sexta-feira, 22 de setembro de 2023

{clube-do-e-livro} Lançamento : A Última Convidada - Josué Montello -Formatos : epub,mobi,pdf e txt

A �ltima convidada

Ao fim de sucessivos estudos cr�ticos
sobre a obra romanesca de Josu� Montello,
Alceu Amoroso Lima (Trist�o de Athayde)
n�o hesitou em reconhecer que o mestre
de Noite sobre Alc�ntara, Os tambores de S�o
Lu�s, O sil�ncio da confiss�o, Uma varanda
sobre o sil�ncio, Cais da sagra��o, � um dos
que mais sabem tra�ar, de modo magistral,
entre nossos romancistas consagrados, o
plano de um romance.

Este seu novo romance, A �LTIMA
CONVIDADA , confirma plenamente o ju�zo
de nosso maior cr�tico.

Iniciada a leitura de A �LTIMA
CONVIDADA, logo o leitor se v� envolvido
por sua trama, no crescente interesse da
narrativa, e a� est� o ponto fundamental da
arte do grande narrador.

L�mpido, senhor de uma prosa
transparente e transl�cida, que � tamb�m um
modelo de l�ngua portuguesa, Josu� Montello
s� reclama para si a gl�ria de ser um
contador de hist�rias, aliciando
gradativamente o seu leitor e
proporcionando-lhe, com o fluxo narrativo
de seu romance, uma nova penetra��o nos
mist�rios da consci�ncia humana.

Sem repetir-se, sem buscar o efeito f�cil
de lances meramente apelativos, sem desviar-
se do caminho que se tra�ou, ajustando seus
romances � melhor tradi��o narrativa, a que
incorporou as solu��es t�cnicas modernas,
ajust�veis aos valores fundamentais do
romance como g�nero liter�rio de express�o
popular, Josu� Montello construiu toda uma
vasta saga romanesca, na qual se refletem os
problemas da condi��o humana, enquanto
indiv�duo ou personagem, e os valores da
condi��o social, enquanto n�cleo coletivo
de conte�do pol�tico.

A �LTIMA CONVIDADA incorpora �
saga montelliana um elemento novo � o da
transcend�ncia dessa mesma condi��o,
privativo do pr�prio ser humano, e presente
em obras cl�ssicas da literatura universal,
como em The tum of the screw, de Henry
James. Ou seja: algo em que esse ser vai al�m
de si mesmo, na consci�ncia de seus pr�prios
enigmas e mist�rios.


JOSU� MONTELLO


A Ultima


Convidada.


ROMANCE

A


EDITORA
NOVA
FRONTEIRA




� 1989, by Josu� Montello


Direitos de edi��o da obra em l�ngua portuguesa adquiridos pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A
Rua Bambina, 25 - CEP 22251 - Botafogo - Tel.: 286-7822
Endere�o telegr�fico: NEOFRONT - Telex: 34695 ENFS BR
Rio de Janeiro, RJ


Revis�o tipogr�fica
IZIDORO R. MARTINS
HENRIQUE TARNAPOLSKY
�LVARO TAVARES

CIP-Brasil. Cataloga��o-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.


Montello, Josu�, 1917


M781u A �ltima convidada: romance / Josu� Montello. � Rio de Janeiro :
Nova Fronteira, 1989.
(Romances de autores nacionais)

1. Romance brasileiro. 1. T�tulo. II. S�rie
CDD - 869.93
89-0218 CDU - 869.0(81)-3


Ao Sebasti�o Lacerda,
amigo e companheiro,
este romance � dedicado.


PREF�CIO

Olho na dire��o da amiga e companheira. Est� a um canto,
nesta sala aconchegada, que � tamb�m o ch�o de minha
semeadura. Recolheu-se ali, pelo meio da tarde, para terminar
de ler os originais deste romance. Falo-lhe, e n�o me ouve, concentrada
na leitura. Por fim, j� com a luz que se recolhe, ergue
para mim os olhos �midos, e um sorriso bom, alto e superior
se alastra no seu rosto.

Jamais aspirei a outra recompensa para o meu trabalho.
E a verdade � que nunca me debrucei tanto sobre um romance
como o fiz com este. Primeiro, o longo tempo em que passei
com ele na consci�ncia, constante, imperativo. Depois, no amplo
sil�ncio de minhas madrugadas, as sucessivas reda��es do
mesmo texto, emendando, cortando, acrescentando, sempre
atento a esta obstinada inclina��o � transpar�ncia, ao equil�brio
e � simplicidade objetiva, sem perder de vista a m�sica
da frase.

Por fim, a certeza �ntima de que o romance, retocado, polido,
trabalhado, constitu�a uma realidade aut�noma que de
mim se desprendera, enquanto se aproximava a saudade do porfiado
esfor�o para lhe dar meu sangue, minhas emo��es e minha
vida. � verdade: agora n�o � mais meu. H� de viver por
si, com a sua simplicidade e as suas limita��es, como um pequeno
ser obscuro e solit�rio que se perde na multid�o.

Ao todo, neste meu canto, com igual obstina��o, j� s�o
18 romances, um diferente do outro, cada qual ajustado ao conjunto,
com o mesmo rigor, o mesmo cuidado. O primeiro deles,
Janelas fechadas, escrito aos vinte anos, foi refundido aos
cinq�enta: da primeira edi��o, s� restaram algumas linhas do

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come�o, outras do fim, e o mesmo drama, e as mesmas personagens,
como se eu houvesse reconstru�do a casa inteira,
conservando-Ihe os moradores. Ganhou com isso. Estava matinal
demais. Assim, sim: podia continuar o seu caminho.

De vez em quando, ao longo deste meu paciente itiner�rio,
tenho ouvido louvores generosos e compreensivos, que
guardo comigo, na sele��o dos meus pap�is, e tamb�m censuras
aguerridas, que sempre interpretei benevolentemente, sabendo
que tenho meu c�digo, meu modo de ser, como prop�sito
e como roteiro. Agora, suponho, j� devo ser julgado pelo
conjunto. Bom? Mau? Queixem-se a Deus os que tiverem queixas.
Foi assim que Deus quis que eu fizesse. E eu fiz.

Vai aqui um bom exemplo ilustrativo da restri��o sum�ria:
"A fragilidade do livro � que seu autor n�o � um escritor.
Seu estilo � por vezes indeciso, incorreto e vulgar."

Excessivo? �spero demais? Um momento, por favor. Essa
censura nada tem a ver comigo nem com qualquer um de
meus romances. N�o, n�o tem. O autor censurado � Flaubert;

o romance, Madame Bovary. Saiu em Paris, em Le F�garo, em
28 de junho de 1857.
Obrigado.

J. M.
Paris, 1988.

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Le roman est l'expression de la conscience
humaine.

FRAN�OIS MAURIAC, Ma conception du
roman

La vie est le plus grand des romanciers, mais
elle ne sait pas �crire. Elle jette en vrac des richesses
extraordinaires � celui qui sait s'en servir.
Au romancier d'y puiser et de rendre tout
cela intelligible.

JULIEN GREEN, L'Arc-en-ciel


PRIMEIRA PARTE

Les choses ont diverses qualit�s, et l'�me
diverses inclinations; car rien n 'est simple de
ce qui s'offre � l'�me, et l'�me ne s'offre jamais
simple � aucun sujet. De l� vient qu'on
pleure et qu'on rit d'une m�me chose.

PASCAL, Pens�es

Et, une demi-heure apr�s, la pens�e qu 'il
�tait temps de chercher le sommeil m'�veillait;
je voulais poser le volume que je croyais avoir
encore dans les mains et souffler la lumi�re;
je n'avais pas cess� en dormant de faire des
r�flexions sur ce que je venais de lire, mais ces
r�flexions avaient pris un tour un peu
particulier.

MARCEL PROUST, A la recherche du
temps perdu


PRIMEIRO CAP�TULO

1

Todas as noites, sempre que apagava a l�mpada de cabeceira,
o mesmo receio das longas horas de ins�nia lhe subia
� consci�ncia, e ela permanecia quieta, um pouco de lado, repetindo
os velhos expedientes que lhe tinham ensinado, ou que
ela pr�pria inventara, na perp�tua ast�cia para adormecer: a
sucess�o dos pinheiros na floresta infinita; os patos que formavam
uma longa fila nas �guas da lagoa, nadando na mesma
dire��o, um atr�s do outro; os palitos que ela ia tirando
de uma caixa de f�sforos, no cuidado de esvazi�-la sem pressa,
metodicamente; os soldados que desfilavam com o mesmo
passo, o mesmo uniforme, a mesma carabina ao ombro, e iam
marchando ao som dos mesmos tambores: tam-tam, ratapl�;
tam-tam, ratapl�.

Por vezes, gra�as a esses recursos mentais, o sono lhe vinha,
e ela resvalava da vig�lia para o sonho, sem sentir a transi��o
misteriosa. E era sempre o mesmo sono mitigado, de duas
a tr�s horas, no m�ximo quatro. Logo lhe vinha a vontade de
alongar o p� para fora da cama, tateando o tapete do ch�o
em busca das sand�lias. Antes, olhava o rel�gio de cabeceira,
guardado dentro da gaveta para que n�o a despertasse com seu
tique-taque nervoso. Se j� passava das quatro horas, continuava
a leitura interrompida no momento em que se alongara na cama,
na esperan�a de adormecer. Em caso contr�rio, tornava
a apagar a l�mpada, acomodava-se novamente no leito, e ficava
a ouvir a respira��o do Rodrigo, ali ao seu lado, em pleno
sono.

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Raras vezes o sono lhe voltava. Quando n�o vinha, Patr�cia
tratava de permanecer quieta, na vig�lia da madrugada. Mas
s� raramente permanecia assim por mais uma hora, n�o tardando
a ouvir os ru�dos da manh� que despontava com a primeira
claridade t�mida, o bater de um port�o, o ru�do de passos
na cal�ada da rua, o latido dos c�es, o sopro da vira��o
nas �rvores do parque, at� que se calava o silvo estridente do
apito dos guardas de seguran�a, na ronda noturna em volta
da casa.

Como acontecia com freq��ncia n�o ter o marido ao S �U
lado, sempre �s voltas com as viagens para Nova Iorque, para
Londres, para Roma, para Buenos Aires, para o Rio de Janeiro,
a servi�o de suas empresas, ela acabara por habituar-se a
dormir sozinha, na vasta cama e no quarto espa�oso, protegida
pelo crucifixo da parede, e pelo ter�ozinho de prata, sob

o travesseiro.
Ainda bem que o Rodrigo n�o tardava a regressar. Por
vezes, no seu ir e vir, fazia-lhe esta surpresa: ela, ao despertar,
dava com ele ali, j� adormecido. Ou ent�o lhe ouvia os passos
na escada, o ranger da chave na porta, e levantava-se, radiante,
ansiosa, para ir ao seu encontro, quase despida pela incid�ncia
da luz na transpar�ncia da camisola.

E como sabia que ele sempre a queria, quando voltava das
viagens, ajudava-o a p�r o pijama; ia buscar-lhe os dois dedos
de u�sque; preparava-lhe um sandu�che; ouvia-lhe as novidades;
recebia as lembran�as; esperava que ele fosse ao banheiro;
escutava o ru�do da escova de dentes, depois o ranger
da porta que voltava a descerrar-se com o mesmo rangido da
dobradi�a.

J� ela o aguardava, nua, sob o len�ol.

A excita��o da entrega, demorada, por vezes repetida,
alvoro�ava-lhe os sentidos, e ela voltava depois a ler, sabendo
que entraria pela madrugada com o livro nas m�os.

Desta vez, enquanto ele dormia, como se o sono profundo
o fosse levando noite afora, Patr�cia apanhou ao acaso, na
mesa-de-cabeceira, um dos romances que ele lhe havia trazido,
e deu por si na capela da igreja de S�o Jorge, em Nova
Iorque, assistindo ao casamento de Kay Leilans Strong com

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Harold Petersen. Logo se lembrou, com saudade, de seu pr�prio
casamento, n�o numa capelinha, como o de Kay, mas no
altar-mor da catedral g�tica onde fora batizada. Assim como
Kay, na capela, tivera a presen�a das colegas de turma, uma
semana depois de deixar a universidade, ela, Patr�cia, tamb�m
pudera ver � sua volta, na vasta nave da catedral repleta de convidados,
as colegas da Escola Normal.

E com o romance de Mary McCarthy aberto sobre o peito,
Patr�cia levou alguns momentos im�vel, de olhos no ar, sentindo
crescer em seu �ntimo a saudade de si mesma, como se
voltasse para tr�s a roda do tempo. Esqueceu a sua ins�nia,
deixou de ouvir o espa�ado latir dos c�es nas alamedas do parque,
n�o escutou o apito dos guardas, n�o se distraiu com o
ru�do de passos na cal�ada, toda ela concentrada nas colegas
que ia recordando, no uniforme de saia azul e blusa branca,
cada qual no seu lugar na sala de aula � a vasta sala de esquina,
com quatro janelas de frente, outras quatro � esquerda,
todas recolhendo a claridade e o bul�cio das ruas que ali se
encontravam, no aclive da ladeira.

Um come�o de arrepio crispou-lhe o corpo, como se, l�
fora, o tempo fosse mudar, e ela olhou em volta, � procura
da camisola: l� estava, no bra�o da poltrona. No momento de
tornar a vesti-la, olhou-se no espelho grande, � sua frente. O
Rodrigo tinha raz�o: ningu�m lhe daria a idade verdadeira, com
aqueles seios altos e rijos, aquela cinturinha, aqueles quadris,
aquelas coxas, aqueles cabelos negros. Contente consigo mesma,
ergueu os bra�os acima da cabe�a, deixou cair a camisola
ao longo do corpo.

Antes de deitar-se, recomp�s o gesto do marido, ainda despido,
a alongar o bra�o at� a mesa-de-cabeceira, para trazer
dali o copo de u�sque, que sorveu em dois goles, e a cigarreira
de prata, da qual tirara o cigarro para o canto da boca. Em
seguida, sentado na borda do leito, acendeu o isqueiro. E foi
ent�o que ele lhe observou, ainda com a chama diante dos
olhos:

� Com esse teu corpo, ningu�m d� a tua idade.
E ela, jubilosa:
� Eu s� queria que visses a cara de espanto de minha mas15



sagista quando eu lhe disse que ia fazer quarenta anos. Arregalou
os olhos, levantou as sobrancelhas, duvidando: "N�o,
n�o pode ser, D. Patr�cia." E eu tive de repetir, s�ria, para ela
acreditar.

Sentado na cama, ele acabou de abotoar o pijama, sempre
com o cigarro pendente dos l�bios. Via-se-lhe o ar saciado
na placidez do rosto cheio, no brilho dos olhos sonolentos, na
agilidade das m�os cabeludas. E alongando-se na cama, ap�s
esmagar o cigarro no cinzeiro:

� Tamb�m a mim ningu�m d� cinq�enta anos. Tu que
o digas.
Ela riu alto, sentindo-lhe a mal�cia. E no mesmo tom, com
o mesmo riso:
� Ainda bem que eu te acompanhei.
Rodrigo repetiu a risada, afagando-lhe a coxa nua, que
se estendia a seu lado, enquanto ela tratava de afastar-lhe o
bra�o, como no temor de que ambos voltassem a se excitar:

� Agora, trata de dormir.
E p�de ver que o marido, assim que cerrou as p�lpebras,
mergulhou no sono profundo, passageiro tranq�ilo na imensid�o
da noite. Afagou-lhe os cabelos revoltos, cobriu-lhe os
ombros com a ponta do len�ol, demorou uns momentos a
admirar-lhe o semblante pl�cido, j� com os fios da barba come�ando
a apontar.

De costas para o espelho, Patr�cia estendeu a vista para

o marido, j� com a camisola descida para os p�s descal�os.
Tornando � cama, retomou a leitura do romance. E voltou a
ver as colegas da Escola Normal, no grupo de companheiras
de Kay Strong.
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Ouvindo bater o rel�gio do sal�o, vagaroso, ressoante,
espantou-se, fechou o livro. Duas horas? N�o podia permanecer
acordada, lendo, madrugada afora. Do contr�rio, pela ma


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nh�, n�o sentiria disposi��o para dar a volta ao parque e mergulhar
na piscina. Al�m do mais, seus olhos come�avam a arder
com a luz do abajur.

J� havia lido boa parte do romance. A despeito das interrup��es
sucessivas, sempre descobria concord�ncias entre as
colegas de Kay e as suas colegas da Escola Normal, como se
a vida de l� e a vida daqui, n�o obstante os contrastes naturais,
caprichassem em multiplicar identidades e analogias. O
caso da Lottie, deflorada pelo maluc�o do Dick num quartinho
de s�t�o, devia ser igual ao caso da Carminha, deflorada
pelo maluco do Pierre, dois meses antes da formatura dela,
e de que lhe resultaram a gravidez e o casamento precipitado.

E conclu�a, j� com o livro fechado:

� Tamb�m o Pierre morava num apartamentinho apertado,
de onde saiu para o apartamento da Carminha, que fazia
quest�o de morar com os pais, como filha �nica. Para viver
at� hoje � custa dela, coitada.
Antes de apagar a l�mpada, Patr�cia tornou a olhar em
volta para ver se tudo estava em ordem. Iria dormir? Ou continuaria
a debater-se com a sua ins�nia, contra a qual lutara
por mais de dez anos, tomando sempre o mesmo tranq�ilizante,
que s� lhe proporcionava o sonozinho mitigado e o gosto amargo
da saliva matinal, al�m de pesadelos freq�entes nos quais
se perdia por vielas estranhas, a p�, sem saber como voltar para
casa.

Ainda bem que o Dr. Nuno Vaz, pouco antes de partir
de vez para os Estados Unidos, contratado pela cl�nica Mayo,
lhe dera o conselho exato, � mesa do jantar, quando a conversa
resvalou para as ins�nias rebeldes, de que tamb�m se queixava
o Embaixador americano:

� Eu aconselho os meus clientes a terem paci�ncia. Paci�ncia
com o pr�prio corpo. Ele � que sabe o sono e o descanso
de que precisa. Rem�dio para dormir s� nos casos graves
em que a ins�nia j� � um sintoma patol�gico. Fora da�, n�o.
E para o velho pintor, de gravata � Lavalli�re, que parecia
ter o gosto e a vaidade de seus cabelos brancos:

� Sobretudo em casos como o seu. Ou como o meu. Sim,
sim, como o meu: depois de certa idade, Deus nos diminui o
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sono para nos aumentar a vida. E muita gente, sem saber disso,
teima em tomar rem�dio para dormir, como se a vig�lia n�o
fosse um pr�mio, ou uma d�diva, quando a vida vai encurtando.

Ela, Patr�cia, batera-lhe palmas. E a mesa toda a acompanhou,
enquanto o Dr. Nuno Vaz torcia as pontas do bigode,
com jeito de quem exibisse a bela cabe�a precocemente
grisalha.

Nesse mesmo dia, Patr�cia pusera de lado o tranq�ilizante.
Noites seguidas, obstinara-se em dispens�-lo, e o certo � que,
ao fim de quase uma semana, acabara mesmo por adormecer.
Passara pelo mesmo sono leve, de que despertara descansada,
com disposi��o para a piscina e o parque. Ap�s o almo�o, alongava
o corpo na cama ou no sof�, para a sonol�ncia da sesta.
E � noite s� recorria � metade do tranq�ilizante se alguma preocupa��o
lhe alvoro�ava os nervos.

Ainda ouvindo ressoar o rel�gio do sal�o, chegou a quebrar
o comprimido para tom�-lo, mas de pronto o rep�s na
gaveta da mesa-de-cabeceira, alertada por um come�o de sonol�ncia.
Deu curso ao bocejo na palma da m�o, enquanto
volvia-a pensar que dentro de tr�s meses estaria a completar
quarenta anos � a que correspondiam os dezoito de seu casamento.


Antes de apagar a luz do abajur, puxou mais para cima

o len�ol, tornando a cobrir os ombros de Rodrigo, que parecia
ir longe no seu sono de pedra. Beijou-lhe a cabe�a, correu
a m�o suave pela testa espa�osa, sem que ele sentisse.
� � mesmo o meu menino � reconheceu, maternalmente.
E j� � espera do sono, vendo apenas a claridade vermelha
da lampadazinha do orat�rio, no aposento cont�guo, cerrou
de manso as p�lpebras, novamente a pensar nos seus quarenta
anos.

� Eu, Patr�cia, j� quarentona, parecendo ter menos de
trinta. Esta mesma que aqui est�. Menina de sa�de delicada,
que faltava muito � escola p�blica e era a primeira da classe,
sempre a dar trabalho � M�e Ded�. E que depois ficou forte,
saud�vel, com os cuidados que ela teve comigo, com seus ch�s,
com as suas gemadas. En�rgica. Decidida. Bonita. Sempre ao
lado da filha. Costurando, cantando, cozinhando. Gra�as a ela,
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me formei, casei, sou feliz. S� n�o lhe dei o neto com que tanto
sonhou. Fazia milagres com seus doces e suas costuras. Muito
orgulhosa. Nada queria receber do marido, que a deixara por
uma loura alta, de fala estrangeira. A mesma que atendia o
telefone quando eu tinha de falar com meu pai. E eu s� falava
sem M�e Ded� saber. Nunca deixei que ela soubesse. A vida
� tamb�m assim. Paci�ncia. Cada qual com seus segredos.

Via M�e Ded�, com o ferro de engomar, passando-lhe o
uniforme, tarde, na noite de estio. Ela, Patr�cia, a um lado da
mesa, a preparar-se para a prova do dia seguinte, j� quase no
fim do curso, e M�e Ded�, na outra cabeceira, alisando a saia
pregueada que a filha vestir� pela manh�.

De repente, M�e Ded� deixa o ferro no descanso de metal.
E olha Patr�cia, que se mant�m de cabe�a baixa:

� Escuta aqui: que hist�ria � essa que a m�e da Simone
me contou, � tarde, pelo telefone, querendo gritar comigo? Tomaste
o namorado da Simone? Brigaste com ela? Eu disse �
m�e da Simone que n�o sabia de nada. E tive de falar alto com
ela, quando quis falar mal de ti. Acabei batendo com o telefone
no ouvido dela.
Patr�cia ergue o olhar, com as m�os sobre o caderno de
apontamentos para a prova, sentindo que seu cora��o se acelerou;
mas acaba por dar por si subindo a escadinha estreita
na piscina, no Clube de Regatas, ao sol da manh� alta. Sobe
depressa, apoiando-se no corrim�o de ferro, com o vento leve
a arrepiar-lhe a epiderme, para atirar-se da ponta do trampolim.
Antes do salto, olha � sua volta, e de s�bito arranja o olhar,
para simular que n�o est� vendo.

� � ele, sim � reconhece, identificando o senhor moreno,
de ar juvenil, camisa aberta sobre o peito cabeludo, e que
assesta em sua dire��o a m�quina fotogr�fica, parado na borda
da piscina.
J� fez trinta anos, e parece ter vinte e cinco, ou menos,
assim �gil, decidido, com o tom moreno do rosto a emergir
do costume claro, muito bem talhado. Ela o conhece de fotografia,
mostrada pela Simone. Ele, por seu lado, d� a impress�o
de que tamb�m a conhece, e l� de baixo lhe faz um gesto

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para que espere um momento. Logo corrige a abertura do diafragma,
ajustando-o � claridade excessiva:

� Agora � ordena-lhe.
Ela se projeta � frente, descrevendo a curva harmoniosa,
e vem descendo para o espelho da �gua, senhora de seu corpo
e de seus movimentos: mergulha de cabe�a, sempre fletindo
os bra�os, e emerge mais adiante, sempre seguida pelo olho
da m�quina, que vai repetindo as fotos, taque, taque, e Patr�cia
vem vindo, a exibir-se.

Enquanto nada, ela v� que ele percorre a borda da piscina,
trope�a, consegue equilibrar-se, e toda a figura compacta
e �gil est� nos olhos atentos que seguem as bra�adas de Patr�cia,
recolhendo os flagrantes, seguindo o corpo perfeito que
vem agora nadando de costas, com algo de vol�pia ostensiva
na harmonia com que o sexo reflui, coberto pelo maio azul,
quase negro, acompanhando as coxas morenas que ora se contraem,
ora se distendem, na cintila��o do sol sobre a pele
molhada.

E ele, como se s� ent�o lhe lembrasse o nome:

� Um momento mais, Patr�cia.
E perto, como em d�vida:
� Voc� n�o � a Patr�cia? J� sabe quem sou eu?
Ela sustou a bra�ada, ergueu a cabe�a:
� Rodrigo � confirmou.
E ele, feliz:
� Bati a foto quando voc� disse meu nome. Agora, somos
amigos.
Patr�cia ergueu mais o bra�o direito, acenando-lhe, como
num adeus, e outra vez mergulhou, e outra vez alcan�ou o outro
lado da piscina, assim que voltou ao lume da �gua, para
nadar novamente, j� agora com a cabe�a levantada, e sorrindo.
Ele corria, batia outras fotos; voltava, sempre de m�quina
assestada. Correndo, trocou duas vezes o filme; teve uma id�ia
instant�nea: subiu ao trampolim, e de l� continuou a fotografar
Patr�cia, tomado agora de uma alegria transbordante, rindo
alto, gesticulando, at� que a viu acercar-se da borda de ladrilhos,
para sair.

E Patr�cia n�o p�de deixar de rir ao ver que, subindo pe


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la escadinha de metal, j� ele se postara � sua frente, de bra�o
estendido, para lhe dar a m�o nos �ltimos degraus:

� Suas fotograf�as v�o ficar sensacionais, Patr�cia. Sensa-
cio-nais, pode crer. As mais belas que j� tirei.
E abrindo a toalha de felpo, que magicamente lhe apareceu
no ombro direito, por cima da manga do palet�, envolveu
Patr�cia pelas costas:

� Com sua licen�a.
Por�m ela, com rapidez, desvencilhou-se das m�os que lhe
enxugavam as esp�duas, pondo-se de frente, com toda a naturalidade,
enquanto ele, a olh�-la nos olhos, tratava de aplaudila,
rindo alto:

� Muito bem, muito bem. � assim mesmo que se deve
fazer. Se eu teimasse, devia bater-me nas m�os intrometidas.
Gostei. Parab�ns.
E desfazendo o riso:

� Daqui, assim que cheguei, telefonei para a Simone. Foi
a D. Zita que atendeu. A Simone n�o podia me falar. Acordara
com a famosa enxaqueca. N�o sairia do quarto. Quando melhorasse,
me telefonava.
Patr�cia enxugava os cabelos. E de costas:

� Ela n�o lhe disse que vir�amos juntas?
� Disse, e eu adivinhei que voc� era voc�, tanto pelo que
me disse a Simone, quanto por essa tran�a comprida, que parece
com a dela. Posso elogiar? Como voc� � bonita! Agora,
quando eu tamb�m disser que voc� � linda, tenho a prova na
m�o: exibo as fotografias que tirei.
Bateu outra foto:

� Mais uma para a cole��o. Assim, enxugando os p�s.
Mais outra. Outra mais. Assim, tornando a enxugar a tran�a.
E ela, inclinando a cabe�a, olhando-o de lado:

� Ponto final. Agora, vou me vestir.
Caminhou para a cabina, no andar lento e certo que ele
acompanhou, ainda falando, � dist�ncia de um passo:

� Minha prima Simone n�o tem jeito. Com ela n�o se
pode contar. Olhe que cancelei v�rios compromissos desta manh�
para vir aqui. Eu venho e ela n�o aparece. N�o aparece,
mas acabei premiado, conhecendo voc�, Patr�cia. Ganhei meu
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dia. S� o dia? N�o. Mais. Muito mais. Posso lhe fazer um convite?
N�o se importa de almo�ar comigo? Aqui, ou no Jockey?

Patr�cia, sempre sorrindo, n�o aquiesceu nem recusou, j�
� porta da cabina; pediu licen�a, entrou, ainda envolta na toalha
longa que lhe ca�a sobre as esp�duas, ramalhuda, descendo
para os joelhos, quase a ro�ar os p�s.

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Embora longe do sal�o, ela acompanhava agora, por cima
dos ru�dos circundantes, o tique-taque solene do rel�gio,
e esse ru�do, por ser do tempo que ia fluindo, madrugada adentro,
impedia-a de resvalar para o sono, bem mais que o ressonar
do marido, ali ao seu lado.

Pensou em voltar � leitura, assim que ouviu bater pelas
tr�s horas. Uma leve sonol�ncia, que de pronto lhe pesou as
p�lpebras, levou-a perto, bem perto mesmo, quase ao derradeiro
espa�o da vig�lia consciente, e ela teria transposto a fronteira
misteriosa e impercept�vel, que se transforma em sono profundo,
se a madrugada, l� fora, n�o houvesse trazido consigo,
exatamente naquele momento, a repentina pancada de chuva
que sacudiu as �rvores do parque e tamborilou na vidra�a das
janelas, como se quisesse for�ar as r�tulas cerradas.

Patr�cia acendeu a l�mpada ao seu lado e foi experimentar
os ferrolhos das janelas circundantes, para ver se estavam
bem fechadas. De volta � cama, tornou a pegar no livro, para
retomar-lhe a leitura, mas mudou de id�ia: o melhor era continuar
quieta, com a luz apagada, ouvindo cair a chuva. E nisto
se p�s a lembrar a recep��o de seu �ltimo anivers�rio, com trezentos
e doze convidados, acesas as luzes do parque, as mesas
armadas entre o quiosque e a piscina, na noite de lua nova.

Ela e o marido tinham pensado, de in�cio, em dispor as
mesas no varand�o que circundava a casa e abria sobre o jardim
e o parque. Mas o Rodrigo, sempre otimista, acabara por
voltar atr�s:

22


� N�o, n�o vai chover. As mesas ficam mesmo onde est�o.
S�o Pedro, que � nosso amigo, n�o nos vai estragar a festa.
L� embaixo, no jardim e no parque, com as lanternas vermelhas,
a orquestra tocando n^i coreto, tudo tem outra beleza.
A beleza que voc� merece, Patr�cia.
Na manh� desse dia, ao acordar, ela havia encontrado na
mesa-de-cabeceira a surpresa do brilhante facetado de seu anel
mais rico. Depois, ao longo de todo o dia, tinha sido, mais
uma vez, o nunca-acabar de corbelhas, telegramas, presentes,
cart�es, telefonemas, enquanto ia pela casa e pelo parque o
alvoro�o da noite que se aproximava.

Pelo meio da tarde, como se fosse um aviso, havia ca�do
uma chuva leve, que n�o tardara a desfazer-se. O c�u chegara
a abrir-se em claridade de estio. Sobreviera outra nuvem escura,
antes que a noite ca�sse; mas a chuva, desta vez, s� tornara
a borrifar as mesas, acompanhada por uma rajada de vento
�mido, que balan�ara as lanternas e as �rvores, com poucos
respingos. Por fim, j� noite entrada, as largas nesgas de amplid�o
pontilhada de estrelas tinham dado a certeza de que tudo
ia correr bem.

Do alto da escada de m�rmore sobre o parque, assim que
a noite chegou, Patr�cia e o marido ficaram bom tempo a olhar,
embevecidos, a harmoniosa disposi��o das mesas, as luzes refletidas
no espelho de �gua da piscina, o brilho das folhas dos
castanheiros na incid�ncia das lanternas coloridas, o coreto preparado
para os m�sicos, e foi ela quem falou primeiro, ap�s
um sil�ncio de irreprim�vel emo��o:

� Deus tem sido muito bom para n�s, Rodrigo.
Rodrigo perfilou o dedo indicador defronte dos l�bios,
enquanto aumentava os olhos risonhos, alarmado:

� Fala baixo. Essas coisas n�o se dizem em voz alta. Fica
quieta. Quanto mais sil�ncio, melhor.
E riu forte, estremecendo o busto espa�oso, a atra�-la para
si, carinhosamente, como a proteg�-la com seu bra�o forte
e a sua fortuna:

� Eu te preveni, quando nos casamos, que seria sempre
assim.
� E vai continuar a ser, Rodrigo.
23


E a noite estrelada, parecendo curvar-se sobre as �rvores
mais altas, com uma ou outra rajada extempor�nea, acolheu
todos os convidados, deixou que estes ocupassem os seus lugares;
permitiu que a orquestra se acomodasse no coreto; que

o N�ncio sentasse ao lado do Presidente da Rep�blica; abriu
caminho ao bal� dos gar�ons e � vigil�ncia dos guardas, at�
que, j� perto da meia-noite, o tempo fechou, escondendo a foice
da lua, sacudindo a poeira do ch�o, tomado de uma f�ria instant�nea.
As lanternas acesas balan�aram, como enlouquecidas.
Os galhos das �rvores, tamb�m desvairados, pareciam vergalhar
o vento que os sacudia, e este sibilava, rugia, assobiava,
zinia, no paroxismo de uma f�ria cont�nua. Por um momento,
na confus�o ambiente, reinou a perplexidade, sem que
se soubesse ao certo se era um vendaval passageiro ou se era
realmente o come�o da borrasca. A orquestra, como contagiada
pela loucura do mau tempo, pusera-se a tocar uma rumba
sacudida, em que os compassos se ajustavam aos repel�es da
ventania, por entre o som da bateria e o tinir dos pratos met�licos
e das caba�as. Os gar�ons corriam de um lado para outro,
a princ�pio para apanhar os card�pios que as rajadas faziam
voar, depois para acudir aos convidados que se levantavam
das mesas, atordoados pelas pancadas do vento e pela chuva
forte que repentinamente desabara, ainda com os m�sicos
tocando no abrigo do coreto. E tanto o Rodrigo quanto a Patr�cia,
j� molhados, iam orientando os amigos, que tratavam
de subir para o abrigo do varand�o da casa, atropelando-se
nos degraus da escada:
� Por aqui, por aqui.
Ouviam-se gritos, risadas e lamentos, enquanto o temporal
rugia, mais �spero, desvairadamente. Afinal, a orquestra
parou de tocar, a luz apagou de repente, tornou a voltar, e foi
nesse momento que Patr�cia avistou o gordo diplomata, acompanhado
pela imensa Embaixatriz (muito mais enxundiosa do
que ele), ainda ao meio dos degraus, subindo devagar, cautelosamente,
pesadamente, porque a gorda senhora, coitada, n�o
podia subir mais depressa, e precisava de amparo.

Subia, e bufava:

� Ai, meu Deus, � o dil�vio.
24


E o Embaixador, segurando-lhe o bra�o roli�o:

� Olha o degrau, Encarnaci�n. Olha o degrau.
Ela gemia mais alto, e tornava a bufar, alarmada agora
com os rel�mpagos e os trov�es, enquanto o espa�oso diplomata
insistia em adverti-la sobre os degraus molhados:

� Cuidado. V� onde pisas.
O pior de tudo, entretanto, foi c� em cima, quando a vasta
senhora, escorrendo �gua pelo dorso, pelas pernas, pelos
bra�os, e com o ch�peu de plumas praticamente desfeito na
cabe�a despenteada, quis ir ao toalete, alegando que n�o se
sentia bem.

� Ai, Jesus, acudi-me. Acudi-me, Se�or de los Milagros.
Estou a desfazer-me. Por favor. Depressa.
Patr�cia dera por si a lev�-la para o seu pr�prio banheiro,
e com a Embaixatriz gemendo e bufando atravessou o sal�o,
depois o gabinete do Rodrigo, a saleta, a sala de m�sica, o quarto
de dormir, a saleta do orat�rio barroco, at� escancarar de
golpe a porta larga por onde a imensa senhora passou, de m�os
no ventre, angustiada.

E j� instalada no vaso, a Se�ora Encarnaci�n aumentou
os olhos redondos, suplicando:

� A porta. Feche a porta.
S� ent�o come�ou a despir a roupa encharcada. Exagerado
pelo espelho da parede fronteira, o corpanzil disforme, que
se derramava sobre si mesmo, com o ventre fl�cido, os bra�os
fl�cidos, as n�degas fl�cidas, as coxas fl�cidas, os seios fl�cidos
apertados no suti� debruado de renda, pareceu ainda mais
grotesco, esparramado no assento ex�guo, pr�prio para quadris
normais.

J� despida, aquietou-se por alguns instantes, inclinando
a cabe�a, baixando os olhos, na vergonha gaiata dos pr�prios
ru�dos incontrol�veis. E ao ver que Patr�cia lhe trazia o roup�o
do Rodrigo � largo, comprido, ramalhudo � n�o conseguiu
reprimir o riso:

� E eu vou caber a� dentro? Que esperan�a! Isso queria
eu, minha boa amiga. Isso queria eu. E o Embaixador tamb�m.
Recolhendo depressa o riso, tinha agora o ar de uma foca
de castigo, e foi assim que a Patr�cia a deixou, resignada, hu


25


milde, � espera de que o motorista da Embaixada lhe trouxesse
outro vestido.

Patr�cia muda de posi��o na cama, sente-se tentada a tomar
outro peda�o de tranq�ilizante, mas permanece quieta,
sempre � espera do sono, e d� por si no alto da escada, vendo
sair os convidados, ainda com o vento a sibilar forte, sob as
cordas da chuva, enquanto ela diz ao Rodrigo, que est� de volta,
j� no �ltimo degrau, depois de ter posto no mesmo carro, l�
embaixo, o N�ncio Apost�lico e o Embaixador de Portugal:

� Recep��o, ao ar livre, nunca mais.
E ele, fechando o guarda-chuva:
� Mas � a primeira vez, em quase vinte anos, que a chuva
nos desmancha a festa. Ano que vem, n�o vai chover.
4

Na madrugada longa, sempre o sibilo do vento sacudindo
as �rvores. Espa�adamente, por cima do tique-taque do rel�gio
do sal�o, o trilo dos apitos com que os guardas se comunicam,
na ronda da casa. De vez em quando, o latido de um
dos c�es, logo respondido pelos outros. E como eram tr�s dinamarqueses,
ferozes, agil�ssimos, metiam medo, correndo em
sil�ncio, arremetendo, assustando. Um deles, dias antes, havia
saltado para o pesco�o de um homem magro e louro, no momento
em que este, armado de uma faca, pulara o muro do
fundo do parque: rosnando, com as patas no peito do ladr�o,

o canzarr�o negro o mantivera imobilizado, enquanto os dois
outros latiam, at� que os guardas acudiram, levando dali a figura
l�vida, de olhos crescidos, a sangrar no meio do pesco�o,
sempre alarmado com o mastim que o seguia de orelhas fitas,
a cauda ca�da, pronto a novo arremesso, na alameda que contornava
a casa.
Agora, s� o ladrido solto, espa�ado, ora para o lado da
capela, ora para o lado da piscina, ora tamb�m na dire��o do
jardim, com o quebrar de um galho, o rumor de um carro na

26


rua, o soar de passos na cal�ada. E ali no quarto, na noite que
ia fluindo, vagarosa, intermin�vel, a respira��o cadenciada do
Rodrigo, como esquecido de si mesmo, � direita da cama, imerso
no sono exemplar.

Mais uma vez, debatendo-se para adormecer, Patr�cia muda
de posi��o, alongando o corpo, com os bra�os estirados,
n�o querendo sentir a pulsa��o do sangue na t�mpora direita.
De relance, na penumbra escassa, quase negra, tornou a distinguir
a l�mpada vermelha do orat�rio, o contorno dos m�veis
� sua volta, o vulto do marido sob o len�ol.

Grande Rodrigo, paciente Rodrigo. Vinte anos ali ao seu
lado, no intervalo das viagens. N�o se cansava, sempre de bom
humor, prestativo, sol�cito, j� de cabelos grisalhos, sem dizer
a ningu�m que havia estudado em Harvard nem aceitar ser Ministro
de Finan�as ou de Economia, todas as vezes em que as
crises do pa�s ganhavam espa�o na primeira p�gina dos jornais.
Sempre acertando em cheio nos neg�cios. No entanto,
calado, de olhos pensativos, parecia �s vezes ausente, fora do
mundo, enquanto rodava no dedo indicador a corrente do chaveirinho
de prata.

Na certa, aproveitou a viagem a Nova Iorque para comprar
os dois presentes que daria � mulher da� a tr�s meses: um,
pelo anivers�rio; outro, pelo casamento. Cada qual mais rico,
mais bonito. E Patr�cia, de p�lpebras entrecerradas, pergunta
a si mesma, quieta:

� Desta vez, que � que ter� comprado?
Novo colar? A placa de platina? A pulseira de brilhantes?
Ou o diadema? Sim, o diadema. Deve ter sido o diadema.
Parecido com o que lhe dera como presente de noiva? Ou mais
bonito? Mais bonito, com certeza.

Patr�cia vem vindo devagar, na passadeira longa que vai
do altar-mor aos umbrais do adro, apoiando-se no bra�o do
Tio Belarmino, ancho, orgulhoso, de peito cheio e alto, e que
parecia exibir o fraque luzidio, espalhando em redor um cheiro
acre de naftalina e �gua-de-col�nia. Ao fundo, no altar desafogado,
o adorno das rosas brancas e das rosas vermelhas
por entre os c�rios acesos. Acesos tamb�m os lampad�rios. �
frente do altar, o robusto Padre Otaviano, resplandecente nos

27


paramentos novos, dava a impress�o de ter pintado as bochechas,
de t�o vermelhas e papudas. M�e Ded�, de chap�u de
pluma. Do outro lado, esguia, quase seca, com o cabelo penteado
para o alto, Tante Genevi�ve, que chegou pelo fim da
tarde, de Genebra, j� pronta para o casamento, e assesta o lornh�o
de ouro para o portal do adro enquanto Patr�cia vem vindo,
por entre os l�rios que marginam a passadeira, na extremidade
das duas orlas de bancos repletos, com a m�sica suave
enchendo a nave imensa, logo acompanhada pelas vozes do
coro.

N�o, n�o � sonho, no hiato da consci�ncia fatigada, mas
realidade viva, trazida pela mem�ria, e que permite a Patr�cia
rever o Rodrigo, ao p� do altar, quase ao lado do Padre Otaviano,
forte, compacto, o cravo aberto na lapela do fraque, �
espera da noiva � da noiva que vem vindo emocionada, a arrastar
na passadeira a cauda do vestido, e a quem por fim d�
a m�o, como se fossem tornar a dan�ar a valsa inaugural do
baile de formatura.

Ah, a emo��o pura desse instante, umedecendo-lhe os
olhos, disparando-lhe o cora��o: Tio Belarmino vai afastar-
se, para ficar ao lado de M�e Ded�, e Rodrigo vem postar-se
ao lado dela, Patr�cia, ambos de frente para o Padre Otaviano,
que tem agora um ar embevecido, com as m�os no ventre
alto, os olhos em �xtase, a cabe�a inclinada.

Perto do altar, Patr�cia tinha visto de relance, � sua direita,
quase toda a turma da Escola Normal, nos quatro primeiros
bancos da nave. Das vinte e tantas colegas, poucas haviam
faltado. Algumas, enchapeladas; outras, bem penteadas, e todas
no melhor vestido, e risonhas, a sorrirem, a piscarem os
olhos, a lhe acenarem, tamb�m emocionadas, de olhos �midos,
ouvindo o �rg�o que encheu a nave com a melodia de
Schumann, enquanto a noiva vem vindo, vagarosa, sempre a
amparar-se no bra�o do Tio Belarmino, e olha para o noivo,
que desceu o primeiro degrau do altar, a adiantar o bra�o sol�cito
para lhe dar a m�o. Olham-se nos olhos, e � nesse momento
que, de s�bito, ela se lembra da Simone, na reclus�o
do sanat�rio, longe dali, e pede a Deus por ela.

Depois, ao fim da cerim�nia, j� com a alian�a, o bra�o

28


no bra�o do Rodrigo, Patr�cia sorri para um lado, sorri para
o outro, abrindo o cortejo que desfila pela passadeira na dire��o
da porta do adro, e � mais ligeiro e firme o seu passo. N�o,
a emo��o da formatura n�o foi assim, mesmo quando leu o
seu discurso, em nome da turma: nunca imaginou que a felicidade
completa, agora que tinha o seu marido, a sua casa, e
tantos amigos em seu redor, tamb�m a fizesse chorar. Reprime
o pranto, sentindo a garganta apertar, e for�a o sorriso,
e acena com a m�o enluvada, sempre a pedir a Deus que a
proteja.

L� adiante, em vez de sair ao adro, dobra � direita, seguindo
os ademanes e o comando do mestre-de-cerim�nias,
e vai postar-se no espa�o amplo que precede a nave, quase �
entrada do batist�rio, e � ali que os noivos se postam, sorrindo,
acenando, falando baixo, no desfile dos cumprimentos. Um
por um, passo a passo, os convidados se aproximam, e apertam-
lhe a m�o, e a abra�am, e a beijam, e falam-lhe ao p� da orelha,
risonhos, expansivos, enquanto cresce o burburinho das
vozes e dos risos, como se todos eles houvessem perdido a contri��o
e a cerim�nia, dentro da igreja.

Mas n�o foram as colegas da Escola Normal as primeiras
amigas a se aproximar da noiva, no vagaroso escoar da fila
de cumprimentos. Todo um conjunto de figuras estranhas, que
Patr�cia s� se lembrava de ter visto no foyer do Teatro da �pera,
nas duas vezes em que ali fora com o Rodrigo, agora ali
estava, � frente da fila imensa, exibindo fraques, j�ias e decotes,
rindo alto, falando alto, muito � vontade dentro da igreja.
Patr�cia s� os revia de relance, toda ela � procura das companheiras,
que afinal despontaram com ar de alvoro�o. E j� estavam
perto, � dist�ncia de dois metros, quando uma figura
magra, alta, o rosto picado de sardas por baixo dos olhos, quase
sem seios, o vestido a lhe descer para as pernas longas, entrou
por uma das portas laterais do adro, e veio vindo depressa,
como se quisesse corrigir o atraso com que chegava, caminhando
diretamente para a noiva, decidida e risonha, at� que se postou
� frente de Patr�cia, passando � frente da senhora encha-
pelada, que lhe assestou o lornh�o de cabo de madrep�rola,
limitando-se a resmungar:

29


� Se n�o estou enganada, h� uma fila para os cumprimentos.
Mas j� Patr�cia sorria, estendendo as m�os contentes para
a colega intrat�vel, que sempre a mantivera distante, com
a repulsa de seu �dio tenaz e inexplic�vel:

� Evangelina, que alegria!
E a outra, for�ando o sorriso teatral enquanto prendia as
m�os afetuosas da noiva, e curvando-se, a falar-lhe ao p� da
orelha:

� N�o me convidaste para teu casamento, e fizeste bem.
Mas eu vim aqui de prop�sito. Para te dizer que a Simone, h�
duas semanas, est� entre a vida e a morte, no sanat�rio. E a
culpada �s tu, que lhe tomaste o noivo. Nunca me enganei contigo,
Patr�cia.
E largou-lhe as m�os, dando-lhe as costas, r�pida, expedita,
sempre risonha, para sair pela porta por onde havia entrado,
enquanto Patr�cia, dominando-se, conseguiu sorrir para
a Inezita, a Fl�via, a Paula, a Corina, que ainda estavam
longe, sem ter visto a Evangelina entrar e sair, e que sorriam
e falavam, como se trouxessem at� ali a anima��o e o alvoro�o
da sala de aula, quando faltava o professor.

30


SEGUNDO CAP�TULO

1

Quando despertou, j� era dia alto.

Embora as cortinas fechadas teimassem em prolongar a
madrugada, impedindo que entrasse no quarto a luz das janelas
sobre o parque, Patr�cia facilmente concluiu que, ao contr�rio
das outras noites, em que s� passava pelo sono, havia
dormido profundamente, tanto assim que levou uns momentos
para vir � tona de si mesma. Fora ela que apagara a l�mpada
de cabeceira? E que deixara ao p� do abajur o romance que
andara lendo, no correr da madrugada?

Ao seu lado, n�o estava mais o Rodrigo. E como o marido
costumava levantar-se ap�s oito horas de sono compacto,
gastando outra hora em barbear-se e banhar-se, agu�ou o ouvido,
por cima dos ru�dos circundantes, para ver se estaria a
vestir-se no quarto cont�guo. Nada ouvindo, sentou-se na borda
da cama. Enquanto tateava o ch�o, � procura das sand�lias
de cetim, viu ali, do outro lado, os chinelos do Rodrigo; na
poltrona de canto, o pijama dele. Concluiu, levantando-se: o
Rodrigo, vendo-a adormecida, preferira deix�-la quieta, e j�
estaria no escrit�rio para a reuni�o das nove horas.

Achou gra�a na situa��o nova:

� E eu, aqui na cama, dormindo como um urso polar.
Ao correr a cortina, recebeu no rosto, em cheio, a luz viva
que jorrou da vidra�a desimpedida, e exclamou, com
espanto:

� Meu Deus, n�o � verdade!
O sono profundo fizera-lhe bem. N�o sentia o torpor das
31


manh�s pregui�osas; tampouco experimentava a sensa��o �
que espa�adamente a afligia, como um resto de pesadelo �
de que se achava no fundo de um po�o, vendo a claridade forte
c� em cima, sem saber como subir. A impress�o de bem-
estar estendia-se-lhe por todo o corpo, trazendo consigo uns
longes de sensualidade. Esticou os bra�os, distendeu as pernas,
bocejou na costa da m�o, com os punhos cerrados, e estremeceu
o busto, sacudindo os seios soltos, como a tirar de si,
noutro bocejo vagaroso, o friozinho da madrugada.

E foi sem pressa, meticulosamente, que p�s um pouco de
ordem � sua volta, recolhendo das cadeiras as pe�as de roupa,
juntando do ch�o o travesseiro que resvalara para o tapete, acendendo
e apagando a l�mpada do abajur. Por �ltimo, puxou
para os cantos a cortina da outra janela, e logo a luz, ainda
mais viva, destacou os quadros nas paredes, a c�moda de fechos
dourados, os espelhos que ampliavam ainda mais a pe�a
ampla, o grande lustre que parecia alvoro�ar a claridade na
cintila��o dos pingentes de cristal. No soalho de t�buas corridas,
os belos tapetes que trouxera da P�rsia. Sobre a coluna
de m�rmore, no �ngulo da parede, ao lado da janela, a menina
nua atribu�da a Gobineau.

Tudo em seu lugar, Patr�cia pensou em calcar a campainha
da cama para que a Rosa viesse encher-lhe a banheira. Mudou
de id�ia. Para que alvoro�ar a criada portuguesa com a
estrid�ncia do chamado, se podia, ela pr�pria, deixar correr
a �gua t�pida com que se banharia?

No banheiro, antes de come�ar a despir-se, ligou o r�dio,
e j� foi ouvindo o jornal das dez horas que se despiu. Nua,
cedeu, como sempre, ao gosto de olhar-se ao espelho, de corpo
inteiro. Antes de olhar-se de frente, contente com as linhas
de seu corpo, cedeu � ponta de medo, que freq�entemente a
assustava, e apalpou os seios, temerosa de algum ponto endurecido
que urgiria mostrar ao m�dico. Nada encontrando, respirou,
aliviada. E esse al�vio a predisp�s para bem admirar a
mulher nua que o espelho lhe mostrava, sem uma ruga no rosto,
sem ac�mulo de gordura nos quadris, sem uma veiazinha
saliente, em suma: com o corpo dos vinte anos. N�o apenas
seu corpo o tempo havia respeitado � respeitara tamb�m seu

32


gosto de viver na sua casa, sem deixar de ir com o marido a
recep��es, coquet�is, missas, teatros, casamentos, embarques,
desembarques, mas dispensando-se de acompanh�-lo nas viagens
de servi�o ou de neg�cio.

� J� conhe�o o mundo inteiro � justificava-se.
Depois, enquanto a �gua subia para a borda da banheira,
lembrou-se de ir buscar no quarto o romance de Mary
McCarthy, para continuar a l�-lo durante o banho. Com o robe
de chambre por cima dos ombros, descerrou de manso a
porta, agu�ou o ouvido, deu uma carreirinha at� a mesa-decabeceira,
meio curva, quase agachada, instintivamente escondendo
o sexo com a m�o espalmada. De volta, j� na banheira,
viu que o marido, pela marca da folha dobrada, havia lido tamb�m
boa parte do volume enquanto ela dormia.

Sentindo a tepidez da �gua, na banheira quase repleta,
anteviu o que ia acontecer, mais uma vez:

� Com a tal leitura din�mica, o Rodrigo vai acabar de
ler o livro antes de mim. Depois, como sempre, n�o sossegar�
enquanto n�o me contar como o romance acaba.
Alongou mais as pernas, inclinando bem o corpo, sem se
descuidar de proteger o livro, e retomou-lhe a leitura. Mas n�o
tardou a desprender-se do texto, ainda com os olhos percorrendo
as linhas impressas, e foi recordando as companheiras
da Escola Normal, ora na sala de aula, ora no p�tio do recreio,
ora subindo a escada, ora saindo da classe, todas no uniforme
azul e branco, meia preta, sapato preto. Assim reunidas,
compunham um grupo de companheiras que a festa da
formatura terminaria por dispersar. Enquanto no romance o
grupo se limitava a oito, incluindo a Kay, subia a mais, bem
mais, o da Escola Normal. Incluindo a Simone. A estranha,
a esquiva Simone. A Simone que tudo lhe contava, inclusive
a paix�o pelo Rodrigo. A Simone que de repente desaparecia,
fechada, muda, sempre um mist�rio, e linda. Sim, a mais linda
da classe, mesmo quando reaparecia, l�vida, olhos pisados,
falando baixo, andando devagar.

Vinte e muitas companheiras... Agora dispersas, cada qual
com a sua vida e o seu destino. De umas, n�o tinha not�cia,
como se o tempo as houvesse apagado. De outras, sabia ape


33


nas por alto. Umas, casadas; outras, divorciadas. Quantas permaneceriam
solteiras? A Corina, morta. A Adriana, morta.
A Neide, morta? Outras mais teriam morrido? Quantas morariam
ainda ali? Quantas teriam ido embora para pequenas cidades
ou para outros pa�ses? E os velhos mestres, que fim teriam
levado? Dois tinham morrido. E os outros, por onde andariam?
O gordo Fritz, seu mestre de ingl�s e alem�o, agora
hemipl�gico, tinha optado por um abrigo de velhos, que a pr�pria
Patr�cia havia ajudado a conseguir, com o apoio do Rodrigo,
enquanto a Silveirinha, miudinha, apertadinha, repetia
as opera��es pl�sticas, inconformada com as inj�rias da idade.

E Patr�cia, de repente, erguendo mais a cabe�a, com um
brilho nos olhos rasgados, decidindo-se:

� Vou reunir meu grupo na festa dos meus quarenta anos!
Ergueu mais o corpo, p�s o livro na prateleira da parede.
E enquanto completava o banho, lavando-se,.ensaboando-se,
continuou a compor de cabe�a o seu projeto. Sim, era isso que
ia fazer. Trazer as colegas. Todas? Mesmo a Evangelina? E por
que n�o? O tempo j� teria apagado o �dio est�pido que as
separava. Mandar-lhe-ia o convite. Ela que decidisse por si.
Depois de vinte anos,, ningu�m � mais a mesma pessoa.

Ao fim do banho, quando j� ia terminando de enxugar-se,
parou o movimento da toalha nas axilas, desviou o olhar para
um �ngulo do banheiro, alheada dali, enquanto reconhecia,
a falar para si mesma, que n�o podia convidar a Simone. N�o,
n�o podia. Ou melhor: poder, podia; mas n�o devia. Simone
iria ofender-se, ainda que reconhecesse, com o convite diante
dos olhos, que este era apenas uma formalidade.

E Patr�cia, enxugando os cabelos:

� N�o, n�o mando o convite.
E ficou a pensar que a pobre da Simone, t�o linda, t�o
esquiva, t�o estranha, n�o poderia deixar de deprimir-se, no
confronto dos dois destinos: o dela, Simone, prisioneira do Sanat�rio,
j� conformada em passar reclusa o resto da vida, e

o dela, Patr�cia, ali, na sua casa, indo aonde quisesse, rica, bonita,
cortejada, e com seus carros, e seus criados, e muitas amigas,
sempre bem-faladgi nos jornais e nas revistas, freq�entando
o Jockey Clube, com assinatura da �pera, convidada para
34


as recep��es no Pal�cio do Governo, e devendo tudo isso ao
Rodrigo, o Rodrigo que poderia ter casado com a Simone.
E para dar a si mesma uma ponta de m�goa:

� Mas sem um filho e a debater-me com a minha ins�nia
tenaz.
2

Ap�s o almo�o, na saleta que lhe servia de escrit�rio, Patr�cia
n�o se fechou no quarto, para a sesta de todos os dias,
nem se reclinou ali mesmo, no sof� ao p� da janela, para o
descanso de alguns minutos, no friozinho da tarde: saiu diretamente
da mesa para o fundo da casa, sob o olhar intrigado
do Ludovico, que recolhia o guardanapo e a x�cara do caf�,
com o l�bio inferior meio ca�do e duas rugas verticais no meio
da testa.

No aposento das coisas velhas, onde se amontoavam trastes,
pap�is, livros, revistas, figurinos antigos, caixas de chap�u,
malas, o ba� de couro tauxiado da av� Mer�cia, a m�quina
de costura de M�e Ded�, num confuso cafarnaum de
breguessos abandonados e esquecidos, Patr�cia n�o tardou a
dar com o quadro de formatura, por cima de uma estante, coberto
de poeira.

� Aqui est� ele! � exclamou.
Soprou o p�, e enquanto a nuvem toldava o ar � sua frente,
viveu a emo��o de rever-se por tr�s do vidro embaciado,
de uniforme, no meio de tantas colegas, entre lembran�as esmaecidas,
a que repentinamente ia dando nitidez e colorido,
como se corresse sobre elas uma camada de verniz.

E querendo rir, j� de volta � saleta, com as m�os afastadas
segurando o quadro pela moldura:

� Sou eu mesma que estou aqui? Com estes olhos espantados?
E este cabelo? Eu, Patr�cia? E foi desse jeito, com ar
de mo�a da ro�a, que o Rodrigo gostou de mim, a ponto de
jurar que s� comigo se casaria? Sou eu mesma, meu Deus?
E depois de um sil�ncio:

35


� E aqui est� a Simone. Sempre bonita e s�ria, j� com
algo estranho no olhar. E esta express�o misteriosa, que sempre
me intrigou. E estamos juntas, como de prop�sito, ela e
eu, at� mesmo neste quadro. Mas j� ela n�o falava comigo.
Eu, por meu lado, me esquivava dela, n�o podendo mais lhe
falar. Cada qual para seu lado.
Por mais que tentasse desviar os olhos para o rosto das
outras colegas, ou dos velhos professores, voltava a fixar-se no
semblante da Simone, grave, levemente sombreado, o cabelo
liso corrido para tr�s, e aquele risco das sobrancelhas quase
unidas, mais sofrimento que reflex�o. E enquanto olhava a Simone,
lembrou que era esta mais velha que ela, Patr�cia. Portanto:
j� na casa dos quarenta anos, como a Paula, a Silveirinha
e a Inezita, que tinham evitado festas e not�cias, nos seus
anivers�rios.

E concluiu:

� A Simone � capaz de ter passado o anivers�rio dela
trancada no quarto, calada, sem querer ver ningu�m.
� noite, ali mesmo, ao fim do jantar, mostrou o quadro
ao Rodrigo, e ele tamb�m riu alto, reconhecendo este rosto,
este outro, aquele, outro mais; sorrindo dos penteados; rindo
mais diante dos semblantes que n�o identificava; apontando
para as pastinhas fora de moda.

Mas recolheu o riso, grave, pensativo, diante do retrato
da Simone, e comentou, sem desfitar o rosto que o olhava de
frente:

� N�o preciso rever, hoje, a Simone, para afirmar que
ela, depois de tantos anos, est� igual a esta fotografia. Se mudou,
foi muito pouco. Bonita, e altiva, sem perder o ar sofrido.
Sofrido e estranho. Sempre a conheci assim. Mesmo menina.
Diferente das outras. Como se tivesse consci�ncia, desde
cedo, de n�o se parecer com ningu�m. Tia Zita (era assim
que eu a chamava, por ser grande amiga de minha m�e, sempre
na nossa casa) costumava me dizer, ao tempo em que fazia
tudo para que eu me casasse com a Simone: � "Voc�, com seu
g�nio, pode ter paci�ncia com a minha filha. Pode. Com um pouco
de boa vontade. E n�� vai se arrepender. As crises dela v�m
e passam. Mais de um m�dico j� me disse que tudo vai passar
36


com o casamento. Eu acredito. Mano Abelardo, pouco antes
de morrer, ainda me dizia que voc� n�o podia deixar de casar
com a Simone. Simone nunca teve namorado. E adora voc�.
Fora das crises, Simone � outra pessoa. Humana, comunicativa,
alegre. Uma j�ia de menina." � Assim mesmo. Sempre
repetindo a mesma coisa. Eu, �s voltas com os meus neg�cios,
ia ver Tia Zita de vez em quando. Tia Zita adivinhava minha
chegada. Telefonava logo, marcava o almo�o ou o jantar na
casa dela, com a Simone do meu lado. Uma vez, apareci de
improviso, por minha pr�pria iniciativa. Encontrei Simone fechada,
sem querer ver ningu�m. Foi em v�o que lhe bati na
porta do quarto. N�o me atendeu. Conversei sobre o caso dela
com o Nuno Vaz, e ele me perguntou se eu teria tempo e
paci�ncia para ser enfermeiro da Simone. Na verdade, eu nunca
tinha pensado seriamente em me casar com ela. Gostava
dela, achava-a muito bonita, mas da� n�o passava. Ela, n�o;
sempre achou que teria de ser minha mulher. Tudo isso eu te
disse, lealmente, no dia em que te levei para almo�ar no Jockey
Clube.

E Patr�cia, atalhando:

� O famoso dia do encontro na piscina.
Rodrigo completou:
� Em que a Simone ficou de ir e n�o apareceu.
E alongando o bra�o por cima do bra�o da poltrona, segurou
a m�o de Patr�cia, num impulso de ternura:

� E em que eu te disse que me casaria contigo depois de
ter uma conversa clara com ela e com D. Zita. E tive. No mesmo
dia, � noite. Simone me ouviu, calada, de cabe�a baixa.
Em sil�ncio deixou a sala. Foi a hora de eu falar com a D. Zita.
D. Zita exaltou-se. Chegou a me sacudir pelos ombros. Os
olhos crescidos, a veia do pesco�o aumentada. De repente, mudou:
p�s-se a chorar, defronte de mim. Que eu tivesse pena
da Simone. Que a filha era capaz de cometer um desatino, e
o culpado seria eu.
Patr�cia ergueu mais a cabe�a:
� Mas isso tu n�o me contaste. Estou sabendo agora.
� Para que ia contar? N�o contei a ningu�m. Levantei-me
do sof� para ir embora. D. Zita me segurou pelo bra�o. Desfi37



gurada. Pat�tica. Novamente exaltada. N�o consentia que eu
sa�sse. Tinha de tornar a falar com Simone, dando o dito por
n�o dito. Fiquei firme. N�o, isso n�o. Mas s� consegui sair
dali por volta da meia-noite, depois de outros gritos de D. Zita.
Acompanhou-me at� a porta, aos berros. Nisto a Simone
apareceu, segurou a m�e pelo bra�o, puxou-a para dentro de
casa, bateu a porta. Eu, na cal�ada da rua, respirei, aliviado.
Meti-me num t�xi, mandei-me para meu quarto de hotel.

Suspirou, levantando-se; foi at� a porta. E voltando-se,
com os olhos em Patr�cia:

� Um m�s depois, eu te trouxe aqui, com M�e Ded�, para
que visses a casa que eu mandara reformar. N�o me esque�o
de tua emo��o quando entraste. Olhavas tudo em sil�ncio,
com ar de espanto.
E Patr�cia, com uma luz nova no olhar:

� Mas a emo��o maior foi quando me fizeste abrir o
guarda-roupa, as arcas e a c�moda, e dei com todo o meu enxoval.
Nada faltava. Nem mesmo o chinelinho de cetim na medida
de meu p�.
E tanto ele quanto ela, por alguns momentos, de m�os
dadas, permaneceram calados, at� que ele a envolveu nos bra�os
reconhecidos, beijando-lhe os cabelos, apertando-a contra
si, enquanto o Ludovico ia fechando no sal�o as janelas
sobre a rua, por entre o ru�do dos ferrolhos e o bater das
portadas.

3

A mais alta havia acabado de completar doze anos; a outra,
quase isso. Mas, quatro meses depois, teriam a mesma idade,
e foi na fila do p�tio, em plena confus�o de in�meras caras
desconhecidas, que se encontraram pela primeira vez, ambas
com o mesmo cabelo atado por uma fita, rente � cabe�a,
e descendo solto para as costas, os seios t�midos sob a blusa
branca do uniforme. A mais alta, de rosto ovalado, grandes

38


olhos pensativos, parecia mais confusa, enquanto a outra, de
cara redonda, morena, olhos levemente obl�quos, dava a impress�o
de ser mais expedita: as duas no fim da fila, trazidas
at� ali pela mesma professora, e quase a rirem, no alvoro�o
de tantas companheiras que tamb�m esperavam pelo bater da
sineta para subir a escada que levava �s salas de aula, no primeiro
pavimento.

E a morena, assim que a sineta bateu para a posi��o de
sentido:

� Como te chamas?
� Simone. E tu?
� Patr�cia. Vamos para a mesma classe. � a primeira vez
que venho aqui.
� Vais ser professora? Eu, n�o: vou me formar por me
formar.
E a outra, sorrindo:

� Eu mesma escolhi a Escola Normal. Tamb�m estudaste
na escola p�blica?
� N�o. Fiz o curso prim�rio em casa, com a minha m�e.
E quando souberam que moravam em ruas paralelas, com
a casa de uma a continuar o quintal da casa da outra, riram
alto, as duas, j� na subida da escada.

No primeiro dia, sentaram juntas na carteira de dois lugares,
perto da janela sobre a rua. Foi a professora � severa,
de �culos, os cabelos grisalhos apanhados para a nuca � que
as separou, ao v�-las conversando e rindo, longe da li��o. Voltaram
a juntar-se � hora do recreio, no mesmo p�tio arborizado.
E como um carro trazia a Simone, para busc�-la ao fim
das aulas, passou tamb�m a trazer e a levar de volta a Patr�cia.

Mesmo depois que Patr�cia se mudou para uma casa menor,
na ruazinha dos arredores, quase toda em ladeira, as duas
continuaram a brincar os mesmos brinquedos (os �ltimos), a
preparar os mesmos deveres, a ir ver os mesmos filmes, a trocar
as confid�ncias mais �ntimas, como quando a Simone levou
Patr�cia para o fundo do p�tio, sob a gameleira esgalhada,
e ali lhe contou, s�ria, antes de rir, com a m�o diante da
boca:

39


� Apareceram. Esta noite. Quase me assustei, querendo
chamar minha m�e, quando vi a calcinha suja de sangue.
E a Patr�cia, tamb�m rindo:

� As minhas apareceram ano passado.
E logo ajudou a Simone a subir a escada com cautela, ambas
graves, compenetradas, como se estivessem a levar a s�rio
a rotina da natureza.

Ainda bem que M�e Ded� n�o quis aceitar os vestidos da
Simone que a D. Zita insistira em transferir para a Patr�cia,
com a justificativa de que a filha j� se havia enjoado deles. E
era como se ainda lhe ouvisse a voz, na sala de visitas:

� Est�o novos, como se tivessem chegado da costureira.
Simone � que n�o gosta de sair v�rias vezes com o mesmo
vestido.
E M�e Ded�, cortando o oferecimento:

� E Patr�cia, por seu lado, s� gosta de usar os vestidos
que eu mesma fa�o.
Entretanto, quanto ao mais, souberam ter os mesmos gostos:
admirando os mesmos artistas de cinema, cantarolando
as mesmas can��es, preferindo as mesmas disciplinas,
entusiasmando-se pelos mesmos livros � os livros que uma
lia depois da outra, ou que liam juntas, rindo alto quando chegavam
juntas ao fim da p�gina. As notas de aula, se nem sempre
eram as mesmas, por vezes se equilibravam, ou se alternavam,
de modo que, no conjunto, como que se revezavam, ora
uma, ora outra, com a preval�ncia final das notas da Simone,
que sempre alcan�ava o fim do ano no primeiro lugar.

Se n�o compartiram os vestidos, por intransig�ncia de M�e
Ded�, que tamb�m tivera a sua casa espa�osa, e baixela, e m�veis
de estilo, e piano de cauda, e carro � porta, compartiram
os livros de leitura, o estudo particular da l�ngua inglesa, a professora
de piano, na casa da Simone, j� que esta recorrera ao
argumento de ter a sa�de mais fr�gil para que o estudo fosse
ali. Quanto aos livros, at� mesmo M�e Ded� acabava por l�los
tamb�m, quando a filha n�o estava em casa, mas com este
cuidado: envolvia-os,' sempre, antes de l�-los em papel celofane,
com o nome da Simone no pedacinho de papel em bran


40


co colado na capa. E alertava Patr�cia para devolv�-los assim
que chegavam � derradeira p�gina.

Aos domingos, como a igreja era perto, iam as duas � missa
a p�, como a p� iam ao cinema do bairro, sobretudo no per�odo
de ferias, a que acrescentavam os passeios de bicicleta, no
Parque da Cidade, e as idas � praia, se M�e Ded� podia
acompanh�-las.

Ah, a alegria de se telefonarem, por vezes noite alta, ou
em horas extremamente matinais, para uma contar � outra a
�ltima novidade. E como riam, e como cochichavam, por vezes
recorrendo � l�ngua do p, que M�e Ded� lhes ensinara:

� Com-p-pas-p-sas-p-te-p-a-p-noi-p-te?
De um momento para outro, quando as duas andavam
perto dos vinte anos, e eram mo�as, j� podendo ter o seu emprego
e a sua casa � o rompimento imprevisto, com o sil�ncio
de uma e o sil�ncio de outra, e o telefone mudo, e ambas
retra�das, evitando o nome da outra.

Deus tinha visto que ela, Patr�cia, passara a noite em claro,
depois que a Simone, quase de madrugada, lhe contara,
aos prantos, que o Rodrigo tinha acabado de sair de sua casa,
ao fim de longa conversa com ela e com M�e Ded�, e em que
deixara claro que, com ela, Simone, n�o se casaria. Que tudo
quanto havia ocorrido entre eles n�o passara de compromisso
de inf�ncia, sem validade � hora das decis�es definitivas. Amigos,
sim; mas noivos, n�o.

E Patr�cia, em sil�ncio, a recolher-lhe o pranto convulso.
Por fim, este remate desesperado:

� Assim mesmo, Patr�cia. Tive vontade de mat�-lo. Mas
me contive. Calada o tempo todo, a olhar para ele. Sou eu que
vou me matar, Patr�cia. Eu, Simone. Tudo acabou para mim.
Tudo. Juro-te que me mato.
Pela manh�, ap�s a noite imensa, a debater-se com o seu
desespero e a sua culpa, Patr�cia aparecera rta Escola Normal
com os olhos pisados, p�lida, as sobrancelhas contra�das, disposta
a abrir-se com a Simone, s� as duas, ao fundo do p�tio,
para inteir�-la do encontro na piscina do clube, do almo�o no
Jockey, da longa caminhada a p� at� o Parque da Cidade a
conversar com o Rodrigo. Entretanto, de si para si, ela sabia

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que Simone estaria em casa, fechada no quarto, �s escuras,
sem ver ningu�m, sem aparecer para ningu�m. E se ela se matasse,
como havia jurado?

Pensara em recorrer ao Padre Revoredo. Mas onde
encontr�-lo? J� fazia mais de seis meses que n�o o via, ou na
sua casa, ou na casa de Simone. Gordo, bochechudo, fala mansa,
batina empoeirada, n�o se sabendo ao certo onde morava,
ora aparecendo dias seguidos, para almo�ar e jantar, ora desaparecendo
de vez, meses a fio, sem que se soubesse por onde
andava. E j� ia telefonar, dali mesmo da Escola Normal,
para M�e Ded�, a ver se esta conseguia localizar o padre, quando
a figura esguia da Simone surgiu do outro lado do p�tio.

Patr�cia caminhou ao seu encontro, tardando o passo, enquanto
a outra, aligeirando o seu, veio vindo depressa, de modo
que foi ainda ao fundo do p�tio que se defrontaram. E a um
passo apenas, Patr�cia notou o semblante desfigurado da Simone,
tenso, um brilho de �dio nas pupilas:

� Simone � chamou-a, como se quisesse cont�-la.
Num relance, em sil�ncio, como se n�o pudesse falar, ou
se as palavras lhe faltassem, Simone afastou a m�o direita, com
incr�vel rapidez, e trouxe-a de volta, com igual impulso, batendo
em cheio no rosto de Patr�cia, sem lhe dar tempo de
esquivar-se, e ia voltar o bra�o, no mesmo impulso da brutalidade
e da ira, para repetir a pancada, mas Patr�cia, tamb�m
r�pida, segurou-lhe o bra�o agressivo, prendeu-lhe simultaneamente
o outro punho, en�rgica, decidida, com toda a for�a de
que era capaz, e a imobilizou, a olh�-la de frente, arquejando,
rosto contra rosto, a menos de um palmo; depois, atirando-
lhe os bra�os para os lados, calada, os dentes cerrados, deu-
lhe as costas, subiu a escada que levava ao pavimento da sala
de aula.
Mas n�o entrou na sala: seguiu pelo corredor longo, entrou
na secretaria, pediu licen�a para falar ao telefone. Com
a m�o tr�mula, fez a liga��o, errando o n�mero. Afinal,
dominando-se, tornou a discar, esperou o sinal da chamada.
E quando o Rodrigo atendeu:

� Sou eu, Patr�cia. � para lhe dizer que sim, que caso
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com voc�. Apare�a l� em casa, amanh�, para falar com a minha
m�e. Hoje mesmo converso com ela.

E ainda sentia o rosto em fogo, vermelho, com os cinco
dedos da outra na epiderme, quando saiu � rua, caminhando
depressa na cal�ada coberta de sol.

43


TERCEIRO CAP�TULO

1

Como havia recomendado ao Ludovico que deixasse na
poltrona o quadro de formatura, ali estava este, banhado pela
claridade da janela, junto � escrivaninha de mogno, em cujas
gavetinhas de segredo ela guardava os seus pap�is, incluindo
os card�pios que recortava dos jornais.

Patr�cia gostava daquele canto na imensid�o da casa, sobretudo
se acompanhada pela surdina de seus concertos prediletos.
E como amava a ordem, cada coisa em seu lugar, fazia
tudo com m�todo, na mesa bem arrumada e bem disposta.

Agora, com o quadro � sua frente, na luz forte da tarde,
ela abrangia as colegas de turma e os professores, al�m da rechonchuda
diretora, que ostentava um pente espanhol � altura
da nuca, muito cabeluda e compenetrada. Que fim teria levado
esta D. Carmita? Sabia-se que, j� quarentona, de forte
bu�o azulado, tinha casado de repente com um militar robusto
que poderia ser seu filho. E como se afastara da escola para
viver com o seu amor tempor�o, dela n�o mais se soubera, dando
agora a impress�o de ter sido desfeita pelo tempo.

Da outra poltrona, olhando para o quadro, na dist�ncia
de menos de dois metros, Patr�cia sentia que lhe volvia � consci�ncia,
n�o apenas toda a sua turma, no ano da formatura,
mas tamb�m os mestres, a sala de aula, o bater da sineta, o
ru�do dos passos nos degraus da escada, e mais que tudo, n�tida,
inconfund�vel, possessiva � a Simone. Com o mesmo penteado,
do come�o ao fim do curso. A mesma eleg�ncia. A mesma
consci�ncia de sua singularidade e de sua beleza. Afetuo


45


sa e inacess�vel. Como que envolta no seu pr�prio mist�rio,
que a intimidade e o conv�vio n�o penetravam. Ora cordata,
ora inflex�vel.

Ali estava, magrinho, de bigode negro, gravata negra de
la�o derramado, o bom do Professor Marinho, t�o fino quanto
um l�pis ou um pincel, e que debalde tentara conseguir da
Simone que posasse uma tarde, na pr�pria escola, para lhe pintar
o retrato. Tamb�m o Professor Jansen, que todos os anos
preparava o grupo que representava uma pequena pe�a no teatrinho
da Escola Normal, em v�o ensaiara convencer a Simone a
aceitar um papel de realce, que lhe sobressa�sse a beleza. N�o, de
modo algum. Mesmo com a interven��o de D. Carmita. E com

o empenho do Padre Godinho, que lhe dava a comunh�o. N�o
estava ali para exibir-se. E quando fora a vez de Patr�cia, que
tamb�m instara com ela para que fizesse o papel de Nossa Senhora,
na Pastoral do velho Avertano, a recusa ainda havia sido
mais veemente:
� Se insistes com isso, nunca mais falo contigo!
E n�o falaria. Como n�o falara mais com a Adriana, que
se recusara a trocar de lugar com ela, para que ficasse ao lado
de Patr�cia, mesmo sabendo que esta continuara a se dar com
a outra. E foi preciso que Adriana perdesse o pai, num desastre
de autom�vel, para que Simone aparecesse no vel�rio, levando
ao morto, gravemente, compungidamente, a bra�ada de
rosas que entregou � filha, na capela repleta de companheiras.

Pobre Adriana, de rosto redondo, olhos grandes, sempre
espantada, como a adivinhar que a vida lhe seria hostil, dando-
lhe a morte est�pida, que ningu�m saberia explicar � um m�s
depois da formatura, � noite, enquanto dormia, e de que somente
ficara vest�gio na janela do quarto escancarada e no len�ol
da cama empapado de sangue.

Ao lado da Adriana, a Neide, de que nunca mais tivera
not�cia. Do outro lado, a Paula. A querida Paula, junto da Inezita,
tamb�m querida. A Gilda, que fora morar na Su��a. Esta
seria mesmo a Fl�via? Sim, ela mesma, com o cabelo curto
e a pastinha. Ou seria esta outra, tamb�m de pastinha? N�o,
esta � a Vera.

E voltando a sorrir, Patr�cia desviou um pouco a cabe�a,

46


para dar mais luz ao quadro enquanto tornava a olhar a si mesma,
no retratinho ao lado da Simone:

� Sim, sou eu mesma. Eu, Patr�cia. E foi assim que o
Rodrigo se apaixonou por mim. Como, n�o sei. E por que a
Simone � minha direita, se j� n�o nos fal�vamos?
Deu de ombros, sabendo que n�o saberia responder: apenas
lhe ficara na consci�ncia o rosto da Simone, acusativo, a
olh�-la de frente. Sempre a Simone. A mesma Simone. A despeito
do tempo transcorrido, continuava a lembrar-se dela como
se a houvesse visto momentos antes, com aquele mesmo
cabelo, aquela mesma altivez, a mesma sombra leve por baixo,
dos olhos, sempre bonita.

O velho Avertano, gordo, bovino, a papada querendo
cobrir-lhe o la�o da gravata, filtrava as pupilas mansas pela
fresta das p�lpebras, no recorte oval do retratinho em preto
e branco, como se fosse come�ar a li��o do fim da tarde, com
as m�os entrela�adas por baixo do ventre, no estrado da sala
de aula:

� Minhas amiguinhas... E futuras professoras...
O Professor Fritz, com a mesma roupa azul do come�o
ao fim do ano, permanecera fiel ao traje surrado, j� exalando
um cheirinho teimoso de suor e poeira, alto, meio curvo, as
su��as tufadas no rosto comprido, ainda conservava, na fotografia
levemente desbotada, o ar de noivo cr�nico com que sorria
para a senhora enchapelada que o vinha buscar, todos os
dias, � porta da Escola Normal, para seguirem, rua abaixo,
muito unidos, como dois namorados adolescentes.

Patr�cia ouvia-lhe a voz rouca:

� O ingl�s, como sabem minhas alunas, � a chave do saber.
Ningu�m pode ensinar meninos sem conhecer a l�ngua de
Shakespeare.
De vez em quando a mesma frase. Com o mesmo ar afetuoso
e solene, enquanto enrolava na m�o imensa o cigarrinho
de palha.

Conquanto n�o mais existisse o velho pr�dio da Escola
Normal, que vinha do outro s�culo, com seu bonito beiral dando
a volta ao quarteir�o e seu renque de janelas com sacadas
de ferro, e que fora demolido em poucos dias, com protestos

47


nos jornais, Patr�cia o recompunha sem esfor�o, naturalmente,
e revia as duas cari�tides ladeando a escada, o portal de
m�rmore, o mastro da bandeira, o p�tio, as amendoeiras, o
repuxo em que lavavam as m�os e o rosto nos dias de calor,
as salas de aula, a sala da congrega��o � com a mesa comprida,
os cadeir�es tauxiados, os retratos a �leo nas paredes
circundantes, todos de beca, solen�ssimos.

Por que tinham posto abaixo o velho pr�dio, com a sua
imensa varanda de leques coloridos, para construir em seu lugar
um espig�o de vinte andares, sem beleza, sem eleg�ncia,
com a inj�ria suplementar de um letreiro luminoso l� em cima?
Ainda bem que sempre evitava passar por l�, mesmo para
encurtar caminho. Ou ent�o, se passava, cerrava os olhos,
at� sentir que a volta da rua ficara para tr�s.

Com os olhos no quadro, e a m�o direita segurando o l�pis
sobre o bloco de papel, Patr�cia se dispunha a preparar a
rela��o das colegas que ia convidar quando refletiu que, de
muitas delas, n�o teria o endere�o, al�m de n�o saber, ao certo,
quais as que estariam casadas, solteiras, vi�vas ou divorciadas.
De pronto lhe acudiu recorrer � Fl�via Turbino, que
tudo sabia e de tudo entendia, na sua condi��o de poeta e jornalista.
Mas mudou de id�ia. N�o: se a Fl�via conhecia gente
importante, n�o conheceria gente de vida apagada ou modesta,
que n�o ia a recep��es, a coquet�is, a corridas no Jockey,
a regatas, a vernissages, a lan�amentos de livros, com direito
ao nome nos jornais.

E de repente, numa ilumina��o:

� A Inezita. A Inezita � que pode me ajudar.
Veio mais � frente, curvando-se para a poltrona, a olhar
de perto o quadro, e descobriu a Inezita no pen�ltimo lugar
da segunda fila. Sim, era ela. N�o podia deixar de ser. E resvalou
a vista emocionada, mais uma vez, por todo o quadro,
para voltar � figurinha que parecia querer atravessar o vidro
da moldura, magra, pesco�o alto, quase desarrumada, em contraste
com a Inezita de hoje, bem vestida, esportiva, �s voltas
com sucessivas campanhas sociais, e que freq�entemente lhe
telefonava, com a mesma determina��o e o mesmo empenho,
numa voz contente, quase rouca:

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� Mais uma caridadezinha, Patr�cia. Sei que n�o vais me
dizer n�o. Deus, l� em cima, est� tomando nota.
Patr�cia, invariavelmente, atendia com gosto, com entusiasmo,
sem esperar que a outra viesse ao seu encontro: fazia
com que seu motorista, acompanhado pelo grave Ludovico,
fosse ter com ela no mesmo dia, mandando-lhe o dobro do
que havia pedido, para receber logo depois o mesmo agradecimento
efusivo:

� Foste maravilhosa, Patr�cia. Ma-ra-vi-lho-sa. Deus est�
me ouvindo. J� entreguei o donativo ao Cardeal. Ele faz
quest�o de te ver. Prepara-te. Eu sempre digo isto, sem que ele
va. Desta vez, vai.
Curioso: a caridade constante, quase profissional, longe
de dar � figura nervosa da Inezita o equil�brio das sensibilidades
realizadas, como que a tornava mais efusiva, mais loquaz,
ao mesmo tempo em que a ia envelhecendo precocemente, nas
rugas, na flacidez, nas manchas das m�os, em contraste com
a vivacidade dos olhos brilhantes, em que a beleza da juventude
parecia ter o seu reduto, no brilho vivo, no verde vivo.
No todo, ainda era jovem, gra�as sobretudo aos olhos; mas
j� tivera de recorrer ao cirurgi�o pl�stico para eliminar um come�o
de papada destoante e intrometida. E como era loquaz
por natureza, falando com todo o corpo em movimento, com
�nfase nas m�os, como que voltava ao tempo da sala de aula,
sempre que se expandia, no impulso de seus entusiasmos.

Patr�cia a chamou pelo telefone, duas vezes seguidas, repetindo
o n�mero que constava de seus apontamentos. Como
ningu�m atendesse, rep�s o fone no gancho.

Foi nesse momento que o Ludovico apareceu � porta da
saleta, abra�ado a uma imensa caixa de papel�o. E parado, antes
de entrar, ainda com a caixa contra o ventre:

� Uma boa surpresa, Sra. D. Patr�cia.
E Patr�cia, com uma express�o de espanto no rosto
contra�do:

� Onde estava essa caixa, Ludovico? N�o � a caixa em
que M�e Ded� guardava os
meus pap�is?
E ele, feliz:

� A pr�pria. Estava no s�t�o, muito bem escondida, des49



de que morreu M�e Ded�. Como minha patroa n�o se consolava,
chorando sempre, guardei a caixa ali, por ordem do Dr.
Rodrigo. Agora, que o tempo j� passou, a emo��o de ontem,
com os olhos molhados, � a lembran�a de hoje, com os olhos
enxutos � como diz n�o sei quem.

Suspirou alto, j� com a caixa sobre um tamborete, perto
do quadro de formatura. E inclinando a cabe�a para um lado,
com as m�os unidas:

� Quando vi a senhora a olhar o quadro de formatura,
com saudade de seu tempo de mocinha, me lembrei de lhe trazer
esta caixa.
Patr�cia passou o resto da tarde a revolver recorda��es nos
pap�is que ia tirando dali. No entanto, ali n�o estava a sua
turma. S� a Simone. Sempre a Simone. E as duas juntas. Muito
amigas. De m�os dadas, falavam alto, riam alto, cochichavam,
escondiam-se, sa�am � rua, conversavam ao telefone, corriam
nas alamedas do bosque, paravam diante do repuxo ao meio
da pra�a, pedalavam as bicicletas, alvoro�avam os p�ssaros do
viveiro batendo na tela, imitavam a arara do vizinho, ou ent�o
entravam pela noite, ora na casa de uma, ora na casa de
outra, repassando as notas de aula para a prova da manh�
seguinte.

Houve mesmo um momento em que Patr�cia voltou a sentir
a m�o da Simone na sua testa, nos seus cabelos, no seu rosto,
e ambas se olharam, bem perto, rosto contra rosto, at� que
se abra�aram, demoradamente, e era a Simone quem dizia,
emocionada:

� Que bom que fosse assim, sempre assim, para o resto
da vida.
Mas n�o fora. De um momento para outro, imprevistamente,
por ast�cia do destino, o desencontro, a ruptura. De
in�cio, uma sensa��o de surpresa, de vazio, de perplexidade,
que por vezes, � noite, no sono breve, o sonho interrompia,
restituindo a Patr�cia o rosto, as m�os, a voz de Simone. Depois
a dist�ncia, o sil�ncio, at� sobrevir a saudade magoada
com que ia buscar, nos guardados da mem�ria, as imagens de
outrora, n�tidas, indel�veis. Nessas horas, suspirava, alteava os
ombros, deixava cair os bra�os, sabendo que nunca mais, na

50


volta da rua, acenaria para Simone, que de longe a seguia, no
port�o de sua casa.

2

Por fora, com as pl�sticas a que se havia submetido, n�o
era a mesma Inezita do retrato do quadro de formatura. Do
narizinho arrebitado, que tanta zombaria lhe custara durante

o curso, s� restava a parte superior, com as narinas corrigidas
e a ponta afilada. Desaparecera o come�o de papada que lhe
arredondava o queixo. E como tinha os olhos inclinados, parecia
agora uma oriental, no exotismo de sua beleza retocada.
O salto dos sapatos, aumentando-lhe o tamanho, n�o chegara
a alterar-lhe a figura mi�da e bem proporcionada, com as pernas
bem-feitas, real�adas pelas meias pretas.
E chegando-se para a ponta da cadeira, defronte da mesa
do ch�, adiantou para a asa da x�cara a m�o canhota:

� Parece mentira. Eu e tu moramos na mesma cidade,
no mesmo bairro, falamos sempre pelo telefone, e a gente quase
n�o se v�. A �ltima vez que estive aqui foi ano passado. J�
te disse: me chama, que eu venho. Sou a Inezita de sempre. S�
n�o fui mais tua amiga quando fizemos o nosso curso porque
a Simone te monopolizava. Eras propriedade dela. De mais
ningu�m. Bem que eu queria. Com este mesmo gosto da vida.
Este mesmo temperamento. Meu marido costuma dizer que
eu n�o sa� dos quinze anos. Por dentro. Por fora, vou tratando
de conter os exageros da natureza.
E recuando a cadeira, a afastar-se da mesinha de ch�:

� Ai! Fiz bobagem: molhei a toalha! E quase me molho.
A culpada foi esta torrada gostosa. O pior � que manchei
tua toalha de linho. N�o te preocupes: a mancha sai. Antigamente
n�o sa�a. Hoje, felizmente, sai. Com um detergente novo,
que tira mancha na hora.
Rep�s a cadeira no lugar, apossou-se de outra torrada,
segurando-lhe a ponta, entre o indicador e o polegar, com os

51


outros dedos levantados; molhou-a no ch�, de leve, meticulosamente,
e levou-a � boca, para mord�-la com gosto, como encantada
com o ru�do da mastiga��o vagarosa.

E tentando reprimir o riso:

� Minha m�e sempre diz que eu, para tudo, sou apressada;
s� n�o sou apressada para comer. E � verdade. Comer,
para mim, � um rito. Mastigo bem, engulo bem, sinto que a
comida me cai bem aqui dentro. J� meu novo marido � diferente:
n�o come � engole.
Veio mais para perto de Patr�cia, falando-lhe junto �
orelha:

� Na cama tamb�m. J� ralhei com ele.
E riu alto, de boca cheia, com a mal�cia nas pupilas, enquanto
Patr�cia a fitava, contraindo os l�bios para reprimir o
riso, que tamb�m lhe subira aos olhos, com o mesmo brilho
de mal�cia.

E foi Patr�cia que, de repente, recolheu de todo o riso, erguendo
a cabe�a, para perguntar:

� J� sabes que dentro de dois meses vou fazer quarenta
anos? � verdade.
Quarentona. Como tu. Como a Paula.
E a Inezita, com o indicador diante dos l�bios:

� Psiu. Mato tem olhos, paredes t�m ouvidos. Fica
calada.
E Patr�cia, prosseguindo:

� Quarenta anos � repetiu. � E quero reunir aqui, nesse
dia, numa grande festa, toda a nossa turma. Incluindo os
professores.
Num �nico impulso, � maneira do brinquedo que se desprende
da mola que o ret�m, Inezita saltou da cadeira, quase
a derramar o resto do ch� na barra do vestido:

� O que est�s me dizendo, Patr�cia? Isso n�o � uma id�ia
como outra qualquer. � uma inspira��o divina. Uma lembran�a
genial.
Estava agora de p�, transfigurada, e p�s-se a andar pela
saleta, entre a janela e a porta sobre o sal�o, quase a esbarrar
no Ludovico, que aguardava o momento em que iria desfazer
a mesa do ch�, grave, mudo, expedito, certamente a disfar�ar
a curiosidade natural, ao acdmodar, uma a uma, as pe�as na

52


bandeja, dobrando cuidadosamente a toalha, recolhendo os
guardanapos, como se estivesse a representar, impecavelmente,
o seu papel de mordomo.

E Inezita, de frente para a janela e de costas para Patr�cia,
toda entregue ao frenesi da imagina��o:

� N�o, eu n�o acredito. Todas n�s, reunidas, como na
noite da formatura? � o m�ximo. O m�ximo. Para vir nas revistas.
Para ser, falado no estrangeiro.
E de frente para a outra, mais exaltada e borbulhante:

� E com os nossos uniformes, Patr�cia! Por que n�o? Sim
senhora: todas de uniforme! Que � que custa fazer um novo
uniforme? Menos que um vestido de soir�e. Blusa branca, saia
azul, a gravatinha tamb�m azul, sapato preto de fivela prateada,
meia curta, a saia abaixo do joelho, como se f�ssemos novamente
quintanistas da Escola Normal. Tem paci�ncia: se ningu�m
topar o uniforme, eu topo. Venho aqui com o meu. E
tu vais ver o sucesso que vou fazer. Ah, Patr�cia, tua id�ia me
deixou maluca. Deixou. Meu marido vai ficar tonto e os filhos
assim, de boca aberta. Juro por Deus que estou sonhando.
Assim. De p�. Me apalpa. Me pega. V� se sou eu mesma
que estou aqui.
Ludovico, depois de olhar em volta, como para ver se nada
lhe faltava, retardou a sa�da da saleta, terminou por apoiar
a bandeja repleta na m�o espalmada, e saiu ao corredor, sem
diminuir ou atenuar a sua eleg�ncia e a sua solenidade, ap�s
dizer, com um leve aceno da cabe�a curiosa:

� Com licen�a.
E Inezita, ainda exaltada:
� E foi para me deixares assim, toda arrepiada de emo��o,
que me chamaste aqui, Patr�cia? Se foi por isso, n�o sei
como te agradecer. J� sei que esta noite n�o vou dormir.
Patr�cia segurou-a pelos ombros:

� Mas n�o foi s� por isso que te chamei. Preciso de ti
para me ajudar nas consultas e nos convites. Eu perdi de vista
muitas de nossas colegas. Umas, n�o se aproximam de mim,
supondo que eu mudei; outras afastaram-se por motivos que
n�o desejo nem quero aprofundar. Como sou a mesma, passo
53


por cima de tudo, e estendo a m�o a todas, como se ainda estiv�ssemos
na sala de aula.

Inezita deu ao rosto uma express�o s�ria. Pestanejou, correu
a costa da m�o direita pelos olhos �midos. E erguendo o
olhar:

� Sabes que me emocionei, Patr�cia? � verdade. Senti os
olhos �midos, as m�os frias. Um belo gesto, o teu. Muito bonito.
Parab�ns. E vai ser linda a tua festa, Patr�cia. A nossa
festa. Porque ser� tamb�m nossa. De nossa turma. De cada
uma de n�s. E se fiz�ssemos a mesma festa de dez em dez anos?
J� pensaste? Todas n�s reunidas de novo. At� sermos um bando
de velhinhas, cada qual com a sua bengala?
Sa�ram da saleta do ch�, entraram no pequeno gabinete
de Patr�cia, precedidas pelo Ludovico, que puxava agora as cortinas
para recolher a derradeira luz da tarde.

E ele, para Patr�cia:

� Quer que acenda os abajures, senhora?
� Assim est� bem, Ludovico. Quando escurecer, eu mesma
acendo.
Pode ir. Se precisar de voc�, eu chamo.
E Ludovico, curvando-se:

� A senhora manda; eu obede�o.
Tornou a empertigar-se, ganhou o corredor alargando o
passo; l� adiante, cerrou a porta.
Inezita olhava agora em seu redor, calada, compenetrada,
acercando-se das paredes para olhar de perto o quadro e
a assinatura respectiva, correndo a m�o inquieta pelo bronze
das estatuetas, louvando o bom gosto dos m�veis, admirando
exaltadamente os tapetes.

E de repente, perto da escrivaninha, ao dar com o quadro
de formatura sobre os bra�os da cadeira:

� Igual ao meu. Quando quero ter saudades, corro os
olhos por todas n�s, e sinto o cora��o apertar. Um dia, meu
marido ralhou comigo, quando me viu de olhos molhados diante
deste quadro. N�s � que sabemos o que isto significa para
n�s. D� vontade de voltar para tr�s. �s vezes, penso: como
seria bom se o tempo, em vez de ser um mist�rio, fosse uma
maquininha de manivela � girava para frente, o tempo avan�ava;
girava para tr�s, o tempo voltava ao passado.
54


Suspirou alto:

� Depois, reconheci: a maquininha est� dentro da gente.
Agora mesmo, girou para tr�s.
E numa voz mais viva:

� Queres mesmo que venham todas � festa, como na noite
da formatura?
E parando no meio da saleta, de costas para o quadro,
sombreou o rosto, com dois tra�os verticais a lhe subirem para o
meio da testa; levou assim uns momentos, com os olhos no
ar, como voltada para si mesma. Ergueu depois o olhar:

� Tamb�m a Simone, Patr�cia?
� Simone, n�o; podia ofender-se, se a convidasse. Para
meu casamento, M�e Ded�, distraidamente, mandou-lhe um
convite, e foi devolvido no mesmo dia, rasgado ao meio.
E Inezita, passado um sil�ncio:

� Voc�s eram t�o amigas. De repente, a vida muda. Cada
uma de n�s sabe de si. O que tem de ser, tem de ser. N�o
depende de nossa vontade. Eras tu que tinhas de casar com
o Rodrigo. Destino � destino. Ponto final. Deus manda, a gente
obedece.
E sentando-se na cadeira de palhinha, que puxou para perto
de Patr�cia, de modo a continuar a olhar a outra de frente:

� J� te disse que fui ver a Simone? Fui. Criei coragem,
e fui. Nestes vinte anos, ela sempre me escreveu. Pelo menos
duas vezes: uma, pelo Natal; outra, no dia de meus anos. Cartas
longas, bem escritas. Sempre parecendo conformada, e at�
forte, aceitando a reclus�o. Na �ltima carta, o tom era diferente:
com uma ponta de revolta, cansada da vida. Tive a impress�o
de que se despedia de mim. Peguei meu carro, no fim
de semana, e me mandei para l�, com o marido do meu lado.
Grande borrasca pelo caminho, um frio de doer, e eu subindo
a serra. Seis horas de viagem dif�cil. Afinal, chegamos. Arranjamos
quarto no �nico hotel da aldeia, e ali passamos a
noite, olhando de longe, numa esplanada, as luzes do Sanat�rio.
De manh�, sozinha, subi at� l�. Subida dif�cil, de muitas
voltas, com o carro a gemer nas curvas fechadas, at� que me
vi l� em cima. Uma vista deslumbrante. Nunca vi paisagem
t�o linda. Mas a se fechar em volta da gente, tornando mais
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forte o sentimento da solid�o. Solid�o absoluta. Pelo menos
para mim, nos primeiros momentos. Na portaria, quando disse
da visita que pretendia fazer, levaram-me ao m�dico de plant�o,
que me disse n�o ser poss�vel ver a Simone. Foi franco,
quando eu lhe expliquei quem eu era: ela tentara matar-se, cortando
os pulsos, fazia uma semana.

Patr�cia desencostou-se da poltrona, como se fosse
levantar:

� Ela tentou matar-se? A Simone?
� E era a segunda vez que fazia isso. Na primeira, ficara
entre a vida e a morte, durante mais de m�s. Atirara-se l� de
cima, do alto de uma pedra, ao fundo do vale. S� n�o morreu
porque, na queda, caiu sobre uma �rvore, e ali ficou presa, com
a clav�cula fraturada, traumatismo craniano, escoria��es em
todo o corpo. Isso foi h� dez anos.
E Patr�cia, desolada:

� E eu n�o soube de nada. Ningu�m me falou.
� Eu tamb�m n�o soube. Nem ela, nas cartas que me escreveu
depois, aludiu ao fato. Eu as reli, h� pouco tempo. Pelo
contr�rio: tinham um tom jovial, meio s�rio, meio brincalh�o,
sem deixar transparecer a crise em que se debatia. Na
segunda vez, foi diferente, me disse o m�dico. Passara uns tempos
deprimida, fechada no quarto, recusando alimentar-se.
� Exatamente como nas crises que testemunhei, quando
�ramos amigas � reconheceu Patr�cia, ainda de sobrancelhas
alteadas. � Nessas ocasi�es, nem com a m�e queria falar. S�
falava comigo. E quando falava. E assim mesmo, no fim da
crise.
E Inezita:

� Agora, ouve o resto. Pedi ao m�dico que fosse dizer
a Simone que eu estava ali: se ela pudesse me receber, gostaria
de v�-la. Ele relutou, j� sabendo a resposta: Simone n�o queria
ver ningu�m. Mesmo os m�dicos. Mesmo as enfermeiras.
Insisti com ele. N�o tardou a voltar, de rosto aberto. Simone
ia me receber. S� me pedia que esperasse uns momentos. Da�
a pouco, ela pr�pria veio ter comigo, na sala de espera. Assustei-
me. Parecia mais alta, muito esguia, muito branca, uma ruga
funda entre o canto da boca e a asa do nariz, os olhos enor56



mes. Levou-me para a outra ala do pavilh�o onde tem seus aposentos.
Vi-lhe nos punhos a gaze do curativo. De rosto alegre,
me trouxe pela m�o, abriu a porta sobre o quarto amplo, a
que se ligava uma sala. Nada, ali, lembrava uma casa de sa�de,
a n�o ser o conjunto de aparelhos na trave da cama e mais

o suporte de ferro para o tubo de soro. Quadros nas paredes,
duas estantes repletas de livros, uma cadeira pregui�osa na sala,
defronte do aparelho de televis�o, um grupo estofado, um
par de poltronas como esta, cortinas nas tr�s janelas, tapetes,
uma mesa redonda com uma floreira, o aparelho de som, a
discoteca, a estante dos videocassetes. Tubo bem cuidado. O
suporte para os jornais e as revistas. E mais esta surpresa, que
eu quase te contei: um jornal dobrado, com o teu retrato e o
retrato do Rodrigo na primeira p�gina.
E Patr�cia, quase a levantar-se:

� Foi na �poca do desastre de autom�vel, no Vale das
Grutas, quando ele e eu escapamos por milagre. Ela te perguntou
por n�s?
� Fui eu que lhe confirmei o que o jornal contava: todos
morreram, menos voc�s. Ela me ouviu em sil�ncio. Eu,
para mudar de assunto, perguntei-lhe como se sentia naquele
isolamento, longe das antigas colegas. Ela me respondeu sem
hesitar: bem. Nada lhe faltava. A compreens�o dos m�dicos,
o desvelo das enfermeiras, a solicitude dos empregados. Como
se a dona do Sanat�rio fosse ela.
� Em parte, � � atalhou Patr�cia. � O Rodrigo soube,
por um amigo, que ela, assim que recebeu a heran�a da m�e
(e n�o foi pouca coisa), passou-a para o Sanat�rio.
E Inezita:

� Eu acredito que, mesmo sem isso, ela se sentiria em
casa. Gostava daquele isolamento, daquele sil�ncio, daquelas
alturas. Levou-me para olhar o vale, de uma das janelas. Nunca
vi nada mais lindo. J� o sol ia desfazendo o mau tempo,
e mostrava as �rvores verdes, a curva do rio, a faixa da estrada,
as montanhas, as casas de teto pontudo nas encostas, e
o sussurro do vento macio que n�o parava de soprar. Sa� de
l� de noite, para me encontrar no hotel com o meu marido.
Na manh� seguinte, voltei para c�. Voltei de alma tranq�ila.
57


Simone estava muito bem entregue. Passara-lhe a crise. Voltara
a ser alegre. Risonha. Lembrou o tempo da Escola Normal,
as colegas, os professores.

Patr�cia n�o conteve a pergunta:

� Falou em mim?
� N�o, n�o tocou no teu nome. Mas n�o deixou transparecer
qualquer amargura. Ela pr�pria aludiu � sua tentativa
de suic�dio. Fora um momento de fraqueza. Passara. J� pedira
perd�o a Deus. Com a ajuda de um padre, que de vez em
quando vai v�-la, e � tamb�m teu amigo.
E Patr�cia:

� O Padre Revoredo?
� O Padre Revoredo � confirmou Inezita, acabando de
recompor o batom dos l�bios para ir embora.
3

Depois de ter o quadro, por v�rios dias, sobre os bra�os
da cadeira, a um canto, perto da escrivaninha em que punha
em dia a sua correspond�ncia social, Patr�cia revia-o agora,
n�tido, objetivo, no quarto de dormir �s escuras, como se continuasse
a t�-lo � sua frente, na claridade do dia, restituindo-
lhe a imagem dos professores e das colegas de turma. Sobretudo
das colegas.

Com efeito, todas elas estavam ali, nas tr�s filas horizontais,
seguidamente, lado a lado, quase a se tocarem, no diminuto
espa�o do retratinho oval em preto e branco, com o nome
por baixo. No seu caso, trazia esta indica��o a mais, por
cima do retrato: oradora, em letras menores.

Sim, ela pr�pria. Com dezenove anos. J� noiva do Rodrigo.
Com os cabelos penteados por M�e Ded�. O rosto contente.
O busto cheio. O par de brincos que o noivo lhe trouxera
de Paris. Eles mesmos. Lindos.

Agora, no quarto amplo, na imensid�o da cama de casal,
debalde Patr�cia esperava pelo marido, que deveria ter vindo no

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cair da noite, e n�o viera, nem lhe telefonara. E ap�s um suspiro,
come�ando a afligir-se:

� Que custava telefonar? Eu estaria mais tranq�ila.
N�o, n�o se acostumada com as aus�ncias do Rodrigo.
Queria-o sempre ali, do seu lado, para ter a m�o dele na sua
e se sentir mais segura. N�o casara enganada. N�o. Sabia que,
de momento, l� ia ele, num trem expresso, num helic�ptero,
num avi�o de carreira, ou no seu pr�prio avi�o. Sempre �s voltas
com mil neg�cios. Ainda bem que voltava de bom humor, vitorioso.
Tudo dava certo.

Desta vez, tinha sido a greve dos oper�rios na sua maior
f�brica. Metera-se no bimotor, que ele mesmo pilotava, e l�
se fora, por cima da serra, em companhia de um de seus gerentes.
Ia decidido a p�r �gua fria na cabe�a dos exaltados e
transigir at� encontrar com eles a boa solu��o harmoniosa.
Com lealdade, e conversando, tudo seria resolvido. Dera-lhe
um aviso, ainda no escrit�rio da cidade: voltaria, o mais tardar,
no dia seguinte, no come�o da noite de lua.

Estaria viajando �quela hora? N�o, n�o era poss�vel, j�
que o tempo se toldara, na dire��o da serra, pelo cair da tarde.
No dia seguinte, tinham um jantar na Embaixada da Fran�a.
De black-tie. Como ia fazer, se ele n�o pudesse vir? Tinha horror
de ir s�, como no jantar da Nunciatura. Com o Rodrigo,
era outra coisa: sentia-se mais segura, mais protegida. S�, n�o.
Daria uma desculpa, sobretudo se restassem treze � mesa, como
no jantar do Presidente do Banco Nacional, quando n�o
pudera vir a mulher do Ministro da Fazenda.

De repente, Patr�cia se reanima, agu�ando o ouvido para

o lado do port�o. Quem sabe se o Rodrigo n�o estaria chegando,
mesmo com o tempo ruim? Era poss�vel. Por que n�o?
Ele, contando sempre com a sua boa estrela, teria enfrentado o
mau tempo, alegre, confiante. Como se estivesse no seu carro
de passeio, de capota descida, na estrada asfaltada.
Ela o havia acompanhado, h� tempo, numa das viagens
do bimotor, e jurara nunca mais repetir semelhante aventura.
Quase se tinham perdido no ponto mais alto da serra, passando
pela garganta de um vale, debaixo de uma lua embaciada,
com a chuva a bater na vidra�a da cabine de comando. Passa


59


ra a viagem rezando, de cora��o apertado. E preferira voltar
de autom�vel, suportando as seis horas de mau caminho, sobre
os calhaus da terra batida.

Fora em v�o que tentara obter do Rodrigo que desistisse
das viagens no bimotor. N�o, n�o podia � ele lhe replicara:
precisava tomar decis�es urgentes, e que s� a ele competiam.
Que ela n�o se afligisse. Deus gostava dele, e o protegia.

Entretanto, por mais que reconhecesse, ao termo de sucessivas
experi�ncias, que sim, que era verdade, tudo com ele
dava certo, cedia freq�entemente ao mesmo temor, ao mesmo
sobressalto, de nervos tensos e m�os frias, ouvindo o dorido
ladrar dos c�es pela madrugada, nas alamedas do parque, ou

o s�bito ramalhar das �rvores, a uma rajada mais forte, como
se fosse um mau aviso: rezava, aconchegando na m�o nervosa
o tercinho de prata � que havia sido bento por Paulo VI �
e acabava reconhecendo que a serenidade lhe voltava, na seq��ncia
das ora��es.
Se as ora��es n�o bastavam, levantava-se, punha uma vela
a mais no orat�rio barroco, e ali ficava, ajoelhada, como
esquecida do tempo, at� que a confian�a lhe voltava.

Agora, estendida ao comprido da cama, Patr�cia se acalma,
sem recorrer ao ter�o ou � vela do orat�rio. A lembran�a
n�tida do quadro de formatura consegue distra�-la, n�o obstante
o latido dos c�es e o ramalhar das �rvores do parque.
E ela vai vendo a Luc�lia, a Inezita, a Paula, a Dulce, a Fl�via...
V� uma, v� outra, e de pronto as re�ne, e sobe com elas
a escada do p�tio, e entra na sala de aula, na reversibilidade
m�gica do tempo da Escola Normal.

A saudade � mesmo isso, Patr�cia: a far�ndola das lembran�as,
que n�s mesmos vamos buscar no fundo da mem�ria,
e que refluem � tona das horas, mais belas, mais desejadas,
como se dan�assem em ronda l�rica dentro de nosso mundo
de impress�es indel�veis.

E eis que volve � consci�ncia de Patr�cia, gordo, vermelho,
o paletoz�o para os joelhos, a papada a cair-lhe por cima
do colarinho, os olhinhos azuis, as m�os cabeludas, o bom do
Professor Avertano, sempre � empurrar para o alto do nariz
grosso os �culos de tartagura, que teimam em resvalar para

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baixo, quase a cair. O mestre vem andando devagar, de cabe�a
inclinada para o ch�o, sem conseguir ocultar a varicocele excessiva,
que lhe avoluma a perna da cal�a. Parece trazer ali,
envergonhado, do lado esquerdo, n�o o seu pobre p�nis j� murcho,
mas algo bem maior, no exagero da bexiga cheia, prestes
a derramar-se, e que ele, coitado, n�o sabe disfar�ar ou esconder,
sobretudo quando anda, parecendo trocar as pernas contrafeitas.
Riam-se dele os bed�is, zombavam dele os colegas,
riam tamb�m as alunas, assim que o professor entrava na sala de
aula, sem saber como dissimularia a deforma��o da natureza. E
como subia ao estrado, ao fundo da sala, com os olhos de todas
as alunas voltadas em sua dire��o, ficava uns minutos vermelho,
encabulado, forcejando para manter erguidas as p�lpebras
desconfiadas, at� que a sua voz suave e competente lhe
suplantava a vergonha, e ele se empolgava pelo ponto, e sorria,
e ria, e gracejava, senhor da mat�ria, contente de ensin�la,
logo desfazendo o risozinho da classe, para s� ficar o interesse
nos rostos que o olhavam, atentos � sua exposi��o.

E a Simone, entrando no p�tio, em companhia da Patr�cia,
ao ver o ch�o coberto por meio palmo de �gua, antes de
dar pelo bombeiro que ia conseguindo conter o veio
borbulhante:

� Que � isto, Patr�cia?
E a Paula, sentada ao meio da escada, de m�o no queixo:
� Foi o Professor Avertano que esvaziou a bexiga.
Riram as tr�s, alto. E o riso se alastrou pelas adjac�ncias,
e riu a classe, e riu mesmo a D. Carmita, ap�s um momento
de sisudez em que retesou os m�sculos da cara comprida, tentando
conter-se.

E esse riso voltou, mais forte, como se explodisse, no momento
em que a Paula sussurrou, ao ver entrar o Professor
Avertano, no seu passo envergonhado, com o mesmo volume
sob a aba esquerda do palet�:

� E ainda sobrou, minha gente.
Com o corpo alongado ao comprido da cama, Patr�cia
ri agora, enquanto a figura da Paula lhe reflui � mem�ria, esguia
como uma flecha, vestida com exagero, duas tran�as ca�das
para os seios apertados, o rosto pintalgado de sardas miu


61


dinhas, l�bios grossos, olhos peraltas, e de m�o no queixo, a
apoiar o cotovelo no tampo da carteira, o ombro levantado,
meio torta.

E Patr�cia diz a si mesma:

� Preciso tamb�m pedir � Paula que me ajude a localizar
as colegas. A Inezita, s�, n�o d� conta de todas.
E riu mais forte ao imaginar que a pr�pria Paula, j� quarentona,
e no terceiro marido, certamente chamaria a si convidar
o Professor Avertano, j� perto dos noventa anos, e ainda
publicando nos jornais os seus artiguinhos de filosofia.

Pela manh�, ap�s oito voltas no parque, Patr�cia mergulhou
na piscina, nadou por quase uma hora, aproveitando o
calor da manh�, e terminou por estender-se, ainda molhada,
ao comprido da cadeira de lona, na pregui�a e no abandono
do banho de sol.

E foi ali, ao tomar o caf� trazido pela Rosa, que, mais uma
vez, repassou de mem�ria o quadro de formatura. Em v�o tentou
fixar-se na Paula, na Luc�lia, na Regina, na Graziela, querendo
esquivar-se da mem�ria obsessiva da Simone, que sempre
lhe voltava, mais n�tida e imperativa, no recorte oval da
fotografia. Mas terminou por busc�-la, ela pr�pria, atra�da pelas
lembran�as que lhe aflu�am � tona da consci�ncia. Sim, era
bonita a estranha Simone, com o porte, a eleg�ncia, o garbo
de seu feitio. No Sanat�rio, ainda seria assim? E por que n�o?
Mesmo no quadro, sobressa�a. Caminhando, mal tocava o ch�o,
como se seu corpo esguio levitasse. Do come�o ao fim do
curso, o mesmo penteado: o cabelo colado ao cr�nio,
uma risca a dividi-lo ao meio, e reunido por tr�s da cabe�a,
� altura do pesco�o, na tran�a que lhe descia entre as esp�duas,
negra, levemente ondulada.

Por um momento, como que a viu na varanda do Sanat�rio,
com o eterno penteado, o mesmo porte, a rosetinha de
ouro nas orelhas, reclusa em si mesma, como alheada da vida
circundante. Diferente de todas as colegas. Mas sem que fosse
de prop�sito. Naturalmente. E por que, ali no quadro, a L�cia,
a Dulce, a Fl�via, a Nadir, a Graziela estavam s�rias, enquanto
a Justina e a Severacomo que iam explodir na gargalhada?
A Evangelina, sisud�ssima. A Madalena e a Dulce, uma

62


ao lado da outra, reprimiam o riso. Onde a Regina? Ali, na
ponta da primeira fila.

Pobre Luc�lia, que tinha tentado matar-se, na �ltima prova
do curso, por estar certa de que seria reprovada, e que acabara
por ter a nota mais alta, na prova do Professor Avertano.
Mas � na lembran�a da Nadir que Patr�cia se fixa, enquanto
rep�e na bandeja a x�cara do caf�: v�-lhe o nariz grosso dividido
ao meio, o bu�ozinho a lhe sombrear os cantos da boca,
muito gorda, muito seio, os bra�os roli�os afastados dos quadris,
e alegre, gostando de cantar.

N�o fora a Nadir que morrera de modo est�pido, quando
se partira a corda do balan�o em que se balan�ava e fora
atirada por cima de um banco de cimento? Sim, ela mesma,
dias depois da formatura. Morrera na ambul�ncia, antes de
chegar ao Pronto-socorro, onde ela, Patr�cia, e mais a Madalena,
a Suzete, a Graziela, a Luc�lia, a Rosana esperavam por
sua chegada, certas de que tudo acabaria bem, com dois ou
tr�s dias de hospital. Depois, quando a maca desceu da ambul�ncia,
a caminho da capela mortu�ria, as seis se entreolharam,
espantadas, n�o querendo crer no que estavam vendo,
e foi ent�o que romperam a chorar, sem compreender, sem
saber explicar.

Os c�es ladram para o fundo do parque, por tr�s da capela,
e Patr�cia se assusta, como se os latidos lhe trouxessem
algum aviso. Bobagem. Deus � grande. E ela sacode os ombros,
mesmo estendida na cadeira, para tirar de si qualquer
sentimento de temor ou apreens�o. De noite o Rodrigo estar�
de volta, sem que nada lhe tenha acontecido. Se n�o vier, certamente
lhe telefonar� da pr�pria f�brica, para dizer que na
manh� seguinte j� ter� regressado. Ela o quer ao seu lado, na
outra cadeira de lona, � borda da piscina, aproveitando a manh�
aberta, de c�u sem nuvens, escampado, e com este sol morno
que a brisa da manh� faz mais suave, quase como um afago
ou uma car�cia.

Mas foi ao subir a escada, para vestir a cal�a e a blusa
com que ultimamente passava o mais das horas em casa, que
Patr�cia se lembrou da Madalena. N�o se recordava de seu retrato
no quadro de formatura. Ou estaria enganada? Talvez

63


o houvesse visto, de relance, sem lhe dar aten��o. E assim que
saiu do quarto, j� de saia e blusa, olhou de longe o quadro,
antes de transpor a porta da saleta, � procura da Madalena,
j� agora convencida de que ali n�o figurava o retratinho dela.
E desapontada, ao dar com o rosto redondo que pareceu
vir ao seu encontro, com o cabelo cortado em pastinha ao meio
da testa:

� Aqui est� ela. Feia e boa. Estr�bica e prestativa.
Fora ela que lhe mandara o buqu� do casamento, todo
de flores � m�o, na caixa de cartolina, e que se lhe ajustara
ao vestido de noiva com o tom prateado de seus adornos. Onde,
esse buqu�? T�-lo-ia dado a algu�m? Ou a M�e Ded� o
teria guardado, com seu gosto de guardar tudo? Quando menos
esperasse, daria com ele � assim como dera com a pr�pria
Madalena, perto do Natal, numa loja de brinquedos.

Pela manh�, ao olhar o calend�rio sobre a escrivaninha,
lembrara-se de que a sobrinha da Rosa, a Nininha, t�o engra�ada,
t�o bochechuda, estava fazendo seis anos. Seis aninhos,
exatamente naquele dia, e n�o lhe comprara um presente! Ali
estava, na sua letra, por baixo da data: Hoje, Nininha. Consultou
o rel�gio, decidindo-se.

E para o Ludovico, que ia chegando no v�o da porta:

� Diga ao Expedito que vou ao centro da cidade. Agora.
Na limusine ampla, separada do motorista pela divis�ria
de vidro, n�o ligou a televis�o nem o r�dio. Entreabriu a janelinha,
preferindo a brisa da manh� alta ao ar refrigerado, e
procurou interessar-se pelas casas, pelas �rvores, pelas pessoas
nas cal�adas, enquanto sentia que uma ponta de tristeza, quase
uma queixa, lhe volvia � consci�ncia, com a m�goa de.n�o
ter tido uma filha, mesmo gordinha, levemente estr�bica, como
a da irm� da Rosa.

E concluiu, abotoando e desabotoando a luva:

� J� estaria mo�a, talvez casada, e eu av�, ou quase.
P�s-se a rir para si mesma, batendo com a luva solta na
palma da m�o, e prontamente fixou o pensamento no Rodrigo,
que devia chegar � tarde, aproveitando o dia de sol vivo,
sem perigo para sobrevoar a serra, se n�o chegasse pelo meio-
dia, a tempo de almo�ar com ela.

64


E o Expedito, na cal�ada, abrindo-lhe a porta:

� Fa�a o favor, D. Patr�cia.
S� ent�o reparou que j� estava � porta da loja. Saltou depressa,
depressa entrou no magazine, orientou-se para a se��o
infantil. Ali, mais uma vez, olhando os vestidinhos nos manequins,
os brinquedos, os chap�us de praia, os sapatinhos, os
livros de hist�rias, tardou o passo, emocionada, com os olhos
�midos; mas prontamente se refez, optando pela boneca de lou�a,
� sua frente.

Com a boneca nas m�os, olhando-a na luz fria que descia
do teto sobre a sua cabe�a, tornou a pensar na filha que
Deus n�o lhe tinha dado, � revelia de tanta ora��o e tanta promessa.
Uma s�. Uma lhe bastaria. Sonhara ter mais, quando
casara. Tr�s. Sim, teria sido o ideal. Tamb�m o Rodrigo sonhara
com um filho. O filho a quem passaria, no momento
pr�prio, as suas empresas, como o rei que transfere ao pr�ncipe
a coroa e o imp�rio. A ela, Patr�cia, n�o lhe viera a filha
nem o filho. E tanto que lutara, e tanto que sofrera, com os
meses de hospital, com o tratamento demorado, para ao fim
reconhecer que todo o seu instinto materno haveria de resumir-
se � saudade de suas bonecas.

E para a vendedora, que estava agora ao seu lado, sol�cita:

� Quero esta. Fa�a um embrulho bem bonito.
E foi ao balc�o, enquanto a vendedora acomodava na caixa
comprida a boneca de lou�a, que se viu defronte da Madalena,
mais gorda, baixinha, cheia de embrulhos. Ambas se puseram
a rir, na surpresa do encontro. Madalena ergueu os bra�os
roli�os, sem conter o espanto, deixando cair ao ch�o um
urso de pel�cia:

� Patr�cia! Voc� tamb�m por aqui?
E quando soube que n�o era para uma filha que a outra
estava a comprar boneca t�o linda, perguntou-lhe:

� E tuas mesmo, quantas?
� Nenhuma. Deus se esqueceu de mim.
E Madalena, jubilosa:
� Pois eu tive seis, Patr�cia. Seis. Todas mulheres. Uma
escadinha. J� fiz promessa para n�o ter mais. Na hora das despesas,
o dinheiro n�o chega. Haja vestido, haja meia, haja sa65



pato, haja presente. Um horror. Mas, de noite, quando vejo
todas elas nas caminhas, s� eu sei como sou feliz.

4

Patr�cia ouve o ru�do dos ferrolhos nas janelas do sal�o.
Uma a uma, as janelas v�o sendo fechadas. De uma janela para
outra, o ru�do dos passos do Ludovico, cheios, compenetrados.
Por fim, acabado de fechar o sal�o, esses passos se repetem,
se distanciam, at� que, l� adiante, no sil�ncio amplo, estala
o comutador da luz, e os passos se apagam na passadeira
do corredor.

Ela olha o rel�gio. Quase dez e meia. E conclui, acerc�ndose
da cama, ap�s alongar a vista para o vidro da janela, onde
se recorta a claridade da lua cheia:

� Se o Rodrigo n�o veio at� agora, s� vem amanh�.
Sentada na borda da cama, com os p�s sobre as sand�lias,
reza a ave-maria, a salve-rainha e o padre-nosso, enquanto
pede a Deus que fa�a o Rodrigo voltar na tarde seguinte.

� Na certa, as coisas l� pela f�brica se complicaram, e
ele teve de ficar mais um dia. Amanh�, est� aqui. Com o favor
de Deus. Ainda bem que avisei o Embaixador da Fran�a,
que tamb�m esperava por ele.
E como a luz do luar se estende sobre o ch�o do quarto,
Patr�cia pensa em cerrar a portada; depois, muda de id�ia. Prefere
agora a claridade macia, leitosa, que se espregui�a por cima
do tapete. L� fora, deve fazer uma noite linda, com aquela
luz cintilando nas folhas das castanheiras. Da� a pouco, naquele
mesmo sil�ncio iluminado, vai come�ar o silvo dos apitos,
na ronda da casa.

De pernas estiradas ao comprido da cama, Patr�cia acende
a l�mpada da mesa-de-cabeceira, tira da gaveta o livro de
compromissos, perguntando a si mesma se, na noite seguinte,
tem ou n�o um jantar fora, a que o Rodrigo deve tamb�m com


66


parecer. Sim, l� est�: jantar na Embaixada da Espanha. E este
lembrete, na letra do Ludovico: mandar flores.

Novamente deitada, sem a luz do abajur, Patr�cia fica a
pensar no vestido que ir� vestir. Mas a claridade do luar, abrindo
um ret�ngulo no ch�o espa�oso, at� quase os p�s da cama,
leva-a a pensar que talvez naquele mesmo momento, com uma
lua semelhante, a Simone estaria a olhar a noite, no quarto
do Sanat�rio, rodeada de sil�ncios. Longe, na luz fosca, pelo
vidro de uma janela, veria o recorte escuro da serra, com os
picos empinados, a mata densa nas encostas; e um sil�ncio mais
profundo em toda a volta, enchendo o vale, envolvendo o pavilh�o
adormecido. E a Simone ali, prisioneira. N�o cont�m

o impulso de piedade:
� Coitada. E que vida est�pida, meu Deus!
E eis que Patr�cia d� por si no terra�o da casa da Simone,
� noite, com a lua imensa por tr�s do telhado da casa fronteira.
As duas tinham vindo olhar a noite, chamadas por D. Zita:

� Venham, venham ver. Nunca vi uma lua assim.
Mas Simone, que vem at� o terra�o, n�o parece olhar a
noite, embora tenha seguido Patr�cia, que D. Zita puxava pela
m�o. Fica a um passo da outra, calada, os olhos opacos. Com
os dedos entrela�ados por baixo dos seios, roda os polegares,
tensa, como ausente. Resvala o olhar pelo c�u escampado, onde
a lua enorme d� a impress�o de espregui�ar-se, e parece que
nada v�, voltada para dentro de si mesma. E assim que a m�e
as deixa, ouvindo o chamado distante da campainha do telefone,
diz a Patr�cia, olhando-a de frente, com uma chispa de
�dio nas pupilas aumentadas:

� Estou esperando que me respondas. Fala.
E Patr�cia, passado um momento:
� Que � que queres que eu te diga? J� te disse tudo. Sa�
com a Suzete, como sairia com a Nadir, com a Paula, com a
Inezita.
E Simone, olhando-a de frente:

� N�o foste ao cinema com ela?
� N�o.
� Juras pela vida de tua m�e?
67


� Por que havia de jurar, se j� te disse que n�o fui? N�o
basta o que eu te digo?
E Simone, segurando-a pelos ombros:

� Se foste ao cinema com a Suzete, n�o podes ir mais
comigo. N�o, n�o podes. Eu n�o quero. N�o, n�o quero. Ou
�s minha amiga, ou n�o �s. Eu n�o sou amiga de mais ningu�m.
S� de ti, Patr�cia. As outras s�o minhas colegas. Tu,
n�o. �s diferente. Minha amiga �s tu. N�o vou ao cinema com
ningu�m, a n�o ser contigo. � contigo que passeio de bicicleta.
Contigo � que estudo. Contigo vou para a escola, contigo
eu volto. Para ti, n�o tenho segredos. E tu tens para mim. Tens.
Olha bem para mim. Tens. E eu n�o quero isso. N�o, n�o quero.
E toda aquela exalta��o, toda aquela ira, que a desfigurava,
que lhe dava �s m�os uma for�a nervosa, como a cravar
os dedos nos bra�os da Patr�cia, quase a agredi-la, fora de si,
subitamente se alterou, e ela levou as m�os ao rosto, de costas,
caminhando para o outro lado do terra�o, sacudida por uma
crise de choro.

E Patr�cia, tentando acalm�-la:

� Juro que n�o fui ao cinema, Simone. Juro. Pela vida
de minha m�e. N�o, n�o fui. A Suzete me convidou, mas eu
n�o fui. Nem vou.
Desde que tinham ido ao cinema pela primeira vez, a Simone
lhe tinha dado a m�o, assim que as luzes apagaram. E
durante todo o filme, sobretudo nas cenas de terror e de paix�o,
trazia a m�o de Patr�cia para junto do seio esquerdo, para
que sentisse como seu cora��o batia, sobretudo nos momentos
em que os casais se uniam, tomados de medo, solid�rios,
oscilando entre a vida e a morte.

E Simone, justificando-se, numa das vezes em que a outra
retra�ra o bra�o, como a esquivar-se:

� H� momentos em que eu, se n�o sentir que tenho algu�m
junto de mim, bem junto mesmo, sou capaz de sair do
cinema, ou de gritar.
E riram alto, as duas, voltando para casa, j� com a tarde
declinando. No port�o, despediram-se; mas Simone exigiu que
a Patr�cia esperasse por �ta, at� que, na volta da rua, lhe acenou,
gritando:

68


� Mais tarde, me telefona.
E como a outra tardou em telefonar, telefonou-lhe,
queixando-se:

� N�o gostas mais de mim, Patr�cia. J� faz meia hora
que estou esperando que me telefones.
E Patr�cia, cordata:

� Mas eu j� ia telefonar, Simone.
� Juras? Pela alma de teu pai? Pelo amor de tua m�e?
Patr�cia respondeu com rapidez. Sim, sim, j� lhe dissera-
isso uma por��q de vezes.
E Simone, abrandando a queixa:

� Mas tens de repetir. Quero ouvir de novo. Que � que
te custa dizer outra vez? Fala. Estou esperando. Repete.
J� Patr�cia sabia que, no dia seguinte, receberia um livro,
ou um retratinho com dedicat�ria, ou um pensamento bem caligrafado
num peda�o de cartolina, com um desenho a bico-
de-pena. Um deles, que jamais esquecera, dizia assim: "N�o
se pode ser boa amiga sem ralhar e ser logo perdoada." E este,
que n�o podia repetir sem que seus olhos se umedecessem:
"Deus me deu uma grande amiga para que eu tivesse a irm�
que n�o me deu."

Na �poca das provas, Patr�cia se mudava para a casa da
Simone. Estudavam at� tarde, com a chave passada na porta
do quarto: Simone, sentada na cama, com os p�s estirados no
colch�o, as costas apoiadas no travesseiro; Patr�cia, defronte,
na cadeira da escrivaninha, com os cotovelos no tampo da mesa,
os olhos no comp�ndio. Uma lia, a outra repetia o texto lido.
A janela escancarada sobre o quintal deserto trazia-lhes a luz
e a vira��o da tarde.

A m�e de Simone, por volta das quatro e meia, batia na
porta trazendo o lanche das duas, quase sempre chocolate ou
refresco com os sequilhos que a filha mastigava devagar, ruidosamente.
Era o melhor momento da tarde, somente suplantado
pela hora de dormir. Riam alto, trocavam confid�ncias
em voz baixa, mais amigas, mais companheiras, como se o m�tuo
segredo e a porta fechada favorecessem a intimidade que
as unia e aconchegava.

Fora exatamente numa dessas tardes de estudo (que, em


69


bora sendo de estudo, sempre passavam depressa), com o sol
forte a querer entrar pela janela entrefechada, que a Simone,
com um ar divertido, queixando-se do calor que a sufocava,
tinha dado outra volta na chave da porta, para voltar dali com

o vestido aberto sobre o busto muito branco e que ela, como
arrependida, ou caindo em si, logo tratara de abotoar, sem deixar
de sorrir para Patr�cia.
Pela primeira vez Patr�cia lhe tinha visto os seios pequenos,
livres do suti� que os protegia e resguardava, simples eleva��o
suave do busto esbelto e muito alvo, com a mancha redonda,
levemente azulada, em volta dos mamilos proeminentes.

E Simone, acabando de abotoar a frente do vestido, ao
ver que Patr�cia lhe sorria:

� Eu tenho o corpo da menina-mo�a de m�rmore que
est� defronte do Museu de Belas-Artes. Tu, n�o. �s mais cheia.
Tens mais busto.
E em seguida, de vista baixa, tardando os dedos no derradeiro
bot�o, j� fechado:

� Depois de minha m�e, quando eu era menina, �s a �nica
pessoa que viu meu corpo. Mais ningu�m. E �s como se fosses
eu mesma, defronte do espelho.
S� ent�o Patr�cia se recordou de que, na v�spera, ali mesmo,
ao trocar de roupa para deitar-se, tinha dado com os olhos
de Simone a observ�-la, nos breves instantes em que, erguendo
os bra�os, de frente para ela, deixara cair a camisola sobre
os seios nus. Mesmo depois que apagara a luz, ainda via os
mesmos olhos, sempre fixos e suspensos na imobilidade da surpresa,
como em �xtase.

E Simone, no sil�ncio da luz apagada:

� Patr�cia, tu ser�s sempre minha amiga?
� Sempre.
� De mais ningu�m?
Um sil�ncio.
E Simone, alteando a cabe�a:
� Responde, Patr�cia.
� Sim.
E Simone, ap�s outro sil�ncio:
� Juras?
70


� Juro.
� Eu tamb�m juro � tornou Simone, resvalando a cabe�a
para o travesseiro, como aliviada.
Foi perto do Natal, na fase dos �ltimos exames, que, noutra
noite, no quarto fechado, Patr�cia p�de ver Simone inteiramente
despida, entre a cama e o guarda-roupa, a princ�pio
de frente, depois de costas, com a luz do abajur sobre seu corpo,
como se quisesse mesmo ser vista. Tanto que, ao voltar a
ficar de frente, olhou Patr�cia nos olhos, com ar de riso, a m�o
esquerda segurando a camisola e a outra m�o espalmada diante
do sexo. Em seguida, vestindo-se, perguntou-lhe, em tom
brejeiro:

� Que olhos s�o esses? Nunca me viste?
E apagou depressa a luz enquanto Patr�cia respondia, com
a cabe�a no travesseiro:

� N�o.
E ambas se puseram a rir.
Depois, muito depois, j� no pen�ltimo ano do curso, Patr�cia
tornaria a v�-la nua, tamb�m � noite, ali mesmo, quando
ambas tinham ido � �pera pela primeira vez, no anivers�rio
da Simone.

Simone tirara o vestido longo, devagar, como se tardasse
de prop�sito os movimentos: depois, despira a combina��o e
a an�gua; por fim as meias, o suti� e a cal�a. Levara uns momentos
parada ao meio do quarto, como a lembrar-se de onde
deixara o pijama. E de repente, como se a lembran�a lhe
acudisse:

� Ah, j� sei: debaixo do travesseiro.
E assim nua, sob a claridade viva que descia do lustre ao
meio do aposento, cortou o quarto em diagonal at� a cama,
e ali, sem pressa, vestiu com lentid�o o pijama de seda azul,
que lhe caiu esplendidamente no corpo esguio e alvo, de seios
rijos, cintura estreita, quadris amplos descendo para as pernas
bem talhadas, dando a impress�o de exibir-se, mais uma
vez, na consci�ncia de sua beleza.

E para Patr�cia, que a olhava em sil�ncio:

� Agora � a tua vez. Vamos. J� passa de meia-noite.
Ajudou Patr�cia a despir-se, naturalmente, solicitamente,
71


com ares de irm� mais velha, entremeando ternura com fingida
rispidez, dando-lhe leves safan�es para obrig�-la a aquietar-
se; deu-lhe afinal o pijama, primeiro a blusa, depois a cal�a,
tudo completado por uma palmada:

� J� para a cama � ordenou-lhe.
E ao ver Patr�cia encaminhar-se para o somi�, ao p� da
janela, onde sempre dormia quando ali passava a noite:

� A�, n�o. Na cama, j� disse.
E como Patr�cia parecesse hesitar, parada perto do somi�,
segurou-a pelo bra�o, levou-a at� a cama:

� Deste lado; do outro lado, eu.
Sempre imperativa, apagou o lustre, esperou que Patr�cia
se acomodasse, sentou na borda da cama, de seu lado. E assim
que apagou a l�mpada do abajur, na mesa-de-cabeceira,
ordenou, alongando-se na paina do colch�o:

� Agora, rezar.
Em voz alta rezou a ave-maria e o padre-nosso, fez que
a outra tamb�m rezasse, acompanhando-lhe as ora��es, e at�
tarde, j� entrando pelo meio da madrugada, riram e conversaram
sobre a �pera, sobre as toaletes, sobre o bar�tono e a prima-
dona, esta muito gorda e peituda, aquele muito magro e calvo.
S� despertaram por volta do meio-dia (porque era domingo
e j� estavam de f�rias), quando D. Zita bateu na porta, repetidas
vezes, chamando pela filha.
De repente, como desfeitas por um sopro, as imagens antigas
se desfazem, e Patr�cia alonga o olhar para o rel�gio de
ponteiros luminosos, voltando a pensar no Rodrigo, que deveria
ter chegado, e n�o chegou. Reconhece, quieta na cama:

� Por ele, estaria aqui. Se n�o veio, � porque n�o p�de.
Nas alamedas do parque, os c�es tornam a latir, no ermo
e na paz da madrugada vagarosa. Silva o apito dos guardas
de seguran�a, na ronda do parque. N�o se ouve o ru�do do
vento na folhagem das �rvores. Na rua, para o lado do port�o,
tamb�m h� sil�ncio. E eis que soa, longe, um piano bo�mio,
tocando mal o prel�dio da Sonata ao luar.

E Patr�cia, voltando a abrir as p�lpebras, novamente inquieta:
por ser noite de plenil�nio, o Rodrigo se teria aventu


72


rado, mais uma vez, a atravessar a serra, �quelas horas mortas,
no seu bimotor?
Ela pr�pria responde:

� Ele me prometeu que n�o faria isso. O que ele promete,
faz. D� no que der.
Mesmo sendo assim, ela alonga o bra�o, na penumbra do
quarto, e tateia a mesa-de-cabeceira, sob a corola do abajur,
� procura do seu tercinho de prata. J� vai acender a luz, quando
por fim o encontra, com a ponta dos dedos, ao lado do
romance de Mary McCarthy, que ainda n�o acabou de ler. Torceu
a primeira conta, depois a segunda, a terceira, rezando em
sil�ncio, mentalmente, enquanto o sono lhe cerrava as p�lpebras
e afrouxava os dedos que seguravam o ter�o.

73


QUARTO CAP�TULO

1

Com rapidez fez a liga��o e esperou que a Inezita atendesse.
E para a voz grossa, quase rouca, que n�o tardou a
responder:

� Inezita? Estou te acordando? � Patr�cia. Desculpa, se
te tirei da cama. N�o tirei? Quando o Rodrigo viaja, pulo da
cama com a primeira claridade do dia. Podes me ouvir? Se
n�o podes, telefono mais tarde. Ontem, quando voltei da rua,
te telefonei. Me disseram que tinhas ido ao lan�amento do novo
livro da Paula. N�o, ela n�o me convidou.
Ficou � escuta, de perna cruzada, envolta no penhoar corde-
rosa, que a protegia do frio da manh�. E como sa�ra do
banho, tinha ainda os cabelos �midos, que lhe desciam para
os ombros.

E assim que p�de falar:

� Ontem, quando voltei para casa, encontrei na minha
mesa o desenho do meu costureiro, o Custodinho, com o modelo
do nosso traje para a recep��o aqui. Longo, branco, com
um frisozinho azul, elegant�ssimo. E simples. Falei com ele sobre
a id�ia do uniforme. Disse que ia pensar. Tinha outra id�ia.
De tarde mandou-me o desenho. Lindo. Estilizando o uniforme.
Quero que vejas. Eu gostei. Muito. Mas � preciso que tu
gostes. Meu motorista vai te levar o desenho. Para mim, o Custodinho
�, hoje, o nosso melhor costureiro. Passa os outros para
tr�s. Longe. E ainda me mandou um bilhete, naquela letra
exagerada que toma tr�s linhas do papel pautado. Assim: "�
75


o meu presente de anivers�rio, al�m das rosas de meu jardim,
que ir�o no dia."
Uma pausa para reprimir a emo��o.

� Imagina com quem me encontrei, num magazine. Com
a Madalena. Maltratada pela vida, e contente. Cheia de filhas.
S� mulheres. Seis. Imagina. E comprando brinquedo para todas.
Uma escadinha. Fiquei t�o emocionada que me esqueci
de falar de nossa festa. J� lhe falaste? E com as outras?
� J� falei com nove, come�ando pela Paula. Vibrou.
Achou a id�ia estupenda. Genial. Mandou-te seu novo livro.
Poesia. Ao jeito dela. Querendo ser moderna, sem deixar de
ser antiga. Muita gente no lan�amento. Mas, da turma, s� eu
e a Antonieta. Falei tamb�m com a Antonieta. Ficou de me
responder depois. N�o sabe se tem outro compromisso, no mesmo
dia. Acaba indo. Empurrada pelo marido, que adora festas.
O marido estava l�. Engra�adinho, como sempre. E de gravata-
borboleta. A gravata que a Simone odiava.
� E as outras? � indagou Patr�cia, com impaci�ncia.
� N�o vou te esconder: duas me receberam com pedras
na m�o. S� faltaram me xingar. Com elas, n�o podemos contar.
Foi muito bom que n�o lhe falasses: iam ser est�pidas contigo,
mais do que foram comigo. A Nadir e a Ros�rio. Lembraste
da Nadir? Meio estr�bica, alta, peito de t�bua de engomar.
Casou e descasou. Casou e descasou. Um marido pior que o
outro. N�o suporta ouvir falar na felicidade alheia. A tua lhe
d� revolta. A minha, idem. J� era feia; piorou muito. Merecidamente.
Respondeu-me em tom alto, quase aos berros; que
n�o se presta a palha�adas. De ti quer dist�ncia. J� a risquei
de nossa lista. A Ros�rio, sem ser agressiva, foi sarc�stica: sugeriu
que tu e eu a esper�ssemos sentadas, porque tem compromisso
com o filhinho da cozinheira, que faz anos no mesmo
dia. N�o d�s import�ncia a isso. No fundo, � a inveja mesquinha.
N�s duas lhe tiramos o sono. Deixa pra l�. Antes invejada
que invejosa.
Sil�ncio longo, de um lado e de outro, e que Patr�cia preencheu
tateando o vidro da mesa, como em busca de algo em
que ocupar a m�o impaciente, terminando por dobrar e desdobrar
uma folha de papel na ponta dos dedos:

76


E prosseguindo:

� A Nadir e a Ros�rio nunca foram comigo, desde o come�o
do curso. Principalmente a Nadir. E eu fui ao casamento
delas. Com a Simone, que me levou. No �ltimo ano da Escola
Normal, antes da Simone brigar comigo.
A Inezita, por seu lado, p�s-se a rir.
E rindo e tossindo, como sufocada pelo cigarro:


� Estou me lembrando que eu e a Paula, assim que a Nadir
voltou �s aulas, j� casada, a levamos para o fundo do p�tio,
por tr�s da amendoeira, e ali tentamos saber como tinha
sido a noite de n�pcias. Ela p�s no ar a m�o espalmada,
movendo-a de um lado para o outro, com um ar desapontado,
e acabou confessando que tinha sido uma tourada. Mas
a� a Ros�rio apareceu e levou a Nadir para o outro lado do
p�tio, enquanto a Paula erguia a voz para perguntar se a chifrada
tinha do�do. De longe, a Nadir respondeu, ladeando a
boca com as m�os: � Muito. Mas gostei.
Novo riso da Inezita. E ainda rindo e tossindo:

� Deve ter sido por isso que a Ros�rio ficou solteira. Com
medo da chifrada. Coitada. N�o sabe o que perdeu.
E como se pusesse a m�o na boca para reprimir o
coment�rio:

� E eu aqui a dizer bobagem. Meu Deus, que horror! Vamos
cuidar de n�s, que o tempo est� passando. Hoje, continuo
as sondagens. Depois, tu mesma, com a minha lista, far�s
os convites.
J� ia despedir-se, pronta para desligar, quando outra lembran�a
lhe acudiu. E cautelosa, medindo as palavras:

� Viste, hoje, a coluna do Lucas Caetano? Leste a not�cia
de tua festa? Houve alguma coisa entre voc�s? N�o? E por
que ele diz, com todas as letras, que vais fazer quarenta anos?
Isso n�o se faz.
E Patr�cia, apressando-se:

� Fui eu mesma que o autorizei a dizer. Sim, eu mesma.
Uma pessoa feliz, que nega a idade, est� roubando a Deus. �,
roubando: confessa que recebeu menos quando recebeu mais.
Eu, mesmo sem ter tido um filho, me considero feliz, gra�as
a tudo quanto Deus me deu. A come�ar pelo marido.
77


Riram alto, despedindo-se. Com o pensamento na Nadir
e na Ros�rio, Patr�cia tardou uns momentos com o fone na
m�o, como se tivesse ainda algo a dizer a Inezita. Mas, ouvindo
o estalo do aparelho desligado, sacudiu o ombro, rep�s o
fone no lugar.

2

Pela manh�, ali estivera o afinador do piano. Chegara cedo,
com a sua cabeleira farta e a sua pasta de couro, e ficara
at� tarde batendo teclas e torcendo cravelhas, a calcar nos pedais;
por volta do meio-dia, levantou-se, sobra�ou a pasta.

Foi na sa�da que ele, alto, mag�rrimo, meio curvo, como
se baixasse a cabe�a para n�o bater nos pingentes do lustre,
perguntou ao Ludovico se ia haver ali uma nova recep��o.

� Sim � confirmou o mordomo.
E j� no patamar da escada, com a porta entreaberta:
� Pelos anos da Sra. D. Patr�cia.
O afinador aumentou os olhos fundos, alteando as sobrancelhas.
E apertando mais a pasta contra o peito:

� N�o vir� para c� outro piano, trazido pela orquestra,
para tocar no quiosque, como no ano passado? Nesse caso,
voltarei aqui, um dia antes, para um repasse nos dois, antes
da festa. N�o esque�a de me avisar.
Ludovico manteve a cabe�a alta, � maneira do dono da
casa, sem se impressionar com o ar solene do outro:

� Eu lhe telefonarei com anteced�ncia.
E quando tornou ao sal�o, para ir bater na porta do quarto
da senhora e perguntar-lhe se queria que servisse o almo�o na
saleta cont�gua ou na sala de jantar, deu com Patr�cia abrindo

o piano, como se fosse tocar. Mas tudo quanto ela fez, com
o Ludovico a dist�ncia, perfilado no v�o da porta, foi experimentar
o som, premindo aqui uma tecla, ali outra, com ar
aprovativo.
E fechando a tampa do instrumento, cautelosamente:

78


� J� est�o prontos os convites, Ludovico?
� As provas foram prometidas para amanh�. Eu mesmo
irei busc�-las. V�o ficar bonitos.
Felizmente, embora tivesse de almo�ar sozinha, j� o Rodrigo
estava de volta, no escrit�rio da cidade. Ainda bem que
se havia lembrado do in�cio do Festival de Chopin, no Teatro
Municipal. Antecipara o regresso para ir com ela. Mais uma
vez, trazia-lhe boas not�cias: reequipara uma das f�bricas; no
fim do ano, reequiparia a outra. Chegaria cedo para o jantar.
E como fizera boa viagem, no seu pr�prio avi�o, passara

o comando ao piloto que o acompanhava, e pudera dormir
a bordo, como se estivesse na pr�pria cama, em terra firme.
Parecia-lhe que voltara aos vinte, aos trinta anos, com disposi��o
para sair num veleiro, mar afora, sem se intimidar com
as ondas que se alteavam � sua frente, rugindo, amea�ando,
e que a quilha do barco rasgava de meio a meio, para deixar
ap�s si um rastro de espuma.
Antes de dizer ao Ludovico que almo�aria s�, na sua saleta,
Patr�cia percorreu o sal�o, as salas cont�guas, acercou-se
da janela para olhar o jardim na reverbera��o do meio-dia,
saiu � varanda, olhou as alamedas limpas, a piscina rebrilhando
na luz intensa, o quiosque pintado de novo, a escada de m�rmore
muito limpa � sempre seguida pelo mordomo, que lhe
acompanhava o olhar e as rea��es do rosto, � espera de um
reparo, de uma ordem ou de um louvor, com a cabe�a meio
inclinada, o l�bio inferior levemente ca�do.

E de volta, novamente no sal�o:

� Est� tudo em ordem, Ludovico. Diga isso mesmo �
Rosa.
Ele agradeceu, inclinando a cabe�a submissa, numa v�nia.
E ainda de cabe�a baixa:

� A aprova��o de minha senhora � o meu diploma.
E mais tarde, j� servido o almo�o na mesa redonda ao
p� da janela, na saleta de trabalho de Patr�cia, permaneceu
em sil�ncio, de p�, entre a mesa e a porta, com o guardanapo
a lhe pender do bra�o dobrado. Depois, como se o sil�ncio da
patroa o estimulasse, conseguiu dizer, numa voz submissa e
macia:

79


� Posso lhe falar? Obrigado. A senhora teve uma bela
id�ia para a festa deste ano. Ontem, deitado, esperando o sono
chegar, fiquei pensando: a vida, depois de certo tempo, �
mesmo um quarto onde est�o guardadas as coisas velhas. Todos
os dias, sem sentir, pomos nesse quarto uma lembran�a.
Boa ou m�. Um belo dia, de repente, abre-se o quarto, deixa-
se a luz entrar. E olha-se uma pe�a aqui, outra ali. Nessas horas,
a saudade cresce, c� dentro, em nosso peito. O quadro de
formatura mexeu com a senhora. Mexeu. Tocou fundo a alma
de minha patroa, e lhe deu a id�ia da festa, que vai ser linda,
lind�ssima, com as colegas, com os professores, e dando o que
falar. Viu hoje a coluna do Lucas Caetano? Li cedinho, assim
que o jornal chegou. J� me telefonaram. � verdade. O eletricista,
para as l�mpadas do parque. O maestro, para saber se
precisava trazer o piano. O homem dos fogos, para dizer que
tem umas id�ias novas e que a senhora vai gostar. Superior aos
fogos de Veneza, na televis�o.
3

Na poltrona, com os p�s no tamborete, tinha passado apenas
pelo sono. Durante quinze minutos? Vinte? Olhou o rel�gio
sobre a escrivaninha: j� passava de quatro e meia.

E endireitando o busto, surpreendida:

� N�o, n�o � poss�vel.
Sim, era verdade � reconheceu: dormira cerca de duas
horas, ali, no aconchego da poltrona, mais do que em geral
dormia � noite, na cama, ao longo de seu sono breve que se
repetia, t�nue, espa�ado, quase sem sonhos, e que ela ia juntando
at� sentir, na vaga claridade das janelas sobre o parque,

o fim da madrugada.
E mais espantada, no esfor�o para avivar a imagem que
a claridade da tarde empalidecia:

� E sonhei com a Simone, o tempo todo.
Mas n�o um sonho qualquer, urdido pela imagina��o entregue
a si mesma, no abandono do sono prolongado � um

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sonho, sim, composto de imagens reais, que tratava de confrontar
agora com as lembran�as que a mem�ria lhe devolvia.

� Ela mesma, como no tempo da Escola Normal, com
os cabelos presos, caindo para as costas, e trazendo no alto
uma fivela de prata. Sa�amos da igreja, depois do casamento
de Nadir. Exatamente como tudo aconteceu.
Revia-se na cal�ada da rua, ap�s descer a escada de pedra
do adro, ao lado de Simone, ambas caladas. Deviam ter
tomado o bonde, na volta da rua, j� que a Simone, ao chegarem
� igreja, tinha dispensado o carro, mas era a p� que iam
voltando. Ambas caladas. A Simone andando depressa. E Patr�cia,
tr�s esquinas adiante, inconformada com a mudez da
outra:

� Mas por que � que est�s assim? Que foi que te fiz? Minha
consci�ncia n�o me acusa de nada.
Simone estacou de repente, num impulso, voltada para Patr�cia.
E como havia parado ao p� do lampi�o, no c�rculo de
luz vermelha que descia do vidro encardido, mostrava o rosto
desfigurado, com um brilho mais vivo nos olhos negros, os cantos
da boca quase ca�dos.

E erguendo a voz exaltada:

� Que � que me fizeste? E ainda me perguntas? N�o fui
eu que fiquei o tempo todo na igreja a cochichar com a Ermelinda.
N�o, n�o fui eu. Foste tu, Patr�cia. Tu. E que � que voc�s
conversavam? Hem? Segredinhos. E ainda por cima rindo.
As duas. E eu, ali ao lado, na ponta do banco, assistindo
� cena. J� te disse uma vez, e agora repito: se queres ser amiga
da Ermelinda, vai para o lado dela, e me deixa no meu canto,
que eu tamb�m sei viver sozinha. N�o me v�s aos cochichos
com ningu�m, principalmente quando estou contigo. Ou �s minha
amiga, ou n�o �s.
E Patr�cia, cordata:

� N�o sejas boba, Simone. J� vou te dizer o que � que
cochich�vamos. N�o h� mist�rio. Pelo contr�rio. A Ermelinda,
com o bei�o, chamou minha aten��o para a cauda do vestido
da Nadir, que tinha uma mancha na ponta, como se algu�m
a houvesse pisado, em cheio, com o sapato sujo de terra.
Ela riu, eu ri tamb�m. Depois falamos do noivo, metido
81


naquele fraque frouxo, como se a roupa n�o fosse dele. S� isso.
Mais nada.

A Simone abrandou o rosto r�spido. E menos exaltada:

� .l� te disse que n�o gosto que cochiches com ningu�m,
mesmo na minha presen�a. Volto a te dizer: nunca me viste
metida num canto, com outra colega. Nunca. S� contigo. Me
dou com todas; mas s� tu vais a minha casa. J� te disse que
n�o quero ningu�m na tua. N�o, n�o quero. Sou assim. Nasci
assim. Morro assim. Ponto final.
Patr�cia alongou o bra�o:

� Me d� essa m�o, Simone.
E foi Patr�cia que a foi levando, de m�os dadas, na rua
comprida, que os espa�ados lampi�es iluminavam.
Logo depois, ambas entraram a rir, achando gra�a de si
mesmas, e foi Simone quem prolongou o riso, dando o bra�o
� outra, enquanto lhe dizia, por entre gargalhadas:

� J� pensaste o quanto � rid�culo um casamento na igreja?
Toda aquela gente ali, exibindo toaletes, cal�ando sapato
alto, umas enchapeladas, outras penteadas com exagero, os homens
de escuro, o padre com aquele vestido branco rendado
por cima da batina, a fam�lia dos noivos no altar, o noivo de
fraque com um cravo na lapela, e a noiva entrando, com um
vestido de rabo, trazendo na m�o um buqu�, com duas menininhas
na frente, mostrando o caminho do altar por cima da
passadeira, e a m�sica tocando, e todo mundo de p�, a pensar
que a pobrezinha, mais tarde, estar� despida, com um marmanjo
por cima? J� pensaste? Todo mundo est� achando gra�a,
por tr�s da cara de circunst�ncia.
E Patr�cia, recolhendo o riso:

� Eu acho bonita a cerim�nia. E fico emocionada. Fico.
Por que � que vou negar? Fico. A m�sica, o bater do sino,
o altar iluminado, tudo aquilo me comove.
E Simone, tamb�m s�ria, como se n�o houvesse ouvido
a explica��o da outra:

� Mas estavas aos cochichos com a Ermelinda, e rindo
quando a Nadir entrou, trazida pelo pai, grandalh�o, calvo,
ar de a�ougueiro, mais nerv<|so do que a filha, sem saber se
avan�ava primeiro um p� ou o outro, na passadeira vermelha,
82


ora parecendo que ia rir, ora que ia chorar, e metido num paletoz�o
que lhe dava nos joelhos. N�o ficaste s�ria quando o
pai e a filha passaram. N�o. Ficaste cochichando, mesmo depois
que eu te dei uma cotovelada. Por qu�? Porque tudo aquilo
� rid�culo, � gaiato, � caricato.

� J� te .disse que ri com a mancha da cauda do vestido.
� Riste do rid�culo, enquanto eu, danada contigo, amarrei
a cara, com vontade de sair dali.
E Patr�cia, tornando a prender-lhe o bra�o contra o seio:

� Esquece isso. J� passou.
Em sil�ncio atravessaram a rua. E um sil�ncio amplo, que
parecia alarg�-la, acompanhou-as at� a cal�ada fronteira, quando
a Simone, novamente s�ria, voltou a falar, agora de cabe�a
baixa:

� Eu, se algum dia me casasse, s� me casaria no civil.
Quando muito, iria � igreja, no domingo seguinte, com o meu
marido, para que o padre aben�oasse as alian�as.
E Patr�cia, ap�s uma pausa:

� E que fim levou o teu primo, que quer casar contigo?
� O Rodrigo? N�o, n�o � primo, embora nos chamemos
de primo e prima. A m�e dele � que foi colega de minha m�e,
e ele me viu menininha. Quando eu nasci, a m�e dele e a minha
disseram que eu ia casar com ele. J� o conheces? N�o �
bonito, mas tem boa estampa. Muito inteligente. Riqu�ssimo.
Tanto de parte do pai, que j� morreu, quanto de parte da m�e,
que mora na Su��a. Fez o curso em Harvard, nos Estados Unidos.
E vive viajando. De vez em quando vem por aqui. Quando
vem, aparece l� em casa. Me chama tamb�m de minha noiva.
Desde menina. Diz ele que, ano que vem, vai passar o mais
de seu tempo aqui, morando numa casa enorme, que fica do
outro lado da cidade, e vem do tempo do av� dele. J� estive
l�, uma vez, levada por minha m�e, numa das aus�ncias do
Rodrigo. � mesmo uma casa imensa, com um parque. Um dia
destes, quando ele n�o estiver aqui, vamos l�.
Patr�cia deixou passar outro sil�ncio:

� E quando pensas em te casar?
� Por minha m�e, eu me casava assim que terminasse o
curso na Escola Normal. Por mim, vou protelando. Sempre.
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Tive uma tia, irm� de meu pai, que levou noiva dezenove anos.
Sim senhora: dezenove anos. Afinal, casou, e morreu no ano
seguinte.

E j� perto de casa, Simone segurou a m�o de Patr�cia:

� O bom seria a gente ter sempre a mesma idade, como
agora, e ser sempre amiga,
como n�s somos.
E quando abriu o port�o:

� Hoje, dormes aqui. Deixa que eu mesma telefono para
M�e Ded�.
E Patr�cia, a despeito do longo tempo transcorrido, voltava
a dar por si na cama espa�osa, � espera da Simone, que
tomava o seu banho, no banheirinho ao lado, com a porta
entreaberta.

Enquanto ouvia o ru�do da �gua caindo do chuveiro, Patr�cia
olhava em volta pensando que um dia ia ter um quarto
como aquele, na sua casa, com seu marido � um quarto bem
amplo, com uma janela sobre a noite estrelada, a escrivaninha,
o somi�, a estante de livros, a televis�o pequenina, o aparelho
de som, o guarda-roupa, a c�moda de argol�es de bronze,
com um vaso de cer�mica azul ao lado do belo rel�gio italiano,
que batia de leve, por toda uma semana, e dava as horas
com um tinidozinho de cristal.

E Simone, j� no quarto, ainda a enxugar-se:

� Depois que nos formarmos, bem podias morar aqui.
Juntas, o resto da vida. Sempre amigas. Pensa nisso.
Patr�cia, que pensava no seu pr�prio casamento, mudou
de posi��o na cama, com a m�o sob o rosto. E sonolenta, quase
a dormir:

� Vou pensar.
4

Ao v�-la entrar-lhe pelo quarto, com a barra da saia acima
dos joelhos, toda de vermelho, o cabelo aberto, os olhos

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aumentados pelo tra�o negro, Patr�cia ergueu a cabe�a, no esfor�o
para identific�-la.

E a outra, acompanhada pela Rosa:

� N�o te levantes. Tua empregada me disse que passaste
a tarde deitada, com um come�o de gripe. Fica onde est�s.
Mas Patr�cia j� estava de p�, com as m�os � espera da companheira,
esta tamb�m de bra�os abertos. Apertaram-se as
m�os, abra�aram-se, seios contra seios, a um passo da cama
revolta.

E Patr�cia, afastando a outra para tornar a olh�-la:

� Que alegria, Paula!
� Que alegria, Patr�cia!
E a Paula, com a m�o da Patr�cia sobre o cora��o:
� V� como fiquei, com esta emo��o. Lembrando-me do
p�tio, do corredor, da sala de aula. De tudo. Como no tempo
da Escola Normal.
E reprimindo a risada alta:

� At� olhei para os lados, para ver se a Simone estava
perto, n�o deixando que eu me aproximasse de ti.
Riram alto, uma olhando a outra. Mas logo a mesma lembran�a
lhes apagou o riso, e foi Paula, s�ria, quem falou por
ambas, revelando o que as duas tinham pensado juntas:

� Coitada da Simone. Rica, bonita, e condenada por ela
mesma ao pres�dio de um Sanat�rio. Toda semana fa�o o projeto
de ir por l�, para lhe fazer uma visita, e acabo n�o indo,
com os atropelos em que vivo, �s voltas com a casa, com o
novo marido, com o ex-marido, com os filhos, com os livros,
com os amigos. Numa roda-viva.
E instalando-se na poltrona, perto da janela, de pernas
cruzadas, com o vestido repuxado para cima, como a exibir
as coxas e o vermelho do sapato:

� N�o mudaste nada, Patr�cia. Nada. Rigorosamente nada.
Em compensa��o, eu, por meu lado, mudei muito. Aposto
que foi pela voz que me reconheceste. J� � a segunda pl�stica
que eu fa�o, nos �ltimos cinco anos, para melhorar o visual.
Eu e a Inezita. At� parece que ela e eu estamos apostando,
para ver, de n�s duas, quem muda mais. Tu, n�o. �s a mesma.
A mesma Patr�cia da Escola Normal. Imagina que meu
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novo marido n�o me reconheceu em nosso quadro de formatura.
Tive de jurar que era eu mesma que estava ali, com uma
cara de pateta. Vou em frente. Lutando. Vida de escritora �
assim. Chamando a aten��o dos outros para mim, chamo tamb�m
a aten��o do p�blico para meus livros. E vou furando.
E mexendo-se muito, como se a poltrona n�o lhe bastasse:

� Quando o tempo vem para cima de mim, com a maldade
de seus estragos, j� estou � espera dele. N�o, n�o me entrego:
me cuido, me aperto, me pinto, carrego na maquilagem,
exagero a boca com o batom.
Abandonou os olhos no ar, pensativa. E como se volvesse
a si:

� Sinto que h� em mim um excesso de vida que n�o se
esgotou com a maternidade. E escrevo. Por impulso de vaidade?
Pelo gosto de aparecer? De ver meu nome numa capa de
livro, numa nota de revista, num artigo de jornal? Ou para
aparecer na televis�o? Em parte, em parte. Porque a verdade
mesmo � que escrevo por necessidade de escrever. Preciso
transferir-me para a folha de papel. Tenho necessidade de passar
adiante o que sinto, o que penso. N�o � que eu viva para escrever.
N�o. Escrevo porque vivo, porque acumulei experi�ncias.
E levantou-se, dando a impress�o repentina de que a poltrona
n�o condizia com seu desassossego.

� Minha briga maior � com o tempo. Sei que vou acabar
perdendo, porque perder, nessa luta desigual, faz parte de
nossa condi��o, mas n�o me entrego. Quando ele arma o bote,
de olho em cima de mim, com seus caprichos, pronto a fazer
de mim uma caricatura, me meto na cl�nica, vou ao massagista,
entro na aula de gin�stica, mudo de costureiro, escolho
os vestidos que me valorizem os seios e as pernas, como
este, que d� uma gra�a nova � minha bundinha civilizada, e
vou em frente. Inventei, s� para mim, um suti� que me levanta
os seios por baixo, sem apert�-los, de modo que os biquinhos
fiquem soltos, como se estivessem na janela, livres e felizes,
e l� vou eu, neste meu requebrado de baiana com o tabuleiro
na cabe�a, fazendo estragos nos olhos dos homens, que parecem
ter fogo, soltando labaredas por tr�s de meus passos, quase
a me obrigarem a apelar para o Corpo de Bombeiros.
86


E de volta, no mesmo requebro:

� Ainda bem que arranjei agora um marido que � uma
brasa. Mais mo�o do que n�s. Homem mesmo. O outro, que
n�o conheceste, s� queria me encher a barriga, com um novo
filho. Parei no terceiro e mandei o reprodutor passear. Pela vontade
dele, eu acabava m�e de um col�gio. Arrebentada, de ventre
ca�do, peito de vaca leiteira. O novo � outra coisa. De noite,
enquanto estou sentada na cama escrevendo os meus poemas,
ele, do meu lado, esquenta o motor, lendo revista de mulher
nua. E fica por conta quando percebe que estou inspirada. Esse,
sim, aqui para n�s, me derruba. Depois da batalha, durmo que
� uma beleza, at� de manh�. Um sono s�. Quando me levanto,
as olheiras � minhas famosas olheiras � me denunciam.
E Patr�cia, sem conseguir reprimir de todo o riso:

� E teus filhos? Ficaram contigo? Ou com o pai?
� Nem comigo nem com o pai: com a mam�e. Av� � que
tem mesmo paci�ncia para cuidar de menino. Aos s�bados e
domingos, passeio com eles: sou o lado bom, o que d� sorvete,
o que compra figurinhas, o que leva � praia e ao cinema.
Nos outros dias, mam�e assume o posto. � bab�, m�e e av�,
tudo junto. Na hora do car�o, ralha com energia; na hora do
estudo, estuda com eles; na hora do col�gio, vai lev�-los e busc�los,
feliz quando pensam que a m�e � ela. Tudo �s mil maravilhas.
De noite, pelo telefone, faz o relat�rio do dia, e ela
mesma se entende com o pai para as despesas que ultrapassam
o que ele me d� como pens�o. Agora, vais achar gra�a:
como meu ex-marido admira o meu talento de poeta, e sabe
de cor meus poemas, � ele que paga a edi��o de meus livros.
O outro marido, o atual, se encarrega das noites de aut�grafo.
Eu �s vezes me ponho a rir, quando vejo que os dois est�o conversando
no telefone sobre quem paga isto, quem paga aquilo.
Cada um a querer fazer a vez do outro. Um encanto.
E abrindo a imensa bolsa que lhe pendia do ombro
esquerdo:

� Vim trazer-te o meu novo livro. Est� sendo muito badalado.
Principalmente pelos cronistas sociais. E eu vou faturando.
Este livro foi o pretexto para que eu viesse aqui agradecer
o convite que me foi feito pela Inezita. Virei � tua festa
87


com muito prazer, e de marido a tiracolo. � mais baixo que
eu, mas se traja muito bem. Perfumado. Chiqu�rrimo. Unhas
bem tratadas. Tanto fiz que botei um saltinho no sapato dele
para ver se aumentava. N�o fez diferen�a. Quem nasceu baixinho,
sempre ser� baixinho, mesmo em cima da mesa. N�o
te rias. � verdade.

E de s�bito, aumentando os olhos, ao reparar nos pap�is
e fotografias sobre a cama, curvou-se, interessada:

� N�o me digas, Patr�cia! Pap�is de nosso tempo? Retrato
das companheiras de turma? N�o, n�o pode ser. Esta sou
eu. Eu? Ser�? Com esse corpinho? Foi tua m�e que guardou
tudo isto? Logo vi. M�e � m�e.
E mais perto da luz, na claridade da janela:

� Sim, sou eu. Olha como fiquei: de olhos molhados.
Com saudade do que eu fui. Da turma. Do nosso tempo. Olha
a Sofia. A Creusa. A Do Carmo. A Simone. Ela mesma. Tenho
um retrato dela, tirado no Sanat�rio, h� pouco tempo.
Voltou � luz da janela.

� Recebi carta dela, com o retrato, agradecendo meu livro.
Bem escrita. Carinhosa. Falando do nosso tempo. No retrato,
parece mais magra. Alta. Ainda bonita. Toda de branco.
Como uma vela de prociss�o. Daquelas grandes. Que a gente
leva acesa na frente do andor. N�o estou debochando. N�o,
n�o estou. Estou dando a id�ia. A Simone sempre me pareceu
estranha. Mais perto do outro mundo que deste. Dava a impress�o
de que tinha descido das nuvens quando entrava na
sala de aula. Leve. Como se n�o tocasse no ch�o.
Novamente sentada, espalhou-se na poltrona, alongou as
pernas para um tamborete, cruzou os p�s, e assim reclinada,
abriu a bolsa, tirou fora a cigarreira e o ma�o de cigarros, depois
a piteira imensa, de boquilha dourada, espetou ali o cigarro,
p�s a piteira entre os dentes, tornou a abrir a bolsa, tirou fora

o isqueiro, ficou uns momentos com a chama diante dos olhos,
afinal soprou
a primeira fuma�a, contente, efusiva.
E por tr�s da fuma�a, que se desfazia devagar:

� N�o soubeste que a Simone, quando brigou contigo,
quis ser minha amiga? � verdade. Quis ser. Ela, que parecia
me evitar durante todo o curso, de repente me entrou pela ca88



sa. Queria me levar a um concerto de piano. Na Sala Mozart.
L� fui eu. N�o sou muito de m�sica cl�ssica, que n�o foi feita
para mim. Prefiro mais o compositor popular, que faz a musiquinha
dele batendo na caixa de f�sforos, do que as sonatas de
Beethoven, com todas as maravilhas de que se fala. Queria que
visses como se comportou a Simone. Do meu lado, de olhos
baixos, as m�os entrela�adas, como se estivesse rezando o tempo
todo. De repente, quando a orquestra parou, p�s-se de p�,
aplaudindo. Aplaudindo, e gritando: � Bravo! � Gritei tamb�m.
Foi a primeira e �ltima vez em que aplaudi Beethoven. Pois
levei um car�o da Simone, quando voltava para casa. Que eu
n�o devia ter aplaudido. Que at� tinha dormido. Sim, senhora.
Um car�o completo. N�o gostei. Ela me segurou a m�o.
Me pediu que a perdoasse. Precisava de uma amiga como eu.
Era s�. N�o tinha uma irm�. E tanto fez, da� em diante, que
quase eu acabava gostando de m�sica cl�ssica. De tarde, pelo
telefone, me chamava. Mandava o carro dela me buscar. Ria,
falava alto, contava casos. Nunca imaginei que, por tr�s daquela
figura distante, houvesse um ser humano t�o comunicativo.
Um dia, levou-me para a sala. Sentou-se ao piano. E foi
tocando. Valsas de Chopin. Depois, Beethoven: a Sonata ao
luar. O Bolero de Ravel. E eu ouvindo. Mas sem mudar de gosto.
Fiel � minha valsinha. � minha polquinha. De repente, ela
emendou o concerto de Brahms com um sambinha brasileiro.
Incr�vel. Fiquei arrepiada. Uma maravilha. E quando acabou,
voltou ao quarto dela comigo, segurou-me pelos ombros, e me
disse: � Posso ser tua amiga. Como fui amiga de Patr�cia. Mas
n�o podes ser amiga de mais ningu�m. S� de mim. � Ri alto.

� E ela, mais s�ria: � N�o, n�o rias. Fica s�ria. � s�ria que
estou te falando. � Patr�cia, eu tive medo dela. Medo de seus
olhos. De seu rosto parado a prender o meu. Possessiva. Dominadora.
Estranha. Mas consegui reagir. E fui franca. Amiga
dela, sim, mas n�o com exclusividade. Senti que os olhos
dela se umedeciam. E tive pena. Mas continuei firme. Simone
n�o insistiu. Veio trazer-me � porta, mandou que o carro dela
me levasse. E nunca mais me chamou. Tempos depois, no dia
do meu anivers�rio, mandou-me flores. Com uma cartinha.
Para dizer que continuava s�. Fui visit�-la. Fui eu que a con89



venci a terminar o curso. A m�e dela, que se abriu comigo num
momento em que a filha saiu do quarto, me contou, que a Simone
havia passado dezesseis dias trancada, sem querer ver
ningu�m.

E novamente de p�:

� Fiquei com pena da Simone. Fiquei. N�o te vou negar.
Cheguei a pensar que ela pudesse cometer um desatino,
t�o estranha ela estava, na sua revolta. Felizmente nada demais
aconteceu. Ela acabou recebendo o diploma, foi para o Sanat�rio
acompanhada pelo Padre Revoredo, que tamb�m conheces.
Fiquei sem not�cias dela um bom tempo. Um belo
dia, novamente no meu anivers�rio, chegou-me �s m�os um
telegrama seu. Agradeci. Veio uma carta. Da� em diante, sempre
que estou mais desafogada, escrevo para ela; ela me responde.
Por isso, quando me falam que n�o foste correta com
ela, sou a primeira a te defender. N�o. Isso n�o. Conhe�o as
duas. Sobretudo a Simone. O Rodrigo, quando decidiu casar
contigo, e n�o com ela, fez a op��o certa. Com ela, teria sido
um desastre. A menos que Deus, por milagre, lhe mudasse a
natureza.
5

Sempre a mesma ansiedade todas as vezes que o marido
viajava. Debalde tentava distrair-se, ocupando o mais de seu
tempo em pequenas coisas caseiras. Se esquecia a viagem por
alguns momentos, logo a preocupa��o lhe voltava, teimosa,
insinuativa, obrigando-a a recorrer a calmantes ou a insistir
nas liga��es interurbanas, para saber se o Rodrigo j� estava
no hotel. N�o compreendia por que os jornais davam tanto
destaque aos loucos que punham bombas nas valises,
abandonando-as nos aeroportos, ou insinuando-as na bagagem
geral dos passageiros, sabendo que iam matar um pai, uma
noiva, um filho, uma amiga, um irm�o, uma crian�a, um m�dico,
friamente, implacavelmente. N�o, n�o compreendia.

90


Enquanto duravam as viagens do Rodrigo, evitava ler os
jornais. Tamb�m n�o queria que ligassem na casa as televis�es
e os r�dios. No sil�ncio que se fechava � sua volta, passava o
dia sobressaltada. E mais inquieta se sentia, a s�s, no quarto,
ao longo das noites infinitas. Ao passar pelo sono, despertava
ao menor ru�do, e toda ela se concentrava nos ouvidos, sentada
na cama, l�vida, � espreita de m�s not�cias, que felizmente
nunca chegavam.

Na volta do marido, contava-lhe o quanto havia sofrido.
E ele, calmo, segurando-lhe as m�os �midas:

� Meu amor, voc� n�o est� cansada de saber que nada
de mau acontece comigo? Que Deus, l� em cima, olha sempre
por mim?
Sim, ela sabia. Mas algo persistia no seu esp�rito, acima
de sua consci�ncia, e que de repente a alarmava, como um terror
estranho, que suplantava a serenidade natural de seu esp�rito
e que ela pr�pria n�o sabia entender e justificar. Sobretudo
depois que, uma tarde, j� com o dia escurecendo, a pobre Rosa,
sem conseguir conter-se, veio ter com ela:

� Ah, D. Patr�cia, a senhora vai me perdoar, estou muito
nervosa, preciso lhe falar. Imagine que, h� poucos momentos,
houve aqui no aeroporto um tiroteio maluco, e h� muitos
feridos e muitos mortos.
L�vida, a boca entreaberta, Patr�cia permaneceu uns momentos
sem a��o, tomada de pavor, sabendo que, exatamente
nessa hora, o Rodrigo devia estar chegando. E o mesmo terror
que a havia imobilizado, subitamente lhe deu for�as e ela
desceu a escada do p�tio, correu � garagem, sem sequer trocar
pelos sapatos de sair as sapatilhas caseiras, e saltou para

o carro que ali estava, para correr ao aeroporto, indiferente
� afli��o do Ludovico e da Rosa, ambos a lhe pedirem que se
acalmasse, que esperasse um pouco, que nada de grave havia
acontecido com o Senhor Doutor.
E ela, sem lhes dar ouvido, a trazer o carro de marcha � r�:

� Minha Nossa Senhora, me ajude!
E j� ia transpor o port�o sobre a cal�ada da rua, quase
a raspar uma das colunas do muro, quando o pr�prio Rodrigo
lhe apareceu, saltando do carro que o fora buscar:

91


� Patr�cia, aqui estou.
E todo ele sorria, e ria alto, e agitava as m�os efusivas,
e sacudia a papada sobre o colarinho aberto, enquanto lhe contava,
na subida da escada:

� Deus, mais uma vez, olhou por mim. Imagina tu que
eu, que nunca tomo caf�, desta vez tive vontade de tomar caf�
no bar do aeroporto. E foi l�, mexendo minha x�cara, que de
repente ouvi o estralar das balas, exatamente no sal�o onde
eu tinha estado momentos antes. Sem esse caf�, eu a estas horas
estava morto ou ferido.
E fora buscar na adega, para o jantar, um vinho velho,
que vinha do tempo de seu av�, para festejar a prote��o divina,
depois de mandar dizer ao Padre Revoredo que cobriria,
sozinho, as despesas totais de sua nova creche.

Ela, entretanto, havia levado mais de um m�s para se refazer,
a despeito dos calmantes, das ora��es, das idas � igreja,
das longas conversas com seu m�dico, e mais de uma vez despertara
aos prantos, em plena madrugada, a debater-se com
os pesadelos que lhe avivavam novamente o medo, como um
aviso ou uma premoni��o. Felizmente, ali mesmo, na sua casa,
com o passar do tempo voltara a acalmar-se.

Ainda bem que se reintegrava na sua paz, na sua vida tranq�ila,
na consci�ncia de seu destino harmoniosamente realizado.
Desoprimida, tornava aos concertos, � visita �s creches,
aos desfiles de modas, �s recep��es diplom�ticas, sempre ao
lado do Rodrigo, que se envaidecia de ir com ela, dando a impress�o
de ficar repleto e loquaz caminhando ao seu lado. Ela,
por sua vez, parecia esquecida da afli��o das viagens. E a verdade
� que, por algum tempo, lograva superar esse medo, como
se houvesse afinal alcan�ado, com obstinada paci�ncia, o
pleno dom�nio de seus nervos.

Essa plenitude se lhe estendia por todo o corpo, sobretudo
na alegria do rosto, na luz dos olhos, na vivacidade da palavra,
e ela telefonava, e chamava as amigas, e abria o seu sal�o,
extrovertida, afetuosa, comunicativa � a ponto de pensar, mais
de uma vez, em ligar para o Sanat�rio e informar-se sobre a
Simone. Freq�entemente, n�o esperava que o Rodrigo a quisesse:
j� nua, sob o len�ol, esperava por ele, e era com outro gosto, ou


92


tra vida, outra explos�o de sensualidade realizada, que por fim
se entregava, mais companheira e mais mulher.

Agora, na calma da tarde fosca, com o dia a se fechar
sob a bruma que se esgar�ava por cima dos telhados e dos edif�cios,
Patr�cia ouviu a chuva cair l� fora, precedida pelo ru�do
da ventania. Sentada na poltrona, j� com o abajur aceso,
ficou a ler salteadamente o romance de Mary McCarthy, com
a impress�o de que a aten��o lhe fugia, sem poder concentrar-se
na leitura. Acabou por fechar o livro, apoiou a nuca no espaldar
da poltrona, de pernas estiradas, p�lpebras descidas, m�os
no rega�o, tornando a ver a Paula, parada no vest�bulo, abotoando
as luvas, e a lhe dizer, como se lhe contasse um segredo:

� Sabe o que me disse a Carminha, depois de visitar a
Simone no Sanat�rio? Que o lugar � muito bonito. E que ela
n�o est� num quarto comum, como os outros pacientes. N�o.
Est� numa su�te, onde tem tudo, at� piano. Um piano, Patr�cia.
Quando ela se p�e a tocar, os m�dicos e as enfermeiras
pedem sil�ncio. � a Simone que exige. Sempre a mesma Simone.
Um dia destes, fa�o um poema para ela. Ser�s a primeira
a ouvir.
E j� no v�o da porta:

� Chega de Simone. Um beijo.
Tamb�m nos pap�is de M�e Ded� l� estava a Simone. Retratos,
bilhetes, postais, e at� mesmo um caderninho de receitas
de doce, na mesma letra firme e alta, com o t bem cortado,

o rabinho do o para cima, a cedilha no lugar, tudo dentro de
envelopes, e posto num envelope maior, amarrado por uma fita
desbotada, com o la�o por cima do sobrescrito, e esta indica��o,
na letra de M�e Ded�: Documentos antigos da Simone.
E entre par�nteses: a maior amiga de minha filha.
Continuaria a guardar tudo aquilo? Ou seria melhor dar-
lhe fim, rasgando, queimando? N�o, n�o rasgaria nada, nada
queimaria. Por que rasgar? Ou queimar? N�o, de modo algum.
Recolheria tudo aquilo � gaveta da c�moda, no quarto
das coisas velhas, inclusive o ma�o das partituras, do tempo
em que ela, Patr�cia, tamb�m estudara piano, no mesmo curso,
com a mesma professora da Simone.

O piano da Simone... O famoso piano de cauda, quase

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sempre coberto por uma capa escura, ocupando um canto da
sala. Nele, s� a Simone tocava. Igual ao que ela, Patr�cia, comprara
para o sal�o quando casara, e que permanecia fechado,
com a capa de veludo. Imponente. Solene. S� descoberto nas
noites de recep��o. Igual tamb�m, em sonoridade, ao piano
da Simone. E que se ouvia longe, na volta da rua.

E Patr�cia p�s-se a lembrar a D. Zita, falando baixo, para
n�o ser ouvida pela filha:

� Mandei te chamar para n�o te falar pelo telefone. Sobre
a Simone. Aconteceu uma coisa estranha esta noite. Coisas
de minha filha. Fiquei nervosa. Imagina que acordei, pela
madrugada, ouvindo o piano aqui na sala. Olhei o rel�gio: faltavam
dez minutos para as duas horas. E o piano, aqui, tocando.
Pensei logo: ser� a Simone? A esta hora da madrugada?
Pus o penhoar por cima da camisola, sempre ouvindo o
piano, e vim at� aqui. Era ela, sim, tocando. S� com a camisola
em cima do corpo, quase nua. Uma m�sica atr�s da outra.
E depois de onze dias sem sair do quarto. Perguntei-lhe:
� Que � isso, minha filha? Sabe voc� que horas s�o? Duas.
Duas horas. E voc�, aqui, tocando. Por qu�? � Ela n�o me
respondeu. Parecia son�mbula, sem me ouvir. Continuou tocando.
Sem partitura. Tudo de mem�ria. Vim mais para perto.
Bat,i-lhe no ombro, perguntei-lhe: � Est� me ouvindo, Simone?
� Continuou calada, tocando. Pensei em pux�-la dali,
mas me contive. N�o, n�o convinha. N�o se deve despertar
de repente uma pessoa son�mbula. Afastei-me um pouco, fiquei
olhando, n�o sabendo o que fazer. Nisto, ela parou de
tocar, fechou o piano, cobriu-o com a capa, apagou a luz, e
foi para o quarto, sem me responder, sem me olhar, como se
n�o houvesse dado por mim. No quarto, fechou a porta, deu
a volta na chave. E continua trancada.
D. Zita ficou a olhar para Patr�cia, como se n�o soubesse
mais o que dizer-lhe, os l�bios levemente tr�mulos, os olhos
atarantados.
E por fim, rompendo a chorar:

� Que � que se passa com a minha filha?
Patr�cia se levanta da poltrona, ouvindo o ru�do de um
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carro no port�o, enquanto se desfaz subitamente a imagem de

D. Zita, com as m�os no rosto, solu�ando. E reconhece:
� O Rodrigo chegou.
Patr�cia enche o peito, num suspiro longo, e seu cora��o
se acelera. Puxa a cortina para olhar o port�o. Sim, � ele, no
carro que vem subindo a rampa devagar.

6

Uma por uma, recolheu ao envelope pardo, sobrescritado
por M�e Ded�, as fotografias que dali tirara: umas, suas;
outras, de Simone; outras mais, de amigas e colegas que tinham
ficado para tr�s, como que apagadas pela vida e pelo
tempo.

De vez em quando, ao recolh�-las ao velho abrigo de papel
grosso, sustinha a m�o no ar, com a fotografia mais perto
da luz, e sorria, ou ria, por entre relances de reminisc�ncias
divertidas, ao dar por si segurando a m�o de Simone, ambas
de ciganinha, muito pintadas, cada qual com seu pandeiro e
seu vidro de lan�a-perfume, no primeiro baile de Carnaval a
que tinham ido. Por sinal que Simone, voltando para casa, tinha
jurado n�o voltar mais aos bailes do Cassino:

� Um horror. Fiquei tonta. Comigo n�o contem mais para
semelhante loucura. Festa, para mim, � outra coisa. Todos
bem vestidos. Muita ordem. Cada qual no seu lugar.
E como acabara de fazer treze anos, e ainda estava pintada
e repleta de medalhas douradas, o seu ar sisudo destoava
um pouco, fazendo rir a Patr�cia, que de pronto lhe confessou:

� Eu gostei, Simone. Gostei de pular, de me misturar com
os outros, de cantar, de segurar a m�o de quem n�o conhe�o.
E Simone, grave, j� no seu quarto:

� Ent�o vai sozinha. Vai, e n�o voltes mais aqui nem fales
mais comigo. Ponto final.
E a seguir, no impulso da ira reprimida, tirou fora a fantasia,
lan�ou longe o lan�a-perfume e o pandeiro, e foi para

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o banheiro, com uma toalha �mida, desfazer a pintura do rosto
e depois tomar um banho, para tirar de seu corpo o suor alheio.
Deitou-se, n�o deu boa-noite � Patr�cia.
Patr�cia, cedo, assim que o dia come�ava a clarear, er


gueu-se do somi�, fez depressa a sua toalete, sem ru�do, tam


b�m calada. Iria embora sem despedir-se.

E Simone, que a observava:

� Patr�cia, diz a M�e Ded� que hoje eu vou dormir na
tua casa.
Ah, a primeira noite de amigas verdadeiras, no s�t�o da
casa transformado em quarto da Patr�cia, com a Simone a achar
tudo �timo (mesmo o banco de tr�s pernas e a cadeira de palhinha
com o assento furado), e a fazer quest�o de manter a
m�o de Patr�cia na sua, depois de acariciar-lhe o rosto, as esp�duas,
o busto, sempre a dizer-lhe:

� Eu te acho linda, Patr�cia.
E de repente, erguendo a cabe�a, a segurar-lhe os ombros:
� N�o gostei daquele rapaz alourado que passou o tempo
todo te pondo lan�a-perfume. E tu, nele. S� n�o vim embora,
na hora, para n�o fazer uma grosseria maior. Vou ser
sincera contigo, Patr�cia: tu, se tiveres mesmo um namorado,
ter� de ser escolhido por mim. Mas a verdade mesmo � que
n�o quero que te cases. Teremos de ser amigas, sempre. Sempre.
Pelo amor de Deus, n�o me abandones. Eu preciso ter uma
'amiga. Sei que preciso. Sou fr�gil. Deus me fez assim.

E tinha uma express�o t�o pat�tica na fisionomia transtornada,
com a cabe�a erguida, o rosto vincado, as pupilas implorativas,
que Patr�cia se limitou a traz�-la para perto de si,
enxugando-lhe o rosto, com o bra�o esquerdo sob seus ombros,
abra�ando-a carinhosamente, at� que lhe sentiu o choro
manso e repetido, dizendo-lhe:

� Tu �s tudo para mim, Patr�cia.
� E tu tamb�m para mim, Simone.
Como tudo isso ia longe, meu Deus! Sempre o mist�rio
do tempo, que flui e desfigura, que passa e leva tudo, sem pressa,
implacavelmente, como se dele emanasse a verdadeira e suprema
lei do mundo, a que at� Deus teria obedecido. Patr�cia
bem que o sentia, no confronto da realidade passada com a

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realidade atual, enquanto crescia na sua consci�ncia a estranha
id�ia de que o verdadeiro senhor do mundo � o Tempo.
Que cria, que transforma, que destr�i, que n�o interrompe o
seu fluir vagaroso, indiferente ao riso e � dor, � vida e � morte,
mas que tamb�m enxuga os olhos dos infelizes e acalma
a agonia dos desesperados, para restituir a cada um de n�s a
serenidade diante das dores velhas, com os olhos enxutos diante
de nossos mortos.

Em vez de recolher ao envelope o retratinho de Carnaval,
Patr�cia deixou-o de lado para mostr�-lo no dia seguinte, ou
talvez no mesmo dia, � Inezita e � Paula, quando por ali voltassem.
Um momento depois, mudou de id�ia. Nada disso. A
vida flui, e � preciso deixar que ela se v�, envolta no seu mist�rio.
Tanto a Paula quanto a Inezita se limitariam a achar gra�a
na fotografia levemente amarelada, com um furinho de tra�a
nos dois cantos superiores, sem que nada lhes dissesse, al�m
das imagens que ali estavam, come�ando a apagar-se. A emo��o
era apenas sua, privativa, �ntima, como um bem pessoal,
que s� ela, Patr�cia, podia sentir e reviver. E com um suspiro
leve, que n�o chegou a altear-lhe os seios, rep�s a fotografia
no envelope, como se a restitu�sse ao passado. Ao seu pr�prio
passado.

Da� em diante repassou depressa as demais fotografias,
e novamente a Simone refluiu das poses e dos instant�neos,
sempre esguia, os olhos misteriosos e negros, a mesma risca
no cabelo. Conquanto n�o passassem de imagens no papel,
ora no port�o de casa, ora � borda do tanque, no Parque da
Cidade, ou na cal�ada da rua, junto � bicicleta, tinham sempre
um ar acusativo, que lhes advinha do rosto severo, mesmo
quando sorria.

De repente, ao v�-la montada num cavalo, com o rebenque
a lhe pender do punho que segurava a r�dea, Patr�cia como
que se crispou, intimidada. E reagindo:

� Por que isso, meu Deus?
Bem sabia que nada devia temer diante de Deus. O destino
de cada um de n�s seria o destino de cada um de n�s, �
revelia de nossa vontade e determina��o. Converg�ncia de vidas
e situa��es, que talvez o pr�prio homem um dia haveria

97


de explicar, mas que suplantava a simples determina��o individual.
Algo como o encontro de dois seres nas sombras do
mesmo aposento e que se tocam, se apalpam, se reconhecem,
enquanto a luz moment�nea mutuamente os revela, para seguirem
juntos, atravessando a porta que se abre sobre um novo
caminho.

E o Ludovico, interrompendo-lhe o devaneio:

� D� licen�a que eu lhe fale? N�o se aborrece comigo?
E a um passo da escrivaninha, vendo quatro retratinhos
de Patr�cia sobre o tampo da mesa, cada um correspondente
� sua inf�ncia, � sua adolesc�ncia (na farda da Escola Normal),
� �poca de seu casamento (no vestido de noiva) e ao momento
atual (de bra�o com Rodrigo, na alameda do parque):

� Telefonou h� pouco o senhor da tipografia. Pede-lhe
mil desculpas, mas n�o achou boa a id�ia dos quatro retratinhos
que a senhora quer p�r nos convites da recep��o. O melhor,
para ele, � um simples tra�o leve, de tom azulado, reproduzindo
esta casa, entre velhas �rvores. Sobre esse tra�o fino,
o texto do convite. Na opini�o dele, quanto mais s�brio, mais
bonito.
E Patr�cia, ap�s um momento de sil�ncio, dando-lhe raz�o:

� Diga-lhe que estou de acordo. O artista � ele.
E ia fechar o envelope, j� com os quatro retratinhos ali
dentro, quando deu com o retrato de Simone, ao lado do Padre
Revoredo, de p�, junto do piano.

7

Estranho e misterioso Padre Revoredo, que ia embora, que
de repente voltava, magro, seco, p�mulos salientes, olhos obl�quos,
queimado de sol, ora de alpercatas, ora de sapatos cambados,
com um riso permanente na cara chupada, e uma voz
bonita, que enchia sem esfor�o a nave da igreja, na hora do
serm�o dominical.

Sabia grego, sabia latim, tocava piano, tocava viol�o, po


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dendo executar uma valsa de Chopin na flautinha de bambu
que trazia �s costas, na vasta sacola com que ia e vinha, na
fase em que ningu�m sabia por onde andava o Padre Revoredo.

Um dia, sem se saber por qu�, pusera a batina numa sacola
de pl�stico e a deixara com uma carta na portaria do Pal�cio
do Cardeal. E ele pr�prio, uma semana depois, fora busc�la,
ali mesmo, humilde, n�o no peito, assim que o Cardeal o
fizera vir � sua presen�a, ordenando-lhe:

� Ajoelhe-se. Aqui. Defronte de mim. Baixe a cabe�a.
Assim. E pe�a que eu interceda junto de Deus para que o perdoe.
Queimei sua carta numa vela benta, rezando por voc�.
E na mesma voz impositiva:

� V� p�r de novo a batina, e volte aqui. Agora.
S� ent�o Padre Revoredo viu o mesmo saco de pl�stico
da confeitaria Progresso, em cima da arca da sacristia, aos p�s
da imagem de S�o Francisco de Assis.
Vestira a batina ali mesmo, por cima da cal�a e da camisa,
e logo p�de ver, no reflexo do espelho � sua frente, que era
de novo o Padre Revoredo, de ombros altos, batina escovada,
restitu�do a si mesmo.
Aproximou-se do Cardeal, tornou a ajoelhar-se, beijou-
lhe o anel, e rompeu a chorar. Depois, pediu licen�a e p�s-se
a tocar, na flautinha de bambu, o seu Hino � Nossa Senhora,
que havia composto uma noite, quase de improviso, no bom
tempo do Semin�rio.

Tinha sido ele o respons�vel pela fase m�stica da Simone,
levando-lhe livros religiosos, dando-lhe santinhos e medalhinhas,
at� que ela, s�ria, com um ter�o a lhe pender do punho, confessou
� Patr�cia, depois de passar a chave na porta do quarto:

� Resolvi ser freira. Freira carmelita. De clausura.
Abriu o guarda-roupa, mostrou-lhe o h�bito.
E segurando Patr�cia pelos ombros, olhando-a no rosto:
� E tu tamb�m vais ser. Vamos tomar o h�bito no mesmo
dia.
� Eu, n�o � replicou Patr�cia, com firmeza.
Levaram quase um m�s sem se falar. E como era julho,
pelo tempo das f�rias, doeu mais ainda a prova��o por que

99


ambas tinham passado, at� que Simone, em voz natural, como
se nada houvesse acontecido, a chamou pelo telefone:

� Vem aqui. Tenho uma novidade para te contar.
E quem Patr�cia encontrou, � sua espera, assim que lhe
entrou no quarto, foi outra Simone � de cabelo aparado, uma
leve pintura nos l�bios, a saia do vestido acima dos joelhos,
e risonha, com muita luz nos olhos, mais feminina, inteiramente
diversa da Simone que ali estivera, ao lado do Padre
Revoredo.

Abra�aram-se, sem que pudessem falar. E ficariam mais
tempo coladas, a se estreitarem contra os seios, chorando e rindo,
se D. Zita, no corredor, n�o batesse na porta, para falar
� filha:

� Padre Revoredo passou por aqui para se despedir. Eu
quis te chamar, ele n�o deixou. Disse que agora n�o sabe quando
volta.
Sumira, realmente, por mais de ano. E o estranho, o surpreendente,
� que Simone nunca explicou � outra a sua crise
m�stica nem lhe disse como tirara da cabe�a a determina��o
de ser freira � s� lhe restando da devo��o exaltada o gosto
de rezar em voz alta quando ouvia, longe, o sino da igreja,
no larguinho do Parque da Cidade, bater pelas ave-marias.

Foi D. Zita quem contou � Patr�cia, longe da filha:

� Foi o pr�prio Padre Revoredo que ralhou com Simone,
em tom alto, quando soube que ela, al�m de permanecer
trancada no quarto, se recusava a alimentar-se, jejuando pela
paz das almas. Bateu com for�a na porta, obrigou-a a abrir,
escancarou-lhe o guarda-roupa, tirou dali o h�bito, meteu numa
sacola os livros religiosos, tirou de cima da estante mais
de vinte santos, s� deixando uma Nossa Senhora e o crucifixo,
enquanto Simone, no fundo do quarto, junto da cama, com
a m�o na boca, chorava baixinho, repetindo: � Me perdoe,
Padre Revoredo, me perdoe. � E ele, ainda exaltado: � N�o
tenho nada que perdoar. O culpado fui eu. Deus � paz, � perd�o,
� alegria, � movimento. Trate de aproveitar a vida. Saia.
Passeie. � E saiu de l� com tanta f�ria, trazendo a sacola e
o h�bito, que nem se despediu de mim. S� se despediu na semana
seguinte, mas sem querer ver a Simone. Ainda agora,
100


parece que estou ouvindo os passos dele no corredor, toque,
toque, at� bater com for�a o port�o da cal�ada.

Por fim, acelerando o movimento da m�o que recolhia
as derradeiras fotografias ao bojo do envelope j� repleto, Patr�cia
imobilizou diante dos olhos a foto colorida em que ela
e Simone, � porta do Hospital Evang�lico, iam saindo � cal�ada,
uma amparando a outra na descida do batente de pedra,
com uma senhora gorda, de gorro branco, logo atr�s, ao lado
de M�e Ded�.

� Foi quando eu sa� do hospital, depois de minha opera��o
� reconheceu Patr�cia, alvoro�ando-se.
E todo um tropel de lembran�as lhe aflorou � consci�ncia,
com o Dr. Murta � beira da cama, segurando-lhe a m�o
l�vida, enquanto Simone, do outro lado, junto de M�e Ded�,
mostrava os olhos crescidos, com ar alarmado.

E foi Simone quem perguntou:

� E � preciso oper�-la, Doutor?
� I-me-di-a-ta-men-te � respondeu o m�dico, sempre segurando
a m�o de Patr�cia. � Eu mesmo vou oper�-la, ainda
hoje.
Longe, o tinido inconfund�vel da sineta da ambul�ncia.
Depois o quarto do hospital, pequeno, com a cama de ferro
ao centro, o leito ex�guo para a acompanhante, o jarro azul
com flores, o vers�culo b�blico na parede: "O Senhor � meu
pastor, nada me faltar�." E a Simone, ali. Sempre. E � ela quem
lhe pergunta, afagando-lhe a testa, alisando-lhe os cabelos:

� N�o sentiste nada? A opera��o j� acabou. Estavas dormindo
desde ontem. M�e Ded� foi � tua casa. Eu fiquei. Fui
eu que vim contigo na ambul�ncia. Aposto que n�o te lembras.
J� estavas dormindo. Um sono profundo.
E com o rosto junto ao rosto de Patr�cia:

� Eu assisti � opera��o. Com o meu tercinho na m�o.
De longe. Mas de avental, m�scara e gorro, como os m�dicos
e as enfermeiras. Te puseram em cima da mesa de opera��o.
De um lado, o Dr. Murta. Do outro, um senhor gordo,
tamb�m m�dico. Fechei os olhos quando o bisturi te cortou.
Tive medo de desmaiar. Fechei os olhos, entreguei tudo a Deus.
Confiante.
101


Segurou a m�o de Patr�cia, olhou-a em sil�ncio, como a
lhe mostrar os olhos �midos, contra�dos e contentes, e que tamb�m
sorriam, contendo o pranto na explos�o de alegria.

� Padre Revoredo esteve aqui. Chegou na hora da opera��o.
Ficou no corredor, andando de um lado para o outro.
S� foi embora de manh�, quando voltaste para o quarto.
As imagens se esbatem, desfazem-se, e s� as da Simone
permanecem. Simone de costas, olhando a nesga da rua, longe,
ao centro da janela. Simone a lhe dar a comida na colher
cheia. Simone a olhar o frasco de soro. Simone a lhe tomar
a temperatura. Simone a conversar com o Dr. Murta, grave,
compenetrada. Simone a sair com ele para o corredor. Simone
transpondo a porta do quarto, risonha, efusiva, a lhe dizer:

� J� podes voltar para casa. Dr. Murta te deu alta hoje.
Avisei M�e Ded�. Agora, adeus, hospital. Vida nova.
Mesmo depois de fechar o envelope, atando-o com um
el�stico para recolh�-lo aos guardados de M�e Ded�, Patr�cia
alongou as recorda��es da Simone, ora ajudando-a a levantar-se
da cama, ainda no hospital, ora amparando-a nos passeios por
salas, quartos e corredores, assim que voltou para casa. Era
uma Simone mais sol�cita, mais dedicada, mais amiga, com
algo de materno na voz, nos cuidados, nos gestos, a ponto de
levar M�e Ded�, uma tarde, com uma ponta de ci�me, a dizer
� filha que �s vezes ficava em d�vida sobre~quem era mesmo
a m�e de Patr�cia � se ela, se a Simone. E ambas se puseram
a rir quando a Simone, voltando ao quarto com a bacia de
�gua morna para lavar os p�s e as m�os da convalescente, fez
sair M�e Ded�:

� Patr�cia vai mudar de roupa. Depois eu chamo a
senhora.
8

Ludovico foi ao encontro de Patr�cia, do outro lado da
casa, no momento em que ela, no sal�o, corrigia a posi��o de

102


um quadro que o vento da manh� levemente inclinara, por tr�s
do piano.
E subindo um pouco o tom da voz:

� Senhora, j� estafe a� os homens do tablado.
Patr�cia voltou-se, com uma express�o de estranheza:
� Tablado? Que tablado, Ludovico?
Ludovico se fez mais grave, mais solene, sem deixar de associar
� gravidade um t�nue tra�o de riso nos cantos da boca:

� O Sr. Dr. Rodrigo n�o lhe disse nada? Pensei que lhe
tinha falado. Com tanta provid�ncia a tomar, com tanta coisa
na cabe�a, esqueceu-se. Mas vai falar. Com certeza.
E Patr�cia, aproximando-se, mais intrigada:

� N�o sei de nada. E continuo sem saber. Que hist�ria
� essa,
Ludovico? Anda. Fala.
Ludovico ensaiou um passo, recuou, olhou para os lados:

� Fa�a de conta que eu nada lhe disse.
E baixando a voz, tornando a aproximar-se:
� Vir� dan�ar aqui, no dia de seus anos, durante a recep��o,
o Bal� Nacional. Inteiro. Com a grande orquestra. Mas
fa�a de conta que eu nada lhe disse. Sil�ncio. Agora, eu me
retiro. Com a sua licen�a.
O Bal� Nacional vinha dan�ar ali, num tablado, do outro
lado da piscina? No espelho da �gua l�mpida, a que os ladrilhos
davam um tom azulado, iam refletir-se as luzes dos holofotes,
enquanto dan�assem os bailarinos? E tudo para ela, e
por ela, ao som da grande orquestra, que o Rodrigo tamb�m
faria vir? E se chovesse? N�o choveria. Tudo daria certo, como
tinha dado o seu casamento.

E curvando o rosto sobre as m�os espalmadas:

� Deus � bom para mim. Muito bom mesmo.
E logo o contraste entre o seu destino e o destino de Simone,
que poderia estar ali, no seu lugar, mais uma vez lhe
afluiu � consci�ncia, enquanto imaginava a outra encerrada
no seu quarto de Sanat�rio, sozinha, rodeada de sil�ncio. A
Simone, certamente, pelas not�cias dos jornais e das revistas,
pelos flagrantes da televis�o, pelas cartas das colegas que lhe
escreviam, j� saberia de tudo. Da recep��o. Dos convidados.
Do bal�. Da orquestra. Das toaletes. Do card�pio do jantar.

103


Da decora��o do parque. Do diadema de brilhante que o Rodrigo
lhe daria. E mais dolorosa seria para a Simone a reclus�o
opressiva, mesmo com seus discos, mesmo com seus livros,
mesmo com o seu piano.

E de pronto Patr�cia se refugiou na lembran�a de M�e Ded�,
ali mesmo, � sua frente, a lhe dizer, em tom de reprimenda,
quando j� ia pela casa o alvoro�o dos preparativos da primeira
recep��o que ia dar:

� Que absurdo � esse, Patr�cia? Que � que tem a Simone
com a tua recep��o? Tens culpa dela estar no Sanat�rio? J�
te disse, e repito agora, mais uma vez: n�o foste tu que lhe tomaste
o Rodrigo, foi o Rodrigo que quis casar contigo. Nem
ele tamb�m tem culpa de n�o ter casado com a Simone. N�o,
n�o tem. Foi ela, com seu g�nio estranho, que n�o nasceu para
casar. Al�m disso, tudo quanto aqui se faz, se faz por vontade
de Deus. Foi o que te disse o Padre Revoredo, na minha
presen�a. Agora, s� porque os jornais come�am a falar da festa
que teu marido quer dar por teu anivers�rio, tornas a voltar
com teus escr�pulos de consci�ncia? N�o v�s que � um absurdo?
Um desprop�sito? Ou ser� que vais passar a vida a pensar
na Simone? Por favor, acaba com isso!
Sim, M�e Ded� tinha raz�o. Mas agora era diferente. Viriam
as colegas da Escola Normal. Viriam os velhos professores.
Somente ela, Simone, n�o seria convidada. Por um momento,
levantando-se, Patr�cia pensou em voltar atr�s. S� convidaria
os mesmos amigos das recep��es anteriores. Logo tornou
a mudar de id�ia, acercando-se da janela sobre o parque.
Como deixar de convidar as colegas e os professores, se os primeiros
convites j� tinham sido feitos pela Paula e pela Inezita,
e se a not�cia desses convites j� havia sido dada pelo Lucas Caetano,
em destaque, com uma cercadura, na sua coluna social?

Olhando dali, na dire��o da piscina, Patr�cia viu o Ludovico
acompanhado por um senhor alto, que parecia medir o
ch�o com os passos largos, no lugar em que o tablado ia ser
montado. E de si para si, como se enraizasse no esp�rito a decis�o
inflex�vel:

� Convido as colegas, convido os professores. N�o, n�o
volto atr�s. Acabou-se. Assunto encerado.
104


N�o precisou ler a folha de papel de linho, coberta de letras
de imprensa, sem assinatura, para reconhecer o que continha,
j� que todas as cartas an�nimas se parecem. Tamb�m
Rodrigo as recebia, quase diariamente: corria os olhos em diagonal
no papel, cauteloso, virava-o, via que n�o estava assinado,
e logo acendia o isqueiro para convert�-lo em chama e cinza,
que se desfaziam no cinzeiro de sua mesa de trabalho.

Para ela, as cartas assim eram mais espa�adas. Levava semanas,
e mesmo meses, sem receb�-las. De repente, finas, seladas,
sem indica��o de remetente, ou com falsas indica��es,
as cartas voltavam, variando de papel, variando de letra ou
de tinta, mas sempre com a mesma acusa��o persistente, originada
por uma data ou uma not�cia de jornal, sobre ela ou
sobre seu marido.

Assim: "J� fizeste a conta dos anos, dos meses, das semanas,
dos dias em que tu, de teu lado, gozas a vida, enquanto
a Simone, de quem lhe tomaste o noivo, padece num quarto
de Sanat�rio? O que aqui se faz, aqui se paga. Espera o troco.
A justi�a de Deus tarda, mas n�o falha."

Ou ent�o, na correspond�ncia para o Rodrigo: "Vejo que
continuas explorando o trabalho alheio. Os outros suam, nas
tuas f�bricas, nas tuas empreitadas, e tu tomas fresco, metendo
no bolso o dinheiro do suor alheio, como se Deus, l� em
cima, n�o estivesse tomando nota. Mas o mundo vai mudar.
E tu, na hora da mudan�a, estar�s na primeira lista dos que
v�o pagar tudo no pared�o, ao lado de tua mulher. A Simone
e eu estaremos l�. Vestidas de vermelho."

Na v�spera, � noite, ao dobrar o jornal da tarde, depois
de ler a not�cia dos preparativos para a recep��o dos quarenta
anos de Patr�cia, Rodrigo se limitou a dizer a esta, demorando
o bocejo:

� Vem a� carta an�nima. Aguarda.
105


Logo na manh� seguinte, ap�s as suas voltas pelas alamedas,
Patr�cia veio para a borda da piscina, cedo, antes que
aparecessem os oper�rios para montarem o tablado, e estendeu-
se na cadeira de lona, sob a corola de metal que lhe protegia

o rosto contra o sol forte.
Cedendo � leve sonol�ncia que sempre lhe vinha depois
da caminhada, cerrou as p�lpebras, deixou-se estar quieta. Em
seu redor a manh� ia crescendo, com muita luz, muito canto
de p�ssaros, muito sussurro de vento, at� que, por cima dos
ru�dos circundantes, ouviu os passos do Ludovico na escada.
Alongou o olhar para ele e viu que trazia na m�o o correio
e os jornais.
E o Ludovico, mostrando-lhe as cartas:

� Quer que abra os envelopes?
Com um gesto, Patr�cia lhe disse que n�o. E mostrando
o tamborete ao seu lado:
� Deixe as cartas a�, com a esp�tula.
E os passos dele ainda ressoavam na borda da piscina, voltando
pelo caminho estreito e florido que levava � escada de
m�rmore, quando Patr�cia segurou um envelope azul-claro, em
fino papel de linho. Sentiu que seu cora��o se contra�a. Seus
olhos percorreram o sobrescrito em caracteres de imprensa, muito
bem desenhado, na tinta preta de uma esferogr�fica, e
adivinhou:

� � da Evangelina.
Virou o envelope, em busca do remetente, e deu com o
espa�o em branco. Por um momento, pensou em atirar a carta
ao cesto de pap�is, rasgada em pedacinhos, sem l�-la. E como
a curiosidade foi mais forte, avivando-lhe as pupilas,
contraindo-lhe as sobrancelhas, empunhou a esp�tula,
introduziu-lhe a ponta numa abertura lateral.

A folha azul, muito bem dobrada, e mesmo perfumada,
saiu de dentro do envelope, lembrando-lhe a feiticeira que emerge
do gargalo da botija, no conto �rabe que tinha lido no tempo
da Escola Normal. A princ�pio, com o rosto da princesa
bonita; depois transfigurando-se, com o nariz adunco, o rosto
enrugado, as m�os em garra, magra, os olhos duros, a voz rou


106


ca, que a Simone por vezes imitava para que ambas se pusessem
a rir, tarde da noite, no tempo das provas.

A vista inquieta de Patr�cia percorreu depressa as linhas
sucessivas, e logo a m�o nervosa voltou a folha, com a mesma
pressa, a mesma repulsa. N�o podia dar import�ncia �quele
papel perverso. N�o, n�o podia. Tinha de rasg�-lo, de atir�-lo
ao cesto, com asco, com nojo, sentindo que a revolta lhe afogueava
o rosto. E no esfor�o para dominar-se:

� N�o posso fazer o jogo da Evangelina.
N�o, n�o podia. Por que irritar-se com semelhante mis�ria?
Mas o papel acusativo continuava a teimar na sua m�o
tr�mula. E se n�o fosse da Evangelina? Se fosse de outra colega,
dissimulada, sonsa, fingida, e que, por um lado faria o papel
de sua amiga, af�vel, risonha, sol�cita, enquanto por tr�s, perversamente,
se deleitaria em desenhar aquelas letras, naquele
papel, com aquela tinta, sabendo que ia feri-la no �ntimo de
seu ser, com a mesma hist�ria, a mesma ladainha: Simone infeliz,
num Sanat�rio, e ela, Patr�cia, casada, rica, naquela casa,
e com sa�de, a lhe servir de contraste, depois de lhe tomar

o noivo.
Quase a palavra r�spida lhe saiu da boca, num protesto,
num desabafo, mas Patr�cia conseguiu dominar-se, rasgando
depressa a carta, o envelope, o selo, enquanto pensava na Ermelinda,
na Dulce, na Teresa, na Doralice, e passando rapidamente
de uma para outra, ao mesmo tempo em que repelia
a suspeita, dizendo consigo, com o papel picado na concha
da m�o:

� N�o, n�o pode ser. Tem de ser outra.
E perplexa, confusa, despejando o papel rasgado na lata
em que o jardineiro tinha posto os ramos, as folhas secas e
as flores murchas, na poda da manh�:

� Mas quem? Quem, meu Deus?
A Evangelina, n�o. O que tinha de fazer, fazia-o de frente,
sem se esconder: pegaria o telefone, diria o que lhe viesse
� ponta da l�ngua. Jamais ficaria a um canto, desenhando letras,
para compor uma carta an�nima. Fazia-lhe essa justi�a.
A Carmencita? Coitada, uma mosca morta. A Ros�lia? Que
esperan�a! Ent�o quem? Toda a turma, incluindo a Inezita e

107


a Paula, subia-lhe � consci�ncia, � maneira da poeira que dan�a
no ar ao longo da faixa de luz, e Patr�cia sombreou o olhar,
apertando as t�mporas com a sensa��o opressiva de que a cabe�a
lhe ia rebentar.

Conquanto houvesse lido a carta de relance, com a sensa��o
de que o ar lhe faltava, tinha-a apreendido em todo o
seu conte�do, como se tornasse a t�-la diante dos olhos. Ao
voltar a cadeira de lona para aproveitar a tepidez suave do sol
da manh�, a mem�ria lhe restituiu textos esparsos da folha dobrada,
e que a acusavam, a insultavam, um deles mais que todos,
e que parecia ampliar-se � sua frente, suspenso no ar: "E
pensas que alguma de n�s, que bem te conhecemos, vai assistir
� tua palha�ada? Que nos prestamos, como cordeirinhos,
ao capricho de tuas farsas? Todas n�s, a� na tua casa, de vestido
comprido, em volta da rainha, que serias tu? � para isso
que nos queres a�? Como se n�o soub�ssemos que a tua boa-
vida custou a desgra�a da pobre Simone, condenada por tua
trai��o a passar o resto de seus dias num Sanat�rio? Por favor,
cria vergonha, j� que a idade n�o te deu sentimentos!"

Sempre a Simone. Sempre. Como um eco. Como uma
sombra. Tudo servindo de pretexto para lembr�-la, como se
estivesse no ar, no ru�do do vento, na surpresa dos caminhos
em seu redor. Por que isso, meu Deus? Por toda parte, ela. A
cada momento, ela. A Simone onipresente. E como se n�o bastasse
tudo quanto, � sua volta, constitu�a pretexto para sentila
de volta, com a mesma palidez, os mesmos olhos negros,
a mesma risca do cabelo, a mesma voz, sonhara com ela nas
duas �ltimas noites. No sonho da v�spera, vira-a com tal nitidez
que acordara assustada, com a impress�o perfeita de que
Simone estava � sua frente, a lhe dizer:

� Sim, sim, eu te odeio, Patr�cia. Se eu pudesse te matar,
te matava. Te castigava. Te fazia sofrer. O que fizeste comigo,
n�o se faz. �ramos mais que amigas: quase irm�s. Por
ti eu daria a minha vida. Daria. Sei que daria.
Viera mais para a frente, segurara-lhe os ombros. Patr�cia
chegara a sentir-lhe a respira��o arfando e os seus dedos
a lhe apertarem a carne, agressivos, enquanto a mesma voz de
outrora, levemente alterada, subitamente crescia:

108


� O que me fizeste, h�s de pagar. Qualquer uma de nossas
colegas podia ser incorreta comigo; tu, n�o.
Durante todo o dia a carta cruel teimou no seu esp�rito,
obsessiva, persistente, como se estivesse associada para sempre
� sua mem�ria, e � noite, pela madrugada, entrou-lhe pelo
sono, j� agora com a pr�pria Simone confirmando-lhe as
mis�rias. T�o impetuosa foi a rea��o de Patr�cia, no impulso
de sua corre��o e de seu brio, que deu por si sentada na cama,
enquanto respondia � Simone.

� E em que � que fui incorreta, se tu mesma me disseste
que n�o te casarias? E se o Rodrigo tamb�m me disse que em
hip�tese alguma se casaria contigo? E que tudo quanto tinha
ocorrido entre voc�s n�o havia passado de uma troca de amabilidades
e gentilezas? E mais: que, se por acaso, casasse contigo,
na semana seguinte estaria separado, tanto por tua iniciativa
quanto por iniciativa dele. Agora, me ouve: quando o
Rodrigo me prop�s casamento, fiz que minha m�e conversasse
com a tua, antes que eu te falasse. E quando eu ia te falar,
no p�tio da Escola Normal, como foi que reagiste? Sim, como
foi? Dando-me uma bofetada, antes que te contasse tudo.
Eu podia te bater tamb�m, porque sou mais forte do que tu.
Mas me limitei a te segurar os punhos, olhando-te de frente,
com raiva, e tamb�m com pena de ti.
Num sonho anterior estava ela, Patr�cia, numa esquina
do centro da cidade, esperando pela Simone. O tempo passava,
e a Simone n�o aparecia. J� come�ava a anoitecer. Teria
de passar a noite ali, sempre � espera? Ou seria melhor ir embora?
Os carros iam e vinham, com os �nibus repletos, sempre
com o guarda de tr�nsito no meio da rua, a agitar os bra�os,
soprando um apito � maneira de um regente disciplinando
os ru�dos sucessivos que por vezes cresciam, nervosos, irritados,
para abrandar um pouco, no breve hiato da mudan�a
de sinais.

E Patr�cia, na volta da rua, de uniforme, � espera. Debalde
mudava a dire��o do olhar, esperando ver a Simone a cada
instante. Afinal, quando a outra chegou, deu-lhe o bra�o, risonha,
efusiva, para atravessarem a rua, e logo o sinal de tr�nsito
mudou, de modo que toda a massa de ve�culos se precipi


109


tou sobre as duas � maneira de um rebanho de cavalos a galope.
Um dos carros apanhou Simone, f�-la subir no ar para
arremess�-la na outra cal�ada, por entre os gritos da Patr�cia,
que de pronto despertara, suando muito, exausta, com a impress�o
de que trazia a Simone nos bra�os, desacordada.

E o Rodrigo, nesse momento, erguendo do travesseiro a
cabe�a sonolenta, a olhar Patr�cia com espanto:

� Que � que se passa contigo?
� Tive um pesadelo. Sonhei com a Simone, desmaiada
nos meus bra�os, e me pareceu que ela estava morta.
Ele lhe trouxe um pouco de �gua, e foi sobre a Simone
que ela e o Rodrigo conversaram no crep�sculo da madrugada,
porque o novo dia j� vinha apontando, com a sua claridade
fosca a se insinuar pelas vidra�as das janelas no quarto
fechado.

E ela, para ele, pela manh�, � mesa do caf�:

� H� dias em que a todo momento me lembro da Simone.
A cada instante parece que a tenho diante dos olhos. Tudo
� pretexto para que me lembre dela. � como se a Simone estivesse
aqui, ou na rua, ou no cinema, ou na �pera. J� a vi num
t�xi. Na janela de um sobrado. E saindo de uma loja. Houve
um dia em que telefonei para o Sanat�rio, sem dar meu nome,
s� para saber se a Simone estava l�. Estava. Mas eu a tinha
visto de relance, num segundo, aqui, e a perdera de vista. A verdade
� que, apesar de tudo que houve entre n�s, h� momentos
em que tenho saudade dela. Saudade, e pena.
Tinha pena dela, realmente. Chegava mesmo a busc�-la
em suas recorda��es, para lhe sentir a m�o fina e fria na sua
m�o; fitar-lhe o rosto puro e belo, com um modo muito seu
de voltar a cabe�a; olh�-la pelo canto dos olhos, prestimosa,
desvelada, como s� ela sabia ser, sobretudo quando lhe dizia

o nome, chamando-a, com a demora da voz na vogal mediana:
� Patr����cia. � Como esquecer as m�sicas que a Simone
tocava? Uma noite... Nunca esqueceria essa noite... Como se
se tratasse de uma noite real, intensamente vivida. Simone, na
camisola transparente, na sa�a repleta de colegas e de professores,
estava sentada ao piano, alheada do mundo em seu re110



dor, e tocava, e tocava, e tocava, at� que, j� com o dia faiando.
D. Zita a tirou dali:

� Venha mudar de roupa, minha filha. Voc� est� quase
nua.
E houve mesmo uma tarde (fazia agora tr�s meses) em que,
de repente, Patr�cia deu por si, como outrora, subindo a escada
do p�tio para a sala de aula, na companhia da Simone.
Riam, falavam baixo, cochichando. Tudo n�tido, de uma nitidez
real. Como se n�o fosse um simples capricho da mem�ria.
E t�o forte, e t�o profundo, que ao se ver sentada na poltrona
da saleta, com uma revista no rega�o, � espera do marido,
Patr�cia entrela�ou os dedos sobre os seios, emocionada,
e se p�s a chorar.

111


QUINTO CAP�TULO

1

Mais uma vez as cenas se repetiriam: ela, no quarto do
hotel, sem saber o que faria de si mesma, depois de ter percorrido
as lojas e butiques dos arredores, enquanto o Rodrigo andaria
a tratar de seus neg�cios, freq�entemente sem dispor sequer
de tempo para almo�arem juntos, no restaurante do pr�prio
hotel. Ou ent�o, se a levava para almo�ar com ele, na companhia
de banqueiros, clientes ou fornecedores, infinitamente
maior era o t�dio em que ela se debatia, sem saber ao menos

o que conversar.
Por fim, acabara por dizer ao marido:
� Prefiro ficar na minha cidade, na minha casa.
Na verdade, ap�s tantos anos de casados, j� Patr�cia conhecia
o mundo inteiro. Andara por terras pr�ximas e distantes,
vira grandes e pequenas cidades, ora de avi�o, ora de navio,
ora de trem, e mesmo de �nibus e de autom�vel, sempre
com ele ao seu lado. Em Paris, chegara a passar seis meses seguidos.
E outro tanto em Nova Iorque, em Roma, em Buenos
Aires, no Rio de Janeiro.

Entretanto, ainda por algum tempo, o Rodrigo insistiu em
traz�-la consigo. Mas era debalde que lhe sugeria programas
avulsos, como teatros, cinemas e pequenas excurs�es em grupo,
nas ocasi�es em que Patr�cia preferia ficar no hotel.

E uma noite, quando ele tinha ido repentinamente a Washington,
a chamado do Departamento de Estado, deixando-a
em Nova Iorque, ela recebera o telefonema do Ludovico, em
meio � madrugada.

113


� Sou eu mesmo, D. Patr�cia. Queria falar primeiro com
o Dr. Rodrigo. J� que o Dr. Rodrigo n�o est� a�, sou obrigado
a falar mesmo com a senhora. Por favor, me perdoe o que lhe
vou dizer. Tenho uma not�cia triste a lhe dar. Trist�ssima. Infelizmente.
Dessas que nos ferem a alma. Que abalam. Que desorientam.
Mas que tamb�m nada mais s�o do que a alta vontade
de Deus.
E ela, gritando, no auge do desespero:

� Por favor, Ludovico: diga logo o que �.
Um sil�ncio. Longo. Quase solene. E ele, em tom desolado:
� Foi M�e Ded�, minha senhora. Est� com Deus. Melhor
do que n�s. Descansou. Est� na mans�o dos justos, como
diz o Padre Revoredo. Melhor do que n�s, neste vale de
l�grimas.
Ah, a luta dela para saber como tudo havia acontecido.
O imprevisto. As horas passando. M�e Ded� no seu quarto.
Ela, que sempre acordava muito cedo, e ia tomar na cozinha

o seu primeiro caf�, para ir rezar na capelinha, se fazia bom
tempo. Ou para andar pela varanda, dez minutos, vinte minutos,
meia hora, em sil�ncio, torcendo as contas de seu ter�o,
se o vento frio soprava ou se ca�a a chuva. Sempre o quarto
fechado. E as horas passando.
Ele, Ludovico, pensara chamar a Rosa, para bater-lhe na
porta. De momento, a terr�vel suspeita. E se ainda acudisse
em tempo? N�o: nada de descer para chamar a Rosa. Bateu
uma vez, duas, tr�s. Forte. Chamando por M�e Ded�. Afinal,
nervoso, com a chave-mestra, que abria todas as portas, tateara
a fechadura, achara o orif�cio da chave, torcera a chave, e
� sua frente, na luz forte da manh�, M�e Ded� ca�da ao ch�o,
ao p� da cama. Morta. Infelizmente.

E como remate, como em busca de um conforto para o
pranto da filha, as palavras convictas:

� Teve uma bela morte, D. Patr�cia. Morreu como um
passarinho. A Rosa chamou o m�dico do Pronto-socorro. E
ele confirmou tudo: um colapso card�aco. R�pido. Fulminante.
A despeito do longo tempo transcorrido � mais de quinze
anos �, Patr�cia recordava com nitidez a sua ang�stia no
quarto do hotel, primeiro tentando localizar o Rodrigo em Wash


114


ington, para lhe pedir que viesse urgentemente ao seu encontro;
depois, tentando conseguir uma passagem a�rea, nos avi�es
que partiriam pela manh�, de modo que pudesse assistir ao
sepultamento de M�e Ded�; S� quase ao fim da madrugada,
acabara por falar com o Rodrigo; mas este, com todos os seus
empenhos, nada conseguira, nem mesmo o pequeno avi�o que
pretendera contratar para a viagem urgente. Foi ent�o que o
marido lhe sugeriu mandarem embalsamar M�e Ded�, ao que
a filha logo se op�s: que tudo seguisse as determina��es da
natureza. De Nova Iorque, o Rodrigo orientara as provid�ncias
finais do enterro, apenas com a assist�ncia do Padre Revoredo,
sem coroas nem an�ncios f�nebres.

� missa de s�timo dia, celebrada pelo Cardeal na catedral
g�tica, com a presen�a do Presidente da Rep�blica, n�o
somente a nave ficara repleta, tamb�m pelo adro e pelas capelas
laterais a multid�o se comprimia, e isto levou o Lucas Caetano
a reconhecer que dificilmente haveria mais gente noutra
cerim�nia religiosa, mesmo para uma boda ou para um Te
Deum, ainda que cantasse a Maria Callas.

E foi ao voltar da missa que Patr�cia comunicou ao Rodrigo
a sua determina��o de n�o tornar a acompanh�-lo nas
viagens de neg�cios:

� Al�m de ficar s� no hotel, sem ter o que fazer, me sinto
sobressaltada, assim que ou�o o telefone chamar. Na pen�ltima
viagem, houve o come�o de inc�ndio na garagem; agora,
morreu M�e Ded�. Antes do inc�ndio, morreu-nos o filho
do jardineiro, que ajudava o pai. Prefiro ficar em casa � tua
espera.
Na casa imensa, tudo parecia impregnado da presen�a de
M�e Ded�, notadamente seu quarto amplo, ao p� da escada
em caracol que levava ao mirante, e que permaneceria fechado
mais de anos, tal como a morta o deixara, com a cadeira
de balan�o, a cama, a m�quina de costura, o Santo Ant�nio
de sua devo��o, a c�moda de argol�es de bronze, o retrato de
M�e Ded�, a �leo, entre as duas janelas, e mais a soberba papeleira
em que ela guardava as receitas de doces, os recortes
de jornais, as fotografias da filha, al�m da mesinha de centro
com um jarro azul que ela pr�pria floria, todas as manh�s.

115


Consigo mesma, sem nada dizer ao Rodrigo, Patr�cia tinha
a impress�o de que, ao descerrar o aposento, iria dar com
M�e Ded� ca�da ao ch�o, ou ao comprido da cama, morta.
E esse temor levava-a mesmo a desviar-se do corredor que levava
� escada do mirante, como se quisesse ignorar aquela parte
da casa. E o mais estranho � que, com o passar do tempo, esse
medo persistia, por vezes mais intenso, n�o mais como uma
suspeita, e sim como uma certeza.

Meses a fio, Patr�cia continuou com a impress�o de que
M�e Ded� permanecia na casa, com seus velhos h�bitos, ora
sentada a um canto da varanda ensolarada, com seu bordado
ou seu tric�; ora subindo a escada do parque, apoiando-se no
corrim�o; ora saindo da capelinha, pelo fim da tarde, depois
de ter rezado o seu ter�o.

Mais de uma vez, sentada � escrivaninha, no aconchego
de sua saleta, Patr�cia teve a certeza de que, se levantasse depressa
a vista, iria dar com M�e Ded� na posi��o em que costumava
ficar enquanto a filha escrevia � de p�, por tr�s do
tampo corrido, com a m�o no queixo, vendo a pena correr no
papel. Nessas ocasi�es sentia o cora��o acelerado, um frio estranho
lhe percorria a espinha dorsal. Afinal, criando coragem,
erguia o olhar. E s� via a claridade da janela, as �rvores
do parque, a alameda por onde o vento passava.

De noite, se estava s�, durante as viagens do Rodrigo, redobrava
de ansiedade. Chegara a pensar em pedir � Rosa que
lhe fizesse companhia; mas conseguira conter-se: n�o, de modo
algum. Aflita, rezava por M�e Ded�, se ouvia passos, portas
batendo, assobios do vento. Quando o marido voltava, nada
lhe dizia, limitando-se a pedir-lhe que espa�asse as viagens.

E de repente, numa tarde de domingo, o Rodrigo veio ter
com ela, na sua saleta, para lhe dizer:

� Hoje, indo ao mirante, por acaso, dei com o quarto
de M�e Ded� fechado. E soube que est� fechado desde que ela
morreu. Mandei abrir tudo, escancarei portas e janelas, para
que ali entrasse o sol e o vento.
E ante o sil�ncio de Patr�cia, que o olhava, at�nita:

� A Rosa e o Ludovico foram r�pidos, com a ajuda de
116


um dos vigias da casa, e o certo � que, ao descer do mirante,
j� tudo estava limpo e em ordem, com o quarto restitu�do �
vida da casa.

E com o cigarro no canto da boca, assim que acendeu o
isqueiro:

� A Rosa tirou dali as roupas velhas, para mandar a uma
casa de caridade, e o Ludovico se encarregou de mudar a arruma��o
dos m�veis, para dar uma fei��o mais desafogada ao
quarto espa�oso. Agora quero que olhes tudo, para ver se est�
a teu gosto.
Ela se ergueu da poltrona, mais como uma aut�mata do
que como um ser consciente, e saiu ao corredor, enquanto o
Rodrigo lhe dizia, acompanhando-a:

� Eu j� n�o me lembrava bem do retrato de M�e Ded�,
que ali est�. � �timo. Da melhor qualidade. Acho at� que dev�amos
lev�-lo para o sal�o, perto do piano.
E Patr�cia, apressando o passo, como no receio de si
pr�pria:

� Mais tarde, Rodrigo.
Perto da escada do mirante, ao ver escancarada a porta
do quarto, ela quis parar, sentindo que as pernas lhe faltavam;
mas amparou-se no bra�o do Rodrigo, reagindo. E como sempre
viera at� ali, �quela mesma hora do cair da tarde, ver M�e
Ded�, falar a M�e Ded�, levar M�e Ded� ao parque para uma
volta longa nas alamedas, contornando a capelinha, ouvindo
os p�ssaros, sentindo o vento que sacudia as folhas, vendo a
luz se desfazer sobre as �guas da piscina, todas essas lembran�as
lhe reflu�ram � consci�ncia, apertando-lhe o cora��o,
gelando-lhe as m�os nervosas.

E o Rodrigo, passando-lhe � frente, j� dentro do quarto,
parado em frente ao retrato:

� V� que maravilhas de cores, que perfei��o de tra�os,
que harmonia de conjunto. N�o tenho d�vida: esse retrato de
M�e Ded� � uma obra-prima.
E enquanto ele falava, eloq�ente, efusivo, Patr�cia ia sentindo
que seu pr�prio temor se desfazia, � medida que relanceava
o olhar pela cama, pela papeleira, pela mesa de centro,
pela poltroninha azul no canto da parede, com a impress�o

117


de que M�e Ded�, sentada naquele mesmo canto, de perna cruzada,
o olhar suave que se transferira ao retrato, repetia a pergunta
que tantas vezes fizera em voz alta:

� Que estar� fazendo a pobre da Simone, neste momento,
no Sanat�rio?
E num suspiro longo, compadecida:

� Tornei a sonhar com ela.
2

Realmente, apenas com o risco leve da casa e do parque,
e mais o texto impresso no cursivo de tom azulado, nas duas
folhas dobradas e altas, o convite n�o poderia ter sa�do melhor.
O Rodrigo, sempre exigente em tudo, n�o hesitaria em
aprov�-lo. Faria mais: telefonaria � gr�fica, para dar parab�ns
ao artista que soubera fazer, de um pretexto t�o simples, aquela
obra-prima.

E para o Ludovico, que viera ter � piscina, sorridente, misterioso,
com o convite na ponta dos dedos:

� N�o podia ter ficado mais bonito.
Ele agradeceu pelo gr�fico que se encarregara do trabalho,
mas sem nada dizer, apenas ensaiando a v�nia com o movimento
da cabe�a. E por fim, ap�s uma pausa:

� Eu tamb�m penso assim. Com a sua permiss�o.
Suspirou:
� Agora vou ter o trabalho mais dif�cil, mais perigoso,
mais complicado: a ordem da numera��o. S� eu sei o que sofro.
Ano passado, s� porque lhe tocou o n�mero 26, o N�ncio
Apost�lico reclamou, na hora em que lhe dei o chap�u, no fim
da recep��o. Bateu-me nas costas com um sorriso for�ado que
eu logo entendi: "� Ludovico, eu sou, aqui, o representante
do Papa. Voc� n�o acha que Sua Santidade, como sucessor
de S�o Pedro, merecia um n�mero mais baixo, logo depois do
n�mero do Presidente da Rep�blica? Ou mesmo antes? Pense
nisso. J� n�o digo como mordomo � como cat�lico."
118


Voltou a suspirar, com a prova do convite contra o peito,
sorriu, resplandeceu:

� Dei-lhe raz�o, senhora. E ele pr�prio me estendeu a
m�o para que eu lhe beijasse o anel. Beijei, reverente. Deus,
l� em cima, h� de ter visto. E h� de ter visto tamb�m a delicadeza
com que ajudei Sua Excel�ncia Reverend�ssima a vestir
a sua bonita capa. Uma senhora capa.
Tornou a pedir licen�a, seguiu pela borda da piscina, meticuloso,
vermelho e realizado, e adiante parou, como se uma
lembran�a nova lhe acudisse; hesitou voltar, depois decidiu-
se, e veio vindo na dire��o da cadeira pregui�osa em que Patr�cia
tomava o seu banho de sol.

Parou ainda distante:

� A senhora permite que volte a lhe falar? N�o vai
aborrecer-se com este velho mordomo? Eu sabia. Obrigado.
Entre grave e risonho, deu mais quatro passos, solenes,
repletos, pisando de leve, e novamente parou, a um metro da
cadeira, com os olhos baixos, como a dar raz�o ao recato com
que Patr�cia escondera as coxas na dobra da toalha:

� Leu hoje a coluna do Sr. Lucas Caetano? Faz uma refer�ncia
a mim, senhora. A mim. Quando a li, n�o quis acreditar.
Eu, Ludovico Amarante, na coluna social? Fui � esquina,
ao quiosque dos jornais, e comprei mais cinco. Com a tesourinha
de unhas, cortei a not�cia, que aqui est�. Um exagero,
senhora. Mas que d� gosto ler. Fiquei feliz. Fiquei. Ganhei
o meu dia. O Sr. Lucas Caetano � mesmo um cavalheiro. Um
cavalheiro. Chama-me pr�ncipe dos mordomos. E mais: diz que
o respons�vel pela escolha dos vinhos em nossas recep��es sou
eu. E como sou eu, a escolha n�o poder� ser melhor. Veja a
senhora. Fiquei vermelho. Cheguei a cantarolar. S� sei que me
esfor�o para tudo sair perfeito. Ou mais que perfeito.
Esperou que Patr�cia lesse a not�cia, recebeu de volta o
recorte, tratou de recolher outro louvor:

� Muito bondoso o Sr. Lucas Caetano. Muito. E exagerado.
Sou o primeiro a reconhecer e proclamar. N�o quero provocar
ci�mes. Sei o que valho. Conhe�o o meu lugar.
E Patr�cia, voltando a alongar as pernas na pregui�a da
cadeira:

119


� A opini�o do Lucas Caetano � tamb�m a minha opini�o
e a opini�o do Rodrigo, Ludovico. O louvor � merecido.
Parab�ns.
Ludovico ficou uns momentos de cabe�a inclinada, p�lpebras
descidas, m�o no peito, no gozo mudo do elogio. E
quando p�de falar:

� N�o tenho palavras, senhora. N�o, n�o tenho. S� lhe
posso dizer, para exprimir minha gratid�o, � que a vida � boa.
N�o quero ser mais do que sou. N�o, n�o quero. Sou um homem
simples, de pouco querer. E recebi de Deus mais do que
pedi. Muito mais.
Nova pausa. E tornando a erguer os olhos felizes:

� Sabe a senhora com quem me encontrei hoje na casa
dos vinhos? Com aquela Embaixatriz gorda, que a chuva molhou
demais, no famoso temporal que fez toda gente correr
aqui para cima. Me lembrei dela quando vinha subindo a escada
do parque, e fiquei a rir sozinho, sem querer, enquanto
me recordava do Sr. Embaixador, molhado como um pinto,
a lhe segurar o bra�o e a lhe pedir: � Sobe mais depressa, Encarnaci�n.
Por favor, mais depressa. � E ela: � Mais depressa
como, se eu estou dando o m�ximo, com medo de escorregar
e cair?
Soltou por um momento o riso, que se lhe derramou pela
cara aumentada, e de s�bito tornou a ficar s�rio:

� Perd�o, Sra. D. Patr�cia. Mil perd�es. N�o sei como
foi isso. N�o, n�o sei. Me desculpe. N�o devia ter rido. N�o,
n�o devia.
Os m�sculos do rosto, principalmente nos cantos da boca,
pareciam tensos, no esfor�o para reprimir as emboscadas
do riso aberto e frouxo, que estaria � flor da pele, pronto a
novos arremessos, para desfazer-lhe num momento a sisudez
obstinada. E essa obstina��o se fazia sentir nos dedos da m�o
vigorosamente entrela�ados, e que se comprimiam, se apertavam,
se contorciam, enquanto um leve vest�gio hilariante continuava
a teimar na cara fechada, ao lume das pupilas.

E ele, comprimindo contra as costelas o convite sobra�ado:

� Como eu ia dizendo,�encontrei-me, na casa dos vinhos,
com a Sra. Embaixatriz, a gorda, a que teve de mandar buscar
120


em casa um novo vestido. A Sra. Dona Encarnaci�n. Grande.
Cheia de busto. Olhos redondos e pulados. Assim que ela me
viu, na casa dos vinhos, a olhar o r�tulo das garrafas, bateu-
me no bra�o com a ponta do leque e me perguntou se eu n�o
era o mordomo daqui, como estava pensando. Confirmei. E
ela, com o lornh�o na frente dos olhos: � Vais-me fazer um
favor. Ou melhor: vais me dar um recadinho para a tua senhora
e minha querida amiga Patricia. Quero que lhe digas que eu,
que ia viajar na semana do anivers�rio dela, acompanhando
meu marido, o Embaixador, chamado ao nosso pa�s pelo Presidente
da Rep�blica (o novo, que assumiu h� dois meses), cancelei
a viagem, juntamente com o meu marido, s� para estarmos
aqui na grande noite da recep��o de nossa querida amiga.
Ouviste bem? � Eu, para ser rigorosamente fiel, abri meu
caderninho, tomei nota das palavras dela. Palavra de diplomata
� palavra de diplomata. E ela, assim que eu ia fechando

o caderninho: � Espera um momento. L� o que escreveste.
� Li. E ela, aprovando: � � isso mesmo. Mas n�o te esque�as
de dizer com for�a, na hora do recado, o nossa querida amiga.
Com alma. Com calor.
O riso teimoso, at� ent�o contido, irrompeu de chofre, �
fei��o da pilha de enlatados que desmorona, e desfez num momento
a sisudez do Ludovico, avermelhando-lhe a cara,
escancarando-lhe a boca, e contagiando Patr�cia, que tamb�m
se p�s a rir, balan�ando o corpo para a frente e para tr�s, ambos
de olhos molhados, at� que o Ludovico, ainda rindo, e envergonhad�ssimo,
atirou-se para a escada, como a fugir de si
mesmo, e l� se foi, pulando os degraus de m�rmore, ainda �s
gaitadas.

Mais tarde, � hora em que ia fechar as janelas, reapareceu-
lhe de cabe�a baixa, m�o no peito, pesaroso, para pedir � Sra.

D. Patr�cia, como uma caridade, que lhe perdoasse a
gargalhada.
E sisudo, com ar abatido:

� Isso nunca me aconteceu. Amanh� mesmo, cedo, vou
ao m�dico.
121


3

Ela riu alto, sacudindo para tr�s os cabelos soltos, sem
se afastar do telefone. E reclinada na poltrona, com as pernas
estiradas, os p�s descal�os, apoiando no tapete os calcanhares:

� Tua lista de convidados est� diante de mim. Eu a recebi
no meio da tarde, quando ia sair. Li-a no carro, a caminho
da cidade. Tens sido maravilhosa, Inezita. E a Paula tamb�m.
Sem voc�s duas, eu n�o saberia o que fazer. A Paula por um
lado, tu pelo outro, e todas as colegas estar�o contactadas at�
o fim da semana. Estupendo. Meus parab�ns. E olha que a
nossa turma foi a maior de toda a hist�ria da Escola Normal.
E ap�s uma pausa, endireitando-se na poltrona:

� E a rea��o de todas? Boa? M�? Sofr�vel? Como a nota
das provas?
E ora crispando o semblante, ora desanuviando-o, sempre
atenta, por vezes chegando mais para junto da orelha o
aparelho como se quisesse ouvir melhor, manteve-se calada,
escutando, sem ouvir os ru�dos da noite � sua volta, enquanto
as sombras se iam adensando l� fora, no parque deserto, sob

o c�u que se estrelava.
E reagindo, ap�s uns momentos de perplexidade, em que
reduziu os olhos a uma fresta horizontal, contraiu as p�lpebras:

� Se h� quem n�o queira vir, paci�ncia. As outras vir�o.
Achas que eu mesma deva telefonar, insistindo? Ou � melhor
ficar quieta no meu canto, sem tomar conhecimento da recusa?
E alteando a cabe�a, com um semblante crispado:

� A Justina tamb�m? O que � que est�s me dizendo, Inezita!
Meu Deus, que horror! A vontade que eu tenho � de telefonar
para ela. N�o, n�o vou fazer isso. Fica descansada. Na
Escola Normal, quando me afastei da Simone, quis tamb�m
ser minha amiga. Foi a primeira que veio � minha casa, no
dia em que a Simone me agrediu no p�tio do recreio. N�o, n�o
� verdade. Nunca a Simone pagou meu col�gio. A mesada que
meu pai me dava, e mais as costuras e bordados de M�e Ded�,
atendiam perfeitamente � minha educa��o. Se a Simone me
122


dava �s vezes um livro, um vestido, um vidro de perfume, eu,
do meu lado, tamb�m retribu�a, sem falar que era M�e Ded�
que lhe fazia os vestidos, e sem nada cobrar. E que � que a
Justina tem com isso? E depois de tantos anos? Risca a Justina.
Que ela fique para l�, corri a sua inveja e o seu rancor, e
eu, aqui, com o meu marido e a minha vida.

Novo sil�ncio, longo, demorado, at� que o semblante de
Patr�cia se descontraiu, querendo sorrir. E logo depois:

� A Lourdes? Como n�o havia de me lembrar? Lembro-
me, e muito. Muito alta, e de ombros ca�dos, peituda, voz grossa,
o l�bio superior levantado mostrando os dentes, um sinal
de cabelo no queixo. A Simone gostava de dizer, com ar de
riso, que a Lourdes se parecia com o mamoeiro macho de seu
quintal. E parecia mesmo. Alta, como se espiasse por cima do
muro. Quando ria, desmanchava-se toda. Um dia, vendo-a rir,
Simone comentou: � Hoje, � o mamoeiro na ventania.� Tu
lhe telefonaste? E ela? Tamb�m perguntou pela Simone? Essa
n�o perguntou? Ainda bem. Vamos l�: tu lhe falaste de meu
convite, e ela? Como? N�o se lembrava de mim? N�o � poss�vel.
Fez um ar de espanto, e perguntou: � Que Patr�cia? �
Mas meu nome est� todo o dia nos jornais e nas revistas. Contado
� o dia em que n�o se fala de mim no r�dio e na televis�o.
Como � que a Lourdes se esqueceu de mim? E da�? Ficou
de te telefonar, para poder pensar no assunto? Que calhorda.
Se ela telefonar, para dizer que afinal lembrou quem � a Patr�cia,
podes lhe dizer que, agora, sou eu que n�o me lembro dela.
Logo reagiu, senhora de si:

� N�o, n�o lhe digas nada. Se ela prefere ignorar-me como
se n�o soubesse mais quem eu sou, eu por meu lado levo
a vantagem de me lembrar dela. E com uma ponta de saudade.
Assim que rep�s o fone no descanso do aparelho, Patr�cia
sentiu necessidade de andar, de sair da sala, de espairecer,
de respirar mais fundo, e p�s-se a caminhar ao comprido da
varanda que acompanhava o fundo da casa, com seus lampi�es
acesos, seus toldos, seus balan�os, suas cadeiras de vime, e por
onde corria agora a vira��o da noite.

De ouvido atento aos ru�dos do port�o, para sentir a chegada
do marido, acabou por sentar-se num dos balan�os, e ali

123


ficou por uns momentos, escutando o rangido met�lico da corrente
de ferro que segurava a prancha de madeira, sempre que
ia e voltava, ia e voltava, apenas com a ponta do p� direito
a apoiar-se nos mosaicos do ch�o.

Por cima das �rvores, ao fundo da alameda que levava
� capelinha, subia agora o risco de luz da lua nova, por entre

o cricri dos grilos e o ru�do constante das folhas que o vento
sacudia. Mais tarde, na casa adormecida, ouviria tamb�m o
apito espa�ado da ronda noturna, o latido dos c�es, o rumor
de um carro na dobra da rua, o ru�do ritmado de passos nas
cal�adas, enquanto esperaria que o sono chegasse, pesando-
lhe as p�lpebras.
O sil�ncio circundante, as sombras aglomeradas no ermo
do parque, as luzes refletidas nas �guas da piscina, o recorte
do coreto, as �rvores im�veis, a suave vira��o da noite, tudo
em seu redor lhe sugeria a serenidade e a paz, por�m seu rosto
tornava a concentrar-se nos olhos parados, e ela acabou por
sustar o movimento do balan�o, esquecida da inveja da Justina,
do despeito da Lourdes, do �dio da Ermelinda, da ira da
Simone, do p�tio do recreio, da sala de aula. E voltando a caminhar
ao comprido da varanda, interrogou-se:

� A Ros�rio? E eu n�o soube nada?
Tornava a ouvir a voz da Inezita:
� Voc� n�o soube mesmo nada, Patr�cia? Todos os jornais
deram. Houve uma hora em que n�o se falou de outra coisa
na cidade. Pois � verdade: matou a amante do marido. A nossa
Ros�rio. Miudinha, calma, falando baixo, dando a impress�o
de n�o ser capaz de matar uma mosca. E a verdade � que
matou. Sabe onde? Na piscina do clube em que voc� conheceu
seu marido. Sim senhora: no Clube de Regatas. Os dois
estavam l�, na manh� de sol. A Ros�rio apareceu de repente,
tirou da bolsa o rev�lver, deu um tiro nas costas da outra, guardou
de novo o rev�lver, calma, olhando o sangue que ia avermelhando
a �gua, enquanto o marido dela, que nadava tamb�m,
procurou amparar a amante, que ia perdendo as for�as,
como se fosse afundar. Em redor da Ros�rio, os gritos, a confus�o.
E ela olhando. Foi presa na hora. No julgamento, confessou
tudo. Como premedit�lo crime. Como se armou. Co124



mo se exercitou no tiro. Como viu a outra morrer. Quando ouviu
a senten�a, que a condenava a dezoito anos de cadeia, deu
um grito, protestou. Procurei entrar em contato com ela, agora,
por simples curiosidade, sabendo que n�o podemos convid�la.
Parece que h� um v�u de mist�rio em volta dela. At� agora
n�o consegui saber onde poderia encontr�-la. E isso quer dizer
que, na nossa turma, temos a Simone no Sanat�rio, e a
Ros�rio na cadeia.

4

O jantar s� para homens, na outra ala da casa, em homenagem
ao Presidente do Banco de Boston, antigo colega do
Rodrigo em Harvard, obrigara Patr�cia a isolar-se nos seus aposentos,
j� preparada para dormir.

Por quase uma hora, na salinha da televis�o, acompanhara

o bal� de B�jart, em Leningrado, entretida com o bailado e
a m�sica, sem deixar de ouvir, longe, as vozes confusas dos
convidados, por entre risadas, exclama��es ruidosas, palmas,
pigarros, tosses, tinidos de pratos e talheres, gargalhadas.
E comentou, de si para si, desligando a televis�o:

� Est�o mesmo alegres. O bom vinho, misturado com
o champanhe,
deu bons resultados.
Entretanto, em seu �ntimo, embora compreendesse e mesmo
estimulasse, detestava aquele tipo de jantar em que a dona
da casa era sumariamente exclu�da. Gostaria de estar � mesa

� com o Rodrigo numa cabeceira e ela na outra � conversando,
servindo, dando pequenas ordens ao Ludovico, muito
orgulhosa de seus pratos pintados � m�o e de seus talheres de
prata inglesa, parecidos com os da Rainha Vit�ria.
J� no quarto, metida no pijama de seda que t�o bem lhe
ca�a, distraiu-se com o novo romance que o Rodrigo lhe havia
trazido no �ltimo s�bado, grosso, compacto, de in�cio meio confuso,
com seu mon�logo interior muito espichado, mas logo

125


repleto de vida, gra�as � Americana velhusca que desembarcava
em Londres para pesquisar obras de arte.

Cansando-se da leitura, com um leve ardor nos olhos, tardou
uns momentos estirada ao comprido da cama, com a l�mpada
acesa, sem saber se ligaria o r�dio para um programa de
m�sica cl�ssica ou se esperaria pelo notici�rio das onze horas.
�quela hora, ainda n�o tinha sono. Parecia-lhe, mesmo, que
iria debater-se com o travesseiro e o len�ol, sem que a sonol�ncia
lhe cerrasse as p�lpebras, a despeito do cuidado com que
recusara, na confeitaria elegante, em companhia da Inezita,

o ch� fin�ssimo que esta instara em oferecer-lhe, antes de contar-
lhe a novidade de sua nova conversa com a Lourdes.
Era como se a outra estivesse de novo � sua frente, com

o decote do vestido a lhe descer por entre os seios soltos, as
unhas vermelhas, a pastinha ao meio da testa, as pulseiras largas
tilintando nos punhos, enquanto as m�os torturavam as
dobras do guardanapo:
� N�o pense que fui eu que lhe telefonei. N�o, n�o fui.
Tinha gra�a que eu a chamasse. Pois sim. Foi ela que me telefonou,
com outra voz, outro tom. N�o parecia a mesma pessoa.
Assim que ela disse seu nome, fingi surpresa e espanto,
como se n�o soubesse quem era, e perguntei: � Quem? Lourdes?
Que Lourdes? � E depois que ela se identificou: � Ah,
� voc�, Lourdes? Pode falar. � Assim mesmo. Serrando de cima.
E ela, macia, macia: � Olha, pode dizer � Patr�cia que
iremos � festa dela. Eu e meu marido. Pode mandar o convite.
Sempre ouvindo o ru�do de vozes e de talheres na sala de
jantar, Patr�cia abre a gaveta da mesa-de-cabeceira, tira dali
a folha de papel dobrada com o telefone de todas as colegas,
que a Paula lhe mandou. Corre o dedo indicador pela lista,
guarda de mem�ria o n�mero, e logo o mesmo dedo �gil faz
girar o disco do aparelho, que n�o tarda a repetir o ru�do da
chamada, uma, duas, quatro vezes, at� que uma voz de sono,
meio irritada, interrompe o ru�do:

� Al�. Pode falar.
E Patr�cia:
� Lourdes?
� Eu mesma.
126


� Sou eu. Patr�cia.
E a Lourdes, fria:
� Quem?
� Patr�cia. Tua colega da Escola Normal.
Um sil�ncio.
E a Lourdes, no mesmo tom:
� Sim. �s ordens.
Novo sil�ncio.
E Patr�cia, dominando-se:
� A Inezita me deu hoje tuas not�cias. Me disse que vir�s
ao jantar em que eu e meu marido desejamos reunir nossa turma,
no pretexto de meu anivers�rio. Digo pretexto, e digo bem.
Porque a raz�o mesma � a alegria de estarmos juntas, como
no bom tempo de nossa juventude.
E a Lourdes, cortante:

� Tempo que eu sempre detestei. E com raz�o. Porque
� a idade em que a gente � boba. Em que n�o � mais menina,
mas tamb�m ainda n�o � mulher. Felizmente, para mim, passou,
e j� vai longe. Gra�as a Deus.
E antes que Patr�cia replicasse:

� A Inezita me disse que a Simone n�o ir�. � pena. Devia
ir. Deviam ir a Ermelinda, que tamb�m n�o morre de amores
por voc�, mas era t�o aluna quanto n�s duas, e a Evangelina,
que te detestava, e ainda detesta.
Patr�cia deixou passar um sil�ncio. E em seguida:

� Por mim, elas viriam. S� n�o v�m porque fazem quest�o
de me detestar. E detestar sem raz�o, porque nunca lhes
fiz mal.
Outro sil�ncio, bem mais longo.
E a Lourdes, dando � voz ferina o tom adequado:


� Mas o caso da Simone � diferente. Totalmente diferente.
Foi voc� que lhe fez mal. Tomando-lhe o namorado, que
hoje � seu marido. Ou estou enganada? A fonte que eu tenho
� boa: a pr�pria Simone.
O primeiro impulso de Patr�cia, afastando da orelha o auscultador
para desligar o aparelho, ela conseguiu cont�-lo. N�o,
n�o podia interromper o di�logo de modo irrepar�vel. E repondo
o auscultador na orelha:

127


� Ela tem a vers�o dela, eu tenho a minha. O que posso
dizer a voc� � que a hist�ria verdadeira � diferente. A minha
faz mais sentido, posso-lhe assegurar. Um dia, conversaremos.
E a Lourdes, ap�s um risinho breve:

� N�o creio que a sua vers�o me conven�a. A da Simone,
sim, caiu bem dentro de mim. Mas n�o � por isso que vou
deixar de ir � sua festa. Vou. Mande o convite para duas pessoas:
eu vou, com o meu novo namorado. Que n�o tomei de
ningu�m, veja bem. Novinho. Tem dezoito anos. A idade ideal
para ser par de uma quarentona que se cuida.
Patr�cia cortou a conversa:

� Boa noite.
� Boa noite.
Por alguns momentos, de olhos cerrados, tentou reprimir
a ira que lhe crispava as m�os. P�lida, amparou a testa, v�rias
vezes respirou fundo, at� que a serenidade lhe voltou, ainda
de m�os frias.

Tornando a estender-se ao comprido da cama, ficou uns
momentos im�vel, como se a revolta a prostrasse, sabendo de
antem�o que iria debater-se com o sono esquivo, antes que,
por fim, lhe viesse a leve sonol�ncia, t�nue, mitigada, que a
dissociaria do mundo circundante. Permaneceu quieta, sempre
ouvindo os ru�dos da sala de jantar, sob a vaga claridade
avermelhada e fosca que vinha da pe�a cont�gua, com a luz
da l�mpada do orat�rio. E o sentimento da m�goa imerecida,
que se aprofundava no seu ser, como se o revolvesse e torturasse,
enchia-lhe o peito com a respira��o irregular, enquanto
seu pulso se acelerava. At� quando iriam repetir a seu respeito
a mesma argui��o irritante e perversa de que ela havia tomado
o noivo da Simone. Sempre a mesma ladainha. Sempre a
estafada m�sica do velho realejo. E por qu�, meu Deus? Velhinha
que fosse, haveria de ouvi-la, insinuativa, cortante, maligna,
tenaz, cabendo sempre � Simone o papel de v�tima, e
a ela, Patr�cia, o papel sujo, torpe, desonesto, indigno, que o
contraste dos destinos s� fazia confirmar. No �ntimo, de si para
si, a Paula tamb�m pensaria assim? E igualmente a Inezita,
embora n�o lhe falassem? Podia ser. Por que n�o? Toda gente
pensaria tamb�m assim. Toda. Como se o mundo inteiro a con


128


denasse, incluindo o Ludovico, a Rosa, os vizinhos, os velhos
professores da Escola Normal. Mesmo o Lucas Caetano. O Cardeal.
Os Embaixadores. Os amigos do Rodrigo. Os s�cios do
Jockey. E ela, que ia fazer, �quela altura da vida, para que a
verdade fosse restabelecida? Dizer que tudo n�o passava de um
exagero da Simone, como afirmava e reconhecia o Rodrigo?
Ou pior ainda: que este, arguto como era, jamais casaria com
Simone, por saber de seu temperamento estranho, que a reclus�o
do Sanat�rio confirmava? N�o, n�o podia passar a vida
a dar satisfa��es �s colegas, como se estas tivessem o direito
de lhe julgar os atos e o destino. Isso n�o.

E mudando de posi��o no cavado da cama:

� Ponto final. Acabou-se.
Deu de ombros, sacudiu de si a lembran�a. Mas esta voltou,
logo a seguir, imperativa, teimosa, e Lourdes lhe entrou
pelo sono, com seu riso, com sua cara comprida, com seus olhinhos
perversos, atravessando o p�tio da Escola Normal.

5

Dois dias infinitos com a imagem da Neide a tortur�-la
de modo obsessivo. Tamb�m ela, a Neide, a esquivar-se, como
se n�o quisesse vir? Tomando o partido da Evangelina, com
seu �dio est�pido? Seria poss�vel? E por que n�o, se a vida
est� pontilhada de tais surpresas? De si para si, reagia: n�o
podia ser. Se n�o podia ser, por que n�o voltara a telefonar
para a Paula, como havia prometido?

E revia a Paula, ali mesmo, no sal�o, a lhe dizer, desapontada:


� Falei com a pr�pria Neide, s�bado, como te disse. Ela
ficou de me telefonar, � noite, para me dar uma resposta. N�o
deu. Tornei a lhe telefonar. N�o estava em casa. Voltei a chamar.
A mesma resposta. Ontem, quando telefonei, j� era quase
meia-noite. N�o estava. Deixei meu nome. N�o me chamou.
Pelo visto, n�o vai chamar.
129


E desabotoando a luva, � altura do punho, olhando Patr�cia:


� Por que tu mesma n�o lhe telefonas? Com a Lourdes,
deu certo. Depois da estupidez com que te tratou, ela pr�pria
te telefonou, para se desculpar. Que n�o estava bem, quando
lhe falaste. N�o foi isso? E mudou. Da �gua para o vinho. No
final das contas, somos da mesma turma, e a turma � a turma.
Por mais que uma inveje a outra, acaba prevalecendo, em
todas n�s, a saudade de n�s mesmas, e tudo se acomoda por
cima das rivalidades bobas.
Patr�cia ergueu os ombros, suspirou, afastou as m�os desoladas.
E como o piano estava aberto, ensaiou aqui uma nota,
ali outra, distraidamente, at� que tornou a se voltar para
a Paula, rodando depressa o banco girat�rio, de costas para

o teclado:
� Muito antes de conhecer a Simone, conheci a Neide.
Cedo, fomos amigas: eu, com sete anos; ela, com seis. Neide
morava numa vila, ao lado de minha casa. Brincamos juntas,
estudamos juntas. M�e Ded� j� separada de meu pai; Neide,
filha de um Major do Ex�rcito, vi�vo. Era M�e Ded� que
cuidava dela nas horas em que o pai passava fora. Como se
fosse uma outra filha. Quando o Major foi transferido, levou
a Neide daqui. S� voltei a v�-la no terceiro ano da Escola Normal.
N�o a reconheci. Estava alta, forte, bonitona, quase noiva.
O Major tinha conseguido voltar para c�, j� promovido
a Coronel. Neide, que tamb�m fazia o curso de professora na
cidadezinha em que o pai servia, chegou aqui com a fama de
boa aluna.
E a Paula, atalhando:

� Mas quase foi reprovada, no fim do ano.
� Ela e o pai vieram � nossa casa. J� eu era amiga da
Simone. Simone n�o gostou dela. Foi em v�o que tentei
aproxim�-las. Para ajudar a Neide nas provas, n�o foi f�cil,
com a ojeriza da Simone. Mas ajudei-a, e ela passou de ano,
gra�as aos meus livros e aos meus apontamentos de aula. A
Simone quase brigou comigo. At� M�e Ded� teve de interferir
para evitar que nos afast�ssemos. Acabei me afastando da Neide
para n�o romper com a Simone. Lamentei muito. Mas a Si130



mone, como voc� sabe, tinha um g�nio possessivo: quem fosse
amiga dela, n�o podia ser amiga de mais ningu�m. Sofri
muito. Ela tamb�m sofreu. Sempre tive pena dela. Como ainda
tenho. At� hoje.

E passado um momento:

� H� pessoas dif�ceis. A Simone sempre foi assim. Dific�lima.
Sem voc� saber ao certo como se comportar com ela.
Mas tamb�m, na hora do sacrif�cio e da dedica��o, ningu�m
a superava. Ningu�m. Sou a primeira a reconhecer. A Neide
se retraiu em tempo. E fez bem. Guardei comigo, durante todos
estes anos, a saudade da Neide. Por que havia de negar
ou de esconder? � verdade. Saudade de nosso tempo de meninas.
De n�s duas cantando no coral da escola p�blica. De seu
carinho por mim. Do sorriso que lhe apertava os olhos castanhos,
reduzidos a uma linha, com as sobrancelhas unidas. Os
famosos olhos horizontais de que ach�vamos gra�a. Ao meu
casamento ela n�o foi, mas a madrasta dela, D. Corina, me
mandou uma toalha bordada em nome da filha. Neide foi para
fora, como professora. Quando voltou, n�o me procurou.
Ou, se procurou, n�o me encontrou. Eu, por meu lado, com
a vida que levo, deixei de saber dela. Agora, esta resposta: n�o
est�, n�o est�, n�o est�.
A Paula aproveitou-lhe o sil�ncio:

� Se n�o quer vir, que n�o venha. Eu � que n�o vou mais
telefonar para ela. Tudo tem seu limite. Ensaia telefonar-lhe,
tu mesma. � poss�vel que ela atenda. N�o custa experimentar.
E Patr�cia, preocupada:

� Agora?
� Agora.
Passaram as duas � saleta cont�gua, onde o telefone, por
cima da escrivaninha por arrumar, parecia esperar por elas,
quieto.

E a Paula, consultando depressa o caderninho de endere�os,
em busca do n�mero do telefone:

� A Evangelina, com seu �dio mesquinho, � capaz de estar
telefonando para as colegas, tentando impedir que elas venham.
Com certeza j� convenceu a Neide. E a boba, influen131



ciada pela mesquinharia da outra, prefere mandar dizer que
n�o est� a responder que n�o vem.

P�s o auscultador na orelha, esperou a chamada, girou

o disco, passou o aparelho � Patr�cia:
� Est� chamando.
E quando Patr�cia perguntou pela Neide, a voz distante
respondeu com outra pergunta:

� Quem quer falar com ela?
� Uma amiga.
E a voz distante, aproximando-se:
� N�o est�.
E desligou.
Patr�cia, com ar desapontado, ainda com o fone na m�o:
� A mesma resposta: n�o est�.
Sempre fitando a Paula com uma express�o de melancolia,
rep�s o auscultador no lugar. Depois, sentando-se numa
cadeira de bra�os, cruzou as pernas, ficou a balan�ar a ponta
do p� suspenso. E toda ela, durante alguns momentos, pareceu
concentrar-se no rosto tenso e contrafeito que mordia o
l�bio inferior.

E a Paula, retocando os l�bios com a ponta do batom para
ir embora:

� Quando a gente � mo�a, e passa alguns anos juntas,
a se encontrar todo dia na sala de aula, a estudar as mesmas
li��es, a ouvir os mesmos professores, a usar o mesmo uniforme,
tem a impress�o de que nossos destinos ser�o parecidos,
cada qual seguindo o seu caminho. Depois, � medida que vamos
vivendo, tudo � diferente. Ningu�m � igual a ningu�m.
E ante o ar abatido, e em sil�ncio, com que a outra a escutava:


� Esquece a Neide, Patr�cia. E pensa nas que vir�o aqui
com alegria, como eu, como a Inezita. Fazes bem em nos reunir
de novo. Se n�o tivessem posto abaixo o velho pr�dio da
nossa Escola Normal, para levantar o monstrengo que l� est�,
com trinta e dois andares, eu te propunha que nos reun�ssemos
no audit�rio de nossa formatura. N�o existindo mais o
audit�rio, � a tua casa que tem espa�o para nos acolher.
Patr�cia, emocionando-se:

132


� Minha casa sempre foi a casa de todas. E continuar�
a ser. Mesmo das que n�o gostam de mim. Por minha vontade,
toda a turma estaria aqui. Mesmo a Evangelina.
E sentindo no olhar da Paula a restri��o impulsiva:

� Com exclus�o da Simone. Mas n�o por mim � por
ela, que talvez n�o se sentisse bem aqui nesta casa. S� por isso.
E tanto no resto do dia, como tamb�m em boa parte da
noite, e mais no dia seguinte, e ainda no outro dia, continuou
a pensar na Neide, como se esta fosse agora indispens�vel �
sua festa e � sua vida. A afei��o da inf�ncia parecia volver-lhe
� consci�ncia, imperativa, e era debalde que a atirava de si,
briosamente, sofredoramente. Por que insistir em procura? a
Neide, se esta lhe fugia?

Ao fim da semana, exatamente quando j� se sentia mais
segura de si, foi da Neide que tornou a lembrar-se, assim que
ouviu, longe, ao sair do banho, o chamado repetido da campainha
do telefone.

E uma voz clara e afetuosa, como que vinda de sua inf�ncia,
ressoou-lhe ao ouvido, assim que segurou o aparelho:

� E a Patr�cia? Sou eu, a Neide.
E ap�s um sil�ncio:
� Parece mentira. Depois de tanto tempo. Desculpa se
tardei a falar. A Paula me telefonou sobre teu anivers�rio. Fiquei
de dar-lhe uma resposta, mas perdi o telefone dela, que
n�o encontrei no cat�logo. Ela voltou a me telefonar, sem que
eu pudesse responder. Numa das vezes foi meu filho que atendeu;
noutra, foi um amigo que de vez em quando nos visita.
Hoje tive id�ia de te telefonar. Com surpresa, dei com teu telefone
no cat�logo, no nome de teu marido. H� cinco minutos.
Novo sil�ncio.
E Patr�cia:


� Estou te esperando para nossa festa.
� Fiquei emocionada por ver que tamb�m te lembraste
de mim. Com muito gosto eu iria, se pudesse, mas n�o posso.
Por v�rias raz�es. A principal � que � noite eu tamb�m trabalho.
A rigor mesmo, trabalho o dia inteiro. Desde que me levanto
at� que me deito. Ensinando menino, cuidando da casa.
Aqui, sou eu que fa�o tudo.
133


Patr�cia adivinhou-lhe as m�os vermelhas da �gua quente,
no tanque de lavar ou na torneira da cozinha, �s voltas com
as obriga��es de casa, e na sala de aula, mal vestida, emendando
as horas no trabalho de ensinar alunos rebeldes, com
paci�ncia, na mesma voz suave. E pediu-lhe, ado�ando a fala:

� Mas eu quero te ver, Neide. Vou � tua casa.
� N�o, n�o venhas. Sou eu que vou a�. Antes do teu anivers�rio.
S�bado, pelo fim da tarde, pode ser? � a hora em
que tenho uma pausa no meu trabalho.
E no s�bado, pelo fim da tarde, foi a pr�pria Patr�cia que
veio ao seu encontro, assim que soou, forte, a campainha do
port�o, prevenindo-a da chegada da visita. Do patamar da escada
avistou a Neide, c� embaixo, j� dentro da alameda, acompanhada
pelo guarda de seguran�a, e desceu depressa os degraus,
para subirem juntas.

Sim, era a mesma Neide, maltratada agora pela vida e pelo
tempo, no seu melhor vestido, com o mesmo rosto cheio, as
mesmas covinhas laterais, os olhos ainda reduzidos ao mesmo
risco horizontal enquanto os l�bios sorriam, mostrando os dentes
pequeninos e brancos.

E Patr�cia, segurando-lhe o bra�o, enquanto subiam:

� Estou contente de te rever. Muito. Como se estivesse
te levando para ver M�e Ded�.
L� em cima, na pequena sala aconchegada, as duas se olharam
de frente, em sil�ncio, por alguns momentos, ambas de
olhos molhados. Afinal, puseram-se a rir, uma a segurar as
m�os da outra, at� que se abra�aram, rompendo a chorar.

E Patr�cia, afastando-se, quando dominou a emo��o:

� Parece mentira, Neide. Aqui, na mesma cidade, sem
nos vermos durante tantos anos, e ambas amigas, amigas de
inf�ncia.
Neide abriu a bolsa, j� sentada na poltrona, tirou o len�o
e, rindo, p�s-se a enxugar os olhos, enquanto Patr�cia, ainda
de p�, enxugava os seus com a costa das m�os.

E Neide, com dois retratinhos na ponta dos dedos:

� S�o meus filhos. Ele, com dezessete anos; ela, com
quinze. Ela, Celi, parece com o pai; ele, Olavinho, parece co134



migo. Uns amores. Por eles, fa�o tudo. Com eles, dou-me por
bem paga do muito que tenho sofrido.

E a longa confiss�o veio a seguir, naturalmente, fluentemente,
sem nada omitir ou esconder. Ora Neide deixava cair
os ombros, como esmagada e vencida, ora endireitava a cabe�a,
resoluta, destemida, erguendo as p�lpebras, dando mais lume
ao olhar. E por fim, correndo o len�o pela testa, este remate:

� E a� tens tu minha vida. Vida de luta sem tr�gua. H�
oito anos e nove meses que n�o tenho not�cias do Fabiano. Saiu
de casa e n�o voltou. Morreu? Est� vivo? N�o sei. H� dois
anos, cansada de esperar, tive um caso com o irm�o dele, que
sempre ia me ver. Tamb�m ele tem um problema, com a mulher
na casa de sa�de, a dizer que � santa e que conversa com
Deus, de igual para igual. Tive pena dele. Juntei meus desalentos
com os desalentos do Jo�o Henrique e acabei reconhecendo
que n�s dois t�nhamos direito a um pouco de carinho.
Conversei com a minha filha, conversei com o meu filho, e os
dois nos deram raz�o. Hoje, bem ou mal, sou feliz. Eu ajudo
o Jo�o Henrique, Jo�o Henrique me ajuda, e o tempo vai passando.
Minha madrasta, por sua pr�pria iniciativa, est� hoje
numa cl�nica geri�trica. Aos s�bados, o Jo�o Henrique vai
busc�-la para passar o fim de semana conosco. Na segunda-feira,
a caminho do col�gio, levo-a de volta.
Voltou a estender as m�os para Patr�cia, firmando os p�s
no tapete:

� O Jo�o Henrique e eu n�o vamos a parte alguma. Enquanto
n�o encontrarmos uma solu��o legal para nosso caso,
ficamos no nosso canto, quietos, nos s�bados e nos domingos,
jogando biriba ou vendo televis�o. � por isso, s� por isso,
que n�o estarei aqui, entre as colegas, na noite do teu anivers�rio.
Sorriu suavemente, alargando a boca, diminuindo os olhos,
abrindo a covinha das bochechas, e toda ela, por alguns momentos,
aos olhos de Patr�cia, volveu � Neide da inf�ncia e
juventude, com a mesma inoc�ncia de outrora, a mesma bondade,
a mesma aceita��o da vida.

E Patr�cia, segurando-lhe as m�os frias:

� Eu te compreendo. E te dou raz�o.
135


Mais uma vez o sono tardava, dando a Patr�cia a impress�o
de que tornaria a passar a noite na mesma vig�lia torturante.
Debalde cerrou os olhos, concentrando-se na id�ia de
que ia mesmo dormir; da� a momentos, insensivelmente, entreabriu
as p�lpebras, dispon�vel para a vida consciente, at� voltar
a acender a l�mpada de cabeceira, para volver � leitura.

Por vezes, no esfor�o para atrair o sono, ligava o radiozinho
ao seu lado, sob o cone de luz do abajur, buscando uma
esta��o de m�sica cl�ssica. Com freq��ncia, concentrava a aten��o
no concerto ou na sonata, e com isto se sentia mais desperta.


Ap�s uma nova conversa com a Inezita, por quase toda
a manh�, j� sabia, entre professores e colegas, quem viria, quem
n�o viria. Agora, era deixar que o tempo passasse, trazendo
em seu bojo a noite do anivers�rio, com o parque iluminado,
as mesas sob as �rvores, as lanternas pendentes, a �gua da piscina
refletindo o tablado, o piano da orquestra no coreto, e
mais o rebuli�o da casa, na expectativa da chegada dos convidados,
com a excita��o dos criados e dos gar�ons, dos guardas
de seguran�a e dos porteiros, tudo sob o olhar severo do
Ludovico, que assumia nessas ocasi�es uma postura de regente,
ouvindo tudo, olhando tudo, e a tudo acudindo, grave, rigoroso,
j� com a corrente e a medalha que lhe caracterizariam

o papel de arauto, para anunciar, c� no alto, � entrada do sal�o,
na sua bela voz reboante, o nome e o t�tulo de cada convidado.
Patr�cia passara uma tarde distra�da, a princ�pio na abertura
de uma exposi��o de artesanato, na Casa do Menino Pobre;
depois, em companhia do Rodrigo, no coquetel que este
oferecera a Mister Goldwing; por fim, ap�s o jantar, somente
ela e o marido, na saleta da televis�o, tinham ficado � espera

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do programa das dez e meia, quando passariam os flagrantes
do coquetel.

Felizmente, j� ouvindo o telefone chamar, tinha podido
ver esses flagrantes, logo sucedidos pela figura suave do Papa,
dando o seu apoio e a sua b�n��o a uma campanha de caridade;
nisto o Ludovico apareceu � porta, atencioso, s�rio, para
perguntar-lhe:

� Madame pode atender � Sra. D. Neide?
Antes de ir atender, Patr�cia aconchegou as almofadas no
sof�, para apoiar a cabe�a sonolenta do Rodrigo. E na saleta
cont�gua, com o telefone diante do rosto, sentada na poltrona
de canto, abriu a conversa em tom efusivo:

� Que bom voc� telefonar, Neide. Pensei muito em voc�
esta tarde. Rodrigo quer ajudar seu marido. Um de nossos advogados
vai lhe telefonar, para ver se pode ser �til a voc�s. N�o,
n�o me d�s trabalho. Pelo contr�rio: ficaremos muito contentes,
se pudermos te ajudar.
E a Neide:

� Obrigada por tudo. Mas n�o � por isso que estou telefonando.
N�o. Estou telefonando para te dizer que tive not�cias
da Simone, ontem, vindas do Sanat�rio. Escreveu-me. Para
me dar parab�ns pelo meu anivers�rio.
E Patr�cia, atalhando:

� Quando foi? Semana passada? Por que n�o me falaste,
Neide? Eu teria uma grande alegria em ir a� te dar meu abra�o
e conhecer o Jo�o Henrique. Ah, foi antes de vires aqui?
Quando? Agora guardei a data. Fiquei atenta.
E a Neide, no tom novidadeiro:

� Agora vais cair da nuvem com o que te vou dizer. Na
carta, refere-se ao teu anivers�rio. Disse que leu a not�cia nos
jornais daqui, que sempre recebe. Falou tamb�m da recep��o.
Mas sem aprovar nem discordar. Somente uma refer�ncia. Com
o g�nio esquisito que ela tem, j� foi uma grande coisa.
Uma pausa, como a abrir espa�o para a revela��o seguinte:
� Eu hoje liguei para ela. Estava repousando. H� poucos
minutos, ela me ligou. Ela mesma. Gostei de falar com
ela. Serena. Calma. Naturalmente amadurecida. J� sabia de
meu caso, n�o sei por quem. Deu-me conselhos, apoiou-me.
137


Muito segura. Ultimamente, para encher as horas vazias, come�ou
a pintar, orientada por um senhor austr�aco que est�
internado l�, na companhia da mulher. Prometeu mandar-me
um quadro assim que se sentir mais segura. S� houve um momento
em que se emocionou: foi quando lhe falei do Professor
Fritz, que j� n�o reconhece ningu�m, e a quem os meninos
perseguem quando sai � rua, todo de preto, com um cravo
na botoeira.

E Patr�cia, com surpresa:

� O Fritz? Est� assim? Coitado. Tamb�m sinto saudades
dele. Sempre gostou de mim e da Simone. Nunca deixava
de nos trazer uma lembran�a, quando volt�vamos das f�rias.
Deu-me as obras de Byron, num volume em papel-biblia, e as
de Shakespeare, tamb�m num volume, no mesmo papel, no
mesmo formato, para a Simone. Chamava-nos, a mim e a ela,
as suas prediletas. Usava peruca.
E Neide, completando:

� E pintava o bigode e as sobrancelhas. Quando eu o vi,
da �ltima vez, estava de pijama na rua, de chinelos, sem a peruca.
Um pobre velho. Irreconhec�vel. Deu-me pena. Falei-lhe,
perguntei se n�o se lembrava de mim. Disse-me que n�o. J�
n�o se lembra de ningu�m. E o curioso � que foi em ingl�s que
me falou. A Simone tomou nota do endere�o dele. Quer ajud�lo.
O pobre velho um dia destes morre, sem aviso nos jornais.
Um sil�ncio entre as duas.
E Patr�cia, como se falasse para si mesma:


� Tamb�m vou fazer alguma coisa por ele.
Num relance, deu por si na sala de aula, com o Fritz, maneiroso,
faceiro, a segurar o giz na ponta dos dedos:

� Vejam bem a palavra que escrevi no quadro-negro: Darling.
Abram bem o a, para dar luz ao voc�bulo. Assim: darling.
Isto �: querido, querida. Daaarling. Com luz. Com sentimento.
E para a Simone:

� Minha boa amiga: fa�a o favor de repetir, cerrando os
olhos, amorosamente, como se falasse � pessoa amada: darling.
E depois que a Simone repetiu, o velho cerrou tamb�m
os olhos, suspirou, dando mesmo a impress�o de que um sen


138


timento vivo de amor, de paix�o, de carinho, subindo-lhe ao
rosto encovado, lhe dominava a figura mal-nutrida, de olhos
fundos, num �xtase puro, quase divino.

Ao sa�rem da classe, com o bater da sineta chamando para
o recreio, todas as alunas vinham repetindo o darling do
Professor Fritz, com os mesmos olhos cerrados, a mesma entona��o
caricata, as mesmas sobrancelhas erguidas, a que se
seguiam as risadas abertas, demoradas.

S� a Simone, s�ria, se fechou em sil�ncio. E l� embaixo,

parando � entrada do p�tio, reagiu, amparando-se no bra�o

de Patr�cia:

� Parem com isso! N�o sejam est�pidas!
E para Patr�cia, desfigurada:
� Tu tamb�m, p�ra de rir! N�o quero que rias! N�o, n�o
quero!
Nunca, antes disso, Patr�cia a tinha visto desfigurada pela
ira. O rosto alongado, coberto por uma palidez de pergaminho,
com os olhos im�veis, sem brilho, dois riscos verticais entre
as sobrancelhas, parecia de pedra, como esculpido. A m�o esquerda,
fechando-se no bra�o de Patr�cia, mantinha-se contra�da,
crispando-se de tal modo que as unhas davam a impress�o
de que iam romper-lhe a manga do uniforme, enquanto
a m�o direita, com o punho cerrado, se conservava � altura
do peito, em postura agressiva.

E Patr�cia, tentando acalm�-la:

� Esquece isso, Simone. A vida � mais importante que
uma brincadeira de sala de aula.
E estimulada pelo sil�ncio da outra, que ia atravessando

o p�tio, com o mesmo semblante hirto e contra�do:
� Pronto, deixei de rir. N�o se fala mais no Fritz.
No entanto, o pr�prio nome do professor, dando-lhe de
repente a impress�o da moeda que risca a vidra�a, descontraiu

o rosto de Patr�cia, na imin�ncia de restituir-lhe o frouxo de
riso, logo contido pelo olhar da outra, que pareceu trespass�la,
duro, r�spido, afiado como a ponta de um punhal. As duas
seguiram em sil�ncio at� o outro lado do p�tio, onde o banco
vazio as esperava. Patr�cia sentou, fez que a Simone sentasse,
e ali ficaram por mais de hora, sem que Simone sa�sse de seu
139


mutismo, como ausente, fechada no seu pr�prio mundo, � revelia
da insist�ncia com que Patr�cia tentava reter-lhe a m�o
contra�da sobre o rega�o. E foi tamb�m em v�o que, segurando-
Jhe o bra�o, quis lev�-la para a sala de aula, obedecendo ao
toque da sineta que chamava por elas:

� Vamos, Simone. Todas j� subiram. Agora, temos prova.
N�o te aborre�as por uma bobagem. Vem comigo.
O rosto de Simone, menos duro, deu a impress�o de que
cedia � raz�o, desanuviando-se, enquanto as duas galgavam
a escada, depois de atravessarem o p�tio vazio. L� no alto, entretanto,
como se a aproxima��o da sala de aula lhe restitu�sse
toda a ira, Simone orientou seus passos na dire��o da sa�da,
para ir embora.

E Patr�cia, com espanto:

� Aonde vais?
E como a sineta voltava a bater, para a entrada do professor
na sala de aula, deixou-a ir, correu para a classe. E soube,
� noite, pela m�e de Simone, em tom desolado, que Simone
se fechara no quarto, n�o querendo ver ningu�m.

E Patr�cia, para a Neide, voltando a falar-lhe ao telefone:

� Por causa desse Fritz, Simone permaneceu trancada durante
oito dias.
Nem comigo quis falar.
E a Neide, fechando a conversa:

� E quando voltou � classe, um m�s depois, n�o falou
com nenhuma de n�s. S� voltou a falar quando morreu a m�e
da Ros�rio: foi ela que comprou as flores, para que cada uma
de n�s n�o aparecesse no vel�rio com as m�os vazias. E todas
n�s nos emocionamos ainda mais quando vimos ali o Professor
Fritz, todo de preto, solen�ssimo, com um ramo de rosas
igual ao nosso.
7

Ela descera ao jardim para falar ao jardineiro sobre as flores.
Agora s� faltavam algumas semanas. Mais um pouco,
e o anivers�rio estaria ali)" com a casa repleta de convidados.

140


E o velho Anfr�sio, calmo:

� N�o se preocupe. Tudo estar� pronto a tempo e a hora.
Contei os jarros, medi as floreiras, separei os canteiros. Desta
vez, fique tranq�ila: n�o vam%s precisar de recorrer aos floristas.
Basta a prata da casa. J� disse isso mesmo ao Dr. Rodrigo.
Na luz alta da manh�, sem uma nuvem no c�u escampado,
a temperatura continuava branda, com leves arrepios de
frio quando a vira��o soprava. Mesmo as velhas mangueiras
ao longo da alameda que ia dar na capelinha haviam florido
de repente, em sinal de que haveria muita manga madura antes
do fim do ano. No ar, o leve sussurro das abelhas.

E Patr�cia, como quem n�o sabe guardar segredo:

� Vim buscar as mais bonitas rosas de seus canteiros para
a minha mesa, Seu Anfr�sio. Faz hoje vinte e um anos que conheci
o Rodrigo. Muito cedo, fui com ele ao Clube de Regatas
onde nos conhecemos. Nadei na piscina onde ele me viu pela
primeira vez. Rodrigo, por seu lado, bateu as mesmas fotos
que tirou de mim naquele dia.
O velho Anfr�sio encheu devagar o peito, levantou o chap�u
para o alto da testa. E quando p�de falar:

� Vinte e um anos... Foi ontem... Tudo passa depressa...
Tudo...
� a vida. � a vida.
E enquanto podava as roseiras, para compor o buqu�:

� Quer dizer que minha patroa conheceu o senhor doutor
no Clube de Regatas? Ora muito bem. Por acaso? Ou sabiam
que se iam encontrar?
A tesoura repetia o seu taque-taque, cortando os ramos
que as rosas enfeitavam e que o velho Anfr�sio ia passando
� outra m�o, como indiferente aos espinhos que o picavam.

E o velho, passando a outra roseira:

� Ora muito bem. Quer dizer ent�o que foi uma amiga
que os aproximou? Parece-me que j� me tinham falado. E essa
amiga da Sra. D. Patr�cia vem sempre aqui? Ah, n�o vem?
Fora, na rua lavada de sol matinal, o ru�do de um carro
passando. E esse mesmo ru�do a desfazer-se, por entre outros
ru�dos circunstantes, at� que o sil�ncio deixou ouvir de novo

o taque-taque da tesoura.
141


E o Anfr�sio, como se a curiosidade o estimulasse:

� Foi sua colega na Escola Normal? E o que foi feito
dela?
Patr�cia, com rapidez, como se fugisse da pergunta:

� N�o precisa cortar mais, Seu Anfr�sio. Bastam essas.
A floreira � pequena. Realmente est�o lindas. E cheirosas.
Parado na orla do canteiro, o velho parecia ter recolhido
o olhar, como intrigado, enquanto Patr�cia acomodava os ramos
na m�o cautelosa, sem olhar para o jardineiro. E quando
olhou, ele tamb�m sustentou o olhar curioso, de modo que ambos
se fitaram, apenas por um momento, um rapid�ssimo momento,
sem palavras, s� restando no ar transl�cido o fulgor
castanho dos olhos do velho, perspicazes e astuciosos, levemente
acusativos.

E Patr�cia, de si para si, subindo os degraus da escada,
com os ramos de rosas frescas contra o seio:

� Ele sabe do meu caso com a Simone. Sabe. Fiz bem
em cortar a conversa. E por que n�o lhe contei tudo? Devia
ter contado. Mas contado por qu�, se n�o tenho de dar satisfa��es
de minha vida? Era o que faltava: ter de explicar aos
empregados da casa o que se passou entre mim e a Simone,
h� mais de vinte anos.
Deu de ombros, acelerou a subida, e viu ent�o que, no
patamar, como se tamb�m lhe houvesse acompanhado os passos,
e escutado a conversa com o jardineiro, o Ludovico lhe
sorria, expansivo, cheio de si.

E ele, como se disfar�asse:

� Flores para o grande dia? Muito bem, D. Patr�cia! Eu
j� ia busc�-las. Est�o lindas, essas rosas. Lind�ssimas. Sobretudo
as vermelhas. E os bot�es que j� come�am a abrir. Realmente,
o nosso Anfr�sio � um artista. Um verdadeiro artista.
E j� na sala de jantar, aberta-agora � plena luz da manh�
de sol, ao ver que Patr�cia insistia em acomodar as flores na
floreira de prata:

� Dando-se esse trabalho, minha senhora? N�o vou dizer
que lhe cedo a vez. N�o, isso n�o. Sei que o dia de hoje
� um grande dia. Sei. Mas quero tamb�m que saiba que eu teria
muito gosto em compor a floreira, com rosas t�o lindas,
142


num dia t�o importante para a senhora, para o Dr. Rodrigo
e para n�s que aqui trabalhamos.

E recolhendo as duas folhas verdes que haviam ca�do sobre
o linho da toalha de crivo:

� O Dr. Rodrigo lhe deixou um recado. Que estar� aqui,
pouco antes de uma hora, para irem almo�ar no Jockey Clube.
J� reservou a mesa. Exatamente a mesma em que almo�aram
h� vinte e um anos.
E ap�s um sil�ncio, ao notar que Patr�cia parecia emocionar-
se:

� O Dr. Rodrigo tem delicadezas que s� ele sabe ter. E
a senhora tamb�m. Foi isso mesmo que eu disse � Rosa, n�o
faz quinze minutos. E olhe que n�o � de hoje que eu conhe�o
o Dr. Rodrigo.
Prestimoso, tirou do bolso traseiro da cal�a uma tesoura.
E acercando-se, adiantou a m�o para os ramos de rosas que
ainda jaziam sobre a mesa:

� A senhora me d� licen�a?
E podando os ramos, um a um, meticulosamente, para
pass�-los � Patr�cia, que continuava a compor a floreira:

� N�o sei quem disse que a vida de cada um de n�s �
um romance. Tamb�m penso assim. Fazendo um par�ntese: antigamente
eu lia romances � noite, � espera do sono; hoje, leio
jornais. Mas continuo a pensar que a vida de cada um de n�s
� um romance. A da senhora � um bel�ssimo romance. Dos mais
belos que eu conhe�o. Isso mesmo me dizia, ontem, o velho
Anfr�sio, que foi jardineiro do pai do Dr. Rodrigo nesta mesma
casa, antes da senhora casar.
E como se quisesse ir mais adiante, na correnteza das revela��es:


� Realmente: um bel�ssimo romance. Com muita coisa
sensacional. Em que � Deus mesmo que interfere. Sim senhora:
parab�ns.
E Patr�cia, desviando o olhar para o rosto do Ludovico:

� Voc� ouviu falar de uma colega minha, parenta do Dr.
Rodrigo, e que esteve aqui, almo�ando nesta mesma mesa, antes
de eu me casar?
Ludovico, apanhado pela surpresa da pergunta, fez um

143


gesto vago, espichou o l�bio inferior, moveu as m�os unidas,
com o olhar para o ch�o, como se revolvesse a mem�ria.
E erguendo o olhar:

� Ouvi, D. Patr�cia. E dou-lhe a fonte: o Anfr�sio. Mas
para louvar a senhora. Para dizer que a outra era fechada, orgulhosa.
Ao passo que a senhora � dada, fala com todos n�s.
A outra mo�a veio aqui uma �nica vez. Percorreu toda a casa,
andou pelo parque, foi � capelinha, foi olhar as roseiras do
Anfr�sio; depois subiu, trazendo o buque de rosas que ele lhe
deu. Quando o Dr. Rodrigo, logo depois da morte do outro
jardineiro, trouxe de volta o velho Anfr�sio, o velho Anfr�sio
pensou que a mulher do Dr. Rodrigo era a tal mo�a, meio parenta
dele, e n�o a senhora.
Patr�cia acomodou depressa na floreira os �ltimos ramos,
ouvindo o rel�gio do sal�o dar as horas. Onze e meia! E ainda
tinha de mudar de roupa. Vestiria o velho vestido do primeiro
encontro? E por que n�o, se o Rodrigo fazia quest�o
de usar o mesmo costume claro que o alfaiate viera afrouxando
a cada ano, para ajust�-lo ao seu corpo? Na verdade, j�

o vestido dela era o quinto, da mesma fazenda, do mesmo feitio,
com as mesmas medidas. Ao olhar-se no espelho, com ele
no corpo, n�o podia deixar de lembrar-se da Simone, que sempre
lhe dizia:
� Os tons claros � que te sentam melhor.
E fora a Simone que lhe escolhera o casaquinho e a saia, pela
sugest�o do figurino, a que M�e Ded� havia fielmente obedecido.
Realmente, no contraste com o tom da fazenda, seu rosto
e seu colo pareciam mais morenos, ganhando outra beleza,
bem viva, bem tropical.

O espelho grande do guarda-roupa, com a porta escancarada,
fez Patr�cia mais uma vez se reencontrar. Assim, agora,
n�o diferia muito do retratinho do quadro de formatura.
Menos ainda se trocasse o casaquinho e a saia pela blusa e a
saia do uniforme.

O Rodrigo, quando deu com ela j� pronta, � sua espera,
levantou as sobrancelhas, escancarou o sorriso, abriu os bra�os:

� Vamos come�ar tudo de novo? � perguntou, abrindo
a risada.
144


E abra�ando-a longamente, reconhecidamente:

� S� eu sei o quanto te devo, querida, como paz, como
tranq�ilidade, como vida realizada.
E foi j� perto do Jockey, na subida da ladeira, que de repente,
ao acender o cigarro, ele lhe disse:

� Sabes de quem me lembrei h� pouco, quando ia te buscar?
Da Simone. Foi como se a tivesse novamente diante de
mim, exaltada, r�spida, na �ltima vez em que a vi. Mas s� durou
um momento essa exalta��o. Logo se conteve, domin�ndose.
E afastou-se em sil�ncio, como a atriz que se retira do palco,
senhora de si, para receber na sala ao lado uma visita de
cerim�nia. Nunca pude entender a sua mudan�a instant�nea,
sobretudo quando penso na brutalidade dela contigo, no p�tio
da Escola Normal.
Patr�cia limitou-se a apertar-lhe a m�o, com este
coment�rio:

� Foi pena. Eu tamb�m pensei nela.
Ia dizer que outros pensavam tamb�m. Como o velho Anfr�sio.
Como o Ludovico; mas se recolheu ao sil�ncio enquanto
abotoava e desabotoava uma das luvas, olhando em frente
a tarde nova, que se abria com muita luz.

8

At� a luz que descia do vitral, para estender-se em tons
coloridos sobre a toalha, os pratos, os talheres, o jarro florido,
parecia ser a mesma, no mesmo canto tranq�ilo, com a
janela aberta sobre o prado verde e deserto, rodeado de montanhas.


E o mesmo gar�om, agora de cabelo grisalho, mais gordo,
com o mesmo bigodinho louro aparado rente:

� Tamb�m pedi ao nosso pianista que tocasse as m�sicas
que o Dr. Rodrigo escolheu.
Sorriu, baixando levemente as p�lpebras, a exibir o dente
de ouro de que parecia orgulhar-se:

145


� N�o foi f�cil achar todas elas, porque o pianista � agora
jovem e s� gosta de tocar m�sicas modernas. Eu pr�prio o ajudei
a dar com as m�sicas que o doutor escolheu.
E enquanto o Rodrigo desdobrava o guardanapo sobre as
pernas, sorridente, triunfante, Patr�cia, emocionada, alongou
o olhar para o pianista negro, que logo se levantou do banco
do piano, fez-lhe uma v�nia, de m�o no peito, respeitoso, polido,
e voltou a sentar-se, j� com as m�os no teclado.

Entretanto, n�o obstante a repeti��o do mesmo canto, do
mesmo servi�o, do mesmo traje, do mesmo gar�om, e agora
das mesmas m�sicas, algo havia mudado, no sal�o, nas pessoas
que ocupavam as mesas cont�guas, na execu��o das velhas
melodias, at� que o velho gar�om, voltando para acabar
de compor a mesa, p�s-se a dizer:

� J� sabe o Dr. Rodrigo que perdemos o nosso chefe?
Perdemos. De repente, aqui mesmo, anteontem. Felizmente j�
o restaurante ia fechando e s� restava no sal�o aquele senhor
alto, que sempre adormece, ali mesmo, depois do jantar.
Chamou-se o Pronto-socorro, mas j� era tarde. O corpo teve
de sair pela porta dos fundos, quando s� n�s, os empregados,
est�vamos aqui. A imprensa n�o soube.
E enquanto o Rodrigo, com as m�os quietas na borda da
mesa, se limitava a ouvir, olhando o rosto do gar�om, como
indiferente, Patr�cia ergueu mais a cabe�a, sentindo que seu
cora��o se acelerava � id�ia de que a morte passara por ali,
com sua surpresa, com seu rigor implac�vel.

E ela, para o marido, assim que o gar�om se afastou, levando
consigo o seu semblante pesaroso:

� Eu me lembro dele. Gordo, baixo, o cabelo penteado
para o lado, os olhos mi�dos, muito atencioso. Era ele pr�prio
que vinha preparar, com um gorro alto, aqui ao lado, no
fim do jantar, o meu crepe suzete. Tinha as m�os cabeludas,
que parecia exibir quando acendia o �lcool na frigideira. Depois,
diante das labaredas, ficava de frente para mim, segurando
o garfo e a colher com que ia tostando a massa de trigo.
E era ele que me servia, depois de me pedir licen�a para
aproximar-se.
O Rodrigo, contagiado pelas lembran�as:

146


� E ia embora, acompanhado pelo mesmo ajudante que
lhe carregava os apetrechos, assim que me servia.
E Patr�cia, completando:

� Mas voltava � hora do\af�, sorridente, maneiroso, para
saber se tudo tinha sa�do ao nosso gosto. Ele tamb�m fazia
parte de nosso passado. De repente, me emocionei.
E como o piano havia calado, com o pianista a mudar
a partitura, houve um sil�ncio instant�neo por entre as raras
vozes e o tinido dos talheres na lou�a dos pratos. Em seguida,
as vozes e os ru�dos se ampliaram, e at� mesmo l� fora, como
trazido pelo vento que agitava as �rvores circundantes, o prado
se encheu com o alvoro�o e o frenesi dos cavalos que vinham
galopando, no primeiro p�reo da tarde. Soou uma sineta,
o alto-falante anunciou o cavalo vencedor, e logo voltou
ao sal�o o rumor das vozes e dos talheres que a corrida subitamente
interrompera.

E o Rodrigo, como se de repente a lembran�a lhe acudisse:

� Sabes quem esteve comigo esta manh� no escrit�rio?
O Padre Revoredo. Chegou ontem, volta hoje. S� veio aqui para
receber a ajuda que lhe damos para seus pobres. Aumentei-a,
sem ele me pedir. Ficou de te ver pelo fim da tarde, depois de
uma entrevista com o Cardeal. Se puder. Convidei-o para jantar
conosco. N�o podia. Tem compromisso para jantar com
os frades, no Convento do Carmo.
E erguendo o olhar:

� Soubeste que a Simone esteve muito doente? Esteve.
Cora��o. Quase foi operada. Chegou a ir daqui um m�dico.
N�o foi preciso traz�-la para c�. L� mesmo, com os aparelhos
que o m�dico daqui levou, conseguiu debelar a crise, e adiar
a opera��o. Disse-me o Padre Revoredo que o caso dela � mais
com Deus, l� em cima, do que com o cirurgi�o, c� embaixo.
A Simone. Sempre a Simone. Onipresente. Como a
intrometer-se nas conversas. Como a aparecer de modo inopinado.
Ali. L� fora. No parque. Na rua. Dentro de casa. Por
toda parte.

E Patr�cia, indiferente ao piano que voltara a tocar:

� A Neide, quando conversou comigo, me falou da doen�a
da Simone, mas como uma coisa passageira. Ali�s, com a
147


Simone n�o se pode dizer, com exatid�o, que ela tem isto ou
aquilo. Pelo menos antigamente era assim. Quando menina,
pelo que me disse a m�e dela, foi desenganada v�rias vezes.
Na Escola Normal, durante o curso, tamb�m. Da� a dias estava
bem; estava �tima.

Agora, por�m, Patr�cia subitamente se afligia, sabendo-a
longe e s�, sem parentes, sem as antigas companheiras. E
imaginava-a, altas horas, debatendo-se numa crise repentina,
a clamar por socorro, com a m�o nervosa premindo a campainha
� cabeceira da cama.

E passado um momento, com os olhos no ar:

� Tenho pena dela. Muita.
Sentia a Simone refluir, mais uma vez, � tona de suas lembran�as,
ali, com o Rodrigo � sua frente, j� a servir-se do consome,
como alheia ao mundo que a rodeava. No Clube de Regatas
tinha-se lembrado dela com a mais absoluta nitidez, e
� revelia do tempo transcorrido � como se tornasse a v�-la, n�tida,
objetiva, no transe de uma alucina��o. N�o precisava da
realidade ambiente para que a Simone repontasse na sua consci�ncia,
tal qual era, tal qual havia sido. Na cadeira de lona,
� borda da piscina. Caminhando ao seu lado, no Parque da
Cidade. Sentada num dos bancos de ferro desse mesmo parque,
a olhar o balou�o das crian�as. Correndo ao seu encontro
na cal�ada de casa, se por vezes se atrasava uns minutos
na hora marcada para o cinema ou o teatro. Na fila predileta
do cinema. No lugar cativo da quinta fila do teatro. As duas.
Sempre as duas.

V�rias vezes, come�ando a afligir-se com a freq��ncia das
evoca��es, Patr�cia havia ensaiado afast�-las de si, no temor
de uma obsess�o. Pensava nas bochechas ca�das do Professor
Avertano. Na pantera nervosa do Jardim Zool�gico. Na emo��o
do primeiro encontro com o Rodrigo. E eis que a Simone
reflu�a ao lume das lembran�as, como se todas elas a contivessem,
amalgamada � sua pr�pria subst�ncia, mesmo as que
correspondiam � fase anterior ou posterior � da Escola Normal.
Ou pelo contraste, ou pela concord�ncia, ou mesmo ainda
sem uma raz�o mnen^pnica explic�vel, l� vinha a Simone,
esguia, l�vida, imperativa. Por vezes constitu�a apenas uma ima


148


gem vaga e moment�nea, que n�o tardava a ganhar nitidez,
at� prevalecer como recorda��o dominante. Ou era j� a imagem
solit�ria, no pr�prio centro das evoca��es.

Patr�cia, com um suspiro fundo, acabava sorrindo, rendida
� preval�ncia da Simone, reconhecendo, mais uma vez, que
n�o se libertaria dela. Como algo que estaria acima de sua vontade.
E ela pr�pria ia finalmente ao seu encontro, ati�ando as
lembran�as. Simone ao seu lado, na carteira dupla da sala de
aula. Simone � sua espera, no port�o sobre a cal�ada da rua.
Simone na casa dela, Patr�cia, provando o novo vestido que
M�e Ded� acabara de fazer. Simone metida no seu quarto, sem
responder aos seus apelos para que abrisse a porta e lhe falasse.
Simone respondendo sem um erro ou uma hesita��o �s perguntas
da prova oral. Simone no primeiro lugar da prova escrita.
Simone entrando na sala de aula. Simone saindo da sala
de aula. Com o mesmo porte. Silenciosa. Pisando sem ru�do
as t�buas do ch�o. Simone e ela na biblioteca. Lendo os mesmos
livros, uma ao lado da outra. Assistindo �s partidas de
v�lei da Escola Normal, ambas a se protegerem, dando-se as
m�os no momento em que a girafa da Celinha atirava ao ar,
por cima da rede, seus saques indefens�veis. Simone no quarto,
trocando de roupa. Ela e Simone confiando-se os m�tuos
segredos, no quarto �s escuras. Cada uma conhecendo o corpo
da outra, sem esquecer a cicatriz lateral da opera��o de apendicite,
que a Simone fizera quest�o de mostrar-lhe, depois de
ter visto o sinal escuro da outra abaixo do seio esquerdo. Ambas
rindo. E a Simone, de repente:

� Posso dar um beijo no teu seio? S� um.
E a sensa��o desse primeiro arrepio, que de pronto a eri�ara,
misturando o prazer e o medo, enquanto Simone se retra�a,
como temerosa de si mesma. Por fim, dizia-lhe:

� Nunca mais fa�o isso. Me perdoa.
Ah, e as longas cartas que a Simone lhe escrevia, e que
M�e Ded� havia queimado, uma por uma, assim que dera com
elas no quarto da filha. Com nitidez, via M�e Ded� diante do
fogareirinho de barro segurando as cartas que as labaredas consumiam:


� Cartas como estas n�o se escrevem. E se se escrevem,
149


n�o se guardam. Ainda bem que a Simone brigou contigo. Cada
uma de voc�s para seu lado. Foi a melhor solu��o. Embora
eu tenha a certeza, aqui comigo, de que a Simone, com todo

o ardor de linguagem das cartas que te escreveu, era uma mo�a
pura. Como voc�, Patr�cia.
E Patr�cia, olhando de frente o Rodrigo, j� quase ao fim
do almo�o, com o sal�o do Jockey Clube ainda repleto,
perguntou-lhe se se lembrava do Professor Bruno, que ensinava
geometria e �lgebra na Escola Normal. Adiantou-lhe:

� Parece que ele vinha por aqui. Gostava das corridas.
E Rodrigo:
� Sim, sim. Como n�o? Fui amigo dele. Foi aqui que eu
o conheci. Depois, perdi-o de vista. Nunca mais soube dele.
E Patr�cia, enquanto come�ava l� fora, na pista ensolarada,
o terceiro p�reo, com toda gente ali a torcer pela �gua castanha
que disparara na frente como uma flecha:

� O Professor Bruno deu aulas particulares a Simone e
a mim, na casa da Simone. Era alto, bonit�o, sempre bem vestido,
ar esportivo, com uma condecora��o vermelha na lapela
do jaquet�o.
E como o Rodrigo se havia levantado para acompanhar
tamb�m a vit�ria da �gua, Patr�cia tamb�m ficou de p�, a aplaudila,
na torcida un�nime do derradeiro lance.

E tornando a sentar � mesa:

� De um dia para o outro, o Professor Bruno desapareceu.
Desapareceu da Escola Normal, desapareceu da casa de
Simone. No hotel onde ele morava, n�o souberam dizer o paradeiro
dele.
O Rodrigo endireitou o corpo, erguendo a cabe�a:

� Desapareceu tamb�m daqui. Misteriosamente. Sim,
sim. E o curioso � que sumiu daqui sem deixar d�vida, sem
se despedir de ningu�m. A princ�pio, falou-se muito de seu desaparecimento.
Depois, foi esquecido, como tudo se esquece
com o passar do tempo.
E Patr�cia, que esperava o momento da revela��o:

� Agora, vais saber por que foi que ele sumiu. Paix�o
por Simone. Sim senhor: paix�o por Simone. Chegou a querer
matar-se, se ela n�o consentisse em casar com ele. Simone
150


foi firme: disse que n�o pensava em casamento. Que ele tirasse
essa id�ia da cabe�a. Vi a carta que o Professor Bruno lhe
escreveu. Desesperado. Fora de si. Simone rasgou a carta em
peda�os bem mi�dos, que atirou pela janela. Sem lhe dar resposta.
E ele desapareceu. A m�e de Simone n�o soube dessa
carta. S� a mim a Simone a mostrou. E a ningu�m falou do
caso. A ningu�m.

E ap�s uma pausa, reparando no ar pensativo do marido:

� De repente, quando entr�vamos aqui, me lembrei de
te contar esse caso.
E quase ao fim do almo�o, quando o gar�om voltou a encher
sua ta�a de champanhe, ela p�s a m�o sobre a m�o do
Rodrigo, por cima da toalha da mesa, cedendo mais uma vez
ao impulso das lembran�as:

� Nunca te contei a briga da Simone comigo por causa
de meu come�o de namoro com um guarda-marinha? N�o?
Olha bem aquele que ali est�, do outro lado do sal�o. Era um
rapaz assim. Mais bonito. Forte. Talvez mais alto. Irm�o de
uma colega: a Dulce. Uma que a Inezita n�o consultou para
ser convidada porque descobriu que ela, em vez de ensinar menino,
com o diploma da Escola Normal, fugiu daqui com um
escroque e hoje � dona de um bordel, em Buenos Aires. Sim
senhor. Porque, na turma, tamb�m houve disso: uma freira,
a Adriana, e uma dona de bordel, a Dulce.
Nisto o gar�om veio vindo, atencioso, enluvado, para trocar
os pratos da mesa. Patr�cia, em sil�ncio, esperou que ele
se fosse. E voltando a ceder ao gosto e ao enlevo da recorda��o,
trouxe novamente a Simone �quele instante, �quele encontro,
como se obedecesse � pr�pria Simone:

� Todos os anos, no anivers�rio da Escola Normal, havia
um jogo de basquete entre o time da Escola Normal e o
time do Liceu. Disputad�ssimo. Meses antes j� se falava no jogo.
E era no gin�sio do Atl�tico Clube que a partida era disputada.
Com faixas, fl�mulas, estandartes. Eu ia sempre com a Simone.
Da nossa turma eram as melhores jogadoras a Isabel
e a Antonieta. Altas. Ambas muito �geis, com os melhores saques,
as melhores cortadas. Aconteceu que, quando a Simone
e eu chegamos para o jogo, j� o gin�sio estava cheio. Feliz151



mente, por sorte nossa, acabamos por descobrir dois lugares
na �ltima fila, l� em cima, junto da Dulce, que estava com o
irm�o. Ele, metido na farda da Escola Naval, com o espadim,

o quepe, todo de branco, parecia um pr�ncipe. E foi do lado
dele que me sentei. Fomos apresentados pela Dulce. Guardei
o nome dele: An�bal. Enquanto o jogo n�o come�ava, ficamos
conversando. A Simone v�rias vezes quis entrar na conversa;
mas ele, astucioso, continuou a conversar comigo, enquanto
a Simone, sem se conter, reclamava o atraso do jogo,
queixava-se do calor, praguejava contra os nossos lugares. Afinal,
houve um momento em que prop�s trocar de lugar comigo:
era mais alta, eu podia ver melhor onde ela estava. Eu lhe disse
que estava vendo bem. E ela, imperativa: � Mas, daqui onde
estou, vais ver melhor. � De meu lado, tamb�m teimei, embora
j� tivesse notado que a Simone n�o estava gostando. Quando
o jogo come�ou, j� ela estava fora de si. Levantou-se, pediu-
me: � Patr�cia, vem comigo: n�o estou me sentindo bem. �
De fato, j� se notava no seu rosto, sobretudo nos seus olhos,
a palidez estranha, levemente amarelada, que a ira sempre lhe
dava. No carro, n�o me falou. Procurei acalm�-la, sabendo que
dali lhe viria uma nova crise. N�o me respondeu. Em casa, antes
de se trancar no quarto, puxou-me tamb�m para dentro, passou
a chave na porta. E exaltada, falando baixo, como a
trespassar-me com os olhos col�ricos: � J� te disse que � cedo
para namorares. E n�o � com qualquer um que vais namorar.
Aquele irm�o da Dulce est� abaixo de ti. E ela tamb�m.
� E mais exaltada, intimidando-me contra a parede, antes de
romper a chorar, no auge do desespero: � Se queres ir para
o lado da Dulce, vai. Vai, mas n�o me apare�as mais aqui. Nem
fales comigo. Prefiro morrer a falar contigo. � E eu, diante
de tanto desprop�sito: � Que � isso, Simone? � Tive pena
dela. Pareceu-me que ela ia cair, e a amparei. E ela, abrac�ndose
a mim, aos prantos: � N�o me deixes, Patr�cia. Preciso de
ti. Muito. Sem ti eu n�o vivo. Sei que n�o vivo. � E mais tarde,
sentada na cama, enxugando os olhos: � Se tiveres mesmo
de te casar, quem vai escolher teu marido sou eu. Eu. Mais
ningu�m.
E o Rodrigo, tornando a estender as m�os por cima da

152


mesa para segurar as m�os frias de Patr�cia, que o olhava de
frente:

� No fim de tudo, foi ela mesma quem acabou escolhendo.
Sem a Simone, marcando o encontro comigo e contigo na
piscina do Clube, e faltando ao encontro, eu n�o te teria conhecido.
N�o teria sido de prop�sito que ela n�o apareceu?
E por que n�o? Com a Simone, tudo � poss�vel.
E Patr�cia, ap�s um sil�ncio:

� At� hoje, todas as noites rezo por ela.
153


SEGUNDA PARTE

Tout n'est pas saint dans les saints; ni lumi�re
dans les hommes �clair�s.

JOUBERT, Pens�es

Apr�s avoir bien refl�chi sur la destin�e des
femmes dans tous les temps et chez toutes les
nations, j'ai fini par penser que tout homme
devrait dire � la femme, au lieu de Bonjour: �
Pardon! car les plus forts ont fait la loi.

ALFRED DE VIGNY, Journal d'un po�te


PRIMEIRO CAP�TULO

1

Ele viu Patr�cia entrar na garagem, vestida para o seu passeio
da tarde, j� trazendo na m�o a chave do carro esporte,
e ofereceu-se:

� Eu levo a senhora.
� Obrigada, Expedito. Hoje eu mesma quero dirigir.
Expedito tratou de levantar a porta da garagem, enquanto
o Ludovico, com ar apreensivo, abria as duas folhas do port�o
da rua, assistido por um dos guardas de seguran�a.

Este, sol�cito, acercou-se do carro, no momento em que
Patr�cia come�ava a manobr�-lo, e perguntou-lhe:

� Eu a acompanho, D. Patr�cia?
� N�o precisa.
E foi tamb�m o Expedito, ao v�-la completar a manobra,
quase a arranhar o carro na coluna do port�o, que lhe recomendou:


� Por favor, n�o corra muito.
Porque havia sido ele, na aus�ncia do Dr. Rodrigo, quem
fora ao encontro dela na Estrada da Serra, quando o carro esporte
derrapou na curva fechada, resvalando despenhadeiro
abaixo para ficar preso, por milagre, no tronco de uma �rvore
iorta que guarnecia a encosta. Felizmente, depois dos sucessivos
exames do Dr. Savedra, com minuciosas radiografias do
cr�nio e do t�rax, nada de grave havia sido constatado al�m
de um pequeno corte na fronte esquerda, de onde descia teimosamente
um fiozinho de sangue.

E foi o Ludovico, pelo telefone internacional, quem deu

157


a not�cia do desastre ao Dr. Rodrigo, assim que teve a certeza
de que a patroa estava bem, sem fraturas nem contus�es:

� Meus parab�ns, Dr. Rodrigo. Aqui est� falando o Ludovico.
Sim, parab�ns. D. Patr�cia teve um pequeno desastre
na Estrada da Serra, quando o carro que ela dirigia derrapou.
O carro esporte. N�o houve nada demais, a n�o ser um pequeno
arranh�o que foi logo tratado. Fique tranq�ilo. Ela pr�pria
vai lhe falar. De casa, sim; de casa.
E Patr�cia, ainda obrigada ao repouso, sem erguer muito
a cabe�a que ainda lhe do�a:

� Amor, sou eu. Viva e inteira. � s� para te dar um beijo.
N�o, n�o alteres o teu programa. Vem quando devias vir.
Estou bem, j� te disse. Fica tranq�ilo. Tudo quanto tive foi
o arranh�o de que o Ludovico te falou. O pr�prio Savedra me
disse que n�o � preciso chamar o cirurgi�o pl�stico. Nada de
incomodar o Pitangui, que tem mais o que fazer. Se queres
que eu chame, chamo. Mas � exagero. J� te disse. Eu n�o ia
telefonar, mas tive receio de que um de nossos amigos das colunas
sociais exagerasse o que se passou comigo e que tu, a�,
lendo a not�cia, ficasses aflito. Se queres que eu jure, juro. Mas
Deus, l� em cima, est� achando gra�a de teus exageros. Vai cuidar
�!e ti. Um beijo.
Dois dias depois, o marido lhe fez a surpresa de entrar
pelo quarto, ainda com a pasta e o sobretudo da viagem, trazendo
consigo outro m�dico, o Dr. Nuno Vaz, vindo de Nova
Iorque. E foi logo dizendo:

� N�o sossego enquanto o Nuno Vaz n�o te examinar.
E por quase uma hora, munido de uma lente forte, o paciente
cirurgi�o a examinou com os olhos firmes de sua per�cia
e de seu renome, para por fim constatar, tranq�ilizado:

� Tudo bem. Mas lhe confesso que me alarmei quando
vi, pela fotografia dos jornais, o estado em que ficou seu carro.
Agora, mais cuidado quando dirigir. N�o se esque�a deste
aviso.
Volvidos quase tr�s anos, Patr�cia sabia rir do desastre,
sobretudo quando lembrava que havia ficado quase nua dentro
do carro, com a porta empenada, sem saber como
desprender-se dos ferros torcidos, com o volante sobre o pei


158


to, o banco levantado, a porta emperrada, a saia mostrando
a calcinha de seda, sem que pudesse deslocar o bra�o para
compor-se, enquanto o bombeiro gordo, de cara redonda, lhe
dava a m�o, muito vermelho, mais encabulado do que ela:

� Feche os olhos, fa�a uma forcinha para o meu lado.
Estou vendo se consigo tirar a senhora. Calma. N�o se aflija.
Tudo vai dar certo.
Logo se formara na ribanceira a multid�o de curiosos, contidos
ali pelo cord�o de isolamento. N�o tardaram as ambul�ncias,
e mais os carros de reportagem e os flashes fotogr�ficos,
as c�meras de televis�o, ao mesmo tempo em que a not�cia
se propalava pelos r�dios e pelas televis�es, alvoro�adamente.

Afinal, ela desprendera o bra�o, conseguira mudar de posi��o
no banco, e ela pr�pria viera saindo devagar, devagarinho,
at� que p�de adiantar o p� para o v�o da porta, torceu

o corpo, deslizou, apoiou-se na ribanceira, para afinal firmar-se
do lado de fora, ainda tonta, ouvindo o bater das palmas no
viso da estrada.
Depois, com os dias passados na cama, assistida por uma
enfermeira alem�, entre novas visitas m�dicas, outros exames,
tinha sido o desfile dos amigos e amigas que deixavam cart�es
na portaria, assinavam o livro de presen�a, telegrafavam ou
perguntavam do port�o, por interm�dio do telefone interno,
se podiam subir para uma visitinha r�pida. Outros, menos importunos,
mandavam flores. Sempre gentil, o Presidente da Rep�blica
fizera vir seu ajudante-de-ordens com uma orqu�dea,
vinda de Paris. O N�ncio, mais grave, menos galante, num belo
papel perfumado, enviara-lhe uma ora��o de Le�o XIII, sempre
de muito efeito em situa��es an�logas. Mas n�o faltou a
carta cruel, sem assinatura, em tom chulo, nestas breves linhas
espa�adas: "Os ricos tamb�m se estrepam, como os pobres.
Com a diferen�a de que os ricos morrem dentro de carro, ao
passo que os pobres morrem na rua, atropelados. D� parab�ns
ao teu Anjo da Guarda; mas pede a ele que, de outra vez, d�
um cochilo na hora do desastre."

Mostrara a carta ao bom do Padre Revoredo, que a viera
visitar ap�s um longo dia de viagem na bol�ia de um caminh�o,
e ele, calmo, humano e generoso, se limitara a acender

159


o seu velho isqueiro, para converter em cinza o papel reles. Por
fim, sacudiu as m�os, com nojo, e recomendou-lhe:
� Esque�a essa mis�ria.
E fora ele que levara o Cardeal a celebrar, na Catedral repleta,
a missa de a��o de gra�as pelo restabelecimento de Patr�cia,
assim que o m�dico lhe deu alta, e voltou para Nova
Iorque.

2

Patr�cia completou a manobra, trazendo o carro em marcha
� r� at� o meio-fio; rodou o volante para a esquerda, j�
em ponto morto, e engrenou a alavanca de mudan�as,
ajustando-a � primeira marcha, atentamente observada pelo
Expedito e pelo Ludovico, ainda nos limites do port�o.

Sempre sorrindo, ela acenou para os dois com a m�o enluvada,
e logo a seguir calcou firme o acelerador, olhando em
frente a rua deserta e ampla. Aos poucos, cautelosamente, soltou
a embreagem, at� sentir que devia passar � segunda marcha,
depois � terceira, e foi levando o carro com destreza e seguran�a,
enquanto o ponteiro do painel se deslocava com rapidez
no mostrador do veloc�metro.

Adiante, ao consultar as horas no rel�gio � sua frente, viu
que estava atrasada. Calcou mais fundo o acelerador, favorecida
pela avenida larga e retil�nea que se projetava no sentido
da auto-estrada, seu prolongamento natural

E com o pensamento no Lucas Caetano, que j� estaria �
beira da estrada, no abrigo da Curva da Serra, � sua espera,
imaginou-o a consultar de vez em quando o rel�gio de pulso,
depois de ter olhado a faixa da estrada, impaciente.

Concluiu, divertindo-se:

� J� me xingou com um bando de nomes feios, s� porque
me atrasei vinte minutos.
Calcou mais o acelerador, quase a tocar o ch�o a seus p�s,
e teve a sensa��o de que eram as margens da estrada que se

160


deslocavam, correndo em sentido contr�rio ao carro. Mesmo
assim, corrigiu o batom do l�bio superior, corrigiu tamb�m
a mecha de cabelo que resvalara para a testa, atenuou a luz
diante dos olhos, j� a 120 km.

A tarde subia, ampla, espa�osa, com uma ou outra casa
na encosta dos morros, enquanto se sucediam as cercas de arame
farpado, de um lado e de outro, interrompidas pelos port�es
de madeira ou de ferro, entre colunas de pedra. De longe
em longe, um peda�o de muro coberto de musgo. Mais longe,
para as bandas do poente, a cabeleira solta de uma cascata precipitando-
se na dire��o do rio que acompanhava a estrada, ora
alargando-se, como a exibir-se, ora retraindo-se por tr�s das
�rvores, como a esconder-se.

E Patr�cia, depois de olhar o veloc�metro:

� Minha Nossa Senhora, estou correndo a 140!
Agora, j� estava perto. N�o tinha que desculpar-se. N�o,
de modo algum. A culpa era do pr�prio Lucas Caetano, que
decidira esper�-la na Curva da Serra, alegando que iria almo�ar
perto dali, na ch�cara de um velho companheiro de Faculdade
que rompera de vez com a vida urbana, e s� a ele, Lucas
Caetano, admitia � sua mesa e ao seu alpendre.

Tornou a olhar o veloc�metro: sem sentir, voltara a pressionar
o acelerador, e logo a agulha do painel apontou para
150, sem que o carro acusasse o m�nimo sobressalto, quase a
levitar no impulso da corrida.

De repente, ao fechar a curva, tateou o freio, firmando
as m�os na roda da dire��o, enquanto os pneus gemiam,
retesando-se, no esfor�o para se agarrarem � camada do asfalto.

E o Lucas Caetano, com ar feliz, � sua frente:

� Patr�cia, tu n�o crias ju�zo. Depois do susto que o outro
carro te deu, n�o te emendaste. Precisavas correr desse jeito?
Por esta vez vou ficar calado. Mas da pr�xima, se houver
pr�xima, vou te intrigar com teu marido.
Abriu-lhe a porta, escancarou os bra�os efusivos, como
se fosse voar. E apertando-a contra o peito:

� Linda, linda. Est�s divina, com esse costume can�rio.
Um amor. Balmain? Ou Dior? Logo vi. Costureiro de Paris.
Nem preciso olhar. Sinto pelo cheiro.
161


E enquanto falava, ia-a distanciando de si, segurando-lhe
as m�os, recuando a cabe�a, no �xtase da admira��o:

� Volto a dizer: est�s linda, linda. Que Miss Universo coisa
nenhuma. N�o conhe�o quem te chegue aos p�s. �s �nica,
Patr�cia. Deus, quando te fez, estava inspirado. Inspirad�ssimo.
O tom da tua pele, os teus cabelos, esses ombros altos,
os teus seios (perdoa, perdoa, sou impulsivo, digo o que penso
e sinto), as tuas m�os, tudo, tudo. Posso te afirmar, sem
receio de erro ou de exagero: neste mundo, o mais invejado
dos homens � teu marido. Sim, sim: Rodrigo, o felizardo. O
que nasceu de bumbum para a lua. O sortudo. O que acerta
sempre.
E caindo em si:

� Espera. O que � que n�s dois estamos fazendo aqui,
nesta beira de estrada, com o sol em cima da cabe�a? Tu te
distra�ste e sa�ste do carro; eu me distra� tamb�m e te abri a
porta. Dois malucos. Merecendo hosp�cio e eletrochoque.
Abriu de novo a porta do carro, saltitante, fren�tico, sem
deixar cair o mon�culo, sem deslocar a gravata vermelha que

o broche de ouro espetava: fez Patr�cia entrar, fechou a porta
batendo com for�a; deu a volta pela frente, pisando de leve,
como a ressaltar na luz intensa o vinco da cal�a clara bem talhada
sobre a qual ca�am as abas do palet� azul de bot�es doirados,
e instalou-se do outro lado, j� com o cigarro americano
encaixado na piteira.
E cruzando as pernas longas, a tatear o bolso � procura
do isqueiro sueco, suspirou alto, sem tufar o peito da camisa:

� Segue em frente. J� vou te dizer onde vamos. Est�s vendo
aquela entrada, no come�o da subida? � por ali que n�s
vamos. Vai seguindo, seguindo: l� em cima vais me dizer se j�
viste uma paisagem igual.
Assustou-se:

� Espera um pouco: j� est�s correndo. Por mim, podes
correr; eu me preocupo � por ti. Assim tamb�m n�o: s� vamos
chegar l� em cima depois de amanh�. Mais depressa.
Assim.
Acendeu o cigarro, diminuindo os olhos pulados na expectativa
da primeira fuma�a, e logo seu rosto comprido, de

162


p�mulos salientes, muito azul em toda a extens�o da barba
bem raspada, as duas entradas avan�ando para o alto da cabe�a,
como a formar simetria perfeita com as sobrancelhas
obl�quas, assumiu fei��o mais teatral, entre diab�lica e pelintra,
dando a impress�o de que Mefist�feles estava ali, dispon�vel
e contente.

Novamente o ponteiro do veloc�metro oscilou, pendulando
com rapidez na curva do mostrador, enquanto o Lucas Caetano,
soprando de vez em quando a fuma�a do cigarro para

o alto, ia falando, sempre de pernas cruzadas:
� Que conversa maluca era aquela tua, semana passada,
a me dizer que estavas pensando se fazias ou n�o a tua
festa com as colegas da Escola Normal? Perdeste a cabe�a, Patr�cia?
N�o est�s raciocinando com o teu miolo. Era o que eu
queria te dizer, assim, olhando para ti. Foi por isso que te convidei
para um ch�. Primeiro, n�o se bota na lata do lixo uma
id�ia como a tua. Segundo, mesmo que quisesses, n�o havia
mais tempo para abandonar o nosso projeto. Nosso, sim, por
que n�o? Meu tamb�m, com tudo o que eu j� tenho badalado
na minha coluna. Sim senhora. N�o se fala noutra coisa no
meio da gr�-finada. Muita gente j� est� a me engrossar para
ver se eu arranco de ti e do Rodrigo um convite para o grande
dia. E olha eu a me fazer de desentendido, de cara s�ria, mas
rindo por dentro. Al�m disso... Al�m disso, n�o te conto as
conversas do Rodrigo comigo, no escrit�rio dele. N�o, n�o te
conto. Olha para a estrada, criatura. Tens duas vidas preciosas
aqui dentro. Precios�ssimas. Primeiro, vamos fazer a tua
festa, que � a coisa mais importante deste mundo depois da
cura da aids; depois, sim, mas muito depois, uns diazinhos no
hospital, com a perna quebrada, a clav�cula em pandarecos e
uma amea�azinha de traumatismo craniano, para receber muitas
flores e muitos telegramas.
E batendo na boca, rindo:

� Deus nos livre e guarde. Que maluquice! Deus, l� no
alto, sabe perfeitamente que estou brincando. Ave Maria! Deixa
eu rezar um bocadinho para afugentar o mau agouro.
E abrindo os olhos para a tarde magn�fica, no caminho
retil�neo:

163


� Est�s vendo o dia que escolhi para o nosso ch�? L�
em cima � que vais ver o que � mesmo uma paisagem. De deixar
muito estrangeiro com inveja. Sim senhora: com inveja.
Ergueu a cabe�a, assustado, aumentando os olhos:

� Est�s de novo correndo, Patr�cia. Se queres morrer,
morre sozinha. Me deixa aqui mesmo na Terra, que isto tamb�m
� um para�so. Por favor, vai devagar. Assim. Obrigado,
querida. A p�tria agradecida. E eu tamb�m.
3

L� de cima a vista se espalhava sobre a corda de montanhas,
como de cima de um anfiteatro. E tudo verde, um verde
de muitos tons, resplandecendo na luz derramada: escuro ali,
mais escuro adiante, depois claro, quase a resvalar para o amarelo,
e salpicado de vermelho, de rosa, de alaranjado, na surpresa
da flora��o recente. E esse verde subia, descia, espalhava-
se, obedecendo � ondula��o do terreno e galgando os p�ncaros
mais altos, como a teimar com os flancos de pedra, que
por fim se erguiam, solit�rios, buscando os fiapos de nuvem
que o vento macio da tarde ia levando.

N�o se via uma s� casa. Tampouco o olhar descobria a
faixa sinuosa da estrada ou o bra�o de rio. De vez em quando,
uma �rvore se destacava por cima das outras, e subia mais, esguia,
afinando-se, para enfim se esgalhar, como a abrir os bra�os,
vitoriosa.

E ao centro, bem ao centro, parecendo obedecer a um capricho
geom�trico da natureza, aquele fio de �gua que se desatava
do topo da montanha, precipitando-se em cascata, abrindo
na mata densa o seu caminho vertical. E como o sol faiscava
em todo o seu percurso, dava-lhe tons prateados, reluzindo
no rio solto que se precipitava no abismo, at� que, ao fundo
do vale imenso, a vegeta��o o escondia, dando a impress�o
de que acorrera para envolv�-lo e trag�-lo.

164


E o Lucas Caetano, para a Patr�cia silenciosa que olhava
tudo aquilo com ar de pasmo:

� Que tal, hem? �
Sensacional. Nunca imaginei que isto fosse assim.
E ele, levando-a para um canto do sal�o:
� Agora, olha a nossa mesa.
Ela parou, alongou o bra�o para as rosas imensas que se
abriam acima do vaso azul, macias e oferecidas. O crivo da
toalha, sobre o m�rmore da mesa, harmonizava-se ao colorido
das p�talas, e estas, desabrochadas, como que enlanguesciam,
prestes a se desfazer na embriaguez da claridade excessiva.
Nas outras mesas, pequenos tufos de sempre-vivas. S�
ali, naquele canto em �ngulo, as rosas solit�rias de tons variados.
E Patr�cia, com a m�o espalmada por baixo de uma das
corolas:

� Nunca vi rosas assim. Meu jardineiro, se as visse, ia
ficar maluco. E n�o sossegaria enquanto n�o conseguisse uma
muda destas rosas.
Lucas Caetano abriu mais o sorriso, e seu nariz fino e
adunco, por cima dos l�bios muito estreitos, afinou-se ainda
mais:

� Vou ver o que � poss�vel conseguir para acalmar o pobre
homem. Vou ver. Deixa o caso comigo. O que � que eu n�o consigo,
com duas ou tr�s palavrinhas de minha coluna? Teu marido
que o diga.
Afastou o gar�om, e ele pr�prio segurou a cadeira pelo
espaldar para que Patr�cia sentasse:

� Aqui, aqui. De frente para o mais belo quadro da natureza.
Olhando a mais linda cachoeira. O mais perfeito v�u
de noiva.
E logo tamb�m sentou � mesa, tendo o cuidado de afastar
um pouco o vaso das rosas:

� Assim. Para que continues olhando a paisagem.
Depois, interrompendo o sil�ncio, enquanto Patr�cia desemborcava
a ch�vena de porcelana chinesa:

� Lindo tudo isto, n�o? Mas o mais belo quadro �s tu,
165


Patr�cia, tu. E o premiado sou eu. Neste lugar. Nesta hora. Num
dia assim. Feito de prop�sito para te servir de moldura.
E Patr�cia, como numa reprimenda:

� P�ra com essas bobagens. Se o Rodrigo te ouvisse, nesse
tom, com esses excessos, dava-te uma surra. Ou mandava dar.
� E eu apanhava, satisfeito. Era capaz de morrer. E morria
feliz, apanhando. Como um novo m�rtir da verdade.
Riram alto, os dois. Como a se divertirem com o faz-deconta,
numa brincadeira infantil.
E ela, como a esquivar-se aos galanteios:

� A conversa est� boa, mas vamos mudar de assunto.
Tamb�m o Rodrigo, quando eu lhe disse que era melhor irmos
a Paris ou Londres, em vez de dar a festa de meu anivers�rio,
ralhou comigo: "N�o senhora. De jeito nenhum. Vamos dar
a nossa recep��o, e muito mais bela que as outras."
E o Lucas Caetano, com a m�o direita em forquilha por
baixo do queixo, ado�ando ainda mais os olhos entrefechados:

� Posso te contar um segredo? Juras que n�o dir�s nada
ao Rodrigo? A pessoa alguma? Mesmo que te torturem, como
nos interrogat�rios da Pol�cia? Ou nos processos da Inquisi��o?
Olha que se disseres isto (e exibiu a cabe�a do dedo indicador)
ter�s o castigo no dia seguinte, na minha coluna. Tintim
por tintim, conto tudo quanto me contaste, em segredo,
sobre a tiara de brilhantes que o Rodrigo vai te dar. Tudo. Dente
por dente, olho por olho. E tu sabes que eu, quando me zango,
fico mesmo uma fera. Perco a cabe�a. Mesmo que v� por
�gua abaixo toda a ajuda que recebo de teu marido para as
minhas caridades.
E voltando � efervesc�ncia de seu temperamento:

� J� ficou pronto o tablado por tr�s da piscina de tua
casa? N�o me digas. E que tal? Muita gente vai morrer de inveja
quando souber que ali dan�ar�, au grand complet, o Bale
Nacional. O pr�prio. J� sabias? Quem deu com a l�ngua nos
dentes? E n�o me falaste? E ficaste caladinha, guardando a
sete chaves um segredo t�o grande? Ah, bandida. O que n�o
sabes vais saber agora. Foi aqui o papai, com a sua l�bia, com
o seu prest�gio, que conseguiu tudo. E o que � que eu n�o consigo,
com a minha pena e a minha coluna? Falei aqui, falei
166


ali, telefonei, mexi, me virei, imprensei muito figur�o contra
a parede, e o diretor do Bal�, que punha mil dificuldades em
nosso caminho, acabou entregando os pontos. Sim senhora.
Vai mesmo. � tua casa. Com todos os bailarinos. Com refletores.
Com a orquestra inteira. Com jogos de luz. Uma verdadeira
maravilha. Eu tinha pensado em trazer o Bolchoi. Mas
esses russos s�o duros na queda. Puseram mil obst�culos. Cedi
o que pude. Afinal, cansei. Se o Bolchoi viesse, eu era capaz
de entrar para o Partido. Ficar escravo deles o resto da vida.
Mas desisti da id�ia, antes de me fazerem sofrer. O Bal�
Nacional tem seu renome. Para n�s, � o que h� de melhor. Elas
por elas. Se o bal� da Cortina de Ferro n�o vem, que venha

o bal� da Cortina que n�o � de ferro. T�o bom quanto o outro.
Ou melhor. Gra�as a Deus. O Rodrigo, de t�o feliz, quase
me beijou. Palavra de honra.
Patr�cia, em sil�ncio, recolhia-lhe as palavras, com as m�os
no rega�o, o dorso apoiado no recosto da cadeira, esquecida
da paisagem, do casal de velhos que adiante mastigavam, dos
gar�ons que iam e vinham por entre as mesas vazias, e toda
ela como que subira ao rosto, com os grandes olhos iluminados.

E ao v�-lo calar-se, olhando-a nos olhos:

� Continua. Estou ouvindo.
� Espera, criatura. Uma pausazinha para descansar. Eu
conto tudo porque, para ti, n�o tenho segredos. Mas devagar.
De um f�lego s�, cansa. E eu n�o tenho pressa, diante de uma
mulher t�o linda.
Na verdade, ela n�o era dessas belezas que nos entram pelos
olhos num relance, com a intensidade moment�nea de uma
alvorada de ver�o. N�o, n�o era. Havia no seu rosto, na sua
figura, no seu modo de ser, uma particularidade indefin�vel,
que se descobria devagar, associada � harmonia de conjunto,
ou composta por essa harmonia. E que parecia acentuar-se e
impor-se � medida que era observada. Assim im�vel, como na
pose de um retrato.

E o Lucas Caetano, espetando o cigarro na piteira:

� Muita gente morrer� de despeito, querida. Conhe�o rivais
tuas que v�o morder o len�ol embolado, de noite, pensando
nas coisas que vou contar. Sabes quem vem para a tua
167


festa? A Sophia Loren! S�? N�o. Vem tamb�m a Elizabeth Taylor.
A dific�lima Elizabeth. E quem mais? O Mastroianni. O pr�prio.
Em pessoa. Um pouco mais gordo, mas sempre bonit�o.
E o Pel�. Sim senhora: o Pele, com aquele ar de quem tirou
a sorte grande na loteria. O negr�o bonito. Vem. Esse foi o
papaizinho aqui que conseguiu. S� esses? Por enquanto. Para
come�ar. Para machucar. Para dar o que falar no mundo inteiro.
E eu .a soltar minhas not�cias. Devagarinho. Como um
terrorista que vai pondo as suas bombas, caladinho. Vestido
de padre. Para n�o dar na vista.

168


SEGUNDO CAP�TULO

1

O Ludovico, � sua espera ao p� da escada, s� fez confirmar
o que Patr�cia j� sabia, por ter visto o jipe inconfund�vel,
com o competente reboque de cortininhas brancas nas janelas
laterais, parado na rua, junto ao meio-fio:

� Est� a� a vi�va do senhor seu tio. Com um ar ainda
mais estranho. De perneiras e botas.
E enquanto galgava a escada, Patr�cia sentiu aflorar-lhe
� mem�ria � ex�tica, cabelos soltos e escorridos, olhos pintados
de negro, alta, queimada do sol, com as suas cartas de
jogar, as suas contas coloridas, a sua bola de cristal � a inconfund�vel
Tia Creusa.

Desde que lhe morrera o marido, deixando-lhe alguns recursos,
a tia estranha, sujeita a transes m�sticos, sa�ra a dar
a volta ao mundo, com um velho criado, o Albino, e um gato
siam�s, o Rubi, � cata dos efl�vios orientais que lhe permitissem
realizar-se. Queria entrar em contato com os mist�rios da
humanidade e da vida, a que os astros, o vento, o v�o dos p�ssaros,
as cartas de seus numerosos baralhos, adequadamente
interrogados, forneciam roteiros preciosos, com os quais dissipava
infort�nios, alertava sobre trope�os e perigos, orientava
para o bom caminho, ou simplesmente permanecia em sil�ncio,
como petrificada, sempre que algo rec�ndito e implac�vel
lhe parecia muito acima de suas s�plicas e de seus poderes.

Assim que transp�s a porta da rua, j� no vest�bulo iluminado,
Patr�cia sentiu os passos da velha senhora no sal�o. De


169


via estar agitada e impaciente. Com seu ar desvairado. O seu
olhar ausente.
E Patr�cia, ao dar com ela, depois de assustar-se, no limiar
do sal�o:

� Tia Creusa, que alegr�o a senhora me deu agora!
As perneiras de camur�a preta subiam-lhe para os joelhos,
amarfanhadas, reluzentes, por cima do cano curto das botas
tamb�m de pelica. Vestida de culote e d�lm�, com um chap�u
de escoteiro abafando-lhe os cabelos brancos, algo de viril na
energia do rosto, no passo cheio, na impaci�ncia com que batia
o rebenque numa das perneiras, indo e vindo, ao fundo do
sal�o.

E a Tia Creusa, aproximando-se:

� Mudei de rota, muito longe daqui, s� porque tive um
aviso de que precisavas de mim. Levei onze dias para chegar.
E hoje mesmo, com a subida da lua cheia, estou indo embora.
E como era alta, com uma express�o dominadora e possessiva,
os p�mulos salientes, o queixo retangular, assumia, ao
falar, ou simplesmente ao olhar, uma atitude de mando, veemente
e natural:

� N�o sei o que vais fazer. Nem quero saber. O que sei,
por mim mesma, me basta. Grandes coisas te esperam, nos pr�ximos
meses. Vejo tudo em grande, na tua frente. A rua se alarga,
as �rvores crescem, os edif�cios se agigantam. E tu, Patr�cia,
vais seguindo ao encontro desse mundo exagerado. Eu vejo,
de olhos abertos, como outros v�em, de olhos fechados,
sonhando. O que � que isto quer dizer? Alguma coisa diferente
vai acontecer contigo.
Segurou Patr�cia pelos ombros, atraindo-a para a luz viva
que entrava da rua, no cair da tarde. E olhando-a nos olhos,
mais perto, a menos de meio palmo:

� Tens inimigos, como tem todo aquele que se destaca
no meio em que vive. Tentando destruir-te. Vai andando. Nada
de �dios. Nada de rancores. P�e a bondade na tua frente,
e vai seguindo pela estrada aumentada. Com a m�o na m�o
do Rodrigo. A bondade destr�i a maldade. Se n�o a destr�i
no primeiro momento, destr�i devagar, at� vencer. Firma bem
os olhos em mim, para que recebas meus fluidos. Estou reple170



ta deles. Com uma for�a nova. Agora, p�ra de respirar. Assim.
Por uns momentos. Me acompanhando.

De longe, pela fresta d� porta, o Ludovico se mantinha
atento, de respira��o presa, pronto a intervir para defender a
patroa caso o acesso de loucura da Tia Creusa se excedesse.
Chegou a alargar a fresta, num impulso, mas logo viu que Patr�cia
segurava as m�os da velha senhora, rindo alto, reconhecida:


� Obrigada, Tia Creusa. � pena que a senhora n�o esteja
aqui no meu anivers�rio. Se estivesse, eu faria quest�o de
que viesse � nossa festa. Desta vez vai ser maior, mais bonita.
E mudando de tom, ao ver que a Tia Creusa se encaminhava
na dire��o da porta:

� Que � isso? N�o janta comigo? E vai me deixar, sem que
eu a ajude nas suas viagens? N�o, senhora. Espere um pouco.
A velha senhora afastou as m�os espalmadas, resignando-
se. J� que era essa a vontade da sobrinha, obedecia. E obedecia
com humildade, porque j� ningu�m podia mais com o
pre�o da vida.

E Patr�cia, de volta, trazendo nas m�os o envelope fechado:

� Hoje aumentei um pouquinho mais a sua mesada.
Obrigada pelo carinho. Venha sempre.
Tia Creusa atafulhou o dinheiro gordo no bolso traseiro
das cal�as, com a mesma fisionomia iluminada. Depois, tornando
a bater na perneira com a ponta do rebenque, chegou
� porta. Antes de passar para o patamar, voltou a segurar Patr�cia
pelos ombros, olhando-a sempre, direto e firme, sem pestanejar,
sem respirar. E deixando cair os bra�os:

� N�o sei o que seria de ti, e de teu marido, se eu n�o
tivesse vindo aqui, neste momento. Agora, vou tranq�ila.
Desceu um degrau e parou, voltando o olhar para o alto,
na dire��o de Patr�cia que dali lhe sorria, no v�o da porta:

� Desfaz a inveja alheia com a tua bondade. Est�s muito
alto, no plano superior. N�o des�as nunca. Aconselha a mesma
coisa ao Rodrigo. N�o basta a caridade dos asilos que ele
mant�m. � preciso mais. Muito mais.
E ap�s descer outro degrau:

171


� N�o sei se volto aqui. Sinto que a grande luz me chama.
N�o quis ir para o Mist�rio sem te ver. Agora, vou em paz.
Desceu depressa o resto da escada, l�pida, juvenil, e entrou
no reboque do jipe, sem se voltar. Daqui de cima Patr�cia
lhe acenou, sem resposta. Mas esperou que o carro partisse.
J� ia fechar a porta, sorrindo para si mesma, quando o Ludovico
acudiu:

� Por quem �, D. Patr�cia. N�o. Por favor. A porta, nesta
casa, como seu mordomo, � comigo. Sou eu que abro e fecho.
Com muito gosto.
Mais tarde, ao acender a luz dos abajures, na saleta cont�gua
ao sal�o, Ludovico alongou o olhar na dire��o de Patr�cia,
que se instalara a um canto, na derradeira claridade do
dia, com um novo romance. Por um momento, pareceu que
ia falar-lhe. Em seguida, contendo-se, passou a outro abajur,
sempre grave e vermelho, reluzindo na claridade forte o cabelo
grisalho repartido ao meio.

J� ia passar ao sal�o, ap�s uma olhadela circular para ver
se tudo estava em ordem, quando se decidiu:

� N�o querendo interromper: posso-lhe fazer uma pergunta?
E ante a express�o aprovativa de Patr�cia:

� N�o vai aborrecer-se comigo? � uma simples curiosidade.
Me perdoe se estou abusando. Mas esta casa � tamb�m
a minha casa. Enquanto precisarem de mim aqui, sou tamb�m
da fam�lia.
E Patr�cia, impaciente:

� Fa�a a pergunta, Ludovico.
Ele se certificou primeiro de que n�o havia mais algu�m
por perto. E inclinando o corpo para a frente, sem sair do lugar:

� A Sra. D. Creusa � sua tia por parte de pai ou por parte
de sua m�e? Se achar que deve responder, responda; se achar
que n�o deve responder, esque�a a pergunta. E perdoe a este
velho criado.
Patr�cia tardou a resposta, esbo�ando uma express�o de
riso. E conseguindo conter-se, enquanto baixava os olhos para
o livro:

172


� Nem de meu pai, nem de minha m�e. Mas � como se
fosse. Foi amiga de minha m�e. Amiga do tempo de menina.
2

De volta da �pera, ainda na limusine nova, j� no come�o
da madrugada, ela perguntou ao Rodrigo, friorenta,
aconchegando-se-lhe ao bra�o:

� Podes imaginar quem encontrei l� em casa, quando voltei
do cabeleireiro? A Tia Creusa. De perneira, roupa de escoteiro,
e sempre m�stica. Foi l� para me dar conselhos e receber
a mesada. O mesmo ar estranho. Com o mesmo rebenque e o
mesmo jipe.
Mas j� o Rodrigo, sonolento, ia cerrando os olhos fatigados,
e apenas lhe disse, ap�s um bocejo:

� Ainda bem que ela chega e vai embora.
Patr�cia deixou que ele descansasse a cabe�a no recosto
do banco, afagou-lhe os cabelos para ajud�-lo a adormecer,
tirou-lhe cautelosamente os �culos. Ouvindo-o ressonar, fez
desperta o resto do caminho. E depois de transpor o port�o,
j� ia pedir a ajuda do Expedito e de um dos guardas de seguran�a
para que a ajudassem a levar o Rodrigo escada acima,
quando este acordou, saltou com lepidez, subiu depressa os degraus,
e ainda esperou por ela, sorrindo-lhe do patamar, de
costas para o Ludovico, que, sempre vigilante, abria bem a porta
para deix�-los passar, afastando-se para um lado, de m�o no
peito, reverente:

� Durmam bem.
E foi Patr�cia, j� no quarto, quem descal�ou os sapatos
do marido, tirou-lhe o palet�, despiu-lhe as cal�as, desatou-
lhe a gravata, mudou a camisa pelo palet� de pijama, enquanto
ele se deixava dominar pelo sono invenc�vel, sem se dar conta
do que se passava em seu redor.

Quando, por fim, lhe mudou as meias, ela respirou, aliviada:


173


� Agora, vamos cuidar de mim.
E s� ent�o reparou, olhando na dire��o do espelho, que
ainda trazia na cabe�a o chapeuzinho de palha. Antes de tir�lo,
veio mais para perto do espelho, repassando os louvores
que ouvira, os olhares sensuais que pareciam querer despi-la,
a inveja e as exclama��es que suscitara. Para muitas de suas
rivais, j� fizera v�rias pl�sticas. A Madame Blanche, no intervalo
do terceiro ato, chegara mesmo a perguntar-lhe, em tom
de segredo, � porta de seu camarote, se fora ao cirurgi�o, de
novo, para uma espichadinha.

� Nunca fui � respondera-lhe, alteando mais a cabe�a,
como a exibir-se na claridade do corredor.
E a outra, quase a desfazer a maquilagem com o movimento
r�pido das sobrancelhas muito negras:

� N�o � poss�vel, Patr�cia! O que voc� est� me dizendo!
Parab�ns. Deus a conserve assim.
E retocando o batom dos l�bios no espelho da bolsa, enquanto
ouvia o marido conversar com o Rodrigo sobre as corridas
do Jockey Clube, no �ltimo domingo, Madame Blanche
adiantou:

� Recebemos seu convite, Patr�cia. L� estaremos. Com
muito gosto. O Artur e eu rimos muito com a sua entrevista
ao Lucas Caetano, ao confessar que vai fazer quarenta anos.
� s� no que se fala. No foyer, antes de voc�s chegarem, era
o assunto. As coleguinhas da Escola Normal v�o mesmo? Uma
eu sei que n�o vai: a Simone. Sabe que ela � minha prima?
�. Ou melhor: hoje, n�o � mais. Porque � mesmo prima de
meu primeiro marido. S� ontem eu soube, por outra colega
de voc�s, a Paula, que a Simone continua no Sanat�rio. Um
dia, pouco depois de meu primeiro casamento, o Severo (voc�
se lembra do meu primeiro marido? Grandalh�o, esportivo,
muito vermelho) me levou para visit�-la. N�o nos recebeu. Tinha
acabado de deitar-se para a sesta da tarde. O Severo quis
esperar que ela acordasse; fui eu que n�o deixei. Depois me
arrependi. Me disseram que sempre foi muito bonita. E que
o Rodrigo gostou dela, antes de gostar de voc�. Foi assim? No
Sanat�rio, um dos m�dicos nos contou que ela leva uma vida
174


calma, dando os seus passeios pelos arredores, ouvindo m�sica,
lendo muito.

E como j� havia guardado o espelho, Madame Blanche
tornara a olhar de frente, assestando o lornh�o sobre o rosto
de Patr�cia, sempre falando:

� Voc�s eram muitos amigas? Foi o que me disseram. E
ainda s�o, depois do que houve entre voc�s? Ou melhor: do
que deve ter havido. Porque mulher n�o perdoa quando acontece
o que aconteceu com voc�s.
Patr�cia limitou-se a contrair os olhos. Para que responder?
E com um gesto, chamando a aten��o de Madame Blanche
para o retinir da campainha, no aviso do quarto ato:

� A A�da nos chama. Com licen�a.
Devia ter respondido? Talvez. N�o, n�o devia; fizera bem
em calar-se. J� sabia que ouviria a mesma pergunta, ao longo
da vida, mesmo que ficasse velhinha, amparada numa bengala.

E deu de ombros, quase a sorrir, enquanto tirava o chap�u,
sem desviar do espelho os grandes olhos negros, ouvindo

o Rodrigo ressonar.
3

Acordou dia alto, com a sensa��o de que passara a noite
a debater-se com o sono. E ao contr�rio do que habitualmente
acontecia, quando saltava da cama assim que despertava,
deixou-se ficar estirada no colch�o revolto, pregui�ando.

Nisto a imagem da Simone tornou a aflorar-lhe � consci�ncia,
com a nitidez das presen�as objetivas, alta, esguia, os
cabelos repartidos ao meio, as duas tran�as ca�das para os ombros,
dando-lhe a impress�o de que, tamb�m para ela, o tempo
n�o havia passado. Sempre bonita. De uma beleza estranha,
mais de madona que de modelo. Leve. Parecendo que mal
tocava o solo. S� as unhas bem tratadas, longas, sempre vermelhas,
de um vermelho sangrento, quase preto, destoavam da
angelitude da figura.

175


Embora se sentisse entre a vig�lia e o sono, Patr�cia
segurava-lhe a m�o com firmeza, e as duas iam seguindo pelo
caminho estreito, caladas, ouvindo o ranger do saibro sob as
alpercatas. De repente a cena mudava. E Patr�cia se via junto
da outra, no mesmo banco do p�tio, mas n�o na Escola Normal,
e sim ali na sua casa, por tr�s da piscina, no espa�o que

o Rodrigo fizera rodear de palmeiras, com dois bancos de ferro
e um repuxo ao meio.
Por que n�o se falavam? Entretanto, a m�o fria da Simone
estava na sua m�o � longa, afilada, m�o de pianista, pr�pria
para as grandes oitavas que repelem as m�os pequeninas.
Como haviam passado ao sal�o, tamb�m ali? Sim, era mesmo
ali. Porque o Ludovico estava tamb�m presente, muito p�lido,
quase espectral, e fora ele que abrira o piano, puxando-lhe o
banco para a frente. Via-o depois retirar-se de costas, para
voltar-se de frente, mais adiante, e desaparecer correndo, enquanto
Simone rodava o banco do piano, para subir-lhe o assento
de couro. Sentando-se, permaneceu uns momentos im�vel,
com as m�os no teclado, sem a partitura diante dos olhos.
Veio mais para a frente, a ponta do p� direito num dos pedais,
e logo se p�s a tocar o hino da Escola Normal, seguido pela
Marcha f�nebre. Depois o Bolero de Ravel, tamb�m seguido
pela Marcha f�nebre. Por fim, s� a Marcha f�nebre, n�o no
compasso solene, grave, majestoso, e sim num compasso buli�oso,
ligeiro, que atraiu para o sal�o a Rosa, o Expedito, os
outros criados, o jardineiro, e mais a Inezita e a Paula, ambas
de uniforme.

E Patr�cia, erguendo o busto, com o suor a lhe descer para
o pesco�o, assustada, j� a estender o p� esquerdo para fora
da cama, em busca do tapete:

� Meu Deus, quanto disparate!
Mas n�o se levantou. Embora com os p�s nas sand�lias
de cetim, as pernas estiradas, deixou-se ficar quieta um momento,
rezando, como a afugentar de si a mem�ria do sonho
confuso.

Passados tantos anos de dist�ncia e sil�ncio, era a primeira
vez que sonhava com a Simone? Pareceu-lhe que sim. Ou
teria esquecido outros sonhos, que o tempo esmaecera e apa


176


gara? N�o sabia responder. O certo � que tivera a sensa��o f�sica
de sua presen�a, ouvindo-a, segurando-lhe a m�o.

Nisto, levantando-se, agu�ou o ouvido. Caminhou para
uma das janelas sobre a rua, entreabriu-a. E ouviu melhor, assim,
o som de um piano, como se viesse do edif�cio da esquina.
Seria piano mesmo? Ou grava��o? Piano, sim; era mesmo
um piano. Quem tocava, repetia a frase mel�dica, corrigindo-
se. E era mesmo o Bolero de Ravel. Baixando, subindo. Baixando,
subindo. O mesmo tema, repetindo-se como se n�o soubesse
sair de si mesmo. Ou comprazendo-se em repetir-se. Como
a vida. Como o tempo.

Fechou a janela, torceu-lhe o ferrolho.

J� no banheiro, antes de despir-se, permaneceu por uma
meia hora defronte do espelho, na esmerada toalete de todas
as manh�s, massageando a pele, escovando os cabelos, acertando
as sobrancelhas, enquanto seu esp�rito volvia a pensar
na Simone. Por que raz�o, depois de tantos anos sem se verem,
tornava a fixar-se nela, quase como uma obsess�o? Tudo
agora lhe servia de pretexto para lembr�-la. E se o pretexto n�o
aflorava de seu pr�prio esp�rito, na motiva��o de um retrato,
de um livro, de uma melodia (e como a Simone tocava como
ningu�m, no seu piano de cauda, o Bolero de Ravel), havia
sempre algu�m, como a Madame Blanche, como a Inezita, para
suscitar-lhe a lembran�a obsessiva.

E decidindo-se:

� N�o vou pensar mais nela. Ou, se pensar, penso com
naturalidade. Como penso na Paula. Como penso na Neide.
Na C�rmen. Na Inezita.
Entretanto, ao voltar a escovar os cabelos, sentiu que uma
recorda��o mais viva lhe subia � consci�ncia, n�tida, de uma
nitidez colorida, novamente no p�tio da Escola Normal, por
tr�s do po�o profundo que a grade de ferro protegia, � sombra
da amendoeira esgalhada. Sentara-se numa das ra�zes da
�rvore, � espera da primeira aula, sozinha, por ter chegado cedo,
e entretinha-se na leitura de um romance de Delly. Nisto ergueu
a vista, sentindo que algu�m se aproximava. Num come�o
de alvoro�o, adivinhara que seria a Simone. Vira-a de relance,
assim que levantou o olhar. Mas, logo a seguir, perdera


177


a de vista, como se a outra se houvesse esquivado � sua companhia.
Intrigada, ficara de p�. Mas fora debalde que a buscara
nos arredores. Andara pelo vest�bulo. A Simone n�o estava
ali. Fora ao toalete. Tamb�m ali n�o estava. N�o estava
tamb�m na sala de aula. Nem na Biblioteca. Menos ainda nos
corredores ou nas outras salas. Dirigiu-se � Secretaria.

E para a diretora, que a olhou por cima dos �culos:

� D� licen�a que eu telefone?
E para a m�e da Simone, que atendeu � chamada:
� D. Zita, a Simone j� chegou?
� N�o, minha filha. Desde cedo, fechou-se no quarto.
N�o fala com ningu�m, n�o recebe ningu�m.
Defronte do espelho, sentindo a �gua ro�ar a borda da
banheira, Patr�cia deu uma nova escovadela ao cabelo, atirou
a cabeleira para tr�s, e correu para fechar a torneira, sempre
a interrogar-se sobre o mist�rio dos passos e da imagem da
Simone.

E fechando a torneira:

� Eu a vi. Tenho certeza de que a vi. Com estes olhos.
178


TERCEIRA PARTE

Ah! sachez-le: ce drame n'est ni une fiction ni

un roman. AH is true, il est si v�ritable, que cha


cun peut en reconna�tre les �l�ments chez soi,

dans son coeur peut-�tre.

BALZAC. Le p�re Goriot


PRIMEIRO CAP�TULO

1

N�o adiantava ter passado a noite quase toda em claro,
� mesa da sala de jantar, debru�ada sobre o comp�ndio e as
notas de aula, levantando-se para lavar o rosto na �gua da pia,
ali mesmo, sempre que o sono lhe entrefechava os olhos fatigados.
Se a Simone aparecesse de repente, ainda com os olhos
pisados da longa reclus�o, o primeiro lugar, � hora da prova,
seria seu. E ela, Patr�cia, mais uma vez, se rejubilaria com esse
novo triunfo.

Agora, ali estavam os cadernos do �ltimo ano do curso,
com os apontamentos das aulas de Portugu�s, Pedagogia, Hist�ria
Geral, Franc�s, Ingl�s, Hist�ria da Educa��o, Psicologia.
Amarrados por uma fita azul-claro, com um la�o perfeito,
e esta indica��o manuscrita, por baixo do la�o: �ltimos cadernos
de estudo de minha filha, na Escola Normal.

E o Ludovico, feliz, ainda com as m�os empoeiradas:

� � h� mais coisas na estante, D. Patr�cia. Nas prateleiras
de cima est�o os livros; nas duas de baixo os cadernos. Os
seus e os da sua colega, de quem a senhora era muito amiga.
A que hoje est� no Sanat�rio.
E Patr�cia, intrigada:

� Tamb�m os dela?
Para v�-los, subira a escada em caracol que levava ao mirante,
sob uma luz t�nue, que se filtrava pelo v�o das telhas,
e guiada pelo Ludovico, que viera � frente, galgando depressa
os degraus, e agora torcia o ferrolho emperrado da janela sobre
o p�tio.

181


Sentada num tamborete, perto de uma das janelas, ela pr�pria
folheou os cadernos, os livros, as folhas avulsas que um
pregador prendia, as fichas de um ficharinho de madeira. Sim,
sim, constatou: estavam tamb�m ali os cadernos da Simone,
e mais os livros que ela lhe emprestara, sobretudo romances,
ainda na capa amarela das brochuras francesas, com o nome
da Simone na folha de rosto, na mesma letra alta e fina: Simone
Gabriela Costa e Macedo.

A letra fina e alta, com os t t bem cortados, os pingos nos
ii, os acentos graves e agudos, o til, as cedilhas, com um tra�o
vertical adiante do nome, como que se harmonizavam � sua
figura esguia. Debalde, no primeiro ano do curso, Patr�cia tentara
imitar-lhe a letra. Chegara a aproximar-se do talhe fino,
que ocupava toda a lauda, mas acabara por voltar � sua velha
letra redonda, que tamb�m trazia em si algo de sua pessoa �
clara, aberta, firme, com o A e o L dos textos impressos.

E o Ludovico, valorizando-se:

� N�o sei o que se deu em mim, de repente, para vir aqui
em cima e abrir essa estante. Larguei meu servi�o no sal�o,
com os dois ajudantes, e vim para c�, como se uma for�a estranha
me guiasse. Ao dar com esses cadernos, fiquei emocionado.
O tempo passa, mas volta de repente. Estou vendo que
a senhora est� se sentindo mocinha, no tempo dos estudos.
Bons tempos. Felizes tempos. E que s� voltam para quem passou
por eles.
E ao v�-la calada, como recolhida nas recorda��es:

� Com a sua licen�a.
Sem ru�do, amortecendo os passos, alcan�ou a escada,
desceu-a cautelosamente, enquanto Patr�cia sentia que seu cora��o
se fechava, num hiato instant�neo, como se fosse parar,
enquanto suas m�os alvoro�adas abriam o envelope branco,
fechado por um el�stico, com estas palavras no espa�o do sobrescrito:
Discurso proferido por minha filha Patr�cia na festa
de formatura da Escola Normal, todo escrito por ela, sem
ajuda de ningu�m.

Eram quinze tiras de papel alma�o, escritas de alto a baixo,
na mesma letra redonda, quase sem emendas e rasuras, e
por alguns momentos, lhe tremeram nas m�os emocionadas.

182


E com os olhos �midos e as fontes latejando:

� � ele, sim, o meu discurso.
Escrevera-o de noite, fechada no seu quarto, na mesa que
havia sido de seu pai. Relendo-o agora, de p�, junto de uma
das janelas, sentiu que voltava ao sal�o de atos da Escola Normal,
na grande noite iluminada.

J� n�o havia mais espa�o para ningu�m. Todas as cadeiras
ocupadas, muita gente em p�, nos v�os das portas e nos
espa�os laterais. Fora, o ru�do das vozes agastadas, protestando
contra a falta de acomoda��es. No palco, todas as colegas
que se formavam, menos a Simone. E eis que, na plat�ia, enquanto
Patr�cia lia o discurso em nome das formandas, abriu-
se um claro, e a Simone irrompeu pelo sal�o, no seu passo leve
e seguro, toda de branco, os cabelos apanhados para o alto,
s�, com todos os olhares voltados para a sua pessoa, e subiu
ao palco, assim estranha e bela, assim imprevista e calma, sem
amparar-se na gorda m�o do Professor Avertano, que viera ao
seu encontro querendo ajud�-la a galgar os cinco degraus.

E quando Patr�cia voltou a sentar-se, para ouvir o discurso
do paraninfo, j� a Simone estava sentada na cadeira ao lado
da sua, com as m�os no rega�o como se estivesse ali n�o
para ver, mas para ser vista, alta, direita, o olhar ausente e vivo.

Do lugar em que se achava, Patr�cia via o Rodrigo, de pernas
cruzadas, o cotovelo no bra�o da cadeira, a m�o em forquilha
segurando o queixo, dando a impress�o de que se divertia
com a cena imprevista. E tudo quanto p�de fazer para
comunicar-se com ele se limitou ao leve movimento da sobrancelha
direita, a que o Rodrigo correspondeu, a ponto de sorrir,
levantando tamb�m a sua.

E assim que o Professor Avertano, acompanhando a chamada
dos nomes, entregou o diploma � Simone, ela n�o voltou
� sua cadeira: agradeceu �s palmas com um leve aceno da
cabe�a e orientou-se para o meio do palco, no mesmo passo
com que havia chegado at� ali. Limitando-se a baixar as p�lpebras,
sem inclinar a cabe�a, desceu os cinco degraus, bem
ao meio, � maneira de uma atriz representando o seu papel,
e foi seguindo devagar, no caminho aberto � sua frente, por

183


entre palmas, at� desaparecer na porta ao fundo, que de pronto
se fechou.

2

J� teria vindo ali alguma vez? Pareceu-lhe que n�o. Na
casa imensa, que tomava boa parte do terreno, alongando-se
para os dois caramanch�es ao fundo do parque, havia aposentos
que ela n�o conhecia. Faltara-lhe oportunidade de vir
at� ali. Aquele s�t�o, sombrio, poeirento, com o janel�o ao
fundo sempre fechado, era certamente um deles. Nada ali deixara
vest�gios na sua lembran�a. Como n�o recordar a estante
envidra�ada? E aqueles livros? E aqueles pap�is?

Na claridade fosca, resvalou o olhar � sua volta, de p�,
no meio do aposento, e mais uma vez se certificou de que tudo
aquilo lhe era estranho. Mesmo as duas cadeiras de palhinha
furada. E a poltrona orelhuda, com a mancha da cabe�a
que nela se havia apoiado para a pregui�a da sesta. Quem teria
cochilado ali por tanto tempo? O Rodrigo? Ou o velho Sebasti�o,
que lhe dera a vida, a fortuna e a casa?

As portas da estante, ainda abertas, mostrando os livros
e os pap�is num come�o de desordem, fizeram com que Patr�cia
novamente se aproximasse para perfilar os livros, deixando-
os na linha das prateleiras, depois de retirar alguns romances
que levaria para a sua pequena biblioteca, l� embaixo: Alencar,
Bernardo Guimar�es, Victor Hugo, Camilo, E�a de Queiroz,
Flaubert, deliciosas velharias que fariam o Rodrigo bocejar
s� em olh�-las... Separou tamb�m alguns pap�is, sobretudo
o discurso da formatura, e mais o bilhete em que o Severino
� ent�o com 11 anos, hoje grave juiz, muito louvado e
acatado � a pedia em casamento a seu pai, quando ela ainda
era menina de escola prim�ria, �s voltas com as �ltimas bonecas.


N�o p�de deixar de reprimir o riso, ante aqueles garranchos
espa�osos, aquele papel de linho, aquele envelope, j� com

184


algo do futuro magistrado. E comentou, de si para si, ainda
rindo:

� Eu, mulher daquele homem baixinho, gordinho, cheio
de cabelo, e s�rio, de uma seriedade enfezada? Valha-me Deus.
Quem vai achar gra�a deste pedido � o Rodrigo, que gosta do
Severino.
E como se o s�t�o a abafasse, abriu de par em par outra
janela, quase escondida. Conquanto n�o gostasse de alturas,
sentindo mesmo que n�o poderia olhar para baixo, na suposi��o
de que iria atirar-se dali, apoiou as m�os no peitoril de
m�rmore, atra�da pelo tablado que j� se refletia nas �guas da
piscina, e alongou para fora a vista curiosa.

Dois homens, trepados em escada, ajustavam os refletores
laterais, um deles j� aceso para experi�ncia. Em breve as
bandeirinhas tremulariam nos fios horizontais. Tamb�m ali j�
estavam, provisoriamente abrigados num dos caramanch�es,
os cavaletes e as cadeiras para a orquestra, al�m do estrado
menor para o regente.

Quando olhou para baixo, ouvindo um dos c�es ladrar,
firmou mais as m�os, como a agarrar-se, e logo lhe refluiu �
mente a imagem da Simone, no s�t�o de seu sobrado, a lhe
dizer, um pouco afastada da janela do mirante:

� Foi meu pai que mandou p�r grades em todas as janelas
daqui, a pretexto de proteger a casa contra os ladr�es. O
receio dele era outro. Bem diferente. Ele tinha medo que eu
me precipitasse dali, numa de minhas depress�es. Quando eu
vinha para c�, ele tamb�m vinha, e ficava sentado ali naquele
canto, na cadeira de balan�o, lendo. Lendo enquanto eu brincava.
Depois que ele morreu, mam�e afrouxou a vigil�ncia.
Nunca tiveste vontade de morrer, Patr�cia? Eu j� tive. V�rias
vezes. Numa, quando vi meu pai morto; noutra, quando ia sair
para o meu primeiro baile, no vestido comprido, e a costureira
se atrasou. Tudo fica sombrio e triste � minha volta. N�o
tenho gosto para nada nessas horas. S� penso numa coisa: em
dormir muito, profundamente, e nunca mais acordar.
E de repente, segurando Patr�cia pelos bra�os, a olh�-la
de frente, com um olhar mais vivo:

� Agora, quero ver se �s mesmo minha amiga. Se eu me
185


atirasse dali, tu tamb�m te atiravas? Ou ficavas quietinha, no
teu canto, sentindo pena de mim? Ficavas? Pois ent�o eu sou
mais amiga de ti do que tu �s de mim. Eu, no teu lugar, me
atirava, Patr�cia. Sem hesitar.

E como era preciso vencer a atra��o estranha, que tamb�m
a atordoava, acelerando-lhe o cora��o assustado, Patr�cia
voltou a olhar para baixo. Viu o Expedito a lavar um dos
carros, enquanto o guarda de seguran�a corria por uma das
alamedas, treinando o c�o mais novo, de um negro reluzente,
l�ngua para fora da boca, rabinho nervoso, e que de repente
saltava sobre o treinador, como se fosse abocanhar-lhe a nuca.

Patr�cia quis gritar-lhe que tivesse cuidado, n�o irritasse
a fera; mas de pronto recuou, como se sentisse que algu�m a
iria empurrar. Fechou depressa a janela, sobra�ou os livros,
agarrou os pap�is, e veio descendo depressa a escada em
caracol.

3

Se Patr�cia houvesse marcado hora para as duas, talvez
que a Inezita e a Paula n�o chegassem com tanta pontualidade.
De um t�xi, desceu uma; do t�xi seguinte, que tamb�m ia
encostando no meio-fio, desceu a outra, e ambas se puseram
a rir, e foi rindo que se beijaram na cal�ada da rua, enquanto

o guarda de seguran�a lhes abria o alto port�o de ferro.
E Patr�cia, do patamar da escada, ao v�-las subindo os
degraus, de bra�os, como ao tempo da Escola Normal:

� Estou chegando de uma missa, na igreja de S�o Francisco.
Quase voc�s n�o me encontravam. Por vontade do Rodrigo,
eu teria ficado com ele para o almo�o na cidade. Preferi
vir para casa: tenho de ver onde vamos colocar novas mesas
para outros convidados.
E a Inezita, abrindo a bolsa:

� Tenho novidade.
186


� Eu tamb�m tenho � aduziu Paula, a exibir um envelope,
com a borda lateral rasgada no canto direito.
J� o Ludovico, ao lado da porta escancarada, barbeado,
penteado, de libr� nova, come�ava a saudar as tr�s com uma
v�nia, movendo para a frente o cabelo repartido ao meio.

E para Patr�cia, grave, ao v�-la aproximar-se:

� O telefone s� chamou uma vez, senhora. Atendi logo.
Ningu�m falou. Ou era de fora, sem completar a liga��o, ou
era trote. Desliguei.
Patr�cia, que havia diminu�do o passo, retomou o ritmo
da caminhada pela passadeira, ao longo do corredor espa�oso,
ladeada pela Inezita e pela Paula, ambas com ar alvissareiro.

E adiante, para a Rosa, que estava � sua espera � entrada
da saleta:

� Se voltarem a telefonar, eu atendo mais tarde; s� atendo
se for o Dr.
Rodrigo. Previna tamb�m o Ludovico.
E entregando-lhe a bolsa e as luvas:

� A Inezita e a Paula almo�am comigo.
A manh� ampla, de muita luz, parecia alargar-se na reverbera��o
intensa, pr�xima do meio-dia. A claridade excessiva
entrava a jorros pelo aposento aconchegado, e s� ao p� das
janelas a luz se coloria, alaranjada, azul, vermelha, por sobre

o ret�ngulo do tapete, descendo quase verticalmente dos leques
que as encimavam.
A Inezita, de p� junto � poltrona que a Patr�cia lhe
oferecia:

� Alguma coisa mudou aqui � reconheceu, rodando o
olhar � sua volta, enquanto a Paula se acomodava na outra
poltrona, cruzando as pernas, com um envelope na m�o.
E Patr�cia, ainda de p�, junto ao meio do sof�:

� Sim � concordou. � A posi��o de minha mesa. Id�ia
do Ludovico, quando ontem eu me queixei da luz que me do�a
nos olhos.
E vendo a folha de papel dobrado que a Inezita tinha agora
na ponta dos dedos, j� sentada:

� Agora, trabalhemos. Estou querendo saber as
novidades.
A rua como que lhe dera um ar de alvoro�o moment�


187


neo, com um brilho mais vivo no olhar e um tom rosado nas
faces, e mais a pontinha alva dos dentes sobressaindo dos l�bios
vermelhos. Sentou no sof�, sem descansar o dorso no respaldo
da almofada.

E a Paula:

� Afinal, depois de muito indagar, eu por meu lado, a
Inezita pelo dela, acabamos por descobrir D. Carmela, nossa
primeira diretora.
E a Inezita:

� Com a ajuda do velho Avertano.
Patr�cia, erguendo mais a cabe�a, interessada:
� E ele como est�, Inezita?
� J� vais saber � atalhou a Paula.
E com a m�o espalmada, pedindo � Inezita que a deixasse
falar:

� Primeiro vamos � Carmela. Quando telefonei para o
Avertano, perguntando-lhe se se lembrava de mim, foi logo dizendo:
� Como n�o? Acabo de perguntar por voc� � Inezita,
que me telefonou h� cinco minutos, querendo saber not�cias
da Carmela. � E repetiu-me o que havia dito � Inezita.
E a Inezita, impaciente:

� Agora, conto eu. D� licen�a, Paula?
E voltada para a Patr�cia:
� D. Carmela, depois de aposentada, foi lecionar num
curso de alfabetiza��o de adultos, e ali conheceu um mulat�o
imenso, por quem se apaixonou.
Paula completou:

� Podia ser filho dela. E casou com ele.
� Casou com ele � continuou a Inezita. � O que o malandro
queria era o dinheiro dela. Quando descobriu que a Carmela
n�o era rica, como ela dava a entender, mas pobre, s�
vivendo da aposentadoria, deu-lhe uma bela surra. T�o bela
que a deixou entre a vida e a morte, numa casa de sa�de, de
onde saiu na cadeira de rodas e meio gira. Um ano depois, recuperou
as pernas, mas piorou da cabe�a. Foi o Avertano, que
� meio parente dela, que conseguiu intern�-la, com muito empenho,
numa cl�nica geri�trica. A Paula e eu fomos v�-la. Antes
n�o tiv�ssemos ido, seguindo o conselho do velho Averta188



no. Quando a Carmela nos viu, perguntou-nos pelo marido.
E como n�o soub�ssemos o que lhe dizer, gritou conosco, chamando
a mim de Patr�cia e a Paula de Simone, aos berros,
amea�ando de nos reprovar lio fim do ano e expulsar da Escola
Normal, se n�o lhe diss�ssemos onde anda o Xavier.

E a Paula, explicando:

� Xavier � o marido.
Logo a Inezita continuou, vendo o semblante espantado
da Patr�cia:

� Mas n�o penses que fomos l� para convid�-la a vir aqui
na nossa festa.
N�o.
E a Paula, rindo:

� A id�ia da visita foi minha. Por simples curiosidade.
E tamb�m um pouco de saudade da diretora que me chamava
de minha filha e me achava linda. Linda. Naquele tempo. Agora,
sou Simone.
� Se foi f�cil entrar para fazer a visita, cortamos uma
volta para nos livrarmos da Carmela � continuou a Inezita.
� De repente, como sol em dia de chuva, a mem�ria lhe voltou,
e ela falou da turma, de ti, da Simone verdadeira, e at�
de teu casamento. Durante mais de uma hora.
E a Paula:

� E a� tornou a endoidar. Veio para mim, me segurou
pelos ombros, exaltada, com as veias do pesco�o crescidas; me
sacudiu, tornando a me confundir com a Simone, e exigiu de
mim que lhe devolvesse o Xavier. Que o Xavier n�o era o que
se pensava. Pelo contr�rio: o melhor dos maridos. E mais isto.
E mais aquilo. Sempre exaltada, com os olhos pulados e
crescidos, at� que um enfermeiro acudiu e me livrou das garras
dela, enquanto a Inezita, do meu lado, s� fazia dizer: � Que
� isso, D. Carmela? Quem est� aqui � a Paula, e a Paula n�o
conhece o Xavier. � E a Carmela, aos gritos: � Conhece. Conhece.
Foi ela que desencaminhou o Xavier.
Riu baixo, com a m�o diante da boca, como a querer reprimir
o riso:

� Eu, al�m de ser Simone, desencaminhei-lhe o Xavier.
Logo conteve o riso, enquanto a Inezita ria alto,
levantando-se. E voltada para a Patr�cia:

189


� A verdade mesmo � que a vida tamb�m d� medo. D�.
De repente, tudo muda. Ningu�m pode rir de ningu�m. Quem
viu a Carmela, s�ria, grave, marcando o compasso do hino da
Escola Normal, no degrau da escada do p�tio, um, dois, tr�s;
um, dois, tr�s, convicta, entusiasmada, n�o podia imaginar que
a mesma criatura ia delirar, reclamando o marido, velha, destru�da,
fora do ju�zo, e ainda por cima com o cabelo penteado
para cima, cheio de papelotes. Um horror. De fazer chorar.
E a Inezita, tamb�m s�ria:

� E tanto eu quanto a Paula, quando sa�mos da cl�nica,
t�nhamos l�grimas nos olhos. De pena. Com o cora��o apertado.
Ergueu as m�os desoladas � altura dos ombros, e encheu

o peito, suspirando. Depois, com os olhos em Patr�cia, tornando
a sentar-se:
� N�o te aconselho que v�s v�-la. N�o, n�o v�s. Passei
dois dias arrasada. No fundo do po�o. Como quando vou a
um enterro.
A Paula, no mesmo tom:

� Eu tamb�m fiquei assim.
Um sil�ncio se estendeu, como trazido pela vira��o repentina
que come�ara a soprar l� fora, sacudindo as �rvores, levantando
do ch�o a poeira esparsa e as folhas ca�das, na reverbera��o
do meio-dia.

E a Inezita,.abrindo o papel que trouxera dobrado:

� Eu e a Paula j� acabamos nossa tarefa. Miss�o cumprida.
Entramos em contato com toda a turma, todos os professores,
a diretora, o diretor que veio depois. Menos quem
morreu, naturalmente. Ou quem foi grosseira contigo. Porque
ainda h� disso. H�. Est� aqui a Paula, que n�o me deixa mentir.
De vez em quando, uma surpresa. Sabias que a Nanda, caladinha,
retra�da, tipo mosca-morta, deu um tiro no amante?
Patr�cia aumentou os olhos:

� Quando?
� H� oito anos. Outro caso triste.
Patr�cia acentuou no rosto espantado a consterna��o e a
surpresa:

190


� E eu n�o soube de nada. Ningu�m me falou. Onde foi
isso?
� No Sul, na fazenda do marido. Foi julgada l� mesmo,
na cidadezinha mais pr�xima. Ainda est� presa. Como n�o �
longe daqui, fui v�-la na semana passada. Com o meu marido,
que � advogado. Perguntou muito por ti. Com saudade.
Mais gorda. Bem mudada. Mas calma, serena, como se n�o
houvesse acontecido nada. O marido vai v�-la quase todos os
dias. Como se ignorasse o caso. Espera que a Nanda v� para
casa nos pr�ximos meses, por j� ter cumprido metade da pena.
A Nanda j� sabia de nossa festa. Pelos jornais. Se pudesse,
viria. N�o insisti. Para qu�?
E dando � voz outro tom, ao mesmo tempo em que mudava
a fisionomia, dissipando-lhe a express�o melanc�lica:

� Coisas da vida. Vamos adiante. A Inezita e eu aproveitamos
o fim de semana para um repasse geral de nossos convites.
Nossa parte est� feita. O resto, agora, � contigo.
E a Inezita:

� Aqui est� a lista. Com todos os nomes. Quem vem e
quem n�o vem. Adiante de cada nome, h� uma cruz ou duas,
a l�pis vermelho: uma, para quem vem; duas, para quem n�o
vem.
E passando o papel � Patr�cia:

� Inclu� tamb�m a Simone. Mas � a Paula que te vai falar
sobre ela. N�o, n�o vou ficar para o almo�o. Fica a Paula.
E enquanto a Patr�cia se voltava para a Paula, que ia abrindo
o envelope enquanto a Inezita cal�ava a luva, j� de p�, as
tr�s se voltaram para a porta sobre o corredor, onde voltara
a destacar-se, alta, robusta, bem penteada, a figura ancha do
Ludovico, que primeiro se curvou, para depois anunciar na sua
bela voz de tenor, como se estivesse a representar, no centro
do palco, voltado para a Patr�cia, o seu papel de mordomo:

� Madame, o almo�o est� servido.
191


4

� mesa, no correr do almo�o lento, Patr�cia tentara desviar
sua aten��o do envelope que a Paula havia deixado no bra�o
da poltrona. Com esfor�o conseguira conter-se para n�o lhe
falar: de in�cio, por causa da presen�a do Ludovico e da Rosa,
cada qual a um canto da sala, perto da mesa; depois, por fazer
sentir que sabia dominar-se, por mais viva e natural que
fosse a sua curiosidade.

No momento do caf�, ainda � mesa, quase deixara escapar
uma pergunta, naturalmente, calmamente:

� E que not�cias tens da Simone?
Amarfanhando o guardanapo, ap�s ter quebrado distraidamente
v�rios palitos que fora tirando do paliteiro de prata,
acabou por repetir mesmo a pergunta, assim que voltaram �
saleta.

E a Paula, mostrando-lhe o envelope, enquanto se acomodava
na poltrona orelhuda:

� Conheces esta letra? � dela.
� Sempre foi essa � confirmou Patr�cia.
E a outra, falando devagar, pausadamente:
� Recebi esta carta hoje, muito cedo, quando me preparava
para ir ao dentista. Antes de abrir o envelope, reconheci
a letra. E disse o que voc� disse: � � da Simone. � Fiquei
intrigada. Simone n�o me devia uma carta; pelo contr�rio, era
eu que devia resposta � �ltima carta dela, recebida h� dois ou
tr�s meses. Vinha cobrar-me a resposta? Ou tratar de outro assunto?
Uma pausa para tirar da bolsa o ma�o de cigarro. E com

o cigarro entre os dedos:
� N�o te incomodas que eu fume?
E acendendo o isqueiro, com a carta no rega�o, a falar
mordendo a biqueira do cigarro, sem reparar na expectativa
da Patr�cia que parecia ir levantar-se, com a cabe�a mais erguida:


� Abri depressa o envelope, quase rasgando um pedacinho
da carta.
192


Soprou a primeira fuma�a, voltou a segurar o envelope.
E enquanto a Patr�cia aproximava as sobrancelhas, quase a ponto
de gritar-lhe que revelasse logo o que ia dizer-lhe:

� Num relance, ante de ler a carta, vi teu nome na primeira
p�gina. Disse comigo, um pouco nervosa: � A Simone
escrevendo o nome da Patr�cia? Uai! Que ser�? � Em diagonal,
li tudo depressa, salteadamente, e vi que ela est� a par de
nossa festa. Sim senhora: tamb�m sabe de tudo. E tamb�m pelos
jornais. A coluna do Lucas Caetano � uma de suas fontes.
Nova pausa. E depois de repetir a fuma�a:

� Tu sabes que ela conhece esta casa? Conhece. E quem
a trouxe aqui foi o Rodrigo. Sabias? Simone veio aqui um m�s
antes do Rodrigo come�ar o namoro contigo. Tamb�m sabias?
E Patr�cia, s�ria:

� Ela pr�pria me contou. A casa tinha acabado de passar
por uma grande reforma, e o Rodrigo trouxe a Simone e
a m�e dela para verem como tinha ficado.
E a Paula, refazendo-se do desapontamento:

� A Simone, aqui, n�o diz que veio com a m�e. S� fala
da vinda dela. Mas vamos ao que interessa. Ela acha a tua id�ia
de reunir as colegas, nos teus quarenta anos, uma grande id�ia.
E passando-lhe o envelope:

� L� tu mesma. � melhor.
Dominando a emo��o, Patr�cia retardou os olhos sobre
o texto escrito, ergueu depois a vista, ainda sem l�-lo, e foi buscar
os �culos na escrivaninha. Voltou com eles na m�o, tornou
a sentar-se. S� ent�o, cruzando as pernas, j� de �culos,
no esfor�o para se mostrar serena, buscou a melhor luz � sua
volta, e leu a primeira p�gina, a segunda, a terceira, a quarta,
com o mesmo ritmo de leitura. Por fim, dobrando a carta, guardou-
a no envelope.
E a Paula, curiosa:

� Que tal?
� Gostei da carta. Por ela se v� que a Simone, embora
isolada no Sanat�rio h� tantos anos, n�o se desprendeu da turma
nem de mim. Agora, deixa-me que te diga uma coisa: eu,
todas as noites, rezo pela Simone. Deus sabe que n�o fui incorreta
com ela. Sabe. Perfeitamente. Ela, no �ntimo, tamb�m
193


sabe, mas prefere ignorar. E faz bem. � uma rea��o v�lida diante
da vida. A condi��o da v�tima ajusta-se ao feitio da Simone.
Cheguei a pensar em escrever-lhe. Repassando tudo. Revivendo
tudo. Para ela sentir que foi o destino que colocou o
Rodrigo no meu caminho, e n�o ela. Meu marido podia ter
sido o marido dela. Mas a vida est� cheia de encontros e desencontros.
O desencontro foi com ela; o encontro, comigo.
Estou em paz com a minha consci�ncia. Isso mesmo eu ia lhe
dizer. Limpamente. Decentemente. Mas mudei de id�ia. Eu ia
p�r no papel o que ela, no �ntimo, de si para si, j� sabe. Se
sabe, por que escrever-lhe? Entreguei o problema ao tempo.
E o tempo, como � de seu of�cio, arredonda as arestas, suaviza
as m�goas, atenua as incompreens�es, amacia as injusti�as.
Fiquei no meu canto, e o Rodrigo me apoiou, dando-me
raz�o. Vejo agora pela carta que ela te escreveu, que n�o me
enganei.

E a Paula, esmagando o cigarro no cinzeiro:

� E vais convid�-la?
� Podia parecer uma impertin�ncia. E seria, se ela viesse.
Ia me ver feliz, e a minha felicidade naturalmente lhe doeria,
pelo confronto com a sua solid�o. Por outro lado, podia
ter um rompante de rea��o. A mesma rea��o que teve para com
a minha m�e quando lhe devolveu o convite para o meu casamento.
Ou quando me agrediu no p�tio da Escola Normal.
De minha parte, seria uma impertin�ncia; da parte dela, uma
temeridade. O melhor mesmo � que cada uma de n�s fique
no seu canto, metida no seu mundo, vivendo a sua vida.
E a Paula, recebendo a carta:

� Tens raz�o. Foi bom conversar contigo.
194


SEGUNDO CAP�TULO

1

Pela janela do quarto ela podia ver o parque, a piscina,

o tablado, as �rvores com as mesas circulares, o coreto dos m�sicos,
o balc�o exigido pelo cozinheiro franc�s para o remate
dos pratos, j� com os pequenos adornos do fio das l�mpadas
e o aparato dos grandes refletores.
O Lucas Caetano, aos pulinhos, pelo telefone, havia confirmado
a grande not�cia:

� Vir� mesmo o Bal�! Completo. Mas ainda n�o vou soltar
a not�cia. Calma. Algumas das artistas famosas tamb�m
j� confirmaram que v�m. Quem est� indecisa � a Sofia Loren.
Mas temos a Mireille Mathieu, se ela n�o vier.
E nervoso, suspirando alto:

� Sou capaz de desmaiar quando vir toda essa gente respirando
o mesmo ar que eu. O bom, o fino, o supra-sumo dos
supra-sumos, seria trazer o Rubinstein para tocar a Sonata ao
luar. Porque vai haver luar, Patr�cia. Vai. Eu mesmo fui ao
Servi�o de Meteorologia, para ouvir o diretor. O pr�prio. E
p�r o preto no branco. Fica tranq�ila. At� onde se pode prever
o tempo, a noite ser� linda. J� pensaste no Rubinstein tocando
na tua festa? Mas o velhinho, coitado, t�o bom, t�o simples,
t�o prestativo, nos fez a surpresa de morrer, exatamente
na fase em que a gente mais precisava dele. No dia de Finados,
quando eu for ver meu pai no cemit�rio, vou descobrir
o t�mulo do Rubinstein, e sabes para qu�? Para passar-lhe um
sab�o. Dos meus. N�o devia ter morrido. Que lhe custava morrer
depois de tua festa?
195


Riu alto, demoradamente. E mudando a voz:

� J� expediste todos os convites? N�o te precipites. Vai
devagar. H� convites que n�o podem deixar de ser feitos. Outros,
t�m de ser esquecidos de prop�sito. E o das coleguinhas?
Eu, no teu caso, ficava de olho nelas: fiscalizava tudo. Desde
o vestido � roupa de baixo. Pedia ajuda dos meus costureiros.
Fazia o meu cabeleireiro pentear as dondocas normalistas. Para
evitar as gafes. De repente, aparece uma delas de uniforme
Ou ent�o com um cabelo que n�o se usa mais. Todo cuidado
� pouco, Patr�cia. V� o caso das j�ias. � prefer�vel n�o ter nada
na orelha, nem no colo, nem nos bra�os, a aparecer na tua
casa, com tanta luz em cima, a exibir colares, brincos e pulseiras
de fantasia. Pelo amor de Deus, Patr�cia: fica de olho. Se
for preciso, recorre-se a um joalheiro amigo, e tapa-se o buraco.
E numa explos�o de riso:

� J� imaginaste se os bandidos aparecem, armados at�
os dentes, e assaltam a festa, tomando carteiras, tomando j�ias,
tomando cheques, tomando cart�es de cr�dito, com o rev�lver
em cima da gente? N�o estou dizendo isso para te assustar,
mas para saberes que essas coisas tamb�m acontecem nas
casas das melhores fam�lias. Outro dia, em plena luz do sol,
um banco foi assaltado no centro de Paris, no come�o do Boulevard
Saint-Germain, com esta novidade: os bandidos, depois
de terem feito um assalto de manh�, fizeram outro de tarde.
No mesmo banco. Sem disfarce. Calmamente. Portanto: cautela.
Trata de refor�ar a seguran�a de tua casa. Na base da metralhadora.
Patr�cia, ap�s um sil�ncio:

� A Paula j� me disse a mesma coisa. Agora, ningu�m
tem mais garantia. Nem adianta muito ter guardas de seguran�a.
S�o os primeiros a ceder, para n�o serem mortos. Um
horror. A que chegamos. At� parece que estamos em Chicago,
no tempo de Al Capone. O jeito mesmo, nessas horas, �
rezar.
E o Lucas Caetano, depois de outra risadinha:

� Tocaste no ponto. Se a Pol�cia n�o d� jeito para proteger
a vida dos cidad�os aqui embaixo, o jeito � levantar os olhos
para o c�u, pedindo a prote��o de Deus. Sabes quantas vezes
196


j� fui assaltado? Onze. Onze vezes. Na �ltima, s� n�o me depenaram
completamente, deixando-me nu na cal�ada, porque
apareceu a patrulhinha da Pol�cia, ali na hora, e assustou os
bandidos, que se mandaram, maluquinhos, maluquinhos, enquanto
eu me ria por dentro, gozando comigo o susto que Deus
tinha pregado, com a patrulhinha providencial, nos quatro assaltantes
que me limpavam, como se eu j� fosse um defunto.
E recolhendo o riso, para voltar a rir logo depois:

� Deixa eu bater na madeira. J� bati. Bate tamb�m. Afugenta
os maus esp�ritos, acorda o Anjo da Guarda. Porque at�
o Anjo da Guarda, que sempre nos protegia, deu agora para
fazer corpo mole, quando os bandidos aparecem. Onde est�
o anjo Gabriel, com sua espada de fogo? E S�o Jorge, com
aquela lan�a de matar drag�es? Parece que j� est�o fora de
servi�o. Aposentados. Coitadinhos.
E batendo na boca:

� Deus que me perdoe.
Voltou a rir. E novamente s�rio:
� Afinal de contas, foste visitar a maluquinha que matou
o amante, amiguinho do marido? J� saiu da cadeia? Olha
l�, Patr�cia. Nesse ponto, sou cauteloso: eu, do lado de c�, com
a grade no meio me protegendo; e ele, o bandido (ou a bandida),
do lado de dentro, com o guarda � vista, de olho nele (ou
nela). Nunca se sabe o que um bandido est� pensando. Nem
o que pretende fazer conosco.
2

Tinha hesitado em mandar-lhe o convite. Chegara mesmo
a conversar sobre isso com a Inezita.
E a Inezita, tamb�m hesitante:

� Ela n�o me disse se vem ou se n�o vem. Limitou-se
a me perguntar se a lembran�a tinha sido tua. Ou se fui eu
que sugeri o nome dela. Disse-lhe a verdade. Que tu mesma
te lembraste dela. E ela, passado um momento, como se hou197



vesse refletido: � Manda o convite. � Tu, agora, decides se
mandas ou se n�o mandas.

E o que de pronto acudiu � lembran�a de Patr�cia, depois
que a Inezita lhe telefonou, foi a sala de aula, na tarde em que,
por falta do Professor Avertano, que n�o havia ido � Escola
Normal, retido em casa por uma gripe forte, boa parte da classe
tinha permanecido ali, entre a aula de Pedagogia e a aula de
Desenho, vendo cair a chuva inclinada e fria, que ia molhando
as t�buas do soalho, perto do quadro-negro.

Patr�cia, sozinha na carteira dupla, tratava de encher o tempo
a copiar os apontamentos da aula de Pedagogia, quando
mudou de id�ia, decidindo passar � sala da Biblioteca, � procura
da antologia de poetas ingleses que a Simone, tamb�m
gripada e ausente, lhe havia recomendado. Guardou a caneta
e os dois cadernos; fechou a pasta de couro; chegou o corpo
para a ponta do banco, firmando os p�s no ch�opara levantar-
se. E nisso, duas mesas adiante, ao meio da sala, a voz acusativa
da Luc�lia, rouca e alta:

� Patr�cia, voc� ficou com a minha caneta!
Jamais esqueceria o seu dedo em riste, o bra�o erguido,
o rosto desfigurado, p�lida, uma chispa amarela nos olhos exorbitados,
dando a impress�o de que ia atirar-se contra ela, no
impulso da ira que lhe fazia tremer o l�bio inferior.
Patr�cia trouxe a pasta para junto do peito, disposta a defender-
se da colega. E alto, na rea��o imeditata do brio ferido:

� Est�s maluca? A caneta que eu guardei � minha.
� N�o, n�o � tua. A minha desapareceu de minha mesa.
Foste tu que a tiraste. Vi quando estavas escrevendo com ela.
Patr�cia abriu com rapidez a pasta, exibiu no mesmo impulso
a caneta que tirou dali:

� Esta � minha. Presente de minha m�e, no meu anivers�rio.
E a Luc�lia, mais perto, curvando-se sobre a Patr�cia, com
as m�os exaltadas firmando-se na borda da carteira:

� � a minha. Est�s mentindo.
E ia apossar-se da caneta, decidida ao desfor�o f�sico,
quando Patr�cia se levantou, atirando novamente a caneta para
dentro da pasta, e foi t�o veemente a sua c�lera que pare


198


ceu mudar de rosto � um rosto vincado, de olhar hostil a se
coar pelas p�lpebras entrefechadas, os l�bios arroxeados, sempre
a fitar a outra, como pronta a reagir �s suas m�os agressivas.

Nisto, � entrada da sala, irrompe a Carminha, gorda, sacudida,
os seios frouxos dentro da blusa, com o bra�o erguido,
segurando na ponta dos dedos uma caneta igual:

� Luc�lia, obrigada. Fui eu que tirei tua caneta.
Um momento de sil�ncio. A Luc�lia parece que vai
desfazer-se, no desapontamento da ira injusta, mas se limita
a baixar os olhos, calada, virando devagar o rosto, de volta
ao meio da sala, enquanto a Patr�cia lhe diz, ainda com �dio:

� Nunca mais fale comigo!
Durante o resto do curso n�o se falaram. Por vezes, sentadas
na mesma cadeira dupla, nos dias de prova escrita, davam
a impress�o de que n�o se conheciam. E como o sil�ncio
m�tuo tamb�m se consolida, persistente, tenaz, o retraimento
de uma se ajustou ao retraimento da outra, ganhando naturalidade,
parecendo que as duas n�o se viam, lado a lado na mesma
fila, ora descendo para o recreio no p�tio, ora subindo para
a sala de aula.
Foi Luc�lia a �nica a quem a m�e de Patr�cia n�o mandou
convite para o casamento da filha. Depois, rolando o tempo,
voltaram a encontrar-se nas casas de ch�, nas recep��es,
na �pera, no Teatro de Com�dias, no Jockey Clube, na praia
privativa do N�utico, no Clube de Regatas, no aeroporto.
E agora, pelo telefone, a voz da Luc�lia:

� Patr�cia, recebi seu convite. Obrigada. Meu marido e
eu iremos � sua festa.
E Patr�cia, dominando a emo��o que lhe fez tremer o
l�bio:

� Estaremos � porta, o Rodrigo e eu, para receber voc�
e seu marido. Com muito gosto.
E ao repor o telefone no gancho, ficou um momento com
a m�o sobre o aparelho, pensando em contar o caso � Tia Creusa,
na pr�xima carta endere�ada ao mosteiro tibetano. Parecia-
lhe ter tirado um peso que lhe vergava as esp�duas. Nunca imaginara
que, ap�s vinte e quatro anos de sil�ncio agastado, fos


199


se t�o f�cil suprimir, quase com um simples sopro, o velho muro
que a separava da Luc�lia.

3

Antes de penetrar no edif�cio cor de tijolo, carrancudamente
cercado de altos muros, ela teve a impress�o de que saberia
conservar-se calma, mesmo ao transpor o vest�bulo amplo,
sempre iluminado, que um guarda alto e negro defendia,
de metralhadora junto ao peito, calado, distante, ar perenemente
agressivo.

E foi outro negro � de um negro fosco, cabe�a bem erguida,
como orgulhoso de sua ra�a e de seu posto � que conferiu
a identidade dela com o nome que constava de uma folha
de papel, dizendo-lhe:

� Eu mesmo vou levar a senhora � Biblioteca. Fa�a favor.
Abriu o port�o de ferro, f�-la caminhar por um corredor
silencioso, subiram uma escada. Logo os livros perfilados, na
sala aconchegada e de muita luz, pareceram esperar por ela,
a despeito das estantes envidra�adas. Uma pequena mesa para
quatro cadeiras; outra mesa mais adiante servindo de escrivaninha;
um calend�rio na parede, uma janela gradeada abrindo
para um muro de pedra salpicado de musgo quase negro,
e um sil�ncio de sesta na tarde nublada.

De p�, descal�ando as luvas, Patr�cia agu�ava o ouvido,
� espreita de passos no corredor. A escada alta, de dois lances,
que a trouxera at� ali, acelerara-lhe o cora��o, obrigando-
a a respirar fundo, para afinal sentir, aliviada, que seu pulso
se acalmava, como que favorecido pela vira��o constante que
a janela escancarada recolhia por entre o ferro das grades.

E foi quando ergueu o olhar, j� descal�adas as luvas, que
deu com a senhora d� cabe�a branca, no centro da porta, as
m�os unidas � altura do ventre, os olhos aumentados em sua
dire��o, como se lhe fosse falar.

200


Olharam-se assim por alguns momentos, ainda em sil�ncio,
at� que a outra veio mais para perto:

� Voc� aqui, Patr�cia?
A voz descansada, meio fanha, restituiu-lhe a identidade.
E Patr�cia, emocionada:
� Eu mesma, Nanda. S� h� poucos dias, pela Paula, vim
a saber que estavas aqui.
Segurou-lhe as m�os, sentindo os olhos �midos, e as duas
se abra�aram logo a seguir, novamente com a fala embargada,
enquanto Patr�cia via a Nanda na sala de aula, no p�tio, no
corredor da Escola Normal, como se o tempo morto lhe reflu�sse
� consci�ncia, n�tido, tang�vel, redivivo, na instant�nea
recomposi��o de imagens esquecidas, que de novo existiam,
com as suas cores e os seus movimentos.

E Nanda, desfazendo o abra�o:

� Recebi seu convite. Chegou ontem. Obrigada, Patr�cia.
E Patr�cia, aceitando a cadeira que a outra lhe oferecia,
na mesa de quatro lugares:

� Rodrigo e eu estamos � sua espera.
Antes de responder, Nanda sorriu, de cabe�a inclinada,
como se buscasse o canto dos olhos para olh�-la. E ap�s um
sil�ncio:

� N�o, querida. N�o devo ir. N�o posso ir. Na tua festa,
eu seria uma curiosidade a mais. Mesmo que o diretor daqui
me deixasse sair, como j� tem deixado, sempre que lhe pedem.
N�o, n�o vou. Mas, no dia, vou ficar acordada, imaginando
tudo, para fazer de conta que estou l�. A princ�pio, quando
a Inezita me falou, fiquei animada. Depois, pensei melhor. Mesmo
que me mandasses o vestido. Mesmo que teu motorista viesse
me buscar. N�o, n�o vou. Mas n�o penses que � por vergonha
de mim que n�o vou. N�o, n�o �. O que aconteceu comigo,
aconteceu. Nada mais que isso. Aconteceu. Como um carro
que nos atropela. Como uma perna que se quebra. Vem o
tempo, e nos faz companhia.
Sacudiu depressa a cabe�a, a atirar de si a recorda��o
opressiva, e conseguiu sorrir, com os olhos molhados:

� Eu, aqui, sou a bibliotec�ria. A princ�pio, fui a professora.
Depois, a enfermeira, sem deixar de ser a professora.
201


Agora, sou professora, enfermeira e bibliotec�ria. Est�s admirada
de meus cabelos brancos? Apareceram-me aqui, assim
que cheguei. N�o quis pint�-los. Para qu�? Melhor assim. Meu
marido, sempre que vem aqui (e ele vem sempre, e me anima),
passa a m�o nos meus cabelos brancos, com ternura. Antes,
n�o passava. Tu o conheces. N�o te lembras do J�lio? Comecei
a namorar com ele no �ltimo ano do curso. Narigudo, alto,
meio curvo. Pensei que s� gostava de mim como mulher.
Na cama. Com a luz acesa. Aqui, aos poucos, com o desvelo
dele por mim, reconheci que n�o era assim.

Suspirou, baixou um momento as p�lpebras pestanudas.
E voltando a levant�-las enquanto alteava os seios:

� � meu amigo. Nunca me perguntou pelo meu caso. Durante
meu processo, redobrou de cuidados. Trouxe-me um bom
advogado, escrevia-me longas cartas, nunca me censurou. �
como se nada houvesse acontecido. Quando me vejo no espelho,
sinto que a vida me devastou. A ele, n�o: o J�lio parece
ter trinta anos. Agora � que as su��as dele come�am a embranquecer.
Forte. Bonit�o.
E de repente, avivando a voz:

� A Inezita me disse que n�o tiveste filhos. Eu tamb�m
n�o tive. Sonhei muito ter uma menina. Mesmo que fosse menino,
seria bem recebido. Por que n�o? Um filho � sempre um
filho. Uma noite, deitada, sem sono, fiquei pensando que, para
n�s, professoras de meninas e meninos, o aluno � um filho
emprestado, com hora marcada. Lecionei dois anos, antes de
vir para c�. Na sala de aula, nunca passei um castigo. Nunca.
Chamava o aluno rebelde, conversava com ele, fazia-lhe um
agrado. Uma sensa��o boa de paz crescia dentro de mim. Aqui,
ensino a adultos. N�o � a mesma coisa. N�o, n�o �. O bom
mesmo � ensinar � menininha que ainda n�o sabe segurar o
l�pis. Ou o menininho que olha para dentro do nosso decote
quando nos curvamos para corrigir o dever que ele est� fazendo.
Nessas horas, somos m�es. M�es dos filhos alheios. Quero
voltar a ensinar a meninos quando sair daqui. N�o mais
como m�e � como av�. Sabias que j� h� duas av�s na nossa
turma? Sim senhora: duas.
Sentada do outro lado da mesa, Nanda falava com as m�os

202


entrela�adas, variando a posi��o da cabe�a. O vestido grosso
n�o a tornava menos feminina. Pelo contr�rio: fazia-a mais
mulher, no contraste da pele muito branca com o cinza-escuro
do tecido de algod�o. Um leve estrabismo como que lhe dava
um qu� de sensualidade reprimida, que a voz descansada parecia
acentuar.

E acelerando a fala:

� Sei de ti pelos jornais. De tuas festas. De tuas viagens.
De tuas toaletes.
Um sil�ncio pensativo. E logo depois:

� Voltaste a te dar com a Simone?
Patr�cia afastou as m�os, alteou os ombros, ergueu as sobrancelhas
para a testa. E corrigindo:

� Foi ela que se afastou de mim. Cada uma de n�s foi
para seu lado. Sem que nossos caminhos tornassem a se cruzar.
Novo sil�ncio.
E Nanda:

� Ela sempre me escreve. J� me disse que ela e eu somos
as presidi�rias da turma: eu, aqui; ela, no Sanat�rio. Por que
n�o vais v�-la, como vieste aqui? Vai. O tempo passou; o que
houve entre voc�s ficou para tr�s. Eu, no teu lugar, ia.
Outro sil�ncio, mais demorado, com uma a olhar a outra
sem palavras, como se o di�logo entre elas se tornasse dif�cil.
Mas a pr�pria Nanda se encarregou de reat�-lo:

� At� parece que voltamos ao tempo da Escola Normal,
quando a gente se olhava tamb�m assim, para ver quem ria
primeiro.
E j� a tarde esmorecia, por entre o ru�do das janelas e
portas que iam sendo fechadas, quando as duas se despediram,
mais emocionadas. Enquanto Patr�cia sa�a ao corredor,
onde o mesmo guarda esperava por ela, Nanda repunha nos
lugares os livros consultados, ambas com o fio das l�grimas
descendo para o cavado do rosto.

Apressando o passo, como no esfor�o para afastar-se da
emo��o penosa, Patr�cia se voltou, mais adiante, j� na descida
da escada, e acenou para a outra, que tamb�m lhe acenou,
com um livro na m�o. Fizera bem em vir ali, reconhecia. So


203


bretudo depois que a Nanda lhe dissera, de olhos baixos, entrela�ando
as m�os desalentadas:

� Posso te dizer uma coisa? Sabes a que comparo a emo��o
que estou sentindo agora, com a tua visita? � das cartas
que todas as semanas recebo da Simone, desde que estou aqui.
E inclinando o rosto, com as p�lpebras descidas:

� Foi pena o que houve entre voc�s.
4

Noite alta, na cama revolta, Patr�cia esperou que o Rodrigo
acendesse o cigarro, e lhe disse, puxando o len�ol para
os seios:

� Tenho uma coisa para te contar.
Antes de contar, tomou-lhe o cigarro, sorveu uma fuma�a
breve, que atirou para o alto, olhando o marido, s�ria, compenetrada.
E ao repor-lhe o cigarro nos l�bios:

� N�o te espantes com o que vais ouvir.
E tornando a puxar o len�ol, que ia escorregando devagar:
� Fui visitar a Nanda.
E ele, tirando da boca o cigarro:
� No pres�dio?
� No pres�dio. Sozinha. Telefonei para o diretor, disse
quem era, e ele foi gentil�ssimo comigo. Sim, pois n�o. Eu podia
ir quando quisesse. Fui. Antes, mandei o convite da Nanda.
Ele, com o cigarro defronte da boca:

� E ela? � perguntou, com ansiedade.
� Ficou emocionada. Mas n�o vem. N�o, n�o vem. Seria
exibir-se, com tanta gente em seu redor, aqui em casa. E
o que ela quer � sil�ncio � sua volta. Que a esque�am, depois
de tudo quanto sofreu. Que eu n�o levasse a mal. Seria penoso
para ela. Muito. Iria sofrer. E me beijou, reconhecida. Jamais
esquecer� o meu gesto. Concordei com ela. De fato, com
tanta cara curiosa, com tanta luz, a festa dos outros seria para
ela uma prova��o a mais.
204


Tornou a tomar-lhe o cigarro, sorveu outra fuma�a. E ap�s
uma pausa, subindo mais o corpo para a cabeceira da cama:

� Fui v�-la, contrariando a recomenda��o da Paula e da
Inezita, e fiz bem. Eu, no seu lugar, estaria destru�da; ela, parecendo
mais fr�gil, soube vencer a prova��o. Sa� de l�
admirando-lhe a energia. E contente comigo mesma por ter
ido ao seu encontro. Ela, por seu lado, gostou de me ver. Houve
um momento em que ela e eu, uma defronte da outra, s� faz�amos
chorar. Ela reagiu primeiro, segurando minha m�o: �
Que bobeira � essa, Patr�cia? Enxuga esses olhos. � E eu, come�ando
a rir: � Primeiro, enxuga os teus. � E acabamos
abra�adas, chorando e rindo. Duas bobas. Como no tempo da
Escola Normal.
Como se a evoca��o a emocionasse, levou as m�os aos
olhos, correu sobre as p�lpebras fechadas a ponta dos dedos.
E a seguir:

� Sabes quem lhe escreve, todas as semanas? A Simone.
Cartas longas, que t�m ajudado a Nanda a suportar a reclus�o.
Li algumas. Tive a impress�o de voltar a ouvir a voz de
Simone. Como se ela estivesse diante de mim. Com aquele
olhar. Aquele rosto bonito. Tive saudades dela. Tive. N�o vou
te esconder.
Rodrigo atalhou, querendo rir, a apoiar a nuca no travesseiro:


� N�o me digas que vais convidar tamb�m a Simone...
� A Simone, n�o. Ela ia sofrer se viesse. Que cada uma
de n�s fique onde Deus nos colocou: eu, aqui; ela, no Sanat�rio,
como se o destino houvesse trocado nossos pap�is.
E indo diretamente � nova revela��o:

� Mas fiz outro convite, na manh� de hoje, e me dei mal.
Antes n�o tivesse ido. Depois, pensando melhor, aprovei o que
fiz. Tia Creusa tamb�m aprovaria. Foi nela que tamb�m pensei,
antes da visita, quando li o papel que a Inezita deixou comigo,
com o nome das colegas que eu n�o devia convidar. O
primeiro era o da Evangelina, riscado a l�pis vermelho, e com
um n�o, logo depois, em letras de imprensa. S� ele.
O Rodrigo apoiou o busto no cotovelo, como se fosse levantar.
E duvidando, s�rio:

205


� Foste visitar a Evangelina, Patr�cia?
� Fui. E depois de te dizer, n�o sei quantas vezes, que
n�o queria olhar para a cara dela. De repente me decidi.
Animei-me com a visita � Nanda. Eu tinha sa�do do pres�dio
com a alma lavada. Em paz comigo mesma. Com uma emo��o
diferente, que me purificava, que me dava uma nova certeza
de que Deus olhava por mim. No caso da Evangelina, eu
n�o me limitaria a vencer o retraimento de meu feitio. Iria mais
longe. Bem mais longe. Vencendo ressentimentos e m�goas. Para
apenas ficar em mim o gesto, a iniciativa, a determina��o
de desfazer-lhe o �dio est�pido e gratuito. Cheguei a pensar
em aguardar a tua volta de Londres. Mas me pareceu que a
protela��o da visita terminaria por influir no meu esp�rito,
levando-me a desistir de ir � casa da Evangelina. Era bom ir.
Tudo de bom, at� hoje, aconteceu comigo. A visita � Evangelina
tamb�m daria certo. Por que n�o? Tinha de dar.
E o Rodrigo, aproveitando-lhe o sil�ncio:

� N�o foi ela que disse alto � "L� vem tolice" � quando
o Professor Avertano te deu a palavra, na noite da formatura?
� Ela mesma � confirmou Patr�cia. � E estendendo na
minha dire��o o olhar duro, repulsivo, com um brilho de inveja
e �dio nas pupilas. O brilho de que sempre me falas e que
v�s nos olhos de teus competidores, quando te p�es a contar
tuas vit�rias. O Professor Avertano ouviu o que disse a Evangelina,
e reagiu de modo alto, superior, batendo palmas fortes
quando me aproximei da borda do palco, com o meu discurso
a me tremer nas m�os nervosas.
E o Rodrigo, sem conter a reminisc�ncia:

� N�o foi nesse momento que apareci no fundo da sala,
ainda com a roupa com que tinha chegado de Madri?
E Patr�cia, mais fluente:

� Quando dei contigo, ganhei outra for�a. Perto de mim,
na segunda fila da assist�ncia, M�e Ded� e Tia Creusa. M�e
Ded�, rezando. Tia Creusa, de olhos fechados, chamando os
bons fluidos. Para mim, naquele momento o mundo podia vir
abaixo, e eu continuaria falando. Nunca me esqueci da emo��o
com que o velho Avertano me beijou no rosto, me chamando
de minha filha, assim que acabei de falar. S� na hora
206


em que te vi na igreja, no dia de nosso casamento, vivi um momento
parecido. Que me importava o �dio da Evangelina, a
m�goa da Simone, o despeito de Fulana ou de Beltrana, se o
triunfo era meu, naquele instante, naquele lugar? De mim para
mim, compreendi a Evangelina, compreendi a Simone. Afinal
de contas, a vit�ria plena, absoluta, era minha. Mesmo depois
do que a Evangelina iria fazer comigo, ao fim do casamento,
na tua presen�a, na presen�a de M�e Ded�, quando tornei a
me conter e dei de ombros, sabendo que, a mim e a ela, a vida
nos separava para sempre, assim que eu sa�sse dali como tua
mulher. E foi isso que se deu.

Patr�cia, sem deixar de falar, endireitou o busto, e logo
prendeu o len�ol, que voltara a escorregar, descobrindo-lhe os
seios:

� Vinte e um anos depois, quando Evangelina e eu n�o
somos mais mocinhas, e j� temos a experi�ncia da vida, pensei
comigo que j� era tempo de p�r fim ao seu �dio mesquinho.
Ela tamb�m casou, e tem filhos. Os filhos que Deus n�o
nos deu. Nem por isso temos �dio ou inveja de algu�m. Cedo,
hoje, me preparei para ir � casa da Evangelina. Antes, passei
na igreja para conversar com o frade que me confessa nas aus�ncias
do Padre Revoredo. N�o se limitou a aprovar meu gesto
� aben�oou-me. L�pida, confiante, sa� da igreja para a casa
da Evangelina. Ela mora longe, quase no sub�rbio, no topo
de uma ladeira. Felizmente, em vez de dirigir meu carro, levei
comigo o Expedito. Eu, sozinha, n�o teria chegado l�. O carro
deu in�meras voltas, antes de encontrar a rua, no fim da
ladeira. L� em cima, numa pracinha, havia uns meninos brincando
com uma bola. Perguntei se conheciam a Evangelina.
� � minha m�e � disse o garoto maior, de cara salpicada
de sardas, j� mudando a voz. E correu a abrir-me o port�o
da casa da esquina. Casa boa, espa�osa, no meio de �rvores,
com um jardim bem tratado. E eu disse comigo, animada: �
A Evangelina tem marido, tem filhos, tem casa, esta pracinha
� linda: n�o tem raz�o para ter inveja de ningu�m. � O mesmo
menino entrou na casa, abriu a porta da sala, mandou que
eu entrasse.
207


O rosto de Patr�cia se altera, tenso, contra�do. E ela, segurando
o len�ol por cima do busto:

� Ah, Rodrigo, n�o te conto o que se passou. N�o vais
acreditar. Um horror. A Evangelina, quando entrou na sala,
e viu que era eu que estava ali, s� faltou me esbordoar. Escancarou
a porta, com a m�o exaltada, aos gritos: � Ponha-se
daqui para fora, sua imbecil! Desapare�a de minha vista! �
E para o filho, que assistia � cena, estatelado: � N�o sei onde
estou que n�o te dou uma surra. Quem te mandou p�r aqui
dentro essa mulher? � E para mim, que me retra�ra na ponta
do sof�: � Saia daqui! J� lhe disse que saia! � E era como
se fosse erguer o bra�o para me castigar, desfigurada, os olhos
pulados. Atravessei a porta, corri para o carro, e s� me acalmei
quando vi nossa rua, nossa casa, e o Ludovico, l� embaixo,
� minha espera, com a not�cia de que j� tinhas chegado,
e estavas no escrit�rio.
208


TERCEIRO CAP�TULO

1

N�o saberia explicar como lhe acudiu � lembran�a o nome
do Professor Heliodoro. E o certo � que, a despeito do tempo
transcorrido, ela o via entrar na sala de aula, gordo, bochechudo,
o paletoz�o a lhe dar nos joelhos, rangendo nas t�buas
do ch�o a sola das botinas luzidias. Baixo, entroncado,
trazia em si uma solenidade natural que a vasta calva acentuava.
Aumentando-lhe as bochechas, as su��as brancas o tornavam
mais gordo, mais compacto. E como fazia quest�o de que
as alunas levantassem, assim que entrava na sala acenava para
um lado e para o outro, grave, sisudo, como se estivesse a receber
uma ova��o. Subia ao estrado, voltava-se para a classe
e, com um gesto da m�o rechonchuda e cabeluda, mandava
que as alunas tornassem a sentar.

E quem Patr�cia rev�, enquanto p�e na x�cara de caf� a
colherzinha de a��car, com o Ludovico � sua frente, segurando
em sil�ncio a bandejinha de prata, � o mesmo Heliodoro, vagaroso,
que ali vai, solene, s�bio e caricato, a arrastar por tr�s
dos passos medidos o rabo de algod�o que lhe puseram no corredor.
O mestre avan�a, solene, e acena para as alunas, um pouco
surpreendido com as caras de riso que vai encontrando.

Foi s� no estrado, j� de frente, quando correu a m�o pelas
n�degas, para separar as abas do palet�, e sentar-se, que

o Professor Heliodoro parou um momento, s�rio, solene, e desprendeu
das costas o rabinho gaiato. N�o sorriu. N�o reclamou.
Senhor de si, acomodou a cauda a um canto da mesa
e come�ou a dar a sua li��o.
209


Assim:

� Sabem as minhas boas amigas que estou nesta sala de
aula por pouco tempo. Sou um velho professor aposentado.
Vim substituir o Professor Marinho, meu antigo aluno. Ao fim
de tr�s meses, n�o estarei mais aqui. Sempre imaginei que era
querido de minhas alunas. Vejo agora que me enganei.
E s�rio, continuando a reprimenda:

� Sil�ncio. Deixem-me continuar. Esta � a minha �ltima
li��o. O Professor Marinho chega hoje de sua viagem, e eu
me recolho � minha casa, aos meus livros, �s minhas recorda��es.
Este rabinho de algod�o, t�o gracioso, t�o gaiato, vou
lev�-lo comigo, como uma recorda��o risonha. Uma recorda��o
a mais. Indicativa de que minhas alunas, t�o belas, t�o
inteligentes, tamb�m sabem rir, � minha custa. Obrigado.
E outra vez imp�s sil�ncio, espalmando no ar as m�os cabeludas,
grave, a cabe�a meio inclinada, como se estivesse a
reger uma orquestra, no momento em que se calam os instrumentos
de sopro e se faz ouvir, solit�rio, o piano de cauda.

� Por favor, quero dar minha aula.
E Patr�cia tornava a v�-lo no mesmo passo gordo e cheio,
saindo da classe, como se n�o estivesse a ouvir a esguia Ambrosina,
que lhe dizia, acompanhando-o:

� N�o fomos n�s que fizemos isso com o senhor. Foi algu�m,
l� fora. No corredor.
E foi a pr�pria Patr�cia que preencheu, � m�o, na sua letra
alta e espa�osa, o sobrescrito do convite que entregara a
Inezita, para que esta o fizesse chegar �s m�os do Professor
Heliodoro.

A Inezita, com espanto:

� Heliodoro? Foi nosso Professor? N�o, n�o me lembro
dele.
E por mais que Patr�cia avivasse a cena do rabo de algod�o,
sem conseguir conter o frouxo de riso, a outra n�o conseguiu
lembrar-se:

� Na nossa classe? N�o, n�o me lembro, Patr�cia.
Mas a Paula se lembrava. Vagamente. Como um sonho
engra�ado, que o tempo enfunara, quase a apag�-lo de sua mem�ria.


210


E Patr�cia, decidindo-se:

� Quem vai descobrir o Professor Heliodoro � o Ludovico.
O que ele n�o descobrir, ningu�m descobre.
E a Inezita:

� Queres mesmo que ele venha?
� Quero. Fiquei com remorsos do que fizeram com ele.
De repente.
E a Paula:

� Neste caso, vou continuar a procur�-lo.
E como o convite voltara � Patr�cia na semana seguinte,
trazido pela Paula, ela o entregara ao Ludovico, que prontamente
lhe prometera:

� Fique tranq�ila. Hei de saber onde encontr�-lo. Deixe
tudo comigo.
E agora, sorvendo o caf�, na tarde que ia acabando, por
entre o cicio alto de cigarras no parque, perguntou-lhe:

� E o Professor Heliodoro, Ludovico? Conseguiu descobri-
lo?
� Sim, senhora � confirmou o velho mordomo, tamb�m
solene, baixando as p�lpebras, com a m�o sobre o peito. �
H� pouco. Depois de muito procurar.
E baixando a voz, quase em surdina:

� No mais triste dos endere�os, D. Patr�cia. Est� enterrado,
h� seis anos, na ala 2, carneiro 29, no Cemit�rio da Boa
Esperan�a, segundo cruzeiro, � direita. Foi isso que me disse
o filho dele, quando lhe pedi o endere�o do professor.
2

Estranhou a aglomera��o � porta da Escola Normal. E
como viu, no primeiro relance do olhar, que ali se misturavam
pessoas do povo e grupos de alunos, enquanto os vizinhos se
debru�avam das sacadas, em sil�ncio, como assustados, voltados
na dire��o de uma ambul�ncia que ia parando junto �
cal�ada, apressou o passo, inquieta.

211


E a Simone, que vinha vindo ao seu encontro, no vest�bulo
da entrada, ao p� da escada de pedra que levava ao pavimento
superior:

� Aconteceu uma coisa horr�vel. N�o podia ser pior.
Por alguns momentos, ainda sem compreender o que se
passava, Patr�cia olhou a outra, com os olhos crescidos. E quase
a gritar, notando a palidez da Simone e sentindo as m�os geladas
e �midas com que a outra lhe segurava os punhos:

� O que foi que houve? Por favor, fala.
E como um m�dico descia da ambul�ncia, no seu traje
branco, segurando uma bolsa de couro, adivinhou o novo atropelamento
na volta da rua, defronte da escola. No ch�o, sobre
os saibros do piso, manchas de sangue, como a indicar o caminho
por onde ia agora o m�dico, mais correndo do que andando,
precedido pela figura esgalgada do diretor, que gesticulava
e falava, na subida da escada, seguido pelos dois enfermeiros
que traziam a padiola.

Logo os grupos esparsos se reuniram, por tr�s dos padioleiros,
quase levando de rold�o a Patr�cia e a Simone, que se
retra�ram para o �ngulo da parede, protegendo-se com a pasta
sobre os seios, enquanto os bed�is gritavam, de bra�os abertos
ao meio da escada, tentando conter o rio humano que se
precipitava nessa dire��o:

� Por favor, fiquem onde est�o.
E Simone, falando depressa, como se fosse perder o f�lego:
� Um carro atropelou a Edm�ia, quando eu vinha chegando.
Ela foi atirada contra o muro do p�tio, e o carro passou,
dobrando a rua, na descida da ladeira. Quando eu quis
correr para ela, j� um senhor a trazia nos bra�os, com o sangue
do rosto a pingar pelo caminho. Subi para avisar o diretor.
Agora, quando desci, dei contigo aqui. Imagina que pensei,
no primeiro momento, que eras tu que tinhas sido atropelada.
Cheguei a gritar, fora de mim. Como uma louca.
Em seguida, puxando Patr�cia pelo bra�o:

� Vem comigo.
No mesmo passo apressado, as duas atravessaram o p�tio
em diagonal, subiram depressa a escada de pedra que ia
dar na varanda ampla, no correr das salas de aula, e pararam

212


l� ao fundo, defronte da saleta dos exames m�dicos, reunindo-se
�s alunas e aos professores que ali se juntavam, falando baixo
e aventurando progn�sticos:

� Por mim, ela est� morta � admitia o Professor Marinho.
E logo a Fl�via, horrorizada:

� N�o diga isso, Professor.
No ar, um cheiro forte de cigarros acesos. A mistura das
vozes, por entre sil�ncios. Protestos. Ru�do de passos.
E o m�dico, saindo � porta da saleta, acompanhado pelo
diretor, que afastava as m�os espalmadas, com ar de desola��o
e revolta:

� Nada p�de ser feito.
Sim, morta, a loura Edm�ia, de lindos olhos azuis, atropelada
� porta da escola. A Edm�ia que ia ser atriz. A Edm�ia
alta, esguia, que tirava os sapatos na sala de aula, para sentir

o ch�o debaixo dos p�s. A Edm�ia que jogava voleibol no time
da Escola Normal, famosa por suas cortadas indefens�veis.
A Edm�ia que j� havia sido louvada nos jornais. Agora, muda
e im�vel. Sem poder voltar a rir alto nas conversas do recreio
nem desfilar na passarela dos concursos de beleza.
Depois, na Sala da Congrega��o, a Simone lhe descobria

o rosto, serena, ausente, como se n�o ligasse para o corte que
lhe riscava a t�mpora direita, as finas m�os entrela�adas sobre
os seios, com o destaque das unhas vermelhas. Sobretudo do
polegar com que tocava viol�o.
E Patr�cia, com as m�os nos olhos, desfigurada:

� Vamos embora, Simone.
E a Simone, senhora de si, ainda a olhar o rosto de Edm�ia:
� � a terceira pessoa morta que eu vejo. A primeira foi
uma tia, que morreu de repente. A segunda, uma vizinha, que
minha m�e ajudou a vestir. Agora, a Edm�ia.
E quando desciam os degraus de pedra, j� lavados das
manchas de sangue, sempre calma:

� Eu n�o gosto de tirar retrato. O retrato me d� a id�ia
de como eu vou ficar quando morrer. Parada. Com os olhos
abertos.
213


3

Assim de surpresa, um m�s antes da recep��o, j� com a
casa quase pronta � aquele retrato do pai, a �leo, de corpo
inteiro, na larga moldura dourada, mandado pelo filho da segunda
mulher.

Cedo, este lhe havia telefonado:

� Tenho comigo um retrato de seu pai, muito bom, mandado
fazer por minha m�e depois que ele morreu. No meu apartamento,
n�o tenho espa�o para ele. Como a senhora � a �nica
filha, e eu nasci antes do casamento dele com a minha m�e,
acho que � a�, na sua casa, que o retrato deve ficar.
E agora ali estava o pai, rosado, bem-posto na roupa bem
talhada, com a roseta da Legi�o de Honra na lapela, encostado
na parede do corredor, � espera de que ela, Patr�cia, o acomodasse
num canto adequado da casa.

De in�cio pensara na saleta onde tinha a sua mesa de trabalho.
Logo mudara de id�ia: seria pequena demais para o tamanho
do retrato. No antigo quarto de M�e Ded�, mais espa�oso?
Tamb�m n�o: separados quando vivos, por que uni-los
depois de mortos, no aposento dela?

E o Ludovico, que a acompanhava, sem que ela lhe falasse:

� H� um retrato de M�e Ded�, tamb�m a �leo, por sinal
que muito bom, no quarto ao lado da garagem. Fui eu que
o pus ali, a pedido de M�e Ded�, assim que ela veio morar
aqui. Ela n�o gostava do retrato. Mas � bom. E parecido. A
olhar para um lado, perto da janela.
E Patr�cia, avivando a mem�ria:

� Sim, sim, Ludovico. Estou me lembrando desse retrato.
V� busc�-lo. Traga-o aqui.
E quando reviu M�e Ded�, miudinha, de olhos azuis, no
seu belo vestido de renda, pensativa, e bonita, contrastando
com o pai, assim pequena e simples, teve uma id�ia repentina,
que o Ludovico prontamente intuiu e revelou:

214


� Por que n�o p�e os dois retratos no sal�o, cada qual
no seu canto? Ficar�o bem, D. Patr�cia.
� Era isso que eu estava pensando � replicou-lhe.
E quando viu o pai, imponente, por tr�s do piano de cauda,
e M�e Ded� mais adiante, junto da velha harpa, cada qual
a olhar para um lado, como se ambos se esquivassem um do
outro, para n�o se falarem, ela acabou sorrindo, e com isso
atenuou a emo��o que subitamente lhe toldara os olhos, na
alta luz da tarde.

Pelo contraste entre as duas pinturas e o negror luzidio
do piano de cauda, das cadeiras tauxiadas, dos consolos, os
retratos tamb�m sobressa�am na luz que entrava pelas janelas
e portas, cada qual a repetir seus modelos, assim im�veis, e
intactos, contrariando na sua imobilidade o fluir misterioso
do tempo. � noite, com a luz dos abajures e dos lustres, guardariam
a mesma postura, o mesmo olhar, a mesma cor, os mesmos
tra�os, destacados na claridade da parede, com algo das
figuras paradas dos museus de cera.

Ludovico, em sil�ncio, recuou para uma das portas sobre

o corredor, e dali os admirou, grave, solene, como a considerar
um e outro, do alto de sua compet�ncia e de seu respeito.
Por fim, sentenciou:
� Est�o onde deviam.
E j� ia levando a escada que havia trazido para pregar os
grandes pregos na parede, quando se deteve a meio caminho,
para tornar a olhar o retrato de M�e Ded�. Chegou mesmo
a descansar no ch�o, entre os tapetes, os p�s da escada, e dali
volveu a admirar a figura mi�da, de olhar suave, que a luz da
janela real�ava. E antes de repor no ombro o degrau de madeira,
levando dali a escada, disse � Patr�cia, que tamb�m olhava

o mesmo retrato:
� Foi assim, com esse olhar parado, que eu vi M�e Ded�
pela �ltima vez, quando lhe entrei no quarto e dei com ela sem
vida.
E ao ver que Patr�cia mantinha o olhar sobre o retrato
do pai, como ensimesmada:

� A senhora se parece muito com ele � observou. � No
modo de olhar. No rosto. Na cabe�a erguida. Nas m�os.
215


E passado um sil�ncio:

� Mas tamb�m se parece muito com M�e Ded�. Tamb�m.
Na sua pessoa, louvado seja Deus, se unem o senhor seu pai
e a senhora sua m�e. Cada um com a sua parte. Foi isso mesmo
que eu disse ao Dr. Rodrigo, anteontem, quando o retrato
chegou aqui. E ele me deu raz�o. Agora, comparando a senhora
e os dois retratos, confirmo tudo.
Entretanto, olhando um, olhando outro, o que Patr�cia
reconhecia era a exatid�o do reparo da Simone: de fato, a imobilidade
deles tinha algo de mortu�rio. Parados, opunham-se
ao tempo, como embalsamados. Sobretudo o pai, assim de corpo
inteiro, no costume azul, os cabelos grisalhos bem penteados.

Parecia-lhe que fora exatamente com a mesma roupa que
se encontrara com ele, no silencioso sal�o da Associa��o Comercial,
para rev�-lo mais adiante, pela �ltima vez, exatamente
ali mesmo, entre tocheiros, tamb�m solene, com a roseta da
Legi�o de Honra na lapela.

Conquanto houvesse nascido ap�s a separa��o dos pais,
guardara dele uma lembran�a terna, com imagens espa�adas,
e a que prevalecia a do retrato. Raramente o via. Ele, morando
em Nova Iorque; ela, ali. De passagem, o pai lhe telefonava
para a Escola Normal, e ela esperava por ele no sal�o majestoso,
sem que a m�e soubesse.

Jamais esqueceria a confiss�o dele, em tom natural, como
se houvesse decorado as palavras que lhe sa�am da boca
imperativa, perto da janela sobre a rua, no sof� espa�oso, at�

o momento em que, baixando a cabe�a, lhe pediu que o perdoasse.
E ela, atordoada:

� Perdoar? N�o. De modo algum. O senhor viveu a sua
vida. E a vida acontece, ningu�m a tra�a como quem faz um
desenho.
O olhar dele, nesse instante, com as p�lpebras meio cerradas,
tornara-se mais humano. T�o diverso do olhar do retrato,
superior, altivo, quase em desafio.

E o Ludovico, tornando a p�r no ombro o degrau da escada:


� Com a sua licen�a.
216


E enquanto ele se afastava, com seu passo cheio sobre a
passadeira do corredor, Patr�cia desviou o pensamento para
M�e Ded�, repetindo o que tantas vezes lhe ouvira, desde menina,
a respeito de sua separa��o.

Ouvia-lhe a voz suave, macia, que se crispava em revolta
repentina, subindo de tom, dura e grave, enquanto as pernas
�geis paravam de pedalar a m�quina de costura, ou a m�o experiente
interrompia por momentos o la�o de l� na ponta da
agulha de tric�:

� Minha vida � um romance, Patr�cia. S� eu sei o que
sofri, e o que ainda sofro, quando me lembro o que passei.
Sabes o que � uma carta an�nima? Imagina tu que eu, gr�vida
de ti, recebi uma dessas cartas. Numa letra alta e certa, pedia-
me desculpa para fazer uma revela��o. Que teu pai tinha um
caso, nos Estados Unidos, em Boston, com uma americana casada,
sua colega na Universidade de Harvard. Eu ainda n�o
tinha feito dezoito anos. Quase uma menina. Fiquei gelada.
Esperei teu pai chegar. Ele ia aos Estados Unidos no dia seguinte.
Mostrei-lhe a carta. Ele empalideceu. Depois, erguendo
o olhar para mim, me confessou que o fato era verdadeiro.
E que se havia casado comigo para ver se esquecia a tal americana.
Foi como se a casa em que mor�vamos ca�sse por cima
de minha cabe�a. Muito bem, eu lhe disse. E tive for�as para
perguntar: � E esqueceste essa mo�a? � Ele foi franco: �
Ainda n�o � E eu, com o brio que tu conheces: � Nesse caso,
podes ir para a companhia dela; eu fico no meu canto, assim
como estou. � Ele achou que eu ia fazer uma loucura,
que devia ter paci�ncia, que tudo muda no mundo a cada instante.
E mais: que a tal americana era casada e o marido n�o
lhe dava o div�rcio. E mais isto. E mais aquilo. Fui para o meu
quarto. Nessa mesma noite comecei a arrumar minhas coisas
para me mudar dali. E a verdade � que, quando teu pai chegou,
de volta da viagem, j� me encontrou na casa em que eu
te ensinei a andar e te criei.
Suspirava alto, com o rosto contra�do, e tornava a pedalar
a m�quina ou a dar outro la�o no tric�, concentrada na
sua ira irredut�vel, sempre com este remate:

� Cem anos que eu viva, n�o esquecerei o que sofri, o
217


que sofro, o que sei que continuarei a sofrer. Nasci assim, morro
assim.
E o pai, por seu lado, no fofo sof� da Associa��o Comercial:


� Tua m�e � uma santa, Patr�cia. Reconhe�o o meu erro.
Baixo a cabe�a. Afinal, a Kate n�o precisou do div�rcio:
morreu-lhe o marido, alguns meses depois, e eu fui viver com
ela. N�o te escondo a verdade: sou feliz. Sinto apenas que n�o
pudesse ter dado a assist�ncia que te devia como pai. Me perdoa.
E ali estavam o pai e a m�e, na mesma parede do sal�o.
Com os lustres e os abajures acesos, cada qual continuaria a
olhar para seu lado, como um casal que se separa. Parados. Hirtos.
Mortos. � revelia do fluir do tempo. Como embalsamados.

4

J� de volta dos tr�s dias passados na serra, juntamente
com o Rodrigo, na casa de ver�o de um banqueiro su��o com
quem o marido agora jogava golfe todos os domingos, Patr�cia
abriu o �lbum de recortes, cuidadosamente colados e anotados,
e n�o conteve o espanto:

� Tudo isto, Ludovico?
O mordomo sorriu:
� E � apenas o come�o. Desta vez um s� �lbum � pouco.
Outros vir�o. Pelo menos cinco ou seis. Foi o que eu disse �
Rosa. Da� para cima.
L� estavam, recortados os oito jornais da cidade, e de outros
mais das cidades pr�ximas, as not�cias da recep��o que

o casal ia dar. Alguns, com o retrato de Patr�cia; outros, com
aspectos de sua casa, apanhando a fachada, a piscina, o jardim,
as alamedas, a capelinha. N�o faltavam as entrevistas,
os coment�rios, os progn�sticos, as fofocas sobre quem j� fora
convidado, ou seria, e quase tudo em destaque, nas impress�es
em negrito, reconhecendo que seria ela o grande aconte218



cimento social do ano, destinado a ser falado ali e no estrangeiro.


E o Ludovico, ap�s uns momentos de sil�ncio em que ouviu
o leve ru�do do volver d�s folhas repletas:

� E ainda faltam as revistas, D. Patr�cia. Sim senhora.
Vou fazer para elas um �lbum � parte.
Patr�cia, com a sensa��o de que tudo lhe sorria, na massa
coral de tantos aplausos, volveu uma nova folha, que leu
em diagonal:

� Nem uma not�cia contra, Ludovico?
Ele espalmou no ar as m�os cabeludas, como se desse tempo
a si mesmo para esconder a verdade, e o n�o lhe veio um
pouco alongado, tra�do pelo olhar opaco, que de pronto voltou
a refulgir. Em seguida, em tom mais forte, sacudindo as
bochechas:

� E por qu�, D. Patr�cia? Nem pense nisso. Fa�a como
eu: s� pensamentos positivos. Vai ser uma grande festa. Louvada
aqui e fora daqui. A senhora vai ver.
E Patr�cia, que lhe sentira a instant�nea hesita��o:

� At� Deus, que � a perfei��o suprema, tem o seu inimigo,
que n�o o poupa, Ludovico. Por que � que eu, que sou
humana, n�o haveria de ter? Ano passado houve um artigo
terr�vel, no Amigo do Povo. E outro mais, na Tribuna da Liberdade.
Sem falar nas noticiazinhas reles, com a m�-f� de costume.
Se ainda n�o saiu nada contra, vai sair.
E Ludovico, grave, retraindo-se:

� Eu, por mim, n�o tomarei conhecimento delas. Rasgarei
os recortes, atirarei as mis�rias na lata de lixo. N�o contem
comigo para fazer coro � inveja e � mesquinharia.
Apertou as asas do nariz com for�a, enojado:

� Para l� com o mau cheiro. Penso alto, D. Patr�cia. Nasci
para louvar, para aplaudir, para gostar. E dou gra�as a Deus
por ter nascido assim.
Veio mais para perto, defronte de Patr�cia, como se lhe
fosse dizer um segredo. E baixando a voz, enquanto se curvava:

� Eu sou dos poucos que sabem (e olhou � sua volta,
para certificar-se de que n�o seria ouvido por ningu�m) que
o dinheiro que aqui se gasta, nas recep��es da Sra. D. Patr�219



cia, � igual ao dinheiro que o Sr. Dr. Rodrigo gasta l� fora,
logo depois, em obras de caridade. Estou a par de tudo. Mas
sei perfeitamente que isso � segredo. Segredo guardado a sete
chaves.

Patr�cia, espantada:

� E quem lhe contou esse segredo, Ludovico?
� E quem � que leva o dinheiro aos asilos, aos orfanatos,
aos hospitais? Eu, Sra. D. Patr�cia. Este seu criado. Fa�o
tudo com cautela. Mas exijo recibo. Dinheiro � dinheiro. J�
levo o recibo pronto. Assim: "Recebi do portador a quantia
de tanto, para aplicar nas obras..." E deixo o espa�o em branco
para o nome do asilo, do orfanato, do hospital, de acordo
com a lista que o Dr. Rodrigo me entrega quando entrega o
dinheiro.
E mais baixo:

� Ele nunca lhe falou sobre isso? N�o? Ent�o, por favor,
n�o lhe toque neste assunto. Eu, de minha parte, continuarei
mudo como um cofre. Nem � Rosa eu falei. A ningu�m.
E aumentou muito os olhos, endireitando o busto, enquanto
espalmava a m�o rechonchuda sobre o peito:

� A ningu�m � repetiu.
220


QUARTO CAP�TULO

1

Foi a Rosa que lhe veio dizer que o Rodrigo havia telefonado
para avisar que n�o chegaria a tempo para o come�o do
espet�culo: iria encontrar-se com ela, no pr�prio teatro, j� com
a �pera come�ada.

Patr�cia quis saber se fora ele pr�prio que telefonara.

� Foi � confirmou a governanta. � E fui eu que atendi,
na aus�ncia do Ludovico. O Dr. Rodrigo resolveu mudar
de avi�o. Chegar� um pouco mais tarde.
Sentia-se tensa, nos �ltimos dias, com a estupidez de um
seq�estro de avi�o, de que havia resultado a morte de cinco
passageiros, inclusive uma crian�a, e a que sobreviera o rapto
de um empres�rio, amigo do Rodrigo. A fam�lia pagara enorme
resgate, para este desfecho ainda mais est�pido: o encontro
do corpo, crivado de balas, dois dias depois, � entrada de
um bosque da cidade.

O Ludovico, n�o podendo esconder-lhe as duas not�cias
que haviam ocupado largo espa�o nos jornais e nas televis�es,
acabara reconhecendo, no impulso da revolta:

� Ningu�m se sente seguro, na marcha em que vai o mundo.
E n�o � s� aqui. L� fora tamb�m: em Londres, em Paris,
em Nova Iorque, em Roma, em Madri. Em Madri. Atentados,
bombas, sequestros, raptos. At� mesmo n�s, os criados,
corremos perigo. O Dr. Rodrigo faz bem em resguardar-se e
resguardar a senhora. Todo cuidado � pouco.
Havia agora, para ela, todo um novo aparato � sua volta,
com o guarda de seguran�a muito bem armado, ao lado do

221


Expedito, no autom�vel, e mais um carro de prote��o, logo
atr�s, com dois outros guardas.

A princ�pio, ela reagira. N�o, n�o precisava daquilo. Sabia
que Deus a protegia. Mas acabara por conformar-se, sobretudo
depois de dois telefonemas an�nimos, que ela pr�pria
atendera, no aparelho ao lado de sua cama, na pen�ltima viagem
do Rodrigo.

Felizmente, o alvoro�o dos preparativos para a recep��o,
mais prementes, mais numerosos, desviavam-lhe o pensamento,
e ela ia sentindo que tudo ia sendo providenciado a tempo
e a hora, sob a dire��o do Ludovico, cada vez mais expedito
e solene, sempre munido de seu l�pis e de seu caderninho, rigoroso
e pontual.

O tablado, por tr�s da piscina, adornado de veludo gre�a,
com a indispens�vel cobertura, j� fora testado � noite, sob
os refletores. Parecia um sonho, na sua realidade magn�fica.
No coreto, � direita, nada mais faltava para a orquestra, inclusive
o estrado para o maestro. Este, que ali estivera, com
a sua gravata preta e a sua cabeleira derramada, aprovara tudo,
circunspecto e cort�s. S� observara ao Ludovico, no �ltimo
degrau da escada:

� Agora, vamos torcer para que haja bom tempo.
E o Ludovico, grave:
� Vai haver, maestro. Com o favor de Deus.
No entanto, ainda faltavam vinte e dois dias para que as
portas da mans�o se abrissem, com todas as l�mpadas acesas,
os convidados, os gar�ons, os guardas de seguran�a, os m�sicos,
e a Patr�cia e o Rodrigo a receberem os convidados, no
patamar da escada. J� ia pela casa o movimento dos lustradores,
dos eletricistas, dos faxineiros, dos pintores, dos carpinteiros,
enquanto iam chegando os presuntos, os enlatados, as
bebidas, as mesas que seriam armadas, tudo num frenesi crescente,
a que se associava o latido dos c�es, excitados pelas vozes
e os ru�dos circundantes.
Os espelhos, os lustres, as cortinas tufadas pelas janelas
entreabertas ou escancaradas, pareciam animar-se, repentinamente
alvoro�ados, por entre o soar das campainhas, os cha


222


mados dos telefones, as ordens em voz alta, o tinir das lou�as,

o bater das portas, come�ando desde cedo e entrando pela noite.
O Lucas Caetano, n�o satisfeito com as conversas ao telefone,
para colher mexericos e espalhar mexericos, movia-se
pelo parque, subia ao sal�o, descia � piscina, esfuziante e ligeiro
como uma rajada. Aqui, ali, mais adiante, assestava o
olho arregalado do mon�culo redondo, que entalava na �rbita
direita, �ntimo e exigente.

Advertia:

� N�o se esque�am de que est�o preparando a maior festa
do ano. Ou do s�culo. Tudo tem de ser perfeito. Ou mais que
perfeito, como no tempo dos verbos. Aten��o, mo�ada. Todos
a postos.
E conquanto houvesse sa�do de uma gripe forte, que o deixara
de cama por quase uma semana, n�o sossegava um momento,
perseguido pela tosse rebelde que o obrigava a sapatear,
com as m�os nos joelhos, vermelho, curvado para a frente,
at� conseguir reprimir o acesso, erguendo a cabe�a e praguejando:


� Irra! Assim tamb�m � demais!
E com a m�o em pala por cima dos olhos, sondava o c�u,
inteirava-se das condi��es do tempo, aventurava progn�sticos
otimistas, baseado na circunst�ncia de que a festa da Patr�cia
ia realizar-se numa noite de plenil�nio:

� Vai dar tudo certo.
2

Agora os vidros do carro permanecem fechados. Ela n�o
pode mais falar com o Expedito porque outro vidro espesso
a separa do motorista e do guarda de seguran�a; este �ltimo
sentado � sua frente, gordo, ombrudo, alto, e que est� ali para
proteg�-la, r�pido no gatilho, o rev�lver ostensivo na cintura.

E enquanto o carro desliza no asfalto da avenida larga,

223


pontilhada de luzes, no sentido do centro da cidade, uma sensa��o
repentina de medo apodera-se de Patr�cia.

Abotoando e desabotoando a luva direita para ocupar a
m�o nervosa, ela pensa no Rodrigo, no avi�o em que ele vem,
no mist�rio da noite. E se houvesse mesmo um atentado contra
ele, como lhe sussurrara a voz rouca, do outro lado do fio
telef�nico? A id�ia da morte sempre a perturbou. Desde a inf�ncia.
S� ela sabia o quanto lhe custava, nas ocasi�es imprescind�veis,
acompanhar o Rodrigo no enterro de figuras importantes.


No Pal�cio do Governo, no vel�rio da senhora do Presidente
da Rep�blica, estivera a ponto de desmaiar, defronte do
ata�de, olhando de relance a morta, com quem havia conversado,
dois dias antes, no mesmo sal�o, e que, estendida na urna
de cedro, entre fechos de bronze e tufos de rosas, tinha um
ar amuado, como no desagrado de estar ali, impass�vel, em
vez de estar de p�, � entrada do recinto imponente, ao lado
do marido, recebendo os convidados. Com o suor frio a lhe
descer por dentro do vestido, Patr�cia tratara de amparar-se
no bra�o do Rodrigo, j� na imin�ncia de lhe pedir que a tirasse
dali o mais depressa poss�vel, e sentindo que ia cair, desfalecida.
Ainda bem que o medo da pr�pria morte, nesse momento
de ang�stia, lhe dera for�as para dominar o p�nico. E
s� no carro, de volta a casa, dissera ao marido, amparando
a cabe�a no seu ombro:

� Desta vez me senti pior. Quase te pe�o para vir embora.
Fiquei rezando, a pedir a Nossa Senhora que me desse for�as
para n�o gritar e correr.
E ele, afagando-lhe os cabelos:

� Era preciso vir, n�o pod�amos deixar de vir. Nossa aus�ncia
seria notada. O pr�prio Presidente n�o nos perdoaria.
E tu sabes que muita coisa minha depende da boa vontade dele.
Mais tarde, j� recolhida ao comprido da cama, na madrugada
friorenta que o latido dos c�es tornava mais opressiva,
ela ainda sentia o cora��o bater-lhe mais forte, mais aflito,
enquanto lamentava que o Dr. Nuno, que a libertara de depress�o
an�loga, continuasse em Nova Iorque, na Cl�nica Mayo.
A menos que encontrasse outro m�dico, com a mesma paci�ncia

224


e o mesmo desvelo, teria de ir ao seu encontro, l� mesmo, ap�s
um dia ou uma noite de viagem extenuante.

Felizmente, com a primavera prematura, que de s�bito refolhara
as �rvores do parque, florira novamente o jardim, abrira

o c�u azul por cima da cidade, ela conseguira refazer-se da crise,
amparada pelo Rodrigo, que a levara a retomar os exerc�cios matinais,
correndo no parque, nadando na piscina, pedalando na
bicicleta ao comprido da alameda, sob a prote��o dos altos
muros de pedra que subiam rente � cal�ada, contornando o
quarteir�o silencioso.
E Patr�cia, conseguindo conter o desassossego da m�o que
abotoava e desabotoava a luva, enquanto olhava o guarda de
seguran�a, ao lado do Expedito:

� Nada vai acontecer com o Rodrigo.
A voz rouca, que a assustara pelo telefone, talvez fosse
da Evangelina. De pronto repeliu a suspeita. N�o, n�o podia
ser. Seria crueldade demais. Antes fosse. Se fosse, podia ficar
tranq�ila: a amea�a n�o passaria de uma maldade idiota, sem
qualquer fundo de verdade, apenas destinada a perturbar-lhe

o sono
dif�cil.
E tentando convencer-se, para ficar tranq�ila:
� Foi ela.
L� longe, na volta da avenida, por cima de imenso pr�dio
de cimento armado, as luzes fortes do an�ncio luminoso acendiam
e apagavam, acendiam e apagavam, enquanto uma garrafa
descomunal, tamb�m de riscos luminosos, derramava cerveja
no copo gigantesco que completava o arranjo publicit�rio,
com este letreiro de luzes fixas: Beba bem, e viva melhor.

Impaciente, Patr�cia tirou do gancho o telefone interno,
de que jamais se servira, e perguntou ao motorista:

� Estamos chegando, Expedito?
� Mais uns dez minutos.
Ela retardara a sa�da de casa, na esperan�a de ver chegar
o Rodrigo. Queria ter certeza de que nada lhe acontecera. Chegara
a ponto de pensar em desistir do teatro. Como ia assistir
ao espet�culo, assim tensa? Logo voltou a recordar-se do Dr.
Nuno Vaz, que lhe recomendara a m�sica l�rica para acalmar
os nervos, sempre que se sentisse deprimida. Por que n�o fi225



cava em casa, � espera do marido, ouvindo no toca-fitas a Traviata?
Mudou de id�ia: nada se compararia ao pr�prio espet�culo,
com o cen�rio, os figurantes, o jogo das luzes, a orquestra.
Por outro lado, tinha certeza de que o Rodrigo, no
receio de algum atraso na chegada, estaria viajando de smoking,
para ir diretamente ao teatro encontrar-se com ela.

Al�m do mais, gostava que as amigas e os amigos a envolvessem,
no foyer do teatro, para elogiar-lhe a beleza, gabar-
lhe o vestido e as j�ias, aludir-lhe � recep��o, agradecer-lhe

o convite, insinuarem para ser convidados, com a claridade alta
do grande lustre a ressaltar as linhas de seu corpo. Com certeza,
vendo-a s�, perguntar-lhe-iam pelo marido. E ela, com naturalidade:
� Vem do aeroporto encontrar-se comigo.
E nisto sentiu que o carro acelerava a marcha, numa volta
da rua, depois de um rangido �spero dos freios, para logo
retomar a corrida cautelosa, enquanto o Expedito lhe explicava.

� Corri um pouco para atravessar um trecho �s escuras.
N�o sabemos o que nos espera onde h� luzes apagadas.
3

Assim que desceu na cal�ada do teatro, ela p�de ver, num
relance do olhar, que o espet�culo n�o havia come�ado. E ainda
alongava a vista para o foyer repleto, � espera de que o Expedito
lhe abrisse a porta do carro, quando seis homens a cercaram
� o seguran�a que a acompanhara na limusine e mais
os cinco que a tinham seguido no outro carro �, todos armados,
e decididos a impedir que qualquer pessoa estranha se
aproximasse � at� que ela se achou dentro do teatro, diante
da figura esgalgada do Lucas Caetano, que se curvava para
beijar-lhe a m�o, dizendo-lhe:

� Eu j� estava aflito. Sabia que voc� vinha, disse isso mesmo
aos amigos, e nada da querida Patr�cia aparecer. Com os
226


boatos que andam por a�, assustando a gente, fiquei de cora��o
apertado.
E mais baixo, de cabe�a erguida, falando-lhe ao p� da
orelha:

� Hoje mesmo estourou uma bomba na porta do Banco
das Am�ricas. E o grave, o terr�vel, � que eu tinha acabado
de sair de l�.
Mas Patr�cia j� havia passado � frente, como a desvencilhar-
se dele, atra�da pelos rostos, pelas m�os, pelos bra�os que
a reclamavam, que lhe sorriam, que lhe diziam o nome, que
lhe louvavam a beleza e a eleg�ncia, no torvelinho do carinho
irreprim�vel, a que ela correspondia, comedida, senhora de si,
instalada na sua condi��o de mulher bela e rica, a quem .os
galanteios eram devidos.

E de s�bito, com ar choroso, a mulhera�a morena, de cabelo
escorrido, peituda, mais gorda no vestido folgado que lhe
descia aos p�s vagarosos, parou � frente de Patr�cia, entrela�ando
as m�os papudas por baixo dos seios:

� J� sei que fomos esquecidos pela querida amiga, eu
e meu marido. Sim senhora: esquecidos. Apagados embaixadores
de um pa�s pequenino, mas muito amigos de seu grande
pa�s.
E Patr�cia, for�ando o espanto:

� N�o � poss�vel, Embaixatriz. Se o convite n�o chegou,
vai chegar.
Amanh� mesmo.
E a gorda�a, resplandecente:

� � mesmo verdade? Posso ficar tranq�ila? Quer dizer
que tamb�m fomos lembrados? Mas isso � uma grande not�cia.
Uma bel�ssima not�cia. Ganhei o dia. E fa�o votos para
que n�o chova na grande noite. Como daquela vez em que fiquei
como uma galinha choca, molhada da cabe�a aos p�s.
Eu e o Embaixador. Grande noite. Apesar do dil�vio.
E ouvindo soar a campainha, para o in�cio do espet�culo,
orientou-se na dire��o da primeira porta, no seu andar pendulado,
depois de dizer � Patr�cia, levada agora pelo Lucas Caetano,
que a arrebatara do meio de outras amigas, muito nervoso,
quase hist�rico:

� Enquanto o Rodrigo n�o chegar, quem toma conta de
227


ti, no camarote, sou eu. E estou decidido a me bater em duelo,
se algum aventureiro se atravessar em nosso caminho. Por
aqui, querida. Cuidado com o degrau. Esse degrau � trai�oeiro.
Por aqui. Com licen�a.

Sem largar-lhe o bra�o, abriu com a m�o livre a porta do
camarote, fechou-a sem ru�do, arredou a cadeira para que Patr�cia
sentasse, dominando o palco imenso, ainda fechado pelo
pano de boca. Ela olhou em volta, sentiu que de v�rios pontos
tamb�m a olhavam, fez r�pidos acenos com a ponta dos
dedos, enquanto o Lucas Caetano, repimpado numa cadeira
de bra�os, assumia uma postura de cr�tico exigente, com a m�o
em forquilha segurando o queijo, o mon�culo na �rbita funda,
as magras pernas cruzadas exibindo a meia de seda, a polaina
e a biqueira do sapato, j� pronto para o coment�rio gracioso
e picante, todo ele concentrado no rosto comprido, sobre
cuja testa subiam os dois tra�os verticais que lhe prolongavam
o nariz.

E de repente, como tardasse o novo aviso da campainha
para abrir � palco, ele aproximou a cadeira, desfazendo num
relance a postura s�bia, com a m�o no punho de Patr�cia:

� Deves estar maluca com os pedidos e os empenhos da
gr�-finada. Eu, que sou apenas um colunista social, tenho sido
assediado dia e noite para um convitezinho manhoso.
Fecho-me em copas. Ou ent�o olho de cima: � Ah, querem
convite? Dirijam-se ao cronista social que escreve romances
e poesias, com o ar pretensioso de quem vai ser acad�mico.
Falem com ele. O prest�gio dele � forte, d� para abrir paredes
de fortaleza com o aceno do mindinho. O meu, n�o.
E ilustrava a frase com o dedinho em gancho defronte
dos olhos.

Patr�cia, inebriada pelos olhos que se voltavam em sua
dire��o, n�o o escutava: toda ela aproveitava bem a luz do
camarote, com o antebra�o esquerdo apoiando-se no rebordo
da grade de ferro. Parecia estar ali para que a admirassem,
com a converg�ncia dos lornh�es e dos bin�culos. Nem
uma ruga sequer na pele bem maquilada. Nem um cabelo branco
a insinuar-se, com seu brilho de prata metedi�o, na cabeleira
bem penteada. O colar de p�rolas de duas voltas caindo


228


lhe sobre o colo alto. Os pingentes de brilhantes descendo da
ponta das orelhas que o cabelo das t�mporas protegia. A pulseirinha,
tamb�m de brilhante, que merecera o coment�rio em
negrito na coluna do Lucas Gaetano.

E o Lucas, recolhendo o olhar que relanceara por todo

o teatro:
� Patr�cia, at� parece que a diva �s tu, aqui no camarote.
A prima-dona que se cuide. �s capaz de lhe roubar o espet�culo.
E quase a levantar-se, no impulso de um novo alvoro�o:

� J� sabes quem est� a�? O Louis Richard. O pr�prio.
O ex-campe�o de t�nis. Perguntou por ti. Se j� tinhas chegado.
Se o Rodrigo estava contigo. Fiz que n�o ouvi. Que olhasse,
ora essa. Estou aqui para dar not�cias na minha coluna.
Sacudiu o ombro direito, olhou de lado. E ainda rindo:

� O bonit�o de antigamente, que aparecia na capa das
revistas, virou um caco, um baga�o. Com os cabelos grisalhos,
o rosto encovado, os olhos fundos. Abandonou o t�nis.
Dedicou-se a neg�cios na terra dele. Parece que voltou aqui
com a corda no pesco�o. Veio vender a casa de campo. N�o
conhe�o a casa. Dizem que � soberba.
E inclinando o busto, com uma curiosidade mals� no olho
vivo:

� Aqui para n�s, como segredo de amigo: houve alguma
coisa entre voc�s, no tempo em que ele vivia atr�s de ti,
fazendo-se amigo do Rodrigo?
E Patr�cia, s�ria, com rispidez:

� E isso � pergunta que voc� me fa�a, Lucas?
Lucas endireitou o busto, corrigiu a posi��o do mon�culo,
puxou para cima o vinco da cal�a:

� N�o est� mais aqui quem falou. Esquece. E perdoa.
Obrigado pelo car�o.
Merecido.
E como, nesse momento, a um novo aviso da campainha,

o pano de boca ia subindo, acompanhado pelo som da orquestra
que fazia vibrar a massa coral dos violinos e das flautas,
tanto ele quanto ela aumentaram os olhos, extasiados, para
a beleza e a impon�ncia do cen�rio ainda vazio.
229


De volta ao camarote, no primeiro intervalo, ela se admirou
de sua rea��o no reencontro com o Louis Richard. De
in�cio, seu cora��o se acelerara; depois, ao estender-lhe a m�o
para que ele a beijasse, s� lhe reparou na figura envelhecida
que o tempo devastara.

No camarote, enquanto esperava que o espet�culo recome�asse,
n�o deu ouvidos ao que o Lucas Caetano lhe dizia
com ar de mexerico, toda ela concentrada na demora do
marido.

J� com as luzes apagadas e a orquestra tocando para o
in�cio do novo ato, Patr�cia consultou mais uma vez o relojinho
de ouro e brilhantes, na claridade que vinha do corredor
pela fresta da porta.

E de si para si, temerosa:

� Dez e quarenta. Rodrigo j� devia estar aqui.
E de novo um medo vago, que num relance lhe esfriou
as m�os, tornando a aumentar-lhe as batidas do pulso, cresceu
na sua consci�ncia. Tratou de reprimi-lo, suspirando, enquanto
dizia a si mesma, contraindo os dedos assustados:

� N�o, n�o houve nada com ele.
Ultimamente precisava sentir o carro do Rodrigo transpor
o port�o do jardim para que volvesse a acalmar-se, com
a sensa��o do mundo firme � sua volta.

N�o, n�o podia aceitar que um desastre, um atentado,
um ato terrorista, est�pido, brutal e imprevisto, modificasse
a paz e a seguran�a que reinavam em seu redor. N�o. De modo
algum. Deus era seu amigo. Nossa Senhora olhava por ela.

E por cima dos violinos, das flautas e do piano, subia agora
a voz do tenor, ao meio do palco, impec�vel na casaca bem
talhada, amarfanhando na m�o convulsa o len�o que o ajudava
a representar sob o foco de luz que lhe seguia o passo
vagaroso, ao mesmo tempo em que a soprano surgia, por entre
palmas, no v�o dos bastidores, apressada, nervosa, a agi


230


tar o grande len�o espanhol que lhe real�ava a emo��o, por
entre as mi�angas do vestido cintilante.

Mas n�o foram os artistas, compondo a cena monumental,
que desviaram de Patr�cia o pensamento obsessivo: chegou
a descer as p�lpebras, para concentrar-se na �ria que enchia
agora o teatro, e assim ficou por alguns momentos, enlevada
no som do piano e de um �nico violino, at� que os demais
instrumentos se fizeram ouvir, por entre o bater met�lico
dos pratos. Logo subiu e cresceu o coro das vozes, un�ssono,
harmonioso, elevando-se das dezenas de figurantes que
tomavam o fundo da cena.

E o Lucas Caetano, levantando-se:

� Bravo! Bravo!
Parecia fora de si, fren�tico, como se quisesse ser visto
pelos artistas, sempre repetindo as palmas, at� que s� ele agitou
as m�os entusi�sticas. Tornou ent�o a refestelar-se na cadeira
de bra�os, com a m�o segurando o queixo, e ap�s olhar

o relojinho de algibeira, com seu nome na tampa, disse �
Patr�cia:
� Parece que o nosso Rodrigo n�o vem. Se ele n�o vem,
quero ter a honra de te levar em casa. Sobretudo agora, quando
h� mil boatos amea�ando a vida de quem tem dinheiro.
Ela quase gritou, no impulso do p�nico. Conseguindo
conter-se, cedeu � imagina��o do medo, refletindo que, no aeroporto,
com tanta gente chegando e partindo, dificilmente
haveria seguran�a absoluta para proteger a vida de quem quer
que fosse. Mesmo a do Presidente da Rep�blica, com todo

o aparato dos guardas em seu redor. O Presidente dos Estados
Unidos n�o estivera entre a vida e a morte, v�tima de um
louco?
Pareceu-lhe, de repente, que, no caso do Rodrigo, e tamb�m
do seu, ela pr�pria era a culpada, por deixar que seu nome
e o nome de seu marido aparecessem nos jornais e nas televis�es,
todos os dias, com a ostenta��o supletiva das p�ginas
a cores nas revistas semanais. Por que n�o pedia ao Lucas
Caetano que parasse de dar not�cias sobre sua festa? Mais
do que uma simples not�cia, que lhe afagava a vaidade, pare


231


cia-lhe agora uma provoca��o, um desafio, um ultraje, com
tanta gente pobre e revoltada ali mesmo na cidade.
E aproximando-se do Lucas Caetano:

� Posso te fazer um pedido? N�o publiques mais nada
sobre a nossa recep��o. Um pouco de cautela, nesta hora, n�o
faz mal. Parece um desafio.
E ele, sem tirar os olhos do palco, cochichando:

� E � mesmo um desafio � retrucou. � Para esmagar
a cambada que tem inveja de voc�s. H� muita gente que te
beija, n�o podendo te apunhalar, por teres tanta sorte, tanta
beleza, tanto dinheiro. E do Rodrigo, com o seu bumbum para
a lua, nem se fala. Qual o castigo adequado? A not�cia na
coluna social. Domingo que vem, muita gente vai cair, dura,
para tr�s, ao ler a p�gina inteira que dedico � tua festa, com
a rela��o completa de todos os convidados. Vai ser um estrondo
na hora em que virem o nome de Elizabeth Taylor.
E ia rir baixinho, com a m�o no canto da boca, quando
a porta do camarote se descerrou devagar, para dar passagem
ao Rodrigo, na eleg�ncia de seu smoking, a que n�o faltava

o complemento de um bot�o de rosa na botoeira.
De p�, num impulso, abriu-lhe os bra�os; mas j� Patr�cia,
de um salto, se precipitava para o marido e o apertava
contra o peito, e o olhava nos olhos, radiante, desafogada,
sem se dar conta do ru�do �spero da cadeira arrastada para
tr�s, logo seguido pelo psiu en�rgico que subiu de v�rios pontos
da plat�ia.

5

� sa�da do teatro, na confus�o das levas de assistentes
que se retiravam, por entre o apito dos guardas e a sucess�o
dos carros que se acercavam da cal�ada, Patr�cia tornou a dar
com o Louis Richard, parado no meio-fio, a acenar para um
t�xi preto.

E j� no carro, ela perguntou ao Rodrigo:

232


� Viste quem ia tomar o t�xi? Reconheceste?
� Falou comigo no �ltimo intervalo. S� o reconheci pela
voz. Pediu-me hora para me ver no escrit�rio. Meteu-se em
corridas de cavalos, em Paris. Perdeu o que tinha e o que n�o
tinha. Por �ltimo, andou ganhando e perdendo em Monte
Carlo.
E embora seja ainda noite alta l� fora, com as ruas desertas,
as casas fechadas, raros transeuntes a se esgueirarem
para os v�os de sombra, Patr�cia d� por si na tarde ensolarada,
no carro que ela pr�pria dirige, sozinha na estrada longa,
e que ora sobe, ora desce, entre curvas e estir�es arborizados.

A dist�ncia no tempo, com os quinze anos transcorridos,
n�o lhe tirou a nitidez da lembran�a.

O vento da tarde lhe bate nos cabelos, como a querer
despente�-los, e seu sopro revolto a anima a seguir em frente,
calcando mais o acelerador submisso. � ela mesma que vai
ali, resoluta?

� Sim, sou eu. Eu, Patr�cia.
De manh� tinha recebido, em fino papel de linho muito
bem datilografado, a carta que a atordoara: "Estou com pena
de voc�, Patr�cia. N�o lhe digo meu nome, s� lhe digo que
sou sua amiga. Voc� a� no seu canto, quieta, e o Rodrigo, neste
momento, no Hotel Crillon, em Paris, com a secret�ria alem�
que lhe virou a cabe�a. Ela, com seus olhos azuis, p�s voc�
para tr�s. Reaja. N�o banque a boba."

Amarfanhara a carta na m�o convulsa: rasgara-a em pedacinhos
bem mi�dos, com nojo, com raiva, lembrando-se que
chegara a se propor ir com o Rodrigo na viagem de tr�s dias,
e fora ele que a dissuadira:

� Deixa para ir comigo na outra viagem. Agora seria tudo
corrido. Vou a neg�cios, para discutir novos contratos com
clientes e banqueiros, e volto logo.
Depois de ter atirado a carta � cesta de pap�is, ligara para
o escrit�rio do Rodrigo, procurara pela Vilma. Tinha ido
com ele, e ele nada lhe dissera. Nada. Sim, a carta tinha raz�o:
ela, Patr�cia, estava fazendo o papel de boba. Por que
n�o telefonava para o Rodrigo? E nisto, exatamente quando

233


j� havia encontrado o n�mero do Hotel Crillon, o telefone
come�ara a chamar. Seria ele? Com certeza.
E ouvira a voz cheia e nasalada do Louis Richard:

� Estou telefonando para convid�-la e ao seu marido para
conhecerem minha casa de campo. � perto daqui. Num lugar
muito bonito. No Alto da Serra.
Ela, no primeiro sil�ncio, decidindo-se:

� Meu marido, hoje, est� em Paris. Viajou ontem. Mas
eu posso aceitar seu convite.
Irei. Com muito prazer.
E ele, com alvoro�o:

� Posso ir busc�-la esta tarde?
� Diga onde �, que eu mesma vou. De vez em quando
preciso guiar. Como exerc�cio. Para sair um pouco desta minha
rotina. O campo me faz bem. O Rodrigo prefere que eu
n�o dirija, com os cuidados que tem comigo. Mas eu gosto.
Sinto que me faz bem aos nervos.
E ali ia, resoluta, sempre afagada pelo vento. No tailleur
creme que lhe real�ava o rosto moreno, parecia mais jovem,
no ar decidido, no brilho dos olhos, na firmeza com que segurava
o volante, sem reparar no ponteiro do veloc�metro que
oscilava entre 100 e 120 km, enquanto o toca-fitas repetia a
sonata de Brahms de sua predile��o.

Tanto o sol forte da tarde de primavera quanto a melodia
da sonata, a princ�pio suave, depois mais viva, mais ampla,
como que se ajustavam ao est�mulo do vento nos seus cabelos
e no seu rosto para que ela calcasse ainda mais o pedal
do acelerador na sola de seu sapato.

E ela, espantando-se:

� Meu Deus, estou a 150 km!
Diminuiu a marcha, ao mesmo tempo em que procurava
conter-se. Por que n�o voltava dali? Era bem poss�vel que o
Louis Richard estivesse s�, � sua espera. Diminuiu mais a velocidade
do carro, viu o ponteiro do veloc�metro retrair-se para
80 km e 70 km, sem que as duas margens da estrada lhe dessem
a sensa��o de que se deslocavam para tr�s, em sentido
contr�rio, mas continuou a avan�ar na estrada deserta, que
tornava a cham�-la com a sua imensid�o desimpedida, sem


234


pre subindo, sempre subindo, entre alas de pinheiros e
eucaliptos.

Antes de descer � garagem para tirar o carro, tinha ligado
para Paris chamando o Rodrigo. Tinha sa�do. Chamara
depois pela Vilma, sem dizer quem a procurava. Tamb�m tinha
sa�do. Repusera o fone no gancho, depressa descera a
escada.

E para o Ludovico, que lhe abria a porta do carro:

� Eu saio de marcha � r�. N�o precisa chamar o
Expedito.
A ira reprimida, com a certeza de que era mesmo verdade
o que a carta lhe dissera, f�-la manobrar o carro com perfei��o
absoluta, bem ao centro do port�o, e ela agora ali ia,
sempre avan�ando na volta da estrada, enquanto lembrava o
Louis Richard, � sua frente, na tribuna do Jockey Clube, a
lhe dizer, ao lado do Rodrigo, rindo:

� Imagine que eu acabava de perguntar a seu marido
quem era a linda senhora de vestido claro, na tribuna de honra,
e ele me respondeu, com orgulho: � � a minha mulher.
� Vim com ele aqui para ter a honra de cumpriment�-la. Espero
ver os dois, amanh�, na quadra de t�nis.
Tinha ido s�, j� que o Rodrigo estava preso a outro compromisso
fora da cidade, e toda ela havia sido entusiasmo e
aten��o vigilante a cada jogada do Louis Richard, agil�ssimo
na firmeza com que arremessava a bola, tonteando o advers�rio.
Por fim, � hora de seu triunfo, descera a cumpriment�lo,
quase a exceder-se na excita��o jubilosa com que tamb�m

o beijara:
� Parab�ns! � gritara-lhe, radiante.
E para atenuar o seu j�bilo:
� Por mim e por meu marido.
O belo homem, que acabara de sair na capa do Times internacional,
com os mesmos olhos extremamente azuis, os cabelos
despenteados e atirados para tr�s, o sorriso a dar mais
vida e luz ao rosto ovalado, parecera-lhe ainda mais belo, com
a raquete a lhe prolongar o bra�o esquerdo, no momento em
que sa�a da quadra de t�nis com o p�blico a aplaudi-lo de p�.

J� no Alto da Serra, Patr�cia sabia que, mais adiante, na

235


outra curva do caminho, esse mesmo homem estaria � sua espera,
com o riso aberto, os cabelos despenteados, a m�o segura
e resoluta � que sabia como nenhuma outra empunhar
a raquete, impelindo a bola, rebatendo a bola, multiplicando
as cortadas incr�veis que haviam tonteado o pobre sueco
esguio e louro que ia vendo desfazer-se, a cada momento, na
sucess�o dos lances, o seu t�tulo de campe�o mundial.

� direita de Patr�cia, adiante de um peda�o de muro coberto
de musgo, o renque de carvalhos. Mais al�m, a ponte
de t�buas, seguida por um largo estir�o em linha reta que a
ponte de pedra rematava numa nova curva, sob o c�u amplo,
sem nuvens, que se arqueava, assim l�mpido e uniforme por
cima da corda de montanhas.

� Agora, na outra curva, � o muro que ladeia o port�o
da casa onde o Louis Richard est� me esperando � concluiu
Patr�cia, diminuindo a marcha do carro, como se quisesse voltar.
O ponteiro do veloc�metro desceu a 40 km, baixou para
30 km, quase resvalou para 20 km, e logo o vulto do Louis Richard
se recortou contra a claridade, levantando os bra�os acima
da cabe�a, no meio da estrada, defronte do port�o escancarado.


Ela veio vindo devagar, calcando o freio e sorrindo, e parou
a um passo do port�o. Ele correu, abriu depressa a porta
dianteira, para sentar-se ao seu lado, contrastando a sua camisa
vermelha, de colarinho aberto sobre o peito cabeludo,
e ficou a olh�-la, mudo, como se as palavras lhe faltassem,
segurando-lhe a m�o. Em seguida, sempre a olh�-la, beijou-
lhe a palma das m�os, a ponta dos dedos, e ela p�de ver que
a emo��o lhe umedecia os olhos.

Por fim, dominando-se, ele conseguiu dizer-lhe:

� Sabe a que eu comparo a emo��o deste momento, com
a sua visita? Vai acreditar em mim? Na minha palavra de honra?
Ao momento em que subi ao p�dio para receber o trof�u
de campe�o mundial.
Ela comp�s um semblante de espanto, como se n�o quisesse
crer:

� N�o diga isso.
236


� Digo, e repito, porque � verdade � insistiu ele, s�rio,
afrouxando a m�o que ela rep�s no volante.
E ele, j� senhor de si, mostrando-lhe o resto do caminho:

� Atravesse o port�o, suba devagar a rampa, v� pela alameda
central. A casa est� l� em cima, � nossa espera.
Patr�cia manobrou o carro, p�s-se a subir a rampa, contente
de ter vindo. Ao fim da alameda de cedros, a poucos
metros da casa ampla circundada por um varand�o aberto,
parou, deslumbrada, embevecida. Parecia-lhe irreal o que estava
vendo, com o roseiral florido, as samambaias nos arcos
da varanda, o verde novo das �rvores, a relva que atapetava

o ch�o.
E ele, abrindo a porta da limusine:
� Podemos descer aqui, Patr�cia.
Correu para o outro lado, ajudou-a a descer, e os dois
subiram juntos o resto da vereda inclinada que as pedras de
cantaria lajeavam. L� no alto, j� na varanda, ela se voltou
para baixo, abrangendo o relvado, a alameda, o port�o, o roseiral.
Olhou mais longe, estendendo a vista deslumbrada para
a mata que subia a encosta das montanhas, e tudo � sua
volta lhe pareceu novamente irreal na harmonia de seu conjunto,
com as ac�cias, as quaresmeiras, as castanheiras, na
transpar�ncia da luz intensa que se derramava por todo o vale.

N�o conteve a exclama��o:

� Isto � mesmo lindo, Richard.
E mais tarde, depois do vinho do Porto que ele lhe serviu,
brindando-lhe a visita, ela percorreu ao seu lado as depend�ncias
da casa, parando em cada sala, em cada quarto,
em cada corredor, para admirar os m�veis, o arranjo, o equil�brio
da vasta mesa de dezoito lugares, o guarda-lou�as, os
pratos nas paredes, os quadros, sempre a repetir, na sinceridade
de sua admira��o e de seu enlevo:

� Lindo, lindo. Nunca vi nada igual.
E ap�s um momento intrigado, olhando em volta:
� E quem � que cuida disto, Richard? Onde est�o seus
criados?
Ele abriu o sorriso, dando mais vida aos olhos azuis:

237


� Dei f�rias a todos esta tarde, para n�o dividir com ningu�m
a emo��o de sua visita.
Ela passou � outra pe�a, com ar apreensivo. Depois,
olhando a arca imponente, na saleta que precedia a alcova,
confessou-lhe:

� Vi uma arca igual a esta em casa de uma grande amiga,
que foi minha companheira de col�gio, e hoje est� num
Sanat�rio.
Deu um passo, mais outro.
E ele, j� na alcova:


� Num Sanat�rio? � perguntou-lhe, como interessado.
� Num Sanat�rio � confirmou Patr�cia, abrangendo a
cama de casal, ao fundo, sobre um estrado, a c�moda de jacarand�
entre as janelas fechadas, o guarda-roupa mais adiante,
o orat�rio barroco mostrando o crucifixo de prata, ladeado
por dois velhos casti�ais trabalhados, cada qual com sua
vela por acender.
E ele, junto da cama:

� Agora, deite aqui, descanse um pouco.
Depois, j� com o dia come�ando a esmorecer, quando ela
desceu a serra, voltando � cidade, sorriu para si mesma, contente
por ter sabido reprimir-se quando o Louis Richard lhe
segurou as m�os e quis for��-la a deitar-se:

� N�o, Richard. N�o foi para isso que vim aqui.
E dera tal energia � voz, desvencilhando-se, que ele lhe
afrouxou as m�os, retraindo-se:

� Desculpe, Patr�cia.
Patr�cia, calcando de leve o freio para conter o carro na
descida da estrada, via agora a luz estriar-se de tons vermelhos,
longe, no horizonte � sua frente, enquanto volvia a
lembrar-se da Simone, no p�tio da Escola Normal, olhando-
a no rosto, segurando-lhe os ombros, tal como a havia lembrado,
de repente, na penumbra da alcova, ao desvencilhar-
se das m�os do Louis Richard:

� Eu, se me casar, nunca serei de outro homem, Patr�cia.
Patr�cia ligou o toca-fitas e logo voltou a ouvir a sonata de
Brahms. E erguendo mais a cabe�a, com o dorso apoiado no

238


recosto do banco, p�s-se a dizer baixinho, a olhar � sua frente
a mais longa reta da estrada:

� Eu tamb�m penso assim, Simone. E foi por isso que
n�o me entreguei.
6

N�o sentiu o sono chegar. Embora estivesse gostando do
novo romance de Simenon, presa ao gradativo enleio de sua
trama, deixou cair as p�lpebras, como cedendo a um cansa�o
moment�neo, e afastou-se da realidade circundante, com a l�mpada
de cabeceira acesa, o Rodrigo adormecido ao seu lado,

o latido dos c�es no parque e a nesga mansa de luar que se
insinuava pela vidra�a da janela, na abertura da cortina, confundindo-
se com a claridade do abajur no tapete do ch�o.
Deixara para guardar na manh� seguinte o vestido longo
com que tinha ido ao teatro, limitando-se a deix�-lo sobre

o espaldar da poltrona, a um canto do quarto, com as luvas,
as meias e o libreto da �pera nos bra�os da cadeira, por baixo
da qual jaziam os sapatos prateados, um ao lado do outro.
Ainda ouvira o rel�gio do sal�o, longe, bater a sua pancada
ressoante no come�o da madrugada. Depois, sil�ncio, e

o sonho bobo em que corria pelo parque perseguida pelo Louis
Richard, j� velho, de cabelos grisalhos, tal como o vira no foyer
do teatro, com o mesmo smoking folgado, a mesma gravata-
borboleta.
Patr�cia dormia reclinada, com as esp�duas apoiadas em
dois travesseiros, o dedo interposto nas folhas do romance,
a barra do cobertor por cima dos seios.

Nisto, no sil�ncio amplo, o retinir da campainha do telefone
ali ao seu lado, na mesa-de-cabeceira. Ouviu-o longe, depois
mais perto, e descerrou os olhos, um tanto atordoada.
Esperou um momento, sempre a ouvir o telefone chamar, ainda
sem aflorar de todo � consci�ncia. Por fim, j� consciente, alongou
o bra�o para o aparelho, ao mesmo tempo em que altea


239


va o busto, de lado, apoiando-se no cotovelo, e conseguiu dizer,
com o bocal do telefone � sua frente:

� Al� � em tom sonolento.
Logo uma voz de mulher, longe, e que n�o lhe era desconhecida,
soou ao seu ouvido, clara, n�tida, alongando o r.

� Patr�cia? N�o te espantes: sou eu. Eu, Simone. Est�s
me ouvindo? Estou te falando do Sanat�rio. Desculpa se te
acordei.
N�o, n�o era trote, �quela hora da madrugada, com a
claridade do luar ao p� da janela, o trilo do apito do guarda
de seguran�a, o latido dos c�es. Mas a voz inconfund�vel da
Simone, imperativa, senhora de si, como ao tempo da Escola
Normal. Uma defronte da outra, ambas na blusa branca e na
saia azul do uniforme.

E Patr�cia, sentando-se na borda da cama:

� Sim, Simone, estou te ouvindo. Sou eu mesma. Patr�cia.
N�o, n�o me acordaste. Eu estava lendo. Continuo com
as minhas antigas ins�nias. Como no nosso tempo.
E a Simone, numa voz mais firme:

� Eu te telefonei pelas nove horas. Uma voz de homem
me disse que tinhas ido ao teatro. Continuas fiel � �pera. Fazes
bem. Eu tamb�m continuo. Mas me contento com o videocassete.
Ou com a televis�o. N�o � a mesma coisa. Mas
distrai.
Uma breve pausa. E quando Patr�cia ia falar, reatando

o di�logo, antecipou-se, como a reprimir a emo��o:
� Tenho lido aqui, nos jornais que da� recebo, o notici�rio
de tua festa. Parab�ns pela id�ia de reunir toda a turma.
Falei de tarde com a Paula, que me confirmou as not�cias.
Foi ela que me deu teu novo telefone. J� convidaste todas
as colegas?
E em tom de queixa, baixando a voz:

� Eu n�o fui convidada.
E Patr�cia, com rapidez:
� Desculpa, Simone. Pensei que n�o receberias bem o
meu convite.
Agora, estou te convidando.
Um sil�ncio. Logo depois, a resposta:

� Eu irei, Patr�cia. No vestido longo, como as outras.
240


Depois que se despediram, como se nada houvesse ocorrido
entre as duas, talvez com uma naturalidade excessiva, ou
com sil�ncios levemente contrafeitos, que ambas tratavam de
corrigir, Patr�cia ficou a olhar o auscultador do telefone, perplexa,
at�nita, sem saber ao certo o que pensar e concluir.

Quis acordar o Rodrigo para lhe falar. Entretanto, ao v�lo
imerso no sono profundo, ressonando alto, limitou-se a
corrigir-lhe a posi��o do bra�o, cruzou a perna, ainda na borda
da cama, sabendo que n�o havia sonhado. Telefonaria � Paula?
Ou � Inezita? N�o, �quela hora, n�o. Falaria de manh�.

Como acreditar que a Simone ia estar ali, naquela casa?
Na casa que deveria ter sido sua? Na casa do Rodrigo? E reunida
�s colegas? Como se nada houvesse acontecido entre as
duas? Ali? Mais de vinte anos depois do rompimento entre
elas? Parecia absurdo. Sim, sim, absurdo. O Rodrigo ia cair
das nuvens. A Paula, tamb�m. E tamb�m a Inezita. M�e Ded�,
se fosse viva, ficaria de sobreaviso, estranhando, com seu
ar precavido:

� Eu, no teu lugar, desconfiava. Vai por mim.
E Patr�cia, levantando-se, deu uns passos a esmo, olhou
na dire��o do orat�rio, agu�ou o ouvido para o sil�ncio circundante,
tornou a olhar o marido, para ver se ele ia despertando.
Em seguida, voltou-se para o telefone, intrigada, sem
compreender, sem atinar com uma raz�o plaus�vel que atenuasse
a perplexidade em que se debatia. Ao ver que o Rodrigo
continuava adormecido, chamou por ele, tornou a chamar.
O mesmo ressonar profundo, que o desligava da noite, do mundo
� sua volta, do tempo que ia fluindo, com o bra�o direito
no travesseiro, por cima da cabe�a, o corpo abandonado a si
mesmo.

Patr�cia foi at� a janela, alongou o olhar para fora, insone,
correu a palma da m�o pelo vidro, viu o luar escorrendo
das �rvores, tremeluzindo nas �guas da piscina, destacando
a fachada da capelinha. E tornando � cama, decidiu-se:

� O melhor que fa�o � me deitar. Mesmo que n�o durma,
descanso. Amanh�, falo com a Paula, falo com a Inezita,
tiro tudo a limpo.
Antes de apagar a l�mpada de cabeceira, ensaiou voltar

241


� leitura do romance de Simenon, numa nova tentativa para
espairecer e acalmar-se, mas n�o tardou em desistir do livro,
ao chegar ao fim da p�gina sem saber ao certo o que tinha lido.

Deitada, ajustou os olhos � claridade escassa e leitosa que

o luar espalhava � sua volta, enquanto se punha a conjecturar
como estaria a Simone ap�s tantos anos de reclus�o. Mais
p�lida, certamente. E esguia, os olhos grandes, sempre esbelta,
a cintura fina, os quadris cheios, alta, as m�os longas e
transparentes, ainda bonita. E se houvesse mudado? Talvez.
Com a vida sedent�ria, longe da cidade, confinada certamente
ao seu quarto, tenderia a engordar, assumindo um ar
matronal.
E alvoro�ando-se, como se fosse levantar:

� Ela me disse que vai chegar aqui no dia da festa, pelo
fim da tarde, no avi�o que faz escala perto do Sanat�rio, e
eu n�o adiantei que ia mandar busc�-la no aeroporto, para
que viesse diretamente para c�. Tenho de dizer isso. Amanh�
mesmo.
Refletiu: naturalmente, depois da recep��o, a Simone passaria
ali o resto da noite, s� voltando ao Sanat�rio no correr
do dia seguinte � a menos que decidisse ficar mais tempo.
Sendo assim, tinha de preparar a su�te para o seu pernoite,
ou a sua estada. Quando a Simone fosse embarcar, ela, Patr�cia,
iria lev�-la ao aeroporto. E por que n�o? S� n�o iria busc�la,
porque estaria a preparar-se, quase � hora da chegada dos
primeiros convidados, �s voltas com o costureiro, o cabeleireiro,
o maquilador, a manicura.

Afinal, em meio � madrugada, passou pelo sono, para
despertar quando a primeira claridade do dia entrava na alcova
pelo v�o das' cortinas.

Novamente sentada na borda da cama, com os p�s no tapete
do ch�o, voltou a fixar-se no telefonema da Simone. N�o
teria sonhado? Quem sabe? E ela pr�pria reagiu:

� N�o, n�o foi sonho. Falei com ela. Ouvi-lhe a voz.
J� o Rodrigo havia levantado. Foi ao escrit�rio e n�o o
achou. N�o o achou tamb�m no banheiro. Puxou mais a cortina,
e deu com ele, longe, a bracejar na piscina, sob a luz da

242


manh� que ia crescendo, espa�osa, dourada, com os ru�dos
da rua e o canto dos passarinhos.

Ao sentar � mesa do caf�, uma hora mais tarde, ele lia

o jornal, � sua espera, na cadeira de bra�os da cabeceira.
E Patr�cia, desdobrando no rega�o o guardanapo:
� Adivinha quem me telefonou esta noite, enquanto dormias,
para dizer que vem ao meu anivers�rio. N�o adivinhas?
Ele, com os �culos em meio do nariz, a olh�-la por cima
do aro de ouro, baixando o jornal:

� Quem?
� A Simone.
Rodrigo deixou cair o jornal para os joelhos:
� N�o, n�o pode ser. A Simone, n�o. Foi algu�m por
ela. E que te passou um trote.
Patr�cia p�s as m�os na borda da mesa, tranq�ila, a cabe�a
levemente inclinada, quase a rir:

� Tamb�m pensei que fosse. N�o, n�o foi trote. Nem
sonhei. Enquanto te banhavas, telefonei para o Sanat�rio e
falei com ela para ter a certeza, para me certificar. Sim, foi
ela que telefonou. Ela, Simone. Vem mesmo � recep��o. De
vestido longo, como as outras. E vai ficar conosco, aqui, at�
a tarde seguinte, quando voltar� ao Sanat�rio.
243


QUINTO CAP�TULO

1

Reconheceu a estrada. Sim, era ela. Embora houvesse passado
quinze anos sem vir por ali, guardara-lhe a lembran�a
com a mais absoluta nitidez. Pouca coisa haveria mudado ao
longo de seu percurso. As mesmas curvas. Os mesmos estir�es
desertos. Uma casa aqui, outra al�m. O gado pastando na relva.
No flanco de um morro, a cavaleiro do rio, um casar�o
de alpendre por entre palmeiras imperiais, olhando para o nascente.
E a corda de montanhas em redor, com a �floresta galgando
as encostas.

Num relance, olhando os dois lados do caminho longo,
Patr�cia avivou ainda mais a lembran�a de tudo quanto ia vendo.
Sim, j� passara por ali. Por aquela mesma ponte, cruzando
o rio que descia l� embaixo, por entre- pedras negras. L�
adiante, depois de uma curva fechada, esse mesmo rio ia atravessar
o vale profundo, para resvalar mais al�m, na mataria
densa.

Num impulso, ela esteve para se trair, quase dizendo ao
marido:

� Conhe�o esta estrada, Rodrigo. H� quinze anos passei
por aqui.
Ainda bem que, em tempo, soubera reprimir-se, enquanto
o marido umedecia a ponta do charuto na ponta da l�ngua,
com ar misterioso, esbo�ando um sorriso, a olh�-la por cima
dos �culos.

Ela, esquivando aos olhos que insistiam em encontrar os
seus, continuou a alongar a vista para as margens da estrada,

245


recordando-se de que era exatamente aquele o caminho da casa
do Louis Richard.

Sim, aquele. Com as mesmas quaresmeiras floridas, l� no
alto, na encosta que a mata revestia. E aquelas palmeiras � sua
direita, perfiladas, soberbas, por tr�s do muro coberto de
musgo.

E o Rodrigo batendo a cinza do charuto no cinzeiro do
carro:

� Sabes aonde vamos? � perguntou-lhe.
Ela moveu o rosto para dizer que n�o.
Rodrigo espalmou no ar a m�o gorducha, sempre sorrindo,
os olhos contra�dos, sem desfit�-la. J� ia saber. Estavam
quase chegando. Mais uns dez minutos, se tanto. E quase cerrou
de todo as p�lpebras, acentuando o leque das rugas, enquanto
rodava o charuto entre os dedos, sorridente, divertido,
continuando a olh�-la pelo canto dos olhos.

Cedo, ao levantar-se, ele lhe anunciara:

� Agora de manh� vamos dar um passeio.
Ela, sentada na cama, tateava o ch�o com a ponta dos
p�s, � procura dos chinelinhos.

� Aonde, querido? � perguntou-lhe, ainda estremunhada.
Ele, de p�, defronte do espelho da c�moda, corrigiu o cabelo
�mido que lhe descia para a t�mpora:

� Sabes guardar segredo?
E ap�s um sil�ncio, antes que ela respondesse:
� Eu tamb�m sei.
J� de camisa esporte e cal�a clara, nos p�s o t�nis novo
que trouxera de Paris, Rodrigo deu as costas � c�moda e veio
vindo.

� Quero te fazer uma surpresa � adiantou-lhe, ante o
ar intrigado com que ela lhe sorria.
Patr�cia procurou reprimir a curiosidade. E levantando-se:

� Se � surpresa, n�o tenho mais o direito de querer adivinhar.
Vou esperar por ela.
L� fora, no s�bado tranq�ilo, a imensid�o da manh� de
sol alvoro�ada pelo canto dos passarinhos. Um verde novo nas
folhas das �rvores, que ela olhou de relance, ainda intrigada,
no vidro da janela, a caminho do banheiro. Abriu a porta, fe


246


chou a porta. Aonde o Rodrigo iria lev�-la? E por que aquele
sorriso, aquele segredo?

Nua, defronte do espelho sobre a pia de m�rmore, acabou
de escovar os cabelos, mais uma vez olhou a fileira dos
dentes perfeitos, sempre a ouvir o ru�do da �gua enchendo a
banheira.

Deixou o espelho, fechou a torneira antes que a �gua transbordasse,
tocou essa mesma �gua com a ponta do p�, alongou-
se ao comprido da banheira, e foi ent�o que se lembrou de
seu sonho, na meia-luz da manh� que ia nascendo. Um sonho
l�rico e colorido. Tudo n�tido. N�o se lembrava de ter tido outro
igual ou parecido. Voltava a sentir a menininha morena,
de rosto cheinho, aconchegada nos seus bra�os. Risonha, rechonchuda,
mostrando os l�bios vermelhos, querendo rir. E
com a m�ozinha rosada defronte dos olhos: "� A Bab� p�s
batom na minha boca, e eu pus batom na boca da Bab�. Tu
n�o zangas comigo? Juras que n�o zangas? Ent�o eu te dou
um pedacinho de chocolate do meu ovo de P�scoa. O ovo que
a Rosa me deu."

E riu alto, de olhinhos cerrados, sempre com a m�o rosada
diante da boca vermelha, como se lhe houvesse confiado
um segredo divertido que n�o contaria a mais ningu�m. Depois,
recolhendo o riso, fez-se s�ria, perfilando o dedinho defronte
dos olhos:

� N�o fala nada para a Rosa nem para o Ludovico.
Despertara, emocionada. Por um momento pareceu procurar
a menina � sua volta, na fosca claridade do quarto, ouvindo
o ru�do do chuveiro no banho do Rodrigo. Apoiara as
costas no travesseiro, entrecerrara os olhos �midos, e assim ficara
por quase meia hora, tentando retomar o sonho interrompido.
Por que tivera semelhante sonho, se toda a sua experi�ncia
materna se limitava ao conv�vio das �ltimas bonecas, no
primeiro ano da Escola Normal? Uma menininha linda, com
um leve toque de sarda nos p�mulos salientes. Por ela trocaria
a sua festa, a sua casa, o seu parque, as suas j�ias.

E para o Rodrigo, ali no carro:

� E se adot�ssemos uma crian�a?
Ele a olhou em sil�ncio, sempre a rodar nos dedos o cha247



ruto. Estendeu o olhar para fora, tornou a olhar para Patr�cia,
sorveu outra fuma�a, soprou-a, ficou uns momentos quieto.

Desta vez dispensara o guarda de seguran�a. Somente o
Expedito ocupava o banco da frente, empertigado, senhor do
volante, enquanto as duas margens da estrada se deslocavam
em sentido contr�rio.

E ap�s longo sil�ncio, tornando a firmar os olhos em Patr�cia:


� Ainda n�o imaginaste aonde vamos?
E ela, assustada, ao ver aproximar-se o port�o de pedra
brasonado que havia transposto em companhia do Louis
Richard:

� N�o.
Parariam ali? Ou iriam mais adiante? Ela, desconhecendo
o resto da estrada, contraiu as sobrancelhas, mais intrigada.
Voltara a sentir nas t�mporas a pulsa��o acelerada. Como
que seus nervos se distendiam, tensos. As m�os frias, levemente
tr�mulas, estavam agora entrela�adas. O Rodrigo teria sabido
de seu encontro, ali, com o Louis Richard? Se soubera, por
que n�o lhe falara? E que significava aquele passeio estranho
e repentino, quinze anos depois?

Num relance, com o carro quase parando junto ao port�o,
encontrou em si mesma a energia de que precisava. Se ele
a interpelasse, contar-lhe-ia tudo, tal como tudo se havia passado.
N�o tinha de que se arrepender. Fora apenas um momento
de assomo, que ela pr�pria soubera reprimir, antes que

o desfecho natural lhe alterasse irremediavelmente a vida.
E o Rodrigo, com o resto do charuto entre os dedos, mais
risonho, mais misterioso, alongando o olhar para o roseiral
florido:

� Hem? Que tal? Soberbo, n�o?
Ela desceu em sil�ncio, em sil�ncio andou pela casa, e s�
ent�o descobriu, ap�s a sala imensa de lareira apagada, a figura
grave do Ludovico, e mais a Rosa, e dois outros criados,
todos bem vestidos, como se fossem servi-la.

Junto � vasta mesa de vinte e quatro lugares, ouviu a risada
farta do Rodrigo, do outro lado da mesa.
E ele, misturando o riso � fala:

248


� Tudo isto agora � nosso, Patr�cia. Tirei a corda do pesco�o
do Louis Richard, que precisava vender esta casa de campo
para se livrar de d�vidas de jogo*
Fez-se s�rio, com seu ar natural de homem de neg�cios:

� O coitado foi ao meu escrit�rio oferecer tudo isto por
uma bagatela. N�o aceitei o pre�o. Mandei fazer a avalia��o
correta, para comprar a propriedade pelo pre�o exato. N�o quis
que se dissesse amanh� que me vali da desgra�a alheia para
aumentar nosso patrim�nio. Ele ficou t�o agradecido que me
beijou a m�o.
2

Dela, tamb�m, aquela casa, aquele sil�ncio, aquele roseiral,
aqueles renques de palmeiras, aquelas �rvores, aquele bra�o
de rio, aquela pontezinha de pedra, com seu arco romano sobre
as �guas cristalinas? Tudo aquilo era mesmo seu? Para ficar
ali quando quisesse, e sem limite de tempo? Dona daquele
ar, daquelas montanhas, daquele roseiral, daquelas matas, daquela
casa?

Sem poder falar, Patr�cia se limitou a sorrir, com os olhos
molhados e um aperto na garganta, e foi abra�ar o Rodrigo,
longamente, demoradamente, com a sensa��o subitamente medrosa
de que o destino se requintara em lhe dar tudo, absolutamente
tudo, ou quase tudo, cumulando-a de venturas vis�veis.
Seria sempre assim?

Em seguida, ao penetrar ainda mais na casa tranq�ila, seu
medo cresceu, expandiu-se, dominou-a, dando-lhe a impress�o
f�sica de que se alastrava por todo o seu corpo, esfriando-lhe
a ponta dos dedos, riscando-lhe a coluna vertebral. Com as
m�os geladas, um calor no rosto avermelhando-lhe a epiderme,
uma dor fina na raiz dos cabelos, Patr�cia respirou fundo,
enquanto firmava os p�s nos ladrilhos do piso, para ter a sensa��o
f�sica e firme de que o ch�o n�o lhe fugia. Passados alguns
instantes de imobilidade pensativa, sacudiu a cabe�a pa


249


ra tr�s, no esfor�o para atirar de si o pensamento obsessivo,
e entrou no quarto imenso, parando exatamente no lugar em
que se recusara a entregar-se, diante da mesma cama.

Se houvesse cedido, sua vida teria sido a mesma? N�o,
n�o teria. E mais uma vez agradecia a Nossa Senhora de Lourdes,
ao Menino Jesus de Praga, � Virgem de F�tima, por ter
sabido dominar-se, 'deixando resolutamente o caminho que poderia
ter sido a sua ru�na, o seu desapontamento e a sua perdi��o.


Desafogada e reconhecida, tornou a suspirar. Mas outro
medo veio vindo, com a intensidade da luz descendo da montanha
nas manh�s de estio, e ela aumentou os olhos como se
fosse recuar, l�vida, tr�mula, sabendo que a vida depende de
um momento, e mesmo de um gesto, ou de um sil�ncio, para
mudar e transformar-se, � revelia de nossa vontade consciente.
Como poderia viver ali, ou na casa da cidade, ou mesmo
noutro lugar tranq�ilo, e igualmente seu, se o Rodrigo repentinamente
lhe faltasse?

Tratou de reagir: n�o, Deus n�o permitiria que isso acontecesse!
E por que n�o, se acontecia com outras mulheres felizes?
Um ataque card�aco, um desastre de avi�o, uma bomba
no carro, um tiro de surpresa, um seq�estro a caminho de casa,
e tudo estaria desfeito, como se desfaz o sonho bom com
os olhos abertos. Ela sabia que n�o poderia viver sem o Rodrigo.
Precisava ouvir-lhe a voz, sentir-lhe os passos, v�-lo ao
seu lado no abandono da cama de casal, escutar-lhe o riso derramado,
olh�-lo de frente na claridade da janela, exuberante,
vermelho, expansivo, confiante, queimado de sol.

Nesse momento, como se estivesse a espreit�-la no v�o da
porta, a Rosa lhe disse, por cima do sussurro do vento:

� O Dr. Rodrigo est� chamando a senhora.
Patr�cia saiu � varanda, no seu passo leve e cheio, sem pressa,
com a Rosa ao seu lado. E esta, mais adiante, ap�s um sil�ncio:


� Gostei daqui, D. Patr�cia. Muito. Mas tudo isto, com
toda esta beleza, n�o se compara � casa da cidade. Prefiro a
da cidade.
250


E olhou para os lados, circunvagando a vista � sua volta,
sempre caminhando:

� Se a festa do anivers�rio da senhora fosse aqui, com
toda esta luz, n�o seria mais bonita que a festa na casa da cidade.
N�o, n�o seria. L�, com o parque, a capelinha, as alamedas,
� outra coisa.
Patr�cia continuou calada, sempre caminhando, como que
desatenta aos arcos do varand�o circundante e �s samambaias
choronas que pendiam do meio desses arcos, balan�ando os
ramos soltos na brisa matinal. Parecia-lhe que, se falasse, iria
dizer � Rosa, numa decis�o repentina:

� Estou pensando em suspender a recep��o. Pode n�o
dar certo. H� muita gente com inveja de mim.
Mas agora, quando s� faltavam treze dias para que as luzes
da noite se acendessem na amplid�o do parque? E ela e

o marido, de p� no patamar da escada, a receber os convidados?
� o Cardeal que est� chegando, Rodrigo? Desce. Vai te
encontrar com ele. Agora s�o os batedores que abrem caminho
ao Presidente da Rep�blica. Como que todos os carros
chegavam no mesmo instante. No clar�o dos flashes, cintilam
as pedrarias e as j�ias. Sibilar de apitos. Ru�do de vozes. Risos.
Est� chegando o Ministro da Marinha. O senhor alto, vermelho,
� o Embaixador da Alemanha. Muitos embaixadores.
Ministros. Senadores. J� ia subindo, trazida pelo marido, a Sra.
Encarnaci�n: subia devagar, amparada pelo Embaixador, imensa,
de vestido vermelho. Subia uni degrau, e parava. Outro degrau,
e parava. Outros convidados passavam-lhe � frente, e ela
olhava para o c�u, sondando o tempo, como no temor de outro
dil�vio.
E a Rosa, ao ver Patr�cia ensimesmada, ao fim da varanda:

� Por aqui, D. Patr�cia.
E ambas come�aram a subir a pequena rampa que levava
� pontezinha sobre o rio, ao mesmo tempo em que Patr�cia
ia vendo chegar os velhos professores, as colegas, o Lucas Caetano,
os dois s�cios do Rodrigo, j� com a orquestra a afinar
os instrumentos, sob o jato de luz dos refletores, � espera da
revoada de corpos do Bal� Nacional.

Como desfazer tudo aquilo, de um momento para outro?

251


E que dizer aos convidados que iam vir de Paris, de Londres,
de Nova Iorque, de Lisboa? Imposs�vel sustar a festa. A algumas
das colegas, ela pr�pria, Patr�cia, mandara os vestidos.
A outras, faria vir de avi�o. A outras mais, cederia um de seus
carros.

E para a Rosa, que retardara o passo:

� Est� tudo pronto para o dia vinte?
� Quase tudo. O pouco que falta s� pode ser feito mais
perto. Ou no dia. O Ludovico acha que ningu�m vai ter uma
festa como a da senhora. Eu tamb�m penso assim.
Adiante da ponte, na descida do terreno, uma baia, com
dois cavalos, um deles encilhado, e era este que o Rodrigo segurava
pela r�dea, como se fosse mont�-lo.

E foi no momento em que Patr�cia se aproximava que ele
puxou o animal para fora, firmou o p� no estribo, acomodou-
se na sela, gordo, ancho e contente, outro homem, outra pessoa.
Ela, que nunca o vira montado, levantou as sobrancelhas,
sentindo-o mais mo�o, mais esbelto. Dir-se-ia que a cena houvera
sido preparada para aquele instante �nico, na claridade
alta do meio-dia.

E Rodrigo, quase de p�, contendo a montaria, que de s�bito
ergueu as patas dianteiras, ap�s r�pido relincho:

� O outro cavalo � teu, Patr�cia. Eu te ensino a montar.
Vamos galopar por a� afora, como dois adolescentes.
O cavalo deixou cair as patas, desassossegado, impaciente,
contido agora pela firmeza da r�dea, at� que o Rodrigo,
obrigando-o a voltar-se na dire��o da porteira, tocou-lhe a ilharga
com a roseta da espora, afrouxando os dedos, e o animal
escarvou o ch�o, correu, galopou, enquanto Patr�cia, retraindo-
se, segurava o bra�o da Rosa, em busca de um amparo, para
seguir o marido com os olhos jubilosos, como se houvesse voltado
a ter dezoito anos.

252


QUARTA PARTE

Que chacun de nos jours r�gle ce qui le concerne,
liquide ses affaires, respecte le jour qui
le suivra, et alors nous serons toujours pr�ts.
Savoir �tre pr�t, c'est au fond savoir mourir.

HENRI-FR�D�RIC AMIEL, Journal intime


PRIMEIRO CAP�TULO

1

Imaginando que Simone poderia telefonar pela madrugada,
ou para confirmar que viria, ou mesmo para dizer que
n�o viria, Patr�cia manteve ligada a campainha do aparelho
na mesa-de-cabeceira, junto � cama, assim que se deitou. Ao
seu lado, o Rodrigo devia andar longe, imerso no sono profundo.


Embora houvesse tomado o tranq�ilizante das �ltimas noites,
ela tardou a adormecer. As derradeiras provid�ncias para

o dia seguinte, por entre solicita��es e empenhos de toda ordem,
tinham-na deixado exausta. J� pela fadiga, j� pela excita��o
natural, permaneceu largo tempo entre a vig�lia e o sono,
como se vogasse num torpor prolongado, por entre os restos
de luz da consci�ncia.
De repente, pouco depois da meia-noite, cresceu no sil�ncio
do quarto o ru�do do telefone. Nervoso, imperativo. Como
a gritar dentro de casa.

Na penumbra, guiada pela claridade da l�mpada vermelha
que iluminava o crucifixo da parede, Patr�cia tateou o m�rmore
da mesa, ainda com a cabe�a afundada no travesseiro,
at� encontrar o auscultador de galalite. Levou-o � orelha, certa
de que ia ouvir a voz da Simone. Vencendo a sonol�ncia
com as for�as que lhe restavam, ergueu o busto, apoiou-se no
cotovelo firmado no colch�o, e logo identificou a fala agressiva
que lhe ressoou no ouvido:

� Hoje, sua cretina, voc� deixou o telefone ligado, � espera
dos primeiros parab�ns por seu anivers�rio. Parab�ns de
255


algum amante, como toda mulher rica, que s� vive para as orgias,
as ostenta��es e os desperd�cios. Desta vez voc� se enganou.
N�o foi seu amante que ligou em primeiro lugar: fui eu.
J� reconheceu minha voz, n�o? Os parab�ns que eu tenho para
voc� n�o s�o os que voc� esperava � s�o os meus. Em forma
de votos. Que tal um desastrezinho de autom�vel? Ou um
cancerzinho de mama, desses que deixam a mulher sobressaltada?


E Patr�cia, no impulso da rea��o instintiva:

� Idiota! Imbecil! Que foi que eu te fiz para tanto �dio?
E desligou com rapidez, antes que a outra respondesse.
Para que a liga��o n�o fosse reatada, esperou o ru�do leve do
aparelho desligado, depois deixou o fone no m�rmore da mesa.
Instintivamente apalpou os seios, em busca de um n�dulo,
e s� encontrou a carne fl�cida, que cedia � press�o dos dedos.
Por esse lado estava tranq�ila. Deus n�o iria dar-lhe semelhante
castigo apenas para corresponder ao �dio est�pido da Evangelina.
N�o, n�o iria.

Suspirou fundo, tentando acalmar-se. Em seguida, resoluta,
estendeu a m�o tr�mula por baixo do travesseiro, segurou
o ter�o, e ficou a rezar pela Evangelina, pedindo a Deus
que lhe desse uma luz de ternura humana. Por fim, j� sentindo
que seu cora��o se acalmava, voltou a aquietar a cabe�a
no travesseiro, preparando-se para dormir. Passado um momento,
tornou a descerrar as p�lpebras, como se fosse reerguer
a cabe�a, e interrogou-se, ao ver no m�rmore da mesa
a silhueta do telefone desligado:

� E se a Simone me. chamar?
Logo encontrou a solu��o: assim que despertasse, ela pr�pria
telefonaria para o Sanat�rio, para confirmar-lhe a vinda.
Nada mais simples. Podia dormir sossegada, ouvindo o cadenciado
ressonar do Rodrigo: tratou de cobri-lo melhor, no friozinho
da noite �mida, e tornou a aquietar-se, com a volta do
ter�o no punho direito, enquanto imaginava a noite seguinte,
com a casa repleta de convidados. Viriam todos? O Ministro
das Finan�as, a quem o Rodrigo esperava dedicar a melhor
aten��o, j� se havia desculpado, no cart�o que acompanhara
a corbelha de rosas vermelhas: viajaria pela manh� para uma

256


reuni�o urgente no Clube de Paris; a mulher � t�o linda, t�o
elegante e t�o simp�tica � iria com ele.

Sem transi��o sens�vel, p�s-se a lembrar o famoso seq�estro
do Embaixador ingl�s, exatamente no dia de seus trinta anos,
e a sucess�o de telefonemas de outros diplomatas, pedindo desculpas
por n�o virem � recep��o, solid�rios com o colega. Um
deles chegara mesmo a ser descort�s ao telefone, quando ela
lhe dissera que ficasse tranq�ilo, que tudo ia acabar bem. A
voz �spera, de muitos erres, prontamente objetara em tom perempt�rio:


� N�o � o que estamos pensando, minha senhora. A Pol�cia
daqui n�o inspira confian�a. Temos o direito de admitir
que, a esta hora, j� o nosso colega foi executado. Se foi, algu�m
neste pa�s tem de ser responsabilizado, por todo o Corpo
Diplom�tico. Eu, por mim, j� tomei uma decis�o: vou mudar
de posto. N�o quero correr o risco de voltar ao meu pa�s
no caix�o funer�rio.
E ela, com vivacidade:

� Mas h� diplomatas que voltam no caix�o mortu�rio,
sem terem sido seq�estrados. Nos postos tamb�m se morre de
morte natural.
Ainda bem que a Sra. D. Encarnaci�n, sempre imensamente
gorda, trazida pelo Embaixador Hernandez, tamb�m repleto
e de cabeleira farta (que lhe subia do meio da testa, quase
a emendar com as sobrancelhas volumosas), tinha chegado
cedo, a anunciar que viria o N�ncio, e mais o Embaixador das
Filipinas, e o Encarregado de Neg�cios de Cuba, al�m do Ministro
Conselheiro da Uni�o Sovi�tica, com os quais o Embaixador
Hernandez se havia encontrado na Embaixada inglesa,
ao fim da tarde.

Agora, � recep��o dos seus quarenta anos, quantos convidados
faltariam, al�m do Ministro das Finan�as? Provavelmente,
no correr da manh� e da tarde, outras corbelhas chegariam:
umas, por cortesia; outras, para dizer que os convidados
n�o viriam. No entanto, ela pr�pria, e tamb�m o Rodrigo,
tinham deixado de atender a muitos empenhos, at� de acad�micos,
de artistas, e de gr�-finos da alta roda, sem espa�o
para todos eles na amplid�o do parque.

257


O Lucas Caetano, dois dias antes, tinha achado para o
caso a boa solu��o:

� Vais me dizer quantos lugares sobram, e deixa o caso
comigo.
2

Como as p�lpebras lhe pesassem, deixou-se estar quieta,
ouvindo o apito espa�ado dos guardas que redobravam a ronda
noturna, enquanto a vira��o da madrugada sacudia as �rvores,
assustando os c�es, que repetiam seus latidos.

Nisto, na saleta de seu escrit�rio, viu chegar a Evangelina,
tinindo as esporas, a bater no cano de uma das botas o
chicotinho de vime, com um bon� na cabe�a, os cabelos louros
descendo para os ombros. Sorria, aproximando-se:

� N�o te espantes por eu ter vindo aqui. Vim retribuir
tua visita. E para te bater. � o que mereces. H� gente na mis�ria,
sem ter o que dar aos filhos, e tu nadas em dinheiro. Dinheiro
que roubaste de tua melhor amiga, a quem tomaste o
noivo. Todas n�s, da Escola Normal, te conhecemos como a
palma das nossas m�os. � por isso que te detestamos. E eu
vim aqui te castigar, Patr�cia.
Patr�cia viu-lhe o rosto desfigurado, destacando-se na claridade
da janela, com o bra�o erguido a empunhar o chicote.
Despertou, exaltada, como se fosse efetivamente conter a agress�o,
e deu de frente com o Rodrigo, batendo palmas e cantando
parab�ns. Banhado e barbeado, com o suspens�rio a lhe
subir para os ombros compactos, s� faltava vestir o palet�.

E ele, ajudando-a a levantar-se, enquanto retinia, para o
lado da rua, a sineta do port�o:

� � o Padre Revoredo que est� chegando.
O Padre Revoredo... O bom Padre Revoredo. Fiel � batina,
� tonsura e � pasta preta que sempre sobra�ava, miudinho
e apressado, levando sempre consigo os paramentos de seu of�cio,
para atender �s ordens de Deus.

258


Aparecia de repente e de repente desaparecia, sem que se
soubesse por onde andava. Na verdade, andava pelo interior,
casando, batizando, pregando, aconselhando, ajudando a morrer.
Meses depois, ei-lo de volta � cidade. O mesmo Padre Revoredo.
Contente. Prestativo. Queimado de sol. Um pouco mais
torto pelo peso da pasta preta. E dizendo baixinho, como se
contasse um segredo:

� Ningu�m vai para o Inferno. Deus n�o deixa. Deus �
pai.
Fazia uma semana que estava de volta. Telefonara para
Patr�cia, na mesma voz macia, no pr�prio dia do regresso:

� J� estou aqui para o anivers�rio.
E ali vai ele, debaixo de um velho chap�u de padre, com
a sua batina ru�a e a sua pasta repleta. Caminha pela alameda
do parque, depois de ter parado um momento para admirar

o tablado, o coreto enfeitado de palmas, as l�mpadas entre as
�rvores, os lampi�es apagados, as mesas em volta da piscina.
Parou um momento, extasiado, e comentou, abrindo o sorriso
generoso:
� Desta vez a festa vai ser maior. Bem maior. Maior que
todas as outras. Louvado seja Deus.
Logo retomou o passinho contente, parecendo que ia correr,
saltar, dar um pontap� na bola invis�vel; mas n�o se alterou,
seguiu o seu caminho enquanto o Ludovico, ainda abotoando
o d�lm� da manh�, corria ao seu encontro, para lhe
dizer que a Sra. D. Patr�cia estava acabando de preparar-se.

E o padre, compreensivo:

� Que n�o se apresse. Sou eu que estou adiantado.
Na curva da alameda, como ao fundo de uma gruta, deu
de frente com a capelinha j� aberta, precedida pela cruz de
pedra, reluzindo ao sol o seu revestimento de azulejos. Dentro,
quase todos os criados, nas roupas de ver a Deus. Nas paredes
laterais, o leve tra�o de um desenho de Cocteau. Mais
adiante, ladeando o altar singelo que o crucifixo encimava, dois
vitrais esguios, abrindo na parede a claridade colorida.

Padre Revoredo esgueirou-se pela porta da sacristia, para
dali sair paramentado, saudando com a m�o feliz os criados
que o olhavam, reverentes, ao fundo da nave. Acendeu as ve


259


las, alisou a toalha do altar, corrigiu a posi��o do Evangelho,
mudou de lugar a sineta, conferiu as hostias, chegou mais para
perto os santos �leos, risonho, festejado pela luz que se fazia
mais viva na fresta vertical dos vitrais.

Sempre sorrindo, perlongou a orla de bancos, e saiu ao
adro, depois de apertar as m�os pressurosas que se estendiam
em sua dire��o. C� fora, na curva da alameda, alongou o olhar
� espera da Sra. D. Patr�cia e do Sr. Dr. Rodrigo, ouvindo o
pipilo dos passarinhos, admirando as �rvores, espichando a
vista para o azul forte do c�u, que j� queria esmaecer. Seguiu

o v�o de uma abelha, chegou a estender o bra�o para a borboleta
que lhe passou defronte dos olhos; admirou aqui uma
�rvore, ali outra, outra mais, at� que repentinamente se alvoro�ou,
vendo que Patr�cia e o Dr. Rodrigo vinham � altura da
piscina, de bra�os dados, m�os entrela�adas, aligeirando os
passos.
Precedido pelas m�os jubilosas, Padre Revoredo parou na
volta da alameda, e entrou com os dois na capelinha, segurando-
lhes as m�os, sempre a sorrir, sempre a acenar com a
cabe�a grisalha.

Logo o Rodrigo se adiantou e veio apertando a m�o dos
criados, enquanto Patr�cia falava baixo ao Padre Revoredo, s�ria,
como se lhe confiasse um segredo, a que ele correspondia
movendo a cabe�a, com as m�os na estola. E uma emo��o
maior a dominou, subindo-lhe ao rosto, umedecendo-lhe os
olhos, ao ver que toda gente estava agora de p� na pequena
igreja repleta, por entre os repiques da sineta de prata sacudida
pela m�o cabeluda do Ludovico, ao p� do altar.

Durante quase toda a missa, Patr�cia segurou a m�o do
marido, mesmo de joelhos, no momento da eleva��o. Como
seria a vida, depois dos quarenta anos? Entregava-se � bondade
de Deus. At� ali, por entre pequenos sobressaltos, fora
f�cil a caminhada. Que lhe importava, agora, o susto terr�vel,
durante a turbul�ncia do avi�o, na pen�ltima viagem a Paris?
Ou o m�s de hospital, com o Rodrigo operado? E depois a convalescen�a
longa, que parecia n�o ter fim? Felizmente tudo havia
ficado para tr�s. No confronto das tribula��es e das venturas,
dos contratempos e da paz de esp�rito, mesmo incluin


260


do a morte de M�e Ded� e de seu pai, o prato da misteriosa
balan�a da vida pendia em seu favor. Dava de ombros ao �dio
est�pido da Evangelina. Atirava para um lado, superiormente,
os telefonemas insultuosos, as cartas an�nimas, os despeitos
despropositados, os ressentimentos idiotas, as invejas mesquinhas
e cavilosas, para apenas lhe restar, como uma prote��o,
como uma fortaleza interior, a paz consigo mesma- e o
sentimento de gratid�o por tudo quanto a vida lhe havia proporcionado.


De joelhos, curvou mais a cabe�a, sobre cujos cabelos se
estendeu a luz nervosa dos c�rios do altar, e disse consigo mesma,
emocionada, reconhecida:

� Sou grata tamb�m, meu Deus, por ter recebido a gra�a
de haverdes tocado o cora��o da Simone, que superou a m�goa
injusta que tinha de mim. � noite, ela tamb�m estar� aqui,
superando queixas e amarguras, de novo minha amiga, como
no tempo da Escola Normal.
E por um momento, ainda de cabe�a curvada, as m�os
no rosto, deu por si subindo a escada do p�tio, ao lado da Simone,
no caminho da sala de aula. E ambas riam, ouvindo

o ru�do dos passos nos degraus de m�rmore, com a sineta a
bater de novo pelo fim do recreio.
3

Como Padre Revoredo vinha ali todos os anos, dando a
impress�o de que usava ainda a mesma batina das primeiras
missas, pareceu a Patr�cia que o velho amigo iria novamente
repetir-se, com os mesmos gestos, as mesmas entoa��es corridas.
Mas, n�o: tinha agora uma express�o mais viva, mais contente,
e todo ele se rejubilava, na luz dos olhos, na vivacidade
das m�os, ajustando-se � capelinha florida, na celebra��o da
missa gratulatoria. E essa alegria se acentuou no momento da
comunh�o, com a h�stia na ponta dos dedos, defronte da emo��o
de Patr�cia:

261


� Que Deus a aben�oe � conseguiu dizer-lhe.
Depois da missa, percorrendo de volta o caminho da alameda,
na dire��o da casa ensolarada, para o caf� obrigat�rio
na saleta da copa, Padre Revoredo tornou a dizer � Patr�cia
e ao Rodrigo, aligeirando entre os dois o passinho apressado:

� N�o me esque�o que devo aos meus bons amigos o sino
de duas igrejas. Sempre hei de vir aqui com a minha gratid�o.
E Rodrigo, retraindo-se:

� A mim o senhor n�o deve nada, Padre Revoredo. Fale
s� para a Patr�cia.
A mim, n�o.
E o padre, de cabe�a meio torta:

� Aos dois, aos dois. Ela fez a promessa, mas foi o meu
amigo que assinou o bonito cheque, cobrindo todas as despesas,
e ainda acrescentou a esmola para os meus pobres e o donativo
para a creche e a maternidade. Deus n�o esquece. Nem
eu, seu humilde vig�rio.
Sim, sim, fora dela a promessa, no �nico ano em que a
capelinha, naquele mesmo dia, tinha ficado fechada, com o
Rodrigo no hospital, e ela � sua cabeceira, com medo de perd�lo.
Mas tudo dera certo ao fim da convalescen�a vagarosa, e
ali estavam os dois, lado a lado, ambos com sa�de, ambos amigos,
ambos reconhecidos � bondade divina, que os aben�oava
e protegia.

E o padre, para Patr�cia, quando iam subindo a escada
por tr�s da casa em alvoro�o:

� Vem mesmo a sua amiga? Tamb�m rezei por ela. Sabe
que fui eu que batizei a Simone? Sim, fui eu. Fico contente
em saber que ela vem. E vai ficar aqui? Muito bem.
Por volta das dez horas, vestida para sair, Patr�cia mandou
dizer ao Expedito que tirasse o carro da garagem e ordenou-
lhe que a levasse ao Convento de Santo Ant�nio. Precisava de
um amparo, uma prote��o, um apoio sobrenatural que lhe apaziguasse
o vago temor que teimava no seu esp�rito e que nada
explicaria. Somente a missa de todos os anos n�o lhe bastara.
Embora menos possessiva, a ansiedade tornava a afligi-la, como
uma premoni��o.

Debalde tentara dispensar a companhia do guarda de se


262


guran�a, instalado no banco da frente, espada�do e corado.
Chegara mesmo a pedir-lhe, ao descer do carro, que ficasse
ali mesmo: mas j� o homem alto e gordo, de paletoz�o a lhe
descer para os joelhos, tratava de saltar ao p� da escadaria de
pedra, quase a exibir a arma que lhe aumentava a cintura obesa,
e assim a seguiu, escadaria acima, na nova manh� de sol,
enquanto uma revoada de andorinhas tatalava as asas contentes,
por cima do campan�rio da igreja.

A meio caminho, suplicara-lhe:

� N�o suba mais, fique aqui. Por favor.
Mas o homem continuou subindo, leve como um bal�o
aceso, e foi postar-se no patamar, no portal do adro, sabendo
que estava ali para proteg�-la. Ela passou, entrou na igreja,
e ele atr�s, com seu olhar agressivo e desconfiado, mesmo defronte
dos t�midos c�rios compridos que iluminavam o altar.
E das velhas devotas, e encolhidas, que salpicavam a nave, aqui,
ali, mais adiante.

De joelhos, curvada sobre as m�os espalmadas, quase s�
na imensid�o do banco de madeira, Patr�cia procurou
concentrar-se em novo agradecimento a Deus pela vida recebida.
Logo a seguir, entretanto, o vivo sentimento intuitivo do
repentino medo inexplic�vel, que irrompeu novamente na sua
consci�ncia, como um aviso, como uma premoni��o, f�-la estender
o olhar firme para o altar, em busca de um amparo.
Rezou depressa, quase de atropelo, e acabou por dizer a si mesma,
entrela�ando os dedos:

� Sei que Nossa Senhora me protege. Nada de mau vai
acontecer com o meu marido e comigo. Pelo contr�rio: tudo
vai dar certo.
Ao sair da casa, um dos criados subia a escada com uma
cesta de flores e um cart�o. Ela leu o cart�o espa�oso, e inteirou-
se das desculpas do Embaixador da It�lia por n�o poder vir
� recep��o. Pareceu-lhe, de repente, que outras desculpas an�logas
viriam no correr do dia, de modo que, � noite, permaneceriam
vazias todas as mesas do parque e mais a mesa central,
de frente para o tablado, e onde deveriam sentar, se viessem,

o Cardeal, o Presidente da Rep�blica, o Ministro da Fazenda,
o Presidente do Banco da Uni�o, os artistas estrangeiros, ela,
263


o Rodrigo, o velho diretor da Escola Normal, ainda rijo nos
seus noventa anos. De volta da igreja, encontraria outras cestas
de flores, outros cart�es, outras escusas, e todo o fiasco
da festa malograda seria propalado pelos jornais, pelas revistas,
pelas r�dios, pelas televis�es � os jornais, as revistas, as
televis�es e as r�dios que n�o tardariam a bisbilhotar tudo, em
busca de not�cias, com seus rep�rteres, suas gravadoras, suas
c�meras de olho arregalado.
Das vinte e muitas colegas, cinco j� lhe tinham dito, desde
a v�spera, que n�o podiam vir, umas por motivo pessoal
de sa�de, outras por contratempos de fam�lia. Outras mais n�o
se escusariam, no correr do dia? Certamente. E logo Patr�cia
se fixou na Simone: esta viria, certamente, com seu mist�rio,
com seu ar esguio. Debalde, de si para si, nas �ltimas horas,
tentara compreender-lhe a mudan�a repentina. Como explicar-
lhe a transforma��o? A voz suave com que ela lhe falara nas
duas vezes em que haviam conversado pelo telefone parecera-
lhe a mesma voz da juventude, l� longe, ao tempo em que ambas
vestiam a saia azul e a blusa branca, com a gravatinha unindo
as pontas da gola e adornada pelo n�mero de metal, indicativo
das etapas de curso. Teria o rosto marcado de rugas,
como duas de suas contempor�neas, a Jovita e a Amparo? Ou
conservaria a pele fresca e limpa da adolesc�ncia? J� a Paula
havia recorrido ao cirurgi�o pl�stico para eliminar o perigalho
excessivo que lhe tufava o queixo, descendo para o pesco�o.

E com o pensamento na Inezita que, antes dos trinta anos,
j� pintava os cabelos para esconder os fios brancos que a envelheciam:


� Ela n�o acreditou que a Simone me tivesse telefonado.
E menos ainda quando eu lhe disse que ela viria � minha
casa.
A Paula, por sua vez, se mostrara mais espantada. N�o,
n�o era poss�vel. A Simone? Ali? N�o, n�o acreditava. Mesmo
que a visse no parque, entre as colegas, queria toc�-la,
segurar-lhe as m�os, olh�-la de frente, para ter a certeza de S�o
Tom� com o Cristo.

E cedo, pela manh�, ao telefonar para lhe dar os primeiros
parab�ns, tinha-lhe contado:

264


� Patr�cia, a Simone vem mesmo. Eu lhe telefonei para
tirar minhas d�vidas. Ela vem. N�o sabe se vem s� ou se vem
acompanhada por um m�dico do Sanat�rio. De qualquer maneira,
vem. E no velho vestido longo de nossa festa de formatura.
Fiquei t�o emocionada que chorei.
Mas a fadista Pepa Navarro, t�o badalada na coluna do
Lucas Caetano, n�o viria, alegando que ia internar-se numa
cl�nica de emagrecimento. Que n�o viesse. Viria o Cardeal. Viria

o Presidente. Viriam tr�s ministros. O Bal� Nacional. Acad�micos.
Diplomatas. Os agentes estrangeiros do Rodrigo. Os diretores
de empresas. Banqueiros. Deputados. Senadores. Ao
todo, trezentos e dezesseis casais, distribu�dos nas mesas redondas
sob os ramos das �rvores. Para cada convidada, uma
j�ia. E a grande coleta para a instala��o de uma nova creche,
em terreno doado pelo Rodrigo, de acordo com o Cardeal.
Erguendo a cabe�a, de rosto descoberto, Patr�cia tornara
a sentir-se confiante, sabendo que tudo ia dar certo. Tudo. Mesmo
a vinda da Simone. Nossa Senhora estava do seu lado.

Ao fim dos atos de contri��o, viera deixando nas caixas
das esmolas, uma a uma, os �bolos respectivos. E ao sair da
igreja, antes mesmo de assomar ao patamar de cantaria,
alarmou-se: mais de trinta meninos ali se aglomeravam, quase
todos vestindo apenas uma calcinha curta, com o dorso nu;
mesmo as meninas, que se misturavam aos garotos no alvoro�o
da espera, cada qual com seu rosto desconfiado e suplicante.

Assustada, buscou com os olhos inquietos o guarda de
seguran�a e viu que este afastava a meninada, r�spido, agressivo,
a abrir-lhe caminho na escadaria longa. De pronto, nervosa,
Patr�cia mergulhou a m�o no fundo da bolsa, tirou dali
um punhado de moedas, atirou-as na dire��o dos meninos e
houve logo um tumulto incontido, por entre gritos e empurr�es,
enquanto ela tratava de descer, inquieta com a disputa
das moedas, em meio a gritos, socos e safan�es.

E j� o guarda, mais expedito e preocupado, se postara ao
lado de Patr�cia, com a m�o hostil tateando a cintura, enquanto
repelia com o outro bra�o os mais audazes, que reclamavam
mais dinheiro, exigentes, agressivos, enquanto ela tentava escapar,
fugir, nervosa, atrapalhada, atirando no ar outras moe


265


das e aumentando o tumulto, sem perceber que outros meninos
vinham vindo, atra�dos pelo alvoro�o, e eram agora um
enxame de abelhas agressivas. Uns lhe saltavam para o bra�o,
outros j� lhe puxavam a manga da blusa e a barra da saia, com
for�a, com impaci�ncia, de tal modo que, num relance, ela se
convertera na figura disputada, que cada qual chamava a si
como se quisesse levar consigo algo de seus vestidos ou de seu
corpo.

E era em v�o que ela, querendo ser r�spida, protestava:

� Esperem, tenham calma.
Mas o guarda segurou-a pelo bra�o, distribuiu safan�es
para todos os lados, abrindo espa�o entre a escadaria e o cruzeiro,
sem dar ouvido aos protestos de Patr�cia, e a arremessou
para dentro do carro que o Expedito postara ali, prudentemente,
assim que viu os meninos se juntarem nos degraus
da escadaria.

Ela sentou pesadamente ao meio do banco, irritada, um
lume de ira no olhar, parecendo que ia tornar � cal�ada, mas
se deixou ficar no mesmo lugar, intimidada pelos rostinhos hostis
que a olhavam do outro lado do vidro, no ret�ngulo da porta
fechada, como se fossem arranc�-la dali para castig�-la.

O carro arrancou, rangeu nos paralelep�pedos da rua os
pneus dianteiros, abrindo caminho e buzinando, ao mesmo tempo
em que Patr�cia, concentrando a sua revolta no guarda de
seguran�a, reconhecia de si para si que, muitas vezes, na revolta
do adulto contra o mundo e a vida, h� a m�goa e o desapontamento
de uma crian�a.

266


SEGUNDO CAP�TULO

1

J� penteada, com os cabelos negros deslizando sobre os
ombros, para melhor realce do diadema que s� � noite ela poria,
juntamente com o vestido longo, Patr�cia deu uma volta
pela casa para ver mais uma vez se tudo estava em ordem e
nos seus lugares, e espantou-se com a profus�o das corbelhas
nos sal�es, nos corredores, no vest�bulo.

E o Ludovico, elegant�ssimo na casaca nova que lhe adelga�ava
o corpo compacto:

� Outras duas est�o chegando, D. Patr�cia.
Patr�cia levantou mais a cabe�a, envolvida pelo olor forte
das flores, e ordenou-lhe:

� Leve-as daqui, Ludovico. Aqui, n�o.
Ludovico inclinou a cabe�a:
� Agora mesmo, senhora.
E ajudado por dois gar�ons, desceu com elas para o alpendre,
sob as arcadas de pedra, ao fundo da casa. Vistas do
parque, � altura da piscina, iriam sobressair � noite, na claridade
forte dos lampi�es, como se prolongassem o jardim, tamb�m
profusamente florido. J� ent�o o vento come�ava a soprar,
na mansa vira��o do entardecer, e avivava ainda mais o
cheiro das rosas, dos jasmins, dos cravos vermelhos, e esse olor
continuava a acompanhar Patr�cia, que vinha agora de volta,
no mesmo passo firme que ressoava nos ladrilhos da varanda.

Ludovico foi ao seu encontro no momento em que ela ia
tornando ao quarto, parecendo mais nervosa:

� Ordem cumprida, D. Patr�cia.
267


Ela, sem conseguir conter-se:

� H� dias em que o perfume das flores me angustia. Angustia
e bole com os nervos. Como hoje.
Ludovico esbo�ou um sorriso, sol�cito, compreensivo, querendo
acalm�-la:

� Vai passar, D. Patr�cia. Fique tranq�ila: vai passar. O
dia de hoje � um dia diferente. Tudo vai dar certo. Vai. Os convidados
chegar�o na hora. Na hora chegar�o os m�sicos da
orquestra. O Bal� ser� aplaudido. O jantar n�o poder� ser melhor.
Tudo perfeito.
E como a lembrar-se de repente:

� Sua amiga do Sanat�rio confirmou que vem?
O primeiro impulso de Patr�cia foi dizer-lhe a verdade:
n�o, n�o confirmara. E logo a seguir:

� Sim, confirmou.
E o Ludovico, prestimoso:
� Eu disse ao Expedito que antes das seis horas fosse para
o aeroporto. Fiz mais, para n�o haver engano: escrevi em letras
grandes, num peda�o grande de cartolina, o nome da Sra.
D. Simone. Al�m disso, providenciei uma c�pia do retratinho
dela, tirado do quadro de formatura, e ele levou o retrato.
Novamente no quarto, com a chave passada na porta, Patr�cia
estendeu-se ao comprido da cama, cerrando as p�lpebras,
sentindo o alvoro�o da casa em seu redor. Rodrigo, chamado
ao escrit�rio no come�o da tarde, havia-lhe prometido
que n�o demoraria a voltar. Mas, como sempre, chegaria no
�ltimo momento, calmo, risonho, senhor de si. Tanto a Paula
quanto a Inezita, �s voltas com a costureira e o cabeleireiro,
somente apareceriam � hora dos outros convidados. Era consigo
mesma que ela, Patr�cia, devia contar. Pensando bem, antes
assim: ficaria a s�s com a Simone, conversariam as duas como
ao tempo da Escola Normal, com a porta fechada, trocando
emo��es e confid�ncias. Como estaria a Simone? Mudada,
como as outras colegas? Ou conservaria o corpo esguio
de outrora, os olhos grandes, a leve sombra por baixo das �rbitas,
os seios rijos alteados pelo corpete, as m�os bem tratadas?
Queria rev�-la, como se o tempo n�o houvesse passado.
Um longo tempo. Mais de vinte anos. Com os mesmos cabe


268


los ca�dos para os ombros. Um jeito firme de olhar, com a cabe�a
levemente inclinada. E uma voz suave, macia, harmoniosa,
que n�o se confundia com �de ningu�m, mesmo de longe, pelo
telefone. Num relance, Patr�cia lhe sentiu as m�os nas suas
m�os. Olhavam-se de frente, olhos nos olhos, e ambas riam
como sabiam rir, adolescentes. Ah, o ar s�rio, compenetrado,
com que a Simone lhe dissera, no fundo do p�tio, rente ao muro,
� sombra da velha amendoeira: � N�o notaste que os meus
seios est�o maiores? Est�o. Vi hoje, no espelho, quando me
vestia, e segurei os dois com a concha das m�os. Agora, os
teus e os meus t�m o mesmo tamanho. � E fora ela, Patr�cia,
que propusera: � Vamos medir? � E a Simone, recolhendo

o riso: � N�o. Isso n�o. S� mulher �-toa � que faz isso. �
Mulher �-toa, mulher falada. Meu Deus, quanta bobagem! E
Patr�cia se alvoro�a, quase a ficar de p�. Senta-se na cama,
sem ouvir o vento que, l� fora, se p�e a torcer as �rvores, como
se o tempo fosse mudar. E interroga-se, refletida no espelho:
que ia dizer � Simone, quando se reencontrassem? E que
diria a Simone, � sua frente, apertando-lhe as m�os?
E como um galho de �rvore fustiga a vidra�a, na janela
ao lado da cama, Patr�cia se assusta. N�o! Deus n�o permitiria
que o mau tempo prejudicasse a sua festa! Num impulso,
torceu o ferrolho, puxou a r�tula, escancarou a janela, enquanto
a rajada, tamb�m impulsiva, tufou a cortina, ondulou-a,
esvoa�ou-a, correu pelo quarto, sacudiu os pingentes do lustre,
balan�ou as portas do orat�rio, amea�ou o penteado de
Patr�cia, e ela se retraiu, olhando por cima das �rvores a nesga
de c�u sombrio.

Noutro impulso, Patr�cia colheu a cortina, cerrou depressa
a janela, tomada por um medo p�nico. Como fazer, se a chuva
desabasse? Tudo desfeito. Tudo transtornado. Imposs�vel o
Bal� sob o mau tempo. Imposs�vel o jantar ao ar livre, nas mesas
j� arrumadas. O sopro do vento j� teria desfeito os fios de luz
com as lanternas balou�antes. E uma determina��o instant�nea
� cresceu na consci�ncia de Patr�cia: suspender tudo, antes
que fosse tarde. Mas como avisar os convidados? E que
fazer com os que tinham vindo de fora e j� estavam na cidade?
Desatinada, p�s-se a premir a campainha, chamando a Ro


269


sa e o Ludovico. E foi este que primeiro apareceu, irrompendo
pelo v�o da porta com ar assustado. Mas n�o tardou a voltar
ao semblante sereno, entrela�ando as m�os confiantes por
cima do peito:

� Ontem, soprou de repente o mesmo vento maluco. Depois,
com o cair da tarde, a nuvem escura se desfez, o c�u tornou
a abrir e fez uma noite de lua cheia. Incompar�vel. Hoje,
vai ser a mesma coisa.
2

Novamente no quarto, com a porta fechada, n�o voltou
a deitar-se. Primeiro, postou-se defronte do orat�rio, de joelhos,
rezando, para que o temporal n�o desabasse. E ali ficou,
por quase uma hora, repetindo as ora��es, com o ouvido �
escuta do ru�do do vento, l� fora. Depois, levantando-se, assim
que lhe pareceu ter diminu�do a f�ria das rajadas, tornou
a postar-se defronte da janela, a olhar a nesga de c�u por tr�s
da vidra�a, sempre com o ter�o a lhe pender das m�os fervorosas,
e a repetir as ora��es.

Aos poucos foi tendo a impress�o de que o dia se desanuviava,
com as �rvores quietas, as nuvens escuras a se desfazerem.
Devagar, cautelosamente, para que o vento n�o lhe desfizesse
o penteado, entreabriu a janela, alargou mais a fresta,
debru�ou-se para fora, e p�s-se a rir � de um riso nervoso
e convulsivo � ao reconhecer que se desfizera a amea�a do
mau tempo, exatamente quando a tarde se esva�a, com a primeira
estrelinha por cima do leque das palmeiras, longe, ao
fundo do parque.

Ouvindo o ru�do de um carro, veio mais para fora, e p�de
ver que o Expedito ia tirando a limusine da garagem, para
ir ao aeroporto, enquanto come�ava por toda parte, na amplid�o
da casa, na amplid�o do parque, um alvoro�o mais vivo,
com os criados a corrigirem com as vassouras apressadas os :
estragos da ventania, varrendo as folhas ca�das, juntando os

270


galhos quebrados. Ludovico, j� com o vistoso colar de arauto
por cima do peito da camisa engomada, ia de um lado para
outro, diligente, autorit�rio, rigoroso, determinando provid�ncias,
controlando a limpeza, dando ordens � ao mesmo tempo
que iam chegando os m�sicos da orquestra, aos dois, aos
tr�s, cada qual com o seu instrumento, conduzidos ao coreto
pelos guardas de seguran�a.

Em breve, uma lua grande e prematura, redonda, amarela,
apontou sobre a capelinha, luminosa e ornamental, � espreita
da festa, e foi recebida pelo latido dos c�es, subitamente
excitados, como a suspeitar que os fogos de artif�cio, mais
tarde, j� noite alta, iriam subir ao c�u e ali se desfazerem,
abrindo-se em clar�es imensos, para se derramarem em chuveiros
coloridos.

A Rosa, nesse instante, bateu na porta do quarto:

� J� est� na hora de vestir-se, D. Patr�cia.
E Patr�cia, ajudada por ela, p�s o vestido longo, chegado
de Paris dois dias antes, e olhou-se no espelho grande, reconhecendo
que n�o poderia ser mais belo, na sua simplicidade
e eleg�ncia, ajustando-se-lhe ao corpo nas medidas exatas,
tornando-a mais alta, destacando-lhe os seios e o colo moreno.

A Rosa n�o conteve o louvor:

� Nunca vi a senhora t�o linda, D. Patr�cia. De dar orgulho
na gente. Sim senhora. A senhora parece que tem de novo
vinte anos, no m�ximo vinte e cinco. Suas colegas v�o ficar
de queixo ca�do; algumas, com uma bruta inveja. E com raz�o.
E com raz�o. O tom do vestido, o acabamento, o corte,
tudo perfeito. E a senhora, dentro dele, ainda mais bonita.
Benza-a Deus, D. Patr�cia.
Deixada s�, Patr�cia ouviu ru�do na pe�a cont�gua, reconheceu
que o Rodrigo estava de volta, e abriu devagar a porta
sobre o quarto do marido, para aparecer-lhe de repente.

E ele, ao v�-la, enquanto acabava de compor no espelho
a borboleta da gravata:

� Est�s uma deusa, minha mulher. Uma deusa.
E ficou um momento a admir�-la, repetindo o olhar com
que a vira entrar na igreja, com o bra�o direito no bra�o do
velho Frias, diretor do Banco Nacional e seu padrinho, prece


271


dida pela menina linda, que vinha vindo devagar, com a salva
de prata onde brilhavam as alian�as.

E Patr�cia, aproximando-se:

� Est�s olhando para mim como me olhaste na igreja,
na hora de nosso casamento
� adivinhou.
E ele, tratando de vestir o smoking:

� E com um orgulho ainda maior, querida.
Segurou-lhe as m�os, sem desviar os olhos �midos, como
se as l�grimas lhe fossem descer sobre as bochechas, mas
logo se p�s a rir gostosamente, abotoando o smoking.

E antes que ela, com ar de espanto, lhe perguntasse por
que estava rindo, tratou de dizer-lhe, ainda com o riso a sacudir-
lhe a papada por cima do colarinho alto:

� Sabes de quem me lembrei, na hora em que o tempo
pareceu que ia mudar? Daquela tua amiga, a Embaixatriz gorda,
debaixo de chuva. E como ela vem, trazendo o marido,
tamb�m gordo, tamb�m mal vestido, pensei nos dois, aqui em
cima, trazidos novamente por ti, como dois pintos molhados,
e vim rindo no autom�vel, a caminho de casa.
E recolhendo o riso:

� A Simone vem mesmo?
� O Expedito j� foi busc�-la.
3

Mal a noite ca�ra, todas as luzes da casa e do parque tinham
sido acesas. E n�o apenas as das l�mpadas e dos lampi�es
� tamb�m as dos holofotes, que se projetavam no sentido
do tablado, restituindo o verde vivo das folhas nas �rvores
circundantes.

Parecia que um clar�o imenso se abrira sobre todo o quarteir�o,
abrangendo as casas vizinhas, alongando-se � fachada
dos edif�cios, dando � rua a luz do meio-dia. Tinha uma beleza
nova o leque das palmeiras ria alameda principal. Por toda
parte, numa anima��o de meninos no recreio, o colorido das

272


fl�mulas e dos estandartes que a vira��o constante estremecia.
E mais alta, j� de todo redonda, a lua enorme, subindo
devagar por cima dos mais; altos ramos, ao fundo do parque.

O trecho da rua em frente, no limite das ruas paralelas,
tinha sido interditado, para que ali somente passassem os carros
dos moradores. Mais tarde, � hora da recep��o, somente
circulariam os carros que exibissem um convite, com o distintivo
no p�ra-brisas.

Foi a Rosa que veio busc�-la:

� Venha ver, D. Patr�cia. Antes que cheguem os convidados.
Ela abriu a porta, atravessou o sal�o, saiu � varanda, e
p�de abranger, no batente da porta, numa vis�o de conjunto,
com as sobrancelhas alteadas, todo o cen�rio da festa, com
as mesas, os reflexos na piscina, as bandeirinhas nervosas, e
os criados e gar�ons indo e vindo, por entre as mesas postas,
todos nas roupas de gala, imponentes e excitados.

E a Rosa, transbordante:

� Olhe ali os m�sicos da orquestra. At� um piano foi levado
para o quiosque. Mais para c�, voltado para os m�sicos,
o estrado do maestro. Por tr�s do tablado, os bastidores dos
bailarinos. Aqui perto, sobre o estrado de dois degraus, � a
mesa grande, onde a senhora vai sentar. Perto da senhora vai
ficar a sua amiga que o Expedito foi buscar. A do Sanat�rio.
� sua direita, o Presidente da Rep�blica. Seu amigo Lucas Caetano
veio cedo marcar os lugares. Depois, com o vento que
soprou, fomos eu e o Ludovico que repusemos os cart�es, de
acordo com o plano da mesa.
E o Ludovico, que ouvira a fala da Rosa enquanto subia
a escada, destacando na luz intensa a prata de seu colar:

� O Dr. Rodrigo acha melhor que os convidados, em vez
de virem c� para cima, assim que chegarem ocupem logo os
lugares nas mesas, de acordo com a indica��o dos convites.
Eu ficarei ao meio da escada, na porta principal, e dali anunciarei
os convidados, � medida que forem chegando, enquanto
a senhora e o Dr. Rodrigo, c� em cima, receber�o os cumprimentos,
como no ano passado.
Mas Patr�cia quase n�o o ouvia, toda ela excitada pelo

273


aparato que a cercava. Como reagiria a Simone, diante de tudo
quanto ia ver, na casa que poderia ter sido sua? Depois de
tantos anos reclusa, tudo ali lhe pareceria o cen�rio de um conto
de fadas, sobretudo quando assistisse � queima dos fogos de
artif�cio. E como se comportaria, ao ver-se defronte do Rodrigo?


De volta ao quarto, Patr�cia tornou a passar a chave na
porta, inquieta, alvoro�ada, n�o sabendo como proceder. Iria
esperar a Simone ao p� da escada, para subir com ela,
amparando-lhe os passos? Ou a aguardaria c� em cima, perto
da porta, no seu lugar de dona da casa? Perguntaria ao Rodrigo?
Ou se aconselharia com a Rosa, que havia trabalhado na
Embaixada inglesa?

E decidindo-se:

� Se for preciso, vou busc�-la ao p� da escada, para subir
com ela, devagarinho, amparando-a no meu bra�o.
E como estaria a Simone? Muito mudada, como mudaram
a Evangelina, a Cora, a Mercedes? Ou continuaria a parecer
consigo mesma, como a Inezita? Sim, sim, devia ter mudado,
talvez estivesse mais magra, mais p�lida, de olhos aumentados,
ou gordalhona, por for�a da vida sedent�ria. A menos
que continuasse a ter, como outrora, o meticuloso cuidado consigo
pr�pria, na limpeza da pele, no regime alimentar, no banho
demorado, no rigor da roupa branca e dos vestidos. Ainda
gostaria de ler, como antigamente? Ou se limitaria, como
passatempo, a ver a televis�o e a ouvir o r�dio, sem sair da
cama ou da cadeira pregui�osa? Continuaria a ler, certamente,
j� que a vida reclusa, na paz do Sanat�rio, a predispunha
ao prolongado isolamento, a um canto, com um livro diante
dos olhos. A prop�sito: que fora feito dos livros que a Simone
lhe tinha dado, depois de l�-los, ao tempo da Escola Normal?

E a um clar�o da mem�ria:

� Est�o no mirante, na mesma estantezinha de madeira
que ganhei aos quinze anos, presente da m�e de Simone.
Estariam l�, com certeza, protegidos pelo mesmo papel
celofane, com seu nome de solteira na folha de rosto. E eram
muitos, quase cem, ou talvez mais. Se se tivesse lembrado antes,
teria trazido alguns para o quarto, e iria rev�-los com ela,

274


antes que chegassem os outros convidados. Agora, n�o teria
mais tempo, com o alvoro�o que ia por toda a casa, j� com
os m�sicos l� fora, no quiosque, afinando os instrumentos.

Nisto Patr�cia olhou � rel�gio, sentindo que seu cora��o
se contra�a. Pelo tempo, j� o avi�o da Simone teria chegado.
Naquele momento, ela estaria no carro, trazida pelo Expedito.
E quanto tempo ficaria ali? Somente uma noite, para voltar
no dia seguinte? Ou concordaria em passar alguns dias, descansando
da vida no Sanat�rio? Mandara preparar-lhe o quarto,
ao fundo da casa, com pintura nova, cortinas novas, o guarda-
roupa, a c�moda de M�e Ded�, a cama espa�osa, sem esquecer
a televis�o e o r�dio, e mais as rosas frescas na floreira e
as frutas na fruteira. De uma das janelas Simone poderia ver
a piscina, a alameda, o caminho para a capela. Veria tamb�m
uma nesga do jardim. E com muito sil�ncio � sua volta, apenas
interrompido, ou pelo sussurro do vento, ou pelo canto
dos passarinhos.

Convicta, Patr�cia concluiu:

� Ela vai gostar.
De prop�sito, sobre a c�moda, pusera o quadro de formatura
perto do orat�rio de madeira, com o Cristo, alguns santos
antigos,e as duas velas nos casti�ais de prata. Na mesa-decabeceira,
as �ltimas revistas, ao alcance da claridade do abajur.
Na outra cabeceira, o Novo Testamento, que ela sempre
gostava de ler � noite, antes de dormir.

Ouvindo o ru�do de um carro, Patr�cia tornou � janela,
olhou no sentido do port�o, por tr�s do vidro, sem descerrar
a r�tula. Sim, era mesmo o Expedito que vinha chegando. Pensou
em correr ao vest�bulo para receber a Simone. Mas ficou
um momento em d�vida se ele a havia trazido. Depressa entreabriu
a r�tula. E logo deixou o quarto, atravessou o sal�o,
entrou no vest�bulo, sempre com a lembran�a da figura esguia,
de longo vestido branco, que punha o p� para fora do carro,
dando a m�o enluvada � m�o morena que o Expedito lhe
oferecia.

275


TERCEIRO CAP�TULO

1

Estavam ali as duas, uma a olhar para a outra, com as
m�os nas m�os, sem que pudessem falar: Simone, com a fisionomia
devastada, os grandes olhos im�veis, um vinco forte
a unir-lhe o canto da boca ao canto do nariz, sem pintura, uma
leve camada de p�-de-arroz acentuando-lhe a palidez; Patr�cia,
reprimindo o choro, e sorrindo, muito bem maquilada, as
p�lpebras levemente descidas.

E foi Patr�cia que primeiro conseguiu falar:

� Simone, est�s �tima. Como se o tempo n�o houvesse
passado. O mesmo rosto. Os mesmos olhos. O mesmo porte.
E ia dizer-lhe que seu vestido era lindo, assim a lhe cair
aos p�s, e que seu sapato alto a tornava mais esbelta, mas soube
conter-se, com receio de que a voz a tra�sse na representa��o
da mentira, e limitou-se a apertar-lhe ainda mais as m�os
geladas:

� Que saudade de n�s duas, Simone: tu, tomando nota
na aula de l�gica do Professor Avertano; eu, de m�os baixas,
em cima do colo, a preparar o avi�ozinho de papel que iria
atirar ao p�tio, no fim da li��o. Depois, l� embaixo, o teu car�o
afetuoso.
O velho vestido da formatura, com que a Simone ali estava,
envelhecera como envelhecera a pr�pria Simone � um
pouco largo na cintura, com as mi�angas incompletas no peito
ca�do, a barra desequilibrada pelo ventre alteado, as mangas
guardando os vincos do guarda-roupa, e cheirando a naftalina.


277


E Simone, j� come�ando a acalmar-se:

� Quase que eu n�o vinha. Senti que ia fazer m� figura
com este vestido. Ontem, com o alvoro�o da viagem, me cansei
um pouco. Tive de tomar um calmante. Felizmente a viagem
foi r�pida.
E num sorriso triste que lhe vincou mais o rosto:

� Foi a primeira vez que viajei de avi�o. No come�o, tive
um pouco de medo; depois, fiquei mais calma. Cheguei a
passar pelo sono, no meio da viagem. E aqui estou, como te
prometi.
Patr�cia acudiu, vendo-a olhar em volta, � procura de uma
cadeira, como se as pernas lhe quisessem faltar:

� Senta-te aqui na poltrona.
E Simone, numa voz baixa:
� Eu preferia me deitar. A esta hora, sempre me deito.
E Patr�cia, muito terna, muito sol�cita, segurando-lhe o
bra�o:

� Vem aqui para meu quarto. Tu te deitas enquanto eu
acabo de me preparar. E assim ficamos conversando.
Simone veio vindo, sempre com os olhos deslumbrados.
Parou a meio caminho, como a refazer-se da travessia do sal�o:


� Mudaste muita coisa em tua casa. Nada como a m�o
do dono. Foste tu que puseste este espelho? Aqueles jarr�es
chineses n�o estavam aqui. N�o me lembro deles. Bonitos retratos,
Patr�cia. Principalmente o de M�e Ded�. Tamb�m aquele
piano � novo.
E Patr�cia, confirmando, sem largar-lhe o bra�o:

� Sim, � verdade. O espelho veio da fazenda dos pais do
Rodrigo.
E Simone, contraindo as sobrancelhas, no esfor�o para
avivar a mem�ria apagada:

� Da fazenda? Fui l� duas vezes. N�o me lembro desse
espelho. Os jarr�es tamb�m vieram de l�?
� Os jarr�es e o piano foram comprados por mim, num
leil�o do velho pal�cio dos Castro Pinto.
E Simone, ap�s um sil�ncio:

� E as duas marinhas holandesas? Lindos, esses quadros.
278


No tom que eu gosto. A luz ao fundo, muito suave, e mais perto,
quase na penumbra, o recorte dos dois barcos. Se me perguntassem
qual dos dois eu preferia, preferiria os dois. Lindos.

Tornou a alongar a vista para os dois retratos a �leo, demorando
mais tempo no de M�e Ded�, at� recolher o olhar
pensativo, como se lhe tirasse o brilho, ensimesmada. E sem
se voltar para Patr�cia:

� Minha m�e deixou tamb�m um retrato como o de M�e
Ded�. Me fazia chorar, sempre que olhava para ele. Terminei
por tir�-lo da parede. Quero me lembrar dela viva. Cheguei
a sonhar que o retrato sa�a da moldura, como um fantasma.
N�o, isso n�o.
E adiante, voltando de relance a cabe�a, numa vis�o circular:


� Moras mesmo num pal�cio, Patr�cia. Tudo aqui est�
perfeito, cada coisa no seu lugar. Com muito bom gosto. Muita
harmonia. Desde a entrada, com aqueles dois et�opes negros
sobre o pedestal de alabastro. Os tapetes. Os m�veis. Aquele
lustre. Italiano? Logo vi.
Suspirou, subindo o peito. E passado outro sil�ncio:

� Tens a casa adequada a uma mulher feliz.
E percebendo a claridade forte que vinha do parque, de
mistura com os primeiros sons da orquestra:

� Orquestra? Vai ser no parque o jantar? N�o me digas.
Posso olhar daqui?
E ela pr�pria orientou seus passos para a varanda larga
que acompanhava o quarto de dormir. Parou na varanda, antes
de apoiar-se na balaustrada de m�rmore:

� Que maravilha, Patr�cia. Isto � um sonho. Como as �rvores
ficaram mais bonitas com o clar�o dos holofotes. N�o
me digas que vamos ter fogos de artif�cio. Vamos? N�o � poss�vel.
Aposto que foi o Rodrigo que teve essa id�ia. Foi? Eu
n�o disse? E aquele tablado, que se reflete na �gua da piscina?
N�o, n�o pode ser. O Bal� Nacional vem aqui? Isso � um sonho,
Patr�cia. E onde vamos ficar, n�s, as tuas colegas?
� Elas, nas mesas da alameda; tu, n�o. Ficar�s comigo,
naquela mesa maior, voltada para o tablado.
Um sil�ncio.

279


E Simone, buscando o bra�o da outra para apoiar-se:

� De vez em quando me canso. Ultimamente tenho tido
umas vertigens. V�m, e passam. Felizmente. Agora mesmo tive
uma. J� estou acostumada. Onde est� teu quarto?
E parada no batente da porta enquanto se refazia da nova
emo��o:

� Eu me lembrava daquela cama sobre o estrado. N�o
me lembrava da c�moda nem dos guarda-roupas.
E dando mais um passo para tornar a parar:

� Ao lado deste quarto era o gabinete de trabalho do Rodrigo.
No outro lado, o quarto de vestir. Lembro-me bem. Como
se tivesse morado aqui. Onde est� o orat�rio grande, de
duas portas, que o Rodrigo ganhou de um amigo quando fez
vinte e cinco anos? � aquele? Eu me lembrava dele como se
fosse bem maior. � sim, � ele. Estou me lembrando da pintura
de dentro, com aquelas florinhas. E do Cristo portugu�s.
Tornou a amparar-se no bra�o da Patr�cia. E junto � cama:

� Eu me deito naquele sof�, Patr�cia. N�o quero desfazer
a cama,
que est� t�o bem arrumada.
Mas j� Patr�cia abrira espa�o na colcha bordada:

� Aqui mesmo, Simone. Aqui. � este o meu lado. Deita-te.
E Simone, alongando-se ao comprido do leito:
� N�o vou teimar contigo.
Patr�cia ajustou-lhe a cabe�a ao travesseiro, corrigiu-lhe
a barra do vestido, tirou-lhe os sapatos:

� Bem sabes que a casa tamb�m � tua. Eu, se fosse tu,
ficava aqui uns dias. Mandei preparar teu quarto, na outra ala
da casa, abrindo sobre a piscina.
2

Simone ensaiou levantar-se, mas logo voltou a acomodar
a cabe�a no travesseiro, enquanto Patr�cia, puxando para perto
da cama a cadeira mais pr�xima, lhe ponderava:

280


� N�o te levantes. Ainda � cedo. Descansa mais um pouco.
S� perto das dez horas chegar�o os outros convidados.
E sorrindo, ao ver que Simone, olhando-a pela fresta das
p�lpebras, tamb�m lhe sorria?

� S� eu sei a minha alegria em te ver aqui no meu anivers�rio.
� o meu melhor presente. Mais importante que tudo
quanto recebi no dia de hoje.
Simone alongou o bra�o, dando-lhe a longa m�o gelada,
de finas unhas escarlates, que Patr�cia acomodou nas suas:

� V� se dormes um pouco � prop�s Patr�cia.
Simone, quieta durante alguns momentos, sem erguer de
todo as p�lpebras, terminou por trazer o corpo para cima, alteando
a cabe�a no travesseiro:

� H� muito tempo para dormir, Patr�cia. Muito. Estou
contente de ter vindo aqui.
L� fora, no parque iluminado, o ru�do dos carros que chegavam
ou partiam. De vez em quando o latido de um dos c�es,
que os outros c�es continuavam. E a orquestra a tocar uma
valsa rom�ntica, por entre o tinido met�lico dos pratos e o sibilo
das flautas e violinos que acompanhavam o piano.

E Simone, tornando a alongar a m�o para o rega�o de
Patr�cia:

� � a primeira vez que eu volto � nossa cidade, depois que
fui para o Sanat�rio. Pedi ao motorista que passasse pela pra�a
da nossa Escola Normal, sonhando rever o velho pr�dio de azulejos
verdes de nosso tempo, e quase chorei, quando vi em seu
lugar aquele arranha-c�u medonho, com um letreiro luminoso
l� em cima. Um horror. Me deu vontade de saltar do carro
e protestar. Aquelas sacadas, aquelas janelas, aquele portal de
m�rmore, aquela escada, aquele p�tio, tudo destru�do. E por
qu�, meu Deus? Para p�r ali a banalidade daquele espig�o. Eu,
dentro do carro, senti a garganta apertada, os olhos molhados.
Cerrei os olhos, contra� os punhos, descansei a cabe�a no
recosto do banco. E enquanto o carro voltava a correr, reprimi
o choro. Depois, mais calma, refletindo que tudo tem um
fim, que tudo se acaba, revi as ruas, as casas, as pra�as, as
�rvores de nosso tempo, at� chegar aqui.
Suspirou prolongadamente, como em busca do ar que lhe

281


fugia, e tornou a se voltar para a Patr�cia, que lhe buscava no
rosto a amiga de outrora. O perfil era o mesmo, os p�mulos
tamb�m; tamb�m a linha da boca, o queixo dividido ao meio.
Mas o tempo impusera a esse mesmo rosto a sua devasta��o
cruel, s� deixando os olhos grandes e negros, com a pupila levemente
dourada, os c�lios longos, o arco das sobrancelhas maltratadas.
De um lado e de outro, por cima das orelhas, os tufos
de cabelos brancos. Outros fios, tamb�m prateados, subiam-
lhe da testa para a nuca, corridos, espichados, sem um adorno,
no abandono da velhice prematura.

E Simone, dando mais luz aos olhos:

� Sempre tive tuas not�cias. Ou por cartas de nossas colegas,
ou por telefonemas delas, ou pelos jornais daqui. Sem
que nos escrev�ssemos, segui todos os teus passos e os passos
do Rodrigo, mesmo nas viagens. E como, no Sanat�rio, temos
assinaturas de revistas daqui, nada me escapou, at� este momento.
Mas nada se compara � vinda pessoal, para olhar de
perto, e ver e ouvir, assim como estou te vendo e te ouvindo.
Posso te fazer uma confiss�o? N�o te zangas comigo? Durante
anos e anos tive em m�os pap�is antigos de nosso tempo
da Escola Normal. Um dia, para te esquecer, destru� tudo, com
�dio, com raiva, e chorando. Cheguei a pedir a duas de nossas
colegas que n�o me mandassem mais nada a teu respeito. At�
que eu pr�pria, um belo dia, voltei a perguntar por ti, embora
n�o deixasse de ter lido, durante todo esse tempo, os jornais
e as revistas que davam not�cias de ti e do Rodrigo. Quase telefonei
para c�, quando li a not�cia de teu desastre de autom�vel.
Acabei dizendo comigo para n�o telefonar: � A Patr�cia
vai se emocionar. E eu tamb�m. O melhor � que cada uma siga
o seu caminho. Deus quis assim, assim seja. � At� que,
de repente, com a not�cia de que ias reunir aqui toda a turma,
mudei de id�ia. E fiz bem. Vejo que fiz bem. Dou gra�as a Deus
por estar aqui.
Inspirou fundo, de olhos entrecerrados, sem reparar que
Patr�cia tinha levado aos olhos a ponta dos dedos, no esfor�o
para reprimir o pranto. E ap�s o sil�ncio, numa voz mais desolada:


� Nestes vinte anos, a vida no Sanat�rio me pareceu t�o
282


est�pida, t�o cruel, t�o vazia, que tentei me matar mais de uma
vez. Para que continuar com a minha exist�ncia in�til, confinada
em um Sanat�rio de nervosos, sozinha, com as minhas
noites imensas, no t�dio repetido de meus dias ociosos?

E mostrando os punhos:

� Est�s vendo estes cortes? Passei aqui a l�mina da gilete,
no meu salto para a eternidade. O m�dico de plant�o, chamado
pela enfermeira da noite, me salvou. Redobraram de vigil�ncia
comigo. At� mesmo a esp�tula de marfim com que
eu abria meus livros, e que era uma lembran�a da Inezita, foi
levada de meu quarto. Noutra vez, atirei-me de uma ribanceira.
Levei mais de um ano a me tratar da coluna, com opera��es
sucessivas. Nunca mais me deixaram sair s� para os meus
passeios ao meio da tarde. Para onde eu ia, l� ia comigo uma
enfermeira, �s vezes, um m�dico, ou um simples empregado
do Sanat�rio. Se eu demorava no banheiro, a enfermeira, com
a chave-mestra, abria a porta. Protestei. Ameacei ir embora.
O padre-capel�o, simp�tico, de voz mansa, n�o deixou. E o
pior � que, no auge dessas crises, eu sonhava contigo, sonhava
com o Rodrigo.
E afiando o ouvido, com a m�o � altura da orelha:

� N�o � a valsa de Sibelius que a orquestra est� tocando?
Sim, � ela. Valsa de nosso tempo, Patr�cia.
Voltou a suspirar fundo, deixou passar um sil�ncio. E encolhendo
o bra�o para apoiar-se nos cotovelos, subindo um
pouco mais a cabe�a, com os olhos mais vivos:

� Um dia, de repente, apareceu no Sanat�rio para me
fazer uma visita, adivinha quem. O Padre Revoredo. Lembras-te
dele? Bateu-me na porta do quarto, acompanhado pelo padre-
capel�o. Na mesma batina surrada, espalhando em redor o mesmo
cheirinho do meu tempo de menina, a bondade nos olhos
e nas m�os, risonho, a abrir no risinho feliz a covinha das bochechas.
Passou toda uma tarde comigo. Falou-me de ti, do
Rodrigo, das ajudas que o Rodrigo lhe dava, como se n�o reparasse
na minha fisionomia contra�da. Deu-me uns livros, rezou
comigo o ter�o, e terminou por me dizer que havia vindo
ali tanto para me ver quanto para me fazer um pedido. Mas
que s� pedia se eu prometesse que faria o que me viera pedir.
283


Respondi: � Fa�o, Padre Revoredo. � E ele, mais perto de
mim: � Jura mesmo que faz? � Jurei. � E ele, s�rio, segurando
nas duas m�os a minha m�o: � Olhe: voc� vai me dar
a maior alegria da minha vida de sacerdote. A maior. Depois
que me ordenei padre. Depois. Porque essa est� acima de tudo.
Mais abaixo � a alegria que voc� vai me dar, atendendo
ao que vou lhe pedir. � E voltou a me falar de ti, do Rodrigo,
do nosso tempo de Escola Normal. Senti onde ele queria chegar,
mas n�o podia voltar atr�s. E ele: � Prometa que, todas
as noites, vai rezar pela Patr�cia e pelo Rodrigo. � Quase segurei
os ombros dele, no impulso com que me levantei da poltrona:
� Padre, eu n�o posso fazer isso. � E ele, s�rio,
olhando-me nos olhos: � Pode, Simone. Pode. Voc� me prometeu.
Pode. E vai rezar agora. Comigo.

Um sil�ncio longo. A respira��o da Simone fazia com que
seu peito subisse e descesse, subisse e descesse, repetidamente,
como na �nsia de uma dispn�ia, enquanto os olhos de Patr�cia
se contra�am, reduzidos a uma fresta, no esfor�o para conter
o pranto.

A orquestra havia parado de tocar.

E Simone:

� E eu rezei, Patr�cia. Rezei com ele. Depois rezei todas
as noites. Sozinha. De vez em quando o velho �dio voltava,
e eu interrompia a ora��o. Mas me lembrava do Padre Revoredo,
� minha frente, e segurava novamente o ter�o, rezando. Aos
poucos fui sentindo que podia me lembrar de ti sem que o gosto
de fel me amargasse a boca, ao mesmo tempo em que eu reconhecia
que, se houvesse casado com o Rodrigo, em teu lugar,
eu n�o o teria feito feliz, nem ele a mim. Nasci com este temperamento
estranho, que vem de minha inf�ncia. Deus me fez
assim, assim hei de morrer. Ora querendo estar s�, ora querendo
ter comigo algu�m que seja s� meu, para se consagrar
a mim, para s� pensar em mim, para viver s� para mim. Eu
n�o podia imaginar que te casasses. E menos ainda que te casasses
com o Rodrigo. E foi isso que aconteceu. Exatamente
isso.
E mudando o tom da voz emocionada.

284


� Enxuga teu rosto, Patr�cia. N�o podes receber teus convidados
com a maquilagem desfeita.
Apertou as m�os de Patr�cia, trouxe-as para perto do peito,
e ambas permaneceram em sil�ncio, a se olharem, at� que ambas
sorriram, ainda caladas, sem poder falar.

3

Sobre o m�rmore do consolo, por baixo do espelho de moldura
dourada que subia pela parede e aumentava o quarto amplo,
o rel�gio abria em compasso os seus ponteiros fin�ssimos,
marcando nove e vinte e cinco, por entre o tique-taque quase
impercept�vel da m�quina perfeita.

Defronte do espelho, retocando a maquilagem, Patr�cia
podia ver a Simone deitada ao comprido da cama e que lhe
dizia, numa voz fatigada:

� Pensei em ter na cidade, perto de minha antiga casa,
um apartamento para passar uma semana, duas, e voltar ao
Sanat�rio. Mas mudei de id�ia. Para qu�? Hoje, a n�o ser uns
primos distantes, que moram no Sul, n�o tenho parentes. E
isso aumenta a minha solid�o. O apartamento teria de ficar
fechado, com algu�m para cuidar dele. Al�m disso, como eu
ia fazer, quando aqui estivesse, para ter quem olhasse por mim?
Era prefer�vel ficar num quarto de hotel. Mas eu tenho horror
a quarto de hotel. N�o, isso n�o. Antes o quarto do Sanat�rio,
onde tenho tudo a tempo e a hora. Leio, ou�o r�dio, vejo
televis�o, rezo, dou meus pequenos passeios, tenho sempre �
minha disposi��o um m�dico ou uma enfermeira, e vou vivendo.
Vivendo a meu modo, metida comigo, at� que Deus me
chame. De vez em quando me volta a vontade de desaparecer,
de sumir, de ir embora do mundo. A solid�o tamb�m cansa.
E muito. Antes o fim.
Tornou a suspirar enquanto o sil�ncio se alongava no quarto
fechado. L� fora, por cima das vozes e dos ru�dos, explodia
de vez em quando um foguete, seguido pelo latido dos c�es.

285


E Patr�cia, mais perto do espelho:

� Agora voc� j� sabe o caminho: venha para c� quando
estiver cansada do Sanat�rio. O Rodrigo e eu ficaremos muito
contentes em ter voc� conosco. O quarto que lhe preparei
para esta noite fica sendo o seu quarto. Chamo as colegas, providencio
um m�dico � sua disposi��o, ponho um de nossos carros
a seu servi�o exclusivo. Nada lhe faltar�.
A resposta tardou, para vir depois quase inaud�vel:

� Obrigada, Patr�cia. Me emocionei. Obrigada. S� quero
o quarto por esta noite.
E quando Patr�cia tornou a ficar � sua frente, alongou

o bra�o, apertou-lhe a m�o, conservando as p�lpebras
entrefechadas:
� N�o te aborre�as comigo se eu te disser que estou me
despedindo da vida.
Estou. Sei que estou.
Patr�cia protestou:

� N�o diga isso.
� � verdade. Sei que estou � repetiu, convicta.
Patr�cia reteve-lhe a m�o. E afagando-lhe a testa, numa
car�cia lenta que se alongava para os cabelos:

� Se n�o vieres aqui, para ficar conosco, eu irei ter contigo,
no Sanat�rio. Irei.

Outro sil�ncio.

E Simone, erguendo as p�lpebras, como num come�o de

afli��o, enquanto olhava em volta:

� Onde est� minha bolsa? Sinto-me cansada, n�o sei se
terei for�as para me sentar � mesa, perto de ti.
Patr�cia trouxe-lhe a bolsa, deixada sobre o bra�o da poltrona:


� Aqui est�. Que � que queres?
Simone alteou mais a cabe�a, tateou o fecho da bolsa,
abriu-a, tirou dali o estojinho de prata, ergueu-lhe a tampa.
E com dois comprimidos brancos na ponta dos dedos:

� Podes me dar um pouco de �gua?
� Sim, sim. Eu mesma vou busc�-la, aqui ao lado, no
gabinete do
Rodrigo.
Quando voltou com o copo, Simone alteou mais a cabe


286


�a, p�s na boca os comprimidos, sorveu depressa a �gua. E
restituindo o copo:

� Obrigada, Patr�cia. Agora, vai cuidar de ti. Teus convidados
j� v�o come�ar a chegar. Vai. Eu fico aqui. Quietinha.
Patr�cia tornou ao espelho, acomodou o diadema na cabe�a,
umedeceu na ponta da l�ngua a ponta dos dedos, ergueu
para cima a ponta dos c�lios, correu as m�os pela cintura, como
a espichar o vestido longo. E voltando-se para Simone, caminhou
at� a cama:

� Descansa mais um pouco. Na hora de descer para o
jantar, eu venho aqui com a Inezita e a Paula. Se estiveres te sentindo
bem, descer�s conosco.
E levou as m�os � boca para conter o grito, ao ver-lhe o
rosto parado, como ausente do mundo, e os olhos abertos e
fixos. Uns olhos imensos, sem o brilho da vida.

287


QUARTO CAP�TULO

1

Pobre Patr�cia atarantada e l�vida, de sobrancelhas levantadas,
o medo nos olhos, e que abre de repel�o a porta do quarto,
fecha a porta de repel�o, passa-lhe a chave, e vai andando
depressa, quase a correr, em busca de um amparo.

E ao dar com a Rosa, que vem vindo do sal�o, tamb�m
apressada, pergunta-lhe, sem disfar�ar o pavor que traz no rosto:


� Onde est� meu marido?
Patr�cia sabe que Simone est� morta. Os olhos da outra
a acompanham, negros, grandes, parados. Est�o ali, � sua volta,
acompanhando-lhe os passos, como na afli��o de um pesadelo.
Por que isso, meu Deus? Na sua casa? Naquele momento?
Mesmo que feche os olhos, cobrindo o rosto com as m�os desesperadas,
ter� de v�-los sempre, pelo resto da vida, obsessivos,
atordoantes.

E a Rosa, caminhando a seu lado:

� O Dr. Rodrigo j� est� no hall, � sua espera. Foi ele que
me mandou chamar a senhora. O Embaixador espanhol est�
chegando.
Com rapidez, temendo que a chave do quarto, fechada
na m�o nervosa, revelasse o seu"segredo, Patr�cia atira-a para
dentro da carteirinha de prata � a carteirinha que a outra m�o
segurava contra o seio e que ela apanhara de cima do consolo,
n�o sabe como, na precipita��o da fuga.

E para a Rosa, sempre atarantada, como se houvesse perdido
de repente a orienta��o da casa:

289


� Onde? Onde � que ele est�?
Mas n�o ouve a resposta da Rosa. O que ouve � a voz cheia
do Ludovico, no patamar da escada, solen�ssimo, anunciando:


� Sua Excel�ncia o Sr. Embaixador da Espanha e a Sra.
Condessa Rojas y Rojas.
Ainda bem que Patr�cia chega exatamente no instante de
recolher os cumprimentos, postando-se ao lado do Rodrigo,
que se curva para beijar a m�o da Embaixatriz.

Toda a casa d� a impress�o de que se alvoro�ou de repente,
com os carros que chegam, os carros que buscam espa�o
para estacionar, os carros que buzinam na rua. Aqui, ali, longe,
o apito dos guardas. Nos edif�cios vizinhos, as janelas est�o
repletas, com os semblantes curiosos saindo ao relento da
noite fria, por cima das sacadas, enquanto c� embaixo o cord�o
de isolamento ret�m a multid�o na cal�ada fronteira. A
cada instante o sibilo e o estouro de um foguete. E os c�es a
ladrarem, como se soubessem que a morte est� ali, num dos
aposentos da casa iluminada. Agora, no quiosque, � o Bolero
de Ravel que a orquestra est� tocando. E de s�bito, por cima
das �rvores do parque, cobrindo a lua alta, o imenso chuveiro
colorido do primeiro fogo de artif�cio.

No atropelo da noite, s� o Ludovico se mant�m ereto e
firme, no seu papel de arauto, fazendo ouvir a voz robusta:

� Sua Excel�ncia Reverend�ssima o Sr. Cardeal Dom Eurico
Nova e Penha, nosso ilustre Arcebispo.
A fila vagarosa se formou na escada e vem subindo passo
a passo, alongada para as voltas do jardim e do parque. Cada
figura a exibir-se na luz dos refletores, com o luxo dos vestidos
que vieram de Paris; das casacas que vieram de Londres,
e tamb�m dos trajes t�picos, como o do Embaixador da �ndia,
octogen�rio mag�rrimo e alto, com ar de avestruz esquel�tico,

o turbante a cingir-lhe a cabe�a, o paletoz�o a dar nos joelhos,
as cal�as apertadas nas pernas fin�ssimas, e que tosse alto,
por cima do sibilo dos apitos.
Agora, quem desceu do velho carro de pra�a, vagaroso,
cauteloso, silencioso, � o Embaixador Aranda, repleto de condecora��es
(s� ele), logo seguido pela Sra. Encarnaci�n, que

290


p�e o p� na cal�ada, como se tateasse e apalpasse cada degrau,
ao mesmo tempo em que ergue os olhos assustados para o c�u,
em busca do mau tempo.

J� na fila da escada, � ele quem explica, quase numa
desculpa:

� Nosso carro engui�ou quando v�nhamos para c�. Mas
Deus nos mandou um t�xi, que nos caiu do c�u. Um verdadeiro
milagre.
Quando chega a vez do Embaixador Aranda, agora mais
gordo, seguido pela mulher, tamb�m mais gorda e recendendo
a naftalina, ei-lo a lembrar, em voz baixa, ao bom amigo
Ludovico:

� Non se le olvide que soy el decano del Cuerpo Diplom�tico.
E Ludovico, alteando mais a voz alvissareira:

� Sua Excel�ncia o Sr. Embaixador Aranda, decano do
Corpo Diplom�tico, acompanhado da Sra. Embaixatriz.
V�o subindo, v�o subindo; passam por Patr�cia e pelo Rodrigo,
sorridentes, efusivos, am�veis, e h� quem traga presentes
nas m�os festivas, e h� quem traga ramos de flores, que
a Rosa prestimosamente recebe das m�os da patroa, para p�los
na mesa do hall. E h� quem se exiba na luz dos refletores
e dos lustres, e caminhe gravemente para o sal�o, as salas, as
varandas, com ar de aprova��o e surpresa, maravilhado, deliciado,
sobretudo quando sabe que o Bal� Nacional j� chegou
e vai exibir-se. Onde est�o os artistas estrangeiros? Vir�o mesmo,
como afirma o Lucas Caetano? Ou se limitar�o a desculpas
tardias? Se n�o querem vir, que n�o venham. O que h�
de mais representativo ali na terra, nas artes, nas letras, nas
ci�ncias, j� vem chegando, na fileira de carros que atravanca
a rua.

E o Ludovico, nesse momento, anunciando:

� Sua Excel�ncia o Sr. Presidente da Rep�blica, acompanhado
por Sua Excel�ncia o Ministro-Chefe de seu Gabinete
Militar.
A orquestra, subitamente avisada, com a ajuda dos alto-
falantes, espalha por toda a casa, e pela rua, e pelo parque,
os acordes marciais do Hino Nacional, e todos se perfilam ou

291


se levantam, de m�o no peito, sobretudo o Ludovico, que inclina
a cabe�a, teso, c�vico, grav�ssimo, numa postura de her�i
antes da batalha.

S� Patr�cia continua desorientada e aflita, com o seu segredo.
L� est� a Paula, com seu novo marido, e mais a Dorita,
e o Professor Damasceno, e o Professor Marinho, e a Nolca,
e a Dulce, e a Peixotinho, todas elas no vestido longo e branco,
com o frisozinho azul, tal como haviam combinado. � medida
que fossem passando, certamente perguntariam pela Simone.
E que ia dizer a cada uma? Que estava morta, no quarto
de dormir? N�o, n�o podia dizer isso. A ningu�m. Por enquanto,
s� ela sabia, e s� ela deveria saber, durante toda a noite,
at� que fosse embora o �ltimo convidado. Como calar os criados,
que tinham visto a Simone chegar? E o Expedito, que a
fora buscar no aeroporto?

Houve um momento em que, chamando a Rosa para perto,
p�de ordenar-lhe, enquanto o Rodrigo abra�ava com efus�o
ruidosa o presidente do Banco da Rep�blica:

� N�o digas a ningu�m que a D. Simone est� a�. Ela chegou
muito cansada. Tomou um calmante e est� dormindo. Se
perguntarem por ela, diga que n�o veio. A todo mundo.
E para a Inezita, que vinha vindo, anunciada pelo Ludovico:


� A Simone n�o veio.
E como receou que a sua voz nervosa e o seu rosto inquieto
a tra�ssem, deu um passo para abra�ar o Professor Avertano,
meio curvo, de papada severa, pl�cido, ombros largos,
chap�u de feltro e bengala de cast�o de prata, e que repetia
a desculpa que viera dando na subida da escada:

� E a minha roupa das solenidades. N�o quis faltar. Preferi
vir assim mesmo. De jaquet�o azul.
292


2

Num relance, ali mesmo no hall, recebendo os �ltimos convidados,
Patr�cia teve a revela��o exata do que havia acontecido:
Simone viera � sua casa com a determina��o de matar-se,
pouco antes da recep��o � para impedir-lhe a festa!

Tudo havia sido preparado por ela, com ast�cia, friamente,
calculadamente. De in�cio, o telefonema para se queixar de n�o
ter sido convidada; depois, a hora escolhida para chegar ali,
j� com a casa em alvoro�o. Ela pr�pria, conhecendo os aposentos,
se havia orientado no sentido do quarto de dormir. De
repente, a queixa de que estava cansada. Sentara-se na cama,
tirara os sapatos, deitara-se. Calma. Senhora de si. Por fim,
a conversa longa sobre as tentativas de suic�dio no Sanat�rio.
O t�dio da vida reclusa. A bolsa de onde tirara o estojo de prata
com os dois comprimidos. O copo de �gua que pedira a ela,
Patr�cia, e que ela, Patr�cia, tinha ido buscar. Depressa, a olh�la,
Simone tinha tomado, de uma s� vez, os comprimidos.

E era como se Patr�cia ainda estivesse a ouvir-lhe a voz
no fecho da cena:

� Agora, vai cuidar de ti. J� v�o chegar os convidados.
Retoca a maquilagem. P�e o diadema.
Sempre fria. Contendo a emo��o. Como uma grande atriz
quando j� vai cair o pano, no �ltimo ato da pe�a. Ou quando

o pano vai subir. No in�cio da pe�a, ap�s as pancadas rituais
nos bastidores.
E Patr�cia, de si para si, entrando no sal�o maior, repleto
de amigos, e de onde subia o ru�do das vozes, no sussurro das
conversas em voz alta:

� N�o, ela n�o me estraga a festa. Vou me comportar
como se nada houvesse acontecido. A chave do quarto est� comigo.
Aqui. Ningu�m vai saber que a Simone est� ali, morta.
Vou esperar sair o derradeiro convidado para contar tudo a
Rodrigo.
E j� no meio do sal�o, entre as colegas da Escola Normal,
sempre a falar para si:

293


� Sei que vou p�r � prova os meus nervos. Mas � assim
que vou fazer. Com a ajuda de Deus. Deus vai me dar for�as.
E a Adalcinda, que deixara na Escola Normal a fama de
suas perguntas impertinentes:

� Como �, Patr�cia: a Simone vem ou n�o vem? N�o vem?
Ela disse por qu�? Voc� n�o acha que era o caso de uma de
n�s telefonar para o Sanat�rio, para saber o que houve?
E Patr�cia, com o cora��o disparado, tentando dominar-se:

� Ela pr�pria, quando telefonou, n�o me deu a certeza
de vir. Viria, se estivesse passando bem. Se n�o veio, � porque
achou que n�o podia vir. Ou ela, ou seu m�dico.
E seguiu o seu caminho, nervosa, inquieta, falando aqui,
falando ali, sem que lhe sa�ssem da mem�ria os olhos imensos
da Simone, parados, sem brilho. Via-os � sua frente, para
onde quer que se voltasse. O rosto l�vido. As m�os em cima
do peito. Morta. E a cada instante, no hall, no sal�o, na varanda
sobre o parque, a lhe falarem dela.

A Paula, dando-lhe o bra�o quando desciam para o parque,
tinha-lhe dito:

� Estranho muito que a Simone tenha desistido da viagem.
Ainda ontem, pelo fim da tarde, ela me falou. Queria
saber como estava o tempo, se devia trazer o casaco ou a gabardina.
J� havia preparado a maleta de viagem. L� mesmo
no Sanat�rio tinham-lhe posto o friso azul do vestido. O velho
vestido longo de nossa formatura.
Tamb�m ali na escada, descendo devagar, em meio � multid�o
que igualmente ia descendo, a Inezita se ofereceu � Patr�cia:


� N�o queres que eu telefone daqui para ela? Em dois
minutos saber�amos o que houve.
E a Patr�cia, nervosa:

� N�o, n�o. Amanh� eu mesma falo.
Durante todo o jantar, sentada ao centro da mesa, defronte
do Presidente da Rep�blica e do Cardeal, Patr�cia redobrou
de esfor�os para dominar seus nervos tensos, sempre a lembrar-
se da Simone ao comprido da cama, l�vida, os grandes olhos
parados. Houve mesmo um momento em que esteve para
levantar-se, querendo gritar, querendo dizer tudo, como se n�o

294


mais pudesse esconder a morta, por entre o estouro dos foguetes,
o chuveiro colorido dos fogos de artif�cio, as melodias
da orquestra.

Para afligi-la ainda mais, o Presidente e o Cardeal, � sua
frente, do outro lado da mesa, tinham-se posto a discutir, interminavelmente,
sobre as apari��es da Virgem na Iugosl�via,
nas quais o Presidente, por uma quest�o de bom senso, n�o
acreditava.

Ainda bem que o palco do tablado n�o tardou a abrir-se,
sobre o fundo de veludo escarlate, com o jorro de luz dos holofotes
a acompanhar os bailarinos de branco que iam surgindo
dos dois lados dos bastidores, como nos movimentos de uma
revoada, que ora se unia, ora se dispersava, j� agora destacando
o bailarino esguio e alto, que parecia suspenso no ar, rodopiando,
depois de tocar o piso do palco com a ponta dos p�s.

E enquanto as palmas estrondavam, aplaudindo o bailado
na suavidade das flautas e dos violinos, por entre as notas
destacadas do piano, Patr�cia continuava a ver a Simone morta,
no seu quarto, com os olhos imensos voltados para o teto.
Absorta, ora torturava a ponta do guardanapo, ora esfarelava
migas de p�o, e todo o seu desejo, longe do bailado, longe da
orquestra, longe dos convidados que lhe sorriam, era que tudo
aquilo acabasse depressa, para que ela contasse tudo ao Rodrigo.
Qual seria a rea��o dos amigos que a rodeavam, sorrindo,
aplaudindo, admirando, quando soubessem que, exatamente
naquele momento, havia l� em cima um cad�ver, fechado �
chave, no quarto de dormir? Que diriam os jornais quando
a not�cia se espalhasse?

Num momento, Patr�cia firmou os p�s no ch�o, pronta
para arrastar a cadeira e levantar-se. Por pouco, de p�, junto
� mesa, teria dito:

� Meus amigos, minha colega Simone est� morta, no
meu quarto. Matou-se de prop�sito, aqui, para se vingar de
mim. N�o � mais poss�vel continuar nossa festa. Desculpem.
Mas continuou calada, com o olhar aflito, voltando a torturar
o guardanapo. De pronto, reagiu: n�o, n�o diria nada.
Se dissesse, faria o jogo da Simone. Porque era exatamente isso
que a Simone havia imaginado. Toda gente a levantar-se,

295


at�nita, atordoada, para deixar as mesas; a orquestra parando
de tocar; o bailado interrompido, e o ru�do das cadeiras
arrastadas, e os convidados de p�, transfigurados pela consci�ncia
de que, em meio a tantas luzes, a tanta alegria, a tantos
fogos de artif�cio, havia uma pessoa morta no quarto de
dormir. Somente os c�es, ladrando espa�adamente, pareciam
saber a verdade. E tamb�m as flores, as flores de tantas corbelhas,
ali embaixo, no v�o das arcadas, tomando toda a varanda
circundante, e que pareciam desprender um olor mais vivo,
mais forte, como num vel�rio.

E Patr�cia, reanimando-se, ao ver que o bailado chegava
ao fim, com a cortina do tablado a se fechar:

� Agora j� falta menos, meu Deus.
De repente os refletores se apagaram. Na noite alta, o c�u
estrelado. Uma vira��o macia a sacudir de leve os ramos das
�rvores. E sempre o latido dos c�es. E sempre o cheiro das
flores.

O c�u se abriu num clar�o colorido, e os chuveiros foram
compondo o nome de Patr�cia, por cima das �rvores mais altas,
sob a lua serena. Mil cores a se desfazerem, por entre palmas.
Por cima da mesa, Rodrigo estendeu as m�os para Patr�cia,
emocionado, sem lhe falar. E ela, n�o podendo reprimir

o pranto:
� Obrigada, querido. Obrigada por tudo.
3

Ela tornava a querer que o tempo passasse depressa, desfazendo
a festa, apagando as luzes, levando dali todos os convidados,
e o tempo flu�a devagar, numa lentid�o opressiva,
torturando-lhe os nervos, atordoando-a, como se tudo � volta
s� tivesse por objetivo lev�-la ao desespero, conduzi-la � loucura.
Por qu�, meu DeuS? Por qu�?

J� n�o sabia mais o que fazer para acalmar-se, para dissimular,
para fingir. Tudo quanto se passava � sua volta � o

296


riso alheio, as conversas em voz alta, as perguntas que lhe faziam,
o gesto das colegas a lhe indagarem em sil�ncio pela Simone,
o tom de voz do Cardeal, os galanteios do Presidente
da Rep�blica, o estouro dos foguetes, os novos fogos de artif�cio,
a solicitude dos gar�ons em servi-la, o ar solene com
que o Ludovico passava por entre as mesas, a insist�ncia com
que o Rodrigo queria saber o que ela estava sentindo, o cheiro
ativo das corbelhas � tudo, absolutamente tudo, mesmo a solicitude
da Rosa a lhe sorrir para perguntar se precisava dela,
tudo a oprimia, afligindo-a, angustiando-a. Queria levantar-
se para pedir que todos os amigos fossem embora, que os gar�ons
desaparecessem de sua vista, que a orquestra deixasse de
tocar, que o Ludovico parasse o latido dos tr�s c�es, e continuava
sentada na sua cadeira, ao centro da mesa, a esfarelar
migas de p�o, sentindo que o ar lhe faltava, sempre a lembrar
a Simone morta, l�vida, os olhos imensos, no seu quarto, na
sua cama.

Houve um momento em que acenou para o marido, tentando
dizer que lhe queria falar, e o Rodrigo atirou-lhe um beijo,
na ponta dos dedos, depois de mover o polegar para cima,
reconhecendo que a festa n�o poderia ter sa�do melhor.

E o Lucas Caetano, nesse momento, insinuando a cabeleira
perfumada por cima de seu ombro esquerdo:

� Agora, sou eu que vou te fazer uma surpresa. Prepara-
te. Segura bem teu cora��o, querida.
Logo se retraiu, sorrindo, aos pulinhos, e esgueirou-se por
tr�s das mesas, para reaparecer ao centro do palco, no c�rculo
de luz dos refletores, ladeado por uma velha gorda, de cabelo
atravessado por um grande alfinete, e de um senhor mag�rrimo,
meio curvo, trajando uma casaca surrada, colarinho alto,
uma rosa na lapela.

Ao sussurro das vozes, ao ru�do dos risos, ao estampido
dos foguetes, sucedeu um sil�ncio gradativo, somente interrompido,
de momento a momento, doridamente, pelo ladrar dos
c�es.

E o Lucas Caetano, gracioso:

� Numa festa t�o linda, t�o perfeita, n�o poderia faltar
o desmancha-prazer, que sou eu.
297


Risos. Protestos. Um ar benevolente do Cardeal.

O Lucas Caetano agradeceu, tomou um ar humilde, inclinou
a cabe�a, a m�o no peito. E prosseguindo:

� Aqui, � minha direita, est� a D. Adelina; � minha esquerda,
o Sr.
Frederico. Novinhos em folha. Muito bem.
Uma pausa para reprimir o riso. E grave, s�rio:

� A Sra. D. Adelina e o Sr. Frederico est�o aqui para agradecer.
Ela, antiga vedete de nossos teatros de revista; ele, exm�gico,
t�o famoso que se exibiu em Londres, perante a Rainha
M�e. N�o, n�o riam. Estou falando s�rio. Um momento.
Um momento. A Sra. D. Adelina e o Sr. Frederico moram, hoje,
no Repouso dos Artistas, juntamente com vinte e duas atrizes
e trinta e seis atores, cada qual no seu cantinho bem arrumado,
gra�as � minha boa amiga Patr�cia e ao meu bom amigo
Rodrigo. Foram eles que me ajudaram a realizar, com as b�n��os
do nosso Cardeal, aqui presente, essa obra maravilhosa,
de que tanto me orgulho. Mod�stia � parte.
Palmas prolongadas.
O Cardeal se levantou, fez uma v�nia reconhecida com
as m�os e a cabe�a, depois acenou para o Lucas Caetano.
E o Lucas Caetano, movendo para baixo as m�os espalmadas:


� Sil�ncio. Muita aten��o. A Sra. Adelina vai exprimir
a sua gratid�o � nossa aniversariante e ao nosso anfitri�o com
o n�mero de m�mica que a levou ao Lido, de Paris, ao tempo
em que era esbelta e de que ainda h� vest�gios.
D. Adelina deu uma volta sobre si mesma, por entre risos
demorados, exibindo os quadris excessivos, os peitos grandes,
e um rosto contente, quase caricato.
E o Lucas Caetano, repetindo o apelo das m�os:

� Por favor: sil�ncio. Logo depois do n�mero de D. Adelina,
o Sr. Frederico nos brindar� com a sua mais famosa m�gica.
A �nica, ali�s, a que o Papa consentiu em assistir aben�oando
o artista.
E o velho, radiante:

� � verdade, � verdade � confirmou.
Patr�cia voltou a retrair as pernas pensando em levantar-
se e ir embora. N�o, n�o suportava mais ficar ali. Estava aci


298


ma de suas for�as. Queria correr, escada acima, para refugiar-
se... N�o, n�o podia fechar-se no seu quarto. L� estava a Simone,
morta. A Simone, l�vida. A Simone, no seu leito. A Simone,
de olhos parados, sem brilho, voltados para o teto.
Imensos.

D. Adelina vinha agora de uma das extremidades do palco,
apoiando as enx�ndias nos sapatos de salto alt�ssimo. Parecia
na ponta dos p�s, equilibrando-se no bico das sapatilhas.
O punho direito na cintura. Requebrando-se. Ao meio do palco,
parou, estendeu a m�o para um interlocutor imagin�rio.
Sorriu. Recuou, defendendo os seios. Depois, dobrando a cabe�a
para um lado e rindo de modo brejeiro, p�s a m�o invis�vel
sobre o seio esquerdo, que ela alteou, para mostrar que era
mesmo farto.
Toda uma cena de amor lascivo, numa dobra de rua,
esbo�ou-se, definiu-se, caracterizou-se, quase no limite da obscenidade
absoluta, at� que a velha senhora, restituindo-se �
sua condi��o de matrona, defendeu a barra da saia, antes que
fosse levantada, fez um ar aborrecido, deu as costas, e veio vindo
num passinho brejeiro, � Carlito, como se movesse na ponta
dos dedos, graciosamente, uma bengalinha pelintra.

Palmas fortes. Houve mesmo quem se levantasse, no impulso
do aplauso, enquanto Lucas Caetano abra�ava e beijava
a gorda senhora, efusivo, emocionado.

Patr�cia, � for�a de amarfanhar a ponta do guardanapo,
n�o sentira o linho ceder, abrindo um rasg�o pequenino, nas
suas m�os at�nitas. Chegou a acenar para o Ludovico, para
que fizesse o Lucas Caetano sustar a m�gica do velho, mas este,
senhor do palco, ia tirando do bolso do colete uma fita imensa
que enrolava na m�o veloz. Puxava a fita de dentro do bolsinho
ex�guo, e a fita ia embolando, embolando na m�o, no
punho, no antebra�o, cobrindo a manga do palet�, volumosamente,
interminavelmente.

De repente, o homem magro sacudiu a m�o para o alto,
no sentido da plat�ia, e uma revoada de pombos tatalou as asas
assustadas na claridade dos refletores, voou �s tontas, desapareceu,
enquanto o artista, curvando para a frente a cabe�a calva,
recolhia os aplausos, com as m�os erguidas acima dos ombros.

299


E o Ludovico, no alto da escada, assim que as palmas
abrandaram:

� O jantar est� terminado. A Sra. D. Patr�cia e o Sr. Dr.
Rodrigo convidam os seus amigos, ou para passearem no parque,
ou para visitarem, mais a gosto, os sal�es do solar.
4

A suavidade da noite, a lua grande a vogar por cima das
mais altas �rvores, as m�sicas que a orquestra ia tocando, a
vira��o macia que ativava o cheiro das flores, os risos, as conversas,
os gar�ons que circulavam por entre as mesas, sol�citos,
repetindo as bebidas, e os fogos de artif�cio que espa�adamente
se desfaziam sobre a piscina, os ramos e as alamedas,
tudo tendia a prolongar a festa at� o novo dia, com as
luzes acesas, os sal�es escancarados, as corbelhas entre os arcos
da varanda, e a Simone l� em cima, no quarto fechado,
morta, de olhos abertos, na cama de casal, com os dois abajures
laterais iluminados e o rel�gio da c�moda contando os segundos,
tique, tique, tique, tique, sem pressa, perenemente, enquanto
o corpo im�vel se desfazia, r�gido, vingativo.

E quando, por volta das tr�s horas da madrugada, o Sr.
Cardeal acomodou melhor o solid�u na cabe�a calva, j� de p�,
e anunciou que ia embora, com a permiss�o do Sr. Presidente
da Rep�blica e dos caros anfitri�es, outros convidados n�o tardaram
a acompanhar sua Excel�ncia Reverend�ssima, embora
fosse domingo o novo dia.

Saiu o Presidente, sa�ram alguns Embaixadores, saiu o Professor
Avertano, com a sua papada, os seus olhos empapu�ados,
os seus ombros compactos; sa�ram dois Ministros de Estado,
sa�ram algumas colegas da Escola Normal, banqueiros,
acad�micos, empres�rios, artistas, professores, jornalistas, velhos
amigos do Rodrigo, a eterna Princesa Albertina, perenemente
� espera do golpe de Estado que restauraria a Monarquia
Constitucional � sem que Patr�cia e Rodrigo, de p� � en


300


trada do vest�bulo, exaustos, destro�ados, pudessem ter, mesmo
em sussurro, corridamente, o mais breve di�logo, recebendo
abra�os, recebendo louvores, recebendo apertos de m�o, e
a todos agradecendo e sorrindo, agradecendo e sorrindo, agradecendo
e sorrindo, mesmo para os mais �ntimos como a Paula
e a Inezita, mesmo para os novos amigos que tinham vindo
ali pela primeira vez, e prometiam voltar, e repetiam que nunca
tinham visto uma recep��o igual ou parecida.

Entretanto, houve um momento em que Patr�cia confessou,
amparando-se no m�rmore do consolo:

� J� n�o ag�ento mais, Rodrigo. Pelo amor de Deus, n�o
alongues as despedidas. Tenho uma coisa grave a te dizer.
Mas veio vindo a Sra. Encarnaci�n, vagarosa, pendulando
o andar cauteloso, seguida de perto pelo marido, imenso,
a gravata torta, os p�s doloridos nos sapat�es de verniz, o smoking
desabotoado, o peito da camisa crescido, segurando a capa,
segurando o guarda-chuva, segurando na ponta dos dedos um
gordo embrulho em papel celofane, que logo tratou de explicar,
ajudado pelo sorriso bonach�o da Embaixatriz:

� Comidinhas para o nosso gato, que sempre espera por
n�s, seja qual for a hora, por tr�s da porta da Embaixada.
E a Sra. Encarnaci�n, segurando o bra�o de Patr�cia e forcejando
para lhe falar na ponta dos p�s, mais perto da orelha:

� Anda muito esquecido, agora, este senhor meu marido.
N�o � mais gato. O gato velho j� morreu. Agora, � uma
gatinha siamesa. Linda. Um amor. E caprichosa. S� dorme
comigo, encolhidinha ao p� da cama, como uma bolinha. Um
sonho, Sra. D. Patr�cia. Um verdadeiro sonho.
E passando o bra�o para o bra�o do Rodrigo:

� Fa�o quest�o de que me ajude na descida da escada.
Pelo tempo, j� sou da fam�lia. A Patr�cia � como se fosse minha
filha.
E descendo devagar, degrau a degrau, para parar de vez
em quando, com a respira��o curta, ofegante:

� Sabe o meu bom amigo que, depois daquela famosa
chuvarada, eu, quando venho aqui, sempre trago no carro, para
me prevenir do mau tempo, uma gabardina e uma muda de
301


vestido, al�m de outro par de sapatos? Pois � verdade. Prevenid�ssima.
Prontinha para outro dil�vio.

J� as luzes do parque iam sendo apagadas. O �nibus da
orquestra, repleto de m�sicos, atravessava o port�o. At� mesmo
os gar�ons, sobra�ando a pasta com a roupa do of�cio, iam
se esgueirando para a cal�ada da rua � a larga cal�ada repleta
de convidados que esperavam por seus carros, na sonol�ncia
da madrugada. Ru�do �spero de rodas. �ltimos risos da noite
que n�o tardaria a terminar. E o distribuidor dos jornais a deixar
nas bancas pr�ximas o jornal da manh�.

Do patamar da escada, olhando a gorda Embaixatriz que

o Rodrigo ajuda a descer, Patr�cia p�e a m�o na boca, ansiosa,
desesperada, a cada degrau que a imensa senhora deixa para
tr�s. E grita para o Rodrigo, sem conter a afli��o que a
desnorteia:
� Estou � tua espera, Rodrigo.
A Sra. Encarnaci�n sorri, repleta, graciosa, e p�ra, e olha
para o alto:

� Vou levar seu marido comigo, querida. Pode ficar com
o meu.
E com a costa da m�o rechonchuda afastando o Embaixador
que vem vindo � sua frente:

� Sobe, Alonso. Patr�cia est� � tua espera.
E ri, e sacode as enx�ndias, e baixa outro degrau, contente
com a festa, contente com a vira��o da madrugada, contente
com a lua pl�cida que come�a a se distanciar e empalidecer.


E o Ludovico, ali mesmo no hall, ainda solene, de fisionomia
grave e preocupada, vem mais perto, sol�cito:

� Posso ajudar a senhora, D. Patr�cia?
� N�o, n�o, Ludovico. Obrigada.
Ludovico n�o insiste, retrai dois passos, sempre de sobrancelhas
travadas, como se estivesse tamb�m a conter-se, grave,
preocupado, com a m�o nervosa na medalha do cord�o que
lhe cai sobre o papo da camisa, e a pega, e a apalpa, e a segura,
dando mesmo a impress�o de que vai tir�-la do pesco�o,
no descontrole da impaci�ncia.

Patr�cia n�o o v�, absorta no seu desespero. Aflita, anda

302


para um lado e para outro, torcendo as m�os, alongando o
olhar para a escada, sentindo que vai gritar, vai pedir ao marido
que suba, que venha salv�-la, j� n�o sabendo mais o que
fazer de si mesma. E ao da? de novo com o Ludovico:

� Por que � que est� me olhando assim, Ludovico? V�
para dentro, v�. N�o estou precisando de voc�. Deixe que eu
fecho a porta. Eu e o Rodrigo. N�o se preocupe. V� ajudar
a Rosa a fechar as janelas.
Ludovico baixa a cabe�a. Ainda h� um resto de majestade
na sua figura solene. Volta a erguer o olhar preocupado,
como se j� soubesse que h� algo estranho na casa vazia, cujas
portas e janelas come�am a ser fechadas, por entre o bater das
r�tulas e o torcer dos ferrolhos, enquanto v�m do fundo do
parque os latidos persistentes, como se os c�es soubessem que
a morte est� ali, com a sua imobilidade e o seu sil�ncio. Num
relance, fita os olhos graves no rosto devastado da senhora,
e logo os desvia, com as sobrancelhas contra�das, afastando-
se dignamente no sentido do sal�o.

Patr�cia lhe ouve os passos e continua a andar, sempre torcendo
as m�os, entre o negro et�ope, que segura a l�mpada
em forma de tocha, e o consolo dourado, que se alonga para
cima do espelho de cristal. E � esse espelho que parece reter
por um momento o olhar ainda mais aflito de Patr�cia, que
subitamente indaga a si mesma:

� E como vamos fazer para levar daqui o corpo da Simone,
sem que os criados vejam, sem que ningu�m veja?
Imposs�vel. Vir� a Pol�cia. Vir�o os m�dicos do Instituto
M�dico-Legal. Vir�o os jornalistas. Os jornalistas! Sim, sim,
os rep�rteres. E toda a cidade vai saber, e todo o pa�s vai saber,
e todo o mundo vai saber que ela, Patr�cia, manteve o corpo
da Simone morta, no seu pr�prio quarto de dormir, com a porta
fechada, a chave da porta na bolsinha de prata, sem deixar que
ningu�m soubesse, enquanto a casa se enchia de convidados,
e a orquestra tocava, e os bailarinos dan�avam, e explodiam
os fogos de artif�cio.

Patr�cia olha para o espelho, e interroga a si mesma, levantando
o fino arco das sobrancelhas:

� E se a Simone continuar ali, sempre fechada?
303


N�o, n�o pode ser. Ao fim de um dia, dois, tr�s, o corpo
morto se encarregar� de denunci�-la, e todo o mau cheiro se
espalhar� pela casa, suplantar� o cheiro das flores no jardim,
e descer� � cal�ada da rua, e obrigar� toda a gente a perguntar
de onde vem o olor acre que empesta a casa, com a Simone
a se decompor.

E Patr�cia, apoiando os cotovelos no m�rmore do consolo,
com a cabe�a entre as m�os:

� N�o, n�o pode ser. Meu quarto de dormir n�o pode
continuar fechado.
Mas logo volta a olhar-se no espelho, num clar�o de esperan�a.
As palavras n�o lhe saem da boca. Os l�bios n�o se
movem. E o rosto torturado se ilumina enquanto ela afirma
a si mesma, convicta, que o dinheiro do Rodrigo vai resolver
tudo. Ningu�m saber�. Tudo ser� feito em segredo. Os jornais
nada dir�o. A not�cia n�o ser� divulgada pelas televis�es e pelas
r�dios. A Evangelina n�o saber� de nada. Porque o dinheiro
do Rodrigo abafar� tudo, mesmo a maldade fria dos rep�rteres,
mesmo a crueldade da Pol�cia. Tudo. Rigorosamente tudo.
Por ordem do Presidente da Rep�blica. Por ordem do Cardeal.
Ningu�m falar�.

E o Rodrigo, nesse momento, entrando no hall:

� Que � que se passa contigo, Patr�cia?
Ela o segura pela m�o, e vem com ele, quase a correr, seguindo
pelo corredor que contorna o sal�o, sem reparar que,
de longe, a espreitar tudo, o Ludovico lhe segue os passos.

Diante da porta fechada, n�o sabe como abrir o fecho da
bolsa para tirar a chave. Afinal lhe preme a mola, o fecho se
descerra, e ela traz a chave para fora, na ponta dos dedos. Sempre
tr�mula, com o marido a olh�-la, ainda sem compreender

o que se passa, gira a chave na fechadura, abre a porta de repel�o,
olhando no sentido da cama, onde jaz im�vel o corpo
da Simone, coberto agora pela colcha adamascada.
E Patr�cia, apontando para a cama:

� � a Simone que est� ali. Matou-se, pouco depois de
ter chegado. De prop�sito. Para acabar com nossa festa.
E mais nervosa, aproximando-se, como se fosse levantar
a colcha:

304


� Algu�m esteve aqui e lhe cobriu o corpo! N�o fui eu
que a cobri. N�o, n�o fui!
E enquanto o Rodrigo, sem poder falar, tamb�m desfigurado,
ergue a colcha, descobrindo o rosto l�vido, o Ludovico
se aproxima, humano, sol�cito, consternado, para dizer � Patr�cia,
que cont�m o grito tapando a boca com a palma da m�o:

� Fui eu, senhora. Abri a porta com a minha chave-
mestra para ver se a Sra. Simone precisava de alguma coisa,
e compreendi tudo. Acalme-se. Fui eu tamb�m que lhe fechei
os olhos.
305


QUINTA PARTE

Pauvre amie, si je pouvais vous rendre heureuse,
je le ferais avec joie; ce ne serait que justice.
L'id�e que je vous ai tant fait souffrir
m'est � charge. Ne le comprenez-vous pas?
Mais cela ne d�pend (et tout le reste n'a d�pendu)
ni de moi, ni de vous, mais des choses
m�mes.

FLAUBERT, Lettre � Louise Colet

The case, I may mention, was that of an apparition
in just such an old house as gathered
us for the occation � an appearance, of a
dreadful kind, to a little boy sleeping in the
room with his mother and waking her up in
the terror of it; waking her not to dissipate his
dread and soothe him to sleep again, but to
encounter also herself, before she had succeded
in doing so, the same sigh that shocked
him.

HENRY JAMES, The turn of the screw

C'est si calmant de se repr�senter les choses!
Ce qui est affreux, c'est ce qu'on ne peut pas
imaginer.

PROUST, D U cot� de chez Swann


PRIMEIRO CAP�TULO

1

Nada se parece mais, na manh� seguinte, com a casa onde
houve um vel�rio, do que a casa onde houve uma festa. Os
m�veis desarrumados, sobretudo as mesas e as cadeiras. No
ar, em quase todos os aposentos, o cheiro das flores, insinuativo
e persistente. No ch�o, peda�os de papel, restos de jornal,
p�talas soltas e pisadas. Os cinzeiros repletos. Um copo esquecido
no peitoril da janela. E uma impress�o teimosa de perplexidade
ambiente, como se as paredes, as portas, as janelas,
os quadros, os espelhos, sobretudo os espelhos, o piano, mesmo
envolto na capa que o protege, ainda n�o se tivessem refeito
do bul�cio da noite diferente, ali dentro, com todas as luzes
acesas, o vento a correr livremente, a janela que bate, a curiosidade
dos vizinhos que se debru�am nas sacadas pr�ximas,
e sempre o latido dos c�es, desassossegados e nervosos, com

o mesmo entono, a mesma queixa.
O Rodrigo, ao ver que a manh� vinha abrindo sobre as
�rvores o seu leque de luz vermelha, no ret�ngulo da janela,
voltou a dizer � Patr�cia, que afundara na poltrona da saleta,
amarfanhando o len�o molhado, calada:

� Vai te deitar, querida. Precisas descansar.
Ela sacudiu a cabe�a, como das outras vezes, para lhe dizer
que n�o. Ficaria ali, � espera. N�o tinha sono.
O Ludovico, ainda de casaca, limitara-se a guardar no bolso
da cal�a o cord�o e a medalha, mas j� n�o exibia mais a
impon�ncia aristocr�tica com que, no patamar, anunciava a
chegada dos convidados. Tinha o rosto vincado, o olhar consternado,
o passo lerdo, e reprimia os bocejos inflando discre


309


tamente as bochechas, o ouvido atento aos ru�dos da rua, para
o lado do port�o.

A porta entrefechada deixava ver ainda a luz dos abajures
� cabeceira da cama, no quarto amplo onde jazia a Simone,
e essa luz se ia dissolvendo com a claridade da manh� que
despontava, enquanto o Rodrigo, enrolando e desenrolando
no dedo indicador a corrente de um chaveiro, ia e vinha, ia
e vinha, entre a porta do quarto e a porta sobre o corredor,
tenso, insone, angustiado. Como tirara o palet�, deixado na
costa de uma cadeira, mostrava duas manchas de suor sob os
bra�os, a fivelinha que lhe apertava o colete, a corrente de ouro
do rel�gio, j� sem gravata, o colarinho aberto.

E Patr�cia, como se de repente houvesse recuperado a fala,
ap�s o sil�ncio longo, ao v�-lo aproximar-se:

� Sei que eu melhoraria se pudesse chorar. Mas n�o posso.
Tenho os olhos secos, em fogo.
Debalde, mais de uma vez, recostara a cabe�a no respaldo
da poltrona, cerrando os olhos, na esperan�a de passar pelo
sono. Parecia-lhe que bastaria um cochilo leve para que se
acalmasse. Mas a ins�nia persistia, l�cida, renitente, lembrando-
lhe a Simone morta, ali ao lado, com os olhos imensos � os
olhos que iria ver ao longo da vida, sem brilho, os c�lios abertos,
voltados para o teto. Sacudia a cabe�a, no esfor�o v�o para
tir�-los da mem�ria, e eles persistiam, parados, acusativos,
em seu redor, prontos a se fixarem sobre ela, como suspensos
no ar, trazendo consigo o rosto l�vido.

E o Rodrigo, nesse momento, ouvindo o ru�do de um carro
na rampa do port�o:

� O Dr. Silva Gomes chegou.
Atirou-se para fora da saleta, lan�ou-se corredor afora,
mais correndo do que andando, e ainda chegou a tempo de
alcan�ar o m�dico no meio da escada, magro, pequenino, sempre
calmo, o bra�o alongado pela bolsa de couro em que trazia
os instrumentos de trabalho mais urgentes.

E o Silva Gomes, ainda meio a�reo, como se continuasse
a emergir do sono profundo, assim que o Rodrigo, ao longo
do corredor, lhe contou, de atropelo, o que se passava:

� Pensei que fosse alguma coisa com a D. Patr�cia. Agora,
310


fiquei tranq�ilo. E eu conhe�o essa Simone? Ah, sim, sim, j�
sei quem �. Uma senhora que se mudou para um Sanat�rio. Meio
estranha. Amiga de D. Patr�cia. Talvez n�o esteja morta. N�o
nos precipitemos. Calma. Talvez tenha mergulhado num coma.
Vamos ver. Vamos ver.

Embora apressasse o passo, a caminho do quarto onde
jazia a Simone, Silva Gomes n�o se desprendera de sua calma
natural. Entrou na saleta, beijou a m�o da Patr�cia, e logo desapareceu
na fresta da porta, acompanhado pelo Rodrigo, enquanto
o Ludovico, com os dedos entrela�ados, no v�o da porta
sobre o corredor, rodava com rapidez os polegares, de orelhas
fitas, sem perder de vista a senhora.

Patr�cia, a princ�pio absorta, como a�rea, depois novamente
tensa, n�o tardou a levantar-se, e levantar-se de impulso,
para voltar a caminhar, na ansiedade dos passos perdidos,
indo e voltando ao comprido do corredor. De vez em quando,
tornando � saleta, parecia decidida a alargar a fresta da porta
e entrar no quarto, mas de pronto se continha, com uma express�o
de medo crescente no rosto devastado.

E o Ludovico, grave, sol�cito, implorando:

� V� deitar-se, D. Patr�cia. A senhora precisa descansar.
Tome o seu calmante. V� para o quarto de M�e Ded�. Est�
preparado. A Rosa fica com a senhora.
Patr�cia o olhou de repente, com uma express�o de rispidez
nos olhos dilatados:

� Ali, onde morreu M�e Ded�? N�o. N�o. Ali, n�o. Nem
no quarto que preparei para a Simone. N�o. Estou bem aqui.
E quase lhe confessou, olhando-o em sil�ncio, com o mesmo
rosto contra�do e devastado:

� Preciso estar de p�, acordada, como estou agora. N�o,
n�o quero dormir nem ficar s�. Parece que vou ver a Simone.
De repente. Diante de mim. Ela. Viva.
E conseguindo falar mais firme, como em busca de um
apoio:

� Veja como est�o minhas m�os, Ludovico. Frias. Geladas.
Como as m�os da Simone. Sinto as m�os da Simone nas
minhas m�os. E os olhos dela parados, imensos, diante de meus
olhos.
311


E Ludovico, contagiado pelo medo:

� Reze por ela. Ela precisa de nossas ora��es. Acalme-
se. Tenha f�. Deus sabe o que faz. Ela, onde est�, est� melhor
do que n�s. Descansou. Cumpriu-se a vontade de Deus.
Patr�cia, voltando a caminhar, sem lhe dar ouvidos:

� Premeditou tudo. Conhe�o a Simone. Sei do que era
capaz. Decidiu, friamente, morrer aqui. P�s em execu��o o seu
plano, sem uma falha. E sem que eu, ing�nua, boba, desconfiasse
de nada. Neste momento, onde ela est�, continua a
perseguir-me. A Simone n�o vai me deixar em paz. N�o, n�o
vai.
A fresta da porta aumentou, o Dr. Silva Gomes saiu, trazendo
no rosto chupado uma express�o contrafeita, seguido
pelo Rodrigo, que cerrou a porta e passou-lhe a chave.

E Patr�cia, para o m�dico:

� Morta?
� Morta � confirmou Silva Gomes.
E para o Rodrigo, que trazia os polegares na cava do colete,
apreensivo, com dois riscos verticais a lhe subirem para
a testa:

� Agora, s� nos resta tomar as provid�ncias de praxe:
aviso � Pol�cia, remo��o do corpo para o Instituto M�dico-
Legal, aviso ao Sanat�rio.
E Patr�cia, desorientada, com os olhos aumentados:

� A Pol�cia vai vir aqui, doutor?
E enquanto o m�dico confirmava, movendo a cabe�a
apreensiva, ela se voltou para o Rodrigo, segurou-o pelos
ombros:

� Rodrigo, por favor: n�o deixes que a Pol�cia venha aqui.
N�o deixes. Com a Pol�cia aqui, todo mundo vai saber. Vai.
Teu dinheiro consegue tudo, meu marido. N�o deixes que me
destruam. Porque eu sei que serei destro�ada, dia por dia, hora
por hora. Com as televis�es, com as r�dios, com os jornais.
N�o, n�o consintas, Rodrigo. Pelo amor que me tens. Do contr�rio,
estou perdida. Sim, perdida. Sei que n�o ag�ento o massacre
que vai me envolver, me torturar, me destruir.
E ele, tentando acalm�-��:

� Tudo vai dar certo. Vai. Confia em mim.
312


J� a manh� se abrira por inteiro, com muito sol no parque,
as sombras das �rvores nas alamedas, quando ali chegou

o Padre Revoredo, como se o houvessem chamado.
O guarda do port�o, que bem o conhecia, deixou-o passar.
E ele foi subindo o pequeno aclive da rampa no seu passo
calmo, vendo no ch�o ensaibrado, que rangia sob a sola de
seus sapatos tortos, os restos da noite festiva: aqui, uma tampa
de garrafa; ali, uma rolha; mais adiante, uma taboca de foguete;
por toda parte, carteiras de cigarros vazias e amarfanhadas;
um guardanapo ca�do ao p� de uma cadeira; cadeiras
desarmadas junto �s mesas. No ar, trazido pela vira��o que
arrepiava o espelho da piscina, o cheiro forte das corbelhas,
ainda enfileiradas ao comprido da varanda.

De repente, ao completar a volta da casa, para subir � copa
pela escada sobre a piscina, o padre deu de frente com o
carro escuro do Instituto M�dico-Legal, e aumentou o passo,
alarmado, com a aten��o concentrada nos olhos.

L� no alto, antes de p�r o p� no patamar, viu aproximar-
se o Ludovico, que vinha vindo de cabe�a baixa, ainda na casaca
da noite. E foi ele que lhe disse, em tom de sussurro:

� Sim, sim, Padre Revoredo. Uma desgra�a. Ontem, de
repente, l� se foi a amiga da senhora. A que vivia no Sanat�rio.
E o padre, recuando um passo, como se fosse cair com
a surpresa da revela��o:

� A Simone? Aqui?
E depois que o Ludovico, a um canto, ainda em sussurro,
sempre a olhar para os lados, com receio de que algu�m mais

o escutasse, lhe contou toda a trag�dia, Padre Revoredo abriu
a boca, sorvendo o ar que lhe faltava:
� Oh! Aqui, na noite da festa? E v�o lev�-la agora para
ser autopsiada? Oh, Senhor! M�e Sant�ssima! Eu vinha v�-la,
sabendo que estava aqui. Queria fazer-lhe uma surpresa. Oh,
que transtorno!
313


E logo, corrigindo-se, com as m�os para o alto:

� Deus, na sua infinita sabedoria, � que sabe a vida de
todos n�s.
Ele. Mais ningu�m.
Olhou em volta, como em busca de algu�m:

� E onde est� Patr�cia? Onde est�? Onde?
E mais aflito, ao saber que o Delegado do Distrito a ouvia,
na saleta fechada:

� E que � que a Pol�cia tem a ver com isto? Onde anda
o Dr. Rodrigo? Est� com ela, l� dentro? Posso v�-la? N�o posso?
Mas eu sou um padre. Amigo dela. Amigo da fam�lia. Por
que � que n�o posso?
E como o corpo da Simone vinha saindo, trazido na padiola
por dois pretos vestidos de branco, Padre Revoredo pediu
licen�a para acompanh�-los, e subiu ao carro, pondo-se
ao lado do motorista, s� tendo tempo de avisar ao Ludovico,
no tom perempt�rio de quem sabia o que estava fazendo:

� Eu vou com ela.
As rodas do carro rangeram nos saibros do ch�o, contornando
o fundo da casa, e sa�ram � rua, como impelidas por
uma rajada, para desaparecerem na volta da esquina, por entre
o cicio das primeiras cigarras, enquanto Padre Revoredo,
para acalmar-se, torcia as contas de seu ter�o, com o cigarro
apagado entre o dedo m�dio e o indicador da m�o esquerda.

De um momento para outro, ao ru�do do carro estranho,
a casa quieta se alvoro�ara, com o ar de espanto dos criados,
a Rosa a cochichar no corredor, o jardineiro parado entre os
canteiros, e em redor o sil�ncio, um sil�ncio de medo, concentrado,
e as pessoas im�veis como numa fotografia. Espa�adamente,
ao fundo do parque, o latido de um dos c�es, enquanto
surgiam nas janelas dos edif�cios circundantes as primeiras
cabe�as curiosas, alongando o olhar para a casa, para o jardim,
para o parque, para os guardas. Defronte da casa, junto
ao meio-fio, a viatura que trouxera o Delegado do Distrito.

E essa curiosidade se fez mais viva, com os vizinhos debru�ados
nas sacadas, no momento em que o Dr. Rodrigo veio
trazer o Delegado � cal�ada da rua, e lhe apertou a m�o, e lhe
bateu nas costas, e o ajudou a fechar a porta do carro, sempre
protegido pelos guardas de seguran�a. Ficou um momento pa


314


rado no port�o, � espera de que a viatura se afastasse; acenou
para o Delegado, quase a sorrir-lhe, logo tratando de contornar
a casa, para desaparecer no caminho que levava � piscina.
Subiu depressa a escada. E para o Ludovico, que lhe pedia as
ordens com o olhar preocupado:

� N�o estou para ningu�m. Tamb�m n�o est� D. Patr�cia.
Ningu�m viu nada, ningu�m sabe de nada.
E para Patr�cia, assim que fechou a porta da saleta por
tr�s de seus passos:

� N�o podes ficar assim, como se fosses a culpada. Tens
de reagir. Nem o vestido da noite tiraste. Muda de roupa, trata
de deitar-te um pouco. Est�s exausta. O Silva Gomes deu-te
o tranq�ilizante de que necessitas.
Vais tom�-lo agora.
E Patr�cia, levantando-se, alarmada:
� E tu achas que posso me deitar em nossa cama? Como,
Rodrigo? No lugar em que morreu a Simone? Ali onde
ela ficou?
Ele prop�s, passado um sil�ncio:

� Ali quem vai deitar agora sou eu. Passas para meu
lugar.
E ela, com os cabelos soltos para os ombros, os p�s descal�os
sobre a moquete do ch�o:

� N�o, por favor, isso n�o. No lugar da Simone? N�o,
Rodrigo. Vou me lembrar dela pelo resto da vida, com os mesmos
olhos abertos, branca, defronte de mim, no mesmo vestido
longo. Como se tornasse a v�-la. Aqui. Ali na sala. No sal�o.
No hall. Subindo a escada. Sobretudo aqui. Deitada na
cama. Im�vel. Os olhos parados.
E a bater os dentes, com os punhos cerrados:

� Olha como estou. Tenho medo, Rodrigo. Um grande
medo.
Rodrigo, parado � frente de Patr�cia, segurou-lhe os bra�os,
olhando-a nos olhos. E com energia:

� Amor, olha para mim. Assim. Nos meus olhos. E agora
me diz: h� raz�o para esse medo? N�o, n�o h�. Quem morreu,
morreu. Acabou. Desapareceu. O que aqui aconteceu, por
mais terr�vel que seja, j� pertence ao passado. Ficou para tr�s.
Trata de esquecer. Vive a tua vida.
315


E ela, desprendendo-se dele e voltando a caminhar, torcendo
as m�os, com o pavor nas pupilas:

� Imposs�vel, Rodrigo. Est� acima de minhas for�as. E
eu s� te pe�o que me ajudes. N�o estou em mim. Esta noite
me destro�ou. Toda a minha calma se desfez. Sinto que sou
toda nervos. E nervos tensos, como nunca me senti. S� pe�o
a Deus que consigas abafar tudo. Que n�o se fale no que houve.
E me deixem em paz. Sobretudo isso: que me deixem em
paz. N�o quero que me massacrem. Tenho medo. Medo da Simone.
Medo da morte. Medo de minha casa. Medo de tudo.
S� eu sei como estou, depois de toda uma noite sabendo que
a Simone estava aqui em cima, morta, e eu, l� embaixo, representando
o meu papel de aniversariante feliz. Um horror, Rodrigo.
Um sofrimento que eu n�o quero para ningu�m.
Ele lhe trouxe um copo de �gua e o comprimido:

� Toma, e vai descansar. Aqui mesmo, neste sof�.
E Patr�cia, com uma express�o de pavor, segurando o comprimido
na ponta dos dedos:

� Foi assim que ela fez. Segurou os dois comprimidos,
levou-os � boca, tomou o copo de �gua. Resoluta. Como quem
se atira da sacada de uma janela. E eu, ali, parada, testemunhando
a cena.
3

Foi a Rosa quem lembrou o quarto do mirante, ao fundo
da casa, com a varanda em torno, olhando para a piscina e
a capelinha, na volta da alameda. Via-se tamb�m a outra rua,
por tr�s do parque, e mais a orla de palmeiras, com o banco
de azulejos ao fundo, rente ao muro.

Patr�cia concordou em ir para ali. O ideal seria uma viagem.
Mas o Rodrigo, retido na cidade pela amea�a de greve
em duas de suas f�bricas, t�o cedo n�o poderia sair. Em menos
de uma hora, gra�as �s dilig�ncias do Ludovico, ajudado
pela Rosa, e mais a boa vontade dos oper�rios que tinham vindo

316


desmanchar o tablado, j� a pe�a ampla estava preparada, com
a cama de casal, o guarda-roupa, as c�modas, a arca, as duas
cadeiras de balan�o, e mais o r�dio, a televis�o, a estantezinha
dos livros, a escrivaninha, a mesa redonda para as refei��es,
os quadros nas paredes, e o ar feliz das cortinas esvoa�antes,
nas tr�s janelas amplas que recolhiam ar e luz para dentro do
quarto.

Entretanto, Patr�cia, quando ali subiu, trazida pelo Rodrigo,
parou no patamar da escada, impressionada pelas paredes
brancas que lhe deram de repente a impress�o de que passaria
a viver � como a Simone � num quarto de Sanat�rio.
E n�o querendo desapontar o marido, que lhe gabava o lugar,
os m�veis, as arruma��es, aprovou tudo, achou tudo muito
bem, balan�ou-se na cadeira, estendeu a vista para a orla de
palmeiras, e acabou por alongar-se na cama de ferro,
queixando-se de que os olhos lhe do�am, na claridade forte.

� Para isso, h� rem�dio � acudiu o Rodrigo, correndo
uma das cortinas para atenuar a claridade rutilante.
L� fora, o cavo bater dos martelos na desmontagem do
tablado. Um serrote ia e vinha, rangendo, serrando, por entre

o rangido dos pregos e o estalar das cadeiras que iam sendo
desarmadas. De vez em quando uma risadinha, uma palavra
mais alta, um latido, e o rumor dos galhos que a vira��o da
tarde nova sacudia. No ch�o ensaibrado, o estalar das pedras
soltas e das folhas ca�das.
Assim que a Rosa saiu, Patr�cia tornou a sentir-se aflita,
como se lhe voltasse todo o medo da noite infinita, e esteve
para descer ao sal�o, chamando pela criada, chamando pelo
Ludovico, chamando pelo marido, mas se deteve no alto da
escada em caracol, no esfor�o para dominar-se.

E em tom alto, com energia, enquanto sentia o bater das
t�mporas, na volta do cora��o acelerado:

� Eu tenho de me acalmar. Deus est� comigo. Nossa Senhora
tamb�m.
Conseguiu tornar � cadeira de balan�o, enclavinhou as
m�os no apoio de madeira, descansou a cabe�a no recosto de
palhinha, de p�lpebras cerradas, rezando. O torpor do tranq�ilizante,
longe de acalm�-la, dava-lhe agora uma agita��o

317


diferente, que dispensava os movimentos do corpo: era uma
impaci�ncia estranha, que sacudia o seu ser, abalava-lhe a consci�ncia,
dando-lhe �nsias de correr, de gritar, de pedir que a
socorressem, enquanto recompunha o corpo de Simone, im�vel,
ao comprido da cama, os olhos abertos.

Aos poucos, sem transi��o sens�vel, o torpor abrandou,
e ela parecia suspensa no ar, levitando, com o corpo fofo, uma
vaga sensa��o de c�cega na epiderme, sem que perdesse a consci�ncia
do mundo � sua volta, com o crucifixo sobre a c�moda,
o vento a bater de leve a r�tula da janela, um ru�do de passos
que se aproximavam, enquanto a voz da Paula lhe repetia o
nome, chamando-a:

� Patr�cia!
Com imenso esfor�o, como se subisse � borda de um po�o
profundo, Patr�cia descerrou os olhos, viu primeiro a Paula
crescer no v�o da escada, aumentar de tamanho, destacar
na luz intensa o tom creme do vestido que lhe descia � altura
dos joelhos, uma boina vermelha na cabe�a, e o medo, e espanto,
e a ang�stia no rosto pintado:

� Que foi que aconteceu, Patr�cia?
E Patr�cia numa voz fraca, quase inaud�vel:
� �s tu, Paula? Senta-te aqui, perto de mim.
E a outra, sem poder reprimir-se:
� � mesmo verdade que a Simone morreu aqui, ontem
� noite, quando os teus convidados estavam chegando, e que
nada disseste a ningu�m, nem mesmo ao Rodrigo? As r�dios
e as televis�es est�o dando a not�cia. E os rep�rteres est�o l�
fora, querendo te ouvir, sem que os guardas de seguran�a os
deixem entrar. Assim que uma amiga me passou a not�cia, pensei
que fosse um trote, uma brincadeira de mau gosto. Telefonei
para c�, mas os telefones n�o atendiam. Liguei a televis�o, no
jornal do meio-dia, exatamente na hora em que o locutor dizia
que o corpo da Simone estava sendo autopsiado no Instituto
M�dico-Legal. Sa� de casa como estava, s� botei esta boina
na cabe�a, corri para c�. No port�o, quase n�o passei. Foi
teu motorista que me reconheceu e me fez entrar. N�o imaginas
como est� l� fora. A cal�ada cheia, a rua cheia, os vizi318



nhos nas janelas, um horror. Me conta o que houve. Estou de
m�os geladas. At�nita. Sem saber o que pensar.

Patr�cia permaneceu uns momentos em sil�ncio, como se
n�o a tivesse ouvido, longe, a�rea, voltada para dentro de si
mesma. Pela fresta das p�lpebras, viu quando a Paula, trazendo
uma cadeira para perto, sentou ao seu lado, cruzando as
pernas.

Sempre entregue ao torpor que a levitava entre a vig�lia
e o sono, estendeu o bra�o, deixou a m�o fria entre as m�os
de Paula. E devagar, antes de desprender-se da luz que a envolvia,
conseguiu dizer-lhe:

� Conversa com o Rodrigo. Ele te conta tudo. Estou muito
cansada. S� quero dormir... esquecer... esquecer...
4

Pela primeira vez ela via o Rodrigo exausto, com o rosto
marcado pelos vincos do cansa�o f�sico, sentado na poltrona
� sua frente, no quarto improvisado. Ao chegar da rua, j� noite
entrada, instalara-se ali, sem querer tirar o palet�, e ali ficara,
com os p�s por cima dos sapatos, sem gravata, as m�os
nos bra�os da poltrona, a olhar para ela, como se fosse sorrir.

E Patr�cia, passado um sil�ncio longo:

� Eu dormi um pouco, aqui mesmo. Quando despertei,
j� a Paula tinha ido embora. Ainda me sinto atordoada, como
se o pesadelo n�o tivesse acabado.
E ap�s uma pausa:

� E Simone?
� Est� voando para o Sanat�rio. Imagina tu que o Padre
Revoredo, depois da aut�psia, queria trazer o corpo para
c�, de volta, para o vel�rio na capela. Fui firme. N�o e n�o.
Dali do Instituto M�dico-Legal a Simone iria para o Sanat�rio.
Um avi�o, fretado por mim, estava na pista, � espera do
corpo. E o padre, com as singularidades que bem conheces:
� Quero ir com ela. Preciso rezar a missa de corpo presente.
319


Na capela do Sanat�rio. � E foi. Com o m�dico da Simone,
que tamb�m tinha vindo busc�-la. Agora, trata de esquecer o
que se passou. Ficou para tr�s.

Rodrigo ensaiou levantar-se, chegou a firmar os p�s no
tapete, apoiando as m�os resolutas, mas o cansa�o p�de mais
que a sua determina��o, e ele continuou a olh�-la, com as bochechas
ca�das, a papada por cima do colarinho aberto. Pela
primeira vez na vida, deixara de fazer a barba, e esta se lhe
espalhara pelo queixo, grisalha, subindo para as su��as,
cobrindo-lhe os l�bios.

E Patr�cia, ap�s novo sil�ncio:

� Quem esteve tamb�m aqui, pouco antes do final da tarde,
foi o Lucas Caetano. Nem sentou. Estava nervoso. Queria
saber de tudo. Pedi-lhe pelo amor de Deus que n�o me perguntasse
nada. Ele ficou falando, a andar de um lado para outro,
e eu aqui ouvindo, a rezar para que fosse embora.
Fez-se mais s�ria, com um lume de pavor nas pupilas:

� Disse-me ele que eu posso ser processada. Por oculta��o
de cad�ver. Que � isso? N�o entendi.
Rodrigo ficou de p�, num impulso. E exaltando-se, com
as bochechas sacudindo:

� Bobagem dele. Estupidez pura. Eu, se estivesse aqui,
dava-lhe um grito, punha-o para fora, escada abaixo. Era o
que merecia.
Enquanto falava, despiu o palet�, acomodou-o no espaldar
de uma cadeira, despiu as cal�as, dobrou-as, deixou-as no
assento da cadeira, sempre agitado. E vestindo o pijama:

� O que passou, passou. Ponto final. N�o fales nada.
Os criados tamb�m n�o v�o falar. Assunto encerrado. O Expedito,
quando me foi levar ao Instituto, n�o soube como se
livrar dos rep�rteres, e quase p�e tudo a perder, com as respostas
que deu. J� o proibi de falar. De tarde, apareceu aqui
um mo�o da Companhia Telef�nica, para mudar um fio, e s�
n�o entrou, para bisbilhotar e fazer esc�ndalo, porque o Ludovico
desconfiou dele e lhe pediu os documentos. Era um rep�rter,
que j� ia transpor o port�o, com uma caixa de ferramentas
e um rolo de fio. � era aqui pelo mirante que ele ia
come�ar. Outros vir�o aqui, como bombeiros, como eletricis320



tas, como floristas. Se te telefonarem, n�o atendas. Se vierem
te visitar, n�o deixes ningu�m subir. Seja quem for. A Rosa
est� avisada. O Ludovico tamb�m. Avisei os guardas de seguran�a.
Todos. Um por um. Eu mesmo.

Patr�cia, ainda a debater-se com o torpor que lhe tirava
as for�as, p�s-se a dizer a si mesma, com o medo a lhe reluzir
nos olhos entrecerrados:

� E ela ia voltar, trazida pelo Padre Revoredo? Ah, meu
Deus, que horror.
De novo aqui, na capelinha?
E logo a sua imagina��o alarmada comp�s a cena, com

o corpo ao centro da nave, os c�rios acesos, a Simone no vestido
da noite, em redor as colegas da Escola Normal, os professores,
os amigos, os curiosos, os rep�rteres, os flashes fotogr�ficos,
as c�maras de televis�o, o rumor do vel�rio, o cheiro
das flores.
Fechou as m�os, no esfor�o para dominar o seu grito. E
ficou uns momentos im�vel, sempre contraindo os punhos, com
a certeza de que, ao fim de tantos anos, a Simone consumara
a sua desforra, l�vida, de olhos parados, intimidando-a para

o resto da vida.
321


SEGUNDO CAP�TULO

1

A Inezita tinha raz�o: o infort�nio, quando chega, vem
sempre em bando. Traz consigo outros tormentos, outras ang�stias.
Um sobressalto sobre outro. At� a D. Genu, forte,
saud�vel, nos seus noventa e dois anos, l�cida, expedita, acompanhando
todos os festivais de m�sica e canto, como se tivesse
quarenta, ou trinta, no seu vestido longo, no seu abrigo de
peles, estava agora entre a vida e a morte, reclamando a presen�a
do filho.

O pobre do Rodrigo, coitado, atafulhando na maleta de
viagem uma muda de roupa, o aparelho de barba, duas ou
tr�s camisas, meia d�zia de cuecas, um pijama de l�, fretara
um avi�o e l� se fora, na tarde de chuva, por entre trovoadas,
com a promessa de voltar no dia seguinte, para continuar a
passar as noites no mirante.

A pr�pria Patr�cia aconselhara-lhe a viagem:

� Tens de ir, n�o podes deixar de ir. N�o � tua m�e, mas
� como se fosse: foi ela que te criou. Vai. J� estou melhor.
Fica tranq�ilo, quanto a mim: estou melhor. O telefone vai
ficar ligado: de l�, tu me falas. Ou eu te falo daqui, se for
preciso. Mas vai. Seria pior se n�o fosses. Pelo jeito, ela est�
� morte.
E ele, refor�ando o argumento:

� Foi o que me disse o m�dico.
E Patr�cia, por um momento esquecida da Simone:
� No nosso casamento, mesmo andando com dificulda323



de, ela veio. E teu pai tamb�m. Assim que tudo passar, tamb�m
irei l�. Para ficar uns dias. Espairecer. Mudar de ares.

S� ela sabia, olhando o carro atravessar o port�o para
levar o Rodrigo ao aeroporto, o quanto lhe custava separar-
se dele, naquela hora, naquela prova��o. Era preciso ir at�
l�, como filho �nico, j� que a velha senhora n�o se arredava
de seu espa�oso chal� de teto pontudo, rodeada de vacas holandesas,
com um moinho a girar a sua roda vagarosa, um
bra�o de rio, a planta��o de girass�is, os enxames de abelhas,
e a famosa cria��o de can�rios belgas, sob as �rvores, no imenso
viveiro que mais parecia uma cidade em miniatura.

E ele, concordando com a viagem:

� Tens raz�o: n�o posso deixar de ir. N�o � a m�e verdadeira,
mas � como se fosse. Ou mais ainda. Vou. Tenho de
ir. De l� te falo. Daqui me falas. Sem problema. O Silva Gomes
continuar� a te ver, todos os dias. Se for preciso, fa�o
vir para ti, dos Estados Unidos, o Nuno Vaz com a sua equipe.
Ao ver-se s�, sabendo que ao longo da noite n�o teria

o marido ao seu lado, Patr�cia alarmou-se, com a intui��o de
que algo estranho e indefinido ia acontecer ali, na aus�ncia
do Rodrigo. Agarrou-se �s contas do ter�o, no esfor�o para
dominar-se, e rezou horas seguidas, at� sentir que Nossa Senhora
a protegia.
No correr da tarde vazia, p�de ler, voltou a tecer o velho
tapete que come�ara havia seis anos, chegou a p�r no toca-
discos um concerto de Mozart � que prontamente calou, reconhecendo
n�o ficar bem que os vizinhos o ouvissem. Que
iriam dizer, sabendo que ali morrera uma pessoa, h� t�o poucos
dias? Mesmo baixinho, podiam perceber. Era melhor guardar
o disco � e guardou-o.

Foi a Rosa que lhe aconselhou a descer:

� Des�a, d� umas voltas pela casa. � preciso.
E como o Silva Gomes, dias antes, lhe dissera a mesma
coisa, insistindo em que for�asse a natureza, percorrendo a
casa, for�ando o conv�vio com os lugares que lhe restitu�am
a imagem da morta, desceu devagar a escada em caracol, �
hora da sesta, quando a Rosa e o Ludovico estariam l� embaixo,
ou nos seus quartos, ou na copa, e foi andando deva


324


gar, num passo de convalescente. Mais de uma vez esteve para
voltar, com a repentina certeza de que, l� adiante, ao voltar-
se para um lado, ao abrir uma porta, ao dobrar um corredor,
a Simone ali estaria, � sua espera. Parada durante alguns
momentos, como perplexa, indecisa, como se a claridade do
dia lhe desse a sua prote��o e o seu amparo, acabou prosseguindo,
enquanto dizia a si mesma:

� N�o, n�o vai acontecer nada.
Nunca sentira o cora��o bater-lhe t�o forte. P�ssaro arisco
que sacudia as asas e o resto do corpo, a querer sair-lhe pela
boca, na ang�stia em que se debatia, sozinha no casar�o quieto,
longe do Rodrigo. Por quem chamaria, se a Simone lhe aparecesse?
Levaria as m�os � boca, de olhos fechados, gritando,
e os passos da outra se afastariam, bateria uma porta com estrondo,
a cortina esvoa�aria, ressoaria um gonzo perro, e logo
o Ludovico, ou a Rosa, ou um dos guardas de seguran�a
acudiria, assustado:

� Que foi, senhora?
Seguiu pelo corredor, passou o sal�o, passou a saleta, a
saleta da televis�o, outra sala, e deu de frente com a porta fechada
de seu quarto de dormir. Por um momento, no auge
de sua determina��o aflitiva, quis adiantar o bra�o, j� bem
perto da ma�aneta de cristal, sabendo que, ao torc�-la para
a direita, veria a cama espa�osa, com a sua colcha adamascada,
o crucifixo de marfim por cima da cabeceira de jacarand�

� e a Simone, l�vida, estendida ao comprido do colch�o, com
os olhos abertos. Mas parou de repente, com a m�o no ar,
toda tr�mula. E rapidamente se desviou dali, para entrar no
gabinete do Rodrigo. Sempre tr�mula, encostou a porta, deu
alguns passos, ainda ouvindo o bater dos dentes, e torceu o
ferrolho da janela sobre o parque, como em busca do ar que
lhe faltava, na penumbra circundante. Logo soprou ali dentro
uma lufada de vento frio, que inflou a cortina, como se
fosse arremess�-la para o teto, e aquietou-se de repente, assim
que bateu com for�a a porta mal encostada.
Patr�cia, aterrorizada, os l�bios roxos, muito p�lida, esteve
uns momentos sem a��o, as sobrancelhas alteadas. Depois,
reagindo, inspirou profundamente, moveu a cabe�a, cir


325


cunvagou a vista. Por que tinha vindo at� ali, se sentia tanto
medo? Ah, agora podia dizer ao Rodrigo e ao Silva Gomes
que lhes fizera a vontade � caminhando at� o escrit�rio. S�
n�o pudera abrir a porta do quarto de dormir. Por mais que
dissesse a si mesma, repetindo o que ambos lhe afirmavam sobre
a cama vazia, sobre a Simone longe dali, o medo insistia
em dar-lhe a certeza de que, ao abrir a porta do escrit�rio sobre
o quarto, ia dar com ela, no vestido longo, deitada, morta.
E olhando a porta fechada, que tamb�m parecia atra�-la:

� Sei que ela est� a�. Tenho certeza.
Sentindo que seu cora��o tornava a disparar, dando-lhe
�nsias de sufoca��o, cerrou as m�os com for�a, quase a cravar
na carne as unhas arroxeadas, enquanto afundava na poltrona
orelhuda, a um canto da pe�a, entre as estantes. O Ludovico
teria apagado os abajures das mesas-de-cabeceira? Ou
ainda estariam acesos, no correr de tantos dias? E por que n�o,
se algo persistia na casa com a sua atmosfera de anormalidade
e mist�rio? Tudo em volta parecia estranho, sobrenatural.
E se a Simone, mesmo morta, se erguesse da cama, e abrisse
a porta, surgindo de repente, l�vida, com os grandes olhos
apagados?
Num relance, Patr�cia teve a impress�o de que a ma�aneta
da porta ia mover-se, e preparou-se para gritar, desencostada
do respaldo de couro, a respira��o suspensa, os antebra�os
nos bra�os da poltrona. Mas a voz lhe fugiu, e ela permaneceu
sentada enquanto a porta se abria para dar passagem
� Rosa, que lhe disse, com ar assustado:

� J� procurei a senhora por toda a casa. No mirante,
n�o estava. No jardim, n�o estava. No sal�o, n�o estava. Cheguei
a ficar nervosa. S� n�o chamei o Ludovico porque saiu
com o Expedito para entregar os cheques dos asilos. N�o sei
por qu�, me lembrei de vir aqui.
E dando � voz um tom alvissareiro:

� Estou vendo que tudo vai indo bem. Assim � que a
senhora deve fazer. Volte a andar na sua casa. Nada de ficar
presa no mirante. Presa, por qu�? N�o digo que v� para a rua.
N�o. Tudo tem seu tempo. M�s volte a andar pela casa, sa326



bendo que, no port�o, n�o passa ningu�m sem o consentimento
dos guardas.

Abriu outra janela para dar mais luz ao escrit�rio.

E olhando por tr�s da vidra�a:

� Agora, j� chegou mesmo o outono. L� fora, para o
lado da capelinha, as castanheiras parecem de ouro, com as
folhas amarelas.
2

A primeira rea��o de Patr�cia, ao ver sobre a mesa do
Rodrigo, a um canto, a gorda pasta de cartolina do Dr. Ren�
Sobral � com esta indica��o na capa, na letra fina e alta do
velho advogado: Pap�is sobre D. Patr�cia � foi de surpresa
e espanto.

Intrigada, segurou a pasta, esteve um momento a olh�la.
Pap�is a seu respeito? E a que prop�sito? Ainda a ouvir
os passos da Rosa, que afinal se fora, deixando sobre a mesa
de centro a ch�vena de porcelana com o ch� bem quente, e
mais as torradas e o potezinho de mel, desprendeu o fecho
de el�stico que prendia as pontas da cartolina nas duas extremidades,
descerrou depressa a pasta e deu com sucessivos recortes
de jornal cuidadosamente colados em largas folhas de
papel alma�o, alguns tomando o espa�o de alto a baixo, todos
a respeito da morte da Simone.

Ora espantada, ora indignada, foi lendo os recortes, um
a um, e passou da surpresa � revolta, da ira ao pavor, da perplexidade
� indigna��o, sem poder aceitar que tudo aquilo estivesse
ligado � sua pessoa, com as acusa��es mais vis, com
as ila��es mais torpes, com as suposi��es mais perversas, e todos
eles impressos com destaque, ora nas primeiras p�ginas, ora
nas p�ginas finais, por entre retratos seus, retratos do Rodrigo,
retratos da Simone, e mais as fotografias de sua casa e
do Sanat�rio.

327


E segurando um dos recortes na m�o tr�mula, pensando
em sair � rua, para gritar bem alto, na pra�a central da cidade:

� Tudo isto � infame! Tudo isto � absurdo! Tudo isto
� vil. � torpe. � miser�vel. � est�pido.
Por que insinuar que, entre ela e a Simone, tinha havido
uma liga��o impura, no tempo da Escola Normal? Como se
podia afirmar, com todas as letras, na cabe�a de uma reportagem,
que ela, Patr�cia, fizera vir de prop�sito a Simone �
sua casa, para humilh�-la, para lev�-la a matar-se?

De p�, andando de um lado para outro, esquecida do ch�
que arrefecia, amarfanhou o recorte na m�o convulsa, com
�dio, com nojo, e o sacudiu de si, reduzido a uma bolota. Nisto
reparou que a bolota se abria como se tivesse vida pr�pria,
e novamente a manchete pareceu gritar, no destaque das letras
agressivas: Suic�dio ou assassinato? Um gesto de desespero
ou um crime premeditado? Apanhou do ch�o o recorte,
rasgou-o em peda�os mi�dos, com �dio, com raiva. E ia atir�los
pela janela � que impulsivamente escancarou � quando
refletiu que a mis�ria ficaria ali mesmo, no seu quintal. Tamb�m
n�o deveria jog�-los na cesta de pap�is: continuariam ainda
ali, pequeninos, mesquinhos, miudinhos, escarnecendo de
sua ira. E como lhe queimavam a m�o convulsa, correu ao
banheirinho privativo, por tr�s da estante envidra�ada, e
arremessou-os ao fundo da privada, ao mesmo tempo em que
premia o bot�o da descarga: a �gua desceu com ru�do, revolveu
os papeluchos, levou-os de rold�o para o cano do esgoto.

De volta ao escrit�rio, Patr�cia ainda arfava, nos haustos
da respira��o ofegante. E ao segurar novamente a pasta,
revolvendo e revendo outros recortes, refletiu que tudo quanto
ali se amontoava, com as argui��es mais torpes e mais miser�veis,
j� se difundira e propagara, canalhamente, implacavelmente,
urdindo o seu caminho imundo. O dano moral estava
feito.

Em busca de um amparo, pensou em telefonar ao Rodrigo,
enquanto lhe crescia a sensa��o da boca seca e da garganta
apertada. Crispava as m�os iradas, com vontade de gritar, de esbofetear,
de reagir a tanta mis�ria com uma arma na m�o.
Arfando, com o peito a subir e a descer, acercou-se da garra


328


fa de �gua e do copo, ao lado da mesa, na bandeja redonda
sobre a papeleira. Sorveu alguns goles, sempre nervosa, sempre
exaltada, at� que reconheceu, no copo que sua m�o segurava,
o mesmo copo em que havia trazido a �gua para a Simone.

E repondo-o na bandeja, como se o copo lhe ardesse na
polpa dos dedos, afastou-se da papeleira, at�nita:

� � esse mesmo. N�o havia outro aqui. O copo do Rodrigo.
Com o mesmo friso dourado. Estou vendo a Simone
segur�-lo, depois de p�r as duas p�lulas na boca. Eu lhe amparei
a cabe�a, ajudei-a a pegar o copo, esperei que ela tomasse
o gole de �gua.
Brandamente, repusera-lhe a cabe�a no travesseiro, antes
de volver ao espelho para prender na cabe�a o diadema.
Agora, ali, tornava a ouvir-lhe a voz, enquanto Simone cerrava
por um momento as p�lpebras fatigadas:

� Deus te pague, Patr�cia.
Calma, senhora de si. E estava a se matar. Sabendo que
tamb�m a destru�a, a ela, Patr�cia, com aquele gole de �gua,
com aquelas duas p�lulas brancas na ponta dos dedos.

N�o obstante o frio que se espalhava por toda a casa, trazendo
para ali a umidade da rua, do parque, da piscina, das
alamedas, com uma luz leitosa entristecendo a tarde, fechando-
a, calando os passarinhos, Patr�cia experimentava agora uma
sensa��o pegajosa de calor, com o suor a lhe escorregar das
t�mporas, a resvalar pelas costas, a umedecer-lhe a palma das
m�os, a descer-lhe das axilas.

Novamente na poltrona, com'a m�o direita apoiando o
queixo, o dedo indicador ladeando o rosto, permaneceu longo
tempo im�vel, atordoada, olhando a pasta aberta, os recortes
espalhados, e todas aquelas mis�rias, que a denegriam,
que a destro�avam, lhe davam um sentimento novo, que jamais
havia experimentado � com o nojo da vida em seu redor.
Jamais imaginara que o mundo fosse assim. N�o. Nunca.
E uma vontade p�nica de sair dali, de fugir para longe,
de se refugiar num recanto qualquer onde ningu�m a conhecesse
e onde n�o conhecesse ningu�m, talvez numa ilha distante,
subia-lhe � consci�ncia, como um aceno ou uma
obsess�o.

329


E o Ludovico, aflorando a cabe�a � entrada do escrit�rio:

� D. Patr�cia n�o quer que acenda a lareira?
Como Patr�cia n�o respondesse, fechada em si, os olhos
ausentes e apagados, ele se acercou da lareira, diligente, prestativo;
soprou a cinza, acomodou as achas. E de costas, acendendo
o fogo:

� A temperatura caiu muito, de ontem para hoje. Pela
manh�, quando olhei o term�metro, assustei-me: estava abaixo
de quatro graus. � como se estiv�ssemos no inverno. Em pleno
inverno.
Patr�cia n�o sentiu tamb�m quando ele, no v�o da porta,
curvou a cabe�a, pediu licen�a, perguntou-lhe se n�o queria
que renovasse o ch�. De p�lpebras quase cerradas, continuava
abismada no mist�rio que a atormentava. Como compreender
tanto �dio � sua volta? Quem teria fornecido tantos
pormenores torcidos sobre a sua amizade com a Simone? E
por que dizerem que a Simone j� estava de enxoval pronto
e casamento marcado quando o Rodrigo desfizera o noivado
para casar com ela, Patr�cia, uma semana depois? Absurdo.
Mentira. Cal�nia. Tudo junto. Sem esquecerem as tentativas
de suic�dio da Simone, no Sanat�rio. E ela, Patr�cia, a debater-
se em meio �quele turbilh�o de mis�rias, triturada, batida, infamada,
s� porque tinha aberto a sua casa para uma recep��o,
chamando agora as companheiras de col�gio. Absurdo.
Deveria isolar-se, viver reclusa, voltada egoisticamente para
dentro de si mesma? Sim, sim, era o que devia fazer. E nisto,
com a pasta de recortes sobre o rega�o, recordou a entrevista da
Evangelina, repisando inf�mias, confirmando suspeitas idiotas,
compadecida da Simone, e sorrindo, de pernas cruzadas, gorda,
os peitos ca�dos, a falar para a rep�rter, com um ar compenetrado,
e este remate, para o fim da conversa: "� N�o
afirmo nem nego, fa�o apenas uma pergunta, interessada na
verdade final: a Simone se matou mesmo ou foi morta? Sim,
sim, � tamb�m uma hip�tese. Por que n�o?"

Com o telefone ao alcance da m�o, Patr�cia chegou a trazer
para perto o aparelho. Ia dar-lhe uma resposta. Mas que
ia dizer-lhe, sufocada pela revolta? N�o, isso n�o. Com esfor�o,
levantou-se, trazendo consigo a pasta de recortes, que

330


atirou ao meio da lareira. Viu crescer o bal� das labaredas,
com o cora��o apertado. E teve de amparar-se no rebordo de
m�rmore � sua frente, para n�o ceder � vertigem que lhe toldava
a vista, enquanto a casa oscilava e fugia, como uma velha
nau que o temporal balan�asse.

Novamente na poltrona, sentiu que as sombras se adensavam
� sua volta, na tarde que esmorecia. Trouxe para o rega�o
o telefone, ligou para o Rodrigo. E quando ele respondeu:

� Sou eu. Patr�cia. Quando vens?
� Talvez amanh�. Ela melhorou.
� Preciso muito de ti.
E, sem repor o fone no gancho, com a impress�o de que
o mundo � sua volta se desfazia e desmoronava, p�s-se a
chorar.
3

Levou algum tempo para reencontrar na criatura repleta,
metida num casac�o de inverno, a Carmita esguia que n�o terminara
o curso da Escola Normal � por ter sa�do dali para
casar com um senhor alto, sempre vestido de branco, sobra�ando
uma pasta, e que trabalhava para um laborat�rio de
produtos farmac�uticos.

E a outra, depois de despir o casaco, instalando-se na cadeira
de bra�os, calma, muito � vontade:

� Pensei que voc� n�o se lembraria de mim. Estive para
lhe telefonar, dias antes de sua festa. Mas achei que era melhor
telefonar depois. Podia parecer que eu s� estava telefonando
para ser convidada. A� apareceu nos jornais toda essa
novela absurda sobre a morte de Simone. E eu disse a meu
marido, que quase vinha comigo: � Conhe�o a Patr�cia. Ela
seria incapaz de semelhante absurdo. A Simone morreu na casa
dela como podia ter morrido na minha. Por que n�o? Tive
uma prima que morreu nos meus bra�os quando me visitava.
Hoje, vim aqui para lhe dizer que estou �s suas ordens. Se pre331



cisar de uma testemunha para depor em seu favor, seja onde
for, conte comigo.

Emocionada, Patr�cia apertou-lhe as m�os, em sil�ncio,
sem conseguir falar. Limitou-se a mover as p�lpebras, contraindo
os l�bios, no esfor�o para n�o chorar.

E depois que a outra se foi, simp�tica, adiposa, envolta
no casac�o cor de laranja, depois de ter contado a sua vida,
de ter ensinado uma receita infal�vel para abrir o apetite e posto
no papel o nome de um ch� que era tiro e queda nas ins�nias
mais rebeldes, associou-lhe a visita � nova visita do Silva Gomes,
que lhe vinha dar o resultado da aut�psia da Simone:

� Morreu de uma parada card�aca. N�o era a primeira.
Tinha tido outra, menos grave, h� seis anos, no Sanat�rio.
Vim aqui s� para lhe dar a boa not�cia.
E embora ele lhe sorrisse, com ar convicto, ela ficou em
d�vida, como ficara em d�vida sobre a morte repentina da
prima da Carmita, na sua casa, nos seus bra�os. Reconhecia
que todo mundo queria ajud�-la, dando-lhe a m�o, contando
casos parecidos, sobretudo a Rosa, que passava o mais das horas,
ali ao seu lado no mirante, ou perto, nos aposentos cont�guos,
ao alcance de sua voz.

� medida que o tempo flu�a, avivava-se-lhe a convic��o de
que estavam a tentar engan�-la. No come�o, acreditava no que
lhe diziam; vinha a seguir a d�vida; por fim, a certeza de que
nada do que lhe contavam era verdade. A Simone tomara as
duas p�lulas na sua presen�a, e fora ela, Patr�cia, que lhe trouxera
o copo de �gua. O copo de raias amarelas do escrit�rio
do Rodrigo. O copo que ainda l� estava. O mesmo. E a Simone
viera ali para isso. S� para isso. Destruindo-lhe a festa.
Envenenando-lhe a vida. Levando-a ao desespero.

E como se falasse para a Simone:

� A mim n�o enganas. Vieste aqui para isso. S� para isso.
E novamente lhe lembrava os telefonemas, o vulto esguio
e l�vido subindo a escada, as m�os geladas, a voz macia, o momento
em que se alongara na cama, os dedos finos levando
� boca as duas p�lulas; depois im�vel, muito branca, os olhos
parados.

Patr�cia amarfanhou o len�o, acomodou-se melhor na pol


332


trona, descansou os bra�os nos bra�os de couro, e repetiu,
convicta:

� Sei que est�s aqui perto, Simone. Sei. Sinto teus passos,
ou�o tua voz chamando por mim. �s tu que, � noite, n�o
me deixas dormir. Quando vou adormecer, sacodes meu bra�o,
repetes meu nome. N�o � ilus�o minha. N�o, n�o �. Sei
o que estou dizendo.
E foi nesse dia, assim que a noite caiu, sombria, �mida,
enervante, que ela deu ordem ao Ludovico para que acendesse
todas as luzes da casa. Ele hesitou, com a impress�o de n�o
ter ouvido bem. E indagou, ap�s um sil�ncio, para ter mesmo
a certeza:

� Todas, D. Patr�cia?
� Todas.
Em poucos momentos, a casa inteira deu a impress�o de
que se espantava na claridade excessiva. Tanto as salas e os
sal�es quanto os quartos e os corredores, e mais a varanda,
e o vest�bulo, e as escadas, a copa, a cozinha, e os quartos
dos criados, e ainda as alamedas, a piscina, e o jardim, tudo
resplandecia com os olhos arregalados das l�mpadas, dos lampi�es,
dos lustres, como numa festa, como num vel�rio.

4

Ele estranhou a casa iluminada, com todas as luzes refulgindo
na bruma da noite, e logo imaginou que algo grave
estaria a passar-se. Mas nada disse ao motorista, que atravessou
o port�o, sob as vistas dos dois guardas, e parou ao p�
da escada.

E o Rodrigo, para o Ludovico, que lhe abriu a porta:

� Que � que se passa, com todas estas luzes?
E o Ludovico, cerrando depressa a porta:
� Ordens da senhora D. Patr�cia.
E a acompanh�-lo, atravessando o vest�bulo:
� Talvez algum receio, que n�o me adiantou.
333


Depois, j� na escada do mirante, sem subir:

� Ela lhe dir�, com certeza.
Patr�cia sentiu os passos na escada, galgando depressa os
degraus. Alarmou-se, endireitando o busto, sentada na cama.
E p�lida, quase a gritar, quando deu com o marido no v�o
da porta:

� Ah, �s tu? Que al�vio. Fiquei com medo.
E ela, ofegante, notando-lhe a express�o intrigada, a olh�la
de frente, segurou-lhe a m�o, como um amparo:

� Preciso de ti, Rodrigo. Muito. N�o me deixes s�. Eu
j� estava aqui quando anoiteceu. Senti os passos da Simone,
na escada. Os mesmos passos do meu tempo da Escola Normal.
Os mesmos. Subindo depressa, depois parando. E mandei
iluminar a casa. Toda. Para que ela n�o me aparecesse.
Ontem, j� tarde, sozinha aqui, estive para gritar. Felizmente
contive o grito. Ouvi as portas abrirem e fecharem, j� com
a casa fechada. Cheguei a me levantar para chamar a Rosa.
Mas me agarrei ao meu ter�o. Rezei, rezei muito. At� que o
medo passou.
Ele lhe afagou os cabelos, em sil�ncio, compadecido dela.
E buscando-lhe os olhos, onde ainda reluzia uma chispa
de pavor:

� Agora, estou aqui. Fica tranq�ila. A Simone est� quieta,
no seu lugar. N�o penses mais nela. O que passou, passou.
Ficou para tr�s. Tens de voltar ao que sempre foste. Calma.
Segura de ti. J� sabes que a Simone n�o se matou. Liguei
para o m�dico dela. J� te disse. Contou-me que a Simone era
card�aca. Desde que chegou ao Sanat�rio.
Ela deu mais vida aos olhos espantados:

� Mas podia ter apressado a sua morte. Para que fosse
aqui. Na noite de nossa festa. Para acabar com tudo. Podia.
Perfeitamente. Sei que podia. A Simone era uma pessoa estranha.
Capaz de tudo. Sempre temi que fizesse alguma coisa
comigo.
Rodrigo sentou na borda da cama. E de frente para Patr�cia,
ainda a lhe segurar as m�os:

� E n�o fez. Nem podia fazer. Fazer o qu�? Nada. Acalma
essa cabecinha inquieta. Confia em mim.
334


Ela baixou as p�lpebras. E numa voz quase inaud�vel:

� Eu conhecia a Simone mais do que tu. Conhecia. Como
ningu�m. Ela nunca me perdoou. Nem a ti. Seguia meus
passos. E os teus. E esperou^a hora para se vingar. De n�s
dois. Sobretudo de mim.
E levantando o olhar:

� Li os recortes de jornal que estavam na tua mesa. Quase
todos me acusam. Cruelmente. Estupidamente. S�o poucos
os que dizem que Simone n�o se matou. E me culpam a mim.
Deus sabe que eu n�o tenho culpa. Como tu tamb�m sabes.
Mas Simone n�o pensava como n�s. Quase todas as colegas
da Escola Normal tinham cartas dela. Inclusive a Paula e a
Inezita. Leste a entrevista da Evangelina? Horr�vel. Atirei todos
os recortes na lareira. Todos. Para ver se esquecia o que
diziam de mim. N�o, n�o esqueci. N�o esquecerei jamais, Rodrigo.
Parece que o mundo todo est� contra mim. Assim, como
posso viver? Hem? Como? Horr�vel. Tudo ficou confuso,
de repente, na minha cabe�a. Por que tanto �dio? Por qu�?
Que mal eu fiz? Pelo contr�rio: sempre que posso, ajudo os
outros. Deus sabe disso. Nossa Senhora est� vendo. Deus �
justo. Por que me deixou ficar assim, Rodrigo? Tenho medo
de tudo. Vivo sobressaltada, com a certeza de que algo ruim
e terr�vel vai acontecer comigo. J� n�o sei o que fa�a. Me ajuda.
Pelo amor de Deus.
Abra�ou-se ao marido, sacudida pelos solu�os, com a cabe�a
sobre seu ombro, comprimindo os seios soltos sobre o
largo peito que a agasalhava, pronto a defend�-la. E por entre
as convuls�es do pranto, tentando encontrar um lenitivo
para seu desespero:

� Tento dormir, e n�o consigo. Passo as noites em claro,
fingindo que durmo, mas estou vigilante, sempre com a
l�mpada acesa ao meu lado. Tudo me assusta. Os c�es que
latem. O vento nas �rvores. Os passos na cal�ada da rua. O
trilo de um apito. Um carro que passa aqui em frente. Parece
que algo de ruim vai acontecer comigo. S� comigo. O alvo
sou eu. A Simone ainda n�o me apareceu; mas vai aparecer.
Aqui. De repente. E eu sei que vou v�-la, assim como estou
te vendo. H� momentos em que me arrepio, sentindo que ela
335


est� perto. Aqui. No corredor. Na escada. No sal�o. Na cortina
que esvoa�a. No jornal que o vento muda de lugar. Tenho
a impress�o de que vou ver o meu livro se fechar, ao meu
lado, na mesa-de-cabeceira, sem que ningu�m o toque.

E ap�s outra crise de pranto:

� Uma coisa estranha se passou comigo, e fez de mim
outra pessoa. Assustada. Medrosa. Nunca fui assim. Nunca.
Mesmo no tempo em que era amiga de Simone, e ela me dominava,
e ralhava comigo, e passava dias sem me falar, at�
que voltava a ser carinhosa, e doce, e amiga, me enchendo
de presentes. Eu esperava essas mudan�as, serena, sem me perturbar.
Agora, n�o. Tenho medo. Sei que n�o sou a mesma.
Sou outra. Aqui. Dentro de mim. Por qu�, Rodrigo? Por qu�?
E endireitando a cabe�a, a mostrar o rosto devastado:

� Olha: se os m�dicos disserem que me ponhas num Sanat�rio,
n�o consintas. Pelo bem que me queres. N�o, eu n�o
quero ir para o Sanat�rio. Antes a morte. Sim, a morte. Juro-te
que me mato.
Ele a segurou pelos ombros, bem de frente:

� N�o, n�o ir�s para o Sanat�rio. Eu, agora, n�o te deixo.
At� que tudo isso passe. Mas tu vais me ajudar. Olha: s�
h� um meio de dominar o medo: � olhar o medo de frente.
A coragem � tamb�m um tiroc�nio. O homem s� andou com
dois p�s quando perdeu o medo de cair. Se achas que a Simone
est� aqui perto, na porta que bate, vai at� l�, acende a luz.
Ver�s que tudo est� nos seus lugares, sem mist�rios, sem assombra��es.
Quanto mais te atemorizares, pior ser�. Tens de
fazer o contr�rio. E sozinha. Destemidamente. Eu estou perto
de ti, para te ajudar; para ir ao teu encontro, se precisares
de mim. N�o ir�s para o Sanat�rio, fica tranq�ila.
Afagou-lhe o rosto, enxugou-lhe as l�grimas:

� Posso contar com a tua ajuda?
Ela confirmou com a cabe�a, sem conseguir reprimir o
pranto.
E ele, assim que a crise se atenuou:

� Agora, vamos deitar. Com a tua m�o na minha m�o.
Tirou a gravata, despiu o palet�, vestiu o pijama,
agasalhou-se no robe de chambre, j� de chinelos.

336


E antes de deitar-se:

� Mas, primeiro, vamos apagar as luzes da casa. Assim,
com todas as l�mpadas acesas, s� nas noites de festa.
Ela o viu descer, sem �nimo para acompanh�-lo, mas ficou
ouvindo, um por um, o estalo seco dos interruptores de
luz que o marido vinha apagando enquanto as sombras se alongavam
por toda a casa.

Volvidos alguns minutos, estendeu-se ao comprido da cama
revolta, segurou a m�o do Rodrigo.

337


TERCEIRO CAP�TULO

1

O port�o, o parque, a alameda central, o sal�o, as duas
saletas, o hall, o corredor, o quarto � sobretudo o quarto
�, tudo ali era pretexto para que Patr�cia se lembrasse da
Simone. Ali a Simone estivera, por ali passara, esguia, p�lida,
pisando de leve, sem ru�do, e olhando tudo, contida, serena,
quase irreal. Se punha o pensamento na festa, com os
fogos de artif�cio, os convidados, os gar�ons indo e vindo por
entre as mesas, as lanternas iluminadas, o riso largo do Rodrigo,
o Cardeal a equilibrar o solid�u na cabe�a alta, a solenidade
do Ludovico, a orquestra tocando, no esfor�o para
desprender-se da imagem da Simone, a imagem prontamente
volvia, mais n�tida, mais evidente, porque logo se recordava
da Simone morta l� em cima, sob a luz dos dois abajures, ao
comprido da cama, de olhos abertos, l�vida, enquanto os convidados
riam e falavam ruidosamente, por entre o tinido dos
copos e dos talheres.

Num relance, a figura im�vel se fazia mais n�tida na sua
consci�ncia, com as rugas dos cantos da boca, os l�bios entreabertos,
as unhas vermelhas, os brincos nas orelhas, os cabelos
grisalhos sobre o travesseiro, as pequeninas manchas sob
os olhos, quase roxas, tornando-os mais estranhos, assim im�veis,
do outro lado da vida.

Por toda parte a Simone. Nos olhos dos criados. No rosto
do Ludovico. Na voz assustada da Rosa. Se o Expedito subisse
ao mirante para lhe falar, v�-la-ia nos olhos dele, que
certamente lhe diria:

339


� Fez quest�o de que eu a levasse � Escola Normal.
Olhando o port�o fechado, sob a vigil�ncia dos guardas
que se revezavam dia e noite, daria por ela, sentada no banco
traseiro do carro, pronta para descer ao p� da escada. Depois,
subindo os degraus de m�rmore. No longo vestido branco. P�lida.
Sem um leve toque de ruge nas faces encovadas. E os
olhos vivos a lhe sorrirem.

De nada adiantara o Rodrigo lhe ter dito, dias antes, de
volta a casa, no momento de despir o palet�:

� Agora, j� Simone est� no lugar pr�prio, no cemit�rio
do Sanat�rio, depois da missa de corpo presente, rezada pelo
Padre Revoredo. � p�gina virada. Ficou para tr�s. N�o se fala
mais nela.
Para tr�s? Como? N�o, n�o era verdade. Ela, Patr�cia,
continuava a lembrar-lhe a voz, a sentir-lhe os passos, a
ver-lhe as m�os frias. Sim, as m�os frias e longas, de dedos
muito finos, de unhas vermelhas. Via bem esses dedos longos,
dedos de pianista, com o polegar e o indicador tirando
de dentro da bolsa o estojinho de prata com os dois comprimidos
brancos. Em seguida, esses mesmos dedos recebiam

o copo de �gua. Por fim, restitu�am-lhe o copo, que ela havia
posto no tampo da c�moda, j� a caminho do espelho, para
retoque da maquilagem e o diadema nos cabelos.
Durante o dia, com os rumores da casa em seu redor, Patr�cia
conseguia conviver com a imagem obsessiva. Tateava
o ter�o, rezava pela Simone, pedia a Deus que perdoasse o
mal que ela lhe fizera. De tarde, ou mesmo pela manh�, passava
de leve pelo sono, para despertar assustada, com lembran�as
do sonho � tona da consci�ncia e nas quais aparecia

o Padre Revoredo, insistindo em trazer de volta o corpo de
Simone, para ser velado na capelinha, ou ent�o com outras
imagens da pr�pria Simone, que subitamente lhe aparecia, para
desaparecer logo depois, no v�o da porta, no espa�o da parede
entre as duas janelas, no a�o do espelho, no patamar da
escada, como se o simples mover instant�neo dos olhos de Patr�cia,
mudando a dire��o do olhar, tivesse o dom de
materializ�-la e desfaz�-la com a mesma rapidez.
Patr�cia sacudia a cabe�a, atirando de si a imagem per


340


sistente, enquanto tratava de acalmar-se, suplicando a Deus
que desse paz � alma da Simone.

De noite, � medida que as horas iam fluindo, uma sensa��o
maior de medo apoderava-se da consci�ncia de Patr�cia,
como se a Simone fosse efetivamente aparecer-lhe e falar-lhe,
l�vida, sobrenatural. Permanecia com a cabe�a alteada no travesseiro,
insone, acesa a luz do abajur, os ouvidos agu�ados,
os olhos vigilantes, apenas acompanhada pelo ressonar do Rodrigo,
ali ao seu lado, e pelos uivos do vento nas alamedas do
parque. Espa�adamente, seguia o latido dos c�es, o silvo dos
apitos, o rolar de um carro nos paralelep�pedos da rua, o ru�do
de passos na cal�ada, e aguardava a volta do sil�ncio, ainda
mais assustada.

Ela sabia que, a despeito do calmante de todas as noites,
que sempre tomava ao deitar-se, permaneceria acordada, atenta
ao sil�ncio, ao rumor dos passos, ao farfalhar das �rvores, e
fechava na concha da m�o o crucifixo do ter�o, arfando, no
esfor�o para dominar-se.

J� na quarta ou quinta noite da mesma vig�lia, ao apontar
da madrugada, ouviu nitidamente o som de um piano, ali,
dentro da casa. O piano de cauda do sal�o! Num impulso, como
se n�o pudesse conter-se, ficou de p�. Acordaria o Rodrigo?
Gritaria? Com os p�s descal�os, acercou-se da escada, desceu
dois degraus, sempre ouvindo o piano � agora mais baixo,
como se o vento lhe levasse o som para longe, atenuando
os compassos da velha mazurca que a Simone, adolescente, tanto
gostava de tocar.

� � ela, sim, � ela � reconheceu Patr�cia, descendo outros
degraus na escada escura.
L� embaixo, premiu, resoluta, o comutador da luz, e foi
caminhando para o sal�o na ponta dos p�s, � maneira de uma
bailarina, leve, quase a�rea, acelerando o passo. Contornou o
corredor, passou pela saleta, seguiu em frente, j� agora dominada
por uma curiosidade mais viva, impulsivamente. Tateou
adiante a parede, torceu o bot�o da luz, e foi andando, sempre
depressa, sem ru�do, com a claridade do lustre a moldar-
lhe o corpo perfeito na transpar�ncia da camisola.

Deu por si, pouco depois, a um passo do sal�o. Girou a

341


ma�aneta da porta, e a pe�a ampla se alongou diante de seus
olhos, envolta na penumbra. A luz distante do lustre, na sala
cont�gua, dava apenas para mostrar os grupos estofados, os
consolos, os espelhos, e o piano ao fundo, coberto pelo protetor
de pano, sem ningu�m no banco girat�rio, e em redor o
sil�ncio � um sil�ncio que s� o sibilo do vento interrompia,
acompanhado pelo ladrar dos c�es. Nisto, aumentou os olhos,
fixou-os no retrato de seu pai, depois no retrato de M�e Ded�,
como se ambos estivessem ali a olh�-la. Levou a m�o � boca,
contendo o grito, e deu por si no caracol da escada, chamando
pelo Rodrigo.

2

Patr�cia entrela�a os dedos, estala-os, torce as m�os, depois
as abandona no rega�o, calada, como ausente, sem ver

o mundo circundante, cor de cinza, enquanto seu pensamento
vai fluindo, entregue a si mesmo, � fei��o de um rio t�mido
que fosse abrindo e alargando o seu caminho sinuoso:
� Eu disse a ela: � N�o, eu n�o fa�o isso. J� disse que
n�o fa�o. O que iam pensar de mim? N�o, n�o fa�o. � E ela,
com um jeito de olhar que lhe tirava a luz dos olhos: � Ent�o
eu n�o falo com voc� durante uma semana. � E n�o falou.
Eu ia � casa dela, ela me abria a porta do quarto, eu entrava,
e ela, sem olhar para mim, calada, parecia que me deixava s�,
na poltroninha creme de que eu tanto gostava. A m�e dela reparou.
Coitada da D. Zita. Tinha adora��o pela filha. Mas ralhou
com ela: � Por que voc� n�o fala com a Patr�cia? Patr�cia
� a sua melhor amiga. � Assim mesmo. Estou ouvindo
a voz de D. Zita, sempre acompanhada pelas m�ozinhas gordas,
que eu gostava de pegar. E a Simone, muda. Muda tamb�m
com a m�e. Por qu�, n�o sei. N�o me lembro mais por
que foi que brigamos. Brigamos, n�o. Ela � que brigava comigo.
Queria impor, queria mandais Agora, at� acho gra�a do
caso do vestido. Como foi mesmo, Patr�cia? Sim, sim, estou
342



me lembrando: foi por causa do vestido. Ela queria que eu andasse
de azul, durante treze dias. Por que treze? N�o sei dizer.
Sei que eram treze dias. Ela de azul, eu de azul. E eu, decidida:
� Mas por que vou andar de azul? � Ela estranhou: �
Voc� me pergunta por qu�? Voc� n�o � minha amiga? Minha
�nica amiga verdadeira? A irm� que eu n�o tive? Eu vou andar
de azul, a partir de amanh�. � Eu continuei teimando.
Punha um vestido cinza, que era quase azul. Mas azul, n�o.
E ela, de azul. Nas horas da escola, no azul do uniforme. Azul
e branco. Fora das horas da escola, um vestidinho azul. Muito
apertado na cintura, mas solto aqui em cima, para n�o apertar
os seios. E eu, firme: de vez em quando, de vestido cinza,
por sinal que um pouco comprido, porque a moda, por esse
tempo, era o vestido curto, j� mostrando os joelhos. Em resumo:
durante treze dias, Simone de azul. Falava comigo, mas
n�o falava como amiga, falava como uma pessoa que se desse
comigo, sem ser mesmo minha amiga. Eu tinha um vestido azul.
Um, Patr�cia? N�o, dois: um, inteiro; outro, de saia e casaquinho.
No �ltimo dia, exatamente no �ltimo (era um domingo,
e n�s duas �amos juntas � missa, na igrejinha da pra�a), apareci
na casa da Simone com a saia e o casaquinho azul. Ah,
meu Deus, a alegria dela. N�o me disse nada, mas me beijou,
me abra�ou, ficou de m�o dada comigo um bom tempo, outra
pessoa. De novo minha amiga. Nesse dia, fez quest�o que
eu ficasse para almo�ar com ela; depois, fomos ao cinema, e
voltamos a p�, rindo alto, falando alto, e olhe que o cinema
era longe. Estou vendo o parque que a gente atravessava. Uma
ao lado da outra, falando, rindo. No meio do caminho, na ponte
curva em cima do lago, come�ou a escurecer, como se a noite,
em vez de vir devagar, viesse vindo depressa, para nos agarrar.
Eu quis correr, acelerando o passo, mas Simone me conteve:

� Que � isso, criatura? Quer me deixar sozinha? Quer se livrar
de mim? O perigo que voc� corre, eu tamb�m corro. �
E me deu a m�o. Estou sentindo a m�o dela. Fria. A mesma
m�o fria que ela me estendeu aqui, quando chegou. �s vezes
eu me apressava; ela me continha, me puxando para tr�s. E
- a gente fosse assaltada? E se aparecesse um maluquinho para
fazer mal � gente? Podia aparecer. Por que n�o? S� eu sei co343



mo me senti depois que o parque ficou para tr�s. Disse � Simone:
� Passei o tempo todo rezando. Ela riu, me chamando
de medrosa. A Simone, quando ria, ficava mais bonita. Uma
covinha em cada lado da boca. Um brilho feliz nos olhos escancarados.
Linda mesmo. Mais bonita do que eu. Muito. Outro
tipo, outra pessoa, embora parec�ssemos irm�s. Apesar de
seu g�nio estranho, eu gostava dela. �s vezes tinha medo, me
intimidava. Cheguei a pensar em me afastar dela. N�o pude.
N�o podia. At� que nos separamos mesmo, cada uma para seu
lado: ela, para o Sanat�rio; eu, para a minha casa. Esta casa.
Mulher do Rodrigo. Sempre nas colunas sociais. Viajando pelo
mundo, assistindo � Opera, em Paris; vendo o Papa de perto,
assim como estou vendo essa mesa; ouvindo o Sinatra, em
Nova Iorque, no Carnegie Hall. De repente, este medo, como
se tudo fosse acabar, e eu sozinha, com a Simone perto de mim,
por toda parte, para me destruir, para me levar ao desespero.
N�o consigo dormir. Se vou resvalando no sono, ela me desperta.
Ontem, quando ouvi o piano, senti que era ela tocando.
Quando me aproximei, parou de tocar, fechou o piano. Se
subo a escada, se des�o a escada, ou�o seus passos por tr�s
de mim. Sinto que ela vai me alcan�ar, e ando depressa: ela
tamb�m anda. Agora mesmo, est� aqui, � minha volta. Por
qu�, se j� passou para o outro lado da vida? Mas est�, sei que
est�. Nunca mais tive um momento de sossego. Veio morrer
aqui, de prop�sito. Para se vingar de mim, com o mesmo �dio
que sentia pela Tia Carol? Pobre Tia Carol, madrinha dela,
miudinha, sequinha, de olhos azuis no rosto enrugado. Parece
que estou vendo a Tia Carol querendo falar com a afilhada,
e a Simone saindo da sala, como se a madrinha n�o estivesse
a lhe falar. D. Zita se abriu comigo: � Patr�cia, v� se
a Simone fala com a madrinha dela. J� fiz tudo. Simone n�o
me atende. Voc�, que � a maior amiga de minha filha, converse
com ela. Simone n�o pode deixar de falar com a madrinha.
Madrinha � uma segunda m�e. Se eu desapare�o de uma hora
para outra, � a Carol que fica no meu lugar. J� disse isso mesmo
� Simone, e � como se ela n�o me tivesse ouvido. Tudo
porque, quando menina, a Carol ralhou com ela e a p�s de
castigo. Simone tinha sete anos. Desde a� a madrinha tem fei


344


to tudo para a Simone deixar dessa bobagem, e ela n�o deixa:
se a madrinha chega, mete-se no quarto, ou ent�o sai, em casa
� que n�o fica. N�o sei de quem minha filha puxou esse
g�nio. Ou se fecha, sem querer ver ningu�m, ou fica calada,
como se fosse muda. Desde menina que � assim. Eu n�o sou
assim. O pai dela tamb�m n�o �. Pelo menos n�o era, enquanto
viveu comigo. Depois, n�o sei. Muito esquisita a minha filha.
� E me lembrou a hist�ria do anel. O anel de ouro, com
um brilhante, que a Tia Carol usava na m�o esquerda, no lugar
da alian�a. Quando a Simone fez quinze anos, a Tia Carol,
que j� estava na cadeira de rodas, lhe mandou de presente

o anel, numa caixinha de veludo. Eu estava com a Simone quando
D. Zita entrou no quarto com o estojinho azul. � Minha
filha, olha o que a tua madrinha te mandou pelo dia de hoje.
� E abriu o estojo. Simone estava de costas, n�o se voltou
para ver. E quando a m�e saiu, abriu o estojo, atirou o anel
pela janela. E me disse, com raiva: � Eu n�o gosto daquela
mulher. N�o gosto, j� disse que n�o gosto. � Mas o pior foi
quando a Tia Carol morreu. Simone p�s um disco dos Beatles
na toca-discos, na hora do enterro. Alto, como em dia de
festa. Um disco atr�s do outro. Falei para ela: � Simone, a
Tia Carol era tua madrinha. � N�o me respondeu. Quando
D. Zita chegou, correu para o quarto da filha, desligou o tocadiscos:
� Simone, isso n�o se faz. A Tia Carol era sua madrinha.
E para mim era a minha �nica irm�. � Tamb�m falei,
no mesmo tom. E a Simone, quando D. Zita saiu do quarto:
� Ela viva ou ela morta, para mim � a mesma coisa: n�o gostava
dela. Ponto final. � Assim mesmo. O que mais me impressionava
era a serenidade dela, quando fazia tudo isso. O
�dio mesmo durava um momento no rosto bonito. Depois, logo
depois, era como se nada houvesse acontecido. Sempre foi assim.
E se sempre foi assim, por que havia de mudar quando
veio aqui? Nem depois de morta ela mudou.
E Patr�cia, levantando-se, como se falasse � Simone, ali
no quarto, com a tarde esmorecendo:

� Vai embora, vai. Me deixa em paz.
E o Rodrigo, nesse momento, entrando no quarto:
� Que � isso, Patr�cia?
345


E ela, voltando a sentar na poltrona, com as m�os no
rosto:

� A Simone est� aqui, Rodrigo. E eu quero que ela saia,
que v� embora, que me deixe dormir.
3

Jamais esqueceria aquele instante. Velhinha que fosse, de
rosto retalhado de rugas, a bengala na m�o torcida, como a
av� Henriqueta, quase centen�ria. Instante �nico. Relance de
eternidade, fronteiro entre a vida e a morte. Ponto de encontro
repentino entre a realidade vis�vel e a transrealidade, fora
do tempo, acima do mundo simplesmente objetivo, como se
fosse a porta do mist�rio.

E Patr�cia, nua, toda a tremer, encolhida a um canto da
banheira, como acossada, tornava a repetir, com os olhos escancarados
pela emo��o e pelo medo:

� Eu vi. Sei que vi. Vi e gritei.
Ah, quantos dias e quantas noites a se debater com a mesma
ang�stia, sabendo que a Simone estava em seu redor, imaterial,
invis�vel, mas presente; presente como se estivesse viva.
Muitas e muitas vezes lhe sentira os passos por tr�s de seus
passos. Se se voltava para v�-la, com uma luz mais viva nos
olhos resolutos, tudo subitamente se esva�a: s� ficavam as suas
m�os geladas, o olhar atarantado e o cora��o que lhe subia
� garganta e �s t�mporas, sufocando-a, batendo depressa.

Debalde, ela, Patr�cia, lhe gritara, em desafio:

� Aparece, criatura. Por que n�o te mostras? Tens medo
de mim? Ou s� est�s a� para me assustar?
Sil�ncio. Um sil�ncio compacto, que talvez se pudesse pegar,
como algo vivo e tang�vel. O sil�ncio das cidades vazias,
ou dos soldados mortos, nos campos de batalha. Ou de um
�nico morto, na areia do deserto, sob a claridade mansa do
luar.

� Por que voc� n�o voltou a tocar no piano do sal�o?
346


Fora em v�o que ela, Patr�cia, noites seguidas, ficara a esperar
pela percuss�o das teclas, na imensid�o das madrugadas.
Somente o ru�do do vento. Ou o bater de uma janela. O ranger
de uma porta. E sempre o ladrido dos c�es, como se estes,
com o seu faro e o seu instinto, sentissem a transrealidade,
com o desafio de seus enigmas.

De repente, em plena luz do dia, j� despida, quando corria
a escova nos cabelos, esperando a �gua subir na banheira,
eis a Simone vis�vel, ali, refletida no espelho, e parada, de p�,
os olhos escancarados, e l�vida, t�o branca quanto o linho de
um altar. N�o, n�o esperava por ela, depois da eterna noite
insone, com leves pancadas de chuva na vidra�a das janelas.
Embora a vis�o houvesse durado um instante apenas, podia
descrev�-la, no seu vestido longo, os cabelos soltos para os
ombros, as m�os entrela�adas por baixo dos seios.

N�o conseguira conter-se. E todo o seu pavor � que a
regelava, que a sacudia, que lhe tirava o equil�brio das pernas

� se exprimiu no grito imediato, enquanto se afastava do espelho,
para ficar ali, a um canto da banheira, com a �gua prestes
a transbordar, as m�os defronte da boca, os seios balan�ando,
o tri�ngulo negro do sexo a retrair-se entre as coxas
nervosas.
Afinal, na fechadura da porta, o giro da chave, e a Rosa,
assustada, a perguntar-lhe:

� Que foi, D. Patr�cia?
E Patr�cia, a apontar para o espelho:
� Ali, ali. Ela, ela. A Simone. Eu vi, Rosa, eu vi. Sei
que vi. Com estes olhos, quando eu penteava os cabelos. Olha
a escova no ch�o, perto de ti. Caiu-me da m�o quando gritei.
E o Rodrigo, mais tarde, assim que chegou do escrit�rio,
avisado pelo Ludovico:

� Acalma-te. N�o foi bem assim. Est�s exausta, de tantas
noites sem dormir. Simples impress�o, resultante de teu cansa�o
f�sico e mental. Confia em mim. Larguei tudo para vir
ao teu encontro. Eu estava na sala das assembl�ias, presidindo
a reuni�o da diretoria. Corri para c�. Eu mesmo dirigindo
o autom�vel. E aqui estou, junto de ti, para te dizer que
tudo isso vai passar. Vai. Tenho certeza de que ficar�s boa.
347


J� chamei o Nuno Vaz, em Nova Iorque. E ele vem de l�, talvez
ainda hoje, s� para cuidar de ti.
Ela se desprendeu das m�os que a protegiam, e suplicou-
lhe, no auge do pavor:

� N�o, n�o, Rodrigo. Por favor. Ele vai querer me levar
para o Sanat�rio. E eu n�o vou. N�o, n�o vou. � isso que
a Simone quer. Tirar-me daqui. Levar-me daqui. N�o, n�o. Prefiro
morrer.
Ele a segurou pelos bra�os, firmemente, resolutamente,
buscando-lhe os olhos, sentido-lhe o tremor:

� J� te jurei que n�o ir�s para o Sanat�rio. E volto a
te dizer, agora, que n�o ir�s. N�o precisas ir. Confia em mim.
Torno a te jurar. Acalma-te. Confia em mim. Como sempre
confiaste.
4

N�o, ele n�o a levar� para o Sanat�rio. Mesmo que as
noites, para ela, continuem imensas. Mesmo que outras imagens
estranhas lhe aflorem ao lume das pupilas assustadas. Nesse
ponto, Patr�cia sabe que pode confiar. Rodrigo nunca deixou
de cumprir o que lhe prometeu.

� Nunca � repete, sentindo que a confian�a se alastrava
em sua consci�ncia com a palavra repetida.
O dia come�a a recolher as primeiras sombras da noite,
a temperatura se faz mais baixa, com leves arrepios de frio
gradativo, mas o sol ainda reluz nas vidra�as circundantes, enquanto
um tom r�seo se desfaz lentamente, entre nesgas de
azul p�lido, por cima dos ramos das castanheiras do quintal.

Vem-lhe a vontade de sentar-se na poltrona orelhuda a
um canto do gabinete do Rodrigo, e ela transp�e-lhe a porta,
j� com a m�o tateando o caixilho em busca do interruptor da
luz.

Ludovico, que a espreita, vem ao seu encontro:

� Posso ajud�-la, D. Patr�cia?
348


� N�o, Ludovico. Cuida de teu servi�o. Obrigada.
Sua voz � leve, distante, quase inaud�vel. E ela d� um passo,
outro, mais outro, guiada pela derradeira claridade da tarde,
sem ter acendido o lustre de quatro bra�os por cima da
mesa do Rodrigo.

Senta-se na poltrona, olha a alameda longa que leva � capelinha,
e fica embevecida com o velho quadro rom�ntico que
a natureza torna a compor com as �ltimas luzes do ocaso: o
verde que vai escurecendo, o gradativo esbater dos galhos, a
luta silenciosa da sombra com a claridade que vai empalidecendo.
Por que s� existem agora quadros assim na galeria dos
antiqu�rios, enquanto as tardes repetem os recantos de bosques,
a fachada de uma igreja, uma torre de campan�rio, a
pontezinha sobre o rio, a menina que se debru�a sobre a torrente
e v� seu busto na �gua que vai fluindo?

L� fora, com as sombras densas quase apagando o caminho
da alameda e desfazendo a fachada da capelinha, as luzes
se acendem de repente, numa explos�o silenciosa.

E a voz do Ludovico, � entrada do gabinete:

� Posso acender o lustre, D. Patr�cia?
As quatro l�mpadas dos quatro bra�os seguem-lhe a ordem,
e tudo ali dentro como que se renova na luz viva: os livros
perfilados nas estantes envidra�adas, a papeleira manuelina,
o quadro de Dali na nesga de parede junto � janela, a
mesa espa�osa, o retrato de Patr�cia na moldura de prata, a
cole��o de cachimbos ingleses, o gordo pote de fumo, e as pastas
de recortes que o Rodrigo trazia do escrit�rio para as distra��es
de seu fim de semana, ali mesmo, nos dois dias de luz
mitigada.

E o Ludovico, pouco antes de retirar-se:

� Viu os jornais de hoje, D. Patr�cia? Corri os olhos em
dois deles, agora � tarde. O Sr. Lucas Caetano voltou a falar
de nossa festa, destacando a apresenta��o do Bal� Nacional.
Agora, por favor, me perdoe, se vou dizer o que n�o devia:
o Sr. Lucas Caetano, bondosamente, p�s meu nome humilde
na sua coluna. Sim, senhora. Este seu criado l� est�, com todas
as letras. Por extenso: Ludovico Manhano. Como soube,
n�o sei. Fiquei feliz. Diz ele que a ordem da festa, o servi349



�o, a coloca��o das mesas, tudo se deve a mim. Exagero. Fiz
apenas a minha parte. Mas n�o � a primeira vez que meu nome sai
em jornal. Quando ele lhe telefonar, diga-lhe, por favor, que fiquei
emocionado, sem poder falar. Estou com vontade de lhe
mandar umas flores. Devo mandar? Ou n�o? � melhor mandar:
mostra que sou grato. Eu mesmo vou levar o ramo, daqui
de nosso jardim, com o seu consentimento, � morada do
Sr. Lucas Caetano. Ponho umas palavrinhas num cart�o.

E vermelho, torcendo as m�os contentes:

� Se a senhora estiver de acordo, e n�o me levar a mal,
pe�a ao seu amigo que, noutra nota de sua coluna social, ponha
tamb�m o nome da Rosa. Da nossa Rosa. Ela merece.
Tanto quanto eu. Ou mais. Ou mais.
Curvou-se devagar, reconhecido. Depois, ao endireitar a
cabe�a, tufou mais o peito, importante, como se n�o coubesse
mais na libr�, e foi indo corredor afora, quase a dan�ar na
passadeira do corredor.

Patr�cia acompanhou-lhe por um momento o leve ru�do
dos passos airosos, esbo�ando um sorriso. Em seguida, novamente
pensativa, p�s-se em frente de uma das estantes, correndo
os olhos pela fileira de livros de Maupassant, � altura
de seu rosto. Lera todos eles, fazia alguns anos. E agora volvia
a recordar-se de seu �ltimo professor de franc�s, o bom
do Mestre Higino, sempre de branco, com um cravo vermelho
na lapela, e que dizia �s suas alunas, na sala de aula:

� Leiam Maupassant, meninas. � o meu contista predileto.
O maior. O sublime. Sem rival. Prosa l�mpida. Clara.
Objetiva. E de interesse crescente. Sei de cor p�ginas e p�ginas
do grande escritor.
Patr�cia apanhou um dos volumes, depois de breve hesita��o.
E tirando-o da fileira:

� � este, sim, � este.
De modo impreciso, lembrava-se de um dos contos do livro,
a que, de momento, associava o seu pr�prio caso. O livro
seria mesmo aquele? Parecia-lhe que sim.

Conquanto voltasse a sentir-se tensa, caminhou at� a poltrona
orelhuda, viu que at� ali chegava a claridade do lustre,
e sentou-se, j� abrindo o volume. Leu um conto, outro, mais

350


outro. Estaria enganada? N�o: o volume era mesmo aquele.
Correu os olhos s�fregos pelo �ndice, ao fim do livro. E abrindo

o volume ao meio:
� Agora, sim, achei: � estes
E uma sensa��o estranha, em que se associavam o temor
e a curiosidade doentia, f�-la redobrar de aten��o, � medida
que reconhecia a si mesma no texto que ia percorrendo.

Uma chuva repentina pusera-se a sacudir as r�tulas nos
caixilhos, enquanto vergalhava as vidra�as, por entre os uivos
da ventania. A claridade da sala, projetando-se para fora,
mostrava os galhos que se contorciam, agitados pelas rajadas
� sem que Patr�cia desse pelo temporal, toda ela concentrada
na leitura. A concord�ncia de sua ang�stia com a ang�stia
crescente da personagem n�o poderia ser mais exata.
S� n�o se lembrava com nitidez do desfecho do conto.

De s�bito, como de prop�sito para agravar-lhe o medo,
a luz apaga, sem que Patr�cia, at�nita, tenha tempo de gritar.
Prende a respira��o, na �nsia moment�nea, e v� que, fora,
tudo est� escuro. Mas logo a luz se reabre, mais intensa, enquanto
Patr�cia volve � leitura, esquecida de seu pr�prio caso,
para concentrar-se ainda mais no texto de Maupassant.

Um, dois, tr�s, quatro par�grafos, e eis que Patr�cia torna
a encontrar a si pr�pria na personagem do conto. E ela repete
as palavras que os olhos percorrem sofregamente, ansiosamente:
"� medida que a noite se aproxima, uma inquietude
incompreens�vel me invade, como se a noite ocultasse para
mim uma amea�a terr�vel."

Foi lendo de atropelo, isolada do mundo � sua volta, toda
ela presa no texto, como na afli��o de um pesadelo, mas
sem que lhe viesse a �nsia de despertar. Pelo contr�rio: sentia-se
atra�da, dominada pela for�a estranha que a ia levando, ladeira
abaixo. N�o adiantava debater-se, correr, tentar fugir.
E a pergunta que tantas vezes fizera a si mesma, nos �ltimos
dias, estava agora ali, no centro da p�gina, em caracteres impressos:
"De onde v�m estas influ�ncias misteriosas que mudam
em des�nimo nossa felicidade e em ang�stia a nossa confian�a?"
Tamb�m ela, Patr�cia, se sentia assim, com a �ntima
certeza de que algo terr�vel ia acontecer-lhe. Parecia que um

351


vazio estranho e m�rbido se abria na sua cabe�a, que a sua
consci�ncia se desagregava, e que era em v�o que reagia.

De p�, mais nervosa, com toda a claridade do lustre sobre
o livro aberto, saltou uma p�gina, outra; voltou, leu de
novo, mais atenta, contraindo as sobrancelhas, at� se deter
na experi�ncia da personagem do conto, que se fecha no seu
quarto, � noite, e deixa sobre uma mesa a garrafa de �gua e
a garrafa de leite, convenientemente envoltas em guardanapos
de musselina branca, e as amarra, e lhes fecha a rolha bem
fechada. Ap�s dormir profundamente, vai olhar as garrafas,
no quarto fechado, e v� que, durante a noite, o leite e a �gua
foram bebidos.

A sensa��o de pavor que Patr�cia experimenta, relendo
novamente o texto, atordoada, confusa, � t�o grande, t�o intensa,
que tem de firmar as m�os no espaldar da cadeira mais
pr�xima, para conter-lhes o tremor compulsivo. L� adiante,
e n�o compreende; torna a ler, mais pausada, contendo-se,
mas a curiosidade � mais viva que a sua vontade, e ela salta
per�odos, volta a folha, passa adiante, ao mesmo tempo em
que diz a si mesma, com o seu racioc�nio paralelo:

� Tamb�m comigo se passam coisas estranhas. Eu vejo
a Simone, e ela desaparece quando firmo de novo o olhar. Sinto
que ela est� perto de mim, como agora. Talvez que, olhando
para os lados ou para tr�s, torne a v�-la, assim como estou
vendo a folha deste livro.
E logo se p�s a dizer, lendo em voz alta o fecho do conto:

� Ent�o... ent�o... � preciso que eu me mate, eu mesma!
Como se fosse uma ordem. Uma ordem da Simone. A
que tinha de obedecer.
E o Rodrigo, j� dentro do gabinete, deixando sobre a secret�ria
a sua pasta de couro:

� Voc� se assustou comigo, querida?
Ela o olhava com os olhos crescidos, l�vida, os l�bios tr�mulos,
a boca entreaberta. Parecia que lhe faltavam as for�as
para falar, voltada para ele. Ou que ia desfazer-se numa vertigem.
Rodrigo veio mais perto, de semblante contra�do, apiedado
dela. Mas foi ela que venceu de repente a pequena dis


352


t�ncia que os separava, atirando-se-lhe nos bra�os, como num
abrigo, enquanto lhe dizia:

� N�o sou a mesma, Rodrigo. N�o, n�o sou.
5

Pela madrugada, com o Rodrigo imerso em sono profundo,
ali na cama espa�osa, � sua direita, Patr�cia voltou a ouvir
o piano, por entre os latidos dos c�es. Na luz escassa,
sentou-se � borda do leito, ficou de p�, toda ela concentrada
nos ouvidos.

� � o piano do sal�o � reconheceu.
Na ponta dos p�s, ligeira, como se levitasse, Patr�cia desceu
a escada em caracol, sem qualquer ru�do; seguiu pelo corredor
�s escuras, ajustando as pupilas � claridade mitigada,
atravessou uma sala, outra sala, e parou, sentindo que a sonata
se distanciava, levada pelo sibilo do vento. Deu outros
passos, sempre de orelhas fitas, e alcan�ou por fim o sal�o.
Tateou a parede, premiu o bot�o da luz, e a luz explodiu nos
pingentes do lustre, por cima do piano � agasalhado na capa
cinzenta que inteiramente o cobria, como imerso em sono let�rgico.
Ningu�m, ali. E na parede ampla, os retratos do pai
e de M�e Ded�, grandes, parados, como a espreit�-la.

De volta, Patr�cia veio acendendo as luzes, dos corredores,
e das salas, e dos nichos, e do vest�bulo. Tudo resplandeceu
numa claridade de ressurrei��o, enquanto a luz quase a despia,
deixando ver-lhe o corpo na transpar�ncia da camisola
de cambraia. E esse corpo �gil, leve, ligeiro, entrou a galgar
a escada dcmirante, sempre na ponta dos p�s descal�os, e assim
alcan�ou o patamar. Entretanto, em vez de entrar no quarto,
para tornar a deitar-se, p�s-se a subir mais adiante a escadinha
de madeira, quase vertical, que levava ao s�t�o � ex�guo
espa�o entre o telhado e o forro de madeira, por onde
se espalhava agora a claridade escassa da antemanh�, coada
pelas telhas de vidro de uma clarab�ia.

353


L� no alto, vencido o �ltimo degrau, Patr�cia parou um
momento, olhando em volta, como em busca de orienta��o,
e logo se dirigiu para o parapeito que abria sobre o beiral uma
janela estreita. Descerrou-a com esfor�o, sentindo na m�o diligente
a poeira acumulada. E dali descortinou a cidade, com
suas torres, seus telhados, seus edif�cios, debaixo do c�u ainda
fosco que se ia estriando de vermelho, longe, adiante do
rio, na dire��o do nascente.

E decidindo-se, como se a morte a conduzisse, subiu ao
parapeito, sentou-se no poial de cimento, fazendo voar o casal
de pombos que arrulhava na ponta do beiral.

� � daqui que vou me atirar � afirmou, resoluta.
N�o esperaria pelo novo dia e a nova noite, e os novos
dias e as novas noites, sempre insone, sem gosto para viver,
sem �nimo para o mundo que a cercava e envolvia, exausta,
no extremo limite de suas for�as. Reconhecia que a tenacidade
da Simone, perseguindo-a, era mais forte que a sua,
defendendo-se dela. Entregava-se. Rendia-se. N�o a veria mais
no relance de um espelho nem a ouviria ao piano, repetindo
as m�sicas que ambas preferiam. Tampouco lhe ouviria os passos.
Nem a sentiria em seu redor, invis�vel, vigilante. Imposs�vel
viver assim.

Com a luz encardida que gradativamente se abria, mais
sang��nea, mais desatada, Patr�cia ia vendo as �rvores, a capelinha,
a piscina, as alamedas, enquanto seus p�s nus balan�avam,
prestes a se firmarem no parapeito de cimento para

o salto que a libertaria de seu longo pesadelo. L� embaixo,
ainda coberto pelas sombras que come�avam a desfazer-se,
era o ch�o ensaibrado, a cal�ada de cantaria, o rego das �guas,
entre a casa e a garagem. E sempre os c�es ladrando, doridamente,
intervaladamente, j� com o pipilo dos p�ssaros que iam
acordando na manh� enevoada.
Chegou a parecer � Patr�cia que a pr�pria Simone a ajudaria
no salto, empurrando-a. E balan�ava as pernas enquanto
se debatia com o apego natural � vida, sentindo o fio das l�grimas
descendo devagar no seu rosto devastado.

Nisto um bra�o a cingiu, por tr�s, � altura do ventre, sem
lhe dar tempo de defender-se.

354


E o Rodrigo, trazendo-a para dentro:

� Que � que voc� est� fazendo aqui, Patr�cia? Que desatino
passou por sua cabe�a? Esqueceu-se de mim? De meu
carinho, de meu desvelo, de meu amor? Venha, venha comigo.
Eu n�o posso ficar s�.
Ela se deixou levar, d�cil, fr�gil, submissa, com as m�os
no rosto, solu�ando e repetindo:

� N�o ag�ento mais este pesadelo. Deus se esqueceu de
mim, Rodrigo. A Simone n�o me deixa. Por que isto, meu
Deus?
355


REMATE

Faze-me conhecer, Senhor, o meu fim,
e a medida dos meus dias, quai �, para que
eu sinta quanto sou fr�gil.

SALMOS, 39, vers. 4

Ce que je voudrais que l'on vit dans mon
livre c'est qu'il est sortit tout entier de l'application
d'un sens sp�cial qu 'il est difficile de
d�crire (comme � un aveugle le sens de la vue)
� ceux qui ne l'ont jamais exerc�.

PROUST, Lettre � Camille Vettard.


Parecia vir de longe, trazida pelas ondas mansas que a
devolviam � orla da praia. Por vezes, assim entregue ao capricho
das vagas, a consci�ncia lhe fugia, como se tornasse
a imergir no sono invenc�vel. Da� a momentos, por�m, conseguia
reapossar-se de si mesma, e erguia as p�lpebras lerdas,
retraindo as pernas, mudando de posi��o na cama revolvida.

Onde estava? Que cama era aquela? De repente, estremeceu
num impulso, levantando a cabe�a. Estaria num quarto
de Sanat�rio? N�o, n�o podia ser. Onde estava o Rodrigo?
Forcejando para manter as p�lpebras abertas, olhou em
volta, e deu com a mo�a gorda, toda de branco, esparramada
numa cadeira de bra�os, os p�s cruzados, um gorro na cabe�a.
Mais assustada, conseguiu perguntar-lhe, firmando o olhar:

� Quem � voc�? Onde estou? Que casa � esta?
A voz d�bil, como desacostumada de si pr�pria, exigia-
lhe esfor�o para ser ouvida. Mas a mo�a gorda, levant�ndose,
veio at� a cama, sol�cita, aumentando no sorriso as bochechas
rosadas, e perguntando-lhe, numa fala doce, quase cantante,
se podia falar-lhe em ingl�s. E quando Patr�cia lhe disse
que sim, aumentou ainda mais as bochechas, diminuindo
no contentamento os olhinhos azuis:

� Eu sou a sua enfermeira � adiantou-lhe.
Patr�cia, mais intrigada, repassava a amplid�o do quarto,
o espelho de moldura dourada, o candeeiro sobre a c�moda,
a pesada arca de madeira entre duas janelas, sentindo que
nada ali lhe era estranho, mas sem que a sua mem�ria pudesse
dizer-lhe onde estava. E aceitando a m�o prestimosa que
a enfermeira lhe oferecia:

� Onde estou? � perguntou-lhe.
359


� N�o est� reconhecendo? Olhe bem para este quarto,
para estes m�veis. Estamos na sua casa de campo. Uma bonita
casa. De muito bom gosto. Num lugar muito bonito. Amanh�
faz um m�s que estamos aqui. Foi seu marido que teve
a id�ia de trazer a senhora para c�. N�o quis saber de sanat�rio
ou de hospital. Queria um ambiente caseiro. Quase que
eu n�o vinha. Nunca trabalhei em casa de fam�lia, s� em hospital.
Desde mocinha. Fui franca com o Dr. Rodrigo. A� ele
se abriu comigo: que a senhora, ao despertar, n�o se sentiria
bem, vendo que estava numa casa de sa�de. Que o ambiente
caseiro ajudaria a senhora a ficar boa. E eu vim para c�. Quando
vi a casa, o lugar, o jardim, as �rvores, as montanhas em
redor, logo reconheci que teria feito uma bobagem se n�o tivesse
vindo. Olhe que eu e o Dr. Nuno Vaz viemos de Nova
Iorque para cuidar da senhora. Daqui, pelo telefone, o Dr.
Nuno Vaz chamou o Dr. Petterson, que � assistente dele e especialista
em sonoterapia. Famoso no mundo inteiro.
A fala vagarosa da enfermeira, acompanhada pelo afago
da m�o fofa na m�o d�cil da paciente, ia reavivando na
consci�ncia de Patr�cia a mem�ria esmaecida:

� Quando a senhora veio para c�, trazida na ambul�ncia,
com o Dr. Petterson ao seu lado, j� estava dormindo. Ainda
tem sono? � assim mesmo. Mas vai passar. A senhora, dentro
de um dia ou dois, dormir� normalmente, a princ�pio ajudada
pelo tranq�ilizante; depois, por si mesma, sem precisar
de rem�dio.
E rindo, a exibir o dentinho de ouro do canto da boca,
envolveu nas duas m�os carinhosas a m�o fria de Patr�cia:

� Sabe a senhora que esta sua m�o macia quis me bater?
Quis. Mais de uma vez. Na hora de seu banho. N�o se
lembra? � assim mesmo. Ainda bem que o �dio de mim j�
passou. Agora, somos boas amigas. Isso sempre acontece. Estou
acostumada.
Patr�cia havia aproximado as sobrancelhas, com duas rugas
verticais prolongando-lhe o nariz afilado, no esfor�o para
chamar as lembran�as. Confundia peda�os de sono e lances
de pesadelos, misturando-os a imagens reais e desconexas,

360


que vogavam agora � tona de suas lembran�as. E for�ando

o sorriso, enquanto contra�a a m�o reconhecida:
� Eu quis lhe bater? Ent�o lhe pe�o desculpas. N�o sou
assim.
E a Emily, abrindo o riso bom:

� Desculpas? Que bobagem � essa? O importante � que
a senhora reagiu bem � sonoterapia. Depois dos pesadelos, vieram
os sonos tranq�ilos. Daquela cadeira, aqui ao seu lado,
tomei conta da senhora. Quando n�o era eu, era o Dr. Petterson.
Dando-lhe os alimentos. Tomando-lhe a press�o. A press�o,
agora, j� est� normal. Normal�ssima. E tanto faz a senhora
estar dormindo quanto estar acordada. Bom sinal.
Patr�cia retraiu o bra�o para ajudar-se a erguer o busto.
E com a cabe�a levantada, assim que a tontura lhe passou:

� Meu marido?
� Est� passeando a cavalo, com o Dr. Nuno Vaz e o Dr.
Petterson, aproveitando o sol da manh�. Ele merece o passeio.
At� hoje, n�o se afastou daqui. � o primeiro passeio que
ele faz. Parab�ns pelo marido que tem.
E ap�s um sil�ncio:

� Est� a� um padre, que � seu amigo. Veio num jipe,
cheio de poeira. Errou o caminho, levou dois dias para chegar.
Quer que eu o traga aqui? Vou cham�-lo. Est� na varanda
lendo o Brevi�rio.
Mas Patr�cia a reteve:

� N�o, deixe-o l�. Primeiro quero tomar meu banho,
mudar de roupa, me pentear. Sou eu que vou � varanda.
Embora abatida, com os olhos quebrantados, n�o tardou
muito a se fazer outra pessoa, com os cabelos �midos a lhe
descerem para as costas, presos por uma fita. No rosto, um
toque leve de ruge. Sem uma ruga. A pela macia. As sobrancelhas
aparadas.

E a Emily, que se mantivera a seu lado durante o banho:

� Agora, sim, estou vendo que a senhora � mesmo bonita.
De uma beleza diferente. Parab�ns.
Quis dar-lhe o bra�o para ajud�-la a sair do quarto, mas
Patr�cia lhe dispensou o amparo, e veio vindo devagar, sen


361


tindo que voltara a si, sem medo, confiante, reintegrada no
gosto da vida.

No corredor ladrilhado, todo coberto pelo frio sol do outono,
deu com o Ludovico e a Rosa, ambos parados, como
� espera de sua passagem. Estendeu a m�o � governanta, estendeu
a m�o ao mordomo. E foi este que afinal lhe falou,
emocionado:

� Deus ouviu nossas preces.
E como os dois se pusessem a segui-la, cada qual a um
lado, ambos sol�citos e efusivos, a Rosa lhe foi contando as
novidades da casa e da rua, e que lhe restitu�am a vida passada,
as amigas, as mudan�as, os vizinhos, enquanto o Ludovico,
grave, movia a cabe�a, confirmando.

Na volta da varanda, retardaram o passo, como tocados
pela beleza do roseiral, ainda florido. A um canto, o balan�o
de dois lugares. Em redor, sob as samambaias, as cadeiras de
vime. Numa delas, adormecido, o Padre Revoredo, de cabe�a
pendida, a m�o no rega�o, o dedo indicador interposto nas
folhas do Brevi�rio.

E o Reverendo, levantando-se, enquanto a Rosa e o Ludovico
se afastavam, depois de pedir licen�a:

� Ora, viva! Que alegria!
E aproximando a cadeira de bra�os para que Patr�cia
sentasse:

� Fique aqui, neste raio de sol.
Conquanto j� o outono estivesse adiantado, com as �rvores
nuas ao longo das estradas pr�ximas, ali ainda restavam
as folhas douradas no espa�o que a varanda descortinava
no limite do terreno, sobretudo na alameda que levava ao
port�o. A luz alta, tocada pela vira��o cont�nua, dava a essas
folhas um brilho diferente, quase vermelho. E como o vento
sacudia os ramos, muitas delas iam caindo, para se juntar �s
que jaziam no ch�o, cobrindo o caminho. Em redor, a estralada
dos p�ssaros. Longe, no flanco da montanha ainda verde,
sob o c�u limpidamente azul, o v�u solto da cachoeira.

E Patr�cia, voltando-se para o padre, assim que a enfermeira
se afastou:

� Estou me lembrando agora que sonhei esta madruga362



da com a Simone. Um sonho colorido, Padre Revoredo. Ela
e eu v�nhamos caminhando de m�os dadas, naquela mesma
alameda, sobre as folhas ca�das. R�amos muito. Ambas contentes.
N�o me lembro de ter tido outro sonho colorido.

Padre Revoredo disfar�ou a emo��o rodando os polegares,
com as m�os entrela�adas sobre o Brevi�rio. E aproveitando
o sil�ncio de Patr�cia, que parecia emocionada:

� Era esse o sonho que ela merecia. Sabe que fui eu que
a levei de volta ao Sanat�rio, em companhia do m�dico que
tratava dela? Estou convencido de que n�o exagero ao lhe dizer
que a Simone, no pr�prio Sanat�rio, se preparou, nos �ltimos
anos, para encontrar-se com Deus. Pela caridade. Pela
piedade. Pela bondade. Era ela, ali, quem mais assistia e amparava
os doentes. Dia e noite. Sobretudo os velhos solit�rios
que as fam�lias esquecem. Todos gostavam dela. Era adorada
por toda gente. A capela do Sanat�rio ficou cheia, transbordando
para o adro e a sacristia, na sua missa de corpo presente.
E todos choravam, inclusive eu, no momento do enterro.
Ela pr�pria tinha feito plantar, h� tempos, sobre o t�mulo vazio,
uma linda amendoeira. E as folhas douradas iam caindo
sobre o caix�o, na hora do sepultamento, misturando-se �s
p�s de terra.
Endireitando o busto, Patr�cia desencostou-se do espaldar
da cadeira, com o olhar mais brilhante:

� E ela n�o se matou, Padre Revoredo?
A resposta veio r�pida, com vivacidade:
� De modo algum. O laudo do Instituto M�dico-Legal,
ap�s a aut�psia, foi claro, clar�ssimo. Desfez todas as d�vidas.
Simone, como eu pensava, morreu de morte natural. As
duas p�lulas que tomou, na presen�a da senhora, eram as p�lulas
que ela sempre tomava quando tinha uma crise. No dia
em que ia tomar o avi�o para encontrar-se com as colegas,
o m�dico quis acompanh�-la, temendo-lhe a emo��o. Ela se
op�s. N�o queria que a olhassem como uma doente sob vigil�ncia
m�dica. Chegou a dizer que desistiria da viagem, se fosse
grave o seu estado. O m�dico, embora temendo-lhe a emo��o
ao encontrar-se com a senhora e com as outras colegas, achou
melhor deixar que ela viesse. Ela pr�pria estava certa de que
363


resistiria bem � emo��o. Tanto que trazia na bolsa a passagem
de volta para o avi�o da manh� seguinte, tendo dado ordem
ao motorista do Sanat�rio para ir busc�-la no aeroporto,
depois do meio-dia.

E de p�, indo e vindo ao comprido da varanda:

� Foi Deus que chamou Simone. Ele, na sua sabedoria.
Mais ningu�m. Ele, que conhece o princ�pio e o fim de nossos
caminhos. E no momento em que se reaproximavam as duas
grandes amigas. Numa casa em festa.
Na estrada, sob a faisca��o do sol do meio-dia, um tropel
de cavalos. Patr�cia se voltou para o port�o, interessada.
De p�, ainda de longe, acenou para o marido, que vinha � frente,
no soberbo cavalo �rabe, de grandes crinas ao vento, seguido
pelo Dr. Nuno Vaz e pelo Dr. Petterson, ambos de bon�
para os olhos, no passo das montarias.

Assim que o Rodrigo deu por ela, tocou com a ponta da
espora o flanco do cavalo, e arremeteu para a varanda, galopando.
Mas o Dr. Nuno Vaz, seguido pelo Dr. Petterson, cortaram
a relva em diagonal, de modo que os tr�s saltaram ao
mesmo tempo defronte de Patr�cia, que tinha vindo para o
patamar da entrada, j� de bra�o estendido, como se fosse ajudar
o marido a descer do cavalo.

E durante uma hora r�pida, que se estendeu para o come�o
da tarde, ficaram os cinco a conversar, regalados com
a mem�ria do Padre Revoredo, que sempre tinha uma reminisc�ncia
apropriada na ponta da l�ngua, e ia trazendo para
fora as anedotas, ora s�rio, ora risonho, no seu ingl�s prec�rio,
com a arte feliz de um contador de hist�rias.

De repente, voltando-se para Patr�cia, disse-lhe o Dr. Nuno
Vaz, alongando a m�o en�rgica para o bra�o da cadeira:

� Agora, a minha boa amiga j� sabe que pode voltar para
a casa da cidade e viver a vida que sempre viveu. O que passou,
passou.
Entretanto, na semana seguinte, quando ela transp�s o
port�o de ferro, acenando para os guardas � sua espera, teve
de cerrar os punhos, por um momento, para dominar a emo��o
que lhe molhava os olhos. Subiu a escada, amparando-se
no bra�o do marido, atravessou o vest�bulo, come�ou a per


364


correr a passadeira vermelha. Voltaria ao mirante? Ela pr�pria,
sem alterar o ritmo de seus passos firmes, encaminhou-
se para o sal�o, olhou o retrato do pai, depois o retrato da
M�e Ded�, calma, no esfor�o natural para dominar-se, e
acercou-se de seu quarto de dormir, j� de portas escancaradas
� derradeira claridade do dia, sentindo que seu cora��o
se acelerava. Mas tornou a dominar-se, dando mais for�a aos
passos firmes, sempre em frente.

Instintivamente, ainda com uns restos de medo na consci�ncia,
olhou na dire��o da cama. Quase tudo, ali, havia sido
mudado. Tamb�m antiga, a nova mob�lia parecia mais imponente,
com sua cama espa�osa, seus guarda-roupas imensos,
suas c�modas altas, sua arca de jacarand�. No v�o entre
duas janelas, um orat�rio pequeno, com o crucifixo iluminado
por duas velas nos casti�ais de prata. No ar, um cheiro leve
de alfazema.

Longe, o latido dos c�es. Em redor, nas �rvores do parque,
o sibilo do vento, com a noite que ia caindo. Pr�ximo,

o ru�do de um carro na rua. Depois, j� noite fechada, o trilo
dos apitos, na ronda dos guardas de seguran�a. Por fim, o
bater sucessivo das janelas e portas que o Ludovico ia fechando,
nos aposentos cont�guos. Fechava, torcia os ferrolhos, apagava
as l�mpadas e os lustres.
Na velha penteadeira, que vinha do tempo da bisav� do
Rodrigo, como rel�quia de fam�lia, Patr�cia olhou-se ao espelho,
ouvindo, perto, os passos do marido no escrit�rio. Soltou
os cabelos, j� no pijama da noite, e p�de ver que n�o tinha
mais as olheiras de suas vig�lias. Sem pressa, p�s-se a
escov�-los, na rotina de todas as noites.

De repente, num relance do olhar sobre o cristal do
espelho...
E Rodrigo, entrando no quarto, como se quisesse
adivinhar:

� Alguma coisa te assustou, querida?
Patr�cia, com o cora��o acelerado, sacudiu a cabe�a, negando.
Em seguida, para amparar-se, segurou-lhe o bra�o com
as duas m�os, e come�ou a caminhar para a cama, em sil�ncio,
dominando-se.

365


E nunca lhe disse que, pela �ltima vez, tornara a ver a
Simone.

LAOS DEO

Paris, janeiro de 1987 � maio de 1988.

366


Janelas fechadas
A luz da estrela morta
Labirinto de espelhos
A d�cima noite
Cais da sagra��o
Os degraus do para�so
Os tambores de S�o Lu�s
Noite sobre Alc�ntara
O sil�ncio da confiss�o
Largo do desterro
Pedra viva
Aleluia
Perto da meia-noite
Uma varanda sobre o sil�ncio

A coroa de areia
Antes que os p�ssaros acordem
Um beiral para os bem-te-vis
(a sair em novembro)



O camarote vazio
Uma sombra na parede



SEMPRE
UM BOM
LIVRO ISBN

85.209.0148-4





De: Reginaldo Mendes






Olá, pessoal:

                   Este é mais um livro de nossa campanha de doação  e digitalização de livros para atender aos deficientes visuais.

                   Agradecemos ao irmão Adeilton pela doação e ao irmão Fernando Santos  pela digitalização.

                    Pedimos que não divulguem em canais públicos ou Facebook. Esta nossa distribuição é para atender aos deficientes visuais em canais específicos.


O Grupo Mente Aberta  lança hoje mais um livro digital !

Desejamos a todos uma boa   leitura !


Sinopse:

Iniciada a leitura de A ÚLTIMA

CONVIDADA, logo o leitor se vê envolvido

por sua trama, no crescente interesse da

narrativa, e aí está o ponto fundamental da

arte do grande narrador.

Límpido, senhor de uma prosa

transparente e translúcida, que é também um

modelo de língua portuguesa, Josué Montello

só reclama para si a glória de ser um

contador de histórias, aliciando

gradativamente o seu leitor e

proporcionando-lhe, com o fluxo narrativo

de seu romance, uma nova penetração nos

mistérios da consciência humana.

Sem repetir-se, sem buscar o efeito fácil




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