(Secret Wedding)
Emma Richmond
Bianca Dupla Nº 667
- 2º Parte
Dois opostos se atraem?
Nerina adorava seu irmão Rafaelo. E também gostava muito da amiga Débora Hart. Resolveu, então, dar uma ajuda ao destino: espalhou aos quatro ventos que
os dois estavam seriamente comprometidos. Milionário, cínico e mal-humorado, Rafaelo precisava de alguém que o fizesse ver a beleza da vida.
E Débora era uma pessoa alegre, independente e romântica. Será que o cupido chamado "Nerina" ia conseguir seu intento?
Digitalização: Ale M.
Revisão: Cássia
Copyright (c) 1997 by Emma Richmond Originalmente publicado em 1997 pela Silhouette Books, divisão da Harlequin Enterprises Limited.
Título original: Secret Wedding Tradução: Adelídia Chiarelli
Esta edição é publicada através de contrato com a Harlequin Enterprises Limited, Toronto, Canadá. Silhouette, Silhouette Desire e colofão são marcas registradas
da Harlequin Enterprises B.V.
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
CAPÍTULO I
No aeroporto, na ala de desembarque, ao lado da esteira rolante, Débora Hart aguardava pelas malas.
"Quando eu for rica, nem quero pensar em viajar na classe econômica como uma simples turista. Só vou viajar nos meus jatinhos particulares."
Débora sorriu. Nunca na vida imaginara ser uma milionária mas, afinal, nada a impedia de sonhar um pouco.
Não muito alta, cabelos castanhos bem curtinhos, rosto bonito e simpático, olhos verdes e sorriso zombeteiro, Débora era uma mulher muito atraente.
Apesar de estar sempre em contato com pessoas ricas e famosas, por causa da profissão que exercia, jamais se preocupara em imitá-las. Débora Hart tinha personalidade
própria e não se deixava influenciar por quem quer que fosse.
Vestida casualmente com uma calça bege de algodão e camisa no mesmo tom da calça, ela se sentia extremamente confortável. E era daquela maneira que gostava
de se sentir: confortável, com os movimentos livres para poder fotografar a qualquer momento.
Ao ver as malas apontarem no início da esteira, ajeitou melhor nos ombros a bolsa e a maleta que continha seu equipamento fotográfico. Segundos mais tarde,
já com as malas no carrinho, Débora se encaminhou para a saída, tentando divisar no meio das pessoas que aguardavam no saguão, o rosto de Nerina. E foi aí que Débora
sofreu um grande impacto: o impacto de dois olhos azuis-cobalto.
Cabelos castanhos, alto, esguio, musculatura muito bem-proporcionada, aquele era o homem mais devastador que Débora já tinha visto em toda a sua vida. Poder.
Aquele homem transpirava poder. E também muita confiança. Distante, ele parecia saber exatamente o efeito que causava nas pessoas.
Débora sentiu uma vontade imensa de capturar para sempre aquele rosto belíssimo com a sua máquina. Mas se conteve.
Onde estaria Nerina? A amiga não poderia ter se esquecido de sua chegada em Malta naquela madrugada.
Débora arriscou mais uma olhadela para o desconhecido. Ele continua imóvel, impassível.
Decidida a se sentar para esperar, empurrou o carrinho na direção de uma poltrona. Ao passar pelo homem que tanto a impressionara, meio intimidada, abaixou
a cabeça e seguiu em frente. Logo em seguida, ouviu uma voz masculina, muito grave, chamá-la:
- Srta. Hart?
Mesmo de costas, Débora tinha certeza de que a voz pertencia ao dono daqueles fantásticos olhos azuis. Devagar, ela virou-se e o fitou.
- Rafaelo - ele disse.
- Eu o conheço?
- Sou irmão de Nerina.
- Ah... o irmão de Nerina....
Com um olhar meio oblíquo, Rafaelo perguntou:
- Nerina não lhe contou que tinha um irmão... devastador?
- O que foi que disse? - Débora estava espantadíssima com a pergunta.
- Mas pode ficar tranqüila. Está segura comigo. - Ele continuava a fitá-la obliquamente. - Prefiro as mulheres de cabelos compridos. Podemos ir?
Sem esperar pela resposta, Rafaelo começou a empurrar o carrinho com a bagagem.
Segura! Será que Rafaelo pensava mesmo que estaria segura ao lado dele?
Débora tentava manter a cabeça e ombros erguidos, como se nada de anormal estivesse acontecendo. Mas estava. Estava acontecendo algo muito estranho com ela.
Seu corpo tremia. Tremia muito. E Débora sentia a garganta e a boca secas.
- Você não se parece com... - ela tentou falar quando estavam entrando no carro, mas engasgou.
- O que foi que disse? - Ele perguntou quando já sentados e, em seguida, deu a partida no veículo.
- Você não se parece com a sua irmã.
- É verdade.
Débora pensou que ele fosse dizer mais alguma coisa, mas se enganou.
- Sinto muito que o meu vôo tenha atrasado.
- Isso acontece.
- Esperou muito?
- Não.
Débora começou a se sentir irritada. Será que aquele homem tinha resolvido desistir de conversar só porque ela usava os cabelos curtos?
Ela deu um profundo suspiro. Estava cansada, muito cansada. Há uma semana vinha acordando muito cedo e dormindo tarde da noite. Quando pensou que fosse poder
descansar, Nerina havia telefonado, lhe implorando que viesse para Gozo. Débora, que raramente conseguia dizer não aos amigos, concordara com a viagem. E agora...
Depois de um longo suspiro, tentou prestar atenção na paisagem, mas o cansaço a impedia de ver qualquer coisa.
Mais uma vez deu uma olhada para o homem que dirigia em silêncio. Rafaelo Micallef. Fundador da Corporação Micallef, dono de hotéis espalhados pelo mundo,
um sem número de barcos turísticos, dono até de um submarino que levava as pessoas a conhecer os mistérios e as belezas que escondiam as profundezas dos oceanos.
- Como está ela? - Débora perguntou.
- Nerina? Minha irmã está muito bem.
- E como foi o último exame de sangue?
- Normal.
- Normal? - Débora sorriu, feliz.
- É. Normal. Os médicos estão muito otimistas. Acreditam que a leucemia não vai voltar.
- Isso é maravilhoso. E onde está ela? Na cama?
- Está querendo saber se Nerina está na cama? - Rafaelo balançou a cabeça em negativa. - Felizmente, não. Ela está na Sicília.
- Nerina está na Sicília? - Débora perguntou espantada. - E o que ela está fazendo por lá? Sua irmã me convida para passar uns dias aqui e, de repente, resolve
viajar?
Rafaelo não respondeu à pergunta.
- Bem, acho melhor me levar para um hotel.
- Por quê?
- Estou achando que você não está gostando dessa minha visita - ela respondeu com sinceridade, pois era exatamente aquilo que estava sentindo. - Não queria
que eu viesse, queria?
- Não.
- O senhor é sempre assim tão econômico com as palavras?
- Débora estava se irritando com a maneira dele conversar.
- Sua irmã disse quando vai voltar?
- Daqui a alguns dias.
- Alguns dias...
- Três no máximo.
Débora deu um profundo suspiro. Nerina a convidava para passar uns dias em Malta e depois resolvia, sem mais nem menos, ir viajar. Por que será que havia
agido daquela maneira?
- Bem, acho melhor eu ir para um hotel. - Ela voltou a dizer. - Também posso voltar para a minha casa e...
- Não - ele a interrompeu.
- Quando ela viajou?
- Hoje pela manhã.
- Hoje pela manhã? - Débora, aflita passou as mãos pela cabeça.
- Não, eu me enganei. Ela viajou ontem pela manhã.
Os dois ficaram em silêncio. Meia hora depois ele estacionava em frente a uma casa antiga recém-restaurada.
- Bem vinda à Malta.
- Obrigada.
- Srta. Hart...
- O que foi?
- Me desculpe por tirá-la dos seus sonhos.
- Sonhos? E quem estava sonhando?
- Você estava muito calada, pensei que estivesse sonhando.
- Não, eu não estava sonhando. Apenas observava a beleza da madrugada. Além, disso, estou muito cansada.
- Certo. - Ele desceu do veículo e foi abrir a porta da casa. Depois voltou para pegar as malas.
No exato momento em que Débora entrava na residência, o relógio batia quatro badaladas.
- Quer fazer alguma coisa antes que eu a leve até o seu quarto?
Às sete e meia da manhã ela acordou com um barulho que não soube definir. Meio confusa, ainda bastante sonada, colocou as mãos por detrás do pescoço e olhou
em volta. O quarto era muito aconchegante, a cama em que se encontrava deitada, muito bonita. Mas um sentimento muito estranho a incomodava profundamente. Era um
misto de sono, expectativa e medo. Jamais homem algum lhe chamara tanto a atenção quanto o irmão de Nerina. E aquilo não era nada bom. Ainda mais sabendo que não
estava sendo bem-vinda naquela casa.
Apesar de saber que mais algumas horas de sono a fariam sentir-se melhor, decidiu levantar-se e tomar um banho.
Sob o chuveiro, deixou que a água tépida lhe envolvesse todo o corpo, numa doce carícia e se espreguiçou. Após o banho, enxugou-se e vestiu bermuda e uma
camiseta de algodão.
Com os cabelos ainda úmidos, saiu do quarto, desceu a escada e ficou se perguntando onde seria a cozinha.
De repente, passos. Débora, mesmo contra a vontade, sentiu-se muito tensa. Logo em seguida, viu Rafaelo se aproximando.
- A sala de jantar fica a sua esquerda. Venha, precisamos conversar.
Apesar de não ter gostado da maneira nada amistosa dele, Débora não disse absolutamente nada. Apenas o seguiu, se Perguntando o quê, afinal, aquele homem,
cheio de mistérios, estaria querendo conversar.
- Não, muito obrigada. Só estou querendo dormir.
- Me acompanhe, por favor. - Rafaelo começou a subir as escadas. Depois de terem percorrido um longo corredor, ele abriu uma porta.
- É aqui que vai ficar. Espero que se sinta confortável.
- Eu me sentirei.
- Seu banheiro é ali - ele disse, após ter colocado as malas no chão, indicando uma porta ao lado do armário. - Tenha uma boa noite.
- Muito obrigada, tenha também uma boa noite de sono. - Antes que tivesse terminado de agradecê-lo, ele deixou o quarto.
Débora olhou para a cama, convidativa, muito bem arrumada com uma colcha branca de crochê. Apesar de estar com muita vontade de tomar um banho, não resistiu:
retirou a colcha e, depois de dobrá-la, deitou-se, certa de que tudo lhe pareceria bem melhor após umas boas horas de sono.
A mesa da sala de jantar estava posta.
Débora sentou-se e serviu-se de uma xícara de café, esperando que Rafaelo dissesse alguma coisa. Mas ele, que também havia sentado, se manteve calado.
Ela, então, resolveu não dar muito importância àquele homem. Mas a decisão só durou alguns minutos, até que terminasse a primeira xícara de café. O silêncio
de Rafaelo começava a incomodá-la. E muito.
Para disfarçar o constrangimento, depois de comer duas torradas e tomar um copo de leite, ela serviu-se de uma outra xícara de café. Em um dado momento,
não suportando mais a situação nem o silêncio, disse:
- Daria para me dizer o motivo de tanto distanciamento?
- Distanciamento? - Rafaelo a fixou com aqueles dois enormes e fantásticos olhos azuis e Débora, apesar de sentir um frio percorrer-lhe o corpo, o enfrentou:
- Exatamente: distanciamento. Pelo que estou entendendo, sua irmã me convidou para passar uns dias aqui sem o seu consentimento.
- Sem o meu conhecimento - ele a corrigiu.
"Nerina não podia ter feito isso comigo!", ela logo pensou.
- Mas sua irmã me disse...
- Ela lhe disse... - Rafaelo a interrompeu com um certo cinismo na voz.
- Nerina nunca vai mudar. Garanto que ela lhe contou sobre a minha vinda dez minutos antes de partir para a Sicília.
Mais uma vez Rafaelo apenas acenou com a cabeça, concordando com as palavras dela.
- Por quê? Por que será que Nerina fez isso? Ela não me disse que você estaria em casa. Bem, na verdade, sua irmã não me disse muita coisa. Ela deve ter
pensado que você me receberia de braços abertos. - Tentando brincar, para acabar de vez com aquela situação constrangedora, ela perguntou: - E seus braços não estão
abertos para me receber, acertei?
- Acertou - a resposta dele foi categórica.
- Meu Deus, quanta sinceridade... - Débora inspirou profundamente. - Só não estou entendendo uma coisa nisso tudo: sua irmã deve conhecê-lo muito bem. Por
que me pediu para vir para cá? Isso não faz sentido.
- A senhorita realmente não sabe o porquê da minha irmã ter lhe pedido que viesse para cá?
- Não, eu não sei. Nossa conversa ao telefone foi muito rápida. Mas ela insistiu muito para que eu viesse fazer algumas fotografias. Para lhe dizer a verdade,
achei-a meio confusa ao telefone.
- Bem, se não sabe exatamente o que veio fazer aqui, pergunte à Nerina, quando ela lhe telefonar. Com certeza a minha irmã vai fazer isso.
- Quando Nerina telefonar, não estarei mais aqui.
- Não?
- Não. Vou pegar o primeiro avião e seguir para a minha casa.
- E quem vai contar à Nerina?
- Contar à Nerina, o quê?
- Que você foi embora.
- Você.
- Não, eu não farei isso.
- Você é um homem muito estranho.
- Sou? - ele perguntou de um modo sedutor.
- Muito: você é um homem muito estranho e deixou bem claro que não me quer aqui nesta casa.
- Exatamente.
- E eu, sr. Micallef, não vou ficar numa casa onde não estou sendo desejada, onde não estou sendo bem recebida. Sua irmã me convidou para descansar alguns
dias aqui, ela me convidou para umas pequenas férias e para fazer algumas fotografias.
- Se ela a convidou, deve ter estas férias. Em Gozo.
- O quê? - Débora perguntou, intrigada.
- Em Gozo. A ilha irmã de Malta.
- Não precisa me ensinar geografia. Eu sei onde fica Gozo! Só quis dizer que...
- Vou lhe dar o endereço da minha vila em Xlendi.
- Shendi - ela tentou repetir a palavra que nunca tinha ouvido. - É assim que se pronuncia?
- Mais ou menos. A maior parte dos nomes por aqui são de origem semita. Pronunciá-los vai ser um problema para a senhorita.
- Isso se eu fosse ficar, o que não é o caso.
- Você é mesmo fotógrafa?
- Sou.
- Profissional?
- Exatamente.
- Nerina me contou...
Ele se levantou, foi até uma pequena estante e voltou com algo na mão.
- Dê uma olhada. - Ele lhe entregou o que tinha pego da estante.
Só então Débora viu do que se tratava: era um folheto ilustrado que falava a respeito das maravilhas oferecidas pela empresa Micallef em Gozo.
Após visto o folheto, Débora comentou:
- Sua irmã disse que você estava precisando de um fotógrafo e, depois de ver isso aqui - ela ergueu o folheto -, estou certa de que Nerina não estava brincando.
Quem fez essas fotografias?
- Ninguém importante.
- A pessoa que fez isso não pode ser um profissional: as fotos são. comuns, previsíveis, aborrecidas, sem nada de novo.
- É mesmo? - ele ironizou.
- É mesmo. As fotos que quer são para atrair turistas, não são? - Ela voltou a examinar o folheto.
- São. Estou pretendendo fazer uma espécie de revista, onde possa mostrar com muito detalhes as belezas que temos por aqui.
- Olhe essas fotos. - Ela apontou para o folheto, mas não esperava que Rafaelo se aproximasse tanto.
- O que tem essas fotos de errado?
- Tudo: aqui estou vendo apenas um barco e um submarino.
- E foi exatamente isso que o fotógrafo quis mostrar.
- Mas, pelo que entendi, você quer mostrar às pessoas muito mais do que um barco e um submarino.
- Não entendi...
- Uma fotografia promocional tem de ser criativa, atraente, excitante...
- Os submarinos não são excitantes. Eles submergem e pronto. Não estou pretendendo concorrer a nenhum prêmio de fotografia.
- Para se fotografar, sr. Micallef, para se fotografar a coisa mais simples que existe, é preciso de muita sensibilidade e olhar crítico. E acredito mesmo
que esteja precisando de um bom fotógrafo.
- A senhorita, por exemplo?
- Eu? - Ela sorriu. - Depois dos seus comentários, do seu comportamento, de maneira alguma.
- Você também é uma mulher muito estranha.
- Eu? Estranha? De jeito nenhum. Sou uma mulher comum, como qualquer outra.
- Não, você é diferente. Nunca encontrei uma mulher com uma crítica tão exacerbada.
- Sou uma profissional, sr. Micallef. E não posso dizer que gostei das fotografias que me mostrou. Na minha opinião, elas são péssimas. E por falar nisso,
por que resolveu mostrá-las a mim? - Débora resolveu provocá-lo: - Para mostrar que seria imprescindível que eu ficasse?
Rafaelo pensou um pouco antes de responder:
- Gostaria que fizesse as fotos lá em Gozo.
- Você não conhece o meu trabalho.
- Se eu gostar das fotos, eu as usarei para o que estou precisando. Se não gostar...
- Se não gostar, vai colocá-las no seu álbum de família - ela completou-lhe a frase.
- Talvez.
- Faz sempre questão de ser tão antipático, sr. Micallef?
- Rafaelo.
- Sr. Micallef - ela reiterou. - Só os amigos se tratam pelo primeiro nome. Pelo que estou podendo constatar, jamais seremos amigos. E quero que saiba de
uma coisa: quando sua irmã pediu que eu viesse fazer as fotografias, pensei que estivesse de acordo.
- Pensou? - Rafaelo deu um sorrisinho cínico. - Minha irmã não está em posição de contratar ninguém para trabalhar para mim. Será que não sabia?
- Não, eu não sabia. Achei que tivesse pedido a ela para que entrasse em contato comigo. Como não fez isso - Débora se levantou -, só me resta ir embora.
Agradeço a sua hospitalidade. Gostaria agora que me desse o número de um telefone onde eu possa conseguir um táxi.
- Você, além de estranha, é uma mulher muito decidida.
- Eu sou, sim.
- Vá para Gozo - ele pediu.
- Por quê? Está com medo de que sua irmã fique magoada, caso eu vá embora?
- Talvez.
- Você é um homem que preza muito a sua privacidade, não é?
- Sou.
- E com essa, digamos... paranóia toda com respeito a sua privacidade, está com medo de que eu descubra os seus casos e comente sobre eles?
- Medo? Não, eu não tenho medo, pois duvido que encontrará qualquer pessoa em Gozo que esteja disposta a falar sobre mim. E eu não sou paranóico. No entanto,
se acha que corro algum risco em tê-la por perto, posso fazer um contrato onde existirá uma cláusula...
- Uma cláusula que rezaria o quê? - Débora fez questão de interrompê-lo só para vê-lo irritado. Rafaelo Micallef parecia que nunca tinha sido interrompido
na vida.
- Gostaria de não ser interrompido quando estivesse falando.
- É mesmo? - ela ironizou. - Mas que grande coincidência. Eu também não gosto de ser interrompida quando estou falando. E você já fez isso mais do que uma
vez. Mas vamos lá: o que rezaria esta cláusula?
- Nela eu exigiria que, enquanto estivesse trabalhando para mim, mantivesse a boca fechada, sob quaisquer circunstâncias.
- Até que poderia fazer isso. - Débora estava querendo ver até onde aquela conversa iria chegar. - Poderia. Afinal, o fato de ser amiga de Nerina não é uma
garantia de que eu seja uma pessoa honesta.
- Não, não é. Mas, pensando melhor, se fosse uma fofoqueira a serviço de algum jornal, um contrato não a faria ficar de boca fechada. Portanto, para mim
sua palavra é mais do que suficiente.
- Isso que acabou de falar também pode ser encarado como chantagem emocional, sabia?
- É mesmo?
- Claro que é. - Ela respondeu e ergueu a cabeça. Depois de um sorrisinho sarcástico, continuou: - Mesmo assim, eu juro que nunca falarei nada sobre a Corporação,
nem no presente e nem no futuro. Juro não discutir em público os seus interesses. Eu juro...
- Vá para Gozo e faça as fotografias, srta. Hart.
- E se eu não for? Está pretendendo fazer o quê?
- Nada.
- E se eu for? Vai me deixar fazer o trabalho sossegada?
- Vou. Garanto que prefere trabalhar sozinha.
- Não interferiria no meu trabalho?
- De maneira alguma.
- E posso acreditar nisso? - Débora perguntou, desconfiada.
- Pode. Mas me diga: você é mesmo muito amiga da minha irmã?
- Sou, sim, muito amiga de Nerina.
- Então, quando ela voltar, tem de lhe dizer que prefere trabalhar sozinha.
- Isso que está me pedindo é para protegê-lo?
- Não entendi, srta. Hart.
- Tem medo de que sua irmã o faça ir até Gozo para ficar comigo?
- Não, quero que diga a minha irmã que prefere trabalhar sozinha para o caso de ela resolver ir para lá ficar em sua companhia.
Meio confusa com a conversa, Débora comentou:
- Mas você me disse que Nerina está bem de saúde.
- E ela está, sim, muito bem de saúde. Só que o que estou lhe pedindo não tem nada a ver com a saúde da minha irmã, apenas com suas emoções.
- Minhas emoções?
- Não, com as emoções da minha irmã.
- Como assim? - Débora perguntou.
- Vou lhe explicar.
- Acho bom. - Débora balançou a cabeça em negativa. - Definitivamente, você não gosta de mim.
- Detesto manipulação, srta. Hart. E acho que está manipulando a minha irmã.
- Eu? Acha que estou manipulando a Nerina? - Débora estava espantadíssima com o que acabara de ouvir.
- Acho.
- Por quê? - ela o desafio. - Me diga por que está achando que manipulo a sua irmã.
- Não estou achando, srta. Hart. Eu tenho absoluta certeza.
- O que você está falando é um grande absurdo.
- De maneira algum. Desde que a conheceu, só tem palavras para elogiá-la: é Débora isso, é Débora aquilo... Acho, francamente, que é muito velha para ser
amiga da minha irmã.
- Muito velha? - Débora não pôde deixar de rir. - Eu tenho apenas vinte e nove anos.
- Quase trinta.
- Tudo bem, quase trinta - ela concordou. - Mas posso lhe assegurar que ainda não estou decrépita.
- Eu não disse isso. Só acho que é muito mais velha do que a minha irmã. Nerina tem apenas dezenove anos e é uma pessoa muito influenciável. Por causa da
doença, ela ficou muito sozinha e agora precisa aprender começar a jogar.
- Jogar? - ela perguntou, espantada. - Sobre que tipo de jogos está se referindo?
- Estou me referindo às brincadeiras comuns a todos os adolescentes.
- E que brincadeiras são essas?
- Flertar, falar besteiras e ter muita alegria. Eu adoro a minha irmã e quero que faça tudo o que teria feito até agora, se não fosse a doença. E quero que
Nerina se comporte como uma jovem da idade dela, não como uma mulher bem mais velha. Minha irmã vive dizendo que quer ser como sua grande amiga Débora Hart: sofisticada
e...
- Não sou sofisticada - Débora voltou a interrompê-lo. - Sou comum, muito comum.
- Mas com muita experiência.
- E daí? - Ela o fitou de maneira desafiadora.
- Não quero ver minha irmã imitando-a.
- Muito obrigada!
- Olha - ele titubeou -, acho que não me expliquei muito bem...
- Explicou, claro que se explicou muito bem. O senhor se explicou direitinho. Meu Deus, quanta frieza! Estou diante de um homem extremamente analítico e
muito frio.
- Só quero que minha irmã seja jovem!
- Eu sou jovem!
- Mas não tem de aprender mais nada na vida.
- Será que não?
- Está entendendo o que estou querendo dizer. Se minha irmã continuar querendo imitá-la, vai acabar desorientada, não sabendo quem ela é na realidade.
- Então, por causa disso, quer que eu me afaste de Nerina. Quer que eu lhe diga que trabalho melhor sozinha e não preciso da ajuda dela.
- Se gostar de verdade da minha irmã, fará exatamente isso.
- Eu gosto muito dela!
- Então, faça o que estou lhe pedindo. - Rafaelo balançou a cabeça de um lado para o outro. - Você é dez anos mais velha que a minha irmã.
- E isso, pelo que estou entendendo, faz de mim uma pessoa nefasta à formação dela. - Débora riu. - Não posso acreditar no que estou ouvindo. Entenda, apesar
da diferença de idade, que não acho tão grande assim, nos tornamos muito amigas.
- Aí, aproveitou para apresentá-la a um tipo de pessoas que, para mim, têm de ficar bem longe de Nerina.
- Está falando besteira.
- Não, o que estou falando não é besteira! Você levou a minha irmã para assistir a uma sessão de fotografias de modas sem o meu consentimento.
- Consentimento? - Débora voltou a rir. - Ela não é mais uma criança!
- É, sim, srta. Hart! Nerina é uma criança! E você a incentivou a me desobedecer, você a incentivou a me deixar no hotel preocupado, desesperado, sem saber
onde ela tinha ido.
- Espere um minuto, eu...
- Espere você! - Rafaelo estava furioso. - Quem está pensando que é, hem, srta. Hart? Você apresentou Nerina a uma cambada de vagabundos!
- Cambada de vagabundos? Essa é muito boa! Eu a apresentei a dois atores de televisão em início de carreira, um agente e três modelos muito famosas. E posso
lhe garantir que nem um deles é vagabundo.
- Tem certeza disso? - Rafaelo ironizou.
- Absoluta. Todas as pessoas que ela conheceu são muito decentes. - Débora deu um profundo suspiro. - Quer dizer que Nerina não lhe disse com quem esteve
naquela noite?
- Não.
- Na certa porque achou que não fosse acreditar nela. Aí, o senhor resolveu deduzir que ela havia conhecido uma cambada de vagabundos. Isso é inacreditável.
Sua imaginação é muito fértil e muito preconceituosa também.
- Olha como fala, mocinha.
- Eu falo o que quero e exatamente o que está passando pela minha cabeça. Como a sua irmã resolveu não lhe contar detalhes sobre aquela noite, deduziu que
algo muito sinistro, proibido, estava sendo escondido. Além de preconceituoso, você é também muito contraditório.
- Contraditório? Eu? Por quê?
- E ainda tem coragem de perguntar? - Débora deu uma risada nervosa. - Não acaba de me dizer que está pretendendo que sua irmã comece a jogar?
- Não existe contradição no que eu lhe disse. Quero, sim, que a minha irmã aprenda a jogar, a se relacionar com as outras pessoas. Mas não quero que ela
se relacione com desqualificados!
- Eles não são desqualificados!
- Não tenho tanta certeza assim. Além disso, você a incentivou a ficar fora até altas horas da madrugada.
- Nerina chegou no hotel um pouco antes da meia-noite. E não fizemos nada demais. Apenas tomamos drinques leves, conversamos... - Débora balançou a cabeça
em negativa. - Não dá para acreditar que eu esteja aqui falando sobre esse assunto com você. Mas não dá mesmo! Sua irmã estava apenas querendo se divertir um pouco.
E foi isso exatamente o que aconteceu. E Deus sabe o quanto ela quis se divertir nesses últimos anos e não pôde.
Débora deu um profundo suspiro e continuou:
- Então é por isso que não gosta de mim? Só porque eu levei Nerina para se divertir um pouco sem o seu consentimento? Pois muito bem: não sabia que ignorava
o paradeiro dela naquela noite. Não sabia que estava no hotel desesperado.
- Não sabia mesmo?
- Não, eu não sabia.
- Bem, vou aceitar a sua versão dos fatos. Porém, continuo achando que é muito velha para se relacionar com a minha irmã.
- Isso é o maior absurdo que já ouvi em toda a minha vida! Sua irmã e eu não moramos sob o mesmo teto. Apenas nos encontramos algumas vezes e trocamos correspondências.
Será que está pretendendo que eu rompa definitivamente a minha amizade com ela?
- Não, não é isso que estou pretendendo. Só não quero que continue a encher a cabeça da minha irmã com besteiras sobre o seu estilo de vida.
- Meu estilo de vida? - Débora o fitou, os olhos arregalados. - Que tipo de vida está pensando que eu levo? Trabalho duro para sobreviver, sabia? Não tenho
uma vida glamourosa, pode estar certo disso.
- Acontece, srta. Hart, que para a minha irmã a sua vida é bastante excitante e bastante glamourosa, sim. - Ele mordeu o lábio inferior. - Mas, para ser
coerente comigo mesmo, devo concordar que sua vida não é nenhum bicho de sete cabeças. Minhas investigações comprovaram o que acabei de falar.
- Investigações? - Débora perguntou, preocupada. O que Rafaelo Micallef havia descoberto? Afinal, nem Nerina sabia quem ela realmente era. - Você mandou
investigar a minha vida?
- Algo a está preocupando, srta. Hart? - ele perguntou com muita ironia.
- Não. Ou melhor: sim! Não tinha o direito e mandar me investigar. Quem o ouve falar vai pensar que sou uma criminosa.
- Por que está tão preocupada?
- Porque acho a sua atitude desprezível.
- Pode se tranqüilizar, a investigação foi bastante superficial.
- Não existe nada na minha vida de que eu me envergonhe.
- Eu sei disso. Foi o que a investigação me mostrou. Mandei fazê-la só para saber se era um pessoa íntegra. Nerina é muito jovem e muito influenciável.
- Quer dizer, então, que chegou a duvidar da minha integridade.
- Cheguei, sim.
- E achou que eu estivesse atrás do dinheiro da sua irmã?
- Não seria a primeira vez que uma oportunista tenta se aproximar de uma garota rica.
- Eu não sou uma oportunista! - Débora gritou.
- Agora eu sei disso, mas antes da investigação tinha todos os motivos para pensar exatamente ao contrário.
Débora passou as mãos pela cabeça e perguntou:
- Você realmente pensou que eu estivesse atrás do dinheiro da sua irmã?
- Também pensei que estivesse com pena dela.
- Nerina não precisa que ninguém sinta pena dela.
- Não, ela não precisa - Rafaelo concordou.
- Tem mais alguma coisa para me dizer, sr. Micallef? - Débora perguntou com muita raiva.
- Não, mais nada.
- Ótimo.
- Você pode pegar a balsa amanhã cedo.
- Não vou pegar nenhuma balsa. Vou, isto sim, voltar para a minha casa hoje mesmo.
- Quero que faça as fotografias.
- Mas eu não quero trabalhar para você.
- Ótimo. - Ele ignorou-lhe o comentário. - A balsa sai de hora em hora. Direi à Nerina onde você está.
- Pelo jeito, está acostumado a mandar em tudo e em todos.
- Para você ver como são as coisas... - Ele deu um rápido sorriso. - O dia hoje está muito bonito. Aproveite para desfrutá-lo. Tenho uma piscina imensa e
a geladeira está cheia. Quando estiver com fome é só servir-se.
- Você não tem uma empregada?
- Não, pelo menos nenhuma que more aqui. Faço questão de privacidade. Se quiser algo que não consiga encontrar, é só ligar para o meu escritório. - Rafaelo
pegou um cartão, escreveu algo nele e o colocou sobre a mesa. - Neste cartão tem o endereço da minha vila em Xlendi. Tem também o endereço e o telefone do meu escritório.
Débora olhou para o cartão. Sabia que não podia ficar mais nem um segundo ali naquela casa. Porém de repente, lembrou-se do pedido de Nerina ao telefone:
Por favor, Débora, você tem de vir para cá.
Ela deu um profundo suspiro. Será que sua jovem amiga estava doente e não quisera lhe contar por telefone? Mas se Nerina estivesse doente, fatalmente ela
contaria ao irmão. Ou não? E o que a garota teria ido fazer na Sicília?
Rafaelo havia se aproximado de novo da estante e folheava um livro. Débora, no entanto, continuava se sentindo profundamente apreensiva. Será que Rafaelo
obrigara a irmã a viajar para a Sicília? Mas a troco de quê?
Ela deu um profundo suspiro. O melhor que tinha a fazer era ficar. Ficar para conseguir entender melhor aquela situação. Nerina poderia estar precisando
dela. Claro, era claro que sabia que era dez anos mais velha do que a garota e que, sob circunstâncias comuns, uma diferença de idade tão grande normalmente impedia
que uma amizade florescesse. Mas as duas não tinham se conhecido sob circunstâncias comuns. Débora a conhecera através de um hospital de Londres, especializado em
tratamento de pessoas submetidas a transplante de medula óssea. E sem o transplante, ao qual fora submetida, Nerina jamais teria sido capaz de vencer a doença.
Débora balançou a cabeça em negativa. Por quê? Por que a vida precisava ser tão complicada? Tudo o que ela realmente queria daquela viagem era conviver um
pouco com uma pessoa de quem aprendera a gostar e que tinha sofrido muito. Jamais imaginara que fosse se deparar com o todo-poderoso, com o dono de todas as verdades,
com o homem mais egoísta e autoritário que conhecera em toda a sua vida. Nerina, uma vez, tinha lhe dito que Rafaelo era muito afetivo. Mas, na opinião de Débora,
Rafaelo Micallef não tinha nada de afetivo. Ele era um homem frio, distante e profundamente desconfiado.
O melhor que tinha a fazer era ir para Gozo, Débora decidiu depois de muito pensar. Mas não faria as fotografias. Iria para Gozo e esperaria por Nerina.
Precisava ficar sabendo o que realmente estava acontecendo com a garota. Naquela casa não dava para ficar. Não iria querer viver, nem por poucos dias, sob o mesmo
teto que Rafaelo Micallef.
O telefone tocou. Rafaelo deixou o local onde se encontravam e foi atender a chamada. Minutos mais tarde, ele voltou e disse:
- Acabei de ser parabenizado.
- É mesmo? - Débora perguntou com sarcasmo.
- É mesmo - ele imitou-lhe o tom de voz.
- Parabenizado... E por que o parabenizaram?
- Pelo meu noivado.
- Oh, isso é muito bom.
- Será?
- Bem, acho que é. Você não acha? - Débora estava estranhando muito aquela conversa.
- Será? - Rafaelo voltou a perguntar.
- E não é?
Em resposta, ele balançou a cabeça em negativa.
- Por quê? Você não queria ficar noivo?
- Não.
- Então, rompa o noivado.
Rafaelo sorriu de uma maneira misteriosa.
- Por que você está me olhando desse jeito? - ela quis saber. - E por que está rindo?
- Não faz a menor idéia?
- Mas é claro que não!
- E não quer saber quem é a minha noiva?
- Na verdade, não. Por que iria querer saber quem é a sua noiva? Na certa eu não a conheço.
- Será?
- Você, pelo que estou podendo constatar, tem um vocabulário muito restrito. Não pode dizer outra coisa no lugar deste será?
- Você sabe usar as palavras muito bem.
- Graças a Deus! - Ela deu um suspiro impaciente.
- E então?
- Então, o quê?
- Não vai me perguntar quem é a minha noiva?
- Não, não vou. Não tenho o menor interesse em saber quem é a sua noiva.
Rafaelo se aproximou de Débora e, bastante insinuante, pediu:
- Vamos, me pergunte quem é a minha noiva.
- Tudo bem - ela estava a fim de acabar logo com aquilo -, quem é a sua noiva?
- Você.
CAPÍTULO II
- O quê? Eu? - Débora perguntou num tom esganiçado de voz. - Não seja ridículo. Nunca fui e jamais serei noiva de um homem como você.
- Será?
- Quer parar com esse bendito será? Já estou perdendo a paciência. Por que está me dizendo uma asneira tão grande?
- Por que você está desesperada.
- Eu? Desesperada? Por que eu estaria desesperada?
- Por quê, não: por quem. Você está desesperada por mim.
- Desesperada por você? - Ela sorriu de maneira nervosa. - Acho que estou diante de um maluco. Nem mesmo gosto de você! Olha aqui...
- Diga - Rafaelo se aproximou mais ainda dela.
- Você é maluco?
- Acho que não.
- Então, por favor, pare com essa brincadeira.
- Mas eu acabei de receber um telefonema me cumprimentando pelo noivado. E a noiva, pelo que me disseram, é uma tal de Débora Hart. Você conhece alguma outra
Débora Hart?
- Existe um grande equívoco nessa história toda. Acha que tenho algo a ver com o telefonema que acabou de receber? Acredita mesmo que andei espalhando por
aí que sou sua noiva?
- E você não fez isso?
- Mas é claro que não! - ela gritou. - Vim aqui passar alguns dias a convite de sua irmã. - E como poderia ser ou ficar noiva de alguém que até algumas horas
atrás eu nem conhecia?
- Essa é uma pergunta que também estou me fazendo. - Depois de fitá-la com atenção por alguns segundos, Rafaelo disse: - Tudo bem, até que me provem o contrário,
vou aceitar a sua palavra.
- Você é um homem muito bondoso - ela comentou com muito sarcasmo. - Mas me diga: quem disse que estávamos noivos?
- Alguém... - Dando-lhe as costas, ele ordenou. - Vá para Gozo.
- Gozo? Agora? Quer que eu vá para Gozo depois dessa história maluca de noivado?
- Exatamente. E se alguém lhe perguntar sobre o noivado, não negue.
- E por quê? Por que eu vou ter de mentir?
- Porque estou dizendo para fazer isso.
- E sua palavra é lei?
- Faça o que eu estou mandando, srta. Hart - Rafaelo disse e saiu da sala.
Aflita, Débora não sabia em quê pensar. Noiva? Noiva de Rafaelo Micallef? Deus do céu! Que brincadeira era aquela? E por que teria de mentir? Com toda certeza,
nem remotamente passava pela cabeça daquele homem se tornar noivo dela um dia.
Confusa, Débora permaneceu na sala por mais algum tempo. Em seguida, levantou-se e foi para o quarto, onde refez as malas. Precisava se ver longe daquela
casa o mais depressa possível. Iria para Gozo e aguardaria por Nerina.
Duas horas mais tarde, sem saber direito como tinha chegado ali, Débora se encontrava no local onde logo pegaria a balsa para Gozo. Quando o táxi a trouxera,
muito preocupada e pensativa, não tinha prestado a menor atenção na estrada, nem nas belezas da ilha. Por quê? Por que não fora direto para o aeroporto? Por que
resolvera ir para Gozo depois daquela confusão toda? Noiva? Ela? Noiva de Rafaelo Micallef? Aquilo só poderia mesmo ser uma grande brincadeira. Como alguém pudera
pensar que os dois estavam noivos? Afinal, eles tinham acabado de se conhecer.
Apesar de fazer um esforço imenso para não pensar naquele homem que tanto a havia impressionado, Débora se perguntava qual o motivo real que a levara a seguir,
sem muito reclamar, exatamente aquilo que ele lhe ordenara e, de uma certa maneira, ter acabado concordando com aquela farsa.
Estaria Nerina por trás daquilo tudo? Será que tinha sido a garota quem resolvera espalhar que os dois estavam noivos?
Devagar, segurando as malas ela olhou para a multidão que tinha a sua frente. Para comprar a passagem precisaria enfrentar a fila. A contragosto, foi o que
ela fez.
Porém, mil perguntas, mil hipóteses continuaram povoan-do-lhe a mente.
Após ter comprado a passagem, Débora se encaminhou para o ancoradouro. Nem o chapéu branco de abas largas que usava, nem os óculos escuros a estavam protegendo
do sol intenso. Mas o sol, se comparado ao delírio dos viajantes que se amontoavam no ancoradouro não era nada. Pessoas gritavam, outras batiam fotografias, numa
mistura incrível de idiomas. Será que todos os turistas tinham decidido ir conhecer Gozo naquela manhã?
Após muito esforço e muita paciência, Débora conseguiu embarcar. Ela fez toda a travessia encostada à amurada da balsa e sentia que seu humor piorava a cada
segundo que passava. Tudo ao seu redor era muito bonito, mas ela era incapaz de enxergar qualquer coisa.
Já no ancoradouro de Gozo, onde vários ônibus aguardavam pelos passageiros, Débora não sabia que atitude tomar. Depois de muito hesitar, resolveu entrar
numa fila, a segunda daquele dia. A primeira tinha sido para comprar a passagem para a travessia.
Na frente de Débora um casal conversava em uma língua que ela nunca ouvira antes.
Devagar, as pessoas foram entrando no ônibus. Quando chegou a vez dela, um homem, certamente um guia de turismo, lhe perguntou:
- Qual é o seu nome?
- O meu nome? - ela o fitou espantada.
- É. Quero saber qual é o seu nome?
- Débora Hart.
O guia, muito nervoso, checou a lista de nomes que tinha nas mãos e disse:
- Aqui não tem nenhuma Débora Hart. Eu sabia, sabia que você não fazia parte dos meus turistas. Não lembro de tê-la visto lá na agência de viagem quando
checamos a lista antes de sair.
- Mas eu não faço parte da sua excursão.
- Se não faz parte da minha excursão, o que está fazendo na minha fila?
- Sua fila?
- Minha fila, sim - o guia respondeu-lhe com um péssimo humor. - Neste ônibus só entra quem está fazendo parte da minha excursão.
- Mas eu preciso sair daqui.
- O problema não é meu. Por favor, procure uma outra maneira de chegar à cidade.
Débora teve vontade de continuar a discussão com o guia, mas viu que de nada iria adiantar. Mais uma vez, como as inúmeras que havia pensado durante a viagem,
viu que jamais deveria ter ousado pôr os pés em Malta, e muito menos em Gozo.
Sentindo-se péssima, ela se encaminhou para o local onde um sem número de pessoas pareciam estar aguardando um táxi. De repente, não pôde acreditar no que
os seus olhos viam. Descendo de um carro branco, Rafaelo Micallef olhava para a multidão.
- Será que esse homem veio voando? - Débora perguntou em voz baixa. - Bem, ele também pode ter vindo nadando ou, quem sabe, se materializou aqui em Gozo.
- O quê? - a pessoa que se encontrava ao seu lado perguntou. Só então Débora notou uma jovem morena que usava calças jeans surradas, botas de cano alto e
uma miniblusa.
- Você falou comigo? - Débora perguntou à garota.
- Falei. Estou querendo saber se você conhece o cara. - A garota mantinha o olhar fixo em Rafaelo.
- Quem?
- Ele! - A garota se mostrava impaciente. - O homem que saiu do carro branco.
- Rafaelo? Sim, eu o conheço. Por quê?
- Foi o que imaginei. Ele é meu pai.
- Rafaelo? Ele é seu pai? Mas isso é impossível. Rafaelo Micallef não é casado.
- E desde quando é preciso casar para se ter filhos? - A garota a fitava com um certo desdém.
- É verdade... - Débora sentindo-se uma imbecil, teve de admitir. - Acontece que eu não sabia que ele tinha uma filha. Rafaelo nunca me disse.
- E ele deveria lhe dizer que tem uma filha?
- Bem, eu...
- Acontece que ele não poderia ter lhe falado de mim.
- Não poderia? - Débora perguntou, meio desentendida.
- Não.
- Por quê?
- Ele não sabe.
- Não sabe do quê? - Débora estava muito confusa.
- Da minha existência.
- Rafaelo não sabe da sua existência?
- Minha mãe nunca contou a ele. Minha mãe me disse que nunca quis aborrecê-lo.
A confusão de Débora aumentou mais ainda. Aquilo tudo não poderia estar acontecendo. Primeiro tinha sido o noivado, agora uma filha da qual Rafaelo não sabia
da existência. Para um dia só era coisa demais acontecendo!
Ombros erguidos, olhar decidido, Rafaelo se aproximou do local onde Débora e a garota se encontravam.
- Foi você quem telefonou dizendo para eu vir até aqui? - ele perguntou para a garota, sem mesmo olhar para Débora.
- Fui eu, sim.
- E posso saber o porquê daquele telefonema sem sentido? Que direito tem você para pedir que eu venha pessoalmente pegá-la aqui no ancoradouro?
A garota hesitou antes de responder num tom de desafio:
- Eu sou Francesca.
- Pois muito bem, Francesca, eu não a conheço.
- Sou sua filha.
- Minha filha. E você... - Rafaelo, finalmente, olhou para Débora e concluiu a frase: - e você, pelo que estou podendo entender é minha esposa.
- Não, de maneira alguma - Débora resolveu provocá-lo.
- Ainda não. Sou apenas a sua noiva.
- Vocês estão noivos? - Francesca perguntou à Débora, curiosa.
- Para você ver...
- Mas você não me disse nada - a garota reclamou.
- Não tive tempo.
- Vamos embora - Rafaelo decidiu e apontou o carro. Francesca se encaminhou para o carro e entrou.
- Que história é essa? - ele quis saber, olhando para Débora furioso.
- Se está se referindo à Francesca, acabei de conhecê-la.
- Essa história está muito mal contada.
- Pois pode acreditar: acabei de conhecê-la.
- Eu poderia processá-la. - Ele pegou as malas das mãos de Débora e as colocou no porta-mala.
- Me processar? Por quê?
- Por estar usando uma menor para me...
- Pode parar com isso! - Débora o interrompeu. - Acabei de conhecer essa garota!
- E você quer mesmo que eu acredite num absurdo desse?
- Isso não é problema meu. Acredite no que quiser!
- Garanto que está pensando em vender um artigo escandaloso para alguns desses jornalecos de quinta categoria que tem por aí.
- Quem você pensa que eu sou, hem?
- Na certa uma mulher à procura de fama e fortuna. Cheguei a pensar que poderia ser uma pessoa decente, mas me enganei.
- Olha aqui! - Débora apontou-lhe o indicador da mão direita. - Eu sou uma fotógrafa. E sou muito respeitada na minha profissão. Não escrevo artigos e muito
menos me relaciono com jornalecos de quinta categoria.
- Será?
- Vai começar de novo com essa história de será?
- Como pôde ter pego a mesma balsa que essa garota que está no carro?
- Coincidência - ela disse, após um longo suspiro. - Pura coincidência.
- Será?
- Pare! Por favor, pare com esses será! Isso já está me deixando irritada.
Eles entraram no carro.
- Vocês duas planejaram isso tudo.
- Não seja ridículo. - Virando-se para trás, Débora perguntou à Francesca: - Você está bem?
- E por que eu não estaria? - Francesca deu de ombros. "Não sei", Débora teve vontade de responder. "Eu não sei de mais nada!"
Virando-se para frente, Débora se manteve calada. Mas o seu cérebro não parava de lhe fazer mil perguntas, de aventar mil hipóteses. Em apenas uma manhã
lhe acontecera muito mais coisas estranhas do que em seus vinte e nove anos de idade.
Rafaelo deu a partida no carro e seguiu em frente. Mas Débora não conseguia prestar atenção em coisa alguma. Era como se estivesse em um local onde não existissem
pessoas belíssimas, uma arquitetura fantástica, uma paisagem paradisíaca.
Após alguns minutos, com o canto dos olhos, Débora arriscou olhar para Rafaelo. Impassível. Ele se mantinha impassível. Nada parecia perturbá-lo. Nem o fato
de estar transportando uma suposta filha o fazia perder o controle. Só se aquele tipo de circunstâncias fosse algo comum em sua vida. Quantos outros filhos teria
espalhado pelo mundo?
Débora continuava a fitá-lo com os cantos dos olhos. E não dava para negar: ele era um homem incrivelmente atraente. Atraente até demais. Com toda certeza
a mãe de Francesca não havia resistido a tanto charme.
Com um esforço imenso, Débora tentou observar os locais por onde passavam. Pelo que podia ver, Gozo era uma ilha com a população basicamente constituída
por agricultores e pescadores.
O carro entrou em um pequeno povoado e, logo em seguida, voltava para a estrada que contornava a ilha. Daquela vez ela tinha conseguido observar a arquitetura
das casas e se encantou com o que viu. Tudo ali naquela ilha transpirava mistério, muito mistério.
Céu azul. Mar azul. Tudo ah era muito bonito, mas Débora sentia o coração apertado e muita vontade de chorar. E sabia que só iria melhorar depois de longas
horas de um sono reparador.
Em silêncio, Rafaelo seguia em frente. De repente, após uma longa subida e uma curva à esquerda, Débora não pôde deixar de exclamar:
- Mas que coisa mais linda!
Lá embaixo, uma pequena cidade tinha aparecido e a deixara encantada. O contraste entre o azul do mar e as areias brancas era estonteante.
- Xlendi - Rafaelo se dignou a dizer.
- Ela é mesmo muito bonita.
Ele ficou de novo em silêncio. Instantes mais tarde, virava à direita e logo estacionava em frente a uma casa branca que, ao contrário da Inglaterra, não
tinha um jardim, mas apenas uma área toda recoberta por lajotas. Ao lado da entrada principal, uma barrica bem grande continha uma grande diversidade de flores.
- Entrem. As duas. - Rafaelo continuava à direção.
- Eu vou voltar - Débora se ouviu dizendo.
- Eu disse que quero vocês duas lá dentro.
Ele não esperou que Débora dissesse mais nada. Desceu do carro, abriu a porta da frente da casa e ficou esperando por elas.
Francesca, com um jeito desdenhoso, abriu a porta de trás do carro e se dirigiu à casa. Débora achou que o melhor que teria a fazer naquele momento seria
seguir a garota.
Lá dentro, apesar da limpeza, tudo era muito simples. Ninguém diria que aquela casa pertencia a um milionário.
- Por aqui - Rafaelo indicou-lhes uma sala.
Quando as duas tinham acabado de entrar, ele disse para Francesca:
- Comece.
- Começar o quê? - a garota perguntou com maus modos.
- Quantos anos você tem?
- Catorze.
- E quem foi que planejou tudo isso?
- Ninguém!
- Ninguém... - Ele disse de maneira sarcástica. - Quanto é que você quer?
- Só podia esperar isso mesmo de você! - A garota não estava para brincadeiras.
- Fiz uma pergunta simples: quanto é que você quer?
- Está achando que eu quero dinheiro? Pois se enganou. Vim aqui apenas para conhecê-lo, para saber como você era. É um direito meu, sabia, cara?
- Quer dizer então que queria me conhecer. Pois agora já conheceu. E não pense que vou acreditar na sua conversa. Não sou um imbecil para acreditar na conversa
de uma pirralha como você, que está louca para conseguir um maneira fácil de ficar rica.
- Não sou uma pirralha e nem estou querendo o seu dinheiro. Quer queira ou não, você é meu pai. Seu nome consta da minha certidão de nascimento.
- E acha que vou me importar com uma coisa dessa? Eu não tenho uma filha.
- Como é que pode afirmar que não tem uma filha? Garanto que dormiu com um sem número de mulheres.
Débora que assistia à cena em silêncio, resolveu perguntar:
- Há quanto tempo você sabe disso, Francesca?
- O quê?
- Que é filha dele.
- Há uma semana.
- Há uma semana? - Débora ficou muito espantada.
- Isso mesmo: há uma semana.
- Aí, você resolveu vir conhecê-lo.
- E você queria que eu fizesse o quê?
- Daria para vocês duas ficarem caladas? - Rafaelo pediu irritado.
Débora ignorou-lhe as palavras e disse à garota:
- Você foi precipitada demais. Deveria antes ter-lhe escrito uma carta e...
- Ele é o meu pai, não é? Pois acho que uma filha tem todo o direito de visitar o pai na hora que bem entender.
- Se esse homem fosse seu pai, você teria todo o direito do mundo - Rafaelo comentou mais irritado ainda.
- E você tem certeza absoluta que Rafaelo Micallef é seu pai? - Débora perguntou, como se ele não estivesse ali presente.
- Tenho. - Francesca retirou um pedaço de jornal do bolso da calça e lhe entregou.
Devagar, Débora abriu o jornal. Nele, além de um longo artigo, aparecia uma fotografia de Rafaelo.
- Mostrei o jornal para a minha mãe e ela me disse que era ele.
- Sua mãe lhe disse que eu sou o seu pai?
- Disse.
- Continue - ele pediu.
- Continuar com o quê? - Francesca agora parecia meio insegura. - Encontrei a minha certidão de nascimento na gaveta de um criado-mudo e o seu nome estava
lá.
- O meu nome... Essa é muito boa! Não minta, garota.
- Eu não estou mentindo. Depois de ter encontrado a certidão, minha mãe voltou a afirmar que você era o meu pai. Ela me disse também que não quis lhe contar
nada sobre a gravidez porque não o amava e que você jamais iria querer saber de um filho. - A garota deu um profundo suspiro. - É isso. E eu estou aqui. Queria muito
conhecê-lo para ver se tínhamos alguma semelhança física. Minha mãe não podia ter escondido esse tempo todo a verdade de mim, não podia ter me deixado acreditar
que eu era filha do Tom. Eu detesto aquele homem! E agora ele ficou mais insuportável do que nunca. Eles só pensam no bebê e estão querendo me mandar para um internato.
- Coitadinha... - Penalizada, Débora colocou o braço sobre os ombros da garota. - Você deve estar sofrendo muito.
- Eu não vou para um internato!
- Aí, você resolveu fugir de casa... - Débora continuava com o braço sobre os ombros de Francesca.
- Você não faria a mesma coisa?
- Você só tem catorze anos, querida.
- Não precisa me dizer a minha idade. - A garota a fitou desconfiada. - E por que você teve de aparecer de repente? Queria poder conversar sozinha com o
meu pai.
- Sei como você está se sentindo, querida - Débora continuava penalizada com a situação de Francesca.
- Você não pode saber como estou me sentindo. Estou sendo rejeitada pelo meu próprio pai. - Francesca abriu a mochila, pegou um envelope e o entregou a Débora.
Depois, começou a soluçar e saiu correndo da sala.
- Vou atrás dela. Francesca está precisando de um ombro amigo.
- Nada disso. Você vai ficar aqui.
- Não seja insensível. A garota está transtornada.
- Esse lugar é muito pacato. Nenhum mal vai acontecer a ela.
- Você está se referindo a algum mal físico?
- Claro que sim.
- Acontece, sr. Micallef, que estou falando em emoções, em sentimentos. E parece que o senhor não entende absolutamente nada sobre esse assunto.
Ele nada disse, apenas continuou a fitá-la.
- O senhor é o homem mais insensível, o homem mais despótico e impiedoso que encontrei em toda a minha vida. Aquela menina precisa ser confortada.
- Ao contrário do que pensa, srta. Hart, aquela menina precisa ficar sozinha. Me fale sobre ela.
- Falar o quê? Eu não a conheço. Não sei absolutamente nada sobre Francesca. Lá no ancoradouro ela me perguntou se eu o conhecia e eu respondei que sim.
Nunca vi essa garota antes.
- Tem certeza? - ele perguntou com ceticismo.
- Tenho certeza absoluta.
- Essa garota está mentindo. Eu não tenho filha.
- Mas o seu nome consta da certidão de nascimento dela.
- Certidões de nascimento podem ser forjadas.
- Eu sei que certidões podem ser forjadas, mas Francesca não iria fazer isso. Ela veio para cá seguindo apenas um impulso.
- Veio mesmo? - Rafaelo balançou a cabeça em negativa.
- Você realmente não acredita nela, não é?
- Não sei mais em quê acreditar.
- Como pode estar tão certo de que Francesca não é sua filha? Afinal, quando era mais jovem você pode... - ela titubeou. - Bem, sabe o que estou querendo
dizer.
- O que tem dentro desse envelope? - ele quis saber
- Não sei. - Ela abriu o envelope e constatou. - É a certidão de nascimento.
Segundos mais tarde, Débora disse a Rafaelo:
- O nome da mãe dela é Elaine Dutton. E você consta mesmo aqui como o pai dela.
- Nunca conheci uma mulher chamada Elaine Dutton. Quando foi que a garota nasceu?
- No dia 14 de junho.
- E a gestação da mãe ela foi de nove meses?
- Como é que posso saber de uma coisa dessa? Na certidão de nascimento não consta período de gestação.
- Mas suponhamos que a gestação tenha sido de nove meses. Então... - ele fez uma pausa para pensar. - Então, a garota deve ter sido concebida por volta de
setembro do ano anterior.
- Acho que sim.
- Aqui? - ele quis saber.
- Não entendi.
- Estou querendo saber se a garota foi concebida aqui na ilha.
- E desde quando numa certidão de nascimento consta o local onde a pessoa foi concebida? Na certidão consta apenas o local do nascimento. E antes que me
pergunte, também nunca ouvi falar em Elaine Dutton. Bem, acho melhor procurar um hotel para me hospedar.
- De maneira alguma. Você vai ficar aqui.
- Por quê? Vou me sentir bem melhor num hotel. E amanhã vou embora de Gozo.
- Quero que vigie aquela garota.
- Aquela garota é sua filha.
- Já disse e torno a repetir: não tenho filha! E quero que fique de olho na garota.
- Sr. Rafaelo Micallef, a situação que está vivendo com Francesca não me diz respeito - Débora protestou.
- Tem certeza disso?
- Mas é claro que tenho!
- Acho que deveria ser um pouco mais condescendente.
- E por quê?
- Por causa de Nerina.
- E o que a sua irmã tem a ver com essa confusão toda?
- Ela vai lhe telefonar. E quero que ela a encontre aqui. Não quero decepcionar a minha irmã, nem quero que ela fique preocupada, muito menos aborrecida.
- Nem quer que Nerina fique sabendo que o irmão, o todo poderoso e infalível Rafaelo Micallef tem uma filha de catorze anos.
- Eu não tenho uma filha de catorze anos. A única coisa que estou querendo é que Nerina não se aborreça. Além disso, você tem um trabalho fotográfico para
realizar.
- Tenho mesmo? - ela ironizou.
- Mas é claro que tem.
- Eu já havia desistido dessas fotografias.
- Nada disso, mocinha. Quero que fotografe as belezas de Gozo para mim.
Débora pensou um pouco e perguntou:
- Você está mesmo a fim de que eu faça as fotografias?
- E ainda tem alguma dúvida?
- Posso realizar o trabalho estando hospedada em um hotel. É só dizer a sua irmã onde eu estou.
- Não, quero que fique aqui. Será mais fácil colaborar comigo.
- Interferir, você está querendo dizer.
- Não, você vai apenas colaborar comigo - ele insistiu.
- Francesca vai se sentir espionada.
- E daí?
- Não estou gostando nada dessa história. Vim aqui par visitar a sua irmã e fazer um trabalho fotográfico. De repente, Nerina tinha ido para a Sicília. Aí,
você resolve me ofender sem mais nem menos, me pede para dizer a quem quer que fosse que sou sua noiva. E agora, agora me pede para vigiar uma garota de catorze
anos.
- Aquela garota está tentando me manipular. Tenho de me proteger.
- Talvez ela esteja mesmo tentando manipulá-lo, mas para fotografar eu preciso de muita tranqüilidade. E como posso ficar tranqüila tomando conta de uma
adolescente e, ainda por cima, tendo de conviver com um homem como você, que a todo instante fica me dizendo o que devo ou não fazer?
- Não tenho a menor intenção de controlar o seu trabalho fotográfico. Mas estou precisando de ajuda. Não posso deixar Francesa aqui na minha casa sozinha.
Vai saber quem é essa garota! Tenho certeza de que pode ficar aqui alguns dias a mais do que tinha planejado anteriormente.
- Servindo de dama de companhia para uma garota de catorze anos.
- Não é natural que a minha noiva tome conta da minha filha? - ele ironizou.
- Isso não vai dar certo.
- Vai dar certo, sim. E quando a minha irmã telefonar não lhe conte absolutamente nada do que está acontecendo.
- E se for você quem atender o telefone? Nerina não vai se espantar de saber que está aqui?
- Não, ela não vai se espantar.
- Não vai mesmo? Por quê? - Débora perguntou, impaciente.
- Nerina não é pessoa de se espantar com pouca coisa.
- E Francesca? O que está pretendendo fazer com a garota?
- Não tenho a menor idéia.
- Ela está certa de que é sua filha.
- Alguém a incentivou a vir até aqui.
- Não concordo com você. Pelo que senti, ela só queria conhecê-lo.
- Eu não tenho filhos, srta. Hart.
- Pode até ser que não tenha filhos, mas Francesca acredita piamente que você é o pai dela. E me diga uma coisa: como o seu nome veio parar nesta certidão
de nascimento? - Ela ergueu o documento que tinha nas mãos.
- Não sei.
- E a Elaine? Já se lembrou dela?
- Acho que disse que nunca conheci uma mulher chamada Elaine.
- O fato de Francesca ter dito que Elaine nunca o amou não lhe desperta uma certa curiosidade?
- Não.
- É estranho.
- Pois eu não acho nada estranho. Estou cansado de ser importunado por causa do meu dinheiro.
- Neste caso, acho que seu dinheiro não está fazendo a menor diferença.
- Está. Está, sim. Por quê, de repente, uma garota de catorze anos resolve me procurar?
- Porque Francesca só veio a descobrir quem era seu verdadeiro pai na semana passada. Além disso, ela detesta esse tal de Tom e não quer ir para o internato.
- Não vejo nada de mal nisso.
- Em quê?
- Em ser internada em um colégio para estudar.
- Francesca é uma adolescente - Débora ponderou -, e a adolescência é uma fase da vida em que o jovem faz de tudo para lutar pela própria opinião, pela própria
liberdade. Além disso, a possibilidade de ser internada para estudar a está deixando profundamente infeliz.
- Acha que os adolescentes são sempre infelizes? Você foi infeliz na adolescência?
- Não. Mas, por favor, seja você o pai dela ou não, tente entender o momento que Francesca está passando. Não a deixe mais infeliz.
- Que dizer que, na sua opinião-, eu a estou deixando infeliz.
- Está. Será que não percebe o que está fazendo com ela?
- E o que ela está fazendo comigo? Não vai levar isso em consideração?
- É difícil perceber o que algo pode fazer com você.
- Pois tente adivinhar, então. Você não pode imaginar como a minha vida é complicada. Um homem me ligou me ameaçando.
- Quando? - Débora quis saber.
- O quê?
- Quando esse homem lhe telefonou?
- E isso tem alguma importância?
- Para mim tem. Vamos, me diga: quando esse homem lhe telefonou?
- Há cerca de uma hora, talvez um pouco mais...
- Tom.
- O quê? - ele a fitou espantado.
- Talvez tenha sido Tom o autor do telefonema.
- Pode ter sido qualquer pessoa. Ouvi acusações, recriminações...
- Por quê?
- Por quê, o quê? - Rafaelo perguntou irritado.
- Você acabou de dizer que...
- Sei o que acabei de dizer! - ele a interrompeu. - Acha que tenho a memória fraca?
- Não, mas...
- Então, faça o favor de não me interromper. Acredita que estou achando tudo isso muito engraçado?
- De maneira alguma. Não é nada engraçado ser ameaçado.
- Ainda bem que, pelo menos neste detalhe, você concorda comigo. - Ele se aproximou da janela e ficou olhando para fora.
- Está vendo a garota?
- Estou.
- Ela parece muito triste?
- Acho que ela está com muita raiva.
- Não é para menos. Mas você não pareceu muito surpreso por ela tê-lo encontrado.
- E não fiquei mesmo.
- Como Francesca o encontrou com tanta facilidade? Se pensa que fui eu quem deu o endereço a ela, está redondamente enganado.
- Sei que não foi você.
- Então, como a garota encontrou o seu endereço?
- Minha secretária o forneceu a ela. Cerca de uma hora depois que você saiu lá da minha casa em Malta, Martha me telefonou e me contou sobre a garota.
- Francesca telefonou para a sua secretária lá de Malta?
- Telefonou.
- Aí, sua secretária resolveu dar o seu endereço daqui. Por que ela faria isso? Pensei que você cuidasse mais da sua privacidade.
- E eu cuido.
- Como, então, a sua secretária informou à Francesca como localizá-lo?
- Ela tem ordens para me encaminhar os casos estranhos. Casos assim como você. - Ele virou-se e a fitou com extrema desconfiança.
- Eu? Eu sou um caso estranho?
- Para mim é, sim.
- Entenda de uma vez por todas: não tenho nada ver com o que está acontecendo! - ela exclamou, furiosa. - Fui clara?
- Tem certeza disso?
- Tenho! Tenho certeza absoluta!
- Vocês duas simplesmente estavam na mesma balsa a caminho de Gozo.
- Exatamente. - Débora balançou a cabeça, indignada. - Foi uma grande coincidência.
- Coincidência... E acha que eu acredito em coincidências desse porte? Pois eu não acredito. Alguém planejou isso tudo.
- Não sou responsável por nada! Não tenho nada a ver com essa história maluca.
- Ainda tenho as minha dúvidas.
Débora já estava se cansando daquela acusações. Mesmo assim, ainda tentou entender o que ocorria:
- Quando o artigo saiu no jornal?
Rafaelo mordeu o lábio inferior, depois respondeu:
- Na semana passada.
- É mesmo?
- E mesmo! Também acha que isso é uma outra coincidência?
- Será que poderia me arrumar um copo d'água? - ela pediu.
- O quê?
- Estou com sede. Gostaria de tomar água. Não deu para eu beber nada na balsa. A fila do bar estava muito grande.
- Não prefere tomar um suco, ou um chá? Talvez prefira um drinque.
- Chá. Prefiro beber uma xícara de chá.
- Vou prepará-lo.
Rafaelo a deixou sozinha na sala. Débora, que desde que entrara ali permanecera de pé, sentou-se num dos imensos sofás e fechou os olhos. Ela estava cansada,
confusa e realmente precisava de algumas horas de sono. Desde que havia posto os pés em Malta vivia uma situação muito delicada.
Débora fez um esforço tremendo para não pensar. Inspirou profundamente e tentou relaxar. A visão que tinha agora em seu cérebro era de quando vira Rafaelo
pela primeira vez.
"Realmente ele me causou um grande impacto", ela constatou e reviu aquele rosto forte, aqueles olhos muito azuis.
Mas Débora também não queria pensar em Rafaelo. Queria eliminar de seu cérebro todo e qualquer pensamento. Sabia que, assim, iria se sentir mais descansada.
Porém, o relaxamento dela foi interrompido por uma voz grave, muito sensual:
- Aqui está.
Débora abriu os olhos e viu que, sobre a mesinha de centro, ele havia colocado uma bandeja com um bule, uma xícara e um pratinho com bolachas.
- Não ouvi você entrar.
- Eu percebi. Para quem andou aprontando, você está muito calma.
- Não acredito... - ela disse profundamente insatisfeita.
- Não acredita em quê?
- Que ainda esteja achando que eu tenho algo a ver com a presença de Francesca aqui.
- Existem pessoas que têm muito sangue frio e sabem representar como ninguém.
- Você está me chamando de mentirosa. Acertei? - Débora que estava confortavelmente encostada no espaldar do sofá, sentou-se de maneira erecta. - Você está
mesmo achando que tenho algo a ver com essa confusão toda?
- Aprendi que na vida a gente pode esperar tudo de qualquer pessoa.
- Isso é muito triste. Viver num mundo onde qualquer um pode ser um inimigo deve ser terrível.
- E é. Mas já me acostumei. - Ele deu um meio sorriso e perguntou: - Quer que eu lhe sirva o chá?
- Quero, sim.
Rafaelo colocou a bebida na xícara e a serviu.
- O chá está sem açúcar. Se quiser, posso ir até a cozinha para...
- Não precisa. Prefiro chá puro. - Ela provou a bebida. - Está muito bom. Mas me diga: foi você quem sugeriu à Nerina que fosse para a Sicília?
- De jeito nenhum.
- Então, por que ela resolveu ir para lá de repente?
- Acho que a minha irmãzinha é a responsável pelo nosso noivado.
- Não entendi. - Ela bebeu mais um gole de chá.
- Estou achando que foi Nerina quem espalhou o boato que estamos noivos.
- Não posso acreditar num absurdo desse. Por que ela faria isso?
- Não dá para imaginar?
- Não dá mesmo.
- Alguém deve ter dito a Nerina que eu precisava de uma esposa e que ela, logicamente, precisava de uma cunhada. Na certa minha irmã, que tem uma imaginação
muito fértil, pensou muito no assunto e chegou à conclusão que, um dia, eu poderia vir a me casar com uma mulher de quem ela não gostasse. Para evitar que qualquer
outra mulher se aproximasse de mim, achou melhor espalhar que você e eu estamos noivos.
- Estou achando que a sua imaginação é muito mais fértil do que a de Nerina.
- Quando conversar com a minha irmã vou querer que ela me explique direitinho esta história de noivado. - Rafaelo refletiu um pouco e mudou de idéia: - Pensando
melhor, não sei se vou falar com Nerina sobre esse assunto.
- E eu vou ter que ficar agüentando a sua desconfiança. É isso que está querendo dizer?
- Não acha que a minha irmã já teve muitos aborrecimentos na vida?
- Com toda certeza.
- Pois então... Não quero que ela se sinta humilhada.
- Você protege muito a sua irmã. Isso não é bom para ela. Nerina tem de ser tratada como uma garota normal.
- Acontece, srta. Hart, que ela não é normal.
- Claro que é!
- Nerina esteve doente até há bem pouco tempo.
- Você usou o verbo corretamente: esteve. Ela esteve doente e, pelo que fiquei sabendo, Nerina agora está muito bem de saúde.
- Vou continuar com o nosso noivado.
- Vai mesmo? - ela ironizou. - Mas que decisão mais sensata. Será que não percebe que isso é um grande absurdo?
- Por quê?
- Não sou nem de longe o tipo de mulher que você escolheria para se comprometer. E, quando o nosso noivado terminar, as pessoas podem... - Débora achou melhor
não terminar a frase.
- As pessoas podem...
- Nada.
- Como nada? Vamos, termine o que estava dizendo. Débora deu um suspiro e concordou:
- Tudo bem! Quando esse noivado terminar, as pessoas podem dizer que o grande, o fantástico, o maravilhoso Rafaelo Micallef não tem competência nem para
manter um noivado com uma simples fotógrafa como eu.
- Isso que você acabou de dizer é besteira. - Ele pegou a xícara vazia das mãos de Débora e a colocou na bandeja. - Agora eu vou investigá-la.
- O quê? - Débora se levantou. - Você está pretendendo me investigar de novo?
- Não, estou pretendendo investigar Francesca. E para isso preciso do passaporte dela.
- Para quê?
- Sem o passaporte ela não pode ir embora. E Francesca precisa ficar aqui até a minha volta.
- A propósito - Débora lembrou-se de perguntar: - Como é que veio para Gozo? Voando?
- Isso mesmo. Voando no meu helicóptero.
- Gente fina é outra coisa. - Ela deu um sorrisinho de escárnio.
- O que foi? Resolveu me agredir só porque eu tenho um helicóptero?
- Longe de mim querer agredi-lo, sr. Micallef.
- Ótimo. Bem, você fica com a garota e, se tudo der certo, amanhã estarei de volta. Assim que eu sair daqui, você é responsável por Francesca.
- De maneira alguma. Sou responsável por mim, e olhe lá!
- Vou ver se encontro o passaporte dela.
- Está pretendendo abrir a mochila de Francesca?
- Faço qualquer coisa para provar que não sou o pai dessa garota.
Instantes mais tarde, ele estava com o passaporte de Francesca nas mãos.
- Isso o que você fez não é correto, é muito feio.
- Feio é o que você e essa garota estão fazendo comigo.
- Quando é que vai acreditar que eu nunca tinha visto Francesa antes?
- Talvez, quando eu terminar as minhas investigações, você possa provar a sua inocência. Até lá... - Ele olhou para o passaporte. - Bem, foi um prazer bater
esse papinho com você, Débora Hart.
Os dois ouviram a porta da frente se abrindo.
- Ela está aí - Rafaelo comentou.
Com o rosto tenso, Francesca entrou na sala.
- O que achou de Xlendi? - Débora se dirigira à garota.
- O maior barato!
- Por um acaso está querendo dizer que achou a cidade bonita? - Rafaelo perguntou.
- E não foi exatamente o que eu disse? - Francesca o encarou em desafio.
Pelo jeito ele tinha resolvido não brigar com a garota. De maneira calma, disse:
- Será que poderia me responder a uma pergunta?
- Qual pergunta?
- Sua mãe não queria que soubessem quem era o pai da criança que estava esperando, certo?
- Certo.
- Então, como é que ela resolveu registrá-la em meu nome?
- Isso ela não me contou. Mas você é meu pai.
- Como pode ter tanta certeza?
- Tenho fotografias suas.
- O quê? - Ele não esperava por aquilo.
- Você ouviu o que eu disse e não vou repetir.
- Essas fotografias estão aqui com você?
- Estão.
- Pois eu quero vê-las.
- Se faz tanta questão. - Francesca retirou um álbum de fotografias do bolso externo da mochila e o abriu. - Esta é a minha mãe e este aqui é você.
- Deixa eu ver. - Rafaelo pegou o álbum das mãos da garota. - Essa é sua mãe?
- É. E o rapaz, como já deve ter reconhecido é você.
- De jeito nenhum!
- Não negue! Esse rapaz é você, sim, uns quinze anos mais jovem.
- Não, mocinha, esse rapaz aqui na fotografia é Nico.
- Nico? - Francesca não estava entendendo nada.
- Nico, meu primo.
- Mas vocês dois...
- Isso mesmo. Nós dois sempre fomos muito parecidos. Sinto muito.
- Mas é o seu nome que consta da minha certidão de nascimento.
- Nico, às vezes, se fazia passar por mim.
- Por quê? - Francesca parecia não estar acreditando na versão de Rafaelo.
- Meu primo achava divertido.
- Divertido? Ele engravidou a minha mãe. Será que também achou isso divertido?
- Pelo que nos contou, Nico nunca ficou sabendo da gravidez da sua mãe. Portanto...
- Onde está ele? - Francesca perguntou, aflita. - Quero conhecê-lo!
- Sinto muito, mas isso não vai ser possível.
- Como não vai ser possível? Quero conhecer o meu pai.
- Infelizmente, Nico faleceu há muitos anos.
CAPÍTULO III
- Faleceu? - Francesca tinha ficado muito pálida. - Quer dizer que meu
pai está morto?
- Sim.
- Mas ele não podia ter morrido. Eu queria muito conhecê-lo.
- Eu sinto muito.
- Isso não podia ter acontecido. - A garota começou a chorar. - Você nem imagina como eu sonhava em conhecer o meu verdadeiro pai.
Vendo o desespero de Francesca, Rafaelo ficou muito condoído e disse, se aproximando da garota:
- Calma, por favor, fique calma.
- Como posso ficar calma? Acabei de saber que o meu pai morreu.
Com muito carinho, Rafaelo a abraçou. Francesca agora soluçava.
- Venha...
- Para onde você vai me levar?
- Para o seu quarto. Você precisa descansar um pouco. - Ele saiu da sala na companhia de Francesca.
Débora, que assistira à cena calada, serviu-se de mais uma xícara de chá e se postou junto à janela francesa. Rafaelo tinha acabado de deixá-la entrever
características de sua personalidade que jamais pensara existir: solidariedade, carinho, compaixão e muita gentileza. Se era daquela maneira que Rafaelo tratava
a irmã, dava para entender o porquê de Nerina gostar tanto dele.
Débora bebeu o chá e, depois de ter aberto a janela, foi dar uma volta ao redor da casa. E não se surpreendeu quando na parte de trás encontrou uma bela
piscina. Após ter se sentado em uma espreguiçadeira, ela continuou pensando em Rafaelo.
Débora não sabia quanto tempo tinha ficado ali, ao lado da piscina, perdida em pensamentos.
Ao ouvir passos, ela virou a cabeça. Era Rafaelo quem se aproximava.
- Francesca dormiu - ele disse, num tom baixo de voz. - Eu a levei para o seu quarto, mas vou pedir à Maria que prepare um outro para você.
- Maria?
- Maria é a senhora que toma conta desta casa para mim.
- Acho que deveria telefonar para a mãe da garota.
- Já fiz isso.
- Francesca continua muito chocada?
- Continua, sim.
- Não era para menos. A menina deve ter feito mil planos e aí, de repente, descobre que o pai está morto.
- Os jornalistas são todos assim tão perspicazes? - ele perguntou com um certo deboche.
- Por quê, de repente, você mudou de tom? - Débora perguntou, irritada. - Sente prazer em me deixar confusa, sente prazer em me agredir? Não sou jornalista.
Sou fotógrafa.
- E está pretendendo fotografar Francesca? - Havia ironia na pergunta. - Acho que não vai encontrar ninguém que se interesse pelas fotografias da garota.
- Quem está pensando que sou, hem? Uma pessoa irresponsável, capaz de vender a própria alma por uma fotografia sensacionalista? Se é isso que pensa sobre
mim, asseguro-lhe que está totalmente equivocado. Tenho princípios, sr. Micallef, princípios muito rígidos de conduta pessoal e profissional.
- Posso imaginar. - Ele deu um sorrisinho.
Débora engoliu em seco. Não queria e nem iria se deixar levar por nenhum tipo de provocação. Depois de um longo silêncio, ela perguntou:
- Você conversou com ela sobre o seu primo Nico?
- Eu tentei. Mas Francesca agora resolveu achar que estou mentindo.
- Ela não está acreditando que o pai morreu?
- Não, ela insiste em dizer que sou o pai dela.
- Um teste de paternidade pode provar o contrário.
- Francesca não quer provar que não sou o pai dela.
- Não entendi...
- A garota só está interessada em provar que sou o pai dela.
- E a mãe? O que Elaine disse a respeito de tudo isso?
- Você é muito insistente, sabia?
- Acontece, sr. Micallef, que fiquei muito preocupada com a Francesca! Vai ou não me dizer o que Elaine pensa a respeito do que está acontecendo? Se não
quiser me dizer, acho que não tenho mais nada para conversar com o senhor!
- Meu Deus, como você é brava!
- E então? - Débora não desistiu de saber o que tinha acontecido.
- Bem, me parece que essa tal de Elaine não sabia que Nico tinha usado o meu nome. Mas uma coisa está me intrigando: por que ela não tentou um contato antes?
Por que ela só resolveu dizer à filha sobre seu verdadeiro pai depois que saiu aquele artigo na imprensa inglesa falando a meu respeito?
- O artigo diz que você é um homem rico?
- E acha que eles perderiam essa chance?
- Mas Francesca não veio procurá-lo por causa do seu dinheiro.
- Eu tenho as minhas dúvidas.
- Ela só tem catorze anos!
- E acha que isso faz alguma diferença?
- Você é uma pessoa muito dura, muito desconfiada.
- A vida me ensinou a ser assim.
- Isso é muito triste.
- Eu também acho. - Rafaelo sentou-se em uma outra espreguiçadeira.
- Como era o seu primo?
- Nico?
- Mas é claro que estou me referindo a ele.
- Um pilantra muito charmoso.
- Um pilantra muito charmoso que usava o seu nome.
- Ele usava o meu nome, ou um outro qualquer, caso percebesse que isso fosse lhe trazer alguma tipo de vantagem.
- E você nunca foi dado a pilantragens?
- Se com esta pergunta está querendo saber se já engravidei alguma mulher, a resposta é não.
- Tem certeza?
- Até aonde eu sei...
- Se Francesca for mesmo filha do seu primo, você não tem nenhuma responsabilidade sobre ela, tem?
- Não, nenhuma. Exceto, é claro, compaixão. E se não tiver arquitetado tudo com a mãe, ela é digna de compaixão. Primeiro descobre que não é filha de um
homem que detesta, esse tal de Tom. Depois vem para cá achando que eu sou o pai dela, para descobrir que o pai é outro e que está morto. Se não estiver mentindo,
o sofrimento dela é muito grande.
- E a mãe dela? Você não me disse o que Elaine Dutton lhe falou.
- Elaine não falou muito, mas deixou bem claro que eu tenho a obrigação de recompensar a garota de alguma forma.
- Ela disse isso? - Débora perguntou, espantada.
- Disse.
- É inacreditável.
- Por quê?
- Você não tem nada a ver com as loucuras e com a irresponsabilidade do seu primo. Essa mulher não pode exigir nada de você.
- Acontece que todas as pessoas que conheço só pensam em uma coisa: dinheiro.
- Pelo que estou entendendo, eu também estou incluída entre essas pessoas.
- E por que eu a excluiria?
- Não estou interessada no seu dinheiro, sr. Micallef.
- Se isso for verdade, você é a primeira pessoa que encontro na vida que não se interessa pelo vil metal. Tenho um exército de parentes que vivem loucos
para abocanhar um pedaço da minha fortuna, um exército de supostos amigos que têm filhas ou primas com quem acham que eu deveria me casar.
- Isso sem contar com o exército de mulheres que o conhecem e também estão loucas para fisgá-lo - ela ironizou.
- Exatamente. E agora, para piorar a situação, me aparece uma jovem que insiste em dizer que é minha filha e que tem uma mãe que acha que eu devo recompensá-la
de alguma forma.
- E o que está pretendendo fazer?
- Ainda tenho de pensar a respeito.
- Você tem um testamento?
Rafaelo não respondeu à pergunta. Ele se levantou e disse:
- Bem, acho melhor entrar em contato com a família do Nico.
- Os pais dele ainda estão vivos?
- Não, os meus tios também já faleceram. Mas Nico tem irmãos.
- Saber que Nico tem uma filha de catorze anos será um choque para todos eles.
- Com certeza.
- Acha que vão tratar bem a Francesca?
- Isso eu não posso lhe assegurar.
- Por que o seu primo usava o seu nome? Ele achava divertido se fazer passar por você?
- Acho que já lhe disse que não era só o meu nome que ele usava.
- É, você me disse.
- Nico se fazia passar por mim, pelos meus primos, pelos nossos amigos... Mas no fundo o que ele mais gostava era de se fazer passar por mim.
- Por quê?
- Nós sempre fomos muito parecidos. Tinha gente que jurava que éramos gêmeos. Mas Nico era charmoso, divertido...
- E mulherengo - Débora completou-lhe a frase.
- Isso mesmo. E muito dissimulado. Ele usava vários nomes justamente para confundir as garotas. Não me sinto com a menor condição de contar tudo isso à Francesca.
- Será que existem outras Francescas espalhadas pelo mundo?
- Só faltava mais essa! Mas existe a possibilidade, sim. Mas mesmo se eu não contar à Francesca como realmente era o pai dela, alguém vai fazer isso. Não
era todo mundo que gostava do Nico, das suas indiscrições...
- Mas, pelo que estou podendo notar, você gostava muito do seu primo.
- Gostava. Eu gostava muito daquele pilantra. - Sem dizer mais nada, ele se afastou.
Débora permaneceu na espreguiçadeira e viu que nada podia fazer para ajudar Francesca. O melhor era tentar descansar um pouco.
Ela voltou a se encostar no espaldar da espreguiçadeira e fechou os olhos. Instantes mais tarde ouviu passos. Era Francesca.
- Pensei que estivesse dormindo - Débora comentou.
- Está muito quente para dormir. Onde está ele?
- Entrou. Você está bem?
- Claro. - Francesca fazia de tudo para se mostrar indiferente à situação que vivia. - Por que me fez essa pergunta?
- Só pretendia saber se não estava precisando de nada.
- Acho que estou precisando de tudo. - Desconsolada, a garota sentou-se no chão. - Rafaelo Micallef não poderia ter me tratado tão mal.
Débora escolheu as palavras para dizer:
- Tente se colocar no lugar dele.
- Como assim?
- Não deve ser nada fácil encontrar de repente com uma filha que ele não sabia da existência.
- Acha mesmo que tenho de me colocar no lugar dele? - a garota perguntou com desdém. - Rafaelo Micallef não pensou nem um pouco nas conseqüências quando
resolveu dormir com a minha mãe. Nem ela pensou nas conseqüências.
- Eu acho que...
- E agora minha mãe vive me dizendo para tomar cuidado com isso, para tomar cuidado com aquilo. - Francesca a interrompeu. - Não dá mesmo para entender vocês,
os adultos.
- Sua mãe não quer que aconteça com você o mesmo que aconteceu com ela.
- Se um dia eu engravidar, pode ter certeza de que meu filho vai ficar sabendo quem é o pai assim que for possível. Não é justo o que aconteceu comigo. Eu
vivi a minha vida inteirinha enganada. E não venha me dizer que a minha mãe fez o que achou melhor para mim. Ela me enganou. E agora ele quer continuar me enganando!
Como pode ter a ousadia de me dizer que não é meu pai?
- Rafaelo disse que você é filha do primo dele.
- Muito conveniente, não é? Muito conveniente impingir a paternidade a um homem que está morto. - Francesca tirou as botas.
- O que você vai fazer?
- Nadar.
- Mas as suas roupas vão ficar todas molhadas.
- E daí? - A garota estava muito agressiva. - Depois elas secam.
- Não é melhor...
- Ele disse que ia telefonar para a minha mãe - Francesca voltou a interrompê-la.
- É... ele disse. - Débora não quis dizer à garota que o telefonema já tinha sido feito.
- Tenho certeza de que os dois vão conspirar contra mim.
- Não acredito. Por que eles fariam isso?
- Não tenho a menor idéia, mas sei que os dois vão conspirar contra mim. Na certa ele vai oferecer dinheiro para a minha mãe se calar.
- Calma, Francesca.
- Como eu posso ficar calma depois de tudo o que me aconteceu? Mas não se preocupe, sou muito forte. Forte e capaz de cuidar de mim mesma. - A garota ergueu
a cabeça em desafio. - E ele também não parece muito satisfeito de tê-la por aqui. Não acredito no noivado de vocês dois. E você não faz lá muito gênero da amante.
Débora ignorou o comentário da garota e perguntou:
- E o que vai acontecer se Rafaelo continuar insistindo que você é filha do primo dele?
- Aí, vou ter de passar como prima de Rafaelo Micallef. Mas isso não é justo.
- Por quê?
- Você se esqueceu que na minha certidão ele consta como meu pai?
- Mas o fato do nome de Rafaelo estar na sua certidão não prova nada.
- Não?
- Mas é claro que não. Só prova que sua mãe pensou que ele fosse o seu pai.
- Está insinuando que a minha mãe andava com muitos homens?
- De maneira alguma! - Débora se apressou em dizer.
- Rafaelo Micallef é meu pai, sim. - A garota suspirou longamente. - E ele é lindo. Viu só como tem os olhos fantásticos?
- Os olhos de Rafaelo são mesmo de um azul muito bonito.
- Os olhos dele não são apenas azuis. Eles têm um algo mais, um tom meio prateado. E são incrivelmente misteriosos.
- Os seus também são lindos - Débora comentou. - Pena que a gente quase não consiga enxergá-los por causa dessa sua cabeleira.
- Você acha mesmo que os meus olhos são bonitos?
- Claro que acho.
A garota olhou para a piscina meio hesitante e disse:
- Tudo aqui é muito bonito.
- Concordo com você. - Débora sorriu.
- Acha que ele vai me deixar ficar?
- Isso eu não posso lhe dizer, mas acredito que sim.
- Às vezes tenho vontade de ficar aqui para sempre. Mas também sinto muita vontade de desaparecer.
- A sua situação não é nada fácil.
- Também, com ele me desprezando do jeito que está fazendo, a minha situação não poderia ser nada fácil mesmo.
- Eu já lhe disse, Francesca, a situação dele também não é nada fácil.
- O que é isso? - a garota perguntou e olhou para o céu.
- Pelo barulho deve ser um helicóptero.
No instante seguinte, voando muito baixo, apareceu um helicóptero que pairou durante alguns segundos sobre a casa.
- Será que esse piloto é maluco? - Débora perguntou, assustada. - O que ele está fazendo é um grande perigo.
- Para mim ele é bem mais do que um maluco.
O helicóptero, que mais parecia um imenso pássaro branco, foi deslocado para um terreno ao lado da casa, voltou a pairar no ar, levantando poeira por todos
os lados e finalmente pousou, mantendo o motor ligado.
Indignada com o comportamento do piloto, Débora se levantou para ir tirar satisfação com ele. O que acabara de fazer era um crime. Ninguém em sã consciência
poderia pilotar um helicóptero de maneira tão inconseqüente.
Porém, mal tinha dado dois passos, a porta da casa se abriu e Rafaelo gritou:
- Onde está a sua máquina fotográfica?
- Na minha maleta sobre o sofá.
- Certo. - Rafaelo voltou a entrar e logo tornou a sair com a maleta na mão. Meio atarantada, Débora não tinha saído do lugar.
- Venha. - Ele segurou-lhe o braço com firmeza e a puxou na direção do helicóptero.
- Me solte!
- Vamos!
- Mas o que está acontecendo?
- Não posso perder tempo, venha!
CAPÍTULO IV
Ainda segurando Débora pelo braço, Rafaelo a levava em direção ao helicóptero.
- Tem filme na máquina?
- Tem, sim, mas o que está acontecendo? - ela voltou a perguntar.
Ignorando-lhe a pergunta, ele a fez entrar no helicóptero e, depois que Débora havia se sentado, atou-lhe o cinto de segurança. Em seguida, sentou-se ao
lado dela e, mesmo antes de ter terminado de atar o próprio cinto, disse ao piloto para partir.
O piloto seguiu-lhe as instruções.
- Para onde estamos indo? - ela gritou, numa tentativa de encobrir o barulho do motor e, ao mesmo tempo, olhou para baixo. A sensação era de que a terra
estava recuando.
Em resposta, Rafaelo adaptou-lhe à cabeça um dispositivo que possuía fones de ouvidos e um pequeno microfone que ficava em frente à boca. Pelo menos o barulho
havia diminuído. Apenas com gestos, ele instruiu-lhe como usar o aparelho e adaptou na própria cabeça um dispositivo igual.
- Perguntei para onde estamos indo! - Ela estava se sentindo profundamente irritada.
- Para o mar. Você vai começar a fazer jus ao seu ganha-pão.
- Como assim?
- De que altura você precisa para que haja nitidez?
- Nitidez?
- Daquilo que quero fotografar.
- Daquilo que você quer fotografar...
- Quer fazer o favor de parar de repetir tudo o que eu digo?
- E você quer fazer o favor de me explicar sobre o quê especificamente está se referindo? O que vou ter de fotografar?
- Uma embarcação. A que altura precisamos voar para que consiga fotos bem nítidas nos mais diferentes ângulos? - Rafaelo não esperou pela resposta: - Faço
votos que seja mesmo uma excelente fotógrafa.
Débora, desistindo de conversar com ele, olhou para baixo. O mar estava azul, muito azul. O medo que havia sentido no início tinha desaparecido. Era emocionante
voar de helicóptero.
Minutos mais tarde, ele deu um sinal para o piloto e o helicóptero começou a descer. Só então Débora viu uma belíssima escuna, cujas velas começavam a ser
abaixadas.
- É sua? - Ela indicou a embarcação.
- É minha, sim. Mas não precisa gritar.
- Eu não estou gritando.
- Mas é claro que está. Pode falar num tom normal de voz que irei ouvi-la.
- Você é um homem muito autoritário.
- Certo, eu sou um homem muito autoritário - ele concordou, com ironia. - Essa altura está boa para você?
- Não. Pode descer mais um pouco. - Débora abriu a maleta onde guardava todo o seu material de trabalho. Por fim, decidiu-se por uma lente de seiscentos
milímetros e logo a adaptou à máquina.
- E agora? Esta altura está boa?
- Está, mas não sei se vou conseguir obter fotos nítidas daqui. Não é nada fácil fotografar com um helicóptero em movimento.
Na verdade, Débora jamais havia fotografado de um helicóptero; nem estivera dentro de um antes.
- Como se abre essa porta? - ela quis saber. - Não dá para eu fotografar com a porta fechada.
- Eu faço isso. - Rafaelo abriu a porta que era de correr. Débora estremeceu. E se caísse dali?
- Não precisa se preocupar. - Ele havia adivinhado-lhe os pensamentos. - Você está usando cinto de segurança!
Ela viu que, apesar do medo, precisava fazer aquelas fotos. Como boa profissional que era, inspirou profundamente e começou a fotografar. Antes de se dar
por satisfeita, Débora trocou duas vezes o filme da máquina.
- Pronto! - ela finalmente disse.
- Já acabou?
- Já.
Rafaelo fez um sinal para o piloto que se encaminhou para a praia e pousou.
- Vamos saltar. - Ele colocou os fones de ouvido que usava sobre o banco.
- Não sou cabrito, sabia?
- O quê? - Agora tinha sido ele a gritar.
- Não sou cabrito para saltar.
- Quer parar de brincar? - Ele abriu a porta e desceu do helicóptero.
- Não estou brincando.
- Como é? Vai ficar aí dentro para sempre? - Rafaelo mostrava muita impaciência.
Débora também retirou os fones de ouvido, desatou o cinto de segurança e desceu do aparelho. O difícil era suportar o vento e a poeira levantada por aquele
pássaro branco.
- O que quer que eu faça agora? - ela perguntou, quando tinham se afastado do helicóptero e já dava para se conversar num tom de voz mais baixo.
- Vamos inspecionar os danos.
- Quais danos? Sobre o que você está falando?
- Logo você vai entender. - Ele a puxou para um pequeno embarcadouro e logo depois entravam numa lancha.
- Pode zarpar - ele disse ao rapaz que o esperava com o motor da lancha ligado.
Cinco minutos mais tarde, os dois se aproximavam da embarcação.
- Essa escuna é maravilhosa - Débora comentou.
- Também gosto muito dela.
- Nós vamos subir a bordo?
- Vamos, quero que faça algumas fotografias de lá.
- Certo.
Num barco grande, que passava nas proximidades, os turistas acenavam para eles sorridentes, numa algazarra muito grande.
- Eles são sempre assim? - ela quis saber,
- Assim, como?
- Barulhentos, felizes?
- Sempre.
- A escuna agora está parada.
- O comandante foi avisado que subiremos a bordo.
- Quem o avisou?
- O piloto do helicóptero.
Débora viu que não adiantava tentar puxar conversa, Rafaelo parecia preferir ficar calado, imerso nos próprios pensamentos.
A lancha parou junto a uma escadinha da escuna. Um homem, uniformizado, que com toda certeza era o comandante, apareceu junto ao parapeito.
- Suba! - Rafaelo disse. - Eu seguro a maleta para você.
- Posso subir com ela.
- Não seja teimosa. Eu seguro a maleta.
Não adiantava discutir. Não com o todo-poderoso Rafaelo Micallef.
Débora entregou-lhe a maleta, subiu a escada e foi recebida com um belo sorriso do comandante.
- Bem-vinda a bordo - o comandante disse.
- Muito obrigada.
- Venha, querida, vamos fazer as fotos.
Querida? Será que tinha ouvido direito? Rafaelo Micallef a chamara de querida na frente do comandante e dos seus auxiliares? Bem, melhor era não pensar naquilo
e tirar as fotografias. E foi exatamente o que Débora fez. Depois de fotografar tudo o que Rafaelo havia lhe pedido, ela perguntou:
- Posso guardar a máquina?
- Pode.
- Tem certeza de que não vai mudar de idéia? - ela resolveu provocá-lo.
- Não sou homem de mudar de idéia. Pode guardar a máquina, sim.
Com cuidado, Débora guardou a máquina. De repente, feriu o dedo no fecho da maleta.
- Ai! - ela gritou e, automaticamente, levou o dedo à boca.
- O que foi?
- Nada.
- Por quê, então, você gritou?
- Apenas cortei o dedo quando estava fechando a maleta.
- Deixe-me ver.
- Não precisa, foi só um cortinho de nada.
- Mesmo assim eu quero ver - ele insistiu.
Débora mostrou-lhe o dedo e, depois de examiná-lo, Rafaelo concordou:
- É verdade. Foi um cortinho de nada, mas está sangrando.
- Não vou morrer por causa de um corte como esse. O capitão se aproximou dos dois.
- Você poderia me arrumar algo para ela colocar no corte?
- Claro, senhor.
Instantes depois o capitão voltava com uma caixa de curativo nas mãos. Depois de abri-la, ele a estendeu a Rafaelo que pegou um band-aid.
Com muita calma, Rafaelo colocou o band-aid sobre o ferimento.
- Pronto.
- Eu poderia ter feito isso - ela disse.
- Sei que poderia...
- Mais alguma coisa, senhor? - o capitão perguntou, solícito.
- Não, Domenico, muito obrigado.
- Parabéns, senhorita - Domenico a cumprimentou, antes de se retirar.
- Por que ele me cumprimentou? - Débora quis saber.
- E você ainda pergunta? - Para surpresa dela, Rafaelo beijou-lhe os lábios de leve.
- O que é isso?
- Um beijo. Um beijo, simplesmente. E Domenico a cumprimentou por você ter conseguido fisgar o milionário mais cobiçado dessa redondeza.
- Isso só pode ser brincadeira.
- Não, não é brincadeira.
- Quer dizer, então, que todo mundo está sabendo desse noivado de mentirinha?
- Viu? As notícias se espalham rapidamente.
- Eu concordei em não negar o nosso noivado, mas não quero que fique me beijando. Não quero ser importunada por você e nem por ninguém.
- Não mesmo? - Ele deu um sorrisinho irônico. - Agora, vamos voltar.
Quando tinham acabado de entrar na casa de Rafaelo, Francesca os recebeu furiosa:
- Como ousou fazer isso comigo?
- Sobre o quê você está falando, menina?
- Vocês saíram de helicóptero e nem mesmo tiveram a delicadeza de perguntar se eu queria ir junto.
- Não tive tempo para delicadezas. O helicóptero estava desocupado por uma hora e resolvi usá-lo.
- Mesmo assim eu merecia um pouquinho de consideração. Garanto que aquele não é o único helicóptero que você tem.
- Não é mesmo. Mas todos estavam sendo usados.
- Você me trata como seu eu não existisse - Francesca gritou.
- Olha aqui, mocinha, não vou permitir que me trate dessa maneira, ouviu? Se quer ficar uns dias hospedada na minha casa, sinta-se à vontade, mas não ouse
me manipular. Isso não vai funcionar de maneira alguma.
Pisando duro, Francesca os deixou sozinho.
- Você poderia tratar a garota um pouco melhor.
- E ela poderia deixar de ser tão voluntariosa.
- Acho que Francesca está certíssima: deveria tê-la convidado para ir conosco até à escuna.
- Poderia, mas acontece que nem me passou pela cabeça convidá-la.
- Pois deveria ter passado. A pobre coitada ficou aqui sozinha. Deve ter se sentindo profundamente infeliz.
- Você está muito preocupada com a Francesca.
- E não é para estar? A menina me parece muito confusa. No lugar dela tenho certeza absoluta de que também estaria me sentindo péssima.
- Acho que ela deveria controlar um pouco aquele gênio.
- Pelo jeito, Francesca tem a quem puxar.
- Ela não é minha filha.
- Se não é sua filha, pelo menos é sua prima em segundo grau.
- Isso é o que ela diz.
- Será que daria ficar mais calmo?
- Detesto qualquer tipo de manipulação. - Ele indicou-lhe o sofá. - Sente-se.
- Tente se colocar no lugar da garota. - Débora sentou-se. - O que faria se, de repente, descobrisse quem é o seu verdadeiro pai?
- Não sei o que faria. Mas de uma coisa você pode ter certeza: não sairia atrás dele feito um louco.
- Não?
- De maneira alguma.
- E nem iria procurá-lo?
- Talvez, um dia... - Rafaelo sentou-se ao lado dela.
- Mas me diga: por que você quis que eu fizesse aquelas fotografias?
- Por causa do rombo que aquele idiota fez perto da proa.
- Rombo? - ela perguntou espantada. - Não vi rombo nenhum, apenas um buraco.
- E se aquele buraco não for logo consertado, vai virar um rombo. E eu quero indenização. Por isso fiz as fotografias.
- E quem foi o idiota que fez o rombo na sua escuna? - ele perguntou num tom irônico.
- Um pescador de final de semana. O homem resolveu deixar o barco dele num local que me pertence. E, se não bastasse, bateu contra a minha escuna e fez aquele
rombo.
- Você insiste em usar a palavra rombo, não é? Se o pescador de fim de semana tivesse feito mesmo um rombo na escuna, ela já teria ido a pique.
- O homem tem muito dinheiro. E vai pagar o que me deve. - Rafaelo se levantou. - Vou procurar a Maria.
- Procurar?
- Ela mora numa casinha, depois da piscina.
- Acho que vi a casinha.
- Maria só vem para cá quando eu não estou. É um trato que fizemos. Mas hoje estou precisando dela aqui.
- E vai procurá-la em casa?
- Não, um interfone nos mantém em contato sempre que eu preciso. - Rafaelo saiu da sala.
Assim que se viu sozinha, Débora sacudiu a cabeça. Que dia! Quanta confusão! E ela nem havia encontrado uma oportunidade de perguntar a Rafaelo por que não
a convidara para vir à Gozo de helicóptero. Se isso tivesse acontecido, não encontraria Francesca e muita confusão teria sido evitada.
- É muita confusão para o meu gosto - ela disse baixinho -, e o dia ainda nem acabou.
Débora se recostou no sofá e fechou os olhos. E foi inevitável pensar no beijo, no cálido e leve beijo que Rafaelo lhe dera quando ainda se encontravam na
escuna.
"Acho bom você esquecer o que aconteceu", ela se recomendou em pensamento. "Como Rafaelo mesmo disse, não passou de um simples beijo."
Apesar da recomendação, Débora, de repente, se viu imaginando um outro tipo de beijo, mais tórrido, mais íntimo. E não pôde deixar de sorrir. Nenhuma mulher
no mundo seria capaz de olhar para Rafaelo Micallef sem, de repente, começar a fantasiar. Mas por que ele não tinha uma namorada sofisticada e atraente, ou mesmo
uma noiva? Aquilo era um grande mistério. Pelo que sabia, os milionários nunca escapavam das ciladas matrimoniais. Ciladas? E desde quando casamento era uma cilada?
Ela inspirou profundamente e continuou pensando.
Débora não sabia dizer se havia ficado naquele sofá por um minuto, ou por horas. Cansada, os pensamentos cruzavam sua cabeça numa velocidade incrível. Em
um dado momento, ela olhou para o relógio. Três horas da tarde. Era por isso que estava com tanta fome. Ela se espreguiçou. Precisava urgentemente procurar algo
para comer.
Rafaelo e Francesca entraram na sala. Parecia que eles tinham estado conversando.
- O almoço está pronto - ele disse.
Bem na hora!, ela teve vontade de gritar, mas se conteve.
- Você ouviu o que eu falei? - Rafaelo insistiu.
- Ouvi - Débora respondeu.
- E vai ficar parada aí? Será que não está com fome?
- Estou, estou com muita fome - ela admitiu.
- Então vamos para a sala de jantar.
E que sala! Débora se encantou com o ambiente rústico, bem fresco, no qual uma persiana tinha sido descida para impedir a entrada da luz forte do sol.
Os três sentaram-se à mesa. Logo depois entrava Maria, uma senhora com cerca de sessenta anos, ombros e sorriso amplo, com uma travessa de salada.
- Essa é a srta. Hart, Maria - ele fez as apresentações. - Francesca você já conhece.
- É um prazer conhecê-la, srta. Hart. Nerina fala muito na senhorita.
- O prazer é todo meu, Maria. E, por favor, me trate por você.
- Se acha melhor...
- Sim, eu acho bem melhor - Débora afirmou.
- Certo. - Maria começou a servir a salada. - Nerina me disse que você é fotógrafa.
- Sou, sim.
- Eu adoraria ter aprendido a fotografar.
- Ainda é tempo, Maria.
- Não, já estou velha demais para aprender qualquer coisa.
- Isso não existe, Maria. Se está a fim de aprender a fotografar, acho que deveria começar logo.
- Não sei, não... - a empregada duvidou.
- Pode acreditar em mim. O ser humano em qualquer idade é capaz de aprender qualquer coisa. Para isso basta querer.
- Você acredita mesmo no que diz, não é?
- Acredito.
- Vou pensar no seu conselho. Agora preciso voltar para a cozinha e trazer o peixe que fiz.
Além de peixe grelhado, Maria tinha preparado arroz branco.
- Não precisa se preocupar em nos servir, Maria.
- Mas eu acho que deveria fazer isso, Rafaelo.
- Será que está achando que não sei cuidar dos meus hóspedes? - ele perguntou muito mal-humorado.
- Mais ou menos. Seria muito bom ver você cuidando de outras pessoas. Até hoje, exceto a sua irmã, só o vi cuidando de si mesmo.
Débora teve muita vontade de rir das palavras de Maria. A mulher, além de excelente cozinheira, era muito corajosa.
- Falando dessa maneira parece que está querendo insinuar que sou uma pessoa egoísta.
- E você é, sim, uma pessoa muito egoísta, Rafaelo Micallef. - A empregada olhava para ele com muito carinho. - Bem, já que você me dispensou, vou arrumar
uma outra cama. Bom apetite a todos. - Maria saiu da sala.
- Outra cama? - Francesca perguntou. - Para quê? Vocês dois não dormem juntos?
- Não - Débora se apressou em responder. Rafaelo, por sua vez, se manteve calado.
- Isso é muito estranho.
- O que é estranho? - Débora quis saber, mas sabia a resposta que viria a seguir:
- Essa história de você dois não dormirem juntos. Onde já se viu uma coisa dessa!
- O que tem de errado nisso?
- Pensei que quando duas pessoas se amavam elas dormiam juntas.
- Pois nós nos amamos, mas não dormimos juntos - Rafaelo interferiu na conversa.
- Continuou achando isso muito estranho... - a garota insistiu.
- Pois não ache - ele disse e, sem mais nem menos, mudou radicalmente de assunto: - Quais as disciplinas na escola que você mais gosta?
- História e Ciências.
- História e Ciências...
Rafaelo continuou conversando com Francesca. Débora tentava prestar atenção nos que os dois falavam, mas estava impossível. O sono agora parecia incontrolável.
Ela terminou a salada e serviu-se do peixe e do arroz. De repente, mais uma vez a imagem do instante em que Rafaelo a beijara assomou-lhe à mente. Aquilo não poderia
continuar, ela bem o sabia. Sob o risco de se machucar muito, aquilo não poderia continuar. Débora fechou os olhos, num misto de desespero e medo. Medo de vir a
sofrer muito, caso não tomasse muito cuidado.
- Parece que a minha noivinha está quase dormindo.
- Só - Francesca concordou.
- Só? Só o quê? - Rafaelo indagou.
- Só, ora.
- Não é mais fácil dizer: é mesmo, ela está quase dormindo.
- Você entendeu o que eu disse.
- Entendi, mas existem maneiras e maneiras de se exprimir um pensamento. E eu detesto gírias.
- Eu me expresso da maneira que quero, sacou?
- Que coisa mais feia! Até agora você tinha falado pouquíssima gíria. - Ele balançou a cabeça de um lado para o outro. - Sacar é um verbo que...
- Eu sei o significado de sacar - a garota protestou.
- Então, use as palavras corretamente.
- Pois então vamos lá! - A garota repetiu a frase que tinha dito há pouco num tom bastante irônico: - Eu me expresso da maneira que quero, entendeu?
- Entendi, agora eu entendi direitinho.
- Você é muito implicante.
- E você, garota, é muito petulante. Precisamos usar a palavras corretamente, caso contrário corremos o risco de não sermos entendidos.
- E quem quer ser entendido? - Francesca deu de ombros
- Fico imaginando o dia em que você tiver que procurar emprego. Aí, você chega e diz: Meu nome é Francesca, cara, e tô a fim de descolar um trampo. - Rafaelo
fitava a garota nos olhos. - Já prensou? Ninguém vai querer empregá-la.
- Acontece, sr. Micallef, que no dia em que tiver de procurar um emprego, vou me vestir muito bem e direi ao meu possível empregador: Meu nome é Francesca
e estou muito interessada em fazer parte desta empresa. - A garota parecia ter gostado da reação que havia causado nele. - Melhorou?
- Muito. Quer dizer, então, que você sabe falar?
- Claro, cara - o tom da garota era de pura provocação. Débora, que assitia àquilo se controlando para não rir, não conteve uma gargalhada.
- Por que você está rindo? - ele perguntou, zangado.
- E você ainda pergunta, cara?
- Pare com isso!
- Vocês dois parecem que têm cinco anos de idade. Será que não é tempo de pararem com tanta provocação?
- Eu não estou provocando ninguém - ele se defendeu.
- Mas é claro que está. Deixe a menina falar à vontade.
- Se ela sabe falar corretamente, por que de repente resolveu usar gíria?
- Porque ela sentiu vontade. Tenho absoluta certeza de que na idade dela, à vezes, você também tinha uma maneira toda particular de se expressar.
- Como pode ter tanta certeza assim?
- Os adolescentes quase sempre se comportam da mesma maneira. Portanto...
- Os adolescentes de hoje são muito diferentes dos da minha época.
- É mesmo?
- Pode acreditar em mim. Às vezes acho que o vocabulário dos adolescentes de hoje se restringe a apenas meia dúzia de palavras.
- Isso é puro preconceito sr. Micallef.
- Não, srta. Hart, não é preconceito. Eu...
- Até quando vão ficar analisando os adolescentes? - Francesca protestou. - Nós não queremos ser analisados. Queremos viver. Vocês dois deveriam fazer o
mesmo. E, para começar, deveriam dividir a mesma cama.
- Viu só? - ele perguntou, indignado. - Viu só? Ela é mesmo muito petulante.
- E você é muito quadrado - Francesca devolveu a ofensa verbal.
- Posso ser retrógrado, quadrado eu não sou!
- E não é a mesma coisa? - A garota tirou os cabelos que lhe caíam sobre os olhos.
- Viu só como Francesca tem um rosto e olhos lindos? - Débora perguntou, numa tentativa de acalmar os ânimos.
- Com esse cabelo todo, como é que posso enxergar-lhe o rosto e os olhos?
- Bem, a conversa está muito boa, mas estou pensando em nadar um pouco. - A garota se levantou. - Posso?
- Acontece que você acabou de almoçar - ele respondeu.
- E o que tem isso?
- Meus pais sempre me disseram que, depois de uma refeição, a gente precisa esperar pelo menos umas duas horas para entrar na água.
- Duas horas? - Francesca perguntou, enquanto colocava as mãos na cintura. - Não estou disposta a esperar tanto tempo.
- Então, é melhor você deixar para nadar amanhã.
- Nunca ouvi alguém dizer que precisamos esperar umas duas horas para entrar na água depois que comemos. Acho que isso é crendice.
Rafaelo deu um profundo suspiro e sentenciou:
- Pelo sim, ou pelo não, quero que espere no mínimo duas horas para entrar na água.
- E o que vou fazer esse tempo todo?
- Tomar o sol do final da tarde, por exemplo.
- Tudo bem, vou esperar. Vai ser muito chato, mas vou esperar.
- Se quiser protetor solar, procure no armário do seu banheiro. Em uma das gavetas também vai encontrar roupas d banho: biquínis, maiôs...
- E eles pertencem a quem? As suas amantes? - Francesca assim que terminou de falar parecia ter se arrependido. Pelo jeito, só muito tarde lembrara-se que
os dois eram noivos.
- Não - Rafaelo respondeu com calma. - A roupa banho que tenho lá no armário são para os meus hóspedes.
- Pensei que não recebesse hóspedes aqui.
- Recebo. E muitos.
- Quem diria! - Francesca comentou e saiu da sala.
- Acho que essa menina me odeia.
- A insegurança pode fazer as pessoas se comportarem das maneiras mais insensatas.
- E você acha que Francesca é insegura?
- Ela é um poço de insegurança, pode acreditar.
- Bem, se quiser descansar um pouco, o quarto que vai ocupar é o primeiro, à esquerda, logo depois que subir a escada. Eu...
Rafaelo foi interrompido por uma linda morena de cabelos compridos que entrava na sala.
- Acho que cheguei um pouco atrasada - a moça disse, olhando com muita curiosidade para Débora.
- Júlia! - Ele exclamou e se levantou. - Resolveu me fazer uma surpresa?
- Surpresa? Mas você sabia que eu viria.
- Sabia? - ele duvidou.
- Você anda meio aéreo.
- Tem toda razão, Júlia. Você viu a garota?
- Cruzei com ela ali no corredor. - Júlia, voltando a olhar para Débora, disse: - Você deve ser... Me desculpe, mas eu não sei o seu nome. Só ouvi uma história
meio esquisita sobre um noivado. O que, na minha opinião, não passa de um grande absurdo.
- Não, não é nenhum absurdo, minha querida. - Rafaelo parecia muito à vontade. - Mas deixe-me apresentá-las: Débora, está é minha prima Júlia, irmã de Nico.
E esta, Júlia, é Débora Hart, minha noiva.
- Me desculpe, mas não acredito em você. - Júlia riu. - Sei muito bem que tudo não passa de uma grande brincadeira. Não estou querendo ofendê-la, srta. Hart,
mas conheço muito bem o meu primo.
- Será que conhece mesmo? - ele perguntou num tom de desafio.
- Foi um imenso prazer conhecê-la. Se me derem licença - Débora se levantou -, vou descansar um pouco. Quase não dormi a noite passada.
A última frase de Débora fez com que Júlia a fitasse com um certo espanto. E ficou claro para ela que tinha sido mal interpretada. Mas não iria dar explicações,
não iria dizer à moça que seu cansaço era devido à viagem, e não a uma noite apaixonada nos braços de Rafaelo
- Bem, já estou indo...
- Claro, claro... - Júlia disse. - Durma bem.
- Antes que se retirasse, gostaria que me entregasse os filmes - ele pediu.
- Filmes? Ah, sim, os filmes... - Débora retirou o filme que ainda estava na máquina, pegou os outros e os entregou a Rafaelo - Agora vou me retirar.
- Eu acompanho você até o quarto.
- Espero que elas tenham saído boas - ela disse quando já se encontrava parada junto à porta do aposento.
- O que foi? Resolveu ficar insegura? - ele a provocou.
- De maneira alguma. Acontece que várias dessas fotos foram feitas quando nós estávamos em movimento. E estou acostumada a fotografar objetos parados.
- Você é fotógrafa? - Francesca apareceu diante deles, usando um robe sobre o biquíni.
- Sou, sim. Pensei que havia lhe dito.
- Não, você não me disse.
- Encontrou tudo o que precisava? - ele perguntou à garota.
- Encontrei. - Francesca abriu o robe. O corpo da garota era escultural. - Esse biquíni é lindo. Pena que eu esteja meio gordinha.
- Gordinha? - Débora perguntou, sorrindo. - Mas você está ótima.
- Não, eu preciso emagrecer. - Francesca voltou a fechar o robe. - Nunca vi tantos biquínis na minha vida. Bem, vou para a piscina.
Quando ficaram novamente sozinhos, Débora perguntou:
- E Júlia?
- O que tem ela?
- Vai querer manter também com a sua prima essa história sobre o noivado?
- Vou.
- Mas ela está pensando que...
- Sei exatamente o que a minha prima está pensando. E acha que sou o responsável por todo esse seu cansaço.
- E vai deixar que Júlia continue pensando que nós do somos amantes?
- Claro que sim. - Sem mais nada dizer, Rafaelo deu-lhe as costas e foi embora.
CAPÍTULO V
Assim que se deitou, Débora caiu num sono profundo e só acordou às nove horas da noite. Ela então se levantou, tomou um banho, vestiu uma roupa leve e foi
para a parte de baixo da casa. Tudo estava em silêncio. Nem sinal de Rafaelo e Francesca.
Na sala de jantar, ela encontrou a mesa posta e um bilhete de Maria, informando-lhe que havia comida no forno.
Após ter terminado de jantar, Débora preparou um café e, com a xícara nas mãos, foi sentar-se no terraço onde ficou até por volta das onze horas. Como não
chegava ninguém, voltou para o quarto e deitou-se, decidida a ler. A leitura, porém, durou pouco. Cinco minutos mais tarde, ela dormia de novo e só foi acordar de
manhã bem cedinho. A casa continuava no mais completo silêncio mas, sobre o fogão, ela encontrou café fresco. Após tomar duas xícaras do líquido fumegante, voltou
para o quarto, pegou a maleta com o equipamento fotográfico e saiu para explorar a região.
Quando voltou, no início da noite, encantada com tudo o que tinha visto, encontrou Rafaelo na sala de estar.
- Pensei que tivesse sido abandonada - ela brincou.
- Pensou mesmo?
- Desde ontem esta casa está no mais completo silêncio.
- Acho que está totalmente equivocada. Foi você quem andou dormindo muito.
- Pode ser. Mas me diga: onde está Francesca?
- Ela saiu para dar um passeio.
- Vocês dois devem ter chegado muito tarde ontem. Foram visitar algum lugar especial?
- Nem tanto.
- Francesca acordou cedo?
- Mais ou menos.
- Bem, os adolescentes que conheço raramente se levantam antes do meio-dia.
- Ela teve um motivo para acordar antes do meio dia hoje.
- E que motivo foi esse? - Débora quis saber.
- Francesca fez alguns amigos. - Rafaelo estendeu o braço, pegou uma revista que se encontrava sobre uma mesinha e a entregou a ela.
- O que é isso?
- Nossa última publicação na Grécia. Débora deu uma folheada na revista.
- Acha que pode fazer algo melhor aqui?
- Acho que sim.
- Então, mãos à obra.
- O quê? - Ela o fitou.
- Mãos à obra, comece a trabalhar. Se gostar das suas fotos, vou publicá-las numa revista semelhante a essa.
- E quanto tempo terei para executar o trabalho?
- Alguns dias.
- Alguns dias... - Ela ficou pensativa.
- Algo errado?
- Não, mas quero liberdade para fotografar da maneira que bem entender.
- Você se acha muito criativa, não?
- Eu não me acho muito criativa, sr. Micallef. Eu sou mui criativa.
- Meu Deus, quanta segurança.
- No que diz respeito ao meu trabalho sou, sim, muito segura.
- É bom saber disso.
- Você tem idéia quando Nerina vai telefonar?
- Não, achei que ela fosse telefonar ontem à noite.
- Será que daria para me fornecer o número do telefone dela lá na Sicília?
- Onde ela está não tem telefone.
- Tem certeza? - ela duvidou.
- Absoluta.
- Se é assim... - Débora pensou um pouco antes de perguntar: - Quer dizer então que tenho carta branca para fotografar o que bem entender e da maneira que
achar melhor?
- Não é isso que você quer?
- É exatamente isso o que eu quero. E também não quero saber de nenhum tipo de interferência.
- Tudo bem, eu não vou interferir no seu trabalho. Você sabe dirigir?
- Claro que sei.
- Então pode usar o carro branco que está estacionado lá fora. Mas, por favor, tenha cuidado. Tenha cuidado principalmente nos cruzamentos. Não se esqueça
de sempre usar a buzina. Não temos semáforos e os turistas, em sua grande maioria, são muito inconseqüentes. Aqui na ilha temos onze cidadezinhas. Victória, também
conhecida como Rabat, é a capital.
- Por que a capital tem esses dois nomes?
- Porque o nome foi mudado de Rabat para Victória em homenagem à rainha.
- Interessante...
Para evitar aquele olhar azul, ela voltou a dar uma olhada na revista que tinha nas mãos e, na última página, encontrou uma foto de Rafaelo, acompanhada
por uma pequena biografia.
- Quer dizer que você nasceu aqui em Gozo.
- Nasci. - Ele fez um gesto como se tivesse acabado de se lembrar de algo muito importante. - Ah... Você vai precisar de um mapa aqui da ilha. Na gaveta
do criado-mudo, ao lado da sua cama, tem um. Já jantou?
- Ainda não.
- Então pedirei à Maria que lhe sirva o jantar. - Sem mais nada dizer, ele foi embora e Débora ficou meio sem saber o que fazer.
Após o jantar, ela tomou um banho e, logo em seguida, pegou o mapa na gaveta onde assinalou várias localidades que iria conhecer no dia seguinte.
E foi exatamente o que fez. Depois de um rápido café da manhã, entrou no carro branco cedido por Rafaelo e se dirigiu às localidades que havia assinalado.
No final da tarde, completamente absorta pelo trabalho, Débora se encontrava em uma pequena ilha, esperando o momento apropriado para terminar o trabalho
daquele dia. Ela queria registrar com sua máquina a magnifica transição entre o dia e a noite: as luzes, as sombras e a magia de Gozo.
Ao terminar de fotografar, certa de que tinha conseguido registrar exatamente o que pretendia, sorriu feliz e guardou a máquina.
Quando estava se dirigindo ao barco que tinha alugado para a chegar até ali, ouviu um barulho estranho. No instante seguinte, soube que o barulho era de
um helicóptero.
- Rafaelo. Tenho certeza de que é ele - Débora disse, baixinho.
E não demorou muito para que o helicóptero pousasse na ilha.
- Isso é coisa que se faça? - ele perguntou muito alterado, assim que saiu do helicóptero. - Você é sempre assim tão irresponsável?
- Irresponsável é você que...
Impedida por Rafaelo, ela não conseguiu terminar a frase:
- Não eu não sou irresponsável. Se fosse, não teria saído para procurá-la. Onde já se viu uma coisa dessa? Como ousou sair sozinha de barco?
- Eu estava trabalhando.
- Você estava trabalhando... Essa é muito boa! E, por um acaso pensou no homem que lhe alugou o barco? Será que pensou na angústia de Maria?
- Não queria me atrasar tanto, eu sinto muito.
- E acha que sentir muito é suficiente? Por um acaso conhece as correntes e o litoral daqui para se aventurar a sair sozinha de barco?
- Não, mas...
- Por um acaso trouxe com você pelo menos uma lanterna?
- Não.
- Não faz idéia de quantas pessoas já morreram por se aventurarem a sair sozinha por aqui! E você disse ao Cesare que ia até o fim da baía e voltaria em
seguida.
- É verdade. Eu disse exatamente isso ao dono do barco.
- E ao invés de cumprir o que prometeu, resolveu desbravar sozinha esses mares. - Ele colocou as mãos na cintura. - Isso é muita irresponsabilidade, sabia?
- Quer parar de me chamar de irresponsável? Eu errei, deveria ter pedido que o barqueiro me acompanhasse. Mas fique você sabendo que fiz fotografias incríveis!
- E eu estou lá preocupado com as suas fotografias?
- Pois deveria estar. Eu estou trabalhando para você.
- Você poderia ter morrido, srta. Hart. E desde quanto fotografa à noite.
- Eu fiquei para fotografar o pôr-do-sol.
- Você ficou para fotografar o pôr-do-sol... - ele imitou-lhe o tom de voz. - Mas que maravilha. E para isso se arrisca a morrer. Tudo pelo amor à arte!
- Não fale assim sobre o meu trabalho.
- Não estou falando sobre o seu trabalho. Estou falando sobre segurança. A vida é uma só, srta. Hart. E precisamos cuidar dela com muito carinho. - Ele fez
um sinal para o piloto do helicóptero. - Vamos embora.
- E o barco?
- Nós vamos de barco.
- Mas você acabou de dizer que navegar por aqui é muito perigoso.
- Conheço esses mares como a palma da minha mão. E o piloto, se houver algum problema, vai saber como agir. Vamos!
Os dois se mantiveram em silêncio até chegarem no ancoradouro da ilha de onde ela havia saído. Rafaelo desceu do barco e, para espanto dela, estendeu-lhe
a mão. Quando Débora já havia descido, ele a puxou para junto de si e disse baixinho.
- Não é real, sabia?
- O quê? O que não é real?
- O nosso noivado.
- E acha que em algum instante eu cheguei a pensar que ele fosse real? Por quem você me toma? Por alguma idiota?
- Não, por uma mulher romântica e sonhadora.
- Não sou romântica e muito menos sonhadora - ela se apressou em responder, mas logo percebeu que sua voz havia soado muito falsa.
- É romântica, sim. Romântica e sonhadora. E tenho certeza de que está morrendo de vontade que eu a tome nos braços e a beije.
- Isso é brincadeira, não é? - Ela sorriu.
- Não, não é brincadeira.
Rafaelo a beijou e Débora se sentiu incapaz de esboçar qualquer reação. Quando o beijo terminou ele disse, simplesmente:
- Me desculpe.
- Não entendi.
- Estou me desculpando pelo beijo. Mas eu precisava beijá-la.
- Verdade? - ela ironizou.
- Pode acreditar.
- E por que precisava me beijar, posso saber?
- Por causa da mulher que estava atrás de você no penhasco. Débora virou-se e comentou:
- Não tem mulher nenhuma no penhasco.
- Ela foi embora.
- Quer dizer então que me beijou só porque tinha alguém nos espionando?
- Exatamente.
- E essa mulher precisa acreditar que estamos noivos?
- Precisa.
- Mas você já me beijou antes e não se desculpou. Qual é a diferença?
- Entre o quê?
- Entre o beijo anterior e esse?
- Não é hora para conversarmos sobre esse assunto. Você almoçou?
- Comi um lanche.
- Então vamos para casa. Você precisa jantar.
Débora tinha acabado de entrar na sala de visitas, quando Maria apareceu.
- Graças a Deus! Graças a Deus nada lhe aconteceu. - A empregada lhe deu um forte abraço - Pensei que tivesse morrido, minha filha.
- Não precisava se preocupar tanto, Maria.
- Você nem sabe como o mar aqui é traiçoeiro. Já vi muitos jovens desaparecerem sem deixar o menor vestígio.
- Me desculpe, por favor, não pretendia que ninguém ficasse preocupado comigo.
- O importante é que está viva. Vou esquentar a comida para vocês.
- Eu não vou jantar - Rafaelo disse da porta da sala.
- Por quê? - Maria quis saber.
- Estou sem fome. Vou tomar um banho. - Ele as deixou sozinha.
- Esse menino ficou muito preocupado, Débora.
- Agi de maneira impensada, não vai acontecer de novo.
- Felizmente, tudo não passou de um susto. Quer que eu lhe prepare um suco?
- Não, muito obrigada.
- Então vá para a sala de jantar. A comida fica pronta em um minuto.
Realmente Maria preparou o jantar em um tempo recorde. Após tê-la servido a empregada perguntou:
- Você precisa de mais alguma coisa? Se não precisar, eu vou me retirar.
- Pode ir, querida, não vou precisar de mais nada.
- Durma com os anjos, Débora.
- Você também, Maria, durma com os anjos. E me desculpe de novo pelo susto.
- O importante que você está aqui conosco sã e salva. Débora olhou para o prato de lasanha que se encontrava a sua frente. Depois de ter experimentado a
comida, empurrou o prato devagar e serviu-se de uma xícara de café, da garrafa térmica que Maria deixara sobre a mesa. Ela também tinha perdido a fome.
Débora apoiou os cotovelos sobre a mesa e fechou os olhos. Rafaelo não deveria tê-la beijado. No início, surpresa, mas sentindo uma certa felicidade, havia
imaginado que a vontade dele beijá-la tinha sido incontrolável. Mas depois, depois a realidade dura havia se imposto: tudo não passara de uma grande representação.
E aquilo doía muito. Por que Rafaelo precisava manter aquela farsa? E por que ela havia concordado em fingir um noivado totalmente fora de propósito?
Triste, Débora colocou o prato de novo diante de si e tentou comer mais um pouco. Mas a comida parecia não descer, era como se tivesse um nó na garganta.
Ao ouvir passos na escada, ela ergueu os ombros e, para sua surpresa, seu coração disparou dentro do peito.
Porém, ao entrar na sala, Rafaelo não disse nada. Ficou parado ao lado dela sem mexer um só músculo.
Débora não agüentou aquela situação constrangedora e perguntou:
- Francesca já dormiu?
- A garota foi embora.
- Para onde?
- Júlia a levou para Malta.
- Mas...
- Essa foi a melhor solução que encontrei. Minha prima sabe mais sobre a vida de Nico do que eu. Lá tem muitas fotografias dele, objetos que lhes pertenceram...
- E Francesca não se importou em ir para Malta?
- Parece que não. Acho que, finalmente, começou a aceitar que não é minha filha. E estava muito curiosa.
- Curiosa? - Débora o fitou.
- Ela está querendo saber tudo o que for possível sobre o pai.
- Dá para entender a situação de Francesca. No lugar dela eu também iria querer saber tudo sobre o meu pai. Será que vão tratá-la bem lá em Malta?
- Quando a isso pode ficar tranqüila, todos vão tratá-la muito bem - ele respondeu com muita ironia.
- Por que está falando desse jeito?
- O dinheiro pode comprar tudo nesta vida. Ele pode comprar até o afeto das pessoas.
- Não acredito no que estou ouvindo. Alguém neste mundo deve gostar de você de verdade. Será que todo mundo só está interessado no seu dinheiro?
- Parece que sim.
- Você deveria ter me dito que Francesca ia embora. Gostaria de ter me despedido dela.
- Pensei em lhe dizer, mas achei que se ficasse sabendo iria embora também. E você tem um trabalho para fazer. Isso sem contar com a decepção que quero evitar
que a minha irmã tenha. Além disso, minha noiva não pode ir embora de repente. - Rafaelo sentou-se numa cadeira ao lado de Débora e ficou em silêncio.
- Posso saber por onde vagueiam os seus pensamentos, Rafaelo?
- Você alguma vez já se apaixonou? - ele perguntou, de chofre.
- O quê? - Ela o fitou espantada. - O que essa pergunta tem a ver com o que estávamos conversando?
- Eu perguntei se você já esteve apaixonada - ele insistiu. Débora engoliu em seco e respondeu:
- Quando eu tinha treze anos fiquei muito entusiasmada com o filho do açougueiro. Ele era muito bonito.
- E só o filho do açougueiro foi objeto da sua paixão?
- Não - ela sorriu de maneira tímida --, também me apaixonei por um professor quando cursava o primeiro ano da faculdade.
- Um professor da faculdade...
- E se vai perguntar se já tinha beijado antes, a resposta é sim - Débora disse com sarcasmo. - Até as garotas menos atraentes beijam, sabia?
- Quer dizer que você teve vários namorados.
- Vários, não. Tive alguns namorados.
- E todos eles ficaram só nos beijos e abraços?
- Acha que isso é da sua conta, sr. Rafaelo Micallef? - ela não tinha gostado da pergunta. - Posso ser uma mulher comum, sem nenhum tipo de atrativo, mas...
- Você pode ser tudo, menos uma mulher comum - Rafaelo a interrompeu.
- Se isso foi um elogio, eu o agradeço do mais fundo do meu coração - ela voltou a usar um tom sarcástico. - Mas por que resolveu conversar sobre esse assunto?
- Curiosidade, apenas.
- Curiosidade, apenas... Sei...
- Foi interesse, também - ele admitiu. - Acho que as pessoas não estão acreditando muito que somos amantes.
- Mas nós não somos amantes.
- Não somos?
- Claro que não! - ela respondeu com brusquidão. - O que você está pensando da vida, hem? Nem sei o motivo que me levou a concordar com essa loucura toda.
- Mas Júlia está certa de que somos amantes. - Rafaelo parecia não ter dado a menor importância à maneira alterada com que Débora tinha acabado de falar.
- Quer dizer, então, que a sua prima está acreditando que somos amantes?
- Minha família pensa que sou o maior mulherengo que existe sobre a face da terra.
- E você não é?
- Não, não sou. - Ele deu um profundo suspiro. - Você nem imagina quantas mulheres passaram pela minha vida.
- Então você é um mulherengo.
- De maneira alguma.
- Mas você acabou de dizer que inúmeras mulheres passaram pela sua vida.
- Isso é que os meus tios, tias, primos e primas, acreditam. E eu nunca me dei ao trabalho de desmentir. E todos morrem de medo que eu me case, constitua
uma família. Aí, eles não poderão usufruir do meu dinheiro.
- Mas você é um homem muito jovem! Seus parentes não podem estar pensando que vai continuar solteiro pelo resto da vida.
- Não, é claro que não pensam que vou ficar solteiro pelo o resto da minha vida. Mas o que eles querem é que eu me case com uma mulher conhecida, alguém
que possam manipular. Por isso gostaria que mantivéssemos esse nosso noivado.
- Agora começo a entender melhor essa história toda. Mas me diga: por que você me beijou lá no ancoradouro?
- Por que a mulher que estava nos espionando é amiga de uma prima. Eles têm de acreditar que somos amantes. Tenho certeza de que agora todos, uma a um, vão
dar um jeito de vir até aqui para conhecê-la.
- E foi por isso que quis saber se eu já tinha me apaixonado? Está achando que não tenho jeito de amante? É isso?
- Mais ou menos.
- E você ainda tem a coragem de admitir? - Débora estava muito brava. - Você é o pior homem que encontrei em toda a minha vida: arrogante, egoísta e...
- Eu não sou nada disso.
- Mas claro que é.
- Não, eu não sou.
- Nunca fui tão ofendida em toda a minha vida. Desde que cheguei no aeroporto de Malta as ofensas começaram.
- Você está exagerando.
- Não, eu não estou exagerando. Só estou dizendo exatamente o que vem acontecendo.
- De maneira alguma. Posso não tê-la tratado com muita simpatia, mas daí a dizer que eu só faço ofendê-la é um grande exagero. Mas me diga: por quê?
- Quer fazer o favor de me explicar melhor o que você está querendo saber?
- Por que você veio para cá?
- Já disse: para passar uns dias. E não sei porque agora estou aqui falando com você. Deveria estar no meu quarto fazendo as minhas malas para sumir desta
ilha.
- Quer dizer que não veio para cá por minha causa?
- Realmente fica muito difícil entendê-lo, sr. Micallef. Que história é essa agora de eu ter vindo para cá por sua causa? Será que ficou maluco?
- O problema, srta. Hart, é que não consigo confiar em você.
- E por quê? Por que não consegue confiar em mim?
- Minha irmã deve ter lhe contado que sou um homem muito rico.
- E isso faz de mim uma pessoa a quem não se deva confiar? Não dou a menor importância a sua fortuna.
- Será que não dá mesmo?
- A cada instante que passa acho você o homem mais contraditório que encontrei em toda a minha vida. E o mais inseguro também.
- Eu? Inseguro? - Ele riu.
- Inseguro, sim. Você acha que todo mundo está atrás do seu dinheiro. Se continuar agindo desta maneira, vai acabar enlouquecendo.
- Minha irmã tinha uma segunda intenção quando a convidou para vir para cá.
- E qual segunda intenção ela teria?
- Já cheguei a lhe falar a respeito deste assunto. Nerina achou que eu poderia me interessar por você.
- Isso é delírio de sua parte, sr. Micallef. E acho que também já lhe disse isso.
- Ela é uma garota muito romântica. Vive com romances nas mãos.
- E daí? Porque vive com romances nas mãos, acha que Nerina seria capaz de me chamar para cá só para que pudéssemos ser amantes?
- Essa possibilidade existe.
Débora deu um profundo suspiro e o provocou:
- Acontece que sua irmã deve saber que você não gosta de mulheres com cabelos curtos. Portanto...
- Não é que eu não goste de mulheres com cabelos curtos.
- Mas não foi exatamente isso que você me disse quando cheguei?
- Eu lhe disse que preferia mulheres com cabelos compridos.
- E não é a mesma coisa?
- Não, não é.
- Para mim é a mesma coisa, sim, senhor.
- Logo de cara, cabelos compridos são mais... atraentes para mim. Depois..., bem depois as coisas podem mudar. E minha irmã sabe disso.
- E você acha mesmo que ela me convidou para vir até aqui só para que pudéssemos ter um romance. - Débora se levantou e se aproximou da janela. Rafaelo a
seguiu.
- Eu não apenas acho, tenho certeza.
- Nerina jamais faria uma coisa dessa.
- Mas é claro que faria. E sabe que agora não estou achando essa idéia assim tão má? - Rafaelo se aproximou mais dela.
- Por quem você me toma? - Débora deu um passo para trás.
- Por quem eu a tomo? - Ele deu um sorrisinho irônico. - Por uma mulher muito auto-suficiente, pelo jeito uma boa profissional e que está adorando a idéia
de termos um caso.
- Você está redondamente enganado. Não sou mulher de ter casos, sr. Micallef.
- Não é?
- Não, não sou.
- Não?
- De maneira alguma. Sou uma mulher de ter relações com as pessoas.
- E qual é a diferença?
- Se não consegue enxergar a diferença entre uma coisa e outra, não serei eu quem vai lhe explicar.
- Por que de repente resolveu ficar agressiva?
- Eu não fiquei agressiva. E estou achando esta conversa inútil. - Ela balançou a cabeça em negativa. - E quer saber de uma coisa? Amanhã eu vou embora.
- Você não pode fazer isso.
- Posso. Posso e vou.
- Mas você iniciou um trabalho e tem de terminá-lo. Se o largar pela metade, vai deixar claro que não é uma profissional responsável.
- Nestas circunstâncias, sr. Micallef, não acha que é exigir muito de mim? - ela ironizou.
- Não, não acho. Você é uma profissional e tem de se comportar como tal.
- Mesmo tendo que suportar os assédios do meu patrão?
- Não estou assediando você.
- Não? Mas é claro que está.
- Não, estava apenas conversando.
- E os beijos que você me deu?
- Aquilo não foi assédio.
- E o que foi, então? - Ela o fitava nos olhos.
- Bem - ele titubeou -, o primeiro foi apenas uma demonstração de amizade. E o segundo foi por causa da moça que estava nos espionando. Portanto, não se
sinta assediada.
- Mesmo assim vou embora amanhã.
- E o que vou dizer a minha irmã quando ela telefonar?
- Não acha que Nerina já deveria ter telefonado?
- Eu acho.
- Você não parece muito preocupado com o comportamento dela.
- E não estou mesmo. Minha irmã é assim mesmo. Deve estar se sentindo maravilhosa em poder me manter ansioso.
- Por que ela não levou um telefone celular?
- Nerina detesta telefones.
- Nunca soube disso.
- Para você ver. Já quis presenteá-la com um celular e ela não quis.
- Você acha que sua irmã tramou mesmo esta minha vinda para cá só para que eu o conhecesse e me tornasse sua amante?
- Com toda certeza. E, por favor, não vá decepcioná-la.
- O quê? - ela perguntou indignada. - Está me propondo que eu me torne sua amante?
- Não, não foi isso que eu quis dizer. Só quero que fique, termine o seu trabalho e esteja aqui quando ela resolver telefonar.
- Acho melhor eu ir embora.
- Gostaria que pensasse melhor sobre o assunto.
- Não estou gostando da maneira que vem me tratando. Eu não sou uma aventureira.
- Todos nós somos aventureiros, srta. Hart.
- Mas eu não sou. Sou uma mulher responsável e muito conseqüente.
- Eu vi mesmo.
- Você viu o quê?
- Se fosse tão responsável não teria ido sozinha para aquela ilha.
- Foi um incidente.
- Esse é um tipo de incidente que não pode acontecer. Você poderia ter morrido.
- Mas não morri.
- Isso porque fui até lá.
- Pelo que estou entendendo, você agora acha que lhe devo a vida.
- E não deve? - Ele inclinou a cabeça ao fazer-lhe a pergunta.
- Olha, acho que esta conversa já se alongou por demais.
- Mas eu estou adorando conversar com você. - Sem que Débora esperasse, ele a tomou nos braços e a beijou.
- Nunca mais faça isso! - Ela o empurrou.
- Infelizmente, essa promessa eu não posso lhe fazer.
- Passar bem, sr. Micallef. - Débora se afastou apressada.
CAPÍTULO VI
Débora, muito furiosa com o comportamento de Rafaelo, entrou no quarto e, enquanto se jogava na cama, se perguntou em voz alta:
- O que foi que eu fiz para merecer isso tudo? Deveria, desde o início ter me comportado de maneira diferente!
Inconformada, mordeu o lábio inferior. Mas de que outra maneira deveria ter se comportado? Quando chegara no aeroporto de Malta havia pensado que Nerina
fosse recepcioná-la, não aquele homem fantástico de olhos muito azuis. E tinha de admitir, apesar da raiva, que havia gostado dos beijos. Afinal, ela não era de
ferro e desde o início se sentira profundamente atraída por Rafaelo. Mas do que adiantava se sentir atraída por um homem que parecia acreditar que o mundo e as pessoas
existiam apenas para servi-lo? Rafaelo Micallef era egoísta demais. Era...
- Muito lindo... - Ela voltou a morder o lábio inferior. - E eu estou cada vez mais presa àquele homem.
Débora sabia que deveria ir embora, voltar para casa. Porém, algo dentro do mais íntimo do seu ser a impedia de tomar uma atitude coerente.
"Eu fico racionalizando, fico me dizendo que tenho um trabalho a fazer, que tenho de me encontrar com Nerina. Mas, no fundo, no fundo, estou querendo ficar
por causa de Rafaelo. E por quê? Será que, de repente, resolvi me tornar um sofredora? Esse homem não pode oferecer um futuro, uma relação decente. Ele está, isso
sim, querendo ter um caso comigo. E eu não estou atrás de casos. Gostaria muito de encontrar uma pessoa especial com quem eu pudesse ter uma relação de companheirismo,
amizade e amor. O resto... O resto para mim não interessa!"
Débora cobriu o rosto com o travesseiro, como se, com aquele gesto, pudesse fazer desaparecer os últimos dois dias. Mas as imagens estavam lá, desfilando
diante dela, nítidas. E, para piorar a situação, agora Rafaelo a beijava. Rafaelo a beijava e ela, sôfrega, correspondia ao beijo. O beijo foi se tornando mais e
mais íntimo e Débora queria que ele a despisse, que ele...
- Não! De maneira alguma! - Ela se levantou num salto. - Não posso continuar com essas fantasias, com esse tipo de pensamento. Vou tomar um banho para ver
se relaxo.
Porém, nem o banho fez com que ela se sentisse melhor.
De volta na cama, usando uma camisola florida de algodão, Débora continuou com os pensamentos muito tumultuados. Será que Nerina planejara mesmo aquilo tudo?
A garota, apesar de sonhadora, tinha se mostrado sempre muito afetiva e leal com ela.
Balançando e cabeça de um lado para o outro, Débora deu um profundo suspiro e sussurrou:
- Pelo jeito eu também, como Nerina, não passo de uma romântica e sonhadora. Só que já deveria ter perdido todas as ilusões. Afinal, sou uma mulher de vinte
e nove anos.
Não foi nada fácil para Débora dormir. Mas terminou por conseguir.
Na manhã seguinte, depois de sonhos nos quais Rafaelo não parava nos beijos, ela acordou disposta a pelo menos termina o trabalho fotográfico que havia iniciado.
Depois iria embora e, mais tarde, entraria em contato com Nerina.
O calor estava insuportável. Ela tomou um banho e escolheu para vestir, bermuda branca de linhão e uma camiseta regata. Com a maleta nas mãos, deixou o quarto
e desceu as escadas, na esperança de não se encontrar com Rafaelo naquela manhã. Mas a esperança desapareceu assim que entrou na sala de jantar. Sentado à cabeceira
da mesa, lendo o jornal do dia, ele parecia ausente do mundo.
Débora, achando que não tinha sido notada, resolveu ir embora, mas ele disse:
- Bom dia.
Débora parada entre a porta e a mesa, nada respondeu.
- O que foi, resolveu ficar muda? Ela deu um profundo suspiro e, decidida a enfrentá-lo de uma vez por todas, sentou-se à mesa.
- Não vai falar comigo?
- Não tenho absolutamente nada para falar com você.
- Pelo jeito você acordou muito mal-humorada.
- Não, eu não acordei mal-humorada. Só não tenho nada para falar com você.
- É mesmo? - Rafaelo fechou o jornal e o colocou sobre a cadeira ao lado. - Por que esta braveza toda?
- Ontem à noite, você me ofendeu.
- Não, eu não a ofendi. Apenas a beijei e...
- Pode parar. Não quero ouvir mais nada.
- Você está mesmo muito brava. - Sorrindo, ele serviu-lhe uma xícara de café e indicou-lhe uma cestinha com bolachas. - Coma, estão muito boas. Maria é especialista
neste tipo de bolachas.
Em silêncio, Débora tomou um gole de café e serviu-se de uma bolacha.
- Que tal a gente parar com esse clima tenso que existe entre nós? - ele perguntou com muita delicadeza.
- Eu não sou responsável por este clima. E por que resolveu falar comigo neste tom de voz? Está com medo que acabe com esta palhaçada de noivado?
- Em parte - Rafaelo respondeu com honestidade.
- Pelo menos você é sincero.
- Eu sempre tento ser sincero. Nem sempre consigo, mas posso garantir que eu tento.
- E quer mesmo que eu acredite numa coisa dessa? - ela duvidou.
- Gostaria muito. - Ele pegou uma bolacha e pediu: - Me fale sobre você.
Débora que estava levando a xícara à boca, interrompeu o gesto e perguntou:
- Quer que eu lhe fale sobre mim?
- Quero.
- E para quê? Você não mandou me investigar?
- É verdade...
- Pois então não tenho absolutamente nada para lhe dizer a meu respeito.
- Você gosta de viajar?
Em resposta, Débora deu-lhe uma olhada e permaneceu em silêncio.
- Perguntei se você gosta de viajar.
- Não sei, não sei se gosto de viajar.
- É mesmo? Não esperava por essa resposta. Pelo que fiquei sabendo, você já viajou muito.
- As viagens apenas aconteceram na minha vida por causa do meu trabalho. Os trabalhos aparecem e eu vou realizá-los.
- E não pretende casar, ter filhos?
- Não me preocupo com isso. Se um dia acontecer...
- Estou diante da típica mulher independente.
- Você acha mesmo? - ela ironizou.
- Acho.
- Pode ser que esteja enganado.
- E eu estou enganado?
- Acho que não. - Débora sabia que não queria se deixar conhecer e escolhia muito bem as palavras antes de dizê-las.
- Por que esse olhar distante? Está pensando em algum amor que ficou no passado?
- Como sabe que tive um amor no passado?
- Todo mundo tem. O seu foi muito difícil de superar?
- Não sei como lhe responder a essa pergunta. Estou com quase trinta anos e tive, sim, uma grande paixão no passado. Mas essa paixão ficou no passado, na
minha juventude. Depois do relacionamento desastroso que vivi, nunca mais pensei no amor e me curei de todo o meu romantismo. - Ela deu um profundo suspiro. Aquilo
não era bem verdade, mas não poderia lhe dizer os tipos de sonhos que havia tido durante toda a madrugada. - Hoje eu vivo apenas para o meu trabalho e me sinto muito
feliz.
- Será que ouvi direito?
- Não entendi...
- Está me dizendo que é celibatária?
- Quem sabe... - ela fez questão de ser evasiva, de deixar a resposta no ar.
- Uma mulher liberada? - Rafaelo riu. - Nunca pensei que um dia fosse encontrar uma mulher dona do próprio do destino, independente, que fosse celibatária.
Como isso é possível?
- Você é quem está me adjetivando, quem está tentando me catalogar. Posso não ser nada disso. Sou apenas uma mulher que sempre faz exatamente o que quer,
independentemente da opinião dos outros.
- Minha irmã é muito sensível.
- Eu sei. Mas por que está me dizendo isso agora?
- Ela deve tê-la achado muito solitária. Aí, resolveu dar uma pequena ajuda ao destino e mandou-a aqui para se tornar...
- Sua amante - Débora completou-lhe a frase.
- Não, se conheço direito a minha irmã, ela deve tê-la mandado até aqui para se tornar minha esposa.
- Nerina é romântica, mas acredito que não seja tão ingênua para chegar a pensar num absurdo como esse.
- Minha irmã é muito mais ingênua do que posso imaginar.
- E você? Não pretende se casar?
- Não sei... - Ele tomou um gole de e café. - Mas certamente não me casaria com uma mulher que acabei de conhecer.
Sem entender o porquê, Débora sentiu uma certa frustração ao ouvir aquelas palavras. Mas disfarçou muito bem:
- Acho que tem toda razão. Precisamos escolher muito bem com quem nos relacionamos.
- Mas devo admitir que você é uma mulher fascinante e muito, muito instigante.
- É mesmo? - ela perguntou, meio sem graça. - Mesmo tendo os cabelos bem curtinhos?
- Mesmo tendo os cabelos bem curtinhos. - Ele serviu-se de mais café. - A vida para um homem como eu não é nada fácil.
- O dinheiro atrapalha tanto assim?
- Não sei se é o dinheiro quem atrapalha. Mas as pessoas passam a nos ver como se tivéssemos um cifrão tatuado na testa. E isso incomoda. Incomoda muito.
Eu, no fundo, sou um homem simples.
- Mas sua vida não é nada simples.
- Até que é. Ou melhor: eu me esforço para que seja. Veja você, tem muita gente que acha que eu deveria andar com seguranças durante vinte e quatro horas.
E eu me pergunto: o que seria da minha vida se eu não tivesse o direito nem de ir olhar o mar sozinho? Não, eu não quero isso para mim.
- Mas aqui em Gozo e lá em Malta você não corre o risco de ser seqüestrado.
- Claro que corro. Mas me esforço para não pensar no assunto. Gosto de ser e de me sentir livre.
- Não é todo milionário que age desse jeito. Tem gente que, além de um exército de seguranças, tem carros blindados monitorados através de satélites.
- E acha que não sei disso? - Rafaelo levou a xícara à boca e, depois de beber mais um pouco de café, concluiu: - Eu sei muito bem disso.
- Não gostaria de estar na sua situação.
- Não é lá uma situação muito confortável. Mas quero continuar vivendo, apesar do meu dinheiro. Exceto Nerina, não existe nenhum parente próximo que possa
ser seqüestrado. E a maior parte do meu dinheiro está toda na Corporação. Sempre me pergunto: de que adianta ser rico se não somos livres para podermos viver em
paz?
- Realmente sua vida deve ser um inferno - ela ironizou. - Escuna, helicópteros, viagens, casa nas mais importantes cidade dos mundo, mulheres...
- Mulheres... - Ele riu. - As mulheres que encontrei na minha vida só queriam uma coisa. Consegue adivinhar que coisa é essa?
- Não faço a menor idéia.
- Todas estavam loucas para me ajudar a gastar o meu dinheiro.
- Por mais que tentemos, a felicidade é difícil de alcançar.
- O que me trás de novo para nós dois.
- Como assim? - ela perguntou, um tanto desconfiada.
- Estou me referindo ao nosso noivado.
- Para mim esse nosso noivado não passou de uma grande brincadeira.
- Eu não penso dessa maneira. E por falar nisso, recebemos um convite.
- Recebemos? - ela perguntou, espantada.
- Exatamente. Estão nos convidando para uma reunião em família hoje.
- Na certa é para me examinarem minuciosamente.
- Com toda certeza.
- Não vou a essa reunião.
- Por quê?
- Não faz o menor sentido.
- Para mim faz o maior sentido. Se formos até lá e todos a conhecerem, tenho a esperança de que acabem me deixando em paz e desistam de me arrumarem uma
mulher para casar.
- Não, acho melhor você desistir da idéia. Invente uma viagem. Diga que precisa ir para a Inglaterra.
- E você? Está pretendendo ir comigo à Inglaterra?
- Estou meio sem saber o que fazer da vida.
- Você? Você sem saber o que fazer da vida? Como isso é possível?
- Na verdade, acho que deveria ir embora daqui, mas quero terminar o trabalho que iniciei.
- O trabalho antes de tudo.
- Meu trabalho é o que me move, sr. Micallef.
- E quando acha vai terminar o trabalho?
- Se tudo der certo, hoje mesmo.
- Assim tão rápido?
- Pois é... Eu sou uma mulher eficiente.
- Estou vendo.
- Bem - ele se levantou -, se me der licença, vou pegar os meus óculos escuros.
- Sinta-se à vontade.
- Preciso dar uma olhada no Christina, o meu iate.
- Você também tem um iate?
- Tenho. Ele chegou aqui hoje. Quer dar uma chegadinha até lá comigo?
O convite a pegou desprevenida. Algo lhe dizia para decliná-lo, que não deveria ficar sozinha com aquele homem. Era muito perigoso.
- Sinto muito, mas não vai dar - ela recusou.
- Por quê?
- Tenho de terminar as minhas fotos.
- Não poderia deixá-las para amanhã?
- Prefiro fazê-las hoje.
- Você é quem sabe. A tarde a gente se vê.
- Não sei se isso vai ser possível.
- Por quê?
- Talvez eu não esteja mais aqui.
- Está pretendendo ir embora sem que antes eu aprove as fotografias? Onde, de repente, resolveu colocar o seu profissionalismo?
- Você, quando quer, não mede as palavras.
- Só perguntei sobre o seu profissionalismo. Tenho dever essas fotos antes que vá embora. A propósito quanto à reunião de hoje...
- Não vou a essa reunião - Débora foi taxativa.
- Nem eu. Vou ignorá-la. - Ele se dirigia à porta de saída.
- Não vai entrar em contato com a mãe de Francesca?
- Para quê? Já fiz isso ontem. - Rafaelo deixou a sala e ela gritou:
- Volte aqui! Quero saber direitinho essa história. Rafaelo apareceu junto à porta e disse:
- Eu conto se você for comigo até ao Christina.
- Pare com isso. O que foi que a mãe da Francesca disse?
- Que a gravidez foi difícil.
- Só isso?
- Disse mais algumas coisas sem importância.
- E como você foi até a casa dela?
- De helicóptero.
- Eu deveria ter imaginado.
- Tom me pareceu uma pessoa muito decente. Gosta muito da garota e quer que ela volte para casa. Mas eu o convenci a deixá-la aqui na ilha por alguns dias.
Rafaelo disse mais algumas palavras e foi embora.
Débora terminou de tomar o café da manhã, pegou a maleta com o material fotográfico, as chaves do carro e, mais uma vez, saiu para fotografar a região.
Era encanto demais. Ela sabia que muitos outros lugares mereceriam ser fotografados, mas precisava escolher. E fazer o melhor que fosse possível. Se pudesse,
voltaria algum dia para a ilha e, com muito tempo, passaria horas e horas registrando cada praia, cada recanto de Gozo.
Por volta do meio-dia, faminta, decidiu parar o carro num pequeno restaurante da estrada onde foi muito bem servida. A comida da ilha era fantástica, os
habitantes incrivelmente hospitaleiros.
Depois de deixar o restaurante, ela se dirigiu a uma praia de areia branca, com várias formações rochosas. Ao sair de lá tinha absoluta certeza de que as
fotos que havia tirado ficariam no mínimo fantásticas. Depois foi a vez de um velho campanário ser visitado.
Por volta das seis da tarde, exausta, ela decidiu voltar para a casa de Rafaelo. Lá chegando, tomou um banho, colocou um vestido longo de linho e foi para
a cozinha preparar um suco.
Meia hora mais tarde, saiu para dar uma volta a pé pela aldeia. Seus passos, conscientemente, ou não, a levaram até o ancoradouro. E, ao ver o Christina
ancorado, quase perdeu o fôlego. O iate era imenso.
- Como está, senhorita? - Cesare, o dono do barco com o qual fora até a ilha no dia anterior, se aproximara sem que Débora percebesse.
- Muito bem, Cesare, e você?
- Agora vou ter muito trabalho.
- Por quê? - ela quis saber.
- O Christina chegou e sempre que ele está aqui o meu trabalho aumenta.
- E o seu barco?
- Nestas ocasiões, meu barco praticamente fica com o meu irmão e eu me dedico mais a servir o sr. Micallef.
- Quer subir a bordo?
- Do Christina?
- É, do Christina.
Era tentação demais. Era perigo demais. Débora teve vontade de perguntar se Rafaelo se encontrava a bodo, mas não ousou.
- E então? - Cesare perguntou. - O Christina é o iate mais lindo que eu já vi. A senhorita vai gostar de conhecê-lo.
Ela deu um profundo suspiro. Era realmente tentação e perigo demais. Mas o que seria a vida sem os riscos?
- Quero muito conhecer o Christina por dentro - ela finalmente respondeu com um certo tremor na voz.
CAPÍTULO VII
Mal tinha acabado de colocar os pés no iate, Débora viu Rafaelo se aproximando.
- Seja bem-vinda a bordo.
- Muito obrigada.
- Vou voltar - Cesare disse.
- Alguma novidade? - Rafaelo perguntou a ele.
- Não, nenhuma senhor.
- Ótimo. Cesare se afastou.
- Quer conhecer o Christina? - Rafaelo sugeriu.
- Foi para isso que vim até aqui.
Na hora que se seguiu, Rafaelo fez questão de mostrar todas as dependências da embarcação à Débora, inclusive a cabine de comando e os aparelhos de navegação.
- Venha - ela disse, indicando-lhe um corredor.
- Isso aqui é tudo muito fantástico.
- Tenho muito orgulho deste barco. - Ele abriu uma porta e apontou. - Esse é o meu camarote. Entre.
- Realmente esse iate é fantástico - ela disse, enquanto prestava atenção na sofisticação do ambiente.
- Sente-se. - Rafaelo indicou-lhe um sofá de couro preto.
Ela sentou-se. E, sem entender direito o porquê, não conseguia se mover. Aquele ambiente estava acabando com algo que raramente a deixava: a espontaneidade.
- O que foi?
- Acho que não deveria ter vindo - ela respondeu, para se arrepender em seguida.
- Por quê? - Rafaelo perguntou e sentou-se ao lado dela.
- Não sei. Deveria ter ficado no ancoradouro, apenas observando a parte externa do Christina.
- Mas você queria vir. - A voz dele era mansa, sensual.
- Pode ser. Mas estou arrependida.
- Tinha certeza de que acabaria vindo para cá.
- Não acredito.
- É verdade.
- Como poderia saber disso?
- Intuição. Sou uma pessoa bastante intuitiva. - Rafaelo a fitou com muita atenção. - Você está tremendo.
- Não, de maneira alguma - ela tentou negar o óbvio.
- Está tremendo, sim. E acho isso um absurdo. Você tem medo de mim?
- Mas é claro que não.
- É mesmo? - Rafaelo se aproximou e a beijou com extremo carinho e disse-lhe contra os lábios. - É muito bom saber que não tem medo de mim.
O beijo continuou. Ora urgente, ora terno. Débora já não mandava mais nos próprios sentimentos, nas próprias emoções. Sentia-se cativa, presa ao poder que
Rafaelo Micallef emanava. O beijo deu lugar a carícias mais ousadas e a novos beijos. Ela tremia de desejo. Queria que Rafaelo continuasse, que a fizesse perder
a dimensão do próprio corpo. Mas, de repente, ele parou e a fitou intensamente.
- Gosto muito de beijar, de acariciar você. Aquelas palavras fizeram com que ela voltasse a si.
- Eu...
- Podemos continuar e...
- Não, não podemos continuar - ela disse completamente apavorada.
- Mas sei que você também me deseja.
- Desejo não é tudo na vida, sabia?
- E o que mais existe além do desejo. Não se comporte como uma adolescente, você já tem quase trinta anos.
- Eu sei a minha idade, não precisa ficar me lembrando.
- Nerina iria adorar se nós dois tivéssemos um caso.
- Já disse que não sou mulher de ter casos, sr. Micallef. E acho muito estranho isso que acabou de falar.
- O quê?
- Que Nerina iria adorar se nós dois tivéssemos... algum tipo de relacionamento.
- Mas é verdade.
- Como pode querer alguma coisa comigo? Você mal me conhece.
- Isso para mim não tem a menor importância.
- Mas para mim tem toda a importância do mundo.
- Acho que nos daríamos muito bem.
- Será?
- Vai negar que me deseja?
- Não neguei quando me fez esta mesma pergunta há pouco. E, como lhe disse, desejo não é tudo na vida.
- Você é uma mulher muito difícil.
- Acha que só porque o desejo basta assobiar para que caia em seus braços? Tenho princípios muito rígidos.
- Estou vendo.
- Ótimo. - Ela deu um suspiro de alívio.
- Tudo isso é medo de se machucar?
- É, é sim.
- Mas eu também posso me machucar. Ou será que os homens, na sua opinião, estão imunes às emoções mais sutis?
- Os homens raramente se machucam. Você sabem lidar com as emoções muito melhor do que as mulheres.
- Engano seu, srta. Hart.
- Não quero saber de relações que possam me desestabilizar emocionalmente. Sou muito sensível.
- É muito bom saber disso. - Ele se levantou. - Estou faminto. Vou pedir que nos sirvam o jantar no deque.
- Jantar?
- Você não está com fome?
- Estou, eu...
- Bem, vou pedir o nosso jantar. - Ele a deixou sozinha no camarote.
Débora recostou-se no sofá. Nunca na vida se sentira tão confusa. O que afinal tinha ido fazer li naquele iate? "Encontrá-lo, na certa", uma vozinha interna
lhe respondeu à pergunta.
- Mas eu não posso começar a me relacionar com Rafaelo Micallef - ela disse, baixinho. - Ele é rico demais, importante demais. Vou acabar me machucando de
verdade. E eu não quero isso para mim.
Débora fechou os olhos. Será? Será que não valeria à pena correr o risco? Ela não sabia, ela já não sabia de mais nada. Meia hora mais tarde, ele estava
de volta ao camarote.
- Vamos, o nosso jantar logo será servido.
Tinha anoitecido e o céu estava com um sem número de estrelas.
- Sente-se. - Ele indicou-lhe uma cadeira estofada. Com as pernas trêmulas, Débora, que mal conseguia se manter de pé, logo aceitou a sugestão.
Rafaelo se afastou e logo depois voltava com uma garrafa de vinho branco nas mãos.
- Vai gostar deste vinho. - Ele também sentou-se e, depois de abrir a garrafa, serviu duas taças. - Jamais beba o vinho tinto daqui. Ele é muito ruim e,
com toda certeza, vai lhe fazer mal. E você não quer ficar doente, quer?
- De maneira alguma.
- E esse vinho é bom?
- Ele é excelente.
- Vou dar uma chegadinha na cozinha.
Sozinha de novo, Débora levou a taça à boca. O vinho era muito bom, com um sabor bastante acentuado de uvas.
Débora continuou sentada pensando na vida e saboreando o vinho.
- Pronto. Aqui está o nosso jantar. - Ele lhe mostrou uma bandeja com duas travessas.
- Foi você quem fez o jantar?
- Não, o jantar foi feito pelo meu cozinheiro. Eu só dei alguns retoques.
- E o que nós vamos comer?
- Um prato típico daqui da região. Ele é feito de peixe. Também trouxe uma salada com frutos do mar. - Rafaelo a serviu.
- O cheiro está delicioso.
- Posso lhe garantir que o gosto está bem melhor. Experimente. Débora provou um bocado do prato típico e comentou:
- Realmente você tem toda razão: essa comida é muito gostosa.
- Linda, muito linda...
Ao ouvir aquele comentário, ela sentiu um friozinho do estômago e abaixou a cabeça.
- Você não acha, Débora? - Ele estava servindo-se de salada.
- O quê?
- Não acha isso tudo muito lindo?
- Eu... - ela titubeou.
- Estou me referindo às estrelas, as luzes da cidade refletidas na água.
- É, sim, muito bonito.
- Você também é muito bonita. Sua boca é muito especial.
- Muito... obrigada.
- Só estou falando a verdade, não precisa me agradecer. Débora bebeu o último gole de vinho que tinha na taça.
Rafaelo, muito atencioso, lhe serviu outra, e mais outra.
Ela sabia que bebia rápido demais, mas não estava sendo capaz de se controlar. Seu cérebro, toda a sua energia e sentidos se ligara àquele homem. E tanto
fascínio era algo ao mesmo tempo novo e apavorante para uma pessoa que há muitos anos não se relacionava com ninguém.
O resto do jantar foi feito no mais completo silêncio.
Após o término do jantar, Rafaelo abriu uma outra garrafa de vinho e levou a cadeira onde estava sentado para o lado de Débora.
- Não sabia que gostava de beber - ele disse, baixinho.
- Nem eu. Fazia anos que eu não colocava álcool na boca.
- Você pode ouvir as batidas do meu coração, Débora?
- Não, eu...
- Então sinta. - Ele pegou-lhe uma das mãos e a levou até o peito. - Meu coração está batendo assim por sua causa.
- Devo lhe confessar que o meu também não está nada comportado.
Rafaelo acariciou-lhe a boca de leve e, em seguida, a beijou. Débora, que estava querendo muito que aquilo acontecesse, correspondeu ao beijo com extrema
ansiedade.
- Meu Deus, o que está acontecendo comigo? - ela perguntava, instantes mais tarde, ao se afastar. - O que eu estou fazendo?
- Tudo, tudo o que você estava com vontade de fazer.
- Não posso.
- Mas é claro que pode. Não só pode, como deve.
- Não, eu não posso - ela repetiu.
- Não? Será que não me deseja? Será que estava fingindo há pouco?
- Você sabe que não. Mas isso tudo não passa de um jogo e eu sou péssima em jogos.
- Não, para mim isso não é um jogo, Débora.
- Você está tentando me seduzir.
- E você? Está fazendo o quê? Também não está tentando me seduzir?
- Não, é totalmente diferente.
- Por quê? Porque você é mulher? - Rafaelo não esperou pela resposta. - Faz muito tempo que eu não me sentia tão bem, tão relaxado ao lado de uma mulher.
Depois que fiquei sabendo que minha irmã estava com leucemia, não tive mais um segundo de paz. Tudo: meus pensamentos, meus sentimentos, meu ser, estavam voltados
para ela. Continuei tocando os negócios, falando, rindo, mas era apenas pequena parte de mim que fazia isso tudo. Nada mais me importava, só a saúde da minha irmã.
Todo o meu tempo disponível foi dedicado à Nerina. - Ele suspirou. - Mas agora, agora que ela está bem, quero voltar a viver, quero pensar um pouco em mim. Preciso
me sentir vivo de novo.
- Você deve ter sofrido muito.
- Sofri muito, sim. - Ele acariciou-lhe as mãos. - Acho que foi por isso que a minha irmã fez com que viesse para cá. Ela queria que eu a conhecesse. Nerina
anda muito preocupada comigo. Acha que devo me casar, ter filhos... Sabe quantos anos eu tenho?
- Uns trinta e cinco?
- Quase acertou. Estou com trinta e sete anos. E até hoje não me lembro de ter tirado férias em toda a minha vida.
- E as suas viagens?
- Foram sempre feitas por causa de trabalho. - Ele a fitou intensamente. - Acho que vou tirar alguns dias de férias. Tenho uma excelente equipe que trabalha
para mim e, com toda certeza, conseguirão tocar os meus negócios sem a minha presença. Não quer viajar um pouco comigo?
Surpresa, Débora não sabia o que responder.
- A gente poderia sair por aí meio sem destino.
- Acho... acho que não vai dar.
- Por quê?
- No final da próxima semana tenho de estar na Tunísia para uma sessão de fotos.
- Mas até lá tem muito tempo.
- E os seus parentes? Os seus amigos? O que eles vão dizer?
- Eles que pensem o que bem entenderem.
- Acho que eles vão ficar chocados.
- Eu tenho trinta e sete anos e você tem trinta. Não acha que já estamos bem crescidinhos para ficarmos nos preocupando com a opinião alheia?
Preocupada, Débora ficou em silêncio.
- O que foi? Só a convidei para viajar comigo.
- Por que esse iate tem o nome de Christina?
- Christina foi uma mulher que eu amei muito.
"Eu sabia. Eu sabia que tinha tido uma mulher muito especial na vida de Rafaelo", ela concluiu em pensamento. "Mas eu queria o quê? Que ele jamais tivesse
se relacionado seriamente com alguém?"
- Ela deve ter sido muito feliz. Deve ser muito bom se sentir amada.
- E ela foi muito amada: pelo meu pai, por mim e por Nerina.
- Então Christina era...
- Christina era minha mãe - ele completou-lhe a frase. - Ela faleceu quando minha irmã estava com dezesseis anos. No início achamos que a apatia de Nerina
se devia à perda da minha mãe. Aí, quando nos demos conta, ela estava com leucemia.
- Deve ter sido um choque terrível. Primeiro o falecimento da sua mãe, depois a doença da Nerina.
- Foi, foi um grande choque. Era impossível para mim conceber que minha irmã, tão jovem, poderia morrer.
- Seu pai ainda é vivo?
- Meu pai faleceu quando eu tinha trinta anos. Num desastre aéreo. E os seus pais? Eles estão vivos?
- Minha mãe faleceu quando eu era bem pequena.
- E o seu pai?
Débora deu um longo suspiro antes de responder:
- Papai faleceu no ano passado. - Os olhos dela se encheram de lágrimas. - Ainda sinto muita falta dele.
- É muito difícil se perder um ente querido.
- É verdade...
De repente as palavras pareciam totalmente desnecessárias. Durante um longo tempo os dois ficaram no mais completo silêncio.
- Que tal voltarmos para casa? - Rafaelo sugeriu.
- Acho uma boa idéia.
Assim que entraram em casa, eles deram de cara com Francesca.
- Oi! Eu voltei - a garota disse.
- Eu estou vendo - Rafaelo sorriu para a garota.
- Não gostei daquele pessoal. Posso ficar aqui?
- Claro que pode.
- Será que ouviu o meu pedido? - Francesca parecia não estar acreditando no que tinha acabado de ouvir. - Estou querendo ficar hospedada aqui na sua casa.
- Eu entendi. E pode ficar pelo tempo que quiser.
- Por que está sendo tão bonzinho? Tenho certeza de que não gosta de mim.
- Eu não a conheço direito, garota. Portanto... Os três foram para a sala e se sentaram.
- O pessoal fala muito a seu respeito - Francesca comentou.
- Eu sei disso.
- E não quer saber que tipo de comentário eles fazem?
- Não, para lhe dizer a verdade, não estou interessado.
- Eles também andaram falando sobre você, Débora.
- Era de se esperar.
- Estavam querendo saber se vocês são mesmo... amantes.
- E o que foi que você respondeu? - Rafaelo parecia interessado.
- Bem, eu respondi que o problema não era meu.
- Fez muito bem.
- Sabe o que chegaram a dizer? - Francesca perguntou, cheia de mistério.
- O quê? - Rafaelo olhou pra Débora de maneira cúmplice.
- Que vocês dois poderiam ter se casado em segredo.
- Sei...
- E vocês se casaram?
- Isso é segredo - ele respondeu.
- Bem, eles também me contaram que a sua irmã esteve muito doente.
- É verdade.
- Eu sinto muito. - Francesca se levantou. - Posso ir para o meu quarto?
- Pode. Mas me diga uma coisa: você jantou?
- Jantei, sim. Boa noite.
- Boa noite para você também, Francesca. Quando estava saindo, a garota virou-se e disse:
- Sabe de uma coisa? Eu adoraria que você fosse meu pai.
- Eu também gostaria de ser seu pai.
- Mas o destino não quis, portanto...
- E os meus parentes lhe contaram sobre o meu primo?
- Só.
- Contaram - ele a corrigiu. - Fica bem mais fácil de se entender.
Francesca sorriu e disse:
- Sim, sr. Rafaelo Micallef, os seus parentes me falaram muito a respeito do meu pai.
- Melhorou. Melhorou muito. É sempre muito bom nos expressarmos corretamente.
- Só - a garota disse e saiu da sala. Débora não pôde conter uma risada.
Nos dias que se seguiram, os três se divertiram muito nadando, velejando e mergulhando. Francesca havia perdido toda a agressividade e o mau humor.
No sábado, Francesca recebeu um telefonema de Tom avisando-lhe que ela agora tinha um irmãozinho.
- Acha que eu devo ir para casa? - a garota perguntou a Rafaelo, assim que desligou o telefone.
- Acho que você deve, sim.
- Mas o que eles vão me dizer?
- Com toda certeza vão lhe dizer que sentiram a sua falta.
- Será?
- Só - ele disse, para ver se arrancava um sorriso dos lábios da garota. E conseguiu.
- Você fica ridículo falando desse jeito.
- Você também, mocinha.
- Eu acho que vou voltar para a minha casa.
- Não sem antes comprarmos um presente para o seu irmãozinho.
- Mas eu não tenho dinheiro - Francesca reclamou.
- Isso não é problema. Eu financio o seu presente - ele se ofereceu.
- Você mudou muito mesmo, Rafaelo. Nem parece o mesmo homem que conheci quando cheguei.
- Isso é bom ou ruim?
- Bom, muito bom. - Francesca ficou pensativa e disse: - Estou com medo de voltar para a minha casa. Eles vão brigar comigo.
- Não, posso lhe assegurar que ninguém vai brigar com você.
- Como pode me assegurar uma coisa dessa?
- Estive na sua casa e conversei com Tom e com a sua mãe.
- Você esteve lá? - Francesca perguntou, admirada.
- Estive.
- Eu não quero ir para um internato.
- É só dizer isso a eles. Ninguém pode obrigá-la a ir para um internato.
- Tenho certeza absoluta de que a minha mãe vai brigar comigo.
- Não, ela não vai. E além de tudo, sua mãe agora vai precisar muito de você.
- Por quê?
- Se esqueceu que tem um irmãozinho? Bebês dão trabalho.
- É verdade... Mesmo assim, estou morrendo de medo de voltar para casa.
- Quer que eu a acompanhe até lá? - ele se ofereceu. Francesca refletiu um pouco e respondeu:
- Não, muito obrigada. Tenho de fazer isso sozinha. Mas quero ir para lá hoje mesmo.
- Você é quem sabe.
- É melhor.
- Bem, se é assim, vou levá-la até Rabat de helicóptero para comprar o presente. Depois eu a deixo no aeroporto. Apronte tudo. Vou até ao meu escritório
verificar alguns documentos. - Ele saiu da sala.
Débora, que assistira a tudo aquilo em silêncio, estava emocionada.
- Ele mudou, não mudou? - Francesca sorria, feliz.
- Parece...
- Quando a gente chegou ele parecia muito bravo. De repente parece um outro homem.
- Você está certíssima. - Débora também estava estranhando a transformação repentina que ocorrera com Rafaelo - Quer que eu ajude a fazer as malas?
- Malas? - Francesca perguntou, espantada. - Será que se esqueceu que só trouxe uma mochila?
Depois de terem embarcado uma Francesca feliz, um pouco mais confiante na vida, os dois retornaram para casa de helicóptero.
- Bem, agora acho que merecemos um pouquinho de privacidade - ele disse, quando se encontravam próximos à escada.
- Merecemos? - ela perguntou, muito confusa.
- E você ainda tem dúvidas? Queria muito fazer amor com você, Débora.
- Eu... - ela tinha ficado apavorada -, não sei se é isso que quero.
- Sei que é exatamente isso que você quer. Vamos, me abrace. É fácil.
- Não quero abraçar você, não quero...
- Mas é claro que você quer - a voz dele era muito insinuante. - Vamos, coragem, me abrace e me beije. Estou louco para sentir de novo o gosto dos seus lábios.
Aturdida, insegura, Débora olhava para ele sem dizer nada.
- É tão difícil assim?
- Posso lhe dizer que não é nada fácil.
- Eu ajudo você. - Rafaelo pegou-lhe um braço, depois o outro e fez com que ela o enlaçasse pela cintura. - Agora é só me beijar.
Débora, apesar da insegurança, queria muito beijá-lo, queria muito vencer a barreira que a impedia de agir, de expressar o desejo que sentia.
- E então? Vai ficar aí parada me olhando?
Rafaelo não esperou pela resposta. Com muito carinho a abraçou e a beijou.
Aos poucos, Débora foi se desvincilhando das amarras que pareciam impedi-la de agir. E começou a corresponder ao beijo e, para sua própria surpresa, começou
a acariciá-lo.
- Isso é bom, muito bom - ele disse baixinho. - Continue... E Débora continuou. Era fantástico poder tocar-lhe o corpo esbelto, os cabelos macios. Era muito
bom sentir o desejo de Rafaelo explicitado contra o seu corpo.
- Quero muito tê-la nua em meus braços.
As palavras, ditas sem a menor cerimônia, tiveram o poder de constrangê-la.
- O que foi? Por que parou?
- Você tem um jeito muito direto de dizer as coisas.
- Mas estou falando exatamente o que me passa pela cabeça. Acha que foi fácil para mim vê-la todos esses dias de biquíni sem poder tocá-la, acariciá-la,
sem poder fazer amor com você? Não Débora, não foi nada fácil.
Rafaelo voltou a beijá-la, agora de uma maneira mais impetuosa.
- Vamos para o meu quarto - ele a convidou -, lá a gente vai se sentir mais à vontade.
Naquele instante o telefone tocou.
- Justo agora? - ele reclamou. - Não vou atender.
- Por favor, Rafaelo, atenda. Pode ser importante.
- Tudo bem. Eu vou atender, mas pode ir para o meu quarto. Eu a encontro lá.
Ao se ver sozinha, Débora começou a tremer. Se não fosse aquela interrupção...
Devagar, ela foi para a sala. Não se sentia segura para ir esperá-lo no quarto.
Sentada no sofá, começou ouvi-lo falar exasperado ao telefone.
O que estaria acontecendo?
Cinco minutos mais depois, transtornado, ele entrava na sala.
- Aconteceu algo grave?
- Era um dos amigos de Nerina. Preciso ir.
- Quer que eu o acompanhe? - Débora se levantou.
- Não - ele respondeu de maneira seca. - Mas pode se tranqüilizar, minha irmã está muito bem de saúde. Vá até o restaurante e diga ao piloto que estou de
saída. Enquanto isso, vou arrumar a minha mala.
- A qual restaurante está se referindo?
- Ao da esquina.
- Certo. Você vai me telefonar?
- Vou - Rafaelo respondeu, mas Débora percebeu que os pensamentos dele estavam bem longe dali.
CAPÍTULO VIII
Três dias. Há três dias Rafaelo havia partido e não cumprira o que tinha prometido: nenhum telefonema, nada.
Débora já não sabia mais em quê pensar. Quando tinha ido embora, ele mal havia se despedido.
Desesperada, ela não saíra de casa, com medo que o telefone tocasse.
Naquele final de tarde, ela pegara um romance na estante do escritório e fora ler na sala. De repente, o barulho característico do helicóptero.
- É Rafaelo. - Ela fechou o romance e aguardou. Assim que ele entrou na sala, Débora perguntou:
- Nerina está bem?
Sem fitá-la, Rafaelo colocou a mala no chão, foi até a janela e permaneceu em silêncio.
- Rafaelo, por favor, me diga!
- Dizer o quê? - Havia descaso na voz dele.
- Quero saber o que está acontecendo. Nerina está bem? - ela voltou a perguntar.
- Não. Tudo deu errado.
- Não entendi.
- O plano.
- Mas sobre qual plano está se referindo?
- Ao plano que vocês duas arquitetaram. - Ele começou a andar de um lado para o outro.
- Que história é essa? - Débora perguntou, mais confusa do que nunca.
- E você ainda tem coragem de perguntar? Estou me referindo ao plano no qual Nerina ficaria com Mica.
- Mica? - Débora não sabia a quem ele estava se referindo.
- Pelo que estou vendo o nome lhe é bastante familiar.
- Acho que não conheço ninguém com esse nome.
- Conhece, conhece, sim. Estou me referindo ao homem sem a menor integridade moral, ao oportunista, ao cafajeste Michael Kerigan. O homem pelo qual a minha
irmã se apaixonou porque, de acordo com as palavras dela, "minha amiga Débora não iria me apresentar e nem poderia se relacionar com um homem que não fosse honrado
e sério!"
- Michael Kerigan... Então Nerina foi para a Sicília se encontrar...
- Foi - ele a interrompeu. - E, por favor, não negue que você os apresentou.
Mas Débora não os havia apresentado. Ela nem conhecia Michael Kerigan pessoalmente.
- O que mais sua irmã lhe disse?
- Que o cafajeste a feriu, a humilhou. Que Michael Kerigan só queria se aproveitar dela. E você é culpada de tudo o que aconteceu a minha irmã.
- De maneira alguma!
- Como pode dizer isso? Não veio para cá com o firme propósito de me enganar?
- Não sei sobre o que você está falando.
- Sabe, sabe, sim. Vocês iam ficar lá na minha casa em Malta. Aí, minha volta inesperada dos Estados Unidos fez com que Nerina mudasse os planos repentinamente.
Só que ela não podia avisá-la, pois você já estava a caminho.
- Isso tudo é ridículo.
- Ridículo? - Ele deu uma risada irônica. - Ridículo é o seu comportamento.
- Não sei sobre o que você está falando - ela repetiu, aflita.
- Será que não sabe mesmo, srta. Hart? Será que não sabe?
- Não, eu não sei.
- Sabe, você sabe direitinho sobre o que estou falando. Sabe direitinho sobre Mica ter se feito passar por seu amigo e sei lá mais o quê. O plano era perfeito:
não teria nada demais a minha irmã ser vista com o amigo da minha futura esposa. Não haveria comentários, não haveria fofocas.
- Futura esposa? - Débora estava perplexa. - Você está maluco!
- Eu não estou maluco, srta. Hart. Nunca estive mais lúcido em toda a minha vida.
- Por favor, Rafaelo, me escute: não tenho nada a ver com o que está acontecendo!
- Foi por isso que ela não telefonou, não deu notícias. Nerina me disse que estaria fazendo um camping selvagem na Sicília. E eu, idiota, acreditei.
- Olha, estou confusa, muito confusa. Recebi um telefonema da sua irmã me pedindo que eu viesse para Malta passar uns dias com ela. Nerina disse que tinha
de ser logo. Ela parecia aflita. Foi só isso que aconteceu, foi só isso que ela me disse. E eu vim.
- Não minta.
- Eu não estou mentindo.
- Vocês planejaram tudo para que ela pudesse ficar com o amante, para que ela pudesse ter um caso.
- Nerina também não é mulher de ter casos. Será que não conhece a sua irmã? Ela deve estar apaixonada.
- A culpada dessa paixão é você.
- Eu não tenho absolutamente nada com o que está acontecendo. Quantas vezes vou ter que lhe repetir isso? E que história é essa de fazer camping selvagem
na Sicília? Como pode ter acreditado numa história dessa, sabendo que sua irmã tinha me convidado para passar alguns dias em Malta?
- Porque eu sou um grande idiota e Nerina nunca tinha mentido para mim. Aí, de repente, ela muda: diz a todos que você e eu estamos de casamento marcado
e vai para a Sicília com aquele descarado para ficar na minha casa.
- As pessoas apaixonadas não sabem o que fazem.
- E mesmo? - ele ironizou. - Mas que palavras mais sensatas... Mas agora, srta. Hart, minha irmã está inconsolável e muito machucada.
- Tente encarar tudo isso como experiência para ela.
- Nerina precisa de experiência, sim, mas não com um desqualificado como essa tal de Mica! O homem tem idade para ser o pai dela!
- Ele é tão velho assim?
- Como se você não soubesse. Ele tem trinta e oito anos. Para você, esse ser abjeto pode parecer jovem, mas para Nerina... Não acredito nessa barbaridade
toda! Qual era o plano verdadeiro? Queria que seu amiguinho se casasse com a minha irmã? Quanto estava pretendendo lucrar?
- Você está me ofendendo.
- E eu? Acha que já não fui ofendido demais? Mas o seu glamouroso amiguinho deixou a minha irmã inconsolável. - Ele deu um profundo suspiro. - Quero que
me prometa uma coisa.
- O quê? O que está querendo que eu lhe prometa?
- Não quero que minha irmã se sinta mais humilhada. Se alguém lhe perguntar sobre Mica, vai dizer que ele é sim um grande amigo seu.
"Meu Deus, eu nem conheço esse homem pessoalmente!"
- Eu...
- Não terminei, srta. Hart - ele voltou a interrompê-la. - E nós dois vamos, sim, continuar com esse nosso noivado. Sempre que eu quiser, você vai sair comigo
e terá de representar direitinho o papel de mulher apaixonada: se eu tocá-la, vai me tocar. Se eu beijá-la, vai corresponder ao beijo.
- Não vou fazer isso de jeito nenhum.
- Vai. Vai, sim, senhora! - Ele pegou a mala e saiu da sala. "Meu Deus, que confusão!"
Débora, inconformada com aquilo tudo, balançava a cabeça em negativa. Nerina havia mentido. A garota tinha dito a quem quisesse ouvir que ela e seu irmão
estavam noivos e iriam se casar. Tudo isso para poder levar em frente o seu namoro com Mica.
"Ao dizer que ele era meu amigo, Nerina achou que tudo estaria resolvido, que não sofreria nenhum tipo de pressão. Pobre garota, acabou botando os pés pelas
mãos. Nunca vi esse tal de Mica. Só tinha ouvido falar dele através das cartas que Nerina me mandou."
Débora ouviu passos e ficou alerta. Mas Rafaelo não voltou para a sala. Ao ouvir a porta da frente bater, ela correu e ainda conseguiu encontrá-lo no pátio.
- Aonde você vai? - Débora quis saber.
- E desde quando eu tenho de lhe dar satisfação sobre os meus atos?
- Não pode sair. Precisamos conversar.
- Nós não temos nada. para conversar.
- Mas é claro que temos. Você me acusou de um monte de coisas e não me deu o menor direito de defesa.
- Não quero saber de conversa. Vou para o Christina.
- Não sem antes conversar comigo - ela insistiu. - Estou sendo vítima de uma grande injustiça. Não conheço Mica pessoalmente.
- Mas é claro que eu você conhece aquele cretino.
- Não, eu não o conheço. Sua irmã o mencionou nas cartas que me escreveu. Portanto, eu só o conhecia pelo nome. - De repente, ela se decidiu. - Quer saber
de uma coisa? Eu vou embora daqui!
Débora correu para o quarto, pegou a bagagem que já estava pronta, pois ela estava pretendendo ir embora assim que Rafaelo ou Nerina desse alguma notícia,
e voltou para o pátio.
- Quer me dizer para onde está pretendendo ir? - Rafaelo interceptou-lhe o caminho.
- Para bem longe de você. E saia da minha frente.
- Você não pode ir embora.
- Não só posso, como vou. - Ela o empurrou e entrou no carro. As chaves se encontravam na ignição. - O senhor me ofendeu muito, sr. Micallef. Bem mais do
que pode imaginar. Como ousou pensar que eu pudesse fazer algum tipo de mal a sua irmã? Eu adoro aquela menina. Se quer saber, fui eu quem doou a medula óssea para
que Nerina pudesse fazer o transplante.
Débora deu a partida no carro e, chorando muito, partiu.
No ancoradouro, inconsolável, Débora estacionou o carro, pegou a bagagem e caminhou para comprar a passagem para a balsa.
- Srta. Hart... - A voz era de Cesare. - O que está fazendo por aqui?
- Vou voltar para Malta.
- E o sr. Micallef?
- Ele vai ficar.
- Eu posso levá-la até Malta, senhorita.
- Agradeço muito, mas posso ir de balsa, não quero incomodá-lo.
- Não será incômodo nenhum. A próxima balsa só dai daqui a uma hora. E eu estou indo para Malta.
Débora pensou um pouco. Não podia correr o risco de se encontrar de novo com Rafaelo que, a qualquer momento, poderia aparecer.
- Tem certeza de que não vou incomodá-lo?
- Certeza absoluta. - Cesare riu de maneira amistosa.
- Tudo bem, eu vou com você.
- Então vamos para o barco.
Muito prestativo, ele fez questão de carregar-lhe a bagagem. Ao chegarem no barco, Cesare, sorrindo, lhe apresentou o resto da tripulação:
- O maior é o meu sobrinho Tobias. E o menorzinho é o meu neto, Salvatore. Ele tem sete anos.
- Neto? - ela perguntou, espantada. - Mas você ainda é muito jovem para ter netos...
- Para a senhorita ver como é a vida...
Os quatro navegavam rumo à Malta. Muito magoada, Débora fazia de tudo para esquecer o que tinha acontecido e para isso conversava com os dois garotos, principalmente
com o menor.
Cesare estava levando os dois garotos para assistirem a uma regata.
De repente, os dois garotos ficaram atentos às embarcações que estavam encontrando pelo caminho. Débora, sem se dar conta, começou a pensar em tudo o que
havia acontecido desde que desembarcara em Malta.
De repente o barco deu um solavanco. Desequilibrada, ela caiu e, quando conseguiu olhar, viu uma lancha fugindo.
- Ele bateu em nós e o vovô caiu - Salvatore chorava.
- Calma querido, calma. - Apesar da dor terrível que sentia no braço, Débora correu para os controles do barco. No chão, Cesare se esvaía em sangue. Com
a pancada ele caíra e batera a cabeça. - E agora, meu Deus, o que é que eu faço? Para onde fica Malta?
- Para lá! - Com lágrimas nos olhos, o garoto mais velho indicou-lhe o caminho.
Porém, quando Débora tentou acelerar, o motor falhou e acabou parando. Foi naquele instante que ela viu que estava entrando água pelo casco da embarcação.
- Você sabem nadar? - ela perguntou a Tobias.
- Eu sei, mas o Salvatore nada muito mal.
- Deus, por favor, me ajude. O que vai ser de nós? Com essa dor no braço não vou poder fazer nada - ela sussurrou.
Naquele instante, uma outra lancha foi avistada pelos três.
- Gritem, peçam socorro e façam sinal - Débora instruiu os garotos. - Eles precisam nos ver.
Débora, sem saber onde se encontrava, abriu os olhos.
- Isso aqui só pode ser um hospital - ela disse baixinho.
- E é um hospital mesmo - Rafaelo, que se encontrava ao lado da cama, respondeu.
- O que você está fazendo aqui? E como ficou sabendo do acidente?
- Tinha uma equipe de televisão transmitindo a regata ao vivo e o resgate de vocês também foi transmitido. Por coincidência eu estava vendo televisão e vim
imediatamente para cá.
- Eu acho que desmaiei. A última coisa que me lembro foi de ter pedido aos garotos que gritassem por socorro.
- Você desmaiou, sim.
- Estava sentindo muita dor no braço.
- Você torceu o braço, Débora.
- Cheguei a pensar que eu o tivesse quebrado.
- Felizmente, foi só uma torção.
- Como foi a colisão com a lancha?
- Não vi, eu estava distraída.
- Quero lhe pedir uma coisa: por favor, nunca mais fuja de mim e também nunca mais ouse se machucar. Meus últimos anos foram passados em hospitais. - Ele
acariciou-lhe o rosto de leve. - Nerina sabe que foi você quem lhe doou a medula óssea?
- Não, ela não sabe. Ninguém sabe, só o pessoal do hospital. E eu também não deveria ter lhe contado. - Ela deu um profundo suspiro. - Como está Cesare?
- Está bem. Levou vários pontos na cabeça mas já saiu do hospital.
- E os garotos?
- Os dois, apesar dos susto, estão ótimos.
- Eu fiquei muito tempo desmaiada.
- É verdade, mas já fizeram vários exames em você e, além da torção no braço, não encontraram nada.
- Ainda bem.
- Tenho uma outra coisa para lhe pedir.
- E o que é?
- Case-se comigo.
- O quê? - ela perguntou espantada.
- Pedi para você se casar comigo.
- Casar com você?
- É.
- Por quê? Você nem mesmo gosta de mim. - Débora sentia a garganta seca. E tornou a perguntar: - Por quê?
- Porque... Porque é na única coisa que estou conseguindo pensar neste momento. Fiquei um bom tempo aqui velando o seu sono.
- Eu não estava dormindo. Eu estava desmaiada.
- Pois é... E aí, resolvi que quero me casar com você. Teve uma hora que você abriu os olhos, disse algumas coisas ininteligíveis e eu tive a certeza de
que a quero comigo para sempre.
- Eu cheguei a acordar?
- Por alguns segundos apenas. O duro foi não poder lhe dizer o que eu estava sentindo. Esse povo todo entrando e saindo... Foi uma noite terrível.
- Noite? Sobre o que você está falando? O acidente aconteceu hoje.
- Não, o acidente aconteceu ontem.
- Quer dizer que fiquei desacordada esse tempo todo?
- Ficou. E vai ter de ficar pelo menos mais um dia aqui. Apesar de acharem que nada de grave aconteceu com a sua cabeça, eles querem que continue em observação.
- Eu também cortei a minha cabeça?
- Não, mas a pancada que levou foi muito forte.
- Meu Deus... Não pensei que tivesse ficado desacordada por tanto tempo.
- Mas você ficou. E eu tive muito tempo para refletir sobre tudo o que nos aconteceu. E, como eu lhe disse uma vez, você foi a primeira mulher com quem consegui
me sentir à vontade desde que a doença da minha irmã foi descoberta. Não sou criança Débora, não sou criança e sei muito bem a diferença entre sexo e... amor.
- Amor?
- É, amor. Não quero que vá embora, não quero perder você. Quero conhecê-la melhor, poder tocá-la, quero filhos. Quase a perdi e...
- Quando saí da sua casa, pensei que fosse atrás de mim - ela o interrompeu.
- Eu pensei em ir, mas desisti da idéia. Estava muito nervoso, confuso. E pensar que você poderia ter morrido... Quando eu a vi desmaiada sendo retirada
da lancha... Meu Deus, que sensação mais terrível!
Os dois continuaram conversando por um longo tempo. Uma enfermeira entrou no quarto e sorriu ao ver que ela estava acordada.
- Agora, por favor, gostaria de ficar sozinha com a nossa paciente.
Rafaelo saiu do quarto e ficou aguardando do lado de fora. A enfermeira, muito carinhosa, deu um banho em Débora na cama mesmo e pediu para que ela continuasse
em repouso. E foi quando a enfermeira tinha acabado de sair que Débora lembrou-se do compromisso que tinha na Tunísia.
- Não posso ficar nem mais um segundo neste hospital. Tenho de viajar - ela disse e, com cuidado, saiu da cama. Naquele instante Rafaelo entrou no quarto.
- O que está acontecendo? - ele quis saber.
- Preciso ir embora.
- Para onde?
- Para a Tunísia. Tenho um trabalho lá, você sabe disso.
- A sessão de fotos que você faria na Tunísia foi adiada. Por favor, volte para a cama.
- Como ela foi adiada? - Débora estava se sentindo meio tonta e se apoiou na cama.
- Um tal de Harry... Não estou conseguindo me lembrar do sobrenome dele...
- Harry Parker.
- É isso aí. Harry Parker ligou para o meu escritório adiando o seu compromisso. Ele também ficou sabendo do acidente.
- Como?
- Não sei, foi a minha secretária que conversou com ele. Mas Harry Parker deve ter assistido pela televisão.
- Pelo jeito o mundo inteiro ficou sabendo do meu acidente.
- O mundo inteiro eu não sei, mas Harry Parker ficou sabendo, sim. - Ele a segurou pelo ombro. - Por favor, volte para a cama. Você precisa de repouso.
A contragosto, Débora voltou a se deitar.
- Eu lhe pedi em casamento, está lembrada?
- É... você me pediu em casamento...
- Você não parece muito entusiasmada com o meu pedido. Não quer se casar comigo, minha querida?
- Eu não sei.
- Como? Como você não sabe? - Ele parecia bastante frustrado.
- Casamento é um passo muito sério, Rafaelo, e a gente quase não se conhece.
- Já conheço você o suficiente.
- Não, você ficou impressionado com o fato de eu ter sido a doadora de medula para a sua irmã. Depois disso decidiu que eu não poderia ser uma aproveitadora,
uma aventureira. Aí, aconteceu o acidente e tudo se precipitou. Mas isso não é motivo suficiente para se casar comigo.
- Você está redondamente enganada. Estava pensando em me casar com você bem antes de ficar sabendo sobre a doação de medula.
- É mesmo? - ela perguntou, com uma certa ironia na voz. - É inacreditável.
- Acontece que sou péssimo quando tenho de lidar com as minhas próprias emoções. Mas, apesar desse tipo de dificuldade, me conheço muito bem.
- Não parece, Rafaelo
- Mas é verdade.
- Você não parecia nem um pouco interessado em mim quando voltou da Sicília.
- Porque eu sou um idiota e estava querendo controlar uma situação que não me pertence. Você é amiga da minha irmã. E devo respeitar isso.
- Nerina não pode ser impedida de viver só porque teve leucemia. Agora sua irmã está bem e tem todo o direito de experimentar o mundo à maneira dela. Você
não pode impedi-la de errar, de sofrer.
- Eu sei disso. Mesmo assim a minha tendência é protegê-la.
- Nerina é uma garota forte e não precisa de proteção. - Débora pensou um pouco e concluiu: - Não a espécie de proteção que você tem dado a ela.
- Eu vou tentar mudar.
- Não basta apenas tentar, Rafaelo.
- O que você quer que eu faça?
- Quero que respeite a sua irmã como um ser humano que ela ê. Se Nerina se sentisse segura com você, não teria inventado tanta mentira só para poder ficar
com o namorado.
- Mas ele é muito mais velho do que ela.
- Se a situação fosse o inverso? Se, por exemplo, você se apaixonasse por uma garota bem mais jovem, será que iria ficar muito chocado, constrangido? Tenho
certeza de que não.
- Fui muito injusto com você, Débora. Por favor, me perdoe. Me perdoe e se case comigo.
- Preciso de tempo.
- Para me perdoar, ou para se casar comigo?
- Para pensar se quero me casar com você.
- Não, não quero esperar. Se for possível, quero me casar com você amanhã mesmo.
- Já disse que preciso de tempo.
- Mas você está com quase trinta anos.
- E daí? - Débora balançou a cabeça em negativa. - Nós nos conhecemos há pouquíssimo tempo.
- Com trinta anos dá para saber se amamos ou não uma pessoa. - Ele estava bastante aflito. - Você não me ama?
- Não sei. Você me afeta profundamente, mas não sei se isso é amor.
- Você não me ama. Se me amasse, estaria disposta a se casar comigo imediatamente.
- Rafaelo, entenda, o que estamos sentindo um pelo outro pode ser apenas uma forte atração física. E casamento, pelo menos para mim, é coisa séria.
- Casamento para mim também é coisa séria. Por que acha que fiquei solteiro até hoje?
- Se for apenas atração física que sentimos um pelo outro, ela logo vai passar. Aí, restará o quê?
- É amor, Débora, é amor o que eu sinto por você.
- Como pode ter tanta certeza?
- Não dá para explicar.
- Eu tenho o meu trabalho, eu tenho... - De repente, apavorada, Débora interrompeu o que estava dizendo.
- O que foi? Está se sentindo mal?
- Minha maleta com o meu material fotográfico! Meu Deus, eu a perdi.
- Calma, muita calma. A sua maleta está comigo.
- Ainda bem!
A enfermeira voltou a entrar no quarto e disse:
- A nossa paciente precisa descansar, gostaria que o senhor se retirasse.
- Mas eu...
- Por favor, sr. Micallef, são ordens médicas.
- Certo. - Ele se levantou. - Mas depois eu volto. Vou passar a noite com a minha noiva.
No dia seguinte pela manhã, Débora recebeu alta.
- Bem, agora você pode ir para casa. Satisfeita? - Rafaelo perguntou com um imenso sorriso nos lábios.
- Muito. Estou morrendo de saudade da minha casa.
- Mas você não vai voltar para a sua casa.
- Claro que vou.
- De jeito nenhum, você vai para a minha casa.
- Não, Rafaelo, quero voltar para a minha casa. Faz tempo que estou fora e...
- Não adianta discutir, querida. Você vai ficar comigo até estar plenamente recuperada. Agora vamos sair desta cama.
- Mas eu não tenho nada para vestir.
- Tem certeza? - Rafaelo abriu o guarda-roupa, pegou um embrulho muito bem-feito e o entregou a ela. - Aqui tem tudo o que você precisa.
CAPÍTULO IX
Já em casa, os dois conversavam na sala de visitas. - Você está sentindo alguma coisa errada?
- Não, não estou sentindo nada.
- E o braço?
- Está meio estranho, mas não estou sentindo dor.
- Ainda bem. - Ele sorriu. - Você ficou muito bem com este vestido que eu lhe comprei.
- Adoro vermelho. É a cor da paixão.
- Da cor da paixão que eu sinto por você, sabia?
- Não, eu não sabia. - Ela sorriu com uma certa timidez.
- Agora me fale.
- Sobre o quê?
- Sobre essa história de ser doadora.
- Isso não é importante.
- Não é importante? Se não fosse por você, hoje Nerina poderia estar morta.
- Você contou a ela?
- A minha irmã? Está querendo saber se contei a ela que você fez a doação? - Rafaelo sorriu. - Contei, sim. E ela está vindo para cá.
- Nerina está vindo aqui para a sua casa?
- Está. Mas me diga, como resolveu se tornar uma doadora?
- Bem, há cinco anos uma amiga minha faleceu de leucemia. Um transplante poderia tê-la salvo. Mas, infelizmente, não encontraram um doador. Aí, resolvi me
cadastrar como doadora. Fui até à instituição que cuida disso e me inscrevi como voluntária. Um bom tempo depois, eles me procuraram para os testes e fiquei sabendo
que seria doadora para uma jovem.
- Você fala com tanta tranqüilidade, Débora. Não sentiu medo?
- Para lhe dizer a verdade, eu fiquei apavorada.
- E não chegou a pensar em desistir da idéia?
- Não, isso nunca me ocorreu. Apesar do medo, me sentia muito feliz em poder salvar uma vida. Bem, depois dos testes, que foram compatíveis, fui para uma
clínica e dois cirurgiões, me retiram a medula óssea.
- Você tomou anestesia?
- Tomei anestesia geral. Mas logo me recuperei.
- E como conheceu a minha irmã? Sei que nos casos de transplantes o sigilo sobre a identidade do doador e paciente é mantido pelo menos após um ano a realização
da cirurgia.
- Bem, através do hospital que realizou o transplante, mandei um cartão desejando saúde a vários pacientes, coisa que sempre faço. Nerina respondeu ao cartão.
Dois meses depois ela me escreveu de novo. Nesta carta ela me dizia que não queria saber quem tinha sido o doador e que, inclusive, seu irmão era contra. E me pedia
para poder continuar me escrevendo, pois intuía que eu sabia exatamente tudo o que ela tinha passado.
- Esse seu gesto de mandar cartões é muito bonito.
- Deve ser duro ficar numa cama de hospital. Foi a maneira que encontrei de me manter perto dos pacientes e, de uma certa forma, da amiga que eu perdi.
- As correspondências que vocês trocavam foram todas feitas através do hospital?
- Foram. E eles liam as nossas cartas, para ver se não nos identificávamos. A instituição é muito rigorosa quanto a manter o sigilo. Após a terceira, quarta
carta, sentia uma vontade imensa de conhecer a pessoa para quem eu doara a medula. É como se ela fosse parte de mim. Você consegue entender?
- Claro que sim.
- Bem, para resumir, o tempo em que o sigilo é mantido acabou e há seis meses nós duas nos encontramos pela primeira vez. Não contei à Nerina que eu tinha
sido a doadora e ela jamais tocou no assunto. Continuamos nos correspondendo. As cartas de Nerina passaram a ser algo muito importante, vital mesmo, para mim. Ela,
apesar de muito jovem, é uma pessoa muito equilibrada e madura. Depois, nos encontramos de novo há dois meses na Itália, onde estava fazendo uma sessão de fotos.
- Quer dizer então que se encontrou com Nerina na Itália...
- Você não sabia?
- Não, ela não me disse nada. Nerina tinha ido para lá passar uns tempos com uma tia.
- Ela não deve ter lhe contado porque, com toda certeza, percebeu que você seria contra a nossa amizade. Bem, há algumas semanas Nerina me convidou para
conhecer Malta. Além de conhecer a ilha, também queria que eu conhecesse Mica, com o qual já vinha se relacionando. - Ela fez uma pausa para tentar se lembrar dos
detalhes de tudo o que havia acontecido. - Na última carta que recebi, Nerina já falava sobre eu fazer algumas fotografias e me disse que você me receberia de braços
abertos.
- E eu não estava sabendo de absolutamente nada. - Ra-faelo balançou a cabeça de um lado para o outro. - Isso tudo me deixa muito magoado.
- Por quê?
- Achava que a minha irmã confiava em mim. E, ao contrário do que poderia imaginar, ela estava tendo toda uma vida que eu desconhecia.
- Mas acho que, de agora em diante, vocês dois poderão ter um relacionamento mais verdadeiro.
- Tenho a impressão de que Nerina não sabe o quanto eu a amo.
- Acho que ela sabe, sim. Mas, como todo adolescente, ela sente uma certa dificuldade em se relacionar com figuras que representam autoridade. Você é como
se fosse um pai para ela.
- Mais do que um pai, quero ser amigo da minha irmã.
- E você vai conseguir. Nerina é muito doce, muito meiga.
- Mas é muito ingênua, também. Esse tal de Mica só estava atrás do nosso dinheiro.
- Você não está julgando mal o rapaz?
- Não, de maneira alguma. Se ele fosse um homem des-cente, com a idade que tem, não iria concordar em namorar a minha irmã às escondidas.
- Você está sendo muito duro, Rafaelo.
- Engano seu. O calhorda fugiu com uma milionária rica, viúva e bem mais velha do que ele.
- Isso você não tinha me contado.
- Pois é... Nerina estava inconsolável. Temi que ela tivesse uma recaída.
- Isso não vai acontecer. Quer dizer, então, que o Mica fugiu com uma viúva rica... Quem diria! Nas cartas Nerina me dizia que ele estava muito apaixonado.
- Ele estava apaixonado pelo conforto, por tudo o que poderia conseguir caso se casasse com ela.
- Os dois chegaram a conversar, ou ele a deixou sem lhe dar a menor explicação?
- Os dois conversaram, sim. O calhorda teve a coragem de dizer à Nerina que, com um irmão como eu, não dava para lutar. Que ele preferia ir embora com a
americana que não tinha filhos, nem irmãos. Pode uma coisa dessa? - ele perguntou, indignado.
- Meu Deus, nesse mundo a gente encontra de tudo.
- E por que Nerina não voltou com você?
- Ela não quis. Disse que preferia ficar mais um tempo na Sicília para pensar na vida.
- Quando ela chegar, Rafaelo, por favor, não toque no nome do Mica.
- Mas Nerina precisa aprender...
- Ela está aprendendo. Garanto que ela está aprendendo. Se começar a cobrá-la, se começar a lhe dizer o quanto ela foi ingênua, a barreira que existe entre
você dois poderá aumentar e, com o tempo, se tornar intransponível.
- Você é uma mulher muito sensata, srta. Hart. - Ele deu-lhe um beijo na ponta do nariz.
- Eu faço o que posso.
- E com essa sensatez toda ainda não decidiu se casar comigo?
- Eu já lhe disse que preciso de tempo.
Ele ficou em silêncio durante alguns instantes.
- Em quê está pensando? - ela quis saber.
- Em algo que acho que não devo lhe falar.
- Por quê?
- Porque eu a deixaria chocada.
- É mesmo?
- Pode acreditar.
- Não quer tentar? - ela pediu. - Talvez eu não fique chocada.
- Então eu vou lhe dizer: se não tivesse que fazer repouso, eu a tomaria nos braços e, depois de muito amá-la, você rapidamente aceitaria se casar comigo.
- Meu Deus, quanta segurança! Quem o vê falar vai achar que estou diante...
- Não - ele a interrompeu e segurou-lhe as mãos -, você só está diante de um homem apaixonado. Um homem que a tratou muito mal no início por pura insegurança.
Assim que eu a vi no aeroporto percebi que algo muito estranho havia desabrochado em mim. E fiquei apavorado. Aí, a minha bela princesa de cabelos curtos, me tratou
como eu fosse um homem comum e...
- Mas você é um homem comum. O fato de ter dinheiro não faz de você um ser do outro planeta. Pelo menos para mim é assim.
- Que bom ouvir isso. O fato de não ter feito absolutamente nada para se insinuar, para tentar me conquistar, me deixou muito desconfiado no início. Achei
que fosse tática, achei que fosse uma maneira de se fazer notar. Depois... Bem, depois vi que estava redondamente enganado. Sabe, Débora, não suporto as mulheres
que me tratam como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo. Atrás dos olhares meigos, existe só um tipo de interesse: a minha conta bancária.
- Pois eu, sr. Micallef, também não posso me queixar da minha conta bancária. Ela é excelente. Claro que não tenho todo o seu dinheiro, mas estou muito satisfeita
com o que consegui.
- E eu que cheguei a pensar que você não passasse de uma inconseqüente. Como eu estava enganado... - Ele se levantou. - Bem, agora acho melhor você ir se
deitar.
- Mas eu não estou cansada.
- Ordens médicas, senhorita. E você vai cumpri-las rigorosamente.
Débora foi para o quarto e se deitou. Rafaelo, muito atencioso, sentou-se na beirada da cama.
- Estou morrendo de vontade de me deitar com você.
- Rafaelo, você sabe que eu não posso cometer excessos.
- E você gostaria de cometer excessos?
- Adoraria. - Ela sorriu de um jeito maroto.
- Mas isso, sob os meus mais veementes protestos, vai ficar para um outro dia. - Rafaelo acariciou-lhe o rosto de leve. - Mesmo assim, minha querida, queria
me deitar um pouco com você. Posso?
- Só deitar aqui comigo?
- Só deitar. Adoraria ver e sentir você dormindo em meu braços.
Aquelas palavras a deixaram muda. Sempre na vida quisera ouvir algo como aquilo.
- O que foi?
- Nada, pode se deitar ao meu lado, sim. Rafaelo tirou os sapatos e se deitou ao lado dela.
Os dois ficaram no mais absoluto silêncio. Mas, apesar do silêncio, todos pensamentos de Débora estavam voltados para o pedido que ele lhe fizera.
Ao adormecer, Débora tinha chegado a uma conclusão: sim, ela se tornaria a sra. Micallef.
Ao acordar, Débora se deparou com dois lindos olhos azuis a fitando com carinho.
- Quando dorme, você mais parece uma menininha.
- Mas eu sou uma menininha; pelo menos é assim que estou me sentindo neste momento.
- Adoraria poder acordar todos os dias e tê-la ao meu lado.
- Eu também, eu também adoraria acordar sempre ao seu lado.
- Verdade? - Ele sorriu, feliz. - Mas isso é muito bom.
- Aquele pedido ainda está valendo?
- Qual pedido?
- O pedido de casamento.
- Se ainda está valendo? - Ele ficou eufórico. - Mas é claro que sim.
- Então, estou disposta a me tornar sua mulher.
- Oh, Débora, mas que coisa maravilhosa. Prometo que vou fazer de você a mulher mais feliz do mundo.
- Mas eu já sou a mulher mais feliz do mundo. Ao seu lado me sinto em paz, tranqüila, muito tranqüila...
- E para quando será esse casamento?
Naquele instante, pela porta do quarto que havia ficado aberta, entrou Nerina.
- Casamento? - A garota correu para abraçá-los. - Será que ouvi direito? Vocês dois vão se casar? Então eu estava certa em ter espalhado a notícia do falso
noivado? Acho que vou me especializar em artes divinatórias.
- Por que não faz isso? - Débora perguntou à amiga. - Você está muito bonita, querida.
- Você também, cunhadinha. - Olhando para Rafaelo a garota brincou: - Viu só que pedaço de mau caminho é o meu irmão?
- Deveria ter me contado isso antes. Acho que perdi muito tempo na vida.
- A sua amiga também não é de se jogar fora - ele brincou.
- Olha só que bandido! - Débora reclamou. - Sabe, Nerina, que seu irmão não gosta de mulheres com os cabelos curtos?
- Isso é uma grande mentira! Ele vive pedindo para eu cortar os meus.
- Você, hem? - Débora o fitou sorrindo.
- Já ouviu um ditado que diz: quem desdenha quer comprar? Pois então... - ele disse.
- E vocês vão ficar morando aqui em Malta? - a garota estava muito interessada.
- Não tivemos tempo de discutir isso ainda, maninha. Mas teremos de morar em um lugar que seja prático para nós dois. Como você sabe, Débora viaja muito.
- Você também viaja muito.
- É por isso que teremos de discutir esse assunto com muito cuidado. - Ele saiu da cama. - Vou deixá-las sozinhas. Você duas devem ter muito o que conversar.
- Se quiser, pode ficar, Rafaelo. Decidi que não esconderei mais nada de você.
- Fico contente em saber, mas prefiro deixá-las sozinhas. - Ele saiu do quarto.
- Nunca vou poder agradecê-la, Débora. O que fez por mim...
- Esqueça, querida...
- Esquecer? Como acha que posso esquecer que foi você quem salvou a minha vida? E pensar que tem tanta gente nas filas de transplantes esperando uma chance
de continuar vivo. E é tão fácil ser um doador, mesmo em vida. Estou pretendendo fazer uma campanha para que as pessoas se disponham a se tornar doadores.
- Acho essa idéia ótima.
- Você poderia fazer as fotografias.
- Fotografias? - Débora perguntou, meio desentendida.
- É. As fotografias para a campanha de doação de órgãos. Que tal?
- Pode contar comigo.
- É isso aí! - Nerina gritou.
- É isso aí, o quê?
- O slogan da campanha: Pode contar comigo!
- Brilhante, Nerina! É um slogan excelente.
- Já pensou quantas pessoas poderão ser salvas? Essa campanha vai dar um novo rumo a minha vida. - Os olhos da garota se encheram de lágrimas.
- Você se machucou muito, não foi?
- Muito, Débora, muito. Pensei que Mica estivesse apaixonado por mim. Aí, armei a confusão toda que você já sabe. E ele... fugiu com outra mulher.
- Rafaelo me contou.
- Não merecia que algo semelhante me acontecesse.
- Eu também acho que não.
- Vivendo e aprendendo! Mica se dizia muito apaixonado, dizia que eu era a pessoa mais importante que tinha encontrado na vida. E eu, idiota, acreditei.
Será que só vou encontrar na vida homens interessados no meu dinheiro?
- Mas é claro que não. Tenho certeza de que um dia você vai encontrar alguém que a ame de verdade.
- Será?
- Com toda certeza. Você merece ser feliz. Você e todos que habitam este nosso tão sofrido planeta.
As duas continuaram conversando, trocando confidências. De repente, Nerina perguntou:
- Você ama o meu irmão?
- Amo, amo muito. Se não o amasse jamais me casaria com ele.
- Rafaelo é uma boa pessoa. Às vezes é meio teimoso, mas é uma boa pessoa.
- Eu sei disso.
EPÍLOGO
A igreja estava lotada. Já na calçada, ao lado de Cesare, Débora esperava o momento de entrar. O vestido, branco, rebordado com pequenas pérolas, mais parecia
saído de um sonho. E Débora tinha a nítida sensação de que estava vivendo um sonho. Um sonho que ainda mal havia começado.
- Você está lindíssima, Débora. Nunca vi uma noiva tão bonita - Nerina, que era a dama de honra, comentou cheia de orgulho.
- Você também está muito bonita.
- Muito obrigada. - A garota se aproximou de Débora e disse, baixinho. - Sabe quem está aí na igreja?
- Não, quem?
- O meu primeiro namorado. Acho que faz uns quatro anos que não o via. Ele também se tornou um pedaço de mau caminho.
- Ele também tem cabelos castanhos e olhos azuis? - Débora perguntou, sorrindo.
- Não, o meu pedaço de mau caminho tem cabelos negros e olhos verdes. O nome dele é Francisco.
- Bonito nome.
- Ele é parente de um amigo da nossa família e mora na Sardenha. Francisco está fazendo faculdade de robótica. E sabe por que ele terminou o namoro comigo?
- Não, por quê?
- Porque eu sou rica e ele é pobre. Pode? Pode uma coisa dessa?
- Mas ainda é tempo de reverter essa situação. Ou estou enganada?
- Você está certíssima.
A marcha nupcial começou a tocar e interrompeu o diálogo das duas.
Muito orgulhoso, vestindo um smoking negro, Cesare deu o braço à Débora. Devagar, os três entraram na igreja.
Ao ver Rafaelo no altar, sorrindo, o coração de Débora deu um salto dentro do peito.
"Como eu amo esse homem! Ele é tudo o que eu sempre quis encontrar..."
Durante a cerimônia, Débora continuava com a nítida sensação de que vivia um sonho. Rafaelo, muito afetuoso, não parava de fitá-la. Quando o padre os declarou
marido e mulher e sugeriu que se beijassem, Rafaelo a abraçou e disse baixinho:
- Esse é o momento mais sublime, o momento mais importante da minha vida, meu amor. Não sabe o quanto esperei encontrar uma mulher como você. Só não lhe
prometo a lua porque não posso ir lá no céu buscá-la. Mas as estrelas que brilham no meu coração são todas suas. Eu te amo, Débora. Para sempre. - E ele a beijou,
um beijo cálido, terno.
- Eu também te amo. Para sempre, Rafaelo.
FIM
??
??
??
??
Um cupido desajeitado - Emma Richmond - Bianca Duplo 667 - 2ª Parte
Projeto Revisoras
1
Bjos!
Edilma
http://blogdosamigosdaedilma.blogspot.com/
--
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