quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

para veronica e kem mais kiser: O Pântano Da Meia-Noite (Midnight Bayou) - Nora Roberts.txt

Título: O Pântano Da Meia-Noite.
Autor: Nora Roberts.
Badana da capa:
Qualquer coisa naquela casa atraía Declan Fitzgerald. Era uma mansão degradada, nos arredores de Nova Orleans, que se dizia assombrada, e que há muito era presa
de aranhas e de uma inesgotável camada de poeira. Depois de ter sonhado com a sua compra durante vários anos, Declan decide-se finalmente a dar esse passo. Larga
o seu escritório de advogado em Boston, dispõe-se a dar início à imensa tarefa de restaurar Manet Hall.
Pouco a pouco, porém, o jovem começa a interrogar-se sobre se não haverá algo verdadeiro em todas aquelas alusões ao facto de a casa ser assombrada. Tem tido algumas
visões, durante as quais imagina presenciar cenas de um passado remoto. Mas sobretudo sente uma crescente angústia, como se a casa fosse refém de um terror e de
uma tristeza que nada nem ninguém poderiam controlar.
Durante algum tempo, uma bela vizinha distrai-o desses pensamentos sombrios. Mas Angelina Simone tem igualmente uma estranha relação com Manet Hall. E antes que
ambos possam entregar-se, sem rebuços, à sua paixão, terão de enfrentar e descobrir um segredo do passado, tão oculto e tão negro quanto o próprio pântano que os
cerca.
PRÓLOGO
A morte, com toda a sua cruel beleza, vivia no bayou(1). As suas sombras estavam em toda a parte. Qualquer sussurro que abafado por elas se ouvisse, nas ervas, nos
canaviais ou na ratoeira do emaranhado do kudzu(2) significava vida, ou uma morte recente. O seu sopro era espesso e esverdeado, os olhos amarelos cintilavam no
escuro.
O rio, silencioso como uma serpente, corria numa linha sinuosa: água negra debaixo de uma gorda Lua branca onde os joelhos dos ciprestes rompiam a superfície como
ossos a perfurarem a pele.
O vulto comprido e nodoso de um jacaré sulcava a água escura e manchada pela Lua quase sem provocar ondulação. A sua ameaça era silenciosa, como se de um segredo
se tratasse. Quando atacava, com a cauda fustigante a talhar triunfantemente a água, quando apertava o descuidado rato almiscarado nas mortíferas mandíbulas, o bayou
ecoava com um único e breve grito.
E o jacaré afundava-se então no fundo lodoso com a sua presa.
Outros haviam conhecido as cruéis e silenciosas profundezas desse rio. Sabiam que era frio, frio, mesmo durante o terrível calor do Verão.
Carregado de segredos, o bayou nunca estava completamente imóvel. À noite, a morte andava atarefada sob a alta lua do caçador. Os mosquitos, como vampiros vorazes,
zuniam numa rejubilante nuvem de avidez. Eram os instrumentistas da música do pântano e misturavam-se com os zumbidos, sussurros e gotejares pontuados pelos guinchos
de pavor das presas capturadas.
(1) Termo do francês da Louisiana, usado sobretudo na região do delta do Mississipi, que designa um braço fluvial pantanoso. (N. dos T.)
(2) Planta trepadeira originária do Japão, perfeitamente adaptada ao clima do Sul dos EUA, e que, se não for controlada, pode transformar-se numa verdadeira praga.
(N. dos T.)
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Uma coruja soltava as suas duas lúgubres notas nos altos ramos de um carvalho, ensombrecido pelo musgo e pelas folhas. Alertado, um coelho fugia para salvar a vida.
E uma brisa que agitava o ar desvanecia-se logo depois, como o suspiro de um fantasma.
A coruja abandonava o seu poleiro com um rápido bater de asas.
Perto do rio, enquanto a coruja atacava e o coelho morria, uma velha casa cinzenta dormia nas sombras, com um embarcadouro que baloiçava ao sabor da ondulação. Mais
além, sobre uma comprida e luxuriante extensão de erva, uma imponente mansão branca erguia-se atenta sob o luar.
O bayou estendia a sua linha entre o rio e a casa, repleto de vida e de morte.
Capítulo Um
Mansão Manet, Louisiana, 30 de Dezembro de 1899
A bebé estava a chorar. Abigail ouvia em sonhos o choro ténue e inquieto, o agitar dos minúsculos membros sob os cobertores macios. Sentiu as primeiras pontadas
de fome, um anseio no ventre, como se a criança ainda estivesse dentro de si. O leite brotou-lhe dos seios antes de acordar completamente.
Levantou-se apressada e sem qualquer ruído. Dava-lhe tanto prazer: a intensa sensação de ternura e abundância nos seios. A sua utilidade. A filha precisava de alimento
e ela fornecer-lho-ia.
Pegou no roupão branco pousado sobre o recamiet(1). Inalou o aroma dos lírios de estufa - os seus favoritos - colocados numa jarra de cristal que fora prenda de
casamento.
Antes do aparecimento de Lucian, contentava-se em enfiar flores silvestres dentro de garrafas.
Lucian também teria acordado se estivesse em casa. Ela teria sorrido e ter-lhe-ia afagado o cabelo loiro e sedoso enquanto lhe dizia que não se preocupasse, que
continuasse a dormir, mas ele teria ido ao quarto das crianças antes de ela ter acabado de dar a mama da meia-noite a Marie Rose.
Tinha saudades dele: era mais uma dor no seu ventre. Mas quando vestiu o roupão, lembrou-se de que ele voltaria no dia seguinte. A partir da manhã ficaria atenta
à sua chegada, à espera de o ver a galopar pela álea de carvalhos.
Correria ao encontro dele, indiferente ao que as pessoas pudessem
(1) Tipo de sofá com o apoio da cabeça elevado e o apoio dos pés mais baixo, geralmente sem encosto. (N. dos T.)
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pensar ou dizer. O seu coração sobressaltar-se-ia, oh, sobressaltava-se sempre, quando ele se apeasse do cavalo e a levantasse no ar.
E dançariam no baile de Ano Novo.
Começou a trautear baixinho e acendeu uma vela, escudando-a com a mão enquanto saía do quarto para o corredor da enorme casa onde fora outrora criada e era hoje,
se não filha da casa, pelo menos a esposa do filho.
O quarto das crianças ficava no terceiro piso da ala da família. Fora uma batalha que travara e perdera com a mãe de Lucian. Josephine Manet tinha regras definidas
sobre o comportamento, os assuntos domésticos e as tradições. Madame Josephine tinha ideias definidas sobre tudo, pensou Abigail enquanto passava rápida e silenciosamente
pelas portas dos outros quartos. E o lugar de um bebé de três meses era no quarto das crianças, sob os cuidados de uma ama, e não num berço enfiado a um canto no
quarto dos pais.
A luz da vela tremulou e varreu as paredes enquanto subia a estreita escadaria. Pelo menos conseguira manter Marie Rose consigo durante seis semanas. E usara o berço
que fazia parte das tradições da sua própria família e que fora construído pelo seu grand-père. A sua própria mãe dormira nele e, dezassete anos mais tarde, fora
a vez de Abigail ser nele aconchegada.
Marie Rose passara as suas primeiras noites nesse berço, um minúsculo anjinho com os extremosos e nervosos pais ali sempre junto dela.
A sua filha iria respeitar a família do pai e os costumes deles. Mas Abigail estava determinada a que também respeitasse e aprendesse as tradições da família da
mãe.
Josephine queixara-se tão insistentemente da bebé e do berço caseiro que ela e Lucian tinham acabado por ceder. Lucian disse que era assim que a água erodia as rochas:
incessante, até a rocha ceder caminho ou se desgastar.
A bebé passava agora as noites no quarto das crianças, no berço feito em França e no qual os bebés Manet haviam dormido durante um século.
Era um acordo aceitável, confortável até, pensou Abby à laia de consolação. A sua petite Rose era uma Manet. Ia ser uma senhora.
E, tal como Madame Josephine não se cansava de repetir, o sono dos outros membros daquele lar não podia ser perturbado por gritos angustiantes. Independentemente
do modo como se lidava com tais assuntos no bayou, ali, na Mansão Manet, cuidava-se das crianças no quarto que lhes estava destinado.
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Como os lábios dela se tinham curvado quando dissera aquilo: bayou, como se a palavra fosse proferida apenas em bares e em bordéis.
Não se importava que Madame Josephine a detestasse, que Monsieur Henri a ignorasse. Não se importava que Julian a olhasse como homem nenhum olharia para a esposa
do irmão.
Lucian amava-a.
Não se importava que Marie Rose dormisse no quarto das crianças. Quer estivessem separadas por um piso ou por um continente, sentia as necessidades de Marie Rose
como sentia as suas. O laço era tão forte, tão verdadeiro, que nunca poderia ser quebrado.
Madame Josephine podia ganhar batalhas, mas Abigail sabia que tinha sido ela quem ganhara a guerra: tinha Lucian e Marie Rose.
Havia velas acesas no quarto das crianças. Claudine, a ama, não confiava na luz alimentada a gás. Pegara já em Marie Rose e tentava sossegá-la com uma chupeta embebida
em açúcar, mas a bebé abanava os punhos como pequenas bolas de raiva.
- Mas que feitiozinho ela tem. - Abigail pousou a vela e riu enquanto avançava de braços já estendidos.
- Ela sabe bem o que quer, e quando quer. - Claudine, uma bonita cajun(1) de olhos escuros e ensonados, fez um rápido afago à bebé e entregou-lha. - Até agora quase
não fez barulho. Não sei como a ouviste lá em baixo.
- Ouvi-a no meu coração. Pronto, bebé. A mamã está aqui.
- Tem a fralda molhada.
- Eu mudo-a. - Abigail esfregou o queixo no da bebé e sorriu. Claudine era uma amiga: outra batalha ganha. Tê-la ali no quarto das crianças e na mansão proporcionava-lhe
o conforto e a camaradagem que nenhum dos elementos da família de Lucian lhe oferecia.
- Volta para a cama. Assim que lhe der de mamar, vai dormir até de manhã.
- É um anjinho, é o que ela é. - Claudine passou a ponta dos dedos pelo cabelo encaracolado de Marie Rose. - Se não precisas de mim, se calhar vou dar um passeio
pelo rio. O Jasper vai lá estar. - Os seus olhos escuros iluminaram-se. - Disse-lhe que, se pudesse ausentar-me, talvez me encontrasse com ele por volta da meia-noite.
(1) Designação dada originariamente aos nativos da Louisiana descendentes dos colonos franceses expulsos da Acádia (Nova Escócia) em 1755 e que hoje se aplica a
todos os que partilham a herança cultural francesa trazida por esses primeiros exilados. (N. dos T.)
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- Devias obrigar esse rapaz a casar contigo, chère.
- Oh, e obrigo! Talvez fique por lá uma hora ou duas, se não te importares, Abby.
- Não me importo, mas tem cuidado para não apanhares mais nada sem ser lagostins. A não ser lagostins - corrigiu-se enquanto se preparava para mudar a fralda a Marie
Rose.
- Não te preocupes. Volto antes das duas. - Estava prestes a atravessar a porta de ligação, mas olhou para trás. - Abby? Quando éramos crianças, alguma vez pensaste
que um dia ias ser patroa desta casa?
- Aqui não sou nenhuma patroa. - Fez cócegas nos dedos dos pés da bebé e Marie Rose soltou uns risinhos. - E aquela que é, vai provavelmente viver até aos cento
e dez anos só pela maldade de impedir que eu venha a sê-lo.
- Se alguém te pode impedir, é ela. Mas um dia acabarás por ser tu a patroa. Tiveste sorte, Abby, e mereces.
Já sozinha com a bebé, Abby fez-lhe cócegas e sussurrou-lhe com carinho. Aplicou-lhe suavemente o pó de talco e apertou cuidadosamente a fralda limpa. Vestiu-lhe
um fatinho lavado e aconchegou-a; depois instalou-se na cadeira de baloiço e desnudou o seio para aquela minúscula boquinha esfomeada. As primeiras sucções de avidez,
aquela sensação no ventre, fizeram-na suspirar. Sim, tivera sorte. Porque Lucian Manet, o herdeiro da Mansão Manet, o cintilante cavaleiro de qualquer conto de fadas,
olhara para ela. E apaixonara-se.
Baixou a cabeça para ver a bebé a mamar. Marie Rose tinha os olhos completamente abertos e fixos no rosto da mãe. Um minúsculo vinco de concentração formara-se entre
as suas sobrancelhas.
Oh, tinha a forte esperança de que aqueles olhos continuassem azuis, como os de Lucian. O cabelo da bebé era escuro como o dela. Escuro e encaracolado, mas a pele
era de um branco leitoso: novamente como a do papá e não o tom mais carregado, aquele dourado-escuro da sua mamã cajun.
Ela teria o melhor deles os dois, pensou Abby. Teria o melhor de tudo.
Não era apenas o dinheiro, aquela casa imponente, o estatuto social, embora desejasse todas essas coisas para os filhos, agora que ela própria as experimentara.
Era a aceitação, a aprendizagem, saber que se pertencia a um lugar. A filha, e todas as crianças que viessem a seguir, saberiam ler e escrever e falariam um inglês
correcto, um francês correcto, com vozes educadas.
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Ninguém as olharia com desdém.
- Vais ser uma senhora - murmurou Abigail enquanto afagava o rosto da criança e esta lhe apertava o seio como se apressasse o leite a sair. - Uma senhora educada,
com o coração doce do papá e o bom senso da mamã. O papá regressa amanhã a casa. É o último dia de um século inteiro, e tu tens toda uma vida para cá viver.
A sua voz era calma, um ritmo de cantilena que as embalava a ambas.
- Que excitante é, Rosie, minha Rosie! Amanhã à noite vamos ter um grande baile. Tenho um vestido novo. É azul, como os teus olhos. Como os olhos do papá. Já te
tinha dito que me apaixonei primeiro pelos olhos dele? Tão lindos! Tão gentis! Quando voltou da universidade para a Mansão Manet, parecia um príncipe de regresso
ao seu castelo. Oh, o meu coração batia com tanta força!
Recostou-se e ficou a baloiçar à luz tremeluzente das velas.
Pensou nas celebrações de Ano Novo da noite seguinte, como dançaria com Lucian, como o seu vestido esvoaçaria e rodopiaria quando dançassem a valsa.
Como ficaria orgulhoso dela!
E então lembrou-se da primeira vez que tinham dançado a valsa.
Fora na Primavera, com o ar pesado do perfume das flores e a casa iluminada como um palácio. Esgueirara-se para o jardim, para longe dos seus deveres, porque queria
tanto ver tudo aquilo! O modo como o cintilante átrio branco, com as suas balaustradas que pareciam um rendilhado escuro, se destacava contra o céu estrelado, o
modo como as janelas flamejavam. E como a música delas jorrara, e das portas do alpendre, para onde os convidados tinham ido apanhar ar.
Imaginara-se a si própria no salão de baile, a rodopiar e a rodopiar ao som da música. E rodopiara nas sombras do jardim. E fora assim, a rodopiar, que vira Lucian
observá-la na vereda do jardim.
Era o seu próprio conto de fadas, pensou. O príncipe dera a mão à Cinderela para dançarem momentos antes de soar a meia-noite. Não tinha sapatinhos de vidro nem
nenhuma carruagem-abóbora, mas a noite tornara-se mágica.
Ainda conseguia ouvir a música derramar-se pelas portas da varanda até ao jardim.
- Quando o baile acabar, quando a manhã romper...
Cantou baixinho o refrão enquanto mudava a bebé para o outro seio.
- Quando os dançarinos partirem, quando as estrelas se forem...
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Tinham dançado aquela canção triste e encantadora no jardim iluminado pela Lua, com o branco régio e as sombras douradas da casa por trás deles. Ela com aquele seu
vestido simples de algodão e Lucian com o seu elegante traje de noite. E tal como nos contos de fadas, apaixonaram-se durante aquela canção triste e encantadora.
Oh, ela sabia que tudo começara muito antes dessa noite. Para ela começara na primeira vez que o vira montado na égua castanha que o trouxera de Nova Orleães até
à plantação. O modo como o sol irradiava das folhas e do musgo nos carvalhos ao longo da álea e o envolvia como as asas de um anjo. Julian, o irmão gémeo, cavalgava
ao lado dele, mas ela apenas vira Lucian.
Estava naquela casa há apenas algumas semanas, uma simples criadita que fazia o possível para agradar a Monsieur e Madame Manet de modo a manter o posto e o salário
que recebia.
Quando passavam um pelo outro, Lucian falava com ela com gentileza e educação. Mas pressentia que ele a observava. Não do mesmo modo que Julian, de olhos excitados
e com aquele sorriso trocista que lhe retorcia os lábios, mas, como gostava de lembrar agora, com uma espécie de desejo.
Cruzara-se frequentemente com ele nas semanas que se seguiram. Ele procurava-a. Sabia-o agora, valorizava-o agora, depois de ele lho ter confessado na noite do casamento.
Mas tudo começara verdadeiramente na noite do baile. Quando a canção terminara, Lucian mantivera-a junto a si, não mais que um instante. Depois curvava-se numa vénia,
como um cavalheiro se curva perante uma dama. E beijara-lhe a mão.
E então, já ela pensava que tudo tinha acabado, que a magia se ia desvanecer, ele pegou na mão que beijara e deu-lhe o braço. Começou a caminhar com ela, a falar
com ela. Sobre o tempo, as flores, os mexericos da casa.
Como se fossem amigos, pensava agora Abby com um sorriso. Como se dar um passeio no jardim com Abigail Rouse fosse a coisa mais natural do mundo para Lucian Manet.
E houve muitas mais noites em que deram passeios pelo jardim. Dentro de casa, onde os outros os podiam ver, continuavam a ser patrão e criada. Mas durante toda aquela
inebriante Primavera percorreram as veredas do jardim como jovens amantes, partilhando expectativas e sonhos, tristezas e alegrias.
Quando ela fez dezassete anos, Lucian trouxe-lhe um presente embrulhado em papel prateado, com um cintilante laço azul-claro. O relógio
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de esmalte era um belo círculo que baloiçava das asas douradas de um broche. O tempo voava quando estavam juntos, dissera-lhe ele enquanto lhe prendia o relógio
ao algodão esmaecido do vestido. E ele preferia que a sua vida passasse a voar do que vivê-la separado dela.
Ajoelhara-se e pedira-lhe para ser sua esposa.
Era impossível - oh, como ela tentara dizer-lho por entre as lágrimas! Lucian estava para lá do seu alcance e podia escolher quem bem quisesse.
Lembrava-se agora de como ele se rira, de como a alegria irrompera naquele seu rosto formoso. Como podia ele estar para lá do seu alcance se ela tinha a mão dele
entre as suas nesse mesmo momento? E se podia escolher quem quisesse, então escolhia-a a ela.
- Por isso, agora temo-nos um ao outro, e também a ti - sussurrou Abby, mudando a bebé ensonada para o ombro. - E que interessa se a família dele me detesta? Eu
faço-o feliz. - Voltou o rosto para a curva suave do pescoço da bebé. - Estou a aprender a falar como eles falam, a vestir como eles se vestem. Nunca pensarei como
eles pensam mas, por causa do Lucian, comporto-me como eles se comportam, pelo menos quando é preciso.
Sentia-se feliz e continuou a baloiçar enquanto esfregava as costas à bebé. Mas levantou-se rapidamente quando ouviu passadas pesadas a subirem tropegamente as escadas.
Retesou os braços num círculo de protecção em redor da bebé enquanto se virava para o berço.
Ouvira Julian a abrir a porta e soube instintivamente que ele estava bêbado. Estava quase sempre bêbado ou a fazer por isso.
Abby não falou. Pousou a bebé no berço e afagou-a para a sossegar quando Marie Rose começou a chorar com inquietação.
- Onde está a ama? - quis ele saber. Abby continuou de costas voltadas.
- Não te quero aqui se estiveste a beber.
- Agora dás ordens? - A voz era arrastada e o seu equilíbrio incerto. Mas conseguia pensar com clareza. Sempre acreditara que a bebida o ajudava a clarificar a mente.
E a sua mente estava clara no que dizia respeito à esposa do irmão. Se Lucian tinha uma coisa - e o que era uma mulher senão uma coisa? -, Julian também a queria.
Ela era baixa, de constituição quase delicada. Mas tinha pernas bem fortes. Conseguia distinguir-lhes a forma quando a luz da lareira do quarto das crianças brilhava
através das suas finas roupas de noite.
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Aquelas pernas envolvê-lo-iam tão facilmente como faziam às do irmão.
Os seios eram firmes e cheios, agora ainda mais cheios desde que tivera a cria. Já uma vez lhes deitara a mão e ela esbofeteara-o. Como se tivesse a palavra final
quanto a quem podia tocar-lhe.
Fechou a porta atrás de si. A prostituta que trouxera nessa noite apenas lhe aguçara o apetite. Chegara a altura de o saciar.
- Onde é que está a outra puta do bayou?
Abby cerrou os punhos e voltou-se, protegendo o berço com o corpo. Parecia-se tanto com Lucian. Mas havia nele uma rudeza que Lucian não tinha. Uma escuridão.
Seria verdade o que a sua grand-mère dizia: que, nos gémeos, às vezes os traços se dividiam no útero? Que um ficava com os traços bons e o outro com os maus?
Não sabia se Julian viera ao mundo já estragado pelos mimos. Mas sabia que era perigoso quando estava bêbado. Chegara a altura de ele saber que também ela era perigosa.
- A Claudine é minha amiga e não tens o direito de falar assim dela. Sai daqui. Não tens o direito de aqui entrar e de me insultares. Desta vez o Lucian vai saber
disto.
Viu o olhar fixo dele descer pelo seu rosto, viu a luxúria assomar-lhe aos olhos. Cobriu de imediato o seio ainda parcialmente exposto por ter estado a dar de mamar.
- És nojento! Cochon! Entrar assim no quarto das crianças, cheio de pensamentos perversos pela mulher do teu irmão.
- Pela puta do meu irmão. - Julgou sentir a raiva e o medo dela: um perfume estonteante. - Terias aberto as pernas para mim se eu tivesse nascido quinze minutos
mais cedo. Mas não me tinhas roubado o nome como roubaste o dele.
Abby ergueu o queixo.
- Nem sequer te vejo. Ninguém te vê. Não és nada comparado com ele. És uma sombra, uma sombra que fede a whiskey e a bordel.
Queria fugir. Ele assustava-a, sempre a assustara a um nível profundo e primário. Mas não ia correr o risco de o deixar ali com a bebé.
- O Lucian vai pôr-te fora daqui quando lhe contar isto.
- Ele aqui não manda nada, todos o sabemos. - Aproximou-se mais, ágil como um caçador em pleno bosque. - Quem manda nesta casa é a minha mãe. E eu sou o preferido
dela. A hora de nascimento não altera isso.
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- Ele vai expulsar-te daqui! - Sentia as lágrimas a picarem-lhe a garganta, pois sabia que Julian tinha razão. Era Josephine quem reinava na Mansão Manet.
- O Lucian fez-me um favor ao casar contigo. - A sua voz arrastava-se agora com indolência, quase em tom de conversa. Sabia que ela não tinha para onde fugir. -
Ela até o retirou do testamento. Oh, vai ficar com a casa, ela isso não pode mudar, mas eu é que fico com o dinheiro. E é o dinheiro dela que governa este lugar.
- Fica com o dinheiro, fica com a casa! - Lançou as mãos ao ar, como se pusesse de lado tudo aquilo, e também a ele. - Fica com tudo! E que o inferno te leve a ti
e a tudo o mais!
- Ele é fraco, o santinho do meu irmão. Os santos são sempre fracos debaixo de toda aquela piedade.
- Ele é homem, muito mais homem do que tu!
Tinha a esperança de o enfurecer, de o enfurecer o suficiente para que lhe batesse e saísse intempestivamente dali. Em vez disso, ele riu-se baixinho e aproximou-se
ainda mais.
Quando viu a intenção nos seus olhos abriu a boca para gritar. Julian agarrou num punhado do cabelo escuro que lhe caía encaracolado até à cintura. E o puxão sufocou-lhe
o grito num arquejo. Depois envolveu-lhe a garganta com a outra mão e apertou-a.
- Apodero-me sempre do que é do Lucian! Até mesmo das putas dele!
Abby começou a bater-lhe, a esbofeteá-lo, a morder-lhe. Quando conseguia respirar, gritava. Julian arrancou-lhe o roupão e agarrou-lhe os seios. A bebé começou a
berrar no berço.
Instigada pela aflição da filha, Abby arranjou forças para se libertar, rodopiou e tropeçou na bainha rasgada do roupão. Cerrou a mão sobre o atiçador da lareira
e descarregou-o com toda a força no ombro dele.
Julian caiu de costas contra a lareira, a uivar de dor, e Abby correu para junto do berço.
Tinha de pegar na bebé. Pegar na bebé e fugir.
Ele agarrou-lhe na manga e Abby gritou novamente quando o tecido se rasgou. Julian arrastou-a para trás quando ela tentava baixar-se para tirar a filha do berço.
Atingiu-a no rosto com as costas da mão e projectou-a de encontro a uma mesa. Avela que caiu ao chão extinguiu-se na própria cera.
- Puta! Galdéria!
Estava louco. Via-o agora no brilho feroz dos seus olhos, no rubor alcoólico das suas faces. Foi nesse instante que o medo se transformou em terror.
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- Ele vai-te matar por causa disto! O meu Lucian vai-te matar! - Tentou levantar-se, mas ele bateu-lhe novamente, desta vez usando o punho, para que a dor lhe irradiasse
do rosto para o corpo. Ficou atordoada e começou a rastejar para o berço. Sentia sangue na boca, quente e adocicado.
A minha bebé! Meu Deus, não o deixes fazer mal à minha bebé!
Todo o peso dele estava em cima dela; e o seu fedor. Abby lançou a cabeça para trás e gritou por socorro. Os gritos furiosos da bebé fundiram-se com os seus.
- Não! Não! Maldito sejas!
Enquanto Julian lhe puxava o roupão para cima, Abby sabia que, por mais que suplicasse, por mais que lutasse, nada o deteria. Ele humilhá-la-ia, conspurcá-la-ia.
Por ser quem era. Por pertencer a Lucian.
- É isto que tu queres! - Penetrou-a, e a excitação do poder jorrou através dele como vinho escuro. O rosto de Abby estava branco de medo e de choque, dorido dos
golpes que ele desferira. Ninguém te pode valer, pensou ele enquanto martelava toda a sua furiosa inveja. - É isto que querem todas as putas cajun.
Violou-a, numa violência incontrolada. A excitação de a penetrar à força fazia-o respirar em curtas explosões que grunhia por entre os dentes cerrados.
Abby chorava agora, enormes soluços que a sufocavam. Mas também gritava. Gritava enquanto ele descarregava dentro dela toda a sua fúria e os seus ciúmes, o seu desdém.
Quando o relógio começou a bater a meia-noite, Julian fechou as mãos em volta da garganta dela.
- Cala-te! Maldita sejas!
Bateu-lhe com a cabeça no chão e apertou ainda com mais força. Mas os gritos continuavam a perfurar-lhe o cérebro.
Abby também os ouvia. Tenuemente. Os gritos desesperados da bebé repicavam-lhe na cabeça ao mesmo tempo que as lentas e formais badaladas da meia-noite. Tentou esbofeteá-lo,
mas eram débeis protestos contra aquelas mãos que lhe tiravam o ar. Tentou fechar o corpo à inominável invasão.
Ajuda-me! Mãe de Deus! Ajuda-me! Ajuda a minha bebé!
Sentiu a visão toldar-se. As convulsões faziam-na bater violentamente com os calcanhares no chão.
A última coisa que ouviu foi a filha a chorar. A última coisa que pensou foi: Lucian.
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A porta do quarto escancarou-se de repente. Um olhar rápido, frio, foi quanto bastou a Josephine Manet para perceber o que tinha acontecido.
- Julian.
Ele levantou a cabeça, ainda com as mãos enclavinhadas na garganta de Abby. Se a mãe viu loucura naqueles olhos, preferiu ignorá-la. Aproximou-se, com o cabelo dourado
cuidadosamente entrançado para a noite e o austero roupão abotoado até ao pescoço, e baixou o olhar para o corpo inerte.
Os olhos de Abby estavam desmesuradamente abertos e fixos. Tinha um fio de sangue a escorrer-lhe pelo canto da boca e equimoses a desabrochar-lhe nas faces.
Imperturbável, Josephine baixou-se e pousou-lhe os dedos na garganta.
- Está morta - anunciou ela dirigindo-se de pronto à porta de ligação. Abriu-a e espreitou para o quarto da criada. Depois fechou-a e tratou de a trancar.
Ficou ali especada por um momento, de costas apoiadas na porta, com a mão na sua própria garganta enquanto pensava no que poderia sobrevir de tudo aquilo. A desgraça,
a ruína, o escândalo.
- Foi... um acidente. - As mãos de Julian começaram a tremer assim que largaram a garganta de Abby. O whiskey rodopiava-lhe agora na cabeça e obnubilava-o. Agitava-lhe
o estômago, provocava-lhe náuseas.
Conseguia ver as marcas na pele dela, marcas escuras, profundas, condenatórias.
- Ela... tentou seduzir-me, e depois atacou-me...
Josephine atravessou novamente o quarto, com os chinelos a baterem na madeira. Baixou-se e esbofeteou-o. Uma forte pancada de carne contra carne.
- Cala-te! Cala-te e faz exactamente o que te vou dizer! Não vou perder outro filho por causa desta criatura. Leva-a para o quarto dela. Sai pela varanda e fica
lá até eu chegar.
- A culpa foi dela.
- Sim. E agora pagou por isso. Leva-a para baixo, Julian. E despacha-te.
- Eles vão-me... - Uma única lágrima formou-se no canto do olho e deslizou rosto abaixo. - Eles vão-me enforcar. Tenho que fugir.
- Não, não te vão enforcar. - Pousou a cabeça dele sobre o seu ombro e afagou-lhe o cabelo, assim debruçados sobre o corpo de Abby.
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- Não, meu querido, não te vão enforcar. Agora faz o que a mamã te diz. Leva-a para o quarto e espera lá por mim. Vai correr tudo bem. Tudo voltará a ser como sempre
devia ter sido. Prometo.
- Não quero tocar nela.
- Julian! - O tom carinhoso transformou-se bruscamente numa ordem gelada. - Faz como te digo. Já!
Josephine levantou-se e aproximou-se do berço, onde os lamentos da bebé se haviam tornado num choro infeliz. Levada pelo ímpeto do momento, pensou em pousar simplesmente
a mão sobre a boca e o nariz da criança. Seria como afogar um saco de gatos.
E no entanto...
A criança tinha o sangue do seu filho e, portanto, também o seu. Podia desprezá-la, mas não podia destruí-la.
- Dorme - disse. - Depois decidimos o que fazer de ti.
Quando o filho levou a rapariga que violara e assassinara, Josephine começou a arrumar o quarto das crianças. Pegou na vela e esfregou a cera já ressequida até apagar
todos os vestígios.
Colocou o atiçador na lareira e limpou os salpicos de sangue servindo-se do roupão rasgado de Abby. Fez tudo com eficiência, afastando a mente daquilo que causara
os estragos no quarto e concentrando-se firmemente no que precisava de ser feito para salvar o filho.
Quando se certificou de que tudo estava como devia estar, destrancou novamente a porta e deixou ali sozinha a neta que agora dormia.
De manhã despediria a ama por ter faltado aos seus deveres. Pô-la-ia fora da Mansão Manet antes de Lucian regressar e descobrir que a esposa desaparecera.
A rapariga é que fora responsável pelo que lhe acontecera, pensou Josephine. Era no que dava as pessoas tentarem erguer-se acima da sua condição. Havia uma ordem
nas coisas, e uma razão para essa ordem. Ainda estaria viva se não tivesse enfeitiçado Lucian - pois de certeza que havia naquilo algum feitiço local.
A família já tinha sofrido escândalos que chegassem. A fuga para se casarem. Oh, a vergonha que passara! Ter de manter a cabeça erguida quando o nosso filho primogénito
foge com uma fêmea descalça e sem um tostão que cresceu num barraco no pântano.
E depois o sabor amargo do fingimento que se seguira. Fora essencial para salvar a face, mesmo depois de uma tal afronta. E não tinha ela feito tudo o que podia
para que a criatura se vestisse como convinha à família Manet?
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Bolsas de seda, pérolas a porcos, pensou. De que valiam as modas de Paris se bastava a rapariga abrir a boca para soar como as gentes do pântano? Por amor de Deus,
não passava de uma criada!
Entrou no quarto, fechou a porta atrás de si e olhou fixamente para a cama onde a mulher morta do filho jazia de olhos fixos no dossel de seda azul.
Ora bem, pensou, Abigail Rouse não passa de um problema que tem de ser resolvido.
Julian era um volume inerte na cadeira, com a cabeça entre as mãos.
- Pára com esses gritos - balbuciava. - Pára com esses gritos! Josephine avançou para ele e firmou-lhe as mãos nos ombros.
- Queres que venham atrás de ti? - vociferou. - Queres arrastar a família para a desgraça? Ser enforcado como um ladrão vulgar?
- A culpa não foi minha! Ela provocou-me! E depois atacou-me! Veja! Veja! - Virou a cabeça. - Não vê como me arranhou a cara?
- Sim. - Por um momento, por um brevíssimo momento, Josephine vacilou. O coração dentro do símbolo em que se tornara ergueu-se em protesto contra o horror daquele
acto que todas as mulheres temiam.
Independentemente de quem era, Abigail amara Lucian. Independentemente de quem era, Abigail fora violada e assassinada a centímetros do berço da própria filha.
Julian forçara-a, espancara-a, conspurcara-a. Matara-a.
Estava bêbado e tresloucado e matara a mulher do irmão. Por amor de Deus!
Mas não tardou a sacudir aqueles pensamentos.
A rapariga estava morta. O seu filho não.
- Esta noite pagaste a uma prostituta. Não me vires a cara! - lançou-lhe com brusquidão. - Sei bem as coisas que os homens fazem. Pagaste a alguma mulher?
- Sim, mamã.
Josephine anuiu secamente com a cabeça.
- Então foi a prostituta que te arranhou, se alguém tiver a temeridade de perguntar. Nunca estiveste no quarto das crianças esta noite. - Agarrou-lhe no rosto com
ambas as mãos para manter os olhos dele ao nível dos seus. E enterrou os dedos naquelas faces enquanto falava num tom baixo e nítido. - Que razão terias para lá
ir? Saíste, para beber e estar com mulheres e, saciado de ambas as coisas, voltaste para casa e foste para a cama. Percebeste?
- Mas... como vamos explicar...
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- Não vamos precisar de explicar nada! Já te disse o que fizeste esta noite. Repete-o.
- Eu... eu fui à cidade. - Lambeu os lábios. Engoliu em seco. - Bebi e depois fui a um bordel. Vim para casa e deitei-me.
- Isso mesmo. Isso mesmo. - Afagou-lhe a face arranhada. - Ora bem, vamos fazer a mala dela com algumas coisas, algumas roupas e jóias. Vamos fazê-lo à pressa, tal
como ela o fez à pressa quando decidiu fugir com um homem com quem andava a encontrar-se em segredo. Um homem que pode muito bem ser o pai daquela criança lá em
cima.
- Que homem?
Josephine soltou um longo suspiro. Julian era o seu filho dilecto, mas aquela cabeça por vezes desesperava-a.
- Não interessa, Julian. Não sabes nada sobre isso. Toma. - Foi ao guarda-vestidos e escolheu uma capa comprida de veludo escuro. - Embrulha-a nisto. Depressa. Já!
- disse, num tom que o fez levantar-se de pronto.
Agoniado, com as mãos a tremer, Julian embrulhou o corpo no veludo o melhor que pôde, enquanto a mãe enfiava coisas numa caixa de chapéus e numa mala de viagem.
Com a pressa, Josephine deixou cair um broche de asas douradas com um pequeno relógio de esmalte pendurado. E a ponta do chinelo fê-lo deslizar para um canto.
- Vamos levá-la para o pântano. Temos que ir a pé, e depressa. Há uns tijolos velhos no barraco do jardim. Podemos afundá-la com eles.
E os jacarés, pensou ela, os jacarés e os peixes farão o resto.
- Mesmo que a encontrem, será longe daqui. O homem com quem fugiu é que a matou. - Enxugou o rosto com o lenço que tinha no bolso do roupão e passou a mão pela longa
trança dourada. - É o que as pessoas vão pensar se for encontrada. Temos que a tirar daqui, para longe da Mansão Manet. Rapidamente.
Ela própria começava a sentir-se um pouco louca.
Havia luar. Disse a si própria que havia luar porque o destino compreendia o que ela estava a fazer e porquê. Ouvia a respiração rápida do filho e os sons da noite.
As rãs, os insectos, as aves nocturnas, todos fundidos nota única, densa.
Era o fim de um século, o começo do novo. Livrar-se-ia daquela aberração estranha ao seu mundo e iniciaria o novo século, a nova era, limpa e fortalecida.
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O ar estava gelado e húmido. Mas Josephine sentia-se quente, quase a escaldar, enquanto se afastava de casa carregada com as bagagens que emalara e os pesos que
lhes pusera dentro. Os músculos dos braços e das pernas protestavam, mas marchava como um soldado.
Uma vez, apenas uma, julgou sentir qualquer coisa a roçar-lhe na face, como a respiração de um fantasma: o espírito de uma rapariga morta que caminhava a seu lado,
acusando-a, condenando-a, amaldiçoando-a para toda a eternidade.
Mas o medo tornava-a ainda mais forte.
- Aqui. - Parou e espreitou para a água. - Deita-a aqui. Julian obedeceu e reergueu-se rapidamente, de costas voltadas e tapando o rosto com as mãos.
- Não consigo fazer isto, mamã! Não consigo! Estou agoniado! Agoniado!
Cambaleou para a água, a vomitar e a chorar.
Que rapaz tão inútil, pensou ela, ligeiramente aborrecida. Os homens nunca conseguiam lidar com uma crise. Era preciso uma mulher, era preciso o sangue-frio e a
mente clara de uma fêmea.
Josephine abriu a capa e colocou tijolos em cima do corpo. O suor começou a escorrer-lhe pelo rosto, mas cumpriu a horrenda tarefa como cumpriria qualquer outra:
com uma eficiência impiedosa. Tirou a corda da caixa de chapéus e atou cuidadosamente o corpo amortalhado: em cima, em baixo e a meio. Pegou noutra corda, passou-a
pelas pegas da mala e atou-a com um nó bem firme.
Levantou a cabeça e viu que Julian a observava com o rosto branco como a cal.
- Vais ter que ajudar. Não consigo deitá-la à água sozinha. É muito pesada.
- Eu estava bêbado.
- Isso mesmo, Julian. Estavas bêbado. E agora estás suficientemente sóbrio para lidar com as consequências. Ajuda-me a deitá-la à água.
Julian sentia as pernas vergarem e cederem a cada passo, como as de uma marioneta. O corpo deslizou para dentro de água quase sem um ruído. Ouviu-se um pequeno plop,
quase um gorgolejo, e depois o silêncio. A ondulação espalhou-se pela superfície, tremeluziu ao luar e dissipou-se novamente.
- Já saiu das nossas vidas - declarou Josephine numa voz calma.
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- Em breve será como aquela ondulação. Como se nunca tivesse existido. Não te esqueças de limpar bem as botas, Julian. Não as confies a nenhuma das criadas. - Enfiou
o braço no dele e sorriu, embora o sorriso fosse um pouco selvagem. - Temos que voltar e descansar um pouco. Amanhã vai ser um dia muito atarefado.
Capítulo Dois
Mansão Manet, Louisiana, Janeiro de 2002
A sua mãe tinha razão, como sempre. Declan Fitzgerald olhava fixamente através do pára-brisas salpicado de lama para a chuva invernal e sentia-se contente por ela
não estar ali para se vangloriar.
Não que Colleen Sullivan Fitzgerald alguma vez se rebaixasse a esse ponto. Limitava-se a erguer uma sobrancelha perfeita num arco perfeito e deixava que o silêncio
se vangloriasse por ela.
Quando Declan fora visitá-la antes de deixar Boston, ela dissera-lhe, muito sucintamente, que ele perdera a cabeça. E que se arrependeria desse dia. Sim, tinha quase
a certeza de que ela dissera que se "arrependeria desse dia".
Não ficara assim tão deprimido a ponto de se arrepender - por enquanto -, mas, agora que observava a selva de ervas daninhas, os alpendres descaídos, a tinta a descascar
e as goteiras quebradas da velha fazenda, já não confiava na sua própria saúde mental.
O que o levara a pensar que conseguiria restituir o antigo esplendor àquela velha ruína? Ou, mais concretamente, o que o levara a pensar que devia fazê-lo? Por amor
de Deus, ele era um advogado, um Fitzgerald dos Fitzgerald de Boston, mais vocacionado para brandir um taco de golfe do que um martelo.
Recuperar uma casa citadina no seu tempo livre durante um período de dois anos era bem diferente de mudar-se para Nova Orleães e fingir que era um empreiteiro. O
lugar parecera-lhe assim tão decrépito da última vez que lá estivera? Seria possível? Claro que isso fora cinco, não, seis anos atrás. De certeza que não parecera
assim tão decrépita da primeira vez que a vira. Tinha então vinte anos e viera ali passar um louco Mardi Gras com o seu colega de quarto da faculdade. Há onze anos,
pensou, passando os dedos pelo cabelo louro-escuro.
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A velha Mansão Manet andava a remoer-lhe o cérebro há onze anos. Em matéria de obsessões, aquela era mais duradoura que a maior parte das relações amorosas. Seguramente
mais do que as suas.
Agora a casa era dele, para o que desse e viesse. E não conseguia libertar-se da sensação de que não devia vir nada de bom.
Os seus olhos, tão cinzentos e, naquele momento, tão lúgubres quanto a chuva, examinaram a estrutura. Os graciosos arcos gémeos da dupla escadaria que dava para
a varanda do segundo piso tinham-no encantado nesse Fevereiro já longínquo. E todas aquelas altas janelas em arco, a estranheza do miradouro no telhado, a elegância
das colunas brancas e as balaustradas de ferro bizarramente ornamentado. Aquela mistura fantasiosa de estilo italiano e neoclássico parecera-lhe tão incrivelmente
exuberante, ao mesmo tempo sulista e europeia.
Já naquela altura se sentia deslocado na Nova Inglaterra, de uma forma que nunca tinha sido capaz de explicar.
A casa atraíra-o para uma espécie de câmara profunda. Como um gancho que lhe atravessasse a memória, pensava agora. Conseguira visualizar o interior antes mesmo
de ele e Remy terem forçado a entrada para vaguearem lá por dentro.
Ou talvez tivessem sido os litros de cerveja que emborcara que o tinham levado a pensar que conseguiria.
Não se podia confiar num bêbado, para mais recém-saído da adolescência. Nem sequer num homem de trinta e um anos sóbrio como uma pedra, admitiu com amargura.
Declan fizera uma oferta assim que Remy lhe mencionara que a Mansão Manet estava novamente à venda. Comprara-a sem a ver, e não a vira durante mais de meia década.
Tinha de a ter. Como se tivesse esperado por ela toda a vida.
O preço até fora razoável, se descontasse o que teria de lá enterrar para a tornar habitável. De modo que não quisera pensar nisso - até agora.
Era sua, quer estivesse louco ou no seu perfeito juízo. Fosse como fosse, trocara a pasta de executivo por um cinto de ferramentas. Foi quanto bastou para o animar.
Pegou no telemóvel: conseguia-se fazer o advogado sair de Boston, mas... Continuou a examinar a casa e ligou para Remy Payne.
Atendeu uma secretária, e ele imaginou Remy sentado diante de uma pilha de dossiês e relatórios. A imagem fê-lo sorrir, um sorriso rápido e torcido que lhe alterava
os ângulos do rosto, encovando-lhe as faces e suavizando a linha por vezes sombria da boca.
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Sim, pensou, a vida podia ser bem pior. Podia estar ele sentado à secretária.
- Então, Dec? - A voz arrastada e indolente de Remy flutuou no Mercedes todo-o-terreno completamente atafulhado como neblina sobre um rio de águas lentas. - Por
onde é que andas, pá?
- Estou aqui sentado no meu carro a olhar para este elefante branco que comprei num acesso de loucura. Por que raio não me dissuadiste nem me mandaste internar?
- Estás cá?! Filho da mãe! Pensei que só chegavas amanhã.
- Comecei a ficar em pulgas. - Coçou o queixo: ouviu o arranhar da barba por fazer. - Conduzi quase toda a noite e arranquei bem cedinho esta manhã. Remy? Mas onde
tinha eu a cabeça?
- Raios, eu é que sei?! Ouve, dá-me duas horas para despachar aqui uns assuntos e depois saio. Levo qualquer coisa para molharmos a goela. Vamos brindar a esse ninho
de ratos e pôr a conversa em dia.
- Boa ideia.
- Já foste lá dentro?
- Não. Estou a ver se ganho coragem.
- Caramba, Dec, sai da chuva e mete-te lá dentro!
- Está bem. - Passou a mão pelo rosto. - Até logo.
- Vou levar comida. Por amor de Deus, não tentes cozinhar nada. Não vale a pena queimar o lugar todo sem lá passares sequer uma noite.
- Vai-te foder. - Ouviu Remy a rir antes de desligar.
Ligou novamente o motor e avançou até à base do que restara da dupla escadaria que emoldurava a entrada. Abriu o porta-luvas e pegou nas chaves que lhe tinham sido
enviadas pelo correio após ter fechado o negócio.
Apeou-se e ficou imediatamente todo encharcado. Resolveu deixar os caixotes para mais tarde e correu para se abrigar no alpendre da entrada; sentiu que alguns dos
tijolos do chão cediam agoirentamente sob o seu peso e sacudiu-se como um cão.
Devia ter havido trepadeiras a subir pelas colunas dos cantos, pensou. Qualquer coisa com lindas flores azuis. Conseguia visualizá-las se se concentrasse. Qualquer
coisa a desabrochar, quase como uma chávena, com folhas em forma de coração.
Devo ter visto isso nalgum lado, matutou e virando-se para a porta. Era dupla, com entalhes e compridos painéis de vidro de ambos os lados e encimada por uma meia-lua
também de vidro. Passou os dedos pela porta e sentiu renascer o entusiasmo.
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- Bem-vindo a casa, Dec - disse em voz alta ao abri-la.
O átrio era como se lembrava. O vasto chão de pinho, o tecto alto. O medalhão de estuque, ao centro, era um anel duplo de uma espécie de flores que não sabia identificar.
Provavelmente exibira um fabuloso lustre de cristal nos seus dias de glória. A única coisa que restava agora era uma lâmpada nua, pendurada de um comprido fio. Mas
acendeu-se quando ligou o interruptor da parede. Já era alguma coisa.
De qualquer modo, a escadaria era o centro das atenções. Erguia-se larga e estreitava até ao segundo piso, onde curvava para a direita e para a esquerda, para cada
uma das alas.
Para que é que um homem solteiro, sem quaisquer perspectivas nem intenções de deixar de o ser, precisava de uma casa com duas alas era uma questão que não queria
colocar-se naquele momento.
O corrimão estava coberto por uma poeira acinzentada, mas ao percorrê-lo com um dedo sentiu a madeira macia por baixo. Quantas mãos se terão agarrado aqui? Quantos
dedos o terão percorrido?, perguntou-se. Aquele tipo de questões fascinava-o e atraía-o para o interior.
O tipo de questões que o fez subir as escadas e deixar a porta aberta à chuva atrás de si, com as suas coisas ainda à espera no carro.
Outrora, talvez as escadas tivessem sido atapetadas. Provavelmente houvera passadeiras no comprido corredor central, algum rico padrão de um vermelho-profundo. Os
soalhos, os painéis de madeira e os tampos das mesas decerto eram religiosamente polidos com cera de abelha até brilharem como o cristal dos lustres.
Nas festas, mulheres em vestidos esplendorosos teriam deslizado pelas escadas: confiantes, cheias de estilo. Alguns dos homens certamente se reuniriam na sala dos
bilhares, servindo-se do jogo como desculpa para fumar charutos e falarem pomposamente sobre política e finanças.
E a criadagem andaria apressada de um lado para o outro, sempre eficiente e invisível, a atiçar as lareiras, a levantar copos, a atender pedidos.
Abriu um painel no patamar. A porta oculta fora habilidosamente embutida na parede, no papel de parede desbotado e no lambril agora sem brilho. Não tinha a certeza
como soubera da sua existência. Por certo alguém lho mencionara.
Espreitou para dentro do corredor mal iluminado e húmido. Achou que fazia parte dos aposentos e acessos da criadagem. A família e os convidados não se importavam
de ter debaixo dos pés aqueles que os
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serviam. Um bom criado não deixava vestígios do seu trabalho, limitava-se a cumprir discretamente os seus deveres, em silêncio e com eficiência.
Declan franziu a testa e forçou os olhos para tentar ver. Onde é que fora buscar aquilo? À mãe? Por muito que às vezes tivesse o nariz empinado, não a imaginava
a dizer algo tão pomposo.
Encolheu os ombros e fechou a porta. Exploraria aquela área noutra altura; quando tivesse uma lanterna e um saco com migalhas de pão.
Percorreu o corredor e foi espreitando pelas várias portas. Quartos vazios, cheios de poeira... e do cheiro cinzento e húmido da chuva. Algumas paredes estavam forradas
com papel, outras esventradas até ao esqueleto das vigas de suporte.
Sala de estar, escritório, lavabos, e seguramente a sala de bilhares que imaginara, pois o velho bar de mogno ainda lá estava.
Circundou-o para tocar na madeira, acocorou-se e examinou o trabalho de artesão.
A sua paixão pela madeira começara no liceu. Era, até à data, a sua relação mais duradoura. Optara por trabalhar como carpinteiro no Verão, apesar de a família se
ter oposto. Tal como ele se opusera à ideia de passar os longos dias de Verão enfiado num escritório de advocacia, e preferira trabalhar ao ar livre. Para fortalecer
o bronzeado e o físico.
Fora uma das raras ocasiões em que o pai contradissera a mãe e o apoiara a ele.
Ficara queimado do sol, com feridas de lascas de madeira, bolhas, calos e dores nas costas. E apaixonara-se pela construção de coisas.
Não tanto a construção, pensou. A reconstrução. Pegar em algo já feito e melhorá-lo, repará-lo, restaurá-lo.
Nada lhe dera tanto entusiasmo, nem sequer metade do prazer.
Tinha jeito para aquilo. Um talento natural, como lhe dissera o entroncado capataz irlandês. Boas mãos, bons olhos e boa cabeça. Declan nunca mais esquecera a excitação
daquele Verão. E nunca mais conseguira repeti-la.
Talvez agora, pensou. Talvez agora conseguisse. A vida tinha de ser mais do que passar os dias a fazer o que esperavam dele, o que era aceitável.
Foi com um prazer e uma expectativa crescentes que retomou a exploração da casa.
Deteve-se junto à porta do salão de baile e sorriu.
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- Uau! Que chique!
A sua voz ecoou e ricocheteou pelas paredes até regressar novamente para junto dele. Encantado, entrou. O soalho estava marcado e manchado. Havia zonas danificadas,
onde aparentemente alguém colocara divisórias a dividir o salão, divisórias que alguém voltara a derrubar.
Podia consertá-las. Um idiota qualquer lançara toscamente gesso e tinta amarela sobre as paredes de estuque originais. Nada que também não tivesse conserto.
Pelo menos tinham deixado o tecto em paz. O trabalho em gesso era maravilhoso: complicadas coroas de flores e frutos. Iria precisar de algumas reparações pela mão
de um mestre. Arranjaria um.
Escancarou as portas da varanda à entrada da chuva. Diante dele estendia-se a negligenciada selva dos jardins, com as suas veredas serpenteantes de tijolos partidos
parcialmente encobertas pela vegetação. Provavelmente havia ali um tesouro em plantas. Iria precisar de um paisagista, mas esperava fazer ele próprio algum do trabalho.
A maioria dos anexos eram agora meras ruínas. Conseguia ver parte de um conjunto de canos de chaminé, o que restava da parede de um barraco abandonado e sufocado
por trepadeiras, os tijolos manchados e o telhado enferrujado de um velho pigeonnier - era frequente os plantadores crioulos criarem pombos.
A compra da casa incluíra apenas mais três acres. O mais certo era que outras estruturas pertencentes à fazenda estivessem agora a desmoronar-se na terra de outras
pessoas.
Mas tinha árvores, pensou. Árvores extraordinárias. Os antigos carvalhos que formavam a álea, cheios de musgo e a escorrerem água, e os ramos grossos e estendidos
de um sicómoro, que se retorciam como uma fera pré-histórica.
Uma mancha de cor prendeu-lhe a atenção e fê-lo sair para a chuva. Qualquer coisa que ali desabrochava, um arbusto alto e espesso com flores vermelho-escuras. Que
raio desabrochava em Janeiro?, perguntou-se, e fez uma anotação mental para perguntar a Remy.
Fechou os olhos por um momento e pôs-se a ouvir. Só conseguia ouvir a chuva, o gotejar de água no telhado, no chão, nas árvores.
Tomara a opção correcta, disse para si próprio. Não estava louco, afinal de contas. Encontrara o seu lugar. Sentia-o como seu e, se assim não fosse, que importava?
Procuraria outro. Pelo menos, conseguira finalmente reunir a energia para vir inspeccionar a casa.
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Voltou para dentro e pôs-se a trautear enquanto atravessava de novo o salão de baile em direcção à ala familiar, para inspeccionar cada um dos cinco quartos.
Deu por si a cantar baixinho enquanto deambulava pelo primeiro.
- Quando o baile acabar, quando a manhã romper; Quando os dançarinos partirem, quando as estrelas se forem...
Parou de examinar as tábuas do soalho e olhou por cima do ombro como se esperasse ver alguém atrás de si. De onde lhe viera aquela música? Aquela melodia, aqueles
versos. Abanou a cabeça e endireitou-se.
- Do salão de baile, idiota - murmurou. - Estavas com o salão de baile na cabeça e por isso começaste a cantar a propósito de um baile. Estranho, mas nada de louco.
E falares sozinho também não tem nada de louco. Muita gente o faz.
A porta do quarto do outro lado do corredor estava fechada. Embora esperasse o ranger de dobradiças, o som provocou-lhe um calafrio na espinha. Mas a sensação foi
imediatamente acompanhada pelo assombro. Seria capaz de jurar que lhe cheirara a perfume. A flores. Lírios. Casamentos e funerais. E tentou a imaginá-los por um
momento, lírios puros e brancos e até um pouco selvagens, numa alta jarra de cristal.
Depois sentiu-se irritado. Só tinha enviado previamente algumas peças de mobília, incluindo a do quarto, mas a empresa de mudanças despejara-a no quarto errado,
apesar de ele ter sido bem claro. O seu quarto seria o principal, ali na esquina da casa, sobranceiro ao jardim e ao tanque das traseiras e flanqueado pela álea
de carvalhos.
Agora teria de optar por este, ou então carregar o raio das coisas sozinho.
O aroma de lírios era avassalador quando escancarou completamente a porta. Era quase estonteante. Ficou confuso e apercebeu-se de que não era a sua mobília. A cama
era um baldaquino completo, coberto por um dossel de seda de um azul carregado. Havia ainda um guarda-vestidos de madeira entalhada e uma cómoda alta, ambos cintilantes.
Captou o odor de cera de abelha por debaixo do aroma floral. Viu os lírios na alta jarra de cristal em cima de um toucador de pernas curvas como o pescoço dos cisnes.
A cadeira era delicada e o assento um intrincado padrão de bordado azul e rosa.
Escovas revestidas a prata, um broche de asas douradas com um relógio de esmalte. Compridas tapeçarias azuis, nichos para iluminação a gás, ornamentados e ajustados
para irradiarem uma luz ténue e trémula. Um roupão branco de mulher, atirado para as costas de um cadeirão azul.
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Castiçais sobre a lareira e um retrato numa moldura de prata.
Viu tudo com a nitidez de uma fotografia. E antes que o seu cérebro conseguisse processar uma explicação, deu por si a olhar fixamente para um quarto vazio onde
a chuva escorria pelo lado de fora das janelas sem cortinas.
- Santo Deus! - Agarrou-se à ombreira da porta para se equilibrar. - Mas que raio?!
Inspirou uma golfada de ar. Um ar em que havia apenas poeira e humidade.
Uma projecção, para si próprio. Apenas uma projecção mental do aspecto que o quarto teria tido. Não vira nada, não lhe cheirara a nada. Ficara apenas enredado no
encanto do lugar, no espírito da casa.
Mas não conseguiu obrigar-se a franquear a porta.
Fechou-a de novo e avançou directamente para o quarto do fundo. Ali estava a sua mobília, tal como pedira. A visão aliviou-o e fê-lo recuperar a compostura.
A boa e sólida cama Chippendale com cabeceira e estribo sem adornos. A única coisa em que ele e a mãe sempre tinham estado de acordo: o amor pelas antiguidades,
o respeito pelo trabalho do artesão, pela história.
Comprara a cama depois de Jessica ter desistido do casamento. Bem, depois de ele ter desistido, admitiu com os habituais remorsos. Quisera começar uma vida nova,
e até procurara encontrar novas peças de mobiliário para o quarto.
Optara por aquela cómoda de solteiro, não só porque aparentemente iria continuar sozinho, mas também porque gostara do estilo, do duplo embutido do chaveirão, dos
compartimentos secretos, das pernas curtas e torneadas. Escolhera o armário para ocultar a televisão e a aparelhagem, e os esguios candeeiros Deco porque lhe tinha
agradado a mistura de estilos.
Ver as suas coisas naquele quarto espaçoso, com a atraente lareira de granito de um verde carregado, as portas em arco da varanda, o papel de parede suavemente desbotado,
o soalho desgraçadamente coberto de marcas, despertou-o de novo para a realidade.
A área adjacente, o quarto de vestir, fê-lo sorrir. Agora só precisava de um mordomo, de uma gravata branca e de uma sobrecasaca. A casa de banho, a julgar pelo
estilo, fora aparentemente modernizada nos deploráveis anos 70, e a loiça verde-abacate fê-lo estremecer e ter vontade de tomar um banho quente.
Resolveu dar uma volta rápida pelo terceiro piso, depois fazer o mesmo no andar térreo e por fim experimentar a feia banheira verde.
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Dirigiu-se ao piso de cima. A melodia continuava a soar-lhe na cabeça, às voltas, como uma valsa. Deixou-a tocar. Sempre lhe fazia companhia até Remy aparecer.
Muitas as esperanças que se desvaneceram após o baile.
Ali a escadaria era mais estreita. Era o piso das crianças e da criadagem. E nem uns nem outros precisavam de retoques elaborados.
Resolveu deixar a ala da criadagem para mais tarde e encaminhou-se para o que presumiu ser o quarto das crianças, a arrecadação e o sótão.
Estendeu a mão para uma maçaneta de metal tornado baço pelo tempo e pelo abandono. O corredor foi varrido por uma aragem, suficientemente fria para lhe atravessar
os ossos. Ficou surpreendido ao ver a sua própria respiração condensar-se numa delicada nuvem de vapor.
Assim que pousou a mão na maçaneta, a náusea apoderou-se tão rápida e profundamente dele que lhe tirou a respiração. Um suor frio perlava-lhe a testa e sentia a
cabeça a girar.
O seu desejo foi fugir dali aos gritos. Em vez disso, cambaleou para trás e apoiou-se contra a parede, enquanto o terror e o medo o estrangulavam como mãos assassinas.
Não entres aí! Não entres!
Não sabia de onde provinha aquela voz na sua cabeça, e todavia achou por bem obedecer-lhe. Sabia que corriam rumores de que a casa estava assombrada, mas não dava
importância a essas coisas.
Ou julgava que não dava.
Mas a ideia de abrir aquela porta, de acrescentar o que pudesse haver do outro lado, estava para lá das suas forças. Para mais de estômago vazio e após uma viagem
de dez horas.
- Só estou para aqui a perder tempo - disse, para ouvir o conforto da sua própria voz. - É melhor ir descarregar o carro. Isso, vou descarregar o carro.
- Com quem estás a falar, cher?
Declan deu um salto que mais parecia o de um basquetebolista na bola ao ar do início do jogo. E só a custo conseguiu transformar o grito num latido masculino mais
aceitável.
- Porra, Remy! Assustaste-me!
- Tu é que estavas aqui a falar com uma porta. Dei uns gritos ao subir. Provavelmente não ouviste.
- Pelos vistos...
Declan encostou-se à parede, respirou fundo e olhou para o amigo.
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Remy Payne tinha aquele bom aspecto do charlatão empertigado. Fora talhado para a advocacia, pensou. Manhoso, arguto, com uns olhos azuis e joviais e uma boca larga
que, como naquele momento, conseguia esticar como borracha num sorriso desarmante que quase nos fazia acreditar em tudo o que dizia, mesmo quando detectávamos nele
o cheiro inconfundível da vigarice.
Pertencia à classe dos magros, nunca conseguira ganhar volume apesar de ter um apetite de elefante. Na faculdade usava uma lustrosa juba castanho-escura que lhe
caía por cima do colarinho. Agora que a aparara dir-se-ia uma espécie de Júlio César.
- Pensei que tinhas dito duas horas.
- E foram. Quase duas horas e meia! Sentes-te bem, Dec? Pareces um pouco pálido.
- A viagem foi cansativa. Meu Deus, que bom ver-te!
- Estava a ver que nunca mais dizias nada. - Deu uma gargalhada e prendeu Declan num abraço afectuoso. - Ena! Tens feito exercício. Vira-te, deixa-me ver o cuzinho.
- És mesmo idiota! - Trocaram palmadas nas costas. - Diz-me uma coisa - continuou Declan dando um passo atrás. - Terei perdido a puta da cabeça?
- Claro que perdeste. Há muito tempo. Vamos lá para baixo beber qualquer coisa.
Instalaram-se no que fora outrora a sala dos cavalheiros, sentados no chão com uma piza de pimentos e uma garrafa de Jim Beam.
A primeira golada de bourbon escorregou como seda líquida e desfez todos os nós no estômago de Declan. A piza era saborosa e gordurenta, e levou-o a concluir que
tudo não passara de fome e de fadiga.
- Estás a planear viver assim por muito tempo, ou vais comprar uma cadeira ou duas?
- Não preciso de cadeiras. - Declan tirou a garrafa a Remy e emborcou mais um trago de bourbon. - Pelo menos por enquanto. Durante uns tempos quero reduzir as coisas
ao mínimo. Já tenho a mobília do quarto. Talvez ponha uma mesa na cozinha. Se começo a comprar móveis, só me vão estorvar enquanto ando a arranjar a casa.
Remy olhou em volta.
- Da maneira como isto está, vais precisar do raio de uma cadeira de rodas antes de acabares.
- A maior parte é quase só cosmética. Pelo que ouvi dizer, os proprietários anteriores adiantaram bastante o grosso das obras. Parece
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que queriam transformar isto num hotel de charme, ou coisa que o valha. Andaram nisto quase seis meses até desistirem. Provavelmente ficaram sem dinheiro.
Remy ergueu as sobrancelhas, passou um dedo pelo soalho e examinou a camada de pó que recolhera.
- Que pena não poderes vender esta sujidade, ficavas podre de rico. Ah, já me esquecia. Já és podre de rico. E a tua família, como vai?
- A mesma coisa de sempre.
- Devem estar a pensar: o nosso rapaz, o Dec, il est fou! - Fez um gesto com o dedo junto do ouvido. - Ficou tolinho de todo.
- Oh! Talvez tenham razão, mas pelo menos é finalmente o raio de uma tolice só minha. Se tivesse de assistir a mais um depoimento, a mais uma reunião, de negociar
mais um acordo, tinha-me afogado no Charles(1).
- O que te fartou foi o Direito Comercial, cher. - Remy lambeu o molho que tinha nos dedos. - Podias ter tentado o Penal, como eu. Põe-nos o sangue a circular. Basta
dizeres e amanhã abrimos juntos um escritório.
- Obrigado pela ideia. Ainda continuas com essa paixão.
- Sim. Adoro os aspectos dúbios e escorregadios, a pompa e circunstância, a luta renhida, as palavras requintadas. Essa porra toda. - Abanou a cabeça e emborcou
mais um trago. - Tu nunca gostaste disso.
- Não, nunca.
- Todos aqueles anos a dar cabo do coiro em Harvard, que desperdício. É isso que te têm dito?
- Entre outras coisas.
- Estão errados. Sabes bem que sim, Dec. Não desperdiçaste nada. Estás a seguir algo diferente. Descontrai-te e desfruta. Agora estás em Nova Orleães, ou não muito
longe. Aqui levamos as coisas com calma. Vamos livrar-te dessa pele de ianque num instante, pôr-te a dançar os ritmos cajun e a preparar um bom prato de feijão vermelho
e arroz no dia das limpezas.
- Lá terá que ser.
- Aparece lá na cidade assim que te instalares, eu e a Effie levamos-te a jantar fora. Quero que a conheças.
Remy tinha tirado a gravata e o casaco e enrolara as mangas da camisa azul de advogado. Exceptuando o cabelo, não parecia muito diferente
(1) Rio que banha a cidade de Boston. (N. dos T.)
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do que fora quando estavam em Harvard a engolfar piza e bourbon, pensou Declan.
- Vais mesmo para a frente com isso do casamento? Remy soltou um suspiro.
- Dia doze de Maio, faça chuva ou faça sol. Vou assentar este coiro rebelde, Dec. Ela é mesmo o que quero.
- Uma bibliotecária. - O facto espantava Declan. - Tu e uma bibliotecária.
- Especialista em investigação - corrigiu Remy, soltando uma sonora gargalhada. - A mais linda ratinha de biblioteca que alguma vez vi! E esperta. Estou mesmo apanhadinho,
Dec. Tolinho de todo por ela.
- Fico feliz por ti.
- Ainda andas com remorsos por causa da... como se chamava ela? Jennifer?
- Jessica. - Declan estremeceu e deu mais uma golada para cortar o sabor daquele nome. - Cancelar um casamento três semanas antes de subir ao altar deixa qualquer
um com remorsos.
Remy anuiu com um rápido encolher de ombros.
- Talvez. Sentir-te-ias pior se tivesses ido em frente.
- A quem o dizes. - Os seus olhos cinzentos mantiveram-se cabisbaixos enquanto olhava fixamente para a garrafa. - Mas acho que ela teria reagido melhor se tivéssemos
casado na mesma e nos divorciássemos no dia seguinte. - A ideia ainda o fazia estremecer. - A verdade é que não podia ter reagido pior. Agora tem saído com o meu
primo James.
- James... James... Aquele que dá gritinhos como uma menina ou o do cabelo à Drácula?
- Nem um nem outro. - Os lábios de Declan esboçaram um ligeiro esgar. - O James é o tipo perfeito. Cirurgião plástico, joga pólo, colecciona selos.
- Um tipo baixinho, de queixo recuado e forte sotaque ianque?
- Esse mesmo, mas já não tem o queixo recuado. Fez um implante. Segundo a minha irmã, a coisa está a ficar séria entre eles. É para eu aprender, diz ela.
- Está bem, abelha. A tua irmã que case com a Jennifer!
- Com a Jessica. E foi o que eu lhe disse - respondeu, gesticulando com a garrafa para dar ênfase. - Ficou duas semanas sem falar comigo. Foi um alívio. Neste momento
não sou muito popular no seio dos Fitzgerald.
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- Bem, sabes, Dec, devo dizer, dadas as circunstâncias e tudo o mais... que se lixem.
Declan riu-se e passou-lhe a garrafa.
- Brindemos a isso. - Tirou outra fatia de piza da caixa. - Deixa-me perguntar-te uma coisa sobre este lugar. Andei a investigar um pouco a história, depois de termos
vindo cá da primeira vez.
- Para aqui aos tombos como uns tolinhos, completamente bêbados.
- Sim, e- não tarda estamos na mesma, se continuamos a dar no bourbon. De qualquer modo, sei que foi construída em 1879, depois de a estrutura original ter ardido
num incêndio sem explicação, muito provavelmente fogo-posto por razões políticas... A Reconstrução e essas confusões do pós-Guerra Civil(1).
- Filho, era a Guerra da Agressão Nortista. - Remy apontou-lhe um dedo acusador. - Lembra-te de que lado da Linha Mason-Dixon(2) tens o teu eu ianque sentado agora.
- Certo. Desculpa. Continuando. Os Manet arrebataram as terras, bem barato, segundo os velhos registos, e construíram a estrutura actual. Cultivaram sobretudo açúcar
e algodão e dividiram parcelas pelos rendeiros. Viveram bem durante cerca de vinte anos. Houve dois filhos mas ambos morreram novos. Depois o velhote morreu e a
mulher aguentou-se mais uns tempos, até que, aparentemente, teve uma trombose durante o sono. Não existia qualquer herdeiro. Havia registo de uma neta, mas tinha
sido deserdada. O lugar foi a leilão e desde essa altura tem passado de mão em mão. Mas tem estado quase sempre vazio.
- E daí?
Declan inclinou-se para a frente.
- Acreditas que está assombrada?
Remy esticou os lábios e deitou a mão ao último pedaço de piza.
- Toda essa lição de história foi a maneira que arranjaste para chegar a essa pergunta? Rapaz, tens todos os atributos para te tornares num refinado advogado sulista.
Claro que está assombrada. - Os olhos dançaram-lhe enquanto mordiscava a piza. - Uma casa que se
(1) Referência ao período da história norte-americana entre 1865 e 1877, durante o qual os estados separados durante a Guerra Civil foram reorganizados sob o domínio
federal e mais tarde reintegrados na União. (N. dos T.)
(2) A fronteira que separava a Pensilvânia do Maryland e da Virgínia, encarada como a linha divisória entre os estados livres e os estados esclavagistas antes da
Guerra Civil Americana. (N. dos T.)
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preze, abandonada este tempo todo, só pode estar assombrada. A neta que referiste era uma Rouse, da parte da mãe. Sei isso porque sou primo em quarto ou quinto grau
dos Simone, e os Simone descendem dessa linhagem. Creio que a rapariga foi criada pelos avós maternos depois de a mãe fugir com um homem... Pelo menos é o que se
diz. Não me recordo bem do que aconteceu ao pai da criança, mas há por aí quem se lembre, se quiseres saber. O que sei é que Henri Manet, a esposa Josephine e o
outro filho, raios me partam se me lembro do nome dele, morreram todos nesta casa. Era uma vergonha se nenhum tivesse tomates para a assombrar.
- E as pessoas que morreram aqui? De causas naturais, foi? Remy franziu a testa com curiosidade.
- Tanto quanto sei. Porquê?
- Não sei. - Teve de reprimir um calafrio. - Pressentimentos.
- Queres trazer cá alguém? Umas coisinhas com amuletos, um pouco de vudu para escorraçar o teu fantasma ou talvez convocar o espírito para uma conversinha? Encontras
uma bruxa ou um médium em cada esquina da cidade.
- Não, obrigado.
- Diz-me se mudares de ideias. - Piscou-lhe o olho. - Ponho-te em contacto com a pessoa certa para teres aqui um belo espectáculo.
Não queria nenhum espectáculo, decidiu Declan mais tarde. Mas apetecia-lhe o banho e a cama. Com o Jin Beam a zumbir-lhe agradavelmente no sangue, carregou algumas
caixas para dentro de casa e vasculhou-as até encontrar lençóis e toalhas. Levou para cima aquilo de que podia precisar para passar a noite.
Foi a boa e velha culpa católica, não qualquer necessidade de arrumação, que o levou a fazer a cama. Presenteou-se com um banho de dez minutos e depois enfiou-se
nos lençóis frescos ao som da chuva incessante.
Adormeceu em trinta segundos.
Havia um bebé a chorar. Não estranhou o facto. Os bebés costumavam chorar a meio da noite ou quando lhes dava na real gana. A criança parecia mais inquieta e incomodada
do que assustada.
Alguém devia ir lá pegar nela... fazer o que as pessoas faziam aos bebés quando eles choravam. Dar-lhe de mamar. Mudar-lhe a fralda. Embalá-lo.
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Quando era criança e acordava com pesadelos, a mãe ou a ama, às vezes até o pai, acariciavam-lhe a cabeça e sentavam-se junto dele até o medo desaparecer.
O bebé não estava assustado. O bebé tinha fome.
Não estranhou ter pensado nisso. Não estranhou sabê-lo.
Mas estranhou, estranhou bastante, acordar banhado em suor e dar por si no terceiro piso, com a mão na maçaneta de metal baço, especado diante da porta.
Capítulo Três
Sonambulismo. Aí estava uma coisa que não lhe acontecia desde a infância. Mas, sob a luz aquosa da madrugada, era fácil perceber o que acontecera: Jim Beam, piza
de pimentos e aquela conversa sobre fantasmas.
Aceitava mais dificilmente o terror que se lhe agarrava às entranhas e que sentira quando voltara a si e dera consigo junto àquela porta do terceiro piso. Arrancara-se
bruscamente da amnésia e entrara num pesadelo de pânico: tinha a certeza de que ouvira os ténues ecos do choro inquieto de um bebé.
Desatara a correr. Não conseguiria abrir aquela porta mesmo que lhe apontassem uma arma à cabeça. E, portanto, desatara a correr, perseguido pelo seu próprio medo,
até se trancar no quarto. Como um doente mental, pensava agora enquanto bebia uma chávena de café instantâneo morno.
Felizmente ninguém o vira a fazer essa figura.
Contudo, pensando bem, até fora uma primeira noite bastante auspiciosa. Zonas frias, bebés-fantasma, amnésias. Era sem dúvida melhor do que estar sentado na sua
vazia casa citadina, em Boston, a emborcar cerveja e a ver o canal da ESPN.
Talvez passasse algum tempo a investigar mais aprofundadamente a história da casa. Da sua casa, corrigiu-se, apoiando-se na balaustrada molhada da varanda do quarto
enquanto bebia o café.
A sua vista. Linda, desde que ignorasse o caos dos jardins.
A chuva gotejava das folhas com plops constantes e musicais e o ar tremeluzia com o peso que a tempestade deixara para trás. As brumas rastejavam pelo chão, dedos
vaporosos e serpenteantes que circundavam as árvores, transformando-as em silhuetas românticas e misteriosas.
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Se o Sol rompesse, a luz cintilante seria espectacular, embora naquele momento também não fosse de desdenhar.
Havia um tanque, um tanque pequeno, sufocado de folhas de nenúfar, e campos: alguns já arroteados, alguns já plantados e à espera de uma Primavera que ali chegava
muito mais cedo. Conseguia ver a curva do rio que serpenteava através das sombras profundas do bayou.
Uma pequena ponte periclitante atravessava a água com uma corcunda e, mais adiante, uma estrada de terra batida empurrava as árvores em direcção a uma casa que quase
ocultavam. Conseguiu apenas discernir um fio de fumo que se elevava no ar e se misturava com a neblina.
Já visitara o miradouro nessa manhã e ficara aliviado ao descobrir que continuava tudo em bom estado, inclusive o telhado e as chaminés. Os últimos proprietários
tinham cuidado dessa área e da varanda do segundo piso antes de se darem por vencidos.
Aparentemente, também tinham começado a reparar o alpendre das traseiras, que haviam fechado com redes de mosquiteiro.
O que talvez não fosse má ideia. Ia pensar nisso.
Não tinha a certeza se tinham ficado sem dinheiro ou sem energia; ou ambas as coisas. Tanto melhor para ele.
Dinheiro não lhe faltava e, naquele preciso momento, enquanto observava o vapor a elevar-se acima das ervas daninhas e da água, sentia-se cheio de energia.
Aproximou a chávena dos lábios, mas afastou-a quando viu uma mulher - uma rapariga? - esgueirar-se por entre as árvores em direcção à curva do rio. A seu lado caminhava
um enorme cão negro.
Estava demasiado distante para conseguir distinguir-lhe os traços. Viu que usava uma camisa de xadrez vermelho e calças de ganga, que o cabelo era comprido, escuro
e loucamente encaracolado. Seria nova ou velha? Bonita ou feia?
Decidiu-se por nova e bonita. Afinal de contas, a escolha era sua.
Ela atirou uma bola ao ar e interceptou-a agilmente quando o cão deu um salto. Atirou-a mais duas vezes enquanto o cão saltava e corria em círculos. Depois recuou
como um lançador de basebol e arremessou-a para longe. O cão lançou-se atrás dela e não hesitou em saltar para dentro do tanque, agarrando-a com uma dentada instantes
antes de cair à água.
Belo traque!, pensou Declan, rindo enquanto via a rapariga a bater palmas.
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Gostava de a poder ouvir. Tinha a certeza de que estava a rir-se, com gargalhadas cavas e guturais. O cão nadou, trepou para a borda do tanque, cuspiu a bola aos
pés dela e sacudiu-se.
Decerto tinha ficado encharcada, mas não se afastou nem se pôs a esfregar irritadamente as calças.
Continuaram a brincadeira, com Declan no papel de espectador hipnotizado.
Imaginou-a ali mais perto da mansão, suficientemente perto para poder acenar-lhe da varanda e convidá-la para uma chávena de mau café. Seria a sua primeira tentativa
de hospitalidade sulista.
Ou, melhor ainda, podia dar um passeio lá por baixo. Ela estaria a lutar com o cão, escorregaria na erva molhada e cairia no tanque. E ele estaria precisamente ali
à mão para a ajudar a sair. Não, para mergulhar prontamente atrás dela e salvá-la porque ela não sabia nadar.
E depois uma coisa levava a outra e fariam sexo na erva molhada, sob a luz aquosa. O corpo dela, molhado e esguio, erguer-se-ia sobre o dele. Encheria as mãos com
os seus seios e...
- Credo! - Piscou os olhos e viu-a desaparecer entre as árvores.
Não tinha a certeza se sentia vergonha ou alívio por descobrir que estava excitado. Só tivera sexo uma vez nos últimos seis meses, desde que tinha rompido com Jessica.
E fora mais um reflexo que verdadeiro desejo.
No entanto, se estava tão excitado com uma fantasia ridícula despertada por uma mulher cujo rosto nem sequer vira, isso queria dizer que as coisas estavam a voltar
ao normal.
Já podia riscar da lista de problemas a preocupação com a sua masculinidade.
Emborcou o resto do café frio. Não se importava de começar o dia com uma fantasia erótica extraviada, mas custava-lhe começá-lo com mau café. Estava na hora de se
dedicar às coisas práticas.
Voltou para dentro, agarrou na carteira e nas chaves e foi à cidade comprar mantimentos.
A tarefa ocupou-lhe a maior parte do dia. Além das compras, teve de voltar a familiarizar-se com a cidade que ia passar a ser a sua.
Se Boston era uma esposa respeitável, com uns quantos segredos sórdidos, Nova Orleães era uma amante sensual que celebrava as suas facetas mais obscuras.
Ofereceu-se um enorme pequeno-almoço, tão carregado de colesterol que imaginou o seu coração simplesmente a afundar-se com o choque.
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Comprou café em grão e um moinho, pãezinhos e donuts da Louisiana. Abasteceu-se com a cozinha de macho solteiro: refeições embaladas, piza congelada, cereais. Foi
à loja de bebidas buscar cerveja, bourbon e bons vinhos.
Carregou tudo no carro e fez nova investida, tanto pelo prazer de deambular pelas ruas como pela necessidade de encontrar algo para comer e alguns utensílios de
cozinha. Decidiu-se por pratos de papel e talheres de plástico, e deteve-se a ver um músico de rua abrir o estojo do trompete e colocar lá dentro algumas moedas,
para depois encher o ar com um fluxo de magia.
Declan deu-lhe o primeiro dólar do dia.
Evitou a tentação das lojas de antiguidades e o engodo do Bairro Francês. A música da hora do almoço jorrava já dos clubes, odores exóticos fluíam dos restaurantes.
Comprou uma muffulleta - essa maravilha de carne, queijo e azeite em pão italiano - para levar para casa e comer mais tarde.
Ao voltar para o carro, reparou nos turistas com os seus sacos do Café du Monde ou das lojas da Marginal, nas cartomantes sentadas a mesinhas articuladas em redor
de Jackson Square, que liam a sorte por dez dólares. Captou a ténue fragrância a marijuana sob o fedor intenso do lixo enquanto caminhava por uma ruela lateral.
E viu uma enorme mulher negra a fumar indolentemente na varanda atafulhada de plantas por cima de uma loja que publicitava velas eróticas.
Comprou uma para Remy, de uma mulher nua com seios parecidos com torpedos, e riu-se imenso enquanto voltava para o carro.
Fez a viagem de regresso com as energias retemperadas. Carregou as compras, enfiou-as onde lhe pareceu lógico na altura e depois iniciou uma rigorosa inspecção quarto
a quarto ao piso principal. Tomou nota dos problemas e potencialidades, estabeleceu planos, definiu prioridades.
A cozinha estava sem dúvida no topo da lista. Já passara por essa experiência com a sua casa de Boston e com duas remodelações em casas de amigos.
Embora não pudesse vangloriar-se de cozinhar mais do que a ocasional omeleta ou tosta mista, encarava a cozinha como o coração de qualquer lar. A última transição
por que a cozinha da Mansão Manet passara fora no início dos anos 80: branco cru e cromados, uma ilha central com tampo de mármore e um soalho de um branco ofuscante.
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Os pontos positivos eram as janelas generosas, a velha e útil lareira de tijolo e o belo tecto cofrado. Gostou da enorme despensa, mas achou que seria mais útil
como vestíbulo. Descascaria tudo até ao soalho original de madeira, arrancaria o papel de parede com padrões de bules e trocaria a ilha central por uma antiga bancada
de padeiro ou algo do género.
A decoração não era o seu forte. Sempre deixara isso a cargo de Jessica, que tinha preferência por cores pálidas e linhas clássicas.
E, agora que pensava no assunto, concluiu que preferia cores mais fortes e o encanto dos caprichos. Apreciava pormenores e confusão. Era a sua casa, raios, e faria
as coisas à sua maneira. De cima a baixo.
Colocaria armários com portas de vidro onde pudesse dispor antigos utensílios de cozinha. Pratos rachados e desirmanados, garrafas e jarras. Tudo atravancado.
Bancadas sólidas. Torneiras de cobre. Que importava se ficavam manchadas? Pareceriam ainda mais reais.
Um frigorífico mesmo grande. Máquina de lavar louça e fogão último grito. Todo apainelado com madeira a imitar o antigo.
Agora sim, as coisas começavam a andar.
Redigiu resmas de apontamentos, mediu e tornou a medir. Dispôs dos seus livros de pesquisa e examinou-os sentado no chão da biblioteca vazia enquanto comia metade
da sanduíche e bebia café em quantidade suficiente para lhe pôr os ouvidos a zumbir.
Conseguia visualizar tudo de um modo tão perfeito. As prateleiras do chão ao tecto, atravancadas de livros, as paredes de um verde carregado e o suave tom creme
do tecto de estuque e do friso. Robustos castiçais de prata sobre a lareira. Contrataria um profissional para verificar todas as chaminés, de modo a torná-las funcionais
e acabar com aquele ar gélido.
Restauraria o friso e poli-lo-ia até ficar macio como cetim. Tanto aquelas portas como as outras, mais maciças, que faziam a separação entre a sala de estar dos
cavalheiros e a das senhoras, estavam em excelente estado.
Alguém havia iniciado já os restauros no soalho da biblioteca.
Rastejou pelo chão enquanto passava as mãos pela madeira. Poli-la-ia ligeiramente, aplicar-lhe-ia uma ou duas camadas de verniz claro até ficar impecável. Os tapetes
haviam-na protegido bem: os bons e espessos Aubusson que Josephine tinha mandado vir de Paris.
Cheirou-lhe a brandy, a couro, a cera de abelha e a rosas, mas não se fixou nessas sensações. Tinha os olhos obnubilados e distantes
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quando se deteve junto da lareira de mosaicos e passou o polegar pelo canto lascado. Aquela secção teria de ser substituída, ou poli-la-ia se não conseguisse arranjar
material igual. Os mosaicos tinham sido pintados à mão e envernizados em Itália, a um preço considerável.
Julian derrubara o castiçal que estava em cima da lareira e lascara os mosaicos. Outra vez bêbado. Outra vez enfurecido.
O telemóvel tocou quando Declan estava sentado sobre os calcanhares. Pestanejou, desorientado, e olhou em volta da sala vazia. Que estivera ele a fazer? Em que tinha
estado a pensar? Olhou para o polegar e reparou que o ferira no mosaico lascado. Pegou no telemóvel, desconcertado.
- Sim? Está?
- Finalmente! Já estava quase a desistir. - A voz jovial de Remy ribombou-lhe na cabeça enquanto olhava fixamente para os mosaicos. Tinha estado a pensar nos mosaicos.
Alguma coisa...
- Estou a... a... a percorrer a casa quarto a quarto. A tirar medidas. Essas coisas.
- E que tal arrancares-te daí para fora por um bocado? Tenho uma reunião tardia e pensei que podíamos encontrar-nos para uns copos depois. E a Effie também, se conseguir
convencê-la a sair.
- Que horas são? - Declan virou o pulso para ver o relógio. - Meia-noite? É meia-noite?
- Ainda não. Estiveste a beber?
- Só café. - Verificou as horas enquanto franzia a testa e batia no mostrador. - A pilha deve ter acabado.
- Pouco passa das seis. Talvez consiga sair aí pelas nove. Porque não vens até cá? Encontramo-nos no Et Trois, no Bairro Francês, na Dauphine, mais ou menos a um
quarteirão da Bourbon.
- Está bem. - Passou distraidamente a mão pelo cabelo e reparou que tinha a testa ligeiramente perlada de suor. - Sim, parece boa ideia.
- Precisas que te indique o caminho, ianque?
- Eu descubro. - Esfregou o polegar que latejava. - Remy?
- É o meu nome.
Declan abanou a cabeça e riu para si mesmo.
- Não é nada. Até logo.
Foi cedo para a cidade. Não estava particularmente interessado em beber, mas queria ver a metamorfose de Nova Orleães do dia para a noite. As ruas cintilavam num
carnaval de luzes, apinhadas de gente que deambulava à procura de entretenimento.
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Não eram os turistas nem os comerciantes que dirigiam o espectáculo, pensou ele. Era a própria cidade. E era a música que fazia girar a engrenagem.
Jorrava das portas: um jazz aprazível, um rock acalorado, um blues lânguido. As varandas dos restaurantes estavam pejadas de clientes que se protegiam do ar gélido
de Janeiro com molho picante e álcool. Os pregoeiros dos clubes de strip prometiam toda a espécie de deleites visuais, e nas lojas as caixas registadoras tilintavam
enquanto os turistas açambarcavam T-shirts e máscaras de Carnaval. Os bares serviam cocktails típicos aos ianques, e cerveja e bebidas espirituosas àqueles que não
se deixavam enganar.
Mas era a música que mantinha a parada em movimento.
Deixou-se embeber pelo ambiente enquanto vagueava Bourbon Street abaixo, passando por várias entradas, luzes brilhantes e súbitos e inesperados pátios. Contornou
um grupo de mulheres agrupadas no passeio e a tagarelarem como papagaios.
Captou-lhes a fragrância - a flores e a caramelo - e sentiu a típica reacção masculina de prazer e pânico quando elas irromperam em risadinhas.
- Rico traseiro! - comentou uma delas, mas Declan continuou a andar.
As mulheres em grupo eram entidades perigosas e misteriosas.
Ocorreu-lhe que devia levar uma prenda a Effie. Uma espécie de presente de noivado. Não sabia do que gostava, ou sequer como ela era, agora que pensava nisso. Mas
tinha o dom de comprar as prendas adequadas. Lamentando não ter pensado nisso mais cedo, espreitou um par de lojas sem grandes expectativas. Naquela zona, quase
tudo se destinava ao comércio para turistas, e não achava que um pénis de plástico, de dar à corda, fosse lá muito adequado para uma pessoa que nem sequer conhecia.
A prenda podia esperar, pensou, ou então poderia recorrer ao tradicional cesto de loções e poções femininas.
Foi então que a viu, à rã de prata, apoiada nas quatro patas como se se preparasse para um vigoroso salto. Tinha uma expressão alegremente matreira e um sorriso
rasgado e atrevido. Lembrou-se logo de Remy. Se esta Effie se apaixonara pelo seu antigo colega de faculdade, certamente apreciava excentricidades. Mandou embrulhar
o presente num belo papel com um grande laço vermelho.
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Estava pronto para se sentar num bar, longe da arena central do circo. Ouviria talvez uma musiquinha e entreter-se-ia com uma cerveja. Durante as próximas semanas
teria de trabalhar arduamente. Passar os dias a esventrar a cozinha e as noites a planear o próximo ponto de ataque. Precisava de arranjar artesãos especializados.
De pedir orçamentos. De pôr as coisas em marcha.
Mas nessa noite ia estar com os amigos, depois voltar para casa e dormir umas boas oito horas de sono.
Avistou o letreiro do Et Trois. Era difícil não o ver, pois dançava alegremente num azul-vivo sobre uma porta de madeira já gasta de um prédio a poucos metros da
rua.
O segundo andar exibia a típica varanda e balaustrada de ferro adornado. Alguém a decorara com bojudos vasos de barro com gerânios de um rosa-vivo e luzinhas brancas
ao longo das goteiras. O tipo de local onde uma pessoa podia sentar-se a beber um copo de vinho e contemplar as pessoas que passeavam em baixo na rua.
Abriu a porta e foi recebido por uma explosão de zydeco bastante animado e pelo aroma a alho e a whiskey.
Uma banda de cinco elementos ocupava o pequeno palco: washboard, rabeca, bateria, guitarra e acordeão. A pequena pista de dança encontrava-se já repleta de pessoas
que executavam o rápido e exuberante two-step a que a música convidava.
Verificou através da luz ténue que nenhuma das mesas de madeira chegadas para os lados se encontrava livre. Virou-se para o bar. A madeira estava enegrecida pelo
tempo, mas ainda brilhava. Tratou de arrebatar o único banco que restava antes que alguém se antecipasse.
As garrafas alinhavam-se ao longo do espelho atrás do balcão, intercaladas com saleiros e pimenteiros numa variedade de temas: um elegante casal em traje de gala,
cães, Rocky e Bullwinkle, Porky e Petunia, os seios arredondados e desnudados de uma mulher reclinada, máscaras de Carnaval e fadas aladas.
Contemplou-os e perguntou-se que género de pessoa coleccionaria e exporia fadas e partes do corpo e concluiu que seria alguém que compreendia Nova Orleães.
No palco, a rabequista começou a cantar em cajun. A voz soava como uma serra enferrujada e era inexplicavelmente apelativa. Declan começou a bater com o pé e olhou
de relance para a outra ponta do bar. O empregado tinha rastas até à cintura, um rosto que podia ter sido talhado num grão de café polido por um hábil artesão e
mãos que se moviam com graciosidade enquanto operava as torneiras e servia shots.
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Ergueu a mão para chamar a atenção do indivíduo. E foi então que a viu surgir da porta atrás do balcão.
Mais tarde, quando conseguiu pensar com clareza, concluiu que fora como se lhe tivessem enterrado um martelo pneumático no peito. Não para lhe parar o coração, antes
para o espevitar. O coração, o sangue, as virilhas, o cérebro. De repente, tudo começou a andar mais depressa.
És tu!, ouviu gritar dentro de si. Finalmente.
Conseguia ouvir no corpo um murmúrio tão intenso que afogava a música e as vozes. A sua visão focou-se nela como se estivesse iluminada por holofotes num palco às
escuras.
Não era bonita, em nenhum dos sentidos clássicos. Mas era espectacular.
O cabelo era escuro como a noite cerrada, uma juba de cigana que lhe derramava anéis selvagens pelos ombros. Tinha um rosto de raposa matreira, o nariz estreito
e algo aristocrático, as faces altas e simétricas, o queixo afiado. Os olhos tinham pálpebras compridas e pesadas, a boca era grande, cheia e pintada com um luxuriante
vermelho-sangue.
O todo da imagem não combinava, pensou com o cérebro a fervilhar. Os elementos do rosto não funcionavam como um todo. Mas eram perfeitos. Surpreendentes, sexy, soberbos.
Era baixa, de constituição quase delicada, e envergava uma blusa justa, cor de papoila, de colarinho arredondado e apertado, que lhe destacava os músculos esguios
dos braços e a curva firme dos seios. Um fio de prata com uma minúscula chave também de prata assomava entre o vale dos seios.
A pele era trigueira, e os olhos, quando pestanejaram rapidamente ao cruzarem-se com os dele, do castanho rico e profundo do chocolate amargo.
Os lábios curvos e vermelhos, o sorriso lento e eloquente enquanto avançava e se apoiava no balcão até os rostos de ambos ficarem suficientemente próximos para ele
conseguir ver o minúsculo sinal postiço mesmo acima da curva do lábio superior direito. Suficientemente próximos para lhe captar o aroma de jasmim nocturno e deixar-se
afogar nessa fragrância.
- Posso ajudar, cher?
Oh, sim, pensou. Por favor.
Mas tudo o que conseguiu dizer foi:
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- Hum... - Ela inclinou um pouco a cabeça, como se o avaliasse. Falou novamente, naquele escorreito ritmo cajun: - Tens sede? Ou esta noite estás apenas... com fome?
- Ah... - Apetecia-lhe enfiar a língua naqueles lábios vermelhos, naquele minúsculo sinal, e sorvê-la de um trago. - Uma Corona.
Observou-a a pegar na garrafa e a espremer uma lima. Movia-se como uma dançarina, algures entre o bailado e a dança exótica. Sentiu literalmente a língua a enovelar-se.
- Queres que te abra conta aqui, jeitoso?
- Ah! - Meu Deus, Fitzgerald, vê lá se te controlas! - Sim, obrigado. Serve para abrir o quê? - Pegou na garrafa quando ela franziu as sobrancelhas. - A tua chave?
- Esta? - Baixou a mão e fez deslizar o dedo pela pequena chave, num gesto que fez a tensão arterial dele rebentar a escala. - Ora, o meu coração, cher. Que pensavas
que fosse?
Estendeu a mão para a dela. Se não lhe tocasse, ainda se ia abaixo e se punha para ali a choramingar.
- Chamo-me Declan.
- Ai sim? - Deixou ficar a mão na dele. - Lindo nome. Pouco comum.
- É... irlandês.
- Uh-huh. - Virou-lhe a mão e inclinou-se mais como se estivesse a ler-lhe a sina. - Que vejo eu aqui? Não estás há muito tempo em Nova Orleães, mas esperas ficar.
Fugiste do frio do Norte, não foi, Declan?
- Sim. Acho que não é difícil de adivinhar.
Ela levantou novamente a cabeça e desta vez o coração dele parou realmente.
- E consigo adivinhar mais. Um rico advogado ianque lá de Boston. Compraste a Mansão Manet.
- Como sabes? - Sentiu algo semelhante a elos forjados numa corrente quando agarrou na mão dela. - Já nos conhecíamos?
- Não nesta vida, querido. - Deu-lhe uma pequena palmadinha na mão e dirigiu-se para a outra ponta do bar para atender outros pedidos.
Mas continuava atenta a ele. Declan não era aquilo que esperava da descrição de Remy. Se é que sabia o que esperava! Mesmo assim, gostava de surpresas. E o homem
sentado ao balcão a observá-la com aqueles olhos de um cinzento-tempestade parecia cheio de surpresas.
Gostava dos olhos dele. Estava habituada a que os homens a olhassem com desejo, mas nos dele havia algo mais. Uma espécie de choque de cortar a respiração, simultaneamente
doce e lisonjeiro.
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E era excitante ver um homem como ele, um homem capaz de se haver com qualquer situação, mas que ficava atarantado quando lhe sorriam.
Embora Declan quase não tivesse tocado na cerveja, acercou-se novamente dele e bateu com o dedo na garrafa. - Pronto para outra?
- Não, obrigado. Podes fazer um intervalo? Posso oferecer-te uma bebida, café, um carro, um cão?
- Que tens aí dentro?
Declan olhou para o pequeno embrulho do presente que colocara sobre o balcão.
- É uma prenda para uma pessoa que vou conhecer.
- Compras prendas para muitas mulheres, Declan?
- Não é uma mulher. Quer dizer, não é a minha mulher. Neste momento não tenho nenhuma. Eu... eu costumava ser melhor nestas coisas.
- Melhor em quê?
- A cantar a canção do bandido. - Ela riu-se: aquele som cavo e gutural que ouvira nas suas fantasias. - Podes fazer um intervalo? Corremos alguém de uma das mesas
e assim podes dar-me outra oportunidade.
- Não estás a sair-te assim tão mal para uma primeira tentativa. Sou dona disto e portanto não faço intervalos.
- És dona disto?
- Exacto. - Virou-se quando uma das empregadas chegou ao balcão com um tabuleiro.
- Espera. Espera. - Estendeu novamente a mão para a dela. - Não sei o teu nome. Como te chamas?
- Angelina. - Disse-o baixinho. - Mas chamam-me Lena, porque não sou nenhum anjo, cher. - Passou o dedo pelo rosto dele e afastou-se para ir atender os pedidos.
Declan deu um sorvo profundo e demorado na cerveja para empurrar a saliva que se lhe acumulara na boca.
Estava compenetrado a matutar noutra abordagem quando Remy lhe bateu nas costas.
- Vamos precisar de uma mesa, filho.
- Daqui a vista é melhor. Remy seguiu-lhe o olhar.
- Uma das melhores que a cidade tem para oferecer. Já conheces a minha prima Lena?
- Prima?
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- Primos em quarto grau. Deixa-me pensar, talvez em quinto grau. Angelina Simone, uma das jóias de Nova Orleães. E aqui está outra. Effie Renault. Effie, querida,
este é o meu grande amigo Declan Fitzgerald.
- Olá, Declan! - Esgueirou-se entre os dois e beijou-o no rosto. - Estou tão contente por te conhecer!
Tinha uma nuvem de cabelo loiro a emoldurar-lhe o bonito rosto em forma de coração e olhos de um azul claro e estival. Os lábios apresentavam uma profunda curva
ao estilo das bonecas Kewpie, e exibiam de um tom rosado.
Tinha o aspecto de quem podia ser a chefe de claque do liceu local.
- És demasiado bonita para perderes o teu tempo com este gajo - disse-lhe Declan. - Porque é que não foges antes comigo?
- Quando partimos?
Declan deu uma gargalhada, apeou-se do banco e retribuiu-lhe o beijo.
- Bom trabalho, Remy.
- A melhor coisa que já fiz. - Remy comprimiu os lábios contra o cabelo de Effie. - Senta-te aqui, querida. Este sítio está apinhado. Se calhar o melhor é ficarmo-nos
aqui pelo balcão. Apetece-te vinho?
- O branco da casa serve.
- Queres que volte a encher-te isso, Declan?
- Deixa estar. Hoje pago eu.
- Nesse caso, oferece um Chardonnay à minha miúda. Eu bebo o mesmo que tu.
- Vejam só quem cá está! - Lena sorriu para Remy. - Olá, Effie! O que é que vão beber?
- Um copo de Chardonnay para a senhora. E mais duas Coronas - disse-lhe Declan. - E depois talvez possas ligar para o 112. O meu coração pára sempre que olho para
ti.
- Aqui o teu amigo é todo falinhas mansas assim que ganha confiança, Remy - disse Lena enquanto tirava uma garrafa de vinho do frigorífico.
- Aquelas miúdas lá de Harvard derretiam-se-lhe nas mãos.
- Nós, as miúdas do Sul, estamos demasiado habituadas ao calor para nos derretermos tão facilmente. - Serviu o vinho e colocou os gomos de lima nas cervejas.
- Tenho a certeza de que te conheço. - De repente a lembrança ressaltou-lhe na memória. - Vi-te esta manhã, a brincar com o teu cão. Um cão preto enorme, ao pé do
tanque.
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- O Rufus. - Lena teve um pequeno sobressalto ao aperceber-se de que ele tinha estado a observá-la. - É da minha avó. A casa dela fica atrás do bayou. Às vezes vou
até lá fazer-lhe companhia.
- Para a próxima passa lá por casa. Faço-te uma visita guiada.
- Talvez. Nunca a vi por dentro. - Colocou uma taça de salgadinhos sobre o balcão. - Querem alguma coisa da cozinha?
- Vamos decidir ainda - disse Remy.
- Então depois digam. - Deu meia-volta e cruzou a porta das traseiras.
- Dec, é melhor limpares essa baba toda do queixo. - Apertou-lhe o ombro. - É embaraçoso.
- Não o provoques, Remy. Não há homem que não fique um pouco excitado com a Lena por perto, e ele ainda não conhece algumas partes essenciais.
- Devias fugir mesmo comigo - decidiu Declan. - Mas até lá, desejo-vos o melhor. - Entregou-lhe o presente.
- Compraste-me uma prenda? Que querido! - Rasgou o embrulho com um entusiasmo que fez Declan sorrir. E sorriu de novo quando ela pegou na rã e a observou fixamente
até lançar a cabeça para trás e soltar uma gargalhada ululante. - Parece o Remy! Olha só, amor, até tem o teu sorriso!
- Não vejo onde.
- Vejo eu. E o Dec também. - Girou no banco e olhou radiante para Declan. - Gosto de ti! Estou tão contente por gostar de ti! Adoro tanto este pateta que quase nem
aguento, e até estava disposta a fingir que gostava de ti. Mas não preciso de fingir.
- Oh, vá lá, não chores, Effie. - Remy sacou de um lenço enquanto ela fungava. - Ela fica assim quando está feliz. Na noite em que a pedi em casamento, chorou tanto
que demorou dez minutos a dizer sim. - Deu-lhe a mão. - Anda, chère, vais dançar comigo até ficares enxutinha.
Declan voltou a sentar-se no banco, pegou na cerveja e viu-os dirigirem-se para a pista.
- Fazem um belo par - comentou Lena atrás dele.
- Sim. Sim, fazem mesmo. Estás interessada em ver se fazemos também um belo par?
- Tu não desistes. - Soltou um suspiro. - Que carro me vais comprar?
- Carro?
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- Ofereceste-te para me pagares uma bebida, um café, um carro ou um cão. As minhas bebidas posso eu pagá-las, e gosto do meu café. E tenho um cão, por assim dizer.
E um carro também. Mas posso muito bem ter dois carros. Que carro me vais comprar?
- Escolhe.
- Depois digo-te - replicou, afastando-se novamente para a outra ponta do balcão.
Capítulo Quatro
Declan trabalhou afincadamente durante três dias. Na sua opinião, não havia nada mais satisfatório do que derrubar coisas. Nem sequer voltar a reconstruí-las lhe
despertava o mesmo gozo primário.
Esventrou a cozinha, arrancou a ilha central, as bancadas e os armários. Descolou o papel de parede com jactos de vapor e arrancou o linóleo.
Ficou com um revestimento de estuque e madeira e infindáveis possibilidades.
À noite, cuidava das bolhas nas mãos e dos músculos doridos e examinava livros de design.
Todas as manhãs, antes de começar o dia, tomava a sua primeira chávena de café na varanda, na esperança de vislumbrar Lena e o grande cão preto a que ela chamava
Rufus.
Contactou operários e artesãos, encomendou materiais e, num frenesi de entusiasmo, comprou uma enorme carrinha de carga num leilão.
Na primeira noite em que conseguiu acender a lareira na sala de estar voltada para o rio, celebrou a ocasião e o seu próprio esforço com um solitário copo de Merlot.
Não voltara a sofrer de sonambulismo, mas teve sonhos. Quando acordava, conseguia lembrar-se apenas de fragmentos. Música, e muitas vezes a melodia parecia alojada
no seu cérebro como um tumor. Ou então vozes iradas.
Certa vez sonhara com sexo, com suaves suspiros no escuro, com o indolente roçar de pele sobre pele, e sentira essa necessidade apoderar-se dele como uma onda de
calor.
Acordara com os músculos a tremer e um aroma de lírios que parecia dissipar-se.
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Sonhar com sexo parecia ser o melhor que conseguia arranjar, pelo que concentrou as energias no trabalho.
A primeira pausa digna desse nome foi para fazer uma visita, para o que se armou com um ramo de malmequeres brancos e um osso de couro cru.
A casa do bayou, de madeira de cipreste, era uma sucessão de quartos alinhados num único piso. Um pequeno barco branco baloiçava gentilmente num embarcadouro já
muito cambado.
As árvores ladeavam a habitação onde a água não o fazia: ciprestes, carvalhos e nogueiras-pecã. Dos ramos pendiam garrafas transparentes, cheias com água até meio.
E havia uma estátua da Virgem Maria aninhada nas raízes nodosas de um carvalho.
Aos pés dela, amores-perfeitos.
No pequeno alpendre que dava para a vereda de terra batida viam-se mais vasos de flores e uma cadeira de baloiço. As portadas estavam pintadas num verde lustroso.
Da porta de mosquiteiro, remendada em dois sítios, escoava-se a voz forte e melancólica de Ethel Waters.
Declan ouviu os sonoros latidos de aviso. Mesmo assim, não estava preparado para o tamanho e a velocidade de Rufus quando este irrompeu da porta e o atacou.
- Céus! - foi tudo o que conseguiu dizer. Teve apenas um instante para se perguntar se devia atirar-se pela janela para dentro da carrinha ou continuar ali petrificado,
quando a massa negra do tamanho de um pónei derrapou até se deter junto aos seus pés.
Rufus pontuava os latidos com uivos tonitruantes, rosnadelas húmidas e uma impressionante exibição dos dentes. Como duvidava que conseguisse repelir o cão com um
ramo de malmequeres, optou por uma aproximação amigável.
- Ei, Rufus, seu canzarrão! Como vai isso?
Rufus farejou-lhe as botas, depois a perna e deteve-se nas virilhas.
- Oh, pá, não vamos ficar assim tão íntimos de um momento para o outro. - Perante aqueles dentes, Declan decidiu que mais valia arriscar a mão do que a pila. Lentamente,
afastou a cabeça maciça e fez-lhe uma festa.
Rufus olhou-o com um par de olhos castanhos e faiscantes, ergueu-se nas patas traseiras num único movimento rápido e fluido e pousou-lhe as enormes garras nos ombros.
Depois passou-lhe uma língua quase do tamanho do Mississipi pelo rosto. Declan, apoiado contra o lado da carrinha, esperava que as longas lambidelas molhadas fossem
uma saudação, e não uma espécie de preparativo para tornar a carne mais tenra.
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- Prazer em conhecer-te também.
- Larga-o já, Rufus!
O cão baixou-se perante aquela ordem serena vinda da porta da frente; sentou-se e pôs-se a bater com a cauda.
A mulher especada no alpendre era mais nova do que Declan esperava, teria pouco mais de sessenta anos. Tinha a mesma constituição franzina da neta, os mesmos traços
agudos no rosto. O cabelo era escuro, livremente estriado de branco e colhido numa massa de caracóis.
Envergava um vestido de algodão que lhe dava pelas canelas e, por cima, uma camisola vermelha e larga. A cobrir-lhe os pés trazia umas robustas botas castanhas,
com umas espessas meias vermelhas que lhes descaíam por cima. Declan ouviu o tilintar das braceletes quando ela enclavinhou as mãos nas ancas estreitas.
- Ele gostou do seu cheiro, e da sua voz, por isso deu-lhe um beijo de boas-vindas.
- E se não gostasse?
Ela sorriu, um rápido cintilar que aprofundava as rugas que o tempo lhe gravara no rosto.
- Que acha?
- Acho que me dou por feliz por ter um cheiro amigável. Chamo-me Declan Fitzgerald, Mrs. Simone. Comprei a Mansão Manet.
- Sei quem você é. Entre e sente-se por uns instantes. - Recuou e abriu a gasta porta de mosquiteiro.
Declan dirigiu-se para o alpendre, com o cão arrastando-se pesadamente ao seu lado.
- Prazer em conhecê-la, Mrs. Simone.
Ela observou-o, com um olhar franco e cauteloso naqueles olhos escuros.
- Você é mesmo bonito, sim senhor.
- Obrigado. - Estendeu as flores. - A senhora também. Ela aceitou as flores e cerrou os lábios.
- Veio cortejar-me, Declan Fitzgerald?
- Sabe cozinhar?
Ela riu-se, com um som cavo e gutural, e Declan sentiu-se um pouco apaixonado.
- Tenho pão de milho acabado de fazer, de modo que pode comprovar por si próprio.
Convidou-o a entrar e conduziu-o pelo estreitíssimo corredor central. Declan vislumbrou o vestíbulo, um quarto de costura e os quartos de dormir - um com um crucifixo
de ferro sobre uma cama simples,
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também de ferro - e reparou que todas as divisões estavam confortavelmente apinhadas e asseadas.
Cheirou-lhe a verniz e a alfazema, e depois, a uns passos da cozinha, captou o aroma campestre do pão a cozer.
- Sabe que mais, minha senhora? Tenho trinta e um anos, sou financeiramente solvente e o meu último exame médico deu-me um atestado de saúde irrepreensível. Não
fumo, geralmente bebo com moderação e sou razoavelmente asseado. Se casasse comigo, tratava-a como uma rainha.
Ela deu umas gargalhaditas e abanou a cabeça, apontando-lhe a mesa da cozinha.
- Sente-se e estenda essas pernas compridas debaixo da mesa para eu não tropeçar nelas. E já que está a espicaçar-me, pode tratar-me por Miss Odette.
Destapou uma travessa que estava em cima da bancada e tirou dois pratos do armário. Declan ficou a olhar pela porta da cozinha enquanto ela cortava fatias de pão
de milho.
O bayou estendia-se num sonho de água escura e troncos de cipreste e o reflexo sombrio das árvores tremeluzia à superfície. Viu um pássaro de asas vermelho-vivas
erguer-se nos ares e desaparecer.
- Uau! Como é que consegue fazer o que quer que seja quando podia muito bem ficar o dia todo aqui sentada a olhar?
- É um bom sítio. - Tirou um jarro de chá escuro de um velho frigorífico pouco mais alto do que ela. - A minha família vive aqui há mais de cento e cinquenta anos.
O meu avô tinha uma boa destilaria por detrás daquele robledo. Os fiscais do governo nunca a descobriram.
Pousou o copo e a bandeja diante dele.
- Mangez. Coma. Que faz o seu avô?
- Era advogado. Na verdade, ambos os meus avós eram. - Já morreram, não?
- Reformaram-se.
- Você também, hã? - Pegou numa gorda garrafa de um azul-pálido quando deu a primeira dentada no pão de milho.
- Mais ou menos, pelo menos reformei-me do Direito. Isto está maravilhoso, Miss Odette.
- Tenho jeito para cozer pão. E gosto de malmequeres - acrescentou enquanto os enfiava na garrafa que enchera com água. - Dão um toque jovial. Vai dar ao Rufus esse
osso que trouxe, ou vai obrigá-lo a suplicar-lho?
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Como Rufus estava nesse momento sentado aos pés dele e com uma das pesadas patas sobre a sua coxa, Declan decidiu que o animal já tinha suplicado o suficiente. Tirou
o osso do saco. O cão tirou-lho com uma dentada surpreendentemente delicada, abanou duas vezes a cauda como um chicote, depois baixou-se e começou a roê-lo.
Odette pôs as flores no centro da mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Declan.
- Que vai fazer com aquele lugar velho e enorme, Declan Fitzgerald?
- Todo o tipo de coisas. Voltar a pôr aquilo como em tempos foi, tanto quanto for possível.
- E depois?
- Não sei. Viver lá.
Odette partiu um dos cantos do pão de milho. Já decidira que gostava do aspecto dele: o cabelo desalinhado, os olhos de um cinza-pedra num rosto esguio. E da voz
dele, de ianque, mas não empertigado. E tinha uns modos polidos, naturais e amistosos.
Agora queria ver de que cepa era feito.
- Porquê?
- Também não sei, mas desejei-o desde a primeira vez que pus os olhos na casa.
- E o que é que a Mansão acha de si?
- Creio que ainda não se decidiu. Já a viu por dentro?
- Hmm. - Anuiu com a cabeça. - Já há muito tempo. É muita casa para um homem novo. Tem alguma rapariga em Boston?
- Não, senhora.
- Um rapaz tão bem-parecido como você, a passar dos trinta. Não é gay, pois não?
- Não, senhora. - Sorriu enquanto levantava o copo de chá. - Gosto de raparigas. Só que ainda não encontrei a rapariga certa para mim.
- Deixe-me ver as suas mãos. - Pegou-lhe a mão, com a palma virada para cima. - Ainda são mãos de citadino, mas você está a tratar disso rapidamente. - Passou o
polegar pelas bolhas, pelas esfoladelas, pela borda dos calos em formação. - Tenho aqui um unguento que lhe posso dar antes de ir, para que essas bolhas não o incomodem.
Você tem uma mão forte, Declan. Tão forte que até mudou o seu destino. Está a percorrer uma estrada nova. Você não a amava.
- Desculpe?
- Esta mulher. - Odette passou delicadamente a unha pela borda da palma da mão dele. - Aquela de que se afastou. Não era para si.
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Declan franziu a testa e inclinou-se mais para a frente para olhar fixamente para a sua própria mão.
- Consegue ver a Jessica aí? - Fascinante. - Ela acaba por ficar com o James?
- Que lhe importa isso? Ela também não o amava a si.
- Bem, essa doeu - disse ele rindo-se um pouco.
- O seu amor está a caminho, um amor que o vai fazer cair estatelado no chão. Vai fazer-lhe bem.
Embora continuasse a afagar-lhe a palma da mão com o polegar, olhava agora para o rosto dele. Os seus olhos pareceram tornar-se mais profundos. Declan julgou ver
mundos dentro deles.
- Você tem laços fortes com a Mansão Manet. Laços fortes e antigos. Vida e morte. Sangue e lágrimas. Alegria, se for suficientemente forte, suficientemente esperto.
Você é um homem inteligente, Declan. Seja suficientemente inteligente para olhar o passado e o futuro e descobrir-se a si mesmo. Você não está sozinho naquela casa.
Declan ficou com a garganta seca, mas não pegou no chá. Não mexeu um único músculo.
- Está assombrada. O que existe naquela casa impediu outros de se lá instalarem. Diziam que era o dinheiro, o tempo ou coisa que o valha, mas o que existe naquela
casa afugentou-os de lá para fora. A casa tem estado à sua espera.
O calafrio subiu-lhe pela espinha como uma seta gelada.
- Porquê?
- Cabe-lhe a si descobrir. - Apertou-lhe a mão e depois largou-a para beber o seu chá.
Declan curvou os dedos para dentro da palma da mão, que latejava.
- Então a senhora é uma espécie de médium? Divertida, levantou-se para ir buscar o jarro de chá.
- De vez em quando vejo o que vejo. Um pouco de magia caseira - disse enquanto voltava a encher os copos. - Mas isso não faz de mim uma bruxa, apenas uma mulher.
- Reparou no olhar de soslaio que ele lançou à cruz de prata emaranhada em contas coloridas que ela usava ao pescoço. - Acha que é uma contradição? De onde pensa
que vem o poder, cher!
- Acho que nunca pensei nisso.
- Qualquer que seja o dom que o bom Deus nos deu, se não o usarmos bem, estamos a desperdiçar essa dádiva. - Inclinou a cabeça, e Declan viu que também usava brincos.
Grandes pedras azuis que
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baloiçavam dos minúsculos lóbulos. - Ouvi dizer que ligou ao Jack Tripadoe por causa de um possível trabalho de canalização em sua casa.
- Ah... - Esforçou-se por desviar os pensamentos do fantástico para o prático, enquanto a palma da mão ainda vibrava com o deslizar dos dedos dela. - Sim. Foi-me
recomendado pelo meu amigo Remy Payne.
- Esse Remy é um ponto. - O seu rosto iluminou-se, e qualquer mistério que nele tivesse havido desvaneceu-se. - O Jack é primo da mulher do irmão do marido da minha
irmã. Far-lhe-á um bom trabalho, e se não lhe fizer um preço justo, diga-lhe que Miss Odette vai querer saber porquê.
- Agradeço-lhe. Por acaso não conhece nenhum estucador? Alguém capaz de fazer um trabalho bem feito?
- Vou tratar de saber. Vai custar-lhe um bom saco de moedas pôr aquele lugar como era e mantê-lo assim.
- Tenho muitas moedas. Espero que venha visitar-me um destes dias para poder mostrar-lhe a casa. Não sei fazer pão de milho, mas consigo dar conta do chá.
- Você tem boas maneiras, cher. A sua mamã educou-o bem.
- Importa-se de escrever isso e assinar? Punha-o num envelope e mandava-lho.
- Vou gostar de o ter por aqui - declarou ela. - Venha visitar-me sempre que quiser.
- Obrigado, Miss Odette. - Pegou na deixa e levantou-se. - Também vou gostar de a ter por aqui.
O sol cintilou no rosto dela enquanto o olhava. O ângulo do rosto, o divertimento nos olhos escuros, a curva provocante dos lábios. De repente tudo lhe recordou
o bar escurecido no Bairro Francês.
- Ela parece-se tanto consigo.
- Pois parece. Você já anda de olho na minha Lena?
Declan ficou um pouco ruborizado ao aperceber-se de que falara alto e tentou esboçar um sorriso.
- Bem, já estamos entendidos que gosto de raparigas, certo? Ela deu uma pequena pancadinha na mesa para pontuar a gargalhada enquanto se levantava.
- Gosto mesmo de si, Declan.
Também ele gostava dela, tanto que decidiu comprar umas cadeiras para ela poder sentar-se quando o visitasse. Trataria disso no sábado,
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pensou enquanto regressava para dar a primeira demão nas paredes da cozinha. Procuraria as cadeiras à tarde, antes do jantar marcado com Remy e Effie.
Depois, coroaria a noite com uma bebida no Et Trois.
E, se Lena não trabalhasse nessa noite, voltaria a sair e atirar-se-ia para debaixo do primeiro carro que passasse.
Trabalhou até depois de escurecer, após o que decidiu oferecer-se uma cerveja a acompanhar um jantar de galinha Hungry-Man. Comeu sentado num cavalete enquanto admirava
os progressos na cozinha.
As paredes estavam desnudadas, reparadas e preparadas para a pintura. As marcas de lápis que fizera indicavam as medidas dos armários que começaria a construir no
dia seguinte. Até tentara alinhar os tijolos na lareira, e achava que não fizera um trabalho assim tão mau. Expusera o velho soalho de pinho, agora protegido com
panos. E já tratara de assinalar os locais para o fogão e o frigorífico.
Se não conseguisse arranjar o guarda-loiça apropriado para a comprida parede, raios, também o construiria. Estava no caminho certo.
Levou uma garrafa de água para cima, tomou o habitual banho de nove minutos e depois estiraçou-se na cama com os seus apontamentos, esboços e livros. Adormeceu de
cansaço a meio dos ajustes nos planos para a sala da frente.
Acordou na mais completa escuridão, a tremer de frio. O bebé acordara-o. Os ténues gritos ainda lhe permaneciam nos ouvidos quando se sentou de repente, com o coração
a bater como um martelo de encontro às costelas.
Não sabia onde estava, sabia apenas que estava no chão e não na cama. Estava frio e conseguia ver o nevoeiro branco da sua própria respiração embrenhar-se na escuridão
negra.
Rolou de lado e levantou-se. Estendeu a mão como um cego e tacteou o ar enquanto dava um cauteloso passo em frente.
Lírios. Sentiu o corpo estremecer enquanto registava este aroma. Sabia agora onde estava: no quarto ao fundo do corredor, o quarto, à semelhança do do terceiro piso,
que evitara com tanto cuidado ao longo dos últimos dias.
Agora estava lá dentro, pensou enquanto dava outro passo arrastado. E embora fosse um tanto insano pensar assim, sabia que não estava sozinho.
- Podes assustar-me. Mas não conseguirás afugentar-me daqui.
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Os dedos roçaram em algo sólido. Soltou uma espécie de latido e afastou-os logo, um segundo antes de se dar conta que era uma parede. Respirou fundo para se acalmar,
tacteou ao longo da parede, tropeçou num rodapé e calcou vidro. Continuou a tactear até encontrar o puxador das portas da varanda e escancarou-as.
Sentia o ar de Janeiro quente e pesado contra a sua pele gelada. Avançou cambaleante e agarrou-se à balaustrada. A noite parecia o interior de uma caverna. O velho
ditado era verdadeiro, concluiu. Não havia escuridão como a escuridão do campo.
Quando os seus olhos se habituaram, virou-se e fechou firmemente as portadas.
- Esta casa agora é minha. - disse calmamente. Depois desceu da varanda e voltou para o seu quarto.
- Sonambulismo? - Remy engolfou nova garfada de arroz.
- Sim. Aconteceu-me durante cerca de seis meses quando tinha onze anos. - Declan encolheu os ombros, mas não conseguiu desembaraçar-se do peso que sentia.
Não era sua intenção abordar o assunto, pelo menos não superficialmente. O jantar que Effie preparara no apartamento de Remy no Garden District era bem-vindo, assim
como a companhia. Mas, por qualquer razão, passara do seu relato sobre as obras de reconstrução para as suas aventuras nocturnas.
- Deve ser aterrador acordar e descobrir que estamos noutro lugar qualquer - disse Effie.
- Tem o seu quê de fantasmagórico. É curioso que acabei por ir dar aos dois quartos que mais me inquietam. Ou se calhar até é lógico, qualquer coisa subconsciente.
- Desde que te mantenhas dentro de casa - interveio Remy. - Não quero vir a saber que foste feito sonâmbulo enterrar-te ao pântano.
- Mas que belo pensamento. Obrigado.
- Remy! - Effie deu-lhe uma palmada na mão. - Acho que devias ir ao médico - disse ela a Declan. - Podias tomar qualquer coisa para te ajudar a dormir melhor.
- Talvez. Estou lá há uma semana e só aconteceu duas vezes. De qualquer modo, os soporíferos não resolvem a questão do fantasma.
- Não passa de correntes de ar e ranger de madeira velha. Remy sorriu.
- A Effie não acredita em fantasmas.
- Nem em cartomancia, em ler folhas de chá ou outros disparates desse género. - A voz dela era afectada e um pouco defensiva.
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- Aqui a minha miúda tem os pés assentes na terra.
- A tua miúda tem é bom senso - ripostou ela. - Dec, o facto é que tiveste sensações estranhas, ali completamente sozinho naquela enorme casa velha. E aposto que
também não andas a comer bem. Devias viver com o Remy por uns tempos, até te acostumares às coisas.
- Já que ela não quer. - Remy apontou com a cabeça na direcção de Effie.
- Vou viver contigo quando casarmos e não antes.
- Oh, chère. Maio ainda está tão longe. Sinto a tua falta quando não estás cá. - Tomou-lhe a mão e beijou-lha languidamente.
- Sabes que mais, Effie? Anda tu passar umas noites comigo. Estritamente platónico - disse Declan com um sorriso enquanto Remy semicerrava os olhos. - Aposto que
mudavas de opinião sobre fantasmas depois de uma noite ou duas.
- Lamento. Sou uma rapariga da cidade. Que fazes lá completamente sozinho, Declan, quando não estás a trabalhar?
- Leio. E, por falar nisso, preciso de ir à biblioteca, para ver se consigo desenterrar mais alguma coisa sobre a Mansão Manet. Também tenho feito algumas tentativas
no jardim. Dou passeios. Fui visitar Miss Odette.
- Já conheces Miss Odette? - perguntou Remy enquanto devorava o resto do jantar. - Ela é especial, não é?
- Gostei realmente dela. A verdade é que a casa me tem mantido tão ocupado que geralmente só paro por volta das dez da noite. Mas esta tarde já comprei uma mesa
e cadeiras, e outras coisas.
Era sempre um erro, pensou como se ralhasse consigo mesmo, deixarem-no entrar numa loja de antiguidades.
- Não queremos que te feches lá e te mates a trabalhar - concluiu Effie. - Espero que venhas à cidade e nos visites pelo menos uma vez por semana daqui em diante.
E, Remy, devias começar a ir lá aos sábados e dar uma mão ao Dec. Passas demasiado tempo sozinho - declarou enquanto afastava a cadeira da mesa. - É esse o teu problema.
Ora bem, todos prontos para a tarte?
Talvez Effie tivesse razão, pensou Declan enquanto procurava um lugar para estacionar. E, mesmo que não fosse esse o caso, era decididamente determinada. Tentaria
conviver um pouco mais. Podia vir à cidade uma ou duas vezes por semana para uma refeição a sério. E talvez levar Remy e Effie a comer fora, uma coisa informal.
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Podia passar um serão a ler outra coisa que não livros de pesquisa.
Mais, pensou. Ia forçar-se a atravessar o bloqueio mental que erigira em relação ao quarto do terceiro piso.
Teve de estacionar a mais de um quarteirão do Et Trois, mas, quando entrou e viu Lena ao balcão, concluiu que a caminhada valera a pena.
Nessa noite não conseguiu deitar mão a um banco sequer, mas conseguiu espremer-se por entre os clientes e reclamar um cantinho do balcão. A música era animada e
ruidosa, tal como a multidão.
Nessa noite estava uma loira atrás do balcão, para além da proprietária e do tipo das rastas. Andavam os três atarefados de um lado para o outro.
Lena lançou-lhe um breve olhar enquanto servia duas canecas de cerveja de pressão e um gin tónico.
- Corona?
- Acho melhor uma Coca-Cola.
Continuava com o mesmo bom aspecto de que ele se lembrava. Exactamente o mesmo bom aspecto. Nessa noite estava de azul: uma camisa bastante desabotoada e enrolada
até aos cotovelos. Os lábios continuavam vermelhos, mas tinha o cabelo apanhado dos lados com travessões de prata. Conseguia ver-lhe o brilho das argolas nas orelhas.
Colocou um copo alto diante dele.
- Está-se?
- Hum, creio que estou aqui mesmo.
- Não. - Ofereceu-lhe aquele riso rápido e vaporoso. - Não falas a Nova Orleães, cher! Quando digo "Está-se", estou a perguntar-te como tens passado.
- Ah! Bem, obrigado. Está-se?
- Isso mesmo. Eu também estou bem. Atarefada. Chama-me se precisares de mais alguma coisa.
Teve de se contentar em vê-la ocupar-se do seu terço do bar, a atender pedidos, trocar uma palavra ou outra, esgueirar-se em idas e voltas à cozinha sem nunca parecer
apressada.
Nunca pôs a hipótese de voltar para casa. Quando um banco ficou livre, instalou-se nele.
Era como ser observada por um enorme gato bem-parecido, pensou Lena. Firme, paciente, talvez um pouco perigoso. Declan embalou a sua Coca-Cola, pediu outra e continuou
ali sentado quando o local começou a esvaziar.
Ela surgiu novamente.
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- Estás à espera de alguma coisa, jeitoso?
- Sim. - Continuava de olhos fixos nos dela. - Estou à espera. Lena limpou o balcão húmido com o pano.
- Soube que fizeste uma visita à minha avó.
- Há um dia ou dois. És parecida com ela.
- É o que dizem. - Enfiou a ponta do pano no bolso de trás. - Foste lá para exibir o teu encanto ianque e ela me falar bem de ti?
- Tinha esperança de que isso fosse um benefício extra, mas não. Fui lá porque ela é minha vizinha. Estava à espera de uma vizinha velhota, uma mulher idosa, sozinha,
e pensei que ia gostar de saber que tinha alguém por perto para lhe dar uma mão. Mas depois de a conhecer percebi que não precisa da minha ajuda para nada.
- Foi simpático. - Lena suspirou. - Foste simpático. O facto é que a ela até lhe davam jeito umas costas fortes de vez em quando. Dupris, querido? - chamou sem tirar
os olhos de Declan. - Fechas isto por mim, está bem? Vou para casa.
Tirou uma pequena bolsa de detrás do balcão e colocou a comprida alça sobre o ombro.
- Posso acompanhar-te até casa, Lena?
- Sim, podes.
Afastou-se do balcão e sorriu quando ele lhe abriu a porta.
- E então, ouvi dizer que estás a trabalhar no duro na tua casa.
- Noite e dia - anuiu ele. - Comecei pela cozinha. Fiz grandes progressos. Não te tenho visto junto do tanque pelas manhãs.
- Ultimamente não. - A verdade é que se mantivera afastada deliberadamente. Tinha curiosidade em ver se ele voltaria ao bar. Avançou pelo passeio fora.
- Conheci o Rufus. Gosta de mim.
- A minha avó também.
- E tu?
- Oh, ambos gostam de mim.
Entrou por um portão alto de ferro quando ele se riu. Foram dar a um minúsculo pátio empedrado, com uma mesa de ferro solitária e duas cadeiras.
- Lena. - Pegou na mão dela.
- É aqui que moro. - Apontou para as escadas que davam para a varanda do segundo piso, a mesma que ele admirara na primeira noite.
- Oh! Bem, lá se vai a minha ideia de te seduzir com a minha inteligência e o meu charme na longa caminhada até casa. E se...
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- Não. - Bateu-lhe com um dedo no peito. - Não vais subir, esta noite não. Mas acho que vamos ultrapassar isto e ver no que dá.
Ergueu-se na ponta dos pés e inclinou-se. Deslizou a mão até à nuca dele e fê-lo aproximar a boca da sua.
Declan sentiu-se afundar, como se caminhasse sobre terra firme e de repente esta se transformasse em água. Uma queda longa e íngreme que despertou nele milhares
de sensações.
O sedoso deslizar dos lábios e da língua dela, o quente roçagar da sua pele, o aroma intoxicante do seu perfume.
Quando começou a afastá-la de si, Lena abrandou.
- És bom nisto - murmurou ela, pousando a ponta do dedo nos lábios dele. - Já tinha um pressentimento. Boa noite, cher.
- Espera um momento. - Não estava assim tão traumatizado que não conseguisse reagir. Agarrou-lhe na mão. - Foi um mero treino - disse-lhe, fazendo-a rodopiar com
estilo nos seus braços.
Sentiu a divertida curva dos lábios dela contra os seus e deixou-se afogar enquanto lhe percorria as costas e o cabelo com as mãos.
Ups! Foi o pensamento que atravessou a mente de Lena enquanto se abandonava. A boca dele era paciente, mas sentia-lhe a ânsia. As mãos eram gentis, mas agarravam-na
firmemente.
O sabor, vagamente familiar, começou a infiltrar-se no seu sangue.
Alguém abriu a porta do bar. A música jorrou cá para fora e depois voltou a desaparecer. Um carro passou acelerado na rua e uma nova explosão de música irrompeu
através das janelas abertas.
Sentia-se quente, um calor à flor da pele, quase febril. Enlaçou as mãos atrás do pescoço dele.
- És mesmo bom nisto - repetiu, virando a cabeça de modo a roçar a face na dele. Uma vez, outra vez. - Mas não vais subir esta noite. Tenho que pensar no teu caso.
- Está bem. Continuarei a aparecer.
- Continuam sempre a aparecer por causa da Lena. - Durante uns tempos, pensou enquanto se afastava. - Agora volta para casa, Declan.
- Vou esperar até entrares. Lena franziu as sobrancelhas.
- És mesmo único. - Declan fora carinhoso, e ela beijou-o na face antes de avançar para as escadas. Quando destrancou a porta e olhou para trás, ele ainda lá estava.
- Que tenhas bons sonhos, cher.
- Seria uma mudança agradável - murmurou ele quando ela fechou a porta atrás de si.
Capítulo Cinco
Mansão Manet, 2 de Janeiro de 1900
Eram mentiras! Só podiam ser mentiras frias e cruéis! Nunca acreditaria, nunca acreditaria que a sua querida Abby o abandonara. Que o abandonara a ele, que abandonara
a filha deles.
Lucian estava sentado a um canto da cama, encurralado naquele entorpecimento que se apoderara dele desde que voltara para casa, dois dias antes. Voltara e encontrara
a mansão num alvoroço. E a sua esposa desaparecera.
Com outro homem. Era o que diziam. Um amor antigo com quem se encontrava em segredo sempre que Lucian ia a Nova Orleães em negócios.
Mentiras!
Ele era o único homem. Tomara um anjo por esposa, levara uma virgem para o seu leito nupcial.
Algo acontecera a Abigail - abria e fechava as mãos sobre o broche-relógio que lhe oferecera quando a pedira em casamento. Acontecera-lhe algo de terrível.
Mas o quê? O que a teria forçado a abandonar a casa a meio da noite?
Um parente doente, pensou enquanto se levantava e dava voltas, voltas e mais voltas.
Mas sabia que não era esse o caso. Não cavalgara ele como um louco pelo pântano, para perguntar, para exigir saber, para suplicar à família, aos amigos dela, se
sabiam o que lhe acontecera?
As pessoas ainda continuavam à procura dela, nas estradas, no pântano, nos campos.
Mas os boatos e a coscuvilhice precipitavam-se já ao longo do rio.
A jovem esposa de Lucian Manet fugira com outro homem.
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E ele percebia os sussurros por detrás dos sussurros. De que é que estava à espera? Lixo cajun. O mais certo era a filha nem sequer ser dele.
Mentiras horríveis, maldosas!
A porta abriu-se. Josephine nem se dera ao incómodo de bater. A Mansão Manet era dela, agora e sempre. Entrava em qualquer divisão sempre que o desejava.
- Lucian. Ele voltou-se.
- Encontraram-na? - Ainda não tinha tirado a roupa que sujara durante a última busca, e a esperança cintilou por entre sujidade do seu rosto.
- Não. - Josephine fechou a porta atrás de si com um gesto hesitante. - Nem vão encontrar. Desapareceu, e neste momento está provavelmente a rir-se de ti com o amante.
Quase acreditava nas suas próprias palavras. E em breve seria essa a verdade, pensou.
- Ela não fugiu.
- És um tolo. Foste tolo em casar com ela, e continuas um tolo. - Avançou para o armoire e escancarou-o. - Não vês que faltam roupas dela? Não foi o que disse a
criada?
Tudo o que ele via era o vestido de baile azul com os debruns e rosetas de que ela tanto se orgulhava.
- A criada está enganada. - Mas a voz tremia-lhe.
- Tu é que estás enganado. E as jóias? - Josephine tirou a caixa de couro da prateleira e abriu a tampa. - Onde estão as pérolas que lhe deste no Natal? A pulseira
de diamantes que lhe compraste quando teve a criança?
- Alguém as roubou.
Com um som de desprezo, Josephine virou as jóias sobre a cama.
- Levou tudo o que brilhava mais. Uma rapariga da laia dela é só isso que vê. Enfeitiçou-te, fez com que envergonhasses a tua família, o teu nome, e agora desgraçou-nos
a todos.
- Não! - Fechou os olhos com força enquanto sentia o coração despedaçar-se. - Ela não me abandonava. E nunca abandonaria a Marie Rose.
- Por mais afeição que ela tivesse pela criança, duvido que ela ou o amante quisessem o fardo de um bebé. Como sabes tu, Lucian, que a criança é tua?
A fúria manchou-lhe as faces de vermelho.
- Como pode perguntar-me tal coisa? Como pôde viver com ela na mesma casa durante um ano e dizer uma coisa dessas?
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A dúvida estava plantada, pensou Josephine com frieza. Agora ajudá-la-ia a desabrochar.
- Precisamente porque vivi na mesma casa que ela, mas não estava cega pela luxúria nem enfeitiçada. Isto é tanto culpa tua como dela. Se tivesses satisfeito os teus
apetites como os outros homens, se lhe tivesses pago e dado algumas bugigangas, não teríamos agora mais este escândalo nas mãos.
- Se lhe tivesse pago, como a uma puta?! Como o Julian paga às mulheres dele? - Avançou, tão irado que as mãos lhe tremiam. - A minha esposa não é uma puta!
- Ela usou-te - disse Josephine num sussurro maldoso. - Tirou-te a dignidade e manchou a nossa. Entrou nesta casa como criada e saiu daqui com os despojos. A meio
da noite, como uma ladra, com a filha a chorar nas costas dela. - Agarrou-lhe os braços e abanou-o. - Tentaste mudar o que não podia ser mudado. Esperaste demasiado
dela. Nunca poderia ter sido senhora da Mansão Manet. - Eu sim. - Pelo menos teve o bom senso de o saber. E agora fugiu. Manter-nos-emos de cabeça erguida até as
coscuvilhices se calarem. Somos Manet e sobreviveremos a isto. - Voltou-se e dirigiu-se para a porta. - Espero que te ponhas apresentável e te juntes à família para
o jantar. As nossas vidas já foram suficientemente abaladas.
Já sozinho, Lucian sentou-se na cama e afundou-se em lágrimas com o broche-relógio na mão.
- Justiça te seja feita, rapaz. - Remy contemplava a cozinha com as mãos apoiadas na cintura. - Armaste aqui uma tremenda bagunça!
- Volta daqui a umas semanas - disse Declan da sala de jantar adjacente, onde montara aquilo a que chamava a sua carpintaria.
Effie levantou uma ponta do pano colocado sobre o chão.
- O soalho vai ficar bonito. É como uma tela em branco - disse enquanto olhava em volta da cozinha esventrada. - Teve que a limpar completamente antes de poder pintar
a imagem apropriada.
- Effie, deixa esse cretino e vem viver comigo.
- Pára de te meteres com a minha miúda.
Remy dirigiu-se para a entrada. Declan estava junto de uma serra eléctrica, com um cinto de ferramentas pendurado à cintura e um lápis de carpinteiro atrás da orelha.
Remy tinha a sensação de que o amigo não usava uma lâmina de barbear há três dias.
E diabos o levassem se aquele aspecto desgrenhado de homem dos sete ofícios não lhe ficava bem!
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- Queres que faça alguma coisa, ou ficamos aqui de pé a admirar o teu ar de machão?
- Dava-me jeito ter um ou dois ajudantes. - Passou a serra pela madeira com um zumbido de satisfação, provocando uma chuva de serradura. Depois desligou-a antes
de olhar para eles. - Estão mesmo dispostos a isso?
- Claro. - Remy lançou o braço em redor do ombro de Effie. - Trabalhamos a troco de cerveja.
Quatro horas mais tarde estavam sentados no alpendre da cozinha recém-pintada. Effie parecia minúscula, enfiada na velha camisa de ganga que Declan lhe dera como
roupa de trabalho, e tinha sardas de tinta no nariz. A cerveja estava fria e agradável, e os Foghat empreendiam uma lenta incursão melódica na aparelhagem de Declan.
A vida tinha momentos assim, perfeitos, pensava ele enquanto removia uma última lasca de madeira do polegar.
- Que arbusto é aquele a desabrochar ali? - Apontou para o caos dos canteiros.
- Camélias - disse-lhe Effie. - Estes canteiros estão um pecado, Dec.
- Eu sei. Tenho que tratar deles.
- Não podes tratar de tudo. Devias arranjar alguém para vir limpar isto.
- Big Frank e Little Frankie. - Remy bebeu uma longa golada de cerveja. - Eles tratavam-te disso. Trabalham bem.
- Negócio de família? - Sempre confiara nos negócios familiares.
- Pai e filho?
- Irmão e irmã.
- Um irmão e uma irmã, ambos chamados Frank?
- Sim. O Frank X., de Xavier, tem cá um destes egos! Deu o nome dele a ambos os filhos. Vou dar-te o número. Diz-lhes que fui eu que te disse para ligar.
- Vou-me lavar. - Effie olhava para as mãos manchadas de tinta.
- Importas-te que dê uma volta pela casa?
- Querida. - Declan tomou-lhe a mão e beijou-a. - Podes fazer o que quiseres.
- Ainda bem que a vi primeiro - comentou Remy quando Effie foi para dentro.
- Raios, podes crer!
- Cá para mim, andas de olho noutra mulher, da maneira como não tiras os olhos do bayou.
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- Só posso ter a Effie se te matar, por isso ando a cortejar Miss Odette como prova da nossa amizade.
- Sim, pois andas. - Remy riu-se e reclinou-se apoiado nos cotovelos. - A Lena sabe mexer com os homens, põe-nos a pensar em todo o tipo de coisas interessantes.
- Tu já tens miúda.
- Isso não quer dizer que o meu cérebro tenha deixado de funcionar. Mas não te preocupes, a Effie é tudo o que quero. - Soltou um longo suspiro de homem satisfeito.
- Além do mais, eu e a Lena demos as nossas voltas aqui há uns tempos.
- Que queres dizer com isso? - Declan pousou a cerveja e olhou fixamente para o amigo. - Tu e a Lena. Tu... e a Lena?
Remy piscou-lhe o olho.
- Num Verão quente e suado. Deve ter sido quase há quinze anos. Uii! - Inclinou-se para a frente para esfregar o peito. - Isto dói. Foi há cerca de... sim, eu tinha
dezassete anos, acabado de sair do liceu. Ela devia ter uns quinze. Passámos umas noites memoráveis no banco de trás do meu velho Chevy Camaro. - Reparou na expressão
amuada de Declan. - Ei, eu também a vi primeiro! Andei apanhado por aquela miúda durante uns bons seis meses. Pensava que ia morrer se ela não fosse minha. Sabes
como é quando se tem dezassete anos.
- Sim. Também sei como é quando se tem trinta e um. Remy riu-se.
- Bem, eu andava aluado por causa dela, sempre à volta dela, sempre atrás dela. Levava-a ao cinema e a dar longos passeios de carro. Levei-a ao meu baile de finalista.
Meu Deus, que estampa ela era! E então, numa noite estonteante de Junho, consegui finalmente despi-la no banco de trás do Camaro. Era a primeira vez dela. - Lançou
um olhar a Declan. - Sabes, dizem que uma mulher nunca esquece a primeira vez. Já tens o caminho aberto, cher.
- Acho que consigo fazer melhor do que um adolescente todo entesado. - Embora, admitiu, ela o fizesse sentir-se assim. - Que se passou entre vocês?
- Separámo-nos, é tudo. Fui para a faculdade, no Norte, e ela ficou aqui. A febre extinguiu-se e ficámos amigos. Somos amigos, Dec. É uma das minhas pessoas preferidas.
- Eu sei detectar um aviso. Queres as miúdas todas, Remy?
- Estava apenas a pensar que odiaria ver dois dos meus amigos magoarem-se um ao outro. Vocês os dois trazem muita bagagem, rapaz.
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- Eu sei guardar a minha.
- Talvez. Só Deus sabe como ela se tem esforçado por manter a dela trancada no sótão. A mãe... - Calou-se ao ouvir o grito de Effie.
Levantou-se de um salto, fazendo tombar a garrafa de cerveja, e lançou-se pela porta da cozinha à frente de Declan e a gritar o nome dela.
- Lá em cima! - Declan virou à esquerda e galgou as escadas da cozinha. - Está lá em cima.
- Remy! Remy, vem depressa!
Estava sentada no chão, abraçada a si própria, e lançou-se nos braços de Remy assim que ele se acocorou junto dela.
- Querida, que aconteceu? Magoaste-te?
- Não. Não. Vi... - Enterrou o rosto no ombro dele. - Ali. Em cima da cama.
Declan olhou pela porta entreaberta. A única cama que ali havia era a que ele tinha imaginado. Empurrou lentamente a porta até esta ficar completamente aberta. Viu
a camada de poeira no chão, que Effie agitara ao entrar. O sol brilhava através das janelas, incidindo apenas sobre a madeira e o papel de parede desbotado.
- Que viste, Effie? - perguntou Declan.
- Na cama. Uma mulher... o rosto dela. Estava morta!
- Querida. - Remy olhava fixamente para o quarto e afagava-lhe o cabelo. - Não há ali nada. Olha agora. Não há ali nada.
- Mas eu vi...
- Diz-me o que viste. - Declan ajoelhou-se ao lado dela. - Que viste ali?
- Vi... - Estremeceu e comprimiu os lábios numa linha firme. - Ajuda-me a levantar, Remy.
Embora o seu rosto estivesse branco como a cal, conseguiu levantar-se e dirigiu-se para a porta.
- Effie, querida, estás a tremer! Vamos para baixo.
- Não. Espera. - Tinha os olhos muito abertos e o coração continuava a bater-lhe violentamente enquanto perscrutava o quarto. - Não devo ter visto nada. É um quarto
vazio. Não passa de um quarto vazio. Deve ter sido imaginação minha...
- Uma cama de dossel? De tecido azul? Uma cómoda e uma escrivaninha com espelho. Um toucador e uma chaise longue azul. Nichos da iluminação a gás, velas sobre a
lareira e um retrato emoldurado.
- Como sabes o que eu vi?
- Porque também vi o mesmo, no primeiro dia em que aqui estive. E senti um cheiro a lírios.
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- Lírios brancos numa jarra alta - continuou Effie, e uma lágrima escorreu-lhe pela face. - Achei estranho, e até adorável, que tivesses posto flores aqui. Mas depois
pensei, apenas por um instante: como é que ele decorou este quarto com tanto primor e porque é que não disse nada? E então entrei e vi-a na cama. Desculpem. Preciso
mesmo de apanhar ar.
Sem dizer palavra, Remy abraçou-a e levantou-a no ar.
- Meu herói! - murmurou ela enquanto ele a levava para as escadas.
- Pregaste-me um grande susto, chère! Declan, vai buscar água para a minha miúda.
Declan olhou fixamente para o quarto durante um longo momento. Depois seguiu-os para o piso inferior.
Foi buscar um copo de água e levou-o para a varanda onde Remy se sentara com Effie ao colo.
- Que pensas agora dos fantasmas?
Ela bebeu a água enquanto observava Declan por cima da borda do copo.
- Foi imaginação minha.
- Um roupão branco em cima da chaise longue. Um conjunto de escovas de prata, uma espécie de broche de ouro e esmalte.
- Um broche-relógio - disse ela baixinho. Soltou um arquejo trémulo. - Não consigo explicar.
- Que me sabes dizer acerca da mulher?
- Tinha o rosto todo pisado e a sangrar. Oh, Remy!
- Pronto, pronto. - Afagou-lhe o cabelo e abraçou-a com força. - Não penses mais nisso. Deixa-a em paz, Declan.
- Não, está tudo bem. - Effie respirou fundo e pousou a cabeça no ombro de Remy. Cruzou o olhar com o de Declan e manteve-o fixo nele. - Mas é tão estranho, tão
horrível. Acho que era nova, mas não tenho a certeza. Cabelo escuro e abundante, encaracolado. A roupa, o vestido de noite, estava rasgado. Tinha equimoses horríveis
no pescoço, como... meu Deus!, como se tivesse sido estrangulada. Percebi logo que estava morta. Gritei e caí para trás. Senti as pernas fraquejar.
- Tenho de descobrir quem era - declarou Declan. - Deve haver maneira. Um membro da família, uma criada, uma hóspede. Se alguma mulher nova morreu violentamente
nesta casa, deve haver um registo algures.
- Posso fazer alguma investigação. - Effie pousou o copo e conseguiu esboçar um sorriso. - Afinal de contas, é o meu trabalho.
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- Se houve um assassínio, estou em crer que com o passar dos anos se teriam ouvido histórias. - Remy abanou a cabeça. - E a verdade é que nunca ouvi nada. Querida,
vou levar-te a casa.
- Talvez seja melhor. - Effie estendeu a mão e tocou no braço de Declan. - Anda connosco. Não sei se deves ficar aqui.
- Tenho de ficar. Quero ficar.
Precisava de ficar, pensou quando ficou sozinho e o forte ruído da pistola de pregos ecoava através da sala de jantar. Não estava apenas a restaurar a casa, estava
a torná-la sua. Se uma rapariga assassinada fazia parte da casa, então também ela lhe pertencia.
Queria saber o nome dela, a sua história. De onde viera? Porque morrera? Talvez ele estivesse destinado a habitar aquela casa para descobrir esses enigmas.
Se aquelas imagens e sentimentos tinham afastado outros, a ele só o compeliam a fixar-se ainda mais.
Conseguia viver com fantasmas, pensou enquanto passava a mão pela parte lateral do primeiro armário completo. Mas só descansaria quando os conhecesse.
Quando deu o dia por findo e se foi deitar, deixou as luzes acesas.
Durante os dias seguintes, esteve demasiado ocupado para pensar em fantasmas ou em sonambulismo, ou até naquelas noitadas que prometera a si próprio. O electricista
e o canalizador que contratara trabalhavam arduamente com as suas equipas. A casa estava demasiado cheia de ruído e pessoas para os fantasmas.
Frank e Frankie, tão parecidos como os respectivos nomes, de ombros robustos e cabelo cor de lama, arrastavam-se pelos canteiros e iam emitindo ruídos que tanto
podiam ser de aprovação como de descontentamento. Little Frankie era aparentemente o cérebro das operações e, após uma hora de inspecção, forneceu a Declan um orçamento
para eliminar a vegetação rasteira e as ervas daninhas. Mesmo perguntando-se se a intenção deles seria reformarem-se à custa daquele trabalho, decidiu confiar em
Remy e contratá-los.
Vieram armados com pás, picaretas e enormes tesouras de poda. Declan estava na sala de jantar a trabalhar nos armários e conseguia ouvir o indolente sobe e desce
das suas vozes e a ocasional pancada e tropeção.
Quando olhou lá para fora, reparou que o emaranhado começava a desaparecer.
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O estucador enviado por Miss Odette era um negro magro como uma vara que dava pelo nome de Tibald e cujo bisavô, ao que contaram a Declan, trabalhara outrora como
jornaleiro para os Manet.
Inspeccionaram juntos a casa, com Tibald a escrevinhar num minúsculo livrinho de apontamentos com os cantos dobrados. Quando chegaram ao salão de baile, o negro
olhou para o tecto com uma expressão sonhadora.
- Penso sempre que meti na cabeça uma imagem que não existe - disse. - Acho que nunca me vou habituar a ver este tipo de trabalho.
- Já aqui esteve antes?
- Já. Os Rudicker pediram-me um orçamento para as obras. Devem ter sido as pessoas a quem o senhor comprou a Mansão. Tinham ideias grandiosas e refinadas, esses
Rudicker. Mas nunca fizeram grande coisa. De qualquer modo, iam contratar alguém de Savannah. Foi o que ouvi dizer.
- Porquê?
Tibald continuou a sorrir e a olhar para o tecto.
- Tinham ideias grandiosas e refinadas e não achavam que as gentes locais fossem capazes de as executar. Na minha opinião, deviam achar que quanto mais dinheiro
gastassem, maior seria o brilho, se é que percebe o que quero dizer.
- Sim, percebo. Do modo como eu vejo as coisas, quando se contrata gente local, as pessoas empenham-se mais no trabalho. Consegue fazer este tipo de reparação?
- Reparei o estuque em Harvest House, na River Road. Tenho fotografias na carrinha, como referência. Talvez queira dar-lhes uma vista de olhos, ou mesmo ir lá ver
o trabalho. Fazem visitas guiadas, e agora até lá organizam festas chiques. Fiz alguns trabalhos em Nova Orleães, Baton Rouge e Metairie. Posso dar-lhe nomes.
- Vamos dar uma olhada às fotografias.
Os instantâneos do antes e do depois de várias cornijas, paredes e medalhões mostraram a Declan que o seu homem era um artista. Para formalizar o contrato solicitou
um orçamento, e Tibald estendeu-lhe a mão depois de prometer apresentar-lho por escrito lá para o fim da semana.
- Confesso que gostava de restaurar aquele salão de baile. - Tibald olhou novamente para a casa. - Está a fazer alguma reparação no terceiro piso?
- Hei-de lá chegar.
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- Talvez queira falar com a minha irmã, a Lucy. Ela faz limpezas.
- Ainda estou longe de precisar de uma governanta.
Tibald riu-se e tirou do bolso um pacote de pastilhas elásticas Big Red.
- Não, não me refiro a esse tipo de limpeza. - Ofereceu uma a Declan, tirou outra para si, dobrou-a ao meio e enfiou-a na boca. - Limpeza de espíritos. Você tem
ali espíritos fortes. - Mascava contemplativamente. - Sobretudo no terceiro piso.
- Como sabe?
- Sinto-os a respirarem-me no pescoço. Você não? Os Rudicker perderam dois trabalhadores quando andavam a fazer obras na casa. Fugiram e nem olharam para trás. Nunca
voltaram. Pode ter sido uma das razões por que foram buscar gente longe daqui. - Encolheu os ombros e continuou a mascar a pastilha elástica. - Pode ter sido a razão
por que nunca chegaram a pôr em prática aquelas ideias grandiosas e refinadas.
- Sabe o que aconteceu no terceiro piso?
- Não. Nem conheço ninguém que saiba. Conheço algumas pessoas que não iriam lá acima por mais que lhes pagasse. Se precisar de algum trabalho meu no terceiro piso,
chame primeiro a minha irmã Lucy.
Voltaram-se ambos ao ouvirem um carro que se aproximava.
- É o carro de Miss Lena, e Miss Odette vem com ela. - O sorriso de Tibald rasgou-se ainda mais quando o antigo MG parou junto da sua carrinha. - Boa tarde, minhas
senhoras. - Tibald aproximou-se do lado do passageiro para abrir a porta a Odette. - Está-se?
- Oh, bastante bem, Tibald. Como vai essa tua família?
- Não tenho razões de queixa.
Declan abriu a porta a Lena. As calças de ganga assentavam-lhe admiravelmente, acompanhadas por uma camisa da cor da turquesa polida.
- A minha avó achou que era altura de fazer uma visita. - Observou o caminho e reparou no número de carrinhas. - Que fizeste, cher! Contrataste um exército?
- Apenas um batalhão. - Ela cheirava a jasmim, pensou. Cheirava à noite. Tinha que se concentrar nos bons modos, ou ainda acabava por engolir a pastilha elástica.
- Posso fazer-vos uma visita guiada?
- Mmm. Lá chegaremos. Tibald, manda cumprimentos meus à Mazie, sim?
- Serão entregues. Tenho que ir. Hei-de trazer-lhe esse orçamento, Mr. Fitzgerald.
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- Chame-me Declan. Fico à espera. Miss Odette. - Declan tomou-lhe a mão enquanto Tibald se enfiava na carrinha. Odette trazia um vestido de algodão da cor da cabaça
madura e uma camisola verde-escura para se proteger do frio de meados do Inverno. Nesse dia as meias combinavam com o resto.
Cheirava a alfazema, e os seus gestos faziam tilintar as jóias e as braceletes. Tudo nela transmitia a Declan uma sensação de bem-estar.
- Bem-vindas à Mansão Manet, tal como está.
Odette piscou o olho a Lena quando Declan lhe beijou a mão.
- Daremos uma vista de olhos quando acabarmos de ver aqui fora. Ouvi dizer que contratou o Big Frank e a Little Frankie - disse, apontando com a cabeça para a carrinha
deles. - Como se têm saído?
- Parecem dar conta do recado. Não sei como. - Observou os canteiros irregulares da frente enquanto mantinha os polegares enfiados nas presilhas. - Realmente, nunca
os vejo a fazer nada, mas desaparecem carradas de vegetação rasteira num piscar de olhos. Querem dar uma volta pelo terreno?
- Eu gostava. Lena, querida, traz da mala da carrinha as garrafas de espíritos. Vamos pendurá-las naqueles carvalhos, para começar.
- Garrafas de espíritos?
- Para afastar os espíritos malignos. - Lena tirou da mala umas garrafas cheias com água até meio.
- Devia preocupar-me com os espíritos malignos? - perguntou Declan.
- Uma precauçãozinha. - Odette pegou em duas garrafas e dirigiu-se para as árvores.
- Garrafas de espíritos - declarou Declan, pegando numa. Vira-as penduradas no exterior da casa do bayou. - Mas como funcionam exactamente?
- É um velho truque vudu - disse-lhe Lena. - Fazem um som estridente que assusta e afasta os espíritos malignos.
Declan bateu duas uma contra a outra. O som era bastante agradável, pensou, e não particularmente assustador.
- Acreditas no vudu?
- Acredito na tal precauçãozinha. - A sua figura pequena e bem torneada foi juntar-se à avó.
Quer fosse vudu ou apenas velhas garrafas de vidro, gostou de as ver penduradas nas suas árvores. E quando voltou a bater com uma garrafa na outra, gostou do som
que emitiam.
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Demoraram quase uma hora a percorrer o caminho em redor da casa até entrarem, pois houve conversas com os jardineiros, perguntas sobre a família deles, especulações
sobre o tempo, discussões sobre o jardim.
Quando finalmente conseguiu levá-las para a cozinha, Odette apoiou as mãos nas ancas e fez que sim com a cabeça.
- É uma boa cor, como uma bela crosta de bolo cozido. A maior parte dos homens não conhece senão o branco. Realça estes belos soalhos de pinho.
- Devo ter os armários prontos na próxima semana. - Apontou para a sala de jantar. - Também estou a usar pinho ali. Com vidraças.
Odette entrou na sala de lábios cerrados e passou a mão por um dos armários.
- Bom trabalho, Declan. Você tem jeito.
- Obrigado.
- E isto fá-lo feliz.
- É verdade. Querem ver a salinha? Coloquei lá uma mesa. Vamos tomar chá. - Ergueu o olhar quando algo pesado embateu no soalho do piso de cima. - Desculpem o barulho.
- O trabalho raramente é uma actividade calma. Eu e a Lena preferimos vaguear por aí, se não se importa. Nós encontramos a salinha.
- Não há que enganar. É a única divisão com mesa.
- É um jovem muito simpático - comentou Odette ao sair com Lena.
- Pois é.
- E bem-parecido.
- Muito.
- Anda de olho em ti, chère. Lena riu-se.
- Pois anda.
- Que vais fazer quanto a isso?
- Ainda estou a pensar. Meu Deus, que casa! - Passou as mãos numa parede. - Entradas suficientemente largas para caber um carro. Até dá vontade de chorar ver como
tem sido deixada ao abandono.
- Ao abandono? Não sei. Parece-me é que a casa se tem limitado a esperar. Isto é mesmo de homem - disse quando entraram na salinha. - Viver com uma mesa e duas cadeiras.
Aposto que não preparou uma única refeição decente desde que aqui chegou.
Lena franziu o sobrolho.
- Avó, não me vais fazer ter pena dele a ponto de lhe preparar o jantar. - Divertida, Lena aproximou-se da janela. - Que beleza de
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vista. Imagina como seria estar aqui à janela quando a casa estava na sua glória. Cavalos a surgirem da álea, aqueles velhos carros engraçados a roncarem pelo caminho
acima.
- Ficará novamente bela. Mas precisa de uma mulher, tal como aquele rapaz.
Lena brincou com a pequena chave que trazia pendurada ao pescoço.
- Eu disse que ainda estou a pensar. Aqui já se sente o frio - acrescentou. - Precisa de uma lareira acesa.
- Vou já acendê-la - disse Declan, entrando com um jarro de chá demasiado forte e copos de plástico.
Capítulo Seis
Estava a ser um bocado bem passado, pensou Declan. E isso sem contar com Remy e Effie, que haviam sido a sua primeira companhia.
Gostava da presença feminina na sua salinha, com a lareira a crepitar alegremente e o Sol do fim da tarde a debater-se através da poeira das janelas.
- Hei-de voltar - disse-lhe Odette -, para ver a sua cozinha quando estiver terminada.
- Espero que volte muitas vezes. Teria muito gosto em lhe mostrar o resto da casa.
- Mostre à Lena. Quanto a mim, volto para casa a pé.
- Eu levo-te, avó.
- Não, fica mais um pouco. - Por casual que fosse o seu tom, os olhos exibiam uma expressão matreira. - Apetece-me caminhar, e depois já vão sendo horas da minha
sesta. - Quando se levantou, Declan ofereceu-lhe a mão. E fê-la sorrir. - Tem bons modos, você. Visite-me quando não estiver ocupado. Preparo-lhe sauce potato, batatas
guisadas, antes que fique tão magrinho que as roupas lhe caiam pelo corpo abaixo.
- Já tenho os telefones a funcionar. - Tirou do bolso um pedaço de papel e anotou o número com um lápis que tinha no bolso da camisa. - Ligue se precisar de alguma
coisa.
- Sim, você tem realmente bons modos. - Inclinou o rosto, num convite a que a beijasse. Quando a acompanhou à porta, Odette fez-lhe sinal para se aproximar. - Tem
a minha aprovação para cortejar a minha Lena. Sei que será carinhoso com ela, o que não acontece com a maior parte dos homens.
- Isso é a sua maneira de me dizer que não tenho qualquer hipótese consigo, Miss Odette?
Ela riu-se e afagou-lhe o rosto.
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- Oh! Se eu fosse trinta anos mais nova, ela teria uma adversária à altura. Vá então, e mostre-lhe a casa.
Viu-a passar pelas árvores onde baloiçavam as garrafas dos espíritos.
- Gostas da minha avó - disse Lena da entrada da salinha.
- Estou completamente apaixonado. É fantástica. Ouve, é uma grande caminhada até casa dela. Devias...
- Se lhe apetece caminhar, que caminhe. Ninguém consegue impedi-la de fazer o que quer. - Aproximou-se da porta da frente e colocou-se ao lado dele. - Olha só, o
Rufus veio para a acompanhar até casa. Juro-te, aquele cão tem um radar sintonizado nela.
- Eu tinha esperança de que ele aparecesse por aqui. - Virou-se para Lena. - Que te trouxesse cá. Esta semana houve duas noites em que estive para ir a tua casa,
mas dissuadi-me.
- Porquê?
- Existe a persistência e existe o assédio. - Estendeu a mão e enrolou o dedo no cabelo dela. - Achei que, se conseguisse esperar até cá vires, não pensarias em
pedir uma providência cautelar contra mim.
- Se quero que um homem se vá embora, digo-lhe para se ir embora.
- Os homens fazem sempre o que lhes dizes?
Os lábios dela curvaram-se naquele sorriso felino que lhe dava vontade de beijar o pequeno sinal negro.
- Geralmente. Vais mostrar-me o teu casarão cher?
- Sim. - Levantou-lhe o queixo e beijou-a. - Claro. A propósito... - Levou-a pela mão enquanto se dirigiam para as escadas. - Miss Odette deu-me permissão para te
cortejar.
- Parece-me é que precisas da minha permissão e não da dela.
- É minha intenção seduzir-te de modo a ultrapassarmos esse aspecto. As escadas são fabulosas, não são?
- São. - Passou a ponta avermelhada do dedo pelo corrimão. - A tua casa é grandiosa, Declan. E, daquilo que vi, percebo que afinal não és nenhum advogado rico.
- Ex-advogado. E não estou a perceber-te.
- Tens o suficiente para restaurar esta casa, para a manter... pretendes mantê-la realmente?
- Sim, pretendo.
- Então não és rico. És mais do que rico. És abastado. É isso?
- Bem, o dinheiro não é problema. E também não traz felicidade. Lena deteve-se no patamar e riu-se.
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- Oh, cher, se é isso que pensas, é porque não sabes onde comprar.
- Se quiseres ajudar-me a gastar algum...
- Talvez. - Olhou por cima do corrimão para o grandioso vestíbulo. - Vais precisar de mobília. Conheço uns sítios.
- Tens algum primo no ramo?
- Um ou dois. - Franziu as sobrancelhas ao ouvir o ruído e os palavrões vindos do fundo do longo corredor.
- O canalizador - explicou Declan. - Dei-lhe instruções para começar as obras na casa de banho principal. Era... bem, tanto abacate era uma vergonha. Se souberes
de alguém que queira apliques de casa de banho verdadeiramente feios... avisa-me.
Começou a afastá-la da porta da divisão que agora encarava como o seu quarto fantasma. Mas Lena rodou a maçaneta e abriu a porta. Declan ficou de respiração suspensa
enquanto ela entrava.
- Está frio aqui. - Abraçou-se a si própria, mas não parava de tremer. - Devias aproveitar o papel de parede. É um padrão bonito. Violetas e botões de rosa.
Estava a meio caminho das portas da varanda quando se deteve e os estremecimentos se transformaram em calafrios. O sentimento que se apossou dela era de aflição.
- É um quarto triste, não é? Precisa de luz. E vida.
- Há um fantasma. Uma mulher. Acho que a mataram aqui.
- Achas? - Virou-se para ele. Tinha o rosto um pouco pálido e os olhos muito abertos. - Não dá a sensação de... violência. Apenas tristeza. Vazio e tristeza.
A sua voz engrossara. Instintivamente, Declan entrou e aproximou-se dela.
- Sentes-te bem?
- Tenho apenas frio.
Declan estendeu a mão para lhe esfregar os braços, mas sentiu um choque ao contacto.
Lena desviou-se, soltando uma espécie de gargalhada.
- Acho que não era a isto que a minha avó se referia quando disse para me cortejares, cher.
- É este quarto. Há qualquer coisa estranha neste quarto.
- Os fantasmas não me preocupam. Também não devias deixar que te preocupassem. Não te podem magoar. - Mas encaminhou-se para a porta e teve de reprimir a vontade
de sair precipitadamente.
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Deambulou pelos outros quartos, mas não sentiu aquela aflição, o medo e a solidão opressiva que a tinham impelido para fora do primeiro.
Sorriu junto à porta do quarto de Declan.
- Bem, aqui já não é tão cru. Tens gosto, cher. - Enfiou a cabeça na casa de banho, onde os operários trabalhavam e praguejavam ruidosamente. - O mesmo já não posso
dizer de quem construiu esta casa de banho. És tu, Tripadoe? A tua mãe sabe que essa tua boca é a mesma com que comes?
Apoiou-se na ombreira e conversou uns minutos com os canalizadores. Declan manteve-se afastado, simplesmente a olhá-la.
Que patético, disse para si próprio, aquela paixoneta infantil que desenvolvera por Lena.
Quando ela olhou para ele por cima do ombro, Declan sentiu o abalo até às solas dos pés.
- E se te mostrasse o salão de baile? Será o cenário perfeito.
- Sim, gostava de ver. - Mas, quando se preparavam para descer, Lena apontou para as escadas. - O que há ali em cima?
- Mais quartos vazios. Arrumos e os quartos da criadagem.
- Vamos dar uma vista de olhos.
- Não tem nada de especial. - Tentou agarrar-lhe a mão, mas Lena já começara a subir.
- Daqui tem-se acesso ao miradouro? - perguntou ela. - Costumava olhar para lá e imaginar-me lá em cima a ver a vista.
- É mais fácil do... Não!
A ordem estridente fez com que a mão dela se petrificasse na maçaneta de latão baço do quarto das crianças.
- Que foi? Tens aqui dentro alguma mulher acorrentada? Os teus segredos estão todos aqui fechados, cher!
- Não, é só que... - Sentia o pânico a apoderar-se dele, a queimar-lhe o fundo da garganta. - Há algo de errado nesse quarto.
- Há algo de errado em quase todos - ripostou ela abrindo a porta.
Declan tinha razão. Atingiu-a mal entrou, a mesma sensação latejante de sofrimento, perda e solidão. Viu paredes, chão e janelas, poeira e abandono. E sentiu que
o seu coração se dilacerava.
Sentiu o frio. Sentiu-o soprar sobre a sua pele como respiração, deslizar como dedos pelo seu cabelo.
- É o centro - declarou ela, embora não tivesse qualquer certeza sobre o que dissera, ou de como o soubera. - Consegues sentir? Consegues?
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Declan vacilou na entrada. Oprimido, fincou os dedos na ombreira da porta. Aquele medo era irracional, trespassava-lhe os ossos como uma lâmina. A casa era sua,
pensou. Era sua, raios! Deu um passo, depois outro.
O quarto rodopiava. Ouviu um grito, viu o rosto de Lena, o pânico nele estampado. Julgou ver a boca dela mexer-se e formar o seu nome. Depois sentiu a visão turvar-se,
pontos brancos que dançavam no meio da bruma.
- Declan. Pronto, cher. Pronto, querido.
Alguém que lhe afagava o cabelo e o rosto. Lábios a roçar nos seus. Abriu os olhos mas era tudo indistinto. Fechou-os novamente.
- Não, não faças isso! - Agora batia-lhe nas faces com os dedos ligeiramente trémulos. Declan cedera como uma árvore perante um machado, lívido, com os olhos revirados.
- Abre os olhos!
- Que raio aconteceu?
- Desmaiaste.
Abriu os olhos e fixou-os no rosto dela. A humilhação debatia-se com uma ligeira náusea.
- Desculpa, mas os homens não desmaiam. Acontece, por vezes, que desfalecemos ou perdemos os sentidos. Mas não desmaiamos.
O suspiro de Lena foi um estremeção de alívio. Declan podia ter partido a cabeça, pensou ela, mas recuperara a consciência e o humor.
- Peço desculpa. O senhor desfaleceu. Sem mais nem menos. Caíste no chão com tanta força que a tua cabeça até ressaltou. - Debruçou-se novamente e roçou os lábios
pelo arranhão na testa dele. - Vais ficar com uma equimose, bebé. Não consegui agarrar-te. E se tivesse conseguido, tínhamos caído os dois. - Fê-lo voltar-se de
lado e afagou-lhe as faces pálidas. - Costumas desfalecer com frequência?
- Geralmente tenho que beber até não me lembrar de nada, coisa que não faço desde a faculdade. Olha, e correndo o risco de parecer ridículo outra vez numa questão
de minutos, tenho mesmo que sair deste maldito quarto.
- Está bem. Consegues levantar-te? Acho que não consigo erguer-te, cher. És muito pesado.
- Consigo. - Pôs-se de joelhos e tentou recuperar o fôlego, mas sentia a respiração novamente presa, como se tivesse um enorme peso sobre o peito e o coração se
debatesse para recuperar o ritmo. Levantou-se cambaleante e tombou.
Lena envolveu-lhe a cintura com um braço e tentou suportar o peso dele.
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- Um passo, dois passos. Vamos para baixo para te deitares.
- Está tudo bem. Vou ficar bem. - Sentia os ouvidos a zumbir. Saiu do quarto e foi sentar-se nas escadas com a cabeça entre os joelhos. - Credo!
- Pronto, meu querido. - Afagou-lhe o cabelo.
- Fecha a porta. Fecha-a.
Lena voltou apressadamente atrás e fechou-a com força.
- Tenta recuperar o fôlego, depois vamos para baixo e para a cama.
- Ando à espera de te ouvir dizer isso desde a primeira vez que te vi.
O aperto que ela sentia no estômago atenuou-se um pouco.
- Já estás a recuperar, não estás?
- Já estou melhor. - Já conseguia respirar e a náusea esmorecia. - Agora só preciso de bater em alguém ou abater algum mamífero para recuperar a minha masculinidade.
- Deixa-me ver a tua cara. - Puxou-lhe a cabeça para trás e observou-o. - Ainda estás um bocado pálido, mas já estás a ganhar cor. Aposto que a minha avó tem razão.
Tu não comes. O que é que comeste hoje, cher?
- Cereais, o pequeno-almoço dos campeões. - Conseguiu esboçar um ténue sorriso. - Mas parece que não foi suficiente.
- Vou preparar-te uma sanduíche.
- A sério? - Sentiu-se percorrido pelo simples prazer da ideia. - Vais cozinhar para mim?
- Preparar uma sanduíche não é cozinhar.
- No meu mundo é, Lena, aquele quarto...
- Falamos disso depois de meteres qualquer coisa no estômago. A escolha não era muita. Uma olhadela ao frigorífico em segunda mão que actualmente embelezava a sala
de jantar fez com que Lena deitasse a Declan um longo olhar de piedade. - Que idade tens? Doze?
- Sou homem - respondeu ele com um encolher de ombros. - Os hábitos de alimentação dos homens nunca morrem. Tenho manteiga de amendoim para acompanhar aquela geleia.
- Olhou em volta da cozinha. - Algures.
Tinha também uma fatia solitária de fiambre, dois ovos, um pouco de queijo de aspecto anémico e meia embalagem de salada prepreparada.
- Parece que afinal vou ter que cozinhar para ti. Onde está o fogão?
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- Aqui. - Bateu com os dedos no tampo de um microondas.
- Bem, vamos ter que improvisar. Taça? Faca? Garfo?
- Ah... - Vasculhou a caixa dos seus actuais utensílios de cozinha e encontrou uns talheres de plástico.
- Querido, isto é mesmo triste. Senta-te, que a Lena vai cuidar de ti. Mas só desta vez - acrescentou.
Declan sentou-se num cavalete e ficou a vê-la bater os ovos, desfiar o fiambre e o queijo e polvilhar tudo com o conteúdo da embalagem de salada.
- Tens condimentos, cher? Alguma especiaria?
- Tenho sal e pimenta. Já é alguma coisa - murmurou ao ouvi-la suspirar. - Os exploradores descobriram continentes inteiros por causa do sal.
- Cresceste ao lado de um cozinheiro, não foi?
- Sim. E depois?
- Que fizeste quando foste morar sozinho?
- Comida para fora, entregas ao domicílio e microondas. Com essas três coisas, nenhum homem precisa de passar fome.
Enfiou a taça no microondas e programou-o.
- Já que vais viver aqui, era melhor contratares um cozinheiro.
- Quanto cobras?
- Tens piada, Declan. - O seu rosto apresentava agora uma boa cor, os olhos estavam claros. O nó que sentia no estômago desde que ele desmaiara começava a desatar-se.
- Como é que ainda não tens uma mulher?
- Já tive uma, mas no fundo não a queria.
- Ai sim? - Abriu o microondas quando este emitiu o sinal sonoro, mexeu a omeleta e programou-o novamente. - Que aconteceu?
- O Remy não te contou?
- Ele não me conta tudo.
- Estive noivo. Cancelei tudo três semanas antes do casamento, e isso, sabes, faz de mim um canalha. Em Boston, um monte de pessoas continua a amaldiçoar o meu nome.
Declan estava a tentar fazer daquilo numa piada, pensou Lena, mas não conseguia.
- Foi por isso que partiste?
- Não, foi por isso que compreendi que podia partir.
- Não a amavas.
- Não, não a amava.
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- Ficas triste quando dizes isso. - Retirou a taça, pegou num garfo de plástico e estendeu-lho. Notou que os olhos dele se revelavam novamente tempestuosos. Com
arrependimento. - Ela amava-te?
- Não. Ficávamos bem juntos. Estávamos habituados um ao outro. Ela julgava que queríamos as mesmas coisas.
- Mas tu não.
- Aliás, nunca queríamos. E quanto mais nos aproximávamos do Dia D, mais via a minha vida simplesmente a... a estreitar-se, até ficar enfiado num buraco minúsculo.
Sem espaço, sem ar. Sem luz. Compreendi que casar com a Jessica me fazia sentir o mesmo que quando exercia advocacia, e que se o resto da minha vida ia ser assim,
mais valia atirar-me de uma ponte. Ou então sair daquele buraco enquanto era tempo.
Lena afastou-lhe o cabelo da testa.
- Foi mais corajoso sair do que atirares-te.
- Talvez. Isto está bom - disse enquanto devorava a omeleta. - Por que é que não tens homem?
Ela empertigou a cabeça.
- Quem diz que não tenho?
Agarrou-lhe na mão antes que ela pudesse voltar-se.
- Preciso de saber se tens.
Lena olhou para a mão dele, depois para o rosto.
- E porquê?
- Porque não paro de pensar em ti. Não consigo tirar-te da cabeça, de dentro de mim. Porque, sempre que te vejo, o coração começa a saltar-me no peito.
- Também és bom nisso... dizer coisas que mexem com uma mulher. - Se fosse assim tão simples, apenas uma questão de mexer com ela, Lena podia ter-se enfiado entre
aquelas pernas compridas e satisfeito os dois. Mas ele não era um homem simples, pensou.
Estar com ele não seria simples.
- Come a omeleta - disse ela, largando-lhe a mão. - Porque é que começaste pela cozinha se comes manteiga de amendoim e não possuis um único prato digno desse nome?
- Tenho pratos, mas não do género dos que se podem lavar. A cozinha é o coração de uma casa. A casa onde cresci... aquela enorme casa maravilhosa com quartos enormes
e maravilhosos. Tínhamos um cozinheiro, mas acabávamos sempre na cozinha quando havia uma crise ou qualquer celebração, ou simplesmente quando havia alguma coisa
para discutir. Acho que quero aqui algo do género.
- Isso é bom. - Apoiou-se contra um armário e observou-o. - Queres fazer sexo comigo, cher?
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Sentiu um sobressalto no coração, mas nada que o impedisse de saltar agilmente do cavalete.
- Claro. Deixa-me só pôr o canalizador fora daqui. - Adorou a maneira como ela se riu. - Oh, não te referias a este preciso momento. Foi, digamos, como uma daquelas
questões de verdadeiro ou falso. Deixa-me ver. - Verificou a pulsação. - Sim, ainda continuo vivo, portanto a resposta é verdadeiro.
Lena abanou a cabeça, tirou-lhe a taça vazia das mãos e atirou-a para dentro da caixa que ele utilizava para o lixo.
- És um homem interessante, Declan. E gosto de ti.
- Hã-hã. Espera um minuto. - Olhou em redor e pegou numa chave de parafusos pousada sobre uma prancha. - Toma - disse, passando-lha para as mãos.
- Para que é isto?
- Para ma cravares no coração quando me disseres que queres que sejamos apenas amigos.
- Aposto que a Jessica ainda esperneia por te ter deixado escapar. Realmente, quero que sejamos amigos. - Revirou a chave de parafusos na mão e pousou-a. - Ainda
não sei se quero que sejamos apenas amigos. Tenho que pensar nisso.
- Está bem. - Agarrou-lhe nos braços e correu as mãos até aos ombros dela. - Pensa nisso.
Lena não tentou afastar-se. Pelo contrário, ergueu o rosto ao encontro dos lábios dele. Gostava do deslizar fácil do quente para o tórrido, do percurso fluido oferecido
por um homem sem pressas.
Ela compreendia o desejo. O do homem. O seu. E sabia que alguns desses desejos só podiam ser saciados em rápidos e tórridos acasalamentos na escuridão.
De vez em quando saciava os seus dessa maneira.
Mas ali havia algo mais, havia um anseio. E os anseios, mesmo satisfeitos, podiam dar azo a uma dor que o desejo nunca causava.
No entanto, não conseguiu evitar levar as mãos ao rosto dele e deixar o beijo prolongar-se.
Dentro dela, bem fundo, um suspiro.
- Angelina.
Era Declan quem dizia o nome dela, não mais que um murmúrio enquanto mudava o ângulo do beijo. Enquanto o aprofundava. Milhares de avisos ecoaram no cérebro de Lena
e foram ignorados. Por instantes deixou-se ir, abandonou-se ao desejo, à necessidade. Ao anseio.
Depois afastou-se de tudo aquilo.
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- Sim, tenho de pensar nisso. - Pousou-lhe a mão no peito quando ele tentou puxá-la novamente para si. - Acalma-te, cher. - Ofereceu-lhe um sorriso lento e sonolento.
- Já me excitaste o suficiente para um dia.
- Estava apenas a começar.
- Acredito. - Soltou um suspiro e puxou o cabelo para trás. - Tenho que ir. Trabalho esta noite.
- Eu levo-te a casa.
Por calma que fosse a voz dele, os olhos revelavam tempestades. O género de tempestades que, imaginava ela, proporcionam uma imensa excitação antes de desabarem
sobre a nossa cabeça.
- Não me parece.
- Lena, quero estar contigo. Quero passar tempo contigo.
- Queres passar tempo comigo? Marca um encontro.
- Um encontro?
- O tipo de encontro em que me vais buscar à porta de casa e me levas a jantar a um sítio chique. - Bateu-lhe com o dedo no peito. - Levas-me a dançar, depois acompanhas-me
até à porta de casa e dás-me um beijo de boa-noite. És capaz disso?
- A que horas queres que te vá buscar? Ela sorriu e abanou a cabeça.
- Esta noite estou de serviço. Estou de folga na segunda-feira à noite. Às segundas-feiras à noite o bar não está tão cheio. Vai-me buscar às oito.
- Segunda-feira. Às oito.
Agarrou-lhe novamente nos braços e puxou-a para si. Desta vez não caíram suavemente no desejo, mergulharam profundamente.
Oh, sim, pensou ela, seria uma enorme excitação antes de a tempestade se abater.
- Um mero lembrete - disse-lhe ele.
Um aviso, era mais isso, pensou ela. Declan não estava tão domado como aparentava.
- Não esquecerei. Até logo, cher.
- Lena, não falámos do que aconteceu lá em cima.
- Havemos de falar - disse ela, dirigindo-se para a porta.
Só conseguiu respirar calmamente quando saiu. Não seria tão simples lidar com ele como julgara. Os bons modos não eram nenhum verniz, estavam-lhe no sangue. Mas
o mesmo acontecia ao desejo e à determinação.
Era um todo que ela admirava e respeitava.
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O que não significava que não conseguiria lidar com ele, disse a si própria enquanto entrava para o carro. Lidar com os homens era uma das suas especialidades.
Mas este homem era bastante mais complicado do que aparentava à superfície. E bastante mais intrigante do que qualquer outro que conhecera até então.
Sabia o que os homens viam quando olhavam para ela. E não se importava com isso, porque havia nela mais do que aquilo que eles viam. Ou mais do que aquilo que queriam
ver.
Tinha sensatez, costas firmes, e a determinação para usar ambas para conseguir o que queria. Conduzia a sua vida do mesmo modo que dirigia o bar, com apreço pela
cor e alicerces de ordem debaixo do caos.
Olhou pelo retrovisor para a Mansão Manet enquanto se afastava. Preocupava-a que Declan Fitzgerald pudesse abalar esses alicerces como ninguém antes conseguira.
Preocupava-a ter dificuldade em sarar as fendas quando ele partisse.
E eles partiam sempre. A não ser que ela partisse primeiro.
Adormeceu a pensar em Lena e sonhou com ela. Sonhos robustos e encorpados em que ela estava debaixo dele, mexendo-se com fortes e rápidos meneios das ancas. Pele
húmida, como ouro liquefeito. Olhos escuros como chocolate e lábios vermelhos e húmidos.
Conseguia ouvir o som da respiração dela, como a sustinha e libertava em curtos arquejos de prazer. Conseguia cheirá-la, aquela dança de sereia de jasmim que o fazia
pensar em haréns e sombras proibidas.
Mergulhou mais profundamente no sono, ansiando dolorosamente por ela.
E viu-a apressando-se ao longo de um corredor, os braços carregados com roupa de cama. O cabelo, todo aquele cabelo esplendoroso, estava impiedosamente preso atrás,
e o corpo tentador tapado do pescoço aos tornozelos com um vestido muito largo, coberto de minúsculas flores esmaecidas.
Os lábios não estavam pintados e estavam tinha-os firmemente cerrados. E, no sonho, conseguia ouvir os pensamentos dela como se fossem os seus.
Estava com pressa para arrumar a roupa de cama. Madame Manet já se levantara e não gostava de ver as criadas apressadas nos corredores. Se não se despachasse, corria
o risco de ser vista pela patroa.
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Não queria que Madame a visse. As criadas mantinham o emprego por mais tempo se fossem invisíveis. Era o que dizia Mademoiselle LaRue, a governanta, e ela nunca
se enganava.
Precisava do emprego. A família precisava daquele dinheiro, e ela adorava trabalhar na Mansão. Era a casa mais encantadora que alguma vez vira. Sentia-se tão feliz
e orgulhosa por poder cuidar também dessa casa.
Quantas vezes a contemplara das sombras do bayou? Admirara-a, ansiara por uma oportunidade para espreitar pelas janelas para toda a beleza do interior.
E agora estava lá dentro, responsável, ainda que minimamente, por cuidar dessa beleza.
Adorava envernizar a madeira, varrer os soalhos, ver como os vidros faiscavam depois de os limpar.
No sonho de Declan, ela saía do corredor por uma das portas ocultas do segundo piso. Os seus olhos detinham-se em tudo enquanto se apressava: no papel de parede,
nos tapetes, nas madeiras e nos vidros. Esgueirava-se para o quarto de vestir e arrumava a roupa de cama num armário.
Mas, ao voltar-se para a porta, algo lhe chamou a atenção, e aproximou-se da janela na ponta dos pés.
Declan viu, tal como ela, os cavaleiros que se aproximavam por entre os grandiosos carvalhos da álea. Sentiu, tal como ela, o coração sobressaltar-se quando o seu
olhar se fixou no homem que montava um lustroso alazão. Tinha o cabelo loiro, que esvoaçava enquanto galopava. O aprumo de um soldado, com um casaco cinzento sobre
os ombros largos e as botas negras a brilhar.
Ela levou a mão à garganta e pensou com toda a clareza: Eis o príncipe de regresso ao seu castelo.
E suspirou, como suspiram as raparigas quando se apaixonam insensatamente. Ele sorriu, como se sorrisse para ela, mas a jovem sabia que era a casa o motivo do sorriso
que lhe adornava o rosto.
Foi com o coração a latejar que se apressou a sair do quarto, de volta ao labirinto da ala da criadagem.
O jovem amo voltara a casa, pensava ela. E perguntava-se o que aconteceria depois.
Declan acordou com um sobressalto, no frio, na escuridão. Cheirava-lhe a humidade e a pó, e sentia debaixo dele a madeira dura do soalho.
- Mas que raio?!
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Aturdido e agoniado, estendeu a mão e tocou numa parede. Usou-a como referência e levantou-se. Continuou a tactear, esperando chegar a um canto, a uma porta. Demorou
uns instantes a perceber que a parede não tinha papel de parede.
Desta vez não estava no seu quarto fantasma. Estava num dos corredores da criadagem, onde estivera a rapariga do seu sonho.
Por estranho que fosse, pensou, percorrera o mesmo caminho que ela.
A ideia de tropeçar na escuridão até descobrir uma saída era pouco atraente, mas sempre era melhor que passar as próximas horas ali, à espera da madrugada.
Foi avançando pé ante pé. Quando sentiu o painel de uma porta, estava encharcado em suor.
Saiu de rompante, com uma prece de agradecimento quando sorveu ar mais fresco e viu, sob a ténue luminosidade, os contornos do corredor do segundo piso.
Tinha teias de aranha no cabelo e as mãos e os pés sujos.
Se isto continua, disse para si próprio, tenho de ir ao médico e pedir-lhe uns comprimidos para dormir. Com a esperança de que as aventuras da noite tivessem terminado,
foi lavar-se e beber água, para refrescar a garganta que lhe ardia. E fechou-se no quarto.
Capítulo Sete
Declan tirou a carrada de livros dos braços de Effie e beijou-a na face.
- Não precisavas de fazer todo este caminho para me trazeres isso. Eu ia ter contigo.
- Não me custou nada. Cancelaram uma reunião e fiquei com algum tempo livre. E o facto é que... - Respirava lentamente e deu meia volta. - Tinha que provar a mim
mesma que não ia fugir a sete pés quando cá viesse.
- Estás bem?
- Sim. - Soltou um daqueles longos suspiros e anuiu com vivacidade. - Estou óptima. - Depois franziu a testa perante as sombras que acossavam os olhos dele. - Mas
tu pareces exausto.
- Não tenho dormido bem. - Mas não lhe apetecia falar dos sonhos, do sonambulismo, dos sons que o acordavam tão frequentemente no silêncio da noite. - Vamos para
a cozinha, para eu poder vangloriar-me. Tenho limonada... não de limões verdadeiros, mas está fresca.
- Está bem. - Tocou no braço dele numa espécie de reconhecimento silencioso e falou com um tom mais suave. - Só tenho cerca de meia hora, mas trago informações para
ti. Informações e especulações. Mas que se passa aqui?
Olhou para dentro da salinha da entrada. Havia papéis empilhados no chão, livros abertos, uma pilha de tintas e amostras de tecidos.
- É o meu próximo projecto. Pensei iniciar as obras numa divisão em que as pessoas possam sentar-se com conforto. Que tipo de informações?
- Sobre os Manet. Os factos são bastante simples - disse ela enquanto percorriam a casa. - Henri Manet casou com Josephine Delacroix. Ambos provinham de famílias
crioulas abastadas e importantes.
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Henri era politicamente activo. Corria o boato de que o pai tinha feito muito dinheiro com o negócio dos mantimentos, durante a guerra entre os estados. Com a Reconstrução
tornaram-se republicanos ferrenhos, e corria também o boato de que usavam o poder e a influência para comprar votos e políticos. Oh, meu Deus, Dec, olha só para
isto! M - Entrou na cozinha e olhou radiante para os armários que ele tinha montado. - Mas que lindos! Declan enfiou os polegares nos bolsos de trás e esboçou um
sorriso malandro.
- Pareces surpreendida.
- Bem, e estou, mas de um modo bastante elogioso. O Remy mal consegue pregar um prego na parede para pendurar um quadro. - Passou a mão pela madeira, abriu e fechou
uma porta. - Estão mesmo impecáveis. Deves estar orgulhoso.
- Sinto-me bastante satisfeito comigo mesmo. Os tipos da bancada acabaram de sair. Escolhi uma superfície maciça. A imitar ardósia. Encomendei um gigantesco frigorífico
Sub-Zero, por razões que ainda não consegui perceber, e um fogão e uma máquina de lavar loiça. Vou fazer painéis, de modo que só se vai ver madeira.
Pousou os livros sobre uma prancha de contraplacado que tinha em cima dos armários.
- Sempre queres a limonada?
- Quero. - Entrou na sala de jantar atrás dele. Dois dos armários superiores já estavam concluídos e havia um terceiro já iniciado. - Vão ficar realmente bonitos.
Deves andar a trabalhar noite e dia.
E a perder peso, pensou ela. Estás a ficar com a cara escanzelada.
- Sempre é melhor do que ser sonâmbulo. - Sentia-se inquieto e enfiou novamente as mãos nos bolsos para se manter calmo. - Conta-me mais, Effie.
- Está bem. - Reprimiu a vontade de o amimar e voltou aos factos. - Os proprietários originais perderam grande parte da fortuna durante a guerra. Mas aguentaram,
vendendo parcelas de terra ou arrendando-a. Eram opositores políticos dos Manet. Perderam tudo num incêndio que reduziu a casa a cinzas. Os Manet compraram a propriedade
e mandaram construir esta casa. Tiveram dois filhos, gémeos. Lucian e Julian. Ambos estudaram em Tulane: Lucian saiu-se muito bem e Julian licenciou-se, por assim
dizer, na bebida e no jogo. Lucian era o herdeiro, estava destinado a dirigir os negócios da família. A maior parte do dinheiro dos Manet tinha-se dissipado, mas
Josephine possuía uma herança considerável. Ambos os filhos morreram antes de completarem os vinte e três anos.
103
Declan estendeu-lhe um copo.
- Como?
- Quanto a isso, há boatos e especulações. - Bebeu. - Consta que se mataram um ao outro. Parece que ninguém sabe porquê, mas houve uma violenta discussão familiar.
Dizia-se que Lucian tinha ido a Nova Orleães, por ordem da mãe, buscar o irmão a um dos bordéis que este frequentava. Julian não quis voltar e discutiram, e um deles,
provavelmente Julian, puxou de uma faca. Lutaram e ambos ficaram feridos. Julian morreu logo ali. Lucian ainda aguentou cerca de uma semana, depois conseguiu levantar-se
da cama, saiu de casa e caiu no tanque, onde se afogou.
O tanque, pensou ele, sufocado de folhas de lírios e vaporoso com as neblinas da madrugada.
- Deve ter sido duro para os pais.
- O coração do pai cedeu poucos anos depois. Josephine ainda viveu uns bons anos, mas sofreu um revés financeiro. Possuía a casa e alguns terrenos, mas o dinheiro
esgotara-se. Especula-se que Julian desbaratara grande parte ao jogo e que nunca conseguiram recuperá-lo completamente.
- O Remy disse que havia uma neta. Do Lucian ou do Julian?
- Quanto a isso, também é especulação. Embora os registos indiquem que Lucian casou com uma Abigail Rouse em 1898 e que nasceu uma filha no ano seguinte, não há
nenhum registo da morte de Abigail. Depois da morte de Lucian, os Manet deserdaram legalmente a criança e retiraram-na do testamento. Parece que foi criada pelos
Rouse. Não consegui descobrir mais nada sobre Abigail Rouse para além das certidões de nascimento e de casamento.
- Talvez a tenham posto fora de casa quando Lucian morreu.
- Talvez. Falei com o Remy acerca disso. - Dirigiu-se para as janelas e olhou para a confusão dos jardins. - Ele é um pouco vago, mas parece que se recorda de ouvir
histórias de ela ter fugido com outro homem. - Voltou-se para ele. - As histórias do lado dos Rouse diferem completamente e inclinam-se mais para a hipótese de um
acto criminoso. Conseguias um melhor retrato dela e do que pode ter acontecido se falasses com alguém da família dos Rouse ou dos Simone.
- Um retrato claro de uma rapariga que fugiu ou morreu há cem anos.
- Querido, isto aqui é o Sul. Cem anos é como se fosse ontem. Ela tinha dezassete quando casou com Lucian. Era do bayou. A família dele certamente não aprovou o
casamento. Duvido que a vida dela nesta
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casa tenha sido um mar de rosas. Pode muito bem ter fugido. Por outro lado... eu vi algo ou alguém no quarto do piso de cima. Não acredito nesse tipo de coisas.
Não acreditava. - Reprimiu um calafrio. - Já não sei o que penso disso agora, mas gostava de descobrir.
- Vou perguntar a Miss Odette. E à Lena. Vou encontrar-me com ela na segunda-feira.
- Ai sim? - A ideia animou-a. - Acho que vamos ter mais boatos e especulações. - Devolveu-lhe o copo. - Tenho que ir. Amanhã mando o Remy vir cá para te dar uma
mão e fazê-lo largar as minhas saias. Tenho que ir provar o vestido e tratar de outros preparativos para o casamento.
- Eu mantenho-o ocupado.
- Porque é que não vais com ele à cidade? - disse quando se preparava para sair. Tinha vontade lhe dar o braço e arrastá-lo daquela casa. - Podíamos jantar e ir
ao cinema.
- Pára de te preocupares comigo.
- Não consigo evitar. Penso em ti, sozinho nesta casa, com aquele quarto lá em cima. - Olhou com inquietação para o cimo das escadas. - Provoca-me calafrios.
- Os fantasmas não fazem mal a ninguém. - Beijou-a na testa. - Estão mortos.
Mas à noite, com o ruído do vento e da chuva, e com o estrépito das garrafas dos espíritos, não pareciam mortos.
No domingo descansou e dormiu até tarde. Acordou com o céu a debater-se para clarear e passou mais uma hora na cama com os livros que Effie lhe trouxera.
Ela tinha assinalado as páginas que achava que lhe deviam interessar mais. Declan analisou e observou velhas fotografias das grandiosas casas das fazendas. E sentiu
o entusiasmo percorrê-lo ao ver a antiga fotografia a preto e branco da Mansão Manet no seu esplendor do virar do século.
As fotografias formais de Henri e Josephine Manet não lhe causaram o mesmo entusiasmo. Sentiu apenas curiosidade. A mulher fora indiscutivelmente bela, muito ao
estilo da época, com o acentuado corpete quadrado do vestido de baile bordejado de rosas e o elevado gancho emplumado que lhe adornava o cabelo apanhado no topo.
O vestido, enfiado numa cinta incrivelmente pequena, conferia-lhe uma delicadeza acentuada pelas curvas das saias de brocado e pelas
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mangas generosamente tufadas que se uniam às compridas luvas brancas.
Mas havia uma frieza naquele rosto, uma frieza que para Declan não resultava da rigidez da pose ou da qualidade da impressão. Era algo que se sobrepunha à delicadeza
da sua constituição e a tornava intimidante.
Mas foi a fotografia de Lucian Manet que o petrificou.
Já vira aquele rosto no seu sonho. O jovem bem-parecido, com o cabelo loiro a esvoaçar, montado num alazão a galopar entre carvalhos ornados de musgo.
O poder da sugestão? Ou simplesmente esperara que o rosto do sonho fosse real e projectava-o agora no malfadado Lucian?
De qualquer modo, causava-lhe calafrios.
Decidiu ir a Nova Orleães e passar algumas horas a vasculhar lojas de antiguidades.
Mas, em vez disso, menos de uma hora depois entrou no Et Trois.
Reparou que o negócio corria bem para um domingo à tarde: um misto de turistas e gentes locais. Ficou contente por estar a aprender a distinguir uns dos outros.
A jukebox tocava uma melodia animada de Beau Soleil que se misturava com o ruído das conversas.
O aroma dos fritos veio lembrar ao seu estômago que ainda não tomara o pequeno-almoço. Reconheceu a loira que servia ao balcão e acercou-se, esboçando um sorriso.
- Olá. A Lena está?
- Lá atrás no gabinete. A porta à direita do palco.
- Obrigado.
- Sempre às ordens, borracho.
Bateu à porta com a tabuleta privado e enfiou a cabeça. Lena estava sentada a uma secretária, a trabalhar no computador. Tinha o cabelo apanhado atrás e Declan sentiu
vontade de lhe mordiscar carinhosamente a nuca.
- Olá. Tá-se?
Ela recostou-se e relaxou indolentemente os ombros.
- Estás a aprender. Que fazes aí à minha porta, cher?
- Andava pelas redondezas e pensei vir cá oferecer-te o almoço. Como prelúdio para a noite de amanhã.
Estivera a pensar nele, mais do que devia. E ele ali estava, alto, esguio e másculo.
- Estou a fazer a contabilidade.
- E eu interrompi-te. Não detestas isso? - Decidiu entrar e sentou-se na borda da secretária. - Trouxe-te um presente.
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Foi então que ela reparou no pequeno saco que ele trazia.
- Não vejo como é que conseguiste enfiar aí dentro um carro novo.
- Lá chegaremos ao carro.
Lena manteve os olhos presos nos dele por mais uns instantes enquanto pegava no saco. Depois lançou as mãos à caixa embrulhada em papel dourado e com um laço branco
e formal. Demorou o seu tempo a desembrulhá-la. Sempre acreditara que a expectativa era tão importante como a prenda.
Guardou o laço e a fita no saco, abriu a parte de cima, fez a caixa deslizar para fora do embrulho e dobrou cuidadosamente o papel.
- Quanto tempo levas a abrir as tuas prendas na manhã de Natal? - perguntou ele.
- Gosto de levar o meu tempo. - Abriu a caixa e sentiu os lábios tremerem-lhe, mas manteve uma expressão sóbria enquanto tirava para fora o saleiro e pimenteiro
em forma de caranguejos sorridentes. - Bem, bem, não fazem mesmo um par bonito?
- Achei que sim. Também tinham jacarés, mas estes pareceram-me mais amigáveis.
- Isto faz parte da tua campanha de sedução, cher?
- Podes crer. Resultou?
- Nada mal. - Passou um dedo por um daqueles feios sorrisos. - Nada mal, realmente.
- Muito bem. Já que te interrompi, e te seduzi, porque é que não me deixas dar-te de comer e retribuir-te pela omeleta?
Lena recostou-se e rodou na cadeira enquanto considerava a proposta dele.
- Porque é que tenho a sensação de que, sempre que te vejo, devia começar logo a correr na direcção oposta?
- Revista-me. De qualquer modo, as minhas pernas são mais compridas, e portanto apanhava-te logo. - Inclinou-se sobre a secretária e franziu o sobrolho. Lena vestia
uma saia curta. As pernas dele podiam ser mais compridas, mas não seriam tão bonitas enfiadas em meias de vidro. - Mas conseguias um grande avanço com essas meias.
Porque é que estás toda aprumada?
- Não estou aprumada. Roupa de ir à igreja. Fui à missa. - Agora sorria. - Com um nome como o teu, imagino que sejas um rapaz católico.
- Apanhaste-me.
- Foste à missa hoje, Declan?
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Não conseguia explicar porque é que aquela pergunta o fazia estremecer.
- Sou um tanto relapso.
- Oh! - Cerrou os lábios. - A minha avó vai ficar desiludida contigo.
- Fui menino do coro durante três anos. Já é alguma coisa.
- Qual é o teu nome de crisma?
- Digo-te se vieres almoçar. - Estendeu a mão para os caranguejos e fê-los dançar sobre a secretária. - Vá lá, Lena, sai e brinca comigo. O dia pôs-se bonito.
- Está bem. - Errado disse a sua mente prática, mas levantou-se e pegou na bolsa. - Podes pagar-me o almoço, mas tem que ser rápido. - Debruçou-se, guardou o ficheiro
e desligou o computador.
- É Michael - disse ele, estendendo-lhe a mão. - Declan Sullivan Michael Fitzgerald. Se fosse mais irlandês do que sou, até sangrava verde.
- O meu é Louisa. Angelina Marie Louisa Simone.
- Muito francês.
- Bien sûr. E quero comida italiana. - Deu-lhe o braço. - Oferece-me uma pasta.
Pelas visitas anteriores, Declan sabia que tinha de se esforçar bastante para descobrir uma má refeição em Nova Orleães. Quando Lena o levou a um restaurante pequeno
e despretensioso, não se preocupou. Bastava-lhe cheirar o ar para saber que iam comer bem.
Lena acenou a alguém, apontou para uma mesa vazia e fizeram-lhe sinal para a ocupar.
- Isto não é um encontro - disse quando Declan afastou a cadeira para ela se sentar.
Fez o seu melhor para parecer absolutamente inocente e quase o conseguiu.
- Não?
- Não. - Recostou-se e cruzou as pernas. - Um encontro é quando se combina um dia e uma hora e me vais buscar a casa. Isto é uma saída casual. Portanto, amanhã é
o nosso primeiro encontro. Só para o caso de estares a pensar naquela regra dos três encontros.
- Nós, os homens, não gostamos de pensar que vocês, as mulheres, sabem disso.
Os lábios dela curvaram-se.
- Há muita coisa que vocês não gostam de pensar que sabemos.
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- Mantinha os olhos fixos nos dele, mas acenou ao homem de cabelo escuro que se deteve junto da mesa. - Olá, Marco.
- Lena. - Beijou-lhe os dedos e entregou-lhe uma ementa. - É bom ver-te.
- Este é o Declan, de Boston, um amigo de faculdade do Remy. Trouxe-o cá para ver como preparamos a comida italiana aqui no Vieux Carré.
- Ninguém consegue fazer melhor. - Apertou a mão a Declan e entregou-lhe também uma ementa. - A Mama está hoje na cozinha.
- Então espera-nos um banquete - disse Lena. - Como vai a família, Marco?
Declan viu-a então agitar-se na cadeira, erguer o rosto e olhar para Marco como se os dois estivessem sozinhos numa pequena ilha de intimidade. Aquilo era sexual,
não havia dúvidas, mas também era... amabilidade, concluiu.
- Não podia estar melhor. A minha Sophie ganhou um concurso de soletrar na sexta-feira.
- Tens uma filha realmente inteligente.
Conversaram por uns momentos, mas Declan entreteve-se a observar o rosto dela: o modo como as sobrancelhas se erguiam, baixavam e se uniam ao sabor dos sentimentos.
O modo como os seus lábios se mexiam, pontuados pelo minúsculo sinal.
Quando Lena se voltou para ele, Declan abanou a cabeça e perguntou:
- Desculpa, disseste alguma coisa? Estava a olhar para ti e perdi-me.
- As pessoas do Norte têm falinhas mansas - disse Marco.
- É bonito também, não é? - perguntou Lena.
- Muito simpático. A Lena vai querer o linguini de marisco. E o senhor, já sabe o que quer, ou precisa de tempo para decidir?
- Não vais pedir o mesmo. - Lena bateu com o dedo na ementa que Declan ainda não consultara. - Senão não tem piada eu provar do teu prato. Experimenta talvez o guisado
de mexilhão. A Mama prepara-os como ninguém.
- Guisado de mexilhão então. - Teve a sensação de que teria experimentado cartão esmagado se ela o pedisse. - Queres vinho?
- Não, porque tu vais conduzir e eu vou trabalhar.
- Que severa. San Pelligrino? - Olhou para Marco.
- Trago uma garrafa.
- E então... - Lena prendeu o cabelo atrás da orelha quando Marco os deixou. - O que estás a pensar fazer hoje, cher?
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- Pensei enfiar-me nas lojas de antiguidades. Ando à procura de um guarda-pratas para a cozinha e de coisas para meter lá dentro. Pensei em fazer uma visita a Miss
Odette de regresso. De que é que ela gosta? Quero levar-lhe alguma coisa.
- Não precisas de lhe levar nada.
- Mas gostava.
Lena apoiou o braço nas costas da cadeira e tamborilou com os dedos na mesa enquanto o observava.
- Então leva-lhe uma garrafa de vinho. Um bom tinto. Diz-me uma coisa, cher, não usarias a minha avó para chegar até mim, pois não?
Viu a ira faiscar-lhe nos olhos, uma ira mais escura e mais acesa do que esperava dele. Estava ciente de que os seus modos afáveis ocultavam algo acutilante e afiado.
Era impressionante, mas mais impressionante era a repentina passagem da calmaria para a fúria, e de novo para a calmaria.
Um homem que conseguia refrear-se assim tinha uma vontade de ferro, concluiu. Mais um factor a ter em conta.
- Entendeste as coisas ao contrário - disse-lhe ele. - Estou a usar-te para chegar a Miss Odette. É ela a rapariga dos meus sonhos.
- Desculpa.
- Sim, agiste mal.
Lena esperou até servirem o pão e a água. O tom dele irritara-a, sobretudo porque merecera a pronta reprimenda, tinha de admitir. Cruzou os braços sobre a mesa e
inclinou-se para ele.
- Desculpa, fui maldosa. Vou dizer-te uma coisa, Declan: as palavras maldosas têm o hábito de me saírem da boca para fora. Nem sempre me arrependo de as dizer. Não
sou uma mulher de modos doces nem de temperamento moderado. Não sou de confiar nos outros. Tenho qualidades, mas são tantas quantos os defeitos. Gosto de ser assim.
Declan imitou a atitude dela.
- Sou de ideias fixas, competitivo e temperamental. Tenho um feitio terrível. Mas demora bastante tempo a manifestar-se e isso é bom para a população em geral. Não
tenho de impor a minha vontade nas pequenas coisas, mas quando decido que quero uma coisa, que a quero mesmo, arranjo maneira de a conseguir. E eu quero-te. Portanto,
hei-de ter-te.
Estava enganada. Ele não regressara repentinamente à calmaria. A ira ainda lhe fervilhava por detrás dos olhos. Como tentava ser sempre honesta consigo própria,
não se preocupou em fingir que o comportamento dele não a excitava.
110
- Estás a dizer isso para me irritar.
- Não, isso é apenas um benefício que vem por acréscimo. - Recostou-se, pegou na cestinha e ofereceu-lhe pão. - É uma discussão que procuras?
Lena ficou amuada e pegou no pão.
- Talvez mais tarde. A irritação estraga-me o apetite. Enfim. - Encolheu os ombros e mordiscou o pão. - Não vás hoje visitar a minha avó. Esta tarde vai visitar
a irmã.
- Visito-a no fim-de-semana. Tenho que instalar as bancadas da cozinha. Ontem o Remy ajudou-me com os módulos das paredes. Deve ficar pronta daqui a uma semana ou
duas.
- Que bom para ti. - Apetecia-lhe amuar e, pela expressão divertida dele, apercebeu-se de que ele sabia disso. - Voltaste a ir ao terceiro piso?
- Sim. - Primeiro tivera que se fortalecer com uma boa golada de Jim Beam, mas voltara lá. - Desta vez não me estatelei no chão, mas tive um grande ataque de pânico,
embora não seja dado a ataques de pânico. Descobri mais coisas sobre a história da família Manet, mas faltam peças. Talvez tu mas possas fornecer.
- Queres saber acerca da Abigail Rouse.
- Certo. O que é que...
Deteve-se porque ela voltara a centrar a sua atenção em Marco, que trazia a pasta. Enquanto se embrenhavam numa indolente discussão sobre a comida, Declan lembrou-se
a si mesmo de que no Sul as coisas avançavam mais lentamente.
- O que é que sabes acerca dela? - perguntou quando ficaram novamente a sós.
Lena enrolou uma garfada de pasta, suspirou fundo e engoliu.
- Mama Realdo. É uma deusa na cozinha. Prova a tua - ordenou-lhe, inclinando-se para provar do prato dele.
- Excelente. A melhor refeição que já tive desde aquela omeleta no microondas.
Ela sorriu-lhe, um sorriso longo e demorado que se lhe alojou no estômago. Depois continuou a comer.
- Conheço as histórias que se contavam na minha família. Ninguém sabe ao certo. A Abigail era criada na Mansão. Algumas famílias ricas contratavam raparigas cajun
para as limpezas e coisas assim. Conta-se que Lucian Manet regressou de Tulane e se apaixonou por ela. Fugiram e casaram-se. Tiveram que fugir porque ninguém iria
aprovar uma união daquelas, nem a família dele nem a dela.
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Partiu um pedaço de pão e mordiscou-o enquanto observava Declan.
- A mistura de classes é um assunto incómodo. Depois ele levou-a para a Mansão, e isso também foi um assunto incómodo. As pessoas dizem que Josephine Manet era uma
mulher severa, orgulhosa e fria. Toda a gente se pôs a contar pelos dedos, mas a bebé só nasceu dez meses depois.
- Aquele quarto no piso de cima. Era certamente o quarto das crianças. Era aí o quarto da bebé.
- É provável. Havia uma ama que casou posteriormente com um dos irmãos da Abigail. A maior parte das histórias sobre a Mansão provém dela. Parece que, uns dias antes
do fim do ano, Lucian foi a Nova Orleães em negócios e, quando regressou, a Abigail tinha desaparecido. Diziam que tinha fugido com um rapaz do bayou com quem se
encontrava às escondidas. Mas não parece ser verdade. A ama chamava-se... Claudine, e disse que a Abigail nunca teria abandonado o Lucian e a bebé. Disse que de
certeza tinha acontecido alguma coisa grave e terrível, e culpava-se a si própria porque tinha saído para ir ter com o namorado na noite em que a Abigail desapareceu.
Uma rapariga morta na cama de dossel num quarto gélido, pensou Declan, enquanto a pasta se lhe alojava na garganta como cola. Pegou na água com gás e bebeu um longo
gole.
- Chegaram a procurá-la?
- A família dela procurou-a por toda a parte. Diz-se que, enquanto foi vivo, o Lucian vasculhou o bayou de uma ponta à outra. Quando não procurava no bayou, andava
na cidade a tentar descobrir o rasto dela. Nunca conseguiu, e ele próprio não viveu muito mais tempo. Com a morte dele, e a do irmão gémeo, que a mãe preferia inquestionavelmente,
Miss Josephine mandou a bebé para junto dos pais da Abigail. Ficaste pálido, Declan.
- Sinto-me pálido. Continua.
Desta vez passou-lhe o pedaço de pão que partira e barrara com manteiga. A avó tinha razão, pensou Lena, ele precisava de comer.
- A bebé era a avó da minha avó. Os Manet deserdaram-na, diziam que era filha ilegítima e não do sangue deles. Mandaram-na para os Rouse com o vestido que trazia
e um pequeno saco com brinquedos. A única coisa que trouxe da Mansão foi o broche-relógio que a Claudine lhe tinha dado e que era da Abigail.
Declan pousou rapidamente a mão sobre a dela.
- Esse broche ainda existe?
112
- Passamos essas coisas de uns para os outros, de filha para filha. A minha avó deu-mo quando fiz dezasseis anos. Porquê?
- Um relógio de esmalte, suspenso de pequenas asas douradas? As faces dela ruborizaram-se.
- Como sabes?
- Vi-o. - Um calafrio dançou-lhe pela espinha acima. - Em cima do toucador no quarto que devia ser o dela. Um quarto vazio - continuou -, com mobília fantasma. O
quarto onde a Effie viu uma rapariga morta na cama. Mataram-na, não foi?
O modo como ele disse aquilo, tão neutro, tão frio, agoniou-lhe o estômago.
- É o que as pessoas pensam, as pessoas da minha família.
- No quarto das crianças.
- Não sei. Estás a assustar-me, Declan.
- A ti? - Passou a mão pelo rosto. - Bem, acho que sei quem é esse meu fantasma. Coitada da Abigail, a deambular pela Mansão, à espera que o Lucian volte para casa.
- Mas se ela morreu realmente na Mansão, quem a matou?
- Talvez seja isso que tenho de descobrir, para que ela possa... tu sabes, repousar em paz.
Já não estava pálido, pensou Lena. O rosto dele endurecera e enrijecera novamente com aquele fundo de determinação.
- E porquê tu?
- Porque não? Só pode ter sido um dos Manet. A mãe, o pai, o irmão. Depois enterraram-na em qualquer lado e disseram que tinha fugido. Preciso de descobrir mais
coisas sobre ela.
- Acho que vais descobrir. És obstinado, cher. Não sei porque é que isso me atrai tanto. Fala com a minha avó, talvez ela saiba mais coisas, ou talvez conheça alguém
que saiba.
Lena afastou o prato vazio para o lado.
- Agora manda vir dois cappuccinos.
- Não queres sobremesa?
- Já não tenho apetite. - Abriu a bolsa e pegou num maço de cigarros.
- Não sabia que fumavas.
- Compro um maço por mês. - Tirou um cigarro e percorreu-o de alto a baixo com os dedos.
- Um maço por mês? Com que finalidade?
Lena colocou o cigarro entre os lábios e acendeu-o com um isqueiro esguio e prateado. Tal como fizera com a primeira garfada de pasta, suspirou quando deu a primeira
passa.
113
- Pelo prazer, cher. Um maço tem vinte cigarros, e um mês tem trinta ou trinta e um dias, excepto Fevereiro. Adoro mesmo o mês de Fevereiro. Ora bem, posso fumar
o maço inteiro num dia, só que enlouqueceria durante o resto do mês. Ou então posso reparti-los, lenta e cuidadosamente, e fazê-los durar. Comprar outro maço antes
do início do mês é que nunca.
- Quantos cravas às outras pessoas durante o mês? Os olhos dela cintilaram através do halo de fumo.
- Isso seria fazer batota, e eu não faço batota. O prazer não é nada a não ser que tenhas força de vontade para aguentar até o apreciares realmente, doçura.
Passou a ponta do dedo pelas costas da mão dele e, só pelo gozo do gesto, roçou o pé contra a perna dele debaixo da mesa.
- Como anda a tua determinação? - perguntou ela.
- A ver vamos.
O crepúsculo já se tinha instalado quando Declan voltou para casa. A parte de trás do seu todo-o-terreno ia carregada com tesouros que desenterrara em lojas de antiguidades.
Mas o maior tesouro era o armário de cozinha que encontrara, e que o levara a suplicar e a subornar para que lho entregassem no dia seguinte.
Transportou o que conseguiu na primeira viagem e pousou tudo no vestíbulo. Fechou a porta atrás de si.
- Abigail. - Proferiu o nome, ouviu-o a ecoar pela casa. E aguardou.
Mas não sentiu qualquer rajada de ar frio, nenhuma perturbação súbita do silêncio.
Continuou ali especado ao fundo da grande escadaria e não conseguia explicar como sabia que não estava sozinho.
Capítulo Oito
Acordou com uma tempestade a desabar, mas pelo menos estava deitado na sua cama. Os relâmpagos chicoteavam o lado de fora das janelas e inundavam o quarto com uma
supernova de luz.
Deu uma olhadela ao relógio da mesinha-de-cabeceira e viu que faltava um minuto para a meia-noite. Mas não podia ser, pensou Declan. Só se deitara depois da uma
hora. Perguntou-se se a tempestade teria causado um corte na electricidade, e acendeu o candeeiro da mesinha.
A luz disparou, ofuscando-o.
- Raios! - Esfregou os olhos encandeados e agarrou na garrafa de água que colocara numa mesa ao lado da cama. Levantou-se e foi à varanda contemplar o espectáculo.
Valia o preço de um bilhete, concluiu. Uma chuva fustigante, relâmpagos bifurcados e um vento que flagelava as árvores em gemidos e uivos. Conseguia ouvir o excitado
clangor das garrafas dos espíritos e a guerra selvagem da trovoada.
E o bebé a chorar.
A garrafa escorregou-lhe da mão e caiu, molhando-lhe os pés.
Não estava a sonhar, disse para si próprio ao mesmo tempo que estendia a mão para se agarrar à balaustrada húmida. Não estava sonâmbulo. Estava desperto, completamente
consciente do que o cercava. E ouvia o bebé a chorar.
Teve de se obrigar a mexer-se, mas voltou para dentro do quarto, coberto de suor, e verificou a lanterna. Saiu descalço e em tronco nu da segurança do quarto e dirigiu-se
para o terceiro piso.
Esperou que o pânico surgisse: aquele nó no estômago, a súbita falta de ar, o latejar do coração.
Mas desta vez nada disso aconteceu. Os degraus eram agora meros
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degraus, a porta uma mera porta com uma maçaneta de latão a precisar de ser polida.
E o bebé já não chorava.
- Já que cheguei até aqui... - resmungou.
Tinha as palmas das mãos suadas, mas era nervosismo e não medo. Estendeu a mão e rodou a maçaneta. A porta abriu-se com um gemido das dobradiças.
Na lareira ardia um fogo lento. A luminosidade que produzia, e a luz das velas, dançava em belos padrões nas paredes de um tom de pêssego muito pálido. As janelas
exibiam colgaduras azul-escuras e cortinas rendilhadas. O soalho estava polido como um espelho, com dois tapetes com um padrão de tons de pêssego e azul.
Havia um berço com barras torneadas e um outro mais pequeno, de ferro, com roupa de cama branca.
Ela estava sentada numa cadeira de baloiço, a dar de mamar a um bebé. Conseguia ver a mão da criança sobre o seio, uma mão branca contra a pele dourada. O cabelo
solto derramava-se pelos ombros e pelos braços da cadeira.
Os lábios dela agitavam-se numa cantilena ou historinha que Declan desconhecia. Não conseguia ouvir. Mas ela olhava fixamente para a criança enquanto a amamentava
e o seu rosto estava iluminado de amor.
- Tu nunca a abandonaste - disse Declan baixinho. - Nunca o terias feito.
Ela ergueu a cabeça em direcção à entrada onde ele estava especado e, durante um segundo de parar o coração, julgou que o ouvira, que ia falar com ele. Quando ela
sorriu e levantou a mão, Declan avançou um passo para ela.
Até que sentiu os joelhos ceder, quando o homem do outro lado do quarto passou através dele como se fosse ar e se dirigiu para ela.
Tinha o cabelo loiro, e era alto e de constituição esguia. Vestia uma espécie de roupão de um bordeaux carregado. Quando se ajoelhou junto da cadeira de baloiço,
afagou a face do bebé com a ponta do dedo e depois os minúsculos dedinhos que pressionavam o seio dela.
A mulher, Abigail, ergueu a mão e apertou a dele. E, rodeados por aquela luz suave, os três uniram-se então, enquanto a boquinha leitosa da bebé chuchava e a mulher
se baloiçava delicadamente.
- Não. Tu nunca os abandonaste. Hei-de descobrir o que te fizeram, o que vos fizeram aos três.
Enquanto falava, a porta fechou-se com estrondo atrás dele.
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Sobressaltou-se, deu meia volta e deu por si novamente mergulhado na escuridão, apenas iluminada pelas explosões dos relâmpagos e pela luz da lanterna. O peso abateu-se-lhe
sobre o peito como uma pedra, tirando-lhe o ar. O quarto estava vazio, gelado, e o pânico assomou-lhe à garganta.
Procurou a maçaneta, mas as mãos luzidias de suor escorregaram no latão gélido. A respiração estrangulada parecia querer libertar-se em gritos e uivos, súplicas
e preces. As tonturas fizeram-no cair de joelhos e tacteou desesperadamente à procura da maçaneta. Agarrou-a com força e puxou a porta.
Quando conseguiu abri-la, rastejou de gatas lá para fora e deitou-se de rosto encostado ao chão, com o coração a ribombar-lhe no peito enquanto a tempestade ribombava
sobre a casa.
- Estou bem, estou bem. Estou bem, raios, e vou levantar-me do chão e voltar para a cama!
Talvez andasse a perder horas de sono, pensou enquanto se levantava ainda a tremer, mas aprendera algumas coisas.
Se o que vira no quarto das crianças era verdade e não uma fantasia que ele próprio fabricara, então Abigail Rouse Manet não abandonara a Mansão Manet por vontade
própria.
E sabia agora que tinha mais do que um fantasma entre mãos.
Estava provavelmente a cometer um erro, pensou Lena enquanto enfiava um curto vestido preto. Já cometera vários pequenos erros em relação a Declan Fitzgerald, e
isso irritava-a, pois raramente cometia erros no que dizia respeito aos homens.
Se alguma coisa aprendera com a mãe, fora a lidar com o género masculino. Era uma tutela invertida. Ganhara o hábito de fazer exactamente o oposto do que Lilibeth
fazia e fizera no que respeitava a relacionamentos.
O processo mantivera o coração de Lena ileso durante quase trinta anos. Não tinha o menor desejo ou intenção de se abandonar às mãos de um homem. Metaforicamente
falando, pensou com um esgar enquanto pintava os lábios.
Gostava de estar nas mãos do homem certo quando se sentia com disposição para se entregar.
Na sua opinião, se uma mulher não gostava de sexo era porque não sabia escolher os parceiros com astúcia suficiente. Uma mulher astuta seleccionava homens que revelassem
disponibilidade e capacidade para aprender como essa mulher queria que lhe dessem prazer.
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E uma mulher satisfeita tendia a proporcionar ao homem uma boa sessão de amor.
Saíam todos a ganhar.
O problema era que Declan tinha o dom de lhe despertar o apetite sexual durante o tempo todo. E ela não tinha o hábito de se deixar guiar pelas hormonas.
A coisa mais sensata e segura que uma mulher podia fazer era controlar esse apetite. Decidir quando, onde, como e com quem. Os homens, esses eram excitados por natureza.
Não se lhes podia levar isso a mal.
E as mulheres que diziam que não tentavam excitar os homens, ou eram frígidas ou mentirosas.
Se acreditasse que ela e Declan avançavam para um simples caso que começava e acabava na excitação mútua, não se teria preocupado. Mas havia nele mais do que isso.
Demasiadas camadas, pensou. E parecia não conseguir atravessá-las todas e compreendê-lo.
E, o que era mais preocupante, também nas reacções dela a ele havia uma camada que estava para além da mera luxúria. O que era igualmente complicado e misterioso.
Gostava do aspecto dele, e do som de seixos a rolar da sua voz de ianque. E conseguira tocá-la num ponto sensível com a sua óbvia afeição pela avó.
Além de que lhe pusera o sangue a ferver, confessou. Tinha uns lábios realmente hábeis.
E, quando não estava a prestar atenção, percebia-se-lhe nos olhos um olhar magoado. E ela não resistia a corações magoados.
Era melhor ir com calma. Arqueou o pescoço e deixou deslizar pela pele a tampa de cristal do frasco de perfume. Lentamente. Não valia a pena ir até ao fim da estrada
se não se apreciasse a viagem.
Passou o dedo pela linha acima dos seios e imaginou os dedos dele ali pousados. A boca.
Apercebeu-se de que há muito tempo não desejava um homem assim tão... ardentemente. E como já era demasiado tarde para uma brincadeira rápida e anónima entre os
lençóis, seria sensato conhecê-lo um pouco melhor antes de o deixar pensar que conseguira levá-la para a cama.
- És pontual, não és, cher? - comentou em voz alta quando bateram à porta. Verificou uma última vez o seu reflexo no espelho, soprou um beijo a si mesma e foi abrir
a porta.
O fato assentava-lhe bem, com muita classe, parecia um oficial, concluiu. Estendeu a mão e passou os dedos pela lapela cinza-pedra.
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- Mmm. Sabes mesmo aprumar-te, cher.
- Desculpa, o meu cérebro deixou de funcionar e só consigo dizer: Uau!
Lena lançou-lhe aquele olhar maroto de pestanas baixas e descreveu um círculo lento sobre os saltos altos.
- Isto resulta contigo, então?
O vestido ajustava-se-lhe ao corpo, delineava-o e tremulava. As glândulas dele executavam agora uma dança jovial.
- Oh, sim! Resulta mesmo bem! Chamou-o com o dedo.
- Chega aqui por um instante. - Desviou-se, enfiou a mão no braço dele e virou-se para um velho espelho de moldura de prata. - Não estamos elegantes? - disse, e
o seu reflexo riu-se para o dele. - Aonde me vais levar, cher?
- Já vamos saber. - Pegou num lenço de pescoço de seda vermelha e pô-lo sobre os ombros dela. - Vais estar suficientemente aquecida?
- Se não estiver, então afinal este vestido não está a resultar. - Saiu para o pequeno alpendre com passos decididos. Estava prestes a estender-lhe a mão quando
reparou na comprida limusina branca estacionada junto ao passeio.
Era raro ficar sem palavras, mas demorou uns bons dez segundos a recuperar a voz e a lucidez.
- Compraste um carro novo, querido?
- É alugado. Desta forma ambos podemos beber todo o champanhe que nos apetecer.
Para um primeiro encontro, pensou enquanto Declan a levava para baixo, aquele prometia. E melhorou ainda mais quando o chauffeur de farda lhes abriu a porta com
uma vénia.
Lá dentro havia dois baldes prateados. Um com uma garrafa de champanhe e outro com uma floresta de túlipas púrpura.
- As rosas seriam óbvias - disse ele, pegando numa flor para lha oferecer. - E tu és o oposto disso.
Lena girou a túlipa sob o nariz.
- É assim que seduzes as miúdas em Boston? Declan serviu-lhe uma taça de champanhe.
- Não há mais miúda nenhuma. Desconcertada, ela bebeu um gole.
- Estás a deixar-me maravilhada, Declan.
- A ideia é essa. - Fez tilintar o copo no dela. - Sou mesmo bom a levar uma ideia até ao fim.
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Lena recostou-se e cruzou as pernas num movimento lento e propositado que sabia que captaria a atenção dele.
- És um homem perigoso. Sabes o que te torna realmente perigoso? Isso só se revela se se olhar bem debaixo de todo esse verniz.
- Não te vou magoar, Lena.
- Oh, uma ova é que não vais. - Mas soltou uma gargalhada lenta e deliciada. - Isso faz parte do risco, doçura. E, até aqui, estou a gostar.
Declan optou por um elegante restaurante francês de estilo europeu. Os empregados usavam gravata preta, a luz era matizada e a mesa do canto estava concebida para
a intimidade.
Uma segunda garrafa de champanhe chegou segundos depois de se terem sentado, sinal de planeamento prévio. Possivelmente o primeiro de muitos.
- Disseram-me que a comida aqui é notável. É uma casa do início do século vinte - continuou. - Estilo neocolonial georgiano, e pertenceu a um artista. Foi uma casa
particular até há cerca de trinta anos.
- Investigas sempre a história dos restaurantes que frequentas?
- Questões de ambiente, sobretudo em Nova Orleães. E também de cuisine. Dizem que o caneton a l'Orange é uma especialidade da casa.
- Então um de nós devia pedi-lo. - Intrigada, Lena pôs a ementa de lado. Ele não era apenas divertido, pensou. Não era apenas sexy e elegante. Era interessante.
- Desta vez escolhes tu.
Das entradas ao soufflé de chocolate, Declan pediu tudo com o à-vontade de alguém acostumado a jantares refinados em restaurantes exclusivos.
- O teu francês é bom, pelo menos para fazer os pedidos. Costumas utilizá-lo noutras ocasiões?
- Sim, mas o cajun francês ainda consegue desconcertar-me. - Já foste a Paris?
- Já.
Lena inclinou-se para a frente com os braços cruzados na ponta da mesa e o olhar fixo no dele.
- É maravilhosa?
- É.
- Gostava de lá ir um dia. A Paris e a Florença, a Barcelona e a Atenas. - Eram sonhos entusiasmantes e coloridos, e a expectativa de os realizar era tão emocionante
quanto o desejo. - Aposto que já foste a todos esses lugares.
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- A Atenas não. Ainda não. A minha mãe gostava de viajar, e quando eu era miúdo íamos todos os anos à Europa. E de dois em dois anos à Irlanda. Ainda temos lá família.
- E de todos os lugares onde estiveste, qual é o teu preferido? - Pousou os cotovelos sobre a mesa e apoiou o queixo nos dedos entrelaçados.
- É difícil dizer. A costa oeste da Irlanda, as colinas da Toscana, uma esplanada em Paris. Mas, por agora, o meu lugar preferido é aqui mesmo.
- Lá estás tu outra vez com falinhas mansas. Muito bem, fala-me de Boston.
- É uma cidade portuária da Nova Inglaterra, de grande importância histórica. - Quando ela se riu, Declan recostou-se e absorveu-lhe o riso. - Oh, não era a isso
que te referias...
- Fala-me da tua família. Tens irmãos, irmãs?
- Dois irmãos e uma irmã.
- Uma família grande.
- Estás a brincar? Os meus pais eram muito cautelosos na questão do "crescei e multiplicai-vos". A minha mãe tem seis irmãos e o meu pai vem de uma família de oito.
Nenhum dos irmãos deles tem menos de cinco filhos. Somos uma legião.
- Tens saudades deles.
- Tenho? Está bem, tenho - admitiu com relutância. - Aqui, a esta simpática distância de segurança, apercebi-me de que gosto realmente da minha família.
- Virão visitar-te?
- Acabará por acontecer. Esperarão todos que a minha mãe volte novamente a falar comigo. Lá em casa tudo gira em volta dela.
Lena foi provando as entradas que ele pedira para ela. Não usava anéis, e Declan perguntou-se porquê. Tinha mãos encantadoras, esguias, elegantes, delicadas. A chave
de prata pendia contra a pele suave e trigueira e tinha um brilho prateado nas orelhas. Mas nada nos dedos e nos pulsos, maravilhosamente desprovidos de adornos.
Perguntou-se se seria alguma espécie de estratagema para fazer com que um homem reparasse em cada uma das suas linhas, curvas e gestos.
Raios, ela estava realmente a afectá-lo.
- Achas que a tua mãe está zangada contigo?
Declan teve de fazer um esforço para conseguir retomar o fio à meada.
- Zangada não. Irritada, aborrecida, desiludida. Se estivesse realmente
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zangada, estaria aqui a azucrinar-me, a consumir-me até eu ceder à sua terrível vontade.
- Quer que sejas feliz?
- Sim. Amamo-nos como dois idiotas. Mas ficaria bem mais contente se a minha felicidade encaixasse nas ideias dela.
Lena inclinou a cabeça e ele captou novamente o faiscar de prata através dos espessos e escuros caracóis do cabelo.
- Porque é que não lhe dizes que isso te magoa?
- O quê?
- Se nunca lhe disseres que isso te magoa, como é que queres que ela o saiba?
- Desiludi-os.
- Oh, não desiludiste nada - retorquiu Lena com uma espécie de simpatia impaciente. - Achas que a tua família te quer ver infeliz e insatisfeito? Casado com uma
mulher que não amas, apostado numa carreira que não desejas?
- Sim. Não - respondeu. - Honestamente, não sei.
- Então acho que devias perguntar-lhes.
- Tens irmãos?
- Não. E esta noite vamos falar de ti. Eu fico para outra altura. Encontraste o que querias nas lojas de antiguidades?
- Algumas coisas, como sempre. - Sentia-se mais à-vontade a falar de aquisições do que da família, e respondeu-lhe ponto por ponto até chegar o prato principal.
- Como sabes o que pretendes antes de teres o quarto pronto?
- Sei simplesmente. - Encolheu os ombros. - Não sei explicar. Tenho um grandioso sofá à espera para a salinha que dá para o rio. Vou dedicar-me a ela a seguir, e
não é um trabalho tão árduo como o da cozinha. Paredes e soalhos, sobretudo. Quero aplicar-me nos interiores para depois me concentrar nas varandas, nas escadarias
duplas e, com sorte, começar a pintar a casa em Abril. Assim, conseguiremos trabalhar novamente no interior antes do calor do Verão.
- Porque é que estás a esforçar-te tanto? A casa não vai fugir dali.
- Lembras-te de te falar da minha natureza competitiva e obstinada?
- Isso não significa que não possas relaxar um pouco. Quantas horas por semana estás a trabalhar?
- Não sei. Geralmente, dez ou doze por dia. - Sorriu e deu-lhe a mão. - Estás preocupada comigo? Tiro mais tempo de folga se o passares comigo.
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- Não estou assim tão preocupada contigo. - Mas deixou a mão na dele, deixou-o tomá-la na sua palma dura e calejada. - Mas vem aí o Mardi Gras. Se não tiras tempo
para apreciar isso, mais valia teres ficado em Boston. - Olhou para o soufflé duplo que o empregado colocara no centro da mesa. - Oh, meu Deus! Meu Deus, meu Deus!
- Inclinou-se para a frente, fechou os olhos e aspirou o aroma. E estava a rir quando os abriu novamente. - E o teu, está onde?
Levou-a a dançar. Descobriram um clube onde tocavam os lentos fox-trots e os swings jazísticos dos anos 30, e surpreendeu-a ao fazê-la girar na pista até as pernas
dela fraquejarem.
- És cheio de surpresas.
- Podes crer! - Rodopiou-a nos braços e levou-lhe a tensão arterial aos píncaros quando lhe percorreu o corpo e lhe agarrou nas ancas. O corpo dela baloiçou contra
o dele, uma onda deslizando sobre outra onda enquanto um saxofone tenor gemia.
Inclinava-a para trás e fazia-a rir mesmo quando a pulsação dela disparava. Lena deixava pender a cabeça e o cabelo escorria-lhe pelas costas quando ele aproximava
o rosto do seu. Os lábios dele roçavam-lhe no queixo numa mera insinuação dos dentes, depois tornava a erguê-la, envolvia-a, seduzia-a.
As luzes eram de um azul quente e vaporoso, e os movimentos dele tão fluidos que parecia estarem a mover-se debaixo de água. Lena sentiu no estômago aquele anseio
sub-reptício para o qual não estava preparada. Semicerrou os olhos e passou a mão pelo cabelo dele para o aproximar mais de si, um último centímetro mais para que
a boca dele se unisse à sua.
- Estás bem para mim, Lena. Estamos bem um para o outro. Ela abanou a cabeça e virou-a de modo a que o seu rosto ficasse encostado ao dele.
- Se fazes amor tão bem como danças, deves ter deixado um rasto de sorrisos femininos atrás de ti.
- Vais poder comprová-lo. - Mordiscou-lhe o lóbulo da orelha e sentiu-a estremecer repentinamente. - Quero tocar-te. Sei como a tua pele vai reagir ao meu toque.
Sonhei com isso.
Lena mantinha os olhos fechados, tentando refrear aquele anseio.
- Limita-te a dançar comigo. Está a ficar tarde e quero mais uma dança.
Na limusina, apoiou a cabeça no ombro dele. A música, o vinho e
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as luzes suaves ainda continuavam a agitar-lhe a cabeça. Sentia-se inundada de romance, e saber que fora essa a intenção dele não diminuía o efeito. Apenas o acentuava.
Era um homem que se dava ao trabalho dos pormenores. Dos pequenos e grandes pormenores. Com a casa que escolhera, com a mulher que queria.
Admirava isso. Admirava-o.
- Tu sabes entreter uma miúda, cher.
- Deixa-me entreter-te amanhã à noite.
- Amanhã à noite trabalho.
- Então na tua próxima noite livre.
- Vou pensar nisso. Não estou a ser pudica, Declan. - Sentou-se direita para poder olhar para ele. - Não faz o meu género. Estou a ser prudente. Também não posso
dizer que isso me preocupe muito, mas, no que te diz respeito, creio que é a coisa mais inteligente a fazer. E eu gosto de agir com inteligência. - Passou-lhe o
dedo pelo rosto enquanto a limusina deslizava junto ao passeio em frente à casa dela. - Agora vais acompanhar-me até à porta e dar-me um beijo de boas-noites.
Declan levou o balde de prata com as túlipas púrpura. Pousou-o diante da porta e depois emoldurou-lhe o rosto com as mãos.
O beijo foi mais doce do que Lena esperava. Estava preparada para o desejo, para o desejo persuasivo e insinuante que poderia derrubar a sua resistência. Em vez
disso, Declan ofereceu-lhe um final de noite doce e gentil. Com romance, tal como começara.
- E se for antes de ires trabalhar? - Aproximou os lábios da mão dela. - Levo-te a um piquenique.
Olhou para ele, completamente perdida.
- Um piquenique?
- Deve estar bom tempo. Podemos estender uma manta junto do tanque. Podes trazer o Rufus para fazer de pau-de-cabeleira. Gosto de o ver a saltar para dentro do tanque.
- Raios! - Agora era ela quem aprisionava o rosto dele nas mãos. - Raios! Quero que entres já naquela enorme limusina branca!
- Está bem. - Afagou-lhe o cabelo. - Vou só esperar até entrares.
- Entra já na limusina - repetiu ela. - Paga ao chauffeur e diz-lhe que vá para casa. E depois voltas para aqui.
Declan cerrou as mãos sobre os punhos dela e sentiu-lhe a pulsação acelerada.
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- Cinco minutos. Não mudes de ideias. Dois minutos - emendou. - Cronometra-me.
Enquanto ele galgava as escadas, Lena pegou nas flores e entrou em casa. Se era um erro, não seria o primeiro, pensou. Nem o último.
Acendeu as velas e pôs a tocar Billie Holiday. O sexo seria fácil, lembrou a si mesma. Quando acontecia entre dois adultos sem compromissos e com algum afecto a
acompanhar o desejo, só podia ser uma celebração.
Tivesse ou não sido persuadida, a decisão era dela. Não valia a pena arrepender-se antes de ter sequer começado.
Declan bateu à porta. O facto de ele bater à porta em vez de entrar logo fê-la sorrir. Boas maneiras e sangue quente. Uma combinação interessante. Irresistível.
Abriu a porta e a voz plangente de Billie Holiday jorrou lá para fora. Declan enfiou as mãos nos bolsos e sorriu-lhe.
- Olá.
- Olá novamente, borracho. - Lena estendeu a mão e agarrou-lhe na gravata. - Anda cá. - Puxou-o para dentro, tê-lo-ia arrastado directamente para o quarto.
Mas Declan pousou a mão nas ancas dela e puxou-a para si.
- Gosto da tua música. - Fê-la dançar com ele. - Quando conseguir deixar de olhar para ti, digo-te se gosto da tua casa.
- Tiveste aulas para saber o que dizer às mulheres para se apaixonarem por ti?
- É um dom natural. - Roçou os lábios pelos cantos da boca dela, por cima do sinalzinho sexy. - As ruas de Boston estão pejadas de conquistas minhas. Aquilo estava
a pôr o trânsito num caos e foi por isso que a municipalidade me pediu para partir. - Roçou a face pela dela. - Sinto o teu cheiro enquanto durmo. E acordo a desejar-te.
O coração dela estremeceu, como se se enchesse de calor depois de muito tempo ao frio.
- Percebi que trazias sarilhos assim que entraste no meu bar. - Retesou-se sob a mão que lhe percorria as costas. - Só não sabia até que ponto.
- Imensos sarilhos. - Levantou-a do chão e esmagou a boca contra a dela até ambos gemerem. - Para onde?
- Mmm. Tenho várias possibilidades em mente.
O sangue que restava na cabeça dele foi disparado directamente para as virilhas.
- Ah! Referia-me a onde fica o teu quarto.
Foi com uma gargalhada lenta que Lena lhe mordeu o lábio inferior.
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- A porta à esquerda.
Teve uma série de impressões enquanto a levava para o quarto. Cores vibrantes, madeira velha. Mas a maior parte dos seus sentidos estava absorvida pela mulher nos
seus braços. O peso dela, as formas e o aroma. A surpresa que lhe perpassou pelo rosto quando a pousou no chão junto da cama e não em cima dela.
- Gostava de não me apressar, se não te importares. - Passou a ponta do dedo pela clavícula dela, pela encantadora curva do seio que o vestido desvelava. - Sabes,
como se estivesse a desembrulhar um presente.
- Não posso dizer que me importe.
Esperava uma precipitação - mãos rápidas, boca esfomeada - que correspondesse ao desejo implacável que vira no olhar dele. Quando lhe agarrou nas mãos e entrelaçaram
os dedos, quando os lábios pousaram sedosos sobre os seus, lembrou-se de como ele controlara impiedosamente a ira no dia anterior.
Como se esse controlo se estendesse também a outras paixões.
Não estava preparada para o romance. Declan compreendera isso quando ela vira as túlipas. Mais do que surpresa, houvera suspeita nos olhos de Lena. Tal como havia
agora enquanto ele abrandava o ritmo e se demorava no sereno prazer de um beijo.
Já não era suficiente seduzi-la até à cama. Queria seduzir aquela suspeita até a tornar num prazer indefeso.
Os lábios dela estavam quentes e desejosos. Não sentia qualquer dificuldade em unir os seus aos dela, em vogar naquele indolente deslizar de línguas enquanto os
corpos se embalavam juntos como se ainda estivessem a dançar.
Abriu o fecho do vestido num lento deslizar da mão e passou os dedos pela pele assim exposta. Lena arqueou as costas e só conseguiu ronronar.
- Tens boas mãos, cher, e lábios muito sexy. - Observava-o agora, tal como ele a observava, e desapertou-lhe o nó da gravata. - Vamos lá ver o resto de ti.
Havia algo de especial em despir um homem de fato, pensou. O tempo que levava a remover todas as camadas até chegar à pele, a expectativa que se criava, a curiosidade
que despertava. Declan tocou-lhe enquanto ela lhe desabotoava a camisa e fez-lhe deslizar o vestido pelos ombros até pender, eroticamente, na curva dos seios. Mordiscava-lhe
os lábios, nunca se apressava, nunca se atirava às cegas.
E quando lhe desabotoou a camisa e lhe passou as mãos pelo peito
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com um pequeno murmúrio de aprovação, sentiu o pesado bater do coração dele sob as suas mãos.
- Tens um corpo magnífico para um advogado.
- Ex-advogado. - Era como morrer, pensou, morrer centímetro a centímetro enquanto aqueles dedos compridos e esguios de unhas vermelho-vivas o percorriam. Lena beliscou-lhe
levemente os bícepes e lambeu os lábios.
- Sim, és realmente cheio de surpresas. Gosto de um homem forte. - Bateu com as unhas na fivela do cinto e o seu sorriso era de fêmea. De felina. - Vamos lá ver
que outras surpresas tens para mim.
Estavam novamente a dançar a mais velha das danças e, de certo modo, era ela quem conduzia. Os músculos da barriga dele estremeceram quando Lena retirou o cinto
com brusquidão e o atirou para cima do ombro.
Na sua mente, Declan viu-se a si próprio a atirá-la para cima da cama e a introduzir-se com força, a si e àquela necessidade incontrolável, dentro dela. Ela aceitá-lo-ia.
Esperá-lo-ia.
Em vez disso, agarrou-lhe em ambas as mãos antes que pudesse desapertar-lhe as calças e levou-as aos lábios. Observou-a e viu a surpresa - e novamente a suspeita.
- Parece que não estou a conseguir acompanhar-te - disse em tom de brincadeira. - E já que não paro de imaginar o que tens debaixo desse vestido, gostava de descobrir
se as minhas especulações se aproximam da realidade.
Pousou os lábios sobre o ombro desnudado dela e usou-os para fazer o tecido escorregar pelo braço abaixo. E deu graças pelas leis da gravidade quando o vestido escorregou
e se amontoou aos pés dela.
Usava renda preta.
E era a fantasia de qualquer homem. Pele trigueira, cabelo solto, seios cheios e firmes, quase não contidos na elegância de rendilhados.
O torso esguio, as ancas gentilmente arredondadas, com mais rendas a descerem-lhe pelas pernas. Pernas bem torneadas, com meias de um v negro profundo e saltos altos
assassinos.
- Está quase. - A respiração queimava-lhe os pulmões. - Quase. O que é isto? - Passou a ponta do dedo pela tatuagem na parte interior da coxa dela, acima do bordo
rendilhado da meia.
- É o meu dragão. Está de guarda aos portões. - Lena tremia agora, e não estava preparada para tremer. - Muitos homens pensam que conseguem passar por ele. E acabam
por se queimar.
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Declan acariciou-a mais acima, ao longo do sensível vale entre os rendilhados e a coxa.
- Vamos brincar com o fogo.
Puxou-a com força contra si e devorou-lhe a boca. E quando isso não foi suficiente, fê-la virar-se para lhe morder o ombro e o pescoço. Enterrou o rosto no cabelo
dela e correu as mãos pelo seu corpo, enchendo-as com os seios cobertos de rendilhados.
Lena arqueou-se, enclavinhou os braços em volta do pescoço dele e abandonou-se. O mergulho na impetuosidade deixou-a estonteada, brutalmente excitada e pronta para
ser tomada. Agora sentia a avidez dele, e a sua, que crescia para se lhe unir.
Declan deslizou a mão e enfiou-a entre as pernas dela, pressionou e trouxe-a até ao limite crucial da libertação. Mas, antes que ela se abandonasse, correu os dedos
pela coxa dela e, com um rápido gesto, desprendeu-lhe uma das ligas.
Lena ficou de respiração suspensa. O seu corpo retesou-se.
- Mon Dieu!
- Quando estiver dentro de ti, não conseguirás pensar em mais nada. - Desprendeu a outra liga. - Mas primeiro preciso de te tocar, de te tocar como tenho sonhado
tocar-te. - Roçou os lábios pelo ombro dela até afastar a alça do soutien. - Angelina. - Virou o rosto dela para si, deixou que os seus dedos se lhe enterrassem
no cabelo e puxou-lhe a cabeça para trás. - Esta noite és minha.
Negação, desafio, ambos os sentimentos se debatiam naquele jogo de sedução.
- Eu pertenço a mim mesma. Levantou-a e deitou-a na cama.
- Esta noite vamos pertencer um ao outro.
Cerrou a boca sobre a dela, para lhe deter as palavras, para lhe intoxicar o cérebro. Lena virou a cabeça para inspirar, para tentar recompor-se. Mas os lábios dele
foram descendo até ao seio, até à carne, até aos rendilhados. Os longos e húmidos apertos na barriga libertaram-lhe os músculos, derreteram-lhe a vontade.
Abandonou-se, dizendo a si própria que estava a render-se às suas próprias necessidades e não a ele.
Declan sentiu-a entregar-se, sentiu-a a ceder. Ouviu-o no lento e profundo gemido de prazer e aceitação.
E apoderou-se daquilo por que ansiara dolorosamente desde o momento em que a vira por entre a neblina matinal.
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O corpo dela era um tesouro de pele perfumada e curvas femininas. Alimentou-se com aquele sabor em sorvos lentos e golfadas demoradas. Depois libertou os seios dela
nas suas mãos, na sua boca. Sentia o sangue a enfurecer-se como uma tempestade de fogo, mas deixou-se arder e torturou-os a ambos.
Quando fez a renda rolar pelas coxas abaixo, Lena arqueou-se. Abriu-se. Declan percorreu-a com os dedos, observou-lhe o rosto à luz das velas enquanto ela fechava
os olhos, enquanto os lábios tremiam num gemido. E quando os introduziu dentro dela, dentro do veludo quente e húmido, Lena arqueou-se e gritou. Pô-lo louco.
Comprimiu o rosto contra a barriga dela e fê-la subir aos céus. O corpo de Lena era uma massa de dores, de alegrias, com a ponta aguçada das sensações a atravessá-la
como um relâmpago de luz até explodir dentro dela, fazendo-a estremecer descontroladamente.
Ela estendeu a mão e cerrou-a no membro dele. Estava duro como pedra. Queria-o dentro de si tanto quanto ansiava por respirar.
- Agora. Quero-te. - Sentiu-o estremecer, no preciso momento em que ela própria estremeceu. Viu-se a si mesma nos olhos dele enquanto Declan se erguia sobre ela.
- Quero que me preenchas. Que me preenchas por completo.
Declan agarrou-se à última réstia de controlo e, quando as pernas dela o envolveram, penetrou-a lentamente, muito lentamente. Penetrou-a ainda mais fundo quando
ela se ergueu para ele. Deixou-se ficar assim, de respiração presa na garganta, e tudo o que ele era perdeu-se dentro dela.
Agora eram suspiros e uma respiração ofegante. Mantinham os olhos um no outro e moviam-se, num ritmo quase indolente que espalhava o prazer como uma piscina quente.
Os lábios uniram-se e Declan sentiu os dela curvarem-se contra os seus antes de erguer a cabeça e a ver sorrir.
A carne deslizava sobre a carne numa fricção de seda. A música, esse trágico soluçar que vinha da sala, tornou-se numa súbita explosão celebratória vinda da rua,
e ambas se fundiram na sua cabeça juntamente com a respiração ofegante dela.
Lena retesou-se debaixo dele e inclinou a cabeça para trás até expor a linha da garganta aos seus lábios. Apertou-se em volta dele, estremeceu, estremeceu. Declan
enterrou novamente o rosto no cabelo dela e desta vez também se deixou voar.
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Mais tarde, deitado a observar o jogo das sombras no tecto enquanto lhe acariciava as costas, enquanto a absorvia, perguntou:
- Vais-me deixar ficar? Ou apanho um táxi? Lena olhava fixamente para as sombras.
- Fica.
Capítulo Nove
Acordou ao romper do dia. Lena aconchegara-se nele durante o sono, mas reparou que ela mantinha o braço entre eles e um punho cerrado sobre o coração. Como se estivesse
a protegê-lo, pensou. A pequena chave prateada pendia contra a mão.
Apetecia-lhe erguer aquela mão e descerrar-lhe gentilmente os dedos. Expor-lhe o coração. O seu já lho entregara. Entregara-lho assim que a vira, concluiu.
Um sobressalto e um choque para um homem que acreditava não ser capaz de amar. A não ser a família ou os amigos. A sua crise pessoal por causa da Jessica - que todos,
incluindo a própria Jessica, afirmavam que era perfeita para ele - convencera-o de que desperdiçara a única oportunidade de um relacionamento duradouro e feliz com
uma mulher.
Algo difícil de aceitar para um homem que, no seu âmago, acreditava firmemente na família, no lar e no casamento. E apercebeu-se de que essa aceitação era largamente
responsável pela infelicidade e inquietação que o perseguira durante meses como um cão fiel.
E agora olhava para a mulher que era a resposta. E não achava que ela estivesse disposta a ouvir a pergunta.
Por conseguinte, teria de a persuadir, de um modo ou do outro, mais cedo ou mais tarde. Porque falara verdade quando na noite anterior dissera que pertenceriam um
ao outro.
Pensou em acordá-la e lembrar-lhe como se davam bem na cama. Não conseguia pensar em melhor maneira de começar o dia, sobretudo porque ela era quente e macia e se
enrolava nele.
Mas não lhe parecia justo despertá-la quando tinham dormido tão pouco. O dia de trabalho dela terminava bastante mais tarde que o seu.
Afastou-se dela, não sem arrependimento, e saiu da cama. Ela agitou-se
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e suspirou no sono, enrolando-se depois no calor que ele deixara.
Declan agarrou nas calças e foi para a casa de banho.
Na sua opinião, podia descobrir-se muito sobre uma pessoa através da sua casa de banho. A dela estava ao mesmo tempo rigorosamente limpa e descuidada. Grossas toalhas
de tom verde-floresta combinavam com os apliques brancos e acentuavam o padrão de pequenos diamantes espalhado pelo lajedo.
Luxuriantes plantas verdes alinhavam-se no parapeito e um trio de narcisos erguia-se de uma esguia garrafa verde-pálida.
Havia mais garrafas, reflexos de jóias e caixas fechadas com óleos fragrantes, loções e sais de banho. Reparou que ela gostava de sabonetes requintados e os guardava
numa elegante taça.
Também descobriu que a água quente dela durava mais do que a sua. Sorriu de felicidade com um banho de quinze minutos que aqueceu a divisão como um banho turco.
Quando saiu da casa de banho ela ainda dormia. Estava agora estendida sobre os cobertores e o sol matinal incidia oblíquo sobre as costas esguias e desnudadas. Afastou
firmemente da cabeça a ideia de voltar a enfiar-se na cama com ela e concentrou-se antes em descobrir café.
A zona da sala de estar tinha tectos altos e soalhos de madeira escura. O esponjado azul das paredes fazia lembrar ganga desbotada. Numa delas via-se uma lareira,
emoldurada pela mesma madeira escura e com uma prateleira queimada pelo sol que ele cobiçou de imediato. Os adornos eram de madeira envelhecida e a tinta de cor
creme estava a descascar.
Compreendeu porque é que ela deixara a casa assim: para que a sua história e carácter sobrevivessem.
A complementar as paredes desbotadas pendurara coloridos posters emoldurados. Reparou que eram cartazes de anúncios. Mulheres elegantes a vender champanhe, homens
de ar aprumado empunhando charutos.
A meio da sala havia um sofá de costas altas de tom azul real, coberto com almofadas, como as mulheres cobrem misteriosamente os sofás e as camas.
Admirou o estilo que ela criara ali. Mesas velhas e subtilmente gastas e cores agressivas. E gostou de ver as suas túlipas na mesinha do café.
Foi à cozinha e deu por si a sorrir. Não era frequente deparar com
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fotografias de nus - masculino e feminino - a preto e branco nas paredes de uma cozinha.
Mais feliz ficou quando descobriu o café.
Fechou a porta para que o som da moagem dos grãos não chegasse ao quarto. E, enquanto o café fervia, pôs-se à janela da cozinha a observar aquela zona de Nova Orleães.
Ouviu deslizar a porta da cozinha.
Lena vestia um roupão vermelho curto e tinha os olhos pesados de sono, bem como um sorriso de preguiça.
- Desculpa, pensei que tinha abafado o som do moinho do café.
- Não ouvi. - Respirou profundamente. - Mas cheirei os resultados. Estás a preparar o pequeno-almoço, cher?
- Queres torradas? É o que sei fazer melhor.
- Oh, pensei que ontem à noite já tinha provado o teu melhor. - Continuou a sorrir e avançou lentamente para ele, rodeando-lhe o pescoço com os braços. - Dá-me outro
- disse, erguendo a boca para a dele.
Acordara sozinha e quase tivera a certeza de que ele se fora embora. Nunca deixava os homens passarem a noite na sua cama. Acabavam sempre por se esgueirar porta
fora. Era melhor mandá-los logo embora e dormir sozinha do que acordar sozinha.
Depois vira a camisa dele, o casaco, os sapatos, e ficara deleitada. Demasiado deleitada. Quando um homem tinha assim tanto poder, era altura de recuperar algum.
A maneira mais segura era obnubilar-lhe a mente com sexo.
- Porque é que não te limitaste a virar-te de lado e a acordar-me, doçura?
- Pensei nisso. - Ainda pensava nisso. - Mas achei que precisavas de mais dez minutos de sono pois vais trabalhar hoje à noite. Mas como já estás acordada...
Ela riu e afastou-se.
- Como já estou acordada, quero café. - Abriu um armário e lançou-lhe um olhar cúmplice sobre o ombro. - Se pedires com jeitinho, talvez te prepare o pequeno-almoço.
- Queres que me ponha aqui a suplicar-te de pé, de joelhos ou completamente deitado?
- Tu excitas-me, Declan. Vou preparar-te torradas. Le pain perdu - acrescentou quando ele ficou boquiaberto. - Torrada à francesa. Já devorei quase uma baguette
inteira. - Passou-lhe para as mãos uma grossa caneca branca cheia de café.
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- Obrigado. Já que és boa na cozinha, não vamos precisar de contratar uma cozinheira quando casarmos e criarmos os nossos seis filhos.
- Seis?
- Sinto-me obrigado a manter a tradição dos Sullivan-Fitzgerald. Gosto mesmo da tua arte na cozinha. Não é um local habitual para nus.
- Porquê? - Pegou numa caçarola de ferro negro. - Cozinhar é uma arte e é sexy se for bem feita.
Pegou numa taça azul. Declan viu-a partir um ovo na borda e fazer a clara e a gema deslizar para dentro, tudo com uma única mão.
- Estou a ver o que queres dizer. Faz outra vez. Lena soltou uma risada e partiu outro ovo.
- E se fosses lá dentro pôr música? Isto não vai demorar. Comeram sentados a uma pequena mesinha articulada que ela enfiara debaixo de uma das janelas da sala de
estar.
- Onde aprendeste a cozinhar? - perguntou-lhe.
- Com a minha avó. Também tentou ensinar-me a costurar, mas para isso não tive grande queda.
- Surpreende-me que não tenhas aberto um restaurante em vez de um bar.
- Gosto de cozinhar quando me apetece. Como modo de vida, fazer isso a toda a hora...
- Pois... Como é que chegaste a proprietária de um bar?
- Queria o meu próprio negócio. Quando se trabalha para alguém, dizem: faz isto, não faças isso, anda cá, vai ali. Não condiz comigo. Portanto, frequentei a escola
comercial e pensei: que negócio pretendo? Não quero vender lembranças, não quero uma loja de lembranças, não quero vender roupa. Além de que tudo isso se vende em
Nova Orleães, mas o que é que dá ainda mais dinheiro? O prazer. Um pecadilho inofensivo e diversão, é isso o que as pessoas vêm procurar à Big Easy(1). Portanto...
Et Trois.
- Há quanto tempo o tens?
- Ora bem. - Já tinha comido a sua torrada, e espetou o garfo numa das quatro que empilhara no prato dele. - Há cinco anos.
- Abriste um bar quando tinhas vinte e três anos?
- Ei, como sabes que idade tenho?
(1) Nome informal com que se designa Nova Orleães, segundo o título homónimo do romance The Big Easy (1970), de James Conaway. (N. dos T.)
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- Disse-me o Remy. Lena olhou para o tecto.
- Et lá Vou ter que lhe chegar a roupa ao pêlo por causa disso. Já devia saber que com a idade de uma mulher não se brinca. Com que mais brincou ele?
Declan concedeu um pouco da sua atenção ao pequeno-almoço.
- Isto está mesmo fantástico. O que é que lhe puseste? Ela não disse nada durante uns dez segundos.
- Estou a ver. Os homens não conseguem deixar de se vangloriar com as suas proezas sexuais.
Incomodado consigo mesmo e com o amigo, Declan respondeu:
- Não foi isso. Foi uma coisa nostálgica. E carinhosa. Significaste qualquer coisa para ele. Ainda significas.
- Sorte a dele eu saber isso e sentir o mesmo. Lembras-te da primeira rapariga com quem estiveste no banco de trás, Declan? Lembras-te dela com afeição?
- A Sherry Bingham, uma bonita loirinha. Amei-a com desespero durante quase todo o último ano de liceu.
Lena apreciou que ele tivesse dito prontamente o nome da rapariga, mesmo que o tivesse inventado.
- Que aconteceu?
- Trocou-me por um jogador de futebol, um defesa esquerdo. Meu Deus, um jogador de futebol sem pescoço e com o QI de um lápis. Ainda continuo zangado com ela. Mas,
voltando a ti... e a propósito, tens mesmo jeito para te esquivares a perguntas pessoais, mas eu fui advogado. De qualquer modo, como conseguiste ter êxito? Aos
vinte e três anos é-se muito jovem para montar um negócio, um negócio que se aguentou quando a maior parte vai abaixo num espaço de três anos.
Lena recostou-se.
- Que diferença é que isso faz, senhor advogado?
- Está bem. - Encolheu os ombros e continuou a comer. - Vou partir do princípio de que assaltaste um banco, de que subornaste a Máfia, de que seduziste e depois
assassinaste o anterior proprietário... depois de ele te deixar o bar em testamento. E continuaste com jogatanas ilegais e prostitutas na sala dos fundos.
- É por isso que tenho andado tão ocupada. Mas prefiro a tua versão. A minha é comparativamente mais aborrecida. Trabalhava depois das aulas e durante o Verão para
poupar dinheiro. Sou boa a poupar quando é preciso. Depois trabalhei a servir bebidas num bar, e frequentei
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uma escola comercial em part-time. O meu avô morreu antes de eu fazer vinte e dois anos. Caiu de uma escada e partiu o pescoço. - Ficou de olhos marejados ao dizer
aquilo. - Acho que ainda continuo zangada com ele.
- Lamento. - Pousou a mão sobre a dela. - Gostavas muito dele.
- Amei-o mais do que a qualquer homem no mundo. O Pete Simone, com as suas sonoras gargalhadas e as suas mãos enormes. Tocava rabeca e andava sempre com um lenço
vermelho. Sempre. Bem... - Pestanejou para afastar as lágrimas. - Tinha um seguro de vida, bem maior do que seria de esperar. Metade para mim, metade para a minha
avó. E ela obrigou-me a ficar com tudo. Não se consegue fazê-la mudar de ideias quando mete uma coisa na cabeça. De modo que investi o dinheiro e um ano depois abri
o meu negócio.
- Não vejo nada de aborrecido nisso. Tens um bom bar, Lena.
- Sim, tenho. - Levantou-se e pegou nos pratos. - É melhor vestires-te, cher, se queres boleia até casa.
Não conseguiu convencê-la a entrar. Teve de se contentar com um beijo estonteante antes de ela o empurrar para fora do carro e partir.
Vê-lo chegar a casa às nove da manhã com o fato amarrotado fez Big Frank esboçar um sorriso e piscar-lhe o olho quando carregava três cepos para uma pilha a arder.
- Ontem à noite o senhor tropeçou na sorte.
Tropecei nalguma coisa, pensou Declan, afagando o coração enquanto entrava em casa para começar a trabalhar.
Lena não queria encontrar-se com ele nessa noite nem na seguinte. Tinha de se contentar com telefonemas que o faziam sentir-se como um adolescente enquanto deambulava
pela casa com o telemóvel e dava voltas à cabeça à procura de um estratagema de conversa para a manter em linha.
As celebrações e os negócios do Mardi Gras estavam próximos, disse-lhe ela. Sendo assim, não tinha tempo para sair e brincar.
Sabia quando estavam a testá-lo, a empatá-lo, a enredá-lo. E decidiu que a deixaria esticar a corda. Até ele a recolher toda depois.
Remy apareceu uma tarde vestindo Hugo Boss e com um colar de contas douradas que tirou e pôs ao pescoço de Declan.
- Quando vens à cidade?
- Pensei juntar-me à loucura geral no fim-de-semana.
- Cher, é Mardi Gras. Todas as noites são fim-de-semana.
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- Nesta zona não. Anda dar uma vista de olhos. - Levou-o até à salinha da entrada, onde Tibald estava empoleirado num escadote a retocar pacientemente os adornos
de gesso do tecto.
- Ei, Tibald! - Remy enfiou os polegares nos bolsos e esticou o pescoço para trás. - Um trabalho magnífico.
- É mesmo. A Effie tem passado bem?
- Os planos de casamento só me dão vontade de beber uns copos. Ontem escolheu o bolo, e até se pensaria que era uma questão de vida ou morte o bolo ter botões de
rosa amarelos ou rosas completamente desabrochadas nas bordas.
- A melhor coisa que um homem tem a fazer nesses casos é dizer que sim com a cabeça a tudo o que ela achar que é melhor e limitar-se a aparecer no dia marcado.
- Podias ter-me avisado antes de eu lhe dizer que gostava das rosas grandes e gordas quando o facto é que ela já se tinha decidido pelos botões amarelos. - Tirou
do bolso uma embalagem de Tylenol. - Tens alguma coisa para eu misturar com isto, Dec? Aquela mulher pôs-me com uma dor de cabeça de todo o tamanho.
Declan pegou numa garrafa de água semicheia.
- Vieste até cá para te esconderes?
- Até ela acalmar. - Remy emborcou os comprimidos e a água e pôs-se a matutar enquanto contemplava o oleado do chão. - Foste tu que pintaste as paredes, Dec, ou
contrataste alguém?
- Fui eu. - Satisfeito, Declan passou os dedos pela superfície lisa das paredes de um verde-Paris. - Nos últimos três dias ocupei-me desta sala. - E durante as noites,
pensou. - Acho que esta cor a faz parecer mais fresca do que um papel de parede com padrões, e gosto do modo como combina com o rodapé.
- És uma típica mistura de Bob Vila e Martha Stewart. De que vais ocupar-te a seguir?
- Da biblioteca. Ainda tenho de tratar de uns pormenores aqui e na cozinha, mas a biblioteca está agendada para a próxima semana. Depois espero poder ocupar-me do
exterior por uns tempos. Dá-me dois desses teus comprimidos.
- Com certeza. - Remy passou-lhe os comprimidos e a água. - Estás com problemas de trabalho ou com problemas de mulheres?
- Um pouco de ambos. Anda à varanda das traseiras, para veres o que os Frank fizeram no jardim.
- Ouvi dizer que uma noite destas levaste a nossa Lena a passear numa enorme limusina branca - disse Remy enquanto se dirigiam para as traseiras. - Que classe.
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- Sou um gajo com classe. - Passou-lhe a garrafa de água e abriu as portas envidraçadas da sala de jantar.
- Andas com ideias de lhe dar romance, é um bom começo.
- As minhas ideias vão para além disso - disse Declan enquanto Remy bebia da garrafa. - Vou casar com ela.
Remy engasgou-se e cuspiu a água.
- Mas que grande cuspidela - comentou Declan. - Podes ficar com a garrafa.
- Meu Deus, Dec! Meu Deus, tu e a Lena vão casar?
- Gostava que o casamento fosse aqui, no Outono. Talvez em Setembro. - Contemplou a varanda, o jardim. Perguntou-se que ave seria aquela que cantava desabridamente.
- A casa não vai ficar pronta, mas isso só contribuirá para o encanto da ocasião. Claro que, se levar mais tempo a convencê-la, podemos agendar a coisa para a próxima
Primavera.
- Isso é que é andar depressa.
- Nem por isso. É apenas uma questão de empenho. - Sorriu enquanto observava o rosto desconcertado de Remy. - Oh, não estavas a referir-te à casa mas à Lena. Ainda
não a pedi em casamento. Ela limitar-se-ia a dizer não. Olha ali, os bolbos começam a desabrochar. Narcisos, túlipas, jarros, é o que os Frank dizem. Enterrados
debaixo de todas aquelas ervas daninhas e trepadeiras, talvez tenham florescido debaixo daquilo durante anos. É notável.
- Dec, acho que precisas de algo mais forte que Tylenol.
- Não estou louco. Estou apaixonado por ela. Começo a pensar que me apaixonei por ela antes de a conhecer. Foi por isso que nunca houve mais ninguém que realmente
me interessasse. Não desta maneira. Porque ela estava aqui e eu ainda não a tinha encontrado.
- Talvez seja eu que precise de algo mais forte.
- Há bourbon na cozinha. E gelo na geladeira. O frigorífico novo deve chegar amanhã.
- Vou preparar uma bebida para os dois.
- Quero só um pouco - disse-lhe Dec distraidamente. - Ainda tenho que trabalhar hoje.
Remy trouxe dois copos e deu um longo sorvo enquanto observava o rosto do amigo.
- Declan, gosto de ti como de um irmão.
- Eu sei que sim.
- Por isso, vou falar contigo de irmão para irmão... se eu tivesse um, e não aquelas minhas irmãs sempre a atormentar-me.
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- Achas que perdi a cabeça.
- Não. Nalgumas situações, raios, na maior parte das situações, um homem pensa com a pila. E geralmente não consegue ver as coisas com muita clareza.
- Agradeço que me tenhas explicado isso, papá.
Remy limitou-se a abanar a cabeça e a deambular de um lado para o outro na varanda.
- A Lena é uma mulher muito sexy.
- Quanto a isso, não se discute.
- Exsuda feromonas, ou lá o que raio é, da mesma forma que as outras mulheres exalam ao perfume com que se borrifam para excitar um gajo. Ela limita-se a respirar
e excita-nos logo.
- Estás a tentar dizer-me que estou enfeitiçado, ou submerso na pesada onda da luxúria.
- Exactamente. - Remy pousou uma mão compreensiva no ombro de Declan. - Nenhum homem te reprovaria por isso. Além do mais, filho, a vossa relação só tem uns mesitos
e, conhecendo eu o modo como costumas carregar a culpa como se fosse a tua arca do tesouro, estou em crer que não desimpediste regularmente a canalização desde que
rompeste com a Jennifer.
- Com a Jessica, idiota. - Divertido e comovido, Declan apoiou-se contra a balaustrada. - Não estou enfeitiçado. Pensei que estava, com uma boa dose de luxúria à
mistura. Mas não é isso. Não é uma questão de canos entupidos e não ando a pensar com a pila. É o meu coração.
- Oh, valha-te Deus. - Remy deu outro valente sorvo no whiskey. - Dec, ainda nem há um mês cá estás.
- As pessoas dizem sempre coisas desse género, como se o tempo tivesse alguma importância. - E como o lado crítico da sua mente lhe dissera a mesma coisa, estava
irritado por ouvir o seu melhor amigo afirmar o mesmo. - Ora essa, há alguma lei que diga que só podemos apaixonar-nos depois de passar um certo período de tempo,
durante o qual as duas partes confraternizam, comunicam e, se possível, praticam sexo de modo a assegurar a compatibilidade? Se há, e se funciona, explica-me então
a taxa de divórcios.
- Aqui com dois advogados a debater o assunto, ficamos cá até à semana que vem.
- Então deixa-me dizer-te isto. Nunca me senti assim antes, nunca na minha vida. Nem creio que conseguisse. Acho que havia qualquer coisa dentro de mim que não funcionava
como devia.
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- Por amor de Deus, Dec.
- Não consegui amar a Jessica. - A culpa voltou a insinuar-se na sua voz. - Não consegui, e bem tentei. Raios, quase me contentei com o afecto, o respeito e um passado
comum, porque nunca pensei conseguir mais do que isso, ou ser capaz de dar mais do que isso. Mas não é verdade. Nunca me senti assim, Remy - repetiu. - E sinto-me
bem.
- Se queres a Lena, então que assim seja. Só que, Dec, independentemente do que sintas, isso não te garante que ela sinta o mesmo.
- Talvez me parta o coração, mas, raios, sentir muito é bem melhor do que não sentir nada. - Dizia aquilo repetidas vezes a si mesmo desde que tomara consciência
de que estava apaixonado por ela. - De um modo ou de outro, tenho que tentar.
Agitou o whiskey que ainda não começara a beber.
- Ela não sabe o que pensar de mim - murmurou. - Vai ser divertido deixá-la descobrir.
Nessa noite ouviu um choro. O soluçar áspero e dilacerado de um homem. Declan agitou-se no sono, acabrunhado de sofrimento, incapaz de fazer parar aquilo, incapaz
de dar ou procurar consolo.
E a mágoa continuou mesmo quando o silêncio por fim chegou.
Capítulo Dez
Bayou Rouse, Março de 1900
Não sabia porque viera ali e se pusera a olhar fixamente para a água enquanto espessas sombras verdes se espalhavam em seu redor, à medida que a noite se adensava
para devorar o dia.
Mas viera, uma e outra vez, para deambular pelo pântano como se, de algum modo, pudesse deparar-se com ela a passear pela curva do rio onde as flores do pântano
desabrochavam.
Ela sorrir-lhe-ia e estender-lhe-ia a mão.
E tudo estaria novamente bem.
Nada voltaria a estar bem.
Temia estar a enlouquecer, o sofrimento escurecia-lhe a mente tal como a noite escurecia o dia. De que outro modo podia ele explicar que conseguia ouvi-la a sussurrar-lhe
durante a noite? Que mais podia ele fazer senão abafar aquele som, aquela dor?
Viu uma garça azul elevar-se do canavial como um fantasma, bela, pura, perfeita, deslizando sobre a água cor de chá até se esgueirar entre as árvores. Para longe
dele. Sempre para longe dele.
Ela desaparecera. A sua Abby fugira para longe dele, como aquela ave fantasma. Era o que toda a gente dizia. A família, os amigos. Ouvira os criados sussurrar que
Abigail Rouse fugira com um zé-ninguém e abandonara o marido e a filha ilegítima.
Acreditava nisso, embora continuasse a procurar em Nova Orleães, em Baton Rouge, em Lafayette, embora continuasse a assombrar o bayou como se ele próprio fosse um
fantasma nas horas mais solitárias da noite.
Ela abandonara-o a ele e à criança.
Agora era ele quem partia, partia completamente menos em corpo. Atravessava cada dia como um homem em transe. E, que Deus o perdoasse,
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não conseguia ser um pai para a criança, para aquela imagem de Abigail que ele duvidava em segredo e com vergonha que fosse do seu próprio sangue. O facto de procurar
por ela trazia-lhe uma dor indescritível.
Deixara de ir ao quarto das crianças. Odiava-se por isso, mas o mero acto de subir as escadas até ao terceiro piso era como afogar-se num mar de desespero.
Diziam que a criança não era dele.
Não. Ali, sob a ténue luz do crepúsculo, com a noite a ganhar vida à sua volta, Lucian cobriu o rosto com as mãos. Não, não conseguia, não queria acreditar nisso.
Tinham concebido a criança juntos, com amor, com confiança, com desejo.
E mesmo que isso fosse mentira...
Baixou as mãos e avançou para a água. Estaria quente, tal como o sorriso dela era quente. Suave, tal como a pele dela era suave. E naquele momento a cor carregava-se
mais e era quase da cor dos olhos dela.
- Lucian!
Ficou petrificado na margem escorregadia.
Abby corria para ele, afastava as frondes de um salgueiro-chorão, com o cabelo solto pelos ombros em anéis carregados como a noite. O seu coração, amortalhado em
sofrimento, despertou com um sobressalto selvagem.
Depois, o último raio de sol trémulo incidiu sobre o rosto dela e Lucian morreu novamente.
Claudine agarrou-lhe nas mãos. O medo deixara-lhe os dedos frios. Vira o que passara pelos olhos dele: a morte.
- Ela nunca quereria que fizesses isso. Nunca quereria que condenasses a tua alma pondo fim à vida.
- Ela abandonou-me.
- Não! Não, não é verdade! Andam a mentir-te. Andam a mentir, Lucian. Ela amava-te. Amava-te a ti e à Marie Rose mais do que tudo.
- Então onde é que ela está? - Libertou a raiva que vivia debaixo do torpor do sofrimento. Agarrou nos braços de Claudine e levantou-a do chão. Parte dele, uma parte
escura e secreta, sentia vontade de lhe esmurrar o rosto, de o apagar por causa da sua ligação a Abigail e ao seu próprio abismo de desespero. - Onde é que ela está?
- Morta! - Claudine gritou e a sua voz ecoou no ar quente e pegajoso. - Mataram-na! Só a morte a poderia afastar de ti e da Rosie.
Afastou-a para o lado e cambaleou até se apoiar contra o tronco de um carvalho.
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- Isso não passa de outra loucura.
- Estou a dizer-te. Sei-o. Sinto-o. Tenho tido sonhos.
- Também eu. - As lágrimas picavam-lhe os olhos e tornavam a luz aquosa. - Também eu tive sonhos.
- Lucian, tens que me ouvir! Eu estava lá naquela noite. Ela veio ao quarto ver a criança. Conheço a Abby desde que éramos bebés. Nela só havia amor por ti e pela
Marie Rose. Eu não devia ter saído da Mansão naquela noite. - Claudine cruzou as mãos sobre o peito, como se mantivesse unidas as duas metades do seu coração despedaçado.
- Passarei o resto da minha vida a pedir-lhe perdão por não ter lá estado.
- Ela levou roupas, jóias. A minha mãe tem razão. - Cerrou firmemente os lábios naquilo que acreditava ser um acto de força, mas era apenas a sua fé enfraquecida.
- Tenho que aceitar.
- A tua mãe odiava a Abby. Mandou-me embora no dia seguinte. Teve medo de me manter lá em casa, medo que eu pudesse descobrir...
Lucian voltou-se repentinamente, de rosto tão contorcido de fúria que Claudine se afastou.
- Queres que eu acredite que a minha mãe matou a minha esposa e depois disfarçou o crime, o pecado, o horror, dando a entender que a Abby tinha fugido?
- Não sei o que aconteceu. Mas sei que a Abby não fugiu. A Mama Rouse foi ter com a Evangeline.
Lucian abanou a mão e virou-se novamente.
- Disparates vudu.
- A Evangeline tem poderes. Disse que houve sangue e dor e medo. E um pecado escuro, escuro. Morte, disse ela, e um túmulo de água. Disse que tu tens duas metades,
e que uma é negra como uma caverna do Inferno.
- Então fui eu que a matei? Cheguei a casa à noite e assassinei a minha mulher?
- Duas metades, Lucian, que partilhavam um útero. Olha para o teu irmão.
O calafrio lancetou-o de cima a baixo, provocando-lhe uma agonia crua no estômago e um rugido abominável na cabeça.
- Não quero ouvir mais! Vai para casa, Claudine. Mantém-te longe da Mansão. - Levou a mão ao bolso, tirou para fora o broche-relógio e enfiou-o na mão de Claudine.
- Leva isto, guarda-o para a criança. - Já não conseguia chamá-la pelo nome. - Deve ficar com alguma coisa que tenha pertencido à mãe.
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Olhou fixamente, com sofrimento, para aquele símbolo na mão de Claudine. O tempo parara para Abigail.
- Estás a matá-la uma segunda vez não acreditando nela.
- Mantém-te longe de mim! - Afastou-se a cambalear em direcção à Mansão Manet, em direcção ao inferno que escolhera. - Mantém-te longe!
- Tu sabes! - gritou Claudine nas costas dele. - Tu sabes que ela era fiel.
Claudine apertou o relógio contra o peito e jurou passá-lo, e à verdade, para a filha de Abigail.
Mansão Manet, Fevereiro de 2002
Declan observava da varanda o dia a ganhar vida. A madrugada era uma mancha rosada no céu a oriente, com laivos de malva, como se fossem sonolentas equimoses. O
ar estava a aquecer. Sentia que estava a aquecer cada vez mais de dia para dia. Ainda não era Março, mas o Inverno começava a retirar-se.
Os jardins, que um mês antes eram umas tristes ruínas, revelavam agora sinais do seu antigo esplendor. As sufocantes trepadeiras, as ervas daninhas invasoras, os
galhos secos e os tijolos partidos tinham sido removidos, revelando assim, centímetro a centímetro, as veredas sinuosas, os arbustos, os bolbos e as plantas que
teimosamente se tinham recusado a morrer.
Um velho caramanchel de ferro estava totalmente recoberto com aquilo a que os Frank chamavam glicínias, e havia um ilhéu de azáleas que exibia rebentos promissores.
Tinha magnólias, pervinca, camélias e jasmim. Anotara tudo o que os Frank recitavam nas suas vozes indolentes. Quando descrevera a trepadeira que imaginava nas colunas
dos cantos, eles disseram-lhe que o que ele queria eram campainhas.
Gostou do som da palavra. Ali as campainhas poderiam tocar livremente.
Achava que o seu corpo estava a habituar-se às cinco ou seis horas de sono perturbado que conseguia dormir por noite. Ou talvez fosse apenas uma energia tensa que
o alimentava.
Algo o impelia, algo o guiava passo a passo através da transformação da casa que lhe pertencia. E no entanto, de algum modo, não lhe pertencia apenas a ele.
Se era Abigail quem assombrava a casa, então era sem dúvida uma
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mulher caprichosa. Havia alturas em que se sentia extremamente confortável, completamente em paz. E outras em que um medo gélido lhe eriçava a nuca. Alturas em que
sentia nas entranhas que o observavam.
Que o perseguiam.
Bem, era mulher para ti, pensou enquanto beberricava o café matinal. Num momento sorrisos, noutro bofetadas.
Estava ele entretido com aqueles pensamentos quando viu Lena e o enorme cão negro surgirem por entre o arvoredo.
Não pensou duas vezes: pousou o café e dirigiu-se para as escadas da varanda.
Lena tinha-o avistado muito antes. Estivera ao abrigo das árvores e das neblinas matinais, a afagar indolentemente a cabeça de Rufus e a observar a casa. A observá-lo
a ele.
Perguntou-se o que haveria naquele lugar e naquele homem que a fascinava tanto. Havia outras casas grandiosas e antigas ao longo de River Road, em direcção a Baton
Rouge.
E também não faltavam homens bem-parecidos, para quem andasse à procura de um.
Mas fora sempre aquela casa que lhe capturara o interesse e a imaginação. Agora parecia que aquele homem que galgava a maciça escadaria de pedra enfiado numa camisa
coçada e numas calças de ganga ainda mais coçadas, de rosto áspero da barba por fazer, conseguia provocar-lhe idêntico efeito.
Não gostava de se sentir carente, pois isso só atrapalhava as coisas. E quando essa carência envolvia um homem, pior ainda.
Construíra a sua vida tijolo após tijolo, raios! E gostava dela tal como era. Por amável que um homem fosse, iria, na melhor das hipóteses, alterar esse padrão.
Na pior, faria os tijolos desabar.
Mantivera-se afastada dele desde a noite em que o levara para a sua cama. Só para provar que conseguia.
Mas agora tinha um sorriso pronto para ele, um lento sorriso de "gato junto ao buraco do rato", e manteve-se imóvel enquanto o cão se precipitava ao encontro dele,
rasgando a neblina rasteira.
Rufus saltou, passou a língua pelo rosto de Declan e deixou-se cair, de barriga para cima, para uma festinha.
Lena sabia que era o modo de Rufus demonstrar um amor incondicional.
Também seduz os cães, pensou quando Declan se acocorou para fazer festinhas e brincar. Aquele homem tinha verdadeiramente demasiado encanto. Fosse para quem fosse,
mas sobretudo para ela.
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- Rufus - chamou, fazendo o cão levantar-se numa agitação de músculos e membros que quase atirou Declan por terra. Lena riu-se e lançou bem alto a bola que trazia,
arrebatando-a agilmente na queda. Rufus avançou para ela, numa mancha de pêlos escuros e entusiasmo. Lena atirou a bola por cima do tanque. Rufus lançou-se no ar
e sobre a água e agarrou a bola com os dentes segundos antes de cair estrondosamente lá dentro.
- Os Boston Sox podiam contratar-vos.
Enquanto o cão patinhava para a margem, Declan aproximou-se, colocou as mãos sob os cotovelos de Lena e levantou-a do chão. Teve apenas um instante para verificar
que ela pestanejou de surpresa antes de unir a boca à dele e Declan a levantar ainda mais.
Lena agarrou-se à camisa dele, não para se equilibrar, embora os seus pés baloiçassem vários centímetros acima do chão. Mas porque debaixo da camisa estava aquele
homem todo músculos e desejo.
Ouviu o cão a ladrar, três latidos roucos e profundos, e depois ficou encharcada com a água que ele sacudiu do corpo. Mas não se teria espantado se a água resultasse
do calor que sentia à flor da pele.
- Bom dia - disse Declan, baixando-a. - Tá-se?
- Uau! - Tinha de o felicitar por ambas as saudações. - Tá-se? - respondeu levantando a mão para a passar por aquela face áspera.
- Precisas de fazer a barba, cher.
- Se soubesse que vinhas ter comigo esta manhã, teria tratado disso.
- Não vinha ter contigo. - Apanhou a bola que Rufus largara aos seus pés e lançou-a, assim como ao cão, novamente pelos ares. - Ando a brincar com o cão da minha
avó.
- Ela está bem? Disseste que passavas lá a noite quando ela não se sentia bem.
- Às vezes sente-se abatida, é só isso. - E raios, raios, aquela instantânea e genuína preocupação dele comoveu-a. - Tem saudades do Pete. Tinha dezassete anos quando
casaram e cinquenta e oito quando ele morreu. Mais de quarenta anos é muito tempo para entrelaçar duas vidas.
- Achas que ela gostaria que eu passasse lá mais tarde?
- Ela gosta da tua companhia. - Como Rufus abanava impacientemente a cauda, Lena lançou novamente a bola.
- Disseste que ela tem uma irmã. Tem mais alguma família?
- Duas irmãs e um irmão, todos ainda vivos. - Filhos?
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O rosto dela fechou-se.
- Sou tudo o que lhe resta. Foste à cidade ver os festejos?
Passaste das marcas, concluiu ele. Mas decidiu não fazer caso. Por enquanto.
- Ainda não. Pensei ir esta noite. Vais trabalhar?
- Até Quarta-Feira de Cinzas não faço outra coisa senão trabalhar. As pessoas gostam de beber antes da Quaresma.
- Andas a deitar-te tarde. Pareces um pouco cansada.
- Não costumo levantar-me tão cedo, mas a minha avó é uma ave madrugadora. Assim que se levanta, toda a gente tem de se levantar. - Ergueu os braços bem alto e espreguiçou-se.
- Tu também és uma ave madrugadora, não és, cher?
- Ultimamente sim. E se viesses até lá dentro comigo para tomar café e veres como tenho ocupado o meu tempo já que não posso passá-lo contigo?
- Tenho andado ocupada.
- Já mo tinhas dito.
Lena franziu o sobrolho, formando uma linha longa e ténue de aborrecimento.
- O que eu digo é verdade.
- Não disse o contrário. Mas estou a irritar-te. Não me importo, Lena. - Estendeu a mão para lhe tocar no cabelo e ficou contente e deliciado por ver a ira escurecer-lhe
o rosto. - Mas já me importo se pensas que me contento com uma única noite contigo.
- Durmo contigo se quiser e quando quiser.
- E importava-me - continuou ele num tom ameno, embora a mão que lhe agarrou o braço antes que ela pudesse dar meia-volta se mostrasse firme. - Importava-me muito
se pensasses que quero apenas enfiar-me contigo entre os lençóis.
- Os homens não me tocam a não ser que eu lhes diga que podem tocar-me. - Afastou-lhe a mão.
- Não me conheces, Lena, pois não? - Havia aço nos seus dedos, no seu tom. - Acalma-te. Provocar uma discussão também não vai fazer com que te livres de mim. Esta
semana quiseste manter a tua distância, muito bem. Sou um homem paciente, Lena, mas não sou nenhum capacho. Não penses que vais passar por cima de mim ao saíres
porta fora.
Apercebeu-se de que a ira não era a maneira de lidar com ele. Não tinha dúvida de que conseguiria vencer aquele controlo e provocá-lo para uma boa discussão aos
gritos. Seria interessante e mesmo divertido. Mas tinha cinquenta por cento de hipóteses de perder.
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Não se importava com os resultados. Em vez disso, afagou-lhe a face.
- Pronto, cher. - A sua voz era seda líquida. - Mas porque estás tão zangado? Irritaste-me, só isso. Não estou no meu melhor a esta hora da manhã, e aqui estás tu,
todo mal-encarado e carrancudo. Não era minha intenção magoar-te.
Ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o na face.
- O que é que pretendes fazer mesmo, Angelina?
Houve algo no modo como ele usou o nome completo dela que a fez retesar-se. Era uma espécie de aviso.
- Ora bem, querido Declan, eu gosto de ti. Gosto mesmo. E na outra noite, bem, tu quase me punhas fora de mim. Passámos uns bons momentos, não passámos? Mas não
queiras fazer disto mais do que aquilo que foi.
- E foi o quê?
Lena encolheu os ombros.
- Um interlúdio muito satisfatório para ambos. Porque é que não deixamos as coisas como estão e somos novamente amigos?
- Podíamos ser. Ou podíamos tentar desta maneira.
Puxou-a para si e levantou-a no ar. E apoderou-se da boca dela. Desta vez sem paciência, sem razão, sem aquele encantador unir de lábios. Era como uma marca a ferro
quente, e ambos o sabiam.
Rufus soltou um ganido de aviso enquanto ela se debatia. Mas Declan ignorou-o, mesmo quando o ganido se transformou num rosnido. Enfiou a mão no cabelo dela, puxou-lhe
a cabeça para trás e ambos se embrenharam mais profundamente. Ira, mágoa e fome, tudo irrompeu tempestuosamente dentro dele para acentuar o beijo.
Lena não conseguiu resistir. Não quando aquele ataque de emoções a atingiu em cheio, libertando necessidades que ela esperava manter fechadas. Com um juramento abafado,
envolveu-lhe o pescoço e correspondeu à ferocidade do beijo.
Rufus soltou um ganido e sentou-se a morder a bola.
- Ainda temos coisas para resolver. - Declan passou as mãos possessivas pelos braços dela.
- Talvez tenhamos.
- Passo por lá esta noite e levo-te a casa depois de fechares. Na quarta-feira, quando as coisas acalmarem, gostava que viesses até cá. Jantávamos juntos.
Lena conseguiu esboçar um sorriso.
- Cozinhas tu?
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Declan sorriu e aflorou-lhe a testa com os lábios.
- Vou surpreender-te.
- Surpreendes-me sempre - retorquiu ela enquanto ele se afastava.
Estava irritada consigo própria. Não apenas por ter perdido a batalha, mas pela cobardia. Aliás, fora a cobardia que a levara a começar a discussão.
Caminhou, lentamente pelo pântano enquanto Rufus corria para as árvores e através da espessa e verdejante vegetação rasteira na esperança de afugentar um coelho
ou um esquilo.
Lena deteve-se na curva daquilo que, tanto quanto se lembrava, sempre fora conhecido como o Bayou Rouse. Aquele lugar misterioso, com as suas águas lentas e penumbrosas,
com os seus ossos de cipreste e odores espessos, era tanto o seu mundo como as ruas sinuosas e o ritmo animado do Bairro Francês.
Percorrera-o em criança, aprendera a diferenciar uma carriça de um pardal, como evitar um ninho de serpente venenosa pelo fedor a pepino, como lançar a linha e apanhar
um peixe-gato para o jantar.
Era o lar do seu sangue, tal como o Bairro Francês se tornara no lar da sua ambição. Não regressava somente quando a avó se sentia triste, mas também quando ela
própria se sentia assim.
Vislumbrou o focinho nodoso de um jacaré que deslizava por perto. O que estava debaixo da superfície podia arrastar-nos para o fundo numa dentada tão rápida quanto
horrível se não estivéssemos alerta e precavidos, pensou.
Havia muitas coisas debaixo da superfície de Declan Fitzgerald. Teria preferido que ele fosse um menino rico e mimado, detentor de fundos fiduciários e com vontade
de se divertir. Teria gostado dele assim e tê-lo-ia afastado quando ambos se cansassem um do outro.
Era muito mais difícil afastar aquilo que respeitávamos. Admirava a força dele, os seus objectivos, o seu humor. E, como amigo, ele proporcionar-lhe-ia bastante
prazer.
Como amante, preocupava-a terrivelmente.
Queria demasiado, já o sentia a sugá-la. E isso assustava-a, assustava-a não ser capaz de pôr cobro à situação.
Brincou com a chave que trazia ao pescoço e regressou à casa do bayou. As coisas que seguissem o seu curso, disse para si própria. As coisas seguiam sempre o seu
curso.
Exibiu um sorriso ao aproximar-se e ver a avó, protegida com um velho chapéu de palha enquanto trabalhava na horta.
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- Cheira-me a pão - disse Lena.
- Pão escuro. Tenho lá dentro um naco que podes levar para casa. - Odette endireitou-se e pressionou ligeiramente o fundo das costas com a mão. - Sobra um que podes
levar à Mansão para aquele rapaz. Ele não anda a comer nada bem.
- Tem saúde que chegue.
- Saúde que chegue para querer dar-te uma mordidela. - Voltou aos seus afazeres, com as robustas botas de trabalho firmemente plantadas na terra. - Tentou dar-te
uma mordidela esta manhã? Tens aspecto disso.
Lena avançou e sentou-se no degrau ao lado da horta.
- Que aspecto é esse?
- O aspecto com que uma mulher fica quando um homem lhe pôs as mãos em cima e não acabou o trabalho.
- Eu sei acabar o trabalho sozinha, se é esse o problema. Odette soltou uma risada trocista e arrancou um pé de rosmaninho.
Beliscou as folhas de agulha e passou-as em frente do nariz pelo simples prazer do aroma.
- Para quê darmo-nos ao trabalho de coçar a comichão se alguém a pode coçar por nós? Posso ter quase setenta anos, mas sei ver quando um homem é determinado e capaz.
- Não é o sexo que governa a minha vida, avó.
- Não, mas de certeza que a tornava mais agradável. - Endireitou-se novamente. - Não és a Lilibeth, poulette!
Aquele tratamento afectuoso da infância - pintainho - fez Lena sorrir.
- Eu sei.
- E não tens de ficar sozinha se encontrares alguém que desperte em ti a faísca certa.
Aceitou o pé de rosmaninho que Odette lhe estendia e roçou-o pela face.
- Não creio que ele ande à procura de faíscas. Acho que anda à procura da fogueira toda. - Inclinou-se para trás, apoiada nos cotovelos, e sacudiu o cabelo. - Vivi
este tempo todo sem me queimar, e vou continuar assim.
- Para ti foi sempre assim ou assado. Não se consegue pôr-te no meio termo nem com um chicote. És a minha menina, mesmo que já sejas uma mulher crescida, e portanto
digo-te isto: não há nada de mal em uma mulher andar sozinha, desde que seja pelas razões certas. Mas ter medo de tropeçar, isso já é errado.
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- Que acontece se me deixar apaixonar por ele? - perguntou Lena. - E se ficar farto das águas do pântano e voltar a correr para Boston? Ou se se fartar de dançar
comigo e arranjar outra companhia?
Odette afastou o chapéu e o rosto revelou toda a sua exasperação.
- Que acontece se chover até inundar tudo e nos arrastar para o Mississipi? Por amor de Deus, Lena, não podes pensar assim. Vais acabar por murchar.
- Eu andava bem até ele aparecer, e hei-de andar bem quando ele se for embora. - Sentia-se amuada, e estendeu a mão para afagar Rufus quando este lhe bateu com a
cabeça no joelho. - Aquela casa, avó, aquela casa a que ele está tão determinado a dar vida é o símbolo do que acontece quando duas pessoas não pertencem ao mesmo
lugar. Eu tenho o sangue dela e sei disso.
- Não sabes, não. - Odette levantou-lhe o rosto. - Se eles não se tivessem amado, se Abby Rouse e Lucian Manet não se tivessem amado e dado vida a uma criança, tu
e eu não estaríamos aqui.
- Se estivessem destinados um ao outro, ela não teria morrido do modo como morreu. Não seria um fantasma naquela casa.
- Oh, chère. - A exasperação e o afecto matizavam a voz de Odette. - Não é a Abby Rouse que assombra aquela a casa.
- Então quem é?
- Espero que seja isso que aquele rapaz veio cá descobrir. Pode ser que estejas cá para o ajudar. - Cheirou o ar. - O pão está pronto - disse um momento antes de
soar o alarme do forno. - Queres levar-lho à Mansão?
Lena retesou o rosto.
- Não.
- Está bem. - Odette subiu as escadas e abriu a porta das traseiras. - Levo-lho eu. - Os olhos dançavam-lhe quando olhou por cima do ombro. - E pode ser que o roube
mesmo debaixo do teu nariz.
Declan abrira todas as portas e janelas do rés-do-chão. A aparelhagem berrava o blues ritmado de Ry Cooder. Trabalhava ao ritmo da batida enquanto espalhava a primeira
e fina camada de verniz no recém-lixado soalho da salinha da entrada.
Doía-lhe o corpo todo. Cada músculo e cada osso do seu corpo cantavam com a mesma ferocidade de Ry Cooder. Julgara que o puro esforço físico de lixar lhe atenuaria
o mau humor. Agora esperava que a atenção e o esforço necessários à aplicação do verniz tivessem esse efeito.
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A madrugada rosada não cumprira a sua promessa.
Aquela mulher mexia com ele, pensou. E sabia-o. Numa noite envolvia-se toda nele na cama e na outra não lhe dava mais do que uma conversa ao telefone.
Ora explodia toda irada, ora se derretia numa provocação sexy, tentando transformar a noite que haviam passado juntos num encontro fortuito.
Merda para aquilo.
- Cher, para quê ficares assim tão chateado? - murmurou. - Ainda não viste o que é estar chateado, querida. Mas vais ver antes de isto acabar.
- Parece mesmo furioso.
Voltou-se e verteu um pouco de verniz. Quase caiu de joelhos quando viu Odette sorrir-lhe da entrada.
- Não a ouvi chegar.
- Não é de estranhar. - Com o privilégio que a idade lhe conferia, inclinou-se e baixou o volume da aparelhagem portátil quando Ry Cooder mudava de ritmo e lamentava
as lágrimas derramadas. - Também gosto do Ry Cooder, mas não tão barulhento. Vim trazer-lhe um pão que cozi esta manhã. Pode acabar o que estava a fazer. Eu levo
isto para a cozinha.
- Dê-me só um minuto.
- Não pare por minha causa, cher.
- Não, por favor. Cinco minutos. Há... qualquer coisa, esqueci-me do que era, para beber no frigorífico. Porque não vai lá servir-se?
- Acho que vou fazer isso mesmo. Está um tempo um pouco abafado, e nem sequer é Março. Não tenha pressa.
Quando deu por concluído o que tinha a fazer, encontrou Odette a contemplar o conteúdo do guarda-louça da cozinha.
- A minha mãe tinha um velho ferro de fazer panquecas igual a este. E ainda tenho um espremedor como o que tem ali. Como se chamam estes pratos? Já não me lembro.
- Fiestaware.
- Isso. Sempre me soou a festa. Pagou muito por aquelas velhas jarras de cantaria, cher?
- Receio bem que sim.
Odette soltou um estalido com a língua perante aquela maravilha.
- Há coisas que não têm preço. Mas não há dúvida de que são bonitas. Venha um dia destes vasculhar o meu telheiro e ver se há alguma coisa que queira. - Voltou-se
e acenou aprovadamente com a
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cabeça enquanto olhava em redor. - Ficou bonito, Declan, trabalhou bem.
- Ficará tudo composto quando vierem as bancadas e eu acabar os painéis para os electrodomésticos.
- Ficou bonito - repetiu. - E a salinha em que está a trabalhar, não podia estar mais encantadora.
- Já comprei alguma mobília para lá colocar. Um bocado por impulso. Não quer sentar-se, Miss Odette?
- Por uns minutinhos. Tenho uma coisa que talvez gostasse de ter, talvez para pôr sobre a lareira da salinha ou de alguma outra divisão.
Sentou-se a uma mesa que ele ali colocara e tirou do saco uma velha moldura de couro acastanhado.
- É uma fotografia, um retrato da Abigail Rouse.
Declan pegou na fotografia e olhou fixamente para a mulher que lhe assombrava os sonhos. Poderia ser a Lena, pensou, mas havia demasiada suavidade naquele rosto,
embora algo indistinta. As faces eram mais redondas, os olhos de pálpebras compridas eram demasiado inocentes e mais tímidos.
Tão jovem, pensou. E inocente, apesar do vestido adulto com a alta gola debruada a pele, apesar do desenvolto ângulo do pequeno chapéu de veludo com as provocantes
penas.
Era uma rapariga, ao passo que Lena era uma mulher, reflectiu.
- Era encantadora - disse ele. - Encantadora e jovem. Parte-me o coração.
- A minha avó achava que ela deveria ter aí uns dezoito anos quando essa foto foi tirada. Não devia ter mais, já que não chegou a assistir ao décimo nono aniversário.
Enquanto falava, uma porta bateu ruidosamente lá em cima, como que irada. Odette limitou-se a olhar para o tecto.
- Parece que o seu fantasma também está furioso.
- Começou a acontecer hoje. O ajudante do canalizador disparou daqui para fora como uma bala há umas duas horas.
- Mas você não tem aspecto de quem vá a lado nenhum.
- Não. - Sentou-se diante dela no momento em que outra porta bateu e tornou a olhar para o sorriso tímido e esperançoso de Abigail Rouse Manet. - Não vou a nenhum
lado.
Capítulo Onze
Havia uma espécie de loucura em torno do Mardi Gras. A música, as máscaras, a confusão, tudo se amalgamava numa desesperada celebração de tom jovialmente inocente
e cruamente sexual. Declan duvidava que a maior parte dos turistas vindos para os festejos compreendessem ou se preocupassem com o objectivo da ocasião. Procuravam
apenas empanturrar-se de prazeres antes dos quarenta dias de jejum.
Declan também desejava saborear a ocasião, e decidiu vaguear através da multidão, conseguindo até deitar a mão a algumas contas quando foram atiradas de uma varanda
num cintilar de ouro baratucho. Os ouvidos ecoavam-lhe com o estrépito dos instrumentos de sopro e do riso selvagem.
Decidiu que a visão de seios desnudados, que um par de estudantes universitárias exibiam ao cumprirem a tradição de levantar as blusas, seria menos alarmante após
algumas bebidas.
Assim como ser agarrado por uma perfeita desconhecida e ser presenteado com um beijo que se afundava até às amígdalas. A língua que naquele momento lhe invadia a
boca transferiu para a sua a tonta doçura de muitos hurricane(1) e uma luxúria alegremente embriagada.
- Obrigado - conseguiu dizer quando se libertou.
- Volta aqui - gritou-lhe a mulher mascarada. - Laissez le bon temps rouler!
Declan não queria deixar correr os bons tempos quando isso envolvia línguas desconhecidas a afundarem-se na sua boca, e escapou-se pelo meio da multidão.
Talvez estivesse a ficar velho, pensou - ou talvez fosse apenas o
(1) Bebida alcoólica à base de rum, típica de Nova Orleães. (N. dos T.)
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seu substrato de Boston -, mas queria encontrar um sítio onde pudesse sentar-se e observar a festa em vez de ser arrastado por ela.
As portas do Et Trois estavam escancaradas, o barulho jorrava lá de dentro e misturava-se com o ruído das ruas. Teve de seguir um caminho sinuoso pelo meio dos foliões
que juncavam o passeio e dos que se apinhavam lá dentro até alcançar um lugar de pé junto do balcão.
O bar estava cheio de fumo, de música e do bater de pés na madeira enquanto as pessoas dançavam acotoveladas na pista. No palco, um rabequista produzia ritmos tão
quentes que Declan não teria ficado surpreendido se o arco irrompesse em chamas.
Lena empurrava uma cerveja de pressão com uma mão e com a outra servia um shot de bourbon. Os outros dois empregados estavam igualmente atarefados, e havia mais
quatro empregadas a servir às mesas.
Vislumbrou o seus caranguejos sorridentes na prateleira atrás do balcão e sentiu-se ridiculamente contente.
- Uma cerveja e um shot- disse ela, enfiando os copos nas mãos que esperavam as bebidas. Quando avistou Declan, ergueu o dedo e serviu mais três clientes enquanto
se aproximava dele.
- Que vais querer, jeitoso?
- Quero-te a ti. Isto está apinhado - acrescentou. - Aqui e lá fora no passeio.
- Na calçada - corrigiu ela. - Aqui chamamos-lhe calçada. - Puxou o cabelo para trás, entrançado com contas púrpura e douradas. A pequena chave prateada baloiçava
contra a pele perlada de transpiração. - Posso oferecer-te uma bebida, cher, mas não tenho tempo para conversar.
- Posso ajudar-te?
Lena voltou a mexer no cabelo.
- Em quê?
- Qualquer coisa.
Alguém se aproximou abrindo caminho às cotoveladas para pedir aos berros uma tequila sunrise e uma Dixie de pressão.
Lena estendeu a mão para a garrafa e afastou-se para tirar a cerveja.
- Sabes atender à mesa, menino universitário?
- Acho que consigo dar conta do recado.
- A empregada ruiva é a Marcella. - Apontou com a cabeça para a confusão geral. - Diz-lhe que foste contratado. Ela mostra-te o que fazer.
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À meia-noite, Declan achava que tinha carregado cerca de meia tonelada de copos vazios para a cozinha e que despejara o equivalente ao Monte Rainier em pontas de
cigarro.
O seu traseiro fora beliscado, apalpado e cobiçado. Que havia no traseiro dos homens para atrair tanto as mulheres? Alguém devia estudar o assunto.
Perdera a conta às propostas que lhe tinham feito, e não queria pensar na enorme mulher que o içara para o colo. Era como se tivesse sido abafado por uma almofada
de cento e trinta e cinco quilos ensopada em whiskey.
Por volta das duas da manhã, já nada o espantava na capacidade do corpo humano para o vício, e fora obrigado a rever qualquer percepção anterior sobre as capacidades
e resistência requeridas na actividade de restauração.
Fez sessenta e três dólares e oitenta e cinco cêntimos em gorjetas e jurou queimar a roupa que trazia vestida à primeira oportunidade.
Às três da manhã a casa continuava a fervilhar, e concluiu que Lena não andava a evitá-lo. Ou, se andava, pelo menos tinha uma boa desculpa.
- A que horas fechas? - perguntou quando carregava outra carrada de copos para a cozinha.
- Quando as pessoas se forem embora. - Estava a servir cerveja de garrafa em copos de plástico para levar.
- E achas que vão?
Lena sorriu, mas foi um sorriso rápido e distraído enquanto observava a multidão.
- Durante o Mardi Gras, nem por isso. Porque é que não vais para casa, cher? Isto ainda vai demorar mais uma ou duas horas.
- Fico.
Carregou os copos vazios para a cozinha e voltou a tempo de ver um trio de homens muito bêbados - rapazes, na verdade, como reparou - a atirarem piropos a Lena.
Ela estava a conseguir lidar com eles, mas eram insistentes.
- Se querem aguentar até Terça-Feira Gorda, têm que se acalmar um bocado. - Pousou dois copos de plástico debaixo das torneiras. - Não vão conduzir, pois não?
- Raios, não! - Um deles, que usava uma T-shirt da Universidade do Michigan debaixo de uma avalancha de colares de contas, inclinou-se para a frente. Bastante para
a frente. - Temos alojamento lá em cima na Royal. Porque é que não vens para lá comigo, querida? Despes-te e enfias-te no jacuzzi.
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- Ora aí está uma oferta tentadora, cher, mas não tenho mãos a medir.
- Eu dou-te o que medir - disse ele, agarrando nos testículos enquanto os dois companheiros uivavam e ululavam.
Declan avançou e passou uma mão possessiva sobre o ombro de Lena.
- Estás a fazer-te à minha miúda. - Sentiu-a retesar-se sob a sua mão e viu o carrancudo desafio nos olhos do rapaz do Michigan.
Noutras circunstâncias, pensou Declan enquanto o avaliava - um metro e oitenta, os seus noventa quilos -, devia ser do tipo que fazia a cama todas as manhãs e visitava
velhinhas nos lares de terceira idade. Do tipo que salvava cachorrinhos. Mas, naquele momento, estava bêbado, excitado e estúpido.
Para o provar, o rapaz do Michigan mostrou os dentes.
- E se te fosses foder? Ou queres ir lá fora para eu te dar cabo das trombas?
A voz de Declan soou com bonomia.
- Ora bem, para quê ir lá para fora andar à pancada se estás apenas a admirar o meu bom gosto? Ela é espectacular, não é? Se não tivesses tentado atirar-te a ela,
ia pensar que estavas demasiado bêbado para ver.
- Consigo ver bem, ó cara de cu!
- Exactamente. E que tal uma bebida para ti e para os teus amigos? Querida, põe essas cervejas na minha conta.
Declan encostou-se ao balcão com ar de conversador e apontou com a cabeça para a T-shirt.
- Férias de fim de semestre? Que curso?
Atónito e embriagado, o rapaz do Michigan olhou-o a pestanejar.
- Que tens a ver com isso?
- Apenas curiosidade. - Puxou uma taça de aperitivos e pegou num. - Tenho uma prima que dá aulas no departamento de Inglês, a Eileen Brennan. Talvez a conheças.
- A professora Brennan é tua prima? - O tom carrancudo transformou-se num companheirismo surpreendido. - Raios, ela quase me chumbou neste semestre!
- Ela é rija, sempre me assustou. Quando estiverem com ela, digam-lhe que o Dec mandou cumprimentos. Aqui têm a cerveja.
Já passava das quatro quando Lena o levou para o apartamento.
- Soubeste lidar bem com aqueles palermas universitários, cher.
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Tão bem que nem me vou zangar pelo comentário de eu ser a tua "miúda".
- Tu és a minha miúda, só que ainda não descobriste. Além disso, foi fácil lidar com eles. A minha prima Eileen já tem a sua reputação na Universidade do Michigan.
Havia bastantes hipóteses de ele ter ouvido falar dela.
- Alguns homens teriam posto os músculos em acção. - Pousou as chaves. - Teriam ido lá para fora rebolar no chão para provar quem tinha a pila maior. - Cansada,
levantou a mão para tirar o colar enquanto observava Declan. - Deve ser do advogado que há em ti, é por isso que evitas os confrontos.
- O miúdo nem vinte e dois anos tinha.
- Fez vinte e um em Janeiro passado. Vi os cartões deles.
- Não luto com miúdos. Além do mais, odeio realmente levar com um murro na cara, magoa sempre. - Levantou-lhe o queixo. Lena parecia exausta. - Tiveste uma noite
longa, não foi?
- Vão ser longas até quarta-feira. Agradeço-te a ajuda, doçura. Estafaste-te.
Mais do que devias, pensou ela. Ele entrara de imediato no ritmo da casa e trabalhara. Encantara os clientes, tolerara os apalpões e evitara uma situação potencialmente
feia usando a sensatez em vez do ego.
Quanto mais o conhecia, mais havia para conhecer, reflectiu.
Tirou um envelope do bolso de trás.
- Que é isso?
- O teu pagamento.
- Meu Deus, Lena, não quero o teu dinheiro.
- Trabalhaste, tenho que te pagar. Não aceito borlas. - Enfiou-lhe o envelope nas mãos. - Sem recibo. Não quero fazer a papelada.
- Está bem, pronto. - Enfiou o envelope no bolso. Compraria qualquer coisa para ela.
- Ora bem, acho que é melhor dar-te uma boa gorjeta. - Rodeou-lhe o pescoço com os braços e roçou o corpo no dele. Manteve os olhos abertos, mordiscou-lhe o lábio
e avançou centímetro a centímetro até o beijar.
Declan correu as mãos pelo corpo dela até as firmar nas ancas e depois ergueu-a até as pernas dela lhe rodearem a cinta.
- Tens que descansar os pés.
- Mmm. Meu Deus, sim!
Declan roçou-lhe o pescoço, a orelha, e novamente a boca enquanto a levava para o quarto.
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- Sabes o que te vou fazer?
O desejo era um lento fervilhar sob a glória cintilante de já não estar apoiada nos pés doridos.
- Acho que consigo adivinhar.
Pousou-a na cama e quase a sentiu suspirar de alívio por estar na posição horizontal. Tirou-lhe um dos sapatos.
- Vou dar-te algo por que todas as mulheres anseiam. - Afastou o sapato para o lado, subiu para a cama e retirou-lhe o outro.
Cansado ou não, o rosto dela tornou-se malandro.
- Saldos na Saks?
- Melhor do que isso. - Passou um dedo pelo peito do pé dela. - Uma massagem aos pés.
- Uma quê?
Declan sorriu, flexionou-lhe o pé e massajou-lhe os dedos e viu os olhos dela enevoarem-se de prazer.
- Mmm. Declan, tens mesmo um bom par de mãos.
- Descontrai-te e aprecia. O Tratamento de Reflexologia Fitzgerald é famoso no mundo inteiro. Também oferecemos massagem corporal completa.
- Aposto que sim.
A pior das dores começou a dissipar-se. Quando ele começou a massajar-lhe as canelas, os músculos exaustos estremeceram numa combinação de dor e prazer.
- Vais tirar alguma folga depois do Mardi Gras?
Lena devaneava e esforçou-se por se concentrar no som da voz dele.
- Tiro folga na Quarta-Feira de Cinzas.
- Que mandriona. - Deu-lhe um beijo distraído no joelho. - Pronto, vamos lá tirar-te a roupa.
Desapertou-lhe as calças. Lena levantou as ancas e espreguiçou-se com indolência. Declan duvidava que ela tivesse consciência de que a sua voz se tornara roufenha
e que as palavras se arrastavam.
- Que mais estás a pensar massajar, cher?
Declan entregou-se ao prazer de lhe acariciar os seios e apreciou a reacção imediata dela, o modo como passava os dedos pelo cabelo dele, o modo como unia os lábios
aos seus. Tirou-lhe a blusa e desapertou-lhe o soutien. Beijou-a do pescoço aos seios enquanto ela arqueava as costas em sinal de entrega.
Depois deslizou até à barriga. Ela estremeceu e gemeu e depois derreteu-se completamente quando ele lhe massajou o pescoço.
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- Era o que eu pensava - afirmou ele. - A maior parte da tensão está aqui. Também sinto o mesmo.
- Oh, meu Deus! - Se tivesse um único desejo naquele momento, seria que ele continuasse a fazer aquilo durante uma semana inteira. - Podias ganhar bem a vida a fazer
isto.
- Foi sempre uma alternativa possível de carreira. Tens aqui uns pontos de tensão bastante sérios. O doutor Dec vai pôr-te boa.
- Adoro brincar aos médicos.
Esperou que ele mudasse de tom e que as mãos dele se tornassem exigentes. Ele era um amor, pensou, ensonada. Mas era um homem. Dormitaria um pouco, e deixaria que
ele a acordasse depois.
A próxima coisa de que teve consciência foi do sol a jorrar pelas janelas. Uma olhadela ensonada ao relógio da mesinha-de-cabeceira mostrou-lhe que eram dez e vinte.
Da manhã?, pensou com os olhos pesados de sono. Como era possível ser já de manhã?
E tinham-na enfiado na cama tão cuidadosamente como se tivesse sido a avó a fazê-lo. Aconchegada e sozinha.
Virou-se até ficar de costas, espreguiçou-se e bocejou. E apercebeu-se, com uma espécie de choque ténue, de que não lhe doía nada. Nem o pescoço, nem os pés, nem
as costas.
O doutor Dec fizera um serviço completo, pensou. E estava em casa, provavelmente amuado por ela não lhe ter pago os honorários. Não podia censurá-lo, já que ele
fora uma doçura, e ela limitara-se a jazer ali como um cadáver.
Tinha de o compensar, disse a si mesma enquanto se arrastava para fora da cama para ir pôr o café a fazer antes de se enfiar debaixo do chuveiro.
Entrou na cozinha e olhou fixamente para a cafeteira eléctrica cheia em cima da bancada e para o bilhete que a acompanhava. Franziu a testa, pegou no papel e rodou
o botão para aquecer o café enquanto lia.
Tive que ir. Os tipos das bancadas vêm esta manhã. Não sabia quando ias acordar e por isso não quis deixar a cafeteira ligada. Mas tem a frescura das sete e dez
da manhã, se não te deixares dormir até muito tarde. A propósito, ficas linda quando dormes.
Ligo-te mais tarde.
Declan
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- Não paras de me surpreender - murmurou enquanto batia com o bilhete na mão. - És um verdadeiro enigma.
Precisou de ir ao bar para verificar o turno do almoço e os mantimentos. Depois, para satisfazer a curiosidade, foi até à Mansão Manet.
A porta estava aberta. Calculou que ele devia ser uma das poucas pessoas da zona que deixavam a porta da frente aberta para quem quer que por ali deambulasse. Vida
do campo ou não, alguém tinha de o alertar para a necessidade de um sistema de segurança.
Ouviu o barulho dos operários nas traseiras da casa, mas levou o seu tempo a dirigir-se para lá.
A salinha da entrada captou-lhe a atenção. Acocorou-se, tocou com os dedos no soalho lustroso e verificou que estava seco e rijo; entrou e deu uma olhada.
Ele dera-se ao trabalho, foi tudo o que conseguiu pensar. Ele dera-se ao trabalho de cuidar do que era dele. Prestava atenção aos pormenores e tornava-os importantes.
A cor, a madeira, a elegante lareira, o brilho das janelas, que imaginava tinha sido ele próprio a limpar.
Tal como o imaginava a mobilar aquela divisão pessoalmente - com cuidado e atenção aos pormenores.
Nunca conhecera um homem que se desse a tanto... trabalho com o que quer que fosse. Ou com quem quer que fosse. Talvez, viu-se obrigada a admitir, tivesse desperdiçado
demasiado tempo com o tipo errado de homem.
- Que achas?
Voltou-se emoldurada pelas janelas e pela luz, e olhou para ele especado à entrada.
- Acho que esta casa tem sorte por te ter. Acho que a vês como deve ser e vais esforçar-te por a trazer novamente à vida.
- Que simpatia. - Avançou para ela. - Que grande simpatia. Parece que dormiste bem.
- Não é suposto um homem dizer a uma mulher que dormiu bem. É suposto dizer-lhe que está com um aspecto encantador.
- Sempre te vi com um aspecto encantador. Hoje, além desse encanto, pareces ter dormido bem.
- És todo falinhas mansas. - Afastou-se para junto da lareira. Passou a mão pela prateleira e deteve-se quando avistou a moldura de cabedal castanho com a fotografia
de uma jovem. - A Abigail - sussurrou, e sentiu-se tomada de mágoa. Uma mágoa profunda.
- Deu-ma Miss Odette. Tem algumas parecenças contigo.
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- Não, nunca tive um aspecto assim tão inocente. - Sentindo o impulso, Lena passou a ponta do dedo por aquele rosto jovem e esperançoso.
Já vira aquela fotografia antes e chegara a analisá-la, ponto a ponto, durante o período da sua vida em que achara toda aquela história imensamente romântica, envolta
como estava em mistério. Um período em que ela própria era suficientemente jovem para ver romantismo na tragédia.
- É estranho- vê-la aqui - disse. - Ver parte de mim aqui.
- É aqui que pertence. E tu também.
Lena abanou a cabeça à ideia, e à mágoa com que aqueles olhos escuros e límpidos lhe recobriam o coração. Voltou-se e olhou longa e pensativamente para Declan. Roupas
de trabalho, pensou, cinto de ferramentas, barba por fazer. Tornava-se cada vez mais difícil imaginá-lo de fato às riscas e pasta na mão.
Tornava-se cada vez mais difícil imaginar a sua vida sem ele.
- Porque vieste embora hoje de manhã?
- Não viste o bilhete? Os tipos das bancadas. - Apontou com o polegar para a cozinha. - Tive que lhes suplicar e pagar-lhes um extra para virem cá num sábado de
manhã. Tinha que cá estar.
- Não me referia a isso. Não foste à cidade trabalhar, quantas horas foram?, cerca de seis horas a servir às mesas?, e dar-me uma massagem aos pés, porque não tinhas
nada melhor para fazer numa sexta-feira à noite. Foste para ter sexo, cher, e vieste embora sem o ter. Porquê?
Declan sentiu a irritação minar-lhe a boa disposição.
- És complicada, Lena. Tens cá um talento para complicar as coisas simples.
- Isso é porque as coisas raramente são tão simples como parecem.
- Está bem. Vamos pôr as coisas em pratos limpos. Fui à cidade porque queria estar contigo. Servi às mesas porque queria ajudar-te. Massajei-te os pés porque calculava
que já estavas a trabalhar há mais de doze horas. Nunca te fizeram um favor?
- Por regra, os homens não, a não ser que estejam à espera de outro em troca. Que procuras tu, Declan?
Ele calou-se por momentos, enquanto esperava que o primeiro ímpeto de ira passasse.
- Sabes, isso é um insulto. Se estás preocupada com a tua ética de pagar pelo trabalho, posso dispensar-te agora uns vinte minutos.
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Podemos ir lá para cima dar uma queca e ajustar contas. Caso contrário, tenho muito que fazer.
- Não pretendia insultar-te. - Mas verificou, bastante nitidamente, que acabava de o fazer. - Não consigo compreender-te. Os homens que conheci a um nível íntimo
ficariam irritados pelo que não aconteceu entre nós esta manhã. Também esperava que ficasses irritado, e não te censuraria. Teria compreendido.
- Custa-te compreender que pudesse preocupar-me contigo ao ponto de colocar o sexo em segundo plano para poderes ter umas horas de sono?
- Custa.
- Talvez não seja insultuoso. Talvez seja apenas triste. - Viu que as faces dela se ruborizaram quando as palavras a atingiram. A cor do embaraço, apercebeu-se.
- Para mim, nem tudo se reduz ao sexo. Ajuda a esclarecer as coisas, mas não é tudo.
- Gosto sempre de saber no que me estou a envolver. Se não sabemos no que nos estamos a envolver, não conseguimos decidir se é isso que queremos, ou que direcção
pretendemos seguir.
- E eu estou a lixar-te o sentido de orientação.
- Bem o podes dizer.
- Ainda bem. Sou um tipo bastante agradável, Lena, mas não vou ser igual aos outros com quem lidaste. De facto, nem sequer vais ter de lidar comigo. Vamos lidar
um com o outro.
- Porque é assim que tu queres as coisas.
- Porque é assim que as coisas são. - Era um tom neutro, final. - Nada entre nós é, ou vai ser, igual ao que qualquer dos dois já viveu. Vais precisar de tempo para
te habituares a isso.
- É assim que impões a tua vontade? - perguntou ela. - Fazendo uma lista das regras nesse tom irritantemente sensato?
- São factos e não regras - corrigiu ele no tom que ela consideraria irritantemente sensato. - E só irritante porque te mostrarias mais confiante se estivéssemos
a discutir. Já desperdiçámos os vinte minutos que podíamos ter destinado para o sexo. Uma boa sessão de sexo, ou uma boa discussão, leva o seu tempo. Vou ter que
marcar ambas as coisas para outra ocasião.
Lena olhou-o fixamente, tentando formular possíveis comentários sardónicos. Mas acabou por desistir e riu-se.
- Bem, quando chegar a ocasião, primeiro vamos ter a discussão. Depois temos sexo para fazer as pazes. É uma espécie de bónus.
- Soa-me bem. Tens que voltar já, ou ainda tens uns minutos?
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Podias ajudar-me a trazer e a desenrolar a carpete que ali tenho. Ia pedir a um dos tipos das bancadas, mas estou a pagar-lhes tanto que prefiro deixá-los ocupados
com o trabalho deles.
- Agora pões-te a contar os tostões? E logo tu, que nadas em dinheiro.
- Não se nada em dinheiro se o deixarmos escorrer pelas mãos. Além do mais, assim conseguia manter-te aqui e olhar-te durante mais uns minutos.
- Que esperteza. - O facto é que queria ficar, queria estar com ele. - Está bem, vou ajudar-te com a carpete antes de ir embora. Onde está?
- Na sala ao lado. - Apontou para as portas de ligação. - É aí que guardo a maior parte das coisas que comprei até agora. A seguir vou começar a trabalhar na biblioteca,
para poder arrumar o que lá fica e o que vai para a sala da frente antes de começar a tratar desta.
Lena avançou para as portas que ele acabava de abrir e olhou com estupefacção. Uma gruta de Aladino, pensou, mobilada por um louco muito rico e com um gosto muito
ecléctico. Havia mesas, sofás, carpetes, candeeiros e aquilo a que sua avó chamaria quinquilharias espalhados por todo o lado.
- Meu Deus, Declan, quando é que arranjaste estas coisas todas?
- Uma coisinha aqui, uma coisinha ali. Eu bem me digo que não, mas não consigo refrear-me. De qualquer modo - começou a avançar cuidadosamente por entre os estreitos
corredores formados pelas suas compras -, a casa é enorme. Precisa de montes de... coisas. Cheguei a pensar em manter-me fiel à época da construção original, mas
depois achei que ia cansar-me. Gosto de misturar as coisas.
Lena reparou num hipopótamo de estanho pousado em cima daquilo que julgou ser uma mesinha Hepplewhite.
- Missão cumprida.
- Olha este candeeiro. - Declan passou os dedos pelo quebra-luz de um Tiffany que explodiu em cores de pedras preciosas. - Tenho um fraquinho por candeeiros.
- Cher, a julgar pelo que vejo, diria que tens um fraquinho por qualquer coisa.
- Tenho um fraquinho por ti, isso é certo. Aqui está a carpete. - Deu uma palmadinha na comprida carpete enrolada, encostada a uma parede. - Acho que conseguimos
arrastá-la por entre estas coisas todas. Devia tê-la colocado mais perto da porta, mas quando a comprei ainda não sabia bem onde a ia pôr. Agora sei.
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Conseguiram fazê-la deslizar para o chão; depois, Declan baixou-se e começou a caminhar às arrecuas por entre as ilhas de mobília. Teve que parar para afastar um
sofá, e novamente para desviar uma mesa.
- Sabes - disse Lena quando ambos se deixaram cair de joelhos e a ofegar na salinha -, daqui a um mês ou dois vais ter que enrolar novamente a carpete. Aqui ninguém
usa carpetes durante o Verão. Torna-se demasiado quente.
- Em Junho logo me preocupo com isso.
Lena sentou-se sobre os calcanhares e afagou-lhe o rosto.
- Cher, vais começar a pensar no Verão antes do fim de Abril. - Puxou as mangas para cima e agarrou na carpete. - Estás pronto?
Começaram a desenrolá-la com as mãos e os joelhos e o padrão foi ficando visível. Lena vislumbrou apenas parte das cores e da textura, mas foi o suficiente para
compreender por que razão ele a queria ali.
Os verdes das folhas eram suaves, tal como os das paredes, e misturavam-se com rosas centifólias de um rosado desbotado contra um fundo verde mais carregado. Assim
que a desenrolaram, Lena levantou-se para verificar o efeito enquanto ele se afadigava a ajustar os cantos.
- Compraste um jardim de rosas, Declan. Quase consigo cheirá-las.
- Esplêndido, hã? Fica mesmo bem aqui. Vou usar os dois sofás American Empire e acho que também a mesinha Biedermeier. Começo por aí, depois vejo o resultado. -
Olhou para o medalhão do tecto. - Vi um magnífico candelabro de vidro soprado, ao estilo muito Dale Chuhuly. Devia tê-lo comprado.
- Porque não vemos primeiro como ficam aqui os sofás?
- Hmm? Oh, são pesados, vou pedir ao Remy que me dê uma ajuda mais tarde. Ele ficou de aparecer.
- Eu estou aqui agora.
- Não quero que te magoes.
Lena limitou-se a fuzilá-lo com o olhar e voltou para a improvisada sala de arrumos.
Assim que acabaram de colocar o segundo sofá no lugar, Lena recuou para ver o efeito. E foi então que ouviu o bebé a chorar.
Olhou para Declan, mas ele parecia absorto em pensamentos.
- Algum dos tipos das bancadas trouxe um bebé? - perguntou, enquanto Declan fechava os olhos e se afundava no sofá.
- Ouviste? Mais ninguém consegue ouvir. Conseguem ouvir as
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portas a bater. E também a água a correr mesmo sem ninguém ter aberto qualquer torneira. Mas ninguém consegue ouvir o bebé.
Lena sentiu um calafrio percorrer-lhe as costas e olhou com inquietação para o corredor.
- De onde vem?
- Sobretudo do quarto das crianças. Às vezes do quarto no segundo piso. O quarto da Abigail. Mas geralmente do quarto das crianças. Pára quando me aproximo da porta.
O Remy já cá esteve duas vezes em que isso aconteceu e não ouviu nada. Mas tu consegues ouvir.
- Tenho que lá ir. Não consigo ouvir um bebé a chorar assim. - Dirigiu-se para o vestíbulo e começou a subir as escadas. O choro cessou.
Por um instante, foi como se toda a casa se silenciasse. Depois ouviu o clamor vindo da cozinha, o jorro de música de um rádio, o burburinho das vozes dos operários.
- Que estranho! - Mantinha-se nas escadas, com a mão no corrimão. E com o coração a latejar. - Estava a pensar em pegar no bebé. Diz-se que se deve deixar os bebés
chorar, mas não compreendo porquê. Estava a pensar nisso e ele parou de chorar.
- É estranho, não é, pensares que ias pegar na tua trisavô? É a Marie Rose - disse quando Lena se virou nas escadas e olhou para ele. - Tenho a certeza. Talvez consigas
ouvi-la porque és do mesmo sangue. E suponho que eu também consigo porque sou o dono da casa. Tentei telefonar aos anteriores proprietários. Queria perguntar-lhes,
mas não consegui contactá-los.
- Provavelmente não te dirão nada.
- Bem, se não perguntar é que não dizem mesmo. Isto assusta-te? Lena olhou novamente para o topo das escadas e colocou a mesma questão a si própria.
- Devia assustar-me, mas não, não assusta. É fascinante, creio... - Calou-se quando uma porta bateu lá em cima. - Bem, não foi nenhum bebé que fez isto. - Subiu
apressadamente as escadas.
- Lena! - Mas esta contornava já a esquina do patamar e Declan não teve outra alternativa senão precipitar-se atrás dela.
Lena avançava decidida corredor fora, escancarando tudo o que era porta. Quando chegou ao quarto de Abigail, sentiu uma aragem fria. Hipnotizada com o vapor da sua
própria respiração, apertou os braços contra o peito.
- Não me parece que tenha sido a bebé - murmurou.
- Não. Está zangado. - Quando lhe pôs as mãos sobre os ombros,
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para a afastar dali, para a aquecer, a porta fechou-se na cara deles.
Lena sobressaltou-se: não conseguiu evitá-lo. E ouviu o nervosismo na sua própria voz estrangulada.
- Este teu fantasma não é muito hospitaleiro.
- É a primeira vez que acontece. - Sentia um nó duro no fundo da garganta: o coração, concluiu enquanto tentava respirar fundo. - Quem quer que seja... ou tenha
sido... está realmente zangado.
- É o quarto da Abigail. Nós, os cajuns, não temos nada bom feitio quando nos irritam.
- Só que não me parece que seja a ira de uma rapariga. Muito menos daquela coisa linda da fotografia que está lá em baixo.
- Sabes muitas coisas sobre raparigas, cher.
- Desculpa, mas tenho uma irmã e ela consegue ser má como as cobras. O que eu queria dizer é que me pareceu uma coisa mais... encorpada. Mais perversa.
- Se alguém me matasse e enterrasse o meu corpo num local desconhecido, também seria bastante perversa. - Obrigou-se a estender a mão para agarrar na maçaneta gelada
da porta. - Não roda.
Declan colocou a mão sobre a dela. O frio soprou novamente e a maçaneta rodou com facilidade. Quando abriram a porta viram apenas um quarto vazio, cheio de sombras
e luz do sol.
- É um pouco assustador, não é? - disse ela, transpondo a entrada.
- Sim.
- Sabes o que acho, cher?
- O quê?
- Acho que quem fica sozinho nesta casa, noite após noite, quem sai para ir comprar tapetes e mesas e candeeiros... - Voltou-se e rodeou-lhe a cintura com os braços.
- Acho que um homem que faz isso tem muita determinação.
- Sim? - Leu o convite dela e baixou a cabeça para a beijar. - Agora podia desencantar uns vinte minutos para a tal sessão de sexo.
Lena riu-se e abraçou-o com força.
- Desculpa, doçura. Tenho de voltar. Vem aí a noite de sábado. Mas se andares pelas redondezas, acho que posso ficar acordada até... - Enfiou a mão entre as pernas
dele e acariciou a ganga. - Ficar acordada para te esfregar bem essa grande determinação.
Declan conseguiu impedir-se de lhe suplicar, mas foi por um triz.
- Quarta-feira - disse-lhe. - Quando estiveres livre.
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Ainda mantinha a mão entre as pernas dele e sentia aquela dureza.
- Quarta-feira?
- Quando estiveres livre. - Esmagou a boca contra a dela para lhe dar a provar um pouco daquilo que ele sentia. - Vens até cá. Jantamos juntos. E ficas. - Encostou-a
contra a parede. Mordeu-a. - Ficas cá a dormir. Quero-te na minha cama. Quarta-feira. Diz-me que vens e que ficas comigo.
- Está bem. - Desprendeu-se dele. Mais uns segundos, pensou, e não conseguiriam esperar até quarta-feira. Teria de se lhe entregar ali no chão. - Tenho que voltar.
Não devia ter-me demorado tanto. - Olhou para ambos os lados do corredor quando saiu do quarto. - Creio que nunca passei a noite numa casa assombrada. A que horas
devo vir?
- Cedo.
- Logo se vê. Não precisas de me acompanhar à porta, cher. - Lançou-lhe um sorriso matreiro. - Caminhar vai ser um bocado complicado para ti, no estado em que estás.
Aparece no bar se mudares de ideias.
Beijou a ponta de um dedo e apontou-o para ele como se fosse uma arma antes de se afastar.
Um gesto muito apropriado, pensou Declan. Havia ocasiões em que o olhar dela era tão letal quanto uma bala.
Tudo o que tinha a fazer era esperar até quarta-feira. Então poderia deixar-se alvejar novamente.
Capítulo Doze
A chuva surgiu no sábado à noite e instalou-se definitivamente durante todo o fim-de-semana, obrigando Declan a permanecer sozinho dentro de casa. Iniciou os trabalhos
preliminares na biblioteca enquanto ouvia Blind Lemon Jackson.
Acendeu a lareira para conseguir alguma alegria e calor e depois deu por si sentado junto ao lume e a passar o dedo pelo mosaico lascado. Provavelmente não iria
substituí-lo. Nem tudo tinha de ser perfeito. Havia que aceitar os acidentes e absorver a sua natureza.
Queria dar nova vida à casa, mas quereria devolver-lhe exactamente o aspecto de outrora? Já alterara coisas, e essas mudanças tornavam a casa sua.
Se substituísse o mosaico, estaria a honrar a história da Mansão ou a recriá-la?
Não fora um lar feliz.
Aquele pensamento percorreu-o como um calafrio, apesar de estar de costas voltadas para as chamas crepitantes.
Uma casa fria, fria, cheia de segredos, ira e inveja.
Morte.
Ela queria um livro. Ler era para ela um prazer- um prazer lento e brilhante. A visão da biblioteca, com fila atrás de fila de livros, fazia-a encarar aquela divisão
tão reverentemente como a uma igreja.
Agora, com Lucian fechado com o pai no escritório, a tratarem de negócios de terras e colheitas, e com a chuva a tamborilar nas janelas, podia dedicar-se a uma serena
tarde de leitura.
Não estava ainda habituada a fazer do tempo o que lhe aprouvesse, pelo que se esgueirou para a biblioteca como se fosse um prazer proibido, já não precisava de dobrar
linhos, de limpar o pó às mesas, de carregar pratos.
Já não era uma criada naquela casa, era uma esposa.
Uma esposa. Abraçou-se ao pronunciar aquelas palavras. Era ainda tudo
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tão novo, tão cintilante. Tal como era nova a vida que crescia dentro de si. Tão nova que ainda não contara a Lucian.
Estava com as regras atrasadas, o que não era normal. Acordara indisposta nos últimos três dias. Mas aguardaria mais uma semana. Falar daquilo tão cedo poderia fazer
com que não se concretizasse.
E como desejava um filho! Como desejava dar um filho a Lucian. Colocou a mão sobre a barriga enquanto percorria as estantes e imaginava o belo filho ou filha que
traria ao mundo.
E provavelmente, muito provavelmente, uma criança conseguiria suavizar a mãe de Lucian. Talvez uma criança trouxesse alegria à casa, tal como o desejo de ter um
filho trazia alegria ao seu coração.
Escolheu Orgulho e Preconceito de Austen. O título adequava-se, pensou. A Mansão Manet tinha tanto de ambos. Mordeu o lábio enquanto folheava as páginas. Era uma
leitora lenta e esforçada, mas Lucian dizia que isso significava apenas que saboreava as palavras.
Tropeçava nelas, pensou, mas estava a progredir. Satisfeita consigo mesma, virou-se e viu Julian refastelado numa das poltronas cor de vinho, com um copo na mão
e uma garrafa junto do cotovelo.
A observá-la.
Ele assustava-a. Repugnava-lhe. Mas lembrou a si própria que já não era uma criada. Era a esposa do irmão e devia tentar conviver com ele.
- Olá, Julian. Não te tinha visto.
Ele ergueu a garrafa e serviu-se de mais brandy.
- Esse livro - disse, dando uma longa golada tem palavras de mais de uma sílaba.
- Eu sei ler. - Retesou repentinamente as costas. - Gosto de ler.
- De que mais gostas, chère?
Apertou o livro com força na mão quando ele se levantou e depois descontraiu-se ao vê-lo aproximar-se da lareira e pousar a bota sobre a base e um cotovelo sobre
a prateleira.
- Estou a aprender a montar a cavalo. O Lucian está a ensinar-me. Ainda não monto bem, mas gosto. - Oh, queria dar-se bem com ele. Aquela casa merecia calor, riso
e amor.
Julian riu-se e ela sentiu o brandy nas gargalhadas.
- Aposto que montas mesmo. Aposto que consegues montar um homem até o fazer suar. Esses teus olhos inocentes podem enganar o meu irmão, ele foi sempre um tolo. Mas
eu sei bem quem és e o que pretendes.
- Sou a esposa do teu irmão. - Tinha de haver maneira de dar um primeiro passo para ultrapassar aquele orgulho. Foi em nome de Lucian, em nome da criança que crescia
dentro de si, que deu esse primeiro passo em
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direcção a Julian. - Só quero que ele seja feliz. Eu faço-o feliz. Sois do mesmo sangue, Julian. Sois gémeos. Não é correcto estarmos assim desavindos. Quero tentar
ser tua irmã. Tua amiga.
Julian emborcou o resto do brandy.
- Queres ser minha amiga, é?
- Sim, por amor a Lucian, devíamos...
- Amiga como? - Lançou-se a ela e agarrou-lhe com força nos seios.
O choque daquela atitude petrificou-a. O insulto flamejou através do pânico com um calor abrasador. Descarregou a mão na face dele com força suficiente para o fazer
cambalear para trás.
- Cabrão! Animal! Pões-me outra vez as mãos e mato-te! Pertenço ao Lucian! Sou a esposa do teu irmão!
- És a puta do meu irmão! - gritou Julian enquanto ela se precipitava para a porta. - Pega cajun, hei-de ver-te morta antes que deites a mão àquilo que é meu por
direito!
Afastou-se com fúria da lareira. O pesado castiçal de prata tombou contra um dos mosaicos e arrancou uma lasca na borda.
Declan não se mexera. Quando recuperou a consciência estava ainda sentado junto à lareira, de costas voltadas para as chamas crepitantes. A chuva continuava a tamborilar
no chão e a escorrer pelas janelas.
Tal como acontecera durante a... visão? Amnésia? Alucinação?
Pressionou a testa com a mão, entre os olhos, onde a dor de cabeça lhe trespassava o crânio como uma lança.
Talvez não houvesse fantasmas, pensou. Talvez tivesse um maldito tumor cerebral. Faria mais sentido. Qualquer coisa faria mais sentido.
Portas a baterem, zonas frias, até o sonambulismo, eram efeitos colaterais da casa, podia viver com eles. Mas vira aquelas pessoas dentro da sua cabeça. Ouvira-as:
as palavras, o tom. E, muito, mas muito mais perturbador, sentira-as.
Sentiu as pernas fraquejarem e quase cederem sob o seu peso quando se levantou. Teve de se agarrar à prateleira da lareira e os seus dedos apertaram-na com tanta
força que se surpreendeu por o mármore não estalar.
Se havia algo de errado consigo, física ou mentalmente, teria de lidar com isso. Os Fitzgerald não enterravam a cabeça na areia quando as coisas se tornavam difíceis.
Sentindo-se recomposto, foi à cozinha procurar as aspirinas; enquanto retirava quatro da embalagem, concluiu que seria como tentar apagar um incêndio florestal urinando-lhe
em cima. Mas lá as engoliu. Depois passou o copo frio pela testa.
174
Iria a Boston visitar o tio. O irmão mais novo da mãe era cardiologista, mas indicar-lhe-ia um bom neurocirurgião. Um dia ou dois, alguns exames, e saberia se estava
louco, assombrado ou a morrer.
Estendeu a mão para o telefone mas deteve-se e abanou a cabeça. Louco, pensou, seria apenas mais uma acha para a fogueira. Se consultasse o tio Mick, a notícia dos
seus potenciais problemas médicos espalhar-se-ia pela família como um vírus contagioso.
Além do mais, para que precisava de voltar a correr para Boston? Também havia médicos em Nova Orleães. Tinha de descobrir o nome do médico de Remy. Podia dizer ao
amigo que precisava de ter um médico e um dentista ali na zona. Tinha lógica.
Faria exames físicos e pediria ao médico que lhe recomendasse um especialista. Simples, directo e eficiente.
Se os fantasmas não conseguiam afastá-lo da Mansão Manet, diabos o levassem se um tumor cerebral o conseguiria!
Quando pousou o copo, uma porta bateu no segundo piso. Limitou-se a olhar para o tecto e a esboçar um sorriso sombrio.
- Sim, eu também estou maldisposto.
Na quarta-feira sentia-se novamente senhor da situação. Talvez a expectativa de ver Lena o tivesse animado, bem como o trabalho que conseguira concluir nos últimos
dias antes da Quaresma. Tinha marcado uma consulta com o médico de Remy para a semana seguinte, e esse passo permitira-lhe esquecer grande parte da preocupação com
o estado do seu cérebro.
Não tivera mais ataques de amnésia, pelo menos nenhum de que se lembrasse. A chuva acabara por passar, flagelava agora a Flórida, e deixara-lhe os primeiros jarros
e narcisos espalhados por uma das veredas do jardim.
O boletim meteorológico matinal anunciara vinte e cinco centímetros de neve para Boston.
Telefonou imediatamente à mãe a troçar da situação.
A luz do sol e a provocação da Primavera obrigaram-no a alterar os planos mais cedo do que pretendia. Adiou o trabalho na biblioteca e instalou-se no exterior para
reforçar a varanda do segundo piso e substituir as tábuas danificadas.
Ouvia Ray Charles e sentia-se cheio de saúde. Decidiu que os Frank se ocupariam da maior parte das primeiras sementeiras, já que ele próprio não tinha tempo. Mas
no ano seguinte queria ser ele a fazê-lo, pelo menos tanto quanto lhe fosse possível.
175
Na Primavera sentar-se-ia na varanda aos domingos de manhã, a comer pãezinhos e a beber café au lait - na companhia de Lena. Domingos compridos e lentos, a olhar
para a relva, para os jardins. E, uns anos mais tarde, a olhar para os miúdos nos pátios, nos jardins.
Queria constituir a sua própria família, e era bom sabê-lo. Nunca antes sentira essa necessidade de se agarrar ao aqui e agora, ao mesmo tempo que olhava para o
amanhã.
Sabia que era sincero no que sentia por ela, no que planeava para ambos. Ajudá-la-ia no bar se ela precisasse, mas teria o seu próprio trabalho.
Virou as mãos e examinou os calos que ganhara nas palmas, os pequenos arranhões e cicatrizes que encarava como medalhas de mérito pessoal.
Usaria as mãos, bem como as costas e a imaginação, para transformar outras casas. As pessoas daquelas bandas lembrar-se-iam de Declan Fitzgerald quando precisassem
de um empreiteiro. Deviam ter visto aquela velha casa antes de ele deitar mãos à obra, diriam. Querem um trabalho bem feito, basta chamarem o Dec. Ele trata de tudo.
A ideia fê-lo sorrir enquanto arrancava outra tábua apodrecida.
Por volta das quatro horas, com o comprido soalho da varanda terminado, deitou-se de barriga para baixo para fazer uma pausa. Adormeceu com B. B. King a implorar
à sua Lucille.
E continuava a dormir quando se levantou e desceu as escadas trémulas e enviesadas que conduziam ao relvado da frente.
A relva que pisava era espessa, o calor do sol banhava-lhe o rosto e incidia-lhe em cheio na cabeça apesar do chapéu que usava como protecção.
Os outros estavam lá dentro, mas ele queria ver o tanque e os nenúfares. Queria sentar-se a ler à sombra do salgueiro-chorão que dançava sobre a água.
Gostava da música dos pássaros e não se importava muito com o calor. O calor era honesto. O ar dentro da Mansão era frio e falso.
Dilacerava-lhe o coração ver a casa que amava apodrecer mergulhada em amargura. Deteve-se junto à borda do tanque e olhou para as folhas verdes dos nenúfares branco-creme
que embelezavam a água. Viu uma libelinha passar a zumbir - o sol cintilava-lhe de tal modo nas asas que fazia dela uma mancha iridescente. Ouviu o plop de uma rã
e o canto de um pisco.
Voltou-se quando ouviu chamarem pelo seu nome. E sorriu quando a sua amada atravessou o relvado púrpura em direcção a ele.
176
Desde que se mantivessem juntos, desde que se amassem, a Mansão manter-se-ia firme, pensou.
- Declan. Declan.
Assustada, Lena agarrou-o pelos braços e abanou-o. Vira-o descer as escadas traiçoeiras enquanto estacionava o carro e vira-o caminhar para o tanque com um passo
desajeitado e hesitante, muito diferente da sua habitual passada descontraída.
Declan abriu os olhos, mas tinha um olhar vítreo. E parecia olhar através dela, para alguma coisa, ou alguém.
- Declan! - Mantinha a voz e as mãos firmes enquanto lhe segurava o rosto. - Olha para mim! Estás a ouvir-me? É a Lena.
- Vamos sentar-nos debaixo do salgueiro-chorão, onde ninguém consegue ver-nos.
Não havia nenhum salgueiro, apenas um cepo apodrecido. Lena sentiu o medo a instalar-se no fundo da garganta, mas refreou-se. Deixou-se guiar pelo instinto, ergueu-se
na ponta dos pés e pousou delicadamente os lábios sobre os dele.
A reacção de Declan foi lenta, entorpecida, como se deslizasse para junto dela. Contra ela. Para dentro dela. Soube-o no momento em que ele se arqueou e todo o seu
corpo se retesou. Começou a baloiçar-se, mas Lena persistiu.
- Acalma-te, cher. Agarra-te a mim até conseguires aguentar-te nas pernas.
- Desculpa. Preciso de me sentar. - Deixou-se cair sobre a relva, de testa apoiada nos joelhos. - Meu Deus!
- Agora estás bem, já estás bem. - Ajoelhou-se junto dele, afagou-lhe o cabelo e murmurou-lhe em cajun, a língua que usava para reconfortar. - Basta recuperares
o fôlego.
- Que raio se passa comigo? Estava na varanda, estava a trabalhar na varanda.
- É a última coisa de que te lembras?
Declan levantou a cabeça e olhou para o tanque.
- Não sei como vim aqui parar.
- Desceste as escadas do lado direito da casa. Pensei que ias galgá-las de uma vez. - Sentiu o coração sobressaltar-se de novo ao lembrar-se de como essas escadas
eram instáveis. - Não parecem seguras, Declan. Devias isolá-las.
- Sim. - Esfregou o rosto. - Vou fechar-me num quarto de paredes almofadadas enquanto isto continuar a acontecer-me.
- Não estás louco.
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- Sou sonâmbulo... e agora também acontece de dia. Tenho alucinações, ouço vozes. Não me parecem coisas sãs.
- Isso não passa de conversa de ianque. Aqui nem chega a ser excêntrico. A minha tia-avó Sissy tem longas conversas com o marido, o Joe, que morreu há doze anos.
E ninguém pensa que ela está louca.
- De que falam eles?
- Oh, assuntos de família, acontecimentos da actualidade, o tempo. Política. O tio-avô Joe adorava queixar-se do governo. Sentes-te melhor, cher?
- Não sei. O que é que eu fiz? O que é que me viste fazer?
- Desceste as escadas e atravessaste o relvado até ao tanque. Não caminhavas como habitualmente e soube logo que havia algo de errado.
- Que queres dizer com isso?
- Tens um modo de andar suave e esguio e não estavas a caminhar assim. Depois paraste junto do tanque.
Não lhe disse que passara por um momento de choque quando tivera quase a certeza de que ele pretendia caminhar direito à água.
- Eu não parava de te chamar. Acabaste por te virar e sorriste-me. - Sentiu os músculos do estômago retesar-se com a lembrança. - Mas não sorrias para mim. Acho
que não me estavas a ver. E disseste que querias sentar-te debaixo do salgueiro, onde ninguém pudesse ver-nos.
- Aqui não há salgueiros.
- Bem. - Apontou para o cepo. - Havia, dantes. Parece que estás a ter sonhos em que talvez vejas coisas que aconteceram outrora. É uma espécie de dom, Declan.
- Onde é que o devolvo? - Abanou a cabeça. - Não sei, não consigo lembrar-me quando acordo. Mas começo a pensar que à noite devia atar-me ao poste da cama.
- Hoje à noite posso fazer isso por ti.
- Estás a tentar animar-me com fantasias de dominação sexual?
- Achas que me sairia bem?
- Bastante bem. - Soltou um suspiro e franziu o sobrolho ao ver a mancha de sujidade que ela tinha na testa. - Tens fuligem ou coisa que o valha - disse, mas ela
puxou a cabeça para trás antes que ele pudesse estender a mão.
- São as minhas cinzas sagradas.
- Ah, claro. - O seu cérebro estava inegavelmente de férias. - Quarta-Feira de Cinzas. Para além de não saber onde estou, também não sei a quantas ando.
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Lena não conseguia suportar vê-lo afundar-se novamente na escuridão, pelo que manteve a voz animada e mesmo um pouco mais alta que o habitual.
- Presumo que não tenhas ido à igreja, neste dia sagrado e obrigatório.
Ele encolheu os ombros.
- Pareces a minha mãe. Esqueci-me. Mais ou menos. Lena arqueou um sobrolho.
- Acho que todas as bênçãos seriam bem-vindas no teu caso. - Esfregou o polegar na mancha de cinzas que tinha na testa e depois esfregou-o na dele. Declan sorriu.
- Isto é provavelmente um sacrilégio, mas obrigado. Que horas são? - Olhou para o relógio e praguejou. - Tenho que levar este ferro-velho para consertar. Está sempre
a parar. Sei que já passa do meio-dia e de certeza que ainda não é meia-noite.
- São quase cinco. Disseste-me para vir cedo.
- Sim, pois disse. Porque não nos sentamos cá fora a beber vinho? Observou-o com atenção durante uns segundos mas pareceu-lhe novamente seguro de si enquanto escolhia
o vinho. Tirou dos armários novos uns maravilhosos copos antigos.
Declan assustara-a imenso, confessou a si mesma. Tivera quase a certeza de que ele pretendia entrar no tanque, para se afogar entre as folhas dos nenúfares como
Lucian Manet fizera.
E a consciência desse facto abriu-lhe todo um novo reino de possibilidades.
- Declan...
- Tenho bifes e um grelhador - disse ele enquanto servia vinho. Precisava de se concentrar nas coisas normais, concentrar-se no aqui e no agora. - Todos os verdadeiros
homens sabem grelhar bifes. Se vais dizer que não comes carne vermelha, vais ter que te contentar com piza congelada.
- Se como carne, porque me hei-de preocupar com a cor que tem? Vamos sentar-nos lá fora. Tenho uma ideia que quero discutir contigo.
Sentaram-se nos dois caixotes de madeira que ele usava como cadeiras.
- E se não forem fantasmas? Se não forem meros fantasmas? - perguntou-lhe ela.
- Oh, é uma ideia animadora. Que mais pode ser? Vampiros? Lobisomens? Talvez uns zombies que comem carne? Agora vou conseguir dormir muito melhor, obrigado.
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- Que pensas da reencarnação?
- Vidas passadas? Almas recicladas? - Encolheu os ombros. - Não sei.
- Sempre me pareceu possível... e também justo. Toda a gente merece mais do que uma oportunidade, não achas? Talvez estejas a recordar coisas que aqui aconteceram
porque já cá viveste antes. Talvez sejas o Lucian, que voltou para a sua Abigail ao fim de todos estes anos.
- É uma ideia romântica. Serei o Lucian se tu fores a Abby.
- Não és tu que escolhes. E se te pões a troçar da ideia, não digo mais nada.
- Está bem, não te irrites. - Sorveu o seu vinho e contemplou o espaço em volta. - Então a tua teoria é que estou aqui e estas coisas estão a acontecer porque vivi
uma vida passada na pele de Lucian Manet.
- Não acho que seja mais rebuscado do que dizer que este lugar está assombrado, ideia que tu engoliste prontamente. Explicaria porque compraste esta casa, porque
precisas dela, porque estás a trabalhar tão arduamente para a restaurar. O modo como viste a mobília no quarto lá de cima.
- Reencarnação - repetiu ele. - Soa melhor do que tumor cerebral.
- O quê?
Declan abanou a cabeça e bebeu novamente.
- Nada.
- Achas que tens um tumor no cérebro? Que disparate, Declan. - A voz saíra-lhe mais aguda do que pretendia, pelo que continuou num tom mais suave: - Isso não passa
de um disparate, cher. Não há nada de errado com a tua cabeça nem com mais coisa nenhuma.
- Claro que não. Estava apenas a pensar em voz alta.
Mas Lena leu-lhe a preocupação estampada no rosto, uma preocupação que a fez levantar-se e ir-se sentar ao colo dele.
- Estás mesmo preocupado que possas ter alguma coisa na cabeça que te leva a ver coisas, a fazer coisas?
- Não estou preocupado. Estou apenas... Ouve, vou fazer uns exames, para eliminar essa possibilidade.
- Não estás doente, cher. - Aflorou-lhe a face com os lábios. Nunca um homem lhe despertara aquela faceta de ternura de modo tão consistente e imediato. - Garanto-te.
Mas se ficas mais descansado por ser um médico cheio de palavreado a dizer-te a mesma coisa, não vejo mal nisso.
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- Não fales disto ao Remy. - Pegou-lhe na mão até ela serenar e cruzar o olhar com o dele. - O casamento está para breve. Já tem preocupações que cheguem.
- Portanto, a tua ideia é ires sozinho fazer exames ao cérebro? Aqui não fazemos as coisas assim, cher. Não queres que o Remy saiba, está muito bem, mas diz-me quando
é para eu ir contigo.
- Lena, já sou crescidinho.
- Não vais sozinho. Vou contigo, senão conto ao Remy e caímos-te em cima.
- Está bem. Digo-te quando tiver a consulta marcada e podes ir segurar-me na mão. Entretanto, vou apostar a minha fortuna na tua teoria da reencarnação. É estranha,
mas é muito menos complicada do que uma cirurgia cerebral.
- Diz-se que Lucian Manet era bem-parecido, uma espécie de jovem deus loiro. - Passou os dedos pelo cabelo desalinhado dele. Era loiro-escuro, espesso, abundante,
e seria capaz de apostar que encaracolava para cima de modo sexy com o sol do Verão. - Nesta vida acho que conseguiste ultrapassá-lo.
- Ai sim? - Abraçou-a pela cinta. - Conta-me mais.
- Nunca me interessei muito pelo tipo deus loiro. Geralmente são demasiado bonitos para o meu gosto. - Empertigou a cabeça e inclinou-se para o beijar. - Tu adequas-te
ao meu gosto, cher.
Aproximou-a mais de si e apoiou o queixo no ombro dela enquanto olhava por cima das grades da varanda.
- Amo-te, Lena.
- Se estás a tentar levar-me para a cama com falinhas mansas antes de me dares de comer...
Afastou-a de si e Lena deixou de sorrir quando o viu sorrir a ele.
- Amo-te - repetiu ele. - Nunca soube o que isto significava e nunca pensei que viesse a saber.
Manteve-a junto de si quando ela tentou levantar-se e afastar-se.
- Precisas de acalmar - disse ela.
- Sim, preciso... mas não creio que estejas a referir-te ao mesmo que eu. Preciso de assentar, neste local, contigo. Não me importa se é a primeira ou a quinquagésima
vez que saímos um com o outro. És a pessoa por quem tenho esperado.
- Declan, estás a dar mais importância a isto do que devias. - Sentia a voz quase a tremer-lhe. E só Deus sabia como o estômago lhe tremia já. - Fomos jantar juntos.
Dormimos juntos. Vimo-nos um par de vezes.
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- Bastou-me olhar para ti uma vez.
Tem uns olhos tão profundos, tão claros, pensou ela. Como a superfície de um lago ao crepúsculo.
- Nem sequer me conheces.
Declan puxou-a de si pela segunda vez, lembrando-lhe assim de que continuava determinado e com uma certa irritação.
- Estás enganada. Sei que és inteligente e forte. O suficiente para trabalhares arduamente para construíres o teu próprio negócio praticamente a partir do nada.
Sei que pagas as tuas dívidas. Sei que és fiel e carinhosa. Sei que alguém te magoou e que não é preciso muito para a ferida abrir novamente. E sei que estou a assustar-te
agora porque pensas que não estás preparada para ouvir o que te estou a dizer.
Lena sentiu o coração latejar-lhe de dor, como se lhe tivessem desferido um murro numa ferida em carne viva.
- Não procuro o amor, Declan. Lamento.
- Nem eu, mas aconteceu. Não precisamos de nos precipitar. Não ia dizer-te nada por enquanto, mas... precisei de o fazer.
- Cher, as pessoas estão sempre a apaixonar-se e a desapaixonar-se. Não passa de um deslumbramento provocado pela química.
- Ele magoou-te mesmo.
Irritada, Lena tentou afastar-se, e desta vez Declan deixou-a.
- Estás enganado. Não há homem nenhum, nenhum fantasma de um amante que me tenha despedaçado o coração. Pareço-te um cliché?
- A mim pareces-me tudo.
- Mon Dieu! - As palavras ficaram-lhe presas na garganta. Reprimiu a sensação e tentou falar com clareza. - Gosto de ti, Declan, e aprecio a tua companhia. Quero
estar contigo na cama. Se isso não for suficiente para ti, parto agora e poupo-nos a bastantes problemas e desilusões.
- Ficas sempre tão irritada quando alguém diz que te ama? Nunca ninguém mo disse, quase confessou. Nunca ninguém lho dissera verdadeiramente.
- Não gosto que me forcem, e quando me forçam, faço questão de não seguir nessa direcção.
- Admiro-te por isso. - Exibiu um sorriso afável enquanto se levantava. - Também gosto de ti, Lena. Aprecio a tua companhia e quero-te na cama. Por agora será o
suficiente. Tens fome? Acho que vou ligar o grelhador.
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Se era um truque, ou alguma estratégia para a abalar, conseguira-o, pensou ela.
Não o compreendia, e aquelas suas mudanças de humor eram uma forma infalível de a manter presa ao enigma.
Declan cozinhava como um homem que não confiava nas suas capacidades culinárias. Batatas grelhadas com a pele e bifes. E ainda a convenceu a preparar a salada.
Não disse mais nada sobre o amor.
Perguntou-lhe sobre o trabalho, como correra o negócio durante os dois dias de chuva. Pôs música, com o som baixo, e falou através da porta da cozinha enquanto o
grelhador aquecia e ela cortava os legumes.
Era como se fossem amigos, ou amantes em perfeita sintonia.
Comeram na bela cozinha dele, à luz das velas. A própria casa mostrava-se serena. Apesar disso - ou talvez por causa disso -, sentiu-se inquieta durante toda a refeição.
Declan tirou do frigorífico um bolo que comprara. Lena olhou para ele e suspirou.
- Não posso.
- Pode ficar para mais tarde.
- Não posso durante quarenta dias. Desisti do chocolate durante a Quaresma. Tenho um apetite incrível por chocolate.
- Oh! - Voltou a colocá-lo no frigorífico. - Eu tenho provavelmente outro tipo de apetite...
- De que é que desistirias?
- De usar roupa interior feminina. Vai-me custar, mas acho que consigo aguentar até à Páscoa.
- Se continuas a falar assim, quero as minhas cinzas de volta. - Estava a provocá-la, pensou. A melhor forma de lidar com a situação era provocá-lo mais ainda. Colocou-se
atrás dele enquanto ele procurava qualquer coisa no frigorífico, envolveu-lhe a cintura com os braços e encostou o corpo contra o dele. - Precisas de abdicar de
algo, cher, algo por que tenhas um apetite desmesurado.
- Com certeza que não será de ti.
Deixou que ela o virasse para si e o encostasse contra o frigorífico.
Oh, conhecia-a bem, pensou enquanto ela se servia dos lábios para lhe provocar uma série de explosões na corrente sanguínea. Sabia que estava a servir-se do sexo
para se manter um passo à frente dele. Ou um passo atrás.
Se Lena não percebia que ele podia amá-la tanto quanto a desejava, cabia-lhe a ele demonstrar-lho.
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- Na tua cama, foi o que disseste. - A boca dela era impiedosa, continuamente desassossegada enquanto lhe percorria o rosto. - Na tua cama.
Empurrou-o em direcção à porta. Declan quase a empurrou para trás, para junto das escadas da cozinha, mas concluiu que poderia ser interessante seguir o caminho
mais comprido.
Encostou-a contra a parede do corredor e assediou-lhe a garganta com a boca.
- Lá chegaremos.
Baixou a mão para lhe levantar a blusa, tirou-lha e lançou-a para o chão. Enredaram-se um no outro e inverteram posições com um movimento rápido. Foi com mãos impacientes
que ela lhe puxou a camisa, com tal força que os botões saltaram e ficaram a dançar no chão.
Debateram-se com as roupas enquanto se iam aproximando das escadas. Os sapatos aterraram com um baque surdo. O soutien dela flutuou sobre o corrimão e as calças
dele caíram sobre o terceiro degrau.
Antes de chegarem ao patamar já estavam sem fôlego.
As mãos dele eram ásperas, eram agora as mãos de um trabalhador que vibravam enquanto a percorriam. Sentiu a pele ganhar vida.
- Despacha-te! - Enterrou-lhe os dentes no ombro quando o desejo disparou dentro dela, uma violenta tempestade de fogo que consumia qualquer precaução. - Meu Deus,
despacha-te!
Quase a tomou ali onde estavam, mas queria tê-la debaixo de si. Queria estar sobre ela, de costas arqueadas.
Invadiu-lhe a boca, envolveu-lhe a cintura e levantou-a do chão. Sentiu-se trespassado por uma sensação crua e primitiva, uma consciência de que já não havia escolha,
um impulso animal que os obrigava a acasalar.
As sombras envolveram-nos enquanto se dirigiam para o quarto.
O frio que escorria das portas fê-la estremecer.
- Declan.
- Isto somos nós. Isto é nosso. - Assim que falou, com a voz ofegante enquanto a abraçava e a agarrava com força, o frio recuou.
Caíram sobre a cama, num emaranhado de braços, pernas e pressa. Quando mergulhou dentro dela, as unhas de Lena enterraram-se nas suas costas. O prazer, escuro e
desesperado, inundou-a, e essa glória selvagem avassalou-a de tal modo que se entrelaçou nele para lhe acompanhar o ritmo furioso.
Sem controlo, sem qualquer desejo de controlo. Apenas a sede feroz de mais e mais e mais. E a fome implacável da entrega.
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Agarrou-se a ele, cavalgando a tempestade de sensações, cada vez mais perto do precipício.
Ao longe, um relógio começou a dar as suas sonoras badaladas. E à décima segunda explodiu juntamente com ele.
Quando Declan fez menção de se afastar, Lena agarrou-o com mais força.
- Mmm. Não vás já.
- Sou muito pesado para ti. - Passou os lábios pela curva da garganta dela.
- Estou a gostar. Gosto disso. - Inclinou indolentemente a cabeça para ele poder acariciá-la até ao queixo. Sentiu o corpo usado, magoado e maravilhosamente solto.
- É bem melhor do que bolo de chocolate.
Ele riu-se e rolou para o lado, arrastando-a consigo até ela ficar estendida sobre o seu peito.
- Pronto, agora já não preciso de me preocupar com a possibilidade de te esmagar.
- És um verdadeiro cavalheiro. - Satisfeita, colocou-se numa posição confortável. - Sempre gostei de relógios que dão as horas. Mas precisas de o acertar. Ainda
não é meia-noite.
- Eu sei.
- Soou como aqueles velhos relógios de pêndulo. Onde o puseste? Na salinha da entrada?
- Não. - Afagou-lhe o cabelo e as costas. - Não tenho nenhum relógio que dê as horas.
- Cher, tu desconcertas-me completamente, mas eu ouvi um relógio a dar as doze badaladas.
- Sim, eu também. Mas não tenho nenhum relógio de pêndulo. Lena levantou a cabeça e soltou um lento suspiro.
- Oh. Pois muito bem. E isso assusta-te?
- Não.
- Então a mim também não - disse, pousando novamente a cabeça sobre o coração dele.
Capítulo Treze
Na opinião de Declan, a melhor maneira de ultrapassar os obstáculos não era lançar-se directamente contra eles, arriscando-se a partir a cabeça, mas antes desgastá-los
aos poucos. Gradualmente, com sensatez. Implacavelmente. Quer fosse um problema jurídico, um evento desportivo ou um caso amoroso, era crucial não perder o objectivo
de vista, de modo a poder seleccionar os meios mais adequados.
Descobriu a missa e a igreja a que Lena e a avó costumavam ir. A pesquisa era essencial em qualquer estratégia.
Quando se sentou no banco ao lado delas, no domingo de manhã, recebeu um demorado olhar especulativo de Lena e um conivente piscar de olho de Miss Odette.
Calculou que Deus compreenderia e apreciaria aquele estratagema e que não lhe guardaria qualquer ressentimento por se servir da missa dominical como um meio para
atingir o seu fim.
Mas não iria contar à mãe a confusão que lhe ia na mente. A experiência dizia-lhe que ela era bastante menos flexível do que o Todo-Poderoso.
Direccionou o seu encanto para Miss Odette, e convenceu-as a irem almoçar com ele depois da missa. Recebeu um novo olhar distante de Lena quando deu o seu nome à
empregada. Já tinha reservado mesa para os três.
- Muito seguro de ti, não és, cher?
Os olhos dele eram inocentemente cinzentos como os de um antigo menino do coro.
- Limitei-me a preparar as coisas de antemão.
- Não és nenhum escuteiro, doçura.
- A sua neta é muito cínica - respondeu ele enquanto oferecia o braço a Odette.
- Inteligente, é o que ela é. - Deu-lhe uma palmadinha na mão e
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as pulseiras tilintaram. - Uma mulher tem de ser levada com falinhas mansas, meu belo rapaz. Um homem que vai à igreja para passar a manhã de domingo com uma mulher
também é bastante inteligente.
- Pensei ir rezar um pouco.
- Algum pedido em especial?
- Que a senhora fugisse comigo para o Bornéu.
Miss Odette deu uma gargalhada e sentou-se na cadeira que Declan lhe oferecia.
- Você é realmente o homem ideal.
- Sim. - Olhou directamente para Lena. - Vou ser o homem ideal.
Instalaram-se à mesa a beber mimosas e a saborear o primeiro prato do dispendioso menu. Declan contou-lhes os progressos no restauro da casa, enquanto em fundo um
quarteto de jazz tocava Dixieland.
- Vou dedicar-me às obras no exterior enquanto o tempo se mantiver assim. O Tibald ainda anda ocupado com os ornamentos de estuque, e eu quero ver se arranjo um
pintor para o exterior. Não quero fazê-lo eu. O tipo que contratei para pintar a salinha da frente veio dar uma olhadela à biblioteca mas saiu de maneira um tanto
abrupta. - Exibiu uma expressão de desalento enquanto beberricava a sua mimosa. - Não creio que volte. O homem da tijoleira também não. Completou apenas metade de
uma das casas de banho até arrumar as coisas e partir.
- Posso tentar arranjar-lhe alguém - ofereceu-se Miss Odette.
- Agradeço-lhe, mas acho que tenho que começar a procurar fora desta zona ou a tentar fazer eu próprio essas tarefas. As coisas estão a ficar um bocado animadas
na Mansão.
- Homens crescidos a fugirem por causa de umas portas a bater. - Lena curvou os lábios num esgar de troça. - Deviam ter mais coragem.
- Agora é um pouco mais do que isso. Relógios a darem badaladas quando não há relógio nenhum, música a tocar em quartos vazios. Quando o pintor lá esteve, as portas
de ligação da biblioteca não paravam de abrir e fechar. E depois houve aqueles gritos.
- Que gritos?
- O tipo da tijoleira. - Declan esboçou um sorriso. - Disse que ouviu alguém entrar no quarto e pensou que era eu. Estava a falar, a colocar a tijoleira, e pensava
que era eu a andar por ali. Como não respondia às perguntas que ele fazia, levantou-se e entrou. Não estava ninguém. Pelo que depreendi do que me disse, algo incoerentemente,
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a porta da casa de banho fechou-se atrás dele e as achas pegaram fogo na lareira. Também afirma que sentiu alguém pôr-lhe a mão no ombro. Tive que o acalmar.
- E que pensa dessas coisas? - perguntou Odette.
- Tenho algumas ideias. Parece-me que quanto mais os trabalhos de restauro progridem, mais exposta e volátil se torna a... a actividade paranormal, por assim dizer.
Sobretudo, bem, quando me afasto do esquema original.
Lena engoliu uma garfada de milho: uma típica receita sulista a que as papilas gustativas de Declan ainda precisavam de se habituar.
- O que queres dizer com isso?
- Por exemplo, os ornamentos de estuque. Nas áreas em que o trabalho progride, as coisas correm bem. Estou a restaurá-las, a repor o original. Mas nas divisões em
que fiz alterações, como na casa de banho, onde mudei a loiça e a tijoleira, as coisas tornam-se mesmo interessantes. É como se aquilo que existe na casa ficasse
supremamente irritado por não nos regermos pelo plano original.
- Isso dá que pensar - comentou Odette.
- E realmente tenho pensado. Imagino Josephine Manet. - Apesar de estarem no restaurante, com Dixieland a encher o ar e o champanhe a borbulhar, o nome fê-lo estremecer
com medo. - A senhora da Mansão. Basta olhar para as fotografias dela para ver que era uma mulher que não gostava que a contrariassem. Ora bem, agora venho eu e
deixo as minhas marcas por tudo o que era dela.
- Decidiu-se a viver com ela? - perguntou Odette, observando o queixo firme de Declan.
- Decidi viver na Mansão, à minha maneira. Se ela quiser armar confusão, o problema é dela.
Lena recostou-se.
- Que achas, avó? Corajoso ou teimoso?
- Oh, ele tem um pouco das duas coisas. É uma boa mistura.
- Obrigado, mas não sei se sou muito corajoso. Agora a casa é minha e ponto final. Mesmo assim, acho que não se pode censurar um homem que investiu apenas o seu
tempo e trabalho se decidir pôr-se a andar. De qualquer modo, que acha, Miss Odette? Estarei a perturbar a Josephine?
- Acho que há duas forças opostas naquela casa. A força que o trouxe para cá e a força que quer que se afaste. Tudo se resume a saber qual delas sairá vencedora.
- Abriu a malinha domingueira e retirou um pequeno saquinho de musselina. - Fiz isto para si.
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- O que é?
- Oh, uma pequena magia caseira. Basta guardá-lo no bolso. Talvez não ajude, mas mal não fará. - Pegou novamente no copo e sorriu. - Quem diria, estou a beber champanhe
ao pequeno-almoço.
- Se vier comigo para o Bornéu, até pode banhar-se em champanhe.
- Cher, se continuo a beber, olhe que ainda aceito.
- Vou pedir mais uma rodada.
Ele é tão querido com ela, pensou Lena. A namoriscar com a avó durante a demorada e indolente refeição até o rosto dela ficar corado de prazer. Preocupava-se com
as pessoas, pensou. Dispensava-lhes tempo, esforçava-se por descobrir aquilo de que gostavam para depois lhes proporcionar esses pequenos prazeres.
Era atencioso, inteligente, sexy, rico, obstinado e generoso.
E tinha dito que estava apaixonado por ela.
Acreditava que o conhecia suficientemente bem para ter a certeza de que não o teria dito se não o sentisse realmente. Era esse facto que a irritava.
Porque, aliado às suas outras qualidades, havia um vasto fundo de honestidade. E uma obstinação pura.
Declan conseguiria fazê-la apaixonar-se. Já pouco faltava para isso acontecer. Sempre que tentava firmar os pés no chão perdia novamente o equilíbrio, e a queda
era tão preocupante quanto entusiasmante.
Mas o que aconteceria quando caísse mesmo? Sabia que assim que sucumbisse não haveria maneira de voltar atrás. Os relacionamentos eram fáceis quando não tinham importância
ou, se a tinham, esta era apenas momentânea.
Quando tinham importância para sempre, esse facto alterava tudo.
As coisas já se tinham alterado, admitiu. Tudo começara com a ânsia que sentia dentro de si. E agora sentia também um conforto e um desafio quando estava com ele.
Conseguia imaginar-se a senti-los dia após dia, ano após ano.
Ele quereria promessas que ela receava fazer.
Receio não, corrigiu-se, mas irritação consigo mesma. Estava relutante em abandonar-se. Não desejava abandonar-se.
Viu-o inclinar-se e beijar a avó na face e receou - não valia a pena fingir o contrário - acabar por ceder a tudo o que ele lhe pedisse.
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E ele cortejava-a. Era, aparentemente, uma palavra sulista particularmente do agrado de Declan. Sugeria imagens de luar e de cadeiras de baloiço no alpendre, limonada
forte e danças campestres.
Durante o mês de Março, duas coisas lhe ocuparam a mente, o tempo e os planos: Lena e a casa.
Celebrou os resultados negativos dos exames neurológicos com um dia de folga passado à procura de antiguidades. A Primavera fizera desabrochar as flores e forçara
os transeuntes a enrolarem as mangas para cima. Os cavalos que puxavam as caleches tão do agrado dos turistas faziam ressoar os cascos sobre a calçada.
Em breve o Verão faria sentir a sua mão pesada e o ar ganharia a consistência do melaço. O pensamento lembrou-lhe que tinha de reforçar o sistema de ar condicionado
e talvez ponderar a instalação de ventoinhas nalguns dos quartos.
Fez compras com a sua habitual entrega ao impulso, abrilhantando o dia de vários lojistas até se deter num lugar singelamente chamado Yesterday.
Era um amontoado de estatuária, candeeiros, acessórios e jóias antigos, com três cabinas com cortinas num dos cantos da loja, onde os clientes podiam fazer uma leitura
de tarot.
A princípio foi o anel que lhe captou a atenção. O rubi vermelho sangue e o diamante branco-gelo formavam as duas metades de um coração embutido sobre uma peça de
platina.
Assim que o segurou na mão, soube que desejava oferecê-lo a Lena. Talvez fosse uma insensatez comprar um anel de noivado naquela fase do relacionamento. E era imprudente
restringir-se àquele objecto antes de procurar outras opções.
Mas era aquele o anel que queria colocar no dedo dela. E decidiu que se um homem podia comprar uma casa por capricho, também podia comprar um anel, que raio!
- Vou levá-lo.
- É encantador - disse a vendedora. - Ela é uma mulher com sorte.
- Estou a esforçar-me por a convencer disso.
- Tenho uns brincos maravilhosos que formariam um belo conjunto com o anel. O rubi é a pedra de sorte dela? - perguntou a mulher enquanto lhe mostrava um par de
brincos com corações de rubi e diamante.
- Não sei. - Mas conseguira que Miss Odette lhe dissesse a data do aniversário dela, para não a deixar passar em claro. - Nasceu em Julho.
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- Então é mesmo. Acertei por sorte.
- Realmente. - Sentiu uma pontada de entusiasmo quando olhou de novo para o anel. Havia coisas que estavam destinadas, disse a si próprio. Pegou num dos brincos.
Já a via com eles postos, tal como imaginava que a vendedora via a inscrição Comprador Impulsivo estampada na testa dele.
Encostou-se ao balcão e começou a contrapor as suas capacidades regateadoras às técnicas sulistas do comércio de cavalos.
Achou que tinham chegado a um acordo justo quando viu que o sorriso da mulher tinha perdido parte do brilho.
- E é tudo por hoje?
- Sim, tenho que me apressar. Já estou... - Calou-se quando olhou para o relógio e viu que parara novamente nas doze horas. - Sabe, dava-me jeito um relógio... um
relógio de bolso. O meu anda a dar-me problemas e tenho andado ocupado com trabalhos de carpintaria. Este provavelmente levou algumas pancadas.
- Tenho belíssimos relógios de bolso antigos. São muito mais imaginativos do que os que se usam actualmente.
Conduziu-o para junto de outra vitrina, retirou uma gaveta e colocou-a sobre o balcão.
- Relógios como este dizem mais do que as horas - disse ela. - Contam uma história. Este aqui...
- Não. - As extremidades do seu campo de visão toldaram-se como fumo. O burburinho das vozes dos outros clientes viu-se reduzido a um murmúrio. Parte dele permanecia
suficientemente consciente para saber que estava a alhear-se de si próprio. Tentou controlar-se, recuar, e viu a sua mão estender-se e escolher um relógio de ouro
e a respectiva corrente.
A voz da lojista pairava no limiar da sua consciência. Uma outra voz cortou o ar, nítida como um sino. Uma voz feminina, jovem, excitada.
Para o meu marido, para o aniversário dele. O que ele tinha partiu-se. Quero dar-lhe algo especial. Este é tão bonito. É possível fazer uma gravação?
E soube então o que iria encontrar, soube exactamente o que iria encontrar antes de virar o relógio para ler o que lá estava escrito.
Para o Lucian, da sua Abby.
Para comemorar o nosso tempo juntos.
4 de Abril, 1899
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- Mr. Fitzgerald? Mr. Fitzgerald, sente-se bem? Quer que lhe traga um copo de água? Está tão pálido.
- O quê?
- Quer que lhe traga um copo de água? Quer-se sentar?
- Não. - Apertou o relógio com força, mas a sensação começava a desvanecer-se. - Não, obrigado. Estou bem. Vou levá-lo.
Sentia-se um pouco abalado e dirigiu-se para o escritório de Remy. Achou que passar algum tempo na sensatez da zona financeira da cidade, na atmosfera racional do
Direito, o ajudaria a acalmar.
Além disso, era sempre bom passar algum tempo com um amigo que, mesmo que o achasse louco, não deixava de o adorar.
- Se me tivesses dito que vinhas tinha despachado uns assuntos para podermos ir almoçar - disse Remy enquanto fechava a porta do gabinete.
- Não contava vir cá hoje.
- Andaste outra vez nas compras. - Apontou com a cabeça para o saco que Declan trazia. - Rapaz, não vais mandar vir nada de Boston?
- Na verdade, vão chegar algumas coisas na próxima semana. Sobretudo livros - disse enquanto deambulava pelo gabinete. Passou os olhos por livros de Direito, por
grossos dossiês, por memorandos. Todos esses escombros da vida de advogado que lhe parecia agora tão distante. - Algumas peças que tinha no meu escritório e que
talvez fiquem bem na biblioteca.
Pegou num pisa-papéis de latão e tornou a pousá-lo. Enfiou a mão no bolso e fez tilintar uns trocados.
- Vais dizer-me o que te preocupa ou limitar-te a andar de um lado para o outro até cavares uma trincheira na minha carpete? - Remy tinha o casaco pousado sobre
as costas da cadeira, a gravata desapertada e as mangas arregaçadas; voltou a sentar-se e começou a passar de uma mão para a outra uma mola plástica de um verde-cintilante.
- Estás a deixar-me exausto.
- Já te contei algumas das coisas que têm acontecido.
- Recebi um relato em primeira mão quando te visitei no sábado. Sentir-me-ia melhor se me dissesses que a música de piano que ouvimos provinha de algum rádio que
te esqueceste de desligar.
- Acho que vou arranjar um piano para a salinha de estar das senhoras. Parece-me o local adequado. De qualquer modo, gosto de tocar quando sinto vontade.
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Remy colocou a mola na vertical e deixou que a espiral colorida sucumbisse sobre si própria.
- E então, passaste cá para me dizeres que andas à procura de um piano?
- Hoje comprei um relógio.
- E a tua intenção é exibi-lo? Queres que chame a minha secretária ou alguns dos estagiários?
- Era o relógio de Lucian Manet.
- A sério? - O brinquedo, espalmado sobre si mesmo, foi posto de lado. - Como sabes? Onde o encontraste?
- Numa lojinha no Bairro Francês. - Pegou na caixa e colocou-a sobre a secretária. - Ora vê.
Remy abriu a tampa.
- É elegante, se pretendes pôr-te a vasculhar no bolso sempre que quiseres saber as horas. Pesado - acrescentou quando pegou nele.
- Tu não... não te transmite nenhuma sensação?
- Sensação?
- Vê nas costas, Remy.
- Os nomes e as datas coincidem - concluiu Remy. - Raios, mas que golpe de sorte teres dado com isto.
- Sorte? Não creio. Entrei na loja, comprei um anel para a Lena e depois...
- Ei, ei, volta um pouquinho atrás. Um anel?
- Eu disse-te que ia casar com ela. - Declan encolheu os ombros. - Encontrei o anel. Não faz mal nenhum comprá-lo antes do tempo. Mas não é essa a questão.
- Raios, mas é uma questão bem séria, se queres a minha opinião! Ela sabe das tuas intenções?
- Já lhe disse o que sentia, o que queria. Vou deixá-la matutar nisso por uns tempos. Podemos voltar ao relógio?
- Et là! Sempre foste casmurro. Continua.
- Entrei na loja e resolvi que precisava de um relógio porque o meu tem andado a funcionar mal. Resolvi que precisava de um relógio de bolso apesar de nunca ter
usado nenhum, nem ter pensado vir a usar. Foi então que vi este relógio, e soube logo. Soube logo que era dele, soube que ela o tinha comprado como prenda de aniversário.
Soube o que estava gravado nas costas antes de o ler. Sabia exactamente o que dizia. Porque o ouvi na minha cabeça.
- Não sei o que pensar disso. - Remy passou os dedos pelo cabelo. - Não um fenómeno em que as pessoas tocam num objecto e
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vêem imagens que têm a ver com ele? Com a sua história e sei lá mais quê?
- Chama-se psicometria. Tenho andado a ler bastante sobre a ciência paranormal nos meus tempos livres - explicou quando Remy franziu a testa. - Mas nunca me tinha
acontecido nada assim. A Lena tem uma teoria, acha que é um caso de reencarnação.
Remy cerrou os lábios e recolocou o relógio na caixa.
- Estou mais inclinado para isso do que para essa coisa da psico-não-sei-quê.
- Nesse caso, então a casa, e agora este relógio, estão a despertar memórias de uma vida passada. É bastante estranho.
- Tudo isto tem sido estranho desde o início, cher.
- E o mais problemático é que, se aceitar que sou o Lucian, então sei que a Lena é a Abigail. Só não sei é se devo levá-la lá para casa, para corrigir o passado,
ou se devo mantê-la afastada e desfazer o ciclo dessa forma.
No Vieux Carré, Lena preparava-se para sair do apartamento para o turno da tarde no bar; abriu a porta e entrou num outro ciclo. Um ciclo antigo.
- Querida! - Lilibeth Simone abriu os braços.
Entorpecida pela estupefacção, Lena não conseguiu recuar a tempo de evitar que aqueles braços a rodeassem como correntes. Encurralada, sentiu-se assaltada pelas
mais variadas sensações. Demasiado perfume que não conseguia encobrir o cheiro bafiento do tabaco, a figura ossuda, desgastada por anos de uma vida de excessos,
camadas pegajosas de laca sobre os caracóis tingidos de preto-alcatrão.
E, por entre tudo isso, infiltrava-se o seu próprio medo sombrio.
- Primeiro fui ao bar e aquele jovem encantador atrás do balcão disse que ainda estavas cá em cima. Ai, estou tão feliz por te encontrar! - A voz era uma bolha brilhante
que ricocheteava e balançava no ar. - Deixa-me olhar para ti! Juro-te, juro-te que estás cada vez mais bonita! Doçura, tenho que me sentar um pouco para recuperar
o fôlego. Estou tão feliz por te ver que quase não aguento!
Falava demasiado depressa, reparou Lena, caminhava demasiado depressa em cima dos finíssimos saltos altos que combinavam com o rosa-garrido das calças justas. Sinais
de uma dose recente da sua actual droga de eleição.
- Olha só o que fizeste a esta casa! - Lilibeth deixou-se cair numa cadeira e largou a mala de motivos florais. Bateu palmas como
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uma criança e as pulseiras de plástico tilintaram nos pulsos ossudos. - Ai, adoro mesmo! Combina contigo, querida. Combina mesmo contigo.
Já fora uma mulher bonita, pensou Lena enquanto observava a mãe. Tinha visto fotografias. Mas pouca restava dessa beleza.
Aos quarenta e quatro anos, o rosto de Lilibeth evidenciava o desgaste de demasiado álcool, demasiados comprimidos e muitos, muitos homens.
Lena deixou a porta deliberadamente aberta e permaneceu especada junto da entrada. O som do trânsito e o aroma da padaria do outro lado da rua ajudavam-na a manter
os pés assentes na terra.
- Que queres?
- Ai, ver-te, claro! - Lilibeth soltou uma risada estrídula que arranhou o cérebro de Lena como umas unhas a raspar num quadro de ardósia. - Mas que pergunta. Tinha
tanta vontade de te ver, querida. Disse a mim mesma: a minha Lena anda ocupada, mas temos que passar algum tempinho juntas. De modo que me meti num autocarro e aqui
estou. Só tens que te sentar aqui ao pé de mim e contar-me tudo o que tens feito.
Lena sentiu-se invadir pela repulsa e agarrou-se a essa sensação. Antes a repulsa que o desespero.
- Tenho que ir trabalhar.
- Oh, essa agora, podes dispensar um tempinho à tua mamã. Afinal de contas a dona és tu. Estou tão orgulhosa da minha menina, tão crescidinha e dona do seu próprio
negócio. E tens-te saído bem - continuou enquanto olhava à sua volta.
Lena reparou no olhar dela e na malícia que revelava. Sentiu o peito apertar-se e retesou as costas.
- Disse-te da última vez que era mesmo a última vez. De mim não levas mais dinheiro nenhum.
- Porque me magoas assim? - Lilibeth abriu desmesuradamente os olhos que começavam a encher-se de lágrimas. - Só quero passar uns dias com a minha menina.
- Não sou nenhuma menina - disse Lena num tom fatigado. - E, sobretudo, não sou a tua menina.
- Não sejas má, querida, fiz todo este caminho só para te ver novamente. Sei que não tenho sido uma boa mamã para ti, querida, mas vou remediar isso.
Lilibeth pôs-se de pé, com a mão no coração. A unha do dedo mindinho da mão direita era muito comprida e ligeiramente curva.
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Unha de coca, apercebeu-se Lena sem qualquer choque ou compaixão. Sabia agora qual era a actual droga de Lilibeth.
- Cometi alguns erros, eu sei que sim, querida. - A voz soava apologética e arrependida. - Tens que compreender, era tão nova quando nasceste.
- Já usaste essa desculpa.
Lilibeth enfiou a mão na bolsa vermelho-cintilante e tirou um lenço gasto.
- Ai, és assim tão dura com a tua mamã, minha filhinha? Porque me magoas tanto o coração?
- Tu não tens coração. E não és a minha mamã.
- Carreguei-te durante nove meses dentro de mim, não carreguei? - A mágoa transformou-se em ira, como se alguém tivesse ligado um interruptor. A voz adquiriu um
tom estrídulo. - Nove meses enjoada e gorda, enfiada naquele maldito bayou. Ali deitada com dores durante quatro horas até te dar à luz.
- E uma semana depois abandonaste-me. Um gato vadio passa mais tempo com a sua ninhada do que tu passaste comigo.
- Tinha dezasseis anos.
Era isso, essa tristeza, que levava Lena a conferir-lhe, uma e outra vez, algum espaço no seu coração. Até que este ficara empedernido de tantos golpes.
- Já há muito tempo que não tens dezasseis anos. Nem eu. Não vou perder tempo a discutir contigo. Tenho que ir trabalhar, e tu tens que te ir embora.
- Mas, querida. - Lilibeth estava em pânico e exibia novamente uma voz lacrimejante e sufocada. - Tens que me dar uma oportunidade para remediar as coisas. Vou arranjar
emprego. Posso trabalhar para ti por uns tempos, não seria divertido? Fico aqui contigo apenas uma semana ou duas, até arranjar um lugar para mim. Vamos passar uns
bons tempos juntas. Como verdadeiras amigas.
- Não, não vais trabalhar para mim, e não, não podes ficar aqui. Cometi esse erro há quatro anos, e quando te apanhei a fazer das tuas, roubaste-me e partiste novamente.
Não vou deixar que isso se repita.
- Nessa altura estava doente. Agora estou limpa, querida, juro-te que estou! Não podes virar-me assim as costas! - Estendeu as mãos, de palmas viradas para cima,
num gesto de súplica. - Estou completamente falida. O Billy levou-me tudo o que tinha e fugiu.
Lena só podia supor que Billy fora o último da série de falidos, falhados e abusadores em redor dos quais Lilibeth gravitava.
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- Estás pedrada agora. Pensas que sou cega ou estúpida?
- Não estou! Só tomei um bocadinho porque me sentia nervosa por te ver. Sabia que ias zangar-te comigo. - As lágrimas caíram-lhe, arrastando a maquilhagem pelas
faces abaixo. - Só tens que me dar uma oportunidade para te compensar, Lena, querida. Eu mudei.
- Também já usaste essa desculpa. - Resignada, Lena pegou na bolsa e contou cinquenta dólares. - Toma. - Enfiou-os na mão dela. - Toma este dinheiro, apanha o autocarro
e vai o mais longe que ele te levar. E não voltes. Aqui não há lugar para ti.
- Não sejas assim tão má para mim, querida! Não podes ser assim tão fria!
- Sim, posso. - Pegou na mala e pô-la fora da porta. - Está-me no sangue. Leva os cinquenta dólares. É tudo o que vais conseguir. E vai-te, ou juro por Deus que
sou eu que te ponho daqui para fora!
Lilibeth avançou para a porta. O dinheiro desaparecera já dentro da sua bolsa. Deteve-se e lançou um último olhar faiscante a Lena.
- Nunca foi minha intenção ter-te.
- Então estamos quites. Eu também nunca te quis. - Fechou a porta na cara da mãe. Depois trancou-a e sentou-se no chão. E chorou num silêncio absoluto.
Tinha a certeza de que conseguira limar as arestas quando se dirigiu nessa noite para a Mansão Manet. Quase cancelara os planos do jantar com Declan, mas isso seria
dar demasiada importância à mãe.
Seria reconhecer que a mágoa conseguira dilacerar-lhe o coração apesar de todas as defesas.
Precisava de ocupar a mente com outras coisas, e nunca o conseguiria se ficasse em casa a matutar. Passaria aquela noite hora a hora, e pela manhã Lilibeth já teria
desaparecido. Já teria desaparecido da sua vida e da sua mente.
A casa parecia diferente, pensou. Pequenas mudanças que, de certa forma, a faziam parecer mais real. Era agradável apreciá-la, olhá-la com atenção e pensar como
algumas coisas podiam mudar para melhor. Com a visão certa.
Com o passar dos anos, começara a encarar a Mansão Manet como uma espécie de lugar onírico, enterrado no passado. Mais do que isso, concluiu. Um lugar do passado.
E agora, com tábuas novas ainda por pintar misturadas com as velhas tábuas brancas com a tinta descascada, com algumas janelas a cintilar e outras cobertas de pó,
era uma obra que progredia a olhos vistos.
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Declan estava a dar-lhe nova vida.
Embora os jardins da frente estivessem um pouco esquecidos e abandonados, já havia flores a desabrochar. E a varanda exibia um enorme vaso de barro repleto de begónias.
Fora ele quem as plantara, pensou enquanto avançava para a porta. Era um homem que gostava de pôr as mãos nas coisas. Sobretudo quando as considerava suas.
Perguntou-se se Declan a encararia a ela como mais uma das obras que tinha entre mãos. Provavelmente. Não conseguia decidir se a ideia a divertia ou a irritava.
Entrou com um passo decidido. Achava que quando duas pessoas já tinham dormido juntas uma ou duas vezes, os formalismos eram desnecessários.
Sentiu primeiro o aroma dos lírios, a fragrância forte e agradável que trazia o jardim para dentro de casa. Declan adquirira uma encantadora mesa antiga, um par
de cadeiras de espaldar direito e, reparou com um sorriso, uma enorme vaca de cerâmica para o vestíbulo da entrada.
Alguns diriam que era uma tolice, outros que era encantador, supôs, mas agora ninguém poderia dizer que a entrada da velha mansão era estéril.
- Declan? - Deambulou por ali e reparou em mais algumas aquisições. Dirigiu-se para a biblioteca e deu por si a avançar para a lareira e para os pesados castiçais
lá colocados em cima.
Porque lhe tremiam os dedos?, perguntou-se quando estendia a mão para lhes tocar. Porque lhe pareciam aqueles velhos castiçais manchados tão estranhamente familiares?
Realmente, não tinham nada de especial. Dispendiosos, talvez, mas demasiado ornamentados para o seu gosto. E no entanto... passou os dedos por cada um deles, ao
de leve. E no entanto, ficavam ali bem, tão bem que conseguia imaginar as esguias velas brancas que aguardavam ser novamente ali colocadas e o cheiro da cera a derreter.
Estremeceu, recuou e saiu daquela divisão.
Continuou a chamar por ele enquanto subia as escadas. Quando chegou ao patamar do primeiro piso, a porta oculta na parede abriu-se. Ambos reprimiram um grito em
simultâneo.
Lena soltou uma gargalhada ofegante, recuperou a compostura e olhou para Declan. Tinha teias de aranha no cabelo, sujidade no rosto e nas mãos. Brandiu a lanterna
que trazia na mão.
- Meu Deus, cher, da próxima vez dá-me um tiro e acaba com a coisa de uma vez!
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- Eu digo-te o mesmo. - Expirou profundamente e levou as mãos ao cabelo para retirar as teias de aranha. - Pregaste-me um susto que me tirou cinco anos de vida.
- Bem, ainda te chamei, mas depois resolvi procurar-te cá em cima. - Espreitou por sobre o ombro dele. - Que tens aí, passagens secretas?
- Não, os aposentos da criadagem. Há portas em cada piso e resolvi dar uma olhada. É interessante, mas está uma verdadeira confusão. - Olhou para as mãos imundas.
- E se fores buscar uma bebida ou algo do género? Vou-me lavar.
- Podias persuadir-me a preparar bebidas para ambos. Que te apetece?
- Uma cerveja sabia-me bem. - Observou então o rosto dela, agora que já recuperara do sobressalto. - Que se passa, Lena?
- Nada, para além de me teres pregado um susto de morte.
- Estás preocupada. Noto que estás. Ela tentou esboçar um sorriso.
- Talvez me sinta amuada porque nem te preocupaste em dar-me um beijo de boas-vindas.
- Talvez ainda não confies suficientemente em mim e imagines que tudo o que quero de ti são uns quantos momentos bem passados. - Levantou-lhe o queixo com o dedo
e olhou-a fixamente nos olhos até os dela começarem a piscar. - Estás enganada. Amo-te. - Aguardou um momento e depois anuiu com a cabeça quando ela não respondeu.
- Desço já.
Lena começou a descer mas deteve-se e falou sem olhar para trás.
- Declan, acho que queres mais do que uns momentos bem passados, mas também não sei o que procuras.
- Angelina, tu és aquilo que procurei durante toda a minha vida.
Declan não insistiu. Se ela precisava de fingir que não estava preocupada nem agitada, ele dar-lhe-ia espaço. Deram um passeio pelo jardim das traseiras enquanto
o crepúsculo se abatia.
- Este lugar. Durante todos estes anos, vieram e partiram pessoas. Partiram sobretudo. E aqui estás tu, a fazer mais coisas em meses do que alguém fez desde que
me lembro.
Voltou-se para observar a casa. Oh, ainda precisava de obras. Madeiras e pintura. Novas portadas aqui e ali. Mas apercebeu-se de que
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já não parecia... morta. Não estivera apenas abandonada, estivera morta até ele chegar.
- Estás a devolver-lhe a vida. É mais do que dinheiro e trabalho.
- Conseguias viver aqui?
Os olhos dela, estupefactos e até mesmo em pânico, fixaram-se prontamente nos dele. Mas o olhar de Declan era calmo e neutro.
- Tenho, a minha própria casa.
- Não foi isso que perguntei. Perguntei-te se conseguirias. Se te sentirias confortável aqui, ou se a ideia de partilhar a casa com... fantasmas ou recordações,
ou o que quer que seja, te incomodaria.
- Se me incomodasse, não teria cá vindo hoje à noite para jantar contigo. E a propósito, que vai ser o jantar, cher?
- Vou tentar os meus dotes a grelhar atum. - Tirou o relógio do bolso. - Daqui a pouco - disse depois de verificar as horas.
Lena ficou hipnotizada com o relógio. Sentiu o estômago agitar-se como quando vira os castiçais.
- Onde arranjaste isso?
- Descobri-o hoje numa loja. - Alertado pelo tom dela, e também fascinado, Declan mostrou-lhe o relógio. - Parece-te familiar?
- Já não se vêem muitos homens a usar este tipo de relógio.
- Soube que ia ser meu assim que o vi. Acho que o compraste para mim - disse ele, levando-a a empertigar a cabeça. - Há muito tempo. - Virou o relógio para ela ler
a inscrição nas costas.
- Era do Lucian. - Como o seu instinto foi fechar os dedos, obrigou-se a estendê-los e a tocar na gravação. - Muito estranho. Mesmo estranho, Declan. Achas que eu
era a Abigail?
- Sim, acho.
Ela abanou a cabeça.
- Não te parece tudo demasiado certo e arrumado... e um tanto egocêntrico?
- Assassínio, desespero, suicídio, um século de almas perdidas? - Encolheu os ombros e voltou a enfiar o relógio no bolso. - Não me parece lá muito certo, se queres
a minha opinião. Mas acho que o amor talvez seja suficientemente paciente para aguardar que o seu tempo volte novamente.
- Meu Deus, tu és tão... cativante. E irrita-me ter de ser eu a fazer o papel de pessoa sensata. Gosto de estar contigo, Declan.
Brincou com a chave que trazia pendurada ao pescoço enquanto
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falava. Era um hábito do qual provavelmente não tinha consciência, pensou ele.
- Gosto da tua companhia, gosto do teu aspecto. E gosto de fazer amor contigo. É tudo o que tenho para oferecer por agora.
Abraçou-a.
- Aceito.
Capítulo Catorze
Lena rolou na cama e deslizou de uma almofada para a outra. Ouviu alguém a cantar: uma voz masculina e profunda num refrão encantador. Suspirou e passou a mão pelos
lençóis.
Declan não estava ao seu lado na cama, mas o calor dele continuava ali.
Abriu os olhos e pestanejou contra a luz do dia enublado. Não fora sua intenção passar ali a noite, mas as suas intenções eram frequentemente adaptadas aos desejos
dele. Mais do que isso, os desejos dele enredavam-na até se tornarem também seus.
Inteligente, pensou, bocejando enquanto enterrava a cabeça na almofada. Ele raramente parecia forçá-la, nunca se mostrava insensato. E conseguia sempre o que queria.
Diabos o levassem se não o admirava por isso.
Embora preferisse ter despertado na sua própria cama, sentia-se feliz por ter ficado ali. Chegara com uma disposição pesada e um pouco irritadiça. Ver a mãe tinha
geralmente esse efeito sobre ela. Conseguira esquecer-se disso durante algumas horas e apreciar a companhia dele.
Era o suficiente - e teria que ser suficiente para ambos enquanto durasse. Ver Lilibeth permitira-lhe recordar as promessas que fizera a si própria.
Ter êxito, à sua maneira. Viver, precisamente do modo que escolhesse. E nunca, nunca, colocar as suas esperanças, as suas necessidades, os seus desejos, nas mãos
de outrem.
Declan acabaria por partir mais cedo ou mais tarde. Todos o faziam. Mas desta vez ela importava-se mais, e faria um esforço genuíno para permanecerem amigos.
Por conseguinte, seria muito cuidadosa para não se apaixonar por ele. Muito cuidadosa para não o magoar enquanto ele acreditasse que a amava.
202
Franziu a testa. Ouvira realmente alguém a cantar. No chuveiro, apercebeu-se: a voz de Declan sobreposta ao tamborilar da água.
Longos anos se passaram, criança - e eu nunca me casei, fiel ao meu amor perdido, que nem na morte enjeitei.
Uma melodia estranha para um homem cantar em voz alta no chuveiro, pensou, e deu por si a acompanhá-lo mentalmente no refrão. Quando o baile acabar, quando a manhã
romper.
Intrigada - de onde lhe vinham aquelas palavras? -, levantou-se e dirigiu-se para a casa de banho. Conhecia a melodia mas, mais do que isso, conhecia a letra. Aquela
história triste de morte e falta de fé, unidas pela melodia romântica.
E sentia o pulsar do coração. Sentia-o pulsar na garganta.
A dançar ao luar, com a casa transformada num farol branco que rasgava a escuridão da noite. Uma rapariga envolta em musselina de tons suaves, o jovem muito aprumado
e elegante na sua casaca. A fragrância dos lilases, forte e adocicada.
O ar carregado com o aroma das flores, tão carregado que é difícil respirar. Tão carregado que causa vertigens enquanto rodopiam uma e outra vez ao longo das lajes
do jardim, com a música sempre a tocar.
A vertigem da dança. A vertigem do enamoramento.
Vacilou e estendeu a mão para se apoiar na porta. Mas esta abriu-se e o vapor jorrou para fora enquanto ela caía para a frente.
- Ei lá! - Declan amparou-a e levantou-a do chão. Estava ainda húmido do banho e o seu cabelo gotejou sobre o rosto dela enquanto a levava de volta para a cama.
- Estou bem. Foi apenas... desequilibrei-me.
- Querida, estás branca como um lençol. - Afastou-lhe o cabelo para trás e esfregou-lhe a mão gelada entre as suas. - O que aconteceu?
- Nada. - Dilacerada entre a confusão e o embaraço, fez-lhe sinal para a sentar sobre a cama. - Levantei-me muito depressa, foi só. Depois desequilibrei-me quando
estendi a mão para a porta e tu a abriste. Estou bem, cher. Ça va. É apenas um bocadinho cedo para eu estar a pé.
- Vou buscar-te um copo de água.
- Doçura, não te incomodes. Os Simone não são dados a desmaios. - Passou o dedo pelo queixo dele. Estava tudo a desvanecer-se agora, a canção, o aroma dos lilases,
a estonteante sensação de rodopiar. - Embora essa tua linda carinha me deixe sem fôlego. Sobrou água quente para mim?
203
- Provavelmente não. - Sentou-se ao lado dela. - Tenho que substituir o cilindro. Se esperares meia hora, deve dar para outro banho.
- Mmm. Ora bem, que posso eu fazer em meia hora? - Riu-se e puxou-o para dentro da cama.
Aquela sim, concluiu Lena, era uma excelente maneira de iniciar o dia. Bebeu demoradamente a primeira chávena de café sentada à pequena mesinha que Declan instalara
na varanda do quarto. Como os pequenos-almoços dele eram no máximo bastante frugais, decidiu-se por uma taça de cereais e viu-o encher os dele com açúcar.
- Cher, mais valia optares por um daqueles grandes torrões doces para o pequeno-almoço.
- Não tenho nenhum.
Sorriu-lhe e, raios, deixava-a realmente sem fôlego!
- Tens aqui um espaço bem bonito - disse-lhe ela. - Uma espécie de lugar de contemplação matinal.
- E será melhor quando substituir as tábuas e estiver pintado. E precisa de outras coisas também. - Olhou em volta. - Vasos, sabes, flores e coisas assim. Um baloiço
ou cadeiras de baloiço.
Lena encheu a colher com cereais.
- És muito caseiro, não és, cher?
- Assim parece. - E isso deliciou-o. - Quem diria, hã?
- E o que é que o senhor caseiro planeou para hoje?
- Quero terminar a primeira secção das escadas exteriores. Se o tempo se mantiver durante o fim-de-semana, vou dar um bom avanço à fachada da casa. Já contratei
pessoal para dar início às outras casas de banho. E ainda tenho mais compras para fazer. Queres vir comigo?
- Nunca vi um homem tão louco por compras. - Era tentador abandonar-se à encantadora imagem de ir à caça de tesouros com ele. E participar na selecção de peças para
a casa.
E isso não equivaleria a um novo elo que os tornaria num casal em vez de duas pessoas que estavam apenas a aproveitar o momento? Por conseguinte, abanou a cabeça
e negou-se esse prazer.
- Estás por tua conta, doçura, a não ser que essas compras envolvam procurar sapatos ou brincos.
- Acho que podemos fazer isso também, enquanto procuramos puxadores de gavetas e loiças. De facto... espera um segundo.
Levantou-se e entrou em casa enquanto Lena se recostava com a taça entre as mãos e espraiava o olhar pelo jardim, até ao tanque.
204
Distraíra-o, pensou. Ou ele pretendia que o distraíssem do que acontecera naquela manhã. Ela quase desmaiara, e não teria sido a primeira vez.
Havia algo naquela casa que a afectava, pensou, tal como afectava Declan. Um lado puxava-a para dentro, o outro empurrava-a dali para fora. Mas estava determinada
a manter-se firme.
Teria ele realmente razão? Seria assim tão perfeitamente claro? Que ele fora Lucian numa vida passada e ela a sua condenada Abigail?
Teriam dançado ao luar, ao som daquela velha e triste canção?
A ser verdade, que significava isso para eles agora, nesta vida?
A preocupação desvaneceu-se do seu rosto assim que ele voltou e pousou uma pequena caixinha ao lado da taça dela.
- Cher, se continuas a oferecer-me presentes, que vais fazer quando for o meu aniversário?
- Alguma coisa me ocorrerá.
- Bem, acho que não vais conseguir arranjar melhor do que o saleiro e o pimenteiro, mas... - Abriu a caixa, à espera de ver um engraçado e disparatado alfinete ou
uns brincos extravagantes. Reparou então no par de corações de rubi e diamante.
- Não consegui resistir.
- Tu... tu não podes dar-me uma coisa assim. - Era a primeira vez que gaguejava desde que o conhecia. - Tu não podes... não podes dar-me uns brincos assim. São pedras
verdadeiras. Achas que sou assim tão estúpida que não reconheceria verdadeiros diamantes?
- Não. - Era interessante, pensou, que ela passasse abruptamente da agitação para a ira perante aquela prenda. - Achei que te ficariam bem.
- Não me interessa se és muito rico. - Fechou a tampa com força para fazer desaparecer aquele faiscar de sangue e gelo. - Não me interessa quanto dinheiro tens investido
nas tuas carteiras de acções e guardado nas tuas contas bancárias. Não quero que me ofereças jóias caras. Se quiser diamantes e rubis, então, alors, eu própria os
compro. Não ando a dormir contigo para obter bugigangas ou seja lá o que for.
- Bem, estes foram um grande achado. - Recostou-se na cadeira para a olhar directamente nos olhos em fúria, pois ela pusera-se de pé num salto quando lhe gritara.
- Portanto, já não haveria problema para ti se fossem de vidro? Deixa-me ver se percebo as regras básicas. Se vir alguma coisa que gostasse de te oferecer, tem que
ser o quê, abaixo de cem dólares? Cento e cinquenta? Dá-me um valor aproximado.
- Não preciso que me compres coisas.
205
- Lena, se precisasses de mim para te comprar coisas, comprava-te mercearia, por amor de Deus! Estes brincos são bonitos, fizeram-me pensar em ti. E olha só isto.
- Pegou na caixa e passou os dedos por ela. - Sem compromissos.
- Uma coisa que custa tanto como um carro decente em segunda-mão pressupõe compromissos, cher.
- Errado. O dinheiro é relativo. Se eu tenho muito, assim seja. Se não os queres, muito bem. - Encolheu os ombros e pegou no seu café. - Dá-los-ei a outra pessoa.
Os olhos dela reduziram-se a fendas.
- Ai sim?
- Parece que isto perturbou o teu equilíbrio moral, mas não vale a pena desperdiçá-los.
- Estás a tentar fazer-me parecer uma idiota.
- Estás a agir como uma idiota. Limito-me a representar a minha parte no teu dramazinho. Gostava de tos oferecer, mas não se pensas que são um pagamento por serviços
prestados. Isso é tão insultuoso para mim como para ti, Lena - disse quando ela ficou de boca aberta. - Dizeres-me que não queres que te paguem pelo sexo, é dizeres-me
que eu estou disposto a pagar-te por isso. Não passam do raio de umas pedras!
- São umas pedras bonitas. - Raios, raios, raios! Porque é que ele conseguia perturbá-la constantemente?
E não era mesmo dele, exactamente mesmo dele, ficar ali sentado, a observar calmamente a sua ira e a sua fúria?
Inspirou profunda e demoradamente enquanto ele a olhava com paciência e divertimento.
- Fui rude, e reagi de forma exagerada. Não estou habituada a que os homens me dêem diamantes e rubis enquanto tomo os meus cereais.
- Está bem. Queres que espere e te dê os brincos à mesa com um belo bife para jantar?
Lena riu e afastou o cabelo do rosto.
- És realmente demasiado bom para mim.
- Que raio queres dizer com isso? - quis ele saber.
Ela limitou-se a abanar a cabeça e a pegar na caixa. Examinou demoradamente os brincos pousados na almofada de veludo até os tirar e os colocar.
- Que tal me ficam?
- Perfeitos.
206
Lena inclinou-se e beijou-o.
- Obrigada. Assustaram-me um bocado, mas já passou.
- Ainda bem.
- Vou ter que usar o cabelo puxado para trás. Para os exibir. Raios - disse enquanto corria para a porta. - Tenho que ver. - Deteve-se diante do espelho e manteve
o cabelo preso atrás com a mão. - Oh, meu Deus! São fabulosos! Nunca tive nada tão belo na minha vida! És tão querido, Declan. És um tipo casmurro, louco e querido.
- Quando casares comigo - disse ele junto à entrada -, vou oferecer-te diamantes ao pequeno-almoço uma vez por semana.
- Pára com isso.
- Está bem, mas mantém isso em mente.
- Tenho que ir. Quero visitar a minha avó antes de voltar.
- Dás-me boleia até lá? Tenho uma coisa para ela.
Quando cruzou novamente os olhos com os dele, Lena tinha uma expressão indulgente e um pouco irritada.
- Também lhe compraste outra prenda.
- Não me censures - avisou-a. E preparou-se para levantar a mesa.
- Porque é que tens de estar sempre a comprar coisas, cher? Agora já o conhecia, e aquele ligeiro ondular dos ombros revelou-lhe que ele estava agastado e incomodado.
Por conseguinte, atenuou a pergunta dando-lhe um rápido beijo no rosto.
- Tenho dinheiro - disse ele. - E gosto de coisas. Trocamos dinheiro por coisas, e isso é mais divertido e interessante do que guardar um maço de papel verde na
carteira.
- Não sei. Eu, por exemplo, gosto bem desse papel verde, mas... - Passou os dedos pelos diamantes que lhe ornavam as orelhas. - Vou gostar imenso destas lindas prendas.
Pronto, traz então o que compraste para a minha avó. Vai animar-lhe o dia, o que quer que seja, por seres tu.
- Achas?
- Ela gosta de ti.
- Isso agrada-me. - Virou-se e envolveu Lena pela cinta. - E tu? Gostas de mim?
Uma comprida linha de calor fluiu-lhe pela espinha abaixo e quase a fez suspirar.
- É difícil não gostar de ti.
- Ainda bem. - Uniu os lábios aos dela e depois afastou-se. - E disto ainda gosto mais.
207
Levou para o carro um pequeno saquinho com a prenda. Lena achava estranho e encantador que ele se lembrasse de coisas assim. Não era apenas um presente que ele comprava
sem dificuldade, mas a apresentação de tudo. Lindos sacos ou laços, fitas ou embrulhos com que a maioria dos homens - ou os homens que ela conhecera - nunca se incomodariam.
Todas as mulheres que conhecia diriam que Declan Fitzgerald era um grande partido. E era a ela que ele queria.
- Vou fazér-te uma pergunta - disse ela enquanto ligava o carro.
- Verdadeiro ou falso? Escolha múltipla?
- Acho que é mais do tipo ensaio.
Declan recostou-se e esticou as pernas enquanto ela conduzia pela vereda. Sempre tivera excelentes resultados nos testes.
- Diz lá.
- Como é que, com todas aquelas belas damas lá em Boston, e com todas as mulheres bem-parecidas aqui em Nova Orleães, decidiste escolher-me a mim?
- Nenhuma delas conseguiu parar-me o coração ou fazê-lo disparar como um cavalo de corrida. Tu sim. Nenhuma delas conseguiu fazer-me imaginar estender a mão para
pegar na dela daqui a dez ou vinte anos. Mas tu sim, Lena. E o que eu mais quero no mundo é ficar contigo.
Não olhou para ele, não se atrevia, pois tudo dentro dela parecia estar a transbordar, e sabia que bastava olhá-lo nos olhos para que tudo se derramasse. Sentia-se
doce, carinhosa e conquistada.
- É uma boa resposta - lá conseguiu proferir.
- É uma resposta verdadeira. - Retirou-lhe a mão tensa do volante e beijou-a. - É a verdade, juro por Deus.
- Acredito que sim. Não sei o que pensar disto, Declan. És o primeiro homem que consegue deixar-me sem saber o que fazer. Tenho sentimentos muito fortes por ti.
Preferia não ter.
- Eis o que penso. Acho que devíamos casar em segredo em Las Vegas e depois já não tinhas preocupações.
- Oh, tenho a certeza de que os Fitzgerald de Boston ficariam encantados ao saber que te tinhas casado em segredo com uma cajun do bayou, proprietária de um bar.
Sem dúvida iam adorar.
- Dar-lhes-ia assunto para falar durante uma década ou duas. A minha mãe iria gostar de ti - disse quase para si próprio. - E ela não é nenhuma pêra doce. Iria gostar
de ti por seres senhora de ti mesma e não tolerares disparates de ninguém. Diriges o teu próprio negócio,
208
cuidas da tua avó. Respeitaria e apreciaria isso. E amar-te-ia porque eu também te amo. O meu pai olharia uma única vez para ti e ficaria teu escravo.
Lena riu-se com aquelas palavras, e isso aliviou-lhe a inquietação que sentia no peito.
- Todos os Fitzgerald são assim tão fáceis?
- Não somos fáceis. Temos apenas um gosto excepcional. Estacionou diante da casa de Odette e virou-se finalmente para ele.
- Algum dos Fitzgerald vem ao casamento do Remy e da Effie?
- Os meus pais.
- Então nessa altura veremos, não achas? - Saiu do carro e avançou para a porta antes dele. - Avó! - Escancarou a porta e entrou apressada. - Trouxe um cavalheiro
encantador para te fazer uma visita.
Odette saiu da cozinha enquanto enxugava as mãos num pano de xadrez avermelhado. Os aromas de café e pão fresco seguiram-na. Estava, como sempre, adornada com várias
camadas de jóias e umas botas pesadas. Mas em redor dos olhos e da boca havia uma tensão em que o próprio Declan reparou de imediato.
- A visita de um cavalheiro é sempre bem-vinda. Bebé - disse, beijando Lena no rosto.
- Que se passa?
- Esta manhã cozi pão - disse Odette, fugindo à questão dela. - Venham para a cozinha. - Enlaçou Lena pela cintura para que a acompanhasse. - Que traz nesse bonito
saquinho, cher?
- Apenas uma pequena lembrança que pensei que apreciaria. - Já na cozinha, Declan pousou o saco sobre a mesa. - Cheira maravilhosamente aqui. Talvez eu devesse aprender
a cozer pão.
Odette sorriu tal como ele esperava, mas a tensão no ar não se atenuou.
- Pode ser que lhe ensine uma ou duas coisas. Amassar pão é uma boa terapia. Afasta-nos a cabeça dos problemas e dá-nos tempo para pensar. - Tirou do saco a pequena
caixinha embrulhada em papel, revirou-a na mão e soltou o laço. - Lena, se tu não deitares a mão a este moço, ainda fico eu com ele. - Quando abriu a caixa o seu
rosto suavizou-se.
A caixinha de latão cabia na palma da mão. Tinha a forma de um coração, com a imagem pintada à mão de um casal sentado num banco de jardim e envergando trajes antiquados.
Quando ergueu a tampa, começou a tocar uma melodia.
209
- Há semanas que ando a ouvir essa canção na cabeça - disse-lhe Declan. - Portanto, quando vi isto, achei por bem comprá-la.
- Quando o baile acabar - disse-lhe Odette. - É uma valsa antiga. Triste e carinhosa. - Olhou para ele. - Por acaso não tem um simpático tio viúvo que pudesse apresentar-me?
- Bem, há o tio Dennis, mas é tão caseiro quanto um bode selvagem.
- Se tiver metade do seu coração, serve.
- Que cena tão comovente...
Lena sentiu-se retesar ao ouvir aquela voz, como se alguém lhe tivesse encostado uma arma à cabeça e se preparasse para disparar. Declan viu o olhar que ela trocou
com a avó: apologético da parte de Odette e de choque da parte de Lena.
E viraram-se então.
Lilibeth encostou-se à ombreira da porta. Vestia um robe avermelhado, curto, com o cinto frouxamente apertado. O cabelo caía-lhe desalinhado sobre os ombros e o
rosto já estava maquilhado para o dia, com os olhos carregados de sombra e os lábios tão brilhantes e vermelhos quanto o robe.
- E quem é este? - Levantou a mão e afastou languidamente o cabelo enquanto dirigia a Declan um demorado sorriso felino.
- Que faz ela aqui? - quis saber Lena. - Que raio faz ela nesta casa?
- Esta casa é tão tua quanto minha - ripostou Lilibeth. - Há pessoas com mais respeito pelos laços de sangue do que outras.
- Eu disse-te para apanhares o autocarro e ires embora!
- Não recebo ordens da minha própria filha. - Lilibeth afastou-se da ombreira e avançou para o fogão. - Isto é café fresco, mamã?
- Como pudeste fazer isto? - perguntou Lena a Odette. - Porque voltaste a aceitá-la?
- Lena. - Tudo o que Odette conseguiu fazer foi dar-lhe a mão. - Ela é minha filha.
- Sou eu a tua filha! - A fúria amarga jorrou e deixou-lhe um gosto horrível na boca. - Vais acabar por deixá-la ficar até ela te sugar tudo novamente, até ela e
um drogado qualquer com quem ela ande te roubarem tudo desta vez? Agora é cocaína. Não vês? E isso leva o dinheiro todo!
- Já te disse que estou limpa. - Lilibeth bateu com a caneca na bancada.
- És uma mentirosa! Foste sempre uma mentirosa!
210
Lilibeth lançou-se para a frente. No momento em que Lena estendia o queixo para receber o golpe, Declan interpôs-se entre as duas.
- Pense duas vezes. - Disse-o com calma, mas a voz acalorada encheu a cozinha.
- Pões a mão nela uma vez que seja, Lilibeth, e ponho-te fora daqui! - Odette acercou-se do fogão e serviu café com as mãos um pouco inseguras. - Estou a falar a
sério.
- Ela não tem o direito de falar assim comigo. - Os lábios de Lilibeth tremiam. - E logo à frente de um estranho.
- Declan Fitzgerald. Sou um amigo da Lena e de Miss Odette. Eu sirvo o café, Miss Odette. Sente-se.
- Isto é um assunto de família, Declan. - Lena mantinha os olhos irados fixos no rosto da mãe. Mais tarde preocupar-se-ia com o embaraço da situação. Naquele momento
sentia apenas um leve entorpecimento através da capa de fúria. - É melhor ires.
- Daqui a pouco. - Serviu o café e estendeu a chávena a Odette. Baixou-se até ficar com o rosto ao nível do dela. - Sou irlandês - disse-lhe. - Pelo lado materno
e paterno. Ninguém provoca tanto escarcéu numa discussão familiar como os irlandeses. Se precisar de mim é só chamar. - Apertou-lhe a mão e levantou-se. - O mesmo
para ti - disse a Lena.
- Não vou ficar. Vou-te levar. - Teve de respirar fundo para conseguir suportar a dor que as suas palavras iriam causar. - Avó, amo-te com todo o meu coração. Mas
enquanto ela estiver aqui em casa, eu não estarei. Lamento se isso te magoa, mas não posso passar por isto outra vez. Avisa-me quando ela partir. E tu... - Virou-se
para Lilibeth. - Se a magoares novamente, se lhe tirares um dólar que seja ou trouxeres para esta casa algum dos canalhas com quem gostas de te dar, não te darei
descanso! Juro por Deus que o farei, para onde quer que vás! E desta vez senti-lo-ás na pele.
- Lena, querida! - Lilibeth precipitou-se pelo estreito corredor quando Lena se encaminhou para a porta. - Eu mudei, querida! Quero compensar-te por tudo! Dá-me
uma oportunidade para...
Já no exterior, Lena voltou-se.
- Já tiveste a última oportunidade comigo. Não te aproximes de mim! Não te aproximes da minha casa! Para mim estás morta, ouviste?
Fechou a porta do carro com força, ligou o motor e saiu apressadamente, provocando uma fina nuvem de fumo que obscureceu a mãe e a casa onde crescera.
- Bem, foi divertido, não foi? - Lena carregou no acelerador. -
211
Aposto que a tua família ia adorar a Lilibeth Simone. Puta, drogada, ladra e mentirosa.
- Não podes censurar a tua avó por isto, Lena.
- Não a censuro. A sério. - Sentia a ardência do choro a irromper-lhe da garganta. - Mas não quero fazer parte disto. Não quero. - Carregou com força nos travões
em frente da Mansão. - Agora preciso de ir. - Mas baixou a testa para o volante. - Vá lá, sai. Va ten.
- Não... Não me vou embora. - Outros tinham ido, apercebia-se agora. E era daí que vinha a mágoa. - Queres falar disto aqui ou lá dentro?
- Não vou falar disto em nenhum lado.
- Vais, sim. Escolhe o lugar.
- Já te contei tudo que precisas de saber. A minha mãe é uma puta e uma drogada. Quando não consegue ganhar o suficiente para alimentar os seus vários vícios sozinha,
rouba. Prefere mentir a enfrentar as pessoas.
- Vive por estas bandas?
- Não sei onde vive. Há muito que não tem poiso fixo. Ontem foi a minha casa. Pedrada e cheia de mentiras e com a conversa do costume sobre começar de novo e sermos
amigas. Pensou que eu a deixaria viver novamente comigo. Nunca mais! - disse, recostando a cabeça no assento. - Dei-lhe cinquenta dólares para o bilhete de autocarro.
Quem me mandou ser tão estúpida? De certeza que já os enfiou pelo nariz acima.
- Vamos dar uma volta.
- Isto não se resolve com passeios nem com beijos, Declan. Preciso de voltar.
- Não vais voltar para a cidade enquanto estiveres assim agitada. Vamos dar uma volta a pé.
Para se certificar de que ela não fugia enquanto ele se apeava, tirou as chaves da ignição e enfiou-as no bolso. Saiu, contornou o carro para lhe abrir a porta e
estendeu-lhe a mão.
Lena não tinha energia para o contrariar. Mas, em vez de lhe pegar na mão, saiu do carro e enfiou as suas nos bolsos.
Calculou que caminhariam um pouco, que falariam. E seria tudo.
Calculou que ele achava que os jardins - os novos rebentos, as ternas fragrâncias - a apaziguariam. Pretenderia confortá-la. Ele era assim. Mais, iria querer saber,
para tentar encontrar soluções.
Mas, no que dizia respeito a Lilibeth, não havia soluções.
- A família pode ser uma chatice, não é?
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Olhou-o abruptamente: um olhar escuro e feroz que cintilava de humidade.
- Ela não é a minha família.
- Já percebi. Mas é um problema familiar. Na minha família estão sempre a acontecer problemas. Provavelmente porque somos muitos.
- Não ter canapés suficientes numa festa, ou ter duas tias que aparecem com um vestido igual, não é um problema.
Declan ponderou se deveria ignorar o insulto. Afinal de contas ela estava magoada e irritadiça. Mas custava-lhe engolir aquilo.
- Achas que ter dinheiro faz desaparecer os problemas pessoais? Que apaga o sofrimento, que enterra as tragédias? Isso é uma banalidade, Lena.
- Sou uma miúda banal. Está-me no sangue.
- Isso é um disparate, mas tens o direito de sentir pena de ti mesma depois de quase teres sido esbofeteada. O dinheiro não fez a minha prima Angie sentir-se melhor
quando o marido a engravidou a ela e à amante no mesmo mês. E também não ajudou a minha tia quando a filha morreu num acidente de automóvel no dia em que fez dezoito
anos. A vida pode lixar-nos, independentemente do número de zeros na nossa conta bancária.
Lena calou-se e obrigou-se a serenar.
- Desculpa. Ela tem o condão de me deixar com uma disposição em que não sirvo para companhia de ninguém.
- Eu não sou uma companhia qualquer. - Tomou-lhe o rosto nas mãos antes que ela pudesse fugir. - Amo-te.
- Pára com isso, Declan.
- Não consigo.
- Não sirvo para ti. Não sirvo para ninguém e nem quero servir.
- É essa a chave, não é?
- Sim.
Declan estendeu a mão e ergueu a chave que ela usava pendurada ao pescoço.
- Não foi um homem mas uma mulher que te quebrou o coração. E agora queres fechá-lo e trancá-lo para não aceitares o amor quando to oferecem. Não te permites retribuir.
É mais seguro desse modo. Se não amares, não importa se a pessoa se vai embora. Isso faz de ti uma cobarde.
- E se fizer? - Afastou a mão dele. - É a minha vida. Vivo-a da maneira que quero e tenho-me dado bem. És um romântico, cher. Debaixo de toda essa sensatez ianque,
dessa educação dispendiosa, és um sonhador. Não dou crédito aos sonhos. As coisas são como são.
213
Um destes dias vais acordar e dar por ti nesta enorme casa antiga no meio do nada, a perguntares-te onde raio tinhas tu a cabeça. E voltarás rapidamente para Boston,
para a advocacia, casarás com uma mulher elegante chamada Alexandra e terão uns belos rebentos.
- Esqueceste-te dos golden retrievers - disse ele em tom calmo.
- Oh! - Ergueu as mãos. - Merde!
- Não podia estar mais de acordo. Primeiro, a única mulher que conheço chamada Alexandra tem dentes de cavalo e assusta-me um bocado. Segundo, e mais importante,
o que vou fazer, Angelina, é viver a minha vida nesta enorme casa antiga contigo. Vou constituir família contigo, precisamente aqui. Os golden retrievers são opcionais.
- Não é por repetires isso muitas vezes que vais fazer com que aconteça.
Declan sorriu, um sorriso franco e aberto.
- Queres apostar?
Havia algo nele quando se comportava assim, apercebeu-se, algo potente e um pouco assustador quando exibia aquela afabilidade sobre um núcleo de teimosia e determinação.
- Vou trabalhar. Mantém-te afastado de mim por uns tempos, ouviste? Estou demasiado irritada para lidar contigo.
Deixou-a partir. Por agora era suficiente que a ira que ela sentia em relação a ele tivesse conseguido secar as lágrimas que lhe cintilavam nos olhos.
Capítulo Quinze
Nova Orleães, 1900
Julian estava embriagado, como gostava de estar. Tinha sobre o colo uma prostituta seminua e amparava-lhe o pesado seio com uma das mãos. O velho negro tocava uma
melodia animada no piano, e o som fundia-se agradavelmente na sua cabeça com o selvagem riso feminino.
O fumo dos charutos enchia o ar e provocava-lhe uma vaga necessidade de tabaco. Mas não conseguia decidir-se entre fumar um charuto ou levar a prostituta para o
piso de cima.
O facto de estar - novamente - falido não o preocupava muito. Era um cliente habitual do bordel e acabava por conseguir sempre o necessário para pagar as suas contas.
Ali o seu crédito era bom, por enquanto.
Escolhera a prostituta porque era loira, de corpo luxuriante e vazia de cérebro. Mais tarde, quando estivesse a montá-la, podia dizer a si próprio que não via o
rosto de Abigail a olhá-lo fixamente.
Desta vez não.
Emborcou uma nova golada de bourbon e beliscou o mamilo da loira. Ela soltou um gritinho e bateu-lhe na mão na brincadeira. Julian ainda sorria quando Lucian entrou.
- O meu santo irmão. - Embora as palavras fossem arrastadas, pronunciara-as com amargura. Deu nova golada enquanto via Lucian abanar a cabeça a uma ruiva que se
aproximara dele.
Julian achou-o pálido, loiro e perfeito no meio da névoa de fumo, das cores garridas e do ruído caótico.
E perguntou-se se Caim olhara para Abel e sentira a mesma violenta repulsa que ele sentia agora.
Aguardou enquanto baloiçava a loira sobre os joelhos e lhe apertava
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o seio. Lucian perscrutava o vestíbulo. Quando os seus olhos se cruzaram - olhos idênticos -, deu-se um embate. Julian até juraria ter ouvido na cabeça o som de
duas espadas a entrechocar-se.
- Mas que é isto? - disse quando Lucian se aproximou. - Finalmente desces ao nível do resto dos humanos? O meu irmão precisa de uma bebida. Uma bebida e uma mulher
para mon frère! - disse em voz alta. - Embora duvide que ele saiba o que fazer com ambas as coisas.
- Envergonhas-te a ti e à nossa família, Julian. Mandaram-me vir-te buscar.
- Não tenho vergonha de pagar por uma prostituta. - Pousou o copo e passou a mão pela coxa da loira. - Agora, se casasse com uma, isso já era outra questão. Mas
nisso tu passaste-me a perna, irmão, tal como em muitas outras coisas.
O rosto de Lucian tornou-se branco.
- Não fales dela neste lugar.
- O meu irmão casou com uma pega dos pântanos - disse num tom casual, agarrando a loira quando esta tentou abandonar o seu colo. Sentia o coração dela a latejar
com força, a latejar sob a sua mão agora que a discussão entre ele e o irmão despertava nela o medo.
E esse medo excitava-o como nenhuma das promessas que ela lhe sussurrara anteriormente ao ouvido.
- Lucian, o orgulho dos Manet, trouxe essa vadia para a nossa casa e agora sofre e chora porque ela o trocou por outro e lhe deixou o fardo de uma cria bastarda.
Tinha de acreditar naquilo. Durante o Inverno afogara os olhos fixos de Abigail num oceano de bourbon, asfixiara o som do seu corpo a deslizar para dentro do pântano.
Tinha de acreditar naquilo, senão enlouquecia.
- Allez! - ordenou Lucian à loira. - Sai daqui!
- Quero que ela fique onde está. - Julian agarrou-lhe nos braços enquanto ela se debatia.
Nenhum dos dois reparou que a sala ficara silenciosa à medida que as notas do piano e os risos se desvaneciam. Lucian estendeu a mão e arrancou a loira do colo de
Julian. A rapariga saltou como um coelho quando Lucian puxou o irmão da cadeira.
- Cavalheiros. - A dona da casa precipitou-se para eles. Atrás dela vinha um sujeito enorme impecavelmente vestido. - Não queremos aqui problemas. Monsieur Julian.
- Tinha uma voz afectada e
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passou a mão com intimidade pelo rosto dele. Mas os olhos eram glaciais. - Vá com o seu irmão, mon cher ami. Aqui não é o lugar apropriado para querelas familiares.
- Obviamente. As minhas desculpas. - Pegou na mão dela e beijou-a. Depois virou-se e lançou-se sobre Lucian.
Tombaram sobre a mesa e o candeeiro, que se despedaçaram com o impacto. As pessoas fugiam e as mulheres gritavam enquanto eles rolavam e desferiam violentos golpes
com os punhos, atacando-se como cães, dando largas à fúria contida durante uma vida inteira.
O segurança interpôs-se entre os dois, agarrou em Julian pelo pescoço, arrastou-o até à porta e empurrou-o para o exterior. Lucian tentava ainda recompor-se quando
o ergueram.
Insultos e gritos seguiram-no porta fora. E a sua ira foi abafada pela humilhação. Abanou a cabeça e levantou-se.
Olhou para o irmão, para aquele reflexo de si próprio, e sentiu outra espécie de vergonha.
- Foi a isto que chegámos? - disse com cansaço. - À pancada em bordéis, estendidos na sarjeta. Quero paz entre nós, Julian. Só Deus sabe como não tenho paz em lado
nenhum.
Estendeu a mão para ajudar Julian a levantar-se.
Mas a vergonha de Julian tinha uma cor diferente. Era negra.
Não se lembrava de ter tirado o punhal da bota. O álcool, a ira e a culpa cegavam-no. Não se lembrava também de se levantar de um salto e o atacar.
Sentiu a lâmina trespassar o corpo do irmão com uma espécie de júbilo selvagem. E tinha os lábios abertos e um olhar tresloucado quando sentiu o cheiro do primeiro
sangue.
Lutaram, Lucian com dor e estupefacção, Julian envolto numa névoa negra, com o punho da lâmina já a escorregar-lhe das mãos.
E quando a extremidade aguçada se cravou e afundou dentro dele, Julian abriu desmesuradamente os olhos, ofuscado por um horror cintilante.
- Mère de Dieu - murmurou, olhando fixamente para o sangue que lhe escorria do peito. - Mataste-me.
Mansão Manet, 2002
O calor vindo do Sul era asfixiante. Declan tinha a impressão de que até o ar transpirava. De manhã e ao fim da tarde, quando a temperatura
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era mais tolerável, trabalhava no exterior. Durante a tarde procurava as zonas mais frescas da casa.
Não produzia tanto estando sempre a arrastar as ferramentas para trás e para diante, mas continuava a fazer progressos. Era isso que importava.
Não telefonou a Lena, calculou que ela precisasse de fervilhar até acalmar. Mas pensava constantemente nela.
Pensava nela enquanto pregava tábuas, quando examinava amostras de tinta, enquanto instalava as ventoinhas.
E pensou nela quando acordou a meio da noite e deu por si enroscado na relva junto à borda do tanque, apertando na mão o relógio de Lucian e com o rosto húmido de
lágrimas.
Durante o dia tentou esquecer-se do sonambulismo. Mas não conseguiu esquecer-se dela.
Mais um dia, disse para si próprio enquanto limpava o suor do rosto. Depois iria à cidade bater-lhe à porta. Se tivesse de a encostar a um canto para a obrigar a
falar com ele, então era isso que faria.
O casamento de Remy aproximava-se a passos largos. O que significava não só que iria ver o seu melhor amigo casado, como também... que os seus pais viriam à cidade.
Sentia-se ridiculamente grato por terem declinado o convite para ficar em casa dele. Era melhor para todos que se enfiassem numa agradável suite de hotel.
Estava determinado a acabar as varandas em dois quartos. Assim a casa causaria mais impacto quando descessem a vereda e poderia provar-lhes que tinha realmente o
quarto que lhes oferecera.
A mãe iria querer certificar-se. Era um dado adquirido.
Desceu do escadote, agarrou na geleira e bebeu uma valente golada de água fria. Depois verteu o resto sobre a cabeça. Já refrescado, atravessou o relvado e virou-se
para olhar.
Pingava água, que começava já a evaporar-se, e sentiu o sorriso espalhar-se pelo rosto.
- Nada mau - disse em voz alta. - Mesmo nada mau para um amador ianque.
Terminara a escadaria dupla. O lanço de degraus curvava para lados opostos na varanda do segundo piso. A elegância da estrutura anulava todos os arranhões, cortes,
esfoladelas e horas de trabalho.
Compreendeu que a escadaria seria a menina dos seus olhos.
Agora só precisava de subornar os pintores para trabalharem debaixo daquele calor. Ou rezar por um tempo mais ameno.
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De qualquer modo, não ia aguardar até terminar as traseiras da casa. Queria a fachada pintada, queria ficar ali especado como agora a vê-la cintilar, branca como
um vestido de noiva.
Retrocedeu novamente em direcção à casa e, só pelo prazer que isso lhe dava, subiu lentamente o lanço da direita, atravessou a varanda e tornou a descer pelo da
esquerda. Ficou tão entusiasmado que decidiu repetir o percurso.
Depois vasculhou a caixa de ferramentas à procura do telemóvel e ligou a Lena.
Tinha de partilhar aquela excitação com ela. Que importava se estava a antecipar-se ao combinado?
Foi então que viu Lilibeth a atravessar o seu relvado. Desligou, levantou-se e voltou a colocar o telemóvel na caixa de ferramentas.
- Juro, este calor é derreante. - Sorriu-lhe e pestanejou enquanto abanava a mão diante do rosto. Declan reparou que as pulseiras que trazia eram de Odette. - E
ainda não é meio-dia. Olha para ti - continuou, numa voz lenta e ronronante. Dirigiu-se directamente para ele e passou-lhe um dedo pelo peito nu. - Está todo suado.
- Um chuveiro improvisado. - Recuou instintivamente para que o dedo dela deixasse de lhe tocar na pele. - Em que posso ajudá-la, Miss Simone?
- Podes começar por me chamar Lilibeth. Afinal de contas, és um grande amigo da minha mamã... e da minha menina, não é? - Deambulou um pouco e os seus olhos abriram-se
desmesuradamente enquanto examinava a casa. - Nem consigo acreditar no que fizeste nesta enorme casa velha. Deves ser terrivelmente inteligente, Declan - disse num
tom insinuante. - Posso tratar-te por Declan, não posso?
- Claro. Não é preciso ser-se muito inteligente - disse. - Só é preciso dispor de bastante tempo.
E dinheiro, pensou ela. Bastante dinheiro.
- Ora, ora, não sejas modesto. É um milagre o que tens feito aqui. Espero não estar a incomodar-te demasiado se te pedir para me mostrares o interior. E sabia-me
bem uma bebida fresca. Caminhar até cá deixou-me ressequida.
Não a queria dentro da sua casa. Mais do que desagrado, sentia uma espécie de pavor primitivo. Mas, apesar de tudo, era a mãe de Lena, e a sua própria mãe tinha-lhe
inculcado bons modos.
- Naturalmente. Tenho chá.
- Nada seria mais bem-vindo.
Seguiu-o até à entrada e sentiu-se satisfeita quando ele lhe abriu a
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porta e se afastou para a deixar entrar à sua frente. Deixou o corpo roçar no dele, apenas uma ínfima sugestão, entrou no vestíbulo e não conteve uma exclamação
de surpresa.
Não precisou de fingir estupefacção ou espanto enquanto admirava a grandiosa entrada. Já estivera ali antes. Remy e Declan não tinham sido os primeiros a embebedar-se
e a forçar a entrada da Mansão Manet.
Nunca gostara muito daquela casa. O lugar provocava-lhe calafrios, com as suas sombras, poeira e teias de aranha, o seu glamour desluzido.
Mas agora estava repleta de luz e brilho. Soalhos lustrosos, paredes luzidias. Nunca apreciara mobília antiga, muito menos como moda. Mas estava a par dos preços.
O dinheiro antigo comprava ou conservava coisas antigas. Era um conceito que a intrigava, sobretudo quando havia no mundo tanta coisa nova e cintilante.
- Meu Deus, doçura, isto parece uma sala de exposições. Uma verdadeira sala de exposições - repetiu, entrando na salinha.
Teria preferido a cidade, onde havia acção, mas verificava agora que uma mulher podia viver como uma rainha num lugar como aquele. E trazer a acção ali para dentro,
ao sabor dos seus caprichos.
- Meu Deus, já disse que eras inteligente? És um génio. Ficou tudo tão belo e fresco. - Virou-se novamente para ele. - Deves sentir-te incrivelmente orgulhoso.
- As coisas vão andando. A cozinha é por aqui. Vou preparar-lhe a tal bebida fresca.
- Agradecia-te, mas não me apresses. - Passou a mão com ousadia pelo braço dele e não o largou enquanto apreciava o vestíbulo. - Estou fascinada com o que fizeste
aqui. A mamã disse que iniciaste as obras apenas há uns meses.
- Consegue-se fazer muita coisa se cumprirmos o planeado. Como teria de a suportar, pelo menos por enquanto, reprimiu o desejo de a levar novamente para o exterior.
Em vez disso, aproveitou para a observar quando ela se encaminhou para a biblioteca, emitindo os seus sons ronronantes.
Não conseguia ver quase nada de Lena na mãe. Havia algumas semelhanças físicas, mas enquanto Lena tinha um corpo compacto e voluptuoso, o de Lilibeth definhara com
o tempo e os excessos, deixando-a quase cadavérica.
E exibi-lo nuns minúsculos calções vermelhos e num top justo só a
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fazia parecer vulgar e patética: uma boneca gasta, mascarada para uma última noite de Carnaval. Sentiu uma certa pena daquela mulher que procurava aceitação e atenção
tentando ostentar uma sexualidade que perdera.
Carregara pesadamente na maquilhagem e o calor não a favorecera. O rosto parecia amarelado e falso debaixo daquela cor emprestada. O cabelo estava frisado, e havia
raízes grisalhas a espreitarem aqui e ali.
Quando chegaram à cozinha, achou-a demasiado patética para lhe guardar qualquer ressentimento.
- Sente-se. Vou preparar-lhe a bebida.
E ela interpretou a gentileza da voz dele como atracção.
- Uma cozinha assim... - Afundou-se numa cadeira. Aquela zona era fresca, e Lilibeth inclinou a cabeça para trás para deixar o ar chegar-lhe à garganta. E para o
observar. - Não me digas que também cozinhas. Se for esse o caso, doçura, vou ter que afastar a Lena e casar eu contigo.
- Lamento. - A menção a Lena fê-lo retesar-se. Mas estava de costas para ela, e Lilibeth não conseguiu ver-lhe o rosto. - Não cozinho.
- Bem, uma rapariga pode sempre fazer algumas concessões. - Passou a língua pelos lábios. Declan tinha um físico agradável e robusto que combinava bem com a carteira
recheada. E ela já começava a ansiar por um homem. - Por acaso não tens nada um pouco mais forte do que chá, querido?
- Prefere uma cerveja?
Preferia um bom copo de whiskey, mas anuiu com a cabeça.
- Agradecia-te. Acompanhas-me?
- Fico-me pelo chá. Ainda tenho trabalho para fazer hoje.
- Está demasiado calor para se trabalhar. - Recostou-se e observou-o por baixo das pestanas. - Em dias assim, só apetece uma pessoa enfiar-se numa banheira fresca
e depois deitar-se num quarto quase às escuras com uma ventoinha a refrescar-lhe a pele. - Pegou no copo de cerveja que ele lhe servira e sorveu um pouco. - Que
fazes para suportar o calor, querido?
- Deito água fria pela cabeça abaixo. Como está Miss Odette? Lilibeth cerrou os lábios.
- Oh, está bem. De manhã a casa fica quente como um inferno quando ela coze pão. Tem que poupar os seus tostões. Tenho-a ajudado o melhor que posso, mas as coisas
estão más. Declan... - Passou o
222
dedo pela condensação no copo e bebeu um pouco mais. - Queria pedir-te desculpa pela cena que se passou lá em casa no outro dia. Eu e a Lena, bem, a maior parte
das vezes não nos entendemos. Acho que não posso negar que não agi da melhor maneira com ela quando era criança. Mas estou a tentar compensá-la. - Abriu excessivamente
os olhos até sentir picadas e estes começarem a ficar adequadamente húmidos. - Mudei. Cheguei a uma altura da minha vida em que sei que o importante é a família.
Sei que me compreendes. Também tens família.
- Sim, tenho família.
- E agora estás aqui e sentes a falta deles, e eles a tua. Apesar dos problemas que possa haver entre vocês, põem-nos de lado e ajudam-se uns aos outros. Aconteça
o que acontecer, não é assim?
- Sim.
Enxugou delicadamente as lágrimas com a mão.
- Quero que a Lena veja que é apenas isso que eu quero. Ela ainda não confia em mim, e não a censuro. Tinha a esperança de que talvez pudesses convencê-la a dar-me
uma oportunidade. - Deslizou a mão pela mesa e pousou-a sobre a dele. - Ficar-te-ia muito grata por isso. Sinto-me tão só. Uma mulher na minha situação precisa de
um amigo, um homem forte com quem possa contar. Se pudesse contar contigo, isso ajudar-me-ia muito.
- Se tiver que optar, fico do lado da Lena. De qualquer modo, não posso intrometer-me em assuntos de família... e se fosse suficientemente estúpido para o tentar,
ela também não me daria ouvidos.
- Talvez vocês os dois não sejam tão íntimos quanto supunha.
- É sempre arriscado fazer suposições. - Replicou-lhe na mesma moeda.
Lilibeth bebeu um pouco mais.
- Andas a dormir com ela, não andas?
- Não vou discutir isso consigo.
- Porque não? - Passou o copo gelado entre os seios, riu-se e levantou-se. - És tímido, querido? Não sejas tímido com a Lilibeth. Nós os dois podíamos ser amigos.
- Contornou a mesa e inclinou-se por detrás dele. - Bons amigos - acrescentou, abraçando-o e mordiscando-lhe a orelha.
- Miss Simone, está a colocar-me na incómoda situação de ter que lhe pedir que tire as mãos de cima de mim.
- És mesmo tímido. - Com uma gargalhada que soprou a respiração quente e o hálito a cerveja para o rosto de Declan, foi descendo as mãos até ao colo dele.
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Declan prendeu-lhe os pulsos com a mão e afastou-a.
- Está a humilhar-se. - Contorceu-se para poder levantar-se da cadeira e ficarem face a face. - Isso é consigo. Mas está a querer usar-me para tentar conquistar
a Lena, e isso já me diz respeito.
Ficou rubra de cólera.
- Provavelmente julgas-te demasiado bom para mim.
- Quanto a isso não há dúvidas. Vá-se embora e esqueço que isto aconteceu.
Lilibeth sentia vontade de lhe gritar, de lhe bater. Mas conseguiu controlar-se. Não bebera assim tanta cerveja que lhe entorpecesse a razão, e a linha de coca que
snifara antes de vir fora quase nada. Dramatizou a situação, afundou-se na cadeira, deixou cair a cabeça sobre os braços cruzados e soluçou.
- Não sei o que fazer! Sinto-me tão só! Estou tão assustada! Preciso de ajuda! Julguei... julguei que me ajudarias se me entregasse a ti. Não sei o que fazer - Levantou
a cabeça e deixou correr pela maquilhagem as duas lágrimas que conseguira forçar a cair. - Estou numa situação tão terrível!
Declan aproximou-se da bancada, abriu a torneira e encheu um copo.
- Que tipo de situação?
- Devo dinheiro. Foi por isso que saí de Houston. Tenho medo que me encontrem e me façam mal. E à Lena também. Não quero que magoem a minha menina.
Colocou a água diante dela.
- Quanto dinheiro?
Reparou de imediato no rápido brilho de satisfação que perpassou pelos olhos dela antes de os tornar a baixar.
- Cinco mil dólares. A culpa não foi minha. De verdade, a culpa não foi minha. Confiei na pessoa errada, um homem - disse num tom fatigado. - Ele fugiu com o dinheiro
e fiquei eu com a dívida. Se não arranjar maneira de o devolver, eles vêm atrás de mim para me fazerem mal. E à mamã e à Lena.
Declan sentou-se de novo e olhou-a fixamente.
- É uma mentirosa. Está a tentar comover-me para lhe dar cinco mil dólares e assim poder arranjar droga e sair da cidade. Calculou que eu fosse um alvo fácil, mas
calculou mal. Se não fosse por causa da Lena, dava-lhe umas centenas de dólares para a mandar para longe daqui. Mas, Lilibeth, tenho que pensar na Lena. Ela não
ia gostar.
Lilibeth atirou-lhe a água à cara. Declan quase não pestanejou.
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- Vai-te foder!
- Pensava que já tínhamos acordado que essa hipótese estava posta de lado.
- Julgas-te muito esperto, não é? Muito importante porque nasceste rico. - Levantou-se. - Numa família grande, chique, snobe. Descobri tudo sobre ti, Declan Fitzgerald.
E agora pergunto-te: o que é que essa tua enorme família chique e snobe vai pensar quando souber que andas a aquecer a cama com uma pega cajun dos pântanos?
Aquelas palavras de Lilibeth agoniaram-no, obstruíram-lhe a garganta e a lucidez. O rosto dela alterou-se diante dos seus olhos, tornou-se maior, mais velho. Mais
frio.
Josephine.
- Saia daqui! - Não tinha a certeza, pelo menos não inteiramente, se estava a falar com a mulher de carne e osso ou com o fantasma. Sentia as mãos a tremer enquanto
se apoiava na borda da mesa.
- Todos esses doutores, advogados e manda-chuvas lá de Boston, que vão achar eles quando souberem que o seu rico menino de ouro anda a dar-se com uma filha bastarda
do bayou? Sem dinheiro, sem linhagem. Dona de um bar de segunda classe e com uma avó que cose a roupa para fora para ganhar uns tostões extra. Riscam-te logo do
testamento, doçura. Deixam-te sem um chavo e com este enorme elefante branco nas mãos. Sobretudo quando eu lhes disser que também dormiste com a mamã dela.
Declan sentiu as pernas fraquejar, mas aguentou.
- Saia da minha casa antes que lhe bata!
- Gente como tu não põe as mãos numa mulher. Pensas que não sei ver a diferença? - Amparada pela coca e pela confiança, lançou o cabelo para trás. - Se queres continuar
a enfiá-lo nela e se queres manter a tua família afastada disto, vais ter que me passar um cheque, cher. Vais ter que o passar bem depressinha. E agora vão ser dez
mil, porque me feriste os sentimentos.
- Os seus sentimentos não valem um chavo para mim, Lilibeth.
- Hão-de valer, depois de eu ter uma conversinha com a tua mamã.
- A minha mãe reduzia-a a farrapos. - Foi até à bancada, puxou uma gaveta e tirou um bloco de notas. Rabiscou um número. - Tome. É o número dela. Ligue-lhe. Pode
usar o meu telefone, desde que eu possa ficar a ouvir enquanto ela a desfaz em pedacinhos.
- Eu preciso do dinheiro!
- Não o arranjará aqui. - Já com a paciência esgotada, agarrou-a
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pelo braço e arrastou-a até à porta. - Posso causar-lhe mais problemas a si do que você a mim. Acredite. - E fechou-lhe a porta na cara.
Teve de se sentar até sentir as pernas novamente firmes. Sentia-se indisposto, fisicamente indisposto. Algo acontecera quando ela lhe gritava enfurecida a propósito
de Lena. O rosto que vira nela era o rosto que via nos seus sonhos.
Um rosto que pertencia à casa, ou à parte que batia com as portas e que o queria ver dali para fora.
Que lhe queria mal.
Agora não restavam dúvidas de que a mãe de Lena também lhe desejava mal, disse para si próprio.
Levantou-se e pegou no telemóvel. Um resultado positivo daquele incidente repugnante foi fazê-lo dar mais valor à sua própria mãe.
Marcou o número e sentiu-se mais aliviado ao ouvir o som familiar da voz dela.
- Olá, mãe.
- Declan? Porque estás a ligar-me a meio do dia? Que se passa? Tiveste um acidente?
- Não, eu...
- Todas essas ferramentas horríveis. Decepaste a mão?
- Ainda mantenho as duas, bem como todas as outras partes do corpo. Só telefonei para dizer que te adoro.
Fez-se um silêncio longo e eloquente.
- Acabaste de saber que tens uma doença terminal e apenas seis meses de vida.
Declan riu-se.
- Apanhaste-me. Sou um homem morto e quero contactar a família para poder ter um velório à maneira.
- Queres que o tio Jimmy cante Danny Boy?
- Nem pensar. Prefiro descansar logo em paz.
- Combinado. Que se passa realmente, Declan?
- Quero falar-te da mulher por quem estou apaixonado e com quem quero casar.
Desta vez o silêncio foi ainda mais demorado.
- É alguma partida?
- Não. Tens uns minutos?
- Acho que consigo arranjar tempo para ti na minha agenda.
- Está bem. - Pegou no seu chá gelado. O gelo já derretera, mas emborcou-o na mesma. - Chama-se Angelina Simone, é linda, fascinante, irritante, teimosa e perfeita.
É mesmo perfeita, mãe.
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- Quando a vou conhecer?
- No casamento do Remy. Há apenas um pequeno problema... para além de ela ainda não se sentir preparada para dizer "sim".
- Tenho a certeza de que consegues ultrapassar esse pequeno pormenor. Qual é o problema?
Sentou-se novamente e contou-lhe acerca de Lilibeth.
Quando desligou, sentiu-se mais aliviado. Levado pelo impulso, foi ao piso de cima lavar-se e mudar de roupa. Iria confrontar-se com Lena um pouco antes da data
agendada.
Capítulo Dezasseis
Declan passou pelo escritório de Remy a caminho do Et Trois. O casamento aproximava-se rapidamente e as suas obrigações como padrinho incluíam coordenar a despedida
de solteiro. Embora achasse que os planos eram bastante claros - bebida suficiente para afundar um navio de guerra e um clube de strip -, havia pequenos pormenores
que precisavam de ser trabalhados.
Quando a recepcionista informou da sua presença, ouviu a voz quase em pânico do amigo através do intercomunicador:
- Mande-o entrar já!
Assim que abriu a porta, verificou a razão desse pânico.
Effie estava sentada numa das cadeiras para os clientes, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces e com Remy acocorado junto dela. Embora Remy lhe limpasse as
lágrimas e tentasse confortá-la, lançou a Declan um olhar de puro pânico masculino.
Como prova de amizade, Declan reprimiu a vontade de recuar e fugir. Em vez disso, fechou a porta, acercou-se e afagou o ombro de Effie.
- Querida, disse-te que lhe dizia eu que ias trocá-lo por mim. Effie limitou-se a levantar a cabeça, a cobrir o rosto com as mãos e a soluçar.
- Pronto, foi uma piada de mau gosto. - Declan esfregou as palmas das mãos suadas nas calças. - Que se passa?
- Problemas com o local do casamento - começou Remy, e Effie soltou um gemido.
- Já não há local para o casamento. - Agarrou no lenço de Remy e enterrou o rosto nele. - Houve... houve um incêndio na cozinha e vieram os bombeiros e eles... eles...
Oh, que vamos fazer agora?
- Estragos causados pelo fumo e pela água - explicou Remy a
228
Declan. - Estragos superiores aos causados pelo fogo. Não vão conseguir reparar os danos a tempo.
- A culpa é minha.
Declan imitou Remy e acocorou-se também.
- Pronto, querida, e como é que ateaste o fogo? Aquilo fê-la rir-se, por um escasso segundo.
- Eu é que quis usar aquela antiga fazenda. É tão romântica e encantadora. O Remy disse que era muito mais fácil reservar o salão de baile de um hotel, mas não,
as coisas tinham que ser à minha maneira. E agora vejam o resultado. Temos menos de três semanas e estamos... Estamos afundados, é o que é.
- Não, não estamos nada, querida. Vamos arranjar outro lugar. Pleure pas, chère. - Remy beijou-lhe a ponta do nariz. - O pior que pode acontecer é casarmo-nos e
fazermos a festa depois. Teremos um verdadeiro fais do-do depois da lua-de-mel.
- E vamos casar-nos onde? No registo?
- Não me interessa onde vamos casar. - Beijou-a agora nos dedos. - Desde que casemos.
Effie fungou, suspirou e apoiou-se nele.
- Desculpa. Estou a ser idiota e egoísta. Tens razão. Não interessa onde ou como.
- Claro que interessa. - A afirmação de Declan fez com que ambos o olhassem fixamente, Effie com as lágrimas ainda a marejarem-lhe os olhos e Remy com uma expressão
de frustração e perplexidade. - Não podem deixar que um pequeno incêndio vos estrague os planos. Usem o meu sítio.
- Que queres dizer com isso, o teu sítio? - perguntou Remy.
- A Mansão. Raios, é suficientemente grande. O salão de baile precisa de algumas obras, mas há tempo. Tenho que recrutar pintores, mas esta manhã terminei a entrada.
Os jardins estão em bom estado, a cozinha está pronta, bem como os vestíbulos e a biblioteca. Ainda há muitas zonas por acabar, mas as pessoas não se importarão
com isso. Irão gostar da casa, dos terrenos, dos fantasmas. Falarão disso durante anos.
- Estás a falar a sério? - Effie agarrou nas mãos de Declan antes que Remy pudesse falar.
- Absolutamente. Acho que resultará.
- Dec... - começou Remy, mas Effie não o deixou acabar.
- Oh, meu Deus! Oh, gosto mesmo de ti! - Lançou os braços em redor do pescoço de Declan. - És o homem mais maravilhoso do mundo! Um anjo! - disse e beijou-o. - Um
santo!
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- Importas-te? - disse Declan a Remy. - Gostávamos de ficar sozinhos.
Effie riu-se e levantou-se de um salto.
- Oh, não devia deixar-te fazer isto. Vais ter todos aqueles desconhecidos a deambularem pela tua casa, a pisarem o teu relvado. Mas vou aceitar porque estou desesperada,
e é mesmo perfeito. Juro-te, juro-te que não vais ter nenhum trabalho. Eu trato de tudo. Vou ficar a dever-te um favor para toda a vida.
- Se me derem o vosso primogénito, já será pagamento suficiente. Remy sentou-se na ponta da secretária e abanou a cabeça.
- Eu digo-te que caso contigo em qualquer lugar e em qualquer altura, e tudo o que ele faz é oferecer-te uma casa em escombros e quem recebe o beijo é ele.
- Mas a ti já eu tenho. - Voltou-se, enlaçou Remy, suspirou e descansou a cabeça no ombro dele. - Quero que seja uma coisa bela, Remy. Quero que seja especial. Significa
muito para mim.
- Eu sei que sim. Também significa muito para mim. Vai ser uma grande festa, não vai?
- Sim. - Apertou-lhe a mão uma última vez e afastou-se. A mulher triste e lacrimejante foi substituída por uma mulher frenética. - Posso ir já até lá? - perguntou
a Declan. - Preciso de ir buscar a minha mãe e a minha irmã para começarmos a tratar de tudo.
- Claro.
- Obrigada. - Beijou-o na face. - Obrigada. - Depois na outra face. - Obrigada. - Depois na boca, um beijo longo e demorado. - Remy, vai ter comigo assim que puderes.
Ah, Dec? - Pegou no telemóvel enquanto se dirigia para a porta. - As minhas cores de noiva são o rosa e o azul. Importas-te que pintemos a casa com essas cores?
Ficou boquiaberto enquanto ela fechava a porta atrás de si.
- Ela estava a brincar, não estava?
- Provavelmente. - Remy soltou um suspiro: conhecia bem a sua miúda e o bando com quem se dava. - Cher, nem sabes no que te meteste. Fizeste a minha miúda feliz
e estou-te grato, mas devo dizer-te que vais ficar a braços com um par de semanas de pura loucura.
- Não aguentei vê-la chorar assim. Além disso, faz todo o sentido. - Rosa e azul, pensou. Que problemas lhe trariam cores tão inofensivas como o rosa e o azul? -
De qualquer modo - acrescentou, esfregando a mão sobre o coração desalentado -, já tenho experiência de planear casamentos.
- Ainda não conheces a mãe dela.
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Declan remexeu-se sem sair do lugar, inquieto.
- É assustadora?
- Bastante.
- Segura-me.
A boa acção deixou-o bem-humorado. Quando entrou no Et Trois, estava preparado para uma cerveja bem gelada, à laia da palmadinha autocongratulatória nas costas.
E preparado para Lena.
Ela estava atrás do balcão, a tirar uma cerveja de pressão e a conversar com um dos clientes habituais. Viu-a olhar em volta até se centrar nele. E manter o olhar
fixo enquanto ele se aproximava e levantava a porta-balcão.
Só teve tempo para passar a caneca espumosa para as mãos que a aguardavam e começar a virar-se antes de ele a levantar do chão e unir os lábios aos dela.
As palmas e os assobios dispersos fizeram-no sorrir enquanto a segurava no ar.
- Tive saudades tuas.
Lena roçou os lábios ardentes pelos dele.
- Ainda bem. - Afagou-lhe a face e dirigiu-lhe aquele olhar rápido e malicioso. - Agora põe-me no chão, rapaz, aqui trabalha-se.
- Vais precisar de alguém para te substituir.
- Estou ocupada, cher. Vai sentar-te que eu trago-te uma cerveja. Levantou-a novamente e fê-la balançar um pouco as pernas para poder pegar nela ao colo. Empurrou
a porta que dava para a cozinha com o cotovelo.
- A Lena precisa que a substituas - gritou lá para dentro e apontou com a cabeça para a porta-balcão. - Importa-se? - perguntou ao homem que bebia a cerveja.
- Com certeza.
- Declan. - Lena não se debatia para não estragar a imagem. - Tenho um negócio para gerir.
- E tens-te saído mesmo bem. Obrigado - acrescentou quando o homem levantou a porta-balcão. - O negócio aguenta bem sem ti durante meia hora. - Acenou com a cabeça
quando o homem se apressou a abrir-lhe a porta.
Levou-a lá para fora. Lançaram-lhes alguns olhares enquanto descia o passeio e a levava para o pátio.
- Não gosto que me forcem, cher.
231
- Não estou a forçar-te, estou a levar-te ao colo. Onde tens a tua chave suplente? - perguntou enquanto subia as escadas. Como ela não dizia nada, encolheu os ombros.
- Muito bem. Vamos ser presos por aquilo que planeio fazer aqui no teu alpendre, mas estou disposto a arriscar.
- Debaixo do vaso, o segundo à esquerda.
- Excelente.
Para sua estupefacção, Declan colocou-a sobre o ombro enquanto se baixava para pegar na chave. Lena sempre subestimara a força dele e, tinha de confessá-lo, a sua
própria reacção a ela.
- Perdeste uns quilitos - comentou ele enquanto abria a porta. - Excelente.
- Desculpe, senhor? - disse ela no seu melhor tom de beleza sulista frígida.
- Deve ser porque tens ansiado por mim.
- Estás a precisar de tratamento, cher.
- Já estou a tratar disso - disse, levantando a mão para lhe apalpar o traseiro enquanto fechava a porta com o pé.
- Nem imaginas como me sinto lisonjeada por teres tirado folga para vir à cidade dar uma rapidinha, mas eu...
- Excelente ideia. Não era a minha primeira prioridade, mas para quê esperar? - Colocou-a numa posição mais segura sobre o ombro e dirigiu-se para o quarto.
- Declan, agora começas a irritar-me seriamente. É melhor pores-me no chão e...
O resto das palavras perdeu-se - bem como o ar dos seus pulmões - quando ele a atirou para cima da cama. Declan conseguiu ver-lhe os olhos a faiscar perigosamente
por detrás do cabelo antes de ela o afastar do rosto. Perfeito, pensou. Apetecia-lhe uma coisa rápida e física, transpirada, sexy.
- Mas que raio tens tu? Entras de rompante no meu bar como se fosses dono daquilo e carregas-me como se fosse um despojo de guerra. Se pensas que estou aqui para
te coçar as costas sempre que te apetecer, olha que vais ter uma grande surpresa.
Declan limitou-se a sorrir, tirou-lhe um sapato e atirou-o para o lado.
- Volta a calçar-mo, senão saio descalça. De qualquer modo, quero que te vás embora.
Arrancou-lhe o outro sapato e depois a blusa. A reacção dela foi pôr-se de joelhos e metralhá-lo em cajun com tal rapidez e contundência que ele só conseguiu captar
o sentido de uma palavra ou outra.
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- Desculpa - disse num tom suave enquanto lhe desapertava as calças. - Foi demasiado rápido para mim. Estavas a dizer que eu era um porco que devia arder no inferno,
ou que devia ir para o inferno e comer porco assado?
Já estava preparado quando ela saltou, e riu-se quando ela se lançou sobre ele. Chegara a altura de uma queda rápida e violenta, e aquelas unhas aguçadas e dentes
afiados eram perfeitos como retoque final.
Lena esbofeteou-o, praguejou, deu pontapés. Depois arqueou-se como uma égua selvagem quando a esmagou debaixo dele e lhe cobriu a boca ofegante com a sua num beijo
ardente e ávido.
- Não era o que esperavas de mim, pois não? - Estava sem fôlego e excitadíssimo e rasgou-lhe a blusa. - Até aqui dei-te demasiado daquilo de que já estavas à espera.
- Pára! Pára já com isso! - Sentia o coração desenfreado sob a mão áspera dele. Não, não estava à espera daquilo, tal como não esperava aquela sua reacção eléctrica
à dominação dele.
- Olha para mim. - Prendeu-lhe as mãos de ambos os lados da cabeça. - Diz-me que não me queres, que não queres isto? Di-lo, mas com seriedade, e eu vou-me embora.
- Solta-me as mãos. - Embora o olhar dela continuasse firme, a voz tremia-lhe. - Solta-me as mãos.
Soltou-lhe uma das mãos.
- Diz. - Os músculos tremiam-lhe. - Ou queres ou não queres. Lena agarrou-lhe o cabelo com força e puxou novamente a boca dele ao encontro da sua.
- J'ai besoin.
Preciso.
Usou os dentes para lhe morder implacavelmente os lábios. Usou as pernas para o enlaçar e o prender a si.
- Toma-me! - exigiu-lhe. - Depressa! Depressa e com força! Declan lançou a mão por debaixo da saia curta e justa e arrancou-lhe as delicadas calcinhas. O suor reluzia
já na pele de ambos quando ela se arqueou para o receber.
- Prepara-te - avisou-a, e mergulhou dentro dela.
Lena gritou quando uma sensação de explosão a sacudiu de alto a baixo, e gritou de novo quando ele se enterrou mais e com mais força. Preenchida, devassada, recebeu-o
até as suas necessidades, as suas necessidades extremas e desesperadas, a invadirem por completo. Raspou as unhas pelas costas dele, beliscou-lhe as ancas.
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De plus en plus. Mais e mais, gritava a sua mente.
- Mais! - conseguiu dizer. - Quero mais!
Ele assim fez. Empurrou-lhe os joelhos para trás, abriu-a e penetrou-a com força.
Declan sentia-se a arder. Os pulmões, o coração, as virilhas. Aquele calor feroz, aquele prazer indizível de enlouquecer com ela, turvou-lhe a visão e inundou tudo
à sua volta.
A luz brilhante do sol que dardejava pelas janelas, a explosão metálica de um trompete lá fora na rua, o insano uivar das molas do colchão enquanto uma pele suada
batia ritmicamente noutra pele suada.
E os olhos dela, escuros- e cintilante como ónix, prenderam-se nos dele.
Amo-te. Perdidamente.
Declan não sabia se tinha falado em voz alta ou se as palavras simplesmente lhe rodopiavam na mente. Mas viu que o olhar dela se alterou. Viu a emoção inundar-lhe
os olhos e cegá-los.
Ouviu-a arquejar, sentiu-a comprimir-se contra ele quando se veio. Rendido, quase louco, explodiu. E inundou-a.
Sem fôlego, fora de si, deixou-se cair sobre ela, que continuava a tremer e a agitar-se debaixo dele, sempre a estremecer, naquelas reverberações posteriores à erupção.
E depois parou.
- Não consigo mexer-me - murmurou ele. Sentia-se vazio, leve como um invólucro de semente à mercê da mais pequena brisa.
- Não precisas.
Tinha os lábios encostados à garganta dele e o movimento que faziam despertou em Declan uma enorme ternura. Um arco-íris depois da tempestade.
- Acreditas que eu tinha vindo somente para falar contigo?
- Não.
- Mas vim. Pensava fazermos isto mais tarde. Mudei de planos. Devo-te uma blusa e alguma roupa interior.
- Tenho mais.
Declan conseguira recompor-se o suficiente para se apoiar nos cotovelos e olhar para ela. Tinha as faces coradas e cintilantes. Caracóis de cabelo húmido agarravam-se-lhe
às têmporas e espalhavam-se pelos lençóis em desalinho.
Apetecia-lhe lambê-la como um gato lambe leite.
- Excitou-me imenso irritar-te - disse-lhe.
- A mim também. Deve ter sido isso. Não ia voltar a fazer isto contigo.
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- Não ias?
- Não. - Levou a mão à face dele, surpreendida por aquela onda de ternura. - Já me tinha decidido. Depois apareces-me no bar, todo sexy e bem-parecido e levantas-me
do chão. Confundes-me as ideias, cher. Obrigas-me a reformular sempre tudo, vezes sem conta.
- Tu és tudo o que eu quero.
- Mas nada que te possa fazer o menor bem. Sai. - Empurrou-lhe o ombro com delicadeza. - Sai de cima de mim. Estamos os dois encharcados em suor.
- Vamos tomar um banho e depois falamos. Falamos - repetiu quando ela ergueu o sobrolho. - Palavra de escuteiro. - Levantou dois dedos em juramento.
- Tenho que voltar para o trabalho.
- Angelina.
- Está bem. - Fez-lhe sinal para se levantar. Sabia que não valia a pena discutir com ele. Só Deus sabia por que razão achava tão atraente aquele seu lado teimoso.
- Vai-te lavar. Vou ligar para o bar a saber se está tudo em ordem.
Entrou no banho assim que ele saiu. Declan calculou que fosse de propósito, para evitar qualquer intimidade. Deu-lhe espaço e foi para a cozinha. Encontrou o já
esperado bule de chá e encheu dois copos.
Quando ela voltou, usando a mesma saia sexy e uma blusa lavada, estendeu-lhe um dos copos.
Lena levou-o para a sala de estar.
Nos últimos dias havia-se resignado à situação. Durante todo esse tempo parte dela ansiara realmente por ele. E sempre que dera por si a olhar em direcção à porta
do bar, à espera dele, ou a acordar a meio da noite e a estender a mão para ele, amaldiçoara-se por ser tão tonta e fraca.
Até que olhara para a porta e lá estava ele. O enorme prazer que sentira, o profundo alívio, irritara-a mesmo antes de ele lhe ferir o orgulho ao arrancá-la do seu
próprio bar.
- Declan - começou. - Não fui justa contigo no outro dia. Não estava com disposição para ser justa.
- Se vais pedir desculpas por isso, não precisas. Eu queria enfurecer-te. Prefiro ver-te zangada do que triste. Ela tem esse duplo efeito sobre ti.
- Julgo que sim. O que mais odeio é saber que ela está ali com a minha avó, saber que a vai magoar novamente. Não posso impedi-lo,
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não posso solucioná-lo. E isso perturba-me. Mas tu não precisavas de te envolver nisto.
- Não deves culpar-te. Aconteceu simplesmente. - Inclinou a cabeça. - Corrige-me se estou errado. Tendo em conta quem sou e de onde venho, tens a impressão de que
não estou preparado para lidar com os aspectos mais sombrios, mais difíceis e mais melindrosos da vida. Em particular da tua vida.
- Cher, não digo que não estejas preparado. Mas este aspecto particular da vida, da minha vida, está para lá do teu alcance. Não irias compreender uma pessoa como
ela.
- Porque fui muito protegido - anuiu com a cabeça. - Ela hoje foi ter comigo.
A cor saudável que o calor e o sexo haviam deixado no rosto de Lena desvaneceu-se de imediato.
- Que queres dizer com isso?
- A Lilibeth fez-me uma visita por volta do meio-dia. Ponderei se deveria contar-te ou não e resolvi não esconder nada nem mentir-te. Nem que fosse para te poupar.
Ela veio e convidou-se a si própria para tomar uma bebida fresca. Depois tentou seduzir-me.
- Desculpa. - Sentia os lábios rígidos e frios como gelo. A garganta ardia-lhe como fogo. - Não volta a acontecer. Eu própria me encarregarei disso.
- Cala-te. Pareço-te alguém que precise da tua protecção? E poupa-me à tua indignação até eu terminar - disse-lhe. - Quando ela estendeu a mão para o fecho das minhas
calças, disse-lhe para não se humilhar. A reacção dela foi atirar-se para cima da mesa de cozinha a chorar. - Sentou-se no braço do sofá, ao lado de Lena. Ocorreu-lhe
que o tom da conversa não se ajustava a uma postura indolente entre todas aquelas almofadas macias e coloridas. - Não conseguiu verter muitas lágrimas para acompanhar
toda aquela choradeira, mas dou-lhe valor pelo esforço. Contou a história de que uns tipos maus e perigosos andavam atrás dela. Que iriam magoá-la, e a ti e a Miss
Odette, se não lhes desse cinco mil dólares. A quem podia ela recorrer, que podia ela fazer?
A cor voltou novamente ao rosto de Lena e espalhou-se pelas faces.
- Deste-lhe dinheiro? Como foste tu acreditar...
- Primeiro chamaste-me um choramingão mimado, agora sou um otário. - Soltou um suspiro exagerado e beberricou o seu chá. - Estás realmente de ego inchado, querida.
Não lhe dei um tostão e fiz-lhe
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ver claramente que não me deixaria enganar. Isso irritou-a e ameaçou contactar a minha família. Parece que andou a fazer perguntas sobre mim e surgiu-lhe então a
ideia. Calculou que eles iam ficar chocados e envergonhados com a ideia de este rapaz loiro sucumbir aos teus encantos. E, para ser mais convincente, contar-lhes-ia
que também tinha fodido com ela.
- Era bem capaz disso. - Agora era mais do que o frio, sentia também a náusea a revolver-lhe o estômago. - Declan, ela é perfeitamente capaz de...
- Não te disse para esperares até eu terminar? - Não era uma voz que a flagelasse, que a ferisse. Era simplesmente implacável. - O preço duplicou para dez mil com
a ideia da chantagem. Creio que não ficou satisfeita com a minha resposta, pois arrastei-a para fora de casa. Foi isso, e agora já podes indignar-te se quiseres.
Não chores. - Falou com aspereza quando viu os olhos dela marejados de lágrimas. - Ela não merece uma única lágrima tua.
- Sinto-me envergonhada. Não compreendes?
- Compreendo. Compreendo, embora sejamos ambos suficientemente inteligentes para saber que isto não teve nada a ver contigo. E lamento, lamento ter contribuído para
isso.
- Não é por tua causa, nunca teve a ver contigo. - Enxugou uma lágrima antes que se derramasse. - É o que tenho tentado dizer-te desde o início.
- Também não tem a ver contigo, Lena. Nunca teve a ver contigo. Eu olhei para ela. Olhei-a com muita atenção e não vi nela nada que seja parte de ti. A família não
se escolhe, Lena. Apesar da família, o que fazemos com a vida é que nos confere a fibra e o coração.
- Nunca conseguirei livrar-me dela, não de modo definitivo. Por mais que tente.
- Pois não.
- Lamento. Não, raios, vou dizê-lo! - proferiu abruptamente quando o rosto dele se retesou. - Lamento que ela tenha ido a tua casa. Lamento que ela tenha referido
a tua família. Vou pedir-te que não menciones nada disto à minha avó.
- Por que razão o faria?
Lena anuiu com a cabeça, levantou-se e pôs-se a deambular pela sala. Adorava aquela casa porque já a tornara sua. E respeitava a sua própria vida pelas mesmas razões.
E agora explicar-lhe-ia, porque se preocupava, porque respeitava aquele homem que estava tão determinado a fazer parte da sua vida.
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- Ela abandonou-me ainda eu não tinha duas semanas de vida - começou. - Limitou-se a partir certa manhã. Enfiou-se no carro da mãe e partiu. Abandonou o carro em
Baton Rouge. Tinha três anos quando ela voltou.
- E o teu pai? Encolheu os ombros.
- Depende do estado de espírito dela. Certa vez contou-me que era um rapaz e que ambos se amavam, mas que os pais dele os separaram à força e o mandaram para longe.
Noutra ocasião, contou-me que tinha sido violada quando vinha da escola. Ou que tinha sido um homem velho e rico que um dia havia de regressar para nos levar a ambas
e nos instalar numa casa luxuosa. - Virou-se para ele. - Só quando eu tinha dezoito anos é que me contou uma versão que me pareceu verosímil. Pelo menos fazia sentido,
de tal maneira ela andava sempre pedrada, e sendo descuidada e mesquinha como é. Como é que raio havia ela de saber, disse-me. Houve imensos homens. Que raio lhe
importava quem a tinha engravidado? Tanto fazia que fosse este ou aquele. Andava a prostituir-se quando ficou grávida de mim. Ouvi coisas quando já tinha idade suficiente
para perceber o que significavam. Quando se meteu em sarilhos, voltou a correr para os meus avós. Teve medo de fazer um aborto... medo de morrer e ir para o inferno
ou coisa que o valha. Portanto, lá me teve, e abandonou-me. São as duas únicas coisas que lhe devo. - Respirou fundo e obrigou-se a sentar-se de novo. - De qualquer
modo, regressou quando eu tinha três anos, fez as suas habituais promessas de que tinha aprendido a lição, de que estava arrependida, de que tinha mudado. Ficou
uns dias e partiu novamente. É um padrão que se tem repetido. Às vezes aparecia espancada por um cabrão qualquer com quem se tinha metido mais recentemente. Outras
voltava doente, ou simplesmente pedrada. Mas a Lilibeth volta sempre.
Calou-se e ponderou lugubremente naquele facto simples e inevitável.
- E magoa-te sempre que volta - disse Declan num tom calmo. - Magoa-te a ti e magoa Miss Odette.
- Ela magoa toda a gente. É o único talento que tem. Estava pedrada quando apareceu na festa dos meus treze anos. Fizemos um fais do-do lá em casa, com todos os
amigos e a família, e ela pedrada, com um vadio qualquer. As coisas azedaram e três dos meus tios escorraçaram-nos dali. Preciso de fumar - disse, saindo da sala.
- Voltou pouco depois com um cigarro. - Eu andava com um rapaz, estava louca
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por ele. Tinha dezasseis anos quando ela regressou novamente. Encheu-o de álcool e drogas e deu umas cambalhotas com ele. Pouco mais velho era do que eu, por isso
não é justo censurá-lo por ter sido um idiota. Ela achou engraçado quando surpreendi os dois no bayou. Não parava de rir. Mesmo assim, quando arranjei este apartamento,
voltou de novo e eu aceitei-a. Antes eu do que a avó, pensei. E talvez desta vez... Talvez, quem sabe. Mas levava os engates para a minha cama e trouxe droga cá
para casa. Roubou-me e abandonou-me novamente. Desisti dela a partir daí. Desisti. Mas nunca conseguirei livrar-me dela, Declan. Não posso fazer nada para alterar
o facto de que é minha mãe.
- E nada que ela possa fazer irá alterar quem tu és. És a prova do teu próprio carácter, Lena, e um tributo às pessoas que te criaram. Ela odeia-te por aquilo que
és.
Olhou fixamente para ele.
- Ela odeia-me - balbuciou. - Nunca fui capaz de dizer isso a ninguém. Porque é que dizer uma coisa destas, uma coisa tão horrível, ajuda tanto?
- Não posso dizer que não te voltará a magoar, porque pode. Mas talvez agora não consiga magoar-te tanto, ou durante tanto tempo.
Lena bateu pensativamente com a ponta do cigarro no cinzeiro.
- Estou sempre a subestimar-te.
- Não faz mal. Assim posso continuar a surpreender-te. E ouve só isto: ela tem qualquer ligação à Mansão Manet.
- Que queres dizer com isso?
- Não sei exactamente, e não consigo explicar. Só sei que há uma ligação. E penso que talvez ela estivesse destinada a voltar agora, para me dizer aquelas coisas.
É mais um elo na corrente. E acho que os tempos dela aqui acabaram, de uma vez por todas. Liga à tua avó, Lena. Não deixes que essa mulher se intrometa entre vocês.
- Tenho andado a pensar nisso. Acho que vou telefonar-lhe. Declan... - Pegou no copo e pousou-o de novo. Aquele gesto inútil fê-lo erguer as sobrancelhas. - Eu ia
acabar tudo entre nós.
- Podias ter tentado.
- Estou a falar a sério. Estávamos melhor se voltássemos atrás e tentássemos ser amigos.
- Podemos ser amigos. Quero que os nossos filhos tenham pais que gostem um do outro.
Lena ergueu os braços.
- Tenho que voltar para o trabalho.
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- Está bem. Mas ouve, e por falar em casamento, houve uma ligeira mudança de planos no do Remy e da Effie. A coisa vai ser toda em minha casa.
Lena esfregou a testa e tentou reagir tão calmamente quanto ele.
- Na... com as divisões por concluir e ferramentas e madeiras e...
- Estás a ter uma atitude muito negativa e nada prestável, sobretudo porque ia pedir-te que me desses uma ajuda. Que tal te sais com um pincel?
Ela soltou um suspiro.
- Salvas sempre toda a gente?
- Somente aqueles que me importam.
Lilibeth fez nova visita à Mansão entre a saída de Declan e a chegada de Effie. Vinha pedrada e agressiva. Se o estupor do cabrão não podia dispensar uns quantos
dólares à mãe da mulher que andava a foder, então ela própria trataria disso.
Tinha inspeccionado o primeiro piso quando ele a conduzira para a cozinha, de modo que entrou pelas traseiras, dirigindo-se imediatamente à biblioteca e à grande
secretária de tampo de correr em que reparara.
A experiência dizia-lhe que as pessoas endinheiradas tinham sempre dinheiro à mão. Avançou rapidamente, escancarou as gavetas, vasculhou-as e soltou um grito quando
encontrou um belo maço de notas de cinquenta dólares. Enfiou-o no bolso.
Calculou que os livros que ele colocara nas estantes e aqueles que ainda permaneciam encaixotados provavelmente tinham algum valor. Mas eram pesados e seria difícil
vendê-los. Devia haver ali mais coisas de valor, algumas peças de joalharia no quarto do piso de cima.
Apressou-se a subir a escadaria principal. O facto de ele poder regressar a qualquer momento só aumentava a excitação do roubo.
Ouviu bater uma porta e caiu prontamente de joelhos. Apenas uma corrente de ar, disse para si própria enquanto recuperava o fôlego e a pulsação lhe latejava na garganta.
Uma casa enorme, antiga, cheia de correntes de ar. De facto, sentiu o ar frio passar por ela quando se tornou a levantar.
Tocou numa maçaneta e afastou a mão imediatamente. Estava tão fria que queimava.
Não tinha importância. O quarto dele era ao fundo do corredor. Não era tão estúpida como as pessoas a julgavam. Não observara ela a casa durante os últimos dias?
Não o vira ela vir à varanda do quarto da ponta?
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Riu-se alto e o som foi-lhe devolvido; apressou-se a entrar pela porta aberta. Puxou a gaveta de cima de uma cómoda e achou que tinha acertado em cheio ao descobrir
uma velha caixa gravada.
Botões de punho de ouro - pelo menos supunha que fossem de ouro verdadeiro. Ou até de prata, com uma requintada pedra preciosa azul. Botões de diamante, um relógio
de ouro. E, dentro da caixa, uma outra caixa, com um anel de mulher de... de rubi, talvez, diamante e rubi, modelados em corações interligados.
Colocou a caixa em cima da cómoda e vasculhou mais algumas gavetas até descobrir outro maço de notas.
Afinal, acabaste por pagar, não foi, cabrão? Acabaste por pagar o que é justo!
Atirou as notas para dentro da caixa das jóias e enfiou-a debaixo do braço.
Ficou ali especada, ofegante de excitação, com a cocaína a dançar-lhe no sangue, e pensou no prazer que lhe daria vandalizar aquele lugar. Dar-lhe-ia imenso prazer
- mais do que qualquer pagamento. Mas não seria inteligente. E ela era inteligente.
Precisava de tempo para transformar as jóias em dinheiro, tempo para transformar algum desse dinheiro em droga. Tempo para se pôr a milhas dali. O melhor era deixar
as coisas como estavam.
Sairia pelo outro lado, não fosse dar-se o caso de a sua metediça mamã estar a olhar naquela direcção.
Mas quando voltou a entrar no corredor deu por si a olhar fixamente para as escadas do terceiro piso.
Que haveria ali?, perguntou-se. Talvez algo valioso. Talvez algo que pudesse vir buscar mais tarde. Algo que a tornasse rica.
Agora já não arquejava, agora a respiração saía-lhe num zumbido. Sentia a pele fria como gelo. Mas não conseguiu resistir ao impulso de subir aquelas escadas. Estava
sozinha lá em casa, não estava? Estava completamente sozinha, e isso tornava a casa sua.
Era a sua casa.
Engolia continuamente para humedecer a garganta seca e de repente sobressaltou-se. Estremeceu.
Vozes? Como poderia ouvir vozes se não estava ali mais ninguém? Mas as vozes detiveram-na, forçaram-na a voltar para trás. Aqui há qualquer coisa errada, malévola.
Está na altura de te ires embora.
Mas parecia ter umas mãos a pressionar-lhe as costas, a empurrá-la, até que, com os dedos trémulos, estendeu a mão para a porta.
A sua intenção era abri-la lentamente, só para dar uma espreitadela. Mas assim que lhe tocou esta abriu-se de par em par.
241
Viu o homem e a mulher no chão, ouviu o bebé a chorar no berço. Viu os olhos da mulher: olhavam fixamente e eram cegos. E mortos.
E o homem, de cabelo louro sob aquela luz ténue, virou-se para a olhar.
Lilibeth tentou gritar, mas não tinha fôlego suficiente. Mal abriu a boca, algo entrou à força dentro dela. E, durante um instante de pavor, essa coisa tornou-se
nela própria. E depois atravessou-a. Uma coisa fria, perversa, furiosa.
Formou-se outro vulto no quarto. Um vulto feminino, firme, com um robe comprido.
Julian.
Lilibeth virou-se e fugiu, tomada de um terror indescritível.
Capítulo Dezassete
No espaço de vinte e quatro horas, Declan descobriu que tinha mais braços para o ajudarem com a casa do que aqueles de que precisava. Aparentemente, todas as pessoas
da Louisiana estavam convidadas para o casamento, e estavam dispostas a ajudar.
Tinha pintores, canalizadores, carpinteiros e moços de recados. No meio da confusão, ocorreu-lhe que se metade daquelas pessoas tivessem aparecido para reparar o
local original da boda, as obras teriam sido concluídas em cerca de vinte minutos, mas decidiu guardar esse pensamento para si próprio.
Achou que seria indelicado dizê-lo.
E, sinceramente, apreciava a mão-de-obra. Lembrava-se disso sempre que certas partes da casa lhe eram retiradas e confiadas a outra pessoa.
Andava ansioso por colocar ele próprio a rede de mosquiteiro no alpendre das traseiras, mas consolou-se com a ideia de que um bom furacão exigiria que a substituísse.
Tal como tencionava lixar e envernizar o soalho do salão de baile, mas animou-o a lembrança de todos os outros soalhos que o aguardavam no resto da casa. E não se
importava minimamente com o facto de passar para as mãos de outros a pintura dos exteriores.
Era uma tarefa que exigiria suor, esforço e empenho, e riscá-la da sua lista deixava-o livre para se dedicar à casa de banho das senhoras no piso de baixo, e para
pendurar o candelabro de vidro soprado que comprara para o átrio, e para concluir os planos da salinha de entrada. E para...
Bem, não faltava o que fazer, pensou.
E havia também o puro prazer de ver Effie entrar e sair apressadamente à hora do almoço ou depois do trabalho. Inclusive quando trouxe a mãe consigo. Miss Renault
era uma versão mais velha e mais
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meticulosa da filha, com um olhar de águia e uma voz que parecia a de um sargento de instrução.
Remy tinha razão, era realmente assustadora. Declan escondia-se dela sempre que podia. E nem tentava disfarçá-lo.
No segundo dia da enorme campanha, decidiu verificar os progressos no alpendre das traseiras. Estava coberto de poeira, resultante do corte dos mosaicos que acabara
de colocar, e sentia-se bastante animado.
O nível de ruído era impressionante. Vozes, rádios, ferramentas eléctricas. Por mais que apreciasse o convívio, daria mil dólares por cinco minutos sozinho na sua
casa.
- Jim Ready? Quero aquelas janelas a brilhar, estás a ouvir? Achas que as fotografias do casamento vão ficar bem se as janelas estiverem baças? Dobra-me essa espinha,
rapaz!
O som da voz de Miss Renault fê-lo dar uma rápida meia volta e mudar de direcção. Quase colidiu com Odette.
- Ei, desculpe. Magoei-a? Não a vi. Estava a fugir.
- Tem a casa cheia de gente.
- A quem o diz. Se no Dia D não estiver ao gosto do general Renault, seremos todos fuzilados. - Deu-lhe o braço enquanto falava e, pensando apenas na sua própria
sobrevivência, apressou-a a entrar na biblioteca. Fechou as portas. - Posso ir viver para sua casa?
Ela sorriu: um ténue curvar dos lábios que não chegava a afectar-lhe os olhos.
- É tão bom rapaz, Declan. Fazer tudo isto pelo seu amigo...
- Neste momento não faço mais do que afastar-me para não atrapalhar.
- Preferia que todas estas pessoas regressassem para donde vieram e o deixassem em paz para poder brincar com a sua casa.
- Bem, sim. - Encolheu os ombros e passou a mão empoeirada pelo cabelo coberto de pó. - Ainda haverá muito que fazer quando todos partirem. Não vamos tocar no terceiro
piso, nem na ala da criadagem, e no segundo piso vamos mexer apenas num ou noutro quarto. Que se passa, Miss Odette?
- Antes tenho que ganhar coragem. - Pousou o saco de compras que trazia e foi dar uma vista de olhos a alguns dos livros dele. Muitos ainda não tinham saído das
caixas, mas isso não a impedia de imaginar o resultado final: torres de palavras, algumas velhas e gastas, outras frescas e novas. Pequenos tesouros, cores fortes.
- Tem visão - acabou por dizer. - Imagina o que quer e depois fá-lo acontecer. É um belo talento, cher.
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- Algumas pessoas chamam-lhe obstinação.
- Você é tudo menos obstinado. Tem muitos canais nessa sua cabeça. Trabalhar num de cada vez até estar pronto, para mim só demonstra carácter. Gosto muito de si,
Declan.
- Também gosto muito de si. Gostava que se sentasse, Miss Odette. Parece fatigada. - E preocupada. - E se eu for buscar uma bebida para ambos?
- Não, não se incomode, e não se arrisque a ser recrutado à força pela Sarah Jane Renault. Essa sim, é uma pessoa obstinada, e nem a censuro por isso.
- Disse-me para cortar o cabelo no fim-de-semana para não parecer tão desleixado ou recém-tosquiado no casamento. - Matutou naquilo e passou hesitantemente a mão
pelo cabelo. - E vai pôr sabonetes, toalhas e outras coisas requintadas em todas as casas de banho na véspera do casamento. Estou proibido de os usar sob pena de
morte. E devo colocar mais plantas dentro de casa. Uma casa não consegue respirar sem plantas verdes.
- Anda nervosa, querido. A Effie é a menina dela, a filha mais nova. - Cerrou os lábios. - Declan, tenho vergonha do que tenho para lhe contar, e não lhe levo a
mal se depois me disser para não voltar a pôr aqui os pés.
Aquelas palavras alarmaram-no, quase tanto quanto a dor que via nos olhos dela.
- Nada do que disser tornará a sua presença indesejada na minha casa, Miss Odette. Quem lhe fez mal?
- Oh, mon Dieu, não me perdoarei se isto prejudicar aquilo que existe entre si e a minha Lena. A minha filha roubou-o - disse abruptamente. - Veio cá e levou o que
era seu. - Foi com pesar que enfiou a mão na bolsa e retirou uma caixa gravada. - Isto estava no quarto dela. Soube que era sua mesmo antes de a abrir e ver os botões
de punho com as suas iniciais. Não sei se está tudo aqui, mas só havia isto. Se faltar alguma coisa...
- Vamos verificar. Quero que se sente. A sério.
Ela anuiu com a cabeça e afundou-se numa cadeira.
Declan refreou a ira enquanto pousava a caixa sobre a mesa para a abrir. Viu primeiro a caixa do anel e abriu-a. A fúria atenuou-se quando viu as pedras preciosas
cintilarem diante dos seus olhos.
- Muito bem. - Suspirou. - O mais importante ainda aqui está. - E, tanto quanto via, também tudo o resto, excepto uns milhares de dólares em notas de vinte que mantinha
presas com o gancho que pertencera ao seu bisavô. - Não falta nada.
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- Não está a dizer a verdade - disse Odette num tom apagado.
- Falta algum dinheiro, é tudo.
- Preciso de saber quanto é para lho poder devolver.
- Acha que eu aceitaria dinheiro de si? - A ira apoderara-se novamente dele, e Odette estremeceu. - Olhe para mim. Acha que eu aceitaria dinheiro de si, fosse pelo
que fosse?
Os lábios dela quase tremiam, e Odette pressionou-os firmemente.
- Sou responsável por ela.
- Qual responsabilidade?! Sinto-me insultado se voltar a referir que quer devolver o dinheiro.
Apesar de ter prometido que não verteria uma única lágrima diante dele, sentiu uma escorrer-lhe pelo rosto.
- Sei que ela é responsabilidade minha. E sei que nunca será aquilo que eu esperava, aquilo por que me esforcei, aquilo que desejei desde o momento em que soube
que ela crescia dentro de mim. Mas deu-me a Lena. - Pegou num lenço e enxugou as faces. Não verteria mais lágrimas. - Já contava que ela me roubasse antes de desaparecer
novamente, mas nunca pensei que fosse roubá-lo a si. Nunca imaginei, e lamento-o.
- Olhe-me nos olhos e veja se eu a culpo a si por isso.
- Não, não me culpa. Oh, como gostava que a minha Lena fosse sua. Estou aqui sentada com a consciência de que a minha filha o roubou e só consigo pensar que gostava
que a minha menina fosse para si.
- Isso é bom, porque eu também a quero para mim. - Pegou na caixa do anel e acercou-se de Odette. - Comprei isto para ela. Talvez pudesse dar-lhe uma palavrinha
por mim para que ela aceite quando eu lho oferecer.
Odette olhou para o anel e suspirou.
- Vai ficar-lhe bem. De certeza que lhe fica bem. Ela tem um bom coração, Declan, mas com cicatrizes. Ela é forte. Às vezes preocupo-me por ser tão forte e poder
esquecer-se de que também deve entregar-se. Tenho que lhe contar do roubo.
- Sim.
- E vai ter que pensar numa maneira de evitar que ela se afaste quando souber. Certamente é o que fará.
- Não se preocupe. Onde está a Lilibeth?
- Desapareceu. Encontrei isto no quarto dela esta manhã. Quase não saiu do quarto desde ontem. Quando lá entrei, descobri isto e guardei-o onde ela não pudesse encontrá-lo.
Depois discuti com ela.
247
Fez as malas e partiu. Mas voltará - disse com o mesmo tom desalentado que ele ouvira a Lena. - Daqui a um ano ou dois. E passaremos por tudo isto uma vez mais.
- Lidamos com isso quando acontecer. - Inclinou-se e beijou-a na face. - Adoro-a. - Tomou-lhe a mão quando os olhos dela ficaram novamente marejados. - Quer Lena
esteja preparada ou não, agora somos uma família. E a família mantém-se unida.
- Quando conhecer a sua mamã - conseguiu ela dizer -, vou dar-lhe um enorme abraço com muita força.
- Será uma boa maneira de travarem conhecimento. E se formos dar uma olhada ao que está a acontecer por aqui? Assim protege-me do general Renault.
Não esperava que fosse demorar e, por conseguinte, não ficou desapontado. Lena contornou a esquina da casa na altura em que a maior parte da mão-de-obra voluntária
dava por findo o dia de trabalho. Declan encontrava-se no jardim das traseiras, por imposição de Effie e da mãe.
Como estava a braços com uma série de sim-sim, boa-ideia e não-há-problema, que se haviam tornado na sua ladainha em resposta à agenda de trabalhos do noivado imposta
pelas Renault, achou que confrontar-se com Lena seria um alívio.
- As balaustradas e os corrimões serão envoltos em tule e renda.
- Sim-sim.
- E haverá cestos com flores, cestos brancos, na varanda.
- Boa ideia.
- A florista vai ter que começar bem cedo no dia do casamento, por isso não atrapalhe e certifique-se de que têm acesso a todas as áreas da casa que assinalei aqui
no meu esquema.
- Não há problema. Lena. - Estendeu-lhe a mão: um náufrago a agarrar-se a uma corda. - Estamos a falar dos arranjos florais.
- As flores são a paisagem de um casamento - declarou Miss Renault, fazendo mais anotações no bloco de notas que levava para todo o lado. - Como vais, Lena?
- Estou óptima, Miss Sarah Jane. Que excitante, não é? Fazer a contagem decrescente até ao grande dia. Effie, deves andar quase louca a tratar de todos os pormenores.
- Quase louca, não. Vou enlouquecer de vez!
- Está tudo tão bonito. - Mantinha um sorriso brilhante e a voz animada apesar do calor sombrio que se tinha apoderado dela. - Aqueles rododendros vão ficar magníficos
no dia do casamento.
248
- Os jardins vão ser uma visão esplêndida - concordou Miss Renault, percorrendo novamente a sua lista. - Só é pena não ter havido tempo para montar um caramanchão
com ervilhas-de-cheiro. - Olhou para Declan por cima dos óculos de leitura com um olhar levemente acusador.
- Talvez os Frank consigam desencantar alguma coisa. Ah, desculpam-me por um momento? Preciso de mostrar uma coisa à Lena. - Escapou e levou-a para junto das escadas
da varanda do segundo piso, pois ainda havia alguns elementos da milícia do general Renault no andar de baixo. - São como formigas - balbuciou. - Aparecem às centenas
quando menos esperamos.
- Estás a falar de quê?
- Das pessoas. Estão em todo o lado. Cuidado com esse balde. Creio que estaremos à vontade no salão de baile.
- Andas a sentir-te pressionado, cher?
- Tenho pensado numas ricas férias em Maui até isto acabar. Mas tenho que te dizer que admiro as mulheres.
- Ai sim? - Olhou para os escadotes, as lonas, os detritos das obras e para as duas mulheres que avançavam cuidadosamente com visões de tule e renda na cabeça. -
E porquê?
- Consegues estar furiosa e mesmo assim manter uma conversa bem-educada sobre rododendros. - Espreitou pelas portas do salão de baile e suspirou. - O caminho está
livre. De qualquer modo, a maior parte dos homens, quando atinge um ponto de saturação, explode. Bem... - Entrou. - Que achas?
As paredes eram de um rosa-pálido e o soalho era dourado e cintilava.
- É enorme.
- É necessário para a ocasião. O general diz que vão vir duzentas e cinquenta pessoas. Além do mais, podem usar-se as portas de ligação para transformar o espaço
em duas salinhas. - Avançou e retirou uma das enormes portas do respectivo encaixe. - Não é espantoso? - Passou reverentemente os dedos pela madeira talhada. - A
mestria com que as fizeram. Há mais de cem anos. Detesto ter que as cobrir. Olha só como o padrão combina com os medalhões do tecto. O Tibald fez um excelente trabalho
de restauro.
Lena atingira o ponto de saturação desde que conversara com a avó, mas começava a sentir-se mais aliviada agora que testemunhava o prazer e orgulho inquebrantáveis
dele.
- É mesmo amor, não é? Entre ti e esta casa. A maior parte dos homens não olha para uma mulher como tu olhas para essas portas.
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- Olho assim para ti. Lena teve de se virar.
- Fazes com que seja difícil continuar zangada. Diz-me porque é que não estás zangado, Declan? Porque é que não estás zangado por ela te ter roubado?
- Estou zangado. E se tiver ocasião de me encontrar novamente com ela, far-lho-ei saber.
- Devias ir à polícia.
- Pensei nisso. Talvez recuperasse algum dinheiro, mas ia envergonhar Miss Odette.
- Ela já está envergonhada.
- Eu sei. Para quê agravar ainda mais a situação? Recuperei as coisas que interessavam.
A amargura apoderou-se novamente dela.
- Entrou na tua casa, vasculhou as tuas coisas. Levou-te coisas. Declan franziu a testa perante o tom de voz dela.
- Vais começar a fervilhar novamente?
- Raios! Raios, Declan, ela invadiu a tua casa! Não é o mesmo que roubar-me a mim ou à minha avó. Quanto levou ela?
- Uns dois mil.
Lena retesou os maxilares.
- Amanhã passo-te um cheque.
- Já sabes que o vou rasgar. Esquece isso, Lena. Creio que foi uma lição barata: quando se vem viver para o campo, numa casa cheia de peças valiosas e dinheiro,
não se pode sair de casa e deixar as portas abertas.
- Ela teria arrombado uma janela.
- Sim. É por isso que vou arranjar um par de cães. Sempre quis ter cães. Estou a pensar em ir ao canil depois do casamento. Queres vir comigo?
Lena limitou-se a abanar a cabeça.
- Uma ladra drogada tira-te cerca de dois mil dólares, e aposto que até era mais, e a tua reacção é comprar cães.
- Achei que podia ser divertido. Que achas? Também vão ser os teus cães.
- Pára com isso, Declan.
- Hã-hã. - Avançou para ela com uma careta de satisfação. - Vamos arranjar um par de cachorrinhos arraçados, Lena. Será um bom treino antes de termos filhos.
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- Se queres cachorros, arranja-os tu. - Mas conseguira arrancar-lhe um sorriso. - E depois andas atrás deles quando te urinarem nos tapetes e te roerem os sapatos.
- Pode ser que o Rufus lhes ensine bons modos. Puseste os brincos que te dei - disse, enlaçando-a e fazendo-a deslizar num movimento de dança.
- Agora são meus.
- Pensas em mim quando os pões?
- Talvez. Depois verifico que me ficam mesmo bem e esqueço-me completamente de ti.
- Bom, então vou ter de encontrar outras maneiras de não te esqueceres de mim.
- Um colar. - Passou os dedos pela nuca dele e depois pelo cabelo. - Um par de encantadoras pulseiras cintilantes.
- Estava a pensar num anel para os dedos do pé.
Ela riu-se e aproximou-se mais para poder encostar o rosto ao dele. Estavam a valsar e Lena sentia uma melodia a soar-lhe na cabeça. Uma melodia que o ouvira trautear
ou assobiar vezes sem conta. Sentia nele o dia de trabalho - o suor, o pó - e, debaixo disso, a ténue fragrância do sabonete do banho matinal. E o rosto por barbear,
áspero contra o seu.
Se a vida fosse um conto de fadas, pensou, poderiam ficar assim para sempre, a valsar sobre aquele soalho acetinado enquanto o Sol descia no horizonte, as flores
se amotinavam e as luzes de centenas de minúsculos prismas de cristal caíam em cascata por cima deles.
- Sinto tantas coisas por ti. Mais do que alguma vez senti por alguém, ou que alguma vez quis sentir. Não sei lidar com estes sentimentos.
- Dá-mos - suplicou ele, afagando-lhe o cabelo com os lábios. Lena não se apercebera de que tinha falado em voz alta. Não fora essa a sua intenção. E ter-se-ia afastado,
mas ele puxou-a mais para si. Tão juntos e tão próximos que quase não conseguia respirar.
Sentiu a cabeça a girar e a música elevar-se no ar. O intenso aroma dos lírios pairava no ar e quase a sufocava.
- Consegues ouvir? - As mãos de Declan tremiam enquanto lhe agarrava nos braços. - Violinos.
- Não... - A voz dele soou-lhe distante. E, quando tentou focá-lo, pareceu-lhe ver outro rosto a flutuar sobre o dele. - Estou a sentir vertigens.
- Vamos sentar-nos. - Continuou a agarrar-lhe nos braços e sentaram-se no chão. - Tu também ouviste. A música. Tu também sentiste.
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- Espera um minuto. - Teve necessidade de recuperar a compostura. Só estavam ali os dois. Não havia música, nem luz de cristal, nem vasos repletos de fragrantes
lírios brancos. E, no entanto, tudo isso ela ouvira, vira e cheirara. - Não sabia que as alucinações eram contagiosas.
- Não é uma alucinação. É a memória. A memória, por alguma razão que desconheço. Eles dançaram aqui, o Lucian e a Abigail. Tal como nós. Amaram-se um ao outro, tal
como nós. - Quando ela abanou a cabeça, Declan praguejou. - Muito bem, raios, ele amou-a, tal como eu te amo. E ainda há alguma coisa viva entre eles. Talvez algo
que precise de ser terminado, ou simplesmente reconhecido. E aqui estamos nós, Lena.
- Sim, aqui estamos nós. E não estou a viver a vida de outra pessoa.
- Não é isso.
- Eu senti que era. E viver a vida de outra pessoa pode significar morrer como ela. Ele afogou-se naquele tanque e ela...
- Ela morreu nesta casa.
Lena inspirou profundamente para se acalmar.
- Depende da versão da história em que se acredite.
- Eu sei que foi assim. Lá em cima, no quarto das crianças. Alguma coisa lhe aconteceu lá em cima. E ele nunca soube. Sofreu até à morte por não saber. Preciso de
descobri-lo. Por ele e por mim. Preciso que me ajudes.
- Que queres que faça?
- Anda comigo ao quarto das crianças. Agora estamos mais próximos um do outro. Talvez desta vez te lembres.
- Declan. - Tomou-lhe o rosto nas mãos. - Não há nada de que eu me possa lembrar.
- Penduraste garrafas nas minhas árvores e agora negas qualquer possibilidade de reencarnação, uma ideia que tu própria sugeriste logo no início?
- Não foi isso que quis dizer. Não há nada de que eu me possa lembrar porque não sou eu a Abigail. Tu é que és.
O efeito foi o mesmo que enfiar uma soqueira e desferir-lhe um murro no estômago. O choque das palavras dela provocou-lhe vertigens.
- O quê?! Isso não é possível.
- Porque não?
- Porque... - Corado, estranhamente envergonhado, levantou-se. - Estás a dizer que fui uma rapariga?
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- Não sei porque é que isso é um choque tão grande para ti. Muitas pessoas dão-se bastante bem sendo mulheres.
- Eu não. Não sou rapariga. Nunca fui.
- É o que faz mais sentido, se é que isto faz algum sentido.
- Não faz. Nenhum. Nem pensar.
- És tu que continuas a ouvir a bebé chorar. - Nunca o vira tão corado. - São as mães que ouvem, antes de qualquer outra pessoa. E sentes-te atraído por aquele quarto
lá em cima, tal como uma mãe é atraída pelo seu bebé. Embora o quarto te assuste, também te fascina. Disseste que deambulaste pela ala da criadagem, que te orientavas
facilmente. Ela saberia orientar-se assim, mas o Lucian?
- Era a casa dele. - Mas lembrava-se de se imaginar a olhar pela janela e ver dois homens aproximar-se da casa montados a cavalo. Porque é que imaginaria ver Lucian
regressando a cavalo se ele fora Lucian?
- E há mais - continuou Lena. - Uma coisa leva à outra. Naquele dia em que vim cá e te vi caminhar em direcção ao tanque em estado de transe. Caminhavas de um modo
estranho. Não consegui descobrir porque é que a tua maneira de andar me surpreendia. Mas agora sei. Caminhavas como uma mulher grávida. Um pouco bamboleante - disse
enquanto ele se virava e a olhava boquiaberto e com uma expressão de horror. - Comprimias a mão contra o fundo das costas. Davas passos pequenos, cautelosos.
- Não só estás a dizer que fui uma rapariga, mas também que estava grávida?
- Oh, por amor de Deus, cher. Há quem acredite que podemos voltar na pele de um cão, porque não na de uma mulher grávida?
- Porque a dada altura as mulheres grávidas entram em trabalho de parto, e depois têm que empurrar um bebé de alguns quilos por um espaço muito limitado.
O horror no rosto dele era cómico, e foi o suficiente para ela não insistir mais na teoria.
- Não creio que vás ter de repetir esse acto nesta vida. Já pensaste que, se encarares este puzzle sob uma nova perspectiva, talvez encontres as respostas que procuras?
Declan sentiu vontade de esfregar as virilhas só para ter a certeza de que tudo estava no lugar. E talvez soltar um arroto à macho.
- Gosto mais da outra teoria.
- Mantém a mente aberta, cher. Tenho de ir trabalhar.
- Espera aí, espera aí. - Precipitou-se atrás dela. - Largas essa bomba em cima de mim e vais-te embora?
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- Tenho que trabalhar para ganhar a vida.
- Volta depois de fechares. Fica cá.
- Tenho de passar uma noite ou duas em casa da minha avó, até ela se sentir mais calma.
- Está bem. Está bem. - Soltou um profundo suspiro quando chegaram ao piso principal. - Deixa-me experimentar uma coisa. - Fê-la rodopiar e esmagou a boca contra
a dela. Depois beijou-a com enlevo. - Não sentiste nenhuma vibração lésbica, pois não? - perguntou depois de a beijar.
- Hmm. - Tocou com a língua no lábio superior e fingiu reflectir. - Não. Posso atestar que foste muito homem. Agora desanda. Tens muito que fazer nos próximos dias
para te manter a mente ocupada. Esta coisa toda já esperou cem anos e pode esperar até ao casamento do Remy.
- Volta e fica cá quando Miss Odette se sentir melhor.
- Está bem.
- Amo-te, Lena.
- Receio bem que sim - murmurou. E afastou-se.
Lena fez o possível por sair cedo, mas já passava da uma da manhã quando estacionou junto à casa do bayou. A luz do alpendre estava ligada e atraía as traças para
a morte. Sentou-se por um momento, a ouvir a música das rãs e das árvores nocturnas e o provocante murmúrio da brisa.
Era o lar da sua infância. Talvez fosse o lar do seu coração. Embora fizesse a sua vida na cidade, era para ali que voltava quando se sentia muito feliz, ou muito
perturbada. Era para ali que vinha para pensar profundamente ou para se entregar aos seus sonhos mais secretos.
Certa vez permitira-se sonhar: um desses sonhos femininos de romance e de um belo homem que a amasse, de um lar e crianças, de manhãs de domingo.
Quando deixara de sonhar com isso?
Naquela abrasadora tarde de Verão, admitiu. Naquele dia quente e nublado em que vira o rapaz que amava do fundo do coração e da sua inocente juventude a fornicar
com a mãe em cima de um cobertor esfarrapado. No pântano, como dois animais.
No pântano que era dela, com o rapaz que era dela. Com a mãe dela.
Aquilo despedaçara-lhe a vida, concluía agora. Em tempos ainda houvera esperança, sonhos inocentes e fé. Agora, havia apenas ambição,
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determinação e o voto implacável de nunca, nunca mais voltar a acreditar.
Sabia que agora o rapaz já não importava. Já quase não conseguia lembrar-se da cara dele. Sentia bem no seu âmago que a mãe também já não importava. Mas o momento
importava.
Se não fosse isso, quem sabe que direcção a sua vida teria tomado? Oh, ela e aquele rapaz teriam seguido caminhos separados pouco tempo depois. Mas isso podia ter
acontecido com alguma ternura, podia ter-lhe deixado uma memória carinhosa do primeiro amor.
Mas aquela visão crua de sexo e traição tinha-a marcado. Compreendera nessa altura o que talvez tivesse levado anos a aprender se as circunstâncias fossem outras:
que era mais inteligente e seguro ser a própria mulher a tomar as rédeas da sua vida. Os homens vinham e partiam e era agradável passar bons momentos com eles.
Mas amá-los era um suicídio.
Um suicídio? Abanou a cabeça enquanto se apeava do carro. Aquilo era absurdamente dramático, não era? Um coração despedaçado não era o mesmo que morrer.
Ele morreu por causa disso.
Ouviu a voz dizer-lhe aquilo na cabeça. Não fora o ferimento do punhal, não fora o tanque que trouxera a morte a Lucian Manet.
Fora o coração despedaçado.
Entrou e reparou imediatamente na luz que provinha do quarto de Odette. Quando se aproximou, ouviu Rufus bater com a cauda no chão. Avançou para a porta e inclinou
a cabeça. Odette estava sentada na cama, com um livro aberto sobre o regaço e o fiel cão enroscado no chão.
- Que fazes acordada tão tarde?
- À espera da minha menina. Pensei que só voltasses daqui a uma hora ou mais.
- Havia pouco movimento.
Odette bateu com a mão na cama, num convite para ela se sentar ao seu lado.
- Saíste mais cedo porque estavas preocupada comigo. Não precisavas.
- Costumavas dizer-me que as preocupações ficavam para ti. - Deitou-se sobre a cama, com a cabeça pousada sobre o braço da avó. - Agora, também eu as tenho. Desculpa
se ela te magoou.
- Oh, minha filha, a função dela é magoar as pessoas. E só Deus sabe como ela é perita nisso. - Afagou-lhe o cabelo. - Mas tenho-te a ti. Tenho a minha Lena.
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- Estava a pensar no que custou a ti e ao avô criar uma bebé depois de já terem criado a vossa própria filha.
- Foste um enorme prazer para nós.
- Fez-me pensar no facto de os Manet terem trazido a tua avó para cá quando ainda era uma bebé. Ainda te lembras bem dela, não lembras?
- Lembro-me muito bem. Tens traços dela. Sabes disso, já viste fotografias antigas...
- Ela alguma vez disse que a Mansão devia ser dela?
- Nunca a ouvi dizer nada sobre isso. Era uma mulher feliz, Lena. Talvez fosse mais feliz aqui do que teria sido na Mansão, se as coisas tivessem sido diferentes.
Tinha jeito para cozer pão. Foi dela que o herdei. Também sabia contar bem histórias. Às vezes, quando eu ficava com ela, inventava histórias como se fossem verdadeiras.
Acho que podia ter sido escritora, se tivesse querido.
- Mas deve ter pensado nos pais dela, e nos Manet. Por feliz que fosse aqui, deve ter pensado neles.
- Creio que sim. Costumava levar flores à campa do pai. Levava-as todos os anos no aniversário dela.
- A sério? Nunca me tinhas contado.
- Dizia que lhe devia a vida: a dela, a dos filhos e a dos netos. Até colocava flores nas campas de Josephine e Henri Manet. Mas nunca lá ficava para dizer uma oração.
E fazia outra coisa no dia do aniversário, todos os anos até morrer: levava flores e atirava-as ao rio. E aí, sim, dizia uma oração.
- Pela mãe, achas?
- Nunca o disse, mas acho que sim.
- E achas que é aí que a Abigail está? No rio?
- É o que alguns dizem. Lena levantou a cabeça.
- Não estou a perguntar às outras pessoas. Estou a perguntar-te a ti.
- Sei que algumas vezes, quando caminho ao longo da margem, sinto uma tristeza infinita. E às vezes penso que almas antigas procuram uma nova vida. E continuam a
procurar até a encontrarem. Que procuras tu, Lena?
Lena apoiou novamente a cabeça e fechou os olhos.
- Eu pensava que já tinha encontrado. Agora já não tenho tanta certeza. Ele ama-me, avó.
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- Eu sei.
- Se eu também o amar, tudo mudará. Odette sorriu e inclinou-se para apagar a luz.
- Seguramente que mudará - murmurou, continuando a afagar-lhe o cabelo. - Seguramente que mudará.
Capítulo Dezoito
Como anfitrião da festa de despedida de solteiro de Remy, Declan sentiu-se socialmente obrigado a ficar mesmo até ao fim. E o fim era um mergulho nas vielas sujas
do Bairro Francês, onde o álcool abria buracos no que restava das paredes do estômago e as strippers já tinham perdido há muito o fulgor da juventude.
Ninguém parecia importar-se.
Num espírito de boa camaradagem, Declan enfiou um último dólar nas ligas puídas de uma coxa flácida e branca e depois ajudou Remy, de olhos vidrados, a levantar-se.
- Vamos embora, meu amigo.
- Hã? O quê? Já é de manhã?
- Quase.
Remy olhou em volta enquanto saíam aos tropeções e de braço dado, tanto por necessidade quanto por camaradagem. A cabeça de Remy baloiçava como a de uma marioneta
presa a um fio.
- Onde está toda a gente?
- Desmaiados, na prisão ou mortos num beco.
- Oh! Cagões. - Exibiu um sorriso de borracha. - Tu e eu, Dec, só nós é que ainda temos tomates.
- Mas olha que por este andar não há-de ser por muito tempo. - Tropeçou e teve de se agarrar com ambas as mãos a Remy para não cair desamparado. - Demasiada gravidade.
Aqui fora há absolutamente demasiada gravidade.
- Vamos ver se descobrimos mais uma mulher nua.
- Creio que já as vimos a todas. São horas de ir para casa, velho amigo e camarada.
- Vou casar daqui a três dias. - Estendeu quatro dedos. - Acabaram-se as farras aqui para o Remy. - Olhou em volta. As ruas estavam
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praticamente desertas e gordurosas com a leve morrinha. - Vamos ter que pagar a fiança a alguém?
- Que se lixem.
- Isso mesmo, raios. Onde está a minha miúda? Effie! - Gritou o nome dela, e o eco devolveu-lho de pronto, fazendo Declan engasgar-se no seu próprio riso ébrio.
- Stella!(1) - Gritou por sua vez. E achou-se tão engraçado que se deixou cair pesadamente numa poça de água. - Que se foda, Remy. Vamos dormir aqui.
- Tenho que encontrar a minha miúda e fazer amor devagar, devagarinho, com a minha Effie.
- Agora não conseguias levantar a coisa nem com um macaco hidráulico.
- Queres apostar? - Deitou as mãos ao fecho, e Declan teve ainda consciência suficiente para se levantar cambaleante e o impedir.
- Deixa a coisa em paz antes que te magoes. Ainda somos presos por comportamento indecente.
- Não há azar, somos advogados.
- Fala por ti. Táxis. Temos que encontrar táxis.
- Um táxi até casa da Effie. Onde está a minha noivinha toda coradinha?
- Na cama em casa, tal como todas as mulheres decentes às... - Levantou o pulso de Remy e tentou ver as horas. - Às horas que forem da manhã. A Lena está na cama.
Ela acha que eu sou uma mulher.
- Então não andas a fodê-la como deve ser!
- Não, seu palerma. E lembra-me para te bater mais tarde por isso. Ela pensa que eu sou a Abigail.
- Não tens andado a experimentar a roupa interior dela nem nada de coisas esquisitas, pois não, meu filho?
- Do que gosto mais, é das calcinhas de renda preta com rosas. Fazem-me as pernas elegantes.
- De certezinha que estás a brincar. Espera. - Deteve-se e inclinou-se sobre o passeio, com as mãos apoiadas sobre os joelhos. Depois endireitou-se lentamente. -
Falso alarme. Não vou vomitar.
- Boas notícias. Táxi! - Acenou desesperadamente quando viu um a passar. - Bendito seja Deus. Entra tu primeiro - disse, limitando-se a empurrar Remy para dentro
e enfiando-se ele próprio depois.
(1) Evocação de uma conhecida cena do Filme de Elia Kazan Um Eléctrico Chamado Desejo (1951), com Marlon Brando e Vivien Leigh nos papéis principais. (N. dos T.
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- Onde é que moro? - perguntou Remy. - Agora esqueci-me. Posso ligar à Effie e perguntar-lhe?
Felizmente, Declan lembrava-se. Enquanto Remy dormitava sobre o ombro dele, Declan esforçou-se por se manter consciente até cumprir o último dever de fazer o amigo
chegar vivo a casa.
Quando o táxi parou, deu uma cotovelada a Remy, fazendo-o despertar de repente como uma seta disparada por um arco.
- O quê? Onde? Caralho, cheguei a casa. E esta, hã?
- Consegues desenrascar-te sozinho? - perguntou-lhe Declan.
- Consigo aguentar o álcool que bebi. Os dezoito litros inteirinhos. - Mexeu-se, agarrou no rosto de Declan e beijou-o com força na boca. - Adoro-te, cher. Mas se
fosses a Abigail, teria enfiado a língua.
- Ugh! - foi tudo o que Declan conseguiu dizer quando Remy saiu do táxi.
- És o raio do melhor amigo que já tive, e foi o raio da melhor festa de despedida de solteiro que já houve. Vou para casa, vomitar e desmaiar.
- Faz isso. Espere até ele entrar - disse Declan ao taxista. Viu Remy cambalear, dividir-se em dois e tropeçarem ambos para dentro do edifício.
- Pronto, o resto é com ele. Sabe onde fica a velha Mansão Manet?
O taxista olhou-o pelo retrovisor.
- Creio que sim.
- Vivo aí. Leve-me a casa, está bem?
- É muito longe. - O taxista virou-se e olhou-o de alto a baixo. - Tem dinheiro suficiente para pagar?
- Tenho. Tenho montes de dinheiro. - Enfiou desajeitadamente as mãos nos bolsos e tirou notas que deixou cair no táxi. - Montes de dinheiro.
- Você é que sabe. - Abanou a cabeça e arrancou. - Deve ter sido uma grande festa, amigo.
- A quem o diz - balbuciou Declan, caindo de rosto contra o assento.
Quando voltou a si, a primeira coisa que lhe ocorreu, literalmente, foi que tinha uma banda de Dixieland a explodir-lhe na cabeça. Continuava de rosto voltado para
baixo, mas a praia de Waikiki tinha-lhe desaguado na boca, e a língua dir-se-ia embrulhada num casaco de peles.
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Um sádico qualquer entretinha-se a espetar-lhe farpas no ombro.
- Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores.
- Isso agora não te serve de nada. Vira-te devagar, cher. Não abras já os olhos.
- Sinto-me a morrer. Chama um padre.
- Pronto, está aqui a Lena. - Levantou-o delicadamente e riu-se enquanto lhe amparava a cabeça. - Bebe isto.
Declan engoliu, engasgou-se e sentiu que qualquer coisa abjecta lhe lavava a língua e a areia que sentia na garganta. A sua reacção foi tentar afastar o copo dos
lábios e abrir os olhos.
Iria para a campa a jurar que o som que emitiu não se parecia em nada com um grito feminino.
Lena deu um estalido com a língua.
- Já te disse para não abrires os olhos.
- Que olhos? Que olhos? Foram reduzidos a cinzas.
- Bebe o resto.
- Vai-te embora, vai para bem longe e leva o teu veneno contigo.
- Isso não é maneira de falar a quem vem cuidar de ti no teu leito de morte.
Declan deitou-se de costas e cobriu o rosto com uma almofada.
- Como soubeste que eu estava a morrer?
- A Effie telefonou-me.
- Quando é o funeral do Remy?
- Felizmente vai casar com uma mulher muito tolerante, compreensiva e bem-humorada. A quantos bares de maminhas foram ontem à noite?
- A todos. A todos os que há cá na terra.
- Deve ser por isso que tens colado na cara um daqueles enfeites que elas usam no mamilo.
- Não tenho nada colado na cara. - Mas quando tacteou o rosto, sob a almofada, sentiu a borla. - Oh, meu Deus! Tem misericórdia de mim e mata-me de uma vez por todas.
- Pronto, querido. - Pressionou a almofada até ele erguer as mãos e destapar o rosto para respirar.
Tinha o rosto corado e os olhos raiados de sangue mostravam-se um pouco selvagens.
- Não teve piada nenhuma.
- Devias estar na minha pele. - Riu-se. Declan continuava vestido, com a camisa engelhada e manchada de álcool semienfiada nas
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calças. Uma outra borla rosa-prateada espreitava do bolso da camisa. Semicerrou os olhos com esforço.
- Vais sentir-te melhor daqui a pouco. Não completamente, mas vais sentir-te melhor. Lava-te e come qualquer coisa por cima dessa poção que te dei e daqui a duas
ou três horas voltas a sentir os braços e as pernas.
Descobriu que alguém lhe tirara aquela sensação de ter pêlos na língua. Mas não tinha a certeza se era uma melhoria.
- O que era aquela coisa que me deste?
- Não queiras saber, mas misturei-lhe quatro aspirinas, por isso não tomes mais nenhuma por enquanto. Vou preparar-te uma omeleta e umas torradas.
- Porquê?
- Porque pareces um coitado. - Começou a beijá-lo mas afastou-se prontamente, colocando a mão entre os dois. - Credo, trata-me desse hálito, cher, antes que mates
alguém!
- Alguém te pediu alguma coisa?
- E não tenhas pressa de sair do chuveiro. Cheiras como o soalho do bar. - Levantou-se. - Porque é que hoje não veio ninguém?
- Como já previa uma ressaca, fiz saber que quem viesse cá antes das três da tarde seria fuzilado sem julgamento.
Lena verificou as horas.
- Parece que ainda tens umas horas.
- Se tiver que sair desta cama, pego numa arma. Vai-me custar matar-te, mas fá-lo-ei.
- Estou na cozinha. - Franziu o sobrolho. - Traz a tua arma, cher, e vamos ver se ainda sabes usá-la.
- Isso é um eufemismo? - gritou ele, arrependendo-se de imediato por ter elevado a voz. Segurou a cabeça entre as mãos e saiu a custo da cama.
Lena soltava risadinhas enquanto descia para o piso de baixo. Riu-se ainda mais quando ouviu uma porta a bater. Aposto que se vai arrepender, pensou. Depois deteve-se
e olhou para trás quando ouviu outras duas portas a bater.
Enfim... os fantasmas é que ele não ia conseguir ameaçar com uma arma.
- Podem fazer o escarcéu que quiserem - disse voltando a encaminhar-se para a cozinha. - Não me preocupam nada.
As portas da biblioteca estremeceram quando passou por elas. Não deu importância. Se um homem mal-humorado e malcheiroso não
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conseguia afugentá-la, não era um fantasma irritado que ia consegui-lo.
Raios, ele estava mesmo giro, pensou enquanto procurava o café. Pálido, másculo e zangado. E com aquela estúpida borla colada na cara.
Os homens perdiam metade do QI quando viam uma mulher nua. E quando se juntavam em grupo, com mulheres dispostas a despirem-se ao som da música, ficavam reduzidos
à sensatez de um molho de brócolos.
Moeu os grãos e preparou o café. Estava a bater os ovos numa taça quando lhe ocorreu que era a primeira vez na sua vida que preparava o pequeno-almoço para um homem
com quem não dormira na noite anterior.
E não era realmente uma coisa estranha?
Mais estranho ainda era dar por si a trautear na cozinha de um homem ressacado, irritado e malcheiroso que para mais a repreendera. Nem pareces tu, Lena. Que se
passa aqui?
Ficara intrigada com o jovial divertimento de Effie face ao estado de Remy. E agora ali estava ela, a sentir o mesmo por Declan.
Espreitou da janela para o jardim que uns meses antes se apresentava selvagem e negligenciado. Agora desabrochava em beleza, com novos rebentos verdes a despontar.
Afinal deixara que acontecesse. Deixara que ele a invadisse furtivamente, apesar de todas as suas defesas e barreiras.
Estava apaixonada por ele. E, oh, Deus, não queria sentir-se assim - tanto para o seu bem como para o dele.
Declan conseguira retirar a capa de poeira dos sonhos de juventude que ela tão arduamente sufocara. Aqueles sonhos coloridos, com amor, esperança e confiança. Eram
agora tão brilhantes que a olhavam directamente no rosto. Tão brilhantes que a ofuscavam.
E aterrorizavam.
Casamento. Ele queria casar e ela não acreditava em promessas a não ser que fossem seladas com sangue.
Poderia? Conseguiria?
- Acho que quero - disse baixinho. - Acho que quero, porque é ele.
A porta de um dos armários bateu quando falou. Uma grossa caneca azul caiu e foi estilhaçar-se aos pés dela.
Lena recuou de um salto, com o coração a bater violentamente e
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os tornozelos envoltos numa chuva de lascas. Olhou para o sangue que gotejava dos minúsculos cortes.
- Parece que já o fiz. E tu não queres nada disso, pois não? - Deu meia volta, com a taça ainda na mão. - Aceitas tudo, excepto ver-nos juntos. Veremos quem ganha,
não é? Veremos.
Estendeu a mão para um dos estilhaços e pressionou-o contra o polegar. Quando o sangue jorrou, levantou a mão e deixou-o gotejar.
- Não sou fraca como ele era. Se aceito o amor, se prometo amar, sou fiel à minha promessa.
O repentino som das badaladas sobressaltou-a. Era a melodia de Declan, as primeiras notas, O medo e o assombro sufocaram-na, e a taça tremeu-lhe nas mãos.
- Raios, vai abrir a porta! - Era a voz irritada de Declan que ecoava lá em baixo. - E depois mata quem tocou à estúpida da campainha!
Campainha? Passou a mão livre pelo cabelo. Tinha instalado uma campainha que imitava a melodia de Quando o baile acabar. Era mesmo dele.
- Se continuares a gritar comigo, vais ter mais do que uma ressaca para curar - gritou ela enquanto avançava pelo vestíbulo.
- Se te fosses embora e me deixasses morrer em paz, já não tinha que gritar!
- Daqui a bocado vou aí e torço-te o pescoço! E depois de te torcer o pescoço, dou-te uns pontapés nesse traseiro!
Abriu a porta de rompante enquanto proferia esta última ameaça, e deu por ela a olhar surpreendida para um casal muito bem-parecido. A irritação dissipou-se de pronto
quando viu os olhos de Declan no rosto feminino que a olhava com curiosidade.
- Sou Colleen Fitzgerald. - A mulher elegante, loira e encantadora estendeu-lhe a mão. - E você quem é? Se pretende dar esses pontapés no traseiro do meu filho,
gostava de saber o seu nome.
- Mãe? - Declan correu apressadamente para o cimo das escadas, ainda a escorrer água e envergando apenas umas calças de trabalho rasgadas. - Ei! Mãe, pai! - Apesar
da devastação causada pela ressaca, Declan desceu de imediato, lançou os braços sobre eles e apertou-os contra si. - Pensei que só vinham amanhã.
- Mudança de planos. Saíste da cama agora? - perguntou Colleen. - Já passa da uma da tarde.
- Ontem à noite foi a despedida de solteiro. Muita bebida e mulheres com pouca roupa.
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- Deveras? - disse Colleen, olhando para Lena.
- Oh, ela não. Ela veio cá fazer de Florence Nightingale(1). Colleen e Patrick Fitzgerald, Angelina Simone.
- Prazer em conhecê-la. - Patrick, alto, esguio e com o cabelo escuro encantadoramente grisalho nas têmporas, ofereceu um generoso sorriso a Lena.
Depois mostraram-se preocupados quando viram o polegar dela.
- Magoou-se.
- Não foi nada.
- Que te aconteceu? Estás a sangrar. Credo, Lena! - Assustado, Declan agarrou-lhe no pulso; quase a levantou do chão e levou-a apressadamente para a cozinha.
- É só um arranhão. Larga-me, Declan. Olha os teus pais. Estás a envergonhar-me - sussurrou-lhe ela.
- Cala-te. Deixa-me ver a ferida.
Patrick, ainda junto à entrada, virou-se para a esposa.
- É esta a rapariga?
- Ele acha que sim. - Colleen cerrou os lábios e entrou. - Vamos ver no que isto dá.
- Lá vistosa é.
- Eu também tenho olhos, Patrick. - E usou-os para apreciar a casa enquanto iam ao encontro deles.
Era mais, muito mais do que estava à espera. Não que duvidasse do gosto do filho. Mas fora levada a crer que a casa se encontrava num estado de ruína talvez irrecuperável.
E via agora divisões graciosas, pormenores encantadores, vidros e madeiras cintilantes.
E na cozinha viu o filho debruçado sobre a mão de uma mulher muito bela e muito irritada, que parecia perfeitamente capaz de cumprir a ameaça que proferira antes.
- Peço desculpa. - Lena afastou Declan com o cotovelo e sorriu gentilmente para os pais dele. - Deixei cair uma chávena, foi tudo. É um prazer conhecê-los.
Declan virou-se para vasculhar os armários.
- Precisas de anti-séptico e de uma ligadura.
- Oh, pára de te preocupares. Até parece que decepei a mão. E se não tens cuidado, ainda pisas os cacos e ficas pior do que eu. Peço
(1) Enfermeira britânica (1820-1910) que trabalhou na Guerra da Crimeia e se tornou conhecida como a -Senhora da Candeia-. Fundou posteriormente a Escola de Enfermagem
Nightingale, no Hospital de St. Thomas, em Londres. (N. dos T.)
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desculpa por a vossa chegada ser tão atribulada - disse para os pais dele. - Vou varrer esta confusão e depois tenho de ir.
- Aonde? - perguntou Declan. - Prometeste-me comida. Lena perguntou-se se ele conseguiria ouvir os dentes dela a ranger.
- Deita o conteúdo da taça numa caçarola, liga o fogão e já tens comida. - Abriu o armário dos arrumos com um puxão. - Porque é que não ofereces café ou uma bebida
fresca aos teus pais depois de uma viagem, tão longa? Já te esqueceste da educação que te deram?
- Realmente - concordou Colleen.
- Desculpem. Distraí-me ao ver o chão manchado com o sangue da mulher que amo.
- Declan. - Embora tivesse falado num tom pausado, o aviso de Lena era nítido e audível.
- Um café seria óptimo - disse Patrick com jovialidade. - Viemos para cá directos do aeroporto. Queríamos ver a casa... e a ti também, Dec - acrescentou com um piscar
de olho.
- Onde está a vossa bagagem?
- Mandámo-la para o hotel. Filho, esta casa é enorme. É muito espaço para um homem só.
- Eu e a Lena queremos ter quatro filhos. Lena despejou os cacos no lixo e repreendeu-o.
- Pronto, três - emendou ele sem se desmanchar. - Mas é a minha última oferta.
- Estou farta disto! - Enfiou a vassoura e a pá nas mãos dele. - Limpa tu a tua desarrumação. Espero que apreciem a vossa estada - disse num tom formal para Colleen
e Patrick. - Estou atrasada para o trabalho.
Saiu pelas traseiras porque era mais perto, e reprimiu a intensa vontade de bater a porta com força e partir as janelas.
- Não é linda? - perguntou Declan com um sorriso rasgado. - Não é perfeita?
- Irritaste-a e envergonhaste-a - disse-lhe Colleen.
- Ainda bem. É minha intenção ir fazendo progressos desse modo. Vou preparar o café e depois mostro-vos a casa.
Uma hora depois, Declan estava sentado com a mãe no alpendre das traseiras enquanto o pai preparava sanduíches e se alheava da conversa.
O pior da ressaca já se dissipara. Declan calculou que devia agradecer à misteriosa poção que Lena lhe dera - e ao prazer de a ver no mesmo espaço que os pais.
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Meu Deus, sentira saudades deles, pensou. Só tivera consciência disso quando os vira.
- E então - acabou por dizer -, vais dizer-me o que achas?
- Vou. - Mas continuou sentada a contemplar os jardins. - Está calor, não está? Ainda é cedo para tanto calor nesta época do ano, creio eu.
- Na verdade, hoje está mais fresco. Havias de ter cá estado há uns dias. Podiam-se estrelar ovos lá fora.
Colleen atentou no modo como ele dissera aquilo, com uma espécie de orgulho.
- Nunca foste grande apreciador do frio. Mesmo quando íamos esquiar, preferias ficar dentro de casa do que esquiar pelas encostas abaixo.
- O esqui é uma coisa que as pessoas inventaram para fingir que a neve é divertida.
- Não sei se este ano te convidamos para Vermont. - Mas estendeu a mão para afagar a dele. - A casa é encantadora, Declan. Até neste estado é bela, embora ainda
faltem coisas. Imaginava que andares às voltas com ferramentas e madeiras e essas coisas não era senão um passatempo. Essa ideia agradava-me mais. Enquanto fosses
advogado, o mais provável era ficares por Boston, ou por perto. Assustava-me ver-te partir, por isso dificultei-te as coisas. Não me arrependo. És o meu filhinho
- disse, tocando-o no mais fundo do coração.
- Não preciso de ficar em Boston para estar perto. Ela abanou a cabeça.
- Não vais aparecer lá em casa sem avisar. Não vamos encontrar-te por acaso em restaurantes, em festas ou no teatro. E isso aflige-me. Mas só vais compreender quando
tiveres esses três ou quatro filhos que desejas.
- Não quero que fiques triste.
- Ora, claro que fico triste. Não sejas pateta. Adoro-te, não te adoro?
- Estás sempre a dizer isso - disse ele em tom de brincadeira. Ela olhou-o: olhos cinzentos fixos em olhos cinzentos.
- Sorte a nossa, amo-te o suficiente para saber quando devo abrir mão de ti. Encontraste aqui o teu lugar. Não vou negar que esperava que não conseguisses, mas já
que assim é, fico feliz por ti. Raios!
- Obrigado. - Inclinou-se e beijou-a.
- Ora bem, quanto àquela mulher...
- A Lena.
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- Eu sei o nome dela, Declan - retorquiu Colleen em tom seco. - Como potencial sogra, tenho o direito de me referir a ela como "aquela mulher" até a conhecer. Quanto
àquela mulher, não se parece em nada com o que imaginava para ti. Não quando te via a progredir a passos largos no escritório de advocacia, a comprar uma casa nas
redondezas, perto do country club. Num cenário desses, a Jessica teria correspondido ao meu ideal de nora. Uma boa parceira de ténis, que soubesse jogar brídege
e com capacidade para se destacar nos círculos certos.
- Talvez devesses adoptá-la.
- Está calado. - A voz dela era serena... e determinada. Lena teria reconhecido imediatamente aquele tom. - Ainda não terminei. Por mais que a Jessica fosse a nora
ideal para mim, não era obviamente a mulher certa para ti. Não te sentias feliz, e eu comecei a ver isso e a preocupar-me ainda antes de teres rompido com ela. Tentei
convencer-me de que era o nervosismo da aproximação do casamento, mas estava só a iludir-me.
- Não te custava nada teres-me dito qualquer coisa.
- Talvez não, mas estava zangada contigo.
- A quem o dizes.
- Não tentes desviar-me do assunto, especialmente quando estou prestes a ficar sentimental. Foste sempre uma criança feliz. Alegre, inteligente e de língua afiada,
e sempre respeitei isso. Tinhas aquilo a que eu chamaria um coração cheio de vida. E perdeste-o. Agora vejo que o recuperaste. Vi-o novamente nos teus olhos quando
olhaste para a Lena.
Pegou na mão da mãe e passou-a pelo rosto.
- Chamaste-lhe Lena.
- Temporariamente. Ainda não tenho opinião formada sobre ela. E acredita-me, rapaz, ela também não tem uma opinião formada sobre o teu pai e eu. Portanto, aconselho-te
a manteres-te à margem e a deixar essa questão connosco.
Colleen estendeu as pernas.
- Patrick, tiveste que ir caçar um porco para fazer as sanduíches? Declan sorriu e deu um beijo ruidoso na mão da mãe.
- Adoro-vos.
- Nós também te adoramos. - Colleen apertou-lhe os dedos com força e largou-lhe a mão. - Só Deus sabe porquê.
Sonhou com tempestades e dor. Com medos e alegrias. A chuva e o vento fustigavam as janelas, e a dor que o dilacerava irrompeu num grito sufocado.
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O suor e as lágrimas escorriam pelo rosto dele - pelo rosto dela. O rosto dela, o corpo dela. A dor dele.
A luz do gás inundava o quarto com uma luminosidade dourada, e ouvia-se o crepitar da lareira. E, enquanto a tempestade rugia lá fora, uma outra percorria o corpo
dela. O corpo dele.
A dor apoderou-se do seu ventre com a contracção seguinte. Cegou-a. E o grito que soltou foi primevo, queimou-lhe a garganta.
Faz força, Abby! Tens que fazer força! Está quase!
Estava tão cansada, exausta, enfraquecida. Como conseguiria suportar tanta dor? Mas rangeu os dentes. Quase enlouquecia. Tudo o que era, tudo o que tinha, se concentrou
naquele labor, naquele milagre.
O filho dela. O filho dela, o filho de Lucian, estava a lutar para vir ao mundo. Fez força com toda a energia que lhe restava. Uma vida dependia disso.
Já se vê a cabeça! Et là! Tanto cabelo! Só mais uma vez, Ab. Só mais uma vez, chère!
Agora ria-se. Era melhor do que gritar, mesmo que o riso revelasse laivos de histeria. Apoiou-se nos cotovelos e lançou a cabeça para trás ao sentir-se trespassada
por novo acesso daquela dor indizível.
Aquele momento, aquele acto, era a maior dádiva que uma mulher tinha para oferecer. Aquela dádiva, aquela criança, estaria segura, seria acarinhada. Seria amada
até ao fim dos seus dias.
E amparou-se naquela dor enquanto os relâmpagos faiscavam, amparou-se no rugido da tempestade e fez força, fez força, fez força até aquela vida vir ao mundo com
um gemido.
Uma menina! Uma linda menina!
Esqueceu a dor. As horas de suor, sangue e sofrimento reduziram-se a nada perante aquela alegria cintilante. Foi com lágrimas nos olhos que estendeu os braços para
o pequeno bebé que se contorcia e gritava, certamente de triunfo.
Minha rosa! Minha linda Marie Rose! Vai dizer ao Lucian. Oh, por favor, traz o Lucian para ver a nossa filha!
Primeiro limparam a mãe e a bebé, e sorriram ante a impaciência dela e o choro frenético da criança.
Lucian tinha lágrimas nos olhos quando entrou no quarto. Os dedos tremiam-lhe quando agarrou na mão dela.
Quando olhou para a criança que tinham gerado, o seu rosto encheu-se de assombro.
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E ela contou-lhe aquilo que jurara no momento em que tinham colocado Marie Rose nos seus braços.
Vamos protegê-la sempre, Lucian. Aconteça o que acontecer, vamos mantê-la sempre segura e feliz. É a nossa filha. Promete-me que a amarás e cuidarás sempre dela,
sempre.
Claro que sim. É tão linda, Abby! As minhas lindas meninas! Amo-te.
Di-lo. Preciso de te ouvir dizê-lo.
Lucian continuou a segurar na mão de Abigail e afagou o rosto da filha com ternura. Amá-la-ei e cuidarei dela, para sempre, juro.
Capítulo Dezanove
Patrick Fitzgerald deu a mão à esposa enquanto deambulavam pelo Bairro Francês. Sabia que se dirigiam para o Et Trois e que a sua missão era verem novamente Angelina
Simone.
- Sabes, Colleen, isto é quase como intrometermo-nos e andarmos a espiar.
- Aonde queres chegar?
Patrick teve de se rir. Após quase quarenta anos de casamento, a esposa conseguia sempre fazê-lo rir, o que considerava, antes de mais, sinal de uma parceria de
sucesso.
- Ela pode lá não estar. Ser proprietária de um bar não significa que se esteja lá durante todo o dia, ou todos os dias.
- E pronto, vamos dar uma vista de olhos ao negócio dela e tomar uma bebida. É perfeitamente natural e respeitável.
- Sim, querida.
Usava aquela expressão e aquele tom somente quando troçava dela. Colleen hesitou entre dar-lhe uma boa cotovelada nas costelas ou rir-se. Fez ambas as coisas.
A multidão, o ruído, o calor e aquela espécie de elegância florida e decadente da cidade não eram coisas que a cativassem para mais do que uma breve visita. Preferia
o encanto do Velho Mundo, e, sem dúvida, a dignidade de Boston.
Boston tinha certamente o seu lado sórdido, mas não o exibia de forma tão ostensiva. Claro que o sexo devia ser divertido e interessante - não era nenhuma puritana,
por amor de Deus. Mas também devia ser uma coisa íntima.
Mesmo assim, o lamento trágico derramado no ar por um saxofone tenor fez vibrar uma corda dentro dela.
Se o filho estava determinado a construir ali o seu lar, teria de aceitar
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esse facto. E talvez com um pouco mais de estudo e conversação conseguisse aceitar também a mulher.
- Vais ter tempo e oportunidade para a interrogar amanhã no casamento - lembrou-lhe Patrick.
Colleen suspirou. Os homens, Deus os abençoasse, eram criaturas deveras simples. E ingénuas. O primeiro passo seria, obviamente, observar a rapariga no seu próprio
meio.
Analisou a vizinhança, a localização do bar, a intensidade do movimento. Concluiu que Lena escolhera ajuizadamente, e tivera o bom gosto e a sensatez suficientes
para deixar que o exterior do bar se fundisse discretamente com os outros estabelecimentos.
Gostou da varanda, dos vasos com flores: cores garridas contra um fundo de suaves tons creme. Revelava gosto e estilo, um apreço pela atmosfera.
Conseguira obter de Declan a informação de que Lena vivia por cima do bar, e perguntava-se agora se deveria tentar convencê-la a mostrar-lhe a casa para poder examinar
os aposentos.
Entrou no Et Trois e dedicou-se a uma inspecção objectiva e aprofundada.
Era um local asseado, facto que lhe agradou. Estava repleto de gente mas não apinhado, facto que agradou ao seu sentido do negócio. Era demasiado cedo para a ruidosa
multidão nocturna, concluiu, e demasiado tarde para o intervalo do almoço.
Supôs que a música que jorrava dos altifalantes fosse cajun, o que também aprovou. Era uma música alegre, mas não ruidosa a ponto de transformar uma simples conversa
num acto penoso.
Atrás do balcão viu um negro vestido com uma garrida camisa vermelha. Bem-parecido, mãos delicadas, concluiu. Uma jovem empregada servia às mesas - loira, bem-disposta,
com umas calças de ganga talvez um pouquinho justas de mais.
Avistou o que concluiu serem turistas devido às máquinas fotográficas e aos sacos de compras. Presumiu que as outras pessoas fossem habitantes locais.
A comida espalhava pelo bar um aroma quente a especiarias.
Lena saiu da cozinha. Os olhares cruzaram-se imediatamente num reconhecimento instantâneo. Colleen curvou os lábios num pequeno sorriso bem-educado e dirigiu-se
para o balcão com Patrick atrás dela.
- Boa-tarde, Mrs. Fitzgerald, Mr. Fitzgerald. - Um sorriso igualmente pequeno e bem-educado assomou aos lábios de Lena. - Andam a apreciar o Bairro? - perguntou,
lançando um olhar de relance aos sacos de compras que Patrick carregava.
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- É raro a Colleen passar por uma loja e não ver alguma coisa que precise de comprar.
- Então o Declan tem a quem sair. Querem que lhes traga a ementa?
- Já almoçámos, obrigada. - Colleen sentou-se num dos bancos. - Adorava um martini, Stoli, gelado, muito seco e bem batido. Com três azeitonas.
- E para si, Mr. Fitzgerald?
- Pode ser o mesmo. - Ocupou o banco ao lado da esposa. - Tem aqui um local agradável. Música ao vivo? - perguntou, apontando com a cabeça na direcção do palco.
- Todas as noites, às nove. - Começou a preparar os martinis e presenteou-o com um sorriso genuíno. - Se gosta de dançar, devia voltar cá. Conseguíamos pô-lo a bailar.
Está a gostar da visita?
- Estamos ansiosos pelo casamento - comentou Colleen. - O Remy é como se fosse da família. E estamos felizes por ver que o Declan tem feito tantos progressos na
casa.
- Ele é feliz aqui.
- Sim.
Lena pegou nos dois copos que tinha posto a gelar.
- Seria melhor para vocês se ele se sentisse feliz em Boston... com aquela com quem quase se casou.
- Sim, seria, não seria? Mas não podemos ditar a vida às outras pessoas. Nem sequer aos nossos filhos. E seguramente não se pode escolher a pessoa que eles vão amar.
Está apaixonada pelo meu filho, Lena?
Lena colocou as azeitonas nos martinis e serviu-os com mãos firmes.
- Isso é algo que tenho de discutir com ele, quando estiver preparada. As bebidas são oferta da casa - acrescentou. - Espero que estejam do vosso agrado.
- Obrigada. - Colleen pegou no seu copo e bebeu um pequeno gole. Ergueu uma sobrancelha. - Está excelente. Sempre achei que preparar um martini perfeito era uma
espécie de arte, e sempre me surpreendeu e desiludiu verificar que muitas vezes eram os donos dos clubes ou dos restaurantes que preparavam ou serviam martinis imperfeitos.
- Para quê fazer as coisas se não fizermos bem feitas?
- Exactamente. É uma questão de orgulho, não é? Em nós próprios, no nosso trabalho, na nossa vida. Os defeitos são
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compreensíveis e mesmo necessários para nos tornarem humanos e humildes. Mas servir um convidado ou um cliente e não darmos o nosso melhor, soa-me a arrogância ou
desleixo. Ou ambas as coisas.
- Não vejo que sentido há em fazer as coisas pela metade - disse Lena, enchendo uma taça com aperitivos. - Se não sei preparar um martini, muito bem, afasto-me até
aprender como deve ser. Caso contrário, desiludir-me-ia a mim e à pessoa a quem iria servi-lo.
- É uma boa política - Colleen provou uma azeitona. - Sem padrões elevados, acomodamo-nos a fazer menos do que aquilo que nos tornaria felizes e produtivos, e arriscamo-nos
a desiludir as pessoas que verdadeiramente nos importam.
- Quando alguém é importante para mim, e sou muito cuidadosa quanto a isso, quero sempre o melhor para essa pessoa. Talvez ela até se contentasse com menos. Mas
eu não.
Quando Patrick se inclinou para observar atentamente o martini da esposa, Colleen franziu-lhe o sobrolho.
- Que estás a fazer?
- Estou a tentar ver o que é que a tua bebida tem que a minha não. Lena riu-se e sentiu os ombros relaxarem.
- Ele é terrivelmente parecido consigo, não é? Mas tem os olhos da mãe. Uns olhos que vêem dentro de nós. Mesmo quando não queremos. Ele adora-vos, e isso tem um
grande significado para mim. De modo que vou dizer-vos uma coisa. - Inclinou-se um pouco mais. - Venho de uma família humilde. Forte, mas humilde. A minha mãe é
um peso morto e é para mim um embaraço maior do que deixo transparecer. Mas o meu avô era um homem decente e respeitável. A minha avó é tão respeitável quanto qualquer
outra pessoa, ou mais do que a maioria. Dirijo este negócio porque sei fazê-lo bem, gosto disto e não desperdiço o meu tempo com coisas de que não gosto. - Prendeu
o cabelo atrás da orelha e manteve o olhar ao nível do de Colleen. - Sou egoísta e teimosa e, raios, não vejo nada de errado nisso. Não me interessa o dinheiro dele,
ou o vosso, portanto ponhamos já isso de lado. É o melhor homem que encontrei na minha vida e eu não sou suficientemente boa para ele. E digo isto sabendo que sou
suficientemente boa para quase qualquer um, mas ele é diferente. Acontece que debaixo daquele comportamento afável, consegue ser ainda mais teimoso do que eu, e
ainda não sei bem o que pensar disso. Quando souber, ele será o primeiro a saber. Espero que vos informe do resultado. Muito bem. - Brincou inconscientemente com
a chave que trazia pendurada ao pescoço. - Querem outra bebida?
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- Para já, entretemo-nos com esta - disse Colleen.
- Desculpem-me por um minuto. Tenho que aviar um pedido. - Aproximou-se da ponta do bar, onde a empregada a aguardava com o tabuleiro vazio.
- E então? - perguntou Patrick. - Creio que conseguiu pôr-te no teu lugar.
- Sim. - Visivelmente satisfeita, Colleen deu mais um gole no seu martini. - Está aprovada.
- Não estou nervoso. - Remy estava na biblioteca, pálido, desassossegado, enquanto Declan lhe afixava o ramo de lírios do campo na lapela do smoking.
- Se disseres isso mais uma dúzia de vezes, ainda acabas por te convencer. Raios, pára quieto, Remy.
- Eu estou quieto.
- Certo, estás firme como uma rocha, a não ser por esses tremeliques que não consegues esconder.
- Quero casar com a Effie. Quero viver a minha vida com ela. Hoje é o dia por que ambos ansiávamos.
- Certo. Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida - disse Declan num tom sério.
- Sinto-me um pouco indisposto.
- É demasiado tarde para ires vomitar - observou Declan em tom jocoso. - A contagem decrescente já começou. Queres que volte a chamar o teu pai?
- Não. A minha mãe já é encargo bastante. Quantas pessoas disseste que estão lá fora?
- Da última vez que olhei, umas centenas, e ainda faltava gente.
- Céus! Porque é que não casámos em segredo? Como é que querem que um tipo fique ali especado diante de centenas de pessoas e mude a sua vida para sempre?
- Creio que se criou esta tradição para evitar que o noivo fugisse. Iam logo atrás dele como um pelotão de linchamento.
- Não há dúvida de que isso me acalma, cher. E se fosses arranjar-me um golinho de bourbon?
Declan acercou-se de um armário pintado de onde retirou uma garrafa.
- Já imaginava que ias precisar de uma golada. E disto. - Deu-lhe também uma embalagem de Altoids. - Para não chegares ao pé da noiva com hálito a whiskey. Ainda
acabava por ser ela a fugir.
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Declan começou a servir a bebida, mas ocultou rapidamente a garrafa e o copo atrás das costas quando bateram à porta e a mãe entrou de rompante.
- Estão os dois tão elegantes! Declan, não lhe dês mais do que um gole desse whiskey que escondeste atrás das costas, e certifica-te de que ele lava a boca para
refrescar o hálito.
- Trouxe Altoids.
- Muito bem. - Aproximou-se com um sorriso para ajeitar o laço de Remy. - Estás nervoso porque é o dia mais importante da tua vida. Era mau sinal se não tremesses
um pouco. Juro-te que as tremuras te passam assim que vires a Effie. Está tão bonita! - Segurou-lhe o rosto entre as mãos. - Estou muito orgulhosa de ti.
- E de mim? - perguntou Declan. - Fui eu que me lembrei dos Altoids.
- De ti trato depois. Vais casar com a mulher que amas - prosseguiu Colleen. - Estás rodeado de família e amigos e todos vos adoram. O dia está maravilhoso e o teu
irmão, o teu irmão de coração, tratou de tudo para que o casamento decorresse num cenário magnífico. Dá lá uma golada nesse bourbon e respira fundo. Depois, mexe-me
esse traseiro e casa-te.
- Sim, minha senhora. Adoro-a, Mrs. Colleen.
- Eu sei. Também te adoro, mas não te dou um beijo senão ainda estrago a maquilhagem. Só uma golada, Declan. Se este rapaz aparecer ali meio cambaleante, o responsável
és tu.
Declan não tardou a confirmar que a mãe tinha razão, como de costume. Quando se pôs ao lado de Remy, e Effie, envolta num branco diáfano, surgiu à varanda, Declan
sentiu o amigo - o seu irmão - libertar-se do nervosismo. Viu um desmesurado sorriso espalhar-se pelo rosto dele e ouviu-o dizer com ternura:
- É a minha miúda.
Deu por si a perscrutar os grupos de pessoas, à procura de Lena. E tu és a minha, pensou. Desta vez vamos fazer com que resulte.
E ali ficou, de pé no jardim primaveril, com a velha casa branca a elevar-se sobre o relvado verdejante, a ver os seus amigos casar.
Quando eles se beijaram e os declararam marido e mulher, irromperam as saudações, muito mais libertadoras e festivas do que as palmas a que Declan estava habituado.
Sentiu que o seu próprio sorriso se distendia até se revelar quase tão desmesurado quanto o de Remy.
277
A música soou quase de imediato. Rabecas, washboards, acordeões. Quando o fotógrafo focou a câmara apenas nos noivos, Declan afastou-se e abriu caminho através do
mar de gente, até junto de Lena.
Estava vestida de vermelho. Um cintilante vermelho-papoila que lhe deixaria as costas desnudadas se não fosse a intrigante teia de delicadas alças. Prendera por
cima do coração o relógio de esmalte e as asas douradas que Lucian oferecera outrora a Abigail.
- Já me tinha perguntado se alguma vez usarias isso.
- É especial - disse ela -, por isso guardo-o para ocasiões especiais. Foi uma cerimónia maravilhosa, Declan. Fizeste um excelente trabalho a aprontar a casa para
o casamento. És um bom amigo.
- Tenho muito boas qualidades, e isso faz de ti uma mulher cheia de sorte. Senti a tua falta durante os últimos dias.
- Temos andado ambos ocupados.
- Fica cá hoje à noite. - Agarrou-lhe na mão ao ver recusa e desculpas nos olhos dela. - Angelina, fica cá hoje à noite.
- Talvez. Há muita gente com quem devias estar a conversar.
- Estão a conversar uns com os outros. Onde está Miss Odette? Lena franziu a testa.
- A tua mãe levou-a para um lado qualquer.
- Queres que a vá resgatar?
O orgulho retesou-lhe a espinha e a voz.
- A minha avó chega bem para ela.
- Ai sim? - Divertido, Declan semicerrou os olhos em desafio. - Se chegarem a vias de facto, aposto na Colleen. Tem uma esquerda fabulosa. E se fôssemos buscar champanhe
e procurá-las? E verificar quantos rounds já travaram.
- Se ofender a minha avó...
- Ela nunca faria isso. - Declan já não estava a achar graça, e abanou-lhe ligeiramente os ombros. - Por quem a tomas, Lena? Se se afastou com Miss Odette, é porque
queria conhecê-la.
- Suponho que foi por isso que arrastou o teu papá até ao meu bar. Para poder conhecer-me melhor.
- Estiveram no teu bar?
- No meu bar, sim. - Contrariada consigo própria por deixar que aquilo a irritasse, Lena pegou numa taça de champanhe que um empregado andava a servir. - Foi lá
fazer uma inspecção, ao local e a mim. Não só conseguiu o que queria, como ainda lhe ofereci um raio de um martini. Mas pu-la na ordem.
Declan sentiu os tremores do pânico masculino perante a imagem das duas mulheres mais importantes da sua vida a medirem forças.
278
- Que raio queres dizer com isso?
- Disse o que tinha a dizer, foi só. Agora compreendemo-nos bem uma à outra.
- Porque é que não me pões a par de tudo para eu também te poder compreender?
- Não é a altura nem o lugar.
- Havemos de encontrá-los.
Lena encolheu os ombros ao detectar a ira na voz dele. Sorriu e passou-lhe o dedo pela face.
- Pronto, não fiques irritado, cher. Estamos numa festa. Podemos discutir noutra altura qualquer.
- Está bem, agendemos isso para mais tarde. - Agarrou-lhe no queixo. - Ainda não percebi por quem tens tão pouca consideração, Lena, se por mim, se pela minha família,
se por ti própria. Avisa-me quando souberes a resposta. - Inclinou-se e beijou-lhe levemente os lábios. - Até logo.
A festa mudou-se para o salão de baile, mas os convivas eram tão numerosos que se espalhavam ainda pelas varandas e pelo relvado. Pela primeira vez em décadas, a
casa estava repleta de música e riso. Crianças a correr, bebés a chorar, pares a namorar e amigos simplesmente na conversa enchiam o grandioso salão, descansavam
à sombra de guarda-sóis brancos em redor de mesas colocadas nos jardins ou refastelavam-se na varanda.
Declan gostava de imaginar que a casa absorvia toda aquela energia positiva, inclusive os cantos escuros das divisões que mantivera fechadas.
- Declan. - Effie agarrou-lhe no braço. - Concede-me a honra desta dança.
- Alguém matou o Remy? - Conduziu-a para o meio do salão. - Não vejo outra maneira de ele deixar que te afastasses mais de um centímetro dele. - Beijou-lhe a mão
antes de a tomar nos braços. - E não o censuro. Quando a mulher mais bonita nos pertence, mantemo-la junto de nós.
- Oh, Declan! - Encostou a face à dele. - Se não estivesse loucamente apaixonada pelo meu marido, faria tudo para te conquistar.
- Quando te cansares dele, avisa-me.
- Quero agradecer-te por tudo o que fizeste para tornar este dia perfeito. Sei que a minha mãe, a minha irmã e eu quase demos contigo em doido durante as duas últimas
semanas.
279
- Foram só duas semanas? - Riu-se. - Valeu por cada hora em que me mantive escondido nos armários para que nenhuma de vocês me encontrasse.
- Estou tão feliz! Estou tão feliz e adoro-te! Hoje adoro toda a gente - disse, soltando uma risada. - Toda a gente do mundo. Mas hoje, a seguir ao Remy, és tu quem
mais adoro, e por isso quero que também estejas feliz.
- E estou.
- Não o suficiente. - Aproximou os lábios do ouvido dele. - Declan, há qualquer coisa nesta casa que continua por terminar. Nunca me imaginei a acreditar nesse tipo
de coisas, mas... sinto-o. Sinto-o sempre que cá venho. E hoje também.
Declan sentiu os tremores percorrerem-na e afagou-lhe as costas para a tranquilizar.
- Não devias pensar nisso hoje. Hoje não te devias preocupar.
- Estou preocupada contigo. Há qualquer coisa por terminar. E parte disso é, de certa forma, por minha culpa.
- Por tua culpa? - Afastou-a um pouco para poder olhá-la no rosto e depois conduziu-a para um dos cantos. - Que queres dizer com isso?
- Quem me dera saber. Só sei aquilo que sinto. Trata-se de algo que fiz, ou não fiz, por ti. Sei que não faz nenhum sentido, mas sinto-o com tanta intensidade...
Sinto que não pude ajudar-te quando mais precisavas de mim. Receio que algo de mau aconteça novamente se isso não for corrigido. Portanto, e por pateta que possa
parecer, quero dizer-te que lamento, que lamento terrivelmente ter-te desiludido, qualquer que tenha sido essa desilusão.
- Está tudo bem. - Beijou-a na testa. - A culpa não é tua. O que quer que tenha sido, se é que aconteceu, a culpa não foi tua. E hoje não é o dia apropriado para
olhar para o passado, querida. Agora só interessa o amanhã.
- Tens razão. Mas... tem cuidado - disse enquanto Remy se acercava e desferia na brincadeira um murro no amigo.
- Estás aí a açambarcar a minha esposa, cher. Agarra-te à tua própria miúda.
- Boa ideia.
Procurou Lena e encontrou-a entre um grupo de pessoas. A cor vermelha do vestido assemelhava-se a uma língua de chamas sobre a pele trigueira. E a sua reacção àquela
imagem foi-lhe devolvida pelos olhos dela quando se aproximou, por aquele seu olhar sabido, tão intrinsecamente feminino.
280
Declan virou-se ligeiramente e estendeu a mão para a avó da sua amada.
- Miss Odette, concede-me a honra desta dança?
- Ainda está para chegar o dia em que recusarei dançar com um homem bem-parecido.
- Está encantadora - disse-lhe enquanto se dirigiam para o centro do salão.
- Os casamentos fazem-me sentir jovem. Tive uma agradável conversa com a sua mãe.
- Ai sim?
- Não esteja a imaginar coisas - disse ela com uma risada. - Tenho a dizer-lhe que nos entendemos muito bem. E pareceu-me ter ficado contente quando lhe disse que,
assim que a vi, percebi logo a razão de ser dos bons modos do filho. Ela retribuiu-me o elogio dizendo o mesmo da minha Lena. Depois falámos de coisas de que as
mulheres costumam falar nos casamentos, coisas que certamente o aborreceriam... excepto quando nos pusemos de acordo quanto ao facto de o filho dela ser um jovem
muito bem-parecido. E que os jovens bem-parecidos deviam arranjar motivos para usar mais vezes um smoking.
- Podia tornar-me maitre d'hôtel. Mas esses costumam receber melhores gorjetas quando têm uma pronúncia afectada, e não sei até que ponto conseguiria representar
bem o papel.
- Então vou ter que esperar até ao seu casamento para poder voltar a vê-lo todo aperaltado.
- Isso mesmo. - Olhou por cima da cabeça dela, mas Lena já se tinha afastado. - De qualquer modo, este casamento está a correr bastante bem. Receava que a tempestade
da noite passada pudesse estragar as coisas.
- Tempestade? Cher, ontem à noite não houve nenhuma tempestade.
- Houve. E foi bem forte. Não me diga que não se apercebeu.
- Estive a pé até à meia-noite. - Observou-lhe o rosto. - A dar os remates à bainha deste vestido. E levantei-me por volta das quatro quando o Rufus resolveu que
queria ir lá fora. Reparei que havia aqui luzes acesas. Perguntei-me o que estaria a fazer a pé àquela hora... O céu estava completamente limpo, Declan.
- Eu... devo ter sonhado com uma tempestade. Stresse pré-nupcial.
Mas não estivera acordado às quatro. E, tanto quanto sabia, não se levantara sequer depois da meia-noite, altura em que percorrera a casa para apagar todas as luzes
antes de se deitar.
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Sonhos, pensou. Vento e chuva, relâmpagos. As chamas amareladas na lareira. Dor, suor, sede. Sangue.
Mãos femininas, vozes femininas - de Effie? - que proferiam palavras de conforto, de encorajamento.
Lembrava-se agora claramente, e imobilizou-se, petrificado, a meio da dança.
Tinha dado à luz. Estivera em trabalho de parto.
Santo Deus!
- Cher? Declan? Vamos lá para fora. - Odette conduziu-o gentilmente para fora do salão. - Precisa de apanhar ar.
- Sim. As damas sulistas são peritas em desmaios, não é verdade?
- O quê?
- Esqueça. - Sentia-se mortificado, e apavorado com o que lhe acontecera no seu próprio sonho. Nas suas próprias memórias, supôs.
- Volte para o baile - disse-lhe ele. - Vou caminhar um pouco, para desanuviar a cabeça.
- O que é que lhe veio à memória?
- Um milagre - murmurou. - Tenho de comprar uma prenda verdadeiramente magnífica para a minha mãe. Não consigo perceber como é que vocês, as mulheres, conseguem
recuperar depois da primeira vez. Ela passou quatro vezes por isso. Extraordinário! - balbuciou e dirigiu-se para as escadas. - Verdadeiramente extraordinário!
Contornou a casa e esgueirou-se pelas traseiras para ir beber um copo de água gelada. Emborcou-a juntamente com três aspirinas extrafortes, na esperança de atenuar
a terrível dor de cabeça que se apoderara dele ao lembrar-se do sonho.
Ouvia a música do salão de baile jorrar pelas escadas abaixo. Conseguia sentir no tecto as vibrações de dezenas de pés a dançar.
Teria de voltar para a festa e cumprir as suas obrigações de padrinho e anfitrião. Sentia um enorme desejo de se atirar para cima da cama, de fechar os olhos e mergulhar
no esquecimento.
- Declan. - Lena entrou pela porta da varanda e fechou-a atrás de si. - Que se passa?
- Nada. Uma dor de cabeça.
- Ninguém te vê há quase uma hora. As pessoas começam a perguntar por ti.
- Vou já. - Mas sentou-se na beira da cama. - Daqui a pouco. Lena aproximou-se dele.
- Dói-te muito?
- Já tive piores.
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- E se descansasses uns minutos?
- Não me vou enfiar na cama no dia do casamento do meu melhor amigo... a não ser que queiras fazer-me companhia.
- É tentador. Quando vejo um homem de smoking, apetece-me sempre despi-lo.
- Os maitres d'hôtel devem adorar-te.
- Ora aí está uma piada bastante estúpida. Já deves estar a sentir-te melhor.
- Tendo em conta que dei à luz há menos de vinte e quatro horas, posso dizer que me sinto bem.
Lena cerrou os lábios.
- Cher, bebeste muito esta manhã?
- Não tanto quanto planeava. Lembras-te de onde te surgiu essa teoria de que eu era a Abigail Manet? Bem, começo a pensar que talvez não estejas longe da verdade,
porque sonhei que estava naquele quarto ao fundo do corredor, na cama que vi, na cama que lá não existe. E não estava a ver a Abigail ali deitada na fase final do
trabalho de parto. Era eu que estava a passar por isso, e devo dizer-te que não é nada fácil. Qualquer mulher que opte por não tomar sedativos, e dos fortes, só
pode ser completamente louca. É uma experiência que ultrapassa todas as sevícias que possam ter inventado durante a Inquisição Espanhola.
- Sonhaste que eras a Abigail e...
- Não parecia um sonho, Lena, e creio que estive nesse quarto quando tive a... visão ou alucinação, ou o que quer que lhe queiramos chamar. Lembro-me da tempestade,
do barulho, e de como estava assustado, a esforçar-me por trazer o bebé ao mundo. - Calou-se e atentou nas suas próprias palavras. - Bem, isto soa muito estranho.
- Sim. Soa mesmo. - Sentou-se ao lado dele.
- Ouvia as vozes das mulheres que estavam a ajudar-me. Conseguia ver os rostos delas, sobretudo o da mais jovem, mais ou menos da minha idade... da idade da Abigail.
Conseguia sentir o suor que me escorria pelo rosto, e a incrível fadiga. E depois aquela sensação, o auge daquilo tudo, quando parecia que estava prestes a ser rasgada
em dois. Aguentei a dor, e depois veio o alívio, o entorpecimento, o deslumbramento de trazer uma vida ao mundo. E uma vaga de orgulho e amor quando colocaram aquele
milagre nos meus braços. - Olhou para as mãos enquanto Lena o observava fixamente. - Consigo ver a bebé, Lena, tão nítida como a vida, consigo vê-la. Toda vermelha
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e enrugada e zangada. Olhos azuis-escuros, cabelo escuro. Uma boquinha como um botão de rosa. Dedinhos minúsculos e esguios, e pensei: são dez, é perfeita. A minha
rosa perfeita. - Olhou então para Lena. - Marie Rose, a tua trisavó. Marie Rose - repetiu -, a nossa filha.
Capítulo Vinte
A filha deles. Algo que Lena não podia ignorar, algo que lhe doía bem no âmago do seu ser. Mas não conseguia falar disso, não queria falar disso, sobretudo quando
sentia a cabeça e o coração tão pesados.
Envolveu-se novamente entre a multidão, entre a música e os risos. Agora era o presente, pensou. O que importava era o momento presente.
Sentia-se viva, com o ar quente da noite sobre a pele, debaixo do luar branco e puro, repleto da fragrância das flores dos jardins alvoroçados à sua volta.
Rosas e verbena, balsamina, jasmim.
Lírios. A sua flor preferida era o lírio. Tinha sempre lírios no quarto. Primeiro na ala da criadagem e depois no seu próprio quarto. Trazia-os em segredo do jardim
ou da estufa.
E no quarto das crianças havia rosas. Minúsculos botões rosados para a preciosa Marie Rose.
Sobressaltou-se e pôs de lado aqueles pensamentos, aquelas imagens. Arranjou um parceiro e seduziu-o para dançar com ela.
Não queria o passado. O passado estava morto e enterrado. Não queria o futuro. O futuro era caprichoso e frequentemente cruel. Devia viver e apreciar o momento presente.
Devia dominar o presente.
Quando o pai de Declan lhe pegou na mão, Lena sorriu-lhe com os olhos a cintilar.
- É uma dança cajun. Acha que consegue dançá-la?
- Já vamos descobrir.
Rodopiaram por entre os pares dançantes, com movimentos rápidos e estilizados que fizeram com que Lena lhe sorrisse.
- Patrick, você nasceu para isto. Tem a certeza de que é mesmo ianque?
- De carne e osso. Mas há que ter em conta o sangue irlandês.
286
A minha mãe era uma dançarina incrível, e ainda é capaz de executar uns bons passos depois de um par de cervejas.
- Que idade tem a sua mãe?
- Oitenta e seis. - Fê-la rodopiar e aproximou-a novamente de si. - Os Fitzgerald tendem a viver uma vida longa e vigorosa. Está com um ar preocupado.
Lena fez por manter uma expressão alegre.
- Ora essa, o que é que poderia preocupar-me numa altura e num local tão encantadores?
- Isso é que é intrigante. E se bebêssemos um copo de champanhe e me contasse tudo?
Não lhe deu hipótese de recusar. Tal pai, tal filho, pensou ela enquanto lhe dava firmemente a mão. Patrick levou-a até ao bar, pediu duas taças de champanhe e depois
levou-a lá para fora.
- Uma noite perfeita - disse ela, aspirando o ar. - Veja os jardins. É difícil acreditar naquilo que eram há uns meses atrás. O Declan falou-lhe dos Frank?
- Falou-me dos Frank e do Tibald. Da Effie e de Miss Odette. Falou-me de fantasmas e de si.
- Bem, omitiu muita coisa. - Beberricou o seu champanhe e deambulou pela varanda. As pessoas continuavam a dançar no relvado. Um grupo de mulheres estavam sentadas
a uma das mesas brancas sob a Lua branca, com bebés a dormitarem sobre os ombros e crianças ensonadas nos regaços.
- Sentia-se aborrecido em Boston.
Intrigada, Lena esqueceu as pessoas e as encantadoras luzes de decoração e olhou para Patrick.
- Aborrecido?
- Infeliz, inquieto, mas bastante aborrecido. Com o trabalho, com a noiva, com a vida. A única coisa capaz de o animar era a velha casa que estava a restaurar. Preocupava-me
que ele fosse em frente e acabasse por casar com a mulher errada, que trabalhasse numa área que detestava, que vivesse uma vida que só o satisfazia pela metade.
Não devia ter-me preocupado. - Apoiou-se na balaustrada e observou o salão de baile através das portas abertas. - A mente e o coração dele não queriam seguir o caminho
que eu e a mãe lhe tínhamos desbravado. Não quisemos ver isso durante muito tempo, estávamos cegos.
- Queriam apenas o melhor para ele. As pessoas tendem a pensar que aquilo que é melhor para elas, é também o melhor para as pessoas que amam.
287
- Sim, e a índole do Declan é fazer o possível para tornar felizes aqueles que ama. E ama-a a si. - Como ela não dizia nada, Patrick olhou-a no rosto. - Você disse
que ele era obstinado. É mais do que isso. Assim que o Declan se decide por um objectivo, por um sonho, a determinação dele é como granito. Não permite que quaisquer
obstáculos, desculpas ou protestos o desviem do caminho. Se não o ama, Lena, se não quer viver a vida com ele, então magoe-o. Magoe-o rápida e profundamente. E depois
afaste-se.
- Não quero magoá-lo. É aí que reside o problema.
- Ele julgava que já não era capaz de amar ninguém. Disse-mo quando rompeu com a Jessica. Disse que não sentia nenhum amor dentro dele. Agora sabe que não é assim,
e sente-se melhor por isso. Você já operou uma mudança na vida dele, uma mudança importante. Agora tem que o amar também, ou então abandoná-lo. Seria cruel optar
por uma situação intermédia, e você não é cruel.
Lena ergueu a mão e cerrou os dedos em redor da chave que trazia ao pescoço e depois baixou-a, agora com nervosismo, para as asas que afixara ao peito.
- Ele não é aquilo que eu esperava. Não é aquilo que eu procurava.
Patrick sorriu gentilmente e afagou-lhe a mão.
- A vida está cheia de surpresas, não é? Algumas surpresas são um verdadeiro pontapé no traseiro. Inclinou-se e beijou-lhe a face. - Vemo-nos mais tarde - disse.
E deixou-a sozinha.
A festa continuou um bom par de horas depois de os noivos terem partido sob uma chuva de confetes: confetes que Declan calculou que encontraria durante os seis meses
seguintes no seu relvado, nas suas roupas e talvez na sua comida.
A música continuou animada e os convivas mostravam-se felizes. Às primeiras horas da madrugada alguns dirigiram-se para os seus carros. Outros tiveram de ser transportados,
e nem todos eram crianças.
Declan manteve-se de pé junto aos degraus da entrada e viu partir os últimos convidados. O céu começava a empalidecer a oriente, num delicado atenuar da cor escura.
Viu uma estrela dissipar-se.
A manhã começava a romper.
- Deves estar cansado - disse Lena da varanda por cima dele.
- Não. - Continuou a olhar para o céu. - Devia estar, mas não estou.
- Vais precisar de uma semana para limpar a casa toda.
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- Não. O general e as suas tropas vêm cá tratar disso amanhã. Ordenaram-me que me mantivesse afastado, ordem que cumprirei com agrado. Não pensei que ficasses.
- Nem eu.
Virou-se e olhou para ela. Eram uma espécie de Romeu e Julieta, pensou. E ansiou por um final melhor.
- Porque ficaste?
- Não tenho a certeza. Não sei que pensar de ti, Declan. Juro por Deus, não sei mesmo. Os homens nunca foram um problema para mim. Talvez fosse eu um problema para
eles - disse com um ligeiro sorriso. - Mas és o primeiro que me dá problemas.
Começou a subir as escadas ao encontro dela.
- Nenhum deles te amava.
- Não, nenhum deles me amava. Queriam-me. Desejavam-me, mas isso era a parte mais fácil. Podemos ser despreocupados com as necessidades. E se queres saber a verdade,
às vezes, a maior parte das vezes, eu gostava dessa despreocupação. Não apenas pelo sexo, mas pela dança. Pelo jogo, o que quer que queiras chamar a essa corte que
afinal não é corte nenhuma. Quando a música pára ou o jogo acaba, podemos ficar com algumas amolgadelas ou beliscaduras, mas ninguém sai realmente magoado.
- Mas isto entre nós os dois não é um jogo.
- Já te magoei.
- Amolgadelas e beliscaduras por enquanto, Lena. - Calou-se. - Amolgadelas e beliscaduras.
- O que vês quando olhas para mim? Alguém, algo do passado. Não podes viver a vida amparado nos mortos.
- A ti vejo-te claramente. Mas vejo em nós algo que não pode ser ignorado ou esquecido. Algo que talvez precise de ser esclarecido antes de prosseguirmos. - Enfiou
a mão no bolso e tirou o relógio de Lucian. - Já te ofereci isto em tempos, vai para cem anos. Está na altura de o reaveres.
Lena sentiu os dedos gelarem perante a ideia de pegar naquele objecto.
- Se isso é verdade, não vês que tudo acabou em sofrimento, morte e tragédia? Não conseguimos mudar aquilo que aconteceu. Para quê correr o risco de o fazer reviver?
- Porque temos de arriscar. Porque desta vez somos mais fortes. - Abriu a mão, depositou o relógio na palma da mão dela e fechou-lhe os dedos. - Porque se não o
corrigirmos, nunca terminará realmente.
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- Está bem. - Guardou o relógio no bolso do casaco curto que vestia. Depois soltou o que trazia preso no vestido. - Já te dei isto em tempos. Devolvo-to.
Quando o aceitou, o relógio de pêndulo que outrora existira dentro da mansão começou a soar.
- Meia-noite - disse ele com toda a calma deste mundo. - Irá bater doze badaladas. Olhou para o mostrador do relógio que segurava na mão. - Meia-noite - repetiu,
e mostrou-lho. - Verifica no teu.
Sentia os dedos trémulos ao pegar no relógio.
- Santo Deus! - arquejou quando viu ambos os ponteiros completamente sobrepostos. - Porquê?
- Já vamos descobrir. Temos que ir para dentro de casa. - Olhou para cima, para o terceiro piso. - Tenho que ir ao quarto das crianças. A bebé...
Enquanto falava, ouviram os gritos angustiados.
- Vamos embora. Declan, vamos pegar no carro e fugir daqui. Mas ele avançava já para dentro de casa.
- A bebé está a chorar. Tem fome. Precisa de mim. Os pais do Lucian estão a dormir. Eu retiro-me sempre mais cedo quando ele não está em casa. Detesto sentar-me
com eles na salinha depois do jantar. Noto bem como ela me despreza.
A voz dele alterara-se, compreendeu Lena enquanto o seguia. Revelava agora uma cadência cajun.
- Declan!
- A Claudine vai pegar nela ao colo e mudar-lhe as fraldas, mas a minha querida Rosie precisa da mamã. Não gosto que ela fique no terceiro piso - disse enquanto
se precipitava pelo corredor. - Mas Madame Josephine consegue sempre o que quer. Nem sempre - corrigiu-se, e havia agora um sorriso na sua voz. - Se assim fosse,
eu já me teria tornado em isco para jacaré em vez de ter casado com o Lucian. Ele chega amanhã. Tenho tantas saudades...
Começou a subir as escadas e abrandou a passada, e Lena ouviu-o então respirar apressadamente.
- Tenho que ir lá acima. - Voltara a recuperar a sua própria voz, que revelava agora indícios de medo. - Tenho que lá ir. Tenho que ir ver.
Lena reuniu toda a sua coragem e deu-lhe a mão.
- Vamos entrar juntos.
A mão dele tremia. O frio que enchia o ar infiltrava-se-lhe nos ossos. Sentia o estômago agoniado e a náusea subir-lhe à garganta. Tentou controlar-se e empurrou
a porta com força.
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Tombou, apesar de Lena tentar ampará-lo, e caiu de joelhos.
- Ele vem aí! Está bêbado! Não o quero aqui, mas ele não se quer ir embora! Toda a gente diz que se parece com o Lucian, mas as pessoas não reparam nos olhos dele.
Tenho que o afastar daqui, tenho que o afastar da minha bebé! Quem me dera que a Claudine não tivesse saído para se encontrar com o Jasper. Não gosto de estar aqui
sozinha com o Julian. Ele assusta-me, mas não quero que se aperceba disso.
O seu rosto tornara-se pálido como a morte, e tinha os olhos vidrados.
- Declan, oh, meu Deus, volta a ti! - Apertou-lhe a mão com força.
- Quando ele tenta agarrar-me, eu fujo. - A voz era agora ofegante. Continuava ajoelhado, um homem alto e esguio, de cabelo aloirado e vestido com um smoking cujo
laço pendia solto. Um homem com recordações de uma mulher, um homem invadido interiormente pelo terror de uma mulher. - Mas não posso deixar a minha bebé sozinha.
Agarro no atiçador da lareira. Se tiver de ser, mato-o! Mato-o se tocar em mim ou na minha bebé! Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! - Lena sentiu os joelhos
ceder. Deixou-se cair no chão ao lado dele e tentou abraçá-lo. - Ele é mais forte do que eu. Grito e grito, mas ninguém vem ajudar-me. Está bêbado e fora de si.
Atira-me ao chão e rasga-me a roupa! Não consigo fugir-lhe. A minha menina chora, mas não consigo soltar-me. Não consigo detê-lo!
- Oh! - Lena estremeceu e tentou ampará-lo, confortá-lo. - Não! Não, não, não!
- Está a violar-me! - O fogo ardia no âmago do seu ser. Dor, aquela dor, e o medo. Oh, meu Deus, o medo! - Grito por ajuda. Grito por ti. mas tu não estás! - A voz
foi dilacerada pelas lágrimas. - Tu nunca mais chegas! E eu preciso de ti!
- Não, não, não! - Foi tudo o que ela conseguiu dizer enquanto se agarrava a ele.
- Ele está a magoar-me, mas resisto-lhe. Tento detê-lo, mas ele não pára. Estou tão assustada, tão assustada, mas sei que ele não está a fazer isto porque me deseja.
É porque te odeia! - Declan voltou-se, com os tempestuosos olhos acinzentados completamente inundados de lágrimas. - Ele odeia-te! E porque sou tua, tem que me quebrar.
Tal como quebrou os teus brinquedos quando eram crianças. Suplico-lhe que pare, mas ele não quer saber. Tenta sufocar-me os gritos, mas eu não paro de gritar. Não
paro! Começa a apertar-me a garganta com
291
as mãos. - Aquela pressão hedionda, aquela terrível falta de ar obrigou-o a dobrar-se sobre si próprio. - Não consigo respirar! Não consigo respirar! A minha menina
chora por mim e eu não consigo respirar. Ele está a matar-me! Enquanto a minha menina chora no berço. A nossa menina. Enquanto ele continua dentro de mim. E quebra-me
como a um brinquedo que pertence ao irmão. - Levantou a cabeça e olhou para Lena. E quando falou a sua voz era tão profundamente sofrida que ela se surpreendeu como
conseguiam ambos suportar aquilo. - Tu nunca mais chegavas. Chamei por ti, mas nunca mais chegavas.
- Perdoa-me! Oh, perdoa-me!
- Depois veio ela. - Declan levantou-se, firme como uma rocha. - Veio ela e viu o que ele me tinha feito. Olhou para mim como se eu fosse lixo que tivesse de ser
varrido antes que os vizinhos aparecessem. - Tinha agora os olhos secos e semicerrados enquanto as portas do segundo piso batiam com força. - Era a casa dela, os
filhos dela, e eu era a pega do bayou que tinha invadido o seu território. Vi-a olhar para mim. Parecia um sonho, olhar assim para ela. Vi-a dizer-lhe para me levar
para o quarto do andar de baixo enquanto ela limpava o sangue, a cera da vela e as loiças partidas. Ele levou o meu corpo para a varanda, mas eu continuava a observá-la
e vi-a acercar-se da minha querida menina e ouvi a mente dela questionar-se se não seria melhor sufocar também a criança. Ponderou essa hipótese, e acredito que
se tivesse tentado ainda me restavam forças suficientes para a fulminar como um relâmpago. - Declan voltou para junto da porta. - Ela pensava que eu era débil, mas
estava enganada. Podiam matar-me, mas não conseguiriam eliminar-me completamente.
- Declan, basta.
- Não, ainda não! - Dirigiu-se para as escadas, desceu para o corredor e abriu a porta do quarto de Abigail. - Ele pousou-me aqui em cima da cama. E chorou. Não
por mim, mas por ele mesmo. Que iria acontecer-lhe? As suas mãos tinham-me aviltado, assassinado, mas pensava apenas em si próprio. E continua a pensar apenas em
si próprio. Porque continua nesta casa, ele e Josephine. Sempre a caminharem de um lado para o outro, sempre à espera, no seu pequeno inferno. - Acercou-se da parede
onde existira outrora o armoire e abriu a porta que via na sua mente. - Pegaram em algumas das minhas roupas. Eu tinha guardado aqui o vestido para o baile. Tinha
tanto orgulho nesse vestido. Queria ficar bela para ti. Queria que sentisses orgulho em mim. Ela deixou cair o meu relógio, mas não se apercebeu.
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Ordenou ao Julian que me amortalhasse e levaram-me lá para fora, juntamente com uma mala cheia de coisas minhas. Ataram-me tijolos velhos para que o peso me arrastasse
para o fundo e levaram-me. Foi penoso. Apesar de haver luar, apesar de estar fresco, foi uma caminhada penosa a carregar aquele peso todo. O Julian sentiu-se agoniado,
mas ela não estava para aturar pieguices. Diriam que eu tinha fugido com outro homem. Deixariam que se espalhasse o boato de que a minha menina era uma filha bastarda
e que eu te convencera de que era tua filha. Ela disse ao Julian como iriam ser as coisas enquanto me colocavam os tijolos por cima, enquanto me envolviam com a
capa e me atavam com uma corda, enquanto me arrastavam para o pântano. - Olhou novamente para Lena. - E tu acreditaste neles.
- Não! - Agora era Lena quem chorava. Por ele, por Abigail, por si própria, por Lucian. - Não!
- De início não. Temeste por mim. Procuraste-me. Choraste por mim. Eu tentei ir ao teu encontro, mas tu não me deixaste entrar dentro de ti. Não me deixaste entrar
dentro de ti porque uma parte de ti acreditava já nas mentiras deles. Eu amava-te. Com todo o meu coração, com a minha alma, com o meu corpo. E morri por ti.
- Não pude impedir o que te aconteceu. Não estava cá para o impedir.
- Não, não estavas cá nessa noite. E nunca mais cá estiveste realmente. Não estiveste cá para mim, não estiveste cá pela nossa filha. Quebraste a promessa que me
tinhas feito. O voto solene que me juraste naquela cama, na noite em que ela nasceu. Mais do que a morte, foi isso que nos condenou.
- Como é que quebrei a promessa?
- Prometeste amar a nossa filha e cuidar dela para sempre. Fui-te sempre fiel, Lucian. É a verdade.
- Eu sei. - Lena fechou a mão sobre o relógio que tinha no bolso e sentiu o peso, o sofrimento, a mágoa.
- Como pudeste deixá-la sozinha? Como pudeste abandoná-la? Tu eras tudo o que ela tinha. Juraste-me.
- Não sei. Sentia-me debilitado. Não era tão corajoso ou tão verdadeiro quanto tu. Pensava que tu... que tu eras a força da minha vida e que, quando desaparecesses,
não teria nada a que me agarrar para sobreviver.
- Tinhas a Marie Rose.
- Talvez te amasse demasiado a ti, e a ela não o suficiente. Perdoa-me. Perdoa-me pelo que fiz, pelo que devia ter feito. Não posso
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voltar atrás e alterar as coisas. - Tirou o relógio do bolso e segurou-o na mão com o mostrador voltado para ela. - Por mais que o tempo pare, é demasiado tarde.
Se pudesse, nunca te teria deixado sozinha. Ter-te-ia levado comigo, a ti e à bebé. Faria tudo para impedir o que te aconteceu.
- Eu amava-te. E o coração não mais parou de me doer depois que me afastaram de ti. Uma dor que foi de sofrimento, depois de esperança e de mágoa. Tu escolheste
a morte em vez da vida, Lucian. E continuas a escolher a solidão em vez do amor. Como posso eu perdoar-te se tu não te consegues perdoar a ti mesmo? Enquanto não
te perdoares, eles terão ganho, e a casa que deveria ter sido nossa continuará a abrigá-los. Nenhum de nós será livre enquanto não fizeres essa escolha.
Virou-se, abriu as portas da varanda e saiu.
Lena sobressaltou-se com a porta que bateu com força atrás de si. Parecia uma rude gargalhada a troçar da infelicidade alheia. Ignorou o ruído, saiu e respirou fundo.
- Declan.
Ele estava apoiado à balaustrada, a olhar fixamente para os primeiros sinais da aurora.
- Sim? Estou a tentar decidir se preciso de um exorcista, de um psiquiatra, ou se devia investir dinheiro num remake de As Três Faces de Eva, comigo no papel principal.
- Encolheu os ombros, como se tentasse livrar-se de um peso irritante. - Acho que me contento com um Bloody Mary.
Lena aproximou-se cautelosamente por trás dele.
- Vou preparar um para cada - disse, pousando a mão nas costas dele. Declan afastou-se para o lado para fugir ao toque dela e deixou-a ali com a mão suspensa no
ar.
- Não preciso que me dêem palmadinhas ou me afaguem. Ainda continuo um pouco em carne viva. Por ter sido violado e assassinado, creio. - Enfiou as mãos nos bolsos
e desceu as escadas em passadas largas.
Lena aguardou uns instantes, esforçando-se por recuperar a compostura, e foi juntar-se a ele na cozinha.
- Deixa-me preparar as bebidas. A profissional sou eu.
- Eu sei preparar o raio da minha própria bebida.
Doeu-lhe quando ele lhe arrancou a garrafa de vodca das mãos. Doeu-lhe como se a tivesse esbofeteado.
- Está bem, prepara o raio da tua própria bebida. E enquanto a preparas, devias pensar em viver a tua própria vida.
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Virou-se e esbofeteou-o quando ele lhe agarrou no braço. E quando a sua mão lhe atingiu o rosto, o relógio de pêndulo começou a soar novamente e as portas bateram
com força.
O frio instalou-se-lhes nos ossos.
- Alguma vez foste violada? Lena soltou o braço com força.
- Não!
- E provavelmente também nunca te estrangularam até à morte, pois não? - Pôs de lado os bons modos e sorveu demoradamente da garrafa. - Vou dar-te uma pista. Estas
coisas tendem a deixar-te verdadeiramente irritada.
A ira abandonou-a.
- Não bebas assim, cher. Vais acabar por ficar agoniado.
- Já me sinto agoniado. Preciso de tomar um banho.
- Vai então. Vais sentir-te melhor. Vou fazer um chá. Deixa-me ao menos fazer isso - disse prontamente, antes que ele pudesse contrariá-la. - Talvez nos acalme um
pouco.
- Muito bem. Como queiras. - Subiu ruidosamente as escadas. Lena sentou-se por uns momentos, porque ainda sentia as pernas a tremer. Tirou o relógio do bolso e olhou
para o mostrador. O ponteiro dos segundos continuava a tiquetaquear. Mas era sempre meia-noite.
Guardou-o novamente e levantou-se para ir fazer o chá.
Levou-o para o piso de cima, juntamente com umas torradas: a refeição que a avó lhe preparava quando era criança e ficava adoentada. Declan estava sentado na beira
da cama, envergando umas calças de trabalho puídas. O cabelo continuava molhado, e a pele avermelhada de se ter esfregado com força. Pousou o tabuleiro ao lado dele.
- Queres que me vá embora?
- Não. - Quando ela lhe serviu uma chávena de chá, aceitou-a e tentou aquecer as mãos. Apesar do calor abrasador do banho, ainda se sentia enregelado. - Não me limitei
a ver ou a lembrar. Senti. O medo, a dor, a violação. A humilhação. E, como se isso não bastasse, parte de mim ainda era eu. E essa parte, a parte maior, a parte
dura e masculina, sentia-se indefesa, completamente indefesa enquanto via uma mulher aterrorizada ser violada e estrangulada. Não consigo explicar.
- Não precisas de explicar. Também senti um pouco isso. Não de maneira tão forte e tão clara como tu, mas... Quando olhaste para mim, quando ela olhou para mim através
dos teus olhos, senti tanta dor, tanto arrependimento. Tanta culpa. Bebe o teu chá, querido.
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Declan levantou obedientemente a chávena.
- Sabe bem. Agradavelmente adocicado.
- Chá doce e torradas. Vai fazer-te bem. - Subiu para a cama, ajoelhou-se atrás dele e começou a massajar-lhe os ombros. - Ela era mais forte do que ele. Não foi
tanto por culpa dele. Criaram-no como um fraco. Mas ele amava-a, Declan. Sei isso sem a mínima dúvida. Culpou-se a si próprio, mesmo sem saber as coisas terríveis
que lhe tinham acontecido a ela. Culpou-se por não estar com ela, por não se lhe ter entregue suficientemente.
- Abandonou a criança. - A sua voz era determinada.
- Abandonou-a. Sim, abandonou-a - retorquiu Lena. - E embora tenha sido um erro da parte dele, embora tenha sido um erro acabar com a própria vida e deixar a criança
órfã, apesar disso ela teve uma vida melhor. Viveu rodeada de pessoas que a amavam, que estimavam a memória da sua mãe. Nunca teria tido uma vida assim aqui na Mansão.
- Tinha direito a uma vida assim. Ele devia ter-se preocupado com isso.
Encostou o rosto à cabeça dele.
- Não consegues perdoar-lhe.
- Não consigo compreendê-lo.
- Não, um homem como tu nunca compreenderia um homem como ele. Talvez eu consiga, talvez eu consiga compreender um homem que fugiu com uma mulher em vez de fazer
frente aos pais. Um homem que depois a trouxe para uma casa cheia de ressentimento e sombras em vez de criar um lar para ambos. Um homem que se deixou sucumbir ao
ponto de se afogar em vez de viver com a mágoa e criar a própria filha com o amor e a compaixão que lhe haviam negado a ele. Queria ser mais do que aquilo que era.
E tê-lo-ia sido ao lado dela. Não devias desprezá-lo, Declan, devias sentir compaixão por ele.
- Talvez. É difícil. Há ainda muito do desespero dela dentro de mim. - O desespero dela, e uma boa porção do seu próprio desespero, pensou.
- Consegues descansar?
- Creio que não.
- Porque não tentas? Preciso de ir mudar de roupa. - Deslizou para fora da cama, levantou o tabuleiro e pô-lo de lado. - Tenta dormir um pouco. Não demoro.
Não tentou detê-la. Provavelmente era melhor ficar sozinho. Deitou-se e ficou a olhar para o tecto, a ouvir as primeiras notas do canto matinal dos pássaros.
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Abigail tinha sido quebrada, pensou. Tinham-lhe quebrado o corpo e o coração.
Por certo adormeceu, pois quando abriu os olhos o Sol já se erguia no horizonte. Ainda era cedo, concluiu, mas o general e as suas tropas alvoroçadas não deviam
tardar a invadir-lhe a casa com esfregonas, vassouras e só Deus sabe que mais.
Talvez a casa precisasse de ser limpa, abalada. Continuava a ser a sua casa. Não ia desistir dela. O que quer que tivesse acontecido, o que quer que a casa partilhasse
com ele, não iria desistir.
E, por Deus, também não iria desistir de Lena.
Sentou-se, franziu a testa e viu-a sentada na cadeira no outro lado do quarto. Vestia calças de ganga e uma simples T-shirt branca. Tinha três pequenos ramalhetes
sobre o regaço.
- Apetece-te dar um passeio? - perguntou-lhe ela.
- Creio que sim.
- Veste uma camisa e calça os sapatos.
- Aonde vamos?
- Digo-te quando sairmos.
Foi ela quem conduziu e era ele quem tinha agora as flores sobre o regaço.
- Quero levar-lhe flores, à Marie Rose. - Como sua antepassada, pensou Lena, como pai dela. - Achei que também ias gostar desta visita. - Declan não disse nada.
- A minha avó contou-me que a Marie Rose costumava ir ao cemitério uma vez por ano por ocasião do aniversário. Punha flores na campa do pai. Esta manhã, quando fui
mudar de roupa, disse-me onde fica o jazigo dele e colhemos estas flores no pântano. Também quero levar flores ao Lucian.
Declan pegou num dos ramalhetes.
- É o teu símbolo da piedade?
- Sim, quando não podemos fazer mais nada. - E os outros ramalhetes?
- A Marie Rose também punha flores na campa da mãe, igualmente uma vez por ano. Parte dela devia saber. Ia todos os anos ao rio, pelo aniversário, e lançava flores
à água. A minha avó disse-me onde. - Conduzia suavemente, embora com alguma velocidade, até que abrandou para virar para o cemitério. - Sei que continuas zangado
com ele, e comigo. Se não quiseres fazer isto, podes esperar no carro. Não te levo a mal.
- Por que razão o fazes?
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- Ele faz parte de mim. Através do sangue, e não só. Se conseguir aceitar quem me gerou, se conseguir viver com isso, então posso aceitar tudo o resto. - Estacionou
o carro e pegou em dois ramalhetes. - Fica por perto. Não me demoro.
- Vou contigo.
Apeou-se, mas não lhe deu a mão, ao contrário do que ela esperava. Percorreram as veredas entre as campas, entre as grades ornadas, entre os anjos de mármore e através
das sombras projectadas pelas cruzes.
Lena deteve-se junto de um dos túmulos. Havia vários, simples e sem ornamentos. Era ali que o seu avô repousava, bem como outros que faziam parte dela. Mas hoje
viera apenas por uma pessoa.
Agarrava com força nas flores. Marie Rose, leu na campa. Sangue do meu sangue, coração do meu coração.
- A minha avó disse-me que a Marie Rose foi uma mulher feliz e teve uma vida boa. Que se sentia feliz com a vida que tinha. Pode não ter sido o suficiente para compensar
o mal causado, mas se tivesse sido diferente acho que hoje não estaria aqui contigo...
Começou a depositar as flores e Declan fechou a mão sobre a dela e sobre os ramalhetes. Depuseram-nos sobre a campa: a campa da bebé, da rapariga, da mulher adulta,
juntas.
- A campa dele fica algures perto - conseguiu Lena dizer. A sua voz era rouca e tinha os olhos marejados de lágrimas.
Caminharam sob a luz do sol, através das sombras dos túmulos, em silêncio.
O jazigo dos Manet era uma torre quadrada, com pórticos gravados e portas espessas e cravejadas. Estava encimada por um anjo feroz que segurava uma harpa como um
soldado seguraria um escudo.
- Que visão alegre - comentou Declan. - Diria que nenhum deles faleceu em paz. - Olhou em volta e viu a caixa de cimento sobre uma lápide. A placa dizia: Lucian
Edward Manet. 1877-1900. - Foi sepultado aqui fora?
- Nunca lhe perdoaram - explicou Lena. - Nunca lhe perdoaram o casamento, a criança, a morte desonrosa. Disseram que se afogou acidentalmente, apesar de toda a gente
saber que tinha sido suicídio. E embora Josephine não o quisesse no jazigo da família, mesmo assim quis que fosse enterrado em solo consagrado. Caso contrário, teria
havido outro escândalo.
Declan olhou novamente para o jazigo.
- Que cabra.
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- Ele não tinha avós como eu que o amassem, que o resguardassem dos golpes da vida. Tinha um irmão gémeo que o odiava simplesmente por existir. Tinha fortuna e posição,
educação e privilégios. Mas não tinha amor. Até aparecer a Abigail. E depois afastaram-na dele. - Depositou as flores. - Fez o melhor que conseguiu. Mas não foi
suficiente.
- Tu és mais forte do que ele alguma vez foi. Mais inteligente, mais resistente.
- Espero que sim. E espero que ele descanse em paz. As flores não vão durar muito com este sol, mas... Bem, faz-se o que se pode.
Afastou-se sem dizer mais nada. Declan permaneceu um pouco mais, a olhar fixamente para a placa e para as flores. Depois, num impulso, agarrou numa das flores do
ramalhete e depositou-a sobre a campa.
Lena pôs os óculos de sol porque estava a chorar.
- Foi gentil da tua parte.
- Bem, faz-se o que se pode. - Desta vez deu-lhe a mão.
Não falaram no caminho de regresso. E nem Rufus nem Odette vieram recebê-los quando Lena estacionou diante da casa da avó. Declan continuou em silêncio quando ela
o conduziu através do pântano. Em silêncio, tal como naquela noite, com o ar frio, o luar ténue, o pio de uma coruja. E as respirações ofegantes de um assassino
e da sua cúmplice.
- Queres voltar para trás? Estás terrivelmente pálido.
- Não. - O suor escorria-lhe pelas costas apesar do frio que sentia dentro de si. - Preciso de fazer isto.
- Estamos perto.
Havia flores dos pântanos a desabrochar ao longo da estreita vereda de terra batida. Declan concentrou-se nas flores, na sua cor, na sua beleza. Mas quando se deteve
junto da margem, estava sem fôlego e sentia vertigens.
- Foi aqui. Exactamente aqui.
- Eu sei. Era aqui que a Marie Rose vinha, a este preciso lugar. O coração dela sabia.
Desta vez entregou-lhe o ramalhete a ele e retirou apenas uma flor para si. Declan atirou as flores ao rio e viu a beleza das cores flutuar na água acastanhada.
- Nem toda a gente pode colocar flores na própria campa.
- Lamento muito. - As lágrimas escorriam-lhe pelas faces. - Lamento sinceramente. - Ajoelhou-se e atirou a flor para um local onde pudesse flutuar isolada. Tacteou
à procura da mão dele. - Lamento tanto ter-te magoado.
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- Não te sintas assim. - Levantou-a e abraçou-a. - Agora está tudo bem.
- Ele não confiou o suficiente. Eu não confiei o suficiente. Foi demasiada mágoa e pouca fé. Então como agora.
- Tem havido demasiado sofrimento. Então como agora. - Levantou-lhe o rosto e disse aquilo que compreendera existir dentro dela, dentro de Abigail, no momento em
que tinham depositado as flores em memória de Marie Rose. - Perdoo-te.
- Tens mais capacidade de perdão do que ela.
- Talvez. Talvez seja por isso que continuamos a viver. Dá-nos a oportunidade de emendar as coisas que destruímos.
- Ou a oportunidade de cometer os mesmos erros. Também tenho uma coisa para te dar. Mas não aqui. Quando voltarmos à Mansão. É lá o local apropriado.
- Está bem. - Declan beijou-lhe a mão. - Estamos bem.
- Creio que estamos no bom caminho. Agora vamos. Gostava de ir a pé, para me recompor.
- Boa ideia.
- Queria pedir-te uma coisa - disse ela enquanto voltavam a percorrer a vereda. - Gostava de colocar três sinais, talvez junto do tanque. Um em nome do Lucian, outro
em nome da Abby, outro em nome da Marie Rose. Acho que está na altura de se reunirem.
- Creio que já estão reunidos. - Ou quase reunidos, pensou. Quase, porque sentia uma leveza no coração que nunca esperara voltar a sentir. - Esses sinais serão uma
boa recordação. Vamos escolher um local para os colocar. E depois plantamos lá qualquer coisa, nós os dois.
Lena anuiu com a cabeça.
- Talvez um salgueiro-chorão.
- Como aquele de que ela tanto gostava. - Assentiu também com a cabeça. - Às vezes conseguimos repor as coisas como elas eram, outras vezes alteramo-las. Desta vez
faremos ambas as coisas. Depois, quando tivermos filhos, podemos fazer aí piqueniques e contar-lhes a história. - Calou-se por um momento. - Desta vez não me disseste
para me calar.
- Cher, convenceste-me por desgaste. Parece que os teus soldados já chegaram.
Declan olhou e viu os carros.
- Não achas que vai ser divertido? E se nos esgueirássemos pelas escadas da entrada e nos fechássemos no meu quarto? Sinto-me capaz de dormir durante uma semana
inteira.
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- É uma boa ideia, mas só tenho uma hora. Depois preciso de voltar para o trabalho.
- E eu ainda tenho energia para uma hora - retorquiu, levando o dedo aos lábios e subindo furtivamente pelas escadas. - Alguma vez rebolaste nua na cama, com a casa
cheia de mulheres a esfregarem o soalho nas outras divisões?
- Não, e isso não cabe na agenda desta manhã.
- Desmancha-prazeres.
- Declan. Não. Deixa as portas abertas. Não, espera só...
- É o que estou a fazer - disse quando a aprisionou nos braços. - Vou esperar agarrado a ti. E, oh, meu Deus, meu Deus, é tão bom! Tenho sentido a tua falta - murmurou,
e compreendeu que era ele e Abby que a abraçavam assim.
Um círculo, um círculo que novamente se fechava, pensou. E desta vez não se quebraria.
Ela perdeu, apercebeu-se então. Josephine. Tudo lhe fugia agora das mãos.
- Tenho coisas que te quero dizer.
- Já chega de palavras. - Uniu os lábios aos dela num beijo suave e voluptuoso. - Deita-te comigo, Lena. Deita-te comigo. Sinto tantas saudades de me abraçar a ti.
- Preciso de fazer isto de pé. - Afastou-se e manteve-se sob o jorro da luz do sol. - Até hoje fiz sempre as coisas à minha maneira e tenho-me saído bem. Tu tens
complicações, coisas confusas que me irritavam e me viraram a vida do avesso por causa daquilo que eras, que és e que poderás vir a ser. Nunca me preocupei muito
com o que poderá vir a ser, Declan.
- E que tal preocupares-te com o que vai ser?
- Isso é a tua teimosia a falar, e eu adoro-a. Adoro tantas coisas em ti que já lhes perdi a conta. E agora, eis-me apaixonada por um maldito ianque endinheirado.
Declan sentiu todo o seu ser agitar-se e tornar-se brilhante como o Sol.
- Angelina.
- Espera até eu terminar. - Suspirou e manteve-se calada até ter a certeza de que conseguia falar com calma. - Tenho muitos amigos que se preocupam comigo. Talvez
me amem com aquele amor de amigo. Tive o meu avô, que fez de mim a luz da sua vida. Tenho a minha avó. Mas nunca ninguém me amou como tu. E o pior é que eu também
nunca amei ninguém como te amo a ti. É tudo. - Levantou
301
os braços e desapertou a corrente que trazia ao pescoço. Deu-lha, e a minúscula chave baloiçou. - Isto agora pertence-te. Creio que já te pertence há algum tempo.
És tu a chave, cher. Sempre foste.
Aceitou-a, e depois deixou-a encantada quando a colocou no seu próprio pescoço.
- Vou fazer-te tão feliz.
- Espero bem que sim. Vamos casar-nos ou não?
- Podes crer. - Riu-se, levantou-a do chão e fê-la rodopiar em círculos. - Consegues sentir?
- Sentir o quê? Tenho a cabeça a girar.
- Agora a casa é nossa. Somente nossa. - Pousou-a novamente no chão. - Acabaram-se os fantasmas. Não vive cá mais ninguém a não ser nós. E estamos apenas a começar.
Lena abraçou-o e uniu a boca à dele.
- Bem-vindo a casa.
Manteve-se abraçada a ele enquanto retirava o relógio do bolso para verificar o mostrador. E viram que o tempo tinha recomeçado a avançar.--
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