou que ela não compreendera.
- Somos amigos, bons amigos. E por acaso também saí com Douglas Cullen, ontem à noite.
- Pensei que era casada.
- Fui. O meu marido foi morto há quase quatro anos. Estou interessada no Doug a um nível pessoal. Se isso constituir um problema para si, temos de deixar isso claro
antes de avançarmos.
- Credo! - Callie esfregou as mãos no rosto. - Cidades pequenas. A mim não faz diferença nenhuma, desde que não se esqueça de quem está a representar.
- Sei muito bem quem estou a representar. Posso não compreender o que isto significa para si, ou para qualquer das partes interessadas. Mas sou sua advogada.
- O seu namorado pensa que estou atrás do dinheiro da mãe dele.
- Um encontro não faz dele meu namorado - disse Lana brandamente. - E imagino que vá haver uma certa dose de fricção até isto estar esclarecido. Ele não me parece
um homem simples e conciliador.
- A mim pareceu-me um idiota. Lana sorriu, enquanto se levantava:
- Sim, ele dá essa impressão. Vou apurar mais umas coisas e falar com o investigador. Preciso que passe pelo escritório amanhã, a uma hora que lhe dê jeito. Espero
poder dar-lhe um bom número de informações e que possa passar-me um cheque ainda com mais números.
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Pegou na mão de Callie e apertou-lha suavemente:
- Não vou dizer-lhe que não se preocupe, porque se fosse eu preocupar-me-ia. Mas digo-lhe que tudo o que possa ser feito será feito. Sou tão boa no meu trabalho
como a Callie é no seu.
- Então devemos resolver isto rapidamente. Eu sou realmente boa no que faço.
- Apareça amanhã - disse ela, enquanto pegava no guarda-chuva. - Adeus, Jake.
- Lana. - Como ela parecia ser do tipo apreciador daqueles gestos, Jake foi até à porta e abriu-a para deixá-la sair.
Quando a fechou, mostrou-se hesitante. Não estava bem certo do que devia fazer com ou por Callie. Aguentara-se bem com Lana, mas ele conseguia perceber que sob aquela
capa estava chocada e insegura. E também infeliz.
- Vamos comer uma pizza - decidiu ele.
Ela ficou onde estava, com um ar um pouco estupefacto:
- O quê?
- Vamos comer uma pizza, ver se conseguimos fazer alguma coisa.
- Eu não... Acabaste de vir do restaurante!
- Só tomei café. Pronto, também comi tarte, mas isso não conta, porque foi mais uma manobra para sacar confidências à Frieda. Mas a tarte estava boa. Pêssego.
- Vai-te embora.
- Se eu me for embora, vais deixar-te afundar. Não vale a pena. Não podes fazer nada até teres mais dados. Tem de haver uma pizzaría na cidade.
- A Modestos, na esquina de Main e Mountain Laurel. Ele pegou no telefone:
-Já sabia que tinhas estabelecido as tuas prioridades. Vou pedir de cogumelos.
- Não. Não vais.
- Metade. Tenho direito a cogumelos em metade.
- Se houver um só cogumelo perto da minha metade, pagas tudo.
- Fui eu que paguei, da última vez.
- Então fica lá com o raio dos cogumelos. O número está no bloco, ao pé do telefone.
- Ora cá está. Pizza, loja de bebidas, correios. - Começou a marcar o número. - Não mudas mesmo.
Pediu a pizza, sem se esquecer de que ela gostava de pepperoni e azeitonas, e acrescentou cogumelos à sua metade.
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- Trinta minutos - disse ele quando desligou. - Sabes, não vamos conseguir aguentar-nos aqui por muito mais tempo. Vamos ter de pensar em alugar uma casa.
- Estamos quase em Agosto. Já não temos muito tempo.
- Temos tempo que chegue. Devemos conseguir encontrar qualquer coisa que possamos alugar ao mês.
- Não sei o que vou dizer aos meus pais. - Deixou escapar a frase, depois ergueu as mãos e deixou-as cair a seguir. - Que posso eu dizer-lhes?
- Nada. - Aproximou-se dela. - Não vale a pena dizer-lhes mais nada até estares na posse de mais factos. Sabes perfeitamente como se deve fazer uma escavação, Callie.
Camada por camada, ponto por ponto. Se começares a precipitar-te com teorias, escapam-te pormenores.
- Não consigo pensar direito.
- Hás-de conseguir. - Fez uma pausa, e depois passou-lhe os nós dos dedos pelo rosto. - Porque não experimentas procurar conforto em mim durante um minuto? Nunca
experimentaste isso antes.
- Eu não... - Mas ele pôs os braços à volta dela e puxou-a para si. Após um instante de resistência, Callie deitou a cabeça no ombro dele e respirou fundo.
O coração dele palpitou. Serenou, depois.
- Assim mesmo.
- Não sei porque não estou zangada. Parece que não consigo zangar-me.
- Vais conseguir.
- Oxalá não demore muito. Espero sinceramente que não demore muito. - Callie fechou os olhos. Ele tinha razão, pensou, nunca experimentara isto antes. Não era assim
tão mau. - Isto também faz parte da nossa amizade?
- Faz. Bem, isto e a possibilidade de ficares ao rubro e quereres sexo. Vamos ver.
Ele mordeu-lhe a orelha e depois o maxilar.
Ela conhecia a táctica. E ele tinha uma táctica muito boa. Podia contrariá-la ou ir ao encontro dela. Foi ao encontro dela, virando a cabeça o suficiente para fazer
encontrar aqueles lábios vivos com os dela. Para sentir aquele choque de desejo e antecipação.
Pressionou o corpo contra o dele e sentiu os dois corações baterem em uníssono. Num gemido de aprovação, apertou os braços à volta dele até ele meter uma mão por
dentro da camisa dela, como fizera
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tantas outras vezes. A força e o sentimento de posse transmitido por aquele abraço sempre a tinham excitado e feito render.
O desejo súbito, dele, dela, foi uma espécie de alívio. Aquele mergulho conjunto no calor foi uma espécie de baptismo.
Ela ainda era alguém inteiro, ainda era real.
Ainda era Callie Ann Dunbrook.
E, pensou, ainda podia querer coisas que não eram boas para ela.
Depois, as mãos dele chegaram ao rosto dela, envolvendo-lhe as faces numa taça de doçura que lhe roubou o equilíbrio. E os lábios dele tocaram os dela num murmúrio
que falava mais de afecto do que de paixão.
- Continua aqui, Callie.
- Esse nunca foi o nosso problema.
- Diabos me levem se foi. - Continuando a segurar o rosto dela, aflorou-lhe a testa com os lábios. - Queres cerveja para acompanhar a pizza? Tenho ali, no quarto
ao lado.
Ela recuou, olhando-o com desconfiança:
- Estás a trocar sexo por pizza e cerveja?
- Não ponhas as coisas dessa maneira. Magoa. Queres a cerveja ou não?
- Está bem. Sei lá, como queiras. - Encolheu os ombros e depois, sentindo-se estranhamente rejeitada, voltou-se para o computador. - Vou acabar de registar as descobertas
de hoje.
- Certo. Eu volto já.
Jake esperou até chegar ao quarto para encostar a cabeça à parede. Ainda sentia o sabor dela, aquele sabor único que era Callie. Ainda sentia o cheiro do cabelo
dela, o aroma da chuva que ela apanhara.
Estava dentro dele como uma droga. Não, pensou enquanto abria a porta do frigorífico. Como o raio de um vírus. E não havia nada que ele pudesse fazer para combatê-lo.
Pior: chegara à conclusão, há alguns meses, de que não queria fazer nada para combatê-lo.
Queria-a de volta, e ia tê-la de volta, diabos o levassem! Nem que isso o matasse!
Sentou-se na borda da cama para se acalmar. O momento não podia ser muito pior, decidiu. Ela estava com problemas e precisava de ajuda. Não da perseguição constante,
matreira, subtil que tinha em mente quando se juntara à equipa.
Levá-la para a cama não era solução, embora também não fosse mau. Tinha que levá-la a habituar-se a tê-lo perto dela e depois fazê-la apaixonar-se por ele, e depois
levá-la para a cama.
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Era esse o plano. Ou fora o plano até tudo se ter tornado uma grande confusão.
Quando Lana lhe falara da adopção, ficara com o ar de alguém que passa a noite em claro. No entanto, não se ouvira um lamento, nada de ai de mim! Aquela era a sua
miúda, pensou Jake. Firme como uma rocha.
Mas agora ela precisava dele. Finalmente, precisava dele. E ele precisava de mostrar a ambos que não ia decepcioná-la.
Por mais que a desejasse, desta vez não iam deixar o sexo tornar a situação menos clara.
Havia quase um ano que estava sem ela, e em todos aqueles meses passara da raiva ao aturdimento, da amargura ao desespero, da aceitação à determinação.
Algumas espécies acasalavam para toda a vida, pensou enquanto se levantava. Por Deus, ele era uma delas! Ia dar-lhe algum tempo para que ela percebesse isso. Entretanto,
ia ajudá-la nesta complicação em que estava metida.
Depois, começariam tudo de novo.
Sentindo-se melhor, pegou na cerveja e chegou ao quarto dela mesmo antes da entrega da pizza.
Ele tivera razão, quanto ao trabalho, pensou Callie enquanto se preparava para ir para a cama. Não só mantivera o espírito afastado das preocupações, como pusera
o seu cérebro a funcionar outra vez. A névoa dissipara-se.
Conseguia ver o que precisava de fazer, como precisava de fazê-lo. Ia pedir a Lana que lhe arranjasse um laboratório local que lhe pudesse tirar sangue e enviá-lo
para o colaborador do pai, em Filadélfia. Iria pedir a Lana que testemunhasse a colheita, e visse a amostra ser selada e etiquetada. As mesmas precauções - uma testemunha
independente - seriam tomadas do outro lado.
Não haveria hipótese de os resultados serem falsificados. Tudo seria feito de forma oficial.
Não diria nada sobre o que Lana descobrira até ao momento. Jake tinha razão: não valia a pena até serem reunidos mais dados.
Trataria das suas questões pessoais como tratava das suas questões profissionais. Metodicamente, cientificamente e meticulosamente.
As descobertas seriam registadas. De facto, escreveria um relatório diário. Ajudaria a manter tudo organizado.
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E só para manter Douglas Cullen sossegado, pediria a Lana que redigisse um documento legal onde renunciaria ou recusaria, fosse qual fosse o termo, qualquer parte
dos bens de Suzanne Cullen. Era um bom plano, disse Callie a si própria. E agora estava na altura de deixá-lo de lado e dormir.
Fechou os olhos e deixou-se invadir pela música de Bach. As notas encantadoras, complexas e românticas da sua Suite n. em sol, para violoncelo.
A sua mente apaziguava-se com a música. Fluía com ela. Calmamente. O conforto, a matemática e a arte numa mistura de que resultava a beleza.
Era para estes momentos preciosos que ela transportava o pesado e incómodo instrumento em todos os aviões, camiões, comboios, para qualquer sítio que se deslocasse
para fazer escavações, por mais problemático que isso fosse.
Tranquila, pousou o arco. Seguindo a rotina habitual, espalhou o seu creme de noite no rosto e no pescoço e soprou a sua vela. Meteu-se na cama.
Cinco minutos depois de ter apagado a luz voltou a acendê-la, saiu da cama e pegou na caixa que Suzanne lhe dera.
Tinha uma natureza curiosa, disse a si própria. Por isso fazia bem o seu trabalho. Por isso iria encontrar as respostas a este puzzle e restabelecer o equilíbrio.
Abriu a caixa e viu as cartas, todas em envelopes brancos, todas cuidadosamente alinhadas de acordo com a data.
Suzanne era, portanto, outra alma organizada, observou. Outra criatura de hábitos. Como muitas outras pessoas.
Ia passar os olhos por elas. Elas dar-lhe-iam uma imagem mais nítida da mulher e, muito possivelmente, outra peça do puzzle. Apenas mais dados, disse a si própria,
enquanto tirava o primeiro envelope da caixa.
Quando abriu o envelope com o nome "Jessica", sentiu a mesma espécie de ansiedade que sentia quando escovava a terra de um artefacto acabado de desenterrar.
Minha querida Jessica,
Hoje fazes um ano. Não parece possível que tenha passado um ano desde que te peguei ao colo pela primeira vez. Este ano continua a ser uma espécie de sonho para
mim. Desconexo, nublado e irreal. Há alturas em que penso que foi realmente um sonho. Alturas em que te ouço chorar e corro para o teu quarto. Outras vezes, juro
que te sinto mexer dentro de mim, como se ainda não tivesses nascido.
131
Mas depois lembro-me, e acho que não consigo aguentar.
A minha mãe fez-me prometer que iria escrever este bilhete. Não sei o que teria feito sem a minha mãe, nestes últimos meses. Pergunto-me se alguém que não seja mãe
compreenderá verdadeiramente aquilo por que estou a passar. O teu papá tenta, e eu sei que ele tem saudades tuas, tantas, mas acho que não sente o mesmo vazio.
Estou oca por dentro. Tão oca que há vezes em que acho que vou desfazer-me em nada.
Uma parte de mim gostava de poder, mas tenho o teu irmão. Pobre, doce rapaz. Está tão confuso. Não compreende porque não estás aqui.
Como posso explicar-lhe o que aconteceu, quando eu própria também não compreendo?
Sei que voltarás em breve. Jessie, precisas de saber que nunca, nunca deixaremos de procurar. Rezo, todos os dias, para que uma destas noites estejas em casa, no
teu berço. Até estares, rezo todos os dias para estares sã e salva. Para que não estejas com medo. Rezo, todos os dias, para que quem quer que te tenha tirado de
mim seja bom e carinhoso para ti. Que ela te embale da maneira que tu gostas e te cante as tuas canções de embalar preferidas.
Um dia, vai perceber que o que fez está errado e trazer-te de volta para casa.
Desculpa, desculpa ter desviado os olhos de ti. Juro-te que foi apenas um instante. Se pudesse voltar atrás, tinha-te mantido tão perto de mim! Ninguém poderia levar-te.
Estamos todos à procura, Jessie. Todos. A mamã e o papá, o avô e a avó, a ama e o Pop. Todos os vizinhos e a polícia. Nunca penses que vamos desistir. Porque não
desistimos. Não vamos desistir.
Estás aqui, no meu coração. Meu bebé, minha Jessie.
Amo-te, sinto a tua falta.
Mamã
Callie dobrou as páginas cuidadosamente e voltou a metê-las no envelope. Voltou a pôr a tampa na caixa e pousou a caixa no chão. Inclinou-se e apagou a luz.
E ficou ali, às escuras, a sofrer por uma mulher que mal conhecia.
Dedicou quase todo o dia seguinte à árdua tarefa de desenterrar os restos do esqueleto. Levou horas, a trabalhar com escovas, sondas dentais, espátulas para tirar
a terra. Mas a última descoberta atraíra dois estudantes universitários.
132
A sua fotógrafa era Dory Teasdale, uma morena alta e de pernas compridas. E o seu assistente era Bill McDowell, que não parecia ter idade para comprar cerveja mas
já passara cinco estações em três escavações.
Callie achava Dory competente e entusiasta, e tentou ignorar o facto de ela ter o mesmo tipo físico de Verónica Weeks. A mulher que fora o catalisador, ou a última
gota, na destruição do seu casamento com Jake.
Não importava que Dory tivesse uma voz semelhante à de um gato insinuante e satisfeito, desde que fizesse o seu trabalho.
- Arranjei outro. - Jake apareceu no sector de Callie e acenou com a cabeça na direcção do homem esguio que estava junto de Digger. - Itinerante, tem as suas próprias
ferramentas. Chama-se Matt Kirkendal. Ouviu falar do projecto, quer escavar. Parece conseguir somar dois e dois.
Callie observou o recém-chegado. Usava uma trança de cabelo grisalho, botas de trabalho já gastas, e uma tatuagem de qualquer coisa serpenteava-lhe sob a manga da
T-shirt.
Parecia que ele e Digger já estavam a entender-se bem.
- Mãos são mãos - declarou Callie. Parecia forte, pensou, com marcas deixadas pelo tempo. - Deixa-o com o Digger durante uns dias, para ver de que raça é feito.
- É essa a minha ideia.
Observou-a a estender um fio entre dois pregos, preparando-se para fazer um esboço do corte vertical dos depósitos acumulados na sua secção.
- Queres ajuda com isso?
- Eu consigo. O que achas dos novos estudantes universitários?
- A rapariga é um regalo para a vista. - Ignorando o facto de ela conseguir, de facto, tratar do assunto sozinha, prendeu uma fita métrica aos pregos, com molas
de roupa. Percebeu o olhar que Callie lhe lançou e respondeu-lhe afavelmente. - Apesar do nome afectado, Teasdale, não tem medo de sujar as mãos. O tipo é um poço
de zelo e actividade, mais ainda porque quer impressionar-te. Deita-te uns olhares ardentes.
- Não deita nada.
- Está mesmo apanhado. Sei perfeitamente como se sente. Ela riu com desdém:
- Estar apanhado é diferente de querer despir uma mulher e deitá-la em qualquer superfície plana disponível.
- Bem, então acho que não sei como ele se sente.
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Callie conteve o riso e limitou-se a esboçar o mais leve dos sorrisos quando Jake se foi embora.
A última descoberta trouxe também mais imprensa. Callie deu uma entrevista a uma repórter do Washington Post, ajoelhada junto aos dois esqueletos, a descansar as
costas e os ombros.
- Os ossos adultos são de uma mulher - disse Callie. - Uma mulher entre os vinte e os vinte e cinco anos de idade.
A repórter também era mulher e estava suficientemente interessada para aproximar as ancas um tanto demasiado dos ossos, até Callie lhe pedir com impaciência que
chegasse para trás.
- Como conseguem determinar a idade sem testes laboratoriais?
- Quem sabe um pouco sobre ossos, e eu sei, sabe determinar a idade. - Usando a espátula, salientou as juntas, a fusão, a formação.
- E veja aqui, isto é interessante. Houve uma fractura no úmero. Certamente durante a infância. Provavelmente por volta dos dez ou doze anos de idade. Sarou, mas
a junção ficou deficiente.
Passou a espátula suavemente sobre a linha de fractura.
- Este braço devia ter pouca força, e possivelmente causava-lhe um desconforto considerável. A fractura é razoavelmente limpa, o que me indica que foi resultado
de uma queda e não de um golpe. Não é uma ferida defensiva, como a que poderia ter resultado de uma luta. Apesar do ferimento, estava de boa saúde, o que significa
que não foi expulsa da tribo. Tratavam dos seus feridos e doentes. Isso é visível na forma como ela e a criança foram enterradas.
- De que morreu ela?
- Como não há outros ferimentos, e os restos da criança indicam que se trata de um recém-nascido, é provável que ela e a criança tenham morrido no parto. Como pode
ver, não foram simplesmente enterradas juntas. Foram dispostas de forma a que ela segurasse a criança. Isto indica compaixão, sentimento. Tratou-se de uma cerimónia,
Elas eram importantes para alguém.
- E porque são importantes para nós?
- Chegaram aqui primeiro. Quem são, o que são, tornou possível a nossa existência.
- Há quem se oponha à exumação e ao estudo dos mortos. Por motivos religiosos, ou simplesmente porque a natureza humana costuma decidir que aqueles que foram enterrados
não devem ser perturbados. Como responde a isso?
134
- Pode verificar o cuidado que pomos no que estamos aqui a fazer. O respeito com que o fazemos. Elas são conhecimento - disse Callie, escovando a terra. - A natureza
humana também exige, ou devia exigir, a procura de conhecimento. Se não a estudarmos, não estamos a honrá-la. Estamos a ignorá-la.
- O que pode dizer-me sobre a maldição?
- Posso dizer-lhe que isto não é um episódio dos Ficheiros Secretos. Desculpe, tenho de voltar ao trabalho. Talvez queiram falar com o Dr. Greenbaum.
Trabalhou durante mais uma hora, concentrada, em silêncio. Quando estendia o braço para pegar na sua máquina fotográfica, Jake veio juntar-se-lhe:
- O que é isso?
- Parece uma carapaça de tartaruga. Está metida entre os corpos. Preciso de fotografias dos ossos, in situ.
- Vou buscar a Dory. Precisas de fazer um intervalo.
- Ainda não. Vai buscar a documentação. Depois, quero descobrir o que é isto.
Inclinou-se para trás, esticando as pernas o melhor que podia, enquanto Dory se aproximava para tirar as fotografias.
Esvaziou a mente enquanto as vozes de Dory e de Jake zumbiam atrás de si. Já estavam numa amena cavaqueira, notou. Depois, aborrecida consigo própria pelo ressentimento
automático, o velho hábito, recordou a si própria que ele podia ter uma amena cavaqueira, ou o que quisesse, com Dory ou com quem quer que fosse.
-Já está - declarou Dory. - Não é para denegrir o resto do campo, mas esta é a melhor zona. É fascinante. - Voltou a olhar para os esqueletos. - E triste. Até as
ossadas antigas são tristes quando são de um bebé.
- Então, vamos tratá-las bem. Vou querer essas fotografias o mais depressa possível.
-Vai tê-las. Na verdade, este rolo acabou. Posso ir pedir a revelação agora, se quiser.
- Óptimo.
Quando Dory se afastou a correr, Callie voltou a ajoelhar-se e iniciou a difícil tarefa de escavar a carapaça. Quando a libertou cuidadosamente, ouviu o restolhar
de pedras lá dentro.
- É um brinquedo - murmurou. - Quiseram que ela tivesse um brinquedo. - Callie sentou-se nos calcanhares.
Jake pegou na roca:
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- É provável que o pai ou o avô dela tenham feito isto para ela, antes de ela ter nascido. O seu nascimento foi aguardado com expectativa, ansiado. E a sua perda,
a perda de ambas, foi chorada.
Ela pegou no bloco e registou cuidadosamente o achado:
- Vou dizer ao Leo que estão prontos para o transporte. Tenho uma reunião. Volto daqui a uma hora.
- Querida. - Passou-lhe os nós dos dedos pela cara. - Estás toda suja.
- Vou limpar-me um pouco.
- Antes de ires... Vim dizer-te que o Leo acabou de falar com o Dolan ao telefone. O Dolan ameaçou-o, dizendo que vai pedir uma ordem do tribunal que nos impeça
de remover o que quer que seja deste local.
- Vai fazer figura de idiota.
- Talvez, ou se for esperto pode apresentar a coisa de maneira a fazer crer que é contra a profanação de túmulos, e por aí fora. Pode conseguir alguma coisa com
isso.
- Então, como tenciona construir casas? - perguntou ela.
- É uma boa pergunta, e na minha opinião ele está a tentar encontrar uma maneira. - Rodou nos calcanhares, observou as águas calmas do lago, o verde denso das árvores.
- É um belo local.
- Imagino que as pessoas que aqui estão enterradas tenham pensado o mesmo.
- Sim, aposto que pensaram. - Com ar ausente, voltou a agitar a roca. - O principal é que ele quer parar as escavações. Ele é o dono da terra. Pode impedir-nos de
remover artefactos daqui, se for suficientemente persistente.
- Então vamos ser ainda mais persistentes do que ele.
- Vamos tentar primeiro o caminho da razão e da diplomacia. Tenho uma reunião com ele, amanhã.
- Tu? Porquê tu?
- Porque é menos provável que eu me atire a ele do que tu. Ligeiramente - acrescentou Jake, enquanto se inclinava para ela e fazia encontrar os seus lábios. - E
porque eu sou o antropólogo e conheço mais palavras caras sobre cultura e sociedades antigas e o seu impacto na ciência do que tu.
- Isso é tudo um disparate - resmungou ela, enquanto se encaminhava para o carro. - Tu tens um pénis. O Leo acha que este tipo vai dar-se melhor contigo porque tens
o equipamento certo.
136
- É um factor. Vamos ter uma conversa de homem para homem e vamos ver se eu consigo convencê-lo.
- Dá-lhe a volta, Graystone, para eu não ter que lhe esborrachar a cabeça com uma pá.
- Vou ver o que posso fazer. Dunbrook? - acrescentou quando ela abriu a porta do carro. - Lava a cara.
137
Nove

Quando Callie saiu do seu quarto na manhã seguinte, viu tudo vermelho.
O seu Rover estava coberto de graffiti maldosos, da traseira até à frente, numa tinta brilhante e sedosa como sangue acabado de derramar.
DOUTORA CABRA!, anunciava. A juntar a PUTA LADRA DE TÚMULOS, diversas obscenidades, sugestões e exigências como VAI PARA CASA!
O seu primeiro movimento foi um salto para a frente, como uma mãe que salta em defesa de um filho que está a ser vítima da violência dos colegas no recreio. Sons
ininteligíveis ficavam estrangulados na sua garganta à medida que os seus dedos percorriam as letras brilhantes. Vagamente incrédula, seguiu os riscos que escreviam,
no capot, as palavras LÉSBICA ASSANHADA.
Ao choque veio juntar-se rapidamente a fúria. Quando se entrechocaram dentro dela, voltou ao quarto, pegou na lista telefónica e procurou a morada de Dolan e Filhos.
Voltou a bater com a porta no momento exacto em que Jake abriu a dele.
- Quantas mais vezes tencionas bater com a porta antes... Interrompeu-se quando viu o carro dela.
- Merda! - Embora ainda estivesse descalço e vestisse apenas uns jeans, saiu do quarto para ver mais de perto. - Achas que foram o Austin e o Jimmy e os da laia
deles?
- Acho que vou descobrir! - Empurrou-o para trás e abriu a porta do lado do condutor.
- Espera! Espera aí! - Conhecia aquele olhar no rosto dela, que dizia sangue e morte. - Dá-me dois minutos, que eu vou contigo.
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- Não preciso de reforços para tratar de uns fuinhas merdosos.
- Mas espera. - Para ter a certeza de que ela esperaria, tirou-lhe as chaves da mão e depois voltou a entrar no quarto, apressadamente, em busca de uma camisa e
de uns sapatos.
Trinta segundos depois voltava a sair a correr, praguejando, mesmo a tempo de vê-la arrancar. Esquecera-se de que ela guardava sempre as chaves sobressalentes no
porta-luvas.
- Filha da mãe! Grande filha da mãe!
Ela não se virou para trás. Estava concentrada no que tinha pela frente. Havia seis anos que tinha o Rover. Fazia parte da sua equipa. Cada amolgadela, cada risco,
era uma recordação. Era o raio de uma bela medalha de honra. E ninguém desonrava o que era dela.
Minutos depois, fazendo chiar os pneus, parou diante do escritório de Dolan, em Main Street. Soprando fogo, saltou do carro e teve dificuldade em resistir a dar
um pontapé na porta quando descobriu que estava fechada. Em vez disso, bateu-lhe com o punho fechado.
Uma mulher com ar agradável destrancou a porta do escritório, do lado de dentro.
- Desculpe. Só abrimos daqui a quinze minutos.
- Dolan. Ronald Dolan.
- O Sr. Dolan está numa obra esta manhã. Quer marcar uma hora?
- Que obra?
-Ah, em Turkey Neck Road. Callie rosnou:
- Diga-me em que direcção fica.
Demorou vinte minutos, pois passou o cruzamento e teve de andar às voltas numa das estradas sinuosas da região. Nem o encanto sonolento da manhã, ou a luz dourada
a brilhar por entre as árvores, ou o canto tolo de um galo quebrou a sua raiva.
Quanto mais fervia, mais poderosa se tornava. E bastou-lhe desviar os olhos da estrada para o capot para senti-la voltar a aumentar.
Alguém, prometeu a si própria, alguém ia pagar por aquilo. Naquele momento não lhe interessava muito quem, nem como.
Virou para um acesso privado, atravessando uma ponte pequena e bonita sobre o ribeiro, e depois seguiu o atalho quase a direito através da terra arborizada.
Conseguia ouvir os sons da construção. Os martelos, as serras, a música vinda de um rádio. Parte do seu cérebro registou que, fosse Dolan o que fosse ou fizesse
o que fizesse, parecia fazer uma boa construção.
140
O esqueleto da casa mostrava potencial e adaptava-se ao terreno rochoso, aos bosques pitorescos. O habitual entulho estava amontoado em pilhas, num enorme Dumpster.
Pickups e outros todo-o-terreno estavam estacionados ao acaso na lama provocada pela chuva que caíra durante a noite. E vários homens grandes, já suados, estavam
a trabalhar.
Viu Dolan, com as suas calças de trabalho ainda limpas, a camisa enrolada até aos cotovelos, e um boné azul com a inscrição "Construção Dolan" enfiado na cabeça,
enquanto se mantinha de pé, com as mãos nos quadris, a vigiar o avanço dos trabalhos.
Callie voltou a bater a porta e o disparo fez-se ouvir acima da música e do barulho. Dolan olhou e virou-se, enquanto ela se aproximava da casa a passos largos e
subia para a plataforma com facilidade.
- Austin e Jimmy - rosnou ela. Onde estão?
Ele mexeu-se um pouco e olhou para a pintura espalhada pelo carro. Uma pequena parte, despeitada, do seu coração, deu saltinhos de alegria.
- Se tem um problema com algum dos meus homens, tem um problema comigo.
- Muito bem. - Convinha-lhe perfeitamente. - Está a ver aquilo? - perguntou, apontando para o seu Rover. - Declaro-o responsável.
Dolan sentia o olhar dos seus homens pousados nele, e enfiou os polegares nos suspensórios. - Está a dizer que eu pintei tudo aquilo no seu carro?
- Estou a dizer que quem quer que o tenha feito trabalha para si. Quem quer que o tenha feito ouviu-o a si e aos seus comentários asininos sobre o que a minha equipa
está a fazer em Antietam Creek.
- Não sei nada sobre isso. Parece-me coisa de miúdos. E quando ao que está a fazer em Antietam Creek, não espere continuar a fazê-lo durante muito mais tempo.
- Tem dois iluminados ao seu serviço chamados Austin e Jimmy, Dolan. E a mim isto parece obra deles.
Alguma coisa passou pelos olhos dele. E cometeu um erro muito grande. Lançou-lhe um sorriso presumido:
- Tenho muita gente ao meu serviço.
- Acha que isto é divertido? - Ela perdeu o ténue controlo que ainda conseguia manter e deu-lhe um ligeiro empurrão. O trabalho à volta deles parou. - Acha que destruição
maliciosa de propriedade, vandalismo, insultos e ameaças pintados a spray no meu carro são o diabo de alguma piada?
141
- Acho que quando se está num sítio onde não se é desejado, a fazer uma coisa que muita gente não quer que seja feita, há um preço a pagar. - Quis empurrá-la também,
mostrar aos seus homens que não admitia que uma mulher o empurrasse. Em vez disso, espetou-lhe um dedo na cara. - Em vez de estar aos gritos comigo, devia aceitar
o conselho e desaparecer de Woodsboro.
Ela afastou a mão dele, com um safanão.
- Isto não é um western do John Ford, seu labrego imbecil com cérebro de ervilha. E vamos ver quem vai ter de pagar o preço. Se pensa que vou permitir que se safe
com isto, que qualquer um de vocês se safe com isto - continuou ela, lançando um olhar enojado às caras dos trabalhadores que estavam à sua volta -, está muito enganado.
Se acha que este tipo de comportamento maldoso e infantil vai assustar-me, é mais estúpido do que parece.
Alguém riu e o rosto de Dolan enrubesceu.
- A propriedade é minha. Quero-a fora dela. Não precisamos que gente da sua laia chegue aqui e roube os empregos a gente decente. E veio queixar-se da pintura ao
homem errado.
- Chama a isto queixar-se? Você é que vai queixar-se, Dolan, quando eu lhe meter a cabeça pelo cú acima.
A decalaração provocou um coro de gritos e assobios por parte dos homens. O que fez Callie fechar os punhos. O que ela poderia ter feito é discutível, mas uma mão
agarrou-a com força pelo ombro.
- Acho que o Sr. Dolan e o seu bando de homens alegres terão mais a dizer à polícia - sugeriu Jake. - Porque não vamos tratar disso?
- Não sei nada sobre o assunto - repetiu Dolan. - E é exactamente isso que vou dizer ao xerife.
- Ele é pago para ouvir. - Jake puxou Callie para trás e começou a empurrá-la na direcção dos carros. - Pensa que há aqui uma dúzia de homens armados com ferramentas
pesadas e martelos bem grandes. - Falava com ela em voz baixa enquanto a conduzia na direcção do Rover. - E pensa que eles vão usá-los em mim primeiro, porque eu
não sou mulher. E cala-te.
Ela soltou-se da mão dele e abriu a porta com violência. Mas não conseguiu conter-se:
- Isto não vai ficar assim, Dolan - gritou. - Vou dar cabo do teu precioso desenvolvimento. Vai demorar uma década até estenderes os primeiros metros de cimento.
Vou fazer disso uma cruzada pessoal!
142
Fechou a porta com toda a força e cuspiu lama em todas as direcções quando fez marcha-atrás.
Andou oitocentos metros e encostou à berma. Jake parou atrás dela. Ambos bateram com as portas depois de saírem dos respectivos carros.
- Disse-te que não precisava de ajuda.
- E eu disse-te para esperares a porcaria de dois minutos.
- O carro é meu. - Bateu com o punho no Rover. - A situação é minha.
Ele pegou-lhe ao colo e deixou-a cair sobre o capot.
- E a que levou a tua discussão com o Dolan?
- A nada! Mas a questão não é essa!
- A questão é que cometeste um erro táctico. Confrontaste-o no terreno dele, enquanto ele estava rodeado pelos seus homens. Quando cinquenta e cinco quilos de mulher
o enfrentam nestas circunstâncias, ele não tem outra escolha senão pôr-te no teu lugar, mostrar que é ele que tem os tomates. Credo, Dunbrook, sabes mais de psicologia
do que isso! Ele é o macho. Não pode ser desafiado por uma mulher diante dos seus homens! Não pode dar-se ao luxo de perder a face nessa arena.
- Estou passada! - Fez menção de saltar do carro, mas vibrou quando ele lhe prendeu as mãos sob as dele para a manter no lugar.
- Não me interessa a psicologia. Não me interessa a arena. Nem a dinâmica entre masculino e feminino, nem a hierarquia tribal. Se alguém me faz alguma, leva troco.
E desde quando tu evitas uma briga? És tu que costumas começá-las!
E como ele quisera começá-la! Quisera investir com toda a energia quando a vira ali, no meio. Cercada.
- Não as começo quando estou em número inferior, de dez para um, e quando vários desses dez têm serras e martelos. E ser forçado a retirar não me deixa propriamente
de bom humor.
- Ninguém te pediu que interferisses.
- Não. - Ele libertou-lhe as mãos. - Ninguém pediu.
Nem a fúria conseguia deixá-la cega em relação à mudança que se operara nele. Do fogo ao gelo num estalar de dedos. A vergonha abriu caminho por entre a ira:
- Está bem, talvez eu não devesse ter ido sozinha, talvez só devesse ter ido lá acima depois de estar um pouco mais controlada. Mas já que lá foste, não podias ter
dado um murro em alguém?
Era, supôs Jake, o mais próximo que ela conseguiria estar de admitir que tinha errado.
143
- Não tenho de acabar uma luta por cima, mas só sei que quero acabá-la inteiro.
- Adoro este carro.
- Eu sei.
Ela suspirou, batendo nervosamente com o pé no pneu dianteiro. Franziu o sobrolho ao ver a pintura imaculada do Mercedes preto dele.
- Porque raio não pintaram o teu?
- Talvez não tenham percebido que a tua ira seria maior do que a minha.
- Detesto ficar furiosa. Não consigo pensar como deve ser. E também vou detestar isto. - Olhou para ele. - Tinhas razão.
- Espera. Vou buscar o meu gravador ao carro.
- Se vais armar-te em parvo, não vou acabar de agradecer-te.
- Recebo um "tinhas razão" e um obrigado? Não vou aguentar.
-Já devia saber que ias aproveitar-te. - Saltou do capot. Olhando para baixo, observou o movimento agradável do ribeiro sobre as rochas.
Ele tinha ido atrás dela, pensou. E no fundo sabia que ele teria virado a obra do avesso se alguém lhe tivesse tocado. Isso fê-la sentir-se quente e viscosa por
dentro.
- Estou só a dizer que provavelmente não devia ter ido atrás do Dolan com uma dúzia de homens dele à minha volta, e provavelmente nem devia acusá-lo disto, para
começar. Por isso, obrigado por me teres tirado dali antes de eu ter tornado as coisas piores. Acho eu.
- De nada. Acho eu. Queres chamar a polícia?
- Sim. - Soltou uma espécie de silvo. - Que se lixe. Quero um café, primeiro.
- Eu também. Vem comigo.
- Não preciso...
- Vais na direcção errada. - Sorriu enquanto voltava ao seu carro.
- Dá-me as minhas chaves. - Ele lançou-as ao ar e ela apanhou-as. - Como soubeste onde eu estava, afinal?
- Passei pelo escritório do Dolan e perguntei à empregada, que ainda estava pálida e a tremer, se tinha estado ali uma mulher a deitar fogo pelos ouvidos. O resto
foi fácil.
Ele entrou no carro:
- E quem paga o café és tu.
Naquela tarde, quando Lana chegou ao local das escavações, tinha Tyler consigo. Esperava que Callie tivesse falado a sério quando convidara o menino. Ele nunca mais
deixara de falar no assunto.
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Fechara o escritório cedo e fora a casa vestir uns jeans, uma camisa informal e os seus ténis mais velhos. Se ia andar atrás do filho numa escavação, tinha de estar
vestida para isso.
- Se eu encontrar ossos, posso ficar com eles?
Ela deu a volta para soltá-lo do cinto de segurança:
- Não.
- Mãe!
- Não só acho que não podes ficar com eles, companheiro, como aposto que a Dr.a Dunbrook vai dizer o mesmo. - Beijou-lhe a boca amuada e tirou-o do carro. - E lembras-te
das outras regras?
- Não vou correr, não vou aproximar-me da água e não vou tocar em tudo.
- Em nada.
- Também não.
Ela riu, deu-lhe uma pequena palmada na perna e encaminhou-se para o portão.
- Mãe? O que quer dizer p-u-t-a?
O choque fê-la deter-se e a boca abriu-se-lhe, enquanto virava a cabeça para olhar para o rosto dele. Tinha os olhos semicerrados como costumava ter quando tentava
perceber alguma coisa. Seguiu o olhar dele e depois abafou uma exclamação quando viu o Rover de Callie.
- Ah, nada. Nada, querido. Eles... devem ter escrito mal a palavra.
- Porque é que escreveram coisas no carro? Porquê?
- Não sei. Vou ter de perguntar.
- Ora, ora, o que temos aqui? - Leo limpou as mãos às pernas das suas calças caqui e foi ao encontro deles para cumprimentá-los.
- Pareces um jovem arqueólogo.
- Sei cavar. Trouxe a minha pá. - Ty agitou a pá de plástico vermelho que insistira em trazer, porque precisava dela.
- Muito bem. Vamos pôr-te a trabalhar.
- Este é o Tyler. - Lana respirou fundo quando viu que a atenção dele se desviara das obscenidades. - Ty, este é o Dr. Greenbaum. Espero que não haja problema. A
Callie disse que eu podia trazê-lo. Ele não tem falado noutra coisa.
- Não há problema nenhum. Queres vir comigo, Ty?
Sem qualquer hesitação, Ty estendeu os braços, passando do colo da mãe para o de Leo.
- Bem, fui substituída.
145
- Feromonas de avô - disse Leo, piscando o olho. - Ele sabe que encontrou alguém a quem pode dar a volta. Temos uma bela colecção de pontas de lança e de setas,
na zona de fabrico de ferramentas. Interessada?
- Na verdade, estou. Mas primeiro preciso de falar com a Callie.
- Apareça quando acabar. O Ty e eu vamo-nos entretendo.
- Posso ficar com um osso? - pediu Ty, naquilo que pensou ser um murmúrio, enquanto Leo começava a afastar-se com ele.
Lana abanou a cabeça, e depois foi contornando montes de lama e baldes até chegar ao buraco quadrado onde Callie estava a trabalhar.
- Olá, linda senhora. - Digger parou de trabalhar e piscou-lhe o olho. - Se quiser saber alguma coisa, basta perguntar-me.
Ele estava de pé, noutro quadrado, mas saltou agilmente para fora, para chamar a atenção dela. Lana notou que ele cheirava a hortelã-pimenta e a suor, e parecia
uma toupeira animada.
- Está bem. O que está a fazer aqui com... - Inclinou-se e espreitou para dentro do buraco, notando que estava escavado em níveis geométricos. - Isso são ossos?
- Sim, mas não são humanos. O que temos aqui é a lixeira da cozinha. Ossos de animais. Há aqui ossos de veados. Vê as cores diferentes da terra?
- Acho que sim.
- Tem o barro do Inverno e o depósito sedimentar do Verão. Inundações, entende? A forma como os ossos estão dispostos mostra-nos que tivemos aqui uma comunidade
estabelecida durante muito tempo. Dá-nos informações sobre a caça. Há ali vacas. Domesticadas. Tivemos aqui agricultores.
- E consegue dizer tudo isso pela terra e pelo osso? Ele bateu ao de leve no nariz:
- Tenho um certo sentido para estas coisas. Tenho uma série de artefactos interessantes ali, na minha roulote. Se quiser aparecer esta noite, mostro-lhe.
- Ah...
- Digger, pára de te atirares à minha advogada - gritou Callie.
- Lana, afaste-se dele. É contagioso.
- Ora, sou inofensivo como um bebé.
- Um bebé tubarão - respondeu Callie.
- Não tenhas ciúmes, Callie doce. Sabes que és o meu único e verdadeiro amor.
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Lançou-lhe um beijo ruidoso, deu a Lana outra piscadela de olho, e depois voltou a meter-se no buraco.
- Ofereceu-se para me mostrar os artefactos dele - disse Lana a Callie quando chegou à secção onde esta se encontrava a trabalhar.
- É a velha história da colecção de selos, versão de arqueólogo?
- O Digger exibe os seus artefactos à menor provocação. É um falso nato. E por razões que ainda não desencantei, colecciona mulheres com uma regularidade espantosa.
- Bem, ele é engraçado.
- Meu Deus, é feio como o rabo de uma mula.
- Sim, por isso é que é engraçado. - Olhou para baixo, para o trabalho de Callie. - O que aconteceu ao seu Land Roverí
- Ao que parece, alguém pensou que seria divertido decorá-lo com uma diversidade de observações e sugestões grosseiras. Um dos homens do Dolan, acho eu. - Encolheu
os ombros. - Fui dizer-lhe, esta manhã.
- Falou com ele sobre isto!
Callie sorriu. Pensou que Lana tinha um ar tão fresco e bonito como uma finalista de liceu num piquenique de Verão.
- Se se pode chamar àquilo conversa. Lana inclinou a cabeça.
- Precisa de uma advogada?
- Ainda não. O xerife está a tomar conta do caso.
- O Hewitt? Mais tartaruga do que lebre, mas muito minucioso. Não vai borrar a pintura.
- Não. Tive a impressão de que ele gosta de pôr os pontos nos is. Sei que ia falar com o Dolan.
- Por mais sinceramente que lamente o sucedido com o carro, neste momento quanto mais complicações para Ron Dolan mais satisfeita fico.
- Ainda bem que pude ajudar. Já que aqui está, tenho uma pergunta. Porque é que as pessoas passam os jeans a ferro?
Lana olhou para baixo, para as Levi's cuidadosamente passadas que trazia vestidas.
- Para mostrar respeito pelo trabalho árduo do fabricante. E porque realçam melhor o meu rabo quando estão passadas.
- É bom saber. Vejo que o Leo domesticou o Ty-Rex.
- Foi atracção instantânea, de ambas as partes. - Olhou para o trabalho de Callie. Conteve um estremecimento. - Esses não são ossos de animais.
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- Não. São humanos. - Callie pegou no seu jarro e deitou chá gelado num copo de plástico. - Um homem na casa dos sessenta. Quase aleijado com artrite, pobre tipo.
Ofereceu chá, engolindo-o de um trago quando Lana abanou a cabeça.
- Estamos a conseguir uma interacção com esta área. Veja isto. Callie bateu num osso comprido com o raspador dentário. - É uma mulher, mas mais ou menos da mesma
idade. E este é masculino, mas era adolescente.
- Enterraram-nos todos juntos?
- Não creio. Acho que foram afastados e misturados devido a alterações do nível da água, do clima. Inundações. Acho que quando escavarmos mais fundo nesta secção,
provavelmente na próxima estação, iremos encontrar restos mais articulados. Olhe, o Leo pôs o Ty a cavar.
Lana endireitou-se e olhou para o local onde Tyler estava a cavar alegremente num pequeno monte de terra, com Leo a seu lado:
- Está no céu.
- Aquele monte já foi peneirado - disse-lhe Callie. - Aposto vinte dólares em como o Leo lá põe uma pedra ou um fóssil que tem no bolso, para o miúdo o encontrar.
- É um bom homem.
- Faz o delírio dos miúdos.
- Enquanto eles estão ocupados, preciso de falar consigo.
-Já tinha percebido. Vamos dar um uma volta. Seja como for, preciso de esticar as pernas.
- Não quero deixar o Ty.
- Acredite - disse Callie, enquanto sacudia o pó -, o Leo vai mantê-lo ocupado e feliz. - Começou a caminhar, não deixando a Lana outra hipótese senão segui-la.
- Tenho mais algumas informações sobre Carlyle.
- O investigador encontrou-o?
- Ainda não. Mas descobrimos uma coisa interessante. Enquanto exerceu em Chicago e Houston, Carlyle representou casais em mais de setenta adopções. Devidamente decretadas
pelo tribunal. É quase certo que daqui adveio a parte de leão dos seus lucros. Durante o tempo que esteve em Boston, foi advogado em dez adopções.
- O que significa...?
-- Espere. Enquanto exerceu em Seattle, concluiu quatro adopções. Através do tribunal - acrescentou Lana. - Agora, estamos com uma por ano. O que é que isto lhe
diz?
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- O mesmo que lhe diz a si, imagino: que ele achou que era mais lucrativo roubar bebés e vendê-los do que passar pela confusão do sistema. - Callie entrou na zona
das árvores que se alinhavam ao longo da curva do rio. - É uma hipótese razoável, mas não há dados suficientes para prová-la.
- Ainda não. Se conseguirmos encontrar um dos pais adoptivos que o tenha recomendado a um amigo ou a alguém num grupo de apoio, alguém que tenha ido ter com ele
mas cuja petição e declaração final não foram assinadas, teremos mais. Teremos uma pista. Por mais cauteloso que ele tenha sido, haverá sempre uma pista.
- Que vamos dizer a essas pessoas, se as encontrarmos? - perguntou Callie, dando um pontapé num ramo caído. - Dizemos-lhes que a criança que criaram foi roubada
a outra família? Que legalmente a criança nunca foi deles?
- Não sei, Callie. Não sei.
- Não quero envolver outras famílias. Não posso fazer isso. Pelo menos não nesta altura. Essas pessoas construíram famílias. Não têm culpa que esse crápula tenha
distorcido isso, distorcido uma coisa tão carinhosa e louvável como é a adopção e a tenha transformado em lucro pessoal e em dor.
O lucro é dele, pensou Lana. A dor é tua.
- Se o encontrarmos, e o que ele fez for posto a descoberto... No final...
- Pois, no final. - Voltou a olhar para o sector que estava a escavar. Camada por camada. - Não consigo ver o final. Tenho de lidar com as coisas à medida que elas
me vão sendo apresentadas.
- Quer que dispense o investigador?
- Não. Só quero que ele se concentre em descobrir Carlyle e não em construir um caso para quando o encontrarmos. Lidaremos com isso... quando tivermos que lidar.
Ela escreveu-me cartas. - Callie fez uma pausa, enquanto observava um gaio gordo lançar-se por entre as árvores. Nas profundezas do bosque, um pica-pau martelava
como um louco, enquanto do outro lado da estrada o cão de caça estava deitado na sua habitual mancha de sol e dormia.
- Suzanne escreveu-me cartas, todos os anos, pelo meu aniversário. E guardou-as numa caixa. Li uma delas, ontem à noite. Fiquei com o coração destroçado e, no entanto,
ainda não há uma relação comigo. Não da maneira que ela precisa que haja. Ela não é minha mãe. Nada irá conseguir fazer com que ela seja minha mãe.
Abanou a cabeça:
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- Mas alguém tem de pagar por isso. Encontramos o Carlyle e ele tem de pagar. Ele e quem quer que tenha feito parte disso. É algo que posso fazer por ela.
- Estou a tentar imaginar como seria se alguém me levasse o Tyler. E não consigo. Não consigo, porque é demasiado terrível. Mas consigo imaginar que ter voltado
a encontrá-la é uma enorme alegria e, ao mesmo tempo, extremamente doloroso para ela. Não sei que mais possa fazer, além do que já está a fazer. E o que está a fazer
revela muita bondade e muita coragem.
Callie riu, mas não havia qualquer humor naquele riso:
- Nada disso. É apenas necessário.
- Está enganada, mas não vou perder tempo a discutir com uma cliente. E é por isso mesmo que não vou salientar como era desnecessário ter-me feito redigir isto.
- Tirou a folha de papel da mala que trazia ao ombro. - A declaração a recusar quaisquer bens de Suzanne e Jay Cullen. Precisa de assinar, onde está indicado. A
sua assinatura tem de ser feita na presença de testemunhas.
Callie acenou com a cabeça e pegou nos papéis. Pelo menos correspondiam a um passo concreto:
- O Leo faz isso.
- Gostaria de aconselhá-la a pensar nisto por alguns dias.
- Ela não é minha mãe, para mim não é. Não tenho direito a nada que seja dela. Quero que tire uma cópia disto e a entregue pessoalmente a Douglas Cullen.
- Raios, Callie!
- Enfiar-lho ou não pela boca abaixo é opção sua, mas quero que ele receba uma cópia.
- Muito obrigada - retorquiu Lana. - Isso vai ajudar-me muito a conseguir que ele me convide para sair outra vez.
- Se ele se afastar de si por minha causa, também não vale o seu tempo.
- Para si é fácil dizer isso. - Lana caminhava ao lado de Callie, que se preparava para voltar à escavação. - Tem um tipo consigo.
- Não, não tenho.
- Ora, por favor.
- Se está a referir-se ao Graystone, está enganada. Já acabou, pertence ao passado.
- Uma ova.
Callie parou, baixou os óculos de sol para olhar para Lana por cima da armação:
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- Isso é algum termo legal?
- Terei todo o gosto em procurar a tradução latina, para ficar com um ar mais oficial. Gosto de si - acrescentou, e mudou a mala para o outro ombro, quando recomeçaram
a andar. - Portanto, vamos chamar-lhe uma observação honesta, com um ligeiro toque de inveja inofensiva. Ele é lindo!
- Sim, tem bom ar. - Olhou para o local onde ele estava acocorado junto de Sonya. - O Jake e eu somos colegas, e estamos a tentar tolerar-nos mutuamente, de forma
a conseguirmos estar no mesmo quarto sem desatarmos ao sopapo.
- Pareciam estar a sair-se muito bem nessa área, a outra noite. Sei quando um homem olha para uma mulher como se quisesse bebê-la de um só trago. Daí a inveja. Às
vezes, dava com o meu marido a olhar assim para mim. É uma coisa que não se esquece, e eu vi isso quando o Jake olhou para si.
Como explicava isso?, pensou enquanto via Jake dar uma pequena palmada distraída no ombro de Sonya, antes de se pôr de pé. Viu-o encaminhar-se, com largas passadas,
para onde estava Ty, levantá-lo no ar e virá-lo de pernas para o ar até o miúdo quase vomitar de riso.
Era tão bom com os miúdos como com as mulheres, reflectiu. Depois, aborrecida consigo própria, admitiu que era bom com as pessoas. Ponto final.
- Há uma coisa primitiva entre nós. O sexo era... bem, éramos mesmo bons. Não parecíamos estar bem um para o outro senão na cama.
- Mas falou-lhe disto.
Callie bateu com os papéis na coxa enquanto caminhavam.
- Apanhou-me num momento vulnerável. Além disso, pode fazer-se uma confidência ao Jake. Não é pessoa para andar por aí a falar nos assuntos alheios. E é um verdadeiro
demónio nos pormenores. Não falha.
Falhou com Ronald Dolan. O homem estava mais que empedernido. Tentara todos os ângulos de que se lembrara durante o seu encontro, ao fim da tarde. Primeiro, a frente
unida dos machos, com um toque de gozo sobre a actuação de Callie, de manhã.
Ela fritava-lhe os tomates ao pequeno-almoço se soubesse que ele se tinha desculpado em nome dela, mas era preciso encontrar uma plataforma de entendimento com Dolan.
A bem do projecto.
Depois, tentou a sedução, a magia da ciência, a paciência, o humor. Nada fez mover Dolan do ponto onde se entrincheirara.
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- Sr. Dolan, o facto é que a comissão de planeamento da região impediu o avanço do seu empreendimento, e por uma boa razão.
- Mais umas semanas e isso acaba. Entretanto, tenho uma série de gente a esburacar a minha propriedade.
- Uma escavação desta natureza é muito sistemática e organizada. Dolan riu desdenhosamente e recostou-se na cadeira, à secretária:
- Se eu lá for o que vejo é o raio de uma série de buracos. Uma série de miúdos estudantes a cirandar, provavelmente a fumar erva e sabe Deus que mais. E vocês estão
a desenterrar corpos, a tirá-los das sepulturas.
- As ossadas são tratadas com cuidado e com respeito. O estudo das ossadas pré-históricas é vital para o projecto.
- Não para o meu projecto. E há muita gente aqui que não gosta da ideia de vocês andarem a abrir as sepulturas. E vocês é que dizem que têm milhares de anos.
- Há testes conclusivos...
- Na ciência nada é conclusivo. - Dolan fechou a mão e depois apontou com o dedo indicador, como se disparasse uma pistola.
- Está sempre a mudar de ideias. Que diabo, vocês cientistas nem são capazes de se decidir sobre quando o mundo começou! E se falar com o velhote de minha mulher,
ele diz-vos porque acha que toda essa história da evolução é uma idiotice. - Puxou os suspensórios.
- E eu não posso dizer que discorde.
- Podíamos passar as próximas horas a discutir os conceitos de evolucionismo e de criação, mas isso não resolveria o nosso problema. Qualquer que seja a perspectiva,
há provas sólidas de que existiu uma aldeia neolítica em Antietam Creek. Os ossos, os artefactos e os ecofactos escavados e datados até agora dão substância a esta
teoria.
- Isso não muda o facto de que quando aqueles corpos foram postos ali não pediram para serem escavados e postos debaixo de um microscópio qualquer. Devia haver respeito
suficiente para deixar os mortos descansar em paz, é o que acho.
- Se é assim, como tenciona prosseguir com o seu empreendimento?
Ele já pensara no assunto. Não de forma consistente, mas o suficiente para calar os opositores.
- Vamos marcar os sítios, é isso que vamos fazer. - Pensara nisto cuidadosamente, com particular cuidado quando percebera que um adiamento significativo do empreendimento
lhe traria problemas financeiros. Podia bem prescindir de um acre, deixá-lo à parte, até talvez
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arranjar umas pedras engraçadas, com umas luzes a iluminar um monte de ossos.
Até podia usá-lo como ponto de venda, usar o impacto pré-histórico como costumava usar a Guerra Civil para fazer publicidade a um empreendimento.
Mas o que ele não podia dar-se ao luxo de continuar a fazer por muito mais tempo era esperar.
- Mas ainda nos falta determinar com exactidão a área que suspeitamos que seja um cemitério neolítico - salientou Jake. - Onde diabo vai pôr as marcações?
- Vou fazer as minhas próprias investigações, e vamos fazer tudo como deve ser. Vocês pediram a um índio, desculpe, a um americano nativo, que viesse arengar umas
coisas e dar-vos o amén para continuarem. Bem, eu também fiz uns telefonemas, e posso mandar vir um americano nativo que venha protestar contra qualquer interferência
com aqueles corpos.
Jake encostou-se na cadeira.
- Sim, é natural que possa. Há alguns desacordos entre as tribos sobre a forma como este tipo de assunto deve ser tratado. Mas acredite, Sr. Dolan, vamos levar-lhe
a melhor. Há quase quinze anos que faço isto e nem sonha os contactos que tenho. A acrescentar a isso, acontece que eu próprio tenho sangue índio, desculpe, americano
nativo. E embora alguns possam achar que não se devia mexer nos túmulos, a maioria vai sentir-se mais próxima da sensibilidade com que desenvolvemos este projecto
do que da ideia de pavimentar e ajardinar os túmulos para que o senhor possa colher lucros.
- Paguei por aquela terra. - O rosto de Dolan endureceu. - Foi um negócio limpo. A terra pertence-me.
- Pois pertence. -Jake acenou com a cabeça. - Por lei, pertence-lhe. E no final vai ser a lei a apoiar o que estamos a fazer nela.
- Não me venha falar da lei! - Pela primeira vez desde que tinham começado a conversar, Dolan explodiu. Jake não ficou surpreendido, pois notara a pressão a acumular-se.
- Estou farto que uns palermas quaisquer venham aqui dizer-me o que posso fazer e o que não posso. Vivi nesta região toda a minha vida! O meu pai começou este negócio
há cinquenta anos e temos passado as nossas vidas a tentar que as pessoas daqui tenham casas decentes. E de repente, que diabo, temos ambientalistas e amigos das
árvores a sarnar-nos e a lamentar-se porque construímos casas em terrenos de cultura. Não perguntam ao agricultor porque vende, porque é que se fartou de esfolar
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o coiro ano após ano, e não pensam que talvez ele esteja farto de ouvir as pessoas queixarem-se porque o leite é demasiado caro. Não sabe nada sobre este lugar e
não tem o direito de vir ao meu escritório dizer-me que não me ralo com mais nada senão com os meus lucros.
- Não sei com que é que se rala, Sr. Dolan. Mas sei que já não estamos a falar de terrenos agrícolas e da perda de espaços livres. Estamos a falar de uma descoberta
de enorme impacto científico e histórico. E para preservá-la, lutaremos contra si até ao fim.
Jake pôs-se de pé:
- O meu pai tem um rancho no Arizona, e eu vi-o esfolar o coiro ano após ano para conseguir mantê-lo. Continua a fazer isso, e foi a opção dele. Se tivesse vendido
o rancho, a opção também teria sido dele. Não conheço a sua comunidade, mas conheço cinquenta acres dela. E antes de acabar aqui o meu trabalho vou conhecê-la melhor
do que o senhor conhece o seu quintal. Houve pessoas que viveram aqui, trabalharam aqui, dormiram aqui e morreram aqui. Do meu ponto de vista, isso faz desta a terra
delas. Vou empenhar-me para que isso, e elas, sejam reconhecidos.
- Quero a vossa gentalha fora das minhas terras.
- Fale com o estado de Maryland, com a comissão de planeamento da região, com o tribunal. - Os seus olhos eram agora frios e verdes, e a sua voz deixara de ser indolente.
- Meta-se connosco, Dolan, e a imprensa vai enterrá-lo muito antes de os tribunais decidirem quem tem razão. A Dolan e Filhos vai acabar por ser mais um artefacto.
Jake saiu. Ao sair, notou pelos olhos da secretária, muito abertos, e pelo seu súbito e ávido interesse pelo teclado, que ela ouvira pelo menos parte da verborreia
de Dolan.
As novidades iam espalhar-se, pensou ele. Imaginou que iriam ter alguns visitantes no sítio das escavações nos próximos dias.
Pegou no telemóvel quando entrou no carro.
- Põe as roldanas legais a girar, Leo. O Dolan resolveu marrar e tudo o que consegui foi pô-lo a marrar ainda mais. Vou fazer um desvio e falar com Lana Campbell,
para comunicar as últimas à advogada da Sociedade de Preservação.
- Ela ainda está aqui.
- Então vou regressar agora.
A dois quilómetros e meio da cidade, atrás de um caminho sinuoso de gravilha, numa casa que Dolan construíra de acordo com os
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planos do proprietário, Jay Cullen estava sentado com a sua ex-mulher, a olhar para o vídeo de Callie Dunbrook.
Sentiu, como acontecia sempre que Suzanne voltava a desenterrar o pesadelo diante de si, um aperto no peito, um nó na barriga.
Era um homem calmo. Sempre fora um homem calmo. Terminara o ensino secundário na escola local, casara com Suzanne Grogan, a rapariga por quem se apaixonara à primeira
vista quando tinha seis anos, e fizera a sua formação de professor.
Durante doze anos ensinara matemática na escola que antes frequentara. Depois do divórcio, depois de não ter conseguido continuar a suportar a obsessão de Suzanne
pela sua filha perdida, mudara-se para a região vizinha e pedira transferência para outra escola.
Encontrara alguma paz. Embora as semanas pudessem passar sem que ele desse por si a pensar conscientemente na filha, não passava um só dia em que não pensasse em
Suzanne.
Agora estava de volta à casa onde nunca vivera e que o fazia sentir desconfortável. Era demasiado grande, demasiado aberta, demasiado moderna. E estavam de novo
no mesmo ciclo que os arrasara, destruíra o seu casamento e reduzira as suas vidas a pó.
- Suzanne...
- Antes de me falares de todas as razões pelas quais ela não pode ser a Jessica, deixa-me contar-te o resto. Ela foi adoptada quatro dias depois de a Jessica ter
sido levada. Uma adopção privada. Ela sentou-se onde estás sentado agora e explicou-me que, depois de alguma investigação, sentiu necessidade de mandar fazer testes.
Não estou a pedir-te que concordes comigo, Jay. Não estou a pedir isso. Estou a pedir que concordes com os testes.
- Para quê? Já estás convencida de que ela é a Jessica. Vejo isso na tua cara.
- Porque ela precisa de ficar convencida. E tu, e o Doug...
- Não voltes a arrastar o Doug para isto, Suz. Por amor de Deus.
- É a irmã dele.
- É uma estranha. - Distraidamente, passou a mão pela cabeça de Sadie quando ela a pousou no seu joelho. - Digam os testes o que disserem, vai continuar a ser uma
estranha.
Desviou o olhar da imagem do vídeo, da pior das dores.
- Nunca recuperaremos a Jessica, Suzanne. Por mais que tentes fazer com que o tempo volte atrás.
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- Preferes não saber, não é? - A amargura colou-se-lhe à garganta. - Preferes pôr um ponto final no assunto, esquecer. Esquecê-la, para viveres o resto da tua vida
sem sobressaltos.
- É isso mesmo. Deus sabe que eu queria esquecer. Mas não consigo! Não consigo esquecer, mas não posso deixar que isso tome conta da minha vida como tu deixas que
tome conta da tua, Suzanne. Não posso andar por aí a levar continuamente estaladas da vida e a ficar de rastos, como tu.
Acariciou a cabeça de Sadie, as orelhas sedosas, e desejou que fosse tão fácil confortar Suzanne. Confortar-se a si próprio.
- O que nos aconteceu a doze de Dezembro não me custou uma filha. Não perdi apenas uma filha. Perdi a minha mulher, a minha melhor amiga. Perdi tudo o que era importante
para mim, porque deixaste de me ver. Tudo o que conseguias ver era a Jessie.
Ela já ouvira aquelas palavras antes, já vira aquela mesma dor nos olhos dele quando ele as dissera. Magoava, continuava a magoar. Mas, ainda assim, ele não era
suficiente.
- Tu desististe. - Agora as lágrimas vinham rasgar a amargura.
- Tu desististe dela, da mesma maneira que terias desistido se tivéssemos perdido um cachorro.
- Isso não é verdade. - Mas a sua fúria já se dissolvera em exaustão. - Não desisti, aceitei. Tive de aceitar. Mas tu não vias o que eu fazia, o que eu sentia. Não
conseguias, porque deixaste de olhar para mim. E sete anos depois já não havia nada para ver. Não restava nada de nós.
- Tu culpaste-me.
- Não, querida, nunca te culpei. - Não conseguia suportar, não conseguia aguentar vê-la girar outra vez naquele desespero, naquela culpa, naquela dor. - Nem uma
única vez.
Ele levantou-se e estendeu-lhe os braços. Ela ainda cabia naquele abraço, como sempre coubera. Manteve-a ali, abraçada, sentindo-a tremer enquanto chorava. E sabia
que era tão inútil para ela como fora a partir do momento em que ela lhe telefonara a dizer que Jessica desaparecera.
- Eu faço os testes. Diz-me o que precisas que eu faça.
Marcou a consulta com o médico antes de sair de casa de Suzanne. Isso pareceu acalmá-la, embora tivesse agitado Jay, deixando-o com uma sensação de náusea devido
à pressão no peito.
Não ia passar pelo sítio das escavações. Suzanne pedira-lhe que o fizesse, quase lhe implorara que passasse por lá e falasse com Callie Dunbrook.
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Mas ele não estava preparado para isso. Além disso, que poderia dizer-lhe, ou ela a ele?
A revelação chegara no dia do vigésimo primeiro aniversário de Jessica. A sua filha, se fosse viva, e ele rezava para que fosse, era uma mulher. E nunca, nunca lhe
pertenceria.
Não conseguia enfrentar o caminho de regresso a casa, nem a noite que se aproximava. A solidão que vinha com ela. Sabia que era solidão, e uma certa paz que desejava
quando concordara tranquilamente com o divórcio. Depois de anos de inquietação e dor, tensão e conflito, sentia-se desejoso, quase ansioso, de ficar sozinho.
Dizia a si próprio que essa necessidade de solidão era o motivo pelo qual nunca voltara a casar e raramente saía com alguma mulher.
Mas no seu coração Jay Cullen era um homem casado. Jessica podia ser o fantasma vivo na vida de Suzanne, mas o seu casamento era o fantasma vivo na vida de Jay.
Quando cedeu à pressão dos amigos, ou às suas próprias necessidades, e levou uma mulher para a cama, considerou isso adultério emocional.
Não havia documento legal que conseguisse convencer o seu coração de que Suzanne já não era sua mulher.
Tentava não pensar nos homens com quem Suzanne tinha estado ao longo dos anos. E sabia que ela lhe diria que era essa a sua maior falha: o seu instinto para fugir
ao que o fazia infeliz, ao que perturbava o fluir da vida.
Não podia contra-argumentar, era absolutamente verdade.
Entrou na cidade e sentiu aquele espasmo familiar de saudade e uma onda súbita de puro prazer. Esta era a sua casa, por mais que ele vivesse longe dela. As suas
memórias estavam aqui.
Gelados e desfiles de Verão. A preparação para a Liga Distrital, o percurso diário até à escola, passeio fora. O atalho pelo quintal da Sr.a Hobson e o cão dela,
o Chester, a persegui-lo sem descanso até à vedação.
Via-a, e a ele próprio, nas mais diversas situações.
As tranças que ela usava quando estavam no primeiro ano, e os ganchos engraçados, as flores cor-de-rosa e as borboletas azuis que ela passara a usar no cabelo, mais
tarde.
Ele próprio aos dez anos, galgando os degraus da biblioteca para fazer um relatório, com as suas Levi's tão novas e engomadas que pareciam de cartão.
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A primeira vez que a beijara, ali mesmo, sob o velho carvalho na esquina de Main e Church. A neve fizera-os sair da escola mais cedo, e ele acompanhara-a a casa
em vez de ir com os amigos fazer uma guerra de bolas de neve.
Valera a pena, pensou Jay. Valera a pena todo o terror, e os suores frios e os tormentos que sofrera até àquele momento. Colar os seus lábios aos de Suzanne, na
doçura dos doze anos que ambos tinham.
O seu coração batia tão depressa que se sentia tonto. Ela sorriu, enquanto o empurrava. E quando fugira, ria, como as raparigas costumam fazer, pensou, porque naquela
idade sabem muito mais do que os rapazes.
E os pés dele não tinham tocado no chão ao longo dos três quarteirões que andara até encontrar os seus amigos, que já estavam em guerra, na neve.
Recordou a felicidade de ambos quando ele recebera o diploma e tinham podido voltar a Woodsboro. O pequeno apartamento que tinham alugado junto à universidade nunca
fora deles. Mais do que brincar às casinhas, brincavam aos casamentos.
Mas quando tinham regressado, com Douglas ainda bebé, tinham decidido ser uma família.
Estacionou no parqueamento depois da curva, e só nessa altura reparou que andava à procura de lugar para estacionar. Depois saiu e percorreu a pé o meio quarteirão
até à Treasured Pages.
Viu Roger ao balcão, a atender um cliente. Jay cumprimentou-o com um aceno de cabeça, levantou a mão, e começou a passear por entre as estantes.
Fora mais próximo de Roger, pensou Jay, do que do seu próprio pai, que teria sido mais feliz se o filho tivesse marcado pontos no futebol e não na escola.
Mais uma coisa que tinha perdido com Jessica. Roger nunca o tratara de forma diferente após o divórcio, mas tudo era diferente.
Parou quando viu Doug arrumar as estantes da secção de biografias.
Estivera com Doug duas vezes desde que ele regressara a Wòodsboro, e ainda era um choque ver que aquele homem alto, de ombros largos, era o seu rapaz.
- Tens aí alguma coisa boa para ler na praia? - perguntou-lhe
Jay.
Doug olhou para trás, por cima do ombro, e o seu rosto solene iluminou-se com um sorriso:
- Tenho umas coisas tórridas no meu compartimento secreto. Mas vai ter de pagar bem por elas. Que faz na cidade?
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Mal acabou de perguntar, soube a resposta. E o sorriso desapareceu.
-Já sei. A mãe meteu-o nisto.
- Viste o vídeo.
- Fiz mais do que ver o vídeo. Vi-a ao vivo e em pessoa. Jay aproximou-se mais do filho:
- O que achaste?
- O que devo achar? Não a conheci. Só sei que deixou a mãe virada do avesso.
- A tua mãe disse-me que foi ver esta mulher duas vezes, e não o contrário.
- Sim, pois. - Doug encolheu os ombros. - Que diferença é que isso faz?
- E o Roger?
- Aquela reportagem com ela abalou-o, mas ele está a aguentar-se bem. Já sabe como é o avô.
- Ele foi lá acima, à tal escavação, para vê-la?
- Não. - Doug abanou a cabeça. - Disse que tinha medo que, se começássemos a andar de volta dela, se começássemos a pressioná-la, ela se fosse embora, ou recusasse
fazer os testes, ou qualquer coisa assim. Mas quer ir. Tem andado a ler livros sobre arqueologia, deve querer ter assunto para falar com ela depois de voltarmos
a ser uma família grande e feliz.
- Se ela é a tua irmã... se é, precisamos de saber. Façamos o que façamos, precisamos de saber. Vou falar com o Roger antes de sair. Fica de olho na tua mãe, está
bem?
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Dez

Tomado de entusiasmo pelo tempo passado na escavação, Tyler largou a mãe quando entraram na livraria. O seu rosto brilhava de excitação e suor inocente enquanto
corria para trás do balcão, mostrando um pedaço de rocha achatada.
- Olha, Avô Roger, olha o que eu tenho!
Lançando a Jay um rápido olhar a pedir desculpa, Lana apressou-se a ir atrás dele:
- Ty, não interrompas.
Sem dar a Lana tempo de tirar dali o filho, Roger ajustou os óculos e inclinou-se para ele:
- O que tens aí, meu rapagão?
- É um pedaço de lança, de uma lança índia, e talvez tenham morto pessoas com ela!
- Diabos me levem! Ena, é sangue o que estou a ver aqui?
- Na na. - Mas fascinado com a ideia, Ty observou atentamente a ponta de lança. - Talvez.
- Desculpe. - Lana pegou em Ty ao colo. - Aqui o Indiana Jones esqueceu-se das boas maneiras.
- Quando for grande, vou escavar ossos.
- Que divertido vai ser! - Lana rolou os olhos e redistribuiu o peso de Ty. Dali a pouco, pensou com uma ligeira angústia, já não ia poder pegar-lhe assim, ao colo.
- Mas mesmo quando somos grandes, não interrompemos as pessoas que estão a conversar.
- Senta essa saquita de batatas aqui. - Roger bateu com a mão no balcão. - Lana, este é o meu... - Cunhado ainda lhe vinha aos lábios com toda a naturalidade. -
Este é o pai do Douglas, Jay. Jay, esta é Lana Campbell, a advogada mais bonita de Woodsboro, e este é o filho dela, o Tyler.
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Lana sentou Tyler no balcão e estendeu a mão.
- Prazer em conhecê-lo, Sr. Cullen.
Viu os olhos de Callíe, o nariz de Doug. Pensou se ele sentiria a mesma onda de prazer e surpresa ao rever nos filhos aquelas partes de si próprio como ela sentia
ao rever as suas em Ty.
- O Tyler e eu acabámos de visitar o projecto de Antietam Creek. Ele sabe, pensou ela ao ver a emoção perpassar-lhe o rosto. Ele sabe que a filha que lhe foi roubada
há tantos anos se encontra, neste momento, a apenas alguns metros de distância.
- E eles têm bocados de esqueletos e muitas pedras e fó... Como é que se chamam? - perguntou à mãe.
- Fósseis.
- O Dr. Leo deixou-me ficar com isto, e tem milhões de anos.
- Meu Deus! - Roger sorriu, embora Lana o visse esticar a mão para tocar no braço de Jay. - É ainda mais velho do que eu.
- Verdade? - Ty olhou, espantado, para o rosto enrugado de Roger. - Podes vir cavar comigo um dia destes. Eu mostro-te como se faz. E também tenho aqui doces. O
Dr. Jake tirou-os do meu ouvido!
- Não me digas! - Entrando na brincadeira, Roger baixou-se como se fosse procurar no ouvido de Ty. - Acho que comeste tudo.
- Era só um. O Dr. Leo disse que era magia e o Dr. Jake tem montes de truques na manga. Mas não vi mais nada.
- Parece que tiveste um dia e tanto. - Divertido, Jay bateu com a mão ao de leve num dos joelhos imundos de Ty. - Posso ver a tua rocha?
- Está bem. - Ty hesitou. - Mas não pode ficar com ela, está bem?
- Não, é só para ver. - Para pegar em alguma coisa que pode estar ligada a Jessica, pensou Jay. - Isto é muito fixe. Eu costumava coleccionar rochas, quando era
novo, e também tinha algumas balas da Guerra Civil.
- Mataram alguém? - quis Ty saber.
- Talvez.
- Está tudo muito sangrento, nos tempos que correm. - Lana percebeu um movimento pelo canto do olho, e virou-se. - Olá, Doug.
- Lana. - Observou o rapazinho que brincava no balcão e, tentando não deixar transparecer o que estava a pensar, Doug imaginou como seria pedir a um adulto que nos
devolvesse o nosso tesouro.
Miúdo bonito, pensou. Parecido com a mãe. Distraidamente, Doug passou a mão pelo cabelo despenteado de Ty:
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- Andaste a matar alguém? Ty abriu muito os olhos.
- Na na. E tu?
- Na. - Pegou na ponta de lança que Jay segurava, virou-a na mão e depois devolveu-a a Ty. - Vais ser arqiólogo?
- Vou ser... qual é o outro? - perguntou a Lana.
- Paleontologista.
- Vou ser isso, porque se pode achar dinossauros. Os dinossauros são os maiores. Tenho um livro de autocolantes sobre eles.
- É, são os maiores. Eu tinha uma colecção de dinossauros. Estavam sempre a lutar, a tentar comer-se uns aos outros. Lembra-se, pai?
- É difícil esquecer os gritos de sangue e o barulho das dentadas.
- Ele é teu pai? - quis Ty saber.
- É verdade.
- O meu pai teve que ir para o céu, mas continua a tomar conta de mim, porque é isso que os pais fazem. Não é?
- Tentamos. - Jay sentiu uma nova onda de dor atravessá-lo. -Jogas basebal? - Fascinado, como sempre, com a ideia do que os pais faziam, Ty começou a balançar as
pernas. - Eu fui jogar T-ball e a mamã ajudou. Mas não tem muito jeito para apanhar a bola.
- Ora, muito obrigado. - Lana fez cócegas na barriga de Ty com o dedo. - Tem um minuto? - perguntou Lana a Doug. - Preciso de falar consigo.
- Claro.
Como ele não esboçou qualquer movimento para levá-la até um sítio mais privado, Lana olhou para Roger com ar exasperado.
- Deixa o rapagão comigo - ofereceu Roger. - Doug, porque não levas a Lana lá para trás e lhe ofereces uma bebida gelada?
- Está bem. - Deu uma pancadinha no nariz de Ty. - Até logo, Ty-Rex. O que foi? - perguntou ele, quando Lana soltou um som abafado.
- Nada. Obrigado, Roger. Prazer em conhecê-lo, Sr. Cullen. Ty, juízo. - Dito isto, seguiu Doug até às traseiras.
- E então? - Afastou o cabelo para trás, enquanto procurava bebidas frescas no mini-frigorífico. - Acho que não se divertiu tanto como eu, na outra noite.
Ele sentiu um pequeno dedo de insegurança fazer-lhe cócegas na espinha:
- Eu disse que sim.
- Não telefonou a perguntar se podia sair comigo outra vez.
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- Tenho estado atulhado de coisas para fazer. - Tirou uma Coca-Cola. - Mas pensei nisso.
- Não consigo ler o seu pensamento, pois não?
Enquanto ela abria a lata, ele pensou em como ela ficava bem de jeans justos.
- Provavelmente consegue - declarou ele. Ela abanou a cabeça:
- Provavelmente achou que isso era um cumprimento.
- Bem, as minhas intenções eram as melhores. - Abriu a lata e voltou a olhá-la de alto a baixo. - Achei que não tinha calças de ganga. Das outras vezes em que a
vi estava toda aperaltada.
- Das outras vezes, ou estava a trabalhar ou ia àquilo que pensava que ia ser um belo jantar com um homem muito interessante. Hoje, estou a brincar com o meu filho.
- Miúdo giro.
- É. Eu também acho. Se vai convidar-me para sair, gostava que o fizesse agora.
- Porquê? - Sentiu a tensão nos músculos do pescoço só de ela erguer as sobrancelhas. - Está bem, está bem. Caramba! Quer sair amanhã à noite?
- Sim, quero. A que horas?
- Não sei. - Sentiu-se suave e completamente esmagado. - Às sete.
- Está bem. - Concluído o que ela considerava o seu assunto pessoal, pousou a pasta na secretária de Roger. - Agora que já está tudo combinado, devo dizer-lhe que
sou advogada de Callie Dunbrook.
- Como disse?
- Represento Callie Dunbrook no processo de estabelecimento da identidade dela.
Agora, os músculos do pescoço endureceram como punhos:
- Porque raio precisa ela de uma advogada?
- Isso é entre a minha cliente e eu própria. Contudo, este é um assunto que ela me pediu que partilhasse directamente consigo. Lana abriu a pasta e tirou de lá alguns
documentos legais. - Redigi estes documentos, a pedido dela. E ela instruiu-me no sentido de lhe dar uma cópia.
Ele não se mexeu. Teve de contrariar a vontade de esconder as mãos atrás das costas. Primeiro, manobra-o até o levar a convidá-la para sair, para sair pela segunda
vez, emendou. Depois, larga a bomba. E tudo isso sem se mostrar minimamente perturbada.
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Ao mesmo tempo que parecia a versão Vogue da mãe descontraída, de uma cidadezinha campestre.
- Que diabo se passa consigo?
- Em que contexto?
Ele pousou a lata na secretária, com alguma violência:
- Veio aqui fazer-se a outro encontro, ou atulhar-me de papéis? Ela comprimiu os seus bonitos lábios de gata:
- Suponho que a expressão "fazer-se a seja perfeitamente adequada, embora pouco lisonjeira. Contudo, não estou a atulhá-lo de papéis, estou a fornecer-lhe uma cópia
de um documento, a pedido da minha cliente. Por isso, se quiser reformular a resposta e perguntar-me se vim aqui hoje fazer-me a outro encontro ou entregar-lhe documentos
legais, a resposta é: ambas as coisas.
Lana pegou na sua lata e colocou-a sobre uma base, para não deixar marca na secretária:
- E se não lhe agradar a ideia de sair comigo enquanto eu representar a Callie, respeito isso.
Bebeu um pequeno gole da Coca-Cola. Muito pequeno, mais pelo gesto em si do que pela sede:
- Embora considere isso estúpido e insensato.
- É uma manipuladora - resmungou ele.
- Chamar manipuladora a uma advogada é redundante. E já ouvi todo o tipo de piadas a esse respeito. Quer retirar o seu convite para me levar a sair amanhã às sete?
A frustração envolveu-o:
- Seria estúpido e insensato.
Ela sorriu muito, muito docemente:
- Exacto. E, claro, ficaria privado da minha mui estimulante companhia.
- Costuma trazer uma fita para fazer um laço depois de embrulhar um tipo?
- Qual é a sua cor preferida? Ele não conseguiu deixar de rir.
- Sinto-me atraído por si. É de doidos. Gosto de si - acrescentou ele. - Ainda não percebi bem porquê. Mas como gosto de si, vou ser franco consigo. Não sou de grandes
relações.
- Talvez eu só queira sexo descomprometido.
Ele abriu a boca, sentindo que o maxilar lhe caía aos pés:
- Bem... humm...
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- Não quero. - Voltou a pegar na bebida dele e estendeu-lha. Ele tinha ar de quem estava a precisar de uma bebida bastante mais forte do que Coca-Cola. - Mas é sexista
e obtuso da sua parte presumir que, porque sou mulher, estou a tentar estruturar uma relação com base nuns encontros casuais. Ou mais: que por ser uma viúva jovem
e com um filho ando à procura de um homem para completar o meu mundozinho.
- Eu não quis... Pensei que devesse... - Parou e tomou um bom gole da sua bebida. - Neste momento, não há nada que eu possa dizer que não me enterre ainda mais.
Vou buscá-la amanhã às sete.
- Óptimo. -- Voltou a estender-lhe os papéis.
Ele esperava que entretanto ela se tivesse esquecido deles:
- Que raio é isso?
- São muito claros, mas se quiser lê-los agora, terei todo o gosto em responder a quaisquer perguntas que possa ter. - Resolveu o assunto empurrando-lhe os papéis
contra as mãos, até ele ser obrigado a pegar-lhes.
Sem os óculos, Doug teve de semicerrar os olhos para ler, mas não demorou muito a perceber do que se tratava. Estava ali, preto no branco, e claro como água apesar
do palavreado legal.
Lana viu o rosto dele endurecer-se, os olhos escuros faiscarem, enquanto lia. A fúria ficava-lhe bem, concluiu ela. Estranho, como a ira era tão sensual num certo
tipo de homem.
Um homem difícil, pensou, e um homem com quem iria provavelmente cometer a loucura de se envolver. Mas sabia, e bem, que a vida era demasiado curta para não se cometer
uma loucura de vez em quando.
A sua tragédia pessoal ajudara-a a ter o cuidado de não dar nada como certo e adquirido, mesmo que se tratasse de uma amizade, ainda em fase inicial, com um homem
complicado.
A vida - e todas as pessoas que passavam por ela - era difícil. Porque devia ele ser diferente?
Ele pousou os papéis e lançou aquela chispa de fúria contra ela:
- Pode dizer à sua cliente que vá para o diabo! Ela manteve a sua expressão calma, a voz suave:
- Preferia que fosse você próprio a dizer-lhe isso.
- Muito bem. Eu digo-lhe.
- Antes disso... - Pousou a mão no braço dele, sentindo os músculos estremecerem. - Acho que não é quebra do sigilo profissional dizer-lhe que a impressão que tenho
de Callie é de uma mulher forte e compassiva, que está, neste momento, no meio de um enorme turbilhão
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e a tentar fazer o que é certo para todos os envolvidos. Acho que isso o inclui a si.
- Não quero saber.
- Talvez não queira. Talvez não possa. - Lana fechou a pasta.
- Talvez ache interessante saber que, quando a Callie conheceu o Ty e falou com ele durante uns minutos, chamou-lhe Ty-Rex. Exactamente como você.
Ele olhou para ela, e o que perpassou pelos seus olhos nada tinha a ver com raiva:
- E depois? Ele fala de dinossauros, chama-se Ty. É fácil chegar lá. -Talvez. Mas não deixa de ser interessante. Até amanhã.
-Acho que não...
- Hã-hã. - Abanou a cabeça e pôs a mão na porta. - está combinado, está combinado. Sete horas. O Roger tem a minha morada.
Callie trabalhou com Jake, embrulhando os ossos exumados em panos molhados e plástico, para preservá-los. Antes disso, foram fotografados, desenhados e catalogados.
Os testes revelariam mais.
Outros cientistas, estudantes, especialistas iriam estudá-los e descobrir mais.
- Callie sabia que alguns veriam apenas uma tíbia, ou um úmero.
Apenas ossos, restos e mortos. Isso era suficiente para eles, esse conhecimento era suficiente para eles.
E ela não tinha nada contra essa perspectiva.
Mas não era a dela.
Pensou. E no seu pensamento, a partir de um osso, podia construir um ser humano que vivera e morrera. Que tivera valor.
- Quem era ele? - perguntou a Jake.
- Qual?
- O fémur.
- Era um homem, cerca de trinta e cinco anos. Um metro e setenta e cinco de altura. - Mas ele sabia o que ela queria. - Aprendeu a cultivar a terra, a produzir alimento
para si e para a sua tribo. A caçar,
a pescar. O pai ensinou-lhe, e quando era rapaz já percorria a floresta.
Ela passou o braço pela testa húmida:
- Acho que o úmero e aqueles ossos de dedos também são dele. Condizem na idade e no tamanho.
- É possível.
- E o machado que encontrámos aqui. - Acocorou-se. - Foi o
que o matou. Não foi esse. Eles não o teriam enterrado com o objecto
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que o matou, mas sim com um que lhe pertencesse. Aquele corte no úmero, é de um golpe de machado. Houve alguma guerra?
- Há sempre uma guerra. - Neste momento havia uma dentro dela, pensou Jake. Via-o no rosto dela, e sabia que ela estava a usar a imagem do homem que estavam a construir
juntos para manter essa guerra à distância.
- Outra tribo - disse Jake. - Ou talvez uma luta pessoal dentro desta tribo. Havia de ter uma companheira, filhos. Pode ter morrido para protegê-los.
Ela sorriu um pouco:
- Ou pode ter sido um idiota e ter exagerado no sumo fermentado, ter-se metido numa briga e ter sido morto por causa disso.
- Sabes, Dunbrook, faz-te mal seres tão romântica.
- É verdade. Os machos idiotas não são um fenómeno moderno. Existem desde os primórdios. Tipos a esmagar os miolos uns aos outros com uma pedra porque parece divertido.
Nem sempre foi por comida ou por terra, ou por uma questão de defesa. Às vezes era só por pura maldade. Respeitar os achados, estudar, aprender, não significa pintar
os nossos antepassados em tons pastel.
- Devias escrever um artigo sobre o assunto. "O macho idiota: sua influência no homem moderno".
- Talvez escreva. Fosse quem fosse, foi filho de alguém e, provavelmente, pai de alguém.
Rodou a cabeça para aliviar a tensão do pescoço e depois levantou a cabeça, ao ouvir a porta de um automóvel bater com violência. Os lábios contorceram-se-lhe num
sorriso de desdém:
- Por falar em idiotas...
- Conheces este tipo?
- Douglas Cullen.
- Não me digas! -Jake endireitou-se, imitando Callie, e mediu o homem de alto a baixo, imitando Callie. - Não parece muito fraternal neste momento.
- Não te metas nisto, Graystone.
- Pronto, porque é que tinhas que dizer isso?
- Estou a falar a sério. - Mas quando ela se preparou para ir ao encontro de Douglas, Jake imitou-a também.
Doug atravessou o local das escavações como um homem que marcha para uma batalha que não tem a intenção de perder. Viu o homem que estava ao lado de Callie e ignorou-o.
Tinha apenas um objectivo. Se alguém pretendia tornar-lhe difícil atingi-lo, pois muito bem.
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Estava disposto a tudo.
Aproximou-se dela e cerrou os dentes quando ela empinou o queixo e pôs as mãos nos quadris. Sem dizer uma palavra, tirou os documentos do bolso de trás das calças.
Desdobrou-os, para ela ver o que eram, e depois rasgou-os em pedaços.
Nada poderia ter sido mais eficaz a despertar a ira dela, nem o respeito dela por ele:
- Estás a fazer lixo no nosso terreno, Cullen.
- Tiveste sorte por eu não to ter enfiado pela boca abaixo e lhe ter ateado fogo depois.
Jake deu um passo em frente:
- Porque é que não apanhas os pedaços e tentas, valentão?
- Não te metas! - Callie enfiou um cotovelo na barriga de Jake, mas não o arredou um centímetro.
O trabalho à volta deles parou, o que lhe fez recordar o seu confronto com Dolan. Passou-lhe pela cabeça que talvez ela e Douglas Cullen tivessem mais em comum do
que gostariam de ter.
- Isto é entre ela e eu - disse Doug.
- Até aí tens razão - concordou Callie.
- Quando eu e ela acabarmos, se quiseres ter uma conversazinha estou ao dispor.
- Idiotas ao longo dos tempos - resmungou Callie, e resolveu o problema metendo-se no meio de ambos. - Se há alguém que vai ter uma conversazinha somos nós. Agora,
pega no lixo que fizeste e põe-te a milhas.
- Esses papéis são um insulto para mim e para a minha família.
- Ai sim? - Callie empinou o queixo com redobrado vigor. E, atrás dos seus óculos de sol, os olhos dela flamejaram. - Bem, acusar-me de andar atrás do dinheiro da
tua mãe também é um insulto para mim.
- Tens razão. - Olhou para os pedaços de papel. - Diria que estamos quites.
- Não, vamos ficar quites quando eu aparecer no sítio onde trabalhas e armar um escândalo diante dos teus colegas.
- Está bem, neste momento passo umas horas na livraria do meu avô. É a Treasured Pages, em Main Street, na cidade. Estamos abertos seis dias por semana, das dez
às seis.
- Vou apontar na minha agenda. - Meteu os polegares nos bolsos da frente e continuou a usar a linguagem do seu corpo como um
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insulto. - Entretanto, desaparece. Ou posso não conseguir resistir ao desejo de dar-te um pontapé no rabo e enterrar-te na pilha do lixo da cozinha.
Sorriu ao dizer isto. Um sorriso grande, largo, malicioso. E as três covinhas apareceram.
- Meu Deus! Santo Cristo! - Ficou a olhar para ela, sentindo o chão mover-se debaixo dos seus pés.
Ficou tão pálido, os olhos tão escuros, que ela temeu que ele caísse redondo aos pés dela:
- Que diabo se passa contigo? Provavelmente, nem sabes o que é uma pilha de lixo da cozinha.
- Pareces-te com a minha mãe. A minha mãe com os olhos do meu pai. Tens os olhos do meu pai, por amor de Deus! O que é que eu faço?
A raiva gorada na voz, a emoção pura no rosto dele, eram mais do que ela própria conseguia aguentar. Ficou descontrolada, sem saber o que fazer:
- Não sei. Não sei o que nenhum de nós... Jake.
- Porque não vais para a roulote do Digger? - Pôs-lhe a mão no ombro e depois passou-lha pelas costas, para baixo e para cima.
- Eu acabo isto aqui. Vai, Cal. -Jake empurrou-a docemente com o cotovelo. - A não ser que queiras ficar aqui com toda a gente especada a ver.
- Está bem. Raios! Anda lá.
Jake baixou-se para apanhar os papéis rasgados. Olhou para a esquerda, para onde Digger e Bob tinham parado de trabalhar para ver o que estava a passar-se. O olhar
frio e insistente de Jake trouxe um rubor ao rosto de Bob e um sorriso largo ao de Digger.
Ambos voltaram ao trabalho.
De ombros arqueados, Cal encaminhou-se para a roulote de Digger. Não esperou para ver se Doug a seguia. O rosto dele dissera-lhe que sim, mas se não o fizesse Jake
trataria do assunto.
Entrou rapidamente, e caminhou habilmente por cima, em volta e por entre pilhas de coisas até chegar ao mini-frigorífico.
- Temos cerveja, água e Gatorade - disse ela sem se virar, quando ouviu passos atrás de si.
- Credo, isto é uma lixeira!
- É, o Digger deu folga aos criados.
- O Digger é uma pessoa?
- Isso ainda está para ser cientificamente comprovado. Cerveja, água, Gatorade.
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- Cerveja.
Abriu uma, duas, e depois virou-se para oferecer uma dela. Ele ficou a olhar para ela:
- Desculpa, não sei como lidar com isto.
- Bem-vindo ao clube.
- Não quero que estejas aqui. Não quero que existas. Isso faz-me sentir abaixo de tudo, mas não quero que tudo isto caia em cima da minha família, em cima de mim.
Outra vez, não.
A honestidade absoluta, o sentimento que ela compreendia totalmente e do qual partilhava, levou-a a reavaliá-lo. Deu-se conta de que em determinadas circunstâncias
provavelmente gostaria dele.
- Não me importo muito comigo. Também tenho uma família. Isto está a fazê-los sofrer. Queres esta cerveja, ou não?
Ele aceitou-a:
- Quero que a minha mãe esteja enganada. Já se enganou outras vezes. Ficou toda esperançada, toda fora de si, para depois acabar completamente de rastos. Mas não
consigo olhar para ti e acreditar que ela se enganou desta vez.
Callie compreendeu que a nível emocional não era só ela que atravessava um campo minado, ele também. Ela levara com um irmão em cima, ele com uma irmã.
- Não, não acho que ela esteja enganada. Vamos precisar dos testes para confirmar, mas já temos dados suficientes para uma forte suposição. E uma parte da minha
vida é feita de fortes suposições.
- És minha irmã. - Dizê-lo em voz alta magoou-lhe a garganta. Voltou a pegar na cerveja e bebeu.
A frase fez o estômago agitar-se-lhe e voltou a sentir simpatia por ele, ao imaginar que ele estaria no meio de uma dança semelhante.
- Provavelmente, fui tua irmã.
- Podemos sentar-nos?
- Corremos o risco de apanhar várias infecções, mas podemos, claro! - Tirou do sofá estreito e encastrado na parede livros, revistas pornográficas, pedras, garrafas
de cerveja vazias e dois excelentes esboços do campo arqueológico.
- Eu só... só não quero que a magoes, apenas isso.
- E porque havia de magoá-la?
- Não compreendes.
- Muito bem, não compreendo. - Tirou os óculos de sol e esfregou os olhos. - Explica-me.
- Ela nunca recuperou. Acho que se tivesses morrido teria sido mais fácil para ela.
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- É um bocado duro para mim, mas sim, entendo isso.
- A incerteza, a necessidade de acreditar que ia encontrar-te, todos os dias, e o desespero, todos os dias, quando não te encontrava. Isso mudou-a. Mudou tudo. E
eu passei por isso com ela.
- Sim. - Callie lembrou-se de ter lido nos jornais que ele estava lá. Vivera toda a sua vida com isso. - E eu não.
- Tu não. Isto destruiu os meus pais. De muitas formas, destruiu-os. Ela construiu uma vida nova, mas construiu-a sobre aquela que tinha antes. Não quero voltar
a vê-la desfeita.
Sentiu-se mal por dentro, e lamentou profundamente. Mas era algo que não conseguia ter presente. Tal como a morte do homem cujos ossos desenterrara não estava presente.
- Não quero magoá-la. Não posso sentir por ela o mesmo que tu sentes, mas não quero magoá-la. Ela quer a filha de volta, e nada poderá fazer com que isso aconteça.
Tudo o que posso fazer é dar-lhe o conforto de saber que estou viva, que tenho saúde, que outras pessoas me deram uma vida boa.
- Elas roubaram-te de nós.
As mãos dela cresparam-se, prontas a defender-se.
- Não, não roubaram. Eles não sabiam. E é por serem o tipo de pessoas que são que estão a sofrer, agora que sabem.
- Tu conhece-los. Eu não.
Ela concordou com um aceno de cabeça.
- Exactamente por isso.
Ele compreendeu. Não conheciam a família um do outro. Não se conheciam um ao outro. Pareciam ter chegado a um ponto em que teriam de passar a conhecer.
- E tu? Como te sentes em relação a isto tudo?
- Sinto... medo - admitiu ela. - Medo porque isto parece um enorme círculo que vai girando à minha volta e que vai fechar-se sobre mim. Já alterou a minha relação
com os meus pais. Fez-nos desconfiar uns dos outros, de uma forma que nunca deveria existir. Não sei quanto tempo vai passar até conseguirmos voltar a estar à vontade
uns com os outros, mas sei perfeitamente que as coisas não vão voltar a ser iguais. E isso deixa-me fora de mim.
- E lamento - acrescentou ela -, porque a tua mãe não fez nada para merecer isto. Nem o teu pai. Nem tu.
- Nem tu. - E lançar as culpas a Callie teria sido, admitiu ele, uma forma de manter a sua própria culpa arredada.
- Qual é a tua primeira recordação clara?
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- A minha primeira recordação? - Pensou um pouco, bebericou a cerveja. - Andar às cavalitas do meu pai. Na praia. Martha's Vineyard, acho eu, porque costumávamos
lá ir quase todos os anos passar duas semanas, no Verão. Agarrava-lhe os cabelos com as minhas mãos e ria enquanto ele dançava para a frente e para trás. E consigo
ouvir a minha mãe dizer "Elliot, tem cuidado". Mas ela também estava a rir.
- A minha é estar à espera numa fila para ver o Pai Natal, no centro comercial em Hagerstown. A música, as vozes, o homem de neve com um rabo enorme e bocado assustador.
Tu estavas a dormir no carrinho.
Ele bebeu mais um gole de cerveja, procurando manter-se firme, porque sabia que tinha que deitar aquilo cá para fora.
- Tinhas um vestido vermelho, de veludo. Eu não sabia que era veludo. Tinha renda, aqui. - Passou as mãos pelo peito. - A mãe tinha-te tirado o capuz porque ficavas
irritada com ele na cabeça. O teu cabelo parecia penas de pato. Muito macio, muito claro. Eras quase careca.
Callie sentia agora qualquer coisa desprender-se dele, uma ligação com aquele rapazinho que a fez sorrir para ele enquanto afastava do rosto a sua cabeleira farta
e despenteada:
- Consegui compensar isso.
- Pois. - Ele conseguiu retribuir-lhe o sorriso, enquanto observava o cabelo dele. - Só pensava que ia ver o Pai Natal. Estava aflito para fazer chichi, mas não
queria sair da fila por nada do mundo. Sabia exactamente aquilo que queria. Mas quanto mais nos aproximávamos, mais estranho tudo me parecia. Duendes grandes e feios
à espreita.
- É, porque será que as pessoas não percebem que os duendes são assustadores?
- Até que chegou a minha vez, e a mãe disse-me para ir ter com o Pai Natal e para me sentar no colo dele. Ela tinha os olhos húmidos. Não percebi que ela estava
emocionada. Pensei que havia alguma coisa errada, que havia ali alguma coisa má. Fiquei petrificado. O Pai Natal do centro comercial... Não se parecia com o que
eu tinha imaginado. Era demasiado grande. Quando ele me pegou ao colo e soltou o velho oh oh oh, passei-me. Comecei a gritar, a empurrá-lo, caí do colo dele, de
cara no chão. O nariz começou a sangrar. A mamã pegou-me ao colo e embalou-me. Nessa altura, soube que tudo ia ficar bem. A mãe estava a abraçar-me e não ia deixar
nada de mal acontecer-me.
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Então, ela começou a gritar e eu olhei para baixo. Tu tinhas desaparecido.
Doug bebeu um longo gole:
- Não me lembro de mais nada, depois disso. Está tudo desfocado. Mas esta recordação é tão clara como se tivesse acontecido ontem.
Três anos, voltou ela a pensar. Aterrorizado, imaginou. Traumatizado e, obviamente, enredado na culpa.
Por isso, tratou-o como gostaria de ser tratada. Bebeu mais um gole de cerveja e recostou-se:
- E então, continuas a ter medo de homens gordos com fatos encarnados?
Ele soltou uma gargalhada curta e explosiva. E os seus ombros relaxaram:
- Sem dúvida!
Passava da meia-noite quando Dolan chegou à linha das árvores e observou o campo que dividira cuidadosamente em lotes para construção. Projecto Antietam Creek, pensou.
O seu legado à comunidade.
Casas boas, sólidas, a bons preços. Casas para famílias jovens, para famílias que queriam uma vida no campo com comodidades modernas. Sossegadas, pitorescas, históricas
e estéticas. E a quinze minutos da estrada principal.
Pagara bom dinheiro por aquela terra. Tão bom que os juros do empréstimo iam sobrepor-se a um ano de lucros, se ele não voltasse rapidamente ao trabalho e começasse
a construir o raio das casas.
Ia perder os contratos que já tinha, se o atraso ultrapassasse os sessenta dias. O que significava a devolução de duas entradas avultadas.
Não estava certo, pensou. Não estava certo, pessoas que não tinham nada a ver com o negócio virem dizer-lhe como havia de gerir a Dolan e Filhos. Dizer-lhe o que
ele podia ou não fazer com a terra que era dele!
As malditas Sociedades Histórica e de Preservação já lhe tinham custado mais tempo e mais dinheiro do que qualquer homem razoável podia dar-se ao luxo de perder.
Mas ele fizera tudo segundo as regras, tudo na linha. Pagara aos advogados, falara em reuniões da Assembleia Municipal, dera entrevistas.
Fizera tudo conforme as regras.
Estava na hora de esquecer as regras.
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Tanto quanto sabia, tanto quanto toda a gente sabia, Lana Campbell e os seus amiguinhos das árvores tinham arranjado todo este fiasco para pressioná-lo a vender
a sua terra e a perder dinheiro.
Tanto quanto sabia, estes cientistas hippies do demónio estavam a divertir-se imenso a fazer de um monte de ossos uma coisa do outro mundo.
As pessoas não podiam viver de ossos. Precisavam de casas. E ele ia construí-las.
Tivera a ideia quando aquele chico-esperto do Graystone estivera no escritório, a tentar impressioná-lo. Um grande impacto científico e histórico, uma ova! Veríamos
o que a imprensa teria a dizer quando soubesse que uma boa parte desse grande impacto era feita de ossos de veado, de pernas de porco e de ossos de vaca.
Tinha sempre uma bela reserva na raça frigorífica da garagem, por causa dos cães.
Com satisfação, olhou para o saco de lixo que arrastara desde o carro, estacionado a quatrocentos metros dali. O Graystone ia ver uma coisa. Ou duas.
E aquela cabra da Dunbrook também.
A forma como aparecera na obra, cheia de arrogância, a gritar com ele diante dos homens. Tinha mandado o raio do xerife atrás dele. E ter de responder a perguntas
humilhara-o uma segunda vez. Era um pilar da comunidade, que diabo, não um adolescente imbecil com uma lata de tinta em spray.
Não ia permitir uma coisa daquelas. Não, senhor!
Se ela queria acusá-lo de vandalismo, pois bem, ia fazer-lhe um favor.
Se queriam jogo sujo, pensou, ele ia mostrar-lhes o que era fazer jogo sujo. Os filhos da mãe iam ser a chacota da cidade e ele ia regressar ao trabalho.
As pessoas precisavam de viver agora, disse a si próprio enquanto arrastava o saco. Precisavam de criar os seus filhos e de pagar as suas contas, precisavam de pendurar
as suas cortinas e de tratar dos seus jardins. E, por Deus! Precisavam de uma casa para viver. Hoje!
Não precisavam de preocupar-se com a vida de um homem-macaco há seis mil anos. Isso era tudo treta!
Tinha homens que dependiam dele para trabalhar, e esses homens tinham famílias que dependiam do pão que eles levavam para casa. Estava a fazer isto pela sua comunidade.
Dolan pensava como um justiceiro, enquanto saía do bosque.
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Viu a silhueta da roulote estacionada no campo. Um daqueles anormais estava lá dentro, mas as luzes estavam apagadas. Provavelmente, estava enfrascado, a dormir
como um bebé.
- Mesmo a calhar - resmungou, e fez brilhar a luz da sua pequena lanterna por entre os montes e os buracos. Para ele os buracos eram todos iguais, e convencera-se
a si próprio de que eram iguais para quem quer que fosse.
Tinha que acreditar nisso, com o banco a apertar-lhe os calos, com as equipas extra que contratara a perguntarem-lhe constantemente quando iriam retomar o trabalho,
com a sua mulher preocupada todos os dias e todas as noites com o dinheiro que ele já enterrara no empreendimento.
Rodeava calmamente um dos buracos, olhando para a roulote e depois para as árvores, quando pensou ter ouvido um restolhar.
O grito súbito de um mocho fê-lo largar o saco, e depois rir de si próprio. Imagine-se, uma raposa velha como ele assustado pela escuridão. Andava pelos bosques
desde que era miúdo.
Não aqueles bosques, claro, pensou lançando outro olhar nervoso às sombras profundas por entre as árvores silenciosas. A maioria das pessoas tendia a manter-se à
distância de Simon's Hole. Não que ele acreditasse em fantasmas. Mas havia muitos sítios para caçar, para acampar, para caminhar, sem ser aquele lugar que fazia
os cabelos de um homem eriçarem-se-lhe na nuca, à noite.
Seria bom quando o empreendimento estivesse terminado, disse a si próprio, enquanto continuava a vigiar o bosque e voltava a pegar no saco dos ossos. Ia ser bom
ter pessoas a aparar a relva e miúdos a brincar nos jardins. Piqueniques e jogos de cartas, o jantar no fogão e o noticiário da noite na televisão.
Vida, pensou limpando o suor que lhe escorria sobre o lábio superior, enquanto aquelas sombras pareciam agitar-se, juntar-se, aproximar-se.
A mão tremia-lhe quando entrou no saco e agarrou um osso frio e húmido.
Mas não queria descer ao buraco. Era como um túmulo, considerou. Que tipo de pessoas passava o tempo em buracos, a cavar, à procura de ossos como se fossem ladrões
de túmulos?
Ia buscar uma das pás, era isso que ia fazer. Ia buscar uma das pás e enterrar os ossos em volta dos buracos e das pilhas de terra. Teria o mesmo efeito.
Voltou a ouvir os sons: qualquer coisa que caíra na água, um roçar ao de leve. Desta vez virou-se, apontando a luz da lanterna na direcção
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das árvores, na direcção do lago onde um jovem chamado Simon se afogara antes de Dolan ter nascido.
- Quem está aí? - A voz era baixa e tremia, e a luz da lanterna ziguezagueava, sacudida, pelo escuro. - Não tem o direito de andar por aqui a assustar ninguém. Esta
terra é minha. Tenho uma arma e não tenho medo de usá-la.
Queria uma pá, tanto para servir de arma como de ferramenta. Largou a correr na direcção de uma tenda, e ficou com pé preso numa das cordas de marcação. Caiu pesadamente,
esfolando as palmas das mãos que lhe ampararam a queda. A lanterna voou.
Praguejou contra si próprio, de joelhos no meio da terra. Não estava ninguém ali, disse a si mesmo. Claro que não estava ninguém ali à uma da manhã, raios! Estava
a portar-se como um idiota, com medo das sombras.
Mas quando a sombra se abateu sobre ele, não teve tempo de gritar. A dor aguda provocada pelo golpe na nuca durou apenas alguns segundos.
Quando o seu corpo foi arrastado até ao lago e atirado à água, Dolan estava tão morto como Simon.
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Segunda Parte

ESCAVAR MAIS FUNDO
Porque procurais os vivos entre os mortos?
S. LUCAS 24:5
Digger estava encharcado até aos ossos e aspirava em grandes baforadas o Marlboro que cravara a um dos ajudantes do xerife.
Deixara os cigarros havia dois anos, três meses e vinte e quatro dias. Mas encontrar um cadáver quando fora aliviar a bexiga, por entre a névoa da madrugada, parecera-lhe
o motivo perfeito para recomeçar.
- Saltei logo lá para dentro. Não pensei, fiz e pronto. Já o tinha meio na margem quando reparei que tinha o crânio esmagado. Não valia a pena fazer boca a boca.
Já não valia a pena.
- Fizeste o que podias. - Callie pôs-lhe o braço à volta dos ombros ossudos. - Devias ir vestir uma roupa seca.
- Eles disseram que iam querer falar comigo outra vez. - O cabelo escorria-lhe pelo rosto, num emaranhado de cordas. A mão que levava o cigarro à boca tremia. -
Nunca gostei de falar com polícias.
- Quem é que gosta?
- Andam a vasculhar a minha roulote.
Ela estremeceu, enquanto olhava por cima do ombro para a roulote suja:
- Tens erva ali? Alguma coisa que te vá meter em sarilhos?
- Não, deixei-me disso, mais ou menos na altura em que deixei o tabaco. - Conseguiu esboçar um sorriso pálido ao olhar para o Marlboro que fumara quase até ao filtro.
- Talvez retome o hábito. Credo, Call, os cabrões acham que posso ter sido eu. - A ideia revolveu-lhe o estômago como gordura aos pedaços.
- Só estão a verificar tudo. Mas se estás mesmo preocupado, falamos com um advogado. Posso telefonar à Lana Campbell.
Ele bufou, abanou a cabeça:
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- Não, deixa-os procurar. Deixa-os lá procurar. Não há nada ali dentro que tenha a ver com isto. Se eu pensasse em matar alguém, havia de fazer um trabalho melhor.
Nem sequer conhecia o filho da mãe. Nem sequer o conhecia!
- Ouve uma coisa: senta-te um bocado. Eu vou ver se consigo saber o que se está a passar.
Ele assentiu com a cabeça e, tomando à letra o conselho dela, sentou-se no chão, mesmo ali, a olhar para os dedos pálidos de névoa que se erguiam de Simon's Hole.
Callie fez sinal a Rosie para se sentar junto dele, e depois aproximou-se de Jake:
- Que estão eles a dizer?
- Não muita coisa. Mas podemos juntar alguns bocados. Estudaram a zona. O xerife e três ajudantes estavam no local, que já tinham isolado com fita, bloqueando o
acesso aos segmentos B-10 a D-15. O corpo de Dolan estava exactamente no sítio onde Digger o deixara, estendido de barriga para baixo na erva pisada, junto ao lago.
O ferimento sangrara. Callie notou a forma alterada do crânio, a depressão formada em resultado do golpe, especulou.
Uma pedra de tamanho considerável, num golpe desferido pelas costas. Provavelmente com as duas mãos, de baixo para cima. Teria uma imagem melhor se pudesse examinar
o crânio de perto.
Conseguia ver a mancha de sangue na terra, no sítio onde ele caíra e começara a sangrar. E depois o rasto deixado até à água.
Havia pegadas por todo o lado. Algumas seriam dela própria, pensou. Outras de Jake, do resto da equipa. Havia marcas leves dos pés descalços de Digger em direcção
ao lago, e depois outras, mais profundas, mais espaçadas entre si, que mostravam claramente que regressara à roulote a correr.
Os polícias veriam isso, disse a si própria. Veriam tão claramente como ela que ele fora até ao lago, vira o corpo a flutuar e mergulhara para trazê-lo para terra.
Veriam que ele regressara à roulote a correr, para chamar o 112.
Veriam que ele estava a dizer a verdade.
E veriam os motivos que tinham levado Ron Dolan ao local das escavações.
Havia um saco de plástico verde no chão, próximo da secção B-14. Junto dele estavam entornados ossos de animais.
Um dos ajudantes do xerife estava a tirar fotografias do corpo, do saco, dos sulcos pouco profundos no chão que, concluiu Callie, os pés de Dolan tinham feito quando
fora arrastado até à água.
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Sabia que o médico forense vinha a caminho, mas não era preciso saber muito de medicina forense para perceber o que acontecera.
- Ele deve ter vindo até aqui para espalhar ossos de animais pelo campo. Para nos chatear. Estava suficientemente passado para fazer isso - disse ela, calmamente.
- Talvez tenha pensado que nos desacreditaria de alguma forma, que pararia as escavações. Pobre simplório. Foi então que alguém lhe deu com uma coisa na cabeça.
Quem diabo faria isso? Se ele tivesse trazido alguém com ele, seria um amigo, alguém da confiança dele.
- Não sei. - Jake virou-se para trás e olhou para Digger, aliviado ao vê-lo sentado no chão, na companhia de Rosie, a beber café.
- Ele não está nada bem - declarou Callie. - Cheio de medo que eles pensem que foi ele que fez isto.
- Essa ideia não vai aguentar-se. Ele nem sequer conhecia o Dolan. E quem quer que conheça o Digger jura sobre uma montanha de Bíblias que ele não era capaz de matar
ninguém. Um esquilo suicida meteu-se-lhe debaixo das rodas há umas semanas, e ele ficou em choque durante uma hora.
- Então, porque pareces preocupado?
- Um homicídio preocupa qualquer pessoa. E um homicídio no sítio das escavações pode fazer muito mais para atrasar ou para parar os trabalhos do que ossos de veado
deixados por alguém.
A boca de Callie abriu-se e fechou-se antes de ela conseguir dizer alguma coisa:
- Meu Deus, Jake, estás a pensar que alguém matou o Dolan para nos lixar? É uma loucura!
- O homicídio é uma loucura - contrapôs ele. - Sempre. Instintivamente, Jake pousou a mão no ombro dela, unindo-os enquanto o xerife Hewitt se encaminhava na direcção
deles.
Era um homem alto e gordo. Avançava lentamente, pesadamente. O uniforme castanho fazia-o parecer-se com um urso enorme e afável.
- Dr.a Dunbrook. - Cumprimentou-a com um aceno de cabeça.
- Gostava de fazer-lhe algumas perguntas.
- Não sei o que possa dizer-lhe.
- Podemos começar pelo que fez ontem. Só para eu ficar com uma ideia.
- Cheguei ao sítio das escavações antes das nove. Fiquei a trabalhar naquele segmento durante quase todo o dia. - Apontou para a zona, agora interditada pela fita
estendida pela polícia.
- Sozinha?
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- Parte do dia sozinha, outra parte com o Dr. Graystone, porque estávamos a preparar ossadas para serem transferidas. Fiz uma pausa, cerca de uma hora, ao meio-dia.
Almocei e trabalhei nas minhas notas, ali mesmo. - Apontou para algumas cadeiras desdobráveis, à sombra, junto ao ribeiro. - Trabalhámos até quase às sete e depois
fechámos. Comprei uma baguete com carne e queijo no Italiano da cidade e levei-a para o meu quarto, porque tinha uns papéis a tratar.
- Voltou a sair?
- Não.
- Ficou no seu quarto, no Hummingbird.
- Correcto. Sozinha - acrescentou, antes de ele poder perguntar.
- Ouça, já sabe do meu confronto com o Dolan, ontem, na obra dele. - Olhou para o Rover, onde as letras pintadas a spray se evidenciavam no verde sombrio. - Fiquei
chateada por alguém ter vandalizado o meu carro. Ainda estou. Mas não mato ninguém por vandalismo, nem por conhecer alguém que praticou uma acção de vandalismo.
Se está à procura de um álibi, não tenho.
- Ela não saiu do quarto - disse Jake, fazendo Callie e o xerife virarem-se para ele. - O meu quarto é mesmo ao lado. Começaste a tocar violoncelo por volta das
onze. Tocaste o raio daquela coisa durante uma hora.
- Pede outro quarto, se te sentes incomodado.
- Não disse que me incomodava. - Como não disse que tinha ficado deitado, às escuras, a ouvir aquelas notas baixas, sombrias, desejando tê-la a seu lado. - Ela toca
Bach quando está a tentar acalmar-se e a aliviar a cabeça para conseguir dormir - contou ele ao xerife.
- Reconheces Bach - disse Callie. - Estou impressionada.
- Sei o que costumas tocar. Raramente mudas. Finalmente calou-se, mais ou menos à meia-noite. Acho que se perguntar a quem quer que esteja no quarto do outro lado
do dela, a pessoa pode confirmar isso. O Rover dela estava estacionado mesmo diante do quarto, ao lado do meu. Tenho o sono leve. Se ela tivesse saído, eu teria
ouvido o motor.
- Falei com o Sr. Dolan ontem à tarde, na sequência da sua queixa. - Sem pressas, Hewitt meteu a mão no bolso e tirou de lá um bloco. Lambeu o dedo indicador e virou
uma página. Lambeu, virou, num ritmo metódico, até que encontrou o que pretendia. - Quando você e o falecido discutiram ontem, agrediu-o fisicamente?
184
- Não, eu... - Interrompeu-se e procurou controlar-se. - Empurrei-o, acho eu. Um pequeno empurrão. - Demonstrou, pressionando uma mão contra a sólida muralha do
peito de Hewitt. - Se isto é agressão física, sou culpada. Ele espetou-me o dedo na cara umas tantas vezes, por isso achei que estávamos quites.
- Hã-hã. E ameaçou matá-lo se ele não saísse do seu caminho?
- Não - disse Callie calmamente. - Disse que lhe metia a cabeça pelo cú acima, se ele tentasse voltar a meter-se comigo, o que é uma posição incómoda, mas raramente
fatal.
- O senhor também se travou de razões com Dolan, ontem. Hewitt virou-se para Jake.
- Sim. O Sr. Dolan não estava satisfeito com a situação. Queria que nos fôssemos embora, razão pela qual, presumo, veio aqui ontem à noite. - Jake lançou um olhar
significativo ao saco de ossos. - Se ele soubesse alguma coisa do que andamos aqui a fazer, como o fazemos, porque o fazemos, saberia que isto seria inútil. O problema
é que ele não quis saber nada do que estamos a fazer. Talvez isso fizesse dele obtuso, até mesmo egoísta, mas não tinha que morrer por causa disso.
- Também não posso dizer que saiba muito sobre o que andam aqui a fazer, mas posso dizer-vos que pelo menos nos próximos dias não vão continuar a fazê-lo. Preciso
que todos se mantenham disponíveis.
- Não vamos a lado nenhum - respondeu Callie. - Ele também não percebeu isso.
-Já que estamos aqui... - Hewitt lambeu o dedo e virou outra página. - Passei pelo armazém em Woodsboro, ontem. Parece que alguém comprou umas latas de spray vermelho
que condiz com o que está pintado no seu carro, ali.
- Alguém? - repetiu Callie.
- Tive uma conversa com o Jimmy Dukes, ontem à noite. - No rosto de Hewitt desenhava-se agora um sorriso azedo. - E com o amigo dele, Austin Selclon. Ora o Jimmy
diz que comprou a tinta para arranjar o atrelado de brincar do filho, mas o certo é que o atrelado está cheio de ferrugem e a tinta desapareceu. Não levaram muito
tempo a admitir.
- A admitir - repetiu Callie.
- Ora bem, posso acusá-los, pô-los atrás das grades, se for isso que quiser, ou posso fazer com que eles paguem o arranjo do seu carro e venham aqui pedir-lhe desculpa,
cara a cara.
Callie respirou fundo:
185
- Qual deles andou consigo na escola?
- O Austin. E por acaso está casado com uma prima minha. O que não quer dizer que não o ponha atrás das grades, que não os ponha aos dois atrás das grades, se quiser
apresentar uma queixa formal.
- Quando eu tiver um orçamento para a pintura, quero um cheque visado na mão em vinte e quatro horas. Podem ficar com as desculpas.
- Vou tratar disso.
- Xerife? - Jake esperou até Hewitt voltar a meter o bloco de notas no bolso. - Provavelmente conhece o Austin suficientemente bem para saber se ele é desequilibrado
ou não.
- Então não conheço!
- E sabe, como amigo dele e observador da natureza humana, daquilo que ele é capaz. E do que não é.
Hewitt observou Jake, e depois olhou para trás, para o sítio onde Digger estava sentado no chão, a fumar outro cigarro cravado:
- Não vou esquecer-me disso.
Quando o médico forense chegou, Callie e Jake foram para junto da vedação, de onde podiam observar os procedimentos sem atrapalharem ninguém.
- Nunca tinha sido suspeita de um homicídio - comentou ela.
- Não é tão emocionante como pensei. É mais insultuoso. E isto de sermos o álibi um do outro é uma treta. Não tem pés nem cabeça.
- Também não tem pés nem cabeça acreditar que qualquer um de nós tenha esmagado o crânio do Dolan neste campo. - Meteu as mãos nos bolsos de trás e achou um pacote
de sementes de girassol de que se tinha esquecido. - O Hewitt é mais esperto do que parece.
- É, nisso tens razão.
Pegou no pacote de sementes, meteu a mão sob o cabelo dela e depois fez de conta que o tirava de lá. As covinhas do rosto dela agitaram-se um pouco, esboçando um
sorriso, quando ele lhe ofereceu o pacote aberto.
- Se ainda não percebeu, vai perceber que o Dolan é um obstáculo maior agora que está morto do que quando estava vivo.
Ficou a remoer, pensativa:
- Um bocado frio, mas perspicaz.
- Vamos perder dias, numa estação que já vai alta. Vamos ter a cidade num pandemónio e, muito provavelmente, vamos ter uma série de imbecis a caminhar para cá depois
de sermos autorizados a recomeçar.
186
Rosie foi juntar-se-lhes:
- Deixaram o Digger ir mudar de roupa. O pobre está mesmo abalado.
- Encontrar um cadáver apenas com algumas horas e um já com uns milhares de anos em cima é muito diferente - disse Callie.
- Ouve. - Rosie encheu as bochechas e depois deixou sair o ar.
- Olha, não quero andar por aqui enquanto isto estiver a decorrer. Seja como for, não vão deixar-nos trabalhar. Pensei em levar o Digger a qualquer lado. Talvez
dar uma volta de carro por aí, ver um filme, mais tarde. Qualquer coisa. Também querem?
- Tenho uns assuntos pessoais a tratar. - Callie olhou na direcção da roulote. - Tens a certeza que consegues arranjar-te com ele?
- Sim. Vou deixá-lo pensar que vai levar-me na lábia dele. Isso vai animá-lo.
- Deixa-me falar com ele primeiro. - Jake deu uma pequena palmada no ombro de Callie. - Não vás a lado nenhum até eu voltar.
- Tu e o Jake voltaram a acertar-se? - perguntou-lhe Rosie, quando ficaram sozinhas.
Callie olhou para o pacote de sementes de girassol que ele lhe dera:
- Não é nada disso.
- Querida, com vocês os dois é sempre isso. Deitam faíscas que queimam quem passa, inocente. É um belo pedaço - acrescentou, observando o rabo de Jake quando ele
abriu a porta da roulote de Digger.
- É, tem bom ar.
Rosie deu a Callie uma ligeira cotovelada:
- Sabes bem que continuas doida por ele. Deliberadamente, Callie fechou o pacote de sementes e meteu-o no bolso:
- Sei que ele me põe doida. É diferente. Quê, também estás a tentar animar-me?
- Tenho de fazer qualquer coisa. A única vez que tive a polícia numa escavação foi no Tennessee. Entraram para roubar e um dos malucos caiu de um penhasco e partiu
o pescoço. Foi horrível. Mas isto é pior.
- Pois. - Callie viu um dos ajudantes do xerife abrir o fecho do saco que continha o corpo. - Isto é pior.
- Disse-lhe que estavas doida por ele - disse Jake a Rosie quando voltou. No que poderia ter sido um movimento casual, posicionou-se
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entre Callie e o que estava a passar-se junto ao lago. - Reanimou-o bastante, está a tomar duche.
- Não sou uma sortuda? - respondeu Rosie, afastando-se. -Já vi o corpo, Jake.
- Não tens de continuar a vê-lo.
- Talvez devesses ir com a Rosie e o Dig.
- Na. - Jake pegou no braço de Callie, virou-a e começou a encaminhar-se para o portão aberto. - Vou contigo.
-Já disse que tinha assuntos pessoais a tratar.
- Pois disseste. Conduzo eu.
- Nem sabes onde vou.
- Então diz-me.
- Vou a Virginia, ver esse tal Dr. Simpson. Não preciso de companhia e quero conduzir.
- E eu quero viver, por isso conduzo eu.
- Conduzo melhor do que tu.
- Nã-nã. Quantas multas por excesso de velocidade juntaste o ano passado?
Ela sentiu vontade de rir e de lhe morder:
- Isso é irrelevante.
- É extremamente relevante. Acrescente-se a isso o facto de eu ter sérias dúvidas sobre a tua vontade de ir até Virginia com aqueles graffity porcos no carro.
Ela suspirou:
- Raios!
Mas como ele tinha razão, entrou no carro dele:
- Tu conduzes e eu fico encarregue do rádio.
- Nem pensar, doce. - Instalou-se e colocou um CD no leitor.
- O código da estrada diz que quem conduz escolhe a música.
- Se pensas que vou ouvir música country horas seguidas, estás a delirar. - Desligou o leitor de CD e sintonizou o rádio.
- A música country conta a história da cultura americana, reflectindo a sua excelência a nível social, sexual e familiar. - Mudou para o CD. Clint Black conseguiu
cantar o primeiro verso antes de ela voltar a carregar no botão do rádio e a atirar-lhe com os Garbage.
Levaram os quinze minutos seguintes a discutir sobre a selecção musical, e foi dessa forma que terminou a manhã.
Henry Simpson vivia num condomínio suburbano para gente abastada que Callie tinha a certeza que Ronald Dolan aprovaria.
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Os relvados estavam uniformemente bem cuidados e verdes, as casas erguiam-se neles tão bem ordenadas e irrepreensivelmente arranjadas como soldados prontos para
a inspecção.
Eram todas grandes, ocupando praticamente na totalidade os lotes onde estavam implantadas. Algumas tinham terraços, outras telheiros para os automóveis, algumas
tinham a frontaria revestida a pedra, enquanto outras eram tão brancas, tão puras como um virginal vestido de noiva.
Mas havia em tudo aquilo uma uniformidade que Callie achava deprimente.
Não havia árvores velhas. Nada de grande, irregular ou interessante. Havia antes bonitos anões como ornamento ou, ocasionalmente, algum ácer jovem. Tufos de flores
nasciam agrupados em ilhas. Um ou outro demonstravam que o dono, ou o jardineiro, possuía uma criatividade flamejante. Mas, na maioria dos casos, lá se voltava aos
soldados, com begónias e cravos da índia e alegrias da casa agrupados em filas estáticas ou em círculos concêntricos.
- Se eu tivesse que viver aqui, dava um tiro na cabeça.
- Não davas nada. - Jake ia olhando para os números das portas enquanto descia a rua sem saída. - Pintavas a tua porta de roxo, punhas flamingos cor-de-rosa no jardim
da frente e entregavas-te à missão de dares com os vizinhos em doidos.
- É. Havia de ser divertido. É aquela ali, a casa branca com o Mercedes preto no caminho!
- Muito obrigado, assim vê-se logo qual é. Ela riu:
- À esquerda, na próxima. Conforme combinámos, eu falo.
- Não combinámos nada. Eu só disse que estavas sempre a falar.
- Ele virou à esquerda e desligou o motor. - Onde viverias, se tivesses que escolher um sítio?
- De certeza que não seria aqui! Preciso de tratar disto, Jake.
- Sim, precisas. - Saiu do carro. - Um sítio grande e velho, no campo. Qualquer coisa com história e carácter que pudesses arranjar. Onde pudesses deixar a tua marca.
- Estás a falar de quê?
- Do tipo de lugar que eu escolheria para viver, se andasse à procura de um.
- Não podias limitar-te a arranjá-lo. - Tirou uma escova da mala e deu um jeito ao cabelo. - Ias precisar de investigar, para teres a
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certeza de que o que fizesses respeitaria essa história e esse carácter. E terias de ter árvores. Árvores a valer - acrescentou ela enquanto subiam o caminho de
pedra branca que conduzia à casa também branca. - Não estes substitutos ondulantes.
- Mais do estilo das que aguentam um pneu pendurado para nos balançarmos.
- Exactamente. - Franziu o sobrolho. Nunca tinham falado sobre casas, antes.
- O que foi?
- Nada. - Levantou os ombros. - Nada. Muito bem, cá vamos!
- Carregou no botão da campainha e ouviu uma combinação de três tons. Antes de conseguir baixar a mão, Jake tomou-a na sua.
- O que estás a fazer?
- A apoiar-te.
- Bem... fica ali e apoia-me. - Deu-lhe uma palmada nas costas da mão. - Estás a pôr-me nervosa.
- Ainda me desejas, não desejas?
- Sim, ainda desejo. Desejo que vás assar marshmellows no inferno. Larga a minha mão antes que eu...
Interrompeu-se e Jake abafou o riso quando a porta se abriu.
A mulher que veio abrir era de meia-idade e resplandecente. O cabelo era de um castanho brilhante, suavemente escadeado, que favorecia a sua pele clara e leitosa.
Trazia vestidas umas calças justas e uma camisa branca, solta. As unhas pintadas de cor-de-rosa espreitavam por entre as tiras das sandálias.
- Deve ser Callie Dunbrook. O meu nome é Barbara Simpson. É um enorme prazer conhecê-la. - Estendeu-lhe a mão. - E o senhor é...
- Este é o meu colega, Jacob Graystone - disse Calliie. - Agradeço-lhe e ao Dr. Simpson terem concordado em receber-me de forma tão imediata.
- Não há problema nenhum. Entrem, por favor. O Hank ficou absolutamente encantado com a ideia de a conhecer, quando lhe telefonei. Está só a mudar de roupa, esteve
a jogar golfe. Porque não nos sentamos na sala? Fiquem à vontade. Vou buscar bebidas frescas.
- Não quero que se incomode, Sr.a Simpson.
- Não é incómodo nenhum. - Barbara tocou no braço de Callie e depois fez um gesto na direcção de uma zona de estar, com sofás de pele clara. - Sentem-se, por favor.
Volto já.
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Sobre a enorme mesa de apoio, em vidro, havia um arranjo de flores gigante, exótico e de um branco puro. A lareira, com a sua decoração estival de flores e velas,
era forrada a pedra branca.
Callie pensou que o armário preto, laçado, que estava encostado à parede devia conter um qualquer tipo de sistema de som e imagem.
Havia mais duas cadeiras, também estofadas a pele, num tom vermelho batom. Callie tinha as botas de trabalho afundadas numa carpete que cobria todo o chão, no mesmo
tom dos sofás da zona de estar, embora delicadamente mais clara.
Observou, com algum desconforto, o coelho branco de cerâmica que estava ao canto.
- Não têm filhos - disse Jake, deixando-se cair sobre as almofadas de pele. - E não há netos com dedos pegajosos deixados à solta por aqui.
- O pai disse que ele tem uma filha do primeiro casamento. Uns netos. Mas vivem no norte. - Mais cuidadosamente do que Jake, Callie sentou-se na ponta do sofá comprido.
- Esta... A Barbara é a segunda mulher dele. Os meus pais não chegaram a conhecê-la. Casaram depois de os meus pais se terem mudado para Filadélfia. Depois, os Simpson
mudaram-se para Virginia. Perdeu-se o contacto.
Jake estendeu o braço e pousou a mão no joelho de Callie para impedir que a perna continuasse a tremer-lhe:
- Estás a bater o pé.
- Não estou nada! - Detestava dar por si a fazer isso. - Dá-me uma cotovelada se eu começar outra vez.
Estava a levantar-se quando Henry Simpson entrou. Tinha um ligeiro bronzeado de golfista, e sob a sua camisola de Verão sobressaía um volume idêntico ao de uma pequena
bola de futebol. O cabelo rodeava uma espécie de careca de monge, e era totalmente branco. Usava óculos com aros de metal.
Callie sabia que ele estava na casa dos setenta, mas o aperto de mão foi o de um jovem, quando tomou a mão de Callie entre as suas.
- A menina da Vivian e do Eliot, já crescida! É um cliché dizer-se que o tempo passa a correr, mas a verdade é que passa. Não te via desde que tinhas uns meses de
idade. Meu Deus, sinto-me velho!
- Não parece. Este é Jacob Graystone, o meu...
- Outro arqueólogo. - Simpson agarrou a mão de Jake e agitou-a com força. - Fascinante. Fascinante. Por favor, sentem-se. A Barbara está às voltas com a limonada
e os bolinhos. Com que então, Dr.a Callie Dunbrook - disse ele, sentando-se e olhando para ela.
- Os teus pais devem estar muito orgulhosos.
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- Espero que sim, Sr.. Simpson.
- Chama-me Hank, por favor.
- Hank, não sei o que lhe disse o meu pai quando contactou consigo esta manhã a perguntar-lhe se podia receber-me.
- Disse-me o suficiente. O suficiente para me deixar preocupado, para me fazer sentar e tentar pensar em tudo o que possa ser de alguma ajuda para ti.
Olhou para cima quando a sua mulher entrou, empurrando um carrinho cromado, com bases de vidro.
- Não, não, sente-se - disse ela quando Jake fez menção de levantar-se. - Eu trato disto. Vejo que já começaram a conversar.
- Contei à Barbara a conversa que tive com o teu pai. - Hank recostou-se, com um suspiro. - Tenho de ser honesto contigo, Callie, acho que esta mulher que veio ter
contigo está enganada. Marcus Carlyle tinha uma belíssima reputação em Boston. Nem eu o teria recomendado aos teus pais se assim não fosse.
- Hank. - Barbara pousou um tabuleiro com pequenos bolos gelados, e depois passou a mão pelo braço do marido. - Ele está preocupado, porque se houver alguma possibilidade
de isto ser verdade, ele é de certo modo responsável.
- Fui eu que mandei a Vivian e o Eliot ter com o Carlyle. Fui eu que os incentivei a encarar a ideia de uma adopção.
Fechou a mão sobre a de Barbara:
- Ainda me lembro de quando tive de dizer à Vivian que ela precisava de fazer uma histerectomia. Ela parecia tão jovem e pequena, e fragilizada. Queria um filho,
desesperadamente. Ambos queriam.
- Porque recomendou especificamente o Carlyle? - perguntou Callie.
- Tinha tido outra cliente cujo marido era infértil. Tínhamos explorados meios de concepção alternativos, mas sem resultado. Como os teus pais, inscreveram-se em
listas de espera através de agências de adopção. Quando a minha paciente veio fazer o exame anual, estava transbordante de alegria. Ela e o marido tinham conseguido
adoptar uma criança, por intermédio do Carlyle. Ela teceu-lhe os maiores elogios, nada do que dissesse poderia ser suficiente. Na minha especialidade, lido frequentemente
com pacientes que não conseguem engravidar, ou não conseguem levar uma gravidez a termo. E estou em contacto com outros médicos neste campo.
Pegou no copo de limonada que Barbara serviu.
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- Ouvi dizer muito bem do Carlyle. Encontrei-o pouco depois, em casa de uma paciente, num jantar de festa. Era bem falante, divertido, compassivo e parecia alguém
empenhado em ajudar as famílias. Lembro-me que foi exactamente assim que ele colocou a questão: formar famílias. Fiquei bem impressionado, e numa ocasião em que
o Eliot e eu estávamos a falar das preocupações dele, recomendei-lho.
- Recomendou-o a outras pessoas?
- Sim. A mais três ou quatro pacientes, tanto quanto me recordo. A certa altura, telefonou-me a agradecer-me. Descobrimos uma paixão mútua por golfe e jogámos muitas
vezes juntos, depois disso. Hesitou. - Tornámo-nos aquilo a que poderíamos chamar amigos profissionais. Para mim, tem de haver aqui algum engano, Callie. O homem
que conheci não podia estar envolvido num rapto.
- Talvez pudesse falar-me dele.
- Dinâmico. - Simpson fez uma pausa e confirmou para si próprio o que acabara de dizer, com um aceno de cabeça. - Sim, essa seria a minha primeira descrição. Um
homem dinâmico. Um homem com uma mente inteligente e gostos requintados, modos distintos. Tinha um grande orgulho no seu trabalho. Sentia, lembro-me de ouvi-lo dizer,
que estava a dar, de alguma forma, o seu contributo positivo através da ênfase que dava às adopções no seu escritório.
- E a família dele? - insistiu Callie. - Pessoas próximas dele, pessoalmente, profissionalmente.
- Profissionalmente, não sei. Socialmente, tivemos ou viemos a ter dezenas de conhecimentos comuns. A mulher dele era uma mulher encantadora, um tanto vaga. Talvez
esteja a ser injusto - disse Simpson com um gesto de desculpa. Era calma e dedicada a Carlyle e ao filho. Mas parecia... diria sem substância. Agora que penso nisso,
não era o tipo de mulher que se imaginasse ao lado de um homem com a força dele. Claro que era do conhecimento comum que ele gostava da companhia de outras mulheres.
- Enganava a mulher. - A voz de Callie tornou-se fria.
- Havia outras mulheres. - Simpson clareou a garganta e mexeu-se, sentindo algum desconforto. - Era um homem bem-parecido e, como já disse, dinâmico. Ao que parece,
a esposa decidiu fazer de conta que não via as indiscrições dele. Embora tivessem acabado por se divorciar.
Simpson inclinou-se para a frente e pôs a mão no joelho de Callie:
- A infidelidade pode fazer de um homem fraco, mas não faz dele um monstro. E, se me permite, a criança roubada foi levada de Maryland. Tu estavas em Boston. - Deu
ao joelho de Callie uma pequena
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palmada paternal e depois voltou a endireitar-se. - Não vejo como os dois acontecimentos possam estar relacionados.
Abanou a cabeça e fez girar suavemente o gelo que tinha no copo:
- Como podia ele saber, como podia alguém saber que haveria uma oportunidade para roubar uma criança àquela hora e naquele lugar, exactamente quando uma criança
era desejada noutro lugar?
- Aí está uma coisa que tenciono descobrir.
- Ainda tem contacto com Carlyle? - perguntou-lhe Jake. Simpson abanou a cabeça e encostou-se na cadeira:
- Não, há anos que não tenho. Ele mudou-se de Boston. Perdemos o contacto. De facto, o Marcus era consideravelmente mais velho do que eu. Pode perfeitamente já ter
morrido.
- Ora, Hank, que mórbido! - Com ar perturbado, Barbara pegou no prato de bolos para oferecer um dos petit fours a Callie.
- Estou apenas a ser realista - contrapôs. - Terá agora noventa anos, ou próximo disso. Claro que já não exerce. Reformei-me há quinze anos e mudámo-nos para cá.
Quis fugir aos invernos da Nova Inglaterra.
- E jogar mais golfe - acrescentou Barbara, com um sorriso indulgente.
- Não há dúvida de que foi um factor tido em conta.
- Esta mulher, a de Maryland - começou Barbara. - Passou por uma provação terrível. Eu não tenho filhos, mas acho que toda a gente pode imaginar como ela deve ter-se
sentido. Não acham que nesse tipo de situação ela se agarraria a qualquer coisa?
- Acho - concordou Callie. - Mas às vezes quando nos agarramos a qualquer coisa corremos o risco de cair.
Callie recostou-se no assento do carro de Jake e fechou os olhos. Naquele momento sentiu-se satisfeita por ele ter insistido em conduzir. Ela não se sentia com energia.
- Ele não quer acreditar. Continua a pensar no Carlyle como um amigo. O adúltero brilhante e dinâmico!
Jake engatou a marcha atrás:
- E tu estavas a pensar que essa descrição te parece familiar. Então, isso não lhe escapara, pensou, e sentiu a ameaça de uma dor de cabeça aproximar-se:
- Vamos manter-nos afastados dessa área.
- Muito bem. - Recuou, disparado.
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Não conseguia. Não conseguia arranjar energia para uma discussão. Mais: não conseguia voltar a arrastar-se naquele velho terreno pedregoso.
- Estou a ser puxada em tantas direcções ao mesmo tempo! Ele parou o carro e ficou no meio da estrada até conseguir livrar-se do sentimento de raiva e indignação.
Prometera ajudá-la, recordou a si próprio. Que diabo, impusera-lhe até a sua ajuda. E dificilmente a ajudaria se a soterrasse sob as suas próprias necessidades.
- Vamos fazer assim: acabámos de sair de casa. Nenhum de nós disse nada, ainda.
A surpresa fê-la fazer uma simples pergunta:
- Porquê?
Ele estendeu o braço e passou os nós dos dedos pelo rosto dela.
- Porque eu... eu gosto de ti. Acredites ou não. Apeteceu-lhe soltar-se do cinto de segurança e enrolar-se no colo dele. Queria os braços dele à volta dela e os
dela à volta dele. Mas nunca cederia a este seu desejo.
- Muito bem, acabámos de entrar no carro. O meu primeiro comentário é: não fizemos uma grande parelha esta tarde, pois não?
Ele voltou a pôr o motor a trabalhar:
- E esperávamos que fizéssemos?
- Não sei o que esperava. O que sei é que, mesmo que ele não queira acreditar em mim, deixei mais uma pessoa infeliz, preocupada e com um sentimento de culpa. E
ficou infeliz e preocupado pelos outros pacientes a quem também recomendou o Carlyle. Sabe-se lá se estarão na mesma situação! És capaz de calcular quantas pessoas
aquelas pessoas passaram ao Carlyle?
- Estou a pensar que esse seria um elemento vital do negócio dele. Os clientes passavam a palavra. Clientes com dinheiro, inférteis, que comunicam com outros clientes
com dinheiro e inférteis. Até teria os mesmos clientes por mais de uma vez. Tudo isto a funcionar com uma mesma base. E o cliente recebia o produto...
- Credo, Graystone. Produto?
- Pensa nas coisas dessa maneira - retorquiu ele. - Ele pensaria assim. O produto provém de um mercado estudado. Rendimento médio-baixo. Pessoas que não podem contratar
investigadores privados. Pais jovens, da classe trabalhadora. Ou mães adolescentes, esse tipo de coisa. E provém de fora. Ele não iria buscar o produto à zona de
Boston estando a trabalhar em Boston.
- Não ia cuspir no seu próprio prato - murmurou ela, mas voltou a endireitar-se. - Ele teria de ter uma rede. Contactos. A maioria
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das pessoas tende a querer crianças pequenas, não é? Com as crianças mais velhas não resulta. Têm de ser bebés. E não se anda por aí, sem destino, à espera de encontrar
um bebé que se possa roubar. As coisas tinham de ser planeadas.
- Agora, tens a cabeça a pensar. - E a cor voltara ao rosto dela, notou Jake. - Havia de ser precisa informação, para se ter a certeza de que estava a entregar-se
um bebé saudável... um bom produto, um bom serviço ao cliente, ou haveria queixas em vez de reconhecimento.
- Contactos em hospitais. Maternidades. Médicos, enfermeiras, talvez a segurança social, se estivermos a lidar com mães solteiras e adolescentes, ou casais com rendimentos
muito baixos.
- E a Jessica Cullen nasceu...
- No Hospital de Washington County, a 8 de Setembro de 1974.
- Pode valer a pena verificar alguns registos, encontrar o obstetra da Suzanne, talvez pedir-lhe que tente recordar-se de alguma coisa. Tens a Lana a vasculhar o
Carlyle. Talvez nós possamos vasculhar noutro lado.
- Talvez tu ainda mexas comigo.
- Querida, nunca houve qualquer dúvida disso. Há muitos motéis ao longo da estrada. Posso parar num deles, se precisas mesmo de saltar-me para cima.
- É incrivelmente generoso da tua parte, mas ainda tenho algum auto-controlo. Limita-te a conduzir.
- Está bem, mas não te esqueças de dizer-me quando esse auto-controlo chegar ao fim.
- Serás o primeiro a saber. Graystone?
Ele olhou para ela e viu-a observá-lo com uma expressão de reflexão.
- Dunbrook?
-Já não me chateias tanto como costumavas.
Ele fez-lhe uma festa na mão:
- Dá-me tempo.
Às sete, Lana estava a dobrar roupa lavada. Esfregara a cozinha de cima a baixo, aspirara cada centímetro da casa e, para mal dos seus pecados, dera banho ao cão.
Fizera tudo aquilo de que se lembrara para não pensar no que acontecera a Ronald Dolan.
Não estava a resultar.
Ela dissera-lhe coisas terríveis, pensou, enquanto dobrava um par de meias pequeninas e brancas pertencentes a Tyler. Pensara ainda
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coisas piores do que as que dissera. Ao longo dos últimos catorze meses fizera tudo o que estava ao seu alcance para lhe arruinar os planos para os cinquenta acres
de Antietam Creek.
Coscuvilhara, queixara-se, dissera mal dele.
E agora estava morto.
Cada pensamento, cada acção, cada sorriso de satisfação e cada palavra que dissera voltavam agora para atormentá-la.
O cão passou por ela a correr no momento em que ela apoiava na anca o cesto da roupa. Soltou uma série de latidos, atacando a porta segundos antes de alguém bater.
- Está bem, está bem, pára! - Puxou-o pela coleira com a mão que tinha livre e fê-lo sentar-se. - Já!
Quando se preparava para abrir a porta, Tyler desceu as escadas a correr:
- Quem é? Quem é?
- Não sei. A minha visão de raios-X deve estar estragada.
- Mamã! - Caiu em cima do cão, numa gargalhada.
Lana abriu a porta. Surpreendida, Lana encarou com Doug e Tyler e o cão precipitaram-se para ele.
- Parem! Elmer, para baixo! Tyler, porta-te bem!
- Apanhei-o! - Para delícia de Tyler, Doug meteu-o debaixo do braço como se fosse uma bola de futebol. - Parece que estão a tentar escapar-se! - Segurando o rapaz
aos gritos, baixou-se para afagar o cão preto e branco entre as orelhas. - Elmer? Fudd ou Gantry?
- Fudd - disse Lana. - O Ty adora os desenhos animados do Bugs Bunny. Oh, Doug, lamento imenso. Esqueci-me completamente do que tínhamos combinado para esta noite.
- Ouviste? - Virou-se para Ty, que olhou para ele a sorrir. - É o som do meu ego a partir-se em bocadinhos.
- Não ouço nenhuma coisa.
- Nada - corrigiu Lana. - Entra, por favor. Estou só um bocado virada do avesso.
- Estás bonita.
- Pois. Posso imaginar.
Estava de calções, cor-de-rosa pétala, e trazia uma T-shirt às riscas brancas e cor-de-rosa. Nos pés, sapatos de lona brancos, e nas orelhas pequenos brincos de
ouro. Prendera o cabelo na nuca. E, num gesto automático, levou a mão ao carrapito para ver se estava em ordem.
Doug pensou que ela parecia um rebuçado particularmente delicioso.
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- Uma pergunta: coordenas sempre as cores da roupa no dia das limpezas?
- Claro que sim. Ty, fazes-me um favor? Levas o Elmer para o teu quarto durante uns minutos?
- Posso mostrar-lhe o meu quarto?
- Para ti, é o Sr. Cullen. E talvez mais tarde. Agora, leva o Elmer lá para cima.
Doug pousou Ty no chão.
- Isto é bonito - disse ele, enquanto Tyler subia os degraus a arrastar os pés, com o cão a reboque.
- Obrigada. - Olhou distraidamente para a sala imaculadamente limpa, com as suas paredes verde-água e o seu mobiliário de vime, simples e resistente a crianças.
- Doug, peço imensa desculpa. Passou-me da ideia. Tudo me passou da ideia, depois de ter ouvido o que aconteceu ao Dolan. Não consigo deixar de pensar nisso.
- Uma coisa destas deixa a cidade inteira em estado de choque.
- Foi horrível para ele. - A voz quebrou-se-lhe enquanto pousava o cesto da roupa na mesa de apoio. - Horrível! Não era mau homem. Eu sei isso, eu sabia isso. Mas
era um adversário, e eu tinha de pensar nele como alguém mau. É assim que funciono: és o inimigo e vou fazer tudo o que puder para ganhar. Mas ele era um homem decente,
com mulher, filhos, netos. Achava que tinha razão, tal como eu...
- Então! - Doug pôs-lhe as mãos nos ombros e fê-la virar-se.
- A não ser que queiras confessar que foste até Simon's Hole esmagar-lhe a cabeça, a culpa não é tua. Censurares-te por fazeres o teu trabalho não leva a lado nenhum.
- Mas não é horrível eu pensar melhor dele agora que está morto do que pensava quando estava vivo? O que diz isso de mim?
- Que não és santa e que precisas de sair daqui por um bocado. Por isso, vamos.
- Não posso. - Levantou as mãos, num gesto de quem não tem saída. - Não sou uma boa companhia. Não tenho quem tome conta do Ty. Eu...
- Traz o miúdo. Ele vai gostar do que eu tinha pensado fazer.
- Levar o Ty? Queres levar o Tyler?
- A não ser que aches que ele não vai gostar de ver um filme a três dimensões. Mas, na minha opinião, nunca é demasiado cedo para começar a fazer explorações sexuais.
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- Ele já tem uma colecção de vídeo - respondeu ela. - Tens razão, gostava de sair um pouco. Obrigada. Vou num instante mudar de roupa.
- Estás bem assim. - Pegou-lhe na mão e reteve-a. De maneira nenhuma ia deixá-la mudar aqueles calções cor-de-rosa. - Ty-Rex! Anda, vamos sair!
O último lugar onde Lana esperava passar o seu sábado era num recinto a bater bolas. O centro de diversões tinha três recintos, e mais três para crianças com menos
de doze anos. Tinha também um curso de mini-golfe, uma gelataria e uma zona para os praticantes de golfe treinarem as suas tacadas. Era um sítio barulhento, cheio
de gente, a abarrotar de crianças sobreexcitadas.
- Não, não. Não queres bater com o taco em ninguém, só queres bater na bola. - Atrás dela, Doug inclinou-se e pôs as suas mãos sobre as dela, que seguravam o taco.
- Nunca joguei basebal. Só umas bolas com o Ty, no jardim.
- Não tentes usar as privações da tua juventude para conseguires a minha simpatia. Vais aprender a fazer isto como deve ser. Os ombros primeiro. A parte de cima
de corpo. Depois, as ancas.
- Posso tentar? Posso? - perguntou Ty, atrás da rede de protecção.
- Uma geração de cada vez, batedor. - Doug piscou-lhe o olho.
- Vamos começar pela tua mãe e depois tu e eu vamos mostrar-lhe como são as tacadas dos homens a valer.
- Observações sexistas não vão fazer-te marcar pontos - informou-o Lana.
- Olha mas é para a bola - disse-lhe Doug. - A bola vai ser o teu mundo inteiro. O teu único objectivo vai ser levar o taco ao encontro da bola. Tu és o taco e a
bola.
- Ah, então isto é basebal Zen.
- Que graça! Pronta?
Lana mordeu o lábio inferior e acenou afirmativamente com a cabeça. E detestou-se a si própria por ser tão garota, por dar gritinhos e encolher-se quando a bola
saía da máquina e voava na sua direcção.
- Falhaste, mamã.
- Sim, Ty. Eu sei.
- Primeira pancada. Vamos tentar outra vez! - Desta vez, Doug manteve-a segura entre os seus braços, guiando o movimento do taco enquanto a bola vinha na direcção
deles.
O som da pancada, a leve vibração que sentiu nos braços devido ao contacto fizeram-na rir:
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- Outra vez.
Acertou em várias, para gáudio de Tyler. Depois inclinou-se para trás e olhou para cima, com os seus lábios quase a roçarem o rosto de Doug. Esperou até o olhar
dele se encontrar com o dela.
- Que tal estou a sair-me? - murmurou ela.
- Nunca hás-de jogar nos Bigs, mas estás a sair-te bem. Pousou uma mão na anca dela, deixou-a lá por um segundo, e depois recuou:
- Muito bem, Ty, és a seguir!
Lana observava-os, as mãos grandes do homem nas mãos pequeninas do seu filho, a segurar um taco de plástico. Por momentos, sentiu o coração doer-lhe amargamente
pelo homem que amara e perdera. E por momentos quase conseguiu senti-lo a seu lado, como acontecia às vezes quando observava o seu filho a dormir, a meio da noite.
Ouviu então o som de plástico contra plástico, e o riso claro e deliciado de Ty. A dor desvaneceu-se.
Ficaram apenas o seu filho e o homem que lhe guiava as mãos no taco de plástico.
200
Doze

Passaram três dias até o local das escavações ficar desimpedido e os trabalhos poderem continuar. Durante esse tempo, Callie escreveu relatórios e passou um dia
no laboratório de Baltimore. Colaborou com o xerife, sentada no seu gabinete durante uma hora, a prestar declarações oficiais e a responder a perguntas.
Sabia que não estavam perto de encontrar o assassino de Dolan. Mantinha os ouvidos atentos às coscuvilhices da cidade e lia as notícias no jornal.
E sabia que, quando esquadrinhava a terra, estava a explorar o local onde um homem fora morto.
Outros tinham morrido ali, pensou. De doença, de ferimentos. Devido a violência. Sobre eles, conseguia reunir dados, reconstruir e esboçar teorias razoáveis.
Sobre Dolan estava tão às escuras como a polícia local.
Conseguia imaginar as vidas, a ordem social, até a rotina diária de pessoas que tinham vivido milhares de anos antes de ela ter nascido. No entanto, não sabia praticamente
nada sobre um homem que conhecera, um homem com quem discutira.
Podia escavar aqui e podia descobrir coisas. Contudo, não descobriria nada sobre um homem que morrera a apenas alguns metros de distância do sítio onde se encontrava
agora a trabalhar.
Podia escavar o seu próprio passado e descobriria coisas. Mas isso não iria mudar nada.
- Se te quiserem ver feliz, dêem-te um monte de terra e uma pá.
Ela virou a cabeça e limpou distraidamente o suor que lhe pingava das têmporas. E sentiu o coração saltar-lhe no peito quando viu o pai.
201
- É um raspador dentário - disse ela, e levantou-o para ele ver melhor. Pousou-o, saltou por cima da máquina fotográfica e de outras ferramentas, e depois içou-se
para fora do buraco. - Vou ser boazinha e não vou abraçá-lo, porque esse é um belo fato. - Mas inclinou a cabeça de forma a poder dar-lhe um beijo.
Limpou as mãos à parte de trás das calças.
- A mãe veio consigo?
- Não. - Olhou em volta, manifestando interesse e, ao mesmo tempo, procurando adiar o motivo da sua visita. - Parecem estar muito ocupados, por aqui.
- Estamos a compensar o tempo perdido. Tivemos de parar tudo durante três dias, até a polícia dizer que podíamos voltar.
- Polícia? Houve algum acidente?
- Não. Acho que isto aqui não faz parte do mundo. Acho que as notícias não chegaram tão longe. Houve um homicídio.
- Homicídio? - O choque estampou-se-lhe no rosto, enquanto ele lhe segurava a mão com força. - Meu Deus, Callie. Alguém da tua equipa?
- Não, não. - Apertou-lhe a mão e a estranheza que ela sabia que ambos tinham sentido no início desapareceu. - Vamos para a sombra.
Mas primeiro baixou-se e tirou duas garrafas de água da geleira.
- Foi o tipo que era dono desta terra, o empreiteiro. Parece que veio até cá, a meio da noite, para espalhar ossos de animais pelo campo. Não estava lá muito satisfeito
com a volta que demos aos planos que tinha para este sítio. Alguém lhe deu uma pancada na cabeça. Provavelmente com uma pedra. Até agora não sabemos quem, nem porquê.
- Não estás a dormir aqui, pois não? Estás num motel, na cidade.
- Sim, estou num motel. Estou perfeitamente segura. - Ofereceu-lhe uma das garrafas de água, enquanto se afastavam do local das escavações, procurando a sombra.
- O Digger é que fica aqui. Lembra-se do Digger, daquela incursão que o pai e a mãe fizeram em Montana. - Fez um gesto na direcção do sítio onde ele estava a trabalhar,
praticamente encostado a Rosie. - Encontrou o corpo na manhã seguinte. Está mesmo abalado com isto tudo. E os polícias estão-lhe no encalço. Tem uns registos por
posse de droga e destruição de propriedade, e coisas assim. Brigas de bar - disse, encolhendo os ombros. - Neste momento está quase doido de medo de que venham prendê-lo.
- Tens a certeza de que ele não...
202
- Sim. Tanta como a que tenho de que não fui eu. O Dig é um bocado doido e gosta de armar confusão, especialmente se houver uma mulher envolvida. Mas não seria capaz
de fazer mal a ninguém. Nunca apareceria atrás de alguém para lhe esmagar a cabeça com uma pedra. Parece coisa de alguém da cidade. Alguém com alguma razão de queixa
do Dolan. Pelo que consegui perceber, tinha tantos amigos como inimigos, e as opiniões dividiam-se quanto a este empreendimento.
- O que vai acontecer agora ao vosso projecto?
- Não sei. - Sabia que era um erro ligar-se emocionalmente a um trabalho de escavação. E ela cometia sempre o mesmo erro.
- Vamos viver um dia de cada vez. O Graystone mandou chamar um representante dos Americanos Nativos para aprovar a remoção das ossadas.
Voltou a fazer um gesto, desta vez na direcção de Jack e do homem sólido que estava a seu lado.
- Conhecem-se, já trabalharam juntos, por isso não deve haver problema.
Ele olhou para o homem que já fora seu genro. Um homem que mal conhecia.
- E como estás a dar-te, a trabalhar com o Jacob outra vez?
- Tudo bem. No que toca ao trabalho em si, não há melhor do que ele. E como também não há melhor do que eu, as coisas resultam. Quanto ao resto, estamos a dar-nos
melhor do que costumávamos. Não sei porquê, só sei que é menos difícil de aturar do que era. O que, por sua vez, me torna menos difícil de aturar. Mas não veio de
Filadélfia até aqui para ver o projecto, nem para perguntar-me pelo Jake.
- O teu trabalho e a tua vida interessam-me sempre. Mas não, não foi por isso que vim.
- Recebeu os resultados dos testes.
- São bastante preliminares por agora, Callie, mas eu... pensei que gostarias de saber.
A Terra não parou de girar no seu eixo, mas naquele momento o mundo de Callie fez uma viragem brusca que mudou tudo.
- Eu já sabia. - Pegou na mão do pai e apertou-a com força. -Já disse à mãe?
- Não. Vou dizer-lhe. Esta noite.
- Diga-lhe que a amo.
203
- Eu digo. - Os olhos de Elliot embaciaram-se. Pigarreou. - Ela sabe, mas vai ajudá-la saber que essa foi a primeira coisa que disseste. Ela está preparada, tanto
quanto qualquer de nós pode estar preparado. Acho que tens de dizer aos... Cullen. Pensei que talvez queiras que vá contigo, quando lhes fores dizer.
Ela continuou a olhar em frente, até ter a certeza de que conseguia falar sem que a voz se lhe embargasse:
- O pai é um homem muito bom. Amo-o muito.
- Callie...
- Não, espere. Preciso de dizer isto. Tudo o que sou, devo-o a si e à mãe. Não interessa a cor dos meus olhos, nem a forma do meu rosto. Isso é roleta biológica.
Tudo o que é importante devo-o a vocês. O meu pai está aqui, na minha frente. E isso não pode... Lamento pelos Cullen. Lamento desesperadamente por eles. E estou
zangada, por si, pela mãe, por mim própria. E não sei o que vai acontecer. Isso assusta-me. Não sei o que vai acontecer, paizinho.
Virou-se e encostou a cara ao peito dele.
Ele apertou-a contra si, com força. Sabia que ela raramente chorava. Mesmo quando era criança, as lágrimas não eram a sua reacção à dor ou à raiva. Quando chorava
era porque a dor era tão profunda que ela não conseguia arrancá-la e analisá-la.
Eliot quis ser forte por ela, sólido e seguro. Mas sentiu as lágrimas sufocarem-no.
- Quero resolver as coisas para ti. Meu bebé. Mas não sei como.
- Quero que tudo seja um engano. - Apoiou a face quente e húmida no ombro do pai. - Porque não pode tudo ser apenas um engano? Mas não é. - Soltou um suspiro trémulo.
- Não é. E tenho que lidar com isso. E só posso fazê-lo à minha maneira. Passo a passo, ponto por ponto. Como um projecto. Não posso limitar-me a olhar para a superfície
e ficar satisfeita. Tenho de ver o que está por baixo.
- Eu sei. - Tirou o lenço do bolso. - Toma. - Tocou ao de leve no rosto dela. - Eu ajudo-te. Vou fazer tudo o que puder para ajudar.
- Eu sei. - Tirou-lhe o lenço. - Agora, seque as suas - murmurou ela, limpando-lhe suavemente as lágrimas. - Não diga à mãe que eu chorei.
- Está bem, não digo. Queres que vá contigo falar com os Cullen?
- Não. Mas obrigada. - Pousou as mãos no rosto dele. - Vamos ficar bem, pai. Vamos ficar bem.
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Jake observou-os. Soubera do que se tratava, tal como Callie, assim que vira Elliot. E quando ela sucumbira e chorara nos braços do pai, sentira um nó no estômago.
Observava-os agora, Callie com o rosto do pai entre as mãos. Tentando confortar-se um ao outro, pensou. Cada um tentando ser forte pelo outro.
Havia uma ternura entre eles que ele nunca sentira na sua própria família. Os Graystone, pensou, não eram adeptos da expressão da mínima emoção.
Achava que podia descrever o seu pai como estóico. Um homem de poucas palavras, que trabalhava muito e se queixava raramente. Nunca duvidara de que os seus pais
se amavam, e amavam os filhos, mas não tinha a certeza de alguma vez ter ouvido o pai dizer "amo-te" a quem quer que fosse. Acharia as palavras supérfluas. Mostrava
amor verificando se havia comida na mesa, ensinando os filhos, ou através de um "gancho" ocasional e afectuoso ou de uma palmada nas costas.
A sua gente, pensou Jake, não dedicara muito tempo aos aspectos mais ternos da família. Fora esse o seu ambiente, a sua cultura e a sua medida de aprendizagem.
Talvez por isso nunca se tivesse sentido confortável a dizer a Callie as coisas que as mulheres gostavam de ouvir.
Que ela era linda. Que ele a amava. Que ela era o centro do seu mundo e que nada mais importava.
Não podia voltar atrás e mudar o que já acontecera, mas desta vez ia esmerar-se. Ia estar ao lado dela e apoiá-la durante a crise, quer ela quisesse, quer não.
Viu-a caminhar na direcção do ribeiro. Elliot pegou nas garrafas de água que tinham deixado cair e, endireitando-se, olhou para Jake.
Quando os seus olhos se encontraram, Elliot saiu da mancha de sombra e voltou ao sol brutal que cobria o sítio das escavações.
Jake foi ao seu encontro.
-Jacob. Como está?
- Vamos indo.
- Gostava de dizer-lhe que tanto eu como a Vivian tivemos muita pena que as coisas não tivessem resultado entre vocês.
- Obrigado. Acho melhor dizer-lhe que sei o que se passa.
- Ela confiou em si?
- Podemos dizer que sim. Ou podemos dizer que fui eu que andei a bisbilhotar.
- Muito bem, muito bem - repetiu Elliot, esfregando a nuca para afastar a tensão. - É bom saber que ela tem alguém em quem apoiar-se, neste momento.
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- Ela não vai apoiar-se. Esse é um dos nossos problemas. Mas, seja como for, vou manter-me perto.
- Diga-me, antes que ela volte, devo ficar preocupado com o que aconteceu aqui? Com o homicídio?
- Se quer perguntar se tem alguma coisa a ver com ela, não vejo como possa ter. Além disso, não vou largá-la.
- E quando terminarem esta temporada de escavações? Jake acenou com a cabeça.
- Tenho umas ideias sobre isso. - Desviou o olhar de Elliot para Callie, quando esta começou a atravessar o campo. - Tenho muitas ideias.
Sabia que era um subterfúgio, sabia que era cobardia. Mas Callie pediu a Lana que telefonasse a Suzanne, a marcar um encontro no escritório, no dia seguinte. Gostaria
de ter adiado esse encontro um pouco mais, mas Lana estava disponível às três. Arranjar desculpas para adiar era um subterfúgio demasiado evidente para Callie conseguir
justificar.
Tentou trabalhar no seu relatório diário, mas não conseguiu. Tentou concentrar-se num livro, num filme antigo na televisão, mas não foi capaz.
Pensou em ir dar uma volta de carro, mas achou uma tolice. Não tinha onde ir, nem o que fazer.
Perguntou-se se se sentiria menos encarcerada se desistisse do quarto de motel e passasse a acampar no sítio das escavações.
Era uma ideia a considerar.
Mas entretanto estava presa num quarto com três metros e meio por quatro, com uma única janela, uma cama dura e o ruído dos seus pensamentos.
Deixou-se cair em cima da cama e abriu a caixa de sapatos. Não queria ler outra carta. Sentiu-se compelida a ler outra carta.
Desta vez escolheu uma ao acaso.
Feliz aniversário, Jessica. Fazes hoje cinco anos.
Estás feliz? Com saúde? Conheces-me, em algum lugar primitivo do teu coração?
Está um dia tão bonito, aqui. Há apenas aquele ligeiro cheiro a Outono no ar. Os choupos estão a começar a amarelecer, e o arbusto diante da casa da avó já está
cor de fogo.
206
E As tuas duas avós apareceram cá em casa, esta manhã. Sabem, claro
que sabem, que é um dia difícil para mim. A Vó Nanny e o avô andam a falar em mudar-se para a Florida. Talvez no próximo ano, ou no seguinte.
Estão cansados dos Invernos. Pergunto-me porque haverá pessoas que querem ter Verão todo o ano.
A avó e a Vó Nanny acharam que estavam a ajudar quando apareceram, a conversar pelos cotovelos e cheias de planos para o dia. Queriam levar-me a sair. íamos aos
outlets, disseram. Aos outlets em West Virgínia, começar a fazer as nossas compras de Natal, íamos almoçar. Fiquei zangada. Não viam que eu não queria sair? Não
queria companhia, nem risos, nem centros comerciais. Queria ficar sozinha. Magoei-as,
mas não me importei. Não quero importar-me.
Há alturas em que tudo o que quero é gritar. Gritar e gritar e nunca,
nunca parar. Porque hoje fazes cinco anos e eu não sei onde estás.
Fiz um bolo para ti. Um bolo em forma de anjo, e cobri-o de cor-de-rosa.
Está tão bonito! Pus cinco velas no bolo e acendi-as, e cantei-te os parabéns.
Queria que soubesses isso, que eu te fiz um bolo e que lhe pus velas.
Não posso contar ao teu papá. Ele zanga-se comigo e discutimos. Ou
pior, não diz nada. Mas tu e eu sabemos.
Quando o Doug chegou da escola, dei-lhe uma fatia. Tinha um ar tão
solene e triste, sentado à mesa, a comê-la. Quem me dera conseguir fazê-lo entender que te fiz um bolo porque nenhum de nós consegue esquecer-te!
Mas ele é apenas um rapazinho.
Não te abandonei, Jessie. Não te abandonei.
Amo-te.
Mamã
Quando voltou a dobrar a carta, Callie imaginou Suzanne a acender as velas, a cantar os parabéns numa casa vazia ao fantasma da sua filha.
E lembrou-se das lágrimas no rosto do seu pai, naquela tarde.
O amor, pensou ela enquanto guardava a caixa, misturava-se tantas vezes com a dor. Era espantoso que a raça humana continuasse a procurá-lo.
Mas talvez a solidão fosse pior.
Naquele momento, não suportava estar sozinha. Ia enlouquecer se ficasse sozinha naquele quarto durante mais tempo. Tinha a mão na porta quando se deteve, quando
percebeu onde estava a pensar em ir. Ter comjake, pensou. Com Jake, na porta ao lado. Para quê? Para acabar com a dor através do sexo? Para esquecer a solidão com
conversas de trabalho? Para arranjar uma briga?
207
Qualquer destas coisas serviria.
Mas não queria ir a correr ter com ele. Apoiou a testa na porta. Não tinha o direito de ir a correr ter com ele.
Em vez disso, abriu a caixa do violoncelo. Preparou o arco e sentou-se na sua cadeira giratória. Pensou em Brahms, mas quando pousou o arco nas cordas reconsiderou.
Lançou um olhar de través à parede entre o seu quarto e o de Jake.
Lá porque não podia ir a correr ter com ele, isso significava que não pudesse fazê-lo vir a correr ter com ela?
O que era mais um subterfúgio no meio de tudo aquilo?
A simples ideia animou-a o suficiente para fazê-la sorrir, com um ar talvez um pouco diabólico, enquanto tocava as primeiras notas.
Passaram apenas trinta segundos até a mão dele bater no outro lado da parede. Continuou a tocar, agora com um sorriso aberto.
Ele continuou a bater na parede.
Alguns segundos depois de as pancadas na parede terem cessado, ouviu a porta dele bater e depois as pancadas recomeçaram, mas na porta dela.
Sem pressas, pousou o arco, apoiou o instrumento à cadeira e foi abrir.
Ele tinha um ar tão infernalmente sexy quando estava chateado!
- Pára com isso.
- Desculpa?
- Pára com isso - repetiu ele, e deu-lhe um pequeno empurrão.
- Estou a falar a sério.
- Não sei do que estás a falar. E vê lá quem estás a empurrar. Empurrou-o também, com mais força.
- Sabes que detesto que toques isso.
- Posso tocar o meu violoncelo se me apetecer tocar o meu violoncelo. Ainda nem são dez horas. Não estou a incomodar ninguém.
- Não quero saber que horas são, e podes tocar até de madrugada, mas isso não.
- Com que então agora és crítico musical? Ele bateu a porta atrás de si:
- Ouve, só tocas esse tema do Tubarão para me chateares. Sabes que me deixa fora de mim.
- Acho que no último milénio não há memória de ter sido visto um tubarão no oeste de Maryland. Podes dormir descansado. - Pegou no arco e bateu com ele ao de leve
na palma da mão.
Os olhos dele eram penetrantes e verdes, o rosto bonito e magro estava lívido.
208
Estava à mercê dela, pensou Callie com ar de satisfação.
- Mais alguma coisa?
Ele arrancou-lhe o arco da mão e atirou-o para o lado.
- Ei!
- Tens sorte por eu não to enrolar ao pescoço! Ela aproximou-se, desafiando-o:
- Tenta.
Ele lançou-lhe uma mão ao pescoço e apertou-o rápida e levemente, em jeito de ameaça:
- Prefiro as minhas mãos.
- Não me assustas. Nunca me assustaste.
Ele puxou-a para cima e fê-la pôr-se em bicos de pés. Conseguia cheirar o cabelo dela, a pele dela. A vela que ela tinha acesa em cima da cómoda. O desejo cresceu
vigorosamente dentro dele.
- Posso mudar isso.
- Sabes o que te chateia, Graystone? Nunca conseguiste obrigar-me a fazer as coisas à tua maneira. O facto de eu ter ideias próprias sempre te deixou fora de ti.
É que assim não podias dizer-me o que fazer, e é óbvio que não podes dizer-me o que fazer, agora. Por isso, põe-te a andar!
-Já me disseste isso antes. Continuo a não gostar. E não eram as tuas ideias que me deixavam fora de mim, era a tua pura maldade tacanha, o teu ego cheio.
Ele segurou-lhe o punho fechado antes de ela conseguir desferir o golpe. Manteve-a firmemente agarrada por um instante.
Depois, caíram em cima da cama.
Ela rasgou-lhe a camisa, enquanto lha fazia passar impacientemente pela cabeça. Ele rolou, rasgando-lhe a camisa à frente e fazendo saltar os botões. Ela cravou-lhe
os dentes no ombro, enquanto as mãos dele lhe puxavam os cabelos.
Graças a Deus, graças a Deus, era tudo o que ela conseguia pensar quando ele a atirou outra vez para cima da cama, quando o corpo dele prendeu o dela, quando a boca
dele se apoderou dela.
A vida desabrochou dentro dela, tão luminosa e quente que ela percebeu que estivera fria e morta. Arqueou o corpo ao encontro dele, com os sentidos a gritar por
mais. E as mãos dela percorreram o corpo dele, em busca de mais.
Conhecia a linha dos ossos, o movimento dos músculos, a forma de cada cicatriz. Conhecia o corpo dele tão bem como conhecia o dela. O sabor da pele dele, o breve
arranhar da barba quando roçava a pele dela.
209
Conhecia cada estremecimento dele.
Ele era forte, rude. Ela despertara algo nele - sempre fora capaz de fazer isso - que transformara o civilizado em primitivo. Havia agora nele um desejo insaciável,
uma fome que raiava a dor. Queria unir-se a ela, energicamente, rapidamente, talvez de forma um pouco egoísta. Queria invadi-la, enterrar-se no calor húmido e fazê-la
mergulhar nele, por baixo dele.
Meses de separação, de negação, de desejo, tinham-se acumulado dentro dele como uma ferida, até doer-lhe tudo. Doía-lhe tudo.
Ela era a resposta. Exactamente como sempre fora.
Tomou-lhe os seios com as mãos, depois com a boca. Ela mergulhou a mão entre os dois corpos, lutando com o fecho das calças dele.
Voltaram a rebolar, arquejantes, enquanto se libertavam das calças. O ímpeto fê-los aproximar-se da beira da cama e cair pesadamente no chão. Callie sentia-se ainda
atordoada com o impacto quando ele entrou nela.
Ela gritou, um som breve, de choque, e as suas pernas enrolaram-se à volta da cintura dele como cadeias.
Ela não conseguia falar, ele não conseguia parar. A violência dos movimentos incendiava-lhe o sangue, até todo o seu corpo ser uma massa de nervos dorida. Ela agarrou-se
a ele, com força, as ancas movendo-se freneticamente, a visão desfocada.
O orgasmo pareceu arrancá-la do chão, rasgá-la em pedaços, as ancas, o coração, a cabeça. Por um momento viu o rosto dele, vívido e límpido, por cima do dela. Tinha
os olhos quase pretos, fixos nos dela, com o tipo de intensidade que sempre a fizera sentir completamente nua.
E mesmo quando se fecharam, continuaram a observá-la.
Ela rebolou e deixou-se ficar no chão, de barriga para baixo. Ele ficou deitado ao lado dela, a olhar fixamente para o tecto.
Um motel de segunda categoria, pensou Jake, uma discussão sem sentido, sexo e loucura.
Algumas coisas não mudariam nunca?
Não eram estes os planos dele. Tudo o que tinham conseguido fora uma libertação temporária da tensão. Porque seria que ambos pareciam tão desejosos de achar que
fora apenas isso?
Ele queria dar-lhe mais. Deus sabia que ele queria dar-lhe mais. Mas talvez o que havia entre eles se resumisse a isto.
210
E a ideia deixou-o destroçado.
- Sentes-te melhor agora? - perguntou ele enquanto se sentava para chegar aos jeans.
Ela virou a cabeça e olhou para ele com olhos cautelosos:
- Tu não?
- Claro. - Pôs-se de pé e apertou os jeans. - Da próxima vez que te apetecer uma queca rápida, basta bateres na parede. - Ele viu a emoção perpassar-lhe o rosto,
antes de ela voltar a virar a cabeça.
- O que é isto? Ressentimentos? - Ele ouviu o tom cruel na sua própria voz, mas não se importou. - Vá lá, Dunbrook, não vamos dourar a pílula. Carregaste nos botões,
tiveste o resultado. Nada de mais.
- Certo. - Ela desejou que ele se fosse embora. Desejou que ele se baixasse e a agarrasse, a abraçasse. Apenas que a abraçasse. - Por isso, vamos ambos dormir melhor
esta noite.
- Eu não tenho dificuldades em dormir, querida. Até amanhã. Ela esperou até ouvir a porta fechar-se, até ouvir a porta dele abrir-se, ao lado. E fechar-se.
Depois, pela segunda vez naquele dia, chorou.
Callie disse a si própria que estava bem quando se sentou no escritório de Lana, na tarde do dia seguinte. Ia fazer o que precisava de ser feito. Era apenas mais
um passo a dar.
- Quer café? - perguntou Lana.
- Não, obrigada. - Tinha medo que o seu sistema nervoso explodisse, se tomasse mais cafeína. - Estou bem.
- Não parece bem. De facto, parece que não dorme há uma semana.
- Passei mal a noite, mais nada.
- Esta situação é difícil para todos. Mas é principalmente difícil para si.
- Eu diria que é mais difícil para os Cullen.
- Não. O jogo da corda é mais difícil para a corda do que para quem a puxa.
Incapaz de falar, Callie limitou-se a olhar fixamente. Depois, pressionou as pálpebras com as mãos:
- Obrigada. Obrigada por compreender, por não ser apenas a advogada objectiva.
- Callie, já pensou em consultar um psicólogo?
211
- Não preciso de consultar um psicólogo. - Voltou a pousar as mãos no colo. - Eu fico bem. Encontrar respostas é a única terapia de que preciso.
- Está bem. - Lana sentou-se à secretária. - O investigador descobriu um padrão de actuação do Carlyle semelhante ao de meados dos anos cinquenta. Isto é, uma diminuição
dos pedidos de adopção depois de ele se estabelecer numa determinada área. No entanto, por aquilo que apurámos parece que os rendimentos dele e o preço pago pelo
cliente aumentam. É justo admitir que a principal fonte desses rendimentos fossem as adopções no mercado negro. Ainda estamos a tentar localizá-lo depois de ter
passado por Seattle. Não há qualquer registo de ele ter exercido advocacia em qualquer lugar dos Estados Unidos depois de ter fechado o escritório em Seattle. Mas
descobrimos outra coisa.
- Que é...
- O filho dele, Richard Carlyle, que vive em Atlanta. É advogado.
- Mas que conveniente.
- O meu investigador diz que ele está limpo. Escrupulosamente. Tem quarenta e oito anos, casado, dois filhos. Licenciou-se em Harvard, entre os cinco por cento melhores
da turma. Trabalhou numa firma proeminente em Boston. Conheceu a mulher através de amigos comuns, numa visita a Atlanta. Namoraram à distância durante dois anos.
Quando casaram, mudou-se para Atlanta e tornou-se sócio de uma outra empresa. Agora, tem a sua própria firma.
Lana pousou o dossiê.
- Exerce em Atlanta há dezasseis anos, principalmente em propriedades. Nada indica que viva acima dos seus rendimentos. Teria dezanove, vinte anos, quando você foi
roubada. Não há razões que levem a crer que tenha estado envolvido.
- Mas ele deve saber onde está o pai.
- O investigador está preparado para abordá-lo nesse sentido, se é isso que quer.
- É, sim.
- Vou tratar disso. - O intercomunicador soou. - São os Cullen. Está pronta?
Callie acenou afirmativamente com a cabeça.
- Se quiser que eu assuma o controlo da situação, a qualquer altura, se quiser que seja eu a falar, ou quiser fazer uma pausa, basta fazer-me sinal.
- Vamos lá a despachar isto.
212
Treze

Foi um momento estranho, ver aquela que teria sido a sua família, se o destino tivesse sido diferente. Não tinha a certeza do que devia fazer quando eles entraram.
Devia levantar-se ou ficar sentada na cadeira? Para onde devia olhar? Como devia olhar?
Tentou ver como era Jay Cullen, sem olhar directamente para ele. Usava calças de algodão e uma camisa aos quadrados azuis-claros e verdes, e uns Hush Puppies muito
velhos. Uma gravata azul. Tinha um ar... agradável, decidiu. Atraente, com um ar calmo, e razoavelmente em forma, muito de acordo com o professor de matemática que
ela sabia que ele era.
E a fazer jus às olheiras que tinha sob os olhos - meu Deus, os olhos! - não andava a dormir bem.
Não havia cadeiras suficientes no escritório de Lana para acomodar toda a gente. Por um momento - segundos, supôs Callie, embora o tempo parecesse arrastar-se interminavelmente
- toda a gente manteve uma estranha formalidade, como se posasse para uma fotografia.
Então, Lana deu um passo em frente e estendeu a mão:
- Obrigado por terem vindo, Sr.a Cullen, Sr. Cullen. Desculpem, não percebi que o Doug viria convosco. Vou buscar outra cadeira.
- Eu fico de pé - disse ele.
- Não dá trabalho nenhum.
Ele limitou-se a abanar a cabeça. Seguiu-se mais um momento de silêncio, como o golpe de uma faca afiada em toda aquela amabilidade tensa.
- Sente-se, Sr.a Cullen. Faça favor, Sr. Cullen. Posso oferecer-vos um café? Qualquer coisa fresca?
213
- Lana. - Doug pousou a mão no ombro da mãe e virou-a para uma cadeira. - Não podemos fazer disto uma coisa normal. É difícil para todos. Vamos fazê-lo e pronto.
- É uma situação difícil. - E nada que ela fizesse, admitiu Lana, podia torná-la menos difícil. Voltou para junto da secretária, separando-se dos outros. Estava
ali apenas como elo de ligação, como assistente legal. E, se necessário, como árbitro. - Como sabem - começou ela -, represento os interesses da Callie na questão
relativa à sua parentalidade. Recentemente, foram reveladas algumas questões e alguma informação quanto a...
- Lana. - Callie pôs os braços à volta do seu próprio tronco.
- Eu faço isto. Os resultados preliminares dos testes que concordámos fazer chegaram. São bastante básicos. Os estudos mais complexos do ADN vão demorar consideravelmente
mais tempo. Um dos testes é um teste negativo. Mostra se um indivíduo não é o pai ou a mãe. Não é este o caso, aqui.
Ouviu a respiração de Suzanne e fechou a mão com força. Tinha que manter o sentido lógico, até mesmo o sentido prático.
- Os resultados obtidos até agora apontam para uma forte probabilidade de estarmos... biologicamente relacionados. A acrescentar a esses resultados há a outra informação
e...
- Callie. - Doug manteve a mão no ombro de Suzanne. Sentia-a tremer sob ela. - Sim ou não.
- Sim. Existe uma margem de erro, claro, mas é muito ligeira. Só saberemos de forma conclusiva quando localizarmos e questionarmos Marcus Carlyle, o advogado que
tratou da minha adopção. Mas estou aqui a olhar para vocês, e é impossível negar as semelhanças físicas. É impossível negar o tempo e as circunstâncias. É impossível
negar os dados científicos reunidos até agora.
- Quase vinte e nove anos. - A voz de Suzanne era pouco mais do que um sussurro, mas pareceu abanar a sala. - Mas eu sabia que havíamos de encontrar-te. Eu sabia
que voltarias.
- Eu... - não voltei, quis Callie dizer. Mas não teve coragem de dizer as palavras em voz alta quando viu as lágrimas rolarem pelas faces de Suzanne.
Pôs-se de pé, num movimento instintivo, quase defensivo, quando Suzanne se levantou. O seu coração e a sua mente pareceram colidir, deixando-a submersa nos estilhaços
de ambos, quando Suzanne a abraçou.
214
Somos da mesma altura, pensou Callie como que em câmara lenta.
Quase exactamente da mesma altura. E ela cheirava a uma brisa de
Verão que nada tinha a ver com o drama do momento. O cabelo era macio, farto, num tom um pouco mais escuro do que o seu. E o coração batia com força e acelerado,
e ela tremia.
Através da sua visão enevoada, Callie viu Jay pôr-se de pé. Por um instante, os olhares de ambos cruzaram-se e mantiveram-se fixos. Depois, incapaz de suportar a
tempestade de emoções no rosto dele, o brilho das lágrimas nos seus olhos, o terrível pesar, Callie conteve as suas próprias emoções.
- Lamento. - Não conseguia pensar em mais nada que pudesse dizer, e não sabia se estava a falar com Suzanne ou consigo própria.
- Lamento muito.
- Está tudo bem, agora. - Suzanne passou a mão pelos cabelos de Callie, pelas costas de Callie. Sussurrou-lhe as palavras suavemente, como se ela fosse uma criança.
- Vai ficar tudo bem, agora.
Como? Callie lutou contra a necessidade desesperada de soltar-se do abraço e fugir. Fugir até reencontrar o ciclo normal da sua vida.
- Suze. - Jay tocou no ombro de Suzanne e depois puxou-a gentilmente. Estava lá, de braços abertos, quando ela se voltou para ele.
- O nosso bebé, Jay. O nosso bebé.
- Ssshh. Não chores. Vamos sentar-nos. Anda cá, precisas de sentar-te. - Ele fê-la sentar-se, com doçura, e depois aceitou o copo de água que Lana lhe estendia.
- Toma, querida, vá, bebe um pouco de água.
- - Encontrámos a Jessica. - Ela agarrou a mão que Jay tinha livre, ignorando o copo. - Encontrámos o nosso bebé. Eu disse-te. Sempre
te disse.
-Sim, sempre me disseste.
- Sr.a Cullen, porque não vem comigo? - Lana meteu uma mão debaixo do braço de Suzanne. - Deve querer refrescar-se um pouco.
Porque não vem comigo? - repetiu, e fez Suzanne voltar a levantar-se.
Era como pegar numa boneca, pensou Lana. Pôs um braço à volta da cintura de Suzanne e olhou para Doug enquanto levava Suzanne para fora da sala. O rosto dele estava
pálido.
Jay esperou até a porta se fechar e olhou para ela uma segunda vez antes de se virar para Callie:
- Mas não encontrámos, pois não? - disse ele calmamente. - Tu não és a Jessica.
- Sr. Cullen...
215
Ele pousou o copo. A mão tremia-lhe. Iria entorná-lo se não o pousasse. Mas depois ficou com as mãos vazias.
- Não importa o que dizem os testes. A biologia não importa. Tu sabes isso. Vejo-o na tua cara. Já não és nossa. E quando ela vier finalmente a compreender isso...
A voz quebrou-se-lhe e ela viu-o tentar reunir coragem para terminar.
- Quando ela vier finalmente a compreender isso, será como perder-te outra vez.
Callie ergueu as mãos:
- Que quer que eu diga? Que quer que eu faça?
- Quem me dera saber! Tu, ããã... não precisavas de fazer isto. Não precisavas de dizer-nos. Eu quero... não sei se faz sentido para ti ou não, mas preciso de dizer
que tenho orgulho por seres o tipo de pessoa que não foge das coisas.
Ela sentiu algo soltar-se dentro dela:
- Obrigada.
- Seja o que for que decidas fazer, ou não fazer, não a magoes mais do que o necessário. Preciso de apanhar ar. - Encaminhou-se rapidamente para a porta. - Doug
- disse, sem olhar para trás.
- Toma conta da tua mãe.
Callie deixou-se cair na cadeira, e como a sua cabeça lhe parecia insuportavelmente pesada deixou-a cair para trás.
- Tens alguma coisa de profundo a dizer? - perguntou a Doug. Ele aproximou-se dela, sentou-se e inclinou-se com as mãos entre os joelhos. Olhou-a intensamente no
rosto:
- Durante toda a minha vida, desde que me lembro, foste o fantasma da casa. Não importava que casa, estavas sempre lá, só por não estares lá. Em todas as férias,
em todos os acontecimentos, até nos dias normais, a tua sombra ensombrava os cantos. Houve vezes, muitas vezes, em que te detestei por causa disso.
- Realmente não houve grande consideração da minha parte, pelos cantos, dessa maneira.
- Se não fosses tu, tudo teria sido normal. Os meus pais ainda estariam juntos.
- Meu Deus - disse ela, num suspiro.
- Se não fosses tu, tudo o que eu fiz enquanto cresci não teria aquela sombra em volta. Não teria visto o pânico nos olhos da minha mãe sempre que me atrasava cinco
minutos a regressar a casa. Não a teria ouvido chorar à noite, nem andar pela casa como se procurasse uma coisa que não estava lá.
216
- Não posso remediar isso.
- Não, não podes remediar isso. Tenho a impressão de que tiveste uma infância bem boa. Fácil, normal, um pouco acima da média em termos monetários, mas não tanto
que tivesses sido afectada no mau sentido.
- E tu não tiveste.
- Não, a minha infância não foi fácil nem normal. Se fizer uma análise rápida, psicologia barata, é provável que seja isso que me tem impedido de ter a minha vida,
até agora. E talvez seja por isso, não sei, mas talvez seja por isso que vou conseguir lidar com isto melhor do que qualquer de vocês. Acho que é mais fácil para
mim lidar com carne e osso do que com o fantasma.
- A Jessica continua a ser um fantasma.
- Sim, já percebi isso. Quiseste afastá-la de ti quando ela te abraçou, mas não o fizeste. Não afastaste a minha mãe de ti. Porquê?
- Não tenho qualquer problema em ser uma cabra, mas não sou uma cabra sem coração.
- Ei, ninguém chama cabra à minha irmã, excepto eu. Eu ameite. - As palavras saíram antes de ele se aperceber disso. - Que diabo, eu tinha apenas três anos, por
isso amei-te provavelmente como se ama um cachorro. Espero que possamos tentar ser amigos.
Ela soltou um suspiro trémulo. Inspirando profundamente, observou-o. Tinha um olhar directo, pensou. E de um castanho profundo.
Misturada no turbilhão que ela via neles havia uma bondade que ela não esperava.
- Não é tão difícil lidar com o facto de ter um irmão como é...
Lançou um olhar na direcção da porta.
- Não estejas assim tão segura. Posso compensar o tempo perdido. Como por exemplo, quem é esse Graystone? Estão divorciados, não estão? Então o que anda ele aqui
a fazer? Ela pestanejou.
- Estás a brincar?
- Sim, mas talvez não venha a estar, mais tarde. - Inclinou-se um pouco, aproximando-se mais dela. - Fala-me desse filho da mãe, o Carlyle.
Callie abriu a boca e voltou a fechá-la quando a porta se abriu.
- Mais tarde - murmurou, e levantou-se quando Lana voltou a fazer Suzanne entrar na sala.
- Desculpa. Não queria descontrolar-me daquela maneira. Onde está o Jay? - perguntou ela, olhando em volta.
217
- Foi lá fora, apanhar ar - respondeu Doug.
- Compreendo. - Apertou os lábios.
- Veja se entende, mãe. Também é difícil para ele.
- Este é um dia feliz. - Pegou na mão de Callie enquanto se sentava. - Devíamos ficar todos juntos. Sei que estás devastada disse ela a Callie. - Sei que vais precisar
de um tempo, mas há tantas coisas que quero dizer-te! Tantas coisas que quero perguntar-te! Nem sei por onde começar.
- Suzanne. - Callie olhou para as suas mãos dadas. - O que lhe aconteceu, o que vos aconteceu a todos foi horrível. Não podemos fazer nada para mudar isso.
- Mas agora sabemos. - A voz dela gorgolejou, numa espécie de histeria feliz. - Sabemos que estás bem. Estás aqui.
- Não sabemos. Não sabemos como, não sabemos porquê. Não sabemos quem. Temos que descobrir.
- Claro que sim. Claro. Mas o que é importante é que estás aqui. Podemos ir para casa. Podemos ir para casa agora e...
- O quê? - perguntou Callie. O pânico assaltou-a. Não, não afastara Suzanne há pouco. Mas ia afastá-la agora. Tinha de afastá-la.
- Voltar ao ponto em que ficámos? Tive uma vida inteira entre esse ponto e hoje, Suzanne. Não posso compensá-la pelo que perdeu. Não posso ser a sua menina, nem
sequer a sua filha crescida. Não posso desistir de ser o que sou só para ser o que teve. Não conseguiria fazer isso.
- Não podes pedir-me que me vá embora, que desista de tudo Jessie...
- Essa não sou eu. Precisamos de descobrir porquê. A Suzanne nunca desistiu - disse ela, enquanto os olhos de Suzanne voltavam a encher-se de lágrimas. - É uma coisa
que temos em comum. Eu também não desisto. Vou descobrir porquê. E pode ajudar-me.
- Faço qualquer coisa por ti.
- Então, preciso que recue um pouco no tempo. Que se lembre. Do seu médico, quando estava grávida de mim. Das pessoas no consultório dele, das pessoas com quem teve
contacto durante o parto. Do pediatra e do pessoal do consultório dele. Quem sabia que ia ao centro comercial naquele dia? Quem poderia conhecê-la e aos seus hábitos
suficientemente bem para estar lá no momento certo? Faça-me uma lista - acrescentou Callie. - Sou doida por listas.
- Sim, mas de que servirá isso?
218
- Tem de haver uma relação entre si o Carlyle, algures. Alguém que a conhecesse. A Suzanne foi um alvo. Tenho a certeza disso. Aconteceu tudo demasiado depressa,
demasiado rapidamente para ter sido fruto do acaso.
- A polícia...
- Sim, a polícia - disse Callie, com um aceno de cabeça. - O FBI. Arranje-me tudo aquilo de que se recordar sobre as investigações. Tudo o que tiver. Sou boa a descobrir
coisas escondidas. A enquadrar com coesão aquilo que descubro. Preciso de fazer isto por mim, e por si. Ajude-me.
- Vou ajudar-te. Claro que vou. Tudo o que quiseres. Mas preciso de algum tempo contigo. Por favor.
- Havemos de pensar em alguma coisa. Porque não vou consigo até ao carro?
- Vá, mãe. - Doug aproximou-se da porta e abriu-a. - Eu fico aqui.
Fechou a porta atrás delas e encostou-se a ela, enquanto olhava para Lana:
- Isto leva a "família disfuncional para um nível completamente novo. Quero agradecer-te por teres ajudado a minha mãe a recompor-se.
- Ela é muito forte. Teve motivos para se ir abaixo. Eu quase fui, também. - Soltou um suspiro. - Como estás a aguentar-te?
- Ainda não sei. Não gosto de mudanças. - Aproximou-se da janela e ficou a apreciar a bonita vista para o parque. - A vida é menos complicada se as pessoas não mexerem
nas coisas.
- Acredita, nada fica sempre na mesma. As coisas vão sendo, boas, más ou indiferentes.
- As pessoas não deixam a vida em paz. A Callie não é do tipo de deixar o que quer que seja em paz durante muito tempo. Irradia energia, uma espécie de inquietação,
mesmo quando está quieta. O que aconteceu aqui é apenas... um efeito dominó. Uma pedra cai e faz cair tudo o resto. Muda tudo o que havia antes.
- E o que havia antes era mais confortável para ti.
- Eu compreendia o que havia antes. - Encolheu os ombros.
- Mas foi tudo para o inferno. Acabei de estar aqui a ter uma conversa com... com a minha irmã. A segunda, nos últimos dias. Antes disso, a última vez que a vi era
careca e não tinha dentes. É tudo um bocado surrealista.
- E todos precisam de ti, a níveis diferentes. Ele franziu o sobrolho e virou-se para ela:
219
- Não acho.
- Foi muito óbvio, para esta observadora objectiva. E, para mim, isso explica porque estás sempre a ir-te embora e a voltar.
- O meu trabalho faz-me ir embora e voltar.
- Faz-te ir embora, até certo ponto - concordou ela. - Mas não eras obrigado a voltar. Bem, uma visita de vez em quando, como fazem os familiares. Mas tu também
regressas por eles, por ti. Gosto disso em ti. Gosto de muitas coisas em ti. Porque não fazes uma pausa em tudo isto, esta noite? Aparece. Preparo-te uma refeição
caseira.
Doug não sabia se alguma vez vira uma mulher mais bonita do que Lana. Pelo menos uma tão perfeita. Ou uma que conseguisse ter uma doçura permanente, mesmo quando
encostava um homem à parede.
- Não tenho intenções de ficar. Acho que deves saber isso.
- Estava a oferecer-me para grelhar frango, não para limpar um armário para poderes mudar-te lá para casa.
- Quero dormir contigo.
Como ele parecia bastante zangado quando disse aquilo, Lana ergueu o sobrolho:
- Bem, isso não faz parte da ementa desta noite. Pode perfeitamente vir a fazer, num futuro próximo. Mas, mesmo assim, não vou limpar nenhum armário.
- Tenho tendência para estragar as relações, por isso deixei de tê-las.
- Eu aviso-te, se começares a estragar esta. - Aproximou-se e roçou os lábios nos dele. - Frango assado, Doug. Infelizmente, não pode haver sexo para sobremesa,
porque tenho de pensar no Ty. Mas podes seduzir-me para eu aquecer a tarte de pêssego que tenho no congelador. É da Cozinha da Suzanne - acrescentou, com um sorriso.
- É sempre um êxito em nossa casa.
Ia ser complicado, pensou ele. Estava destinado a ser complicado. A mulher, a criança, os botões que cada um deles accionava. Mas não estava pronto para afastar-se.
Ainda não.
- Sempre tive um fraco pela tarte de pêssego da minha mãe. A que horas é o jantar?
Jay estava a olhar fixamente para o vaso de gerânios do alpendre quando Callie saiu com Suzanne. O olhar dele fixou-se primeiro em Suzanne, notou Callie. Olhou para
ela da maneira como se olha para um barómetro quando se pretende estar prevenido para as condições climatéricas.
220
- Eu ia já entrar.
- Ias? - disse Suzanne friamente.
- Precisei de um momento para refrescar a cabeça, Suzanne. -
Estendeu a mão para tocar-lhe no braço, mas ela recuou, num gesto tão claro como uma bofetada.
- Falamos mais tarde - disse ela, no mesmo tom gelado. - Pensei que tivesses alguma coisa a dizer à tua filha.
-Não sei o que dizer, nem o que fazer.
- Por isso afastas-te. - Deliberadamente, Suzanne virou-se e pousou os lábios na face de Callie. - Bem-vinda a casa. Amo-te. Vou
esperar pelo Doug no carro.
- Nunca poderei compensá-la - disse ele suavemente..- Nem a ti.
- Não tens nada com que compensar-me.
Ele virou-se para ela, mantendo embora um pé entre eles e as mãos junto a si:
- És linda. É a única coisa em que consigo pensar para dizer-te.
És linda. És parecida com a tua mãe.
Começou a descer os degraus, no momento em que Doug apareceu à porta.
- - Vais estar no meio disto. - Callie fez um gesto com a cabeça na direcção do carro, do qual Jay se aproximava com largas passadas.
- Estive no meio disto toda a minha vida. Ouve, eu não ia perguntar nada, mas queres ir um dia destes ver o meu avô? A livraria, na Main.
Ela massajou as têmporas:
- Sim. Está bem.
- Obrigado. Vemo-nos por aí.
- Doug. - Ela desceu um degrau quando ele chegou ao passeio.
- Talvez possamos ir tomar uma cerveja, um destes dias. Podemos tentar ser amigos, e tu podes ir-me pondo a par da dinâmica dos Cullen. Não sei onde me hei-de posicionar.
Ele soltou uma breve gargalhada:
-Bem-vinda ao clube. Dinâmica familiar? Brindemos a isso!
Ela viu-o entrar no carro e fez uma ideia dessa dinâmica, pelas posições que a família ocupava. Doug ao volante, Suzanne no lugar ao
lado e Jay atrás.
Onde a poriam a ela?, pensou. Começou a dirigir-se para o seu
próprio carro quando vislumbrou Jake encostado ao capot.
Ficou perturbada, e embora recuperasse rapidamente tinha a certeza de que ele notara. Raramente lhe escapava alguma coisa. Deliberadamente,
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tirou os óculos da mala e pô-los enquanto caminhava na direcção dele.
- Que estás a fazer aqui?
- Estava nas redondezas, por acaso. Ela rodou nos calcanhares:
- Onde está o teu carro?
- Lá em cima, na escavação. A Sonya deu-me boleia. Tem um belo par de pernas, aquela rapariga. Vão até à clavícula. - Ofereceu-lhe um sorriso rasgado.
- As pernas, e o resto dela, têm vinte anos.
- Vinte e um. E o Dig já lançou a escada, por isso as minhas esperanças estão fracas para aquele lado.
Callie tirou as chaves e agitou-as:
- E estares aqui, nas redondezas, significa que já não estás zangado comigo?
- Não iria tão longe.
- Talvez eu te tenha usado, mas tu também não resististe propriamente.
Ele pegou-lhe no braço antes de ela conseguir passar por ele:
- Usámo-nos um ao outro. E talvez eu esteja um bocado chateado por ter sido tão fácil para ambos. Queres discutir por causa disso?
- Neste momento, não consigo ter discussão nenhuma.
-Já percebi. - Pousou-lhe as mãos nos ombros e acariciou-os.
- Foi difícil, ali dentro?
- Podia ter sido pior. Não sei como, mas tenho a certeza de que podia. Que diabo estás a fazer aqui, Jake? Em missão de salvamento?
- Não. - Ele tirou-lhe as chaves. - Guio eu.
- O carro é meu.
- E tenho andado para perguntar-te. Quando vais levá-lo para te veres livre desta porcaria?
Callie franziu o sobrolho ao olhar para a pintura a spray.
- Estou a ficar habituada. Tem presença. O que estás a fazer?
- Ora, por amor de Deus, Dunbrook, estou a abrir-te a porta do carro.
- Tenho o braço partido?
- Isso arranja-se. - Decidiu tirar o ar divertido da cara dela de um modo diferente, e viu o choque estampar-se-lhe no rosto quando a agarrou e a atirou para dentro
do carro.
- Que bicho te mordeu?
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- O mesmo que costuma morder-me. - Censurou-se a si próprio enquanto dava a volta ao carro, escancarou a porta do lado do condutor e entrou.
- Que se lixe - decidiu, e puxou-a para si, prendeu-lhe os braços e tomou-lhe a boca.
Ela resistiu, debateu-se e tentou encontrar algo em que pudesse firmar-se, enquanto tudo nela girava em turbilhão.
- Pára!
- Não.
Ela era forte, mas ele sempre fora mais forte. Era uma das coisas nele que a atraíam e, ao mesmo tempo, a enfureciam. O génio dele era outra. Podia amuar sem aviso
e ficar a fermentar num qualquer recanto escondido, até explodir de repente, sem aviso.
Como agora, pensou ela, enquanto a boca dele assaltava a dela.
Com Jacob, nunca se podia ter certezas. Nunca se podia estar completamente a salvo. E tudo isso a fascinava.
Ela tentou recuperar a respiração, enquanto a boca dele mergulhava até à garganta dela.
- Há um minuto estavas zangado porque nos usámos um ao outro, ontem à noite. Agora, estás pronto a fazer o mesmo, em plena luz do dia e numa rua pública.
- Estás dentro de mim, Callie. - Ele voltou a tomar-lhe os lábios, num beijo longo, quente e profundo. Depois, afastou-a de si. - Como a porcaria de um tumor.
- Arranja-me um bisturi. Vou ver o que posso fazer. Tamborilou com os dedos no volante, enquanto virava a cabeça e a observava, agora com calma, através das suas
lentes escuras.
- Distraí-te das preocupações por uns minutos, não foi?
- Um murro bem dado teria feito o mesmo.
- Como não bato em mulheres, mesmo tratando-se de ti, isto foi o melhor que consegui arranjar. Seja como for, não vim aqui para parvoíces no carro, nem para trocar
insultos, por mais animadoras que ambas as coisas sejam.
- Foste tu que começaste.
- E vou acabar, se continuares a puxar por mim. Alugámos uma casa.
- Desculpa?
- O nosso pequeno ninho de amor, docinho. Se me tocares com esse punho fechado, posso bem vir a mudar a minha política sobre bater em mulheres. - Pôs o motor a trabalhar.
- Os quartos do motel são demasiado pequenos e demasiado inconvenientes. A equipa precisa de uma base de treino.
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Ela tinha andado a pensar no mesmo, mas aborreceu-a que ele tivesse chegado primeiro aos pormenores.
- Vamos parar os trabalhos daqui a alguns meses. O motel é barato, e só tu, eu e a Rosie é que vamos lá ficar.
- E nós os três vamos precisar de mais espaço para trabalhar. A Dory, o Bill e o Matt também lá vão abancar. E chegam mais dois miúdos atrevidos de West Virgínia,
esta tarde.
- E esses miúdos atrevidos vão...
- Picar-se o mais possível. Ele já tem umas escavações na manga, e está a trabalhar no doutoramento. Antropologia. Ela é verde como a erva, mas está disposta a fazer
o que lhe mandam.
Ela pôs os pés no tablier e pensou no assunto:
- Bem, precisamos de mãos.
- De facto, precisamos. E o Leo precisa de um sítio para ficar. E especialistas ou visitas que fiquem temporariamente podem usar esse sítio. Precisamos de um local
para guardar coisas. Precisamos de uma cozinha.
Ele dirigiu-se para fora da cidade, sabendo que ela estava a ferver e a tentar pensar num argumento melhor.
- E - acrescentou ele -, precisamos de uma base, depois de pararmos os trabalhos. Temos outras descobertas a fazer.
- Temos?
- Disse que ia ajudar-te. Por isso, vamos ficar com uma base de operações para isso também.
Ela franziu o sobrolho, enquanto ele deixava a estrada principal e metia por um caminho irregular, de gravilha.
- Não sei o que hei-de fazer contigo, Jake. Num instante és o mesmo parvalhão que sempre foste, e no minuto seguinte és um parvalhão a tentar ser simpático. - Ela
baixou os óculos, espreitando por cima das lentes. - Estás a ver se dás comigo em doida?
Ele limitou-se a sorrir:
- O que é que achas?
Era grande, e estava protegida pelas árvores. Parte do ribeiro serpenteava ao lado dela. Um lado activo, pensou Callie ao sair do carro e ao ouvir a água a gorgolejar.
Era uma estrutura de madeira que parecia ter sido construída em três partes. Uma espécie de rancho, depois um anexo construído numa segunda fase, e em seguida um
prolongamento que dispunha de um pequeno terraço.
A relva precisava de ser cortada. Roçou-lhe os tornozelos quando ela a atravessou e se dirigiu para a parte da frente da casa.
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- Onde foste descobri-la?
- Um dos habitantes da cidade que veio ver a escavação falou nela ao Leo. É da irmã. O casamento foi ao ar há uns meses e eles querem alugar a casa até decidirem
o que querem fazer. Tem alguma mobília. Não é muita, coisas que nenhum deles quis levar. Temos um aluguer de seis meses, que fica mais barato do que o motel.
Ela gostou da sensação que o lugar lhe transmitia, mas não estava pronta para admiti-lo:
- A que distância estamos do sítio da escavação? Não prestei atenção.
- Dez quilómetros.
- Não é mau. - Deu alguns passos em direcção à porta e tentou rodar a maçaneta. - Tens a chave?
- Onde é que a terei posto? - Aproximou-se por detrás dela, mostrou-lhe uma mão vazia, rodou o pulso e apresentou-lhe a chave.
Arrancou-lhe um sorriso relutante.
- Vá, abre lá a porta, Houdini.
Jake destrancou a porta e, mais uma vez, agarrou-a ao colo.
- Que se passa contigo?
- Nunca entrei em casa contigo ao colo. - Fechou a boca sobre a dela, num murmúrio quente que durou dez segundos.
- Pára com isso. Nem tivemos casa para entrar. - Os músculos do estômago dela estavam emaranhados num nó, e ela pressionou o corpo contra o dele. - O quarto de hotel
de Las Vegas onde passámos a noite de núpcias não conta.
- Não sei. Tenho umas belas recordações daquele quarto de hotel. A banheira grande e em forma de coração, o espelho por cima da cama, o...
- Eu lembro-me.
- E eu lembro-me de ti, naquela banheira com espuma até ao queixo, a cantar "I'm Too Sexy".
- Estava bêbeda.
- Sim, estavas enfrascada. Desde essa altura tenho um fraco por essa canção. - Pousou-a no chão e deu-lhe uma ligeira palmada no rabo. - E aqui temos a sala de estar...
a sala comum.
- Que diabo aconteceu ao sofá?
Ele olhou para o braço, feito em tiras, de um sofá coberto com um tecido aos quadrados castanhos, bege e vermelhos.
- Tinham gatos. Estava lá em baixo, na área comum, meio abandonado. A cozinha é além, está equipada. Há uma zona de refeições.
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Banho e W.C. neste piso, outra lá em cima com três quartos. Mais um quarto ou um escritório ali, e aqui...
Atravessou a sala, virou-se e fez um gesto na direcção de uma divisão de bom tamanho, com uma porta de correr, em vidro, e, do lado de lá, um pequeno terraço cheio
de encanto. Quando Callie abriu a boca, ele abanou a cabeça.
- Demasiado tarde, querida. Cheguei primeiro.
- Estupor.
- Bonito de dizer, especialmente depois de eu te ter reservado o maior quarto lá de cima. Podemos mudar-nos amanhã.
- Óptimo. - Atravessou a sala, até ao terraço. - Isto aqui é sossegado.
- Vai deixar de ser, quando nos mudarmos.
Parecia normal, pensou ela. Por mais estranho que fosse, parecia normal depois daquela hora no escritório de Lana:
- Lembras-te daquele sítio onde ficámos, à saída do Cairo? Ficámos lá apenas durante algumas semanas.
- Demasiadas.
- Foi só uma cobra pequenina.
- Não me pareceu tão pequenina quando se meteu na casa de banho comigo.
- Parecias uma miúda a gritar.
- Não parecia nada. Berrei como um homem. E embora estivesse nua, em pêlo, despachei-a com as minhas próprias mãos.
- Fizeste-a em picado com um suporte das toalhas.
- Que também arranquei da parede com as mãos.
Ainda estava a vê-lo, gloriosamente nu, nada atarantado, com a cobra em equilíbrio instável, enrolada ao toalheiro. Dias inesquecíveis.
- Seja como for, divertimo-nos muito. Divertimo-nos muito algumas vezes.
- Muitas vezes. - Pôs-lhe a mão na nuca. - Porque não deixas isso soltar-se, Callie? Porque tens tanta dificuldade em deixar soltar-se o que quer que seja, excepto
a tua fúria?
- Não sei. Ela ficou desfeita, Jake. Ficou completamente desfeita, ainda há pouco, no escritório da Lana. Agarrou-se a mim com uma força que eu mal conseguia respirar.
Não sei o que senti, o que sinto. Não consigo identificar. Mas comecei a pensar como seriam eles, como seriam os meus pais, como seria eu, se nada disto tivesse
acontecido. Se ela não se tivesse afastado durante aqueles poucos segundos, e se eu tivesse crescido... aqui.
226
Quando ela fez menção de afastar-se, Jake segurou-a com força:
- Continua a falar. Faz de conta que eu não estou aqui.
- É uma coisa aqui, a martelar - disse-lhe ela. - Comecei a pensar, é tudo. E se eu tivesse crescido sendo a Jessica? Jessica Lynn Cullen teria um apurado sentido
da moda. Guiaria uma minivan. Provavelmente iria no segundo filho, agora. Talvez uma licenciatura em Belas-Artes, que usa para decorar a casa com gosto. Pensa em
regressar ao trabalho quando os miúdos forem mais velhos, mas por agora é presidente da associação de pais e isso chega-lhe. Ou talvez fosse a Jessie. Talvez Jessie
tivesse pegado como nome para toda a vida. Isso seria diferente.
- Como?
- A Jessie teria sido chefe de claque. Estava destinada a isso. Capitã de equipa. Provavelmente, teve uma paixão pelo capitão da equipa de futebol e isso foi assunto
quente em toda a escola, mas não durou muito. A Jessie teria casado com o apaixonado da escola, escolhido entre os vários tipos que gostavam de andar atrás dela
por ela ser tão exuberante e divertida. A Jessie organiza álbuns de recortes e trabalha em part-time, para ajudar os rendimentos. Também tem um miúdo, e energia
suficiente para tocar todos os instrumentos que tem de tocar.
- É feliz?
- Claro. Porque não? Mas nenhuma dessas mulheres passaria horas a cavar, nem saberia identificar uma tíbia com seis mil anos. Nenhuma delas teria uma cicatriz no
ombro esquerdo por causa de uma queda de uma rocha em Wyoming, aos vinte anos. E claro que nenhuma delas teria casado contigo, o que só abona a seu favor.
Olhou para trás, por cima do ombro:
- Tê-las-ias assustado de morte. E por todas essas razões, incluindo a de ter feito a asneira de casar contigo, ainda bem que não me tornei nenhuma delas. Pensei
isso, mesmo quando a Suzanne estava a soluçar, abraçada a mim. Ainda bem que sou quem sou.
-Já somos dois a pensar assim.
- Sim, mas não somos lá muito boas pessoas. A Suzanne quer uma dessas duas mulheres: a sua Jessica, a sua Jessie. Mais: quer a sua filha de volta. E eu estou a usar
isso para obrigá-la a ajudar-me a encontrar as respostas de que preciso.
- Ela também precisa delas.
- Espero que ela perceba isso quando as tivermos.
227
Catorze -

Callie trabalhou que nem louca, dez horas por dia naquele calor sufocante, experimentando, escovando, atentando em detalhes. Chafurdou no lamaçal formado por uma
tremenda tempestade e destilou no caldo de Verão entornado em Maryland.
À noite, fez relatórios, delineou hipóteses, estudou e fez esboços de artefactos selados antes de serem enviados para o laboratório em Baltimore. Tinha um quarto
só para ela, com um saco-cama no meio do chão, uma secretária que arranjara numa feira da ladra, um candeeiro do super-homem que conseguira num leilão de caridade,
o seu portátil, a sua pilha de notas e o seu violoncelo.
Tinha tudo aquilo de que precisava.
Não passava muito tempo no andar de baixo, naquilo a que chamavam a zona comum. Callie achava que era um pouco aconchegado demais. Como a maioria da equipa passava
as noites na cidade, ou no sítio das escavações, Rosie tendia a ausentar-se - óbvia e regularmente -, deixando Callie sozinha com Jake.
Era demasiado parecido com brincar às casinhas, demasiado parecido com o que era quando costumavam alugar uma casa ou um quarto num motel, durante um trabalho de
escavação.
Os seus sentimentos por ele estavam muito mais à superfície do que ela queria admitir. E ao mesmo tempo estavam também profundamente enterrados. O facto era, pensou,
que nunca conseguira esquecer Jacob Graystone.
Infelizmente, ele era o amor da sua vida.
O filho da mãe.
Sabia que voltariam a encontrar-se num qualquer trabalho de escavação. Era inevitável. Mas pensou que teria mais tempo para resolver
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as suas questões emocionais em relação a ele, e estava tão certa de que conseguiria lidar com essas emoções! Lidar com Jake.
Mas ele voltara a misturar tudo, e acrescentara o inesperado à mistura. Estava a oferecer-lhe amizade.
O seu tipo de amizade, muito particular, meditou enquanto rabiscava num bloco de notas. Nunca sabia se ele ia irritá-la, beijá-la ou passar-lhe a mão pela cabeça
como se faz a uma criança. Mas o caminho era diferente daquele que tinham percorrido antes.
Talvez fosse por causa de tudo o que lhe acontecera desde que ali chegara, mas pensou onde teriam ela e Jake ido parar se tivessem tentado percorrer alguns caminhos
diferentes, da primeira vez. Se tivessem arranjado tempo para serem amigos, para falarem sobre quem eram, em vez de terem partido do princípio que sabiam quem eram.
Um instante pode mudar uma vida. Sabia isso agora, por experiência própria. E se em vez daquela última explosão, em que se tinham acusado um ao outro de tudo, de
estupidez a infidelidade, em que tinham atirado à cara um do outro a palavra "divórcio" antes de ele sair desarvorado, tivessem segurado as coisas?
Se tivessem passado por aquele momento juntos, teriam lutado pelo seu casamento, ou ter-se-iam afastado dele?
Não havia forma de saber ao certo, mas podia especular, tal como especulava sobre a tribo que construíra o seu povoado ao longo do ribeiro. Como especulava sobre
as voltas que a sua vida poderia ter dado se tivesse crescido com os Cullen.
Se ela e Jake tivessem passado por aquele momento intactos, se tivessem continuado a raspar à superfície e depois a escavar mais fundo, talvez tivessem encontrado
qualquer coisa que valesse a pena guardar.
O casamento, a família, a camaradagem, e sim, até a amizade que ele parecia determinado a conseguir desta vez.
Não confiara nele, admitia agora. Não, no que respeitara a outras mulheres. Ele tinha fama em relação às mulheres. Já ouvira falar em "Jake Vai-a-Todas" antes de
o conhecer.
Não fora nada que usasse contra ele, até ter-se apaixonado. Depois, admitiu, tornara-se uma coisa permanentemente alojada na sua cabeça, uma coisa de que ela não
conseguira libertar-se.
Não acreditara que ele a amava, não tanto como ela o amava a ele. E isso enlouquecera-a.
Porque, pensou ela com um suspiro, se ela o amava mais, isso dava-lhe mais controlo sobre ela. Dava-lhe poder. Por isso pressionara-o,
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determinada a fazê-lo provar que a amava. E sempre que ele não o fazia de forma suficiente, ela pressionava-o mais.
Mas quem poderia censurá-la? O filho da mãe fechara-se em copas e nunca lhe dissera. Nunca de uma forma clara e simples. Nunca dissera as palavras uma única vez.
Graças a Deus que tudo fora culpa dele!
Dado que a conclusão a fez sentir melhor, trabalhou por mais trinta minutos, até o estômago lhe anunciar que da lata de chili Hormel que ela dizimara ao jantar já
não restava nada.
Olhou para o relógio e esgueirou-se escada abaixo para ver o que podia arranjar para a sua habitual ceia da meia-noite.
Não acendeu as luzes. O luar era suficiente para guiá-la, e ela sempre tivera bons instintos quando se tratava de comida.
De pés descalços, encaminhou-se para a cozinha e foi directa ao frigorífico. Quando estendeu a mão para abrir a porta, as luzes acenderam-se.
O coração pulou-lhe na garganta e saltou-lhe da boca num pequeno grito. Callie conseguiu transformá-lo numa maldição.
- Raios te partam, Graystone - disse ela, virando-se para ele.
- O que se passa contigo? Porque fizeste isto?
- Porque andas aqui à socapa, no escuro?
- Não ando à socapa. Estou a movimentar-me sossegadamente, porque tenho consideração pelos outros enquanto procuro comida.
- É. - Olhou para o relógio. - Meia-noite e dez. És uma criatura de hábitos, Dunbrook.
- E depois? - Vendo uma volumosa embalagem de bolachas da Cozinha da Suzanne em cima da bancada, passou pelo frigorífico e agarrou-a.
- Ei, fui eu que comprei isso.
- Manda-me a conta - resmungou ela com a boca cheia. Abriu a porta do frigorífico e tirou um jarro de sumo de laranja.
Ele esperou que ela servisse um copo e o bebesse a seguir à primeira bolacha.
- Mas que combinação horrível! Porque não bebes leite?
- Não gosto.
- Devias aprender a gostar. Dá-me as bolachas. Ela agarrou-se à embalagem, de forma possessiva:
- Eu compro a próxima.
- Dá-me a porcaria de uma bolacha. - Arrancou-lhe a embalagem das mãos.
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Com uma bolacha entre os dentes, tirou o leite do frigorífico e serviu-se de um pequeno copo.
Ele estava vestido apenas com uns boxers pretos. Não que ela fosse referir isso, ou queixar-se. Até uma ex-mulher tinha direito a gozar a vista. Ele tinha um belo
cabedal, pensou ela. Esguio e forte ao mesmo tempo, com algumas cicatrizes interessantes que o impediam de ser demasiado bonito.
E ela sabia que ele tinha aquela cor dourada escura por todo o corpo.
Tempo houvera em que não teria resistido - não conseguiria ter resistido - a atirar-se a ele num momento como aquele, e a afundar os dentes no pedaço que estivesse
mais à mão.
Depois, teriam feito amor na mesa da cozinha, ou no chão, ou, se se sentissem um pouco mais civilizados, ter-se-iam arrastado mutuamente para a cama.
Naquele momento, Callie voltou a agarrar a embalagem das bolachas, comeu mais uma e congratulou-se pelo seu magnífico auto-controlo.
- Anda ver uma coisa - disse-lhe ele, e saiu da cozinha. - Traz as bolachas.
Ela não queria ir com ele, estar perto dele à meia-noite, quando ele estava quase nu e o cheiro dele a fazia estremecer. Mas, agarrando-se ao seu auto-controlo magnífico,
seguiu-o até ao escritório que ele tinha improvisado.
Ele não arranjara uma secretária, mas desencantara um grande espaço de trabalho com uma tábua e dois cavaletes de carpinteiro. Num placard, prendera várias fotografias,
esboços e mapas.
Um olhar instantâneo bastou-lhe para entender o raciocínio dele, a sua organização de dados. Pelo menos no que tocava ao trabalho, ela conhecia a mente dele tão
bem como a dela.
Mas foi o desenho que estava em cima da mesa de trabalho dele, e que ele prendera com uma garrafa de cerveja vazia e um pedaço de quartzo, que lhe chamou a atenção.
Ele pegara na grelha deles, no levantamento que tinham feito do sítio, no mapa, e criara o povoado com papel e lápis de cor.
Não havia estrada, não havia quinta. O campo era mais amplo, as árvores acompanhavam o ribeiro, lançando as suas sombras.
Contornando os limites do cemitério, desenhara um muro baixo, de pedra. Havia cabanas agrupadas, a oeste. Mais rochas e ferramentas para trabalhar a pedra na zona
de fabrico de armas e utensílios.
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Mais além, o campo era verde, coberto por aquilo que podia ter sido uma seara no Verão.
Mas eram as pessoas que davam vida ao desenho. Homens, mulheres, crianças, no seu quotidiano. Uma pequena caçada entre as árvores, um velho sentado à porta de uma
cabana, e uma rapariguinha que lhe oferecia uma pequena tigela. Uma mulher a alimentar um bebé ao peito, os homens na zona de fabrico de utensílios a fazer ferramentas
e armas.
Havia um grupo de crianças sentado no chão, a jogar um jogo com seixos e paus. Uma delas, um rapazinho que parecia ter uns oito anos, tinha a cabeça atirada para
trás e ria, olhando para o céu.
Havia um sentido de ordem e de comunidade. De tribo, notou Callie. E, acima de tudo, da humanidade que Jake conseguia ver numa ponta de lança partida ou num pote
de barro em pedaços.
- Não está mal.
Quando ele não disse nada e se limitou a tirar outra bolacha, ela cedeu:
- Pronto, está fenomenal. É o tipo de coisa que nos lembra porque fazemos isto, e vai ajudar o Leo a marcar pontos quando o mostrar, juntamente com os dados que
reunimos, ao pessoal do dinheiro.
- O que é que te diz?
- Vivemos. Cultivámos e colhemos a nossa comida. Criámos os nossos filhos e cuidámos dos nossos velhos. Enterrámos os nossos mortos e não os esquecemos. Não se esqueçam
de nós.
Ele passou-lhe um dedo pelo braço:
- É por isso que és melhor a falar do que eu.
- Quem me dera desenhar assim.
- Não desenhas mal de todo.
- Não, mas comparada contigo, sou uma porcaria. - Ergueu os olhos. - Odeio isso.
Quando ele lhe tocou no cabelo, ela afastou-se, depois abriu as portas de correr e saiu para o terraço dele.
As árvores estavam prateadas pela lua, e ela ouvia o gorgolejar do ribeiro, o coro das cigarras. O ar estava morno, suave e calmo.
Callie ouviu-o sair para o terraço, atrás de si, e apoiou as mãos no varandim:
- Alguma vez... Quando estás num campo arqueológico, especialmente se estás tão concentrado que é como se estivesses sozinho ali... Sabes?
- Sei.
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- Alguma vez sentes as pessoas cujos vestígios estamos a escavar? Alguma vez as ouves?
- Claro!
Ela riu, e atirou o cabelo para trás.
- Claro. Sinto-me sempre tão privilegiada quando as ouço, e depois, quando passa, sinto-me uma imbecil. Como não gosto da parte do imbecil, nunca disse nada disto
a ninguém.
- Sempre tiveste dificuldade em aceitar o disparate.
- Há tantas expectativas a que corresponder. Os meus pais, os meus professores, a escavação. Por mais que se diga, quando se é mulher no meio disto está-se sempre
em número inferior. As acções de uma mulher são disparatadas numa escavação, e se começa a falar em ouvir murmúrios dos mortos, os tipos despedem-na logo.
- Eu não acho. - Ele voltou a tocar-lhe no cabelo. - Uma coisa que nunca fiz foi despedir-te.
- Não, mas querias levar-me à certa.
- Queria. - Roçou os lábios na nuca dela. - E quero. Mas fiquei impressionado com a tua inteligência. Sempre respeitei o teu trabalho, Cal. Toda a gente respeita.
Sentiu-se reconfortada ao ouvi-lo, porque ele nunca lho dissera antes.
- Talvez, mas para quê arriscar? É melhor ser inteligente, prática e digna de confiança.
- É mais seguro.
- Seja o que for. Tu foste o meu único disparate. E vê no que deu.
- Ainda não acabou de dar. - Passou-lhe as mãos pelos braços, num gesto demorado e possessivo. Pressionou o rosto contra o cabelo dela.
Ela ouviu a respiração dele aproximar-se. Envolvê-la. O corpo dela ficou suspenso, à espera de mais. Fez um esforço para resistir. Seria um erro, sabia que seria
mais um erro.
- Adoro o teu cabelo, especialmente quando o deixas assim, solto. Adoro o toque dele nas minhas mãos, o cheiro que tem quando enterro o rosto nele.
- Não vamos repetir a outra noite. - Segurou-se com tanta força ao varandim que os nós dos dedos ficaram brancos. - Fui eu que comecei e assumo a responsabilidade.
Mas não vai acontecer outra vez.
- Não, não vai. - Ele afastou-lhe o cabelo e passou os lábios pela nuca dela, prosseguindo até ao ouvido. - Desta vez vai ser diferente.
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Uma língua quente de prazer lambeu-lhe a pele até ela cravar os dedos na madeira para impedir-se de agarrá-lo. Sentia os joelhos fraquejarem-lhe e o redemoinho profundo
e líquido na barriga quase a fez gemer:
- Qualquer que seja a abordagem, a placa B encaixa na ranhura A. O riso dele era quente contra o pescoço dela:
- Resume-se tudo a isso, Cal. Alguma vez pensaste que o sexo sempre foi a parte mais fácil para nós? Deixávamo-nos levar por ele, deixávamo-nos levar um pelo outro.
Rápido, forte, quente. Mas sabes o que nunca fizemos?
Ela olhou em frente, tentando não libertar aquele gemido preso dentro dela. Disse a si própria que se virasse e o empurrasse, para afastá-lo de si. Para mandá-lo
embora. Mas, se o fizesse, ele deixaria de tocar-lhe assim. E ela não sentiria o que estava a sentir.
- Santo Deus, tinha saudades de sentir-se assim.
- Acho que não houve nada que não fizéssemos.
- Houve, sim. - Os braços dele rodearam-lhe a cintura. Ela esperou que as mãos lhe procurassem os seios. Não o impediria. Ansiava por aquele primeiro gesto de posse,
por aquele momento de choque antes de saber que iria possuí-lo e ser possuída.
Em vez disso, ele limitou-se a puxá-la para si, e a tocar-lhe com o nariz:
- Nunca nos namorámos um ao outro.
O seu corpo latejava numa dúzia de sítios diferentes e ela sentiu-se começar a derreter contra ele:
- Não somos pessoas românticas.
- Aí é que te enganas. - Roçou a cara no cabelo dela. Quis rebolar naquele cheiro, naquela textura. Quis, mais do que alguma vez imaginara, senti-la render-se-lhe.
- Aí é que me enganei. Nunca te seduzi.
- Nunca tiveste que seduzir-me. Não jogámos jogos um com o outro.
- Tudo o que fizemos foi jogar um com o outro. - Passou-lhe os lábios pelo ombro, e depois voltou à curva do pescoço. E sentiu-a tremer. - Porque não fazemos disto
uma coisa séria?
- Vamos voltar a estragar tudo. - A voz dela adensou-se, surpreendendo-os a ambos. - Não consigo passar por isso outra vez.
- Callie...
A mão dele fechou-se com força sobre a dela, apertando-a.
- Está alguém lá fora - murmurou ela.
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Ela sentiu o corpo dele retesar-se. Ele manteve os lábios junto à orelha dela, como se continuasse a mordiscá-la. - Onde?
- Às duas horas, cerca de quatro metros e meio para trás, escondido entre as árvores. Pensei que fosse só mais uma sombra, mas não é. Está alguém a observar-nos.
Ele não pôs em causa o que ela dizia. Sabia que tinha olhos de gato. Continuando a abraçá-la, inclinou a cabeça para poder perscrutar a escuridão, avaliar o terreno:
- Quero que fiques zangada, me empurres e vás para dentro. Eu vou atrás de ti.
- Eu disse que não íamos fazer isto. Nunca mais. - Ela empurrou-o e virou-se. Embora a voz se aproximasse da fúria, os olhos continuavam calmos e fixos nos dele.
- Vai atrás de uma das alunas que gostam de venerar-te como se fosses Deus. Tens muito por onde escolher!
Deu meia volta e entrou em casa, com passos resolutos.
- Não vais voltar a atirar-me isso à cara! - Seguiu-a tempestuosamente, e bateu a porta de vidro. Deu-lhe um ligeiro empurrão para fazê-la continuar a avançar e,
de caminho, vestiu um par de jeams.
- Certifica-te de que todas as portas estão fechadas à chave - ordenou, e apagou as luzes do seu escritório. - Depois, vai lá para cima e fica lá.
- O tanas!
- Faz o que estou a dizer-te! - Vestiu os jeans às escuras e pegou num par de sapatos. - Vou sair pelas traseiras. Tranca a porta atrás de mim e depois verifica
as outras.
Viu-o agarrar a Louisville Slugger que estava apoiada na parede.
- Por amor de Deus, Jake, o que achas que vais fazer?
- Ouve. Alguém matou o Dolan, a poucos quilómetros daqui. O que não vou fazer é correr riscos. Tranca o raio das portas, Callie. Continuou a movimentar-se no escuro,
tão agilmente como ela. - Se eu não voltar daqui a dez minutos, chama a polícia.
Jake abriu a porta das traseiras e observou a escuridão.
- Tranca a porta - repetiu, saindo em seguida.
Ela ficou a pensar durante cinco segundos, depois voltou a entrar em casa, disparou como um raio em direcção à casa de banho e pegou numa versão de arma muito própria:
uma lata de repelente de insectos.
Saiu pela porta da frente um minuto depois de Jake ter saído pela das traseiras.
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Manteve-se acocorada, à espreita no escuro, observando as sombras, atenta a qualquer murmúrio ou movimento que se distinguisse por entre o canto das cigarras. Só
quando saiu do relvado e se meteu por entre as árvores é que se amaldiçoou por não ter parado para calçar os sapatos, como Jake fizera.
Mas, apesar do terreno pedregoso, não ia voltar atrás para calçá-los.
Teve de avançar mais devagar, mas tinha uma ideia bastante exacta de onde vira aquela figura entre as árvores. Pela direcção que Jake tomara, iriam cercar quem quer
que estivesse a observar a casa. Iriam deixá-lo sem saída, pensou enquanto soltava um som abafado de dor quando voltou a pisar uma pedra.
Um daqueles idiotas - Austin ou Jimmy -, pensou, parando para escutar atentamente. Ou alguém como eles. Do tipo capaz de pintar insultos num carro, com uma lata
de tinta em spray. Provavelmente à espera que a casa ficasse às escuras e em silêncio, para poderem esgueirar-se e estragar mais um carro, ou atirar uma pedra à
janela.
Ouviu o piar de um mocho, algumas notas tristes. Ao longe, um cão ladrava incessantemente. O ribeiro gorgolejava à sua direita, e as incansáveis cigarras cantavam
como se a vida dependesse disso.
E qualquer coisa, maior, deslizou na sombra.
Ela desviou-se de um raio de luar e tirou a tampa da lata de repelente.
Começou a mover-se quando ouviu um movimento súbito à esquerda, em direcção à casa. Quando ela se preparava para dar um salto em frente e segui-lo, ouviu um tiro.
O eco deu lugar ao silêncio: nem ladrar, nem zumbido de insectos, nem mocho triste. Naqueles segundos de imobilidade, o coração de Callie parou.
Voltou a bater, em pânico, aos saltos na garganta de Callie, explodindo quando ela gritou por Jake. Correu, pisando pedras e raízes. O seu medo e a sua concentração
no que podia ter acontecido eram tão grandes, que só ouviu o movimento atrás de si quando era demasiado tarde.
Quando começou a debater-se, a defender-se, a atacar, um golpe atirou-lhe a cabeça contra o tronco de uma árvore.
Sentiu um rasgo de dor, o sabor a sangue, e depois mergulhou na escuridão.
Mais aterrorizado por ouvir Callie gritar o seu nome do que pelo tiro, Jake mudou de direcção. Correu na direcção da voz de Callie,
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mergulhando sob os ramos baixos, tropeçando nos caules espinhosos que cobriam os bosques.
Quando a viu, enrolada, iluminada pelo luar, sentiu as pernas fraquejarem-lhe.
Deixou-se cair de joelhos e tinha as mãos a tremer quando lhe procurou a pulsação na garganta.
- Callie. Oh, meu Deus! - Pegou-lhe ao colo e afastou-lhe o cabelo. Tinha sangue na cara, que saía de um golpe feio na testa. Mas o pulso era forte e as mãos de
Jake não encontraram outro ferimento.
- Está tudo bem, querida. Estás bem. - Embalou-a, segurando-a contra si até conseguir combater aquele momento de puro terror.
- Vamos lá, acorda. Raios! Quem devia dar-te um murro era eu!
Pressionou os lábios contra os dela e, mais firme agora, levantou-a. Enquanto a transportava para casa, o pé bateu na lata de repelente de insectos.
Nada pôde fazer senão cerrar os dentes e continuar a andar.
Ela começou a mexer-se quando chegaram aos degraus. Ele olhou para ela e viu as pálpebras começarem a mexer.
- É melhor continuares desmaiada até eu me acalmar, Dunbrook. Ela ouviu a voz dele, mas as palavras não passaram de uma massa nebulosa na sua mente. Mexeu-se e soltou
um gemido quando a dor a percorreu do cimo da cabeça à ponta dos pés.
- Dói - murmurou.
- É, aposto que sim. - Teve de mudá-la de posição, para conseguir abrir a porta. Como estava a começar a perder a cabeça devido à preocupação, não sentiu qualquer
pena quando ela voltou a gemer por causa do movimento.
- O que aconteceu?
- Presumo que tenhas ido de encontro a uma árvore e batido com a cabeça. Sem dúvida que quem ficou a perder foi a árvore.
- Ai! - Levantou a mão e tocou no ponto de onde vinha a dor, e depois voltou a sentir a visão nublar-se-lhe quando viu os dedos molhados e vermelhos.
- Não te atrevas a desmaiar outra vez! Não faças isso! - Levou-a para a cozinha e sentou-a na bancada. - Fica aí sentada e respira lentamente. Vou buscar qualquer
coisa para tratar essa tua cabeça de granito.
Deixou-lhe a cabeça encostada a um armário enquanto abria outro, onde guardavam os artigos de primeiros socorros.
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- Não fui contra uma árvore. - Mantinha os olhos fechados, tentando ignorar o latejar da sua cabeça. - Alguém veio por detrás de mim e me atirou contra ela, mesmo
depois de eu...
Interrompeu-se e endireitou-se.
- O tiro. Oh, meu Deus, Jake. Estás ferido? Estás...
- Não. - Segurou-lhe as mãos antes de ela conseguir saltar da bancada. - Está quieta. Pareço-te ferido?
- Ouvi um tiro.
- Sim, eu também. E vi o que me pareceu distintamente uma bala atingir uma árvore, metro e meio à minha esquerda. - Ele molhou um pano. - Está quieta, agora.
- Alguém disparou contra ti.
- Não acho. - Era um golpe feio, pensou ele quando começou a limpá-lo, mais suavemente do que ela merecia. - Acho que dispararam contra a árvore, a não ser que fossem
cegos como um morcego e tivessem uma pontaria da treta. Quem disparou, não estava a mais de três metros de mim quando o fez.
Ela cravou-lhe os dedos no braço:
- Alguém disparou contra ti.
- Muito perto. Disse-te que trancasses as portas e ficasses em casa.
- Não mandas em mim. Estás ferido? Dói-te alguma coisa?
- Não, não me dói nada. Mas prometo-te que a ti vai doer, quando eu puser este anti-séptico na tua ferida. Estás pronta?
Ela respirou fundo algumas vezes. Acenou afirmativamente com a cabeça. A dor cortou-lhe a respiração.
- Ai, ai, foda-se, foda-se, foda-se!
- Está quase. Continua a dizer palavrões.
E ela continuou, furiosamente, até ele soprar para aliviar a dor:
- Muito bem, o pior já passou. Agora, olha para mim. Como está a tua visão? - perguntou-lhe ele.
- Bem. Quero um analgésico.
- Ainda não. Estiveste desmaiada. Vamos lá à rotina. Tonturas?
- Não.
- Náusea?
- Só quando me lembro que deixei aquele idiota apanhar-me. Estou bem. Tenho só uma dor de cabeça do tamanho do mundo. - Estendeu o braço. - Tens uns arranhões na
cara.
- Caules com espinhos.
- Podias usar aquele belo anti-séptico.
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- Acho que não. - Voltou a pô-lo no armário antes que ela começasse com ideias. - Não podia ser só um tipo. Estavas a uns bons metros de mim quando ele atingiu a
árvore.
- E ele veio por detrás de mim - concordou ela. - Ouvi o tiro e comecei a correr.
- Gritaste.
- Não gritei nada! Chamei-te, é de compreender que tenha ficado preocupada quando pensei que te tinham dado um tiro.
- Gritaste o meu nome. - Colocou-se entre as pernas dela.
- Sempre gostei disso.
- Chamei-te - corrigiu ela, mas os seus lábios contorceram-se.
- E larguei a correr. Mas não fui muito longe. Acho que passaram dez, quinze segundos entre o tiro e o momento em que me apaguei. Por isso, tinham de ser apenas
dois. Os nossos velhos amigos Austin e Jimmy?
- Se eram eles, superaram-se a si próprios.
- Quero dar cabo deles.
Ele tocou nos lábios, muito ao de leve, na pele ilesa sob o arranhão:
- Estou de acordo.
- Acho que devemos chamar a polícia.
- Parece que sim.
Mas não se mexeram, continuaram a olhar um para o outro.
- Fiquei com medo - disse Callie, passado um momento.
- Eu também.
Ela estendeu os braços e puxou-o para si. Engraçado, pensou, sentia-se muito mais a tremer agora, que estava agarrada a ele, do que antes. Mas não o largou.
- Se alguém tiver que te dar um tiro, vou ser eu.
- É justo. E, obviamente, sou o único com direito a apagar-te
com um murro.
Sim, pensou ela enquanto mantinha o rosto colado ao dele. O filho da mãe irritante era o amor da sua vida. Para azar dela.
- Ainda bem que estamos de acordo. Agora, vamos telefonar ao xerife.
- É só um minuto.
- Sabes, aquilo que estavas a dizer antes de termos sido tão deselegantemente interrompidos? Que nunca tivemos tempo para nos namorarmos um ao outro? Que nunca me
seduziste? Eu também nunca te seduzi.
- Callie, tu seduziste-me assim que te pus os olhos em cima.
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Ela soltou uma meia gargalhada, quase tão chocada pela declaração como por tudo o que fora dito antes:
- Eu não.
- Nunca acreditaste nessa sedução. - Afastou-se um pouco, tocou-lhe com os lábios numa face e depois na outra, num gesto que a fez olhar para ele com surpresa e,
ao mesmo tempo, com desconfiança. - Nunca consegui perceber porquê. Vou telefonar ao xerife e depois vou arranjar-te qualquer coisa para a dor de cabeça.
- Eu vou. - Fez menção de pular da bancada, mas ele agarrou-lhe o braço. Havia frustração no rosto dele, agora, algo que ela raramente vira, excepto quando ele estava
tomado pela fúria. - Porque não me deixas tratar de ti? Nem agora, quando estás ferida.
Desconcertada, fez um gesto na direcção do armário:
- Está... está mesmo aqui.
- Está bem, óptimo! - Largou-a e virou-lhe as costas. - Vai tu buscar.
Na intenção de não dar importância ao assunto, começou a descer da bancada. Depois parou. Não estava certa dos passos desta nova dança que pareciam ter começado
a dançar, mas pelo menos podia tentar encontrar o ritmo.
- Ouve, talvez possas ajudar-me a descer. Se bato em alguma coisa, acho que a minha cabeça cai do pescoço. E acho que também magoei um bocado os pés.
Sem dizer nada, ele virou-se e levantou-lhe os pés, um de cada vez. Praguejou entredentes e depois agarrou-a pela cintura e pousou-a no chão. Suavemente, notou ela.
Fora gentil várias vezes, nessa noite. Mais naquela noite do que desde que se tinham conhecido.
Jake tinha a cara arranhada, o cabelo despenteado e os olhos aborrecidos. Tudo dentro dela se suavizou.
- Trouxeste-me ao colo até aqui, não foi?
- A alternativa era deixar-te lá fora. - Ele esticou o braço por cima da cabeça dela e tirou do armário o frasco dos comprimidos.
- Toma.
- Obrigada. Sabes uma coisa? Acho que preciso de sentar-me. Foi o que fez, ali mesmo, no chão, tanto por necessidade como para ver como ele reagiria.
E viu aquele laivo de preocupação atravessar-lhe o rosto, antes de ele conseguir escondê-lo. Abriu a torneira, encheu um copo de água e depois acocorou-se para lho
dar.
- Estás tonta?
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- Não. Só dói como o inferno. Vou ficar aqui, tomar os medicamentos e esperar pela polícia.
- Vou telefonar e depois vamos pôr gelo nessa cabeça. Ver se melhora.
- Está bem. - Obediente, tomou os comprimidos enquanto ele foi telefonar. Não tinha a certeza do que significava esta nova faceta de Jacob Graystone. Mas era inquestionavelmente
interessante.
242
Quinze

Callie não conseguiu mais do que três horas de sono intermitente. O alto que tinha na testa causava-lhe uma dor surda e constante que tornava impossível a sua concentração
nos papéis.
Dormir a sesta era uma capacidade que ela não tinha desenvolvido e que estava apenas um furo abaixo de uma outra, ainda menos eficaz: não fazer nada.
Durante vinte minutos concedeu a si própria a oportunidade de experimentar várias formas de disfarçar os arranhões e as nódoas negras. Escovar o cabelo para baixo
fê-la parecer uma cópia barata da Verónica Lake. Atou um lenço colorido à cabeça, o que resultou num cruzamento entre uma hippie extemporânea e uma pirata.
Nada daquilo correspondia exactamente ao efeito que ela procurava.
Embora soubesse que viria provavelmente a arrepender-se, cortou um pouco de cabelo para criar uma espécie de franja.
Iam fazê-la dar em doida quando crescessem, mas por agora iam ao encontro das exigências básicas da vaidade. Com os seus óculos de sol e os seus chapéus, mal se
notava a explosão de cor e os esfolões na sua pele.
Se ia sair - e ia -, não queria que o ovo de ganso que tinha na testa fosse o foco das atenções.
Tinha adiado a sua ida à Treasured Pages, como Doug pedira, e estava na altura de deixar de procrastinar. Compreendia porque ele lhe pedira que passasse por lá,
e admitia que ela própria sentia curiosidade em conhecer mais um membro da família Cullen.
Mas o que havia de dizer ao velhote?, perguntou a si própria enquanto procurava lugar para estacionar na Main. Então, avô, como vai?
243
Até agora, o tempo que estava a passar em Woodsboro era mais do que interessante. Velhos segredos de família, grafitti insultuosos por todo o seu Rover - razão pela
qual estava a conduzir o enorme Jeep Cherokee de Rosie -, homicídio, mistério e, por último, tiros e concussões.
Era suficiente para enviar uma pessoa de volta à vida académica.
E ali estava, pensou, forçada a estacionar um carro que não estava habituada a conduzir, numa rua estreita que, de repente e para seu aborrecimento, se enchera de
trânsito.
Não via que as coisas pudessem piorar muito mais. Tentou meter o carro em alguns espaços, tirou-o, para a frente e para trás, manobrando o volante, amaldiçoando-se
e à predilecção da cidade por passeios altos, até que, transpirada, frustrada e ligeiramente embaraçada encaixou o Jeep entre uma pickup e uma carrinha.
Saiu, notou que agora que completara a tarefa o trânsito se reduzia a três carros a passo de caracol e a um Anabaptista com uma carroça e um cavalo.
Nada de novo.
Mas a resmunguice mental evitou que ficasse nervosa enquanto ia caminhando até à livraria.
Estava uma mulher ao balcão quando Callie entrou, e um homem atrás dele, com cabelo grisalho e despenteado e uma camisa branca com vincos tão marcados que pareciam
capazes de cortar pão. Callie viu o choque súbito passar-lhe pelo rosto, ouviu-o parar de falar e deixar uma frase a meio, como se alguém lhe tivesse apertado a
garganta.
A mulher virou-se e olhou para Callie, franzindo o sobrolho:
- Sr. Grogan, sente-se bem?
- Sim, sim, estou bem. Desculpe, Terri, de repente a minha cabeça deixou de estar aqui. Já vou, é só um minuto - disse ele a Callie.
- Tudo bem. Vou dando uma vista de olhos.
Viu os títulos dos livros, encontrou alguns que já lera, outros que achou que ninguém se daria ao trabalho de ler, e ouviu a conversa que decorria atrás de si.
- São muito bons, Terri. Sabe que o Doug ou eu teríamos ido lá avaliá-los.
- Pensei em ser eu a trazê-los. A Tia Francie adorava os livros, mas eu não tenho onde pô-los, agora que ela se foi. E se valem alguma coisa, o dinheiro faz-me jeito.
Voltou a olhar para Callie, por cima do ombro. - O Pete não tem tido muito trabalho. Este aqui vale alguma coisa, não vale? A capa é de couro e tudo.
244
- É aquilo a que chamamos meio-amador - explicou, tentando não seguir todos os movimentos de Callie. - Veja, tem cabedal na lombada e depois um pouco na capa e na
contracapa. O resto da encadernação é de pano.
- Ah.
O desapontamento no rosto dela fê-lo fazer-lhe uma festa na mão.
- Tem aqui uns belos livros, Terri. A Francie cuidou bem deles. E este As Vinhas da Ira é uma primeira edição.
- Pensei que esse não valesse muito. Tem a capa rasgada.
- A capa de papel está um bocado gasta, tem um rasgão ou dois, mas continua em muito boas condições. Porque não mos deixa cá durante um dia ou dois, e eu depois
telefono-lhe a dar-lhe um preço?
- Está bem. Ficava-lhe muito agradecida, Sr. Grogan. Quanto mais depressa puder dizer-me, melhor. Diga ao Doug que a minha Nadine perguntou por ele.
- Direi.
- É bom tê-lo de volta à cidade. Talvez fique, desta vez.
- Talvez. - Desejando que ela se fosse embora, saiu de trás do balcão e preparou-se para acompanhá-la à porta, mas ela afastou-se dele e aproximou-se de Callie.
- Você não é do grupo daqueles arqueólogos? Calie virou-se:
- Sou, sim.
- A sua cara não me é estranha. -Já estou cá há umas semanas.
Olhou para o ferimento sob a franja, mas não encontrou uma maneira delicada de perguntar o que acontecera.
- Foi o meu cunhado ter desenterrado aquele crânio que começou isto tudo.
- Não me diga? Deve ter sido um momento cheio de emoção, para ele.
- Custou-lhe muitos dias de trabalho. Ao meu marido, também.
- Sim. É difícil. Lamento.
Terri voltou a franzir o sobrolho e esperou por uma discussão ou por um debate. Depois, deu um pequeno passo.
- Há pessoas daqui que pensam que o lugar está assombrado porque andam a mexer nas sepulturas.
- Há muita gente a ver demasiados filmes antigos no Chiller Theater. Os lábios de Terri contorceram-se antes de ela conseguir controlá-los.
245
- Seja lá como for, o Ron Dolan está morto. E isso é uma coisa terrível.
- Pois é. Abalou-nos a todos. Nunca tinha conhecido alguém que viesse a ser assassinado. E a senhora?
Havia uma simpatia e uma abertura à coscuvilhice por parte de Callie que acalmou Terri.
- Não posso dizer que sim. Só o meu neto, que vai ao infantário três dias por semana com o rapaz Campbell, e o pai dele levou um tiro numa loja de conveniência,
durante um assalto em Baltimore. Pobrezinho. Faz-nos parar para pensar, não é? Nunca se sabe o que nos pode acontecer.
Não sabia, pensou Callie com um sentimento de surpresa. Falara com Lana sobre pormenores íntimos da sua vida, mas não sabia como ela ficara viúva.
- Pois não, nunca se sabe.
- Bem, tenho de ir andando. Talvez leve o nosso Petey para ver o lugar que vocês andam a escavar. Alguns miúdos já lá foram.
- Sim, vá até lá. Ficamos sempre satisfeitos por mostrarmos o sítio das escavações e por explicarmos o que estamos a fazer e como.
- A sua cara não me é mesmo estranha - repetiu Terri. - Seja como for, foi agradável falar consigo. Adeus, Sr. Grogan. Fico à espera do seu telefonema.
- Daqui a um dia ou dois, Terri. Recomendações ao Pete. Roger esperou até a porta se fechar.
- Saíste-te muito bem com ela - disse.
- Manter relações com os habitantes locais faz parte do trabalho. E então? - Fez um gesto, apontando para a caixa de cartão e para os livros espalhados pelo balcão.
- Tem aí alguma coisa espectacular?
- Este Steinbeck vai fazê-la feliz. Vou precisar de um tempo para ver o resto. Se achares bem, vou pôr o letreiro "Fechado" na porta.
- Claro.
Meteu as mãos nos bolsos de trás enquanto Roger se encaminhava para a porta, virava o letreiro e fechava a fechadura.
- Ah, o Doug pediu-me para eu aparecer por cá. Tenho andado muito ocupada.
- Isto é estranho para ti.
- Acho que sim.
- Queres ir até lá atrás? Tomar um café?
- Claro. Obrigado.
246
Não tocou nela nem esboçou qualquer gesto para lhe pegar na mão. Não ficou a olhar para ela nem se comportou desajeitadamente. E o à vontade dele descontraiu Callie
enquanto se dirigiam para as traseiras da loja.
- É um sítio agradável. Confortável. Sempre pensei nos bibliófilos como fanáticos bafientos que metiam os livros em estantes de vidro fechadas a sete chaves.
- E eu sempre pensei nos arqueólogos como jovens musculosos e bem constituídos, que usam panamás e exploram pirâmides.
- Quem diz que eu não tenho um panamá? - retorquiu ela, fazendo-o rir.
- Pensei em ir até à escavação. Para ver o teu trabalho. Para te ver. Mas não quis... forçar. São muitas coisas, para lidares com todas elas ao mesmo tempo. Pensei
que um avô extra podia esperar.
- O Doug disse que eu ia gostar de si. Acho que ele tem razão. Ele serviu o café e trouxe-o até à mesa pequena.
- Leite? Açúcar?
- Para quê acrescentar o que quer que seja a uma coisa boa?
- Como feriste a cabeça? Puxou as madeixas da franja:
- Acho que afinal estas coisas não vão servir para o que era suposto. - Começou por dizer-lhe umas coisas por alto, em tom brincalhão, e deu por si a contar-lhe
a verdade.
- Meu Deus, isso é uma loucura! O que disse o xerife?
- O Hewitt? - Encolheu os ombros. - O que os polícias costumam dizer. Que vão investigar. Vai falar com uns tipos que me importunaram, a mim e ao Jake, quando aqui
chegámos, e decoraram o meu carro com umas obscenidades criativas e tinta vermelha em spray.
- E quem são eles?
- Uns imbecis chamados Austin e Jimmy. Um grande e outro pequeno. Uma versão de segunda do Bucha e Estica.
- Austin Seldon e Jimmy Dukes? - Abanou a cabeça, e fez assentar os óculos no nariz. - Não, não consigo imaginar. Não são as lâmpadas mais brilhantes que se pode
ter num candelabro, mas nenhum deles mataria um homem ou trataria mal uma mulher. Conheço-os desde que nasceram.
- Querem-nos fora do projecto. E não são os únicos.
- O empreendimento imobiliário já está fora de causa. A Kathy Dolan contactou-me ontem à noite. A viúva do Ron. Quer vender a terra à Sociedade de Preservação. Vai
ser difícil chegarmos ao preço
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que está a ser pedido, mas vamos lá chegar. Não vai haver desenvolvimento imobiliário em Antietam Creek.
- Isso também não vai tornar populares os partidários da preservação.
- Para alguns, não. - Tinha um sorriso calmo, complacente e muito atraente. - Mas vai tornar-nos populares junto de outros.
- É mera especulação, mas alguém pode ter morto o Dolan para a mulher ser pressionada a vender?
- Mais uma vez, não estou a imaginar. Por outro lado, nem quero imaginar. Conheço esta cidade, as pessoas. Não é assim que resolvemos as coisas, por aqui.
Levantou-se para ir buscar mais café. Na loja, o telefone tocou, mas ele deixou-o tocar.
- Havia muita gente que tinha o Ron em grande conta, e muita gente que não tinha. Mas não conheço ninguém que lhe abrisse a cabeça e o deixasse em Simon's Hole.
- Eu podia dizer o mesmo sobre a minha equipa. Não conheço alguns deles tão bem como conhece os seus vizinhos, mas os arqueólogos não costumam ter o hábito de livrar-se
de alguém por causa de desacordos destes.
- Adoras o teu trabalho.
- Sim. Tudo o que tem a ver com ele.
- Quando é assim, todos os dias são uma aventura.
- Há uns mais aventureiros do que outros. E eu devia voltar ao trabalho. -- Mas não se levantou. - Posso fazer-lhe uma pergunta, antes? De carácter pessoal.
- Claro que podes.
- Suzanne e Jay. O que aconteceu entre eles?
Ele soltou um longo suspiro e recostou-se na cadeira.
- Penso muitas vezes que a tragédia arrasta a tragédia. Ficámos loucos quando te levaram. Aterrorizados, de uma forma que não consigo descrever completamente.
Tirou os óculos, como se tivessem ficado subitamente demasiado pesados para o seu rosto.
- Quem levaria daquela forma uma criança inocente? O que te fariam? Como podia isto ter acontecido? Durante semanas, os nossos pensamentos foram todos para ti, as
nossas preocupações, as nossas orações. Houve algumas pistas, mas não levaram a lado nenhum. A verdade era que tinhas desaparecido sem deixar rasto.
Fez uma pausa, por um momento, e fechou as mãos sobre a mesa.
248
- Éramos pessoas normais, com vidas normais. Não é suposto acontecer este tipo de coisa a pessoas normais com vidas normais. Mas aconteceu, e mudou-nos. Mudou a
Suzanne e o Jay.
- Como? Quero dizer, para além do óbvio.
- Encontrar-te passou a ser o único objectivo da Suzanne. Não largava a polícia, foi à televisão, a jornais, a revistas. Sempre tinha sido uma rapariga feliz. Não
brilhantemente feliz, se me entendes. Apenas satisfeita, contente com a vida que estava a construir. Não tinha ambições extraordinárias. Queria casar com o Jay,
construir uma família, um lar. Quisera isso, e só isso, durante a maior parte da sua vida.
- As ambições comuns são a base da sociedade. Sem casa, não temos estrutura sobre a qual construir os níveis mais complexos.
- Uma forma interessante de ver as coisas. A estrutura era, sem dúvida, o objectivo. Para ambos. O Jay era, e é, um bom homem. Sólido, de confiança. Um bom professor,
que se preocupa com o seu trabalho e com os seus alunos. Apaixonou-se pela Suzanne. Acho que tinham os dois seis anos.
- Que ternura! - disse Callie. - Não me tinha apercebido de que eles cresceram juntos.
- Suze e Jay. As pessoas diziam os nomes deles como se fossem uma só palavra. - E doía-lhe que já não fossem uma só. - Nenhum deles namorou a sério com mais ninguém.
Ainda mais do que ela, o Jay preferia uma vida calma e pacata, que foi o que tiveram. Casaram, tiveram o Doug, o Jay era professor, a Suzanne tratava da casa. Tiveram
a filha. Um quadro perfeito. O jovem casal, dois filhos, uma casinha na sua terra natal.
- E depois tudo lhes fugiu debaixo dos pés.
- Sim.
Nunca esqueceria a voz dela quando ela lhe telefonou. Papá, papá, alguém roubou a Jessie. Alguém roubou o meu bebé.
- A pressão quebrou qualquer coisa dentro dela, e quebrou qualquer coisa entre ela e o Jay, que nenhum deles soube consertar. Claro que brigaram de vez em quando,
durante o namoro.
Voltou a pôr os óculos.
- Ainda me lembro de ela regressar a casa, furiosa, depois de ter saído com ele, jurando que não voltava a falar com o Jay Cullen, nunca mais. E no dia seguinte
lá estava ela à porta, com aquele sorriso de carneiro na cara.
- Mas isto não foi uma briga.
249
- Foi uma transformação. Fez o Jay meter-se consigo próprio, enquanto levou a Suzanne a sair de si própria. De repente, esta mulher jovem era uma activista, agora
era uma mulher com uma missão. E quando não estava a trabalhar activamente para te encontrar, participando em grupos de apoio ou em seminários, ficava terrivelmente
deprimida. O Jay não conseguiu corresponder-lhe, não da forma como ela precisava que ele correspondesse. Ele não conseguiu alimentá-la, não da forma como ela precisava.
- Deve ter sido difícil para o Doug.
- Foi. Apanhado entre eles os dois. Criavam a ilusão de uma vida normal, durante algum tempo, mas nunca durava muito. Tentaram.
Nessa altura, ele tocou-lhe. Não resistiu. Pousou os dedos, ao de leve, nas costas da mão dela.
- São ambos pessoas decentes e carinhosas, que adoravam o filho.
- Sim, compreendo isso. - E como compreendia, virou a mão e fechou os seus dedos sobre os de Roger. - Mas não podiam reconstruir a vida normal que tinham, faltando
uma parte.
- Não. - Soltou um suspiro. - Alguma coisa fazia disparar a Suzanne, uma nova pista, uma notícia sobre outra criança desaparecida, e recomeçava tudo. Nos últimos
anos viviam como estranhos, e só se mantiveram juntos por causa do Doug. Não sei o que os fez atravessar essa linha e passar ao divórcio. Nunca perguntei.
- Ele ainda a ama. Roger comprimiu os lábios.
- Sim, eu sei. E tu, como sabes?
- Foi uma coisa que ele disse quando ela não estava na sala. A maneira como ele a disse. Lamento muito por eles, Sr. Grogan. Mas não sei o que hei-de fazer.
- Não há nada que tu ou quem quer que seja possam fazer. Não conheço as pessoas que te criaram, mas também devem ser pessoas decentes e carinhosas.
- Sim, são.
- Estou grato por tudo o que te deram. - Pigarreou. - Mas a Suzanne e o Jay também te deram qualquer coisa quando nasceste. Se conseguires aceitar isso, se conseguires
dar valor a isso, pode ser suficiente.
Ela olhou para os dedos de ambos, entrelaçados.
- Ainda bem que vim aqui hoje.
- Espero que voltes. Estou cá a pensar... Talvez fiquemos mais confortáveis um com o outro se me tratares por Roger.
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- Está bem. - Levantou-se. - Então, Roger, vai ter de voltar a abrir a livraria agora?
- Uma das regalias de termos o nosso próprio negócio é podermos fazer o que nos dá na gana, de vez em quando.
- Se lhe apetecer, pode vir até ao sítio arqueológico comigo. Faço-lhe uma visita guiada.
- Há muito tempo que não tinha um convite tão bom.
- Ei, Callie! - Mal estacionara quando Bill McDowell veio a correr ter com ela, passando os dedos apressados pelo cabelo em desalinho, para alisá-lo. - Por onde
andaste?
- Tive umas coisas para fazer. - Saiu do carro. - Roger Grogan, Bill McDowell. O Bill é um dos nossos estudantes.
- Sim, olá - disse Bill, antes de voltar a concentrar-se em Callie.
- Esperava poder trabalhar contigo hoje. Uau! O que aconteceu à tua cara?
Ela não rosnou. Seria como rosnar a um cachorro grande e sujo, que não conseguia deixar de andar atrás dela.
- Fui contra uma coisa.
- Bolas! Dói? Queres sentar-te um bocado à sombra? Posso ir buscar-te qualquer coisa para beberes. - Abriu-lhe o portão para ela passar.
- Não, obrigado. Vou mostrar isto ao Roger, depois... - Interrompeu-se quando viu Jake cara a cara com o grandalhão do bar. O mesmo que dera uma pintura nova ao
seu carro. - Que diabo se passa ali?
- Ah, aquele tipo? Andava à tua procura. O Jake foi pedir-lhe satisfações. - Bill mal olhou para Jake, o seu rival imaginário pelo afecto de Callie. - Já tínhamos
aqui confusão que chegasse sem ser preciso o Jake vir acrescentar mais.
- Se o Jake tivesse armado alguma confusão, aquele gorila idiota estaria de pernas para o ar. Desculpe, Roger, preciso de ir tratar disto. Bill, porque não mostras
ao Sr. Grogan a zona de fabrico de instrumentos?
- Claro, claro, se é isso que queres, mas...
- Posso falar com o Austin - propôs Roger. - Costumava dar-lhe rebuçados de hortelã-pimenta quando ele era miúdo.
- Eu consigo tratar disto. Não demoro. - Atravessou o campo com passadas largas, abanando rapidamente a cabeça quando alguém pronunciava o seu nome. Mas Dory apareceu
e puxou-a pela manga.
251
- Achas que devíamos chamar a polícia? - sussurrou ela.
- Achas que devíamos chamar o xerife? Se eles se pegam...
- Então, o problema é deles. Vai ajudar a Frannie. Não te metas.
- Mas não achas... O que aconteceu à tua cara?
- Sai-me do caminho.
Callie estava prestes a empurrá-la quando chegou junto de Jake e de Austin.
- Soube que andava à minha procura - começou por dizer.
- Tenho um cheque para si. Só vim trazer-lhe o cheque. Para pagar os estragos.
Em silêncio, Callie estendeu a mão. Depois de ele ter tirado o cheque do bolso e lho ter posto na palma da mão, ela desdobrou-o e leu a quantia. Correspondia ao
orçamento total que dera a Hewitt.
- Muito bem. Agora desapareça para bem longe.
- Tenho uma coisa a dizer. - Sacudiu os ombros. - Vou dizer-lhe exactamente o que lhe disse a ele. - Apontou o polegar na direcção de Jake. - E o que disse ao Jeff,
o Xerife Hewitt. A noite passada estive em casa. Na cama com a minha mulher, por volta das onze. Nem vi as últimas notícias no Leno, porque tinha um trabalho esta
manhã. Um trabalho a que estou a faltar para estar aqui a dizer-vos isto. Talvez eu e o Jimmy tivéssemos passado das marcas com o seu jipe...
- Talvez? - A voz de Jake soou demasiado calma. Os músculos do maxilar de Austin estremeceram.
- Passámos das marcas e estamos a pagar por isso. Mas não ando por aí a bater em mulheres, nem a disparar contra as pessoas, por amor de Deus! E o Jimmy também não.
O Jeff chega ao sítio onde andamos a trabalhar hoje, diz-nos que temos de contar-lhe onde estávamos ontem à noite, por volta da meia-noite, e o que estávamos a fazer,
e pergunta se alguém pode confirmar se estávamos a dizer a verdade.
Foi a mortificação no rosto dele que fez Callie acalmar-se.
- Se não tivesse vandalizado o meu carro, o Hewitt não o teria envergonhado no seu trabalho. Acho que estamos quites, porque é muito embaraçoso andar por aí a conduzir
com "lésbica assanhada" no capot.
Austin corou até o rosto parecer uma lua manchada de sangue.
- Peço desculpas por isso. Por mim e pelo Jimmy.
- Tirou a palha mais curta?
O ligeiro movimento dos lábios de Austin mostrou que compreendera onde Jake queria chegar.
252
- Foi moeda ao ar. Não sei o que aconteceu ontem à noite, mas estou a dizer-vos que nunca levantei a mão a uma mulher em toda a minha vida. Nem uma única vez - disse
ele, com um olhar rápido à testa de Callie. - E também nunca disparei contra ninguém. Não vos quero aqui e digo-vos isso na cara, com todas as letras. O Ron Dolan
era um bom homem e era meu amigo. O que lhe aconteceu... Não está certo. Não está certo.
- Nisso estamos de acordo. - Callie meteu o cheque no bolso.
- Está cá a parecer-me que o que as pessoas andam a dizer é verdade. Sobre este sítio ter uma maldição. - Lançou um olhar inquieto na direcção do lago. - Seja como
for, não queria trabalhar aqui, agora.
- Então, pode deixar o trabalho por nossa conta. O que passou, passou - disse ela, estendendo-lhe a mão.
Por momentos, Austin ficou com um ar confuso, e depois apertou-lha delicadamente.
- Um homem que bate numa mulher dessa maneira - disse ele com um gesto na direcção da cabeça dela - merece que lhe partam a mão por causa disso.
- Mais uma vez, estamos de acordo - disse Jake.
- Bem... é tudo o que tenho a dizer. - Depois de novo aceno de cabeça, foi-se embora, atravessando pesadamente o campo.
- Bem, foi agradável. - Callie deu uma pequena palmada no bolso. - É óbvio que aquele idiota banhudo não disparou contra ti. Porque estavas pronto a desafiá-lo para
uns rounds?
- Chegou aqui armado em galo e senti-me obrigado a fazê-lo baixar a crista. Disse que não tinha pevas a dizer-me, e por aí adiante, o que, naturalmente, significou
que tivemos de insultar-nos mutuamente durante um bocado. O que podia ter sido uma cena bem divertida ficou estragada quando apareceste e ele viu a tua cara.
Jake estendeu a mão e tocou-lhe ao de leve na franja.
- Espero que isto seja uma nova imagem e não uma tentativa de disfarçar esse penso.
- Cala-te!
- É que como imagem não está mal, mas é um péssimo disfarce.
- Inclinou-se e tocou-lhe na ferida ao de leve, com os lábios. - Como te sentes hoje?
- Como se me tivessem batido com uma árvore.
- Aposto. Quem é o velhote?
Ela olhou para trás e viu Roger acocorado, entre Bill e Matt.
253
- Roger Grogan. O pai da Suzanne. Passei pela loja para falar com ele, esta manhã. Ele é... é um espectáculo. Vou mostrar-lhe as coisas por aqui.
- Apresenta-me. - Pegou-lhe na mão. - Vamos mostrar-lhe as coisas por aqui. - Apertou-lhe mais a mão quando ela tentou soltar-se. - Sê simpática. O Bill fica doido
quando te toco.
- Deixa o miúdo em paz. Não faz mal a ninguém.
- Quer morder-te os dedos dos pés, prostrado em adoração. Deliberadamente, levou a mão dela aos lábios. - Se ele tivesse uma arma, a esta hora eu estava a sangrar
de múltiplos ferimentos.
- És um filho da mãe terrível.
Ele riu e soltou-lhe a mão, apenas para lhe passar o braço sobre os ombros.
- É disso que gostas em mim, querida.
Na manhã seguinte, Callie estava a preparar as suas ferramentas, revendo mentalmente o sector que ia escavar durante o dia, quando Lana apareceu.
Meio divertida, Callie viu-a passar pelo portão, olhar para os seus belos saltos, revirar os olhos e começar a atravessar o campo.
- Não é um bocado cedo para uma advogada andar por aqui? perguntou Callie.
- Não, quando a advogada tem um filho para levar ao infantário e um cão para levar ao veterinário. - Tirou os óculos de sol quando se aproximou, e deu um passo atrás
ao ver a testa de Callie. - Ai!
- Bem pode dizê-lo outra vez.
- Gostaria de salientar que ouvir as aventuras nocturnas da minha cliente contadas em segunda e em terceira mão é um pouco embaraçoso. Devia ter-me telefonado.
- Não sei quem devo processar.
- A polícia não tem suspeitos?
- Tiraram uma bala do tronco de um choupo. Se encontrarem a arma que a disparou, acho que passam a ter um suspeito.
- Porque não está com medo?
- Estou. O Jake disse que o tiro falhou por centímetros, e tenho que acreditar que ele está a ser honesto quanto a isso. Mas o facto é que alguém andou por ali a
disparar. Alguém andou por aí a fazer pior do que isso.
- Acha que os incidentes estão relacionados?
- O xerife parece não pensar assim, mas nunca se sabe o que ele está a pensar. É apenas especulação. Algumas pessoas não gostam
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que andemos por aqui. Uma maneira de nos fazer ir embora é estragar o projecto. Um cadáver e um tiro estragam-no bastante.
- Tenho notícias que não vão deixá-la mais feliz.
- O investigador.
- Vamos começar por aí. O filho do Carlyle não está a servir de grande ajuda. Disse ao investigador que não sabe onde está o pai e que se soubesse não era da conta
do investigador.
- Quero que ele continue a insistir.
- O dinheiro é seu.
- Ainda tenho algum. - Soltou um suspiro. - Não muito - admitiu. - Mas ainda chega para mais umas semanas.
- Avise-me quando precisar de reavaliar as despesas. A propósito, gosto da franja.
- Verdade? - Callie deu-lhe um pequeno puxão. - Vai começar a chatear-me quando me chegar aos olhos.
- Para isso é que os salões de cabeleireiro foram inventados. A próxima fase da minha agenda matinal tem a ver com coscuvilhice na cidade.
- Vou buscar o café e os bolinhos?
- Podia vir para aqui. Se eu for para aí, estes sapatos já eram. Olhou em volta, enquanto Callie pousava as ferramentas.
Ouvia-se, como sempre, o som das ferramentas a bater na rocha, a afastar a terra. Era um bulício musical. Estava calor, o tipo de calor que a fazia sentir peganhenta
dois minutos depois de pôr o pé fora de casa.
Cheirava a suor, a repelente de insectos e a terra.
Lana não fazia ideia de que tudo iria progredir tão uniformemente. Tantos quadrados e rectângulos na terra. E os buracos formados centímetro a centímetro.
Havia ferramentas empilhadas, pás e colheres de pedreiro, escovas grandes. Sacos de lona estavam estendidos aqui e ali. Alguém pusera um bloco em cima de uma máquina
fotográfica. Para fazer sombra, pensou ela. Junto a cada segmento havia jarros e garrafas de água, e camisas que tinham sido despidas e tostavam agora ao sol.
- O que estão a fazer ali?
Callie olhou para o local onde Jake e Dory estavam de pé, ao lado um do outro:
- O Jake está a arrastar a asa à sensual fotógrafa do projecto.
Depois, encolheu os ombros, surpreendida por não ficar com a visão toldada de ciúme quando notou a forma como ele tocava no ombro e no braço de Dory.
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- Provavelmente, está a explicar-lhe como quer as fotografias, os ângulos. - Distraidamente, esfregou um pequeno arranhão que tinha nas costas da mão. - Têm estado
a encontrar fragmentos de cerâmica naquela área.
- Vou dar uma vista de olhos antes de ir-me embora. Então... Voltou a centrar a sua atenção em Callie. - Ontem foi ver o Roger.
- Fui. E depois? Gostei dele.
- Eu também gosto. Muito. Depois, saiu com ele.
- Trouxe-o a ver as escavações. O que é que isso tem?
- Estava uma pessoa na loja quando lá foi.
- Sim, tinha uns livros que queria vender. - Callie baixou-se para pegar no seu jarro de chá gelado. Desde que perdera a chávena, bebia directamente do jarro. -
Disse que era cunhada do tipo que desenterrou o primeiro artefacto. Que interesse é que isso tem?
- Ela reconheceu-a.
- Quê? Da televisão? - Demorou apenas um segundo a compreender. - Não é possível! Como é que nos dois minutos em que esteve a falar comigo me fixou como Jessie Cullen?
- Não sei quanto tempo levou, mas começou a juntar dois e dois. Notou que o Roger fechou a loja depois de ela ter saído. E viu-vos quando saíram juntos, mais tarde.
Pelo que consegui perceber, falou nisso a outra pessoa, e essa pessoa tinha-a visto sair do meu escritório com a Suzanne. Tinha visto lá o Jay. A cidade é pequena,
Callie. As pessoas conhecem-se umas às outras e lembram-se de coisas. A conversa de que você é a filha perdida da Suzanne e do Jay já vai a todo o vapor. Pensei
que devia saber, para decidir como quer lidar com isto. Como quer que eu lide com isto.
- Por amor de Deus! - Callie tirou o chapéu e atirou-o para o chão. - Não sei. Não dizer nada não vai resultar. Não dizer nada só vai fazer as pessoas pensarem que
sabem aquilo que não queremos dizer.
- Vai chegar à imprensa, é inevitável. Vai precisar de fazer uma declaração. Os Cullen vão precisar de fazer uma declaração. E os seus pais também. E todos vão ter
que decidir que corda é que vão puxar.
Ela olhou para o outro lado do campo. Jake já não estava no mesmo sítio, encontrava-se agora acocorado no local onde Frannie e Chuck estavam a trabalhar. A mão de
Jake estava pousada ao de leve nas costas de Frannie.
Bill estava agora com Dory, a dar à língua. Pelos vistos, Dory não estava tão satisfeita com a companhia dele como estivera com a de Jake.
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Desejou não ter mais nada em que pensar a não ser nos pequenos dramas da sua equipa.
- Não quero falar com os media. Não quero sujeitar os meus pais a isso.
- Não vai ter escolha, Callie. Na altura, isto foi uma grande história. E a Suzanne é uma celebridade local. Precisa de preparar-se.
- Ninguém se prepara para um desaire. Passa-se por isso e pronto. A Suzanne sabe?
- Tenho um encontro com ela daqui a uma hora. Digo-lhe aquilo que ela ainda não souber.
Callie pegou no chapéu e voltou a enfiá-lo na cabeça.
- Preciso dessa lista. Os nomes do médico dela, das enfermeiras, de quem quer que tenha partilhado com ela o quarto no hospital quando ela deu à luz. Não tenho querido
pressioná-la sobre isso.
- Mas gostaria que eu pressionasse. - Lana acenou com a cabeça. - Não há problema.
- Arranje-me a morada e o número de telefone do filho do Carlyle. Talvez eu tenha uma maneira de convencê-lo a falar connosco. Preciso de telefonar à minha mãe e
avisá-la. À minha mãe - disse, quando Lana permaneceu em silêncio. - Deixo a Suzanne consigo.
- Compreendo.
- Ajuda, ter alguém que compreenda. O Roger pareceu compreender. Facilitou-me as coisas.
- É um homem especial. E talvez, não sei, geneticamente uma coisa destas seja menos emocionalmente devastadora para um homem do que para uma mulher. Para uma mãe.
Sei que o Doug anda virado do avesso com isto, mas consegue manter o equilíbrio.
- Há alguma coisa entre vocês?
- Hummm. A definição de "coisa" ainda é nebulosa, mas sim. Acho que há. Isso levanta algum problema?
- Para mim, não. É apenas estranho, apenas mais um aspecto estranho. Escolho uma advogada que tem qualquer "coisa" com o meu irmão de sangue. Embarco no que pode
ser um dos projectos mais importantes da minha carreira. Primeiro, o meu ex-marido é metido nesse projecto, depois descubro que nasci quase no sítio onde estou a
trabalhar. Acontece que a minha mãe biológica é a força que gere o fabrico das minhas bolachas de chocolate preferidas, e uma pessoa ou várias pessoas desconhecidas
acrescentam um homicídio e violência à mistura. Qualquer destes factores seria estranho. Mas todos juntos dão...
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- Um desaire.
- Não tem o mesmo efeito quando é você a dizê-lo, mas sim, é isso mesmo. Veja se a Suzanne lhe dá essa lista - disse Callie, passado um momento. - Está na altura
de passar a uma nova fase e começar a escavar mais fundo.
Suzanne ouviu tudo o que Lana tinha para dizer-lhe. Serviu chá e café. Entregou-lhe uma lista cuidadosamente organizada, feita em computador, de nomes ligados ao
passado. Mostrou-se absolutamente calma quando acompanhou Lana até à porta.
Depois, virou-se subitamente para Jay:
- Pedi-te que estivesses aqui esta manhã porque a Lana disse que era importante falar connosco. E tu não dizes nada. Não contribuis em nada.
- Que querias que eu dissesse? Que querias que eu fizesse? Já tinhas tratado de tudo!
- Sim, fui eu que tratei de tudo. Como sempre!
- Não me deixaste ajudar. Como sempre.
Suzanne fechou as mãos com força e depois passou por ele, em direcção à cozinha.
- Vai-te embora, Jay. Vai-te embora.
E ele quase fez o que ela lhe disse. Já lho dissera, anos antes. Vai-te embora, Jay. E ele fora. Mas desta vez foi atrás dela e pegou-lhe no braço quando chegaram
à cozinha.
- Mandaste-me embora naquela altura, e estás a mandar-me embora agora. E depois olhas para mim com ar de desprezo. O que queres, Suzanne? Tudo o que sempre tentei
fazer foi dar-te o que queres.
- Quero a minha filha de volta! Quero a Jessie!
- Não podes tê-la.
- Tu não, porque não fazes nada por isso. Mal lhe falaste no escritório da Lana. Nunca lhe tocaste!
- Ela não queria que eu lhe tocasse. Achas, achas mesmo que isto não está a dar cabo de mim?
- Acho que há muito tempo que desististe dela.
- Isso é um disparate. Sofri muito, Suzanne, e sofro. Mas tu não viste, não ouviste. Para ti, não havia nada para além da Jessie. Não conseguias ser minha mulher,
não conseguias ser minha amante. Nem sequer conseguias ser minha amiga, porque estavas demasiado determinada a ser mãe dela.
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As palavras eram como setas rápidas e afiadas que se lhe cravavam no coração. Ele nunca lhe dissera este tipo de coisas. Nunca tivera um ar tão zangado, tão magoado.
- Tu eras um homem. Eras o pai dela! - Libertou-se e começou a arrumar as coisas do chá, com mãos trémulas. - Viraste-me as costas quando eu mais precisava de ti.
- Talvez. Mas tu também me fizeste isso. Eu precisei de ti, Suzanne, e tu não estavas lá. Quis tentar preservar o que tínhamos, juntos, e tu dispuseste-te a sacrificar
tudo por aquilo que tínhamos perdido.
- Ela era o meu bebé.
- O nosso bebé. Raios, Suze, o nosso bebé. A respiração dela tornou-se irregular.
- Quiseste substituí-la!
Ele recuou, como se ela lhe tivesse batido.
- Mas que coisa tão estúpida estás a dizer! Estúpida e cruel. Quis ter outro filho contigo. Não era uma substituição. Queria que voltássemos a ser uma família. Queria
a minha mulher, e tu não me deixavas tocar-te. Perdemos a nossa filha, Suzanne. Mas eu também perdi a minha mulher. Perdi a minha melhor amiga, perdi a minha família.
Perdi tudo.
Ela limpou as lágrimas.
- Isto não leva a lado nenhum. Preciso de sair. Vou falar com a Jessica... Callie.
- Não, não vais.
- O que é que estás a dizer? Não ouviste o que disse a Lana? Ela foi ferida.
- Ouvi muito bem o que ela disse. Também disse que as pessoas estão a começar a falar, e isto vai deixá-la numa posição difícil. Vais lá acima à escavação, as pessoas
vão ver-te e tu só vais alimentar mais os mexericos.
- Quero lá saber que as pessoas falem. Ela é minha filha. Porque não hão-de as pessoas saber isso?
- Porque isso mexe com ela, Suzanne. Porque se lá fores, vais afastá-la mais. Porque se não esperares que seja ela a vir ter contigo, se não a deixares decidir,
vais perdê-la pela segunda vez. Ela não nos ama.
Os lábios dela tremeram:
- Como podes dizer-me uma coisa dessas? Ela ama-nos. Lá no fundo, ama-nos. Tem de amar-nos!
- Detesto dizer-te isto. Detesto magoar-te. Preferia voltar a afastar-me, voltar a ir-me embora, a causar-te um só instante de sofrimento. Mas se eu não to disser,
vais sofrer ainda mais.
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Ele pegou-lhe nos braços, e agarrou-lhos com mais firmeza quando ela tentou soltar-se. Como devia ter feito há muito tempo, pensou. Devia tê-la agarrado com força.
- Ela sente pena de nós. Sente-se na obrigação de ter qualquer coisa para nós. E talvez, se lhe dermos tempo suficiente, espaço suficiente, ela venha a sentir mais
qualquer coisa.
- Quero que ela volte para casa.
- Querida. - Pousou-lhe os lábios na testa. - Eu sei.
- Quero abraçá-la. - Pôs os braços à volta da cintura e começou a balançar o corpo para a frente e para trás. - Quero que ela volte a ser um bebé, para eu poder
abraçá-la.
- Eu também queria isso. Sei que não acreditas em mim, mas queria isso de todo o coração. Só para... só para poder tocar-lhe.
- Oh, meu Deus, Jay. - Ergueu a mão e, com um dedo, limpou uma lágrima do rosto dele. - Desculpa. Desculpa.
- Talvez, só desta vez, pudesses ser tu a abraçar-me. Ou a deixar-me abraçar-te. - Pôs os braços à volta dela. - Deixa-me abraçar-te, Suzanne.
- Estou a tentar ser forte. Tenho tentado ser forte durante todos estes anos, e agora não consigo parar de chorar.
- Não faz mal. Estamos aqui só os dois. Ninguém precisa de saber. - Havia tanto tempo que ela não o deixava aproximar-se assim, pensou ele. Havia tanto tempo que
não sentia a cabeça dela no seu ombro. Que ela não o abraçava.
- Pensei... A primeira vez que fui ter com ela, pensei que me bastava saber que o nosso bebé estava bem. Que tinha crescido e se tinha tornado numa mulher tão bonita,
tão inteligente. Pensei que isso bastava, Jay. Mas não. Todos os dias quero mais. Recuar dez minutos, uma hora. Um dia, e depois um ano.
- Ela tem umas mãos bonitas. Reparaste? Estão um bocado cortadas... do trabalho, acho eu. Mas tem umas mãos elegantes, com dedos compridos. E quando as vi pensei
que lhe teríamos dado lições de piano. Com umas mãos assim, devia tocar piano.
Lentamente, cuidadosamente, soltou-se do abraço. Depois, tomou-lhe o rosto entre as mãos e levantou-o. Ele estava a chorar, em silêncio. Ocorreu-lhe que ele estava
sempre em silêncio, mesmo quando seria de esperar uma tempestade de dor ou de alegria.
Lembrava-se agora de que ele chorara assim no nascimento de cada um dos filhos. Com a sua mão na dela, as lágrimas tinham-lhe corrido pela cara, sem qualquer som.
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- Oh, Jay. - Soltando o coração, passou os lábios pelo rosto molhado. - Ela toca violoncelo.
- Toca?
- Sim. Vi-o no quarto do motel, e há uma pequena biografia dela na internet, a propósito de alguns trabalhos em que participou. Diz que toca violoncelo. E se formou
com distinção em Carnegie Mellon.
- Verdade? - Tentou recompor-se, mas a voz soou densa e embargada quando ele pegou num lenço. - É uma escola exigente.
- Queres ver? Eu imprimi. Há uma fotografia dela. Tem um ar tão intelectual e sério!
- Gostava muito.
Ela assentiu com a cabeça e dirigiu-se ao computador.
-Jay, sei que tens razão, sobre ela voltar para nós, sobre ser ela a definir o que vamos ser uns aos outros. Mas é tão difícil esperar. É tão difícil esperar, quando
ela está tão perto!
- Talvez não seja tão difícil se esperarmos juntos.
Ela sorriu, como sorrira quando o seu melhor amigo lhe dera o primeiro beijo.
- Talvez.
Foi necessária alguma habilidade. Era sempre necessária alguma habilidade quando se tratava de Douglas, pensou Lana. Mesmo assim, não só conseguira outro encontro,
como o convencera a deixá-la ir ter com ele ao apartamento que ficava por cima da livraria.
Queria ver onde ele vivia, ainda que temporariamente. E pensou que seria melhor começarem a tentar definir o que era esta coisa que havia entre eles.
Ele gritou "Entre!", quando ela bateu à porta. Supôs que seria um hábito de Woodsboro, não fechar as portas. Embora ela não o tivesse adquirido, mesmo passados dois
anos. Era demasiado rapariga da cidade, decidiu, enquanto abria a porta.
O sofá da sala estava coberto por um pano azul-marinho, que não se ajustava às suas formas, e a única cadeira que o acompanhava era verde-caça, e tinha os braços
coçados. As escolhas pareciam não ter nada a ver com o tapete, que era uma mistura de castanho e cor de laranja.
Talvez ele fosse daltónico.
Havia uma bancada à altura da cintura, que separava a zona de estar e a cozinha. E a cozinha, notou ela com agrado, estava imaculada.
Ou ele valorizava a limpeza, ou não cozinhava. Para ela, tanto fazia.
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- Vou já! - gritou ele do quarto ao lado. - Preciso só de acabar uma coisa.
- Não tenho pressa.
Isso deu-lhe tempo para dar uma vista de olhos. Havia algumas recordações espalhadas. Um trofeu para o melhor jogador, do campeonato de basebal do liceu, uma luva
que já apanhara muitas bolas, o que parecia ser um modelo de uma catapulta medieval. E, claro, os livros.
Também lhe agradou tudo isto, mas foi a selecção artística nas paredes que despertou nela a inveja e a fez querer saber mais sobre aquele homem.
Havia reproduções de As Quatro Estações de Mucha, uma sereia Waterhouse, e Êxtase e O nascer do dia de Parrish.
Um homem que entregava as suas paredes à fantasia e guardava um trofeu de basebal do tempo de liceu era um homem que valia a pena conhecer melhor.
Para começar, encaminhou-se para a porta do quarto.
Uma cama muito simples, observou. Não tinha cabeceira, e uma colcha azul enrugada estendia-se sobre ela ao acaso. E a cómoda parecia um móvel de família, escuro,
de mogno antigo, com puxadores de latão. Sem espelho.
Ele estava a trabalhar num computador portátil, sobre uma secretária de metal bastante maltratada pelo uso, e os seus dedos moviam-se sobre as teclas com eficácia.
Vestia uma T-shirt preta, jeans e, para seu fascínio, tinha óculos com aros de tartaruga.
Sentiu uma pequena espiral de prazer na barriga e entrou no quarto.
Ele tinha o cabelo húmido, notou, apenas um pouco. Pairava no ar o aroma a sabonete, do duche que ele devia ter tomado ainda há pouco.
Ela cedeu ao impulso e, aproximando-se por detrás dele, passou os dedos por aquele cabelo escuro e húmido.
Ele virou-se, fez rodar a cadeira e olhou para ela através das lentes.
- Desculpa. Esqueci-me. Só queria este inventário... O quê? disse ele, enquanto ela permanecia de pé e continuava a sorrir.
- Não sabia que usavas óculos.
- Só para trabalhar. Ao computador. E para ler. Esse tipo de coisas. Vieste mais cedo?
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- Não, vim à hora marcada. - Ele parecia um pouco nervoso por ela estar ali, no quarto. E por causa disso ela sentiu-se poderosa.
- Mas não há pressa. O filme só começa daqui a uma hora.
- Uma hora. Certo. - Ela ainda trazia o seu fato de advogada. Riscas. Porque é que as mulheres usavam riscas? - íamos comer qualquer coisa, primeiro.
- Pois íamos. - Adorou a forma como os olhos dele se abriram quando ela escorregou para o colo dele. - Ou podíamos ficar aqui. Eu podia preparar qualquer coisa.
- Não há muito para... - Calou-se quando ela baixou a cabeça e procurou a boca dele com a dela. - Não há muita coisa, mas provavelmente chega. Se é isso que queres.
Fez deslizar as mãos pelo peito dele, até ao pescoço:
- Tens fome?
- Muita.
- O que é que te apetece? - perguntou ela e depois riu, quando ele colou a boca à dela.
263
Dezasseis

Ela enrolou-se a ele. Cercou-o, era tudo o que conseguia pensar enquanto o sabor dela, o cheiro dela, a forma dela lhe confundiam os sentidos.
Era como ser possuído, e começara no momento em que ela se pusera em bicos de pés e tocara com os seus lábios nos dele, à saída do restaurante.
Não tinha a certeza se queria tirar este desejo de dentro de si, ou mantê-lo lá dentro. Só sabia que a queria. Agora.
- Deixa-me... - A cadeira rangeu ameaçadoramente sob o peso combinado de ambos. O alarme de um carro disparou na rua. Mas ele só conseguia pensar em como desejava
pôr rapidamente as mãos entre eles, desapertar os botões da blusa dela e descobri-la.
- Tenciono deixar. - O coração dela batia-lhe descompassadamente, com força, no peito e na garganta. Adorava senti-lo, àquele bater forte de vida. Afastou-se um
pouco para dar espaço às mãos dele.
- A culpa foi dos óculos.
- Nunca mais vou tirá-los.
- Está bem. - Passou os dedos pelo cabelo dele, tirou-lhe os óculos e dobrou cuidadosamente as hastes. Pousou-os em cima da secretária enquanto ele desabotoava a
sua camisa branca. - Já cumpriram o seu dever.
- Podia dizer o mesmo do fato às riscas. Dá cabo de mim.
- E da Brooks Brothers.
- Abençoados. - Ela era tão perfeita, com uma pele suave e branca como leite. Poderia lambê-la como um gato. - Mas porque não... - Puxou-lhe o casaco, fazendo-o
passar pelos ombros e deixando-o preso nos cotovelos. A camisa dela estava aberta e o sutiã
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por baixo dela era uma mancha de seda sobre uma elevação suave e subtil. - Assenta-te muito bem - disse-lhe ele, atacando-lhe a garganta com os dentes.
O cheiro dela era fresco e absolutamente feminino. O disparo rápido da sua pulsação sob os lábios dele fê-lo estremecer.
Tinha os braços presos e a pele exposta. Havia qualquer coisa de misterioso e erótico naquela súbita mudança de controlo, naquele momento de rendição e de passagem
de poder para ele. Ela deixou-se levar por essa sensação e pelo pânico vertiginoso quando a boca dele voltou a reclamar a dela.
Ele levantou-se num movimento tão suave e fluido que lhe cortou a respiração. Havia ali uma força que ela não previra, e que lhe fez disparar a pulsação quando ele
pegou nela e a sua boca continuava a procurar a dela.
Depois ficou debaixo dele, na cama, com os braços presos no casaco, o seu corpo prisioneiro e maravilhosamente indefeso. Ele puxou o casaco e libertou-lhe os braços.
Antes de ela conseguir reagir, ele rebolou e ela ficou deitada sobre o estômago.
- Não tenho nada contra a Brooks Brothers - disse ele enquanto lhe abria cautelosamente o fecho da saia. - Mas está aqui um bocado a mais. Vamos ver-nos livre dela.
Ela olhou para trás, por cima do ombro, e uma massa de cabelo caiu-lhe nos olhos:
- Podia dizer o mesmo sobre as Levi's.
- Vamos deixá-las esperar um minuto. - Despiu-lhe a camisa e passou-lhe um dedo pela coluna. - Belas costas, senhora advogada.
Puxou-lhe a saia até às ancas e depois tirou-lha completamente. Ela usava meias até às coxas, rematadas por pequenas tiras de renda, e uma tanga branca de cetim,
que ele duvidou seriamente que proveniesse da digníssima Brooks Brothers.
- O resto de ti também não está mal.
Ela riu-se e começou a dizer qualquer coisa com piada. E gemeu quando os lábios dele lhe percorreram as costas, ao longo da coluna vertebral. Os dedos dele acariciaram-lhe
a parte de trás da coxa, até ao rebordo da meia, e os dela cravaram-se na colcha.
- Sabes, nunca mais vou conseguir ver-te num daqueles fatos de advogada sem pensar no que está por baixo.
A boca dele estava na parte mais estreita das costas dela, e começava a descer.
- Por mim, tudo bem.
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Ele estava a levá-la a um nível de prazer que lhe deixava os músculos lassos e os membros sem força. Era como deslizar através de um nevoeiro suave e afundar-se
nele sem ideia nem destino.
Para quê o poder quando era possível simplesmente... afundarmo-nos?
Ele ouviu-a suspirar e sentiu-a deixar de oferecer resistência. O corpo dela era seu para explorar, para experimentar, para saborear. A cintura estreita, as coxas
compridas, aquela fragrância que se lhe colava à pele junto às omoplatas. Ele desapertou-lhe o sutiã e fez deslizar os lábios sobre a pele.
Ela ronronou.
Ele virou-a lentamente, tomou-lhe o sabor dos lábios, da garganta e depois dos seios.
Suaves, perfumados, acetinados, e o calor que começava a espalhar-se por aquela pele maravilhosa. As mãos dela tactearam-lhe o corpo: o cabelo, os ombros, as costas.
Arquejante, puxou-lhe a camisa para cima, fê-la passar pela cabeça e atirou-a para o lado.
E o contacto da pele com pele fê-la estremecer.
Paciente, pensou ela como que num sonho, e tão perfeito! Ali estava um homem que procurava dar tanto quanto tirava, dar prazer e tirar prazer. Um homem que fazia
o seu corpo estremecer e lhe acalmava o coração.
E por causa disso arqueou o corpo para lhe oferecer mais. Murmurou o nome dele com os lábios, as suas mãos tornaram-se mais impacientes. Mais depressa agora, apenas
um pouco mais depressa, ateando mais o fogo que já ardia, transformando a paciência em urgência e o sonho em exigência.
Ele pressionou a mão contra ela, atormentando-os a ambos até meter um dedo sob o cetim e dentro dela.
As unhas dela cravaram-se nos ombros dele. Ele viu os olhos dela tornarem-se opacos e aquele maravilhoso tom rosado espalhar-se-lhe pela pele. Abafou o grito dela
com a boca, saboreando-lhe os lábios enquanto ela atingia o clímax.
As sensações giravam em turbilhão dentro dela, demasiado rápidas para ela conseguir separá-las, demasiado fortes para ela ser capaz de segurá-las. Debateu-se com
o botão dos jeans dele. Deus, queria-o inteiro, queria que ele mergulhasse insanemente dentro dela. Os lábios dela mexiam-se freneticamente enquanto o libertava,
enquanto fechava a sua mão nele.
267
- Doug. Douglas - repetiu, guiando-o até ela.
O prazer disparou nele como um míssil, o deleite absoluto de entrar nela, de ter o calor húmido dela à sua volta. Reteve o desejo de aumentar o ritmo e mexeu-se
lentamente, saboreando cada estremecimento dos seus corpos.
A luz estava a desaparecer. Os últimos raios calmos entraram pela janela, iluminando o rosto de Lana. Ele viu as pálpebras dela estremecerem e o coração pulsar-lhe
na garganta quando ela arqueou a cabeça para trás. E o prazer atingir o auge a cada movimento, lento, profundo.
Sentiu que apenas um fio ténue os prendia a ambos à razão. Quando a sentiu agarrar-se com força debaixo de si, uniu a sua boca à dela e deixou-se cair.
- Doug? - Lana passava-lhe os dedos pelo cabelo, enquanto olhava pela janela. De onde estava podia ver o brilho das luzes da rua, à medida que se acendiam.
- Ha? Sim?
- Tenho uma coisa a dizer sobre isto. - Soltou um longo suspiro e esticou-se o melhor que conseguiu, com o peso dele a prendê-la ao colchão. - Hummmmm.
Doug desenhou-lhe a curva da garganta com os lábios.
- Não é preciso dizeres mais nada.
- Agora, acho que te devo o jantar.
- Acho que sim. Isso significa que vais voltar a vestir o fato às riscas e enlouquecer-me outra vez?
- Para dizer a verdade, ia perguntar-te se tens uma camisa que possas emprestar-me enquanto eu vejo o que consigo fazer com o que tens na cozinha.
- Tenho uma camisa, mas aviso-te que não há muita coisa na cozinha.
- Consigo fazer muito com muito pouco. Ah, e tenho mais uma coisa a dizer.
Desta vez ele levantou a cabeça e olhou para ela:
- O quê?
- Tenho baby-sitter até à meia-noite. Por isso espero que tenhas proteínas na cozinha, porque ainda não terminei o meu assunto contigo.
Ele sorriu. Encantado, lisonjeado, animado:
- Como foi possível não ter dado por ti das outras vezes que vim à cidade?
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- Acho que ainda não estava na altura certa. Agora, vais dar pela minha falta sempre que te fores embora da cidade.
Como aquilo lhe pareceu verdade, demasiado verdade, deixou-se rebolar e levantou-se.
- Há uma biblioteca a que preciso de dar apoio - disse ele, dirigindo-se para o armário. - Em Memphis.
- Ah! - Ela sentou-se, mantendo o tom de voz despreocupado.
- Quando vais?
- Daqui a uns dias. - Tirou uma camisa. - Regresso assim que conseguir despachar-me. - Virou-se, aproximou-se dela e estendeu-lhe a camisa. - Acho que não é muito
boa ideia ficar fora daqui durante muito tempo, com tudo o que está a passar-se.
Ela concordou, com um aceno de cabeça, e saltou da cama para vestir a camisa.
- Concordo em absoluto. A tua família precisa de ti.
- Sim. E há outra coisa.
Ela olhou por cima do ombro enquanto abotoava a camisa:
- Sim?
- Parece que também ainda não terminei o meu assunto contigo.
- Bom. - Aproximou-se dele, pôs-se em bicos de pés e pousou os lábios nos dele. - Isso é bom.
Deixando as coisas naquele pé, foi até à cozinha. Ele passou a mão pelo cabelo e seguiu-a.
- Lana, não sei o que procuras.
Ela abriu o frigorífico e espreitou lá para dentro, com a camisa a roçar-lhe as coxas:
- Nem eu, até encontrar.
- Não estava a falar de comida.
- Eu sei do que estavas a falar. - Voltou a olhar para ele. - Podes estar descansado, Doug. Estou muito bem com a vida neste momento, vivo um dia de cada vez. -
Olhou para o frigorífico e abanou a cabeça. - E, obviamente, tu também, tendo em conta que tens metade de um pack de seis cervejas, um quarto de litro de leite,
dois ovos solitários e um frasco de maionese por abrir.
- Esqueceste-te do fiambre, ali na gaveta.
- Humm. Adoro desafios. - Começou a abrir armários e encontrou quatro pratos, todos diferentes, três copos de água, um copo de vinho e uma caixa de Cap'n Crunch,
o que a fez lançar a Doug um olhar de dó.
- É uma fraqueza de infância - declarou. - Como as Pop-Tarts.
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- Hã-hã. Também tens batatas fritas, um frasco de pickles, meio pão branco amolecido e meia embalagem de bolachas.
Pouco à vontade e receoso de que ela espreitasse o congelador e encontrasse o litro e meio de gelado e a pizza congelada, deu um passo em frente para impedir o acesso
ao congelador.
- Disse-te que não havia muita coisa. Ainda podemos sair, ou podemos mandar vir qualquer coisa.
- Se pensas que não consigo transformar isto numa refeição, estás muitíssimo enganado. Preciso de um tacho para cozer estes ovos. Tens um tacho, não tens?
- Tenho um tacho. Queres uma dessas cervejas?
- Não, obrigado.
Ele tirou o tacho do armário e entregou-lho:
- Volto já.
Lana arregaçou as mangas e meteu mãos ao trabalho. Os ovos estavam a começar a ferver quando ele regressou, um pouco arquejante, com uma garrafa de vinho.
- Fui a correr à loja de bebidas - disse ele.
- Foi muito querido da tua parte e sim, apetece-me um pouco de vinho.
- O que estás a fazer?
- Sandes de fiambre e ovo. Vamos comê-las com as batatas fritas e considerar isto um piquenique.
- Por mim, tudo bem. - Abriu o vinho, deitou um pouco no único copo que tinha e ofereceu-lho.
- O que acha a tua mãe do facto de não cozinhares?
- Tentamos não falar disso, porque não é um assunto pacífico. Queres ouvir música?
- Quero. Tens velas?
- Nada de muito bonito, só umas para o caso de faltar a luz.
- Servem.
Ela levou a sério a ideia do piquenique e estendeu um cobertor no chão da sala. Com as velas acesas e a música de fundo, comeram as sandes e beberam vinho. Fizeram
amor outra vez, preguiçosamente, em cima do cobertor, e depois ficaram enrolados um no outro, num silêncio feliz.
Nenhum deles se mexeu quando as sirenes apitaram.
- Vai estar calor em Memphis - disse ela, passado algum tempo.
- É o mais certo.
- Vais a Graceland, quando lá estás?
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- Não.
Ela rebolou para poder ficar em cima dele e observar-lhe o rosto:
- Porque não?
- Porque... em primeiro lugar, é um cliché e em segundo, estou lá para fazer o meu trabalho e não para prestar homenagem ao Rei.
- Podias fazer as duas coisas. - Inclinou a cabeça. - Devias ir, para te divertires e pela experiência. E depois devias comprar-me qualquer coisa incrivelmente idiota.
Ela beijou-lhe a ponta do nariz:
- Tenho de ir-me embora.
Ele não queria que ela se fosse embora, e o desejo de retê-la, de mantê-la abraçada contra si, consigo, era mais do que um pouco assustador.
- Queres voltar a tentar ir ao cinema, quando eu voltar?
Lana ficou satisfeita por ter sido ele a perguntar primeiro, desta vez.
- Sim.
Quando ela começou a levantar-se, o telemóvel tocou na sua pasta, do outro lado da sala.
Ele viu o medo perpassar-lhe instantaneamente os olhos enquanto procurava atabalhoadamente o telemóvel:
- Deve ser o Denny, o baby-sitter.
Abriu a pasta e estava a ordenar a si própria que não fosse alarmista quando conseguiu agarrar o telefone.
- Sim? Denny, o que... O quê? Meu Deus. Sim. Sim, vou já. Quando desligou estava já a correr para a casa de banho.
- O Tyler? O que se passa com o Tyler? - perguntou Doug, correndo atrás dela.
- Nada. Ele está bem. O Ty está bem. - Pegou na sua camisa.
- Meu Deus, Doug! Meu Deus! O meu escritório está a arder!
Não havia nada a fazer senão ficar ali, a ver. Ficar do outro lado da rua, a salvo do fumo e das chamas, e ver parte da vida dela arder.
Já tinha perdido muito mais, lembrou a si própria. Muito mais do que um escritório, do que equipamento e papéis e alguma mobília. Podia substituir tudo. Não havia
nada feito de madeira ou de tijolo que não pudesse ser substituído ou consertado.
E, no entanto, lamentava a perda da casa antiga, com as suas divisões acolhedoras e as suas vistas.
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Os bombeiros tinham ensopado as casas de ambos os lados da sua, e o que antes eram relvados bem aparados eram agora lamaçais cheios de destroços. O fumo saía pelos
vidros partidos das janelas, pelo telhado, elevando-se no céu limpo daquela noite de Verão.
Dúzias de pessoas tinham saído das suas casas ou paravam os carros para ver o que se passava.
Viu a jovem família de quatro elementos que vivia no apartamento do segundo andar da casa ao lado. Tinham um ar aterrorizado, muito juntos, a segurar os haveres
que tinham conseguido agarrar no caminho em direcção à saída. À espera de ver se a sua casa seria ou não destruída.
- Lana.
- Roger. - Quase se desfez em lágrimas. Vê-lo ali, com a camisola do pijama por dentro das calças, de chinelos nos pés, quase fez com que ela não aguentasse mais.
Mas agarrou a mão dele e aguentou-se.
- As sirenes acordaram-me - disse ele. - Levantei-me e bebi um copo de água. Até que olhei pela janela e vi o fumo. Estavas lá dentro?
- Não, estava com o Doug. Alguém telefonou para casa e disse ao meu baby-sitter. Ele telefonou-me. Oh, Deus queira que não se pegue às outras casas. Deus queira
que não.
Roger olhou para Doug:
- Talvez seja melhor sentarem-se um bocadinho.
- Ela não quer - disse Doug. - Eu já tentei.
- Não sei como pode ter acontecido isto. Mandei inspeccionar tudo quando aluguei o edifício. A instalação eléctrica foi toda revista. Tive cuidado.
- Vamos esperar para ver - disse Doug, e Roger sentiu o coração mais leve quando viu o neto inclinar-se e depositar um beijo no cabelo de Lana.
Callie soube do incêndio às dez para as sete da manhã seguinte, quando Jake a foi acordar.
- Vai-te embora ou mato-te.
- Acorda, Dunbrook. O escritório da tua advogada ardeu a noite passada.
- O quê? Ha? - Sentou-se na cama, passou a mão pelo cabelo e olhou para ele, estremunhada. - Lana? Meu Deus! Onde está ela?
- Ela está bem. - Pôs-lhe a mão no ombro para impedi-la de saltar da cama. - Não sei muitos pormenores, só o que ouvi no noticiário
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local, mas disseram que não estava ninguém no edifício quando o fogo começou.
- Meu Deus! - Esfregou as mãos na cara e voltou a deitar-se.
- Não se passa aqui uma coisa, passam-se duas dúzias. Sabem como começou?
Ele sentou-se ao lado do saco-cama dela:
- Suspeita-se de fogo posto. Estão a investigar.
- Fogo posto? Bem, quem diabo... - Calou-se quando o resto do seu cérebro pareceu despertar. - Ela é minha advogada!
- Pois é.
- Os registos da nossa investigação deviam estar naquele escritório. -Já entendeste.
- Mesmo assim, é um bocado tortuoso.
- Não é assim muito tortuoso, do meu ponto de vista. Talvez se venha a apurar que foram miúdos a brincar com fósforos, ou que o senhorio tem problemas de jogo e
incendiou a casa para receber o dinheiro do seguro. E talvez alguém não goste da ideia de andares a desenterrar informações sobre o que te aconteceu há vinte e nove
anos.
- Tocou com a ponta do dedo na pele por cima da sobrancelha dela.
- Não somos muito populares por aqui.
- Acho que devia ir ver como ela está e depois despedi-la. Ela tem um miúdo, Jake. Não a quero, nem ao rapazinho, expostos a qualquer tipo de perigo, só porque ela
anda a ajudar-me a encontrar respostas.
- Não a conheço muito bem, mas a minha impressão é que ela não é do tipo de se afastar facilmente.
- Talvez não, mas vou dar-lhe o primeiro empurrão. Depois, vou a Atlanta. Vai-te embora, preciso de me vestir.
-Já te vi vestir, antes. - Deixou-se ficar onde estava enquanto ela saía do saco-cama. - Queres falar com o filho do Carlyle, cara a cara.
- Tens uma ideia melhor?
- Não. Por isso sei que há um voo Delta para Atlanta daqui a duas horas, e tem dois lugares vagos.
Ela olhou para ele enquanto pegava nos jeans.
- Só preciso de um lugar.
- Ainda bem, porque só podes ficar com um. O outro é para mim. Eu vou, Callie - disse ele, antes de ela conseguir falar. - Não preciso da tua autorização. Podemos
perder tempo a discutir e eu ganho, ou podes aceitar a derrota airosamente, por uma vez. Não vais sozinha. Ponto final.
- Precisamos de ti aqui, na escavação.
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- A escavação pode esperar. Convence-te de que também vou, ou podes ter a certeza de que vou fazer com que percas o voo. Até gostava disso - disse ele, enquanto
se punha de pé com ligeireza. - Porque me lembro de como um saco-cama pode ser interessante contigo nua, lá dentro.
Como naquele momento tinha vestido apenas uma camisola de basquetebol demasiado grande, achou que ele já estava em vantagem.
- Se vamos, é melhor dizeres ao Leo. Estou pronta daqui a dez minutos. Podemos passar por casa da Lana, a caminho do aeroporto.
- Parece um bom plano. - Encaminhou-se para a porta e depois parou. - Não vou deixar que nada te aconteça. É só isso que me importa. Essa é outra coisa com que vais
ter de lidar.
- Ambos sabemos que sei tomar conta de mim.
- Sim, sabemos. O que nunca percebeste é que não tem de ser sempre assim.
- Não, não foram miúdos a brincar com fósforos.
Lana estava sentada na cozinha, a beber a última de uma série interminável de chávenas de café. A sua voz estava dorida de cansaço.
- Dizem-me que a origem foi no segundo andar do meu escritório. Até sabem que quem entrou fê-lo pela porta das traseiras. A fechadura foi forçada. O que não sabem
dizer-me é se foi levada alguma coisa dos meus ficheiros, do meu computador, antes de o filho da mãe que fez isto ter regado o chão e a secretária com combustível,
ter lançado uma mecha de papel para o hall, no piso de baixo, e depois ter acendido um fósforo e saído.
- É isso que eles acham? - perguntou Callie.
- É quase certo que foi fogo posto, segundo os bombeiros com quem consegui falar. Talvez o inspector tenha mais alguma coisa a dizer. Felizmente, não causou estragos
nos edifícios vizinhos. O filho da mãe não pensou nas famílias que estavam a dormir ao lado, nas vidas que poderia ter destruído quando pensou meter-se comigo.
Empurrou a cafeteira.
- Outra coisa em que ele não pensou foi no facto de eu ter uma cópia de todos os ficheiros aqui em casa. Que faço uma cópia de segurança todos os dias e a trago
para casa.
Jake pôs-se atrás dela, massajou-lhe os ombros:
- Ou seja, estás a dizer que ele não pensou que fosses tão básica.
- Exactamente. Ai, obrigado. - Soltou um suspiro de satisfação quando ele desatou alguma da sua tensão acumulada. - Até te dava
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um beijo, mas não consigo levantar-me. E também não acho que a Callie fosse gostar muito.
- Quem ele beija não é da minha conta - disse Callie. E, no entanto, observou a forma como ele massajava os ombros de Lana. Era instintivo, pensou. Ela tinha um
problema e, automaticamente, ele estendia a mão para ajudar.
- Lamento tudo isto, Lana. Lamento realmente. E estás despedida.
- O quê?
- Manda-me a conta pelos teus serviços e eu passo-te um cheque. E desculpa levar-te o teu massagista particular, mas tenho de apanhar o avião.
Os ombros de Lana endureceram como pedra sob as mãos de Jake.
- Se achas que podes pagar-me e veres-te livre de mim porque achas que o fogo esteve relacionado com o trabalho que estou a fazer para ti, então contrataste a advogada
errada. Fica com a porcaria do teu dinheiro. Assim, já não me dizes o que devo e o que não devo fazer.
- O rochedo encontra o pedregulho - declarou Jake, e continuou a massagem. Achou que atrás dela era o sítio mais seguro onde podia estar.
- Se eu não te quiser a meter o nariz nos meus assuntos, não metes o nariz nos meus assuntos.
- Se eu não trabalhar para ti, não tens nada a ver com isso.
- Pelo amor de Deus, Lana, se isto estiver relacionado comigo, não sabes o que pode acontecer a seguir. Tens um filho para criares.
- Não te atrevas a dizer-me como devo ser mãe ou como devo tomar conta do meu filho. E não penses que deixo de cumprir um acordo só porque as coisas ficam feias.
Alguém incendiou o raio do meu escritório, e vou fazer com que esse alguém pague por isso. De uma forma ou de outra.
Callie encostou-se à cadeira e tamborilou com os dedos na mesa:
- Então porque diabo é que te pago, se fazes o trabalho seja como for?
-Jogo limpo.
- O Graystone pode dizer-te que não me importo de fazer jogo sujo.
- É uma coisa que ela adora - concordou ele. - Mas contigo faz jogo limpo, porque gosta de ti. Só está chateada porque eu lhe disse que não irias sair do caminho.
- Cala-te! - Callie lançou-lhe um olhar furibundo. - Alguém te perguntou alguma coisa?
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- Tu.
- Meninos, nada de brigas à mesa. Que avião vão apanhar?
- Vou... Vamos - corrigiu Callie quando Jake olhou para ela, carrancudo - a Atlanta, falar com o filho do Carlyle.
- Porque achas que ele vai falar contigo, se não quis falar com o investigador?
- Porque não vou deixar-lhe alternativa.
Jake inclinou-se e segredou ao ouvido de Lana:
- Ela só deixa de chatear quando fugimos a gritar ou quando desistimos.
- Eu não chateio. Sou persistente.
- Detesto dizer-vos isto, mas ainda continuam muito casados. Sentiu os dedos de Jake enterrarem-se-lhe nos ombros e viu o sorriso amarelo de Callie. - Seja como
for, acho que é uma boa ideia. Vai-lhe ser mais difícil recusar dar-te informações. Se ele quiser falar comigo, dá-lhe o número do telemóvel e o daqui. Vou trabalhar
em casa até encontrar outro sítio para montar escritório.
Não falaram a caminho do aeroporto. Enquanto atravessaram o aeroporto conversaram o mínimo indispensável. Assim que levantaram voo, Jake recostou o assento.
Adormeceria em menos de dez segundos, como Callie sabia. Na sua opinião, era uma das suas qualidades mais invejáveis. Conseguia adormecer instantaneamente num avião,
quer se tratasse de um jumbo ou de uma lata de atum com motores. Se acontecesse o habitual, não se mexeria até anunciarem a descida, altura em que se sentaria, fresco
e desperto.
Dava cabo dela.
Callie recostou o assento, cruzou os braços e tentou pensar em alguma coisa que não fosse as próximas duas horas no ar.
A seu lado, Jake mantinha os olhos fechados. Sabia o que ela estava a pensar, tão bem como se ela estivesse a dizer-lho. E sabia que dali a dois minutos ela voltaria
a sentar-se direita, ansiosa por não ter nada que fazer. Folhearia uma das revistas da companhia aérea. Amaldiçoar-se-ia por ter-se esquecido de trazer um livro,
e depois revolveria a mala para ver se tinha trazido algum.
Olharia para o relógio de cinco em cinco ou de seis em seis minutos, e pensaria coisas desagradáveis sobre ele, porque ele estava a dormir e ela não.
..continuam muito casados.
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Lana, pensou, tentando não pensar na mulher que estava sentada a seu lado, não sabes da missa metade.
Os escritórios de Carlyle, em Buckhead, uma zona cara, tinham o tom da beleza sulista e a exclusividade proporcionada pelos preços elevadíssimos. A zona da recepção
era de madeira escura e tons profundos, pontuada por antiguidades, tudo perfeitamente polido.
Havia um murmúrio de eficiência calma no ar.
A mulher sentada à enorme secretária de carvalho parecia tão graciosa e cara como o mobiliário. O seu sorriso era quente, o seu tom de açúcar de cana era doce. E
parecia ter uma coluna vertebral de aço.
- Lamento muito, a agenda do Sr. Carlyle está completamente cheia. Terei muito gosto em marcar-lhe uma hora. Há uma vaga na quinta-feira da próxima semana.
- Estamos na cidade apenas hoje - disse Callie.
- É realmente uma pena. Talvez possa marcar-lhe uma consulta telefónica.
- As conversas telefónicas são tão impessoais, não acha... - Jake olhou para a placa metálica que estava em cima da secretária, armou o seu sorriso e voltou a olhar
para ela -, Sr.a Biddle?
- Isso depende de quem as fizer. Talvez se me desse uma ideia da natureza do vosso assunto, eu pudesse canalizá-los para um dos sócios do Sr. Carlyle.
- É um assunto pessoal - disse Callie imediatamente, conseguindo em troca um olhar de reprovação por parte da Sr.a Biddle.
- Terei muito gosto em dar ao Sr. Carlyle a vossa referência e, como disse, em marcar-vos um encontro na quinta-feira da próxima semana.
- São assuntos pessoais, de família - acrescentou Jake. Deliberadamente, pisou o pé de Callie e manteve a sua bota sobre ele enquanto oferecia à Sr.a Biddle a sua
completa atenção. - Tem a ver com Marcus Carlyle, o pai de Richard. Acho que se puder arranjar-lhe uns minutos, hoje, ele vai querer falar connosco.
- São família do Sr. Carlyle?
- Existe uma ligação. Vamos estar pouco tempo em Atlanta. Esses minutos fariam muita diferença para nós e, penso eu, para Richard. Tenho a certeza de que ele não
gostaria que regressássemos a Maryland sem falarmos com ele.
- Se me disser os vossos nomes, vou dizer-lhe que estão aqui. É tudo o que posso fazer.
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- Callie Dunbrook e Jacob Graystone. Ficamos-lhe muito agradecidos, Sr.a Biddle.
- Se tiverem a bondade de esperar, avisarei o Sr. Carlyle assim que ele terminar a videoconferência.
No preciso instante em que o seu pé ficou livre, Callie deu a Jake um pontapé no tornozelo e depois foi sentar-se numa das cadeiras.
- Não vejo como mentir pode ajudar-nos a entrar - resmungou ela.
- Não menti. Prevariquei. E foi suficiente para fazê-la dizer-lhe que estamos aqui.
Ela pegou numa revista e voltou a largá-la imediatamente:
- Porque tens de atirar-te a todas as mulheres com quem te encontras?
-- É genético. Sou vítima da minha própria psicologia. Vá lá, querida, sabes que és a única, para mim.
- Pois, já ouvi isso antes.
- Ouviste, mas nunca escutaste com atenção. Callie, temos muitas coisas para resolver. Depois de descobrires as respostas de que precisas, vamos encontrar as respostas
às questões que há entre nós.
-Já encontrámos as respostas às questões que há entre nós. Mas o problema era que, pensou ela num súbito ataque de pânico, ela estava a começar a pensar que algumas
das respostas que encontrara estavam erradas.
- Nunca fizemos o raio das perguntas, sequer! Passei quase um ano inteiro a tentar fazê-las.
A ansiedade enrolou-se no fundo do peito de Callie:
- Não comeces, Jake. Neste momento já tenho que chegue a dar-me conta da cabeça.
- Eu sei. Callie, quero que saibas... - Calou-se ao ver a Sr.a Biddle aproximar-se.
Má altura, pensou, aborrecido. De resto, parecia que nunca era a altura certa para voltar para Callie.
- O sr. Carlyle pode conceder-vos dez minutos. Se quiserem subir as escadas até ao segundo andar, a assistente dele vai acompanhar-vos.
- Obrigado. - Jake agarrou Callie pelo braço enquanto subiam as escadas. - Vês? Nunca subestimes o poder da prevaricação.
O segundo andar era tão gracioso e tão encantador como o primeiro.
Carlyle era com certeza rico, elegante e bem sucedido.
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Tanto a sua aparência como a do seu escritório pareciam sustentar isso.
O escritório assemelhava-se à sala de trabalho de um gentleman. Uma sala grande, claro, mas com aquilo que Callie considerou um tom masculino e intimista. Estantes
com livros e recordações alinhavam-se em duas paredes. Havia quadros de artistas americanos, bem como antiguidades americanas.
O tema masculino continuava nas cores vermelho-escuro e azul-marinho, no uso de couro e de latão.
Richard Carlyle estava atrás da sua secretária. Era alto e bem constituído. O cabelo, grisalho aqui e ali, estava bem cortado e escovado para trás, deixando à vista
uma testa alta. Tanto o nariz como a boca eram finos. Quando ele lhe estendeu a mão, ela notou os botões de punho com monograma. O Rolex. O brilho dos diamantes
na aliança de casamento.
Lembrou-se de Henry Simpson ter descrito Marcus Carlyle como um homem bem-parecido, dinâmico e de gostos requintados.
Tal pai, tal filho, pensou.
- Sr.a Dunbrook, Sr. Graystone. Receio que tenham alguma vantagem sobre mim. Desconheço qualquer ligação familiar.
- A ligação é com o seu pai - disse Callie. - E o envolvimento dele com a minha família. É muito importante que eu o localize.
- Estou a ver. - Entrelaçou os dedos, e sobre eles o seu rosto perdeu o seu interesse educado. - Como esta é a segunda vez que alguém pergunta pelo meu pai esta
semana, devo supor que haja uma interligação entre elas. Não posso ajudá-la, Sr.a Dunbrook. E disponho de muito pouco tempo, por isso...
- Não quer saber porquê?
Ele soltou o que poderia bem ser um suspiro.
- Muito francamente, Sr.a Dunbrook, há muito pouco que possa dizer-me sobre o meu pai que tenha interesse para mim. Agora, se não se importa...
- Arranjou forma de alguns bebés serem roubados, transportados e depois vendidos a casais sem filhos, que lhe pagaram avultadas somas sem saberem dos raptos. Forjou
os papéis da adopção, que nunca entregou em qualquer tribunal.
Richard olhou para ela sem pestanejar.
- Isso é completamente absurdo! E aviso-a de que uma alegação dessas é difamatória e ridícula.
- Não é nenhuma dessas coisas, porque é verdade. Não é nenhuma dessas coisas, porque há provas.
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Ele continuou a olhar para ela com aquele olhar frio e azul que lhe disse que ele devia ser terrível em tribunal.
- E que provas poderá ter?
- Eu, para começar. Fui roubada quando era bebé e vendida a um casal de clientes do seu pai. O negócio foi feito no escritório dele em Boston, em Dezembro de 1974.
- Está mal informada - contrariou ele.
- Não, não estou. E tenho uma série de perguntas para o seu pai. Onde está ele?
Ele ficou em silêncio por um instante, tão em silêncio que conseguia ouvi-lo respirar.
- Não pode esperar que eu acredite nestas acusações criminosas, que fique aqui e acredite na sua palavra.
Callie procurou na sua mala:
- Cópias dos papéis da adopção. Pode verificar. Nunca chegaram ao tribunal. Cópias dos honorários que o seu pai cobrou para me entregar. Cópias dos testes iniciais
para atestar que sou filha biológica de Jay e Suzanne Cullen, cuja filha bebé foi roubada em Dezembro de setenta e quatro. Relatórios da polícia - acrescentou Callie,
apontando para a pilha de papéis que pôs na secretária dele. - Notícias de jornais.
- Devia lê-los - sugeriu Jake, e depois sentou-se. - Esteja à vontade, não é preciso ter pressa.
Os dedos de Richard tremiam ligeiramente quando ele meteu a mão no bolso, à procura dos seus óculos com aros de ouro. Sem dizer uma palavra, começou a folhear os
papéis.
- Isto não é sustentável como prova - disse ele, passado algum tempo. - Estão a acusar um homem de tráfico de crianças, de rapto, de fraude. - Tirou os óculos e
pousou-os. - Quaisquer que sejam os problemas pessoais que eu e o meu pai tenhamos, não acredito que ele fosse capaz disto. Se persistirem nestas acusações, vou
passar a uma acção legal.
- Então passe - convidou Callie. - Porque eu não vou parar até ter todas as respostas. Não vou parar até as pessoas responsáveis pelo que aconteceu aos Cullen, e
a outras famílias, serem punidas. Onde está o seu pai?
- Há mais de quinze anos que não vejo o meu pai - afirmou Carlyle zangado. - E mesmo que soubesse onde ele está, não vos diria. Tenciono ocupar-me disto pessoalmente,
podem ter a certeza disso. Não acredito que haja qualquer verdade nas vossas alegações.
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Mas se descobrir que não é assim, farei o que puder para localizar o meu pai e... farei o que puder.
- Tem havido algumas tentativas de impedir-nos de encontrá-lo e às respostas de que precisamos - afirmou Jake calmamente. - Ataques físicos, fogo posto.
- Por amor de Deus, ele tem noventa anos! - Dado que perdera um pouco a compostura, passou uma mão pelo cabelo. - A última vez que o vi estava a recuperar de um
ataque cardíaco. Tem uma saúde débil. Dificilmente teria condições de atacar alguém ou de incendiar o que quer que fosse.
- Alguém capaz de organizar um mercado negro para a venda de bebés conseguiria contratar facilmente alguém para fazer o trabalho sujo.
- Não concordei que o meu pai tivesse alguma coisa a ver com um mercado negro. Tudo o que vejo aqui é circunstancial e limita-se a suposições. O homem que conheci
foi um pai medíocre, um falhanço completo como marido e frequentemente um ser humano difícil. Mas era um bom advogado, com um grande respeito pelo sistema e uma
grande dedicação à instituição da adopção. Ajudou a criar famílias. Tinha orgulho nisso.
- Orgulho suficiente para destruir algumas famílias para construir outras? - adiantou Callie. - Orgulho suficiente para fazer de Deus?
-Já disse que ia estudar o caso. E vou insistir em que parem e desistam de fazer declarações absurdas e difamatórias sobre o meu pai. Se deixarem com a minha assistente
números de telefone para onde possa ligar-vos, entrarei em contacto convosco assim que chegar a alguma conclusão.
Jake pôs-se de pé antes de Callie conseguir falar:
- É estranho, não é, Carlyle, ver a nossa percepção de família, a percepção de quem somos, ser abalada num momento traiçoeiro?
Pegou na mão de Callie e fê-la levantar.
- Foi exactamente isso que lhe aconteceu a ela. Vamos ver se o senhor tem metade da coragem que ela tem. Metade da rectidão. Então faça lá o seu estudo, chegue lá
à sua conclusão. E lembre-se disto: vamos encontrá-lo. Nem que eu não faça mais nada na vida. Porque ninguém faz a Callie infeliz sem ser punido.
Ele apertou a mão de Callie, que o olhava fixamente:
- Excepto eu. Vamos.
Ela não disse uma palavra até terem saído.
- Foi um discurso final e tanto, Graystone.
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- Gostaste?
- Foi muito eficaz. Não tenho pensado muito em estar infeliz. Zangada, determinada, confusa, mas não infeliz.
- Mas estás.
- Não parece a coisa mais importante, no meio de tudo isto.
- Eu fiz-te infeliz. É uma coisa em que tenho pensado muito durante este último ano.
- Fizemo-nos infelizes um ao outro.
Ele pôs uma mão sob o queixo dela e fê-la virar o rosto para ele.
- Talvez sim. Mas de uma coisa tenho a certeza. Era mais feliz contigo do que sem ti.
As ideias misturavam-se na cabeça dela, recusando-se a fazer sentido.
- Raios partam, Jake - foi tudo o que conseguiu dizer.
- Achei que devias saber. Sendo uma mulher inteligente, serás capaz de concluir que prefiro ser feliz a ser infeliz. Por isso, vou recuperar-te.
- Eu não sou um... um iô-iô.
- Um iô-iô volta se tivermos a visão e os movimentos da mão coordenados. Tu não és um brinquedo, Dunbrook. Tu vales a pena. E agora queres ficar aqui num passeio
de Atlanta a discutir a minha felicidade futura?
- Não, não quero.
- Podemos ficar por aqui e tentar dar mais um empurrão a este tipo... ou podemos deixá-lo a ferver em lume brando. Os moves estão na cidade. Talvez consigamos ir
a um jogo. Ou podemos voltar para o norte e regressar ao trabalho.
- O que é isto? Não vais começar a dizer-me o que devo fazer? Ele recuou:
- Estou a tentar acabar com isso. Que tal estou a sair-me?
- Para dizer a verdade, não muito mal. - Cedeu ao impulso e tocou-lhe no rosto, e depois virou-se imediatamente, para voltar a observar o escritório de Richard Carlyle.
- Ele disse que não vê o pai há mais de quinze anos, mas o seu primeiro instinto foi defendê-lo.
- É instinto. Cultural, social, familiar. Ataca-se sempre o que vem de fora.
- Não acredito que ele não saiba onde está o pai. Talvez não tenha a morada exacta na cabeça, mas tem de saber como chegar até ele. Se insistirmos, o instinto dele
será fechar-se mais, correcto?
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- Provavelmente. Seguindo o teu raciocínio, ou para confrontar o pai com a informação que acabámos de pôr-lhe nas mãos, ou para avisá-lo.
- Não precisamos de preocupar-nos quanto ao aviso, porque o Carlyle já sabe que andamos à procura. Tenho a certeza disso. Vamos dar-lhe alguns dias. Por mim, vamos
voltar ao trabalho, na escavação e ao mesmo tempo sobre a lista de nomes que a Suzanne me deu.
- Acho que isso acaba com qualquer hipótese de uma suite no Ritz, aqui, e com a minha fantasia de embebedar-te e despir-te.
- Parece que sim. - Talvez fosse idiota, pensou, mas ela também estava mais feliz com ele do que sem ele. - Mas podes oferecer-me uma bebida no bar do aeroporto
e fazer insinuações sexuais.
- Se é o melhor que se pode arranjar, apanhemos um táxi e vamos a isso.
- Voltaste! - Bill McDowell veio a correr ter com Callie assim que ela chegou à escavação. O seu rosto jovem e sério ainda brilhava, do banho matinal.
Callie resmungou, enquanto o seu olhar atravessava o terreno irregular até ao local onde estava Frannie, da equipa vinda de West Virgínia.
- Só estivemos um dia fora, Bill.
- Sim, eu sei, mas ninguém sabia ao certo quando voltarias. Tive consulta no dentista logo de manhã, por isso é que não cheguei mais cedo.
- Hum-hum. Como correu?
- Bem. Óptimo. Sem problemas. Tens uns dentes muito bonitos. Ela conseguiu conter a gargalhada.
- Obrigado. - Notou a ascendência sobre o pessoal, a distância vertical que isso lhe conferia. - Vamos lá, Frannie.
Uma vez mais Jake tivera razão, desta feita sobre o casal de West Virginia. Frannie era muito magra, tonta e obcecada por Chuck, mas estava disposta a seguir instruções.
E, ao contrário de Bill, não lhe respirava junto ao pescoço, nem fazia perguntas continuamente.
Rodou o teodolito até focar a nova posição e anotar a segunda leitura. Entretanto, Bill pairava atrás dela.
Conseguia cheirar o aftershave dele, a nota do repelente de insectos e um borrifo de anti-séptico oral.
- Encontrei fragmentos de cerâmica, ontem - disse-lhe ele.
- Tenho fotografias, se quiseres ver. Tirei polaroids para os meus próprios registos. A Dory tirou as outras. Olá, Dory! Como vão as coisas?
283
- Olá, Bill. Alguma cárie?
- Na. Seja como for... aã... Callie?
- Ha?
- Fiz o relatório escrito, ontem à noite. Os fragmentos de cerâmica são mesmo fixes. O Digger diz que provavelmente são de uma panela. Tinham inscrições e tudo.
- Muito bem. - Anotou as medidas. - Já está, Frannie. Obrigado. - Começou a rabiscar os cálculos no seu bloco, enquanto falava distraidamente com Bill. - Continua
a escavar no mesmo sítio, hoje, para veres o que aparece.
- Estava à espera de poder trabalhar contigo.
- Talvez mais tarde.
- Bem, está certo. Seja como for, isto é tudo muito mais fixe do que eu pensei. Quero dizer, demora-se muito tempo, mas depois bam! Descobre-se qualquer coisa e
é um espanto! Mas se precisares de ajuda, posso trabalhar contigo ali. - Fez um gesto na direcção da área marcada como pertencente ao cemitério. - Com os ossos.
Acho que consigo aprender mais contigo num dia do que num mês com quem quer que seja.
Callie recordou a si própria que estava ali para ensinar e para escavar. A informação era tão essencial como a descoberta.
- Amanhã veremos.
- Espectáculo!
Foi a correr buscar a pá de pedreiro.
- Sabes, podes ficar com alergia com as pessoas a pairarem assim à tua volta - comentou Jake.
- Cala-te. Ele está só entusiasmado. Vai mas é buscar uma das tuas concorrentes a miss e começa uma nova triangulação. A Sonya, provavelmente. A Dory podia trabalhar
com ela.
-Já estão a alinhar. - Fez um gesto na direcção do local onde as duas mulheres estavam a trabalhar com fitas métricas e um fio de prumo. - A começar já na próxima
semana, só vamos ter a Sonya aos fins-de-semana. Começa a ter aulas a tempo inteiro.
- E a Dory?
- Está a pedir uma sabática. Não quer deixar a escavação. O Chuck e a Frannie vão ficar. O Matt também. O Bill não se ia embora, nem puxado por uma parelha de mulas.
Vamos perder alguns dos itinerantes, os estudantes dos primeiros anos
- O Leo está a tratar das substituições.
- Se vamos ficar com menos braços, vamos manter estes ocupados enquanto os temos.
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Separaram-se. Jake foi trabalhar naquilo a que chamavam "zona das cabanas" e Callie regressou ao cemitério.
Conseguia trabalhar com a batida da música rock de Digger, com o ruído das vozes da equipa, com o canto dos pássaros nas árvores, atrás de si. Conseguia trabalhar
na sua própria bolha de silêncio, impenetrável aos sons, imperturbável na sua concentração. Tinha a terra húmida entre os dedos, e a música dessa terra a passar
da pá para o balde. Tinha o sol nas suas costas e a brisa ocasional a refrescá-las.
Usava uma pá de pedreiro, uma escova e procurava escavar arduamente o passado, mantendo o espírito cuidadosamente focalizado nos elementos que conhecia sobre si
própria.
William Blakely, o obstetra de Suzanne Cullen, reformara-se doze anos depois de ter ajudado uma menina saudável a nascer. Quatro quilos. Morrera de cancro da próstata
catorze anos depois, tendo-lhe sobrevivido a sua mulher, que fora também sua secretária e enfermeira, e os seus três filhos.
A recepcionista de Blakely reformara-se também no período em questão, mas mudara-se para outra zona.
Tencionava visitar a viúva e descobrir mais sobre a recepcionista, assim que fosse possível.
Iria localizar a enfermeira-parteira que assistira Suzanne em ambos os partos. E a companheira de quarto que ela tivera enquanto estivera no hospital.
O pediatra que Suzanne escolhera continuava a exercer. Iria falar com ele também.
Era uma espécie de triangulação, pensou. Cada um daqueles nomes era uma espécie de ponto no futuro do seu passado. Iria marcá-los, medi-los, esquematizá-los. E iria
conseguir formar a teia que começaria a dar-lhe uma ideia do que estava no subsolo.
Meticulosamente, escovou a terra do maxilar de um crânio.
- Quem foste? - perguntou em voz alta.
Estendeu a mão para pegar na máquina fotográfica e, como não a encontrou, olhou para cima.
- Está aqui. - Dory acocorou-se e enquadrou o crânio. - Fui escolhida para ir buscar o almoço. - Levantou-se e mudou de posição para tirar mais uma série de fotografias,
de outro ângulo. - Chamo-me Dory e hoje vou servi-la. O que quer comer?
- Era capaz de comer uma dessas enormes sandes de almôndegas, com molho extra e queijo. Um pacote de batatas fritas... Vê se têm natas e cebola.
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- Como come dessa maneira e continua elegante? Só de olhar para um pacote de batatas fritas engordo dois quilos. - Dory pousou a máquina fotográfica. - Odeio mulheres
como a Callie. Vou comer iogurte, para variar.
Tirou o bloco do bolso para anotar o pedido de Callie.
- Precisas de dinheiro?
- Não, os ganhos ao póquer têm sido bons. Por falar nisso, estamos a tentar organizar um jogo de póquer para esta noite. Interessada?
- Sim, mas tenho de trabalhar.
- Toda a gente precisa de descontrair. Não tirou uma noite de folga desde que comecei a trabalhar aqui. E quando não está na escavação, está a viajar. Foi a Atlanta
e voltou ontem, um dia no laboratório a semana passada...
- Como sabes que fui a Atlanta?
Dory recuou, notando a desconfiança na voz de Callie:
- A Rosie falou nisso. Disse que a Callie e o Jake iam a Atlanta, em negócios. Desculpe, não queria meter-me onde não sou chamada.
- Não te meteste onde não és chamada. Ouve, apareço se conseguir, mas tenho umas coisas para fazer, num outro projecto, e para isso preciso de tempo.
- Claro. Se aparecer, é só arranjarmos mais uma cadeira. - Dory pôs-se de pé, escovou os joelhos e depois apontou para o crânio.
- Aposto que ele não comeu muitas sandes de almôndegas ao almoço.
- É pouco provável.
- E viva o progresso - disse Dory, encaminhando-se para o carro. Callie esperou até ela ter-se afastado e saltou do buraco. Fez um gesto na direcção de Rosie e foi
até ao frigorífico.
- O que se passa? - perguntou-lhe Rosie.
- Disseste a alguém que estive em Atlanta ontem?
Rosie tirou do frigorífico uma garrafa de Gatorade com o seu nome escrito.
- Provavelmente. - Bebeu um longo gole. - Sim, o teu admirador não tão secreto como isso estava um bocado perdido por não estares aqui. Disse-lhe que tinhas ido
ao sul, tratar de umas coisas, e que voltavas dali a um dia ou dois. Devo ter dito mais alguma coisa. Era uma missão secreta, ou qualquer coisa assim?
- Não. - Rodou o ombro. - Acho que só estou um bocado tensa. - Franziu o sobrolho ao olhar para onde Bill estava a trabalhar.
- Ele perguntou-te mais alguma coisa sobre mim?
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- Sim, perguntou. O que gostas de fazer nos tempos livres. Se tens namorado.
- Namorado? Não brinques comigo!
- Lança uns olhares amuados e de desafio ao Jake, quando tem a certeza absoluta de que ele não está a olhar. E a ti, brinda-te com olhares de carneiro mal morto.
- Tem doze anos!
- Vinte e quatro. Vá lá, Callie. - Rosie deu-lhe uma cotovelada amistosa nas costelas. - É um doce. Sê simpática com ele.
- Eu sou simpática com ele.
Mas aquilo fê-la pensar em percepções, em dinâmica de grupo e em coscuvilhices. Por isso, decidiu ir atrás das próximas peças do puzzle sem Jake.
Lorna Blakely tinha cabelo grisalho, cor de aço, usava lentes bifocais e tinha quatro gatos. Manteve a porta com a rede mosquiteira fechada e espreitou com desconfiança,
enquanto os gatos se queixavam e andavam à volta dela.
- Não conheço nenhuns Dunbrook.
- Não, minha senhora. Não me conhece. - A vizinhança de Hagerstown parecia calma e pacífica. Callie perguntou-se o que levaria a mulher a ser tão paranóica e por
que razão acreditaria que uma porta com rede mosquiteira impediria alguém de entrar em casa à força.
- Gostaria de falar consigo sobre uma das pacientes do seu marido, Suzanne Cullen.
- O meu marido morreu.
- Sim, minha senhora. Ele era o médico de Suzanne Cullen. Ajudou os dois filhos dela a nascer. Lembra-se dela?
- Claro que me lembro dela. Não estou senil. Vive lá para o sul da região e é famosa pelos bolos que faz. Era uma mulher jovem e simpática, tinha uns filhos lindos.
Um foi raptado. Uma coisa terrível.
- Sim, minha senhora. É sobre isso que gostaria de falar consigo.
- É da polícia? Isso deve ter acontecido há trinta anos. Falei com a polícia, nessa altura.
- Não, não sou da polícia. - Até que ponto, pensou Callie, poderia confiar nos seus instintos, no seu juízo? Eles diziam-lhe que esta mulher pequena e desconfiada,
com o seu rancho de gatos, não era o tipo de pessoa que vendesse no mercado negro os bebés que o marido passara a vida a trazer ao mundo. - Sr.a Blakely, sou a bebé
que foi raptada. Sou a filha de Suzanne Cullen.
287
- Porque diabo não disse logo isso? - Lorna destrancou a porta e abriu-a. - Como está a sua mãe? Não ouvi dizer que a tinham encontrado. Não ouço muito as notícias.
Não ouço, desde que o Wilm faleceu.
- Descobri há pouco tempo. Gostava de fazer-lhe algumas perguntas que pudessem ajudar-me a perceber o que aconteceu.
- Mas que maravilha! - Lorna abanou a cabeça, espalhando alguns ganchos prateados. - Parece uma daquelas coisas dos Mais Procurados da América. Acho que é melhor
sentar-se.
Conduziu-a a uma pequena sala de estar com duas mesas de café a condizer uma com a outra, dois candeeiros de porcelana idênticos, um sofá e uma cadeira estofados
com o mesmo tecido às flores azuis e cor-de-rosa.
Lorna sentou-se na cadeira e pousou os pés numa otomana a condizer. Quando Callie se sentou no sofá, os gatos saltaram-lhe para o colo.
- Não lhes ligue. Não têm muita companhia. A menina da Suzanne, passado todo este tempo! Não é espantoso? Parece-se com ela, agora que penso nisso. Boa a criar filhos
- acrescentou. - Fez as duas gravidezes com uma perna às costas. Rapariga forte, cheia de saúde, por isso era de partir o coração vê-la depois de ter perdido aquele
bebé.
- A senhora trabalhava com o seu marido.
- Claro que sim. Trabalhei com ele durante vinte e dois anos.
- Será que se lembra, quando ele assistiu a Suzanne durante a gravidez, se alguém fez perguntas sobre ela, ou parecia especialmente interessado nela?
- A polícia fez perguntas quando aquilo aconteceu. Não soubemos dizer-lhes nada. O Wilm ficou destroçado. Aquele homem adorava os seus bebés.
- E as outras pessoas que trabalhavam no consultório do seu marido, naquela altura?
- Tinha uma recepcionista, e outra enfermeira. A Hallie, esteve connosco dez anos. Não, onze. Onze anos.
- Hallie era a outra enfermeira. E Karen Younger, a recepcionista?
- Mudou-se da cidade para aqui. D.C. Trabalhou connosco uns seis anos, depois o marido foi transferido para o Texas. Todos os anos me manda um cartão de Natal. Sempre
disse que tinha saudades do Dr. Wilm. Era uma boa rapariga. O Billy ajudou a nascer o segundo filho dela, um rapaz. Trabalhou para nós mais dois anos, antes de se
mudarem.
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Vozes do Tassado
- Sabe para onde foram, no Texas?
- Claro que sei. Não lhe disse que não estava senil? Houston. Já têm dois netos.
- Será que podia dar-me a morada dela e a de Hallie? Para eu poder contactá-las, no caso de se lembrarem de alguma coisa.
- Não sei de que possam lembrar-se agora que não se lembrassem naquela altura. Um estranho qualquer raptou-a. Foi isso que aconteceu. Há pessoas para tudo.
- Também havia pessoas no hospital. Pessoas que conheciam o seu marido, que sabiam que a Suzanne tinha tido um bebé. Pessoal auxiliar, enfermeiras, outros médicos.
Uma das enfermeiras-parteiras assistiu a Suzanne nos dois partos. Lembra-se do nome dela?
Lorna encheu as bochechas de ar e soprou:
- Pode ter sido a Mary Stern, ou a Nancy Ellis. Não posso dizer ao certo, mas o Wilm costumava pedir quase sempre uma delas.
- Ainda moram nesta zona?
- Tanto quanto sei. Perde-se o rasto às pessoas quando se fica viúva. Se quiser falar com todas as almas abençoadas que trabalhavam no hospital naquela altura, fale
com Betsy Poffenberger. Trabalhou lá mais de quarenta anos. Não há nada que ela não saiba sobre quem quer que seja que passou por lá. Estava sempre a meter o nariz
nos assuntos dos outros.
- Onde posso encontrá-la?
Betsy vivia a vinte minutos dali, num empreendimento que Callie recordou ter sido construído por Ronald Dolan.
- Foi a Lorna Blakely que a mandou? - Betsy era uma mulher robusta, com o cabelo preto como carvão apanhado numa bola armada com laca. Estava sentada no alpendre,
com um par de binóculos à mão. - Perua velha. Nunca se importou comigo. Pensava que eu tinha um fraco pelo Wilm dela. Nessa altura, eu não era casada, e na cabeça
da Lorna qualquer mulher que não fosse casada andava a rondar, à espera de caçar a presa.
- Ela pensou que pudesse dizer-me quem estava na sala de partos com Suzanne Cullen quando a filha dela nasceu. Talvez quem compartilhou o quarto dela enquanto ela
esteve no hospital. Os nomes das enfermeiras e do pessoal que trabalhava na ala da maternidade. Esse tipo de coisas.
- Foi há muito tempo. - Olhou para Callie. - Vi-a na televisão.
- Faço parte do projecto arqueológico de Antietam Creek.
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- É isso! É isso! Não espera que lhe vá dizer tudo sem saber porquê.
- Sabe que a filha de Suzanne Cullen foi roubada, não sabe? Tem a ver com isso.
- É arqueóloga ou detective?
- Às vezes, ser uma ou outra é a mesma coisa. Ficar-lhe-ia muito agradecida por qualquer ajuda que pudesse dar-me, Sr.a Poffenberger.
- Tive tanta pena da Sr.a Cullen, quando isso aconteceu. Toda a gente teve. Coisas dessas não acontecem por aqui.
- Desta vez aconteceram. Lembra-se de alguma coisa, de alguém?
- Durante semanas, não se falou de mais nada. Alice Lingstrom era enfermeira-chefe no andar da maternidade. É uma grande amiga minha. Ela, a Kate Regan e eu falámos
nisso muitas vezes, nos intervalos do trabalho e à hora do almoço. A Kate trabalhava na administração. Andámos na escola juntas. Não posso dizer que me lembre de
grandes pormenores, mas posso tentar saber. Ainda tenho os meus circuitos - disse, com uma piscadela de olho. - Acho que posso fazer isso. Jay Cullen foi professor
do filho da minha irmã. O Mike é uma cabeça de vento, mas a minha irmã disse que o Sr. Cullen fez um trabalho especial com ele, para ajudá-lo. Por isso, acho que
posso ver o que consigo saber.
- Obrigado. - Callie pegou num pedaço de papel e anotou o seu telemóvel. - Pode contactar-me através deste número. Agradeço-lhe qualquer informação que consiga obter.
Betsy olhou para o número e franziu os lábios, e depois olhou para o rosto de Callie quando esta se levantou:
- É parente dos Cullen?
- Parece que sim.
O jogo de póquer já tinha começado quando Callie chegou. Ouvia o ruído das fichas, vindo da cozinha. Virou-se para os degraus, na esperança de conseguir subi-los
e entrar no seu quarto sem ninguém dar por isso.
Mas Jake parecia ter um radar em relação a ela. Ia a meio caminho quando ele a agarrou pelo braço, fazendo-a virar e voltar a descer as escadas.
- Ei! Tira as mãos!
- Vamos dar um passeio. - Manteve-lhe o braço agarrado e fê-la atravessar a porta. - Para ninguém poder interferir quando eu te bater.
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- Se continuas a arrastar-me desta maneira, ficas espalmado no chão a olhar para o céu.
- Porque te esgueiraste?
- Não me esgueirei. Saí. No meu carro pintado de fresco.
- Onde foste?
- Não tenho que te dar satisfações.
- Onde foste, e porque tinhas o telefone desligado para eu não poder telefonar e gritar contigo?
Quando chegaram junto do ribeiro, ela soltou o braço:
- Tinha umas voltas a dar e queria dá-las sozinha. Não quero ter toda a gente a falar de nós porque andamos sempre juntos. Sabes como é fácil a coscuvilhice crescer
numa escavação.
- Que se lixe a coscuvilhice. Ocorreu-te que eu podia estar preocupado? Passou-te pela cabeça que eu ficaria preocupado sem saber onde estavas e sem conseguir contactar-te?
- Não. Ocorreu-me que ficarias zangado.
- E estou zangado!
- Não quero saber disso, mas não queria preocupar-te. - E viu, muito claramente, que o tinha preocupado. - Desculpa.
- O que disseste?
- Disse "desculpa".
- Pediste desculpa sem ser preciso levar-te à submissão, primeiro. - Levantou as mãos e olhou para o céu. - É um dia de milagres.
- E agora vou dizer-te o que deves fazer com a desculpa.
- Hum-hum. - Tomou-lhe o rosto entre as mãos e pressionou os lábios contra os dela. - Vou gostar de ouvir.
Como ela não o pontapeou nem o empurrou, puxou-a mais para si. Aprofundou o beijo e deixou que os dedos deslizassem por entre os cabelos dela.
Os lábios dele eram quentes e suaves. As suas mãos, mais persuasivas do que possessivas. Esta, pensou ela enquanto se deixava flutuar no beijo, não era a forma como
ele costumava mostrar que estava zangado. Não, pela experiência que tinha. De facto, não se lembrava sequer de ele a ter beijado assim, alguma vez.
Com paciência e com carinho. Como se ela fosse realmente importante, pensou.
- O que se passa contigo? - murmurou ela contra a boca dele.
- Eu é que pergunto. - Recuou um pouco e soltou um suspiro profundo. - É melhor conversarmos, ou vou esquecer-me porque estou zangado contigo. Onde foste?
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Ela quase recusou dizer-lhe, mas percebeu que era apenas uma reacção automática. Tu pedes, eu recuso, pensou. E não chegamos a lado nenhum.
- E se nos sentássemos? - Sentou-se na margem do ribeiro e contou-lhe.
292

Dezassete

Callie estava sentada de pernas cruzadas, no chão, a preencher um registo de objectos encontrados. As folhas estavam presas a um bloco, com uma mola, e flutuavam
na leveza da brisa.
Havia vozes por todo o lado. A equipa alargava-se ao fim-de-semana, com escavadores amadores e estudantes curiosos. Leo falava em organizar uma oficina de formação
no mês seguinte, para conseguir mais ajuda e mais interesse antes do final da temporada.
Callie imaginou que nesta parte do mundo o Outono fosse uma altura perfeita para acampar e fazer formação de campo. Alguns dos que se inscreviam valiam menos do
que o trabalho que davam, mas ela não se importou com a ideia, desde que o projecto obtivesse projecção e conseguisse mais braços para trabalhar.
Ocasionalmente, ouvia um carro estacionar junto à linha de vedação, e as vozes. Um dos estudantes fazia a visita guiada e respondia às perguntas dos turistas ou
dos habitantes da cidade que ali apareciam.
Uma sombra cobriu-a, mas ela continuou a escrever:
- Podes levar esses baldes para a pilha de detritos. Mas não te esqueças de os trazeres outra vez.
- Teria muito gosto, se soubesse o que é uma pilha de detritos e onde posso encontrá-la.
Callie virou a cabeça e protegeu os olhos com a palma da mão. Teve um baque ao ver Suzanne, de óculos de sol e chapéu. Foi quase como olhar para uma antiga versão
de si própria.
- Desculpe, pensei que fosse alguém da equipa.
- Ouvi-te na rádio, esta manhã.
- Sim, o Jake, o Leo e eu falamos à vez com a imprensa.
293
- Pelo que dizes, parece tudo tão fascinante. Pensei que estava na altura de vir até cá e ver com os meus próprios olhos. Espero que não haja inconveniente.
- Não, claro. - Callie pousou o bloco e levantou-se. - Então...?
- Meteu os polegares nos bolsos, para manter as mãos quietas. - O que acha?
- Para dizer a verdade - Suzanne olhou em volta - é mais organizado do que imaginei. E tem mais gente.
- Conseguimos cativar muitos voluntários ao fim-de-semana.
- Sim, estou a ver - disse ela, sorrindo ao ver o pequeno Tyler revolver um pequeno monte de terra com uma pá. - E é de pequenino que se começa.
- É o filho da Lana Campbell. Vem todos os sábados. Damos-lhe detritos que já peneirámos. Um de nós põe alguns achados sem importância na pilha de terra que lhe
destinamos. Ele fica todo contente. Tiramos a terra, e depois peneiramo-la para não falhar nenhum artefacto pequeno.
- E cada pedacinho diz alguma coisa sobre quem viveu aqui e como. Se compreendi a tua entrevista na rádio.
- É isso mesmo. Temos de descobrir o passado para compreendermos o passado, e compreendê-lo para o reconstruirmos. - Fez uma pausa para ouvir o eco das suas próprias
palavras. - É isso que estou a tentar fazer, Suzanne.
- Sim, eu sei que sim. - Suzanne tocou com a mão o braço de Callie. - Não estás à vontade comigo, e em parte isso é culpa minha, por me ter ido abaixo no escritório
de Lana, no outro dia. O Jay deu-me uma lição e tanto sobre o assunto.
- Bem, estava compreensivelmente...
- Não, não compreendes. - E havia um lamento calmo naquelas palavras. - O Jay não é um homem que normalmente chateie quem quer que seja. É tão paciente, tão calmo.
Esta foi uma das razões por que me apaixonei por ele quando tinha aí uns seis anos de idade. Mas, no outro dia, perdeu as estribeiras. Foi completamente inesperado.
E era exactamente disso que eu estava a precisar, acho eu.
- Calculo que isto também não seja fácil para ele.
- Não, não é. E essa foi uma coisa que eu achei muito conveniente ir esquecendo com os anos. Antes que isto vá mais longe, preciso de dizer-te que não vou voltar
a sujeitar-te a este tipo de pressão.
Soltou um pequeno suspiro, uma espécie de riso:
- Vou tentar não voltar a sujeitar-te a este tipo de pressão. Quero
294
conhecer-te, Callie. Quero ter essa oportunidade. Quero que me conheças. Sei que estás a tentar... reconstruir o que se passou. A Betsy Poffenberger telefonou-me,
esta manhã. Também te ouviu na rádio.
- É um programa popular.
- Ao que parece. Disse-me que foste falar com ela. Disse que queria saber se eu me importava que ela te desse alguma informação, mas o que ela queria mesmo era tirar
nabos da púcara. Não lhe disse nada, mas as pessoas estão a começar a juntar dois e dois.
- Eu sei. Isso incomoda-a?
- Ainda não sei. - Levou uma mão ao estômago. - Estou sempre nervosa. A ideia de responder a perguntas quando ainda nada está concluído é difícil. Mais difícil do
que eu podia ter imaginado. Mas consigo lidar com isso. Sou mais forte do que te fiz pensar que era.
- Li algumas das suas cartas. Acho que é uma das mulheres mais fortes que conheço.
- Ah, bom. - Sentindo os olhos ameaçados pelas lágrimas, Suzanne virou a cabeça. - Mas que bela coisa, vinda de uma filha crescida. Gostava mesmo muito que me dissesses
mais sobre o teu trabalho aqui. Gostava de compreender melhor o que fazes e de te compreender melhor a ti. Gostava que nos sentíssemos à vontade uma com a outra.
Isso seria suficiente, por agora. Sentirmo-nos à vontade uma com a outra.
- Estou a trabalhar nesta secção. - Fazendo um esforço, Callie pegou no braço de Suzanne e fê-la virar-se. - Estamos a confirmar os indícios de que esta área foi
um povoado neolítico. E esta secção era o cemitério. Pode ver aqui, desenterrámos parte de um muro baixo, que pensamos que a tribo construiu para delimitar o cemitério.
À medida que vamos escavando os ossos... A propósito, os ossos são a minha especialidade.
- Os ossos são a tua especialidade?
- Sim. Quase segui arqueologia forense, mas passa-se demasiado tempo no laboratório. E eu gosto de escavar. Venha aqui ver uma coisa doce. Descobri-a um destes dias.
Baixou-se para pegar no seu bloco, folheou-o para trás e tirou uma fotografia de um crânio.
-Já está no laboratório, por isso não posso mostrar-lho ao vivo.
- Isto serve. - Suzanne pegou na fotografia cautelosamente.
- Tem um buraco. É um ferimento?
- Trepanação. Uma operação - explicou Callie quando Suzanne olhou para ela sem compreender. - Raspavam ou cortavam o osso,
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usando uma faca de pedra ou um instrumento perfurante. Podemos especular que o objectivo tenha sido aliviar a pressão craniana causada por fracturas ou tumores.
- Estás a brincar.
- Não. Estava gravemente doente. A questão é que tentaram, não tentaram? Por mais grosseiro que fosse o tratamento, tentavam tratar os doentes e os feridos. Uma
tribo reúne-se para defesa e sobrevivência e acaba por constituir um povoado. Habitação, rituais. Pode falar com o Graystone, se se interessa por esse tipo de coisas.
Caçavam, recolhiam plantas comestíveis, organizavam tarefas, a liderança, tratavam os doentes, viviam com um parceiro. Cultivavam - acrescentou, apontando para uma
zona ainda intacta. - Cereais, domesticavam animais. De povoado a aldeia, de aldeia a cidade. De cidade a grande cidade. Porquê? Porquê aqui, porquê eles?
- Começa por descobrir-se o quem e o como.
- Sim. - Satisfeita, Callie olhou para Suzanne e continuou.
- Para isso, há que examinar o local. Isto, quando se tem autorização para escavar, apoio financeiro e uma equipa. Há que fazer registos. Quando se começa a escavar,
destrói-se o local. Todos os passos e todas as fases têm de ser registados ao pormenor. Medidas, leituras, fotografias, esboços, relatórios.
Jake observou Callie, enquanto esta mostrava a Suzanne o sítio arqueológico. Conseguia adivinhar o estado emocional de Callie pela linguagem corporal. Retraíra-se
no momento em que vira Suzanne, depois ficara na defensiva, passara em seguida ao desconforto e agora estava descontraída.
Estava no seu elemento, pensou, notando como ela usava as mãos para gesticular, para fazer desenhos.
- É bonito, vê-las juntas - disse Lana, colocando-se ao lado de Jake. - Ver que são capazes de estar assim, juntas. Não deve ser fácil para nenhuma delas, tentar
encontrar um terreno comum sem invasão de propriedade. É um desafio, particularmente para Callie, acho eu, porque tem de estar em várias frentes.
- E isso significa...?
- Ora, acho que percebes bem o que significa. Este projecto é a sua grande aposta profissional, agora, e é algo que a desafia e a entusiasma. Ao mesmo tempo, está
a lidar com o trauma de encontrar respostas para o seu passado, tentando forjar uma relação com Suzanne com a qual ambas possam viver. E dentro, em volta e em cada
passo de tudo isso estás tu. Pessoalmente, profissionalmente, seja de que forma for. E não leves a mal o que vou dizer-te...
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- Leve eu a mal ou não, pareces-me uma mulher que diz o que tem a dizer.
- Tens razão. E tu pareces-me um homem difícil. Sempre gostei de homens difíceis porque raramente são aborrecidos. A juntar a isso, gosto muito da Callie. Por isso,
gosto de vê-la mais à vontade com a Suzanne, e gosto de ver-vos aos dois a tentar acertar as coisas um com o outro.
- Há muito tempo que andamos a tentar acertar as coisas. - Virou-se ao ouvir Ty, que corria para ela com um osso firmemente seguro na mão fechada.
- Olha! Olha o que eu aqui tenho! Achei um osso!
Jake riu ao ouvir o som baixo e abafado, de repulsa feminina que Lana tentou abafar. Levantou Ty no ar, de maneira a fazê-lo abanar o osso perto da cara da mãe.
- É fixe, não é, mamã?
- Hum-hum. Muito fixe.
- É de uma pessoa? Uma pessoa morta?
- Ty, não sei onde foste buscar esse gosto vampiresco por pessoas mortas.
- As pessoas mortas são fixes - disse Jake, muito sério. - Vamos dar uma vista de olhos. - Mas continuou a observar Callie.
- Porque não perguntamos à especialista?
- E cortejar uma mulher com ossos não é vampiresco? - disse Lana entredentes.
- Não quando se trata de Callie. Ei! Encontrámos uma coisa, Dr.a Dunbrook.
- É um osso! - gritou Ty, agitando-o como uma bandeira enquanto Callie se aproximava com Suzanne.
- E é mesmo! - Callie aproximou-se mais e examinou-o cuidadosamente.
- É de uma pessoa morta? - perguntou Ty.
- É de um veado - disse ela, vendo o desapontamento no rosto dele. - É uma descoberta muito importante - disse-lhe ela. - Alguém caçou este veado para a tribo poder
comer. Para poderem fazer roupas e ferramentas e armas. Estás a ver aqueles bosques, Ty? Passou a mão pelo cabelo quando se virou para apontar. - Talvez esse veado
tenha andado por aqueles bosques. Talvez um rapazinho, pouco mais velho do que tu, tenha ido caçar com o pai e o irmão, o tio, num dia exactamente como o de hoje.
Estava entusiasmado e sabia que tinha uma tarefa a cumprir. Uma tarefa importante. A sua família,
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a sua tribo, dependia dele. Quando ele trouxe este veado, talvez tenha sido a primeira vez que cumpriu essa tarefa. E tu tens isto para te recordares dele.
- Posso levá-lo para mostrar na escola?
- Vou mostrar-te como podes limpá-lo e catalogá-lo.
Ele estendeu os braços para Callie e Callie estendeu os seus para ele. Por um momento, ela e Jake seguraram a criança ao mesmo tempo. Sentiu uma espécie de frio
na barriga quando os olhos de ambos se cruzaram.
- Ah, talvez possas explicar a escavação à Suzanne do ponto de vista antropológico - disse ela. - O Ty e eu temos... ah ah... um osso para limpar.
- Claro.
- Este mundo é muito estranho, não é? - disse Suzanne quando Callie se afastou com Tyler.
- É, minha senhora.
- É meu genro. Mais ou menos. E como não conheço as circunstâncias do seu relacionamento com Callie, não sei se devo estar zangada consigo, ou desapontada consigo,
ou se devo ter pena de si.
- Provavelmente, mereço um pouco das três hipóteses.
- Estava à espera dela, à porta do escritório de Lana, no dia em que nos encontrámos lá todos. E foi com ela a Atlanta. Isso significa que anda de olho nela?
- É isso mesmo.
- Ainda bem.
Ele pensou durante um momento e depois tirou a carteira do bolso. Certificando-se de que Callie estava ocupada com Ty, abriu-a e tirou de lá uma fotografia.
- Não posso dar-lha - disse ele. - Só tenho essa. Mas pensei que gostasse de vê-la. Uma foto do casamento. Ou lá o que foi. Fomos até Las Vegas e fomos a um daqueles
sítios de casamentos rápidos. Para dizer a verdade, escolhemos o de maior gosto duvidoso possível. Pedimos a um tipo que nos tirasse esta, à saída.
A fotografia mostrava algumas dobras e outros sinais de uso, mas as cores ainda estavam brilhantes e vivas. Callie escolhera vermelho gritante para o vestido de
noiva, e "vestido" era um exagero. Era curto, reduzido ao mínimo, sem alças. Tinha uma rosa vermelha atrás da orelha e ambos os braços à volta da cintura de Jake.
Ele estava de fato escuro e tinha uma gravata com um papagaio verde e azul sobre fundo vermelho. Tinha os braços em volta dela.
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A parede atrás deles era cor-de-rosa rebuçado, e na parede vermelha, em forma de coração, podia ler-se CARROSSEL DOS CASAMENTOS. Ambos sorriam como idiotas e pareciam
ridiculamente felizes.
- Foi ela que escolheu a gravata - comentou Jake. - Deixe-me dizer-lhe que foi a primeira e a última vez que me meti numa destas. Veja, havia aquela espécie de carrossel
onde nos sentávamos, com cavalos vestidos de noivas e noivos. Ficávamos ali sentados enquanto o carrossel dava voltas e um tipo vestido de palhaço... enfim.
- Parecem terrivelmente apaixonados - conseguiu Suzanne dizer. - Estupidificados.
- Sim, a estupidez foi o tema.
- Ainda está apaixonado por ela.
- Olhe para ela. Como raio se tira uma coisa daquelas de dentro de nós? Bem... - Fechou a carteira e voltou a metê-la no bolso.
- Como é minha sogra, mais ou menos, que tal fazer-me uns daqueles brownies com nozes?
Ela sorriu para ele:
- Talvez faça, porque não?
- Se isso pudesse ficar entre nós... Porque se algum daqueles porcos lá em casa descobre, tenho sorte se conseguir ficar com as migalhas. - Um ruído chamou-lhe a
atenção. - Hoje parece ser o dia das visitas.
Suzanne olhou para o local onde um carro acabava de estacionar.
- É o Doug. Não pensei que voltasse tão cedo. - Encaminhou-se na direcção da vedação e depois deteve-se, quando viu Lana correr para ele e o filho agarrá-la pela
cintura, levantá-la do chão e beijá-la com a vedação entre ambos.
- Oh! - Suzanne levou a mão ao coração, que disparou subitamente. - Bem, não me tinha apercebido disto.
- Algum problema? - perguntou-lhe Jake.
- Não, não - declarou. - Apenas uma surpresa. - Viu Ty correr para eles, ainda agitando o osso de veado na mão. Quando Doug saltou por cima da vedação e se acocorou
para olhar para o osso, Suzanne pressionou com mais força a mão que tinha sobre o coração.
- Uma grande surpresa.
Doug observou o osso, ouviu a tagarelice de Ty, e depois abanou a cabeça:
- Isto é muito fixe. Não sei se vais querer o que tenho aqui, se já tens uma coisa dessas.
- O que é? - perguntou Ty com entusiasmo, enquanto olhava para o pequeno saco que Doug tinha na mão. - É para mim?
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- Sim, mas se não quiseres, fica para mim. - Doug meteu a mão no saco e tirou lá de dentro um tiranossauro do tamanho da palma da mão.
- É um dinossauro! É um T-Rex! - Ty lançou-se ao pescoço de Doug, com a gratidão e o amor que um rapazinho de quatro anos possui em abundância. - É o maior! Posso
ir enterrá-lo e desenterrá-lo outra vez?
- Claro! - Endireitou-se enquanto Ty corria para a pilha de detritos. - Parece ser um sucesso. - Olhou para Lana e viu-a sorrir para ele. - Queres um presente?
- Quero.
Voltou a meter a mão no saco e viu-a ficar de boca aberta quando tirou lá dentro o presente dela.
- Isso é...
- É. Um mata-moscas com a forma oficial da guitarra do Elvis, em azul eléctrico. Após considerável pesquisa e debate, esta foi a coisa mais idiota que consegui encontrar.
Espero que sirva.
- É perfeita. - A rir, Lana lançou-lhe os braços ao pescoço, como Ty fizera.
- Senti a tua falta. Não sei se gosto disso ou não. Não estou habituado a sentir a falta de ninguém, mas senti a tua.
Ela recuou um pouco:
- Estás habituado a que sintam a tua falta?
- Nem por isso.
- Mas sentiram - disse ela, pegando-lhe na mão.
Callie acabara de pedir à equipa que arrumasse as coisas quando o último visitante chegou. Escavadores e estudantes iniciaram a rotina de recolher as ferramentas
para limpá-las e arrumá-las.
Bill McDowell aproximou-se, com os braços cheios de pás de pedreiro e de baldes.
- Queres que trate daquele, Callie? - Designou o sedan azul bebé, com um aceno de cabeça. - Não me importo.
- Deixa. - Callie viu Betsy Poffenberger levantar-se do assento do Camry azul que acabara de estacionar. - Eu conheço-a.
- Está bem. Ouve, alguns de nós vão acampar aqui, esta noite. Grelhar uns cachorros, beber umas cervejas. Só para estarmos juntos. Queres aparecer?
- Não sei. Talvez.
- Eu arrumo as tuas ferramentas.
300
- Obrigado. - Falou distraidamente, enquanto se afastava. - Sr.a Poffenberger.
- Ora vejam só. Todos estes buracos no chão! Todas estas trincheiras! São obra sua?
- Algumas. Estava à espera de notícias suas.
- Pensei em vir dar uma volta, dar uma vista de olhos. Ouvi-a na rádio, esta manhã. Pareceu-me muito científica.
- Obrigada. Descobriu alguma coisa? Betsy observou o rosto de Callie:
- Não me disse que era a filha da Suzanne Cullen.
- Isso faz alguma diferença?
- Claro que faz! É como uma história de mistério. Lembro-me de quando tudo aconteceu. A fotografia da Suzanne e do Jay Cullen veio no jornal. A sua também. Claro
que na altura era um bebé. E foram distribuídos folhetos com a sua fotografia, por Hagerstown inteira. E agora, aqui está. Não é incrível?
- Agradeço-lhe tudo quanto possa dizer-me. Se houver alguma coisa que possa ajudar-me, provavelmente haverá mais histórias nos jornais. Imagino que os repórteres
hão-de querer falar consigo.
- Acha? Seria incrível! Bem, falei com a Alice e a Kate, e a Alice lembrou-se que foi a Mary Stern a enfermeira-parteira quando os filhos da Suzanne Cullen nasceram.
Tem a certeza, porque disse que falou com a Mary sobre si, depois do seu desaparecimento. A Alice até é capaz de coscuvilhar sobre as fases da Lua, se tiver oportunidade
para isso. Consegui arranjar-lhe mais alguns nomes, pessoas de quem ela se lembrou. A enfermeira do turno da noite, e por aí fora. Não sei se continuam todas a viver
nesta zona.
Tirou um papel da mala.
- Procurei os nomes da lista telefónica. Tenho uma natureza curiosa. A Mary Stern vive na Florida, divorciou-se e voltou a casar. Teve um filho quase aos quarenta,
rapariga levada da breca. A Sandy Parker, aqui, morreu num acidente de automóvel há uns cinco anos. Uma coisa terrível, li nos jornais. Era ela que estava no turno
da noite.
Callie tentou pegar no papel, mas Betsy segurou-o com firmeza, ajustou os óculos e continuou a ler.
- Esta aqui, esta Barbara Halloway, só me lembrei quando a Alice falou nela. Não esteve no hospital mais de um ano, e também fazia o turno da noite. Eu não conhecia
bem muitas das que faziam o turno da noite, mas lembrei-me dela quando a Alice me refrescou a memória.
- Obrigado, Sr.a Poffenberger. Tenho a certeza de que isto vai ajudar.
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-Jovenzinha de nariz empinado - continuou ela. - Acabada de sair da escola de enfermagem. Ruiva, pelo que ouvi queria caçar um médico. E parece que caçou. Aqui não,
algures lá para o norte. Mudou-se, pouco depois de tudo ter acontecido. Por isso é que não me lembrei logo dela. Não gostava dela. Essa é uma daquelas que eu investigava,
se fosse a si. Tinha um ar esquisito.
- Obrigado, vou investigar. E depois digo-lhe aquilo que descobrir.
- Também há aí uns enfermeiros. Esse Jack Brewster também era fresco. Sempre de volta das enfermeiras, fossem casadas ou não.
- Dr.a Dunbrook? -Jake apareceu, com ar descontraído. - Desculpe interrompê-la, mas precisam de si na secção trinta e cinco.
- Ah, claro. Vai ter que desculpar-me, Sr.a Poffenberger. Mais uma vez, obrigado pelo seu tempo e pelo incómodo.
- Não se preocupe com isso. Telefone-me se precisar de mais alguma coisa. É como uma história de mistério.
Callie meteu o papel no bolso detrás das calças e afastou-se da vedação, enquanto Betsy entrava no carro.
- Não há nenhuma secção número trinta e cinco - declarou.
- Estavas a enviar sinais de pânico, por isso decidi vir salvar-te. -- Não era pânico, eram só os meus ouvidos a zumbir. Ela não se cala. - Callie soprou. - E fez-me
um enorme favor. Tenho nomes. Pelo menos uma dúzia de nomes.
- Como tencionas tratar do assunto?
--Acho que vou começar por fazer uma pesquisa na net. Ver quantos ainda estão vivos e vivem nesta zona. Vou partir daí.
- Queres ajuda?
- Tens andado muito solícito ultimamente.
Ele deu um passo em frente, inclinou-se para ela e mordeu-lhe o lábio inferior:
- Vou cobrar-te tudo.
- A ajuda dava-me jeito. E talvez até esteja disposta a pagar-te adiantado.
- Querida. - Os lábios dele afloraram os dela. - Não te preocupes. Confio em ti.
Quando ele se afastou, Callie abanou a cabeça.
- Mais um mistério - pensou.
Bill McDowell embebedou-se um pouco. Para isso, não era preciso mais do que uma cerveja, mas ele bebeu duas, só para ter a certeza de que se manteria assim durante
algum tempo.
302
Vira a forma como Jake agira com Callie. E, pior ainda, vira como ela lhe correspondera.
Ela não ia voltar ao sítio das escavações naquela noite para estar com ele, para conversar. Para deixá-lo olhar para ela.
Ele não era estúpido. Sabia o que estava a passar-se, naquele momento, naquele minuto exacto em que ele estava ali, a beber aquela segunda cerveja e a ouvir aquele
idiota do Matt tocar uma versão patética de "Free Bird" na guitarra.
Lynyrd Skynyrd, por amor de Deus! Mostra lá do que és capaz!
Naquele momento, em que ele estava a beber cerveja sob as estrelas, a ouvir o "Free Bird" e a ver os pirilampos enlouquecer na escuridão, aquele palerma do Jake
Graystone estava com a Callie.
Ela era boa demais para ele. Toda a gente conseguia ver isso. Era tão inteligente e tão bonita. E quando ria, aquelas três covinhas punham-no louco.
Se ela lhe desse uma hipótese, mostrava-lhe como um tipo deve tratar uma mulher. Bebeu a cerveja, imaginando-se a dar uma tareia em Jacob Graystone.
E era isso mesmo que ia acontecer.
Furioso, levantou-se, a cambalear e esforçando-se por conseguir concentrar-se.
- Calma aí, Poncho. - Divertido, Digger esticou o braço para ajudá-lo a segurar-se. - Quantas dessas é que já bebeste?
- Zero.
- Pois. Onde vais?
- Vou mijar. Importas-te?
- Não me importo nada - disse Digger, bem-disposto. - Queres usar a casa de banho da roulote
- Quero ir dar uma volta. - Dispensando amizades por entre a sua desgraça, Bill sacudiu o braço e libertou-se de Digger. - Há aqui gente a mais.
- Eu ouvi isso. Bem, vê lá não caias ao lago, que ainda te afogas.
- Decidindo que uma pausa para aliviar a bexiga era uma boa ideia, Digger encaminhou-se para a sua roulote.
Bill afastou-se das tendas, da música e da companhia. Talvez se metesse no carro e fosse até casa. Porque raio havia de querer ficar ali, se era lá que Callie estava?
Não sabia se ela estava na cama com Jake. Não tinha a certeza absoluta. Talvez ela quisesse sair e vir até à escavação, pensou ele enquanto caminhava com pouca firmeza
em direcção às árvores. Talvez ela quisesse ter vindo e Jake a tivesse retido à força.
303
Não ia aturar uma coisa daquelas àquele filho da mãe.
Ia até lá, fazer frente ao estupor e afastar Callie dele. Ela ficar-lhe-ia agradecida, pensou enquanto aliviava a bexiga.
Oh, Billie, graças a Deus! Estou tão contente por teres chegado! Ele está louco! Estava com tanto medo!
É, ia ser assim mesmo. Iria até lá tratar de tudo.
Imaginou Callie agarrada a ele, imaginou-a a olhar para ele, com aquelas covinhas a tremer enquanto sorria.
E, imaginando aquele primeiro beijo quente e grato, não ouviu o som atrás de si.
O golpe fê-lo estatelar-se no chão, de barriga para baixo. Gemeu enquanto o faziam rebolar em direcção ao lago, mas estava já a afundar-se na dor quando a cabeça
desapareceu debaixo de água.
- Muito bem, aqui está o esquema-base. - Jake usou papel de desenho, enquanto Callie estava ao computador.
Depois de alguma discussão, concordaram em trabalhar no escritório dele. Durante as primeiras duas horas trabalharam ao som do filme de acção que um dos membros
da equipa alugara. Depois, a casa ficara silenciosa, exceptuando o som do ressonar leve de Leo, vindo do sofá da sala.
Ela desviou o olhar do ecrã e observou o que ele fizera. Tinha de admitir: aquele homem era bom.
Colocara-a em posição central, com os pais de um lado e os Cullen do outro. A cada núcleo estavam ligados nomes relevantes.
Henry Simpson, Marcus Carlyle, Richard Carlyle, o pediatra de Boston, os nomes do pessoal que trabalhava com ele, estavam listados em secções, do lado dos pais de
Callie.
Os nomes das listas que Suzanne e Betsy Poffenberger tinham arranjado estavam do outro lado.
- Tu és a única ligação conhecida entre os dois lados - começou ele. Mas devem existir outras. É isso que precisamos de descobrir. Aqui estão os teus dados de partida.
O aborto espontâneo, a tua data de nascimento, o primeiro encontro que os teus pais tiveram com o Carlyle, e assim por diante.
- Vamos acrescentando dados relacionados com cada um desses nomes - acrescentou Callie.
- E vamos descobrindo as relações entre eles. Comeste a última bolacha?
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- Não fui eu que comi a última bolacha. Foste tu. E bebeste o que restava do café. Por isso, vai fazer mais enquanto eu insiro os dados que temos no computador.
- Tu fazes café melhor.
- Também sou mais rápida a escrever no computador.
- Eu não dou tantas gralhas.
- Sou eu que estou sentada na cadeira.
- Está bem, como queiras, mas depois não refiles se souber a água choca.
Ela sorriu, vitoriosa, enquanto ele saía do escritório. Ele detestava fazer café. Era uma daquelas coisas sem explicação. Lavava louça, cozinhava (desde que fosse
qualquer coisa parecida com o pequeno-almoço). Até lavava roupa sem se queixar muito. Mas refilava sempre quando tinha de fazer café.
Por isso, sempre que lhe dava a volta, sentia uma intensa satisfação.
Estavam a voltar a padrões antigos, pensou. Com algumas variações novas e interessantes. Não brigavam tanto, ou pelo menos não da mesma maneira. Por qualquer razão,
um deles - ou ambos - parecia ceder antes de a coisa ficar feia.
E não saltavam para o meio dos lençóis à primeira oportunidade. Essa... contenção, supôs ela, acrescentava uma espécie de tensão agradável a tudo aquilo.
Ainda se desejavam mutuamente: essa parte nunca mudaria. Mesmo depois do divórcio, quando ela estava a milhares de quilómetros de distância dele, em todos os sentidos,
continuou a desejá-lo.
Rebolar na cama de noite e sentir o corpo dela contra o dele. E a maneira como ele às vezes passava o braço pela cintura dela, só para mantê-la ali, junto dele.
Tinha saudades disso, dele.
Esperava que ele também tivesse saudades dela. Esperava que ele amaldiçoasse o nome dela como ela amaldiçoava o dele. E que sofresse.
Se ele a amasse tanto como ela o amava a ele, nunca se teria ido embora. Nunca teria conseguido ir-se embora, por mais que ela forçasse as coisas.
Se ele lhe tivesse dito o que ela precisava de ouvir, ela não teria tido que forçar nada.
Quando sentiu o velho ressentimento e a raiva começarem a ferver, travou-os. Isso acabara, recordou a si própria. Pertencia ao passado.
Havia algumas coisas que era melhor não desenterrar.
305
Ordenou àquelas ideias que desaparecessem, para poder concentrar-se nos dados que estava a reunir. Depois bocejou, enquanto reparava num artigo sobre Henry Simpson.
- Que raio de interesse tem um artigo da treta sobre um torneio de golfe para caridade?
Começou a passar os olhos distraidamente pelo artigo, quando de repente parou. Como se estivesse a peneirar os detritos, recordou a si própria. Podia ser um trabalho
chato, mas era um passo necessário.
- Quanto tempo leva a porcaria de um café a fazer? - perguntou ela, apoiando o queixo no cotovelo enquanto lia o artigo.
Quase lhe escapava. Os olhos continuaram antes de o cérebro ter registado a informação. Com o dedo no rato, voltou lentamente atrás.
- Acabou-se o leite - anunciou Jake, regressando com a cafeteira. - Por isso, por pior que esteja o café, tens de bebê-lo simples.
Pousou a cafeteira enquanto ela virava a cabeça e ele reparava na expressão dela.
- O que descobriste?
- Uma ligação. Barbara Simpson, Halloway de solteira.
- Halloway. Barbara Halloway. A enfermeira da maternidade!
- Não é coincidência. Curioso, ela não ter mencionado que trabalhava no hospital onde o bebé da Suzanne nasceu. Curioso, não ter mencionado que vivia nesta zona
quando o bebé da Suzanne foi roubado.
Jake pousou o café:
- Temos que verificar isso.
- Claro que sim! A Poffenberger estava desconfiada com ela. Havia ali qualquer coisa, disse ela. Uma ruiva de nariz empinado, acabada de sair da escola de enfermagem.
Aquela cabra esteve metida nisto, Jake. Simpson tem a ver com Carlyle, Halloway tem a ver com Simpson, e portanto com Carlyle. Simpson e Carlyle têm a ver com os
meus pais. E Halloway com Suzanne.
- Vamos verificar - repetiu ele. - Descobrir onde ela estudou. Aprofundar a coisa.
- Estivemos em casa deles. Estivemos em casa deles e eles transbordaram de choque e simpatia e ela serviu-nos a porcaria de uma limonada!
- Vamos fazê-los pagar por isso. - Pousou as mãos nos ombros dela, suavemente. - Prometo-te.
- Preciso de ir a Virgínia, confrontá-los com isto.
- Vamos assim que tivermos o resto dos dados sobre ela. Vamos juntos.
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Ela levantou uma mão e fechou-a sobre a dele.
- Ele segurou a mão da minha mãe. Usou o desgosto do meu pai. Vou fazê-los pagar muito caro.
- E com toda a razão. Deixa-me ir para aí um bocadinho.
- Não, eu faço isto. Preciso de fazer isto - disse ela, agarrando a mão dele com força quando viu o rosto dele fechar-se. - Preciso de fazer isto pelos meus pais,
pelos Cullen. Por mim própria. Mas não sei se consigo, se te afastares.
- Não vou a lado nenhum.
Desta vez pôs as mãos no rosto dele:
- Há muitas maneiras de nos afastarmos de alguém. Nunca conseguiria fazer-te entender isto. Tu fechas-te e eu não consigo encontrar-te.
- Se eu não me fechar, deixas-me desfeito.
- Não sei do que estás a falar. Nunca te magoei.
- Deixaste-me destroçado. Por amor de Deus, Callie, deixaste-me completamente destroçado!
As mãos dela caíram-lhe no colo, sem acção.
- Não é verdade! Não é verdade!
- Não me venhas com isso! - Mais furioso consigo próprio do que com ela, deu meia-volta em direcção à porta. - O coração é meu. Quem sabe sou eu!
- Tu... tu deixaste-me!
- Tretas! - Virou-se para trás. - Isso são tretas, Callie! Só tens memória para o que te convém. Vou dizer-te exactamente o que aconteceu... foda-se! - Fechou as
mãos com força quando o telefone tocou, em cima da secretária.
Atendeu, num gesto intempestivo.
- Graystone. - Passou os dedos pelo cabelo. De repente, ficou estático. E Callie pôs-se de pé, tremendo um pouco, quando viu a expressão dele. - Santo nome de Deus!
Como? Está bem. Mantenham-se todos calmos. Vamos já para aí.
- O que foi? - perguntou ela. - Quem se magoou?
- O Bill McDowell. Não está magoado, Callie. Está morto.
307
Dezoito

Callie sentou-se no chão, à beira do terreno de pousio do outro lado da escavação. O céu estava pejado de estrelas, todas elas bem visíveis e brilhantes, como se
tivessem sido gravadas a laser em vidro negro. E a meia-lua era um globo branco cortado com um machado de sílex.
O ar era fresco quando a brisa soprava. O Outono parecia estar já a caminho das montanhas.
Callie ouvia o chiar dos insectos na erva e o ladrar rouco ocasional do cão do outro lado da estrada, que protestava contra a actividade nocturna que perturbara
a sua rotina.
Os donos da quinta e do cão vieram ver qual era a razão do alarido. Embora tivessem voltado para dentro, a casa da quinta estava agora iluminada.
Callie saíra de casa a correr, com Jake, minutos depois do telefonema, seguidos por Rosie e Leo. Tinham chegado ao local dez minutos antes da polícia. Mas, mesmo
assim, era demasiado tarde para Bill McDowell.
Agora, tudo o que podia fazer era ver e esperar.
Sonya sentou-se a seu lado, a chorar, com a cabeça apoiado nos joelhos.
Outros membros da equipa estavam por ali sentados ou de pé. O ruído das conversas iniciais, resultantes do choque e do pânico, transformara-se numa espécie de entorpecimento
que mantinha as palavras afastadas.
Callie via as luzes por entre as árvores, nos locais onde a polícia andava a trabalhar, e ocasionalmente uma voz era trazida pela brisa até à escavação. E de vez
em quando alguém murmurava qualquer coisa, ali perto.
309
O que vai acontecer?
Não "Como pôde isto ter acontecido?", embora essa tivesse sido a primeira pergunta. Mas já estavam para além disso, e a questão era "E agora?".
Ela sabia que eles esperavam que fosse ela a dar a resposta. Com Jake na roulote com Digger, e Leo nos bosques com alguns dos polícias, ela era a única a quem era
reconhecida autoridade.
Mas era apenas mais uma resposta que não tinha.
- Acho que não vou aguentar. Acho que não consigo suportar isto. - Sonya virou a cabeça, com a cara ainda apoiada nos joelhos dobrados. - Não percebo como ele pode
estar morto. Assim, sem mais nem menos. Ainda há umas horas estávamos aqui a conversar sobre coisas de que já nem me lembro. Nem sequer o vi ir na direcção do lago.
- Eu vi. - Bob pôs-se de pé. - Mas não dei importância. Ele e o Digger trocaram umas palavras sobre qualquer coisa, e depois o Bill foi na direcção dos bosques.
Acho que teve de ir aliviar a bexiga. Não pensei que estivesse assim tão bêbado. Não prestei atenção.
- Ninguém prestou - acrescentou Dory. - Meu Deus, eu estava meio a dormir e a pensar em rastejar até à tenda. E... ouvi o Digger dizer qualquer coisa como "Não caias
ao lago, que ainda te afogas". E eu ri-me. - Um soluço entrecortou-lhe a respiração. - Limitei-me a rir.
- Estavas sempre a rir-te dele. Raios partam, ele era um idiota tão grande!
Dory limpou a cara.
- A culpa não é tua - disse ela a Bob. - Não o teríamos encontrado tão depressa se não tivesses começado a perguntar por ele, por te teres lembrado que ele se tinha
afastado. Ainda estaria na água se tu...
- Quero ir para casa. - Sonya recomeçou a chorar. - Só quero ir para casa. Não quero continuar a fazer isto.
- Vai para casa. - Callie pôs-lhe o braço sobre os ombros.
- Quando o xerife disser que podes ir, vai para casa dormir. De manhã, diz o que queres fazer.
Olhou na direcção da roulote e depois para Dory. Apontou para o espaço ao lado de Sonya e depois levantou-se, enquanto Dory se sentava e abraçava Sonya.
Deixa-as chorar juntas, pensou Callie. Ela não tinha lágrimas.
310
Na roulote, Jake pôs outra chávena de café diante de Digger:
- Bebe.
- Não quero porcaria de café nenhum. Meu Deus, Jake, aquele rapaz está morto!
- Não podes ajudá-lo. Nem podes ajudar-te a ti próprio se não ficares sóbrio e não começares a pensar.
- O que há que pensar? Deixei-o afastar-se, meio emborrachado, para ele cair na porra do lago e afogar-se. As coisas estavam a meu cargo, aqui. Devia "ter ido com
ele.
- Não és baby-sitter nem és responsável pelo que aconteceu ao McDowell.
- Santo Cristo, Jake, Santo Cristo! - Ergueu o rosto tisnado.
- São quase todos uns miúdos. São miúdos!
- Eu sei. - Jake apoiou a testa no armário, tentando manter-se calmo, e depois tomou mais um café.
Quantas vezes picara aquele miúdo? Deliberadamente, por causa de Callie? E agora, aquele inferno!
- Mas tinha idade suficiente para estar aqui, idade suficiente para beber. Não estás aqui para seres pastor deles, Dig. Estás aqui para garantir que não há distúrbios
na escavação.
- Porra, há mais do que distúrbios quando um miúdo aparece a flutuar de cara enfiada na água. Onde estão os meus cigarros?
Jake pegou no que restava de um maço amarrotado, em cima da bancada, e deu-lho.
- Bebe a porcaria do café, fuma um cigarro e depois conta-me exactamente o que aconteceu. Se queres chorar, chora depois.
- Vejo que o Sr. Sensibilidade é duro no trabalho. - Callie lançou a Jake um olhar de desagrado, quando entrou.
- Ele está só a tentar endireitar-me - retorquiu Digger. Arrancou o lenço da cabeça e assoou o nariz heroicamente.
- Pois, e se ele te enfiar a cara na merda, dizes que é para melhorar a tua pele. - Deu a volta à pequena mesa de apoio e fez uma coisa que nunca fizera na vida
nem pensara vir a fazer.
Pôs os braços sobre os ombros ossudos de Digger e passou-lhe a mão pelos cabelos compridos e embaraçados.
- Vim aqui, à casa de banho, e depois puxei a cama. Ia pôr música, para o caso de conseguir convencer a Sonya a dar umas voltinhas. Sabia que ele estava meio bêbado.
Mal acabou a segunda cerveja e já estava meio bêbado. Eu vigio-os, juro por Deus. Só para ter a certeza de que não se armam em estúpidos. Pareceu-me que toda a gente
estava a sossegar.
311
Suspirou um pouco e esfregou o rosto em Callie, em busca de conforto.
- O Matt estava a tocar guitarra. Não toca merda nenhuma, mas é sempre agradável ter alguém a tocar alguma coisa. Aqueles dois de West Virgínia? Frannie e Chuck?
Estavam a fazer as pazes. O Bob estava a escrever não sei o quê. Tinha uma lanterna atada ao chapéu, como se fosse um mineiro esquisito. A Dory já estava meio a
dormir e a Sonya estava a cantar. "Freebird". Não sabia a letra, mas mesmo assim eu estava a gostar de ouvi-la.
Fechou os olhos.
- Estava uma noite agradável. Céu limpo, nem frio nem calor. Havia muitos pirilampos e as cigarras não paravam de cantar. Vi o rapaz levantar-se, abanando como se
fosse um barco numa tempestade. Ficou um bocado implicativo com a bebida. Costuma ter sempre aquele ar de idiota. Excepto contigo - acrescentou, sorrindo tristemente
para Jake. - Não gostava de ti, nem um bocadinho, porque achava que o batias aos pontos com a Callie.
Jake não disse nada, continuou a beber o café e olhou para Callie.
- Disse-lhe que se precisava de ir à casa de banho podia usar a roulote, mas ele empurrou-me e disse-me que queria andar. Achei que ele me queria mandar a qualquer
sítio, mas mesmo bêbado não se atreveu. Por isso eu disse... Meu Deus, disse-lhe para não cair ao lago e não se afogar. Mas foi isso que ele fez. Foi exactamente
isso que ele fez.
Como estavam a observar-se um ao outro, Callie viu a emoção perpassar o rosto de Jake. O choque, o horror, depois a pena.
- Quanto tempo passou até alguém ter ido à procura dele? perguntou Jake.
- Não sei ao certo. Fiquei aqui um bocado. Pensei que, para o caso de ter sorte, era melhor arranjar isto um bocado. Pus uma música, ali, no leitor de CD. Acendi
aquelas velas. As estudantes gostam de um pouco de romance, não é, Cal?
- É. - Ela apertou mais o abraço. - Caímos logo.
Limpei isto um bocado. Acho que estive aqui uns quinze minutos. Talvez vinte. Continuava a ouvir a guitarra. Depois saí e comecei a lançar a escada à Sonya. O Bob
é que perguntou pelo Bill. Alguém, não me lembro quem, disse que achava que ele tinha ido deitar-se, e alguém disse que ele tinha ido aliviar a bexiga. O Bob disse
que também tinha de ir, por isso ia ver se o Bill tinha caído redondo no bosque. Uns minutos depois estava de volta, a correr e a gritar. Fomos todos ver o que se
passava. Todos.
- Outra vez como o Dolan. Foi como o Dolan.
312
Passou mais de uma hora até Callie conseguir um momento a sós com Leo.
- O que sabes?
- Eles não dizem grande coisa. Só vão dizer qual foi a causa da morte depois da autópsia. Depois de acabarem de recolher declarações, acho que é melhor acabarmos
com o acampamento aqui.
-Já pedi à Rosie que dissesse a todos para irem passar a noite à casa. Precisamos que alguém fique aqui, e o Digger não está em condições.
- Eu fico.
- Não, vamos fazer turnos. O Jake e eu ficamos até de manhã. Tu e a Rosie são melhores a manterem a equipa calma. Não gosto da forma como o Hewitt está a olhar para
o Digger.
- Nem eu, mas o facto é que ele estava aqui quando as duas mortes ocorreram.
- Havia muita gente aqui, no caso desta, e o Digger estava na roulote. E, tanto quanto sabemos, o Bill caiu e afogou-se. Foi um acidente. Ninguém tinha motivo nenhum
para fazer mal àquele miúdo.
- Espero que tenhas razão. - Tirou os óculos e limpou as lentes metodicamente à fralda da camisa. - A Rosie e eu vamos reunir a equipa. Voltamos de manhã.
- Para trabalhar?
- Aqueles que quiserem escavar, escavem. Vamos ter aqui a imprensa, Lourinha. Consegues lidar com isso?
- Sim. Vai dormir, Leo. Faremos todos o que tivermos de fazer. Entrou na roulote assim que conseguiu, deitou fora a porcaria de café que Jake fizera e fez mais.
O cheiro do produto que Digger usara para limpar misturava-se com o aroma a canela vindo das velas que ele acendera. Ambos pairavam no ar, pequenos laivos de simplicidade
e antecipação.
Ouvia vozes que se afastavam, à medida que as pessoas iam deixando o acampamento. À medida que os carros arrancavam. E imaginou que a maioria da equipa que se dirigia
a casa estaria a pé até tarde, voltando incessantemente ao que acontecera.
Apetecia-lhe calma. Teria preferido a calma acompanhada de solidão, mas Leo nunca concordaria em deixá-la ficar sozinha na escavação. Jake, tinha que admitir, era
a única pessoa cuja companhia conseguia suportar numa noite como aquela.
313
Serviu-se da primeira chávena de café e depois, ao ouvir os passos aproximarem-se, serviu uma segunda.
- Deitei o teu fora - disse ela. - Estava aguado. Este é novo. Virou-se e ofereceu-lhe uma chávena.
- Não vou abancar lá fora só porque estás chateada comigo.
- Não estou à espera que abanques lá fora, nem estou chateada contigo. Particularmente. Não sei bem onde estávamos quando o telefone tocou. E não quero falar nisso
agora.
- Por mim, tudo bem.
Ela conhecia aquele tom, não sabia quantas vezes esbarrara naquele muro frio. Não estava pronta para uma batalha, mas nunca estava pronta para retirar.
- Não gostei da forma como falaste com o Digger. Sei que estavas a tentar fazê-lo reagir, mas não gostei da tua abordagem. E hás-de notar que consegui mais dele
com um pouco de conforto e simpatia do que tu com as tuas tretas de macho.
Aquilo doeu-lhe. Doeu-lhe.
- Porque é que as mulheres ligam automaticamente macho a tretas? Como se fossem uma única palavra.
- Porque somos astutas.
- Queres que eu diga que tens razão. - Exausto, deixou-se cair nas magras almofadas do sofá. - Tens razão. Eu não lhe ofereci o que tu ofereceste. Ambos sabemos
que confortar alguém não é propriamente uma das minhas maiores capacidades.
Tinha um ar exausto, notou Callie. Já o vira de rastos por causa do trabalho, mas não estava habituada a vê-lo esgotado por causa do stresse, por causa de preocupações.
Teve de resistir ao impulso de abraçá-lo, como fizera com Digger.
- Tu não sabias do comentário que ele fez antes de o Bill se ter afastado deles. E eu sabia.
- Meu Deus! Nunca será capaz de ultrapassar isto por completo. Há-de ficar com aquela observação e com a imagem daquele miúdo, a flutuar, presa algures na cabeça
para o resto da vida.
- Não achas que o Bill tenha caído à água.
Jake ergueu os olhos da chávena, que se mostraram tão cuidadosos e tão frios como a sua voz:
- Toda a gente disse que ele estava bêbado.
- Porque não ouviram a queda do corpo na água? Ele pesava o quê?... Setenta e cinco quilos? Quando um peso desses cai na água, produz ruído. A noite estava límpida
e calma, havia de ouvir-se.
314
Eu conseguia ouvir bocados das conversas da polícia nos bosques. Porque não gritou quando caiu? O Digger disse que ele bebeu duas cervejas. Pronto, ficou um bocado
bêbado, mas não é provável que um tipo daquele tamanho se passe completamente, tão completamente que não recupere os sentidos ao cair na água. A água está fria.
O suficiente para fazer alguém ficar sóbrio, suficientemente depressa para chatear quem cai lá dentro.
A expressão dele não se alterou, no rosto ou na voz:
- Talvez ele tenha tomado mais do que cerveja. Sabes que de vez em quando há drogas nos campos de escavações.
- O Digger saberia. Teria dito. Esse tipo de coisa não escapa ao Digger. Confiscaria quaisquer drogas e ficaria com os charros, para ele próprio fumar algum quando
estivesse para aí virado.
Ela foi até ao sofá e sentou-se na outra ponta. Sabia o que estavam a fazer: a jogar em campos opostos. Achou interessante que não estivessem a fazê-lo aos berros.
- Dois homens acabam por morrer no mesmo pequeno espaço de água, nos arredores da mesma cidade, no mesmo terreno de escavações, com semanas de diferença um do outro.
Quem quer que pense que se trata apenas de uma coincidência não está bom da cabeça. O Hewitt parece-me bom da cabeça. Quanto a ti, tenho a certeza de que estás.
- Não, não acho que seja uma coincidência.
- E não acreditas na teoria popular deste local, segundo a qual este terreno está assombrado.
Ele sorriu um pouco.
- Gostava de acreditar, mas não. Alguém matou o Dolan por algum motivo. Alguém matou o McDowell por algum motivo. Que relação haverá entre os dois?
Callie pegou no seu café e cruzou as pernas:
- A escavação.
- Essa é a ligação óbvia. Essa seria a ligação mais fácil. Pensemos melhor e temos-te a ti.
Pela cara dela, Jake viu que ela também já chegara lá e mexeu a cabeça num gesto afirmativo.
- Para além de ti, temos a escavação, o empreendimento, a percentagem de habitantes locais que estão um bocado chateados por não terem recebido os cheques que esperavam.
Podia teorizar-se que alguém ficou suficientemente chateado para matar duas pessoas, de forma a assustar a equipa e afastá-la da escavação, ou a pôr as autoridades
em posição de nos proibirem de continuar o nosso trabalho.
315
- Mas essa não é a tua teoria. - Ela estendeu o braço e voltou a acender uma das velas de Digger.
- É uma teoria, mas não sou partidário dela.
- És partidário da teoria que parte de mim para os Cullen, Carlyle e todos aqueles nomes da lista, e um circuito do mercado negro especializado em crianças. Mas
a ligação ao Dolan e ao Bill é muito fraca.
- Lembras-te disto? - Abriu as mãos e virou as palmas para cima e para baixo e depois fez um movimento com o pulso. Tinha uma moeda entre os dedos. Mais um movimento
e a moeda desapareceu.
- Podias ganhar um dinheiro extra, a fazer truques em festas de miúdos - comentou ela.
- Não estás a perceber. Concentra o olhar no que está a acontecer aqui... - passou a mão direita diante do rosto dela. - E perdes o que está a acontecer aqui. --
Puxou-lhe a orelha com a mão esquerda, dando a ilusão de que a moeda saíra dali.
- Achas que alguém matou duas pessoas para me levar na direcção errada?
- Não funcionou, até certo ponto? Não estás tão desconcentrada que não estás a pensar no que soubeste há umas horas sobre a Barbara Halloway? Toda a gente da equipa
gostava daquele miúdo. Até eu gostava dele, não conseguia deixar de gostar. E tinha alguma simpatia pela maneira como ele andava atrás de ti. Se alguém o matou,
foi porque ele estava à mão. Porque ficou longe do grupo tempo suficiente para isso.
Distraidamente, afastou uma das cortinas desbotadas de Digger e olhou pela janela suja.
- E estão à espreita. Quem quer que sejam. Tal como estavam a vigiar-nos na casa, naquela noite. Frios. Têm de ser frios. E se eu não me deixar conduzir na direcção
errada, se eu continuar a insistir, achas que vai morrer mais alguém?
- Culpares-te é outra maneira de olhares na direcção errada.
- Eu despachei-o, Jake. - Com um puxão, voltou a tapar o vidro cheio de manchas de sujidade. - Quando estávamos a arrumar as coisas, ele veio ter comigo e disse-me
que iam ficar até tarde, acampar aqui durante a noite. Nem sequer lhe prestei atenção. Sim, claro, talvez, quem sabe. Sacudi-o como um mosquito.
Abanou a cabeça antes de conseguir continuar a falar.
- E tudo o que estás a dizer é o que eu estou a pensar. O que sinto cá dentro. E se tiveres razão, isso significa que ele morreu porque alguém quer deter-me. Ele
está morto e eu não me dei ao trabalho de conceder-lhe um minuto do meu tempo, hoje.
316
- Anda cá. - Puxou-a mais para si. - Deita-te - ordenou ele, e empurrou-a suavemente até a cabeça dela repousar no colo dele.
- Devias tentar descansar.
Callie ficou um momento em silêncio, escutando os sons da noite, absorvendo a sensação de tranquilidade que lhe dava a mão dele a passar-lhe pelos cabelos.
Alguma vez ele lhe tocara daquela maneira? Alguma vez ela prestara atenção?
-Jake?
- Sim.
--Tinha planos para esta noite.
- Tinhas?
Callie mudou de posição, para poder olhar para ele. Daquele ângulo conseguia ver a forma como a cicatriz no queixo dele estava apenas alguns milímetros abaixo do
maxilar. Conseguia aperceber-se daquela pequena imperfeição.
- Tinha planeado deixar-te levar-me para a cama. Ou levar-te para a cama. O que quer que parecesse mais divertido na altura.
Ele seguiu a curva do pescoço dela com a ponta de um dedo. Sim, pensou ela. Sim, ele já lhe tocara daquela forma, antes. Porque não prestara mais atenção àqueles
pequenos gestos? Porque não percebera o quanto significavam para ela?
Precisava assim tanto de palavras que ignorara os sinais de afecto tranquilos e simples?
- Foi pena não ter resultado - respondeu ele.
- Ainda podia resultar.
O dedo dele deu um pequeno salto, como se tivesse tocado inesperadamente em alguma coisa quente, e depois afastou-se dela.
- Não é boa ideia, para nenhum de nós. Porque não dormes um pouco? Temos muito que fazer, amanhã.
- Não quero pensar em amanhã. Não quero pensar sobre hoje, nem na próxima semana, nem sobre ontem. Só quero o agora.
- Tivemos muitos "agoras", não tivemos? O sexo é uma resposta muito comum, muito humana, à morte. - Brincou com o cabelo dela, esperando convencê-la a dormir. -
É prova de vida.
- Nós estamos vivos. Não quero estar sozinha. - Ela não falava apenas daquela noite, mas de todas as noites sem ele. - Pensei que queria, mas não quero estar sozinha.
- Não estás sozinha. - Pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios.
- Fecha os olhos.
317
Em vez disso, ela levantou-se e deslizou, corpo contra corpo, até ter os braços enrolados à volta do pescoço dele.
- Fica comigo. - Cobriu a boca dele com a dela, mergulhou nela. - Por favor, fica comigo.
Jake apercebeu-se de que ela tremia. Em parte medo, em parte desejo, em parte exaustão. Ele puxou-a mais para si e pressionou o rosto contra a curva do pescoço dela:
- Diz-me que precisas de mim. Só uma vez.
- Preciso de ti. Toca-me. És o único que conseguiu tocar-me.
- Eu não queria que as coisas acontecessem assim. - Tocou-lhe o rosto com os lábios, enquanto a deitava no sofá estreito. - Não queria que fosse assim para nenhum
de nós. Mas talvez estivesse destinado a ser assim. Não penses. - Beijou-lhe as têmporas, as faces.
- Sente.
- Não consigo parar de tremer.
- Tudo bem. - Desabotoou-lhe a camisa, inclinando-se para ela para lhe cobrir de beijos a garganta e os ombros. Mas quando ela o quis puxar para si, ele afastou-se
e voltou a empurrar-lhe as mãos para baixo.
- Não. Espera. Fecha os olhos. Fecha os olhos. Deixa-me tocar-te.
Ela cerrou as pálpebras. O que representou um alívio. A suavidade da escuridão acalmou a dor de cabeça que ainda não se apercebera que sentia latejar. Sentiu o ar
fresco na pele quando ele lhe despiu a camisa. Sentiu os dedos dele, quentes, passearem sobre o seu corpo. Quentes, com a rugosidade dos calos. A sua barriga estremeceu,
quando eles desapertaram o botão das suas calças velhas.
Os lábios dele pousaram ao de leve acima da cintura, fazendo-a soltar um breve gemido.
- Levanta as ancas - disse-lhe ele, e puxou-lhe para baixo as calças de algodão muito gasto.
Tirou-lhe as botas e as meias. Depois, começou a massajar-lhe os pés.
Os gemidos dela tornaram-se mais profundos.
- Houve uma altura em que eu trocaria uma massagem aos pés por qualquer tipo de favor sexual exótico.
Ela abriu um olho e viu-o sorrir para ela.
- Em que estavas a pensar?
-Já te digo. - Fez pressão com a mão na sola dos pés dela e viu os olhos dela estremecerem. - Ainda funciona, não funciona?
- Sim, continuo a achar que o primeiro orgasmo verdadeiro começou pelos pés.
318
- Gosto dos teus pés. São pequenos, quase delicados. - Passou os dentes pela parte lateral e voltou a sorrir quando ela arqueou o corpo. - E muito sensíveis. Depois,
há as tuas pernas.
Passou a boca pelo tornozelo dela, e depois pela parte de trás da perna.
- Não há palavras para falar das tuas pernas. Subitamente, pressionou o rosto contra a barriga dela.
- Meu Deus, Callie, tens o mesmo cheiro. - Acordava com o teu cheiro, mesmo quando estavas a mil quilómetros de distância. Acordava a desejar-te - murmurou ele,
aprisionando-lhe a boca com a sua.
Todos os dias, todas as noites, pensou ele, enquanto aquele cheiro o envolvia. Assombrando-o e torturando-o até ele desejar, com todas as suas forças, conseguir
odiá-la.
E agora ela estava ali, com os braços apertados à volta dele, a boca impaciente sob a dele. E sentiu-se fraquejar.
O amor que sentia por ela soltou-se dentro dele, deixando-o indefeso.
Tomou-lhe o rosto entre as mãos. Os seus lábios tornaram-se mais suaves sobre os dela.
A mudança fê-la voltar a abrir os olhos.
-Jake.
- Ssh. - Depositou-lhe um beijo no pescoço, com a mais total ternura. - Não penses - repetiu. - Sente.
Quando a boca dele voltou a procurar a dela, num beijo prolongado de doçura, ela contorceu-se debaixo dele.
Uma rendição, sentiu ele. Ambos estavam a render-se, como nunca se tinham rendido antes. O coração dela batia descompassadamente sob os lábios dele, e a sua respiração
era lenta e irregular. E a ternura sobrepunha-se ao desejo, como uma fina película de nevoeiro.
O ar estava tão pesado, pensou ela. Tão pesado, tão quente. Tão suave. Deslizava sobre ela e ela sobre ele, num mundo onde havia apenas prazer.
Ele levara-a para esse mundo.
Ela murmurou o nome dele, num suspiro, quando os seus lábios, a sua língua, as suas mãos deslizaram sobre ela, entre a tranquilidade e o desejo, a calma e a excitação.
Quando os lábios dele voltaram a encontrar os dela, quando se detiveram como se não houvesse nada de mais vital no mundo do que aquele beijo, o coração dela derreteu.
319
Sentiu-o sob as suas mãos, aquele tronco longo e magro, quando ele despiu a camisa. Os quadris e os músculos fortes. O corpo dele excitou-a, e saber que era dela,
que estava ali, à sua mercê, trouxe-lhe um prazer insuportável.
Estremeceu convulsivamente e cravou os dentes no ombro dele, quando a pressão aumentou.
-Jake.
- Devagar, desta vez. - Acariciou-a ao de leve, com calma, atormentando-os a ambos. - Depressa é demasiado fácil.
Tempo, apenas tempo. O cheiro dela, o estremecer do corpo dela, o calor que começava a desprender-se da pele dela. Ele queria tudo aquilo e muito mais.
Tê-la ali, naquele momento, apagou todas as horas de solidão, sem ela.
Pousou os lábios no pescoço dela, no ombro, na boca dela, deixando-se tomar pelo desejo intenso que sentia por ela. Quando o prazer se tornou mais intenso, o grito
estrangulado dela latejou-lhe no sangue.
Olharam um para o outro quando ele deslizou dentro dela, quando começaram a mover-se juntos. Ele viu os olhos dela enevoarem-se, de prazer e lágrimas, e prendeu-lhe
as mãos nas suas.
- Fica comigo. - Esmagou a boca contra a dela. - Fica comigo.
O coração dela estava exposto, a nu. Pensou que ele devia conseguir senti-lo a bater-lhe na palma da mão. Devia conseguir vê-lo no rosto dela, nos seus olhos cheios
de lágrimas.
Por isso fechou as mãos nas dele, ficou com ele. Ficou com ele. E ainda estava com ele quando ambos explodiram.
Dormiu, profundamente durante uma hora, e depois de forma intermitente, quando os sonhos começaram a persegui-la. Na floresta, na escuridão, na água fria. Fecharam-se
sobre a sua cabeça e havia mãos a puxarem-na em direcções opostas.
Não conseguia libertar-se, a água mudou, transformou-se, abriu um buraco e tornou-se um túmulo.
Acordou num estertor, arquejante. A roulote estava às escuras, fria. Tinha um cobertor fino a tapar-lhe as pernas e estava sozinha.
Em pânico, deu um salto e bateu com a anca na mesa, enquanto caminhava aos tropeções, à procura da porta. Respirava com dificuldade, como no sonho. Levou a mão ao
peito, como se pudesse arrancar dele a pressão que ali sentia.
320
Tentou abrir a porta, respirando ruidosamente, enquanto os dedos transpirados lhe escorregavam continuamente da fechadura. Um grito estava à beira de rasgar-lhe
o peito, a caminho da garganta. Ia saindo porta fora quando finalmente conseguiu abri-la.
E caiu de joelhos, na frescura difusa da madrugada.
Quando ouviu o som de passos apressados, tentou pôr-se de pé. Mas os músculos dos seus braços eram de chumbo.
- Ei, que aconteceu? - Jake deixou-se cair no chão ao lado dela e levantou-lhe a cabeça.
- Não consigo respirar - conseguiu dizer. - Não consigo respirar.
- Claro que consegues. - Callie tinha as pupilas dilatadas, o rosto pálido de morte, frio e húmido. Ele pôs-lhe uma mão na nuca e fê-la meter a cabeça entre os joelhos.
- Devagar, calma, respira fundo. Respira.
- Não consigo.
- Consegues, sim. Inspira. Outra vez. Agora expira. - Sentiu a tensão na barriga dela começar a ceder, quando ela começou a respirar. - Continua.
- Estou bem.
Ele manteve-lhe a cabeça para baixo:
- Mais. Inspira, expira. Quero que levantes a cabeça devagar. Tonturas?
- Não, estou bem. Eu só... acordei e fiquei desorientada por um instante.
- O tanas! Tiveste mas foi um ataque de pânico.
Estava meio a tremer e transtornada, mas mesmo assim sentiu-se embaraçada.
- Eu não tenho ataques de pânico.
- Agora tens. A não ser que costumes sair de roulotes, nua, só para te divertires.
- Eu... - Olhou para baixo e viu que tinha saído sem nada em cima do corpo. - Santo Deus!
- Não faz mal. Gosto de ver-te nua. Tens um corpo espantoso, mesmo transpirado por causa do pânico. Vai lá. Precisas de deitar-te um minuto.
- Não preciso. E não me trates como se eu fosse um bebé.
- És demasiado inteligente para te censurares por teres tido um ataque de ansiedade. E demasiado cabeça dura para não o fazeres. É demasiado para ti, Dunbrook. Senta-te.
- Empurrou-a para o sofá e atirou-lhe o cobertor para cima. - Cala-te um minuto antes que eu retire o que disse sobre seres inteligente. De há um mês para cá só
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tens tido tensões, choques e trabalho. És humana. Não sejas tão dura contigo própria.
Pegou numa garrafa de água, abriu-a e deu-lha.
- Tive um pesadelo. - Mordeu o lábio, que ameaçava tremer-lhe. - E acordei, e estava sozinha e não conseguia respirar.
- Desculpa. - Sentou-se ao lado dela. - Fui lá fora dar uma vista de olhos, ver se estava tudo bem. Não queria acordar-te.
- A culpa não é tua. - Bebeu um longo gole de água. - Não me assusto com facilidade.
- Como se eu não soubesse isso!
- Mas agora estou assustada. Se disseres isto a alguém, mato-te. Mas estou assustada, e não gosto de me sentir assim.
- Tudo bem. - Abraçou-a e pousou os lábios na têmpora dela.
- Quando não gosto de uma coisa, livro-me dela. Os lábios dele percorreram-lhe a pele.
- Como se eu não soubesse isso! - repetiu.
- Por isso, não vou continuar assustada. - Respirou fundo, sentindo-se aliviada quando o ar não ficou preso nos pulmões, na garganta.
- Não vou ter medo. Vou descobrir o que preciso de saber. Vou a Virginia, e os Simpson vão dizer-me o que preciso de saber. Quero que vás comigo.
Ele pegou-lhe na mão e beijou-a:
- É melhor vestires-te, primeiro.
322
Dezanove

Com as últimas tiras de meio quilo de bacon a deslizar na frigideira de ferro, Jake bateu duas dúzias de ovos numa tigela. Convencera Callie a fazer o café antes
de ir meter-se no duche, por isso estava uma delícia. E se alguém quisesse torradas, que as fizesse.
Não se importava de cozinhar. Especialmente quando se tratava de um pequeno almoço para muita gente, sem requintes. Fosse como fosse, todos tinham de comer e mais
ninguém mostrara interesse ou energia para ir arranjar comida.
Uma equipa - ou uma tribo -, fossem quais fossem os seus rituais e costumes, precisava de combustível para levá-los à prática. A morte de um membro forçava uma nova
intimidade entre os sobreviventes. A comida era um símbolo, e a sua preparação, a sua apresentação e o seu consumo eram uma cerimónia comum a muitas culturas durante
o luto.
Tal como o sexo, a comida era vida. A par da dor, havia que reconhecer a culpa e o alívio por se continuar vivo quando alguém do grupo partira.
Essa intimidade forçada era temporária, recordou Jake, pensando em Callie. A não ser que se trabalhasse muito para mantê-la.
Quando Doug entrou na cozinha, viu o homem que tinha por ex-marido de Callie encostado ao fogão, com um pano de louça preso no cinto dos jeans desbotados, enquanto
agitava numa tigela o que parecia ser um garfo de jardinagem.
Era uma imagem suficientemente estranha, mas mais estranha ainda quando pensou que a porta lhe fora aberta por um tipo em roupa interior, com o cabelo grisalho caído
até ao rabo, e que fizera um gesto vago na direcção da cozinha antes de voltar a arrastar-se até um sofá rasgado.
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Doug tropeçara em dois volumes que estavam no chão e que, pelo ressonar, concluiu serem pessoas.
Se este era o tipo de sítio que Callie escolhera para viver, faltava percorrer um longo caminho até conseguir compreendê-la.
- Desculpe interromper.
Jake continuou a bater os ovos.
- Se está à procura da Callie, ela está a tomar duche.
- Ah. Pensei que já estivessem todos a pé e a trabalhar, a esta hora.
- Hoje começamos mais tarde. Há café acabado de fazer.
- Obrigado. - Havia várias canecas e chávenas alinhadas na bancada. Doug escolheu uma ao acaso e encheu-a.
- Há leite na bancada, se quiser. Também é fresco. Comprei-o quando voltei da escavação, esta manhã.
- Passaram a noite a trabalhar?
- Não. -Jake parou de bater os ovos e começou a virar o bacon.
- Pensei que tivesse vindo ver como ela está. Mas acho que ainda não sabe de nada.
- Que quer dizer com "como ela está"? Que aconteceu? Preocupação, notou Jake.
- Um dos da nossa equipa afogou-se, ontem à noite. Em Simon's Hole. Não sabemos como. A polícia está a investigar. A Callie e eu ficámos de vigia durante a noite.
É capaz de encher essa caneca azul até acima, por favor?
- Parece muito calmo.
Jake levantou os olhos da frigideira.
- Temos uma equipa a gerir e a manter. As pessoas constituem essa equipa e a Callie e eu somos responsáveis por elas. Isto está a ser difícil para ela. E não vou
servir-lhe de grande ajuda se me for abaixo também.
Jake olhou para cima ao ouvir o tecto ranger. Callie já estava no quarto, pensou Jake. Portanto, tinha mais um minuto ou dois. - Alguém matou aquele rapaz - disse
ele, em voz baixa.
- Acabou de dizer que ele se afogou.
- Acho que alguém o ajudou. Acho que morreram duas pessoas porque a Callie anda a remexer no passado. Um passado que não tem nada a ver com a escavação.
Doug aproximou-se mais do fogão e baixou a voz, como Jake fizera.
- O Ron Dolan e este tipo foram mortos porque a Callie anda à procura de quem a levou daquele carrinho em 1974? Isso é que é levar longe a imaginação.
324
- Não tanto como pensa. Ela vai descer daqui a pouco, não demora nada a vestir uma camisa e umas calças, por isso vou directo ao assunto. Não a quero sozinha, nem
que seja só por uma hora. Quando eu não puder estar com ela, está você.
- Acha que alguém vai tentar fazer-lhe mal?
- Acho que quanto mais ela se aproximar das respostas, mais eles farão para a impedirem de lá chegar. Não vou deixar que ninguém lhe faça mal, e você também não,
porque foi educado numa cultura onde um irmão, especialmente um irmão mais velho, deve tomar conta da irmã. O facto de as circunstâncias o terem destituído dessa
tarefa durante os primeiros anos, só faz de si, como adulto, um irmão mais determinado em cumprir este papel.
- Portanto, vou ajudá-lo a tomar conta dela porque essa é uma exigência da minha cultura?
- Por isso, e porque a relação de sangue entre vocês já funciona.
- De forma um pouco perplexa, concluiu Jake enquanto observava o rosto de Doug. De forma um pouco embaraçosa, mas está lá.
- Porque ela é mulher, e faz parte da sua natureza e da sua educação defender uma mulher. E porque gosta dela.
Doug supôs que esta última razão se sobrepunha a todas as outras.
- E qual é a sua desculpa? Jake tirou a frigideira do lume.
- A minha desculpa está neste momento a descer a escada e vai começar a chatear-me para pôr queijo nos ovos.
Puxou o pano que tinha preso nas calças e usou-o como pega para afastar a frigideira e despejar a gordura, ainda a ferver, numa lata de feijão vazia.
- Vou deixar que o Leo acorde os vermes que temos espalhados pela casa toda - disse ela, quando entrou. - Doug - acrescentou, passado um instante de surpresa. -
Como vais?
- O Jake acabou de me contar o que aconteceu. Estás bem?
- Sim, um bocado azamboada, ainda. - Continuando a olhar para ele, estendeu uma mão. Jake pousou nela uma caneca de café.
- Ouvi dizer que estavas fora.
- Regressei ontem. Passei pela escavação, mas estavas ocupada.
- Ah, bom. Puseste queijo nestes ovos? - perguntou a Jake, enquanto abria já o frigorífico para tirar de lá o queijo.
- Nem toda a gente gosta de queijo nos ovos.
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- Toda a gente devia gostar de queijo nos ovos. - Deu-lhe o queijo e passou perto dele para ir cortar pão. - Põe um bocado na minha parte, e se apanhar a parte de
mais alguém, paciência.
Doug viu Jake pegar na faca que ela tirara de uma gaveta, viu Callie pôr pão na torradeira e depois pegar no prato que ele lhe estendeu.
Era como uma dança, pensou Doug, em que cada um conhecia os passos e o ritmo que o outro iria usar a seguir, antes de isso acontecer.
- Só passei por aqui para te dar uma coisa que trouxe de Memphis. Seguiu-se outro momento de surpresa, óbvio na cara dela, antes de conseguir esboçar um sorriso.
- Churrasco?
- Não. - Doug ofereceu-lhe um pequeno saco. - Só uma recordação de Graceland.
- Foste a Graceland! Sempre quis ir a Graceland. Não faço ideia porquê. Uau, olha para isto, Graystone, é uma caneca de cerveja do Elvis!
- As canecas de cerveja nunca são demais. Jake observou a caneca vermelha, muito sério:
- É melhor manteres isso longe do Digger. Ele gosta de uma boa caneca de cerveja.
- Bem, pode ficar com esta. - Deu um passo na direcção de Doug e hesitou. Que diabo devia fazer? Devia dar-lhe um beijo, um murro no braço? - Obrigado. - Decidiu
dar-lhe uma pequena palmada no ombro.
- De nada. - E ele e Callie, pensou Doug, não conheciam os passos nem o ritmo da sua dança. - É melhor ir.
-Já tomaste o pequeno-almoço? - Callie abriu uma gaveta e tirou uma espátula, enquanto Jake deitava os ovos na frigideira atrás dela.
- Não.
- Porque não comes connosco? Há comida mais do que suficiente, não há, Jake?
- Claro.
- Está bem, e felizmente para mim gosto de queijo nos ovos.
- Pega num prato - disse-lhe ela. Jake passou para o lado direito, enquanto ela se baixava, abria a porta do forno e tirava a travessa de bacon que ele já fritara.
- O Leo disse-me para vir imediatamente - anunciou Lana, entrando na cozinha. - Doug, vi o teu carro lá fora. Acho que já sabes o que aconteceu.
- Pega em dois pratos - disse-lhe Callie, pondo mais pão na torradeira. - Precisamos de uma advogada?
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- O Leo está preocupado com algumas coisas. Estou aqui para resolvê-las. As preocupações legais, pelo menos. Quanto ao resto...
- Levantou as mãos. - É horrível. Não sei o que dizer. Ainda ontem à tarde falei com o Bill. Teve toda a paciência do mundo com o Ty, que não se calava com a porcaria
daquele osso de veado.
- Onde está o Ty? - Doug passou-lhe um prato de papel que tirou da pilha que estava em cima do balcão.
- O quê? Ah, com o Roger. Acho que não vou conseguir comer. Só quero falar com o Leo.
- Quando eu cozinho, toda a gente come. - Jake tirou do frigorífico um enorme frasco de doce de uva e passou-o a Callie. - É melhor sentares-te antes que a horda
entre e fiques sem assento. Quantos somos, Dunbrook?
- A Rosie e o Digger estão na escavação. Por isso, contando aqui com os nossos convidados, somos onze para o pequeno-almoço, esta manhã.
Entravam e saíam, uns mais vestidos, outros mais despidos. Alguns serviam-se de comida e depois voltavam a sair, levando consigo os pratos. Outros sentavam-se à
mesa comprida e cheia de riscos e mossas que Rosie arranjara na feira da ladra.
Mas Jake tinha razão. Quando ele cozinhava, toda a gente comia.
Callie concentrou-se na refeição, em pôr comida no garfo e levar o garfo à boca. Não se deu ao trabalho de acompanhar Lana e Leo, enquanto estes discutiam o terreno
legal.
- As pessoas podem fazer-nos parar - comentou Sonya. Ia partindo uma torrada em pedacinhos, espalhando migalhas sobre os ovos em que mal tocara. - Quero dizer, a
polícia, ou a câmara municipal, ou qualquer coisa assim. Podem querer acabar com a escavação.
- A Sociedade de Preservação comprou o terreno - disse-lhe Lana. - Fazemos a escritura daqui a umas semanas. Como membro da Sociedade, e tendo falado com outros
membros esta manhã, posso prometer-vos que nenhum de nós culpa a vossa equipa pelo que aconteceu. O trabalho que estão a fazer ali não é responsável pelo que aconteceu
ao Billy McDowell.
- Ele morreu, e nós estávamos lá todos sentados a conversar. Estávamos lá todos sentados a conversar.
- Teriam ficado sentados a conversar se soubessem que ele estava em apuros? - perguntou-lhe Jake.
- Não, não, claro que não.
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- Teriam feito tudo para ajudar, se soubessem que ele precisava de ajuda?
Sonya respondeu afirmativamente com a cabeça.
- Mas não sabiam, por isso não puderam ajudar. A escavação era importante para ele, não acham?
- Claro! - Fungou, remexendo os ovos com o garfo. - Estava sempre a falar nisso, e ficava todo entusiasmado sempre que se fazia uma nova descoberta. Quando não estava
a falar no trabalho, estava a falar na Callie. - Calou-se, hesitou e olhou para Callie. - Desculpa.
- Não faz mal.
- Em muitas culturas, muitas sociedades - continuou Jake -, mostra-se respeito pelos mortos honrando o seu trabalho. Vamos continuar a escavar.
- Não quero atrair sarilhos - começou Dory. - Mas estou a pensar no que aconteceria se a família do Bill entrar com alguma acção judicial. Contra os proprietários
do terreno e a equipa, qualquer coisa assim. As pessoas fazem esse tipo de coisa por causa de um dedo do pé partido, por isso também podem fazê-lo por causa do Bill.
Até que ponto esses problemas legais afectariam a atribuição dos subsídios? Podem ser cancelados?
- As pessoas são um nojo. - Após esta declaração, Matt encolheu os ombros e depois serviu-se de mais bacon. - Só quero dizer que a Dory tem razão. Numa sociedade
litigiosa, materialista e egoísta, é natural que se evolua da emoção para o calculismo. Quem vai pagar por isto e quanto posso conseguir para mim?
- Deixem-me ser eu a preocupar-me com isso - respondeu Lana.
- Neste momento, o meu conselho é que continuem os vossos trabalhos. Cooperem com a polícia e com a imprensa, mas antes de prestarem declarações a quaisquer delas
aconselhem-se comigo ou com outro advogado.
- Vamos também montar um sistema de protecção e segurança muito rigoroso. - Leo afastou o prato e pegou na sua caneca de café.
- Ninguém vai passear para os bosques sozinho, seja a que horas for. Os membros da equipa que ficam na escavação durante a noite vão montar turnos de vigilância.
Nunca menos de duas pessoas por turno. Não vamos perder mais ninguém.
- Vou fazer uma escala - concordou Callie.
- Muito bem. Preciso de regressar a Baltimore, esta noite, mas estarei de volta a meio da semana. Acho que é melhor tirarmos o dia de hoje. Todos os que ficarem
devem estar prontos para trabalhar amanhã.
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- Tenho uns assuntos pessoais a tratar na Virgínia, hoje. - Callie olhou para Jake. - A Dory e os pombinhos de West Virgínia podem render a Rosie e o Digger esta
tarde. O Bob, o Matt e o Digger podem fazer o turno da noite. Amanhã já tenho uma escala feita.
- Eu trato de arrumar a cozinha, antes de me ir embora. - Sonya pôs-se de pé. - Sei que o que estão a dizer está certo. - Virou-se para Jake. - Na minha cabeça faz
sentido. Mas não consigo continuar. Não sei se volto. Desculpem por desapontar-vos a todos, mas não sei se consigo fazer isto.
- Tira uns dias - sugeriu Callie. - Preciso de juntar umas peças. E preciso de relatórios completos, e que toda a gente reveja o filme de ontem. Até ao final do
dia.
Foi até ao escritório de Jake para imprimir o artigo sobre os Simpson e para organizar um dossiê com as listas e o gráfico que Jake fizera.
- O que há na Virgínia? - perguntou Doug, aparecendo à porta.
- Quem. Alguém com quem preciso de falar.
- É sobre... Tem a ver com a Jessica?
- Sim. - Meteu o dossiê numa mochila. - Depois digo-te o que descobrir.
- Vou contigo.
- O Jake vai. Está tudo sob controlo.
- Vou contigo - repetiu ele, e depois afastou-se para deixar passar Lana.
- O que se passa aqui?
- Tenho umas informações que preciso de verificar.
- Também vais? - perguntou Lana a Doug.
- Sim, vou.
Lana olhou para o relógio.
- Deixa-me telefonar ao Roger, para ver se ele pode ficar com o Ty até nós regressarmos.
- O que significa esse "nós"? - perguntou Callie.
- Acho que é aquilo a que costuma chamar-se uma equipa. Eu sou a facção legal dessa equipa. Vou fazer o telefonema e depois contas-me tudo pelo caminho.
- Posso acabar por meter-me nalguma coisa ilegal - murmurou Callie, enquanto Lana pegava no telemóvel.
Lana prendeu o cabelo atrás da orelha:
- Então vais precisar de mim, decididamente.
Não conseguiu pegar no volante, e teve de sentar-se ao lado de Jake, no carro dele. Para se dar tempo de digerir o seu mau-humor
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em silêncio, entregou o dossiê a Doug, para ele e Lana poderem lê-lo no assento de trás.
Mas o silêncio durou pouco, pois ambos começaram a bombardeá-la com perguntas.
- Ouçam, o que eu sei está aí. O que vou descobrir está na Virginia.
- Fica sempre rabugenta quando não dorme bem - comentou Jake. - Não é verdade, querida?
- Cala-te e conduz.
- Vêem?
- O Simpson foi médico da tua mãe durante quanto tempo? Lana desencantou um bloco de dentro da mala e começou a tomar notas.
- Não sei. Pelo menos desde 1966.
- E nessa altura não era casado com Barbara Halloway?
- Não, acho que foi mais próximo de 1980. Tem uns bons vinte anos a mais do que ela.
- E, segundo a tua informação, ela trabalhou no Washington County Hospital de Julho ou Agosto de 1974 até à Primavera do ano seguinte, e estava na maternidade quando
Suzanne Cullen lá deu entrada, em trabalho de parto. Na Primavera do ano seguinte foi colocada noutro lugar. Não sabes onde.
- Vou ficar a saber onde, e podem apostar que entre a Primavera de setenta e cinco e o ano de setenta e oito esteve em Boston. - Virou-se, para olhar para trás.
- Ainda estava a trabalhar em Hagerstown quando a Jessica Cullen foi raptada. Uma coisa destas não se esquece. Mas quando falámos com ambos, em Julho, tudo pareceu
novidade para ela. Novidade para ambos, quando não era novidade nenhuma.
- É circunstancial. - Lana continuou a escrever. - Mas concordo.
- Circunstancial, o tanas! Repara no tempo, nos pontos principais, e a conclusão é simples. A Halloway pertencia à organização de Carlyle. Era um dos contactos médicos
chave. Uma enfermeira obstetra. Fica a saber que ele anda à procura de um bebé, de preferência do sexo feminino, muito provavelmente a encomenda chega com uma descrição
física sumária do que os clientes pretendem. Suzanne Cullen dá à luz uma menina que se encaixa no quadro pretendido.
- Mas só levaram o bebé passados três meses - salientou Doug.
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- Até um casal desesperado pode ficar desconfiado se pedir uma criança para adopção e a tiver imediatamente, como se ela estivesse pronta a servir. Espera-se uns
meses, tem-se a certeza de que a criança é saudável, não tem problemas médicos, estuda-se a rotina familiar e espera-se a melhor oportunidade. E vai-se cobrando
honorários durante esse período de espera.
- Deve ter sido ela a levá-la - disse Doug, calmamente. - Devia ser ela que operava na zona, ela teria oportunidade para estar de olho nos meus pais, em nós. E teria
tido tempo para ficar a conhecer bem o centro comercial, para saber como poderia sair de lá rapidamente.
- Para mim, faz sentido - concordou Callie. - Os meus pais disseram que foi uma enfermeira que me levou ao escritório do Carlyle.
- Outros factores - reflectiu Lana. - Provavelmente, a Jessica não era a única candidata. É mais provável que houvesse mais duas ou três em estudo. Se aceitarmos
que Barbara Halloway era uma pessoa determinada e que fazia bem o seu trabalho, deve ter havido outras meninas nascidas nesse período que se enquadravam nesses requisitos
básicos. E também é provável que ela não fosse a única "espia". Devia haver outras, em diferentes pontos do país. A Jessica foi a única criança levada desta área,
mas ao que supomos o Carlyle vendeu mais crianças ao longo de vários anos.
- Na arqueologia, à medida que escavamos mais fundo vamos obtendo mais dados, estabelecendo mais ligações, alargando o cenário - disse Jake. - A Halloway é a nossa
última descoberta.
- Vamos desenterrá-la, selá-la e catalogá-la - acrescentou Callie.
- É preciso interrogá-la, obviamente. - Lana desenhou vários círculos em volta do nome Barbara Halloway, no seu bloco-notas.
- Embora a vossa informação seja ainda largamente especulativa e circunstancial, acho que têm matéria suficiente para ir à polícia. Não é mais provável que ela fale
num interrogatório oficial, com as autoridades, do que convosco?
Callie limitou-se a olhar para Jake e sorriu quando ele também olhou para ela.
Notando aquela troca de olhares, Lana abanou a cabeça.
- Digam lá, francamente, o que vão fazer? Atá-la a uma cadeira e bater-lhe até que ela fale?
Callie estendeu as pernas. Jake tamborilou com os dedos no volante. Doug olhava ostensivamente pela janela. E Lana acabou por soltar um longo suspiro.
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- Não tenho dinheiro que chegue para pagar a fiança a tanta gente acusada de agressão. Callie. - Inclinou-se para a frente. - Deixa-me falar com eles. Sou advogada.
Tenho um belo poder de argumentação. Posso convencê-la de que sabemos muito mais do que sabemos. Sei como pressionar alguém.
- Queres atirar a matar? Não te esqueças de perguntar-lhe quem mandaram a Maryland, e se sabiam o nome de Bill McDowell quando o mataram.
- Mataram? Mas eu pensei que ele... Oh, meu Deus. - Lana procurou freneticamente o telemóvel na mala, para ver se o filho estava bem.
- Ele está bem - declarou Doug, enquanto ela marcava o número. - O avô não vai deixar que lhe aconteça nada.
- Claro que não. Só quero... Roger? Não, não se passa nada. Estendeu o braço na direcção de Doug, sentindo-se mais calma quando os dedos de Doug se entrelaçaram
nos dela.
- Não queria assustar-te - disse Callie quando Lana desligou.
- Querias, sim, mas até te agradeço por isso. É fácil pensar nisto como uma coisa que aconteceu há anos e esquecer o presente. Tens que ir à polícia.
- Depois de falarmos com os Simpson, vou contar tudo o que sei ao Xerife Hewitt. Prometo. - Reparando nas mãos dadas, Callie desviou o assunto e atirou à queima-roupa:
- Então, já andam a dormir juntos?
- De onde raio te veio a ideia de fazeres uma pergunta dessas?
- perguntou Doug.
- Estou só a vestir a pele da irmã atrevida. Não tive hipótese de ir evoluindo devagarinho, de passar pela fase de peste e tudo isso. Por isso, vou directa. E que
tal o sexo? Bom?
- Lana passou a língua pelos dentes:
- Para dizer a verdade...
- Parem com isso!
- Os rapazes ficam estranhos quando as mulheres falam de sexo
- comentou Callie.
- Eu não fico. - Jake estendeu o braço e deu-lhe uma pequena palmada na coxa.
- Tu és uma aberração. Mas o Graystone é mesmo bom na cama.
- Não quero saber - disse Doug.
- Estou a falar com a Lana. Sabes, certos tipos que são especialmente bons, mas só numa coisa? Por exemplo, beijam bem, mas parece que têm mãos de peixe ou a resistência
de um asmático de noventa anos?
332
- Sei. Sim, claro que sei. - Lana tapou a caneta e voltou a metê-la na mala.
- Bem, o Graystone tem tudo. Uns lábios espectaculares. E, sabes, faz aqueles pequenos truques de prestidigitação. Tem umas mãos deveras criativas. Quase compensam
os seus numerosos defeitos e qualidades irritantes.
Lana inclinou-se para a frente e baixou a voz:
- O Doug usa óculos para trabalhar. Aros de tartaruga.
- Verdade? Os aros de tartaruga matam-me. Ten-los contigo? Estendeu o braço para trás, empurrando o joelho de Doug e recebendo em troca um olhar furioso. - Estás
a começar a pensar que não foi mau de todo terem-me levado do carrinho, ha?
- Estou a pensar em como poderei convencê-los a raptar-te outra vez.
- Agora já encontrava o caminho de volta. Estás muito calado, Graystone.
- Estou a gostar de te ver a implicar com alguém sem ser eu, para variar. Estamos quase lá, Doug.
- Lembrem-se que quem manda sou eu - disse Callie, quando Jake saiu da auto-estrada. - Vocês três são reforços.
- Agora é a Kinsey Milhone - resmungou Doug.
Sentia-se mais como a personagem de Sigourney Weaver em Aliens. Apetecia-lhe esquartejar. Mas conteve a sua raiva enquanto Jake avançava em direcção à casa. Não
ia deixar-se cegar pela fúria.
Saiu do carro, foi até à porta principal e tocou à campainha.
Ouviu apenas o cantar dos últimos pássaros de Verão e o ruído distante de um corta-relva.
- Vou verificar a garagem. - Jake afastou-se enquanto Callie voltava a tocar à campainha.
- Podem ter saído, um almoço de domingo, um jogo de ténis sugeriu Lana.
- Não. Eles sabem o que se passa. Sabem que tenho andado a falar com pessoas que podem lembrar-se da Barbara. Não estão a beber mimosas e a jogar no clube.
- A garagem está vazia - comunicou Jake.
- Então, vamos entrar.
- Espera aí, espera aí! - Doug pôs a mão no ombro de Callie, impedindo-a de continuar. - Já para não falar no que é tentar entrar aqui em plena luz do dia, um sítio
destes deve ter um sistema de alarme. Se partires uma janela ou forçares uma porta, a polícia vai estar
333
aqui antes de conseguirmos encontrar o que quer que seja. Se é que há aqui alguma coisa para encontrar.
- Não sejas lógico. Estou passada da cabeça! Deu um murro na porta.
- Não podem ter sabido que eu vinha aí! Não podem ter sabido tão depressa.
- Uma coisa de cada vez. O Doug tem razão sobre a vizinhança.
- Jake olhou para as casas do outro lado da rua. - Gente rica, não há dúvida. Mas uma aldeia é uma aldeia e há sempre alguém dado à coscuvilhice. Alguém que tem
como objectivo de vida saber o que os outros fazem. Vamos embora daqui, batemos a umas portas e perguntamos delicadamente pelos nossos amigos Simpson.
- Está bem. - Callie refreou a fúria. - Vamos a pares. É menos intimidante. O Jake e eu vamos para sul. Doug e Lana, vocês vão para norte. Que horas são?
Callie olhou para o relógio, enquanto as ideias fervilhavam na sua cabeça.
- Bem, talvez não seja a melhor hora, mas pronto. Vamos dizer que vínhamos tomar um copo com a Barb e o Hank. E agora estamos com receio de termos confundido o dia,
ou que lhes tenha acontecido alguma coisa.
- Vai ser canja. - Jake pegou-lhe na mão e entrelaçou os dedos nos dela quando ela tentou libertá-la. - Lembrem-se de que somos um casal simpático, inofensivo, preocupado
com os nossos amigos Barb e Hank.
- Se alguém acreditar que vocês são inofensivos, é surdo, parvo
e cego.
Lana e Doug encaminharam-se na direcção oposta.
- Não parecem divorciados - disse ele.
- Não? E o que é para ti "parecer divorciado"?
- Não é o que eles parecem, de certeza. Vi-os a preparar o pequeno-almoço juntos. Era como uma coreografia. E viste-os no carro. Quando querem, cada um faz com o
que o outro saiba o que está a pensar, sem dizer uma palavra.
- Como quando a Callie tentou distrair-nos das preocupações, atormentando-te?
- Ele soube exactamente o que ela estava a fazer. Não sei o que há entre eles, mas ainda bem que ele está aqui. Vai tomar conta dela.
Tocou à campainha da primeira casa.
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Quando Jake tocou à campainha da terceira porta, já sabiam a história de trás para a frente e da frente para trás. A mulher respondeu tão rapidamente que ele soube
de imediato que ela estivera a observá-los enquanto iam de casa em casa.
- Desculpe incomodá-la, minha senhora, mas eu e a minha mulher estamos à procura dos Simpson.
- Tenho a certeza de que nos enganámos no dia, querido. Mas Callie olhou para a casa dos Simpson com um ligeiro ar de preocupação.
- Só queria ter a certeza de que está tudo bem. Tínhamos combinado aparecer para tomar uma bebida - disse ele à mulher. - Mas eles não atendem.
- Vinham os quatro tomar uma bebida com os Simpson?
- Sim - confirmou Jake, mantendo-se calmo e sorrindo. Então ela estivera a vigiar a casa. - O meu cunhado e a noiva foram para aquele lado, ver se alguém nos sabe
dizer alguma coisa.
- O meu irmão e eu somos velhos amigos da família. - Callie pegou na história de Jake como se ela fosse a mais pura das verdades. - Isto é, os meus pais e o Dr.
Simpson são velhos amigos. Foi ele que me ajudou a nascer, e ao meu irmão. O nosso pai também é médico. Seja como for, o meu irmão ficou noivo há pouco tempo. E
por essa razão é que vínhamos tomar qualquer coisa com os Simpson. Uma pequena comemoração.
- Não sei como vão conseguir comemorar, com eles fora. A mão de Callie apertou mais a de Jake.
- Fora? Mas... por amor de Deus! Devemos ter-nos enganado no dia! - disse ela a Jake. - Eles não falaram em viagem nenhuma quando falei com eles, há umas semanas.
- Decidiram de repente - informou a mulher. - Como disse que se chamava?
- Peço imensa desculpa. - Callie estendeu-lhe a mão. - Somos os Brady, Mike e Carol. Não queríamos incomodá-la, Sr.a...
- Fissel. Não incomodam nada. Não vos vi já em casa dos Simpson há pouco tempo?
- Sim, no princípio deste Verão. Acabámos de mudar-nos para o leste. É bom podermos conservar os velhos amigos, não acha? Disse que decidiram de repente. Mas não
foi nenhuma emergência, pois não? Oh, Mike, espero que não tenha acontecido nada à... - Como raio se chamava a filha? - Angela.
- Eles disseram que não. - A Sr.a Fissel saiu para o pátio da casa. - Por acaso, vi-os carregar os carros, quando vim buscar o jornal,
335
de manhã. Temos boas relações de vizinhança, por aqui, por isso fui ter com eles e perguntei-lhes se se passava alguma coisa. O Dr. Simpson disse que tinham decidido
ir até à casa que têm nos Hamptons, passar umas semanas. Pareceu-me estranho levarem os dois carros. Ele disse que a Barbara queria levar o dela também. Cá para
mim, levaram para um ano. Mas a Barbara gosta de roupas. Nem parece dela, esquecer-se que vocês vinham. Não lhe escapa nada.
- Acho que nós é que devemos ter confundido qualquer coisa. Não disseram quando voltavam?
- Como eu lhe disse, umas semanas. Ele está reformado, sabe, e ela não trabalha, por isso vão e vêm quando querem, sem problemas. Estavam aqui esta manhã, por volta
das dez, a carregar os carros... e nunca ninguém vê a Barbara na rua antes do meio-dia. Deviam estar cheios de pressa para se fazerem à estrada.
- É uma grande estirada, daqui até aos Hamptons - observou Callie. - Obrigado. Vamos ter de entrar em contacto com eles depois.
- Mike e Carol Brady - disse Jake entredentes quando voltaram para trás e atravessaram a estrada. - Agora somos a Família Brady?
- Foi a primeira coisa que me veio à cabeça. Seja como for, é demasiado velha para ter visto a série quando estreou, e não me parece o tipo de pessoa que veja reposições
no Nick at Night. Raios, Jake!
- Pronto. - Levantou as suas mãos dadas e beijou-lhe os nós dos dedos.
- Achas que foram para os Hamptons?
- Por mais pressa que tivessem, acho que o Simpson não seria suficientemente estúpido para dizer à alcoviteira da cidade para onde iam.
- Também acho. E acho que não têm intenção de regressar.
- Têm que ter ido a qualquer lado, e seja lá onde isso for, hão-de deixar alguma pista. Havemos de encontrá-los.
Ela acenou com a cabeça, lançando um olhar frustrado à casa vazia.
- Deixa lá, Carol, vamos buscar a Alice e os miúdos e vamos para casa1.
- Está bem, está bem - resmungou ela, caminhando a seu lado. Se ia passar por isto, como ia, era melhor manter o controlo, a cabeça fria. - E a Carol Brady, achas
que era uma brasa?
- Quê? Estás a brincar? Até deitava fumo!
1 Alusão a personagens da série televisiva The Brady Bunch.
336
Terceira Parte
A DESCOBERTA
Depois de eliminarmos o impossível, aquilo que fica, ainda que improvável deve ser a verdade.
Sr ARTHUR CONAN DOYLE
Vinte

- Fizeste o que havia a fazer. - De regresso a Maryland, Lana estava junto do seu carro, com Callie, agitando as chaves na mão. Estava relutante em ir-se embora,
ainda que sentisse que já abusara demasiado de Roger, naquele dia.
Saber que os Simpson lhes tinham fugido era frustrante. Tinha de admitir, preparara-se para uma cena feia, para a perspectiva de bombardear os Simpson com perguntas,
de os confrontar com factos e especulações.
E o longo caminho de volta, apenas para apresentar ao xerife as peças dispersas do puzzle, com tudo mais ou menos como estava no início do dia, era outra desilusão.
Devia haver mais qualquer coisa que pudessem fazer. Qualquer coisa.
- O Hewitt não pareceu particularmente impressionado com o nosso raciocínio dedutivo.
- Talvez não, mas não vai ignorá-lo. Mais: agora, está tudo registado. E ele vai...
- Investigar - concluiu Callie, soltando uma gargalhada. - Não posso censurar o tipo por ser céptico. Um crime com trinta anos resolvido por dois arqueólogos, uma
advogada e um livreiro.
- Desculpa, dois cientistas respeitados, uma advogada brilhante e um alfarrabista astuto.
- Soa melhor assim. - Inquieta, Callie pegou numa pedra e atirou-a ao ribeiro, onde mergulhou com um som característico. - Ouve, agradeço-te tudo o que fizeste,
muito para além do que são horas de trabalho pagáveis com um cheque.
- Não costumo trabalhar assim, mas tenho de admitir que me tenho sentido entusiasmada.
339
- Pois. - Atirou outra pedra. - Ver arder o escritório deve ter sido um entusiasmo e tanto.
- Ninguém ficou ferido, tinha seguro, e o facto de ter ficado chateada só abonou em teu favor. Estou aqui para o que der e vier. E o facto de isto significar muito
para o Doug constitui um incentivo extra.
- Humm. Olha, está ali uma cobra preta.
- O quê? Onde? - Aterrorizada, Lana subiu para o capot do carro.
- Calma. - Callie pegou noutra pedra e fez pontaria. - Ali disse ela, atirando a pedra na direcção do ribeiro e fazendo-a aterrar a poucos centímetros da cobra.
Esta, indubitavelmente incomodada, deslizou ao longo da margem e desapareceu entre as árvores. - São inofensivas.
- São cobras.
- Gosto da maneira como se mexem. Bem, dizias... O Doug. É um tipo interessante. Trouxe-me uma caneca de cerveja do Elvis, recordação de Memphis.
- Trouxe? - O suspiro soltou-se mesmo antes de Lana se aperceber. - E porque é que isso há-de deixar-me de coração derretido?
- Porque estás caidinha por ele.
- É verdade. É muito verdade.
- Ouve, aquela coisa no carro sobre a tua vida sexual foi mesmo só um... - Fez uma pausa, virou-se, e enquanto Lana se encolhia numa atitude de defesa fez saltar
uma abelha gorda e ruidosa, como um bom batedor bate a bola num jogo de basebal.
O som fez Lana estremecer.
- Meu Deus! Foste picada?
- Não. Aquele tipo de bichos só chateia e faz barulho. Um bocado como os adolescentes.
- Por acaso, quando eras miúda, eras uma maria-rapaz?
- Não percebo esse nome. Porque é que uma rapariga que tem gostos, habilidades e hábitos mais tradicionalmente atribuídos a rapazes tem de se chamar Maria? Porque
não pode ser outro nome qualquer?
Lana abanou a cabeça.
- Não faço a mais pequena ideia!
- Faz mais sentido. Bem, deixa lá. O que estava eu a dizer?
- Ah... sobre a minha vida sexual.
- Sim, pois. Aquilo no carro foi só uma brincadeira. Considerando que Callie a protegeria das partidas da natureza, Lana desceu do capot do carro.
340
- Eu sei.
- Não é que eu não goste de saber o que se passa com a vida sexual de outras pessoas.
- Vivas ou mortas.
- Exactamente. Todas as vidas têm os seus momentos decisivos.
Callie olhou para trás, na direcção da casa, quando alguém lá dentro pôs música. Como o som que saía aos berros pelas janelas era dos Backstreet Boys, pensou que
devia ser Frannie.
- O meu primeiro momento decisivo foi quando eu estava a dormir num carrinho de bebé, em Dezembro de setenta e quatro prosseguiu. - Os momentos decisivos criam a
grelha onde vai desenvolver-se o padrão, mas é o dia-a-dia que tece o padrão. O que comemos, o que fazemos, com quem dormimos, com quem construimos uma família,
como cozinhamos, como nos vestimos. As grandes descobertas, como a de um sarcófago antigo... isso é o grande impacto numa carreira. Mas são as coisas comuns que
são importantes para mim. Como um brinquedo feito de uma carapaça de tartaruga.
- Ou uma caneca de cerveja do Elvis.
- És muito inteligente - declarou Callie. - Acho que nos teríamos dado bem se tivéssemos crescido juntos, eu e o Doug. Acho que teríamos gostado um do outro. Por
isso, é mais fácil gostar dele agora e é menos estranho estar perto dele, ou do Roger, do que com a Suzanne ou o Jay.
- E é mais fácil procurar as pessoas responsáveis, procurar as razões, o como e o porquê, do que lidar com os resultados. Isto não é uma crítica - acrescentou Lana.
- Acho que estás a enfrentar uma situação difícil com um senso comum admirável.
- Isso não impede que as pessoas envolvidas saiam magoadas de alguma forma. E se tivermos razão, duas pessoas que nem sequer fazem parte disto estão mortas porque
eu tenho um senso comum admirável, que me faz procurar respostas.
- Podes parar.
- Tu pararias?
- Não. Mas acho que conseguiria fazer uma pausa, sentar-me um pouco e tentar avaliar a situação em que me encontro agora, e como cheguei a ela. Se fizeres isso,
talvez sejas capaz de aceitar as respostas, quando as encontrares.
Não foi má ideia, concluiu Callie, afastar-se de um puzzle e usar-se ela própria como peça-chave para outro. Em que situação estava e
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como chegara a ela? À medida que fosse escavando, o que seria exposto sobre a sua vida, a sua cultura pessoal e o seu papel na sociedade?
Sentou-se ao computador e começou a fazer uma cronologia pessoal, desde a data do seu nascimento.
Nascida a 11 de Setembro de 1974.
Raptada a 12 de Dezembro de 1974.
Entregue a Elliot e Vivian Dunbrook a 16 de Dezembro de 1974.
Esta parte era fácil. Exercitando a memória, acrescentou a data em que começara a ir à escola, o Verão em que partira o braço, o Natal em que pedira e recebera o
seu primeiro microscópio. A sua primeira lição de violoncelo, o seu primeiro recital, a sua primeira escavação. A morte do seu avô paterno. A sua primeira experiência
sexual. A data da conclusão do seu curso. O ano em que se mudara para o seu próprio apartamento.
Destaques profissionais, o diploma de mestrado, doenças e ferimentos graves. O encontro com Leo, Rosie, o seu breve caso com um egiptólogo.
Onde estava com a cabeça?
O dia em que conhecera Jake. Como podia esquecer-se?
Terça-feira, 6 de Abril de 1998.
A data da sua primeira relação sexual.
Quinta-feira, 8 de Abril de 1998.
Fora tiro e queda, pensou. Não tinham conseguido manter as mãos longe um do outro, e tinham incendiado o colchão num quartinho apertado em Yorkshire, perto da escavação
mesolítica onde estavam a estudar.
Tinham ido viver juntos, mais ou menos, em Junho desse ano. Não conseguia precisar quando nem como se tinham tornado uma equipa. Se um deles ia para o Cairo, ou
para o Tennessee, ambos iam para o Cairo, ou para o Tennessee.
Tinham brigado como loucos, feito amor como loucos. Por todo o mundo.
Registou a data do seu casamento.
A data em que ele se fora embora.
A data em que recebera os papéis do divórcio. Não passara muito tempo entre ambas, pensou, e depois abanou a cabeça. A questão ali era a vida dela, não a vida deles.
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Encolhendo os ombros, inseriu a data do seu doutoramento. Registou a data em que fora ter com Leo a Baltimore, o seu primeiro dia no projecto, que incluíra o primeiro
encontro com Lana Campbell.
O dia em que Jake chegara.
A data em que Suzanne Cullen fora ter com ela ao seu quarto de hotel.
A sua viagem a Filadélfia, o seu regresso. O contrato com Lana, o jantar com Jake, o vandalismo no seu Rover, o homicídio de Dolan. A conversa com Doug.
Sexo com Jake.
Testes sanguíneos.
A primeira visita aos Simpson.
Franzindo o sobrolho, voltou atrás, consultou a sua agenda e inseriu a data em que cada membro da equipa se juntara ao projecto.
O tiro disparado contra Jake, a viagem a Atlanta, o incêndio. Entrevistas com a viúva do Dr. Blakely e com Betsy Poffenberger, os dados delas resultantes.
A morte de Bill McDowell.
Fazer amor com Jake.
Depois, nova viagem a Virgínia, e o presente.
Listados os eventos, chegava-se a um padrão. Em seguida, havia que extrapolar a partir deles, para ver como cada acontecimento, cada camada se interligava com a
outra.
Trabalhou durante algum tempo, associando dados a diferentes campos: educação, assuntos médicos, questões profissionais, projecto de Antietam Creek, Jessica.
Observou os dados e verificou que desde o dia em que o conhecera, Jake estava ligado a todos os pontos importantes da sua vida. Até ao maldito doutoramento, admitiu,
que fizera como vingança e para impedir-se de ir atrás dele, descarregar a ira.
Nem sequer podia ter uma crise de identidade sem ele estar envolvido.
Pior: não tinha a certeza de querer que fosse de outra forma.
Distraidamente, estendeu a mão para tirar uma bolacha e descobriu que o pacote que tinha ao lado do teclado estava vazio.
- Tenho uma embalagem guardada no meu quarto.
Ela deu um salto e quando se virou viu Jake encostado à ombreira da porta.
- Mas tens de pagar por ela - acrescentou.
- Raios, pára de andar em pezinhos de lã, a espiar-me.
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- Não tenho culpa se me movo com a graça e o silêncio de uma pantera, pois não? E tinhas a porta aberta. Estar encostado a uma porta aberta não é espiar. O que estás
a fazer?
- Não é da tua conta. - E para certificar-se de que continuaria a não ser, guardou o ficheiro e fechou-o.
- Estás irritada porque se te acabaram as bolachas.
- Fecha a porta. - Rangeu os dentes quando ele fez o que lhe pedira, mas ficou do lado de dentro. - Queria dizer, contigo do lado de fora!
- Devias ter sido mais específica. Porque não estás a dormir a sesta?
- Porque não tenho três anos.
- Estás estafada, Dunbrook.
- Tenho trabalho a fazer.
- Se estivesses a fazer a escala de vigilância para o sítio da escavação, não terias tido tanta pressa em fechar o ficheiro antes que eu pudesse olhar para ele.
- Tenho assuntos pessoais que não te dizem respeito. - Pensou na cronologia que acabara de fazer e no completo envolvimento dele nela. - Ou devia ter.
- Sentes-te muito cansada, não sentes, querida?
O estômago dela desceu-lhe até aos joelhos, ao ouvir o som lento e suave da voz dele.
- Não sejas simpático para mim. Isso deixa-me doida! Não sei o que hei-de fazer quando és simpático para mim.
- Eu sei. - Inclinou-se para tocar os lábios dela com os seus.
- Não consigo perceber como nunca pensei nisso antes.
Ela virou-se e voltou a abrir o ficheiro.
- É só uma cronologia, estou a tentar estabelecer um padrão. Vá lá, vê. - Levantou-se para ele poder ficar com a cadeira, à secretária.
- Os altos e baixos da minha vida.
Ela deitou-se no saco-cama enquanto ele lia.
- Dormiste com o Aiken? Aquele egiptólogo escanzelado? Onde é que tinhas a cabeça?
- Deixa isso, ou vou começar a fazer comentários sobre todas as mulheres com quem dormiste.
- Não conheces todas as mulheres com quem dormi. Esqueceste-te de algumas coisas.
- Não esqueci nada!
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- Esqueceste-te da conferência a que fomos em Paris, em Maio de 2000. E do dia em que faltámos e nos sentámos numa esplanada, a beber vinho. Tinhas um vestido azul.
Começou a chover, só um pouco. Regressámos ao hotel, à chuva, fomos para o quarto e fizemos amor. Com as janelas abertas, para podermos ouvir a chuva a cair.
Ela não se esquecera. Recordava-se tão bem, tão claramente, que ouvi-lo contar tudo a fez sofrer.
- Não são dados relevantes.
- Foi um dos dias mais relevantes da minha vida. Nessa altura não sabia. É isso que a vida tem. Acontece-nos demasiadas vezes só sabermos que um momento é importante
depois de ele ter passado. Ainda tens aquele vestido?
Virou-se de lado, pousou a cara na palma da mão e observou-o.
Não cortava o cabelo desde que tinham começado a escavar. Ela sempre gostara de vê-lo com o cabelo um pouco comprido demais.
- Algures.
- Gostava de te ver com ele, outra vez.
- Nunca reparaste nem deste importância ao que eu vestia.
- Nunca fiz comentários. Não foi intencional.
- Que estás a fazer? - perguntou ela quando ele começou a escrever.
- A acrescentar Maio de 2000, Paris, à tua cronologia. Vou mandar este ficheiro para o meu portátil. Depois, faço o download e vou
brincar um pouco com ele.
- Óptimo, espectacular. Faz o que quiseres.
- Deves estar a sentir-te mesmo mal. Não me lembro de alguma vez me teres dito para eu fazer o que quisesse.
Porque lhe apetecia chorar? Porque diabo lhe apetecia chorar?
- Seja como for, sempre fizeste o que quiseste.
Ele enviou o ficheiro para o seu e-mail e depois levantou-se e aproximou-se dela.
- Isso foi o que tu sempre pensaste. - Sentou-se ao lado dela e passou-lhe os dedos pelo ombro. - Naquele dia, no Colorado, não queria ir-me embora.
Sim, pensou amargamente, era por isso que lhe apetecia chorar.
- Então, porque foste?
- Deixaste muito claro que era isso que querias. Disseste que todos os minutos que tinhas passado comigo tinham sido um erro. Que o casamento era uma piada de mau
gosto e que se eu não me demitisse do projecto e me fosse embora serias tu a fazer isso.
- Estávamos a discutir.
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- Disseste que querias o divórcio.
- Sim, e tu foste-te embora o mais depressa que pudeste. Tu e aquela morena com um metro e oitenta saíram disparados e eu recebi um pedido de divórcio pelo correio,
duas semanas depois.
- Não me fui embora com ela.
- Claro, foi coincidência ela ter-se ido embora ao mesmo tempo.
- Nunca confiaste em mim, Cal. Nunca acreditaste em mim, em nós.
- Perguntei-te se tinhas dormido com ela.
- Não perguntaste, acusaste.
- Tu recusaste-te a negar.
- Recusei-me a negar - concordou ele -, porque era insultuoso. Ainda é. Se acreditaste que eu tinha quebrado os meus votos para contigo, que eu tinha trocado a tua
confiança por outra mulher, então o casamento era uma piada de mau gosto. Não teve nada a ver com ela. Céus, nem sequer me lembro do nome dela.
- Verónica. Verónica Weeks.
- Se tu o dizes - murmurou ele. - Não teve nada a ver com ela
- repetiu. - Teve tudo a ver connosco.
- Eu queria que tu lutasses por mim. - Sentou-se. Também tinha as suas feridas. - Por uma vez que fosse, queria que lutasses por mim e não contra mim. Queria isso,
Jake, para poder saber. Para poder saber o que nunca me disseste, uma única vez.
- O quê? O que é que eu não te disse?
- Que me amavas.
Callie não sabia se havia de rir ou de chorar quando viu a expressão de choque no rosto dele. Era raro, pensou, vê-lo tão desarmado, tão perplexo, tão espantado.
- Isso são tretas, Callie. Claro que te disse!
- Nem uma única vez. Nunca disseste as palavras. "Humm, querida, adoro o teu corpo" não conta, Graystone! "Ah sim, eu também" era a resposta, às vezes, quanto eu
te dizia. Mas tu nunca me disseste. É óbvio que não conseguias. Porque se há coisa que não és é mentiroso.
- Porque diabo te pedi para casares comigo, se não te amava?
- Nunca me pediste para casar contigo. Disseste: "Ei, Dunbrook, vamos até Las Vegas, casar."
- É a mesma coisa.
- Não és assim tão obtuso. - Cansada, passou as mãos pelo cabelo. - Deixa lá, não interessa.
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Ele pegou-lhe no braço pelo pulso e baixou-lhe a mão.
- Porque não me disseste nada disto antes? Porque não me perguntaste directamente se te amava?
- Porque sou uma rapariga, seu grande idiota estúpido! - deu-lhe um murro no braço e pôs-se de pé. - Lá por escavar na lama, lidar com ossos, dormir num saco-cama,
não significa que não seja uma rapariga.
O facto de ela estar a dizer coisas que ele descobrira por si próprio nos últimos meses só piorou as coisas.
- Eu sei que és uma rapariga! Por amor de Deus!
- Então, vê se percebes! Para alguém que tem passado a vida de adulto a estudar e a analisar culturas, a condição humana e os ritos sociais, és um idiota!
- Pára de me chamar nomes e dá-me a porcaria de um minuto para resolver isto.
- Leva o tempo que quiseres. - Ela deu meia volta e encaminhou-se para a porta.
- Não! - Ele não se mexeu, não se levantou nem levantou a
voz. A surpresa, porque tudo na história de ambos indicava que ele faria essas três coisas, fê-la parar. - Não vás. Pelo menos, vamos acabar isto sem virarmos as
costas um ao outro. Não perguntaste - continuou ele, calmamente - porque na nossa cultura a verbalização das
emoções é tão importante como a demonstração das emoções. A comunicação livre entre um casal é essencial para o desenvolvimento e
evolução da relação. Se tivesses perguntado, a resposta não teria
significado.
- Bingo, professor!
- E como eu não te disse, pensaste que eu dormia com outras
mulheres.
-Vieste com um rótulo. "Jake Vai-a-Todas".
- Raios partam, Callie! - Havia poucas coisas que ele detestasse
mais do que ver aquele termo ser-lhe atirado à cara. E ela sabia disso.
- Ambos tínhamos dado as nossas voltas.
- E o que te impedia de continuares a dá-las? - contrapôs ela.
- Gostas de mulheres.
É - Gosto de mulheres - concordou ele, pondo-se de pé. - Mas
era a ti que eu amava. Os lábios dela tremeram-lhe.
- É uma bela coisa para me dizeres, agora.
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- Não há nada a meu favor, pois não? Então ouve mais uma coisa, que talvez eu já devesse ter-te dito há muito tempo. Nunca te fui infiel. Ser acusado disso... Magoava-me,
Callie. Por isso fiquei furioso, porque preferi ficar furioso em vez de magoado.
- Não dormiste com ela?
- Nem com ela, nem com mais ninguém. Não havia mais ninguém senão tu, desde o primeiro minuto em que te vi.
Ela teve de desviar o olhar. Convencera-se de que ele lhe fora infiel. Fora a única forma de suportar estar sem ele. A única coisa que a impedira de correr atrás
dele.
- Pensei que sim. Tinha a certeza de que sim. - Teve de voltar a sentar-se, por isso deixou-se escorregar pela porta. - Ela fez tudo para eu ter essa certeza.
- Ela não gostava de ti. Tinha ciúmes de ti. Se ela se atirou a mim... Pronto, atirou-se a mim, é verdade, foi apenas porque eu era teu.
- Deixou o sutiã no nosso quarto.
- O quê? Santo Deus!
- Meio debaixo da cama - continuou Callie. - Como se se tivesse esquecido dele quando voltou a vestir-se. Senti o cheiro dela quando entrei no quarto. O perfume
dela. E pensei: a nossa cama. Ele trouxe aquela cabra para a nossa cama. Fiquei destroçada.
- Não fiz isso! Só posso dizer-te que não fiz isso. Nem na nossa cama, nem em lado nenhum. Nem ela, Callie, nem ninguém, desde a primeira vez que te toquei.
- Está bem.
- Está bem? - repetiu ele. - Só isso?
Ela sentiu uma lágrima começar a rolar e limpou-a.
- Porque não me falaste nisto quando aconteceu?
- Porque tive medo. Tive medo que se te mostrasse a prova, aquilo que parecia ser a prova inegável, tu admitisses. Que se dissesses sim, tinha acontecido mas não
ia voltar a acontecer, eu ficasse contigo. Por isso, enfureci-me - disse ela, com um suspiro. - Porque preferi ficar furiosa do que magoada ou com medo. Fiquei furiosa
porque ficando furiosa conseguia aguentar a situação, fazer-lhe frente. Já não sei o que hei-de fazer. Não sei como fazê-lo.
Ele sentou-se diante dela, de forma a que os seus joelhos se tocassem.
- Temos feito progressos na nossa amizade.
- Acho que sim.
- Podemos continuar a apostar nisso. E eu posso tentar não me esquecer de que és uma rapariga, e tu podes continuar a confiar em mim.
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- Acredito em ti, sobre a Verónica. Já é um começo. Ele pegou-lhe na mão:
- Obrigado.
- Mas quero continuar a gritar contigo quando precisar.
- Está bem. Eu continuo a querer sexo contigo.
Ela fungou e limpou outra lágrima, com os nós dos dedos:
- Agora?
- Nunca digo que não, mas talvez seja melhor esperar. Sabes, nunca chegámos a fazer Aquela viagem para estarmos com a minha família, depois de casarmos.
- Acho que não é uma boa altura para nos rasparmos até ao Arizona.
- Não. - Mas podia levá-la até lá com palavras. Talvez pudesse mostrar-lhe uma parte de si próprio que nunca pensara em partilhar, antes.
- O meu pai... é um bom homem. Calmo, de confiança, trabalhador. A minha mãe é forte e tolerante. Fazem uma boa equipa, uma bela união.
Olhou para a mão dela e começou a brincar com os dedos.
- Não me lembro de ter ouvido a nenhum deles dizer ao outro que o amava. Pelo menos em voz alta. Também não me lembro de ouvir nenhum deles dizer-mo, a mim. Sabia
que eles me amavam, mas não falávamos nisso. Se eu telefonasse aos meus pais e lhes dissesse que os amo, eles ficariam embaraçados. Todos ficaríamos embaraçados.
Ela nunca pensara que as palavras mais básicas da linguagem humana pudessem embaraçá-lo, a ele ou a quem quer que fosse.
- Nunca o disseste a ninguém?
- Nunca tinha pensado nisso, mas não, acho que não. Se tens a certeza que aquilo do "adoro o teu corpo" não conta.
- Não conta. - Sentiu por ele uma onda de ternura quente e inesperada, e afastou-lhe o cabelo do rosto. - Nunca dissemos muito um ao outro sobre as nossas famílias.
Embora estejas a fazer um curso intensivo sobre a minha, actualmente.
- Gosto da tua família. De ambas as tuas famílias. Ela encostou a cabeça à porta.
- Na minha casa, sempre falámos sobre os nossos sentimentos. Do que sentíamos, porque sentíamos. Duvido que tenha passado um só dia sem que eu tenha ouvido os meus
pais dizerem amo-te". A mim, ou um ao outro. O Carlyle fez um trabalho melhor do que possa imaginar ao ligar os Cullen aos Dunbrook.
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- Que queres dizer?
- Grandes emoções, verbalizadas. Eu mostro-te. Levantou-se e tirou a caixa de sapatos do saco de lona onde a guardara.
-Já as li todas. Vou escolher uma ao acaso. Fez isso, trouxe a carta e sentou-se no chão.
- Toma - disse-lhe. - Lê-a. Vai fazer-te perceber o que quero dizer. Qualquer uma delas serviria.
Ele abriu o envelope e desdobrou a carta.
Querida Jessica,
Feliz aniversário, doces dezasseis anos. Deves estar muito entusiasmada, hoje. Dezasseis anos é uma data importante, especialmente para uma rapariga. Já és uma mulherzinha,
eu sei. A minha menina é uma mulherzinha.
És linda, também sei isso.
Olho para as jovens da tua idade e penso como são adoráveis e luminosas e frescas. A excitação que é para elas estarem no auge de tantas coisas. E em como isso é
frustrante e difícil.
Tantas emoções, tantas necessidades e dúvidas. Tantas novidades. Penso no que gostaria de dizer-te. Nas conversas que teríamos sobre a tua vida e sobre onde queres
ir. Os rapazes de que gostas e os encontros que tens tido.
Sei que discutiríamos. As mães e as filhas estão destinadas a discutir. Daria tudo para poder discutir contigo, ver-te rumar desabrida até ao teu quarto e bater
com a porta. Ouvir-te gritar comigo e pôr a música aos berros só para me chateares.
Daria tudo para poder ter isso.
Penso em como iríamos às compras e gastaríamos demasiado e iríamos almoçar algures, só as duas.
Pergunto-me se terias orgulho em mim. Espero que sim. Imagina: Suzanne Cullen, mulher de negócios. Continuo a ficar surpreendida, mas espero que ficasses orgulhosa
por eu ter um negócio meu, bem sucedido.
Será que viste a minha fotografia em alguma revista, no consultório do dentista ou no cabeleireiro? Penso em ti, a abrires um pacote das minhas bolachas, e em quais
serão as tuas preferidas.
Tento não ficar triste, mas é difícil, tão difícil, saber que podes fazer estas coisas sem nunca saberes quem sou. Sem nunca saberes o quanto te amo.
Todos os dias e todas as noites, Jessie. Estás nos meus pensamentos, nas minhas orações, nos meus sonhos. Tenho saudades tuas.
Amo-te.
Mãe
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- Isto é difícil para ti. Imagino como é difícil para ti.. - Jake pousou a carta e olhou para Callie. - Estou enredado em dados, factos e ligações. E tenho tendência
para esquecer como tudo isto te faz sentir.
- Em que ano foi isso?
- Tinhas dezasseis anos.
- Dezasseis anos. É evidente que ela não sabia como eu era. Não sabia no que eu me tornaria, no que eu já tinha feito, onde estava. Mas amava-me. Não era só o bebé
que ela perdera, mas quem quer que eu fosse. Não importava. Ela amava-me de qualquer maneira, o suficiente para escrever isso. O suficiente para me dar isso, para
me dar todas estas cartas, para eu saber que era amada.
- Sabendo que não podes retribuir-lhe esse amor.
- Sabendo que não posso retribuir-lhe esse amor - concordou Callie. - Não desta forma. Porque tenho uma mãe com quem fiz todas as coisas que Suzanne diz que queria
fazer comigo. Tive uma mãe que disse que me amava, que me mostrou que me amava. Uma mãe com quem fui às compras e com quem discuti, e que pensei que era demasiado
rígida ou demasiado estúpida, e todas as coisas que as raparigas adolescentes pensam que as mães são.
Abanou a cabeça.
- O que estou a tentar dizer é que podia ter sido a minha mãe a escrever isso. Vivian Dunbrook podia ter-me escrito essa carta. Essas emoções, essas necessidades,
essa bondade, está em ambas. Já tenho algumas respostas. Sei de onde venho. Sei que fui abençoada, tanto pela hereditariedade como pelo meio, que me permitiram ser
o que sou. Sei que tenho dois conjuntos de pais, mesmo que consiga amar apenas um deles sem reservas. E sei que vou conseguir lidar com isto. Com o turbilhão emocional,
com a ansiedade, com o desenterrar de factos para descobrir mais factos. Porque a minha cronologia só estará terminada quando eu puder dar o resto das respostas
à mulher que escreveu essa carta.
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Vinte e Um

Lana sabia que havia mulheres que trabalhavam fora de casa e eram bem sucedidas. Geriam negócios, criavam impérios e conseguiam criar filhos felizes, saudáveis e
perfeitamente adaptados, que se licenciavam com distinção em Harvard ou se tornavam pianistas de renome. Possivelmente, ambas as coisas.
Essas mulheres cozinhavam verdadeiras iguarias, mobilavam a casa com antiguidades italianas, davam entrevistas inteligentes às revistas Moneye People, e mantinham
um casamento brilhante, com uma vida sexual activa e invejável, sem nunca ultrapassarem o peso ideal, em meia dúzia de gramas que fosse.
Davam grandes jantares, elegantes, para a família e os amigos, eram membros de várias organizações de caridade e eram unanimemente eleitas para a presidência das
Associações de Pais.
Ela sabia que havia mulheres dessas por aí. Se tivesse uma arma, iria atrás de cada uma delas e abatê-las-ia como cães raivosos, a bem das outras mulheres.
Ainda estava com os calções e a T-shirt com que dormira, coxeava devido ao ferimento infligido ao calcanhar pela espada laser da réplica de Anakin Skywalker que
pisara quando corria atrás do cão - que decidira que as sandálias novas dela eram muito mais saborosas do que o seu osso -, e acabara de ter uma discussão de vinte
minutos com o canalizador, que parecia achar que ela podia esperar até ao fim de semana para ver a sanita arranjada.
Ty conseguira espalhar manteiga de amendoim dos pés à cabeça, besuntar o cão e o chão da cozinha, e enfiar vários vilões da Guerra das Estrelas na sanita, daí o
telefonema para o canalizador. E ainda não eram nove horas.
353
Queria tomar um café sossegadamente, queria os seus lindos sapatos novos e um escritório organizado e fora de casa.
Em parte, a culpa era dela, claro. Fora ela que decidira que não valia a pena mandar Ty para uma baby-sitter enquanto ela trabalhava em casa. E fora generosa e compreensiva
quando a sua assistente lhe pedira uma semana de folga para ir a Columbus, visitar a filha.
Fora ela que decidira que conseguia fazer tudo.
Agora, o seu filho estava lá em cima, a soluçar, porque ela gritara com ele. O cão tinha medo dela, pela mesma razão. O canalizador estava zangado com ela - e toda
a gente sabia o que isso significava -, e não conseguira fazer nada de positivo excepto ligar o computador.
Era um desastre como mãe, como profissional e como dona de um cão. Doía-lhe o pé e não podia culpar ninguém pela situação senão a si própria.
Quando o telefone tocou, pensou seriamente em limitar-se a esconder a cabeça entre os braços. Se pensavam que ela era capaz de resolver os problemas de alguém, iam
ficar amargamente desapontados.
Mas respirou fundo e levantou o auscultador.
- Bom-dia. Lana Campbell.
Doug bateu à porta e depois decidiu que era pouco provável que alguém o ouvisse, com tanto barulho vindo de casa de Lana. Cautelosamente, abriu a porta e espreitou.
O cão ladrava como louco, o telefone estava a tocar, a televisão da sala debitava qualquer coisa aos berros e Tyler chorava.
Ouviu a voz frustrada e quase estridente de Lana, tentando fazer-se ouvir.
- Tyler Mark Campbell, quero que pares imediatamente.
- Quero ir para casa do Brock. Já não gosto de ti. Quero ir morar com o Brock.
- Não podes ir para casa do Brock, porque não tenho tempo para levar-te. E neste momento também não gosto lá muito de ti, mas não posso fazer nada. Agora, vai lá
para cima, para o teu quarto, e não saias de lá até conseguires comportar-te como um ser humano civilizado. E desliga essa televisão!
Doug quase voltou a sair. Com tanto alarido, ninguém iria dar por nada se ele voltasse para o carro e fugisse dali numa nuvem cobarde de pó.
Nada daquilo era da sua conta, pensou. A vida já tinha complicações e conflitos suficientes sem ser preciso andar à procura de mais.
354
- És má para mim. - Tyler soluçava, enquanto a sua voz subia de tom e incitava o cão a juntar-se-lhe com um uivo longo e agudo.
- Se eu tivesse um papá, ele não era mau para mim. Quero o meu papá, não te quero a ti.
- Oh Ty, eu também quero o teu papá.
Provavelmente foi aquilo - o soluçar da criança, a infelicidade absoluta na voz de Lana - que o fez entrar em vez de voltar a sair.
Mesmo assim, optou por uma atitude de negação, com um sorriso enorme e um tom de voz, animado.
- Ei, o que vem a ser isto?
Ela virou-se. Nunca a vira com um ar menos que perfeitamente alinhado, pensou. Mesmo depois de terem feito amor, ela conseguia ter um ar perfeito.
Agora, tinha o cabelo desgrenhado, os olhos húmidos e estava um tanto fora de si. Estava descalça, e havia uma mancha de café na parte da frente da T-shirt que tinha
vestida e onde se lia "Melhor mãe do mundo".
Corou de embaraço, enquanto erguia as mãos num gesto de algum desespero.
Doug sentira-se atraído pela advogada elegante e organizada. Pela mulher calorosa e confiante. E agora estava intrigado, diante da mãe viúva que parecia não conseguir
acertar com uma só bola na baliza.
E, para seu completo espanto, apaixonou-se por aquela mulher desalinhada, frustrada e infeliz, com brinquedos espalhados aos pés.
- Desculpa. - Forçou aquilo que esperava que se parecesse com um sorriso. - Neste momento, estamos no meio de um asilo de loucos. Acho que não é boa altura para...
- Ela gritou connosco. - Procurando simpatia, Ty precipitou-se para Doug e agarrou-se-lhe às pernas. - Disse que nós éramos maus.
Doug pegou em Ty ao colo.
- Portaste-te mal, não foi?
Ty fez beicinho. Abanou a cabeça e depois enterrou a cara no ombro de Doug.
- Ela bateu-me no rabo.
-- Tyler. - Lana achou que se o chão se abrisse naquele momento e a engolisse, ela seria morta pela ira dos brinquedos que caíssem lá dentro com ela.
- Porquê? - Doug deu ao rabo em questão uma pequena palmada.
- Doug. - Lana teve vontade de arrancar os cabelos.
355
- Não sei. Ela é má. Posso ir para casa contigo?
- Não, não podes ir a lado nenhum, meu menino, a não ser para o teu quarto. - Lívida, Lana estendeu o braço para puxar Ty e levá-lo dali, mas o rapazinho agarrou-se
a Doug como se fosse um macaquinho nervoso agarrado a um ramo.
- Porque não vais atender o telefone? - sugeriu Doug, designando com a cabeça o local de onde provinha o som estridente. - Deixa lá isto por um minuto.
- Não quero que... - Estejas aqui. Vejas isto. Me vejas. - Está bem. - Virou as costas e foi atender o telefone.
Doug desligou a televisão e, ainda com Ty ao colo, abriu a porta e assobiou ao cão.
- Tiveste uma manhã difícil, não foi, companheiro?
- A mamã bateu-me no rabo. Bateu-lhe com a mão. Três vezes.
- A minha mãe também me dava açoites no rabo, às vezes. Não me doía lá muito, os meus sentimentos é que ficavam magoados. Acho que quiseste magoar os dela quando
lhe disseste que já não gostavas dela.
- Não gosto dela quando ela é má.
- Ela é má muitas vezes?
- Não. Mas hoje está a ser. - Levantou a cabeça e olhou para Doug de uma forma que conseguia ser uma mistura de admiração, esperança e inocência, tudo ao mesmo tempo.
- Posso ir morar contigo hoje?
Bolas, pensou Doug, olhem para ele. Seria preciso ser bem mais duro do que Douglas Edward Cullen para não ficar caidinho por ele.
- Se fosses morar comigo hoje, a tua mãe ia ficar muito sozinha.
- Ela já não gosta de mim, porque os maus entupiram a sanita e a água não vai para baixo, e fomos buscar a manteiga de amendoim e o sapato. - As lágrimas corriam-lhe
pela cara. - Mas não fizemos de propósito.
- Um dia cheio de acção. - Impossível resistir, admitiu Doug, e beijou as bochechas molhadas e quentes. - Se não fizeram de propósito, devem estar arrependidos.
Talvez devessem dizer-lhe que estão arrependidos.
- Ela não vai querer saber, porque disse que nós éramos uns bárbaros. - Os olhos de Ty estavam muito abertos e muito sérios. - O que é isso?
- Ena, pá. - Como podia um homem resistir a uma coisa destas? Toda a sua vida seguira o seu próprio caminho, sozinho e satisfeito
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por estar sozinho. Agora havia esta mulher, este menino, este cão idiota. E todos eles estavam presos ao seu coração.
- É alguém que não tem maneiras. Parece que tu e o Elmer não se portaram bem. A tua mãe estava a tentar trabalhar.
- A mãe do Brock não trabalha.
Ouviu o eco da sua própria voz. Os seus pensamentos de infância, quando se queixava ou quando chorava porque a mãe estava demasiado ocupada para lhe dar toda a atenção.
Estás demasiado ocupada para mim, não é? Pois muito bem, também
vou ficar demasiado ocupado para ti.
Que estupidez!
- Que coisa esta, pensou, a birra de um rapazinho de quatro anos
provocar revelações daquelas a um homem com mais de trinta. - A mãe do Brock não é a tua mãe. Ninguém é mais especial do
que a nossa mãe. Ninguém no mundo. - Abraçou Ty e passou-lhe a mão pelo cabelo, enquanto Elmer aparecia com um pau na boca, obviamente pronto para a brincadeira.
- Quando fazes qualquer coisa errada, tens de pedir desculpa e remediar o erro. - Sentou Ty e, para gáudio de Elmer, atirou o pau.
- Aposto que seria isto que o teu pai te diria.
- Eu não tenho pai. Foi para o céu e nunca mais vai voltar.
- Isso é difícil. - Doug acocorou-se. - Deve ser a coisa mais difícil que há. Mas tens uma mamã muito boa. É o que diz na blusa dela.
- Ela está zangada comigo. Foi a avó que me ajudou a comprar a T-shirt para os anos da mãe, mas o Elmer deu um salto e fez a mãe entornar-lhe café por cima. E quando
ele fez isso, ela disse uma palavra feia. Disse a palavra M. - A recordação disso fê-lo voltar a fazer
beicinho. - Disse essa palavra duas vezes. Muito alto.
- Uau! Deve ter ficado muito zangada. Mas podemos remediar isso. Queres?
Ty fungou e limpou o nariz às costas da mão.
- Está bem.
Lana terminou o telefonema e estava prestes a deitar a cabeça na secretária por um instante, por um minuto abençoado, quando ouviu a porta abrir-se.
Levantou-se, tentou domar um pouco o cabelo e mostrar alguma compostura de advogada.
Tyler entrou, com um ramo de malmequeres amarelos de vários tamanhos.
357
- Desculpa eu ter feito coisas más e ter dito coisas más. Não estejas zangada.
- Oh, Ty. - A chorar, pôs-se de joelhos e puxou-o para si. - Já não estou zangada. Desculpa ter-te batido. Estou muito arrependida de ter gritado contigo. Amo-te
tanto! Amo-te mais do que tudo no mundo.
- Colhi-te flores porque tu gostas.
- Gosto. Gosto muito. - Afastou-se um pouco. - Vou pô-las na minha secretária para poder olhar para elas enquanto estiver a trabalhar. Mais tarde vou telefonar para
casa do Brock para ver se podes ir até lá.
- Não quero ir para casa do Brock. Quero ficar a ajudar-te. Vou arrumar os meus brinquedos, como devo.
- Vais?
- HÃ-hã. E nunca mais vou matar os maus na sanita.
- Está bem. - Deu-lhe um beijo na sobrancelha. - Está tudo bem. Vai lá arrumar as tuas coisas, e depois ponho-te o vídeo da Guerra das Estrelas.
- Está bem. Anda, Elmer! - Saiu a correr, com o cão atrás.
Lana voltou a puxar o cabelo, embora não servisse de muito, e depois pôs-se de pé. Embora o telefone começasse a tocar outra vez, ignorou-o e foi até à cozinha,
onde Doug estava a beber uma caneca de café.
- Acho que isto foi uma experiência educativa. Lamento que tenhas caído no meio de tudo isto.
- Queres dizer, caí no meio de tudo isto, que é normal.
- A nossa rotina normal não é assim.
-- O que não torna isto menos normal. - Voltou a pensar na sua mãe, sentindo alguma vergonha. - Quando uma pessoa tem que segurar as pontas todas, de vez em quando
há uma que escapa.
- Bem podes dizê-lo. - Abriu um armário e tirou de lá uma pequena jarra verde. - A culpa também é minha. Para quê mandar o Ty para a baby-sitter se posso tê-lo aqui
comigo? Sou mãe dele, não sou? O que é que interessa se estou a tentar dirigir um escritório e a minha assistente está de férias? E quando as coisas se complicam
um pouco, descarrego num miúdo e no seu cão desmiolado.
- Eu diria que o miúdo e o seu cão desmiolado ajudaram bastante. - Pegou no sapato roído que estava em cima da bancada.
- Qual deles roeu isto?
Lana suspirou enquanto enchia a jarra com água.
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- Ainda nem sequer os estreei. O raio do cão tirou-o da caixa enquanto eu estava a tentar resolver a inundação na casa de banho.
- Devias ter chamado um canalizador. - Ele conteve o riso quando ela lhe mostrou os dentes. - Ah, chamaste. Já vou ver o que iposso fazer.
- Não tens de me arranjar a sanita.
- Então também não tens de pagar-me.
- Doug, obrigado, de verdade. Obrigado por teres tirado o Ty da linha de fogo enquanto eu me acalmava, e por o teres ajudado a apanhar flores e por te teres oferecido
como canalizador de emergência, mas...
- Não queres ajuda de ninguém.
- Não, não é isso. Claro que não é isso. Não me envolvi contigo
para resolveres questões de canalização ou outras crises domésticas.
Não quero que penses que estou à espera desse tipo de coisa só porque andamos juntos.
- E se começasses a esperar esse tipo de coisas porque estou apaixonado por ti?
A jarra escorregou-lhe das mãos e bateu na bancada.
- O quê? O que disseste?
- Aconteceu há uns quinze minutos, quando entrei e te vi.
- E me viste. - Estupefacta, olhou para si própria. - Viste isto! Não és perfeita. Estás muito perto, mas não és absolutamente perfeita. Isso é um grande alívio
para mim. Intimida pensar que se está com alguém para ultrapassar as dificuldades da vida - coisa que nunca tentei com ninguém, antes, a propósito -, se esse alguém
é absolutamente perfeito. Mas se ela entorna café por cima dela própria e anda por aí toda despenteada, e grita com o filho quando ele merece, vale a pena pensar
nisso.
- Não sei o que dizer. - O que pensar. O que fazer. - Não estou...
- Preparada - concluiu ele. - Então, porque não me dizes onde está a borracha dos canos, que eu vou ver o que consigo fazer?
- Está, ah... - Agitou a mão por cima da cabeça. -Já está lá em cima. Eu... Não consegui... Doug.
- Ainda bem. Ainda bem que és um bocadinho desajeitada. Levantou-lhe o queixo e beijou-a. - Ainda bem que tens um bocadinho de medo. Dá-me tempo para descobrir como
vou dar a volta a isso.
Ela conseguiu esboçar um gesto de desânimo, sentindo uma espécie de morcegos embaterem-lhe nas paredes do estômago.
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- Avisa-me quando conseguires descobrir.
- Vais ser a primeira a saber.
Quando ele saiu da cozinha, ela apoiou-se na bancada. Uma vez mais, olhou para si.
Ele apaixonara-se por ela por causa das manchas de café e do cabelo despenteado. Meu Deus!, pensou ela, enquanto o coração lhe batia no peito desordenadamente, estava
num lindo sarilho.
Desta vez, quando o telefone tocou, atendeu distraidamente.
- Sim? - Estremeceu. - Fala do escritório da advogada Lana Campbell. Em que posso ajudar?
Minutos depois, subia a escada a correr até ao andar de cima, onde Doug, Ty e o cão se apinhavam em volta da sanita.
- Lá para fora! Todos lá para fora. Tenho de tomar duche. Doug, esquece tudo o que te disse sobre não pedir nada nem esperar nada, porque estou prestes a abusar
terrivelmente de ti.
Doug olhou para Ty e depois para ela.
- Diante de testemunhas?
- Ah-ah. Por favor, peço-te, leva o Ty lá para baixo, esconde tudo o que te parecer que não pertence à casa ou ao escritório de uma advogada brilhante. Enfia tudo
num armário. Depois, trato disso. Leva o cão para as traseiras. Ty, afinal vais para casa do Brock.
- Mas eu não quero...
- Vá lá, companheiro. - Doug e Ty começaram a apanhar tudo o que estava espalhado pelo chão. - Vamos ter uma conversa de homem para homem sobre a inutilidade de
discutir com uma mulher quando ela tem um certo olhar.
- Desço daqui a vinte minutos. - Lana fechou a porta com força e despiu-se.
Estava a sair do duche quando Doug bateu levemente à porta e entrou.
- O que se passa? - perguntou ele.
- Por amor de Deus, estou nua! O Ty...
- Está lá em baixo, a apanhar os brinquedos. E como tenciono andar por aqui em permanência, vai habituar-se a saber que te vejo nua. O que ateou o incêndio, Lana?
- Richard Carlyle. - Pegou numa toalha e enrolou-se nela enquanto corria para o quarto. - Acabou de telefonar do aeroporto. De Dulles. Quer encontrar-se comigo.
Raios partam, não fui buscar o Escada azul-marinho à lavandaria.
- Ele vem aqui.
360
- Sim, está cá ao meio-dia. Tenho de recuperar o fôlego, para parecer uma profissional calma e distinta e não uma louca furiosa. Tenho de contactar a Callie e voltar
a olhar para os ficheiros. - Vestiu à pressa um sutiã e umas cuecas. - Tenho de certificar-me de que tenho toda a informação essencial na cabeça e nas pontas dos
dedos.
Tirou do armário um fato cinzento às riscas e voltou a pendurá-lo.
- Não, parece que estou a esforçar-me demasiado. Preciso de qualquer coisa mais informal, mas ainda assim... Ah!
Pegou num casaco azul-xisto.
- Isto serve. Tenho que telefonar à Jo, a mãe do Brock, e ver se ela pode ficar com ele por umas horas. E depois vou exigir-te que o leves lá.
Atirou a roupa para cima da cama, pegou no telemóvel e começou a marcar o número enquanto voltava à casa de banho para secar o cabelo.
- Vou lá levá-lo, mas depois volto. Vou estar presente nesta reunião.
- Isso não é comigo. É com a Callie.
- Não, é comigo - corrigiu ele, e voltou a sair.
Estava outra vez fresca e elegante quando pediu a Callie e Jake que entrassem para a sala.
- Acho melhor fazermos a reunião aqui. O escritório lá em cima é pequeno, e recebê-lo neste espaço pode servir para mantê-lo calmo e bem-disposto.
- Vamos servir chá e bolinhos.
- Callie. - Lana pousou-lhe a mão no braço. - Sei que não estás satisfeita com ele e que sentes que ele está a impedir-te de avançar. Mas precisamos dele do nosso
lado, ou pelo menos disponível para o nosso lado, se queremos que nos ajude a encontrar o pai. Todos os outros caminhos que tentámos levaram-nos a becos sem saída.
- Ninguém desaparece da face da terra sem deixar rasto!
- Concordo. E tenho a certeza de que vamos acabar por encontrá-lo, se continuarmos a procurar. Mas com a ajuda de Richard Carlyle podemos encontrá-lo mais depressa.
- Porque há-de ele ajudar-me a encontrar o pai, quando a minha intenção é ver aquele grande filho da mãe na cadeia para o resto da vida?
- Provavelmente, não é boa ideia dizer isso. - Jake sentou-se e estendeu as pernas. - Nem chamar-lhe grande filho da mãe quando
361
estivermos a falar com o filho. - Jake encolheu os ombros em resposta ao olhar fulminante que Callie lançou na sua direcção. - É só um palpite.
- Também acho. Senta-te, Callie. - Lana apontou para uma cadeira. - Por mais hostis que sejam os teus sentimentos, não nos serve de nada afugentar Richard Carlyle.
Ele e o pai podem estar afastados um do outro, mas continuam a ser pai e filho. Para dizer a verdade, estou um pouco preocupada com o número de pessoas aqui presente
para esta reunião. O Carlyle pediu para falar comigo e com a minha cliente. Acho que não vai ficar satisfeito quando entrar e vir tanta gente.
- Isso é problema dele. -Jake fez um gesto com a cabeça na direcção de Doug.
Doug cruzou os braços e não se mexeu de onde estava.
- Não vou a lado nenhum. Se o Carlyle se sentir desconfortável, lamento imenso. A minha família sente-se desconfortável há trinta anos.
- E se tomares a atitude de o filho paga pelos pecados do pai, é provável que ele nos mande passear a todos. - Mas Lana sabia que estava a malhar em ferro frio.
- Não vou pedir-vos que se vão embora, mas tenho que insistir em que deixem que seja eu a conduzir a reunião. Ele veio aqui desde Atlanta. Veio ao teu território
- disse ela a Callie. - Vamos dar-lhe algum crédito por isso.
- Vou dar-lhe muito crédito depois de ele nos dizer onde está o grande filho da mãe do pai dele. Para deixar de pensar nisso. - Lançou a Jake um sorriso agitado.
Ao ouvir um carro a rodar sobre a gravilha, Lana foi à janela e afastou a cortina.
- Aí está o nosso homem. Doug, pelo amor de Deus vai-te sentar e deixa de andar a pairar.
- Está bem. - Encaminhou-se para o sofá onde estava Callie e sentou-se.
- Porreiro. - Deu com os cotovelos nas costelas de Doug e de Jake. - Agora tenho guarda-costas. Deixem-me ao menos respirar, está bem? Acho que já passei um pouco
o ponto de poder vir a ser raptada e posta à venda.
- Pára de resmungar - disse Doug suavemente. - Isto é o que se pode chamar uma demonstração de solidariedade.
- Pois, a criança de cinquenta quilos, o irmão que julgava perdido e o ex-marido. Um espectáculo!
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Jake passou-lhe um braço pelos ombros:
- Eu estou a gostar.
Lana abriu a porta. A voz dela soou delicadamente contida.
- Sr. Carlyle? Sou Dana Campbell. - Estendeu-lhe a mão. - Gostaria de agradecer-lhe ter vindo de tão longe para falar connosco. Entre, por favor. Espero que desculpe
a informalidade. Houve um incêndio no meu escritório, recentemente, e estou a trabalhar temporariamente em casa. Creio que já conhece a Dr.a Dunbrook e o Dr. Graystone.
Callie pensou que ele tinha um ar consideravelmente fatigado. Mais do que ficaria a dever-se a um voo de curta duração. Mantinha a pega da mala firmemente agarrada.
- Este é Douglas Cullen - começou Lana.
- Não concordei em falar com ninguém da família Cullen. - Richard recusou ostensivamente cumprimentar Doug e virou-se para Lana. - Pedi especificamente um encontro
consigo e com a sua cliente. Se não concordava com esses termos, poderia ter-me poupado muito tempo e incómodos.
- Como representante da família Cullen, a presença do Sr. Cullen não é apenas razoável, mas também sensata. A minha cliente faria chegar, naturalmente, qualquer
resultado desta reunião aos Cullen.
Lana falava calmamente e sem ceder um milímetro.
- A presença do Sr. Cullen evitará qualquer hipótese de falha de comunicação. Estou certa de que não veio de tão longe para opôr-se à inclusão de um dos membros
da família biológica da Dr.a Dunbrook. Foi o senhor que pediu esta reunião, Sr. Carlyle. Como sei que é um homem muito ocupado, estou certa de que tem uma razão
muito válida para ter feito esta viagem.
- Uma viagem muito inconveniente. Quero deixar bem claro que não serei interrogado.
- Se fizer o favor de sentar-se, terei muito gosto em servir-lhe um café, ou uma bebida fresca.
- Não vou demorar-me muito tempo. - Mas sentou-se diante do sofá. - A Dr.a Dunbrook e o seu sócio conseguiram aceder ao meu escritório alegando uma relação de família.
- O senhor partiu desse princípio - corrigiu Callie. - O que dissemos foi que eu tenho uma ligação ao seu pai. Como ele fez bom dinheiro com a minha venda, essa
ligação existe.
- Acusações desse tipo são objecto de má-fé. Se a sua advogada não a avisou disso é porque é incompetente. Verifiquei os documentos que deixou em cima da minha secretária.
Embora seja verdade
363
que os papéis para a adopção da menina por parte de Elliot e Vivian Dunbrook não foram correctamente preenchidos...
- São fraudulentos!
- Não foram correctamente preenchidos. Como a sua advogada deverá saber, esta falha pode ter sido da responsabilidade do tribunal, de um funcionário, de um assistente.
- Dificilmente acho isso válido - Lana sentou-se também -, já que a petição para a adopção e a decisão final foram assinadas por ambas as partes e apresentam o que
parece ser um selo do tribunal forjado. E nenhum dos documentos aparece nos respectivos registos.
- E o responsável é provavelmente um funcionário com excesso de horas de trabalho e mal pago.
- A troca do dinheiro pela criança foi feita no escritório do seu pai, Sr. Carlyle. Na presença do seu pai.
- Muitas crianças foram entregues aos pais adoptivos no escritório do meu pai. E como acontece no escritório de qualquer advogado bem sucedido, muitas pessoas trabalhavam
nos casos que ele aceitava. Fosse como fosse, o meu pai era um advogado altamente respeitado. Acusá-lo de fazer parte deste hediondo negócio de crianças é ridículo.
Não vou admitir que a reputação dele seja manchada, nem, por inerência, a minha. Não vou admitir que a minha mãe e os meus filhos sejam objecto de falatório.
- Não está a dizer-nos nada que não nos tenha dito em Atlanta.
- Sentindo-a enervar-se mais, Jake fez descer o seu braço das costas do sofá e pousou a mão nos ombros de Callie, como que a aconselhar-lhe calma. - O senhor não
me parece um homem que gaste tempo a repetir-se a si próprio.
- Há coisas que vale a pena repetir. Sou sensível à vossa situação, Dr.a Dunbrook, Sr. Cullen. Pela avaliação que fiz dos documentos e artigos que me deixaram, sei
perfeitamente que a vossa situação é muito real e muito trágica. Mesmo que eu acreditasse, e não acredito!, que o meu pai esteve de alguma forma envolvido, não poderia
ajudar-vos.
- Se tem tanta certeza de que ele não esteve envolvido, porque não lhe pergunta? - inquiriu Callie. - Porque não lhe mostra os papéis e não lhe pede que ele explique?
- Receio que isso não seja possível. Ele morreu. O meu pai morreu há dez dias. Na sua casa, nas ilhas Caimão. Acabei de regressar de lá, do funeral. Ajudei também
a sua actual esposa a resolver algumas questões relativas à herança.
364
Callie sentiu o chão faltar-lhe debaixo dos pés.
- E devemos limitar-nos a acreditar no que nos diz? Que ele morréu de forma tão conveniente?
- Conveniente não terá sido. Estava doente há algum tempo. Mas
não, não espero que se limitem a acreditar na minha palavra. - Abriu
a pasta e tirou um dossiê. - Tenho aqui cópias dos relatórios médicos e da certidão de óbito. - Olhando para Callie, entregou-os a Lana.
Facilmente pode verificar a sua autenticidade.
- Disse-nos que não sabia onde ele estava. Se mentiu naquela altura, isto pode ser apenas uma manobra de diversão.
- Não menti. Há anos que não via o meu pai. Ele tratava mal a
minha mãe. E, pelo que consta, repetiu o padrão com a segunda mulher. Com a terceira? Não sei. Eu sabia que ele estaria provavelmente
nas ilhas Caimão ou na Sardenha. Comprou propriedades em ambos os locais, há alguns anos, em nome de uma das suas variadas amantes. A minha obrigação é proteger
a minha mãe, a minha mulher e os meus filhos, a minha reputação e o meu escritório. E é exactamente
isso que tenciono fazer.
Carlyle pôs-se de pé.
-Acabou, Dr.a Dunbrook. Seja o que for que ele tenha ou não
feito, está morto. Não pode responder às suas perguntas, nem explicar-se ou defender-se. E não vou ver a minha família castigada por isso. Não vou deixar que isso
aconteça. Deixemos os mortos em paz.
Não é preciso acompanharem-me à porta, eu saio sozinho.
365
Vinte e Dois

Jake ouviu o som profundo e triste do violoncelo. Não sabia dizer o nome da peça nem do compositor. Nunca tivera ouvido para os clássicos. Mas sabia reconhecer o
tom e, por conseguinte, o estado de espírito de Callie.
Estava zangada.
Não podia censurá-la. Achava que ela já tinha mais do que o suficiente para um Verão. Gostava de poder pegar nela e levá-la para qualquer lado. Qualquer lado. Sempre
tinham tido jeito para andar de um lado para o outro. Talvez demasiado jeito, admitiu, e afastou o computador.
Nunca tinham ganho raízes como casal. E pelo menos ele nunca as considerara importantes. Naquela altura, não, reflectiu enquanto se levantava. Por mais determinados
que fossem a escavar o passado de outros, a sua própria relação resumia-se ao momento.
Raramente tinham falado do seu passado respectivo e não tinham pensado no futuro. Mas ao longo do último ano ele tivera muito tempo para pensar em ambos. A única
verdadeira conclusão a que chegara fora que queria muitos amanhãs com Callie.
Uma maneira de fazer isso era revelarem um ao outro o respectivo passado e construir um presente, em vez de se limitarem a viver esse presente.
Um bom plano, pensou. Até o passado dela ter surgido de forma avassaladora.
Não havia saída. Não podiam pegar na trouxa e armar-se em nómadas. Ambos teriam de fixar-se.
Foi até à cozinha, onde Dory estava a trabalhar.
- Fizemos umas descobertas espectaculares, hoje. O machado que o Matt desenterrou é espantoso - declarou.
367
- É, um belo achado. - Abriu o frigorífico, ia pegar numa cerveja mas acabou por tirar o vinho.
- Estou... hummm... a coordenar as notas do Bill. Achei que alguém divia fazer isso.
- Não tens de fazer isso, Dory. Eu trato desse assunto.
- Não, eu... gostava de fazer isto, se não houver problema. Não fui muito simpática para ele. Quero dizer, chateava-o um bocado... muito - corrigiu. - Sobre a maneira
como ele andava sempre atrás da Callie. Sinto-me... Sinto-me tão mal por causa disso!
- Não querias magoá-lo realmente - retorquiu Jake.
- Quase nunca pensamos nas consequências das coisas estúpidas que fazemos. Até ser demasiado tarde. Fiz troça dele, Jake. Mesmo na cara dele.
- Sentias-te melhor se tivesses feito troça dele pelas costas? Abriu o vinho e serviu um copo para ela. - Eu também não me portei propriamente bem com ele.
- Eu sei. Obrigada. - Aceitou o vinho, mas não bebeu. - Não te censuro, pois ambos andavam atrás da Callie. Cada um à sua maneira - acrescentou. Olhou para o tecto.
A música era suave e distante, quase como os sons da noite que sussurram pela janela aberta.
- É bonito, mas é tão triste.
- O som do violoncelo nunca é muito alegre, acho eu.
- Pois, acho que não. Ela tem muito talento. Mas é um bocado estranho. Uma arqueóloga que leva o violoncelo para as escavações, para poder tocar Beethoven.
- É, podia tocar harmónica, como toda a gente. Não fiques a trabalhar até muito tarde.
Levou o resto do vinho e dois copos para o andar de cima. Sabia o que esperar quando Callie fechava a porta, mas ignorou o sinal e abriu-a sem bater.
Ela estava sentada na única cadeira existente, diante da janela, enquanto fazia deslizar o arco pelas cordas. Estava virada de perfil para ele, expondo a longa linha
do rosto, com o cabelo puxado para trás.
As mãos dela pareciam sempre tão delicadas, tão femininas, quando tocava, pensou ele. E, apesar do que dissera a Dory, gostava de ouvi-la tocar.
Aproximou-se da secretária e serviu o vinho.
- Vai-te embora. - Não virou a cabeça e continuou de olhos fixos na noite, soltando aquelas notas ricas e profundas. - Não é um concerto público.
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- Faz uma pausa. - Aproximou-se dela e ofereceu-lhe um bom
vinho branco num copo de vidro barato. - Beethoven pode esperar.
- Como sabes que é Beethoven?
- Não és a única a apreciar e a ter algum conhecimento de música.
- Como no teu mundo o Willie Nelson é o protótipo de um artista...
- Cuidado, querida. Não insultes os grandes, ou não partilharei a
minha bebida adulta.
- Porque me trouxeste vinho?
- Porque sou um homem altruísta e cheio de consideração pelos outros.
- Que espera conseguir levar-me à certa.
- Naturalmente, mas não deixo de ter consideração pelos outros.
Ela pegou no copo e bebeu um pequeno gole.
-Vejo que te esmeraste. O vinho é excelente. - Pousou o copo no chão e depois, inclinando a cabeça, observou-o enquanto tocava as primeiras notas de "Turkey in the
Straw". - É mais o teu estilo, não?
- Queres discutir os estádios culturais e sociais da música folk e o seu reflexo nas artes e nos costumes tribais?
- Esta noite não, professor. - Voltou a pegar no copo e a beber mais um gole de vinho. - Obrigado pelo vinho. Agora, vai-te embora e deixa-me estar aqui, metida
comigo.
-Já excedeste os limites da reclusão, por hoje.
-Tenho um tempo extra. - Voltou a pousar o copo. - Vai-te
embora, Jake.
Em resposta, ele sentou-se no chão e encostou-se à parede, a beber o vinho.
A irritação perpassou-lhe o rosto, mas depois suavizou-se. Callie voltou a pegar no arco e tocou as primeiras notas de Tubarão.
- Não vais conseguir incomodar-me.
Os lábios dela curvaram-se e ela continuou a tocar. Ele havia de
explodir. Era o que acontecia sempre.
Jake conseguiu deixar passar quase trinta segundos antes de começar a sentir a pele eriçar-se-lhe. Inclinando-se para a frente, segurou-lhe o braço que movimentava
o arco.
- Pára com isso. - Mas não conseguiu deixar de rir. - És mesmo cabra.
- Tens toda a razão. Porque não te vais embora?
- Da última vez foi isso que fiz. Fiquei furioso, triste e sozinho durante quase um ano. Não gostei.
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Ela encolheu os ombros:
- Isto não tem a ver contigo.
- Pois não, tem a ver contigo. E tu és importante. Sentindo-se enfraquecida, Callie encostou a cabeça ao braço do violoncelo.
- Meu Deus, quando cheguei ao ponto em que o facto de dizeres uma coisa dessas me faz parecer estúpida?
Ele passou a mão, suavemente, pela barriga da perna dela.
- Porque cheguei eu ao ponto de não conseguir dizer-te uma coisa destas? Mas desta vez não me vou embora. Sei o que estás a pensar, o que tem estado aí entalado
o dia inteiro. O cabrão tinha que morrer mesmo quando precisavas dele!
- Talvez o Carlyle Júnior esteja a mentir. Talvez a certidão de óbito seja falsa.
Jake manteve o olhar fixo no dela:
- Talvez.
- E eu sei o que estás a pensar. E para quê? Ele sabe que verificaríamos a informação. O filho da mãe está morto e eu nunca poderei olhá-lo nos olhos e dizer-lhe
quem sou. Obrigá-lo a dizer-me o que quero saber. Nunca pagará pelo que fez. E eu não posso fazer nada. Não posso fazer rigorosamente nada.
- Então, acaba aqui?
- É a conclusão lógica. O Carlyle está morto. O Simpson e a cabra da mulher desapareceram. Talvez se me sobrasse tempo e dinheiro eu pudesse contratar um investigador
ou uma equipa para tentar localizá-los. Mas não sou dona desses luxos.
- Possas ou não olhar o filho da mãe nos olhos, sabes quem és. Qualquer que fosse o preço que ele pagasse, isso não mudaria o que ele fez aos Cullen, aos teus pais,
a ti. O que conta é o que fazes agora, por eles e por ti.
Tudo o que ele estava a dizer já passara pela cabeça de Callie uma dúzia de vezes.
- Que hei-de fazer, Jake? Não posso ser a Jessica, para a Suzanne e o Jay. Não posso fazer desaparecer a culpa que os meus pais sentem pelo papel que desempenharam
em tudo isto. A única coisa que acho que podia fazer era chegar às respostas, levar a julgamento a pessoa responsável por isto.
- De que respostas precisas?
- As mesmas de que sempre precisei. De todas. Quantos outros há por aí? Outros como eu, outros como Barbara Halloway? Procuro-os?
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O que faço se os encontrar? Chego ao pé de uma pessoa e transformo a vida dela num caos, como aconteceu à minha nos últimos meses? Ou afasto-me e deixo tudo como
está? Deixo que as mentiras prevaleçam. Deixo os mortos em paz.
Ele voltou a encostar-se à parede e pegou no seu copo de vinho.
- E desde quando deixamos os mortos em paz?
- Esta pode ser a primeira vez.
- Porquê? Porque estás chateada e deprimida? Vais ultrapassar isso. O Carlyle está morto. Isso não significa que ele não tenha as respostas. E tu és do melhor que
conheço a encontrar respostas entre os mortos. Embora o melhor seja eu, claro.
- Eu ria, mas estou demasiado ocupada a sentir-me deprimida.
- Sabes onde ele vivia. Descobre o que estava lá a fazer. Quem conhecia, com quem mantinha contacto. Como vivia. Explora a estratigrafia dele e extrapola os teus
dados a partir das várias camadas.
- Achas que não pensei já nisso tudo? - Levantou-se e voltou a colocar o violoncelo no estojo. - Dei voltas e mais voltas à cabeça e vi as coisas de várias perspectivas,
esta tarde, quando regressámos à escavação. E nenhuma dessas perspectivas me dá uma razão. Nada daquilo em que consigo pensar me diz de que serviria, ou a quem.
Se continuo com isto agora, sem o Carlyle como ponto-chave, ou mais, como alvo, estou apenas a prolongar a ansiedade dos meus pais e a infelicidade dos Cullen.
- Voltaste a excluir-te da equação. Nunca lhe escapava nada, pensou ela.
- Pronto, retiraria alguma satisfação pessoal. Satisfação pessoal e intelectual por ter levado a tarefa até ao fim. Quando contraponho isso a tudo o resto, não pesa
o suficiente no prato da balança.
Inclinou-se, para pegar no vinho.
- Duas pessoas morreram, mas já não estou certa de que a morte delas esteja relacionada com isto. Nem sequer tenho a certeza de que o incêndio no escritório da Lana
tem a ver com isto. Pelo que sabemos, o Carlyle estava velho e doente. É óbvio que não se esgueirou até Maryland para matar duas pessoas, disparar contra ti, deixar-me
inconsciente e pegar fogo ao escritório da Lana.
- Deve ter feito uma bela soma a vender bebés, ao longo dos anos. - Jake observou o vinho no copo. - O suficiente para contratar o tipo de gente que mata, bate em
mulheres e incendeia edifícios.
- Não vais deixar-me em paz, pois não?
- Não.
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- Porquê? - Entre a frustração e a curiosidade, deu-lhe um ligeiro pontapé no tornozelo. - Porque queres que eu fique obcecada com isto?
- Não quero. Mas não vais deixar de estar obcecada até terminares isto.
Ela deu-lhe outro pontapé e depois afastou-se:
- Quando começaste a conhecer-me tão bem?
- Sempre te conheci bastante bem. Só que nem sempre dei a devida prioridade ao que conhecia.
- Não consigo perceber o que procuras. Já sabes que vou continuar a ter sexo contigo.
- Queres uma surpresa? - Pegou na garrafa e encheu o copo quase até à borda. E bebeu metade antes de voltar a falar. - Quero que sejas feliz. Quero isso, mais do
que me tinha apercebido. Porque... - Fez uma pausa e voltou a beber um longo gole. - Amo-te mais do que me tinha apercebido.
Ela sentiu o choque e a emoção trespassarem-lhe o coração e percorrerem-na até aos dedos dos pés.
- E precisas de emborcar vinho antes de conseguires dizer isso?
- Sim. Tem paciência, sou novo nestas coisas.
Ela voltou para trás e acocorou-se, para ficarem ao mesmo nível.
- Estás a falar a sério?
- Sim, um pouco de vinho ajuda as palavras a saírem. Sim, estou a falar a sério.
- Porquê?
-Já sabia que não ias deixar que isto fosse simples. Como diabo hei-de saber porquê? Estou e pronto. E como estou a falar a sério, quero que sejas feliz. E não vais
ser feliz até acabares com isto. Por isso, não vou deixar-te sossegada e vou ajudar-te. Depois, quando isto estiver terminado, podemos tratar de nós.
- E é assim que as coisas são.
- E são mesmo. - Ele pegou no copo dela e encheu-o. - Agora, despacha-te - ordenou ele, voltando a meter-lhe o copo na mão.
- Para eu poder meter-te naquele saco-cama.
- Tenho uma ideia melhor. - Callie esvaziou o copo e pousou-o. - Eu é que vou meter-te no saco-cama.
- Tens de fazer tudo à tua maneira, não tens? - Deixou que ela lhe pegasse na mão e o fizesse levantar-se. - Sê meiguinha comigo.
- Sim, claro. - E despiu-lhe a camisa pela cabeça.
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Mais tarde, deitada ao lado dele, com a respiração ainda entrecortada, a pele viscosa de suor, sorriu no escuro.
- Sinto-me muito feliz.
Ele desenhou-lhe a curva da anca e da cintura com a mão. -Já é um começo.
- Quero dizer-te uma coisa.
- Não pode ser que já foste homem, coisa de que cheguei a suspeitar, dada a tua atitudebastante sensível em relação ao sexo.
- Não. E isso é um comentário estúpido e sexista.
- Sexista, mas estúpido não. Várias atitudes que já não são consideradas politicamente correctas acabam por ser realistas se consideradas...
- Cala-te, Graystone.
- Claro, não há problema.
- Vira-te para lá. Não quero que olhes para mim.
- Não estou a olhar para ti. Tenho os olhos fechados. - Mas resmungou e virou-se de lado quando ela o empurrou e o beliscou.
- Disseste, algumas vezes, que eu não precisava de ti. Antes. Isso não era inteiramente verdade. Não, não te vires.
- Não precisavas de mim. Fizeste questão de deixá-lo bem claro.
- Pensei que te fosses embora a correr, se pensasses que eu precisava de ti. Não eras conhecido pelos teus compromissos a longo prazo. E eu também não.
- Connosco era diferente.
- Eu sabia que era diferente para mim. E isso assustou-me. Se te virares, não digo nem mais uma palavra.
Praguejando entredentes, voltou a ficar quieto:
- Pronto, está bem.
- Nunca esperei sentir o que senti contigo. Acho que as pessoas, mesmo as que têm uma tendência romântica, não esperam consumir-se dessa forma. Sabia perfeitamente
o que pensavas, o que querias, quando se tratava de trabalho, ou de outras pessoas, questões gerais.
- Ela soltou um suspiro. - Mas nunca sabia o que estavas a pensar ou a sentir quando se tratava de nós. Seja como for, parte disso tem a ver com aquilo a que chamarias
a minha cultura de família. Não conheço casal mais dedicado entre si do que os meus pais. Em uníssono. E mesmo assim, sempre reparei que era a minha mãe que precisava
disso. Desistiu da música dela, mudou-se para longe da família, tornou-se na esposa perfeita do médico, porque precisava da aprovação do meu pai. A opção foi dela,
eu sei. E ela é feliz. Mas sempre
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olhei para ela como alguém que poderia ser mais. Sempre prometi a mim própria que nunca me poria em segundo lugar por causa de ninguém. Nunca iria precisar de alguém
ao ponto de não conseguir ser uma pessoa inteira sem ele. Depois, explodiste na minha vida e eu tive que apressar-me a apanhar os pedaços, para não me esquecer de
quem era.
- Nunca quis que desistisses de nada.
- Não. Mas eu fiquei aterrorizada com a hipótese de desistir de alguma coisa. De não conseguir pensar sem me perguntar primeiro o que tu pensarias. A minha mãe fazia
isso. "Vamos perguntar ao teu pai". "Vamos ver o que diz o teu pai". Isso punha-me louca.
Riu um pouco e abanou a cabeça.
- Realmente é estúpido quando se pensa nisso. Pegar naquele pedaço de dinâmica de casal e torná-la pessoal. Não queria precisar de ti, porque se precisasse, isso
tornava-me fraca e a ti forte. E já me sentia enlouquecer, porque te amava mais do que tu a mim, e isso dava-te vantagem.
- Então, era um concurso?
- Em parte. Quanto mais em desvantagem me sentia, emocionalmente, mais te pressionava. Quanto mais te pressionava, mais tu fechavas o cerco, o que me fazia pressionar-te
ainda mais. Queria que provasses que me amavas.
- E eu nunca provei.
- Não, nunca provaste. E eu não ia tolerar alguém que não cooperasse o suficiente para me amar mais do que eu o amava a ele, para que eu pudesse ter o controlo da
situação. Eu queria magoar-te. Queria ferir-te profundamente. Queria isso porque achava que não conseguia fazê-lo.
- Deves então sentir-te melhor por saberes que me desfizeste em pedaços muito, muito pequenos.
- E sinto. Sou um falhanço como ser humano, porque me sinto muito melhor por saber isso.
- Ainda bem que pude ajudar. - Puxou o braço dela e levou a mão dela aos lábios.
- Tu mal consegues dizer que me amas. Eu tenho medo de amar-te. Que havemos de fazer?
- Parece-me um amor talhado no céu.
Ela pressionou o rosto contra as costas dele e riu.
- Meu Deus, provavelmente tens razão.
Deixa os mortos em paz, pensou Callie enquanto escovava cuidadosamente a terra dos ossos dos dedos das mãos de uma mulher que
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estava morta havia milhares de anos. Será que esta mulher, que Callie julgou ter pelo menos sessenta anos quando morreu, concordaria? Ficaria zangada, horrorizada,
perplexa por ver os seus ossos perturbados por uma estranha, que vivia noutro tempo, noutro mundo?
Ou compreenderia e ficaria satisfeita por estes estranhos quererem aprender mais com ela? Aprender mais sobre ela.
Estaria disposta, pensou Callie enquanto fazia uma pausa para escrever mais uma série rápida de notas, a deixar-se desenterrar, remover, estudar, testar, registar,
para fornecer esse conhecimento sobre quem era e porque era?
E mesmo assim havia tantas perguntas que nunca poderiam ser respondidas. Podiam especular sobre quanto tempo ela vivera, o que causara a sua morte, o que comia,
que hábitos tinha, se era saudável.
Mas nunca saberiam quem tinham sido os seus pais, os seus amantes e os seus amigos. Os seus filhos. Nunca saberiam o que a fazia rir ou chorar, o que assustava ou
o que a enfurecia. Nunca saberiam verdadeiramente o que fazia dela uma pessoa.
E não era isso que ela estava, de algum modo, a tentar descobrir sobre si própria? O que fazia de Callie Dunbrook o que ela era, para além dos factos que ela tinha
à sua disposição. Para além do que ela sabia.
De que era feita? Seria suficientemente forte, suficientemente dura para procurar respostas apenas para ficar a saber mais? Porque se não era, toda a sua vida era
um erro. Não deveria estar ali, a desenterrar os ossos desta mulher morta há tanto tempo, se hesitava em desenterrar os ossos do seu próprio passado.
- Tu e eu estamos no mesmo barco. - Suspirou enquanto pousava o bloco. - E o problema é que sou eu quem está ao leme. A minha cabeça está nele. Pratiquei demasiado
para que ela não esteja lá. Mas já não sei se o meu coração lá está também.
Apeteceu-lhe sair dali. Apeteceu-lhe arrumar as suas coisas e afastar-se das escavações, das mortes, dos Cullen, das perguntas sucessivas. Queria esquecer que tinha
ouvido os nomes Marcus Carlyle ou Henry e Barbara Simpson.
Chegou a pensar que conseguiria viver assim. Os seus pais não ficariam menos traumatizados se ela parasse? Deixasse tudo isto de lado. Enterrado, esquecido.
E havia outros arqueólogos que podiam continuar o projecto de Antietam Creek de forma competente. Outros, que não conhecessem
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Dolan nem Bill, e que não se recordassem deles sempre que olhavam para a água do lago onde os raios de sol se espelhavam.
Se ela se fosse embora, poderia recomeçar a sua vida, a parte da sua vida que estava suspensa havia um ano. Não valia a pena negá-lo, pelo menos para si própria.
Parte dela parara com a chegada de Jake.
Se tinham uma segunda oportunidade não deviam agarrá-la? Longe dali. Longe, onde pudessem finalmente começar a conhecer-se um ao outro, a descobrir as camadas que
simplesmente tinham ignorado, da primeira vez, sem tempo para estudá-las ou analisá-las, na sua pressa de apenas se terem um ao outro.
Afinal, qual era a sua responsabilidade? Aqui ou num lugar onde vivera dois meses da sua vida? Porque haveria de arriscar-se, de arriscar a sua felicidade, talvez
mesmo as vidas de outras pessoas, apenas para conhecer todos os factos relacionados com uma coisa que nunca poderia ser alterada?
Deliberadamente, afastou-se dos achados que tão cuidadosamente escavara. Saltou da sua secção e sacudiu a terra que tinha colada às calças.
- Uma pausa de cinco minutos. -Jake pôs-lhe a mão no braço e afastou-a dos limites da sua secção. Havia vários minutos que a observava, avaliando o cansaço e o desespero
que tinha estampados no rosto.
- Acabou-se. Acabou-se mesmo.
- Precisas de fazer uma pausa. Sair do sol. Melhor ainda: uma hora na roulote, para dormires um pouco.
- Não me digas o que eu preciso. Não quero saber dela. Apontou para os achados atrás de si. - E se não quero saber, não pertenço aqui.
- Callie, estás cansada. Fisicamente, emocionalmente. Estás chateada e agora estás a bater em ti própria porque não há mais ninguém a quem possas dar pontapés.
- Vou demitir-me do projecto. Vou voltar para Filadélfia. Não há nada para mim aqui, e não tenho nada para dar a ninguém aqui.
- Eu estou aqui.
- Não venhas outra vez com isso. - Detestou ouvir a voz tremer-lhe. - Não estou com disposição.
- Estou a pedir-te que tires uns dias. Faz uma pausa. Trata da papelada, vai até ao laboratório, o que entenderes que seja melhor para ti. Depois de teres desanuviado
um pouco a cabeça, se quiseres ir-te embora falamos com o Leo e ajudamo-lo a encontrar quem nos substitua.
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- Nos?
- Se fores, eu também vou.
- Credo, Jake! Também não sei se estou disposta a isso.
- Eu estou. Desta vez vais ter que contar comigo, nem que eu tenha que te dar dois pontapés e fazer-te cair no chão.
- Quero voltar para casa. - Havia lágrimas na garganta dela, lágrimas ocultas nos seus olhos. Num momento de pânico, achou que não ia conseguir retê-las. - Quero
sentir-me normal.
- Está bem. - Ele puxou-a para si e depois apressou-se a abanar a cabeça quando viu Rosie aproximar-se deles. - Vamos tirar uns dias. Vou falar com o Leo.
- Diz-lhe... Meu Deus, não sei o que hei-de dizer-lhe. - Deu um passo atrás, tentando manter-se firme. E viu Suzanne estacionar na berma. - Meu Deus! Perfeito! Não
podia ser mais perfeito!
- Vai para a roulote. Eu livro-me dela.
- Não. - Passou a mão pela face para certificar-se de que estava seca. - Se me vou embora, o mínimo que posso fazer é ser eu própria a dizer-lhe. Mas não ficava
chateada se ficasses comigo.
- Caso não tenhas notado, estou contigo há já algum tempo.
- Callie. - Suzanne parecia feliz quando passou o portão. - Jake. Estava a pensar como tudo isto parece divertido. Nunca me tinha ocorrido isso, mas deve ser divertido.
Callie esfregou as mãos sujas nas calças de trabalho.
- Pode ser.
- Especialmente num dia como este. Um dia espectacular, tão fresco e limpo. Pensei que o Jay fosse chegar primeiro do que eu, mas vejo que se atrasou.
- Desculpe, tínhamos combinado algum encontro aqui?
- Não. Só queríamos... Bem, não vou esperar por ele. Feliz aniversário. - Estendeu-lhe um saco com um presente.
- Obrigado, mas só faço anos... - Apercebeu-se de repente, e ficou a olhar para o pequeno saco com as suas estrelinhas azuis e brilhantes. O aniversário de Jessica.
-Já tinha pensado que não te irias lembrar. - Suzanne pegou na mão de Callie e colocou-lhe a asa do saco entre os dedos. - Mas esperei muito para desejar-te feliz
aniversário pessoalmente.
Não viu dor nem lamento no rosto de Suzanne. Apenas uma alegria que a deixou incapaz de virar-lhe as costas.
- Bem. - Voltou a olhar para o saco. - Não sei como hei-de sentir-me em relação a tudo isto. Para começar, é um bocado aborrecido
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ficar um ano mais velha, o último antes dos trinta. E ainda por cima tenho de fazê-lo mais cedo do que esperava.
- Espera até teres cinquenta. É de morrer. Fiz-te um bolo. - Agitou a mão na direcção do carro. - É capaz de ficar tudo mais fácil de digerir.
- Fez-me um bolo - murmurou Callie.
- Fiz. E deixa que te diga que nem toda a gente tem um bolo feito na verdadeira cozinha da Suzanne, pelas verdadeiras mãos da Suzanne. Lá vem o Jay. Tens uns minutos?
- Claro.
- Vou pedir-lhe que tire o bolo do carro. Volto já.
Callie ficou ali, com o saco a balouçar, pendurado dos dedos.
- Como é que ela está a fazer isto? Meu Deus, Jake, ela está radiante. Como é que ela consegue fazer disto uma festa?
- Tu sabes porquê, Callie.
- Porque a minha vida é importante para ela. Nunca deixou de ser importante. - Olhou para o saco do presente e depois para os ossos da mulher morta há tanto tempo.
- Ela não vai deixar-me ir embora.
- Querida. - Ele baixou-se para beijá-la. - Tu própria nunca irias deixar que te fosses embora. Vamos comer bolo.
A equipa atacou o bolo como gafanhotos no campo. Talvez, pensou Callie ouvindo os risos, fosse exactamente aquilo de que estavam a precisar para aliviarem a culpa
e a depressão provocadas pela morte de Bill. Apenas um desejo inocente, meia hora de um simples prazer humano.
Sentou-se à sombra, junto à linha do bosque, e pegou no embrulho que Jay lhe oferecia.
- A Suzanne vai dizer-te que escolher presentes não é o meu forte.
- Uns tapetes para o carro. No quarto aniversário do nosso casamento.
Ele riu.
- E nunca consegui remediar o assunto.
Divertida, Callie acabou de rasgar o papel. Pareciam tão bem, juntos, como se fossem pessoas diferentes das que eram naquele dia, no escritório de Lana.
- Bem, isto é melhor do que uns tapetes para o carro. - Passou a mão pela capa de um álbum sobre Pompeia. - É espectacular. Obrigado.
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- Se não gostares, podes...
- Gosto, sim. - Não foi muito difícil aproximar-se dele e dar-lhe um beijo na face. Difícil, muito mais difícil, foi vê-lo tentar controlar a sua imensa gratidão
por aquele pequeno gesto.
- Bem. - Estendeu a mão, um pouco às cegas, e fechou-a na de Suzanne. - Humm. Ainda bem. Estou habituado a ver os meus presentes devolvidos.
Suzanne soltou uma exclamação exagerada.
- Não guardei aquela caixa de música horrível, com o pássaro de louça, que me deste no dia de S. Valentim? Toca o "Feelings" - disse ela a Callie.
- Bem, parece que tive sorte. - Pegou no saco com o presente que Suzanne lhe dera e rasgou o papel a condizer, deixando à vista um estojo de jóias.
- Eram da minha avó. - Suzanne manteve os dedos entrelaçados nos de Jay enquanto Callie pegava na fiada de pérolas. - Deu-as à minha mãe no dia do casamento, e a
minha mãe deu-mas no dia do meu. Espero que não te importes, mas queria que ficasses com elas. Mesmo sem nunca as teres conhecido, pensei que apreciasses esta ligação
com elas.
- São lindas. Gosto muito. - Callie olhou para o local onde os ossos antigos estavam à espera. Jake tinha razão, pensou. Nunca seria capaz de ir-se embora.
Com cuidado, voltou a meter as pérolas no estojo.
- Um dia, há-de falar-me delas. E assim ficarei a conhecê-las.
379
Vinte e Três

Actividades ao ar livre, sãs e agradáveis, incluíam, na opinião de Lana, piqueniques de Verão feitos à sombra das árvores, beber margarítas na praia, uma bela manhã
a jardinar e talvez um fim-de-semana a esquiar - com a tónica no depois.
Nunca se imaginara a acampar e a comer cachorros quentes esturricados enquanto dava informações a um cliente. Mas nada na sua relação advogada-cliente com Callie
era normal.
- Queres uma cerveja para acompanhar isso? - À vontade, Callie tirou a tampa a uma geleira.
- Ela não bebe cerveja. - Doug apontou para a geleira. - Mas eu bebo.
- Bem, acabou-se-nos o vinho tinto. - Callie passou a Doug uma lata de Coors. - Isto vai ser mesmo bom. Dois encontros a dois.
- Quando formos todos para o carro para dar umas voltinhas, eu quero o banco de trás. - Jake meteu a mão num pacote de batatas fritas aberto.
- Vou tomar nota da hora a que essa actividade começar. - Mudando de posição para tentar encontrar um pedaço de chão mais macio, Lana afastou um mosquito. - Não
seria ético cobrar-vos também essas horas. Entretanto...
Afastou o cabelo da cara e depois tirou uma pasta da mala.
- Verifiquei a certidão de óbito e falei pessoalmente com o médico de Carlyle. Com autorização do familiar mais próximo, facultou-me alguns detalhes relativos à
situação médica de Carlyle. O cancro foi-lhe diagnosticado há oito anos, e tratado. Recentemente, voltou a surgir. O ciclo de quimioterapia começou em Abril último,
e em Julho Carlyle foi hospitalizado, porque o seu estado piorou. Estava em situação
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terminal e foi entregue aos cuidados dos serviços para doentes terminais no início de Agosto.
Pousou a pasta e olhou para Callie.
- A partir daqui, posso extrapolar que Carlyle não estava em condições de viajar, e não há indícios de que tenha deixado a sua casa nas Ilhas Caimão. Pode ter comunicado
por telefone, mas até isso lhe terá sido limitado. Era um homem muito doente.
- E agora é um homem muito morto - declarou Callie.
- É possível que consigamos reunir provas suficientes para levar a tribunal e convencer um juiz a conceder uma autorização judicial para termos acesso aos registos
de Carlyle. Deve haver registos, Callie, e talvez ajude se conseguires vê-los. Mas isso leva tempo, e não posso garantir que consiga a autorização com o que temos
até aqui.
- Então, vamos ter que arranjar mais. Descobrimos a relação entre Barbara Halloway e Suzanne, a relação com os Simpson e com os meus pais. E há uma relação entre
eles e o Carlyle. E deve haver outras.
- Até que ponto isto é importante para ti? - Doug levantou uma mão e deixou-a cair em seguida. - Sabes o que aconteceu. Podes não conseguir prová-lo, mas sabes.
O Carlyle está morto, por isso até que ponto isto é importante?
Callie voltou a abrir a geleira e tirou uma pequena embalagem embrulhada em folha de alumínio. Abriu-a e ofereceu aos outros o seu conteúdo.
- Ela fez-me um bolo de aniversário.
Doug olhou para o botão de rosa cor-de-rosa sobre a cobertura branca, e depois estendeu o braço e tirou um pequeno pedaço.
- Está bem.
- Não posso amá-la da mesma maneira que tu. Ou ele - disse Callie, pensando em Jay. - Mas é importante para mim.
- O Carlyle tinha pessoas a trabalhar para ele - acrescentou Jake. - Nos seus escritórios, na sua rede de firmas. Era casado quando a Callie foi raptada. Casou mais
duas vezes. E é muito provável que tenha tido outras relações íntimas. Por mais cuidadoso que um homem seja, fala sempre com alguém. Para descobrirmos com quem e
o que disse, precisamos de uma imagem clara do homem. Quem era Marcus Carlyle? O que o movia?
- Temos algumas dessas coisas no relatório do investigador. Lana procurou na pasta. - O nome da secretária nos escritórios de Boston e de Seatle. Já não se encontra
na zona. Achamos que voltou
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a casar e se mudou para a Carolina do Norte, mas ele ainda não conseguiu localizá-la. E o investigador falou com um funcionário judicial. Não há qualquer indicação
de que ele esteja envolvido. Tenho relatórios sobre mais alguns funcionários, e, mais uma vez, não há indicação de que nenhum deles tenha continuado a contactar
com ele depois de ele ter fechado o escritório em Boston.
- E sócios? Outros advogados, outros clientes, vizinhos?
- O investigador encontrou-se com alguns. - Lana levantou as mãos. - Mas estamos a falar de um hiato de mais de vinte anos.
Algumas dessas pessoas estão mortas, ou mudaram-se, ou simplesmente não foram localizadas até agora. Sejamos realistas: se querem avançar neste sentido, vai ser
preciso uma equipa de investigadores e muito tempo e dinheiro.
- Posso ir a Boston. - Doug partiu mais um pedaço de bolo.
- E a mais sítios. - Encolheu os ombros quando Callie olhou para ele. - Estou habituado a viajar. E quando se anda atrás de livros, para se avaliar se esses livros
são realmente o que nos disseram que são, fala-se com muita gente, faz-se muita pesquisa. Por isso, vou até lá, faço umas perguntas. Fazes-me um favor? - disse ele
a Jake.
- Diz.
- Tomas conta da minha mulher e do filho dela enquanto eu estiver fora?
- Com todo o gosto.
- Um momento. - Nervosa, Lana fechou a pasta. - O Jake já tem muito que fazer sem precisar de se preocupar comigo, e não sei bem como me sinto ao ouvir-te referir
à minha pessoa como tua mulher.
- Foste tu que começaste. Foi ela que me convidou para sair.
- Para jantar. Por amor de Deus!
- A partir daí nunca mais parou de apertar o cerco. - Doug deu uma dentada num cachorro quente e continuou a falar. - Agora que me fisgou não sabe o que há-de fazer.
- Apertar o cerco. - Sem fala, Lana pegou na cerveja de Callie e bebeu.
- Seja como for. Ficava mais descansado se soubesse que estavas a tomar conta dela e do Ty durante a minha ausência. Quando voltar
- acrescentou -, talvez já tenhas descoberto o que hás-de fazer comigo.
- Olha, neste momento tenho umas belas ideias!
- São giros, não são? - Callie passou o dedo pela cobertura do bolo e lambeu-o. - Vocês, pombinhos, deixam-me mesmo animada.
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- Nesse caso, lamento imenso não poder ficar até te estares a rebolar de riso e animação, mas tenho de ir para casa, por causa do Ty. As informações mais recentes
estão na pasta. Se tiveres alguma pergunta, telefona.
- Eu vou contigo até casa. - Doug levantou-se e depois ofereceu a mão a Lana, para ajudá-la a levantar-se.
Como se ficasse surpreendida por ter a cerveja na mão, Lana devolveu-a a Callie.
- Quanto tempo vão vocês ficar aqui, esta noite?
- O Matt e o Digger vêm render-nos às duas.
Lana olhou para os montes de terra, os buracos e as trincheiras, o lago e as árvores.
- Não posso dizer que gostasse de passar uma boa parte da noite aqui. Fossem quais fossem as circunstâncias.
- E eu não posso dizer que gostasse de passar uma boa parte do dia em Saks. Fossem quais fossem as circunstâncias. - Callie ergueu a sua cerveja. - Todos temos as
nossas pequenas fobias.
Doug esperou que Lana deitasse Tyler. Aproveitou o tempo para estudar as fotografias que ela tinha espalhadas pelas prateleiras das estantes. Deteve-se em particular
numa de Lana encostada a um homem louro, que tinha os braços enlaçados à volta da cintura dela.
Steven Campbell, pensou. Tinham bom ar, juntos. Calmos, sem problemas, felizes.
O miúdo tinha os olhos do pai, achou Doug, metendo as mãos nos bolsos para impedir-se de pegar na fotografia. E a maneira como ele sorria, a forma como pousara o
queixo no alto da cabeça de Lana, transmitiam bem-estar, afecto e intimidade.
- Era um tipo espectacular - disse Lana, em voz baixa. Aproximou-se da estante e pegou na fotografia. - Foi o irmão dele que tirou esta. Fomos visitar a família
dele e dissemos-lhes que eu estava grávida. Foi um dos momentos mais perfeitos da minha vida.
Voltou a pousar a fotografia, cuidadosamente.
- Estava a pensar que têm bom ar, juntos. E que o Ty tem um pouco de vocês os dois. A tua boca, os olhos dele.
- O encanto de Steve, o meu génio. Fez tantos planos quando o Ty nasceu. Jogos de futebol e bicicletas. O Steve adorava ser pai e assumiu isso muito mais rapidamente
e muito melhor do que eu. Às vezes acho que, como ia ter tão pouco tempo para ser pai, conseguiu de alguma forma condensar anos naqueles poucos meses com o Ty.
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- Amava-vos a ambos. Consegue ver-se isso aqui, na maneira como ele está a abraçar-vos aos dois.
- Sim. - Desviou o olhar, surpreendida e abalada por Doug conseguir ver isso e compreender isso numa fotografia. - Não pretendo tomar o lugar dele junto de ti, Lana.
Nem do Ty. Conheço muito bem a impossibilidade de tapar um buraco deixado por alguém. Quando era criança, achava que conseguia, e até que devia. Mas tudo o que consegui
fazer foi ver os meus pais afastarem-se E um do outro, e esse buraco tornar-se cada vez maior e mais fundo. Senti-me furioso por causa disso, fúria essa que nem
era capaz de reconhecer. Por isso, afastei-me da fonte dessa ira, geograficamente, emocionalmente. Comecei a ficar afastado por períodos cada vez mais longos.
- Deve ter sido muito difícil para ti.
- É mais difícil agora, que ela voltou, porque isso faz-me olhar
para a minha vida inteira de forma diferente. Não apoiei os meus pais, nem ninguém.
- Doug, isso não é verdade.
- É absolutamente verdade. - Era muito importante que ela soubesse isso, compreendesse isso. E compreendesse que ele estava pronto para mudar. - Afastei-me deles
porque não consegui, não
quis viver com um fantasma. Porque achei que não era suficientemente importante para mantê-los juntos... e culpei-os por isso. Culpei-os - admitiu ele. - Desde então,
afastei-me de qualquer potencial relação. Enquanto adulto, nunca tive verdadeiramente a minha
casa, nem tentei tê-la. Nunca quis ter filhos porque isso significa responsabilidade e preocupações.
Aproximou-se dela e pegou-lhe nas mãos.
- Não quero tomar o lugar dele. Mas quero uma oportunidade de
construir um lugar contigo, e com o Ty.
-Doug...
-Vou pedir-te que me dês essa oportunidade. Vou pedir-te que penses nisso enquanto eu estiver fora.
- Não sei se consigo voltar a amar dessa maneira. - Os dedos dela agarraram os dele, mas não estavam firmes. - Não sei se tenho coragem.
- Olho para ti, para este lugar, para aquele rapazinho que está a dormir lá em cima, e não tenho dúvida alguma sobre a tua coragem.
Beijou-lhe a testa, as faces, os lábios. - Pensa nisso com calma.
Falamos quando eu voltar.
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- Fica aqui, esta noite. - Abraçou-o, para não o deixar ir. - Fica.
- Tens a certeza?
- Sim. Sim, tenho a certeza.
Callie trabalhou no seu portátil até tarde, e depois foi até lá fora, esticar as pernas, olhar para as estrelas e pensar no que tinha de fazer no dia seguinte. Ia
terminar de escavar o esqueleto da mulher, e depois supervisionar a sua transferência para o laboratório. Ia continuar a trabalhar horizontalmente naquele sector.
Leo devia estar a chegar, de um momento para o outro, por isso ia entregar-lhe todos os filmes e todos os relatórios.
Ela e Jake precisavam de fazer actualizações.
E teria ainda que ver quais eram as previsões meteorológicas a longo prazo, para planear as coisas de acordo com elas.
De momento, parecia que o tempo ia continuar ameno e limpo durante os próximos dias. Um tempo perfeito para escavar, com as temperaturas raramente a ultrapassar
os vinte e cinco graus e a humidade a regressar a níveis civilizados.
Deixou-se levar, desligando automaticamente da música country que Jake tinha posto a tocar baixinho e concentrando-se nos sons da noite. O ruído breve de um carro
a passar na estrada para norte, o mergulho ocasional de uma rã ou de um peixe nas águas do lago, a sul.
O cão da quinta, a oeste, estava a começar a uivar à lua.
Lana não sabia o que perdia, pensou Callie, apreciando o ar que lhe tocava na cara com os seus dedos frescos. Havia ali uma paz completa, na noite, ao ar livre,
que não podia encontrar-se entre quatro paredes, fosse onde fosse.
Estava estendida no chão onde outros já tinham dormido. Século após século, era após era. E debaixo dela a terra ocultava mais segredos do que a civilização conseguiria
alguma vez descobrir.
Mas o que descobriam era sempre fascinante.
Ouvia o som do lápis de Jake a passar no papel. Ficava a desenhar à luz da sua lanterna Coleman, pensou ela, às vezes até muito tarde. Pensava muitas vezes porque
não teria ele seguido arte em vez de ciência. O que o teria levado a optar por estudar o homem em vez de transpô-lo para a tela?
E porque nunca lhe teria perguntado isso?
Abriu um olho, observando-o à luz do candeeiro.
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Estava descontraído, pensou ela. Sabia isso pela linha do maxilar, pela boca. Tirara o chapéu e a brisa ligeira dançava-lhe no cabelo e afastava-lho do rosto enquanto
ele desenhava.
- Porque não te dedicaste a isso? À arte, quero eu dizer.
- Não é suficientemente bom.
Ela rebolou e ficou de barriga para baixo.
- A arte ou tu?
- Ambas as coisas. A pintura, se é a isso que te referes, não me interessava o suficiente para eu lhe dedicar o tempo e o estudo necessários. Para não falar no facto
de isso não ser suficientemente macho para mim, quando entrei para a faculdade. Já chegava não querer trabalhar no rancho da família, quanto mais trabalhar para
ser pintor! Santo Deus, o meu velhote tinha morrido de vergonha!
- Não te teria apoiado?
Jake olhou para ela, arrancou uma página do seu bloco de esboços e começou a desenhar noutra.
- Não me teria impedido, nem tentado impedir-me. Mas não teria compreendido. E eu também não. Na minha família, os homens trabalham a terra, ou com cavalos, com
gado. Não trabalhamos em escritórios nem em arte. Fui o primeiro da minha família a fazer um curso universitário.
- Não sabia disso.
Ele encolheu os ombros.
- As coisas são assim mesmo. Interessava-me por antropologia quando era miúdo. Para me manterem longe de sarilhos, os meus pais deixaram-me ir a algumas oficinas
durante o Verão. Foi um grande presente, porque precisavam de mim no rancho. E mandarem-me para a faculdade foi um grande sacrifício, mesmo com as bolsas de estudo.
- Têm orgulho em ti?
Ficou silencioso por um momento.
- A última vez que fui a casa, acho que há uns cinco, seis meses, apareci de surpresa. Não lhes disse que ia. A minha mãe pôs mais um prato na mesa. Bem, dois, um
para o Digger. O meu pai entrou, apertou-me a mão. Comemos, falámos sobre o rancho, a família, o que eu andava a fazer. Havia quase um ano que não os via, mas foi
como se tivesse lá estado no dia anterior. Nada de vitelo gordo, se é que me entendes. Mas, mais tarde, olhei por acaso para a prateleira do móvel da sala. Estavam
lá dois livros de antropologia, misturados com o Louis UAmours do meu pai. Ver aquilo foi muito importante para mim, saber que eles andavam a ler sobre o que faço.
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Ela esfregou a mão no tornozelo.
- É a história mais bonita que me contaste sobre eles.
- Olha. - Virou o bloco de modo a que ela pudesse ver. - Está tosco, mas mesmo assim está parecido com eles.
Callie viu o esboço de uma mulher de rosto comprido, olhos calmos com rugas profundas aos cantos, e uma boca que mal desenhava um sorriso. Tinha o cabelo comprido,
liso, grisalho. O homem tinha maxilares fortes e salientes, um nariz direito e uma boca séria. Os olhos eram profundos e o rosto estava marcado pelo sol e pelo passar
dos anos.
- Pareces-te com ele.
- Mais ou menos.
- Se lhes mandasses isto, eles emolduravam-no e penduravam-no na parede.
- Deixa-te de coisas.
Ergueu o olhar, a tempo de ver o embaraço aflorar-lhe o rosto e a tempo de pôr o bloco fora do alcance dele.
- Aposto. Cem dólares em como se lhes mandares isto estará emoldurado e pendurado na parede, da próxima vez que fores a casa. Podes pô-lo no correio amanhã de manhã.
Há água na geleira?
- Provavelmente. - Olhou para ela com ar de censura, mas depois virou-se para abrir a geleira. Ficou assim durante tanto tempo que ela lhe deu um pontapé no tornozelo.
- Há ou não?
- Sim. Encontrei alguma. - Virou-se para ela. - Está alguém no bosque, com uma lanterna. - Falou no mesmo tom distraído enquanto lhe dava a água.
Os olhos dela mantiveram-se fixos nos de Jake por um momento, e depois olharam por cima do ombro dele. Mesmo com o coração a bater-lhe descompassadamente no peito,
tirou a tampa da garrafa e levou-a à boca para beber, enquanto via o feixe de luz mover-se por entre as silhuetas das árvores.
- Podem ser miúdos, ou uns idiotas quaisquer, como tu.
- Podem. Porque não vais para a roulote e telefonas ao xerife?
- Porquê? - Callie voltou a tapar a garrafa, devagar. - É que se eu for, ficas aqui fora sem mim. E se afinal forem uns sulistas empedernidos a tentar assustar os
forasteiros, eu é que vou ficar com cara de idiota. Primeiro vamos verificar. Os dois.
- Da última vez que te meteste no bosque saíste de lá com uma concussão.
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Tal como Jake, Callie continuava a seguir o feixe de luz.
- E tu andaste a fugir das balas. Se continuarmos aqui sentados, eles podem matar-nos como se fôssemos patos num lago, se for esse o objectivo. - Meteu a mão na
mochila e fechou os dedos sobre a pega de uma pá de pedreiro. - Vamos para a roulote e fazemos o telefonema juntos, ou vamos até ao bosque ver o que se passa, juntos.
Ele olhou para a mão dela.
-Já estou a ver para onde vai o teu voto.
- Quer o Dolan, quer o Bill estavam sozinhos. Se quem quer que ali está espera repetir a façanha, vai ter que lidar com dois.
- Está bem. - Baixou-se e tirou uma faca da bota, o que fez Callie abrir muito os olhos.
- Meu Deus, Graystone! Quando começaste a andar com isso aí?
- Logo depois de alguém ter disparado contra mim. Vamos manter-nos juntos. Combinado?
- Absolutamente.
Pegou numa lanterna, antes de levantar-se.
- Tens o telemóvel contigo?
- Sim, no meu bolso.
- Mantém-no à mão. Ele está a deslocar-se para leste. Vamos dar-lhe que fazer.
Jake acendeu a lanterna e virou-a para o feixe que vinha do bosque. Quando esse feixe se desviou rapidamente para oeste, ele e Callie avançaram a correr. Contornaram
a escavação, em direcção à margem do lago onde começava a haver árvores.
- Está a dirigir-se para a estrada. - Instintivamente, Callie virou na mesma direcção. - Podemos cortar-lhe a retirada.
Embrenharam-se por entre as árvores, seguindo o movimento do feixe de luz à sua frente. Callie saltou sobre um tronco caído e começou a correr mais depressa, para
acompanhar o passo de Jake.
E ambos praguejaram quando o feixe de luz desapareceu.
Jake levantou a mão, indicando silêncio.
Ela fechou os olhos e concentrou-se nos sons. E ouviu o bater de passos rápidos no solo.
- Ele voltou a mudar de direcção. - Apontou.
- Não conseguimos apanhá-lo. Leva um avanço muito grande.
- Então deixamo-lo ir?
-Já marcámos a nossa posição. - Mesmo assim, Jake continuou a apontar a luz em várias direcções. - Para começar, foi estúpido da parte dele estar ali com uma luz.
Qualquer idiota sabia que um de nós havia de vê-la.
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Mal acabou de dizer as palavras, ambos se aperceberam do seu significado.
- Merda! - foi tudo o que Callie disse, enquanto rodava nos calcanhares e começava a correr em direcção à escavação.
Segundos depois, ouviu-se a primeira explosão no ar.
- A roulote. - Jake viu a língua de chamas erguer-se em direcção ao céu. - Filho da mãe.
Callie saiu das árvores a toda a velocidade, pensando apenas em chegar ao extintor que tinha no carro. O seu corpo atingiu o solo com um impacto que lhe fez estalar
os ossos, quando Jake caiu em cima dela.
Quando ela tentou levantar a cabeça, Jake empurrou-lha para baixo, protegendo-lha com os braços.
- Gás! - gritou.
E o mundo explodiu.
O calor varreu o ar por cima dela, uma mão a arder que lhe queimou a pele e lhe roubou a respiração. Por entre o zumbir dos ouvidos, ouviu qualquer coisa gritar
e desfazer-se no chão. Choviam pequenas chamas.
Seguiram-se destroços vários, explodindo no ar como granadas e atingindo o solo em bolas incandescentes.
O espírito de Callie, entretanto entorpecido, voltou a ficar alerta quando sentiu o corpo de Jake estremecer.
- Sai daqui, sai daqui, sai daqui! - Ela debateu-se, rebolou, empurrou, mas ele manteve-a firmemente presa debaixo de si.
- Em baixo. Mantém-te junto ao chão! - Havia dor na voz dele e isso aterrorizou-a mais do que a explosão ou a chuva de fogo.
Quando finalmente ele saiu de cima dela, ela pôs-se de joelhos. Estavam rodeados de destroços ainda quentes, e o que restava da roulote ardia furiosamente. Deu um
salto na direcção de Jake quando o viu rasgar a camisa fumegante.
- Estás a sangrar. Deixa-me ver. Estás queimado? Meu Deus, estás queimado?
- Não muito. - Embora não estivesse muito certo disso. Mas a dor aguda que tinha no braço era de um corte e não de queimaduras.
- É melhor chamar o 112.
- Chama tu. - Tirou o telefone do bolso de trás e pôs-lho na mão. - Onde está a lanterna? Onde está a porra da lanterna?
Mas a luz vermelha do fogo bastou-lhe para ver que o ferimento que ele tinha no braço precisava de cuidados médicos. Gatinhou à
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volta dele para lhe observar as costas, passando os dedos trémulos por elas.
Arranhões, disse a si própria. Só alguns arranhões e queimaduras sem importância.
- Vou buscar o estojo de primeiros socorros ao Rover. Levantou-se atabalhoadamente e largou a correr. Calma, ordenou a si própria enquanto abria a porta. Tinha de
ficar calma, estancar a hemorragia, pôr uma gaze na ferida e levá-lo à urgência do hospital.
Não podia dar-se ao luxo de entrar em choque, por isso não iria entrar em choque.
Naquele momento lembrou-se que ele lhe protegera a cabeça com os seus braços. O corpo dela com o corpo dele.
- Machista idiota, imbecil. - Engoliu um soluço, pegou numa garrafa de água e voltou para trás, a correr.
Jake estava sentado no mesmo sítio onde ela o deixara, com o telefone na mão, a olhar para a roulote.
- Telefonaste?
- Sim. - Não disse mais nada, enquanto ela deitava água no golpe.
- Vais precisar de pontos - disse ela, bruscamente. - Mas vamos pôr aqui uma gaze. Tens algumas queimaduras, mas não parecem de primeiro grau. Estás magoado em mais
algum lado?
- Não. - Lembrou-se de que lhe dissera para ela ir para a roulote. Dissera-lhe para entrar, enquanto ele ia investigar a luz.
- Não me deste ouvidos. És mesmo irritante!
- O quê? - Preocupada, colocou a ligadura e observou os olhos de Jake, à procura de sinais de choque. - Tens frio? Jake, tens frio?
- Não tenho frio. Talvez esteja um bocado abalado. Não foste para a roulote, como eu te disse. Se tivesses...
- Mas não fui. - Sentiu-se estremecer, mas controlou-se. Já ouvia as sirenes. - Mas tu vais fazer o que estou a dizer-te e vais para o hospital. - Prendeu a ligadura
e sentou-se nos calcanhares. - Nem sequer pensei nas botijas de gás que havia na roulote. Ainda bem que tu pensaste.
- É. - Jake pôs o braço à volta dela e ajudaram-se um ao outro a levantar-se. - Parece que é a nossa noite de sorte. - Ele soltou um enorme suspiro. - O Digger vai
ficar passado.
Não queria entrar na ambulância, nem ir a lado nenhum, até saber quais tinham sido os estragos e o que podia salvar-se. Alguns registos e espécimes que estavam guardados
na roulote, à espera de serem
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transportados, tinham desaparecido. O portátil de Callie era uma massa de plástico e de chips queimados.
O computador que estava na roulote para uso da equipa, ardera por completo. Horas de trabalho árduo destruídas num abrir e fechar de olhos.
Havia destroços espalhados por toda a parte, nas zonas que eram objecto de uma cuidadosa escavação. Viu um pedaço de alumínio carbonizado espetado numa pilha de
detritos, como uma lança.
Bombeiros, polícia, serviços de emergência irromperam pelo campo de escavações. Seriam precisos dias, talvez semanas, para reparar os estragos e calcular os prejuízos.
Para recomeçar.
Ficou ao lado de Callie, ouvindo-a relatar, como ele próprio já fizera, os acontecimentos que tinham antecedido a explosão.
- Quem quer que estivesse no bosque, preparou uma manobra de diversão. - A fúria começava agora a aclarar-lhe a voz até aí trémula do choque. - Atraiu-nos, para
alguém poder incendiar a roulote.
Hewitt estudou a zona do fogo e mediu a distância até ao bosque.
- Mas não viram ninguém?
- Não, não vimos ninguém. Estávamos a uma distância de uns trinta metros, entre as árvores. Só voltámos para trás quando ouvimos a primeira explosão.
- As botijas de gás propano.
- A primeira. Parecia um canhão, e aqui o herói deitou-me ao chão. Nessa altura, explodiu a segunda.
- Não viram nem ouviram nenhum veículo?
- Ouvi os meus ouvidos a zumbir - disse ela, secamente. - Alguém fez explodir aquela primeira botija de gás, e não foi nenhum fantasma neolítico com algum ressentimento.
- Não estou a discutir isso, Dr.a Dunbrook. Alguém fez explodir aquela roulote e esse alguém teve que chegar aqui e sair daqui. O mais provável é terem-no feito
nalgum tipo de veículo.
Ela soltou um suspiro.
- Tem razão. Desculpe. Não, não ouvi nada depois da explosão. Antes, ouvi um carro passar, de vez em quando, ou apercebi-me do ruído de algum, à distância. Mas quem
quer que estivesse no bosque, começou a dirigir-se para a estrada. Provavelmente, tinha o carro estacionado aqui perto.
- É nisso que estou a pensar - concordou Hewitt. - Não acredito em maldições, Dr.a Dunbrook, mas acredito em sarilhos. E isso, têm de sobra.
392
-Está relacionado com tudo o que lhe contei sobre Carlyle, os
Cullen. É uma maneira de me assustarem, para eu sair deste campo,
de Woodsboro, para me afastar das respostas.
O olhar do xerife manteve-se calmamente pousado no rosto de
Callie, ainda sujo de mascarra e fumo.
- Talvez - foi tudo o que disse.
-Xerife. - Um dos ajudantes aproximou-se com passos decididos. - É melhor ver isto.
Seguiram Hewitt até ao lago, até à secção onde Callie trabalhara mais de oito horas naquele dia. Os restos mortais que ela escavara estavam agora cobertos de mascarra
e terra, mas estavam intactos.
Ao lado deles, no quadrado rigorosamente delimitado, estava um manequim de loja, com umas calças verde-azeitona já desbotadas e
uma camisa. O cabelo louro da cabeleira estava metido de qualquer maneira num chapéu de pano.
Ao pescoço estava pendurado um letreiro escrito à mão onde se lia R.i.p.
As mãos de Callie transformaram-se em punhos.
- Essas roupas são minhas. Esse chapéu é meu. O filho da mãe esteve lá em casa. O filho da mãe andou a mexer nas minhas coisas!
Abreviatura de rest in peace (descansa em paz) usual nas campas e monumentos funerários) (N. da t.)
393

Vinte e Quatro

Não era difícil alguém ter entrado na casa, pensou Jake, mais uma vez. Andara pela casa com a polícia, na noite anterior. E desde que o Sol nascera, já andara pela
casa sozinho, duas vezes.
Havia quatro portas, e qualquer delas podia ter ficado aberta inadvertidamente. Havia vinte e oito janelas, incluindo as do seu escritório, e qualquer uma delas
podia ter servido de acesso.
O facto de a polícia não ter encontrado sinais de arrombamento não significava nada. Alguém estivera lá dentro e mexera nas roupas de Callie.
Alguém lhes deixara uma mensagem bastante clara.
Ela estivera à beira de desistir. Observando a casa, meteu as mãos nos bolsos e rodou suavemente nos calcanhares. Ele demovera-a. Estava certo de que ela própria
teria voltado atrás, por si só. Conhecia-a demasiado bem para pensar outra coisa. Mas isso não apagava o seu papel nessa decisão.
Não tinha dúvida de que quem quer que tivesse feito explodir as botijas de gás não teria hesitado se Callie estivesse na roulote. De facto, quem quer que o tivesse
feito até podia estar um tanto desapontado por ela não se encontrar lá.
Carlyle estava morto. Os Simpson? Pensou neles. Ambos estavam em forma, o suficiente, pensou, para um deles ter ido a correr até ao bosque enquanto o outro punha
o manequim na escavação e incendiava depois a botija.
Quanto tempo tinham, ele e Callie, ficado no bosque? Quatro minutos? Cinco? Tempo de sobra.
Mas qualquer coisa dentro de si lhe dizia que Barb e Hank estavam o mais longe possível de Callie e de Woodsboro.
395
Tinham sabido qual o momento certo para a fuga, recordou. E Jake tinha a impressão de que sabia como.
Foi até à entrada, enquanto Doug estacionava.
- Onde está ela? - perguntou Doug.
- A dormir. Finalmente, conseguiu fechar os olhos há uma hora. Obrigado por teres vindo tão depressa.
- Não está ferida?
- Não. Umas nódoas negras de ter batido no chão, mais nada. Depois de respirar fundo, Doug olhou para o braço ligado de Jake.
- E isso, é grave?
- Um estilhaço cortou-me. Coseram-me. O maior dos estragos foi na escavação. Estamos à espera que nos dêem autorização para começar a limpar. Mas perdemos tudo o
que estava na roulote, incluindo tudo o que a Callie tinha no portátil e que ainda não tinha uma cópia de segurança aqui. E depois, a mensagem que nos deixaram.
Falou a Doug no manequim a representar Callie, deixado na sepultura.
- Consegues levá-la daqui?
- Claro, sem problema. Se a drogar e depois a amarrar num sítio qualquer. Tens algemas que possas emprestar-me?
- As minhas estão em reparação.
- Estão sempre, não estão? Ficaram um momento em silêncio.
- Agora, está aqui metida - disse Jake, lentamente. - E fiz um acordo com ela. Só volta a mexer-se quando souber do que anda atrás. E se ainda vais a Boston, é melhor
teres cuidado.
- Vou. Mas enquanto estiver fora não estou aqui para cuidar da minha família, nem de Lana, nem de Ty. Posso pedir ao meu pai e ao meu avô para ficarem com a minha
mãe durante uns dias. Vai parecer-lhes estranho, mas de certeza que o farão. Mas a Lana está sozinha.
- O que é que ela acharia de um hóspede? O Digger podia abancar lá.
- O Digger?
No rosto de Jake desenhou-se um sorriso.
- Sim, sei que parece que qualquer miúda de doze anos é capaz de deitá-lo ao chão. Mas não te deixes enganar por isso. Conheço-o há quinze anos. Se precisasse de
alguém para olhar pela minha família, era a ele que recorria. O teu principal problema é que a tua rapariga pode apaixonar-se por ele. Não sei porquê, mas há muitas
que se apaixonam.
396
- Isso é tranquilizador. Ainda não acabou, pois não? - Doug desviou os olhos da casa. - Nenhum de nós mencionou isso, até agora. Mas se há alguém suficientemente
desesperado para matar, isto ainda não acabou. E se não encontrarmos as respostas, nunca irá acabar.
- Continuo a pensar que nos escapou alguma coisa. Algum pormenor. Por isso, temos de voltar a peneirar o entulho.
- Enquanto fazes isso, eu vou para outro nível, em Boston. - Voltou a abrir a porta do carro. - Diz à Callie... diz à minha irmã - corrigiu - que hei-de descobrir
alguma coisa.
Ainda estava a dormir quando ele subiu ao quarto dela. Enrolada em cima do saco-cama, com uma almofada de viagem amachucada debaixo da cabeça.
Pareceu-lhe demasiado pálida e estava a começar a perder peso.
Ia levá-la dali para fora, decidiu. Para um lugar qualquer, durante um dia ou dois, na primeira oportunidade que tivessem. Escolheriam um sítio e não fariam mais
nada senão comer, dormir e fazer amor até ela voltar a estar em forma.
E quando ela voltasse a estar em forma, iam ter uma vida juntos. Não apenas fogo-de-artifício, uma vida.
À laia de cobertor, pôs-lhe uma toalha por cima. Cedendo à sua própria exaustão, Jake deitou-se ao lado dela e puxou-a para si. Depois, embalado pela fadiga, adormeceu.
Acordou, assaltado por uma dor súbita quando rebolou para cima do braço magoado. Praguejando e cerrando os dentes, tentou voltar a ficar confortável. E viu que Callie
desaparecera.
O pânico formou-lhe uma bola de gelo instantânea na barriga. Esqueceu a dor, levantou-se de um salto e saiu do quarto como um raio. O silêncio da casa acrescentou
valores ao pânico e fê-lo começar a gritar o nome dela antes de chegar ao meio das escadas.
Quando ela apareceu a correr, vinda do escritório dele, Jake não sabia se havia de rir por causa do aborrecimento estampado no rosto dela ou cair de joelhos e beijar-lhe
os pés.
- Porque estás a gritar desta maneira?
- Onde diabo te tinhas metido? Onde raio está toda a gente?
- Precisas de um comprimido. - Foi até à cozinha buscar os medicamentos para as dores. - Estava no teu escritório. O meu computador fritou, lembras-te? Estou a trabalhar
no teu. Toma o comprimido.
- Não quero comprimido nenhum.
397
- Não te armes em bebé grande e estúpido. - Encheu um copo de água. - Toma também o antibiótico, como o médico simpático te disse para fazeres, quando te deu o chupa-chupa.
- Alguém vai levar um murro. - Preparou a mão e bateu-lhe com ela na cara. - Onde estão os outros?
- Por aí. Na escavação, à espera de poderem vir dizer-nos que a polícia nos deu autorização para continuarmos. Na universidade, a usar algum do equipamento, e em
Baltimore, no laboratório. Não vale a pena andarmos todos aqui a pairar sem fazer nada, só porque decidiste que está na hora da sesta.
- Só estamos cá nós os dois?
- Isso mesmo, o que também não significa que esteja na hora do sexo. Toma os medicamentos como um lindo menino.
- Há quanto tempo saiu toda a gente?
- Há cerca de uma hora.
- Então, vamos começar. -- Ignorou os comprimidos que ela tinha na mão e saiu.
- O quê?
- Vamos revistar as coisas deles.
Os dedos de Callie apertaram-se em volta dos comprimidos.
- Não vamos nada!
- Então vou eu, mas vou demorar o dobro do tempo. - Pegou na mochila que estava a um canto da sala, atirou-a para cima da mesa e abriu o fecho de correr.
- Não temos o direito de fazer isto, Jake.
- Ninguém tinha o direito de mandar a roulote do Digger pelos ares, na nossa cara. Vamos certificar-nos de quem quer que tenha feito isto não está mesmo diante de
nós.
- Isso não chega para...
- Uma pergunta. - Parou de fazer o que estava a fazer e olhou para ela. - Quem sabia que íamos a Virgínia, no outro dia?
Ela encolheu os ombros.
- Tu e eu, a Lana e o Doug.
- E toda a gente que estava na cozinha onde falámos sobre os horários. Toda a gente que te ouviu dizer que tinhas uns assuntos pessoais a tratar na Virgínia,
Callie sentou-se, deixando-se cair pesadamente.
- Meu Deus!
- A metediça do outro lado da rua disse que eles estavam a carregar os carros por volta das dez. Levantámo-nos da mesa mais ou menos às nove. Só foi preciso um telefonema
a dizer-lhes que ias e que o melhor era zarparem.
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- Está bem, está bem, o tempo condiz, mas... Que raio achas que vais encontrar?
- Só sei quando vir. - Começou a procurar sistematicamente numa pilha de coisas, separando blocos de notas, canetas, lápis, um jogo de vídeo antes de voltar a olhar
para Callie. - Vais ajudar, ou vais ficar só a ver?
- Raios partam! - Ajoelhou-se junto dele. - Toma os comprimidos.
Ele resmungou, mas engoliu-os.
Abanando a cabeça, pegou num dos blocos de notas de Chuck e folheou-o. Franziu o sobrolho e fez o mesmo ao segundo.
- Estão vazios. Jake, não há nada neles. Nem notas, nem esboços, nada. - Virou-os com as páginas abertas para baixo e voltou a procurar. - As páginas estão em branco.
- Tinha algum dos blocos com ele quando saiu?
- Não sei. Talvez tivesse.
Já sem relutância, procurou nas roupas, nos bolsos. Quando todo o conteúdo da mochila estava em cima da mesa, Callie levantou-se, pegou no seu bloco de notas e fez
uma lista.
Depois de todos os objectos catalogados e repostos no seu lugar, fizeram o mesmo com as coisas de Frannie.
Encontraram outro bloco, embrulhado numa T-shirt e metido no fundo da mochila.
- É um diário. - Callie sentou-se de pernas cruzadas e começou a ler. - Começa no primeiro dia que chegaram à escavação. Blá-blá-blá, uma grande excitação por causa
do projecto. Ah, acha-te um borracho.
- Ai, sim?
- Se as coisas não resultarem entre ela e o Chuck, pode ir atrás de ti.
Leu palavras em diagonal, folheou páginas.
- A Rosie é simpática. Paciente. Não está preocupada com a hipótese de ela se fazer ao Chuck. Mas não está tão certa quanto à Dory. Convencida e superior. A Sonya
é simpática, mas é um bocado chata.
Fez uma pausa e franziu o sobrolho.
- Eu não sou assustadora nem mandona.
- És, pois. Que mais diz ela sobre mim?
- Credo, ela e o Chuck deram uma rapidinha na roulote do Dig, durante a pausa para o almoço. Acha o Matt interessante, para um tipo
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mais velho, mas que deve ser gay porque nunca anda atrás de nenhuma das mulheres. O Bob tem um rabo gordo e transpira muito. O Bill...
Teve que fazer uma pausa para se recompor.
- Acha que o Bill é inteligente, mas um bocado extravagante. Muitas minúcias diárias. Comemos Eggos ao almoço. Estava a chover. O que achou naquele dia, se não achou
nada. Descrições de encontros sexuais.
- Talvez devesses ler em voz alta.
- Observações - prosseguiu ela, ignorando-o. - Contrariedades. Como: porque não pode falar com os repórteres que querem entrevistas. Maldadezinhas. Não gosta muito
da Dory porque a Dory fala com ela em tom condescendente. E... depois há uma descrição do que aconteceu ao Bill. Nada de novo. Nada de novo - repetiu, fechando o
diário.
- É apenas o diário de uma estudante de faculdade. Inofensivo. Callie deu um salto quando o telefone tocou.
- A polícia deu autorização para continuarmos - disse ela a Jake quando desligou. - Precisamos de ir até à escavação.
- Está bem. - Começou a guardar as coisas de Frannie. - Mas vamos revistar as coisas dos outros na primeira oportunidade que tivermos.
Doug demorou apenas um dia e meio a encontrar o que considerou ser uma pista razoável. A sua vantagem sobre o investigador profissional, concluiu, era já não andar
à procura de Marcus Carlyle. Tudo o que queria era uma ligação ao homem, ainda que insipiente, mas que pudesse levar a outra e a outra, apertando cada vez mais o
círculo.
Encontrou esse elo ténue em Maureen O'Brian, que trabalhara no country club de que Carlyle e a sua primeira mulher eram membros.
- Céus, não vejo a Sr.a Carlyle há vinte e cinco anos - disse Maureen, saindo do salão de beleza e procurando no bolso da bata um pacote de Virgínia Slims. - Como
é que lhe passou pela cabeça encontrar-me?
- Fiz umas perguntas. A Sr.a Carnegy, do country club, deu-me o seu nome.
- Dragão velho. - Maureen acendeu o cigarro e soprou o fumo.
- Despediu-me, sabe? Por faltar muito ao trabalho quando estava grávida. Do meu terceiro filho. Deve ter sido, bem, há uns dezasseis anos. Cabra velha. Desculpe
a linguagem.
400
Como Carnegy descrevera Maureen como uma alcoviteira irresponsável, Doug não se importou nada.
- Ela disse-me que a senhora era a manicura da Sr.a Carlyle.
- Era, sim. Arranjei-lhe as unhas todas as semanas, à segunda-feira à tarde, durante três anos. Ela gostava de mim e dava boas gorjetas. Era uma boa mulher. - Conheceu
o marido dela?
- Ouvi falar muito dele. E vi-o uma vez, quando fui a casa deles para arranjar as unhas à senhora, antes de uma grande gala a que foram. Um homem muito bem-parecido,
e sabia disso. Não servia para ela, se quer saber a minha opinião. - Porque diz isso?
A boca dela esboçou um sorriso afectado.
- Um homem que não sabe ser fiel aos votos do seu casamento nunca serve para a mulher a quem os fez.
- Ela sabia que ele a enganava?
-Uma mulher sabe sempre essas coisas... quer admita, quer não.
E havia muitas conversas no clube. Além de vir com ele, de vez em
quando vinha sozinha.
- Conhecia-a?
- Conheci uma delas. Dizia-se que havia mais. Esta também era
casada, e ainda por cima médica. Dr.a Roseanne Yardley. Vivia em
Nob Hill, numa casa grande e toda elegante. A minha amiga Colleen
tratava-lhe do cabelo. - Sorriu desdenhosamente. - A doutora não era loura natural.
Natural ou não, ainda era loura quando Doug a encontrou à saída do turno no Boston General. Achou que era o que as pessoas costumavam chamar uma mulher bonita. Alta,
refinada, a massa de cabelo louro perfeitamente penteada, a emoldurar um rosto forte e quadrado. Roseanne tinha uma voz firme e bostoniana que indicava que não perdia
tempo com disparates.
- Sim, conheci Marcus e Lorraine Carlyle. Éramos membros do mesmo clube, movíamo-nos no mesmo círculo. Realmente, não tenho tempo para falar de velhos conhecidos.
- Pelo que me disseram, a senhora e Marcus eram mais do que velhos conhecidos.
Os olhos dela eram de um azul frio, que gelou de imediato.
- E que poderá o senhor ter a ver com isso?
- Se puder conceder-me cinco minutos em privado, Dr.a Yardley,
explico-lhe porque tenho a ver com isso.
401
Não disse nada, mas depois de olhar seriamente para o relógio, começou a andar pelo corredor. Entrou para um pequeno gabinete, dirigiu-se directamente para a secretária
e sentou-se atrás dela.
- O que quer?
- Tenho provas de que Marcus Carlyle liderava uma organização que obtinha lucros através de adopções fraudulentas, raptando bebés e vendendo-os a casais sem filhos.
Ela nem pestanejou.
- Isso é perfeitamente ridículo.
- E que usava e empregava elementos da profissão médica na sua organização.
- Sr. Cullen, se pensa que pode acusar-me de participar num círculo fictício qualquer ligado ao mercado negro, assustar-me o suficiente para fazer chantagem comigo
e extorquir-me dinheiro, não poderia estar mais enganado.
Doug imaginou-a a deixá-lo - a ele ou a qualquer subalterno que a irritasse - estendido no chão com um só golpe.
- Não quero dinheiro. E não sei se esteve envolvida ou não. O que sei é que teve um caso com Marcus Carlyle, que é médica e que pode ter informações que vão ajudar-me.
- Tenho a certeza absoluta de que não tenho quaisquer informações. Agora, estou muito ocupada.
Doug não se mexeu, mesmo quando ela se pôs de pé.
- A minha irmã foi roubada quando tinha três meses de idade e, dias mais tarde, vendida a um casal no escritório de Carlyle, em Boston. Tenho provas disso. Tenho
provas que ligam outro médico de Boston a esse acontecimento. Essas provas e essas informações foram fornecidas à polícia. Vão acabar por chegar até si, Dr.a Yardley.
Mas a minha família está à procura de respostas agora.
Ela voltou a sentar-se, muito devagar.
- Que médico?
- Henry Simpson. Ele e a actual esposa deixaram a sua casa de Virgínia precipitadamente, muito precipitadamente, depois de esta investigação ter começado. A actual
esposa de Henry Simpson era uma das enfermeiras-obstetras que estava de serviço na noite em que a minha irmã nasceu, em Maryland.
- Não acredito em nada disto - retorquiu ela.
- Talvez acredite, talvez não. Mas eu quero saber da sua relação com Marcus Carlyle. Se não falar comigo aqui, não terei qualquer problema em tornar públicas as
informações que tenho até agora.
402
- Isso é uma ameaça.
- É uma ameaça - concordou Doug, prontamente.
- Não vou admitir que manche a minha reputação.
- Se não colaborou em actividades ilegais, não tem nada com que preocupar-se. Preciso de saber quem era Marcus Carlyle, com quem se relacionava. A senhora teve um
caso com ele.
Roseanne pegou numa caneta de prata e bateu com ela suavemente na beira da secretária.
- O meu marido está ao corrente da minha relação com Marcus. A chantagem não vai funcionar.
- Não estou interessado em chantagem - repetiu ele.
- Cometi um erro há trinta anos. Não vou pagar por ele agora. Doug procurou na sua pasta e tirou lá de dentro uma cópia da certidão de nascimento de Callie e uma
fotografia dela tirada dias antes de ter sido raptada. Colocou-as em cima da secretária de Roseanne, e depois tirou da pasta os papéis falsos da adopção e a fotografia
que os Dunbrook lhe tinham dado.
- Chama-se Callie Dunbrook, agora. Merece saber como isto aconteceu. A minha família merece saber.
- Se isto é verdade, se alguma parte disto é verdade, não vejo o que o meu lamentável caso com Marcus possa ter que ver com isto.
- Estou apenas a recolher dados. Quanto tempo estiveram envolvidos?
- Quase um ano. - Roseanne suspirou e encostou-se mais para trás. - Ele era vinte e cinco anos mais velho do que eu, e bastante fascinante. Era carismático, respeitado,
atraente e atencioso. Pensei que éramos muito sofisticados e modernos por termos um caso que parecia satisfazer-nos a ambos e não magoar ninguém.
- Alguma vez falaram do seu trabalho, dos seus pacientes?
- Tenho a certeza que sim. Sou pediatra. Grande parte da actividade profissional de Marcus foi dedicada à adopção. Éramos ambos dedicados às crianças. Essa foi uma
das coisas que nos uniu. Não me lembro de ele tentar arrancar-me alguma informação específica, e nenhum dos meus pacientes foi raptado. Eu teria sabido.
- Mas alguns eram adoptados.
- Claro. É perfeitamente natural.
- Algum dos pais que lhe trouxe filhos recém-adoptados veio ter consigo por recomendação de Marcus?
Desta vez, hesitou.
403
- Sim, imagino que sim. Tenho a certeza de que houve alguns. Como lhe disse, éramos conhecidos, antes de nos tornarmos íntimos. Era perfeitamente natural...
- Fale-me dele. Se ele era carismático, respeitado e atraente, porque terminou o vosso caso?
- Também era frio e calculista. - Pegou nos papéis e nas fotografias que estavam em cima da secretária. - Um homem muito calculista, sem qualquer sentido de fidelidade.
Pode achar isto estranho, dado que estávamos a ter um caso extra-conjugal, mas esperei que ele fosse fiel enquanto o tivéssemos. E não foi. Com certeza que a esposa
dele sabia da minha existência, e se isso foi problemático para ela a excelente fachada com que se apresentava em público escondeu-o muito bem. Dizia-se que lhe
era totalmente dedicada e ao filho, e que fingia não saber das outras mulheres com quem ele andava.
Os lábios dela contorceram-se, deixando bem claro o que pensava sobre uma mulher assim.
- Eu, no entanto, preferia as coisas bem claras. Quando descobri que ele tinha outro caso paralelamente ao nosso envolvimento, confrontei-o com isso. Discutimos,
terrivelmente, e acabámos tudo. Eu era tolerante, mas saber que ele andava a enganar-me com a secretária, era um pouco demais.
- O que pode dizer-me sobre ela?
-Jovem. Eu tinha quase trinta anos quando Marcus e eu nos envolvemos. Ela dificilmente teria mais de vinte. Vestia cores ousadas e falava num tom calmo, um contraste
que me deixou desconfiada como mulher. E quando soube dela, lembrei-me de quantas vezes ela me cumprimentara com um sorriso de desdém. Não tenho dúvida nenhuma de
que soube de mim muito antes de eu ter sabido dela. Ouvi dizer que ela foi uma das poucas empregadas do escritório que Carlyle levou com ele quando foi para Seattle.
- Soube mais alguma coisa sobre Carlyle, ou sobre ela, desde essa altura?
- O nome dele surge de tempos a tempos. Ouvi dizer que se divorciou de Lorraine, e fiquei surpreendida que não tivesse casado com a secretária, quando voltou a casar.
Acho que alguém me disse que ela casou com um contabilista e teve um filho.
Voltou a bater com a caneta na secretária.
- O senhor deixou-me intrigada, Sr. Cullen. O suficiente para me levar a fazer umas perguntas por aí. Não gosto de ser usada. Se for verdade que Marcus me usou desta
forma, quero saber.
- Ele está morto.
404
Ela abriu a boca e depois voltou a fechá-la, com os lábios a formarem uma linha longa e firme.
- Quando?
- Há cerca de duas semanas. Cancro. Estava a viver nas ilhas Caimão, com a esposa número três. Não posso obter respostas dele, de forma directa. E o filho mostra-se
relutante em levar as nossas provas
a sério.
- Sim, conheço Richard um pouco. Acho que ele e Marcus não se
falavam. Richard era, e é muito dedicado à mãe e à família. Falou com Lorraine?
- Ainda não.
- Imagino que Richard o processe legalmente, de todas as formas possíveis, se tentar. Ela já não sai tanto como saía, em termos sociais.
Pelo que ouvi dizer, é muito frágil. Afinal, sempre foi frágil. Vai ficar muito tempo em Boston?
- Talvez... Ou posso ser contactado onde estiver.
- Gostaria de tranquilizar-me a mim própria sobre tudo isto. Deixe-me um número para onde possa ligar-lhe.
Doug instalou-se no seu quarto de hotel, tirou uma cerveja do minibar e telefonou a Lana.
A voz de homem que respondeu disse apenas:
-Alo!
- Ah... Queria contactar Lana Campbell.
- Ei, eu também. É o Doug?
- Sim, é o Doug. Que quer dizer? Onde está ela?
- Um bocado distante, até agora, mas tenho esperança. Ei, miúda sexy, telefone para ti.
Ouviu-se algum barulho, risos - que ele identificou como sendo de Ty - e depois uma gargalhada muito feminina.
- Estou?
- Quem era aquele?
- Doug? Estava à espera que telefonasses.
Uma coisa que parecia um macaco, seguido por um riso histérico de criança, afogou a voz dela. Doug ouviu o som de movimentos e
depois o ruído de fundo diluiu-se.
- Meu Deus, isto aqui está uma casa de doidos. O Digger está a
a cozinhar. Estás no hotel?
-Sim, acabei de chegar. Parece que há festa.
405
- Deixa-me lembrar-te que a ideia de instalares o Doug em minha casa sem me pedires opinião foi tua. Sorte a tua, ele ser uma presença muito tranquilizante, já para
não dizer animada. É maravilhoso com o Ty. Até agora, consegui resistir à minha paixão por ele, embora com dificuldade. E ele já me avisou que é uma "batalha perdida.
Doug deixou-se cair em cima da cama e coçou a cabeça.
- Nunca tive ciúmes, antes. É humilhante que a minha primeira experiência seja a propósito de um tipo que parece um gnomo de jardim.
- Se conseguisses cheirar o molho de esparguete que ele tem ao lume, ficarias louco de ciúme.
- Filho da mãe.
Ela riu e depois baixou a voz.
- Quando vens para casa?
- Não sei. Falei com umas pessoas hoje, espero falar com mais amanhã. Talvez passe por Seattle, antes de regressar. Estou só atrás de palpites. Isso quer dizer que
tens saudades minhas?
- Acho que sim. Já me tinha habituado a ter-te aqui, ou perto. Nunca pensei que voltaria a habituar-me a uma coisa dessas. Acho que devia perguntar-te o que descobriste.
Ele estendeu-se na cama, detendo-se um pouco na ideia de ela ter saudades dele.
- O suficiente para saber que o Carlyle gostava de mulheres, e de mais do que uma ao mesmo tempo. Há qualquer coisa que me diz que a secretária é um elo-chave. Vou
tentar encontrá-la. Queria perguntar-te se é suposto levar-te algum presente de Boston.
- Claro!
- Está bem, tenho uma coisa na ideia. Alguma novidade que eu deva saber?
- Passaram horas a limpar o campo de escavações. Sei que a equipa está desanimada e abalada. Acho que há sérios receios de que os subsídios venham a ser cortados.
Pelo menos temporariamente. Se a polícia tem algumas pistas, não diz nada a ninguém.
- Toma conta de ti e do Ty-Rex.
- Podes contar com isso. Volta depressa, Doug. E volta bem.
- Podes contar com isso.
Às três da manhã, o telefone tocou ao lado da cama, fazendo-lhe disparar o coração até à garganta. Era lá que batia descompassadamente quando ele pegou no auscultador.
- Estou?
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- Tem muito a perder e nada a ganhar. Vá para casa enquanto ela ainda está de pé.
- Quem fala? - Sabia que era inútil perguntar. Frustrantemente inútil, quando a linha emudeceu.
Pousou o auscultador e ficou deitado às escuras. Alguém sabia que ele estava em Boston e não gostava da ideia. Isso queria dizer que ainda havia qualquer coisa,
ou alguém, em Boston para descobrir.
407
Vinte e Cinco

Não eram apenas as longas horas, ou o facto de o seu trabalho ser física e mentalmente exigente. Callie já trabalhara mais horas e em condições muito mais difíceis.
O tempo transitava suavemente do Verão para o Outono, oferecendo dias amenos e noites frescas. À excepção de algumas manchas de amarelo, aqui e ali, nos choupos,
as folhas continuavam frescas e verdes. O céu permanecia claro e azul.
Noutras circunstâncias, em quaisquer outras circunstâncias, as condições de trabalho seriam ideais.
Callie teria trocado aqueles agradáveis dias de Setembro por um calor abrasador ou chuvas torrenciais, por nuvens de insectos e ameaças de insolação.
Sabia que se chegava a casa exausta, todos os dias, não era devido ao trabalho em si. Era a sua dispersão, a sua desconcentração.
Bastou-lhe olhar para o chão queimado, no sítio onde antes estivera a roulote de Digger, para reviver tudo.
Intelectualmente, sabia que a sua reacção era exactamente a que eles queriam. Mas o cerne do problema estava em não saber quem eram eles. Se o inimigo tinha um rosto,
achava que era capaz - esperava ser capaz - de combatê-lo. Mas não havia ninguém para combater nem nenhum lugar para onde ela pudesse canalizar a sua fúria.
Sabia que era a sensação de inutilidade que provocava aquela dolorosa fadiga.
Quantas vezes podia estudar a cronologia que ela e Jake tinham elaborado juntos? Quantas vezes mais podia reconfigurar as relações, escavar as camadas de pessoas
e de anos e de acontecimentos?
409
Pelo menos Doug estava a fazer qualquer coisa tangível, falando com pessoas em Boston. Mas se ela tivesse ido em vez dele, se tivesse dado a si própria a satisfação
de agir, teria abandonado a equipa quando eles mais precisavam dela.
Tinha de estar ali, aguentar a rotina, hora a hora, dia a dia. A fachada de normalidade era essencial, ou o projecto desfazer-se-ia como o seu estado de espírito.
Sabia que a equipa esperava que ela impusesse o tom. Tal como sabia que falavam dos pormenores da sua vida privada. Notava os olhares lançados na sua direcção, as
conversas sussurradas que paravam abruptamente quando ela entrava.
Não podia censurá-los. Notícias eram notícias. E depressa se espalhou que a Dr.a Callie Dunbrook era Jessica Cullen, desaparecida há anos.
Recusava dar entrevistas ou responder a perguntas. Uma coisa era querer descobrir a verdade, outra coisa era expor-se perante a imprensa e os curiosos.
Mas os curiosos não a deixavam em paz. Estava perfeitamente consciente de que havia tantas pessoas que visitavam a escavação para vê-la como as que a visitavam para
verem o projecto.
Embora nunca tivesse fugido dos holofotes, era completamente diferente ver a luz focalizar-se na sua pessoa e não na sua vida profissional.
Andava irritável, tensa e distraída. E os três estados de espírito colidiram quando a porta da casa de banho se abriu enquanto ela soluçava no duche.
Tirou a pega do chuveiro do respectivo gancho e agarrou-a como se fosse uma arma, enquanto os acordes agudos do violino de Psycho lhe ecoavam na cabeça.
Agarrou a borda da cortina do chuveiro, preparada para puxá-la para trás.
- É a Rosie.
- Raios partam! - Callie voltou a colocar a pega do chuveiro no lugar. - Estou nua!
- Espero bem que sim. Ficava mais preocupada contigo se começasses a tomar duche vestida. A casa de banho é o único sítio onde acho que podemos falar em particular.
Callie afastou um pouco a cortina. Através do vapor, viu Rosie baixar a tampa da sanita e sentar-se.
- Se estou na casa de banho é porque quero privacidade.
410
- Exactamente. Por isso mesmo. - Rosie cruzou as pernas.
- Tens de sair disto, companheira.
- Sair do quê? - Callie voltou a fechar a cortina e meteu a cabeça debaixo da água que corria do chuveiro. - Parece-me que devia haver um pouco mais de respeito
por aqui. Pessoas a entrar na casa de banho quando outras pessoas estão lá dentro, molhadas e nuas.
- Os papos que tens nos olhos são suficientes para justificar uma semana de acepipes. Perdeste peso. E o teu temperamento, que nunca foi flor que se cheirasse, está
a ficar feio. Não podes ameaçar um jornalista de lhe arrancares a língua com uma pá. São más relações públicas.
- Eu estava a trabalhar. Disse-lhe que não fazia comentários sobre questões pessoais. Até me ofereci para falar com ele sobre o projecto. Mas ele não desistiu.
- Doce, sei que isto é dose para ti. Precisas de deixar que eu, o Leo, o Jake, até o Digger, façamos o trabalho com a imprensa, por agora.
- Não preciso de escudo de defesa, Rosie.
- Sim, precisas. A partir de agora, sou eu que faço o controlo da imprensa. Se tentares discutir comigo sobre o assunto, tu e eu vamos ter a nossa primeira briga
a sério. Conhecemo-nos há uns seis anos, pelas minhas contas. Detestaria estragar isso. Mas assento-te a mão, Callie, se me forçares a isso.
Callie voltou a abrir um pouco a cortina e espreitou.
- É fácil dizeres isso quando estou molhada e nua.
- Seca-te e veste-te. Eu espero.
- Pareço-te assim tão mal?
-Já está a passar um bocado os limites. A verdade é que não te vejo assim desde que tu e o Jake foram cada um para seu lado.
- Não consigo escapar a isto. - Também não conseguia escapar a Jake, recordou a si própria. Não conseguia deixar de ouvir falar dele, escapar às recordações dele,
deixar de pensar nele. - Na escavação, na cidade, aqui. Sobe por mim como formigas.
- As pessoas falam. É um problema inerente à espécie. Não conseguimos calar-nos. - Esperou que Callie fechasse a torneira e depois levantou-se para lhe passar a
toalha. - A equipa não quer aumentar a pressão sobre ti. Mas não faríamos o que fazemos, se não fôssemos curiosos por natureza. Queremos saber. Por isso é que escavamos.
411

- Não estou a censurá-los. - Saiu do duche e pegou na toalha. Como a formalidade nunca fora questão para ela, embrulhou o cabelo na toalha e depois pegou noutra.
- Ter toda a gente a andar à minha volta com pezinhos de lã deixa-me nervosa. E saber que o Digger perdeu aquela lata feia a que chamava casa porque alguém me quis
atingir, incomoda-me. Incomoda-me muito.
- O Digger há-de comprar outra lata. Tu e o Jake não ficaram com ferimentos sérios. Isso é o mais importante.
- Conheço as prioridades, Rosie. E, racionalmente, sei como funciona este padrão de medo e dúvida e desconcentração. Mas o certo é que funciona. Tenho medo e estou
confusa e ando desconcentrada, e acho que não estou mais perto de encontrar o que procuro.
Largou a toalha e pegou na roupa interior lavada que trouxera consigo para a casa de banho.
- Porque é que nunca me perguntaste? Sobre os Cullen, e sobre como é saber que se começou a viver na pele de outra pessoa?
- Estive à beira de perguntar-te, uma ou duas vezes. Mas acho que quando estiveres pronta para falar, não terei que perguntar. E acho que não precisas que te diga
que a equipa te apoia. Mas digo-te, de qualquer forma.
- Se eu não fizesse parte da equipa, o projecto não estaria com problemas.
Rosie pegou num frasco de creme hidratante corporal. Abriu-o e cheirou-o. Uniu os lábios com ar de aprovação, meteu o dedo no frasco e espalhou o creme nos braços.
- Tu fazes parte da equipa. Chamaste-me a fazer parte dela. Se te fores embora, eu também vou. Se te fores embora, o Jake também vai. Se o Jake se for embora, o
Digger também vai. O projecto ficará com muito mais problemas se isso acontecer. E tu também sabes isso.
- Eu podia convencer o Jake a ficar.
- Estás a sobrestimar os teus poderes de persuasão. Ele não vai perder-te de vista. Para dizer a verdade, estou surpreendida e um bom bocado desapontada por não
vos ter encontrado aos dois no chuveiro. Iria para a primeira página do livro de memórias da Rosie.
-Já temos falatório suficiente por aqui, sem o Jake e eu andarmos a tomar duche juntos.
- Agora que falas nisso. - Deixou cair o frasco de creme na mão de Callie e começou a brincar com um hidratante facial, enquanto Callie espalhava creme nos braços
e nas pernas. - Se tenho uma pergunta a fazer, ela pertence a essa área. Que se passa entre vocês os dois?
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Callie vestiu uns jeans lavados.
- Não sei.
- Se tu não sabes, quem sabe?
- Ninguém. Ainda estamos a... estamos a tentar... não sei - repetiu, estendendo o braço para pegar na camisa. - É complicado.
- Bem, vocês são pessoas complicadas. Por isso é que foi tão interessante observar tudo, da primeira vez. Foi como ser testemunha de uma reacção nuclear. Desta vez,
é mais como observar um fogo lento, sem estar totalmente certa se ele vai continuar a arder em lume brando ou se vai explodir a qualquer momento. Sempre gostei de
vos ver juntos.
- Porquê?
Rosie soltou uma gargalhada rápida e musical.
- Dois animais de aspecto irrepreensível, lindos, à espreita, sem saberem muito bem se se hão-de fazer em farrapos um ao outro ou acasalar.
Pegou no hidratante facial e espalhou-o no rosto.
- Estás cheia de analogias.
- Tenho uma natureza romântica. Gosto de vos ver aos dois, sempre gostei. Neste momento, aquele homem só quer abraçar-te, mas não sabe como. E é suficientemente
inteligente para ser cauteloso, porque se te abraçar da forma errada tiras-lhe a pele. E isso, para ele, é um osso duro de roer. Porque a tua natureza temperamental
é uma das coisas que ele ama em ti.
Lentamente, Callie desenrolou a toalha que tinha à volta da cabeça e pegou no pente.
- Gosto de estar segura das coisas. - Bateu com o pente na palma da mão, antes de o passar pelo cabelo molhado. - Nunca tive a certeza se ele me amava. Pensei que
me enganava. Com a Verónica Weeks.
- Merda, ela começou a arrastar-lhe a asa logo no primeiro dia, e tanto por ter ciúmes de ti como por o teu homem ser um pão. Queria causar-te problemas. Tinha-te
um ódio visceral.
Callie penteou o cabelo, afastando-o da cara.
- Missão cumprida. - Depois, baixou o pente. - Como é que sabias isso e eu não?
- Porque estava mesmo diante de ti, pastel de nata. E eu era uma mera observadora. Mas acho que ele nunca meteu o pé naquela poça, Cal. Ela não fazia o tipo dele.
- Não me venhas com essa. Alta, belo corpo, disponível. Porque não havia de fazer o tipo dele?
413
- Porque não era a tua pessoa.
Respirando fundo, Callie observou o seu rosto ao espelho. Objectivamente, honestamente.
- Não sou de deitar fora. Se tiver um tempo para me produzir, posso ficar bem atraente. Mas tenho os meus limites. A Verónica era linda. Absolutamente deslumbrante.
- Onde é que foste buscar o complexo de insegurança?
- Veio incluído quando me apaixonei por ele. Conheces a fama dele, sabes como ele está sempre a tocar nas mulheres, a namoriscá-las.
- Isso é apenas a forma como ele comunica. E a fama foi antes de ti. E tudo isso - continuou Rosie - faz parte daquilo por que te apaixonaste.
-- É. - Descontente consigo própria, Callie voltou a passar o pente pelo cabelo.
- Aquilo porque me apaixonei e que começou imediatamente a mudar. Estúpido. Não consegui acreditar que não se tivesse atirado a outras mulheres. Especialmente à
Verónica Weeks e ao seu convite óbvio. Especialmente quando encontrei a roupa interior dela debaixo da nossa cama.
- Uau! - Rosie pronunciou a palavra em três sílabas.
- Ela armou-me uma cilada, e eu caí. - Atirou o pente para dentro do lavatório. - Odeio isso! Caí, porque não acreditei que ele me amava, pelo menos não o suficiente.
Por isso pressionei-o, pressionei-o cada vez mais, e quando não consegui obter as respostas que queria, pressionei-o até fazê-lo sair porta fora.
- Agora, voltaste a deixá-lo entrar. Não te fazia mal permitires-te desfrutar isso. - Rosie aproximou-se do lavatório e encontrou os olhos de Callie no espelho pendurado
por cima dele. - Ele enganou-te, Cal?
- Não. Meteu o pé na argola noutras coisas, mas nunca me enganou.
- Muito bem. Alguma embrulhada da tua parte? Callie suspirou, soltando uma espécie de silvo.
- Muitas.
- Pois bem. Agora, ouve a sensatez da Tia Rosie. Se a minha vida estivesse num rumo destes, gostaria de ter um homem alto, forte, disposto a apoiar-me de todas as
maneiras. Para dizer a verdade, um homem alto, forte e disposto a apoiar-me é coisa de que gostaria de ter qualquer que fosse o rumo da minha vida. Mas isto sou
eu a falar.
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Callie inclinou a cabeça até encostá-la levemente à de Rosie.
- Porque não estás casada e a criar bebés?
- Querida, há por aí tantos homens altos e fortes. Quem consegue escolher só um? - Deu uma pequena palmada no ombro de Callie. - Tenho umas compressas de ervas que
vão fazer maravilhas nos papos que tens por baixo dos olhos. Vou buscar-te umas. Põe-nas e estende-te durante meia hora.
Sentiu-se um bocado idiota, deitada no saco-cama, com umas compressas que cheiravam a pepino acabado de cortar sobre as pálpebras. E imaginou que devia parecer a
versão loura da pequena órfã Annie.
Mas sabia-lhe bem. As compressas eram frescas e calmantes. E embora raramente pensasse na sua aparência enquanto trabalhava, Callie tinha uma vaidade saudável. Não
gostara de saber que andava com um aspecto horrível.
Talvez fizesse uma massagem facial. A Rosie tinha sempre uma série de produtos na bagagem. Ia aperaltar-se um pouco. E havia de lembrar-se de pôr um bocadinho de
maquilhagem de manhã.
Não havia razão para andar por aí com ar de bruxa, só porque se sentia assim.
Não conseguiu aguentar os trinta minutos, mas considerou uma vitória da sua força de vontade ter aguentado quinze. Levantou-se, tirou as compressas e depois observou-se
demoradamente e com olhar crítico no pequeno espelho que tinha na sua mochila.
Já estivera com um ar pior, concluiu. Mas, decididamente, também já estivera com um ar melhor.
Ia descer, desencantar qualquer coisa para comer, na cozinha, e depois ia ver o que Rosie lhe recomendava para aplicar na cara. Havia de conseguir deixar a pele
envolta numa mistela qualquer para amaciá-la, enquanto cumpria as tarefas diárias.
Considerando isso um compromisso inteligente, começou a descer as escadas. Mas parou a meio, quando viu Jake à porta e os seus pais do outro lado.
Era estranho vê-los juntos, pensou. Quantas vezes se tinham encontrado cara a cara? Duas? Não, três vezes, corrigiu.
Mais um erro, supôs. Considerara Jacob Graystone tão distante do estilo de vida dos seus pais, que nunca fizera realmente um esforço para incluí-lo no seu círculo
familiar. E neste momento não tinha qualquer dúvida de que ele tivera exactamente a mesma reserva em relação a ela e à sua própria família.
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Não era de admirar que fossem tão estranhos, um em relação ao outro. Mesmo sem contar com tudo o que acontecera desde Julho.
Passou os dedos pelo cabelo e apressou-se a descer o resto das escadas.
- Ora, que grande surpresa! - Tentou manter a voz descontraída e animada, mas a tensão dentro de si e à sua volta era difícil de digerir. - Deviam ter-me dito que
vinham, para eu poder ir buscar-vos. Não deve ter sido fácil encontrar-nos.
- Só nos perdemos duas vezes. - Vivian entrou e pôs os braços à volta de Callie.
- Uma - corrigiu Elliot. - A segunda vez foi apenas uma pequena exploração. E já cá estaríamos há uma hora, se a tua mãe não tivesse insistido para pararmos por
causa disto.
- Um bolo de aniversário. - Vivian soltou o seu abraço a Callie, enquanto Elliot mostrava a caixa da pastelaria. - Não podíamos ter feito estes quilómetros todos
para desejar-te um feliz aniversário e não trazermos um bolo. Sei que é só amanhã, mas não consegui resistir.
Callie sentiu o sorriso gelar-se-lhe, mas estendeu o braço para pegar na caixa.
- É sempre a altura certa para um pouco de açúcar.
Sentia a curiosidade e a especulação vindas da sala, onde estavam alguns dos membros da equipa.
- Ah, estes são a Dory, o Matt, o Bob. E lembram-se da Rosie.
- Claro. Muito prazer. - Vivian passava a mão pelo braço de Callie enquanto ia falando. - É óptimo voltar a ver-te, Rosie.
- Porque não levamos isto para a cozinha? É o único sítio onde temos cadeiras suficientes. - Virou-se e entregou a caixa com o bolo a Jake, antes de ele conseguir
escapar-se. - Vou fazer café.
- Não queremos dar trabalho. - Mas Elliot seguiu-os. - Pensámos que talvez quisesses ir jantar fora. Estamos num hotel, mesmo do outro lado do rio. Disseram-nos
que o restaurante é muito bom.
- Bem, eu...
- Eu posso fechar o bolo num sítio qualquer - propôs Jake.
- Ou quando voltares só vai restar a recordação dele.
- Como se fosses de confiança no que toca a coisas doces! Callie pegou no bolo e tomou uma decisão, num impulso. - Eu escondo-o. E tu vens connosco.
- Tenho de trabalhar - começou ele a dizer.
- Eu também. Mas não vou recusar uma refeição de graça, longe desta horda, e não te vou deixar com este bolo. Desço daqui a dez
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minutos - disse ela aos seus surpreendidos pais, apressando-se a sair dali com o bolo.
Jake tamborilou com os dedos na coxa, pensando em meia dúzia de maneiras para fazer Callie pagar por tê-lo posto naquela situação.
- Ouçam, eu vou recusar. Sei que querem estar algum tempo sozinhos com a Callie.
- Ela quer que venha connosco. - A incompreensão era tão visível na voz de Vivian, que Jake quase soltou uma gargalhada.
- Digam-lhe que eu fui para a escavação.
- Ela quer que venha connosco - repetiu Vivian. - Por isso, venha.
- Sr.a Dunbrook...
- Precisa de mudar de camisa. E de vestir um casaco. Uma gravata ficava bem - acrescentou ela -, mas não é obrigatório.
- Não tenho nenhuma. Quero dizer, aqui. Tenho gravatas, só que não... tenho aqui nenhuma - concluiu, sentindo-se um idiota.
- Uma camisa e um casaco servem perfeitamente. Vá mudar de roupa. Nós esperamos.
- Sim, senhora.
Elliot esperou que ficassem sozinhos para dar um beijo à esposa.
- Foi muito doce da tua parte.
- Não sei bem o que sinto em relação a tudo isto, e a ele, mas se ela quer que ele venha, ele vem. Não há mais nada a dizer. Ficou tão atrapalhado por causa da gravata.
Talvez eu até lhe perdoe por tê-la feito infeliz.
Jake não estava apenas atrapalhado. Estava completamente atarantado. Não sabia o que havia de dizer a estas pessoas, nem na melhor das circunstâncias. E as circunstâncias
estavam longe de ser as melhores.
Descobriu que a camisa precisava de ser passada a ferro. E não tinha o raio de um ferro à mão. E só tinha ali uma camisa e um casaco por causa de alguma entrevista
na televisão ou alguma visita à universidade.
Tentando recordar-se se a camisa tinha ido à lavandaria desde a última vez que a usara, cheirou-a. Muito bem, não cheirava mal. Ainda.
Provavelmente iria ficar todo transpirado antes de chegarem à porta.
Se Callie o colocara naquela situação para castigá-lo, ia pagá-las.
Vestiu a camisa, esperando que o casaco escondesse a maior parte dos vincos.
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Começou a arranjar-se mais devagar, pensando em sair dali apenas no último minuto. Descalçou as botas de trabalho e calçou uns Rockport ligeiramente mais apresentáveis.
Depois, passou a mão pela cara e lembrou-se de que havia vários dias que não fazia a barba.
Pegou no estojo de barbear e esgueirou-se até à casa de banho para tratar do assunto.
Um tipo não devia ter de vestir a porcaria de um casaco e fazer a barba para jantar com pessoas que iam olhar para ele como o ex-marido de quem havia que desconfiar.
Não devia ter de enfrentar o que estava condenado a ser uma noite dada a emoções.
Tinha trabalho para fazer e coisas em que pensar. E não precisava de nada daquilo.
Estava a passar a lâmina pelo creme de barbear quando ouviu bater à porta.
- O que é?
- É a Callie.
Abriu a porta com uma das mãos e depois puxou-a para dentro. -- Porque estás a fazer-me isto? Que foi que eu te fiz?
- Vamos jantar. - Desviou a cabeça para evitar que ele a sujasse de creme de barbear. - Tu gostas de comer.
- Tira-me disto.
Ela ergueu as sobrancelhas.
- Tira-te tu.
- A tua mãe não me deixa. Sentiu o coração mais quente.
- Não?
- Fez-me vir mudar de camisa.
- Essa camisa é bonita. Ele suspirou.
- Está toda amarrotada. E não tenho gravata.
- Não está assim muito amarrotada, e não precisas de gravata.
- Vestiste um vestido. - Atirou-lhe as palavras como uma acusação. Virou-se outra vez para o espelho e continuou a barbear-se, com ar de desagrado.
- Estás nervoso por ires jantar com os meus pais.
- Não estou nervoso. - Praguejou, quando fez um pequeno corte no queixo. - Não sei porque vou jantar com eles. Eles não me querem lá a meter o bedelho.
- Não acabaste de me dizer que a minha mãe não deixa que não vás?
418
Jake lançou-lhe um olhar fulminante.
- Não mistures as coisas.
Tão doce, pensou ela. Tanta doçura que ela ignorara.
- Estamos a tentar ir a algum lado juntos, Graystone?
- Pensei que tivéssemos chegado a algum lado. - Depois calou-se e enxaguou a lâmina. - Sim, estamos.
- Então, isto faz parte. E é uma parte que não posso voltar a ignorar.
- Está bem, está bem, eu vou, não vou? - Mas desviou os olhos do espelho e pousou-os nela, mirando-a de alto a baixo. - Porque tiveste de vestir um vestido?
Ela levantou as mãos e deu uma pequena volta, para mostrar como lhe caía o vestido justo e curto, de tecido preto.
- Não gostas?
- Talvez. O que tens por baixo?
- Se fores um bom menino e te portares bem, talvez possas ver por ti próprio, mais tarde.
Tentou não pensar nisso. Parecia-lhe indelicado pensar em tirar Callie do vestido curto, preto, enquanto estava sentado à mesa com os pais dela.
E a conversa, que girava apenas à volta da paternidade de Callie, começava a tornar-se impossível de prosseguir.
Falaram sobre a escavação. Um assunto que parecia o mais seguro. Embora nenhum deles tivesse falado nas mortes nem nos incêndios.
- Acho que a Callie nunca disse o que o levou a enveredar por este tipo de trabalho. - Elliot aprovou o vinho, que foi servido a todos.
- Ah... Estava interessado na evolução e na formação das culturas. - Jake ordenou a si próprio que não pegasse no copo e não bebesse o vinho de um trago, como se
fosse um medicamento. - O que leva as pessoas a criar as suas tradições, a construir as suas sociedades da forma...
E o homem não estava a pedir nenhuma palestra.
- Na verdade, começou quando eu era miúdo. O meu pai é parte apache, parte inglês, parte canadiano francês. A minha mãe tem uma mistura irlandesa, italiana, alemã
e francesa. É uma grande mistura. Como se chega a ela? Todas essas partes têm uma história a antecedê-las. E eu gosto de seguir pistas.
- E agora está a ajudar a Callie a seguir as dela.
419
O silêncio impôs-se por um momento. Sentiu a tensão de Vivian a seu lado, ao mesmo tempo que viu Callie pousar a sua mão na do pai, num gesto de gratidão.
- Sim. Ela não gosta de ajuda, por isso tenho de insistir.
- Ensinámo-la a ser independente, e ela levou essa aprendizagem muito a peito.
- Então, não foi vossa intenção ensinarem-na a ser teimosa, cabeça dura e obstinada?
Elliot apertou os lábios e depois bebeu um gole de vinho com um raio de humor a iluminar-lhe os olhos.
- Não, mas ela tem ideias próprias quanto a isso.
- Chamo a isso ser auto-suficiente, confiante e ter objectivos bem definidos. - Callie partiu um pedaço de pão e mordiscou-o. - Um homem que valha a pena não deve
ter problemas com isso.
Ele passou-lhe a manteiga.
- Ainda aqui estou, não estou?
Ela barrou um pedaço de pão e ofereceu-lho. -Já me vi livre de ti uma vez.
- Isso é o que tu pensas. - Virou-se para Elliot. - Estão a pensar visitar a escavação, enquanto estiverem por aqui?
- Sim, de facto. Amanhã, se for conveniente para ambos.
- Dêem-me licença um minuto. - Vivian afastou a cadeira da mesa e levantou-se, pousando a mão no ombro de Callie e apertando-o.
- Ah... eu vou consigo. O que foi? - sussurrou enquanto se afastavam da mesa. - Nunca percebi esta coisa de as mulheres irem à casa de banho em grupo.
- Deve haver alguma base antropológica para isso. Pergunta ao Jacob. - Na casa de banho, Vivian tirou da mala o seu pó compacto.
- Tens vinte e nove anos. És dona da tua vida. Mas, apesar de tudo isso, continuo a ser tua mãe.
- Claro que sim. - Preocupada, Callie aproximou-se e colou a sua cara à de Vivian. - Nada vai mudar isso.
- E como tua mãe, tenho o direito de meter o nariz nos teus assuntos. Tu e o Jacob reconciliaram-se?
- Ah! Bem, hummmm. Não sei se essa é uma expressão que vá aplicar-se alguma vez a mim e ao Jake. De certa forma.
- Tens a certeza de que é isto que queres, e não é apenas porque as tuas emoções andam em revolução?
- Ele sempre foi o que eu quis - limitou-se Callie a dizer.
- Não sei explicar porquê. Estragámos tudo, da primeira vez.
420
- Ainda estás apaixonada por ele?
- Ainda estou apaixonada por ele. Ele exaspera-me e faz-me feliz. Desafia-me e, desta vez, seja porque está a esforçar-se mais ou porque eu estou a dar-lhe espaço
para isso, conforta-me. Sei que estamos divorciados e que não o via há quase um ano. Sei as coisas que dissemos quando nos separámos, e naquela altura era aquilo
mesmo que sentia. Ou queria sentir. Mas amo-o. Acha que sou louca?
Vivian passou a mão pelo cabelo de Callie.
- E quem disse que o amor tem de ser ponderado? Callie soltou uma pequena gargalhada:
- Não sei.
- Nem sempre é, e nem sempre é confortável. Mas dá, quase sempre, muito trabalho.
- Não nos demos a muito trabalho, da primeira vez. Na verdade, nenhum de nós se dedicou muito a isso.
- O sexo era bom. - Vivian encostou-se ao lavatório, enquanto a surpresa se estampava no rosto de Callie. - Eu também tenho sabido bem o que é isso. Há uma grande
atracção física entre ti e o Jacob. Ele é bom na cama?
- É... é excelente.
- Isso é importante. - Vivian virou-se para o espelho e passou pó no nariz. - A paixão é importante e o sexo é uma forma de comunicação vital no casamento, para
além de ser um prazer. Mas igualmente importante, do meu ponto de vista, é ele estar lá fora, sentado com o teu pai. Veio connosco esta noite, e não queria vir.
Isso diz-me que ele está disposto a dar-se a algum trabalho. Certifica-te de que fazes a tua parte, e talvez consigam chegar a algum lado, os dois.
- Quem me dera... Quem me dera ter falado consigo sobre ele, antes. Sobre nós.
- Também eu, querida.
- Eu queria, queria que as coisas resultassem. Mas estraguei tudo.
- Eu sei que estragaste. - Pôs as mãos na cara de Callie. - Mas tenho a certeza de que ele estragou mais.
Callie sorriu.
- Adoro-a, mãe.
Callie aguardou que ele comentasse alguma coisa durante o regresso, mas acabou por perguntar:
- Então, o que achaste?
- De quê?
421
- Do jantar.
- Estava bom. Há meses que não comia costeletas de primeira.
- Não é a comida, anormal! Eles. Os meus pais. O Dr. e a Dr.a Dunbrook.
- Também são bons. Estão a aguentar-se bem. É preciso muita coragem para isso.
- Eles gostaram de ti.
- Não me detestaram. - Encolheu um pouco os ombros.
- Achei que iam detestar-me. E que íamos passar a refeição num ambiente frio, correcto e delicado. Ou que iam deitar veneno na minha comida, quando eu não estivesse
a ver.
- Eles gostaram de ti - repetiu ela. - E tu também te aguentaste muito bem. Por isso, obrigado.
- Fiquei a pensar numa coisa.
- Qual?
- Vais ter dois aniversários todos os anos? Em primeiro lugar, não gosto de ir às compras, e se é suposto eu aparecer com dois presentes, vai ser um sarilho.
- Ainda não vi nenhum.
- Vou já tratar disso. - Saiu da estrada principal e avançou aos solavancos pelo caminho estreito de gravilha. - A situação é a seguinte, querida: a cidade é pequena,
a escavação também. É mais que certo que os teus pais vão dar com os Cullen se ficarem mais do que uma noite nesta zona.
- Eu sei. Vou lidar com isso quanto tiver que lidar.
Saiu do carro e deteve-se um momento no ar fresco da noite.
- Disseram-me que o amor dá muito trabalho. Por isso, vamos trabalhar.
Ele pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios.
- Não costumavas fazer isso - disse-lhe ela. - Agora, fazes isso muitas vezes.
- Há muitas coisas que eu não costumava fazer. Espera um minuto. - Os seus dedos mergulharam no decote dela.
Ela deu uma pequena gargalhada:
- Ora aí está uma coisa que costumavas fazer.
Tirou qualquer coisa de dentro do corpo do vestido e pôs-lha diante dos olhos. Entre o polegar e o indicador de Jake balançava uma pulseira de ouro reluzente, que
reflectia o seu complexo desenho bizantino.
- Ora, como terá isto ido parar aí?
422
Ela conseguiu apenas articular:
- Uau!
- Feliz aniversário.
- É... é uma jóia. Tu nunca... nunca me deste uma jóia!
- Mas que grande mentira! Dei-te um anel de ouro, não dei?
- As alianças de casamento não contam. - Tirou-lhe a pulseira da mão e observou-a. O ouro era tão fluido que quase esperou vê-lo escorrer-lhe da mão. - É linda!
A sério. Credo, Jacob!
Encantado com a reacção dela, pegou na pulseira e pôs-lhe no pulso.
- Ouvi dizer que as mulheres actuais gostam de ornamentos. Fica-te bem, Cal.
Ela passou o dedo pelo ouro.
- É... Uau!
- Se eu soubesse que um pechisbeque te calava, há muito tempo que te teria enterrado numa série deles.
- Não consegues estragar isto com insultos. Adoro-a. Tomou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-o. Recuou um pouco, o suficiente para olhá-lo nos olhos, mergulhar
neles e ver-se neles.
E voltou a beijá-lo, deslizando para dentro dele, enquanto as mãos lhe revolviam os cabelos.
Depois, num suave ronronar, o beijo tornou-se mais profundo. Como o prazer. Suave, lento e doce, enquanto os braços dele a envolviam. Ficaram assim, de pé, ondulando
na noite, confundindo-se um com o outro.
Soltando um suspiro, ela colou o rosto no dele, observando a dança dos pirilampos à sua volta.
- Adoro a pulseira, de verdade.
- Tive essa impressão.
Voltou a pegar-lhe na mão e encaminharam-se para casa. Quando abriu a porta, ouviu o som da televisão.
- Parece que isto aqui está cheio. Vamos directamente para cima.
- O teu quarto é cá em baixo.
- Portei-me bem - lembrou-lhe ele, empurrando-a rapidamente pelos degraus acima. - Agora, quero saber o que está debaixo do vestido.
- Bem, o prometido é devido. - Entrou no quarto e depois parou, perplexa. - De onde diabo veio isto?
A cama estava no meio do quarto. Era antiga, a cabeceira de ferro estava pintada de prateado. Havia lençóis novos em cima do colchão e um bilhete escrito à mão,
em cima da almofada.
423
FELIZ ANIVERSÁRIO, CALLIE.
- O colchão veio da loja de descontos, ao lado do centro comercial. A cabeceira e o estrado, de um leilão de caridade. A equipa fez uma vaquinha.
- Uau! - Encantada, apressou-se a sentar-se na beira da cama e a balançar as pernas. - Isto é uma maravilha! Mesmo uma maravilha! Devia ir lá abaixo agradecer a
toda a gente.
A sorrir, Jake fechou a porta atrás de si e deu uma volta na fechadura.
- Agradece-me a mim, primeiro.
424
Vinte e Seis

Talvez fosse a cama nova, ou o sexo. Talvez fosse o facto de sentir que ultrapassara vários níveis no dia do seu aniversário. O certo é que a disposição de Callie
era forte e animada.
Sentia-se tão próxima da sua equipa - e tão culpada, quando se lembrava de terem andado a revistar as mochilas - que deu a toda a gente bolo de aniversário ao pequeno-almoço.
Meteu chá gelado no termo, lambeu os dedos cheios de creme do bolo e sentiu-se feliz por ver Leo entrar na cozinha.
- Feliz aniversário. - Pousou um embrulho na bancada. - E quero deixar bem claro que não tive nada a ver com isso.
Callie empurrou um pouco a caixa com o dedo indicador:
- Não está vivo, pois não?
- Não posso ser responsabilizado.
Callie deitou o chá no termo e depois levou a caixa até à mesa, para abri-la. O papel de embrulho estava coberto de balões e o laço era enorme e cor-de-rosa. Depois
de aberto, procurou entre bolinhas de esferovite e tirou um prato pouco fundo, quadrado, pintado de azul, verde e amarelo.
- Uau! É um... quê?
-Já disse que não tenho nada que ver com isto - lembrou-lhe Leo.
- Cinzeiro? - aventurou-se Rosie.
- É demasiado grande. - Bob olhou por cima do ombro de Rosie, estudando o objecto. - Uma tigela para a sopa?
- Não é suficientemente fundo. - Dory pressionou os lábios um contra o outro. - Um prato de serviço, talvez.
425
- Para pôr pot-pourrí, ou qualquer coisa assim. - Fran pegou no seu termo, enquanto toda a gente se apinhava em volta da mesa, para ver.
- Um objecto de decoração, sem utilidade nenhuma - foi o veredicto de Matt.
- É arte - corrigiu Jake. - Por isso não precisa de utilidade.
- Lá estás tu. - Callie virou o objecto ao contrário, para ver a base. - Olha, ela assinou. Tenho um original da Clara Greenbaum. Isso acrescenta-lhe peso. Além
disso, tem uma forma muito... interessante, e uma pintura muito interessante, também. Obrigado, Leo.
- Não sou responsável.
- Vou telefonar à artista, a agradecer-lhe. - Callie colocou o prato no meio da mesa e recuou. Era, muito possivelmente, a coisa mais feia que alguma vez vira. -
Vêem? Tem um ar... artístico.
- Potpourri. - Rosie deu-lhe uma palmada no ombro. - Montanhas de potpourrí.
- Bem, já chega desta frivolidade festiva. - Foi buscar gelo para meter no termo e fechá-lo. - Vamos ao trabalho!
- O que lhe vais chamar quando lhe agradeceres? - perguntou Jake enquanto se dirigiam para o carro.
- Um presente.
- Bem pensado.
Suzanne limpou as mãos nervosas às pernas das calças enquanto se dirigia para a porta. Sentia um batimento irregular abaixo do coração e outro na boca do estômago.
E havia uma parte dela que queria manter aquela porta firmemente fechada. Esta casa era dela. E a mulher que estava do lado de fora era parcialmente responsável
pelos estragos havidos nela.
Mas fez-se forte, endireitou os ombros, levantou o queixo e abriu a porta a Vivian Dunbrook.
O seu primeiro pensamento foi que a mulher era absolutamente encantadora, tão perfeitamente metida num fato cinzento de bom corte, realçado por jóias de extremo
bom gosto e por sapatos fechados, de salto baixo.
Era uma reacção automática por parte de uma mulher, mas isso não impediu Suzanne de recordar-se que mudara duas vezes de roupa depois de Vivian lhe ter telefonado.
Naquele momento, desejou estar a usar o seu fato azul-marinho em vez das calças pretas e da blusa branca, mais informais.
A moda e o seu poder de equilíbrio!
426
- Sr.a Cullen. - Os dedos de Vivian agarraram-se mais à asa da mala que levava. - Muito obrigado por receber-me.
- Entre, por favor.
- Este sítio é tão bonito! - Vivian entrou. Se estava nervosa, isso não transparecia na sua voz. - Os seus jardins são lindos.
- É o meu passatempo. - De costas direitas, compostura no rosto, Suzanne conduziu Vivian à sala de estar. - Por favor, sente-se. Quer tomar alguma coisa?
- Não, por favor não se incomode. - Vivian escolheu uma cadeira e fez um esforço para se sentar devagar e não ceder de repente à fraqueza das pernas, que tremiam.
- Sei que deve estar muito ocupada. Uma mulher da sua posição.
- Da minha posição?
- Com um negócio como o seu. Tão bem sucedido. Gostamos muito dos seus produtos. Particularmente o meu marido. O Elliot tem uma fraqueza por doces. Ele também gostaria
de conhecê-la, e ao seu marido, claro... Mas primeiro eu queria... Esperava que pudéssemos conversar. Só a senhora e eu.
Ela também podia ser assim, calma e fria, disse Suzanne a si própria. Igualmente elegante e delicada. Sentou-se, cruzou as pernas e sorriu.
- Está há muito tempo na zona?
- Há apenas um dia ou dois. Ele queria ver o projecto. É raro a Callie ter uma escavação tão próximo de nós... Oh, isto é estranho.
- Estranho? - repetiu Suzanne.
- Pensei que sabia o que dizer, como dizê-lo. Ensaiei o que lhe diria. Fechei-me na casa de banho durante uma hora, esta manhã, e ensaiei diante do espelho. Como
se pode fazer para uma peça. Mas...
A emoção de Vivian embargou-se de emoção.
- Mas agora, não sei o que hei-de dizer-lhe, nem como dizer-lho. Lamento. De que serve dizer-lhe que lamento? Não vai mudar nada, não vai devolver-lhe o que lhe
foi tirado. E como posso lamentar, lamentar completamente? Como posso lamentar ter a Callie? Não é possível lamentar isso, pedir desculpa por isso. Não consigo imaginar
aquilo por que passou.
- Não, não consegue. Sempre que a teve ao colo, era eu que devia tê-la ao colo. Quando a levou à escola pela primeira vez e a viu afastar-se de si, era eu que devia
sentir-me tão triste e tão orgulhosa. Era eu que devia ter-lhe contado histórias antes de dormir e passado a noite preocupada quando ela esteve doente. Eu devia
tê-la castigado
427
quando ela desobedeceu, e devia tê-la ajudado a fazer os trabalhos de casa. Eu devia ter chorado um pouco quando ela saiu com o primeiro namorado. E devia ter-me
sido permitido ter esse sentimento de perda quando ela foi para a faculdade. Aquele espacinho vazio, cá dentro.
Suzanne levou a mão fechada ao coração.
- Aquele vazio feito de orgulho, mas também de pequenez e solidão. Mas tudo o que tive foi um vazio. Foi apenas isso que tive.
Ficaram sentadas, tensas, na bonita sala de estar, com o rio das suas amarguras, agitado, entre ambas.
- Não posso devolver-lhe essas coisas. - Vivian manteve a cabeça erguida, os ombros firmes e direitos. - E no meu coração sei que se tivéssemos sabido disto há dez
anos, ou vinte, eu teria feito tudo para que vocês não soubessem. Para ficar com ela, custasse o que custasse. Nem consigo desejar que as coisas fossem diferentes.
Não sei como.
- Trouxe-a dentro de mim durante nove meses. Segurei-a nos braços momentos depois de ela ter respirado sozinha. - Suzanne inclinou-se, como se se preparasse para
dar um salto. - Eu dei-lhe vida.
- Sim. E isso é uma coisa que eu nunca terei. Nunca terei esse laço com ela, e saberei sempre que a senhora o tem. E ela também, e isso será sempre importante para
ela. A senhora será sempre importante para ela. Uma parte da filha que foi sempre minha é sua, agora. Nunca voltará a ser minha completamente.
Fez uma pausa, tentando manter a compostura.
- Não posso compreender como se sente, Sr.a Cullen. E a senhora não consegue compreender como me sinto. E talvez num canto egoísta de cada uma nós não queiramos
compreender. Mas dói-me que nenhuma de nós possa saber o que Callie está a sentir.
- Não. - O coração estremeceu-lhe no peito. - Não podemos. Tudo o que podemos fazer é tentar tornar tudo menos difícil.
Tinha de haver mais do que raiva, ali, recordou Suzanne a si própria. Tinha de haver mais, pela filha que havia entre elas:
- Não quero vê-la magoada. Nem por mim, nem por si, nem por quem quer que seja responsável por isto. E tenho medo por ela, medo de até onde alguém possa ir para
impedi-la de descobrir aquilo que ela procura.
- Ela não vai parar. Pensei em pedir-lhe que fosse comigo. Se ambas lhe pedíssemos para ela desistir... Até falei com o Elliot sobre isso. Mas ela não vai parar,
e só iríamos perturbá-la se lhe pedíssemos uma coisa que ela não pode dar.
428
- O meu filho está em Boston. A tentar ajudar.
- Fizemos perguntas entre a comunidade médica. Não posso acreditar. Henry... o meu próprio médico. - Levou a mão à garganta e torceu o fio de ouro que trazia. -
Quando ela encontrar as respostas, e ela vai encontrá-las, vai haver alguém que vai pagar, e muito caro. Entretanto, ela não está sozinha. Tem a família, os amigos.
Jacob.
- É difícil dizer em que grupo é que ele se enquadra.
Pela primeira vez desde que entrara na casa, Vivian sorriu, e fê-lo com sinceridade.
- Espero que desta vez os dois consigam perceber. E acertar as coisas. Eu... tenho de ir, mas gostava de lhe dar isto.
Pegou na mala que pousara ao lado da cadeira.
- Estive a ver as fotografias que temos nos nossos álbuns. Fiz cópias daquilo que achei que a senhora... que a senhora gostaria de ter. Eu... escrevi atrás as datas
e as ocasiões de que me lembrei.
Levantou-se, pegou no envelope com as fotografias e deu-o a Suzanne. Sem desviar os olhos do envelope, Suzanne pôs-se lentamente de pé. Havia um punho a apertar-lhe
o coração, com tanta força que ela achou que não ia conseguir continuar a respirar.
- Quis odiá-la - declarou ela. - Quis odiá-la e quis que a senhora fosse uma mulher horrível. Dizia a mim mesma que isso estava errado. Como podia querer que a minha
filha fosse criada por uma mulher horrível, odiosa? Mas, mesmo assim, queria.
- Eu sei. Eu quis odiá-la. Não queria que tivesse esta linda casa, nem ouvi-la falar dela com tanto amor. Queria que fosse rude e fria. E gorda.
Suzanne deixou escapar uma ligeira gargalhada.
- Meu Deus! Nem acredito como isto me faz sentir muito melhor.
- Permitiu a si própria olhar Vivian nos olhos. Permitiu a si própria ver. - Não sei o que vamos fazer.
- Eu também não.
- Mas neste momento, gostava de ver as fotografias. Porque não as levamos para a cozinha? Vou fazer café.
- Isso seria absolutamente maravilhoso.
Enquanto Suzanne e Vivian passavam duas emotivas horas a rever a história de Callie em imagens, bebendo café e comendo bolo, Doug voltava a sentar-se no gabinete
de Roseanne Yardley.
- Não me disse que é filho de Suzanne Cullen.
- Isso faz alguma diferença?
429
- Admiro uma mulher que obtém sucesso por si própria. E há uns anos estive numa conferência sobre saúde e segurança das crianças. Ela era uma das oradoras. Uma excelente
oradora, que falou eloquentemente da sua experiência pessoal. Nessa altura, pensei que ela era uma mulher de muita coragem.
- Consegui começar a ver isso por mim próprio.
- Passei a maior parte da minha vida preocupada com a saúde e o bem-estar das crianças. E sempre me considerei inteligente. É difícil aceitar que possa ter estado
de alguma forma envolvida com o homem que se servia delas para seu proveito.
- Marcus Carlyle organizou o rapto e a venda da minha irmã. Sem dúvida, terá feito o mesmo a diversas outras. E, muito provavelmente, usou-a, Dr.a Yardley. Uma referência
casual a uma paciente. Pais que tivessem perdido um filho e não conseguiam conceber outro. Familiares de pais que não tinham filhos. Um ou mais dos seus pacientes
pode muito bem ter sido um bebé roubado noutra parte do país.
- Passei algumas horas difíceis, a pensar em todas essas coisas. Não vai conseguir falar com Lorraine - disse ela, passado um momento. - Richard vai impedi-lo. E,
para ser franca, ela não é particularmente forte. Nunca foi. Nem nunca mostrou qualquer interesse pelo trabalho de Marcus. Mas... - Fez deslizar um papel em cima
da secretária, na direcção dele. - Este pode ser um contacto melhor, mais útil. Tanto quanto sei, é o endereço da secretária de Marcus. Conheço pessoas, que conhecem
pessoas, que conheceram outras pessoas - disse ela, com um sorriso amargo. - Fiz uns telefonemas. Não posso prometer-lhe que esteja correcto, ou actualizado.
Ele olhou para o papel e verificou que Dorothy McLain Spencer vivia supostamente em Charlotte.
- Obrigado.
- Se a encontrar, e às respostas que procura, gostaria que me dissesse. - Levantou-se. - Lembro-me de uma coisa que Marcus me disse, uma noite, quando estávamos
a falar do nosso trabalho e do que ele significava para nós. Disse que ajudar a dar a uma criança um lar estável e cheio de amor era a parte mais compensadora do
seu trabalho. Acreditei nele. E juraria que ele também acreditou.
Lana deu por si a sorrir no momento em que ouviu a voz de Doug ao telefone. Deliberadamente, fez soar a sua distraída e sem fôlego.
- Ah... és tu. Digger - disse ela de modo afectado -, agora não.
430
- Ei!
- Desculpa dizer-te assim, mas o Digger e eu estamos loucamente apaixonados e vamos fugir para Bora Bora. A não ser que tenhas uma proposta melhor.
- Provavelmente, posso oferecer um fim-de-semana no Holiday Inn.
- Vendido. Onde estás?
- A caminho do aeroporto. Tenho uma pista para chegar à secretária do Carlyle, por isso vou a Charlotte, verificar. Com as ligações, vou demorar a porcaria do dia
inteiro a chegar lá. Quis que soubesses para onde vou. Tens papel e lápis?
- Sou advogada.
- Pois. - Deu-lhe o nome do hotel onde tinha quarto marcado.
- Diz à minha família, está bem?
- O mais depressa possível.
- Alguma coisa nova que eu deva saber?
- Vou poder mudar-me para o escritório daqui a uma semana. Duas, no máximo. Estou muito animada.
- Não há mais pistas sobre o fogo posto?
- Sabem como, mas não sabem quem. O mesmo para a roulote, até agora. Sentimos a tua falta, por aqui.
- É bom saber isso. Telefono depois de chegar ao hotel. Quando voltar, quero o Digger daí para fora.
- Ai, sim?
- Ele sai, eu entro. Não negociável.
- Uma frase desafiadora, para uma advogada. Volta depressa e depois falamos sobre isso.
Ainda sorria quando desligou. Depois, voltou a pegar no telefone outra vez, para pôr em prática o plano que elaborara mentalmente.
- Está na altura de um intervalo, chefe.
Com o rosto quase metido na terra, Callie soprou cuidadosamente uma pequena saliência de pedra.
- Tenho aqui qualquer coisa. Rosie ergueu o sobrolho.
- Tens uma coisa todos os dias, com a tua linda pilha de ossos. Fazes com que nós pareçamos todos uns calões.
- Isto é pedra.
- E não vai a lado nenhum. Pausa para o almoço.
- Não tenho fome.
431
Rosie sentou-se para abrir o termo de Callie.
- Esta coisa ainda está cheia. Queres uma lição sobre desidratação?
- Tenho bebido água. Acho que isto não é uma ferramenta, Rosie. Nem uma arma.
- Parece trabalho para um geólogo. - Como já tinha servido o chá, Rosie bebeu-o antes de saltar para o buraco onde estava Callie e espreitar. - Foi trabalhada, não
há dúvida. - Passou um dedo pela ponta polida que Callie desenterrara. - Bastante trabalhada. Parece riólito. Típico do que temos vindo a encontrar.
- A sensação ao tacto é diferente.
- Pois é. - Rosie sentou-se nos calcanhares, enquanto Callie trabalhava com a escova e o raspador. - Queres fotografias?
Callie resmungou.
- Não incomodes a Dory. Pega tu na máquina fotográfica. Há aqui uma pequena saliência. Não parece natural.
Continuou a trabalhar, enquanto Rosie pegava numa das máquinas fotográficas.
- Chegou mais um grupo de pessoas. Isto tem parecido a Disneylândia durante toda a manhã. Desvia-te para trás, estás a fazer sombra.
Callie esperou que Rosie tirasse as fotografias e depois pegou na pá de pedreiro para explorar cuidadosamente a terra.
- Estou a sentir os limites. É demasiado pequeno para um machado de mão e demasiado grande para uma ponta de lança. E também não tem a forma certa para nenhum deles.
Escovou a terra solta e voltou a raspar.
- Queres metade desta sandes?
- Ainda não.
- Estou a beber o teu chá. Não vou buscar o meu Gatorade. Com a sanduíche e a bebida, voltou a sentar-se, observando a forma que se revelava. - Sabes o que isso
me parece?
- Sei o que está a começar a parecer-me. - Começava a sentir a adrenalina percorrer-lhe a coluna vertebral, à medida que ia trabalhando, mas as mãos mantinham-se
firmes e seguras. - Meu Deus, Rosie! É dia de arte!
- É uma vaca! É a porra de uma vaca de pedra!
Callie sorriu, olhando para o corpo gordo e para os detalhes faciais gravados na pedra.
432
- Um objecto de decoração. O que terá o nosso antropólogo a dizer sobre a necessidade de objectos meramente decorativos por parte dos antigos? Não é doce?
- Uma autêntica doçura. - Rosie esfregou os olhos, um pouco enevoados. - Uhh! Sol a mais! Queres mais fotografias?
- Sim. Vamos usar a pá de pedreiro para a escala. - Pegou, ela própria, na máquina fotográfica e fez os enquadramentos. Ia pegar no seu bloco de anotações quando
se apercebeu de que Rosie não se mexera.
- Ei, estás bem?
- Um bocado tonta. Estranha. Acho que é melhor... - Mas cambaleou e quase caiu desamparada quando se pôs de pé. Callie mal teve tempo de agarrá-la antes de Rosie
cair para a frente.
- Rosie? Meu Deus! Ei! Alguém que me ajude! - Uniu os braços e sustentou o peso até os outros aparecerem a correr.
- O que foi? - Leo pulou para dentro do buraco. - Que aconteceu?
- Não sei. Ela desmaiou. Vamos levá-la para fora daqui. Está fria
- disse ela a Jake quando ele saltou também lá para dentro.
- Deixa que eu pego-lhe. - Pegou em Rosie ao colo. - Dig, Matt!
Levantou-a, sessenta quilos de peso morto. A equipa e os visitantes aproximaram-se, tentando ajudar, e depois pousaram-na no chão.
- Toda a gente para trás. Sou enfermeira. - Uma mulher avançou. - Que aconteceu?
- Disse que estava a sentir-se tonta e depois desmaiou.
- Alguns problemas de saúde? - perguntou a mulher, enquanto verificava o pulso de Rosie.
- Nada, que eu saiba. A Rosie é saudável como um cavalo. Continuando a verificar o pulso com uma mão, a enfermeira levantou uma das pálpebras de Rosie para ver as
pupilas.
- Chamem uma ambulância.
Callie irrompeu pelas portas da urgência do hospital, logo atrás da maca. A única coisa de que tinha a certeza naquele momento era que Rosie não desmaiara simplesmente.
- O que é? O que se passa com ela?
A enfermeira que viera na ambulância desde a escavação agarrou Callie pelo braço.
- Vamos deixá-los descobrir. Temos que dar o máximo de informação possível sobre ela.
433
- Rosie... Rose Jordan. Ah, tem trinta e quatro anos. Talvez trinta e cinco. Não tem alergias nem outros problemas, que eu saiba. Estava bem. Bem num minuto e inconsciente
no minuto seguinte. Porque não recuperou os sentidos?
- Tomou alguma droga, ou algum medicamento?
-- Não, não. Já lhe disse que ela não estava doente. E não toma drogas.
- Espere aqui. Virá alguém falar consigo assim que for possível. Jake entrou a correr, atrás dela.
- O que é que eles disseram?
- Não me dizem nada. Levaram-na não sei para onde. Estão a fazer-me um monte de perguntas, mas não me dizem nada.
- Telefona ao teu pai.
- O quê?
- Ele é médico. A ele dizem-lhe coisas que talvez não nos digam a nós.
- Meu Deus, devia logo ter pensado nisso. Nem consigo pensar
- acrescentou, enquanto tirava o telemóvel da mala. Saiu da sala de urgências, respirou devagar e procurou manter-se serena enquanto marcava o número do telemóvel
do pai.
- Ele vem a caminho - disse a Jake. - Vem imediatamente. Agarrou a mão de Jake quando viu a enfermeira aproximar-se.
- Vamos sentar-nos.
- Meu Deus. Oh, meu Deus!
- Estão a tratar dela. Precisam de ajudar-nos. Precisam de dizer-me que tipo de droga é que ela tomou. Quanto mais depressa souberem isso, mais depressa poderão
tratá-la.
- Ela não tomou droga nenhuma. Ela não toma drogas. Há anos que a conheço e nunca a vi fumar nem sequer um charro. Ela está limpa. Jake?
- Não usa drogas - confirmou ele. - Estava a trabalhar a três metros do sítio onde ela esteve durante quase toda a manhã. Só saiu da zona à hora do almoço. E foi
directa ao sector da Callie.
- Não tomou nada. Comeu metade de uma sandes e bebeu uns copos de chá gelado. Eu estava a escavar. Pedi-lhe que tirasse umas fotografias. Depois, ela disse qualquer
coisa sobre apanhar demasiado sol e estar tonta. - Inclinou-se para a frente e agarrou o pulso da enfermeira.
- Olhe para mim. Ouça-me. Se ela tivesse tomado alguma coisa, eu dizia-lhe. Ela é uma das minhas melhores amigas. Diga-me como é que ela está.
434
- Estão a tratar dela. Os sintomas indicam uma overdose de drogas.
- Isso não é possível! - Callie olhou para Jake. - Não é possível! Tem que haver um engano qualquer. Algum... - Sentindo uma dor no estômago, estendeu a mão para
se segurar a Jake. - Foi o meu chá. Ela bebeu o meu chá.
- Havia alguma coisa no chá? - perguntou a enfermeira.
- Eu não pus nada lá dentro. Mas...
- Alguém deve ter posto - concluiu Jake. Pegou no seu telemóvel. - Vou chamar a polícia.
Estava sentada no passeio, com a cabeça entre os joelhos. Tivera necessidade de fugir dos cheiros a doença, dos sons de vozes e dos telefones. Da visão das cadeiras
cor de laranja da sala de espera. Daquela caixa opressiva que continha tanta dor e tanto medo.
Não olhou para cima quando o pai se sentou ao lado dela. Sentiu-o, o cheiro, o movimento, e encostou o corpo ao dele.
- Ela está morta, não está?
- Não. Não, querida. Conseguiram estabilizá-la. Está muito fraca, mas estável.
- Vai ficar bem?
- É jovem, forte e saudável. A rapidez do tratamento foi fundamental. Ingeriu uma dose perigosa de Seconal.
- Seconal? Podia tê-la matado?
- Possivelmente. Não é certo, mas possivelmente.
- Tinha que estar no chá. É a única resposta lógica.
- Quero que venhas connosco, Callie.
- Não posso. - Pôs-se de pé. - Não me peça isso.
- Porquê? - Zangado, agora, levantou-se e foi atrás dela, agarrando-a pelo braço. - Isto não vale a tua vida. Podias ter sido tu. Tens menos cinco quilos do que
a tua amiga. Talvez sete. Podias ter bebido aquele chá. Podias estar a trabalhar sozinha e entrado em coma sem ninguém ter dado por isso. A dosagem que ela tomou
podia matar-te.
-Já respondeu à sua pergunta. Já comecei, pai. Não posso parar. Não ia ser mais seguro em Filadélfia. Neste momento, não. Desenterrámos demasiadas pistas, e não
podemos voltar a enterrá-las. Só estarei segura quando tudo estiver desenterrado. Receio bem que nenhum de nós esteja seguro neste momento.
- Deixa a polícia tratar disso.
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- Não vou meter-me no caminho da polícia, prometo-lhe. O Hewitt está a chamar o FBI e concordo plenamente com isso. Mas também não vou ficar quieta. Quem quer que
esteja a fazer isto, vai descobrir que não sou uma vítima. - Viu Jake sair da sala de urgências e o seu olhar encontrou o dele. - E não vou desistir.
O Sol estava quase a pôr-se quando ela e Jake estavam no local das escavações, agora quase deserto.
- O Leo há-de querer encerrar isto. Pelo menos temporariamente.
- E nós vamos demovê-lo disso - disse Callie. - Vamos continuar. E quando a Rosie estiver de pé outra vez, vai voltar ao trabalho.
- Podes conseguir convencer o Leo, mas quantas pessoas vais convencer a ficar na escavação?
- Se ficarmos só eu e tu, ficamos só eu e tu.
- E o Digger.
- Sim, e o Digger - concordou ela. - Ninguém me vai escorraçar daqui. Não vou deixar que quem quer que seja responsável por isto escolha a hora e o local para vir
atrás de mim. Outra vez, não.
Tinha um ar pálido e exausto, à luz suave do crepúsculo, pensou ele. E lembrou-se dela, ao luar, em cima dele, na cama. Da forma como o rosto dela reluzia de alegria
e prazer. Naquele momento não existira mais nada a não ser eles.
E enquanto se entregavam um ao outro, enquanto mergulhavam um no outro, alguém - próximo - estava a planear fazer-lhe mal.
- Foi alguém da equipa. - Disse-o sem emoção, com a raiva enterrada a uma profundidade suficiente para não se ver.
- A escavação estava a abarrotar de gente, hoje. Habitantes da cidade, imprensa, alunos da faculdade. - Depois, suspirou. - Sim, foi um dos nossos. Eu tinha a porcaria
do termo em cima da bancada da cozinha, com a tampa aberta. Virei-lhe as costas. O Leo entrou com o presente. Levei-o até à mesa para abri-lo. Voltei à bancada.
Andávamos todos por ali. Toda a gente sabe que aquele é o meu termo e que trabalho quase sempre sozinha, pelo menos até à hora de almoço. É a minha rotina. Quem
fez isto conhece a minha rotina.
- Não bebeste chá esta manhã.
- Não. A garrafa de água estava mais à mão. A Rosie... - Calou-se, confusa, quando ele lhe virou as costas e se afastou. Quando ele estava de pé junto à secção dela,
a olhar para baixo, ela aproximou-se e pousou-lhe uma mão nas costas.
Ele virou-se de repente, agarrou-a e segurou-a com tanta força que ela pensou que lhe fosse partir as costelas.
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- Ei! Estás a tremer.
- Cala-te! - A voz dele soou abafada pelo cabelo e depois pela boca dela. - Está calada!
- Está bem, agora sou eu que estou a tremer, acho que preciso de me sentar.
- Não. Espera aí, raios!
- Espero. - Apertou a mão em volta do seu próprio pulso.
- Começo a pensar que talvez me ames mesmo.
- Podias ter desmaiado,, ali. Quem sabe quanto tempo passaria até um de nós reparar?
- Não desmaiei. Não aconteceu. E a Rosie está no hospital por causa disso.
- Vamos esquadrinhar a equipa. Um por um. Não só vamos continuar com o projecto, como vamos manter a equipa intacta até descobrirmos o responsável.
- Como mantemos a equipa intacta?
- Vamos mentir. Vamos usar a maldição da múmia. Fazer correr o rumor. Uns labregos da cidade querem vingar-se de nós por termos estragado o empreendimento, e têm
estado a sabotar o projecto. Fazemo-los acreditar que acreditamos nisso e convencemo-los de que temos que manter-nos unidos.
- Uma causa?
- Em parte, e em parte também pela ciência e pela segurança pessoal. Somos todos uma grande família feliz. Enquanto quem quer que fez isto pensa que estamos a apostar
nesse sentido, apertamos o cerco.
- Podemos eliminar o Bob. Estava na equipa antes de eu saber dos Cullen.
Jake abanou a cabeça. Não iam correr riscos.
- Podemos pô-lo numa lista secundária. Não eliminamos ninguém até termos provas irrefutáveis. Desta vez, vamos trabalhar com base no "culpado até prova em contrário".
Passou os nós dos dedos pelo rosto dela. - Ninguém tenta envenenar a minha mulher.
- Ex-mulher. Precisamos de informar o Leo sobre isto.
- Vamos fazer uma reunião à porta fechada, em casa. Vamos tornar tudo muito óbvio e oficial.
Leo argumentou, barafustou, praguejou e acabou por ceder ao duplo ataque combinado.
- Seja como for, a polícia ou o Estado vão obrigar-nos a fechar.
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- Até lá, ficamos. Leo olhou para Callie:
- Achas mesmo que consegues convencer os membros da equipa, um dos quais achas que é um assassino, a continuar a escavar?
- Não tenho dúvidas.
Leo tirou os óculos e apertou a cana do nariz.
- Vou alinhar contigo, convosco. Mas há condições.
- Não gosto de condições. E tu? - perguntou ela a Jake.
- Odeio-as.
- Pois vão ter de viver com esta, ou vou ter de ir ali dizer àqueles miúdos para irem para casa. Miúdos - repetiu.
- Está bem, está bem - resmungou Callie.
- As condições são que vou chamar mais uns homens. Homens que conheço e em quem confio. Estarão totalmente informados da situação. Vão trabalhar, mas a sua principal
tarefa será observar. Vou demorar um ou dois dias a organizar isso.
- É uma ideia agradável - concordou Callie.
- Também quero falar com as autoridades sobre a possibilidade de um agente da polícia se juntar à equipa. Disfarçado.
- Vá lá, Leo.
- Estas são as condições. - Leo pôs-se de pé. - De acordo? Concordaram e chamaram o resto da equipa para uma reunião à mesa da cozinha. Callie distribuiu cerveja,
enquanto Leo começava a explicar tudo, num discurso firme.
- Mas a polícia não quis dizer-nos nada. - Nervosa, Frannie olhou para rosto após rosto, não se detendo em nenhum durante mais de um segundo. - Só fizeram uma série
de perguntas. Como se um de nós tivesse posto a Rosie doente de propósito.
- Achamos que alguém pôs. - Perante a afirmação de Callie, fez-se silêncio absoluto. - Deixámos muita gente sem trabalho
- prosseguiu ela. - E algumas dessas pessoas estão mesmo chateadas por causa disso. Não compreendem o que estamos a fazer aqui. Mais: estão-se nas tintas. Alguém
incendiou o escritório de Lana Campbell. Porquê? - Esperou um pouco e, tal como Frannie fizera, observou os rostos. - Porque ela é advogada da Sociedade de Preservação
e largamente responsável pela nossa presença aqui. Alguém incendiou a roulote do Digger e mandou algum do nosso equipamento pelos ares, alguns dos nossos registos.
- O Bill está morto - disse Bob, em voz baixa.
438
- Talvez tenha sido um acidente, talvez não. -Jake observou a sua cerveja, atento a qualquer movimento, a qualquer respiração à sua volta. - Talvez uma das pessoas
que andamos a chatear lhe tenha feito mal, mais mal do que tinha pensado em fazer-lhe. Mas isso fez as coisas mudarem de figura. E veio juntar-se à história da maldição
sobre quem viola sepulturas. Acontecem umas coisas horríveis, e começam a dizer que o projecto está amaldiçoado.
- Talvez esteja. - Dory pressionou os lábios um contra o outro.
- Sei o que isto parece, mas a verdade é que estão a acontecer coisas horríveis. Não param de acontecer. E agora a Rosie...
- Os espíritos não deitam barbitúricos em termos de chá gelado.
- Callie cruzou os braços. - As pessoas, sim. E isso significa que vamos ter de manter à distância todas as pessoas estranhas à escavação. Acabaram-se as visitas,
as aulas ao ar livre, mais nenhum visitante vai passar a vedação. Vamos manter-nos juntos. Vamos cuidar uns dos outros, zelar pela segurança uns dos outros. É isso
que faz uma equipa.
- Temos um trabalho importante a fazer - afirmou Jake. - Vamos mostrar a estes idiotas locais que não conseguem correr connosco. O projecto depende de cada um de
nós. Por isso...
Jake estendeu o braço e pousou a mão em cima da mesa.
Callie pôs a dela sobre a dele. Um a um, os outros foram sobrepondo as mãos, até todas estarem juntas.
Callie voltou a observar os rostos. E sabia que estava de mãos dadas com um assassino.
439
Vinte e Sete

A chamada da recepção, a anunciar a entrega de uma encomenda de Lana Campbell interrompeu Doug enquanto pensava na melhor maneira de abordar a secretária de Marcus
Carlyle. Não sabia porque lhe enviaria Lana uma encomenda, nem porque um empregado do hotel não podia levá-la lá acima, mas calçou um par de sapatos, pegou na chave
do quarto e desceu para ir buscá-la.
E lá estava ela. Absolutamente perfeita, todos os fios do maravilhoso cabelo no seu lugar. Doug sabia que sorria como um idiota enquanto atravessava o pequeno lobby,
arrebatava Lana no ar e tomava aquela boca bonita na sua.
- Mas que bela encomenda. - Pô-la no chão, mas não a largou.
- Estava com esperança de que gostasses.
- Onde está o Ty?
Ela pôs-lhe as mãos nas faces e beijou-o.
- Dizes exactamente as coisas certas nas horas certas. Foi passar uns dias com os avós, em Baltimore. Está radiante. Porque não vamos até ao teu quarto? Tenho muito
para te contar.
- Claro. - Olhou para os pés dela, para o sítio onde ela pousara uma mala de viagem grande, uma pequena, com rodas, e a mala do computador portátil. Trazia também
uma mala de mão do tamanho de Idaho. - Isto tudo? Quanto tempo estás a pensar ficar?
- Parece-me que essa não é a coisa certa para dizeres. - Passou por ele e carregou no botão do elevador.
- E se eu disser que estou mesmo contente por ver-te?
- Melhor.
Doug meteu as malas dela no elevador e carregou no botão do andar pretendido.
441
- Mas também estou a perguntar-me o que estás a fazer aqui.
- Aceitável. Primeiro, queria o Ty bem longe, neste momento, e pensei que o Digger seria mais útil à Callie e ao Jake do que a mim. Também senti que talvez pudesse
dar-te uma ajuda. Mereces um empurrão.
- Diria que me chegou bem mais do que um empurrão.
- Podes apostar. - Saiu do elevador com ele, e caminhou pelo corredor, a seu lado. - Só consegui libertar alguns dias na minha agenda. Mas pensei que seria mais
útil aqui do que lá. Por isso, estou aqui.
- Então, não foi por estares desesperada por minha causa e por a tua vida não valer nada se tivesses que passar mais um minuto longe de mim?
- Bem, isso também contribuiu, claro. - Ela entrou no quarto e olhou em volta. Tinha duas camas de casal (uma delas ainda por desfazer), uma pequena secretária,
uma cadeira e uma janela suja. - Vives com pouco.
- Se soubesse que vinhas, teria arranjado... outra coisa.
- Isto serve. - Pousou a mala de mão na segunda cama. - Preciso de contar-te o que aconteceu ontem.
- Contares-me isso agora vai mudar alguma coisa?
- Não. Mas precisas de...
- Então, vamos primeiro ao mais importante. - Despiu-lhe o casaco que ela trazia.
- Belo material - disse ele, atirando o casaco para cima da cama, ao lado da mala dela. - Sabes uma das primeiras coisas que notei em ti, Lana?
- Não. O quê? - Manteve-se muito quieta enquanto ele lhe desabotoava a blusa.
- A suavidade. O teu aspecto, a tua pele, o teu cabelo. As tuas roupas. - Atirou a blusa para longe. - Não é possível manter as mãos afastadas dessa suavidade. -
Passou um dedo pelo centro do corpo dela até ao gancho das calças.
- Talvez devesses pendurar o letreiro "Não incomodar".
-Já pendurei. - Com a sua boca mordiscou a dela, enquanto a roupa lhe ia caindo aos pés.
Ela despiu-lhe a camisa, fazendo-lha passar pela cabeça.
- És um homem de ideias claras e cuidadoso. Essa foi uma das primeiras coisas que notei em ti. Acho esse tipo de coisa muito atraente. - Ficou sem respiração quando
ele a arrebatou nos braços.
- E também há isto.
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- Somos pessoas práticas, sem subterfúgios.
- Quase sempre - conseguiu dizer, enquanto ele a deitava na cama.
Doug cobriu o corpo dela com o dele.
- Encaixamos bem.
Ela deixou-se ir, deixou que a ansiedade e a excitação das últimas horas se dissolvessem. Ele cheirava a banho, ao sabonete do hotel. E isso também a excitou. Estar
ali, tão longe de casa, naquele quarto anónimo, nos lençóis onde ele dormira sem ela.
Ouvia o ruído de um aspirador a ser arrastado pelo corredor, lá fora. E uma porta bater, quando alguém saiu.
Ouvia o seu próprio coração a bater-lhe na garganta, onde os lábios dele brincavam.
O contacto carinhoso das mãos dele aqueciam-lhe a pele. O sangue, os ossos. Por isso, sussurrou o nome dele quando os lábios dele voltaram a encontrar os seus. E
rendeu-se por completo.
Ele sonhava com ela de noite, e era um homem que raramente sonhava. Desejava-a ardentemente, e era um homem que raramente desejava. Tudo isso parecia ter mudado
desde que ela entrara na sua vida. O que ele não permitira a si próprio querer era agora tudo o que queria.
Uma casa, uma família. Uma mulher que estivesse a seu lado. E valia a pena correr o risco, se essa mulher fosse ela.
Pousou os lábios no coração dela e soube que se ganhasse aquele coração, seria capaz de fazer tudo.
Ela mexeu-se sob o corpo dele, num movimento convulsivo e impaciente, enquanto ele a percorria com a língua. A necessidade de excitá-la, de ouvir a respiração dela
tornar-se ofegante, de sentir aquele coração que ele tanto queria bater descompassadamente, comandava-o.
Não tão pacientemente agora, não tão devagar. Quando ouviu a respiração dela entrecortada, puxou-a para cima, e ficaram ambos de joelhos na cama, procurando libertar-se
do resto das roupas.
Quando ela arqueou o corpo para trás, numa oferta, a boca dele percorreu-a.
Era aquilo que ela queria, agora. Rapidez e desejo. Uma viagem louca, húmida. A emoção atravessou-a, transformando o seu corpo numa massa vibrante, que ansiava por
mais. Endireitou-se e enrolou as pernas à volta dele, arqueando-se sobre ele para cravar-lhe os dentes no ombro.
E quando ele lhe encheu o corpo e o coração, ela disse o nome dele. Apenas o nome dele.
443
Exausto, satisfeito, manteve-se abraçado a ela. Era grande a tentação de se meter na cama, puxar os cobertores até cobrir as cabeças de ambos e esquecer tudo o resto.
- Quero passar tempo contigo, Lana. Um tempo que seja só para nós.
- Um tempo normal. - Esfregou a cara no ombro dele. - Quase não tivemos. Como achas que seria?
- Calmo. Ela riu.
- Bem, não há muito disso em minha casa.
- Sim, há. Há uma boa sensação de calma, com um miúdo sempre às voltas.
- Cães a ladrar, telefones a tocar. Sou uma alma organizada, Doug, mas há muitos compartimentos na minha vida. Muita coisa a tratar.
- Lá por tu fazeres com que pareça fácil, não devo pensar que é. Nunca pensei que era fácil. - Afastou-se um pouco. - Admiro o que fizeste da tua vida e da do Ty.
Como conseguiste.
- Lá estás tu a dizer as coisas certas, outra vez. - Sentou-se na cama e abriu o fecho da mala.
Ele notou que o robe curto e fino estava cuidadosamente dobrado no cimo de tudo. Sorriu. -Já nasceste arrumada?
- Acho que sim. - Tirou o robe da mala e depois sentou-se na beira da outra cama. - E prática. E é por isso que, embora preferisse estar enrolada contigo nessa cama
durante a próxima hora, vou estragar essa disposição. Aconteceu uma coisa ontem.
Contou-lhe sobre Rosie e viu a expressão dele gelar e depois enfurecer-se. Embora se levantasse, vestisse os jeans, andasse de um lado para o outro, não a interrompeu
com comentários ou questões e deixou-a terminar.
- Falaste com a Callie, hoje?
- Sim, antes de sair, e quando cheguei ao aeroporto, aqui. Ela está bem, Doug, embora tivesse ficado um bocado irritada comigo por lhe ter interrompido o trabalho,
quando fiz o segundo telefonema.
- Isto não pode ser encarado como um acidente, ou um impulso, nem como resultado de uma confusão mental. Isto foi premeditado, e ela era o alvo específico.
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- Ela sabe isso, tal como sabe que quem quer que tenha adulterado o chá pertence à sua própria equipa. Não vai ser descuidada. Neste momento, temos de deixar que
seja ela a tratar daquela ponta. Nós tratamos desta.
- Tenho uma lista de Spencer, o apelido da secretária. Tanto quanto sabemos. Tirei-a da lista telefónica e tenho procurado na Internet. Tenho seis que talvez correspondam.
As outras vivem aqui há demasiado tempo. Estava a pensar na melhor maneira de abordá-las quando me telefonaram da recepção, a pedir que fosse lá abaixo.
- Podemos usar a táctica do telemarketing, fazer inquéritos por telefone e tentar eliminar mais umas.
- Faz ou fez alguma vez parte de uma organização que trafica crianças?
Ela abriu a pasta e tirou de lá um bloco.
- Estava a pensar mais em ter como alvo a dona da casa. Trabalha, ou alguma vez trabalhou fora de casa? Em que ramo? E assim por diante.
- Vai levar tempo. E tens de pensar que muitas pessoas desligam quando se trata de solicitações ou inquéritos por telefone.
- Sim. Eu sou uma delas. - Rabiscou distraidamente no bloco.
- E há a abordagem directa. Bater de porta em porta e perguntar se estamos a falar com a antiga secretária de Marcus Carlyle.
- Esse era o meu plano. Ouve uma coisa: como tenho ajuda, podemos fazer as duas coisas. Eu vou bater às portas e tu ficas aqui, a fazer de operadora de telemarketing
chata.
- Para me manteres em segurança, fechada num quarto de hotel? Acho que não. Vamos juntos, Douglas. Ajuda é ajuda.
- Pára e pensa por um instante. - Ele foi atrás dela, enquanto ela entrava na casa de banho e rodava as torneiras até estar satisfeita com a temperatura da água.
- Não sabemos com o que estamos a lidar. Já tiveste o teu escritório destruído e estás suficientemente assustada para mandares o Ty embora. Pensa nele, se te acontece
alguma coisa.
Ela despiu o robe e pendurou-o cuidadosamente no gancho atrás da porta, antes de entrar para o duche.
- Se estás a tentar assustar-me, estás no bom caminho.
- Óptimo.
- Mas não posso viver assim, e não vou viver assim. Levei dois meses, depois da morte do Steve, a arranjar coragem para entrar no raio de uma loja de conveniência,
em plena luz do dia. Mas fiz isso, porque não se pode ter constantemente medo do que pode acontecer.
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Se tivermos, perdemos o controlo do que está a acontecer, e de toda a alegria e dor que o presente nos oferece.
- Raios! - Despiu os jeans, entrou no duche atrás dela e pôs-lhe os braços à volta da cintura. - Não me deixas espaço para argumentar.
Ela acariciou-lhe a mão e depois saiu do duche antes de o cabelo ficar molhado.
- Sou uma profissional.
- A lista está em cima da secretária. Também lá está um mapa da cidade. Talvez possamos traçar o caminho mais conveniente.
- Vou começar a fazer isso. - Secou-se e voltou a vestir o robe. Mas quando ele foi juntar-se a ela, ela não estava a trabalhar em nada. Em vez disso, estava de
pé, junto à secretária, com um pequeno boné dos Boston Red Sox nas mãos.
- Compraste isto para o Tyler.
- Sim, acho que ele vai ficar radiante. Quando o meu avô viajava, trazia-me sempre um boné ou um brinquedo. Uma coisa pequena.
Voltou a pegar na camisa, inquieto com a forma como ela estava ali, de pé, passando os dedos pela pala do boné.
- Não lho comprei para marcar pontos junto dele. Nem de ti. Bem, não foi só por isso.
- Não foi só por isso.
Uma onda de irritação varreu-lhe o rosto.
- Como já fui um rapazinho, sei o valor de um boné. Vi-o no aeroporto e comprei-o. Quando estava a pagá-lo, pensei nesta coisa dos pontos.
- Ele perguntou quando voltavas.
- Perguntou?
Foi a alegria na voz dele que a atingiu primeiro. Instantânea, natural e verdadeira. O coração dela bateu mais depressa.
-- Sim, perguntou. E vai adorar isto. Com pontos ou não, foste muito doce por teres pensado nisto.
- Também não me esqueci de ti.
- Não?
- Não. - Abriu uma gaveta. - Não a deixei cá fora porque não sabia bem o que a camareira podia fazer com ela.
Lana ficou a olhar, perplexa, quando ele tirou da gaveta uma lata de feijões de Boston. Quando ele lha pôs na mão, sorrindo para ela, o coração dela não bateu apenas
mais depressa, caiu-lhe aos pés.
- Isto é o cúmulo! Levada por uma lata de feijões. - Apertou-a contra o peito e começou a chorar.
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- Oh, meu Deus, Lana, não chores. Era uma brincadeira.
- Seu filho da mãe desgraçado. Isto não podia acontecer comigo!
Mandou-o embora, abriu a mala e tirou um pacote de lenços de papel. - Eu sabia que estava metida num sarilho quando te vi sair do elevador. Tu saíste e quando te
vi o meu coração...
Apertou a lata de feijões contra o peito.
- O meu coração deu um salto. Desde o Steve que não me sentia assim. Nunca esperei voltar a sentir isto. Pensei, esperei encontrar, um dia, alguém que pudesse amar.
Alguém com quem me sentisse bem, com quem conseguisse viver. Mas se não encontrasse, não fazia mal. Porque já tinha tido algo de tão extraordinário. Nunca acreditei
que voltasse a sentir qualquer coisa de tão forte. Por mais ninguém. Não, não digas nada. Não.
Teve que se sentar para tentar acalmar-se.
- Não queria voltar a sentir-me assim outra vez. Assim, não. Porque quando se sente isto, há tanto a perder. Seria tão mais fácil, tão mais fácil se eu pudesse amar-te
apenas um pouco. Se eu ficasse satisfeita e soubesse que serias bom para o Ty. Bom para ele. Isso seria o suficiente.
- Alguém me disse que não podemos viver a vida preocupados com o que poderia acontecer, porque assim perdemos o que está a acontecer.
Ela fungou.
- Muito esperto, não és?
- Sempre fui. Vou ser bom para o Ty. - Sentou-se ao lado dela.
- Vou ser bom para ti.
- Eu sei. - Pousou a mão no joelho dele. - Não posso mudar o nome do Ty. Não posso tirar isso ao Steve.
Doug olhou para a mão dela. Para a aliança que ela continuava a usar.
- Está bem.
- Mas vou mudar o meu.
Ele levantou a cabeça, encontrou os olhos dela. A emoção foi tão grande que quase o afogou. Mas pegou na mão dela, na mão que usava a aliança de outro homem.
- Sabes, isto está a começar a chatear-me. Primeiro, és tu que me convidas para sair, depois, seduzes-me antes de eu avançar. Segues-me até aqui. E agora pedes-me
em casamento.
- Essa é a tua maneira de dizeres que sou atrevida?
- Não, não quero só dizer que és atrevida. É a minha maneira de dizer que desta vez gostava de ser eu a tomar a iniciativa.
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- Oh, está bem. Então, esquece o que eu disse. Ele abriu-lhe a mão e beijou-lhe a palma.
- Casa comigo, Lana.
- Gostaria muito, Douglas. - Pousou a cabeça no ombro dele e suspirou. - Vamos fazer o que temos a fazer, para podermos ir para casa.
Tinham um bom ritmo de trabalho, pensou Lana quando chegaram à quarta casa. Imaginou que teriam o ar de um casal americano, perfeitamente inofensivo. Razão pela
qual as primeiras três portas se lhes tinham aberto com tanta facilidade.
Quando encontrassem a porta certa, duvidava que ela se lhes abrisse tão facilmente.
- Belo bairro - declarou ela, enquanto seguiam por ruas ladeadas por casas grandes e bem arranjadas, e relvados aparados. Os carros junto às entradas eram todos
de últimos modelos.
- Dinheiro - disse ele.
- Sim, dinheiro. Não lhe deve faltar. E também deve ser suficientemente inteligente para gastá-lo bem e discretamente. Nada grande nem espampanante, que chame demasiado
a atenção. Tudo discreto. Deve estar a aparecer à tua esquerda.
Era uma casa de tijolo rosado, com uma varanda branca, e trepadeiras de ambos os lados, que a escondiam dos vizinhos. A entrada era ladeada por duas grandes magnólias.
E à porta um Mercedes sedan de uma série limitada, amarelo-claro.
No relvado via-se um letreiro de uma agência imobiliária.
- Está à venda. Interessante. Vão mudar-se? - reflectiu. - Ninguém, excepto tu e a minha família, sabem que estamos aqui, mas alguém sabia que eu estava a investigar
em Boston.
- Mmm. - Lana ficou a pensar, enquanto estacionava na berma da rua sombreada. - Se ela estiver de alguma forma relacionada com o que está a acontecer, há-de saber
que andamos a puxar as pontas da meada. Mudar-se para outro sítio seria a atitude natural. E não há dúvida de que nos dá um bom pretexto para entrarmos.
- Andamos à procura de casa.
- O jovem casal abastado e feliz, que procura a sua casa de sonho. - Ajeitou o cabelo e tirou um batom da mala. Baixou o espelho do interior do carro e aplicou-o
com gestos suaves e meticulosos.
- Vamos ser os Beverly (é o meu nome de solteira), de Baltimore. Sem complicações.
448
Pôs a tampa no batom e voltou a metê-lo na mala.
- Queremos mudar-nos para aqui porque aceitaste um lugar na Universidade. Põe os óculos.
- No ensino não se ganha lá muito bem.
-A família tem dinheiro.
- Fixe. Estamos cheios dele.
- Relativamente. E eu sou advogada. Vamos manter isso porque pode dar jeito. Direito corporativo. Movimento dinheiros. Havemos de improvisar qualquer coisa. Até
agora, temo-nos saído bem. Isto, se conseguirmos entrar na casa.
Aproximaram-se da casa, de mãos dadas. Tocaram à campainha.
Passado um momento, uma mulher envergando umas calças pretas de bom corte e uma camisa branca veio abrir; as esperanças de Lana desvaneceram-se. Era demasiado nova
para ser Dorothy Spencer.
-Posso ajudar?
Sem saber bem o que fazer, decidiu avançar com a representação.
- Espero que sim. Eu e o meu marido vimos que a casa está à
venda. Andamos à procura de casa nesta zona.
- Acho que a agência não marcou nada com a Sr.a Spencer para esta tarde.
- Não. - A esperança aumentou um pouco. - Não, não temos nada marcado, íamos a passar de carro, a apreciar as casas. Suponho que não seja conveniente vermos agora
a casa. É a dona? Podemos marcar para mais logo, ou para amanhã?
- Não, sou a governanta. - A hospitalidade sulista venceu e ela deu um passo atrás, abrindo mais a porta. - Se não se importarem de esperar aqui, vou perguntar à
Sr.a Spencer.
- Muito obrigada. Roger - continuou Lana enquanto a governanta desaparecia no corredor -, não é linda?
- Roger? - questionou ele.
- Apaixonei-me por ele, primeiro. Tem uma bela luz - prosseguiu. - E olha para o chão.
- A outra fica mais próxima da universidade. Ela sorriu, radiante, encantada com ele.
- Eu sei, querido, mas esta tem mais carácter. - Virou-se e observou a mulher de fato bege e elegante que caminhava na sua direcção.
Podia ter a idade certa, pensou Lana. Parecia mais nova, mas as mulheres arranjavam muitas vezes maneira de parecerem mais novas.
- Sr.a Spencer? - Deu um passo em frente, estendendo a mão.
- Somos os Beverly, terrivelmente mal-educados, por sinal. Peço
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desculpa pela intromissão, mas estou encantada com a sua casa, mesmo tendo visto apenas o que vi.
- A agência não me disse que ia mandar alguém hoje.
- Não, ainda não fomos à agência. Andávamos aqui pela zona e vimos o letreiro. Decidimos mudar-nos para sul, e este é exactamente o tipo de casa dos meus sonhos.
- Tiffany. - Doug apertou a mão de Lana. - Começámos agora a procurar. A minha transferência só será no início do ano.
- Estão a mudar-se para Charlotte?
- Vamos mudar-nos, sim - confirmou ele. - Vimos de Baltimore. É uma linda casa. Grande - acrescentou, lançando a Lana um olhar prudente.
- Quero uma casa grande. E precisamos de espaço para as visitas. Quantos quartos... - Abanou a cabeça, como que a interromper-se, e riu um pouco. - Desculpe. Sei
que devíamos marcar uma hora e irmo-nos embora. Estou a ser um pouco insistente. O Roger acha que Janeiro ainda é daqui a muito tempo. Mas quando penso que vamos
ter que emalar tudo e mudar tudo, conhecer uma nova zona, novas lojas, novos médicos, tudo novo, e ao mesmo tempo lidar com duas carreiras, é medonho. E estou com
pressa para começar.
- Tenho algum tempo, se quiserem dar uma vista de olhos.
- Adoraria. - Lana seguiu-a até à sala principal. - Se não for indelicado da minha parte, pode dizer-me que preço está a pedir?
- Não é de forma alguma indelicado. - Disse uma soma, esperou um pouco e continuou. - A casa foi construída no final do século xix, e tem sido cuidadosamente mantida
e restaurada. Mantém a traça original e tem uma cozinha equipada com a mais recente tecnologia, uma suite principal que inclui uma grande área de vestir e um spa.
Quatro quartos e quatro casas de banho, bem como um pequeno apartamento, depois da cozinha. Ideal para usar como aposentos da empregada, ou para a sogra.
Doug riu.
- Não conhece a minha sogra. A senhora não parece ser daqui.
- Não sou. Vivo em Charlotte há quatro anos, mas sou de Cleveland. Já vivi em várias zonas.
- Que janelas fabulosas! E a lareira! Funciona?
- Sim, está a funcionar perfeitamente.
- Belo trabalho de artesão - acrescentou Lana, passando o dedo pela cornija e olhando mais de perto as fotografias pousadas sobre ela. -- Viajou devido ao seu trabalho
ou ao do seu marido?
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- Ao meu. Sou viúva.
- Ah. Esta é a primeira vez que nos mudamos. Quero dizer, para fora do Estado. Estou entusiasmada, e nervosa. Adoro esta divisão. Oh, é a sua filha?
- Sim.
- É encantadora. O chão é original?
- Sim. - Quando a Sr.a Spencer olhou para baixo, Lana fez sinal a Doug para que se aproximasse também da lareira. - Pinho claro.
- Suponho que os tapetes não estejam à venda com a casa. São extraordinários.
- Não, não estão. Vamos por aqui, por favor. - Passou por uma série de portas de correr abertas e entrou numa salinha feminina e acolhedora. - Uso esta sala como
sala de leitura.
- Não sei como consegue vender esta casa. Mas com a sua filha já crescida e a não viver aqui, deve querer uma coisa mais pequena.
- Diferente, pelo menos.
- Está reformada, Dorothy?
Houve um momento de confusão, de suspeita, quando ela se virou para Lana.
- Sim, há já algum tempo.
- E passou a sua parte do negócio à sua filha? Tal como passou o seu nome. Também lhe chamam Dory?
Ela ficou tensa e viu, pelo canto do olho, que Doug bloqueava a saída para o corredor, enquanto Lana se mantinha junto às portas de correr.
- Dot - disse ela, passado um instante. - Quem são vocês?
- Sou Lana Campbell, advogada de Callie Dunbrook. Este é Douglas Cullen, irmão dela. Irmão de Jessica Cullen.
- Quantos bebés ajudou a vender? - perguntou Doug. - Quantas famílias destruiu?
- Não sei quem são nem do que estão a falar. Quero-vos fora da minha casa. Se não saírem imediatamente, chamo a polícia.
Doug afastou-se e pegou no telefone.
- Faça favor. Vamos todos ter uma bela conversa.
Ela arrancou-lhe o telefone da mão e foi até ao canto mais afastado da sala.
- Ligue-me à polícia. Sim, é uma emergência. Que descaramento, virem assim à minha casa - disse, em tom irritado. Depois, levantou o queixo. - Sim, queria participar
uma intrusão. Há um homem e uma mulher que estão na minha casa e recusam sair. Sim, estão a
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ameaçar-me, e fizeram afirmações inacreditáveis sobre a minha filha. Sim, sim. Por favor, venham depressa. Desligou o telefone.
- Não lhes deu o seu nome nem a sua morada. - Lana avançou para ela e levantou as mãos quando Dorothy lhe atirou o telefone.
- Boa defesa - comentou Doug, quando ela conseguiu apanhar desajeitadamente o telefone, centímetros antes de se lhe esborrachar na cara. Pegou em ambos os braços
de Dorothy e empurrou-a para uma cadeira. - Carrega em "Remarcar".
-Já carreguei.
O telefone tocou duas vezes, antes de ela ouvir uma voz ofegante dizer:
- Mãe?
Desligou, praguejou, depois tirou da mala a agenda de moradas.
- Ela telefonou à filha. Raios, eu devia saber o número da Callie de cor. Aqui está. - Apressou-se a marcar os números.
- Dunbrook.
- Callie, é a...
- Meu Deus, Lana, és capaz de parar com isso?
- Ouve! É a Dory. Encontrámos a Dorothy Spencer. Encontrámos a secretária do Carlyle. A Dory é filha dela.
- Têm a certeza?
- Absoluta. A Dot Spencer acabou de lhe telefonar. Ela sabe.
- Muito bem. Já telefono.
- Ela vai ficar bem - disse Lana a Doug, quando desligou o aparelho. - Agora sabe quem procurar e o que procurar. A Dory não vai escapar - acrescentou, aproximando-se
de Dorothy. - Vamos encontrá-la, como a encontrámos a si.
- Não conhecem a minha filha.
- Infelizmente, conhecemos. É uma assassina.
- É mentira! - Dorothy cerrou os dentes.
- Sabe que não é. Seja o que for que você e Carlyle tenham feito, você, ele, Barbara Halloway, Henry Simpson, seja o que for que tenham feito, nunca recorreram ao
assassínio. Ela, sim.
- Seja o que for que a Dory tenha feito, foi para se proteger, e a mim. E ao pai.
- O Carlyle era o pai dela? - perguntou Doug.
Dorothy recostou-se na cadeira, como se estivesse perfeitamente à vontade, mas continuou a abrir e a fechar a mão direita.
- Não sabem tudo, pois não?
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- O suficiente para a entregar ao FBI.
- Por favor. - Dorothy encolheu os ombros e cruzou as pernas.
- Eu era apenas uma secretária sem importância, uma secretária cegamente apaixonada por um homem poderoso. Um homem muito mais velho. Como podia eu saber o que ele
andava a fazer? E se alguma vez conseguirem provar o que ele andava a fazer, vai ser-vos bem mais difícil provar que eu também estava envolvida.
- Barbara e Henry Simpson podem implicá-la. Terão todo o gosto nisso. - Doug sorriu para acrescentar mais veracidade à mentira.
- Quando lhes prometeram imunidade, não tiveram qualquer problema em mencionar o seu nome.
- Isso não é possível. Está no Méx... - Interrompeu-se e apertou os lábios.
- Falou com eles, ultimamente? - Lana sentou-se confortavalmente numa cadeira, diante dela. - Foram apanhados ontem, e já estão a colaborar. Já estão a construir
um caso contra si. Só estamos aqui agora devido ao interesse pessoal de Doug. Quisemos falar consigo antes de a levarem para ser sujeita a interrogatório. Não se
safou a tempo, Dot. Devia ter fugido.
- Nunca fugi. Aquele idiota do Simpson e a sua mulher-troféu podem dizer o que quiserem. Nunca terão o suficiente para me indiciarem.
- Talvez não. Diga-me apenas porquê - pediu Doug. - Porque a levou?
- Não levei ninguém. Deve ter sido a Barbara. E havia outros, claro. - Respirou fundo. - E, se e quando for necessário, posso dar nomes e dá-los-ei. Para meu próprio
bem.
- Porque as raptaram?
- Quero voltar a falar com a minha filha.
- Responda às perguntas, depois damos-lhe o telefone. - Lana pousou-o no colo, com as mãos cruzadas por cima. - Não somos da polícia. Percebe de leis o suficiente
para compreender que nada do que nos disser pode ser admitido como prova. É do senso comum.
Dorothy olhou para o telefone. Lana viu a preocupação genuína no rosto dela. Estava com medo pela filha, pensou. Seja como for, continua a ser mãe dela.
- Porque é que ele fez aquilo? - pressionou Doug. - Só estou a pedir-lhe que me diga porque é que ele fez o que fez?
- Era a cruzada pessoal do Marcus... e o seu passatempo lucrativo.
- Passatempo - murmurou Lana.
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- Era assim que ele o via. Havia tantos casais com contas chorudas no banco, e que não conseguiam ter filhos. E tantos outros com dificuldades financeiras, e que
tinham filho atrás de filho. Um filho por casal, era o seu ponto de vista. Tratou de algumas adopções legítimas. Eram tão complicadas, arrastavam-se tanto. Encarava
isto como uma forma de acelerar as coisas.
- E as centenas de milhares de dólares que ele ganhou com a venda das crianças não tiveram nada a ver, claro.
Dorothy lançou a Lana um olhar aborrecido.
- Claro que teve. Ele era um homem de negócios muito astuto. O Marcus era um homem poderoso, em todos os aspectos. Por que razão não foi suficiente para os seus
pais? - perguntou ela a Doug.
- Por que razão um filho não foi suficiente? De certa forma, eram excedentes para outro casal. Outro casal que queria desesperadamente um filho e tinha meios para
criar esse filho muito bem. Um casal de pessoas adoráveis, com uma relação estável. Isso era essencial.
- Não lhes deram opção.
- Faça esta pergunta a si próprio: se a sua irmã tivesse a hipótese de escolher, hoje, quem escolheria? As pessoas que a conceberam, ou os pais que a criaram?
Havia convicção na voz de Dorothy, agora.
- Faça a si próprio essa pergunta, e pense muito bem antes de continuar com isto. Se se forem embora, mais ninguém precisa de saber. Mais ninguém precisa de passar
por qualquer turbilhão emocional. Se não se forem embora, não conseguirão parar tudo isto. Tantas famílias desfeitas. Apenas para vossa satisfação.
- Tantas famílias desfeitas - disse Lana, levantando-se -, para Marcus Carlyle colher lucros enquanto fazia o papel de Deus.
Entregou o telefone a Doug:
- Chama a polícia.
- A minha filha. - Dorothy pôs-se de pé, num salto. - Disse que eu podia falar com a minha filha.
- Menti - disse Lana, e teve a enorme satisfação pessoal de voltar a empurrar a mulher, obrigando-a a sentar-se na cadeira.
454

Vinte e Oito

A alguns quilómetros dali, Callie saiu de um buraco com um metro e meio de profundidade, mal desligou o telemóvel. Foi a fúria incontrolada que lhe deu força e a
fez cerrar os dentes quando viu Dory atravessar bruscamente o terreno, em direcção aos carros e camiões estacionados na berma da estrada.
Largou a correr, atalhando caminho por entre os montes de terra e saltando sobre um Digger perplexo junto à pilha de detritos da cozinha.
Foi o grito instintivo de Digger que fez Dory virar a cabeça. Os seus olhos encontraram-se, o coração disparou num baque surdo. Foi então que Callie viu a raiva,
a consciencialização do que se passava, o medo. E depois Dory começou a correr.
Por entre o zumbido dos seus ouvidos, Callie conseguia ouvir outros gritos, uma rápida gargalhada de surpresa, um acorde de guitarra vindo do rádio de alguém. Mas
tudo isso estava distante, no fundo de um túnel comprido e paralelo àquele onde ela corria.
Estava totalmente concentrada num único objectivo. Não via nada a não ser Dory. E estava a ganhar-lhe terreno.
Quando Bob se atravessou no caminho de Dory entrou no campo de visão de Callie, de bloco na mão, a boca a mexer-se ao som do que tocava nos seus auscultadores. Foi
derrubado como um pino de bowling, os papéis foram pelo ar quando Dory o abalroou.
Nenhuma das duas mulheres abrandou o passo. Bob continuava estendido no chão quando Callie acelerou e saltou por cima dele, e, usando o balanço, atirou o seu corpo
contra o de Dory.
A força fê-las voar a ambas por cima de baldes e ferramentas, um mero segundo antes de embaterem no chão, num estalar de ossos, braços e pernas misturados.
455.
Havia uma nuvem vermelha diante dos olhos dela, e o sangue latejava-lhe com uma violência primitiva. Ouviu alguém gritar, mas o arquejar da sua respiração sobrepôs-se
ao grito, enquanto ela usava os punhos, os pés, os cotovelos, os joelhos. Rebolaram sobre a terra, engalfinhadas, cravando as unhas uma na outra. Qualquer coisa
afiada enterrou-se nas costas de Callie, e vieram-lhe as lágrimas aos olhos por causa dos puxões de cabelos.
Sentiu o cheiro a sangue, o sabor, e depois deu pontapés em todas as direcções, numa fúria cega, quando se viu levantada no ar.
Não conseguia distinguir os sons que se erguiam à sua volta. Via apenas a mulher no chão e as pessoas apinhadas à volta dela. Voltou a distribuir pontapés, com força,
e depois caiu outra vez ao chão com estrondo. Mesmo com os braços presos, lutou para conseguir libertar-se e voltar a cair sobre Dory.
- Pára! Raios, Callie, pára, ou vou ter que te magoar.
- Solta-me! Ainda não acabei!
- Ela acabou. - Jake segurou-a com mais força, tentando recuperar, ele próprio, o fôlego. - Ao que parece, diria que lhe partiste o nariz.
- O quê? - A névoa que a cegara começava a clarear. Respirava de forma arquejante, as mãos ainda crispadas. Mas a raiva descontrolada começava a dar lugar a algum
equilíbrio. O sangue escorria do nariz de Dory, e o seu olho direito já estava inchado. Enquanto Leo tentava minorar os estragos, Dory gemia e chorava.
- É ela! - gritou Callie, quase sem fôlego. - É ela!
-Já percebi. Se eu te soltar, vais atirar-te a ela outra vez?
- Não. - Callie respirou ruidosamente. - Não.
- Grande placagem, Dunbrook. - Deixou de a manter agarrada com tanta força, mas não a soltou. Foi necessária alguma perícia para conseguir meter-se entre ela e Dory.
Depois de observar o rosto dela por um momento, estremeceu um pouco. - Credo, olha para ti! Ela assentou-tas bem.
- Ainda não sinto nada.
- Mas vais sentir.
- Afasta-te, Jake. Não vou bater-lhe outra vez, mas tenho uma coisa para lhe dizer.
Com precaução, Jake manteve a mão no ombro dela, mas afastou-se o suficiente para ela poder inclinar-se e ver Dory.
- Cala-te! - Embora Callie olhasse directamente para Dory enquanto falava, toda a gente mergulhou em silêncio. - A placagem foi pela Rosie.
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- És louca! - Ainda a chorar, levou ambas as mãos ao seu rosto ferido e balançou o corpo para a frente e para trás.
- O nariz, é pelo Bill. O olho negro, vamos dizer que é pelo Dolan.
- És louca, deves estar louca! - Num soluço patético, Dory ergueu as suas mãos ensanguentadas, como que numa prece ao resto da equipa. - Não sei do que ela está
a falar.
- Os outros estragos - prosseguiu Callie - ficam por conta de seres uma cabra mentirosa e assassina. E o que ainda falta é pelo que ajudaste a fazer à minha família.
- Não sei do que ela está a falar. Ela atacou-me. Todos viram. Preciso de um médico.
- Credo, Callie. - Frannie mordeu o lábio e acocorou-se junto a Dory. - Credo! Saltaste para cima dela e começaste aos murros. Ela está muito ferida.
- Ela matou o Bill. E pôs a Rosie no hospital. - A mão de Callie saiu disparada e agarrou Dory pela camisa rasgada, antes que alguém pudesse detê-la. - Sorte a tua,
o Jake ter-me segurado
- Mantenham-na longe de mim - pediu Dory, recuando. - Ela perdeu o juízo! Vou fazer com que a prendam!
- Vamos ver quem vai passar a noite na prisão!
- Acho que todos devemos acalmar-nos. Devemos todos acalmar-nos! - Bob passou os dedos pelo seu cabelo em desalinho. - É isso que eu acho.
- Tens a certeza disto, Callie? - perguntou Leo.
- Sim, tenho a certeza. Apanharam a tua mãe, Dory. Mas tu já sabes isso. Está tudo a desmoronar-se, para ti. Tudo começou a desmoronar-se quando a Suzanne me reconheceu.
Esforçaste-te bastante para que ninguém soubesse. Mataste, para que ninguém soubesse. Mas agora, acabou-se.
- Não sei do que estás a falar!
- Bem. - Leo soltou um suspiro profundo, enquanto se levantava. - Vamos chamar a polícia e esclarecer isto.
Jake aplicou líquido anti-séptico nos arranhões que Callie tinha no pescoço. Afastara-a do resto dos membros da equipa, deixando-os a tratar de Dory. Olhou para
trás, por cima do ombro, e notou que Bob estava a afagar o ombro de Dory e que Frannie lhe oferecia um copo de água.
- Ela é esperta e joga bem. Está a tentar convencer toda a gente de que foste atrás dela sem razão nenhuma.
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- Isso não vai pegar. O Doug e a Lana têm a Dorothy Spencer em Charlotte. É ligação suficiente para o Hewitt a levar para ser interrogada.
- Ela não está aqui sozinha.
Callie soltou uma espécie de silvo. O telefonema de Lana varrera-lhe tudo da mente, excepto Dory.
- Não pensei. Agi, e pronto. Mas porra, Jake, ela teria fugido. Estava a dirigir-se para os carros. Ela teria fugido se eu não tivesse ido atrás dela.
- Não estou a discutir isso. Impediste-a e ela tinha de ser impedida. Podemos contar com o Doug e com a Lana para descreverem a situação à polícia de Charlotte.
- Ela fez refeições connosco. Chorou por causa do Bill e depois de a roulote ter ido pelos ares, trabalhou mais do que qualquer pessoa para limpar o sítio da escavação.
- E ter-te-ia morto, se tivesse tido oportunidade. - Jake pousou os lábios na testa de Callie. - Agora, vai tentar dar a volta ao assunto. Por isso, temos de estar...
- Calmos e concentrados - concluiu ela. - Preciso de levantar-me e mexer-me um bocado antes que fique dura como uma tábua. Dás-me uma ajuda?
Ele ajudou-a a levantar-se e observou-a, enquanto ela dava os primeiros passos hesitantes.
- Querida, precisas de meter-te dentro de água quente, para uma boa esfrega, e de tomar uns bons medicamentos.
- Preciso mesmo! Mas isso pode esperar. Talvez fosse bom telefonares ao pessoal em Charlotte, para os avisares de que temos a Dory na mão.
- Sim, vou tratar disso. Afasta-te dela, Cal. - Notou a direcção do olhar gelado de Callie. - Estou a falar a sério. Quanto menos lhe disseres, menos ela sabe. E
mais terás para dizer à polícia.
- Odeio quando és lógico, racional e tens razão.
- Uau! Acho que isso também doeu, não doeu?
Isso fê-la sorrir, e praguejar quando o lábio lhe doeu. Depois, endireitou os ombros quando viu chegar o jipe do xerife.
- Bem, aqui vamos nós.
O Xerife Hewitt meteu uma tira de pastilha elástica na boca. Mantinha a atenção fixa no agente que ajudava Dory a entrar noutro jipe, para ser transportada até à
urgência do hospital.
- É uma história interessante, Dr.a Dunbrok, mas não posso prender uma mulher por homicídio, só porque a senhora diz que sim.
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- É mais do que eu dizer que sim. As peças estão todas aqui. Só é preciso ligá-las. Ela é filha de Marcus Carlyle e de Dorothy McLain Spencer, que foi secretária
dele. Ela mentiu sobre quem era.
- Bem, ela não mencionou esse laço. Não está a negar o laço de sangue, só por não mencioná-lo ao dizer quem é.
- E não se deu ao trabalho de mencioná-lo quando o escritório de Lana foi pelos ares, quando Bill foi morto, quando soube que eu andava à procura de Marcus Carlyle
e de qualquer pessoa que estivesse relacionada com ele.
Ele suspirou.
- Diz que não sabia de nada disso.
- Tudo tretas. Vai acreditar que ela apareceu neste projecto por acaso? A filha do homem que é responsável pelo meu rapto junta-se à minha equipa por mero acaso?
- O facto é que, por seu lado, a senhora também apareceu neste projecto. Mas não estou a dizer que acredito nela. - Levantou a mão antes de Callie explodir. - Há
demasiadas coincidências para o meu gosto, e ela é uma dessas coincidências. Mas daí a acusá-la de ter morto aquele rapaz, ou o Ron Dolan, vai uma grande distância.
Nem sequer é possível provar que ela estava aqui quando o Dolan foi morto. Vou voltar a falar com ela, mais tarde. Vou falar com a polícia de Charlotte e com o FBI.
Vou fazer o meu trabalho.
Observou o rosto magoado de Callie.
- Talvez fosse boa ideia se mo deixasse fazer, em vez de tentar fazê-lo por mim.
- Ela ia fugir.
- Não estou a dizer que não ia. Ela diz que só estava a esticar as pernas quando a senhora começou a persegui-la. E as testemunhas têm visões contraditórias quanto
a isso. Devia pensar que tem sorte em eu não a acusar de agressão.
- E o senhor devia pensar que ela foi esticar as pernas quando a mãe lhe telefonou de Charlotte, a avisá-la de que tinha sido descoberta.
- Vou confirmar isso. Dr.a Dunbrook, eu não lhe digo como há-de fazer esta escavação. Não me diga como hei-de investigar um caso. O melhor que tem a fazer é ir para
casa e pôr gelo nesse maxilar. Parece bem maltratado. Quero que todos permaneçam contactáveis, enquanto esclareço tudo isto.
- Talvez deva verificar se Dorothy Spencer se deslocou a Woodsboro nos últimos tempos, porque a Dory não fez isto tudo sozinha.
Ele apontou um dedo na direcção dela.
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- Vá para casa, Dr.a Dunbrook. Entrarei em contacto consigo quando achar que há alguma coisa que deva saber.
Deu um pontapé numa pedra enquanto se afastava:
- Calma e concentrada, o tanas!
Imergiu uma sinfonia de dores e contusões na banheira, tomou um Percocet e deixou-se ficar ali. Tinha de haver mais qualquer coisa que pudesse ser feita, e ela ia
fazê-la.
Vestiu as calças e a T-shirt mais largas que tinha e, embora lançasse um olhar à cama, começou a dirigir-se com dificuldade para o andar de baixo.
A conversa terminou, como se alguém tivesse fechado uma torneira, quando ela entrou na cozinha e abriu o frigorífico para tirar uma bebida.
- Talvez devesses tomar um chá. Um chá de ervas. - Frannie levantou-se de um salto, e depois ficou ali, a torcer os dedos.
- Temos chá de ervas?
- Sim, eu posso fazer-te um pouco. Ela ia a fugir - declarou Frannie, num ímpeto, lançando depois um olhar de desafio aos outros que se encontravam em volta da mesa.
- Ia! E se fez mal ao Bill e à Rosie, ainda bem que lhe deste cabo do coiro!
Foi até ao fogão e pegou na chaleira. Fungou, enquanto a enchia de água.
- Obrigado, Frannie. - Callie virou-se quando Jake entrou.
- Sei que toda a gente está perturbada e confusa. Sei que toda a gente gostava da Dory. Eu também gostava dela. Mas a não ser que algum dos presentes queira levantar-se
e dizer que pôs Seconal no meu termo de chá, o Seconal que pôs a Rosie no hospital, resta-nos a Dory.
- A Call diz que foi a Dory. - Digger acenou com a cabeça.
- Foi a Dory.
- Sim, mas... - Bob mexeu-se na cadeira. - Não está certo atacá-la desta maneira. Não está certo atacar assim nenhum de nós.
- Ela fez-te dar com o coiro no chão - lembrou-lhe Digger.
- Bem, fez, mas mesmo assim...
- Ela ia a correr? - perguntou Callie.
- Acho que sim. Não sei. Não estava a prestar atenção. Bolas, Callie, foi ela que chamou a ambulância para a Rosie. E quando o Bill... quando aquilo aconteceu, ela
ficou desfeita.
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- Disse à Sonya que a Callie a queria fora do projecto. - Frannie pestanejou, tentando reter as lágrimas, enquanto punha a chaleira ao lume. - Podes perguntar-lhe,
pergunta à Sonya. Disse que a Callie queria que ela se fosse embora porque pensava que ela andava a fazer-se ao Jake, e que a Callie tinha ciúmes de todas as mulheres
que estavam no projecto e que só estava à espera de uma oportunidade para pô-la fora.
- Meu Deus! - Matt esfregou o rosto. - Isso não significa nada. Isso são só merdas entre raparigas. Ouçam, eu não sei o que se passa. Acho que nem quero saber. Só
não consigo ver que a Dory tenha tido alguma coisa a ver com o Bill. Não consigo.
- Não tens que conseguir. - Jake abriu uma garrafa de água.
- Acabei de estar ao telefone com a Lana. Ela e o Doug acabaram de aterrar em Dulles. O FBI está a interrogar Dorothy Spencer. E vão mandar um agente para cá, para
falar com a filha dela. Talvez ele consiga ver.
Callie levou o chá para o escritório de Jake, e sentou-se a olhar para a cronologia da sua vida.
- Um destes acontecimentos muda, e tudo o que se lhe segue é afectado. - Sabendo que Jake estava junto à porta, bebeu um pequeno gole de chá e continuou a estudar
o esquema. - Ainda não percebi se alteraria algum dos factos, se tivesse tido hipótese de escolha. Se não tivesse partido o braço, talvez não tivesse passado tanto
tempo a ler todos aqueles livros sobre arqueologia. Se não te tivesse mandado porta fora, talvez não estivéssemos a tentar remediar as coisas. Se não tivesse recusado
a escavação na Cornualha para aceitar aquela sabática, não estaria disponível para esta escavação. A Suzanne Cullen podia nunca me ter visto, nunca me ter reconhecido.
O Bill estaria vivo, mas tudo o que o Carlyle fez continuaria enterrado.
Ele sentou-se à mesa de trabalho, ao lado dela.
- A filosofia é uma chatice.
-Já quase não penso. Sabes que aquilo de eu ter ciúmes da Dory é tudo treta, não sabes? Se eu tivesse pensado, podia tê-la detido de outra forma. Chamá-la, pedir-lhe
que esperasse um minuto. Qualquer coisa. Depois, se ela fugisse, toda a gente veria. Mas eu não pensei. Só queria impedi-la de fugir. - Abanou a cabeça. - Nem sequer
isso. Só queria magoá-la.
- Com toda a razão - concordou ele.
- Devia calcular que tu entenderias. - Bebeu um pouco de chá e sentiu-se mais confortada. - Agora, sinto-me um bocado desapontada.
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Estou a contar com a polícia e com o FBI para tratarem do assunto, mas é como se eu tivesse escavado, camada por camada, e visse pedaços do que lá está, mas não
conseguisse ter uma visão de conjunto do objecto que lá está. E algo me diz que esse conjunto não vai ser o que eu queria que fosse.
- Um bom arqueólogo sabe que não pode escolher o que vai encontrar.
- Lá estás tu, a ser racional outra vez.
- Tenho praticado. - Pegou-lhe na mão, examinou os nós dos dedos arranhados, dobrou-lhe e desdobrou-lhe os dedos. - Como está este?
- Como se eu o tivesse acabado de usar várias vezes para escavar ossos.
Ainda assim, usou-o para atender o telefone quando ele tocou.
- Dunbrook. Xerife Hewitt. - Revirou os olhos, em ar de gozo, e de repente ficou estática. Sem dizer nada, afastou-se da mesa e ficou com o telefone na mão por um
instante, antes de desligar.
- Perderam-na. - Pousou o telefone cuidadosamente, antes que pudesse ceder à raiva e atirá-lo pela janela fora. - Ela fugiu. Fugiu do hospital quando o agente estava
distraído. Porra! Ninguém se lembra de tê-la visto sair, ninguém sabe para onde ela foi. Desapareceu!
Doug passou por casa da mãe. Achou que pelo telefone não era a melhor maneira de lhe dizer o que tinham descoberto. Não tinha a certeza de qual seria a reacção dela,
e sabia que a esta hora, antes de o avô fechar a livraria, antes de o pai voltar da última aula, era provável que ela estivesse sozinha.
Depois de ter a certeza de que ela ficava bem, iria até à casa de Lana. Iam juntos falar com Callie e Jake.
Doug estacionou atrás do carro dela.
Queria meter isto tudo numa caixa, fechar a tampa e arrumá-la, para que todos pudessem continuar com as suas vidas. Queria ter a oportunidade de continuar com a
sua vida. De voltar à pura normalidade. Queria poder dizer à mãe que estava apaixonado, que tinha um neto já pronto para dar-lhe, e que esperava dar-lhe mais com
o passar do tempo.
Entrou pela porta principal. Não prestara a devida atenção à vida que a mãe construíra para si própria, admitiu. Ao negócio que ela erguera, ao lar que ela criara.
À forma como se rodeara de coisas bonitas, pensou, enquanto pegava numa tigela verde - iridescente que
462
estava em cima de uma mesa. À energia e à força de vontade que deviam ter sido necessárias para criar aqueles pequenos pedaços de normalidade quando o seu espírito
estava destroçado.
Lamentava, e muito, não só a forma como ignorara o que ela conseguira fazer, mas também o facto de se ter sentido indignado com isso.
- Mãe?
- Doug? - A voz dela chegou-lhe, vinda do andar de cima.
-Voltaste! Já desço.
Ele foi até à cozinha, e cheirou o ar com agrado, ao sentir o cheiro a café acabado de fazer. Serviu-se de uma chávena, e depois decidiu servir uma segunda. Iam
sentar-se à mesa dela, a beber o café dela, enquanto ele lhe contava o que tinham descoberto.
E ia dizer-lhe uma coisa que deixara de dizer-lhe, havia demasiado tempo. Ia dizer à mãe que a amava.
Ouviu o som rápido dos saltos na madeira: rápido, enérgico, feminino. E quando se virou, quase entornou a segunda chávena de café.
- Uau! - conseguiu dizer. - Que te aconteceu?
-Oh. Bem, só... nada.
- Corou. Ele não sabia que as mães podiam corar. E parecia ter-se
esquecido de como a sua mãe era bonita.
O cabelo emoldurava-lhe o rosto, e os lábios e as faces estavam
atraentemente rosados. Mas o melhor era o vestido. Azul escuro, macio, era suficientemente curto para mostrar umas pernas magníficas, e
suficientemente baixo no decote para mostrar bastante mais do que o
habitual, e suficientemente justo na cintura para revelar curvas que
ele não se sentiu totalmente confortável a pensar que a mãe tinha.
- Anda muitas vezes assim pela casa?
- Ainda corada, puxou um pouco a saia, com algum desconforto.
-Vou sair, daqui a pouco. Isso é café para mim? Vou buscar-te uns bolinhos.
Foi até à bancada e pegou num frasco de vidro transparente.
- Onde vai?
-Tenho um encontro.
- Um quê?
- Um encontro. - Um pouco agitada, dispôs bolinhos em círculo num prato, exactamente como fazia quando ele chegava a casa, depois da escola. - Vou sair para jantar.
- Oh. - Um encontro? Ia jantar com um tipo? Vestida... bem, quase sem estar vestida.
Ela pousou o prato e levantou o queixo.
463
- Com o teu pai.
- Como disse?
- Disse que vou jantar com o teu pai. Ele sentou-se.
- A mãe e o pai andam... a namorar?
- Não disse que andamos a namorar. Disse que vamos jantar. Só jantar. Um jantar normal.
- Esse vestido não tem nada de normal. - O choque dava lentamente lugar ao divertimento, e era um prazer deixar-se levar por ele.
- Os olhos dele vão saltar-lhe da cabeça, quando te vir.
- Achas que fica bem? Só o usei em dois ou três cocktails. Ocasiões de negócios.
- É maravilhoso. A mãe está maravilhosa. É linda, Mãe! A surpresa, e depois as lágrimas, encheram-lhe os olhos.
- Ora, deixa-te disso.
- Devia ter-lhe dito isto todos os dias. Devia ter-lhe dito que a amo, todos os dias. Que tenho orgulho em si, todos os dias.
- Oh, Douglas. - Levou a mão ao coração, que parecia querer voar. - Lá vai a meia hora que passei com a minha cara.
- Desculpe não lhe ter dito. Desculpe não ter conseguido. Desculpe não ter falado consigo, porque tinha medo de que me culpasse.
- Te culpasse por... - Com as lágrimas a correrem-lhe pela cara, encostou a face à cabeça dele. - Oh, Douglas. Não, meu pobre querido - murmurou, e ele sentiu um
nó na garganta. - Meu rapazinho querido. Decepcionei-te de tantas formas!
- Não, mãe.
- Decepcionei, sim. Eu sei que sim. Parecia não conseguir evitar. Mas pensares uma coisa dessas. Oh, querido! - Beijou-lhe o rosto e depois tomou-o entre as mãos.
- Nem por um instante. Nunca. Juro-te, nem uma só vez, mesmo nas piores ocasiões, nem uma só vez te culpei. Eras apenas um rapazinho.
Ela pousou-lhe os lábios na testa.
- Meu rapazinho. Amo-te, Doug, e lamento não to ter dito, todos os dias. Lamento não ter falado contigo. Fechei-te a porta. Fechei a porta ao teu pai. A toda a gente.
Depois, quando quis voltar a abri-la, era tarde demais.
- Não é tarde demais. Sente-se, mãe. Sente-se. - Pegou-lhe nas mãos enquanto ela se sentava na cadeira ao lado dele. - Vou casar com a Lana Campbell.
464
- Tu... Oh, meu Deus! - Os dedos dela apertaram os dele, e mais lágrimas brotaram, ao mesmo tempo que ela começava a rir.
- Oh, meu Deus, casado! Tu vais casar! Porque é que estamos a beber café? Tenho champanhe!
- Depois. Depois, quando nos reunirmos todos.
- Estou tão feliz por ti. Mas o teu avô, vai-se passar! Completamente. Ai, mal posso esperar para contar ao Jay. Mal posso esperar para contar a toda a gente. Vamos
dar uma festa. Vamos...
- Acalme-se. Depois falamos nisso. Amo a Lana, mãe. Apaixonei-me por ela, e tudo mudou dentro de mim.
- É supostamente assim que deve ser. Meu Deus, preciso de um lenço. - Levantou-se e tirou três ou quatro de uma caixa que estava em cima da bancada. - Gosto muito
dela. Sempre gostei. E o menino dela... - Calou-se. - Oh, meu Deus, sou avó!
- Como se sente em relação a isso?
- Dá-me um minuto. - Levou a mão ao estômago e respirou fundo. - Sinto-me bem - concluiu. - Sim, sinto-me mesmo muito bem.
- Sou louco por ele. Preciso de me sentar outra vez, mãe. Há mais umas coisas que tenho de contar-lhe. Sobre a Jessica.
- Callie. - Suzanne voltou a aproximar-se da mesa e sentou-se.
- Devíamos chamar-lhe Callie.
465
Vinte e Nove

- Onde achas que devemos ir? - Callie andava de cá para lá no escritório de Jake, parando de vez em quando para estudar o esquema cronológico. - Não vale a pena
voltar a Charlotte, com a mãe dela presa. O pai morreu. Será que ela se arriscaria a tentar sair do país e a ir para as ilhas Caimão?
- Deve haver dinheiro por lá - avançou Lana. - O dinheiro dá jeito quando se anda a fugir.
-Já vimos que o Carlyle estava doente, largamente incapacitado
- prosseguiu Callie. - Se ainda vendiam bebés, é improvável que ele desempenhasse um papel central. Estava velho, doente, fora do país. Estava a morrer. Se o negócio
já não existisse, porquê ir tão longe para me impedir de localizá-lo? De descobrir? Se e quando eu o encontrasse, se e quando eu reunisse informação suficiente para
interessar às autoridades, já cá não estaria. Ou quase.
- Logicamente, os seus contactos receavam a exposição. - Jake continuou a rabiscar num bloco. - Perda de reputação, possível acusação e prisão. Ou então o negócio
continuava activo, o que leva também ao medo da exposição, da acusação e da prisão, a que acresce a perda de lucros.
- Não sei como podes falar disto como de um negócio. - Doug meteu as mãos nos bolsos. Perda da porra de lucros.
- Temos que pensar como eles - retorquiu Callie. - Ver como eles vêem. Só assim compreendemos a... - Fez um gesto na direcção de Jake. - Cultura deles, a estrutura
social da sua comunidade.
- E a tua comunidade pode estar também comprometida. - Lana aproximou-se da porta que dava para a zona de estar. - Ela não fez isto sozinha.
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- Não é nenhum deles. -Jake folheou os papéis que tinha espalhados pela sua área de trabalho, verificou dados, voltou ao seu bloco. - Ela entrou no projecto porque
tinha uma determinada aptidão profissional e credenciais falsas. Não é assim tão difícil arranjar um cartão de identidade: só foi preciso alguém com jeito para computadores
para forjar uma ligação com a universidade. Uma escavação como esta atrai estudantes, finalistas e arqueólogos itinerantes. Mas ela tinha uma aptidão específica.
- Fotografia - confirmou Callie. - É uma fotógrafa das boas.
- Talvez ganhe a vida assim. - Doug encolheu os ombros. - A vida legítima.
- Não sabia muito sobre escavações, mas aprendeu depressa. Trabalhava muito - acrescentou Callie. - O Bob e a Sonya chegaram antes de tudo isto ter começado. Estão
limpos. A Frannie e o Chuck chegaram juntos. Ela não sabia muito, mas ele sim. Esta não é, de forma nenhuma, a primeira escavação dele. Diria o mesmo sobre o Matt.
Tem um bom conhecimento dos procedimentos.
- Houve mais que vieram e foram, desde Julho, e não podemos ter certezas sobre eles. - Jake pousou o lápis. - Mas este grupo é provavelmente sólido.
- Provavelmente - ecoou Doug.
- Trabalhamos com especulação, com base em dados e em instinto - salientou Jake. - Concentramo-nos no que temos, conseguimos o melhor enquadramento possível e depois
avançamos.
Pegou num marcador e, agarrando também no seu bloco, aproximou-se do esquema cronológico.
- Acredito que a polícia a vai encontrar, e também que vai localizar os Simpson. - Lana levantou as mãos. - Depois disso, hão-de chegar ao resto. Já quebraste a
espinha dorsal da organização. Já tens as tuas respostas.
- Há mais. Ainda há mais. Não descobri tudo. - Callie parou de andar de um lado para o outro e parou junto de Jake. - O que estás a fazer?
- A cruzar dados cronológicos. Teus, do Carlyle, da Dory.
- Para quê? - perguntou Doug.
- Quanto mais dados, mais lógica será qualquer possível especulação. - Callie olhou para as novas referências que Jake colocara em paralelo. A data do primeiro casamento
de Carlyle, o nascimento do seu filho, a data da sua mudança para Boston.
- Muito tempo entre o casamento e a chegada do bebé vigoroso e saudável - comentou.
468
- Muitas vezes, as pessoas esperam vários anos antes de começarem uma família. Eu e o Steve esperámos quase quatro.
- Não era habitual esperar tanto tempo há quarenta ou cinquenta anos atrás. Seis anos, era impensável. Lana, tens os dados sobre os casos de adopção dele antes de
Boston?
- Posso procurar. Trouxe os meus ficheiros todos. Posso usar o teu computador, Jake?
- À vontade. Estou a acrescentar as datas dos abortos espontâneos da tua mãe. Não seria interessante dar uma vista de olhos aos primeiros registos médicos da Sr.a
Carlyle?
- Humm. Ainda não tens a certeza de que essa é mesmo a data de nascimento da Dory.
- Não deve andar longe. É mais ou menos da tua idade, Cal. O que a torna cerca de vinte anos mais nova do que Richard Carlyle. Segundo os meus cálculos, o Carlyle
teria mais de sessenta anos quando ela nasceu.
- Toda a gente sabe que o esperma de sexagenários dá sorte comentou Callie. - Quantos anos tem a Dorothy?
- À beira dos cinquenta, acho eu - disse Doug, atrás dela. -Já bem entrada nos cinquenta - corrigiu Lana, sem olhar em volta. - Mas muito bem conservada. Jake continuou
os seus cálculos:
- Talvez dez anos mais velha do que o Carlyle Júnior.
Doug observou-os a trabalhar. Era semelhante a vê-los cozinhar o pequeno-almoço, pensou. Os movimentos, o ritmo.
- Não estou a perceber.
- Lana? - Callie observou os segmentos, as linhas, o esquema que Jake estava a criar. - Encontraste alguma coisa?
- Estou a ver. O primeiro pedido de adopção que aqui tenho foi preenchido em quarenta e seis. Houve dois nesse ano.
- Dois anos após o casamento - murmurou Callie. - Tempo suficiente. Já estaria a exercer, quê?, há seis anos, antes de ter começado a interessar-se por adopções?
- Recuou um pouco, estudou todo o esquema, vendo a teia de ligações que se ia formando.
- É um grande salto - disse ela a Jake.
- Uma hipótese lógica baseada em dados disponíveis.
- Que é...? - Doug aproximou-se para ver o esquema e tentar descobrir o que eles conseguiam ver e ele não.
- Richard Carlyle foi a primeira criança roubada por Marcus Carlyle. Mas não por uma questão de lucro. Porque queria um filho.
469
Doug ajeitou melhor os óculos no nariz.
- Depreenderam isso a partir daqui?
- Olha bem - insistiu Callie. - Muda o objecto da sua prática de advogado dois anos após o casamento, seis anos depois do início da sua carreira. E se ele e a mulher
estivessem com problemas para conceber um filho? Ele desenvolve um interesse pessoal pela adopção, investiga, fica a saber tudo sobre os procedimentos.
- Então, porque não adoptou e pronto? - perguntou Lana.
- Vamos ter que especular, tendo em conta o tipo de homem que ele era. - Jake pegou na cafeteira, agitou os resíduos e olhou para Callie, com esperança.
- Agora não.
Ele encolheu os ombros e voltou a sentar-se.
- Gosta de comandar, de ser o centro das atenções. A sua conhecida história de infidelidade aponta para um homem que usa o sexo e considera as suas proezas parte
da sua identidade.
- A incapacidade de conceber um filho ser-lhe-ia prejudicial ao ego. - Doug fez um gesto afirmativo com a cabeça. - Isso é bom para os outros, mas ele não vai deixar
que se saiba desse seu falhanço. Mas então, como...
- Espera. - Callie levantou a mão. - Uma coisa de cada vez. Não vai publicitar uma adopção. Não está de acordo com a sua auto-imagem. Mas quer um filho, havia de
ser o tipo de pessoa que quer um filho. Não uma rapariga. Havia de querer saber exactamente de quem e de onde vinha esse filho. Não iria tolerar as regras de adopção
que vigoravam, segundo as quais adoptar uma criança implicava não ter acesso aos registos dos pais biológicos. E ele olha à sua volta. Olha para todas aquelas pessoas
que têm filhos. Dois, três, quatro filhos. E que valem muito menos do que ele. Têm menos segurança financeira, são menos importantes. São menos.
- Encaixa. - Lana fez girar a cadeira. - Pensando naquilo que sabemos sobre ele, encaixa no perfil.
- Há anos que representa pais adoptivos. Conhece a rotina, conhece médicos, outros advogados, agências. Mantém relações sociais com eles. As pessoas criam as suas
próprias tribos dentro das tribos
- continuou Jake. - Formam círculos com outros que pensam como elas, ou com quem traz algum conhecimento ou aptidão ao grupo. Usando este sistema, conhece pais biológicos
que podem enquadrar-se nos seus critérios. Deixa passar o tempo. Depois, com ou sem o acordo desses pais biológicos, arranja o seu filho. Aposto a minha colecção
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de CDs do Waylon Jennings em como não há qualquer pedido nem decreto de adopção em nome de Richard Carlyle arquivado nos tribunais, mas que existem uns falsos, algures.
- Pouco depois, muda-se para Houston. Cidade nova, escritório novo, grupo social novo.
- E como resultou, como conseguiu o que queria da forma que queria, viu nisso um meio para levar a cabo... O que é que a Dorothy lhe chamou? - perguntou Doug a Lana.
- A sua missão. O seu passatempo lucrativo.
- Viu nisso a sua maneira de ir ao encontro das necessidades de outros casais abastados e sem filhos. A sua maneira. - Doug acenou com a cabeça. - E de lucrar com
isso. É tortuoso.
- Tortuoso? - repetiu Callie.
- Não é que seja inconcebível. Mas é bastante tortuoso.
- Interessante. Tortuoso ou não, é uma suposição razoável. Acrescentemos que a determinada altura Richard descobriu. Isso provocou uma ruptura entre pai e filho.
Marcus tratava mal a sua mulher, e talvez o facto de ela não lhe ter dado um filho da forma mais tradicional tenha aumentado ou sido a causa das suas infidelidades.
- Só se divorciaram quando Richard tinha vinte anos. - Jake apontou para o esquema cronológico. - No ano em que a Dory nasceu.
- O casamento convinha a Carlyle, Mas agora o seu filho é adulto. E, possivelmente, foi nesta altura que Richard descobriu a verdade. A família desmembrou-se. O
casamento acabou.
- E Carlyle teve uma filha ilegítima com a secretária. Isso seria uma bofetada para mãe e filho. - Doug pegou na cafeteira, mas voltou a pousá-la. - É uma teoria
interessante, mas não vejo como possa ajudar a localizar a Dory.
- Há mais uma camada a explorar. - Callie voltou a olhar para o esquema cronológico. Parecia-lhe tudo muito claro, agora. Faltava apenas limpar aquele último pedaço
de terra e tudo se revelaria com clareza. - Olhem para as datas, outra vez. A mudança de Boston para Seattle. O mais distante possível. Porquê? Porque a sua secretária,
de quem é íntimo, que conhece os seus segredos profissionais, as suas actividades criminosas, que fez parte de ambos durante anos, lhe disse que estava grávida.
Mas não dele. Do filho dele.
- Dorothy Simpson e Richard Carlyle? - Lana levantou-se de um salto e apressou-se a estudar de perto o esquema cronológico.
- Um rapaz jovem, impressionante, talvez um rapaz que tenha acabado de descobrir que não é quem pensava ser. Está abalado -
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extrapolou Callie. - Está vulnerável. E está zangado. A mulher, mais velha e atraente. Se sabe que o pai esteve com ela, isso só vem piorar as coisas. "Vou mostrar
a esse filho da mãe". Dorothy está agora quase na casa dos trinta. Trabalha - e dorme - com Marcus Carlyle há muito tempo. Deu-lhe a sua primeira juventude. Talvez
ele tenha feito promessas, mas mesmo que não as tenha feito ela há-de estar cansada de ser a outra mulher. O cliché. E de não receber nada em troca. E ali está o
filho. Jovem, fresco. Mais uma facada em Carlyle.
- Se partirmos do princípio de que ela andava a dormir com ele desde que ele tinha dezoito ou dezanove anos - acrescentou Lana -, e não houve qualquer gravidez anterior,
é possível que Carlyle fosse estéril.
- Ou tiveram cuidado e muita sorte - disse Jake. - É mais lógico acreditar que foi o Carlyle mais jovem que a engravidou. O mais velho tem sessenta anos e, segundo
os dados conhecidos e as actuais suposições, nunca concebeu um filho até à data.
- O Carlyle não estava a proteger o pai, distante dele e às portas da morte - concluiu Callie. - Estava a proteger a filha.
- A questão é: para onde iria ela? - Jake desenhou um círculo à volta do nome de Richard Carlyle, no esquema. - Ter com o papá.
- Se apresentares esta teoria à polícia, só podem pensar que és doido ou brilhante. - Doug soltou um suspiro. - Mas se estiverem dispostos a aceitá-la e a lançarem
à Dorothy, talvez ela escorregue.
- Deixa-me juntar as peças todas. No papel. - Lana arregaçou as mangas. - Fazer um registo o mais objectivo e detalhado possível. Desta vez, foi ela que pegou na
cafeteira. - Mas fazia-me jeito alguma cafeína.
- Está bem, está bem, eu faço café. -- Um tanto contrariada, Callie pegou na cafeteira. Afastou-se num passo apressado e decidido, mas abrandou ao atravessar a sala.
Reconheceu o ressonar heróico que não podia ser senão de Digger. E a massa compacta na poltrona tinha de ser Matt.
Sabia que os pombinhos tinham ido para um dos quartos lá de cima e que Leo estava noutro.
Embora concordasse com a avaliação que Jake fizera da equipa, fez um desvio até ao andar de cima e espreitou em todos os quartos, para contar os presentes. Satisfeita,
desceu, foi até à cozinha, e começou a medir o café.
- Está toda a gente aqui? - perguntou Jake, atrás de si. - Achei que irias ver... e se não fosses, iria eu.
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- Estão todos aqui. - Acrescentou uma pitada de sal ao café, depois deitou a água e pôs a máquina a funcionar. - Se tivermos razão, isto dura há três gerações. Quer
Richard Carlyle tenha tomado parte activa ou não, sabia o que se passava. Há ainda qualquer coisa de mais indecente e terrível nisso. Um mal que passa de pai para
filho, e para a filha deste.
- Um patriarca poderoso que usa a sua influência, a força da sua personalidade, a lealdade da família. Foi a estrutura sobre a qual cresceram as gerações anteriores.
A base.
- E se Richard descobriu que estava na mesma situação que eu? Pior, muito pior, porque os pais dele, ou o pai, pelo menos, sabiam. Sabiam e tinham orquestrado tudo.
Como pôde ele perpetuar isso, encobrir isso, lucrar com isso?
Jake aproximou-se dela e passou-lhe os dedos, suavemente, pelo rosto ferido.
- Sabes tão bem como eu que tanto o meio como a hereditariedade ajudam a estruturar um indivíduo. Natureza e educação. Ele fez as suas próprias escolhas, e elas
levaram-no por um caminho diferente de qualquer um que tu pudesses escolher. Os teus genes, a maneira como foste criada, o teu sentido de ti própria não te teriam
permitido escolher o caminho que ele escolheu.
- E eu, teria protegido o meu pai? O pai que conhecia e amava? Se tivesse descoberto que ele era um monstro, tê-lo-ia protegido?
- Eu sei a resposta. E tu?
Ela suspirou e tirou do armário canecas lavadas.
- Sim. Não teria conseguido. Teria dado cabo de mim, mas não teria conseguido.
- Encontraste o que procuravas, Cal.
- Sim. Agora está à vista. E tenho de mostrá-lo. Não tenho escolha.
- Não. - Agarrou-a pelos ombros, puxou-a para si e beijou-lhe o alto da cabeça. - Não tens.
Callie virou-se, ao ouvir o telefone tocar.
- Credo, são duas da manhã! Quem raio está a telefonar? Dunbrook.
- Olá, Callie.
- Olá, Dory. - Callie agarrou um lápis e rabiscou na parede junto ao telefone. Chama a polícia. Localiza a chamada. - Como está o nariz?
- Dói como o diabo. E acredita, vais pagar por isto.
- Vem até cá. Podemos ir ao segundo round.
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- Vamos ter um segundo round, juro que vamos. Mas és tu que tens que vir ter comigo.
- Quando e onde?
- Achas-te tão esperta, tão popular, tão inteligente. Há semanas que ando a apertar o cerco à tua volta. E ainda estou. Tenho a tua mãe, Callie.
O sangue parou de correr-lhe nas veias, gelou.
- Não acredito.
Ouviu-se uma gargalhada, cheia de um humor terrível.
- Claro que acreditas. Não estás a perguntar-te qual das mães? Não queres saber?
- O que queres?
- Quanto estás disposta a pagar?
- Diz-me o que queres e eu dou-to.
- Quero a minha mãe! - A sua voz tornou-se mais aguda. A raiva que se desprendeu dela coagulou-se no estômago de Callie. -Vais buscá-la para ma devolveres? Estragaste-lhe
a vida, e eu vou estragar a tua.
- Só estão a fazer-lhe perguntas. - Callie começou a tremer e segurou-se à bancada. - Talvez até já a tenham deixado sair.
- Mentirosa! Mais uma mentira sobre a minha mãe e vou usar a faca que aqui tenho na tua!
- Não lhe faças mal. - O terror cravou-lhe os dedos frios na espinha. - Não lhe faças mal, Dory. - Estendeu a mão para agarrar a de Jake e apertou-a com força. -
Diz-me o que queres que eu faça e eu faço.
- Se chamares a polícia, ela está morta. Compreendes? Chama a polícia e estarás a matá-la.
- Sim. Nada de polícia. Isto é entre tu e eu. Eu compreendo. Posso falar com ela? Deixa-me falar com ela, por favor.
- Deixa-me falar com ela, por favor - imitou Dory. - Estás a falar comigo! Agora, eu é que dirijo o espectáculo, Dr.a Cabra! Eu é que mando!
- Sim, tu é que mandas. - Callie fez um esforço enorme para manter a voz firme.
- E é comigo que vais falar. Vamos falar sobre o pagamento, sobre aquilo que vais ter que fazer. Só tu e eu. Vem sozinha, ou mato-a. Mato-a sem hesitar. Sabes que
sim.
- Eu vou sozinha. Onde?
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- Simon's Hole. Tens dez minutos, ou começo a retalhá-la. Dez minutos, e o relógio acabou de começar a andar. É melhor despachares-te.
- Telemóvel - disse Jake, assim que ela desligou. - Vão tentar encontrá-la.
- Não há tempo. Ela tem a minha mãe. Meu Deus, dez minutos!
- Correu para a porta.
- Espera! Raios, não podes ir a correr, sem pensar!
- Ela deu-me dez minutos para chegar ao lago. Quase não tenho tempo para chegar lá. Ela tem a minha mãe! E vai matá-la, se eu não for lá. Agora e sozinha. Por amor
de Deus, nem sequer sei qual delas ela tem!
Ele deteve-se um pouco mais e depois tirou a sua faca da bota.
- Leva isto. Eu vou atrás de ti.
- Não podes. Ela...
- Confia em mim. - Voltou a pegar-lhe nos braços. - Não há espaço, nem tempo para mais nada. Confia em mim. Eu confio em ti.
Ela olhou-o nos olhos e decidiu-se.
- Depressa! - disse ela, e começou a correr.
O suor escorria-lhe pelas costas enquanto ela acelerava perigosamente o Rover pelas estradas estreitas e sinuosas. De cada vez que os pneus chiavam no pavimento,
ela ficava mais tensa. De cada vez que olhava para o mostrador luminoso do seu relógio, o coração saltava-lhe do peito.
Podia ser mentira, podia ser uma armadilha. Mesmo assim, conduzia mais depressa do que a sanidade permitia, concentrada nos faróis do Rover, que cortavam o escuro.
Fez o percurso em nove minutos.
Não viu nada no campo, na água, nas árvores. Isso não a impediu de saltar do carro e saltar a vedação.
- Dory! Estou aqui. Estou sozinha. Não lhe faças mal. Caminhou na direcção da água, das árvores, com o medo a subir-lhe e a descer-lhe pela espinha.
- É entre tu e eu, lembra-te. Tu e eu. Podes soltá-la. Estou aqui. Viu o flash de uma luz e virou-se na direcção dele.
- Faço tudo o que quiseres.
- Pára aí. Fizeste um bom tempo. Mas podes ter chamado a polícia, pelo caminho.
- Não chamei. Por amor de Deus, é a minha mãe! Não vou arriscar a vida dela só para te castigar!
-Já me castigaste. E para quê? Para provares como és esperta? Agora não te sentes tão esperta, pois não?
475
- Era a minha vida. - Avançou, sentindo as pernas fracas e trémulas. - Só queria saber como aconteceu. Tu não quererias, Dory?
- Fica onde estás. Mantém as mãos onde eu possa vê-las. Marcus Carlyle foi um grande homem. Um visionário. E era esperto. Mais esperto do que alguma vez conseguirás
ser. Mesmo morto, é melhor do que tu.
- Que queres que eu faça? - Ajustou os olhos à luz de que dispunha. Viu Dory, o seu rosto desfeado pelos ferimentos e pelo ódio. E sentiu qualquer coisa, mais alguém,
no limite da sua visão. - Diz-me o que queres que eu faça!
- Que sofras. Fica onde estás! - Dory recuou para a sombra. Segundos mais tarde, uma forma rolou para a frente, a meio caminho da beira do lago.
Callie viu o brilho momentâneo de um cabelo loiro, um pouco de pele pálida, e começou a correr nessa direcção.
- Eu mato-a. Para trás, ou mato-a! - Empunhava uma pistola.
- Olha para isto! Disse que tinha uma faca, não disse? Acho que me enganei. Isto parece uma pistola. Na verdade, parece a mesma pistola que usei quando quase fiz
um buraco no teu ex-marido muito sexy. Podia tê-lo feito, sabes?
Apontou-lhe a luz, e Callie viu-se forçada a proteger os olhos do clarão.
- Teria sido fácil. Já tinha morto o Dolan. Foi uma espécie de acidente. A minha intenção era só pô-lo fora de combate. Foi um impulso, quando o vi à espreita, como
eu estava à espreita.
Riu e deu um pontapé na forma amarrada e amordaçada. Callie pensou ter ouvido um gemido, e rezou.
- Mas bati-lhe com mais força do que pensava. Pareceu-me que a melhor coisa era deitá-lo ao lago. Tive esperança de que te culpassem, mas não resultou.
Eu vou atrás de ti, dissera Jake. Confiar nele. Tinha que ficar calma e confiar.
- Incendiaste o escritório da Lana.
- Purificação pelo fogo. Nunca devias tê-la contratado. Nunca devias ter começado a meter o nariz numa coisa que não te dizia respeito.
- Fiquei curiosa. Larga-a, Dory. Não há porquê magoá-la. Ela não fez nada. Eu, sim.
- Podia matar-te. - Levantou a arma e apontou-a ao coração de Callie. - E acabava-se tudo para ti. Mas isso não chega. Já não.
- Porquê o Bill? - Callie avançou um pouco quando Dory deu um passo atrás.
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- Estava à mão. E fazia demasiadas perguntas. Não reparaste? O que é isto, o que é aquilo, o que estás a fazer? Irritava-me até à medula. E não parava de querer
saber coisas sobre as aulas que eu andava a ter, sobre a minha formação. Como se tivesse alguma coisa a ver com isso. Como tu! Olha, olha o que eu encontrei.
Deu novo pontapé e outra figura rolou em direcção à água.
- Apertar o cerco à tua volta. Vês? Tenho as tuas duas mães.
Jake aproximou-se, vindo do extremo leste do bosque. Em silêncio e devagar, sem qualquer luz que o orientasse.
Deixá-la ir sozinha fora a coisa mais difícil que já fizera.
Manteve-se baixo, atento a qualquer som e a qualquer movimento. O som de vozes fez o coração disparar-lhe no peito, mas forçou-se a não dar um salto e correr na
direcção delas. Estava armado apenas com uma faca de cozinha. Fora a coisa mais rápida que conseguira agarrar, e o tempo era essencial.
Mudou de direcção, caminhando através do escuro, na direcção das vozes. E parou, com o coração a martelar, quando viu a forma humana que estava de pé, diante de
um carvalho.
Não, não estava de pé, reparou e, fazendo um sinal a impor silêncio, rastejou até mais perto.
Duas figuras, dois homens. Os pais de Callie estavam amarrados a uma árvore, amordaçados. Ambos tinham a cabeça caída sobre o peito.
Voltou a erguer a mão quando ouviu a respiração conter-se atrás de si.
- Drogados, provavelmente - murmurou. - Solta-os. - Passou a faca a Doug. - Fica com eles. Se acordarem, mantém-nos calados.
- Por amor de Deus, Jake, ela tem as duas!
- Eu sei.
- Vou contigo. - Fechou a mão sobre os dedos trémulos do pai, e depois deu a faca a Digger. - Toma conta deles.
O coração de Callie estava entorpecido. A mãe que a dera à luz, a mãe que a criara. Agora, as vidas de ambas dependiam dela.
- Tu... tinhas razão. Apertaste o cerco à minha volta. Mas não fizeste isto sozinha. Onde está o teu pai, Dory? Não é capaz de enfrentar isso, Richard? Não é capaz
de enfrentar isso, nem sequer agora?
- Descobriste, não foi? - Com um sorriso louco, Dory fez um gesto com a mão livre. - Anda, pai. Junta-te à festa.
- Porque não deixaram tudo como estava? - Richard surgiu, atrás da filha. - Porque não deixaram tudo enterrado?
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- Foi isso que fez? Limitou-se a aceitar. Nunca procurou? Há quanto tempo vive a perguntar, Richard? Como pode deixar isto acontecer, agora? O Richard é como eu.
Ele raptou-o. Nunca lhe deu opção. Nunca deu opção a ninguém.
- Fez isso com a melhor das intenções. Fosse o que fosse, deu-me uma vida boa.
- E a sua mãe?
- Ela não sabia. Ou não queria saber, o que dá no mesmo. Afastei-me dele, afastei-me do meu pai e do que ele estava a fazer.
As palmas das mãos de Callie estavam a transpirar, e ansiavam pela faca que estava escondida na bota. Percebeu que mataria para salvar a sua mãe - as suas mães -,
mataria sem hesitar.
- E isso foi suficiente? Sabendo o que sabia, não fez nada para travar a situação.
- Tinha que pensar na minha filha. Vida da minha própria vida. Para quê manchá-la com um escândalo? Porque havia a minha vida de ficar arruinada?
- Mas não criou aquela filha. Foi a Dorothy. Com muita influência de Marcus.
- A culpa não foi minha - insistiu ele. - Mal tinha vinte anos. Que havia de fazer?
- Ser homem! - Pelo canto do olho, viu Dory observar Richard. Escolhe bem, ordenou a si própria. Com cuidado, com cuidado. Ser pai. Mas deixou que ele tomasse o
controlo da situação. Mais uma vez. Ele fez dela uma pessoa com a mente retorcida, Richard. Consegue ficar aí e deixar que isto continue? Consegue fazer parte disto?
Consegue protegê-la agora, sabendo que ela matou?
- É minha filha. Nada do que aconteceu foi culpa dela. Foi dele, e não vou deixar que ela seja magoada.
- Isso mesmo. A culpa não é minha - concordou Dory. - É tua, Callie. Foste tu que provocaste isto tudo. - Olhou para as mulheres enroladas aos seus pés. - E delas.
- Tudo o que precisa fazer é desaparecer durante umas semanas
- disse Richard. - Desaparecer, o tempo suficiente para empatar a investigação policial, para eu poder levar a Dory para um sítio seguro. Para eu conseguir a libertação
da Dorothy. Sem si, perdem o elo vital. É só isso que tem de fazer.
- Foi isso que ela lhe disse? Foi assim que o convenceu a espiar a casa, a ajudá-la a fazer a roulote ir pelos ares? Foi assim que ela o convenceu a fazer isto,
esta noite? Está tão cego que não vê que ela só está interessada em causar dor? Em vingança?
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- Não é preciso magoar mais ninguém - insistiu ele. - Estou a pedir-lhe que me dê tempo.
- Ela vai mentir. - Dory atirou o cabelo para trás. - Vai dizer o que acha que quer ouvir. Queria que o meu avô pagasse. Que a minha mãe pagasse. Que toda a gente
pagasse. Mas agora, é ela que vai pagar.
Acocorando-se, encostou a arma a uma das cabeças louras.
- Dory, não! - Richard gritou, enquanto Callie tentava inspirar para gritar também.
- Qual delas vais salvar? - Empurrou a outra figura para a água.
- Se mergulhares atrás dela, eu mato esta. Se tentares salvar esta, a outra afoga-se. Decisão difícil.
- Dory, por amor de Deus! - Richard precipitou-se para a frente, mas parou quando ela lhe apontou a arma.
- Não te metas nisto! És patético. Que se dane, afoguem-se as duas! - Empurrou o corpo inanimado para o lago, e depois apontou a pistola a Callie. - Enquanto tu
vês.
- Vai para o inferno! - À espera da bala, Callie preparou-se para mergulhar.
Sentiu o movimento, mal dando por ele quando Jake saiu de entre as árvores, a correr. Estava no ar, sobre a água, quando ouviu o tiro.
Sentiu a dor aguda atravessar-lhe o ombro, mas estava dentro de água, nadando desesperadamente até onde vira desaparecer a primeira das suas mães.
Ainda não sabia qual.
Mas sabia que nunca conseguiria salvar as duas.
Encheu os pulmões de ar e mergulhou. Estava cega, mergulhando na escuridão profunda, rezando para se aperceber de qualquer sinal de movimento, de uma forma qualquer.
Os pulmões ardiam-lhe, sentia os braços e as pernas pesados e fracos na água fria, mas continuou a mergulhar fundo, mais fundo. E quando viu o tremeluzir da sombra,
cerrou os dentes e deu aos pés com toda a força.
Agarrou cabelo e puxou. Sem tempo para usar a faca, meteu uma mão debaixo da corda, usando-a para puxar o corpo para cima e bateu os pés com força em direcção à
superfície. Com os pulmões a gritar, os músculos a gemer, puxou o peso morto para cima.
Luzes dançavam-lhe diante dos olhos. Rezou para que fosse o luar à superfície. Tentava agarrar-se à água, e tentou não entrar em pânico quando lhe pareceu que a
água tomava vida e a arrastava para baixo.
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As botas pesavam-lhe como chumbo e o braço direito tremia-lhe, devido ao esforço.
Quando o ar se esgotou, começou a bater os braços desesperadamente, lutando contra a necessidade urgente de respirar. Enfraquecida, em grandes dificuldades, começou
a afundar-se.
Nesse momento, voltou a subir, quando umas mãos a puxaram para a superfície.
Engasgada, a tossir, arquejante, sentiu o ar abençoado encher-lhe os pulmões. Mesmo assim, tentou nadar até Jake enquanto ele as arrastava a ambas para a margem.
- Não. A outra. A outra afundou-se aqui perto. Por favor!
- O Doug está lá dentro. Está tudo bem. Já a trouxe para cima. Vamos tirá-la. Apanha-a!
Achou que ele gritou para alguém na margem, mas não conseguia ver. Os pontos brancos que nadavam diante dos seus olhos tinham-se tornado vermelhos e giravam em turbilhão.
Tinha os ouvidos a tinir. Mais mãos agarraram-na quando ela começou a gatinhar, tentando sair dali.
Rebolou na direcção da figura inconsciente e afastou o cabelo. E viu o rosto de Suzanne.
- Oh, meu Deus, oh, meu Deus! - Lançou um olhar desesperado em direcção ao lago. - Jake, por favor, Meu Deus!
- Espera. - Voltou a mergulhar.
- Está a respirar? - Com dedos trémulos, afastou a massa de cabelo emaranhado para tentar encontrar-lhe o pulso. -- Acho que ela não está a respirar.
- Deixa-me tentar. - Lana afastou-a. - Nadadora-salvadora, três Verões. - Empurrou a cabeça de Suzanne para trás e começou a fazer-lhe respiração boca a boca.
Callie fez um esforço para se pôr de pé e caminhou em direcção à água, tentando coordenar os movimentos.
- Não! - Era Matt quem tinha agora a arma e a apontava a Dory, deitada no chão com a cara virada para baixo. Richard estava sentado ao lado dela, com a cabeça entre
as mãos. - Não vais conseguir, Cal. E alguém vai ter de te ir buscar lá dentro. A polícia vem aí - disse ele, ao ouvir as sirenes cortarem o ar. - A ambulância também.
Chamámos as duas quando ouvimos os tiros.
- A minha mãe. - Callie olhou para o lago, e depois para Suzanne. Depois, caiu de joelhos quando três cabeças emergiram á superfície.
Ouviu alguém tossir com dificuldade, atrás de si.
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- Está a respirar! - anunciou Lana.
- Alguém que lhe corte essas cordas! - Tentando não chorar, Callie rastejou até ao lago para ajudar a puxar Vivian para a margem.
- Cortem-lhe a porcaria dessas cordas!
Uma mão saiu da água e agarrou Callie pelo pulso.
- Salvámos a tua! - conseguiu Doug dizer. Callie abraçou-se a ele:
- Salvámos a tua!
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Epílogo

Pouco passava do amanhecer quando Callie entrou na sala de espera do hospital. Era uma cena que vira vezes sem conta, mas desta vez aqueceu-lhe o coração.
A sua equipa, todos sem excepção, estava espalhada por todo o tipo de superfície disponível. Ficou satisfeita por nenhum deles estar acordado para vê-la chorar.
Estavam ali com ela. No pior momento possível da sua vida, estavam ali com ela.
Aproximou-se de Lana e abanou-a suavemente pelo ombro.
- Quê? Oh, meu Deus! - Alisou o cabelo. - Devo ter passado pelas brasas. Como estão eles?
- Está tudo a correr bem. O meu pai e o Jay estão a ter alta. Querem que a minha mãe e a Suzanne fiquem pelo menos por mais umas horas. O Doug e o Roger ainda estão
com a Suzanne, mas saem daqui a pouco.
- E tu, como estás?
- Agradecida. Mais do que sou capaz de dizer. Agradeço-te tudo o que fizeste, tudo, até teres ido buscar roupas secas.
- Não há problema. Agora, somos família. De várias maneiras, acho eu.
Callie acocorou-se.
- Ele é um bom homem, não é? O meu irmão.
- É, sim. Gosta muito de ti. Tens aqui uma família - disse ela, designando com um gesto as formas adormecidas pela sala -, que muda de tempos a tempos. E tens outra.
Que também mudou.
- Não sabia que era a Suzanne que estava a tirar do lago. Aquele horror iria viver dentro de si durante muito tempo. - Tive de
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tomar uma decisão. Ir atrás daquela que estava há mais tempo dentro de água.
- Ela podia ter morrido, se não tivesses tomado essa decisão. Por isso, foi a decisão certa. Como está o ombro?
Callie mexeu-o com muito cuidado.
- Bastante dorido. Sabes quando dizem que é só uma ferida superficial? A perspectiva é diferente quando é no nosso corpo. Leva o Doug e o Roger para casa, está bem?
O Doug está esgotado e o Roger é demasiado velho para se preocupar desta maneira. O Jay não vai querer ir-se embora até a Suzanne ter alta. Acho que há qualquer
coisa entre eles. Outra vez.
- Seria um belo círculo, não seria?
- Gosto da ideia. Lana, fá-los acreditar que está tudo bem agora.
- Está tudo bem agora, por isso vai ser fácil. A polícia tem a Dory e o Richard. Já não há mais segredos.
- Quando se souber tudo, vai haver outros como eu. Outros como a Suzanne e o Jay, como os meus pais.
- Sim. Alguns hão-de querer escavar, descobrir. Outros, vão querer deixar o assunto enterrado. Fizeste o que achaste certo, e ao agir assim impediste que as coisas
fossem mais longe. Para ti já chega, Callie.
- A pessoa mais responsável não foi punida.
- Acreditas nisso quando fazes o que fazes? Achas mesmo que tudo acaba com os ossos metidos na terra? - Lana olhou para a sua mão, para o dedo onde antes estivera
a sua aliança de casamento.
Tirara-a, guardara-a, com amor. E quando o fizera, sentira Steve a observá-la. Com amor.
- Não - disse ela.
Callie pensou em quantas vezes ouvira os murmúrios dos mortos enquanto trabalhava.
- Por isso, o meu consolo é, se há um inferno, o Marcus Carlyle está a arder nele? - Reflectiu um momento. - Acho que consigo viver com isso.
- Vai para casa, também. - Lana deu-lhe uma pequena palmada no ombro. - Leva aqui a tua família e vai para casa.
- É boa ideia.
Levaram uma hora a sair dali. Toda a gente quis ir espreitar Rosie, apesar de a alta estar prevista para aquela manhã.
No caminho de regresso a casa, Callie manteve os olhos fechados.
- Tenho muita coisa para te dizer - disse ela a Jake. - Mas tenho a cabeça um bocado zonza.
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- Há muito tempo.
- Vieste em meu auxílio, e de que maneira! E eu sabia que virias. Queria que soubesses que eu sabia que virias. Estava lá, cheia de medo até aos ossos, e pensei:
o Jake está atrás de mim. Por isso, vai tudo acabar bem.
- Ela deu-te a porra de um tiro!
- Está bem, podias ter sido trinta segundos mais rápido. Mas não guardo ressentimentos. Salvaste-me a vida, isso é que conta. Não teria sido capaz de trazê-la para
cima sozinha, e ter-me-ia afundado com ela. Precisei de ti e tu estavas lá. Nunca vou esquecer isso.
- Bem, veremos.
Abriu os olhos quando sentiu o carro parar. Pestanejou e ficou a olhar para o campo de escavações.
- Que raio estamos a fazer aqui? Meu Deus, certamente não é altura para trabalhar!
- Não, mas é um bom sítio. É importante recordar que este é um bom sítio. Vem comigo, Cal.
Saiu e esperou que ela fosse juntar-se-lhe. Pegou-lhe na mão e encaminhou-se para o portão.
- Achas que agora vou ficar tensa quando estiver na escavação, nervosa junto à água.
- Não custa pôr as coisas no seu devido lugar. - Fê-la passar o portão, também. - E tu hás-de conseguir dar a volta a isto.
- Sim, vou. E tens razão: este é um belo sítio. Um sítio importante. Também não me vou esquecer disso.
- Tenho algumas coisas para te dizer, e a minha cabeça não está zonza.
- Está bem.
- Quero-te de volta, Callie. Como antes.
Ainda virada para o lago, moveu apenas os olhos para olhar para ele.
- Ai, sim?
- Quero-nos de volta, como éramos. Só que melhor. - Como queria ver melhor o rosto dela, estendeu a mão e meteu-lhe o cabelo atrás da orelha. - Não vou deixar-te
partir outra vez. Não vou deixar-te deixar-nos partir outra vez. Ouvi aquele tiro, vi-te cair na água. Podia ter sido o fim.
Calou-se e virou a cara.
- Podia ter sido o fim - repetiu. - Não consigo esperar mais para resolver isto entre nós. Não posso desperdiçar mais tempo. -
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Virou-se para ela outra vez, os olhos cinzentos à luz difusa. O rosto grave. - Talvez eu tenha metido o pé na argola.
- Talvez?
- Tu também meteste.
As covinhas no rosto dela mexeram-se:
- Talvez.
- Preciso que me ames da mesma maneira que me amavas antes de as coisas nos terem escapado ao controlo.
- Isso é estúpido, Graystone.
- O diabo é que é! - Começou a empurrá-la, mas lembrou-se do ombro dela e parou. - Não te retribuí da forma como querias. Mas desta vez vou retribuir.
- É estúpido, porque nunca deixei de te amar, seu grande idiota. Nem penses nisso! - Pôs-lhe uma mão no peito para impedi-lo de aproximar-se, quando viu o brilho
nos olhos dele. - Desta vez, pede.
- Peço o quê?
- Sabes o quê. Se me queres de volta, faz as coisas como deve ser. Põe um joelho no chão e pede.
- Queres que me ajoelhe? - Estava sinceramente horrorizado.
- Queres ver-me rastejar e implorar?
- Sim, quero. Se quero! Assume a posição, Graystone, ou vou-me embora!
- Por amor de Deus! - Deu meia volta, afastou-se um pouco, remoendo entredentes.
- Estou à espera.
- Está bem, está bem. Raios! Estou a tentar.
- Esta noite, levei um tiro. - Abriu e fechou as pálpebras rapidamente, quando ele voltou a olhar para ela. - Ia-me afogando. Podia ter sido o fim - acrescentou,
lançando-lhe à cara as suas próprias palavras. - E alguém está a perder tempo.
- Sempre fizeste jogo sujo. - Contrariado, voltou para trás, lançou-lhe um olhar fulminante e ajoelhou-se.
- Tens de pegar-me na mão e olhar para mim cheio de emoção.
- Ora, cala-te e deixa-me fazer isto. Sinto-me um idiota. Vais casar comigo, ou quê?
- Isso não é maneira de perguntar. Tenta outra vez.
- Mãe de Deus! - Soprou ruidosamente. - Callie, casas comigo?
- Não disseste que me amavas. E acho que tens de dizer dez vezes cada vez que eu disser uma, durante os próximos cinco anos, para as coisas ficarem equilibradas.
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- Estás mesmo a divertir-te com isto, não estás?
- O mais possível.
- Callie, amo-te. - E o sorriso que aqueceu o rosto dela aliviou a tensão que ele sentia no peito. - Raios, amei-te assim que te vi. Apanhei um susto de morte e
fiquei chateado até à medula. Não lidei bem com isso. Não lidei bem com isso, porque pela primeira vez na minha vida havia uma mulher que podia magoar-me. Que era
mais importante para mim do que eu podia suportar. Que me chateava até à medula.
Emocionada, baixou-se para tocar-lhe no rosto.
- Pronto, já rastejaste o suficiente.
- Não, vou acabar isto! Levei-te para a cama depressa. Achei que o fogo tinha ardido de uma vez. Mas não foi assim. Empurrei-te para o casamento. Achei que ia ficar
tudo bem. Parecia lógico. Mas também não foi assim. E isso...
- Chateou-te até à medula.
- Pois chateou, caramba! Por isso, meti os pés pelas mãos. Deixei-te meter os pés pelas mãos. E fui-me embora porque tinha toda a certeza de que irias atrás de mim.
Mas não foi assim. Nunca mais me vou embora. Amo a pessoa que és. Mesmo quando me deixas passado, amo a pessoa que és. Amo-te. Estou a ganhar pontos, não estou?
- Sim. - Pestanejou para afastar as lágrimas. - Estás a sair-te bem. Eu também não me vou embora, Jake. Não espero que saibas o que preciso ou o que quero. Nem vou
achar que sei o que sentes ou o que pensas. Vou dizer-te. Vou perguntar-te. E vamos encontrar o nosso caminho.
Ela baixou-se para beijá-lo, mas quando ele começou a levantar-se, ela puxou-o para baixo outra vez.
- O que foi agora?
- Tens um anel?
- Estás a gozar comigo?
- É preciso um anel. Mas, felizmente para ti, por acaso tenho um.
- Tirou o fio que trazia debaixo da camisa, pegou nele e depositou-lho na mão, juntamente com a sua aliança de casamento.
Ele ficou a olhar, sentindo a emoção crescer dentro de si.
- Isto parece-me familiar.
- Só o tirei quando apareceste aqui. Pedi à Lana para trazê-la, quando foi lá a casa buscar roupas secas.
Estava quente do corpo dela, e se não estivesse já de joelhos, ver a aliança dela tê-lo-ia certamente feito cair de joelhos.
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- Usaste isto durante o tempo todo em que estivemos separados?
- Sim. Sou uma sentimentalona.
- Mas que coincidência. - Tirou uma corrente que trazia sob a camisa e mostrou-lhe uma aliança a condizer. - Eu também.
Ela segurou a corrente dele com força, usando-a para fazê-lo pôr-se de pé.
-- Fazemos cá um par!
Ele fechou a boca sobre a dela, com a mão fechada sobre a aliança.
- Queria provar que conseguia viver sem ti.
- Eu também.
- Ambos provámos que conseguíamos. Mas sou muito mais feliz contigo.
- Eu também. Oh, meu Deus! - Apesar da dor no ombro, lançou-lhe os braços à volta do pescoço. - Eu também! Desta vez, não vai ser em Las Vegas.
- Ha?
- Vamos encontrar um sítio, ter um casamento a sério. E vamos comprar uma casa.
- Vamos?
- Quero uma base. Vamos decidir onde. Quero construir um lar contigo. Um lugar onde possamos tentar ganhar raízes.
- A sério? - Ele tomou-lhe o rosto entre as mãos e depois encostou a testa à dela. - Eu também. Não me interessa onde, podemos espetar um alfinete num mapa. Mas,
desta vez, quero um lar. Callie, quero filhos.
- Assim é que é falar. A nossa tribo, o nosso povoado. Desta vez, vamos construir qualquer coisa. Este é um bom lugar. - Soltou um longo suspiro. - Vamos encontrar
um lugar tão bom como este. Vamos encontrar o nosso lugar.
- Amo-te. - Beijou cada uma das covinhas da cara dela. - Vou fazer-te feliz.
- Estás a fazer um bom trabalho, neste momento.
- E tu amas-me. És louca por mim.
- Parece que sim.
- Isso é bom. - Pegou-lhe na mão e regressaram ao carro.
- Porque há mais uma coisa. Sobre o casamento.
- Nada de réplicas do Elvis, nem de Las Vegas. Nem pensar! Vamos levar isto a sério.
- Absolutamente a sério. Só que o casamento é, bem... um bocado supérfluo, uma vez que continuamos casados.

Ela ficou estática.
- O que disseste?
Ele abriu a corrente e tirou de lá a aliança dela.
- Nunca assinei os papéis do divórcio. É que achei que vinhas atrás de mim, enfiar-mos pela garganta abaixo. O meu cenário era esse.
Jake abriu a corrente dele e tirou a sua aliança, enquanto ela olhava para ele, de boca aberta.
- Não assinaste os papéis? Não estamos divorciados?
- Não. Toma, põe isto outra vez.
- Só um minuto. - Fechou a mão com força. - E se eu me tivesse apaixonado por outra pessoa, tivesse querido casar com outra pessoa?
- Eu tinha-o morto e enterrado em campa rasa. E ter-te-ia consolado. Vá lá, Cal, deixa-me voltar a pôr-te isto no dedo. Quero ir para casa, dormir com a minha mulher.
- Achas que tem muita graça, não achas?
- Bem, acho. - Lançou-lhe aquele sorriso breve e desarmante.
- Tu não?
Ela cruzou os braços e semicerrou os olhos. Bateu com o pé no chão. Ele continuou a sorrir. Depois, estendeu a mão.
- Tens sorte por o meu sentido de humor ser tão estranho como o teu.
Ela deixou-o pôr-lhe a aliança no dedo. Depois pegou na dele e fez o mesmo. E quando ele lhe pegou ao colo e atravessou o portão, como um noivo a passar a soleira
da porta com a sua noiva, ela riu.
Olhou por cima do ombro dele, para todo o trabalho que ainda havia a fazer, para todo o passado que ainda havia a descobrir. Haviam de escavar e descobri-lo.
Descobririam tudo o que havia para descobrir. Juntos.
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