terça-feira, 22 de junho de 2010

Folha - Torturas da Copa

** Folha- João Pereira Coutinho
Torturas da Copa
Vuvuzelas. Que palavra! Dias atrás, desconhecia a existência do "instrumento". Dias depois, a Copa do Mundo na África do Sul resume-se nessas nove letras. Vuvuzelas.
De início, acreditei que o problema era do meu aparelho de TV. Os jogos começavam e havia um zumbido permanente a pairar sobre os jogadores, como se uma manada
de
elefantes invisíveis tivesse invadido o campo.
Tentei tudo. Esmurrei o televisor, telefonei para a loja onde o comprei, pedi ajuda técnica ao pessoal da TV a cabo. Cansado de lidar com o bicho, passei a lidar
comigo. Estaria a enlouquecer? Estaria a escutar manadas de elefantes que só existiam na minha cabeça?
O problema não era meu. O problema estava nas vuvuzelas. As vuvuzelas dentro dos estádios. E as vuvuzelas fora dos estádios.
No meu bairro lisboeta, todas as casas têm uma vuvuzela, oferta simpática de um posto de gasolina nacional à torcida lusitana. No meu prédio, todos os apartamentos
têm uma vuvuzela. Os meus vizinhos mais próximos tocam vuvuzela.
E, quando um começa, os outros respondem. Parece que é um código informal, como acontece em certos presídios: quando alguém decide destruir o sossego da rua, os
outros acompanham em alegre eco. Como se dissessem: "Estou aqui! Vamos torturar o João Pereira Coutinho?".
Essa comunicação primitiva, importada da selva africana, dura horas e horas e horas. Centenas ou milhares de vuvuzelas, cada uma a expelir 120 decibéis (segundo
dizem os especialistas).
Tradução: durante horas e horas e horas, Lisboa está invadida por um som ainda mais estridente do que uma serra elétrica ou um helicóptero (dizem os especialistas
outra vez). Agora, é só multiplicar pelas centenas ou milhares que dominam a capital portuguesa e imaginar a trilha sonora.
Por isso assisti, com proteção auditiva própria de trabalhadores de aeroporto, ao Portugal x Coreia do Norte. Escrevo depois do jogo. E temo suas consequências.
Sete a zero? Um exagero. Uma humilhação. E, quando o assunto é a Coreia do Norte, é importante ter cuidado com os exageros e as humilhações. Um pouco de história
é importante.
Sou português. Nasci depois de 1966. Mas sei o que aconteceu em 1966.
Portugal jogou na Copa da Inglaterra. Eliminou o Brasil de Pelé na primeira fase. E, nas quartas de final, encontrou a Coreia do Norte. Sofreu três gols. Marcou
cinco. Avançou para a semifinal, onde a anfitriã (e o juiz) fez o resto.
Mas na história desse jogo, a verdadeira tragédia aconteceu depois do jogo. Aconteceu quando os norte-coreanos regressaram à casa.
A revista americana "The New Republic" relatou recentemente o sucedido: recebidos como heróis pela população, a verdade é que as autoridades oficiais de Pyongyang
não gostaram do 3x5 com Portugal. E agiram em conformidade.
A equipe foi desmantelada. Os jogadores foram criticados violentamente pela imprensa oficial do Partido, acusados de "espionagem" e outras atividades "subversivas".
E, depois de criticados, seguiu-se a tortura e o envio para os campos de concentração do regime.
Meio século depois, a situação não se alterou. A Coreia do Norte continua a ser um estado comunista e paranoico (uma redundância, eu sei), especialista no assassinato
dos seus cidadãos (por crimes "antissociais"). Um regime que precisa de ajuda externa para se alimentar e que por isso chantageia o mundo com o seu arsenal nuclear.
Sem falar do esporte favorito do país: não falo do futebol, nem sequer do feminino, onde as norte-coreanas são craques; falo do sequestro contínuo de cidadãos sul-coreanos
junto à fronteira. Talvez uns 500 continuem a apodrecer nos calabouços da Coreia do Norte. Como patriota e português, aplaudo a vitória de Portugal.
Mas será decente que a felicidade do meu povo se faça às custas de duas dezenas de jogadores, que provavelmente terão igual recepção em Pyongyang quando a Copa
terminar?
Não admira que alguns deles já tenham dado sinais de deserção, mendigando asilo político. Como não admira que a minha alma de torcedor esteja dividida.
Um empate talvez tivesse sido mais caridoso para evitar a previsível tortura. Até porque, em matéria de tortura, os jogadores da Copa já tiveram a sua dose. Basta
ouvir as manadas de elefantes que habitam os estádios. E que já chegaram ao meu bairro e ao meu televisor.
Renata Coutinho

"Um livro aberto é um cérebro que fala; fechado, um amigo que espera;
esquecido, uma alma que perdoa; destruído, um coração que chora."
(Rabindranath Tagore)

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